Sou Ou Não Sou o Rei Do Candomblé Aspectos Da Trajetoria Artistica de Joãozinho Da Goméia

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


ÁREA DE HISTORIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTORIA

Andréa dos Santos Nascimento

“AFINAL, EU SOU OU NÃO SOU O REI DO CANDOMBLÉ”:


ASPECTOS DA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DE JOÃOZINHO DA GOMÉIA
(1936-1966)

Niterói
Janeiro, 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ÁREA DE HISTORIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTORIA

Andréa dos Santos Nascimento

“AFINAL, EU SOU OU NÃO SOU O REI DO CANDOMBLÉ”:


ASPECTOS DA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DE JOÃOZINHO DA GOMÉIA
(1936-1966)

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do Título de Mestra em História, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade Federal Fluminense.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Larissa Moreira Viana

Niterói
Janeiro, 2022
Ficha Catalográfica
BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Larissa Moreira Viana (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andréa Luciane Rodrigues Mendes
Universidade Estadual de Campinas

__________________________________________________
Prof. Dr. Nielson Rosa Bezerra
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Giorgina Silva dos Santos (Suplente interno)
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________
Prof. Dr. Xavier Vatin (Suplente externo)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
DEDICATÓRIA

À minha mãe Gessy,


que sempre esteve ao meu lado,
com muito amor, entusiasmo, fé, força,
parceria, proteção e sabedoria.
Te amo!!!
Figura 1: Registro da presença de Dercy Gonçalves na comemoração do Jubileu de Prata de Joãozinho da
Goméia, que comemorou os 25 anos de iniciação religiosa. .
Fonte: Registro cedido pela comunidade de Instagram NZAZI DA ANGOLA.
Figura 2: Registro da imagem do Caboclo Pedra Preta que pertencia à Joãozinho da Goméia.1

Sem o Caboclo Pedra Preta não teríamos história para contar.

1
Registro do Caboclo Pedra Preta feito pelo folclorista e jornalista Edison Carneiro, para o livro Religiões
Negras. CARNEIRO, Edison. Religiões Negras: notas de etnografia religiosa. 2ª edição: Civilização
Brasileira, 1981.
AGRADECIMENTOS

Escrever esta dissertação de mestrado, em plena pandemia, foi à experiência


mais intensa e difícil de toda minha vida!!! Devo confessar a minha paixão pela
Universidade Federal Fluminense, e que este momento, impacta não apenas a minha vida,
mas a vida da minha família.
A pesquisa aqui apresentada é o resultado de 20 anos de investimentos em torno da
investigação dos rastros deixados por Joãozinho da Goméia. Sou a única pesquisadora
negra, até agora, que se dedicou a investigar esta trajetória de vida, e isso é muito
significativo, pois a pesquisa me ensinou sobre a importância da visibilidade da pessoa
negra, de como eu precisava me posicionar neste campo, em que minha capacidade
intelectual, e meu conhecimento sobre o tema foram diversas vezes invalidados e
questionados, e, por isso, o acesso a alguns espaços de pesquisa me foram negados. Entrar
em contato com a produção intelectual de pensadores negros, não apenas me ajudou a
refletir sobre a minha pesquisa, como desconstruiu e reconstruiu muita coisa, que veio a
fortalecer a minha caminhada. Ou seja, o mestrado me transformou como pessoa e como
profissional da História.
A pesquisa aqui apresentada é antes de qualquer coisa o resgate das memórias desse
homem negro, gay, nordestino e pai de santo. Uma memória, que foi apagada e silenciada
por muitas décadas, repercutindo no esquecimento do terreno que abrigou o terreiro da
Goméia localizado no município de Duque de Caxias.
Em nome desta memória que, ao ser tocada, fortalece muita gente que é parte desse
universo, eu, como uma mulher negra afro-religiosa, tenho total ciência de que a dedicação
a esta pesquisa se torna um ato político de resistência. Afinal, vivemos no país em que
mais se matam pessoas LGBTQIA+, e se cometem crimes contra o sentimento religioso de
adeptos das religiões de matriz africana. Neste momento, crescem significativamente as
denúncias de crimes de homofobia e de racismo religioso principalmente na região da
Baixada Fluminense. Então, trazer à tona os passos, desvendar os rastros e soltar mais fios
pelo caminho, é tal como fortalecer as lutas de muita gente que resiste no país do
retrocesso.
O trajeto trilhado por pós-graduandos é quase sempre solitário, mas eu tenho muita
sorte de ter ao meu lado pessoas fortes, amorosas, dedicadas e dispostas a conviver com o
mau humor, que foi um inconveniente companheiro de trabalho neste contexto de
isolamento social, que caracterizou o cotidiano de muita gente nesta pandemia por
COVID-19. Foi uma travessia dolorosa, mas muito afetiva.
Antes de qualquer agradecimento especifico e direto, quero agradecer a Deus
por ter possibilitado que o universo me socorresse por tantas vezes e conspirasse ao meu
favor. Agradeço pela minha saúde física e mental e por ter nos protegido nestes tempos
sombrios. E, como eu acredito que a nossa caminhada só ganha sentido se não for
absolutamente solitária, gostaria de expressar a minha gratidão por pessoas que em
momentos pontuais afagaram a minha alma e me fortaleceram. Foi muito importante sentir
a fé que vocês botaram em mim, principalmente em momentos de cansaço e de solidão, e
nos momentos mais espinhosos de um trabalho que foi realizado sem bolsa de pesquisa.
Uma pesquisa em que a metodologia teve que ser reelaborada por algumas vezes, devido à
impossibilidade de acesso aos arquivos públicos, e as narrativas orais. Como foi difícil
bater nas portas e não conseguir abri-las, mas com o tempo fui percebendo que os
caminhos adotados por mim só poderiam ser esclarecidos pelo próprio Joãozinho da
Goméia e, de certa forma, esta constatação foi a minha luz no fim do túnel, porque quanto
mais os “Nãos” eram ditos, mais as informações sobre Seu João da Goméia, iam surgindo e
salvando este trabalho. E, pela ajuda, agradeço a presença do Orixá na minha vida.
Agradeço a força, luz, proteção e amor dos meus Guias espirituais. Sem eles, com toda
certeza, a sorte da minha relação com Joãozinho da Goméia, nunca seria despertada. Já
dizia meu estimado zelador, amigo e avô do coração Agenor Miranda Rocha: “Pedir é
fácil, mas ser grato é um dom, que poucos possuem”. Sempre leio nos agradecimentos de
trabalhos acadêmicos, a menção à solidão. No meu caso, eu tenho muita sorte, pois eu não
estive sozinha, pois a minha mãe esteve ao meu lado o tempo inteiro sendo, além de afeto
materno, uma fundamental interlocutora que acompanhou todo o processo de produção
deste trabalho. Toda a minha gratidão a você, que nunca me abandonou em nenhuma fase
da minha vida. Que desde as pesquisas de campo de 2001, na Baixada Fluminense, foi uma
parceira de pesquisa, que ajudou a então menina de 22 anos de idade, iniciando na pesquisa
acadêmica, a quebrar o gelo inicial com as pessoas entrevistadas. Saiba que tudo vale a
pena porque você está ao meu lado. Te amo!!!!
Estendo a gratidão ao meu saudoso irmão Anderson Ulisses dos Santos
Nascimento, que em vida foi um brilhante ativista político pelo Partido Comunista
Brasileiro; Doutor em Língua Portuguesa, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
e professor do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II. Um homem negro, que
encontrou sentido para a sua existência dentro dos limites da Educação, e da política
educacional. Agradeço por ter sido a minha principal inspiração e meu incansável
incentivador nos caminhos da pesquisa e da Educação. Ele sonhou com este momento, e a
ele dedico esta vitória e todas que ainda estão por vir.
Rendo outro agradecimento especial à Universidade Federal Fluminense que
proporcionou a oportunidade de obter a vacina de imunização contra a Covid-19 e, por
tanto, estendo a minha gratidão aos funcionários do Programa de Pós-graduação em
História. No momento em que precisei trancar por seis meses a minha matrícula, para
cuidar da minha mãe diagnosticada com Covid, me atenderam prontamente e me deixaram
tranquila para poder, primeiro, me afastar, e, logo em seguida, retornar.
Para uma pessoa inquieta, curiosa e exigente como eu, a tranquilidade é o elixir dos
Deuses. E, por isso, agradeço à minha doce orientadora Larissa Moreira Viana, que soube
lidar comigo de forma amorosa e constante. Obrigada pela liberdade que você me deu
para trabalhar o tema ao qual dediquei meus esforços. Liberdade e tranquilidade foram
ingredientes essenciais nesta caminhada.
Posso dizer que o meu retorno à Universidade Federal Fluminense, com esta
pesquisa, foi incentivado pela professora Martha Abreu que, em 2017, ano em que meu
irmão faleceu, me convidou para assistir suas aulas no PROFHISTORIA (Programa de
Mestrado profissional em Ensino de História), incentivando o meu ingresso no Programa
de Pós-graduação em História. À Martha Abreu também agradeço a oportunidade de estar
presente nas reuniões do Grupo de Estudo e Pesquisa Cultura Negra no Atlântico
(CULTNA), que foram um bálsamo para estes longos e intermináveis meses de isolamento
social. Aproveito a oportunidade, inclusive, para estender os meus agradecimentos aos
colegas do CULTNA, que acolheram a minha pesquisa e abasteceram meu entusiasmo
perante a produção da Dissertação.
Agradeço a Fundação Pierre Verger por ter disponibilizado do seu vasto acervo, as
duas fotografias que dialogaram tão bem com o meu trabalho. Muito obrigada à Roberta
que foi tão gentil e compreensiva comigo e com o meu trabalho.
Um agradecimento especial à professora Vânia Leitte Fróes, professora titular de
História Medieval da Universidade Federal Fluminense. Fui sua aluna na disciplina
“Comer, vestir e rezar” com o intuito de obter ajuda com leituras para entender o conceito
de “realeza”, e me encantei com o seu carinho, respeito e receptividade com a minha
pesquisa.
Ao estimado professor e antropólogo docente aposentado pela Universidade Federal
Fluminense, Wagner Neves Rocha, que conheci em uma das aulas da disciplina
“Comer, vestir e rezar”, e foi um encanto à primeira vista. Obrigada pela tarde de conversa,
quando falamos de História, Antropologia, Folclore e Joãozinho da Goméia. Obrigada pela
sua atenção, generosidade, interesse, disponibilidade e respeito com o meu trabalho.
Sou grata ao historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Nielson Bezerra, que é uma importante referência para a circulação das memórias e das
pesquisas sobre a Baixada Fluminense, coordenando eventos acadêmicos e estimulando a
publicação de artigos e livros escritos por pesquisadores da trajetória de vida do pai de
santo Joãozinho da Goméia. Obrigada pelas valiosas contribuições durante o processo
de qualificação de mestrado.
Acredito de verdade que Seu João da Goméia escolhe a dedo aqueles que
trabalham para ele. E, sim, sou uma dessas mulheres escolhidas para trazer à tona os
aspectos da sua vida, através da escrita acadêmica. E, como a sua relação de proteção,
amizade e afeto com as mulheres era muito forte, cito o nome de: Andréa Mendes e
Adriana Batalha. Sou grata a Andréa Mendes pela interlocução de sempre; pelo apoio,
entusiasmo e a crença no sucesso desse trabalho. Quando pensei na composição da minha
banca de mestrado, o seu nome despontou alegre e faceiro, pois sabia que as suas
contribuições seriam fundamentais para a execução desse trabalho. Digamos que os seus
toques na qualificação, desarmaram armadilhas, e foi o fôlego que eu precisava naquele
momento.
À amiga e antropóloga Adriana Batalha, que me acolheu. Conhecemo-nos em
março de 2019, e a impressão que sempre tive é que somos amigas há muito mais tempo.
Uma relação de muita troca e muito carinho, com pesquisas que dialogavam
constantemente. Se Adriana não estivesse pintado na minha estrada, teria sido mais
2
pesado o caminho. Obrigada pela amizade, pelas trocas e pela interlocução.
Agradeço ao antropólogo, professor associado de Antropologia pela Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia e coordenador do projeto Memórias Afro- Atlânticas,
Xavier Vatin, que me ajudou cedendo da sua pesquisa as fotos produzidas pelo
etnomusicólogo afro-americano Lorenzo Turner, pertencentes à instituição Anacostia
Community Museum, Smithsonian Institution. Uma ajuda valiosa que enriqueceu o meu

2
Em alguns momentos as palavras aparecerão unidas, peço desculpas aos leitores por isso. Foi um erro da versão
2007 do meu Word que não consegui resolver.
trabalho.
Os agradecimentos a Waldemar Alvarenga Lapoente, o “Reizinho”, precisam ser
destacados, já que ele esteve presente nos meus primeiros contatos com este campo de
pesquisa. As primeiras imagens e informações me foram dadas por ele em 2001, quando
cursava História pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Desde lá, construímos uma aliança de fraternidade e parceria em torno
das memórias de Joãozinho. Foi a pessoa que sempre esteve disponível para qualquer
movimento que realizei em direção ao meu objeto de estudo.
Antes de falecer, avisei ao querido e saudoso amigo Taata Anselmo Minatojy, que
ele estaria presente nos meus agradecimentos. Afinal, a sua amizade foi fundamental para a
minha caminhada nesta travessia, que por muitas vezes foi dolorosa e muito difícil.
Obrigada, meu amigo querido, pelas palavras cheias de afeto, que me fortaleceram até
aqui.
Agradeço imensamente ao gentil amigo Caio Sergio de Moraes Santos e Silva, que
foi parceiro em diversos momentos desta trajetória de pesquisa, e também foi ajuda por
algumas vezes. Obrigada, por ser luz no fim do túnel, Caio.
Ao amigo Nieri Santos Lima, que tenho grande carinho e me auxiliou no momento
que eu mais precisei, com habilidade, inteligência e competência. Obrigada, meu amigo.
Agradeço aos amigos das redes sociais facebook e instagram, que nestes tempos de
Covid-19, estiveram por perto, e incentivaram meus esforços para produzir a pesquisa que
resultou nesta dissertação de mestrado.
Agradeço também a Seu João Alves Torres Filho, o Seu João da Goméia, que desde
nosso primeiro encontro em 2001, lançou suas flechas nos meus caminhos e me ofertou
tantas possibilidades de acesso a sua trajetória de vida. Sem este Axé estes quase 21 anos
de pesquisa não seriam nada.
E, por fim agradeço aos que não atrapalharam, sendo assim já ajudaram
grandiosamente.
RESUMO

Essa dissertação tem como objetivo analisar alguns aspectos da trajetória artística do pai de
santo baiano Joãozinho da Goméia, através da sua atuação nos palcos de cassinos, teatros,
boates, e na rádio, na imprensa, no cinema e no carnaval. A partir da consulta ao material
de imprensa produzido entre 1936 e 1966, e com o auxílio de uma bibliografia especifica
consegui mergulhar neste mar profundo que foi o Rei do Candomblé. Para investigar os
seus rastros como artista, tive que considerar as suas múltiplas faces, e entender que o fio
condutor desta busca era o seu envolvimento com o candomblé. Constatar que artístico e
religioso dialogavam e se entrecruzavam constantemente, foi o ponto de partida desta
travessia que buscou tecer os fios deixados pelo caminho por biógrafos do pai de santo, e,
como consequência, gerou outros tantos fios que pretendem fornecer subsídios para
outros tantos trabalhos. O período analisado está centrado entre 1936 e 1966, que
equivale à participação colaborativa nos preparativos do Segundo Congresso Afro-
brasileiro de 1937; e a participação de Joãozinho como “destaque de luxo” e condutor do
desfile “Glórias e Graças da Bahia” da Escola de Samba Império Serrano. Esta pesquisa
descobriu Joãozinho da Goméia nos entornos, através da construção de redes de
sociabilidades que eram redimensionadas de acordo com os seus interesses, como se estas
pessoas fossem peças em um tabuleiro de xadrez. Revelando a personalidade estrategista
do pai de santo. Esta revolução de cores, brilhos, sons e passos, revelam também aspectos
da luta de um homem negro no período pós-Abolição que rompeu o “véu da
invisibilidade” e construiu um projeto de ascensão social nos campos artístico e religioso.

Palavras-Chaves: 1. Joãozinho da Goméia; 2. Rei do Candomblé; 3. Folclore negro 4.


Redes de sociabilidades 5. Destaque de luxo.
ABSTRACT

This dissertation aims to analyze some aspects of the artistic trajectory of the Bahian “pai
de santo” (religious authority) Joãozinho da Goméia, through his performance on the
stages of casinos, theaters, nightclubs, and on the radio, in the press, in the cinema and at
carnival. By consulting press material produced between 1936 and 1966, and with the
help of a specific bibliography, I managed to dive into this deep sea that wasthe King of
Candomblé. In order to investigate his traces as an artist, I had to consider his multiple
faces, and understand that the common thread in this search was his involvement with
Candomblé. Realizing that artistic and religious dialogued and intertwined constantly was
the starting point of this journey that sought the threads left by the paths by biographers of
the “pai de santo”, and generated others that intend to continue the interest in new
constructions of meaning. The period to be analyzed is centered between 1936 and 1966,
which are equivalent to collaborative participation in the preparations for the Second Afro-
Brazilian Congress of 1937; and the participation of Joãozinho as a “luxury standout” and
conductor of the parade “Glórias e Graças da Bahia” at the Império Serrano Samba School.
This research discovered Joãozinho da Goméia in the surroundings, through the
construction of sociability networks that were resized according to their interests, as if
these people were pieces on a chessboard. Revealing the strategist personality of the “pai
de santo”. This revolution of colors, sparkles, sounds and steps also reveal aspects of the
struggle of a black man in the post- Abolition period who broke the “veil of invisibility”
and built a project of socialascension in the artistic and religious fields.

Keywords: 1. Joãozinho da Goméia; 2. King of Candomblé; 3. Black folklore; 4. Social


Networks; 5. Luxury highlights.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Registro da presença de Dercy Gonçalves na comemoração do Jubileu de Prata


de Joãozinho da Goméia, que comemorou os 25 anos de iniciação religiosa.
Fonte: Registro cedido pela comunidade de Instagram NZAZI DA ANGOLA.
Figura 2: Registro da imagem do Caboclo Pedra Preta que pertencia a Joãozinho da
Goméia.
Figura 3: Registro fotográfico produzido por Lorenzo Turner no terreiro da Goméia no Bairro de São
Caetano, Salvador, Bahia. Fonte: Anacostia Community Museum, Smithsonian Institution. As
imagens foram cedidas por Xavier Vatin, coordenador do projeto Memórias Afro-Atlânticas.
Figura 4: Joãozinho da Goméia pelas mãos do desenhista e cinegrafista Carlos
Bastos. Fonte: AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios.
Rio de Janeiro, Record, 1991, p.15.
Figura 5: “Personagem de Romance e da Vida: Jubiabá não gostou do livro de Jorge
Amado- Como vive, no Morro da Cruz do Cosme, o famoso pae de santo-Capitão de 2ª
linha e macumbeiro”. Reportagem de O Jornal de 17/05/1936.
Figura 6: “Magia Negra: Pae de Santo aos quinze anos, João da Pedra Preta e, agora, o
mais prestigiado macumbeiro da Gomea”. Capa do jornal Correio de São Paulo, de
18/08/1936. João da Pedra Preta, um jovem pai de santo aos 22 anos de idade, demonstra a
simplicidade do seu terreiro localizado na Rua da Goméia, bairro de São Caetano, em
Salvador.
Figura 7: “Pai de santo aos quinze anos: Caboclo Pedra Preta quer liberdade de culto”.
Capa do jornal Diário da Noite, de 9/09/1936.
Figura 8: Reportagem do jornal A Noite de 26/01/1937. Fotografia de encerramento do
Segundo Congresso Afro-Brasileiro. Da esquerda para a direita: O interventor do Estado da
Bahia Juracy Magalhães, Edison Carneiro, Taata Manoel Bernardino do Bate Folha;
Aydano do Couto Ferraz, Martiniano Eliseu do Bonfim, Mãe Menininha do Gantois.
Figura 9: Registro do Grupo de parceiros de capoeira do Mestre Samuel Querido de
Deus, que se apresentaram no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937. O autor da
fotografia não foi identificado.
Figura 10: Registro de visita de congressistas ao terreiro da Goméia. Não
conseguimos localizar a data em que o registro foi feito, nem a data em que o terreiro foi
visitado. Fonte: A reportagem do jornal O Estado da Bahia foi compartilhada sem
referência à data da publicação no site: http://velhosmestres.com/br/destaques-5
Figura 11: João da Pedra Preta, em registro feito pelo etnomusicólogo Lorenzo Dow
Turner (1940- 41). Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Community Museum
Smithsonian Institute.
Figura 12: Lavagem - Filhas de João da Goméia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x
661 Tamanho: 536kb
Figura 13: Filhas de santo do terreiro da Goméia reunidas para o cortejo com água
sagrada para lavar a igreja para a cerimônia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661
Tamanho: 536kb
Figura 14: João da Goméia conduzindo suas filhas de santo - Lavagem do Bonfim -
janeiro, 1939. Dimensão: 1956 x 651 Tamanho: 463kb
Figura 15: Sacerdotisas com água sagrada e outros personagens da lavagem do Bonfim.
Filhas de João da Goméia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb
Figura 16: Sacerdotisas com água sagrada para lavar a igreja. Lavagem - Filhas de João
da Goméia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb
Figura 17: Joãozinho da Goméia com seus filhos de santo, no terreno onde está abrigado o
terreiro da Goméia. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian
Institute.
Figura 18: Joãozinho da Goméia ainda como João da Pedra Preta em seu terreiro no bairro
de São Caetano, em Salvador. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum
Smithsonian Institute.
Figura 19: Registro de Joãozinho da Goméia a frente de um espaço sagrado do terreiro da
Goméia de São Caetano, em Salvador. Aqui o pai de santo abre espaço para o João Alves
Torres Filho, em momento de descontração. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers,
Anacostia Museum Smithsonian Institute.
Figura 20: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano,
quando Joãozinho contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um
terreiro de candomblé Angola. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum
Smithsonian Institute.
Figura 21: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano,
quando Joãozinho contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um
terreiro de candomblé Angola. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum
Smithsonian Institute.
Figura 22: Registro fotográfico feito pelo sociólogo Roger Bastide onde destaca os
tambores lê, rumpê e rum do candomblé de Joãozinho. “Da esquerda para a direita: as
filhas de Yemanjá, Ogum, Oxalá, Oxum”. De acordo com Roger Bastide, esta imagem foi
publicada nos Diários Associados. Fonte: BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico
em branco e preto. RJ: Seção de livros da empresa gráfica “O Cruzeiro”, 1945.
Figura 23: Candomblé Joãozinho da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico
feito por Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger. Fonte: Foto Pierre Verger
©Fundação Pierre Verger.
Figura 24: Candomblé Joãozinho Da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico
feito por Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger. Fonte: Foto Pierre Verger
©Fundação Pierre Verger.
Figura 25: Reportagem Passando em revistas as danças e ritos dos terreiros da Baía: João
da Goméa o ‘Pedra Preta’ fala a reportagem sobre candomblés e outras coisas interessantes
que conhece do jornal A Manhã de 16/07/1942, onde Joãozinho da Goméia, fala de seus
planos artísticos para a sua estadia no Rio de Janeiro. Fonte: BNDigital.
Figura 26: Registro de Joãozinho da Goméia muito jovem vestido de trajes ligados a
motivos do folclore baiano. Acreditamos que seja um registro colhido no Segundo
Congresso Afro- brasileiro de 1937. Fonte: Domínio público.
Figura 27: “O Orixás descem sobre o terreiro”. Reportagem do jornal A Manhã, de
13/02/1949. Joãozinho da Goméia e o cinegrafista Izaac Rozemberg, interessado pelos
motivos folclóricos coreográficos e musicais. Por causa da reportagem, inicia-se uma
celeuma entre o documentarista Isaac Rozemberg e a coreografa e bailarina Eros Volúsia,
pois no curta-metragem, o locutor ao que transformaram Joãozinho da Goméia em artista
da dança negra. Fonte: BNDigital
Figura 28: “Protesta Eros Volúsia: Discípula de babalaô, não.”. Reportagem do jornal
Diário da Noite de 11/02/1949. O protesto da bailarina e coreografa Eros Volúsia contra o
documentarista Isaac Rozemberg, em nome da preservação do seu patrimônio artístico e
coreográfico. Fonte: BNDigital
Figura 29: “As novas vitórias de Any Guaíba” A bailarina afirma que passou um tempo no
terreiro da Goméia de São Caetano, em Salvador, observando os passos de candomblé de
Joãozinho da Goméia e de suas filhas de santo, para buscar inspiração coreográfica para
suas ‘estilizações” artísticas. Publicação da revista Carioca de 08/06/1946. Fonte:
BNDigital
Figura 30: Reportagem do jornal Correio da Manhã, 10/12/1947, com cena da coreografia
criada por Joãozinho da Goméia para o espetáculo “Uma dança da Bahia: João da Gomeia
e Bravum” a ser apresentado no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1948.
Fonte: BNDigital
Figura 31: Reportagem de A Casa, revista do lar, janeiro de 1948; com cena da
coreografia criada por Joãozinho da Goméia para o espetáculo “Uma dança da Bahia: João
da Gomeia e Bravum” a ser apresentado no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Fonte: BNDigital
Figura 32: Reportagem fotográfica “Mexicanita e o Babalaô” da revista A Scena muda: Eu
sei tudo (Magazine mensal) de 05/07/1949. Fonte: BNDigital.
Figura 33: A reportagem fotográfica de Arnaldo Vieira celebra a amizade entre o pai de
santo e coreografo Joãozinho da Goméia e a jovem e bela interprete Mexicanita que vinha
fazendo sucesso nos “night-clubs” da Capital Federal. As fotografias que ilustram a
reportagem mostravam o famoso pai de santo apresentando as várias peças de trajes usados
pelas filhas de santo com seus adornos que revelam uma das tradições mais exóticas do
Brasil. Fonte: BNDigital
Figura 34: A reportagem fotográfica da revista Rio publicada 05/07/1952 é sobre uma
recepção no Largo do Boticário. A montagem acima exibe momentos onde os aspectos
folclóricos e exóticos estiveram em destaque como a apresentação do espetáculo de
candomblé dirigido por Joãozinho da Goméia, e a apresentação da dançarina naturalista
Luz Del Fuego. Este era o conceito de produto cultural nacional. Fonte: Fonte: BNDigital
Figura 35: A reportagem do jornal Última Hora de 08/09/1954. A reportagem trata do
episódio em que um terreiro de candomblé em Duque de Caxias se transformou em palco
de teatro. Como Joãozinho da Goméia era amigo de Solano, e a arte do folclorista se
desenvolvia a partir de Duque de Caxias, acreditamos que este espetáculo teatral tenha
acontecido no terreiro da Goméia. Fonte: BNDigital.
Figura 36: A reportagem do jornal Última Hora de 17/10/1951. A reportagem trata de
uma autodeclaração pública feita pelo ator Grande Otelo sobre seu nascimento religioso
dentro do terreiro da Goméia em Salvador. Fonte: BNDigital.
Figura 37: Registro fotográfico do jornal Correio da Manhã, de 21 de dezembro de 1953.
A imagem retrata um momento de observação coreográfica muito comum nas festas do
terreiro da Goméia. O bailado de Joãozinho da Goméia é captado por Mercedes Baptista. A
bailarina aparece mais à direita na foto, de lenço na cabeça. Fonte: NASCIMENTO, 2020,
p.69.
Figura 38: Registro fotográfico de autoria desconhecida capturado dentro do terreiro da
Goméia. Fonte: Blog pessoal do pesquisador e artista Antonio José do Espírito Santo.
Disponível em: https://spiritosanto.wordpress.com/2012/02/03/mercedes-batista-assim-
dancou-a-desconstrucao-da-modernidade-na-danca-afro-do-brasil
Figura 39: Joãozinho da Goméia no baile da Abolição da escravatura. Registro fotográfico
da revista A Scena muda: Eu sei tudo (Magazine Mensal) 31/10/1952. A imagem
representa um aspecto das conexões entre sujeitos negros em torno de processos de
criação artística e de formação de redes de sociabilidades. Ruth de Souza era atriz do
Teatro Experimental do Negro. Acreditamos que este registro tenha sido feito no
Renascença Clube, local onde Joãozinho se apresentava constantemente com seu grupo
folclórico. Fonte: BNDigital
Figura 40: Divulgação da revista “Casa da Viúva Costa” pelo Jornal Última Hora,
28/11/1953. Fonte: BNDigital
Figura 41: Registro fotográfico feito pelo santo Jornal Diário da Noite de 13 de agosto de
1952, da filiação de Joãozinho da Goméia à Federação Espírita Umbandista do Estado do
Rio de Janeiro. Um ato que vai impactar os próximos anos de vida de Joãozinho,
redimensionando a sua identidade religiosa. Fonte: BNDigital
Figura 42: Divulgação Do Espetáculo “Magia Baiana” exibido pela Companhia Baiana de
Folclore Oxumarê. Publicação feita pelo jornal paulista Diário da Noite em 13/10/1953.
Fonte: BNDigital
Figura 43: Divulgação de apresentação televisiva de Joãozinho da Goméia com sua
companhia de folclore baiano. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite (SP) de
28/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Figura 44: Divulgação de espetáculo da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê no
Teatro Cultura Artística. Publicação feita pelo jornal O Tempo (SP), de 09/10/1953. Fonte:
Hemeroteca Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Figura 45: Apresentação do Corpo de Baile da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê.
Publicação feita pelo Jornal O Tempo (SP) de 09/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
Figura 46: Divulgação de apresentação da companhia de folclore baiano no pequeno
auditório do Teatro do Cultura Artística. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite (SP)
de 02/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular.
Figura 47: Divulgação do espetáculo de Joãozinho da Goméia com detalhes sobre a
composição da sua Companhia de folclore, e sobre as referências de folclore nortista que
levará para o público paulista. Publicação feita jornal Diário da Noite (SP) de 23/09/1953.
Fonte: CNFCPDigital
Figura 48: “Tenório nos braços do povo: Comparecendo à Praia da Bica, na Ilha do
Governador, convidado de honra de vários centros espíritas e terreiros de Umbanda, o
deputado Tenório Cavalcanti recebeu entusiastas manifestações populares”. Registro da
homenagem que o deputado Tenório Cavalcanti recebeu de representantes de Tendas
umbandistas na Praia da Bica, Ilha do Governador. Uma homenagem que reflete o
reconhecimento do jornal Luta Democrática como divulgador, incentivador e protetor das
religiões afro-brasileiras. Publicação do Jornal Luta Democrática, de 03/01/1960.
Figura 49: Tenório nos braços do povo: Delirantes manifestações de carinhoso respeito
do homem da rua recebeu o parlamentar fluminense, na Ilha do Governador, no centro da
cidade e na zona sul- Saravá Iemanjá. Publicação do jornal Luta Democrática de
03/01/1960 Fonte: BNDigital
Figura 50: “Bebidas finas em sala reservada- A indústria progride- Personagens
anônimos no espetáculo teatral. São os personagens da indústria macumbeira de
Joãozinho da Goméia”. Registro da visita do delegado Albino Imparato ao terreiro da
Goméia. Um ano antes do seu assassinato Publicação do jornal Tribuna da Imprensa de
18/06/1952. Fonte: BNDigital
Figura 51: “Invitation au candomblé” - Registro de convite escrito em francês, ao bom
modo Joãozinho da Goméia de ser. Publicado pelo jornal Diário Carioca de 20/11/1964.
Fonte: BNDigital
Figura 52: “Joãozinho da Goméia, o grã-fino do terreiro”. Publicação da revista Manchete
de 08/10/1952. Registro da festa de Cosme e Damião organizada por Joãozinho da
Goméia. Fonte: BNDigital
Figura 53: “Sodoma a vista no carnaval carioca- depravação policiada”. Capa do jornal
Luta Democrática de 24/02/1955. Fonte: BNDigital.
Figura 54: “Aumenta consideravelmente o número de suicídios e crimes de anormais”. A
reportagem que criminalizou homossexuais de Duque de Caxias em 1955. Fonte: Capa do
jornal Luta Democrática de 27/03/1955. Fonte: BNDigital.
Figura 55: “O baile do travesti”. Capa da Revista da Semana de 03/03/1956. Eis a
primeira publicação que apresenta Joãozinho da Goméia, identificado como travesti. Fonte:
BNDigital
Figura 56: Joãozinho da Goméia, transvestido de bailarina da companhia de revistas
francesas, a folie bergère de paris. Publicação da Revista da Semana 03/03/1956
Fonte: BNDigital
Figura 57: Outro ângulo de Joãozinho da Goméia travestido de vedete francesa. Fonte:
GAMA, 2012, p.166.
Figura 58: Desfile de anormais na Praça Tiradentes-abominável concurso de
homossexuais sob os auspícios da divisão de turismo da prefeitura. Publicação da Luta
Democrática de 16/02/1956. Fonte: BNDigital
Figura 59: NOTA de divulgação do LP “Rei do Candomblé” da gravadora Todamérica.
Publicação do Jornal Última Hora de 23/10/1956. T
Fonte: BNDigital
Figura 60: NOTA de divulgação do LP “Rei do Candomblé” da gravadora Todamérica.
Publicação do Jornal de Umbanda de fevereiro/março de 1959. Fonte: BNDigital
Figura 61: A Boate Fred´s, onde Joãozinho da Gomeia se apresentou no ano de 1960.
Figura 62: Cartaz de divulgação do espetáculo criado por Ary Barroso para a boate Fred’s.
Publicação do jornal Diário Carioca de 14/04/1960. Fonte: BNDigital
Figura 63: “Não faço despachos contra artistas! afirma Joãozinho da Goméia. O famoso
babalorixá desmente que tenha sido procurado para fazer mal para alguns artistas - E
especialmente a uma estrela. Publicação da Revista do Rádio de março de 1960. Fonte:
BNDigital
Figura 64: “Não fiz despacho contra ROSE Rondelli”! Isso é brincadeira de mau gosto!
Publicação do jornal Ultima Hora de 28/03/1960. Fonte: Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular Digital
Figura 65: “Babalaô da Goméia fará trabalho contra Padilha”. Matéria sobre o protesto de
Joãozinho na imprensa contra o delegado Deraldo Padilha. Publicação do jornal Ultima
Hora de 19/08/1960. Fonte: BNDigital
Figura 66: “Joasinho da Gomeia fez duas Rainhas do Rádio!”.
Publicação da Revista do Rádio de fevereiro de 1954. Fonte: BNDigital
Figura 67: Registro de Joãozinho da Goméia fantasiado de Vulcano, o deus do fogo da
Mitologia. De acordo com Vulcano, deus do fogo, era filho de Júpiter e de Juno. Fabricava
raios para Júpiter. Com eles ficou vitorioso na luta contra os Gigantes, que queriam
apoderar-se do céu. Publicação da Revista do Rádio de fevereiro de 1960. Fonte: BNDigital
Figura 68: “O famoso Joãozinho da Goméia de Rei Netuno com Zélia Hoffman”
Fonte: BNDigital
Figura. 69: Reportagem sobre a participação de Joãozinho no Baile patrocinado pela
Associação de Cronistas Carnavalescos. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite,
06/02/1962. Fonte: BNDigital.
Figura. 70: Joãozinho registrado pela Revista do Rádio de fevereiro de 1960, a qual
informa que só naquele ano havia comparecido a vário baile fantasiado, usando fantasias
riquíssimas e exóticas. A Revista cita a participação do Ramsés II no Baile das atrizes, que
se realizava no Hotel Glória, despertando a curiosidade se esta fantasia foi utilizada por
duas vezes. Percebam que Joãozinho está vestido com traje real, em sua cabeça está fixada
uma coroa, e com o cetro na mão, João está sentado em uma simulação de trono carregado
por fortes homens negros que figuram a imagem de escravos. Fonte: Revista do Rádio,
1962.
Figura 71: Joãozinho da Goméia e a destaque de luxo salgueirense Isabel Valença. Fonte:
file:///C:/Users/Particular/Downloads/55012-203488-1-PB%20(4).pdf
Figura 72: Registro fotográfico feito para a revista O Cruzeiro, que retrata uma nova fase
para a carreira artística e religiosa do agora Taata Londirá, o sacerdote baiano do
candomblé Angola, que conseguiu contribuir com o processo de popularização do
candomblé Angola. A partir de 1966, a imagem pública do Rei do Candomblé é
amplamente fortalecida. Fonte: O Cruzeiro, 23/09/1967.
Figura 73: Jornal de Umbanda, Novembro/Dezembro de 1959.
Trazemos esta matéria publicada pela edição de novembro/dezembro de 1959, do Jornal de
Umbanda, com o intuito de apresentar a relação entre Joãozinho da Goméia e Menininha
do Gantois em torno das celebrações ao orixá Iemanjá, que ocorriam em Salvador nos anos
de 1950. A fonte apresenta a formação da “Comissão Yemanjá”, da qual Joãozinho era
vice-presidente. Um evento que contava com a presença das autoridades estaduais e
municipais, do Departamento de Turismo, e das lideranças de terreiros tradicionais
baianos. As caravanas organizadas por Joãozinho saiam de São Paulo e do Rio de Janeiro,
tomando parte da festa do Senhor do Bonfim, percorrendo os candomblés e terreiros
incluídos no programa da celebração, encerrando a peregrinação na praia de Itapoã, com
a grande entrega de flores e presentes à Rainha do Mar. Chegando a Bahia,
Menininha do Gantois presidia os festejos, com visitações aos terreiros: Casa Branca do
Engenho Velho, a casa do babalorixá Rufino do Beirú (o bom do pó), o Ilê Axé Opô
Afonjá, o terreiro de Mãe Simplícia, e o terreiro da Goméia. Acreditamos ser esta uma
fonte valiosíssima por possibilitar a reconstrução do olhar sobre o pai de santo e os
terreiros tradicionais baianos, a partir da perspectiva dos eventos folclóricos dos anos de
1950 e 1960. Com a contribuição que Joãozinho deu para o folclore baiano,
através das festas públicas da Lavagem do Bonfim e do Presente de Iemanjá, e da relação
que desenvolveu em São Paulo com as celebrações dos meses de fevereiro, agosto e
dezembro, podemos considerar que precisamos descobrir novos rastros que relacionem
Joãozinho da Goméia com o campo afro-religioso baiano, da segunda metade do século
XX.
Figura 74: “Joãozinho da Goméia acredita que imagem de Iemanjá é desfigurada”
Publicação do jornal O Fluminense de 21/12/1966.
A reportagem de O Fluminense traz o ponto de vista de lideranças religiosas do
catolicismo, do Kardecismo, da Umbanda e do Candomblé sobre a importância em torno
do culto ao orixá Iemanjá nas praias do Rio de Janeiro. Joãozinho da Goméia ao ser
entrevistado toca em pontos delicados que atingem umbandistas, e questiona a relação
deste campo religioso, com um orixá que na opinião dele, pertence ao candomblé, por
causa da sua procedência africana. Joãozinho também critica aquilo que ele chama de
“desfiguração” da imagem da deusa africana. Entendendo que os umbandistas alteraram a
estética do orixá, dando a estes traços europeus. O que considera ser uma violenta
deturpação dos costumes do candomblé. Fonte: BNDigital
Figura 75: “Umbanda é mentira”. Publicação da revista O Pasquim de 22/07/1970. Fonte:
BNDigital.
Figura 76: “Umbanda é mentira”. Publicação da revista O Pasquim de 22/07/1970. Fonte:
BNDigital
Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.

Guimarães Rosa
24

INTRODUÇÃO

A noite desce sobre o encantado país do rei João de Duque de Caxias. Em


verdade, não estou mais no Brasil, sujeito às suas leis e aos seus parágrafos.
Estou em noite africana, movida a atabaque, em nação nagô. Chove azul, chove
verde, chove amarelo no reino da Goméia. Ralaram um arco-íris inteirinho por
cima dos seus Orixás. Tem de tudo no país de João. Tem pano da Costa, do
mais rico e do mais fino. Tem carne de bode, tem fumo e milho-verde. Tem
chitão e mel de cachaça. Tem Oxalá, de cajado em punho, para castigar os
pecados da gente. Não há mão mais comprida que a de Oxalá. Tão comprida que
pode desatarraxar a uma estrela ou pegar um cometa pela cauda. O mundo foi
passado em escritura pública para o seu nome. Com nuvens e águas. E também
pássaros.3

Assim que concluí este trabalho, foi inevitável que toda a trajetória da pesquisa me
viesse à mente. Logo que me sentei ao computador, e pude escrever esta introdução, revi
minha própria trajetória de pesquisa que se confunde com minha história de vida.
Em 2001, decidi investir esforços na investigação da vida do pai de santo
Joãozinho da Goméia. Cursava História na Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e fazia constantes visitas 4 à residência do
professor e olwô5 Agenor Miranda Rocha6. O contato com Pai Agenor7 me proporcionou
acesso a alguns pais e mães de santo da Baixada Fluminense, que auxiliaram e muito as
escolhas metodológicas que só adotei agora. Foi-me sugerido que seria prudente, antes de
qualquer coisa, consultar os búzios. No jogo me foi revelado que eu tinha uma “história” a
3
Crônica de João Candido de Carvalho para a revista O Cruzeiro, publicada no dia 21 de outubro de 1967.
4
Curiosamente, o meu interesse por estudar a trajetória de Joãozinho da Goméia, se deu na casa de uma
liderança religiosa originária da comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá, que mantinha viva em sua memória a
representatividade de Mãe Aninha Obá Biyí, e de Martiniano Eliseu do Bonfim- personagens que fizeram
parte do convívio pessoal de Joãozinho da Goméia.
5
Sobre o termo olwô, a dicionarista Olga Gudolle Cacciatore informa que é o dono dos segredos de Ifá que
“sabe as histórias do grande número dos odus” em CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-
brasileiros. 3. Ed, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
6
Agenor Miranda Rocha foi um sacerdote de Ifá e também professor catedrático aposentado do Colégio
Pedro II. Nasceu em 8 de setembro de 1907, em Luanda, capital de Angola. Foi iniciado pela Ialorixá Eugênia
Anna dos Santos, Mãe Aninha (Oba Biyí) fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Segundo Muniz Sodré, foi
através da amizade com o Ministro Oswaldo Aranha que no governo de Getúlio Vargas assinou-se o
decreto nº 1202 que deu liberdade aos cultos afros até então proibidos e perseguidos. Agenor Miranda foi um
importante referencial da história do candomblé, pois depois de Martiniano Eliseu do Bonfim a ele foi dada a
alcunha de ser o único sacerdote de Ifá vivo no Brasil.
7
Agenor Miranda Rocha escreveu o livro As nações Kêtu: ritos e crenças: os Candomblés antigos do Rio de
Janeiro; que é referência para quem deseja estudar a formação dos terreiros de candomblé na primeira metade
do século XX.
25

ser construída a partir daquela pesquisa. Em um dado momento, mencionei o meu


interesse, e Pai Agenor me perguntou: Você já ouviu falar em Joãozinho da Goméia???
Lembrei, que na minha adolescência, já tinha ouvido a minha mãe contar que a minha avó,
havia trabalhado como passadeira no Cassino da Urca, entre os anos de 1930 e 1940,
cuidando dos uniformes de trabalho dos funcionários, e das roupas de show das dançarinas
do local e que um dos dançarinos era o pai de santo Joãozinho da Goméia. Uma narrativa
afetiva e familiar porque vovó Alpides foi por muito tempo umbandista, daquelas que
celebrava o dia de Cosme e Damião com festas concorridíssimas pelos moradores do bairro
do Barreto, município de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Aliás, devo dizer, que de
uma forma ou de outra, o carioca que tem mais de 60 anos de idade, e pertenceu a
umbanda ou ao candomblé, mesmo sendo hoje evangélico ou católico, já ouviu falar
alguma vez na vida, no nome do pai de santo Joãozinho da Goméia, o que sugere ser
este um personagem que habita no imaginário urbano carioca do século XX.
Lembrei-me das explanações de Pai Agenor, que espelhavam o pensamento
tradicional do candomblé baiano dos anos 1930, foi a oportunidade que tive de acessar as
suas memórias pessoais sobre o comportamento de Joãozinho da Goméia, em seus tempos
de residente na cidade de Salvador.
Ao entrar em contato com as fitas K-7, que guardam esses relatos pessoais,
constatei que não existiam informações sobre a carreira artística de Joãozinho da Goméia,
o que se justificava pelas críticas que pai Agenor, fazia sobre aquela trajetória, no que
tange a revolução de cores, luxo e brilho, que o pai de santo se cercou tanto em ambiente
artístico quanto religioso. Não via com bons olhos, a estética das vestimentas dos Orixás da
Goméia. Para ele, assim como para grande parte das lideranças antigas do panteão jeje-
nagô8, Joãozinho da Goméia “carnavalizou” e “teatralizou” o candomblé.
Esta é uma visão que vai ser o norte da sua projeção artística, o levando aos palcos
de teatro, e o inserindo nas escolas de samba como “destaque de luxo”. O interesse pelo
luxo define suas predileções tanto quanto a estética das indumentárias9 dos orixás, como

8
A nação Kêtu pertence ao tronco jeje-nagô que era tido na Bahia como representante da pureza ritual. Havia
um preconceito enorme com afro-religiosos que não faziam parte do tronco jeje-nagô, que eram pertencentes
ao candomblé de caboclo ou ao candomblé angola, e por Agenor Miranda Rocha ser pertencente ao Ilê Axé
Opô Afonjá de Mãe Aninha, condenava muitas ações e atitudes do babalorixá. Rejeições como as de Agenor
Miranda são tal como registros históricos que só confirmam os motivos que levaram Joãozinho da Goméia a
instalar um novo terreiro no município de Duque de Caxias em 1949. Estas informações serão tratadas no
Capítulo 1.
9
Considerei a recomendação dada pela historiadora Andréa Mendes, que ao adotar a expressão indumentária,
em detrimento a vestimenta, levou em conta todos os elementos que envolvem a paramentação das
divindades no candomblé (uso a definição integral criada por Andréa): “assessórios como pulseiras, coroas,
capacetes, insígnias de mão ou penduradas na cintura, nos ombros, fios de contas, correntões, os quais são
26

pelas fantasias de carnaval que escolhia para vestir nos bailes de gala dos salões nobres da
cidade. As escolhas estéticas de Joãozinho que contemplam o uso do luxo e do brilho, pode
também justificar a fala de Pai Agenor, que faz revelações sobre a inauguração do terreiro
da Goméia no município de Duque de Caxias, no dia 4 de dezembro de 1951, que segundo
o olwô, se relaciona com o Odu 510, que no jogo de búzios representa o Odu do orixá
Oxum, ou o Odu do “brilho e da fama”. Requinte, ostentação, brilho, fama, luxo e riqueza
eram as pretensões iniciais do pai de santo no Rio de Janeiro.
Com a publicação na internet do meu trabalho de conclusão de curso11, me
afastei das pesquisas, retornando só em 2019, a partir do ingresso no Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal Fluminense, quando apresentei o projeto
de pesquisa: A Guerra na Goméia: Reflexões sobre as memórias do conflito sucessório no
terreiro do Rei do Candomblé Joãozinho da Goméia (1971-1987), trabalho em que
investigava as memórias produzidas sobre a disputa por poder que aconteceu no terreiro da
Goméia após a morte de Joãozinho.
Assim que o meu projeto foi aprovado e consegui ingressar no curso de mestrado,
descobri que havia sido publicada em janeiro de 2019, a Tese de Doutorado do arqueólogo
Rodrigo Pereira, que se dedicou a analisar a destruição do terreiro através do processo de
escavação arqueológica. Todo o material enterrado ou soterrado foi desenterrado e os
filhos de santo produziram um importante acervo de narrativas orais, explicando os
motivos que levaram ao fechamento e destruição do local. 12
A observação sobre a metodologia empregada pelo arqueólogo, que foi a de manter
os depoimentos no anonimato, me mostrou a impossibilidade de trabalhar
historiograficamente, com esta pesquisa. Então, decidi, em conjunto com a minha
orientadora, a professora doutora Larissa Moreira Viana, que seria interessante fazer uso da
grande quantidade de material de imprensa, que já que havia sido arquivado, do acervo de
publicações seriadas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, durante este intervalo de

elementos essenciais na construção da visualidade das filhas de santo”. In: MENDES, Andréa. Vestidos de
realeza: fios e nós centro-africanos no candomblé de Joãozinho da Goméia. Duque de Caxias: Série
Recôncavo da Guanabara, volume 1, 1ª edição, APPH-CLIO, 2014, p. 22.
10
Segundo Olga Cacciatore, Odu é um conceito do culto de Ifá também usado no candomblé, interpretado no
merindilogum, na caída de búzios. A palavra odu vem da língua iorubá e significa destino. Cada homem (ser)
possui o seu destino que se assemelha a de outros, mas sempre com alguma particularidade.
11
NASCIMENTO, Andréa. De São Caetano a Caxias: um estudo de caso sobre a trajetória do Rei do
Candomblé Joãozinho da Goméia. São Gonçalo: Monografia apresentada ao curso de licenciatura em História
da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003. In:
https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/view/237
12
Com o material colhido para elaboração do projeto de mestrado escrevi um artigo que está em fase de
preparação para ser publicado em um livro.
27

tempo que separa a pesquisa da graduação e a do mestrado.


Com o início das investigações que resultariam na elaboração desta dissertação,
busquei acesso às narrativas orais do povo de santo da Goméia, mas obtive pouquíssimo
retorno. Com a constatação de que não seria possível escrever um trabalho investindo neste
recurso, decidi me concentrar apenas naquilo que já tinha em mãos: o material de imprensa
e as narrativas orais coletadas na pesquisa da graduação que foram cedidas pela mãe
criadeira Ileci da Oxum e o Olwô Agenor Miranda Rocha. Investir previamente no
material de imprensa foi uma escolha metodológica que salvou este trabalho, já que em
2020, com o advento da pandemia por Covid-19, outra metodologia adotada seria
certamente abortada. O Joãozinho da Goméia, que encontrei nos fios deixados por outros
pesquisadores, tinha para mim a mesma complexidade de um “esqueleto de dinossauro” o
que me fez buscar respostas para o início da sua trajetória artística na Salvador dos anos de
1930.
A escolha por investir em Salvador, partiu da compreensão sobre o local como o
ponto de partida deste Joãozinho que eu pretendia buscar mais adiante. Sabia que não tinha
como construir uma análise sobre este personagem sem procurar suas origens artísticas e
religiosas. Buscar o início da construção da sua fama e do seu prestigio tanto na
imprensa, como frente ao comando de um terreiro de candomblé Angola, e como bailarino
e coreografo bem sucedido, seria fundamental para traçar caminhos na Capital Federal a
partir de 1946. Afinal, ele já tinha a sua carreira artística e religiosa consolidada. Essa
busca reflete meu questionamento inicial sobre uma infinidade de trabalhos que não dão
ênfase ao período baiano, inicial em sua vida, ou que o tratam como lugar de menor
importância em sua trajetória.
Compreendi que, para entender os caminhos percorridos, escolhas, estratégias e
negociações construídas por Joãozinho, precisava investigar os primeiros passos, desde a
sua atuação no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937, até o processo de
marginalização que sofreu na Bahia. A participação no Segundo Congresso foi o primeiro
grande evento em que as habilidades artísticas de Joãozinho foram divulgadas na imprensa,
e ele foi identificado como um “bailarino folclórico” um título que o constrói no campo
das artes até a sua morte. É também no Segundo Congresso, no qual o pai de santo se
torna conhecido por estudiosos dos cultos afro-brasileiros, do folclore, e do campo do
bailado nacional.
Achei fundamental evidenciar a intensa marginalização sofrida nos tempos de
residência na Bahia. A sua identidade como pai de santo iniciado em um terreiro de
28

candomblé de caboclo/angola, é o marco inicial para a compreensão de como foram


construídos os discursos de acusação e depreciação da sua personalidade. A antropóloga
norte-americana Ruth Landes, é a primeira referência depreciativa sobre Joãozinho da
Goméia. Ela reproduz acriticamente o discurso discriminatório de Martiniano Eliseu do
Bonfim, Edson Carneiro, e membros do candomblé do Gantois que, na perspectiva de
reforçar o pretenso modelo de superioridade Nagô, diminuem a representatividade das
lideranças masculinas de candomblés bantos. A homossexualidade de Joãozinho da
Goméia é exposta de maneira pejorativa pela escrita de Ruth Landes, mas por outro
lado, sua escrita reflete o pensamento de um seguimento do candomblé que buscava
reforçar um modelo de culto religioso.
Com a migração para o Rio de Janeiro em 1946, o João da Pedra Preta, começa a
ceder espaço para um Joãozinho da Goméia, cada vez mais prestigiado como artista e
pai de santo (duas identidades que passam a existir em harmonia) e, com isso, abrem os
caminhos, que não seriam abertos nos anos de 1940, por um pai de santo que não possuísse
o seu carisma artístico. Antes de avançar para a Capital Federal, é preciso chamar atenção
para o prestigio e a fama que o terreiro da Goméia já construiu. Sendo assim, o livro
Bahia de todos os santos: Guia de ruas e mistérios13, apresenta as primeiras informações
sobre o terreiro de candomblé, com suas festas e a sua desenvoltura artística. São também
apresentadas às primeiras informações sobre o caboclo Pedra Preta, protetor espiritual de
Joãozinho, e as festas do seu terreiro. Jorge Amado menciona, que o pai de santo era “um
maravilhoso bailarino, digno de palcos de grandes teatros”,14 o que vai ser confirmado, por
Pierre Verger em correspondência ao amigo Roger Bastide, na qual informa que o pai
de santo havia se lançado “nos meios dos music halls e cassinos”. 15
Com a instalação da nova sede do terreiro da Goméia em Duque de Caxias,
inaugura-se uma nova fase na trajetória de vida de Joãozinho da Goméia, que aprende a
construir redes de sociabilidades, que são construídas de acordo com os seus interesses, e
por causa disso, elas acabam sendo importantes para os trânsitos que o artista faz ao longo
da sua trajetória de vida.
O terreiro da Goméia passa a abrigar admiradores da arte e da religiosidade do pai
de santo, se transformando em referência para os estudos folclóricos, tanto para intelectuais

13
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: Guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1991, p.
155.
14
AMADO, 1991, p. 154.
15
MORIN, Françoise. Diálogo entre Filhos de Xangô: Correspondências 1947-1974. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2017 p. 67.
29

quanto para profissionais da dança como Any Guaíba. Eros Volúsia, Mercedes Baptista,
dentre outros, que encontram em Joãozinho um mestre do folclore baiano e da dança afro-
brasileira.
A partir de 1953, Joãozinho da Goméia, passa a ocupar espaços como palcos do
Teatro de Revista, mas é com a “Companhia Baiana de Folclore Oxumarê”, na qual ele
descobre a possibilidade de se tornar um coreografo profissional, e também através da arte
negra e folclórica, criar um projeto poderoso de expansão dos seus domínios religiosos.
Com a presença no Teatro Cultura Artística de São Paulo, Joãozinho contribui com o
processo de transformação de terreiros de umbanda em terreiros de candomblé. Esta
presença em São Paulo, em 1953, inicia de fato o processo de popularização da Nação
Angola em terras paulistas. Tratar desta experiência em São Paulo é entender o pai de
santo como um negociador, que entende que o avanço umbandista, na capital paulista,
põe em risco a expansão de terreiros de candomblé Angola, e, por conseguinte, do terreiro
de Raiz Goméia.
Joãozinho tem a sua trajetória ligada a embates com umbandistas, e passa a usar a
sua representatividade de liderança religiosa do candomblé Angola para questionar as
origens da Umbanda, com o intuito de afirmar a predominância da sua nação de
candomblé. É quando ele assume o comando de homenagens ao orixá Iemanjá no litoral
paulista, retirando de umbandistas o vínculo ao culto da Rainha do Mar. As desavenças
com a umbanda são sentidas no embate que eles têm com Joãozinho a partir de 1956,
por causa da participação do pai de santo no baile do travesti acontecido no Teatro João
Caetano, localizados n a P r a ç a Tiradentes. Um espaço ocupado há muito tempo
por artistas, e travestis. A cena gay do local é combatida pelo jornal Luta Democrática, que
obrigou Joãozinho da Goméia a se posicionar politicamente, assumindo a sua condição
sexual publicamente.
Apesar de grande parte das pesquisas apontarem este episódio como um escândalo,
o autor James Naylor Green, em Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no
Brasil do século XX.16, aponta que era concreta a ocupação do espaço da Praça
Tiradentes, pela presença travesti, dentro e fora do carnaval. O centro da cidade nos anos
de 1950 e 1960 abriga um circuito de divertimento noturno, que entra em contradição com
o luxo da zona sul carioca, com seus artistas, magnatas e turistas estrangeiros. Com a
exibição de Joãozinho da Goméia, travestido de vedete francesa da Companhia Francesa

16
GREEN, James Naylor. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São
Paulo: Editora da UNESP, 1999.
30

de Revistas, umbandistas e candomblecistas, exigem através de cartas, um posicionamento


da Federação Umbandista duque-caxiense, a qual Joãozinho era filiado. Após ser absolvido
deste Tribunal da Umbanda, a carreira artística de Joãozinho deslancha. O seu
envolvimento com o carnaval acontece a partir da sua identidade baiana e o seu
reconhecimento como realeza do candomblé.
Os autores Adriana Batalha, Andréa Mendes, Carlos Nobre, Elizabeth Castellano
Gama, Gabriel Haddad, Leonardo Bora, Luiz Rufino, Raul Lody, Ricardo Freitas, Vagner
Gonçalves Dias e Vinicius Natal, buscam através de artigos, dissertações e livros, apontar
os diversos sentidos e dimensões, para o lugar do Rei do Candomblé, inclusive os artigos:
Joãozinho da Goméia: o lúdico e o sagrado na exaltação ao candomblé dos antropólogos
Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva17; Candomblés e Carnavais: Corpos Desfilantes
de Joãozinho da Goméia, de Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinicius Natal; e
Joãozinho da Goméia: Rei do Candomblé e Rei da Mídia Ricardo Oliveira de Freitas18,
servem de base para construir as reflexões que me proponho fazer aqui.
O título da realeza evidencia mais que um mero sucesso no comando do terreiro de
Caxias, mas a conquista pelo espaço artístico. O que pode ser percebido através da
presença de Joãozinho da Goméia nos carnavais da cidade: a presença como destaque de
luxo na escola de samba Império da Tijuca de 1964 a 1965, e no Império Serrano- sua
escola do coração, entre 1966 e 1969, destaca a importância da presença estética do brilho
e do luxo ao longo da sua trajetória.
De acordo com a historiadora Andréa Mendes, Joãozinho possuía uma relação
curiosa com o modo pitoresco modo de “se vestir”. De acordo com a autora era ele mesmo
quem confeccionava as fantasias de carnaval, e as indumentárias do candomblé, além de
fazer costuras sob encomenda.19 O que vem a evidenciar a predileção pelo emprego do
luxo, o que caracterizava o vínculo da sua personalidade a exuberância e excentricidade.20
A trajetória, que me dediquei a investigar aponta alguns momentos em que
Joãozinho buscou fortalecer o seu patrimônio artístico, reivindicando sua autoria
coreográfica, junto à bailarina Eros Volúsia, mas que por outro lado, chama atenção
para a reivindicação da autoria coreografia nas criações artísticas de outras pessoas. O que
17
LODY, Raul e SILVA, Vagner Gonçalves da. Joãozinho da Goméia: o lúdico e o sagrado na exaltação ao
candomblé. São Paulo: Summus, 2002; BORA, Leonardo Augusto, PORTO, Gabriel Haddad Gomes;
NATAL, Vinicius Ferreira. Candomblés e Carnavais: Corpos Desfilantes de Joãozinho da Goméia. Periferia,
v. 12, n. 3, p. 94-128, set./dez. 2020.
18
FREITAS, Ricardo Oliveira de. Joãozinho da Goméia: Rei do Candomblé e Rei da Mídia Ricardo Oliveira
de Freitas
19
MENDES, 2014, p.88.
20
MENDES, 2014, p. 92.
31

valida o campo da dança brasileira como um campo de tensões e disputas, em torno da


originalidade e autenticidade artística. A criação da “Companhia baiana de Folclore
Oxumarê”, e a construção do projeto expansionista de ocupação dos espaços da umbanda
em São Paulo, vão atestar a necessidade que Joãozinho tinha em controlar a arte que
produzia dentro do terreiro. Assim, como controlar a expansão de uma religião, que em
seus primeiros momentos de atuação criou uma estética de marginalização de terreiros que
conservavam uma identidade voltada para a África.
A problemática da pesquisa gira em torno da análise da atuação artística de
Joãozinho da Goméia, entre os anos de 1936 e 1966. Um período em que se concentra
entre a sua participação nos preparativos no Segundo Congresso Afro-brasileiro, realizado
na cidade de Salvador em 1937, e a sua participação como “destaque de luxo” no desfile da
Escola de Samba Império Serrano. Escolhi finalizar a minha analise em 1966, por
compreender que, este é um ano em que a vida religiosa de Joãozinho, ganha força e
potencializa a sua atuação em festivais religiosos e folclóricos. O ano de 1966, também é o
ano em que ele constrói uma agenda folclórica que dialoga mais com a sua dimensão
religiosa, do que com a artística, e avançar neste sentido cronológico faria este trabalho
perder o seu objetivo. O ano de 1967 foi marcado pela sua transição religiosa, ocasionada
pela participação em uma cerimônia do Gantois identificada como “bori”, o que vai abrir
uma celeuma com parte do povo de santo que teve sua vida religiosa iniciada no terreiro da
Goméia. A ligação com o terreiro do Gantois se torna um capitulo na vida de Joãozinho,
que merecia uma análise futura destacada, não se tornando uma preocupação para este
momento.
Para alcançar os objetivos propostos, foram utilizados como fonte, periódicos de
grande circulação durante o período em que essa pesquisa se encontra (1936-1966). Os
principais periódicos investigados foram A Manhã, À Noite, Correio da Manhã, Diário da
Noite, Diário de Notícias, Luta Democrática, Ultima Hora, e as revistas A Cena
(Scena) Muda; Manchete, Rio, e a Revista do Rádio, por compreender que apontam
caminhos para compreender o personagem Joãozinho da Goméia, a sua personalidade,
estratégias de negociação, processo de construção de poder21 e prestigio e a sua atuação

21
Este processo de construção de poder e de prestígio, embora possa vir a ser questionado por seus familiares de
santo, ou por alguns pesquisadores que entrem em contato com a sua trajetória de vida, fica evidente na
construção do texto dessa Dissertação, que é caracterizada pelo perfil de um estudo biográfico que mostra o João
Alves Torres Filho, no inicio da sua vida, como funcionário de um armarinho em Salvador, ou como um pai de
santo simples, sem ostentação alguma, no ano de 1936, quando era colaborador do Segundo Congresso Afro-
brasileiro, e vai avançando até o ano de 1966, quando já é o prestigiado Taata Londirá, o sacerdote do
candomblé Angola. Esta construção de poder, na opinião da nossa pesquisa está clara, e explícita.
32

artística. Os periódicos analisados foram um material de pesquisa de imenso valor, já que


foi a única fonte que consegui ter acesso para trabalhar. Por meio da analise destes
periódicos, foi possível preencher alguns vazios deixados por pesquisas anteriores, e
entender contradições que causaram dúvida e espalham pistas falsas pelos caminhos.22
Poder contar com os periódicos para desvendar o que não foi dito com clareza,
reconstruíram pontos de vista. Através dos periódicos, consegui contextualizar os cenários
ocupados por Joãozinho, entrando em contato com aspectos culturais que envolviam esta
trajetória.
A dissertação está dividida em três capítulos. O Capítulo 1, inicialmente aborda a
importância da trajetória de Joãozinho em Salvador. Um capítulo invisibilizado por
pesquisas anteriores, mas que pretende reconstruir o início da sua trajetória religiosa,
buscando mostrar os motivos da marginalização que viria a sofrer daqui por diante.
Também é um capítulo importante para que entendamos como o pai de santo foi
23
inserido no contexto artístico, e a sua importância para o campo dos estudos folclóricos e
os estudos das religiões de matriz africana. Por último, buscaremos mostrar como
Joãozinho se torna um referencial para os profissionais da dança afro-brasileira, daquilo
que se convencionou a nomear como “bailado nacional”.
No capítulo 2, apresentamos os trânsitos de Joãozinho entre o artístico e o
religioso, ou entre o profano e o sagrado. É o lugar da análise dos “entornos”, que
circundam Joãozinho no Rio de Janeiro. E que também são parte das redes de
sociabilidades construídas pelo pai de santo, de acordo com os seus interesses. Discuto,
aqui, como sãs estas redes, construídas por Joãozinho em torno da criação de uma arte
negra, que dialoga com o candomblé e com o folclore baiano. E como estas redes
influenciaram no processo de criação artística. Por fim, analisaremos como a trajetória dos
diversos indivíduos que ocupavam lugares artísticos e religiosos se entrelaçou com 24 a de
Joãozinho da Goméia, e como as estratégias criadas pelo pai de santo corroboraram para
preservar e solidificar o seu patrimônio artístico, coreográfico e religioso.
No capítulo 3, discutiremos a atuação de Joãozinho no carnaval carioca, iniciando
com a sua passagem pelo baile do travesti em 1956, como forma de contextualização do

22
A presença de informações que foram criadas a partir da mitificação foi um complicador, que me fez como
pesquisadora por muitas vezes ficar perdida entre esses dados. Entendo que o uso do mito foi um recurso
usado pelo próprio pai de santo para fortalecer e projetar a sua imagem, mas não é um bom aliado do
pesquisador de uma trajetória que se faz controversa por causa do uso destes mitos.
23
Usei o recurso da aplicação de referencia do Word para buscar uma solução para separar as palavras.
24
Uso do recurso das referencias como tentativa de resolver o problema do Word.
33

cenário em que o folião Joãozinho da Goméia estava inserido.


Acreditamos que seria necessário contextualizar o ano de 1956, e trazer os
elementos presentes no espaço da Praça Tiradentes, para que conseguíssemos entender o
lugar que Joãozinho se inseriu no carnaval de 1956. A Praça Tiradentes, Cinelândia, Lapa
se contrapunha à Zona Sul do Rio de Janeiro, em relação às opções de diversões
oferecidas, e, por conseguinte, ao público que frequentava estes lugares. O Baile do
travesti, aqui é apresentado, como um ato político de ocupação de um espaço ocupado por
gays assumidos, travestis profissionais, turistas e curiosos. O ato de Joãozinho acontece
após publicações preconceituosas do jornal duque-caxiense Luta Democrática, o que revela
um posicionamento político do pai de santo, que abrigava em seu terreiro filhos de santo
que eram assumidamente gays. Aqui, vamos esmiuçar aspectos relativos à cena gay da
Praça Tiradentes em período pré-carnavalesco, e a reação de umbandistas escandalizados
com a desenvoltura de Joãozinho. Uma vez, que Joãozinho se travestiu assumindo a face
de um personagem, seus caminhos se abrem no meio artístico, e o levam até os bailes pré-
carnavalescos nos salões nobres da cidade. A sua inserção nos carnavais da elite carioca,
despertam seu interesse para as fantasias luxuosas dos concursos que ele não participa, mas
que são o seu transporte para atuar nas Escolas de Samba Império da Tijuca e Império
Serrano, como destaque de luxo. Os trânsitos de Joãozinho entre carnavais da elite e do
povo remetem a aspectos da sua identidade e do seu posicionamento social. Percebemos
que este é um dos pontos mais fortes da sua trajetória artística. O encontro da arte popular
com uma arte produzida para a apreciação da elite caracterizou a trajetória artística de
Joãozinho, desde o erguimento do terreiro da Goméia em São Caetano.
Ressalto que por conta da impossibilidade de acesso aos arquivos públicos que dão
conta de aspectos da trajetória artística de Joãozinho da Goméia, não consegui investir
com mais profundidade em uma investigação que caminhe nesta direção, e como a
falta de acesso às narrativas orais também foi impossibilitado tanto pela pandemia, como
pelo fato de não ter conseguido que pessoas que pudessem me ajudar neste sentido. Sendo
assim deixei para o doutorado a investigação sobre esses passos artísticos de Joãozinho,
que já serão introduzidos com a escrita desta dissertação. Esta pesquisa, no entanto,
pretende introduzir o tema e soltar fios pelo caminho para desenrolar no Doutorado.
A trajetória de vida a ser apresentada trata dos caminhos artísticos de um pai de
santo negro, gay e nordestino, que criou estratégias de resistência em um sistema
heteronormativo, que buscava o banimento da sua representatividade junto ao candomblé.
O reconhecimento como realeza deste sistema, representou a vitória sobre o preconceito e
34

também a afirmação da sua identidade pessoal. O contato com as ideias de Abdias do


Nascimento e Solano Trindade, assim como os redimensionamentos das suas redes de
sociabilidades, revela a flexibilidade deste projeto de ascensão social. Uma rede que ia
se adaptando aos diferentes interesses que Joãozinho ia apresentando em cada fase da sua
vida. As décadas de 1950 e 1960 representaram esta flexibilidade de uma rede que se
abriu para expoentes do movimento negro, que reconheceram na sua realeza caminhos de
acesso ao debate sobre o reconhecimento do negro na sociedade brasileira. Entender estes
contatos com sujeitos que pertenciam a processos de criação artística negra conecta este
trabalho com as ideias do João da Pedra Preta, o jovem pai de santo do candomblé
caboclo, julgado e execrado por conta da sua condição sexual e da sua desenvoltura à
frente de um terreiro de raiz banto. O Joãozinho da Goméia presente nesta dissertação de
mestrado foi o homem que desconstruiu o sentido negativo da expressão “folclórico”,
transformando a em um traço da arte que ele praticava nos palcos e no terreiro. Deu
sentido a esta expressão, por compreender que este era o caminho para conquistar as
credenciais da originalidade e da autenticidade artística que buscou por toda sua vida.
Joãozinho da Goméia foi este sabedor, produtor de saberes, percussor, inovador,
mediador entre mundos, deu sentidos, apontou caminhos, produziu conexões entre sujeitos
em torno de uma arte negra. Folião-carnavalesco, Exu simbólico, que negociou, driblou,
gingou, transformou, abriu e fechou caminhos, confundiu, forjou “artimaniou”, articulou e
militou. Deu visibilidade ao candomblé com ações transgressoras. Criou transitoriedades
entre o sagrado e profano e popularizou a nação Angola. Foi agente ativo e combativo, e
usou seu corpo negro “multifacetado” para representar o ideal de uma brasilidade livre e
avessa aos enquadramentos tão comuns aos corpos aprisionados pelo projeto de dominação
colonial.
35

Joãozinho da Goméia tornou-se um encantado,


e desse encantamento nasceram seus pesquisadores.
Virou arvore frondosa e frutífera, produtor de múltiplos saberes.
Um mar profundo. Umredemoinho.
Que se cumpra a sua vontade,
e a sua obra nunca seja esquecida.
36

Figura 3: Joãozinho da Goméia pelas mãos do desenhista e cinegrafista Carlos


Bastos. Fonte: AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios.
Rio de Janeiro, Record, 1991,p.15..
37

Capítulo 1. DE SALVADOR AO RIO DE JANEIRO- O INÍCIO DE UMA


TRAJETÓRIA

Para o sociólogo francês Pierre Bordieu 25, a vida é como um caminho, uma estrada,
uma carreira com suas encruzilhadas, seus ardis, até mesmo com suas emboscadas, ou é
como um trajeto, uma corrida, uma passagem, uma viagem, um percurso orientado, um
deslocamento linear, unidimensional que tem começo, etapas e um fim, no duplo sentido,
de término que está relacionado ao sentido de finalidade e de “fazer o caminho” e ter êxito,
sucesso e prosperidade na vida. Este primeiro capítulo pretende traçar os “fios e os rastros”
26
deixados por João27 da Goméia, no decorrer da sua trajetória de vida, do nascimento, até
a instalação da nova sede da nova sede 28 do seu terreiro, localizada no município de Duque
de Caxias, Baixada Fluminense.

1.1. DA INFÂNCIA AO INÍCIO DA VIDA RELIGIOSA

João Alves Torres Filho nasceu às 10 horas da manhã, no dia 27 de março de 1914,
em Inhambupe, município do Estado da Bahia, localizado a 153 quilômetros de Salvador.
Neto materno da ex-escrava nigeriana Jurandina Maria da Conceição, e filho de João Alves

Torres- um alfaiate de cor parda, e de Maria Vitoriana Torres, uma dona de casa negra,
rezadeira e devota de Santa Luzia 29. Quando era criança o seu colega de escola- sobrinho
do padre Camilo Alves de Lima, pároco da Igreja da Invocação do Divino Espírito Santo
de Inhambupe, o convidou para ser coroinha e ajudar na missa e nos demais rituais da
igreja. Seu grande sonho de infância era o de se tornar padre.
Joãozinho nunca teve a pretensão de conhecer o candomblé, mas sua saída de
Inhambupe aos 14 anos de idade estava relacionada às constantes aparições espirituais do
25
BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Rio de Janeiro: Usos e Abusos da História Oral. FGV, 2010.p. 183
26
Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. SP: Companhia das letras, 2007.
27
Preferi adotar a grafia “João” e não “Joãozinho” até a sua transferência para o Rio de Janeiro, por entender
que nos tempos de moradia em Salvador, ele era reconhecido como João da Pedra Preta.
28
O endereço antigo é Rua General Rondon, 360, bairro Copacabana, Duque de Caxias. O endereço atual é
Rua Prefeito Braulino de Matos Reis, 360 - Dr. Laureano, Duque de Caxias.
29
As informações referentes à cor da pele, ascendência e filiação foram retiradas da certidão de nascimento
de João Alves Torres Filho adquirida através do Cartório de RCPN de Inhambupe, Bahia. Um dado
interessante apresentado pela certidão é quanto à data de registro do documento que informa ter sido feito por
João “aos trinta e um dias do mês de dezembro do ano de um mil novecentos e trinta e três”, ou seja, o
registro de nascimento foi feito quando João tinha 19 anos de idade, no período em que era dono de um
terreiro de candomblé herdado por sua madrinha na Rua Ladeira das Pedras no bairro da Liberdade. Em
1935, João se transfere para um terreiro maior, o da Rua da Goméia no bairro São Caetano, em
Salvador.
38

caboclo Pedra Preta. Chegando a Salvador, seu primeiro emprego foi no armazém de um
compadre no bairro da Liberdade, ali conseguiu moradia e alimentação. Joãozinho
trabalhou em mais dois armazéns, buscando sempre melhores condições de vida: o
primeiro ficava sediado na “Rua do Uruguay” onde passou a ganhar 30 cruzeiros. O
local de trabalho pertencia ao “Seu Armindo” - dono de uma fábrica de vinagres.30
O segundo e último armazém em que esteve empregado foi o “Bom Gosto da
Calçada” no qual conheceu sua madrinha- uma filha de Iansã, com ele simpatizou e o
adotou. Era uma senhora “octogenária e professora aposentada, que não tinha filhos”.
Havia sido iniciada no candomblé jeje31da Terra vermelha, localizado no município de
Cachoeira32. Após um período, João começou a sentir fortes dores de cabeça e sua
vida passou a ser marcada por visitas constantes aos médicos. A partir daí, pessoas
próximas aconselharam sua madrinha a levá-lo ao “Centro Espírita Luz e Caridade”,
dirigido pelo capitão do Exército33 Severiano Manoel de Abreu34. Um homem que
trabalhava sob a influência espiritual do caboclo Jubiabá, 35 na localidade do Alto da Cruz
do Cosme em Salvador. No local, Severiano atestou que a origem daqueles problemas de
saúde estaria relacionada à necessidade de se “fazer cabeça”. 36
A imprensa deu uma intensa visibilidade midiática37 a Severiano entre os anos de
1921 e 1936, no momento em que eram noticiadas matérias que enfocavam a prisão e

30
Relato cedido por Joãozinho da Goméia em 1967, à antropóloga Gisele Binon Cossard, que mais tarde se
torna sua filha de santo e zeladora de um importante terreiro de candomblé na localidade Raiz da Serra,
Baixada Fluminense. O depoimento está disponível integralmente no Youtube. D i s p o n í v e l e m :
https://www.youtube.com/watch?v=KnzJbfgsJaU
31
De acordo com a dicionarista Olga Gudolle Cacciattore, autora do Dicionário de Cultos Afro- brasileiros
publicado pela Editora Forense Universitária em 1988, “jeje é um dialeto do grupo dialetal. fon, da língua
ewe, falado por escravos vindos do Daomei (atual República Popular do Benin”. In: CACCIATORE,1988.
p.153
32
MENDES, Andréa Luciane Rodrigues. Vestidos de Realeza: contribuições Centro-Africanas no candomblé
de Joãozinho da Goméia (1937/1971). Campinas: Dissertação de Mestrado em História Social pelo
IFCS/UNICAMP, 2012.p.54.
33
Essa ligação de Severiano Manoel de Abreu com o exército vai de certa forma influenciar toda a trajetória
de Joãozinho da Goméia, que sempre estará ligado a militares de alta patente.
34
O único texto que dá uma ênfase a parte da sua trajetória de vida é o Na Gamela do Feitiço: repressão e
resistência nos candomblés da Bahia do antropólogo Júlio Braga.
35
O Jornal de 17 de maio de 1936
36
Fazer cabeça ou fazer a cabeça é um ato mítico-ritual relativo à iniciação no candomblé. Faz-se a
cabeça para que se nasça para uma nova vida, a identidade pessoal do iniciando é recriada, e suas relações
familiares e sociais são redimensionadas. Prepara-se a cabeça para que seja morada dos orixás e se desperte
uma nova consciência acerca do mundo em que o iniciando vive. É a possibilidade de existir em outra
dimensão pessoal, material e espiritual. A permissão dada ao pai e mãe de santo remete à confiança e à
obediência. O iniciando com a feitura constrói uma rede de relação não apenas com seus orixás, mas com os
orixás de quem o iniciou e com os orixás da casa onde ele renasceu como filho de santo.
37
As negociações são a tonalidade das relações sociais estreitadas por Severiano e por Joãozinho, o que
compreende também as trocas de favores que assemelha a trajetória dos dois pais de santo, e que eu
compreendi como uma transferência de saberes de pai pra filho.
39

apreensão dos objetos sagrados do seu local de culto religioso. Informações sobre as curas
espirituais realizadas pelo caboclo Jubiabá surgiam de forma depreciativa nas páginas do
Diário da Bahia, O Estado da Bahia38, e o jornal A Tarde. O que corroborou para construir
a identidade pública de Severiano entre os pobres que não tinham acesso a remédios e
profissionais de saúde. Nesse sentido, o centro de Severiano foi transformado em pronto
socorro popular utilizado por grande parte da população pobre da Bahia. Ao analisar a
influência do Caboclo na vida social do pai de santo, o antropólogo Júlio Braga acredita
que:

(...) Foi por meio da atuação do Caboclo, que se pode entender a luta de
Severiano pela superação das dificuldades que lhe eram impostas por uma
sociedade extremamente refratária a sistemas de crenças diferenciados do padrão
ocidental. É bem verdade que Severiano armou umas trapaças, e não foram raras
às vezes em que esteve envolvido com a polícia. Mas as dificuldades maiores
foram, sem dúvida, criadas pelo fato de se projetar como líder religioso, ser
protegido por um Caboclo, que cedo ganhou fama, foi permanentemente objeto
de notícias de jornais, mas, sobretudo profundamente respeitado pela população
negra da Bahia, e por determinados setores da sociedade mais ampla. (BRAGA,
1995, p.85)

Severiano foi um dos pais de santo mais perseguidos pela polícia baiana nas
primeiras décadas do século XX, sendo em 1921, alvo de críticas em várias matérias dos
jornais “que aplaudiram as diligências da polícia no seu terreiro, tratando-o como praticante
de feitiçaria e “baixo espiritismo” 39 sofrendo denúncias constantes dos jornais baianos
entre 1921 até o ano de 193140.
No ano de 1935, o romancista baiano Jorge Amado, publica o livro Jubiabá, que
retrata a vida de um pai de santo negro e pobre, dono de um dos candomblés mais famosos
da Bahia. A publicação do livro causou uma grande confusão com Severiano Manoel de
Abreu que viu o nome do seu caboclo associado ao nome de um personagem negro, pobre
e macumbeiro, rótulos que ele desejava desvincular da sua identidade. O que gerou, uma

38
As reportagens a que nos referimos tratadas por Júlio Braga são as: A Tarde, de 24 de agosto de 1936; A
Tarde, de 06 de outubro de 1921; A Tarde, de 08 de outubro de 1921; A Tarde, de 14 de outubro de 1921;
diário da Bahia, de 07 de maio de 1931; O Estado da Bahia, de 11 de maio de 1936; O Estado da Bahia, de 21
de maio de 1936; O Estado da Bahia, de 28 de maio de 1936;
39
De acordo com o historiador Caio Sergio de Moraes Santos e Silva em sua dissertação de mestrado A
cidade do feitiço: feiticeiros no cotidiano carioca durante as décadas iniciais da Primeira República-
1890/1910, o termo “baixo-espiritismo” ficou referente a toda e qualquer pratica religiosa que envolvesse
feitiço, magia e espíritos.
40
A partir de 1936, após a publicação do livro Jubiabá de Jorge Amado, a presença de Severiano nos jornais
passa a ser movida por uma curiosidade acerca da identidade do pai de santo que deu nome ao livro do
popularíssimo Jorge Amado.
40

séria discussão entre Severiano e Jorge Amado nas páginas de O Jornal41, que mostra
a sua real situação social e econômica.
O jornalista João Duarte Filho 42 exalta a situação econômica do pai de santo,
chamando atenção dos leitores para o requinte e a pompa encontrada, o que não
condizia com a face estigmatizada de pais de santo pobres, que o jornal constantemente
divulgava em tons de depreciação e desprezo. Uma criminalização costumeira e presente
nas reportagens policiais, que descreviam as violentas batidas policiais nos candomblés
baianos dos anos 1930.

Figura 4: “Personagem de Romance e da Vida: Jubiabá não gostou do livro de Jorge


Amado- Como vive, no Morro da Cruz do Cosme, o famoso pae de santo-Capitão de 2ª
linha e macumbeiro”. Reportagem de O Jornal de 17/05/1936. Fonte: BNDigital 43

41
O Jornal, 17 de maio de 1936.
42
De acordo com o historiador Erivaldo Sales Nunes, o jornalista João Duarte Filho era correspondente dos
Diários Associados, e publicava muitas reportagens com o apoio de O Estado da Bahia. IN: Contribuição para
a história do Candomblé Congo-Angola na Bahia: o terreiro de Bernardino do Bate Folha (1916 –1946). Tese
apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, na Universidade Federal da Bahia, em 2017, p. 107.
43
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=110523_03&pasta=ano%20193&pesq=%22Jubiab%C
3%A1%22&pagfis=30315
41

A realidade econômica de Severiano, além de surpreender, foi reveladora; era


incomum publicar as glorias e as conquistas do povo de candomblé. Neste ponto,
Severiano, acaba inaugurando uma estética de reportagem, que desconstrói os aspectos
negativos constantemente associados ao povo de santo. Inaugurando uma ideia de
“identidade negra positivada”44 associada à trajetória de sujeitos negros no período do
pós-Abolição, como sugere a historiadora Luara dos Santos Silva. Segundo a autora,
“negros que podiam, queriam e tomavam parte nos assuntos intelectuais, modernos,
políticos e estéticos da cidade”, eram parte de um agenciamento negro que vai possibilitar
a ocupação de diversos espaços da vida social, econômica, cultural e política da cidade,
fugindo do lugar da marginalização social. De acordo com o jornalista João Duarte Filho:

Um desencanto ao conhecer a grande casa de pedra, bem pintada com um largo


terraço preguiçoso ao lado de um enorme quintal, que, aliás, substituía aquella
toca de feiticeiro que Jorge Amado pusera em seu livro”. Apenas com indicação
medíocre de toda a força de Jubiabá como espírito e como feiticeiro. uma placa
de bronze na fachada annunciava um vulgatossimo Centro Espírita Luz e
Caridade. A casa era burguesa, realmente, com dois altares enfeitados cheios de
figuras decorativas de santos e caboclos, presididos, todos, pela imagem barbada
de São Tomé, cujo espírito, segundo a voz do pae de santo se transformou em
Jubiabá. A mobília é desses moveis de carregação typico, único, que as
movelarias offerecem nas vitrinas, demonstrando, com o arabeacozinho dos
espaldares, que se trata de coisa chic, de notoriedade, de bom gosto. Tem retratos
nas paredes e nos centros. Retratos de gente boa, doutores, médicos, advogados,
que Jubiabá tem na conta de seus amigos de toda hora e admiradores de todo
minuto. Uma estante desarrumada guarda-lhe os livros de leitura ou de estudo,
Theosophia, com Annie Bessant, Philosophia, religião. E, em uma prateleira
isolada, cheio de poeira e coberto de abandono está um livro grande, de capa de
panno encarnado, offerecido ao glorioso São Thomé invocado neste planeta por
Jubiabá. junto uma bíblia e A esperança do mundo, grande livro
incomprehensivel cheio de sciencia. (BRAGA, 1971, p. 85-86).

A crítica do jornalista fora baseada em desastrosa associação entre o personagem


fictício do “preto macumbeiro” do romance de Jorge Amado, e o afortunado médium
kardecista dirigente do Centro Espírita Luz e caridade, e proprietário de prédios em
Salvador e diversas fazendas na localidade de Ilhéus. Em critica inflamada a Jorge Amado,
o pai de santo, chama atenção para os aspectos positivos da sua residência:

44
SILVA, Luara dos Santos. “O negro nunca foi estúpido, fraco, imoral ou ladrão”: Hemetério José dos
Santos, identidade negra e as questões raciais no pós-Abolição Carioca (1888-1920). Cultura Negra vol.2:
trajetórias e lutas de intelectuais negros. Niterói: EdUFF, 2018, p, 295.
42

Tudo mentira, disse-me ele, verifiquei que tudo é mentira. Nunca morei em casa
de barro, sempre tive minhas posses, sempre fui arremediado. Como é que
aquele rapazinho vae dizer essas coisas todas de um homem trabalhador e
honesto como eu. Quem lê o livro fica pensando que eu sou um
macumbeiro qualquer que vive .tapeando o povo ignorante. Mentira, eu fazia
um pouco de “baixo espiritismo” porque é preciso contentar a todos. Mas sou um
homem que estudo, que aprendo que conheço bem as coisas. Como é que aquele
rapazinho vae fazer uma coisa dessas com um homem de responsabilidades
como eu. Mas não faz mal. Eu sou conhecido no Brasil todo, e em todo Estado
tenho os meus discípulos e aquelle livro não me desmoraliza. Também aquelle
rapaz não está muito bem na terra delle, que é Ilhéus.45

Severiano, não havia concordado com as associações da sua imagem à miséria e ao


candomblé, uma comparação desastrosa, que chamaria atenção para o que ele desejava
deixar para trás: a perseguição policial que cerceava a sua liberdade de culto religioso.
Aquele que havia ocupado as páginas policiais de forma criminalizada, agora ocuparia de
forma vitoriosa. A reportagem de O Jornal, talvez tenha soado para ele como uma
oportunidade de positivar a sua imagem, e atrair para si um capital simbólico produzido
pelo olhar do jornalista sobre o seu intelecto, e suas reais condições financeiras. Enfim, de
acordo com a visão de Severiano, a identificação com o “Jubiabá” do romance de Jorge
Amado, poderia fragilizar o seu projeto de ascensão, que via na associação do seu culto
religioso com o kardecismo, uma forma de cessar as perseguições, e aumentar o seu
prestígio. Com o passar do tempo, o sucesso do romance o projetou transnacionalmente, e
Severiano ficou conhecido como o “pai de santo mais poderoso da Bahia” 46. O discurso de
Severiano se torna o de um médium, que intenciona construir sua imagem avessa à
ritualística de um terreiro de candomblé Angola, ou de candomblé de caboclo.

A título de exemplificação, a reportagem “No mundo cheio de mistérios dos


Espíritos e Pais de santo”47, Severiano constrói uma narrativa repleta de elementos do
universo kardecista, que se apropria como uma forma de fixar a sua identidade nas mentes
dos leitores baianos, que tinham total conhecimento acerca da sua identidade religiosa,
revelando ser esta atitude um aspecto da sua estratégia de driblar as forças repressoras do
Estado:

45
O Jornal, 17 de maio de 1936.
46
Joãozinho da Goméia usou muito o “bom nome” de Severiano para conquistar lugar na imprensa durante os
anos 40 e 50.
47
Acho válido trazer a narrativa dada pelo próprio Severiano sobre o início da sua trajetória religiosa e
observar que não era comum nos anos de 1930 encontrarmos relatos desta natureza. Semelhante
encontraremos nos relatos de Joãozinho da Goméia através dos jornais e das revistas no decorrer dos tempos.
Outro dado que desejo ressaltar é a construção do diálogo e a referência aos seus guias espirituais como
espíritos obsessores, o que é exposto por Joãozinho nos jornais de 1936, depois o tratamento se modifica
totalmente.
43

–Eu lhe explico. É o nome do espírito meu espírito obsessor. Vou contar ao
senhor o começo da minha vida de espírita. Há 36 anos, eu ainda rapaz, fui
procurado por um parente de um rapaz chamado Sydronio para fazer uma
consulta numa sessão na cidade de Palha em beneficio da sua saúde. Até então
eu não acreditava nessas coisas, mas fui. Manifestou-se então um espírito mal e
atrasado. Este espírito declarou que do corpo do homem só sairia dali há 15 dias
no cemitério. Quinze dias depois o homem morria. Esse fato me decidiu a
acreditar nos espíritos. Passei a frequentar dali por diante aquela sessão, com
bastante fé e me tornei médium sem saber. Nesta sessão manifestou-se em mim
um espírito que dava o nome de Candido Ribeiro. A uma pergunta nossa sobre o
que teria sido em vida o espírito de Candido Ribeiro. Respondeu “Jubiabá” que
nunca o investigara. Sua capacidade psíquica, porém, foi-se elevando
gradativamente. (...) de uma feita surgiu no grupo um rapaz chamado João
Miranda para tratar-se. Foi ele entregue aos cuidados de Severiano. O espírito de
um caboclo baixou sobre um dos médiuns. Era o assistente Severiano. Caído em
transe, manifestou-se, então, o espírito que declarou se chamar ‘Jubiabá’.
Começou então a cura do paciente João Miranda, que já apresentava
consideráveis melhoras, quando sobreveio um incidente. No decorrer da cura de
João Miranda, por intermédio de Severiano, manifestou-se um filho do dono da
casa de nome Nelson, um atrasado que deu o nome de ‘Rei de Minas’. Este
entrou logo a demolir a influência de ‘Jubiabá’, qualificando-o de impostou e
perturbado. Houve, por isso, desinteligência no ambiente astral e o espírito de
‘Jubiabá’ melindrado com o seu irmão mediúnico, abandonou a cura do doente,
que veio falecer vítima da vaidade dos espíritos. Firmado o seu conceito,
Severiano ou ‘Jubiabá’ passou a trabalhar por conta própria, em sua casa,
abrindo uma sessão na Rua Nova do Queimado, a seguir, na Caixa D’Água, nº
10 e depois na Cruz do Cosme, 205, hoje Avenida Saldanha Marinho, cuja nova
denominação ele faz questão de ser citada: Floresceu, então, ali o “Centro
Espírita Paz Esperança e Caridade”. (BRAGA, 1985, p. 94-95).

O historiador Caio Sergio de Moraes Santos e Silva48 considera que existia uma
“estratégia de sobrevivência” entre praticantes dos cultos afro-brasileiros nos primeiros
anos da primeira república na cidade do Rio de Janeiro, fruto de uma associação entre o
espiritismo kardecista e a prática do candomblé que representava, na verdade, uma
simulação da identidade destes lugares como forma de obter proteção pessoal e da prática
de culto religioso, tratada por alguns estudiosos da repressão afro-religiosa no início do
século XX, como uma estratégia de sobrevivência muito comum aos corpos produzidos
pela diáspora negra.

A trajetória de Severiano Manoel de Abreu se entrelaça, em definitivo, com a do


jovem João49, quando este é iniciado aos 15 anos de idade no candomblé do caboclo
Jubiabá, em 21 de dezembro de 1930, recebendo o nome iniciático de Londirá. Aqui nasce
também o famoso pai de santo João da Pedra Preta. O historiador Antônio Carlos Peralta dá

48
SANTOS E SILVA, Caio Sergio de Moraes. A cidade do feitiço: feiticeiros no cotidiano carioca durante
as primeiras décadas da primeira república (1890-1910). Niterói: Dissertação de Mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense, p.104.
49
João da Pedra Preta/ Joãozinho da Goméia.
44

mais detalhes sobre o início desta trajetória religiosa50:

João, agora com o nome iniciático de Londirá, livre das dores de cabeça
permaneceu na casa de Jubiabá durante três anos. Depois da obrigação de três
anos foi morar na casa de sua madrinha na Estrada da Liberdade, onde começou
a dar consultas com seu Caboclo, o Seu Pedra Preta. A casa da madrinha foi
ficando pequena para o número de pessoas que acorriam à Ladeira das Pedras,
onde João da Pedra Preta dava consultas. Mudou-se para o bairro de São
Caetano, estabelecendo-se na Rua da Goméia, em um terreno arrendado.
(PERALTA, 2000, p.81)

Entendemos o processo de feitura como se tal fosse uma “linha de continuidades”


das experiências religiosas acumuladas por algumas gerações de santo. Quando Eugenia
Anna dos Santos, a mãe Aninha da comunidade religiosa do Ilê Axé Opô Afonjá, foi
iniciada no terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, em 1884, pelas mãos da Ialorixá
Marcelina da Silva, Obá Tossi, 51 herdando o respeito adquirido por sua antecessora, que ficou
conhecida por resistências contra maus tratos policiais e profanações feitas em seu terreiro.
A sabedoria de Obá Tossi, havia sido transmitida a Aninha, e reconhecida pelo povo
baiano como uma espécie de patrimônio pessoal, que, que deveria ser preservado. Agenor
Miranda Rocha, filho de santo de Mãe Aninha relatou que:

A feitura é uma transmissão de saberes. O iniciando fica recolhido por um tempo


para se conectar com o seu sagrado, para nascer para uma nova vida onde o
caminho futuro é a vida em comunidade com a sua nova família. Neste
processo de feitura que se assemelha a uma gestação, o filho de santo se
conecta também com o sagrado de quem será seu pai ou sua mãe... E nesta
conexão ele vai se formando como um feto, e por isso é fundamental entender
este processo gestacional influenciando sobre a personalidade de um futuro
babalorixá ou Ialorixá. Eu sou muito do que foi Mãe Aninha e ela foi muito do
que foi Mãe Marcelina e por aí vai... e por isso que a Genealogia é fundamental
para a formação de uma liderança religiosa. É a raiz. Uma planta sem raiz firme
não vinga. A força vem desta raiz, é um orgulho de ter uma raiz em África,
perpassando por tantas trajetórias de luta e resistência 52.

O perfil do pai de santo ou da mãe de santo que realiza uma feitura influencia
nos conhecimentos que o iniciado carrega vida a fora, e influencia na forma com a qual ele
agirá política e socialmente dentro e fora da comunidade de terreiro de origem. O perfil
austero e político de Severiano Manoel de Abreu, por exemplo, é um excelente campo de

50
Diário da Noite, 9 de setembro de 1936.
51
AZEVEDO, Stella e MARTINS, Cléo. E daí aconteceu o encanto. Salvador: Editora do Axé Opô Afonjá, p.
17, 1988.
52
Agenor Miranda Rocha cedeu-me a entrevista em 2 de setembro de 2001.
45

observação, para refletirmos sobre as experiências e as vivencias de Joãozinho da


Goméia53, no decorrer da sua trajetória de vida.

Depois da obrigação de três anos, João foi morar na casa da sua madrinha,
localizada na Estrada da Liberdade, onde iniciou sua atuação como pai de santo, dando
consultas espirituais com o Caboclo Pedra Preta54 na Rua da Liberdade, 561, Ladeira da
Pedra55. Com a crescente busca de auxilio e conforto espiritual, o seu terreiro foi
transferido em 1935, para a Rua da Goméia 56, localizada no bairro de São Caetano, em
Salvador.57 O local era de difícil acesso principalmente em dias chuvosos, mas o sucesso
das festas do caboclo Pedra Preta já havia despertado a curiosidade de artistas,
antropólogos, folcloristas e sociólogos, que encontraram no terreiro da Goméia um
importante campo de estudos da cultura e da religiosidade africana. O romancista Jorge
Amado menciona que:

Nenhuma outra macumba era tão espetacular como esta da roça da Goméia do
rito Angola, por vezes ‘candomblé de caboclo’ quando das festas de Pedra Preta,
um dospatronos da casa. Nos ritos negros os santos da casa são Oxossi e Iansã. O
pai de santo Joãozinho da Goméia ou da Pedra Preta é um maravilhoso bailarino,
digno de palcos de grandes teatros. Esse caminho de São Caetano que leva à
estrada difícil da Goméia é percorrido por quanto artista, quanto escritor e
quanto sábio passa por essa cidade. Sou ogã deste candomblé e esse talvez
seja o único título que carregocomigo. Quase ogã é também o professor Roger
Bastide, da Faculdade de Filosofia de São Paulo que assistiu a Goméia à
iniciação das yaôs, quando elas se fizeram filhas de santo. Para ele e para mim
foi nos permitido ver as futuras filhas de santo na pequena casa onde faziam o
noviciado. Ali aprendem os cantos e as danças, a língua nagô que é a ritual dos
candomblés, ali de cabeça raspada ouve as preleções do pai de santo sobre as
obrigações das yaôs, longe do contacto masculino, numa abstinência sexual
absoluta que dura em média seis meses. No quilometro 3 da estrada de rodagem
o automóvel muda de direção e parece que deseja rebentar-se sobre as pequenas
casas em frente. Desce uma rampa quase vertical e tons as estradas da Goméia
onde os pés dos negros, milhares de pés se afundam diariamente em busca do
seu templo. Pelo caminho encontrareis dois ou três candomblés que São
Caetano é zona deles. Mas a roça da Goméia é mais longe por isso que é maior,
mais célebre, mais importante. Um cruzeiro assinala a entrada do candomblé. É

53
Aqui uso a grafia Joãozinho da Goméia, por estar falando dos aspectos gerais da vida e da atuação religiosa
do pai de santo.
54
PERALTA, p.80.
55
Segundo os relatos reproduzidos em grande parte dos trabalhos que tratam desta época da trajetória de
Joãozinho, a madrinha de Joãozinho em 1932 já havia falecido e por isso havia deixado o terreiro da Ladeira
da Pedra como herança.
56
LAPOENTE, Waldemar Alvarenga. Expresso de memórias, p. 224.
57
Em uma pesquisa sobre a formação do candomblé Nação Jeje na Bahia, o historiador Luís Nicolau Parés,
(A formação do candomblé- história e ritual da nação Jeje na Bahia) traz referências históricas que datam de
11 de novembro de 1871 ao nome “Gomea” relacionadas ao “terreiro Agomé”. O nome do terreiro seria uma
derivação de “Abomé, capital do antigo reino de Daomé, o que poderia, portanto, pensar-se que esse
candomblé fosse de nação jeje-dagomé” Parés conclui que o nome exista por causa deste terreiro Jeje que
vem a batizar o nome da rua “Goméia” situada no bairro de São Caetano próximo ao bairro Campinas do
Pirajá.
46

uma roça enorme, com uma série de pequenas construções. (AMADO, 1991, p.
162)

Nesta época, as festas do caboclo Pedra Preta já faziam sucesso, e o terreiro já era
conhecido por conta da desenvoltura dos passos artísticos de Joãozinho da Goméia que já
possuía fama como bailarino folclórico, o que despertava o interesse do jornalista e
folclorista Edison Carneiro que a partir de 1936 iniciara os preparativos para a realização
do II Congresso Afro-brasileiro que seria realizado na cidade de Salvador em 1937. A
aliança entre João da Pedra Preta e Edison Carneiro construiu importantes vínculos58 com
outros estudiosos dos cultos africanos, abrindo os caminhos do jovem pai de santo que
em troca garantiria ao jornalista auxilio nas pesquisas sobre os cultosde origem banto.

1.2 O SEGUNDO CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO DE 193759

O Segundo Congresso Afro-Brasileiro aconteceu entre os dias 11 e 19 de janeiro de


1937. A divulgação foi feita através das páginas do Diário de Pernambuco, que passou a
divulgar algumas entrevistas realizadas com Martiniano Eliseu do Bonfim, Manoel de
Falefá, e João da Pedra Preta. Martiniano, representante do discurso da superioridade nagô,
ocupou a presidência do evento, por ter sido o informante de Nina Rodrigues em seus
estudos sobre os africanos, e suas experiências religiosas na Bahia. Assim, representou a
comunidade religiosa Ilê Axé Opô Afonjá, na qual fazia parte. A imprensa passa a
enfatizar a participação de lideranças masculinas, que passam a serem entrevistadas para
falar sobre as expectativas sobre os efeitos do Congresso no cotidiano do povo de santo
baiano, os resultados práticos sobre o cotidiano do praticante do candomblé, os benefícios;
e o envolvimento pessoal e comunitário no evento. Cada pai de santo se posicionou e

58
Após a realização do II Congresso Afro-brasileiro a Goméia é transformada em um laboratório para
estudiosos estrangeiros como Donald Pierson, Lorenzo Dow Turner, Pierre Verger e Roger Bastide. O
conhecimento produzido por Joãozinho da Goméia se tornará em interesse também para folcloristas e
jornalistas que utilizam as páginas dos jornais e das revistas a partir dos anos de 1940 para tratar dos estudos
do candomblé a luz dos estudos realizados por Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro que são
citados em grande parte das reportagens sobre a cultura afro-baiana, com exceção das reportagens feitas na
Goméia que se abandona o que o conhecimento cientifico e academicista para colher informações dadas por
Joãozinho da Goméia que se torna em uma importante referência.
59
Ao construir as minhas reflexões sobre o trato das abordagens sobre o II Congresso Afro-brasileiro de 1937
considerei que perante a grande quantidade de estudos dedicados a temática não seria interessante neste
momento esmiuçar os aspectos do evento, o que quebraria a fluidez do trabalho aqui apresentado, mas
recomendo a leitura dos livros: Cartas de Edison Carneiro à Arthur Ramos dos antropólogos Vivaldo
da Costa Lima e Waldir Freitas Oliveira; e Entre a oralidade e a escrita- a etnografia nos candomblés da
Bahia de Lisa Earl Castillo.
47

apontou como ponto de conexão entre ambos: o desejo pela liberdade religiosa;
autorização dos Toques, o cessar das batidas policiais, enfim, o desejo pela liberdade
religiosa.

O relato mais contundente foi o de João da Pedra Preta, que respondeu as


perguntas feitas a respeito da sua iniciação religiosa no terreiro de Jubiabá, sua relação
com o seu caboclo e suas contribuições para com o evento. Também foi João, ao lado de
Manoel de Falefá, quem levantou a bandeira da liberdade de culto religioso. Na entrevista
dada aos jornais Correio de São Paulo 60 e Diário da Noite61, João da Pedra Preta menciona
os motivos que o levaram até um terreiro de candomblé, com detalhes assustadores, que
deixam a entender que o candomblé o havia curado de uma doença que o levaria à morte
ou à loucura. Reforçando a ideia de que o candomblé era o pronto socorro dos pobres que
não possuíam acesso a remédios e profissionais de saúde.62 A obediência ao caboclo Pedra
Preta foi outro dado que chamou atenção dos jornalistas, que destacaram a pouca idade do
pai de santo à frente do comando de uma comunidade religiosa. O desejo de conhecer o
Rio de Janeiro já era, em 1936, seu objetivo de vida63. O discurso de Joãozinho é tido
como uma atraente propaganda que impulsionaria não apenas os interesses científicos de
estudiosos, mas, também, poderia vir a modificar a situação do povo de santo baiano:

(...) para dar uma festa de domingo tive de pagar 60$000. A minha opinião é
a de que não deve haver pagamento nenhum. O candomblé deve ter a liberdade
de funcionar quando quiser. Reconheço que alguns Paes de santo abusam da
licença. Mas que se há de fazer? Agora, assim como está é que não está certo.
Penso que o Congresso deve estudar direito um meio de resolver esta questão.
Que diferença há entre a religião dos brancos e a religião dos negros? 64

Lisa Earl Castillo aponta que o jornalista Edison Carneiro objetivava construir uma
estratégia, que envolveria o povo de santo na produção de um discurso sobre o candomblé,
baseado na luta para a legitimação social da religião.65 O intuito dos preparativos do
segundo congresso era o de promover uma imagem mais positiva do candomblé, perante a
sociedade baiana, buscando transformar os rituais públicos como o “Presente à Iemanjá”

60
Correio de São Paulo, 18 de agosto de 1936.
61
Diário da Noite, 27 de agosto de 1936 e de 9 de setembro de 1936.
62
Diário da Noite, 27 de agosto de 1936.
63
Joãozinho menciona em 1936 que sua Nação era Angola.
64
Idem
65
CASTILLO, Lisa Earl, p. 118.
48

em um símbolo cultural da Bahia, inserindo representantes do povo de santo nos


preparativos destes eventos, capacitando-os a atuarem futuramente, como produtores de
conhecimento sobre a cultura e a religiosidade afro-baiana.

Figura 5: “Magia Negra: Pae de Santo aos quinze anos, João da


Pedra Preta e, agora, o mais prestigiado macumbeiro da Gomea.
Capa do jornal Correio de São Paulo, de 18/08/1936. João da
Pedra Preta, um jovem pai de santo aos 22 anos de idade,
demonstra a simplicidade do seu terreiro localizado na Rua da
Goméia, bairro de São Caetano, em Salvador. Fonte:
BNDigital66

66
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=720216&pasta=ano%20193&pesq=%22Jo%C3%A3o
%20da%20Pedra%20preta%22&pagfis=9683
49

Figura 6: “Pai de santo aos quinze anos: Caboclo Pedra


Preta quer liberdade de culto”. Capa do jornal Diário
da Noite, de 9/09/193667. Fonte: BNDigital 68

67
Ver também a reportagem do jornal Diário da Noite, de 27 de agosto de 1936, com o título: “Aos quinze
anos já era pae de santo- uma reportagem entre os macumbeiros bahianos- Oxóssi é exigente e não deixa o
cabocloPedra Preta vir ao Rio... Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&pesq=%22Jo%C3%A
3o%20da%20Pedra%20preta%22&pagfis=28395
68
Chamo atenção para esta reportagem do jornal Diário da Noite, que utiliza uma imagem que não representa
o terreiro de Joãozinho da Goméia. A imagem é uma montagem que partiu de três fotografias publicadas em
30 de abril de 1935 no terreiro Rei Ogum da Mata, localizado em São João de Merity. O jornal Diário da
Noite através da caravana “Rio Repórter”, se dedicava a dar publicidade aos centros e terreiros licenciados
pela polícia para atuar junto à população carioca. O terreiro em questão tinha licença para funcionamento e
acreditamos, que pelo fato de Joãozinho da Goméia ter adquirido status de representante do discurso da
liberdade de culto para os candomblés da Bahia, as imagens de um terreiro, que eram uma raridade na
imprensa da época tenham sido associadas ao terreiro da Goméia. Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&pesq=%22macumba
%22&pagfis=21585https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&p
esq=%22macumba%22&pagfis=21585
50

Identificamos como a primeira documentação produzida, as apresentações artísticas


de João da Pedra Preta, a narrativa publicada pelo jornal Estado da Bahia de 15 de
dezembro de 1936, na qual o pai de santo se apresenta em um show dentro do estúdio da
Rádio Comercial com um grupo de filhas de santo e de ogãs. O show “Uma noite africana
na Rádio Comercial” foi transmitido Ao Vivo, e fez parte dos preparativos do Segundo
Congresso Afro-brasileiro. O evento radiofônico havia sido organizado por Edison
Carneiro, para chamar atenção da população baiana sobre a realização do evento em
janeiro de 1937. Anunciado como um “show tipicamente africano”, João levou para o
estúdio uma orquestra negra com atabaques, agogôs e cabaças:

Édison achou em João a figura certa para chamar a atenção da população sobre o
congresso que organizava”. Assim, além de entrevistar João no “Estado da
Bahia” em dezembro de 1936, elaborou um evento inédito na Rádio
Comercial da Bahia:um show transmitido ao vivo de... Candomblé! Faltando um
mês para o início do Congresso, Édison organizou uma apresentação com
músicas de candomblé, lideradas pelo pai de santo chamando-a de Uma noite
africana na Rádio Comercial. Na chamada para o espetáculo, aproveitava para
lembrar-se da aproximação do congresso que ocorreria em janeiro de 1937. No
próximo dia 15, terça-feira, a Rádio Comercial oferecerá aos seus fãs um número
sensacional. Em colaboração com a comissão do 2º Congresso Afro-Brasileiro e
com o Estado da Bahia, a Rádio Comercial vai organizar um programa
tipicamente africano, regional. O ‘pai de santo’ João da Pedra Preta levará ao
‘estúdio’ daquela rádio difusora uma legítima orquestra negra constituída por
tabaques, agogô e cabaças, a cargo dos mais exímios tocadores do candomblé da
Goméia. As filhas de santo que o acompanharão, farão coro a belos cânticos
religiosos nagôs, bantos e caboclos. Antes da audição de canto e música dos
aderentes do candomblé da Goméia, deverá falar, sobre as finalidades do 2º
Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, o escritor Edison Carneiro, da comissão
encarregada do mesmo. Assim, a ‘noite africana’ da ‘Radio Comercial’ está
fadada a um sucesso sem precedentes na história das nossas ‘broadcastings’ A
apresentação foi no dia 15 de dezembro. Dois dias depois temos matéria com as
notícias sobre o evento. “Em colaboração com o “Estado da Bahia” e com a
comissão do congresso Afro-Brasileiro da Bahia, a Rádio Comercial
proporcionou aos rádio ouvintes da cidade a audição de músicas e cânticos
dos candomblés afro-baianos.” O pai de santo João da Pedra Preta, chefe do
candomblé da Goméia, na Estrada de rodagem Bahia-Feira, levou para o estúdio
da emissora a sua orquestra de negros, dando início, às 21h, à audição de
cânticos religiosos africanos ou de origem africana da Bahia. João da Pedra
Preta cantou, anteontem, o despacho de Exu e várias canções de Ogum, Oxossi,
Xangô, de Oxalá, Omulu, Oxumaré [sic] e de Iansã, todas em Ketu, língua norte
africana, e canções de Oxossi, de Nanã, de Oxum, de Tempo, de Katendê e de
Iansã, em Kinbundu, língua de Angola. Os negros do candomblé da Goméia, sob
a direção de João da Pedra Preta, cantaram ainda algumas canções na língua dos
caboclos do Brasil. Por motivo de força maior, deixou de falar sobre a finalidade
do 2º Congresso Afro-Brasileiro, o escritor Edison. Carneiro, da comissão
encarregada da realização do congresso na Bahia Cercado e apoiada pelas
suas filhas de santo, o chefe do candomblé da Goméia executou números
interessantíssimos, ouvidos com entusiasmo, tanto pelos rádio-ouvintes nas suas
casas particulares, como pelos populares que se aglomeravam a porta dos
bares e dos cafés da cidade para escutar o velho lamento africano dos
51

candomblés. (LIMA e OLIVEIRA, 1987, p.109-110)69

O evento da “Rádio Comercial da Bahia” objetivava também anunciar a fundação


do “Conselho Africano da Bahia”, que ansiava lutar pela liberdade de culto para os
candomblés baianos, e assim regular a atuação das práticas religiosas.

1.2-1 O EVENTO EM SI

Figura 7: Reportagem do jornal A Noite de 26/01/1937. Fotografia de encerramento do Segundo Congresso


Afro-Brasileiro. Da esquerda para a direita: O interventor do Estado da Bahia Juracy Magalhães, Edison
Carneiro, Taata Manoel Bernardino do Bate Folha; Aydano do Couto Ferraz, Martiniano Eliseu do Bonfim,
Mãe Menininha do Gantois. 70 Fonte: BNDigital 71

69
O evento também é citado e narrado pela historiadora Elizabeth Castellano Gama em sua dissertação de
mestrado: Mulato, Homossexual e Macumbeiro: Que Rei é esse: Trajetória de Joãozinho da Goméia nas
páginas, p.95-96.
70
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=348970_03&Pesq=%22Edson%20Carneiro%22&pag
fis=39637
71
A fotografia do jornal A Noite de 26 de janeiro de 1937, foi feita no dia 19 de janeiro. Último dia do
evento. Na parte da frente estão da esquerda para a direita- o interventor Juracy Magalhães, o
Jornalista/folclorista Edison Carneiro, o Tata n’kisi Manoel Bernardino do terreiro do Bate Folha; o jornalista
52

Um dos aspectos mais originaes do Congresso da Bahia foi, sem dúvida, a


contribuição directa dos paes-de-santo e outros afficcionados, como
pesquisadores das suas próprias seitas. Bernardino, do Bate Folha; Falefá, da
Formiga; Vavá Pau Brasil; Anninha- para pezar de todos os seus amigos hoje
morta- apareceram ao lado dos nossos maiores estudiosos, em pé de igualdade
Não esqueçamos a camaradagem da velha Maria Bada, a mais sabida de todas as
negras velhas dos candomblés do Brasil. Notável também foram as exibições
de... samba e batuque apresentados aos congressistas .... Por... as filhas de
santo de João da Pedra Preta, que se prestaram com a maior solicitude, a
repetição detoadas para os estudos da musicologia.72

Aconteceu nos salões nobres do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, de 11


a 20 de janeiro de 1937, a realização do Segundo Congresso Afro-brasileiro que contou
com a presença de candomblecistas, capoeiristas e intelectuais dedicados aos estudos da
cultura negra baiana73. O evento foi dedicado à obra de Nina Rodrigues, contando com a
presença de Martiniano Eliseu do Bonfim, - presidente honorário do evento, que também
representava a Ialorixá Aninha Obá Biyí- dirigente do “Centro Cruz Santa do Axé Opô
Afonjá”. As sessões foram instaladas no dia 11 de janeiro às 15 horas, com leituras e
discussões de textos produzidos pelo povo de santo, e por estudiosos do culto africano.
Foram lidas comunicações cientificas de Arthur Ramos, Renato Mendonça, Jacques-
Raymundo, Dante de Laytano, Manuel Diegues Junior, Leopoldo Bettiol, Edison Carneiro,
Alfredo Brandão, Dario de Bittencourt, Aydano do Couto Ferraz, Robalino Cavalcanti,
Reginaldo Guimarães, Amanda Nascimento, Donald Pierson da Universidade de Chicago,
Jorge Amado, João Calazans, João Mendonça, Clovis Amorim, Melville Herskovits, da
Northwestern University dos Estados Unidos, Salvador Garcia Aguero de Cuba 74. A
contribuição do povo de santo ficou a cargo a elaboração dos textos, as comunicações, as
exibições artísticas e a visitação aos terreiros75A organização do evento privilegiou
visitações aos terreiros da nação kêtu, do pai de santo Procópio de Ogunjá no Matatu
Grande; da Casa Branca do Engenho Velho; do Centro Santa Cruz do Axé Opô Afonjá em

Aydano do Couto Ferraz, Martiniano Eliseu do Bonfim, o romancista Jorge Amado, a Ialorixá Mãe
Menininha do Gantois.
72
CARNEIRO, Edson; FERRAZ, Aydano Couto (ORG.). O negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2º
Congresso Afro-brasileiro. RJ: Civilização Brasileira, 1940.
73
Diário de notícias, 6 de janeiro de 1937.
74
Ibidem.
75
CARNEIRO, Edison e Aydano Couto, 1940.
53

São Gonçalo do Retiro; do Gantois no bairro da Federação, do terreiro congo-angola do


Taata Bernardino do Bate-folha e do terreiro da Goméia.
Também participaram das sessões do congresso o pai de santo Manoel da Formiga
e o tocador de atabaque Silvino Manoel da Silva, além do maestro paulista Camargo
Guarnieri, do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, que
intencionava recolher notações musicais dos candomblés nordestinos. O dia 14 de janeiro
foi reservado para apresentações de caráter folclórico, ou seja, a exibição da capoeira
de Angola ministrada pelo mestre Samuel Querido de Deus. Álvaro Carlini apresenta em
sua Dissertação de mestrado a participação de Camargo Guarnieri e do pianista Flutuoso
Viana no Segundo Congresso. O intuito era o de “coletar” e “registrar” as informações
obtidas nas visitações e apresentações de pais de santo que seenvolveram com o evento:

Camargo Guarnieri deveria em primeiro lugar, solicitar ao feiticeiro para que


este descrevesse toda a cerimônia na ordem litúrgica, anotando as melodias
cerimoniais de abertura, de saudação dos santos, das danças, dos comes e bebes
(si as houver) e de encerramento da cerimônia. Em seguida, seriam anotadas as
melodias das entidades sobrenaturais, anexando a cada melodia de cada deus.
Uma outra indicação de Mário de Andrade se referia às pesquisas especificas
que deveriam ser realizadas sobre o candomblé de caboclo, variante do
candomblé negro que possui influencia ameríndia. Camargo Guarnieri recebeu a
instrução de indagar a cada feiticeiro (...) sua opinião sobre o candomblé de
caboclo, si acredita nele, si vale de alguma coisa (...) caso a resposta do feiticeiro
fosse afirmativa, o compositor solicitaria a (...) descrição de suas cerimônias, a
enumeração dos deuses, seus fios santorum e melodias (...). Camargo Guarnieri
permaneceu na capital do Estado da Bahia durante o mês de janeiro de 1937,
retornando a São Paulo em princípios de fevereiro. (CARLINI, 1994, p. 34 e 35)

A exibição de capoeira Angola ministrada por Samuel Querido de Deus também


estaria relacionada aos interesses folclóricos da Missão de pesquisas folclóricas
coordenada por Camargo Guarnieri. Samuel Querido de Deus era pescador e um famoso
mestre de capoeira em Salvador, o que lhe conferiu lugar de destaque no livro Bahia de
todos os santos: guia de ruas e mistérios76 escrito por Jorge Amado, que o descrevera
como o “melhor jogador de capoeira das festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia”
77
. O folclorista Edison Carneiro descreveu a importância do mestre de capoeira em Negros

76
O mesmo livro escrito em 1945, que dá notoriedade para Joãozinho da Goméia. Jorge Amado destaca
algumas personalidades baianas que ele compreende como sendo de grande relevância para a vida cultural e
social da cidade de Salvador. Ser contemplado pela escrita deste livro projetava mais ainda os nomes de
Samuel Querido de Deus e de João da pedra preta, que em 1945 já era conhecido como “Da Goméia”.
77
AMADO, 1991. p.95.
54

Bantos- notas de etnografia religiosa e de folclore78, nesse livro o capoeirista destacava a


presença de cânticos que faziam alusão a orixás presentes nos candomblés de caboclo, o
que passa a ser considerado por Edison Carneiro como uma deturpação.

Figura 8: Registro do Grupo de parceiros de capoeira do Mestre Samuel Querido de Deus, que se
79 80
apresentaram no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937. O autor da fotografia não foi identificado.

Após assistir a exibição do grupo de capoeiristas liderados por Samuel Querido de


Deus, o folclorista Edison Carneiro decidiu, como uma das conclusões obtidas pela
realização do Segundo Congresso, que seria fundada, na cidade de Salvador, a “União das
capoeiras da Bahia”, que preservaria a tradição dos saberes da capoeira de Angola, e

78
CARNEIRO, Edison. Negros Bantos- notas de etnografia religiosa e de folclore. RJ: 2ª edição, Civilização
Brasileira, 1981.
79
A demonstração de capoeira de Angola, a “vadiação” foi dirigida por Samuel Querido de Deus. Aconteceu
às nove e meia da manhã, no campo de basket Ball do Club de Regatas de Itapagipe, com a participação dos
capoeiristas Barbosa, Onça Preta, Juvenal, Zeppelin, Bugaia, Fernandes, Eutychio, Nenen, Zei, Ambrosio,
Barroso, Arthur Mattos, Raphael, Edgard, Damião.
80
Disponível em: https://www.capoeiranews.com.br/2015/10/querido-de-deus-um-capoeira-navegador.html
55

impediria as deturpações, como as presenciadas no grupo de Samuel. Apesar das intenções


de Edison Carneiro, o projeto de criação da União não foi adiante, devido a rivalidades
entre grupos de capoeiristas locais81.
Outra vertente folclórica esteve presente ao evento do Segundo Congresso de 1937.
Composta por três eventos dirigidos pelo pai de santo João da Pedra Preta: uma
apresentação de samba de roda no clube de Regatas Itapagipe, uma festa no parque público
São Bartolomeu (espaço significativo para o culto dos caboclos) localizado entre o bairro
do Pirajá e a Enseada dos cabritos, no subúrbio ferroviário de Salvador.
A visita à Goméia revelou as dependências internas do terreiro de São Caetano a
grupos de congressistas e visitantes, dentre eles, a bailarina e o folclorista Eros Volúsia,
que fazem parte de um movimento de inserção de estudiosos da dança folclórica e da
dança afro- brasileira no terreiro da Goméia baiana. Um movimento que parte dos
profissionais de dança clássica e moderna, alguns pertencentes a companhias de balés
russos, norte- americanos, franceses, bailarinos e coreógrafos brasileiros, pertencentes ao
corpo de balé clássico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eles criam o “balé
estilizado” que é nada mais, nada menos, do que uma releitura da dança de terreiro, que
passa a ser tratada como balé folclórico e bailado nacional, no qual a bailarina Eros
Volúsia é especialista. A presença de Eros, no Segundo Congresso Afro-brasileiro,
acontece pelo seu interesse em coletar e registrar os passos encenados dentro dos terreiros
de candomblé e de macumba, com o intuito de construir coreografias estilizadas, ou seja,
com inspiração direta no ritmo dos orixás.

81
Disponível em: https://www.bn.gov/explore/colecoes/arquivo-arthur-ramos
56

Figura 9: Registro de visita de congressistas ao terreiro da Goméia. Não


conseguimos localizar a data em que o registro foi feito, nem a data em que o terreiro foi
visitado. Fonte: A reportagem do jornal O Estado da Bahia foi compartilhada sem
referencia à data da publicação no site: http://velhosmestres.com/br/destaques-5

Os primeiros contatos entre João e Eros se deram a partir do Segundo congresso


de 1937, quando a bailarina recebe um diploma da União das Seitas Afro-brasileiras em 10
de outubro de 1937. Comparamos a atuação “folclorista” de Eros com a de Camargo
Guarnieri, que possuíam interesses distintos e semelhantes no sentido do campo de estudos
folclóricos. O material colhido no Nordeste, por Camargo Guarnieri, abasteceria os
interesses do II Congresso Internacional de Folclore, que estava programado para
acontecer em Paris no dia 25 de junho de 1937. Um congresso que fazia parte dos
investimentos da “Sociedade de Etnografia e Folclore”, que desde 1936, vinha registrando
as ocorrências das manifestações populares do Estado de São Paulo, através de produções
de mapeamentos, coletas de dados e levantamentos de informações. O material colhido por
Guarnieri também dialogaria com a produção de conteúdo da “Missão das Pesquisas
Folclóricas” que percorria o norte e o nordeste do país, para gravar e filmar as
manifestações da cultura popular, especialmente as de natureza musical. De acordo, com os
57

estudos de Álvaro Carlini82, sobre Mário de Andrade e as Missões de pesquisas folclóricas,


a Sociedade de Etnologia e Folclore, tornou-se responsável pela formação de
pesquisadores de campo especializados, que se responsabilizavam pela coleta, estudo e
divulgação da música folclórica brasileira por meio da Discoteca Pública Municipal, sob a
orientação de Mario de Andrade e chefiada pela ensaísta e folclorista brasileira Oneyda
Alvarenga.
Esse interesse de personalidades do universo do ballet, que buscam aproximações
com terreiros passa a ganhar ênfase na imprensa, após a publicação de uma homenagem
que a cantora e dançarina afro-americana Josephine Baker83 recebeu do terreiro de Mãe
Adéle em 3 de julho de 1939. Uma sessão de macumba acompanhada por diplomatas e
demais personalidades de destaque da sociedade. O Jornal Diário da Noite84 anuncia:

Josephine Baker dansara no terreiro de macumba! Com cerimonial transmitido


pela Rádio Tupi a symphatica artista negra tem demonstrado interesse vivíssimo
pelos rythmos da dansa e musica do nosso povo, utilizando-os mesmo em novas
e palpitantes expressões de arte que alcançam aplausos consagradores da elite
carioca.85

Petrônio Domingues86 afirma que Josephine Baker era um dos símbolos do


modernismo artístico e cultural, chamando atenção de diversos segmentos sociais pela sua
rápida expansão artística pelos Estados Unidos, e por diversos países europeus, tendo sua
chegada ao Brasil, simbolizado um êxtase para a imprensa negra, pelo peso da sua
representatividade junto às associações e clubes negros de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Ela era um “mito vivo” para a população de cor brasileira, tão carente de símbolos de
representatividade e de elevação da autoestima que evidencia a importância de
aproximações entre pessoas de cor negra dentro de uma perspectiva de construção de
identidades e de resistência social e cultural que expõe o “fluxo” e o “refluxo” projetado
pela ideia de Atlântico Negro, construída por Paul Gilroy, que acredita que a música, o
gesto e a dança são formas de comunicação e de construção de agenciamentos negros
responsáveis pela formação de redes transculturais, que reinventam suas identidades e

82
CARLINI, Álvaro. As viagens de Mário de Andrade: antecedentes e preparativos para a Missão de
Pesquisas Folclóricas. SP: Tese de Doutorado em Musicologia histórica, pela Universidade de São Paulo,
2000.
83
Josephine Baker foi uma cantora e dançarina norte-americana de fama internacional. Naturalizada francesa
em 1937 passou a ser conhecida como Vênus Negra.
84
Diário da Noite, 19 de julho de 1939.
85
Idem
86
DOMINGUES, Petrônio. A “Vênus negra”: Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica RJ:
Revistas Estudos Históricos vol.23, nº45, 2010, p.3.
58

expuseram tradições inventadas, que são importantes para que consigamos compreender a
trajetória desses sujeitos negros no pós-Abolição.
O encerramento do Congresso se deu na terça-feira, dia 19, no Salão nobre do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, quando os congressistas renderam homenagens
a Nina Rodrigues. Foi lido um discurso do antropólogo Arthur Ramos e do escritor Edson
Carneiro, continuadores da obra do homenageado. Anunciou-se que, como efeitos de
continuidade87, os esforços ali empregados resultariam na criação do “Instituto Afro-
brasileiro da Bahia”, que se encarregaria de tratar da fundação de Escolas de samba em
São Paulo, e de uma instituição para cuidar dos saberes da capoeira de Angola, que
seria coordenada por Samuel Querido de Deus. Outro anúncio foi o da realização da
terceira edição do Congresso Afro-brasileiro, que aconteceria na cidade de São Paulo,
ficando a sua organização a cargo dos escritores Mário de Andrade, Mário Pedrosa88, e do
Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal da capital paulista. A proposta era que o
IIIº Congresso acontecesse em princípios de 1939. No caso da União das Seitas Afro-
brasileiras, pleiteava-se o reconhecimento oficial do candomblé como uma seita religiosa,
reivindicando os mesmos direitos e privilégios acordados na constituição brasileira para
outras classes e formas de expressão religiosa. Edison Carneiro desejava também solicitar
que esta instituição identificasse charlatões que atrapalhassem o reconhecimento do
candomblé como religião.

87
Os Anais do II Congresso Afro-Brasileiro saíram somente em 1940, com o título O Negro no Brasil
publicado pela Biblioteca de Divulgação Cientifica da Civilização Brasileira S.A. com prefacio escritopor
Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz.
88
Mário Xavier de Andrade Pedrosa (Timbaúba, 25 de abril de 1900 — Rio de Janeiro, 5 de novembro de
1981) foi um escritor, jornalista, crítico de arte e ativista político brasileiro, iniciador das atividades da
Oposição de Esquerda Internacional no Brasil, organização liderada por Leon Trótski, nos anos 1930, eda
crítica de arte moderna brasileira, nos anos 1940. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Pedrosa
59

1.2.DA MARGINALIZAÇÃO À PROJEÇÃO

Figura 10: João da Pedra Preta, em registro feito pelo etnomusicólogo Lorenzo Dow Turner (1940-41).
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Community Museum Smithsonian Institute.

A carreira sacerdotal de João da Pedra Preta principiou sob a marca da ousadia,


oscilando entre a aceitação e a rejeição. João não se sujeitava a ser enquadrado dentro de
limites impostos pelo sistema hierarquizante do candomblé baiano dos anos 1930, que
tinha no princípio da senioridade, um dos seus fatores estruturantes. O antropólogo
Vivaldo da Costa Lima89entende a senioridade como a representação de forças atuantes na
estrutura e no mecanismo de promoção à liderança, dentro dos grupos de candomblés. As
críticas à autoridade e a legitimidade da liderança de João da Pedra Preta, que surgem no
início da sua atuação em Salvador, referem-se à ausência de uma formação iniciática
tradicional, ou seja, a iniciação em um terreiro como o de Severiano Manuel de Abreu que,
em um momento se identificava como Centro kardecista para fugir da violência policial, e

89
LIMA, Vivaldo da Costa. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de
relações intergrupais. Salvador: Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 1977, p. 75.
60

em outro momento era apontado pelo próprio João como um terreiro de candomblé
Angola, gera um melindroso conflito de identidades religiosas. A citação em entrevistas
que o terreiro de Severiano pertencia à nação Angola, revela uma preocupação do jovem
pai de santo com a sua imagem, que passa a ser acusado de desvirtuamento e mistificação.
Uma associação feita aos pais de santo de candomblés caboclo/angola que passam a receber
adjetivações depreciativas:

(...) os pais de Angola, do Congo ou caboclos são quase todos improvisados,


feitos por si mesmos, aprendendo uma cantiga aqui e outra ali, como dizem
os chefes nagôs e jejes. Vários desses pais jamais sofreram processo de feitura
do santo. São pais sem treino, espontâneos, distantes da orgânica tradição
africana, os clandestinosno desprezo nagô.90

A partir de 1937, João da Pedra Preta desapareceu da imprensa e da produção


dos pesquisadores dos cultos afro-brasileiros, o que é rompido pela presença do professor
de Sociologia e de Antropologia Social da Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo, Donald Pierson, que publica em 1945, o livro “Brancos e Pretos na Bahia”91.A
presença da antropóloga norte-americana Ruth Landes, também localiza o pai de santo João
da Pedra Preta em Salvador.

Em 12 de janeiro de 1939, a antropóloga é convidada por Edison Carneiro e pelo


casal Manoel Amor e Zezé de Iansã, (filhos de santo do Gantois) para conhecer a igreja de
Nossa Senhora da Conceição da Praia e a procissão da lavagem do Senhor do Bonfim.
Embebida pelos movimentos em sua volta, a antropóloga começa a fazer alguns registros
fotográficos de acordo com o que conseguia captar a sua volta: homem, mulher, criança,
bicho, como as pessoas estavam vestidas, os objetos que carregavam nas mãos, a
decoração da festa, as carroças puxadas com cavalos e jumentos, as flores, os jardins, os
veículos, as beatas e o povo de santo.92 Ruth Landes destaca seu fascínio pelas mulheres
negras “que subiam ruidosamente os degraus com tamancos pintados de branco
equilibrando na cabeça uma comprida jarra prateada adornada por uma fina toalha branca
93
de Oxalá” . Logo, Zezé de Iansã se pôs a explicar a influência da África Ocidental nas
vestimentas da mulher, indicando que se tratava de uma sacerdotisa de Omulu, pertencente

90
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. RJ: Civilização Brasileira, 1967, p.45.
91
PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia- estudo de contacto social. RJ: Companhia Editora
Nacional, 1945.
92
LANDES, 1967, p.262-265.
93
Idem
61

a um terreiro localizado em Ilhéus, a distante cidade do cacau. Zezé de Iansã avistando a


mãe de santo Idalice, que possuía um terreiro de caboclo na Rua da Goméia, próximo ao
de João da Pedra Preta, questiona o fato da sacerdotisa usar o cabelo alisado a ferro
quente, um ato tido como questionável para as lideranças de terreiros de candomblé da
Bahia. Um questionamento muito presenciado nas críticas a Pai João que, além de estar
no auge dos seus 25 anos de idade, estava apenas há dezanos no comando de um terreiro
de candomblé. A aproximação de João não passa despercebida, mas é notada por todos os
que estão na companhia da antropóloga Ruth Landes, que se encanta com o brilho e o
fascínio causado por aquele jovem pai de santo. Atentos às críticas que construíram o
imaginário sobre Joãozinho na Salvador dos anos de 1930 e 1940, poderia ser leviano
pensar que o impacto da chegada do pai de santo seria por aspectos relativos apenas à sua
boa aparência ou a sua elegância e desenvoltura no comando das suas filhas de santo nos
festejos do Bonfim. Ruth Landes chama atenção para a fileira de filhas de santo vestidas
com trajes de sacerdotisas, cada qual com um jarro dourado e prateado na cabeça, e uma
vassoura nova nas mãos94:

No topo da Ladeira onde havia ar fresco, um jovem e bonito mulato enxugava


constantemente o suor do rosto de oito mulheres em traje de sacerdotisa, cada
qual com um jarro dourado ou prateado na cabeça e uma vassoura nova na mão.
Manuel escarneceu, Edison riu: -É João da Pedra Preta! - exclamou Edison. -
Espicha o cabelo e dança no templo- resmungou Manuel em tom soturno - A
culpa não é toda dele- respondia Edson e Manuel. Está agora com 24 anos e
herdou o cargo há uns nove ou dez. Naturalmente que não estava preparado.
Tinha apenas uns sete ou oito anos quando apareceu Bahia vindo do interior,
órfão, sem lar, e foi criado de um sacerdote. Viveu com bandos de garotos como
ele e as únicas mulheres que Conheceu viviam em prostibulos. Por fim, o velho
pai X o acolheu e se tomou de amizade por ele, deixando-lhe o templo ao
morrer. Na verdade é um sujeito inteligente, mas o que se pode esperar? Está
tentando abrir caminho no mundo. Agora trouxe as suas mulheres para concorrer
prêmios e elas estão lindas como bonecas. (LANDES, 1967, p.266)
.

94
LANDES, 1967, p.266.
62

Figura 11: Filhas de santo do terreiro da Goméia reunidas para o cortejo com água sagrada
para lavar a igreja para a cerimônia -Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb95

Figura 12: Lavagem - Filhas de João da Goméia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661
Tamanho: 536kb96

95
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
96
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
63

Figura 13: João da Goméia conduzindo suas filhas de santo - Lavagem do Bonfim -
janeiro, 1939. Dimensão: 1956 x 651 Tamanho: 463kb97

Figura 14: Sacerdotisas com água sagrada e outros personagens da lavagem do Bonfim.
Filhas de João da Goméia -Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb98

97
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
98
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
64

Figura 15: Sacerdotisas com água sagrada para lavar a igreja.


Lavagem - Filhas de João da Goméia - Janeiro, 1939.
Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb99

Consideramos que a obra Cidade das Mulheres traz algumas abordagens críticas
que servem para estabelecer reflexões sobre alguns aspectos que tenham supostamente
“marginalizado” João em Salvador. A bem da verdade, Ruth Landes reproduz os
preconceitos apresentados pelo povo de santo em relação à presença de João em um cargo
de santo, mostrando o campo religioso afro-baiano como um campo de disputas e tensões
em torno de poder, prestigio e status. A condenação da presença de homens em cargos de
liderança fazia parte do discurso oficial100dos candomblés tradicionais da Bahia dos anos
30. Aos homens que conduziam candomblés de caboclo, eram atribuídas identidades
homossexuais, pelo culto ligado a esses templos não possuírem uma tradição como os da
nação Kêtu e Jeje. A antropóloga informara que os caboclos eram blasfemos e

99
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938afonj%C3%A1
100
Martiniano Eliseu do Bonfim era um dos representantes deste discurso oficial que era transmitido por
lideranças de terreiros nagôs como a Casa Branca, o Ilê Axé Opô Afonjá e o Gantois.
65

indisciplinados. Eram cultos que inventavam deuses e admitem homens nos cargos de
liderança:

Alguns homens se deixam cavalgar e tornam-se sacerdotes ao lado das mulheres;


mas sabe-se que são homossexuais. Nos templos vestem saias e copiam os
modos das mulheres e dançam com as mulheres. Às vezes tem melhor aparência
do que elas. (...) Existiam lugares destinados aos homens de acordo com os
padrões de tradição iorubá. Eles financiavam os terreiros. Tocavam os
instrumentos musicais para as danças sagradas. Abatiam os animais nos
sacrifícios e coletavam as ervas. Mas não incorporavam. E se dançassem,
dançavam sozinhos; nunca perto de mulheres que eram sagradas para os deuses.
O sangue quente dos homens não oferecia abrigo para os deuses. Assim como as
mulheres mais jovens que ainda eram reféns dos desejos da carne e não
possuíam as sabedorias das mulheres mais velhas. (LANDES, 1967, p.44.)

Aos homens que atuavam no comando dos terreiros de candomblé de caboclo, eram
destinadas identidades que condenavam uma suposta condição sexual. De acordo com
Ruth Landes, os homossexuais viviam em condição subalterna e segundo a antropóloga
escolheriam tornarem-se chefes de templos religiosos com objetivo de ascender
socialmente. Para a antropóloga, segundo versava a tradição nagô-yorubá, somente as
mulheres estariam aptas a lidar com as divindades. E que aos homens nos tempos antigos
eram destinados apenas o cargo da adivinhação e da feitiçaria:

Os pais caboclos surgiram em grande número apenas na geração atual, uma


afirmativa que ganha substancia no fato de que os pais não nagôs são todos
de menos de 45 anos e grande número deles estão nos primeiros vinte anos (...)
estes sacerdotes são recrutados, todos, entre os proscritos homossexuais do
submundo baiano. A maioria desses pais e filhos é de notórios homossexuais
passivos que antes batiam nas ruas. (LANDES, 1967, p.291.)

Por dois momentos distintos há menções diretas e indiretas a condição sexual do


pai de santo João da Pedra Preta: da primeira vez (indiretamente) condenam a presença de
homens nos serviços religiosos povoando os templos de nação de caboclo, dançando para
os deuses e acabando com as tradições. Em um segundo momento se refere diretamente a
Joãozinho com:
(...) um simpático e jovem pai Congo, chamado João, que quase nada sabe e que
ninguém leva a sério, nem mesmo as suas filhas de santo, como se chamam em
geral as sacerdotisas: mas é um excelente dançarino e tem certo encanto. Todos
sabem que é homossexual, pois espicha os cabelos compridos e duros e isso é
blasfemo. “Qual”! Como se pode deixar que um ferro quente toque a cabeça
onde se habita um santo! (LANDES, Ruth, p. 291.)
66

O interesse de intelectuais por João como colaborador nos estudos sobre candomblé
de caboclo, talvez tenha sido despertado a partir das publicações dos livros Religiões
Negras/Negros Bantos de Edison Carneiro entre 1936 e 1937, e pela sua atuação no
Segundo Congresso Afro-brasileiro. Em 1939, Edison Carneiro, comissionado pelo Museu
Nacional da Quinta da Boa vista, retorna à Bahia com o objetivo de recolher material sobre
os cultos africanos, encomendando a feitura de bonecas de pano, em tamanho natural,
paramentadas com as indumentárias e insígnias dos Orixás, para expor nas dependências
do museu, localizado no bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro.

O sociólogo da Universidade de Chicago, Donald Pierson, havia presidido uma das


sessões ordinárias do Segundo Congresso de 1937, apresentando dois trabalhos: “Um
sistema de referência para o estudo dos contatos raciais e culturais” e “A raça e a classe na
Bahia.”101 A estadia de Pierson na Bahia foi de 1935 a 1937, quando contou com o auxílio
de Edison Carneiro 102, para lhe dar acesso direto ao povo de santo baiano: Martiniano
Eliseu do Bonfim, Procópio do Ogunjá, Bernardino do Bate-folha, Mãe Aninha,
Menininha do Gantois, Mãe Sabina e João da Pedra Preta103, que cedeu
104
informações sobre o candomblé de caboclo, classificado pelo sociólogo como uma seita
que misturava os rituais de outros cultos de origem africana com as divindades e as danças
de origem tupi e tupinambá, em cerimônias regidas em português, com pequenas inclusões
de dialetos de origem africana, apreendidos das seitas jegê-nagô.105 Após o contato de
Pierson com João da Pedra Preta, vieram outros estudiosos: o linguista afro- americano
Lorenzo Dow Turner106, entre 1940 e 1941; Roger Bastide107, Jorge Amado108, em 1945;
e Pierre Verger em 1947109, que produziu um banco de imagens sobre o cavalo do Caboclo

101
Para saber mais consultar OLIVEIRA e LIMA, p. 29 e 30.
102
Edison Carneiro atuou nos anos de 1930 na Bahia como uma espécie de intelectual mediador que sempre
possibilitava o contato entre os intelectuais estrangeiros e o povo de santo.
103
O resultado das investigações de Pierson gerou o livro Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahia,
publicado pela Universidade de Chicago em 1942; traduzido e editado no Brasil em 1944 sob o título:
Brancos e Pretos na Bahia- estudos de contacto racial.
104
Erro do Word que não permite a separação das palavras.
105
PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia- estudos de contacto social. SP: Companhia Editora
Nacional, 1971, p.306.
106
Para saber mais sobre a experiência de Lorenzo Turner nas áreas de Salvador e do Recôncavo Baiano entre
1940 e 1941, ver o texto de Lívio Sansone: Estados Unidos e Brasil no Gantois o poder e a origem
transnacional dos Estudos Afro-brasileiros. RBCS Vol. 27 n° 79 junho/2012.
107
BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico. RJ: Seção de livros da empresa gráfica “O Cruzeiro”,
1945.
108
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios; RJ: Record, 1991.
109
Como o uso do acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger requer uma burocracia tremenda abri mão de
67

Pedra Preta. O crescente interesse dos intelectuais pelo pai de santo o projetou como uma
referência para os estudos afro-religiosos. O que vai garantir o sucesso do terreiro da
Goméia de São Caetano, a partir dos anos 1940.

Figura 16: Joãozinho da Goméia com seus filhos de santo, no terreno onde está abrigado o terreiro da
Goméia. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.

utilizar qualquer imagem, principalmente pelo fato de não ter contato com auxílio financeiro para
investimento nesta pesquisa. Mas recomendo o acesso a fototeca da Fundação onde estão algumas fotos
disponibilizadas sobre o terreiro da Goméia e seu pai de santo: http://www.pierreverger.org/br/acervo-
foto/fototeca/category/478-candomble-joaozinho-da-gomea.html
68

Figura 17: Registro fotográfico produzido por Lorenzo Turner no terreiro da Goméia no Bairro de São
Caetano, Salvador, Bahia. Fonte: Anacostia Community Museum, Smithsonian Institution. As imagens
foram cedidas por Xavier Vatin, coordenador do projeto Memórias Afro-Atlânticas.

Figura 18: Joãozinho da Goméia ainda como João da Pedra Preta em seu terreiro no bairro de São
Caetano, em Salvador. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.
69

Figura 19: Registro de Joãozinho da Goméia a frente de um espaço sagrado do terreiro da Goméia de
São Caetano, em Salvador. Aqui o pai de santo abre espaço para o João Alves Torres Filho, em
momento de descontração. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian
Institute.

Figura 20: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano, quando Joãozinho
contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um terreiro de candomblé Angola.
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.
70

Figura 21: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano, quando Joãozinho
contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um terreiro de candomblé Angola.
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.110

Figura 22: Registro fotográfico feito pelo sociólogo Roger Bastide onde destaca os tambores lê,
rumpê e rum do candomblé de Joãozinho. “Da esquerda para a direita: as filhas de Yemanjá,
Ogum, Oxalá, Oxum”. De acordo com Roger Bastide, esta imagem foi publicada nos Diários
Associados. Fonte: BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. RJ: Seção
de livros da empresa gráfica “O Cruzeiro”, 1945.

110
Não tenho informações se a pessoa com a vestimenta de Oxalá é Joãozinho da Goméia. Apenas os filhos
de santo dele poderiam informar se ele se paramentava de Oxalá.
71

Figura 23: Candomblé Joãozinho da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico feito por
Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger.
Fonte: Foto Pierre Verger©fundação Pierre Verger.111

111
Foto protegida pela Lei dos Direitos Autorais 9610/98. Interessados em utilização, deverão entrar em
contato com a Fundação Pierre Verger http://pierreverger.org/br/acervo-foto/servicos/uso-de-fotos.html.
72

Figura 24: Candomblé Joãozinho da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico feito por
Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger.
Fonte: Foto Pierre Verger©fundação Pierre Verger.112

Graças à projeção proporcionada por estes intelectuais, o nome João da Pedra Preta
se expande em escala nacional e transnacional, e transforma o pai de santo no Joãozinho da
Goméia, famoso por ser um exímio bailarino folclórico, e dono de um dos terreiros de
candomblé mais famosos da Bahia.

Certa vez, o jornalista da revista O Cruzeiro113 disse que enviaram uma carta para

112
Foto protegida pela Lei dos Direitos Autorais 9610/98. Interessados em utilização, deverão entrar em
contato com a Fundação Pierre Verger http://pierreverger.org/br/acervo-foto/servicos/uso-de-fotos.html.
73

João, sem endereço, mas com seu nome e país, e a carta chegou ao seu destino: Terreiro da
Goméia, localizado no quilometro 3 da estrada de rodagem que, segundo Jorge Amado:

O automóvel muda de direção e parece que deseja rebentar-se sobre as pequenas


casas em frente. Desce uma rampa quase vertical e toma a estrada da Goméia,
onde os pés dos negros, milhares de pés, se afundam diariamente em busca do
seu templo. Pelo caminho encontram-se dois ou três candomblés, que São
Caetano é zona de orixás e caboclos. Mas a roça da Goméia fica mais longe, é
maior, mais célebre, mais importante. Um cruzeiro. Assinala a entrada do
candomblé, roça enorme, com uma série de pequenas construções. Duas são
maiores: a casa do pai de santo e o terreiro onde se realiza a festa. Joãozinho
com um rosário de contas de coco sobre o camisu nos recebe quase em frente à
casa de Exu, que está próxima à entrada do candomblé. (...) por em nenhuma
macumba é tão espetacular como essa da roça da Goméia. Esse caminho de São
Caetano, que leva à estrada difícil da Goméia é percorrido por quanto artista,
escritor, e sábio que passa por essa cidade. Sou ogã desse candomblé, levantado
por Yansã. (AMADO, 1991, p.155.)

1.4. A PRISÃO NO RIO DE JANEIRO

Joãozinho da Goméia, em 16 de julho de 1942, reaparece na imprensa na


companhia da bailarina brasileira Any Guaíba.114, através das páginas do jornal A
Manhã115. No periódico116, Joãozinho disserta sobre os candomblés da Bahia e destaca o
motivo artístico que o trouxera para a Capital Federal. O pai de santo, agora conhecido
como um “autêntico” bailarino folclórico menciona que havia sido contratado para realizar
apresentações com coreografias típicas encenadas nos terreiros baianos. Joãozinho fala das
suas experiências artísticas e religiosas, se identifica como filho de Oxossi oriundo da
Nação Angola e, ao ser perguntado sobre o objetivo da sua viagem, confirma que a

113
Revista O Cruzeiro, 21 de outubro de 1967.
114
Any Guaíba é uma bailarina que se dedicava à estilização das danças afro-brasileiras, assim como Eros
Volúsia, Mercedes Baptista e a bailarina russa Juliana Yanakieva que são importantes referências para se
pensar o movimento de estilização das danças afro-brasileiras dos anos de 1930 a 1950. Também são
importantes para refletir sobre os agenciamentos e a construção de redes sociais em torno do cenário artístico
em que Joãozinho da Goméia transitará no Rio de Janeiro a partir da década de 1940.
115
O título da reportagem é: “Passando em revistas as danças e ritos dos terreiros da Baía: João Goméa , o
‘Pedra Preta’ fala a reportagem sobre candomblés e outras coisas interessantes que conhece”.
116
Chamo atenção para a presença do tema Folclore em inúmeras reportagens do jornal A Manhã, entre os
anos de 1940 e 1950. Ao acessar o link, posto no fim desta nota de pé de página, o leitor, se deparará com
apenas uma destas reportagens. Fica claro que o A Manhã, fortalecia a função do Governo brasileiro na
promoção de uma política nacionalista, atenta a construção de uma identidade cultural nacionalista para o
povo brasileiro, com raízes no nordeste r no norte do Brasil. Ver a reportagem “O Folclore brasileiro e sua
expressão nacionalista: a ideia de uma exposição folclórica- o que nos disse o Sr. João Duarte Filho”. Jornal A
Manhã de 16 de junho de 1942. Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pesq=Jo%C3%A3o%20da%20Gom%C3%A
9ia&pagfis=16064
74

pretensão era a de exibir-se com danças afro-brasileiras nos cassinos e teatros do Rio de
Janeiro. Esclarece que iniciou sua trajetória como coreografo e bailarino, a partir de
1929, dançava no terreiro do caboclo Jubiabá e no terreiro da Goméia. Suas primeiras
apresentações profissionais aconteceram em outubro de 1941, na Festa da Mocidade, na
companhia da bailarina espanhola Coral Hidalgo.

Figura 25: Reportagem “Passando em revistas as danças e ritos dos terreiros da Baía: João
da Goméa, o ‘Pedra Preta’ fala a reportagem” sobre candomblés e outras coisas interessantes
que conhece do jornal A Manhã de 16/07/1942, onde Joãozinho da Goméia, fala de seus
planos artísticos para a sua estadia no Rio de Janeiro. Fonte: BNDigital117

117
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=116408&pesq=%22Jo%C3%A3o%20da%20Gom%C
3%A9a%22&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=16400
75

Em abril de 1942, a convite do secretário da Educação, Dr. Isaías Alves dançou


em uma festa escolar acompanhado por um grupo de alunas da Escola Normal. Outra
apresentação de destaque aconteceu no palco do Teatro Jandaia em um Festival
apresentado e organizado pela cantora Marlene. Ao ser perguntado sobre o seu preparo
físico, o pai de santo não tardou em responder que sabia dançar e se sentia capaz de fazer
isso por horas seguidas, porque o seu corpo já estava moldado para incorporar todos os
ritmos, sem recorrer a pratica da ginástica. O jornalista118 também questiona se Joãozinho
já havia estado no Rio de Janeiro anteriormente, e o pai de santo afirma que esta era sua
primeira estadia na Capital federal119, onde tinha construído grandes amizades com muitos
artistas como Moreira da Silva, Eladyr Porto, Manésinho Araújo, além de artistas
estrangeiros, escritores e turistas. Também menciona seus reencontros com intelectuais do
folclore que o visitaram em São Caetano. Nessa entrevista, Joãozinho revela a presença de
bailarinas e coreógrafas que o visitavam constantemente para aprender passos de dança de
terreiro, sempre buscando inspiração para suas criações artísticas. Eros Volúsia é citada,
destacadamente:

Eros Volúsia esteve há poucos anos na Bahia e frequentou assiduamente a nossa


casa. Muitas vezes ela madrugava lá no terreiro, ansiosa por aprender sempre
alguma cousa nova, que servisse como uma contribuição às suas criações de
dança afro-brasileira. Ensinei Eros com um carinho especial, tudo quanto sabia e
ela participou de nossas cerimônias, vestida de baiana. Muitas melodias
tipicamente africanas eu cantei e pedi para um musico do corpo de bombeiros
escrever, a fim de oferecer a Eros. Ela enriqueceu, não há dúvida, muito e muito,
o seu repertorio, com o material que lhe puz ao alcance dos olhos e da
inteligência.120

Joãozinho da Goméia 121 certamente desconhecia o cenário repressivo que


configurava o quadro das religiões afro-brasileiras. Os periódicos noticiavam o sucesso
das ações repressivas implementadas pelas autoridades da Seção de Tóxicos, Entorpecentes

118
A entrevista se encerra com a revelação de que havia gravado alguns discos para o norte-americano Mister
Tony que havia levado para sua terra de origem um vastíssimo repertorio de melodias apreendidas na Goméia.
119
A informação dada por Joãozinho sobre possíveis viagens de Salvador é um dado novo que pode revelar
acréscimos reveladores sobre a sua trajetória artística, já que o intuito das viagens era artístico.
120
A Manhã, 16 de julho de 1942.
121
Os estudos dedicados a pesquisa da trajetória de vida de Joãozinho não se aprofundaram nas investigações
a sua prisão na Capital Federal. Em 2001 estive na companhia do Olwô Agenor Miranda Rocha que me deu
detalhes desta prisão informando detalhes que foram confirmados por Mametu Ileci da Oxum, a mãe criadeira
da Goméia. Agenor, dissera que no episódio da prisão de Joãozinho a sua soltura foi possibilitada por conta
de um telefonema que dera para o então presidente da república Getúlio Vargas que era seu amigo pessoal.
Ileci ao confirmar a versão dada por Agenor comenta que fora com Mametu Kitala e outras filhas de santo e
ogãs a casa de Agenor para obter ajuda e conseguiram.
76

e mistificações da Primeira Delegacia Auxiliar, que haviam conseguido apreender na


mesma diligência cartomantes, quiromantes, o curandeiro José Marques e Joãozinho da
Goméia, categorizado como mistificador.
É a primeira vez que o pai de santo surge na imprensa associado ao título “Rei
do Candomblé” que o acompanhará por toda sua trajetória de vida. A reportagem
informa ainda que Joãozinho havia chegado à capital a fim de realizar exibições de danças
afro-brasileiras no Cassino Atlântico em companhia da bailarina Any Guaíba, como já
havia sido mencionado anteriormente pelo jornal A Manhã. A reportagem do Diário de
Notícias diz que:

O referido macumbeiro enveredou-se por outros caminhos, tendo até


comparecido a uma autentica exibição de magia negra, realizada em sua
homenagem em um terreiro situado na estação de Belford Roxo, o que foi
amplamente divulgado em jornais da cidade. Ao ser preso para prestar
esclarecimentos. Ao ser interrogado pelo comissário Valdemar Claudino na
Seção de Mistificações da 1ª Delegacia Auxiliar Joãozinho da Goméia,
entretanto não declarou convenientemente quais foram os motivos que
determinaram a sua vinda a capital, tendo caído em várias contradições sobre a
natureza de sua profissão. Em vista disto aquela autoridade por determinação do
delegado Dulcídio Gonçalves resolveu recolher ao xadrez o referido pai de
santo e embarcá-lo imediatamente para a Bahia.122

Paulo Siqueira123 informa que a chegada de Joãozinho ao porto foi noticiada por
muitos jornais que usavam fotografias destacando o rosto do pai de santo. O autor informa
que a imprensa havia se mobilizado para divulgar a sua presença na cidade, o que teria sido
visto com reprovação por parte de Dulcídio Gonçalves responsável por uma bem sucedida
campanha de combate ao atraso social e a presença nefasta daqueles que classificava como
praticantes de baixo espiritismo e mistificação. O autor chama atenção para o prestigio e o
status que Joãozinho, já havia conquistado com estreitas relações de amizade com
personalidades do segmento político que intercederam ao seu favor. A versão que parte do
povo de santo, pertence ao campo das “sensibilidades” e, portanto, são afeitas a construir
narrativas que se apresentam mitificadas:

Os inimigos, porém, não aceitaram de bom grado a vitória do babalorixá. Dizem


alguns que o Delegado Dulcídio Gonçalves jurou que expulsaria Joãozinho da

122
Diário de Notícias, 8 de agosto de 1942.
123
SIQUEIRA, Paulo. Vida e Morte de Joãozinho da Goméia. RJ: Ed. Nautilus, 1971. p.55
77

Goméia do Rio, custasse o que custasse. Verdade ou mentira, o fato é que o Rei
do Candomblé foi vítima de uma infame e indigna cilada, que o levou às grades
de uma prisão. Pessoas desconhecidas, dizendo-se admiradoras do candomblé e
de Joãozinho, dele se acercaram. Com atitudes falsas e fingindo-se
impressionadas com o seu poder religioso, conseguiram conquistar a sua
confiança. Feito isso, disseram-lhe que eram amigas de Getúlio Vargas, cujo
governo se achava enfraquecido pela oposição de grupos políticos invejosos da
popularidade gigantesca do ex-presidente. Pediram então a Joãozinho que fizesse
um trabalho junto ao Palácio do Catete, para salvar o regime e evitar que o Brasil
mergulhasse numa crise política, cujas consequências ninguém poderia ver. Na
boa fé e ingenuidade, Joãozinho concordou com o pedido e resolveu intervir
talvez pensando que com isso pouparia sacrifícios e problemas para o povo
brasileiro. Preparou o trabalho e dirigiu-se para o palácio do Catete para cumprir
sua missão. Os amigos infames porem lá se encontravam ocultos, escondidos
na escuridão. Quando foi colocar o despacho, Joãozinho da Goméia foi preso
e encarcerado e submetido a um processo por pratica de curandeirismo e
mistificação. Um desses amigos o Sr. Antônio Vieira Bandeira de Melo que até
pouco tempo foi Secretário de Educação da Guanabara no Governo Negrão de
Lima, sentiu que a prisão era uma vergonha para o Governo e para a cidade.
Todo mundo sabia que ele não tinha culpa, que fora vítima de uma vergonhosa e
criminosa armadilha. O professor Vieira de Melo foi então ao Gabinete de
Getúlio e implorou pela libertação do alufá. O velho presidente da República, na
sua sabedoria de grande estadista viu que não podia permitir tamanho crime, mas
sentiu que a presença de Joãozinho pelo menos naquela ocasião, criaria
problemas para o Governo (...) após estudar o caso de Joãozinho, Getúlio resolve
dar-lhe a liberdade e manda que o soltem, mas impôs uma condição: que ele
voltasse para a Bahia.

Destaco a narrativa sobre a prisão de Joãozinho, produzida por Paulo Siqueira,


como um importante campo de observação sobre a problemática da reprodução de
“histórias mitificadas” presentes em narrativas orais sobre a trajetória de Joãozinho. São
narrativas que contribuem para o fortalecimento do poder e do prestigio tanto artístico
quanto religioso, fabricando uma imagem pública positivada. O que evoca uma intenção
proposital de reforçar a autoridade e a legitimidade de Joãozinho da Goméia, como
liderança religiosa, contribuindo com o acúmulo de status e prestigio da raiz Goméia no
imaginário religioso afro-brasileiro124.
O historiador Peter Burke125, ao analisar o funcionamento da máquina de

124
São muitas as narrativas localizadas em biografias sobre Joãozinho da Goméia, advindas do discurso dos
descendentes religiosos do pai de santo, que foram produzidas com a intenção de construir um discurso de
exaltação e de afirmação positiva, e, por conseguinte fortaleça a potencia do legado deixado por Joãozinho na
historia do candomblé e da nação Angola. Uma prática comum aos afro-religiosas, e que de nada tem de errada
ou pejorativa. Cada um constrói a imagem que quer eternizar da maneira que achar correta. Só dá certo trabalho
para quem deseja seguir os rastros através das narrativas orais que atendam a perspectiva da exaltação a imagem
da liderança religiosa, por serem estas narrativas produtoras de pistas muitas vezes falsas, e construírem
armadilhas e campos minados.
125
BURKE, Peter. A fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. RJ: Zahar, 2009, p.18
78

propaganda no processo de criação da imagem real pública de Luís XIV, traz a


problemática da mitificação produzida pela constante comparação do monarca aos deuses
e heróis da mitologia clássica. Burke apresenta algumas considerações sobre o conceito de
“mito” que nos ajudam a refletir acerca das representações mitificadas de Joãozinho da
Goméia, produzidas pelo povo de santo, pela imprensa e por parte da produção acadêmica.
Para Burke o termo mito pode ser definido como “uma história com significado simbólico
(como o triunfo do bem sobre o mal), em que os personagens ganham dimensões maiores
que na vida”. O mito construído acerca da imagem do rei Luís XIV, era alicerçado pela
ideia do sagrado/divino. As narrativas buscadas por escritores, pintores, escultores sobre o
monarca se debruçavam sobre as do Rei imaginário e mitificado, refletido sobre pinturas,
tapeçarias, medalhas, gravuras, corroborando para a construção de um discurso oficial
transmitido através da oralidade de geração para geração, que tinha a função de exaltar o
poder divino do Rei. 126

1.5. A TRAVESSIA PARA O RIO DE JANEIRO

Em 1946, Joãozinho da Goméia havia organizado uma grande festa de despedida da


Bahia no palco do Cine teatro Jandaia. 127 Uma despedida que revelava nuances da sua
personalidade afrontosa e excêntrica, que rejeitava qualquer tentativa de enquadramento,
ou de ajuste e subordinação a padrões sociais moralizantes e pré- estabelecidos. O objetivo
talvez fosse o de mostrar, para aquela cidade que o rejeitou no passado, as suas glórias
como artista que inventara um estilo inspirado na dança de terreiro. Com a migração para a

126
Joãozinho da Goméia é um objeto de estudo que deixou poucos rastros que podem ser comprovados
através das fontes. O que existe de palpável é o material de imprensa que serve de caminho para encontrar o
que existe de verídico nos arquivos. A sua trajetória em grande parte foi construída pelos testemunhos orais
que são base de dados para pesquisadores, mas que muitas vezes não oferecem verdades, mas sim imprecisões
e material para as mitificações, que são muitas. O risco que o historiador corre é se deparar com uma narrativa
heroica, sem contestações ou defeitos que sirva para agradar e não para oferecer reflexões sobre os caminhos
trilhados por Joãozinho em vida.
127
O espaço cultural foi fundado em 1911, pelo comerciante sergipano João Oliveira que também era
dono da panificadora Jandaia localizada em um galpão com capacidade para quatrocentas pessoas onde se
exibiam fitas do cinema mudo. Sendo fechado em 1927, após ter sido interditado por diversas vezes.
Após um período de reformas e de ampliações o prédio foi reinaugurado em 3 de julho de 1931 de acordo
com os padrões europeus de modernidade, o que transformou o local em um espaço para o divertimento das
elites baianas. A estrutura arquitetônica possui intervenção da Art déco e Art Nouveau com clara influência
das vanguardas artísticas europeias. Com a morte de João Oliveira em 1933, ao seu filho coube a
administração do empreendimento, o que contribuiu com a renovação do público pagante composta agora por
membros das classes populares que não ocupavam os mesmos lugares de assento das elites que lotavam os
camarotes e as frisas. O cinema e o teatro representavam o patrimônio cultural do Estado da Bahia com
equipamentos modernos para exibir os filmes. Já o teatro recebia artistas de renome como Aracy Cortes, Bidu
Sayão, Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Grande Otelo, Marlene, dentre outros. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cine-Teatro_Jandaia
79

Capital Federal, Joãozinho faz o mesmo percurso que inúmeras lideranças baianas do
candomblé fizeram anteriormente, em um processo doloroso de desterritorialização128
que não apenas marca sua transferência, como o deslocamento das áreas centrais para o
subúrbio. Um processo que redefine a noção de pertencimento desses sujeitos. Um
movimento que remonta aos deslocamentos produzidos pela diáspora negra, em circuito
afro-atlântico.

De fato, entendemos, que no caso aqui tratado, a transferência das lideranças do


candomblé da Bahia para o Rio, na primeira metade do século XX, pode não ter sido o
resultado de uma expulsão como ocorreu a partir da experiência da ocupação do subúrbio
carioca a partir do projeto da reforma de Pereira Passos, mas sim, o resultado de um
projeto pessoal de ascensão social traçado por pais e mães de santo. A instalação de
candomblés baianos na capital federal criara uma rede de comunicação com outros sujeitos
que transformam estes locais em núcleos de resistência e de sobrevivência contra ações
violentas expressas em atos de intolerância. A travessia entre Bahia e Rio de Janeiro
aponta para essas construções de entrelaçamentos entre sujeitos livres da sombra da
opressão colonial.
Essa travessia reveladora de antigos temores e de expectativas de superação do
passado atravessava os caminhos de uma infinidade de pais e mães de santo baianos que se
deslocam para o Rio de Janeiro desde fins do século XX, e ocupam os bairros da Gamboa,
Santo Cristo e Saúde, que eram redutos de antigos candomblés onde nasceram ranchos e
grupos carnavalescos percussores de Escolas de samba, os importantes pontos de encontros
entre negros baianos, criadores de espaços de luta e resistência cultural negra.
José Beniste129 chama atenção para a localidade da Pedra do Sal, que em 1886, era
um importante ponto de encontro de candomblecistas, sendo essencial para o processo de
formação das primeiras comunidades da religiosidade afro-carioca, como o Centro Cruz
Santa do Axé do Opô Afonjá da ialorixá Aninha Obá Biyi, ou Aninha de Xangô, que em
1886, chega ao Rio na companhia de Bamboxê e Obá Saniá e funda seu candomblé no
bairro da Saúde. Aninha, em 1910, retorna a Salvador e abre outra sede do Axé Opô
Afonjá, na Rua Marques de Sapucaí, no bairro de São Gonçalo do Retiro. Agenor Miranda
Rocha comenta que:

128
Conceito emprestado da obra Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência de Paul Gilroy.
129
BENISTE, José. História dos candomblés do Rio de Janeiro: o encontro africano com o Rio e os
personagens que construíam sua história religiosa. RJ: Bertrand Brasil, 2019, p. 130.
80

O crescimento das atividades portuárias e a inauguração da estação da estrada de


ferro nas proximidades transformaram essa região num polo de atração de
populações pobres. Os antigos casarões transformaram-se em cortiços e as
chácaras foram sendo loteadas, fazendo surgir um emaranhado de ruelas,
becos e casas. Nessas casas e cortiços residiam muitas das pessoas que se
reuniram para fundar as primeiras casas de Candomblé da cidade. João Alabá,
talvez o mais famoso, morava na Rua Barão de São Felix, no centro da cidade.
Também nos bairros centraisinstalaram-se, em fins do século passado e no início
deste século, outras casas de santo, dirigidas por nomes ilustres, entres os quais
se destacam Abedé, Guaiaku e Rozena. Sua influência alcançava bairros
distantes, de onde provinham numerosos filhos, embriões de futuras novas casas
que, mais tarde seriam abertas nos subúrbios cariocas (...) João Alabá de Omulu,
abriu uma das primeiras casas de santo da cidade iniciando muitas filhas de
santo, dentre elas Deolinda, mãe pequena da casa, tia Ciata e Carmen do
Xibuca.130

Dentro deste leque de migrantes baianos que trouxeram seus Axés para o Rio de
Janeiro, ainda estão Cipriano de Abedé, lotado na Rua do Propósito e João Alagbá, filho de
Omulu que tinha seu terreiro na Rua Barão de São Felix, na Zona portuária do Rio de
Janeiro, bairro da Saúde. Alagbá foi um referencial de atuação em prol da defesa das
liberdades individuais e coletivas de praticantes do candomblé e, por causa da rede de
sociabilidades que havia construído com chefes de polícia e políticos, adquiriu proteção
para o seu candomblé e prestigio junto ao povo de santo.
De acordo com Stefania Capone 131, os pais e mães de santo que residiam no centro
da cidade, eram africanos célebres, muitos vindos da África e outros da Bahia. O terreiro
de João Alagbá era um dos pontos de encontro mais procurados pela comunidade baiana.
O terreiro de Alagbá se transformou também em um ponto de articulação e de
comunicação entre os negros cariocas e os baianos no início do século XX. Outro local
que desempenhou esta função foi à casa de Hilária de Almeida, a Tia Ciata132, localizada
na Rua Visconde de Itaúna, 117. Local onde se realizavam festas e reuniões de
compositores de maxixe, choro e samba inclusive a história do samba é sempre
rememorada graças aos encontros patrocinados pelas reuniões na casa da Tia Ciata que

130
ROCHA, Agenor Miranda. p.25.
131
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. RJ: Pallas, 2018. P. 132
e 133
132
Hilária Batista de Almeida, iniciada no culto da divindade Oxum, era a mãe pequena de João Alagbá. Foi a
mãe de santo mais conhecida do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Foi iniciada por
Bamboxê, figura muito conhecida no candomblé baiano que teria sua trajetória ligada diretamente à de
Marcelina Obá Tossí dirigente do terreiro da Casa Branca de Salvador e responsável pela iniciação de Mãe
Anjinha do Ilê Axé Opô Afonjá Chamo atenção para a importância de se entender o candomblé da primeira
metade do século XX como uma rede de conectores sociais.
81

mantinha grande amizade com músicos como Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.
Em 1946, Pierre Verger, envia correspondência a Roger Bastide, para informar que
Joãozinho da Goméia havia se instalado no Rio de Janeiro em 1946. O fotógrafo francês
comenta que o motivo da vinda de Joãozinho para a Capital Federal tinha relação
com o seu interesse pelos “meios dos music halls e dos cassinos”133. A fala de Verger
revela o intuito de Joãozinho em se projetar artisticamente através dos palcos. Ao alegar
que seu deslocamento houvera sido motivado pela assinatura de um contrato com o
Cassino da Urca, o biógrafo Paulo Siqueira e o historiador Antônio Carlos Peralta, atestam
134
que a relação do pai de santo com os cassinos tenha ocorrido em 1946 . Só que esquecem
que, em 30 de abril de 1946, sob a determinação do então presidente da república Eurico
Gaspar Dutra, foi instituído através da promulgação do Decreto-lei 9.215, a proibição dos
135
jogos de azar no Brasil .
Segundo Antonio Carlos Peralta136, a suposta contratação seria o resultado da
indicação do empresário e “cavalo” do caboclo Cobra Coral, Orlandino Pimentel 137, para o
empresário da noite carioca Joaquim Rollas. A função de Joãozinho seria a de coreografar
as bailarinas do Cassino da Urca138 que apresentassem espetáculos de danças inspiradas nos
ritmos afro-brasileiros. Outra versão foi dada por Antonio Carlos Peralta sobre o que
tivera motivado a saída de Joãozinho de Salvador. Trata-se do convite feito por Orlandinho
Pimentel para que Joãozinho trabalhasse na área de comunicação como funcionário do
Jornal Diário Trabalhista. Uma experiência profissional que impulsionará tanto a sua vida

133
MORIN, Françoise. Diálogo entre filhos de Xangô: Correspondência 1947-1974. SP: Editora da
Universidade de São Paulo, 2017. p.67.
134
A versão da contratação pelo Cassino da Urca se adéqua a reportagem do jornal A Manhã, de 1942,
sugerindo que de fato houve uma atuação nos cassinos do Rio, anterior a 1946. O que deixa subentendido que
Joãozinho transitava entre Rio e Bahia, para possíveis contratações por temporada.
135
O Cassino da Urca ficou fechado até 1954, quando lá se instalou a TV Tupi. Na década de 1980, ela foi
extinta.
136
PERALTA, Antônio Carlos Lopes. Um vento de fogo - João da Gomeia: o homem do seu tempo.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Mestrado em História. Universidade Severino Sombra,
2000, p. 56.
137
Orlando Pimentel, ou Orlandino Pimentel ou Orlandino Cobra Coral, foi um dos mais bem conceituados
pais de santo cariocas. O seu Centro Espírita São Jerônimo estava lotado no bairro da Pechincha, Rio de
Janeiro. Não localizamos informações sobre Orlandino, apenas sabemos que era muito amigo de Joãozinho e
que se suicidou em junho de 1949 deixando carta, divulgada na imprensa, na qual manifestou a vontade de
que Joãozinho ficasse com o seu terreiro. A trajetória de Orlandino aponta a necessidade de que
pesquisadores dos cultos afro-cariocas invistam esforços no estudo dessas personalidades da religiosidade
popular que de certa forma recontam a história cultural da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do
século XX
138
Da era do glamour do Cassino da Urca restou apenas o Copacabana Palace. Fechou na data de
promulgação do decreto até 1954, quando nas instalações passou a funcionar a TV Tupi. A proibição da
prática de jogos de azar em todo o território nacional ocorre pela promulgação do decreto-lei nº 9.215 de30 de
abril de 1946.
82

artística quanto a religiosa, e contribuirá com o aumento significativo da sua popularidade


em território nacional. 139
Com a proibição do jogo no Brasil, cassinos como o Cassino do Copacabana Palace
e o Cassino Atlântico se transformaram em casas de espetáculos, tendo, por exemplo, o
prédio do Atlântico, sido ocupado pela TV Rio, a partir de 1955. A proibição contribuiu
para a diminuição do fluxo turístico nos Estados brasileiros que fecharam os hotéis-
cassinos, e deslocaram os turistas para o Paraguai, Uruguai Argentina, onde o jogo de
azar era permitido. Os espetáculos que aconteciam noscassinos eram revestidos de uma
sofisticação que atraía os frequentadores do Teatro Municipal do Rio de Janeiro que
pertenciam a uma classe socioeconômica alta, e escolhiam os cassinos em detrimento aos
espetáculos do Teatro de Revista dos centros da cidade, que tinham no ambiente da Praça
Tiradentes o reduto das classes populares. O público dos cassinos não apenas eram
acostumados com o bom gosto das apresentações de grandes companhias de ballet, como
também estavam sempre sedentos por novidades. O argumento para fechamento dos
cassinos foi o da “preservação da moralidade pública”, o que afetou significativamente o
mercado dos espetáculos e levou trabalhadores do setor do entretenimento, a buscarem
outros espaços de trabalho como os teatros do centro da cidade, caracterizado pela ampla
frequência popular. O Teatro de Revista ganhou muita força com o fechamento dos
cassinos. Os corpos de baile que antes se apresentavam para os milionários e os turistas
estrangeiros agora teriam que levar seus espetáculos para a apreciação de um público
menos exigente. Eram entretenimentos que falavam para o povo sobre o povo,140 com a
presença de ritmos musicais brasileiros como a marchinha, samba e maxixe, ajudando na
integração das bailarinas com formação clássica e, em sua grande parte, de procedência
estrangeira. Esses espaços de diversão popular abrigavam a presença de atrações
consideradas exóticas, exuberantes, mas com características que remetiam o ideal de
brasilidade:

Nomes curiosos da dança já se reuniam para compor números de bailados


atraentes: Floripes Rodrigues, uma esplendida bailarina, Bilinha e sua
caracterização de ‘nega maluca’, a bela e loura Felícitas, a naturalista Luz Del
Fuego que não cantava nem dançava, não recitava causava sensação por se
apresentar sempre nua, enroscada em serpentes enormes, jiboias, amestradas e
similares, o dançarino Norbert que iria impressionar com seu número em que
fingia comer um rato vivo, banhando-se de molho de tomate, Raul Dubois-
Elvira Pagã, a rival de Luz e, como ela, também nudista, e Eva Lanthos eram

139
Esta experiência profissional virá no capítulo 2, quando será abordada a atuação artística de Joãozinho.
140
Idem
83

alguns dos nomes que, em 1950 se encontravam em plena atividade revisteira.


Isso ainda sem mencionar Graziela Mendez, primeira bailarina do Teatro Collón
de Buenos Aires, e sua colega Vitória Garabato, trazidas por Walter Pinto que
nos anos de 1940 ambicionava transformar os espetáculos populares da Praça
Tiradentes em verdadeiros acontecimentos de luz, maquinaria e som. Tudo era
sofisticado, caro, deslumbrante. Seus artistas, os melhores. Suas vedetes, as mais
bonitas. Na época do fechamento dos cassinos, arrematou seus figurinos e
cenários e soube muito bem como usá-los em seus empreendimentos artísticos.
(PEREIRA, 2001. p.88.)

Esta busca por atrações que evocavam a brasilidade, o folclórico e o exótico


encontrou em Joãozinho da Goméia e suas filhas de santo, um lugar de existência. A sua
divulgação na imprensa passou a buscar essas referências, corroborando para que o seu
terreiro passasse a ser frequentado pelo público que lotou os cassinos e, agora, ocupava as
plateias das casas de espetáculo da zona sul da cidade.
Ainda acerca da transferência de Joãozinho para o Rio de Janeiro, o arqueólogo
Rodrigo Pereira acredita que o pai de santo visava buscar um campo de atuação maior que
o de Salvador, livre da concorrência com terreiros de procedência nagô que buscavam
limitar sua atuação religiosa 141. Outro motivo dado por Rodrigo Pereira como justificativa
do deslocamento para o Rio de Janeiro é o incômodo do pai de santo comas críticas a sua
homossexualidade.
Waldemar Alvarenga Lapoente menciona o início da carreira artística na cidade do
Rio:

Desta vez tinha vindo acompanhado de quarenta e cinco filhos de santo, entre
eles, Tossilondei, Maria de Lurdes Ramos, equedy de seu Oxossi e hospedou-se
na casa de sua filha Maria Júlia, Kilondirá, na Rua Manoel Duarte, no Parque
Lafaiete em Duque de Caxias. Esta senhora ficou conhecida na vizinhança
como Dona Kiló, sua casa era localizada nas proximidades da Igreja Santa
Terezinha do MeninoJesus. Pouco tempo depois, o zelador aluga uma casa com
três quartos, duas salas, cozinha, varanda e banheiro, na Rua das Vassouras, 174
no bairro Itatiaia, também na Baixada Fluminense, onde iniciou algumas pessoas
em um barracão de madeira no fundo do quintal. Hoje a rua chama-se Castro
Alves e o número passou a ser 194, com construção infelizmente derrubada.
Neste endereço foi realizada a primeira festa em homenagem ao Oxossi de
Seu João no Rio de Janeiro. As roupas, as comidas estavam prontas, mas a
entidade não se manifestou. Para não passar vergonha Joãozinho chamou o
Oxóssi de Dona Adalice Benta dos Reis, Kitala Mungongo, e o vestiu com
as roupas confeccionadas para a entidade, isso causou muita inveja e confusão,
pois a vestimenta havia sido confeccionada e presenteada por um filho de santo.
Após esse episódio, viu no jogo de búzios que Oxóssi e Iansã queriam um local

141
FERREIRA, Frederico Antonio & PEREIRA, Rodrigo. Visibilidade e representações sociais do
candomblé pelo Jornal do Brasil e Correio da Manhã (1950-1990). Um estudo de caso sobre o terreiro da
Gomeia e seu dirigente (Duque de Caxias). Revista Semina, V.17, nº 2, 2018. P. 236-237.
84

próprio para a fundação da Casa de candomblé Manso Bantuqueno Ngomessa


Kat’espero Gomeia da Nação Angola, o verdadeiro nome da Goméia Caxiense,
pois este era um local na Bahia. Ganhava dinheiro como alfaiate, costureiro,
dançarino. Ajudado por suas filhas de santo que vendiam comidas típicas da
Bahia em tabuleiros pelas ruas da cidade. Nos anos de 1950, comprou por 50 mil
cruzeiros os lotes 2805, 2806, 2807, 2808 e 2809 no loteamento Vila Leopoldina
IV. Este endereço é mais conhecido como Rua General Rondon, 360. Parte
da antiga Fazenda Jacatirão que deu nome a uma das ruas do bairro, assim
como Dr. Laureano, Ipanema e Copacabana, desta forma as pessoas começaram
a utilizar os nomes das ruas coimo definição de bairro gerando confusão até os
dias atuais. O terreiro foi construído aos poucos. Quem tinha condições
contribuía com quatro contos de réis por mês. No dia 10 de maio de 1950, Mãe
Ilecy da Silva chega da Bahia trazendo a muda da Juremeira, árvore consagrada
ao Caboclo Pedra Preta para plantar no terreno. (LAPOENTE, 2021. p. 227.)
85

Figura 26: Registro de Joãozinho da Goméia muito jovem vestido de trajes ligados a motivos do
folclore baiano. Acreditamos que seja um registro colhido no Segundo Congresso Afro-
brasileiro de 1937.142 Fonte: Domínio público.

142
Agradeço a página Nzazi da Angola do Instagram que me cedeu gentilmente este registro fotográfico de
Joãozinho da Goméia em seus tempos de João da Pedra Preta.
86

Capítulo 2- OS TRÂNSITOS DE JOÃOZINHO DA GOMÉIA ENTRE O ARTÍSTICO


E O RELIGIOSO

Creio que Joãozinho da Goméia não é um candomblezeiro por simples esporte.


O candomblé já faz parte de sua vida, e sem ele, sem os seus vícios de alma, e de
sangue negro, Joãozinho não seria o notável bailarino folclorista que é. Em
entrevista disse-me com seu trejeito de baiano místico: “Faço candomblé por
obrigação. Fico maluco quando vejo uma saia”. Como surgiu Joãozinho da
Goméa, bailarino exímio, mestre de Eros Volúsia em algumas danças afro-
brasileiras? Ele acentuou: “Independentemente de pai de santo sou bailarino, e
bailarino legítimo. Já dei aulas de dança negra, ou dança de macumba a Eros
Volúsia, Any Guaíba, Sérgio Maia, Carmen Brown, Anita Otero e outras mais
que tem me visitado”. Joãozinho relembrou certos desentendimentos que teve,
uma vez, no Rio, com Eros Volúsia. Por isso, pediu: “Diga em sua reportagem
que Eros aprendeu comigo os mais legítimos passos do candomblé. Para ela,
sempre fui um professor dedicado. As estilizações de ballet negro que a Eros
interpreta estão alicerçadas em grande parte, nos aspectos coreográficos do meu
candomblé”.143

2.1. EROS VOLUSIA E JOÃOZINHO DA GOMÉIA EM DISPUTA POR UM


PATRIMONIO ARTISTICO E COREOGRAFICO

O documentarista Isaac Rozemberg esteve em Salvador144 em 1949, para coletar


material audiovisual sobre o candomblé baiano. Acreditava que o candomblé tivera se
transformado em uma rica fonte coreográfica e musical que atraía os brancos pelos seus
motivos folclóricos, coreográficos e musicais. Isaac Rozemberg145 era um documentarista
romeno naturalizado brasileiro que retratou o Brasil de 1939 a 1983, através de filmes
encomendas para governos, instituições públicas e entidades privadas, produzindo um
riquíssimo material, que registra as transformações do país ao longo do século XX. O
interesse pelo terreiro da Goméia, e por seu dirigente, é fruto do seu interesse pessoal pelo
candomblé como expressão artística. O documentarista também considerava que o
candomblé vinha exercendo uma das mais fascinantes influências na vida artística e

143
Reportagem Candomblé do Tempo da Revista da Semana de 22 de maio de 1948.
144
Não sabemos a data certa em que o cinegrafista esteve com Joãozinho em Salvador.
145
A título de exemplificação, no acervo videográfico da Cinemateca Brasileira encontram-se imagens da
dança de Joãozinho da Gomeia, através do filme Bahia terra de contrastes, um curta-metragem de 5 minutos
e 49 segundos, produzido em São Paulo no ano de 1955, pelo documentarista Isaac Rozemberg. Um filme que
exalta aspectos culturais e arquitetônicos da cidade de Salvador, enfatizando a presença dos candomblés com
seus locais de oferendas, e os animais como vacas, perus, galos e galinhas, cabras e bodes, demonstrações de
tocadores de atabaques e outros instrumentos, e o destaque para Joãozinho da Goméia rodeado de filhas de
santo, em momento em que dança em uma cerimônia do terreiro de candomblé.
87

literária do país, resultando em grande valor para os estudos sobre os cultos africanos.146
Sob essa perspectiva, Isaac Rozemberg produziu 147 o curta-metragem “Candomblé”, que
documenta as cerimônias típicas do terreiro da Goméia, como a dança em honra a
Exu; com menção a matança de agutã (bode). Uma cerimônia que segundo o jornal A
Manhã fazia parte do culto ao orixá Tempo, e a Oxóssi. Também estão presentes as danças
noturnas que aconteciam dentro do barracão, com atenção especial ao sacrifício do galo
preto (akikô).

Figura 27: “O Orixás descem sobre o terreiro”. Reportagem do jornal A Manhã, de 13/02/1949. Joãozinho da
Goméia e o cinegrafista Izaac Rozemberg, interessado pelos motivos folclóricos coreográficos e musicais. Por
causa da reportagem, inicia-se uma celeuma entre o documentarista Isaac Rozemberg e a coreografa e
bailarina Eros Volúsia, pois no curta-metragem, o locutor ao que transformaram Joãozinho da Goméia em

146
Ver sobre a produção de Isaac Rozemberg através do canal Acervo Rozemberg. Disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UCmiVrVmah8ld3xw8Vu38KEA; e a sua Filmografia no site da
Cinemateca Brasileira.
147
Não sabemos a data certa em que o cinegrafista esteve com Joãozinho em Salvador.
88

artista da dança negra. Fonte: BNDigital148

Ao narrar à dança de Joãozinho da Goméia, o cinegrafista Isaac Rozemberg afirma


que Eros Volúsia era discípula do pai de santo. O descontentamento com o documentarista
abre um campo de possibilidades acerca das reflexões sobre os profissionais da dança
folclórica, entre os anos 30 e 40. Eros viera a justificar mais tarde, através do Diário da
Noite149, que se preocupava com a preservação do seu patrimônio artístico e coreográfico,
revelando a natureza das relações entre aqueles que transitavam entre terreiros e palcos,
expondo o povo de santo como produtores de saberes que compõem o material
coreográfico destes artistas, que vivem constantes disputas entre si em nome da
autenticidade e da originalidade coreográfica. O protesto de Eros desperta o olhar para a
formação do campo do bailado nacional150. Karla Carloni menciona que:

Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), a cidade do Rio de


Janeiro foi palco de espetáculos de dança encenados por bailarinos de formação
clássica, nacionais e estrangeiros, inspirados em aspectos das culturas indígena,
sertaneja e negra. O nacionalismo autoritário, o pensamento modernista, e as
inovações que ocorriam no próprio campo da dança no Brasil e no mundo
influenciaram intercâmbios entre a dança europeia e as manifestações populares
brasileiras, e a busca de uma estética própria que representasse o corpo mestiço.
Importantes iniciativas verificaram no âmbito do Serviço Nacional de Teatro
(SNT), no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e nos cassinos cariocas. Na
busca da “verdadeira identidade nacional” e de uma estética que a representasse,
em 1939 o ministro Capanema convidou a jovem bailarina. Eros Volúsia para
assumir a direção do curso de Ballet do Serviço Nacional de Teatro, que
posteriormente deu origem ao corpo de baile do SNT. Volúsia teve papel central
na proposta de criação de um bailado nacional. Bailarina de formação clássica e
originalmente integrante do corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, desde jovem se dedicava a pesquisa de danças, buscando a formulação
de movimentos que traduzissem o que ela chamava de corpo mestiço. Eros
viajou pelo Brasil estudando e recolhendo aspectos de danças que identificava
como coloniais e/ou afro-indígenas. o curso de balé do SNT era gratuito e
funcionava no Teatro Ginástico em meio a dificuldades, sendo a maioria dos
alunos jovens pobres. A inspiração da bailarina de formação clássica, segundo
entrevista ao jornal A Manhã, vinha do cotidiano pobre no morro da Mangueira e
de excursão nos “terreiros de macumba” na Bahia, onde “frequentou
‘candomblés’ e conviveu com famosos ‘babalaôs’, tendo assistido as dansas das
iakós e com elas dansando também, exaltando-lhes a espontaneidade dos
bailados. Na criação da dansa clássica brasileira Eros, aproveitou a coreografia

148
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pasta=ano%20194&pesq=Orix%C3%A1s&p
agfis=41593
149
Diário da Noite, 11 de fevereiro de 1949.
150
Ver: CARLONI, Karla Guilherme. Em busca de uma identidade nacional: bailarinas dançam maracatu,
samba, macumba e frevo nos palcos do Rio de Janeiro (1930-1945). Uberlândia: Art Cultura, v. 16, n. 29, p.
167-185, jul-dez. 2014.
89

dos terreiros e estilizou as danças que ali aprendera, inclusive o ‘samba da


chave’ e o ‘bole-bole’. (CARLONI, 2014, p. 1 e 8.

Figura 28: “Protesta Eros Volúsia: Discípula de babalaô, não”. Reportagem do jornal Diário
da Noite de 11/02/1949. O protesto da bailarina e coreografa Eros Volúsia contra o
documentarista Isaac Rozemberg, em nome da preservação do seu patrimônio artístico e
coreográfico. Fonte: BNDigital151

Os três personagens: Isaac Rozemberg, Joãozinho da Goméia e Eros Volúsia,


ocupam lugares diferenciados no debate que se abre sobre a “autenticidade” e a

151
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_02&Pesq=BABALA%c3%94&pagfis=4947
3e
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_02&Pesq=BABALA%c3%94&pagfis=4961
5
90

“originalidade” das criações coreográficas em fins dos anos 40. Eros atuou a frente da
diretoria do Serviço Nacional de Teatro, foi aclamada como “inventora” do bailado
nacional e criadora de uma Escola de dança afro-brasileira, que viera a funcionar nas
dependências do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 1949, Joãozinho da Goméia já
era conhecido por atuar como coreografo e bailarino entre o Rio de Janeiro e Salvador e se
apresentou com suas filhas de santo, nos palcos do Teatro Jandaia, Teatro do Largo da Sé
e Teatro Guarani.

O autor Roberto Pereira152 indica que essas reivindicações153, foram as responsáveis


pela conquista do seu título como formadora do bailado nacional, por dedicada entrega aos
estudos das danças folclóricas brasileiras, criando uma espécie de “folk-dance” 154
, um
estilo coreográfico dedicado às estilizações das performances captadas em terreiros de
candomblé e aldeias indígenas. Extraía a essência cultural das tradições populares
brasileiras e inseria as mesmas em uma cena teatral contemplada pela elite. A dedicação
de Eros atraiu os interesses folclóricos de Mário de Andrade com seu gosto pela
descoberta da “autenticidade” e “originalidade” criativa nos rincões deste Brasil profundo:

(...) essencialmente uma bailarina brasileira, é uma expressão nacional do


bailado, e este é o seu grande mérito, que ninguém lhe poderá mais tirar. Foi ela
a primeira a tentar sistematicamente a estilização de nossa música coreográfica
popular, e a transpor sambas, maxixes, maracatus, danças místicas de candomblé
e até mesmo ameríndias para o plano da coreografia erudita. E é incontestável
que o faz com muita inteligência. Algumas das suas criações são deliciosas de
espírito, ricas de ritmos inéditos no bailado teatral e de um sabor brasileiro
marcante. (ZENICOLA, 2016, p. 221.)

Denise Mancebo Zenicola155considera que Eros Volúsia era movida pela


possibilidade de construção de uma forma de arte nacionalista brasileira. A busca pelo
conhecimento sobre fazeres artísticos no campo da dança popular, ou folclórica ou mesmo
da dança afro-brasileira, a fez viajar para “dentro do Brasil” buscando a diversidade dos
movimentos corporais e as tradições culturais impressas neles. A possibilidade de
encontrar os rastros do passado no tempo presente por intermédio da cultura popular gerou

152
PEREIRA, Roberto. A formação do balé brasileiro: nacionalismo e estilização. Rio de Janeiro: Ed. da
Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.70.
153
Eros tem uma carreira costurada por reivindicações para preservação do seu patrimônio artístico o que a
insere no campo do bailado cada vez mais.
154
FERRAZ, 2012, p. 71.
155
ZENICOLA, 2016, p. 221
91

seu interesse em torno do estudo dos movimentos corporais em sentido folclórico, o que
vem a reconstruir a sua identidade de coreógrafa e bailarina, transformou-se em uma
incansável produtora cultural. O oficio de folclorista estava apenas associado ao estudo,
coleta e registro de informações, tal qual fazia o maestro paulista Camargo Guarnieri
através da “Sociedade de Etnografia e Folclore”; e Edison Carneiro com a preservação
das tradições registradas e observadas. Um ato que Eros não aplicou na pratica. Ela
capturava a essência das tradições, modificava e reivindicava autoria.
O sentimento folclórico aproximou Eros de Joãozinho da Goméia, como aproximou
de outros terreiros de candomblé e de macumba entre Rio de Janeiro e São Paulo. O que
entristeceu Joãozinho foi a desconsideração quanto a sua contribuição no seu patrimônio
coreográfico e artístico:

Ensinei a Eros, com um carinho especial, tudo quanto sabia e ela participou de
nossos cerimoniais vestida de baiana. Muitas melodias tipicamente africanas eu
cantei para um músico do Corpo de Bombeiros escrever, a fim deoferecer a Eros.
Ela enriqueceu não há dúvida, muito e muito o seu repertório com o material que
lhe puz ao alcance dos olhos e da inteligência.156

Em 1939, Eros Volúsia, foi nomeada pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema para ocupar o cargo de diretora do Curso de Ballet do Serviço Nacional de
Teatro (SNT), que havia sido criado pelo decreto nº 92, em 21 de dezembro de 1937, como
órgão subordinado ao Ministério da Educação e de Saúde Pública, objetivando a “elevação
e edificação espiritual do povo”, por meio das artes cênicas. Por razão desta nomeação,
157
Eros cria o curso de coreografia que objetivava fornecer elementos para o teatro
musicado nacional, com um curso com aulas práticas sem desprezo à teoria. 158 O
diferencial do curso foi o acesso que Eros deu aos bailarinos negros, que passaram a
compor o corpo de baile dos teatros de revista, do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e do
cinema nacional, como Sebastião Araújo, Gilberto de Assis e Mercedes Baptista, que
materializaram o projeto de criação de uma Escola de Ballet, legitimamente brasileira:159

O teatro deveria ter um papel pedagógico e contribuir na difusão da cultura


nacional de acordo com os ideais do nacionalismo autoritário. Na prática o SNT
distribuía auxílios financeiros a artistas e produtores de teatro contemplados

156
A Manhã de 16 de junho de 1942
157
O corpo de baile do teatro municipal foi oficializado em 1936, quando a profissão de bailarino foi
oficialmente reconhecida.
158
ZENICOLLA, 2016. p. 222.
159
Idem.
92

através de um plano anual de recursos. O funcionamento do órgão foi marcado


por divergências e ambiguidades em relação à gestão das verbas e ao papel do
teatro na construção da identidade nacional. A realidade era de luta entre
diferentes discursos sobre a cultura no país para afirmar os seus projetos para o
teatro brasileiro nesse período de modernização que foi o Estado Novo. É
conhecida a intensa relação entre a classe artística e Getúlio Vargas. A busca da
representação do nacional não se dava somente de cima para baixo, era uma
demanda da própria classe artística influenciada pelos ideais modernistas.
(CARLONI, 2013, p.4.)

Joãozinho da Goméia pode ser considerado um personagem atravessado pelo


conceito polissêmico de “modernismo negro”, abordado pelo historiador Petrônio
Domingues160, em seu artigo sobre a bailarina Josephine Baker, a “Vênus Negra”. Um
conceito que abrange o terreno da pintura, escultura, poesia, prosa, dança, música,
arquitetura, teatro, cinema, dentre outros. Um conceito que só encontra unidade na
diversidade e, por isso, é tratado por alguns historiadores culturais no plural:
“modernismos”, por servir de referencial para se pensar a trajetória de outros sujeitos
negros atravessados pela possibilidade de criação artística. A criação de uma arte negra
iguala não apenas sujeitos negros que são os inventores da arte, como sujeitos que
dialogam diretamente com esta arte.
Paul Gilroy, no livro O Atlântico Negro,161 vai considerar que estas respostas
negras à modernidade nascem no interesse do desenvolvimento desses modernismos
negros.162 Um conceito que conecta vários corpos negros no sentido da criação musical e da
performance corporal. Gilroy indica que:

Desejo esclarecer alguns dos atributos distintivos das formas culturais negras que
são, a um só tempo, modernas e modernistas. São modernas porque tem sido
marcada por suas origens hibridas e crioulas no Ocidente; porque têm se
empenhado em fugir ao seu status de mercadorias e da posição determinada pelo
mesmo no interior das indústrias culturais; e porque são produzidas por artistas
cujo entendimento de sua própria posição em relação ao grupo racial e do papel
da arte na mediação entre a criatividade individual e a dinâmica social é moldado
por um sentido da prática artística como um domínio autônomo, relutante ou
voluntariamente divorciado da experiência da vida cotidiana. Essas formas
culturais expressivas são, portanto, ocidentais e modernas; mas isto não é toda o
que elas são. 163

160
DOMINGUES, Petrônio. A “Vênus negra”: Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica. RJ:
Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica. RJ: Estudos Históricos, vol.23, nº45, 2010.
161
GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. SP: Editora 34, 201.
162
GILROY, 2001, p. 158.
163
GILROY, 2001, p. 159.
93

O autor Roberto Pereira164 informa que, em 1942, as bailarinas e coreografas


Eros Volúsia e Madeleine Rosay, reivindicavam para si a autoria da coreografia sob a
música Tico-Tico no fubá de autoria do compositor Zequinha de Abreu, cabendo apenas a
Eros o reconhecimento pela autoria coreográfica, que tem sua versão registrada no mesmo
ano e levada para Hollywood através do filme comédia musical Rio Rita, estrelado pela
dupla de comediantes Abbott & Costello, com estreia no Brasil, datada em janeiro de
1943. O filme trazia no roteiro o contexto da II Guerra Mundial, e retrava uma situação de
espionagem alemã. A participação da bailarina brasileira Eros Volúsia se deu por conta de
165
um contrato pela MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) , após ilustrar a capa da revista Life
Magazine, uma revista de fotojornalismo, fundada em 1936, por Henry Robinson Luce, um
magnata nova-iorquino de revistas estadunidenses que foi chamado de o cidadão privado
mais influente da América.
Karla Carloni166menciona que em 1943, ao ser entrevistada pelo jornal A Manhã
sobre a sua escola de ballet do Serviço Nacional de Teatro, Eros deixa claro suas
pretensões, quanto à estrutura das instalações, que possibilitaria a realização de treinos
coreográficos e apresentações de bailados que seriam extraídos das lendas brasileiras.
Nesse contexto, está presente Any Guaíba, bailarina do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, que tinha uma proposta coreográfica semelhante à de Eros Volúsia. Também
usava trajes que realçavam a sua sensualidade: eram trajes inspirados em símbolos da
cultura brasileira como indígenas e a baiana do acarajé. Any Guaíba, em 1943,
excursionou pela República da Argentina, recebendo o título de a “mais brasileira das
bailarinas”, com uma extensa lista de criações coreográficas produzidas para espetáculos
internacionais como o “Noite de Temporal”, que se tratava de uma narrativa visual sobre
uma mulher que ficava na beira do mar esperando a jangada retornar com o pescador.
Produziu uma coreografia cheia de graciosos movimentos: os braços ondulavam no sentido
das ondas do mar e o corpo tremulava como a fúria das ondas. Esta encenação lhe rendeu
prestígio na dança garantindo contratos firmados com empresários platinos167.
Recebia elogios públicos dos críticos portenhos que a aclamaram como a “criadora

164
PEREIRA, Roberto, 2001, p. 46.
165
É uma empresa norte-americana de comunicação de massa, envolvida principalmente com produção e
distribuição de filmes e programas televisivos. A MGM foi fundada em 1924, quando o empresário do ramo
do entretenimento, Marcus Loew, adquiriu o controle da Metro Pictures, Goldwyn Pictures Corporation e
da Louis B. Mayer Pictures. É uma das produtoras de cinema mais antigas da história docinema americano.
166
CARLONI, p.11.
167
Reportagem “Mais uma brasileira para Hollywood da Revista Carioca, 13 de fevereiro de 1942”. Uma
revista pertencente ao grupo A Noite.
94

de formas que são, em verdade, as mais puras e as mais ricas expressões plásticas dos
motivos verde e amarelo”. A revista Carioca168 reconhece a artista como “uma bailarina de
marcações puramente nacionalistas com plasticidade musical”. O contrato com um
empresário de Hollywood lhe destinou caminhos semelhantes aos já trilhados por sua
antecessora, Eros Volúsia, nos estúdios da Metro em 1942. O jornal A Manhã de 16 de
julho de 1942 menciona o circuito de entretenimento noturno da América Latina, nos quais
Any Guaíba despontava nos “night clubs” La Conga, Habana, Madrid, Leon Eddis, e
Cuban da Broadway, passa a ser solicitada em longas excursões coreográficas por Cuba,
México, Canadá e Estados Unidos.169

2.2. ANY GUAÍBA E JOÃOZINHO DA GOMÉIA

Em 1946, a revista Carioca de 8 de junho, traz uma reportagem intitulada Será o


rádio-bailado, na qual surgem preocupações com o surgimento da televisão entre os
artistas de rádio e teatro, e elege as coreógrafas e bailarinas Any Guaíba, Lúcia Lemos,
Eros Volúsia, Lília Naldi, Leda Yaqui e Madeleine Rosay, como referências do bailado
nacional do país, em fins dos anos de 1940. Em outra reportagem intitulada O Bailado
brasileiro na terra dos arranhas céus, da revista Carioca de 11 de agosto de 1947, Any
Guaíba surge como responsável por inúmeras coreografias inspiradas no repertorio de
compositores brasileiros como Dorival Caymmi, que empresta a composição “Promessa de
pescador”, para ilustrar as evoluções coreográficas do quadro “Noite de Temporal”. O que
nos aponta que Any Guaíba mantinha uma relação profissional com compositores
populares brasileiros que emprestavam suas composições para figurarem a ambientação
dos seus quadros coreográficos, o que ajudou a divulgação a nível nacional e internacional
da cultura musical produzida em terras brasileiras alicerçada por elementos que
compunham a identidade nacional presentes em composições como o “Lamento negro”, de
Humberto Porto; “Bem-te-vi atrevido”, de Lina Pesce; “Batuque”, de Nepomuceno;
“Dança africana”, de Martinez Grau; “Baiana da Praça Onze”, de Vicente Paiva; “Maxixe”
e “Espanha brasa”, de Armando Angelo; “As Uiaras” e “Saci Pererê”, de Heckel Tavares;
“Dança de negros”, de Lorenzo Fernandes e “Kermesse”, tema extraído do chorinho de
George Brass e Braga Filho, que tinha um repertorio contemplando as festas de caráter

168
Revista Carioca, 8 de junho de 1946.
169
Revista Carioca, 23 de dezembro de 1944.
95

religioso realizadas nos interiores do Brasil170.

A revista carioca, em reportagem do dia 8 de agosto de 1946, apresenta reportagem


em que Any Guaíba, confirma sua relação de amizade com Joãozinho da Goméia,
revelando ser ele seu parceiro de palco nos cassinos da Capital Federal, e um mestre nos
estudos das danças afro-brasileiras. Uma narrativa que se contrapõe a de Eros Volúsia:

Na Baía, por exemplo, demorou-se bastante observando o famoso Joãozinho da


Goméia e todas as figuras do seu famigerado candomblé, na estrada de Santo
Amaro do Pitanga*.171 Ali aprendeu um pouco da língua nagô, simulações e
os mais exóticos passos e atitudes de dança bárbara. Na Goméia é possível
afirmar, bacharelou-se em exotismos e nos ritmos esquisitos da macumba,
reunindo motivos esplendidos, que, estilizados, fizeram dela a bailarina
empolgante, que faz fremir as plateias, e força aos críticos estabelecer confrontos
entre ela e as mais famosas dançarinas do mundo. O seu nome, num instante
traspôs fronteiras. Interessou aos empresários e viu- se inesperadamente nos
Estados Unidos, precedida de grande fama e maior publicidade, dançando para o
público yankee, que conquistou na primeira exibição.172

A menção a Joãozinho da Goméia como um dos responsáveis pelo sucesso artístico


da bailarina Any Guaíba em uma revista de grande projeção para os fãs de artistas
brasileiros, norte-americanos e latino-americanos, contribuiu, e muito, com a projeção do
nome artístico do pai de santo a nível nacional. Um reconhecimento movido pelo
sentimento artístico e folclórico da bailarina, que sabia que o pai de santo havia sido fonte
geradora do seu conhecimento acerca da dança de terreiro e da dança folclórica, lhe
reverteria um retorno, tanto quanto o acesso às sessões do terreiro, quanto à manutenção da
amizade com Joãozinho, que lhe possibilitaria atualizar constantemente seu material
coreográfico. A dança aprendida no terreiro da Goméia estava evidenciada nas estilizações
criadas por coreografas e bailarinas que frequentavam o terreiro de Duque de Caxias, no
intuito de aprender os movimentos executados por Joãozinho da Goméia nas cerimônias
públicas.
O que fica explícito no quadro coreográfico encenado por Eros Volúsia no longa

170
Any Guaíba é um personagem interessantíssimo, que precisa e merece ser descoberto quanto à trajetória da
dança moderna brasileira entre os anos de 1930 e 1950. Estas bailarinas e coreografas estudavam o folclore
nacional e as danças afro-brasileiras recebendo apoio financeiro do Serviço Nacional de Teatro, atuando
como folcloristas, e ampliando as dimensões deste campo de produção de saberes sobre aspectos da cultura
brasileira. A ligação com Joãozinho da Goméia é movida estritamente por este sentimento folclórico que
movimenta o campo das artes, da dança, e dos estudos da cultura afro- brasileira.
171
O terreiro da Goméia estava localizado na Estrada de São Caetano, Salvador.
172
Data da reportagem já citada no corpo do texto.
96

metragem Rio Rita173, é a presença dos passos e dos movimentos dos braços, assim como a
pulsação do corpo e o movimento giratório do corpo, que é nada mais nada menos que uma
remissão às performances das filhas de santo, já que relembram o movimento dos corpos
presenciado em rituais religiosos em que há incorporação de orixás femininos como Oxum,
Iemanjá e Iansã. As inúmeras referências aos movimentos tremelicados da incorporação
das filhas de santo, além dos movimentos dos braços, aparecem todos com nitidez, não
deixando nenhuma margem de dúvida sobre os referenciais adotados para aquela
composição coreográfica.

Figura 29: “As novas vitórias de Any Guaíba” A bailarina afirma que passou um tempo no terreiro
da Goméia de São Caetano, em Salvador, observando os passos de candomblé de Joãozinho da
Goméia e de suas filhas de santo, para buscar inspiração coreográfica para suas ‘estilizações”
artísticas. Publicação da revista Carioca de 08/06/1946. Fonte: BNDigital174

173
Ver a cena estilizada em: https://www.youtube.com/watch?v=TsNlolyVBQY

174
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830259&pasta=ano%20194&pesq=ANY%20GUAIB
A&pagfis=33580
97

As amizades conquistadas com as bailarinas e coreógrafas Any Guaíba e Eros


Volúsia, puderam ter proporcionado uma fácil entrada no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro e no Teatro Carlos Gomes175, que ficava localizado na Praça Tiradentes, e era
um local conhecido desde os anos de 1930, como um espaço de transito de travestis que,
no Carnaval, frequentavam bailes com trajes femininos e luxuosos, e participavam de
festas conhecidas pela alta frequência. A título de exemplificação, em 1938, Madame Satã
ganhou um prêmio por uma fantasia que lhe deu o seu “nome de guerra”, e ainda inseriu a
sua presença no imaginário coletivo da cidade do Rio de Janeiro:

A Praça Tiradentes e os teatros à sua volta tornaram-se o lugar favorito para as


festas de carnaval, onde se travestir de mulher era permitido, embora não
necessariamente promovido. Uma praça que fora um local tradicional de
encontros entre homossexuais e de um número significativo de homens
praticantes de atividades homoeróticas que socializavam, com os amigos e
buscavam parceiros sexuais lá. Muitos desses homens trabalhavam nos teatros e
cinemas da área como dançarinos, atores, ajudantes de costureiros, designers,
serventes e lanterninhas nos teatros. As mudanças nas vidas noturnas carioca nos
anos 1930 e 1940 posteriormente proporcionaram novos atrativos à praça como
local para congregar e oferecer entretenimentos públicos. A criminalização do
jogo em 1946, também contribuiu para o rejuvenescimento da Praça Tiradentes
como centro de entretenimento da cidade, enquanto os cassinos fechavam as
portas, os empresários do show business cortavam seus números e os levavam
para a zona dos teatros, passando a associar a Praça Tiradentes a um local de
espetáculos picantes, faustos e glamourosos, que abrigava os bailes
carnavalescos. (GREEN, 2000, p.343 e 344.)

2.3. O BRILHO COREOGRAFICO DE JOÃOZINHO DA GOMÉIA

Rodrigo Pereira176 acredita que o inicio da trajetória de Joãozinho no Rio de


Janeiro, havia sido marcado pela sua ligação com o carnaval e a participação nas festas dos

175
Segundo informações coletadas no site Wikipédia o Teatro Carlos Gomes teve as primeiras instalações
inauguradas em 1872, quando se denominava Cassino Franco-Brésilien (Teatro Cassino Franco
Brasileiro). Em 1880, foi reformado e passou a ser denominado Teatro Santana, em homenagem ao nome da
mulher do novo proprietário. Em 1905, após trocar novamente de dono, foi reinaugurado com o nome de
Teatro Carlos Gomes, em homenagem ao compositor Carlos Gomes. Em 1929, o teatro sofreu o primeiro de
seus incêndios. O prédio foi, então, reconstruído em estilo art déco. O teatro sofreu novos incêndios em 1950
e 1960.
176
PEREIRA, Rodrigo. PEREIRA, Rodrigo. Análise do espaço e da cultura material no extinto Terreiro
da Gomeia (Duque de Caxias/RJ): um estudo etnoarqueológico. Rio de Janeiro: Museu Nacional da UFRJ,
2019 p. 173.
98

clubes particulares como o Monte Líbano na Lagoa Rodrigo de Freitas, o que revela um
estreitamento com a vida cultural noturna da cidade. Pereira ainda considera que isso
deve ter lhe rendido recursos para fixar residência na Avenida Paris, nº 55 no bairro de
Bonsucesso, Zona Norte do Rio de Janeiro, e acredita que não seria improvável pensar que
ele possa ter utilizado de sua fama de artista para também conseguir fundos para a
construção do seu terreiro. Em 1947, a revista Sombra, informa que o barateamento da
seda possibilitou à Joãozinho da Goméia investir no brilho das indumentárias usadas no
seu terreiro, que lembravam “uma provável influência do carnaval”. O pai de santo é
citado nesta reportagem como inovador, exímio bailarino, inovador e introdutor de
passos novos em seu candomblé. A crítica ao gosto por roupas luxuosas e brilhosas,
que remetiam aos trajes carnavalescos e teatrais, remetia ao discurso de candomblecistas
tradicionais como o olwô Agenor Miranda Rocha, que considerava que Joãozinho havia
transformado o candomblé em teatro e em carnaval principalmente por causa da explosão
de cores e brilhos que revestiam o seu candomblé. Andréa Mendes traz a fala de uma
filha de santo de Joãozinho publicada no Correio da Manhã em 20 de março de 1971,
que ilustra a visão tradicionalista sobre a estética adotada pelo pai de santo em seu
terreiro:

(...) Parecia carnaval, gente. Isso é que os inimigos de Joãozinho da Goméia não
perdoavam. Diziam que ele não trabalhava. Que seu terreiro era só pra turista.
Que ele era bailarino. Que só pensava em mudar de roupa. Que aquilo era show.

No dia 10 de dezembro de 1947, o Correio da Manhã publica uma matéria sobre o


ensaio geral de Bravum, um espetáculo em benefício da Associação de Auxílio à criança,
com participação de cantores, dançarinos, cenógrafos e musicistas. Com a direção da
atriz lisboeta Esther Leão 177, e das coreografas Mari Mencar e Klara Korte178. O espetáculo
divulgado como “Uma dança da Bahia: João da Gomeia e Bravum” traria os ritmos da
macumba e o mistério das florestas da Bahia. O espetáculo que aconteceu em uma noite
de gala no Teatro Municipal do Rio de Janeiro foi reconhecido pela beleza e
plasticidade dos movimentos, e a estranheza das músicas comandadas por uma orquestra

de sessenta músicos, sob a direção do maestro Martinez Grau , que compunha óperas,
revistas e trechos populares de grande sucesso. A Associação Brasileira de Auxílio à

177
Esther Leão nasceu em Lisboa, Portugal, em 1892 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1971. Foi
diretora do “Teatro do Estudante” no Brasil. Marcou presença no teatro brasileiro, nos anos 1940 e 1950.
178
Klara Korte instalou no teatro João Caetano a “Escola de bailados Klara Korte” ligada diretamente a
alguns espetáculos, eventos e bailes carnavalescos da cidade.
99

criança era uma das seções pertencentes à Associação mundial afiliada à Cruz Vermelha de
Genebra e tinha como finalidade o cuidado da infância desamparada pelos efeitos da 1ª
Guerra Mundial.
Com o assassinato de judeus em campos de concentração alemães ou nas situações
de bombardeios em massa nas cidades, a instituição atuaria acolhendo crianças que
ficaram sozinhas no mundo, abandonadas à própria sorte. Diferentemente da situação de
calamidade causada pela guerra na Europa, o Brasil vivia outra espécie de desamparo.
Originado pela fome e pela miséria, geradora de doenças infecciosas e pulmonares como
a sífilis e a tuberculose. Com o apoio do ministro da educação Clemente Mariani,
organiza a noite de gala do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com o intuito de recolher
fundos para a campanha de contenção da fome e da miséria de crianças brasileiras, em
situação de pobreza ou de pobreza extrema. A presença de Joãozinho da Goméia se ateve
apenas a criação do conceito coreográfico do que adicionaria elementos folclóricos em
cena.

Figura 30: Reportagem do jornal Correio da Manhã, 10/12/1947, com cena da


coreografia criada por Joãozinho da Goméia para o espetáculo “Uma dança da Bahia:
João da Gomeia e Bravum” a ser apresentado no palco do Teatro Municipal do Rio de
100

Janeiro, em 1948. Fonte: BNDigital179

A coreografia emprestada para o espetáculo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro


foi adaptada para os palcos do Teatro Carlos Gomes em 1948. O Diário da Noite de
12 de setembro de 1949 exalta o sucesso da coreografia encenada para o espetáculo Big-
Ben, destacado na imprensa pelo crítico teatral Henrique Pongetti180, que apresentou a
macumba ao francês Albert Camus, em 1949.

Figura 31: Reportagem de A Casa, revista do lar, janeiro de 1948; com cena da
coreografia criada por Joãozinho da Goméia para o espetáculo “Uma dança da Bahia:
João da Gomeia e Bravum” a ser apresentado no palco do Teatro Municipal do Rio
de Janeiro. Fonte: BNDigital 181

O espetáculo encenado no Teatro Carlos Gomes, recebeu o patrocínio de colegas


do Diário Trabalhista, periódico no qual Joãozinho havia conquistado um contrato para
comandar a coluna ao cair dos búzios, nela respondia às dúvidas e às curiosidades dos

179
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_05&pasta=ano%20194&pesq=Jo%C3%A3o%
20da%20Gomeia&pagfis=39280
180
De acordo com informações retiradas do site Wikipédia, Henrique Pongetti era filho dos imigrantes
italianos Ruggero Pongetti e Marianna Feltrini. Em 1920 começou a carreira de jornalista, escrevendo
para o jornal Tribuna de Petrópolis. Logo depois foi para o Rio de Janeiro, onde escreveu sua primeira peça
teatral, A Noite Mil e Dois, que foi musicada por Antonio Lago, o pai de Mário Lago. Escreveu para grandes
atores como Procópio Ferreira, Manuel Pêra, Raul Roulien e Jaime Costa, nos anos 1940 e 1950. Foi também
responsável pelos roteiros dos filmes Grito da Mocidade e Favela dos Meus Amores, esse último dirigido por
Humberto Mauro.
181
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=690422&pesq=Jo%C3%A3o%20da%20Gomeia&pas
ta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=10947
101

leitores. As cartas eram entregues em mãos no seu terreiro em Duque de Caxias pelos
jornalistas Ariosto Pinto182 e Batista de Paula. A autora Joselina da Silva 183comenta que o
pai de santo ajudou o jornal a progredir economicamente, considerando que ele houvera

sido transformado em um produto vendido com pompa e galhardia180 Um dado a ser


considerado sobre o Diário Trabalhista, é que ele havia sido fundado em 15 de janeiro de
1946, por um grupo composto por Eurico de Oliveira, Antônio Vieira de Melo, José
Pedroso Teixeira da Silva e Mauro Renault Leite (genro do presidente Eurico Gaspar
Dutra). O periódico exibia uma orientação política de caráter trabalhista que almejava
garantir apoio popular para o governo Dutra, preocupando-se em defender os interesses do
governo. A atuação de Joãozinho no Diário trabalhista aconteceu entre os anos de 1949 e
1951:
Analisando as respostas dadas por Joãozinho entre 1949 e 1951, pudemos
observar que diferentes temas foram desdobrados pelo autor, ao longo do
período estudado. Algumas vezes a coluna era iniciada com um pequeno bilhete,
fazendo lembretes ou esclarecimentos sobre como as cartas deveriam ser
remetidas. Outra era como um jeito amigo de se dirigir aos seus leitores, de
formas generalizadas. Nestes casos, havia uma assinatura do líder espiritual, ao
final, como se fosse uma mensagem à parte: atendendo aos pedidos dos meus
amigos, reinicio hoje, a secção ‘Ao cair dos búzios’. Passarei a atender, na
medida do possível, a todos os que me procurarem. Por outro lado, evitaremos as
grandes demoras. Porque o jornal terá espaço suficiente para eu atender às
consultas, à proporção que me forem chegando as cartas. Podem me consultar.
Todos serão atendidos em pouco tempo. (SILVA, 2010, p. 42.)

Não localizamos na pesquisa de Joselina da Silva, informações sobre o fim do


contrato com o jornal Diário Trabalhista, ou como se deu a extinção deste canal de diálogo
com os leitores cariocas. Temos como perceptível a exposição midiática, Joãozinho da
Goméia não apenas atraiu muita gente para seu terreiro de candomblé, como para as
plateias dos lugares onde se apresentava artisticamente, o que corroborou com um aumento
significativo, nos interesses sobre sua arte e sua religiosidade.

Petrônio Domingues184, ao analisar a trajetória da afro-americana Josephine Baker,


comenta que a imprensa negra passou a glorificar os triunfos da artista, ignorando as
controvérsias com as quais a “célebre dançarina se envolvia direta ou indiretamente”. A

182
Ariosto Pinto é o responsável pela autoria de todas as grandes reportagens sobre Joãozinho da Goméia,
publicada pelo jornal Última Hora. Mas não obtive nenhuma pista sobre o seu paradeiro.
183
SILVA, Joselina da. O negro baiano pai Joãozinho da Goméia: o candomblé de Duque de Caxias na
mídia dos anos cinquenta. Duque de Caxias: Revista Magistro: vol.1, nº1, 2010.
184
DOMINGUES, Petrônio, 2010. p.107
102

fama de Baker passou a representar uma conquista simbólica para os negros atravessados
pela materialização dos danos provocados pela diáspora nas Américas. Para o autor a
imagem de Baker não teria sido muito valorizada por negros e por brancos se a artista não
tivesse conquistado também uma vasta fortuna material. A representatividade de uma
mulher negra como Josephine Baker, que produziu um formato de arte inspirado na sua
ancestralidade, abastecendo a indústria do entretenimento nas primeiras décadas do século
XX, transitando entre a Europa e as Américas, despertava em outras pessoas negras a
possibilidade do progresso financeiro e pessoal. O autor ainda afirma que os brasileiros que
se agenciaram em torno de uma imprensa negra e forjaram imagens positivadas,
descrevendo Baker, como uma mulher talentosa, rica e civilizada, que simbolizava uma
espécie de ícone de “modernidade afro-atlântica”185.

A simbologia da ascensão social da pessoa de cor negra no Rio de Janeiro foi


analisada pelo sociólogo L.A. da Costa Pinto186, no livro O Negro no Rio de Janeiro:
relações de raça em uma sociedade de mudança, ali considerou que existiam mecanismos
de boicote à ascensão social dos negros, que eram projetados pelo preconceito e pela
discriminação racial, por mecanismos que reconduzem sujeitos negros a lugares
“biologicamente justificados”:

O fato de a ascensão” social do negro processar-se no bojo das mudanças de


estrutura que têm lugar na sociedade como um todo, é o que torna o preconceito,
como o diagnosticou Robert Park, uma forma elementar de resistência da ordem
social aos efeitos de sua própria transformação e de suas últimas
consequências. Na prática isso se revela de vários modos, como, por exemplo, no
fato de o negro, via de regra, poder estar presente e manter contato com brancos,
desde que esteja na posição subalterna de empregado, em todos os lugares onde
sua presença, em condições de igualdade de posição com o branco, sofre
restrições. Embora se multipliquem os casos de barreiras raciais aparecendo em
ocupações que, apesar de subalternas, exigem contato mais íntimo e direto com o
branco — enfermeiros, garçons de hotéis de luxo, cabeleireiros, barbeiros etc. —,
o fato é que em salões, clubes, instituições diversas, e mesmo em residências
particulares onde está afastada pelos costumes e pelo preconceito a hipótese de
um negro penetrarem posição igual ao branco, nenhuma objeção costuma existir
se o negro está ali servindo, como empregado, em posição nitidamente definida
— pelo uniforme profissional por exemplo - que indique claramente sua função e
posição. (PINTO, 1953. p. 263).

Ainda sobre a “escalda social” de Joãozinho da Goméia na Capital Federal,

185
DOMINGUES, 2010, p.117.
186
PINTO, L.A. da. O Negro no Rio de Janeiro: relações de raça em uma sociedade de mudança. SP:
Companhia Editora Nacional, 1953.
103

encontramos uma matéria publicada pelo repórter fotográfico Arnaldo Vieira, na revista A
Cena muda187, intitulada Mexicanita e o Babalaô, que constrói a imagem de Joãozinho da
Goméia, com novas tintas, apresentando-o como um artista “legítimo”, embora não
esqueça de identificá-lo como uma liderança religiosa. A revista foi a primeira revista
brasileira focada em assuntos sobre o universo cinematográfico norte-americano, britânico,
escandinavo e brasileiro, dando destaque também para a presença dos artistas nacionais da
rádio e do teatro. Fundada no Rio de Janeiro pela editora Americana, teve sua primeira
edição datada em 31 de março de 1921, e sua última edição em maio de 1955. Foi
categorizada como uma “revista de fã” por estimular a aproximação entre leitores e estrelas
do cinema, publicizando a intimidade de artistas através de um processo de humanização
destas personalidades. A aproximação entre leitores e artistas era feita através do recurso
da “provocação da intimidade” entre artistas e leitores, como se o próprio artista dialogasse
com seu fã. A editora Americana, ciente da necessidade de intensificar a proximidade
entre artistas e fãs, criava periodicamente o Álbum da Cena Muda188no qual, através de
fotografias autografadas por estrelas como Carmen Miranda e as cantoras do rádio
Emilinha Borba e Marlene.

Com o grande crescimento radiofônico e cinematográfico em fins dos anos de


1940, estar em uma publicação editorial como esta, redimensionou a imagem de Joãozinho
da Goméia na imprensa e também junto aos artistas de rádio. Na reportagem pai de santo,
aparece ao lado da atriz Mexicanita, apresentando elementos do folclore baiano e do seu
candomblé, que já havia sido incorporado como parte do roteiro turístico carioca. A
amizade estreitada com Joãozinho lhe proporcionou a oportunidade de conhecer a história
dos candomblés e seus Orixás.

187
A Cena muda de outubro de 1949.
188
Tratava-se de um álbum de gravuras, textos e biografias, com uma rica seleção de conhecidos nomes
nacionais e estrangeiros do cinema, do teatro e da música popular. A seleção foi pautada no critério de
popularidade de artistas de indiscutível prestigio perante o público brasileiro. A revista dava destaquepara
o cinema americano, britânico, escandinavo e brasileiro.
104

Figura 32: Reportagem fotográfica “Mexicanita e o Babalaô” da revista A Scena muda: Eu sei
tudo(Magazine mensal) de 05/07/1949.
Fonte: BNDigital.189

189
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20194&pesq=%22Jo%C3%A3oz
inho%20da%20Gom%C3%A9ia%22&pagfis=51034
105

Figura 33: A reportagem fotográfica de Arnaldo Vieira celebra a


amizade entre o pai de santo e coreografo Joãozinho da Goméia e a jovem
e bela interprete Mexicanita que vinha fazendo sucesso nos “night-clubs”
da Capital Federal. As fotografias que ilustram a reportagem mostravam o
famoso pai de santo apresentando as várias peças de trajes usados pelas
filhas de santo com seus adornos que revelam uma das tradições mais
exóticas do Brasil. Fonte: BNDigital190

A expansão da indústria cinematográfica de Hollywood foi acompanhada pela Era


do Rádio, e com a popularidade do cinema e do rádio, proliferou-se no Brasil a circulação
de revistas lidas por mulheres que exaltavam a beleza feminina com padrões estéticos
americanizados. As radionovelas e o radioteatro aguçavam o interesse do público
feminino sobre a intimidade das estrelas que ocupavam as páginas de revistas como A

190
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20194&pesq=%22Jo%C3%A3oz
inho%20da%20Gom%C3%A9ia%22&pagfis=51034
106

Cena Muda (1921-1955), Revista do Rádio (1948-1970), Radiolândia (1952- 1960?),


Cinelândia (1953-1970) e Revista Hollywood. O contexto da Segunda Guerra Mundial,
seguido da Política da Boa vizinhança entre Brasil e Estados Unidos, favorecia
investimentos econômicos, da diplomacia e da glamorização de símbolos latino-
americanos no cinema de Hollywood191. A título de exemplificação, a presença das
bailarinas da dança clássica e moderna, que estilizaram as danças afro-brasileiras
transformando-as no instigante bailado nacional, assim como o interesse da cinematografia
norte-americana por Carmen Miranda e Aurora Miranda, e o intercâmbio cultural
México/Estados Unidos, e Cuba/Estados Unidos transformaram os cassinos brasileiros, e
os terreiros de macumba e de candomblé, na materialização da relação amistosa entre o Tio
Sam e o governo Vargas. Uma relação, que ultrapassou as fronteiras políticas e influenciou
os hábitos e os costumes da população carioca, trazendo o ar da modernidade para os
estilos de vestir-se, e decorar as casas, modificando os interesses de barbeiros,
cabeleireiras, modistas e alfaiates.

O Rio de Janeiro, entre 1930 e 1945, era a materialização da esperança, da


modernidade e do progresso econômico e despertava a ambição daqueles que desejavam
vencer na vida, e que projetavam para a Zona Sul, uma imagem de felicidade e progresso.
A cidade do Rio pulsava e atraía os estrangeiros que viam os cassinos da Zona Sul como
ilhas de sorte e glamour. De acordo com o biógrafo Ruy Castro:

O Cassino Copacabana foi o primeiro lugar público a tirar de casa os grã- finos
cariocas e a fixá-los no Rio. Até então, eles só dançavam e se divertiam entre si,
nos salões de seus palácios em Botafogo ou Laranjeiras, e passavam seis meses
por ano na Europa. Os Cassinos, ao misturar a alta sociedade com os ministros
de Estado, os políticos, o corpo diplomático, os grandes empresários, as
celebridades internacionais, as prostitutas de alto bordo e os velhos e novos ricos
europeus e argentinos, consolidaram a vocação internacional da cidade. Para que
viajar se estavam todos aqui? Em certo momento de 1936, por exemplo, o Rio
recebia o maestro Stravinski, o automobilista Pintacuda, o escritor Stefan Zweig,
o estadista americano Cordell Hull- cada qual um expoente em seu ramo-, e
todos hospedados no Copa. Classe, charme, savoir-faire. (CASTRO, 2005.
p.138.)

A mentalidade do consumo projetada no American Way of life construía sonhos e


desejos de felicidade, estreitando mais ainda os laços de dependência cultural e econômica

191
SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. IN: História da Vida privada
no Brasil. In: História da vida privada no Brasil 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras; 1998 p. 609-10.
107

do Brasil em relação aos Estados Unidos da América. Esta mentalidade que construiu a
identidade da cidade do Rio de Janeiro como “paraíso das oportunidades”, associada a
concepção nacionalista/desenvolvimentista do Governo Vargas, contribuiu para atrair
correntes migratórias de nordestinos, que viam a possibilidade de conquistar um lugar no
mercado de trabalho e melhorar o padrão de vida:

A política da Boa Vizinhança, havia sido implementada a partir de 1940


pelos Estados Unidos sob o governo de Franklin Delano Roosevelt, por meio do
Office Of Inter American Affairs, órgão então dirigido por Nelson Rockfeller,
tinha como objetivo garantir a hegemonia norte-americana na América Latina
através de acordos comerciais, planos de cooperação internacional e alianças
políticas. Nas asas desse movimento viajaram muitos artistas entre Estados
Unidos da América e Brasil. Orson Welles veio filmar no Brasil. Carmen
Miranda, que já estava nos EUA, foi incorporada. Walt Disney criou o
personagem Zé Carioca, e depois levou Ari Barroso e a “Aquarela do
Brasil” para lá. Artistas latino-americanos figuravam nos musicais norte-
americanos, numa confusão de sombreiros, tangos, papagaios, coqueiros,
idiomas, trocados e sotaques absurdos, que foram responsáveis por mais de um
incidente internacional.192

O segundo governo Vargas (1951-1954) ficou marcado pela sua face democrática e
nacionalista, defendendo o desenvolvimento da industrialização, com a proposta de criação de
um sistema econômico autônomo, independente do sistema capitalista internacional,
desempenhando papel importante como regulador da economia e investidor de áreas estratégicas
como petróleo, siderurgia, transportes, comunicações193. O governo de caráter nacionalista impunha
restrições a estreitamentos com o capital estrangeiro, o que poderia fragilizar a soberania nacional.
De acordo com Boris Fausto, era preciso que no quadro das relações internacionais houvesse um
necessário distanciamento em relação aos Estados Unidos. Os opositores acreditavam que o Brasil
precisava se alinhar irrestritamente com os americanos no combate ao comunismo. Houve a
promoção de inúmeras medidas destinadas ao incentivo do desenvolvimento econômico com
ênfase na industrialização. Foi este cenário que o presidente Getúlio Vargas encontrou a partir das
eleições de 1950. Em busca de ajuda norte-americana ao desenvolvimentismo político-econômico
brasileiro, o Brasil ofereceria um maior alinhamento a Washington. Com um cenário totalmente
diferente da primeira gestão presidencial de Vargas, a projeção do Brasil no cenário internacional
não foi mais a mesma. Os interesses estratégicos americanos precisariam ser assegurados e
protegidos. As expectativas eram positivas no início do governo Vargas, em detrimento ao um
estreitamento com Washington e um possível incentivo à promoção do desenvolvimento
econômico do Brasil.

192
Disponível em: https://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0710768_10_cap_03.pdf
193
FAUSTO, Boris. História do Brasil. Editora da USP, 2013. p. 449.
108

Com a explosão da Guerra da Coreia, diferentemente do quadro construído na


Segunda Guerra Mundial, quando havia setores favoráveis à participação militar direta do
Brasil, a solicitação do governo de Washington para que o país enviasse tropas à Coréia
não foi bem recebida. Com o intuito de evitar que a falta de apoio brasileiro prejudicasse o
relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos, o presidente Getúlio Vargas buscou
uma desvinculação nas esferas da negociação. O que não podia acontecer em âmbito
militar. O mesmo, entretanto, não podia ser feito com relação ao Acordo Militar, assinado
em 15 de agosto de 1952. O historiador Boris Fausto, considera ainda que:

A assinatura deste Acordo, em 15 de agosto de 1952, se inseriu nas negociações


sobre a participação do Brasil no conflito coreano. Ao final, em troca do
fornecimento de equipamentos e serviços de natureza militar ao Exército
brasileiro, o Brasil se comprometeu a fornecer minerais estratégicos aos Estados
Unidos; mas resistiu à pressão para enviar tropas ao teatro de operações. Após
uma difícil tramitação no Congresso, tendo em vista a forte oposição
nacionalista, que polarizou o debate público em torno do tema, o Acordo Militar
foi finalmente aprovado em março de 1953. (FASTO, Boris, 2013, p. 450.)

É neste contexto que se insere a apresentação de Joãozinho da Goméia e suas filhas


de santo no Largo do Boticário, localizado no bairro do Cosme Velho. Uma recepção
realizada no solar do casal Hubert Charles Wimans e Naná Wimans, uma renomada pintora
que mantinha estreitas relações com artistas e poetas modernistas. As revistas “O
Cruzeiro”, e a revista “Rio” 194
de julho de 1952, descreveram a participação de Joãozinho
da Goméia, comparando-a, a um “décor” de Debret, e uma expressão máxima do folclore
afro-brasileiro:

Neste palco dançaram e evoluíram os componentes do Grupo de Joãozinho da


Goméia, sob o tantã dos bumbas e zabumbas. E as saias rodadas das baianas, sob
a mutação dos holofotes coloridos, iam e vinham num voltear constante,
perfazendo uma farândola decorativa, que durou todo o tempo. Como aspecto
social, foi um dos mais brilhantes. E pena que não se possa dar, numa só
crônica, a impressão exata do que foi a festa dos Wimans, dedicada aos
Acheson.195

O jornalista João da Ega, responsável pela coluna social Black-tie, do Última


hora196, dedicou uma publicação inteira para enaltecer a participação de Joãozinho nos

194
Uma revista de Arte que era um apêndice do jornal O Globo, pertencente ao jornalista Roberto
Marinho.
195
Revista O Cruzeiro, julho de 1952.
196
Última Hora, de 7 de julho de 1952
109

salões do solar do Largo do Boticário naquela celebração do bom relacionamento entre


Estados Unidos e Brasil:

Num pequeno terreiro, que podia ser apreciado das varandas, janelas, corredores,
e sacadas que formam o páteo interno da mansão, a turma de João da Goméa fez
a sua batucada e apresentou os seus passistas típicos. Tudo isso com um
“éclairage”197 magnífico, tendo como “background” toda uma pequena floresta
natural de plantas tropicais de palmeiras, folhagens e orquídeas. Evidentemente
os Wynans não poderiam ter mostrado aos Acheson uma casa com cenas mais
típicas da tradição nacional. Na ponta de uma varanda, como num camarote, a
Sra. D. Darcy Vargas em companhia de amigos, assistia ao desenrolar do
batuque. Apreciando as lindas mudanças de quadros estavam o senhor e senhora
Ricardo Jaffet; Senador Arthur Bernardes Filho e Senhora, recebendo os
cumprimentos pelo discurso de recepção a Acheson no Senado; e Maria e
Aluysio Spindola de Castro que foram buscar Joãozinho da Goméia para
apresentar a dona Darcy Vargas, que se mostrou aliás curiosa para ver de perto as
cerimônias da especialidade de Joãozinho. Edgard Rocha Miranda comentava a
surpresa que aguardavam: Luz Del Fuego! E ela de fato apareceu quase nua com
um verme, mostrando as cobras e o resto. Houve grande curiosidade! Luz Del
Fuego subiu para a grande biblioteca e as galerias do segundo ‘deck’ ficaram
apinhadas. A filha de Yemanjá que apareceu envolta numa família de sucuris não
quis dançar ao relento com receio de que as serpentesinhas de sua estimação se
resfriassem.198

197
Iluminação em francês
198
Última Hora, de 7 de julho de 1952
110

Figura 34: A reportagem fotográfica da revista Rio publicada 05/07/ 1952 é sobre uma recepção no Largo do
Boticário. A montagem acima exibe momentos onde os aspectos folclóricos e exóticos estiveram em destaque
como a apresentação do espetáculo de candomblé dirigido por Joãozinho da Goméia, e a apresentação da
dançarina naturalista Luz Del Fuego. Este era o conceito de produto cultural nacional. Fonte: Fonte: BNDigital
199

199
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=146854&pesq=%22Acheson%22&pasta=ano%20195
&hf=memoria.bn.br&pagfis=9950
111

A visita de Acheson ao Brasil não representava supostamente nenhuma


incumbência ou missão natureza política, embora o discurso que havia realizado
mencionava uma atitude de inclinação política e diplomática, ao mencionar petições de
envio de tropas para a Coréia. O Brasil propusera uma troca de favores e uma barganha
política com os Estados Unidos, que envolveria o envio de tropas para a Coreia. Os
empréstimos para o desenvolvimento industrial, reequipamento dos serviços públicos,
assim como a troca de alguns navios mercantes, deram a dimensão quase que exata da
necessidade de estreitamentos econômicos com os americanos. Como a estadia do
representante norte-americano não tinha a inclinação política e diplomática, os pontos da
discussão ficaram suspensos para que fossem avaliados futuramente e resolvidos de forma
prática e institucional. Antes do banquete no solar do Largo do Boticário, Acheson havia
visitado o Senado, a Câmara, recebido homenagem no Itamarati, ecomparecido a uma
recepção proporcionada pelo Presidente do Banco do Brasil. Visitara também o Ministério
da Fazenda, em conferência com o Ministro Horácio Lafer, e em entrevista com a imprensa
manifestou total interesse em positivar a imagem do Brasil no exterior, com o intuito de
conseguir atrair os recursos necessários para o desenvolvimento econômico do país.

O banquete no solar do casal Wimans no Largo do Boticário, em homenagem ao


secretário de Estado norte-americano Dean Acheson, representava o quanto o governo
brasileiro, nos primeiros anos de 1950, dependia economicamente dos Estados Unidos da
América. Mesmo com uma proposta de valorização do que era nacional, e da construção de
uma independência em relação à presença do capital estrangeiro, ou da influência cultural
estrangeira no país, podemos dizer que o Governo Vargas desde 1937, buscou construir a
sua identidade nacional às margens de um processo de americanização, influenciado pela
política de “Boa vizinhança” 200 entre Brasil e Estados Unidos.

Os cassinos da cidade eram revestidos de sofisticação e atraíam personalidades do


meio político como diplomatas, embaixadores, senadores, ministros e presidentes da

200
O governo de Getúlio desde 1930 incentivava o funcionamento dos cassinos, e dos ambientes noturnos
onde houvesse a presença de espetáculos musicais, com apresentações de cantores e de dançarinas. Já a partir
de 1946, quando o então presidente Eurico Gaspar Dutra, o primeiro presidente com voto popular após o
Estado Novo, condenou tanto a jogatina quanto as diversões noturnas nos cassinos da cidade por um apelo
moralista, como fora divulgado na imprensa. Com a política da Boa vizinhança (1942) foram enviados ao
Brasil diretores, atores, músicos e empresários que promoveram o American way of life, que incentivou o
brasileiro a consumir a ideologia consumista norte-americana, e, por conseguinte colonizar as mentes de
brasileiros que de forma indireta impulsionaria a máquina financeira dos Estados Unidos, consumindo seus
produtos importados. É neste período que bailarinas e artistas brasileiros são contratados pela Metro e
ascendem meteoricamente no mercado fonográfico brasileiro.
112

república com suas esposas e filhas. No período em que o Cassino da Urca tornara-se
um importante referencial de entretenimento noturno em uma cidade que a elite se
divertia dançando e festejando, lugares como o Jockey-Club na Gávea, com suas corridas
de cavalo, oferecia oportunidade para brasileiros e estrangeiros se inserirem socialmente
através do acesso a novas possibilidades de fazer bons negócios. Ou seja, estes lugares
eram além de espaços de diversão, lugares de realização de novos contratos e de novas
parcerias profissionais. O que nos remete ao terreiro da Goméia que também cumpria
esta função. O termo “café-soçaite”, por exemplo, surge nos anos1950, associado a lugares
de diversão noturna, frequentado por políticos, celebridades e grã-finos.

Os autores Leo Feijó e Marcus Vagner201 consideram que não era tarefa fácil
para os cassinos ganhar esse público, por haver uma resistência natural a confiar na
transparência fiscal desses locais de grandes apostas e de fazedores de magnatas.
Diferentemente da confiança depositada no terreiro de Joãozinho, que não prometia nada,
mas deixava subentendido no ar.

As danças afro-brasileiras, retiradas dos terreiros e realocadas sob um formato


estilizado nestes lugares de entretenimento noturno, interessavam a essas personalidades
estrangeiras do meio político. De certa forma, podemos entender a presença de Joãozinho
da Goméia no solar do Largo do Boticário pelo prisma da representação nacional,
folclórica e exótica, afinal, naquela noite Joãozinho dividiria espaço com a dançarina
naturalista Luz del Fuego 202, que era divulgada na imprensa como: criatura de atitudes
exóticas; criadora do existencialismo, criatura cuja existência havia sido dedicada as artes-
dona de uma plástica adorável, e criatura exótica e diferente.203

201
FEIJÓ, Leo & WAGNER, Marcus. Rio cultura da noite: uma história da noite carioca. RJ: Casa das
palavras, 2014.p.146.
202
De acordo com informações do site Wikipédia, Dora Vivacqua, nascida no Espírito Santo, pertencia a uma
família de intelectuais e políticos, que frequentava reuniões literárias com a presença de personalidades do
modernismo brasileiro. Com formação acadêmica em Ciências e Letras, optou por seguir a carreira artística
em meados de 1942. Amestrou serpentes e, dois anos mais tarde, estreou-nos teatros de revista do Rio de
Janeiro sob o pseudônimo Luz Del Fuego, que se tornou em um dos grandes nomes do teatro nacional da sua
época. Embora fosse considerada como uma afronta a “moral e aos bons costumes” tornou-se uma das
vedetes mais importantes dos anos de 1950 no Brasil. A sua presença passou a ser requisitada em
apresentações no exterior, onde as suas apresentações eram vistas como modernas assim como as de
Josephine Baker. O diferencial estava no exotismo da presença das serpentes. Em fins dos anos de 1940, seu
corpo adquiriu status político a serviço dos direitos da mulher. A sua identidade feminista combateu o
preconceito social contra as mulheres e pela liberdade de expressão. Luz Del Fuego foi uma personagem da
cultura popular carioca do século XX, que precisa ser urgentemente redescoberta, por oferecer inúmeras
possibilidades de diálogo com o campo de estudos das ciências humanas e sociais.
203
Diário da Noite 1 de fevereiro de 1950 e 12 de fevereiro de 1950. Este jornal a partir do carnaval de 1950
investe no termo exótico para destacar a presença de Luz Del Fuego que se torna um dos ícones da cultura
113

2.4. JOÃOZINHO DA GOMÉIA E AS COMPANHIAS DE TEATRO NEGRO E


FOLCLÓRICO.

O termo exótico, que na imprensa passou a ser associado a pessoas negras, à


religiosidade afro-brasileira e ao folclore, passa a ser vinculado aos profissionais da dança
que usam elementos folclóricos para construir sua atuação artística em palcos de cassinos,
teatros e boates. Um termo que atravessa diversos artistas como Elvira Pagã, Josephine
Baker, Katherine Dunhan, Luz Del Fuego, Madame Satã, Eros Volúsia, Mercedes Baptista
e os integrantes das companhias negras que são criadas a partir de 1944, quando o Teatro
Experimental do Negro, o TEN, é fundado por Abdias do Nascimento, que dá vazão a
formação de outras companhias negras que se fundamentam sob elementos do folclore
brasileiro e do candomblé: o Teatro Popular Brasileiro do folclorista Solano Trindade e o
Teatro Folclórico Brasileiro idealizado pelo empresário polonês Miecio Askanasy, por
Dirceu de Oliveira, por Wanderlei Batista e por Haroldo Costa. O mestre em Artes
Cênicas, Fernando Marques Camargo Ferraz comenta que:

A presença da cultura negra nos palcos durante os anos de 1920 e 1930, apesar
dos setores mais conservadores que alardeavam a falência da civilização e dos
bons costumes, trafegou entre os modismos acionados pelas novas jazz bands,
a influência das revues nègres e suas coristas negras, aqui chamadas de Black
girls., além do aparecimento das danças americanas que associavam a imagem
do exotismo à modernidade e suas novas demandas de consumo e
entretenimento. Aos poucos foi sendo pressionada por uma demanda política que
clamava pela pureza e autenticidade das nossas manifestações artísticas. O
próprio Pixinguinha que tocou em Paris com sua jazz band Oito batutas e
orquestrava os números musicais da Companhia Negra de Revistas também foi
informante de Mário de Andrade sobre os batuques nos terreiros de candomblé, e
frequentava, com os compositores Donga, Sinhô, João da Baiana e Heitor dos
Prazeres as festasda Tia Ciata.204

Para refletir sobre esse associativismo negro que reunia sujeitos em torno da
problemática negra, surge em 1952, a “Associação mundial para defesa do negro” que é
criada no México para defender os direitos das pessoas de cor, eliminando a discriminação
e propondo um diálogo “harmonioso” entre brancos e negros. Uma associação que
nomeara a dançarina afro-americana Josephine Baker para ser sua porta voz na luta contra
a discriminação racial. Objetivava também a luta pelo desaparecimento das diferenças

popular carioca. Trarei a sua presença no Capítulo 3, quando tratar dos carnavais de 1950 e 1960, nos quais
Joãozinho da Goméia estava inserido.
204
FERRAZ, 2012. p.89.
114

entre negros e brancos, assim como a realização dos ideais de fraternidade universal. A
associação também pretendia criar agências raciais em prol da libertação do negro nos
Estados Unidos, na América Central, América Latina e Europa.205 Neste contexto de
criação de núcleos de articulações raciais, criados em prol da luta contra a discriminação
racial e o preconceito social, que pensam na inserção do negro na sociedade e no seu
reconhecimento, como indivíduo portador de um instinto criativo e de força de trabalho,
encontramos o intelectual negro Abdias do Nascimento, que com a criação do Teatro
Experimental do Negro206 objetivava valorizar socialmente o negro no Brasil. Através de
um projeto que proporcionava acesso a essas pessoas por meio da arte, da cultura e da
educação.

O que moveu a criação do TEN havia sido a constatação de que o negro não
possuía um lugar digno nas produções teatrais, quando o negro ocupava um espaço no
palco de um teatro, ou era por meio da personificação depreciativa, ou da presença apenas
física, ocupando o mesmo espaço cênico que uma mesinha de canto de sala ou uma cadeira
vazia. Os papéis destinados a pessoas negras em palcos de teatro muitas vezes eram
pensados para pessoas brancas com as faces pintadas de tinta preta. O espaço cênico
do negro muitas vezes reafirmavam estereótipos que só reforçavam a mentalidade
projetada pelo racismo.

Por esses motivos, o TEN passaria a partir da sua criação a promover o


protagonismo do negro no Brasil. Com a ausência de atores negros e de atrizes negras,
Abdias do Nascimento proporcionaria para essas pessoas o acesso à alfabetização e à
consciência acerca de sua negritude. À sua proposta revolucionária aderiu o advogado
Aguinaldo de Oliveira Camargo, o pintor Wilson Tibério Teodorico Santos e José Herbel.
O militante negro Sebastião Rodrigues Alves, Claudiano Filho, Oscar Araújo, José da
Silva, Antonio Barbosa, Arlinda Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçalves, Haroldo
207
Costa, Lea Garcia, Natalino Dionisio, entre outros. .
Em sua grande maioria os novos

205
Diário da Noite, 3 de agosto de 1952.
206
Para saber mais sobre a atuação do Teatro Experimental do Negro, ver: a dissertação de mestrado Teatro
Experimental do negro: estratégia e ação, defendida pela mestra em sociologia da Universidade Estadual de
Campinas; o artigo Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões de Abdias do Nascimento, publicado
pela revista Estudos Avançados em 2004 e o livro O Negro Revoltado, apresentado e organizado por Abdias
do Nascimento que traz suas reflexões sobre a criação e a engrenagem que movia a existência e a resistência
do TEN, assim como traz considerações suas e de outros autores sobre o I Congresso do Negro ocorrido em
1950.
207
Disponível em: www.palmares.gov.br/?p=40275.
115

atores eram moradores de favelas, donas de casa, empregadas domésticas, capoeiristas,


metalúrgicos, capoeiras, filhos de santo, dentre outros, que eram convidados nas
proximidades de núcleos de fluxo de trabalhadores, como a estação Central do Brasil e da
Leopoldina, Cinelândia, estação das barcas, rodoviária Novo Rio e outras estações
ferroviárias espalhadas pela cidade.

Era proporcionado o acesso a alfabetização, ao conhecimento sobre cultura


brasileira, cultura negra e cultura geral, a noções de teatro e de interpretação, com
aulas de canto e de dança, e a debates sobre a situação atual do negro brasileiro, com rodas
de leitura e participação em palestras e conferências de intelectuais, que pensavam o negro,
deu a essas pessoas a formação necessária para subir nos palcos representando as ideias de
um núcleo de reivindicação, que desconstruiria o olhar das artes sobre a presença do papel
do negro na cena teatral e cinematográfica.
Com a ausência de textos que refletissem sobre o existencialismo negro, Abdias do
Nascimento, começou a levar para os palcos do TEN, peças dramáticas como O Imperador
Jones do dramaturgo anarquista e socialista estadunidense Eugene Gladstone O’Neil, que
criava personagens que viviam às margens da sociedade, possuídos por um comportamento
desregrado, com aspirações de ascensão social impulsionado pelo ideal do milagre
econômico norte-americano. A estreia da peça aconteceu no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro em 1945.
Vale ressaltar que Abdias do Nascimento, através da criação do Teatro
Experimental do Negro em 1944, denunciou o racismo presente na sociedade brasileira nos
mais de cinquenta anos de abolição da escravatura. A atuação do TEN teve um caráter
político de reivindicar uma melhoria da qualidade de vida da população afrodescendente,
que exigiu o engajamento político não apenas dos envolvidos diretamente pelo projeto,
mas de autores, diretores e demais atores, cantores e dançarinos que independente do
critério de “cor da pele”, precisaram resolver a problemática da presença do artista negro
nos palcos dos teatros. Dentro desta perspectiva, o TEN organizou em 1945, o Comitê
democrático afro-brasileiro, que criou a “Declaração de princípios” 208:

Neste Momento em que todas as forças vivas do Brasil se arregimentam para a


luta de libertação político-econômica nacional, nós, membros do “Comitê Afro-
Brasileiro”, unidos no sentido de levantar moral, política e materialmente o

208
MOURA, CLÓVIS. Brasil: Raízes do protesto negro. Série Passado & Presente – São Paulo: Global
editora – 1983.
116

negro, partindo do princípio de absoluta igualdade de raça e de cor, certos de que


só pode existir uma democracia pura onde todos direitos sejam respeitados, e
também, conscientes de que se torna necessária a sua colaboração ativa no
processo de democratização do país, resolvemos firmar a “Declaração de
Princípios” que se segue e que bem caracteriza a nossa posição de luta contra
toda espécie de fascismo, o que consideramos fundamental para a concretização
das nossas reivindicações:
1°- Reunião da Assembleia Nacional Constituinte pelo voto direto e secreto
sem distinção de sexo.
2° – Anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos. 3° –
Extinção Imediata do Tribunal de Segurança e do D.I.P.
4° – Intensificação do esforço de guerra do Brasil contra o fascismo. 5° –
Liberdade da palavra escrita e falada, liberdade de agremiação.
6° – Direito de voto aos membros das forças armadas, sem limitação de categoria
ou posto, para a Assembleia Constituinte, onde quer que se encontre.
7° – Direito ao voto a bordo de navios mercantes nacionais para tripulantes e
passageiros quando em viagem ou nos portos de escala, extensivo aos
ferroviários rodoviários e aeroviários.
8° – Reconhecimento do direito de greve de acordo com a declaração de
Chapultepec.
9° – Reconhecimento imediato da União das Repúblicas SocialistasSoviéticas.
10° – Autonomia do Distrito Federal.
11° – Liberdade e unidade sindical, extinguindo-se as intervençõescompressivas.
12° – Direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas,
paraestatais e oficiais.
13° – Direito de sindicalização para empregadas domésticas, para que elas gozem
dos direitos de todos os operários.
14° – Completo apoio e assistência ao trabalhador rural, com aplicação das leis
trabalhistas.
15° – Liberdade de culto das religiões afro-brasileiras.
16° – Ensino gratuito nos cursos secundários e superiores, assim como noensino
profissional.
17° – Punição às Empresas que fazem seleção racial e de cor.18° – Abolição das
seleções raciais e de cor na diplomacia.
19° – Abolição das seleções raciais e de cor nas escolas militares. 20° –
Participação do negro nos assuntos de colonização e imigração.
21° – Democratizar todas as organizações negras, aproximando-as das
organizações dos brancos.
22°– Fazer a aproximação quanto possível das organizações populares, como as
escolas de samba, clubes dançantes, associações esportivas, sociedades
beneficentes, organizações religiosas, livrando-as das exploraçõespolíticas e
comerciais.
23° – Criar cursos de alfabetização por todo o território nacional. 24° – Realizar
um Congresso Popular Brasileiro antes das eleições, patrocinado pelas
associações afro-brasileiras.
25° – Colaborar com o Congresso de Artistas Plásticos e todos os movimentos de
democratização.
26° – Que toda a Diretoria de organização afro-brasileira seja eleita em bases
democráticas, isto é, por assembleia geral de seus membros e associados.
27° – Lançamento de uma campanha pró-monumento a José do Patrocínio.

O Comitê Democrático Afro-brasileiro tornou-se a base política Teatro


Experimental do Negro, com sede na União Nacional dos Estudantes, transformou o grupo
em uma entidade que ligava a luta dos direitos civis dos negros à valorização da herança
cultural africana (1945-1946), criando as bases de um movimento político, a partir da
117

Assembleia Nacional Constituinte, e a inclusão de um dispositivo constitucional que


definiu como a discriminação racial como crime. O que resultou na criação de um
movimento intelectual que se organizaria através do 1º Congresso do Negro Brasileiro, em
1950209. A Convenção Nacional do Negro Brasileiro apresentou à Constituinte de 1946, a
inserção da discriminação racial como crime contra a pátria210. O 1º Congresso do Negro
Brasileiro foi promovido pelo TEN, na cidade do Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de
setembro de 1950, com inúmeras contribuições que almejaram debater a atual situação do
negro brasileiro e os caminhos que deveriam ser trilhados, para que problemas como o
analfabetismo, a miséria, a desigualdade social, o desemprego e a inserção cultural, social,
política e econômica fossem resolvidos.
O negro brasileiro, que não foi inserido nem no projeto de cidadania de 1889, nem
na primeira carta constitucional de 1891, precisava fortalecer a sua autoestima através de
uma possível igualdade de direitos perante os brancos. A “Democracia Racial”, que
revestiu a sociedade de uma ilusão social, e reforçou a dominação de pessoas brancas sob
pessoas negras, promovendo o retrocesso social, e reconduzindo os descendentes de
escravos ao lugar projetado pelo colonialismo, foi um ponto crucial do Primeiro Congresso
do Negro brasileiro, que entendeu que a ilusória ideia de democracia racial se torna a
espinha dorsal dos problemas enfrentados pelos negros brasileiros no pós-abolição.
A força do primeiro congresso foi à ativa participação 211do negro, que abriu mão da
presença mediadora dos intelectuais como aconteceu a presença do negro em ativa
participação, sem a necessidade de intelectuais como mediadores como aconteceu no 1º
Congresso Afro-brasileiro de 1934, realizado no Recife, organizado por Edison Carneiro e
Gilberto Freyre; e no 2º Congresso Afro-brasileiro de 1937, realizado em Salvador,
organizado por Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz.
Segundo Abdias do Nascimento, os dois congressos descreveram os negros sob
seus aspectos históricos, antropológicos, folclóricos etnográficos, usando-os como matéria-
prima para suas pesquisas, mas não deram voz às reivindicações sociais que tratava da
circunstância dessas pessoas em seus locais de moradia. Em Salvador, as reivindicações do
povo de santo atenderam a uma necessidade real, que era da libertação religiosa e social,
mas pararam por aí, não avançaram para outras esferas, que poderiam gerar melhorias para
outros setores sociais. Abdias considerou que o negro entrou no congresso de Salvador,

209
Disponível em: https://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento
210
Disponível em: www.palmares.gov.br/?p=40275
211
NASCIMENTO, Abdias. O Negro revoltado. RJ: Editora Nova Fronteira, p. 15.
118

como “o micróbio sob o olho do microscópio” 212. De acordo com Abdias, o certame havia
contado com a participação ativa do povo de santo, que produziu o seu próprio discurso
sobre o candomblé, no entanto, precisou das mediações de inúmeros intelectuais que
debatiam o negro, sua cultura e sua religiosidade; a presença de alguns textos que
ressaltavam o aspecto folclórico da cultura negra, e da própria atuação do negro em seus
locais de representação identitária. Abdias do Nascimento, em seu livro O Negro
revoltado213, menciona que o congresso do negro brasileiro se destacou por discutir ideias
que ansiavam por um Brasil mais inclusivo, sem interferência de cientistas que
dominassem os sentidos do evento. Houve críticas veementes sobre o domínio intelectual
sobre as pautas propostas sobre os negros brasileiros:

(...) tudo leva a crer que esses aventureiros têm propósitos de achincalhar o negro
e permanecerem na sua costumeira posição de senhores. Essa industrialização
dos estudos afro-brasileiros e relações de raças é uma atividade muito rendosa,
não só no âmbito econômico-financeiro, como também na ascensão dos
estudiosos que se tornam donos do problema do negro e se lançam numa
aventura perniciosa, afirmando, erroneamente, queo negro tem tais complexos,
tais e tais comportamentos, e reagem desta ou daquela forma. Andou
manuseando as atas e teses discutidas no Congresso, tirando ali algo para as suas
presunçosas e impostoras alegações. É tão capcioso esse pseudocientista que tem
a desfaçatez de afirmar estar dando um aspecto novo aos estudos do negro no
Rio de Janeiro. É realmente uma forma usurpadora e medíocre de se aproveitar
do trabalho alheio. Os cientistas e estudiosos tem procurado transformar nosso
trabalho em arapuca ideológica.

Um ponto a ser destacado sobre as críticas apresentadas no 1º Congresso do Negro-


brasileiro, sobre os congressos nordestinos de 1934 e 1937, está centrado na postura
intelectual de Edison Carneiro que, para Abdias do Nascimento, tivera emprestado aos
seus trabalhos um ar pitoresco, arquitetado “por um supremo desdém pelo “negro-povo”
que não ostentava títulos científicos “214. Um desprezo que em nada contribuíra para a
libertação, e o progresso do negro brasileiro. A impressão de Abdias sobre Edson pode ser
notada através do desprezo intelectual que o folclorista nutria por Joãozinho da Goméia215e
pelo escritor afro-baiano Manoel Querino 216:

212
Para Abdias do Nascimento, os congressos nordestinos enfocaram a imagem de negros coisificados,
estáticos, imóveis e estranhos à dinâmica da sociedade brasileira.
213
Idem.
214
NASCIMENTO, 1982, p. 48.
215
O olhar preconceituoso de Edison Carneiro em relação a Joãozinho da Goméia foi abordado no capítulo 1,
no qual se encontra presente na escrita do livro Cidade das Mulheres da antropóloga norte- americana Ruth
Landes.
216
Sugiro que esta animosidade de Edison Carneiro, pautada em uma arrogância intelectual precisa ser
pesquisada por estudiosos que estejam atentos ao debate das relações raciais entre 1930 e 1960. Edison
119

(...) pior do que Nina foi Manoel Querino, que nem sabia dessas divisões dos
negros da África. Ele foi noticiando o que via em torno de si, com a falta de
inteligência que sempre o caracterizou sem indagar nada, mas tentando
explicações pueris para os casos observados. De maneira que a gente, hoje,
apenas pôde utilizar o material eterno por ele trazido à etnografia e à psicologia
social do afro-brasileiro, reinterpretando tudo à luz dos novos
conhecimentos, atuais, sobre o continente africano. 217

Na perspectiva da identificação do TEN, como um núcleo de articulação,


encontramos Grande Otelo, Haroldo Costa, Mercedes Batista, Ruth de Souza, Lea Garcia e
Solano Trindade, que agenciados/enredados, construíram trajetórias direcionadas para a
mesma lógica reivindicatória e denunciativa de Abdias do Nascimento. Eram sujeitos que,
assim como Joãozinho da Goméia, se encontram na transitoriedade entre o teatro e o
terreiro, usando esses espaços para construir suas “identidades afirmativas” em prol da luta
contra a discriminação racial. O terreiro transformou-se num potente local de diálogo com
uma sociedade que ainda tratava os símbolos da herança africana como uma mazela social
que precisava ser extirpada dos grandes centros urbanos para localidades distantes, como
aconteceu nas primeiras décadas do século XX, através do projeto
modernizador/remodelador da Reforma Pereira Passos. Ações coletivas como as
proporcionadas por grupos teatrais negros, a partir de 1944, evidenciam a tomada de poder
do povo negro, que passaria, a partir de então, a se colocar no centro das atenções desta
sociedade, que o desejava à margem. Ou seja, era uma luta por visibilidade ou pelo
rompimento do “véu da cor”, queimpossibilitava e fragilizava experiências e vivências.
De acordo com Júlio Cláudio da Silva218, o poeta e coreógrafo Solano Trindade,219
se dividiu entre o ativismo negro e a militância comunista, fazendo os ensaios do seu teatro
popular, com a presença de elementos dos maracatus e dos frevos do Recife, destacando-se

Carneiro pertence a uma família de intelectuais baianos. Filho de Souza Carneiro, autor do interessante livro
Os mitos africanos no Brasil publicado em 1937 pela editora Companhia editora Nacional, em São Paulo, Rio
de Janeiro e Recife, se destaca como um interessado pela geografia, biologia e pelo folclore brasileiro com
alguns títulos editoriais publicados entre 1905 e 1934. Destaco também que Souza Carneiro era um
incansável folclorista, e a obra citada, traz uma pesquisa muito aprofundada sobre mitos afro-negros, e mitos
indígenas.
217
CARNEIRO, 1981, p. 128.
218
SILVA, Júlio Claudio. O dito e o não dito sobre a dimensão política do Teatro Experimental do Negro nas
memórias de Ruth de Souza (1940-1950). IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros.
Organização de Martha Abreu, Giovanna Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 228.
219
Atuou nos anos 1930 na Frente Negra Pernambucana, e posteriormente no Centro de Cultura Afro-
brasileiro fundado no Recife em 24 de março de 1936. Em 1942, passou a atuar na Capital Federal onde deu
continuidade à sua militância social e política com a sua inserção no Partido Comunista Brasileiro. Assistiu o
nascimento do Teatro Experimental do Negro, em um momento da sua militância que estava preocupado com
produções poéticas que reflexionavam a luta da classe operária.
120

por ser um dos primeiros pensadores negros brasileiros, a refletir artisticamente sobre a
cultura popular. Através da autodeclaração como artista popular e folclorista, lutou pelo
reconhecimento de inúmeros artistas autodidatas, construindo um trabalho em torno da arte
e do folclore, o que resultou na projeção da cidade metropolitana paulista de Embu das
Artes, como núcleo da cultura negra 220.
A fundação do Teatro Popular Brasileiro se deu em 1950, no Rio de Janeiro,
com o auxílio do folclorista Edison Carneiro e da sua esposa Margarida Trindade. O
projeto teatral de Solano, Edison e Margarida assumiu uma personalidade folclórica,
direcionada para as preocupações da Comissão Nacional de Folclore, atuando como um
dos elos do movimento de revitalização da atuação do Folclore, incentivando as atividades
folclóricas, e despertando o interesse pelo campo de estudo, e pelas expressões culturais
negras.
Alguns ensaios do Teatro Popular Brasileiro aconteciam na residência de Solano
Trindade em Duque de Caxias, onde eram organizados eventos visando angariar recursos
para o financiamento dos espetáculos, eram apresentados autos dramáticos, pantomimas,
danças e cantos do populário brasileiro 221. Suas encenações priorizavam o “patrimônio
cultural negro”, como bumba meu boi, maracatu, candomblé, pregões, tipos populares do
Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, frevo, caboclinhas, pastoril e outros222. Registrado no
Serviço Nacional de Teatro, o Teatro Popular Brasileiro, funcionou nas dependências do
próprio instituto, até 1957, quando se transferiu paraSão Paulo.
O que há de comum nas trajetórias de Abdias do Nascimento, de Ruth de Souza,
Grande Otelo, Solano Trindade? Além da luta contra a discriminação possibilitada pela
ideia conceituada de associativismo cultural e negro?223 Claro, que as perspectivas
analíticas de Paul Gilroy postas em seu livro O Atlântico Negro servem para responder a
esta questão, que talvez possa ser compreendida através do conceito de “terror racial”224,
criado pelo sistema colonialista, que produziu formatos de expressões corporais distintivas

220
GREGÓRIO, Maria do Carmo. A trajetória de Francisco Solano Trindade e o Teatro PopularBrasileiro. .
IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros. Organização de Martha Abreu, Giovanna
Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 244.
221
Idem
222
SOLANO Trindade no Folies. Diário Carioca, 19 de agosto, de 1952. Disponível em
http://www.museudofolclore.com.br. IN: GREGÓRIO, Maria do Carmo. A trajetória de Francisco Solano
Trindade e o Teatro Popular Brasileiro. . IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros.
Organização de Martha Abreu, Giovana Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 254.
223
Sobre Associativismo Negro ver: DOMINGUES, Petrônio. Cidadania por um fio: o associativismo negro
no Rio de Janeiro (1888-1930). São Paulo: Revista Brasileira de História. V.34, nº67, 2014.
224
GILROY, Paul, p. 160.
121

entre afrodescendentes através da dor, da expatriação e da desterritorialização criadas


pela diáspora africana. O modelo de Atlântico Negro produziu corporeidades entre sujeitos
e terreiros. As culturas do Atlântico negro criaram veículos de “consolação” através da
mediação do sofrimento, que especificam formas estéticas e contra estéticas, e uma distinta
dramaturgia de recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia e o
ato de pertença225.

Refletir, no entanto, sobre essas conexões diaspóricas, contribui para o


entendimento sobre as performances negras no pós-Abolição, no sentido da caracterização
da “produção e da recepção da música da diáspora”.
Os jornais nos anos 1950, começam a dar visibilidade para essas conexões entre
sujeitos negros, em torno da performance artística nos palcos, e em contrapartida reforçam
a ligação destas pessoas com terreiros de candomblé, de umbanda e de macumba. Foi desta
forma que o Última Hora em 8 de setembro de 1954, trouxe uma notinha de início de
página divulgando uma homenagem à imprensa que Solano Trindade faz em um terreiro de
Duque de Caxias, que muito provavelmente seja a Goméia, por conta dos elementos
citados, que identificamos prontamente como pertencentes à Goméia: um terreiro de
candomblé Angola, com a presença de elementos do candomblé de caboclo, a presença de
elementos folclóricos; a mistura das nações Kêtu com Angola; símbolos umbandistas, e
por fim, o evento que foi definido como um grande espetáculo com direito a quitutes
baianos regatos a bate-bate de maracujá, uma bebida servida nos antigos carnavais do
Recife226.
A ocupação do terreiro da Goméia pelo Teatro Popular Brasileiro é o primeiro e
único indício, apontado pela imprensa, de que o pai de santo Joãozinho da Goméia
tenha autorizado o uso das dependências do seu terreiro para fins que não evocasse o
sagrado. Pelas fontes aqui apresentadas, o terreiro da Goméia fôra identificado como uma
fonte “inexaurível” de observação para os estudiosos dos assuntos etnográficos e
folclóricos227, que estavam sempre presentes nas cerimônias públicas do terreiro, para
buscar inspiração para as suas criações artísticas.

225
Idem
226
Disponível em: https://papjerimum.blogspot.com/2013/02/bate-bate-de-maracuja-sabor-saudade.html
227
Diário da Noite de 20 de agosto de 1952.
122

Figura 35: A reportagem do jornal Última Hora de 08/09/1954. A reportagem trata do episódio em que um
terreiro de candomblé em Duque de Caxias se transformou em palco de teatro. Como Joãozinho da Goméia
era amigo de Solano, e a arte do folclorista se desenvolvia a partir de Duque de Caxias, acreditamos que este
espetáculo teatral tenha acontecido no terreiro da Goméia. .228 Fonte: BNDigital. 229

Elizabeth Gama230 chama atenção para apresenta algumas inovações criadas por
Joãozinho para os dias de festa religiosa, que são estranhas aos candomblés tradicionais, e
remontam os tempos de marginalização do pai de santo em Salvador, como a presença de
garçons servindo champagne para a alta sociedade, o que fortalece o nosso entendimento
acerca das estratégias criadas por Joãozinho para ascender socialmente, e obter para si, e
para sua comunidade religiosa, benefícios e privilégios da classe política, artística e até de
altos funcionários públicos, que eram procurados para ajudar osprotegidos do pai de santo.
Encontramos uma série de reportagens do jornal Última Hora231, produzida pelo

228
Léa Freitas Perez considera que o centro do barracão sempre se transforma em um palco de dança, quando
os filhos de santo dançam em círculo, em instantes de possessão espiritual. Ver em: AMARAL, Leila,
FREITAS, Léa, MESQUITA, Wania (org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro:
Garamond, 2012, p.146.
229
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Teatro%20Po
pular%20Brasileiro%22&pagfis=20477
230
GAMA, Elizabeth Castellano, p.129.
231
Ultima Hora, em 22 de novembro de 1951.
123

jornalista Ariosto Pinto e o ator Grande Otelo 232. Trata-se de uma autodeclaração pública de
filiação religiosa ao local, costurada por narrativas afetivas sobre a bisavó africana de
Grande Otelo, que havia fechado seu corpo ao nascer.
Suas memórias são atualizadas quando relembra de uma visita feita à Goméia baiana em
companhia da amiga Carmen Costa233. Nesta ocasião, foi informado por Joãozinho que precisava
ser feito no candomblé, apesar da sua ligação com a Umbanda, e no dia 12 de outubro, que era
dedicado ao culto aos erês, se deu a sua feitura pelas mãos de Joãozinho da Goméia, antes da sua
transferência para Duque de Caxias. Grande Otelo relembra que a sua alimentação na camarinha
era ofertada pelas mãos dos erês que estavam soltos pelo terreiro. 234

Figura 36: A reportagem do jornal Última Hora de 17/10/1951. A reportagem trata de uma
autodeclaração pública feita pelo ator Grande Otelo sobre seu nascimento religioso dentro do
terreiro da Goméia em Salvador. Fonte: BNDigital. .235

232
Grande Otelo teve uma trajetória de sucesso como artista de cassinos cariocas, do Teatro de Revista, da
Companhia negra de Revistas, das chanchadas da Atlântida, do teatro negro militante, do Cinema Novo do
cineasta Glauber Rocha e do Cinema Marginal do diretor Joaquim Pedro de Andrade. Ver: HIRANO, Luis
Felipe Kojima. Uma interpretação do cinema brasileiro através de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em
sua performance cinematográfica (1917-1993). SP: Tese de Doutorado em história pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2013.
233
O que é interessante é o fato da cantora negra Carmen Costa ter tido a sua vida modificada após esta visita
à Goméia. Em 1945, casou-se com o norte-americano Hans Van Koehler e foi viver com ele nos
Estados Unidos. Passou uma temporada em Los Angeles e, em Nova York, esteve no concerto histórico no
Carnegie Hall, que marcou a bossa nova nos Estados Unidos, em 1962.
234
A ligação espiritual de Grande Otelo com a Goméia é narrada pelo ator, que exalta seu pai de santo,
atraindo para ele status e prestigio.
235
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Grande%20Ot
elo%22&pagfis=3160
124

Nessas conexões entre sujeitos negros em torno de movimentos de criação


cultural negra, que constroem esses trânsitos dialogais entre terreiros e palcos,
encontramos a visita da bailarina afro-americana Katherine Dunham, que chega ao Brasil
no auge dos debates sobre a condição social da pessoa de cor no Brasil. Um debate
incentivado por Abdias do Nascimento, a partir da realização do I Congresso do negro
brasileiro de 1950, inspirado pelo cenário de reivindicações raciais dos negros norte-
americanos, e fortalecido pela presença de Dunhan, que propusera ao TEN, a concretização
de diversas ações que promovessem um intercâmbio cultural entre as culturas afro-
americana e afro-brasileira. O intuito era o de oferecer uma bolsa de estudos em Nova
Iorque para o artista brasileiro que se destacasse nas aulas e nas apresentações ocorridas no
Teatro da República236.
O TEN reconhecia a importância de Dunham, não apenas pela sua importância
cênica, mas pelo seu envolvimento direto com a luta contra os estereótipos raciais e
estéticos, o que se tornou em um traço da sua identidade como coreógrafa e estudiosa da
dança moderna americana nos anos de 1930 e 1940. Dunham contribuiu para a ascensão da
dança negra profissional, atuando como antropóloga e pesquisadora, revolucionando o
cenário performático de Hollywood, com a presença de danças e dos rituais dos nativos da
Haiti, Jamaica, Martinica e Trinidad. Emilena Sousa dos Santos considera que:

A companhia e Escola de dança Katherine Dunham desenvolveu uma


abordagem antropológica com o objetivo de aprofundar o conhecimento das
matrizes culturais não ocidentais e aperfeiçoar o conteúdo de uma dança
contemporânea criativa, formada por essas matrizes. A bailarina realça a cultura
religiosa de origem africana e especialmente o vodu do Haiti. Ela compôs uma
técnica de dança baseada na estrutura física do negro norte- americano conhecida
como Técnica Dunham, que se baseava em construir um trabalho de pesquisa
sobre danças regionais, religião e meio ambiente através de diversos elementos
da cultura negra. O objetivo final dessa mistura de povos e nacionalidades era
promover uma fusão cultural em prol da difusão e divulgação da cultura negra.
Ela oferecia ao bailarino o máximo de coordenação e controle muscular e
habilidade de todas as partes a do corpo para tornar possível o maior alcance da
expressão. 237

Katherine Dunhan ministrou aulas, assistiu à apresentações de outros trabalhos


realizados por bailarinas e bailarinos brasileiros, e conheceu algumas expressões culturais
brasileiras. Foi recebida por Abdias, Edison Carneiro, Solano Trindade, Souza Dantas,

236
MELGAÇO, Paulo Baptista. Mercedes Baptista- a criação da identidade negra na dança. SP: Fundação
Palmares, 2007. p.33.
237
SANTOS, Emilena Sousa dos. Interpretes da dança de expressão negra: contextos da arte de estar em
cena. Viçosa: Revista de Ciências Humanas de Viçosa, v.14, n.1, 2014. p.61.
125

Solano Trindade e Grande Otelo no dia 27 de junho de 1950238, em um grande salão da rua
da Constituição, para apresentação de uma batucada seguida de danças típicas brasileiras
como o maracatu, frevo e outras danças nordestinas. Na presença do pai de santo e
bailarino folclórico Didi de Freitas 239, foram apresentadas danças do candomblé. Solano
Trindade declamou poemas de sua autoria e Ruth de Souza declamou o poema “Nêga
Fulô” do poeta alagoano Jorge de Lima. Ao final da homenagem, todos seguiram para o
terreiro de candomblé de Didi de Freitas localizado em Vilar dos Teles, em São João de
Meriti, Baixada Fluminense.
Em razão do intercâmbio cultural proporcionado pelo concurso de danças proposto
por Katherine Dunhan, o autor Paulo Baptista Melgaço, menciona que no final das
audições para escolha do candidato a bolsa de estudos em Nova Iorque, Abdias,
influenciou na escolha da bailarina Mercedes Baptista, candidata a vaga. Mercedes, em
1950, construiu algumas aproximações com as bases do Movimento Negro Brasileiro,
estabelecendo conexões com diversos núcleos de associativismo e de reivindicação racial,
como o Teatro Experimental do Negro, por exemplo. Mercedes também era parte do corpo
de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo a única mulher negra a ser
incorporada na Instituição, só que sem receber o devido valor, o que é solucionado de
imediato por Abdias com uma única canetada, o que garante a Mercedes, não apenas a
obtenção da licença para ingressar na “Dunham School of Dance”, em 1950, como a
aumentar a sua rede de relações sociais e obter desses diálogos com intelectuais e
artistas afro-americanos que não apenas enriqueciam, o seu aprendizado coreográfico
como as suas reflexões sobre sua condição social feminina no circuito afro-atlântico.
Abdias do Nascimento ao incentivar a ida de Mercedes para os Estados Unidos sabia que
se tratava de um investimento em curto prazo. Sabia que ela se transformaria em um
potente símbolo de representatividade, não apenas para a luta antirracista no Brasil, mas
como se tornaria em um espelho para o povo negro brasileiro, que encontraria nela um
ponto de partida para o enriquecimento intelectual, através de processos como a
alfabetização e a instrumentalização política e cultural:

238
Diário da Noite, 6 de julho de 1950.
239
Não localizamos fora da imprensa outras referências sobre o pai de santo Didi de Freitas. Mas no jornal
Correio da Manhã de 15 de fevereiro de 1950, aparece uma menção ao religioso relacionado ao Teatro
Folclórico Brasileiro, por ocasião de uma participação em um dos espetáculos do grupo teatral. O pai de santo
apresentou-se com dois filhos de santo no Teatro Rival.
126

Essa era a essência da técnica desenvolvida por Dunham. Considerada como a


matriarca da dança moderna negra americana, ela se baseava em “ritmos e
movimentos primitivos, fornecendo ao dançarino o máximo de coordenação e
controle muscular, e tal manejo de todas as partes do corpo que torna possível o
maior alcance da expressão”. (SUCENA, 1988, p. 55)

Ao retornar ao Brasil em 1952, após acumular grande experiência coreográfica na


escola de Dunhan, estimulada pelos amigos Abdias do Nascimento, Fernando Pamplona e
José Medeiros, Mercedes criou seu próprio corpo de ballet, no qual colocaria em prática o
aprendizado obtido nos Estados Unidos, e o conhecimento adquirido pelas pesquisas nos
terreiros da Bahia e do Rio de Janeiro. A caminhada pelas macumbas da Baixada
Fluminense a encaminhou para o terreiro da Goméia, que em 1950 já havia alcançado
destacado sucesso na Capital Federal. O trabalho de pesquisa iniciado por Mercedes
Baptista resultou em um novo modelo de estilização das danças de terreiros, por ofertar aos
movimentos corporais, o que havia de moderno e técnico. A sua arte passou a ter resultado
desta conexão entre a religiosidade e a técnica da dança moderna, captada na Escola de
dança de Katherine Dunham em Nova Iorque.
Em 1953, o trabalho no Teatro de Revista deu a Mercedes condição financeira para
inaugurar a sua Escola de dança, o “Ballet Folclórico Mercedes Baptista”. De acordo, com
Andrea Mendes, a bailarina Mercedes Baptista havia sido uma figura de importante
relevância para o cenário da cultura e arte negra do Brasil, ao revolucionar dança afro,
dando-lhes a dimensão de linguagem sistematizada na dança “240.
Consideramos que as aproximações de Mercedes com os terreiros, despertara uma
nova consciência corporal na bailarina. O incentivo dado por Abdias, finalmente
impulsionaria a criação de um novo formato artístico de dança negra, diferenciado daquele
que caracterizou a trajetória da bailarina Eros Volúsia como a inventora do “bailado
nacional”. Mesmo sabendo que as duas beberam da mesma fonte, os candomblés e as
macumbas, as influências artísticas se diferenciavam241. Enquanto Eros se preocupava em
preservar seu patrimônio artístico negando a influência dos candomblés e das macumbas; a
coreografa Mercedes Baptista, dava o reconhecimento a esses lugares como os responsáveis

240
MENDES, Andréa. p. 21
241
Mercedes Baptista, desde 1940, estava envolvida com a instrumentalização de mulheres negras vindas das
classes populares através de movimentos como o da criação do Conselho de Mulheres Negrasfundado
no dia 18 de maio de 1950. Um lugar de atuação da militância feminista do TEN, que abrigaria as demandas
e reivindicações das Empregadas Domésticas, formando a primeira Academia de Artes Domésticas do país,
que se encarregaria em instrumentalizar profissionalmente essas mulheres atravésdos cursos de capacitação
em que aprenderiam do corte e costura ao tricô e bordados. Mesmo que as duas tenham inserido a presença de
alunos negros originários de terreiros de candomblé nas recentes criadas escolas de dança, a identidade
estética se distinguiria, assim como o público que atingiria e a arte que seria criada ali.
127

pela sua renovação artística. Reconhecer publicamente, que o aprendizado no terreiro da


Goméia a conectou com a essência da dança afro-brasileira, ajudou a se conectar com
outros lugares de criação artística negra, como a Escola de Samba Acadêmicos do
Salgueiro, a qual se aproxima a partir da década de 1960, justamente por causa deste
vínculo com a dança afro-brasileira, aprendida nos terreiros. A verdade é que Mercedes
foi a primeira profissional da dança a retirar das danças de terreiro o sentido folclórico,
ela passou a diferenciar a dança folclórica, da dança regional e da dança afro-brasileira.
Uma diferença, que dará sentido a sua trajetória como coreografa.

Figura 37: Registro fotográfico do jornal Correio da Manhã, de 21 de dezembro de 1953.


A imagem retrata um momento de observação coreográfica muito comum nas festas do
terreiro da Goméia. O bailado de Joãozinho da Goméia é captado por Mercedes Baptista.
A bailarina aparece mais à direita na foto, de lenço na cabeça242.
Fonte: NASCIMENTO, 2020, p.69.

242
Disponível em: file:///C:/Users/Particular/Downloads/54835-203943-1-PB%20(2).pdf
128

Figura 38: Registro f o t o g r á f i c o d e a u t o r i a


desconhecida, capturado den tr o do
terreiro da Goméia. Nada se sabe sobre
a história por trás da imagem, mas
Joãozinh o está com trajes de dan ça
compondo uma cena coreográfica ao
lado da também bailar ina e cor eógr afa
Mercedes Baptista.
Fon te: Blog pessoal do pesquisador
Antonio José do Espírito Santo
( S p i r i t o S a n t o ) 243

O cenário da dança no Rio de Janeiro estava abarrotado de escolas de bailados


nacionais, dirigidas em sua maioria por coreógrafas e coreógrafos estrangeiros, como
sugere o autor Roberto Pereira 244, ao dizer que as danças folclóricas eram executadas
segundo os moldes da técnica clássica de balé, que tinha como uma das únicas
preocupações a recuperação das danças nacionais. Um movimento iniciado por Maria
Olenewa, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1927, que impulsiona os profissionais
da dança, com formação clássica, a ocuparem a assistência de terreiros, colhendo,
registrando informações que contribuiriam com o processo de estilização da sua arte
coreográfica. Uma peregrinação que parece ter iniciado na década de 1930, a partir do

243
Disponível em: https://spiritosanto.wordpress.com/2012/02/03/mercedes-batista-assim-dancou-a-
desconstrucao-da-modernidade-na-danca-afro-do-brasil/
244
PEREIRA, Roberto, p.46.
129

projeto nacionalista do Estado Novo. Um movimento que contribuiu com a projeção não
apenas do terreiro da Goméia, mas de outros245.

A partir da experiência da escola de bailados do Teatro Municipal do Rio de


Janeiro, outros teatros cariocas passam a abrigar “escolas de dança”, ministradas em sua
grande parte por bailarinos austríacos, poloneses e russos, como o bailarino Ricardo
Nemanoff, a austríaca Valery Oeser, a bailarina Ana Pavlova, Yuco Lindbergh, Pierre
Michailovski, Vera Grabinska, Itália Azevedo, Raul Dubois, Marina Marcel, Floripes
Rodrigues, Maryla Garemo, Décio Stuart, etc.246
O envolvimento de estrangeiros no mercado do espetáculo teatral é sentido
através da atuação do empresário polonês Miecio Askanasy, a frente do Teatro Folclórico
Brasileiro. Uma companhia teatral negra criada em 1949, tida pelo Jornal do Brasil como
“o maior acontecimento teatral do ano de 1950”247. Com um crescimento meteórico,
resultante dos esforços e do auxílio de folcloristas e profissionais da dança negra, ganhou
as manchetes dos principais jornais do país. Outra ajuda fundamental foia do pai de santo
Joãozinho da Goméia que permitiu que o idealizador da companhia, Haroldo Costa,
frequentasse as cerimônias públicas do seu terreiro, recolhendo material para construir uma
linguagem própria para o seu projeto teatral. Era como se parte do terreiro da Goméia fosse
transportada para o palco dos teatros, no qual a companhia atuasse. No primeiro ano de
fundação, a especialista em crítica das artes cênicas, Olga Obry248menciona a importância
de Joãozinho da Goméia249 para a fundação do Teatro Folclórico Brasileiro:

245
Do terreiro da Goméia saíram muitos filhos de santo que eram especialistas em dança afro-brasileira, no
corpo de ballet de Mercedes Baptista se destacaram a passista Paula do Salgueiro, que fazia parte do Teatro
Folclórico Brasileiro; João Elísio, Paulo Conceição e Valdir Conceição, que se integraram ao Balé
Folclórico Mercedes Batista.
246
PEREIRA, Roberto, p.84.
247
PEREIRA, Roberto Augusto A. Teatro Folclórico Brasileiro/Brasiliana: Teatro Negro e Identidade
Nacional. RJ: Revista Transversos, n.20, 2020. p. 2.
248
A responsável pela reportagem “Do terreiro ao teatro” Olga Brodsky-Obry, nascida em Kiev, em uma
família judaica de industriais e filantropos. Chegou ao Rio de Janeiro em 14 de fevereiro de 1941, onde foi
contratada pela revista Vamos Ler! Anunciada no jornal A Noite. Destaca pelo pertencimento originário a
imprensa francesa e belga, seu trabalho ficou restrito as publicações que retratavam o universo da alta
sociedade carioca, e por isso se dedicou a produzir matérias sobre moda, beleza, e a escrever artigos para
revistas de arte, teatro, e dança clássica. Engajou-se em 1947 no movimento para a criação da Escola
Nacional de Teatro com a participação de artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros exilados. Fundou a
sociedade de Marionetistas em 1948, sendo muito importante para os rumos do cenário teatral do Recife e de
Minas Gerais onde produziu junto a imprensa mineira diversos artigos com crítica teatral. Aventurou-se pelo
Brasil com sentido de descoberta de novos cenários culturais até retornar para a Europa em 1952. Para saber
mais sobre Olga Obry, ver o artigo: “Eva continua vencendo...”: intelectuaiseuropeias no Brasil em tempos de
totalitarismos. Revista Del CESLA, núm. 21, pp. 145-168, 2018. Uniwersytet Warszawski
249
A trajetória de Joãozinho da Goméia a partir daqui assume outra vertente. Nunca saberemos se ele leu esta
reportagem. Sentiu-se provocado por ela, ou se ela despertou a curiosidade de empresários e demais artistas
130

O Teatro Folclórico Brasileiro tem pouco mais de um ano de existência: estreou


no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro, em fins de janeiro de 1950. Mas, essa
estreia no teatro foi precedida por uma estreia num terreiro dos arredores da
Capital Federal. O “Grupo dos Novos”, que se tinha desligado do Teatro
Experimental do Negro, foi, meses antes de se apresentar ao público, procurar o
famoso ‘pai de santo’ dos candomblés bahianos, Joãozinho da Goméia, então em
visita ao Rio. Quem viu alguma vez Joãozinho da Goméia atuar num candomblé,
não pode deixar de considerá-lo como um dançarino invulgar. Em qualquer
palco, em qualquer país, ele se faria notar por sua técnica espantosa e original,
por sua arte espontânea à condição de saber levar do terreiro ao palco estas suas
qualidades extraordinárias. Joãozinho, porém, nunca quis fazer tão perigosa
experiência; com certeza, tinha razão em se deixar ficar no ambiente em que
surgiu e onde está perfeitamente à vontade. Talvez, preso nas limitações de um
palco, o artista sem rival dos terreiros bahianos nos fosse um fracasso. E mesmo
quefizesse sucesso, quem sabe se este próprio sucesso não mataria sua arte?”250

O Teatro Folclórico, assim como o Teatro experimental do negro, potencializou a


presença negra nos palcos, como a da bailarina Mercedes Baptista, que transitava entre
o Teatro Experimental do Negro, o Teatro Popular Brasileiro e o Teatro Folclórico
Brasileiro. Mercedes cedeu seu conhecimento técnico para essas companhias negras de
teatro, a partir da criação de quadros coreográficos como o “congada” que remetia a
celebração da “coroação do Rei Congo”251. O contato com essas experiências ajudara
Mercedes a construir o “Ballet Folclórico Mercedes Baptista”, uma companhia formada
exclusivamente por artistas negros e mestiços, que objetivava criar novos rumos para a
dança no Brasil. Um grupo formado por bailarinos e ritmistas que atuavam com Mercedes
desde 1952252.
Até aqui, demos visibilidade aos profissionais do bailado nacional e das
companhias negras de teatro e de dança. O que sugere ter sido o pai de santo Joãozinho da
Goméia fonte inspiradora para esses sujeitos. A ocupação do espaço cênico pelo povo
de santo, que será contratado tanto pelas companhias negras quanto pelo Teatro de Revista,
Cinema e Casas de espetáculo, encontra em Joãozinho um ponto de partida. Muitos filhos
de santo de Joãozinho da Goméia, por exemplo, foram captados pelas coreografas
Mercedes Baptista e Eros Volúsia.

de teatro. Só que após a publicação da revista A Casa, o pai de santo passa a ocupar os palcos de teatros muito
famosos entre Rio de Janeiro e São Paulo, a partir de 1953.
250
Revista A Casa, de maio de 1951.
251
A historiadora Marina de Mello e Souza, em seu livro Reis negros no Brasil escravista: história da Festa
de Coroação de Rei Congo chama atenção para os estudos de Mello Moraes e Câmara Cascudo sobre as
danças conhecidas como congos ou cucumbis, nos quais são representados canto e dança ao som de
instrumentos de origem africana. “cucumbis, Congadas no Sul, Congos no norte do Brasil são autos populares
negros, somas de danças, episódios, desirmanados, convergidos, meio arbitrariamente para um só enredo.”
IN: Moraes Filho. Festas e tradições populares do Brasil. p. 177.
252
MELGAÇO, 2007, p.43.
131

Concluído esse percurso, interessa-nos daqui em diante refletir sobre as novas


dimensões que tomarão a carreira artística de Joãozinho, a partir desse caminho aberto
para a presença negra na cena artística brasileira. Em 1953, ele idealizará a criação de um
produto artístico que corroborará com a sua afirmação definitiva no Show Business, que é
fundação da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê e a sua inclusão no elenco de A Casa
da viúva Costa, uma montagem do Teatro de Revista, que não deu certo.

Figura 39: Joãozinho da Goméia no baile da Abolição da escravatura. Registro fotográfico


da revista A Scena muda: Eu sei tudo (Magazine Mensal) 31/10/1952. A imagem representa um
aspecto das conexões entre sujeitos negros em torno de processos de criação artística e de
formação de redes de sociabilidades. Ruth de Souza era atriz do Teatro Experimental do Negro.
Acreditamos que este registro tenha sido feito no Renascença Clube, local onde Joãozinho se
apresentava constantemente com seu grupo folclórico. Fonte: BNDigital253

253
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20195&pesq=Jo%C3%A3o%20d
a%20Gom%C3%A9ia&pagfis=57331
132

2.5. A CASA DA VIÚVA COSTA: UMA COMÉDIA MUSICADA QUE FRACASSOU.

Joãozinho da Goméia é contratado para se apresentar com suas filhas de santo no


teatro da Associação Atlética do Banco do Brasil (ex-Teatro Cassino Atlântico), em
novembro de 1953, em uma montagem do Teatro de Revista A casa da viúva Costa, escrita
em 1930, pelos dramaturgos paraenses Antônio Tavernard e Fernando de Castro. Uma
comédia musicada dividida em um prólogo e três atos sem divisão de quadros. A história
se passa em uma casa de pensão administrada pelo personagem da viúva, que mantém um
romance com um pensionista. O enredo transcorre com personagens estereotipados que
movimentam a história com piadas de duplo sentido, cheias de malícia e sensualidade.
Nas críticas feitas ao texto são apontadas características como a de ser uma montagem que
espelhava a sociedade carioca dos anos 1950254, que utilizava a presença do escracho à
classe política e à burocracia da máquina pública. Os autores usavam o recurso caricatural
para construir uma narrativa social, que interessava a uma sociedade que buscava diversão
nos espetáculos noturnos de uma cidade que se divertia e pulsava ao som do samba, das
marchinhas, do carnaval. Com a direção de Esther Leão, uma professora de teatro
lisboeta, o dramaturgo Fernando de Castro, anunciava a estreia na imprensa de um projeto
que ambicionava contratar um elenco estrelar de primeira linha, composto por: Ângela
Maria, Aracy Cortes, Ângela Marzulo João Villaret, Spina, Agildo Ribeiro, Gloria Valdez,
Paulo Mauricio, Pina Brunette, Spina, Lord Chevalier e Jurema Samio. Fernando de Castro
e Esther Leão, também haviam escalado a coreografa e bailarina búlgara Juliana
Yanakieva255, a orquestra de Valdemar Henrique,256 o figurinista J. Luiz e Guimarães, e o
cenógrafo Pernambuco de Oliveira.
Segundo o autor Paulo Roberto de Almeida, 257 o gênero Teatro de Revista teve sua
origem na França do início do século XVIII, estreando em Portugal na década de 1850.
Oito anos depois se apresentava no Rio de Janeiro, com uma estreia conturbada e polêmica

254
O texto foi escrito em 1930 retratando a sociedade paraense, mas foi adaptado para retratar a sociedade
carioca dos anos de 1950. A imprensa considera um texto fraco e amador, desconsiderando que apesar de
Fernando de Castro não ser um autor conhecido e experiente com o gênero das revistas, era um autor teatral
de origem paraense.
255
Juliana nasceu em Viena, Áustria em 1923, e foi registrada como búlgara, se radicando poucos meses
depois em Paris. Voltou ao Brasil aos 16 anos, em 1939 com a Opera Cômica de Paris, que havia sido
convidada para uma temporada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro
256
A referência à composição do elenco aparece em várias notinhas de jornais que divulgam a estreia da peça,
e também na própria divulgação.
257
ALMEIDA, Paulo Roberto de. A presença negra no Teatro de Revista dos anos 1920. Niterói:
Dissertação de Mestrado em História social, 2016.
133

no Teatro Ginásio, a primeira Revista brasileira, “As surpresas do Senhor José da Piedade”
de Figueiredo Novais. Após algumas tentativas de retorno do gênero, em 1880, o Teatro
de Revista, retornou ganhando espaço entre o grande público, pois apresentavam eram
obras que se pretendiam populares por falar a linguagem do povo e seguir o fluxo das
transformações que aconteciam na cidade. Como grande parte da população era ainda
composta de pessoas analfabetas, o gênero informações sobre a realidade se vivia na
cidade satirizando a classe política e também a elite carioca, que tinham como núcleos de
entretenimento: o Teatro municipal, o Jockey Club, etc. A plateia pagante tinha ali no
palco um espelho da modernidade urbana e cultural. Os elementos populares pertencentes
às ruas e ao cotidiano da cidade eram retratados no palco com a criação dos tipos sociais
que as revistas traziam. Era uma narrativa que transcorria em formato ágil, ligeiro e que
encontrou na Praça Tiradentes um espaço privilegiado de existência, por ser um “polo
irradiador da arte teatral carioca, desde a inauguração do Teatro São João, atual João
Caetano, em 1813, até a segunda metade do século XIX”. Os espectadores da revista eram
moradores do centro urbano, imersos em um ambiente transformador, que tendia a
representar a cidade do Rio de Janeiro, como cidade maravilhosa e civilizada. Entre os
anos de 1920 e 1930, a cidade deixou de ser o grande personagem para que os
personagens-tipo como: malandro, mulata, político corrupto, e o português, se tornassem
componentes importantes da fórmula do gênero. Elementos das tradições populares,
assim como a presença de pessoas negras a partir dos anos de 1920, se tornaram
representações alegóricas da nacionalidade.
A contratação de Joãozinho da Goméia258 se deu no dia da estreia quando viera a
substituir os membros do Teatro Experimental do Negro, que justificaram conflito de
interesses quanto ao roteiro, a intenção e o alcance da montagem teatral259. O interesse pela
contratação260 de Joãozinho da Goméia pode ter se dado por diversos motivos: ocupar o
lugar deixado vago pelos integrantes do TEN; a amizade que o pai de santo tinha com a
atriz Ângela Maria, uma das principais estrelas da montagem, ou como sugerem os autores

258
Chamo atenção para o destaque dado ao nome de Joãozinho da Goméia. um destaque que emerge dentre
tantos nomes já muito famosos como o de João Villaret, Ângela Maria e Araci Cortes. O que aponta para uma
consagração artística que passa a ser destaca com mais ênfase na mídia a partir desta montagem.
259
A Noite, 30 de outubro de 1953.
260
Não encontramos nenhuma fonte que tenha atualizado os dados sobre a presença negra no teatro de revista
dos anos de 1950, o que seria fundamental para que se consiga entender as presenças do ator Lord Chevallier
e do próprio Joãozinho da Goméia. A rejeição dos membros do Teatro Experimental do Negro, que alegaram
conflito de interesses e o afastamento de Joãozinho pode dar dicas sobre a presença de pessoas negras no
teatro de revista a partir da formação de companhias negras de teatro. O debate sobre o papel do negro no
teatro e sobre os usos da sua imagem e dos seus símbolos identitários, nos aponta caminhos interessantes para
compreensão desta problemática.
134

Gabriel Haddad Gomes Porto, Leonardo Augusto Bora e Vinicius Natal, o contrato com a
produção revisteira talvez tenha sido possibilitado por mediação do produtor Walter
Pinto261.
Rodrigo Faour262, autor da biografia sobre Ângela Maria, relata que a cantora era
conhecida como uma artista que “tudo que botava a mão virava ouro”, o que lhe rendia
inúmeros convites para se apresentar nas elegantes boates de Copacabana, em filmes
musicados e nas revistas mais famosas da cidade. No ano de 1953, recusou convites
para atuar nas revistas, Tá na cara protagonizada por Dercy Gonçalves, Joana D’arc,
Jamime Costa e Diana Morel, encenada no Teatro João Caetano; e na revista Feitiço da
Vila com Elizeth Cardoso, Silvio Caldas, Grande Otelo e Black-Out no Casablanca.
Nessa época, Ângela fazia uma pequena turnê de três dias em Salvador, onde
estreitou contato com elementos da cultura afro-baiana como a culinária, o candomblé e a
musicalidade do seu parceiro nos palcos, o compositor baiano Dorival Caymmi. Aliás, a
Bahia estava em alta, o diretor dos shows da boate Casa Blanca, Carlos Machado,
comemorava os altos índices de sucesso do seu espetáculo “Acontece que sou baiano”, um
espetáculo de variedades considerado pelo jornal Ultima Hora de 30 de agosto de 1953,
como o melhor espetáculo daquele ano. Um espetáculo que alcançou o status de
documentário musical sobre a “Bahia de ontem, de hoje com seus usos e costumes, lendas,
figuras históricas e tipos pitorescos em geral” 263:

O elenco era composto por Dorival Caymmi, Ângela Maria, Mary Gonçalves,
Paulo Mauricio, o grupo Quitandinha, Serenaders que incluía o ainda
desconhecido violinista João Gilberto, em início de carreira, vestido de
pescador juntamente com os demais companheiros do conjunto), a atriz
Terezinha Austregésilo, além do Paulo Mauricio (o “Castro Alves
cinematográfico”), Lord Chevalier, Eduardo Carijó, Jaime Storino, a vedete
Anilza Leoni e mais as girls Pina Brunette, Jurema Sâmio, Yelle Bittencourt,
Lili Marlene, Fernanda Villamayor, Rene Toso Wells, Dora Montel, Núcia
Miranda e Suzy Romero. Na pista do palco do Casablanca surgiam a cada
esquete os lugares sui generis da Bahia antiga, como a Praça Cairu, além da
encenação da Praça Dorival Caymmi, homenagem que o povo baiano prestara a
ele fazia pouco tempo. Havia também a festa dos pescadores, com a procissão
de Nossa Senhora dos Navegantes; os vendedores de passarinhos; de chapéus, de
canecas, a multidão colorida que pousava a Baixada do Sapateiro. Os bailarinos
reviviam o samba de roda e o candomblé. Carlos Machado inclusive mandou vir
de Salvador autênticos capoeiristas e tocadores de berimbau para dar o clima
adequado. ”264

261
BORA, Leonardo Porto, NATAL, Vinicius, PORTO, Gabriel Haddad Gomes. Candomblés e
Carnavais: corpos desfilantes de Joãozinho da Goméia. Revista Periferia, v.12, n.3, 2020. p.239.
262
FAOUR, Rodrigo. Ângela Maria: a eterna cantora do Brasil. RJ: Record, 2015.
263
FAOUR, Rodrigo, p. 105 e106.
264
Idem p. 108.
135

De acordo com o Correio da Manhã265, o ano de 1953, figura como um período


inexpressivo 266 para a arte teatral, em termos de shows noturnos, o que justifica a
presença de tantos artistas de renome na montagem de um autor desconhecido como
Fernando de Castro. Os espetáculos traziam as canções carnavalescas que seriam entoadas
nos bailes da cidade. Os artistas eram escolhidos a dedo para representar os sambas e as
marchinhas que seriam a nova coqueluche do carnaval que puxava a corda do carnaval uns
seis meses antes da festa em si. A eleição da Rainha e do Rei do Rádio era apenas um dos
concursos carnavalescos promovidos pela Revista do rádio e a Associação de Cronistas
Carnavalescos, que em 1953, passou a fazer eleições estaduais, logo, cada estado brasileiro
passou a organizar seu próprio concurso. A temporada em homenagem a Dorival Caymmi,
organizada por Carlos Machado, fôra uma revista que trazia canções a serem popularizadas
nos bailes de carnaval e nas ruas da cidade. O produtor teatral Carlos Machado, a
propósito, sabia muito bem como fortalecer a simbologia cultural dessas duas linguagens
populares: carnaval e teatro de revista. Em contraponto, com o bem sucedido espetáculo
Acontece que sou baiano, iniciava-se o mal sucedido espetáculo A Casa da viúva Costa
que, de acordo com relato da cantora Ângela Maria, nem chegou a estrear:

Deveria estrear no dia 1º de dezembro no palco do Teatro da AABB (ex- Cassino


Atlântico), em Copacabana. Mas não deu certo. Quem estrearia sua carreira ali-
ainda como bailarino no mesmo espetáculo seria o futuro grande humorista
Agildo Ribeiro, que ainda assinou Agildo Barata Filho a pedido do produtor,
para ser um chamariz graças ao pai, um político famoso de esquerda, recém-
anistiado. Foi um espetáculo que chegamos a ensaiar por pouquíssimo tempo,
mas logo depois a companhia faliu. Depois de uma semana, obviamente,
ninguém recebeu dinheiro nem nada. Era uma peça bem no estilo cabaré
parisiense. O produtor Fernando de Castro chegou a botar o anuncio no jornal,
mas não estreamos. Agora imagina, para quem está começando, a impressão que
dá. Era um mal-estar danado, a gente ficava pensando que a culpa era nossa.267

O relato cedido para o memorialista Rodrigo Faour apresenta contradições sobre a


estreia que, de acordo com a cantora, nem chegou a acontecer. A consulta aos periódicos
prova o contrário. O espetáculo chegou a acontecer só que não avançou para a segunda
semana, por conta de pouco dinheiro em caixa. A estreia foi apresentada apenas para
alguns críticos teatrais e contou com mais duas apresentações mal sucedidas. A propósito,
o autor Fernando de Castro parece ter investido muito dinheiro com a divulgação sem se

265
Correio da Manhã, 20 de dezembro de 1953.
266
Este reconhecimento foi posto no jornal Correio da Manhã de 20 de dezembro de 1953.
267
Ibidem, p. 118.
136

preocupar em honrar com a extensa folha de pagamento. A falha da memória de Ângela


Maria pode ser enquadrada no conceito do “não dito” trabalhado pelo sociólogo Michel
Pollak, em seu artigo Memória, esquecimento e silêncio, quando o autor afirma que:

Existem nas lembranças de uns e de outras zonas de sombra, silêncios, "não


ditos". As fronteiras desses silêncios e "não ditos" com o esquecimento
definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e
estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e
também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma
escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-
entendidos. O discurso interior, o compromisso do não dito entre aquilo que o
sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior. “A
fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em
nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil
dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que
resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e
impor. (POLLAK, 1989, p. 6).

A presença do “não dito” detectada nas memórias de Ângela Maria, sobre a revista,
em questão, está envolta por problemas que a cantora teve na época com a obrigatoriedade
em assinar contratos que não se identificava. O desencanto de Ângela talvez ganhe sentido
por causa do afastamento de Joãozinho da Goméia e de João Villaret.268 No compasso da
informação, a troca do Teatro de Revista pela Companhia Baiana de Folclore Oxumaré, é
citada como um negócio vantajoso para o pai de santo, que foi citado na imprensa como
um dos “mais bem conceituados bailarinos folclóricos da nossa terra”269.
A experiência de Joãozinho da Goméia no Teatro de Revista foi um “divisor de
águas” na sua carreira, pois o colocou em contato com outras linguagens artísticas, meios e
formas de produção cultural, construindo entrecruzamentos de setores da indústria
fonográfica, radiofônica, televisiva e cinematográfica. Estar nos palcos do Teatro de
Revista lhe abriria uma gama de possibilidades artísticas e uma dessas era o diálogo com o
teatro negro, materializado através da fundação da sua própria companhia: a Companhia
Baiana de Folclore Oxumarê. O autor Roberto Pereira270 informa que o Rio de Janeiro
sempre foi o cenário propício para danças como o lundu, o maxixe e o samba,
repetidamente executados nos teatros da Praça Tiradentes e, posteriormente, nos palcos dos
cassinos Atlântico, Copacabana, Recreio e Urca, propiciando o fortalecimento da presença
negra nos palcos de produções do teatro de revista, mesmo que de forma estereotipada,

268
Revista O Cruzeiro, 26 de dezembro de 1953.
269
Última Hora, 8 de novembro de 1953.
270
PEREIRA, Roberto, 2003. p.162.
137

interpretando personagens como o malandro, o sambista, a mulata, a baiana.

Figura 40: Divulgação da revista “Casa da Viúva Costa” pelo Jornal Ultima
Hora, 28/11/1953. Fonte: BNDigital271

Não temos elementos, infelizmente, que nos ajudem nesse momento a analisar os
detalhes da presença cênica de Joãozinho da Goméia em uma produção de teatro de
revista, mas podemos observar que esta experiência cênica pode ter impulsionado as suas
pretensões de ocupação de outros espaços, que tenham dado a instrumentalização

271
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22casa%20da%2
0viuva%20costa%22&pagfis=16520
138

necessária para conquistar, finalmente, o seu espaço no show business. Era a oportunidade
que tinha de realizar o sonho de ser contratado para se exibir apresentando danças afro-
brasileiras e danças folclóricas brasileiras em Buenos Aires e Estados Unidos. O ano de
1953 torna-se o marco temporal para refletirmos sobre a expansão da cena artística em que
Joãozinho esteve inserido. A partir de 1953, finalmente, conseguiremos localizar em
separado, o artista e o pai de santo. Joãozinho, precisava agora construir outros pontos de
convergência, outras relações com a dança. Precisava agora criar uma nova identidade
artística, que pudesse expandir o seu terreiro para outros lugares, e adquirir para o
candomblé um status de dignidade. A arte construída por Joãozinho, também estaria a
serviço das liberdades do povo de santo, como esteve em 1936, quando emprestou o seu
corpo para que agisse politicamente em nome da liberdade religiosa dos candomblecistas
baianos.
O interesse que encaminhava estudiosos da dança folclórica para o terreiro da
Goméia seria o mesmo que os direcionariam para os teatros onde Joãozinho estivesse
atuando. A Companhia baiana de Folclore Oxumarê seria fundada nessas bases: o
fascínio pela arte, pela dança, pelo folclore e pelo candomblé. Os ventos precisavam mudar
a direção para os palcos. Joãozinho precisava, enfim, ocupar profissionalmente a cena
coreográfica, de forma profissional, o que pôde ser compreendido pela necessidade de
criação de novos trânsitos, que construiriam de fato Joãozinho como um artista de teatro272.
A respeito desta transitoriedade entre o artista e o religioso, que entende o
sagrado como algo fluido desapegado da lógica colonial de enquadramento de pessoas em
sistemas projetados para o domínio de corpos, mentes e emoções, os autores Luiz Antônio
Simas e Luiz Rufino constroem a “noção de terreiro” que liberta o sagrado da ideia de
aprisionamento de saberes e fazeres. O que endossa a ideia de que Joãozinho da Goméia
entendia que o palco de um teatro era também um lugar onde os Orixás poderiam estar
presentes mesmo que de forma simbólica:

A noção de terreiro configura-se como tempo/espaço onde o saber é praticado.


Assim, todo o espaço em que se risca o ritual é terreiro firmado. Nesse sentido a
noção se alarga não se fixando somente nos referenciais centrados no que se
compreende como contextos religiosos. A ideia aqui defendida aponta para uma
multiplicidade de práticas, saberes e relações tempo/ espaciais. As invenções dos
terreiros na diáspora salientam a complexidade dos modos de vida aqui
praticados e as possibilidades derelações tecidas. Assim as muitas possibilidades

272
E foi o que de fato aconteceu se pensarmos que a partir de 1953, Joãozinho apesar de continuar sendo
identificado como pai de santo nas reportagens que divulgam a sua atuação como artista, ele começa a ocupar
outros espaços artísticos e ser tratado como tal. Trataremos disso no capitulo 3.
139

de configuração de terreiros apontam que os mesmos podem refletir desde uma


busca por ressignificação de vida referenciada por um imaginário em África,
como também aponta para as disputas, negociações, conflitos, hibridações e
alianças que se travam na recodificação de novas práticas, territórios,
sociabilidades e laços associativos. A noção de terreiro orienta-se, conforme
sugerimos a partir das sabedorias assentadas nas práticas culturais.
Consideramos que praticar terreiros nos possibilita inventar e ler o mundo a
partir das lógicas de saberes encantados. (SIMAS & RUFINO, 2018, p.42)

Quanto ao fracasso da revista, os motivos foram associados às dificuldades


econômicas de Fernando de Castro e a sua falta de experiência à frente do
empreendimento. De acordo com crítica teatral de Antônio Accioly Netto, o autor
Fernando de Castro não atentou para as dificuldades do negócio teatral, lançando sua peça
sem as qualidades específicas do gênero:

Vimos A Casa da viúva Costa vários dias depois da estreia, quando a direção do
espetáculo a considerou em forma para ser examinada pela crítica. Ora,
justamente nesta ocasião, uma das suas principais atrações, o ator João Villaret,
já havia abandonado o elenco, e mais ainda, justamente quando o ‘pai de santo’
Joãozinho da Goméia e suas filhas também não atuavammais... mesmo assim, se
A Casa da viúva Costa fosse uma revista (ou burleta) digna de interesse, poderia
sobreviver, o que não acontece por numerosos motivos. Desses, o principal é a
pouca força cômica dos ‘sketches’, que aqui funcionam como entrecho da peça,
entrecortados por apresentações de cantoe dança, sem nenhuma ligação com os
mesmos. Assim sendo, o público que não ri com os quadros que visualizam a
“casa da viúva”, com dialogo frouxo, personagens mal delineados, e epílogos
bruscos-também não se diverte com os bailados e apresentações de cantoras e
cantores, geralmente de má qualidade. Em resumo, tudo não passa de uma
sequência de números mal- alinhavados, mal dirigidos, mal interpretados, que
fatigam principalmente nas incomodas cadeiras de emergência da ‘boite’.
Entretanto, mesmo com a ausência de Villaret, Joãozinho da Goméia e suas
dançarinas, o elenco é numeroso e possui elementos capazes de brilhar em
qualquer revista, menos nesta. Araci Cortes, que há pouco tempo recebeu uma
consagração no João Caetano, demonstra que, além de cantar com graça, sabe
representar. Spina é um cômico que valoriza ao máximo seus textos. Há um
grupo de bailarinas e bailarinos que bem adestrados poderiam render muito mais.
Lord Chevallier possui qualidades de cômico conhecidas, Paulo Mauricio é um
galã de primeira linha, e assim por diante. Mas nada disso funcionou a contento
(alguns bailados são verdadeiras charadas) e o resultado é mais que
lamentável, principalmente porque há dinheiro gasto. Há esforçodesperdiçado.
Há finalmente boas interpretações inoperantes. Um registrofinal pode ser feito,
quanto à atuação de Jurema Samio, bailarina que veio do ‘Ballet Pigale’ e agora
pertence ao elenco de Carlos Machado, modelo de plástica dos grandes desfiles
do teatro da madrugada, que aqui aparece cantando e representando como uma
autentica revelação, que merecerá ser projetada, de futuro, como merece. O
guarda-roupa, com alguns modelosricos mais de escasso gosto é mais uma
demonstração de que o pouco sucesso da empreitada se deve à inexperiência de
seus idealizadores, indicando porem que talvez ainda possa haver uma
recomposição na companhia, desde que uma boa peça seja apresentada, com
uma direçãodigna desse nome. ”273

273
O Cruzeiro, de 2 de dezembro de 1953.
140

2.6. A COMPANHIA BAIANA DE FOLCLORE OXUMARÊ: UM PROJETO DE


EXPANSÃO ARTÍSTICAE RELIGIOSA.

O antropólogo Reginaldo Prandi274 informa que Joãozinho da Goméia, entre meados


dos anos 1950, e começo dos anos 1960, visitava constantemente a cidade de São Paulo,
onde era amigo de influentes líderes umbandistas. Uma parte considerável da primeira leva
de pais e mães de santo paulistas havia iniciado sua trajetória religiosa no candomblé da
Goméia baiana. As idas e vindas de Joãozinho entre Rio de Janeiro e São Paulo eram
constantes o que corroborou com o processo de transformação de terreiros de umbanda
em terreiros de candomblé. Um movimento e associado ao prestígio de outras casas de
culto como o Ilê Axé Opô Afonjá, a casa de Taata Antônio Fomutinho (Antônio Pinto); e
a de seu filho de santo Seu Djalma de Lalu; o terreiro de Oloroquê em Salvador; o
terreiro Tumba Junçara de Manuel Ciríaco dos Santos; o de Neive Branco (Manuel
Rodrigues Soares Filho); o candomblé de João Lessanguê, dentre outros. Essa
transformação se deu a partir da cidade portuária de Santos onde estão situados os
primeiros terreiros localizados em torno da área do cais do porto:

O mais antigo terreiro de candomblé no Estado de São Paulo foi fundado em


Santos, em 1958, por Seu Bobó. Vindo da Bahia, Seu Bobó, José Bispo dos
Santos, ficou no Rio de 1950 a 1958. A casa de santo de Seu Bobó está há muito
tempo no bairro de Itapema, Rua Projetada Caic 63, município do Guarujá, do
outro lado do canal do porto de Santos. Também em Santos fixou-se Mãe
Toloquê (Regina Célia dos Santos Magalhães). Iniciada ainda na Bahia, onde foi
adotada por Joãozinho da Goméia, foi para o Rio onde ficou cerca de 6 anos, e
desceu para Santos nos anos 1950. Seu terreiro, o Axé Obioju, fica na Rua
Professor Francisco Domenico, 584, no Bom Retiro, em Santos. Ainda na
Baixada Santista, em São Vicente, no início dos anos 50, abre casa o pai de santo
Vavá Negrinha, Valdemar Monteiro de Carvalho Filho, baiano de nação jeje da
casa de Guaiacu, Camarão de Iansã, Dona Isabel de Omulu, Sessi Mukiara,
esposa do Tenente Eufrásio, importante nome da umbanda paulista, além de
Gitadê, feito no Rio. Todo esse grupo fixado na Baixada Santista mantinha
estreitas relações com Joãozinho da Goméia e com certos terreiros de umbanda
de São Paulo. (PRANDI, 1991, p.98)

A partir da presença de Pai Bobó de Iansã, conseguimos compreender o processo de


expansão religiosa de Joãozinho da Goméia por São Paulo no decorrer dos anos 1950.

274
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo:
HUCITEC, 1991, p.94 e 98.
141

Como informa Antônio Carlos Peralta275, Pai Bobó aconselhava Joãozinho em questões
relativas à sua gestão religiosa em Duque de Caxias, e acreditamos que, estando já
estabelecido em São Paulo, por volta de 1958, possa ter auxiliado Joãozinho com seu
projeto expansionista.
De acordo com Stefania Capone 276, nos anos 1950, o terreiro de Pai Bobó era o
único a se assumir publicamente como um terreiro de candomblé, o que nos chama a
atenção para o fato de que a adoção da umbanda pelos paulistas tenha ocorrido sem
grandes problemas, mesmo perante os registros policiais. As festas religiosas públicas,
como as de Iemanjá nas praias de Santos e da Praia Grande, contribuíram com a
popularização da religião e do pai de santo Joãozinho da Goméia, já que este era um dos
grandes incentivadores da tradição religiosa. As comemorações públicas de Iemanjá
contribuíram para o fortalecimento do campo afro-religioso da Baixada Santista,
transformando o dia 15 de agosto em uma tradição da umbanda paulista, com festas
promovidas pela Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, que passou a contar com a
presença anual do pai de santo nas homenagens à Rainha do Mar:

Iemanjá chegou de branco imóvel. Cedo, ainda às 21 horas, começou a festa.


Mesmo com a noite fria, muita gente foi vê-la, algumas pela fé, muitos levados
pela curiosidade para assistir a uma festa diferente, que já é tradição na praia
todo dia 15 de agosto. Graciana Miguel Fernandes, presidenta da União Espírita
Santista, falou da festa, apresentou pais e mães de santo convidados, agradeceu
à Secretaria de Turismo que patrocina a Noite de Iemanjá e realizou a cerimônia
de coroação e representantes da Umbanda e Candomblé mais antigos da
Baixada. Joãozinho da Goméia famoso pelo seu candomblé puxou pontos em
nagô acompanhado de suas filhas de santo. A partir daí os participantes das
homenagens formaram rodas e em cada uma delas as manifestações eram
diferentes, de acordo com a entidade que protege a tenda, todos cantam dos seus
pontos para chamar os espíritos. ”277

“O dono da noite foi Joãozinho da Goméia que veio do Rio com algumas de
suas filhas de santo e participou do desfile de abertura em um carro alegórico,
enrolado em panos de Alacá, fazenda que vem especialmente da África para ser
usada nas solenidades. Na areia era difícil vê-lo. Seu candomblé, de que
participavam além dos que vieram do Rio, algumas das mães de santo que ele
tem na cidade, ficou sobre um palanque armado na areia. Lá apresentaram o
ritual em homenagem a Iemanjá e pouco depois da meia noite retirou-se.”278

“Iemanjá teve festa ontem, mas na Bahia seu dia é em fevereiro (Departamento
de Pesquisas) O encontro já é tradição na Baixada, e a cada anjo que passa traz
mais curiosos para assisti-lo. isso naturalmente, sem levar em conta as centenas

275
PERALTA, p. 105.
276
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. RJ: Pallas, 2004, p.
145.
277
A Tribuna (Santos) 17 de agosto de 1959.
278
Jornal da Tarde, São Paulo, 19 de agosto de 1968.
142

de adeptos. São milhares que todos os anos, no dia da Rainha do Mar, acorrem
às nossas praias para assistir ao espetáculo no qual se fundem folclore e crença.
Em Santos, o dia escolhido para se homenagear Janaína é 15 de agosto, data
consagrada à Assunção de Nossa Senhora, enquanto que na Bahia e no Rio, a
Sereia do Mar recebe suas ofertas em outras oportunidades. Na Guanabara, a
Senhora das Águas é reverenciada no último dia do ano, e na Boa Terra, a data
em que todos se lembram dela é 2 de fevereiro. Candomblé e Umbanda não
concordam com origem e homenagem, disso resultando o desencontro das
festividades. O mesmo, aliás, ocorre quanto ao culto propriamente dito, e que,
depois de cuidadoso exame, levamos aos adeptos das seitas afro-brasílicas
estribadas em pesquisadores de renome, em declarações do babalaô de fama
internacional Joãozinho da Goméia.”279

Nina Rodrigues280 aponta o dia 2 de fevereiro de 1896, como a referência mais


antiga sobre a festa de Iemanjá. Uma festa que acontecia no dique do Tororó, no Rio
Vermelho, onde as filhas de santo levavam presentes à Rainha do Mar dentro de pequenas
embarcações guiadas por pescadores. Uma festa que encerra o ciclo de festas em Salvador,
iniciado em 4 de dezembro com festa dedicada à Santa Bárbara, Iansã. Seguida da festa em
louvor a Nossa Senhora da Conceição da Praia, Oxum; e a Lavagem do Bonfim, na
terceira quinta-feira do mês de janeiro.281 A festa de Iemanjá, ou festa da mãe d’água,
também é descrita pelo escritor Manuel Querino no livro Costumes africanos no Brasil 282,
como uma herança dos tempos da escravidão. Querino considera ser uma tradição
iniciada283em frente ao forte de São Bartolomeu, em Itapagipe, onde compareciam mais de
dois mil africanos para render homenagens ao orixá das águas.
De acordo com o autor, o culto nasceu em Salvador pelas mãos de tio Ataré que
residia à Rua do Bispo, no bairro de Itapagipe. Uma festa na qual se criou o costume de
encher grandes talhas ou grandes potes com pentes, frascos de pomada e metros de fazenda
que eram atirados ao mar como se fossem presentes. No Brasil, Iemanjá assumiu o reino
das águas salgadas, transformando-se em padroeira da pesca, protegendo os pescadores
que, de acordo com Armando Vallado,284 tornou-se uma tradição que passa a ser festejada
em datas diversas, ocupando as praias brasileiras em datas diferentes, pois, em cada

279
A Tribuna, Santos, 17 de agosto de 1970.
280
RODRIGUES Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. RJ: Civilização Brasileira, 1935. p.52 e
53.
281
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil. RJ: Pallas, 2002. p.164
282
QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. 2ª edição (ampliada e comentada). Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 1988. p.209-210.
283
É complicado estabelecer um marco que defina a origem da festa de Iemanjá. Principalmente por ser uma
tradição que vem dos tempos da África. O que se pode reter são as informações captadas emregistros
de época como este de Manoel Querino que reivindica para o bairro de Itapagipe a origem do culto.
284
VALLADO, Armando, 2002, p, 163.
143

região, Iemanjá foi sincretizada com uma diferente invocação à Nossa Senhora. O culto
percorre o litoral costeiro, ao encontro de Alagoas, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo,
Rio Grande do Sul, Salvador e Santa Catarina.
Por conta da influência da migração de lideranças religiosas de outras partes do país
para o litoral paulista, o culto se modifica e passa a atender ao calendário de festas
organizado por das comunidades religiosas. Os dias 2 de fevereiro, 15 de agosto, 8 de
dezembro e 31 de dezembro, não apenas se tornaram dias de se curvar aos desejos da
Rainha do mar, como uma estratégia de popularização do culto religioso afro-paulista. As
datas criadas pelo povo de santo foram inseridas nos calendários das festas culturais do
Estado de São Paulo, passando a serem reconhecidas como uma festividade essencialmente
popular, organizada pela Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, e pela Secretaria
municipal de Cultura da prefeitura de Santos e a Secretaria de Cultura e Turismo da Praia
Grande. Pelo caráter popular que adquire a festa à Iemanjá, atingindo religiosos e não
religiosos, o vínculo de Joãozinho ao universo umbandista é reforçado pelas páginas dos
jornais paulistas, garantindo para o pai de santo, inúmeras citações, o que vai com o tempo
reconstruir a identidade religiosa do pai de santo, que passa a ser identificado nas páginas
de jornais e de revistas como uma liderança religiosa umbandista285.
A título de constatação sobre a identificação de Joãozinho com o universo
umbandista, temos uma matéria feita pelo jornal Diário da Noite de 13 de agosto de 1952,
quando o pai de santo surge em uma noite de “pompa e circunstância” na sede da
Federação Espírita Umbandista do Estado do Rio de Janeiro em Duque de Caxias, como
uma liderança umbandista. O que apenas vem a reforçar o vínculo e a identificação de
Joãozinho como uma liderança da umbanda e não do candomblé, apesar do título de “Rei
do Candomblé” que lhe foi conferido no decorrer da sua trajetória religiosa.
Stefania Capone286 considera que Joãozinho da Goméia conseguiu ainda muito
jovem, se afirmar como liderança religiosa do candomblé Angola, por causa da
transferência de Salvador para o Rio de Janeiro. Um movimento repetido pelos filhos de
santo de Joãozinho que migram da Bahia e do Rio de Janeiro para o litoral paulista, com o
intuito de instalar um novo Axé. A busca pelo sucesso artístico está alinhavada com a
busca pelo sucesso religioso, já que no movimento de passagem da “umbanda para o

285
No capítulo 3, trataremos desta identificação com a umbanda.
286
CAPONE, Stefania. Le pur et lew dégénéré: le candomblé de Rio de Janeiro ou lês oppositions
revitées. Journal de La Société des Amérecanistes. v.82, p.259-292, 1996.
144

candomblé” foi detectado que por volta da década de 1960 e 1970, houve uma tendência
287

de maior filiação ao candomblé angola que, de acordo com Reginaldo Prandi, estaria mais
próximo da Umbanda.

Figura 41: Registro fotográfico feito pelo santo Jornal Diário da Noite de 13 de agosto de 1952, da filiação
de Joãozinho da Goméia à Federação Espírita Umbandista do Estado do Rio de Janeiro. Um ato que vai
impactar os próximos anos de vida de Joãozinho, redimensionando a sua identidade religiosa.
Fonte: BNDigital288

De acordo com os dados encontrados no Catálogo da Coleção de Programas de


Teatro, Música e Dança do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, a Companhia
Baiana de Folclore Oxumarê, se apresentou por sete vezes no Teatro Cultura Artística,
entre o dia 1 de novembro de 1953 e 25 de novembro de 1953, e no Cine Colonial, entre os
dias 8 de novembro de 1953 e 17 de novembro de 1953. O material de imprensa
consultado apenas dá satisfação sobre a data da estreia da temporada teatral, que se
iniciaria no dia 3 de novembro de 1953. A busca pela projeção artística em São Paulo
aconteceria de forma mais facilitada para Joãozinho que não possuía o conhecimento
técnico que de outros profissionais da dança. Os anos 1950 tiveram a cena teatral carioca
ocupada por diversos profissionais negros da dança, saídos de terreiros do subúrbio carioca
e da Baixada Fluminense. O Teatro Folclórico Brasileiro de Haroldo Costa, o Teatro

287
PRANDI, Reginaldo, 1991, p.107.
288
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_03&pasta=ano%20195&pesq=Jo%C3%A3ozi
nho%20da%20Gom%C3%A9ia&pagfis=21569
145

Popular Brasileiro de Solano Trindade e a Companhia de Ballet Folclórico de Mercedes


Baptista, fundada em 1953, ocuparam um espaço que Joãozinho não conseguiria ocupar no
Rio de Janeiro.
A fundação da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê almejava o aprimoramento
das coreografias e a profissionalização dos atores e atrizes envolvidos no projeto cênico.
O que Joãozinho desejava era deixar de ser apenas o religioso, que dançava muito bem, e
que inspirava outros dançarinos e coreógrafos em seus processos criativos. O seu
diferencial era o de levar para o palco a essência da dança de terreiro. Não concordava com
o ato de estilizar as coreografias criadas a partir do candomblé, e acreditava que a
estilização empobrecia a sua arte. Ser proprietário da própria companhia de dança elevou
o seu status no meio artístico. A sua companhia se propunha a “desterritorializar” a dança
dos espaços físicos ao qual ela pertencia. O que, de certa forma, vai possibilitar o controle
do seu patrimônio coreográfico. Era também uma forma de controlar a fluidez do seu
patrimônio coreográfico. Com a atuação da sua companhia e o seu reconhecimento como
criador de um estilo próprio, Joãozinho reivindicaria algo que ele acreditava que era seu,
tencionando mais ainda o campo das danças negras.
Em matéria publicada pelo Correio Paulistano em 13 de outubro de 1953289,
Joãozinho surge como uma liderança do candomblé que desejava divulgar a temporada da
sua companhia, entre filhos de santo que pertenciam à comunidade religiosa de um terreiro
de umbanda, localizado na região do Alto de Santana. Quem assina a reportagem é o
crítico de artes e jornalista paulistano Ibiapaba Martins que demonstra todo um
conhecimento com os estudos do folclore e dos cultos afro-brasileiros. O jornalista destaca
as duras críticas que Joãozinho faz a estética do terreiro, por acreditar que o local só seria
valorizado pela sua autenticidade, se perdesse a sua característica original, ou seja, se fosse
transformado em um terreiro de candomblé. Devendo obedecer aos padrões estéticos
baianos, considerados pelo pai de santo como originais e autênticos.

Após esta temporada, a companhia retornou a São Paulo em razão da comemoração


do quarto centenário da cidade de São Paulo, celebrado de 9 a 11 de julho de 1954. Com
contrato já assinado com a Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, Joãozinho
reconheceu que precisava adquirir experiência e que esta estadia em São Paulo estenderia a
temporada por algumas cidades do interior.
A título de curiosidade, as seis filhas de santo escolhidas para comporem a
146

temporada paulista, chegaram a São Paulo apenas no dia da estreia no Teatro Cultura
Artística. Trajadas com anáguas, camisas, colares, braceletes e panos da costa bordados,
turbantes e chinelas e foram encaminhadas prontamente à Central de polícia, o que
despertou a curiosidade de inúmeras pessoas que se sentiram atraídas para assistirem ao
espetáculo teatral.290 A companhia contava com a direção de W. Lima, direção de cena de
Sergio Maia, figurinos de D’Crato, e coreografia de Sergio Maia. O corpo de baile era
formado por Lajana, Irlanda, Meneses. As bailarinas solistas são Katia Francarole, Marly
Rios, Cléia Tibiriçá. E as cantoras eram Neide Furkin e Lolita Consuelo.
O primeiro bailarino da companhia era o pai de santo Joãozinho da Goméia, que
mencionava que no palco o orixá não estaria presente incorporado nos seus dançarinos,
seguindo um estilo diferenciado do criado por outros profissionais da dança, que não
conseguiam controlar as incorporações, por não atuarem como mediadores entre o mundo
espiritual e o da matéria. É justamente aí que a presença do “pai de santo” faz toda a
diferença porque ele controla a frequência espiritual presente em cena. O “controle” das
incorporações em palco surge como um prolongamento do “controle” executado pelo pai
de santo dentro do terreiro. Eros Volúsia ressalta a ausência do “controle” manifestado em
uma das temporadas do Teatro Carlos Gomes onde, no espetáculo “Candomblé”, havia
montado um quadro com melodias recolhidas no interior da Bahia, e estilizadas pelo
arranjador e compositor Radamés Gnatali. Segundo Eros, o cerimonial completo foi
reproduzido no palco, das oferendas às danças das iaôs, com direito a evocação de orixás e
simulação de incorporação, se estendendo para a plateia “que se levantava às pressas para
o hall do teatro até que passasse o transe.”291 Os números principais da temporada artística
eram: 1) Presente a Janaína, que simulava o festejo acontecido anualmente no Dique do
Tororó, Rio Vermelho; 2) a “dança dos caxixis”292, cadenciada por instrumentos do mesmo
nome, semelhante às castanholas; 3) “dança do babalorixá”, que representava o ritual do
“padê de Exu”, com o uso de um galo vivo simulando um sacrifício com sangue em
homenagem a Exu. Nesta cena Joãozinho assumia a face do religioso, dirigente do
terreiro da Goméia; 4 ) Jogo de capoeira, ministrado por Evaristo Veiga e Ananias.
Durante toda a temporada teatral, o público assistiria a uma exposição de conteúdo
folclórico com exibição das cerâmicas da Bahia, das vestimentas, dos instrumentos

290
Jornal O Tempo, 5 de novembro de 1953.
291
VOLÚSIA, Eros. Eu e a dança. RJ: Revista Continente Editorial, 1983, p.130.
292
O caxixi, além de compor o conjunto percussivo do berimbau é idiófono, que aparece isoladamente vê em
âmbito ritual-religioso, em especial nos terreiros de candomblé Angola-Congo e de caboclo, Bahia, Rio de
Janeiro, São Paulo e Pernambuco. p. 73.
147

musicais e de diversos utensílios das regiões norte e nordeste293, que se propunha a


apresentar os aspectos do folclore nortista. Os instrumentos usados pela companhia eram os
atabaques294, berimbau295, caxixis (chocalhos remanescentes da cultura bantu),
pandeiros296 e ganzás297 tocados por Adão Felez Reis, Carlos Soares e outros.

Figura 42: Divulgação Do Espetáculo “Magia Baiana” exibido pela Companhia Baiana de
Folclore Oxumarê. Publicação feita pelo jornal paulista Diário da Noite em 13/10/1953. Fonte:
BNDigital298

293
Jornal O Tempo, São Paulo, 9 de outubro de 1953.
294
O atabaque é um instrumento musical muito simplificado, construído por couro, AL esticado sobre aro de
madeira ou caixa oca de madeira, a parte principal do atabaque é justamente o couro, local onde é realizada a
percussão. O corpo do atabaque, convencionalmente feito em madeira, quase sempre são ripas presas por
pregos de ferro, cola e aros também de ferro; na verdade uma caixa de ressonância afunilada. Os atabaques
nos terreiros de candomblés recebem três nomes básicos: rum, rumpi, lé ou runlé. Respectivamente os
atabaques grande, médio e pequeno. O rum possui o registro grave, o rumpi o médio e o lé o registro agudo.
P. 66 a 69.
295
Sem dúvida uma das maiores permanências da música angolana no Brasil, que gerou também uma
nova dimensão (recriação), é o berimbau instrumento aliado e básico da capoeira. P. 72.
296
Existem vários tipos de pandeiros: Pandeirão do batuque é o tipo convencional. Foi registrado na
localidade de Curiau de Dentro, Macapá, Amapá e integrante a festa de São Joaquim. Lembra inclusive o
pandeirão, tinideira ou panda do Boi-bumbá do Maranhão. Apesar do seu uso em uma festa católica, é
eminentemente afro-brasileiros seus componentes etnoculturais são os mesmos do batuque realizado na
mesma área. P. 88. O pandeirão do boi; o pandeiro do pastoril, usado especialmente em Alagoas e
Pernambuco, é peça integrante no auto popular do ciclo natalino semelhante ao pandeiro de xangô que se
difere por não apresentar cabo nem fitas com ornamentos. Foi registrado na cidade de Maceió, localidade que
mantém o modelo do Xangô.
297
De acordo com Raul Lody, o “Ganzá é um instrumento ideólogo construído como uma caixa cilíndrica em
forma de folha de flandres, ferro ou alumínio, com material chocalhante no seu interior. Aparecem ligadas aos
conjuntos de congadas e outros grupos afro-brasileiros. No Xangô pernambucano ganzás pintados de
vermelho e branco e de azul e branco indicam uso ritual dedicado a Xangô e Iemanjá.” In: p.81.
298
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093351&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Gom%C
3%A9ia&pagfis=29174
148

O Última Hora, de 2 de outubro de 1953, menciona serem os rituais apresentados


no palco do Teatro Cultura Artística tal como originários do candomblé de caboclo, o que
indica que ainda havia uma forte presença litúrgica relacionada ao início da trajetória
religiosa de Joãozinho, quando era conhecido pelo nome de João da Pedra Preta. Afinal,
foi o culto ao caboclo que construiu a popularidade do terreiro da Goméia. Autores como
Jorge Amado e Antônio Carlos Peralta, relacionam o candomblé da Goméia com o culto ao
caboclo Pedra Preta:

A casa do caboclo Pedra Preta não é uma casa. É uma arvore uma gameleira
sagrada, defendida por uma cerca de bambu, enfeitada de fitas, um altar na
floresta. No dois de julho, dia da festa do caboclo, dia maior da Goméia, dúzias
de galos, vários carneiros e bodes são ali sacrificados, ao pé da arvore, enquanto
as filhas de santo rezam as orações rituais. O pai de santo e a mãe pequena,
encobertos dos demais por uma colcha lindíssima nos seus bordados e nas suas
rendas, já em transe, bebem o sangue dos animais sacrificados. Já não são eles,
Joãozinho e Alice. São o caboclo Pedra Preta e Yansã que se alimentam com
sangue quente dos galos e carneiros.299 O importante era estar na Goméia no dia
da festa de Seu Pedra Preta. Abraça-lo, pedir conselhos, fazer consultas e
aproveitar o samba de caboclo que acontecia até que a manhã estivesse alta.
Ali se dançava até cansar. Estar entre os caboclos da Goméia, era estar
participando de um forte axé, “fuxicar” com amigos e beber o aluá e a jurema de
Seu Pedra Preta (...), mas era assim que corriam as festas. O aluá e a jurema
eram as bebidas permitidas por Seu Pedra Preta, caboclo protetor de Seu João,
que morava no pé da gameleira sagrada. A comida era servida com fartura e o
samba de caboclo ia até o dia já alto do dia seguinte. (PERALTA, 2000, p.180 e
181.)

Édison Carneiro300, ao dissertar sobre o folclore negro da Bahia, o relaciona a sua


origem banta, dividindo-o em sete seções especiais: samba, capoeira de Angola, batuque,
as festas do boi, louvor a São Benedito, cucumbis, e festas do Imperador do Divino. O que
valida a natureza folclórica da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, um grupo tido
pela imprensa como magnífico pelas escolhas cênicas que propunha ao público:

“Passando pela boca de cena, dois homens vão a frente tocando atabaque. atrás
toda vestida de azul, uma filha de santo traz uma braçada de flores e rosas
brancas. Logo em seguida quatro homens trazem um andor coberto de flores,
pacotes, vidros de perfumes, peças de seda abertas e ainda um véu de noiva e
respectiva grinalda. Fechando o cortejo de homens do povo e de filhas de santo.
Todos com velas acesas nas mãos e braçadas de flores. Abre-se novamente o
pano, e o cortejo passa mais uma vez jogando suas flores ao mar. Das
profundezas das águas, surge dona Janaina(rainha das águas ou mãe d’água) que
traz na mão, um pente recoberto de pedrarias. De seus ombros pendem gazas
vaporosas, contempla a grinalda e o véu de noiva que recebeu como oferenda. O

299
AMADO, 1991, p. 156.
300
CARNEIRO, Edison. Negros Bantos- notas de etnografia religiosa e de folclore. 2edição: São Paulo,
1981, p.199.
149

pescador vendo-a foge amedrontado. Dona Janaina ouve ao longe nos terreiros os
toques e cantos em seu louvor e dança, voltando depois ao seu lugar. A música
folclórica à deusa Janaina diz : “Hê... He... he... He... Janaína. Hê... He... he...
He... Janaína. Venha seus filhos ajudar Senhora aceite esses presentes que seus
filhos vão mandar Para nós, ó Janaina que é a rainha do mar” (atabaques).301

A Companhia Baiana de Folclore Oxumarê fazia uso dos instrumentos musicais


usados tanto nos terreiros de candomblé de caboclo e Angola, como nas rodas de capoeira,
frevo, bumba meu boi, congadas e na festa do presente de Iemanjá. Deu tão certo a
formação de uma companhia com referências ao folclore baiano e as danças de terreiro,
que a turnê recebeu o patrocínio do Laboratório Xavier para realização de shows
quinzenais por cidades do interior paulista, e apresentação na TV Tupi de São Paulo.
Seriam exibidos quadros curtos do espetáculo completo apresentado nos palcos do Cine
Colonial e do Teatro Cultura Artística. Foram as primeiras apresentações televisivas do
grupo folclórico de Joãozinho da Goméia, que havia sido considerado pela crítica
especializada como um dos mais puros interpretes da dança e das tradições populares da
Bahia.302

301
Diário da Noite, 13 de outubro de 1953.
302
Segue abaixo algumas das reportagens principais publicadas por jornais da imprensa paulista, que davam
destaque aos espetáculos encenados pela Companhia de Folclore Oxumarê. Achei prudente divulgá-los, para
que o leitor dessa dissertação conhecesse mais sobre a vida artística de Joãozinho da Goméia, sua relação
estreita com elementos do folclore baiano, e a solidificação do seu projeto de expansão artística.
150

Figura 43: Divulgação de apresentação televisiva de Joãozinho da Goméia com sua companhia de
folclore baiano. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite (SP) de 28/10/1953. Fonte: Hemeroteca
Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular303

303
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
151

Figura 44: Divulgação de espetáculo da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê no Teatro Cultura Artística.
Publicação feita pelo jornal O Tempo (SP), de 09/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular 304

304
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
152

Figura 45: Apresentação do Corpo de Baile da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê.


Publicação feita pelo Jornal O Tempo (SP) de 09/10/1953. 305 Fonte: Hemeroteca Digital do Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular 306

305
Destaco o corpo de balé que compõem a Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, com bailarinas brancas,
chamando atenção para a possibilidade de que Joãozinho da Goméia não tenha feito uso das filhas de santo
negras em todos os espetáculos teatrais. O que também pode ter acontecido é o fato das filhas de santo com
seus trajes típicos do candomblé, simbolizassem o folclore baiano.
306
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
153

Figura 46: Divulgação de apresentação da companhia de folclore baiano no


pequeno auditório do Teatro do Cultura Artística. Publicação feita pelo jornal
Diário da Noite (SP) de 02/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular307

307
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=%22companhia%
20baiana%20de%20folclore%20oxumar%C3%AA%22
154

Figura 47: Divulgação do espetáculo de Joãozinho da Goméia com detalhes sobre a


composição da sua Companhia de folclore, e sobre as referências de folclore nortista que levará
para o público paulista. Publicação feita jornal Diário da Noite (SP) de 23/09/1953. Fonte:
CNFCPDigital308

308
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=%22companhia%
20baiana%20de%20folclore%20oxumar%C3%AA%22
155

Capítulo 3: ENFIM, O REI DO CANDOMBLÉ...

Se o candomblé assumiu uma postura de espetáculo de luzes e cores foi graças a


minha Roça da Goméia. Não posso acreditar que digam que eu desmoralizo ou
desmoralizei o candomblé apenas por gostar de enfeitar meus Orixás, ou brincar
no carnaval. Afinal, estou vivo! E se cheguei até aqui foi graças a minha
personalidade e autenticidade, mas pelo menos tenho uma recompensa perante
todo este “bafafá”: ocupei o meu lugar no mundo, e quem estiver
incomodado que venha falar comigo. Afinal, eu sou ou não sou o Rei do
Candomblé!? (NASCIMENTO, 2003, p.52 e 53) 309

O ano de 1953 ficou marcado como o período em que Joãozinho da Goméia se


dividiu entre a atuação artística e a religiosa. Com a fundação da Companhia Baiana de
Folclore Oxumarê e a construção de um projeto de poder no campo afro-religioso paulista,
o pai de santo conseguiu despertar o interesse dos meios midiáticos para a sua presença a
frente de um grupo de dança de terreiro, que dialogava com os elementos do folclore
baiano. Um diálogo que trouxe para Joãozinho a assinatura de alguns contratos com
lugares em que a cultura africana e o folclore baiano estavam em destaque. O interesse pela
produção de espetáculos, como os shows em boates, nos anos de 1950, já contavam com a
presença de profissionais da dança que ocupavam lugar no cast da TV Tupi do Rio de
Janeiro.310O cenário da dança carioca ficou então caracterizado por uma variedade de
possibilidades de entretenimento: Teatro de Revista, Rádio, Televisão, Boates, Clubes,
Cinema e Teatros. O público que frequentava as boates era exigente quanto às atrações:

O público queria outro espetáculo que pudesse ser visto repetidas vezes, já que
era um público que frequentava o local várias vezes por semana. Por isso, a
escassez de textos, que poderiam perder a graça, logo na segunda apresentação, e
o investimento em danças leves, divertidas, mas pequenas. Eram danças com
temas pitorescos, para um público chique. (PEREIRA, 2001, p.92)

Os espetáculos coreografados para as boates, que na sua grande maioria, traziam

309
Esta frase inspirou o título deste trabalho. Foi colhida de um depoimento dado em 23 de março de 2001,
por Ileci da Oxum, a mãe criadeira do terreiro da Goméia de Duque de Caxias. Foi ela quem trouxe a muda de
Juremeira (árvore consagrada ao Caboclo Pedra Preta) de Salvador. Lembro que Ileci repetiu esta frase umas
duas vezes no final da entrevista, e me coube arrumá-la como foi publicada na monografia de graduação em
história. Ver em NASCIMENTO, Andréa. De São Caetano à Caxias: um estudo de caso sobre a expansão
dos cultos afro-brasileiros na Baixada Fluminense, p.52-53. São Gonçalo: Monografia de Graduação em
História apresentada a Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
2003.
310
PEREIRA, Roberto. Os passos de Juliana Yanakieva. Niterói, RJ: Niterói livros, 2001, p.92.
156

presenças como: Dorival Caymmi, Ary Barroso, Chocolate, e passistas e ritmistas da


Portela, do Acadêmicos do Salgueiro, Império Serrano e Estação Primeira de Mangueira.
A brasilidade, que já era a matéria prima da construção da identidade das danças
brasileiras, foi a mola que impulsionou em 1960, a contratação de Joãozinho da Goméia
por uma boate badalada do Leme: a Fredd’s.
A campanha construída pela Companhia Baiana de Folclore Oxumarê foi divulgada
dentro dos terreiros de umbanda, de São Paulo, Vitória, Pelotas311 e Rio de Janeiro, o que
sugere que a estratégia de controle sobre o campo afro-religioso paulista, objetivava atingir
outros estados brasileiros, onde os umbandistas estivessem em franca ascensão. O projeto
de expansão parece ter sido construído a partir de um mapeamento acerca dos lugares que
mantinham o culto ao orixá Iemanjá, patrocinado pelo Departamento de Turismo e o
Departamento de Cultura que investiam em eventos folclóricos e religiosos do universo
umbandista. O culto à Iemanjá havia fortalecido a relação dos meios de comunicação com
as celebrações religiosas no espaço público 312. De acordo com Armando Vallado 313, o dia
de Iemanjá tornou-se a principal data da Umbanda, virando atração turística, superada
apenas pelo Carnaval314, fortalecendo o interesse do Departamento de Turismo, que viera
a patrocinar eventos desta natureza por associa-los a aspectos do folclore regional destes
locais.
Joana Bahia e Farlen Nogueira315 lembram-se de uma crônica de Manuel Bandeira
publicada pelo Jornal do Brasil em 1949, que sugere que a tradição de render homenagens
a Iemanjá teve início no Rio de Janeiro, quando “uma lendária” barca cheia de flores saía
de Niterói em procissão até Copacabana após a meia-noite. Um acontecimento associado
pelos autores, a práticas religiosas umbandistas, organizadas por centros e tendas
umbandistas. De acordo com Diana Brow, o ano de 1945, marca o início de um período

311
Existem fontes que mencionam a presença da companhia em Pelotas e Vitória. Assim como em festivais
religiosos do Distrito Federal, a partir de 1967, e Festivais folclóricos de Pernambuco, a partir de 1965. Não
analisamos, por ter ciência de que o espaço e o tempo destinados à produção de uma dissertação de mestrado
são limitados.
312
A celebração pública a Iemanjá no Rio de Janeiro é associada a Tancredo da Silva Pinto, o fundador do
Omolocô, que africanizou a umbanda a partir dos anos de 1950. Teria Tancredo criado o “presente a Iemanjá”
em 1961, segundo Luiz Antônio Simas, mas o festejo já acontecia antes da década de 1960, em outras regiões
do país como no litoral paulista, na região sul e em Pernambuco. Tancredo da Silva Pinto, de acordo com
Joana Bahia e Farlen Nogueira, nasceu em 1904 em Cantagalo e morreu em 1979, na cidade do Rio de
Janeiro. Era compositor e sambista, escreveu mais de 30 obras literárias, divulgando a umbanda. Conhecido
como Tatá de Umbanda, porta-voz da federação mais africanizada, surgida em 1949, por defender os
interesses das camadas sociais mais baixas, representadas por negros.
313
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
314
BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. RJ: Cadernos do ISER, nº18, 1985. p. 37.
315
BAHIA, Joana e NOGUEIRA, Farlen. Tem Angola na Umbanda? Os usos da África pela Umbanda
Omolocô. RJ: Revista Transversos, nº13, 2018, p.59.
157

de grande expansão da Umbanda e de sua rápida transformação em uma religião


“legitimamente” brasileira:

Esse ano trouxe não apenas o fim da Segunda Guerra Mundial como também o
termino dos 15 anos de ditadura Vargas, com o consequente retorno a um
governo constitucional. Para os umbandistas, terminara o período de perseguição
sistemática. Agora a Umbanda podia ser praticada livremente, e esta liberdade
recém-adquirida resultou na eclosão de uma intensa atividade organizacional.
Novos centros foram abertos, novas federações formadas, e a Umbanda
começava a aparecer nos meios de comunicação, em programas de rádio, em
colunas semanais dos principais jornais do Rio, e em numerosas publicações de
sua própria iniciativa. À medida que a Umbanda ganhava milhares de adeptos no
Rio, tanto os setores médios quanto entre os setores inferiores da população, e
que suas atividades recebiam maior atenção, muitos terreiros afro- brasileiros
começaram a identificar-se publicamente com esta nova imagem da Umbanda.
Algumas vezes, isto incluía um movimento em direção aos rituais e à
cosmologia dos fundadores da umbanda. A umbanda também começou a
difundir-se rapidamente em outros estados e regiões do Brasil, ganhando, como
no Rio de Janeiro, novos adeptos e exercendo influência sobre várias religiões
afro-brasileiras regionais. Da mesma forma que o Estado brasileiro dentro do
qual surgira, a Umbanda agora começava a exercer uma influência
homogeneizante sobre muitas tradições religiosas regionais, transformando
aquilo que as distinguia e moldando-as na direção de uma cultura religiosa
nacional afro-brasileira. (BROWN, Diana, 1985, p. 9)

Na década de 1960, os jornais Correio da Manhã, Diário de Notícias e Luta


Democrática, cedem um grande espaço para que umbandistas divulguem seus feitos e
divulguem os calendários das celebrações de cada Tenda umbandista. O matutino Diário
de Notícias além de divulgar os livros, que criam padrões de organização dos terreiros de
umbanda, também abrem um espaço para que de forma didática, os umbandistas conheçam
os dogmas e se aproximem da sua religião, o que pode ser comprovado, com a divulgação
da obra de Lourenço Braga; Benedito Silva, Emanuel Zeapo, João de Freitas, Florisbela
Franco e Hilda Roxo. O Diário de Notícias, também dedicava semanalmente a sua
primeira página para a publicação da seção O Espiritismo, a Magia e as Sete linhas da
Umbanda, no qual o escritor umbandista Antônio Eliezer Leal de Souza, dissertava sobre
os fundamentos e os dogmas da Umbanda que o antropólogo Renato Ortiz316 entende como
parte de um movimento fortalecido por canais oficiais, que tem origem no ano de 1939,
quando houve um boom editorial na publicação de livros e séries de reportagens sobre
terreiros de umbanda no Rio de Janeiro. Ortiz aponta o ano de 1960, como o período
em que mais de quatrocentos títulos de livros sobre a religião, alavancaram o

316
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. SP: Brasiliense,
1999.
158

crescimento de editoras como Eco e Espiritualista no Rio de Janeiro e Esotérica em São


Paulo:

Esta diversificação literária denota a existência de diferentes tendências no seio


do movimento umbandista; entretanto, o livro já aparece como meio de
codificação e difusão do saber religioso. É preciso notar que esses textos não
exprimem unicamente pontos de vista individuais, mas veiculam aspirações de
diversos grupos que compõem a religião umbandista; eles se filiam muitas vezes
às diferentes federações que agrupam centenas de tendas e terreiros.
(ORTIZ, 1999, p. 43)

O Correio da Manhã, a partir de 1966, passa a ceder espaço para os responsáveis


pela Tenda espírita Mirim divulgarem as festas umbandistas organizadas por outros centros
e terreiros. Através da sessão “Centros e Tendas”, abrindo-se um importante espaço na
imprensa para que esses locais de culto se tornassem efetivamente conhecidos. Abriu-se
espaço para que terreiros de candomblé Angola pudessem divulgar seu calendário
comemorativo, o que aconteceu com o terreiro da Goméia nos dias das festas de Oxóssi,
Iansã, a do Pilão de Oxalá, a de Cosme e Damião e a do caboclo Pedra Preta. Ações sociais
também eram divulgadas, assim como realização de Congressos, vinculando a imagem
pública da Umbanda a uma religião festiva, que prestava a caridade e incentivava o
aprimoramento intelectual dos seus médiuns esimpatizantes.
O jornal Luta Democrática, reforçava anualmente o seu comprometimento pessoal
com os umbandistas da Baixada Fluminense e arredores, um ato pautado na publicação de
homenagens recebidas por centros espíritas e tendas de umbanda na Praia da Bica, Ilha do
Governador. O deputado Tenório Cavalcanti seguiu o mesmo caminho adotado pelo jornal
Correio da Manhã no incentivo às celebrações públicas dos umbandistas, só que com um
diferencial quanto aos agradecimentos com menções à irradiações pessoais de umbanda
dedicadas ao político e seus familiares.
159

Figura 48: “Tenório nos braços do povo: Comparecendo à Praia da


Bica, na Ilha do Governador, convidado de honra de vários centros
espíritas e terreiros de Umbanda, o deputado Tenório Cavalcanti
recebeu entusiastas manifestações populares”.
Registro da homenagem que o deputado Tenório Cavalcanti recebeu de
representantes de Tendas umbandistas na Praia da Bica, Ilha do
Governador. Uma homenagem que reflete o reconhecimento do jornal
Luta Democrática como divulgador, incentivador e protetor das religiões
afro-brasileiras. Publicação do Jornal Luta Democrática, de
03/01/1960.317

317
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030678&pasta=ano%20196&pesq=Umbanda&pagfis=
15565
160

Figura 49: “Tenório nos braços do povo: Delirantes manifestações de carinhoso respeito do homem
da rua recebeu o parlamentar fluminense, na Ilha do Governador, no centro da cidade e na zona sul-
Saravá Iemanjá! Publicação do jornal Luta Democrática de 03/01/1960 Fonte: BNDigital318

Infelizmente, não conseguimos localizar nenhuma informação que fale da relação


entre Tenório Cavalcanti e os afro-religiosos da Baixada Fluminense, mas sabemos que
existia uma relação de proteção mútua entre Joãozinho da Goméia e o deputado, que pode
ser comprovada por uma publicação no jornal Gazeta da Farmácia de fevereiro de 1956,
que menciona ter Joãozinho fechado o corpo de Tenório e “colocando à sua disposição
318
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030678&pasta=ano%20196&pesq=Umbanda&pagfis=
15571
161

uma falange de espíritos protetores”. A relação entre o pai de santo e o político, só poderia
ser contada por amigos próximos dos dois, de resto, pertence ao campo do imaginário
social da Baixada Fluminense. Sabemos que no terreiro da Goméia, Joãozinho estreitava
laços de afeto e de interesse com muitos vereadores, deputados e até governadores.
Dizem que foi amigo próximo dos presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, mas
o que a pesquisa ao material de imprensa indica, é a sua ligação com muitos políticos
brasileiros, como o governador Roberto Silveira e o presidenciável Café Filho, que
mantinha as portas do palácio do Catete abertas para o pai de santo. Agora nunca
saberemos se foi uma herança deixada pelo ex-presidente Getúlio Vargas ou se é uma
retribuição de favores prestados pelo pai de santo. De qualquer forma Joãozinho abria os
caminhos de seus filhos. O que o espiritual não conseguia os “bons amigos” arranjavam. 319
Uma dessas personalidades de poder, que frequentava o terreiro da Goméia, era
o delegado paulista Albino Imparato, que havia sido convocado para moralizar a cidade de
Duque de Caxias, frente às ações de Tenório Cavalcanti, que recebeu o apelido de
“deputado pistoleiro”, devido aos ajustes de conta com seus inimigos. A convocação de
Imparato320 havia sido feita às pressas, a pedido do presidente Vargas em prol da elite
duque-caxiense321, e em 18 de junho de 1952, o jornal Tribuna da Imprensa, flagra o
delegado em uma das sessões do terreiro. Uma sessão com direito a “uísque farto,
vinhos finos e vatapá gostoso”. O jornal dizia que este requinte fazia parte do sucesso de
uma “indústria macumbeira” que contava com uma estrutura firme sustentada por
arquibancadas, galerias e estacionamento para os carros com “macumba que mais parece
ser o título de um espetáculo teatral”.
Joselina da Silva 322 chama atenção para a diversidade social que existia em dias de
festas na Goméia, o que proporcionava intensa visibilidade ao pai de santo que conseguia
atrair chefes de polícia e delegados como o Tenente Abílio Gomes Vieira.

319
Essa relação entre Joãozinho da Goméia e os políticos foi analisada pela historiadora Elizabeth Gama em
sua dissertação de Mestrado: Mulato, homossexual e macumbeiro: que rei é este? . Mas nos anexos dessa
dissertação trazemos algumas notinhas publicadas na imprensa que retomam este relacionamento.
320
Tenório Cavalcanti em 28 de agosto de 1953 metralhou o delegado Imparato em frente à residência que
morava com seus familiares.
321
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ten%C3%B3rio_Cavalcanti
322
SILVA, 2010, p. 42.
162

Figura 50: “Bebidas finas em sala reservada- A indústria progride- Personagens anônimos no
espetáculo teatral. São os personagens da indústria macumbeira de Joãozinho da Goméia”. Registro da
visita do delegado Albino Imparato ao terreiro da Goméia. Um ano antes do seu assassinato Publicação
do jornal Tribuna da Imprensa de 18/06/1952. Fonte: BNDigital323

O terreiro da Goméia, que havia sido inaugurado em 4 de dezembro de 1951324, no


dia dedicado ao orixá Iansã, passou a oferecer festas publicas concorridas por pobres e
ricos, anônimos e famosos. Os convites eram enviados pelo próprio Joãozinho da Goméia
a pessoas da alta sociedade e do meio artístico e político, além de oficiais das Forças

323
Disponível:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Go
meia&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=8990
324
Correio da Manhã, 9 de dezembro de 1951.
163

Armadas e membros do Corpo Diplomático, que viam as festividades organizadas pelo pai
de santo como um acontecimento social de grande importância. De fato, as festas da
Goméia traziam para o município de Duque de Caxias, muitas melhorias referentes à
iluminação pública e pavimentação de ruas. A fama da Goméia fez a empresa de ônibus
União criar a linha “Caxias-Copacabana”, com o nome Via Joãozinho da Goméia, preso ao

para-brisa325. Ou seja, a referência ao terreiro passou a orientar aos que desejavam ir até a
Goméia para realizar simples consultas ou frequentar as festas que eram divulgadas de
‘boca em boca’ nas boates e teatros, e nas colunas sociais de jornais como o Diário326 da
Noite, Correio da Manhã e Última Hora. Até os anos de 1960, presenciava-se presença de
notinhas em seções e colunas que divulgavam a presença de socialites e de embaixadores
que assistiam cerimônias como a de Iansã, Oxóssi, Obaluaê e a festa do Pilão de Oxalá,
que a partir de 1966, ocupava um espaço de destaque na seção Centros e Tendas do jornal
Correio da Manhã. Outro meio de divulgação do terreiro era através dos cartazes colados
em portas de bares, cinemas e mercadinhos da Baixada Fluminense:

Eram colados nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque
de Caxias papéis e cartazes onde se divulgava: - Segunda-feira: dia de
distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para Obaluaê e Gira para
Exus. -Terça-feira: dia de festa para Oxóssi e ensaios de danças afro-folklorica,
pela tarde. -Quarta-feira: dia de festa em homenagem à Xangô e ao Caboclo
Pedra Preta. -Quinta-feira: dia de festa à Iansã, Oxóssi e Ogum. -Sexta-feira
eSábado: Festas de confirmação de Iaôs e atendimento médico sábado pela tarde.
E a comunidade aparecia em peso mesmo aqueles que não frequentavam o
candomblé iam para ver as festas, pois como todos nós sabemos em toda
festa de candomblé a comida e a bebida era de graça com calendários das festas
do terreiro fixados nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e
Duque de Caxias. Devido a essa publicidade feita em locais de grande frequência
de pessoas, as festas do terreiro ganhavam mais popularidade. Sendo assim, o pai
de santo Joãozinho da Goméia transformou seu terreiro em um lugar político
com todas as nuances que lhe cabiam: o conflito, as bajulações, a amizade, as
negociações, as trocas de favores solidificadas através do auxílio mútuo entre
o pai de santo e os convidados que frequentavam à Goméia para dar e/ou
receber.327

Outro formato de divulgação por Joãozinho foi o da publicação de convites em


língua francesa dedicado à comunidade franco-brasileira e aos turistas franceses que eram
constantes frequentadores da Goméia. A título de exemplificação o jornal Diário Carioca,
publica o convite da festa em honra ao orixá Iansã, endereçado para franceses que
morassem no Rio, ou estivessem de passagem pela cidade. O autor Thiago Almeida

325
NASCIMENTO, 2003, p. 61.
326
Não consegui retirar este traço vermelho.
327
Narrativa da mãe criadeira da Goméia, Ileci da Oxum, colhida em 19 de março de 2002.
164

Ferreira328 evidencia um posicionamento preconceituoso do jornal que ironizou o modo de


escrever do pai de santo, chamando atenção para 50% de erros de escrita quanto ao uso do
idioma estrangeiro.

Figura 51: “Invitation au candomblé” - Registro de convite escrito em francês, ao


bom modo Joãozinho da Goméia de ser. Publicado pelo jornal Diário Carioca de
20/11/1964. Fonte: BNDigital329

Joãozinho da Goméia transformou seu terreiro em um lugar político com todas as


nuances que lhe cabiam: o conflito, as bajulações e as estratégias de poder que foram
materializadas nos espaços onde se alinhavam as redes de sociabilidades, nos espaços de
circulação externa (estacionamento, varanda, aldeia dos orixás - onde ficavam os
assentamentos de orixás ligados à terra como Obaluaê, Exu, Iansã, Oxóssi, Tempo) e

328 FERREIRA, Thiago Almeida. João da Gomeia: transgressões e identidades de gênero no candomblé.
Brasília: Monografia em Historia pela Universidade de Brasília, 2016, p.11. Disponível em:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/15310/1/2016_ThiagoAlmeidaFerreira_tcc.pdf
329
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_05&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Go
meia&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=18437
165

nos espaços internos: o quarto do jogo, roncó, cozinha do terreiro e as arquibancadas330.


Segundo Rodrigo Pereira 331era perto da cozinha do terreiro onde eram servidas as
comidas para as visitas. A cozinha dava acesso ao salão onde estava localizado o trono do
Rei. À frente do trono ficava a arquibancada com seis degraus, o que nos sugere que
era uma forma do pai de santo “controlar, vigiar e punir”, ou mesmo “adular” e ser
“adulado”. O controle da vigilância era o norte da atuação de Joãozinho em dias de
cerimônia pública. Ele precisava observar as arquibancadas, os ogãs, os filhos de santo;
tudo, enfim. Observando, ele sabia como agir ao seu favor. Absolutamente tudo no
terreiro foi pensado para ser controlado pelo pai de santo, e assim ele exercia seu
poder. Um exemplo disso é a porta do barracão que era igual às barulhentas portas de bar,
segundo depoimento de uma filha de santo entrevistada para a tese de doutorado de
Rodrigo Pereira: “a porta era grande e rangia toda vez que alguém passava por ali Pai João
tomava conhecimento”332. Os espaços internos do terreiro eram: quarto de Jogo, Roncó,
Quarto de Oxalá e Iemanjá, e o quarto onde se guardavam os assentamentos dos filhos de
santo da casa. Joãozinho era tão desregrado que não seguia as normas tradicionalistas de
fazer o candomblé, e um dado que aponta isso é relativo ao quarto de jogo dedicado ao
jogo de búzios: “ele não jogava pra Exu no horário em que Exu estava mais ativo (de
manhã cedinho e no fim da tarde), porque os Nagôs seguem esta regra, bastava chegar e
pagar que ele jogava”333. Este dado aponta que o pai de santo criava suas próprias
regras e recriava os ritos ao seu belprazer, de acordo com suas próprias conveniências e
necessidades.
O poder do pai de santo ia além da esfera religiosa, sendo a cozinha do terreiro um
local onde as iguarias eram preparadas para servir ao público. Segundo um depoimento
cedido ao arqueólogo Rodrigo Pereira, “Joãozinho servia comidas e bebidas finas ali
durante o toque”, quando não estava incorporado dançando no centro do terreiro o público
que frequentava, era muitas vezes servido pelo próprio pai de santo que com pulso firme

330
NASCIMENTO, Andréa. Como as festas de terreiro ajudaram a construir o prestigio e o status do Rei do
Candomblé Joãozinho da Goméia entre Salvador e Duque de Caxias (1948-1971). Periferia, v. 12, n. 3, p. 67-
93, set./dez. 2020, p. 81.
Ver em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/54835/37330
331
PEREIRA, Rodrigo. Análise do espaço e da cultura material no extinto terreiro da Goméia (Duque de
Caxias): um estudo etnoarqueológico. RJ: Tese de Doutorado defendida pelo Museu Nacional da UFRJ,
2019. Ver em:
https://www.academia.edu/38661356/AN%C3%81LISE_DO_ESPA%C3%87O_E_DA_CULTURA_MATE
RIAL_NO_EXTINTO_TERREIRO_DA_GOMEIA_DUQUE_DE_CAXIAS_RJ_UM_ESTUDO_ETNOAR
QUEOL%C3%93GICO_VOLUME_1
332
Idem
333
Ibidem
166

controlava a festa334.
A cozinha funcionava com carvão o que era comum para os terreiros dos anos de
1950 e 1960. Tudo se aquecia naquele forno de tijolos, até os banhos das visitas. A comida
servida na Goméia “era de gente rica”, que pobre não comia. A comida levava creme de
leite, azeitona. Eram servidas em travessas caras e importadas. As comidas da Goméia
eram refinadas porque Joãozinho investia todo o dinheiro que ganhava com as
apresentações em teatros, boates e festivais na divulgação do seu nome. Ali eram servidos
Abará Acarajé, Arroz branco, Arroz de forno, Arroz-de-hauçá, Bobó, Bolo inglês,
Canapés, Canjica de milho branco, Caruru, Churrasco, Empadinhas de camarões,
Estrogonofes variados, Farofas, Feijão de leite, Feijoada, Frigideira de camarões, Galinha
ao molho pardo, Galinha a cabidela, Mariscada, Maniçoba, Moqueca de peixes, de mariscos
e de siri mole, Moqueca de Xaréu, Pastéis, Pato com laranja, Sarapatel, Vatapá, Xinxim de
galinha335.
O jornal Tribuna da Imprensa de 18 de agosto de 1952 traz o luxo e o glamour que
havia sido a festa em homenagem ao orixá Obaluaê, protegida pelo delegado paulista
Albino Imparato enviado a Duque de Caxias para conter o poderio do deputado Tenório
Cavalcanti, amigo pessoal de Joãozinho da Goméia336. Jornalistas ficavam impactados com
o prestigio alcançado pelo pai de santo:

O famoso pai de santo dirigiu convites especiais à imprensa e às autoridades para


os festejos sob a invocação do orixá, tendo o babalaô convidado, inclusive todos
os demais chefes de terreiro que privam da sua intimidade de grande iniciado.
Junto ao aristocrata que chega ao terreiro entronado no cadillaquezinho estão
o homem da rua, o modesto servidor público ou o trabalhador braçal. Todos
comungam na mesma crendice e as Tendas ou Centros Espíritas da chamada
linha branca, ou os terreiros da linha negra vivem sempre repletos na pratica dos
seus rituais primitivos, onde são invocados os guias protetores que baixam das
alturas pela incorporação. O terreiro estava profundamente iluminado, e os seus
altares enfeitados de ricas flores, colocadas em vasos especiais sobre as faces das
quais estão pintados os símbolos religiosos do terreiro. Dispostas em duas filas
laterais aparecem amplas e bem construídas arquibancadas destinadas à
assistência que ali se comprimia. Fora está a área para o estacionamento de
337
veículos que chegam aos grupos durante todo o transcurso da festa.

334
PEREIRA, 2019, p.383.
335
NASCIMENTO, 2020, p. 88.
336
Reza a lenda que a relação de Joãozinho com Tenório também era fundamentada em trocas de favores e
de proteção. Ao mesmo tempo em que Joãozinho protegia Tenório espiritualmente, Tenório protegia
Joãozinho da ação da polícia e dos bandidos.
337
Última Hora, 23 de dezembro de 1953.
167

Na reportagem “O Grã-fino” do terreiro, publicada pela revista Manchete em 8 de


outubro de 1952, Joãozinho é identificado como “o maior feiticeiro da cidade” e também
como o mais grã-fino de todos. A festa de Cosme e Damião ofertada para espíritos de
ibejis e de erês é comparada como uma recepção dos salões nobres de Copacabana, pela
grande presença de pessoas da alta sociedade, com seus automóveis elegantes estacionados
na área externa do barracão. A presença do Senador Alencastro Guimarães, do paisagista
Roberto Burle Marx e do escritor e crítico literário Antônio Olinto, chama atenção para o
prestigio do local junto as pessoas de destacada posição social na sociedade carioca.

Figura 52: “Joãozinho da Goméia, o grã-fino do terreiro”. Publicação da revista Manchete de 08/10/1952.
Registro da festa de Cosme e Damião organizada por Joãozinho da Goméia. Fonte: BNDigital338

338
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=004120&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Gomei
a&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=1088
168

De acordo com Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva:

Joãozinho foi sem dúvida, um personagem que transgrediu alguns dos segredos
tidos como fundamentais nas alianças entre os terreiros. Contudo, sinalizou e
promoveu o candomblé como uma rica expressão religiosa, estética e lúdica.,
dada sua sensibilidade em perceber as fortes relações que esse campo religioso
mantinha com outros aspectos da cultura brasileira: a música, a dança, as roupas,
os adereços, as festas populares, enfim, como um imaginário presente no
cotidiano de milhões de brasileiros. (LODY e SILVA, 2002, p. 155)

Os autores também informam que a maior paixão de Joãozinho, além do


candomblé, era o carnaval carioca do qual era um participante ativo. Em algumas
reportagens nas quais o pai de santo é entrevistado, ele sempre exalta o seu fascínio pela
possibilidade de brincar sem maldade. Tinha paixão pela Escola de Samba Império
Serrano-a verde e branco de Madureira, que acompanhou desde a fundação339.

Os envolvimentos de Joãozinho com o carnaval carioca estão localizados em


diferentes vertentes como, por exemplo, a sua participação nos bailes de gala dos salões
nobres da cidade, como “destaque de luxo” nas escolas de samba Império da Tijuca e
Império Serrano e no processo de escolha das novas rainhas do rádio. Mas trataremos
destas questões mais adiante. Por agora, trataremos de uma polêmica que envolveu
Joãozinho no Teatro João Caetano em 1956. Mas para que consigamos entender a razão
que levou Joãozinho a participar de um concurso de fantasias no Baile do Travesti,
consideramos que seja necessário voltar ao ano de 1955, quando o jornal Luta
Democrática iniciou uma campanha agressiva contra o evento pré-carnavalesco.

339
LODY e SILVA, p. 166.
169

Figura 53: “Sodoma a vista no carnaval carioca- depravação policiada”. Capa do jornal Luta
Democrática de 24/02/1955. Fonte: BNDigital340.

O Luta Democrática publica uma reportagem de proporções desastrosas, sobre os


tradicionais bailes dos travestis que aconteceram no Teatro João Caetano e do Teatro

340
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=deprava%C3%A7%C3%A3o%20poli
ciada&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=2665
170

República. Carregado de extremo mau gosto e moralismo, o divertimento foi tratado pelo
jornal, como uma reunião de anormais, que vendia ao público estrangeiro a “falsa
impressão da moral do povo brasileiro”. A indignação maior do periódico foi constatar a
presença de parlamentares, embaixadores e artistas travestidos de mulheres, brincando o
carnaval sem maiores preocupações. Alguns dias após a publicação, o periódico inicia uma
campanha moralizante para proibição da folia na Praça Tiradentes, fazendo uso de estudos
científicos que criminalizam homossexuais e imputam a eles responsabilidade pela
disseminação da criminalidade, com publicação de pareceres médicos que atestam que a
condição sexual daqueles homens seria um atestado de anormalidade e periculosidade.
Fazem uma convocatória pública das autoridades policiais e dos parlamentares da Capital
Federal, para que proíbam a realização de bailes que reunissem travestis ou homossexuais.
A reportagem de caráter homofóbico vem seguida de outra mais ofensiva ainda, publicada
em 22 de março do mesmo ano, quando os crimes que aconteciam em Duque de Caxias
são associados aos homossexuais da cidade. Intitulados como “anormais” e “invertidos”, a
intenção do jornal é tentar até conseguir acabar com os bailes de travestis realizados em
período carnavalesco.

Figura 54: “Aumenta consideravelmente o número de suicídios e crimes de anormais”. A


reportagem que criminalizou homossexuais de Duque de Caxias em 1955. Fonte: Capa do jornal
Luta Democrática de 27/03/1955. Fonte: BNDigital341

341
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=%22CRIMES%20DE%20ANORMAI
S%22&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=2891
171

A reportagem comenta que no Baile do travesti de 1955, o Teatro João Caetano


havia sido tomado por homossexuais das classes mais favorecidas, como advogados,
médicos, diretores de companhias nacionais e estrangeiras e até diplomatas:

Essa degradação social denunciada pelo Luta Democrática não mereceu do


prefeito uma investigação administrativa para verificar a responsabilidade dos
que cederam um edifício próprio da Prefeitura para uma festa sodomita de
repercussão internacional, afetando com isso o conceito de moral do nosso povo
nas demais nações civilizadas. Outros jornais abriram colunas para louvar o
garbo das ‘Meninas do Paraíso’, frisando que grande parte da ‘gente bem’ que
estava no baile do Teatro Municipal abandonou a festa em que se encontrava
para admirar o garbo e a plástica dos invertidos sexuais que superlotavam o
Teatro João Caetano. Enquanto esse afrouxamento moral da Polícia agradava a
degenerescência dos costumes, nada se faz para pôr um freio na doença que o
Instituto de Endocrinologia poderia combater se tivesse recursos para tanto. Ao
contrario nossa reportagem, denunciando o certame imoral, sofreu ataque dos
moralistas da classe do avestruz que esconde a cabeça para não ver a extensão do
perigo e dos amorais que encheram de cartas a seção popular de conceituado
matutino aristocrático, defendendo como uma conquista democrática o baile dos
homossexuais, beneficiado pela Prefeitura Municipal no carnaval de 1955.342

Um baile patrocinado pela Associação dos Cronistas carnavalescos que era uma das
maiores atrações turísticas do carnaval carioca. O luxo, o bom gosto e a originalidade das
fantasias chamava atenção e atraía todo o tipo de gente para a porta do teatro. Era uma
competição entre travestis nacionais e estrangeiras.
O Teatro da República, embora com menos projeção, potencial e frequência,
organizava bailes, a partir do dia 31 de dezembro, aos sábados, com shows pré-
carnavalescos. Outro baile desse gênero é o “Baile dos Enxutos” que acontecia no Teatro
Recreio que se inspirava no baile do João Caetano ameaçado pela polícia, e acabava
funcionando com mandado de segurança 343. O Teatro República, próximo à Praça
Tiradentes, era um local já conhecido desde os anos de 1930, pelos concorridíssimos
concursos de fantasias organizados pelo bloco dos Caçadores de Veados344, no qual a
artista Madame Satã desfilava. Um bloco que no carnaval de 1934, era apresentado em pé
de igualdade com outros blocos de rua como o Democráticos, Fenianos, Tenentes, Pierrots

342
Luta Democrática, 27 de março de 1955.
343
O mandado de segurança é um instrumento jurídico, cuja finalidade é proteger direito líquido e certo, ou
seja, provado por documentos, que tenha sido violado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
344
Era um bloco de rua composto de homens que atuavam como travestis, e que desfilava pelas ruas da cidade
do Rio de Janeiro, no carnaval dos anos de 1930.
172

da Caverna, Recreio das Flores, Arrepiados, Aliança Club, União de Bonsucesso, União
das Flores, Quem fala de nós tem paixão, Caçadores da Floresta, De língua não se vence,
Sou do Amor, Não Posso me amofinar, Chora-chora, Bahianinhas do Sampaio, Respeita as
Caras, Força de Vontade e Andarahy Club Carnavalesco 345.
O bloco carnavalesco Caçadores de Veados foi organizado no ano de 1930, pela
travesti Rainha346, e se apresentava com os trajes de luxo. Era uma condição para fazer
parte. Era o momento para que aqueles homens marginalizados socialmente se destacassem
socialmente e recebessem a aclamação popular nestes dias nos quais as regras sociais se
ausentavam por quatro dias de alegria extrema. O nome do bloco denunciava a violência e
o achatamento social, sofrido cotidianamente, com o uso zombeteiro de uma terminologia
agressiva que revelava a violência cotidiana sofrida por homossexuais e travestis no Rio de
Janeiro.
James N. Green comenta a participação de Madame Satã em baile do Teatro da
República, no ano de 1938, que a princípio não era promovido como uma festa de
travestis:

Por exemplo, o ano em que Madame Satã ganhou o prêmio pela fantasia que
mais tarde lhe emprestaria seu nome de guerra, o Jornal do Brasil publicou
anúncios convidando para as quatro noites das festividades de carnaval no teatro
em que ele competia. Embora os anúncios mencionassem prêmios para a melhor
fantasia. Não há indícios de que homens vestidos com roupas femininas
competissem pelos prêmios. Muito provavelmente, o boca-a-boca conduzia
homossexuais a tais lugares, onde eles poderiam exercer com relativa liberdade
ser travestismo e desfilar com suas criações. (GREEN, 2000, p. 342)

Os teatros da Praça Tiradentes, além de servirem de palco preferido para as


produções dos Teatros de Revistas, também sediavam as mais concorridas festas de
carnaval da cidade, sendo o local um importante ponto de socialização entre homossexuais
que se reuniam com intenções artísticas e sexuais. Eram homens que trabalhavam na região
da Lapa, nos teatros e cinemas da área como dançarinos, atores, ajudantes de costureiros,
figurinistas, cenógrafos e lanterninhas de cinemas347. Os travestis, inclusive, são um dos
responsáveis pela renovação do cenário do Teatro de Revista, em sua fase mais ostensiva e
luxuosa. O emprego dos brilhos nas roupas e dos gigantescos leques de plumas são legados
do Cassino Atlântico, Cassino da Urca, Cassino Icaraí. A década de 1950, inclusive, fora o

345
O Paiz, 16 de janeiro de 1934.
346
Nome civil Antonio Setta
347
Idem
173

período em que o Teatro de Revista contou com grandes produções, que tomavam conta
por completo da Praça Tiradentes, que encontraram na figura do produtor e empresário da
noite Walter Pinto, um aliado para transformar a região em uma explosão de luz, cores,
brilho, maquinaria e som348. A sofisticação posta em cada pequeno detalhe transformou as
bilheterias do teatro Recreio e do João Caetano em verdadeiras máquinas de dinheiro. O
sucesso de bilheteria gerado pela diversidade de produções revisteiras não deixaram a
cidade do Rio por muito tempo com o sentimento de vazio deixado pelo fechamento das
roletas dos cassinos da Zona Sul. O que pode ser verificado em relação ao Teatro João
Caetano, que apenas no ano de 1952, contou com três produções: “Pau de Arara” de Max
Nunes, com José Vasconcelos, “Canta Brasil”, de Max Nunes com Luiz Iglesias e Carlos
Galhardo e “Lá vem a cobra Grande”, com Araci Cortes e Ankito.
A Praça Tiradentes tornara-se, então, um “triangulo cultural” produtor de arte
teatral, cinematográfica e radiofônica, já que a região contava com a existência de
onze teatros que variavam o repertório entre revistas, burletas e operetas349, estúdios
cinematográficos da Atlântida, localizado na Visconde de Rio Branco e a Rádio Nacional
que contavam com a liberdade e brejeirice, assim como os luxuosos trajes de espetáculo
tornaram essas mulheres em musas e divas, inspirando a arte de diversas travestis que
entendiam essas mulheres como símbolo do glamour350. Este glamour seria o tipo de
agência que permitiria que travestis habitassem o mundo, quebrando padrões sociais
heteronormativos. Thiago Barcelos Soliva compreende que:

O show business foi um vetor de ascensão social e simbólica através do


qual as travestis brasileiras experimentaram uma realidade menos violenta e até
um considerável reconhecimento, tendo em vista o assedio que sofreram na
imprensa, ou seja, a curiosidade, mais do que a hostilidade ou o medo,
caracterizou a resposta do público brasileiro das Revistas à cena travesti durante
uma primeira onda, o que vai contribuir para a proliferação de atores
transformistas ocupando lugares altamente disputados na cadeia cultural do Rio
de Janeiro durante muito tempo. (SOLIVA, 2016, p. 159)

Os bailes de travestis eram os eventos mais discutidos pela população carioca desde
quando se iniciam os ritos de preparação do carnaval, a partir de meados de cada ano.
Participavam aqueles que eram declaradamente gays e os que não assumiam publicamente

348
PEREIRA, Roberto, p. 89.
349
VENEZIANO, Neide. O sistema vedete. Salvador: Repertorio nº17, 2011, p. 58-70.
350
MATHIEU, Beatrice e THÜLER, Djalma. A primeira onda da cena travesti no Brasil: a centralidade do
‘corpo em travesti’. Urdimento-Revista de Estudos em Artes Ciências, Florianópolis, v.2, n.41, set. 2021,
p.12.
174

a sua homossexualidade. Era, de fato, um baile democrático no qual a liberdade dos


excluídos pela sua condição sexual, era autorizada sem o risco de retaliações. A elite
carioca frequentadora dos bailes de gala do Teatro Municipal, do Club Sírio Libanês, do
Hotel Gloria, do Jockey Club, do Copacabana Palace, do Hotel Quitandinha, e de tantos
outros lugares aristocráticos, se interessava pelo aspecto exótico das fantasias e se
entusiasmam com o a alegria dos artistas transvestidos. James N. Green informa que, no
início dos anos de 1950, os empresários do entretenimento começaram a se interessar pela
presença dos homossexuais nos bailes a fantasia e, com isso contratavam essas artistas
para ocuparem espaço nos meios de comunicação para incentivar a participação,
principalmente em bailes de gala nos quais muitas vezes a presença era impossibilitada
pelos altos valores dos ingressos e pela frequência de pessoas da alta sociedade carioca.
Existia um crescente desejo em estimular o crescimento da subcultura homossexual no Rio
de Janeiro, no período posterior a Segunda Guerra Mundial 351.
Com a crescente ocupação da vida noturna por artistas travestidos e homossexuais
em geral, os bailes de carnaval do centro da cidade passaram a contar com sua presença
em massa. E, apesar do Teatro João Caetano, cumprir uma tradição de ser um espaço
cultural acessível à população menos afortunada, com ingressos a preços populares, no dia
dedicado às travestis, os ingressos praticamente triplicavam de preço, o que levou o Teatro
Recreio e o Teatro da República a abrigar travestis mais pobres. O sucesso alcançado
pelo Teatro João Caetano, logo no início da década de 1950, atraiu verbas do governo
ironicamente que passou a ser ornamentado suntuosamente sendo comparada a
ornamentação do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O “triângulo cultural” formado pela
Rádio Nacional, o cinema da Atlântida e o Teatro de Revista, estimulava a movimentação
midiática em torno do carnaval, o que reverberava nos quatro dias de folia, estimulando a
produção de conteúdo para as revistas de fãs 352. Isso impulsionava as cifras da indústria
cultural que agia em cadeia fomentando o setor turístico, o mercado fonográfico e o
mercado dos produtos de beleza. Essas revistas anunciavam a votação dos Melhores do
Rádio, Rainha do Disco, da Rainha do Rádio, do Rei e Rainha do carnaval, e d o
“ Cidadão Samba”, escolhido pela Associação das Escolas de Samba. Em 1950, por
exemplo, o Diário da Noite, iniciou ainda nos primeiros dias do mês de fevereiro uma

351
GREEN, p. 345.
352
A modinha popular, Astros e estrelas da música popular, Artistas Club, Vida Doméstica, Radiolândia,
Revista do Disco e Revista do Rádio.
175

série de reportagens na qual fora construída uma “guerra” entre as “exóticas” vedetes
naturalistas Elvira Pagã e Luz Del Fuego. A coroa de Rainha do carnaval de 1950 foi dada
a vedete Elvira Pagã, que foi ovacionada e carregada nos ombros da população, declarando
logo em seguida que trocaria a coroa de princesa do carnaval carioca pela macia poltrona
do Palácio Tiradentes, onde defenderia suas ideias junto ao recém criado Partido
Naturalista Brasileiro.353
O memorialista Rodrigo Faour354comenta sobre a polemica chanchada carnavalesca
Tira a mão daí dirigida por J. Rui, que estreou em 13 de fevereiro de 1956, com um
premiado elenco formado por: Virginia Lane, Linda e Dircinha Batista, Jackson do
Pandeiro, com comediantes que ironizavam a obsessão do povo brasileiro por coroações de
Reis e de Rainhas, “não eram só os artistas que eram coroados, mas também anônimos.
Havia Rainha do comércio, Rei da Boemia, enfim monarquias por toda a parte”.355 Uma
das críticas identificadas por Faour, foi a da repetição de marchinhas e sambas do último
carnaval. A ausência de renovação musical que apresentasse os próximos sucessos do
carnaval de 1956 incomodou a todos: público, críticos, compositores e artistas que
contavam com esta janela de divulgação.
O carnaval de 1956 foi inesquecível para o povo carioca, que contou com a
felicidade e a sorte de ter naquele ano, sambas e marchas que estiveram presentes nos
salões, blocos, rodas de samba e terreiros de umbanda, como o samba “Rádio patrulha”, o
grande sucesso do carnaval, que acabou virando ponto cantado pelos malandros da
umbanda343, que tinha como compositor o mestre imperiano Silas de Oliveira, que
havia emplacado mais dois sambas naquele mesmo ano, em parceria com outro
compositor da Escola de Samba Império Serrano- Mano Décio da Viola. Aliás, o ano de
1956, foi de fato o ano do Império que, desde o carnaval de 1955, conquistara o título de
campeã do carnaval carioca. Em 1956, o enredo “Caçador de esmeraldas ou sonho de
esmeraldas” que narrava a busca do Bandeirante Fernão Dias Paes Leme, por pedras
preciosas, conseguiu vencer a Portela, por apenas seis pontos de diferença, com o samba-
enredo “Gigante pela própria natureza” de autoria dos compositores Candeia e Waldir 59.

353
Segundo informa o site Wikipédia, Tentou candidatar-se a deputada federal com um partido político por
ela fundado, mas impedido de ser registrado, e aventurou-se esporadicamente em algumas produções
cinematográficas ao longo dos anos de 1950.
354
FAOUR, p. 214 e 215.
355
É um importante ponto de reflexão que vai de encontro com a realeza de Joãozinho da Goméia, muito
reforçada a partir dos anos de 1950. O que também nos remete a lendária coroação da Rainha Elizabeth, que
havia aclamado o pai de santo como Rei do candomblé. A Rainha Elizabeth vem ao Brasil a primeira vez em
1 de novembro de 1968, e o título de Rei do candomblé aparece associado a Joãozinho em 1942, inclusive é
apontado como um dos motivos da sua prisão no Rio de Janeiro.
176

Para dar destaque aos lançamentos daquele ano, o Diário Carioca de 12 de


fevereiro traz o samba “A Voz do morro”, criado pelo compositor portelense Zé Kéti, para
o filme Rio 40 graus que tem o roteiro e a direção de Nelson Pereira dos Santos; e os
sambas “Fala Mangueira” de Miraheau e Milton, imortalizado pela voz de Ângela Maria; e
o “Exaltação a Mangueira” de autoria de Encas Brittes e Aloísio Augusto da Costa,
gravado por Jamelão. Os sambas “Castelo de Mangueira” de autoria de Ataulfo Alves e
Roberto Martins, e “Mangueira” de autoria de Arlindo Marques Junior, Nelson
Cavaquinho e Roberto Roberti, gravado por Alcides Gerardi, alertavam para a boa fase em
que a Estação Primeira de Mangueira passava no início do ano de 1956, levando para o
chão da Avenida Presidente Vargas, o enredo “Exaltação a Getúlio Vargas- Emancipação
Nacional Brasil” de autoria de Hermes Rodrigues:

No dia 19 de abril nascia Getúlio Dorneles Vargas, que mais tarde seria o
governo donosso Brasil. Ele foi eleito deputado para defender as causas do nosso
país. E na revolução de 30, ele aqui chegava como substituto de Washington
Luiz. E do ano de 1930 para cá foi ele o presidente mais popular. Sempre em
contato com o povo, construindo um Brasil novo e trabalhando sem cessar.
Como prova, Volta Redonda a cidade do aço existe a grande Siderúrgica
Nacional, que tem o seu nome elevado no grande espaço. Na sua evolução
industrial, Candeia a cidade petroleira trabalha para o processo fabril. Orgulho
da indústria brasileira. na história do petróleo do Brasil. Ô Ô Ô Ô Salva o
estadista, idealista e realizador. Getúlio Vargas, o presidente de valor.356

O fervilhar de sambas e marchinhas, que fariam sucesso no carnaval de 1956, não


saíam da boca do povo desde meios de 1955, quando se programavam os rumos do
carnaval do ano seguinte. Eram composições que em sua grande maioria falavam de um
cotidiano que via a dificuldade e a tristeza ser dissipada pelo samba, como aparece nas
composições “Melodia do morro” de autoria de Luís de França e Nelson Bastos, gravada
por Ataulfo Alves, e “Couro do falecido” de Monsueto e Jorge de Castro gravado pela
357
cantora Marlene.
A letra do samba “Rádio Patrulha” de autoria de Silas de Oliveira, que virou ponto
de macumba, entoado em giras de malandros em terreiros no Rio de Janeiro, dizia: “Se a
rádio patrulha chegasse aqui agora seria uma grande vitória. Ninguém poderia correr.

356
Ver mais em https://hhmagazine.com.br/1956-um-carnaval-que-nao-sai-da-boca-do-povo
357
Dentre as “Capote de pobre” de Nelson Figueiredo e Aparecido Silveira, “Na casa de corongodó” de
Armando Passos e Monsueto, “Fala Mulato” de Ataulfo Alves e Alcebíades Nogueira, “Pau d’água” um
samba batucado de Lídio Neto e Oswaldo Nascimento, “Me dá meu boné’ de Monsueto e Jorge de
Castro, “Quem sabe, sabe” uma marcha de Jota Sandoval Carvalho, “Claudionor” de Herivelton Marins e
Nelson Gonçalves, e “Ibraim piu, piu”, uma marcha de Miguel Gustavo gravado pela cantora Marlene.
177

Resistência e coragem, não lhe ofereço quando ela chega impondo respeito, não merece o
preço”, revelava os trânsitos percorridos por inúmeros nordestinos atraídos para a Capital
Federal na primeira metade do século XX. Os baianos, malandros, malandras, ciganas,
ciganos, pretos e pretas velhas se tornaram mestres de sabedoria, de cura e de
aconselhamentos. O povo passa a usar o termo “macumba”358 para definir sua religião e
compreende que a macumba era um lugar de socorro ao desespero, e de busca por sorte no
amor, no sexo e no jogo. Assim como o samba, o carnaval e a macumba possibilitavam
aquisição de um bom emprego e de oportunidade de se dar bem na vida. O carnaval,
deste modo, tornara-se o local onde estes excluídos da sociedade, escorraçados pela elite
nos outros dias do ano, tornavam-se reis, rainhas, imperadores e imperatrizes. O carnaval
era o local por aclamação da realização de sonhos e desejos.
O Diário Carioca de 11 de fevereiro de 1956 lança as regras que estabelecem as
proibições para os dias de carnaval, enumeradas pelo General Augusto da Cunha Magessi
Pereira359, como passíveis de pronta repressão: 1- usar fantasias que atentem contra a moral
ou as que imitem hábitos religiosos e peças de uniformes adotados pelas Forças
Armadas e corporações militares; 2- Usar calções de banho como maiôs e biquínis; 3-
Queimar bombas, foguetes e outros artigos pirotécnicos em lugar público; 4- Maltratar
animais; 5- Usar lança- perfumes ou bisnagas de matéria plástica em recintos fechados; 6-
Usar entorpecentes de qualquer natureza nos bailes de rua; 7- Usar instrumentos pesados
para divertimento; 8- Praticar danos contra propriedade, especialmente em bondes, ônibus
e outros veículos; 9- Facilitar o lenocínio; 10-Usar ou vender lança-perfumes e bisnagas de
matéria plástica nos prédios onde se realizem bailes; 11- Servir bebidas alcoólicas a
menores de 18 anos, ou a quem estiver em estado de embriaguez; 12- Todos os bailes
teriam que acabar precisamente às 4horas da madrugada.

3.1. O sensacional Baile do Travesti do Teatro João Caetano

A reportagem da Revista da Semana, de 3 de março de 1956, chama atenção para a


realização do famoso baile pré-carnavalesco de travestis, que atraíam artistas do sexo

358
O termo macumba que surge de uma categoria de acusação aos praticantes das religiões afro-brasileiras, é
popularizado entre aos sujeitos dessas acusações.
359
Nomeado chefe de polícia de Distrito Federal (Departamento Federal de Segurança Pública — DFSP) no
início do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), ainda em agosto de 1956 decidiu
empastelar o jornal Tribuna da Imprensa, o que realizou com a ajuda de outros oficiais.
178

masculino de toda parte do mundo. Por ser uma conhecida atração turística, havia entrado
no roteiro das agências europeias e norte-americanas, assim como aconteciam com os
bailes do Teatro Municipal e do Quitandinha, localizado na cidade imperial de
Petrópolis. O baile do João Caetano apenas concorria holofotes com os desfiles dos
blocos e ranchos carnavalescos. Seria também a primeira vez que fotógrafos e cinegrafistas
internacionais registrariam cada artista do baile, destacando o luxo dos bordados e as
predarias usadas em cada vestimenta. A Revista do Rádio mencionava que havia sido
grande o número de artistas do rádio, do teatro e do cinema que compareceu ao baile
naquela segunda-feira de carnaval. O concurso de fantasias premiaria as mais belas e
luxuosas fantasias, com a presença de candidatas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Argentina e França, sendo tudo transmitido por emissoras de
televisão.

Figura 55: “O Baile do travesti”. Capa da Revista da Semana de 03/03/1956.


Eis a primeira publicação que apresenta Joãozinho da Goméia, identificado
como travesti. Fonte: BNDigital360

360
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=025909_05&pasta=ano%20195&pesq=baile%20do%2
0travesti&pagfis=18822
179

Os jornais comentavam que o Baile do Travesti era o mais comentado do Rio de


Janeiro, e que havia assumido naquele ano proporções gigantescas, devido ao surrealismo
da ornamentação do teatro que atraíra o olhar do paisagista Burle Max, que havia
abandonado mais cedo do Baile de Gala do Teatro Municipal, para ir ver de perto o desfile
que decorava a porta da casa de espetáculos da Praça Tiradentes. O baile de 1956 havia
superado o dos anos anteriores com superlotação na porta e dentro do teatro, com
camarotes e frisas repletos de artistas e gente da alta sociedade. O prêmio foi dividido
entre a candidata fantasiada de “Pássaro sagrado”, carregada por seis fortes e
musculosos rapazes dentro de uma gaiola. O segundo lugar foi para a fantasia de
“Caseata”, e o terceiro lugar que recebera uma menção honrosa foi para Joãozinho da
Goméia, fantasiado de “Folies Bergères”, que era o nome de um famoso e secular
cabaré parisiense, onde mulheres e travestis brilhavam sem preocupação com o pudor
e o recato. Também sem economizar brilho e luxo faziam turnês por países da América
Latina e pelos Estados Unidos:

A Companhia de Revistas Francesas, nome pelo qual o Folies Bergère se


apresentava no Brasil desde 1950, cedia muitas cantoras, dançarinas e travestis
para as companhias brasileiras de Teatro de Revistas, sendo os produtores Carlos
Machado361 e Walter Pinto seus principais beneficiados. As boates Casablanca
na Praia Vermelha, Fred’s do bairro do Leme, Monte Carlo da Rua Marquês de
São Vicente, Night Day da Cinelândia, e Vogue em Copacabana contavam com
as presenças das artistas dos cabarés franceses e da famosa Companhia de
Revistas Francesas que encenavam espetáculos musicais inspirados na music
hall francês e nos grandes musicais da Broadway e de Hollywood.362

Paulo Siqueira363comenta que Joãozinho havia comparecido ao baile do travesti


fantasiado de ‘Arlete” uma suposta marchinha carnavalesca da época. A marcha “Todo
Vedete” da autoria de Wilson Batista, Jorge de Castro, e interpretada por Nelson
Gonçalves, gravada em 7 de novembro de 1955 pela RCA-VICTOR, havia sido censurada
por fazer menção ao baile do travesti do Teatro João Caetano, sendo liberada dias depois
por meio de um mandado de segurança. A “Todo vedete”364 passou a ser associada a
Joãozinho da Goméia, por jornalistas que produziam reportagens sobre o desfile, acirrando

361
Segundo os escritores Léo Feijó e Marcus Wagner, o produtor e empresário da noite Carlos Machado teve
um reinado marcado por 150 shows entre 1950 e 1960, reinventando no gênero do teatro de revista nas boates
do Rio de Janeiro.
362
FEIJÓ e WAGNER, p.167.
363
SIQUEIRA, 1971, p.65.
364
A marcha era assim “Antônio fantasia-se de Arlete todo ano, todo ano. E vai todo vedete ao baile do João
Caetano”. In: Correio da Manhã, 26 de fevereiro de 1957.
180

mais ainda o preconceito contra o baile por parte das autoridades e dos umbandistas, que
decidiram julgar a atitude do pai de santo, cogitando a sua expulsão da Umbanda.
A presença de Joãozinho no concurso havia provocado uma corrente de ofensas e
de críticas na imprensa de todo país. Com protestos ácidos partidos de umbandistas
indignados com a participação de uma liderança religiosa em um baile de travesti. O
“folião-travesti” que atuava cotidianamente como pai de santo de um terreiro de
candomblé teve a sua identidade religiosa capturada por representantes de tendas e
Federações umbandistas. Mas, antes de esmiuçarmos o descontentamento destes
umbandistas, precisamos relembrar a reportagem do jornal duque caxiense Luta
Democrática, que criminalizava os homossexuais e condenava a realização do baile do
travesti. Não temos elementos concretos que nos provem, que a escolha por se travestir de
vedete francesa no Teatro João Caetano seja resultado da reportagem de cunho
homofóbico, produzida por um jornal da cidade onde dirigia seu terreiro de candomblé.
Apesar das acusações ofensivas na imprensa à sua condição sexual, Joãozinho da
Goméia, desde a publicação do livro A Cidade das Mulheres, escrito pela antropóloga
norte- americana Ruth Landes, nunca mais foi abordada. De fato, ele não havia levantado
em nenhum momento alguma “bandeira” de pertencimento à comunidade gay. A sua
atuação no Baile do travesti, para Joãozinho havia cumprido dois propósitos: um explícito
e um implícito. Joãozinho, sempre brincou o carnaval nas ruas do bairro da Liberdade que
tinha a grande vocação para celebrar a cultura negra. A personalidade transgressora de
Joãozinho encontrara no universo travesti da Praça Tiradentes a oportunidade de se rebelar
contra todo o moralismo extremado queo perseguira desde os tempos de Salvador.
Acreditamos que a Duque de Caxias, de 1956, comandada pela emblemática figura
de Tenório Cavalcanti, proprietário de um jornal que se autodeclarava como um “Jornal de
luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar”, era um local em que viceja o
preconceito contra homossexuais e que as ofensas feitas na reportagem de 1955, tenham
provocado e exigido um posicionamento público de Joãozinho da Goméia que era
conhecido por ser acolhedor com pessoas que viviam a margem da sociedade. Lembramos
que em 29 de junho 1950, o Diário Carioca anunciou a prisão da travesti Bibi dos Amores,
identificada como filha de santo e cambono da Goméia, sugerindo a possível existência de
uma rede de proteção a travestis e homossexuais, dentro do terreiro, o que daria sentido ao
seu suposto ato político no João Caetano. É muito provável que a decisão seja fruto de um
ato político de combate ao preconceito contra a sua condição sexual.
181

Figura 56: Joãozinho da Goméia, travestido de bailarina da companhia de revistas


francesas, a folie bergère de paris. Publicação da Revista da Semana 03/03/1956
Fonte: BNDigital365

365
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=025909_05&Pesq=baile%20do%20travesti&pagfis=1
8853
182

Figura 57: Outro ângulo de Joãozinho da Goméia travestido de vedete


francesa.
Fonte: GAMA, 2012, p.166.

Sendo Joãozinho um suposto protetor contra a violência de gênero na Baixada


Fluminense. Assumir publicamente a sua condição sexual pode ter sido um ato político,
contra o posicionamento da imprensa duque caxiense, mas que lhe causou fortes dores de
cabeça com osumbandistas. De acordo relato da mãe criadeira da Goméia Ilecy da Oxum:

O baile do Teatro João Caetano era de travestis, um ultraje para a época,


resultando em um enorme escândalo, como poderia um chefe de culto afro-
183

brasileiro cometer tamanha audácia desafiando toda uma estrutura de sobriedade


que assumiam os pais e mães de santo do candomblé. No candomblé, aliás, não
tinha muita aceitação um escândalo que envolvesse pessoas do culto. A audácia
de Joãozinho lhe renderia fortes dores de cabeça com a Federação de Umbanda
da época que exigia a sua imediata expulsão com o apoio de mães de santo
tradicionais do candomblé de Salvador como Mãe Menininha do Gantois com a
qual fez as pazes mais tarde. Foi um ato desaforado na opinião dele, e que
despertou muita mágoa, pois muita gente que estava protestando contra ele aos
quatro ventos era gente que frequentava a Goméia, ele se sentiu enganado,
queria se afastar do carnaval, mas entendia a revolta daquela gente, opreconceito
que sempre vinha, lembro-me de várias frases desencontradas, todas muito
sentidas, mas passou, ele não desfilou em 1957, por problemas pessoais, mas
acredito que uniu o útil ao agradável, e deu uma afastada, voltando em 1958, aí
ele voltou com vontade, e não se importou mais com o que iam dizer, aliás, ele
nunca se importava. (NASCIMENTO, 2003 p. 42)

O Luta Democrática já reconhecido por esta pesquisa como um veículo de


imprensa que propagandeava a homofobia na década de 1950, com um constante
movimento de “morde e assopra”. Criminalizando homossexuais no carnaval, em 16
de fevereiro, publica a matéria “Desfile de anormais na Praça Tiradentes: Abominável
concurso de homossexuais sob os auspícios da Divisão de Turismo da Prefeitura”. Uma
reportagem que dá destaque para a fotografia de Joãozinho e informa que apenas ele havia
sido identificado pela imprensa, diferentemente dos outros profissionais envolvidos na
organização do baile não haviam sido identificados na imprensa. Os travestis que
participaram do baile se posicionavam artisticamente nos meios de comunicação que
registravam o baile, e com Joãozinho da Goméia não havia sido diferente. Acreditamos
que a menção ao seu nome era baseada em um reconhecimento a sua popularidade, ou uma
tentativa de exposição do pai de santo que estava em uma boa fase profissional. A
reportagem acreditava que os homossexuais e heterossexuais, tinham o direito à diversão
nos centros recreativos e sociais da Praça Tiradentes no em período carnavalesco, mas
considerava que a diversão não poderia acontecer de maneira “indecente” que ferisse aos
ditames morais apregoados pela legislação. O luxo das fantasias 366 não foi desprezado, mas
sim, o uso de propriedade da Prefeitura para tal evento. Condenou-se o patrocínio da
Associação de Cronistas Carnavalescos e da Associação Brasileira de Rádio, que fora
acusada de trair os valores da tradicional família brasileira.

366
Descreveram-se os temas de cada fantasia: Mata Hari, Cascata, Pássaro sagrado, Fonte dos desejos, Pavão
Dourado, Gueixa estilizada, Mademoiselle de Paris, Fundo do Mar, Toda Vedete, Paris Alegre, Procurando
Alguém, Tentação, Bailarina oriental, Sol e chuva, Lido de Paris, Rouxinol, Folies Bergère*, Bailarina,
Luxúria, dentre outras.
184

Figura 58: Desfile de anormais na Praça Tiradentes-abominavel concurso de


homossexuais sob os auspícios da divisão de turismo da prefeitura. Publicação
da Luta Democrática de 16/02/1956. Fonte: BNDigital367

Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva368comentam as críticas à exposição de


Joãozinho no carnaval de 1956, informando que a Associação de Candomblé baiana quis
expulsá-lo369, em função das pressões de terreiros tradicionais. Alguns estudiosos 370 da
trajetória de Joãozinho da Goméia, ao citarem a sua passagem pelo baile do travesti e por
outros bailes de carnaval, informam que ele chocou a todos com a sua ousadia,

367
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=%22desfile%20de%20anormais%22&
pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=5160
368
LODY e SILVA, 2002, p.163.
369
Acreditamos que os autores podem estar se referindo a alguma instituição herdeira da União das seitas
afro-brasileiras. Afinal, pegando o exemplo das Federações de Umbanda na região sudeste que proliferaram
após a criação da primeira federação de Umbanda, a União Espírita do Brasil (UEUB) EM 1939, por Zélio de
Moraes e outros líderes umbandistas.
370
Carlos Nobre, Elizabeth Castelano Gama, Thiago Almeida Ferreira, dentre outros.
185

desconsiderando o fato de que a figura da travesti já estava inserida no imaginário urbano


carioca há certo tempo.
Com o crescimento das contratações, as travestis371 vindas de países europeus
foram inseridas nos espaços de entretenimento da cidade, o que confirma a força destas
artistas na cena cultural carioca de 1956. Por outro lado, entendemos que para os
umbandistas a identidade religiosa tenha se sobreposto a identidade artística, e que todo o
debate sobre os dogmas umbandistas propagados na imprensa, tenha sido colocado em
discussão, pelo fato de Joãozinho ter se filiado a Federação Espírita Umbandista do Estado
do Rio de Janeiro, em 1952372:

Um dos maiores “escândalos” que envolveu João, foi a sua participação em um


baile conhecido como “Baile do Travesti” que ocorria todos os anos no carnaval
do Rio de Janeiro e recebia bastante atenção da mídia. O evento tinha esse nome,
pois os se vestiam com roupas atribuídas ao gênero feminino, com maquiagem e
perucas. No período em questão entendia-se travesti como homem ou artista que
se vestia de mulher para representar um personagem. Não havia um conceito de
que a travesti era uma identidade de gênero, o que possibilitava o acontecimento
da festa como um momento de brincadeira entre os foliões do carnaval.
Entretanto, a sociedade de maneira geral, incluindo a polícia, via a travestilidade
como algo ameaçador, posição acirrada por denúncias a respeito de
comportamentos transgressores entre os participantes. (LODY e SILVA, 2002,
p. 163)

3.2 O TRIBUNAL DE UMBANDA: ENTRE ACUSAÇÕES E DEPRECIAÇÕES

Em 17 de fevereiro, o Diário da Noite, dá início à uma série de reportagens sobre o


posicionamento de umbandistas quanto a presença de Joãozinho da Goméia no baile do
travesti do teatro João Caetano. Os responsáveis pelas matérias jornalísticas informam que
o jornal teria resolvido se posicionar mediante as cobranças de leitores inconformados. O
que desejavam os leitores? O jornal havia mencionado por algumas vezes que Joãozinho
seria julgado pela Federação Espírita de Umbanda, quanto a sua permanência no cargo de
pai de santo. Falava-se de expulsão, multa por difamação ao culto e fechamento do
terreiro da Goméia e impedimento do exercício da função. Pela primeira vez pôde-se
observar in loco os umbandistas botando em prática os dogmas pregados através de

371
Sem contar que as travestis estavam cada vez mais presentes nos bailes à fantasia, como o baile de Gala do
Theatro Municipal, criado pelo museólogo e carnavalesco Clovis Bornay na década de 1930. Com o
crescimento dos bailes de Gala pela cidade, abriu-se um caminho para que homossexuais participassem das
escolas de samba na categoria de destaque de luxo, um lugar onde Joãozinho da Goméia será inserido a partir
da década de 1960.
372
Diário da Noite, 7 de fevereiro de 1956.
186

páginas de jornal e de livros. Há dias antes 373, Jorge Manuel da Rocha, o presidente da
Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, denunciava Joãozinho por ter forjado uma
identidade religiosa de Babalorixá, já que segundo Jorge, ele não havia sido iniciado em
um terreiro de culto verdadeiramente africano. Para o presidente da Federação, a iniciação
havia sido concretizada em uma tenda espírita de caboclos e que apenas após a morte de
Jubiabá, Joãozinho havia buscado amizade com pessoas do culto africano 374,com as quais
aprendeu alguns ensinamentos tradicionais. As acusações à identidade religiosa e ao
caráter de Joãozinho acontecem nas vésperas do baile que inseriria Joãozinho em uma
demanda com o povo de santo baiano. As acusações feitas pelo presidente da Federação
baiana passam a ser reproduzidas por umbandistas de todo o país e usadas como fio
condutor para promover a interdição do terreiro da Goméia, e a proibição do exercício da
atividade religiosa, partindo dos princípios constitucionais que constavam no parágrafo 7,
do artigo 141, da Constituição Federal de 1946, que atestava ser inviolável a liberdade de
consciência e de crença, salvo se não contrariasse a ordem pública e os bons costumes. O
“escândalo” causado no núcleo umbandista por causa da participação de uma liderança
religiosa travestida de vedete no carnaval gerou a reprovação também da Confederação
Espírita Umbandista, pertencente a Tancredo da Silva Pinto, gerando sérias ofensas a
integridade e honra do pai de santo Joãozinho da Goméia:

A imoralidade, a infração penal, surgiu, no entanto, quando o famoso


macumbeiro, num indesculpável desprezo pelos que o cercam, num gesto de
surpreendente cinismo, se apresentou no baile do João Caetano, todo lolô, para
disputar prêmios de fantasia ‘travesti’. Foi a sua identificação espontânea e
publica de anormal com requintes de luxo e desfaçatez, o que lhe retira
completamente a qualidade de sacerdote de uma seita. A confederação Espírita
Umbandista vai resolver o assunto com a expulsão de Joãozinho de seu seio e
promovendo uma representação ao secretário de Segurança do Estado do Rio, e
ao delegado de Caxias, Dr. Amil Rechard, com interpretação de parágrafo 7º do
artigo 141, da Constituição de 1946, no que respeita aos “bons costumes”
exigidos para o livre exercício dos cultos religiosos”. Reagem assim os
umbandistas contra ‘Joãozinho da Goméia’, que, com ato indigno, tentou
contra areputação de todos os que praticam os cultos afro-brasileiros. 375

373
Diário da Noite, 07 de fevereiro de 1956.
374
Andréa Mendes, fala de Mãe Samba em sua dissertação de mestrado Vestidos de realeza: fios e nós centro-
africanos no candomblé de Joãozinho da Goméia. A autora informa que Joãozinho havia contado com
esta ajuda para conhecer melhor os mistérios dos rituais da sua religião, realizando todos os ritos necessários
para que Joãozinho pudesse legitimamente chefiar seu terreiro: “Esse ritual foi realizado como de costume,
dentro da camarinha; no entanto, não houve festa pública para dar publicidade ao fato, o que de certa forma
colaborou para queele continuasse sendo mal visto e a sua autoridade contestada”. Ver as páginas 77 e 78.
375
Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1956.
187

O “Caso Joãozinho da Goméia” em 23 de fevereiro apresenta um desfecho com a


publicação de um posicionamento público, por parte da Federação umbandista do Estado
do Rio, que encaminhada ofício do presidente, à Confederação Espírita Umbandista. A
resolução publicada pretende deliberar naquele mesmo dia, as resoluções sobre o destino
de Joãozinho da Goméia como líder da comunidade religiosa da Goméia. Declarando que:

Na qualidade de presidente da Federação Espírita de Umbanda do Estado do Rio


de Janeiro, da qual é associado o Sr. João Alves Torres Filho, babalorixá
Joãozinho da Goméia, - DECLARO:
1- Os dirigentes da Federação apuraram que o referido babalorixá foi iniciado
em seitaafricana e recebe orixá;
2 - Nada foi apurado contra os bons costumes no terreiro deste babalorixá;
3- A propósito de ocorrências carnavalescas, este ano ao Distrito Federal, que
comprometam a conduta civil do babalorixá, nada foi apurada além da exibição
de uma fantasia, matéria que transcende à competência desta Federação. –
Niterói, 21 de fevereiro de 1956.
4– A) Byron Torres de Freitas. [...] “218. “[...] Achou a crítica que a presença
desse conhecido babalorixá em tal concurso era uma desmoralização para o
culto”. Acontece, entretanto, que não é proibido ao pessoal dos cultos afro-
brasileiros – homens e mulheres – tomar parte nos festejos carnavalescos,
fantasiado de maneira que entender, desde que despache Exu e peça licença ao
seu orixá. (GAMA, 2012, p.164 e 165)

Na reunião da Confederação Espírita Umbandista realizada no dia 23 de fevereiro,


sob a presidência e a vice-presidência do Sr. Braulino Gomes da Silva, convocou-se um
tribunal com vários babalorixás filiados à Federação, no qual seriam jogados os búzios. No
dia 5 de março de 1956, ficou decidido que mesmo o concurso sendo uma desmoralização
para os cultos afro-brasileiros, não deveria ser estabelecida nenhuma proibição à homens e
mulheres, que quisessem participar de festejos carnavalescos fantasiados, desde que
despache antes Exu e se peça licença ao seus Orixás. O resultado do julgamento foi o de
ofertar um acarajé a Iansã, encerrando deste modo o “caso Joãozinho da Goméia”. Se os
umbandistas estavam achando que colocariam um ponto final na demanda com Joãozinho
da Goméia sem ouvi-lo, jornalistas da revista O Cruzeiro376se dirigem até Duque de Caxias
e entrevista o pai de santo a fim de saber como ele estava lidando com a perspectiva de ter
o seu terreiro fechado:

Brinco carnaval desde os 16 anos, quando eu pulava nas ruas e nos clubes da
Bahia. Digo mais: sempre brinquei, e continuarei brincando, pois não vejo nisso
bicho de sete cabeças. Ora, que há mais em a gente se fantasiar de mulher? Serei
eu, por ventura. O primeiro Adão com o vestido da Costela que apareceu no

376
Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1956.
188

Rio de Janeiro? Todos os anos eu boto uma fantasia diferente. No ano passado
saí fantasiado de Associação Brasileira de Imprensa e Associação Brasileira de
Rádio. E, prometo que nos carnavais vindouros, me apresentarei dentro dos
modelos originais, pois considero a originalidade uma virtude. (...) e antes de
brincar pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de ter eu me fantasiado
de mulher não implica em desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de
democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram,
superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não
abusemos do livre arbítrio.

3.3 O BRILHO ARTISTICO DO REI DO CANDOMBLÉ

Após ter o título religioso contestado, as ofensas e acusações dirigidas a Joãozinho


da Goméia na imprensa, durante os meses de fevereiro e março, abriram seus caminhos no
mundo artístico. É quando de um dia para o outro chovem convites para participar de
filmes, programas de rádio e televisão, dar entrevistas em revistas de fãs como a
Radiolândia e Revista do Rádio. Talvez fosse um “empurrãozinho” do Walter Pinto? Ou
de amigos artistas como Grande Otelo, Ângela Maria, Dercy Gonçalves?
O jornal A Noite de 16 de setembro de 1956, anuncia que o diretor artístico da
Gravadora e Selo musical Todamérica, o Sr. Arnaldo Schneider, estava interessado em
contratar personalidades do universo folclórico para compor melodias nordestinas e pontos
de macumba. Para tanto, contratou Antônio dos Santos, o “Volta-sêca” cangaceiro
sergipano do bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião Rei do Cangaço. O LP de 10
polegadas “As cantigas de Lampião” com direção do maestro Guio de Moraes, e narração
do locutor da Rádio Nacional, Paulo Roberto, foi lançado na categoria folclórica por
contar com músicas do cangaço, entre elas “Mulher Rendeira” e “Acorda Maria Bonita”. O
intuito do lançamento do disco, segundo o diretor artístico, era o de ajudar o estudo do
folclore nortista. As oito melodias são cantadas inicialmente tal e qual faziam os cabras de
Lampião. O interesse pelos “pontos” e “cantigas” dos ritos nagôs e de Angola foi
despertado não apenas pelo sentido folclórico, de se atender aos estudos futuros babalaôs
Joãozinho da Goméia também terá um LP com coro feito pelos ‘sambas ’ do seu terreiro
e o ritmo a cargo de instrumentos afro como ogona-puita (isso quer dizer cuicão),
urucungo, adejá, jê, run, darrun e vumpi (atabaques) e agogôs”. O convite para gravação do
LP aconteceu em fins de 1954, dentro do terreiro da Goméia, sendo o lançamento de
ambos os artistas no mercado musical, uma valiosa contribuição para que se possa decifrar
dúvidas específicas sobre alguns aspectos singulares do folclore nortista e nordestino.
189

O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira377 confirma a contratação de


Joãozinho da Goméia para lançamento de dois LP’s em 78 RPM. O disco, lançado em
1956, contaria com cantigas com adaptações e interpretações próprias: "Saudação A
Oxossi Nº 1", "Saudação A Inhançan", "Saudação A Oxossi Nº 2" e "Saudação ao Caboclo
Pedra Preta". Em 1958, lançou o long play “Rei do Candomblé - Joãozinho da Goméa
Com Ritual de Terreiro”. Um disco no qual interpretou os pontos "Bombongira", "Pemba",
"Oxossi", "Caiaia", "Ogum", "Xangô", "Pavão", "Vou-me Embora Pro Sertão", "Sou da
Mina do Santé", "Pedrinha", "Saudação A Logundê" e "Oxum", todos de sua autoria.
No entanto, a grande vitória do pai de santo perante todo o “bafafá” provocado
pelos umbandistas em função da sua participação no” Baile do travesti” do Teatro João
Caetano, foi ver as divulgações feitas do seu trabalho musical em O Jornal378,Última
Hora379, Revista do Rádio380o e o Jornal de Umbanda381, no qual divulga o disco “Rei do
Candomblé”, justamente, entre os meses de fevereiro e março (correspondentes ao período
do Carnaval). Fruto do sucesso artístico e do conhecimento litúrgico daquele que há
tempos tivera sua imagem vilipendiada na imprensa.

377
Disponível em: https://dicionariompb.com.br/joaozinho-da-gomeia/dados-artisticos
378
O Jornal, 18 de novembro de 1956.
379
Última Hora, 29 de outubro de 1956.
380
Revista do Rádio, 9 de agosto de 1958
381
Jornal de Umbanda, 15 de fevereiro a 28 de março de 1959.
190

Figura 59: Nota de divulgação do LP “Rei do Candomblé” Da gravadora


Todamérica. Publicação do Jornal Última Hora de 23/10/1956.
Fonte: BNDigital382

382
Disponível em: Jornal Última Hora :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Rei%20do%2
0candombl%C3%A9%22&pagfis=33541
191

Figura 60: Nota de divulgação do LP “Rei do Candomblé” da gravadora


Todamérica. Publicação do Jornal de Umbanda de fevereiro/março de
1959. Fonte: BNDigital383

A partir de 1956, a carreira artística de Joãozinho deslancha, alcançando proporções


gigantescas. É o período em que não apenas Joãozinho retorna aos palcos da Associação
Atlética Banco do Brasil, ex-Cassino Atlântico384, como também passa a ser convidado
para se apresentar em outras regiões do Brasil385. Parece que a exposição no carnaval, foi
um marco na sua trajetória artística.

383
Disponível em: Jornal de Umbanda: Órgão noticioso e doutrinário da União Espiritista
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=111848&pasta=ano%20195&pesq=%22Rei%20do%2
0candombl%C3%A9%22&pagfis=458
384
Diário de Notícias, 28 de maio de 1958.
385
A Partir de 1965, Joãozinho surge na imprensa pernambucana, brasiliense e capixaba como convidado dos
terreiros de candomblé e de umbanda, e dos Departamentos de Cultura e Turismo para se apresentar em
Festivais folclóricos, como os do Xangô de Pernambuco.
192

A Revista do Rádio386 publica a reportagem “Joãozinho da Goméia fez duas


Rainhas do Rádio”, na qual revela ser o pai de santo o responsável pelo sucesso de
diversos artistas do meio de comunicação, o que abre um campo de possibilidades para que
possamos refletir sobre o campo das religiões de matrizes africanas na metade da década
de 1950. Esse relacionamento da classe média e da alta sociedade carioca com o dirigente
da Goméia, também possibilita compreender como era estreita a relação entre mundo
artístico, carnaval e culto afro-brasileiro. Um estreitamento que também está presente nesta
cidade que se diverte pelas madrugadas, entre os lugares de divertimento noturno da
cidade.

A publicação relembra os tempos em que por dois anos consecutivos (1952-1953)


o pai de santo teve um programa de auditório na Rádio Tupi, revelando, o início da sua
amizade com Ângela Maria, Carmen Costa, Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Emilinha
Borba, Linda e Dircinha Batista, Marlene, Virginia Lane, dentre outros. Também
mostra o seu descontentamento com muitos artistas que só o procuravam nas vésperas do
carnaval, com o objetivo de conquistarem vitorias nas inúmeras competições que se
espalhavam pela Cidade:

Várias das maiores celebridades que vocês entrevistam e colocam em capas


coloridas já passaram em minhas mãos, já receberam o meu auxilio. Inúmeras
vezes meu ombro ficou molhado de lagrimas amargas e meus ouvidos encheram-
se das magoas constadas. Muitos são ingratos. Uns chegam desconhecidos;
outros, desesperados. Quando ganham fama e dinheiro, desaparecem. Não cito
nomes, contudo, posso contar o caso de uma cantora que aqui chegou à mais
cruel miséria, na mais atroz decepção, numa lastima sem fim. Dei alimentos, dei
roupas, dei sapatos, ajudei e ela chegou a ser ‘Rainha do Rádio’. Fiz duas
‘Rainhas do Rádio’!387

Não podemos ignorar o fato que se fantasiar de “vedete” do cabaré parisiense


Folies Bergère, foi um dos maiores acertos de Joãozinho, que conseguiu com uma “tacada
só” movimentar a imprensa através da publicação de séries de reportagens
sensacionalistas, conseguindo fortalecer a sua imagem no show business. Afinal, a amizade
com o renovador do Teatro de Revista, Walter Pinto e com o ex-maestro do Cassino da
Urca e Rei da Noite, Carlos Machado388 abriu muitas portas para o Rei do Candomblé. Isso

386
Revista do Rádio, 6 de março de 1954.
387
O jornal Gazeta de Notícias de 24 de março de 1954, informa que Joãozinho trabalhou para o sucesso de
Marlene que se esqueceu completamente dos favores prestados no passado.
388
Carlos Machado renovou a noite do Rio de Janeiro, após o fechamento do Cassino da Urca. Os autores
Leo Feijó e Marcus Wagner em Rio Cultura da noite comentam que Carlos inventou o couvert artístico,
viabilizando custos para um público mais restrito. Inventou um novo formato musical com talentos da época
193

fica visível a partir de meados de 1956, quando Walter Pinto leva uma comitiva de
produtores e empresários norte-americanos e mexicanos, até o terreiro da Goméia em razão
da festa dedicada a Iansã no dia 4 de dezembro. Nesta comitiva está também o ator Grande
Otelo e a cubana Emelia Pérez Castellanos, conhecida pelo nome artístico de Ninón
Sevilla. O interesse pela Goméia além de turístico, também era profissional. Joãozinho se
integraria ao elenco do filme “Mulher de Fogo”, bailando com suas filhas de santo
alguns passos encenados no candomblé, que seriam os traços do folclore baiano
presentes naquele filme. O filme 389 foi lançado na imprensa no mês de agosto de 1958, com
o elenco estrelado por Grande Otelo, Walter Pinto e suas girls, Joãozinho da Goméiae suas
filhas de santo, e a atriz Ninon Sevilla. 390

Com a decadência do gênero Teatro de Revista, na década de 1960, os shows em


boates passaram a contar com a presença dos produtores Walter Pinto e Carlos Machado,
que, imbuídos pelo sentimento de saudosismo dos áureos tempos dos Cassinos Atlântico e
Cassino da Urca, voltaram a reproduzir os espetáculos musicais para um público
selecionado, frequentador do Theatro Municipal e do Jockey Clube. O público que
frequentava as boates buscava um espetáculo que pudesse ser repetido várias vezes na
semana, que tivesse pouquíssimas falas e se destacasse pelo movimento coreografado dos
corpos de ballet. Normalmente os coreógrafos e coreografas que trabalhavam nas boates
faziam parte do corpo de baile do Theatro Municipal. Era preciso manter a excelência,
que atraía o interesse da elite carioca.
Walter Pinto valorizou a presença feminina na cena teatral: elas cantavam,
dançavam, contavam piadas com desenvoltura e muita sensualidade. Ele as treinava,
criando o que Neyde Veneziano391, convencionou a chamar de “sistema vedete”, um
método que oferecia a estas mulheres estratégias para conquistar o grande público. O
produtor movimentava uma estrutura sofisticada de profissionais em torno desse sistema,
composto por coreógrafos, professores de canto, professoras de etiqueta, figurinistas, que
não apenas compunham os figurinos das apresentações, mas as ensinavam a se vestir e a se
maquiar. Walter investia na contratação de dançarinas francesas, polonesas, portuguesas e

como Grande Otelo, Ataulfo Alves, Marlene, Emilinha Borba, Dick Farney, Elza Soares Elizeth Cardoso e
Ângela Maria. . .
389
No mês de agosto de 1958, surge na imprensa anúncios do filme “Mulher de Fogo”, baseado no romance
de JoséMauro de Vasconcelos, com direção de Tito Davidson e Produção de Artistas Associados Filmes Ltda.
e Mier & Brooks S.A. México, e direção de fotografia do norte-americano Jack Drapper.
390
O Filme foi amplamente divulgado por todo mês de agosto de 1958 em O Jornal, Diário da tarde,
Diário da Noite.
391
VENEZIANO, Neyde. O sistema vedete. Revista Repertorio, nº17, 2011.2, p.66.
194

argentinas, que se juntavam as vedetes brasileiras, para encenar espetáculos de grande


repercussão, agora nas boates.
Com a inauguração de Brasília em 1960, cresce a presença de travestis e
transformistas no meio cultural carioca, inflamando os inferninhos da Lapa e da zona sul,
criando espaços diversificados de sociabilidade gay, formados pela presença de
transformistas, que coreografam e encenam espetáculos de canto e de dança. A existência
desses artistas passa a chamar atenção de produtores e de empresários como Carlos
Machado e Walter Pinto, que cria grupos de travestis para fazer parte do cast da boate
Monte Carlo (localizada no bairro da Gávea), Vogue e Casablanca em Copacabana. Esse
movimento se inicia no começo dos anos de 1950, com a chegada das primeiras
companhias francesas de revistas que exportam diversas artistas travestis para o Rio de
Janeiro, como o bailarino Leo Lauer, as vedetes-travestis Ivaná e Zambelá estrela por sete
anos consecutivos do “night club”. Em 1963, a cena travesti carioca se vê agraciada pela
presença da estrela transexual francesa Coccinelli, que após a “redesignação sexual” a
popularmente conhecida operação para troca de sexo, adotara o nome de Jacqueline
Deufresnoy. 392 Com os palcos das boates agora ocupados por artistas de rádio,
transformistas, bailarinos e coreógrafos que levavam para este público diferenciado
espetáculos que evocavam a “brasilidade”, oferecendo shows essencialmente brasileiros,
tendo o nome de Haroldo Costa como contratado como produtor-realizador de espetáculos
por diversos proprietários de casas de shows, como a Boate Plaza de Mauricio Lanthos,
Top Club do Barão Von-Stuckardt, Night and Day e Fred’s de Carlos Machado, Boate
Drink dos irmãos Peixoto, Golden Room do Copacabana Palace, Sucata de Ricardo
Amaral.

392
RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço. Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de
Janeiro, do século XIX a 1980. Florianópolis: revista Esboços, v.23, n.35, 2016, p.103.
195

Figura 61: A Boate Fred´s, onde Joãozinho da Gomeia se apresentou no ano de 1960.
Fonte: http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com/2021/01/boate-freds.html

A boate Fred’s 393Funcionava no segundo andar de um posto de gasolina localizado


na Avenida Atlântida, perto da boate Arpège, e da boate Drink, que era frequentada por
gente muito famosa como o político João Goulart, que era encantado por vedetes394. O
cronista Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, dizia que “o cliente enchia o tanque do
carro embaixo e a cara em cima”.395 O dono do prédio era o Frederico Mello 396 que
contratava atrações nacionais e internacionais: Bill Halley, Juca Chaves, Ari Barroso,
Sarah Vaughan, entre outros. Na década de 1960, Carlos Machado passou a tomar conta
das contratações da casa, com o auxílio de Haroldo Costa, reproduziam nos palcos o
glamour dos tempos do Teatro de Revista, renovado e inovando com a presença constante
das baterias da Império Serrano, Estação Primeira de Mangueira e Salgueiro. É dentro
deste contexto que Joãozinho da Goméia aos 46 anos de idade, assina um contrato com a
boate Fred’s em 28 de março de 1960, para compor o elenco do show: “Os Quindins de
Yayá” com músicas de Ary Barroso e Dorival Caymmi, e texto do autor de Revistas

393
Não consegui retirar este comando em vermelho.
394
FEIJÓ e Wagner, 2014, p.190.
395
Idem
396
As informações sobre a Boate Fred’s são contraditórias. Encontrei vários nomes de diretores artísticos,
assim como de responsáveis pela boate. Informações que não afetam a escrita da Dissertação, mas é
importante chamar atenção para este dado.
196

musicais Mário Meira Guimarães, destacava nas revistas de fãs a presença de Carminha
Mascarenhas, e da famosa vedete Rose Rodelli, uma das “certinhas do Lalau” 397.
O espetáculo da Fred’s tinha sido criado para agradar, principalmente aos turistas,
que pela primeira vez assistiriam a um espetáculo de macumba no palco de uma boate. O
Diário Carioca398considerava incontestável o sucesso do show de Ari Barroso, que tinha
levado muita gente à boate realizada nas noites de sexta-feira. A estreia de “Quindins de
Iaiá” despertou grande expectativa do elenco, que foi anunciado para estrelar o espetáculo.
Com duração de 1 hora e 40 minutos, decepcionou apenas pelo formato que não caberia
dentro de um show de boate. As críticas recomendaram que o espetáculo contasse com o
auxílio de um novo diretor artístico que o tornasse o espetáculo coeso, de forma que, os
artistas em cena conseguissem interagir entre si. Independente das críticas ao formato,
quanto a sua totalidade cênica, contava com um bom elenco, mesmo que mal aproveitado.
Participavam a vedete Anilza Leoni, que interpretou o orixá Iemanjá, e Carminha
Mascarenhas, que não foi considerada pela crítica como apropriada para compor o
personagem. Em cena estavam elementos folclóricos como as rendas do nordeste, a
musicalidade do Trio Nagô, a presença dos orixás como Iemanjá, dançarinos de frevo, e o
“candomblé turístico” de Joãozinho da Goméia, a crítica desmereceu a presença: “Salva-se
apenas o ritmo dos atabaques, outrora excelente bailarino, adiposo e pesadão, está a
merecer aposentadoria. E os seus demais elementos são bisonhos”.
A trajetória de Joãozinho na boate do Leme, não aconteceu de forma tranquila, pois
até o afastamento da vedete Rose Rondelli, causado por desentendimentos com a direção
artística do local, foi relacionado ao pai de santo. Mais uma vez a imprensa havia
encontrado em Joãozinho a arma para crescimento da venda de periódicos. A Revista do
Rádio faturou bastante, gerando uma celeuma entre o pai de santo e Rose Rondelli.

397
Era uma lista anual das mulheres mais bonitas do Brasil, produzida pelo jornalista Sergio Porto, entre os
anos de 1950 e 1960.
398
Diário Carioca, 31 de março de 1960.
197

Figura 62: Cartaz de divulgação do espetáculo criado por Ary Barroso para a boate Fred’s.
Publicação do jornal Diário Carioca de 14/04/1960. Fonte: BNDigital399

Acusaram Joãozinho de ter feito um despacho para afastar a vedete dos palcos da
boate, o que remete a alguns posicionamentos exaltados que Joãozinho tivera em outros
momentos, indicativos de que o pai de santo, de fato, fizesse uso da sua força espiritual
para afastar seus oponentes400. Só que nos bastidores da boate Fred’s se dizia que a razão
do pedido de rescisão de contrato seria por conta de um despacho que o pai de santo
Joãozinho da Goméia, havia feito para que a vedete abandonasse o elenco da peça. Houve
quem afirmasse que assistiu o despacho sendo preparado nas coxias da boate.
Joãozinho ao ser procurado informou que não havia nenhuma razão em especial para o
mal feito, e que a fofoca era fruto da imaginação daqueles que desejavam fechar seus
caminhos como artista. Eram costumeiras as acusações a Joãozinho da Goméia neste
sentido, o que nos remete à memória da sua prisão em 1942, quando havia sido acusado de
aceitar a encomenda de um despacho que seria feito na porta do Palácio do Catete.401

399
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_05&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20
GOMEA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=1086
400
Cito o caso de um conflito com o pai de santo Benedito Espírito Mau do culto Omolocô. A desavença que
também foi transformada em uma série de reportagens enfatizava a disputa por Elvira de Paula Pinto.
401
GAMA, 2012, p.75.
198

Figura 63: “Não faço despachos contra artistas! afirma Joãozinho da Goméia. o famoso babalorixá
desmente que tenha sido procurado para fazer mal para alguns artistas - e especialmente a uma
estrela. Publicação da Revista do Rádio de março de 1960. Fonte: BNDigital402

402
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=32329
199

Figura 64: “Não fiz despacho contra Rose Rondelli! isso é brincadeira de mau
gosto! Publicação do jornal Ultima Hora de 28/03/1960. Fonte: Centro Nacional
de Folclore e Cultura Popular Digital403

Naquele mesmo ano, Joãozinho usaria as páginas do Última Hora para se


posicionar contra as perseguições do delegado Deraldo Padilha do 22º Departamento de
Polícia, que invadia locais do culto religioso de umbandistas e candomblecistas com o
intuito de prender pessoas e destruir seus objetos sagrados. O delegado usava sua artilharia
contra os terreiros da Baixada Fluminense. Os motivos para tanta perseguição eram

403
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=joaozinho%20da
%20gomeia
200

relacionados a presença de menores nas sessões, a falta de registro na polícia, uso de


cachaça, pólvora, tambores e uso de uma farmacêutica que atestava crime pratica ilegal
da medicina. A decisão de fazer um trabalho contra o delegado Padilha aconteceu após
uma ida sua à Salvador, onde recebeu autorização para o feito, que protegeria não apenas os
filhos de santo fluminenses, como tantas outras pessoas atingidas pela truculência do
delegado de polícia Deraldo Padilha, que ficou conhecido por ser inflexível em seus
métodos e preconceitos contra prostitutas, homossexuais, travestis, moradores de favelas e
adeptos das religiões de matriz africana. O seu auge foi 1952, quando passou pela
Delegacia de Costumes e Diversões do Rio de Janeiro, e criou a subdivisão de repressão a
Vadiagem, o que lhe resultou em inúmeras denúncias contra as suas ações truculentas no
Estado do Rio.404 Mais uma vez Joãozinho politiza suas ações no auxílio de segmentos
marginalizadosda sociedade ao qual ele pertencia.

Figura 65: “Babalaô da Goméia fará trabalho contra Padilha”. Matéria sobre o protesto de Joãozinho na
imprensa contra o delegado Deraldo Padilha. Publicação do jornal Ultima Hora de 19/08/1960. Fonte:
BNDigital405

404
Revista Veja 24 de janeiro de 1973.
405
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=61471
201

A partir dos anos de 1960, Joãozinho angariou muitos filhos de santo no meio
artístico. O sucesso com a classe que já era costumeiro foi intensificado e divulgado na
imprensa. A coluna “Música em conserva” do Última Hora revela que a cantora
Ângela Maria, além de filha de santo de Joãozinho, estava visitando com frequência seu
terreiro para fazer obrigações, despachos e tomar banhos de ervas. A coluna “Nos
Domínios da Fé” do Luta Democrática406revela que a comediante Dercy Gonçalves não
saía mais de Caxias após ter anunciado que seria iniciada no candomblé da Goméia. As
Revelações dos novos filhos de santo fortalecem o seu prestigio dentro do meio artístico,
confirmando a sua face de mediador cultural, o que passou a garantir a sua presença
nestes espaços mais sofisticados, que desconstruíram a ideia de acesso aos pais de
santo, ligados apenas aos terreiros. Com a presença de Joãozinho em espaços
consagrados ao entretenimento, naturaliza-se a presença do povo de santo nestes lugares. O
projeto construído por Abdias do Nascimento, a partir da fundação do Teatro Experimental
do Negro, em 1944, se torna realidade, e o povo do santo ocupa a cena cultural carioca de
vez.
O contato diário com este universo de opulência e sofisticação pode ter inspirado
Joãozinho da Goméia a investir em um trato social mais refinado, afinal, não podemos
dizer que as pessoas da alta sociedade que frequentavam o terreiro da Goméia, eram as
mesmas que frequentavam casas de espetáculo e boates. E, por isso, se atraíam pelo luxo
encontrado dentro do terreiro de Joãozinho, que investia pesado no requinte, como já foi
mostrado aqui anteriormente. A coluna “Black Tie” do Última Hora escrita pelo colunista
social João da Ega, informa que as noites de sábado para domingo, sempre eram
encerradas em meio a fervores místicos sentidos por figuras de destaque do nosso meio
social, atraídas pelo candomblé da Goméia. 407
O “uísque” e o “strogonoff” que havia sido
recém-apresentado aos brasileiros pelo Barão Von Stuckart, dono da boate Vogue, o
templo da vida noturna carioca entre fins da década de 1940 e 1950.
Esta intensificação na comunicação entre os artistas e Joãozinho da Goméia, em
razão de obtenção de sucesso nos carnavais, é explicitada pela cantora Ângela Maria em
biografia escrita por Rodrigo Faour408, na qual ela menciona a dificuldade de se gravarem
músicas carnavalescas tendo um repertório de cantora romântica. A ausência do glamour,
tão associado ao meio artístico da época, revelava a inabilidade de muitos cantores

406
Luta Democrática, 27 e 28 de novembro de 1966.
407
Última hora, 30 de setembro de 1952.
408
FAOUR, 2015, p. 316.
202

aclamados pelas multidões em se reconhecerem como intérpretes de músicas


carnavalescas, que exigiam temperamento e preparo vocal para o estilo musical. Com este
depoimento, Ângela revela como a indústria que produzia o carnaval enxergava seus
artistas como mercadoria para uso coletivo e instantâneo. O descarte era inevitável caso o
sucesso não acontecesse e, sabedores dessa lógica mercadológica, buscavam ajuda no
terreiro da Goméia.
De acordo com Rodrigo Faour, Angela Maria revelaria que o mercado editorial das
revistas de fãs, estimulava as inimizades, traições e rivalidades, pois todos queriam vencer.
Afinal as fofocas sobre desavenças vendiam e estimulavam a bilheteria dos teatros de
revista, cinemas e ajudavam a elevar a audiência dos programas de rádio e de televisão,
ajudando o mercado de venda de discos. Muitas artistas sobreviveram alimentando essas
desavenças: Marlene e Emilinha, Elvira Pagã e Luz Del Fuego, são exemplos de como
funcionava a engrenagem do entretenimento.
O pai de santo Joãozinho da Goméia não escolhia lados específicos, mas divulgava
na imprensa que estava sendo procurado por uma ou por outra, para consultas e banhos
de ervas, e quando o sucesso crescia, as reportagens sobre seus poderes mágicos cresciam
bastante. Afinal, quando ele não conseguia ajudar seus protegidos pela espiritualidade,
usava um “bom papo” por telefone ou nos encontros intencionais nos bastidores do seu
terreiro: um método eficaz que poupava o mundo espiritual de incômodo com amenidades,
vindas daquelas que sempre se esqueciam de voltar para agradecer. É como reforçam
algumas notinhas encontradas na coluna “Mexericos da Candinha” na qual a arbitragem de
Joãozinho da Goméia sempre é citada junto às desavenças e os problemas pessoais de
artistas famosos do universo da rádio, televisão e cinema. 409
A Revista do Rádio, inclusive, durante os primeiros anos da década de 1960, trazia
reportagens centrais em suas edições sobre o sucesso artístico do então famoso coreografo
bailarino e por que não dizer: Guru das estrelas. Em uma das grandes reportagens que
trazem notícias sobre Joãozinho, ele exalta o seu poder e o seu prestígio perante os destinos

409
Para acompanhar a trajetória de Joãozinho junto aos artistas, verificar os links relativos à coluna Mexericos
da Candinha: Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=35855,
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=35127,
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=34820
203

das Rainhas do Rádio. Na reportagem fotográfica de fevereiro de 1954410, Joãozinho é


apresentado como aqueles artistas que revelam detalhes da sua intimidade, seus planos
profissionais, e seus gostos musicais. O candomblé é descrito como uma seita popular no
país, e a sua popularidade junto a centenas de pessoas das classes sociais mais distintas,
inclusive radialistas é colocada em destaque na reportagem. Outro detalhe a ser ressaltado
é a descrição feita pelo jornalista Waldemir Paiva:

“Joãozinho da Goméia, o mais famoso “pai de santo” de todo país, reside em


Caxias. Homem simples, dançarino folclorista, artista emérito, relacionado nas
diversas camadas sociais, possui o nome ligado não somente à sua seita, mas até
mesmo ao próprio meio radiofônico”.

Figura 66: “Joasinho da Gomeia fez duas Rainhas do Rádio!”


Publicação da Revista do Rádio de fevereiro de 1954. Fonte: BNDigital

410
Reportagem fotográfica disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=11903
204

3.4: DO FOLIÃO AO CARNAVALESCO- O LUXO DA REALEZA.

As experiências artísticas de Joãozinho da Goméia ampliaram a sua rede de


contatos e possibilitaram a entrada definitiva no carnaval carioca, através dos bailes de gala
em clubes esportivos e nos salões nobres da cidade. Ele se dividia entre os bailes pré-
carnavalescos e os desfiles nas escolas de samba, nos quais participavam na categoria de
“destaque de luxo” ao lado de Clovis Bornay, Evandro Castro Lima e a salgueirense Isabel
Valença.
A movimentação de Joãozinho da Goméia no carnaval não estava restrita apenas as
participações como destaque de luxo nas escolas de samba Império da Tijuca e Império
Serrano; ou como folião que brincava vestido de Deus romano nos salões do Clube de
Regatas do Flamengo, ou travestido de Folias Bergère e Cleópatra. Ele participava dos
bastidores através do concurso que elegia as rainhas do rádio e as rainhas do carnaval.
Artistas das mais diversas vertentes buscavam no terreiro da Goméia ajuda para
conseguirem sucesso no carnaval que estaria por vir. Quantas vedetes e cantoras de
samba, marchinha e samba-canção sonhavam com o cetro, o manto e a coroa de realeza?
Era a forma encontrada por muitas para conquistar a tão sonhada projeção profissional.
As revistas de fãs publicavam semanalmente as informações sobre o dia-a-dia de suas
artistas. O carnaval criava musas e divas que ocupariam espaço na televisão, rádio, teatro e
cinema, e o pai de santo Joãozinho da Goméia, cada vez mais requisitado por este
universo, além de obter auxílio financeiro para manter o seu terreiro, intensificava a sua
projeção no meio artístico. Ainda mais após a publicação da revelação sobre as glórias e
conquistas da cantora Marlene, associadas ao poder espiritual do pai de santo. A
divulgação das artes mágicas de Joãozinho em revistas reverteu para ele o acesso aos
salões nobres da cidade em período pré-carnavalesco. As candidatas eram coroadas em um
concurso promovido pela Associação de Cronistas Carnavalescos e pelo Departamento
Geral de Turismo e certames. Para ser coroada era preciso possuir uma ilibada reputação
moral e muito espírito carnavalesco. A vencedora do concurso receberia, em caráter
permanente, uma coroa de ouro 18 quilates, uma rica faixa e o cetro simbólico, de posse
transitória; além da importância de cem mil cruzeiros em dinheiro. Os bailes pré-
carnavalescos iniciavam com o grito oficial do carnaval, que anunciava o início do Ano
Novo. A população enchia as ruas do centro do Rio de Janeiro, ao som de cuícas, surdos e
205

tamborins. De acordo com o Correio da Manhã411 a Avenida Rio Branco continuava sendo
o ponto de concentração de foliões que pretendiam extravasar a sua alegria. A multidão
dividida em formação de blocos e cordões, ou isoladamente, cantarolava com entusiasmo
as marchas e sambas, que conquistaram os corações do povo nos últimos meses. Com a
demolição da Galeria Cruzeiro 412 em 1957, os foliões tiveram que migrar para o Largo da
Carioca, nos dois coretos armados pelo Departamento Geral de Turismo e Certames, onde
as emissoras radiofônicas enviavam seus artistas para animar a população.
O povo que buscava os pontos de celebração do centro da cidade era o mesmo que
se integravam as agremiações carnavalescas, nos desfiles organizados entre a Avenida
Presidente Vargas e a Avenida Rio Branco. Alguns dos clubes carnavalescos localizados
nas áreas periféricas da cidade eram responsáveis pela elaboração dos desfiles, com prévia
autorização da Delegacia Especializada de Jogos e Diversões, que permitia o
funcionamento dos clubes na capital durante o carnaval. As atividades de 1960 eram
supervisionadas pelo delegado Antônio de Assis Lucena, que contava com o auxílio de 26
investigadores que instalavam o seu QG em frente do prédio da Caixa Econômica Federal.

Além dos desfiles das Escolas de Samba, divididas em três grupos, existiam os
desfiles de outras organizações, como blocos, grupos de frevo, ranchos e as Grandes
Sociedades Carnavalescas. A apuração final dos resultados era promovida pelo
Departamento Geral de Turismo e Certames, sendo realizada no auditório da Biblioteca
Estadual, com início às 15 horas, e se entendendo na maioria das vezes até as 20h15 m.
Tratava-se de um evento no qual estariam presentes apenas os presidentes das agremiações
que participavam dos desfiles e os jornalistas que pertenciam a Associação de Cronistas
Carnavalescos.
A Secretaria de Turismo distribuía o programa de desfiles, estipulando a data de
início para as 20 horas e a finalização às 05 horas da manhã, com os desfiles. As Escolas
de Samba ganhadoras do desfile da Avenida Rio Branco recebiam um cheque no valor de
360 mil cruzeiros, e a promoção para concorrer no próximo ano na Avenida Presidente
Vargas, ao lado das Super Escolas do primeiro grupo do carnaval, podendo ganhar a
importância de 600 mil cruzeiros, caso chegassem ao primeiro lugar do campeonato, com

411
Correio da Manhã, 1 de janeiro de 1960.
412
A Galeria Cruzeiro e o Hotel Avenida eram prédios suntuosos localizados na Avenida Rio Branco.
Foram demolidos em 1957 para dar lugar ao edifício da Avenida Central. Conheça a Galeria Cruzeiro:
https://www.youtube.com/watch?v=VfSTEQKGLBA
206

julgamento realizado à frente do prédio da Biblioteca Nacional, no trecho compreendido


entre a Rua Uruguaiana e AvenidaRio Branco.
No início dos anos de 1960, a abertura do carnaval acontecia no sábado à noite,
com a apresentação dos blocos e dos frevos carnavalescos, diante das arquibancadas
armadas na Avenida Presidente Vargas. Os conjuntos de Frevos eram: os Pás Douradas,
Misto Toureiros, Lenhadores, Batutas da Cidade Maravilhosa e Misto Vassourinhas413. De
acordo com os pesquisadores Nei Lopes e Luiz Antônio Simas 414, os blocos carnavalescos
ao longo da década de 1920, perderam o seu caráter informal de ajuntamento de foliões,
para se tornarem grupamentos organizados, “trajados de forma uniforme”. Serviram de
modelo para as primeiras Escolas de Samba, como o “Baianinhas de Oswaldo Cruz” que
inspirou a Portela e o “Bloco dos Arengueiros”, que por sua vez inspirou a Estação
Primeira de Mangueira415. A presença dos clubes carnavalescos demonstra como o povo do
subúrbio foi sendo inserido no carnaval do centro da cidade. Agremiações como Quem
Fala de nós não sabemos o que diz, namorar eu sei, Unidos do Cabral, vai se quiser,
Canarinhos das Laranjeiras, Cometas do Bispo, Centenário de Nilópolis, Batutas de do
Oswaldo Cruz, Unidos do Cordovil, Come e Dorme Bafo da Onça, Vai quem quer, Jará e
Cacique de Ramos, encerravam seus desfiles às 23 horas e 30 minutos. O cordão, ao lado
rancho carnavalesco, é uma das manifestações que antecedem as escolas de samba, que
até 1950, conservam seus elementos originários, como a presença de grupos de índios
munidos de flechas e arcos, carregando em suas mãos animais empalhados sem apego ao
enredo defendido no ano do desfile.
As Grandes Sociedades eram associações carnavalescas hegemônicas no carnaval
carioca416, formadas entre as décadas de 1950 e 1960, aproximadamente. Agremiações
como Fenianos, Pierrôs das Cavernas, Tenentes do Diabo, Turunas de Monte Alegre,
democráticos, escolhiam, os temas para os respectivos enredos, aguardando tão e somente,
a autorização do Departamento de Turismo, para realização do sorteio dos barracões, para
que se desse início a confecção dos préstitos. A sua origem se deu na segunda metade do
século XIX, e se propunha a promover festejos alternativos aos populares entrudos, de
forma que permitisse às famílias da elite participar do carnaval, quando desfilavam com

413
Infelizmente, não encontramos produção de estudos acadêmicos dedicado aos frevos carnavalescos.
414
LOPES, Nei e SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da História Social do Samba. 6ª edição: RJ, Civilização
Brasileira, 2020, p. 41.
415
Os autores ainda citam o Bafo da Onça do bairro do Catumbi, o Cacique de Ramos e o Boêmios de
Irajá.
416
Idem, p.139.
207

fantasias luxuosas417. As Grandes Sociedades forneceram alguns dos elementos que mais
tarde iriam caracterizar o desfile das escolas de samba: o uso de carroças puxadas por
burros enfeitados a caráter, que viera a inspirar a inserção dos carros alegóricos.
Em início dos anos 60, eram ao todo, 54 escolas de samba que iniciavam seus desfiles às
20 horas de domingo: Imperatriz Leopoldinense, Império da Tijuca, Aprendizes de Lucas,
Unidos da Capela, Estação Primeira de Mangueira, Acadêmicos do Salgueiro, Portela,
Império Serrano, União de Jacarepaguá, Mocidade Independente, Unidos do Cabuçu, Tupi
de Brás de Pina, União do Centenário, Aprendizes da Gávea, Caprichosos de Pilares,
Unidos da Vila de Santa Teresa, Unidos de Vila Isabel, Unidos da Tijuca, Unidos de Padre
Miguel, Império de Marangá, Lins Imperial, Paraíso do Tuiuti, Independentes do Leblon,
São Clemente, Acadêmicos de Santa Cruz, Paraíso de Santa Teresa, Unidos do Jardim,
Acadêmicos do Engenho de Dentro, Unidos de Bangu, Unidos de São Carlos, Unidos do
Jacaré, Independentes de Mesquita, Unidos de Maguinhos, União de Jacarezinho,
Inferno Verde, Em cima da Hora, Unidos de Nilópolis, Império de Nilópolis, Império
do Campo Grande, Unidos do Éden, União da Ilha do Governador, Aprendizes da Boca do
Mato, Acadêmicos do Engenho da Rainha, Beija Flor, Unidos da Vila São Luís,
Caprichosos do Centenário, União da Piedade, União de Vaz Lobo, Unidos da Ponte,
Independentes do Zumbi, Unidos do Uraiti, Cartolinhas de Caxias, Acadêmicos de
Bonsucesso e Unidos da Viradouro.
A presença das agremiações carnavalescas no centro da cidade possibilitou o
deslocamento de sujeitos negros de áreas periféricas como os morros, zona norte,
Baixada Fluminense e subúrbio, para as áreas centrais da cidade, em prol do
desenvolvimento de uma arte, desenvolvida a partir das experiências de associativismo,
entre estes sujeitos. A transferência e o deslocamento destes saberes/fazeres evocam
aspectos da subjetividade destes grupos, que constroem sua identidade no sentido da
coletividade, que propõem a disputa e a competição como forma de existência e de
resistência. Entendemos, portanto, que o deslocamento desses sujeitos não reconstrói as
identidades desses grupos, mas reafirma. Os “produtos artísticos e os códigos estéticos”418,
neste sentido, não foram alterados pelo deslocamento para o centro da cidade, em função
dos desfiles carnavalescos, ao contrário, eles foram preservados e estimulados quanto à
conservação dos seus elementos originários. Nem mesmo a construção de novas redes
culturais, com outros sujeitos ou outros grupos, conseguiu alterar a forma original, e por

417
Ibidem, p. 139.
418
GILROY, p. 170.
208

isso, acreditamos que muitas dessas agremiações não tenham resistido ao processo de
modernização que o carnaval carioca sofreu a partir da inauguração do Sambódromo pelo
vice-governador Darcy Ribeiro em 1984, no qual toda a estrutura que envia os desfiles e a
atuação das Escolas de Samba foi bruscamente modificada.
O antropólogo Roberto Da Matta419, ao analisar o universo do carnaval carioca
quanto à complexidade da diversidade, e dos vários planos de manifestação, chama
atenção para a amplitude do desfile carnavalesco, e de como os espaços privados e
públicos, ao mesmo tempo em que dialogam, se contrapõe entre si, tanto quanto a simples
estética do evento, como quanto ao ritual que envolve organização, divulgação,
ornamentação, circulação de pessoas, financiamento da festa, contratação de profissionais
e funcionamento. Como quanto ao diferencial entre um ser realizado dentro de um
ambiente fechado e outro na rua. Da Matta também reflete sobre o conceito de espaço
fechado, considerando que, no ambiente público do carnaval de rua, as agremiações
representam esta ideia de círculo fechado, e de fluidez nestas fronteiras de circulação de
pessoas. Um importante diferencial da sua análise em relação aos carnavais do Rio de
Janeiro. A complexidade sociológica do evento apresenta diversas possibilidades de
diálogo com a ocupação dos espaços públicos e privados do folião/carnavalesco Joãozinho
da Goméia, que se apropria da festa e nela constrói a sua representatividade: negro, baiano,
candomblecista:

O carnaval de rua assume, sobretudo, a forma de um encontro aberto, dominado


no Rio de Janeiro pelo desfile das escolas de samba; ao passo que, nos clubes,
trata-se de um ambiente mais bem marcado, pois o próprio espaço físico é
privado. Mas tomar essa segmentação como rígida seria um espaço. Pois, de
fato, basta refletir um pouco para ver que existe uma correspondência entre rua e
clube ambos reproduzindo em seus respectivos contextos novamente a mesma
oposição. Assim, no carnaval de rua, aberto, os desfiles de escolas de samba
ou de blocos provocam um fechamento do espaço carnavalesco, já que aí temos
as associações de pessoas que se reúnem para promover um desfile. Quando
passam as ruas e avenidas se demarcam num público que apenas vê os
desfilantes, os quais se mostram. (DA MATTA, 1981, p.89)

Esta contraposição entre a “rua” e a “casa”, estabelecida por Roberto Da Matta,


permite a compreensão sobre os diversos formatos de exibição acontecidas no carnaval. O
ato de desfilar nos clubes fechados por meio de convites ao mesmo tempo se deixam
dominar por uma lógica específica de representação social que lida com a teatralização de

419
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar editores, 1981.
209

atos e de gestos, comum a ambientes aristocráticos. A ornamentação dos clubes fechados


segue a lógica estrutural da ornamentação das vias públicas e do Teatro Municipal do Rio
de Janeiro, com a presença da brincadeira individual e coletiva, da orquestra, e das mesas e
cadeiras que equivalem às arquibancadas e aos camarotes do espaço público.
Para Da Matta, o carnaval, assim como o cotidiano tem dois planos fundamentais:
a casa e a rua. Esta associação/contraposição entre o espaço público e o privado vai ser um
ponto de observação para as movimentações de Joãozinho da Goméia nos anos 1960 pelos
bailes nobres da cidade. Entender o deslocamento desse homem que concentra em si, todos
os rótulos depreciativos: negro, dono de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense,
nordestino e gay, é entender que o carnaval é um mecanismo de inserção de sujeitos
excluídos e marginalizados.
A autorização para circular entre a elite e o povo mostra o traço de uma
personalidade que se estabeleceu sobre o crivo da articulação social e política. A
negociação com estes locais lhe possibilitou a permanência como destaque de luxo nas
escolas de samba Império da Tijuca e Império Serrano, que contava com a reprovação
de parte da comunidade, que não aceitava o local de atuação do pai de santo dentro da
Agremiação de samba420. Esta identidade “dual” fragmentada e repartida entre o artístico e
o religioso, constrói corpos em constante comunicação e dão sentido a sua permanência no
espaço profano do carnaval. É a emergência de um corpo negro que fugiu do status de
mercadoria, e construiu autonomia para transitar em espaços contrapostos. É o que os
autores Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinicius Natal trazem para refletir sobre a visão
sobre a corporeidade de Joãozinho da Goméia:

(...) o corpo negro, macumbeiro, LGBTQIA e carnavalesco de Joãozinho da


Goméia se torna uma potente ferramenta para a construção de sentidos afro-
diaspóricos na malha urbana do estado do Rio de Janeiro. Dançar, desfilar,
exibir-se nas avenidas e nos salões seriam acontecimentos extraordinários de
produção semântica e simbólica, eventos nos quais um corpo negro associado à
Baixada Fluminense produzia formas de conhecimento e narrativas a partir da
sua própria ação. (BORA, PORTO, HADDAD & NATAL, 2020, p.. 224-252)421

A presença de Joãozinho da Goméia na segunda e quarta edições do pré-


carnavalesco Baile do Coliseu seria marcada como uma presença restrita ao sentido da

420
Falaremos sobre isso mais adiante.
421
Ver o artigo em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/55012
210

brincadeira do folião Joãozinho que havia sido convidado pela sua identidade artística e
religiosa. O que conhecemos hoje como “guru” dos artistas que prestigia no carnaval os
camarotes das empresas cervejeiras, sempre acompanhado de artistas famosos, certamente
tenha surgido com a presença de Joãozinho nos bailes de artistas dos anos 60. Embora,
tenhamos pouquíssimos registros que localizam a presença de Joãozinho nos carnavais de
clubes fechados, ou nos salões nobres de bailes caracterizados pelo luxo, podemos concluir
que a sua presença nesses lugares não está ligada aos desfiles de fantasias de luxo, como
sugerem algumas biografias dedicadas a sua trajetória de vida. O único registro que
encontramos de Joãozinho ligado ao uso de fantasias luxuosas foi no Baile do Travesti do
Teatro João Caetano em 1956, e o concurso de fantasias do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro em meados de 1960, quando se vestiu de Cleópatra.

Figura 67: Registro de Joãozinho da Goméia fantasiado de Vulcano, o deus do fogo da


Mitologia. De acordo com Vulcano, deus do fogo, era filho de Júpiter e de Juno. Fabricava
raios para Júpiter. Com eles ficou vitorioso na luta contra os Gigantes, que queriam
apoderar-se do céu. Publicação da Revista do Rádio de fevereiro de 1960. Fonte:
BNDigital422
O II Baile do Coliseu aconteceu na sede do Flamengo, localizada no Morro da
422
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=31375
211

Viúva. No convite, Carlos Aned, convocava diversos deuses mitológicos para a festa que
entraria para a história do roteiro momesco de 1960. A festa em estilo Greco-romano
aconteceu na nova sede do Clube de Regatas do Flamengo às 22 horas de uma sexta-feira
pré-carnavalesca. Foi concebida pelo cenógrafo chileno Juan Lajana, que reviveu
ludicamente as antigas cenas dos amores de Vênus, Baco, Juno, Apolo, Júpiter, Netuno e
Vulcano. O convite exigiu apenas que os convidados estivessem fantasiados a caráter,
luxuosamente ou vestidos a rigor. O personagem Vulcano foi interpretado por Joãozinho
da Goméia e Netuno pelo figurinista e carnavalesco Evandro Castro Lima, que teve sua
trajetória no carnaval carioca definida pelo luxo e a originalidade emprestada para suas
criações artísticas ligadas aos concursos de fantasia de luxo que aconteciam nos bailes de
gala da cidade. Este baile não teve muito sucesso quanto à ornamentação e a faturação. Os
organizadores nutriam grande expectativa quanto à promoção do baile, no entanto, os
esforços foram em vão, gerando o prejuízo de 300 mil cruzeiros, aos seus
idealizadores e organizadores, que só de aluguel do salão tiveram uma despesa de 80
mil cruzeiros.

Figura 68: “O famoso Joãozinho da Goméia de rei Netuno com Zélia Hoffman”. Fonte: BNDigital423
A quarta edição do baile do Coliseu aconteceu no dia 23 de fevereiro de 1962, no

423
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=31377
212

Teatro João Caetano, cuja decoração evocou os dias de destruição da Roma Antiga, foi
organizado pela Associação de Cronistas Carnavalescos. Yolandino Maia organizou um
grupo de foliões para representar o banquete de Agatão, como se fosse uma breve cena
teatral. O cronista Paulo Salgado fez o papel do geógrafo e viajante grego Pausânias, que
havia em tempos antigos construído um itinerário geográfico sobre as terras gregas. Os
bailes do Coliseu eram eventos teatrais frequentados em sua grande maioria por artistas
de rádio, de teatro e de cinema, nos quais se buscava interpretar personagens da
história antiga e da mitologia grega e romana. A cada um era dado um personagem para
interpretar, com um roteiro no qual se contava a biografia e os recursos cênicos que
deveriam ser utilizados pelo seu interprete. Assim como o baile dos artistas e o baile das
atrizes, que contavam com a organização e o patrocínio da Associação de Cronistas
Carnavalescos, a ornamentação sempre era realizada por cenógrafos e técnicos contratados
da Escola Nacional de Belas Artes, que atuavam em outros renomados bailes da cidade,
como os do Hotel Gloria e do Hotel Quitandinha, localizado na cidade de Petrópolis.

O Correio da Manhã424 informa que Joãozinho da Goméia presidiu a folia ao lado


de Messalina e, ironicamente, debocha da condição sexual do pai de santo, ao
mencionar que o “faraó do terreiro daria tudo para trocar de papel com sua parceira de
fuzarca”. Um comportamento preconceituoso, resquício do “bafafá” gerado pelo desfile de
Joãozinho no teatro João Caetano em 1956, apontado por Thiago Almeida Ferreira425,
como uma eventualidade, já que segundo o autor, a mídia não informava sobre a
sexualidade de Joãozinho.
O Diário da Noite destaca a presença de Joãozinho da Goméia em outras
edições do Baile do Coliseu, sempre fantasiado de forma criativa, luxuosa e original, mas
não se demora na descrição das mesmas. Nas demais obras biográficas sobre o pai de
santo, os biógrafos não se detêm a analisar as participações do pai de santo em bailes
carnavalescos, o que abre espaço para reflexão sobre esta omissão em detrimento as
atuações de Joãozinho da Goméia em bailes dedicados à classe artística. O que concluímos
é que existem detalhes da vida de Joãozinho da Goméia que só poderiam ser esclarecidos
por ele mesmo.

424
Correio da Manhã, 8 de fevereiro de 1962. A informação é reproduzida em uma notinha no Diário da
Noite de 12 de fevereiro.
425
FERREIRA, Thiago Almeida. João da Goméia: transgressões e gênero no candomblé Ver em:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/15310/1/2016_ThiagoAlmeidaFerreira_tcc.pdf
213

Principalmente, no que se refere ao seu lado folião. Por ser dono de uma trajetória
de vida polêmica e controversa, apta a questionamentos, quanto à validade das
informações, estes episódios são passiveis de intensos processos investigativos, que nem a
consulta às narrativas orais se sustentariam sozinhas. O que podemos entender sobre este
envolvimento nos bailes dos clubes esportivos e dos salões nobres, é que o seu
reconhecimento pelas revistas de fãs como artista e não como pai de santo, apresenta pela
primeira vez a separação dessas duas identidades. O carnaval de 1956 gerou esta divisão
das identidades artística e religiosa. O Folião Joãozinho da Goméia deixa de ser
identificado como pai de santo, o que não vai acontecer na sua experiência à frente das
escolas de samba, nas quais o seu vínculo com o candomblé será destacado e reforçado. A
sua presença como “destaque de luxo” no Império da Tijuca e do Império Serrano, a partir
de 1964, pode ter lhe aberto às portas para participar do desfile de fantasias de luxo do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1965. Afinal, o luxo e o glamour da época dourada
dos anos 1960, contavam com nomes gloriosos como Clovis Bornay, Evandro de Castro
Lima, Marie Ventre, Augusto Lima, Marlene de Paiva, Eutálos Figueiredo, Domingos
Otero, dentre outros que fizeram nome nas esplendorosas noites de Gala dos luxuosos
concursos de fantasia do carnaval carioca.

Figura. 69: Reportagem sobre a participação de Joãozinho no Baile patrocinado pela Associação de Cronistas
Carnavalescos. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite, 06/02/1962. Fonte: BNDigital.426

426
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_04&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A
9ia&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=17823
214

Figura. 70: Joãozinho registrado pela Revista do Rádio de fevereiro de 1960, a qual informa que só
naquele ano havia comparecido a vário baile fantasiado, usando fantasias riquíssimas e exóticas. A Revista
cita a participação do Ramsés II no Baile das atrizes, que se realizava no Hotel Glória, despertando a
curiosidade se esta fantasia foi utilizada por duas vezes. Percebam que Joãozinho está vestido com traje real,
em sua cabeça está fixada uma coroa, e com o cetro na mão, João está sentado em uma simulação de trono
carregado por fortes homens negros que figuram a imagem de escravos. Fonte: Revista do Rádio, 1962.

Conforme foi demonstrado até agora, a rede de sociabilidade construída por


Joãozinho ao longo da sua trajetória rendeu-lhe aproximações com lugares frequentados
pela fina flor da sociedade carioca, o que o inseriu com uma relativa tranquilidade nestes
espaços frequentados por pessoas de poder aquisitivo que já estava acostumado a lidar.
No entanto, precisamos a partir de agora, tratar do aspecto popular do carnaval, ou do
215

carnaval da rua, que o antropólogo Roberto Da Motta, se dedicou a analisar em seu livro
Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro427. O
antropólogo entende que por mais que a rua apresente espaços de poder dedicados a
convidados especiais que ocupam áreas nobres como camarotes, tal como nos clubes da
elite, as ruas são penetradas pelo povo. Os desfiles da Avenida Rio Branco e da Cinelândia
tinham o poder de ser transformadas no palco de um teatro:

Ali acontecem dramatizações espontâneas, improvisadas por quem está


fantasiado, numa relação de participação intensa entre os falsos “atores” e os
falsos “espectadores”. Todos podem misturar-se e trocar de lugar, na
relativização típica das posições sociais que caracteriza os espetáculos
verdadeiramente populares, onde o povo representa a si próprio. Questiona-se,
de modo simultâneo, o papel de ator e de espectador. (DA MATTA, 1981, p.90)

Desde as bordadeiras, costureiras, iluminadores, eletricistas e demais profissionais


do corpo técnico que assessoram o trabalho dos cenógrafos, responsáveis pela
ornamentação das vias públicas, e dos clubes e teatros, é o povo que movimenta e faz o
carnaval acontecer. Sem falar na presença dos moradores das favelas, subúrbio e zona
norte nos desfiles das agremiações e das escolas de samba que ocupam as Avenidas
Centrais.
O povo construía a narrativa sobre a Nação e se inseria naquele lugar de destaque
social, na área central do Rio de Janeiro. Uma cidade que há décadas atrás, a partir de um
projeto modernizador e civilizatório, achatou parte da população pobre e negra para as
extremidades mais pobres e carentes. Não teria como Joãozinho da Goméia não fazer parte
deste movimento que se construiu no trânsito do deslocamento e da reivindicação por
inserção social. O “Arreda que eu vou passar com a minha glória” foi o grito guardado
desde a sua saída de Salvador, que fortaleceu a sua caminhada rumo à arte negra e o
candomblé. Sendo assim, o pai de santo é convidado para desfilar em 1964, no Império
da Tijuca, a primeira escola de samba a usar emseu nome o termo "Império", razão pela
qual tem uma coroa, símbolo da nobreza, em sua bandeira. A escola foi fundada em 1940,
no Morro da Formiga, localizado no bairro da Tijuca, nasceu da fusão entre as antigas
escolas Recreio da Mocidade e Estrela da Tijuca. Entre os seus fundadores estão Joaquim
Augusto de Oliveira (Quincas), Agripino de Souza, Rodolfo Augusto de Oliveira,
Celestina Pinto Rabaça, Fernando Matos, Jorge Domingos da Silva, João Escrevente,

427
DA MATTA, Roberto, 1981.
216

Mario Pereira, Manoel Queiroz, Aylton dos Santos, Emílio Marcatte, Manuel Pinto, entre
outros.
A força da representatividade da realeza certamente foi o que trouxe Joãozinho para
as escolas de samba, tanto que além do Império da Tijuca, ele fez parte do Império
Serrano, a partir de 1966, com o enredo “Glórias e Graças da Bahia” quando a identidade
baiana e de liderança religiosa foi o grande motivo da sua contratação. O homem
nordestino, homossexual, negro e macumbeiro passaria a ocupar o lugar de destaque dentro
do projeto de carnavalescos que encontraram na sua representatividade a oportunidade de
contar as histórias dos nossos personagens históricos como D. João VI, D. Pedro II, e
porque não o Rei Nagô, Ganga Zumba, e Omulu, personagens identificáveis com o
universo afro-religioso, ao qual Joãozinho da Goméia pertencia, não apenas pela sua
identidade religiosa, como também por representar a face do construtor de “contra
narrativas” e “narrativas contra hegemônicas”428 sobre a cultura afro- brasileira. A sua
presença também pode ser sentida como a aclamação do homem negro que venceu na vida.
O homem negro que rompeu o “véu da invisibilidade”429 e se inseriu em um universo que
possibilitou com que se reafirmasse a identidade pessoal, do João Alves Torres Filho, um
baiano que conseguiu ascender socialmente através da construção de sentidos que deu a
sua trajetória de vida entre círculos artísticos e religiosos.
O título de Rei do Candomblé deu sentido a sua trajetória nas escolas de samba, nas
quaisa relação entre a macumba e o samba é quase que indissociável, porque são elementos
que remontam ao continente africano. Tanto que a “brasilidade” presente nos palcos de
cassinos, boates e teatros de revista existiu carregada da sonoridade do samba e dos
elementos Afro- religiosos, que deságuam no carnaval, servindo de base criativa para
carnavalescos, compositores e tocadores de instrumentos de origem e influência africana e
indígena. Samba, macumba, candomblé, batuque, folclore, cordões, ranchos, capoeira,
ganzá, tamborim, cuíca, atabaque, tambor, são todos elementos de um mesmo processo de
conexão cultural construído pelas conexões culturais afro-atlânticas produzidas pela
Diáspora negra, nas quais o Rei do Candomblé, assim como as realezas dos ranchos
carnavalescos conseguiram obter o seu lugar de destaque, promovendo a imagem de uma
realeza liberta dos malefícios causados pela destruição operada pelo sistema colonial.

428
BORA, HADDAD, NATAL, 2020, p. 9.
429
Uso véu da invisibilidade sem correspondência alguma com o conceito construído por W.E.B. Dubois,
autor da obra As almas do povo negro.
217

A passagem de Joãozinho da Goméia nesses espaços entre 1964 e 1966 encerra a


nossa análise sobre os aspectos da trajetória artista deste personagem tão rico, polêmico e
controverso. Encerrar a dissertação apresentando este local de produção de sentidos e
significados que é o carnaval carioca justifica todos os investimentos feitos até aqui. Estes
espaços validam a trajetória de um ser precursor, fonte geradora, que produziu arte negra e
foi atravessado por outras criações artísticas e deu novos significados para o termo
folclórico. Forjou estratégias e artimanhas para executar os contornos do seu projeto de
ascensão social. E assim assumiu o lugar de “destaque de luxo”, um lugar que deu
significado as escolhas que fez por toda sua vida: ornamentação do seu terreiro,
indumentárias dos seus orixás e o luxo das suas fantasias.
Acreditamos que a origem baiana de Joãozinho, seja um forte indicativo para
explicar a sua presença nos desfiles das Escolas de Samba, quando é escolhido para
interpretar D. Pedro II. Em 1965, vestiu uma das fantasias mais caras do Carnaval do 4º
Centenário do Rio de Janeiro, trajado de D. João VI, uma fantasia inscrita no baile de gala
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro430. O Império da Tijuca, no ano de 1964, a
agremiação na qual se destacaram nomes como os compositores Sinval Silva, Marinho da
Muda e Jorge Melodia, foi a primeira escola de samba a conseguir o direito de participar
de um desfile oficial com um enredo monográfico sobre as religiões afro-brasileiras, o
‘Misticismo da África para o Brasil’, de 1971431. O Império da Tijuca havia conseguido o
direito de desfilar na primeira divisão do samba, ou seja, na Avenida Presidente Vargas,
para levantar o título da divisão intermediária, que desfilava na Avenida Rio Branco. O
Jornal do Brasil432 enaltece a qualidade das fantasias, despertando a curiosidade do leitor
para a presença do “famoso macumbeiro” caracterizado de D. João VI. A fantasia que
vestiu Joãozinho foi considerada por parte da imprensa como uma das mais belas e
luxuosas do ano, chamando atenção para a presença de outros destaques de luxo na
agremiação. O Correio da Manhã, de 13 de fevereiro de 1965, então brinca com a escolha
dos carnavalescos do Império da Tijuca:

Monarca Macumbeiro: Voltando ao assunto de ontem: o saltitante Joãozinho da


Goméia sairá de D. João VI no Império da Tijuca. Seria o caso para um protesto
no Instituto Histórico.

430
BORA, HADDAD, NATAL, 2020, p. 242.
431
LOPES e SIMAS, 2020, P. 45.
432
Jornal do Brasil, 11 de fevereiro de 1965.
218

As cores verde e branca, usadas pelo Império Serrano, também interessam ao filho
de Oxóssi com Iansã433 que vê a possibilidade de se divertir e homenagear seus orixás
ao mesmo tempo em que brincava o carnaval como um folião que cruzava a Avenida do
samba defendendo o seu pavilhão carnavalesco:

As cores se tratavam de uma exigência do Caboclo Pedra Preta. O Rei do


Candomblé se afeiçoava a escolas imperiais, cortes populares que ainda hoje
representam o samba de Madureira e do Morro da Serrinha, no caso do Império
Serrano, da Tijuca e do Morro da Formiga, no caso do Império da Tijuca, e de
Ramos e do Morro do Alemão, no caso da Imperatriz Leopoldinense. (LODY &
SILVA, 2002, p.179)

Os autores Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva informam que esta associação
de elementos que estabelecem uma ligação entre o campo do material com o do sagrado,
gera uma “continuidade”, ou seja, estabelece uma conexão entre a ação do religioso e do
folião, o que também vem a construir uma transposição de elementos do sagrado para o
profano. Esta transposição pode ser verificada na trajetória da escola de samba
Acadêmicos do Salgueiro, a partir de 1960, como foi abordado ainda a pouco. A
representatividade folclórica de Joãozinho da Goméia também é um dos elementos que
vem a justificar a sua presença no Império Serrano, que em 1966, leva para a Avenida o
enredo “Glória e graça da Bahia”, que contou a história do Estado da Bahia, com seus
aspectos culturais e folclóricos.
Ao ser entrevistado pelo Luta Democrática434Joãozinho da Goméia considera que
quem não havia visto um candomblé não conhecia a velha Bahia e desconhecia também as
danças das iaôs possuídas pelos toques dos atabaques. A oportunidade de se
conhecer um “autêntico” candomblé baiano era com o Império Serrano, a escola que
depositou inteira confiança nas suas habilidades. A demonstração da dança folclórica
baiana, do maculelê e da capoeira de Angola, que contou com a presença de dez
capoeiristas na Avenida, além de simular a movimentação dos mercadores baianos do
século XIX, o Império Serrano conquistou a menção positiva na crítica dos jornais. Por
outro lado, o Jornal do Brasil435 teria considerado que a presença de Joãozinho significava
o menosprezo aos sambistas do morro. A presença de elementos estranhos à comunidade,
representados por “destaques de luxo”, não eram recebidos com bons olhos pela

433
Paulo Siqueira informa que a cor de Iansã no candomblé de Angola é o branco.
434
Luta Democrática, 7 de janeiro de 1966.
435
Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1966.
219

comunidade, por talvez representar uma elitização desnecessária e a inevitável


modernização de algo que se queria tradicional. A presença dos carnavalescos Evandro
Castro e Lima e de Clovis Bornay, teve o mesmo peso de reprovação, não agradando a
comunidade Imperiana.
O interesse por desenvolvimento de enredos que contemplassem a história, cultura
e folclore baianos, talvez tenha sido um dos fatores explicativos do interesse pela presença
de personalidades baianas como Joãozinho da Goméia e Evandro Lima e Castro, em
posições de destaque, afinal além de ambos serem de origem baiana, representavam uma
revolução estética e visual que, no caso de Joãozinho da Goméia, dialogava com a
sua trajetória no candomblé quanto à presença do requinte, exuberância, luxo e
modernidade. O interesse pela temática folclórica e regional tinha haver também com as
manifestações culturais baianas que ofereciam muitos elementos para composição
cenográfica dos desfiles. A presença de temas baianos nos desfiles também estimulava a
contratação de profissionais do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, como cenógrafos,
escultores e profissionais das Belas Artes, revelando ser o carnaval, um campo aberto para
diversas comunicações e possibilidades no campo profissional de criação estética. A
dedicação à composição de cenários festivos, através do oficio da ornamentação, que vestia
o centro da cidade e os lugares frequentados pela elite, passou a vestir não só os clubes do
subúrbio e da zona norte, como passou também a vestir as agremiações carnavalescas, que
desfilavam nas Avenidas Centrais:

A presença baiana não foi interesse dos carnavalescos apenas a partir dos anos
60, já no desfile de 1933, quatro agremiações transformaram elementos da
cultura baiana em tema para os seus enredos, A Azul e Branco, do Salgueiro,
apresentou ‘Uma noite na Bahia’; a Estação Primeira de Mangueira, ‘Uma
segunda-feira do Bonfim da Ribeira’; os Príncipes da Floresta (do Salgueiro),
‘Passeata nas florestas da Bahia’; e a Mocidade Louca de São Cristóvão, ‘Antiga
Bahia’. Após a oficialização dos desfiles, são também inúmeros os exemplos,
‘Romaria à Bahia’, Salgueiro, 1954; ‘Glória e graças da Bahia’, Império Serrano,
1966; ‘Bahia de todos os deuses’, Salgueiro, 1969; ‘Bahia, berço do Brasil’, Em
Cima da Hora, 1972, ‘Lendas do Abaeté’ Mangueira, 1973; ‘Arte negra na
legendária Bahia’, Unidos de São Carlos, 1976; ‘Mar baiano em noite de gala’,
Unidos de Lucas, 1976; ‘Mãe Baiana, mãe’, Império Serrano, 1983; ‘Ave
Bahia, cheia de graça’, Acadêmicos do Cubango, 1988. (LOPES & SIMAS,
2020, p. 27 e 28)

O Império Serrano é marcado por ser uma escola que sempre investiu em
inovações como a introdução do prato, reco-reco, frigideira, agogô de quatro bocas na
bateria, além da criação dos destaques de luxo. A presença de Joãozinho da Goméia, no
Império da Tijuca desde 1964, já o localizava como “destaque de luxo”. O carnavalesco
220

recém-contratado em 1951, Frederico Ferreira, apresentou o primeiro destaque de luxo do


carnaval carioca: Olegária dos Anjos, que desfilou no chão, ricamente fantasiada, de
acordo com o enredo: “Sessenta e um anos de República”, com samba-enredo composto
por Silas de Oliveira. O extenso samba-enredo de trinta e cinco versos, composto por Silas
de Oliveira não empolgou o público. Ainda assim, o Império Serrano conquistou o
tetracampeonato do carnaval carioca. A introdução do quesito “destaque de luxo” no
carnaval carioca, em 1951, pode ser considerada junto à revolução visual e estética
proporcionada pelo Salgueiro, como os marcos iniciais para se pensar em um movimento
de modernização e elitização das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. O espectro da
presença dos campeões de concursos de fantasias de luxo dos grandes clubes, hotéis e
teatros passaram a ser um inconveniente. Evandro de Castro e Lima e Clovis Bornay,
por exemplo, eram destaques da Portela, escola de samba na qual este trabalhou mais tarde
como carnavalesco. De acordo com Helenice Monteiro Guimarães:

O luxo de suas fantasias se transferiu para os ateliers de costura das escolas,


onde eram confeccionadas fantasias de alto preço, acrescentando-se o fato de que
os próprios dirigentes buscavam trazer personalidades famosas da sociedade e da
televisão para colocarem suas escolas em evidencia. Muitas foram as críticas a
esta invasão das Escolas de Samba, e também contra a profissionalização do
sambista no seu próprio meio, as Escolas de Samba encontravam-se nas
privilegiadas condições de atração principal do carnaval, e este foi um processo
que não pôde ser impedido. (GUIMARÃES, 1992, p, 57)
221

Figura 71: JOÃOZINHO DA GOMÉIA E A DESTAQUE DE LUXO


SALGUEIRENSE ISABEL VALENÇA.436 Fonte:
file:///C:/Users/Particular/Downloads/55012-203488-1-PB%20(4).pdf

Imerso entre estes dois mundos: o do candomblé (sagrado) e o do carnaval


(profano), o pai de santo Joãozinho da Goméia assume a face de um Exu simbólico, aquele
que traça os caminhos e constrói as conexões entre indivíduos abandonados à própria sorte

436
Na época existia uma confusão por parte da imprensa sobre a identidade dos destaques de luxo Evandro de
Castro e Lima e Joãozinho da Goméia. A semelhança física era grande. Os dois eram baianos e obtiveram
êxito no carnaval na mesma época. Então, não posso afirmar com precisão se este da capa é Evandro ou João.
Mas como os carnavalescos Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinicius Natal usaram esta imagem para
ilustrar a presença de Joãozinho no carnaval como destaque de luxo, peguei de empréstimo a imagem para
cumprir o mesmo propósito. Ver o artigo em: file:///C:/Users/Particular/Downloads/55012-203488-1-
PB%20(4).pdf
222

e que buscam nos seus poderes mágicos a renovação dos caminhos. A duplicidade da sua
identidade encontrou no Carnaval um ponto de equilíbrio que ele talvez não tenha
encontrado nem nos palcos dos teatros, nem no seu terreiro. No carnaval encontrou a
complexa completude, foi ali que ele conseguiu exercer as suas funções e foi ali o espaço
de acolhimento promovido pela extravagância, luxo, exotismo e alegria. Foi o encontro
perfeito entre o João profano e o João Sagrado, unidos pela face de um Rei no Carnaval.
223

EIS O FIM DESTA TRAVESSIA...

“(...) Se o candomblé assumiu uma postura de espetáculo de luzes e


cores foi graças a minha Roça da Goméia. Não posso acreditar que
digam que eu desmoralizo ou desmoralizei o candomblé apenas por
gostar de enfeitar meus Orixás, ou brincar no carnaval. Afinal,
estou vivo! E se cheguei até aqui foi graças a minha personalidade e
autenticidade, mas pelo menos tenho uma recompensa perante
todo este bafafá: ocupei o meu lugar no mundo, e quem estiver
incomodado que venha falar comigo. Afinal, eu sou ou não sou o
Rei do Candomblé!? ”437

Quem é Joãozinho da Goméia? Uma pergunta que foi feita na introdução, e que
buscamos responder ao longo desse trabalho. Escolher uma provocação feita por Joãozinho
da Goméia em vida, como título desse trabalho de Dissertação de mestrado, foi o jeito que
encontrei para convidar os leitores e pesquisadores desta trajetória de vida, a refletir sobre
esta figura tão controversa e polêmica.
Ao buscar seus “rastros” e puxar os “fios” deixados por pesquisas anteriores,
encontrei um Joãozinho que até então, havia sido mencionado muito brevemente438: o
Joãozinho da Goméia, artista. Até então, as pesquisas se preocupavam em dar conta dos
aspectos da sua vida religiosa e a atuação artística ficou invisibilizada pelo campo de
estudos, o que é incompreensível, já que foi o campo artístico que deu visibilidade para o
religioso. Mas, também é inegável que a identidade religiosa tenha visibilizado a sua
atuação artística. Em convívio harmônico estes trânsitos construídos magistralmente por
Joãozinho, revelam a sua dupla identidade. Podemos considerar, então, que o Rei do
Candomblé é o resultado da harmonia entre esses dois corpos. O seu envolvimento, não

437
Esta frase inspirou o título deste trabalho. Foi colhida de um depoimento dado em 23 de março de 2001,
por Ileci da Oxum, a mãe criadeira do terreiro da Goméia de Duque de Caxias. Foi ela quem trouxe a muda de
Juremeira (árvore consagrada ao Caboclo Pedra Preta) de Salvador. Lembro que Ileci repetiu esta frase umas
duas vezes no final da entrevista, e me coube arrumá-la como foi publicada na monografia de graduação em
história. Ver em NASCIMENTO, 2003.
438
A revista Periferias Joãozinho da Gomeia: Educação, Candomblé e Cultura Afro Brasileira, coordenada
pelos professores Nielson Bezerra e Andréa Mendes, é a única publicação, até agora que apresenta outras
facetas de Joãozinho. Existem diversos textos que evocam aspectos culturais da sua trajetória de vida. Ver:
https://doi.org/10.12957/periferia.2020.58471
224

apenas com o campo de estudos folclóricos e afro-brasileiros, mas com a cena teatral das
Revistas da Praça Tiradentes, da zona Sul, e do carnaval carioca vai gerando mais “fios” a
serem puxados e mais rastros a serem investigados futuramente.
Conforme o trabalho ia sendo desenvolvido, fomos descobrindo seus contornos,
que revelaram novos personagens ligados a sua trajetória. Foi como abrir as cortinas de um
palco de teatro em dia de estreia, o que também revelou novas possibilidades de
investigação para futuras pesquisas. O marco finalizador, 1966, desta análise evidencia o
momento de intensificação das suas atividades religiosas e também da instalação de uma
“agenda folclórica439que é criada, a partir do desfile do Império Serrano, com o enredo
“Glórias e Graças da Bahia”, no qual o pai de santo encenou teatralmente um polêmico
“ritual de candomblé”. Uma atuação que se deu logo após o seu desligamento da escola de
samba Império da Tijuca, escola em que desfilava desde 1964, como “destaque de luxo” ao
lado de Gidé, o Rei do candomblé paulista.
A menção ao investimento em fantasias de luxo iniciou com Joãozinho da Goméia,
que passara a anualmente destacar valores próximos a Cr$ 6.800 mil cruzeiros, investidos
em adereços e fantasias, algo incomum para o universo do samba dos anos 60. Digamos
que a presença de Joãozinho acrescentou este tom ao carnaval: a competição por
investimento financeiro em fantasias, e carros alegóricos. Mesmo, que Joãozinho da
Goméia não tivesse feito parte do movimento de inserção dos “destaques de luxo” nas
agremiações carnavalescas, a sua ligação com este universo ostensivo, havia modificado
parte da estrutura dos desfiles das Escolas de Samba. Entre a rejeição e a aceitação,
Joãozinho brilhou, e encontrou um lugar no qual se identificava, pois ali, não havia críticas
que depreciassem seu gosto pelo luxo e pelo brilho.
A possibilidade de interpretar personagens também chamou sua atenção para o
carnaval. Identificamos que, a partir de 1960, não existem mais menções na imprensa sobre
a sua presença nos palcos de teatro. Ao contrário, é o período em que se destacam

439
A partir deste ano, fervilham na imprensa divulgações sobre convites destinados a Joãozinho para
participar de solenidades em centros de pesquisa, como o ato de posse da 1ª Diretoria do Centro de Pesquisas
Folclóricas, cercada de mestres de capoeira, grupos de frevo, de coco, cantadores de viola e outras
manifestações do folclore brasileiro, foram uma constante na sua vida. Só no ano citado, surgem diversas
notinhas na imprensa sobre eventos espalhados pelo Brasil, que contaram com a presença do pai de santo. A
título de exemplificação, podemos citar o evento filantrópico organizado pela Fundação Leão XIII, que levou
para o Teatro João Caetano em 16 de dezembro, um espetáculo folclórico, com o intuito de angariar
fundos para suas obras sociais. O ponto alto desta “Agenda folclórica foi o envolvimento com os
festivais folclóricos de Pernambuco organizados por candomblés do Recife, e com festivais religiosos,
organizados por terreiros de umbanda e de candomblé do Distrito Federal e de Vitória, Espírito Santo”. Com a
intensificação dos eventos que envolvem a atuação de Joãozinho como pai de santo, a partir de 1967, esta
pesquisa perderia o seu sentido inicial.
225

reportagens que tratam apenas da sua atuação no carnaval e em eventos que buscam um
sentido folclórico. A década de 1960 é, portanto, marcada pela sua atuação no campo do
folclore, só que a partir de fins dos anos 1950, somem as menções a Companhia baiana de
folclore Oxumarê. A presença de Joãozinho e das suas filhas de santo passa a ser mais
constante em eventos religiosos e folclóricos, a partir do desfile de 1966, no Império
Serrano.
Acreditamos que, toda a representação folclórica apresentada pelo Império Serrano
ao tratar de um enredo sobre a Bahia buscou em Joãozinho da Goméia o seu mais fiel
retrato: o da Bahia mandingueira, folclórica, mística e artística. A cena artística acabava,
dessa forma, por limitar as suas diversas habilidades experimentadas em momentos
distintos da sua trajetória. Os palcos de teatro dialogavam apenas com a sua dimensão
performática, corporal, mas Joãozinho queria muito mais 440. O Carnaval lhe deu tudo de
uma vez só, e ali ele ficou se apropriando do rótulo de “bailarino folclórico”, para se
destacar e se distinguir dos demais, que “estilizavam” as danças dos orixás. Acreditava
no seu potencial artístico e no seu diferencial, e sabia que aíresidia o seu encanto. Um
rótulo que por muito tempo criou enquadramentos desfavoráveis parao povo de santo, mas
que logo virou um palanque de ascensão social.
Se auto identificar como um “bailarino folclórico” foi à essência da sua trajetória,
principalmente por apontar como o pai de santo forjava suas estratégias, e, por
conseguinte, construía o seu campo de atuação. Podemos afirmar que a atuação em 1956,
travestido de vedete francesa no baile do Teatro João Caetano, revelou uma “rejeição”
atrelada a dogmas religiosos, homofobia e moralismo exacerbado que, ao invés de fechar
seus caminhos, lhe abriu as portas do estrelato e da aceitação. Afinal, a cena gay no Rio
de Janeiro ocupava desde os anos 50, os palcos das casas de espetáculo da cidade. Desse
modo, podemos concluir que a representatividade gay, baiana e negra, lhe abriu as portas
do carnaval.
Ao finalizar esta travessia, reencontrei a face do homem negro que descobri há
vinte anos na Graduação em História, quando escolhi a sua trajetória de vida como tema do
meu trabalho de conclusão de curso. Naqueles tempos, já havia compreendido que

440
Em 1963, o curta-metragem “Meninos do Tietê” usa a composição “Pemba” de Joãozinho. O
arqueólogo/antropólogo Rodrigo Pereira, informa que em 1970, Joãozinho fez uma participação no filme
“Copacabana Mon Amour”, com roteiro e direção de Rogério Sganzerla, “em 35 milímetros, e a
atuação de Lilan Lemmertz, músicas de Gilberto Gil e produção pela Belair Filmes”. Inaugura-se um novo
diálogo com o cinema marginal que apontamos como sendo um “engajamento do Cinema Novo”
aprofundado nas questões sociais e nos grupos à margem da repressão dos tempos da Ditadura
Militar.
226

Joãozinho era um produto do pós-Abolição, que era o resultado da diáspora negra que
produzia saberes, entrelaçamentos culturais e desestabilizações da ordem promovida pelo
projeto colonial.
Quando entendemos que Joãozinho da Goméia é um produto das formas culturais
negras produzidas por este circuito diaspórico, estamos direcionando nossos olhares para
a construção de uma “identidade negra positivada”441 que vai ser a espinha dorsal da sua
trajetória de vida, orquestrada pelos seus projetos de escalada social. Um dos resultados
desta “positivação” é a formação do campo afro-religioso paulista, que é fruto do seu
investimento pessoal e da instalação de terreiros de candomblé da nação Angola na
Baixada Santista. A ocupação do litoral paulista e a popularização do candomblé Angola
em escala nacional e transnacional, a partir dos anos 50, é um indicativo da superação dos
males causados pela discriminação contra a imagem pública do pai de santo Joãozinho da
Goméia.
A partir de 1967, o pai de santo usa o seu poder de driblar e iludir, e embaraça os
sentidos daqueles que acreditaram que o terreiro da Goméia havia se transformado em um
candomblé traçado: Ketu e Angola. A suposta mudança de águas foi mais um golpe de
mestre, daquele que usava a polêmica ao seu favor. A estadia no terreiro do Gantois
garantira espaço de destaque na revista Cruzeiro de 1967, que simbolizou mais um
episódio das suas várias negociações, articulações e estratégias.
O jornalista Carlos Nobre442 relaciona a ida ao terreiro do Gantois como símbolo da
decadência do pai de santo e do seu terreiro, apontando outros sinais: a constante
inundação do local por causa da elevação do rio Meriti com destruição dos objetos
ritualísticos e a dificuldade que o orixá Iansã sentia para incorporar. Consideramos após
percorrer toda esta travessia, que a divulgação do procedimento espiritual realizado pelas
mãos de Mãe Menininha do Gantois, garantiu para os dois um amplo retorno midiático e
financeiro. A ialorixá baiana, até então, não havia ocupado as páginas das revistas de
circulação nacional como a revista Manchete e a Cruzeiro, o que pode ser atestado pelo
fato de a mesma só ter conseguido gravar o LP “Gravado Ao Vivo no Gantois” em
1974443. Por outro lado, o interesse por Joãozinho da Goméia passa a adquirir novos
sentidos e um destes é a presença no filme de longa-metragem “Copacabana Mon Amour”.
Concluindo, podemos afirmar que a trajetória artística de Joãozinho da Goméia

441
SILVA, 2018, p. 295.
442
NOBRE, Carlos. Gomeia João: a arte de tecer o invisível. RJ: Centro Portal Cultural, 2017, p. 156.
443
PEREIRA, 2019, p. 107.
227

confirma a valorização da positivação da identidade deste homem negro, que foi encantado
no tempo e no espaço.
Após ler as páginas desta Dissertação de Mestrado, será que alguém ainda vai
duvidarque Joãozinho da Goméia, foi mesmo o Rei do Candomblé.

Figura 72: Registro fotográfico feito para a revista O Cruzeiro, que retrata uma nova fase para a carreira
artística e religiosa do agora Taata Londirá, o sacerdote baiano do candomblé Angola, que conseguiu
contribuir com o processo de popularização do candomblé Angola. A partir de 1966, a imagem pública do
Rei do Candomblé é amplamente fortalecida. Fonte: O Cruzeiro, 23/09/1967.444

444
Não consegui inserir o link da revista O Cruzeiro, nesta nota, sendo assim, peguei a imagem emprestada da
dissertação de mestrado da historiadora Andréa Mendes. Ver a imagem em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281442
228

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ENTREVISTAS:

1- Entrevista com Agenor Miranda Rocha, realizada em 23 de janeiro de 2001.


2- Entrevista com Mãe Ileci da Oxum, realizada em 19 de março de 2001.

FONTES DA IMPRENSA:

JORNAL A MANHÃ:

1) A Manhã, 16 de junho de 1942.


2) A Manhã, 13 de fevereiro de 1942.

JORNAL A NOITE:
3) A Noite, 26 de janeiro de 1937.
4) A Noite, 30 de outubro de 1953.

JORNAL A TARDE:
5) A Tarde, de 06 de outubro de 1921.
6) A Tarde, de 08 de outubro de 1921.
7) A Tarde, de 14 de outubro de 1921.
8) A Tarde, de 24 de agosto de 1936.

JORNAL A TRIBUNA
9) A Tribuna, (SANTOS) 17 de agosto de 1959.
10) A Tribuna, (SANTOS) 17 de agosto de 1970.

JORNAL CORREIO BRASILIENSE


11) Correio Brasiliense (DF), 10 de agosto de 1965.
12) Correio da Manhã, 9 de dezembro de 1951.

JORNAL CORREIO DA MANHÃ:


13) Correio da Manhã, 20 de dezembro de 1953.
14) Correio da Manhã, 26 de fevereiro de 1957.
15) Correio da Manhã, 01 de janeiro de 1960.
16) Correio da Manhã, 8 de janeiro de 1966.
17) Correio da Manhã, 11 de setembro de 1966.
236

JORNAL CORREIO DE SÃO PAULO


18) Correio de São Paulo, 18 de agosto de 1936.

JORNAL DIARIO CARIOCA:


19) Diário Carioca, 28 de janeiro de 1959.
20) Diário Carioca, 31 de março de 1960.
21) Diário Carioca, 14 de abril de 1960.
22) Diário Carioca, 30 de novembro de 1964.
23) Diário Carioca, 9 de novembro de 1965.

JORNAL DIÁRIO DA BAHIA:


24) Diário da Bahia, de 07 de maio de 1931.

JORNAL DIÁRIO DA NOITE


25) Diário da Noite, 11 de fevereiro de 1949.
26) Diário da Noite, 20 de agosto de 1952.
27) Diário da Noite, 23 de setembro de 1953.
28) Diário da Noite (SP), 13 de outubro de 1953.
29) Diário da Noite, 7 de fevereiro de 1956.
30) Diário da Noite, 6 de fevereiro de 1962.
30) Diário de Notícias, 8 de agosto de 1942.
31) Diário da Noite, 27 de agosto de 1936.
32) Diário da Noite, 9 de setembro de 1936.
33) Diário da Noite, 11 de fevereiro de 1949.
34) Diário da Noite, 13 de agosto de 1952.
35) Diário da Noite, 13 de outubro de 1953.

JORNAL DIARIO DE NOTICIAS


36) Diário de Notícias, 2 de junho de 1949.
37) Diário de Notícias, 28 de maio de 1958.
38) Diário de Notícias, 27 de outubro de 1963.

JORNAL DIARIO DE PERNAMBUCO

39) Diário de Pernambuco, 14 de janeiro de 1937.

JORNAL FLAN, O JORNAL DA SEMANA


40) Flan- o jornal da semana, 11 a 17 de outubro de 1953.
237

JORNAL GAZETA DE NOTICIAS


41) Gazeta de Notícias, 24 de março de 1954.

JORNAL DA TARDE
42) Jornal da Tarde, (SP) 19 de agosto de 1968.

JORNAL DE UMBANDA
43) Jornal de Umbanda, 15 de fevereiro a 28 de março de 1959.

JORNAL DO BRASIL
44) Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1960.
45) Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 1964.
46) Jornal do Brasil, 11 de fevereiro de 1965.
47) Jornal do Brasil, 9 de junho de 1966.
48) Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1966.

JORNAL LUTA DEMOCRATICA


49) Luta Democrática, 22 de março de 1955.
50) Luta Democrática, 16 de fevereiro de 1956.
51) Luta Democrática, 5 de janeiro de 1960.
52) Luta Democrática, 17 de janeiro de 1960.
53) Luta Democrática, 15 de outubro de 1960.
54) Luta Democrática, 07 de janeiro de 1966.
55) Luta Democrática, 26 de fevereiro de 1966.
56) Luta Democrática, 27 de novembro de 1966.
57) Luta Democrática, 28 de novembro de 1966.
58) Luta Democrática, 22 de dezembro de 1966.

JORNAL O ESTADO DA BAHIA


59) O Estado da Bahia, de 11 de maio de 1936.
60) O Estado da Bahia, de 21 de maio de 1936.
61) O Estado da Bahia, de 28 de maio de 1936.

JORNAL O FLUMINENSE
62) O Fluminense, 8 de agosto de 1965.
238

O JORNAL
63) O Jornal, 17 de maio de 1936.
64) O Jornal, 30 de maio de 1951.
65) O Jornal, 18 de novembro de 1956.
66) O Jornal, 12 de dezembro de 1965.
67) O Jornal, 9 de junho de 1966.
68) O Jornal, 14 de agosto de 1966.

JORNAL O PAIZ
69) O Paiz, 16 de janeiro de 1934.

JORNAL O TEMPO
70) O Tempo, (SP) 5 de novembro de 1953.
71) O Tempo, (SP) 9 de outubro de 1953.

REVISTA A CASA
72) Revista A Casa, revista do lar, janeiro de 1948.
73) Revista A Casa, revista do lar, maio de 1951.

REVISTA A CENA(SCENA) MUDA


74) Revista A Cena Muda, 5 de julho de 1949.
75) Revista A Cena Muda, 31 de outubro de 1952.

REVISTA BRASILEIRA DE FOLCLORE


76) Revista Brasileira de Folclore, agosto de 1965.

REVISTA CARIOCA
77) Revista Carioca, 13 de fevereiro de 1942.
78) Revista Carioca, 23 de dezembro de 1944.
79) Revista Carioca, 8 de junho de 1946.

REVISTA DA SEMANA
80) Revista da Semana, 22 de maio de 1948.
81) Revista da Semana, 3 de março de 1956.

REVISTA DEL CESLA


82) Revista Del Cesla, núm. 21, 2018.
239

REVISTA DO RÁDIO
83) Revista do Rádio, 1954.
84) Revista do Rádio, 1958.
85) Revista do Rádio, 1959.
86) Revista do Rádio, 1960.
87) Revista do Rádio, 1962.

REVISTA MANCHETE
88) Revista Manchete, 8 de outubro de 1952.

REVISTA O CRUZEIRO
89) Revista O Cruzeiro, julho de 1952.
90) Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1953.
91) Revista O Cruzeiro, 2 de dezembro de 1953.
92) Revista O Cruzeiro, 26 de dezembro de 1953.
93) Revista O Cruzeiro, 21 de outubro de 1967.

REVISTA VEJA
94) Revista Veja, 24 de janeiro de 1973.

REVISTA RIO
95) Revista Rio, 5 de julho de 1952.

JORNAL TRIBUNA DA IMPRENSA


96) Tribuna da Imprensa, 18 de junho de 1952.

JORNAL ULTIMA HORA


97) Última Hora, 16 de janeiro de 1934.
98) Última Hora, 22 de novembro de 1951.
99) Última Hora, 7 de julho de 1952.
100) Última Hora, 6 de novembro de 1953.
101) Última Hora, 8 de novembro de 1953.
102) Última Hora, 8 de setembro de 1954.
103) Última Hora, 28 de março de 1956.
104) Última Hora, 29 de outubro de 1956.
105) Última Hora, 28 de março de 1960.
106) Última Hora, 19 de agosto de 1960.
107) Última Hora, 28 de julho de 1964.
240

108) Última Hora, 18 de dezembro de 1964.

OUTRAS REFERÊNCIAS:

1- Carnaval que não sai da boca do povo; https://hhmagazine.com.br/1956-um-carnaval-


que-nao-sai-da-boca-do-povo/

2- Revista Periferias Joãozinho da Goméia: Educação, candomblé e cultura afro-


brasileira coordenada pelos professores Nielson Bezerra e Andréa Mendes, é a única
publicação, até agora que apresenta outras facetas de Joãozinho. Existem diversos
textos que evocam aspectos culturais da sua trajetória de vida. Ver:
https://doi.org/10.12957/periferia.2020.58471

3- Ver sobre a produção de Isaac Rozemberg através do canal Acervo Rozemberg:


https://www.youtube.com/channel/UCmiVrVmah8ld3xw8Vu38KEA; e a sua Filmografia
no site da Cinemateca Brasileira.

4- Texto de Thiago Almeida Ferreira. Ver em:


https://bdm.unb.br/bitstream/10483/15310/1/2016_ThiagoAlmeidaFerreira_tcc.pdf

5- Texto A Construção da moderna nação brasileira pertencente a Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro (PUC). O texto não apresenta descrições relativas à autoria nem
ao curso a qual é vinculado. Ver: https://www.dbd.puc-
rio.br/pergamum/tesesabertas/0710768_10_cap_03.pdf

6- Cena do filme Rio Rita no qual Eros Volúsia aparece com seu corpo de baile em um
quadro coreográfico, inspirado na dança de terreiro,
https://www.youtube.com/watch?v=TsNlolyVBQY

7- Fonte: https://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento

8- https://pt.wikipedia.org/wiki/Cine-Teatro_Jandaia

9- Informação sobre Mário Xavier de Andrade Pedrosa:


https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Pedrosa

10- Relato cedido por Joãozinho da Goméia em 1967 à antropóloga Gisele Binon Cossard,
que mais tarde se torna sua filha de santo e zeladora de um importante terreiro de
241

candomblé na localidade Raiz da Serra, Baixada Fluminense. O depoimento está


disponível integralmente no Youtube. Ver:
https://www.youtube.com/watch?v=KnzJbfgsJaU

11- Registro de visita de congressistas ao terreiro da Goméia. Não conseguimos localizar a


data em que o registro foi feito, nem a data em que o terreiro foi visitado;
http://velhosmestres.com/br/destaques-5

12- A Boate Fred´s, onde Joãozinho da Gomeia se apresentou no ano de 1960.;


http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com/2021/01/boate-freds.html

13- Registro feito em 1937, pelo Grupo de parceiros de capoeira do Mestre Samuel Querido de
Deus, que se apresentaram no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937;
https://www.capoeiranews.com.br/2015/10/querido-de-deus-um-capoeira-navegador.html

14- Informações sobre Tenório Cavalcanti; ver


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ten%C3%B3rio_Cavalcanti

15- Ver sobre a produção de Isaac Rozemberg através do canal Acervo Rozemberg:
https://www.youtube.com/channel/UCmiVrVmah8ld3xw8Vu38KEA; e a sua Filmografia
no site da Cinemateca Brasileira.

16- Capa do LP O Rei do Candomblé da Gravadora Todamerica:


http://discosdeumbanda.blogspot.com.br/2010/11/joaosinho-da-gomea-rei-do-
candombleou.html
242

ANEXO 1: Agenda folclórica e artística de Joãozinho da Goméia

1) Realização de uma festa fetichista organizada pelo pai de santo João da Pedra Preta
no Parque de São Bartolomeu às 14 h e 30 min., como um dos efeitos do Segundo
Congresso Afro-Brasileiro de 1937. Fonte: Diário de Pernambuco, 14 de janeiro
de 1937.
2) Na reportagem “Os Orixás descem sobre o terreiro. Sobrevivência da estranha
mística negra dos tempos coloniais- danças e rituais de um candomblé na Bahia
com invocação de Oxóssi e Omulu”, o agora bailarino João da Goméia surge ao
lado da coreografa e bailarina Ani Guaíba para divulgar a sua turnê artística Na
Capital Federal. Joãozinho é identificado como bailarino responsável por quadros
coreográficos inspirados em danças afro-brasileiras com referência na dança de
terreiro, ou de macumba e no folclore brasileiro. Fonte: A Manhã, 13 de fevereiro
de 1942. Presença de Joãozinho da Goméia em festa promovida pelo artista
regional Zé do Norte, realizada no Teatro Carlos Gomes. Uma festa típica de
folclore do norte e do sul do país, com repentes de Pernambuco e evoluções
coreográficas do candomblé da Bahia, representando os folclores pernambucano e
baiano, na qual foram angariados donativos para auxilio dos flagelados de
Alagoas. Estiveram também presentes, os cantadores nordestinos: Severino Pinto,
Dimas Raimundo, Zé do Sul, Gumercindo Amaral, e a dupla pernambucana
Venâncio e Corumbá, além de outros artistas. Também estiveram presentes 45
índios do Amazonas, sob a direção de Pedrinho Correia e Joço Gomes Correia,
além de um grupo de Folia de Reis, Coco nordestino, dança de Baião e a procissão
do Nordeste que retratava a época da Seca. Fonte: Diário de Notícias, 2 de junho
de 1949.
3) Apresentação de Joãozinho da Goméia e seus filhos de santo no jantar em
homenagem ao secretário norte-americano Dean Acheson, no Largo do Boticário.
Fonte: Revista Rio, 5 de julho de 1952.
4) Terreiro da Goméia como fonte de observação para os estudiosos de assuntos
etnográficos e de folclore brasileiro. Fonte: Diário da Noite, 20 de agosto de 1952.
5) “Estranha e impressionante coreografia: Pais e filhos de santo da Bahia darão
espetáculos em São Paulo”. Joãozinho da Goméia esteve presente com a
Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, composta por oito filhas de santo,
243

capoeiristas e o coreografo Sergio Maia, também filho do terreiro da Goméia.


Fonte: Diário da Noite, 23 de setembro de 1953. Espetáculo inédito da
“Companhia Baiana de Folclore Oxumarê” no Teatro Cultura Artística. Fonte:
Diário da Noite (SP), 13 de outubro de 195
6) Participação de Joãozinho da Goméia e a “Companhia Baiana de Folclore
Oxumarê” no Teatro Cultura Artística. Fonte: Flan- o jornal da semana, 11 a 17
de outubro de 1953.
7) Participação de Joãozinho em espetáculo com danças afro-brasileiras na sede da
Tijuca da Associação Atlética Banco do Brasil, e- Cassino Atlântico. Fonte:
Diário de Notícias, 28 de maio de 1958.
8) Participação de um espetáculo folclórico no Cais do Porto do Rio de Janeiro, que
marcou um dos Gritos do carnaval de 1959. Foi organizado por pais de santo
amigos de Joãozinho, que promoveram uma das maiores homenagens feitas para o
pai de santo em período carnavalesco. Joãozinho estava a bordo do navio
“Comandante Capela” que chegaria ao porto em meio a batalhas de confetes e
rodas de dança de terreiro, de capoeira e de outros ritmos do folclore brasileiro.
Estiveram presentes as Escolas de Samba de Duque de Caxias, que seguirá em
cortejo do Cais a Duque de Caxias. Fonte: Diário Carioca, 28 de janeiro de 1959
9) João da Goméia e seu grupo folclórico estiveram no show da “Noitada do Social
Clube Mackenzie” com o espetáculo “Você já foi a Bahia?” o que proporcionou
uma modificação na ornamentação do clube que foi todo decorado de acordo com
os motivosfolclóricos baianos. Fonte: Luta Democrática, 15 de outubro de 1960.
10) Participação de Joãozinho da Goméia e seu grupo no baile “Domingo na Bahia”
realizado no Clube Renascença, com exibição de roda de capoeira de Angola,
samba de salão e outras atrações, com a parte animada pela orquestra pelo conjunto
Sayonara. Um evento em prol da candidatura de Ione de Sousa ao título de “Rainha
do Renascença Clube” Fonte: Diário de Notícias, 27 de outubro de 1963.
11) Participação de Joãozinho na festa realizada pela Associação Atlética Vila Isabel,
com o espetáculo “Uma noite na Bahia” acompanhado por um grupo de capoeira
de Angola. Além do acompanhamento da orquestra de Ed Lincoln, e um banquete com
comida típica baiana. Fonte: Ultima Hora, 28 de julho de 1964.
12) Participação de Joãozinho no Réveillon 1.800, com a presença de dois shows
extras: um com a “Companhia Baiana de Folclore Oxumarê”, e outro com o bloco
carnavalesco “Bafo da onça”. Fonte: Ultima Hora, 18 de dezembro de 1964.
244

13) Participação de Joãozinho nas comemorações do IV Centenário da cidade do Rio de


Janeiro com show do Império Serrano, e grito do carnaval, localizado na Avenida
Vieira Souto, 110, Ipanema. Fonte: Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 1964
14) Realização do III Festival Folclórico de Brasília, realizado na fronteira do Pavilhão
permanente de exposições de Brasília, no Setor de Diversões. Participaram dos
festivais e conjuntos folclóricos de várias regiões do país entre as quais oito grupos
de vaqueiros do Nordeste, na apresentação de vaquejadas; um conjunto de
cavalhada da cidade goiana de Jaraguá; espetáculo de candomblé pelo grupo de
Joãozinho da Goméia; danças do Sul pelo CTC, Farroupilhas de Curitiba; os cantadores
Lourival Bandeira (Alagoas), Patativa e Iracema (Rio Grande do Norte), José Ferreira
(Ceará); grupos folclóricos de Brasília representados pelo Bumba meu Boi e o Congada,
além do conjunto de marujada de Montes Claros (MG). Terão mesas-redondas, palestras e
conferencias com a participação de intelectuais dedicados aos estudos da cultura popular
brasileira: Luís Câmara Cascudo; Hermes Augusto de Paula; Oswaldo Colatino de Araújo
Góis, Alceu Maynard Araújo, Francisco Manuel Brandão, Júlio Malhadas, Carlos
Fernando Mathias de Souza, e Euricledes Formiga. A Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro fez- se representar por Vicente Salles. Fonte: Revista Brasileira de Folclore,
agosto de 19655.
15) Participação de Joãozinho da Goméia no espetáculo “Quando setembro vier”
promovido pelas professoras Zilea Razinik e Gisela Cersonsimo, do Instituto de
Educação de Niterói. A festa foi realizada no Ginásio Caio Martins no dia 4 de
setembro, com a participação do pai de santo, apresentando toques de
berimbaus, e ritual de candomblé. O espetáculo “Uma noite na Bahia” também
será apresentado, e desse modo, serão mostrados dois espetáculos maravilhosos de
folclore, cores e ritmo. Fonte: O Fluminense, 8 de agosto de 1965.
16) Presentes no Festival Folclórico de Brasília as cavalhadas de Jaguará, rodeio e
touradas de Barretos, vaquejada do Rio Grande do Norte, o conjunto folclórico de
Farroupilha do Paraná e o candomblé da Bahia coreografado por Joãozinho da
Goméia. Organizado pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Distrito Federal.
Fonte: Correio Brasiliense (DF), 10 de agosto de 1965.
17) Participação de Joãozinho e seu grupo no espetáculo “Voz do morro” e “Uma noite
na Bahia” em festa realizada no Clube Renascença. Fonte: Diário Carioca, 9 de
novembro de 1965.
18) Participação de Joãozinho no desfile do Império da Tijuca que em 1965, contou a
245

história do Teatro Brasileiro. O pai de santo encarnou a figura do diabo que surgiu
entre as tabas e palhoças armada por indígenas “verdadeiros” em plena Avenida
Presidente Vargas. Com uma rica fantasia colocando os guerreiros em pandemônio
até a chegada do anjo, que expulsando o demônio encerram a cena. É a cena
principal do desfile, que contava com a presença de Joãozinho da Goméia para
continuar desfilando entre as superescolas na Avenida Presidente Vargas em 1966.
Fonte: O Jornal, 12 de dezembro de 1965.
19) Participação de Joãozinho da Goméia e da Escola de Samba Império Serrano, na
capital baiana com visitação em terreiros de amigos e da sua roça em São Caetano.
Fonte: Correio da Manhã, 8 de janeiro de 1966.
20) A segunda parte do Enredo que se refere ao século XVIII, foi essencialmente
folclórica e teve como quadro principal a famosa lavagem do adro da Igreja do
Bonfim, em que aparecem escravos com trajes de Debret, conduzindo uma alegoria
daquele templo religioso. Mucamas, carregando vassouras ornamentais, braças de
flores, vasilhames de água de cheiro, seguiram nobres e damas da época,
completando o cenário com outras igrejas sintéticas que simbolizaram as igrejas de
Salvador. O sentido deste cenário folclórico baiano foi completado pela presença de
Joãozinho da Goméia que simulou um ritual de candomblé. Fonte: Luta
Democrática, 22 de dezembro de 1966 e 7 de janeiro de 1966.
21) Participação de Joãozinho da Goméia e seu grupo em evento folclórico realizado no
Iguaçu Esporte Clube, na rua Dr. Barros Junior, 862, Nova Iguaçu. Exibição
de grupo de capoeira de Angola e do conjunto nordestino de Osmar do Forró.
Fonte: Jornal do Basil, 9 de junho de 1966.
22) Participação de Joãozinho com o espetáculo “Noite na Bahia” no Country Clube da Tijuca.
Uma das mais expressivas festas referentes à sua programação social. a noite conta com a
colaboração do Centro de Tradições Baianas. A noite ainda contou com grupos de danças
típicas, de capoeiristas e danças típicas exibidas pelo “grupo folclorista de Joãozinho da
Goméia, além de um banquete com vatapá, caruru, acarajé e outros gostosos quitutes
servidos por autenticas baianas”. Fonte: O Jornal, 14 de agosto de 1966.
23) Convite solene para participar na inauguração do Centro de Pesquisas Folclóricas.
O conjunto de Joãozinho da Goméia participou junto ao grupo de capoeira de
Mestre Paulo, o Frevo dos Lenhadores, além de Coco nordestino, Samba,
cantadores de viola e outras manifestações do folclore brasileiro, estiveram
representados no ato da posse da 1ª Diretoria ao Centro de Pesquisas folclóricas,
246

que passou a ter o objetivo de defender a divulgação do Folclore brasileiro. Fonte:


Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1966.
24) Demonstração de candomblé em Belo Horizonte com Joãozinho da Goméia levou
suas filhas de santo. lugar não divulgado. Fonte: Correio da Manhã, 11 de
setembro de 1966. Espetáculo Folclórico no Teatro João Caetano com a
participação do Grupo Folclórico Capoeira do Bonfim, Escolas de Samba, passistas
e ritmistas famosos e Joãozinho da Goméia, com o intuito de angariar fundos para
as obras sociais da Fundação Leão XIII. Com o patrocínio da Condessa Pereira
Carneiro, Diretora- Presidente do JB, e Hugo Pinheiro Guimarães, ministro Álvaro
Dias, ministro Raimundo de Brito, Otávio Guinle, o professor Carlos Cruz Lima e
Tude de Lima Rocha. Fonte: Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1966. Outros
gostosos quitutes servidos por autenticas baianas. Fonte: O Jornal, 14 de agosto de 1966.
25) Convite solene para participar na inauguração do Centro de Pesquisas Folclóricas. O
conjunto de Joãozinho da Goméia participou junto ao grupo de capoeira de Mestre Paulo, o
Frevo dos Lenhadores, além de Coco nordestino, Samba, cantadores de viola e outras
manifestações do folclore brasileiro, estiveram representados no ato da posse da 1ª
Diretoria ao Centro de Pesquisas folclóricas, que passou a ter o objetivo de defender a
divulgação do Folclore brasileiro. Fonte: Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1966.
26) Demonstração de candomblé em Belo Horizonte com Joãozinho da Goméia levou
suas filhas de santo. Lugar não divulgado. Fonte: Correio da Manhã, 11 de
setembro de 1966. Espetáculo Folclórico no Teatro João Caetano com a
participação do Grupo Folclórico Capoeira do Bonfim, Escolas de Samba, passistas
e ritmistas famosos e Joãozinho da Goméia, com o intuito de angariar fundos para
as obras sociais da Fundação Leão XIII. Com o patrocínio da Condessa Pereira
Carneiro, Diretora- Presidente do JB, e Hugo Pinheiro Guimarães, ministro Álvaro
Dias, ministro Raimundo de Brito, Otávio Guinle, o professor Carlos Cruz Lima e
Tude de Lima Rocha. Fonte: Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1966.
247

ANEXO 2: A Comissão Yemanjá- organização da celebração em honra à Rainha do


Mar, na Bahia.

Figura 73: Jornal de Umbanda, Novembro/Dezembro de 1959.


248

Trazemos esta matéria publicada pela edição de novembro/dezembro de 1959, do Jornal


de Umbanda, com o intuito de apresentar a relação entre Joãozinho da Goméia e Menininha
do Gantois em torno das celebrações ao orixá Iemanjá, que ocorriam em Salvador nos anos
de 1950. A fonte apresenta a formação da “Comissão Yemanjá”, da qual Joãozinho era
vice-presidente. Um evento que contava com a presença das autoridades estaduais e
municipais, do Departamento de Turismo, e das lideranças de terreiros tradicionais
baianos. As caravanas organizadas por Joãozinho saiam de São Paulo e do Rio de Janeiro,
tomando parte da festa do Senhor do Bonfim, percorrendo os candomblés e terreiros
incluídos no programa da celebração, encerrando a peregrinação na praia de Itapoã, com
a grande entrega de flores e presentes à Rainha do Mar. Chegando a Bahia,
Menininha do Gantois presidia os festejos, com visitações aos terreiros: Casa Branca do
Engenho Velho, a casa do babalorixá Rufino do Beirú (o bom do pó), o Ilê Axé Opô
Afonjá, o terreiro de Mãe Simplícia, e o terreiro da Goméia. Acreditamos ser esta uma
fonte valiosíssima por possibilitar a reconstrução do olhar sobre o pai de santo e os
terreiros tradicionais baianos, a partir da perspectiva dos eventos folclóricos dos anos de
1950 e 1960. Com a contribuição que Joãozinho deu para o folclore baiano, através das
festas públicas da Lavagem do Bonfim e do Presente de Iemanjá, e da relação que
desenvolveu em São Paulo com as celebrações dos meses de fevereiro, agosto e dezembro,
podemos considerar que precisamos descobrir novos rastros que relacionem Joãozinho da
Goméia com o campo afro-religioso baiano, da segunda metade do século XX.
249

ANEXO 3: A relação complicada entre Joãozinho da Goméia e a Umbanda.445

Figura 74: “Joãozinho da Goméia acredita que imagem de iemanjá foi desfigurada pela
Umbanda” Publicação do jornal O Fluminense de 21/12/1966.

A reportagem de O Fluminense traz o ponto de vista de lideranças religiosas do catolicismo, do


Kardecismo, da Umbanda e do Candomblé sobre a importância em torno do culto ao orixá Iemanjá
nas praias do Rio de Janeiro. Joãozinho da Goméia ao ser entrevistado toca em pontos delicados que
atingem umbandistas, e questiona a relação deste campo religioso, com um orixá que na opinião dele,
pertence ao candomblé, por causa da sua procedência africana. Joãozinho também critica aquilo que
ele chama de “desfiguração” da imagem da deusa africana. Entendendo que os umbandistas alteraram
a estética do orixá, dando a estes traços europeus. O que considera ser uma violenta deturpação dos
costumes do candomblé. Fonte: BNDigital446

445
Abri esse anexo com a intenção de ilustrar a conflituosa relação entre o campo umbandista e Joãozinho da
Goméia. Ciente que este é um capítulo que não cabe analisar nessa Dissertação, achei de bom tom anexar às
reportagens para que o leitor possa entender mais um pouco a proposta expansionista que Joãozinho cria a
partir da formação da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê. Mesmo que de certa forma os que entram em
contato com a trajetória de vida de Joãozinho da Goméia no que tangem seus vínculos religiosos ou
acadêmicos, possam vir a questionar a existência de um projeto de poder do pai de santo ao longo da sua
trajetória de vida, após o contato com estas fontes, aqui anexadas, acreditamos que os embates com a
Umbanda eram intencionais e fundamentaram o que eu venho a chamar ao longo deste trabalho de Projeto
expansionista de poder.
446
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=100439_10&pasta=ano%20196&pesq=Jo%C3%A3ozi
nho%20da%20Gomeia&pagfis=19705
250

Figura 75: “Umbanda é mentira”447


Publicação da revista O Pasquim de 22/07/1970
Fonte: BNDigital448

Continuação da reportagem:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=100439_10&pasta=ano%20196&pesq=Jo%C3%A3ozin
ho%20da%20Gomeia&pagfis=19707
447
A reportagem de O Pasquim em especifico, cria uma celeuma e acirra problemas antigos com os
umbandistas, que passam a ocupar aas páginas dos jornais questionando as falas de Joãozinho da Goméia
sobree a Umbanda.
251

Figura 76: “Umbanda é mentira”449


Publicação da revista O Pasquim de 22/07/1970
Fonte: BNDigital450

448
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pesq=jo%C3%A3ozinho%20da%20gomeia&pa
gfis=1336
449
Mesmo a reportagem não se encaixe no recorte temporal que esta pesquisa se propôs, achei interessante
usá-la para ilustrar a relação conflituosa que Joãozinho da Goméia tinha com o campo umbandista, ao qual ele
associava ter usado do sincretismo para fundamentar as bases da sua religião. Também considerava ser a
umbanda uma religião que não tinha uma identidade originaria como o candomblé que tem toda sua estrutura
voltada para a África, enquanto a umbanda misturava o kardecismo com o catolicismo e se apropriava de
elementos espirituais do candomblé.
252

450
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pesq=jo%C3%A3ozinho%20da%20gomeia&
pagfis=1337

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