Sou Ou Não Sou o Rei Do Candomblé Aspectos Da Trajetoria Artistica de Joãozinho Da Goméia
Sou Ou Não Sou o Rei Do Candomblé Aspectos Da Trajetoria Artistica de Joãozinho Da Goméia
Sou Ou Não Sou o Rei Do Candomblé Aspectos Da Trajetoria Artistica de Joãozinho Da Goméia
Niterói
Janeiro, 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ÁREA DE HISTORIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTORIA
Niterói
Janeiro, 2022
Ficha Catalográfica
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Larissa Moreira Viana (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andréa Luciane Rodrigues Mendes
Universidade Estadual de Campinas
__________________________________________________
Prof. Dr. Nielson Rosa Bezerra
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Giorgina Silva dos Santos (Suplente interno)
Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________
Prof. Dr. Xavier Vatin (Suplente externo)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
DEDICATÓRIA
1
Registro do Caboclo Pedra Preta feito pelo folclorista e jornalista Edison Carneiro, para o livro Religiões
Negras. CARNEIRO, Edison. Religiões Negras: notas de etnografia religiosa. 2ª edição: Civilização
Brasileira, 1981.
AGRADECIMENTOS
2
Em alguns momentos as palavras aparecerão unidas, peço desculpas aos leitores por isso. Foi um erro da versão
2007 do meu Word que não consegui resolver.
trabalho.
Os agradecimentos a Waldemar Alvarenga Lapoente, o “Reizinho”, precisam ser
destacados, já que ele esteve presente nos meus primeiros contatos com este campo de
pesquisa. As primeiras imagens e informações me foram dadas por ele em 2001, quando
cursava História pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Desde lá, construímos uma aliança de fraternidade e parceria em torno
das memórias de Joãozinho. Foi a pessoa que sempre esteve disponível para qualquer
movimento que realizei em direção ao meu objeto de estudo.
Antes de falecer, avisei ao querido e saudoso amigo Taata Anselmo Minatojy, que
ele estaria presente nos meus agradecimentos. Afinal, a sua amizade foi fundamental para a
minha caminhada nesta travessia, que por muitas vezes foi dolorosa e muito difícil.
Obrigada, meu amigo querido, pelas palavras cheias de afeto, que me fortaleceram até
aqui.
Agradeço imensamente ao gentil amigo Caio Sergio de Moraes Santos e Silva, que
foi parceiro em diversos momentos desta trajetória de pesquisa, e também foi ajuda por
algumas vezes. Obrigada, por ser luz no fim do túnel, Caio.
Ao amigo Nieri Santos Lima, que tenho grande carinho e me auxiliou no momento
que eu mais precisei, com habilidade, inteligência e competência. Obrigada, meu amigo.
Agradeço aos amigos das redes sociais facebook e instagram, que nestes tempos de
Covid-19, estiveram por perto, e incentivaram meus esforços para produzir a pesquisa que
resultou nesta dissertação de mestrado.
Agradeço também a Seu João Alves Torres Filho, o Seu João da Goméia, que desde
nosso primeiro encontro em 2001, lançou suas flechas nos meus caminhos e me ofertou
tantas possibilidades de acesso a sua trajetória de vida. Sem este Axé estes quase 21 anos
de pesquisa não seriam nada.
E, por fim agradeço aos que não atrapalharam, sendo assim já ajudaram
grandiosamente.
RESUMO
Essa dissertação tem como objetivo analisar alguns aspectos da trajetória artística do pai de
santo baiano Joãozinho da Goméia, através da sua atuação nos palcos de cassinos, teatros,
boates, e na rádio, na imprensa, no cinema e no carnaval. A partir da consulta ao material
de imprensa produzido entre 1936 e 1966, e com o auxílio de uma bibliografia especifica
consegui mergulhar neste mar profundo que foi o Rei do Candomblé. Para investigar os
seus rastros como artista, tive que considerar as suas múltiplas faces, e entender que o fio
condutor desta busca era o seu envolvimento com o candomblé. Constatar que artístico e
religioso dialogavam e se entrecruzavam constantemente, foi o ponto de partida desta
travessia que buscou tecer os fios deixados pelo caminho por biógrafos do pai de santo, e,
como consequência, gerou outros tantos fios que pretendem fornecer subsídios para
outros tantos trabalhos. O período analisado está centrado entre 1936 e 1966, que
equivale à participação colaborativa nos preparativos do Segundo Congresso Afro-
brasileiro de 1937; e a participação de Joãozinho como “destaque de luxo” e condutor do
desfile “Glórias e Graças da Bahia” da Escola de Samba Império Serrano. Esta pesquisa
descobriu Joãozinho da Goméia nos entornos, através da construção de redes de
sociabilidades que eram redimensionadas de acordo com os seus interesses, como se estas
pessoas fossem peças em um tabuleiro de xadrez. Revelando a personalidade estrategista
do pai de santo. Esta revolução de cores, brilhos, sons e passos, revelam também aspectos
da luta de um homem negro no período pós-Abolição que rompeu o “véu da
invisibilidade” e construiu um projeto de ascensão social nos campos artístico e religioso.
This dissertation aims to analyze some aspects of the artistic trajectory of the Bahian “pai
de santo” (religious authority) Joãozinho da Goméia, through his performance on the
stages of casinos, theaters, nightclubs, and on the radio, in the press, in the cinema and at
carnival. By consulting press material produced between 1936 and 1966, and with the
help of a specific bibliography, I managed to dive into this deep sea that wasthe King of
Candomblé. In order to investigate his traces as an artist, I had to consider his multiple
faces, and understand that the common thread in this search was his involvement with
Candomblé. Realizing that artistic and religious dialogued and intertwined constantly was
the starting point of this journey that sought the threads left by the paths by biographers of
the “pai de santo”, and generated others that intend to continue the interest in new
constructions of meaning. The period to be analyzed is centered between 1936 and 1966,
which are equivalent to collaborative participation in the preparations for the Second Afro-
Brazilian Congress of 1937; and the participation of Joãozinho as a “luxury standout” and
conductor of the parade “Glórias e Graças da Bahia” at the Império Serrano Samba School.
This research discovered Joãozinho da Goméia in the surroundings, through the
construction of sociability networks that were resized according to their interests, as if
these people were pieces on a chessboard. Revealing the strategist personality of the “pai
de santo”. This revolution of colors, sparkles, sounds and steps also reveal aspects of the
struggle of a black man in the post- Abolition period who broke the “veil of invisibility”
and built a project of socialascension in the artistic and religious fields.
Guimarães Rosa
24
INTRODUÇÃO
Assim que concluí este trabalho, foi inevitável que toda a trajetória da pesquisa me
viesse à mente. Logo que me sentei ao computador, e pude escrever esta introdução, revi
minha própria trajetória de pesquisa que se confunde com minha história de vida.
Em 2001, decidi investir esforços na investigação da vida do pai de santo
Joãozinho da Goméia. Cursava História na Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e fazia constantes visitas 4 à residência do
professor e olwô5 Agenor Miranda Rocha6. O contato com Pai Agenor7 me proporcionou
acesso a alguns pais e mães de santo da Baixada Fluminense, que auxiliaram e muito as
escolhas metodológicas que só adotei agora. Foi-me sugerido que seria prudente, antes de
qualquer coisa, consultar os búzios. No jogo me foi revelado que eu tinha uma “história” a
3
Crônica de João Candido de Carvalho para a revista O Cruzeiro, publicada no dia 21 de outubro de 1967.
4
Curiosamente, o meu interesse por estudar a trajetória de Joãozinho da Goméia, se deu na casa de uma
liderança religiosa originária da comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá, que mantinha viva em sua memória a
representatividade de Mãe Aninha Obá Biyí, e de Martiniano Eliseu do Bonfim- personagens que fizeram
parte do convívio pessoal de Joãozinho da Goméia.
5
Sobre o termo olwô, a dicionarista Olga Gudolle Cacciatore informa que é o dono dos segredos de Ifá que
“sabe as histórias do grande número dos odus” em CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-
brasileiros. 3. Ed, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
6
Agenor Miranda Rocha foi um sacerdote de Ifá e também professor catedrático aposentado do Colégio
Pedro II. Nasceu em 8 de setembro de 1907, em Luanda, capital de Angola. Foi iniciado pela Ialorixá Eugênia
Anna dos Santos, Mãe Aninha (Oba Biyí) fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Segundo Muniz Sodré, foi
através da amizade com o Ministro Oswaldo Aranha que no governo de Getúlio Vargas assinou-se o
decreto nº 1202 que deu liberdade aos cultos afros até então proibidos e perseguidos. Agenor Miranda foi um
importante referencial da história do candomblé, pois depois de Martiniano Eliseu do Bonfim a ele foi dada a
alcunha de ser o único sacerdote de Ifá vivo no Brasil.
7
Agenor Miranda Rocha escreveu o livro As nações Kêtu: ritos e crenças: os Candomblés antigos do Rio de
Janeiro; que é referência para quem deseja estudar a formação dos terreiros de candomblé na primeira metade
do século XX.
25
8
A nação Kêtu pertence ao tronco jeje-nagô que era tido na Bahia como representante da pureza ritual. Havia
um preconceito enorme com afro-religiosos que não faziam parte do tronco jeje-nagô, que eram pertencentes
ao candomblé de caboclo ou ao candomblé angola, e por Agenor Miranda Rocha ser pertencente ao Ilê Axé
Opô Afonjá de Mãe Aninha, condenava muitas ações e atitudes do babalorixá. Rejeições como as de Agenor
Miranda são tal como registros históricos que só confirmam os motivos que levaram Joãozinho da Goméia a
instalar um novo terreiro no município de Duque de Caxias em 1949. Estas informações serão tratadas no
Capítulo 1.
9
Considerei a recomendação dada pela historiadora Andréa Mendes, que ao adotar a expressão indumentária,
em detrimento a vestimenta, levou em conta todos os elementos que envolvem a paramentação das
divindades no candomblé (uso a definição integral criada por Andréa): “assessórios como pulseiras, coroas,
capacetes, insígnias de mão ou penduradas na cintura, nos ombros, fios de contas, correntões, os quais são
26
pelas fantasias de carnaval que escolhia para vestir nos bailes de gala dos salões nobres da
cidade. As escolhas estéticas de Joãozinho que contemplam o uso do luxo e do brilho, pode
também justificar a fala de Pai Agenor, que faz revelações sobre a inauguração do terreiro
da Goméia no município de Duque de Caxias, no dia 4 de dezembro de 1951, que segundo
o olwô, se relaciona com o Odu 510, que no jogo de búzios representa o Odu do orixá
Oxum, ou o Odu do “brilho e da fama”. Requinte, ostentação, brilho, fama, luxo e riqueza
eram as pretensões iniciais do pai de santo no Rio de Janeiro.
Com a publicação na internet do meu trabalho de conclusão de curso11, me
afastei das pesquisas, retornando só em 2019, a partir do ingresso no Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal Fluminense, quando apresentei o projeto
de pesquisa: A Guerra na Goméia: Reflexões sobre as memórias do conflito sucessório no
terreiro do Rei do Candomblé Joãozinho da Goméia (1971-1987), trabalho em que
investigava as memórias produzidas sobre a disputa por poder que aconteceu no terreiro da
Goméia após a morte de Joãozinho.
Assim que o meu projeto foi aprovado e consegui ingressar no curso de mestrado,
descobri que havia sido publicada em janeiro de 2019, a Tese de Doutorado do arqueólogo
Rodrigo Pereira, que se dedicou a analisar a destruição do terreiro através do processo de
escavação arqueológica. Todo o material enterrado ou soterrado foi desenterrado e os
filhos de santo produziram um importante acervo de narrativas orais, explicando os
motivos que levaram ao fechamento e destruição do local. 12
A observação sobre a metodologia empregada pelo arqueólogo, que foi a de manter
os depoimentos no anonimato, me mostrou a impossibilidade de trabalhar
historiograficamente, com esta pesquisa. Então, decidi, em conjunto com a minha
orientadora, a professora doutora Larissa Moreira Viana, que seria interessante fazer uso da
grande quantidade de material de imprensa, que já que havia sido arquivado, do acervo de
publicações seriadas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, durante este intervalo de
elementos essenciais na construção da visualidade das filhas de santo”. In: MENDES, Andréa. Vestidos de
realeza: fios e nós centro-africanos no candomblé de Joãozinho da Goméia. Duque de Caxias: Série
Recôncavo da Guanabara, volume 1, 1ª edição, APPH-CLIO, 2014, p. 22.
10
Segundo Olga Cacciatore, Odu é um conceito do culto de Ifá também usado no candomblé, interpretado no
merindilogum, na caída de búzios. A palavra odu vem da língua iorubá e significa destino. Cada homem (ser)
possui o seu destino que se assemelha a de outros, mas sempre com alguma particularidade.
11
NASCIMENTO, Andréa. De São Caetano a Caxias: um estudo de caso sobre a trajetória do Rei do
Candomblé Joãozinho da Goméia. São Gonçalo: Monografia apresentada ao curso de licenciatura em História
da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003. In:
https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/view/237
12
Com o material colhido para elaboração do projeto de mestrado escrevi um artigo que está em fase de
preparação para ser publicado em um livro.
27
13
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: Guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1991, p.
155.
14
AMADO, 1991, p. 154.
15
MORIN, Françoise. Diálogo entre Filhos de Xangô: Correspondências 1947-1974. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2017 p. 67.
29
quanto para profissionais da dança como Any Guaíba. Eros Volúsia, Mercedes Baptista,
dentre outros, que encontram em Joãozinho um mestre do folclore baiano e da dança afro-
brasileira.
A partir de 1953, Joãozinho da Goméia, passa a ocupar espaços como palcos do
Teatro de Revista, mas é com a “Companhia Baiana de Folclore Oxumarê”, na qual ele
descobre a possibilidade de se tornar um coreografo profissional, e também através da arte
negra e folclórica, criar um projeto poderoso de expansão dos seus domínios religiosos.
Com a presença no Teatro Cultura Artística de São Paulo, Joãozinho contribui com o
processo de transformação de terreiros de umbanda em terreiros de candomblé. Esta
presença em São Paulo, em 1953, inicia de fato o processo de popularização da Nação
Angola em terras paulistas. Tratar desta experiência em São Paulo é entender o pai de
santo como um negociador, que entende que o avanço umbandista, na capital paulista,
põe em risco a expansão de terreiros de candomblé Angola, e, por conseguinte, do terreiro
de Raiz Goméia.
Joãozinho tem a sua trajetória ligada a embates com umbandistas, e passa a usar a
sua representatividade de liderança religiosa do candomblé Angola para questionar as
origens da Umbanda, com o intuito de afirmar a predominância da sua nação de
candomblé. É quando ele assume o comando de homenagens ao orixá Iemanjá no litoral
paulista, retirando de umbandistas o vínculo ao culto da Rainha do Mar. As desavenças
com a umbanda são sentidas no embate que eles têm com Joãozinho a partir de 1956,
por causa da participação do pai de santo no baile do travesti acontecido no Teatro João
Caetano, localizados n a P r a ç a Tiradentes. Um espaço ocupado há muito tempo
por artistas, e travestis. A cena gay do local é combatida pelo jornal Luta Democrática, que
obrigou Joãozinho da Goméia a se posicionar politicamente, assumindo a sua condição
sexual publicamente.
Apesar de grande parte das pesquisas apontarem este episódio como um escândalo,
o autor James Naylor Green, em Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no
Brasil do século XX.16, aponta que era concreta a ocupação do espaço da Praça
Tiradentes, pela presença travesti, dentro e fora do carnaval. O centro da cidade nos anos
de 1950 e 1960 abriga um circuito de divertimento noturno, que entra em contradição com
o luxo da zona sul carioca, com seus artistas, magnatas e turistas estrangeiros. Com a
exibição de Joãozinho da Goméia, travestido de vedete francesa da Companhia Francesa
16
GREEN, James Naylor. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São
Paulo: Editora da UNESP, 1999.
30
21
Este processo de construção de poder e de prestígio, embora possa vir a ser questionado por seus familiares de
santo, ou por alguns pesquisadores que entrem em contato com a sua trajetória de vida, fica evidente na
construção do texto dessa Dissertação, que é caracterizada pelo perfil de um estudo biográfico que mostra o João
Alves Torres Filho, no inicio da sua vida, como funcionário de um armarinho em Salvador, ou como um pai de
santo simples, sem ostentação alguma, no ano de 1936, quando era colaborador do Segundo Congresso Afro-
brasileiro, e vai avançando até o ano de 1966, quando já é o prestigiado Taata Londirá, o sacerdote do
candomblé Angola. Esta construção de poder, na opinião da nossa pesquisa está clara, e explícita.
32
22
A presença de informações que foram criadas a partir da mitificação foi um complicador, que me fez como
pesquisadora por muitas vezes ficar perdida entre esses dados. Entendo que o uso do mito foi um recurso
usado pelo próprio pai de santo para fortalecer e projetar a sua imagem, mas não é um bom aliado do
pesquisador de uma trajetória que se faz controversa por causa do uso destes mitos.
23
Usei o recurso da aplicação de referencia do Word para buscar uma solução para separar as palavras.
24
Uso do recurso das referencias como tentativa de resolver o problema do Word.
33
Para o sociólogo francês Pierre Bordieu 25, a vida é como um caminho, uma estrada,
uma carreira com suas encruzilhadas, seus ardis, até mesmo com suas emboscadas, ou é
como um trajeto, uma corrida, uma passagem, uma viagem, um percurso orientado, um
deslocamento linear, unidimensional que tem começo, etapas e um fim, no duplo sentido,
de término que está relacionado ao sentido de finalidade e de “fazer o caminho” e ter êxito,
sucesso e prosperidade na vida. Este primeiro capítulo pretende traçar os “fios e os rastros”
26
deixados por João27 da Goméia, no decorrer da sua trajetória de vida, do nascimento, até
a instalação da nova sede da nova sede 28 do seu terreiro, localizada no município de Duque
de Caxias, Baixada Fluminense.
João Alves Torres Filho nasceu às 10 horas da manhã, no dia 27 de março de 1914,
em Inhambupe, município do Estado da Bahia, localizado a 153 quilômetros de Salvador.
Neto materno da ex-escrava nigeriana Jurandina Maria da Conceição, e filho de João Alves
Torres- um alfaiate de cor parda, e de Maria Vitoriana Torres, uma dona de casa negra,
rezadeira e devota de Santa Luzia 29. Quando era criança o seu colega de escola- sobrinho
do padre Camilo Alves de Lima, pároco da Igreja da Invocação do Divino Espírito Santo
de Inhambupe, o convidou para ser coroinha e ajudar na missa e nos demais rituais da
igreja. Seu grande sonho de infância era o de se tornar padre.
Joãozinho nunca teve a pretensão de conhecer o candomblé, mas sua saída de
Inhambupe aos 14 anos de idade estava relacionada às constantes aparições espirituais do
25
BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Rio de Janeiro: Usos e Abusos da História Oral. FGV, 2010.p. 183
26
Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. SP: Companhia das letras, 2007.
27
Preferi adotar a grafia “João” e não “Joãozinho” até a sua transferência para o Rio de Janeiro, por entender
que nos tempos de moradia em Salvador, ele era reconhecido como João da Pedra Preta.
28
O endereço antigo é Rua General Rondon, 360, bairro Copacabana, Duque de Caxias. O endereço atual é
Rua Prefeito Braulino de Matos Reis, 360 - Dr. Laureano, Duque de Caxias.
29
As informações referentes à cor da pele, ascendência e filiação foram retiradas da certidão de nascimento
de João Alves Torres Filho adquirida através do Cartório de RCPN de Inhambupe, Bahia. Um dado
interessante apresentado pela certidão é quanto à data de registro do documento que informa ter sido feito por
João “aos trinta e um dias do mês de dezembro do ano de um mil novecentos e trinta e três”, ou seja, o
registro de nascimento foi feito quando João tinha 19 anos de idade, no período em que era dono de um
terreiro de candomblé herdado por sua madrinha na Rua Ladeira das Pedras no bairro da Liberdade. Em
1935, João se transfere para um terreiro maior, o da Rua da Goméia no bairro São Caetano, em
Salvador.
38
caboclo Pedra Preta. Chegando a Salvador, seu primeiro emprego foi no armazém de um
compadre no bairro da Liberdade, ali conseguiu moradia e alimentação. Joãozinho
trabalhou em mais dois armazéns, buscando sempre melhores condições de vida: o
primeiro ficava sediado na “Rua do Uruguay” onde passou a ganhar 30 cruzeiros. O
local de trabalho pertencia ao “Seu Armindo” - dono de uma fábrica de vinagres.30
O segundo e último armazém em que esteve empregado foi o “Bom Gosto da
Calçada” no qual conheceu sua madrinha- uma filha de Iansã, com ele simpatizou e o
adotou. Era uma senhora “octogenária e professora aposentada, que não tinha filhos”.
Havia sido iniciada no candomblé jeje31da Terra vermelha, localizado no município de
Cachoeira32. Após um período, João começou a sentir fortes dores de cabeça e sua
vida passou a ser marcada por visitas constantes aos médicos. A partir daí, pessoas
próximas aconselharam sua madrinha a levá-lo ao “Centro Espírita Luz e Caridade”,
dirigido pelo capitão do Exército33 Severiano Manoel de Abreu34. Um homem que
trabalhava sob a influência espiritual do caboclo Jubiabá, 35 na localidade do Alto da Cruz
do Cosme em Salvador. No local, Severiano atestou que a origem daqueles problemas de
saúde estaria relacionada à necessidade de se “fazer cabeça”. 36
A imprensa deu uma intensa visibilidade midiática37 a Severiano entre os anos de
1921 e 1936, no momento em que eram noticiadas matérias que enfocavam a prisão e
30
Relato cedido por Joãozinho da Goméia em 1967, à antropóloga Gisele Binon Cossard, que mais tarde se
torna sua filha de santo e zeladora de um importante terreiro de candomblé na localidade Raiz da Serra,
Baixada Fluminense. O depoimento está disponível integralmente no Youtube. D i s p o n í v e l e m :
https://www.youtube.com/watch?v=KnzJbfgsJaU
31
De acordo com a dicionarista Olga Gudolle Cacciattore, autora do Dicionário de Cultos Afro- brasileiros
publicado pela Editora Forense Universitária em 1988, “jeje é um dialeto do grupo dialetal. fon, da língua
ewe, falado por escravos vindos do Daomei (atual República Popular do Benin”. In: CACCIATORE,1988.
p.153
32
MENDES, Andréa Luciane Rodrigues. Vestidos de Realeza: contribuições Centro-Africanas no candomblé
de Joãozinho da Goméia (1937/1971). Campinas: Dissertação de Mestrado em História Social pelo
IFCS/UNICAMP, 2012.p.54.
33
Essa ligação de Severiano Manoel de Abreu com o exército vai de certa forma influenciar toda a trajetória
de Joãozinho da Goméia, que sempre estará ligado a militares de alta patente.
34
O único texto que dá uma ênfase a parte da sua trajetória de vida é o Na Gamela do Feitiço: repressão e
resistência nos candomblés da Bahia do antropólogo Júlio Braga.
35
O Jornal de 17 de maio de 1936
36
Fazer cabeça ou fazer a cabeça é um ato mítico-ritual relativo à iniciação no candomblé. Faz-se a
cabeça para que se nasça para uma nova vida, a identidade pessoal do iniciando é recriada, e suas relações
familiares e sociais são redimensionadas. Prepara-se a cabeça para que seja morada dos orixás e se desperte
uma nova consciência acerca do mundo em que o iniciando vive. É a possibilidade de existir em outra
dimensão pessoal, material e espiritual. A permissão dada ao pai e mãe de santo remete à confiança e à
obediência. O iniciando com a feitura constrói uma rede de relação não apenas com seus orixás, mas com os
orixás de quem o iniciou e com os orixás da casa onde ele renasceu como filho de santo.
37
As negociações são a tonalidade das relações sociais estreitadas por Severiano e por Joãozinho, o que
compreende também as trocas de favores que assemelha a trajetória dos dois pais de santo, e que eu
compreendi como uma transferência de saberes de pai pra filho.
39
apreensão dos objetos sagrados do seu local de culto religioso. Informações sobre as curas
espirituais realizadas pelo caboclo Jubiabá surgiam de forma depreciativa nas páginas do
Diário da Bahia, O Estado da Bahia38, e o jornal A Tarde. O que corroborou para construir
a identidade pública de Severiano entre os pobres que não tinham acesso a remédios e
profissionais de saúde. Nesse sentido, o centro de Severiano foi transformado em pronto
socorro popular utilizado por grande parte da população pobre da Bahia. Ao analisar a
influência do Caboclo na vida social do pai de santo, o antropólogo Júlio Braga acredita
que:
(...) Foi por meio da atuação do Caboclo, que se pode entender a luta de
Severiano pela superação das dificuldades que lhe eram impostas por uma
sociedade extremamente refratária a sistemas de crenças diferenciados do padrão
ocidental. É bem verdade que Severiano armou umas trapaças, e não foram raras
às vezes em que esteve envolvido com a polícia. Mas as dificuldades maiores
foram, sem dúvida, criadas pelo fato de se projetar como líder religioso, ser
protegido por um Caboclo, que cedo ganhou fama, foi permanentemente objeto
de notícias de jornais, mas, sobretudo profundamente respeitado pela população
negra da Bahia, e por determinados setores da sociedade mais ampla. (BRAGA,
1995, p.85)
Severiano foi um dos pais de santo mais perseguidos pela polícia baiana nas
primeiras décadas do século XX, sendo em 1921, alvo de críticas em várias matérias dos
jornais “que aplaudiram as diligências da polícia no seu terreiro, tratando-o como praticante
de feitiçaria e “baixo espiritismo” 39 sofrendo denúncias constantes dos jornais baianos
entre 1921 até o ano de 193140.
No ano de 1935, o romancista baiano Jorge Amado, publica o livro Jubiabá, que
retrata a vida de um pai de santo negro e pobre, dono de um dos candomblés mais famosos
da Bahia. A publicação do livro causou uma grande confusão com Severiano Manoel de
Abreu que viu o nome do seu caboclo associado ao nome de um personagem negro, pobre
e macumbeiro, rótulos que ele desejava desvincular da sua identidade. O que gerou, uma
38
As reportagens a que nos referimos tratadas por Júlio Braga são as: A Tarde, de 24 de agosto de 1936; A
Tarde, de 06 de outubro de 1921; A Tarde, de 08 de outubro de 1921; A Tarde, de 14 de outubro de 1921;
diário da Bahia, de 07 de maio de 1931; O Estado da Bahia, de 11 de maio de 1936; O Estado da Bahia, de 21
de maio de 1936; O Estado da Bahia, de 28 de maio de 1936;
39
De acordo com o historiador Caio Sergio de Moraes Santos e Silva em sua dissertação de mestrado A
cidade do feitiço: feiticeiros no cotidiano carioca durante as décadas iniciais da Primeira República-
1890/1910, o termo “baixo-espiritismo” ficou referente a toda e qualquer pratica religiosa que envolvesse
feitiço, magia e espíritos.
40
A partir de 1936, após a publicação do livro Jubiabá de Jorge Amado, a presença de Severiano nos jornais
passa a ser movida por uma curiosidade acerca da identidade do pai de santo que deu nome ao livro do
popularíssimo Jorge Amado.
40
séria discussão entre Severiano e Jorge Amado nas páginas de O Jornal41, que mostra
a sua real situação social e econômica.
O jornalista João Duarte Filho 42 exalta a situação econômica do pai de santo,
chamando atenção dos leitores para o requinte e a pompa encontrada, o que não
condizia com a face estigmatizada de pais de santo pobres, que o jornal constantemente
divulgava em tons de depreciação e desprezo. Uma criminalização costumeira e presente
nas reportagens policiais, que descreviam as violentas batidas policiais nos candomblés
baianos dos anos 1930.
41
O Jornal, 17 de maio de 1936.
42
De acordo com o historiador Erivaldo Sales Nunes, o jornalista João Duarte Filho era correspondente dos
Diários Associados, e publicava muitas reportagens com o apoio de O Estado da Bahia. IN: Contribuição para
a história do Candomblé Congo-Angola na Bahia: o terreiro de Bernardino do Bate Folha (1916 –1946). Tese
apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, na Universidade Federal da Bahia, em 2017, p. 107.
43
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=110523_03&pasta=ano%20193&pesq=%22Jubiab%C
3%A1%22&pagfis=30315
41
44
SILVA, Luara dos Santos. “O negro nunca foi estúpido, fraco, imoral ou ladrão”: Hemetério José dos
Santos, identidade negra e as questões raciais no pós-Abolição Carioca (1888-1920). Cultura Negra vol.2:
trajetórias e lutas de intelectuais negros. Niterói: EdUFF, 2018, p, 295.
42
Tudo mentira, disse-me ele, verifiquei que tudo é mentira. Nunca morei em casa
de barro, sempre tive minhas posses, sempre fui arremediado. Como é que
aquele rapazinho vae dizer essas coisas todas de um homem trabalhador e
honesto como eu. Quem lê o livro fica pensando que eu sou um
macumbeiro qualquer que vive .tapeando o povo ignorante. Mentira, eu fazia
um pouco de “baixo espiritismo” porque é preciso contentar a todos. Mas sou um
homem que estudo, que aprendo que conheço bem as coisas. Como é que aquele
rapazinho vae fazer uma coisa dessas com um homem de responsabilidades
como eu. Mas não faz mal. Eu sou conhecido no Brasil todo, e em todo Estado
tenho os meus discípulos e aquelle livro não me desmoraliza. Também aquelle
rapaz não está muito bem na terra delle, que é Ilhéus.45
45
O Jornal, 17 de maio de 1936.
46
Joãozinho da Goméia usou muito o “bom nome” de Severiano para conquistar lugar na imprensa durante os
anos 40 e 50.
47
Acho válido trazer a narrativa dada pelo próprio Severiano sobre o início da sua trajetória religiosa e
observar que não era comum nos anos de 1930 encontrarmos relatos desta natureza. Semelhante
encontraremos nos relatos de Joãozinho da Goméia através dos jornais e das revistas no decorrer dos tempos.
Outro dado que desejo ressaltar é a construção do diálogo e a referência aos seus guias espirituais como
espíritos obsessores, o que é exposto por Joãozinho nos jornais de 1936, depois o tratamento se modifica
totalmente.
43
–Eu lhe explico. É o nome do espírito meu espírito obsessor. Vou contar ao
senhor o começo da minha vida de espírita. Há 36 anos, eu ainda rapaz, fui
procurado por um parente de um rapaz chamado Sydronio para fazer uma
consulta numa sessão na cidade de Palha em beneficio da sua saúde. Até então
eu não acreditava nessas coisas, mas fui. Manifestou-se então um espírito mal e
atrasado. Este espírito declarou que do corpo do homem só sairia dali há 15 dias
no cemitério. Quinze dias depois o homem morria. Esse fato me decidiu a
acreditar nos espíritos. Passei a frequentar dali por diante aquela sessão, com
bastante fé e me tornei médium sem saber. Nesta sessão manifestou-se em mim
um espírito que dava o nome de Candido Ribeiro. A uma pergunta nossa sobre o
que teria sido em vida o espírito de Candido Ribeiro. Respondeu “Jubiabá” que
nunca o investigara. Sua capacidade psíquica, porém, foi-se elevando
gradativamente. (...) de uma feita surgiu no grupo um rapaz chamado João
Miranda para tratar-se. Foi ele entregue aos cuidados de Severiano. O espírito de
um caboclo baixou sobre um dos médiuns. Era o assistente Severiano. Caído em
transe, manifestou-se, então, o espírito que declarou se chamar ‘Jubiabá’.
Começou então a cura do paciente João Miranda, que já apresentava
consideráveis melhoras, quando sobreveio um incidente. No decorrer da cura de
João Miranda, por intermédio de Severiano, manifestou-se um filho do dono da
casa de nome Nelson, um atrasado que deu o nome de ‘Rei de Minas’. Este
entrou logo a demolir a influência de ‘Jubiabá’, qualificando-o de impostou e
perturbado. Houve, por isso, desinteligência no ambiente astral e o espírito de
‘Jubiabá’ melindrado com o seu irmão mediúnico, abandonou a cura do doente,
que veio falecer vítima da vaidade dos espíritos. Firmado o seu conceito,
Severiano ou ‘Jubiabá’ passou a trabalhar por conta própria, em sua casa,
abrindo uma sessão na Rua Nova do Queimado, a seguir, na Caixa D’Água, nº
10 e depois na Cruz do Cosme, 205, hoje Avenida Saldanha Marinho, cuja nova
denominação ele faz questão de ser citada: Floresceu, então, ali o “Centro
Espírita Paz Esperança e Caridade”. (BRAGA, 1985, p. 94-95).
O historiador Caio Sergio de Moraes Santos e Silva48 considera que existia uma
“estratégia de sobrevivência” entre praticantes dos cultos afro-brasileiros nos primeiros
anos da primeira república na cidade do Rio de Janeiro, fruto de uma associação entre o
espiritismo kardecista e a prática do candomblé que representava, na verdade, uma
simulação da identidade destes lugares como forma de obter proteção pessoal e da prática
de culto religioso, tratada por alguns estudiosos da repressão afro-religiosa no início do
século XX, como uma estratégia de sobrevivência muito comum aos corpos produzidos
pela diáspora negra.
48
SANTOS E SILVA, Caio Sergio de Moraes. A cidade do feitiço: feiticeiros no cotidiano carioca durante
as primeiras décadas da primeira república (1890-1910). Niterói: Dissertação de Mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense, p.104.
49
João da Pedra Preta/ Joãozinho da Goméia.
44
João, agora com o nome iniciático de Londirá, livre das dores de cabeça
permaneceu na casa de Jubiabá durante três anos. Depois da obrigação de três
anos foi morar na casa de sua madrinha na Estrada da Liberdade, onde começou
a dar consultas com seu Caboclo, o Seu Pedra Preta. A casa da madrinha foi
ficando pequena para o número de pessoas que acorriam à Ladeira das Pedras,
onde João da Pedra Preta dava consultas. Mudou-se para o bairro de São
Caetano, estabelecendo-se na Rua da Goméia, em um terreno arrendado.
(PERALTA, 2000, p.81)
O perfil do pai de santo ou da mãe de santo que realiza uma feitura influencia
nos conhecimentos que o iniciado carrega vida a fora, e influencia na forma com a qual ele
agirá política e socialmente dentro e fora da comunidade de terreiro de origem. O perfil
austero e político de Severiano Manoel de Abreu, por exemplo, é um excelente campo de
50
Diário da Noite, 9 de setembro de 1936.
51
AZEVEDO, Stella e MARTINS, Cléo. E daí aconteceu o encanto. Salvador: Editora do Axé Opô Afonjá, p.
17, 1988.
52
Agenor Miranda Rocha cedeu-me a entrevista em 2 de setembro de 2001.
45
Depois da obrigação de três anos, João foi morar na casa da sua madrinha,
localizada na Estrada da Liberdade, onde iniciou sua atuação como pai de santo, dando
consultas espirituais com o Caboclo Pedra Preta54 na Rua da Liberdade, 561, Ladeira da
Pedra55. Com a crescente busca de auxilio e conforto espiritual, o seu terreiro foi
transferido em 1935, para a Rua da Goméia 56, localizada no bairro de São Caetano, em
Salvador.57 O local era de difícil acesso principalmente em dias chuvosos, mas o sucesso
das festas do caboclo Pedra Preta já havia despertado a curiosidade de artistas,
antropólogos, folcloristas e sociólogos, que encontraram no terreiro da Goméia um
importante campo de estudos da cultura e da religiosidade africana. O romancista Jorge
Amado menciona que:
Nenhuma outra macumba era tão espetacular como esta da roça da Goméia do
rito Angola, por vezes ‘candomblé de caboclo’ quando das festas de Pedra Preta,
um dospatronos da casa. Nos ritos negros os santos da casa são Oxossi e Iansã. O
pai de santo Joãozinho da Goméia ou da Pedra Preta é um maravilhoso bailarino,
digno de palcos de grandes teatros. Esse caminho de São Caetano que leva à
estrada difícil da Goméia é percorrido por quanto artista, quanto escritor e
quanto sábio passa por essa cidade. Sou ogã deste candomblé e esse talvez
seja o único título que carregocomigo. Quase ogã é também o professor Roger
Bastide, da Faculdade de Filosofia de São Paulo que assistiu a Goméia à
iniciação das yaôs, quando elas se fizeram filhas de santo. Para ele e para mim
foi nos permitido ver as futuras filhas de santo na pequena casa onde faziam o
noviciado. Ali aprendem os cantos e as danças, a língua nagô que é a ritual dos
candomblés, ali de cabeça raspada ouve as preleções do pai de santo sobre as
obrigações das yaôs, longe do contacto masculino, numa abstinência sexual
absoluta que dura em média seis meses. No quilometro 3 da estrada de rodagem
o automóvel muda de direção e parece que deseja rebentar-se sobre as pequenas
casas em frente. Desce uma rampa quase vertical e tons as estradas da Goméia
onde os pés dos negros, milhares de pés se afundam diariamente em busca do
seu templo. Pelo caminho encontrareis dois ou três candomblés que São
Caetano é zona deles. Mas a roça da Goméia é mais longe por isso que é maior,
mais célebre, mais importante. Um cruzeiro assinala a entrada do candomblé. É
53
Aqui uso a grafia Joãozinho da Goméia, por estar falando dos aspectos gerais da vida e da atuação religiosa
do pai de santo.
54
PERALTA, p.80.
55
Segundo os relatos reproduzidos em grande parte dos trabalhos que tratam desta época da trajetória de
Joãozinho, a madrinha de Joãozinho em 1932 já havia falecido e por isso havia deixado o terreiro da Ladeira
da Pedra como herança.
56
LAPOENTE, Waldemar Alvarenga. Expresso de memórias, p. 224.
57
Em uma pesquisa sobre a formação do candomblé Nação Jeje na Bahia, o historiador Luís Nicolau Parés,
(A formação do candomblé- história e ritual da nação Jeje na Bahia) traz referências históricas que datam de
11 de novembro de 1871 ao nome “Gomea” relacionadas ao “terreiro Agomé”. O nome do terreiro seria uma
derivação de “Abomé, capital do antigo reino de Daomé, o que poderia, portanto, pensar-se que esse
candomblé fosse de nação jeje-dagomé” Parés conclui que o nome exista por causa deste terreiro Jeje que
vem a batizar o nome da rua “Goméia” situada no bairro de São Caetano próximo ao bairro Campinas do
Pirajá.
46
uma roça enorme, com uma série de pequenas construções. (AMADO, 1991, p.
162)
Nesta época, as festas do caboclo Pedra Preta já faziam sucesso, e o terreiro já era
conhecido por conta da desenvoltura dos passos artísticos de Joãozinho da Goméia que já
possuía fama como bailarino folclórico, o que despertava o interesse do jornalista e
folclorista Edison Carneiro que a partir de 1936 iniciara os preparativos para a realização
do II Congresso Afro-brasileiro que seria realizado na cidade de Salvador em 1937. A
aliança entre João da Pedra Preta e Edison Carneiro construiu importantes vínculos58 com
outros estudiosos dos cultos africanos, abrindo os caminhos do jovem pai de santo que
em troca garantiria ao jornalista auxilio nas pesquisas sobre os cultosde origem banto.
58
Após a realização do II Congresso Afro-brasileiro a Goméia é transformada em um laboratório para
estudiosos estrangeiros como Donald Pierson, Lorenzo Dow Turner, Pierre Verger e Roger Bastide. O
conhecimento produzido por Joãozinho da Goméia se tornará em interesse também para folcloristas e
jornalistas que utilizam as páginas dos jornais e das revistas a partir dos anos de 1940 para tratar dos estudos
do candomblé a luz dos estudos realizados por Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro que são
citados em grande parte das reportagens sobre a cultura afro-baiana, com exceção das reportagens feitas na
Goméia que se abandona o que o conhecimento cientifico e academicista para colher informações dadas por
Joãozinho da Goméia que se torna em uma importante referência.
59
Ao construir as minhas reflexões sobre o trato das abordagens sobre o II Congresso Afro-brasileiro de 1937
considerei que perante a grande quantidade de estudos dedicados a temática não seria interessante neste
momento esmiuçar os aspectos do evento, o que quebraria a fluidez do trabalho aqui apresentado, mas
recomendo a leitura dos livros: Cartas de Edison Carneiro à Arthur Ramos dos antropólogos Vivaldo
da Costa Lima e Waldir Freitas Oliveira; e Entre a oralidade e a escrita- a etnografia nos candomblés da
Bahia de Lisa Earl Castillo.
47
apontou como ponto de conexão entre ambos: o desejo pela liberdade religiosa;
autorização dos Toques, o cessar das batidas policiais, enfim, o desejo pela liberdade
religiosa.
(...) para dar uma festa de domingo tive de pagar 60$000. A minha opinião é
a de que não deve haver pagamento nenhum. O candomblé deve ter a liberdade
de funcionar quando quiser. Reconheço que alguns Paes de santo abusam da
licença. Mas que se há de fazer? Agora, assim como está é que não está certo.
Penso que o Congresso deve estudar direito um meio de resolver esta questão.
Que diferença há entre a religião dos brancos e a religião dos negros? 64
Lisa Earl Castillo aponta que o jornalista Edison Carneiro objetivava construir uma
estratégia, que envolveria o povo de santo na produção de um discurso sobre o candomblé,
baseado na luta para a legitimação social da religião.65 O intuito dos preparativos do
segundo congresso era o de promover uma imagem mais positiva do candomblé, perante a
sociedade baiana, buscando transformar os rituais públicos como o “Presente à Iemanjá”
60
Correio de São Paulo, 18 de agosto de 1936.
61
Diário da Noite, 27 de agosto de 1936 e de 9 de setembro de 1936.
62
Diário da Noite, 27 de agosto de 1936.
63
Joãozinho menciona em 1936 que sua Nação era Angola.
64
Idem
65
CASTILLO, Lisa Earl, p. 118.
48
66
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=720216&pasta=ano%20193&pesq=%22Jo%C3%A3o
%20da%20Pedra%20preta%22&pagfis=9683
49
67
Ver também a reportagem do jornal Diário da Noite, de 27 de agosto de 1936, com o título: “Aos quinze
anos já era pae de santo- uma reportagem entre os macumbeiros bahianos- Oxóssi é exigente e não deixa o
cabocloPedra Preta vir ao Rio... Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&pesq=%22Jo%C3%A
3o%20da%20Pedra%20preta%22&pagfis=28395
68
Chamo atenção para esta reportagem do jornal Diário da Noite, que utiliza uma imagem que não representa
o terreiro de Joãozinho da Goméia. A imagem é uma montagem que partiu de três fotografias publicadas em
30 de abril de 1935 no terreiro Rei Ogum da Mata, localizado em São João de Merity. O jornal Diário da
Noite através da caravana “Rio Repórter”, se dedicava a dar publicidade aos centros e terreiros licenciados
pela polícia para atuar junto à população carioca. O terreiro em questão tinha licença para funcionamento e
acreditamos, que pelo fato de Joãozinho da Goméia ter adquirido status de representante do discurso da
liberdade de culto para os candomblés da Bahia, as imagens de um terreiro, que eram uma raridade na
imprensa da época tenham sido associadas ao terreiro da Goméia. Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&pesq=%22macumba
%22&pagfis=21585https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_01&pasta=ano%20193&p
esq=%22macumba%22&pagfis=21585
50
Édison achou em João a figura certa para chamar a atenção da população sobre o
congresso que organizava”. Assim, além de entrevistar João no “Estado da
Bahia” em dezembro de 1936, elaborou um evento inédito na Rádio
Comercial da Bahia:um show transmitido ao vivo de... Candomblé! Faltando um
mês para o início do Congresso, Édison organizou uma apresentação com
músicas de candomblé, lideradas pelo pai de santo chamando-a de Uma noite
africana na Rádio Comercial. Na chamada para o espetáculo, aproveitava para
lembrar-se da aproximação do congresso que ocorreria em janeiro de 1937. No
próximo dia 15, terça-feira, a Rádio Comercial oferecerá aos seus fãs um número
sensacional. Em colaboração com a comissão do 2º Congresso Afro-Brasileiro e
com o Estado da Bahia, a Rádio Comercial vai organizar um programa
tipicamente africano, regional. O ‘pai de santo’ João da Pedra Preta levará ao
‘estúdio’ daquela rádio difusora uma legítima orquestra negra constituída por
tabaques, agogô e cabaças, a cargo dos mais exímios tocadores do candomblé da
Goméia. As filhas de santo que o acompanharão, farão coro a belos cânticos
religiosos nagôs, bantos e caboclos. Antes da audição de canto e música dos
aderentes do candomblé da Goméia, deverá falar, sobre as finalidades do 2º
Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, o escritor Edison Carneiro, da comissão
encarregada do mesmo. Assim, a ‘noite africana’ da ‘Radio Comercial’ está
fadada a um sucesso sem precedentes na história das nossas ‘broadcastings’ A
apresentação foi no dia 15 de dezembro. Dois dias depois temos matéria com as
notícias sobre o evento. “Em colaboração com o “Estado da Bahia” e com a
comissão do congresso Afro-Brasileiro da Bahia, a Rádio Comercial
proporcionou aos rádio ouvintes da cidade a audição de músicas e cânticos
dos candomblés afro-baianos.” O pai de santo João da Pedra Preta, chefe do
candomblé da Goméia, na Estrada de rodagem Bahia-Feira, levou para o estúdio
da emissora a sua orquestra de negros, dando início, às 21h, à audição de
cânticos religiosos africanos ou de origem africana da Bahia. João da Pedra
Preta cantou, anteontem, o despacho de Exu e várias canções de Ogum, Oxossi,
Xangô, de Oxalá, Omulu, Oxumaré [sic] e de Iansã, todas em Ketu, língua norte
africana, e canções de Oxossi, de Nanã, de Oxum, de Tempo, de Katendê e de
Iansã, em Kinbundu, língua de Angola. Os negros do candomblé da Goméia, sob
a direção de João da Pedra Preta, cantaram ainda algumas canções na língua dos
caboclos do Brasil. Por motivo de força maior, deixou de falar sobre a finalidade
do 2º Congresso Afro-Brasileiro, o escritor Edison. Carneiro, da comissão
encarregada da realização do congresso na Bahia Cercado e apoiada pelas
suas filhas de santo, o chefe do candomblé da Goméia executou números
interessantíssimos, ouvidos com entusiasmo, tanto pelos rádio-ouvintes nas suas
casas particulares, como pelos populares que se aglomeravam a porta dos
bares e dos cafés da cidade para escutar o velho lamento africano dos
51
1.2-1 O EVENTO EM SI
69
O evento também é citado e narrado pela historiadora Elizabeth Castellano Gama em sua dissertação de
mestrado: Mulato, Homossexual e Macumbeiro: Que Rei é esse: Trajetória de Joãozinho da Goméia nas
páginas, p.95-96.
70
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=348970_03&Pesq=%22Edson%20Carneiro%22&pag
fis=39637
71
A fotografia do jornal A Noite de 26 de janeiro de 1937, foi feita no dia 19 de janeiro. Último dia do
evento. Na parte da frente estão da esquerda para a direita- o interventor Juracy Magalhães, o
Jornalista/folclorista Edison Carneiro, o Tata n’kisi Manoel Bernardino do terreiro do Bate Folha; o jornalista
52
Aydano do Couto Ferraz, Martiniano Eliseu do Bonfim, o romancista Jorge Amado, a Ialorixá Mãe
Menininha do Gantois.
72
CARNEIRO, Edson; FERRAZ, Aydano Couto (ORG.). O negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2º
Congresso Afro-brasileiro. RJ: Civilização Brasileira, 1940.
73
Diário de notícias, 6 de janeiro de 1937.
74
Ibidem.
75
CARNEIRO, Edison e Aydano Couto, 1940.
53
76
O mesmo livro escrito em 1945, que dá notoriedade para Joãozinho da Goméia. Jorge Amado destaca
algumas personalidades baianas que ele compreende como sendo de grande relevância para a vida cultural e
social da cidade de Salvador. Ser contemplado pela escrita deste livro projetava mais ainda os nomes de
Samuel Querido de Deus e de João da pedra preta, que em 1945 já era conhecido como “Da Goméia”.
77
AMADO, 1991. p.95.
54
Figura 8: Registro do Grupo de parceiros de capoeira do Mestre Samuel Querido de Deus, que se
79 80
apresentaram no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937. O autor da fotografia não foi identificado.
78
CARNEIRO, Edison. Negros Bantos- notas de etnografia religiosa e de folclore. RJ: 2ª edição, Civilização
Brasileira, 1981.
79
A demonstração de capoeira de Angola, a “vadiação” foi dirigida por Samuel Querido de Deus. Aconteceu
às nove e meia da manhã, no campo de basket Ball do Club de Regatas de Itapagipe, com a participação dos
capoeiristas Barbosa, Onça Preta, Juvenal, Zeppelin, Bugaia, Fernandes, Eutychio, Nenen, Zei, Ambrosio,
Barroso, Arthur Mattos, Raphael, Edgard, Damião.
80
Disponível em: https://www.capoeiranews.com.br/2015/10/querido-de-deus-um-capoeira-navegador.html
55
81
Disponível em: https://www.bn.gov/explore/colecoes/arquivo-arthur-ramos
56
82
CARLINI, Álvaro. As viagens de Mário de Andrade: antecedentes e preparativos para a Missão de
Pesquisas Folclóricas. SP: Tese de Doutorado em Musicologia histórica, pela Universidade de São Paulo,
2000.
83
Josephine Baker foi uma cantora e dançarina norte-americana de fama internacional. Naturalizada francesa
em 1937 passou a ser conhecida como Vênus Negra.
84
Diário da Noite, 19 de julho de 1939.
85
Idem
86
DOMINGUES, Petrônio. A “Vênus negra”: Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica RJ:
Revistas Estudos Históricos vol.23, nº45, 2010, p.3.
58
expuseram tradições inventadas, que são importantes para que consigamos compreender a
trajetória desses sujeitos negros no pós-Abolição.
O encerramento do Congresso se deu na terça-feira, dia 19, no Salão nobre do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, quando os congressistas renderam homenagens
a Nina Rodrigues. Foi lido um discurso do antropólogo Arthur Ramos e do escritor Edson
Carneiro, continuadores da obra do homenageado. Anunciou-se que, como efeitos de
continuidade87, os esforços ali empregados resultariam na criação do “Instituto Afro-
brasileiro da Bahia”, que se encarregaria de tratar da fundação de Escolas de samba em
São Paulo, e de uma instituição para cuidar dos saberes da capoeira de Angola, que
seria coordenada por Samuel Querido de Deus. Outro anúncio foi o da realização da
terceira edição do Congresso Afro-brasileiro, que aconteceria na cidade de São Paulo,
ficando a sua organização a cargo dos escritores Mário de Andrade, Mário Pedrosa88, e do
Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal da capital paulista. A proposta era que o
IIIº Congresso acontecesse em princípios de 1939. No caso da União das Seitas Afro-
brasileiras, pleiteava-se o reconhecimento oficial do candomblé como uma seita religiosa,
reivindicando os mesmos direitos e privilégios acordados na constituição brasileira para
outras classes e formas de expressão religiosa. Edison Carneiro desejava também solicitar
que esta instituição identificasse charlatões que atrapalhassem o reconhecimento do
candomblé como religião.
87
Os Anais do II Congresso Afro-Brasileiro saíram somente em 1940, com o título O Negro no Brasil
publicado pela Biblioteca de Divulgação Cientifica da Civilização Brasileira S.A. com prefacio escritopor
Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz.
88
Mário Xavier de Andrade Pedrosa (Timbaúba, 25 de abril de 1900 — Rio de Janeiro, 5 de novembro de
1981) foi um escritor, jornalista, crítico de arte e ativista político brasileiro, iniciador das atividades da
Oposição de Esquerda Internacional no Brasil, organização liderada por Leon Trótski, nos anos 1930, eda
crítica de arte moderna brasileira, nos anos 1940. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Pedrosa
59
Figura 10: João da Pedra Preta, em registro feito pelo etnomusicólogo Lorenzo Dow Turner (1940-41).
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Community Museum Smithsonian Institute.
89
LIMA, Vivaldo da Costa. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de
relações intergrupais. Salvador: Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 1977, p. 75.
60
em outro momento era apontado pelo próprio João como um terreiro de candomblé
Angola, gera um melindroso conflito de identidades religiosas. A citação em entrevistas
que o terreiro de Severiano pertencia à nação Angola, revela uma preocupação do jovem
pai de santo com a sua imagem, que passa a ser acusado de desvirtuamento e mistificação.
Uma associação feita aos pais de santo de candomblés caboclo/angola que passam a receber
adjetivações depreciativas:
90
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. RJ: Civilização Brasileira, 1967, p.45.
91
PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia- estudo de contacto social. RJ: Companhia Editora
Nacional, 1945.
92
LANDES, 1967, p.262-265.
93
Idem
61
94
LANDES, 1967, p.266.
62
Figura 11: Filhas de santo do terreiro da Goméia reunidas para o cortejo com água sagrada
para lavar a igreja para a cerimônia -Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb95
Figura 12: Lavagem - Filhas de João da Goméia - Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661
Tamanho: 536kb96
95
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
96
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
63
Figura 13: João da Goméia conduzindo suas filhas de santo - Lavagem do Bonfim -
janeiro, 1939. Dimensão: 1956 x 651 Tamanho: 463kb97
Figura 14: Sacerdotisas com água sagrada e outros personagens da lavagem do Bonfim.
Filhas de João da Goméia -Janeiro, 1939. Dimensão: 1996 x 661 Tamanho: 536kb98
97
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
98
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938-afonj%C3%A1
64
Consideramos que a obra Cidade das Mulheres traz algumas abordagens críticas
que servem para estabelecer reflexões sobre alguns aspectos que tenham supostamente
“marginalizado” João em Salvador. A bem da verdade, Ruth Landes reproduz os
preconceitos apresentados pelo povo de santo em relação à presença de João em um cargo
de santo, mostrando o campo religioso afro-baiano como um campo de disputas e tensões
em torno de poder, prestigio e status. A condenação da presença de homens em cargos de
liderança fazia parte do discurso oficial100dos candomblés tradicionais da Bahia dos anos
30. Aos homens que conduziam candomblés de caboclo, eram atribuídas identidades
homossexuais, pelo culto ligado a esses templos não possuírem uma tradição como os da
nação Kêtu e Jeje. A antropóloga informara que os caboclos eram blasfemos e
99
Disponível em: https://museuafrodigital.ufba.br/ruth-landes-outubro-1938afonj%C3%A1
100
Martiniano Eliseu do Bonfim era um dos representantes deste discurso oficial que era transmitido por
lideranças de terreiros nagôs como a Casa Branca, o Ilê Axé Opô Afonjá e o Gantois.
65
indisciplinados. Eram cultos que inventavam deuses e admitem homens nos cargos de
liderança:
Aos homens que atuavam no comando dos terreiros de candomblé de caboclo, eram
destinadas identidades que condenavam uma suposta condição sexual. De acordo com
Ruth Landes, os homossexuais viviam em condição subalterna e segundo a antropóloga
escolheriam tornarem-se chefes de templos religiosos com objetivo de ascender
socialmente. Para a antropóloga, segundo versava a tradição nagô-yorubá, somente as
mulheres estariam aptas a lidar com as divindades. E que aos homens nos tempos antigos
eram destinados apenas o cargo da adivinhação e da feitiçaria:
O interesse de intelectuais por João como colaborador nos estudos sobre candomblé
de caboclo, talvez tenha sido despertado a partir das publicações dos livros Religiões
Negras/Negros Bantos de Edison Carneiro entre 1936 e 1937, e pela sua atuação no
Segundo Congresso Afro-brasileiro. Em 1939, Edison Carneiro, comissionado pelo Museu
Nacional da Quinta da Boa vista, retorna à Bahia com o objetivo de recolher material sobre
os cultos africanos, encomendando a feitura de bonecas de pano, em tamanho natural,
paramentadas com as indumentárias e insígnias dos Orixás, para expor nas dependências
do museu, localizado no bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro.
101
Para saber mais consultar OLIVEIRA e LIMA, p. 29 e 30.
102
Edison Carneiro atuou nos anos de 1930 na Bahia como uma espécie de intelectual mediador que sempre
possibilitava o contato entre os intelectuais estrangeiros e o povo de santo.
103
O resultado das investigações de Pierson gerou o livro Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahia,
publicado pela Universidade de Chicago em 1942; traduzido e editado no Brasil em 1944 sob o título:
Brancos e Pretos na Bahia- estudos de contacto racial.
104
Erro do Word que não permite a separação das palavras.
105
PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia- estudos de contacto social. SP: Companhia Editora
Nacional, 1971, p.306.
106
Para saber mais sobre a experiência de Lorenzo Turner nas áreas de Salvador e do Recôncavo Baiano entre
1940 e 1941, ver o texto de Lívio Sansone: Estados Unidos e Brasil no Gantois o poder e a origem
transnacional dos Estudos Afro-brasileiros. RBCS Vol. 27 n° 79 junho/2012.
107
BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico. RJ: Seção de livros da empresa gráfica “O Cruzeiro”,
1945.
108
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios; RJ: Record, 1991.
109
Como o uso do acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger requer uma burocracia tremenda abri mão de
67
Pedra Preta. O crescente interesse dos intelectuais pelo pai de santo o projetou como uma
referência para os estudos afro-religiosos. O que vai garantir o sucesso do terreiro da
Goméia de São Caetano, a partir dos anos 1940.
Figura 16: Joãozinho da Goméia com seus filhos de santo, no terreno onde está abrigado o terreiro da
Goméia. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.
utilizar qualquer imagem, principalmente pelo fato de não ter contato com auxílio financeiro para
investimento nesta pesquisa. Mas recomendo o acesso a fototeca da Fundação onde estão algumas fotos
disponibilizadas sobre o terreiro da Goméia e seu pai de santo: http://www.pierreverger.org/br/acervo-
foto/fototeca/category/478-candomble-joaozinho-da-gomea.html
68
Figura 17: Registro fotográfico produzido por Lorenzo Turner no terreiro da Goméia no Bairro de São
Caetano, Salvador, Bahia. Fonte: Anacostia Community Museum, Smithsonian Institution. As imagens
foram cedidas por Xavier Vatin, coordenador do projeto Memórias Afro-Atlânticas.
Figura 18: Joãozinho da Goméia ainda como João da Pedra Preta em seu terreiro no bairro de São
Caetano, em Salvador. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.
69
Figura 19: Registro de Joãozinho da Goméia a frente de um espaço sagrado do terreiro da Goméia de
São Caetano, em Salvador. Aqui o pai de santo abre espaço para o João Alves Torres Filho, em
momento de descontração. Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian
Institute.
Figura 20: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano, quando Joãozinho
contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um terreiro de candomblé Angola.
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.
70
Figura 21: Registro de algumas das filhas de santo feitas na Goméia de São Caetano, quando Joãozinho
contava com aproximadamente 16 anos de sacerdócio à frente de um terreiro de candomblé Angola.
Fonte: Lorenzo Dow Turner Papers, Anacostia Museum Smithsonian Institute.110
Figura 22: Registro fotográfico feito pelo sociólogo Roger Bastide onde destaca os tambores lê,
rumpê e rum do candomblé de Joãozinho. “Da esquerda para a direita: as filhas de Yemanjá,
Ogum, Oxalá, Oxum”. De acordo com Roger Bastide, esta imagem foi publicada nos Diários
Associados. Fonte: BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. RJ: Seção
de livros da empresa gráfica “O Cruzeiro”, 1945.
110
Não tenho informações se a pessoa com a vestimenta de Oxalá é Joãozinho da Goméia. Apenas os filhos
de santo dele poderiam informar se ele se paramentava de Oxalá.
71
Figura 23: Candomblé Joãozinho da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico feito por
Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger.
Fonte: Foto Pierre Verger©fundação Pierre Verger.111
111
Foto protegida pela Lei dos Direitos Autorais 9610/98. Interessados em utilização, deverão entrar em
contato com a Fundação Pierre Verger http://pierreverger.org/br/acervo-foto/servicos/uso-de-fotos.html.
72
Figura 24: Candomblé Joãozinho da Gomea, Salvador, Brasil (1946). Registro fotográfico feito por
Pierre Verger, cedido pela Fundação Pierre Verger.
Fonte: Foto Pierre Verger©fundação Pierre Verger.112
Graças à projeção proporcionada por estes intelectuais, o nome João da Pedra Preta
se expande em escala nacional e transnacional, e transforma o pai de santo no Joãozinho da
Goméia, famoso por ser um exímio bailarino folclórico, e dono de um dos terreiros de
candomblé mais famosos da Bahia.
Certa vez, o jornalista da revista O Cruzeiro113 disse que enviaram uma carta para
112
Foto protegida pela Lei dos Direitos Autorais 9610/98. Interessados em utilização, deverão entrar em
contato com a Fundação Pierre Verger http://pierreverger.org/br/acervo-foto/servicos/uso-de-fotos.html.
73
João, sem endereço, mas com seu nome e país, e a carta chegou ao seu destino: Terreiro da
Goméia, localizado no quilometro 3 da estrada de rodagem que, segundo Jorge Amado:
113
Revista O Cruzeiro, 21 de outubro de 1967.
114
Any Guaíba é uma bailarina que se dedicava à estilização das danças afro-brasileiras, assim como Eros
Volúsia, Mercedes Baptista e a bailarina russa Juliana Yanakieva que são importantes referências para se
pensar o movimento de estilização das danças afro-brasileiras dos anos de 1930 a 1950. Também são
importantes para refletir sobre os agenciamentos e a construção de redes sociais em torno do cenário artístico
em que Joãozinho da Goméia transitará no Rio de Janeiro a partir da década de 1940.
115
O título da reportagem é: “Passando em revistas as danças e ritos dos terreiros da Baía: João Goméa , o
‘Pedra Preta’ fala a reportagem sobre candomblés e outras coisas interessantes que conhece”.
116
Chamo atenção para a presença do tema Folclore em inúmeras reportagens do jornal A Manhã, entre os
anos de 1940 e 1950. Ao acessar o link, posto no fim desta nota de pé de página, o leitor, se deparará com
apenas uma destas reportagens. Fica claro que o A Manhã, fortalecia a função do Governo brasileiro na
promoção de uma política nacionalista, atenta a construção de uma identidade cultural nacionalista para o
povo brasileiro, com raízes no nordeste r no norte do Brasil. Ver a reportagem “O Folclore brasileiro e sua
expressão nacionalista: a ideia de uma exposição folclórica- o que nos disse o Sr. João Duarte Filho”. Jornal A
Manhã de 16 de junho de 1942. Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pesq=Jo%C3%A3o%20da%20Gom%C3%A
9ia&pagfis=16064
74
pretensão era a de exibir-se com danças afro-brasileiras nos cassinos e teatros do Rio de
Janeiro. Esclarece que iniciou sua trajetória como coreografo e bailarino, a partir de
1929, dançava no terreiro do caboclo Jubiabá e no terreiro da Goméia. Suas primeiras
apresentações profissionais aconteceram em outubro de 1941, na Festa da Mocidade, na
companhia da bailarina espanhola Coral Hidalgo.
Figura 25: Reportagem “Passando em revistas as danças e ritos dos terreiros da Baía: João
da Goméa, o ‘Pedra Preta’ fala a reportagem” sobre candomblés e outras coisas interessantes
que conhece do jornal A Manhã de 16/07/1942, onde Joãozinho da Goméia, fala de seus
planos artísticos para a sua estadia no Rio de Janeiro. Fonte: BNDigital117
117
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=116408&pesq=%22Jo%C3%A3o%20da%20Gom%C
3%A9a%22&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=16400
75
118
A entrevista se encerra com a revelação de que havia gravado alguns discos para o norte-americano Mister
Tony que havia levado para sua terra de origem um vastíssimo repertorio de melodias apreendidas na Goméia.
119
A informação dada por Joãozinho sobre possíveis viagens de Salvador é um dado novo que pode revelar
acréscimos reveladores sobre a sua trajetória artística, já que o intuito das viagens era artístico.
120
A Manhã, 16 de julho de 1942.
121
Os estudos dedicados a pesquisa da trajetória de vida de Joãozinho não se aprofundaram nas investigações
a sua prisão na Capital Federal. Em 2001 estive na companhia do Olwô Agenor Miranda Rocha que me deu
detalhes desta prisão informando detalhes que foram confirmados por Mametu Ileci da Oxum, a mãe criadeira
da Goméia. Agenor, dissera que no episódio da prisão de Joãozinho a sua soltura foi possibilitada por conta
de um telefonema que dera para o então presidente da república Getúlio Vargas que era seu amigo pessoal.
Ileci ao confirmar a versão dada por Agenor comenta que fora com Mametu Kitala e outras filhas de santo e
ogãs a casa de Agenor para obter ajuda e conseguiram.
76
Paulo Siqueira123 informa que a chegada de Joãozinho ao porto foi noticiada por
muitos jornais que usavam fotografias destacando o rosto do pai de santo. O autor informa
que a imprensa havia se mobilizado para divulgar a sua presença na cidade, o que teria sido
visto com reprovação por parte de Dulcídio Gonçalves responsável por uma bem sucedida
campanha de combate ao atraso social e a presença nefasta daqueles que classificava como
praticantes de baixo espiritismo e mistificação. O autor chama atenção para o prestigio e o
status que Joãozinho, já havia conquistado com estreitas relações de amizade com
personalidades do segmento político que intercederam ao seu favor. A versão que parte do
povo de santo, pertence ao campo das “sensibilidades” e, portanto, são afeitas a construir
narrativas que se apresentam mitificadas:
122
Diário de Notícias, 8 de agosto de 1942.
123
SIQUEIRA, Paulo. Vida e Morte de Joãozinho da Goméia. RJ: Ed. Nautilus, 1971. p.55
77
Goméia do Rio, custasse o que custasse. Verdade ou mentira, o fato é que o Rei
do Candomblé foi vítima de uma infame e indigna cilada, que o levou às grades
de uma prisão. Pessoas desconhecidas, dizendo-se admiradoras do candomblé e
de Joãozinho, dele se acercaram. Com atitudes falsas e fingindo-se
impressionadas com o seu poder religioso, conseguiram conquistar a sua
confiança. Feito isso, disseram-lhe que eram amigas de Getúlio Vargas, cujo
governo se achava enfraquecido pela oposição de grupos políticos invejosos da
popularidade gigantesca do ex-presidente. Pediram então a Joãozinho que fizesse
um trabalho junto ao Palácio do Catete, para salvar o regime e evitar que o Brasil
mergulhasse numa crise política, cujas consequências ninguém poderia ver. Na
boa fé e ingenuidade, Joãozinho concordou com o pedido e resolveu intervir
talvez pensando que com isso pouparia sacrifícios e problemas para o povo
brasileiro. Preparou o trabalho e dirigiu-se para o palácio do Catete para cumprir
sua missão. Os amigos infames porem lá se encontravam ocultos, escondidos
na escuridão. Quando foi colocar o despacho, Joãozinho da Goméia foi preso
e encarcerado e submetido a um processo por pratica de curandeirismo e
mistificação. Um desses amigos o Sr. Antônio Vieira Bandeira de Melo que até
pouco tempo foi Secretário de Educação da Guanabara no Governo Negrão de
Lima, sentiu que a prisão era uma vergonha para o Governo e para a cidade.
Todo mundo sabia que ele não tinha culpa, que fora vítima de uma vergonhosa e
criminosa armadilha. O professor Vieira de Melo foi então ao Gabinete de
Getúlio e implorou pela libertação do alufá. O velho presidente da República, na
sua sabedoria de grande estadista viu que não podia permitir tamanho crime, mas
sentiu que a presença de Joãozinho pelo menos naquela ocasião, criaria
problemas para o Governo (...) após estudar o caso de Joãozinho, Getúlio resolve
dar-lhe a liberdade e manda que o soltem, mas impôs uma condição: que ele
voltasse para a Bahia.
124
São muitas as narrativas localizadas em biografias sobre Joãozinho da Goméia, advindas do discurso dos
descendentes religiosos do pai de santo, que foram produzidas com a intenção de construir um discurso de
exaltação e de afirmação positiva, e, por conseguinte fortaleça a potencia do legado deixado por Joãozinho na
historia do candomblé e da nação Angola. Uma prática comum aos afro-religiosas, e que de nada tem de errada
ou pejorativa. Cada um constrói a imagem que quer eternizar da maneira que achar correta. Só dá certo trabalho
para quem deseja seguir os rastros através das narrativas orais que atendam a perspectiva da exaltação a imagem
da liderança religiosa, por serem estas narrativas produtoras de pistas muitas vezes falsas, e construírem
armadilhas e campos minados.
125
BURKE, Peter. A fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. RJ: Zahar, 2009, p.18
78
126
Joãozinho da Goméia é um objeto de estudo que deixou poucos rastros que podem ser comprovados
através das fontes. O que existe de palpável é o material de imprensa que serve de caminho para encontrar o
que existe de verídico nos arquivos. A sua trajetória em grande parte foi construída pelos testemunhos orais
que são base de dados para pesquisadores, mas que muitas vezes não oferecem verdades, mas sim imprecisões
e material para as mitificações, que são muitas. O risco que o historiador corre é se deparar com uma narrativa
heroica, sem contestações ou defeitos que sirva para agradar e não para oferecer reflexões sobre os caminhos
trilhados por Joãozinho em vida.
127
O espaço cultural foi fundado em 1911, pelo comerciante sergipano João Oliveira que também era
dono da panificadora Jandaia localizada em um galpão com capacidade para quatrocentas pessoas onde se
exibiam fitas do cinema mudo. Sendo fechado em 1927, após ter sido interditado por diversas vezes.
Após um período de reformas e de ampliações o prédio foi reinaugurado em 3 de julho de 1931 de acordo
com os padrões europeus de modernidade, o que transformou o local em um espaço para o divertimento das
elites baianas. A estrutura arquitetônica possui intervenção da Art déco e Art Nouveau com clara influência
das vanguardas artísticas europeias. Com a morte de João Oliveira em 1933, ao seu filho coube a
administração do empreendimento, o que contribuiu com a renovação do público pagante composta agora por
membros das classes populares que não ocupavam os mesmos lugares de assento das elites que lotavam os
camarotes e as frisas. O cinema e o teatro representavam o patrimônio cultural do Estado da Bahia com
equipamentos modernos para exibir os filmes. Já o teatro recebia artistas de renome como Aracy Cortes, Bidu
Sayão, Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Grande Otelo, Marlene, dentre outros. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cine-Teatro_Jandaia
79
Capital Federal, Joãozinho faz o mesmo percurso que inúmeras lideranças baianas do
candomblé fizeram anteriormente, em um processo doloroso de desterritorialização128
que não apenas marca sua transferência, como o deslocamento das áreas centrais para o
subúrbio. Um processo que redefine a noção de pertencimento desses sujeitos. Um
movimento que remonta aos deslocamentos produzidos pela diáspora negra, em circuito
afro-atlântico.
128
Conceito emprestado da obra Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência de Paul Gilroy.
129
BENISTE, José. História dos candomblés do Rio de Janeiro: o encontro africano com o Rio e os
personagens que construíam sua história religiosa. RJ: Bertrand Brasil, 2019, p. 130.
80
Dentro deste leque de migrantes baianos que trouxeram seus Axés para o Rio de
Janeiro, ainda estão Cipriano de Abedé, lotado na Rua do Propósito e João Alagbá, filho de
Omulu que tinha seu terreiro na Rua Barão de São Felix, na Zona portuária do Rio de
Janeiro, bairro da Saúde. Alagbá foi um referencial de atuação em prol da defesa das
liberdades individuais e coletivas de praticantes do candomblé e, por causa da rede de
sociabilidades que havia construído com chefes de polícia e políticos, adquiriu proteção
para o seu candomblé e prestigio junto ao povo de santo.
De acordo com Stefania Capone 131, os pais e mães de santo que residiam no centro
da cidade, eram africanos célebres, muitos vindos da África e outros da Bahia. O terreiro
de João Alagbá era um dos pontos de encontro mais procurados pela comunidade baiana.
O terreiro de Alagbá se transformou também em um ponto de articulação e de
comunicação entre os negros cariocas e os baianos no início do século XX. Outro local
que desempenhou esta função foi à casa de Hilária de Almeida, a Tia Ciata132, localizada
na Rua Visconde de Itaúna, 117. Local onde se realizavam festas e reuniões de
compositores de maxixe, choro e samba inclusive a história do samba é sempre
rememorada graças aos encontros patrocinados pelas reuniões na casa da Tia Ciata que
130
ROCHA, Agenor Miranda. p.25.
131
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. RJ: Pallas, 2018. P. 132
e 133
132
Hilária Batista de Almeida, iniciada no culto da divindade Oxum, era a mãe pequena de João Alagbá. Foi a
mãe de santo mais conhecida do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Foi iniciada por
Bamboxê, figura muito conhecida no candomblé baiano que teria sua trajetória ligada diretamente à de
Marcelina Obá Tossí dirigente do terreiro da Casa Branca de Salvador e responsável pela iniciação de Mãe
Anjinha do Ilê Axé Opô Afonjá Chamo atenção para a importância de se entender o candomblé da primeira
metade do século XX como uma rede de conectores sociais.
81
mantinha grande amizade com músicos como Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.
Em 1946, Pierre Verger, envia correspondência a Roger Bastide, para informar que
Joãozinho da Goméia havia se instalado no Rio de Janeiro em 1946. O fotógrafo francês
comenta que o motivo da vinda de Joãozinho para a Capital Federal tinha relação
com o seu interesse pelos “meios dos music halls e dos cassinos”133. A fala de Verger
revela o intuito de Joãozinho em se projetar artisticamente através dos palcos. Ao alegar
que seu deslocamento houvera sido motivado pela assinatura de um contrato com o
Cassino da Urca, o biógrafo Paulo Siqueira e o historiador Antônio Carlos Peralta, atestam
134
que a relação do pai de santo com os cassinos tenha ocorrido em 1946 . Só que esquecem
que, em 30 de abril de 1946, sob a determinação do então presidente da república Eurico
Gaspar Dutra, foi instituído através da promulgação do Decreto-lei 9.215, a proibição dos
135
jogos de azar no Brasil .
Segundo Antonio Carlos Peralta136, a suposta contratação seria o resultado da
indicação do empresário e “cavalo” do caboclo Cobra Coral, Orlandino Pimentel 137, para o
empresário da noite carioca Joaquim Rollas. A função de Joãozinho seria a de coreografar
as bailarinas do Cassino da Urca138 que apresentassem espetáculos de danças inspiradas nos
ritmos afro-brasileiros. Outra versão foi dada por Antonio Carlos Peralta sobre o que
tivera motivado a saída de Joãozinho de Salvador. Trata-se do convite feito por Orlandinho
Pimentel para que Joãozinho trabalhasse na área de comunicação como funcionário do
Jornal Diário Trabalhista. Uma experiência profissional que impulsionará tanto a sua vida
133
MORIN, Françoise. Diálogo entre filhos de Xangô: Correspondência 1947-1974. SP: Editora da
Universidade de São Paulo, 2017. p.67.
134
A versão da contratação pelo Cassino da Urca se adéqua a reportagem do jornal A Manhã, de 1942,
sugerindo que de fato houve uma atuação nos cassinos do Rio, anterior a 1946. O que deixa subentendido que
Joãozinho transitava entre Rio e Bahia, para possíveis contratações por temporada.
135
O Cassino da Urca ficou fechado até 1954, quando lá se instalou a TV Tupi. Na década de 1980, ela foi
extinta.
136
PERALTA, Antônio Carlos Lopes. Um vento de fogo - João da Gomeia: o homem do seu tempo.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Mestrado em História. Universidade Severino Sombra,
2000, p. 56.
137
Orlando Pimentel, ou Orlandino Pimentel ou Orlandino Cobra Coral, foi um dos mais bem conceituados
pais de santo cariocas. O seu Centro Espírita São Jerônimo estava lotado no bairro da Pechincha, Rio de
Janeiro. Não localizamos informações sobre Orlandino, apenas sabemos que era muito amigo de Joãozinho e
que se suicidou em junho de 1949 deixando carta, divulgada na imprensa, na qual manifestou a vontade de
que Joãozinho ficasse com o seu terreiro. A trajetória de Orlandino aponta a necessidade de que
pesquisadores dos cultos afro-cariocas invistam esforços no estudo dessas personalidades da religiosidade
popular que de certa forma recontam a história cultural da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do
século XX
138
Da era do glamour do Cassino da Urca restou apenas o Copacabana Palace. Fechou na data de
promulgação do decreto até 1954, quando nas instalações passou a funcionar a TV Tupi. A proibição da
prática de jogos de azar em todo o território nacional ocorre pela promulgação do decreto-lei nº 9.215 de30 de
abril de 1946.
82
139
Esta experiência profissional virá no capítulo 2, quando será abordada a atuação artística de Joãozinho.
140
Idem
83
Desta vez tinha vindo acompanhado de quarenta e cinco filhos de santo, entre
eles, Tossilondei, Maria de Lurdes Ramos, equedy de seu Oxossi e hospedou-se
na casa de sua filha Maria Júlia, Kilondirá, na Rua Manoel Duarte, no Parque
Lafaiete em Duque de Caxias. Esta senhora ficou conhecida na vizinhança
como Dona Kiló, sua casa era localizada nas proximidades da Igreja Santa
Terezinha do MeninoJesus. Pouco tempo depois, o zelador aluga uma casa com
três quartos, duas salas, cozinha, varanda e banheiro, na Rua das Vassouras, 174
no bairro Itatiaia, também na Baixada Fluminense, onde iniciou algumas pessoas
em um barracão de madeira no fundo do quintal. Hoje a rua chama-se Castro
Alves e o número passou a ser 194, com construção infelizmente derrubada.
Neste endereço foi realizada a primeira festa em homenagem ao Oxossi de
Seu João no Rio de Janeiro. As roupas, as comidas estavam prontas, mas a
entidade não se manifestou. Para não passar vergonha Joãozinho chamou o
Oxóssi de Dona Adalice Benta dos Reis, Kitala Mungongo, e o vestiu com
as roupas confeccionadas para a entidade, isso causou muita inveja e confusão,
pois a vestimenta havia sido confeccionada e presenteada por um filho de santo.
Após esse episódio, viu no jogo de búzios que Oxóssi e Iansã queriam um local
141
FERREIRA, Frederico Antonio & PEREIRA, Rodrigo. Visibilidade e representações sociais do
candomblé pelo Jornal do Brasil e Correio da Manhã (1950-1990). Um estudo de caso sobre o terreiro da
Gomeia e seu dirigente (Duque de Caxias). Revista Semina, V.17, nº 2, 2018. P. 236-237.
84
Figura 26: Registro de Joãozinho da Goméia muito jovem vestido de trajes ligados a motivos do
folclore baiano. Acreditamos que seja um registro colhido no Segundo Congresso Afro-
brasileiro de 1937.142 Fonte: Domínio público.
142
Agradeço a página Nzazi da Angola do Instagram que me cedeu gentilmente este registro fotográfico de
Joãozinho da Goméia em seus tempos de João da Pedra Preta.
86
143
Reportagem Candomblé do Tempo da Revista da Semana de 22 de maio de 1948.
144
Não sabemos a data certa em que o cinegrafista esteve com Joãozinho em Salvador.
145
A título de exemplificação, no acervo videográfico da Cinemateca Brasileira encontram-se imagens da
dança de Joãozinho da Gomeia, através do filme Bahia terra de contrastes, um curta-metragem de 5 minutos
e 49 segundos, produzido em São Paulo no ano de 1955, pelo documentarista Isaac Rozemberg. Um filme que
exalta aspectos culturais e arquitetônicos da cidade de Salvador, enfatizando a presença dos candomblés com
seus locais de oferendas, e os animais como vacas, perus, galos e galinhas, cabras e bodes, demonstrações de
tocadores de atabaques e outros instrumentos, e o destaque para Joãozinho da Goméia rodeado de filhas de
santo, em momento em que dança em uma cerimônia do terreiro de candomblé.
87
literária do país, resultando em grande valor para os estudos sobre os cultos africanos.146
Sob essa perspectiva, Isaac Rozemberg produziu 147 o curta-metragem “Candomblé”, que
documenta as cerimônias típicas do terreiro da Goméia, como a dança em honra a
Exu; com menção a matança de agutã (bode). Uma cerimônia que segundo o jornal A
Manhã fazia parte do culto ao orixá Tempo, e a Oxóssi. Também estão presentes as danças
noturnas que aconteciam dentro do barracão, com atenção especial ao sacrifício do galo
preto (akikô).
Figura 27: “O Orixás descem sobre o terreiro”. Reportagem do jornal A Manhã, de 13/02/1949. Joãozinho da
Goméia e o cinegrafista Izaac Rozemberg, interessado pelos motivos folclóricos coreográficos e musicais. Por
causa da reportagem, inicia-se uma celeuma entre o documentarista Isaac Rozemberg e a coreografa e
bailarina Eros Volúsia, pois no curta-metragem, o locutor ao que transformaram Joãozinho da Goméia em
146
Ver sobre a produção de Isaac Rozemberg através do canal Acervo Rozemberg. Disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UCmiVrVmah8ld3xw8Vu38KEA; e a sua Filmografia no site da
Cinemateca Brasileira.
147
Não sabemos a data certa em que o cinegrafista esteve com Joãozinho em Salvador.
88
148
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pasta=ano%20194&pesq=Orix%C3%A1s&p
agfis=41593
149
Diário da Noite, 11 de fevereiro de 1949.
150
Ver: CARLONI, Karla Guilherme. Em busca de uma identidade nacional: bailarinas dançam maracatu,
samba, macumba e frevo nos palcos do Rio de Janeiro (1930-1945). Uberlândia: Art Cultura, v. 16, n. 29, p.
167-185, jul-dez. 2014.
89
Figura 28: “Protesta Eros Volúsia: Discípula de babalaô, não”. Reportagem do jornal Diário
da Noite de 11/02/1949. O protesto da bailarina e coreografa Eros Volúsia contra o
documentarista Isaac Rozemberg, em nome da preservação do seu patrimônio artístico e
coreográfico. Fonte: BNDigital151
151
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_02&Pesq=BABALA%c3%94&pagfis=4947
3e
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_02&Pesq=BABALA%c3%94&pagfis=4961
5
90
“originalidade” das criações coreográficas em fins dos anos 40. Eros atuou a frente da
diretoria do Serviço Nacional de Teatro, foi aclamada como “inventora” do bailado
nacional e criadora de uma Escola de dança afro-brasileira, que viera a funcionar nas
dependências do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 1949, Joãozinho da Goméia já
era conhecido por atuar como coreografo e bailarino entre o Rio de Janeiro e Salvador e se
apresentou com suas filhas de santo, nos palcos do Teatro Jandaia, Teatro do Largo da Sé
e Teatro Guarani.
152
PEREIRA, Roberto. A formação do balé brasileiro: nacionalismo e estilização. Rio de Janeiro: Ed. da
Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.70.
153
Eros tem uma carreira costurada por reivindicações para preservação do seu patrimônio artístico o que a
insere no campo do bailado cada vez mais.
154
FERRAZ, 2012, p. 71.
155
ZENICOLA, 2016, p. 221
91
seu interesse em torno do estudo dos movimentos corporais em sentido folclórico, o que
vem a reconstruir a sua identidade de coreógrafa e bailarina, transformou-se em uma
incansável produtora cultural. O oficio de folclorista estava apenas associado ao estudo,
coleta e registro de informações, tal qual fazia o maestro paulista Camargo Guarnieri
através da “Sociedade de Etnografia e Folclore”; e Edison Carneiro com a preservação
das tradições registradas e observadas. Um ato que Eros não aplicou na pratica. Ela
capturava a essência das tradições, modificava e reivindicava autoria.
O sentimento folclórico aproximou Eros de Joãozinho da Goméia, como aproximou
de outros terreiros de candomblé e de macumba entre Rio de Janeiro e São Paulo. O que
entristeceu Joãozinho foi a desconsideração quanto a sua contribuição no seu patrimônio
coreográfico e artístico:
Ensinei a Eros, com um carinho especial, tudo quanto sabia e ela participou de
nossos cerimoniais vestida de baiana. Muitas melodias tipicamente africanas eu
cantei para um músico do Corpo de Bombeiros escrever, a fim deoferecer a Eros.
Ela enriqueceu não há dúvida, muito e muito o seu repertório com o material que
lhe puz ao alcance dos olhos e da inteligência.156
Em 1939, Eros Volúsia, foi nomeada pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema para ocupar o cargo de diretora do Curso de Ballet do Serviço Nacional de
Teatro (SNT), que havia sido criado pelo decreto nº 92, em 21 de dezembro de 1937, como
órgão subordinado ao Ministério da Educação e de Saúde Pública, objetivando a “elevação
e edificação espiritual do povo”, por meio das artes cênicas. Por razão desta nomeação,
157
Eros cria o curso de coreografia que objetivava fornecer elementos para o teatro
musicado nacional, com um curso com aulas práticas sem desprezo à teoria. 158 O
diferencial do curso foi o acesso que Eros deu aos bailarinos negros, que passaram a
compor o corpo de baile dos teatros de revista, do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e do
cinema nacional, como Sebastião Araújo, Gilberto de Assis e Mercedes Baptista, que
materializaram o projeto de criação de uma Escola de Ballet, legitimamente brasileira:159
156
A Manhã de 16 de junho de 1942
157
O corpo de baile do teatro municipal foi oficializado em 1936, quando a profissão de bailarino foi
oficialmente reconhecida.
158
ZENICOLLA, 2016. p. 222.
159
Idem.
92
Desejo esclarecer alguns dos atributos distintivos das formas culturais negras que
são, a um só tempo, modernas e modernistas. São modernas porque tem sido
marcada por suas origens hibridas e crioulas no Ocidente; porque têm se
empenhado em fugir ao seu status de mercadorias e da posição determinada pelo
mesmo no interior das indústrias culturais; e porque são produzidas por artistas
cujo entendimento de sua própria posição em relação ao grupo racial e do papel
da arte na mediação entre a criatividade individual e a dinâmica social é moldado
por um sentido da prática artística como um domínio autônomo, relutante ou
voluntariamente divorciado da experiência da vida cotidiana. Essas formas
culturais expressivas são, portanto, ocidentais e modernas; mas isto não é toda o
que elas são. 163
160
DOMINGUES, Petrônio. A “Vênus negra”: Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica. RJ:
Josephine Baker e a modernidade afro-atlântica. RJ: Estudos Históricos, vol.23, nº45, 2010.
161
GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. SP: Editora 34, 201.
162
GILROY, 2001, p. 158.
163
GILROY, 2001, p. 159.
93
164
PEREIRA, Roberto, 2001, p. 46.
165
É uma empresa norte-americana de comunicação de massa, envolvida principalmente com produção e
distribuição de filmes e programas televisivos. A MGM foi fundada em 1924, quando o empresário do ramo
do entretenimento, Marcus Loew, adquiriu o controle da Metro Pictures, Goldwyn Pictures Corporation e
da Louis B. Mayer Pictures. É uma das produtoras de cinema mais antigas da história docinema americano.
166
CARLONI, p.11.
167
Reportagem “Mais uma brasileira para Hollywood da Revista Carioca, 13 de fevereiro de 1942”. Uma
revista pertencente ao grupo A Noite.
94
de formas que são, em verdade, as mais puras e as mais ricas expressões plásticas dos
motivos verde e amarelo”. A revista Carioca168 reconhece a artista como “uma bailarina de
marcações puramente nacionalistas com plasticidade musical”. O contrato com um
empresário de Hollywood lhe destinou caminhos semelhantes aos já trilhados por sua
antecessora, Eros Volúsia, nos estúdios da Metro em 1942. O jornal A Manhã de 16 de
julho de 1942 menciona o circuito de entretenimento noturno da América Latina, nos quais
Any Guaíba despontava nos “night clubs” La Conga, Habana, Madrid, Leon Eddis, e
Cuban da Broadway, passa a ser solicitada em longas excursões coreográficas por Cuba,
México, Canadá e Estados Unidos.169
168
Revista Carioca, 8 de junho de 1946.
169
Revista Carioca, 23 de dezembro de 1944.
95
170
Any Guaíba é um personagem interessantíssimo, que precisa e merece ser descoberto quanto à trajetória da
dança moderna brasileira entre os anos de 1930 e 1950. Estas bailarinas e coreografas estudavam o folclore
nacional e as danças afro-brasileiras recebendo apoio financeiro do Serviço Nacional de Teatro, atuando
como folcloristas, e ampliando as dimensões deste campo de produção de saberes sobre aspectos da cultura
brasileira. A ligação com Joãozinho da Goméia é movida estritamente por este sentimento folclórico que
movimenta o campo das artes, da dança, e dos estudos da cultura afro- brasileira.
171
O terreiro da Goméia estava localizado na Estrada de São Caetano, Salvador.
172
Data da reportagem já citada no corpo do texto.
96
metragem Rio Rita173, é a presença dos passos e dos movimentos dos braços, assim como a
pulsação do corpo e o movimento giratório do corpo, que é nada mais nada menos que uma
remissão às performances das filhas de santo, já que relembram o movimento dos corpos
presenciado em rituais religiosos em que há incorporação de orixás femininos como Oxum,
Iemanjá e Iansã. As inúmeras referências aos movimentos tremelicados da incorporação
das filhas de santo, além dos movimentos dos braços, aparecem todos com nitidez, não
deixando nenhuma margem de dúvida sobre os referenciais adotados para aquela
composição coreográfica.
Figura 29: “As novas vitórias de Any Guaíba” A bailarina afirma que passou um tempo no terreiro
da Goméia de São Caetano, em Salvador, observando os passos de candomblé de Joãozinho da
Goméia e de suas filhas de santo, para buscar inspiração coreográfica para suas ‘estilizações”
artísticas. Publicação da revista Carioca de 08/06/1946. Fonte: BNDigital174
173
Ver a cena estilizada em: https://www.youtube.com/watch?v=TsNlolyVBQY
174
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830259&pasta=ano%20194&pesq=ANY%20GUAIB
A&pagfis=33580
97
175
Segundo informações coletadas no site Wikipédia o Teatro Carlos Gomes teve as primeiras instalações
inauguradas em 1872, quando se denominava Cassino Franco-Brésilien (Teatro Cassino Franco
Brasileiro). Em 1880, foi reformado e passou a ser denominado Teatro Santana, em homenagem ao nome da
mulher do novo proprietário. Em 1905, após trocar novamente de dono, foi reinaugurado com o nome de
Teatro Carlos Gomes, em homenagem ao compositor Carlos Gomes. Em 1929, o teatro sofreu o primeiro de
seus incêndios. O prédio foi, então, reconstruído em estilo art déco. O teatro sofreu novos incêndios em 1950
e 1960.
176
PEREIRA, Rodrigo. PEREIRA, Rodrigo. Análise do espaço e da cultura material no extinto Terreiro
da Gomeia (Duque de Caxias/RJ): um estudo etnoarqueológico. Rio de Janeiro: Museu Nacional da UFRJ,
2019 p. 173.
98
clubes particulares como o Monte Líbano na Lagoa Rodrigo de Freitas, o que revela um
estreitamento com a vida cultural noturna da cidade. Pereira ainda considera que isso
deve ter lhe rendido recursos para fixar residência na Avenida Paris, nº 55 no bairro de
Bonsucesso, Zona Norte do Rio de Janeiro, e acredita que não seria improvável pensar que
ele possa ter utilizado de sua fama de artista para também conseguir fundos para a
construção do seu terreiro. Em 1947, a revista Sombra, informa que o barateamento da
seda possibilitou à Joãozinho da Goméia investir no brilho das indumentárias usadas no
seu terreiro, que lembravam “uma provável influência do carnaval”. O pai de santo é
citado nesta reportagem como inovador, exímio bailarino, inovador e introdutor de
passos novos em seu candomblé. A crítica ao gosto por roupas luxuosas e brilhosas,
que remetiam aos trajes carnavalescos e teatrais, remetia ao discurso de candomblecistas
tradicionais como o olwô Agenor Miranda Rocha, que considerava que Joãozinho havia
transformado o candomblé em teatro e em carnaval principalmente por causa da explosão
de cores e brilhos que revestiam o seu candomblé. Andréa Mendes traz a fala de uma
filha de santo de Joãozinho publicada no Correio da Manhã em 20 de março de 1971,
que ilustra a visão tradicionalista sobre a estética adotada pelo pai de santo em seu
terreiro:
(...) Parecia carnaval, gente. Isso é que os inimigos de Joãozinho da Goméia não
perdoavam. Diziam que ele não trabalhava. Que seu terreiro era só pra turista.
Que ele era bailarino. Que só pensava em mudar de roupa. Que aquilo era show.
de sessenta músicos, sob a direção do maestro Martinez Grau , que compunha óperas,
revistas e trechos populares de grande sucesso. A Associação Brasileira de Auxílio à
177
Esther Leão nasceu em Lisboa, Portugal, em 1892 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1971. Foi
diretora do “Teatro do Estudante” no Brasil. Marcou presença no teatro brasileiro, nos anos 1940 e 1950.
178
Klara Korte instalou no teatro João Caetano a “Escola de bailados Klara Korte” ligada diretamente a
alguns espetáculos, eventos e bailes carnavalescos da cidade.
99
criança era uma das seções pertencentes à Associação mundial afiliada à Cruz Vermelha de
Genebra e tinha como finalidade o cuidado da infância desamparada pelos efeitos da 1ª
Guerra Mundial.
Com o assassinato de judeus em campos de concentração alemães ou nas situações
de bombardeios em massa nas cidades, a instituição atuaria acolhendo crianças que
ficaram sozinhas no mundo, abandonadas à própria sorte. Diferentemente da situação de
calamidade causada pela guerra na Europa, o Brasil vivia outra espécie de desamparo.
Originado pela fome e pela miséria, geradora de doenças infecciosas e pulmonares como
a sífilis e a tuberculose. Com o apoio do ministro da educação Clemente Mariani,
organiza a noite de gala do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com o intuito de recolher
fundos para a campanha de contenção da fome e da miséria de crianças brasileiras, em
situação de pobreza ou de pobreza extrema. A presença de Joãozinho da Goméia se ateve
apenas a criação do conceito coreográfico do que adicionaria elementos folclóricos em
cena.
Figura 31: Reportagem de A Casa, revista do lar, janeiro de 1948; com cena da
coreografia criada por Joãozinho da Goméia para o espetáculo “Uma dança da Bahia:
João da Gomeia e Bravum” a ser apresentado no palco do Teatro Municipal do Rio
de Janeiro. Fonte: BNDigital 181
179
Disponível em :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_05&pasta=ano%20194&pesq=Jo%C3%A3o%
20da%20Gomeia&pagfis=39280
180
De acordo com informações retiradas do site Wikipédia, Henrique Pongetti era filho dos imigrantes
italianos Ruggero Pongetti e Marianna Feltrini. Em 1920 começou a carreira de jornalista, escrevendo
para o jornal Tribuna de Petrópolis. Logo depois foi para o Rio de Janeiro, onde escreveu sua primeira peça
teatral, A Noite Mil e Dois, que foi musicada por Antonio Lago, o pai de Mário Lago. Escreveu para grandes
atores como Procópio Ferreira, Manuel Pêra, Raul Roulien e Jaime Costa, nos anos 1940 e 1950. Foi também
responsável pelos roteiros dos filmes Grito da Mocidade e Favela dos Meus Amores, esse último dirigido por
Humberto Mauro.
181
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=690422&pesq=Jo%C3%A3o%20da%20Gomeia&pas
ta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=10947
101
leitores. As cartas eram entregues em mãos no seu terreiro em Duque de Caxias pelos
jornalistas Ariosto Pinto182 e Batista de Paula. A autora Joselina da Silva 183comenta que o
pai de santo ajudou o jornal a progredir economicamente, considerando que ele houvera
182
Ariosto Pinto é o responsável pela autoria de todas as grandes reportagens sobre Joãozinho da Goméia,
publicada pelo jornal Última Hora. Mas não obtive nenhuma pista sobre o seu paradeiro.
183
SILVA, Joselina da. O negro baiano pai Joãozinho da Goméia: o candomblé de Duque de Caxias na
mídia dos anos cinquenta. Duque de Caxias: Revista Magistro: vol.1, nº1, 2010.
184
DOMINGUES, Petrônio, 2010. p.107
102
fama de Baker passou a representar uma conquista simbólica para os negros atravessados
pela materialização dos danos provocados pela diáspora nas Américas. Para o autor a
imagem de Baker não teria sido muito valorizada por negros e por brancos se a artista não
tivesse conquistado também uma vasta fortuna material. A representatividade de uma
mulher negra como Josephine Baker, que produziu um formato de arte inspirado na sua
ancestralidade, abastecendo a indústria do entretenimento nas primeiras décadas do século
XX, transitando entre a Europa e as Américas, despertava em outras pessoas negras a
possibilidade do progresso financeiro e pessoal. O autor ainda afirma que os brasileiros que
se agenciaram em torno de uma imprensa negra e forjaram imagens positivadas,
descrevendo Baker, como uma mulher talentosa, rica e civilizada, que simbolizava uma
espécie de ícone de “modernidade afro-atlântica”185.
185
DOMINGUES, 2010, p.117.
186
PINTO, L.A. da. O Negro no Rio de Janeiro: relações de raça em uma sociedade de mudança. SP:
Companhia Editora Nacional, 1953.
103
encontramos uma matéria publicada pelo repórter fotográfico Arnaldo Vieira, na revista A
Cena muda187, intitulada Mexicanita e o Babalaô, que constrói a imagem de Joãozinho da
Goméia, com novas tintas, apresentando-o como um artista “legítimo”, embora não
esqueça de identificá-lo como uma liderança religiosa. A revista foi a primeira revista
brasileira focada em assuntos sobre o universo cinematográfico norte-americano, britânico,
escandinavo e brasileiro, dando destaque também para a presença dos artistas nacionais da
rádio e do teatro. Fundada no Rio de Janeiro pela editora Americana, teve sua primeira
edição datada em 31 de março de 1921, e sua última edição em maio de 1955. Foi
categorizada como uma “revista de fã” por estimular a aproximação entre leitores e estrelas
do cinema, publicizando a intimidade de artistas através de um processo de humanização
destas personalidades. A aproximação entre leitores e artistas era feita através do recurso
da “provocação da intimidade” entre artistas e leitores, como se o próprio artista dialogasse
com seu fã. A editora Americana, ciente da necessidade de intensificar a proximidade
entre artistas e fãs, criava periodicamente o Álbum da Cena Muda188no qual, através de
fotografias autografadas por estrelas como Carmen Miranda e as cantoras do rádio
Emilinha Borba e Marlene.
187
A Cena muda de outubro de 1949.
188
Tratava-se de um álbum de gravuras, textos e biografias, com uma rica seleção de conhecidos nomes
nacionais e estrangeiros do cinema, do teatro e da música popular. A seleção foi pautada no critério de
popularidade de artistas de indiscutível prestigio perante o público brasileiro. A revista dava destaquepara
o cinema americano, britânico, escandinavo e brasileiro.
104
Figura 32: Reportagem fotográfica “Mexicanita e o Babalaô” da revista A Scena muda: Eu sei
tudo(Magazine mensal) de 05/07/1949.
Fonte: BNDigital.189
189
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20194&pesq=%22Jo%C3%A3oz
inho%20da%20Gom%C3%A9ia%22&pagfis=51034
105
190
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20194&pesq=%22Jo%C3%A3oz
inho%20da%20Gom%C3%A9ia%22&pagfis=51034
106
O Cassino Copacabana foi o primeiro lugar público a tirar de casa os grã- finos
cariocas e a fixá-los no Rio. Até então, eles só dançavam e se divertiam entre si,
nos salões de seus palácios em Botafogo ou Laranjeiras, e passavam seis meses
por ano na Europa. Os Cassinos, ao misturar a alta sociedade com os ministros
de Estado, os políticos, o corpo diplomático, os grandes empresários, as
celebridades internacionais, as prostitutas de alto bordo e os velhos e novos ricos
europeus e argentinos, consolidaram a vocação internacional da cidade. Para que
viajar se estavam todos aqui? Em certo momento de 1936, por exemplo, o Rio
recebia o maestro Stravinski, o automobilista Pintacuda, o escritor Stefan Zweig,
o estadista americano Cordell Hull- cada qual um expoente em seu ramo-, e
todos hospedados no Copa. Classe, charme, savoir-faire. (CASTRO, 2005.
p.138.)
191
SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. IN: História da Vida privada
no Brasil. In: História da vida privada no Brasil 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras; 1998 p. 609-10.
107
do Brasil em relação aos Estados Unidos da América. Esta mentalidade que construiu a
identidade da cidade do Rio de Janeiro como “paraíso das oportunidades”, associada a
concepção nacionalista/desenvolvimentista do Governo Vargas, contribuiu para atrair
correntes migratórias de nordestinos, que viam a possibilidade de conquistar um lugar no
mercado de trabalho e melhorar o padrão de vida:
O segundo governo Vargas (1951-1954) ficou marcado pela sua face democrática e
nacionalista, defendendo o desenvolvimento da industrialização, com a proposta de criação de
um sistema econômico autônomo, independente do sistema capitalista internacional,
desempenhando papel importante como regulador da economia e investidor de áreas estratégicas
como petróleo, siderurgia, transportes, comunicações193. O governo de caráter nacionalista impunha
restrições a estreitamentos com o capital estrangeiro, o que poderia fragilizar a soberania nacional.
De acordo com Boris Fausto, era preciso que no quadro das relações internacionais houvesse um
necessário distanciamento em relação aos Estados Unidos. Os opositores acreditavam que o Brasil
precisava se alinhar irrestritamente com os americanos no combate ao comunismo. Houve a
promoção de inúmeras medidas destinadas ao incentivo do desenvolvimento econômico com
ênfase na industrialização. Foi este cenário que o presidente Getúlio Vargas encontrou a partir das
eleições de 1950. Em busca de ajuda norte-americana ao desenvolvimentismo político-econômico
brasileiro, o Brasil ofereceria um maior alinhamento a Washington. Com um cenário totalmente
diferente da primeira gestão presidencial de Vargas, a projeção do Brasil no cenário internacional
não foi mais a mesma. Os interesses estratégicos americanos precisariam ser assegurados e
protegidos. As expectativas eram positivas no início do governo Vargas, em detrimento ao um
estreitamento com Washington e um possível incentivo à promoção do desenvolvimento
econômico do Brasil.
192
Disponível em: https://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0710768_10_cap_03.pdf
193
FAUSTO, Boris. História do Brasil. Editora da USP, 2013. p. 449.
108
194
Uma revista de Arte que era um apêndice do jornal O Globo, pertencente ao jornalista Roberto
Marinho.
195
Revista O Cruzeiro, julho de 1952.
196
Última Hora, de 7 de julho de 1952
109
Num pequeno terreiro, que podia ser apreciado das varandas, janelas, corredores,
e sacadas que formam o páteo interno da mansão, a turma de João da Goméa fez
a sua batucada e apresentou os seus passistas típicos. Tudo isso com um
“éclairage”197 magnífico, tendo como “background” toda uma pequena floresta
natural de plantas tropicais de palmeiras, folhagens e orquídeas. Evidentemente
os Wynans não poderiam ter mostrado aos Acheson uma casa com cenas mais
típicas da tradição nacional. Na ponta de uma varanda, como num camarote, a
Sra. D. Darcy Vargas em companhia de amigos, assistia ao desenrolar do
batuque. Apreciando as lindas mudanças de quadros estavam o senhor e senhora
Ricardo Jaffet; Senador Arthur Bernardes Filho e Senhora, recebendo os
cumprimentos pelo discurso de recepção a Acheson no Senado; e Maria e
Aluysio Spindola de Castro que foram buscar Joãozinho da Goméia para
apresentar a dona Darcy Vargas, que se mostrou aliás curiosa para ver de perto as
cerimônias da especialidade de Joãozinho. Edgard Rocha Miranda comentava a
surpresa que aguardavam: Luz Del Fuego! E ela de fato apareceu quase nua com
um verme, mostrando as cobras e o resto. Houve grande curiosidade! Luz Del
Fuego subiu para a grande biblioteca e as galerias do segundo ‘deck’ ficaram
apinhadas. A filha de Yemanjá que apareceu envolta numa família de sucuris não
quis dançar ao relento com receio de que as serpentesinhas de sua estimação se
resfriassem.198
197
Iluminação em francês
198
Última Hora, de 7 de julho de 1952
110
Figura 34: A reportagem fotográfica da revista Rio publicada 05/07/ 1952 é sobre uma recepção no Largo do
Boticário. A montagem acima exibe momentos onde os aspectos folclóricos e exóticos estiveram em destaque
como a apresentação do espetáculo de candomblé dirigido por Joãozinho da Goméia, e a apresentação da
dançarina naturalista Luz Del Fuego. Este era o conceito de produto cultural nacional. Fonte: Fonte: BNDigital
199
199
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=146854&pesq=%22Acheson%22&pasta=ano%20195
&hf=memoria.bn.br&pagfis=9950
111
200
O governo de Getúlio desde 1930 incentivava o funcionamento dos cassinos, e dos ambientes noturnos
onde houvesse a presença de espetáculos musicais, com apresentações de cantores e de dançarinas. Já a partir
de 1946, quando o então presidente Eurico Gaspar Dutra, o primeiro presidente com voto popular após o
Estado Novo, condenou tanto a jogatina quanto as diversões noturnas nos cassinos da cidade por um apelo
moralista, como fora divulgado na imprensa. Com a política da Boa vizinhança (1942) foram enviados ao
Brasil diretores, atores, músicos e empresários que promoveram o American way of life, que incentivou o
brasileiro a consumir a ideologia consumista norte-americana, e, por conseguinte colonizar as mentes de
brasileiros que de forma indireta impulsionaria a máquina financeira dos Estados Unidos, consumindo seus
produtos importados. É neste período que bailarinas e artistas brasileiros são contratados pela Metro e
ascendem meteoricamente no mercado fonográfico brasileiro.
112
república com suas esposas e filhas. No período em que o Cassino da Urca tornara-se
um importante referencial de entretenimento noturno em uma cidade que a elite se
divertia dançando e festejando, lugares como o Jockey-Club na Gávea, com suas corridas
de cavalo, oferecia oportunidade para brasileiros e estrangeiros se inserirem socialmente
através do acesso a novas possibilidades de fazer bons negócios. Ou seja, estes lugares
eram além de espaços de diversão, lugares de realização de novos contratos e de novas
parcerias profissionais. O que nos remete ao terreiro da Goméia que também cumpria
esta função. O termo “café-soçaite”, por exemplo, surge nos anos1950, associado a lugares
de diversão noturna, frequentado por políticos, celebridades e grã-finos.
Os autores Leo Feijó e Marcus Vagner201 consideram que não era tarefa fácil
para os cassinos ganhar esse público, por haver uma resistência natural a confiar na
transparência fiscal desses locais de grandes apostas e de fazedores de magnatas.
Diferentemente da confiança depositada no terreiro de Joãozinho, que não prometia nada,
mas deixava subentendido no ar.
201
FEIJÓ, Leo & WAGNER, Marcus. Rio cultura da noite: uma história da noite carioca. RJ: Casa das
palavras, 2014.p.146.
202
De acordo com informações do site Wikipédia, Dora Vivacqua, nascida no Espírito Santo, pertencia a uma
família de intelectuais e políticos, que frequentava reuniões literárias com a presença de personalidades do
modernismo brasileiro. Com formação acadêmica em Ciências e Letras, optou por seguir a carreira artística
em meados de 1942. Amestrou serpentes e, dois anos mais tarde, estreou-nos teatros de revista do Rio de
Janeiro sob o pseudônimo Luz Del Fuego, que se tornou em um dos grandes nomes do teatro nacional da sua
época. Embora fosse considerada como uma afronta a “moral e aos bons costumes” tornou-se uma das
vedetes mais importantes dos anos de 1950 no Brasil. A sua presença passou a ser requisitada em
apresentações no exterior, onde as suas apresentações eram vistas como modernas assim como as de
Josephine Baker. O diferencial estava no exotismo da presença das serpentes. Em fins dos anos de 1940, seu
corpo adquiriu status político a serviço dos direitos da mulher. A sua identidade feminista combateu o
preconceito social contra as mulheres e pela liberdade de expressão. Luz Del Fuego foi uma personagem da
cultura popular carioca do século XX, que precisa ser urgentemente redescoberta, por oferecer inúmeras
possibilidades de diálogo com o campo de estudos das ciências humanas e sociais.
203
Diário da Noite 1 de fevereiro de 1950 e 12 de fevereiro de 1950. Este jornal a partir do carnaval de 1950
investe no termo exótico para destacar a presença de Luz Del Fuego que se torna um dos ícones da cultura
113
A presença da cultura negra nos palcos durante os anos de 1920 e 1930, apesar
dos setores mais conservadores que alardeavam a falência da civilização e dos
bons costumes, trafegou entre os modismos acionados pelas novas jazz bands,
a influência das revues nègres e suas coristas negras, aqui chamadas de Black
girls., além do aparecimento das danças americanas que associavam a imagem
do exotismo à modernidade e suas novas demandas de consumo e
entretenimento. Aos poucos foi sendo pressionada por uma demanda política que
clamava pela pureza e autenticidade das nossas manifestações artísticas. O
próprio Pixinguinha que tocou em Paris com sua jazz band Oito batutas e
orquestrava os números musicais da Companhia Negra de Revistas também foi
informante de Mário de Andrade sobre os batuques nos terreiros de candomblé, e
frequentava, com os compositores Donga, Sinhô, João da Baiana e Heitor dos
Prazeres as festasda Tia Ciata.204
Para refletir sobre esse associativismo negro que reunia sujeitos em torno da
problemática negra, surge em 1952, a “Associação mundial para defesa do negro” que é
criada no México para defender os direitos das pessoas de cor, eliminando a discriminação
e propondo um diálogo “harmonioso” entre brancos e negros. Uma associação que
nomeara a dançarina afro-americana Josephine Baker para ser sua porta voz na luta contra
a discriminação racial. Objetivava também a luta pelo desaparecimento das diferenças
popular carioca. Trarei a sua presença no Capítulo 3, quando tratar dos carnavais de 1950 e 1960, nos quais
Joãozinho da Goméia estava inserido.
204
FERRAZ, 2012. p.89.
114
entre negros e brancos, assim como a realização dos ideais de fraternidade universal. A
associação também pretendia criar agências raciais em prol da libertação do negro nos
Estados Unidos, na América Central, América Latina e Europa.205 Neste contexto de
criação de núcleos de articulações raciais, criados em prol da luta contra a discriminação
racial e o preconceito social, que pensam na inserção do negro na sociedade e no seu
reconhecimento, como indivíduo portador de um instinto criativo e de força de trabalho,
encontramos o intelectual negro Abdias do Nascimento, que com a criação do Teatro
Experimental do Negro206 objetivava valorizar socialmente o negro no Brasil. Através de
um projeto que proporcionava acesso a essas pessoas por meio da arte, da cultura e da
educação.
O que moveu a criação do TEN havia sido a constatação de que o negro não
possuía um lugar digno nas produções teatrais, quando o negro ocupava um espaço no
palco de um teatro, ou era por meio da personificação depreciativa, ou da presença apenas
física, ocupando o mesmo espaço cênico que uma mesinha de canto de sala ou uma cadeira
vazia. Os papéis destinados a pessoas negras em palcos de teatro muitas vezes eram
pensados para pessoas brancas com as faces pintadas de tinta preta. O espaço cênico
do negro muitas vezes reafirmavam estereótipos que só reforçavam a mentalidade
projetada pelo racismo.
205
Diário da Noite, 3 de agosto de 1952.
206
Para saber mais sobre a atuação do Teatro Experimental do Negro, ver: a dissertação de mestrado Teatro
Experimental do negro: estratégia e ação, defendida pela mestra em sociologia da Universidade Estadual de
Campinas; o artigo Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões de Abdias do Nascimento, publicado
pela revista Estudos Avançados em 2004 e o livro O Negro Revoltado, apresentado e organizado por Abdias
do Nascimento que traz suas reflexões sobre a criação e a engrenagem que movia a existência e a resistência
do TEN, assim como traz considerações suas e de outros autores sobre o I Congresso do Negro ocorrido em
1950.
207
Disponível em: www.palmares.gov.br/?p=40275.
115
208
MOURA, CLÓVIS. Brasil: Raízes do protesto negro. Série Passado & Presente – São Paulo: Global
editora – 1983.
116
209
Disponível em: https://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento
210
Disponível em: www.palmares.gov.br/?p=40275
211
NASCIMENTO, Abdias. O Negro revoltado. RJ: Editora Nova Fronteira, p. 15.
118
como “o micróbio sob o olho do microscópio” 212. De acordo com Abdias, o certame havia
contado com a participação ativa do povo de santo, que produziu o seu próprio discurso
sobre o candomblé, no entanto, precisou das mediações de inúmeros intelectuais que
debatiam o negro, sua cultura e sua religiosidade; a presença de alguns textos que
ressaltavam o aspecto folclórico da cultura negra, e da própria atuação do negro em seus
locais de representação identitária. Abdias do Nascimento, em seu livro O Negro
revoltado213, menciona que o congresso do negro brasileiro se destacou por discutir ideias
que ansiavam por um Brasil mais inclusivo, sem interferência de cientistas que
dominassem os sentidos do evento. Houve críticas veementes sobre o domínio intelectual
sobre as pautas propostas sobre os negros brasileiros:
(...) tudo leva a crer que esses aventureiros têm propósitos de achincalhar o negro
e permanecerem na sua costumeira posição de senhores. Essa industrialização
dos estudos afro-brasileiros e relações de raças é uma atividade muito rendosa,
não só no âmbito econômico-financeiro, como também na ascensão dos
estudiosos que se tornam donos do problema do negro e se lançam numa
aventura perniciosa, afirmando, erroneamente, queo negro tem tais complexos,
tais e tais comportamentos, e reagem desta ou daquela forma. Andou
manuseando as atas e teses discutidas no Congresso, tirando ali algo para as suas
presunçosas e impostoras alegações. É tão capcioso esse pseudocientista que tem
a desfaçatez de afirmar estar dando um aspecto novo aos estudos do negro no
Rio de Janeiro. É realmente uma forma usurpadora e medíocre de se aproveitar
do trabalho alheio. Os cientistas e estudiosos tem procurado transformar nosso
trabalho em arapuca ideológica.
212
Para Abdias do Nascimento, os congressos nordestinos enfocaram a imagem de negros coisificados,
estáticos, imóveis e estranhos à dinâmica da sociedade brasileira.
213
Idem.
214
NASCIMENTO, 1982, p. 48.
215
O olhar preconceituoso de Edison Carneiro em relação a Joãozinho da Goméia foi abordado no capítulo 1,
no qual se encontra presente na escrita do livro Cidade das Mulheres da antropóloga norte- americana Ruth
Landes.
216
Sugiro que esta animosidade de Edison Carneiro, pautada em uma arrogância intelectual precisa ser
pesquisada por estudiosos que estejam atentos ao debate das relações raciais entre 1930 e 1960. Edison
119
(...) pior do que Nina foi Manoel Querino, que nem sabia dessas divisões dos
negros da África. Ele foi noticiando o que via em torno de si, com a falta de
inteligência que sempre o caracterizou sem indagar nada, mas tentando
explicações pueris para os casos observados. De maneira que a gente, hoje,
apenas pôde utilizar o material eterno por ele trazido à etnografia e à psicologia
social do afro-brasileiro, reinterpretando tudo à luz dos novos
conhecimentos, atuais, sobre o continente africano. 217
Carneiro pertence a uma família de intelectuais baianos. Filho de Souza Carneiro, autor do interessante livro
Os mitos africanos no Brasil publicado em 1937 pela editora Companhia editora Nacional, em São Paulo, Rio
de Janeiro e Recife, se destaca como um interessado pela geografia, biologia e pelo folclore brasileiro com
alguns títulos editoriais publicados entre 1905 e 1934. Destaco também que Souza Carneiro era um
incansável folclorista, e a obra citada, traz uma pesquisa muito aprofundada sobre mitos afro-negros, e mitos
indígenas.
217
CARNEIRO, 1981, p. 128.
218
SILVA, Júlio Claudio. O dito e o não dito sobre a dimensão política do Teatro Experimental do Negro nas
memórias de Ruth de Souza (1940-1950). IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros.
Organização de Martha Abreu, Giovanna Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 228.
219
Atuou nos anos 1930 na Frente Negra Pernambucana, e posteriormente no Centro de Cultura Afro-
brasileiro fundado no Recife em 24 de março de 1936. Em 1942, passou a atuar na Capital Federal onde deu
continuidade à sua militância social e política com a sua inserção no Partido Comunista Brasileiro. Assistiu o
nascimento do Teatro Experimental do Negro, em um momento da sua militância que estava preocupado com
produções poéticas que reflexionavam a luta da classe operária.
120
por ser um dos primeiros pensadores negros brasileiros, a refletir artisticamente sobre a
cultura popular. Através da autodeclaração como artista popular e folclorista, lutou pelo
reconhecimento de inúmeros artistas autodidatas, construindo um trabalho em torno da arte
e do folclore, o que resultou na projeção da cidade metropolitana paulista de Embu das
Artes, como núcleo da cultura negra 220.
A fundação do Teatro Popular Brasileiro se deu em 1950, no Rio de Janeiro,
com o auxílio do folclorista Edison Carneiro e da sua esposa Margarida Trindade. O
projeto teatral de Solano, Edison e Margarida assumiu uma personalidade folclórica,
direcionada para as preocupações da Comissão Nacional de Folclore, atuando como um
dos elos do movimento de revitalização da atuação do Folclore, incentivando as atividades
folclóricas, e despertando o interesse pelo campo de estudo, e pelas expressões culturais
negras.
Alguns ensaios do Teatro Popular Brasileiro aconteciam na residência de Solano
Trindade em Duque de Caxias, onde eram organizados eventos visando angariar recursos
para o financiamento dos espetáculos, eram apresentados autos dramáticos, pantomimas,
danças e cantos do populário brasileiro 221. Suas encenações priorizavam o “patrimônio
cultural negro”, como bumba meu boi, maracatu, candomblé, pregões, tipos populares do
Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, frevo, caboclinhas, pastoril e outros222. Registrado no
Serviço Nacional de Teatro, o Teatro Popular Brasileiro, funcionou nas dependências do
próprio instituto, até 1957, quando se transferiu paraSão Paulo.
O que há de comum nas trajetórias de Abdias do Nascimento, de Ruth de Souza,
Grande Otelo, Solano Trindade? Além da luta contra a discriminação possibilitada pela
ideia conceituada de associativismo cultural e negro?223 Claro, que as perspectivas
analíticas de Paul Gilroy postas em seu livro O Atlântico Negro servem para responder a
esta questão, que talvez possa ser compreendida através do conceito de “terror racial”224,
criado pelo sistema colonialista, que produziu formatos de expressões corporais distintivas
220
GREGÓRIO, Maria do Carmo. A trajetória de Francisco Solano Trindade e o Teatro PopularBrasileiro. .
IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros. Organização de Martha Abreu, Giovanna
Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 244.
221
Idem
222
SOLANO Trindade no Folies. Diário Carioca, 19 de agosto, de 1952. Disponível em
http://www.museudofolclore.com.br. IN: GREGÓRIO, Maria do Carmo. A trajetória de Francisco Solano
Trindade e o Teatro Popular Brasileiro. . IN: Cultura negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros.
Organização de Martha Abreu, Giovana Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. Niterói: Eduff, 2018. P. 254.
223
Sobre Associativismo Negro ver: DOMINGUES, Petrônio. Cidadania por um fio: o associativismo negro
no Rio de Janeiro (1888-1930). São Paulo: Revista Brasileira de História. V.34, nº67, 2014.
224
GILROY, Paul, p. 160.
121
225
Idem
226
Disponível em: https://papjerimum.blogspot.com/2013/02/bate-bate-de-maracuja-sabor-saudade.html
227
Diário da Noite de 20 de agosto de 1952.
122
Figura 35: A reportagem do jornal Última Hora de 08/09/1954. A reportagem trata do episódio em que um
terreiro de candomblé em Duque de Caxias se transformou em palco de teatro. Como Joãozinho da Goméia
era amigo de Solano, e a arte do folclorista se desenvolvia a partir de Duque de Caxias, acreditamos que este
espetáculo teatral tenha acontecido no terreiro da Goméia. .228 Fonte: BNDigital. 229
Elizabeth Gama230 chama atenção para apresenta algumas inovações criadas por
Joãozinho para os dias de festa religiosa, que são estranhas aos candomblés tradicionais, e
remontam os tempos de marginalização do pai de santo em Salvador, como a presença de
garçons servindo champagne para a alta sociedade, o que fortalece o nosso entendimento
acerca das estratégias criadas por Joãozinho para ascender socialmente, e obter para si, e
para sua comunidade religiosa, benefícios e privilégios da classe política, artística e até de
altos funcionários públicos, que eram procurados para ajudar osprotegidos do pai de santo.
Encontramos uma série de reportagens do jornal Última Hora231, produzida pelo
228
Léa Freitas Perez considera que o centro do barracão sempre se transforma em um palco de dança, quando
os filhos de santo dançam em círculo, em instantes de possessão espiritual. Ver em: AMARAL, Leila,
FREITAS, Léa, MESQUITA, Wania (org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro:
Garamond, 2012, p.146.
229
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Teatro%20Po
pular%20Brasileiro%22&pagfis=20477
230
GAMA, Elizabeth Castellano, p.129.
231
Ultima Hora, em 22 de novembro de 1951.
123
jornalista Ariosto Pinto e o ator Grande Otelo 232. Trata-se de uma autodeclaração pública de
filiação religiosa ao local, costurada por narrativas afetivas sobre a bisavó africana de
Grande Otelo, que havia fechado seu corpo ao nascer.
Suas memórias são atualizadas quando relembra de uma visita feita à Goméia baiana em
companhia da amiga Carmen Costa233. Nesta ocasião, foi informado por Joãozinho que precisava
ser feito no candomblé, apesar da sua ligação com a Umbanda, e no dia 12 de outubro, que era
dedicado ao culto aos erês, se deu a sua feitura pelas mãos de Joãozinho da Goméia, antes da sua
transferência para Duque de Caxias. Grande Otelo relembra que a sua alimentação na camarinha
era ofertada pelas mãos dos erês que estavam soltos pelo terreiro. 234
Figura 36: A reportagem do jornal Última Hora de 17/10/1951. A reportagem trata de uma
autodeclaração pública feita pelo ator Grande Otelo sobre seu nascimento religioso dentro do
terreiro da Goméia em Salvador. Fonte: BNDigital. .235
232
Grande Otelo teve uma trajetória de sucesso como artista de cassinos cariocas, do Teatro de Revista, da
Companhia negra de Revistas, das chanchadas da Atlântida, do teatro negro militante, do Cinema Novo do
cineasta Glauber Rocha e do Cinema Marginal do diretor Joaquim Pedro de Andrade. Ver: HIRANO, Luis
Felipe Kojima. Uma interpretação do cinema brasileiro através de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em
sua performance cinematográfica (1917-1993). SP: Tese de Doutorado em história pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2013.
233
O que é interessante é o fato da cantora negra Carmen Costa ter tido a sua vida modificada após esta visita
à Goméia. Em 1945, casou-se com o norte-americano Hans Van Koehler e foi viver com ele nos
Estados Unidos. Passou uma temporada em Los Angeles e, em Nova York, esteve no concerto histórico no
Carnegie Hall, que marcou a bossa nova nos Estados Unidos, em 1962.
234
A ligação espiritual de Grande Otelo com a Goméia é narrada pelo ator, que exalta seu pai de santo,
atraindo para ele status e prestigio.
235
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Grande%20Ot
elo%22&pagfis=3160
124
236
MELGAÇO, Paulo Baptista. Mercedes Baptista- a criação da identidade negra na dança. SP: Fundação
Palmares, 2007. p.33.
237
SANTOS, Emilena Sousa dos. Interpretes da dança de expressão negra: contextos da arte de estar em
cena. Viçosa: Revista de Ciências Humanas de Viçosa, v.14, n.1, 2014. p.61.
125
Solano Trindade e Grande Otelo no dia 27 de junho de 1950238, em um grande salão da rua
da Constituição, para apresentação de uma batucada seguida de danças típicas brasileiras
como o maracatu, frevo e outras danças nordestinas. Na presença do pai de santo e
bailarino folclórico Didi de Freitas 239, foram apresentadas danças do candomblé. Solano
Trindade declamou poemas de sua autoria e Ruth de Souza declamou o poema “Nêga
Fulô” do poeta alagoano Jorge de Lima. Ao final da homenagem, todos seguiram para o
terreiro de candomblé de Didi de Freitas localizado em Vilar dos Teles, em São João de
Meriti, Baixada Fluminense.
Em razão do intercâmbio cultural proporcionado pelo concurso de danças proposto
por Katherine Dunhan, o autor Paulo Baptista Melgaço, menciona que no final das
audições para escolha do candidato a bolsa de estudos em Nova Iorque, Abdias,
influenciou na escolha da bailarina Mercedes Baptista, candidata a vaga. Mercedes, em
1950, construiu algumas aproximações com as bases do Movimento Negro Brasileiro,
estabelecendo conexões com diversos núcleos de associativismo e de reivindicação racial,
como o Teatro Experimental do Negro, por exemplo. Mercedes também era parte do corpo
de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo a única mulher negra a ser
incorporada na Instituição, só que sem receber o devido valor, o que é solucionado de
imediato por Abdias com uma única canetada, o que garante a Mercedes, não apenas a
obtenção da licença para ingressar na “Dunham School of Dance”, em 1950, como a
aumentar a sua rede de relações sociais e obter desses diálogos com intelectuais e
artistas afro-americanos que não apenas enriqueciam, o seu aprendizado coreográfico
como as suas reflexões sobre sua condição social feminina no circuito afro-atlântico.
Abdias do Nascimento ao incentivar a ida de Mercedes para os Estados Unidos sabia que
se tratava de um investimento em curto prazo. Sabia que ela se transformaria em um
potente símbolo de representatividade, não apenas para a luta antirracista no Brasil, mas
como se tornaria em um espelho para o povo negro brasileiro, que encontraria nela um
ponto de partida para o enriquecimento intelectual, através de processos como a
alfabetização e a instrumentalização política e cultural:
238
Diário da Noite, 6 de julho de 1950.
239
Não localizamos fora da imprensa outras referências sobre o pai de santo Didi de Freitas. Mas no jornal
Correio da Manhã de 15 de fevereiro de 1950, aparece uma menção ao religioso relacionado ao Teatro
Folclórico Brasileiro, por ocasião de uma participação em um dos espetáculos do grupo teatral. O pai de santo
apresentou-se com dois filhos de santo no Teatro Rival.
126
240
MENDES, Andréa. p. 21
241
Mercedes Baptista, desde 1940, estava envolvida com a instrumentalização de mulheres negras vindas das
classes populares através de movimentos como o da criação do Conselho de Mulheres Negrasfundado
no dia 18 de maio de 1950. Um lugar de atuação da militância feminista do TEN, que abrigaria as demandas
e reivindicações das Empregadas Domésticas, formando a primeira Academia de Artes Domésticas do país,
que se encarregaria em instrumentalizar profissionalmente essas mulheres atravésdos cursos de capacitação
em que aprenderiam do corte e costura ao tricô e bordados. Mesmo que as duas tenham inserido a presença de
alunos negros originários de terreiros de candomblé nas recentes criadas escolas de dança, a identidade
estética se distinguiria, assim como o público que atingiria e a arte que seria criada ali.
127
242
Disponível em: file:///C:/Users/Particular/Downloads/54835-203943-1-PB%20(2).pdf
128
243
Disponível em: https://spiritosanto.wordpress.com/2012/02/03/mercedes-batista-assim-dancou-a-
desconstrucao-da-modernidade-na-danca-afro-do-brasil/
244
PEREIRA, Roberto, p.46.
129
projeto nacionalista do Estado Novo. Um movimento que contribuiu com a projeção não
apenas do terreiro da Goméia, mas de outros245.
245
Do terreiro da Goméia saíram muitos filhos de santo que eram especialistas em dança afro-brasileira, no
corpo de ballet de Mercedes Baptista se destacaram a passista Paula do Salgueiro, que fazia parte do Teatro
Folclórico Brasileiro; João Elísio, Paulo Conceição e Valdir Conceição, que se integraram ao Balé
Folclórico Mercedes Batista.
246
PEREIRA, Roberto, p.84.
247
PEREIRA, Roberto Augusto A. Teatro Folclórico Brasileiro/Brasiliana: Teatro Negro e Identidade
Nacional. RJ: Revista Transversos, n.20, 2020. p. 2.
248
A responsável pela reportagem “Do terreiro ao teatro” Olga Brodsky-Obry, nascida em Kiev, em uma
família judaica de industriais e filantropos. Chegou ao Rio de Janeiro em 14 de fevereiro de 1941, onde foi
contratada pela revista Vamos Ler! Anunciada no jornal A Noite. Destaca pelo pertencimento originário a
imprensa francesa e belga, seu trabalho ficou restrito as publicações que retratavam o universo da alta
sociedade carioca, e por isso se dedicou a produzir matérias sobre moda, beleza, e a escrever artigos para
revistas de arte, teatro, e dança clássica. Engajou-se em 1947 no movimento para a criação da Escola
Nacional de Teatro com a participação de artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros exilados. Fundou a
sociedade de Marionetistas em 1948, sendo muito importante para os rumos do cenário teatral do Recife e de
Minas Gerais onde produziu junto a imprensa mineira diversos artigos com crítica teatral. Aventurou-se pelo
Brasil com sentido de descoberta de novos cenários culturais até retornar para a Europa em 1952. Para saber
mais sobre Olga Obry, ver o artigo: “Eva continua vencendo...”: intelectuaiseuropeias no Brasil em tempos de
totalitarismos. Revista Del CESLA, núm. 21, pp. 145-168, 2018. Uniwersytet Warszawski
249
A trajetória de Joãozinho da Goméia a partir daqui assume outra vertente. Nunca saberemos se ele leu esta
reportagem. Sentiu-se provocado por ela, ou se ela despertou a curiosidade de empresários e demais artistas
130
de teatro. Só que após a publicação da revista A Casa, o pai de santo passa a ocupar os palcos de teatros muito
famosos entre Rio de Janeiro e São Paulo, a partir de 1953.
250
Revista A Casa, de maio de 1951.
251
A historiadora Marina de Mello e Souza, em seu livro Reis negros no Brasil escravista: história da Festa
de Coroação de Rei Congo chama atenção para os estudos de Mello Moraes e Câmara Cascudo sobre as
danças conhecidas como congos ou cucumbis, nos quais são representados canto e dança ao som de
instrumentos de origem africana. “cucumbis, Congadas no Sul, Congos no norte do Brasil são autos populares
negros, somas de danças, episódios, desirmanados, convergidos, meio arbitrariamente para um só enredo.”
IN: Moraes Filho. Festas e tradições populares do Brasil. p. 177.
252
MELGAÇO, 2007, p.43.
131
253
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=084859&pasta=ano%20195&pesq=Jo%C3%A3o%20d
a%20Gom%C3%A9ia&pagfis=57331
132
254
O texto foi escrito em 1930 retratando a sociedade paraense, mas foi adaptado para retratar a sociedade
carioca dos anos de 1950. A imprensa considera um texto fraco e amador, desconsiderando que apesar de
Fernando de Castro não ser um autor conhecido e experiente com o gênero das revistas, era um autor teatral
de origem paraense.
255
Juliana nasceu em Viena, Áustria em 1923, e foi registrada como búlgara, se radicando poucos meses
depois em Paris. Voltou ao Brasil aos 16 anos, em 1939 com a Opera Cômica de Paris, que havia sido
convidada para uma temporada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro
256
A referência à composição do elenco aparece em várias notinhas de jornais que divulgam a estreia da peça,
e também na própria divulgação.
257
ALMEIDA, Paulo Roberto de. A presença negra no Teatro de Revista dos anos 1920. Niterói:
Dissertação de Mestrado em História social, 2016.
133
no Teatro Ginásio, a primeira Revista brasileira, “As surpresas do Senhor José da Piedade”
de Figueiredo Novais. Após algumas tentativas de retorno do gênero, em 1880, o Teatro
de Revista, retornou ganhando espaço entre o grande público, pois apresentavam eram
obras que se pretendiam populares por falar a linguagem do povo e seguir o fluxo das
transformações que aconteciam na cidade. Como grande parte da população era ainda
composta de pessoas analfabetas, o gênero informações sobre a realidade se vivia na
cidade satirizando a classe política e também a elite carioca, que tinham como núcleos de
entretenimento: o Teatro municipal, o Jockey Club, etc. A plateia pagante tinha ali no
palco um espelho da modernidade urbana e cultural. Os elementos populares pertencentes
às ruas e ao cotidiano da cidade eram retratados no palco com a criação dos tipos sociais
que as revistas traziam. Era uma narrativa que transcorria em formato ágil, ligeiro e que
encontrou na Praça Tiradentes um espaço privilegiado de existência, por ser um “polo
irradiador da arte teatral carioca, desde a inauguração do Teatro São João, atual João
Caetano, em 1813, até a segunda metade do século XIX”. Os espectadores da revista eram
moradores do centro urbano, imersos em um ambiente transformador, que tendia a
representar a cidade do Rio de Janeiro, como cidade maravilhosa e civilizada. Entre os
anos de 1920 e 1930, a cidade deixou de ser o grande personagem para que os
personagens-tipo como: malandro, mulata, político corrupto, e o português, se tornassem
componentes importantes da fórmula do gênero. Elementos das tradições populares,
assim como a presença de pessoas negras a partir dos anos de 1920, se tornaram
representações alegóricas da nacionalidade.
A contratação de Joãozinho da Goméia258 se deu no dia da estreia quando viera a
substituir os membros do Teatro Experimental do Negro, que justificaram conflito de
interesses quanto ao roteiro, a intenção e o alcance da montagem teatral259. O interesse pela
contratação260 de Joãozinho da Goméia pode ter se dado por diversos motivos: ocupar o
lugar deixado vago pelos integrantes do TEN; a amizade que o pai de santo tinha com a
atriz Ângela Maria, uma das principais estrelas da montagem, ou como sugerem os autores
258
Chamo atenção para o destaque dado ao nome de Joãozinho da Goméia. um destaque que emerge dentre
tantos nomes já muito famosos como o de João Villaret, Ângela Maria e Araci Cortes. O que aponta para uma
consagração artística que passa a ser destaca com mais ênfase na mídia a partir desta montagem.
259
A Noite, 30 de outubro de 1953.
260
Não encontramos nenhuma fonte que tenha atualizado os dados sobre a presença negra no teatro de revista
dos anos de 1950, o que seria fundamental para que se consiga entender as presenças do ator Lord Chevallier
e do próprio Joãozinho da Goméia. A rejeição dos membros do Teatro Experimental do Negro, que alegaram
conflito de interesses e o afastamento de Joãozinho pode dar dicas sobre a presença de pessoas negras no
teatro de revista a partir da formação de companhias negras de teatro. O debate sobre o papel do negro no
teatro e sobre os usos da sua imagem e dos seus símbolos identitários, nos aponta caminhos interessantes para
compreensão desta problemática.
134
Gabriel Haddad Gomes Porto, Leonardo Augusto Bora e Vinicius Natal, o contrato com a
produção revisteira talvez tenha sido possibilitado por mediação do produtor Walter
Pinto261.
Rodrigo Faour262, autor da biografia sobre Ângela Maria, relata que a cantora era
conhecida como uma artista que “tudo que botava a mão virava ouro”, o que lhe rendia
inúmeros convites para se apresentar nas elegantes boates de Copacabana, em filmes
musicados e nas revistas mais famosas da cidade. No ano de 1953, recusou convites
para atuar nas revistas, Tá na cara protagonizada por Dercy Gonçalves, Joana D’arc,
Jamime Costa e Diana Morel, encenada no Teatro João Caetano; e na revista Feitiço da
Vila com Elizeth Cardoso, Silvio Caldas, Grande Otelo e Black-Out no Casablanca.
Nessa época, Ângela fazia uma pequena turnê de três dias em Salvador, onde
estreitou contato com elementos da cultura afro-baiana como a culinária, o candomblé e a
musicalidade do seu parceiro nos palcos, o compositor baiano Dorival Caymmi. Aliás, a
Bahia estava em alta, o diretor dos shows da boate Casa Blanca, Carlos Machado,
comemorava os altos índices de sucesso do seu espetáculo “Acontece que sou baiano”, um
espetáculo de variedades considerado pelo jornal Ultima Hora de 30 de agosto de 1953,
como o melhor espetáculo daquele ano. Um espetáculo que alcançou o status de
documentário musical sobre a “Bahia de ontem, de hoje com seus usos e costumes, lendas,
figuras históricas e tipos pitorescos em geral” 263:
O elenco era composto por Dorival Caymmi, Ângela Maria, Mary Gonçalves,
Paulo Mauricio, o grupo Quitandinha, Serenaders que incluía o ainda
desconhecido violinista João Gilberto, em início de carreira, vestido de
pescador juntamente com os demais companheiros do conjunto), a atriz
Terezinha Austregésilo, além do Paulo Mauricio (o “Castro Alves
cinematográfico”), Lord Chevalier, Eduardo Carijó, Jaime Storino, a vedete
Anilza Leoni e mais as girls Pina Brunette, Jurema Sâmio, Yelle Bittencourt,
Lili Marlene, Fernanda Villamayor, Rene Toso Wells, Dora Montel, Núcia
Miranda e Suzy Romero. Na pista do palco do Casablanca surgiam a cada
esquete os lugares sui generis da Bahia antiga, como a Praça Cairu, além da
encenação da Praça Dorival Caymmi, homenagem que o povo baiano prestara a
ele fazia pouco tempo. Havia também a festa dos pescadores, com a procissão
de Nossa Senhora dos Navegantes; os vendedores de passarinhos; de chapéus, de
canecas, a multidão colorida que pousava a Baixada do Sapateiro. Os bailarinos
reviviam o samba de roda e o candomblé. Carlos Machado inclusive mandou vir
de Salvador autênticos capoeiristas e tocadores de berimbau para dar o clima
adequado. ”264
261
BORA, Leonardo Porto, NATAL, Vinicius, PORTO, Gabriel Haddad Gomes. Candomblés e
Carnavais: corpos desfilantes de Joãozinho da Goméia. Revista Periferia, v.12, n.3, 2020. p.239.
262
FAOUR, Rodrigo. Ângela Maria: a eterna cantora do Brasil. RJ: Record, 2015.
263
FAOUR, Rodrigo, p. 105 e106.
264
Idem p. 108.
135
265
Correio da Manhã, 20 de dezembro de 1953.
266
Este reconhecimento foi posto no jornal Correio da Manhã de 20 de dezembro de 1953.
267
Ibidem, p. 118.
136
A presença do “não dito” detectada nas memórias de Ângela Maria, sobre a revista,
em questão, está envolta por problemas que a cantora teve na época com a obrigatoriedade
em assinar contratos que não se identificava. O desencanto de Ângela talvez ganhe sentido
por causa do afastamento de Joãozinho da Goméia e de João Villaret.268 No compasso da
informação, a troca do Teatro de Revista pela Companhia Baiana de Folclore Oxumaré, é
citada como um negócio vantajoso para o pai de santo, que foi citado na imprensa como
um dos “mais bem conceituados bailarinos folclóricos da nossa terra”269.
A experiência de Joãozinho da Goméia no Teatro de Revista foi um “divisor de
águas” na sua carreira, pois o colocou em contato com outras linguagens artísticas, meios e
formas de produção cultural, construindo entrecruzamentos de setores da indústria
fonográfica, radiofônica, televisiva e cinematográfica. Estar nos palcos do Teatro de
Revista lhe abriria uma gama de possibilidades artísticas e uma dessas era o diálogo com o
teatro negro, materializado através da fundação da sua própria companhia: a Companhia
Baiana de Folclore Oxumarê. O autor Roberto Pereira270 informa que o Rio de Janeiro
sempre foi o cenário propício para danças como o lundu, o maxixe e o samba,
repetidamente executados nos teatros da Praça Tiradentes e, posteriormente, nos palcos dos
cassinos Atlântico, Copacabana, Recreio e Urca, propiciando o fortalecimento da presença
negra nos palcos de produções do teatro de revista, mesmo que de forma estereotipada,
268
Revista O Cruzeiro, 26 de dezembro de 1953.
269
Última Hora, 8 de novembro de 1953.
270
PEREIRA, Roberto, 2003. p.162.
137
Figura 40: Divulgação da revista “Casa da Viúva Costa” pelo Jornal Ultima
Hora, 28/11/1953. Fonte: BNDigital271
Não temos elementos, infelizmente, que nos ajudem nesse momento a analisar os
detalhes da presença cênica de Joãozinho da Goméia em uma produção de teatro de
revista, mas podemos observar que esta experiência cênica pode ter impulsionado as suas
pretensões de ocupação de outros espaços, que tenham dado a instrumentalização
271
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22casa%20da%2
0viuva%20costa%22&pagfis=16520
138
necessária para conquistar, finalmente, o seu espaço no show business. Era a oportunidade
que tinha de realizar o sonho de ser contratado para se exibir apresentando danças afro-
brasileiras e danças folclóricas brasileiras em Buenos Aires e Estados Unidos. O ano de
1953 torna-se o marco temporal para refletirmos sobre a expansão da cena artística em que
Joãozinho esteve inserido. A partir de 1953, finalmente, conseguiremos localizar em
separado, o artista e o pai de santo. Joãozinho, precisava agora construir outros pontos de
convergência, outras relações com a dança. Precisava agora criar uma nova identidade
artística, que pudesse expandir o seu terreiro para outros lugares, e adquirir para o
candomblé um status de dignidade. A arte construída por Joãozinho, também estaria a
serviço das liberdades do povo de santo, como esteve em 1936, quando emprestou o seu
corpo para que agisse politicamente em nome da liberdade religiosa dos candomblecistas
baianos.
O interesse que encaminhava estudiosos da dança folclórica para o terreiro da
Goméia seria o mesmo que os direcionariam para os teatros onde Joãozinho estivesse
atuando. A Companhia baiana de Folclore Oxumarê seria fundada nessas bases: o
fascínio pela arte, pela dança, pelo folclore e pelo candomblé. Os ventos precisavam mudar
a direção para os palcos. Joãozinho precisava, enfim, ocupar profissionalmente a cena
coreográfica, de forma profissional, o que pôde ser compreendido pela necessidade de
criação de novos trânsitos, que construiriam de fato Joãozinho como um artista de teatro272.
A respeito desta transitoriedade entre o artista e o religioso, que entende o
sagrado como algo fluido desapegado da lógica colonial de enquadramento de pessoas em
sistemas projetados para o domínio de corpos, mentes e emoções, os autores Luiz Antônio
Simas e Luiz Rufino constroem a “noção de terreiro” que liberta o sagrado da ideia de
aprisionamento de saberes e fazeres. O que endossa a ideia de que Joãozinho da Goméia
entendia que o palco de um teatro era também um lugar onde os Orixás poderiam estar
presentes mesmo que de forma simbólica:
272
E foi o que de fato aconteceu se pensarmos que a partir de 1953, Joãozinho apesar de continuar sendo
identificado como pai de santo nas reportagens que divulgam a sua atuação como artista, ele começa a ocupar
outros espaços artísticos e ser tratado como tal. Trataremos disso no capitulo 3.
139
Vimos A Casa da viúva Costa vários dias depois da estreia, quando a direção do
espetáculo a considerou em forma para ser examinada pela crítica. Ora,
justamente nesta ocasião, uma das suas principais atrações, o ator João Villaret,
já havia abandonado o elenco, e mais ainda, justamente quando o ‘pai de santo’
Joãozinho da Goméia e suas filhas também não atuavammais... mesmo assim, se
A Casa da viúva Costa fosse uma revista (ou burleta) digna de interesse, poderia
sobreviver, o que não acontece por numerosos motivos. Desses, o principal é a
pouca força cômica dos ‘sketches’, que aqui funcionam como entrecho da peça,
entrecortados por apresentações de cantoe dança, sem nenhuma ligação com os
mesmos. Assim sendo, o público que não ri com os quadros que visualizam a
“casa da viúva”, com dialogo frouxo, personagens mal delineados, e epílogos
bruscos-também não se diverte com os bailados e apresentações de cantoras e
cantores, geralmente de má qualidade. Em resumo, tudo não passa de uma
sequência de números mal- alinhavados, mal dirigidos, mal interpretados, que
fatigam principalmente nas incomodas cadeiras de emergência da ‘boite’.
Entretanto, mesmo com a ausência de Villaret, Joãozinho da Goméia e suas
dançarinas, o elenco é numeroso e possui elementos capazes de brilhar em
qualquer revista, menos nesta. Araci Cortes, que há pouco tempo recebeu uma
consagração no João Caetano, demonstra que, além de cantar com graça, sabe
representar. Spina é um cômico que valoriza ao máximo seus textos. Há um
grupo de bailarinas e bailarinos que bem adestrados poderiam render muito mais.
Lord Chevallier possui qualidades de cômico conhecidas, Paulo Mauricio é um
galã de primeira linha, e assim por diante. Mas nada disso funcionou a contento
(alguns bailados são verdadeiras charadas) e o resultado é mais que
lamentável, principalmente porque há dinheiro gasto. Há esforçodesperdiçado.
Há finalmente boas interpretações inoperantes. Um registrofinal pode ser feito,
quanto à atuação de Jurema Samio, bailarina que veio do ‘Ballet Pigale’ e agora
pertence ao elenco de Carlos Machado, modelo de plástica dos grandes desfiles
do teatro da madrugada, que aqui aparece cantando e representando como uma
autentica revelação, que merecerá ser projetada, de futuro, como merece. O
guarda-roupa, com alguns modelosricos mais de escasso gosto é mais uma
demonstração de que o pouco sucesso da empreitada se deve à inexperiência de
seus idealizadores, indicando porem que talvez ainda possa haver uma
recomposição na companhia, desde que uma boa peça seja apresentada, com
uma direçãodigna desse nome. ”273
273
O Cruzeiro, de 2 de dezembro de 1953.
140
274
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo:
HUCITEC, 1991, p.94 e 98.
141
Como informa Antônio Carlos Peralta275, Pai Bobó aconselhava Joãozinho em questões
relativas à sua gestão religiosa em Duque de Caxias, e acreditamos que, estando já
estabelecido em São Paulo, por volta de 1958, possa ter auxiliado Joãozinho com seu
projeto expansionista.
De acordo com Stefania Capone 276, nos anos 1950, o terreiro de Pai Bobó era o
único a se assumir publicamente como um terreiro de candomblé, o que nos chama a
atenção para o fato de que a adoção da umbanda pelos paulistas tenha ocorrido sem
grandes problemas, mesmo perante os registros policiais. As festas religiosas públicas,
como as de Iemanjá nas praias de Santos e da Praia Grande, contribuíram com a
popularização da religião e do pai de santo Joãozinho da Goméia, já que este era um dos
grandes incentivadores da tradição religiosa. As comemorações públicas de Iemanjá
contribuíram para o fortalecimento do campo afro-religioso da Baixada Santista,
transformando o dia 15 de agosto em uma tradição da umbanda paulista, com festas
promovidas pela Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, que passou a contar com a
presença anual do pai de santo nas homenagens à Rainha do Mar:
“O dono da noite foi Joãozinho da Goméia que veio do Rio com algumas de
suas filhas de santo e participou do desfile de abertura em um carro alegórico,
enrolado em panos de Alacá, fazenda que vem especialmente da África para ser
usada nas solenidades. Na areia era difícil vê-lo. Seu candomblé, de que
participavam além dos que vieram do Rio, algumas das mães de santo que ele
tem na cidade, ficou sobre um palanque armado na areia. Lá apresentaram o
ritual em homenagem a Iemanjá e pouco depois da meia noite retirou-se.”278
“Iemanjá teve festa ontem, mas na Bahia seu dia é em fevereiro (Departamento
de Pesquisas) O encontro já é tradição na Baixada, e a cada anjo que passa traz
mais curiosos para assisti-lo. isso naturalmente, sem levar em conta as centenas
275
PERALTA, p. 105.
276
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. RJ: Pallas, 2004, p.
145.
277
A Tribuna (Santos) 17 de agosto de 1959.
278
Jornal da Tarde, São Paulo, 19 de agosto de 1968.
142
de adeptos. São milhares que todos os anos, no dia da Rainha do Mar, acorrem
às nossas praias para assistir ao espetáculo no qual se fundem folclore e crença.
Em Santos, o dia escolhido para se homenagear Janaína é 15 de agosto, data
consagrada à Assunção de Nossa Senhora, enquanto que na Bahia e no Rio, a
Sereia do Mar recebe suas ofertas em outras oportunidades. Na Guanabara, a
Senhora das Águas é reverenciada no último dia do ano, e na Boa Terra, a data
em que todos se lembram dela é 2 de fevereiro. Candomblé e Umbanda não
concordam com origem e homenagem, disso resultando o desencontro das
festividades. O mesmo, aliás, ocorre quanto ao culto propriamente dito, e que,
depois de cuidadoso exame, levamos aos adeptos das seitas afro-brasílicas
estribadas em pesquisadores de renome, em declarações do babalaô de fama
internacional Joãozinho da Goméia.”279
279
A Tribuna, Santos, 17 de agosto de 1970.
280
RODRIGUES Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. RJ: Civilização Brasileira, 1935. p.52 e
53.
281
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil. RJ: Pallas, 2002. p.164
282
QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. 2ª edição (ampliada e comentada). Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 1988. p.209-210.
283
É complicado estabelecer um marco que defina a origem da festa de Iemanjá. Principalmente por ser uma
tradição que vem dos tempos da África. O que se pode reter são as informações captadas emregistros
de época como este de Manoel Querino que reivindica para o bairro de Itapagipe a origem do culto.
284
VALLADO, Armando, 2002, p, 163.
143
região, Iemanjá foi sincretizada com uma diferente invocação à Nossa Senhora. O culto
percorre o litoral costeiro, ao encontro de Alagoas, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo,
Rio Grande do Sul, Salvador e Santa Catarina.
Por conta da influência da migração de lideranças religiosas de outras partes do país
para o litoral paulista, o culto se modifica e passa a atender ao calendário de festas
organizado por das comunidades religiosas. Os dias 2 de fevereiro, 15 de agosto, 8 de
dezembro e 31 de dezembro, não apenas se tornaram dias de se curvar aos desejos da
Rainha do mar, como uma estratégia de popularização do culto religioso afro-paulista. As
datas criadas pelo povo de santo foram inseridas nos calendários das festas culturais do
Estado de São Paulo, passando a serem reconhecidas como uma festividade essencialmente
popular, organizada pela Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, e pela Secretaria
municipal de Cultura da prefeitura de Santos e a Secretaria de Cultura e Turismo da Praia
Grande. Pelo caráter popular que adquire a festa à Iemanjá, atingindo religiosos e não
religiosos, o vínculo de Joãozinho ao universo umbandista é reforçado pelas páginas dos
jornais paulistas, garantindo para o pai de santo, inúmeras citações, o que vai com o tempo
reconstruir a identidade religiosa do pai de santo, que passa a ser identificado nas páginas
de jornais e de revistas como uma liderança religiosa umbandista285.
A título de constatação sobre a identificação de Joãozinho com o universo
umbandista, temos uma matéria feita pelo jornal Diário da Noite de 13 de agosto de 1952,
quando o pai de santo surge em uma noite de “pompa e circunstância” na sede da
Federação Espírita Umbandista do Estado do Rio de Janeiro em Duque de Caxias, como
uma liderança umbandista. O que apenas vem a reforçar o vínculo e a identificação de
Joãozinho como uma liderança da umbanda e não do candomblé, apesar do título de “Rei
do Candomblé” que lhe foi conferido no decorrer da sua trajetória religiosa.
Stefania Capone286 considera que Joãozinho da Goméia conseguiu ainda muito
jovem, se afirmar como liderança religiosa do candomblé Angola, por causa da
transferência de Salvador para o Rio de Janeiro. Um movimento repetido pelos filhos de
santo de Joãozinho que migram da Bahia e do Rio de Janeiro para o litoral paulista, com o
intuito de instalar um novo Axé. A busca pelo sucesso artístico está alinhavada com a
busca pelo sucesso religioso, já que no movimento de passagem da “umbanda para o
285
No capítulo 3, trataremos desta identificação com a umbanda.
286
CAPONE, Stefania. Le pur et lew dégénéré: le candomblé de Rio de Janeiro ou lês oppositions
revitées. Journal de La Société des Amérecanistes. v.82, p.259-292, 1996.
144
candomblé” foi detectado que por volta da década de 1960 e 1970, houve uma tendência
287
de maior filiação ao candomblé angola que, de acordo com Reginaldo Prandi, estaria mais
próximo da Umbanda.
Figura 41: Registro fotográfico feito pelo santo Jornal Diário da Noite de 13 de agosto de 1952, da filiação
de Joãozinho da Goméia à Federação Espírita Umbandista do Estado do Rio de Janeiro. Um ato que vai
impactar os próximos anos de vida de Joãozinho, redimensionando a sua identidade religiosa.
Fonte: BNDigital288
287
PRANDI, Reginaldo, 1991, p.107.
288
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=221961_03&pasta=ano%20195&pesq=Jo%C3%A3ozi
nho%20da%20Gom%C3%A9ia&pagfis=21569
145
temporada paulista, chegaram a São Paulo apenas no dia da estreia no Teatro Cultura
Artística. Trajadas com anáguas, camisas, colares, braceletes e panos da costa bordados,
turbantes e chinelas e foram encaminhadas prontamente à Central de polícia, o que
despertou a curiosidade de inúmeras pessoas que se sentiram atraídas para assistirem ao
espetáculo teatral.290 A companhia contava com a direção de W. Lima, direção de cena de
Sergio Maia, figurinos de D’Crato, e coreografia de Sergio Maia. O corpo de baile era
formado por Lajana, Irlanda, Meneses. As bailarinas solistas são Katia Francarole, Marly
Rios, Cléia Tibiriçá. E as cantoras eram Neide Furkin e Lolita Consuelo.
O primeiro bailarino da companhia era o pai de santo Joãozinho da Goméia, que
mencionava que no palco o orixá não estaria presente incorporado nos seus dançarinos,
seguindo um estilo diferenciado do criado por outros profissionais da dança, que não
conseguiam controlar as incorporações, por não atuarem como mediadores entre o mundo
espiritual e o da matéria. É justamente aí que a presença do “pai de santo” faz toda a
diferença porque ele controla a frequência espiritual presente em cena. O “controle” das
incorporações em palco surge como um prolongamento do “controle” executado pelo pai
de santo dentro do terreiro. Eros Volúsia ressalta a ausência do “controle” manifestado em
uma das temporadas do Teatro Carlos Gomes onde, no espetáculo “Candomblé”, havia
montado um quadro com melodias recolhidas no interior da Bahia, e estilizadas pelo
arranjador e compositor Radamés Gnatali. Segundo Eros, o cerimonial completo foi
reproduzido no palco, das oferendas às danças das iaôs, com direito a evocação de orixás e
simulação de incorporação, se estendendo para a plateia “que se levantava às pressas para
o hall do teatro até que passasse o transe.”291 Os números principais da temporada artística
eram: 1) Presente a Janaína, que simulava o festejo acontecido anualmente no Dique do
Tororó, Rio Vermelho; 2) a “dança dos caxixis”292, cadenciada por instrumentos do mesmo
nome, semelhante às castanholas; 3) “dança do babalorixá”, que representava o ritual do
“padê de Exu”, com o uso de um galo vivo simulando um sacrifício com sangue em
homenagem a Exu. Nesta cena Joãozinho assumia a face do religioso, dirigente do
terreiro da Goméia; 4 ) Jogo de capoeira, ministrado por Evaristo Veiga e Ananias.
Durante toda a temporada teatral, o público assistiria a uma exposição de conteúdo
folclórico com exibição das cerâmicas da Bahia, das vestimentas, dos instrumentos
290
Jornal O Tempo, 5 de novembro de 1953.
291
VOLÚSIA, Eros. Eu e a dança. RJ: Revista Continente Editorial, 1983, p.130.
292
O caxixi, além de compor o conjunto percussivo do berimbau é idiófono, que aparece isoladamente vê em
âmbito ritual-religioso, em especial nos terreiros de candomblé Angola-Congo e de caboclo, Bahia, Rio de
Janeiro, São Paulo e Pernambuco. p. 73.
147
Figura 42: Divulgação Do Espetáculo “Magia Baiana” exibido pela Companhia Baiana de
Folclore Oxumarê. Publicação feita pelo jornal paulista Diário da Noite em 13/10/1953. Fonte:
BNDigital298
293
Jornal O Tempo, São Paulo, 9 de outubro de 1953.
294
O atabaque é um instrumento musical muito simplificado, construído por couro, AL esticado sobre aro de
madeira ou caixa oca de madeira, a parte principal do atabaque é justamente o couro, local onde é realizada a
percussão. O corpo do atabaque, convencionalmente feito em madeira, quase sempre são ripas presas por
pregos de ferro, cola e aros também de ferro; na verdade uma caixa de ressonância afunilada. Os atabaques
nos terreiros de candomblés recebem três nomes básicos: rum, rumpi, lé ou runlé. Respectivamente os
atabaques grande, médio e pequeno. O rum possui o registro grave, o rumpi o médio e o lé o registro agudo.
P. 66 a 69.
295
Sem dúvida uma das maiores permanências da música angolana no Brasil, que gerou também uma
nova dimensão (recriação), é o berimbau instrumento aliado e básico da capoeira. P. 72.
296
Existem vários tipos de pandeiros: Pandeirão do batuque é o tipo convencional. Foi registrado na
localidade de Curiau de Dentro, Macapá, Amapá e integrante a festa de São Joaquim. Lembra inclusive o
pandeirão, tinideira ou panda do Boi-bumbá do Maranhão. Apesar do seu uso em uma festa católica, é
eminentemente afro-brasileiros seus componentes etnoculturais são os mesmos do batuque realizado na
mesma área. P. 88. O pandeirão do boi; o pandeiro do pastoril, usado especialmente em Alagoas e
Pernambuco, é peça integrante no auto popular do ciclo natalino semelhante ao pandeiro de xangô que se
difere por não apresentar cabo nem fitas com ornamentos. Foi registrado na cidade de Maceió, localidade que
mantém o modelo do Xangô.
297
De acordo com Raul Lody, o “Ganzá é um instrumento ideólogo construído como uma caixa cilíndrica em
forma de folha de flandres, ferro ou alumínio, com material chocalhante no seu interior. Aparecem ligadas aos
conjuntos de congadas e outros grupos afro-brasileiros. No Xangô pernambucano ganzás pintados de
vermelho e branco e de azul e branco indicam uso ritual dedicado a Xangô e Iemanjá.” In: p.81.
298
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093351&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Gom%C
3%A9ia&pagfis=29174
148
A casa do caboclo Pedra Preta não é uma casa. É uma arvore uma gameleira
sagrada, defendida por uma cerca de bambu, enfeitada de fitas, um altar na
floresta. No dois de julho, dia da festa do caboclo, dia maior da Goméia, dúzias
de galos, vários carneiros e bodes são ali sacrificados, ao pé da arvore, enquanto
as filhas de santo rezam as orações rituais. O pai de santo e a mãe pequena,
encobertos dos demais por uma colcha lindíssima nos seus bordados e nas suas
rendas, já em transe, bebem o sangue dos animais sacrificados. Já não são eles,
Joãozinho e Alice. São o caboclo Pedra Preta e Yansã que se alimentam com
sangue quente dos galos e carneiros.299 O importante era estar na Goméia no dia
da festa de Seu Pedra Preta. Abraça-lo, pedir conselhos, fazer consultas e
aproveitar o samba de caboclo que acontecia até que a manhã estivesse alta.
Ali se dançava até cansar. Estar entre os caboclos da Goméia, era estar
participando de um forte axé, “fuxicar” com amigos e beber o aluá e a jurema de
Seu Pedra Preta (...), mas era assim que corriam as festas. O aluá e a jurema
eram as bebidas permitidas por Seu Pedra Preta, caboclo protetor de Seu João,
que morava no pé da gameleira sagrada. A comida era servida com fartura e o
samba de caboclo ia até o dia já alto do dia seguinte. (PERALTA, 2000, p.180 e
181.)
“Passando pela boca de cena, dois homens vão a frente tocando atabaque. atrás
toda vestida de azul, uma filha de santo traz uma braçada de flores e rosas
brancas. Logo em seguida quatro homens trazem um andor coberto de flores,
pacotes, vidros de perfumes, peças de seda abertas e ainda um véu de noiva e
respectiva grinalda. Fechando o cortejo de homens do povo e de filhas de santo.
Todos com velas acesas nas mãos e braçadas de flores. Abre-se novamente o
pano, e o cortejo passa mais uma vez jogando suas flores ao mar. Das
profundezas das águas, surge dona Janaina(rainha das águas ou mãe d’água) que
traz na mão, um pente recoberto de pedrarias. De seus ombros pendem gazas
vaporosas, contempla a grinalda e o véu de noiva que recebeu como oferenda. O
299
AMADO, 1991, p. 156.
300
CARNEIRO, Edison. Negros Bantos- notas de etnografia religiosa e de folclore. 2edição: São Paulo,
1981, p.199.
149
pescador vendo-a foge amedrontado. Dona Janaina ouve ao longe nos terreiros os
toques e cantos em seu louvor e dança, voltando depois ao seu lugar. A música
folclórica à deusa Janaina diz : “Hê... He... he... He... Janaína. Hê... He... he...
He... Janaína. Venha seus filhos ajudar Senhora aceite esses presentes que seus
filhos vão mandar Para nós, ó Janaina que é a rainha do mar” (atabaques).301
301
Diário da Noite, 13 de outubro de 1953.
302
Segue abaixo algumas das reportagens principais publicadas por jornais da imprensa paulista, que davam
destaque aos espetáculos encenados pela Companhia de Folclore Oxumarê. Achei prudente divulgá-los, para
que o leitor dessa dissertação conhecesse mais sobre a vida artística de Joãozinho da Goméia, sua relação
estreita com elementos do folclore baiano, e a solidificação do seu projeto de expansão artística.
150
Figura 43: Divulgação de apresentação televisiva de Joãozinho da Goméia com sua companhia de
folclore baiano. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite (SP) de 28/10/1953. Fonte: Hemeroteca
Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular303
303
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
151
Figura 44: Divulgação de espetáculo da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê no Teatro Cultura Artística.
Publicação feita pelo jornal O Tempo (SP), de 09/10/1953. Fonte: Hemeroteca Digital do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular 304
304
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
152
305
Destaco o corpo de balé que compõem a Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, com bailarinas brancas,
chamando atenção para a possibilidade de que Joãozinho da Goméia não tenha feito uso das filhas de santo
negras em todos os espetáculos teatrais. O que também pode ter acontecido é o fato das filhas de santo com
seus trajes típicos do candomblé, simbolizassem o folclore baiano.
306
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=companhia%20ba
iana%20de%20folclore%20oxumare
153
307
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=%22companhia%
20baiana%20de%20folclore%20oxumar%C3%AA%22
154
308
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=%22companhia%
20baiana%20de%20folclore%20oxumar%C3%AA%22
155
O público queria outro espetáculo que pudesse ser visto repetidas vezes, já que
era um público que frequentava o local várias vezes por semana. Por isso, a
escassez de textos, que poderiam perder a graça, logo na segunda apresentação, e
o investimento em danças leves, divertidas, mas pequenas. Eram danças com
temas pitorescos, para um público chique. (PEREIRA, 2001, p.92)
309
Esta frase inspirou o título deste trabalho. Foi colhida de um depoimento dado em 23 de março de 2001,
por Ileci da Oxum, a mãe criadeira do terreiro da Goméia de Duque de Caxias. Foi ela quem trouxe a muda de
Juremeira (árvore consagrada ao Caboclo Pedra Preta) de Salvador. Lembro que Ileci repetiu esta frase umas
duas vezes no final da entrevista, e me coube arrumá-la como foi publicada na monografia de graduação em
história. Ver em NASCIMENTO, Andréa. De São Caetano à Caxias: um estudo de caso sobre a expansão
dos cultos afro-brasileiros na Baixada Fluminense, p.52-53. São Gonçalo: Monografia de Graduação em
História apresentada a Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
2003.
310
PEREIRA, Roberto. Os passos de Juliana Yanakieva. Niterói, RJ: Niterói livros, 2001, p.92.
156
311
Existem fontes que mencionam a presença da companhia em Pelotas e Vitória. Assim como em festivais
religiosos do Distrito Federal, a partir de 1967, e Festivais folclóricos de Pernambuco, a partir de 1965. Não
analisamos, por ter ciência de que o espaço e o tempo destinados à produção de uma dissertação de mestrado
são limitados.
312
A celebração pública a Iemanjá no Rio de Janeiro é associada a Tancredo da Silva Pinto, o fundador do
Omolocô, que africanizou a umbanda a partir dos anos de 1950. Teria Tancredo criado o “presente a Iemanjá”
em 1961, segundo Luiz Antônio Simas, mas o festejo já acontecia antes da década de 1960, em outras regiões
do país como no litoral paulista, na região sul e em Pernambuco. Tancredo da Silva Pinto, de acordo com
Joana Bahia e Farlen Nogueira, nasceu em 1904 em Cantagalo e morreu em 1979, na cidade do Rio de
Janeiro. Era compositor e sambista, escreveu mais de 30 obras literárias, divulgando a umbanda. Conhecido
como Tatá de Umbanda, porta-voz da federação mais africanizada, surgida em 1949, por defender os
interesses das camadas sociais mais baixas, representadas por negros.
313
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
314
BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. RJ: Cadernos do ISER, nº18, 1985. p. 37.
315
BAHIA, Joana e NOGUEIRA, Farlen. Tem Angola na Umbanda? Os usos da África pela Umbanda
Omolocô. RJ: Revista Transversos, nº13, 2018, p.59.
157
Esse ano trouxe não apenas o fim da Segunda Guerra Mundial como também o
termino dos 15 anos de ditadura Vargas, com o consequente retorno a um
governo constitucional. Para os umbandistas, terminara o período de perseguição
sistemática. Agora a Umbanda podia ser praticada livremente, e esta liberdade
recém-adquirida resultou na eclosão de uma intensa atividade organizacional.
Novos centros foram abertos, novas federações formadas, e a Umbanda
começava a aparecer nos meios de comunicação, em programas de rádio, em
colunas semanais dos principais jornais do Rio, e em numerosas publicações de
sua própria iniciativa. À medida que a Umbanda ganhava milhares de adeptos no
Rio, tanto os setores médios quanto entre os setores inferiores da população, e
que suas atividades recebiam maior atenção, muitos terreiros afro- brasileiros
começaram a identificar-se publicamente com esta nova imagem da Umbanda.
Algumas vezes, isto incluía um movimento em direção aos rituais e à
cosmologia dos fundadores da umbanda. A umbanda também começou a
difundir-se rapidamente em outros estados e regiões do Brasil, ganhando, como
no Rio de Janeiro, novos adeptos e exercendo influência sobre várias religiões
afro-brasileiras regionais. Da mesma forma que o Estado brasileiro dentro do
qual surgira, a Umbanda agora começava a exercer uma influência
homogeneizante sobre muitas tradições religiosas regionais, transformando
aquilo que as distinguia e moldando-as na direção de uma cultura religiosa
nacional afro-brasileira. (BROWN, Diana, 1985, p. 9)
316
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. SP: Brasiliense,
1999.
158
317
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030678&pasta=ano%20196&pesq=Umbanda&pagfis=
15565
160
Figura 49: “Tenório nos braços do povo: Delirantes manifestações de carinhoso respeito do homem
da rua recebeu o parlamentar fluminense, na Ilha do Governador, no centro da cidade e na zona sul-
Saravá Iemanjá! Publicação do jornal Luta Democrática de 03/01/1960 Fonte: BNDigital318
uma falange de espíritos protetores”. A relação entre o pai de santo e o político, só poderia
ser contada por amigos próximos dos dois, de resto, pertence ao campo do imaginário
social da Baixada Fluminense. Sabemos que no terreiro da Goméia, Joãozinho estreitava
laços de afeto e de interesse com muitos vereadores, deputados e até governadores.
Dizem que foi amigo próximo dos presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, mas
o que a pesquisa ao material de imprensa indica, é a sua ligação com muitos políticos
brasileiros, como o governador Roberto Silveira e o presidenciável Café Filho, que
mantinha as portas do palácio do Catete abertas para o pai de santo. Agora nunca
saberemos se foi uma herança deixada pelo ex-presidente Getúlio Vargas ou se é uma
retribuição de favores prestados pelo pai de santo. De qualquer forma Joãozinho abria os
caminhos de seus filhos. O que o espiritual não conseguia os “bons amigos” arranjavam. 319
Uma dessas personalidades de poder, que frequentava o terreiro da Goméia, era
o delegado paulista Albino Imparato, que havia sido convocado para moralizar a cidade de
Duque de Caxias, frente às ações de Tenório Cavalcanti, que recebeu o apelido de
“deputado pistoleiro”, devido aos ajustes de conta com seus inimigos. A convocação de
Imparato320 havia sido feita às pressas, a pedido do presidente Vargas em prol da elite
duque-caxiense321, e em 18 de junho de 1952, o jornal Tribuna da Imprensa, flagra o
delegado em uma das sessões do terreiro. Uma sessão com direito a “uísque farto,
vinhos finos e vatapá gostoso”. O jornal dizia que este requinte fazia parte do sucesso de
uma “indústria macumbeira” que contava com uma estrutura firme sustentada por
arquibancadas, galerias e estacionamento para os carros com “macumba que mais parece
ser o título de um espetáculo teatral”.
Joselina da Silva 322 chama atenção para a diversidade social que existia em dias de
festas na Goméia, o que proporcionava intensa visibilidade ao pai de santo que conseguia
atrair chefes de polícia e delegados como o Tenente Abílio Gomes Vieira.
319
Essa relação entre Joãozinho da Goméia e os políticos foi analisada pela historiadora Elizabeth Gama em
sua dissertação de Mestrado: Mulato, homossexual e macumbeiro: que rei é este? . Mas nos anexos dessa
dissertação trazemos algumas notinhas publicadas na imprensa que retomam este relacionamento.
320
Tenório Cavalcanti em 28 de agosto de 1953 metralhou o delegado Imparato em frente à residência que
morava com seus familiares.
321
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ten%C3%B3rio_Cavalcanti
322
SILVA, 2010, p. 42.
162
Figura 50: “Bebidas finas em sala reservada- A indústria progride- Personagens anônimos no
espetáculo teatral. São os personagens da indústria macumbeira de Joãozinho da Goméia”. Registro da
visita do delegado Albino Imparato ao terreiro da Goméia. Um ano antes do seu assassinato Publicação
do jornal Tribuna da Imprensa de 18/06/1952. Fonte: BNDigital323
323
Disponível:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Go
meia&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=8990
324
Correio da Manhã, 9 de dezembro de 1951.
163
Armadas e membros do Corpo Diplomático, que viam as festividades organizadas pelo pai
de santo como um acontecimento social de grande importância. De fato, as festas da
Goméia traziam para o município de Duque de Caxias, muitas melhorias referentes à
iluminação pública e pavimentação de ruas. A fama da Goméia fez a empresa de ônibus
União criar a linha “Caxias-Copacabana”, com o nome Via Joãozinho da Goméia, preso ao
para-brisa325. Ou seja, a referência ao terreiro passou a orientar aos que desejavam ir até a
Goméia para realizar simples consultas ou frequentar as festas que eram divulgadas de
‘boca em boca’ nas boates e teatros, e nas colunas sociais de jornais como o Diário326 da
Noite, Correio da Manhã e Última Hora. Até os anos de 1960, presenciava-se presença de
notinhas em seções e colunas que divulgavam a presença de socialites e de embaixadores
que assistiam cerimônias como a de Iansã, Oxóssi, Obaluaê e a festa do Pilão de Oxalá,
que a partir de 1966, ocupava um espaço de destaque na seção Centros e Tendas do jornal
Correio da Manhã. Outro meio de divulgação do terreiro era através dos cartazes colados
em portas de bares, cinemas e mercadinhos da Baixada Fluminense:
Eram colados nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque
de Caxias papéis e cartazes onde se divulgava: - Segunda-feira: dia de
distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para Obaluaê e Gira para
Exus. -Terça-feira: dia de festa para Oxóssi e ensaios de danças afro-folklorica,
pela tarde. -Quarta-feira: dia de festa em homenagem à Xangô e ao Caboclo
Pedra Preta. -Quinta-feira: dia de festa à Iansã, Oxóssi e Ogum. -Sexta-feira
eSábado: Festas de confirmação de Iaôs e atendimento médico sábado pela tarde.
E a comunidade aparecia em peso mesmo aqueles que não frequentavam o
candomblé iam para ver as festas, pois como todos nós sabemos em toda
festa de candomblé a comida e a bebida era de graça com calendários das festas
do terreiro fixados nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e
Duque de Caxias. Devido a essa publicidade feita em locais de grande frequência
de pessoas, as festas do terreiro ganhavam mais popularidade. Sendo assim, o pai
de santo Joãozinho da Goméia transformou seu terreiro em um lugar político
com todas as nuances que lhe cabiam: o conflito, as bajulações, a amizade, as
negociações, as trocas de favores solidificadas através do auxílio mútuo entre
o pai de santo e os convidados que frequentavam à Goméia para dar e/ou
receber.327
325
NASCIMENTO, 2003, p. 61.
326
Não consegui retirar este traço vermelho.
327
Narrativa da mãe criadeira da Goméia, Ileci da Oxum, colhida em 19 de março de 2002.
164
328 FERREIRA, Thiago Almeida. João da Gomeia: transgressões e identidades de gênero no candomblé.
Brasília: Monografia em Historia pela Universidade de Brasília, 2016, p.11. Disponível em:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/15310/1/2016_ThiagoAlmeidaFerreira_tcc.pdf
329
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_05&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Go
meia&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=18437
165
330
NASCIMENTO, Andréa. Como as festas de terreiro ajudaram a construir o prestigio e o status do Rei do
Candomblé Joãozinho da Goméia entre Salvador e Duque de Caxias (1948-1971). Periferia, v. 12, n. 3, p. 67-
93, set./dez. 2020, p. 81.
Ver em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/54835/37330
331
PEREIRA, Rodrigo. Análise do espaço e da cultura material no extinto terreiro da Goméia (Duque de
Caxias): um estudo etnoarqueológico. RJ: Tese de Doutorado defendida pelo Museu Nacional da UFRJ,
2019. Ver em:
https://www.academia.edu/38661356/AN%C3%81LISE_DO_ESPA%C3%87O_E_DA_CULTURA_MATE
RIAL_NO_EXTINTO_TERREIRO_DA_GOMEIA_DUQUE_DE_CAXIAS_RJ_UM_ESTUDO_ETNOAR
QUEOL%C3%93GICO_VOLUME_1
332
Idem
333
Ibidem
166
controlava a festa334.
A cozinha funcionava com carvão o que era comum para os terreiros dos anos de
1950 e 1960. Tudo se aquecia naquele forno de tijolos, até os banhos das visitas. A comida
servida na Goméia “era de gente rica”, que pobre não comia. A comida levava creme de
leite, azeitona. Eram servidas em travessas caras e importadas. As comidas da Goméia
eram refinadas porque Joãozinho investia todo o dinheiro que ganhava com as
apresentações em teatros, boates e festivais na divulgação do seu nome. Ali eram servidos
Abará Acarajé, Arroz branco, Arroz de forno, Arroz-de-hauçá, Bobó, Bolo inglês,
Canapés, Canjica de milho branco, Caruru, Churrasco, Empadinhas de camarões,
Estrogonofes variados, Farofas, Feijão de leite, Feijoada, Frigideira de camarões, Galinha
ao molho pardo, Galinha a cabidela, Mariscada, Maniçoba, Moqueca de peixes, de mariscos
e de siri mole, Moqueca de Xaréu, Pastéis, Pato com laranja, Sarapatel, Vatapá, Xinxim de
galinha335.
O jornal Tribuna da Imprensa de 18 de agosto de 1952 traz o luxo e o glamour que
havia sido a festa em homenagem ao orixá Obaluaê, protegida pelo delegado paulista
Albino Imparato enviado a Duque de Caxias para conter o poderio do deputado Tenório
Cavalcanti, amigo pessoal de Joãozinho da Goméia336. Jornalistas ficavam impactados com
o prestigio alcançado pelo pai de santo:
334
PEREIRA, 2019, p.383.
335
NASCIMENTO, 2020, p. 88.
336
Reza a lenda que a relação de Joãozinho com Tenório também era fundamentada em trocas de favores e
de proteção. Ao mesmo tempo em que Joãozinho protegia Tenório espiritualmente, Tenório protegia
Joãozinho da ação da polícia e dos bandidos.
337
Última Hora, 23 de dezembro de 1953.
167
Figura 52: “Joãozinho da Goméia, o grã-fino do terreiro”. Publicação da revista Manchete de 08/10/1952.
Registro da festa de Cosme e Damião organizada por Joãozinho da Goméia. Fonte: BNDigital338
338
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=004120&pesq=Jo%C3%A3ozinho%20da%20Gomei
a&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=1088
168
Joãozinho foi sem dúvida, um personagem que transgrediu alguns dos segredos
tidos como fundamentais nas alianças entre os terreiros. Contudo, sinalizou e
promoveu o candomblé como uma rica expressão religiosa, estética e lúdica.,
dada sua sensibilidade em perceber as fortes relações que esse campo religioso
mantinha com outros aspectos da cultura brasileira: a música, a dança, as roupas,
os adereços, as festas populares, enfim, como um imaginário presente no
cotidiano de milhões de brasileiros. (LODY e SILVA, 2002, p. 155)
339
LODY e SILVA, p. 166.
169
Figura 53: “Sodoma a vista no carnaval carioca- depravação policiada”. Capa do jornal Luta
Democrática de 24/02/1955. Fonte: BNDigital340.
340
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=deprava%C3%A7%C3%A3o%20poli
ciada&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=2665
170
República. Carregado de extremo mau gosto e moralismo, o divertimento foi tratado pelo
jornal, como uma reunião de anormais, que vendia ao público estrangeiro a “falsa
impressão da moral do povo brasileiro”. A indignação maior do periódico foi constatar a
presença de parlamentares, embaixadores e artistas travestidos de mulheres, brincando o
carnaval sem maiores preocupações. Alguns dias após a publicação, o periódico inicia uma
campanha moralizante para proibição da folia na Praça Tiradentes, fazendo uso de estudos
científicos que criminalizam homossexuais e imputam a eles responsabilidade pela
disseminação da criminalidade, com publicação de pareceres médicos que atestam que a
condição sexual daqueles homens seria um atestado de anormalidade e periculosidade.
Fazem uma convocatória pública das autoridades policiais e dos parlamentares da Capital
Federal, para que proíbam a realização de bailes que reunissem travestis ou homossexuais.
A reportagem de caráter homofóbico vem seguida de outra mais ofensiva ainda, publicada
em 22 de março do mesmo ano, quando os crimes que aconteciam em Duque de Caxias
são associados aos homossexuais da cidade. Intitulados como “anormais” e “invertidos”, a
intenção do jornal é tentar até conseguir acabar com os bailes de travestis realizados em
período carnavalesco.
341
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=%22CRIMES%20DE%20ANORMAI
S%22&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=2891
171
Um baile patrocinado pela Associação dos Cronistas carnavalescos que era uma das
maiores atrações turísticas do carnaval carioca. O luxo, o bom gosto e a originalidade das
fantasias chamava atenção e atraía todo o tipo de gente para a porta do teatro. Era uma
competição entre travestis nacionais e estrangeiras.
O Teatro da República, embora com menos projeção, potencial e frequência,
organizava bailes, a partir do dia 31 de dezembro, aos sábados, com shows pré-
carnavalescos. Outro baile desse gênero é o “Baile dos Enxutos” que acontecia no Teatro
Recreio que se inspirava no baile do João Caetano ameaçado pela polícia, e acabava
funcionando com mandado de segurança 343. O Teatro República, próximo à Praça
Tiradentes, era um local já conhecido desde os anos de 1930, pelos concorridíssimos
concursos de fantasias organizados pelo bloco dos Caçadores de Veados344, no qual a
artista Madame Satã desfilava. Um bloco que no carnaval de 1934, era apresentado em pé
de igualdade com outros blocos de rua como o Democráticos, Fenianos, Tenentes, Pierrots
342
Luta Democrática, 27 de março de 1955.
343
O mandado de segurança é um instrumento jurídico, cuja finalidade é proteger direito líquido e certo, ou
seja, provado por documentos, que tenha sido violado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
344
Era um bloco de rua composto de homens que atuavam como travestis, e que desfilava pelas ruas da cidade
do Rio de Janeiro, no carnaval dos anos de 1930.
172
da Caverna, Recreio das Flores, Arrepiados, Aliança Club, União de Bonsucesso, União
das Flores, Quem fala de nós tem paixão, Caçadores da Floresta, De língua não se vence,
Sou do Amor, Não Posso me amofinar, Chora-chora, Bahianinhas do Sampaio, Respeita as
Caras, Força de Vontade e Andarahy Club Carnavalesco 345.
O bloco carnavalesco Caçadores de Veados foi organizado no ano de 1930, pela
travesti Rainha346, e se apresentava com os trajes de luxo. Era uma condição para fazer
parte. Era o momento para que aqueles homens marginalizados socialmente se destacassem
socialmente e recebessem a aclamação popular nestes dias nos quais as regras sociais se
ausentavam por quatro dias de alegria extrema. O nome do bloco denunciava a violência e
o achatamento social, sofrido cotidianamente, com o uso zombeteiro de uma terminologia
agressiva que revelava a violência cotidiana sofrida por homossexuais e travestis no Rio de
Janeiro.
James N. Green comenta a participação de Madame Satã em baile do Teatro da
República, no ano de 1938, que a princípio não era promovido como uma festa de
travestis:
Por exemplo, o ano em que Madame Satã ganhou o prêmio pela fantasia que
mais tarde lhe emprestaria seu nome de guerra, o Jornal do Brasil publicou
anúncios convidando para as quatro noites das festividades de carnaval no teatro
em que ele competia. Embora os anúncios mencionassem prêmios para a melhor
fantasia. Não há indícios de que homens vestidos com roupas femininas
competissem pelos prêmios. Muito provavelmente, o boca-a-boca conduzia
homossexuais a tais lugares, onde eles poderiam exercer com relativa liberdade
ser travestismo e desfilar com suas criações. (GREEN, 2000, p. 342)
345
O Paiz, 16 de janeiro de 1934.
346
Nome civil Antonio Setta
347
Idem
173
período em que o Teatro de Revista contou com grandes produções, que tomavam conta
por completo da Praça Tiradentes, que encontraram na figura do produtor e empresário da
noite Walter Pinto, um aliado para transformar a região em uma explosão de luz, cores,
brilho, maquinaria e som348. A sofisticação posta em cada pequeno detalhe transformou as
bilheterias do teatro Recreio e do João Caetano em verdadeiras máquinas de dinheiro. O
sucesso de bilheteria gerado pela diversidade de produções revisteiras não deixaram a
cidade do Rio por muito tempo com o sentimento de vazio deixado pelo fechamento das
roletas dos cassinos da Zona Sul. O que pode ser verificado em relação ao Teatro João
Caetano, que apenas no ano de 1952, contou com três produções: “Pau de Arara” de Max
Nunes, com José Vasconcelos, “Canta Brasil”, de Max Nunes com Luiz Iglesias e Carlos
Galhardo e “Lá vem a cobra Grande”, com Araci Cortes e Ankito.
A Praça Tiradentes tornara-se, então, um “triangulo cultural” produtor de arte
teatral, cinematográfica e radiofônica, já que a região contava com a existência de
onze teatros que variavam o repertório entre revistas, burletas e operetas349, estúdios
cinematográficos da Atlântida, localizado na Visconde de Rio Branco e a Rádio Nacional
que contavam com a liberdade e brejeirice, assim como os luxuosos trajes de espetáculo
tornaram essas mulheres em musas e divas, inspirando a arte de diversas travestis que
entendiam essas mulheres como símbolo do glamour350. Este glamour seria o tipo de
agência que permitiria que travestis habitassem o mundo, quebrando padrões sociais
heteronormativos. Thiago Barcelos Soliva compreende que:
Os bailes de travestis eram os eventos mais discutidos pela população carioca desde
quando se iniciam os ritos de preparação do carnaval, a partir de meados de cada ano.
Participavam aqueles que eram declaradamente gays e os que não assumiam publicamente
348
PEREIRA, Roberto, p. 89.
349
VENEZIANO, Neide. O sistema vedete. Salvador: Repertorio nº17, 2011, p. 58-70.
350
MATHIEU, Beatrice e THÜLER, Djalma. A primeira onda da cena travesti no Brasil: a centralidade do
‘corpo em travesti’. Urdimento-Revista de Estudos em Artes Ciências, Florianópolis, v.2, n.41, set. 2021,
p.12.
174
351
GREEN, p. 345.
352
A modinha popular, Astros e estrelas da música popular, Artistas Club, Vida Doméstica, Radiolândia,
Revista do Disco e Revista do Rádio.
175
série de reportagens na qual fora construída uma “guerra” entre as “exóticas” vedetes
naturalistas Elvira Pagã e Luz Del Fuego. A coroa de Rainha do carnaval de 1950 foi dada
a vedete Elvira Pagã, que foi ovacionada e carregada nos ombros da população, declarando
logo em seguida que trocaria a coroa de princesa do carnaval carioca pela macia poltrona
do Palácio Tiradentes, onde defenderia suas ideias junto ao recém criado Partido
Naturalista Brasileiro.353
O memorialista Rodrigo Faour354comenta sobre a polemica chanchada carnavalesca
Tira a mão daí dirigida por J. Rui, que estreou em 13 de fevereiro de 1956, com um
premiado elenco formado por: Virginia Lane, Linda e Dircinha Batista, Jackson do
Pandeiro, com comediantes que ironizavam a obsessão do povo brasileiro por coroações de
Reis e de Rainhas, “não eram só os artistas que eram coroados, mas também anônimos.
Havia Rainha do comércio, Rei da Boemia, enfim monarquias por toda a parte”.355 Uma
das críticas identificadas por Faour, foi a da repetição de marchinhas e sambas do último
carnaval. A ausência de renovação musical que apresentasse os próximos sucessos do
carnaval de 1956 incomodou a todos: público, críticos, compositores e artistas que
contavam com esta janela de divulgação.
O carnaval de 1956 foi inesquecível para o povo carioca, que contou com a
felicidade e a sorte de ter naquele ano, sambas e marchas que estiveram presentes nos
salões, blocos, rodas de samba e terreiros de umbanda, como o samba “Rádio patrulha”, o
grande sucesso do carnaval, que acabou virando ponto cantado pelos malandros da
umbanda343, que tinha como compositor o mestre imperiano Silas de Oliveira, que
havia emplacado mais dois sambas naquele mesmo ano, em parceria com outro
compositor da Escola de Samba Império Serrano- Mano Décio da Viola. Aliás, o ano de
1956, foi de fato o ano do Império que, desde o carnaval de 1955, conquistara o título de
campeã do carnaval carioca. Em 1956, o enredo “Caçador de esmeraldas ou sonho de
esmeraldas” que narrava a busca do Bandeirante Fernão Dias Paes Leme, por pedras
preciosas, conseguiu vencer a Portela, por apenas seis pontos de diferença, com o samba-
enredo “Gigante pela própria natureza” de autoria dos compositores Candeia e Waldir 59.
353
Segundo informa o site Wikipédia, Tentou candidatar-se a deputada federal com um partido político por
ela fundado, mas impedido de ser registrado, e aventurou-se esporadicamente em algumas produções
cinematográficas ao longo dos anos de 1950.
354
FAOUR, p. 214 e 215.
355
É um importante ponto de reflexão que vai de encontro com a realeza de Joãozinho da Goméia, muito
reforçada a partir dos anos de 1950. O que também nos remete a lendária coroação da Rainha Elizabeth, que
havia aclamado o pai de santo como Rei do candomblé. A Rainha Elizabeth vem ao Brasil a primeira vez em
1 de novembro de 1968, e o título de Rei do candomblé aparece associado a Joãozinho em 1942, inclusive é
apontado como um dos motivos da sua prisão no Rio de Janeiro.
176
No dia 19 de abril nascia Getúlio Dorneles Vargas, que mais tarde seria o
governo donosso Brasil. Ele foi eleito deputado para defender as causas do nosso
país. E na revolução de 30, ele aqui chegava como substituto de Washington
Luiz. E do ano de 1930 para cá foi ele o presidente mais popular. Sempre em
contato com o povo, construindo um Brasil novo e trabalhando sem cessar.
Como prova, Volta Redonda a cidade do aço existe a grande Siderúrgica
Nacional, que tem o seu nome elevado no grande espaço. Na sua evolução
industrial, Candeia a cidade petroleira trabalha para o processo fabril. Orgulho
da indústria brasileira. na história do petróleo do Brasil. Ô Ô Ô Ô Salva o
estadista, idealista e realizador. Getúlio Vargas, o presidente de valor.356
356
Ver mais em https://hhmagazine.com.br/1956-um-carnaval-que-nao-sai-da-boca-do-povo
357
Dentre as “Capote de pobre” de Nelson Figueiredo e Aparecido Silveira, “Na casa de corongodó” de
Armando Passos e Monsueto, “Fala Mulato” de Ataulfo Alves e Alcebíades Nogueira, “Pau d’água” um
samba batucado de Lídio Neto e Oswaldo Nascimento, “Me dá meu boné’ de Monsueto e Jorge de
Castro, “Quem sabe, sabe” uma marcha de Jota Sandoval Carvalho, “Claudionor” de Herivelton Marins e
Nelson Gonçalves, e “Ibraim piu, piu”, uma marcha de Miguel Gustavo gravado pela cantora Marlene.
177
Resistência e coragem, não lhe ofereço quando ela chega impondo respeito, não merece o
preço”, revelava os trânsitos percorridos por inúmeros nordestinos atraídos para a Capital
Federal na primeira metade do século XX. Os baianos, malandros, malandras, ciganas,
ciganos, pretos e pretas velhas se tornaram mestres de sabedoria, de cura e de
aconselhamentos. O povo passa a usar o termo “macumba”358 para definir sua religião e
compreende que a macumba era um lugar de socorro ao desespero, e de busca por sorte no
amor, no sexo e no jogo. Assim como o samba, o carnaval e a macumba possibilitavam
aquisição de um bom emprego e de oportunidade de se dar bem na vida. O carnaval,
deste modo, tornara-se o local onde estes excluídos da sociedade, escorraçados pela elite
nos outros dias do ano, tornavam-se reis, rainhas, imperadores e imperatrizes. O carnaval
era o local por aclamação da realização de sonhos e desejos.
O Diário Carioca de 11 de fevereiro de 1956 lança as regras que estabelecem as
proibições para os dias de carnaval, enumeradas pelo General Augusto da Cunha Magessi
Pereira359, como passíveis de pronta repressão: 1- usar fantasias que atentem contra a moral
ou as que imitem hábitos religiosos e peças de uniformes adotados pelas Forças
Armadas e corporações militares; 2- Usar calções de banho como maiôs e biquínis; 3-
Queimar bombas, foguetes e outros artigos pirotécnicos em lugar público; 4- Maltratar
animais; 5- Usar lança- perfumes ou bisnagas de matéria plástica em recintos fechados; 6-
Usar entorpecentes de qualquer natureza nos bailes de rua; 7- Usar instrumentos pesados
para divertimento; 8- Praticar danos contra propriedade, especialmente em bondes, ônibus
e outros veículos; 9- Facilitar o lenocínio; 10-Usar ou vender lança-perfumes e bisnagas de
matéria plástica nos prédios onde se realizem bailes; 11- Servir bebidas alcoólicas a
menores de 18 anos, ou a quem estiver em estado de embriaguez; 12- Todos os bailes
teriam que acabar precisamente às 4horas da madrugada.
358
O termo macumba que surge de uma categoria de acusação aos praticantes das religiões afro-brasileiras, é
popularizado entre aos sujeitos dessas acusações.
359
Nomeado chefe de polícia de Distrito Federal (Departamento Federal de Segurança Pública — DFSP) no
início do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), ainda em agosto de 1956 decidiu
empastelar o jornal Tribuna da Imprensa, o que realizou com a ajuda de outros oficiais.
178
masculino de toda parte do mundo. Por ser uma conhecida atração turística, havia entrado
no roteiro das agências europeias e norte-americanas, assim como aconteciam com os
bailes do Teatro Municipal e do Quitandinha, localizado na cidade imperial de
Petrópolis. O baile do João Caetano apenas concorria holofotes com os desfiles dos
blocos e ranchos carnavalescos. Seria também a primeira vez que fotógrafos e cinegrafistas
internacionais registrariam cada artista do baile, destacando o luxo dos bordados e as
predarias usadas em cada vestimenta. A Revista do Rádio mencionava que havia sido
grande o número de artistas do rádio, do teatro e do cinema que compareceu ao baile
naquela segunda-feira de carnaval. O concurso de fantasias premiaria as mais belas e
luxuosas fantasias, com a presença de candidatas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Argentina e França, sendo tudo transmitido por emissoras de
televisão.
360
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=025909_05&pasta=ano%20195&pesq=baile%20do%2
0travesti&pagfis=18822
179
361
Segundo os escritores Léo Feijó e Marcus Wagner, o produtor e empresário da noite Carlos Machado teve
um reinado marcado por 150 shows entre 1950 e 1960, reinventando no gênero do teatro de revista nas boates
do Rio de Janeiro.
362
FEIJÓ e WAGNER, p.167.
363
SIQUEIRA, 1971, p.65.
364
A marcha era assim “Antônio fantasia-se de Arlete todo ano, todo ano. E vai todo vedete ao baile do João
Caetano”. In: Correio da Manhã, 26 de fevereiro de 1957.
180
mais ainda o preconceito contra o baile por parte das autoridades e dos umbandistas, que
decidiram julgar a atitude do pai de santo, cogitando a sua expulsão da Umbanda.
A presença de Joãozinho no concurso havia provocado uma corrente de ofensas e
de críticas na imprensa de todo país. Com protestos ácidos partidos de umbandistas
indignados com a participação de uma liderança religiosa em um baile de travesti. O
“folião-travesti” que atuava cotidianamente como pai de santo de um terreiro de
candomblé teve a sua identidade religiosa capturada por representantes de tendas e
Federações umbandistas. Mas, antes de esmiuçarmos o descontentamento destes
umbandistas, precisamos relembrar a reportagem do jornal duque caxiense Luta
Democrática, que criminalizava os homossexuais e condenava a realização do baile do
travesti. Não temos elementos concretos que nos provem, que a escolha por se travestir de
vedete francesa no Teatro João Caetano seja resultado da reportagem de cunho
homofóbico, produzida por um jornal da cidade onde dirigia seu terreiro de candomblé.
Apesar das acusações ofensivas na imprensa à sua condição sexual, Joãozinho da
Goméia, desde a publicação do livro A Cidade das Mulheres, escrito pela antropóloga
norte- americana Ruth Landes, nunca mais foi abordada. De fato, ele não havia levantado
em nenhum momento alguma “bandeira” de pertencimento à comunidade gay. A sua
atuação no Baile do travesti, para Joãozinho havia cumprido dois propósitos: um explícito
e um implícito. Joãozinho, sempre brincou o carnaval nas ruas do bairro da Liberdade que
tinha a grande vocação para celebrar a cultura negra. A personalidade transgressora de
Joãozinho encontrara no universo travesti da Praça Tiradentes a oportunidade de se rebelar
contra todo o moralismo extremado queo perseguira desde os tempos de Salvador.
Acreditamos que a Duque de Caxias, de 1956, comandada pela emblemática figura
de Tenório Cavalcanti, proprietário de um jornal que se autodeclarava como um “Jornal de
luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar”, era um local em que viceja o
preconceito contra homossexuais e que as ofensas feitas na reportagem de 1955, tenham
provocado e exigido um posicionamento público de Joãozinho da Goméia que era
conhecido por ser acolhedor com pessoas que viviam a margem da sociedade. Lembramos
que em 29 de junho 1950, o Diário Carioca anunciou a prisão da travesti Bibi dos Amores,
identificada como filha de santo e cambono da Goméia, sugerindo a possível existência de
uma rede de proteção a travestis e homossexuais, dentro do terreiro, o que daria sentido ao
seu suposto ato político no João Caetano. É muito provável que a decisão seja fruto de um
ato político de combate ao preconceito contra a sua condição sexual.
181
365
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=025909_05&Pesq=baile%20do%20travesti&pagfis=1
8853
182
366
Descreveram-se os temas de cada fantasia: Mata Hari, Cascata, Pássaro sagrado, Fonte dos desejos, Pavão
Dourado, Gueixa estilizada, Mademoiselle de Paris, Fundo do Mar, Toda Vedete, Paris Alegre, Procurando
Alguém, Tentação, Bailarina oriental, Sol e chuva, Lido de Paris, Rouxinol, Folies Bergère*, Bailarina,
Luxúria, dentre outras.
184
367
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030678&pesq=%22desfile%20de%20anormais%22&
pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.br&pagfis=5160
368
LODY e SILVA, 2002, p.163.
369
Acreditamos que os autores podem estar se referindo a alguma instituição herdeira da União das seitas
afro-brasileiras. Afinal, pegando o exemplo das Federações de Umbanda na região sudeste que proliferaram
após a criação da primeira federação de Umbanda, a União Espírita do Brasil (UEUB) EM 1939, por Zélio de
Moraes e outros líderes umbandistas.
370
Carlos Nobre, Elizabeth Castelano Gama, Thiago Almeida Ferreira, dentre outros.
185
371
Sem contar que as travestis estavam cada vez mais presentes nos bailes à fantasia, como o baile de Gala do
Theatro Municipal, criado pelo museólogo e carnavalesco Clovis Bornay na década de 1930. Com o
crescimento dos bailes de Gala pela cidade, abriu-se um caminho para que homossexuais participassem das
escolas de samba na categoria de destaque de luxo, um lugar onde Joãozinho da Goméia será inserido a partir
da década de 1960.
372
Diário da Noite, 7 de fevereiro de 1956.
186
páginas de jornal e de livros. Há dias antes 373, Jorge Manuel da Rocha, o presidente da
Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, denunciava Joãozinho por ter forjado uma
identidade religiosa de Babalorixá, já que segundo Jorge, ele não havia sido iniciado em
um terreiro de culto verdadeiramente africano. Para o presidente da Federação, a iniciação
havia sido concretizada em uma tenda espírita de caboclos e que apenas após a morte de
Jubiabá, Joãozinho havia buscado amizade com pessoas do culto africano 374,com as quais
aprendeu alguns ensinamentos tradicionais. As acusações à identidade religiosa e ao
caráter de Joãozinho acontecem nas vésperas do baile que inseriria Joãozinho em uma
demanda com o povo de santo baiano. As acusações feitas pelo presidente da Federação
baiana passam a ser reproduzidas por umbandistas de todo o país e usadas como fio
condutor para promover a interdição do terreiro da Goméia, e a proibição do exercício da
atividade religiosa, partindo dos princípios constitucionais que constavam no parágrafo 7,
do artigo 141, da Constituição Federal de 1946, que atestava ser inviolável a liberdade de
consciência e de crença, salvo se não contrariasse a ordem pública e os bons costumes. O
“escândalo” causado no núcleo umbandista por causa da participação de uma liderança
religiosa travestida de vedete no carnaval gerou a reprovação também da Confederação
Espírita Umbandista, pertencente a Tancredo da Silva Pinto, gerando sérias ofensas a
integridade e honra do pai de santo Joãozinho da Goméia:
373
Diário da Noite, 07 de fevereiro de 1956.
374
Andréa Mendes, fala de Mãe Samba em sua dissertação de mestrado Vestidos de realeza: fios e nós centro-
africanos no candomblé de Joãozinho da Goméia. A autora informa que Joãozinho havia contado com
esta ajuda para conhecer melhor os mistérios dos rituais da sua religião, realizando todos os ritos necessários
para que Joãozinho pudesse legitimamente chefiar seu terreiro: “Esse ritual foi realizado como de costume,
dentro da camarinha; no entanto, não houve festa pública para dar publicidade ao fato, o que de certa forma
colaborou para queele continuasse sendo mal visto e a sua autoridade contestada”. Ver as páginas 77 e 78.
375
Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1956.
187
Brinco carnaval desde os 16 anos, quando eu pulava nas ruas e nos clubes da
Bahia. Digo mais: sempre brinquei, e continuarei brincando, pois não vejo nisso
bicho de sete cabeças. Ora, que há mais em a gente se fantasiar de mulher? Serei
eu, por ventura. O primeiro Adão com o vestido da Costela que apareceu no
376
Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1956.
188
Rio de Janeiro? Todos os anos eu boto uma fantasia diferente. No ano passado
saí fantasiado de Associação Brasileira de Imprensa e Associação Brasileira de
Rádio. E, prometo que nos carnavais vindouros, me apresentarei dentro dos
modelos originais, pois considero a originalidade uma virtude. (...) e antes de
brincar pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de ter eu me fantasiado
de mulher não implica em desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de
democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram,
superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não
abusemos do livre arbítrio.
377
Disponível em: https://dicionariompb.com.br/joaozinho-da-gomeia/dados-artisticos
378
O Jornal, 18 de novembro de 1956.
379
Última Hora, 29 de outubro de 1956.
380
Revista do Rádio, 9 de agosto de 1958
381
Jornal de Umbanda, 15 de fevereiro a 28 de março de 1959.
190
382
Disponível em: Jornal Última Hora :
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&pasta=ano%20195&pesq=%22Rei%20do%2
0candombl%C3%A9%22&pagfis=33541
191
383
Disponível em: Jornal de Umbanda: Órgão noticioso e doutrinário da União Espiritista
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=111848&pasta=ano%20195&pesq=%22Rei%20do%2
0candombl%C3%A9%22&pagfis=458
384
Diário de Notícias, 28 de maio de 1958.
385
A Partir de 1965, Joãozinho surge na imprensa pernambucana, brasiliense e capixaba como convidado dos
terreiros de candomblé e de umbanda, e dos Departamentos de Cultura e Turismo para se apresentar em
Festivais folclóricos, como os do Xangô de Pernambuco.
192
386
Revista do Rádio, 6 de março de 1954.
387
O jornal Gazeta de Notícias de 24 de março de 1954, informa que Joãozinho trabalhou para o sucesso de
Marlene que se esqueceu completamente dos favores prestados no passado.
388
Carlos Machado renovou a noite do Rio de Janeiro, após o fechamento do Cassino da Urca. Os autores
Leo Feijó e Marcus Wagner em Rio Cultura da noite comentam que Carlos inventou o couvert artístico,
viabilizando custos para um público mais restrito. Inventou um novo formato musical com talentos da época
193
fica visível a partir de meados de 1956, quando Walter Pinto leva uma comitiva de
produtores e empresários norte-americanos e mexicanos, até o terreiro da Goméia em razão
da festa dedicada a Iansã no dia 4 de dezembro. Nesta comitiva está também o ator Grande
Otelo e a cubana Emelia Pérez Castellanos, conhecida pelo nome artístico de Ninón
Sevilla. O interesse pela Goméia além de turístico, também era profissional. Joãozinho se
integraria ao elenco do filme “Mulher de Fogo”, bailando com suas filhas de santo
alguns passos encenados no candomblé, que seriam os traços do folclore baiano
presentes naquele filme. O filme 389 foi lançado na imprensa no mês de agosto de 1958, com
o elenco estrelado por Grande Otelo, Walter Pinto e suas girls, Joãozinho da Goméiae suas
filhas de santo, e a atriz Ninon Sevilla. 390
como Grande Otelo, Ataulfo Alves, Marlene, Emilinha Borba, Dick Farney, Elza Soares Elizeth Cardoso e
Ângela Maria. . .
389
No mês de agosto de 1958, surge na imprensa anúncios do filme “Mulher de Fogo”, baseado no romance
de JoséMauro de Vasconcelos, com direção de Tito Davidson e Produção de Artistas Associados Filmes Ltda.
e Mier & Brooks S.A. México, e direção de fotografia do norte-americano Jack Drapper.
390
O Filme foi amplamente divulgado por todo mês de agosto de 1958 em O Jornal, Diário da tarde,
Diário da Noite.
391
VENEZIANO, Neyde. O sistema vedete. Revista Repertorio, nº17, 2011.2, p.66.
194
392
RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço. Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de
Janeiro, do século XIX a 1980. Florianópolis: revista Esboços, v.23, n.35, 2016, p.103.
195
Figura 61: A Boate Fred´s, onde Joãozinho da Gomeia se apresentou no ano de 1960.
Fonte: http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com/2021/01/boate-freds.html
393
Não consegui retirar este comando em vermelho.
394
FEIJÓ e Wagner, 2014, p.190.
395
Idem
396
As informações sobre a Boate Fred’s são contraditórias. Encontrei vários nomes de diretores artísticos,
assim como de responsáveis pela boate. Informações que não afetam a escrita da Dissertação, mas é
importante chamar atenção para este dado.
196
musicais Mário Meira Guimarães, destacava nas revistas de fãs a presença de Carminha
Mascarenhas, e da famosa vedete Rose Rodelli, uma das “certinhas do Lalau” 397.
O espetáculo da Fred’s tinha sido criado para agradar, principalmente aos turistas,
que pela primeira vez assistiriam a um espetáculo de macumba no palco de uma boate. O
Diário Carioca398considerava incontestável o sucesso do show de Ari Barroso, que tinha
levado muita gente à boate realizada nas noites de sexta-feira. A estreia de “Quindins de
Iaiá” despertou grande expectativa do elenco, que foi anunciado para estrelar o espetáculo.
Com duração de 1 hora e 40 minutos, decepcionou apenas pelo formato que não caberia
dentro de um show de boate. As críticas recomendaram que o espetáculo contasse com o
auxílio de um novo diretor artístico que o tornasse o espetáculo coeso, de forma que, os
artistas em cena conseguissem interagir entre si. Independente das críticas ao formato,
quanto a sua totalidade cênica, contava com um bom elenco, mesmo que mal aproveitado.
Participavam a vedete Anilza Leoni, que interpretou o orixá Iemanjá, e Carminha
Mascarenhas, que não foi considerada pela crítica como apropriada para compor o
personagem. Em cena estavam elementos folclóricos como as rendas do nordeste, a
musicalidade do Trio Nagô, a presença dos orixás como Iemanjá, dançarinos de frevo, e o
“candomblé turístico” de Joãozinho da Goméia, a crítica desmereceu a presença: “Salva-se
apenas o ritmo dos atabaques, outrora excelente bailarino, adiposo e pesadão, está a
merecer aposentadoria. E os seus demais elementos são bisonhos”.
A trajetória de Joãozinho na boate do Leme, não aconteceu de forma tranquila, pois
até o afastamento da vedete Rose Rondelli, causado por desentendimentos com a direção
artística do local, foi relacionado ao pai de santo. Mais uma vez a imprensa havia
encontrado em Joãozinho a arma para crescimento da venda de periódicos. A Revista do
Rádio faturou bastante, gerando uma celeuma entre o pai de santo e Rose Rondelli.
397
Era uma lista anual das mulheres mais bonitas do Brasil, produzida pelo jornalista Sergio Porto, entre os
anos de 1950 e 1960.
398
Diário Carioca, 31 de março de 1960.
197
Figura 62: Cartaz de divulgação do espetáculo criado por Ary Barroso para a boate Fred’s.
Publicação do jornal Diário Carioca de 14/04/1960. Fonte: BNDigital399
Acusaram Joãozinho de ter feito um despacho para afastar a vedete dos palcos da
boate, o que remete a alguns posicionamentos exaltados que Joãozinho tivera em outros
momentos, indicativos de que o pai de santo, de fato, fizesse uso da sua força espiritual
para afastar seus oponentes400. Só que nos bastidores da boate Fred’s se dizia que a razão
do pedido de rescisão de contrato seria por conta de um despacho que o pai de santo
Joãozinho da Goméia, havia feito para que a vedete abandonasse o elenco da peça. Houve
quem afirmasse que assistiu o despacho sendo preparado nas coxias da boate.
Joãozinho ao ser procurado informou que não havia nenhuma razão em especial para o
mal feito, e que a fofoca era fruto da imaginação daqueles que desejavam fechar seus
caminhos como artista. Eram costumeiras as acusações a Joãozinho da Goméia neste
sentido, o que nos remete à memória da sua prisão em 1942, quando havia sido acusado de
aceitar a encomenda de um despacho que seria feito na porta do Palácio do Catete.401
399
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_05&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20
GOMEA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=1086
400
Cito o caso de um conflito com o pai de santo Benedito Espírito Mau do culto Omolocô. A desavença que
também foi transformada em uma série de reportagens enfatizava a disputa por Elvira de Paula Pinto.
401
GAMA, 2012, p.75.
198
Figura 63: “Não faço despachos contra artistas! afirma Joãozinho da Goméia. o famoso babalorixá
desmente que tenha sido procurado para fazer mal para alguns artistas - e especialmente a uma
estrela. Publicação da Revista do Rádio de março de 1960. Fonte: BNDigital402
402
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=32329
199
Figura 64: “Não fiz despacho contra Rose Rondelli! isso é brincadeira de mau
gosto! Publicação do jornal Ultima Hora de 28/03/1960. Fonte: Centro Nacional
de Folclore e Cultura Popular Digital403
403
Disponível em:
http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Recortes%20de%20Jornais&pesq=joaozinho%20da
%20gomeia
200
Figura 65: “Babalaô da Goméia fará trabalho contra Padilha”. Matéria sobre o protesto de Joãozinho na
imprensa contra o delegado Deraldo Padilha. Publicação do jornal Ultima Hora de 19/08/1960. Fonte:
BNDigital405
404
Revista Veja 24 de janeiro de 1973.
405
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=61471
201
A partir dos anos de 1960, Joãozinho angariou muitos filhos de santo no meio
artístico. O sucesso com a classe que já era costumeiro foi intensificado e divulgado na
imprensa. A coluna “Música em conserva” do Última Hora revela que a cantora
Ângela Maria, além de filha de santo de Joãozinho, estava visitando com frequência seu
terreiro para fazer obrigações, despachos e tomar banhos de ervas. A coluna “Nos
Domínios da Fé” do Luta Democrática406revela que a comediante Dercy Gonçalves não
saía mais de Caxias após ter anunciado que seria iniciada no candomblé da Goméia. As
Revelações dos novos filhos de santo fortalecem o seu prestigio dentro do meio artístico,
confirmando a sua face de mediador cultural, o que passou a garantir a sua presença
nestes espaços mais sofisticados, que desconstruíram a ideia de acesso aos pais de
santo, ligados apenas aos terreiros. Com a presença de Joãozinho em espaços
consagrados ao entretenimento, naturaliza-se a presença do povo de santo nestes lugares. O
projeto construído por Abdias do Nascimento, a partir da fundação do Teatro Experimental
do Negro, em 1944, se torna realidade, e o povo do santo ocupa a cena cultural carioca de
vez.
O contato diário com este universo de opulência e sofisticação pode ter inspirado
Joãozinho da Goméia a investir em um trato social mais refinado, afinal, não podemos
dizer que as pessoas da alta sociedade que frequentavam o terreiro da Goméia, eram as
mesmas que frequentavam casas de espetáculo e boates. E, por isso, se atraíam pelo luxo
encontrado dentro do terreiro de Joãozinho, que investia pesado no requinte, como já foi
mostrado aqui anteriormente. A coluna “Black Tie” do Última Hora escrita pelo colunista
social João da Ega, informa que as noites de sábado para domingo, sempre eram
encerradas em meio a fervores místicos sentidos por figuras de destaque do nosso meio
social, atraídas pelo candomblé da Goméia. 407
O “uísque” e o “strogonoff” que havia sido
recém-apresentado aos brasileiros pelo Barão Von Stuckart, dono da boate Vogue, o
templo da vida noturna carioca entre fins da década de 1940 e 1950.
Esta intensificação na comunicação entre os artistas e Joãozinho da Goméia, em
razão de obtenção de sucesso nos carnavais, é explicitada pela cantora Ângela Maria em
biografia escrita por Rodrigo Faour408, na qual ela menciona a dificuldade de se gravarem
músicas carnavalescas tendo um repertório de cantora romântica. A ausência do glamour,
tão associado ao meio artístico da época, revelava a inabilidade de muitos cantores
406
Luta Democrática, 27 e 28 de novembro de 1966.
407
Última hora, 30 de setembro de 1952.
408
FAOUR, 2015, p. 316.
202
409
Para acompanhar a trajetória de Joãozinho junto aos artistas, verificar os links relativos à coluna Mexericos
da Candinha: Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=35855,
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=35127,
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=34820
203
410
Reportagem fotográfica disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=Jo%C3%A3oZINHO%20DA%20GO
MEiA&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=11903
204
tamborins. De acordo com o Correio da Manhã411 a Avenida Rio Branco continuava sendo
o ponto de concentração de foliões que pretendiam extravasar a sua alegria. A multidão
dividida em formação de blocos e cordões, ou isoladamente, cantarolava com entusiasmo
as marchas e sambas, que conquistaram os corações do povo nos últimos meses. Com a
demolição da Galeria Cruzeiro 412 em 1957, os foliões tiveram que migrar para o Largo da
Carioca, nos dois coretos armados pelo Departamento Geral de Turismo e Certames, onde
as emissoras radiofônicas enviavam seus artistas para animar a população.
O povo que buscava os pontos de celebração do centro da cidade era o mesmo que
se integravam as agremiações carnavalescas, nos desfiles organizados entre a Avenida
Presidente Vargas e a Avenida Rio Branco. Alguns dos clubes carnavalescos localizados
nas áreas periféricas da cidade eram responsáveis pela elaboração dos desfiles, com prévia
autorização da Delegacia Especializada de Jogos e Diversões, que permitia o
funcionamento dos clubes na capital durante o carnaval. As atividades de 1960 eram
supervisionadas pelo delegado Antônio de Assis Lucena, que contava com o auxílio de 26
investigadores que instalavam o seu QG em frente do prédio da Caixa Econômica Federal.
Além dos desfiles das Escolas de Samba, divididas em três grupos, existiam os
desfiles de outras organizações, como blocos, grupos de frevo, ranchos e as Grandes
Sociedades Carnavalescas. A apuração final dos resultados era promovida pelo
Departamento Geral de Turismo e Certames, sendo realizada no auditório da Biblioteca
Estadual, com início às 15 horas, e se entendendo na maioria das vezes até as 20h15 m.
Tratava-se de um evento no qual estariam presentes apenas os presidentes das agremiações
que participavam dos desfiles e os jornalistas que pertenciam a Associação de Cronistas
Carnavalescos.
A Secretaria de Turismo distribuía o programa de desfiles, estipulando a data de
início para as 20 horas e a finalização às 05 horas da manhã, com os desfiles. As Escolas
de Samba ganhadoras do desfile da Avenida Rio Branco recebiam um cheque no valor de
360 mil cruzeiros, e a promoção para concorrer no próximo ano na Avenida Presidente
Vargas, ao lado das Super Escolas do primeiro grupo do carnaval, podendo ganhar a
importância de 600 mil cruzeiros, caso chegassem ao primeiro lugar do campeonato, com
411
Correio da Manhã, 1 de janeiro de 1960.
412
A Galeria Cruzeiro e o Hotel Avenida eram prédios suntuosos localizados na Avenida Rio Branco.
Foram demolidos em 1957 para dar lugar ao edifício da Avenida Central. Conheça a Galeria Cruzeiro:
https://www.youtube.com/watch?v=VfSTEQKGLBA
206
413
Infelizmente, não encontramos produção de estudos acadêmicos dedicado aos frevos carnavalescos.
414
LOPES, Nei e SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da História Social do Samba. 6ª edição: RJ, Civilização
Brasileira, 2020, p. 41.
415
Os autores ainda citam o Bafo da Onça do bairro do Catumbi, o Cacique de Ramos e o Boêmios de
Irajá.
416
Idem, p.139.
207
fantasias luxuosas417. As Grandes Sociedades forneceram alguns dos elementos que mais
tarde iriam caracterizar o desfile das escolas de samba: o uso de carroças puxadas por
burros enfeitados a caráter, que viera a inspirar a inserção dos carros alegóricos.
Em início dos anos 60, eram ao todo, 54 escolas de samba que iniciavam seus desfiles às
20 horas de domingo: Imperatriz Leopoldinense, Império da Tijuca, Aprendizes de Lucas,
Unidos da Capela, Estação Primeira de Mangueira, Acadêmicos do Salgueiro, Portela,
Império Serrano, União de Jacarepaguá, Mocidade Independente, Unidos do Cabuçu, Tupi
de Brás de Pina, União do Centenário, Aprendizes da Gávea, Caprichosos de Pilares,
Unidos da Vila de Santa Teresa, Unidos de Vila Isabel, Unidos da Tijuca, Unidos de Padre
Miguel, Império de Marangá, Lins Imperial, Paraíso do Tuiuti, Independentes do Leblon,
São Clemente, Acadêmicos de Santa Cruz, Paraíso de Santa Teresa, Unidos do Jardim,
Acadêmicos do Engenho de Dentro, Unidos de Bangu, Unidos de São Carlos, Unidos do
Jacaré, Independentes de Mesquita, Unidos de Maguinhos, União de Jacarezinho,
Inferno Verde, Em cima da Hora, Unidos de Nilópolis, Império de Nilópolis, Império
do Campo Grande, Unidos do Éden, União da Ilha do Governador, Aprendizes da Boca do
Mato, Acadêmicos do Engenho da Rainha, Beija Flor, Unidos da Vila São Luís,
Caprichosos do Centenário, União da Piedade, União de Vaz Lobo, Unidos da Ponte,
Independentes do Zumbi, Unidos do Uraiti, Cartolinhas de Caxias, Acadêmicos de
Bonsucesso e Unidos da Viradouro.
A presença das agremiações carnavalescas no centro da cidade possibilitou o
deslocamento de sujeitos negros de áreas periféricas como os morros, zona norte,
Baixada Fluminense e subúrbio, para as áreas centrais da cidade, em prol do
desenvolvimento de uma arte, desenvolvida a partir das experiências de associativismo,
entre estes sujeitos. A transferência e o deslocamento destes saberes/fazeres evocam
aspectos da subjetividade destes grupos, que constroem sua identidade no sentido da
coletividade, que propõem a disputa e a competição como forma de existência e de
resistência. Entendemos, portanto, que o deslocamento desses sujeitos não reconstrói as
identidades desses grupos, mas reafirma. Os “produtos artísticos e os códigos estéticos”418,
neste sentido, não foram alterados pelo deslocamento para o centro da cidade, em função
dos desfiles carnavalescos, ao contrário, eles foram preservados e estimulados quanto à
conservação dos seus elementos originários. Nem mesmo a construção de novas redes
culturais, com outros sujeitos ou outros grupos, conseguiu alterar a forma original, e por
417
Ibidem, p. 139.
418
GILROY, p. 170.
208
isso, acreditamos que muitas dessas agremiações não tenham resistido ao processo de
modernização que o carnaval carioca sofreu a partir da inauguração do Sambódromo pelo
vice-governador Darcy Ribeiro em 1984, no qual toda a estrutura que envia os desfiles e a
atuação das Escolas de Samba foi bruscamente modificada.
O antropólogo Roberto Da Matta419, ao analisar o universo do carnaval carioca
quanto à complexidade da diversidade, e dos vários planos de manifestação, chama
atenção para a amplitude do desfile carnavalesco, e de como os espaços privados e
públicos, ao mesmo tempo em que dialogam, se contrapõe entre si, tanto quanto a simples
estética do evento, como quanto ao ritual que envolve organização, divulgação,
ornamentação, circulação de pessoas, financiamento da festa, contratação de profissionais
e funcionamento. Como quanto ao diferencial entre um ser realizado dentro de um
ambiente fechado e outro na rua. Da Matta também reflete sobre o conceito de espaço
fechado, considerando que, no ambiente público do carnaval de rua, as agremiações
representam esta ideia de círculo fechado, e de fluidez nestas fronteiras de circulação de
pessoas. Um importante diferencial da sua análise em relação aos carnavais do Rio de
Janeiro. A complexidade sociológica do evento apresenta diversas possibilidades de
diálogo com a ocupação dos espaços públicos e privados do folião/carnavalesco Joãozinho
da Goméia, que se apropria da festa e nela constrói a sua representatividade: negro, baiano,
candomblecista:
419
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar editores, 1981.
209
420
Falaremos sobre isso mais adiante.
421
Ver o artigo em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/55012
210
brincadeira do folião Joãozinho que havia sido convidado pela sua identidade artística e
religiosa. O que conhecemos hoje como “guru” dos artistas que prestigia no carnaval os
camarotes das empresas cervejeiras, sempre acompanhado de artistas famosos, certamente
tenha surgido com a presença de Joãozinho nos bailes de artistas dos anos 60. Embora,
tenhamos pouquíssimos registros que localizam a presença de Joãozinho nos carnavais de
clubes fechados, ou nos salões nobres de bailes caracterizados pelo luxo, podemos concluir
que a sua presença nesses lugares não está ligada aos desfiles de fantasias de luxo, como
sugerem algumas biografias dedicadas a sua trajetória de vida. O único registro que
encontramos de Joãozinho ligado ao uso de fantasias luxuosas foi no Baile do Travesti do
Teatro João Caetano em 1956, e o concurso de fantasias do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro em meados de 1960, quando se vestiu de Cleópatra.
Viúva. No convite, Carlos Aned, convocava diversos deuses mitológicos para a festa que
entraria para a história do roteiro momesco de 1960. A festa em estilo Greco-romano
aconteceu na nova sede do Clube de Regatas do Flamengo às 22 horas de uma sexta-feira
pré-carnavalesca. Foi concebida pelo cenógrafo chileno Juan Lajana, que reviveu
ludicamente as antigas cenas dos amores de Vênus, Baco, Juno, Apolo, Júpiter, Netuno e
Vulcano. O convite exigiu apenas que os convidados estivessem fantasiados a caráter,
luxuosamente ou vestidos a rigor. O personagem Vulcano foi interpretado por Joãozinho
da Goméia e Netuno pelo figurinista e carnavalesco Evandro Castro Lima, que teve sua
trajetória no carnaval carioca definida pelo luxo e a originalidade emprestada para suas
criações artísticas ligadas aos concursos de fantasia de luxo que aconteciam nos bailes de
gala da cidade. Este baile não teve muito sucesso quanto à ornamentação e a faturação. Os
organizadores nutriam grande expectativa quanto à promoção do baile, no entanto, os
esforços foram em vão, gerando o prejuízo de 300 mil cruzeiros, aos seus
idealizadores e organizadores, que só de aluguel do salão tiveram uma despesa de 80
mil cruzeiros.
Figura 68: “O famoso Joãozinho da Goméia de rei Netuno com Zélia Hoffman”. Fonte: BNDigital423
A quarta edição do baile do Coliseu aconteceu no dia 23 de fevereiro de 1962, no
423
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=144428&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A9ia
&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=31377
212
Teatro João Caetano, cuja decoração evocou os dias de destruição da Roma Antiga, foi
organizado pela Associação de Cronistas Carnavalescos. Yolandino Maia organizou um
grupo de foliões para representar o banquete de Agatão, como se fosse uma breve cena
teatral. O cronista Paulo Salgado fez o papel do geógrafo e viajante grego Pausânias, que
havia em tempos antigos construído um itinerário geográfico sobre as terras gregas. Os
bailes do Coliseu eram eventos teatrais frequentados em sua grande maioria por artistas
de rádio, de teatro e de cinema, nos quais se buscava interpretar personagens da
história antiga e da mitologia grega e romana. A cada um era dado um personagem para
interpretar, com um roteiro no qual se contava a biografia e os recursos cênicos que
deveriam ser utilizados pelo seu interprete. Assim como o baile dos artistas e o baile das
atrizes, que contavam com a organização e o patrocínio da Associação de Cronistas
Carnavalescos, a ornamentação sempre era realizada por cenógrafos e técnicos contratados
da Escola Nacional de Belas Artes, que atuavam em outros renomados bailes da cidade,
como os do Hotel Gloria e do Hotel Quitandinha, localizado na cidade de Petrópolis.
424
Correio da Manhã, 8 de fevereiro de 1962. A informação é reproduzida em uma notinha no Diário da
Noite de 12 de fevereiro.
425
FERREIRA, Thiago Almeida. João da Goméia: transgressões e gênero no candomblé Ver em:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/15310/1/2016_ThiagoAlmeidaFerreira_tcc.pdf
213
Principalmente, no que se refere ao seu lado folião. Por ser dono de uma trajetória
de vida polêmica e controversa, apta a questionamentos, quanto à validade das
informações, estes episódios são passiveis de intensos processos investigativos, que nem a
consulta às narrativas orais se sustentariam sozinhas. O que podemos entender sobre este
envolvimento nos bailes dos clubes esportivos e dos salões nobres, é que o seu
reconhecimento pelas revistas de fãs como artista e não como pai de santo, apresenta pela
primeira vez a separação dessas duas identidades. O carnaval de 1956 gerou esta divisão
das identidades artística e religiosa. O Folião Joãozinho da Goméia deixa de ser
identificado como pai de santo, o que não vai acontecer na sua experiência à frente das
escolas de samba, nas quais o seu vínculo com o candomblé será destacado e reforçado. A
sua presença como “destaque de luxo” no Império da Tijuca e do Império Serrano, a partir
de 1964, pode ter lhe aberto às portas para participar do desfile de fantasias de luxo do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1965. Afinal, o luxo e o glamour da época dourada
dos anos 1960, contavam com nomes gloriosos como Clovis Bornay, Evandro de Castro
Lima, Marie Ventre, Augusto Lima, Marlene de Paiva, Eutálos Figueiredo, Domingos
Otero, dentre outros que fizeram nome nas esplendorosas noites de Gala dos luxuosos
concursos de fantasia do carnaval carioca.
Figura. 69: Reportagem sobre a participação de Joãozinho no Baile patrocinado pela Associação de Cronistas
Carnavalescos. Publicação feita pelo jornal Diário da Noite, 06/02/1962. Fonte: BNDigital.426
426
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_04&pesq=joaozinho%20da%20gom%C3%A
9ia&pasta=ano%20196&hf=memoria.bn.br&pagfis=17823
214
Figura. 70: Joãozinho registrado pela Revista do Rádio de fevereiro de 1960, a qual informa que só
naquele ano havia comparecido a vário baile fantasiado, usando fantasias riquíssimas e exóticas. A Revista
cita a participação do Ramsés II no Baile das atrizes, que se realizava no Hotel Glória, despertando a
curiosidade se esta fantasia foi utilizada por duas vezes. Percebam que Joãozinho está vestido com traje real,
em sua cabeça está fixada uma coroa, e com o cetro na mão, João está sentado em uma simulação de trono
carregado por fortes homens negros que figuram a imagem de escravos. Fonte: Revista do Rádio, 1962.
carnaval da rua, que o antropólogo Roberto Da Motta, se dedicou a analisar em seu livro
Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro427. O
antropólogo entende que por mais que a rua apresente espaços de poder dedicados a
convidados especiais que ocupam áreas nobres como camarotes, tal como nos clubes da
elite, as ruas são penetradas pelo povo. Os desfiles da Avenida Rio Branco e da Cinelândia
tinham o poder de ser transformadas no palco de um teatro:
427
DA MATTA, Roberto, 1981.
216
Mario Pereira, Manoel Queiroz, Aylton dos Santos, Emílio Marcatte, Manuel Pinto, entre
outros.
A força da representatividade da realeza certamente foi o que trouxe Joãozinho para
as escolas de samba, tanto que além do Império da Tijuca, ele fez parte do Império
Serrano, a partir de 1966, com o enredo “Glórias e Graças da Bahia” quando a identidade
baiana e de liderança religiosa foi o grande motivo da sua contratação. O homem
nordestino, homossexual, negro e macumbeiro passaria a ocupar o lugar de destaque dentro
do projeto de carnavalescos que encontraram na sua representatividade a oportunidade de
contar as histórias dos nossos personagens históricos como D. João VI, D. Pedro II, e
porque não o Rei Nagô, Ganga Zumba, e Omulu, personagens identificáveis com o
universo afro-religioso, ao qual Joãozinho da Goméia pertencia, não apenas pela sua
identidade religiosa, como também por representar a face do construtor de “contra
narrativas” e “narrativas contra hegemônicas”428 sobre a cultura afro- brasileira. A sua
presença também pode ser sentida como a aclamação do homem negro que venceu na vida.
O homem negro que rompeu o “véu da invisibilidade”429 e se inseriu em um universo que
possibilitou com que se reafirmasse a identidade pessoal, do João Alves Torres Filho, um
baiano que conseguiu ascender socialmente através da construção de sentidos que deu a
sua trajetória de vida entre círculos artísticos e religiosos.
O título de Rei do Candomblé deu sentido a sua trajetória nas escolas de samba, nas
quaisa relação entre a macumba e o samba é quase que indissociável, porque são elementos
que remontam ao continente africano. Tanto que a “brasilidade” presente nos palcos de
cassinos, boates e teatros de revista existiu carregada da sonoridade do samba e dos
elementos Afro- religiosos, que deságuam no carnaval, servindo de base criativa para
carnavalescos, compositores e tocadores de instrumentos de origem e influência africana e
indígena. Samba, macumba, candomblé, batuque, folclore, cordões, ranchos, capoeira,
ganzá, tamborim, cuíca, atabaque, tambor, são todos elementos de um mesmo processo de
conexão cultural construído pelas conexões culturais afro-atlânticas produzidas pela
Diáspora negra, nas quais o Rei do Candomblé, assim como as realezas dos ranchos
carnavalescos conseguiram obter o seu lugar de destaque, promovendo a imagem de uma
realeza liberta dos malefícios causados pela destruição operada pelo sistema colonial.
428
BORA, HADDAD, NATAL, 2020, p. 9.
429
Uso véu da invisibilidade sem correspondência alguma com o conceito construído por W.E.B. Dubois,
autor da obra As almas do povo negro.
217
430
BORA, HADDAD, NATAL, 2020, p. 242.
431
LOPES e SIMAS, 2020, P. 45.
432
Jornal do Brasil, 11 de fevereiro de 1965.
218
As cores verde e branca, usadas pelo Império Serrano, também interessam ao filho
de Oxóssi com Iansã433 que vê a possibilidade de se divertir e homenagear seus orixás
ao mesmo tempo em que brincava o carnaval como um folião que cruzava a Avenida do
samba defendendo o seu pavilhão carnavalesco:
Os autores Raul Lody e Vagner Gonçalves da Silva informam que esta associação
de elementos que estabelecem uma ligação entre o campo do material com o do sagrado,
gera uma “continuidade”, ou seja, estabelece uma conexão entre a ação do religioso e do
folião, o que também vem a construir uma transposição de elementos do sagrado para o
profano. Esta transposição pode ser verificada na trajetória da escola de samba
Acadêmicos do Salgueiro, a partir de 1960, como foi abordado ainda a pouco. A
representatividade folclórica de Joãozinho da Goméia também é um dos elementos que
vem a justificar a sua presença no Império Serrano, que em 1966, leva para a Avenida o
enredo “Glória e graça da Bahia”, que contou a história do Estado da Bahia, com seus
aspectos culturais e folclóricos.
Ao ser entrevistado pelo Luta Democrática434Joãozinho da Goméia considera que
quem não havia visto um candomblé não conhecia a velha Bahia e desconhecia também as
danças das iaôs possuídas pelos toques dos atabaques. A oportunidade de se
conhecer um “autêntico” candomblé baiano era com o Império Serrano, a escola que
depositou inteira confiança nas suas habilidades. A demonstração da dança folclórica
baiana, do maculelê e da capoeira de Angola, que contou com a presença de dez
capoeiristas na Avenida, além de simular a movimentação dos mercadores baianos do
século XIX, o Império Serrano conquistou a menção positiva na crítica dos jornais. Por
outro lado, o Jornal do Brasil435 teria considerado que a presença de Joãozinho significava
o menosprezo aos sambistas do morro. A presença de elementos estranhos à comunidade,
representados por “destaques de luxo”, não eram recebidos com bons olhos pela
433
Paulo Siqueira informa que a cor de Iansã no candomblé de Angola é o branco.
434
Luta Democrática, 7 de janeiro de 1966.
435
Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1966.
219
A presença baiana não foi interesse dos carnavalescos apenas a partir dos anos
60, já no desfile de 1933, quatro agremiações transformaram elementos da
cultura baiana em tema para os seus enredos, A Azul e Branco, do Salgueiro,
apresentou ‘Uma noite na Bahia’; a Estação Primeira de Mangueira, ‘Uma
segunda-feira do Bonfim da Ribeira’; os Príncipes da Floresta (do Salgueiro),
‘Passeata nas florestas da Bahia’; e a Mocidade Louca de São Cristóvão, ‘Antiga
Bahia’. Após a oficialização dos desfiles, são também inúmeros os exemplos,
‘Romaria à Bahia’, Salgueiro, 1954; ‘Glória e graças da Bahia’, Império Serrano,
1966; ‘Bahia de todos os deuses’, Salgueiro, 1969; ‘Bahia, berço do Brasil’, Em
Cima da Hora, 1972, ‘Lendas do Abaeté’ Mangueira, 1973; ‘Arte negra na
legendária Bahia’, Unidos de São Carlos, 1976; ‘Mar baiano em noite de gala’,
Unidos de Lucas, 1976; ‘Mãe Baiana, mãe’, Império Serrano, 1983; ‘Ave
Bahia, cheia de graça’, Acadêmicos do Cubango, 1988. (LOPES & SIMAS,
2020, p. 27 e 28)
O Império Serrano é marcado por ser uma escola que sempre investiu em
inovações como a introdução do prato, reco-reco, frigideira, agogô de quatro bocas na
bateria, além da criação dos destaques de luxo. A presença de Joãozinho da Goméia, no
Império da Tijuca desde 1964, já o localizava como “destaque de luxo”. O carnavalesco
220
436
Na época existia uma confusão por parte da imprensa sobre a identidade dos destaques de luxo Evandro de
Castro e Lima e Joãozinho da Goméia. A semelhança física era grande. Os dois eram baianos e obtiveram
êxito no carnaval na mesma época. Então, não posso afirmar com precisão se este da capa é Evandro ou João.
Mas como os carnavalescos Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinicius Natal usaram esta imagem para
ilustrar a presença de Joãozinho no carnaval como destaque de luxo, peguei de empréstimo a imagem para
cumprir o mesmo propósito. Ver o artigo em: file:///C:/Users/Particular/Downloads/55012-203488-1-
PB%20(4).pdf
222
e que buscam nos seus poderes mágicos a renovação dos caminhos. A duplicidade da sua
identidade encontrou no Carnaval um ponto de equilíbrio que ele talvez não tenha
encontrado nem nos palcos dos teatros, nem no seu terreiro. No carnaval encontrou a
complexa completude, foi ali que ele conseguiu exercer as suas funções e foi ali o espaço
de acolhimento promovido pela extravagância, luxo, exotismo e alegria. Foi o encontro
perfeito entre o João profano e o João Sagrado, unidos pela face de um Rei no Carnaval.
223
Quem é Joãozinho da Goméia? Uma pergunta que foi feita na introdução, e que
buscamos responder ao longo desse trabalho. Escolher uma provocação feita por Joãozinho
da Goméia em vida, como título desse trabalho de Dissertação de mestrado, foi o jeito que
encontrei para convidar os leitores e pesquisadores desta trajetória de vida, a refletir sobre
esta figura tão controversa e polêmica.
Ao buscar seus “rastros” e puxar os “fios” deixados por pesquisas anteriores,
encontrei um Joãozinho que até então, havia sido mencionado muito brevemente438: o
Joãozinho da Goméia, artista. Até então, as pesquisas se preocupavam em dar conta dos
aspectos da sua vida religiosa e a atuação artística ficou invisibilizada pelo campo de
estudos, o que é incompreensível, já que foi o campo artístico que deu visibilidade para o
religioso. Mas, também é inegável que a identidade religiosa tenha visibilizado a sua
atuação artística. Em convívio harmônico estes trânsitos construídos magistralmente por
Joãozinho, revelam a sua dupla identidade. Podemos considerar, então, que o Rei do
Candomblé é o resultado da harmonia entre esses dois corpos. O seu envolvimento, não
437
Esta frase inspirou o título deste trabalho. Foi colhida de um depoimento dado em 23 de março de 2001,
por Ileci da Oxum, a mãe criadeira do terreiro da Goméia de Duque de Caxias. Foi ela quem trouxe a muda de
Juremeira (árvore consagrada ao Caboclo Pedra Preta) de Salvador. Lembro que Ileci repetiu esta frase umas
duas vezes no final da entrevista, e me coube arrumá-la como foi publicada na monografia de graduação em
história. Ver em NASCIMENTO, 2003.
438
A revista Periferias Joãozinho da Gomeia: Educação, Candomblé e Cultura Afro Brasileira, coordenada
pelos professores Nielson Bezerra e Andréa Mendes, é a única publicação, até agora que apresenta outras
facetas de Joãozinho. Existem diversos textos que evocam aspectos culturais da sua trajetória de vida. Ver:
https://doi.org/10.12957/periferia.2020.58471
224
apenas com o campo de estudos folclóricos e afro-brasileiros, mas com a cena teatral das
Revistas da Praça Tiradentes, da zona Sul, e do carnaval carioca vai gerando mais “fios” a
serem puxados e mais rastros a serem investigados futuramente.
Conforme o trabalho ia sendo desenvolvido, fomos descobrindo seus contornos,
que revelaram novos personagens ligados a sua trajetória. Foi como abrir as cortinas de um
palco de teatro em dia de estreia, o que também revelou novas possibilidades de
investigação para futuras pesquisas. O marco finalizador, 1966, desta análise evidencia o
momento de intensificação das suas atividades religiosas e também da instalação de uma
“agenda folclórica439que é criada, a partir do desfile do Império Serrano, com o enredo
“Glórias e Graças da Bahia”, no qual o pai de santo encenou teatralmente um polêmico
“ritual de candomblé”. Uma atuação que se deu logo após o seu desligamento da escola de
samba Império da Tijuca, escola em que desfilava desde 1964, como “destaque de luxo” ao
lado de Gidé, o Rei do candomblé paulista.
A menção ao investimento em fantasias de luxo iniciou com Joãozinho da Goméia,
que passara a anualmente destacar valores próximos a Cr$ 6.800 mil cruzeiros, investidos
em adereços e fantasias, algo incomum para o universo do samba dos anos 60. Digamos
que a presença de Joãozinho acrescentou este tom ao carnaval: a competição por
investimento financeiro em fantasias, e carros alegóricos. Mesmo, que Joãozinho da
Goméia não tivesse feito parte do movimento de inserção dos “destaques de luxo” nas
agremiações carnavalescas, a sua ligação com este universo ostensivo, havia modificado
parte da estrutura dos desfiles das Escolas de Samba. Entre a rejeição e a aceitação,
Joãozinho brilhou, e encontrou um lugar no qual se identificava, pois ali, não havia críticas
que depreciassem seu gosto pelo luxo e pelo brilho.
A possibilidade de interpretar personagens também chamou sua atenção para o
carnaval. Identificamos que, a partir de 1960, não existem mais menções na imprensa sobre
a sua presença nos palcos de teatro. Ao contrário, é o período em que se destacam
439
A partir deste ano, fervilham na imprensa divulgações sobre convites destinados a Joãozinho para
participar de solenidades em centros de pesquisa, como o ato de posse da 1ª Diretoria do Centro de Pesquisas
Folclóricas, cercada de mestres de capoeira, grupos de frevo, de coco, cantadores de viola e outras
manifestações do folclore brasileiro, foram uma constante na sua vida. Só no ano citado, surgem diversas
notinhas na imprensa sobre eventos espalhados pelo Brasil, que contaram com a presença do pai de santo. A
título de exemplificação, podemos citar o evento filantrópico organizado pela Fundação Leão XIII, que levou
para o Teatro João Caetano em 16 de dezembro, um espetáculo folclórico, com o intuito de angariar
fundos para suas obras sociais. O ponto alto desta “Agenda folclórica foi o envolvimento com os
festivais folclóricos de Pernambuco organizados por candomblés do Recife, e com festivais religiosos,
organizados por terreiros de umbanda e de candomblé do Distrito Federal e de Vitória, Espírito Santo”. Com a
intensificação dos eventos que envolvem a atuação de Joãozinho como pai de santo, a partir de 1967, esta
pesquisa perderia o seu sentido inicial.
225
reportagens que tratam apenas da sua atuação no carnaval e em eventos que buscam um
sentido folclórico. A década de 1960 é, portanto, marcada pela sua atuação no campo do
folclore, só que a partir de fins dos anos 1950, somem as menções a Companhia baiana de
folclore Oxumarê. A presença de Joãozinho e das suas filhas de santo passa a ser mais
constante em eventos religiosos e folclóricos, a partir do desfile de 1966, no Império
Serrano.
Acreditamos que, toda a representação folclórica apresentada pelo Império Serrano
ao tratar de um enredo sobre a Bahia buscou em Joãozinho da Goméia o seu mais fiel
retrato: o da Bahia mandingueira, folclórica, mística e artística. A cena artística acabava,
dessa forma, por limitar as suas diversas habilidades experimentadas em momentos
distintos da sua trajetória. Os palcos de teatro dialogavam apenas com a sua dimensão
performática, corporal, mas Joãozinho queria muito mais 440. O Carnaval lhe deu tudo de
uma vez só, e ali ele ficou se apropriando do rótulo de “bailarino folclórico”, para se
destacar e se distinguir dos demais, que “estilizavam” as danças dos orixás. Acreditava
no seu potencial artístico e no seu diferencial, e sabia que aíresidia o seu encanto. Um
rótulo que por muito tempo criou enquadramentos desfavoráveis parao povo de santo, mas
que logo virou um palanque de ascensão social.
Se auto identificar como um “bailarino folclórico” foi à essência da sua trajetória,
principalmente por apontar como o pai de santo forjava suas estratégias, e, por
conseguinte, construía o seu campo de atuação. Podemos afirmar que a atuação em 1956,
travestido de vedete francesa no baile do Teatro João Caetano, revelou uma “rejeição”
atrelada a dogmas religiosos, homofobia e moralismo exacerbado que, ao invés de fechar
seus caminhos, lhe abriu as portas do estrelato e da aceitação. Afinal, a cena gay no Rio
de Janeiro ocupava desde os anos 50, os palcos das casas de espetáculo da cidade. Desse
modo, podemos concluir que a representatividade gay, baiana e negra, lhe abriu as portas
do carnaval.
Ao finalizar esta travessia, reencontrei a face do homem negro que descobri há
vinte anos na Graduação em História, quando escolhi a sua trajetória de vida como tema do
meu trabalho de conclusão de curso. Naqueles tempos, já havia compreendido que
440
Em 1963, o curta-metragem “Meninos do Tietê” usa a composição “Pemba” de Joãozinho. O
arqueólogo/antropólogo Rodrigo Pereira, informa que em 1970, Joãozinho fez uma participação no filme
“Copacabana Mon Amour”, com roteiro e direção de Rogério Sganzerla, “em 35 milímetros, e a
atuação de Lilan Lemmertz, músicas de Gilberto Gil e produção pela Belair Filmes”. Inaugura-se um novo
diálogo com o cinema marginal que apontamos como sendo um “engajamento do Cinema Novo”
aprofundado nas questões sociais e nos grupos à margem da repressão dos tempos da Ditadura
Militar.
226
Joãozinho era um produto do pós-Abolição, que era o resultado da diáspora negra que
produzia saberes, entrelaçamentos culturais e desestabilizações da ordem promovida pelo
projeto colonial.
Quando entendemos que Joãozinho da Goméia é um produto das formas culturais
negras produzidas por este circuito diaspórico, estamos direcionando nossos olhares para
a construção de uma “identidade negra positivada”441 que vai ser a espinha dorsal da sua
trajetória de vida, orquestrada pelos seus projetos de escalada social. Um dos resultados
desta “positivação” é a formação do campo afro-religioso paulista, que é fruto do seu
investimento pessoal e da instalação de terreiros de candomblé da nação Angola na
Baixada Santista. A ocupação do litoral paulista e a popularização do candomblé Angola
em escala nacional e transnacional, a partir dos anos 50, é um indicativo da superação dos
males causados pela discriminação contra a imagem pública do pai de santo Joãozinho da
Goméia.
A partir de 1967, o pai de santo usa o seu poder de driblar e iludir, e embaraça os
sentidos daqueles que acreditaram que o terreiro da Goméia havia se transformado em um
candomblé traçado: Ketu e Angola. A suposta mudança de águas foi mais um golpe de
mestre, daquele que usava a polêmica ao seu favor. A estadia no terreiro do Gantois
garantira espaço de destaque na revista Cruzeiro de 1967, que simbolizou mais um
episódio das suas várias negociações, articulações e estratégias.
O jornalista Carlos Nobre442 relaciona a ida ao terreiro do Gantois como símbolo da
decadência do pai de santo e do seu terreiro, apontando outros sinais: a constante
inundação do local por causa da elevação do rio Meriti com destruição dos objetos
ritualísticos e a dificuldade que o orixá Iansã sentia para incorporar. Consideramos após
percorrer toda esta travessia, que a divulgação do procedimento espiritual realizado pelas
mãos de Mãe Menininha do Gantois, garantiu para os dois um amplo retorno midiático e
financeiro. A ialorixá baiana, até então, não havia ocupado as páginas das revistas de
circulação nacional como a revista Manchete e a Cruzeiro, o que pode ser atestado pelo
fato de a mesma só ter conseguido gravar o LP “Gravado Ao Vivo no Gantois” em
1974443. Por outro lado, o interesse por Joãozinho da Goméia passa a adquirir novos
sentidos e um destes é a presença no filme de longa-metragem “Copacabana Mon Amour”.
Concluindo, podemos afirmar que a trajetória artística de Joãozinho da Goméia
441
SILVA, 2018, p. 295.
442
NOBRE, Carlos. Gomeia João: a arte de tecer o invisível. RJ: Centro Portal Cultural, 2017, p. 156.
443
PEREIRA, 2019, p. 107.
227
confirma a valorização da positivação da identidade deste homem negro, que foi encantado
no tempo e no espaço.
Após ler as páginas desta Dissertação de Mestrado, será que alguém ainda vai
duvidarque Joãozinho da Goméia, foi mesmo o Rei do Candomblé.
Figura 72: Registro fotográfico feito para a revista O Cruzeiro, que retrata uma nova fase para a carreira
artística e religiosa do agora Taata Londirá, o sacerdote baiano do candomblé Angola, que conseguiu
contribuir com o processo de popularização do candomblé Angola. A partir de 1966, a imagem pública do
Rei do Candomblé é amplamente fortalecida. Fonte: O Cruzeiro, 23/09/1967.444
444
Não consegui inserir o link da revista O Cruzeiro, nesta nota, sendo assim, peguei a imagem emprestada da
dissertação de mestrado da historiadora Andréa Mendes. Ver a imagem em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281442
228
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ENTREVISTAS:
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3) A Noite, 26 de janeiro de 1937.
4) A Noite, 30 de outubro de 1953.
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5) A Tarde, de 06 de outubro de 1921.
6) A Tarde, de 08 de outubro de 1921.
7) A Tarde, de 14 de outubro de 1921.
8) A Tarde, de 24 de agosto de 1936.
JORNAL A TRIBUNA
9) A Tribuna, (SANTOS) 17 de agosto de 1959.
10) A Tribuna, (SANTOS) 17 de agosto de 1970.
JORNAL DA TARDE
42) Jornal da Tarde, (SP) 19 de agosto de 1968.
JORNAL DE UMBANDA
43) Jornal de Umbanda, 15 de fevereiro a 28 de março de 1959.
JORNAL DO BRASIL
44) Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1960.
45) Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 1964.
46) Jornal do Brasil, 11 de fevereiro de 1965.
47) Jornal do Brasil, 9 de junho de 1966.
48) Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1966.
JORNAL O FLUMINENSE
62) O Fluminense, 8 de agosto de 1965.
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O JORNAL
63) O Jornal, 17 de maio de 1936.
64) O Jornal, 30 de maio de 1951.
65) O Jornal, 18 de novembro de 1956.
66) O Jornal, 12 de dezembro de 1965.
67) O Jornal, 9 de junho de 1966.
68) O Jornal, 14 de agosto de 1966.
JORNAL O PAIZ
69) O Paiz, 16 de janeiro de 1934.
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71) O Tempo, (SP) 9 de outubro de 1953.
REVISTA A CASA
72) Revista A Casa, revista do lar, janeiro de 1948.
73) Revista A Casa, revista do lar, maio de 1951.
REVISTA CARIOCA
77) Revista Carioca, 13 de fevereiro de 1942.
78) Revista Carioca, 23 de dezembro de 1944.
79) Revista Carioca, 8 de junho de 1946.
REVISTA DA SEMANA
80) Revista da Semana, 22 de maio de 1948.
81) Revista da Semana, 3 de março de 1956.
REVISTA DO RÁDIO
83) Revista do Rádio, 1954.
84) Revista do Rádio, 1958.
85) Revista do Rádio, 1959.
86) Revista do Rádio, 1960.
87) Revista do Rádio, 1962.
REVISTA MANCHETE
88) Revista Manchete, 8 de outubro de 1952.
REVISTA O CRUZEIRO
89) Revista O Cruzeiro, julho de 1952.
90) Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1953.
91) Revista O Cruzeiro, 2 de dezembro de 1953.
92) Revista O Cruzeiro, 26 de dezembro de 1953.
93) Revista O Cruzeiro, 21 de outubro de 1967.
REVISTA VEJA
94) Revista Veja, 24 de janeiro de 1973.
REVISTA RIO
95) Revista Rio, 5 de julho de 1952.
OUTRAS REFERÊNCIAS:
6- Cena do filme Rio Rita no qual Eros Volúsia aparece com seu corpo de baile em um
quadro coreográfico, inspirado na dança de terreiro,
https://www.youtube.com/watch?v=TsNlolyVBQY
7- Fonte: https://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento
8- https://pt.wikipedia.org/wiki/Cine-Teatro_Jandaia
10- Relato cedido por Joãozinho da Goméia em 1967 à antropóloga Gisele Binon Cossard,
que mais tarde se torna sua filha de santo e zeladora de um importante terreiro de
241
13- Registro feito em 1937, pelo Grupo de parceiros de capoeira do Mestre Samuel Querido de
Deus, que se apresentaram no Segundo Congresso Afro-brasileiro de 1937;
https://www.capoeiranews.com.br/2015/10/querido-de-deus-um-capoeira-navegador.html
15- Ver sobre a produção de Isaac Rozemberg através do canal Acervo Rozemberg:
https://www.youtube.com/channel/UCmiVrVmah8ld3xw8Vu38KEA; e a sua Filmografia
no site da Cinemateca Brasileira.
1) Realização de uma festa fetichista organizada pelo pai de santo João da Pedra Preta
no Parque de São Bartolomeu às 14 h e 30 min., como um dos efeitos do Segundo
Congresso Afro-Brasileiro de 1937. Fonte: Diário de Pernambuco, 14 de janeiro
de 1937.
2) Na reportagem “Os Orixás descem sobre o terreiro. Sobrevivência da estranha
mística negra dos tempos coloniais- danças e rituais de um candomblé na Bahia
com invocação de Oxóssi e Omulu”, o agora bailarino João da Goméia surge ao
lado da coreografa e bailarina Ani Guaíba para divulgar a sua turnê artística Na
Capital Federal. Joãozinho é identificado como bailarino responsável por quadros
coreográficos inspirados em danças afro-brasileiras com referência na dança de
terreiro, ou de macumba e no folclore brasileiro. Fonte: A Manhã, 13 de fevereiro
de 1942. Presença de Joãozinho da Goméia em festa promovida pelo artista
regional Zé do Norte, realizada no Teatro Carlos Gomes. Uma festa típica de
folclore do norte e do sul do país, com repentes de Pernambuco e evoluções
coreográficas do candomblé da Bahia, representando os folclores pernambucano e
baiano, na qual foram angariados donativos para auxilio dos flagelados de
Alagoas. Estiveram também presentes, os cantadores nordestinos: Severino Pinto,
Dimas Raimundo, Zé do Sul, Gumercindo Amaral, e a dupla pernambucana
Venâncio e Corumbá, além de outros artistas. Também estiveram presentes 45
índios do Amazonas, sob a direção de Pedrinho Correia e Joço Gomes Correia,
além de um grupo de Folia de Reis, Coco nordestino, dança de Baião e a procissão
do Nordeste que retratava a época da Seca. Fonte: Diário de Notícias, 2 de junho
de 1949.
3) Apresentação de Joãozinho da Goméia e seus filhos de santo no jantar em
homenagem ao secretário norte-americano Dean Acheson, no Largo do Boticário.
Fonte: Revista Rio, 5 de julho de 1952.
4) Terreiro da Goméia como fonte de observação para os estudiosos de assuntos
etnográficos e de folclore brasileiro. Fonte: Diário da Noite, 20 de agosto de 1952.
5) “Estranha e impressionante coreografia: Pais e filhos de santo da Bahia darão
espetáculos em São Paulo”. Joãozinho da Goméia esteve presente com a
Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, composta por oito filhas de santo,
243
história do Teatro Brasileiro. O pai de santo encarnou a figura do diabo que surgiu
entre as tabas e palhoças armada por indígenas “verdadeiros” em plena Avenida
Presidente Vargas. Com uma rica fantasia colocando os guerreiros em pandemônio
até a chegada do anjo, que expulsando o demônio encerram a cena. É a cena
principal do desfile, que contava com a presença de Joãozinho da Goméia para
continuar desfilando entre as superescolas na Avenida Presidente Vargas em 1966.
Fonte: O Jornal, 12 de dezembro de 1965.
19) Participação de Joãozinho da Goméia e da Escola de Samba Império Serrano, na
capital baiana com visitação em terreiros de amigos e da sua roça em São Caetano.
Fonte: Correio da Manhã, 8 de janeiro de 1966.
20) A segunda parte do Enredo que se refere ao século XVIII, foi essencialmente
folclórica e teve como quadro principal a famosa lavagem do adro da Igreja do
Bonfim, em que aparecem escravos com trajes de Debret, conduzindo uma alegoria
daquele templo religioso. Mucamas, carregando vassouras ornamentais, braças de
flores, vasilhames de água de cheiro, seguiram nobres e damas da época,
completando o cenário com outras igrejas sintéticas que simbolizaram as igrejas de
Salvador. O sentido deste cenário folclórico baiano foi completado pela presença de
Joãozinho da Goméia que simulou um ritual de candomblé. Fonte: Luta
Democrática, 22 de dezembro de 1966 e 7 de janeiro de 1966.
21) Participação de Joãozinho da Goméia e seu grupo em evento folclórico realizado no
Iguaçu Esporte Clube, na rua Dr. Barros Junior, 862, Nova Iguaçu. Exibição
de grupo de capoeira de Angola e do conjunto nordestino de Osmar do Forró.
Fonte: Jornal do Basil, 9 de junho de 1966.
22) Participação de Joãozinho com o espetáculo “Noite na Bahia” no Country Clube da Tijuca.
Uma das mais expressivas festas referentes à sua programação social. a noite conta com a
colaboração do Centro de Tradições Baianas. A noite ainda contou com grupos de danças
típicas, de capoeiristas e danças típicas exibidas pelo “grupo folclorista de Joãozinho da
Goméia, além de um banquete com vatapá, caruru, acarajé e outros gostosos quitutes
servidos por autenticas baianas”. Fonte: O Jornal, 14 de agosto de 1966.
23) Convite solene para participar na inauguração do Centro de Pesquisas Folclóricas.
O conjunto de Joãozinho da Goméia participou junto ao grupo de capoeira de
Mestre Paulo, o Frevo dos Lenhadores, além de Coco nordestino, Samba,
cantadores de viola e outras manifestações do folclore brasileiro, estiveram
representados no ato da posse da 1ª Diretoria ao Centro de Pesquisas folclóricas,
246
Figura 74: “Joãozinho da Goméia acredita que imagem de iemanjá foi desfigurada pela
Umbanda” Publicação do jornal O Fluminense de 21/12/1966.
445
Abri esse anexo com a intenção de ilustrar a conflituosa relação entre o campo umbandista e Joãozinho da
Goméia. Ciente que este é um capítulo que não cabe analisar nessa Dissertação, achei de bom tom anexar às
reportagens para que o leitor possa entender mais um pouco a proposta expansionista que Joãozinho cria a
partir da formação da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê. Mesmo que de certa forma os que entram em
contato com a trajetória de vida de Joãozinho da Goméia no que tangem seus vínculos religiosos ou
acadêmicos, possam vir a questionar a existência de um projeto de poder do pai de santo ao longo da sua
trajetória de vida, após o contato com estas fontes, aqui anexadas, acreditamos que os embates com a
Umbanda eram intencionais e fundamentaram o que eu venho a chamar ao longo deste trabalho de Projeto
expansionista de poder.
446
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=100439_10&pasta=ano%20196&pesq=Jo%C3%A3ozi
nho%20da%20Gomeia&pagfis=19705
250
Continuação da reportagem:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=100439_10&pasta=ano%20196&pesq=Jo%C3%A3ozin
ho%20da%20Gomeia&pagfis=19707
447
A reportagem de O Pasquim em especifico, cria uma celeuma e acirra problemas antigos com os
umbandistas, que passam a ocupar aas páginas dos jornais questionando as falas de Joãozinho da Goméia
sobree a Umbanda.
251
448
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pesq=jo%C3%A3ozinho%20da%20gomeia&pa
gfis=1336
449
Mesmo a reportagem não se encaixe no recorte temporal que esta pesquisa se propôs, achei interessante
usá-la para ilustrar a relação conflituosa que Joãozinho da Goméia tinha com o campo umbandista, ao qual ele
associava ter usado do sincretismo para fundamentar as bases da sua religião. Também considerava ser a
umbanda uma religião que não tinha uma identidade originaria como o candomblé que tem toda sua estrutura
voltada para a África, enquanto a umbanda misturava o kardecismo com o catolicismo e se apropriava de
elementos espirituais do candomblé.
252
450
Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pesq=jo%C3%A3ozinho%20da%20gomeia&
pagfis=1337