Mente Cosmica
Mente Cosmica
Mente Cosmica
Mente cósmica
Somos parte do universo; tentamos conhecê-lo;
logo, o universo tenta conhecer a si mesmo
O
universo que nos cerca sem- concepção de Ferdinand de Saussure [lin-
pre foi extraordinariamente guista, 1857-1913]”. Na visão peirciana, o
complexo e povoado de sig- signo não é concebido como um elemento
nos e significados, que são isolado e casual, mas como o elemento que
os elementos constitutivos da cognição; emerge de um processo semiótico chamado
ou, ainda, as representações, completas ou de semiose, que faz crescer o conhecimento
incompletas, que concebemos nos diálo- porque estende as cognições passadas via a
Alexandre Quaresma gos que travamos com a nossa realidade cognição presente até as cognições futuras.
é escritor ensaísta, circundante – e isso se dá desde os tempos Semiótica é a disciplina teórica que estuda
filósofo, pesquisador mais longínquos e imemoriais até os velo- os signos e significados, que são os elemen-
de tecnologias zes e fugazes dias atuais. Tentar compreen- tos mais fundamentais na compreensão do
e consequências
dê-los sempre foi o maior e mais impor- real cognoscível e constituição do que ele é
socioambientais, com
tante desafio de nossa existência – já que para nós, a chamada realidade.
especial interesse na
crítica da tecnologia. necessitamos inexoravelmente dialogar Da sua vertente peirciana, extraímos
E-mail: a-quaresma@ semioticamente com esse ambiente como as três categorias fenomenológicas – pri-
hotmail.com condição para que a nossa vida se torne meiridade, secundidade e terceiridade –,
viável, ou não. Referimo-nos a essa longa aplicando-as à nossa própria história hu-
jornada tecnológica que incansavelmente mana. Se as ideias peircianas são úteis para
empreendemos, da pedra lascada e domí- entender a dimensão do vivo, da biologia,
nio do fogo às inteligências artificiais, que da fisiologia – como consta na literatura
engloba as cognições, os saberes e fazeres especializada –, nossa pergunta é: por que
do mundo. não estendê-las aos demais fenômenos no
Aliás, no contexto teórico proposto por cosmos? Aos materiais inanimados da físi-
Charles Sanders Peirce (1839-1914), fun- ca? Aos planetas e galáxias? Averiguemos
dador da semiótica moderna, inclusive o então a hipótese de a semiótica estar em
ser humano é um signo – mais um dentre tudo como uma lógica fundamental orde-
os infindáveis que existem, assim como um nadora do real – é o que o próprio Peirce
riacho, um passarinho, uma flor, incluindo nos indica e seus comentadores confir-
as ideias e os pensamentos que emergem mam; e a das três categorias fenomenológi-
e trafegam em nossas mentes. É justo por cas se aplicarem também ao mundo do não
isso que o linguista e semioticista Winfried vivo, à organização sistêmica do universo,
Nöth (2017, p. 36) nos explica: “Ideias e sua estruturação e permanência.
pensamentos são, portanto, também sig- Acreditamos que, caso nossa hipótese
nos, signos internos, e não meramente os se confirme, abrir-se-ia um novo horizonte
significados de signos externos, como na de compreensão a partir do qual questões
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importantes podem ganhar em es- E nós, os Homo sapiens – à revelia
clarecimento. Isso se justifica, posto
que, além de serem muito originais, da imagem que hoje temos de nós
extremamente gerais, aplicáveis às mesmos –, éramos somente mais um
mais diversas situações, as ideias se-
mióticas de Peirce possuem simpli- ramo na “árvore da vida”, que poderia
cidade, adaptabilidade e elegância. ou não lograr êxito biológico
Mitos: prelúdios cia nas cadeias tróficas em contínua de superioridade que hoje temos
da cognição interação. Permanecer, levar adiante de nós mesmos –, éramos somente
Os seres humanos – como sabe- a mensagem genética, perpetuar o mais um ramo na incomensurável
mos, assim como os demais seres da próprio filo no tempo-espaço – eis a “árvore da vida”, que poderia ou
natureza que surgiram na biosfera missão seminal de todo e qualquer não lograr êxito biológico. Foi um
gradativamente e aos montões, prin- ser desde então. Centenas de mi- tempo longo – é verdade –, todavia
cipalmente a partir da estabilização lhares de espécies – como consta na de suma importância para nós, du-
do ambiente fisioquímico – precisa- literatura especializada – foram su- rante o qual, passo a passo, emergia
imagens: shutterstock e arquivo pessoal
ram inexoravelmente dialogar e se mariamente extintas, simplesmente esse novo, versátil e arguto animal
manterem adaptados a ela, sob pena por não superarem esse desafio bá- humano. Ele precisava desenvolver
de serem devorados, ultrapassados sico e primordial que é, de alguma sagacidade, conhecimento e sabe-
e até extintos por seus mais tena- forma, “compreender” o meio cir- doria, pois forças muito adversas
zes e sórdidos predadores ou rivais. cundante e estabelecer com ele um em ambientes muito desiguais esta-
Brutal era a aurora da Terra nesse diálogo minimamente eficaz. Em vam em ação; e nós não estávamos
período ora distante, e visceralmente outros termos, semiotizar. E nós, os fisicamente especializados para ne-
ferrenha era a luta pela sobrevivên- Homo sapiens – à revelia da imagem nhum em específico. Não sem as
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Vivemos incessantemente às
voltas com a necessidade de
compreensão da realidade,
à qual a semiótica
peirciana denomina objeto
dinâmico, já que ela
muda o tempo todo
mesmo refletida, tinha de ser mitificado, que é a forma
mais primitiva de dialogar com o objeto dinâmico1 e me-
tabolizar significamente os eventos, para sobre eles exer-
cermos algum controle e poder transformarmos o real
em realidade. Childe (ibid., p. 226-227) escreve: “A partir
do início de sua existência, o homem, ao que parece, usou
suas faculdades caracteristicamente humanas não apenas Nos mitos existe a ciência, o conhecimento”. Em suma,
para fazer ferramentas (...) para uso no mundo real, mas a representação imaginária do real sempre fez parte de
também para imaginar forças sobrenaturais que pudes- nosso ferramental básico para o enfrentamento intelecti-
sem empregar também nesse mundo real. Ou seja, esta- vo dos ambientes.
va simultaneamente tentando compreender, e com isso
utilizar os processos naturais e povoar o mundo real de Poderia o universo pensar?
seres imaginários, concebidos à sua própria imagem, que Acreditamos que sim. Estamos em coerência com
esperava coagir e cativar com agrados”. os físicos Lev Vertchenko e Henrique Pedroso (2004, p.
Perfazendo a história do nosso evoluir, o filósofo 113), quando argumentam: “Somos parte do universo;
Jürgen Habermas (1975, p. 314) afirma: “Essas imagens tentamos conhecê-lo; logo, o universo tenta conhecer a
míticas, religiosas e metafísicas do mundo obedecem si mesmo”. Vivemos incessantemente às voltas com a ne-
à lógica da contextura da interação. Elas dão respostas cessidade de compreensão da realidade que nos circunda,
aos problemas centrais da humanidade, relativos à vida à qual a semiótica peirciana denomina objeto dinâmico,
em comum e à história da vida individual. Seus temas já que ela muda o tempo todo e não pode ser totalmen-
são justiça e liberdade, violência e opressão, felicidade e te prevista nem controlada por ninguém. Na linguagem
satisfação, miséria e morte. Suas categorias são vitória e de quem estuda o assunto, trata-se do real, a instância de
derrota, amor e ódio, salvação e danação. Sua lógica se tudo que é para si mesmo, completamente independente
mede pela gramática de uma comunicação desfigurada de nosso querer, vontade, intenção.
e pela causalidade do destino, determinada por símbolos Também segundo a semiótica, o hábito – como prá-
cindidos e motivos recalcados”. Concluindo com o filóso- tica e conceito – serve ao propósito extremamente útil
fo Umberto Galimberti (apud Quaresma, 2015, p. 8): “Os de liberar a mente dos sujeitos cognoscentes para pensar
mitos precisam ser analisados com muita atenção, porque tudo aquilo que é diverso dele mesmo (hábito); ou seja,
não são contos, fábulas, puras invenções da imaginação. do que não é trivial, operacional e rotineiro, enfim, daqui-
lo que ainda não está autonomizado; e, principalmente,
Objeto dinâmico (conceito): Entendemos que objeto dinâmico é a totalidade que está fora de tudo aquilo que ainda não foi compreendido e que ex-
1
do signo e da qual o signo é uma parte porque a ela está conectado representativamente.
trapola a contingência da mera sobrevivência. Sim, pois o
imagens: shutterstock
Essa relação parte-representa-todo pode se dar em três níveis de conexão: (1) se o signo-
-parte repete, de modo igual ou semelhante, uma ou mais qualidades do objeto-dinâmico- novo, parcial ou completamente desconhecido, ainda não
-todo, então este signo é um ícone do objeto-dinâmico; (2) se o signo-parte apresenta
uma ou mais conexões no tempo-espaço, pretéritas (história) ou presentes (atual), com o se plasmou em hábito ou conhecimento em nossa mente
objeto-dinâmico-todo, então esse signo é um índice dele; (3) e se o signo-parte apresenta – e, por esse motivo, demanda enorme atenção e energia,
uma relação de necessidade condicional com o objeto-dinâmico-todo, seja essa necessidade
natural ou arbitrária, seja ela pretérita, presente e/ou futura, então esse signo é um símbolo. disponibilizando menos capacidade cognitiva para outras
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Outros modelos de
realidade e Peirce
Pensadores de peso se sentiram tenta-
dos e arbitrariamente criaram muitas ca-
tegorias abstratas que pudessem, de uma
forma sintética, explicar a complexidade
do mundo, e ainda estabelecer uma repre-
sentação e um diálogo objetivo e funcional
com o real e suas infindáveis alteridades;
ou, na terminologia de Peirce, com o objeto
dinâmico que a própria realidade de fato é.
Mais bem-sucedida nessa empreita,
escolhemos a categorização triádica da te-
oria peirciana que – em sua sublime sim-
plicidade e eficácia – é muito econômica e,
por isso, muito universal. Primeiramente,
isso oferece incontáveis potencialidades
para a curiosidade e apetite de estudiosos
e entusiastas, como nós. Em segundo lugar,
converge com a proposição silogística sobre
sermos o mundo tentando conhecer a si
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Se estendêssemos o conceito peirciano de
mente da natureza ao próprio universo,
chegaríamos a uma hipótese que daria
conta de controvérsias irresolvíveis
mesmo. Isso tudo, inevitavelmente, cas e as dinâmicas que regem o uni- das suas formas: macroscópica e
nos remeteu às ideias arrojadas de verso, assim como o filósofo Rudolf microscópica, inorgânica, biológi-
semiose, sinequismo2 e abdução3 Carnap (1891-1970) um dia fez – ca, humana (...). Essa conversação
de Peirce, com as quais é possível poderíamos quem sabe prescindir começa na abdução” (ibid.).
compreender que todos os seres da ideia criacionista de um Deus Peirce não apenas inclui a abdu-
vivos, para assim permanecerem, ex-machina, mitos que nos perse- ção em seu quadro lógico-semiótico,
precisam manter uma relação mutu- guem e nos confundem há milênios. ao lado das clássicas dedução e in-
amente significativa com o seu meio. Santaella (2002, p. 105) corrobora dução, como lhe confere suma im-
Em termos peircianos, todos os se- o que abordamos aqui: “São as leis portância; pois é ela, e tão somente
res teriam que abduzir seu ambiente, gerais que tornam os fenômenos re- ela, que, com sua interpretação ima-
intuí-lo, adivinhá-lo. gulares e inteligíveis, sendo, por isso ginativa, consegue ser a primeira
Com efeito, e no extremo, se es- mesmo, os fenômenos mais com- das inferências lógicas a romper as
tendêssemos esse conceito peircia- pletamente reais do universo. É em barreiras intransponíveis do desco-
no de mente da natureza ao próprio razão disso que o pragmatismo não nhecido. O filósofo Ivo Ibri (2015, p.
universo, chegaríamos a uma hipó- pode fazer da ação, muito menos da 171) completa: “O argumento abdu-
tese interessante, que, sem muito ação individual, o summum bonum tivo, aquele ao qual justamente cabe
esforço, daria conta de controvér- da espécie humana. À medida que a a elaboração de hipóteses, cumpre a
sias irresolvíveis até então. Em ou- evolução progride, a inteligência hu- função de romper, de início, a força
tros termos – se concebermos que mana vai desempenhando um papel bruta do inexplicável, e sua impor-
nossa hipótese da aplicabilidade das cada vez maior no crescimento da tância, dentro do quadro lógico do
categorias semióticas de Peirce é razoabilidade por meio de sua carac- autor [Peirce], torna-se facilmente
minimamente promissora, compre- terística mais peculiar e inalienável, o perceptível, em face da radical recu-
endendo que elas se aplicam ao vivo autocontrole. No princípio, a mente sa peirciana do incognoscível”.
sem exceções; e se extrapolarmos humana nasceu como fruto dessa
essa mesma teoria para além do vivo, evolução, mas, uma vez tendo nasci- Determinação
abarcando também as matérias físi- do, ela passou a poder influenciar o filogênica:
2
Sinequismo (conceito): Palavra grega que significa
curso da evolução pela conduta deli- três momentos
“continuidade”, foi por isso mesmo escolhida por Peirce berada em resposta à escuta da natu- do sapiens
para designar a sua teoria metafísica da continuidade (CP
6.202 apud Santaella, 2002, p. 98). A continuidade é um
reza. Mesmo que a perversidade de Com o filósofo Peter Sloterdijk
estado disposicional que tende a se espalhar infinitamente gerações inteiras escolha caminhos (2000, p. 34), compreendemos que
porque possui, dentro de si, o seu oposto complementar:
a descontinuidade. Isso porque, mesmo sob o governo
contrários a essa direção, no longo “ao fracassar como animal, esse ser
estrito das leis, a conformidade dos eventos é violada pela curso do tempo, o homem será for- indeterminado tomba para fora de
originalidade do acaso, cujo sinônimo grego é “tiquismo”
– outra palavra original empregada por Peirce nessa sua
çado pela experiência a reconhecer seu ambiente e com isso ganha o
teoria do sinequismo (ibid.). a natureza e sua própria natureza mundo no sentido ontológico”. Se
3
Abdução (conceito): Grosso modo, abdução é o
como crescendo em razoabilidade, antes do período Neolítico (i) – ou
guiando-o na sua busca”. segundo nossa hipótese proposicio-
imagens: shutterstock
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para nós, e que se desenvolveu bem
além da nossa capacidade de acom-
panhá-lo. Isso levanta a hipótese das
IA simplesmente nos ultrapassarem
na corrida – ainda “bio”? – evolutiva,
na qual os próprios sistemas ciber-
nético-informacionais se autodese-
nharão, desenhando também outros
sistemas ainda melhores num tempo
extraordinariamente curto.
Parece unânime a possibilidade
do Homo sapiens ser deixado para
Não se trata do que pode fazer com a trás, “tomando poeira” nessa jorna-
da pelo saber e pelo conhecimento.
pedra lascada e o domínio do fogo, Futuro indesejável para a nossa es-
mas como inverter sua fragilidade, pécie, seríamos como deuses cria-
dores suplantados por suas próprias
fugir de predadores, do clima, com criaturas artificiais. Quem sabe, uma
extensões tecnológicas insólita forma da mente cósmica,
aqui analisada, dará continuação à
mesmo em cognição. Quais des- Deus, impenetráveis, deixam sem- extraordinária jornada da vida e da
dobramentos um evento inaudito pre lugar ao milagre, e onde nada, inteligência nesse nosso universo
como esse poderia trazer? Daniel jamais, é impossível”. Sim, nós não conhecido? Todavia, uma diferen-
Crevier (1996, p. 271, 374), em- somos mais a pequena parte de um ça determinante faria toda a dife-
preendedor canadense, responde: sistema muito maior e mais com- rença, diria o antropólogo Gregory
“Além desse nível de organização plexo no qual emergimos através Bateson (1904-1980), em seu livro
[barreira da complexidade], dizia da bioevolução. Mente e natureza: a unidade necessá-
Von Neumann, um ser pode cons- Agora somos parte desse outro ria (1986); mas essa mente seria en-
truir outro mais complexo que ele sistema, um sistema de sistemas tec- gendrada em meio inorgânico e não
mesmo”; e, “quando as máquinas nológicos que nós mesmos criamos biológico – diríamos nós.
adquirirem uma inteligência supe-
rior à nossa, será impossível contê- BATESON, Gregory. Mente e natureza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
referências
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