Eliana Khader - Final-Prova Do Dolo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 159

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Direito

Eliana Maria Khader

A prova do dolo

Rio de Janeiro
2012
Eliana Maria Khader

A prova do dolo

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Transformação do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.

Orientador: Prof. Dr. Juarez Tavares

Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

K12p Khader, Eliana Maria.

A prova do dolo. / Eliana Maria Khader. – 2012.


160 f.

Orientador: Prof. Dr. Juarez Tavares.


Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Direito.

1. Dolo. 2. Direito penal. I. Tavares, Juarez. II. Universidade do Estado


do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título.

CDU 343.222.2

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde
que citada a fonte.

_______________________________________ _____________________
Assinatura Data
Eliana Maria Khader

A prova do dolo

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Transformação do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.

Aprovada em 15 de agosto de 2012.

Orientador: Prof. Dr. Juarez Tavares


Faculdade de Direito - UERJ
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Artur Gueiros
Faculdade de Direito - UERJ

Prof. Dr. Juarez Cirino


Universidade Federal do Paraná

Rio de Janeiro
2012
RESUMO

KHADER, Eliana Maria. A prova do dolo. 2012. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito) -
Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

O trabalho tem como objetivo perscrutar os métodos de prova do dolo, no direito


penal, a fim de avaliar se esses métodos são eficientes, de modo a determinar se é possível,
enfim, a prova do dolo; investiga-se, ainda, se é necessária ou possível a mudança do próprio
conceito de dolo. Na primeira parte, é apresentada a conceituação de dolo, com base nos
principais autores do direito penal, com o intuito de delimitar o objeto central do estudo. Para
tanto, as diversas controvérsias conceituais são analisadas em concordância com o sistema em
que se inserem: escola clássica; causalismo; finalismo; funcionalismo. As demais
divergências estão agrupadas em dois grandes blocos ? as teorias intelectivas e as teorias
volitivas ? em conformidade com o enfoque que é dado pelos autores que defendem esta ou
aquela conceituação do dolo. No cerne do trabalho, apresenta-se o método psicanalítico de
aferição da consciência e da vontade humanas, para, então, realizar-se o estudo dos métodos
de prova adotados no direito penal, sempre cotejado com a análise psicanalítica pertinente, a
fim de proporcionar ao leitor uma visão multidisciplinar dos fenômenos subjetivos da mente.
Constatar-se-á a insuficiência dos métodos de prova do dolo, no direito penal. Na terceira
parte, é feito um estudo da jurisprudência brasileira, no que tange à forma como os tribunais
costumam provar o dolo, com o intuito de avaliar se o discurso doutrinário da prova do dolo
coaduna-se com a prática judicial. Conclui-se que há, de fato, um descompasso entre o que a
doutrina entende como método viável e aquilo que, na prática, é adotado pelos tribunais.

Palavras-chave: Dolo. Natureza e conceito do dolo. Métodos de prova do dolo.


ABSTRACT

The work aims to scrutinize the criminal law?s methods of proof of intent (dolus or
dolo), in order to assess whether these methods are efficient and, finally, to determine, if it?s
possible to prove the intent; we investigate, even if it is necessary or possible to change the
very concept of intent. The first part presents the concept of intent, based on the principal
authors of the criminal law, in order to define the central object of study. To this end, the
various conceptual controversies are analyzed in accordance with the system to which they
belong: the classical school; the causalism; the teleological theory; the functionalism. The
remaining divergences are grouped into two major blocs - the intellectual theories and
volitional theories - in accordance with the approach that is given by the authors who defend
this or that concept of intent. At the heart of the work, we present the psychoanalytic method
of measurement of human consciousness and human will, to then carry out the study of the
methods of proof adopted in the criminal law, always collating with the respective
psychoanalytic analysis, to provide the reader a multidisciplinary view of the subjective
phenomena of mind. It will be noted the inadequacy of the criminal law methods of proof of
intent. The third part is a study of the Brazilian jurisprudence, in regard to how the courts tend
to prove intent in order to assess whether the judicial practice is consistent with the doctrine.
It is concluded that there is indeed a mismatch between what the doctrine meant as a viable
method and what really is adopted by the courts.

Keywords: Dolo. Nature and concept of intent. Methods of proof.


SUMÁRIO

  INTRODUÇÃO 10
1 O CONCEITO DE DOLO 18
1.1 O conceito de dolo na legislação penal brasileira 18
1.2 O conceito de dolo na doutrina penal 21
1.2.1 O dolo na escola clássica 22
1.2.1.1 Feuerbach 22
1.2.1.2 Carrara 26
1.2.2 O dolo na teoria causal 27
1.2.2.1 Beling 27
1.2.2.2 Mezger 28
1.2.2.3 Nelson Hungria 30
1.2.2.4 Aníbal Bruno 33
1.2.3 O dolo na teoria finalista 34
1.2.3.1 Welzel 34
1.2.3.2 Luiz Regis Prado 37
1.2.3.3 Cezar Bitencourt 38
1.2.4 O dolo na teoria funcional 40
1.2.4.1 Roxin 40
1.2.4.2 Jakobs 44
1.2.4.3 Puppe 48
1.2.4.4 Juarez Cirino dos Santos 52
1.2.4.5 María del Mar Díaz Pita 53
1.2.5 O dolo na teoria comunicativa 56
1.2.5.1 Juarez Tavares 57
1.2.6 Teorias intelectivas e volitivas 61
1.2.6.1 Teorias Intelectivas: um esboço crítico 66
1.2.6.2 Teorias Volitivas: um esboço crítico 75
1.2.7 As fórmulas de Frank 77
2 A PROVA DO DOLO: UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA 80
2.1 Os métodos de prova do dolo consagrados no direito penal 82
2.1.1 Praesumptio doli 83
2.1.2 Dolus ex re 89
2.2 É possível provar o dolo? 97
2.2.1 É possível provar fenômenos subjetivos? 97
2.2.2 É possível provar objetivamente fenômenos subjetivos? 99
3 A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE CRÍTICA 122
3.1 A análise da tentativa de delito na jurisprudência brasileira 122
3.1.1 A ?força? do dolo 126
3.1.2 Dolo eventual e tentativa 130
3.1.3 Crimes culposos e crimes qualificados pelo resultado 131
3.1.4 Conclusão parcial 137
3.2 A análise da consumação do delito na jurisprudência brasileira 138
3.3 Um problema singular: o dolo nos crimes de perigo (a presunção das
presunções) 143
4 CONCLUSÃO 154
  REFERÊNCIAS 156
10

IINTRODUÇÃO

De acordo com o Código Penal vigente (Decreto-lei n. 2848 de 1940), somente pode
ser punida a conduta típica dolosa, salvo quando a conduta culposa esteja prevista em lei1. Vê-
se que o dolo é a regra, isto é, se a lei penal incriminadora nada dispuser expressamente em
contrário, presume-se que a conduta descrita no tipo penal seja dolosa. É inegável, pois, a
relevância do estudo do dolo, a fim de se compreender a configuração dessa parcela
considerável de condutas criminosas.
O dolo, como a consciência e a vontade de realizar um tipo penal, integra o aspecto
subjetivo do tipo. Afirmar, pois, sua existência, é decidir, na maioria das vezes, sobre a
punibilidade de uma conduta2. Dado à relevância de sua constatação para a responsabilização
penal, deve-se ter do dolo noção extremamente profunda e o mais segura possível.
Entende-se que a intenção ou o propósito é a persecução de uma ação dirigida a um
fim. A intenção dolosa, por seu turno, é a persecução da obtenção do resultado típico, isto é,
do resultado descrito no tipo objetivo. Também se sabe que, mesmo que a produção do
resultado não se mostre segura, existe intenção quando o sujeito persegue o resultado
acreditando-o, pelo menos, possível.
Os resultados conscientemente causados e desejados são sempre intencionais, ainda
quando sua produção não seja segura ou não seja a finalidade última ou, ainda, a finalidade
única do sujeito ativo3. A intencionalidade, entretanto, não é o mesmo que a consciência:
Muitos estados conscientes não são Intencionais – por exemplo, um sentimento súbito de
exaltação – e muitos estados Intencionais não são conscientes – por exemplo, tenho muitas
crenças sobre as quais não estou pensando no momento e nas quais posso nunca ter pensado 4.

_______________________________________________

1
Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o
pratica dolosamente.

2
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. t. I. Madrid: Thomson Civitas, 1997. p. 415.

3
Ibid. p. 419.

4
SEARLE, John R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 2-3.
11

Deve-se diferenciar, desde logo, “ter intenção de” da “intencionalidade”. Segundo


SEARLE, “intencionalidade é direcionalidade; ter a intenção de fazer algo é apenas uma forma
de intencionalidade entre outras”5.
Muitas são as teorias filosóficas relacionadas à intencionalidade. “Movimentos
filosóficos inteiros foram construídos em torno de teorias de intencionalidade”, todavia,
procuraremos nos fixar, neste passo, nas teorias filosóficas de SEARLE e nos estudos
psicanalíticos de FREUD, bem como nas investigações de autores freudianos como WINNICOT.
A postura científica que se pretende abordar neste estudo é aquela que classifica os
fenômenos mentais como parte da biologia humana:
Segundo este ponto de vista, a consciência e a Intencionalidade são tão parte da biologia
humana quanto à digestão ou à circulação sanguínea. Trata-se de um fato objetivo sobre o
mundo ele conter certos sistemas, a saber, cérebros, com estados mentais subjetivos e é um
fato físico desses sistemas que eles possuam características mentais. A solução correta para o
‘problema mente-corpo’ não está em negar a realidade dos fenômenos mentais, mas em
estimar adequadamente sua natureza biológica6.
Nessa perspectiva, rechaça-se a oposição que normalmente se atribui àquilo que é
mental e ao que é físico, pois “a natureza humana não é uma questão de corpo e mente – e
sim uma questão de psique e soma inter-relacionados, que, em seu ponto culminante,
apresentam um ornamento: a mente”7.
Sobre essa tradição filosófica de opor os fenômenos mentais aos fenômenos físicos,
SEARLE sentencia:
Estamos cegos para enxergar a característica biológica e natural da consciência e outros
fenômenos mentais devido à nossa tradição filosófica, que transformou “mental” e
“físico” em duas categorias mutuamente excludentes. A saída é rejeitar não só o dualismo,
mas também o materialismo e aceitar que a consciência é tanto um fenômeno “mental”,
qualitativo e subjetivo, quanto uma parte natural do mundo físico. Estados de consciência são
qualitativos no sentido de que para qualquer estado – como sentir dor ou preocupar-se com a
situação econômica – existe algo que qualitativamente se sente como estando naquele estado;
e são subjetivos no sentido de que só existem quando experimentados por um ser humano ou
outro tipo de “sujeito”. A consciência é um fenômeno biológico natural que não se
enquadra apropriadamente em nenhuma das categorias tradicionais do mental e do
físico. É causada por microprocessos de nível inferior no cérebro e é uma propriedade do

_______________________________________________

5
SEARLE, John R. Intencionalidade. p. 4.

6
Ibid. p. X.

7
Leciona WINNICOT que “a medicina psicossomática tornou-se um ramo da pesquisa e da prática médicas, ramo esse que,
infelizmente, se encontra desconectado dos seus três correlatos mais próximos: a psiquiatria, a clínica geral e a psicanálise.
As causas dessas situações são semelhantes àquelas que levaram ao uso dos termos ‘mental’ e ‘físico’ como se fossem
fenômenos opostos”. WINNICOT, Donald W. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 44-45.
12

cérebro em níveis macrossuperiores. Para se aceitar este “naturalismo biológico”, como eu


gosto de chamá-lo, temos de abandonar primeiramente as categorias tradicionais 8.
Diante, pois, dessa tomada de postura, propomo-nos a investigar a consciência e a
vontade como fenômenos mentais, que não podem ser dissociados do ser humano como um
todo físico-biológico. Nesse desiderato, no entanto, não nos inculcamos o, para nós
irrealizável, objetivo de encontrar “a verdade”, vez que temos ciência da difícil tarefa
investigativa a que nos rendemos:
Gostaria de dizer, de passagem, que, entre as várias atitudes que eu desejaria poder inculcar,
se acha a de ser capaz de apreender a pesquisa como uma atividade racional – e não como
uma espécie de busca mística, de que se fala com ênfase para se sentir confiante – mas que
tem também o efeito de aumentar o temor e a angústia: esta postura realista – o que não quer
dizer cínica – está orientada para a maximização do rendimento dos investimentos e para o
melhor aproveitamento possível dos recursos, a começar pelo tempo de que se dispõe. Sei que
esta maneira de viver o trabalho científico tem qualquer coisa de decepcionante e faz correr o
risco de perturbar a imagem que de si próprios muitos investigadores desejam conservar. Mas
é talvez a melhor e a única maneira de se evitar decepções muito mais graves – como a do
investigador que cai do pedestal, após bastantes anos de automistificação, durante os quais
despendeu mais energia a tentar conformar-se com a ideia exagerada que faz da pesquisa, isto
é, de si mesmo como investigador, do que a exercer muito simplesmente o seu ofício9.
É com essa perspectiva que investigaremos o conceito do dolo, para em seguida,
abordar aspectos psicanalíticos da vontade e da consciência, a fim de concluir pela suficiência
do conceito, mas pela a insuficiência do método de determinação/aferição do dolo. A opção
pela abordagem psicanalítica da consciência e da vontade não retira, entretanto, a
possibilidade de o leitor encontrar também em outros métodos de aferição dos fenômenos
mentais a mesma conclusão a que chegamos, qual seja, a constatação de que o método de
prova desses fenômenos mentais é invariavelmente subjetivo. Qualquer objetivação da forma
de observar esses fenômenos mostra-se artificial, porque empreendida por meio da valoração
que o observador faz externamente. Isso porque a própria existência dos fenômenos
psicológicos é subjetiva:
Los fenómenos psicológicos existen y derivan de uma cierta realidad natural, aunque tengan
un modo subjetivo de existencia. Como señala Searle, “no tengo duda alguna de que todos
los estados mentales subjetivos existen, puesto que yo estoy ahora en uno de ellos, lo mismo
que lo está usted”. Que los fenómenos psicológicos tengan un modo subjetivo de existencia
significa sólo que tenemos acceso a ellos mediante la consciencia individual; sólo

_______________________________________________

8
SEARLE, John R. O mistério da consciência. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 25-26.

9
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 18.
13

subjetivamente somos conscientes directamente de las propias sensaciones, de los


pensamientos, deseos o conocimientos10.
Boa parte da doutrina, todavia, conclui ser o dolo não uma realidade natural
(ontológica), mas sim uma realidade normativa. O que se indaga é se essa “normativização” é
suficiente para a prova da ocorrência do dolo ou se, pelo contrário, mostra-se inviável
distanciar-se completamente da realidade subjetiva dos fenômenos mentais.
Cabe apontar que, para a pesquisa desses fenômenos mentais, não deixaria de ser
interessante conferir os estudos sobre psicologia infantil, porque “o estudo do conceito de
mente deve ser sempre realizado em relação a um indivíduo, um indivíduo total, aí incluído o
desenvolvimento desse indivíduo desde o início de sua existência psicossomática”:
Tentemos, pois, pensar o desenvolvimento do indivíduo começando no início. Eis aqui um
corpo, sendo que a psique e o soma não devem ser distinguidos um do outro, exceto quanto à
direção desde a qual estivermos olhando. É possível olhar para o desenvolvimento do corpo
ou da mente. Suponho que a palavra psique, aqui, significa elaboração imaginária
(imaginative) dos elementos, sentimentos e funções somáticos, ou seja, da vitalidade física.
Sabemos que essa elaboração imaginativa depende da existência de um cérebro saudável em
funcionamento, especialmente de certas partes do mesmo. A psique, entretanto, não é sentida
pelo indivíduo como localizando-se no cérebro, ou em qualquer outra parte.
Gradualmente, os aspectos psíquico e somático do indivíduo em crescimento tornam-se
envolvidos num processo de mútuo inter-relacionamento. Essa interação da psique com o
soma constitui uma fase precoce do desenvolvimento individual. Num estágio posterior o
corpo vivo, com seus limites e com um interior e um exterior, é sentido pelo indivíduo como
formando o cerne do eu imaginário. O desenvolvimento desse estágio é extremamente
complexo, e apesar de tratar-se de um processo poderia já estar bastante completo poucos
dias antes do nascimento, há um vasto campo para distorções do seu curso natural. E mais:
tudo aquilo que se aplica aos estágios iniciais aplica-se também, até certo ponto, mesmo
aos estágios que chamamos de maturidade da fase adulta.11.
Nesse sentido, a pesquisa quanto à consciência e à vontade do ser humano pode
encontrar também nos estudos de psicologia e psicanálise infantis uma boa fonte de consulta.
Contudo, a investigação a que nos propomos realizar nos limites deste trabalho não encontra
espaço para tão vasta compilação de dados, até mesmo porque quanto maior a quantidade de
informações, mais capaz deve ser o pesquisador para concatenar as ideias e transformá-las em
uma conclusão minimamente científica. Nessa perspectiva, a fim de não comprometer a
cientificidade da conclusão desta pesquisa, preferimos, nesta oportunidade, limitar as fontes,
para que, em um futuro próximo, possamos ir mais além.

_______________________________________________

10
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. In: VALDÉS,
Carlos García (Coord.) et al. Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat. Madri: Edisofer, 2008. p. 1463.
11
WINNICOT, Donald W. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 333-334.
14

Não se desconhece a existência de variadas teorias sobre a natureza humana, muito


menos as críticas que já foram tecidas quanto ao método ou às conclusões psicanalíticas12,
entretanto, não há ciência incontestável. Já diria KARL POPPER, em 1934, que, pelo critério da
falibilidade, uma ciência pode ser contestada e, ainda assim, permanecer científica. A ciência
não precisa ser infalível para que seja ciência13.
Definido, pois, o marco teórico, qual seja, a constatação de que os fenômenos mentais
não podem ser dissociados, muito menos colocados como antípodas da biologia humana, isto
é, são eles fenômenos próprios da natureza humana, caberá, mediante o estudo em conjunto
de cada aspecto do dolo – a consciência e a vontade – determinar se é possível, com base na
observação de relatos fáticos – apreender e delimitar o dolo do sujeito.
Pretende-se responder à seguinte pergunta: é possível ao ser humano afirmar que um
outro ser humano quis conscientemente cometer um delito? A relevância do estudo é patente,
na medida em que, caso se constate não ser possível a um ser humano comum, que não seja
especialista nem em psicanálise, nem em filosofia, afirmar ter um sujeito realizado
determinada conduta com consciência e vontade, a lei penal claramente não pode ser aplicada
em qualquer caso de crime doloso.
Embora, a princípio, o tema de investigação pareça pertencer ao processo penal,
conforme expôs DAVID BAIGÚN, a maioria dos autores examina a questão nos textos de direito
material, no capítulo do dolo. Para este autor “es obvia la importancia del enfoque, puesto que
las consecuencias de una correcta o inadecuada formulación del tema inciden directamente
sobre la suerte de la libertad individual.”14
Ora, o Direito Penal fundamenta a punibilidade da maioria de seus crimes na
constatação do dolo. Se, no entanto, tal constatação é comprovadamente uma presunção legal,
ou, ainda, uma presunção do órgão julgador, que não tem qualquer base na realidade, a
punibilidade deve ser imediatamente afastada.

_______________________________________________

12
STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David L. Dez teorias da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

13
POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. London: Hutchinson, 1967. Edição original de 1934.

14
BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. Buenos Aires: BdeF, 2007. p. 29.
15

Com esse objetivo, pretende-se analisar a intenção e a consciência, em seus aspectos


psicanalíticos, com o intuito de perscrutar, para além da ciência do direito penal, como outras
áreas do saber comprovariam a existência do dolo, quando do implemento de uma conduta
humana. Ou seja, é o dolo uma invenção ou suposição legal ou, pelo contrário, possui base na
realidade humana, na natureza mesma do ser humano? Constatada sua existência fora dos
limites da lei – na realidade mesma da natureza humana – é possível a identificação e
delimitação do dolo no mundo dos fatos? Constitui tal tarefa algo realizável em juízo?
Ainda nessa esteira, afirmando-se ser possível depreender da análise dos fatos a
consciência e a vontade do agente, como mero observador, seja este uma testemunha de um
flagrante delito, seja um juiz, em análise retrospectiva, qual método de aferição do dolo se
deve utilizar em consonância com a natureza mesma da vontade consciente? Este método de
aferição é objetivo ou subjetivo?
Seguindo, ainda, a cadeia de perguntas que serão abordadas nesta investigação,
identificaremos que o método psicanalítico de análise da vontade (consciente ou inconsciente)
é calcado em juízos subjetivos. Já o método proposto pela lei para a aferição do dolo pelo juiz
é preferencialmente objetivo, vez que pressupõe que, da simples descrição dos fatos, pode-se
aferir a vontade do agente, ainda que este, enquanto réu, se utilize de seu direito
constitucional ao silêncio.
E aqui reside o cerne, ou o clímax, de nossa investigação. Há um claro confronto entre
o método subjetivo psicanalítico, que atribui a si a capacidade de aferir a vontade consciente
humana advinda da observação analítica das declarações e condutas do próprio sujeito, e o
método legal de aferição do dolo, que atribui a si, por sua vez, a capacidade de afirmar a
existência da vontade consciente humana mediante mera observação objetiva de fatos, em
retrospectiva.
Tendo como pressuposto a bem-sucedida tarefa realizada pela psicanálise no âmbito
de seus objetivos, não nos arriscaremos a trazer para o Direito o método psicanalítico, mas
apenas temos por desiderato constatar a insuficiência do método das Ciências Jurídicas na
consecução de seus próprios objetivos.
Após, portanto, apresentarmos o método psicanalítico de análise da vontade
consciente, apresentaremos o método jurídico de constatação do dolo e analisaremos, por
conseguinte, se tal tarefa é de fato bem empreendida pelos Tribunais Brasileiros.
Constataremos, ao final, a insuficiência dos métodos jurídicos na tarefa de constatação
do dolo, sentida pela Doutrina e pelos próprios Tribunais.
16

A Doutrina Moderna também parece identificar qualquer insuficiência no dolo, no


entanto, equivocadamente parece atribuir o problema ao próprio conceito de dolo. Tenta,
portanto, ou retirar do dolo a vontade (teorias intelectivas do dolo), ou, a consciência (teorias
volitivas do dolo), ou seja, atribui um problema de constatação do dolo ao próprio conceito de
dolo, como se a retirada da consciência ou da vontade fossem diminuir a dificuldade de se
constatar objetivamente qualquer um desses dois elementos.
Por outro lado, em postura temerária, os Tribunais, diante da necessidade de decidir
pela efetiva ocorrência ou não do dolo, acabam, muitas vezes, por fazer um juízo
extremamente superficial e, não menos raro, permeado de presunções (e preconceitos) quanto
à ocorrência de um dolo provavelmente inexistente.
Essa é a percepção que propomos lançar com nosso trabalho. É preciso aceitar o
conceito de dolo como ele é. Ele é vontade e consciência. Não se pode prescindir de qualquer
desses dois elementos. O que se deve atacar não é o conceito, mas o método que a Ciência do
Direito acredita ser eficaz para a prova do dolo, isto é, para sua própria verificação, quando do
efetivo implemento de uma conduta por um sujeito.
Ao nos decidirmos pelo objetivo de perscrutar quanto à sustentabilidade do dolo a par
de sua base normativa, não ignoramos a necessidade de nos posicionarmos também quanto à
base metodológica que adotamos em relação aos elementos subjetivos do delito.
Nesse sentido, cabe desde já delimitar que nossa pesquisa parte de um enfoque
psicológico-individual, tendo como alicerce, precipuamente, o consistente estudo15 de JOSÉ
LUIS DÍEZ RIPOLLÉS, respeitável catedrático de Direito Penal da Universidade de Málaga.
Em lúcida e profunda análise, o citado autor apresenta muitas justificativas para a
adoção da perspectiva psicológico-individual, em detrimento das demais perspectivas
possíveis (perspectiva normativa; perspectiva psicológico-coletiva; perspectiva
interacionista). Abaixo, confira-se o trecho que expõe a mais forte razão para que optemos
pela perspectiva psicológico-individual:
Entre las muchas razones que se han dado a favor de la opción primera pueden destacarse,
en primer lugar, su correspondencia con la edificación del Derecho penal, y de la sociedad

_______________________________________________

15
RIPOLLÉS, José Luis Díez. Los elementos subjetivos del delito: bases metodológicas. 2. ed. Buenos Aires: B de F, 2007.
17

democrática en su conjunto, en torno a la persona en su individualidad y con su


responsabilidad, algo que por lo demás está reconocido constitucionalmente. Resultaría una
violación del respeto debido a la dignidad de la persona el que el Derecho penal utilizara las
referencias a la psique individual como mera pantalla en la que proyectar otros contenidos.16
De fato, o princípio da dignidade da pessoa humana é o primeiro grande motivo para
que a perspectiva psicológico-individual seja tomada como base metodológica na análise do
elemento subjetivo do tipo que nos propomos a investigar neste trabalho: o dolo. Se o Estado
Brasileiro se pretende de Direito, não há dúvida de que tem como pilar o referido princípio 17.
Por conseguinte, o respeito à dignidade da pessoa humana pressupõe que cada indivíduo seja
percebido como um ser único18 e com importância ímpar, isto é, todas as pessoas são iguais
em dignidade19. Exatamente por isso, a fim de imputar subjetivamente uma conduta à
determinada pessoa, a individualidade e as peculiaridades de cada pessoa, como pessoa única
que é, devem ser tomadas como dados relevantes no momento da investigação e
individualização da conduta dolosa. Isso determina que o olhar sobre a conduta dolosa
perpassa necessariamente através do prisma da psicologia individual.

_______________________________________________

16
Ibid. p. 268.

17
“Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º , inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de
ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do
próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o
homem constitui a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 110.

18
“Em um dos seus mais refinados escritos – Pessoa, Sociedade e História – Miguel Reale afirmou que toda pessoa é única e
que nela já habita o todo universal, o que faz dela um todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser
vista antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante crepita, renovando-se
criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer
pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer
concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde seus atributos como valor-fonte da experiência ética para ser vista
como simples “momento de um ser transpessoal” ou peça de um gigantesco mecanismo, que, sob várias denominações, pode
ocultar sempre o mesmo “monstro frio”: “coletividade”, “espécie”, “nação”, “classe”, “raça”, “idéia”, “espírito universal”, ou
“consciência coletiva”.”. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 150.

19
“Ainda no que tange à clarificação do sentido da dignidade da pessoa humana, importa considerar que apenas a dignidade
de determinada (ou de determinadas) pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da
pessoa em abstrato. Vinculada a esta ideia, que já transparecia no pensamento kantiano, encontra-se a concepção de que a
dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, não sendo
lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da humanidade).” SARLET, op. cit., p. 116.
18

1 O CONCEITO DE DOLO

1.1 O conceito de dolo na legislação penal brasileira

Em que pese não ser tarefa precípua do legislador conceituar dados que podem ser
extraídos da própria realidade (a consciência e a vontade), não se pode negar que o dolo é
uma estrutura complexa da qual o legislador lançou mão para caracterizar uma espécie de
conduta, sendo, portanto, útil para a segurança jurídica que o legislador, pelo menos,
direcione o intérprete ao devido entendimento que se deve ter sobre o dolo20.
De fato, assim como ocorre no próprio conceito de conduta, também no conceito de
dolo há traços ontológicos e traços normativos. Quanto à estrutura do conceito de conduta,
JUAREZ TAVARES leciona:
Ao tratar-se criticamente do conceito de conduta a partir da verificação da proibição ou
determinação e como elemento balanceador do processo de imputação, de modo a ser
avaliado sem comprometer-se com a finalidade de legitimar a punição, importa que sua
estrutura não pode fundar-se, simplesmente, em uma consideração extrapenal – como,
metodologicamente, o trataram as diversas teorias da ação – nem, estritamente, segundo
traços normativos. (...) Ao pretender-se avaliar o conceito de conduta segundo seus efeitos
garantistas, convém esclarecer que isso não pode ser efetuado sem proceder-se a uma
investigação quanto a seus elementos materiais, quer dizer, uma conduta deve corresponder,
em princípio, a alguns pressupostos que estão vinculados à pessoa humana. Essa
consideração pessoal não pode ser subordinante, porém, da avaliação normativa, mas
corresponder apenas a dados concretos da realidade assumidos e alterados por aquela
avaliação em sentido negativo. Nestes termos, o conceito de conduta deve incorporar, ao
mesmo tempo, elementos empíricos vinculados à pessoa e também elementos normativos
que possam descaracterizá-la como objeto de imputação21.

_______________________________________________

20
“Muitos dos conceitos indeterminados são, num sentido que já vamos precisar, conceitos ‘normativos’. Contrapõem-se
estes conceitos aos conceitos ‘descritivos’, quer dizer, àqueles conceitos que designam ‘descritivamente’ objectos reais ou
objectos que de certa forma participam da realidade, isto é, objectos que são fundamentalmente perceptíveis pelos sentidos ou
de qualquer outra forma percepcionáveis: ‘homem’, ‘morte’, ‘cópula’, ‘escuridão’, vermelho’, ‘velocidade’, ‘intenção’.
Como estes conceitos mostram, também entre os conceitos descritivos se encontram muitos conceitos indeterminados. De
modo algum se poderá dizer, portanto, que todos os conceitos indeterminados sejam ao mesmo tempo ‘normativos’. Todavia
os conceitos normativos são frequentemente indeterminados num grau particularmente elevado e oferecem, por isso, muitos
exemplos ilustrativos da indeterminação, e ao mesmo tempo, portanto, da insegurança e relativa desvinculação na aplicação
da lei”. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 210.

21
E prossegue, mais à frente, o renomado autor: “O legislador, portanto, não poderia situar como ação típica aquilo que não
fosse atribuível à atividade de uma pessoa. Já em um segundo momento, a própria norma se encarregaria de estabelecer para
o conceito de conduta alguns outros pressupostos que o delimitassem segundo um processo negativo de comunicação, ou
seja, a norma verificaria se, em face dos elementos que buscava traçar para a conduta, como objeto de imputação com base
em seus elementos empíricos vinculados à pessoa, não estaria faltando alguma exigência instituída pela ordem jurídica para
que essa conduta, uma vez tipificada, servisse de ponto de referência aos seus destinatários.”. TAVARES, Juarez. Teoria do
crime culposo. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 15-16.
19

No mesmo sentido, ROXIN, ao argumentar sobre a importância do teor normativo do


conceito de ação, considera indispensável que também os dados ontológicos sejam levados
em consideração: “O primeiro passo na resolução de problemas na dogmática do direito penal
deve ser sempre uma ideia orientadora normativa, a qual, porém, receberá contornos diversos
a depender das características do dado da vida a que ela se aplicará”22.
Com o conceito de dolo o raciocínio não poderia ser diverso. Também o dolo pode ser
extraído da realidade, na medida em que a consciência e a vontade são dados da vida, tanto
quanto o é a conduta. Por conta disso é que o legislador não pode conceituar o dolo a seu bel-
prazer, a despeito da estrutura ontológica calcada na existência real23 da consciência e da
vontade. Contudo, pode o legislador introduzir no conceito de dolo elementos que sirvam para
delimitar quando não há consciência ou não há vontade, ou seja, o conceito legal serve
exatamente para a inserção de elementos negativos que ensejem o possível afastamento da
responsabilização penal.
A consciência e a vontade são elementos que compõem o conceito doutrinário de dolo.
No entanto, o conceito legal de dolo é assim enunciado: “Diz-se o crime doloso quando o
agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” 24.
Para o legislador brasileiro, portanto, dolo é querer o resultado ou assumir o risco de
produzi-lo. Perceba-se, todavia, que com base nesse conceito não é possível limitar o dolo à
maneira doutrinária. Ora, segundo os estudos de FREUD e seus sucessores, por exemplo, é
possível querer inconscientemente. Ademais, as discussões doutrinárias em torno da
diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente podem comprovar que nem sempre a
assunção do risco deve ser encarada como voluntária, principalmente diante das dificuldades

_______________________________________________

22
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 62.

23
Mais à frente, verificaremos que há autores, como HRUSCHKA, que negam a existência real do dolo no mundo dos fatos.
Para este autor, o dolo é um fenômeno espiritual: “Así, acogemos aquellos hechos que son perceptibles por los sentidos...
como la expresión de algo espiritual que no puede encontrarse en el mundo de los hechos [Welt der Tatsachen]”.
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. Estudios sobre la teoría de la imputación. Buenos Aires: Editorial
Aranzadi/B de F, 2009. p.196.

24
“Em geral as legislações não apresentam uma definição de dolo. No entanto, o Código Penal brasileiro o define de modo
expresso: ‘Art. 18. Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo’.”. PRADO,
Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. v. 1: parte geral (arts. 1° a 120). 10. ed. rev. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 336.
20

de se constatar o elemento anímico nessas situações limítrofes, tendo, até mesmo, parte da
doutrina proposto a eliminação do elemento volitivo do dolo, com o intuito de tornar este
último o mais objetivo possível25.
A consciência integra a realidade psicossomática da pessoa humana, bem como a
vontade pode ser deduzida de determinados comportamentos humanos, isto é, de determinado
contexto fático. Nenhum desses dois aspectos do dolo foi criação normativa, mas sim uma
constatação da doutrina quanto aos dados ontológicos da conduta dolosa. O legislador
poderia, por exemplo, ter limitado o dolo somente aos casos em que o querer fosse
demonstrado pela vontade consciente e atual da produção do resultado. O conceito trazido
pelo artigo 18 do Código Penal é, porém, inútil, na medida em que não limita o que deve ser
entendido por “querer o resultado”, muito menos orienta o aplicador a identificar o que não se
entende por “querer”.
A fim de ilustrar a inutilidade acusada acima, vejamos um exemplo. Imagine-se a
hipótese de dois colegas de trabalho: Bentinho e Escobar. Bentinho nutre por Escobar
verdadeira antipatia, na medida em que este regularmente exibe-se com suas conquistas
financeiras e amorosas, a fim de, na visão de Bentinho, humilhá-lo em público. Suponha-se
que, inconscientemente, Bentinho queira que Escobar morra. Note-se que Bentinho nunca
cogitou conscientemente qualquer desejo de matar Escobar. Em uma inusitada oportunidade,
Bentinho vê-se diante da seguinte situação: Escobar está prestes a cair do telhado, por ter se
desequilibrado. Com as costas voltadas para fora do prédio e a frente do corpo voltada para
Bentinho, Escobar pode ainda ser salvo desde que Bentinho puxe-lhe a gravata que, com o
vento, é lançada em sua direção: basta a Bentinho que estenda 10 cm sua mão e puxe a
gravata. Por motivo aparentemente desconhecido, Bentinho, entretanto, demora mais
segundos do que deveria para raciocinar que poderia somente puxar a gravata de seu colega
de trabalho. Escobar morre com a queda. O coeficiente de inteligência de Bentinho é padrão e
ele está em seu perfeito juízo (culpabilidade inafastável).

_______________________________________________

25
Por todos, PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Manole, 2004.
21

Segundo a simples leitura do art. 18, I, CP, Bentinho pode ser responsabilizado por
homicídio doloso, na medida em que quis efetivamente a morte de Escobar: o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. O motivo “aparentemente desconhecido” para os
psicanalistas seria considerado um recalque26, ou seja, como o inconsciente quer a morte de
Escobar, o cérebro de Bentinho bloqueou/sabotou/reprimiu que o raciocínio de puxar a
gravata se tornasse consciente até que seu intento se realizasse: a morte. Assim, pela simples
leitura do artigo 18, I combinado com os artigos 13, §2º, b), e 121, todos do Código Penal,
poderia, pela fria letra da lei, ser Bentinho responsabilizado pelo delito de homicídio.
Todavia, para que a conduta (no caso do exemplo, a omissão) seja considerada dolosa,
é necessário que o querer (ou, ainda, o assumir) a que se refere o art. 18, I, CP, seja
consciente. Ainda que psicanaliticamente não haja dúvidas quanto ao desejo inconsciente de
matar Escobar, Bentinho não pode ser responsabilizado penalmente por homicídio doloso 27.
Percebe-se, pois, que o conceito legal é insuficiente, tendo que ser complementado pela
doutrina.

1.2 O conceito de dolo na doutrina penal

Prevalece entre nós o entendimento de que o dolo seja a consciência e a vontade de


realizar os elementos objetivos do tipo de injusto doloso.
Na doutrina alemã atual, entretanto, veremos, no capítulo sobre as teorias intelectivas
e volitivas, que prevalece a exclusão do aspecto volitivo do conceito de dolo, dando-se ênfase
ao aspecto cognoscitivo.
A fim de tornar este ponto o menos conturbado possível, já que se trata mais
propriamente de uma catalogação dos pensamentos, preferimos subdividi-lo por autores,

_______________________________________________

26
“O inconsciente é constituído por representações pulsionais reprimidas/recalcadas”. DEBUYST, Christian; DIGNEFFE,
Françoise; PIRES, Álvaro P. Histoire des savoirs sur le crime et la peine. v. 3 : Expliquer et comprendre la délinquance
(1920-1960). Bruxelles: Éditions Larcier, 2008. p. 181. [tradução livre]

27
Mais à frente, retomaremos a abordagem psicanalítica ao conceito de dolo.
22

seguindo suas respectivas teorias. No próprio bojo de cada subitem já se traz à baila o
entendimento dos respectivos autores quanto a algumas controvérsias em torno do dolo. A
escolha dos autores, por seu turno, deu-se em conformidade com o fato de serem notáveis
defensores/representantes das principais escolas e ideias apresentadas.

1.2.1 O dolo na escola clássica

A Escola Clássica notavelmente caracterizou-se pela luta constante por tornar o


Direito Penal uma ciência o mais próxima possível das ciências naturais, na medida em que
não se atribuía, à época, o devido valor científico aos conhecimentos de cunho social. É
provável que, exatamente por essa vontade de tornar as ciências sociais o mais objetivas
possível, tenha-se pouco estudado aspectos subjetivos do comportamento humano, que
arriscaríamos apelidar de aspectos “ocultos” para os estudiosos daquele tempo, no sentido
pejorativo da palavra (oculto; ocultismo; acientífico). Por conta disso, o tratamento
dispensado pelos autores clássicos à temática da consciência e da vontade pode ser
considerado, no geral, bastante superficial, em relação aos dias atuais.

1.2.1.1 Feuerbach

ANSELM VON FEUERBACH é, até hoje, um dos maiores penalistas da História. Nascido
em 14 de novembro de 1775, em Hainichen, redigiu o Código Penal da Baviera de 1813. No
entanto, sua contribuição atemporal dentro da ciência do Direito como um todo foi sua
concepção de que a ordem existe para que o homem possa realizar-se28, isto é, o Direito Penal
como uma garantia ao acusado.

FEUERBACH define o dolo como a determinação da vontade que tem como fim uma
lesão jurídica29, isto é, o resultado ilícito deve ser senão o objetivo imediato e exclusivo do

_______________________________________________

28
FEUERBACH, Anselm. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1989. p. 22-24.

29
Ibid. p. 82-84.
23

agente, pelo menos deve o agente ter se determinado a lesionar várias categorias de crime, de
uma mesma classe ou gênero. FEUERBACH, portanto, antecipa-se em dois séculos na história
do Direto Penal, na medida em que já vislumbra o dolo como o fim de lesar um direito
subjetivo30.

Segundo o autor bávaro, o dolo tem duas classes31. Caso o resultado ilícito seja o fim
imediato e exclusivo da ação, será dolo determinado; se a intenção criminosa tenha se
direcionado a várias lesões jurídicas de mesma classe ou gênero, será dolo indeterminado ou
eventual. FEUERBACH dá como exemplo a suposição de que ele mesmo quisesse matar seu
inimigo e disparasse contra ele, não exatamente para matá-lo, nem tampouco para assustá-lo,
mas com a geral intenção de causá-lo um dano qualquer, já que qualquer resultado lhe seria
satisfatório: agiria com dolo eventual e não com dolo direto.

Um aspecto relevante em sua definição foi ter identificado o dolo como uma vontade
antijurídica, isto é, a aferição da antijuridicidade já se dava na vontade do agente. A vontade
deveria ser direcionada à realização de um resultado antijurídico – “vontade antijurídica”, mas
a exclusão do crime poderia dar-se antes, caso houvesse alguma causa de exclusão da
antijuridicidade. A exclusão do crime antes, por meio de uma causa de exclusão da
antijuricidade, não obstava aferir ter tido o agente vontade antijurídica, exatamente porque o
dolo seria aferido não no tipo, mas em uma categoria mais ampla, em que ele efetuava
“distinções conforme o fundamento intelectual da infração”. Não havia a definição, hoje
consagrada, do delito como ação típica, antijurídica e culpável. Ora, FEUERBACH faleceu em
29 de maio de 1833. O conceito de ação apareceu em um manual pela primeira vez em 1857,
por BERNER; o reconhecimento de uma antijuridicidade objetiva, independente da
culpabilidade, em 1867, por JHERING; o conceito de tipo, somente em 1906, por BELING; em
1907, foi a vez da culpabilidade ganhar uma melhor estruturação, por FRANK32.

_______________________________________________

30
TAVARES, Juarez. Inovações constitucionais no Direito Penal. Revista de Direito da Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 4, p. 51-72, 1990. p. 56.

31
FEUERBACH, Anselm. Tratado de Derecho Penal. p. 85, § 59.

32
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 196.
24

Nessa perspectiva, é preciso contemporizar o status da ciência à época da produção


científica de FEUERBACH, de modo que sejam bem interpretadas determinadas “ausências” de
elementos ou aspectos em suas definições. Em sua definição de dolo, a ausência do aspecto
cognoscitivo, por seu turno, não necessariamente significaria que FEUERBACH desconhecesse
a necessidade do conhecimento no dolo. Certamente, pode-se afirmar que o autor dava grande
importância ao aspecto volitivo. Nada obstante, a não existência de qualquer discussão sobre a
necessidade de o agente ter também consciência, além da vontade, pode, até mesmo, levar o
estudioso a compreender ter FEUERBACH tratado intuitivamente o aspecto cognoscitivo,
porquanto ele não teria discorrido sobre o conhecimento exatamente por ter deixado
subentendido que a consciência seria pressuposto lógico do querer (deve-se saber o que se
quer, o que se persegue). Entretanto, é preciso cautela ao se interpretar por meio de
subentendimentos. Se o autor não escreveu determinada palavra em uma definição, a ausência
da palavra pode significar tanto uma omissão pretendida, quanto um lapso ou, até mesmo, a
não conexão daquela palavra com aquela definição à época da construção doutrinária.

Conquanto a não menção sobre a consciência pudesse autorizar o leitor a compreender


ter FEUERBACH apenas dado maior relevância ao aspecto volitivo, não poderia o estudioso de
sua obra concluir ter havido incoerência ou falha na construção dogmática do autor.

Na medida em que o aspecto cognoscitivo não se resume a ter conhecimento sobre o


que se quer, mas, mais que isso, o aspecto cognoscitivo do dolo é conhecer os elementos que
compõem o crime – atualmente, os elementos do tipo objetivo –, não se pode entender o
aspecto cognoscitivo como simples conhecimento do que se deseja. Como o aspecto
cognoscitivo do dolo pressupõe o conhecimento dos elementos que compõem o crime, não se
pode afirmar ter o autor deixado subentendido propositalmente toda uma ideia essencial ao
dolo, qual seja, a necessidade de se saber que se está agindo de determinada maneira
considerada crime e que, além disso, o que se sabe ser crime também se quer, também é
perseguido pelo agente: o agente sabe o que quer.

Todavia, a não menção à necessidade de o agente ter consciência de todas as


circunstâncias do tipo legal, reitere-se, não deve ser interpretada como um lapso, nem mesmo
como uma falha no raciocínio de FEUERBACH; muito pelo contrário, FEUERBACH estava
completamente coerente, ao desenvolver tal omissão em sua definição de dolo, vez que
plenamente de acordo com o conhecimento em Teoria do Delito até então existente. Àquela
época, não ocupava o dolo uma posição determinada, tal como na culpabilidade ou no tipo,
mas categoria distinta. Como já visto acima, o autor estudava o dolo quando se debruçava
25

sobre uma categoria que ele denominava em seu Tratado como “Distinções conforme o
fundamento intelectual da infração”. Não havia, ainda, a definição de tipo, muito menos,
logicamente, os elementos normativos do tipo e, por conseguinte, ainda não tinha existência o
entendimento de que o aspecto cognoscitivo do dolo é essencial para determinar ter o agente
querido, com consciência sobre os elementos do tipo objetivo, praticar um crime. De fato, na
falta de uma estruturação do delito tal como a que se conhece hodiernamente, não parece a
definição de dolo trazida por FEUERBACH incoerente, porque não poderia o autor escrever o
que sequer ainda existia. A omissão parece ter sido feita simplesmente porque ainda não se
havia trazido à tona a necessidade de se aferir o conhecimento no dolo.

Destarte, FEUERBACH pode simplesmente ter considerado que a consciência era fator
tão óbvio para a afirmação de ter havido vontade que se tornava despicienda qualquer menção
quanto ao aspecto cognoscitivo; em contrapartida, outras interpretações, tais como falha ou
incoerência de sua doutrina por não existir o aspecto cognoscitivo na definição de dolo,
poderão ser desprovidas de fundamento.

Na realidade, FEUERBACH sequer afirma que o agente deva ter vontade de realizar os
elementos do tipo objetivo, ou, pelo menos, do crime (já que não havia o conceito de tipo),
mas apenas que o agente deve ter vontade antijurídica. Como visto, ele se restringe, pelo
menos em seu Tratado33, a definir o dolo como a determinação da vontade que tem por fim
uma lesão jurídica, com a conseqüente antijuricidade daquele empenho.

Ademais, pode-se conjecturar se sua idéia de um dolo carregado da consciência da


antijuridicidade já não serviria, muito mais tarde, como mais uma razão para a doutrina
deslocar o dolo da culpabilidade para a tipicidade. Com a construção de um tipo objetivo
valorativo, em contraponto à teoria de BELING, o tipo objetivo ganha status de ratio essendi
da antijuricidade. Na medida em que o dolo já contemplava a consciência do agente quanto à
antijuricidade de sua conduta, demonstrava-se logicamente ligado à tipicidade. Pode-se

_______________________________________________

33
FEUERBACH faz referência, em nota de rodapé, sobre uma obra de sua autoria, intitulada Betrachtungen über Dolus u.
Culpa, à qual, infelizmente, não tivemos acesso. FEUERBACH, Anselm. Tratado de Derecho Penal. p. 85, § 59, nota de
rodapé n.° 1.
26

vislumbrar em sua definição de dolo o mesmo entendimento que se tem hoje sobre ser a
tipicidade ratio essendi da antijuridicidade. A idéia seria essencialmente a mesma, porém
estaria isolada, isto é, estaria desprovida de uma teoria estratificada de delito, tal qual a
estrutura de delito que se conhece hoje.

O que se verifica, assim, na doutrina elaborada por FEUERBACH, é a profunda lucidez


ao definir o dolo como um fim de lesão a um direito subjetivo, centelha doutrinária que, mais
tarde, seria o alicerce sobre o qual se construiria a ideia de lesão ao bem jurídico.

1.2.1.2 Carrara

Na obra de CARRARA, encontra-se outra definição de dolo que já contempla


explicitamente o aspecto cognoscitivo. Este grande jurista italiano do século XIX (1805-1888)
assim define o dolo: a intenção mais ou menos perfeita de fazer um ato que se sabe contrário à
lei34.

O autor salienta que a causa da ação não pode encontrar-se na consciência, mas na
força volitiva. No entanto, a vontade sem consciência não pode ser considerada dolosa, nem a
consciência sem vontade. A fim de reforçar seu entendimento, refere-se o autor italiano aos
jurisconsultos romanos, que agregavam à palavra dolo a indicação da ciência, quando queriam
sustentar a ocorrência de malícia (sciens dolo malo)35.

Ainda que CARRARA saliente que vontade e consciência devem ocorrer


concomitantemente para a aferição do dolo, considera a vontade a parte substantiva da
definição do dolo. Isso porque a intensidade da vontade, segundo ele, servirá para graduar o
próprio dolo. CARRARA não vislumbra no dolo qualquer gradação da consciência e
exemplifica: se alguém está determinado a matar o inimigo, tem a consciência de que esse

_______________________________________________

34
CARRARA, Francesco. Opúsculos de Derecho Criminal. Buenos Aires: Arayu, 1955. p. 206.

35
A passagem é bem explicada na nota de rodapé n. 2 de CARRARA, loc. cit.
27

fato violará a lei, mas a consciência não admite momentos ulteriores que aumentem sua
gravidade. Tanto tem a consciência de que viola a lei, se ele mata seu inimigo imediatamente
após a determinação da vontade, quanto se o mata dois dias após36.

O autor italiano deixa para averiguar a não ocorrência do conhecimento dos elementos
do crime (elementos do tipo objetivo) apenas na análise das hipóteses de erro. Entretanto, a
curiosidade perfaz-se na sistematização efetuada por CARRARA a fim de perscrutar as causas
de não imputação criminal. O autor reúne em uma análise conjunta “causas de escusa” (que
seriam, atualmente, tanto as hipóteses de erro de tipo, quanto de erro de proibição) e “causas
de inimputabilidade”. Hodiernamente, são as “causas de escusa” e as “causas de
inimputabilidade” tratadas separadamente nas causas de excludente de ilicitude e nos casos de
ausência de culpabilidade.

Outro aspecto relevante em sua doutrina é, já no século XIX, afirmar a completa


debilidade do dolo ser circunstância descriminante, o que, hoje, seria a atipicidade por não
ocorrência do dolo37.

1.2.2 O dolo na teoria causal

1.2.2.1 Beling

Antes de BELING, definia-se delito como ação antijurídica, culpável e ameaçada com
pena. Segundo ROXIN38, BELING critica tal formulação, vez que, na falta de uma estrutura
como o tipo, restava difusa a identificação de quais qualidades teria a ação ameaçada com

_______________________________________________

36
CARRARA, Francesco. Opúsculos de Derecho Criminal. p. 207.

37
CARRARA, Francesco. Programma del corso di Diritto Criminale. v. 1: parte generale. 11. ed. Firenze: Fratelli
Cammelli, 1924. p. 153, §§ 142-143.

38
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 277-279.
28

pena. O conceito de tipo criado por BELING é, portanto, uma das maiores contribuições para a
sistematização do Direito Penal39.

O tipo de BELING, todavia, ainda não permite qualquer nuança subjetiva. Somente
mais tarde a doutrina contestará seu tipo objetivo e livre de valor. Nesse contexto, BELING
exclui do tipo todos os processos anímicos que serão estudados apenas na culpabilidade,
dentre eles, o dolo. O caráter não valorativo se dá em função de BELING acreditar ser o tipo
“limpo de todos os momentos de antijuricidade”40 e nele mesmo poder não ser reconhecível
um significado jurídico41. Nesse sentido, a valoração do tipo dar-se-á na antijuridicidade e a
aferição do saber e da vontade de realizar o fato típico apenas na culpabilidade.

Mais tarde, BELING modificou sua teoria do tipo, tendo a última mudança ocorrido em
1930, em sua obra Die Lehre vom Tatbestand (A Teoria do Tipo). Nada obstante, essas
modificações não influenciaram essencialmente na evolução da teoria42.

O sistema clássico de delito trazido por BELING43 dominou até o primeiro quartel do
século XX, mas, depois, cedeu seu lugar ao sistema neoclássico, que teve como maior
expoente MEZGER. Este manteve o injusto objetivo e a culpabilidade subjetiva, mas acabou
por reconhecer características subjetivas no injusto.

1.2.2.2 Mezger

_______________________________________________

39
O tipo, todavia, não se resume a sistematizar a teoria do delito; muito pelo contrário, possui função fundamental de
garantia (função político-criminal) e também função dogmática na diferenciação entre erro de tipo e erro de proibição. Sobre
as funções do tipo, conferir ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 277-279.

40
BELING, Ernst von Ludwig. Die Lehre vom Verbrechen. Tübingen: Elibron Classics, 2005. (1906). p. 145-147.

41
„Im Tatbestande selber ist eine rechtliche Bedeutung nicht erkennbar“. BELING, Ernst von Ludwig. Die Lehre vom
Verbrechen. p.112

42
ROXIN, loc. cit., nota de rodapé n.º 14.

43
Também contribuiu LISZT na construção teórica do sistema clássico. Ibid. p. 198.
29

O tipo objetivo e não valorativo vislumbrado por BELING é contestado na obra de


MEZGER, que considera um erro querer atribuir toda a objetividade ao injusto e toda a
subjetividade à culpabilidade.

De acordo com ROXIN44, não só MEZGER, mas também H.A. FISCHER, HEGLER e MAX
ERNST MAYER notaram que, em muitas hipóteses, já no injusto do fato – e não somente na
culpabilidade – averiguar-se-ia algum fenômeno intra-anímico do agente do delito. Por
exemplo, no crime de furto, caso não haja ânimo de apropriação (subtrair para si), a
configuração do tipo resta prejudicada: a não ocorrência do tipo legal deu-se por meio da
aferição de um elemento subjetivo, qual seja, o ânimo de apropriar-se. Nesse sentido, a
própria existência da teoria do tipo objetivo possibilitou a constatação de que elementos
subjetivos poderiam ser encontrados já na descrição legal do delito: elementos subjetivos
poderiam ser encontrados já no injusto.

Nada obstante, para MEZGER, o saber e o querer atuar contra o Direito são importantes
no que concerne à imputação pessoal do injusto. Desse modo, bem inseridos ainda estão na
culpabilidade45. Assim, dentro do estudo da culpabilidade46, MEZGER define o dolo: Vorsatz
ist das Wissen und Wollen der Tatumstände des gesetzlichen Tatbestandes47. Isto é, o dolo
como o saber e o querer realizar fatos legalmente tipificados.

Ele trabalha com a teoria da vontade, a fim de identificar que aspecto do ânimo do
agente determinaria ter este agido com dolo eventual e não com culpa consciente. Nessa
perspectiva, desenvolve a teoria do consentimento que identifica na atitude de aprovação do
resultado típico previsto como possível o dolo eventual. Assim, agiria alguém com dolo
eventual quando aprovasse o resultado típico previsto como possível, isto é, o resultado deve
agradar ao agente.

_______________________________________________

44
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 280.

45
MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. t. I. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955. p. 349.

46
MEZGER, Edmund. Strafrecht: allgemeiner Teil. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1970. p. 186, § 62.
“Die gesetzliche Regelschuldform, der sog. Vorsatz (Dolus, Dolus malus): im allgemeinen”.

47
MEZGER, loc. cit.
30

A teoria do consentimento elaborada por MEZGER recebeu grande aceitação e será


objeto de maior apreciação oportunamente no ponto 1.2.6.2.

1.2.2.3 Nelson Hungria

A responsabilidade objetiva ou sem culpa, que o Código de 1890 conservava, NELSON


HUNGRIA apelida escalracho48. Para ele, a idéia de culpabilidade como requisito para qualquer
reação penal é uma conquista da avançada civilização49. E, dentro da culpabilidade, analisa o
dolo, considerando-o representação e vontade ao mesmo tempo, na medida em que a vontade
sem representação seria impossível, do ponto de vista psicológico. A teoria da representação é
necessária, porém insuficiente se considerada individualmente para a aferição do dolo. Para
ele, já está, então, superada qualquer tentativa de se abarcar apenas a teoria da representação
ou apenas a teoria da vontade, a fim de definir o dolo.

O encontro de um ponto comum na doutrina deve-se, principalmente, à conceituação


do dolo eventual. Segundo NELSON HUNGRIA, foi nesta seara que aqueles autores que, em
princípio, defendiam a teoria da representação, acabaram por demonstrar a necessidade de
uma vontade de realizar o resultado, combinada à representação psíquica de sua provável
ocorrência. Afirma, então, o autor terem VON LISZT e FRANK aderido, sem sombra de dúvida,
à teoria da vontade “quando, em tal caso, declaram insuficiente a simples representação do

_______________________________________________

48
“Escalracho - s.m. 1 - Gramínea nociva às searas. 2 - Agitação que o navio produz na água ao movimentar-se.”
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

49
“A responsabilidade objetiva, que ainda persiste, embora como anomalia, em alguns Códigos Penais contemporâneos,
representa, como observa SEUFFERT, um traço de primitivismo. É um resquício da fase objetiva do direito penal, em que só se
cuidava do lado material ou sensível do crime. Entre os povos da remota antiguidade, não se indagava, para imposição de
castigo, se o causador de um mal era culpado. A retribuição do mal pelo mal atendia a um raciocínio sumário: ‘Tu me fizeste
um mal; logo, deves também sofrer um mal’. Não se distinguia entre o fato voluntário e o involuntário. Cuidava-se do factum
externum, e não do factum internum. A idéia de culpabilidade, como requisito indeclinável da reação penal, é uma conquista
de avançada civilização”. (grifo no original). Conferir em HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. I. t. II:
Arts. 11 a 27. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 113.
31

resultado e exigem para êste o consentimento do agente. Ora, consentir no resultado não é
senão um modo de querê-lo.”50(Grifo no original).

NELSON HUNGRIA transcreve ipsis literis as fórmulas de FRANK51 e conclui ter o


ordenamento pátrio por elas optado. Sua conclusão se baseia na leitura da Exposição de
Motivos do Código Penal de 1940, na qual o ministro CAMPOS afirma ser o dolo a mais grave
forma da culpabilidade que se manifesta não só quando o agente quer diretamente o resultado,
“como quando assume o risco de produzi-lo”. O ministro CAMPOS ainda assevera ser o dolo
eventual, assim, plenamente equiparado ao dolo direto.

A única ressalva que faz NELSON HUNGRIA, ad cautelam, à teoria do consentimento é


a necessidade de o juiz dever guiar-se pelo conhecimento das circunstâncias do fato, uma vez
que, sem essa assertiva bem esclarecida, de fato, correr-se-á o risco de dar aos juízes poderes
que transcendem o Direito. A fim de provar que o conhecimento das circunstâncias de fato
pelo juiz basta à averiguação quanto ao comportamento do agente enquadrar-se em dolo
eventual ou culpa consciente, NELSON HUNGRIA recorre a dois casos52 elaborados por M. E.
MAYER, que elucidam diferenças basicamente pessoais entre os dois agentes.

No primeiro caso, o agente que põe fogo em um celeiro, porque a brisa levou uma
faísca de seu cachimbo à palha, é o proprietário do celeiro que, após brigar com a esposa, vai
ao celeiro fumar, mas confia que nada acontecerá, mesmo que esteja ciente do perigo. Teria o
proprietário, para HUNGRIA, agido com culpa consciente.

O agente que põe fogo no celeiro, no segundo caso de M. E. MAYER, deixa de ser o
dono da fazenda para ser o funcionário, que, depois de brigar com o patrão, vai ao celeiro
fumar seu cachimbo e, então, acontece um incêndio pelo mesmo motivo do primeiro. Deduz-
se que o agente, por ser funcionário, teria assumido o risco do incêndio, portanto com dolo

_______________________________________________

50
Ibid. p. 115.

51
Apesar de já adiantá-las neste capítulo, de modo sucinto, urge-se ressalvar que haverá oportunamente a averiguação da
própria obra de HANS FRANK, no ponto 1.2.7.

52
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. p. 118.
32

eventual, pelo fato de ser funcionário e não o dono do celeiro. Isso porque, se, faticamente, o
funcionário nada fez de diferente de seu patrão, como se poderia saber ter o funcionário
pensado que tanto lhe fazia a incolumidade ou não do celeiro? A solução parece-nos, com a
devida vênia, duvidosamente jurídica, porque voltada à suposição de que somente porque o
funcionário tivesse discutido calorosamente com seu empregador, teria querido, ainda que por
dolo eventual, causar incêndio na propriedade do patrão. Não houve a aferição de dados
ontológicos ligados a qualquer ação do empregado; muito pelo contrário, a investigação
baseou-se no ser da pessoa, isto é, em um verdadeiro Direito Penal do Autor. Nesse sentido,
para nós, a solução não condiz com o Estado Democrático de Direito, por ser inquisitorial.

De fato, no exemplo acima exposto, a discussão entre o agente e seu empregador é um


dado externo relevante que pode ser levado em consideração na análise do dolo. Nelson
Hungria chega à conclusão de que o empregado poderia estar, pelo menos, chateado com o
proprietário do celeiro. Na verdade, a conclusão pela existência do dolo é uma simples
presunção por parte do doutrinador, já que ainda não resta provado que o empregado tenha de
fato agido com consciência e vontade de atear fogo no celeiro: é possível que se interprete que
o empregado, exatamente por ter discutido com o empregador, jamais iria querer que tal
acidente ocorresse, na medida em que o risco de ser demitido aumentaria, por conta do clima
ruim entre ele e seu empregador. Na dúvida quanto à existência ou não de um dolo, deve-se
optar pela segunda interpretação: in dubio pro reo.

De toda sorte, o que Nelson Hungria comprova com a sua análise é a dificuldade pela
qual juristas do mundo todo já enfrentaram e continuam a enfrentar: o dolo é um fenômeno
subjetivo experimentado internamente pelo agente do delito. Ainda que sua conclusão pela
existência do dolo esbarre ao final em uma presunção que, de maneira incontornável, viola o
Estado Democrático de Direito, tal interpretação é uma tentativa, a nosso sentir, de objetivar a
prova dolo, perscrutando a vontade e a consciência da pessoa a partir de dados externos à
mente. Não logra êxito ao final, Nelson Hungria, porquanto, a partir de dados externos (a
discussão calorosa), presume que o empregado tenha querido, quando era possível presumir-
se o oposto.

O caminho da comprovação escolhido pelo doutrinador, entretanto, pretende-se o mais


objetivo possível, e coaduna-se com o método tradicional do dolus ex re, que veremos mais a
frente, no capítulo sobre métodos de prova do dolo.
33

1.2.2.4 Aníbal Bruno

ANÍBAL BRUNO considera o dolo um “elemento psicológico-normativo” da


culpabilidade composto de consciência e vontade53 e o define como a representação da
vontade ilícita. A partir da definição, passa a analisar a controvérsia existente entre as teorias
da representação e da vontade.

Para ele, não há dúvidas de que o dolo seja configurado não só pela representação
mental do resultado ilícito, mas também pela vontade do agente dirigida ao resultado e que,
dessas duas características, seja a vontade a preponderante. A representação não pode, por si
só, ter relevância para o Direito, por ser um fenômeno psicológico. Em contrapartida, a
vontade supõe a representação, por ser um movimento psíquico dirigido a um fim, o que não
se daria sem esse fim ter sido representado no “espírito do agente”.

ANÍBAL BRUNO, com apoio em M. E. MAYER, considera não utilizável pelo Direito o
querer que não tenha sido representado pelo agente, o que, segundo ele, era admitido por
BINDING54. Aliás, admitir apenas a teoria da representação, sem vontade, é estender
demasiadamente o alcance do dolo. Ora, caso se considerasse suficiente apenas a
representação, o agente que previsse o resultado, mas acreditasse na possibilidade de,
posteriormente, evitar o dano também agiria com dolo: um caso de culpa consciente seria

_______________________________________________

53
Ressalva, todavia, a existência de doutrina diversa que prega a transposição do dolo e da culpa da culpabilidade para o tipo
e que confere ao tipo, portanto, aspecto subjetivo. ANÍBAL BRUNO cita as doutrinas de VON WEBER e de WELZEL,
descrevendo-as, respectivamente, uma como a que apresenta o dolo como elemento do tipo (que descreve, portanto, um tipo
subjetivo) e a segunda como aquela que vê o dolo como elemento constitutivo da ação e do ilícito pessoal. Salienta que, para
VON WEBER, caberia à culpabilidade a consciência da ilicitude e, ao dolo, a consciência do ato, com a vontade dirigida ao
resultado. Neste aspecto, ressalta que “estas concepções perturbam profundamente e complicam a estrutura conceitual do
crime e particularmente da culpabilidade (...). A elas se pode objetar que não atendem a que não pode haver consciência da
ilicitude sem consciência do ato nas suas circunstâncias elementares”. Apesar de divergir da doutrina que defende o dolo
como aspecto subjetivo central do tipo, salienta haver muitas hipóteses em que o tipo aparece composto não só de condições
objetivas, mas também de elementos subjetivos. Uma observação: O “VON WEBER” citado por ANÍBAL BRUNO é “HELLMUTH
VON WEBER” (* 1893 - † 1970), Professor da Universidade de Bonn. Mais à frente, no ponto 2.1.2, citaremos, ainda,
outro “VON WEBER”. BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. t. 2º. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 57-59, nota
de rodapé n° 2.

54
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. p. 62.
34

tratado como caso de dolo. Por sua vez, o dolo eventual ficaria sem explicação, caso se
admitisse somente a teoria da representação como configuradora do dolo.

Além das teorias da representação e da vontade, ANÍBAL BRUNO admite, ainda, a teoria
do consentimento ou da anuência, segundo a qual o agente que não quisesse propriamente o
resultado, mas previsse e aceitasse que ele ocorresse como conseqüência de seu ato agiria
dolosamente.

Quanto à diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente, o autor contrapõe a


teoria da probabilidade à teoria do consentimento. Há dolo eventual, para a primeira teoria,
quando o agente prevê como provável, e não somente possível, o resultado. A teoria da
probabilidade, segundo ANÍBAL BRUNO, estaria de acordo com a teoria da representação. Por
seu turno, para a teoria do consentimento, que se identifica com a teoria da vontade, haverá
dolo sempre que o agente anua com a realização do resultado, ainda que não o preveja como
provável ou, até mesmo, possível.

Independente do debate acerca das teorias volitivas e intelectivas, existente, então, em


doutrina, certo é para ANÍBAL BRUNO que o dolo eventual seja integrado não só pela
representação da possibilidade55 do resultado, mas também da anuência com sua ocorrência,
assumindo, portanto o agente o risco de produzi-lo. Neste peculiar assunto da assunção do
risco, ANÍBAL BRUNO tece rasante comentário sobre as fórmulas de FRANK, que serão mais
detalhadamente tratadas oportunamente56.

1.2.3 O dolo na teoria finalista

1.2.3.1 Welzel

_______________________________________________

55
Apesar de estar escrito exatamente “possibilidade”, acreditamos tenha o autor querido dizer probabilidade. BRUNO,
Aníbal. Direito Penal. p.75.

56
ANÍBAL BRUNO não se deteve a descrever em detalhes a teoria de FRANK, na medida em que não parecia ser esse o objetivo
de seu trabalho, não tendo sido, portanto, falha de sua obra, muito pelo contrário.
35

HANS WELZEL, autor da teoria da ação finalista57, no que tange ao dolo, nada mais fez
que completar um processo já em desenvolvimento que direcionava cada vez mais aspectos
subjetivos para o injusto. Segundo o autor, o conceito unitário de culpa, há tanto tempo
buscado, consegue ser alcançado por sua teoria finalista, a qual estabelece uma relação
psíquica do autor com o fato (o dolo), com a ação e com o tipo de injusto. Mediante a
antecipação mental e a seleção dos meios que utilizará na conduta, o agente direciona a ação,
controlando, assim, o curso causal a uma determinada finalidade. Nessa perspectiva, o dolo
deixa de compor a causalidade para integrar o injusto, deixando à culpabilidade a aferição da
reprovabilidade da conduta58. A culpabilidade, portanto, é despida daquela subjetividade que
lhe era própria no sistema clássico e normativiza-se.

Mais tarde, sua concepção finalista da ação será criticada, dentre outros motivos,
exatamente por confundir a finalidade pura da ação com o dolo. A ação final não explica
satisfatoriamente nem a omissão, nem a ação imprudente e a doutrina volta a considerar mais
seguro o conceito natural de ação. Ao contrário da teoria final da ação, no conceito natural, o
conteúdo da vontade do agente na conduta é indiferente, apenas importando se o agente
efetivamente quis algo. Já o querer realizar os elementos normativos do tipo passa a pertencer
ao dolo.

Nada obstante, tendo o finalismo confundido, em sua fase inicial, o dolo com a própria
finalidade da ação, impulsionou o deslocamento do dolo da culpabilidade para o injusto, mais
especificamente, para a ação. Todavia, não pode o dolo identificar-se com a finalidade da
ação, tal como vislumbrara a teoria finalista, uma vez que o dolo não se resume em mero
controle do curso causal até o resultado típico. Mais que isso, segundo ROXIN, o dolo
pressupõe a compreensão do conteúdo do sentido normativo de todos os elementos do tipo, o
que não ocorre ainda naquela finalidade da ação59. A finalidade da ação é pura, isto é, não

_______________________________________________

57
ROXIN, ao apontar WELZEL como criador da teoria final da ação, ressalva a importância dos escritos de MAURACH e
STRATENWERTH. ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 200.

58
WELZEL, Hans. La teoria de la acción finalista. Buenos Aires: Depalma, 1951. p. 34.

59
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 310.
36

compreende o querer típico, mas tão somente o querer realizar a ação. Por exemplo, o sujeito
que pretende limpar sua arma e, sem querer, ao manusear a arma para limpá-la, mata alguém
por um disparo acidental, não teve dolo de matar. Sua finalidade era simplesmente limpar a
arma, o que efetivamente estava a fazer. Nesse sentido, a finalidade da ação (limpar a arma)
não pode ser confundida com o dolo típico (matar alguém)60.

Quanto ao dolo eventual, WELZEL entende que grande parte das dificuldades
encontradas deriva da má interpretação que se faz da palavra “finalista”. Ele explica que não
se pode querer compreender toda uma teoria por meio de uma mera interpretação da palavra
que lhe dá o nome. Segundo ele, “em nenhuma parte do mundo, a denominação de uma
doutrina pode ser significativa de todo o seu conteúdo”61.

O agente da ação finalista leva em consideração três etapas no direcionamento de sua


conduta. A primeira e mais óbvia é o objetivo da ação; em seguida, o agente leva em conta os
meios para a obtenção desse objetivo; mas o agente não deixa de considerar também as
conseqüências secundárias necessariamente conexas ao emprego daqueles meios. Com base
nesse esquema, tudo que o agente deva realizar para o alcance do fim é também por ele
querido, isto é, o objetivo, os meios e as conseqüências secundárias. Há, portanto,
identificação entre o dolo direto e o dolo eventual, para WELZEL. No exemplo do fraudador de
seguros que quer atear fogo em sua casa e já se conforma com o fato de a mulher paralítica
que lá habita vir a morrer, o agente atua, pois, com dolo eventual, ainda que muito lamente a
morte da mulher. Atualmente, a hipótese seria de dolo direto de 2° grau, como veremos mais
adiante, já que esses resultados previstos pelo próprio agente, independentemente de serem
por ele desejados ou não, são conseqüências secundárias de sua ação tidas por ele mesmo
como certas ou necessárias, mesmo que ele lamente, como no caso do agente que lamenta a
morte da mulher paralítica62.

_______________________________________________

60
Ibid. p. 241.

61
WELZEL, Hans. La teoria de la acción finalista. p. 41.

62
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002. p. 69.
37

1.2.3.2 Luiz Regis Prado

Nos dias atuais, a época de PRADO, a doutrina sobre o dolo já se encontra mais
amadurecida. Nesse contexto, a conceituação do dolo, ainda conturbada pelas diversas teorias
(teorias volitivas e intelectivas), já se encaminha majoritariamente, entretanto, para enquadrar-
se na tipicidade, remanescendo, por exceção, número reduzido de autores persistentes na
localização do dolo na culpabilidade.

Nessa conjuntura é que PRADO considera o dolo elemento essencial da ação final e o
define como a consciência e a vontade de realizar os elementos objetivos do tipo de injusto
doloso63. Para esse autor finalista, a consciência da ilicitude é componente da culpabilidade,
de modo que não exige o dolo tal saber.

Ao determinar o alcance do dolo, transparece PRADO total concordância com a teoria


de WELZEL, segundo a qual o dolo abrangeria o objetivo visado pelo agente, os meios
empregados e as conseqüências secundárias (“dolo de conseqüências necessárias”).

No que tange às espécies de dolo, PRADO não as divide em três como a doutrina
moderna alemã, mas apenas em duas: dolo direto ou imediato e dolo eventual. O primeiro
seria o dolo em que o agente quer o resultado como fim direto de sua ação. Quanto ao dolo
eventual, PRADO o alarga sobremaneira, porque, conquanto afirme que o que caracteriza essa
espécie de dolo é o aspecto cognitivo, entendido como a representação de um possível
resultado, faz alusão também ao aspecto subjetivo, na medida em que afirma que “o agente
não quer diretamente a realização do tipo, mas a aceita como possível ou provável”. Assim,
termina por definir o dolo eventual com base na teoria da representação, tanto da
probabilidade, quanto da possibilidade da ocorrência dos efeitos secundários, levando em
consideração, ainda, aspectos subjetivos como a aceitação e a conformismo do agente com o
resultado. Não faz, portanto, diferenciação entre as teorias da possibilidade e da
probabilidade.

_______________________________________________

63
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. p.374.
38

PRADO não divide, assim, o dolo direto em primeiro e segundo graus: seu dolo direto
assemelhar-se-ia ao dolo direto de 1° grau. Já o dolo eventual por ele descrito assemelhar-se-
ia ao dolo direto de 2° grau, e talvez, por isso, revelar-se-ia extremamente largo. Para a
moderna concepção, todavia, segundo SANTOS, dolo direto de 1° grau é a pretensão do agente
de realizar determinado resultado típico que, se não o tem como certo, pelo menos o prevê
como possível, contanto que o agente atribua a si a chance de produzir esse possível evento.
Já o dolo direto de 2° grau compreende os meios de ação escolhidos para realizar o fim e as
conseqüências secundárias representadas pelo agente como certas ou necessárias ou
prováveis64. Ao dolo eventual, na Moderna Teoria apresentada por SANTOS, restariam as
inúmeras teorias intelectivas e volitivas e, especialmente, o entendimento-base, reinante na
Alemanha, qual seja, os efeitos secundários representados pelo agente como possíveis. Nesse
sentido, para a doutrina alemã, a representação da probabilidade ou a certeza de que os efeitos
secundários realizar-se-ão configuram, na realidade, o dolo direto de 2° grau, ao passo que os
eventos tidos pelo agente como possíveis de acontecer poderiam fundamentar ou o dolo
eventual ou a culpa consciente, dependendo da postura volitiva ou intelectiva que se tome.

Nada obstante, o dolo eventual descrito pela doutrina finalista seria, na verdade, mais
favorável ao acusado. Comparando-o à doutrina moderna, ao se configurar também com
características de dolo direto de 2° grau, o dolo eventual empregaria ao agente um tratamento
mais brando, na medida em que ações que seriam enquadradas pelo entendimento moderno no
dolo direto de 2º grau, não poderiam para os finalistas ser tratadas com o rigor do dolo direto,
mas sim com a reprimenda adequada ao dolo eventual. Por esse motivo, ainda que se
demonstre mais larga, a concepção de dolo eventual finalista despende uma resposta penal
menos intensa ao agente que atua com certeza ou com um juízo de probabilidade quanto à
necessária realização de resultados secundários.

1.2.3.3 Cezar Bitencourt

_______________________________________________

64
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. p. 68-73.
39

BITENCOURT define o dolo como a consciência e a vontade de realização da conduta


descrita em um tipo penal e, a exemplo de WELZEL, considera-o elemento essencial da ação
final. Para o autor brasileiro, o elemento cognitivo, entendido como a previsão ou
representação de todos os elementos essenciais do tipo, é pressuposto do elemento volitivo,
mas a consciência sem a vontade é “algo completamente inexpressivo, indiferente ao Direito
Penal”65.

Ao dissertar sobre as teorias do dolo, BITENCOURT considera a teoria da representação,


atualmente, estar completamente desacreditada, porque o dolo deve conter ambos os
elementos, isto é, tanto o intelectivo, quanto o volitivo. Para ele, o elemento volitivo não pode
ser descartado, nem mesmo no dolo eventual, nada obstante já existirem teorias que
pretendam sua exclusão66.

BITENCOURT, em seu Tratado de Direito Penal, descreve as teorias da vontade, da


representação, do consentimento e da probabilidade, não fazendo menção às outras variantes
existentes em doutrina, talvez por optar apresentar apenas as que têm maior número de
adeptos. Ele transparece simpatizar com a teoria da vontade, uma vez que considera o
elemento volitivo fundamental. Entretanto, deixa clara sua discordância com qualquer
tentativa de apartar seja a vontade, seja a consciência do dolo, porque, segundo ele, “a
vontade pressupõe a previsão, isto é, a representação, na medida em que é impossível querer
algo conscientemente senão aquilo que se previu ou representou na nossa mente, pelo menos,
parcialmente (...)” e conclui: a vontade sem representação, isto é, sem previsão, é
absolutamente impossível.

No que tange à determinação dos tipos de dolo, sua doutrina é partidária do


entendimento alemão, quanto à necessidade de se dividir o dolo direto em 1° e 2° graus.

_______________________________________________

65
Esta e todas as outras citações deste ponto 1.2.3.3: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. I: parte
geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 336.

66
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 446, nota de rodapé nº 118.
40

1.2.4 O dolo na teoria funcional

1.2.4.1 Roxin

Desde 1970, o sistema racional-final ou teleológico (ou funcional) vem sendo


desenvolvido por ROXIN67, tendo recebido grande contribuição de SCHÜNEMANN, em 1984.
Das principais propostas trazidas pelo funcionalismo, assinalam-se: a teoria da imputação do
tipo objetivo dependente da realização de um perigo não permitido dentro do fim de proteção
da norma e; a ampliação da culpabilidade à categoria de responsabilidade.

A teoria funcional, portanto, substitui a categoria científico-natural ou lógica da


causalidade, pela primeira vez, por um conjunto de regras orientado por valorações jurídicas:
tanto o tipo avalorado do sistema clássico, quanto o tipo com elementos subjetivos do
neoclássico e o tipo adicionado do dolo pelo sistema finalista trabalhavam com a mera
causalidade na imputação do tipo objetivo.

“O direito penal é a barreira intransponível da política criminal.” Esta frase de VON


LISZT serviu de ponto inicial para a conclusão de ROXIN, quanto à nova estruturação que se
deveria engendrar no sistema jurídico penal. Para ele, a nova estruturação do sistema jurídico
penal só pode se basear na introdução de decisões valorativas político-criminais no próprio
sistema jurídico. O pensamento de ROXIN pretende inverter o quadro levantado por VON
LISZT. O sistema não pode ser o atravanco da política criminal; pelo contrário, o sistema deve
vincular-se à sua finalidade última, qual seja, a implementação da política criminal68.

_______________________________________________

67
A obra original de ROXIN, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, foi editada pela primeira vez em 1970. Nada obstante,
este ponto 1.2.4.1 tem como fonte o exemplar prefaciado por ROXIN em 2000 e traduzido por Luís Greco: ROXIN, Claus.
Política criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Outras referências, neste ponto 1.2.4.1, podem
ser encontradas em Id. Derecho Penal. Conferir, especialmente, o § 7°, que versa sobre a dogmática jurídico-penal e o
sistema do Direito Penal.

68
Para uma maior compreensão do exposto, ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal.
41

Nesse contexto, cada categoria do delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) é


por ele observada e sistematizada à luz de sua função político-criminal. Por seu turno, o tipo
deve ser enxergado sob a ótica do princípio nullum crimen, de modo que a ação seja valorada
do ponto de vista da necessidade abstrata da pena. Assim, independentemente da pessoa do
sujeito concreto e da concreta situação da atuação, declarar-se-á uma ação punível para o caso
regular69. A necessidade abstrata da pena, sob a análise da prevenção geral, e o princípio da
culpabilidade (o qual exclui do tipo as lesões a bens jurídicos produzidas por mera
casualidade ou por uma conduta antijurídica qualquer [versari in re illicita]) devem servir
como base político-criminal do tipo.

Dentro dessa perspectiva de tipo, o dolo não pode deixar de compô-lo, na medida em
que somente o dolo poderá auxiliar na limitação de um fato. Ações e violações de dever não
devem ser observadas meramente sob o prisma da causalidade, sob pena de se estender em
demasia a punibilidade, tal como ocorreu no sistema naturalista clássico.

Como dolo típico, por conseguinte, entende-se majoritariamente o saber e o querer de


todas as circunstâncias do tipo legal70. Nada obstante, ele defende que é a “realização do
plano” a essência do dolo: um resultado deve ser considerado dolosamente produzido, quando
e porque se corresponde com o plano do sujeito na valoração objetiva. Esse critério, segundo
ele, fica bem evidente na constatação do dolo direto de 1º grau (intenção ou propósito: aquilo
que o agente persegue) e no dolo direto de 2º grau (incluídas todas as conseqüências que,
ainda que o agente não as persiga, prevê que se produzirão com segurança). Também pode
servir de diretriz na delimitação entre dolo eventual e culpa consciente. A aferição quanto à
realização do plano tem importância, ainda, na imputação do dolo típico, no que tange ao
desvio do curso causal.

ROXIN considera importante que se reconheça a existência de três espécies de dolo


(direto de 1º grau, direto de 2º grau e eventual), porque o legislador nem sempre castiga

_______________________________________________

69
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 218.

70
Ressalta ROXIN ser cada vez mais discutido o pertencimento de um elemento volitivo ao dolo.
42

qualquer atuação dolosa. Pelo contrário, freqüentemente, exige uma determinada intenção ou
propósito. A fim de, nesse passo, caracterizar a intenção, afirma ROXIN que
los resultados conscientemente causados y deseados son siempre intencionales, aun cuando su
producción no sea segura o no sea la finalidad última (el móvil, el motivo) o la finalidad única
de quien actúa. Por otro lado, los resultados indeseados cuya producción el sujeto no había
considerado segura, sino sólo posible o probable, han de considerarse a lo sumo producidos
con dolo eventual. Así queda para la polémica sobre el concepto de intención (o propósito)
sólo un grupo intermedio de casos, en los que el sujeto debe producir con seguridad un
resultado típico, pero no desea ese resultado, sino que se enfrenta a él con indiferencia o
incluso pesar. Debido a la seguridad de la producción del resultado, tales casos son como
mínimo ejemplos de dolo directo (dolus directus de segundo grado)71.

A fim de caracterizar o dolo eventual – caracterização esta desenvolvida pela primeira


vez pelo próprio ROXIN72 – como a “decisão pela possível lesão ao bem jurídico”, toma como
ponto de partida o clássico caso dos ladrões “B” e “C” que, desejando roubar “A”, decidem
estrangulá-lo com um cinto de couro até que “A” perca a consciência. Nada obstante, “B” e
“C” desistem de utilizar o cinto, porque prevêem que o estrangulamento poderia causar a
morte de “A” e, então, decidem utilizar um saco de areia para com ele golpear a cabeça de
“A”, causando-lhe a perda da consciência; durante a execução do fato, o saco de areia
arrebenta e “B” e “C” recorrem ao cinto de couro, que havia sido levado por acaso. Após se
apoderarem dos pertences de “A”, surgem dúvidas quanto à vítima “A” ainda estar viva e “B”
e “C” tentam reanimá-la, sem sucesso. ROXIN considera tratar-se de um caso de dolo eventual,
na medida em que aquele que inclui em seus cálculos a realização de um tipo reconhecido por
ele como possível, sem que a realização lhe dissuada de seu plano, decide, portanto,
conscientemente pela lesão ao bem jurídico.

Pondera, ainda, ser incorreta a denominação dolo eventual. Isso porque a vontade da
ação realizadora do plano não é eventual, já que o agente quer realizar seu plano inclusive
com o perigo de ter o bem jurídico lesado. Somente a realização do resultado, não o dolo, é

_______________________________________________

71
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 419.

72
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 416, nota de rodapé nº 3.
43

eventual73. Para ROXIN, portanto, seria correto falar de um dolo sobre fatos cuja insegurança é
consciente.

Quanto às diversas teorias intelectivas e volitivas já formuladas, ROXIN considera que


elas ofereçam tão-somente indícios probatórios e que, até mesmo, muito se aproximam da
concepção que defende. Assim é que, para ele, conceitos como “levar a sério” ou “resignar-se
com”, não seriam definições conceituais do dolo eventual, mas sim circunstâncias das quais se
poderia deduzir ter o agente decidido pela possível lesão ao bem jurídico.

Algumas críticas foram formuladas contra sua concepção de dolo eventual, mas ROXIN
as rebate. A primeira crítica se dirige ao fato de que, às vezes, ao agente do fato é
completamente indiferente o resultado. ROXIN contra-argumenta no sentido de que àquele que
o resultado previsto como possível é indiferente, tanto lhe faz a produção ou não do resultado;
não obstante, previu conscientemente a produção, ainda que eventual, do resultado, e não
desistiu, mesmo assim, de realizar seu plano, tendo, pois, agido com dolo eventual.

Uma segunda crítica a seu entendimento de dolo eventual perfaz-se na idéia de que
“levar a sério” pressupõe a consciência da antijuridicidade por parte do agente e, nesse
sentido, vai de encontro à teoria da culpabilidade (a consciência da antijuricidade não
pertence ao dolo, segundo essa teoria). Contra essa objeção, ROXIN ratifica derivar do dolo
típico a consciência da lesão do bem jurídico e põe em xeque a própria teoria da
culpabilidade.

Por fim, critica-se que o agente que leva a sério todas as possibilidades fáticas – e,
nesse sentido, demonstra, pelo menos, consideração – acaba prejudicado, visto que o agente
que negligencia descuidadamente algumas possibilidades – não tendo, pois, consideração –
recebe menor reprimenda penal. Entretanto, explica ROXIN que esta visão é errada. Na

_______________________________________________

73
“Nuestra delimitación demuestra, como además se reconoce en general, que la denominación ‘dolo eventual o
condicionado’ es incorrecta. Pues el dolo, como voluntad de acción realizadora del plan, precisamente no es ‘eventual o
condicionado’, sino, por el contrario, incondicional, puesto que el sujeto quiere ejecutar su proyecto incluso al precio de la
realización del tipo (o sea ‘bajo cualquier eventualidad o condición’). Únicamente la producción del resultado, no el dolo,
depende de eventualidades o condiciones inciertas. Sería por tanto más correcto hablar de un dolo sobre la base de hechos de
cuya inseguridad se es consciente. No obstante, por razones de tradición, se mantendrá aquí el concepto generalizado de
‘dolo eventual o condicionado’.” ROXIN, Claus. p. 426, nm. 24.
44

verdade, aquele que prevê possíveis resultados e os leva a sério está em posição de vantagem,
já que sabe das razões que deveriam levá-lo a desistir do intento. Ele tem, por esse motivo,
maior possibilidade de desistir de seu plano, todavia não desiste e age, pois, com dolo
eventual. Nas palavras de ROXIN: ¡Lo que fundamenta el mayor merecimiento de pena en
relación con el que actúa negligentemente no es el que se consideren todas las posibilidades,
sino el seguir actuando pese al cálculo sereno de las consecuencias!

1.2.4.2 Jakobs

Antes de abordar o entendimento de JAKOBS sobre o dolo, faz-se mister elucidar sua
concepção sobre a evitabilidade individual. JAKOBS reconhece que o conceito social de ação
(doutrina que se inicia com EB. SCHMIDT e é desenvolvida por JESCHECK) consegue definir
mais satisfatoriamente a ação que a teoria causal, mas assevera que a visão social da ação não
alcança corretamente o que se deveria enxergar como motivo dominante do conteúdo das
normas jurídicas, que é a garantia individualizadora. A direção da ação tem de ser
determinada, portanto, sempre em função das capacidades individuais do agente74.

Contudo, JAKOBS vai mais além. A ação deve ser individualizada por meio da
percepção da capacidade do agente de evitar o resultado. Ou seja, o resultado somente deverá
ser imputado ao agente caso se constate que o agente tinha a capacidade individual de evitá-
lo, não tendo, porém, o evitado, por dolo ou por imprudência (culpa).

_______________________________________________

74
JAKOBS defende a visão individualizada no próprio agente, e não sob o prisma social, porque, segundo ele, a execução da
ação depende da capacidade individual para dirigir/organizar a ação. O autor conclui que “En la solución aquí elegida el
injusto no es ni perturbación de la existencia del bien jurídico (como en el concepto causal de acción) ni pertubación de la
seguridad del bien jurídico (como en las teorías de la tentativa de orientación causalista), sino objetivación de una actitud
incorrecta ante la norma (pudiendo la norma establecer un estándar, como especialmente en los delitos de peligro abstracto, o
pudiendo interpretársela por medio de estándares, es decir, por medio de la imputación objetiva). Se atiende a la mencionada
actitud porque proporciona la posibilidad de libre determinación de la propia organización. Por expresarlo con un ejemplo: Si
estuviera regulado todo movimiento corporal, si, por tanto – en caso de estandarización exhaustiva por medio de la ley – no
hubiera libre determinación de la propia organización, le quedaría al concepto de acción tan poco que aportar como, a la
inversa, en el estado de naturaleza hobbesiano, de libertad absoluta, en el que no se garantiza posibilidad de interacción
alguna”. Essa e todas as outras citações deste ponto 1.2.4.2 foram extraídas da tradução para o espanhol da 2ª edição da obra
de JAKOBS “Strafrecht Allgemeiner Teil. Die Grundlagen und die Zurechnungslehre”. Essa específicamente encontra-se na p.
173, nm. 25. JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. Madrid: Marcial
Pons, 1995.
45

Com base nessa concepção de ação, JAKOBS identifica que, todavia, não haveria uma
boa razão para que o individualmente evitável pudesse ser dividido em dolo e imprudência e,
pior ainda, que, em quase açambarcante número de vezes, fosse o dolo cominado com pena
superior aos fatos imprudentes. Segundo o autor,
a las explicaciones usuales psicologistas (evitabilidad más fácil en el dolo) o eticistas
(decisión de lesionar el bien en el dolo) les falta una relación suficientemente estrecha con la
función del Derecho penal. La afirmación próxima, que afirma la mayor peligrosidad del
autor doloso, no convence: También el autor imprudente condiciona suficientemente la lesión
de un bien, es decir, que no se puede graduar entre una y otra modalidad75.
Para ele, a razão possível para o tratamento menos grave à imprudência seria o fato de
que, na imprudência, o agente suportaria um risco natural de auto-dano, o que não ocorreria,
entretanto, no fato doloso, já que neste o agente conheceria (pois teria tido o cuidado de
planejar) as conseqüências de sua ação76. Caso restasse de sua ação perigo para si mesmo,
teria o agente, no agir doloso, se auto-colocado em perigo77.

Segundo JAKOBS, a lei penal alemã define parcial e negativamente o dolo: se há


desconhecimento da realização do tipo se exclui o dolo. Nesse sentido, determinar-se-á o
limite do dolo conforme fenômenos psíquicos (conhecimento ou desconhecimento). Ao
exemplificar seu entendimento de dolo, JAKOBS aparentemente pende pelo afastamento do

_______________________________________________

75
JAKOBS, Günther. Derecho penal. p. 312, n.m. 25.

76
Para ROXIN, o que justifica o tratamento mais severo ao dolo é a decisão do agente de violar o bem jurídico: “Quien
incluye en sus cálculos la realización de un tipo reconocida por él como posible, sin que la misma le disuada de su plan, se ha
decidido conscientemente – aunque sólo sea para el caso eventual y a menudo en contra sus propias esperanzas de evitarlo –
en contra del bien jurídico protegido por el correspondiente tipo. Esta ‘decisión por la posible lesión de bienes jurídicos’ es
la que que diferencia al dolo eventual en su contenido de desvalor de la imprudencia consciente y la que justifica su
más severa punición.” [grifamos]. ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 425, nm.23. No mesmo sentido, DÍAZ PITA, María
del Mar. El dolo eventual. 1. ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010. p. 285-291.

77
A questão de o dolo ser tratado com maior gravidade que a imprudência é vista da seguinte forma por JAKOBS: “Las
consecuencias de una inadvertencia o de un descuido no las ha valorado el autor imprudente, porque le eran actualmente
desconocidas; no existe, pues, para él, certeza alguna de que el resultado de su comportamiento le vaya a ser grato, o al
menos aceptable, y de hecho, al contrario que en los delitos dolosos, si dicho resultado se produce tampoco lo podrá aceptar.
En la imprudencia la situación se distingue de la del dolo no sólo por la falta de conocimiento de las consecuencias: Las
consecuencias dolosas son aceptables, pues si no el autor no obraría, mientras que por el contrario en las consecuencias
imprudentes su aceptabilidad permanece abierta en el instante del hecho. En la imprudencia, el autor soporta un riesgo natural
que no es común en el dolo: el riesgo de que incluso él pueda resultar dañado, u otra persona cuyo daño el autor padecería
como propio. Mientras que la imprudencia no se nutra de un desinterés específico (acerca del problema de la ceguera ante los
hechos vid. el texto siguiente), sino de una falta de atención no dirigida, general, difusa en sus consecuencias, está gravada
con el peligro de una poena naturales, y este riesgo de autodaño disminuye la importancia del autor imprudente frente al
doloso”. Ibid. p. 312-313, nm. 5.
46

aspecto volitivo, vez que, ao analisar o caso de cegueira diante dos fatos, demonstra-se fiel a
uma interpretação o mais objetiva possível do dolo:
Quien no repara en las consecuencias se su actuar porque, en caso de actuación
cognosciblemente injusta, el ámbito en que caen las consecuencias no le parece digno de
consideración, obrará a lo sumo imprudentemente. Ejemplo: Si un conductor embriagado
dirige su vehículo a toda velocidad hacia el policía que cierra el paso en mitad de la calzada,
para abrirse camino, sólo concurrirá dolo de homicidio si el autor al menos piensa que quizá
el policía se apartará demasiado tarde; si la vida de un policía no le parece algo digno de
consideración, concurrirá a lo sumo imprudencia78.
Como se pode depreender, no exemplo formulado pelo autor, embora o agente tenha
consciência do perigo de lesar o bem jurídico, como para o agente o bem jurídico lhe é
indiferente (por não o considerar digno de consideração), para JAKOBS, não será caso de dolo,
mas de imprudência.

Essa conclusão de JAKOBS pela imprudência decorre de sua concepção mais cognitiva
que volitiva do dolo. Ora, ainda que o agente seja completamente indiferente quanto ao dano
que causa ao bem, não deixará o agente de ter consciência de que pode evitar o dano, devendo
ser, nessa perspectiva, um caso de dolo. Só não o será, conquanto não reflita o agente a
respeito da lesão, exatamente por causa da sua indiferença ao bem jurídico, mas essa
consideração é levantada por PUPPE, e não por JAKOBS. PUPPE, inclusive, ao tratar dos casos
de cegueira diante dos fatos (Tatsachenblindheit), utiliza-se do próprio exemplo de JAKOBS:
O terrorista lança o carro sobre o policial que lhe ordena que pare, mas nem sequer leva em
consideração a possibilidade de que venha este a ser lesado ou morto, ‘porque a vida de um
tira não é algo digno de consideração’ (exemplo de Jakobs, AT 8⁄5ª). Se submetermos o
perigo que fundamenta o dolo e a consciência do perigo às severas exigências que se mostram
necessárias, praticamente deixarão de ser possíveis tais casos de cegueira diante dos fatos. O
autor, afinal, não é senhor a respeito daquilo que ele conhece ou deixa de conhecer. Para
utilizarmos um exemplo de Zielinski, AK nm. 11, o autor não conseguirá evitar de ver o piche
que ele lança sobre as coisas alheias, ainda que ele seja completamente indiferente no que
toca aos danos a essas coisas. Tampouco conseguirá o terrorista, indiferente o quanto seja,
evitar de tomar conhecimento de que ele talvez atropele um policial, até porque isso é
relevante em face de seus próprios interesses, p. ex. no que se refere à incolumidade de seu
carro. Essa indiferença pode levar , isso sim, a que nenhum dos dois reflita a respeito da
possível lesão, tomando posição diante dela. Se essa indiferença deve ser recompensada coma
não-reprovação por dolo, é um problema da determinação correta ou da legitimidade do
chamado elemento volitivo do dolo79.

_______________________________________________

78
JAKOBS, Günther. Derecho penal. p. 313, nm.5a.

79
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. 10-11, nm. 7.
47

De fato, JAKOBS admite que sua conclusão para o caso da cegueira diante dos fatos
justificar-se-ia, no geral, pelo interesse do legislador pela segurança jurídica no traçado de um
limite entre uma forma de dirigir a ação que tem de ser valorada como grave ou leve80.

KÖHLER critica o posicionamento de JAKOBS. Para KÖHLER, a idéia é


“extremadamente objetivista-normativista”81.

No que concerne às espécies de dolo, JAKOBS concorda com a doutrina dominante


alemã. Apenas para recordar tal posicionamento, no dolo direto de primeiro grau, a relação
subjetiva do agente com as conseqüências principais é de intenção. O agente atua em função
das conseqüências principais e quer essas conseqüências. Se o agente faz, entretanto, um
prognóstico de que determinadas conseqüências secundárias acontecerão com segurança, por
mais que não queira ou lamente a ocorrência, agirá com dolo direto de segundo grau. Quanto
à definição do dolo eventual, JAKOBS volta a comentar sobre a cegueira diante dos fatos para
concluir que “no es acertado atenerse, en la delimitación de dolo e imprudencia, a en qué
medida el autor, en su actitud interna, se ha distanciado de la evitación de la consecuencia, es
decir, distinguir según que el autor, se no aprueba la producción de la consecuencia, sí la
asume con indiferencia, o en cambio la rechaza o incluso la lamenta”82.

Nada obstante ser importante que o agente tenha consciência da situação e do curso
causal, alerta JAKOBS que não se deve etiquetar a solução que se baseia na consciência de
teoria intelectiva, porque o ato cognoscitivo não possui somente caráter intelectual. Considera

_______________________________________________

80
“Cuando la ley equipara los marcos penales de los hechos dolosos e imprudentes en los casos en que el desconocimiento de
la realización del tipo prácticamiente siempre descansa em motivos que gravan, lo hace para resolver el problema
mencionado”. O problema mencionado é a cegueira diante dos fatos. Conferir em JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 314,
nm. 5a.

81
KÖHLER, Michael. Die bewusste Fahrlässigkeit: eine strafrechtlich-rechtsphilosophische Untersuchung. Heidelberg: C.
Winter, 1982, p. 369, nota de rodapé n° 18 apud Ibid. p. 313, nm. 5ª, nota de rodapé n° 9. Também na versão brasileira de seu
Tratado, JAKOBS relata que “Köhler critica a posição aqui defendida como ‘representação objetivista-normativista..., para a
qual a auto-inclusão do sujeito e a diferenciação dos conceitos de imputação daí resultantes para a fundamentação da
punibilidade não têm mais qualquer significado essencial’”. JAKOBS entende que a interpretação de KÖHLER é “totalmente
individualizante e psicologizante da ‘auto-inclusão’”. E prossegue afirmando que “a cegueira em relação a outras pessoas
também é uma interpretação da relação com elas, i.e., a sua desvalorização; e não existe razão para honrar essa
interpretação”. JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 373, nota de rodapé n° 488.

82
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 325, nm. 21.
48

JAKOBS que “aquel a quien no le apetece en absoluto reflexionar, y quien tampoco se ve


obligado a reflexionar, no reflexiona, y por ello no se da cuenta de aquello que no está
meramente ante sus ojos. Así pues, la teoría intelectual no debe entenderse en el sentido de
que el dolo sea una situación psíquicamente dependiente sólo del intelecto”83.

JAKOBS, portanto, adere à teoria cognoscitiva, ao defender que ocorre dolo eventual
“cuando en el momento de la acción el autor juzga que la realización del tipo no es
improbable como consecuencia de esa acción”, entretanto, “el mero ‘pensar en’ u ‘ocurrirse’,
sin cualidad de juicio, puede denominarse, si se quiere imprudencia consciente; sin embargo,
ha de tenerse en cuenta que la consciencia en este tipo de imprudencia ya en su contenido no
se corresponde con el conocimiento de las consecuencias propio del dolo”84.

JAKOBS conclui que sua descrição de dolo eventual, na verdade, muito se aproxima
daquelas concepções segundo as quais o agente se resigna com a realização do tipo ou leva a
sério. Contudo, explica que a diferença com a concepção que defende reside:
en que estas opiniones (¡aun cuando ellas mismas reprochan a la teoría aquí propugnada que
acentúa excesivamente lo intelectual!) subestiman la repercusión de la ligereza, la represión
de los escrúpulos, etc., sobre el aspecto intelectual, intentando por ello definir la seriedad del
juicio de otro modo distinto, lo cual lleva a dificultades cuando se puede verificar un juicio
serio, pero ninguna ‘actitud’ posterior. Y estos casos problemáticos no son sólo raras
excepciones. Especialmente en todo el complejo de las realizaciones del tipo justificadas no
se comprende como es que el autor debe adoptar alguna actitud ante la realización del tipo:
Desde luego sabe que de todos modos no responde por la realización del tipo85.

1.2.4.3 Puppe

_______________________________________________

83
Ibid. p. 326-327, nm. 22.

84
JAKOBS, Günther. Derecho penal. p. 327, nm. 23.

85
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 329, nm. 25.
49

As notas de INGEBORG PUPPE ao § 15 do Nomos Kommentar86, traduzidas para o


português sob o título “A distinção entre dolo e culpa”, servem-nos, neste passo, para o estudo
de suas ideias.

PUPPE inicia87 efetivamente a distinção entre dolo e culpa com aguçada discordância à
figura do dolo indireto. Segundo a autora, já FEUERBACH havia negado possibilidade de
sobrevivência de tal conceito em sede doutrinária. Para ele, do fato de o criminoso prever a
conseqüência como possível e assim mesmo não omitir a ação da qual ela surgiu “não decorre
que ele tenha querido esta conseqüência, o que não pode ser ademais deduzido de quaisquer
outras premissas”. E PUPPE arremata: a interpretação jurídico-histórica vê no dolo indireto até
hoje nada mais do que um procedimento para a eliminação de dificuldades probatórias por
meio de presunções fundamentadas na psicologia.

Assim ocorre também na teoria da vontade que, ao levar apenas em consideração o


sentido descritivo psicológico da palavra vontade, acaba trabalhando com uma vontade
desprovida de querer (!) no dolo direto de 2° grau e no dolo eventual. Antes, porém, é preciso
fazer uma breve explicação sobre a palavra dolo (“Vorsatz”) em alemão. “Vorsatz” significa
tanto “querer”, no sentido cotidiano da palavra, quanto “dolo”, juridicamente. O agir de
propósito ou intencionalmente pode, portanto, ser expressado pela palavra “Vorsatz”
(substantivo) ou “vorsätzlich” (adjetivo ou advérbio), tanto em um sentido bom, quanto para
se referir a uma má intenção. Já a palavra dolo não pode expressar um bom propósito, pois
todo dolo é um propósito mal direcionado, uma má intenção (dolus malus).

Esclarecidas as possíveis acepções da palavra “Vorsatz”, que significa dolo e também


querer, PUPPE pondera que o entendimento da teoria da vontade que se arrime apenas do
sentido cotidiano da palavra “Vorsatz” – o querer –, do sentido psicológico descritivo da
palavra, portanto, deverá restringir o conceito de dolo apenas aos casos de propósito, ou seja,

_______________________________________________

86
Nomos-Kommentar zum Strafgesetzbuch. Baden-Baden: Nomos, 1995. Segundo nota de rodapé n° V da introdução do
tradutor para o português, LUÍS GRECO, são de autoria de PUPPE as notas preliminares ao § 13 (Vor § 13), as notas dos §§ 15,
16, 28, 29, Vor § 52, §§ 52 e 348. Conferir em PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. X.

87
Já no capítulo de número 3, porém o primeiro intitulado “A distinção entre dolo e culpa”, na obra traduzida para o
português como “A distinção entre dolo e culpa”. Ibid. p. 23.
50

aos casos de dolo direto de 1° grau. Ora, se dessa maneira não se proceder, aceitar-se-ão como
queridos os casos em que o agente não tenha sequer almejado e que, até mesmo, pelas
conseqüências tidas como certas ou necessárias lamente-se. Isto é, considerar-se-á como
querido aquilo que não se quis.

Por outro lado, caso a teoria da vontade admita não o sentido descritivo psicológico,
mas um conceito normativo atributivo da palavra “Vorsatz”, poder-se-ão considerar aqueles
casos em que o agente não tinha a vontade no sentido cotidiano, mas, atuou, mesmo sabendo
das conseqüências necessárias, como um caso de dolo, já que, no sentido normativo
atributivo, a vontade significará, na verdade, o querer ou decidir-se em favor do resultado, e
não simplesmente o propósito ou intenção. O sujeito que põe uma bomba em um avião, com o
propósito de matar seu inimigo, não almeja matar as demais pessoas que estão no avião, mas
sabe que elas necessariamente morrerão. A teoria da vontade sobre aquela base descritiva
psicológica da vontade não poderia enquadrar esse exemplo em um caso de dolo. Em
contrapartida, a teoria da vontade que abarcasse um conceito normativo atributivo de vontade
admitiria o exemplo como um caso de dolo direto de 2° grau. Alerta PUPPE que, entretanto, a
doutrina dominante não explicita com a devida clareza a mudança de concepção ocorrida de
um entendimento descritivo psicológico para um sentido normativo atributivo da vontade.

Leciona a professora de Bonn que, apesar de abandonar o conceito de vontade próprio


da linguagem cotidiana, a teoria da vontade não se despiu de sua concepção naturalista,
porque, a fim de explicar o dolo direto de 2° grau e o dolo eventual, buscou apoio na
disposição interna do agente e adotou a idéia da “assunção aprovadora do risco” como
substituta da vontade. Entretanto, a assunção aprovadora do risco não deveria expressar o
sentido da linguagem cotidiana. Na verdade, a assunção aprovadora do risco ocorre quando o
agente quer o resultado, porque não pode alcançá-lo de outra forma, sendo, pois, uma
aprovação em sentido jurídico. Todavia, a idéia adotada pelos tribunais superiores alemães é
completamente diferente, segundo a autora. Nem o sentido descritivo psicológico, nem o
51

sentido normativo. Para PUPPE, o BGH88 tem utilizado a fórmula da assunção aprovadora do
risco sem sentido algum (um “vazio deserto conceitual” para SCHMIDHÄUSER), o que tem
gerado uma quase ilimitada manipulabilidade da distinção entre dolo e culpa.

Depois, tentou-se agregar à definição do elemento volitivo do dolo eventual, a fim de


diferenciá-lo da culpa consciente, a meramente vaga confiança do agente na não-ocorrência
do resultado, contra a confiança séria do agente que atua com culpa consciente. Critica a
autora que acabou por se buscar a diferença entre confiança séria e somente vaga, entre culpa
e dolo, somente com base na disposição sentimental do agente em relação ao resultado, o que
ocorreu no julgado caso do agente infectado com o vírus HIV, que tem relações sexuais
desprotegidas com seu parceiro não esclarecido.

Outro problema apontado por PUPPE é a necessidade não suprida de se criar uma
relação entre o comportamento do agente e a assunção aprovadora do risco. Segundo a autora,
a assunção aprovadora do risco – confiar de modo vago e não sério na não ocorrência do
resultado – também pode ser um momento anímico de um espectador do fato. Afinal,
qualquer pessoa que esteja, por exemplo, observando a rua e perceba a possibilidade da
ocorrência de um resultado natural ou de qualquer modo jurídico, também pode confiar de
modo vago e não sério na não ocorrência do resultado, mas nada ter a ver com a causação do
resultado. Teria FRANK tentado, então, criar uma relação entre a ação e essa disposição de
ânimo (a assunção aprovadora do risco). Nada obstante, para PUPPE, a primeira fórmula de
FRANK, sobre a qual teceremos maiores considerações oportunamente, não logrou êxito,
porque quando posta à prova em um caso prático formulado por LACMANN, não demonstrou
exatidão. Para a autora, também em face do caso formulado por LACMANN, não obteve
sucesso a teoria da exclusão do dolo na hipótese de uma vontade de evitação atuada,
desenvolvida por último por ARMIN KAUFMANN89.

_______________________________________________

88
BGH é a sigla para Bundesgerichtshof, um tribunal alemão que poderia ser nivelado comparativamente ao STJ (Superior
Tribunal de Justiça) brasileiro.

89
Essas teorias serão explicitadas oportunamente.
52

PUPPE critica a teoria do dolo como vontade, porque a própria teoria não teria definido
o conteúdo da vontade, nem a justificado normativamente. Para a autora:
Comprovou-se que o dolo tem de ser compatível com uma vontade decidida, no sentido
cotidiano da palavra, de que o resultado não ocorra. A não-confiança, ou a confiança
meramente vaga na não-ocorrência do resultado, não é mais do que um estado de espírito
concomitante ao fato, sem influência alguma neste. É por isso que fundamentar a pena por
delito doloso em tal dado é cair em um direito penal de ânimo (Gesinnungsstrafrecht)90.
A crítica da autora é bem acirrada, na verdade, a todas as teorias volitivas e
intelectivas existentes. Para ela, todas as novas fórmulas são ambíguas, porque tanto podem
ser compreendidas como cognitivas, quanto volitivas, afinal,
[...] que o autor não leve a sério o perigo do resultado, não se aproprie dele, não o veja para si,
não formule um juízo para si válido, tal pode significar tanto que o autor nega a possibilidade
do resultado de modo somente emocional, como também intelectual. Por isso é que também
dentro da doutrina dominante é controverso se o autor, em seu ato psíquico de ignorar o
perigo, ainda sabe dele ou não o reconhece mais91.
PUPPE acaba por aceitar a teoria da probabilidade, entretanto, por ela mesma
modificada ou melhorada. Para a autora, o dolo é “saber sobre um perigo qualificado” e a
conduta do agente é “expressão de sua decisão pelo resultado, quando o perigo que o agente
cria (consciente ou de maneira pretendida) para o bem jurídico é de tal quantidade e qualidade
que uma pessoa sensata somente passaria por ele sob a máxima que o resultado lesivo deve
produzir-se ou ao menos pode produzir-se”. Segundo ROXIN92, PUPPE considera sem sentido
uma indicação quantitativa em graus de probabilidade, “por não ser calculável no caso
concreto”; mas deve tratar-se de um perigo tão grande que uma confiança na não ocorrência
do resultado não fosse realista ou sensata93.

1.2.4.4 Juarez Cirino dos Santos

_______________________________________________

90
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. 51, nm. 50. [grifos no original]

91
Ibid. p. 51.
92
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 436, nm. 43a.

93
Expor-se-á mais adiante a crítica quanto à teoria da probabilidade diferenciada de PUPPE levar em consideração a figura do
“homem sensato”.
53

Leciona JUAREZ CIRINO DOS SANTOS ser o dolo a vontade consciente de realizar o tipo
objetivo de um crime94. O conhecimento das circunstâncias de fato deve ser atual, não
bastando, porém, uma consciência potencial. Tal como já ponderava WELZEL, CIRINO DOS

SANTOS salienta que o verbo querer deve ser completado pelo verbo realizar, uma vez que o
direito penal proíbe a realização do crime. Nesse sentido, o elemento volitivo do dolo é pelo
autor paranaense definido como o querer realizar o tipo objetivo do crime.

Segundo CIRINO DOS SANTOS, a definição legal trazida pelo artigo 18, I, do Código
Penal brasileiro é inconveniente, porquanto “nem o dolo direto é definível pela expressão
querer o resultado, porque existem resultados que o agente não quer ou, até, lamenta,
atribuíveis como dolo direto; nem a fórmula de assumir o risco de produzir o resultado, que
reduz o conceito de dolo ao elemento volitivo, parece suficiente para definir o dolo”. (Grifos
no original).

CIRINO DOS SANTOS adota a teoria moderna, que distingue três espécies de dolo: dolo
direto de 1° grau, dolo direto de 2° grau e dolo eventual. Isso porque, para o autor, a
repartição moderna em três espécies proporciona uma melhor aferição do comprometimento
subjetivo do agente ao tipo de crime que se quis conscientemente realizar. Assim é que, para
CIRINO DOS SANTOS, a expressão querer o resultado (Art. 18, I, Código Penal) deveria
compreender tanto o dolo direto de 1°, quanto o de 2° grau. Já a fórmula assumir o risco de
produzir o resultado, que indica o dolo eventual, poderia ser interpretada como
“conformação com (ou aceitação do) resultado típico representado como possível”. (Grifos no
original).

No que tange à diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente, CIRINO DOS

SANTOS aponta a teoria do ‘levar a sério’ (Ernstnahmetheorie) como dominante na doutrina e


jurisprudência alemãs. O critério do levar a sério parece ser o que mais agrada ao autor que,
ao explicá-lo, contrapõe a culpa consciente ao dolo eventual como antípodas ópticos:
Quem se conforma com (ou aceita) o resultado típico possível não pode, simultaneamente,
confiar em sua evitação ou ausência (dolo eventual); inversamente, quem confia na evitação

_______________________________________________

94
Esta e todas as outras citações ou referências deste ponto encontram-se em SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna
teoria do fato punível. p. 61-96.
54

ou ausência do resultado típico possível não pode, simultaneamente, conformar-se com (ou
aceitar) sua produção (imprudência consciente).95

1.2.4.5 María del Mar Díaz Pita

A autora MARIA DEL MAR DÍAZ PITA parte da necessidade de superar as duas
concepções de dolo eventual que tradicionalmente têm dividido a teoria e a praxe do Direito
Penal96: nem as teorias intelectivas, nem as teorias volitivas lhe servem. Em primeiro lugar,
ela rechaça as posições baseadas exclusivamente em parâmetros cognitivos; em segundo
lugar, ela entende ser irrenunciável a necessidade da inclusão de um elemento volitivo na
definição de dolo; por fim, ela considera ser possível provar o dolo, por meio de indicadores
externos, que podem ajudar na constatação do mesmo no caso concreto, mesmo nas hipóteses
mais complicadas, que são as de dolo eventual97.
Na esteira das modernas teorias da imputação objetiva, DÍAZ PITA acredita que o
perigo ou o risco da conduta seja um fator também determinante do próprio conceito de dolo.
Ao contrário, entretanto, da tendência dessas teorias do risco de retirar do dolo o elemento
volitivo, a autora defende a necessidade de manutenção da vontade no conceito de dolo.
A autora advoga pela objetivização do elemento cognitivo. Mais à frente, veremos que
alguns autores, ao optarem pelo caminho da objetivização do elemento cognitivo, acabam por
normativizar o conceito de dolo por completo, no intuito de escapar das dificuldades que a
natureza subjetiva do caráter psicológico traz à prova do conhecimento. DÍAZ PITA, todavia,
não considera que a normativização pura do conceito de dolo seja o caminho:
Un concepto de conocimiento de carácter estrictamente psicológico no nos acarrea más que
problemas. En efecto, no podemos olvidar que estamos tratando un concepto que se engloba

_______________________________________________

95
De acordo com o dicionário, o substantivo Ernst significa seriedade, o verbo nehmen significa levar ou aceitar (sendo que
seu passado é nahm) e o substantivo Theorie significa teoria. Assim, uma tradução para a língua portuguesa mais condizente
com seu significado poderia ser, de fato, teoria do levar a sério, na medida em que, de acordo com essa teoria, o agente leva a
sério ou aceita com seriedade a possibilidade de ocorrência do resultado lesivo ao bem jurídico. Os verbetes mencionados
podem ser conferidos no Dicionário: LANGENSCHEIDT: Euro-Wörterbuch Portugiesisch. Portugiesisch-Deutsch. Deutsch-
Portugiesisch. Berlin: Langenscheidt KG, 1992.

96
DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. p. 12.

97
Ibid, p. 274.
55

dentro del sistema del hecho punible y cualquier elemento tratado en este contexto comporta
un innegable componente normativo que ningún jurista puede soslayar. En el caso del dolo se
trata, por lo tanto, de encontrar un concepto de conocimiento que alcance un equilibrio entre
el componente normativo de este elemento y la realidad empírico-psicológica que le sivre de
base.
Un concepto de conocimiento objetivizado no significa, en absoluto, una desconexión total
entre concepto psicológico de conocimiento y concepto penal del mismo como elemento de la
difinición de dolo. El concepto psicológico constituye la base del concepto penal, pues,
evidentemente, no podemos construir una nueva especie de conocimiento sin tener en
cuenta para nada los términos utilizados por la Psiquiatría o la Psicología.98.
DÍAZ PITA, como visto, não abre mão de ambos os aspectos – volitivo e intelectivo –
na construção do conceito de dolo, mas reconhece que o jurista deve enfrentar o desafio de
comprovar o dolo. Para a autora, em que pese o conceito psicológico não poder ignorar os
estudos da Psicologia e da Psiquiatria, quanto ao método de aferição do dolo, a utilização das
ciências mentais não seria possível ao Direito:
Sin embargo, estas disciplinas utilizan métodos de investigación que, por su duración y su
complejidad, son inadecuados para el Derecho Penal, tanto en su vertiente teórica como en su
vertiente práctica. Seria, por ejemplo, poco recomendable la necesaria participación de un
perito experto en alguma de estas materias para dilucidar si, efectivamente, el sujeto conoció
o no. Es al juez a quien corresponde esata función y para un juez presenta una gran dificultad,
por no decir que resulta imposible, adentrarse en el complejo mundo de la psique de un sujeto,
que es, en ultima instancia, donde verdaderamente se desarolla el proceso intelectivo de
cognición.99
Diante do problema da inacessibilidade da constatação empírica do conhecimento por
parte do juiz, faz-se necessário recorrer àquilo que o jurista pode ter acesso: os dados
externos, os indicadores, o sucedido tal como se desenvolveu no mundo dos fatos. Na visão
de DÍAZ PITA, conforme visto, resulta praticamente impossível para um juiz afirmar a
ocorrência do conhecimento partindo de um conceito estritamente psicológico, na medida em
que não conta com os instrumentos e dados suficientes para isso. No lugar disso, pode-se
empreender a imputação com base nas características objetivas do fato que podem ser
constatadas empiricamente pelo juiz. Veremos, em capítulo próprio, que tal método se baseia,
normalmente, na imputação subjetiva com base em prova indiciária.
A autora entende que a dedução do elemento subjetivo a partir do acontecimento
externo há de realizar-se em cada caso concreto para se determinar se o sujeito conheceu e
assim poder imputar a ação realizada como dolosa. Segundo DÍAZ PITA, em face do caráter

_______________________________________________

98
DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. p. 274.

99
Ibid, p. 275.
56

subjetivo do elemento cognitivo e em face da impossibilidade de sua constatação empírica, o


que se dá não é propriamente a prova do dolo, mas a imputação da ação como dolosa ao
acusado, (tal como entende HRUSCHKA, conforme veremos mais adiante).
A dificuldade da prova do dolo de fato causou diversas modificações do próprio
conceito na doutrina. E DÍAZ PITA não fugiu dessa tendência. Também a autora, diante da
complexidade oferecida pelo elemento subjetivo do tipo, modificou o conceito tradicional de
dolo, não para aderir às teorias volitivas, nem às teorias intelectivas, mas para construir um
novo conceito objetivo de conhecimento que se propõe à apreensão correta da situação global
por parte do sujeito agente:
Este concepto de aprehensión correcta de la situación global deriva de una revisión de la tesis
de la coconsciencia propuesta por PLATZGUMMER, según la cual, lo coconsciente es aquello
que se percibe de forma global por parte del sujeto, en toda su extensión y significado y de
forma actual aunque no expresa, construyéndose así en la mente del sujeto una ‘síntese
psíquica’. Consideramos esta tesis correcta, pero con una importante precisión: el proceso
aludido, es decir, la síntesis psíquica que de cada situación en la que se ve envuelto construye
un sujeto, no se desarolla siempre de forma automática, como defiende PLATZGUMMER. No
hay que olvidar que, de hecho, este proceso tiene lugar en una mente humana, con lo cual no
podemos descartar que se produzcan percepciones falsas, valoraciones erróneas o, incluso,
que el proceso de aprehensión global no llegue nunca a darse. Aceptamos, pues, la tesis de la
coconsciencia pero desde una perspectiva basada en la individualidad de cada sujeto,
pues solo la observación del sujeto concreto, es decir, de sus capacidades de percepción y
enjuiciamiento, y del caso concreto, nos dará la clave correcta para afirmar que dicho
sujeto en esa determinada situación pudo y de hecho aprehendió la situación global de
forma correcta.100.
No entanto, no que consistiria a situação global descrita no conceito objetivo de dolo
da autora? Para ela, o conhecimento do sujeito deve compreender as distintas realidades, bem
sejam empíricas, bem sejam normativas, que correspondem aos diferentes elementos que
conformam o tipo objetivo de um determinado delito. Aqui, a autora inclui o conhecimento do
próprio resultado, distanciando-se do entendimento esposado por FRISCH, segundo o qual
seria impossível ao agente conhecer o resultado ex ante:
Consideramos, pues, que el tipo objetivo en su totalidad constituye un objeto adecuado del
conocimiento del sujeto. En este tipo objetivo se incluyen todos y cada uno de los elementos
que lo conforman, entre los cuales se encuentra el resultado. Respecto de este ultimo, el
sujeto podrá conocerlo materialmente en aquellos casos en los que acción y resultado quedan
separados por un margen de tiempo insignificante; en los supuestos en los que transcurra un
plazo apreciable desde que se inicia la acción hasta que se produce el resultado, el sujeto
podrá conocer la peligrosidad real de dicha acción y la capacidad de ésta para ser causa del
resultado posterior.

_______________________________________________

100
DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. p. 275-276. [grifamos]
57

Respecto a la última cuestión motivo de polémica, es decir, en qué momento debe el


sujeto contar con este conocimiento, creemos que dicha polémica viene provocada por el
mantenimiento de la tesis que acabamos de criticar: Frisch sostiene la imposibilidad
material del sujeto de conocer el resultado en el momento de llevar a cabo la acción. Y
ello porque la defensa de una perspectiva ex ante no permite otra posición.
Pero ya hemos visto que, incluso defendiendo una perspectiva ex ante en el sentido de
observar exclusivamente las posibilidades de conocimiento del sujeto en el momento de la
acción, no es cierto que el sujeto no pueda conocer, en todos los casos, el resultado
proveniente de la acción por él empreendida. En los casos en los que, como hemos dicho,
acción y resultado se suceden en el tiempo sin solución de continuidad, el sujeto puede
aprehender materialmente ese resultado. En los casos en los que no ocurra así, entendemos
que la previsión correcta del resultado, es decir, el conocimiento correcto de que la acción
empreendida conduce al resultado lesivo para el bien jurídico, es también suficiente para
afirmar que el sujeto abarcó en su conocimiento el resultado producido.101.
Diante do caótico quadro doutrinário que, ora rechaça o caráter volitivo, ora dispensa
o caráter intelectivo do dolo, MARIA DEL MAR DÍAZ PITA conclui que a melhor forma de
enfrentar o problema é partir da razão de se incriminar com mais dureza o dolo frente à
imprudência (no lugar de investigar elementos ontológicos de cada forma de imputação),
aspirando a uma teoria unitária do dolo (em vez de definir separadamente dolo direto e dolo
eventual), com o intuito de construir um conceito baseado em elementos tanto congnitivos
quanto volitivos, mas sem dispensar a relação intencional do sujeito para com o resultado.
Todos esses parâmetros são indispensáveis à sua definição do dolo, serviente a todas as suas
formas de aparição, como a decisão contrária ao bem jurídico protegido102.

1.2.5 O dolo na teoria comunicativa

A abordagem que faremos, neste ponto, restringir-se-á à concepção esposada por


JUAREZ TAVARES, especificamente em sua obra “Teoria dos crimes omissivos”, tese que lhe
conferiu o segundo título de doutor em 2011, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
instituição na qual temos a felicidade de receber suas preciosas orientações. Preferimos a obra
deste autor, porquanto a teoria comunicativa da ação seja ainda pouco explorada na doutrina
pátria.

_______________________________________________

101
DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. p. 281-282. [grifamos]

102
Ibid, p. 304-305.
58

Para JUAREZ TAVARES, na construção de um conceito de ação, são relevantes os dados


que possam corresponder a um processo de interação ou de convivência. Segundo o autor, é
preciso decidir, previamente, acerca da identificação da natureza da conduta que se quer
estabelecer como relevante em face desse processo. Isso porque as condutas são contingentes,
ou seja, elas se mostram relevantes quando se manifestam dentro de uma relação. A
identificação da natureza da conduta não deve ser obtida “tão só por um enunciado formal, ou
por sua subordinação a um princípio geral, sem levar em conta suas características
materiais”103. O modelo teórico de conduta adotado pelo autor é construído sob a perspectiva
de uma teoria social: “a conduta deixa de ser personificada e passa a ser integrada dentro de
uma estrutura, conforme os modelos de construção social”104.
TAVARES adota o agir comunicativo como perspectiva central de seu modelo teórico
de conduta105.

1.2.5.1 Juarez Tavares

Consoante JUAREZ TAVARES, a “consecução de um agir comunicativo conduz a uma


alteração substancial do conceito social de conduta”106. Na teoria comunicativa, o conceito de
conduta não tem em vista o que fora realizado por um autor individual, ainda que com
reflexos em outra pessoa. Interessa à ação comunicativa, na verdade, a relação do agente para
com outros sujeitos, que se orientam dentro de um grupo social pelos seus mesmos valores. A
teoria comunicativa tem por enfoque a verificação da relação entre sujeito e estrutura
normativa.

_______________________________________________

103
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 179.

104
Ibid. p.181.

105
“Atendendo a uma classificação proposta por Habermas e conforme as teorias que, concorrentemente, procuram
identificar os elementos caracterizadores da ordem social, podem ser situados os elementos da conceituação de uma conduta
dentro das seguintes perspectivas: a) de uma troca social ou de um sistema funcional; b) de uma atuação segundo papéis
sociais ou de uma fenomenologia da autoencenação; c) de um interacionismo simbólico ou de uma etnometodologia; e) de
um agir comunicativo.” TAVARES, loc. cit.

106
Ibid. p.191.
59

O conceito de conduta vinculado a uma ordem comunicativa pode ter ainda tímido
desenvolvimento, ”em função da forma como se vá conceber o processo de construção
social”:
Nos estágios preliminares de formulação de um tal conceito de ação, é possível ainda
distinguir uma concepção baseada no papel que cada autor desempenha na ordem social. De
acordo com a teoria dos papéis, a conduta está subordinada a regras, mas cada autor está
vinculado a uma tarefa específica no processo de interação, que condiciona sua atuação. Esta
subordinação do autor a seu papel social, por sua vez, lhe retira não apenas a espontaneidade,
mas também lhe reduz a liberdade de construir seu próprio destino. O reconhecimento de uma
subordinação a papéis pressupõe, por outro lado, um sujeito situado dentro de uma posição,
da qual se pode esperar uma determinada conduta, de modo que o sujeito exerça seus direitos
e cumpra seus deveres. Por seu turno, cada papel só tem significado em função de outro papel.
Assim, o papel de pai só terá sentido em função da existência do papel de filho. Na verdade,
esta chamada complementaridade de papéis representa a velha dicotomia positivista, de que a
cada direito corresponde um dever e vice-versa.107.
A concepção comunicativa não deve ser entendida como uma teoria funcional da ação,
ainda que ambas possam ser parecidas. De fato, a concepção estrutural-funcionalista não se
distancia completamente da concepção comunicativa, porque também formula os papéis
dentro de um sistema social, e não de conformidade com os indivíduos. No entanto, as
concepções se diferenciam, na medida em que a estrutural-funcionalista encara as sanções
como o meio de promover a internalização das normas que regulam os papéis.
Dentro da teoria comunicativa, há, ainda, concepções da ação que vão além da teoria
dos papéis. Por exemplo, em relação ao cumprimento de tarefas dentro de uma ordem
institucional, “a concepção fenomenológica não se filia inteiramente ao desempenho de
papéis e, quando o faz, procura também trabalhar com os antipapéis”:
Relevante para caracterizar uma conduta social não será, exclusivamente, o cumprimento de
obrigações e o exercício de direitos, mas o processo de interação. Isto significa, então, que a
complementaridade dos papéis deixa de constituir um elemento de sua referência, ou
constituição. O papel não se reduz, portanto, ao cumprimento de obrigações e ao exercício de
direitos, dentro de uma relação recíproca. Para ser pai não importa que outrem exerça o papel
de filho, que os direitos e as obrigações se correspondam, de tal forma que se ao pai se reserva
o direito de educar, ao filho o dever de obedecer, ou se ao filho se reserva o direito de ser
protegido, ao pai o dever de protegê-lo. Em lugar disso, a função de pai ou de filho está
vinculada a um processo de interação, pelo qual será pai aquele que, mediante o exercício de
suas atividades, proporciona ao filho as condições para a sua integração dentro de uma ordem
institucional, no caso, a família.108
Neste exemplo de JUAREZ TAVARES, vislumbra-se a instituição familiar. O autor ainda
dá outro exemplo: os papéis exercidos na Justiça pelos diferentes agentes (juiz, advogado e

_______________________________________________

107
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 191-192.

108
Ibid. p. 192-193.
60

promotor). A concepção fenomenológica da conduta comunicativa compreende o processo de


interação como um todo, não se limitando, reciprocamente, ao cumprimento de obrigações ou
ao exercício de direitos: tem em vista a interação entre as funções, para o cumprimento do
devido processo legal, pois “sem o processo de interação não se poderia, muitas vezes, obter o
julgamento adequado, principalmente em casos não expressamente disciplinados pela norma”.
Outro enfoque da teoria comunicativa, extraído da conjugação das concepções
fenomenológicas e estrutural-funcionalistas, é dado pelo interacionismo simbólico, que
substitui a referência aos papéis pela análise da conduta em torno de sua manifestação em
grupos sociais. Mais importante que os papéis em si, para esta concepção, fundamental é o
contexto social no qual a conduta é praticada. Nesta perspectiva,
[...] a conduta não será mais vista sob o aspecto da relação meio e fim, não será mais uma
conduta instrumental no sentido causal, nem, por seu turno, deverá adquirir relevância como
ato estratégico em função de determinado efeito potencial, nem será extraída do exercício de
direitos e o cumprimento de obrigações. À medida que a conduta passa a ser concebida dentro
de um grupo, no qual os indivíduos, portanto, relacionam-se cooperativamente, seus
elementos começam a se concretizar como instrumentos de comunicação e não como
condições causais ou como o desempenho de papéis. Esta alteração de perspectivas dentro da
consideração da conduta, que prescinde, então, das habilidades manuais dos respectivos
autores e depende, sim, de sua capacidade de entendimento coletivo, vem a contribuir de
modo significativo para a substituição de uma concepção instrumental por uma concepção
subordinada a regras. (...) A superação, por outro lado, da subordinação da conduta ao
desempenho dos papéis se dá pela substituição do elemento posição dentro de uma
conjuntura. Normalmente, a teoria dos papéis sempre trabalhou com o sentido de uma
posição: o papel constitui um dado – instituído pelo complexo de direitos e obrigações – que
deve ser observado pelo sujeito para suas decisões de desempenhá-lo ou não. Quando o
desempenhe, por se haver para isso decidido, estará acabado o processo de comunicação e,
assim, assegurada a estabilidade das expectativas de conduta. Os autores do interacionismo
simbólico, entretanto, concebem o papel sob outro modo, em vez de subordiná-lo, assim, à
posição que cabe, socialmente, a cada indivíduo, o condicionam ao contexto no qual a
conduta é praticada. Com isso, abre-se a possibilidade de situar o indivíduo como um próprio
edificador de papéis e não, simplesmente, como seu executor. Assim, o papel de um advogado
no âmbito do procedimento penal não deve estar apenas caracterizado pelo cumprimento do
dever de defender o seu cliente e o direito de fazê-lo, mas também pela construção de seu
desempenho, conforme as necessidades variáveis no processo de comunicação, com vistas a
absolvê-lo. Justamente por isso, será sempre possível arguir-se, conforme o caso, a
insuficiência da defesa em face da acusação, ainda que o seu exercício tenha sido
formalmente cumprido.109

_______________________________________________

109
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 194.
61

Como se vê, um modelo teórico de conduta que se proponha a inseri-la dentro da


ordem social não pode se sustentar sem que tenha como enfoque fundamental o ambiente no
qual o agente realiza a conduta110. Por seu turno, o estudo do ambiente é assim destrinchado:

Seguindo uma ponderação de Habermas, pode-se repartir a tarefa da constituição do ambiente


e de sua influência na atuação do autor em três planos: a) o das relações vitais, ou relações
com o mundo, na sua terminologia originária, nas quais o autor se situa; b) o da reformulação
da conceituação de situação, para possibilitar a separação entre ação contextual e ação
constitutiva do ambiente, a partir das perspectivas do autor; c) a suspensão das perspectivas
do autor, para verificar de que modo a ação comunicativa contribui para a manutenção ou a
geração do ambiente111.
De acordo com o primeiro plano, as relações vitais podem ser entendidas como as
relações semânticas do agente com o mundo ao seu redor. TAVARES prefere ainda que se fale
em mundo social, quando se analisa a omissão. Para ele, pode-se entender por relações vitais
aquilo que, objetivamente, se caracteriza como mundo social, como o ambiente no qual o
autor se move em torno de relações de comunicação.
No segundo plano, seguindo a classificação acima exposta, analisa TAVARES que a
ação comunicativa só pode alcançar algum significado como domínio de uma situação:
O domínio da situação implica que o autor deva interpretar seu plano de ação no sentido de
uma interação, isto é, a situação deve servir de elemento para o alcance de um consenso em
torno do que o autor pretenda realizar. Desta forma, ao realizar sua conduta, o autor deve ter
em vista evitar dois riscos: o risco do dissenso ou de ser mal interpretado, e o risco do
fracasso quanto ao seu plano de ação. Conforme estas particularidades, deve-se entender por
situação uma parcela do mundo social, que serve de tema para o agir. 112

_______________________________________________

110
A nosso sentir, o que leva o autor a adotar a teoría da ação comunicativa é, sobretudo, a possibilidade de manejá-la tanto
para a ação quanto para a omissão. Ao analisar a dificuldade de se estabelecer uma teoria única de conduta que sirva tanto a
ação quanto à omissão, pondera o autor: “É, assim, inconcebível a imposição de um dever de agir, sem que se fixem os
elementos do ambiente no qual se deverá executar a ação mandada. Esta exigência é fundamental para se poder superar duas
séries de questões relativas à omissão: a causalidade da ação mandada para com o resultado, que até hoje não pôde ser
solucionada suficientemente pela doutrina, e a legitimação do dever de agir. Mesmo para aqueles que acolhem a causalidade
na omissão e buscam defini-la segundo um juízo contrafático, é indispensável que a ação mandada tenha a orientá-la um
objeto de referência que seja objetivamente demonstrável. É evidente que jamais se poderá afirmar que a execução da ação
mandada evitaria com certeza o resultado. Este é um problema insolúvel da causalidade, mas mesmo uma causalidade lógica
seria inconcebível, sem que esse juízo tenha a ampará-lo uma base objetiva sobre a qual se deva mover aquela atividade.
Ainda que passe na imaginação do legislador a execução de uma ação sem correspondência com a realidade, por pura obra
abstrata, uma vez que se exija que se formule sobre essa ação um juízo lógico de causalidade, se devem fornecer ao silogismo
prático, mediante o qual se emite esse juízo, pelo menos, os elementos materiais de suas premissas. Nesse sentido, são
inseparáveis da concepção dos delitos omissivos os elementos que caracterizem o ambiente: é inconcebível um dever sem a
referência aos dados de seu cumprimento.”. TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 196-197.

111
Ibid. p. 197.

112
Ibid. p. 199.
62

No entanto, a compreensão da situação como simples parcela do mundo das relações


vitais não é suficiente para proporcionar uma tematização de seus objetos dentro de um
discurso. Por isso, no terceiro plano:
A tematização dos elementos que caracterizam a conduta dentro de um discurso justificativo
dessa atuação é necessária para se saber se esta conduta é ou não correta. A ação mandada,
portanto, só poderá ser considerada como exigível ao sujeito quando se constituir de
elementos que expressem sua correção, isto é, quando o sujeito também a puder exigir de seus
interlocutores, no sentido de que essa ação expressa uma pretensão de validade. Para que isto
ocorra, será necessário que essa ação atenda a determinadas condições objetivas, que
justifiquem sua exigibilidade. Essas condições constituem sua tematização. Para esta
tematização, porém, é indispensável que o sujeito esteja situado referencialmente a um outro
dado, àquilo que se denomina de contexto. O contexto desempenha o papel de
proporcionar ao sujeito, mediante a pré-compreensão dos dados objetivos da situação,
incluindo-se, nessa pré-compreensão, os fatos e as regras que os disciplinam, uma
especificação maior do ambiente, de modo que a sua apreensão como realidade fática e
normativa não possa ser posta em dúvida, quando o autor decidir realizar a sua
conduta, ou simplesmente dela se omitir. O contexto serve, ademais, como fonte de
interpretação ao autor para sua conduta, para poder projetá-la como processo integrativo de
comunicação e assegurar que sua execução possa ser tomada como válida113.
A análise da conduta dolosa (ou culposa) com base em uma teoria social é de fato mais
complexa, em conformidade com a própria complexidade das relações sociais do sujeito com
o mundo à sua volta. A imputação subjetiva dependerá, portanto, da análise da compreensão
mesma do sujeito quanto à situação que se põe em seu ambiente. Aqui, a visão da conduta
ultrapassa, como visto, a causalidade ou a finalidade ou, ainda, a funcionalidade, para se focar
na relação social do sujeito.
Inserido o sujeito numa realidade social, por conseguinte, torna-se imprescindível que
a imputação subjetiva enfrente a conduta perlocucionária como um evento atribuído ao
sujeito, evento este necessariamente ligado a uma situação; situação esta que serve de tema
para que o sujeito se decida, ciente do contexto social em que está inserido, pela vontade
consciente de realizar o tipo objetivo descrito na norma.

1.2.6 Teorias intelectivas e volitivas

No momento em que se pretende distinguir o dolo da imprudência (ou da culpa, na


linguagem majoritária da doutrina brasileira), os autores demonstram maior preocupação em

_______________________________________________

113
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 199-200. [grifos nossos em negrito; grifos no original em itálico]
63

desenvolver teorias a respeito da delimitação do dolo. A distinção entre dolo eventual e culpa
consciente costuma ser considerada um dos temas mais difíceis e tormentosos do direto
penal114. A tormenta perfaz-se, porque o direito penal, no Estado Democrático de Direito, não
pode prescindir da correta e segura individualização do injusto, que se dá não só pela
imputação objetiva, mas também, e com cautela redobrada, pela imputação subjetiva, que
constitui o momento decisivo para construção de um direito penal de garantia. Ao tratar da
imputação subjetiva, leciona JUAREZ TAVARES que
neste setor está presente o tormentoso problema da diferenciação entre dolo eventual e culpa
consciente, nem sempre resolvido com absoluta correição e cujos resultados têm levado a
estados de perplexidades e incertezas que talvez possam ser mais bem equacionados no
sentido de assegurar aos sujeitos envolvidos a garantia indispensável quanto à qualificação de
suas condutas, uma vez lançadas as bases de sua configuração normativa 115.
O que se desenha, portanto, é um quadro de instabilidade doutrinária, motivo pelo qual
o estudo empreendido no presente capítulo se justifica. Adiante-se que as teorias, na verdade,
diferenciam-se, muitas vezes, por um termo ou minúcia em suas definições e, em uma
interpretação mais crítica, nada conseguem determinar com segurança. Umas se mostram
mais bem elaboradas que outras, mas, por derradeiro, ao se por em xeque cada uma delas,
todas apresentam falhas116, seja por se basearem demasiadamente em disposições internas do
agente do delito, o que dificulta a constatação prática do dolo, seja por se voltarem apenas ao
aspecto intelectual ou ao mais objetivo possível, deixando, pois, de lado, a própria
realidade117.

O dolo deve ser visto sob o prisma garantista e, nessa perspectiva, sua delimitação
deve estar centrada em uma precisa configuração normativa. Nas palavras de TAVARES,
[...] as formas dolosa e culposa de imputação devem ser tratadas, igualmente, como
delimitadores da atuação estatal, segundo o grau de sua intensidade, e devem, por isso

_______________________________________________

114
“La cuestión de cómo se ha de determinar y cómo se ha de delimitar el dolo eventual frente a la imprudencia (consciente)
no sólo posee una extraordinaria importancia práctica, sino que es considerada también ‘una de las cuestiones más difíciles y
discutidas del Derecho penal’.”. Conferir em ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 424, nm. 21.

115
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 330.

116
Ibid. p. 342.

117
“A exclusão do elemento volitivo-emocional do dolo – que HERZBERG define como elemento de prognose irracional –
reduz o dolo ao elemento intelectual e, desse modo, a desejável busca de critérios objetivos acaba por desfigurar o próprio
fenômeno real”. (grifo no original). SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. p. 79.
64

mesmo, merecer uma especial atenção para extirpar-lhes o conteúdo ético e fundá-las apenas
nos seus elementos reais.118
Assim, independente da visão intelectiva ou volitiva que se adote, o direito penal do
Estado democrático de direito urge que se construa uma teoria do dolo “que se afaste,
primeiramente, de seu conteúdo ontológico e, ademais, que não deixe margens a
interpretações puramente psicológicas”119.

Desde já, apontamos que defendemos um conceito de dolo normativo, que não
dispensa qualquer um dos elementos, seja a consciência, seja a vontade. O dolo é a vontade
consciente de realizar a conduta descrita no tipo objetivo. A dispensa do elemento volitivo,
feita pelas teorias intelectivas, cria um alargamento desmesurado do direito penal, que passa a
punir quaisquer condutas conscientes aptas a realizar o resultado criminoso, em detrimento da
real intenção do agente. Esta não é a opinião, por exemplo, de RAGUÉS I VALLÈS, para quem:
Por el contrario, un concepto de dolo teóricamente amplio como el que propugnan, por
ejemplo, las teorías cognitivas, no tiene por qué llevar en la práctica a un incremento
exorbitado de condenas por delito doloso. Esto sucederá si, en el momento en que se aplica
sobre el factum el concepto previamente elaborado, el juez se muestra más bien remiso a
constatar que el sujeto realmente ha conocido la peligrosidad que su conducta entrañaba para
el bien jurídico o la posibilidad de acaecimiento del resultado lesivo. Esta realidad puede
apreciarse en la teoría del dolo propugnada por Schmidhäuser, muy amplia en sus contornos
conceptuales, pero, a la vez, bien predispuesta a afirmar en no pocos casos la concurrencia de
una ‘eliminación mental’ de la representación del peligro por parte del sujeto activo. En
cualquier caso, la práctica inexistencia de criterios a partir de los que juzgar las condiciones
de aplicabilidad de los conceptos debe llevar, cuando menos, a relativizar las críticas que unas
teorías dirigen a otras acusándose mutuamente de ampliar o restringir de forma desmesurada
el ámbito de lo doloso. Hasta que las teorías del dolo muestren los criterios que las deben
hacer aplicables, la procedencia de tales críticas debe dejarse en suspenso120.
Devemos, nesse passo, concordar com RAGUÉS I VALLÈS quanto à apontada falta de
critérios de aplicabilidade. Tanto as teorias intelectivas, quanto as teorias volitivas não se
preocuparam devidamente em estabelecer seus próprios métodos de comprovação da
consciência e da vontade, respectivamente, o que também acaba por gerar uma dificuldade de
comprovação das próprias teorias. De toda forma, mesmo sem a indicação de critérios, é
possível sim, a priori, constatar que a retirada do elemento volitivo do dolo provoca o
alargamento do direito penal. Isso porque basta que se constate que o agente teve consciência

_______________________________________________

118
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 334.

119
TAVARES, loc. cit.

120
RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: José Maria Bosch, 1999. p. 203.
65

quanto ao risco da ocorrência do resultado, para concluir pela imputação do tipo subjetivo,
ainda que muito provavelmente não fosse da vontade do acusado a realização do crime.
Perceba-se que nada mais precisa ser perquirido no processo, quanto à intenção do agente ou,
até mesmo, quanto à sua relação pessoal com a vítima do delito, já que, comprovada a
consciência do risco de lesão ao bem jurídico, já restará comprovado o dolo. Uma conduta
culposa pode ser exatamente abarcada por este dolo largo, o dolo da teoria intelectiva. Estar-
se-á, com a teoria intelectiva, tratando condutas aparentemente culposas com o rigor
dispensado às condutas dolosas. Nesse sentido, a teoria intelectiva, que extirpa a vontade do
dolo, é sim desmesuradamente ampla, e vai de encontro ao princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, as teorias volitivas, ao retirarem o elemento cognitivo do dolo, também
provocam o alargamento do direito penal, caso se tenha em mente a lição da psicanálise: a
vontade pode ser consciente ou inconsciente. Ao retirar a consciência do conceito de dolo, os
defensores das teorias volitivas estariam autorizando que o direito penal perseguisse qualquer
vontade, seja consciente, ou inconsciente! A par da dificuldade que seria comprovar a vontade
inconsciente, seria temerário ao Estado Democrático de Direito que se pudesse condenar
alguém por ter querido inconscientemente lesionar outrem.
Por exemplo, imaginemos a situação de Caio. Caio, um executivo bem sucedido,
frequenta regularmente o consultório de Mévio, um psicanalista especializado em Freud.
Após 5 anos de sessões de psicanálise, Caio descobre, com a ajuda das raras intervenções de
Mévio, que seu maior objetivo é livrar-se de seu colega de trabalho, Tício, uma vez que o
mesmo pratica “mobbing”, uma espécie de “bullying” no ambiente de trabalho. Certo dia,
Caio vê-se diante da inusitada coincidência de estar se banhando na mesma praia que Tício, a
praia de Geribá, em Búzios/RJ. O mar está muito agitado e há apenas duas placas com os
dizeres “Perigo de morte. Proibido nadar”. Caio subtrai uma placa com o intuito de colocar a
mesma na parede de seu banheiro, acima do “Ofurô”; a outra placa Caio subtrai com o intuito
de colocar no quintal, bem diante de sua piscina olímpica, em sua mansão do Jardim
Pernambuco (“sub-bairro” do Leblon). Minutos mais tarde, Tício, a fim de se exibir, avança
mais em direção ao oceano, nadando cada vez mais para longe da costa. Uma grande onda
abalroa o corpo de Tício e, depois de um minuto, ainda não é possível vê-lo emergir. Caio
estava atento a tudo, mas, com fome, resolve ir a uma das barracas da praia, a fim de comprar
um espetinho de camarão. Distraído por sua esposa, Caio não volta a olhar para as ondas e,
pouco tempo depois, o casal resolve sair da praia, para almoçar em um restaurante da Rua das
66

Pedras. Mais tarde, o corpo de Tício é lançado sobre a areia por uma onda. O bombeiro
guarda-vidas corre em direção ao corpo e tenta ressuscitá-lo, mas em vão. Tício está morto.
A teoria volitiva, que retira do dolo o elemento consciência, assumirá como dolosa a
conduta de Caio, já que o psicanalista afirma que o mesmo queria, ainda que
inconscientemente, a morte de Tício. Assim, ao retirar as placas, Caio queria,
inconscientemente, criar um risco de morte para Tício.
Na verdade, não se pode dizer que há responsabilidade penal por parte de Caio, em
relação ao resultado morte. Primeiro, porque não havia a vontade consciente de matar, nem
mesmo de criar o risco de morte, ainda que por omissão. Não restou realizado o tipo subjetivo
da omissão. Depois, por mais que Caio tenha retirado as placas com o aparente intuito de
colocar em sua casa, causando assim um diminuto incremento no risco de morte de Tício, era
possível a qualquer adulto são (o critério do homem médio pode não ser o melhor, mas
utilizaremos, por ser razoável) perceber o perigo de morte, devido ao visível estado de
agitação das ondas. Não há, portanto, a nosso ver, como imputar a Caio o tipo objetivo.
Cabe, aqui, expor o entendimento de JUAREZ TAVARES, no que tange à imputação
subjetiva nos crimes omissivos, pela preciosidade da lição:

Diferentemente dos crimes comissivos, nos quais o dolo deve orientar-se à realização da ação
típica, nos crimes omissivos o dolo se expressa como a decisão acerca da inação, com a
consciência de que o sujeito poderia agir para evitar o resultado e sua ação era, pois,
necessária a impedi-lo, com probabilidade nos limites da certeza. É insuficiente, por
conseguinte, para reconhecer o dolo, a mera consciência da situação fundamentadora do dever
de agir ou o conhecimento do seu poder de fato para realizar a ação omitida, como queria
Welzel. Mais do que isto, será necessário demonstrar que o sujeito incluiu na sua decisão a
não execução da ação possível e necessária. Esta é uma exigência, inclusive, que deflui dos
próprios termos do art. 18, I, do Código Penal, que não prescinde do elemento volitivo na
configuração do dolo, o qual deve ser tomado em conta igualmente nos delitos omissivos.
Além disso, deve conhecer o omitente todas as circunstâncias que compõem a chamada
situação típica e, nos crimes omissivos impróprios, ainda dados fáticos que fundamentam sua
posição de garantidor. Isto quer dizer que, nos delitos omissivos impróprios, deve integrar a
representação do omitente a ocorrência do resultado, a modalidade de conduta necessária a
impedir o resultado, a possibilidade de sua atuação, a evitabilidade do resultado em virtude de
sua atividade, a subsistência de uma relação, legal ou contratualmente prevista, ou faticamente
assumida, de proteção do bem jurídico ou ainda a prática de uma conduta antecedente
arriscada.
Relativamente à ocorrência do resultado, o omitente deve saber, diante das circunstâncias
objetivas que são apresentadas, que o resultado típico (morte, lesão, privação de liberdade,
etc.) irá acontecer. Ademais, para que lhe seja exigida a atuação, deve conhecer qual conduta
deva realizar dentro das atividades possíveis (por exemplo, lançar o salva-vidas, atirar-se na
água, pedir socorro à autoridade, usar o extintor de incêndio, etc.) e representar que, com essa
conduta específica e possível, será evitado ou impedido o resultado, com probabilidade nos
limites da certeza. Portanto, o momento intelectivo do dolo é composto pela consciência
quanto à possibilidade do agir, à necessidade da ação e à projeção de que, caso não atue, o
resultado ocorrerá com probabilidade nos limites da certeza. Como não se adota, no tocante à
causalidade da omissão, a teoria do risco, não basta para caracterizar o dolo que o sujeito
agregue à sua representação o fato de que, sem sua atuação, estarão diminuídas as chances de
que o resultado seja evitado ou impedido. Convém ressaltar que o dolo deve estar vinculado
ao resultado de perigo ou de dano ao bem jurídico e não, simplesmente, a circunstâncias de
perigo que fundamentam a situação típica. Essa consideração é importante para poder
caracterizar a imputação subjetiva nos delitos omissivos próprios, que aparentemente
prescindem de um resultado de dano, mas não de um resultado de perigo ao bem jurídico. Em
se tratando de omissão, em que o processo causal não se desenvolve mecanicamente, toda a
67

argumentação em torno do dolo e de seus elementos deve ter por base o juízo normativo
incidente sobre a ação devida e seus elementos típicos. Por outra parte, como o dolo deve ter
por objeto a relação entre a ação devida necessária e o resultado provável nos limites da
certeza, torna-se inviável admitir-se, aqui, um dolo eventual.
Nos delitos comissivos, é suficiente para caracterizar o dolo que o agente assuma o risco da
produção do resultado, ou seja, que conheça as circunstâncias arriscadas e se conforme com
elas com vistas ao resultado. Não se exige, assim, na comissão, que o agente tenha a
consciência de que, com sua ação, o resultado se produzirá, daí poder deixar sua ocorrência ao
acaso. Nos delitos omissivos, ao contrário, o sujeito deverá também incluir, em sua
representação, a probabilidade do resultado nos limites da certeza e a necessidade de sua
atuação, o que só pode ocorrer com dolo direto.121.

1.2.6.1 Teorias Intelectivas: um esboço crítico

Nas teorias intelectivas, como visto, o dolo é delimitado em função da consciência do


agente acerca dos elementos do tipo objetivo.

Para a teoria da representação ou da possibilidade, a mera representação da


possibilidade de produção do resultado – sem qualquer aferição, portanto, da vontade –
configura o dolo. Segundo ROXIN, a teoria foi desenvolvida, primeiramente, após a segunda
guerra mundial, por SCHRÖDER, tendo recebido, mais tarde, a colaboração de SCHMIDHÄUSER.
O agente que tivesse representado mentalmente a possibilidade da realização do resultado
deveria desde já desistir do plano, caso contrário, agiria com dolo. A confiança do agente de
que o resultado poderia não se realizar seria, na realidade, para essa teoria, a negação da
possibilidade, e não constituiria, pois, dolo.

Por conseqüência, não haveria imprudência consciente, já que dolo seria o


conhecimento e culpa o desconhecimento. Afirma SCHRÖDER que “toda imprudência é
imprudência inconsciente”122. Haverá dolo eventual, caso o agente admita a possibilidade da
produção do resultado. Caso não represente mentalmente o resultado como possível, isto é,
caso confie o agente em sua não produção, haverá culpa. Ou seja, ainda que tenha o agente
representado mentalmente o resultado, não haverá dolo, desde que ele tenha confiado em sua

_______________________________________________

121
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 393-394.

122
SCHRÖDER, Horst. Aufbau und Grenzen des Vorsatzbegriffes. In: Festschrift für Wilhelm Sauer, 1949. p. 207,
apud ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 433, nm. 38.
68

não realização, vez que a confiança em sua não realização significaria o mesmo que acreditar
o agente na não-possibilidade da produção do resultado.

A teoria é bastante artificial, porque não leva em conta que a confiança na não-
ocorrência do resultado seria, na realidade, um dado volitivo. O agente que confia na não
produção do resultado age somente porque acredita, ainda que imprudentemente, na não
possibilidade do resultado típico. Nada obstante, a teoria da possibilidade enxerga essa
confiança como um elemento intelectivo ao criar uma ficção de que o agente que confia na
não produção do resultado desconhece o tipo objetivo. Para a teoria da possibilidade, ou se
tem consciência ou não se tem consciência do tipo objetivo: ou se age com dolo, ou com
culpa. Ora, se o agente representa mentalmente a possibilidade de produção do resultado, mas
confia em sua não realização, significa que o agente previu como possível a ocorrência do
tipo objetivo. Como poderia o agente que previra, mas que não confiara na realização, ser
acusado de imprudência inconsciente, se agiu exatamente por ter conscientemente previsto,
mas acreditado na não realização?123

A ficção criada pela teoria da representação ou da possibilidade torna-a artificial,


porque, além de alargar demasiadamente o dolo eventual, o qual passa a abarcar também a
culpa consciente, “trabalha com a ficção de que a confiança em que o resultado não ocorra
implica a eliminação da possibilidade de seu conhecimento, transmudando uma condição
volitiva (a confiança na sua não-ocorrência) em um dado intelectivo (a possibilidade de sua
representação)”124.

Para SCHMIDHÄUSER, o sujeito que tivesse representado mentalmente uma


possibilidade abstrata da produção do resultado teria negado a possibilidade, na verdade.
Contudo, essa solução é, a nosso sentir, uma ficção. A não ser que se interprete, como ROXIN,
que aquilo que SCHRÖDER denomina uma “verdadeira” representação e SCHMIDHÄUSER a
consciência de uma possibilidade “concreta” seja, na realidade, o mesmo que “levar a sério”

_______________________________________________

123
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 335-336.

124
TAVARES, loc. cit.
69

ou “resignar-se” com a produção do resultado. Para ROXIN125, seriam, pois, diferenças


terminológicas, apenas.

A teoria da probabilidade é, por sua vez, uma variante da teoria da possibilidade. O


dolo, nessa teoria, é aferido por meio do grau de perigo para o bem jurídico que o agente
pensa causar. Não há, portanto, diferença essencial entre dolo e culpa, mas somente de grau:
quanto maior o perigo causado, dolo; quanto menor, culpa. Já se pode vislumbrar a primeira
crítica à teoria: haveria uma indicação quantitativa dos graus de probabilidade? PUPPE, a mais
moderna defensora dessa teoria, acredita ser despicienda qualquer indicação, já que a aferição
do perigo graduar-se-ia de conformidade com a idéia de que um homem sensato não
prosseguiria diante de tal perigo. Contudo, dessa idéia de PUPPE surgem três problemas.
Primeiro, o mero prognóstico intelectual de probabilidade não pode ser decisivo para se
concluir ter havido seriedade de contar com o resultado126. Na realidade, a representação da
probabilidade de lesão do bem jurídico serve apenas como indício de que o agente assume o
risco de produzi-la127. Depois, a prognose intelectual dessas definições é um fenômeno de
reflexão raro em eventos criminosos128 (“eventos dominados pelas emoções”, segundo CIRINO
DOS SANTOS129). Por fim, ao submeter o dolo ao critério do homem sensato, fere o princípio
da responsabilidade individual. TAVARES considera acertada a crítica de PRITTWITZ, para
quem “a questão não se limita – como entende PUPPE – a prestigiar o autor que tenha evitado
com sucesso o resultado, mas em determinar se um sistema jurídico pode afirmar que alguém
atua dolosamente e assim reprová-lo, quando não tinha ele representado como existente um

_______________________________________________

125
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 434, nm. 40.

126
Ibid. p. 435, nm. 43.

127
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 336.

128
ROXIN, op. cit., p. 435, nm. 43.

129
“A crítica aponta o caráter de prognose intelectual dessas definições – um fenômeno de reflexão raro em eventos
dominados pelas emoções, como são os comportamentos criminosos –, capazes de servir como indícios da atitude pessoal de
levar a sério o perigo, mas incapazes de funcionar como critério do dolo eventual”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A
moderna teoria do fato punível. p. 76
70

risco relevante, como produto de sua ação”130. Reprovar-se-ia o agente por não ter agido
como o homem sensato agiria, o que não condiz com o princípio da reprovabilidade
individual.

Dois autores divergem quanto à fundamentação da teoria da probabilidade. Segundo


PUPPE, GROSSMANN e também LACMANN entendem que o que se reprova ao agente doloso é
ter este apresentado uma motivação fraca de evitar o resultado, apesar do prognóstico de alta
probabilidade de seu evento. Já MÜLLER vê a diferença valorativa entre dolo e culpa no
próprio perigo para o bem jurídico, consciente ou imaginariamente criado pelo autor: “o
objeto da valoração jurídica não é a vontade, mas a ação objetivamente perigosa, que decorre
de uma livre decisão da vontade”131.

PUPPE, todavia, diverge de qualquer entendimento que procure aferir a força ou


fraqueza da motivação, uma vez que rechaça entrar nos mecanismos irracionais de elaboração
do sujeito, condicionados por sua constituição ou situação132. Para a autora,
[...] o significado da probabilidade não está em fornecer um substituto, mais ou menos
adequado, para uma visão da alma do autor, visão essa que seria, na verdade, necessária, mas
infelizmente inacessível para o juiz. Essa compreensão afinal de contas psicológica do dolo
deve ser rechaçada, hoje com ainda mais razão do que no início do século XX. Pois, nesse
meio tempo, consolidou-se o conceito normativo de culpabilidade, e o dolo sequer é
compreendido como momento da culpabilidade, e sim como o aspecto subjetivo do injusto.
Como tal, ele espelha o injusto objetivo do fato, o qual aumenta na proporção do perigo a
que o autor expõe o interesse juridicamente protegido. Por isso é que se deve dar razão a
SAUER, no sentido de que é o próprio desvalor do perigo mais intenso, como conteúdo da
consciência do autor, que fundamenta o reproche mais grave do dolo. O conhecimento do
perigo intenso não indicia o dolo no sentido da teoria da probabilidade, ele é o dolo.133
Por isso mesmo, critica PUPPE a posição adotada por HELLMUTH MAYER,
freqüentemente apontado como o último defensor da teoria da probabilidade134. A professora

_______________________________________________

130
PRITTWITZ, Cornelius. Strafrecht und Risiko: Untersuchung zur Krise von Strafrecht und Kriminalpolitik in der
Risikogesellschaft. Frankfurt am Main: Klostermann, 1993, p. 357, apud TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p.
336-337.

131
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. 66. nm. 68.

132
PUPPE, Ingeborg. Der Vorstellungsinhalt des dolus eventualis. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft
[ZStW], n° 103, p. 31-42, 1991, apud ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 436, nm. 3a.

133
PUPPE, op. cit., p. 67-68, nm. 71. [grifamos]

134
ROXIN, op. cit., p. 435, nm. 42.
71

de Bonn critica exatamente a utilização da probabilidade como um indício, vez que H. MAYER
tem como ponto de partida a teoria da vontade. Nada obstante, se o dolo e a culpa forem
aferidos ao largo de um contínuo, conforme GRÜNHUT afirma135, não interessando, portanto, o
grau de motivação do agente em evitar ou não o resultado com base em seu próprio
prognóstico de probabilidade da ocorrência do resultado, mas sim apenas o grau de
probabilidade de ocorrência do resultado, restam duas perguntas ainda não respondidas
satisfatoriamente pelos defensores da teoria da probabilidade. Haveria um cociente de
probabilidade que delimitasse com segurança onde começa o dolo e onde a culpa termina? E
mais: como deve o agente obter o conhecimento de tais cocientes de probabilidade?

A contribuição de JAKOBS não parece satisfatória, na medida em que o risco habitual


nada acrescenta à solução do problema136. Para JAKOBS, haveria culpa consciente quando o
agente, com base em sua própria experiência individual, realizasse a conduta, por tomar o
resultado como improvável. Já o dolo eventual dar-se-ia quando o agente considerasse séria a
probabilidade de que sua conduta poderia lesar o bem jurídico 137. Essencialmente, a teoria da
probabilidade permaneceria a mesma, com a diferença de que o agente agiria com base no
risco habitual e também deveria ser levada em conta a crença séria do agente na probabilidade
de realização do resultado, mas nada disso responde a todas as perguntas antes formuladas.

A crítica de JESCHECK para a teoria da probabilidade é a mesma:


Esta doctrina tropieza con la objeción de que la mayor o menor probabilidad de la realización
del tipo representaría en la conciencia del autor un paso fluido desde el dolo eventual hacia la
imprudencia consciente. Así, habría que renunciar de partida al trazado de un límite claro
entre ambas formas de culpabilidad. La probabilidad mayor o menor únicamente constituye
un indicio respecto a si el autor toma en serio el peligro138.
ARMIN KAUFMANN, citado pela doutrina139 como o último autor a defender a teoria da
da vontade de evitação idônea ou, ainda, teoria da não posta em prática da vontade de

_______________________________________________

135
GRÜNHUT, Max. Begriffsbildung und Rechtsanwendung im Strafrecht. 1926, p. 18, apud PUPPE, Ingeborg. A
distinção entre dolo e culpa. p. 69, nm. 74.

136
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 337.

137
JAKOBS, Günther. Derecho penal. p. 332-334.

138
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte general. Granada: Comares, 1993. p. 271.

139
Nesse sentido, por todos, CIRINO DOS SANTOS, PUPPE, ROXIN e TAVARES.
72

evitação (também, simplesmente, teoria da evitabilidade), tentou definir o dolo tomando por
base o não-querer evitar o resultado. Por vezes apontada como teoria da vontade (PUPPE), por
vezes como teoria intelectiva (TAVARES) é, por exemplo, por ROXIN, não enquadrada nem em
uma, nem em outra categoria, porque, segundo este autor, seria o dualismo das teorias apenas
aparente, de modo que nos sentimos autorizados a enquadrá-la já aqui mesmo, no ponto sobre
as teorias intelectivas140.

Segundo a teoria da evitabilidade, ocorreria culpa consciente quando o agente


estabelecesse fatores que fossem de encontro à realização do resultado, de modo que
intentasse, na verdade, que não se produzisse uma conseqüência secundária representada
como possível. ARMIN KAUFMANN parte do pressuposto da teoria finalista141 de que o dolo,
em princípio, tem conteúdo idêntico ao da finalidade. No entanto, a teoria da evitabilidade não
explica o teorema proposto por LACMANN.

Relata PUPPE ter LACMANN formulado o seguinte exemplo: “em um parque de


diversões, o autor aposta com outro visitante que ele é capaz de atirar na bola de vidro que
está na mão da menina que serve o público no estande de tiro ao alvo. Caso ele fira a menina,
planeja ele deixar a arma cair e desaparecer na multidão. Aqui, a ocorrência do resultado é
incompatível com o objetivo do autor, que é o de ganhar a aposta. Está claro, assim, que ele
não iria agir se a ocorrência do resultado fosse algo seguro, porque a ação, nesse caso, não
teria nenhuma razão de ser para ele”. O agente, em questão, agiria com dolo eventual para a
maioria da doutrina142. Para PUPPE, a teoria da evitabilidade mostrou-se insuficiente para
solucionar o teorema de LACMANN, porque este teria comprovado “que o dolo é compatível
com o propósito de realizar um objetivo que é incompatível com o resultado”.

A nosso sentir, entretanto, o problema da teoria da evitabilidade não reside exatamente


aí. Caso a teoria da evitabilidade fosse utilizada para definir o teorema de LACMANN, também

_______________________________________________

140
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 436, nm. 44.

141
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 338.

142
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. 45, nm. 43.
73

concluiria ter havido dolo eventual por parte do agente, na medida em que este deixou as
coisas seguirem seu curso, tendo, pois, em outras palavras, se resignado com o resultado 143.
Não realizou o agente esforços para evitar o resultado, apesar de ter previsto a probabilidade
da lesão à integridade física da menina que segurava a bola. Previu, assim, a eventualidade do
resultado.

A melhor doutrina aponta que o problema da teoria da evitabilidade é esta não indicar
satisfatoriamente a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente 144. Conquanto possa
servir como indício de que o agente tivera dolo eventual, por não ter empreendido esforços à
evitação do resultado, ou, ao revés, tivera culpa consciente, por acreditar na evitação, mas não
ter logrado êxito em seu intento de evitar, fato é que “nem sempre as pessoas, ao realizarem
atividades, tomam as precauções devidas a evitar resultados indesejáveis ou lesivos
decorrentes dessas atividades e nem por isso agem dolosamente”145. Além disso, o esforço
empreendido para evitar tampouco pode excluir o dolo, quando nem mesmo o agente confia
em seu êxito de evitar e prossegue na atuação. ROXIN, ao analisar essa perspectiva, retoma o
exemplo do cinto de couro146:
los sujetos habían ‘dosificado’ su estrangulamiento y de esta manera habían tenido la
esperanza de evitar la muerte de la víctima, con la cual seguían contando seriamente. Y sin
embargo lo anterior no puede exonerarles del reproche por actuación dolosa: quien establece
factores en contra y a pesar de ello incluye en sus cálculos el fracaso con una probabilidad de
50% no puede ser tratado de manera distinta a quien desde el principio fija y evalúa la
probabilidad de realización del tipo en un 50% y ello no le hace desistir de su proyecto 147.
Por sua vez, a teoria do risco, formulada por FRISCH, em sua monografia de 1983
“Vorsatz und Risiko” (dolo e risco)148, parte da idéia de que os elementos do tipo objetivo não
seriam o objeto do dolo, mas sim a conduta típica. Para a configuração do dolo eventual,
assim, bastaria a consciência do risco não permitido; por exemplo, no art. 121 do Código

_______________________________________________

143
ROXIN, op. cit., p. 437, nm. 44.

144
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 338.

145
TAVARES, loc. cit.

146
Exemplo já relatado no ponto 1.2.4.1.

147
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 437, nm. 45.

148
FRISCH, Wolfgang. Vorsatz und Risiko. Köln: Heymann, 1983, apud Ibid. p. 439-440.
74

Penal brasileiro (homicídio), constituir-se-ia o dolo eventual já na consciência de agir segundo


o risco não permitido de produzir uma morte.

O agente que se decide por uma conduta não perigosa, não age com dolo. O elemento
intelectivo é, nesse sentido, primordial na teoria do risco, já que a simples consciência do
risco da produção do resultado já configura o dolo, dispensando-se o elemento volitivo.

Apesar de parecer bastante inovadora, a teoria de FRISCH, entretanto, segundo ROXIN,


não se diferencia muito daquilo que é defendido pela doutrina dominante, porque “también
FRISCH pretende excluir el dolo, pese a existir una representación del peligro, ‘cuando el
sujeto confia en un desenlace airoso’. Consecuentemente opina también que, entre las
concepciones ‘presentadas actualmente’, ‘la delimitación más útil del dolo sigue ofreciendo la
concepción que exige para el dolo un... ‘tomarse en serio el peligro’”. O agente, portanto, que
decide atuar conscientemente, em que pese o risco de sua atuação, decide-se, segundo FRISCH,
contra o bem jurídico. No entanto, a fim de comprovar a ocorrência dessa decisão de ir contra
o bem jurídico, também propõe FRISCH, a apreciação dos critérios do “levar a sério” e do
“confiar em”.149

Conquanto tenha FRISCH feito essas ressalvas à sua teoria, ela permanece inaceitável,
em face de sua concepção de objeto do dolo unicamente como a ação típica arriscada. Ora, ao
delimitar o objeto dolo à ação típica arriscada e não aos elementos do tipo objetivo, produz
uma verdadeira insegurança na imputação subjetiva, já que o que é permitido ou não passa a
ser duvidoso e já não se sabe o que pode ou não ser imputado subjetivamente ao agente150.

Por fim, a teoria do perigo a descoberto ou, ainda, teoria do perigo desprotegido,
criada por HERZBERG, pretende transferir por completo o problema de diferenciação entre
dolo e culpa para o tipo objetivo. JESCHECK151 a classifica como uma variante da teoria da

_______________________________________________

149
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 440, nm. 50-52.

150
Nesse sentido, TAVARES afirma que “ao fixar como objeto do dolo unicamente a ação típica arriscada, desconsidera
aspectos importantes da atuação dolosa quanto aos demais elementos que compõem o tipo legal, tornando permeáveis as
linhas divisórias entre o proibido e o permitido”. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 339.

151
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. p. 271, nota de rodapé n° 35.
75

probabilidade, mas cuja delimitação entre dolo e culpa deve ser feita com base no grau de
perigo para o bem jurídico protegido.

É preciso, nesse passo, esclarecer o conceito de “perigo não coberto ou assegurado” de


HERZBERG. O perigo não coberto se perfaz quando “durante o después de la acción del sujeto
han de intervenir la suerte y la causalidad solas o en una gran parte para que el tipo no se
realice”, ao passo que, “‘cuando el propio sujeto imprudente, el sujeto puesto en peligro o un
tercero’ pueden evitar posiblemente la producción del resultado prestando atención”, verifica-
se a ocorrência de um perigo coberto ou assegurado152.

Assim é que, segundo a teoria, aquele que joga “roleta russa”, em que o risco do
resultado ocorre na proporção de 1:5, age com dolo eventual, na medida em que atua com o
perigo desprotegido. Ainda que o agente confie na ausência do resultado, o perigo está
caracterizado pela dependência de meros fatores de sorte-azar. O dolo eventual configura-se,
pois, porque o resultado está fora do poder de ser evitado153.

ROXIN afirma que a concepção de HERZBERG, na verdade, não contraria a teoria do


“levar a sério”, “sino que es un intento de concretarla eliminando el elemento volitivo y
reducirla en lo esencial al criterio de la cobertura o aseguramiento”154. Assim, seria a teoria de
HERZBERG, na verdade, uma teoria objetivada do “levar a sério”.

Contudo, o que se deve perscrutar quanto à teoria do perigo a descoberto é se, de fato,
é alcançável ou desejável prescindir do elemento volitivo. Considera CIRINO DOS SANTOS que
tal postura acaba por desfigurar o próprio fenômeno real, isto é, a busca pela objetivação do
dolo, reduzindo-o ao aspecto intelectivo, pode conduzir o intérprete a uma visão distorcida da
realidade. Também ROXIN considera que, de fato,

_______________________________________________

152
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 443, nm. 56.

153
Nesse sentido, CIRINO DOS SANTOS, ROXIN e TAVARES.

154
ROXIN ainda afirma que HERZBERG “opina que no resultaría oportuna ‘la supresión, sino el desplazamiento del criterio del
tomarse en serio, es decir, su anticipación al tipo objetivo. Lo decisivo no sería se el sujeto ‘se ha tomado en serio un peligro
del que se ha percatado…, sino que se ha percatado de un peligro que hay que tomar en serio’. Habla de una ‘teoría
objetivada del tomarse en serio’”. Ibid. p. 444, nm. 58.
76

el que el sujeto se represente una cobertura o aseguramiento eficiente depende siempre de la


confianza (como mínimo parcialmente) irracional en que la precaución del sujeto, de una
víctima o de terceros evitará el resultado. Tampoco se comprende que la intención o propósito
(como forma más fuerte del querer) no haya de poder fundamentar dolo alguno cuando el
peligro está ‘cubierto o asegurado’. Cuando alguien conduce a alta velocidad en dirección al
policía que se interpone en su camino, normalmente no se trata de una tentativa de asesinato,
porque el sujeto (por la experiencia de la vida: con razón) confía en que el policía saltará a un
lado aún a tiempo (según HERZBERG: porque el peligro está cubierto o asegurado). Cuando
sin embargo el sujeto, ceteris paribus, se abalanza a toda velocidad sobre el policía con
intención de matarlo, no resulta plausible que eso no deba ser tentativa de asesinato sólo
porque el éxito no sea seguro y el policía pueda saltar a un lado en el último segundo 155.
ROXIN, ao desenvolver tal raciocínio, provou não ser possível, portanto, a dispensa
total do elemento volitivo, na medida em que, mesmo em face de um perigo coberto ou
assegurado, poderá o sujeito agir com vontade de lesar o bem jurídico. Atribuir a esse agente
culpa – e afastar, portanto, a clara ocorrência de dolo – iria de encontro à correta
individualização do injusto e ao princípio da culpabilidade156.

1.2.6.2 Teorias Volitivas: um esboço crítico

Dentre as teorias que acentuam o elemento volitivo como principal diferenciador do


dolo em relação à culpa, sem dúvida, a teoria da aprovação ou do consentimento é uma das
mais influentes. Ela define o dolo eventual pela aprovação do resultado típico previsto como
possível pelo agente. Tomada a expressão “aprovar” no sentido literal, o resultado, na
verdade, deve, pois, agradar ao agente.

Entretanto, a aprovação direta pelo agente da produção do resultado seria nada menos
que a própria intenção ou propósito, de modo que, por essa teoria, não restaria bem delimitado
o dolo eventual. A simples aprovação já configura o dolo direto, porque aquele que se
contenta com a possibilidade do resultado nada mais faz que desejá-lo diretamente – o tem

_______________________________________________

155
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 445, nm. 60. [grifamos]

156
“[...] la necesidad abstracta de pena bajo el aspecto de la prevención general y el principio de culpabilidad son los criterios
políticocriminales rectores del tipo”. Ibid. p. 219, nm. 56.
77

como sua intenção. A teoria acaba por transfigurar o dolo eventual em um caso de dolo
direto157.

Além disso, a teoria do consentimento desfigura a própria noção de dolo. Ora, à


aferição da ocorrência ou não de dolo não importa ter o agente aprovado ou até mesmo,
intimamente, encarado com indiferença o resultado lesivo ao bem jurídico. Obviamente, essa
postura de ânimo do agente poderá servir, posteriormente, na graduação da pena. No entanto,
não serve para diferenciar o dolo da culpa. Ao dolo importa seja aferido se o agente incluíra
em seu plano ou não a produção do resultado lesivo158.

O conceito de “aprovar”, entretanto, sofreu, no pós-guerra, uma interpretação


diferenciada. O Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), em um caso célebre,
passou a entender “aceitar” ou “aprovar” em outro sentido – um sentido jurídico próprio – que
pode significar, até mesmo, um reprovar, na linguagem não-técnica. “Aprovar” passa a
significar, desse modo, que o sujeito, ainda que não aprove (não se alegre com) o resultado,
ou sobre o resultado tenha uma disposição interna indiferente, que o agente incluíra o
resultado em seu plano159.

Para a teoria da indiferença, elaborada por ENGISCH, por seu turno, o limite entre dolo
e culpa residiria em que, para a ocorrência de dolo eventual, o sujeito recebe com indiferença
as conseqüências negativas por ele previstas como secundárias 160. Quando, por outro lado, o
agente considera essas conseqüências acessórias indesejáveis e tem, assim, a esperança de que
elas não ocorram, age com culpa consciente. A crítica mais clara que advém dessa concepção

_______________________________________________

157
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. p. 272.

158
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 431, nm. 34.

159
Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal alemão: “La aceptación del resultado, que... constituye el elemento decisivo de
diferenciación entre el dolo eventual y la imprudencia consciente, no significa… que el resultado deba corresponderse con los
deseos del sujeto. También puede darse dolo eventual cuando el sujeto no desea la producción del resultado. En sentido
jurídico, el mismo aprueba es resultado pese a todo, cuando en atención al objetivo perseguido, es decir, en tanto que no
puede alcanzar de otra manera so objetivo, se resigna también a que su acción produzca el resultado en sí indeseado, y por
tanto lo quiere en el caso de que se produzca”. Ibid. p. 432, nm. 36.

160
ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, Berlin, 1930, [Neudruck 1964], p.
186, apud Ibid. p. 432, nm. 37.
78

de dolo eventual é que, muitas vezes, aquele que atua com culpa inconsciente também atua,
inevitavelmente, com alto grau de indiferença em relação à produção do resultado lesivo161.

Ademais, a teoria da indiferença acaba por admitir uma presunção de dolo, no caso,
por exemplo, do agente que dirige à noite, em excesso de velocidade, quando as condições
atmosféricas não lhe são favoráveis e as ruas movimentadas162. O sujeito será acusado de agir
com dolo eventual, por simplesmente agir com indiferença em relação a qualquer resultado
lesivo. Apenas para ilustrar, imagine-se que o agente seja Ayrton Senna, piloto que muito
apreciava dirigir com chuva e que, por tanto confiar em sua perícia ao volante, em hipótese
alguma representaria em sua mente resultados lesivos. Para a teoria da indiferença, Ayrton
seria imputado por dolo eventual, em função de sua indiferença aos possíveis resultados
lesivos, caso algum infortúnio ocorresse. Uma correta interpretação, todavia, deveria optar
pela imputação por culpa, e não por dolo.

1.2.7 As fórmulas de Frank

As fórmulas de FRANK pretenderam servir, no entender de PUPPE163, como uma


tentativa de criar uma relação entre a ação e a disposição de ânimo do agente. Segundo
TAVARES, a intenção de Frank não foi diferenciar dolo de culpa, mas, simplesmente, elaborar
uma forma de entender o dolo eventual164.

De fato, FRANK explica que o que mais lhe interessava era determinar em que
momento seria a atuação da vontade dolosamente culpável165. Para tanto, ele se vale de duas

_______________________________________________

161
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 342.

162
Ibid. p. 343.

163
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. p. 43, nm. 40.

164
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal.. p. 343.

165
Aqui é necessário esclarecer que Frank trabalhava o dolo e a culpa na culpabilidade. Nada obstante, o autor reconhecia
haver diferenças conceituais entre dolo e culpa e a própria culpabilidade: “Según la doctrina dominante, todo lo que vale
para la culpabilidad vale también para el dolo y la imprudencia, pues toda afirmación sobre el concepto de género también
79

fórmulas específicas. A primeira investiga como teria o agente atuado, se tivesse certeza
prévia da produção do resultado. Assim é enunciada: “Caso se chegue à conclusão de que, em
face desse conhecimento, teria ele atuado, haverá dolo eventual; caso se chegue à conclusão
de que, de posse desse conhecimento, teria ele se omitido de agir, não haverá dolo”. Por sua
vez, a segunda fórmula de FRANK reza: “se o agente diz a si mesmo: seja ou aconteça isto ou
aquilo, de qualquer modo agirei, haverá dolo”166.

Quanto à primeira fórmula, é certo que, se o agente se decide por atuar, em que pese a
certeza da ocorrência do resultado, age com dolo eventual, por ter com o resultado se
resignado. Nada obstante, a primeira fórmula não consegue explicar o caso trazido por
LACMANN, uma vez que, nesse exemplo, o propósito do agente não é compatível com a
produção do resultado tido como seguramente possível. Recordemos o exemplo, desta vez
descrito por ROXIN:
Um homem aposta vinte marcos alemães que pode acertar com um disparo uma bola de cristal
que está na mão de uma moça de uma barraca de tiro ao alvo na feira. O homem crê que, em
caso de falha, poderá desaparecer são e salvo entre a multidão da feira. Acerta na mão da
menina.167
O agente tem como propósito, no exemplo, não acertar a mão da menina, mas a bola
de cristal, a fim de ganhar o dinheiro apostado. Ele vislumbra, entretanto, a possibilidade de
acertar a mão da menina. Se a possibilidade fosse segura, todavia, não teria o homem dado
prosseguimento ao seu intento de atirar na bola de cristal, porque sua intenção era ganhar o
dinheiro. Ele teria, portanto, de posse do conhecimento de que o resultado ocorreria com
segurança, se omitido de agir: não há dolo eventual, segundo a fórmula de FRANK. No
entanto, a primeira fórmula de FRANK deve ser descartada, para a melhor doutrina, nessa
hipótese: o homem agiu com dolo eventual, na medida em que incluíra em seu plano a
possibilidade de fracasso.

Não bastasse a primeira fórmula falhar, quando posta à prova no exemplo de


LACMANN, aponta TAVARES que ela não seria, na verdade, um enunciado de uma teoria penal,
mas um critério processual, já que, com base nela, efetuaria o juiz uma formulação

tiene que ser acorde con el concepto de especie. Según mi interpretación, no todo lo que se dice de la culpabilidad encaja en
el dolo y la imprudencia, puesto que la relación de estos conceptos respecto del concepto de culpabilidad no es idéntico al
que existe entre género y especie”. FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Buenos Aires: B
de F, 2004. p. 59.

166
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, p.343.

167
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 438, nm. 46.
80

psicológica hipotética, a fim de, calcado na personalidade do sujeito, decidir se o agente teria
ou não se omitido de posse do conhecimento da possibilidade do resultado. TAVARES
demonstra, assim, que tal fórmula consagra o direito penal do autor, já que o juiz poderá
interpretar como bem entender se teria ou não o sujeito agido, caso este tivesse certeza da
ocorrência do resultado. Nas palavras de MARIA DEL MAR DIAZ PITA, “se a conclusão do juiz
é que o sujeito haveria atuado também como o fez, ainda que tivesse tido a certeza daquilo
que lhe parecia provável, então faz com que o sujeito responda por uma aceitação do
resultado que, na realidade, não assumiu, por uma vontade que não teve, por algo que
definitivamente não fez”168.

A objeção que se faz à segunda fórmula de FRANK concentra-se, mais especificamente,


na expressão “diz a si mesmo”. Ora, o fato de o agente dizer a si mesmo alguma coisa é uma
disposição interna que não deve ser objeto de avaliação do direito penal169. O direito penal
deve se ocupar com condutas.

_______________________________________________

168
DÍAZ PITA, Maria del Mar. El dolo eventual. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p. 175, apud TAVARES, Juarez. Teoria
do injusto penal. p. 344.

169
Ibid. p. 345.
81

2 A PROVA DO DOLO: UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA

Para FREUD, a psicanálise é o nome:


1) de um procedimento para investigação dos processos mentais praticamente
inacessíveis de outra forma; 2) de um método fundado sobre esta investigação para o
tratamento de desordens neuróticas; e 3) de uma série de conhecimentos psicológicos
adquiridos por esse meio que se acrescentam para constituir uma nova disciplina
científica170.
Conforme constatado no capítulo anterior, a descrição legal de crime doloso mostra-se
insuficiente para fundamentar a imputação subjetiva ao agente. A imputação subjetiva,
portanto, é realizada com base na conceituação doutrinária de dolo.
Prevalece na doutrina penal hodierna que a consciência seja, pelo menos, a
representação pelo agente da possibilidade da ocorrência do resultado típico, desde que tal
representação se dê no momento da realização da conduta (atualidade da consciência). Tal
consciência não pode ser desvinculada da vontade, isto é, o agente deve, pelo menos, anuir
com a concretização do resultado, isto é, deve assumir o risco da produção do resultado típico.
Perceba-se que o direito penal parte, nesse sentido, do pressuposto de que a
consciência é um fenômeno não somente comum, como aferível pelo “homem médio”, no
qual se inclui o juiz, que não é, normalmente, nenhum especialista em ciências da mente.
Não é esta, entretanto, a conclusão a que chegam os psicanalistas. Uma hipótese
fundamental para a psicanálise é a proposição de que “a consciência é antes um atributo
excepcional do que um atributo comum dos processos psíquicos”171. Outra importante
hipótese fundamental da psicanálise explica essa primeira constatação quanto à prevalência da
inconsciência em nosso estado mental: o princípio do determinismo psíquico.
Segundo o princípio do determinismo psíquico, a mente humana está em constante
trabalho, ainda que, na maior parte das vezes, inconscientemente, sendo por este motivo que,
muitas vezes, deparamo-nos com pensamentos aparentemente desconexos, que, na realidade,
advêm de outros pensamentos que estavam inconscientes:

_______________________________________________

170
DEBUYST, Christian; DIGNEFFE, Françoise; PIRES, Álvaro P. Histoire des savoirs sur le crime et la peine. p. 181.

171
BRENNER, Charles. Noções básicas de psicanálise: introdução à psicologia psicanalítica. 5. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1987. p. 17.
82

Cada evento psíquico é determinado por aqueles que o precederam. Os eventos em nossas
vidas mentais que podem parecer fortuitos ou não relacionados com os que os precederam, o
são apenas na aparência. Na realidade, os fenômenos mentais são tão incapazes de tal falta de
conexão causal com os que os precederam quanto os fenômenos físicos. Nesse sentido, não
existe descontinuidade na vida mental172.
A psicanálise, em seu viés de método investigativo da mente humana, após anos de
observação e pesquisa, concluiu que muitos eventos do dia-a-dia, a princípio considerados
simples, podem esconder intrincadas motivações mentais provenientes do inconsciente173,
motivações estas que não se deixam perceber facilmente, em virtude de pulsões de variadas
origens (ego, id e superego) que agem de modo a reprimir determinados pensamentos e
desejos: A psicanálise seria, então, dentro dessa perspectiva, um procedimento de
investigação desses conteúdos pulsionais e de sua história face às exigências do recalque174.
Com base nas investigações da psicanálise sobre a mente humana, não é difícil
perceber quão complexa se torna a tarefa de constatar a consciência (mais ainda, a vontade
consciente). Voltemos à hipótese daqueles dois colegas de trabalho175: Bentinho e Escobar.
Bentinho nutre por Escobar verdadeira antipatia, na medida em que este regularmente exibe-
se com suas conquistas financeiras e amorosas, a fim de, na visão de Bentinho, humilhá-lo em
público. Suponha-se que, inconscientemente, Bentinho queira que Escobar morra. Note-se
que Bentinho nunca cogitou conscientemente qualquer desejo de matar Escobar. Em uma
inusitada oportunidade, Bentinho vê-se diante da seguinte situação: Escobar está prestes a cair
do telhado, mas pode ser salvo se Bentinho puxar-lhe a gravata que, com o vento, é lançada
em sua direção, bastando que estenda 10 cm sua mão e puxe. Por motivo aparentemente
desconhecido, Bentinho, entretanto, demora mais segundos do que deveria para raciocinar que
poderia somente puxar a gravata de seu colega de trabalho. Escobar morre com a queda. A
vontade de matar pareceria clara a qualquer psicanalista. No entanto, essa vontade era

_______________________________________________

172
BRENNER, Charles. Noções básicas de psicanálise. p. 18.

173
Para conferir extensa compilação de exemplos do cotidiano que ilustram a afirmação: Sobre a psicopatologia da vida
cotidiana. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. VI)

174
DEBUYST, Christian; DIGNEFFE, Françoise; PIRES, Álvaro P. Histoire des savoirs sur le crime et la peine. p. 181.
[tradução livre]

175
Exemplo exposto no Capítulo 1.1, acima. Para tornar a tarefa do leitor menos enfadonha, o exemplo é, de maneira mais
sucinta, repetido neste presente capítulo.
83

inconsciente. Efetivamente, sua omissão causou a morte de Escobar. A demora em ter a ideia
simples de puxar a gravata do colega, para que ele não sofresse a queda fatal, era na verdade
um recurso da inconsciência de tornar tal ideia momentaneamente recalcada, para, somente
quando a morte estivesse consumada, torná-la consciente. Com base na simples leitura do
art.18, I, do CP (“quis o resultado”), um psicanalista imputaria subjetivamente a conduta
omissiva a Bentinho. Com base no mesmo texto legal, todavia, a doutrina jurídico-penal salva
Bentinho do pesado jugo da pena. Isso porque, para a psicanálise, é relevante a vontade, ainda
que inconsciente. Já para o direito penal, somente será relevante a vontade consciente.
De qualquer forma, para constatar a vontade de Bentinho, a psicanálise utiliza-se de
um método diferente do direito penal. Tal método permite investigar a vontade, seja esta
consciente ou inconsciente.
O método de prova do psicanalista é voltado exatamente para a subjetividade da
consciência e da vontade. A intenção do psicanalista é deixar que o sujeito fale aleatoriamente
todo e qualquer pensamento que lhe venha à mente, a fim de, após, inúmeras sessões, poder
traçar um perfil subjetivo. Como uma das premissas da psicanálise é o determinismo psíquico
e o trabalho incessante da inconsciência, cada evento psíquico será determinado por aqueles
que o precederam. Deste modo, apesar de parecer, aos olhos do falante, que os pensamentos
desencadearam-se de modo aleatório, ao ouvinte-intérprete será cada vez mais clara a ligação
entre os pensamentos. Essa ligação deverá ser desvendada pelo psicanalista, sessão após
sessão. Assim, o profissional poderá ter um esboço subjetivo (porque advindo das impressões
pessoais do paciente falante e interpretado pelo método freudiano) da consciência e da
vontade do paciente. Por poder ser valer de todas as informações provenientes da mente do
sujeito analisado, a psicanálise alcança um retrato o mais fiel possível da consciência e da
vontade. O êxito do método subjetivo na comprovação dos fenômenos mentais é, portanto,
claramente possível.

2.1 Os métodos de prova do dolo consagrados no direito penal

A psicanálise trabalha intensamente com as informações cedidas pelo próprio sujeito


analisado. Sabe-se que o direito penal trabalha, todavia, com uma situação totalmente adversa
para o método psicanalítico. Aqui, no direito penal, o sujeito é constitucionalmente
desobrigado de falar, a fim de garantir o seu direito de não produzir provas contra si mesmo: é
o direito ao silêncio.
84

Como, entretanto, a doutrina penal consegue livrar-se da incumbência de enfrentar


toda a subjetividade inerente aos fenômenos mentais, se para a psicanálise essa tarefa
constitui sua própria razão de ser?
A seguir, analisar-se-ão os métodos de prova do dolo consagrados no direito penal:
praesumptio doli e dolus ex re.

2.1.1 Praesumptio doli

Um dos métodos mais simples, e também mais falhos, de comprovação do dolo é a


chamada presunção de dolo (ou praesumptio doli). Explica HRUSCHKA que uma presunção,
no sentido do termo jurídico aqui utilizado, é um preceito legal ou uma praxe judicial de
acordo com a qual sempre que se considere provado um fato F1 também deve afirmar-se como
provado o fato F2. A praesumptio doli, nesse sentido, é um preceito (ou uma praxe) segundo o
qual sempre que se prove a ocorrência do tipo objetivo de um delito também se tem por
provado o correspondente dolo176.
Tal método se baseia na premissa de que, normalmente, as pessoas sabem o que
fazem, isto é, as pessoas agem cientes de seus atos. Partindo de tal premissa, os defensores
desse método afirmam que, como o normal é que as pessoas saibam o que estão fazendo, as
conseqüências e resultados de seus atos devem ser considerados produtos de condutas
dolosas. Desde que reste provado o nexo de causalidade entre a conduta da pessoa (causa) e o
resultado delitivo (resultado), e desde que não haja outras evidências que comprovem o
contrário, o dolo restará provado.
Conforme veremos já adiante, tal método de prova está eivado de vícios e não poderia
de maneira alguma prosperar.
Um dos maiores defensores do método foi FEUERBACH. Assim lecionava o mestre
bávaro em 1801:
Uma vez que cada ação humana tem a intenção como primeira explicação; uma vez que, de
acordo com a natureza do espírito humano e com a experiência, a atuação intencional é a

_______________________________________________

176
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 190.
85

regra; uma vez que a causação de uma determinada conseqüência mediante uma conduta
querida sem que dita conseqüência seja objeto do querer é uma exceção que se baseia em
pressupostos que não são habituais, o efeito antijurídico provocado pelas ações de uma pessoa
deve entender-se como fim da vontade, desde que não apareçam razões específicas que
demonstrem o contrário177.
FEUERBACH utiliza-se, ainda, da expressão latina “Facta laesione praesumitur dolus,
done probetur contrarium” (“a lesão presume-se dolosa, até que se prove o contrário”), que,
segundo ele mesmo relata178, é usada primeiramente por GROLMAN, em “Wird Dolus bey
begangenen Verbrechen vermuthet?”, título que poderia ser traduzido como “Seria o dolo um
indício/suspeita de que um crime foi cometido?”. Neste trabalho, GROLMAN indaga quanto ao
dolo ser um indício do cometimento de um delito, para concluir, assim como FEUERBACH,
que, em regra, comprovada a realização do tipo objetivo, resta comprovado o tipo subjetivo.
A lição de FEUERBACH (e de GROLMAN) pretende tornar o mais objetiva possível a
prova do dolo, mas não convence.
Primeiro, porque parte de uma premissa que não se comprova nem pela psicanálise,
nem pelo Direito. O método da praesumptio doli acredita que a regra é que todas as ações
sejam intencionais e, mais que isso, que as pessoas realizem normalmente condutas cientes de
todas as circunstâncias objetivas envolvidas.
Para a psicanálise, como visto, as condutas humanas são normalmente inconscientes.
O fenômeno da consciência, por seu turno, é a exceção. Repise-se a lição de BRENNER: “a
consciência é antes um atributo excepcional do que um atributo comum dos processos
psíquicos”. Para a psicanálise, de fato, a mente está em constante trabalho, por meio da
inconsciência. Os atos comuns do dia-a-dia, normalmente, são comandados, portanto, pela
inconsciência, esse incessante “motor” da mente. Nesse sentido, a regra é exatamente oposta
àquela apresentada pelo método da praesumptio doli.

_______________________________________________

177
Tradução nossa do original: Da bey jeder Handlung eines Menschen Absicht der nächste Erklärungsgrund, absichtliches
Handeln, nach der Natur des menschlichen Geistes und nach der Erfahrung, die Regel, Hervorbringung einer Wirkung durch
eine willkührlich Handlung, ohne dass jene Wirkung Zweck der Willkühr war, eine besondere, auf ungewöhnlichen
Voraussetzungen beruhende, Ausnahme ist, so muss auch ein rechtswidriger Effect, welcher durch Handlungen einer Person
bewirkt worden ist, solange als Zweck des Willens derselben angenommen werden, bis sich bestimmte Gründe für das
Gegentheil zeigen. FEUERBACH, Anselm. Lehrbuch des gemeinen in Deutschland geltenden Peinlichen Rechts. 1.
Aufl. Giessen: Georg Friedrich Heyer, 1801. p. 53-54.

178
Na nota de rodapé, FEUERBACH explica a origem da expressão latina: “Zuerst ist dieser Satz mit Recht behauptet von
Grolman in d. Abh. Wird Dolus bey begangenen Verbrechen vermuthet? In der Bibliothek d. p. R. Bd. I. Stck. 2. Nr. 3.
Vielleicht lässt er sich aber noch strenger erweisen, als hier geschehen ist.”. Ibid. p. 54.
86

Assim, por exemplo, imagine-se uma dona de casa que more em um pequeno
apartamento, com apenas uma sala (que também é usada como dormitório), um banheiro e
uma cozinha. O dia está frio e o apartamento está, no momento, todo fechado. Quando a dona
de casa está na cozinha separando ingredientes e, ao mesmo tempo, tem de tomar conta do
que seu filho de 3 anos de idade faz no chão da sala com seus brinquedos, enquanto uma
panela já está sobre a chama acesa de uma boca do fogão, a mulher, em tese, está ciente de
tudo que ocorre em sua casa. Se a dona de casa retira a panela da boca acesa e a transfere para
outra que está apagada ao lado, apenas para diminuir o calor na comida, enquanto coloca
temperos na panela e aquela primeira boca, que estava acesa, apaga, por motivo
indeterminado, deixando escapar o gás, a mulher deve, segundo a teoria de FEUERBACH, estar
ciente do escapamento. Se o escapamento causar asfixia na criança momentaneamente, a dona
de casa também estará ciente do ocorrido e terá agido dolosamente, caso venha a causar danos
na saúde de seu filho de 3 anos.
Vê-se que, em um exemplo comum do cotidiano – uma dona de casa que cozinha,
enquanto seu filho brinca no chão da sala, em um apartamento de 30m² – a teoria da
praesumptio doli não conseguirá se sustentar. A dona de casa, a princípio, não tinha vontade
consciente de causar qualquer dano à saúde de seu filho, mas apenas o intuito de cozinhar.
A presunção de existência de dolo irá de encontro, primeiro, à estatística verificável no
dia-a-dia, que é a de que as condutas sejam normalmente culposas; segundo, irá de encontro
ao princípio da presunção de inocência. Assim é que o direito penal contemporâneo concluiria
que a dona de casa agira sem o devido cuidado, e imputaria a qualidade culposa ao aspecto
subjetivo da conduta acima exposta. Nessa conclusão, concordam o direito penal e a
psicanálise, porquanto a culpa seja normalmente inconsciente. A culpa consciente é mais rara.
Perfilhamos o entendimento de HRUSCHKA179. Para este autor, é incorreta, tanto nos
dias de hoje, quanto na época de FEUERBACH e GROLMAN, a premissa da praesumptio doli. O
que se verifica no dia-a-dia é que, de fato, a regra sejam as condutas culposas, nas quais falta

_______________________________________________

179
“Sin embargo, el planteamiento de Grolman y Feuerbach no puede considerarse irrebatible ni mucho menos. Estos autores
parten de la premisa de que en las acciones delictivas típicas el hecho doloso es estadísticamente la regla y que, por el
contrario, la ausencia de dolo es estadísticamente la excepción. Tal afirmación no solo resulta incorrecta en nuestros dias,
sino que ya lo era em aquellos tiempos”. HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 192.
87

ao agente o devido cuidado em evitar o resultado delitivo. Fazendo uma conexão entre os
entendimentos das duas ciências – psicanálise e direito penal – percebe-se que a estatística
apontada por HRUSCHKA tem explicação em conformidade com a seguinte lógica: é normal
que a mente trabalhe incessantemente, de maneira inconsciente. O devido cuidado em evitar
resultados lesivos demanda do agente uma alteração no status quo mental, que, para atingir a
“atenção” (no sentido comum do termo), tem de alcançar o estado de consciência. Assim é
que, ao faltar com o devido cuidado, o agente normalmente age sem consciência do que está
realizando, já que quem está no comando da mente é a,a princípio, a inconsciência. É por isso
que a culpa inconsciente (culpa propriamente dita) é mais comum que a culpa consciente, vez
que a pessoa depende de um despertar da consciência para agir com “atenção” (agir com o
devido cuidado): quando o sujeito adquire consciência da possibilidade de um resultado
delitivo, desde que não deseje realizá-lo, passa a empreender esforços no sentido de reverter a
situação de risco ao bem jurídico. Adquirida a consciência da situação de risco ao bem
jurídico (ou a atenção, na linguagem comum), passa o evento para a esfera da anormalidade
das condutas.
Poder-se-ia, aqui, fazer um aparte, quanto ao caráter fragmentário180 do direito penal, a
fim de criticar sua aplicação cada vez mais crescente nas condutas culposas. Trata-se da
expansão do direito penal, que tem atingido cada vez mais condutas culposas (e também
condutas perigosas181). É verdade que o direito penal deve tratar das condutas que o direito
civil (e demais ramos não penais) não consegue solucionar satisfatoriamente, mas também é

_______________________________________________

180
Veja-se a lição de BITENCOURT: “Nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como
nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos. O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra
os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte
dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica. (...) O Direito Penal – já afirmava Binding – não constitui um ‘sistema
exaustivo’ de proteção de bens jurídicos, de sorte a abranger todos os bens que constituem o universo de bens do indivíduo,
mas representa um ‘sistema descontínuo’ de seleção de ilícitos decorrentes da necessidade de criminalizá-los ante a
indispensabilidade da proteção jurídico-penal. O caráter fragmentário do Direito Penal – segundo Muñoz Conde – apresenta-
se sob três aspectos: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico somente contra ataques de especial gravidade, exigindo
determinadas intenções e tendências, excluindo a punibilidade da prática imprudente em alguns casos; em segundo lugar,
tipificando somente parte das condutas que outros ramos do Direito consideram antijurídicas e, finalmente, deixando, em
princípio, sem punir ações meramente imorais, como a homossexualidade ou a mentira”. BITENCOURT, Cezar Roberto.
Tratado de Direito Penal. p. 45.

181
Mais adiante, trataremos dos delitos de perigo, em capítulo específico, já que contêm peculiaridades no problema da prova
do dolo.
88

verdade que o fato de uma conduta ser mais comum que outra não tira da mesma a relevância
penal. (Aqui, não entraremos no mérito de o direito penal conseguir ou não solucionar tais
conflitos. A nosso sentir, parece que determinados conflitos jamais terão solução no direito
penal). O direito penal trata mais duramente as condutas dolosas, não porque elas sejam mais
comuns ou menos comuns que as culposas, mas sim porque se considera que a afronta ao
Direito ocorra de maneira mais reprovável, já que o agente quer conscientemente violar a
norma. A normalidade da conduta culposa, por seu turno, não diminui a gravidade da mesma,
de modo que, em que pese o caráter subsidiário do direito penal, os resultados delitivos dela
advindos podem também merecer reprimenda penal, desde que se mostrem nocivos a algum
bem jurídico suficientemente relevante ao direito penal. Também não cabe neste trabalho
tratar de um tema interessante: a sorte. Deixaremos para outra oportunidade a constatação de
que o fator álea (sorte ou azar) influencia em muito na ocorrência do resultado, tanto das
condutas dolosas, quanto das culposas. Salta aos olhos, entretanto, que, no caso das condutas
culposas, a não ocorrência do resultado pela sorte do agente é o que verdadeiramente o livra
do pesado jugo do direito penal, e não a realização de qualquer esforço/cuidado seu na
evitação do resultado. Retomaremos o tema da sorte mais à frente.
Além da premissa equivocada, quanto à normalidade das condutas dolosas, a
praesumptio doli também não conseguirá se sustentar, por sua vez, em virtude do Princípio da
Presunção de Inocência. Também chamado atualmente de “Estado ou Situação Jurídica de
Inocência”182, tal princípio garante a todas as pessoas o direito de ser considerada inocente,
enquanto não transitada em julgado a sentença penal condenatória. Em nosso sistema jurídico,
o princípio da presunção de inocência tem assento constitucional, no art. 5º, LVII: ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

_______________________________________________

182
Alguns doutrinadores têm preferido a denominação “Estado de Inocência” ou, ainda, “Situação Jurídica de Inocência”, em
detrimento da tradicional “Presunção de Inocência”, mas preferimos nos abster quanto ao julgamento da conveniência da
troca de nomenclatura. A nosso sentir, o interesse dos defensores dessa mudança na nomenclatura é advogar pela
impropriedade do termo “presunção”, já que o estado ou situação jurídica de fato existe, não necessitando, a rigor, qualquer
presunção por parte do Estado, mas sim verdadeira consideração. É direito da pessoa ser considerada inocente até o trânsito
em julgado da sentença penal condenatória e, por conseguinte, é dever do Estado considerá-la inocente (e não presumir),
devendo, ainda, garantir a manutenção desse status, mediante diversas medidas assecuratórias, enquanto não houver o
trânsito em julgado e a consequente modificação da situação jurídica para o status de culpado.
89

Várias conseqüências podem ser extraídas do princípio da presunção de inocência.


Leciona PACELLI que
o princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de inocência, impõe ao Poder Público
a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo
a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais
fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a
estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem
recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual
incidência de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença
fosse por ela alegada.183.
No caso da praesumptio doli, percebe-se, de pronto, que a mesma entra em conflito
inconciliável com o princípio da inocência, na medida em que, enquanto este direciona todo o
sistema a encarar o acusado como detentor do estado de inocência – a princípio, a pessoa não
quis cometer o delito e o julgador deve aguardar a produção da prova do contrário – aquela
direciona o sistema a enxergar o acusado como detentor do estado de culpa – a princípio, a
pessoa quis cometer o delito e o julgador, na dúvida, deve condenar o acusado. Não restam
dúvidas de que a praesumptio doli é insustentável diante da regra in dubio pro reo.
A praesumptio doli seria, pois, uma espécie de prova pré-constituída em malefício do
estado de inocência do réu que teria o condão de retirar do acusador o ônus probatório em
relação à sua alegação da ocorrência do dolo. Ainda que os defensores da praesumptio doli
admitissem que, processualmente, o dolo não seria um fato (base ontológica) a ser provado,
mas tão-somente um instituto completamente normativo, que, portanto, não necessitaria de
comprovação no mundo real (mundo dos fatos), podendo apenas ser imputado ou não ao
sujeito, não há escapatória da conclusão acima exposta: o princípio da inocência será
descumprido. Isso porque retirar do dolo o caráter ontológico e analisá-lo com base apenas no
caráter jurídico não retira do acusador o dever de provar que a atribuição do dolo ao sujeito
baseia-se em fundamentos reais que demonstrem ser o dolo obra do agente. O dolo não pode
ser uma criação jurídica destinada pura e simplesmente a afirmar a incidência de culpa sobre a
pessoa acusada, completamente alheia à conduta perpetrada pelo sujeito. Tal criação seria
verdadeiramente uma aberração legal. Para haver uma condenação que legitimamente possa
retirar do sujeito o status de inocência, é preciso que o dolo seja encontrado na conduta típica

_______________________________________________

183
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 47.
90

efetivamente levada a cabo pelo acusado e é preciso que essa constatação, ainda que
dominada por valorações jurídicas, encontre amparo em provas e não em simples presunções
legais. Repise-se: a única presunção que se admite é a de inocência, até que se prove o
contrário.
O que acabamos por constatar, na verdade, é que a própria concepção que a teoria da
prova tem do dolo terá relevância para a eficácia do próprio método de prova. Ou seja,
independentemente do método de prova que se lance mão, é necessário ao investigador,
primeiramente, determinar que concepção se tem do dolo.

2.1.2 Dolus ex re

Demonstra-se relevante, nesse passo, investigar a concepção de dolo do direito


processual, na teoria da prova: como o dolo é tratado pela teoria da prova no direito
processual?
O dolo, como elemento subjetivo do tipo, deve ser provado, tal como qualquer outro
elemento contido no fato punível descrito na lei. Todo fato no qual se pode encontrar pelo
menos um elemento legal do fato punível é um fato relevante para a decisão do caso; mas nem
todo fato relevante para a decisão carrega em si algum elemento do fato punível. O diagrama
de conjuntos abaixo denota visualmente tal afirmação184:

_______________________________________________

184
“Expresado en términos de la teoría de conjuntos: el conjunto de hechos en los que concurre un elemento legal del hecho
punible es un subconjunto dentro del conjunto compuesto por los hechos relevantes para la decisión del caso. Ello es así
porque todo hecho en el que concurre un elemento legal del hecho punible necesariamente ha de ser un hecho relevante para
la decisión y, en cambio, no puede afirmarse que todo hecho relevante para la decisión deba ser necesariamente un hecho en
el que concurre un elemento legal del hecho punible”. HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 182.
91

Se tivéssemos que determinar a localização do dolo no diagrama acima, sem sombra


de dúvida, estaria o dolo no subconjunto “fatos nos quais se encontra pelo menos um
elemento legal do fato punível”, dentro, portanto, do conjunto maior “fatos relevantes para a
decisão”. HRUSCHKA afirma que os processualistas concebem o dolo como um conglomerado
de fatos, no sentido do §267.1 StPO. Nesse passo, os processualistas assumem que o dolo é
um fato e que, como tal, deve ser provado. Vejamos os artigos do Código de Processo Penal
alemão pertinentes ao tema da produção de provas (tradução nossa):

§ 244: (2) Para perscrutar a verdade, o Tribunal deve estender de ofício a produção das provas
sobre todos os fatos e meios de prova que sejam relevantes para a decisão.185
§ 261: O Tribunal decidirá sob sua livre convicção sobre o resultado das provas, formada com
base nas provas orais.186
§ 267: (1) Se o acusado for condenado, os fundamentos da sentença deverão especificar os
fatos considerados provados, nos quais foram encontrados os elementos do fato punivel. Caso
a evidência seja inferida a partir de outros fatos, também estes fatos deverão ser especificados

_______________________________________________

185
§ 244: (2) Das Gericht hat zur Erforschung der Wahrheit die Beweisaufnahme von Amts wegen auf alle Tatsachen und
Beweismittel zu erstrecken, die für die Entscheidung von Bedeutung sind.

186
§ 261: Über das Ergebnis der Beweisaufnahme entscheidet das Gericht nach seiner freien, aus dem Inbegriff der
Verhandlung geschöpften Überzeugung.
92

na sentença. Pode-se fazer referência às ilustrações que estejam nos autos para maiores
detalhes.187
§ 337: (1) A revisão somente pode ter como fundamento a circunstância de que a decisão do
Tribunal tem como base uma infração à lei. (2) A lei é infringida quando uma norma de
direito não é aplicada ou é empregada erroneamente.188
Alerta HRUSCHKA que os fatos que constituem o dolo do autor, porquanto sejam
internos, se distinguem dos fatos externos, que resultam perceptíveis aos sentidos e que
podem ser constatados com métodos das ciências naturais. Todavia, os fatos internos não
deixam de ser fatos relevantes para a decisão e, por conseguinte, precisam ser provados.
Tomada como premissa a consideração de que o dolo é um conglomerado de fatos –
prossegue HRUSCHKA na análise – devemos também admitir que tanto o dolo como seus
componentes se apresentam diante do juiz encarregado de valorar as provas e de formar com
as mesmas a sua convicção com uma série de peculiaridades que o distinguem dos fatos
externos.
A doutrina costuma, tanto na Alemanha, quanto no Brasil, tratar o elemento volitivo
como sendo da mesma categoria que o elemento cognoscitivo, conforme já exposto acima.
Para HRUSCHKA, essa tomada de postura é um erro, já que, segundo o autor, com semelhante
equiparação, deixa-se de notar que entre esses dois elementos existe, na verdade, uma relação
de dependência, segundo a qual sempre que o agente realiza determinada conduta, sob
determinadas circunstâncias, conhecendo o caráter da ação e das circunstâncias, quer
também realizar tanto a conduta, como as circunstâncias. Para ilustrar a idéia,
basta con pensar en el acusado que reconociera haber disparado contra X siendo consciente de
que el disparo sería mortal, pero añadiendo acto seguido –sin pararse a tomar aliento siquiera-
no haber querido el disparo fuera mortal. Ningún juez creería semejante alegación, que
llevaría a concluir que el acusado no actuó dolosamente al faltar el elemento volitivo del dolo.
Y no porque el juez no “crea” al acusado al afirmar que fue consciente del efecto mortal del
disparo pero no quiso tal resultado, sino porque sería absurdo “creer” semejante afirmación.
De acuerdo con la relación de implicación según la cual “siempre que alguien lleva a cabo
una conducta determinada bajo determinadas circunstancias conociendo las características
tanto de la conducta como de las circunstancias, quiere a la vez realizar la conducta con dicha
circunstancias’, cuando alguien ha realizado un hecho siendo consciente de tal realización y
de sus circunstancias relevantes, pero sostiene que no quiso realizarlo, incurre en un venire

_______________________________________________

187
§ 267: (1) Wird der Angeklagte verurteilt, so müssen die Urteilsgründe die für erwiesen erachteten Tatsachen angeben, in
denen die gesetzlichen Merkmale der Straftat gefunden werden. Soweit der Beweis aus anderen Tatsachen gefolgert wird,
sollen auch diese Tatsachen angegeben werden. Auf Abbildungen, die sich bei den Akten befinden, kann hierbei wegen der
Einzelheiten verwiesen werden.

188
§ 337: (1) Die Revision kann nur darauf gestützt werden, daß das Urteil auf einer Verletzung des Gesetzes beruhe. (2) Das
Gesetz ist verletzt, wenn eine Rechtsnorm nicht oder nicht richtig angewendet worden ist.
93

contra factum proprium y, por tanto, en una autocontradicción pragmática. Es esta


contradicción que impide al juez del ejemplo aceptar que el acusado fuera consciente del
carácter mortal del disparo sin querer al mismo tiempo la muerte de la víctima 189.
Assim é que se conclui que, quando o juiz estiver convencido de que o acusado
cometeu o fato e de que, ao cometer, estava consciente do fato e de suas circunstâncias
relevantes, restará comprovado o elemento volitivo, por arrastamento190.
Em que pese HRUSCHKA afirmar que essa constatação na teoria da prova acaba por
modificar a própria teoria da ação e o próprio conceito de dolo, concluindo que se justificaria
a eliminação do elemento volitivo do conceito de dolo, insiste o autor, assim como nós, na
importância do elemento volitivo como integrante do conceito de dolo:
La relación de implicación constatada no solo resulta relevante para la prueba del dolo, sino
que afecta a la propia teoría de la acción, es decir, no solo tiene efectos en el proceso, sino
también en la definición del concepto de dolo. Por consiguiente, su formulación no compete a
la ciencia procesal, sino que es tarea de la ciencia que se ocupa de las doctrinas generales del
Derecho penal sustantivo. Por ello no es casual que una teoría sustantiva más reciente,
bastante extendida, elimine el elemento volitivo de la definición del dolo y lo defina
recurriendo solo al elemento cognitivo. Con ello no se está negando que el dolo contenga un
elemento volitivo, sino solo la igualdad de rango entre ambos elementos sugerida por la
fórmula usual del dolo como “conocer y querer la realización del tipo” con su inalterada
conjunción entre estos dos elementos.191
Conforme já alertamos mais acima, parece que, ao eliminar o elemento volitivo do
conceito de dolo, os doutrinadores sentem-se mais leves, ou seja, carregam agora um fardo
menor. Tal sensação é ilusória, vez que a consciência permanece como objeto de prova e
também é um fenômeno espiritual de difícil comprovação. A conclusão de HRUCHSKA não é
diferente da nossa: con ello [a retirada do elemento volitivo] no desaparecerán las dificultades
que puede plantear la prueba del dolo en el proceso penal, porque también el elemento
cognitivo es causa de importantes problemas.

_______________________________________________

189
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 183.

190
Segundo HRUSCHKA, o Reichsgericht admitiu esta solução, ao decidir quanto ao dolo do cúmplice. Na decisão, o Tribunal
entendeu que quando o cúmplice sabe que o agente quer cometer um determinado delito e o ajuda sendo consciente de que
sua atuação contribuirá para a consumação do delito, a vontade do cúmplice também abarca semelhante conseqüência, ainda
quando não tenha nenhum interesse na realização do fato delituoso e apesar de sua contribuição não ter sido essencialmente
necessária para a consumação. Ibid. p. 184.

191
Continua o autor: “A largo plazo la doctrina procesalista no podrá continuar ignorando estas –sencillas- reflexiones y,
aunque no extraiga las consecuencias que la dependencia entre conocimiento y voluntad tiene para la teoría de la acción, por
lo menos deberá asumir las que tiene para la teoría de la prueba”. HRUSCHKA, loc. cit.
94

Também na análise do elemento cognoscitivo os juristas enfrentam importantes


problemas, porque, novamente, aqui, trabalham com a possibilidade de se provar fatos
internos mediante a observação de circunstâncias externas.
A fim de ilustrar a forma como os juristas costumam analisar o dolo a partir de
circunstâncias objetivas, HRUSCHKA elabora um exemplo: um vendedor de armas, adulto,
psiquicamente são e com capacidade visual normal, foi observado por testemunhas dignas de
crédito segurando uma espingarda de caça em direção à vítima, que estava dentro de seu
campo visual, sem que nenhum objeto impedisse sua visão. O acusado carregou a arma e
apertou o gatilho. A bala atingiu a vítima no coração, provocando sua morte imediata.
Durante o processo, o acusado se nega a fazer declarações. Não há testemunhas que possam
contribuir com informações sobre o aspecto subjetivo do fato para além das circunstâncias
descritas acima, nem existe qualquer outro meio probatório significativo. A defesa alega que o
acusado atuou sem dolo, porque não sabia que apertando o gatilho mataria ou lesionaria a
vítima e, portanto, pleiteia, no máximo, uma condenação por homicídio culposo.
Para HRUSCHKA, em um caso como este, nenhum tribunal aceitaria a alegação da
defesa. O acusado restaria condenado, sem sombra de dúvida, por homicídio doloso, ou, pelo
menos, lesão corporal seguida de morte. Seria considerado o dolo de matar, ou, ao menos, um
dolo de lesionar. A argumentação seria a seguinte, imagina HRUSCHKA:
un adulto centroeuropeo normal, sobre todo cuando despacha en una tienda de armas, por
fuerza sabe qué es una escopeta, cómo se utiliza y cómo se dispara a un blanco y sabe también
que disparar contra un tercero es peligroso para éste y que, según en qué circunstancias, puede
llegar a ser incluso peligroso para su vida. Ello permite concluir que el acusado, que cumple
todos estos requisitos, fue consciente de la peligrosidad de su comportamiento para la
integridad corporal o incluso para la vida de la víctima. No existe ningún indicio que permita
sostener lo contrario. Si se analizan las bases de esta argumentación se advierte que la
afirmación de que el acusado ha sido consciente del peligro de su actuación para (la vida de)
la víctima se basa en el conjunto de circunstancias “externas” del caso y ello se considera
como una justificación suficiente.192
De fato, conforme aponta HRUSCHKA, é o conjunto de circunstâncias “externas” do
caso que fundamenta a comprovação do dolo.
Relata HRUSCHKA que já os juristas romanos adotavam essa forma de análise do dolo:
O divino Adriano dispôs: quem matou um homem pode ser absolvido se não se dá o caso de
ter atuado com dolo homicida. Por outro lado, quem não matou outrem, mas lesionou para
matá-lo, deve ser condenado como homicida. E esse último deve decidir-se ex re, quer

_______________________________________________

192
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 186.
95

dizer, a partir do conjunto de circunstâncias, pois quem esgrime uma espada e com ela
atravessa a vítima atua sem dúvida dolosamente. Todavia, quem matou com uma grande
chave ou com uma panela no curso de uma briga não agiu dolosamente em que pese ter
utilizado ferro. Em todo caso, a pena de quem, durante uma briga, comete um homicídio, cuja
causa é mais o infortúnio que a vontade, deve ser atenuada.193.
A análise dos romanos, ainda que não seja a melhor em sua conclusão, é interessante
por trazer em si o mesmo critério de prova utilizado nos dias de hoje: o conjunto de
circunstâncias externas. O exemplo dos romanos, entretanto, é infeliz, porquanto é possível
que se mate alguém utilizando-se de uma espada, sem que haja, todavia, dolo de matar. E é,
ainda, possível que se mate alguém com uma panela com dolo de matar. Não é exatamente o
objeto que determinará a existência do dolo, mas sim, de acordo com o critério adotado
majoritariamente, o conjunto de circunstâncias extraídas da realidade fática que auxiliará o
intérprete a identificar a existência do dolo.
Também em outras passagens da obra legal de Justiniano, relata HRUSCHKA, se admite
essa ideia:
“an dolo quid factum sit, ex facto intellegitur”, es decir, “si algo ha sucedido con dolo se
deduce de lo sucedido”. O, “dolum ex indiciis perspicuis probari convenit”, es decir,
“conviene que se pruebe el dolo a partir de los indicios externamente perceptibles”194.
De toda sorte, HRUSCHKA retoma, com esse critério apresentado também pelos
romanos, a seguinte questão relacionada a seu exemplo acima relatado: quando se deve
afirmar e quando se deve negar a existência de um dolo homicida que vá mais além do dolo
de lesionar? É possível diferenciar um dolo do outro com base apenas em fatores objetivos da
conduta?
Desde meados do século III depois de Cristo, já no direito romano, acreditava-se que o
dolus ex re fosse uma maneira hábil de provar o dolo. Devidamente lembrado por HRUSCHKA,
em 1825, VON WEBER descreveu o dolus ex re como aquele dolo delitivo que, sem que o
deliquente mesmo o reconheça e sem que seja necessária uma confissão, já pode ser deduzido,
de forma segura, a partir da classe e do modo de execução do delito e das circunstâncias
externas da ação concreta. Explicava o professor de Tübingen, portanto, que a prova do dolus
ex re dispensa uma confissão do delinqüente como se necessita em todas as demais situações

_______________________________________________

193
Digesto, 48.8.1.3 apud HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 187. [tradução nossa do espanhol; grifos
nossos.]

194
Ibid. p. 188.
96

para a existência do dolus, uma vez que deriva de conclusões que se obtêm a partir dos atos
concretos e da forma do delito195.
As deduções de dolo ex re, isto é, a partir da coisa, perpassam a história, portanto,
desde os romanos até os dias atuais. É do entendimento leigo, aliás, que se possa aferir a
vontade e a consciência de uma pessoa pela simples análise dos fatos em si. Uma testemunha,
por exemplo, não terá muita dúvida quanto à vontade de atirar do agente, se o mesmo tem a
vítima diante de si e aponta a arma. A conduta de apontar uma arma e de não retroceder no
aperto do gatilho, somada à consciência da letalidade da mesma, não deixa muitas opções ao
intérprete, a não ser que se tenha conhecimento de outros dados estranhos a essa “fotografia”
descrita: alguém aponta uma arma contra outrem e aperta o gatilho. Tal exemplo é semelhante
ao do “vendedor de armas”, exposto acima.
É o que HRUSCHKA aponta com simples exemplos do dia-a-dia, que ilustram ainda
melhor o caráter cotidiano desse tipo de método de prova do dolo:
quando alguém se retorce e lança gritos inarticulados, deduzimos que padece de alguma dor;
quando alguém lança flechas contra o ponto central de um alvo, deduzimos que está
apontando, e que, portanto, atua com a intenção de acertar; quando uma dona de casa está na
cozinha preparando o almoço, quando um aluno entra com sua bicicleta na escola, quando o
carteiro introduz cartas na caixa postal, partimos da regra geral de que todos sabem o que
estão fazendo, embora não digam expressamente que são cientes disso. Nada distinto ocorre

_______________________________________________

195
A explicação de VON WEBER se encontra nesta passagem, especialmente na parte que destacamos em negrito: Nicht zu
verwechseln die zwischen dolus antecedens (feu ex proposito) und dolus consequens (feu ex re). Ein dolus antecedens liegt
nämlich vor, wenn eine Handlung gleich in der Absicht dadurch ein Verbrechen zu verüben, vorgenommen worden ist;
Hingegen ein dolus consequens feu ex re, wenn der Entschluss gefasst worden, einer irgend einer Absicht schon
angefangenen Handlung erst einer Verbrecherischen Auschlag gegeben. Übrigens sprechen auch unsere Praktiker (vorzüglich
in Würtemberg) von einem dolus ex re noch in einem andern, als dem eben bemerkten Sinne. Sie verstehen nämlich
darunter auch denjenigen verbrecherischen Vorsatz, welcher sich, ohne dass ihn der Verbrecher selbst eingesteht,
und ohne dass es dieses seines Geständnisses bedarf, schon aus der Art und Verübungsweise des Verbrechens, aus den
äussern Umständen der concreten Handlung sicher erkennen lässt. Dieser s. g. dolus ex re hat aber, wie sich aus
seinem Begriffe schon ergiebt, seinen eigenthümlichen innern Charakter, sondern nur eine Bedeutung in Bezug auf
die Beweisführung, indem nämlich dessen Beweisung nicht des für das Dasehn des Dolus sonst erforderlichen
Geständnisses des Verbrechers bedarf, sondern schon durch Schlussfolgerung aus der dussern Entstehungesweise
und Gestalt des Verbrechens geschleht.”. Cabe uma observação: O “VON WEBER” que citamos aqui não é a mesma pessoa
que “HELLMUTH VON WEBER” (* 1893 – † 1970). Seu nome completo não consta na revista em que consultamos o texto
acima transcrito. Sequer na obra de HRUSCHKA, que também cita o autor, há o nome completo do mesmo. Na revista Neues
Archiv des Criminalrechts, há apenas a informação de que VON WEBER era Vice-Diretor em Tübingen. Acreditamos que se
trate de HEINRICH BENEDIKT VON WEBER (* 1777 – † 1844), em virtude de a data da publicação ser de 1825 e pelo fato de
constar a informação de que o mesmo era Presidente do Tribunal em Württemberg, província da cidade de Tübingen. Esta
última informação, entretanto, não é confiável, porque encontrada na Wikipedia („Präsidenten des Württembergischen
Staatsgerichtshofes Heinrich Benedikt von Weber (1777–1844)“). VON WEBER. “Über die verschiedenen Arten von Dolus”,
Neues Archiv des Criminalrechts, vol. 7. Halle: Hemmerde und Schwetichte, 1825. p. 564-565.
97

quando deduzimos das circunstâncias ‘externas’ de um caso que o acusado era consciente do
fato e de suas características relevantes e, portanto, que atuou dolosamente196.
Para HRUSCHKA, as deduções ex re do dolo de um fato devem ser diferenciadas da
presunção do dolo ou praesumptio doli. A presunção do dolo, como visto, é um preceito
segundo o qual sempre que se prova a ocorrência do tipo objetivo também se tem por provado
o correspondente dolo. As deduções ex re, pelo contrário, independentemente da
comprovação do tipo objetivo, visam a perscrutar a ocorrência do elemento subjetivo com
base nos dados externos (objetivos). Ilustra-se: O sujeito x atirou contra y. Restou
comprovado que a morte de y se deu em conseqüência do tiro dado por x. O tipo objetivo
“matar alguém” restou comprovado. No entanto, a aferição ex re do tipo subjetivo ainda
precisa ser empreendida, a fim de afirmar se houve o dolo.
De fato, a dedução do dolo ex re não se assemelha à praesumptio doli. No exemplo
acima narrado, o método da praesumptio doli, consagrado pelo Código Bávaro de 1813197,
decidiria pela ocorrência do dolo tão-somente porque o tipo objetivo restou comprovado e não
havia nos autos quaisquer outros dados externos que comprovassem o contrário. O dolus ex
re, por seu turno, não se satisfaz com a simples prova do tipo objetivo. Após constatar que o
projétil proveniente da arma de x efetivamente causou a morte de y, o método do dolus ex re
concluiria pela existência do dolo com base nas seguintes circunstâncias externas do fato: o
sujeito x é adulto e são; o sujeito x tem consciência de que a arma é perigosa; o sujeito x tem
consciência de que tem diante de si o sujeito y como alvo; o sujeito x tem consciência de que,
se alvejado, y sofrerá sério risco de morrer.
A questão é saber se a análise dessas circunstâncias externas não termina por resvalar
também em presunções (aqui, no sentido comum do termo), que acabariam por eivar o
método do dolus ex re de vícios tão insanáveis quanto o são aqueles do antigo método
praesumptio doli.

_______________________________________________

196
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 190.

197
HRUSCHKA comenta: “No es casual que el influyente Código bávaro de 1813, redactado por Feuerbach, contuviera
semejante presunción de dolo”, e, na nota de rodapé, traz HRUSCHKA o correspondente excerto do Código Bávaro: “Art. 43:
‘Cuando se haya probado un hecho ilícito cometido por una persona, legalmente se considerará que dicha persona ha actuado
con dolo antijurídico siempre que a partir de las circunstancias específicas no pueda obtenerse la certeza o la probabilidad de
lo contrario’.”. Ibid. p. 191.
98

2.2 É possível provar o dolo?

O Direito, conforme vimos, pretende já há muito tempo provar o dolo tão-somente por
meio de fatores objetivos, que podem ser constatados com base em dados externos, em
retrospectiva, pelo julgador. O Direito também acredita que a testemunha ocular, por
exemplo, pela mera observação dos fatos, é capaz de depreender vontade e consciência por
parte do agente do delito, sendo, ainda, capaz de descrever objetivamente em seu depoimento
ao juízo a ocorrência desses fenômenos subjetivos. A ciência penal, pois, parte de duas
premissas: é possível provar fenômenos subjetivos; é possível provar objetivamente
fenômenos subjetivos.
O que se indaga neste item é exatamente a validade dessas premissas: é mesmo
possível provar fenômenos internos, de experiência, portanto, subjetiva? Em segundo lugar,
analisar-se-á se é possível provar objetivamente esses fenômenos internos.

2.2.1 É possível provar fenômenos subjetivos?

A possibilidade de se provar fenômenos internos é, de fato, uma pergunta


fundamental, que deve ser respondida previamente a qualquer tomada de postura quanto à
própria possibilidade de se provar o dolo e, ainda, quanto ao método mais adequado. A
conclusão pela impossibilidade de prova dos fenômenos subjetivos, também chamados
espirituais, fulminaria o próprio objeto deste trabalho.
Em primeiro lugar, é preciso que se afirme desde já que os fenômenos subjetivos, tais
como a consciência e a vontade, existem, em que pese a dificuldade de prová-los. Essa
tomada de postura inicial é necessária, por conta da equivocada ideia que se criou em torno da
oposição entre “físico” e “mental”. Conforme já esclarecido acima por SEARLE, os fenômenos
mentais são fenômenos físicos, porque existem de fato no corpo: a mente faz parte do corpo.
É preciso bastante cuidado, uma vez que o tema é verdadeiramente complexo. Por conta
disso, preferimos paulatinamente ir destrinchando as dúvidas, a fim de separar as respostas
científicas das respostas mais aproximadas da crença. A consciência e a vontade não são
fenômenos nos quais se crê ou não. Elas existem.
Algumas pessoas podem acreditar que a consciência não existe pelo simples fato de
não existir método verdadeiramente eficaz de comprovação. Outras pessoas acreditam que
tais fenômenos subjetivos existem, apesar da dificuldade de prová-los. Das pessoas que
99

acreditam nos fenômenos subjetivos, há ainda umas que acreditam em determinados métodos
de prova e outras que não. A postura que tomamos acima, entretanto, não é nem uma, nem
outra: os fenômenos mentais de fato existem, e não se trata de acreditar na existência deles ou
não. Eles existem, conforme argumenta SEARLE, porque neste momento eu estou pensando e
você também. As ciências da mente estudam os fenômenos mentais e os comprovam todos os
dias. Aqui, pode parecer muito simples o que acabo de afirmar, mas até mesmo os estudiosos
no assunto, diante da dificuldade de se provar fenômenos subjetivos, vez ou outra se
complicam com algumas afirmações. Por exemplo, MERCEDES PÉREZ MANZANO chegou a
afirmar que existem determinadas realidades cuja existência não se prova, mas que, nem por
isso, deixam de existir. A autora, entretanto, tem por objetivo no trabalho, defender a
possibilidade de provar tais realidades. Ela queria dizer, na verdade, que existem realidades
cuja existência é de difícil comprovação:
La definición de lo real aceptada por la ciencia desde hace tiempo admite la existencia de
realidades cuya existencia no se prueba, ni se accede a ella por observación empírica directa,
sino mediante deducción, o mediante inferencias realizadas a partir de otros hechos o
mediante cálculos matemáticos. La ciencia acepta que lo real va más allá de lo observable,
objetivo, público y verificable. Una concepción distinta, negadora de lo anterior, no sólo
negaría la existencia de los procesos mentales con los que trabajan la Psicología o la
Psiquiatría, sino la existencia de determinadas partículas con las que trabaja a la Física
cuántica y sin cuya existencia no podría explicarse el funcionamiento del universo. Además,
dicha comprensión de lo real coincide con las intuiciones comúnmente admitidas en materia
de procesos psicológicos. En consecuencia, nada impide mantener que los fenómenos
mentales tienen un estatuto fáctico a los efectos de constituir el objeto de la prueba jurídica. 198
Quanto à possibilidade de provar os fenômenos subjetivos, procederemos da mesma
forma, qual seja: devemos separar as crenças nos métodos de prova, dos próprios métodos em
si. Conquanto seja extremamente difícil, é possível comprovar a existência dos fenômenos
subjetivos, prioritariamente, por meio de métodos subjetivos.
Com o método subjetivo da psicanálise, por exemplo, conforme já exposto acima, o
psicanalista consegue, mediante a realização de reiteradas sessões, não somente constatar a
existência, como ainda consegue compreender o próprio conteúdo da consciência, da
inconsciência e da vontade, que têm sua comprovação extraída das informações oferecidas
pelo próprio analisado. A eficiência desses métodos é contestada, normalmente, quanto à
veracidade do conteúdo extraído da prova, mas quanto à prova da existência da consciência,

_______________________________________________

198
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1464.
100

da inconsciência e da vontade, não há dúvida de que a psicanálise, a psiquiatria e a psicologia,


por exemplo, já provaram a existência dos fenômenos mentais inúmeras vezes.
Vê-se, portanto, que é possível provar a existência de fenômenos não observáveis a
olho nu. Todavia, pensar conscientemente não é um fenômeno físico observável como o é,
e.g., a explosão de uma pedreira por uma banana de dinamite. Voltaremos ao problema
central: é possível provar objetivamente fenômenos mentais?

2.2.2 É possível provar objetivamente fenômenos subjetivos?

De pronto, cabe analisar o que vem a ser objetivo e o que vem a ser subjetivo.
MANZANO entende que, de uma perspectiva epistemológica, objetivo é aquele juízo cuja
verdade ou falsidade pode estabelecer-se de forma independente das atitudes, sentimentos e
pontos de vista de que o emite ou o escuta, e prossegue:
Desde una perspectiva ontológica, objetivos son los hechos del mundo, las entidades cuyo
modo de existencia no depende de actitudes o sentimientos subjetivos. La subjetividad es un
rasgo, una propiedad real de los fenómenos mentales que no impide su conocimiento objetivo.
De un lado, “es un hecho puro y simple de la evolución biológica” que se han “producido
ciertos tipos de sistemas biológicos, a saber: los cerebros humanos..., que tienen rasgos
subjetivos”199.
Percebe-se que MANZANO, já ao descrever a diferença entre fenômenos objetivos e
subjetivos, perfilha-se na teoria que entende ser possível provar fenômenos subjetivos de
modo objetivo. Segundo a autora, que defende a teoria mista sobre a natureza do dolo 200, o
dado de que os fatos subjetivos não sejam acessíveis por observação empírica não supõe que
não exista a possibilidade de se chegar a um conhecimento objetivo dos mesmos. Ademais,
alega MANZANO que, embora seja correto que somente é possível experimentar o próprio
conhecimento e nunca o conhecimento dos demais, isso não significa que não seja possível
conhecer o conhecimento dos demais, nem tampouco que não seja possível ‘provar no
processo’ o conhecimento dos demais.

_______________________________________________

199
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1464.

200
Ibid. p. 1459.
101

MANZANO entende ser possível objetivar a forma de observação dos fenômenos


psicológicos:
También lo ontológicamente subjetivo puede ser epistémicamente objetivo. [...] Y es posible
formular enunciados, asertos epistémicamente objetivos referidos a fenómenos
ontológicamente subjetivos: ‘Ahora tengo dolor en la espalda’ informa acerca de un hecho
real que no depende de ninguna perspectiva, actitud y opinión por parte de los observadores.
Sin embargo, el fenómeno misto, el dolor real, tiene un modo de existencia subjetivo’. De
otro, el modo de acceso directo, exclusivamente subjetivo, a los estados o procesos mentales
no nos impide elaborar conceptos sobre ellos que sea intersubjetivamente aceptables. El
lenguaje hace posible comunicar las propias sensaciones y vivencias subjetivas y, en
consecuencia, mediante el lenguaje es posible formular definiciones referidas a los procesos
psicológicos que los convierten en conceptos útiles y aplicables para el Derecho. 201.
Na verdade, MERCEDES PÉREZ MANZANO pretende rechaçar as teorias que
normativizam por completo o conceito de dolo. Segundo a autora, os defensores do conceito
normativo puro de dolo sustentam que não é possível provar sem um mínimo resquício de
dúvida a efetiva existência do conhecimento, por meio da prova indiciária, pelo que as teorias
psicológicas se encontrariam “ante la disyuntiva de negar la concurrencia de dolo en la
mayoría de los casos, lo que las convierte en inoperantes”, ou estariam a ponto de admitir a
condenação por delito doloso, apesar das dúvidas sobre a ocorrência do conhecimento, o que
as faz ilegítimas. Por conta dessa alegada inoperância das teorias psicológicas, no que tange à
prova do dolo, portanto, é que muitos doutrinadores optam por modificar o próprio conceito
de dolo. A autora, todavia, defende a teoria mista. Para MANZANO, o fato de as teorias
psicológicas não conseguirem provar com certeza absoluta a ocorrência do dolo não pode
servir para afastar o caráter psicológico do conceito. Com maestria, MANZANO critica o
posicionamento dos normativistas:
Varias son las razones que me impiden compartir la tesis expuesta: en primer término, esta
tesis parte de una concepción de la prueba en el proceso penal que no encaja con las
pretensiones posibles de veracidad en el proceso, de modo que si la imposibilidad de alcanzar
certeza absoluta en la prueba de los hechos subjetivos a partir de prueba indiciaria conduce a
negar su carácter fáctico y a asumir su carácter normativo, dicha comprensión conduciría
también a negar el carácter fáctico de los hechos objetivos y a negar la posibilidad misma de
existencia del proceso probatorio como instrumento para la formulación de enunciados cuyo
sentido es la correspondencia con la realidad extraprocesal; en segundo término, porque para
hacer operativas en el proceso penal las teorías psicológicas del dolo se asumen exigencias de
certeza absoluta imposibles de aportar no sólo la Psicología o las máximas de experiencia,
sino también por las ciencias empíricas ‘puras’; por último, porque parte de una comprensión
maximalista de las exigencias requeridas por el derecho a la presunción de inocencia respecto
del estándar de prueba legítimo que no se aviene con el contenido real de este derecho 202.

_______________________________________________

201
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1465.

202
Ibid. p. 1469.
102

MANZANO, assim, prossegue sua explanação quanto à possibilidade de se provar o


dolo, mantendo o conceito do mesmo com o caráter psicológico, junto do normativo. A autora
ensina que, ao contrário do cientista, para quem interessa o conhecimento dos fatos para
formular leis gerais como explicação dos acontecimentos repetíveis de forma indefinida, ao
juiz interessam os fatos irrepetíveis do passado para determinar se efetivamente se sucederam.
Costuma-se afirmar, prossegue a autora, que o fato a provar se assemelha ao fato histórico e
que a determinação dos fatos no processo é uma atividade semelhante àquela praticada pelo
historiador:
La verdad procesal sería, pues, un tipo particular de verdad histórica y la forma de
aproximación a los hechos del historiador, dado que no cabe un conocimiento directo –la
observación– de hechos pasados. En la medida en que el hecho cuya existencia se pretende
probar es un hecho del pasado ya finalizado –pretérito–, y dado que solo se pueden observar
los hechos cuando están sucediendo, el conocimiento judicial de los hechos nunca puede
acudir a la observación para su comprobación y siempre constituye una forma de acceso
indirecto a los hechos203.
Realmente, o conhecimento judicial dos fatos é sempre mediato, indireto, pois se tenta,
a partir do presente e com fatos do mesmo, analisar um fato do passado. Faz-se, no processo,
um raciocínio indutivo:
Es un tipo de razonamiento inductivo, diferente de la inducción en sentido estricto, pues si
ésta implica una generalización, es decir, un proceso de razonamiento que va de lo particular
–hechos concretos– a lo general –regla– en la inducción procesal se opera más bien a la
inversa, aplicando reglas generales –máximas– a las pruebas para concluir los hechos
probados. Se habla de razonamiento inductivo en el sentido amplio en el que la inducción se
equipara a todo razonamiento en el que la conclusión a partir de ciertas premisas consideradas
verdaderas no tiene carácter necesario, sino meramente probable. Esto es, la verdad de las
premisas no garantiza la verdad de la conclusión alcanzada pues ésta última siempre implica
un salto respecto del conocimiento aportado por las premisas. Esto significa que en la
aplicación de las inferencias inductivas siempre hay un riesgo de error inevitable, pues deriva
de su propia estructura. También se denomina a este tipo de razonamiento ‘hacia atrás’
abducción o retroducción, pues difiere tanto de la deducción –porque no establece relaciones
de necesidad– como de la inducción en sentido estricto –porque la conexión no parte de lo
particular y conduce a lo general, sino que se inicia en lo particular y concluye en lo
particular204.
Nessa esteira, a prova de qualquer fato, seja subjetivo, seja objetivo, no processo
penal, depende de um raciocínio indutivo em sentido amplo, que está fadado a ter falhas. Ou
seja, não há certeza absoluta na prova em processo penal, nem, a rigor, provas diretas. Por
óbvio, se o juiz tiver acesso direto às provas, como observador, no momento do fato, ele perde

_______________________________________________

203
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1469-1470.

204
Ibid. p. 1470-1471.
103

a imparcialidade necessária à sua função, e passa a ser testemunha. Ele necessita, portanto,
não ter presenciado os fatos e terá acesso indireto ao mesmo.
Por seu turno, as chamadas provas diretas no processo penal também dependem que se
realizem conexões em raciocínio indutivo, a fim de se concluir pela sua conexão ao fato
passado. A diferença entre o raciocínio indutivo realizado na compreensão das provas diretas
e aquele realizado na compreensão das provas indiretas é que nestas o número de conexões
será, em regra, maior, mas o conteúdo dessas conexões que levam à prova plena do fato não
resta garantido, de modo que, “la prueba indiciaria aporta, normalmente, un grado de
probabilidad lógica menor que la prueba directa, pues, de alguna manera, cada eslabón
inductivo adiciona una posibilidad nueva de error”.
FERRAJOLI distingue de outra maneira as provas dos indícios. Sua lição é valiosa é
merece ser transcrita:
Aos fins de nossa análise, é oportuno, antes de tudo, distinguir os fatos e os dados
probatórios, segundo sejam experimentados direta ou indiretamente, isto é, segundo
permitam mais ou menos indiretamente a indução do fato-delito. Afastando-me da linguagem
corrente, proponho chamar de prova o fato probatório experimentado no presente, do qual se
infere o delito ou outro fato do passado, e de indício o fato provado do passado, do qual se
infere o delito ou outro fato do passado que, por sua vez, tenha o valor de um indício. (...)
Nossa distinção entre provas e indícios, que na imprecisa terminologia corrente poderíamos
expressar em grandes traços com a diferenciação entre “meios de prova” e “conteúdos
probatórios”, é essencial para situar corretamente a questão da espécie de probabilidade que
permite, a propósito de uma série mais ou menos complexa de premissas probatórias e
indiciárias, falar de “prova” da conclusão de uma indução judicial. Em primeiro lugar, serve
para esclarecer que, acerca do delito, as provas coletadas em um processo não são quase
nunca provas diretas, mas quase sempre indiretas, quer dizer, provas de indícios, por sua vez,
diretos ou indiretos: ‘probabilidades de probabilidades’, como escreveu Francesco Maria
Pagano (...). Por outra parte, as provas ao consistirem de fatos do presente, são sempre objeto
de experiência direta; não se pode dizer outro tanto dos indícios, que consistem sempre de
fatos do passado. Os indícios são, em suma, mais diretos que as provas no que toca à hipótese
explicativa final, mas as provas são mais diretas do que os indícios no que toca à experiência
probatória inicial.205.
O caráter provável da verdade processual (não há certeza, mas sim probabilidade), na
visão de MANZANO, a converte de forma inevitável em falível, mas isso não retiraria do
processo penal seu caráter racional:
Si todo lo expuesto es correcto, si la calidad epistemológica del tipo de verdad que se alcanza
en el proceso es siempre la misma, es una verdad probable y no absoluta, entonces la misma
razón que sustenta el rechazo de la inclusión en el silogismo probatorio de la reglas de la
Psicología u otras reglas de experiencia, esto es, no aportar seguridad sino solo probabilidad,
operaría como fundamento para negar la racionalidad y legitimidad del propio proceso

_______________________________________________

205
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 106-107.
104

probatorio, pues el riesgo de condena de un inocente deriva de la estructura misma del


razonamiento y método del procedimiento jurídico probatorio. Si en el proceso penal siempre
se aventuran hipótesis de explicación de hechos concretos – pretéritos – a partir de otros
hechos y de una regla general sobre esa clase de hechos que se aplica de forma inductiva,
entonces nunca se excluirá la duda, ni, por tanto, el riesgo de condena de un inocente. […]
Expresado de otra manera: si la imposibilidad de alcanzar certeza respecto de los estados
psicológicos conduce a la normativización radical del dolo, entonces también debería
concluirse que la apreciación de la concurrencia de cualquier hecho en el proceso –otros
elementos subjetivos, empezando por la voluntariedad de la acción, los elementos objetivos
del delito así como de la intervención del acusado en los hechos juzgados– constituye una
tarea de pura adscripción normativa, de modo que los enunciados fácticos – la declaración de
hechos probados – no tendrían el sentido de corresponder a la realidad extraprocesal a la que
se refieren. Más aún, como afirma González Lagier 206, con razón, si el argumento se toma en
serio y se generalizara si se exige certeza absoluta como requisito de racionalidad “o bien
tendríamos que admitir que todo el conocimiento empírico depende de atribuciones
normativas (porque la falta de certeza absoluta no sólo afecta a nuestro conocimiento de los
estados mentales internos, sino a todo lo conocimiento), lo cual es absurdo; o bien se restringe
el alcance del argumento a los hechos psicológicos, lo cual parece injustificado, porque
entonces se exige una certeza mayor sobre ellos que sobre los aspectos externos de la
conducta”.207.
Para MANZANO, como visto, é possível provar objetivamente fenômenos mentais, em
que pese a falibilidade da verdade processual construída mediante a apreensão das provas
indiretas. No entanto, essa falibilidade da verdade processual é inerente ao próprio processo
penal como um todo, estando presente também na análise das provas – diretas e indiretas –
dos fenômenos objetivos. Para a autora, a necessidade de se utilizar a prova indiciária na
constatação da ocorrência do dolo não inviabiliza sua prova, mas tão-somente exige do juiz
um maior esforço argumentativo, a fim de restar demonstrado que as dúvidas razoáveis foram
descartadas. Dúvidas sempre existirão. O relevante é que a condenação esteja baseada em
uma argumentação que tenha conseguido dirimir as dúvidas razoáveis.
Tem razão MANZANO em sua crítica quanto à exacerbação do alcance da presunção de
inocência, para permitir que qualquer dúvida sujeite o juiz a observação do in dubio pro reo.
O próprio FERRAJOLI alerta:
Também em sede judicial, portanto, os únicos critérios de decisão afetam a probabilidade
subjetiva. Se assim não fosse, o princípio in dubio pro reo, entendida a dúvida no sentido de
incerteza objetiva, jamais permitiria a condenação, dado que qualquer hipótese é, por sua
natureza, provável e sempre será possível, qualquer que seja o grau de probabilidade ou de
confirmação, que seja objetivamente falsa. O que é possível e, assim se poderá pretender,
como se disse no parágrafo 8, é apenas a falta de dúvida ou certeza subjetiva sobre os
pressupostos da condenação, tal como pode ser assegurada por critérios de decisão igualmente

_______________________________________________

206
Para uma melhor compreensão dos argumentos de LAGIER, conferir LAGIER, Daniel González. La prueba de la intención
y la explicación de la acción. Isegoría, n. 35, p. 173-192, jul/dic. 2006.

207
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1473-1474.
105

subjetivos. Estes critérios são os indicados no parágrafo 5 da coerência das hipóteses


acusatórias com os dados probatórios e de sua aceitabilidade justificada por uma capacidade
explicativa maior que a possuída por outras.208.
No que concerne à possibilidade de se provar objetivamente fenômenos subjetivos, em
sentido oposto ao esposado por MANZANO, para KLEINSCHROD, era impossível provar-se
objetivamente o dolo. Em que pese a aceitação que os métodos da praesumptio doli e do
dolus ex re obteve ao longo dos séculos, KLEINSCHROD, já no século XVIII, rechaçava tanto
um método, quanto o outro. Para ele, a proposta de GROLMAN a favor da praesumptio doli
devia ser rechaçada e “um assim chamado dolus ex re... resulta impensável em assuntos
penais”209.
Para KLEINSCHROD, um crime só poderia ser plenamente demonstrado quando todos
os componentes essenciais do mesmo, bem como o dolo ou a negligência do agente, se
tornassem plenamente provados210. Mas a plena prova do dolo, para KLEINSCHROD, não
poderia se dar por meio da observação externa dos fatos: “somente se comprova plenamente
o dolo por meio da confissão do acusado”211, afirmava o autor.
Para o professor da Universidade Würzburg, a confissão era a única maneira de se
provar plenamente o dolo, porque a vontade, disposição interna da alma, somente poderia ser
conhecida externamente com a contribuição de quem a vivenciou:
A propósito, no que diz respeito à prova do dolo mau, não há nenhuma ação, nenhuma
circunstância, em que se verifique seguramente a existência do dolo. Até a pior ação pode se
criar por falta de consciência, por ignorância etc. A partir das circunstâncias de um fato, não
se aduz nenhuma suposição sobre o dolo do autor. A prova integral do dolo precisa assim
nascer antes da confissão do criminoso. Pode o autor confessar seu dolo assentado à corte ou a
pessoas que, posteriormente, sejam interrogadas a respeito pelo juiz; Ou bem reconhecendo o
malfeitor sua decisão criminosa em um documento pertinentemente analisado pelo juiz e
considerado autêntico. O dolo sempre deve demonstrar-se a partir do sujeito que confessa,
porque se encontra na vontade e na disposição interna de sua alma e, portanto, somente pode

_______________________________________________

208
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. p. 120.

209
A afirmação se encontra na seguinte passagem: „Ein sogenannter dolus ex re, wenn er auch wirklich existiren sollte, läßt
sich in peinlichen Sachen gewiß nicht gedenken“. KLEINSCHROD, Gallus Aloys Kaspar. Systematische Entwickelung der
Grundbegriffe und Grundwahrheiten des peinlichen Rechts nach der Natur der Sache und der positiven
Gezetzgebung. v. 1. Erlangen: Johann Jakob Palm, 1799. p. 61.

210
Ҥ1588. Ein Verbrechen ist nur dann vollkommen bewiesen, wenn sowohl alle wesentliche Bestandtheile desselben, als
auch der bösliche oder die Fahrlässigkeit des Urhebers vollkommen hergestellt sind.”. Id. Entwurf eines peinlichen
Gesetzbuches für die kurpfalzbaierischen Staaten. München: Franz Seraph Hübschmann, 1802. p. 255.

211
Tradução nossa do excerto: “§1589. Der bösliche Vorsatz kann nur durch das Gestandniß des Verbrechers vollkommen
bewiesen werden.”. KLEINSCHROD, loc. cit.
106

conhecer-se por meio da explicação do que ocorreu em seu interior, o que era objeto de suas
intenções e de como tomou a decisão.212
KLEINSCHROD, com sensibilidade, percebeu que, de fato, a constatação do dolo por
mera “observação externa”, na verdade, não existe, na medida em que a consciência e a
vontade ocorrem internamente: são verdadeiras experiências pessoais. Depende o julgador,
portanto, para a plena comprovação da ocorrência do dolo, que a própria pessoa que o
vivenciou/experimentou possa relatar o ocorrido, tal como na psicanálise. KLEINSCHROD,
assim, entende que a prova do dolo é possível, desde que o método de comprovação seja
subjetivo.
No entanto, KLEINSCHROD estava ciente do problema que sua conclusão trazia ao
processo penal: ao afirmar que somente a confissão comprovaria o dolo, sabia que estaria
diante de uma prova extremamente falível. Primeiro, porque nem sempre o réu assumirá
claramente a consciência e a vontade de realizar o tipo objetivo; segundo, porque é muito
comum que a confissão seja falsa. O autor, então, afirma que “não é necessário que o acusado
confesse o dolo literalmente: é suficiente que ele admita que percebeu a ilegalidade de seu
ato, e que o fizera com consciência”213. E a fim de cercar de segurança jurídica suas
conclusões, afirma: “Apenas a confissão judicial não pode provar o crime e seu autor
completamente”214.

_______________________________________________

212
Tradução nossa do trecho: „Was übrigens den Beweis des böslichen Vorsatzes betrift; so giebt es keine Handlung, keine
Umstände, welche die Existenz des Dolus nothwendig und gewiß herstellen. Auch die schlimmste Handlung kann aus
Mangel an Bewußtseyn, aus Unwissenheit usw entstanden seyn. Aus den Umständen einer That läßt sich nichts als
Vermuthung, daß deren Urheber dolos sey, herleiten; der volle Beweis des Dolus muß also erst durch das Geständniß des
Verbrechers entstehen, es mag nun dieser seinen gesaßten Vorsatz dem Gerichte oder Personen eingestehen, die nachher vom
Richter darüber vernommen werden. Oder der Missethäter gesteht seinen Entschluß in einer Urkunde, die auf gehörige Art
vom Richter untersucht und wahr besunden wird. Jmmer muß der Dolus aus dem Bekenntnisse selbst dargethan werden, da
er in dem Willen und der innern Bestimmung seiner Seele liegt, also nur durch eine geschehene Erklärung, was in seinem
Innern vorgieng, wohin seine Gedanken gerichtet, wie sein Entschluß gefaßt war, in Erfahrung kann gebracht werden“.
KLEINSCHROD, Gallus Aloys Kaspar. Systematische Entwickelung der Grundbegriffe und Grundwahrheiten des
peinlichen Rechts nach der Natur der Sache und der positiven Gezetzgebung. p. 60-62.

213
Tradução nossa do trecho: „§1590. Es ist aber nicht nothwendig, daß der Beschuldigte den böslichen Vorsatz wörtlich
einbekennt: es ist vielmehr genug, daß er gesteht, daß er die Gesetzwidrigkeit seiner That eingesehen, und sie mit
Bewußtseyn vorgenommen habe“. KLEINSCHROD, Gallus Aloys Kaspar. Entwurf eines peinlichen Gesetzbuches für die
kurpfalzbaierischen Staaten. p. 255.

214
Tradução nossa do trecho: „§1600. Nur das gerichtliche Geständniß kann das Verbrechen und dessen Thäter vollkommen
beweisen“. Ibid. p. 257.
107

Sustentava, pois, KLEINSCHROD que a plena prova do dolo somente poderia alcançar-
se com a confissão do autor, podendo confessar-se o dolo ante o Tribunal ou perante outras
pessoas que mais tarde fossem interrogadas a respeito pelo juiz. De toda sorte, o problema de
se basear a condenação na confissão, tão sensível quanto o problema de se provar por
indícios, permanece. Conforme bem analisado por HRUSCHKA, as falsas confissões não
somente podem ser imaginadas, como acontecem na prática e, “por tanto, una confesión no es
nada más que um ‘simple indicio’ de que quien confiesa ha cometido el hecho
dolosamente”215.
Em uma terceira visão, HRUSCHKA, defende que, na verdade, o dolo não deve ser
encarado como um fato a ser provado. Além disso, é defensor de duas opiniões que entram
em confronto tanto com a posição doutrinária de MANZANO, quanto com a posição de
KLEINSCHROD. Explicar-se-ão, em primeiro lugar, as duas opiniões conflitantes. Depois,
partiremos à análise da principal tese de HRUSCHKA.
Para HRUSCHKA, a ideia de que somente a confissão sirva para provar o dolo é
duvidosa, no que discorda de KLEINSCHROD. Depois, acredita que indícios não sejam
suficientes para provar o dolo, o que claramente contraria a ideia esposada por MANZANO
quanto à possibilidade de se admitir as provas indiciárias:
Si se relativiza la dudosa idea de que las confesiones y nada como ellas resulta apropiado para
alcanzar la ‘plena prueba’ del dolo, se advierte entonces hasta qué punto es discutible que el
dolo sea accesible a una prueba, es decir, el dolo pueda ser o no probado. Si partimos de que
las confesiones son solo indicios –simples indicios– de la existencia de dolo, las
circunstancias ‘externas’ del hecho podrán ser también tales indicios, pero ninguno de ellos
será suficiente para el dolo, plateándose entonces la pregunta de cómo una acumulación de
indicios insuficientes puede aportar la ‘prueba’ del dolo. Al respecto puede citarse una frase
que no es precisamente reciente: ‘dolus vere probari non potest, cum in animo consistat’, es
decir, ‘el dolo no puede probarse realmente porque se trata de un fenómeno espiritual’, decía
ya Marcardi, por no citar a otros juristas que desde siempre han cuestionado la posibilidad de
probar el dolo. Los simples indicios no dejan de ser simples indicios por mucho que se
acumulen. Por esta razón la inferencia del dolo a partir de una cantidad suficiente de indicios
–siempre que el término ‘suficiente’ pueda concretarse– no puede concebirse como un
procedimiento inductivo y justificarse como tal. Ello lo impide la evidente heterogeneidad de
los indicios –confesión, por un lado, circunstancias ‘externas’, por otro– y también la
singularidad e irrepetibilidad de cada caso concreto en que el conocimiento del autor es
deducido a partir de la confesión y de circunstancias ‘externas’.216

_______________________________________________

215
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 193.

216
Ibid. p. 194. [grifos nossos]
108

A questão da acumulação de indícios ser ou não suficiente para a prova do dolo


perpassa por uma análise quanto ao valor dos indícios como meio de prova. No direito
processual civil, não é defeso ao juiz condenar com base em prova indiciária, desde que a
fundamentação da sentença seja clara e se demonstre o caminho trilhado pelo julgador para
alcançar aquela conclusão:
Nos casos em que tenha havido, no processo, produção das chamadas provas indiciárias ganha
ainda maior relevo a necessidade de justificação que se impõe ao julgador, na medida em que
esse tipo de prova, como se viu no capítulo relativo à teoria geral das provas, é dirigido à
demonstração de fatos secundários (indícios) que apontam para a existência ou inexistência de
um fato principal, assim entendido aquele cuja ocorrência, efetivamente, se pretende
demonstrar. A conclusão acerca da existência, ou não, desse fato principal decorre de
atividade intelectual do julgador (presunção), a partir da observação do que normalmente
acontece (regras de experiência). Importante, assim, que o magistrado exponha o caminho
trilhado para chegar à conclusão acerca do fato principal, baseando-o nos elementos
indiciários, a fim de que se possa controlar essa sua atividade.217.
É verdade que o sistema que vigora em ambos (direto processual penal e direito
processual civil) é o mesmo – é o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão
racional. Nesse sistema:
Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor absoluto. Se é certo que o
Juiz ficará adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica
subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, por meio delas, a verdade material.
Nunca é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho de
opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O Juiz está livre de preconceitos legais na
aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não está
dispensado de motivar sua sentença218.
O livre convencimento motivado é um sistema que garante a fundamentação das
decisões judiciais. Nele, não existem limites e regras abstratas de valoração (como no sistema
da prova tarifada ou sistema legal de provas), nem a possibilidade de o juiz formar sua
convicção sem fundamentá-la, como no sistema da íntima convicção (que, no Brasil, ainda
vigora no Tribunal do Júri, em relação aos jurados). O artigo 155 do Código de Processo
Penal efetivamente adota o sistema do livre convencimento motivado ao estabelecer que “o
juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial

_______________________________________________

217
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. v. 2. 5. ed.
Salvador: JusPODIVM, 2010. p. 293.

218
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 3. 29. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 245.
109

[...]”219. Como, nesse sistema, todas as provas são relativas e nenhuma prova tem maior
relevância que a outra (nem mesmo as provas técnicas)220, veremos no capítulo respectivo à
análise jurisprudencial que a jurisprudência admite a utilização da prova indiciária, por vezes,
como meio de prova apropriado para fundamentar a condenação. A doutrina processualista
penal majoritariamente aceita que o dolo seja provado por meio de provas indiciárias, com
base na impossibilidade de se provar materialmente os fenômenos mentais. Daí a perfeita
observação de MANZANO sobre a forma como a doutrina tradicionalmente tem provado o
dolo:
La doctrina mayoritaria, defensora tradicionalmente de una teoría psicológica del dolo, ha
partido de que ante la imposible percepción externa de los hechos psicológicos o subjetivos,
los elementos del dolo, se definan como conocimiento, representación, previsión, voluntad,
intención, o aceptación, sólo puede ser probados mediante indicios. La afirmación de que los
hechos internos son inaccesibles a la observación directa y a los métodos de verificación de
las ciencias experimentales, ampliamente aceptada, se complementa con la admisión de la
prueba de indicios como método de determinación procesal de dichos hechos internos.221
EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA aceita a condenação com base em indícios, quando se
trate da prova do dolo. Sobre o assunto, cabe transcrever os ensinamentos do processualista:
Na verdade, o indício mencionado no art. 239 do CPP222 não chega a ser propriamente um
meio de prova. Trata-se, antes disso, da utilização de um raciocínio dedutivo, para, a partir da
valoração da prova de um fato ou de uma circunstância, chegar-se à conclusão da existência
de um outro ou de uma outra. Com efeito, pelo indício, afirma-se a existência do
conhecimento de uma circunstância do fato delituoso, por meio de um processo dedutivo cujo
objeto é a prova da existência de outro fato. Parte-se, então, para um juízo de lógica dedutiva
para a valoração de circunstâncias que estejam relacionadas com o fato em apuração.
A prova indiciária, ou prova por indícios, terá a sua eficiência probatória condicionada à
natureza do fato ou da circunstância que por meio dela (prova indiciária) se pretender
comprovar. Por exemplo, tratando-se de prova do dolo ou da culpa, ou dos demais
elementos subjetivos do tipo, que se situam no mundo das ideias e das intenções, a prova
por indícios será de grande valia.
Efetivamente, não há como demonstrar, como prova material, o que não pode ser
materializado. Quem, conscientemente, desfere uma facada em outrem, tanto pode estar
querendo produzir o resultado morte como poderá estar pretendendo abater
temporariamente o adversário, em meio a uma briga ou tumulto. O elemento subjetivo
da conduta somente poderá ser aferido por meio da constatação de todas as

_______________________________________________

219
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas
cautelares, não repetíveis e antecipadas. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941.

220
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 562.

221
MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza normativa del dolo. p. 1459-1460.

222
Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução,
concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro
de 1941.
110

circunstâncias que envolvem o fato, a partir das quais será possível se chegar a alguma
conclusão. E esta somente será obtida, quando possível, pela via do processo dedutivo,
com base nos elementos fornecidos pelas regras da experiência comum, informadas pelo
que ordinariamente acontece em situações semelhantes.
Quando, ao contrário, pretender-se, com os indícios, demonstrar fatos ou circunstâncias que
podem normalmente se reduzir à prova material, tais como a autoria, e sobretudo correndo o
risco de ser redundante, a materialidade, o valor probatório dos indícios haverá de ser muito
reduzido, quando nenhum.
Nesse campo, é bom lembrar que o próprio Código de Processo Penal não faz referência
expressa a fatos, mas, sim, a circunstâncias, com o que não se deve aceitar a prova da
existência do crime ou da autoria por meio de simples provas indiciárias, que são
circunstâncias por excelência. Nesses casos, elas deverão ser consideradas o que
verdadeiramente são: indícios.
Como dissemos anteriormente, os indícios não se qualificam, a rigor, como meio de prova;
nada obstante, apresentam ou podem apresentar a mesma consequência, no que diz respeito à
valoração judicial.
Tais processos dedutivos configuram verdadeiras presunções feitas pelo julgador, diante
da ausência de prova material em sentido contrário, sendo perfeitamente válidas enquanto
meio de conhecimento de determinado fato submetido à apreciação jurisdicional.223
Em sentido oposto, AURY LOPES JR. não admite a condenação criminal com base em
indícios. Segundo o autor, não há que se confundir indícios com provas (ainda que toda prova
seja um indício do que ocorreu). O indício é uma “prova menor”, dotada de um “menor nível
de verossimilhança”224. Para AURY LOPES JR., “ninguém pode ser condenado a partir de
meros indícios, senão que a presunção de inocência exige prova robusta para um decreto
condenatório”:
“Se os indícios de autoria justificam uma prisão cautelar (na visão do senso comum teórico,
com a qual não concordamos) ou um sequestro de bens, pois a cognição é sumária e limitada
ao fumus commissi delcti, jamais legitimam uma sentença penal condenatória”.225.

Em certa medida, HRUSCHKA concorda com o posicionamento majoritário dos


processualistas, mas, para chegar até esse destino, percorre outro caminho. Passemos a
analisar a posição de HRUSCHKA, quanto à própria natureza do dolo. Para o autor, o problema
central está em considerar que o dolo seja um fato a ser provado:
Los problemas se sitúan en un nivel más profundo, concretamente en la premisa inicialmente
formulada según la cual el dolo – incluido el ‘componente’ que aquí interesa, esto es, el
conocimiento de las ‘circunstancias externas’– es un hecho. Solo si abandonamos esta
premisa por su falta de fundamentación podremos enfrentarnos a los auténticos problemas.
Para ello, debemos abandonar el presupuesto según el cual el dolo o sus ‘componentes’ son
hechos relevantes para la decisión o, incluso, hechos en los que concurre un elemento legal

_______________________________________________

223
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. p. 441-442. [Grifos nossos em negrito; grifos, em itálico, no
original]

224
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. p. 700.

225
Ibid. p. 701.
111

del hecho punible. Lograrlo nos resultará más sencillo si pensamos en que los hechos [Taten]
dolosos no ‘existen’ en tanto que hechos dolosos en el mismo sentido de la expresión ‘existir’
aplicable a los hechos [Tatsachen] ‘externos’. Tales hechos ‘existen’ en tan escasa medida
como ‘existe’ la voluntad o la libertad humana, las acciones, la responsabilidad o la
culpabilidad. Nos resultará incluso más sencillo entenderlo si pensamos que ningún científico
natural como tal encontraría tales objetos. En la terminología del Wittgenstein tardío, la
libertad, las acciones, la responsabilidad, la culpabilidad e incluso el dolo no aparecen en el
juego del lenguaje de los científicos de la naturaleza. Por tanto, no podemos tratarlos como
hechos y tranquilizarnos pensando en que se trata simplemente de hechos especiales, es decir,
de hechos ‘internos’.226.
HRUSCHKA entende que o dolo, na verdade, tem natureza puramente normativa. Para
ele, o dolo não é um fato. Quando se pergunta o que é o dolo ou quais são seus componentes,
segundo o autor, estaríamos recaindo nos mesmos velhos erros:
El juego del lenguaje en el que aparece el dolo – igual que la libertad, las acciones, la
responsabilidad o la culpabilidad – es otro y no admite hipótesis ontológicas. (…) Como todo
lo espiritual, el dolo no se constata y se prueba, sino que se imputa. Cuando decimos que
alguien está actuando dolosamente no realizamos un juicio descriptivo, sino adscriptivo. Los
partidarios de la teoría del dolus ex re lo advirtieron, aunque resultara errónea su idea de que
el dolus ex re es una inferencia que puede probar los hechos ‘internos’ por referencia a los
‘externos’227.
Nesse sentido, na visão de HRUSCHKA, não há prova do dolo, porquanto, na verdade, o
que se tem é a imputação do mesmo, isto é, um juízo de imputação.
Por seu turno, imputação é uma linguagem, que, no Direito Penal, serve para qualificar
uma conduta de alguém, assim como o predicado qualifica o sujeito em uma oração. Explica
HRUSCHKA que imputar é atribuir juízos, quando chamamos qualquer ato de "verdadeiro" ou
"falso" ou, ainda, atribuimos elogios ou censuras, como “justo" ou "injusto". O juízo de
imputação do dolo nada mais seria, portanto, que atribuir uma censura à conduta do agente,
qualificando-a (no sentido vulgar do termo “qualificar”) como dolosa228.

_______________________________________________

226
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 195.

227
HRUSCHKA, loc. cit.

228
A explicação do autor, na íntegra: Zuschreibend ist die Sprache beispielsweise, wenn es um Lob oder Tadel geht. Freilich
nicht nur dann. Um zwei Zitate von Kant su bringen: "Zurechnung (imputatio)... ist das Urteil, wodurch jemand als Urheber
(causa libera) einer Handlung... angesehn wird."- "Wir legen jemanden etwas bei, wie ein Prädikat einem jeden Subjekte. Wir
eignen oder schreiben ihm zu, wenn es als etwas zu seiner Person Gehöriges angesehen wird, e.g, Erfindung dem Genie. Wir
rechnen es zu, wenn es simpliciter zugeeignet, d. i. als aus Freiheit entsprungen vorgestellt wird.“ Zuschreibend ist die
Sprache danach, wenn gesagt wird, Karl habe wirksam einen Vertrag abgeschlossen, er habe wirksam ein Versprechen
abgegeben, er habe wirksam seine Zustimmung erteilt. Und zuschreibend ist die Sprache auch, wenn gesagt wird, Karl sei es
vorzuwerfen, dass das Kind in den Brunnen gefallen ist. Zuschreibend Urteile bezeichnen wir weder als „wahr“ oder
„unwahr“ noch als „verbindlich“ oder „unverbindlich“, sodern – jedenfalls dann, wenn es dem betreffenden Urteiler
überhaupt zukommt, ein, wenn es um Lob und Tadel oder verwandte Äusserungen geht, als „gerecht“ oder „ungerecht“.
Wir haben in Kapitel IV gesehen, dass wir im Strafrecht sowohl eine vorschreibende als auch eine zuschreibende Sprache
sprechen, insofern es im Strafrecht einerseits um Normen geht, im Hinblick auf die die Vornahme oder Unterlassung einer
Handlung als „rechtswidrig“ oder „nicht rechtswidrig“ beurteilt wird, und andererseits um Zurechnungsregeln, die
112

Ocorre que tal posicionamento de HRUSCHKA deixa-nos ainda à míngua de um norte,


quando estamos efetivamente diante de um fato a ser julgado. O juiz, na visão de HRUSCHKA,
deve atribuir uma conduta ao agente e decidir se também atribuirá à conduta a qualidade de
dolosa ou culposa. No entanto, o juiz ainda estará diante de um fato a ser provado, e necessita
de um norte, a fim de que a atribuição da conduta dolosa ao agente como obra sua (a
imputação subjetiva) não se torne fruto de seu capricho. De toda sorte, HRUSCHKA aponta
como ferramenta de trabalho a comprovação das circunstâncias externas, que podem ser
observadas pelos sentidos objetivamente:
Con todo, el que la suposición del dolo sea un juicio de imputación en modo alguno significa
que se trate de un juicio arbitrario. La suposición fundada del dolo es tan poco arbitraria como
lo es la afirmación de que una persona cuyo rostro se enciende es porque está furiosa, o de
que un cartero que introduce las cartas en el buzón sabe lo que está haciendo. De hecho, en
ello no solo hay ninguna arbitrariedad, sino que es, en principio, nuestra única posibilidad de
imputar el dolo penalmente relevante a partir de la globalidad de las circunstancias ‘externas’.
Así, acogemos aquellos hechos que son perceptibles por los sentidos, es decir, que pueden
constatarse objetivamente –la cara roja, los movimientos del cartero, las circunstancias
‘externas’ del caso– como la expresión de algo espiritual que no puede encontrarse en el
mundo de los hechos [Welt der Tatsachen]. De este modo se pone en evidencia cuáles son, en
el ámbito del dolo, los hechos que resultan relevantes para la decisión (§ 244.2 StPO) o los
hechos en que concurre un elemento legal del hecho punible (§ 267.1 StPO). Tales hechos
solo pueden ser las circunstancias ‘externas’ del caso; ellas aportan la base que, excluyendo
toda arbitrariedad, fundamenta la imputación de un dolo que, considerado en sí mismo, ha
dejado de ser un hecho.229
Cabem aqui duas observações, quanto ao método apontado pelo autor para a
imputação do dolo. Na verdade, o que ele chama de observação pelos sentidos das
circunstâncias externas não se distancia verdadeiramente da mesma ideia carreada por
MERCEDES MANZANO. Conquanto MANZANO entenda que o dolo tenha natureza mista
(normativo e psicológico) e que, como tal, possa ser apreendido do mundo dos fatos e
provado no processo e, por outro lado, HRUSCHKA entenda que o dolo seja apenas normativo,
não sendo possível apreendê-lo na realidade, mas, apenas seja possível, por meio da
observação das circunstâncias externas, determinar evidências que direcionem o julgador a
imputar o dolo ao agente, ambos optam pelo mesmo método de observação objetiva de
circunstâncias externas ao fenômeno mental que possam demonstrar ao julgador que houve
vontade consciente.
Ora, seria por demais ingênuo acreditar ser possível meramente observar as
circunstâncias externas e, de maneira não arbitrária, decidir pela ocorrência do dolo.

angewendet werden, wenn es darum geht, ob jemand eine Tat überhaupt begangen hat oder ob sein Untätigbleiben die
Unterlassung einer Handlung ist oder ob einem Begehungs- oder Unterlassungstäter ein Vorwurf gemacht werden kann oder
nicht. HRUSCHKA, Joachim. Strafrecht nach logisch-analytischer Methode: systemat. entwickelte Fälle mit Lösungen
zum Allg. Teil. Berlin: Walter de Gruyter, 1988. p. 425-426.

229
HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. p. 196.
113

“Observar as circunstâncias externas” nada mais seria, a nosso ver, que trabalhar com a
possibilidade de provar o dolo do agente com base em indícios. Por isso mesmo HRUSCHKA, a
seu modo de ver, fala que se deve imputar “excluindo toda a arbitrariedade”; MANZANO, por
sua vez, também não deixou de lado a questão da arbitrariedade, e, utilizando-se de outra
forma de abordagem ao assunto, alerta que se deve, diante de dúvidas razoáveis, optar pela
absolvição; diante de dúvidas não razoáveis, optar-se-á pela condenação. A linguagem é
diferente, mas o intuito é o mesmo: evitar o capricho do juiz.
O próprio exemplo trazido por HRUSCHKA, todavia, dá margem à arbitrariedade. Ao
afirmar que “una persona cuyo rostro se enciende es porque está furiosa” pode não passar de
mera presunção (no sentido vulgar do termo) do julgador. O sujeito cujo rosto se ruboriza ou
“se ilumina” pode estar, por exemplo, com vergonha, ou, ainda, pode estar diante da pessoa
pela qual é apaixonado. A nosso ver, seriam necessários outros dados, outras circunstâncias
externas, para que o julgador chegasse à conclusão de que o rosto “iluminado” é “a prova do
dolo”.
O exemplo do autor pode ter sido infeliz, mas comprova nossa teoria: não há método
suficiente para a prova do dolo no Direito Penal, de modo que as decisões condenatórias, em
sua grande maioria, têm sido proferidas com base em presunções do julgador. Na falta de
dados externos, o julgador faz da presunção de culpa o próprio método, quando a regra
deveria ser a presunção de inocência. Tal constatação é comprovada pela lição de PACELLI
acima transcrita. Conforme visto, o processualista aceita como perfeitamente válidas as
presunções feitas pelo julgador com base nos indícios, enquanto meio de conhecimento de
determinado fato submetido à apreciação jurisdicional, “diante da ausência de prova material
em sentido contrário”. No caso do dolo, tal aceitação, segundo este autor, é ainda mais
natural, já que é impossível haver prova material de fenômenos mentais, nas suas palavras,
“que se situam no mundo das ideias e das intenções”230.
RAMON RAGUÉS I VALLÈS, autor de um dos mais importantes trabalhos sobre a prova
do dolo, em sua obra “El dolo y su prueba en el proceso penal”, fruto de sua tese de

_______________________________________________

230
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. p. 441-442.
114

doutorado, tenta contornar as dificuldades oferecidas por este tormentoso problema e propõe
um método. Para ele, o importante será a análise do significado social da conduta. Por meio
deste critério de atribuição do conhecimento proposto, segundo o autor, deve-se abandonar a
pesquisa dos fenômenos psicológicos, partindo-se, então, para a análise da concepção que se
tem do valor social de cada conduta, individualmente considerada. O autor não nega, todavia,
que, com esse critério de atribuição, as presunções também serão inevitáveis na imputação
do dolo:
A diferencia de las presunciones generales de dolo empleadas en otros tiempos, el sistema de
atribución del conocimiento que aquí se propugna no prejuzga un hecho antes de entrar en su
análisis. Cierto es que cuando este análisis se lleve a cabo deberán aplicarse reglas con
carácter presuntivo: cuando se abandona la búsqueda de fenómenos psicológicos y se pasa
a juzgar el dolo en función de la significación social del hecho, es evidente que detrás de
dicha significación social se ocultan determinadas presunciones asentadas en las
valoraciones sociales, de acuerdo con cuyo contenido, cuando un hecho adopta cierta
configuración externa, se entiende que su autor lo ha realizado con determinados
conocimientos. El contenido presuntivo es inevitable en todo juicio de atribución del
conocimiento que no pase por una plena reconstrucción de éste como proceso psíquico
efectivamente acaecido.231
O professor da Universitat Pompeu Fabra opta, assim, pelo caminho das presunções
sociais. A sua proposta se diferencia dos tradicionais métodos de presunção (praesumptio doli
e dolus ex re), na medida em que não traz a priori uma fórmula fechada:
en primer lugar, mientras las tradicionales presunciones de dolo reducían los criterios de
atribución a una única regla, el criterio que aquí se propone tiene en cuenta la riqueza y
variedad de los comportamientos humanos. En segundo lugar, el recurso al sentido social no
supone, a diferencia de las presunciones, que toda la carga de la prueba del tipo subjetivo se
desplace a la persona del acusado, sino una valoración global del hecho a partir de datos
objetivos previamente probados, una valoración que, en determinados casos, puede beneficiar
al acusado en cuestión.232.
Note-se que, em nosso sistema jurídico, o ônus da prova recai sobre quem acusa, de
modo que os tradicionais métodos de presunção não poderiam de maneira alguma, ainda que
pretendessem, legar ao acusado a incumbência de provar o tipo subjetivo. Esse ponto seria,
aliás, um dos motivos da inevitável falência dos métodos presuntivos de prova do dolo no
Estado Democrático de Direito. RAGUÉS I VALLÈS, por sua vez, acredita que o método por ele
proposto, apesar de utilizar-se das presunções, não traria malefícios ao acusado. A nosso ver,
qualquer presunção que baste a si mesma para sustentar conclusão previamente estabelecida,

_______________________________________________

231
RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. p. 345. [grifos nossos]

232
Ibid. p. 345-346.
115

conclusão esta oposta ao interesse do acusado, será sempre prejudicial, por se desincumbir de
provar a realidade alegada. A verdade processual não pretende ser a verdade, mas sim uma
verdade formal, que somente se legitima enquanto passível de prova e oposição. Admitir
presunções que desincumbam o acusador de provar aquilo que alega é inverter a regra da
presunção de inocência. FERRAJOLI, ao discorrer sobre as garantias processuais (necessidade
da prova, possibilidade da refutação e convicção justificada), assevera que:
A hipótese acusatória deve ser, antes de tudo, confirmada por uma pluralidade de provas ou
dados probatórios. (...) Ainda mais importante do que a necessidade da prova é a garantia do
contraditório, isto é, a possibilidade da refutação ou da contraprova. 233
Todavia, a proposta234 de RAGUÉS I VALLÈS é coerente com sua concepção de dolo.
Para ele, o dolo não possui caráter psicológico, sendo estritamente normativo. Comprovar o
sentido social da conduta dolosa ainda não comprova a realidade mesma da conduta dolosa,
mas, para o autor, tal como esposado por HRUSCHKA, a conduta dolosa não têm lugar na
realidade, sendo apenas um conceito de caráter estritamente normativo.
A grande vantagem de sua proposta, opina RAGUÉS I VALLÈS, residiria na segurança
jurídica proporcionada pelo método, pois o critério do sentido social da conduta permitiria
dotar as hipóteses de fato de soluções uniformes e previsíveis, evitando a figura da “íntima
convicção”, já que as valorações sociais transcendem a figura do juiz.
Aqui também cabe avaliar que, em nosso sistema jurídico, não tem lugar a íntima
convicção, mas sim a persuasão racional. Nesse sentido, o juiz, seja qual for o método de
prova do dolo adotado, terá por obrigação motivar a sentença. De toda sorte, somos da
opinião que o critério do sentido social da conduta dolosa não garante a uniformização da
jurisprudência, ainda mais em um país tão vasto e rico culturalmente como o Brasil. Não é
difícil imaginar as diferentes valorações sociais do dolo que poderão ocorrer, para um mesmo
fato, no interior da Região Norte, em comparação com o Distrito Federal, ou, ainda, no Rio de
Janeiro, capital, em comparação com o interior do mesmo Estado.

_______________________________________________

233
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. p. 121.

234
Em um trabalho mais recente, o autor ainda mantém seu posicionamento. RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Consideraciones
sobre la prueba del dolo. REJ - Revista de Estudios de la Justicia. n. 4. p. 13-26, 2004.
116

Haveria ainda desvantagens apontadas e rebatidas pelo próprio autor, como a questão
da evolução social e as mudanças comportamentais na sociedade. Para ele, exatamente por ser
adaptável e flexível, o critério do sentido social não ficaria alheio às mudanças de concepção
da sociedade.
RAGUÉS I VALLÈS acredita que, recorrendo ao critério do “inequívoco sentido social”,
restringe-se o emprego da sanção penal às hipóteses em que esta resulte verdadeiramente
imprescindível. Para ele, sua solução pode ser legitimada de acordo com a ideia de que todo
sujeito que pretende ser protegido pelo Direito Penal está disposto a assumir o escasso risco
de ser alguma vez condenado como agente de um delito doloso sem ter contado (desde um
ponto de vista psicológico) com os conhecimentos requeridos pelo dolo. Assim, para RAGUÉS
I VALLÈS:
Existe dolo cuando, a partir del sentido social de un hecho y de las circunstancias que lo
acompañan, puede afirmarse de modo inequívoco que un sujeto ha llevado a cabo un
comportamiento objetivamente típico atribuyéndole la concreta capacidad de realizar un tipo
penal.235.
Para nós, a proposta estritamente normativa de HRUSCHKA e de RAGUÉS I VALLÈS
desnatura a realidade mesma da consciência e da vontade como fenômenos produzidos pela
mente, e trabalha com uma hipótese irreal: uma “consciência artificial” criada (interpretada)
pelo juiz. Para HRUSCHKA, a consciência não é um fato, mas pode ser depreendida (leia-se:
presumida) de circunstâncias externas. Para RAGUÉS I VALLÈS, a consciência deve ser
ignorada como entidade real, para se analisar o fato no seu viés social, a fim de se entender
(leia-se: presumir) a ocorrência de um dolo desprovido de conteúdo psicológico, mas
carregado de valor social. Em que pese a diferença de enfoque, em ambas as abordagens, os
autores negam a realidade mesma. Ora, a consciência existe. Apesar de não podermos vê-la, a
consciência é um fenômeno real e experimentável. Não se pode encarar o dolo, tal como
propõe, HRUSCHKA, da mesma forma que trata, por exemplo, a responsabilidade. É
indubitável que a responsabilidade seja estritamente normativa e que, como instituto
normativo, não possa ser demonstrada na realidade dos fatos. Como este autor mesmo afirma,
nenhum cientista conseguirá encontrar a responsabilidade no mundo dos fatos. Por outro lado,

_______________________________________________

235
RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. p. 353.
117

como sabiamente argumenta SEARLE, negar o caráter real da consciência (e da vontade) é


negar que agora você esteja pensando, é negar o que qualquer ser humano pode experimentar
todos os dias ao acordar consciente. A responsabilidade é estritamente normativa. O dolo, por
sua vez, é normativo e também psicológico. Não podemos desnaturar o conceito do dolo,
somente porque temos dificuldade de prová-lo.
Pode parecer que a concepção normativa do dolo alinhavada por RAGUÉS I VALLÈS
seja compatível com aquela concepção de conduta esposada por JUAREZ TAVARES. Para nós,
entretanto, não se pode confundir a concepção social de conduta adotada por TAVARES com
o critério social de prova do dolo exposto por RAGUÉS I VALLÈS. De fato, a análise do
contexto social no qual está inserido o agente é fundamental para proceder-se à imputação da
conduta, mas TAVARES não dispensa, na imputação subjetiva da conduta, que constitui outra
etapa da imputação, a verificação da vontade e da consciência. Veja-se, por exemplo, que,
quando analisa o aspecto subjetivo na omissão, dentro de uma teoria perlocucionária da
conduta, TAVARES explicitamente adota ambos os elementos (volitivo e intelectivo) como
componentes necessários do conceito de dolo:
Há dolo direto, em geral, quando o sujeito incorpore a lesão de bem jurídico como seu
objetivo final (dolo direto de primeiro grau) ou como consequência necessária de sua conduta
(dolo direto de segundo grau). Para tanto, em um momento prévio, deve incluir em sua
representação do fato todas as circunstâncias que conduzam à produção do resultado, como
seu objetivo final ou como consequência necessária de seu agir. A característica básica do
dolo direto reside justamente na relação de congruência entre objetos que compõem seu
momento intelectivo e seu momento volitivo. No dolo eventual, há um déficit de congruência
desses momentos, de tal sorte que a produção do resultado já não aparece nem como seu
objetivo, nem como sua consequência necessária, mas, sim, como consequência ocasional
relacionada a circunstâncias paralelas, concomitantes ou consequentes à conduta realizada.
Em todo dolo direto, o agente identifica, com nitidez, seus objetos, tanto no plano da
consciência quanto no âmbito volitivo. No dolo eventual, falta-lhe essa nitidez na relação
entre os dois planos, ou seja, ele tem consciência do resultado, mas não o vincula diretamente
à sua vontade. No plano intelectivo, no que toca aos delitos omissivos, o sujeito sabe que sua
conduta é necessária e que, com ela, o resultado será evitado com probabilidade nos limites da
certeza. Para compor o dolo, é preciso que a relação entre a necessidade da atuação e a
verificação do resultado se veja alcançada também pela decisão do sujeito no sentido de não
agir. Ocorre que, em qualquer caso, não haverá dolo se a decisão do sujeito não corresponder
ao que fora por ele representado. A imputação subjetiva na omissão depende, pois, de uma
decisão precisa do sujeito, no sentido de que sua vontade se congregue em torno de não
realizar a conduta nessas condições, o que descarta a possibilidade de o sujeito deixar o
resultado ao acaso.236.

_______________________________________________

236
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 395.
118

Poder-se-ia argumentar que a condição fundamental de imputação da conduta dentro


de um Estado de Direito, apresentada por TAVARES, acaba por gerar as mesmas valorações
sociais propostas por RAGUÉS I VALLÈS, quando da imputação do dolo ao agente. Realmente,
JUAREZ TAVARES leciona que a condição fundamental para que uma determinada conduta seja
imposta a alguém é que essa conduta deva ser elevada à categoria de uma conduta universal:
Normalmente, em um Estado de direito, além dos requisitos decorrentes da adoção do
princípio da legalidade, tem-se estabelecido como condição fundamental para que uma
determinada conduta seja imposta a alguém a exigência de que essa conduta possa ser elevada
à categoria de uma conduta universal. Preocupado com este fundamento e se alinhando em
torno de um pensamento racional, procurou Kant estabelecer essa universalidade como
manifestação do imperativo categórico. Interpretando esse pensamento no âmbito do direito
penal, Naucke, por sua vez, quer fazer derivar essa universalidade não apenas do imperativo
categórico, que lhe conferiria, portanto, racionalidade, mas também dos fatores pelos quais se
deveria extrair o princípio do merecimento da pena retributiva. Apesar de parecer, à primeira
vista, que o pensamento de Naucke estaria a implicar uma concepção autoritária, a inserção,
feita por ele, de que apenas as condutas merecedoras da pena retributiva poderiam ser objeto
de incriminação, conduz a uma tentativa racional de limitação do poder incriminador. O
problema que se coloca nesse pensamento é mais prático do que teórico: de que modo será
possível estabelecer os fatores que caracterizariam as condutas como merecedoras da
pena retributiva? Apesar das dificuldades que se formam em torno dessa resposta, a
assertiva de Naucke se mostra significativa quando aduz que isso tem como pressuposto
indeclinável a subordinação do ato incriminador a um procedimento também adequado ao
merecimento da retribuição. A imposição de tal procedimento irá implicar,
primeiramente, que o ato incriminador tenha que passar por certas condições de
legitimidade; depois, que essas condições, como se antepõem à própria legalidade, não
podem decorrer, simplesmente, do direito positivo, mas de preceitos racionais, que
estejam acima ou fora do contexto legal. Poder-se-ia entender esse procedimento, como o
faz Naucke, sob o prisma do imperativo categórico, mas como tal imperativo é enunciado não
em função da interação, mas como projeção da própria vontade individual, que se torna
racional como cumprimento de um dever, torna-se difícil afastá-lo de sua subordinação ao
Estado. Naucke mesmo admite que, para Kant, o Estado encarnaria a condição do direito e o
direito, a condição para uma conduta correta, quer dizer, o raciocínio se encerraria dentro de
um contexto tautológico.237
Quais seriam essas condições de legitimidade do ato incriminador? Que preceitos
racionais são esses, que se antepõem à própria legalidade? Um entendimento superficial da
exposição de TAVARES poderia levar à conclusão de que o critério do “inequívoco valor
social” de RAGUÉS I VALLÈS estaria apto a realizar a tarefa de interpretação da conduta, de
modo a estabelecer fatores que a caracterizem como merecedora de pena retributiva. Ao final,
legar-se-ia ao juiz a palavra final, quanto ao que “normalmente” se entende socialmente como
merecedor de pena. Todavia, não parece ser esta a solução de TAVARES, que tece, em

_______________________________________________

237
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 201-202.
119

diferentes oportunidades, considerações valiosas, tanto para superar o racionalismo


tautológico do imperativo categórico, como para rechaçar o decisionismo judicial.
Ao equiparar a ação à omissão, por exemplo, no que concerne à superação do
racionalismo tautológico, reflete TAVARES:
A fim de poder superar tanto um subjetivismo inconsequente quanto um racionalismo
tautológico, parece que o caminho para se obter uma delimitação dos poderes do Estado
incriminador só pode ser obtido a partir de uma consideração metajurídica e, ao mesmo
tempo, interativa. A interação tem o significado de integrar o sujeito a sua própria realidade e,
com isso, desvinculá-lo da realização de deveres que não possam se adequar a essa
integração. Isto significa que o legislador não pode impor deveres de agir como bem entenda,
mas somente quando essa imposição venha subordinada a preceitos de garantia, que se
concretizem em fatores de tematização do contexto social no qual essa conduta deva ser
praticada. Os fatores de tematização tanto podem decorrer de uma tradição cultural, quanto do
próprio processo de comunicação. A tradição cultural, por sua vez, não implica uma
repartição das tarefas de cada um, conforme a sua origem etnológica ou religiosa, mas a
sedimentação de conhecimentos quanto à realidade vital, que proporcionam ao sujeito
promover uma interpretação adequada do seu contexto. Quer dizer, então, que a subordinação
do sujeito à imposição de determinada ação, em cumprimento a deveres legais, tem como
pressuposto que essa imposição, independentemente da capacidade individual ou dos fins que
a atividade concreta persiga, possa fortalecer seus vínculos de solidariedade e de
sociabilidade. Caso isso não ocorra, ou pela desnecessidade de tal conduta, ou por sua
impossibilidade, ou pela ausência de requisitos mínimos que possam fornecer ao sujeito os
objetos de referência para orientar sua conduta, ou por sua indiferença diante do contexto, ou
inocuidade, caso seja executada para evitar a lesão de bem jurídico, carece de legitimidade
identificá-la como conduta punível. A conduta deve estar subordinada, em qualquer caso, aos
fatores temáticos de validade. Não basta, assim, que o direito imponha uma conduta para
caracterizar sua omissão como punível, porque violadora de um dever de agir. Antes disso, a
conduta omissiva deve passar por todos os fatores deslegitimantes decorrentes de sua análise
nas relações vitais e seus elementos. Só depois disso é que se poderá falar de uma equiparação
da omissão à ação.238.
JUAREZ TAVARES de fato reconhece a inserção social do sujeito como elemento crucial
da imputação da própria conduta ao agente, mas, que se repise, não dispensa a vontade, nem
a consciência do conceito de dolo. Por isso, a análise do contexto social que permeava a
situação experimentada pelo agente no momento de se decidir pela conduta típica é prévia à
imputação subjetiva. Não há como confundir, pois, o entendimento de cada um dos autores.
RAGUÉS I VALLÈS quer interpretar socialmente a consciência, porque, para ele, tal fenômeno
não existe no mundo dos fatos. JUAREZ TAVARES, à luz do entendimento esposado por
SEARLE, entende que consciência e vontade são fenômenos existentes na realidade. O que se
interpreta socialmente para ele é a conduta, dentro de uma estrutura teórica voltada para o agir
comunicativo.

_______________________________________________

238
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 202.
120

Quanto ao decisionismo judicial, por sua vez, TAVARES o critica enfaticamente. Ao


discorrer sobre os critérios normativos, pelos quais se poderia, juridicamente, afirmar e,
consequentemente, legitimar a omissão como ação e, assim, atribuir-se normativamente a
alguém a responsabilidade pela não realização da ação, por força da quebra do dever de agir,
TAVARES, apesar de não estar se referindo ao dolo, critica a postura estritamente normativa
que lança ao alvedrio do julgador toda a responsabilidade, numa impossível construção da
realidade pela norma:
Independentemente, assim, de acolher-se um argumento normativo para legitimar a omissão
como forma de ação, será sempre necessário promover-se sua avaliação em face de seu
desdobramento na prática. Essa praticidade não se confunde com sua utilidade; o argumento
pode ser útil, mas absolutamente ilegítimo, quando ficar subordinado ao puro decisionismo
judicial por força de submeter sempre o empírico ao normativo. Em sequência a essa
subordinação do empírico ao normativo, conduz-se Kelsen, inclusive, a uma concepção
determinista da ordem jurídica, de tal modo que as normas de conduta conteriam, em si
mesmas, unicamente comandos, de cuja compreensão resultariam as proibições.
Diversamente do que poderia parecer, o legislador não tem o condão de alterar os
fundamentos da realidade empírica. O brocardo, sempre manejado na prática judiciária, de
que o direito pode transformar o redondo em quadrado, o vermelho no amarelo, o dia em
noite corresponde a uma fantasia, que só serve para legitimar o Estado autoritário. A norma
pode exercer grande influência na alteração do mundo empírico, mas apenas como condição
de uma atuação humana sobre seus objetos, jamais por meio de juízos predicativos abstratos.
O redondo continuará sendo redondo, assim como o vermelho será sempre vermelho e o dia
não se confundirá com a noite. Nesse aspecto, parece ter razão a assertiva de Welzel, aliás, na
linha da tradição kantiana, de que as categorias objetivas não podem ser alteradas por ato
normativo.239
Parece, portanto, que TAVARES refutaria também a negação da realidade tal como
proposto por RAGUÉS I VALLÈS e HRUSCHKA. O critério puramente normativo não tem o
condão de fazer desaparecerem a consciência e a vontade da realidade mesma.
Próximo à concepção esposada por MERCEDES MANZANO, encontra-se o entendimento
de MARIA DEL MAR DÍAZ PITA, para quem, como visto, nenhum dos elementos (cognitivo e
volitivo) deve ser dispensado do conceito de dolo. DÍAZ PITA, como vimos, rechaça um
conceito estritamente psicológico do conhecimento e considera possível provar o dolo com
base nas circunstâncias externas do fato:
En primer lugar, rechazamos un concepto estrictamente psicológico del conocimiento. Las
razones para ello se refieren, en primer término, a la inadecuación de una definición de
carácter meramente psicológico para un elemento perteneciente a la teoría del delito, pues no
podemos olvidar el componente normativo que toda esta clase de elementos comporta. Ello
no significa, por el contrario, que desechemos de plano la base psicológica del elemento
intelectivo del dolo sobre la que el mismo se asienta. Sin embargo, no podemos pasar por alto

_______________________________________________

239
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. p. 88-89.
121

lo dificultoso de una constatación empírica del mismo, por no decir su imposibilidad, desde la
perspectiva de un jurista.
Esta inaccesibilidad a la constatación empírica del suceso cognitivo desarrollado en lo más
íntimo del sujeto nos conduce de modo irremediable a la observación de aquello a lo que los
juristas sí pueden tener acceso: los datos externos, el suceso desarrollado en el mundo
exterior. (...)
Esta deducción del elemento subjetivo a partir del acontecer externo, que proponen tanto la
Doctrina como la Jurisprudencia, ha de realizarse en cada caso concreto para determinar si, en
el tema que nos ocupa, el sujeto conoció, y así poder imputar la acción realizada como dolosa.
Dado el carácter subjetivo del elemento conocimiento y dada la imposibilidad de constatación
empírica, éste deberá ser imputado al sujeto en base a los datos externos o indicadores, que sí
se prestan a este tipo de constatación. Esta imputación deberá llevarse a cabo, no obstante,
atendiendo a la aprehensión correcta de la situación por parte del sujeto.240.
A compreensão de MARIA DEL MAR DÍAZ PITA, assim, poderia ser colocada ao lado
daquela exposta por MERCEDES MANZANO, no que tange à manutenção do caráter psicológico
do dolo, isto é, sua concepção normativa do dolo é mista, porque não dispensa os caráteres
volitivo e intelectivo do dolo. Sua concepção de prova também pode ser comparada àquela
esposada por MANZANO, no que concerne à sua aceitação quanto à possibilidade de se
depreender dos acontecimentos externos os fenômenos mentais. No entanto, DÍAZ PITA não
adentra na problemática da utilização da prova indiciária como método hábil para a
condenação por crime doloso, talvez porque não pertencesse ao objeto de seu trabalho sobre o
dolo eventual a questão da prova do dolo.
Diante das dificuldades apresentadas, optamos, provisoriamente, por concordar, em
parte, com a opinião de MERCEDES MANZANO, no que tange à manutenção do caráter
psicológico no conceito de dolo. Também concordamos com MANZANO, em relação à sua
digressão quanto às dúvidas razoáveis e as dúvidas não-razoáveis. É trabalho do juiz manter-
se o tempo inteiro disposto a ter dúvidas. Tal postura garante ao acusado que ele terá um
julgamento justo, calcado na presunção de inocência. No entanto, no momento em que o juiz
deverá julgar efetivamente, para que se torne possível essa tarefa, é necessário que o
magistrado separe as dúvidas razoáveis das não-razoáveis, em um trabalho racional realizado
motivadamente nos fundamentos da sentença: trata-se do livre convencimento motivado.
Todavia, temos ressalvas no que concerne à possibilidade de provar objetivamente o
dolo. A prova do dolo é possível aos psicanalistas, devido à adoção do método subjetivo. No
entanto, ao juiz é apresentada outra ferramenta de trabalho: o método objetivo. Na verdade, a

_______________________________________________

240
DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. p. 68-69.
122

prova objetiva do dolo é permeada de presunções quanto às “circunstâncias externas” que o


circundam, de modo que a afirmação da ocorrência do dolo é, na maioria das vezes, a
condenação pela presunção de culpa, já que tal método tem prestigiado a aplicação irrestrita
de condenações com base em provas indiciárias. É o que confirmaremos no capítulo a seguir.
123

3 A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE CRÍTICA

Este capítulo dedica-se a estudar o modo como a jurisprudência brasileira aborda o


dolo. Nele, além do estudo de casos, far-se-ão breves análises quanto às possíveis falhas
encontradas na fundamentação das decisões, bem como quanto aos possíveis aspectos
subjetivos ocultos no discurso oficial, objetivista, do método de aferição do dolo.
Priorizou-se a pesquisa nos tribunais da Região Sudeste (com exceção de alguns
julgados do Sul e Nordeste), por conta da maior quantidade de material (inteiro teor)
digitalizado. Os julgados com apenas ementa disponível foram deixados em segundo plano.

3.1 A análise da tentativa de delito na jurisprudência brasileira

Há tentativa punível quando o agente empreende consciente e voluntariamente


esforços no mundo dos fatos no sentido de ter seu intento consumado, porém, no decurso
causal, algo estranho à sua vontade ocorre impossibilitando o atingimento do fim almejado –
o resultado.
O tipo objetivo não resta completo na tentativa. Por outro lado, o tipo subjetivo deve
necessariamente aparecer de modo pleno já no momento da execução do delito241. Já na
cogitatio pode haver, por certo, vontade livre e consciente do agente de empreender esforços
na consecução de um delito, que, entretanto, somente poderá ser punido, quando do
implemento efetivo da conduta criminosa. Nesta fase, a da cogitação, não há necessariamente
uma vontade completa, pela simples razão de que o agente ainda planeja o que pretende
realizar, não tendo, todavia, decidido pela resolução do fato. Ter consciência e vontade de
cometer um delito não é por si só uma situação punível, como se sabe. É preciso que o agente
dê início, ao menos, à execução do delito, pondo em prática a realização do tipo objetivo242.

_______________________________________________

241
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 866.

242
“Sólo interesa la configuración de la decisión puesta en práctica”. Ibid. p. 869.
124

Dado, todavia, início à realização do tipo objetivo, deve-se observar que o tipo
subjetivo já se encontra de modo pleno na tentativa, com o mesmo conteúdo e com a mesma
forma que serão verificados no delito doloso consumado, isso porque, quando o agente dá
início à execução do delito, já se orienta a atingir a consumação do fato.
Em tese, caso o agente queira somente tentar cometer o delito, não se pode falar em
tentativa, na medida em que a tentativa é a realização de uma conduta que tem como objetivo
final a consumação do delito. Não há, pois, um dolo de tentativa243. O elemento subjetivo da
tentativa não abarca apenas a vontade de consumar o delito, mas sim a resolução para o fato
consumado244.
Segundo JUAREZ TAVARES, “a adoção de uma resolução para o fato e não apenas do
dolo de consumação é indispensável para poder abarcar, também, os elementos subjetivos
especiais do tipo”245. Toda a resolução subjetiva do agente para o fato consumado – dolo e
elementos subjetivos especiais do tipo – já está presente no momento da tentativa. Para
JAKOBS, os dolos ou intenções que transcendem a consumação pertencem também ao aspecto
subjetivo da tentativa246.
Para ZAFFARONI, a identificação entre os dolos da tentativa e do delito consumado tem
por fundamento a natureza subjetiva comum de ambos:

_______________________________________________

243
“No puede hablarse de dolo de tentativa en el mismo sentido en que no puede decirse que la persona que se propone
cruzar a nado el río sólo tiene el fin de ahogarse antes de llegar a la otra orilla. Una estructura de acción semejante sería tan
irracional como aquellas que no le reconocen como contenido la finalidad”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2000. p. 787.

244
“O agente deve agir dolosamente, isto é, deve querer a ação e o resultado final que concretize o crime perfeito e acabado.
É necessário que o agente tenha intenção de produzir um resultado mais grave do que aquele a que vem efetivamente
conseguir. Este é o elemento subjetivo da tentativa, ao contrário dos dois anteriores, que são objetivos [Início da execução e
não consumação do crime por circunstâncias independentes da vontade do agente].

Não existe dolo especial de tentativa, diferentemente do elemento subjetivo informador do crime consumado. Não há dolo de
tentar fazer algo, de tentar realizar uma conduta delitiva. O dolo é sempre o de fazer, de realizar, de concluir uma ação
determinada. O dolo da tentativa é o mesmo do crime consumado. Quem mata age com o mesmo dolo de quem tenta matar”.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. p. 469.

245
Apontamentos de aula sobre Tentativa – Faculdade de Direito, UERJ, 2009.

246
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 866.
125

En la consumación, la tentativa deja de ser algo real porque fue sintetizada; pero en la
tentativa la perspectiva final de consumación, como proyecto, también es algo irreal
conservando sólo una identidad entre el comienzo de ejecución y el momento inmediato
anterior a la consumación, lo que no es otra cosa que afirmar que la tentativa es idéntica a sí
misma en lo objetivo tanto como en lo subjetivo. Como consecuencia de esta identidad
circunscripta a un ámbito de prohibición que se inicia en el comienzo de ejecución y se agota
antes de la consumación, este dolo tiene el mismo tratamiento que el del delito consumado, no
porque sea equivalente, sino por la común naturaleza subjetiva. De ello se sigue que la
tentativa pueda contener los mismos elementos subjetivos distintos del dolo247.
Na teoria, portanto, não há grande dificuldade em se observar que o dolo e todos os
demais elementos subjetivos já estão presentes na tentativa. Todavia, diante de um caso
concreto, a constatação do elemento subjetivo na tentativa não é atividade interpretativa tão
fácil. Note-se que, em sede processual, deve restar comprovada qualquer afirmação quanto a
um fato alegado pela acusação e acolhido como verdadeiro pelo órgão julgador. As decisões
judiciais não podem prescindir de indicar os motivos pelos quais o magistrado identificou a
ocorrência desses elementos subjetivos na tentativa. Não obstante o dever de motivar248,
muitas decisões são parcamente fundamentadas. Qualquer condenação por tentativa deve ao
menos descrever qual aspecto da conduta demonstra efetivamente ter o agente se decidido
pela consumação de um delito. Quando se trata de motivar a existência de um elemento
subjetivo especial do tipo na execução do delito não consumado, a situação precária se
agrava.
Um exemplo de condenação insatisfatoriamente motivada é a que passamos a
transcrever abaixo. No acórdão, a Turma manteve a condenação do agente pela prática do
delito de peculato-furto na forma tentada, tendo o cuidado de apontar a existência de um
determinado elemento subjetivo especial do tipo, qual seja, o especial fim de obter proveito,
sem, contudo, ao menos indicar qual aspecto da conduta descrita nos autos autorizava concluir
pela efetiva existência da vontade de obter proveito próprio – o especial fim de agir. A nosso
sentir, o órgão julgador presumiu que o agente possuía o intuito de obter proveito próprio ou

_______________________________________________

247
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. p. 788.

248
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal
Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes,
em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação.
126

alheio, pela natureza em si do delito, não tendo o devido trabalho de fundamentar essa
conclusão com apoio nos fatos:
Diante do auto de prisão em flagrante (fls. 7/11), restou-se perfeitamente caracterizada a
autoria, pois o réu narrou toda mecânica aplicada no fato criminoso. Como também a
materialidade ficou confirmada pelo auto de apresentação e apreensão (fls. 13) e pelo laudo de
exame merceológico (fls. 44/45).
[...]
É sempre oportuno esclarecer que a materialidade do delito restou inconteste; em nada
aproveitaria ao apelante o fato de não ter o crime se consumado por circunstâncias
alheias à sua vontade, caracterizado, por conseguinte, na forma tentada. A ausência de
dano patrimonial à Administração Pública não ilide a reprovabilidade da conduta que, mesmo
não consumada, prejudica o desenvolvimento regular da atividade do Estado,
consubstanciada, no caso, no atendimento à população demandante de atendimentos médicos.
[...]
Portanto, ao ser supreendido quando tentava se ausentar do nosôcomio, o apelante tinha o
dolo de subtrair a coisa com a intenção de obter proveito249.
A existência do especial fim de obter proveito (próprio ou alheio) deve ser
satisfatoriamente demonstrada, ainda que o delito tenha sido tentado, isto é, ainda que o
agente não tenha obtido êxito na subtração da res furtiva, tendo sido, no caso em tela,
surpreendido quando se ausentava com a coisa móvel. Não basta a simples suposição de que o
agente iria ter proveito. É preciso comprovar que o agente tinha, por resolução do fato
consumado, a finalidade de obter proveito próprio ou alheio com a tentativa de subtração.
Nos crimes em que há, além do dolo, um elemento subjetivo especial, a vontade do
agente deve também abarcar as finalidades ou tendências típicas, no sentido de sua obtenção,
mesmo que seja despiciendo para a incriminação que o agente as tenha de fato alcançado.
Assim é que, no exemplo do agente que destrói propositalmente a coisa segurada, para a
consumação do delito de fraude a seguro, o agente não precisa ter obtido a indenização
indevida. Todavia, para a constatação do elemento subjetivo na tentativa, a especial finalidade
de obter proveito indevido tem que estar necessariamente incluída na resolução para o fato
consumado pelo agente. Esse sempre foi o magistério de JUAREZ TAVARES:
Na tentativa devem [os elementos subjetivos do tipo] estar presentes em toda a sua extensão,
pois o que falta neste caso é simplesmente a consumação do tipo objetivo 250.

_______________________________________________

249
Acórdão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, na Apelação Criminal 200202010059718, em relação à
tentativa de peculato-furto (Art. 312, § 1º C/C ART 14, II, ambos do Código Penal). [grifamos]

250
TAVARES, Juarez. Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 440, p.
297-302, jun. 1972.
127

No mesmo sentido, afirma JESCHECK que, na tentativa, devem concorrer todos os


elementos subjetivos da correspondente figura delitiva, porque naquela somente falta a
consumação do tipo objetivo251.
No Processo nº 6.064/05, na Comarca de Carmo de Minas, no Estado de Minas Gerais,
a sentença condenatória que pesou sobre os acusados Luiz Antônio André dos Santos e Daniel
Domiciano, vulgo “Chorão”, assim motivara a responsabilidade penal pela tentativa:
Para que a conduta do agente seja punida a título de tentativa é imprescindível a conjugação
de dois elementos: o objetivo (começo da atividade que conduza diretamente à realização do
tipo) e o subjetivo (resolução para o fato).

3.1.1 A “força” do dolo

É corrente nas legislações, na doutrina e na jurisprudência o raciocínio de que quanto


mais perto a tentativa chega do resultado, maior deve ser a reprovação penal. Tal lógica assim
se fundamenta: quanto mais longe do resultado chega a tentativa, tanto menor força política e
malícia a conduta encerra e contém. Nas palavras de ZAFFARONI, tal raciocínio deixa entrever
que, na tentativa, o dolo não teve a força de remover todos os obstáculos que se opuseram à
consumação. Essa “fraqueza” do dolo, ou seja, a sua incapacidade de garantir a consumação
do delito, justifica a menor reprovação penal à conduta do agente. Nessa esteira, acordaram os
desembargadores da 5ª Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
na Apelação nº 3696/2009, com voto do desembargador relator SÉRGIO VERANI, em
29/04/2010:
A redução pela tentativa será tanto maior quanto mais longe estiver o agente da consumação
dos atos de execução.
No mesmo sentido, decidiram os desembargadores da 8ª Câmara Criminal do mesmo
Tribunal de Justiça, na Apelação nº 0047887-60-2009.8.19.0001, mediante o voto do
desembargador relator VALMIR DOS SANTOS RIBEIRO, em 07/07/2010:

_______________________________________________

251
“Beim Versuch müssen sämtliche subjektiven Tatbestandsmerkmale der betreffenden Deliktsart gegeben sein, da beim
Versuch nur die Vollendung des objektiven Tatbestands fehlt”. (Grifo no original). JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch
des Strafrechts. Allgemeiner Teil. 2. Aufl. Berlin: Duncker & Humblot, 1982. p. 239.
128

Na aplicação do percentual de redução da pena, em razão da tentativa, o que se deve ter em


mira é o "iter criminis" percorrido pelos agentes no cometimento dos crimes que lhes são
imputados.
Assim, quanto mais os agentes se aproximam da consumação do delito, menor deve ser a
fração de diminuição da pena; se impedidos no limiar, a fração de redução será maior.
Ainda como exemplo, veja-se o julgado referente à Apelação Criminal n.
70032587792, de relatoria do desembargador ODONE SANGUINÉ, do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, que, além de adotar semelhante raciocínio quanto ao iter criminis
percorrido, ao analisar a tentativa de matar à traição, considerou, por pressuposto, que o modo
escolhido pelo agente estava inserido no aspecto subjetivo da tentativa:
Com efeito, o acusado desferiu disparo de arma de fogo contra a cabeça da vítima, que pelo
impacto do disparo ficou desmaiada, retirou-a do banco do veículo onde estava sentada e
deixou-a abandonada inerte no solo em locar ermo, certamente crendo que a vítima havia
morrido. Portanto, não se tratando de tentativa inacabada, mas sim de tentativa acabada, na
qual o agente já percorrera completamente o iter criminis que, segundo sua representação, era
necessário para causar a morte da vítima, não podia mais desistir de prosseguir na execução,
tornando incabível a desistência voluntária nos termos do disposto no art. 15, do Código
Penal.
Não se cogitando, portanto, de desistência voluntária da execução, esvazia-se a tese de
ausência de dolo, pois teve o réu consciência e vontade de matar a vítima desferindo tiro
contra sua cabeça quando esta estava sentada no veículo e depois abandonou-a ou
porque acreditava que ela morrera ou para que ela terminasse de morrer sem qualquer
auxílio. Somente ficaria afastado o dolo se atingida a vítima em zona que não fosse vital ou
demonstrasse algum indício de falta de animus necandi. Mas não há qualquer adminículo
probatório neste sentido.
[...]
Denunciado que chegou muito próximo da consumação do delito, levando a vítima para
local ermo e desferindo disparo em região letal (cabeça), não tendo a vítima morrido por
circunstâncias alheias à vontade do acusado. Indiferente o fato de ter efetuado apenas um
disparo de arma de fogo, pois este, em circunstâncias normais, já seria suficiente para
provocar a morte da vítima. Redimensionamento do quantum de diminuição pela tentativa
para próximo do mínimo legal, tendo em vista o iter criminis percorrido, bem como a
delimitação recursal do Ministério Público.252 [grifamos]
Neste passo, cabe-nos sugerir um tema a ser refletido, que se refere à álea. A lógica de
que o dolo da tentativa que chegou mais perto da consumação seria mais “forte” que aquele
da tentativa não tão bem sucedida253 pode não ser sempre correta. Imaginemos a hipótese de
um sujeito x que queira matar um rival e, para tanto, utilize um dispositivo explosivo que, se
disparado, transformaria o corpo do inimigo em pó. Imaginemos, ainda, o sujeito y. Este
decide matar seu rival com uma droga laxante. Caso a bomba desarme por mero azar do
sujeito x (ou sorte da vítima), não causando qualquer lesão à vítima, será o mesmo punido por

_______________________________________________

252
À traição, porque, no caso em análise, a vítima estava dormindo no banco do carona, dentro do veículo.

253
Apesar de nenhuma tentativa ser bem sucedida, pode-se comparar as que tiveram menor ou maior proximidade com seu
intento: a consumação.
129

crime de homicídio tentado. Por sua vez, por azar do sujeito y, por razões que ele desconhece,
seu inimigo, de fato, tem complicações de saúde sérias que resultam em lesão corporal grave.
O sujeito y será punido por homicídio tentado, porém sua pena será maior que a do sujeito x,
de acordo com aquela lógica, já que o sujeito y chegou mais próximo do resultado que o
sujeito x.
Por mera questão do acaso – sorte ou azar ou álea – o dolo do sujeito x não foi
determinante para sua derrota na empreitada. Da mesma forma, no caso do sujeito y, a sorte
foi determinante – e não o dolo – na sua maior aproximação da consumação do delito.
Não desconhecemos que muitos fatos aparentemente ingênuos, fruto do acaso, a
princípio, podem, na verdade, advir de uma vontade do subconsciente, que, com base em
informações aparentemente esquecidas, estabelece objetivos ou determina condutas
intencionais:
Certas insuficiências de nosso funcionamento psíquico e certos desempenhos aparentemente
inintencionais, revelam, quando a eles se aplicam os métodos da investigação psicanalítica,
ter motivos válidos e ser determinados por motivos desconhecidos pela consciência.254
Não é imposível que após algumas sessões de análise psicanalítica, por exemplo, o
sujeito y descubra que uma vez ouvira de um conhecido uma informação de extrema
relevância sobre a saúde daquele seu inimigo que poderia levá-lo, ainda que
inconscientemente, a concluir que a utilização de um simples laxante poderia servir para gerar
grandes estragos no organismo da vítima. Ou ainda, também não seria impossível que o
sujeito x descobrisse que ele mesmo havia tirado algum elemento da bomba e que sem aquele
elemento a bomba não dispararia, mas havia esquecido de ter tirado.
Ao se analisar as duas situações logo acima descritas pelo método psicanalítico,
concluir-se-ia que o sujeito x, na verdade, não queria matar seu rival, ou, pelo menos, quis e
depois desistiu, tendo o seu subconsciente realizado esforços no sentido de fazê-lo dissuadir
da empreitada. Conscientemente, ele deu continuidade na execução, mas seu subconsciente já
havia sabotado seu intento inicial. Concluir-se-ia, ainda, que o sujeito y executou com
consciência e vontade o delito que seu subconsciente planejara racionalmente, ainda que todas

_______________________________________________

254
FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. p. 237.
130

as razões que levariam-no ao sucesso estivessem esquecidas (não estivessem no consciente).


O sujeito y, nesta nova perspectiva, realmente merece maior reprimenda penal.
Entretanto, nos tribunais, não há esse tipo de análise. As análises fáticas se resumem à
descrição do fato na peça acusatória e nas demais provas produzidas no processo, sendo a
imputação do fato ao agente realizada da maneira mais objetiva possível. No momento da
cominação da pena, não se cogitará sobre o subconsciente e seu papel na conformação do
dolo, muito menos se ouvirá falar em desproporção da pena por reconhecimento de que se
chegou mais longe ou mais perto da consumação somente em virtude do acaso.
Não trazemos qualquer proposta de solução desse dilema, afinal, já alertamos que
desejamos apenas sugerir o tema para reflexão. Na realidade, a intenção é constatar uma
inquietação que pode assim ser resumida:
Es importante advertir que todo lo que posee um significado em nuestra vida proviene de la
intervención de la suerte en tanto estos significados no surgen de nuestras elecciones sino que
se nos imponen. [...] En el mundo, tal y como lo conocemos, la suerte moldea también
nuestra voluntad llamada ‘racional’ y los contenidos que la mueven en la dirección que
sea.255
Nesse sentido, por intervenção da sorte, como visto, pode um delito extremamente
grave, já na fase da tentativa, ser punido com reprimenda menor, apenas porque o fator álea
afastou a ocorrência da consumação. Aqui, seria interessante analisar a dicção do §23 do
StGB (Strafgesetzbuch - Código Penal Alemão) que deixa, a nosso ver, uma brecha
interpretativa para que se possa punir a tentativa com a pena da consumação ou, ainda, com
pena mais branda, a depender do caso concreto. Isso porque o §23, 2 reza que “pode” a
tentativa ser punida com reprimenda menor256:
§23 A punibilidade da tentativa
(1) A tentativa de um delito grave é sempre punível; a tentativa de um delito menos grave
somente o é quando a lei estabeleça expressamente;
(2) A tentativa pode ser punida mais levemente que o fato consumado (§ 49, 1);

_______________________________________________

255
GOTI, Jaime Malamud. Suerte, moralidad y responsabilidad penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. p. 174-175.

256
§ 23 Strafbarkeit des Versuchs
(1) Der Versuch eines Verbrechens ist stets strafbar, der Versuch eines Vergehens nur dann, wenn das Gesetz es ausdrücklich
bestimmt.
(2) Der Versuch kann milder bestraft werden als die vollendete Tat (§ 49 Abs. 1).
(3) Hat der Täter aus grobem Unverstand verkannt, daß der Versuch nach der Art des Gegenstandes, an dem, oder des
Mittels, mit dem die Tat begangen werden sollte, überhaupt nicht zur Vollendung führen konnte, so kann das Gericht von
Strafe absehen oder die Strafe nach seinem Ermessen mildern (§ 49 Abs. 2).
131

(3) Se o agente, por uma grosseira falta de compreensão, desconhecia que a tentativa, devido
à natureza do objeto sobre o qual havia de cometer ou do meio com o qual havia de
cometer, não poderia em nenhuma hipótese levar à consumação, o Tribunal poderá
prescindir da pena ou atenuá-la segundo seu arbítrio. [Tradução e grifos nossos]
Diante da constatação da gravidade de um delito, ainda que terminado o iter criminis
na fase da tentativa, poderá o juiz alemão, segundo seu arbítrio, decidir por aplicar a pena sem
abrandamento, em que pese não ter havido consumação; por curiosidade, uma vez que foge
do objeto de nossa pesquisa, também poderá o juiz alemão, segundo seu arbítrio, punir o
crime impossível, desde que considere que a falta de entendimento do agente quanto à
absoluta ineficácia do meio, ou ainda, quanto à absoluta impropriedade do objeto não
justifique o afastamento da pena, mas apenas o abrandamento da mesma, embora a tentativa
não pudesse, em qualquer hipótese, levar à consumação.
Nesse ponto, a legislação brasileira mostra-se mais liberal, na medida em que não
deixa ao arbítrio do juiz decidir por punir rigorosamente qualquer tentativa: o juiz brasileiro
deve aplicar pena menor. Quanto ao crime impossível, a absoluta impropriedade do objeto ou
a absoluta ineficácia do meio também não deixam margem de escolha ao magistrado: ele
deverá absolver o réu. É o que se extrai da simples leitura dos artigos 14 e 17 do Código Penal
Brasileiro:
Art. 14 - Diz-se o crime:
Crime consumado
I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;
Tentativa
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade
do agente.
Pena de tentativa
Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena
correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.
Crime impossível
Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta
impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

3.1.2 Dolo eventual e tentativa

Caberá, entretanto, tentativa de crime por dolo eventual257, bem como por estados
passionais. Isso porque, para que se configure a tentativa, o agente tem que estar decidido a

_______________________________________________

257
“Más discutible es si cabe también la tentativa con dolo eventual respecto al resultado. En la medida en que el tipo del
respectivo delito admita la comisión dolosa eventual, cabrá también la tentativa con esta forma de imputación subjetiva,
132

executar a ação com suas consequências pretendidas, ou, pelo menos, advertidas. Como
resolução para o fato entender-se-á a consciência do agente de que o mesmo executará
voluntariamente aquilo a que se propôs, esteja sua conduta baseada na cogitação prévia,
esteja, ainda, impulsionada por um estado emocional, ou, até mesmo, por dolo eventual
conjugado a um estado emocional. Neste último caso, cabe a ressalva de que há doutrina no
sentido de que, em determinados casos, pode o estado emocional afastar a configuração do
dolo eventual258. Para ilustrar a aceitação em sede jurisprudencial da possibilidade de tentativa
por dolo eventual, colacionamos julgado de 06/08/2010, em que a 5ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça, sob a relatoria da Ministra LAURITA VAZ, no HC 176761/SP, assim se
posicionou:
Quanto ao pedido de desclassificação do delito de homicídio tentado, as evidências do caso
não autorizam a medida por esta Superior Instância. Os elementos trazidos pela impetrante
não são suficientes o bastante para evidenciar que o paciente não agiu, ao menos, com o dolo
eventual homicida. Assim, a desclassificação também é matéria afeta à análise do Tribunal do
Júri. [Grifamos]

3.1.3 Crimes culposos e crimes qualificados pelo resultado

Não cabe tentativa em crime culposo259, porque, neste caso, não há propriamente um
tipo subjetivo260. Por todos, JUAREZ TAVARES sintetiza perfeitamente o problema dogmático:

aunque lo normal en la tentativa es el dolo directo, por lo menos de segundo grado. El terrorista que pone una bomba,
admitiendo la posibilidad de alcanzar mortalmente a alguien, comete un homicidio o asesinato en grado de tentativa si
después la bomba no explosiona o, explosionando, no alcanza a nadie o hiere levemente a alguien que paseaba por allí. (...)
No existe ni una tentativa imprudente, ni una tentativa de un delito imprudente.”. MUÑOZ CONDE, Francisco;
BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 450.

258
“Um outro aspecto relevante que vem sendo tratado pela doutrina é a questão relativa à compatibilidade do dolo eventual
com estados afetivos ou emocionais do agente. Nesse particular, entende PRITTWITZ que a emoção deve ser levada em conta
na aferição da subsistência do dolo eventual. O argumento reside em que essa emoção, tal como ocorre com a chamada
“violenta emoção em decorrência de injusta provocação da vítima” (art. 121 §1°), constitui um elevado grau de excitação
psicológica que, traduzida até mesmo em sintomas de ordem física, reduz o domínio dos impulsos condicionantes da ação e
faz regredir a moderação, as lembranças e a reflexão. E conclui que, como resultado de especulações de ordem criminológica
efetuadas sobre o Código Penal, se deve sempre considerar que a dinâmica do fato emocional ocasiona uma efetiva
diminuição da atividade consciente, o que pode excluir o dolo eventual no caso concreto”. TAVARES, Juarez. Teoria do
injusto penal. p. 353-354.

259
Crimes culposos: crimes que se caracterizam pela violação de um dever de cuidado. Tecnicamente, é mais apropriado se
referir à negligência, que à expressão “culpa”. Todavia, pela força do hábito, a doutrina brasileira tem utilizado
preferencialmente “culpa”. Doutrinadores de língua hispânica, ainda, dão preferência ao substantivo “imprudência”. O
próprio JUAREZ TAVARES, ao mudar o título de sua obra “Direito Penal da Negligência” para “Teoria do Crime Culposo”,
adverte o leitor para o fato de que a mudança na denominação seguiu “mais um critério prático do que uma reformulação
técnica”. E prossegue o professor em sua explicação prefacial: “Depois de algumas indagações que me foram feitas, pude
perceber que a denominação “negligência” induzia um entendimento equivocado do livro, pensando alguns que aqui se
tratava apenas de uma das particularidades do crime culposo. Para evitar, assim, mal-entendidos, passou-se, agora, a
denominá-lo “Teoria do Crime Culposo”, indicando uma extensão maior do que pareceria sob o efeito do título anterior”. Já
no primeiro capítulo da obra, logo na primeira nota de rodapé, cuidadosamente, o renomado professor adverte que, no
decorrer daquele trabalho de fôlego, atendendo “a um preceito de ordem prática, as expressões culpa, negligência ou crime
133

[...] toda a matéria referente à consciência e vontade do agente situada como objeto de
valoração, só tem importância nos delitos dolosos. No processo de imputação dos delitos
dolosos faz-se necessário proceder-se à distinção entre tipo objetivo e tipo subjetivo,
porquanto isto facilita a delimitação da ação proibida ou mandada, assinalando com nitidez as
etapas e a intensidade da produção do perigo e da lesão ao bem jurídico. Por outro lado, a
divisão do tipo em dois segmentos só tem validade, quando se torne possível a congruência
entre suas partes subjetiva e objetiva, isto é, entre a manifestação objetiva causal e a vontade
conscientemente vinculada a um objeto de referência, tomado como objetivo do agente. A
questão da incongruência dos tipos foi, inclusive, muito bem retratada por Maurach, para o
efeito de disciplinar melhor o âmbito da tentativa e diferenciá-la do erro, mas não para
solidificar um tipo subjetivo nos delitos dolosos. A própria estrutura normativa dos delitos
culposos, que, hoje em dia, tem chamado a atenção, inclusive, para proceder-se à nova
distinção entre dolo eventual e culpa consciente com base na produção do perigo e não mais
na consciência do agente, não comporta uma subjetivação. 261.
Polêmica nunca adormecida é a configuração de tentativa nos crimes qualificados pelo
resultado. Entende-se por delito qualificado pelo resultado aquele que tem como consequência
da conduta do agente resultado mais grave que o pretendido. Para haver responsabilidade
penal do agente pelo resultado mais grave, deve o mesmo ter sido provocado ao menos por
culpa.
Ocorre que, conforme visto anteriormente, não há que se falar em tentativa nos delitos
culposos, porque, nesses, o sujeito ativo não age com vontade consciente de cometer o delito.
Não pode o agente pretender ocasionar um resultado por imprudência, vez que a imprudência
pressupõe não ter havido vontade de ocasionar o resultado, mas sim a falta de cuidado do
agente na evitação do resultado.
Há delitos dolosos, cujo resultado a título culposo agrava a pena. São os também
chamados delitos preterdolosos ou preterintencionais, nos quais o resultado total é mais grave
que o pretendido pelo agente262. É o caso, e.g., do art. 129, §2°, III, do Código Penal (crime
de lesão corporal dolosa com resultado culposo de perda ou inutilização do membro, sentido
ou função).

culposo são usadas, indistintamente, como sinônimas, ainda que, cientificamente, o termo negligência seja mais adequado a
retratar esta modalidade de conduta”. TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. p. 3.

260
“Diante das características da ação típica, ainda que se reconheça, na ação culposa, tanto o componente subjetivo,
representado pela violação volitiva entre o agente e sua execução, quanto o objetivo, expresso na causalidade, não é
recomendável a divisão do tipo em subjetivo e objetivo, como se costuma fazer com o tipo doloso. É que, neste caso, a
relação volitiva final não interessa à realidade normativa. A relevância da ação resulta, aqui, de puro juízo objetivo sobre a
conduta concretamente realizada e a violação do dever de cuidado, situando-se fora deste juízo a vinculação consciente ou
volitiva entre agente e objeto de referência. Portanto, dogmaticamente, não há razão para se incluir, nos delitos culposos, um
tipo subjetivo, ainda que nele se busque equacionar a chamada culpa consciente. Na verdade, a culpa consciente, como se
verá mais adiante, é uma questão que está vinculada diretamente à forma e ao modo como o agente se relaciona com a norma
mandamental e não com o resultado proibido.”. Ibid. p. 296-297.

261
Ibid. p. 297-298.

262
Há dolo no antecedente e culpa no consequente.
134

Há, ainda, delitos culposos, cujo resultado mais grave a título também culposo agrava
a pena. Como exemplo, temos o crime de perigo de desastre ferroviário a título culposo que
resulte – também culposamente – desastre ferroviário (art. 260, §2°, do Código Penal). Aqui,
não caberá tentativa de causar culposamente perigo de desastre ferroviário, nem tentativa de
causar culposamente o resultado desastre ferroviário.
Nos casos em que o resultado mais grave tenha sido alcançado também por dolo, não
há maiores indagações, contanto que o legislador tenha querido abarcar na mesma descrição
típica a conduta proibida, bem como tal resultado mais grave que dela adveio, devendo o
magistrado, somente, no momento da fixação da pena, partir de patamar diferente, em função
da consequência (resultado) mais ou menos grave. Trata-se de uma opção de técnica
legislativa. É perfeitamente cabível, nestas hipóteses, a tentativa.
Não caberá, contudo, tentativa de causar culposamente um resultado, em qualquer
hipótese. Porquanto os crimes culposos sejam fundamentados na falta do devido cuidado em
evitar o resultado, o tipo subjetivo é normativamente irrelevante. Não há no agente vontade
consciente de executar o tipo objetivo, com intenção de obter o fato consumado. Caso
houvesse, tratar-se-ia de um fato doloso.
Conforme visto acima, também os delitos culposos exigem do agente uma conduta
consciente, já que o sujeito ativo, para ser responsabilizado por qualquer delito, seja culposo,
seja doloso, não pode estar em estado inconsciente. De fato, a conduta do agente, mesmo nos
delitos culposos, deve ser consciente e voluntária. O agente tem consciência e vontade de
realizar os elementos ontológicos da própria conduta, mas essa consciência e essa vontade não
têm relevância para a imputação do resultado ao agente. A relevância penal da conduta
culposa reside na ausência de cuidado. Pode-se dizer que o agente se conduz com consciência
e vontade de realizar determinados atos, faltando com o devido cuidado para com
determinados deveres jurídicos descritos na norma penal.
O problema surge, portanto, diante dos delitos dolosos com resultado mais grave a
título culposo, porque, muitas vezes, o legislador prevê pena extremamente severa para
determinado resultado culposo, mas silencia quanto ao caso em que o agente quer
conscientemente causar aquele resultado. Ilustra-se: se o agente causa dolosamente uma lesão
corporal em uma mulher, resultando culposamente a perda da função reprodutora, o art. 129,
§2°, III, do Código Penal, prescreverá a pena de reclusão, de um a cinco anos. Todavia, se o
agente, com consciência e vontade de eliminar a função reprodutora da mesma mulher, mira
sobre seu ventre uma arma, mas, ao alvejar o corpo, por motivo alheio à sua vontade, não
causa nem mesmo uma lesão corporal leve, como a lei prevê o resultado mais grave somente a
135

título culposo, não poderá o agente ser responsabilizado por tentativa de alcançar dolosamente
o resultado mais grave. Ora, a previsão legal do inciso III do §2° do art. 129, CP, recai,
apenas, sobre o resultado causado por culpa, devendo o agente responder tão somente pela
tentativa de lesão corporal leve263, uma vez que, esta sim, tem previsão legal a título doloso.
Tal polêmica se acirra na hipótese de tentativa de latrocínio. Sabe-se que o resultado
morte descrito na segunda parte do §3° do art. 157 do Código Penal deve se dar, em regra, a
título culposo. Tecnicamente, o agente que, com o intuito de subtrair coisa alheia móvel, para
si ou para outrem, mediante violência, tem também o dolo de matar alguém, deveria
responder pelo art. 121, CP (homicídio), além do art. 157, CP (roubo). Trata-se de concurso
de crimes. Esse é o entendimento esposado pelo ministro CEZAR PELUSO, no julgamento do
HC 91585/RJ, do Supremo Tribunal Federal, publicado em 16/09/2008:
AÇÃO PENAL. Crime. Qualificação jurídica. Condenação por latrocínio tentado. Subtração
consumada. Não consecução da morte como resultado da violência praticada, mas apenas de
lesão corporal grave numa das vítimas. Dolo homicida reconhecido pelas instâncias
ordinárias. Impossibilidade de revisão desse juízo factual em sede de habeas corpus.
Tipificação conseqüente do fato como homicídio, na forma tentada, em concurso material
com o crime de roubo. Submissão do réu ao tribunal do júri. Limitação, porém, de pena em
caso de eventual condenação. Aplicação do princípio que proíbe a reformatio in peius. HC
concedido para esses fins. 1. Se é incontroverso ter o réu, em crime caracterizado por
subtração da coisa e violência contra a pessoa, com resultado de lesão corporal grave,
agido com animus necandi, então os fatos correspondem ao tipo de homicídio na forma
tentada, em concurso material com o de roubo. 2. Reconhecida, em habeas corpus, a
competência do tribunal do júri para rejulgar réu condenado por latrocínio tentado, mas
desclassificado para tentativa de homicídio, não pode eventual condenação impor-lhe pena
maior que a já fixada na sentença cassada. [grifamos]
Com argumentação, entretanto, diversa, em 07/04/2009, o Supremo Tribunal Federal
ratificou posicionamento no sentido de que é incabível tentativa nos delitos qualificados pelo
resultado. Com relatoria do ministro MARCO AURÉLIO, o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do recurso em Habeas Corpus de n. 94775/RJ, assim decidiu:
ROUBO QUALIFICADO PELA MORTE - TENTATIVA - INCOMPATIBILIDADE COM
A ORDEM JURÍDICA. A circunstância de o § 3º do artigo 157 do Código Penal encerrar
causa de aumento da pena e não tipo autônomo afasta a possibilidade de concluir-se no
sentido do latrocínio tentado. Considerações e precedentes.
A doutrina brasileira, majoritariamente, no entanto, em função da gravidade da pena
imposta no latrocínio (reclusão de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa), passou a

_______________________________________________

263
JAKOBS, Günther. Derecho Penal. p. 867.
136

considerar dever-se-iam também incluir as condutas dolosas que visassem ao resultado


vislumbrado pelo §3° do art.157:
A exemplo do que ocorre com a lesão coporal de natureza grave, a morte, em princípio, deve
decorrer de culpa. Contudo, normalmente, o resultado mais grave – lesão ou morte – é
produto de culpa, que complementaria a conhecida figura do crime preterdoloso – dolo no
antecedente e culpa no consequente, como a doutrina gosta de definir. Ter-se-ia, assim, o
crime patrimonial executado, dolosamente, com violência, acrescido de um resultado mais
grave, resultante de culpa, a lesão grave ou a morte da vítima. Essa, pelo menos, é a estrutura
clássica do crime preterdoloso. A regra, repetindo, é que, nesses crimes, o resultado agravador
seja sempre produto de culpa. Contudo, na hipótese em apreço, a extrema gravidade das
sanções cominadas uniu o entendimento doutrinário, que passou a admitir a possibilidade,
indistintamente, de o resultado agravador poder decorrer tanto de culpa quanto de dolo, direto
ou eventual.264. [grifos no original]
Tal orientação doutrinária fundamenta-se no princípio da proporcionalidade, que
“consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça,
equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição do excesso, direito justo
e valores afins”265. É possível perceber a grande desproporção entre as penas cominadas
somente com a simples leitura dos dispositivos legais. A pena do roubo simples (art. 157, CP)
é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa. A pena do homicídio simples (art. 121, CP) é de
reclusão, de seis a vinte anos. Se somadas, em virtude da regra do concurso material de crimes
do art. 69, CP, (roubo em concurso material com homicídio), partir-se-á de uma pena de
reclusão de 10 a 30 anos. Ocorre que, no roubo com resultado morte, a título culposo, art.
157, §3°, segunda parte, CP, a pena já parte de patamar muito elevado, o dobro, aliás, da pena
base no concurso material dos mesmos delitos: reclusão de 20 a 30 anos. Como a conduta
menos grave (resultar a morte culposamente na execução de um roubo) pode receber uma
pena mais alta que a conduta mais grave (causar a morte por dolo, na execução de um roubo)?
O princípio da proporcionalidade deve claramente ser aplicado, a fim de corrigir a
desproporção das penas266, no momento de sua aplicação. A solução encontrada pela doutrina

_______________________________________________

264
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. p. 118.

265
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. p. 120-121.

266
Sobre o princípio da proporcionalidade das penas, leciona RIPOLLÉS: O princípio da proporcionalidade, como princípio
independente dentro dos princípios da sanção, acolhe a crença de que a entidade da pena, isto é, a aflição que ela origina por
sua natureza e intensidade ou pelos efeitos sociopessoais que desencadeia, deve-se acomodar à importância da afecção ao
objeto tutelado e à intensidade da responsabilidade concorrente. (...) O princípio tem que atender, já em nível legislativo, dois
planos, que poderíamos chamar abstrato e concreto. Pelo primeiro, a entidade da pena prevista deve corresponder à
importância do bem tutelado e ao âmbito de responsabilidade estabelecido. Pelo segundo, a pena deve ser configurada de tal
137

(e adotada pela jurisprudência) foi considerar que o resultado morte do art. 157, §3°, segunda
parte, CP, também pode ser atribuído a título de dolo.
Em sintonia com essa orientação doutrinária, o Superior Tribunal de Justiça tem
admitido a tentativa nos delitos qualificados pelo resultado267:
Roubo (qualificação pelo resultado). Subtração – crime fim (consumação). Evento morte –
crime meio (tentativa). Dolo (matar). Latrocínio (tentativa).
1. Para o efeito da responsabilidade penal, é a existência do dolo – vontade livre e consciente
de praticar o fato – o demarcador das hipóteses do § 3º do art. 157. Tratando-se de elemento
subjetivo tendente ao resultado morte, a tipicidade, evidentemente, haverá de ser a tentativa
de latrocínio. 2. No caso, as indicações da sentença e do acórdão são no sentido de que o dolo
era o de matar, e não o de provocar lesão corporal, hipótese que se enquadra, dúvida não há,
na segunda porção do § 3º do art. 157 do Cód. Penal, na forma tentada. 3. Precedentes do STJ.
4. Agravo regimental ao qual se negou provimento.
Arriscamos apontar, todavia, um problema deixado de lado tanto pela doutrina, quanto
pela jurisprudência, em um caso de desproporção legal de penas extremamente parecido.
Trata-se do fato de que a soma das penas dos delitos de roubo simples (art. 157, CP) e
homicídio culposo (art. 121, § 3º, CP) resulta no patamar de pena 5 a 13 anos de reclusão 268.
Já a pena abstratamente cominada para o art. 157, §3°, segunda parte, CP, repita-se, é de
reclusão de 20 a 30 anos. Nesse sentido, continuar a admitir que o resultado morte do art. 157,
§3°, segunda parte, CP, possa ser atribuído a título culposo é também permitir uma aplicação
desproporcional de pena. A doutrina e a jurisprudência deveriam, por coerência, sustentar
que, nos casos de execução de crime de roubo em que sobrevenha o resultado morte a título
culposo, dever-se-ia aplicar a pena do art. 121, §3°, CP, somada à pena do art. 157, caput, CP,
já que o patamar de 5 a 13 anos parece mais adequado ao resultado morte a título de culpa,
que o patamar de 20 a 30 anos aplicado ao resultado morte a título doloso.
O dilema não é exclusivamente brasileiro. Roxin relata que há críticos que advogam
pela supressão dos delitos qualificados pelo resultado exatamente por conta de os marcos

maneira que permita sua acomodação às variações que a afecção ao objeto de proteção e à estrutura da responsabilidade
possam experimentar no caso concreto. É na racionalidade lógica que se deverá obter um acordo sobre quais podem ser as
pautas através das quais possamos estabelecer de modo satisfatório uma escala de proporcionalidade tanto abstrata quanto
concreta. RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. Tradução de Luiz Regis Prado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 171-172.

267
Agravo Regimental no HC 54852/RJ – processo n. 2006/0034889-1 – ministro relator Nilson Naves. Órgão Julgador:
Sexta turma. Data do Julgamento: 14/12/2006. Data da Publicação: 04/08/2008.

268
Homicídio simples
Art 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
(...)
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
138

penais serem excessivamente elevados, vulnerando os princípios da culpabilidade e da


igualdade. Para ele, contudo, essas objeções doutrinárias não obrigariam a uma total renúncia
aos delitos qualificados pelo resultado, mas sugeririam uma ampla restrição dos mesmos à
provocação temerária do resultado mais grave:
De ese modo, en los delitos cualificados por el resultado de muerte, que son los que están en
primero plano, se abarcarían como delitos base dolosos sólo acciones altamente peligrosas
para la vida que suponen un grado intermedio entre el homicidio doloso y el simplesmente
imprudente y justifican un marco penal especial; sin embargo aún serían necesarios algunos
ajustes en los marcos penales requeridos por el principio de igualdad.269

3.1.4 Conclusão parcial

No que concerne ao elemento subjetivo da tentativa, a jurisprudência apresenta o


problema de possuir decisões defeituosas, isto é, parcamente fundamentadas. Podemos
constatar que, principalmente no que tange aos elementos subjetivos especiais do delito (os
especiais fins de agir), muitas vezes, o órgão julgador pressupõe a ocorrência de determinado
elemento subjetivo, por mera inteligência da descrição do tipo objetivo, sem se atentar para os
fatos, desincumbindo-se, por conseguinte, de apontar qual elemento fatual identificou como
sendo elemento subjetivo da tentativa do réu. Todavia, a insuficiente fundamentação não
parece ser um problema exclusivo das decisões criminais.
A jurisprudência procura, em geral, abordar, ainda que sucintamente, o teor do
elemento subjetivo no que tange à “sua força”, isto é, quanto mais próximo tiver chegado da
consumação, maior será a reprimenda cominada ao réu, porque maior teria sido sua vontade e
seu esforço na consecução do resultado.
Sugerimos, neste passo, como tema a ser refletido, questão de extrema importância
que não se costuma discutir – sejam doutrinadores ou o Poder Judiciário – que é o fator sorte
na tentativa. Muitas vezes, o dolo do sujeito ativo é extremamente “forte”, ou seja, ele
implementou todas as ações necessárias e possíveis para que se obtivesse a consumação do
crime, mas, por mero “capricho do destino” –sorte, azar, álea ou acaso – não logrou êxito em

_______________________________________________

269
ROXIN, Claus. Derecho Penal. p. 331-332.
139

seu intento. Assim é que nem sempre procede a lógica utilizada pela jurisprudência de que
“quanto mais perto se chega da consumação, mais “forte” é o dolo do agente”.

3.2 A análise da consumação do delito na jurisprudência brasileira

A análise da consumação do delito na jurisprudência brasileira sofre, em geral, dos


mesmos problemas já apresentados quanto à análise dos delitos tentados. A fim de não tornar
enfadonha a apresentação dos exemplos coletados na jurisprudência, optamos por restringir a
coleta de dados ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, porquanto o material
encontrado já se mostre suficiente ao objetivo de demonstrar que a Justiça tem lançado mão
da presunção de culpa, em detrimento do Princípio da Presunção de Inocência.
Além das decisões condenatórias calcadas em presunções de dolo, outro caminho que
tem sido trilhado por alguns membros da Justiça local, como via escapatória da necessidade
de provar o dolo, em verdadeiro ânimo punitivo, é a implementação de uma ferramenta
processual vedada pela Constituição de 1988: trata-se da inversão do ônus da prova no
processo penal.
Especialmente nos crimes de receptação, tem-se observado a utilização desse
argumento inconstitucional. Diante da dificuldade de provar o dolo nos crimes de receptação,
o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro tem requerido a inversão do ônus da
prova. Trazemos à baila um trecho de uma promoção do Ministério Público local que bem
retrata o panorama:
De qualquer modo, é sempre importante lembrar que, nos crimes de receptação ocorre a
inversão do ônus probante, cabendo ao acusado demonstrar que desconhecia a origem ilícita
do veículo, uma vez que, todos os elementos probatórios se apresentam no sentido de que
havia um conhecimento prévio de tal ilicitude, como se pode observar através das declarações
prestadas pelas testemunhas.270
O membro do Parquet entende ser aceitável sua proposta de inverter o ônus da prova e
vai mais além. Para corroborar com seu entendimento, colaciona jurisprudência que comunga
da mesma opinião:

_______________________________________________

270
Autos do Processo n. 0271041 – 55.2011.8.19.0001, folhas 126 e ss. Em trâmite na 43ª Vara Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acesso aos autos gentilmente cedido pelo Excelentíssimo Juiz de Direito, Dr. Rubens
Roberto Rebello Casara, ao qual expressamos sinceros agradecimentos. [grifos no original]
140

[...] “Aliás, a pessoa que é surpreendida na posse de coisa produto de crime assume o ônus de
demonstrar que a recebeu de boa-fé, ou seja, que a recebeu sem saber ou sem desconfiar da
sua procedência ilícita, do que não se desincumbiu o agente. (...) Apelação 2008.050.00496.
Des. Moacir Pessoa de Araújo. Julgamento: 29/10/2008 – Primeira Câmara Criminal”.
Negritei.
Como se depreende da análise dos autos, em nenhum momento neste processo foi
demonstrado pelo acusado a sua boa-fé na receptação do veículo apreendido em seu poder.
Veja-se que, além da aplicação de inversão do ônus probatório, o Parquet e também o
acórdão colacionado pretendem exigir do acusado que o mesmo comprove sua boa-fé.
O problema não parece ser isolado a um específico juízo ou magistrado ou, ainda,
membro do Ministério Público. Ainda em outra câmara, por exemplo, o mesmo raciocínio foi
encontrado no acórdão referente à Apelação n. 0382588-71.2009.8.19.0001, julgada em
16/08/2011:
DES. NILZA BITAR - Julgamento: 16/08/2011 - QUARTA CAMARA CRIMINAL
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE RECEPTAÇÃO SIMPLES E DE
CORRUPÇÃO ATIVA, EM CONCURSO MATERIAL. RECURSO DEFENSIVO.
REJEIÇÃO DA PRELIMINAR, E, NO MÉRITO, DESPROVIMENTO DO APELO.
PRELIMINAR. NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE ENFRENTAMENTO
DE TESE DEFENSIVA. A versão da defesa de que teriam sido os agentes públicos a exigir
do apelante a vantagem indevida é diametralmente oposta à versão da acusação de que foi ele
a oferecer a vantagem. Dessarte, é forçoso concluir que o acolhimento da tese acusatória
implica, como corolário lógico, a rejeição da defensiva, ainda que implicitamente. Não se faz
necessário o rebatimento explícito de todos os pontos invocados pela defesa se, pelo conteúdo
da decisão devidamente fundamentada, é possível verificar que o juiz acolheu a tese oposta.
MÉRITO. JUÍZO CONDENATÓRIO. Quanto ao crime de receptação, tem-se que o apelante
foi preso em flagrante na posse da res, comprovadamente produto de crime anterior. Dá-se,
pois, a presunção de sua responsabilidade, com inversão do ônus da prova. Não tendo
logrado comprovar sua alegação de ignorância da origem ilícita do automóvel, e estando
as demais provas unívocas quanto à sua responsabilidade, acertado o juízo
condenatório. Em relação ao crime de corrupção ativa, a prova dos autos é igualmente
robusta em comprovar a materialidade do delito e sua autoria atribuída ao ora apelante.
Palavras dos policiais que devem ser cridas. Inteligência da Súmula n. 70, do TJRJ. Versão da
defesa que se encontra completamente isolada nos autos. Acerto da decisão condenatória.
CONFISSÃO ESPONTÂNEA. Atenuante que não pode ser reconhecida, pois somente a
confissão plena e eficaz realizada em juízo autoriza o reconhecimento da atenuante respectiva.
No caso em tela, em verdade, sequer há falar confissão, já que o apelante negou
veementemente a prática da corrupção ativa e, com relação à receptação, negou que tivesse
ciência da origem ilícita dos bem. Ademais, ainda que presente, não teria a atenuante o
condão de interferir no quantum de pena, já que fixada no mínimo legal (Súmula n. 231/STJ).
Recurso a que se nega provimento. [grifos em negrito nossos]
Em virtude do panorama encontrado na jurisprudência, faz-se necessário discorrer,
neste passo, quanto ao ônus da prova, também chamado em doutrina de “carga da prova”. A
carga da prova, no processo civil, incumbe àquele que alega; no direito do consumidor, em
face da sua hipossuficiência, é possível que se vislumbre a inversão do ônus da prova, nos
casos em que a parte menos favorecida pelos fatos vê-se impossibilitada de comprovar suas
alegações. Assim, por exemplo, no caso em que contende um consumidor do serviço de
telefonia móvel em face da sociedade empresária concessionária do serviço de telefonia, é
possível que o juiz de Direito proceda à inversão do ônus probatório até mesmo de ofício,
caso se constate, por exemplo, que o consumidor apenas poderá comprovar que não contratou
determinado serviço se a sociedade empresária ceder as degravações dos atendimentos
realizados por telefonemas. O consumidor, neste exemplo, não teria outra forma de provar
141

que não contratou o serviço, sendo esta sua única alegação para a obtenção do direito de
reaver o dinheiro indevidamente cobrado pela prestadora do serviço. No entanto, até mesmo
no direito do consumidor, tal possibilidade é uma exceção, na medida em que a regra é que a
carga da prova pertença aquele que alega.
Apenas por conta da referência feita nos acórdãos acima colacionados, cabe lembrar
que, no direito civil, a presunção é de boa-fé, em respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Aquele que alega má-fé de outrem tem como ônus provar sua alegação. No direito
processual penal, não poderia ser diferente, já que, da mesma forma que o direito civil, o
processo penal resta hierarquicamente submetido ao crivo da Constituição de 1988:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
No direito processual penal, a regra da carga da prova é ainda mais rígida, em
decorrência do Princípio da Presunção de Inocência: ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, CRFB/88). A regra é a
liberdade e a presunção deve ser de inocência:
A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar
absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o
réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de
silêncio – nemo tenetur se detegere). FERRAJOLI esclarece que a acusação tem a carga de
descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra-
hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a imparcialidade e a
dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver
provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não restar
suficientemente provada.
É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a
carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira
afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu
está protegido pela presunção de inocência.
Erro crasso pode ser percebido quase que diariamente nos foros brasileiros: sentenças e
acórdãos fazendo uma absurda distribuição de cargas no processo penal, tratando a questão da
mesma forma que no processo civil. Não raras as sentenças condenatórias fundamentadas na
“falta de provas da tese defensiva”, como se o réu tivesse que provar sua versão de negativa
da autoria ou da presença de uma excludente271.
Felizmente, apesar de preocupante, o panorama apresentado pela jurisprudência acima
não parece que sofrerá avanços, no que tange à sua aceitação pelos tribunais superiores. É o
que comprova o julgamento do Habeas Corpus n. 120.426/RJ, realizado pela Quinta Turma

_______________________________________________

271
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. p. 550. [grifos no original]
142

do STJ, em 13/12/2011, com acórdão do Relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze. No caso,
uma sentença absolutória em relação ao crime de peculato-apropriação (art. 312, CP) fora
reformada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, para condenar o réu, com a adoção da
inversão do ônus da prova em segunda instância:
HABEAS CORPUS. CRIME DE PECULATO-APROPRIAÇÃO. 1. CONDUTA DESCRITA
NA DENÚNCIA QUE NÃO SE SUBSUME AO TIPO PREVISTO NO ART. 312 DO
CÓDIGO PENAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO.
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE NÃO INDICADA NA PEÇA ACUSATÓRIA.
FLAGRANTE ILEGALIDADE. CONSTATAÇÃO DE PLANO. POSSIBILIDADE NA VIA
DO WRIT. 2. ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRO GRAU. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL
DE ORIGEM. ACÓRDÃO QUE INVERTEU O ÔNUS DA PROVA E CASSOU A
DECISÃO ABSOLUTÓRIA. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE E
AO ART. 156, PRIMEIRA PARTE, DO CPP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
EVIDENTE A SER SANADO, EXCEPCIONALMENTE, NA VIA DO MANDAMUS.
ORDEM CONCEDIDA.
1. O recurso especial é o meio recursal ordinariamente previsto no ordenamento jurídico para
que esta Corte analise eventual ofensa à legislação federal relativa à condenação penal, não
podendo tal matéria ser submetida à apreciação deste Sodalício pela via excepcional do
habeas corpus, que se encontra atrelada, tão somente, às hipóteses em que se tenha presente
verdadeira violência, coação, ilegalidade ou abuso direto e imediato à liberdade de
locomoção. Não se mostra admissível o mandamus que investe contra decisão transitada em
julgado, exceto em situações de cristalina e evidente ilegalidade, nulidade ou teratologia, tal
como ocorre no caso dos autos.
2. No caso, o paciente foi condenado por se apropriar, na qualidade de servidor público, de
bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo (art. 312 do Código Penal). Contudo, os
fatos narrados na denúncia, por si só, não permitem a adequação típica pretendida pelo
Ministério Público e visualizada pelo acórdão condenatório, pois ausente a demonstração da
presença de elemento volitivo indispensável à configuração do delito.
3. A denúncia não expôs condutas do paciente que pudessem evidenciar a inversão do título
da posse, a intenção de fazer sua a coisa de que tinha a posse (animus rem sibi habendi),
tampouco atos que demonstrassem ter ele agido como proprietário da coisa. Ao contrário, a
imputação de peculato-apropriação decorreu de efeito automático de suposta não devolução
das armas confiadas ao paciente pela própria corporação policial, logo após a suspensão
preventiva do exercício do cargo.
4. Embora a não devolução imediata das armas acauteladas, após a suspensão do cargo, possa
eventualmente caracterizar infração funcional, em hipótese alguma basta para a configuração
do delito previsto no art. 312 do Código Penal, uma vez que o tipo em questão exige o dolo
de transformar a posse em propriedade, em ter a coisa como sua, elemento volitivo esse
cuja constatação foi dispensada pelo parquet, que somente se deteve a imputar o crime
ao paciente sem qualquer análise mais acurada sobre a presença das elementares do tipo
e sobre a intenção do agente. Tanto foi assim, que o cometimento do suposto crime teria
ocorrido exatamente um dia após a expedição da portaria de suspensão do paciente do
cargo, levando a crer que não houve qualquer investigação no sentido de se aferir a real
vontade do paciente de se apoderar das armas.
5. Ademais, o Tribunal de origem, ao dar provimento ao apelo ministerial a fim de
cassar a sentença absolutória e condenar o paciente, inverteu equivocadamente o ônus
da prova, atribuindo à defesa o dever não só de demonstrar sua alegação de inocência,
como também de refutar as imputações do parquet, em manifesta ofensa ao sistema
processual penal acusatório, ao princípio constitucional da não culpabilidade (art. 5º,
LVII, da Constituição Federal), bem como ao comando insculpido no art. 156, primeira
parte, do Código de Processo Penal, que preceitua que "a prova da alegação incumbirá
a quem a fizer".
6. Habeas corpus concedido para, cassado o acórdão condenatório proferido em grau de
apelação, restabelecer a sentença absolutória de primeiro grau, nos autos da Ação Penal nº
2003.5101508689-5, que tramitou perante a 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do
Rio de Janeiro. [grifos nossos]
Em que pese tal decisão do Superior Tribunal de Justiça trazer luz à senda mal trilhada
dos tribunais inferiores, é temerário que uma questão inconstitucional tão grave tenha chegado
até aquela Corte Superior. Não podemos deixar de atribuir tal dificuldade senão ao fato de que
a prova do dolo tem causado enormes embaraços, não só doutrinários, mas também práticos.
143

Ainda outras decisões, referentes aos mais variados delitos, poderiam ser trazidas à
colação, todas eivadas do vício da falta de fundamentação da sentença condenatória, com
adoção da presunção de dolo.
Por exemplo, a sentença condenatória abaixo, de lavra da Juíza de Direito Camila
Paiva Portero, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 13/04/2012, a fim de corroborar com
seu entendimento de que o ônus da prova da alegação de ausência de dolo caberia ao réu, faz
referência à decisão exarada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
Ademais, o réu não fez prova da sua alegação, a de que uma das testemunhas queria
prejudicá-lo. E tal ônus lhe incumbia.
PROVA - Erro sobre elementos do tipo - Ônus - Causa de exclusão do dolo alegada pelo réu
- Absolvição por não ter sido a versão ilidida pela acusação - Inadmissibilidade - Inversão
do "ônus probandi" - Autoria e materialidade da infração comprovadas, presumido "ipso
facto" o dolo - Encargo que incumbe àquele que alega o fato impeditivo - Condenação
decretada (TJRJ) RT 649/302.272.
Na decisão referida, de autoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
fala-se em dolo presumido ipso facto. Por “ipso facto” deve-se entender “do próprio fato”
(“do fato mesmo”). Nesse sentido, a decisão referida utilizou-se do método da praesumptio
doli, que, conforme exposto acima, compreende que o dolo é presumido do próprio fato:
comprovadas a autoria e a materialidade do delito, resta comprovado o dolo, “ipso facto”.
Caso a decisão tivesse adotado, por exemplo, o método do dolus ex re¸ ainda subsistiria a
necessidade de se depreender a ocorrência do dolo, ainda que comprovadas autoria e
materialidade. Como a decisão entende que o dolo está na própria coisa, o método de prova
utilizado foi o da presunção do dolo. Nem mesmo o método do dolus ex re é suficiente para a
prova do dolo, que dirá o método da praesumptio doli, que, ademais, é completamente
incompatível com o Estado Democrático de Direito e com princípios tão caros como o da
ampla defesa ou o do devido processo legal, para não citar outros princípios.
Como se vê, a prova do dolo realizada nos tribunais brasileiros ainda dá margem à
aplicação de métodos obsoletos (alguns obsoletos ab ovo, como, por exemplo, a praesumptio
doli). A prática judicial tem sido reiteradamente voltada à presunção da culpabilidade, em

_______________________________________________

272
Autos digitalizados do Processo n. 0051804-14.2011.8.26.0651, Comarca de Valparaíso, 1ª Vara. Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital
144

descompasso com o Estado Democrático de Direito e em detrimento de direito tão valioso: a


liberdade.
Um problema peculiar, em relação à prova do dolo nos tribunais, que parece ainda
mais grave, entretanto, se dá em relação aos crimes de perigo. Por conta da aplicação
desmesurada da presunção de dolo nos julgamentos desses delitos, faremos uma breve análise
do tema a seguir.

3.3 Um problema singular: o dolo nos crimes de perigo (a presunção das presunções)

A presunção de culpa na prova do dolo, conforme visto nos capítulos anteriores, é um


tema extremamente comum na jurisprudência brasileira. Todavia, nos crimes de perigo, a falta
de fundamentação das condenações é ainda mais constante, em virtude da própria
configuração do tipo de perigo.
O tipo penal pode descrever uma lesão ao bem jurídico, ou um perigo à integridade do
objeto de proteção273. Os tipos de lesão descrevem um dano real ao bem jurídico tutelado, ao
passo que os tipos de perigo descrevem a produção de um perigo de lesão ao bem jurídico. Os
tipos de perigo distinguem-se, ainda, em tipos de perigo concreto e tipos de perigo abstrato.
A consumação do crime de perigo concreto se dá com a produção de um real perigo de
lesão ao bem jurídico tutelado. Nele, exige-se a comprovação de que o objeto protegido foi,
de fato, exposto a um risco de lesão. O juízo em relação ao dolo de perigo se dará
posteriormente, de modo a aferir se o agente assumira a probabilidade do risco de lesão ao
bem jurídico.

No crime de perigo abstrato, ocorre uma presunção legal de perigo ao bem jurídico,
que dispensa a constatação quanto à efetiva produção de perigo. De plano, vislumbra-se a
inconstitucionalidade de tal tipificação, na medida em que a presunção de perigo obsta o
exercício da ampla defesa. A pessoa, antes mesmo de ser ré, antes mesmo de realizar qualquer

_______________________________________________

273
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 110.
145

conduta, é proibida pela lei de exercer seu direito de defesa. Pela completude do relato
panorâmico doutrinário de JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, destacamos sua lição:

Atualmente, discute-se a constitucionalidade dos tipos de perigo abstrato: JAKOBS afirmou a


ilegitimidade da incriminação em áreas adjacentes à lesão do bem jurídico; GRAUL rejeita a
presunção de perigo dos crimes de perigo abstrato; SCHRÖDER propôs admitir a prova da
ausência de perigo; CRAMER pretendeu redefinir o perigo abstrato como probabilidade de
perigo concreto. Por outro lado, destacando a finalidade de proteção de bens jurídicos
atribuída aos tipos de perigo abstrato, aparentemente indissociáveis de políticas
comprometidas com o equilíbrio ecológico, o controle das atividades econômicas e, de modo
geral, a garantia do futuro da humanidade no planeta, HORN e BREHM propõem fundar a
punibilidade do perigo abstrato na contrariedade ao dever, como um perigo de resultado (e
não como um resultado de perigo) e FRISCH pretende compreender os delitos de perigo
abstrato como delitos de aptidão (Eignungsdelikte), fundado na aptidão concreta ex ante da
conduta para produzir a consequência lesiva.274.

Por motivo de inquietação pessoal, cabe aqui um breve escorço sobre a


inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato.
Conforme a excelente lição de JUAREZ TAVARES, por bem jurídico entende-se um
elemento da própria condição humana como sujeito e de sua projeção social:
sendo um valor e, portanto, um objeto de preferência real e não simplesmente ideal ou
funcional do sujeito, o bem jurídico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo,
subordina sua eficácia à demonstração de que tenha sido lesado ou posto em perigo275

A criminalização das condutas abstratamente perigosas, por seu turno, é a consagração


do Direito Penal Simbólico. Não se pode negar o caráter simbólico desses crimes. Isto é,
conforme leciona HASSEMER, não se pode negar que
só uma visão ingênua suporia que as proibições estatais têm a função de reprimir e minimizar
as condutas proibidas. Vistas com mais profundidade, elas encobrem culturas e morais que
simbolizam estilos de vida específicos, os quais, por via das proibições penais, acabam
conquistando um espaço social mais amplo.276
HASSEMER lista como uma manifestação da legislação simbólica o direito penal
ambiental – já acima também citado por JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, ao relatar as políticas
comprometidas com o equilíbrio ecológico – afirmando ter o mesmo “o propósito de educar a

_______________________________________________

274
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. p. 110-111.

275
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. p. 199.

276
HASSEMER, Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2008. p. 211-212.
146

sensibilidade ecológica das pessoas, através da edição de proibições enfáticas num lugar de
destaque – o Código penal.”277.
É claro que não se pode pretender, com base no texto do §3°, do art. 225, da
Constituição de 1988278, punir qualquer conduta ou atividade de risco, que gere, ainda que
abstratamente, perigo ao meio ambiente. Infelizmente, assistimos, entretanto, a uma profusão
de normas penais, muitas fundamentadas em perigo abstrato de lesão ao meio ambiente, que
se preocupam mais em garantir a implementação de funções estatais, que, de fato, em
proteger o meio ambiente. Apenas para exemplificar, vejamos o art. 56, da lei 9.605/1998:
Art. 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar,
armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva
à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis
ou nos seus regulamentos:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
O artigo 56 da Lei 9.605/1998, como se pode depreender, pune a mera conduta
arriscada sem que se faça necessário perquirir quanto à real colocação do bem jurídico em
risco de lesão. Estar “em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus
regulamentos” é por si só presumido pelo legislador como um estado de perigo abstrato para
o bem jurídico. Note-se que, ainda que a pessoa que transporta determinada carga tóxica
domine a melhor técnica de transporte existente, caso essa técnica esteja em desacordo com as
exigências legais, restará configurado o crime de perigo abstrato. Não é a toa que muitos
doutrinadores resistem à incriminação de condutas baseadas em perigo abstrato. Para que
conservemos o caráter democrático de nosso ordenamento, é necessário que se possa, pelo
menos em juízo, refutar tal presunção legal, a fim de se constatar ter havido ou não, de fato,
algum risco de lesão ao bem jurídico.
O Estado, diante da diversidade de problemas de nossa sociedade de risco, no afã de
“algo fazer”, passa a incriminar condutas presumidamente perigosas, em detrimento de

_______________________________________________

277
HASSEMER, Winfried. Direito Penal. p. 211-212.

278
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.
[...]
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a
sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
147

preceitos tão caros à democracia, antecipando, assim, a aplicação do direito penal a qualquer
realização de um risco a qualquer bem jurídico. Restam prejudicados, por exemplo, o devido
processo legal e, ainda, a presunção de inocência, na medida em que o mero estado ou
situação da pessoa pode gerar responsabilização penal, como é o caso do supracitado art. 56
da Lei 9.605/1998, no qual o indivíduo é refém da lei. Conforme já sustentamos, será
necessário admitir-se que o acusado possa refutar tais acusações em juízo, a fim de comprovar
a inexistência de risco para o bem jurídico e afastar a responsabilização penal.
Ao analisar o direito penal simbólico, HASSEMER conclui:
O Direito penal simbólico é multifacetado. Ele marca um Direito penal que se inspira menos
na proteção dos respectivos bens jurídicos do que no atingimento de efeitos políticos de longo
alcance, como a imediata satisfação de uma “necessidade de ação”. Trata-se de um
fenômeno de crise da Política criminal moderna orientada para as consequências. Esta tende a
transfigurar o Direito penal em um instrumento guarnecedor da Política, aduzindo-lhe bens
jurídicos universais e crimes de perigo abstrato. Este Direito penal ajusta-se às concepções de
“insegurança global” numa “sociedade de risco”. O Direito penal simbólico, com funções
ilusionistas, fracassa em sua tarefa político-criminal do estado de Direito e corrói a confiança
da população na tutela penal279.
Assim é que, em defesa do Estado Democrático, a fim de repelir manifestações
autoritárias, faz-se necessário observar sempre quais são os reais fins de uma incriminação,
bem como quais são os direitos verdadeiramente afetados. Incriminar condutas abstratamente
perigosas sem dar à pessoa qualquer possibilidade de refutação é colocar em último plano os
direitos humanos, em especial, a liberdade e a dignidade, que são frontalmente solapados pela
persecução criminal. Esse é o entendimento que adotamos:
A existência do bem jurídico não deve ser vista como propiciadora da incriminação, mas, ao
contrário, como um delimitador que obstaculize ‘inflações penais’, próprias de políticas
autoritárias em que o bem jurídico se vê esvaziado de real significado e materialidade e
comporta tudo aquilo que o Estado despoticamente considera necessário para realizar seus
fins, cingindo-se, assim, às obscuras ‘Razões de Estado’.280
O ponto crucial reside no fato de que, no delito de perigo, o dolo deve se voltar não à
vontade consciente de realizar um dano, mas na vontade consciente de realizar um perigo de
dano. Com o perdão da coloquialidade, nada é mais abstrato que querer gerar um perigo. Mais
abstrato ainda será querer conscientemente gerar um perigo abstrato de dano. Por conseguinte,
em relação aos crimes de perigo abstrato, a prova do dolo é evento raríssimo, visto que sequer

_______________________________________________

279
HASSEMER, Winfried. Direito Penal. p. 230.

280
COSTA, Gisela França da. Bem jurídico-penal e Estado democrático de direito. Seleções Jurídicas COAD,
Rio de Janeiro, fev. 2007. p. 4.
148

a materialidade do delito necessita de comprovação: o tipo objetivo, consubstanciado no


perigo abstrato de lesão ao bem jurídico, é presumido pelo legislador, em face da mera
conduta do agente.
Quanto aos crimes de perigo concreto, ainda que boa parte da doutrina resista às
tentações da prática judiciária ao ratificar a necessidade de comprovação do perigo, também
se constata a raridade da efetiva comprovação de perigo, bem como a quase inexpressiva
ocorrência de prova do dolo de perigo concreto.
De toda sorte, a prova do dolo nos crimes de perigo concreto, quando efetivamente
realizada nos tribunais, é produzida com base no método da praesumptio doli, que, conforme
visto acima, é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
DAVID BAIGÚN relata que o polêmico método da praesumptio doli também atormenta
o direito penal argentino. Segundo o autor, o Código Penal Argentino de 1886, em seu art. 6º,
estabelecia que “en la ejecución de los hechos calificados de delitos se presume la voluntad
criminal, a no ser que resulte una presunción contraria de las circunstancias particulares de la
causa”281. Em que pese o Código Penal subsequente ter retirado tal previsão, a fim de afastar a
possibilidade de presunção do dolo, BAIGÚN alerta que ainda é possível encontrar posições
condizentes com aquela regra do “dolus praesumitur” de 1886 sendo defendida na
jurisprudência. A lição de BAIGÚN quanto à impropriedade da utilização de tal método é tão
lúcida que merece acolhimento:
¿En qué reside el pecado? Sostiene, con mucho tino, Arancibia Rodríguez que es defecto
frecuente de la jurisprudencia trasladar al territorio penal procesal las normas del derecho
procesal civil. Se habla de presunción del dolo como si se tratara de una presunción iuris
tantum, cuando es bien sabido que este principio no es más que una categoría formal
vinculado a la distribución de la prueba. En el ámbito penal no hay inversión de la prueba ni,
por supuesto, división entre categorías iuris et de iure y iuris tantum.282
Entretanto, não temos a mesma convicção que o autor, quanto ao método de prova por
ele esposado. BAIGÚN compreende a utilização dos indícios como o método viável para a
prova do dolo:
Las únicas presunciones admitidas son las indiciarias, establecidas como uno de los tantos
medios de prueba de que se vale la ley para llegar a la verdad y que permiten aceptar un hecho

_______________________________________________

281
BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. p. 30.

282
Ibid. p. 32.
149

sobre la base de deducciones realizadas a partir de otros hechos comprobados. Pero estas
presunciones – repetimos – nada tienen que ver con el principio de distribución de la prueba
mencionado anteriormente.
En el proceso penal interesa, fundalmentalmente, la obtención de la verdad, el logro de la
verdad objetiva, formulada por el juez al realizar el juicio de reproche.
La proposición del juzgador, para adquirir la calidad de verdad objetiva, debe reflejar
fielmente a realidad, es decir, lo acaecido en el mundo ontológico. La verdad no es nunca
subjetiva – como afirma alguna doctrina – , aunque se expresa a través de la subjetividad del
intérprete porque éste – reiteramos – debe trasladar al juicio la imagen de lo realmente
ocurrido.
Tampoco disminuye la verdad su característica objetiva por el hecho de que el juicio de
reproche se nutra, para su formulación, de elementos subjetivos existentes en el acto concreto.
En efecto, como ya lo señalamos en un trabajo anterior, los aspectos anímicos, psíquicos del
sujeto, integrantes por supuesto de la conducta valorada, deben ser aprehendidos por la
formulación como cualquier otro elemento real. Precisamente, es aquí donde funcionan,
donde resultan de más utilidad las presunciones indiciarias como medios de prueba, como
instrumentos válidos para conocer la índole del comportamiento.283.
Nada obstante sua crença nas provas indiciárias, o problema da falta de prova do dolo
na jurisprudência relativa aos crimes de perigo não passou despercebido pelo autor. Ao
analisar algumas sentenças da Câmara Federal Argentina relativas ao crime de mera posse de
explosivos de guerra ou de artefatos para sua produção284, BAIGÚN percebeu que o verdadeiro
“perigo” residiria na própria redação legal:
La moderna redacción de la figura de intimidación pública concede al nexo entre la tenencia
del arma – como riesgo de peligro – y la tranquilidad pública – como objeto de lesión
potencial – la calidad de probable o posible. De este modo el legislador, en lugar de reflejar
las condiciones objetivas existentes en la relación causal, ha creado un vínculo antojadizo,
absolutamente arbitrario, sólo fundado en consideraciones de orden político-social.
No escapará al lector el riesgo asumido por los redactores al aceptar tal forma de
tipificación. De un lado, se transforma en acción delictiva transcendente el simple acto
preparatorio; de otro, se lo vincula a un bien jurídico, como la tranquilidad pública, que por su
intrínseca coloración política se presta a un ancho campo de interpretación judicial285.
E, acertadamente, BAIGÚN conclui que a própria forma de tipificação dos crimes de
perigo, em especial o perigo abstrato, leva à jurisprudência à equivocada postura de não se
atentar para a necessidade de se provar o dolo:
En tales circunstancias, el control de la magistratura adquiere una especial significación.
Si el peligro, tal cual lo describe el tipo, puede configurarse con actos tradicionalmente
considerados impunes – o al menos simples contravenciones –, lógico es exigir en última

_______________________________________________

283
BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. p. 33.

284
O autor faz referência ao artigo 212, àquela época, com redação incluída pela lei n. 15.276: ter consigo explosivos,
agentes químicos ou materiais afins, substâncias ou instrumentos destinados a sua fabricação, armas, munições, elementos
nucleares e demais materiais considerados de guerra. A pena iria de 6 meses a 5 anos de prisão. Em que pese atualmente a
redação do artigo 212 do “Código Penal de la Nación Argentina” ter sido modificada, a análise do autor quanto à
jurisprudência daquela época ainda é pertinente ao tema em estudo, porque comprova a forma como ainda hoje o Judiciário
encara a prova do dolo nos delitos de perigo.

285
Ibid. p. 37-38. [grifos nossos]
150

instancia que el dolo de la acción quede perfectamente verificado en los casos en que se ha
obrado asumiendo esa especial forma de la culpabilidad.
Los fallos que estudian el tema no hacen referencia expresa a la regla de la presunción.
Recogen, sin mayores objeciones, el concepto de peligro establecido por la redacción de la
ley, pero no se pronuncian sobre la necesidad de probar el dolo 286.

O autor relata, porém, ter encontrado na jurisprudência de seu país uma decisão que se
distanciava da postura judiciária acima denunciada, mas que restava isolada diante do
panorama geral:
No hace mucho, una sentencia de primera instancia – congruente con la necesidad de sostener
la validez del error sobre la norma penal en blanco, como causa de inculpabilidad – expresó
claramente la imposibilidad de ‘construir la noción del dolo en el delito de tenencia de armas
sobre la base de presumir que el agente conocía que el arma que tenía en su poder era de
guerra…’. Arguyó que debía probarse ‘el cabal conocimiento del tal carácter, debiendo
descartarse toda intención criminosa si el individuo ignoraba la naturaleza de arma de guerra.
La correcta posición doctrinal del fallo fue lamentablemente desconocida por el tribunal de
apelación al soslayarse el análisis del error iuris – modernamente hablaríamos del error de
prohibición –, tema que lo hubiera llevado, ineludiblemente, a la consideración de la
praesumtio doli.287.
BAIGÚN conclui que “mientras en la jurisprudencia sobre los delitos de peligro
concreto sensorial campea la regla de la comprobación, en los que hemos nominado de
peligro concreto mental288 la situación es inversa.”289.
No Brasil, a situação não é diferente: nos delitos de perigo concreto, ainda há decisões
preocupadas com a prova do dolo, porquanto a configuração do tipo objetivo se baseie na
realidade dos fatos. É preciso provar que houve o perigo real de lesão e também é preciso
provar a consciência e a vontade do agente de causar tal perigo; nos delitos de perigo abstrato,
pelo contrário, como a própria configuração do tipo trabalha com a presunção do perigo, o
magistrado se desincumbe também da convicção quanto à prova do dolo – a convicção é
prévia ao processo penal.
Repise-se, em outras palavras: em que pese estarmos tratando aqui da prova do tipo
subjetivo, é inevitável que, quando o julgador se depara com a presunção legal do próprio tipo

_______________________________________________

286
BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. p. 38.

287
BAIGÚN, loc. cit.

288
O autor nomeia os delitos de perigo abstrato de “delitos de perigo concreto mental”.

289
Ibid. p. 40.
151

objetivo, sinta-se autorizado a também presumir o tipo subjetivo, já que ambos são faces da
mesma moeda: a tipicidade.
O autor argentino preocupava-se, na década de 1960, em eliminar definitivamente a
praesumptio doli do sistema jurídico290. Para tanto, ele sugeria que o tratamento dado aos
crimes de perigo deveria ser o mesmo legado aos crimes de lesão, no que tange às normas que
regem a culpabilidade. Sua sugestão coaduna-se com algumas das atuais propostas
doutrinárias expostas por JUAREZ CIRINO. Muitos autores de hoje entendem que a manutenção
dos delitos de perigo no Estado Democrático de Direito somente se legitima caso se
estabeleça a obrigatoriedade de se provar tanto o tipo objetivo, quanto o tipo subjetivo,
depreendidos da realidade mesma dos fatos.
Nós, por outro lado, ainda na década de 2010, lutamos pela eliminação, em nosso
sistema jurídico, do método da praesumptio doli.
A jurisprudência nos crimes de perigo concreto segue a tendência já abordada no
capítulo antecedente, que trata dos crimes consumados. Isso ocorre porque, nos crimes de
perigo concreto, é uniforme o entendimento de que se faz necessário comprovar efetivamente
a ocorrência do perigo ao bem jurídico para a consumação do delito. Conforme visto, nos
crimes consumados, há uma variedade de métodos utilizados pelos órgãos julgadores, todos
voltados, entretanto, para a presunção de culpa. Nesse sentido, preferimos dedicar maior
atenção, neste passo, à jurisprudência nos crimes de perigo abstrato.
A jurisprudência brasileira é farta, no que concerne à utilização do método da
praesumptio doli, ainda que não expressamente se refira ao método, quando do
implemento de condenações por crimes de perigo abstrato. Por conta das numerosas decisões
encontradas, a fim de não tornar a exposição por demasiado cansativa, trazemos abaixo um
único acórdão, exarado pela Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro, que ilustra perfeitamente o modo como se tem encarado a prova do dolo de perigo
abstrato no Brasil. O acórdão, ao tratar do crime do art. 16, parágrafo único, III, da Lei n.

_______________________________________________

290
BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. p. 41.
152

10.826/2003 (posse de artefatos explosivos)291, esposa o entendimento de que, para a


configuração do dolo, basta a mera conduta do agente e a comprovação da materialidade do
fato – no caso, o laudo pericial que comprove se tratar de artefato explosivo – não cabendo
qualquer refutação, por se tratar de crime de perigo abstrato:
Processo n. 0001511-27.2008.8.19.0041. Des. Siro Darlan de Oliveira
Julgamento: 01/12/2011 – Sétima Câmara Criminal
Apelação Criminal. Estatuto do Desarmamento. Posse de artefatos explosivos. Bombas de
fabricação caseira. A sentença de fls. 24-35 do doc. Eletrônico 000132 julgou procedente a
pretensão punitiva estatal para condenar Décio Ramiro de Alcântara Filho, nos termos das
sanções do artigo 16, parágrafo único, III, da lei nº 10.826/03, às penas de 03 anos de reclusão
e 10 dias-multa, no mínimo legal, no regime de cumprimento de pena no semiaberto, sendo a
pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas de direito, consubstanciadas na
prestação pecuniária, fixada no valor de 03 (três) salários mínimos, e na prestação de serviços
comunitários pelo período da pena privativa de liberdade aplicada. Inconformada, a defesa
técnica interpôs recurso de apelação de fls. 38, cujas razões recursais se encontram as fls. 39-
46 do doc. eletrônico 00132, objetivando o conhecimento e provimento do apelo para que seja
reformada in totum a r. sentença monocrática, para absolver o apelante por atipicidade da
conduta, frente à abolitio criminis temporalis e, subsidiariamente, por atipicidade da conduta
de portar bombas de fabricação caseira; ausência de dolo de ofender a integridade física de
terceiros, já que o material apreendido seria utilizado em festa de cunho religioso e ausência
de provas da ofensividade do objeto material do crime. Recurso defensivo improvido. A
materialidade do crime descrito na denúncia encontra-se positivada pelo auto de prisão em
flagrante de fls. 07, auto de apreensão de fls. 24, todos em perfeita harmonia com a prova
testemunhal. Assim, inconteste é a materialidade do tipo do art. 16, parágrafo único, III, da lei
10.826/2003. Igualmente é certa a autoria, fundada nos testemunhos dos policiais que
efetuaram a prisão do acusado, depoimentos prestados em juízo sob a garantia da ampla
defesa e sob o crivo do contraditório, nada havendo que lhe retire a validade, em corroboração
o réu em seu interrogatório de fls. 126-127 confessou espontaneamente a conduta delitiva
descrita na peça exordial. No que tange à tese defensiva em relação à ausência de dolo na
conduta do acusado em possuir, guardar ou ter em depósito ilegalmente o artefato explosivo-
bomba de fabricação caseira não restou configurado nos autos, eis que o próprio acusado
confirma a imputação que lhe fora feita na peça acusatória, estando presentes todos os
elementos do tipo penal. Ademais, extrai-se da confissão do réu no interrogatório em juízo, a
consciência da ilicitude da sua conduta ora descrita na denúncia, não havendo qualquer vício
no componente volitivo do dolo. Cumpre ressaltar que o conjunto probatório é robusto no

_______________________________________________

291
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente,
emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou
restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de
identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou
adolescente; e
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
153

sentido de conduzir à condenação, eis que ficou devidamente demonstrada nos autos, por
meio do laudo pericial que constatou o potencial de lesividade do material ora apreendido nos
autos, assim, é inteiramente descabida a tese da defesa sobre a impropriedade da prova da
materialidade do delito em análise, ficando comprovado tratar-se de bomba de fabricação
caseira apta a ser utilizada. Ora, aqui desnecessárias as indagações se as ditas bombas
tinham poderes para atingir a integridade física de pessoas, ou, ainda, se o réu tinha essa
intenção, porque desimportante para a configuração do tipo penal em exame, eis que, o
que restou demonstrado no laudo pericial espanca qualquer dúvida, sendo desta forma
inteiramente descabida a alegação de mínima ofensividade do bem tutelado. Cumpre
salientar que a alegação da defesa no que se refere à finalidade que se destinava o
artefato explosivo (bombas de fabricação caseira), ou seja, às festividades religiosas da
cidade de Paraty não diminui a culpabilidade do acusado, pois, o que se pretende a
defesa é a exclusão do dolo, análise já superada neste julgado, no mesmo sentido, não
restou configurado o erro sobre a antijuridicidade da conduta ora praticada pelo apelante, que,
in casu, o isentaria de pena, nos termos do artigo 20 do CP, que não é a hipótese dos autos,
assim, o conjunto probatório espancam a tese da defesa no que concerne à atipicidade por
ausência do dolo ou por exclusão da culpabilidade. Mesmo considerando que as “bombas
de fabricação caseira” se destinassem tão somente às festas de cunho religioso, tal fato
por si só não exime a responsabilidade daquele que pratica a conduta específica do tipo
penal da lei 10.826/03 em comento, eis que é delito de mera conduta e de perigo abstrato,
que ao meu entender, por mais louvável que seja a crença religiosa, no caso concreto,
não lhe diminui a culpabilidade ou a ilicitude dos fatos. Abolitio criminis temporalis não
configurada. Da dosimetria. Pena-base aplicada no mínimo legal, sendo fixada em definitivo
em 03 anos de reclusão e 10 dias-multa, substituída a reprimenda corporal por penas
restritivas de direito. Regime de cumprimento de pena mais gravoso. Dosimetria da pena
retocada de ofício para fixar o regime aberto nos termos do artigo 33, §2°, alínea “c” do CP e
súmulas 718 e 719 do STF. Recurso conhecido, para no mérito negar provimento e de ofício,
modificar o regime de pena para o aberto em caso de descumprimento das penas restritivas de
direitos, nos termos do artigo 33, § 2°, alínea “c”, do CP, mantendo no mais a r. sentença
combatida, pelos seu próprios e judiciosos fundamentos. [grifos nossos]
Em sentido contrário, felizmente, já é possível encontrar decisões que sustentam a
necessidade de se provar tanto a real ocorrência do perigo, ainda que abstrato, quanto à
ocorrência do dolo. No julgamento do Recurso Especial n. 1177612/SP, assim se posicionou
Ministro Og Fernandes, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 01/09/2011:
Recurso especial. Causas de impedimento e suspeição. Hipóteses taxativas previstas. Art. 252,
III, do CPP. Interpretação ampliativa. Impossibilidade. Violação de dispositivos de regimento
interno. Não cabimento. Súmula 399 do STF. Falsificação de documentos públicos.
Despachos e decisões judiciais. Assinatura do juiz falsificada pelo diretor da vara federal.
Conhecimento do titular da assinatura. Tipicidade material - Desvalor do resultado -
inexistente. Elemento subjetivo do tipo - não configuração no caso concreto. Coação no curso
do processo. Grave ameaça para impedir a incriminação dos acusados. Condenação mantida
quanto ao primeiro fato narrado na denúncia. Trancamento da ação por atipicidade quanto à
segunda coação. Recurso especial parcialmente provido. Dosimetria da pena. Concessão de
habeas corpus de ofício. Sanção redimensionada.
1. As causas de impedimento e suspeição de magistrado estão dispostas taxativamente no
Código de Processo Penal, não comportando interpretação ampliativa.
2. O disposto no art. 252, III, do CPP aplica-se somente aos casos em que o juiz atuou no feito
em outro grau de jurisdição como forma de evitar ofensa ao princípio do duplo grau. Não há
impedimento quando o magistrado exerce, na mesma instância, jurisdição criminal após ter
atuado em processo administrativo disciplinar.
3. Quanto à alegada afronta a artigos do Regimento Interno do Tribunal de origem, cumpre
asseverar que essas normas não se enquadram no conceito de lei federal, não sendo capazes
de ensejar a abertura da via especial, conforme já cristalizado na Súmula nº 399 do Supremo
Tribunal Federal.
4. Apesar de os crimes de perigo abstrato serem punidos independentemente de lesão
efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado, já existem posicionamentos doutrinário e
jurisprudencial de que não se poder criminalizar a conduta desprovida de ofensividade.
5. Sob esse prisma, apesar de o tipo previsto no art. 297 do Código Penal ser de perigo
abstrato, impõe-se verificar, no caso sub judice, não só o desvalor da ação, sendo
imprescindível, também, que fique demonstrado que as condutas dos recorrentes eram,
desde o primeiro momento, capazes de gerar perigo ao bem jurídico-penal tutelado.
154

6. Dessa forma, ainda que se afirme ter havido a perfeita subsunção do fato ao tipo previsto
abstratamente no art. 297 do Código Penal (tipicidade formal), não se vislumbra, no caso em
comento, a tipicidade material (desvalor do resultado), mesmo que em potencial.
7. A uma, porque os atos meramente ordinatórios, normalmente praticados por meio de
despachos, não possuem a potencialidade de causar prejuízo a qualquer das partes envolvidas
nos processos, tanto que podem ser delegados, nos termos do art. 93, XIV, da Constituição
Federal.
8. A duas, dos documentos discriminados na denúncia, apenas dois teriam cunho
verdadeiramente decisório, tendo os demais caráter eminentemente cartorário. O primeiro
exame a ser feito é a respeito da existência desses atos decisórios.
9. Com efeito, sob o aspecto material, eles existem, visto que as declarações de vontade nele
produzidas são verdadeiras, pois o seu conteúdo era de conhecimento do Juiz, expressando,
assim, o seu pensamento acerca da matéria nele versada.
10. Quanto ao vício formal, cumpre ressaltar, primeiramente, que o exame pericial não trouxe
elementos seguros a respeito da falsidade das assinaturas. Embora o Tribunal de origem não
tenha se restringido às conclusões do laudo pericial, o defeito de formação apontado não pode
sobrepor à vontade real manifestada pelo julgador nas suas decisões judiciais, a ponto dele
merecer a repressão do Direito Penal.
11. De mais a mais, a prática de novo ato em substituição do anterior, com o objetivo de
regularizar a assinatura do Juiz, geraria para com os terceiros de boa-fé (sujeito passivo
mediato do delito em questão) as mesmas consequências jurídicas advindas do primeiro, já
que as declarações constantes nesses documentos, como dito antes, são ideologicamente
verdadeiras.
12. Por essa razão, o fato praticado pelos acusados deve ser coibido por outros meios de
atuação do órgão estatal, mormente na esfera administrativa, visto que a tipicidade penal
exige uma ofensa relevante aos bens jurídicos penalmente protegidos para que possa
caracterizar suficientemente o injusto penal, o que não se vislumbra na espécie.
13. Outrossim, as provas colhidas nos autos não comprovaram, de forma inequívoca, a
presença do elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo para a configuração do crime em
tela. Pela leitura da denúncia e do acórdão hostilizado, sem que haja a necessidade de se
incursionar no conjunto probatório dos autos, não é possível aferir que os réus agiram
de má-fé, ou seja, com o espírito de criar situação diversa da realidade factual.
14. Por não encontrar conduta penalmente relevante, em razão da existência de outros
meios eficazes de punir os acusados, imprescindível se torna o afastamento da
condenação do crime do art. 297, § 1º, do CP, com a consequente absolvição dos
mesmos, ficando prejudicada as demais alegações quanto a esse delito.
15. Quanto ao crime de coação no curso do processo, ao contrário do alegado pelo primeiro
recorrente, a possibilidade concreta de as vítimas serem colocadas "à disposição da Diretoria
do Foro" e "mal recomendadas pelo acusado a qualquer magistrado onde fossem lotadas"
constitui ameaça grave o bastante para intimidar qualquer servidor do judiciário.
16. Entretanto, em relação à segunda coação, ocorrida no início do ano de 2004, é possível a
constatação, de plano, da atipicidade da conduta. No caso, o mal injusto foi deduzido pelas
vítimas, sendo certo que a suposta ameaça lançada não se mostrou grave o suficiente a ponto
de incutir justificável receio a um homo medius, ou seja, factível e considerável.
17. A dinâmica dos acontecimentos é bem delineada pelo acórdão recorrido, possibilitando
valoração de fatos incontroversos para o reconhecimento da atipicidade da conduta atribuída
ao aludido, conclusão que se faz, portanto, sem esbarrar no óbice da Súmula 7/STJ. Sendo
assim, deve ser mantida apenas a condenação do recorrente S. J. C. quanto a coação praticada
em abril de 2003.
18. Recursos especiais parcialmente providos para, de um lado, absolver os réus do crime
descrito no art. 297, § 1º, do CP, e, de outro, reconhecer a atipicidade da conduta do primeiro
recorrente em relação a um dos crimes de coação no curso do processo.
19. Habeas corpus concedido, de ofício, para reduzir a pena do primeiro recorrente, quanto ao
delito previsto no art. 344 do CP - praticado em abril de 2003 -, a 1 (um) ano e 9 (nove) meses
de reclusão e 23 (vinte e três) dias-multa. Suspensão condicional da pena deferida pelo prazo
de dois anos. Perda do cargo público mantida.
155

CONCLUSÃO

A vontade consciente de realizar o resultado típico deve ser melhor estudada pela
doutrina penal a fim de garantir que a aplicação do direito não esteja adstrita à insuficiente
definição legal de dolo, que primou pela abordagem conceitual, mas pouco orienta o
intérprete quanto ao método de sua aferição.
Na medida em que os fenômenos conscientes são, além de raros, de complexa
constatação e observação, recebendo, no Direito, um estudo retrospectivo, já que quando se
faz a análise da consciência e da vontade nas condutas delitivas, o crime, na verdade, já
ocorreu e, por conta da dificuldade que os próprios psicanalistas assumem enfrentar quando
dessa investigação, é importante que se lance um olhar crítico sobre o conceito de dolo.
Assim é que o aplicador do direito deve ser extremamente cuidadoso ao aplicar o
direito penal, a fim de evitar meras suposições no momento de julgar uma pessoa por uma
conduta supostamente dolosa, já que, muitas vezes, a vontade que se afirma ter existido na
conduta dolosa é indemonstrável, ou, pelo menos, sequer consciente.
O dolo é normativo, mas também psicológico. A consciência e a vontade, como
elementos reais da mente, garantem ao dolo seu caráter psicológico. De fato, a
responsabilidade, por exemplo, é um conceito estritamente normativo, que não tem qualquer
sentido para Robinson Crusoé, sozinho em sua ilha. Mas a consciência e a vontade ainda
existem em Robinson Crusoé, porque são fenômenos reais da mente humana.
Se é da natureza humana a consciência e a vontade, mas, por outro lado, também é da
natureza humana agir, na maior parte das vezes, de maneira voluntária, mas inconsciente, é
necessário que se afirme: o direito penal é tão excepcional, quanto o são as condutas
conscientes e voluntárias. Portanto, afirmar que uma pessoa agiu com consciência e vontade
de realizar um delito deve ser encarado como um desafio.
Desafio ainda maior é coadunar a estrutura do conceito legal do dolo, voltada a uma
intangível aferição objetiva, com sua real estrutura extremamente humana (humano,
demasiadamente humano, prafraseando Nietzsche), repleta de vieses subjetivos. A
intangibilidade da aferição do dolo, seja pelo método objetivo ou subjetivo, é proporcional à
intangibilidade da mente.
Assim é que, assentado que o método mais próximo da natureza humana é lastreado de
juízos subjetivos; assentado, ainda, que o método pseudo-objetivo do Direito é incrementado
com subjetividades inseridas pelos juízes, ainda que tacitamente, seja por presunções não
declaradas, seja por apressadas e rasas análises dos fatos; ou se assume que o juízo deve ser
156

também subjetivo e se passa a fundamentar explicitamente nas sentenças a abordagem


subjetiva; ou estaremos fadados a sentenças condenatórias eivadas do vício insanável da falta
de fundamentação.
157

REFERÊNCIAS

BAIGÚN, David. Los delitos de peligro y la prueba del dolo. Buenos Aires: BdeF, 2007.

BELING, Ernst von Ludwig. Die Lehre vom Verbrechen. Tübingen: Elibron Classics,
2005. (1906).

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
v. I: parte geral.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BRENNER, Charles. Noções básicas de psicanálise: introdução à psicologia psicanalítica. 5.


ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. t. 2º.

CARRARA, Francesco. Opúsculos de Derecho Criminal. Buenos Aires: Arayu, 1955.


______. Programma del corso di Diritto Criminale. 11. ed. Firenze: Fratelli Cammelli,
1924. v. 1: parte generale.

COSTA, Gisela França da. Bem jurídico-penal e Estado democrático de direito. Seleções
Jurídicas COAD, Rio de Janeiro, fev. 2007. p.3-4

DEBUYST, Christian; DIGNEFFE, Françoise; PIRES, Álvaro P. Histoire des savoirs sur le
crime et la peine. Bruxelles: Éditions Larcier, 2008. v. 3 : Expliquer et comprendre la
délinquance (1920-1960).

DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. 1. ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito
Processual Civil. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2010. v. 2.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2004.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FEUERBACH, Anselm. Lehrbuch des gemeinen in Deutschland geltenden Peinlichen


Rechts. 1. Aufl. Giessen: Georg Friedrich Heyer, 1801.
______. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1989.

FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Buenos Aires: B de


F, 2004.
158

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 2006. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 8)

______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Rio de Janeiro: Imago Editora,


2006. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.1)

______. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.
(Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 6)
GOTI, Jaime Malamud. Suerte, moralidad y responsabilidad penal. Buenos Aires:
Hammurabi, 2008.

HASSEMER, Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2008.

HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho Penal. Estudios sobre la teoría de la


imputación. Buenos Aires: Editorial Aranzadi/B de F, 2009.

______. Strafrecht nach logisch-analytischer Methode: systemat. entwickelte Fälle mit


Lösungen zum Allg. Teil. Berlin: Walter de Gruyter, 1988.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. I. t. II:
Arts. 11 a 27.

JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación.


Madrid: Marcial Pons, 1995.

______. Strafrecht: Allgemeiner Teil. Studienausgabe. Die Grundlagen und die


Zurechnungslehre. 2.ed. New York: Walter de Gruyter, 1993.

______.Tratado de direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil. 2. Aufl. Berlin:


Duncker & Humblot, 1982.

______. Tratado de Derecho Penal. Parte general. Granada: Comares, 1993.

KLEINSCHROD, Gallus Aloys Kaspar. Entwurf eines peinlichen Gesetzbuches für die
kurpfalzbaierischen Staaten. München: Franz Seraph Hübschmann, 1802.

______. Systematische Entwickelung der Grundbegriffe und Grundwahrheiten des


peinlichen Rechts nach der Natur der Sache und der positiven Gezetzgebung. Erlangen:
Johann Jakob Palm, 1799. v. 1.

LAGIER, Daniel González. La prueba de la intención y la explicación de la acción. Isegoría,


n. 35, p. 173-192, jul/dic. 2006. Disponível em:
http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/35/35. Acesso em: 03.jul.2012.

LANGENSCHEIDT: Euro-Wörterbuch Portugiesisch. Portugiesisch-Deutsch. Deutsch-


Portugiesisch. Berlin: Langenscheidt KG, 1992.
159

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MANZANO, Mercedes Pérez. Dificultad de la prueba de lo psicológico y naturaleza


normativa del dolo. In: VALDÉS, Carlos García (Coord.) et al. Estudios penales en
homenaje a Enrique Gimbernat. Madri: Edisofer, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Madrid: Editorial Revista de Derecho


Privado, 1955. t. I.

______. Strafrecht: allgemeiner Teil. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung,


1970.

MUÑOZ CONDE, Francisco; BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. São
Paulo: Saraiva, 2000.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011.

POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. London: Hutchinson, 1967. Edição original
de 1934.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. 10. ed. rev. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. v. 1: parte geral (arts. 1° a 120).

PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Manole, 2004.

RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Consideraciones sobre la prueba del dolo. REJ - Revista de
Estudios de la Justicia. n. 4. p. 13-26, 2004.

______. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: José Maria Bosch, 1999.

______. La atribución del conocimiento en el ámbito de la imputación dolosa. 1998. Tese


(Doutorado em Direito), Universitat Pompeu Fabra, Barcelona. 23.Set.1998. Orientador: Prof.
Dr. Jesus-Maria Silva Sánchez;

RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. Tradução de
Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

______. Los elementos subjetivos del delito: bases metodológicas. 2. ed. Buenos Aires: B de
F, 2007.

ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Madrid: Thomson Civitas, 1997. t. I.

______. Estudos de direito penal. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

______. Política criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
160

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 2002.

______. Direito Penal. Parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004.

SEARLE, John R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______.O mistério da consciência. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David L. Dez teorias da natureza humana. São


Paulo: Martins Fontes, 2005.

TAVARES, Juarez. Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 440, p. 297-302, jun. 1972.

______. Inovações constitucionais no Direito Penal. Revista de Direito da Defensoria


Pública do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 4, p. 51-72, 1990.

______. Teoria do crime culposo. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

______. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.

______. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 29. ed. ver. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2007. v. 3.

VON WEBER, . Über die verschiedenen Arten von Dolus. Neues Archiv des
Criminalrechts, Halle, v. 7, p. 549-580, 1825.

WELZEL, Hans. La teoria de la acción finalista. Buenos Aires: Depalma, 1951.

WINNICOT, Donald W. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

______. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal.


Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2000.

______; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Você também pode gostar