Psicologias em Tempos de Pandemia - Reflexões Políticas e Práticas Clínicas

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS


CHARLES LANG
JEFFERSON BERNARDES
(ORG.)
CHARLES LANG
JEFFERSON BERNARDES
(ORG.)

PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA:


REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
As pesquisas apresentadas nesta obra foram entregues e submetidas, no ano de 2020,
ao Edital Nº 01 2020 da Editora da Universidade Federal de Alagoas (Edufal) como
partes do Programa de Publicação de Conteúdos Digitais — Seleção de Propostas para
Publicação de E-books relacionados à pandemia da Covid-19.

Editora da Universidade Federal de Alagoas

Maceió, 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
Reitor
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Revisão ortográfica e Normalização (ABNT): Teresa Ribeiro
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário: Marcelino de Carvalho Freitas Neto – CRB-4 - 1767

P974 Psicologias em tempos de pandemia [recurso eletrônico] : reflexões



políticas e práticas clínicas / Charles Lang, Jefferson Bernardes
[organizadores]. – Maceió, AL : EDUFAL, 2021.
133 p. : il.

E-book.
Inclui bibliografias.
ISBN 978-65-5624-055-8

1. COVID-19. 2. Racismo. 3. Saúde mental. 4. Psicologia. 5. Saúde


pública. I. Lang, Charles. II. Bernardes, Jefferson.

CDU: 159.9:614:578.834

Editora afiliada
Direitos desta edição reservados à
Edufal - Editora da Universidade Federal de Alagoas
Av. Lourival Melo Mota, s/n - Campus A. C. Simões
CIC - Centro de Interesse Comunitário
Cidade Universitária, Maceió/AL Cep.: 57072-970
Contatos: www.edufal.com.br | [email protected] | (82) 3214-1111/1113
A presente coletânea reúne textos que abrem reflexões e diálogos sobre as diferentes formas
de analisarmos os impactos da covid-19 no campo político e em nossas práticas clínicas
profissionais em psicologia, a partir de perspectivas teóricas e metodológicas distintas.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................7

1 PANDEMIA UM DESASTRE ANUNCIADO. E AGORA?...................... 12


Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro

2 NO TOCANTE A ISSO DAÍ................................................................ 26


Cleyton Andrade

3 AQUI É ALPHAVILLE, MANO!......................................................... 36


Cleyton Andrade
Bianca de Araújo Silva
Thianne Lourena Cardoso Roque

4 CUIDADOS E DESCUIDADOS EM TEMPOS DA COVID-19................ 42


Jefferson Bernardes

5 DESIGUALDADES RACIAIS E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: O QUE


PODEMOS (DES)APRENDER COM A PANDEMIA DA COVID-19
DESDE UMA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL?..................................53
Telma Low
Danielly Spósito
Vanessa Ferry

6 PSIS DESASSOSSEGADOS: ATENDIMENTOS CLÍNICOS ON-LINE EM


TEMPOS DE PANDEMIA........................................................................73
Charles Lang
Juliana Falcão

7 PLANTÃO PSICOLÓGICO ONLINE PARA JOVENS LGBTI+: LEITURAS


PSICOSSOCIAIS A PARTIR DE UMA PROPOSTA EMERGENCIAL DE
PROMOÇÃO À SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE
COVID-19............................................................................................... 89
Tiago Corrêa
Benedito Medrado
Jorge Lyra
8 NOVOS SENTIDOS DA PSICOLOGIA EM UM HOSPITAL DE ENSINO E
ASSISTÊNCIA NO PERÍODO DE PANDEMIA.......................................104
Jefferson de Souza Bernardes
Adriana Rêgo Lima Costa
Fayruz Helou Martins
Renata de Carvalho Cavalcante
Vanessa Ferry de Oliveira Soares

9 “CONTAR HISTÓRIAS E POVOAR O MUNDO”: TRABALHOS DO LUTO


EM MEIO A UMA PANDEMIA................................................................115
Marília Silveira

INFORMAÇÕES DAS/OS AUTORAS/ES................................................ 129


APRESENTAÇÃO

E
ntre 1347 e 1451 a peste varreu a Europa. Estima-se que setenta e cinco milhões de
pessoas tenham perecido. Pústulas escuras surgiam na pele dos contaminados. Os
europeus da época, sem ferramentas mentais para vislumbrar um mundo micro,
sem instrumentos modernos como o microscópio e sem conhecer os vetores das doenças,
atribuíam a epidemia ao castigo divino. Flagelantes andavam de cidade em cidade, em
espetáculos desoladores clamando à bondade divina o aplacamento da ira onipotente.
Morriam às centenas, aos milhares... corpos jaziam pelas ruas, eram empilhados e
carregados em carroças. Faltavam cemitérios e missas pelas almas. Muitos acreditaram
que era o fim do mundo.
A peste bubônica é um dos três tipos de peste causada pela bactéria Yersinia pestis,
transmitida principalmente por pulgas entre animais de pequeno porte. Os sintomas
iniciais aparecem entre o sétimo e o décimo dias após o contágio e ela pode ser curada
com antibióticos.
Em 1492, a Santa Maria e as caravelas que a seguiam aportaram no mar das
Caraíbas. A partir de então, as civilizações locais, e depois os incas, os maias e os astecas
foram gradativamente dizimados. O que se estendeu também para o Sul, descoberto pelos
portugueses. A Europa trouxe sua fome de ouro, sua religião, suas hierarquias e costumes,
suas estratégias e poderio militar; os espanhóis e os portugueses também trouxeram doenças
como o sarampo e a varíola, que durante o primeiro século mataram milhões de indígenas
sem anticorpos para combater o microuniverso carregado pelos europeus. O maior genocídio
esquecido da história humana. Levaram de volta das Américas a sífilis, o tabaco e, depois,
a cocaína. Navios carregados de riquezas desapareceram ou eram encontrados à deriva nos
oceanos, o que gerou inúmeras lendas e fantasmagorias. Em muitos casos, a explicação
mais simples é que a tripulação pereceu pelo ataque de piratas ou pelo escorbuto e doenças
transmitidas pelos ratos dos porões.
As epidemias acompanham os homens. Para a Organização Mundial de Saúde
(OMS) o que define uma epidemia é a propagação de uma nova doença, em um grande
número de indivíduos, sem imunização adequada para tal, em uma região específica. O
termo pandemia já era usado à época de Platão (Atenas, 428-427 – Atenas, 348-347 a.C),
com um sentido genérico, denotando qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a
população. O conceito moderno é que a pandemia é uma epidemia de grandes proporções,
que se espalha por vários países e em mais de dois continentes, simultaneamente, como
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o foi a Gripe Espanhola e a Influenza H1N1. A mobilidade humana e o número de viagens


intercontinentais são a principal causa da expansão de uma pandemia.
Em 11 de março de 2020, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS),
Tedros Adhanom Ghebreyesus, anunciou em Genebra, na Suíça, que a Covid-19, doença
causada pelo novo coronavírus, passava a ser caracterizada como uma pandemia. Naquele
dia existiam mais de 118 mil casos em 114 países e 4,2 mil pessoas tinham perdido a vida.
No entanto, em 30 de janeiro de 2020, a OMS já havia declarado que o surto do novo
coronavírus (Sars-Cov-2), causador da Covid-19, constituía uma Emergência de Saúde
Pública de Importância Internacional. À época, o vírus e a doença tinham como marco zero
o mês de dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular
da China. Em 26 de fevereiro de 2020, o primeiro caso foi confirmado, no Brasil. Depois, a
Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde informou que o primeiro caso, de fato, ocorreu
em 19 de janeiro, o que configurava já um caso subnotificado.
As notícias da propagação que vinham da China, do norte da Itália, da Alemanha,
da França, da Espanha, da Inglaterra e até do Irã começaram a fazer sentido neste lado do
Equador. Ainda que fosse algo distante e considerado um problema chinês e europeu, não
se tratava de um novo surto de Ebola, num país africano, ou do retorno da H1N1. Apesar
do negacionismo de alguns governos, anunciava-se o que se tornaria uma experiência
planetária e coletiva, com fechamento de fronteiras, portos e aeroportos, com distanciamento
e isolamento social; uma experiência até então desconhecida para esta geração conectada
ao mundo pelo smartphone e pela internet. Isto deu razão a Susan Sontag que, em seu
ensaio Doença como metáfora (1984), antecipava que as pandemias contemporâneas são
evidências de um mundo em que nada de importante é regional, local, limitado. Tudo o que
pode circular, o faz e todo problema é, ou está destinado a se tornar mundial.
O vírus se dissemina nos encontros humanos, nas ruas, nas escolas, nos consultórios,
nos bares e restaurantes. As gotículas se dispersam e são levadas por aviões, caminhões, trens,
automóveis, cruzeiros marítimos, barcos. A Covid-19 está nos ensinando o que é a globalização.
O estado de coisas originado pelo novo coronavírus inaugurou um contexto inédito no
planeta, nos últimos meses. Os impactos geraram a certeza de que saúde não é uma questão
individual e privada, mas como preconiza nossa Constituição Federal de 1988, deve ser uma
questão de Estado.
As incertezas quanto à educação de nossas crianças, jovens e adultos, quanto à
economia e ao futuro ante o imperativo do isolamento social, questionaram também nossa
necessidade de consumo e a banalização da morte. Geraram angústias, ansiedades, insônias,
lutos, e o aumento da violência, principalmente a doméstica e contra a mulher. Horrorizados,
vimos famílias serem destroçadas e, naqueles que ficaram, a dor de não poderem se despedir,
de modo digno, de um amor que se foi.
A pandemia tem gerado sofrimentos psíquicos impensados e que terão de ser visitados,
falados, elaborados, avaliados, analisados, tratados. Tal sofrimento se potencializou entre

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os profissionais de saúde que estão na linha de frente dos cuidados em relação à infecção
da Covid-19, pelas condições de trabalho, pelo medo de serem infectados e de levarem o
vírus para casa, ainda que utilizem todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s).
Inicialmente reconhecidos e saudados como heróis destes tempos tristes, vimos crescer em
nosso País a negação da doença, da ciência e a hostilidade contra eles.
Com o objetivo de oferecer um apoio à saúde mental desses profissionais, um projeto
de Extensão Universitária foi desenvolvido no Hospital Universitário Professor Alberto
Antunes da Universidade Federal de Alagoas (HUPAA/UFAL), com o objetivo de fortalecer
ações de acolhimento e escuta terapêutica durante este período de pandemia. Intitulado
Apoio Psicológico aos/às profissionais de saúde do Hospital Universitário Professor
Alberto Antunes/Ufal, o projeto envolveu docentes, técnicos/as, estudantes e profissionais
em psicologia vinculados/as ao Instituto de Psicologia (IP/UFAL), o Serviço de Psicologia
Aplicada e estagiários(as) do curso de Psicologia. No decorrer de sua realização, o grupo
se sentiu convocado a participar do Edital Número 01-2020, da Editora da Universidade
Federal de Alagoas (Edufal), com a proposta de publicação de um e-book sobre a pandemia
da Covid-19. Os artigos aqui apresentados foram assinados pelos participantes do projeto de
extensão e, também, por convidados especiais.
No primeiro capítulo, Pandemia um desastre anunciado. E agora?, a proposta
de Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro é apresentar, inicialmente, os argumentos que
norteiam tal afirmação e que estão fundamentados em dois contextos: ficção e ciência. E,
por fim, desenhar alguns possíveis desdobramentos do momento atual. A ficção refere-se
ao filme Contágio, produzido em 2011, pelo diretor Steven Soderbergh, enquanto o discurso
científico enfoca diferentes áreas do saber, com referências ao artigo de uma pesquisadora da
Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade da Georgia (USA, 2004), ao Relatório
do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP, 2016) e às falas de cientistas
brasileiros. Em resposta à pergunta enunciada ganham destaque as discussões que enfatizam
uma perspectiva preventiva, consonante com a produção de conhecimento sobre o tema dos
desastres socioambientais, seguindo as recomendações do recente relatório UNEP (2020),
cujo título é Preventing the next Pandemic (Prevenir a próxima Pandemia).
Cleyton Andrade é o autor de No tocante a Isso daí. A partir do assassinato de
George Floyd, um homem negro, por asfixia provocada por homens brancos fardados, o
texto procura fazer algumas reflexões sobre a impossibilidade de respirar que acomete os
corpos negros numa sociedade estruturada e organizada sobre o racismo negro. A violência,
fardada ou não, dentro ou fora da pandemia, que acena para a morte como destino, aponta
para a constatação de que, se por um lado o vírus não é racista, por outro, há um ordenamento
social que tende para privação da respiração de corpos que não contam, mesmo se vierem
aos milhares.
O terceiro capítulo, Aqui é Alphaville, mano! é de Cleyton Andrade, Bianca de
Araújo Silva e Thianne Lourena Cardoso Roque. Nele, o contexto de pandemia coloca em

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cena que o cuidado pessoal com a saúde passa a ter consequências de caráter coletivo,
exigindo uma reconfiguração no modo como as relações sociais se dão. Apesar disso, o cenário
não impediu a aparição de sujeitos que se orientam por outras coordenadas, reeditando o
que há de mais arcaico na constituição de uma sociedade: guiados por uma racionalidade
hierárquica, que estratifica a sociedade entre os “virtuosos” e os “sem lugar”, agarram-se a
títulos para impor poder e exercer a violência.
O capítulo seguinte, Cuidados e descuidados em tempos da Covid-19, de
Jefferson Bernardes, problematiza o conceito de cuidado quando apresentado de forma
essencialista. Por meio de leitura neopragmática explora a preocupação com o cuidado
definido a partir de princípios imanentes, pois, em última instância, quem decidirá o que
venha a ser saúde, doença e cuidado? Argumenta que a produção de vínculos, central no
cuidado, pode promover também o descuidado. Ilustra tais questões na necropolítica atual,
visibilizada de forma mais nítida na pandemia, pelas chamadas fake news e a política de
combate ao novo coronavírus pelo governo federal. Atualmente, no Brasil, há proeminente
promoção de descuidados por meio dos vínculos já existentes com a figura do mandatário
maior deste país.
Telma Low, Danielly Spósito e Vanessa Ferry assinam Desigualdades raciais e
violência de gênero: o que podemos (des)aprender com a pandemia da Covid-19
desde uma perspectiva interseccional? Neste capítulo, são tecidas algumas reflexões
sobre o que podemos (des)aprender com a pandemia da Covid-19, com enfoque nas
desigualdades raciais e violência de gênero. Busca-se, a partir de uma análise interseccional
entre gênero, cor/raça e classe, fruto das contribuições de pensadoras feministas negras,
lançar um olhar situado, implicado e complexo, acerca do exercício desigual de poder que
homens exercem contra mulheres e que mulheres brancas exercem contra mulheres negras,
gerando opressões e violências acentuadas durante a pandemia do novo coronavírus. São
três mulheres feministas antirracistas e pesquisadoras que encontraram, na escrita deste
ensaio, uma possibilidade de expressar as afetações, dores e indignações escancaradas pela
pandemia e transformá-las num convite ao exercício com o (auto)cuidado, especialmente
entre as mulheres. Toma-se o (auto)cuidado como um dispositivo político, comunitário,
solidário, revolucionário e “transforma-dor”, conforme nos ensinam as mulheres negras
feministas há séculos.
Psis desassossegados: atendimentos clínicos on-line em tempos de
Pandemia, de Charles Lang e Juliana Falcão, é o resultado de horas e horas de conversas
on-line sobre a clínica psicanalítica em tempos de #fiqueemcasa. Lives, sessões virtuais,
conversas nas redes sociais e em aplicativos de mensagens foram substituindo as palestras,
as aulas, os grupos de estudo, as reuniões clínicas, os simpósios e congressos, as supervisões
clínicas e os atendimentos presenciais. Gradativamente, aqueles que eram terminantemente
contra atendimentos on-line ou torciam o nariz para a internet se viram em um beco sem
saída. Ou se isolavam e os suspendiam indefinidamente, ou começavam a estudar as

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possibilidades (e impossibilidades) dessas novas modalidades. À luz dos atendimentos on-


line, os autores começaram a acompanhar e a pesquisar o que começou a ser produzido
teoricamente sobre essa passagem inesperada do presencial para o on-line. Além disso,
apontam para as peculiaridades daqueles atendimentos que já se iniciaram exclusivamente
on-line. Este texto foi construído com o objetivo de refletir sobre os impasses, dificuldades,
resistências e mudanças no enquadre, que advêm dos atendimentos on-line no período de
isolamento, assim como no segundo tempo pós-pandemia.
Tiago Corrêa, Benedito Medrado e Jorge Lyra escreveram o quinto capítulo, Plantão
psicológico online para jovens LGBTI+: leituras psicossociais a partir de uma
proposta emergencial de promoção à saúde mental no contexto da Pandemia
de Covid-19. Neste, trabalham sobre uma experiência situada de teleatendimento, num
plantão psicológico online desenvolvido por um dos autores, em caráter voluntário. No
formato de ensaio, buscam apresentar questões de ordem psicossocial sobre saúde mental de
jovens LGBTI+, abordando desafios e aprendizagens quando se pensa em oferta de cuidados
em saúde mental, no contexto da pandemia da Covid-19.
Novos Sentidos da Psicologia em um Hospital de Ensino e Assistência no
Período de Pandemia é o título do capítulo de Jefferson Bernardes, Adriana Rêgo Lima
Costa, Fayruz Helou Martins, Renata de Carvalho Cavalcante, Vanessa Ferry de Oliveira
Soares. Apresenta reflexões sobre as mudanças no cotidiano de trabalho e nas práticas
profissionais em psicologia que ocorrem em ambiente hospitalar, a partir do contexto da
pandemia pela Covid-19. Toma centralidade no cotidiano as chamadas “desimportâncias”,
historicamente marcadas pelas tecnologias leves. Reflete as mudanças ocorridas nas práticas,
em função da entrada das novas tecnologias na atenção ao cuidado, no monitoramento dos
fluxos e processos da clínica com as famílias de internados pela Covid-19 e nas comunicações
de notícias difíceis entre profissionais e familiares. Explora o quanto os processos de trabalho
se modificaram em função da pandemia, com a psicologia se reinventando no seu dia a dia.
O último capítulo, de Marília Silveira, Contar histórias e povoar o mundo:
trabalhos do luto em meio a uma pandemia, trabalha o tema do luto nos tempos de
pandemia. A autora convoca as memórias para conjurar os espectros (DERRIDA, 1994), a
partir de narrativas de diferentes tempos de vida, que se conectam com o drama das mortes
pela Covid-19. Faz uma aposta na forma de pensar as heranças, aliando as “ideias para adiar
o fim do mundo” (KRENAK, 2019) às fazedoras de histórias (DESPRET; STENGERS, 2011)
e finalizando o ensaio com uma aposta de caminhos possíveis para os lutos da pandemia.
Por fim, queremos novamente registrar o nosso agradecimento à jornalista e doutora
em literatura brasileira (USP/UFAL) Teresa Ribeiro, pelo seu trabalho paciente e meticuloso
de revisão dos manuscritos. Sua disponibilidade e atenção foram novamente fundamentais
para a realização de mais este trabalho em que ela nos acompanha. Obrigado, Tê!

Charles Lang e Jefferson Bernardes

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PANDEMIA UM DESASTRE ANUNCIADO. E AGORA?
Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro

A afirmação deste título está fundamentada em dois contextos: ficção e ciência. As


narrativas, que são trazidas desses âmbitos provocam a pergunta: e agora? A proposta é
apresentar, inicialmente, os argumentos que nortearam tal afirmação e, por fim, desenhar
alguns possíveis desdobramentos do momento atual, em que a população mundial ainda se
encontra atemorizada pela contaminação do novo coronavírus.

Realidade ou ficção?

O primeiro contexto, qualificado como ficcional, refere-se ao filme americano,


Contágio, produzido em 2011, pelo diretor Steven Soderbergh. Um dos mais vistos na
quarentena, segundo informa a jornalista da Folha de São Paulo/UOL, Cristina Padiglione,
em sua coluna Telepadi, de 9/4/2020. Tem sido acessado em algumas plataformas de
streaming, como também reproduzido na programação do canal de TV a cabo, HBO, por
vários dias, durante o mês de julho, quando escrevo este ensaio.
O motivo desse revival do filme pode ser explicado pelas semelhanças com a situação
vivida hoje, com a pandemia causada pelo novo coronavírus. Traz, em seu enredo, o drama
da contaminação e da rápida circulação de um vírus que, além de seu potencial de letalidade,
impacta o sistema de saúde, pela falta de um tratamento eficaz e de uma vacina. As medidas
de proteção mostradas na tela são as mesmas adotadas atualmente: distanciamento físico;
uso de álcool em gel e de máscaras; fechamento das escolas e do comércio; bloqueios para
impedir a circulação. Focaliza as várias possibilidades do contágio, desde o aperto de mão,
os elevadores, a tosse, a aglomeração das pessoas, o celular. E inclui a desconfiança nas
informações que são obtidas pela internet, embora não as nomeie como fake news.
O roteirista Scott Z. Burns e o diretor do filme inspiraram-se no surto da Sars de
2002-2004 e na pandemia de gripe A de 2009, tendo o primeiro consultado representantes
da Organização Mundial da Saúde (OMS), médicos e especialistas em epidemias, conforme
disse à correspondente da Folha de S. Paulo em Los Angeles, Fernanda Ezabella, na ocasião
da estreia do filme, em 2011.
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Essas referências à produção de Contágio impõem um questionamento sobre quão


próxima da realidade essa ficção se apresenta.
Entre os comentários que circularam, na época do lançamento do filme encontra-
se o ensaio do filósofo argentino Maximiliano E. Korstanje (2012), Contagio y Pandemia:
Crónicas de un Desastre Apocalíptico, que o analisa como a representação do discurso
discriminatório americano do desastre, de caráter etnocêntrico, por localizar o surgimento
do vírus em Hong Kong e situar o perigo no outro, não ocidental.
O etnocentrismo apontado por Korstanje está relacionado ao fato de a China ser
apresentada como um lugar que tem pouco controle sanitário sobre a alimentação e, por
isso, se configurar como ideal para ser de lá a origem do vírus. Mas isso não é uma invenção
ou discriminação. Embora não seja o único lugar onde as demais doenças epidêmicas têm
surgido, é exatamente de lá que vêm os dois coronavírus (Sars-CoV e Sars-CoV-2), pelo mesmo
motivo. Os primeiros casos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) apareceram na
província de Guangdong, no sul da China, em novembro de 2002, cuja origem presumida
foram as civetas, mamíferos semelhantes a gatos, que estavam sendo vendidos em mercados
de animais vivos, como alimentos exóticos. Enquanto as primeiras infecções pelo Sars-CoV-2
foram relacionadas a um mercado de animais vivos em Wuhan, na China, sugerindo que o
vírus foi transmitido por animais que estavam sendo vendidos como alimentos exóticos para
os seres humanos (Manual MSD).
Esses aspectos socioambientais serão retomados mais adiante, mas é relevante
acrescentar as considerações do biólogo e doutor em microbiologia brasileiro, Átila Iamarino,
em entrevista ao programa televisivo Roda Viva, em março de 2020, início da pandemia,
ao dizer que, a SARS, que circulou em 2002-2003, serviu como um modelo epidemiológico
para diversos estudos, que mostraram o que poderia ser uma pandemia.
Ao consultar a publicação SARSReference, produzida pelos pesquisadores alemães
Kamps e Hoffmann, em 2003, é surpreendente a semelhança com a configuração dos
acontecimentos atuais1. E foi justamente esse contexto que inspirou o diretor e também o
roteirista de Contágio.
Em sua análise do filme, o filósofo Korstanje (2012) ressalta um aspecto importante
que ocorre em certas situações de desastres, em que podem ser invertidas as causas e as
consequências, fundamentando-se o problema nas diferenças de classes sociais. Traz
como exemplo a gripe A (H1N1), cuja disseminação começa pelas classes privilegiadas,
nos principais aeroportos do mundo, tal como na situação atual que gerou a pandemia.
Avalia que, posteriormente, aqueles que sofrem mais fortemente seus efeitos – a população
mais vulnerável –, passam a ser a causa de sua propagação, enquanto quem os iniciou se
desvincula da responsabilidade.
A responsabilização das vítimas é recorrente em várias situações de desastres, mas há
um equívoco na sua compreensão de forma monocausal, como também em nomeá-los como

1 Leia mais na publicação SARSReferense. Disponível em: <http://sarsreference.com/sarsref/timeline.htm>

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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algo natural, quando se entende, por exemplo, que é o modelo de desenvolvimento que está
ameaçado pela pandemia e não o contrário, que a pandemia é o resultado deste modelo.
Por outro lado, há um equívoco na avaliação de Korstanje (2012) sobre a probabilidade
de ocorrência de uma pandemia, pois baseia-se em outros surtos epidêmicos, nos quais
o vírus perde a letalidade à medida que infecta mais agentes, como o ocorrido durante a
gripe HIN1. Ele situa como alarmistas as teorias de especialistas, inclusive da biologia, que
anunciam constantemente a possibilidade de surgimento de um vírus, cuja letalidade seria
igual ao seu índice de propagação, teorias que contradizem essa premissa e influenciam os
meios de comunicação. Termina por concluir que tal transmissão do vírus é uma situação
possível, mas improvável.
Sem desconsiderar que o etnocentrismo está presente não só nos filmes americanos,
mas em muitas ações, principalmente no atual governo, não é o caso de ser associado ao
local em que, no filme, a doença se inicia.
A desqualificação dos estudos científicos é recorrente nos discursos da conspiração,
quando dizem que o Sars-Cov-2 foi produzido em algum laboratório da China, nos alarmismos
atribuídos aos meios de comunicação e no negacionismo, também presente no ensaio do
filósofo argentino.
Observemos as informações veiculadas em estudos científicos, relacionadas aos riscos
de uma pandemia, e as discussões que alicerçam a afirmação de que ela pode ser considerada
um desastre anunciado, apesar de ter causado surpresa a muitos.

Os anúncios da ciência

Vários são os estudos científicos que poderiam ser aqui elencados, para sustentar a
afirmação de que foram feitos alertas científicos sobre a possibilidade de uma pandemia,
como a que está ocorrendo agora, em 2020. Entre eles, dois documentos chamam a atenção,
pela data em que foram escritos e pela qualidade das informações, que podem contribuir,
tanto para compreender o momento atual, como para planejar um futuro.
O primeiro é o artigo de uma pesquisadora, Cathy Brown (2004), do Laboratório
Athens de Diagnóstico Veterinário, da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade
da Georgia, USA. O segundo, é um capítulo do relatório do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (UNEP, 2016), que é a voz do meio ambiente dentro do sistema das
Nações Unidas, destacando temas emergentes de preocupação global e soluções para uma
resposta eficaz e oportuna. Traz as últimas descobertas científicas ou outras persistentes,
sobre as quais surgiram novas abordagens e tecnologias.

Os alertas das doenças zoonóticas

Em 2004, Brown publica um artigo que proporciona um panorama sobre a


emergência das zoonoses (doenças infecciosas que podem ser naturalmente transmitidas

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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entre animais e humanos) e sua importância para a Saúde Pública. Informa, inicialmente,
sobre um alerta da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), divulgado em 2000,
sobre o aumento das zoonoses. Considera que a visão apocalíptica, anunciada nos últimos
anos, sobre a emergência de uma doença provocada por um agente desconhecido e capaz
de reduzir drasticamente a população humana, antes dos recursos e do conhecimento
serem organizados, poderia estar mais próxima da realidade, do que ser um alarmismo.
Assinala o advento da SARS, em 2002, como parâmetro para suas considerações,
em concordância com o que foi dito por Átila Iamarino, microbiologista brasileiro,
mencionado anteriormente.
Brown (2004) informa, ainda, que estudos atuais avaliam que 75% dos agentes
das doenças infecciosas em humanos, nos últimos 20 anos, são patógenos de animais.
E, relacionando o número crescente de espécies hospedeiras e de patógenos, além da
possibilidade de novas mutações, pondera que não deveria ser uma surpresa a emergência
de doenças zoonóticas como tema de saúde pública e animal.
Demonstra a evidência da imprevisibilidade e impacto dessas doenças, com os
exemplos mais recentes que emergiram das zoonoses, tais como Ebola, Nipahvírus,
Encefalopatia espongiforme (doença da vaca louca), Sars, entre outras, sem mencionar
a Aids, que ocorreu há mais tempo, além da Mers, Influenza (gripe aviária) e Zica, que
apareceram na década seguinte. Já naquela época, Brown (2004) previu a emergência
de novas doenças diante do cenário que ela estava apresentando, mas considerou a
imprevisibilidade de quando iriam surgir e avaliou que a única certeza era de que as
comunidades veterinárias e de saúde pública precisavam estar preparadas. Para isso,
apontou os problemas que deveriam ser considerados, tais como movimentação de animais,
perturbações ecológicas, microrganismos não cultiváveis, doenças crônicas, melhora da
vigilância e terrorismo.
Todos esses fatores apontados estão relacionados ao aumento da população e ao
fenômeno da globalização. Inclusive, ao abordar estudos que investigam as causas de doenças
crônicas associadas à infecção de organismos, décadas antes, traz um dado inquietante para
o campo da Saúde Mental.
Refere-se à relação da Toxoplasmose com a Esquizofrenia, analisada em estudos
sorológicos, com referência de Torrey E. F. e Yolken R. H. (2003). E consultando essa
publicação referenciada por Brown (2004), são vários estudos, realizados desde 1953, que
investigam os anticorpos da toxoplasmose em pessoas com esquizofrenia e outras desordens
psiquiátricas severas, comparando-as com um grupo controle, que indicaram ser esta
correlação significativa (TORREY; YOLKEN, 2003).
Esses estudos levam Brown (2004) a questionar se uma doença anteriormente
considerada não infecciosa, como a esquizofrenia, pode de fato ter uma origem zoonótica e,
se outras doenças crônicas também poderiam ter sido causadas por algum agente infeccioso,
tempos atrás.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Ao concluir seu artigo, Brown (2004) chama a atenção para o declínio da infraestrutura
da Saúde Pública no mundo e ressalta que as estratégias de enfrentamento dessas doenças
zoonóticas emergentes não podem se restringir a ações específicas para cada doença. A
partir do panorama apresentado e ao considerar o inextricável entrelaçamento entre a saúde
humana e a dos animais, sinaliza que:

Há uma necessidade urgente de reconstruir os conhecimentos de forma


sinérgica, para expandir efetivamente competências e conhecimento
científico em áreas novas e integradas e dentro de um maior contexto global.
A saúde do mundo depende disso (BROWN, 2004, p. 440).

A chamada ou pode-se dizer até a convocação para uma ação conjunta, que integre
conhecimentos para enfrentar a complexidade dos problemas que têm surgido no mundo,
não vem apenas desta pesquisadora. Tal proposta é bem mais antiga e Brown (2004) refere-
se a um médico alemão, Rudolf Virchow, que, em 1855, estudando triquinelose (doença
transmitida por um verme), passou a defender, ao longo de sua carreira, a necessidade de se
vincular a medicina humana à veterinária, propondo uma única Medicina.

Relatório da ONU - Alertas e Orientações

A ideia de um conhecimento único, integrando vários saberes, vem reverberando,


com mais intensidade, ao longo desses últimos 15 anos, pelo menos. Encontra-se presente
também no Relatório da UNEP (2016), que congrega vários estudos científicos.
No capítulo “Zoonoses: Blurred Lines of Emergent Disease and Ecosystem Health”
(Zoonoses: Linhas borradas entre doenças emergentes e saúde do ecossistema) (UNEP, 2016,
p. 18) são apresentadas, tanto o surgimento como o ressurgimento de doenças zoonóticas,
intimamente interligadas à saúde dos ecossistemas.
O relatório informa que, em média, uma nova doença infecciosa surge em humanos
a cada quatro meses e as zoonoses são oportunistas, afetando os hospedeiros que já estão
fragilizados por condições ambientais, sociais ou econômicas.
E como isso acontece? A explicação está no fato de os patógenos serem originários da
vida selvagem e, muitas vezes, a pecuária serve como uma ponte epidemiológica entre a vida
selvagem e os humanos. Exemplifica com o que ocorreu no caso da gripe aviária ou influenza
aviária, doenças que circularam primeiro em aves selvagens, depois as aves domésticas
foram infectadas e delas passaram aos seres humanos.
Além disso, ao especificar mais detalhadamente os fatores que levam ao surgimento
das doenças zoonóticas, o Relatório informa que os cientistas consideram três tipos
diferentes de mudanças, permitindo que patógenos virulentos iniciem um novo movimento,
de hospedeiro animal para hospedeiro humano: mudanças no ambiente, no hospedeiro ou
no próprio patógeno.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

As mudanças no ambiente estão geralmente relacionadas às atividades, que vão


desde as alterações no uso da terra até as climáticas. A invasão de ecossistemas naturais,
através da exploração de recursos, da atividade agrícola e dos assentamentos humanos
oferece aos patógenos oportunidades de se transmitirem dos animais selvagens para as
pessoas, especialmente quando a resistência natural à doença é perdida.
Tudo isso, acrescido ainda das evidências, cada vez mais indicativas, de que surtos
ou doenças epidêmicas podem se tornar mais frequentes, à medida que o clima continua
a mudar.
Quanto ao hospedeiro humano, as modificações de seu comportamento são
fatores determinantes da emergência de doenças zoonóticas, incluindo viagens, conflito,
migração, comércio de animais selvagens, globalização, urbanização e mudanças em suas
preferências alimentares.
As alterações nos próprios patógenos ocorrem, à medida que vão explorar novos
hospedeiros ou adaptar-se às pressões para mudanças evolutivas. Um dos exemplos
apresentados é o surgimento da resistência a medicamentos antimicrobianos, resultado do
seu uso indiscriminado, acrescido da resistência antimicrobiana criada no gado e que pode
afetar os seres humanos. Explica que essa é a razão de os antibióticos não funcionarem mais,
quando as pessoas ficam doentes.
Outro aspecto relevante apontado no documento (UNEP, 2016) são as doenças
zoonóticas negligenciadas, consideradas como mais um problema importante, além das
doenças emergentes e daquelas com potencial de causar pandemias. Elas são endêmicas
nas populações pobres afetadas e ainda recebem muito menos atenção e financiamento
internacional do que as doenças emergentes, além de persistentes em comunidades com
complexos problemas de desenvolvimento. Entre elas estão: Antraz, Brucelose, Cisticercose
(taenia de porco), Equinococose (hidatidose), Encefalite japonesa, Leishmaniose,
Leptospirose, Febre Q, Raiva, Trematodiases, transmitidas por alimentos, Tripanossomíase
e Tuberculose bovina.
Essa lista traz um impacto e um incômodo ao se constatar a dimensão do problema das
doenças zoonóticas que são negligenciadas. A configuração da negligência da leptospirose
humana, na política pública de saúde brasileira, pode ser dimensionada no estudo recente
(MARTINS; SPINK, 2020), que analisa, de uma perspectiva psicossocial, as discrepâncias
e lacunas informacionais que produzem uma versão duplamente negligenciada. Os
pesquisadores concluem nesse estudo, que:

A leptospirose é uma doença da pobreza, com uma população camuflada


pela invisibilidade de dados populacionais e cujo mimetismo e
sazonalidade geram invisibilidades clínico-diagnósticas que impedem um
reconhecimento maior da população acometida pela doença. Logo, ela
se torna um alvo fácil do racismo de Estado, sendo a visibilidade dessas
questões a primeira forma de enfrentamento a essa mecânica que não

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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apenas negligencia duplamente a doença, mas as pessoas por ela afetadas


(MARTINS; SPINK, 2020, p. 927).

Essas considerações ressoam com o que assinala o relatório (UNEP, 2016), de


que já existem estratégias eficazes para controlar a maioria das zoonoses negligenciadas,
entretanto, o principal impedimento para que isso se resolva é a falta de investimento. Mas,
não, de método. Além das estruturas de políticas públicas para lidar com estas doenças
serem frequentemente fracas, há grandes desconexões entre política e implementação.
Avalia-se, que o controle bem-sucedido de zoonoses requer um arcabouço legal e
político criterioso, instituições que funcionem bem, financiamento adequado, detecção rápida
e um plano para implementar a intervenção. Pesquisas colaborativas multidisciplinares
e multinacionais também serão necessárias para explorar as ligações entre dinâmicas
ambientais, vetores de doenças, patógenos e suscetibilidade humana.
Tudo muito distante da realidade brasileira. Todos esses fatores elencados como
necessários para o enfrentamento das doenças zoonóticas podem ser traduzidos para
avaliar a situação atual da pandemia. Durante a entrevista da biocientista e doutora em
microbiologia Natália Pasternak, no programa Roda Viva, em junho de 2020, ela avalia
que a gestão para o enfrentamento da Covid-19, no Brasil, é uma receita para um desastre
que se concretiza a cada dia. Entre os fatores apontados, está a falta de um comitê científico
composto por epidemiologistas, profissionais da saúde, economistas, diversos setores do
comércio, entre outros, para assessorar tanto o governo federal como os estaduais.
Ainda que haja um comitê científico, o que se pode ver, em relação ao existente no
Nordeste do país2, é que as recomendações nem sempre estão sendo seguidas pelos governos
estaduais, especialmente as orientações quanto à flexibilização.
Retomando o Relatório (UNEP, 2016), os estudiosos observam que, além dos aspectos
econômicos e políticos para que as ações de enfrentamento das doenças zoonóticas sejam
bem-sucedidas, tais doenças são distúrbios particularmente complexos, que dizem respeito
a três setores (ambiente, agricultura e saúde) que atuam muitas vezes de forma isolada.
Uma das dificuldades apontadas para a articulação entre os setores no controle
das zoonoses é a falta de colaboração entre autoridades médicas e veterinárias, deixando
as preocupações com zoonoses de lado, apesar da promessa das iniciativas One Health
e Ecohealth. A avaliação é que essas abordagens foram amplamente endossadas, mas
raramente são utilizadas nos níveis locais, onde são mais necessárias.
Essas abordagens são ressoantes ao chamado ou convocação da pesquisadora Brown
(2004), trazida anteriormente, pois o termo One Health trata da integração entre saúde
humana, saúde animal, ambiente e adoção de políticas públicas efetivas na prevenção e
controle de enfermidades. E tem ganhado espaço crescente dentro das discussões científicas

2 Leia mais no site do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus – Consórcio Nordeste, disponível em:
<https://www.comitecientifico-ne.com.br>.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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que tratam de questões ligadas à epidemiologia. Traduzido como Saúde Única, em


português, o termo foi utilizado em 2007, durante a Conferência Ministerial Internacional
sobre Influenza Aviária e Pandêmica, realizada em Nova Deli, na Índia, e que contou com a
presença de representantes de 111 países e de 29 organizações internacionais. Os governos
foram encorajados a aplicar o conceito de One Health, construindo pontes de ligação entre
os sistemas de saúde humana e animal. No ano seguinte, organizações internacionais como
a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), Organização Mundial de Saúde (OMS)
e Organizações das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) passaram a
desenvolver estratégias conjuntas dentro do conceito One Health, cujo objetivo é tentar
reduzir os riscos de emergência e disseminação de doenças infecciosas resultantes da
interface entre animais, humanos e ecossistemas (Revista Avicultura Industrial – publicada
em 23/6/2016).
O enfoque da EcoHealth configura-se no campo das pesquisas que examinam as
complexas relações entre seres humanos, animais, meio ambiente e como essas relações
afetam a saúde de cada um desses domínios. Os três pilares metodológicos originais,
descrito por Lebel, em 2004, são a transdisciplinaridade, a participação e a equidade. O
termo foi usado pela primeira vez, em 2006, na primeira conferência bienal da International
EcoHealth Association (LISITZA; WOLBRING, 2018).
Essas abordagens estão reverberadas nas considerações finais do capítulo sobre as
zoonoses no Relatório (UNEP, 2016), ao orientar que as ações, para serem bem-sucedidas,
requerem que seja investigada a origem e as causas das doenças emergentes, que estão no
fato de as atividades humanas estarem impondo tensões extremas nos ecossistemas e em
sua capacidade de funcionar. A vigilância aprimorada e as capacidades de resposta rápida
são importantes e urgentemente necessárias, mas consideradas meios insuficientes para
controlar o surgimento de doenças zoonóticas.
Os serviços ecossistêmicos dos quais dependem a saúde dos animais, das pessoas e do
planeta devem ser restaurados, salvaguardados e valorizados.
Essas orientações e recomendações, publicadas em 2016, pouco ou nada foram
seguidas, mantendo-se a atitude global de responder exclusivamente às situações emergentes,
com pouco ou nada investido na sua prevenção. Está aí o resultado, a pandemia provocada
pelo novo coronavírus.
Em artigos produzidos e pronunciamentos feitos pelos cientistas, neste momento,
tem sido considerado que a pandemia é um desastre anunciado. Quando perguntaram ao
biólogo Átila Iamarino, durante o programa Roda Viva, já mencionado, se faltaram alertas,
ele respondeu: “Alertas não faltaram, faltaram ações. Epidemiologistas já falavam sobre o
risco de uma pandemia”. E ainda previne: “este não é o pior cenário”.
Diante desse panorama, emerge a pergunta: e agora?

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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E agora? Da ciência às práticas cotidianas

Escrever sobre este momento inusitado de incertezas tem sido um recurso tanto para
dimensionar os acontecimentos, como para conjecturar sobre as possibilidades de futuros
projetos, mesmo que sua realização seja improvável.
Os inúmeros artigos, livros, cursos, entrevistas, entre outros, produzidos neste contexto
da pandemia apresentam diversas considerações sociais, políticas, econômicas, sanitárias.
Para responder à pergunta enunciada, escolho ressaltar as discussões que enfatizam
uma perspectiva preventiva, consonantes com a produção de conhecimento, sobre os temas
dos desastres socioambientais e que têm sido desenvolvidas no grupo de pesquisa PROSA, do
qual participo, com estudantes de graduação e de pós-graduação do Instituto de Psicologia
da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
O mais recente Relatório UNEP (2020), cujo título é Preventing the next Pandemic
(Prevenir a próxima Pandemia), em parceria com o International Livestock Research
Institute (ILRI) e outros, desenvolve uma avaliação, baseada em evidências, sobre o risco
de futuros surtos zoonóticos. Apresenta detalhadamente o histórico das zoonoses, ao longo
dos últimos 100 anos, com as causas de seu surgimento e disseminação, incluindo aquelas
relacionadas ao novo coronavírus. Esse panorama fundamenta as dez recomendações às
Políticas Públicas elencadas no final do Relatório, norteadas pela abordagem One Health.
Propõe, com essas recomendações formuladas (UNEP, 2020, p. 53), ajudar governos,
empresas e outros atores a reduzir o risco do surgimento de futuros surtos de doenças.
Embora muitas delas dependam de investimento político e econômico, considero
que, pelo menos quatro, possam ser apropriadas por outros segmentos, especialmente
pela Educação, ainda que seja um grande desafio. Entre elas estão: Consciência, Ciência,
Capacitação e Operacionalização da abordagem One Helth.
Sobre a Consciência, recomenda sensibilizar e aumentar a compreensão de zoonóticos
quanto aos riscos e prevenção de doenças emergentes, em todos os níveis da sociedade, para
construir amplo apoio às estratégias de redução de risco.
Quanto à Ciência, propõe que a investigação científica se expanda sobre as complexas
dimensões sociais, econômicas e ecológicas das doenças emergentes, incluindo zoonoses,
para avaliar riscos e desenvolver intervenções na interface com o ambiente, saúde animal e
saúde humana.
Já a capacitação é proposta, no sentido de fortalecer as competências existentes e
desenvolver novas, nos segmentos de interesse da Saúde, em todos os países, para melhorar
os resultados e ajudá-los a entender as dimensões sanitárias das doenças zoonóticas,
relativas ao humano, ao animal, ao meio ambiente e outras.
Por fim, propõe integrar e implementar adequadamente a abordagem One Helth
no uso da terra e no planejamento, implementação e monitoramento do desenvolvimento
sustentável, entre outros campos.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Por que essas recomendações deveriam ser integradas à Educação, embora seja um
grande desafio?
A microbiologista Natália Pasternak, durante sua entrevista ao programa Roda Vida,
já mencionado anteriormente, afirma que o não investimento em Educação nas últimas três
décadas, no Brasil, é um dos motivos para as pessoas não seguirem as recomendações da
ciência e as informações veiculadas na imprensa sobre o uso de máscaras, por exemplo.
Além dos maus exemplos das autoridades governamentais, de todos os escalões, uma vez
que parece faltar, também a eles, os conhecimentos básicos da ciência e da educação.
Esses aspectos levam à avaliação de que a comunicação é necessária, mas não
suficiente para ser compreendida. Daí a necessidade apontada pelo Relatório UNEP (2020),
de ampliar o conhecimento de toda a população a respeito dessas doenças que passam dos
animais para os humanos.
Difícil tarefa, a de fazer crer na existência do mundo invisível dos vírus e das bactérias,
quando é necessário um instrumento que não está disponível, nem para muitos daqueles que
têm a chance de ir à escola. Mas é possível apelar para os seus efeitos, que estão didaticamente
explicados no Relatório UNEP (2020).
A outra recomendação, para que as pesquisas científicas sejam desenvolvidas
articulando várias áreas, implica na necessidade de reformulações na Educação. Para que
esse diálogo entre saúde humana, animal e meio ambiente ocorra, é preciso que ele seja
iniciado desde a educação básica.
As discussões atuais sobre a interprofissionalidade e formação em saúde (TOASSI,
2017) sinalizam o movimento para romper com a lógica compartimentada de ensino e
práticas em Saúde, cuja mudança se mostra impreterível, com o advento da pandemia.
E a capacitação proposta pode estar relacionada à Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde (PNEPS), que é uma estratégia do Sistema Único de Saúde (SUS) para
a formação e o desenvolvimento dos seus profissionais e trabalhadores, buscando articular
a integração entre ensino, serviço e comunidade.
Ou seja, não faltam políticas públicas, para que sejam desenvolvidas as ações
recomendadas, mas é preciso superar o hiato entre o que está proposto e sua execução. E
ainda, por outro lado, realizar ações públicas independentes do que está proposto como
política, promovendo um movimento a partir do território e repercutindo as reflexões de
Portella e Oliveira (2020), sobre a necessidade de um sistema de gestão orientado pelo
território e para o território, na defesa dos direitos à vida.
A última recomendação do Relatório UNEP (2020) sobre a integração e
implementação da abordagem One Helth pode ser identificada como um chamado, refletido
na fala da atual presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nísia Trindade de Lima, na live de
encerramento do Curso “Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Situação de Pandemia”,
promovido on-line pela Fiocruz Brasília. Considera que:

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Esse curso trará ensinamentos para além da experiência desta pandemia.


Sabemos e os textos vêm apontando isto, que é uma perspectiva muito
cara para quem trabalha com desastres, que de modo algum podemos falar
em surpresa com essa pandemia. Ainda que vivamos esta grande ruptura
no nosso cotidiano e esse grande impacto na vida de todas as pessoas
e no nosso Sistema de Saúde. Não é uma surpresa, porque há quase 20
anos o mundo viu a eclosão, de surtos, de doenças virais, especialmente
de coronavírus, fazendo essa passagem do animal não humano, para nós
humanos. Isto tudo são tendências que há algum tempo pesquisadores
das diferentes áreas de conhecimento, lideranças do campo da Saúde vêm
observando. Não podemos mais não olhar com muita atenção, não apenas
para a preparação frente às emergências, mas olhar especialmente para
o nosso cuidado com a vida, com o modelo de desenvolvimento, com as
relações entre países, com as relações que implicam o espaço público, que
nos permita a troca de experiências e a construção de belos caminhos, que
também nos permita reforçar o cuidado como a dimensão fundamental
da vida em sociedade. Não o cuidado que nos paralise pelo medo, mas o
cuidado que nos valoriza, que valoriza nossa vida em grupo, que valoriza
nosso ser como pessoa, que é fundamental quando pensamos na Saúde e no
futuro da sociedade (LIMA, 15/07/2020).

As considerações sobre a necessidade da cooperação de várias áreas da ciência,


quanto ao investimento em ações preventivas, são uníssonas, vindo de vários lugares, mas
lamentavelmente ainda estão restritas às instituições, aos cientistas.
Traduzir essa necessidade à população está sendo e será o grande desafio e só será
possível se os saberes dos povos tradicionais forem valorizados e incorporados aos saberes
científicos e da população em geral.
Esse é o posicionamento que tenho defendido desde minha tese de doutorado
(RIBEIRO, 2011), finalizada em 2003, e publicada em livro. Na discussão sobre
desenvolvimento, sustentabilidade e revalorização dos conhecimentos locais, trago como
um dos exemplos do confronto entre os especialistas e os saberes locais, a experiência,
contada por Peter Spink (2001), dos Krahò, um grupo seminômade que ocupava uma área
no estado do Tocantins:

O fracasso da proposta feita pelos órgãos governamentais para esse grupo,


de trocarem suas prósperas plantações de milho por arroz, não foi admitido
como relacionado à inadequação do solo, mas à incompetência do grupo,
e por isso foram deixados à mingua. Somente vinte cinco anos mais tarde
foi possível recuperar o conhecimento dos Krahò, pois as sementes que
tinham sido armazenadas no Centro Nacional de Recursos Biotecnológicos
e Genéticos foram plantadas e começaram a crescer, graças a uma conversa
casual entre um técnico do centro e uma pessoa que tinha trabalhado junto
com os Krahò (RIBEIRO, 2011, p. 59).

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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E a compreensão sobre a relação entre o humano e a natureza, que pode ajudar a


desnaturalizar os fenômenos advindos dos desastres e assumir a responsabilidade das
ações que temos praticado, também pode ser aprendida não apenas com os cientistas. O
conhecimento do povo indígena Huni Kunin (que vive na fronteira entre Brasil e Peru,
no estado do Acre), sobre as doenças como consequência da ruptura do equilíbrio entre
humanos e não-humanos, é apontado por Portella e Oliveira (2020), ao se referirem ao
relato da antropóloga Elsje Lagrou:

No universo dos povos das florestas, a cosmopolítica dos humanos consiste


em matar somente o necessário e em negociar um equilíbrio com os donos
das espécies ou com os próprios duplos dos animais. Para esses povos há uma
compreensão profunda e aceita de que para se viver, mata-se, no entanto,
a predação gera uma contra predação. Isso é o que chamam de nisun e a
pandemia seria justamente esse fenômeno de desequilíbrio. Para esses
povos, não há separação entre natureza e cultura (PORTELLA; OLIVEIRA,
2020, p. 373).

Concluo que temos muito o que aprender, para poder ensinar e mudar muitos “nisun”.

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VOCÊ CONHECE o conceito One Helth (Saúde Única)? Revista Avicultura Industrial, Itu,
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22 jul. 2020.

25
2
NO TOCANTE A ISSO DAÍ
Cleyton Andrade

Cena I

“I can’t breathe, please, I can’t breathe, I can’t breathe...” no dia 25 de maio de 2020
esse som ecoou apesar de insistir como inaudível. O som da voz rouca, que procurava dividir
espaço entre o apelo emitido pelas cordas vocais pressionadas e a tentativa de manter a
respiração, parece não ter sido ouvido. Nem “breathe”, nem “I can’t”, muito menos “please”.
Nenhum som provocou hesitação. Não ruborizou. Nem ao menos dividiu nenhum daqueles
policiais brancos. O corpo branco, diluído na farda, que se depositava sobre o joelho, não
recuou frente às possíveis reações do corpo negro no asfalto. Que não tivesse visto as pupilas
dilatarem, postas ao chão, longe do alcance da visão branca... que seja! Mas ainda restavam,
além do apelo da voz, a respiração ruidosa, tosses, cianose na face – ainda que preta. Asphyxia
era a palavra grega que refletia a crença de uma relação íntima entre respiração e circulação
do sangue (de que cor?). A asfixia é a obstrução mecânica que impede o funcionamento
da capacidade respiratória. Uma insuficiência respiratória provocada. Neste caso, uma
insuficiência respiratória de um homem negro, causada não por um único homem branco,
mas pelos homens brancos. E isso não acontece de modo harmônico e silencioso. Se Floyd
não resistia à prisão, provavelmente por saber do ônus que isso implicaria, é bem provável
que seu organismo se debatesse contra a sua própria vontade, em busca de mais um pouco de
ar... mais um pouco de ar para respirar. Seria impossível não ver, não ouvir. E, ainda assim,
não o foi. Como uma violência como essa pode, contudo, se manter invisível e inaudível?

Cena II

Em alguns espaços ainda circula a concepção distorcida de que a psicanálise pouco


se interessa pelo coletivo, pelas discussões sociais e políticas. A ausência da oferta de
um programa ou projeto prescritivo de reconfiguração das relações sociais, de trabalho
e de poder deu as cartas para uma suposta alienação, seja ela epistemológica ou política,
acerca das relações entre a psicanálise e a realidade. De fato, nem Freud, nem Lacan,
para ficarmos apenas com os dois, propuseram modos alternativos de relações sociais e
políticas. Nunca nutriram expectativas de que outro modo de configuração nos processos
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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de socialização responderia à altura, aos anseios de nos livrarmos do sofrimento, do mal-


estar ou dos sintomas. Não apostam num éden, mas desfazem ilusões em torno de qualquer
figurabilidade de uma metalinguagem. Não há Outro do Outro é um modo de dizer que
não há a terra prometida.
Contudo, isso é confundido com uma abstenção, como se ela se colocasse alheia às
condições materiais de existência. De modo semelhante, costuma-se nutrir a crença, se não
equivocada ao menos ingênua, de que Freud falava da técnica analítica num grupo de textos
chamados Artigos sobre a técnica, ou que falasse do social e da Cultura, nos textos sobre
a Cultura, e da clínica nos textos sobre os casos clínicos. E assim por diante. Pois minha
intenção aqui é me valer de algumas poucas considerações freudianas feitas em apenas um
texto, chamado A questão da análise leiga – Conversas com uma pessoa imparcial, de
1926, que, juntamente com outros textos, foi reunido no volume 6 das Obras incompletas
de Sigmund Freud, publicado pela editora Autêntica, sob o título Fundamentos da clínica
psicanalítica. Portanto, um texto que trata da análise conduzida por não médicos, tendo a
clínica como seu objeto principal. O recurso a um dos fragmentos desse texto tem o intuito
de participar de uma reflexão sobre essa inquietante invisibilidade e sobre o traço inaudível
que impregna esta cena de violência.
A crítica, que já antecede o que ainda virá a seguir, muito provavelmente se
assenta sobre uma possível psicologização de uma violência racial de raízes claramente
sócio-históricas, com implicações de categorias políticas inequívocas. Se essa impressão
permanecer, ao final, será mais por inabilidade de quem escreve.

Cena III

A Razão Moderna concebe um sujeito consciente de si, dotado de identidade


e unidade, consequentemente proprietário de uma vontade unificada. O conceito de
propriedade é indissociável da constituição desse conceito de sujeito. Uma das maneiras de
indicar a crítica freudiana tanto a este conceito quanto à modalidade de episteme atrelada
a ele, pode ser expressa numa ideia de subjetividade incapaz de operar uma síntese sobre
si mesma. Um sujeito que resiste a toda forma de absorção sem restos que resulte numa
unidade. Não à toa, Freud se vale de pronomes de uso corrente na língua alemã para indicar
essa impossibilidade de unidade e síntese: Ich, ou seja, Eu, como um pronome pessoal
em primeira pessoa indicando, sem dúvida, a presença de uma instância organizadora e
reflexiva; e Es, ou Isso, um pronome que não é da mesma classe que os pronomes “eu” e
“mim”, e que sintaticamente pode assumir diversas funções. Gramaticalmente, quando se
refere à pessoa, indica algo que está afastado de quem diz e mais próximo de quem ouve.
É um pronome demonstrativo que expressa um certo estranhamento, um distanciamento,
bem como um ponto de desconhecimento. Portanto, é uma subjetividade cindida entre o
Eu (pronome substantivado) que pode pronunciar uma propriedade e ser o artífice de uma

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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reflexão; e o Isso, que além de ser irreflexivo, lhe parece ser a marca de um estranhamento.
Uma subjetividade pensada assim em nada se aproxima de uma expressão clara de uma
vontade unificada.
Grosso modo, o Isso é um reservatório de libido. De potencialidades de investimento,
anseios e vontades irrefletidas. Enquanto o Eu seria uma espécie de superfície, de camada
do Isso, que, por ter contato com a realidade, com o mundo externo, se modificou. Dito de
outro modo, o Isso, diante das relações sociais, da sociedade, precisou se modificar. Não é
um processo natural. Não há qualquer essencialismo, mesmo que incipiente. O aparelho
psíquico, para Freud, é resultado de um processo social, histórico, mas não só, ele é resultado
do próprio processo de socialização. Não há um sujeito que se socializa. O Eu é o resultado
da operação de socialização.
Se em linguagem freudiana podemos dizer que o Isso nos impõe satisfações pulsionais,
estas só podem ocorrer com a ajuda do mundo externo, da realidade. Ou seja, o Isso exige
satisfação das pulsões, mas a sua gramática é inteiramente social e histórica. Não há satisfação
especulativa, autóctone, subjetiva, ou qualquer tonalidade de abstrações psicológicas dessa
espécie. As condições materiais de existência oferecerão o regime de possibilidades dessas
satisfações, bem como seu regime de impedimentos.

Cena IV

Não se trata de uma oposição substancial entre as instâncias, uma vez que se
compreende que o Eu não é mais que uma fachada, uma superfície do Isso que buscará
encontrar na realidade as condições materiais e o momento adequado para tentar obter
satisfação, sempre parcial. Não é muito lembrar que o Eu pode influenciar o Isso, refrear ou
adiar suas paixões, bem como modificar seus objetivos (FREUD, 1926/2017). Contudo, a
leitura proposta por Freud não é a de um Eu como expressão de uma natureza condescendente
e adaptativa formadora de um afeto político melancólico de resiliência. Para Freud, “o Eu
aprende que ainda há outro caminho para a garantia de satisfação, diferente da adaptação
ao mundo externo” (FREUD, 1926/2017, p. 226, grifo do autor), uma vez que “também se
pode intervir no mundo externo de forma modificadora e nele produzir propositalmente as
condições que possibilitam a satisfação” (FREUD, 1926/2017, p. 226, grifo do autor). Não
há a tese de um Eu adaptativo, com uma propensão imanente à sujeição nos processos de
dominação. Freud, mesmo que não construa uma teoria da revolução social, faz uma clara
crítica dos processos sociais. Em resumo, se o Eu é o resultado das imagens e significantes
performativos de uma dada gramática social, tal afirmação implica em outra: há gramáticas
possíveis, e não apenas uma. O Eu é uma espécie de contingência histórica e socialmente
localizável. Outro sistema de valores, de normas, e outras formas de relações de poder
produzirão não só outras contingências, outra configuração dessa superfície do Isso (ou
seja, outras imagens para o Eu) e consequentemente outras modalidades de satisfação

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pulsional. O que nos permite perguntar como seriam as formas de satisfação pulsional
possíveis à população negra numa sociedade não racista? Como seriam as modalidades
de satisfação para a população indígena numa configuração social que não se ocupasse de
seu extermínio? O que implicaria também na interrogação sobre os modos de satisfação
da pulsão numa sociedade branca, colonial e heteronormativa. Ou seja, como se organiza
o homem branco para gerenciar suas satisfações nas relações com a diferença? Como ele
trata o que lhe parece heterogêneo?

Cena V

No dia 30 de maio de 2020, no sul da cidade de São Paulo, um policial, branco,


pisa no pescoço de uma mulher, negra, com a face comprimida sobre o asfalto, numa cena
que lembra a de George Floyd. De fato, a história não possui virtudes pedagógicas, sua
familiaridade maior é com a compulsão à repetição. O policial pisa no pescoço, e depois
de algemá-la e arrastá-la pela calçada, usa o joelho. A violência policial habituada a matar
por balas perdidas, mesmo que sejam mais de oitenta sobre um mesmo alvo, parado, faz
questão de manter sua intimidade com a insuficiência respiratória, com a asfixia como modo
de imobilização, inclusive de vidas. Mas essa violência que nos dois casos ilustra a política
de dois países do bloco I don’t care, não disfarça outra ainda maior. A farda, nos dois casos,
é a expressão de uma sobredeterminação estratificada da violência. Não são só fardas. São
dois homens brancos de um lado, do lado de cima, estão acima, sobre, é bom que se diga. E
abaixo são dois corpos, pretos, é bom que se mostre e que se diga.
Über-Ich não é uma nova modalidade de transportes por aplicativos. É o nome dado
por Freud para designar outra instância, juntamente com o Eu e o Isso. Über é literalmente
sobre. Tal como o joelho sobre o pescoço, poderia ser dito mais ou menos como knie über
dem Hals. Também acima, tal como homem branco acima do homem negro, seria mais
ou menos weisser Mann über schwarzem Mann. Portanto, Über-Ich seria muito mais algo
como um Sobre-o Eu, Acima-do Eu, do que um Super-Eu. Apesar desta última ter sido a
tradução consagrada, a ideia é de uma instância acima, sobre o Eu, em relação de alteridade
para com este.
“Todas as nossas instituições sociais são talhadas para pessoas com um Eu unificado
e normal, que pode ser classificado como bom ou mau, que preenche a sua função ou
é desligado por força de uma influência de elevado poder” (FREUD, 1926/2017, p.
252). Instituições constituídas e produtoras de subjetividades unificadas, de indivíduos
autônomos, conscientes de si e proprietários de uma vontade unificada. Tais instituições
são prescritivas de ideais morais e de conduta, responsáveis por moralidades produtivas.
Estas demarcam um território: ou se está dentro dele, e é bom, ou se está fora, cujo
procedimento moral, ao contrário de excluir, estabelece uma gramática da anormalidade
com semânticas nosológicas. O imoral é também patológico. Ou melhor, cria-se a

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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necessidade de sobreposição entre estes. Segue Freud, “por isso, temos a alternativa
judicial: responsável ou irresponsável” (FREUD, 1926/2017, p. 252). O discurso patológico
é antes um discurso jurídico que estabelece a fronteira entre o imputável e o inimputável.
O limite é móvel, mas ainda funciona como fronteira.
A violência do policial branco contra o corpo negro pode transformar esse policial,
eventualmente imputável, na condição de garantir nossa própria inimputabilidade provisória.
A violência policial pode mascarar nossa condição de imputáveis diante da violência racial.
A violência fardada é, enfim, o sintoma de uma violência que se naturalizou como condição
de ordenamento social, ela é a face de algo que tentava se manter sem dizer o próprio nome.

Cena VI

Como pode uma consciência moral conviver sem interrogar-se a si própria diante
de flagrantes de imoralidades violentas? Se a faculdade de julgar pode discernir entre o
bom e o mau, por que não produz seu veredito diante de ações que facilmente poderiam ser
constatadas como más? Tais modalidades de violência seriam expressões de uma ausência
de consciência moral? Seriam provas de uma inoperância do Super-Eu? Um testemunho
de uma inimputabilidade, ou seja, de uma patologia moral? Seriam formas de um lapso da
razão e do pensamento?
Qualquer uma dessas hipóteses incorreria num erro em comum: a ideia de que “a
barbárie não pensa equivale na realidade a procedimento caviloso de inocentamento”
(BADIOU, 2007, p. 14). Esse procedimento inocenta a barbárie tal como a penalização
civil daqueles policiais inocenta primeiro a polícia e, depois, o nosso próprio racismo. A
equação moral que indica o mal como algo impensável (Badiou, 2007), patológico, ou
identificando-o com as diversas formas do não-ser, não passa de uma forma precária de negar
uma positividade ontológica do mal (Badiou, 2007). A inimputabilidade autodeclarada de
nosso racismo não cabe no procedimento jurídico de imputar culpa, cabível e judicialmente
necessária, a alguns policiais. Parar por aí teria como função inocentar o pensamento. Ou
seja, a farda sobre a pele não inocenta o pensamento, muito menos a própria pele. Não se
trata de uma negatividade ontológica nem do mal, nem da moral. Não é suficiente dizer que
falta a alguns a consciência moral. Que alguns padecem de uma inoperância ou patologias
do Super-Eu.
Segundo Freud, dentro do próprio Eu se distinguiu uma instância específica, o
Super-Eu (FREUD, 1926/2017). Este, apesar de pertencer ao Eu, como uma organização
psíquica elaborada, mantém uma relação especialmente íntima com o Isso, este mesmo um
reservatório de libido (FREUD, 1926/2017). O que significa que, apesar de sua elaboração e
organização, ainda é alvo de precipitações de forças irrefletidas (FREUD, 1926/2017). Com
isso, sob tais forças, o Super-Eu trata o Eu como objeto, podendo ser com alguma frequência,
excessivamente duro. Por sua vez, é fundamental que o Eu esteja em acordo tanto com o

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Super-Eu quanto com o Isso, numa espécie de pacto social. Porém, como a consciência
moral pode objetificar o Eu e é ao mesmo tempo a expressão de forças de indeterminação,
seria preciso que tal exigência moral fosse suficientemente impessoal (FREUD, 1926/2017)
para uma eventual saúde anímica. O que na verdade não acontece. É o caso do neurótico,
que não é mera categoria clínica, mas uma forma de subjetividade destituída de identidade,
de unidade, e de uma vontade unificada.
Uma impessoalidade do Super-Eu poderia funcionar como um elemento regulatório.
Contudo, como não é esse o caso, ele pode se tornar cada vez mais um contraponto ao Eu
quanto maior for a experiência subjetiva de um afeto de desamparo. Essa instância acima
e sobre o Eu pode se tornar tão hostil a ele, de tal forma que essa intensidade não é sentida
como algo interno. Desde muito cedo, por exemplo em 1895, no Projeto para uma psicologia
científica, Freud já havia indicado que grandes potências internas adquirem valências que as
impossibilitam de serem percebidas como internas, sendo equivalentes às valências vindas
de fora. O excesso vindo de dentro é sentido como se viesse de fora. O próprio, quando em
excesso, parece outro.
As figuras sociais da moralidade, tais como o imaginário social das autoridades,
representações de um pai severo, de um soberano implacável, do líder religioso ou político
austero, e demais figuras prescritivas de uma moral se não puritana, ao menos com ambições
de pureza, ganham status de modelo. Vale lembrar que o fundamento do Eu é social. São
as leis e as normas sociais com as quais se aliena, como forma de consentimento necessário
para aceder à própria sociedade, que o constituem. A Lei e o social não são meros lugares
com os quais se relaciona, não são meramente estruturados, são estruturantes. Sendo a
consciência moral a elevação dos ideais prescritivos, negligenciá-los está fora de cogitação.
Portanto, a relação de poder aí não é circunstancial. Dito de outro modo, há uma relação
entre Super-Eu e Eu que não pode ser minimizada. Bem como a função do sentimento de
culpa e da autopunição nessa economia libidinal. O que Freud chama a atenção é que, grosso
modo, a autopunição pode cumprir uma função economicamente valiosa para o aparelho
psíquico, tal como o sintoma, com a diferença de poder prescindir deste. Ou se vira com o
mal-estar do desejo ou aplaca o desamparo com uma autopunição.
A adesão a princípios éticos radicais não causa estranheza a essa economia. Dominado
pelo sentimento de culpa, assujeitado às cobranças excessivas de uma moral extrema,
e incapaz de erguer uma representação consciente disso, o Eu se vê “impossibilitado de
orientar uma conduta a partir de julgamentos racionais” (SAFATLE, 2020, p. 449). É preciso
levar em conta o regime de afetos que parte do Isso e participa da construção daquilo que
chamamos de consciência moral. Há um fundamento de irreflexão e de indeterminação na
base da consciência moral. “Indivíduos produzem crenças, desejos e interesses a partir de
certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer à
norma” (SAFATLE, 2020, p. 450).

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Cena VII

Está em questão uma forma peculiar de sujeição. Não aquela que deve ser visibilizada
do lado do oprimido. Me atenho aqui a outra. Refiro-me à sujeição do lado do opressor,
do ator das formas de violência. Uma sujeição a um Super-Eu tirano, podendo, inclusive,
ser agente de discursos fascistas. Tal sujeição não se positiva em experiências empíricas
identificáveis a de uma vítima. O opressor não se transforma magicamente em vítima. Sua
condição não sofreu nenhum deslocamento. Sua violência não é desrealizada.
Com isso, quero dizer que a consciência moral não é forjada apenas sobre os
alicerces das construções civilizatórias e das representações sociais e culturais. Ela não é
um condensado das aquisições históricas de uma sociedade que reúne o essencial de seus
regimes de conduta. Ela é, também, constituída e mantém íntimas relações com um regime
de afetos que, em grande medida, se fazem presentes apesar de irrefletidos. O que permite, a
alguns, a opção de uma forma peculiar de empatia, de identificação com as figuras sociais e
políticas agenciadoras de discursos radicais, supremacistas, etc. Uma das formas de se aliar
ao Super-Eu excessivamente opressor é se identificar com as formas sociais de opressão,
encarnando a condição de representantes diretos de uma moral austera.
A escolha por constelações verticais, de ideais a posições éticas verticalizadas sob a
forma de superioridade e supremacia de qualquer espécie, equivale à fotografia de um modo
de racionalidade. Tal verticalidade não é sem consequências para o estabelecimento ou
rupturas de vínculos sociais. Uma empatia verticalizada não porta as mesmas consequências
políticas de uma outra horizontalizada. O que não quer dizer que nos apoiemos em crenças
de que identificações horizontalizadas estariam livres de restos como um horizonte utópico.
Configurações distintas resultam em consequências e preços distintos.
O problema é que o poder soberano pode repetir a crueldade entre indivíduos mais
do que regulá-la. Há o risco maior de reprodução de uma violência do que sua suspensão.
Tal como é mais fácil que um sujeito, tomado pela crueldade das exigências de sua própria
consciência moral, repita essa violência com outro indivíduo. Em outras palavras, um Eu
tomado como objeto de tortura do Super-Eu não necessariamente reagirá ao mundo externo
com a parcimônia compensatória. Ou mesmo, a partir de ideais morais refletidos, tornando-
se instância moderadora. É relativamente fácil que se veja diante do risco de fazer com
o outro o reflexo sombrio de sua própria tortura. Pode objetificar o outro, inclusive com
violência e segregação, como formas brutais de responder aos ideários de seu próprio Super-
Eu. Para estes, não parecerá violência matar o outro com sua própria arma, usando algumas
das 550 balas a que tem direito por lei, para instaurar a paz em sua casa. Não soará absurdo
que um homem branco aponte uma arma para a cabeça de um jovem negro, pois esta cena
encontrará na dureza insensata de seu próprio Super-Eu, seu excludente de ilicitude. Não
parecerá violento voltar da viagem com Covid-19 e exigir que sua funcionária negra assine
seu próprio atestado de óbito no exercício escravizador e diarista dos cuidados com a casa
da família branca.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Quanto mais imperioso e austero for o Super-Eu, maior será a violência sentida do
lado do Eu, e tanto maior poderá ser a possibilidade dessa intensidade interna ser sentida
como uma ameaça externa. O gesto que concilia o Eu com o Super-Eu, nesses casos, pode
ter como fundamento a ambivalência: a) precisa atender às exigências morais e, ao mesmo
tempo; b) é incapaz de perceber isso como uma exigência e ameaça internas – por isso, num
movimento de expulsão, as considera como vindas da realidade.
Esse arranjo, com pretensões conciliatórias, quanto mais imerso em imagens sociais
de um inimigo ameaçador, mais estará sujeito a cumprir violentamente os ideais morais,
sem que lhe seja necessário o recurso do recalque. Numa sociedade racista, não se espera
do sujeito nem ao menos o trabalho psíquico do recalcamento, uma vez que o racismo possa
lhe parecer virtude, mesmo que sob significantes eufemistas. Nesse contexto, será possível
manter a família unida sacrificando a família dos outros, construir sua segurança e paz com
violência e subtração de direitos, manter seu isolamento social com a exposição sistemática
de corpos ao vírus.
O joelho branco no pescoço preto, devido à suspeita de falsificação de alguns míseros
dólares, não falsifica o ideal branco do exercício da lei. Assim como o mesmo gesto diante da
queixa de barulho num bar não abala o ideal branco da surdez. Ou ainda, não falsifica o sabor
da cerveja gelada, no Leblon, nem faz calar o I don’t care, nem sua tradutibilidade literal no e
daí? nas faces esbranquiças que se amontoam entre os jovens de bem e de boa índole. I can’t
breathe ainda ecoa em diversos países, embora ainda seja inaudível em qualquer língua.

Réquiem

Quando um chefe de Estado de um país de dimensões continentais diz, em 22 de março


de 2020, que não haverá nem oitocentos mortos pela Covid-19, ou quando empresários
contabilizam sete mil mortes como o preço a se pagar para o bem-estar da economia, ou
quando as meninas e os meninos do Leblon não olham mais para mais de 100.000 mil
mortos, não basta que Herbert fale de óculos. Na verdade, o eu não consigo respirar, até o
dia 09 de agosto de 2020, não foi ouvido 100.000 vezes. Só em números oficiais. Sem contar
com o aumento de mortes por insuficiência respiratória. Segundo o portal UOL, até junho
de 2020, houve um aumento de vinte vezes na série histórica de mortes por insuficiência
respiratória – um número que parece até história de pescador. É muito provável que muito
mais de 100.000 vezes, reiteramos o resto inaudível de vozes que não somos capazes de
ouvir.
Os Estados Unidos da América têm uma população negra de aproximadamente 18%.
Contudo, 52% dos casos de Covid-19, e não menos que 58% das mortes são de negros. No
Brasil, até abril de 2020, esse recorte era invisível. No país da nota falsa da democracia racial
o eu não consigo respirar da população negra era inaudível. Somente com a pressão da
Coalizão Negra por Direitos, composta por cento e cinquenta entidades, é que o Ministério

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da Saúde passou a solicitar informações sobre cor, gênero e classes sociais. Quando se
cruzam as variáveis de cor e escolaridade entre os mortos pela Covid-19, até o dia 29 de maio
de 2020, o número de negros sem escolaridade chegava a 80,35% contra menos de 20% de
brancos com nível superior.
Há um impossível a ser tratado tanto na clínica quanto na política. Um excesso
pulsional que pode encontrar expressão numa “irredutibilidade da violência como constante
antropológica” (SAFATLE, 2020, p. 464). Um impossível expresso como excesso, que não
resulta numa posição conformista que naturalize a violência tanto de uns contra os outros
quanto do Estado, ou violência de gênero, racial, ou qualquer outra. Impossível, aqui
entendido como categoria lógica de um resto inassimilável e não como fenômeno social
incapacitado de se realizar.
Não só a alienação, mas também a agressividade são elementos constitutivos de um
processo de socialização. Nesse sentido, a agressividade pode ser e é um dos fundamentos do
Eu “social”, o que não implica que ela só encontre expressão em formas sociais de violência
contra o outro ou contra si mesmo. A violência, que é própria aos laços sociais, pode e
deve ter como horizonte a possibilidade de se inscrever nos repertórios simbólicos de uma
sociabilidade coletiva.
A violência com que o Super-Eu pode tratar o Eu é solo fértil para a construção
de fantasias de ameaça, perseguição e confronto do outro em relação a mim. Quanto
mais for hipostasiado esse lugar e valor, mais o Eu poderá se portar de modo paranoico
e sob constante ameaça do outro, que identifica como diferente. Sobretudo se encontrar
narrativas sociais que contribuam com repertórios que pareçam consistentes nessa
ambientação. Essa é uma cena propícia para inúmeras formas de violência que pareçam
justificáveis, sem o mínimo de constrangimento de se reconhecer como religioso, pacífico,
homem de bem e, claro, não racista. Afinal, assim ele não seria contra negros, nem contra
indígenas, nem contra mendigos – a menos que sejam marginais, bandidos, que atrapalhem
a ampliação de madeireiras, plantações de soja, mineradoras, que sejam impedimento para
o desenvolvimento econômico, ou que perturbem a estética urbana com seus maus hábitos.
Ele pode achar exemplar divulgar vídeos em que aconselha a não alimentar nem doar roupas
a moradores de rua. São os mesmos que se colocam contra auxílios sociais, cotas, ensino
público, SUS, etc., certos de serem verdadeiros guardiões da ética. O que de fato são, se
lembrarmos que a consciência moral também é debitária de uma economia solipsista de
afetos irrefletidos, compartilháveis coletivamente.
O que Freud nos lembra é que toda forma clínica, social ou política, que busque
alternativas que tornem inaudíveis as ressonâncias da própria experiência de indeterminação
e a dimensão trágica da existência será cúmplice e, portanto, imputável de toda e qualquer
forma de violência que tente positivar um regime de normas solipsista. O joelho branco sobre
o corpo negro não precisa de farda. A morte por insuficiência respiratória da população negra
não precisa da asfixia mecânica: ela é sistemática. O vírus é inimputável, nosso racismo não.

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Referências

BADIOU, A. O século. São Paulo: Ideias & Letras, 2007.

FREUD, S. A questão da análise leiga – Conversas com uma pessoa imparcial (1926). In:
Fundamentos da Clínica Psicanalítica – Obras Incompletas de Sigmund Freud – vol. 6.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017 (p. 205-313).

SAFATLE, V. Medo, desamparo e poder sem corpo. In: FREUD, S. Cultura, Sociedade,
Religião: O Mal-estar na Cultura e outros escritos – Obras Incompletas de Sigmund
Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020 (p. 449-488).

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3
AQUI É ALPHAVILLE, MANO!
Cleyton Andrade
Bianca de Araújo Silva
Thianne Lourena Cardoso Roque

Já há algum tempo, vivemos num cenário em que há um empenho em estabelecer


uma só língua, uma só crença, uma constante busca de uniformidade. Tem-se a ideia de que,
para que a sociedade avance, é preciso purificá-la, tirando de cena falas críticas e modos
distintos de pensar. Nesse espaço, onde só cabem a censura e o silenciamento, certas vozes
são esvaziadas de qualquer pronunciação. Caberia perguntar se ainda vivemos em um regime
democrático, no sentido etimológico do termo, porque “qualquer um que tenha conservado
alguma lucidez sabe que [...] não há Estado dito democrático que não esteja atualmente
comprometido até o pescoço com essa fabricação maciça de miséria humana” (AGAMBEN,
2015, p. 120).
O ódio à democracia tomou sua primeira forma na Grécia Antiga, quando se afirmava
que a ordem legítima se arruinaria caso a “multidão” governasse. Hoje, a roupagem do ódio
é direcionada aos “malefícios” do respeito às diferenças, do reconhecimento das pautas
das minorias, já que esses males retalham o universalismo! Nesse sentido, “o governo
democrático é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que
todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas” (RANCIÈRE, 2014, p. 10).
Para falar a verdade, independentemente da época que se vá investigar, logo se
percebe que “as sociedades, tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelos
jogos das oligarquias” (RANCIÈRE, 2014, p. 68). O que se apresenta enquanto novo e
moderno, na verdade, mostra uma reedição do que há de mais arcaico: uma configuração
política que possui traços autocráticos em sua expressão. A vontade de governar sem o povo
é empreendida com muito afinco e o autoritarismo insiste, mostrando-se de maneiras cada
vez mais sofisticadas.
A atual configuração social, por exemplo, fez com que se desenvolvessem duas
identidades conflitantes: o “cidadão de bem” e o inimigo da nação. Este primeiro parece
“formar a base moral de uma subjetividade política aceitável, o que equivale a dizer que, na
base dessa racionalidade política contemporânea, existe um cisma irracional” (BUTLER,
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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2018, p. 228, grifo do autor). É um tipo de indivíduo visto aos montes no contexto sociopolítico
que, quanto mais se afirma íntegro e guardião da moral civilizada, mais faz aparecer com
luzes cintilantes a arcaica barbárie ineliminável de sua constituição; já, o segundo, é o
desviante, o destoante, a diferença que deve desaparecer.
O exército de “cidadãos de bem” põe-se em marcha, pois, para ele, a purificação do
mundo só se dá com a negação da diferença. A feroz e inflada necessidade de se alcançar o
“bem maior” acaba por justificar o ódio, isto é, acaba por colocá-lo no circuito, enquanto
afeto político. É justificável matar para proteger a segurança nacional? E a economia? Quem
morre? Ou pior: Quem deve morrer?
Como nos lembra Lacan, a formação da personalidade acontece “através da
socialização do indivíduo no interior de núcleos de interação como a família, as instituições
sociais, o Estado” (SAFATLE, 2017, p. 21). Neste sentido, não é de causar espanto que
figuras como essas apareçam, quando o contexto sociopolítico apresenta o espaço público
permeado “pela vida privada e pelas convicções morais do governante” (ROCHA, 2014,
p. 9), governante esse, que parece ter o poder de minimizar ou mesmo apagar o que se
expressa nas leis e na Constituição, por um capricho pessoal.
O autoritarismo ressurge querendo reconstruir o corpo daquele que decide sobre a
vida e a morte, um corpo imaculado caracterizado como ariano, juvenil e heroico (CHAUI,
2014): branco; com histórico de atleta, não sujeito a doenças; e combatente da corrupção
com as próprias mãos. Esse corpo físico do governante transformado em corpo político,
honrado e invulnerável é o que garante “o papel messiânico que deu a si mesmo” (CHAUI,
2014, p. 247). Busca produzir identificação tentando, através de seu discurso e de suas ações,
fazer com que a nação se veja refletida ali.
Mais uma vez, a história oficial tende a ser contada sob o lema de “ordem e progresso”,
“com a imagem que a classe dominante tem de si mesma” (CHAUI, 2014, p. 240). Ao que
escapa à narrativa e à memória dos vencedores é destinada apenas a condição de rechaço,
protagonizada por inimigos do avanço, da transformação, do “novo”.
O mais recente contexto de pandemia instaurado pelo Sars-CoV-2, vírus que causa a
Covid-19, expôs a céu aberto as graves consequências que regimes como esse podem trazer para
uma sociedade: a quantidade de mortos e de infectados decolando sem freio e a deslegitimação
da ciência e seu trabalho, só para nomear algumas. Além disso, explicitou também a existência
de um outro jogo de identificações, coabitando o mesmo espaço que o anteriormente citado,
que produz um outro tipo de relação com a lei e com as dinâmicas sociais.
Para Freud, “o processo social, que permite a constituição de subjetividades, é movido
pela internalização de modelos ideais de conduta socialmente reconhecidos e encarnados em
certos indivíduos. Modelos que podem aparecer nas figuras [...] de autoridade” (SAFATLE,
2017, p. 22 - 23), tal como o “cidadão de bem” faz com a figura de seu governante. Dizendo
de outro modo: o Eu se desenvolve tendo como referência um Outro; age, se expressa e
pensa orientado pelos ideais oferecidos pelo seu modelo.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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O cenário, nessa época de pandemia, ao mesmo tempo em que confirmou a teoria


freudiana das identificações – a saudação à cloroquina junto ao líder governamental e seu
uso, mesmo sem a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), não nos deixa
mentir – também funcionou como palco para o surgimento de um tipo de sujeito com
características bem particulares.
Encarnando o que havia de mais fundamental na Polis pensada por Platão, “seu
princípio não é a lei escrita e semelhante para todos, mas a educação que dota cada
pessoa e cada classe da virtude própria a seu lugar e a sua função” (RANCIÈRE, 2014,
p. 83). Esse sujeito não se reporta nem à lei que rege a sociedade, nem diretamente ao
governante. Sua identificação se dá com as coordenadas que formulou para si mesmo,
isto é, com uma lei própria.
Seu modo de se organizar na sociedade se dá dividindo-a em castas, estratos que
marcam uma hierarquia de posições, substituindo as “relações de cidadania pelas relações
pessoais de [...] mando e obediência” (CHAUI, 2014, p. 249). É uma figura que escancara a
desigualdade imbricada na distribuição de lugares no interior do laço social, agarrando-se
a títulos para impor o poder.
Na sua dinâmica de funcionamento, o título que possui é prerrogativa suficiente tanto
para ocupar um lugar de destaque, que o afasta consideravelmente dos demais, quanto para
não sofrer os efeitos das normas sociais, já que sua lei está acima delas. Ao que parece, nessa
lógica, o fato de ser um engenheiro, uma advogada, um desembargador ou até mesmo um
empresário garante sua imunidade.
Como Freud já alertava, há quase 90 anos, colocar-se “acima das restrições vigentes
para todos” é um dos caminhos que levam ao retrocesso “do domínio do direito para o
domínio da violência” (FREUD, 1932/2010, p. 422), isto é, da política para a polícia. Quando
a política se transforma em polícia, “a reprodução da estrutura autoritária da sociedade”
(ROCHA, 2014, p. 8) fica cada vez mais manifesta.
Não há como negar que “desde o princípio a comunidade abrange elementos de
poder desigual” (FREUD, 1932/2010, p. 422) – não à toa essa observação, feita por Freud,
ainda ganha corpo nas mais variadas discussões da filosofia política e da teoria social hoje
–, mas nas coordenadas imaginadas e seguidas por esses sujeitos, a assimetria de posições
organizada hierarquicamente produz efeitos concretamente brutais.
Em seu princípio de contagem, há presenças que não participam do seu campo dos
sentidos (RANCIÈRE, 2009). Invisibilizadas e silenciadas, são rebaixadas “à condição
daqueles cuja fala é sempre decodificada como mero barulho, sem significação e interesse”
(PALLAMIN, 2010, p. 7). A alteridade se apresenta como invasiva demais, restando a esses
corpos apenas o não-lugar, seja no campo discursivo, seja no campo material.
Em seu modo de distribuir lugares, o que define a competência ou a incompetência
de ser visto, de falar e de ser ouvido é exercer determinada ocupação, participar de certos

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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grupos profissionais, em resumo, é possuir um título (RANCIÈRE, 2009). O status que sua
posição lhe confere, portanto, não coincide nem com o que cabe ao povo nem com o que cabe
ao cidadão. Sua classe, enquanto terceiro que irrompe na dinâmica social, acaba reavivando
a dualidade problemática inscrita na chamada Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão. “Se a política precisa de dois princípios, e não um só, é por causa de um vício”
(RANCIÈRE, 2014, p. 75).
Como evidenciava Marx, se os direitos do homem portam uma diferença em
relação aos direitos do cidadão, é porque homem e cidadão são duas categorias distintas
que não se equivalem e tampouco se confundem. Falar do homem – que não é o cidadão
– é falar do “homem como membro da sociedade burguesa, [...] indivíduo recolhido
ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade”, cuja
preocupação se volta apenas à “conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta”
(MARX, 2010, p. 50).
A pandemia, por seu alto nível de contágio e rápida disseminação de pessoa para
pessoa, exige uma reconfiguração nos modos como nos relacionamos. Suas características
colocam em jogo que o cuidado que cada um tem com sua saúde passa a ter consequências de
caráter coletivo. Provocando uma torção no modo de funcionamento político-social vigente,
de privatização da vida pública, a pandemia introduz um outro problema na cena: o privado
agora é uma questão de saúde pública.
Ao pensar no aparelho psíquico, Freud concebe o Eu como instância responsável
por lidar tanto com as exigências do mundo externo quanto com as demandas do Isso.
Enquanto mediador, “desenvolve a sua atividade em duas direções. De um lado, ele observa
o mundo externo [...]; por outro lado, ele influencia o Isso, refreia as suas ‘paixões’” (FREUD,
1926/2017, p. 225 - 226). Quando o aparelho psíquico, por meio de seu processo dinâmico de
funcionamento, consegue se organizar dessa forma, torna-se possível substituir “o princípio
de prazer, que antes era o único determinante, pelo chamado princípio de realidade”
(FREUD, 1926/2017, p. 226, grifo do autor), ou seja, os propósitos e as ações de um sujeito
não desconsideram as circunstâncias apresentadas pelo mundo real.
O uso da máscara, por exemplo, surge como um modo de proteção não só do sujeito,
mas também do outro, funcionando como uma barreira para o contágio tanto de fora para
dentro, quanto de dentro para fora. A dinâmica das relações exigida pelo contexto pandêmico
relembra, da forma mais crua possível, o quanto a sobrevivência de um sujeito é atravessada
por uma dependência mútua. Para que uma vida possa ser sustentada, é necessário algo
muito maior que o simples movimento de um organismo procurando se preservar.
O grande problema aparece, no entanto, quando à propriedade é conferido um
peso maior do que à vida. Aqui, sim, percebe-se o quanto os conflitos de interesse “se
resolvem mediante o emprego da violência” (FREUD, 1932/2010, p. 419). Quando, ao
longo dos processos de transformação sociopolítica, especialmente numa perspectiva
neoliberal, o termo responsabilidade ganha uma conotação bem deturpada, tornando-se

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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corrompidamente responsabilização, a produção de indivíduos autossuficientes, que não


contam com o Estado e só prestam contas a si próprios, cresce.
Por mais que a pandemia tenha introduzido uma questão ética na sociedade, tornando
público o cuidado que o sujeito tem com sua saúde, não deu conta de barrar uma racionalidade
que busca suprimir as diferenças para assegurar seus predicados, seja no nível do discurso,
seja fisicamente. A desigualdade é sempre reposta, encontrando um modo de aparecer.
A “impossibilidade de reconhecer a dependência à alteridade sem produzir explosões
de rivalidade que acabam, por exemplo, sendo projetadas para fora de si” (SAFATLE, 2017,
p. 26), é o que se constitui como coordenadas para alguns sujeitos que, orientados por um
ordenamento policial de base sólida, não estremecem nem mesmo diante de 98.644 mortos
e 2.917.562 de infectados (dados do Consórcio de Veículos de Imprensa de 06/08/2020).
Nas regras do jogo da necropolítica (MBEMBE, 2018), a indignação diante da injustiça,
da violência, da morte não aparece para a “classe virtuosa”. Na configuração social que ela
segue: ou se morre de Covid ou se morre de fome, e o luto não é nem uma possibilidade.
Afinal, como já alertava Chaui (2014, p. 243): “divergir é ser suspeito, ser suspeito é ser
culpado e ser culpado é ser sumariamente condenado à morte. A política é conspiração e
golpe, e a polícia assume sua verdade, enfim sem máscaras”.

Referências

AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. 135 p.

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 5 ed. Tradução de Sérgio
Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. 288 p.

CHAUI, M. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2014. 294 p.

FREUD, S. A questão da análise leiga: conversas com uma pessoa imparcial (1926). In:
______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução de Claudia Dornbusch. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p. 205-313.

______. Por que a guerra? (Carta a Einstein, 1932). In: ______. O mal-estar na
civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930 – 1936).
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 417-435.

MARX, K. Sobre a questão judaica. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2010. 144 p.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.


Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. 80 p.

PALLAMIN, V. Aspectos da relação entre o estético e o político em Jacques Rancière. Risco


Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 12, p. 6, 16 jul. 2010.
Disponível em: <http://www.fau.usp.br/wp-content/uploads/2015/09/Aspectos_relacao_
estetico_politico_Jacques_Ranciere.pdf >. Acesso em: 23 jul. 2020.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. 2 ed. Tradução de Mônica Costa


Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. 72 p.

______. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.
125 p.

ROCHA, A. Apresentação. In: CHAUI, M. Manifestações ideológicas do autoritarismo


brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 7-10.

SAFATLE, V. Introdução a Jacques Lacan. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
95 p.

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CUIDADOS E DESCUIDADOS EM TEMPOS DA COVID-19
Jefferson Bernardes

O impacto causado pela rapidez do avanço do novo coronavírus no mundo levou boa
parte da comunidade acadêmica a analisar o momento atual. Este ensaio foi produzido a
partir do convite recebido para participar do webencontro intitulado “Cuidados com a saúde
em tempos de pandemia – orientações interprofissionais”, organizado pelo Programa de
Formação Continuada em Docência do Ensino Superior (PROFORD), da Pró-reitoria de
Graduação, da Universidade Federal de Alagoas/UFAL, em maio de 2020 (UFAL, 2020).
Professoras/es da nutrição, educação física, odontologia, enfermagem, psicologia e
psiquiatria interagiram neste webencontro, orientadas/os por uma conversa informal sobre
as possibilidades de manter os cuidados de si e das/os outras/os, tendo como contexto o
momento de distanciamento físico e social, por conta da quarentena imposta para o combate
do Sars-Cov2.
Consensuada entre os profissionais participantes, uma pergunta foi norteadora do
bate-papo: Em tempos de pandemia do novo coronavírus, o que é o cuidado?
Ao refletir sobre o tema para responder tal questão, recorri a duas leituras sobre
cuidado, baseadas em Boff (2020; 1999) e Canguilhem (1989), fazendo uma crítica a elas a
partir de uma argumentação neopragmática (FERRAZ, 1994), fundamentada na Filosofia
da Linguagem (RORTY, 1998) e na perspectiva das práticas discursivas e da produção
de sentidos (SPINK, 1998/2013). Fiz isso por meio de posicionamento antiessencialista,
tentando avançar na conceituação de cuidado a partir do campo linguístico.
Leituras essencialistas, boa parte das vezes, abrem espaço para que um único grupo
(geralmente quem está no poder) dite o que é verdade (cuidado, saúde, doença etc). Algo que
presenciamos no Brasil, atualmente. Argumento que assistimos à constituição de uma política
de descuidado, algo próximo a uma necropolítica (MBEMBE, 2018), definida, grosso modo,
como o direito da soberania de matar. Direito de matar associado a um inimigo qualquer,
eleito para manter o binômio nós x eles. Entretanto, argumento, também, que o vínculo
produzido como condição para o cuidado pode ser também utilizado para o descuidado.
Para ilustrar isso, apresento duas questões atuais do Brasil pandêmico que, em meu
modo de ver, promovem essa política do descuidado: as fake news e as políticas do governo
federal, ambas envoltas em disputas de poder.
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Cuidado - Boff

O primeiro posicionamento é apresentado por Leonardo Boff (2020): “o cuidado


pertence à essência do humano e de tudo o que existe e vive”. Ancora seu pensamento em
Heidegger (1989), para quem o cuidado é essência primordial do ser humano, definindo-o
em todas as atitudes e situações. Para Boff, sem o cuidado simplesmente não existiríamos,
ao menos não da forma como existimos.
Boff (2020) amplia o conceito de cuidado, apresentando uma dimensão política e
ecológica. Para ele, três sentidos básicos são constitutivos do cuidado no campo da saúde:
primeiro, significa uma relação amorosa com o enfermo, sendo a mão que acaricia e acolhe;
segundo, significa uma relação de devoção, de empatia e vontade de curar e, por fim, o
terceiro, representando aquilo que liga os seres humanos ao planeta Terra:
Somos Terra, pois homem (ser humano) vem de húmus, terra fértil e fecunda. Há uma
relação tão estreita entre nós e a Mãe Terra que se nós a fazemos adoecer, superexplorando-a,
nós mesmos adoecemos. (BOFF, 2020, p. 392).
O Mito do Cuidado ilustra esse primeiro posicionamento. Foi escrito pelo escravo
romano, Caio Júlio Higino (data incerta, seguramente antes de Cristo), em sua fábula
n.º 220:

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado (Cura) viu um terreno de barro.


Pensativo, tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto
refletia sobre o que tinha feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que lhe
insuflasse espírito. Júpiter acedeu de bom grado. Quando, porém, Cuidado
quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu, exigindo
que lhe fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam,
surgiu a Terra (Tellus). Mas quando também ela quis dar o seu nome à
criatura, por ter sido feita de barro, que era um pedaço do seu corpo, começou
uma grande discussão. De comum acordo, pediram a Saturno que se fizesse
de juiz. E ele tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: Júpiter, porque
lhe deu o espírito, receberá de volta este espírito, por ocasião da morte
dessa criatura. A Terra, que lhe deu o corpo, receberá também de volta o seu
corpo, quando a criatura morrer. Ao Cuidado, porém, que moldou a criatura,
ficará esta entregue a ele durante toda a sua vida. E uma vez que há entre
vós acalorada discussão acerca do nome, decido eu que esta criatura será
chamada Homem (homo), isto é, feita de humus, que significa terra fértil.
(BORGES-DUARTE, 2010, p. 118-119).

A partir do mito, Borges-Duarte (2010) argumenta que o ser humano nasce não do
espírito, nem do corpo, mas com o que lhe deu forma: o cuidado, que o mantém em vida.
Do mito, deduzimos uma característica importante para o cuidado apresentado nessa
primeira leitura: ele está presente durante todo o tempo de vida do sujeito, em caráter
permanente. O ser humano só tem condições de se constituir a partir do cuidado.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Na modernidade, cuidado e cura se tornam diferenciados, ao contrário das leituras


gregas. Ao cuidado, juntam-se características longitudinais em relação ao tempo, enquanto
a cura é significada com características de transversalidade. Cuidado se torna distinto de
cura, mas não o seu oposto. Ambos podem, inclusive, se sobrepor em alguns momentos
da vida dos sujeitos. Ambos são importantes e definem boa parte das políticas de saúde
de um país. Há uma série de doenças que não possuem cura, mas os cuidados que as
envolvem são fundamentais. Por meio do cuidado, abordamos boa parte dos agravos e
adoecimentos crônicos, por exemplo. Há uma série de doenças que deixaram de ser agudas
(aquelas com curso acelerado, terminando com convalescença ou morte em menos de três
meses) e transformaram-se, nas mãos do cuidado, em doenças crônicas (que possuem
desenvolvimento lento e longa duração, prolongando a vida). O princípio da Integralidade,
tão caro ao nosso sistema de saúde, articula cura e cuidado nos mesmos procedimentos.
Essa, talvez, seja uma das melhores políticas de saúde, vide os exemplos brasileiros em que
a integralidade esteve presente ao longo de políticas, por exemplo, da aids.
A longitudinalidade, característica nas relações de cuidado, faz com que os sujeitos
envolvidos compartilhem experiências, vivências, momentos diversos envoltos por afetos,
emoções, aproximações e distanciamentos nas relações, etc. Produzem sentidos ao longo
desses momentos, por exemplo, a formação de vínculos.
Vínculo é dispositivo básico para a produção de cuidado na saúde. Implica o contato
com diversidade de vidas, alteridades, singularidades, escuta, acolhimento e narrativas
produzidas em torno dessas vidas. É a escuta e o acolhimento dessas narrativas que irão
proporcionar a atenção e o acolhimento dos sujeitos, produzindo, mantendo ou fortalecendo
vínculos. Cuidado é produção de afetos – aquilo que me afeta, movimenta, incomoda, retira
do lugar… O exercício do cuidado, boa parte das vezes, é a análise dessas afetações que
acontecem tanto na/o usuária/o quanto no/a profissional de saúde em decorrência dessa
relação que se estabelece entre eles/as.
Nem sempre a produção de vínculos na saúde é algo desejável. Por exemplo: para boa
parte das/os profissionais em saúde, produzir vínculos em seu cotidiano de trabalho é um
problema. Nos modelos médico-racionais da modernidade o distanciamento das afetações
nas relações entre profissionais de saúde e usuárias/os é condição sine qua non para que a
atenção ocorra. Esta questão é bastante visível em estabelecimentos hospitalares. A ordem,
hierarquia, assepsia e isolamento, características desse tipo de estabelecimento, promovem
o afastamento entre os sujeitos, mais do que aproximações. Nesse modelo, a atenção é
costumeiramente reduzida à cura de um corpo mecânico, com sistema de tubulações, fluxos
e enervações, no qual uma das partes está danificada e deve ser consertada.
Entretanto, a questão não está na produção de vínculos. Feito flores no deserto, eles
surgirão, de uma forma ou de outra. Não temos controle sobre essa produção. No caso das/
os profissionais de saúde, o problema não está na produção, mas na não elaboração desses
vínculos. Em não tentar conversar sobre eles, visibilizá-los, compreendê-los.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Em muitos casos, essa não elaboração produz imobilidades, sofrimentos e


desmobilização das equipes. Um exemplo corriqueiro disso é quando um/a usuário/a
começa a chorar ou a demonstrar emoções para as/os profissionais do estabelecimento. É
comum chamarem a/o psicóloga/o para tentar “acalmar” as/os usuárias/os.
Em leitura neopragmática (SPINK, 1998/2013), os vínculos são parte dos sentidos
produzidos nas relações carregadas de afetações as mais diversas. Vínculos são criados
por meio das várias formas de contato (não necessariamente presenciais) existentes entre
sujeitos, principalmente através das conversas e diálogos. No cuidado, a análise de como se
constituem os vínculos está nas formas como ocorrem as afetações entre os sujeitos, grupos,
organizações e instituições. A partir do jogo e da dinâmica dessas afetações (sentidos
produzidos), avaliamos os vínculos.
Vale lembrar, Boff (1999) afirma que o cuidado (constituição de vínculos) é uma
relação amorosa com o enfermo, mão que acaricia e acolhe, envolvendo devoção, empatia
e vontade de curar. Entretanto, argumento que leituras adjetivadas ou maniqueístas desses
vínculos (entre os bons ou os ruins) podem não ser um caminho interessante. Existem
vínculos que possibilitam cuidados e aqueles que desencadeiam descuidados. Ao ampliarmos
as possibilidades de compreensão dos vínculos, sem reduzi-los a bons sentimentos ou bons
afetos, conseguimos dar novos significados a atos aparentemente interpretados como
opostos ao cuidado.
A questão é avançarmos não orientados por uma noção imanente sobre os vínculos, mas
neopragmática, em que os vínculos são uma das possíveis formas das afetações se manifestarem.

Cuidado - Canguilhem

O segundo posicionamento para cuidado fundamenta-se em Canguilhem (1989). Para


ele, cura e cuidado surgem a partir de duas dimensões: primeiro, a aplicação de critérios
normativos diante da definição de patologias; segundo, da definição do fenômeno vital como
fonte normativa desses critérios. Com relação à primeira dimensão, Canguilhem inaugura,
no campo da saúde, um repertório bastante distinto da racionalidade médica moderna,
além de argumentar que a base para a cura se dá a partir das leituras do próprio sujeito
enfermo. A normatividade seria o dispositivo capaz de gerar novas condições de vida e de
produção de saúde. Dessa forma, o posicionamento do próprio sujeito em relação ao seu
processo de adoecimento é fundamental para o cuidado. Entretanto, na segunda dimensão,
Canguilhem se aproxima de perspectivas essencialistas para retomar cura e cuidado. Ele
define a normatividade vital como supra-humana e marcada por uma essência em si mesma:

Não emprestamos às normas vitais um conteúdo humano, mas gostaríamos


de saber como é que a normatividade essencial à consciência humana se
explicaria se, de certo modo, já não estivesse, em germe, na vida. Gostaríamos
de saber como é que uma necessidade humana de terapêutica teria dado

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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origem a uma medicina cada vez mais clarividente em relação às condições


da doença, se a luta da vida contra os inúmeros perigos que a ameaça não
fosse uma necessidade vital permanente e essencial (CANGUILHEM, 1989,
p. 97).

Ferraz (1994) argumenta que Canguilhem define normatividade vital como a


capacidade da própria vida determinar, na consciência, os valores e juízos primeiros: “A
palavra é dada para uma realidade pré-humana objetiva – a normatividade vital – e nela
seria encontrada a razão para o cuidado com a vida” (FERRAZ, 1994).
Na crítica ao argumento canguilheniano e, por extensão, ao de Boff, Ferraz (1994)
afirma que o valor da vida não é um fato epistemologicamente fundado, mas, sim, algo que
se dá no campo da linguagem, tributário da tradição. Dessa maneira, a cura ou o cuidado
não se dão a partir de uma condição mágica ou anterior ao próprio sujeito, mas das relações
cotidianamente produzidas ao que concebemos, culturalmente, como sendo valor da vida.
Esses fenômenos fazem parte de nosso acervo cultural, das produções do que consideramos
ideal e do que significa sermos humanos. Em outras palavras, para Ferraz, o valor dado à
vida é uma produção linguística que regula boa parte de nossa existência. Ferraz (1994),
baseado em leitura neopragmática, fala da impossibilidade de a defesa da vida ser entregue
a uma racionalidade pré-humana ou essencialista. Alerta, ainda, que leituras essencialistas
poderiam, no futuro, balizar quem irá dizer quais são exatamente as intenções dessa
racionalidade – sujeitos escolhidos para tal, provavelmente por fatores políticos. Assim,
iriam “decifrar com fidelidade” os verdadeiros objetivos da vida. Já, em 1994, ele antecipava
questões do contexto atual pandêmico:

E então, (se) por força de crenças racistas ainda existentes, surgissem


as perguntas: quem detém a melhor interpretação sobre as intenções da
vida? Qual raça, grupo ou nação seria a mais fiel expressão dos efeitos da
normatividade vital? Especificando-a, não seria tal coisa motivo suficiente
para dotá-la de direito sobre a vida dos outros menos capacitados? E se
estes, assim como numa reedição do nazismo, fossem considerados um
impedimento para a melhoria da espécie, quase que um tipo de vírus [...]
(FERRAZ, 1994, p. 21).

Para Ferraz (1994), além de quem decidirá sobre a importância da vida, estamos
imersos no jogo político de quem decidirá o que é a doença e, por consequência, o que
é e como será produzido, o cuidado. Este é um ato que não pode ser despolitizado, pois
inscreve-se na tradição, no poder autorizador da linguagem, apoiada nas várias histórias e
argumentações produzidas.
Passados quatro meses do primeiro caso de Covid-19, no Brasil, torna-se hoje mais
claro que uma pandemia é um processo longo e sofrido. Implica muitos movimentos de idas
e vindas, fechamentos e aberturas, revisão dos procedimentos todos a todo o momento.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Enfim, um processo lento, que seguramente impacta muito nossa saúde mental, além do
esgotamento com o distanciamento físico e social que se avoluma a cada dia que passa.
No nível político, dependendo da forma como o Estado lida com a pandemia, pode
gerar descuidados que provocam ainda mais sofrimento nas populações. São produzidos
“cuidadosamente” a partir do campo da linguagem, com as muitas narrativas que entopem
nossas redes sociais e as mídias, em torno da pandemia, e exploram exatamente o vínculo
existente entre os sujeitos envolvidos. Se o cuidado é dispositivo de acolhimento, o
descuidado é dispositivo de manutenção do sofrimento. Apresento a seguir, dois exemplos
de dispositivos de descuidado.

Descuidado - Fake News

A primeira política dos descuidados está sendo produzida pelas chamadas Fake News,
que a grosso modo, significa notícias falsas, produção e distribuição de desinformação,
escritas com a intenção de enganar.
Allcott e Gentzkow (2017) definem fake news como sendo publicações
intencionalmente falsas e aptas a serem verificadas como tal, com o intuito de enganar
leitoras e leitores: “We conceptualize fake news as distorted signals uncorrelated with the
truth.” (2017, p. 212).
Vários autores (AYMANNS; FOERSTER; GEORG, 2017; DELMAZO; VALENTE,
2018; RECUERO; GRUZD, 2019; SHU et al., 2017) diferenciam fake news de sátiras. Estas,
buscam sempre um valor humorístico, revelando suas intenções no próprio discurso e
formato, não tendo o propósito de enganar. Da mesma forma, os boatos e rumores não
são considerados fake news, pois lhes falta o desejo de autenticidade (RECUERO; GRUZD,
2019).
Para Recuero e Gruzd (2019), o conceito de fake news é sinônimo de desinformação:
são notícias falsas que circulam, principalmente, na mídia social. Para as autoras, fake news
não é informação pela metade ou mal apurada, mas falsa e intencionalmente divulgada, a
fim de atingir interesses de indivíduos ou grupos. Shu et al. (2017) afirmam que a ausência
de autenticidade e o propósito de enganar são as duas características básicas que compõem
o que se compreende como fake news.
Mas, não basta ser uma notícia feita para enganar. Ela tem que parecer verdadeira. Neste
sentido, várias outras/os autoras/es indicam que a manobra envolve a produção meticulosa
no estilo, linguagem e narrativas jornalísticas, na tentativa de dar ares de credibilidade à falsa
notícia (TANDOC; WEI; LING, 2018; VARGO; GUO; AMAZEEN, 2017).
Para Recuero e Gruzd (2019), três elementos são importantes na caracterização das
fake news: (1) o componente de uso da narrativa jornalística e dos componentes noticiosos;
(2) o componente da falsidade total ou parcial da narrativa e (3) a intencionalidade de
enganar ou criar falsas percepções.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Uma leitura apressada pode afirmar que falta informação à população para saber
lidar com o vírus causador da pandemia. Entretanto, estamos entupidos de informações.
Boa parte delas são fake news e possuem função clara, além da desinformação: produção de
medo, ódio, ansiedade.
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 2630/2020 (SENADO FEDERAL, 2020),
que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
Este projeto adota medidas de combate à disseminação de notícias falsas nas redes sociais.
Já, na Câmara dos Deputados, há 50 propostas que buscam combater e criminalizar a
disseminação de notícias falsas.
O debate no Congresso Nacional é amplo e envolve uma imensidão de segmentos
sociais com controvérsias as mais diversas. Os argumentos elencados, que vão de censura
a liberdade, saltam de língua em língua para defender ou atacar qualquer tentativa de
limitação das chamadas fake news. Me causa estranhamento a alegação de que a produção
de mentiras, visando enganar deliberadamente, seja sustentada em nome da liberdade de
expressão. A quem interessa isso? Por quê?
Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadoras da FioCruz,
identificaram as principais fake news relacionadas à Covid-19 recebidas pelo aplicativo Eu
Fiscalizo, entre os meses de março e maio (FIOCRUZ, 2020).
Segundo as pesquisadoras, a disseminação de notícias falsas relacionadas à Covid-19
enfraquece o combate à pandemia, além de jogar a ciência e as instituições de saúde pública
em descrédito.
Entre as fake news notificadas no aplicativo, 24,6% apresentam a doença como uma
estratégia política. No mais, 15,9% se referem ao novo coronavírus como uma farsa, 10,1%
ensinam métodos caseiros de prevenção ao contágio, 10,1% defendem o uso da cloroquina
ou da hidroxicloroquina, sem comprovação de eficácia científica, e 7,2% são contra o
distanciamento físico ou social. Isso, sem contar as que difamam as/os profissionais de
saúde e as que são contra o uso de máscaras ou álcool em gel.
Visando melhorar a saúde mental em tempos de pandemia é fundamental buscarmos
informação em fontes confiáveis. Claro, vale também a crítica e a dúvida frente aos conteúdos
que nos apresentam. Para as pesquisadoras da FioCruz, é necessário redobrar a atenção ao
receber informações nas redes sociais e fazer uma leitura crítica antes de compartilhá-las.

Descuidado – política de combate à Covid-19 pelo governo federal

A segunda política dos descuidados é ditada pelo próprio Governo Federal. Guess,
Nyhan e Reifler (2018) falam de um novo tipo de desinformação política marcada por uma
dubiedade factual com finalidade lucrativa, seja no campo político, seja no econômico. Essa
dubiedade factual abre o segundo descuidado e apresento uma teoria que ajuda a compreender
o processo de descuidado envolvido nela. É a Teoria do Duplo Vínculo, apresentada por
Bateson, Jackson, Haley e Weakland (1956).

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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O termo Duplo Vínculo vem do inglês (double bind). Trata-se de situação


comunicacional cujo objetivo é a criação de um dilema. Duas mensagens contraditórias são
enviadas simultaneamente, em um mesmo canal de comunicação, pelo mesmo interlocutor.
Como são contraditórias, uma mensagem nega a outra, inserindo o ouvinte em uma espécie
de dilema, fazendo com que ele se sinta em uma encruzilhada. O dilema manifesta-se, por
meio de confusão e dúvida, independentemente da resposta dada. O duplo vínculo ocorre
exatamente aí, quando o sujeito não consegue compreender a mensagem presente nessa
forma de comunicação e, claro, não consegue resolver a questão.
Geralmente, o duplo vínculo é utilizado quando há uma situação de controle entre duas
pessoas ou uma pessoa e um grupo. Quase sempre, sem que haja uma coerção manifesta,
criando dificuldades na resposta e mesmo dificultando o surgimento de formas de resistência
(BATESON, 1972).
Muitas vezes, o duplo vínculo manifesta-se por meio de palavras que entram em
contradição com determinada linguagem corporal ou ato, frases negativas quando se
quer afirmar algo, maneirismos linguísticos, etc. O duplo vínculo é fortalecido se os/as
interlocutores/as já possuem certa relação afetiva, algum vínculo já construído, laços de
confiança ou de autoridade.
Bateson et al. (1956) definem o Duplo Vínculo a partir das seguintes características:
1. É experiência que envolve sujeitos em posições distintas de poder;
2. Se repete ao longo da vida do sujeito;
3. É interposta uma “injunção primária” entre duas condições. Por exemplo, “Brasil,
ame-o ou deixe-o”. O verbo amar no imperativo é uma ordem;
4. É interposta uma “injunção secundária” ao sujeito, de forma que seja desnecessária
uma explicitação verbal. No exemplo anterior está implícito que é uma “escolha”
do sujeito;
5. Se necessário, é interposta uma “injunção terciária”. Marcada pela impossibilidade
de qualquer escapatória do dilema: se ele ama, fica no país (e deixa tudo como
está); se não ama, vai embora. Essa condição é essencial: o sujeito encontra-se
incapaz de dialogar ou pedir esclarecimentos das mensagens que recebeu;
6. A lista anterior é desnecessária, caso o sujeito já viva seu mundo em padrões de
duplo vínculo.
O duplo vínculo é o que Bateson et al. (1956) definem como sendo o grande esforço
para enlouquecer o outro, provocando sofrimento a todo momento. Nosso contexto atual, no
Brasil, é um estado permanente de produção de sofrimento. O Ministério da Saúde, chefiado
por Luiz Henrique Mandeta, e depois por Nelson Teisch, pregava o distanciamento social,
o respeito às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e todos os cuidados
na tentativa de controle da pandemia. Já a Presidência da República fazia exatamente o
contrário. Um dia, diz que temos que respeitar as orientações das instituições de saúde. No

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

outro, a figura do presidente é vista em aglomerações, ele próprio desdenha da pandemia,


promove o caos, disseminando medo e ansiedade, ao invés do que propaga em diversas redes
sociais, afirmando não querer que a população entre em pânico em função da pandemia…
A política do governo federal cria descuidados. Em tempos de pandemia, parte da
população se sente protegida. Outra parte se sente abandonada à própria sorte: mulheres,
crianças, idosos, negros e índios. Os embates e crises gerados pelo governo federal, a partir de
muitas narrativas envolvendo a pandemia, falam disso: use/não use hidroxicloroquina, conta/
não conta o número de infectados, faz/não faz teste em toda a população, distanciamento
físico é/não é importante, use/não use máscara; faz desaparecerem dados das vítimas fatais
da página oficial do Ministério da Saúde...
O duplo vínculo é estratégico de uma agenda necropolítica (MBEMBE, 2018) para
a produção do descuidado. Ele funciona nas relações entre boa parte da população com
seu mandatário, pois há laços de confiança e autoridade já estabelecidos. Laços esses
cuidadosamente trabalhados e fortalecidos ao longo do tempo, principalmente nas relações
diretas de diálogos nas redes sociais, as chamadas bolhas virtuais. Talvez, por aí, consigamos
compreender um pouco por que tanta gente defende no poder alguém que produz tamanha
política de descuidados. Imagino que, diferentemente de nossa leitura, esses sujeitos sintam
que estão sendo cuidados. Talvez valesse a pena explorar a dimensão psicológica envolvida
nessas relações para ajudar a compreender a necropolítica no país. Provavelmente, ela
não funciona somente com a produção de “inimizades”, mas também, com a produção de
“amizades”. Quem são as pessoas escolhidas, preferidas, enfim, os “amigos de longa data”.
Para elaborar os dilemas e adoecimentos produzidos pelo duplo vínculo e ajudar a
desmanchar o mal-estar produzido em cada um/a de nós, é necessário indagar a quem o
produz: mas, afinal de contas, o que você quer? Para o mandatário maior do Brasil, essa
resposta é clara: o poder, custe o que custar.

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5
DESIGUALDADES RACIAIS E VIOLÊNCIA DE
GÊNERO: O QUE PODEMOS (DES)APRENDER COM A
PANDEMIA DA COVID-19 DESDE UMA PERSPECTIVA
INTERSECCIONAL?
Telma Low
Danielly Spósito
Vanessa Ferry

1. Há lugar para os afetos

Este artigo se situa no marco do projeto de extensão intitulado “Apoio psicológico


aos/às profissionais de saúde do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes/Ufal”,
construído e desenvolvido no período de quarentena imposto pela pandemia do novo
coronavírus (Covid-19 ou Sars-Cov-2). O projeto é uma iniciativa de um grupo de docentes,
discentes e psicólogas/os, vinculados à Universidade Federal de Alagoas (Ufal), mais
especificamente ao Instituto de Psicologia e ao Hospital Universitário Professor Alberto
Antunes (HUPAA). O que nos une de imediato é o reconhecimento e a valorização do trabalho
que vem sendo desenvolvido pelas trabalhadoras e trabalhadores da saúde, especialmente
no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), frente ao cuidado com as pessoas infectadas
pela Covid-19. Esse reconhecimento vem acompanhado da pergunta: e quem cuida de quem
cuida? A resposta foi a construção de uma rede de cuidado e de solidariedade concretizada a
partir do projeto de extensão, que nos possibilitou vivenciar o encantamento e compromisso
com o fortalecimento do SUS através do acolhimento, escuta, apoio e cuidado com as pessoas
trabalhadoras do HUPAA. O trabalho vem sendo ofertado de modo remoto, mas não sem
presença e disponibilidade.
Diante de um contexto de pandemia, a oferta de um espaço de cuidado em saúde
mental, área geralmente tão negligenciada em nosso país, nos possibilita dar um lugar/
escuta às dores, lutos, medos, ansiedades, indignações, afetações, memórias, sentimento de
impotência, contradições, raivas, etc. considerados “comuns” e legítimos perante a perda das
mais de 80 mil pessoas, no Brasil, em cerca de quatro meses, número que é possivelmente
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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maior devido à subnotificação. Diariamente, somente vítimas da Covid-19, milhares de


pessoas estão perdendo entes queridas/os, chorando, enlutadas e se perguntando: por quê,
justamente com elas? Essa dor não é ou não deveria ser somente de quem está perdendo
pessoas próximas e queridas. Essa dor é de todas e todos nós. É coletiva. É social.
A pandemia visibilizou crises de ordem social, econômica e sanitária. Mas, sobretudo,
todas perpassam pelo aumento da vulnerabilidade das mulheres. As medidas de isolamento
social destacaram ainda mais as situações de precarização dos vínculos trabalhistas e
as muitas jornadas acumuladas (dentro e fora de casa), resultando em mais violências
institucionalizadas. As mulheres, em tempos de pandemia, recebem ainda a incumbência de
serem as cuidadoras dos/as membros/as da família, ficando encarregadas do cuidado com
as crianças, idosos/as e doentes. Ao pensarmos no contexto que nos cerca, nos deparamos
até mesmo com o fato de profissionais de saúde serem, na maioria, trabalhadoras mulheres.
Por isso, entendemos ser preciso pensar em como a pandemia nos tem afetado de diversas
formas (BARBOSA et al., 2020).
Isso porque, além de ser uma dor resultante das mortes reais, a pandemia da Covid-19
parece nos re-apresentar outras dores: a dor das mortes que poderiam ser evitadas, a de
perceber que há vidas passíveis de serem enlutadas e outras não (BUTLER, 2015); a dor da
pobreza, do racismo, do desemprego, dos trabalhos precarizados, da violência de gênero,
da violência contra crianças, adolescentes, idosos/as, pessoas com deficiência e, ainda,
a dor da solidão das pessoas em situação de rua, das trabalhadoras do sexo, sem recurso
para se sustentar, das mulheres trans e travestis excluídas e invisibilizadas, dos povos
indígenas, cujas terras estão sendo cada vez mais invadidas e suas existências ameaçadas.
Ou as dores ainda não nomeadas, como a de olharmos para nossa sociedade, para nosso
Estado tão ausente, negligente, genocida e nos darmos conta de que estamos face a um
vírus que denuncia a força intencional da necropolítica (MBEMBE, 2019) racista, patriarcal,
capitalista, cisheteronormativa, fruto de um processo violento, doloroso e devastador que
foi a colonização.
Foram essas as dores e os feminismos que nos uniram na escrita deste ensaio. Ou seja,
decidimos dar lugar a tantos sentimentos e transformar nossa indignação e luto, em luta.
Luta que se expressa, também, por meio das afetações e dos afetos que parecem engasgados
e exacerbados com/na pandemia, especialmente quando pensamos nas mulheres, em nós
mulheres, nos desafios e potências que podemos tecer juntas a partir dos possíveis (des)
aprendizados com/na quarentena.
Decidimos, portanto, ensaiar algumas reflexões acerca das desigualdades raciais e
violência de gênero, em tempos de pandemia, e tornar essa fase também frutífera para/
na nossa (r)existência, imaginação, criatividade, militância e produção acadêmica. A
escrita deste ensaio se torna, para nós, um compromisso e exercício com o (auto)cuidado –
dispositivo político, comunitário, solidário, revolucionário e “tranforma-dor”, conforme nos
ensinam as mulheres negras feministas há séculos.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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2. Quem somos e de onde partimos

Pedimos licença às pesquisadoras, teóricas e militantes feministas negras para situar


aqui o nosso lugar de fala, ou seja, o lugar social de onde partimos, que tem a ver também
com nossas identidades raciais, de classe, de gênero, etc. que incidem nas vivências pessoais
e acadêmico-profissionais que temos tecido (COLLINS, 1997; RIBEIRO, 2019). Falamos de
lugares diversos mesmo sendo todas mulheres e profissionais vinculadas ao HUPAA e à Ufal,
atuando no âmbito da educação e saúde públicas, seja diretamente na gestão e assistência
às pessoas usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) e/ou desenvolvendo acadêmica e
tecnicamente atividades no âmbito universitário.
Uma de nós é parda e heterossexual, as demais brancas, de orientação sexual bissexual
e lésbica, todas cis, nordestinas, imigrantes, feministas, antirracistas, implicadas na luta
contra o capitalismo, a LGBTIfobia e todas as demais violências. Nas nossas trajetórias,
temos buscado articular as questões de gênero, cor/raça, etnia, classe e sexualidade a partir
da perspectiva interseccional proposta pelas teóricas negras dentro do feminismo negro.
De acordo com Kimberle Crenshaw (2002), pesquisadora afro-americana, a
interseccionalidade:

[...] trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a


opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 177).

Neste sentido, nós – duas mulheres brancas cis e uma mulher parda cis, porém,
todas de condição socioeconômica confortável – reconhecemos e assumimos nosso lugar de
privilégio, respeitando e apoiando o lugar de fala das pessoas negras e pardas, nos somando,
como feministas antirracistas, à luta contra o racismo em todos os espaços/contextos. Ou
seja, firmamos nosso compromisso com a proposta de “enegrecer o feminismo”, feita por
Sueli Carneiro (2003), teórica, pesquisadora e mulher preta brasileira, questionando a
premissa de um sujeito universal mulher, construída pelas feministas brancas e ocidentais,
dentro de uma perspectiva de conhecimento eurocêntrico e colonizador.
Neste ensaio, pretendemos refletir acerca de como gênero, cor/raça e classe se
articulam, produzem opressões diversas e nos convidam a pensar que a pandemia do novo
coronavírus vem escancarar aquilo que acontece há séculos no Brasil: as desigualdades de
poder e de oportunidades nas relações entre mulheres e homens, entre as próprias mulheres
e entre os próprios homens, que precisam ser analisadas, fundamentalmente, à luz do
entrecruzamento entre gênero, cor/raça, etnia, classe, sexualidade (AKOTIRENE, 2019).
Para tanto, teceremos questões acerca de dois temas que consideramos primordiais
para serem re-pensados dentro dos feminismos: o aumento da violência de gênero no espaço
doméstico durante a quarentena e as violências fruto das opressões exercidas por mulheres
brancas contra mulheres negras.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Apresentaremos alguns dados sobre o aumento da violência de gênero e das barreiras


que as mulheres têm encontrado para denunciar e buscar proteção durante a pandemia. E
dialogaremos sobre o caso de Mirtes, mulher negra, empregada doméstica, que perdeu o filho
de cinco anos, Miguel, que “caiu” de um prédio de luxo no Recife, após ter sido abandonado
pela patroa de Mirtes, uma mulher branca de classe média, chamada Sari Corte Real, no
elevador do edifício3.
Esses debates expressam que as desigualdades raciais, de gênero e de classe,
acentuadas pela pandemia, vão na contramão dos discursos que consideram feminismos
e racismo temas separados e ultrapassados, justificando que os mesmos dizem respeito às
minorias e são um problema das mulheres, dos/as negros/as, dos/as índios/as, um exemplo
de “racismo reverso”. Estamos diante de noções reducionistas, generalistas e superficiais,
que buscam deslegitimar e estigmatizar um debate tão importante e necessário, nomeando-o
muitas vezes como “mimimi” (RIBEIRO, 2019).
Ou seja, quando denunciamos e pautamos a relevância de dialogarmos sobre esses
temas e torná-los transversais e centrais não apenas dentro dos movimentos sociais, mas
também no processo de produção do conhecimento e na construção e desenvolvimento
das políticas públicas, somos consideradas radicais, questionadas na nossa competência
acadêmica e profissional, além de acusadas de “comunistas”. Djamila Ribeiro (2019, p. 79)
chama nossa atenção para o fato de que “a tomada de consciência sobre o que significa
desestabilizar a norma hegemônica é vista como inapropriada ou agressiva, porque aí se está
confrontando o poder”.
Adichie (2014) nos convida a refletir sobre um exemplo clássico: uma mulher, com
diploma e emprego. Ela tem um marido, em situação semelhante, com diploma e emprego.
Quando ambos/as chegam cansados/as em casa, quem vai realizar as tarefas domésticas?
Quem vai preparar o jantar? Quando o homem o faz, a sociedade ainda cobra dessa mulher
que ela seja agradecida por ter sido “ajudada”.
Até mesmo na aparência, a mulher que quer ser levada a sério é oprimida na sua
feminilidade: não pode apresentar beleza e deve se vestir com sobriedade. Para que?
Simplesmente para que seja ouvida? Para que não seja desmerecida por ser mulher? Ou para
lembrá-la de que está ocupando espaços que muitos homens não querem que ela ocupe?
No Brasil, uma mulher no cargo de presidenta fez emergir na sociedade patriarcal
o uso de “piadas” agressivas, incitando a violência sexual. Circularam, em redes sociais,
imagens de veículos que portavam um adesivo com a imagem da presidenta alterada, com as
pernas abertas, posicionada na entrada de uma mangueira de combustível. O corpo de uma

3 Esse caso foi noticiado em diferentes mídias digitais nacionais, como: Revista Fórum, disponível em: <https://
revistaforum.com.br/brasil/jurista-comenta-detalhes-ate-entao-desconhecidos-do-relatorio-da-policia-
sobre-caso-miguel/>; TV Jornal, disponível em: <https://tvjornal.ne10.uol.com.br/noticias/2020/07/14/
caso-miguel-advogado-de-mirtes-espera-que-acusacao-contra-sari-seja-recebida-integralmente-191640>e
G1, disponível em: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/07/06/caso-miguel-ela-tentou-
mostrar-uma-imagem-sofrida-mas-acho-que-nao-conseguiu-diz-mirtes-sobre-entrevista-de-sari.ghtml>.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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mulher alçada ao cargo mais importante da democracia republicana estava sendo objeto de
ridicularização e erotização no espaço público. Em que outra situação ocorreu algo parecido
a um homem?
Falar sobre feminismos incomoda. Os discursos patriarcais se empenham em
distorcer o termo feminismo, com o intuito de produzir sentidos pesados e designar
mulheres consideradas como não “femininas”, agressivas, e/ou que não gostam dos
homens. Incomoda, porque tem sido comum resistir ao convite de mudança sobre o que
está acomodado. Por séculos, a humanidade foi dividida entre dois gêneros, um que oprime
e exclui o outro (ADICHIE, 2014) e entre duas raças, a negra, marginalizada e inferior e a
branca, dominante e universal; além de duas classes, a trabalhadora, operária e a burguesa,
rica, privilegiada. Esses binarismos, de gênero, racial e de classe parecem organizadores
das relações construídas na sociedade brasileira, a qual vem se constituindo com base
colonialista, racista, escravocrata, classista e sexista. Se não partirmos dessa discussão, não
seremos capazes de reconhecer os problemas da nossa sociedade.
Portanto, enquanto feministas antirracistas ressaltamos que seguiremos na disputa
de narrativas que visem tecer questões de modo complexo, situado e implicado acerca das
desigualdades, opressões e violências desde uma perspectiva feminista interseccional. O eixo
central de nossas análises se concentrará, primordialmente, nas contribuições e produções
de teóricas e teóricos, especialmente negras/os e feministas, as/os quais vêm evidenciando
e denunciando o quão as desigualdades de gênero na nossa sociedade são determinadas pelo
racismo (CARNEIRO, 2003; RIBEIRO, 2019).
Quem nos lê pode ter se dado conta de que priorizamos uma escrita coletiva, centrada
no nós, no plural, como forma de expressar ideias, perguntas e afetações que compartilhamos
e com as quais todas três nos identificamos. Mas, em determinados trechos, ainda que
usemos a primeira pessoa do plural, a escrita estará muito mais dirigida a duas de nós,
mulheres brancas, especialmente no subtópico 4, pois estamos conscientes de que o racismo
é um problema nosso, protagonizado, exercido e perpetuado por nós, pessoas brancas.
De modo que somos nós, as autoras que se autodeclaram como brancas, que devemos
nos revisitar, assumirmos que o racismo nos estrutura e nos constitui, nos colocando em
posição de privilégio. Só assim poderemos e conseguiremos, de fato, nos implicarmos e nos
comprometermos com a luta antirracista. Estamos diante de um desafio, mas também de
um grande desejo e possibilidade.

3. Problematizando desigualdadeS e violênciaS

A pandemia do novo coronavírus é considerada um problema sanitário que, como


afirma Boaventura de Sousa Santos (2020, s/n), “vem apenas agravar uma situação de crise
a que a população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica periculosidade”.
Porém, “sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados” (SANTOS, 2020, s/n),

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pondo em relevo modos de vida, de socialização e de relações de trabalho ainda dominantes,


que perpetuam e acentuam diversas desigualdades e opressões.
Pesquisadoras feministas da área da saúde concebem a violência de gênero e o
racismo como questões de saúde pública, posto que incidem sobre o processo saúde-doença
das pessoas e da coletividade, especialmente das mulheres negras. Porém, esses temas ainda
aparecem como desconhecidos e/ou distantes do contexto da formação, gestão e assistência
em saúde por falta de conhecimento e/ou de qualificação nos espaços de educação permanente
em saúde, expressando e sustentando uma formação e prática sexista e racista, que violam
direitos, revitimizam as mulheres em situação de violência e perpetuam o sexismo, o racismo
e as violências institucionais (SCHREIBER, 2001; PEDROSA; SPINK, 2011; WERNECK,
2016). Este último se apoia em:

Um conjunto de estereótipos negativos sobre a população negra, [...] de


acordo com os quais trabalhadoras(es) da saúde irão determinar como será
o atendimento, a atenção e o cuidado das pessoas, dado o seu pertencimento
racial, criando-se uma hierarquia no atendimento, deixar viver, deixar
morrer (GOES; RAMOS; FERREIRA, 2020, p. 2).

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS, 2020)


apresenta um dado relevante, indicando que nós, mulheres, compomos a principal força de
trabalho da saúde “representando 65% dos mais de seis milhões de profissionais ocupados
no setor público e privado”, sendo maioria também nos cargos de gestão. Mas é importante
nos perguntarmos de que mulheres estamos falando? Que mulheres são essas?
Esses índices apresentados pelo CONASEMS são frutos da “Pesquisa Nacional dos
Gestores Municipais do SUS” realizada em 2018, a partir de uma parceria entre a Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o CONASEMS. A
pesquisa buscou avaliar o perfil dessas/es profissionais gestoras/es e as principais pautas
elencadas por elas e eles para o SUS, entre os anos de 2017 a 2020. Os resultados apontaram
que a maioria das secretarias municipais de saúde dos SUS é gerida por mulheres, totalizando
58%, assim definidas: “na faixa etária entre 31 e 50 anos (67%), branca (59%), com nível
superior (81%) e com pós-graduação (49%)” (CARVALHO; OUVERNEY; OLIVEIRA DE;
MACHADO, 2020, p. 214). Ou seja, as mulheres negras são minoria, porém, informações
detalhadas sobre o perfil delas são “invisibilizadas” nos documentos da pesquisa.
Logo, não sabemos quantas se autodeclararam como pardas e negras, qual o nível
de escolaridade, faixa etária, etc. tão pouco identificamos uma problematização acerca do
que leva as brancas a serem maioria. Parece que a ideia da branquitude como universal e
dominante é tomada como um dado “neutro”, “normal”, que não passa pelo debate racial.
Nossa experiência profissional nos convoca, portanto, a estarmos atentas a esses
determinantes sociais de saúde que nos parecem primordiais para pensarmos sobre a
realidade desigual no/do nosso país. Jurema Werneck, médica, pesquisadora, feminista e

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teórica negra brasileira ressalta que o conceito de determinantes sociais de saúde foi alçado
pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2005) para destacar o “[…] processo complexo
no qual participam fatores estruturais e fatores intermediários da produção de iniquidades
em saúde” (WERNECK, 2016, p. 540).
Certamente, sexo, gênero, cor/raça, etnia, classe, geração, sexualidade (orientação
sexual e identidade de gênero), capacitismo, etc. parecem fundamentais para analisarmos a
situação de saúde das pessoas, em especial das mulheres negras, que aparecem sempre no
topo dos piores índices de acesso às políticas e serviços públicos. Com a pandemia, a situação
de vulnerabilidade das pessoas negras, em especial das mulheres, é exacerbada, visto que:

Negras e negros estão mais representados nos indicadores negativos, como


atividade no mercado de trabalho informal, que limita o acesso a direitos
básicos como a remuneração pelo salário mínimo e a aposentadoria. [...]
historicamente, os locais onde reside a maioria das pessoas negras são
precários, com moradias inadequadas em relação às condições estruturais,
sem acesso a serviços básicos de saneamento, água potável, equipamentos
de saúde, à exemplo de postos de saúde, farmácias, parques e espaços de
recreação, contribuindo para a maior exposição a fatores de risco, além dos
elevados índices de violência, resultando no acúmulo de agravos à saúde
(BRASIL, 2017; IBGE, 2019;GOES; RAMOS; FERREIRA, 2020, p. 2-4).

Diante de todo esse panorama, parece mais do que necessária a relevância de


interseccionar gênero, classe e raça:

Pois, a “variável” racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca


a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a
masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior
ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres
brancas). Em face dessa dupla subvalorização, é válida a afirmação de que
o racismo rebaixa o status dos gêneros. Ao fazê-lo, institui como primeiro
degrau de equalização social a igualdade intragênero, tendo como parâmetro
os padrões de realização social alcançados pelos gêneros racialmente
dominantes (CARNEIRO, 2003, p. 119).

O aumento nos casos de violência de gênero, antes e durante a quarentena, corrobora


as ideias de Sueli Carneiro. Pois, de acordo com o Atlas da Violência de 2020 produzido pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP), que agrega diversas pesquisadoras e pesquisadores, 12 mulheres foram
assassinadas por dia, em 2018, no Brasil. “Entre 2008 e 2018, [...] teve um aumento de 4,2%
nos assassinatos de mulheres. Em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que
dobrou em relação a 2008” (IPEA/FBSP, 2020, p. 35). E mais uma vez nos perguntamos:
quem são essas mulheres?

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O documento destaca um aumento significativo no homicídio de mulheres negras em


comparação às não negras, entre os anos de 2008 e 2018. “Enquanto a taxa de homicídios
de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4% [...]
Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras” (2020, p. 37). Outro
dado relevante é sobre o local onde as mulheres foram assassinadas: dentro ou fora de
casa, no período de 2013 a 2018. O índice de mulheres assassinadas fora de casa diminuiu
em 11,5%, enquanto que os feminicídios ocorridos dentro de casa cresceram em 8,3%
(IPEA/FBSP, 2020).
Esses números nos dão pistas de como a violência de gênero é uma questão
extremamente grave no nosso país, que repercute negativamente na vida cotidiana das
mulheres, das pessoas em seu entorno, especialmente das crianças, e também da pessoa
autora de violência, ainda que de modo diferente e particular. Pois,

Mulheres em situação de violência têm taxas mais altas de absenteísmo,


atrasos no trabalho e diminuição da produtividade que podem interferir em
suas atividades profissionais, tornando-as mais vulneráveis à dependência
financeira do agressor, comprometendo sua autonomia. [...] A violência
contra a mulher repercute na ausência de saúde e na falta de qualidade de
vida das mesmas e tem sido associada à frequente procura pelos serviços de
saúde. (BARUFALDI; SOUTO; CORREIA; MONTENEGRO; PINTO; SILVA;
LIMA, 2017, p. 2935)

Esses dados e as análises produzidas por pesquisadoras estudiosas do tema talvez


já fossem suficientes para considerarmos que uma pandemia pudesse agravar ainda mais
a situação de desproteção das mulheres em situação de violência. Daí questionarmos:
qual seria a “surpresa”? Acreditamos que não imaginaríamos passar por uma situação de
pandemia nesse nível de gravidade e contexto global, nem que a principal recomendação das
instituições e organizações sanitárias fosse manter-nos em quarentena, recomendação essa
que se propagou sob o lema: “fique em casa”! Essa principal medida para prevenir a infecção
da Covid-19 veio acompanhada das orientações de higienização das mãos, roupas, objetos,
uso de máscaras e distanciamento social.
Porém, essas campanhas e recomendações pareciam generalizar, simplificar e
invisibilizar a complexidade de condições e situações que atravessam a vida das diferentes
pessoas no país, sem considerar os determinantes sociais de saúde aqui contemplados. Daí
nos perguntamos: quem são as pessoas que têm casa para “ficar”? Aquelas que têm casa
têm o direito de escolher ficar nela e não precisar sair para trabalhar? Aquelas que têm
casa têm acesso a saneamento básico, a água encanada diariamente, a produtos de higiene,
como sabão, álcool em gel e outros? A casa é um lugar seguro e o “melhor lugar” para quem
ficar? Será que as mulheres travestis e transexuais, as mulheres trabalhadoras do sexo, as
mulheres negras pobres, as mulheres em situação de rua, as mulheres trabalhadoras rurais,
entre outras, têm essa opção de ficar em casa “seguras”? Mais do que respostas objetivas, os

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dados sobre violência de gênero durante a pandemia escancaram que a casa não é um lugar
seguro e protegido para muitas mulheres.
De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, responsável
pelo Disque 180, canal de denúncia dos casos suspeitos ou confirmados de violência de
gênero, houve um incremento em 37,58% do número de denúncias registradas, entre abril
de 2019 e igual período de 2020.
O FBSP lançou, em abril de 2020, uma nota técnica intitulada “Violência Doméstica
durante a pandemia de Covid-19”, apontando uma contradição: no início da quarentena,
assim como ocorreu em outros países, o número de registros de Boletins de Ocorrência (BOS)
de casos de violência doméstica diminuiu significativamente em todo o país, comparado ao
ano de 2019.
Essa redução impactou na distribuição e concessão, por parte do judiciário, das
medidas protetivas de urgência, que tiveram uma queda de 67,7%, em comparação às
concedidas no mesmo período, em 2019. Em contrapartida, são trazidos dados mostrando
que, em pesquisa realizada no universo digital, como no Twitter, por exemplo, constata-se o
aumento de 431% dos relatos de brigas entre casais vizinhos, no período de fevereiro a abril
de 2020.
Em Maceió/Alagoas, cidade em que vivemos, o número de mulheres que demandaram
acompanhamento e proteção, por parte da Patrulha Maria da Penha, aumentou em 146%
nos quatro primeiros meses de 2020. A dimensão ganha traços ainda mais alarmantes ao
retomarmos a fala da Diretora-Executiva para Mulheres, da Organização das Nações Unidas
(ONU), ao destacar que as oportunidades para denunciar são significativamente mais
difíceis, nos países em desenvolvimento, tendo em vista a vulnerabilidade socioeconômica, o
que faz com que menos de 40% dos casos cheguem à denúncia formal (ONU BRASIL, 2020).
Uma matéria publicada no jornal Gazeta de Piracicaba expressa os desafios que
uma mulher em situação de violência enfrenta durante a quarentena. Maria, nome fictício,
teve o contrato de trabalho interrompido ao início da quarentena e ficou em casa com seu
companheiro, conforme destaca a notícia:

“Quando fiquei sem trabalhar e tivemos de passar o dia inteiro juntos, as


humilhações por boca começaram a ser mais frequentes, mas continuei
quieta.” Até que no mês passado, a agressão verbal se transformou em agressão
física durante uma discussão noturna. Maria, aos gritos, pediu socorro aos
vizinhos, que chamaram a polícia. Com hematomas, foi encaminhada ao
hospital e à delegacia e pediu medida protetiva contra o agressor. “Com a
pandemia e o maior tempo de convivência, ele se revelou outra pessoa”,
disse. Ela acredita que o fato de o agressor estar desempregado e fazer uso de
droga piorou o relacionamento, que já era ruim.

São milhares de Marias pelo mundo, de modo que esse relato e esses números
escancaram a fragilidade da rede de proteção às mulheres em situação de violência, posto que

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na maioria dos estados os serviços especializados estão funcionando de modo precarizado,


mesmo antes da pandemia. Além disso, muitas mulheres tinham que “escolher” qual o
menor risco a correr, pois tinham de se dirigir às delegacias para fazer a denúncia, já que
poucos estados brasileiros oferecem esse serviço de modo virtual.
Esse cenário levou o governo federal, sob pressão da bancada feminina progressista
e dos movimentos de mulheres e movimentos feministas, a sancionar a Lei 14.022, de 7
de julho de 2020, que considera serviços essenciais aqueles dirigidos ao atendimento de
mulheres em situação de violência doméstica e familiar, de crianças e adolescentes, de
pessoas idosas e de pessoas com deficiência.
Podemos propor um pequeno exercício reflexivo? Se você fechar os olhos neste
momento e mentalizar a palavra doméstica, que imagem vem à sua mente? A visão
predominante da maioria das pessoas, possivelmente, a levará a visualizar uma mulher negra.
Assim, entendemos que a terminologia violência doméstica nos fala, por si só, sobre gênero,
cor/raça e etnia. As primeiras mulheres violentadas, no Brasil, foram mulheres indígenas e
negras. A colonização estabeleceu que haveriam as chamadas negras de dentro, mulheres
negras que viviam na casa grande, para realizar o trabalho doméstico. O recorte racial é
fundamental. O termo doméstica traz, portanto, historicamente, elementos e discursos
sobre essas mulheres.
O privilégio da fragilidade feminina patriarcal nunca se aplicou à mulher negra, sendo-
lhe imposto o trabalho nas lavouras do café, da cana de açúcar. Se as lutas das mulheres
eram invisibilizadas pelo patriarcalismo, as lutas das mulheres negras vinham de antes das
lutas feministas brasileiras. Era uma luta contra a violência histórica e cotidiana, era uma
luta por sobrevivência (DAVIS, 1944/2016; PACHECO, 2013).
A violência contra as mulheres é autorizada pelo patriarcado e ganha contornos mais
dramáticos pelo racismo. A dependência econômica agrava esse contexto. Os trabalhos
precarizados são majoritariamente destinados a mulheres negras, o que contribui para a
violência doméstica, na medida em que colaboram para a submissão dessas mulheres. Aí é
que se estabelecem, muitas vezes, os acordos velados, segundo os quais as mulheres negras
suportam a dor e a violência para proteger e/ou garantir a sua subsistência ou de suas filhas
e filhos (PACHECO, 2013; KILOMBA, 2019).
Na violência psicológica, o racismo agrega força às opressões, no intuito de minar
a autoestima das mulheres negras. São utilizados discursos como: a negra burra; a negra
é para fornicar, enquanto a branca é para casar; ninguém vai te amar porque você é feia
(e traços negros, como lábios grossos, nariz largo, cabelos crespos são estabelecidos como
ruins, feios); negra é pra apanhar, ela gosta de apanhar.
Assim, relacionamentos abusivos estabelecem interfaces com racismo e machismo
para subordinar o gênero feminino. O corpo negro carrega a carga histórica de ser
escrava. E, vendo-se em trabalhos precarizados, as mulheres negras são posicionadas

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em situação de subordinação, sujeitas a conviverem com as violências subjetivas ao


longo da sua história.
Economia e relações patriarcais dizem sobre ser mulher negra e impactam na violência
contra mulheres. A obscuridade da escravidão retorna nas violências sofridas numa relação
de ancestralidade, que faz com que as violências domésticas para as mulheres negras tenham
um impacto significativamente maior.
Por exemplo, as mulheres pretas (negras ou pardas), que adotam suas identidades
afrodescendentes, utilizando turbantes, estampas, expressando religiosidades de matrizes
africanas, em alguns momentos estarão suscetíveis a serem agredidas pelo simples fato de
serem quem são, por suas ancestralidades e origens: as pretas, as macumbeiras. Elas são
cobradas pela sociedade patriarcal branca a anular e esconder aspectos das suas essências
históricas em prol de uma fictícia aprovação social.
O uso do termo violência contra a mulher, por exemplo, não nos contempla,
por presumir uma mulher inespecífica, generalizada, provavelmente remetendo ao
imaginário de mulher branca de classe média. Por isso, consideramos necessário utilizar
o plural, a denominação violência contra mulheres. De tal modo, o feminismo negro
e a interseccionalidade emergem e destacam que as demandas das mulheres negras têm
recortes diferenciados. A pauta do feminismo negro nos mostra que classe e raça não
podem ser elementos desconectados – são questões estruturais para se pensar na violência
doméstica. Se o marcador étnico-racial dos índices de violência doméstica for invisibilizado,
neste período de pandemia, as estatísticas não nos dirão sobre as mulheres das periferias,
indígenas, ou das comunidades quilombolas.
A pandemia colocou em alerta o que muitas e muitos de nós não queremos reconhecer
e nos importar: o gênero, a cor/raça e a classe social são determinantes sociais de saúde que
agravam a situação de vulnerabilidade de mulheres negras e pobres durante a pandemia. Um
grupo de pesquisadoras/es analisa esse contexto e pontua que a pandemia incide em pelo
menos três níveis da vida das mulheres em situação de violência – e também das crianças e
adolescentes – são eles: o comunitário, o relacional e o individual. Em todos esses níveis fica
evidenciado que temos falhado, enquanto Estado e sociedade, na garantia dos direitos das
mulheres, em especial do direito a viver uma vida sem violências:

[...] no nível comunitário do modelo ecológico, na medida em que diminui


a coesão social e o acesso aos serviços públicos e instituições que compõem
a rede social dos indivíduos. [...] No âmbito relacional, o maior tempo de
convivência com o agressor é crucial. [...] Na dimensão individual, [...] a
sobrecarga feminina com o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos,
idosos e doentes também pode reduzir sua capacidade de evitar o conflito
com o agressor, além de torná-la mais vulnerável à violência psicológica e à
coerção sexual. [...] a dependência financeira com relação ao companheiro
em função da estagnação econômica e da impossibilidade do trabalho

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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informal em função do período de quarentena é outro aspecto que reduz


a possibilidade de rompimento da situação. (MARQUES; MORAES;
HASSELMANN; DESLANDES; REICHENHEIM, 2020, p. 2)

A questão da violência de gênero nos parece muito complexa e desafiadora porque


está bastante estruturada pelo patriarcado branco ocidental, que produz estereótipos e
funções de gênero hierárquicas, opostas e complementares, que sustentam a lógica binária
do macho-homem-masculino como superior e dominante em relação à fêmea-mulher-
feminina (SCOTT, 1996). Romper com o lugar de poder e privilégio que os homens brancos,
cis e heterossexuais exercem e gozam parece ser algo que não depende diretamente apenas
de nós, mulheres. Pois, vale lembrar, que não temos o poder de mudar a outra pessoa, mas
de fomentar uma mudança e estar com ela, ao lado, se assim ela quiser.
A iniciativa de mudança e de revisitação do machismo nos homens é uma “tarefa”
que está a cargo deles próprios, especialmente dos homens brancos, cis e heterossexuais,
que estão no topo dos privilégios e também exercem opressões diversas contra os homens
negros, além das que exercem contra as mulheres brancas e negras. O que não significa
dizer que os homens negros estão isentos da necessidade de olhar também para si, enquanto
atravessados pelo machismo, e revisitar os modos como exercem o poder nas relações entre
si e com as mulheres.
Portanto, o que nos cabe enquanto mulheres, é seguir convidando os companheiros
homens a perceber e admitir que o machismo também lhes afeta e tira deles o direito de
vivenciar modos de relação e de vida mais plurais, equitativos e livres, onde os afetos, o
cuidado e autocuidado têm lugar e uma potência transformadora (MEDRADO; LYRA,
2008). Muitos homens já vêm tomando essa consciência, reconhecendo seus privilégios e
escolhendo novas-outras possibilidades de vivenciar as masculinidades.

4. Mulheres brancas, é urgente a necessidades de nos “reformarmos”

Mais uma vez, pedimos permissão às mulheres e pensadoras negras para trazermos
para nosso texto uma expressão e provocação feita por Sojourner Truth, em 1851, no poema
On woman’s dress poem. Traduzido e apresentado integralmente no livro Lugar de Fala, de
Djamila Ribeiro (2019, p. 23), do qual reproduzimos aqui um trecho que diz:

Quando vi mulheres no palco na Convenção pelo Sufrágio da Mulher, no outro


dia, Eu pensei, Que tipo de reformistas são vocês?, com asas de ganso em vossas
cabeças, como se estivessem indo voar, e vestida de forma tão ridícula, falando
de reforma e dos direitos das mulheres? É melhor vocês mesmas reformarem
a si mesmas em primeiro lugar (RIBEIRO, 2019, p. 22-23, grifo nosso).

Truth é uma mulher afro-americana, grande referência do movimento abolicionista


norte americano, “escritora e ativista dos direitos da mulher” (RIBEIRO, 2019, p. 18). Ficou

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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mundialmente reconhecida a partir do discurso que proferiu na Convenção dos Direitos da


Mulher, em Akron, Ohio, nos Estados Unidos da América (EUA), perguntando à assembleia:
“Por acaso, não sou eu uma mulher”? Isso, frente às provocações racistas, sexistas e elitistas,
de que as mulheres não deveriam votar, pois sequer sabiam “pular uma poça ou embarcar
em uma carruagem” (DAVIS, 1944/2016, p. 71). Davis destaca que:

Sozinha, Sojourner Truth salvou o encontro das mulheres de Akron das


zombarias disruptivas promovidas por homens hostis ao evento. De todas
as mulheres que compareceram à reunião, ela foi a única capaz de responder
com agressividade aos argumentos baseados na supremacia masculina, dos
ruidosos agitadores (DAVIS, 1944/2016, p. 70).

Truth denunciava, já naquele tempo, que nós, mulheres brancas, em sua maioria, não
estávamos preocupadas com as lutas e realidades das mulheres negras, especialmente com
as desigualdades e violências produzidas pelo sistema escravocrata, que afetava, violentava,
explorava e assassinava não apenas as mulheres negras, mas também os homens negros.
Parece que, com a pandemia da Covid-19, o racismo vem tomando uma certa
notoriedade tardia, se assim podemos dizer, a partir de denúncias e manifestações ocorridas
em vários países, inclusive no Brasil, principalmente após o assassinato de George Floyd,
no dia 25 de maio, nos EUA. Floyd era um homem afro-americano que foi imobilizado e
assassinado por um policial branco (acompanhado por outros dois), mesmo estando
desarmado e comunicando que não estava conseguindo respirar. Este foi mais um caso de
assassinato de pessoas negras, nos EUA, repercutido internacionalmente.
A quarentena provocada pelo novo coronavírus não foi suficiente para manter a
população negra e antirracista em casa, cumprindo o distanciamento físico recomendado. O
vírus do racismo foi mais uma vez exposto e denunciado, de modo a levar às ruas milhares
de pessoas, em várias partes do mundo.
No Brasil, somente em 2019, 74% das pessoas assassinadas pela polícia eram negras,
de acordo com dados do FBSP (2019). Entre 2007 e 2017, o índice de pessoas negras
exterminadas aumentou em 33,1%, enquanto o de pessoas não negras cresceu 3,3%. Essas
taxas são apresentadas pelo Atlas da Violência 2019 (IPEA/FBSP, 2019), mas parecem não
causar tanto impacto, revolta e repercussão. Qual o motivo?
Os estudos decoloniais têm contribuído bastante no processo de recontar a nossa
história fora das lentes e narrativas ocidentais, brancas e eurocêntricas, fazendo perguntas e
problematizando a ideia de uma sociedade brasileira miscigenada e sem racismo. São esses
estudos que têm nos inspirado e provocado uma ruptura com saberes, fazeres e sentires que
sustentavam uma epistemologia colonizadora.
A escrita deste texto emerge como uma expressão de nossas aproximações, aprendizados
e encantamentos com as produções das teóricas e teóricos negras/os decoloniais. De modo
que nossas práticas, pesquisas e conhecimentos têm enegrecido, isto é, têm firmado nosso

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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compromisso antirracista, abraçando e reverenciando as ancestralidades negras e indígenas,


transformando a nós mesmas, nos possibilitando exercitar a escuta e valorização das falas,
experiências, práticas e saberes das vozes e vidas negras e indígenas que foram silenciadas,
apagadas e negadas pelo conhecimento ocidental, branco, colonizador dominante. Conforme
destaca Kilomba (2019, p. 59), é necessário que haja uma “[...] preocupação primordial de
descolonização do conhecimento acadêmico”.
Nesse contexto, enquanto mulheres brancas, nos sentimos convocadas a nos
“reformarmos” e isso passa por revisitarmos as relações que construímos com as mulheres
negras, nos atentando para as opressões e violências racistas que cometemos. É por isso
que gostaríamos de problematizar e reafirmar que não pactuamos com um feminismo que
negue a dominação que mulheres brancas exercem contra mulheres negras, nem tão pouco
o aceite.
A pandemia da Covid-19 escancarou que, ainda que nós, mulheres brancas,
possamos estar em situação de violência na relação com nossos/as (ex)companheiros/
as, construímos relações hierárquicas, desiguais, opressoras e violentas com as mulheres
negras. Especialmente, porque muitas das mulheres negras e pobres não têm a opção de
seguir a recomendação do “fique em casa”, pois tiveram que trabalhar nas nossas casas, suas
“patroas”. A vivência de Mirtes parece expressar muito bem essa realidade.
Mirtes é mulher negra, pernambucana, moradora da periferia do Recife, empregada
doméstica e mãe de Miguel Otávio, criança negra, filho único, de cinco anos de idade. Miguel
“caiu” do nono andar de um edifício de luxo situado no Recife Antigo, “coração” turístico da
capital pernambucana.
Mirtes e sua mãe se revezavam no cuidado com Miguel e dividiam o trabalho, enquanto
domésticas, na casa de Sari Corte Real, mulher branca, e Sérgio Hacker, homem branco e
prefeito do município de Tamandaré. No dia 2 de junho de 2020, Miguel não pôde ficar
com a avó e Mirtes o levou para o trabalho, como fazia algumas vezes. Em determinado
momento do dia, Mirtes desceu para levar a cadela da patroa para passear e deixou seu
filho no apartamento, sob a responsabilidade de Sari, que estava em casa, junto com outra
mulher, manicure, que fazia suas unhas.
Em vários telejornais foi mostrado que Miguel se dirigia ao elevador, Sari ia atrás,
conversava com ele, que saia do elevador até que ele voltou a entrar no elevador e Sari
apertou um botão e deixou a criança sozinha, voltando para o apartamento e retomando o
cuidado com suas unhas. As imagens mostram que o elevador parou em um andar, Miguel
não desceu, o elevador parou novamente em outro andar, Miguel desceu e, pouco depois,
foi encontrado caído, no andar térreo do prédio. Miguel foi socorrido, levado ao hospital
por Sari, mas não resistiu à queda do 9.º andar e faleceu. Sari pagou uma fiança e está
respondendo em liberdade, por abandono de incapaz, tipificação que foi alterada após
pressão popular dos movimentos sociais.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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A notícia da morte de Miguel, provocada por Sari, nos levou às lágrimas e nos trouxe
muita indignação, desesperança e raiva dessa sociedade tão desigual, racista, capitalista e
sexista. Primeiramente, nos solidarizamos com Mirtes e com toda a família dela pela perda
tão precoce de Miguel. Entendemos que Miguel morreu devido ao racismo e elitismo que
sustentou a atitude de Sari, permitindo que ela não se sentisse responsável pela vida de
Miguel, um menino negro e pobre, abandonando-o no elevador. Compreendemos também
que Sari exerceu violência e opressão, ainda que “indiretas”, contra Mirtes, mulher negra
e pobre, que cuidava da casa, da filha e da cadela de Sari, mulher branca, de classe média.
Mirtes, não contou com o apoio, solidariedade, cuidado e responsabilidade por parte de Sari,
ainda que momentaneamente.
Os trabalhos que desenvolvemos com mulheres ao longo de nossa trajetória tem
nos tocado e ensinado muito. Pois, muitas delas, quando estão em situação de violência de
gênero, compartilham como sofrem quando veem seus filhos e filhas ameaçadas e em risco
provocado pela pessoa autora de violência. Chegam a afirmar que é pior do que quando elas
são diretamente agredidas. Ou seja, ver a pessoa autora da violência ameaçar e agredir a
um/a filho/a é também uma violência contra elas. Muitas mulheres mães, a grande maioria
negra e pobre, que perdem seus filhos para a violência policial (no masculino, mesmo,
porque a grande maioria são homens jovens), também relatam que era melhor elas terem
sido assassinadas no lugar deles. Dizem que essa é uma dor que jamais cessará e que suas
vidas nunca mais serão as mesmas.
Mirtes também parecia sentir essa dor incessante, pois afirmava que a vida dela era
toda voltada e pensada para o bem e o futuro de Miguel. Ela demonstrava esperar algo
diferente por parte de sua patroa, outra mulher, mãe, como ela. Mirtes sofreu, ainda, com o
abandono e violência que sentiu por parte de sua patroa, pois morreu ali uma criança e, em
parte, juntamente com ela, uma mãe, uma avó, inúmeros planos, sonhos, projetos, desejos,
etc. Mirtes afirmou:

Ela confiava os filhos dela a mim e à minha mãe. No momento em que confiei
meu filho a ela, infelizmente ela não teve paciência para cuidar, para tirar (do
elevador). Eu sei, eu não nego para ninguém: meu filho era uma criança um
pouco teimosa, queria ser dono de si e tudo mais. Mas assim, é criança. Era
criança. (Extra digital, 2020)

O racismo, classismo e sexismo sustentaram que Sari e Sérgio não dessem a opção a
Mirtes e a sua mãe de ficarem em casa, com a remuneração garantida, evitando se exporem
à Covid-19 durante a pandemia. Inclusive, talvez, sob a premissa de que, para muitas
pessoas, o trabalho desempenhado pelas empregadas domésticas deveria ser considerado
serviço essencial durante a quarentena. O racismo tirou, portanto, de Mirtes e da mãe a
possibilidade de escolherem seguir a recomendação sanitária do “fique em casa”, pois
precisavam sobreviver, cuidar de si e de Miguel.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

A dor e revolta dessas duas mulheres, Mirtes e sua mãe, nos parece inimaginável
até porque não exercemos a maternidade e, como a própria Mirtes reconheceu, o racismo
estrutural e institucional faz com que apenas algumas vidas importem e sejam dignas de
serem choradas e enlutadas: “Se fosse eu, a essa hora, já estava lá no Bom Pastor (Colônia
Penal Feminina), apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Como
Sari é uma mulher branca, de classe alta, ela está respondendo em liberdade.
Retomamos aqui o conceito de interseccionalidade, a fim de compreender o quão
Mirtes, sua mãe e Miguel, mulheres e criança negras, sofreram as consequências desse
sistema racista, patriarcal e capitalista, que deu alicerce a Sari de exercer um poder desigual
sobre essa família ao ponto de banalizar o valor da vida de Miguel, de sua mãe e de sua
avó. Então, nós nos perguntamos: até quando nós, mulheres brancas, permaneceremos
oprimindo mulheres negras e contribuindo com o extermínio e violação de direitos da maior
parte da população brasileira?
Até quando pactuaremos e perpetuaremos com os privilégios oriundos da supremacia
branca, construindo relações hierárquicas e desiguais com as mulheres negras, mas também
com os homens negros? Até quando seguiremos explorando as mulheres negras na cadeia
de cuidados femininos, invisibilizando a relevância do debate sobre trabalho produtivo e
reprodutivo articulando gênero, cor/raça, etnia e classe? Até quando podemos nos afirmar e
nomear feministas sem nos implicarmos na luta contra o racismo, o capitalismo, a transfobia
e tantas outras desigualdades?
Ainda que não tenhamos uma resposta para essas questões e tão pouco a pretensão e
o poder de dizer quem pode ou não se nomear como feminista, reafirmamos o compromisso
com um feminismo interseccional que aposta e luta por uma sociedade justa, livre, equitativa
e não violenta, que se posiciona contra as hierarquias de poder nas relações entre mulheres
e homens, entre as próprias mulheres e entre os próprios homens.
Nesse sentido, nos posicionamos e nos somamos ao processo já iniciado de
desconstrução do racismo entre nós, mulheres brancas. De modo que ousamos convidar
mais mulheres brancas, e também homens brancos, a pensar e reconhecer a “suposta
neutralidade da identidade racial branca que faz com que grande parcela da sociedade tenha
privilégios, mas não os perceba” (SCHUCMAN, 2014, p. 92).

5. O que podemos (des)aprender com a pandemia da Covid-19?

Concluímos este ensaio com a pergunta que trouxemos no título do mesmo. Na


nossa história, jamais pensaríamos viver uma pandemia nessas proporções e com tamanho
impacto na vida da maior parte da população mundial. A pandemia nos desafia e convida
a experimentar o novo, a nos reinventarmos, a adiarmos os abraços e encontros que nos
alimentam, a olharmos para nós e para as outras pessoas e nos perguntarmos o que, como e
até onde vale a pena.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Escrever este ensaio nos proporcionou compartilhar algumas inquietações e


problematizações que nos acompanham há mais tempo, mas que parecem mais gritantes
neste momento. Talvez porque a situação de excepcionalidade e de mudança provocada pelo
novo coronavírus de modo tão rápido e “inesperado” no nosso cotidiano de trabalho, no
nosso espaço doméstico, no nosso autocuidado e nas nossas relações, nos coloquem diante
da constatação de que a fome, a pobreza, a violência, o desemprego, o racismo, a transfobia
e todas as demais questões sociais tiram a nossa paz e mexem na nossa utopia de um mundo
melhor.
Até porque, no Brasil, o novo coronavírus tem um grande “concorrente” – um des-
governo genocida que tem o poder de deixar morrer e tornar as mais de 80 mil vidas perdidas
invisibilizadas, não enlutadas. A grande maioria dessas vidas, inclusive na hora da morte,
parecem não passíveis de serem choradas e enlutadas, pois são pessoas pobres, negras e
historicamente marginalizadas.
Mesmo nós, que nos propomos a discutir esse assunto, temos o racismo tão
entranhado, tão arraigado que nos pegamos muitas vezes em comportamentos de
naturalização dele. Por isso, os exercícios de reflexão, como a escrita deste texto, se fazem
tão fundamentais.
Precisamos prestar atenção aos discursos que utilizamos, aos sentidos produzidos
pela nossa sociedade, aos eventos que nos cercam e dizem sobre o nosso cotidiano. Fazemos
aqui uma referência (e reverência) a Elza Soares, quando diz: “Mil nações moldaram minha
cara. Minha voz uso para dizer o que se cala. O meu país é meu lugar de fala”.
Retomando Adichie (2014), corroboramos que não aceitamos que a cultura forme as
pessoas. Pelo contrário, as pessoas constroem a cultura. Está, portanto, em nossas mãos. É
por isso que a pandemia da Covid-19 tem nos ensinado e nos motivado a seguir apostando
e acreditando que há brechas, há afetos, há sentidos, há pessoas, há esperança, há abraSUS.
Acima de tudo, vivenciar este momento histórico tem nos fortalecido no engajamento
cada vez maior, com relação aos movimentos/estudos/pesquisas/práticas/projetos que
reafirmam que vidas negras, vidas indígenas e vidas trans muito (nos) importam!!!!

Referências

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Letras, 2014.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

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Interseccionalidade e outros olhares sobre a violência contra mulheres em tempos de

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CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

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de 2020, e dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas
idosas e pessoas com deficiência, durante a emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da
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72
6
PSIS DESASSOSSEGADOS: ATENDIMENTOS CLÍNICOS
ON-LINE EM TEMPOS DE PANDEMIA
Charles Lang
Juliana Falcão

A necessidade de produzir respostas on-line às questões emergentes surgidas no


contexto crítico da rápida expansão do novo coronavírus (Sars-Cov-2) levou um grupo Psi
(psiquiatras/psicólogos clínicos/psicanalistas) a criar a plataforma CyberpsyCO (http://
cyberpsyco.fr), em março de 2020, no mesmo momento em que a Organização Mundial
de Saúde anunciava que a Covid-19 havia atingido o estado de pandemia. A proposta
da Plataforma francesa era reunir especialistas em ciberpsicologia e psicanalistas,
psicólogos e psiquiatras decididos a disponibilizar trabalho voluntário durante esse
período de grande crise.
Os quatro grandes eixos que norteiam essa proposta são: 1) escuta on-line para os
vários atores do setor médico, médico-psicológico e médico-social que cuidam de pacientes,
afetados ou não pela Covid-19, mas que sentem a necessidade de trocar informações sobre
suas dificuldades profissionais e pessoais, sendo frequentemente difícil separar uma da
outra. 2) Atendimento on-line a psicólogos e psiquiatras que recebem cuidadores ou que são
confrontados de perto com a crise da saúde. 3) Supervisão ou intervisão (grupo) a psicólogos
e psiquiatras que utilizam dispositivos on-line. 4) Uma plataforma de recursos, na qual o
profissional encontra desde recomendações de práticas on-line, até notas sobre o impacto
psicológico do confinamento ou como apoiar os pacientes on-line nessa situação, etc.
O atendimento de comunidades que foram afetadas por situações impactantes – a
exemplo das grandes enchentes ocorridas em 2010, em Alagoas; do rompimento da barragem
da mineradora Vale, em 2019, na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais; ou o das pessoas
que sobrevivem às catástrofes coletivas mundo afora –, deixa como resto o testemunho de
um sofrimento em dois tempos.
O primeiro tempo, que vem em seguida ao evento traumático, produz uma comoção
em grande escala. Por isso mesmo, convoca uma empatia e uma solidariedade generalizada,
o que chama pela participação voluntária e por vez voluntariosa de inúmeros serviços e
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

profissionais. Mas, à medida que as semanas e os anos vão se passando, essa comoção vai
diminuindo e ingressamos num tempo pós-traumático.
No segundo tempo, a situação parece ter se estabilizado, com os mais envolvidos
aparentando ter aprendido a suportar ou se acostumado à nova situação, de maneira que a
rotina social vai reassumindo seus contornos mínimos. Justamente nesse tempo, o que pode
significar anos depois, os efeitos do trauma se revelam de forma mais intensa e, o que é mais
grave, desconectados de sua origem. Por isso, quando pensamos sobre os atendimentos
remotos é importante considerá-los no contexto da pandemia, mas, também, na perspectiva
de um segundo momento em que se projeta um “novo-normal” e um “mundo pós-pandemia”.
Escolhemos a Plataforma francesa pelo fato de ela ter sistematizado e sintetizado o
que acabou surgindo em diversos recantos, além de ter dado visibilidade, de forma ativa,
ao que vem sendo discutido a partir do final dos anos 90 do século passado: a emergência
da cibercultura e, nesse contexto, a possibilidade de atendimentos médicos e psicológicos
a distância.
Christian Dunker publicou recentemente A arte da quarentena para principiantes
(Boitempo, 2020), com um capítulo dedicado à escuta e aos atendimentos psicológicos
on-line. No final do seu e-book, ele acrescentou uma lista de centros de referência
para escuta on-line, no Brasil, datado de março de 2020, o que nos dá uma ideia dos
serviços com os quais já era possível contar à época dos primeiros decretos estaduais de
isolamento social.

1. Ciber

A Cibercultura foi a cultura que surgiu a partir do uso da rede mundial de


computadores e de outros suportes tecnológicos, como o smartphone, e a possibilidade
imediata de comunicação virtual, de jogos on-line, da indústria do entretenimento e do
comércio eletrônico. O prefixo ciber vem da palavra inglesa cybernetics (cibernética, ou a
ciência das comunicações e dos sistemas de controle automático em máquinas e seres vivos).
Os franceses e os europeus, em geral, graças ao lastro na tradição clínica, sempre foram
mais reservados e desconfiados em relação à rede mundial de computadores e ao uso de
dispositivos por eles considerados como “coisas” da cultura norte-americana. Talvez, por
isso mesmo, tenham começado a pensar, antes dos norte-americanos, em torno do conceito
de ciberpsicologia. Tal proposta não se restringe ao atendimento psicológico on-line, mas
busca pensar nas particularidades dessas novas formas de estarmos juntos e nos mecanismos
psíquicos envolvidos ou criados a partir da interação humana mediada por aplicativos e
dispositivos tecnológicos.
Nos anos 90, as discussões já estavam adiantadas na área da Educação a distância
(EaD), quando se começou a pensar que o telefone e os e-mails poderiam complementar ou
mesmo substituir os atendimentos presenciais. Se por aí, a desconfiança era generalizada,

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

devido ao improviso e às gambiarras próprias ao nosso “jeitinho brasileiro”, o comércio e o


entretenimento on-line progrediam exponencialmente. A possibilidade, a legitimidade e a
necessidade de regulamentação daquela modalidade vieram em seguida.
Ora, de lá para cá, muito se avançou no plano técnico. Os pesados programas de
computador, que ocupavam dezenas de disquetes, passaram a ser armazenados num único
CD-Rom e, depois, foram substituídos por centenas de aplicativos de texto, som e imagem. Os
discos duros dos computadores foram substituídos pelo armazenamento na nuvem (cloud),
e o principal recurso de um computador deixou de ser a sua capacidade de armazenamento
de informação, mas a velocidade de processamento das informações.
A pandemia, afora precipitar, acelerar e intensificar o uso amplo desses aplicativos
e dispositivos, desvelou o valor da cultura e dos produtos culturais para muito além da
cibercultura, como um suporte para atravessar situações de isolamento prolongado. Por outro
lado, começamos a nos convencer de que, sim, é possível atender durante algum tempo nossos
pacientes remotamente e são necessárias amplas discussões e regulamentações exercidas
pelos conselhos de Psicologia e de Medicina, no Brasil, a fim de que os atendimentos on-line
sejam eficazes. Esse movimento também convoca a participação da Universidade: tornou-se
urgente e obrigatória a discussão sobre o mundo pós-pandemia e a formação do profissional
que viverá essa nova realidade que aos poucos estamos desvelando.
A pandemia, o risco de contágio, a rápida disseminação do vírus e o imperativo de
isolamento social revelaram as precariedades brasileiras diante de tantas coisas, como a
urgência e a necessidade do EaD. Da noite para o dia, milhares de escolas e universidades
por todo o país, em contextos de extrema pobreza ou de riqueza ostentável, viram-se diante
de uma parede. Poderiam simplesmente fechar as portas e afundar na crise econômica ou
criar subterfúgios num sistema em que o mercado é a lei, com fetiches para seus alunos/
clientes continuarem assistindo às aulas e seus pais pagando as mensalidades. Afinal, como
manter as despesas mensais e a folha de pagamento se não há mais alunos? Então, pareceu
legítimo improvisar, mesmo com professores sem formação para tal exigência e com uma
estrutura físico-técnica precária. A outra alternativa era fechar as portas, desaparecer na
crise econômica e deixar como saldo o desemprego e a dívida dos impostos. Não se pode
afirmar que os psis estejam alheios a esse contexto e que a sombra não recaia sobre os
serviços de atendimentos clínicos on-line.
Desde Freud e a invenção da psicanálise há uma espécie de ritual necessário que
implica uma aura de sobriedade, atendimentos clínicos individuais, sigilosos, em um
ambiente seguro e, principalmente, presenciais. O encontro, o aperto de mão, o olhar em
alguns casos específicos, a entonação das palavras, o silêncio, uma palavra repentina, um
gesto. O momento exato de encerrar a sessão com um enigma, depois de um ato falho ou
de uma palavra dissonante. A descoberta de que aquilo que um sonho revela é justamente o
ocultamento de um sentido, o que somente pode ser marcado por uma tensão, que cede ou
se exacerba quando o analista se levanta e encerra uma sessão.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Nesse quadro clássico, os atendimentos on-line seriam intervalos necessários entre


os presenciais que teriam sido interrompidos por algum acidente excepcional. Seriam
temporários, provisórios; seriam exceções. Não se chegou a pensar, realisticamente, numa
situação que viesse a exigir uma reflexão sobre atendimentos inteiramente on-line e sobre
o que é próprio destes, sobre o que se passa somente e especificamente com atendimentos a
distância. Ninguém, fora dos exercícios ficcionais e do universo científico, jamais supôs que
a pandemia cairia na nossa cara como caiu e consequentemente teríamos que dar conta de
coisas que ninguém imaginou.
Neste ensaio, pretendemos abordar a discussão dos atendimentos a distância partindo
das recomendações da Associação Psicanalítica Internacional aos seus membros, o que
revela a espinha dorsal e o mapa das questões nodais envolvidas no atendimento on-line.
As possibilidades, as dificuldades e as impossibilidades nessa modalidade de atendimento
são o nervo dessas recomendações. Aqueles que, por alguma razão, estão atendendo on-line
há mais tempo e aqueles que começaram a atender durante essa pandemia, passaram a
comungar um conjunto de questões e desafios com os membros formados na mais tradicional
sociedade de psicanálise. Esse elenco de questões pode nos orientar acerca do que até então
se difundiu como a psicanálise clássica para, em seguida, pensarmos modificações, avanços
e impasses sobre o assunto no presente pandêmico. Por fim, pretendemos fazer observações
e considerações a respeito do atendimento on-line a partir desse momento inesperado,
inédito para a nossa geração, e já difícil em termos sociais, políticos e econômicos.

2. A IPA, a orientação analítica e os atendimentos on-line

A hora marcada, a sala de espera, o olhar, o aperto de mão, o ambiente acolhedor,


a sala silenciosa, os quadros na parede, as cortinas, as entrevistas iniciais, a passagem da
poltrona ao divã, o início de um tratamento, a duração das sessões, a reserva e o sigilo
profissional. A regra da associação livre para o paciente e da escuta flutuante para o analista,
a atenção desatenta e a desatenção atenta, a palavra certa no momento certo, o ato falho,
os horários, os honorários, um ritual de abertura e encerramento da sessão analítica, da
abertura da porta às palavras na despedida. Tudo isso vai compondo o modelo do que seja
um tratamento analítico.
Freud era médico por formação e, da subversão da medicina, a psicanálise herdou
um modelo de atendimento clínico. Um modelo que passou a ser seguido ou contestado,
com diferenças, por psicólogos clínicos e psicoterapeutas. Se o modelo de atendimento
psicanalítico é uma variante do atendimento médico, não se ignora que na história da
psicanálise surgiram mudanças do tratamento padrão, desde as propostas de Sandor
Ferenczi sobre a elasticidade na técnica, passando pelas consultas terapêuticas de Donald
Winnicott e chegando até as sessões curtas de Jacques Lacan. Também pode-se contar, entre
essas modificações, os atendimentos em grupo, de casais, de pais, etc. Os relatos publicados

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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por Freud sobre alguns de seus atendimentos ou os relatos de pacientes de Lacan, acerca das
suas sessões de análise, indicam que, em situações excepcionais, os mestres também fizeram
variações. Mesmo assim, com o passar do século, estabeleceu-se um modelo cujo cerne é o
atendimento presencial, individual e no consultório do analista.
A Associação Psicanalítica Internacional, a mais antiga entre as instituições
psicanalíticas, vem atualizando suas reflexões sobre o uso do Skype, do telefone e de outras
VoIP, pelo menos desde 2014. Essas reflexões têm como núcleo o que se entende como o
tratamento-padrão e não se pensa que o atendimento on-line seja uma outra forma de
atendimento analítico.
A primeira das recomendações da IPA, feita para qualquer análise remota é a
de que o analista deve assumir que nem todos os pacientes são capazes de suportá-la. É
necessário avaliar previamente se há condições para a análise clínica ou se ela é eticamente
contraindicada. O trabalho nas entrevistas preliminares on-line, assim como nas
presenciais, é sempre decisivo para a entrada em uma análise. No entanto, nos atendimentos
on-line, a porta de entrada torna-se mais estreita. Por exemplo, segundo as orientações da
IPA, pacientes com ideação suicida, quadros psicóticos, pacientes que sofreram separação
precoce ou trauma grave não são elegíveis para o atendimento on-line.
Outra observação parte do ideal de que uma análise que vá ter uma continuidade a
distância possa sempre começar presencialmente, considerando que o analista e o paciente
se encontrem o máximo possível ou, no mínimo, uma vez por ano. A indicação é para
que haja o maior período presencial possível, no consultório, que permita o ancoramento
transferencial e facilite os processos de que requer uma análise. Nesse sentido, o atendimento
on-line é a ausência da presença necessária. É uma prótese, um substituto temporário, uma
contingência.
Tais questões se repetem em mais uma recomendação. A análise por telefone ou
Skype deveria somente ser levada em consideração quando a distância geográfica for uma
dificuldade real e intransponível. Mas, outras situações precisam ser levadas em conta para
a continuação de uma análise on-line: um período de crise e confinamento ou mesmo, por
exemplo, quando o paciente apresenta uma patologia crônica e/ou somática que o force a
ficar em casa.
O analista deve discutir com o paciente a natureza experimental dos métodos que
envolvem telecomunicações, mas também e acima de tudo a diferença entre a análise
por Skype (e telefone) e a análise no consultório, além dos motivos para a escolha dessa
modalidade. Essa orientação trata da necessidade de um tempo de preparação com o paciente,
tempo em que se discute a modificação do enquadre, estabelecendo um cronograma, a
duração da sessão, quem ligará para quem, qual a tecnologia a ser utilizada – por telefone
ou videoconferência –, assim como um “Plano B” para a comunicação que eventualmente
poderá falhar e, ainda, tratar dos pagamentos eletrônicos, quando aplicável.

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O analista deve estar ciente dos contextos de seu paciente (cultural, social e
educacional) e deve ter algum conhecimento do sistema de saúde mental e dos recursos
do paciente em crises graves, tentativas de suicídio ou necessidade de hospitalização.
Uma outra sugestão da IPA diz respeito ao objetivo da sessão: o de explorar a natureza
do encontro analítico no Skype ou por telefone. Daí deve-se verificar se há diferenças
significativas em relação à estrutura do atendimento no consultório e, se houver, de que
maneira poderíamos, se necessário, fazer alterações e compensações para permitir a
evolução de um processo analítico.
Atenção especial deve ser dada à privacidade do ambiente, para que a análise seja
sempre realizada em local reservado. O analista deve certificar-se de que a tecnologia usada
é segura e que protege a confidencialidade do paciente. É essencial a escolha de um lugar
silencioso, seguro, privado e confortável, um local onde não haja interrupções. Muitas
vezes os latidos de cães, as vozes dos membros da família e outros ruídos comuns de fundo
atravessam o espaço da sessão. Trancar a porta ajuda a evitar que as pessoas entrem e
saiam, enquanto o analista estiver em uma ligação ou videoconferência. A ênfase é que o
atendimento virtual reproduza ao máximo uma situação presencial. Animais de estimação e
crianças são distratores naturais. Existem também os digitais (relógios, notebook, tablets e
outros telefones), que devem permanecer desligados ou colocados no modo de espera.
Ao compartilhar o mesmo ambiente de som virtual que o paciente o analista deve
fazer o possível para se manter sempre no mesmo local durante esse período, embora nem
sempre isso seja viável. Se o analista estiver usando um notebook ou computador, não terá
problemas com a tela. Mas, ao usar tablets ou smartphones, é recomendável mantê-los em
uma posição fixa, o que exige um suporte de mesa ajustável para seus tablets/celulares.
Alguns pacientes têm dificuldade em se representar e o analista pode auxiliá-los
em um trabalho de figurabilidade. Isso consiste, por exemplo, em discutir com o paciente
o que ele experimentou no relacionamento com seu analista (durante a transferência
face a face, no caso de ele ter tido sessões presenciais), no nível da sensação (contato
corporal com a cadeira ou divã, odores do consultório), habilidades motoras (aperto
de mão), etc. O objetivo é garantir, por um lado, a continuidade do trabalho físico, mas
também operar com o paciente as condições de emergência de um verdadeiro trabalho
de figurabilidade, permitindo a passagem, mas também o elo entre sensações, imagens
psíquicas e associações verbais.
Pode-se incluir no campo da figurabilidade o modo do analista se vestir e se comportar
diante de uma tela. O uso de roupas com estampas exige mais largura de banda e pode
afetar a qualidade do vídeo. Então, o mais indicado é usar roupas profissionais para as
videoconferências. Se o analista usar óculos, deve lembrar-se de que a tela do computador
ou do celular pode refletir na superfície dos óculos e ser percebida pelo paciente. É preciso
orientar o paciente a estar vestido adequadamente e fazer uso de fones de ouvido com
microfone. Isso, por que ao se utilizar o microfone do próprio dispositivo (do computador

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ou do celular) o som tende a ficar mais difuso, fazendo com que haja alguns cortes nas frases
para quem está escutando do outro lado.
A questão da continuidade no dispositivo também é fundamental no trabalho com
o paciente. Alguns analistas acreditam que o telefone pode dar uma continuidade a um
atendimento no divã e sem campo visual, enquanto o Skype (por exemplo) permitiria
localizar o enquadre de acordo com as modalidades correspondentes a um dispositivo
presencial e frente a frente. Nessa base, não se pode ser assertivo. De fato, no Skype,
analista e paciente não podem se olhar nos olhos, pois a câmera e a imagem filmadas
(transmitidas na tela) são deslocadas uma da outra. É por isso que devemos conversar com
o paciente sobre experimentar diferentes modalidades práticas do dispositivo: não apenas
para garantir a continuidade da estrutura física, mas também para possibilitar a abertura
a novas subjetividades.

3. Discussões sobre atendimentos on-line na psicanálise

Nas “Recomendações” da IPA acerca dos atendimentos remotos replica-se a mesma


indicação freudiana no conjunto de seus Escritos sobre a técnica (FREUD, 1911-1915
[1914]). É necessário um tempo prévio, uma espécie de sala de espera, antes do início de
um tratamento, no sentido estrito do termo. Freud chamou a esse vestíbulo de análise de
ensaio ou de experiência, o que em Lacan foi pensado em termos de lugares: o analista faz
uma avaliação de um candidato à análise nas entrevistas iniciais. Tanto em Freud quanto
em Lacan há a questão das condições preliminares para o início de um tratamento. Mas,
para que serviria esse tempo? Para Freud, basicamente, é para saber se aquele que solicita
uma análise é um neurótico ou psicótico. Se fosse psicótico, na época de Freud, ele estaria
fora do alcance de uma análise.
Com o avanço do novo coronavírus pelo mundo, os analistas e psicoterapeutas estavam
atendendo normalmente, mas, de súbito, viram-se isolados em suas casas, tanto quanto
seus pacientes. A alternativa mais normal parecia ser continuar o atendimento pelo telefone
ou por videoconferência. Afinal de contas, poderia ser exatamente a mesma coisa, partindo
do pressuposto de esperar para ver como tudo isso fica e de que logo irá passar e voltaremos
à normalidade, usando os dispositivos de mediação como substitutos provisórios. Porém,
as semanas foram passando e novos pacientes, pacientes on-line, começaram a solicitar
atendimento, sem a possibilidade de espera pelo fim do isolamento social.

4. Contraindicações?

Se não existem tratamentos candidatos a universais, é legítima a pergunta:


há estruturas ou ao menos sintomas refratários ao tratamento analítico, em que
consequentemente a psicanálise seria inoportuna, ineficaz e nefasta? Há casos inacessíveis
ao tratamento, casos de psicanálise impossível e, em especial, ao tratamento on-line?

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As recomendações da IPA dizem que sim, que há casos que podem ser acessados pela
psicanálise presencial, mas não podem ser seguidos on-line. A contraindicação vale para
pacientes com ideação suicida, quadros psicóticos, que sofreram separação precoce ou trauma
grave. No seu e-book recente, Christian Dunker (DUNKER, 2020) fala em contraindicações
à escuta e ao atendimento psicológico on-line, evocando como suporte aqueles que estudam
o atendimento ao não indicarem a modalidade para os casos graves – com alto registro
de impulsividade ou ideação suicida, assim como para dependentes químicos e outras
condições desfavoráveis. Ele segue afirmando que, no caso de crianças, estas estão em uma
situação particularmente vulnerável, de maior dificuldade de alcance e na dependência
maior dos pais e cuidadores. Aleksandra Pitteri tem um pequeno texto, publicado no site
da Cyberpsyco, que oferece boas dicas para o terapeuta que atende crianças on-line levar
em conta nas combinações com os pais e com a criança. Ela nos ajuda a pensar que, sim, é
possível atender crianças on-line e há determinadas condições que não são intuitivas, mas
podem ser ensinadas e aprendidas.
Se falamos em contraindicações, quais seriam os critérios para definir as condições
para que um sujeito seja analisável, no sentido estrito de fazer psicanálise? Como fazer o
prognóstico de uma psicanálise impossível?
Desde os anos 50 do século passado foi-se consolidando que um dos primeiros
critérios para definir as condições de analisabilidade era a transferência, que Freud
acreditava não existir na psicose. Se há transferência, é possível analisar-se a transferência.
Se há transferência e é possível instaurar determinadas regras, como a associação livre, uma
rotina de consultas periódicas, pagamentos pontuais, aceitação da interrupção das sessões,
respeito aos finais de semana, às férias, então há respeito ao enquadramento. Se o paciente
não é nem muito jovem, nem muito velho e tem um domínio suficiente da língua e da matéria
verbal, etc. estas são condições prévias e suficientes para o início de uma análise, e elas
podem ser definidas a partir do trabalho das entrevistas iniciais, mesmo on-line. No entanto,
o ponto de Arquimedes dessas condições é a força do ego de um paciente!
Na falta de um ego suficientemente forte para ser submergido pelas angústias e pelas
pulsões, para se acomodar à realidade comum, para se deitar em um divã sem o suporte físico
de um outro em seu campo visual, então, seria impossível uma análise. Especialmente, on-line.
Digamos que isso é um senso-comum psicanalítico. Hoje é possível perceber, de modo mais claro,
que se buscava desde o início o que era esperado que uma análise produzisse: um ego forte. Estes
foram os critérios de seleção descritos por Edward Glover (Glover, 1954, apud Miller 1999). A
psicanálise seria indicada para casos de histeria, puros ou mistos (com elementos obsessivos),
e também para patologias que apresentassem problemas sexuais, sociais ou conjugais, desde
que fizessem parte de estados neuróticos. A psicanálise seria contraindicada nas psicoses puras,
nos tipos de caráter psicótico ou nas psicopatias severas. Mas, seria moderadamente acessível
no caso das neuroses obsessivas, mais ou menos organizadas, das perversões sexuais antes dos
quarenta anos, do alcoolismo e da toxicomania com base neurótica.

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A partir desses critérios de seleção emergiu o imaginário da psicanálise “pura”, do


tratamento de ordem paramédica, tendo por finalidade a cura, ou mesmo a normalidade,
que caminharia com uma média de cinco sessões semanais, por um período de um ano
e meio a dois anos. Nesse modelo, que enquadra a psicanálise na medicina, o suporte da
clínica na psicopatologia escalona as patologias no eixo de desenvolvimento psicossexual,
em que os estágios freudianos estão dispostos cronologicamente e os sintomas psiquiátricos
revelam-se ancorados em um ponto de fixação da libido.
No entanto, sabemos das reticências de Freud quanto ao futuro de uma psicanálise
acordada com esse modelo. O sentido do que se chamava tratamento analítico vem mudando
ao longo do tempo. A dimensão de um tratamento – que visava a uma cura ou normalidade
– foi substituída pela ideia de uma experiência psicanalítica. Do tratamento (médico) que
pode ser indicado e contraindicado, através da avaliação feita por um outro (um sábio, um
especialista, um expert), passou-se à experiência vital ou existencial que pode ser desejada
ou não pelo sujeito. Trata-se de uma experiência que pode ser até mesmo arriscada para
ele e vivenciada como verdadeira “aventura subjetiva”. Uma aventura sem garantias, uma
aventura baseada numa aposta. O paciente aposta que o analista vai ajudá-lo a se livrar de
seu sintoma e o analista aposta que o sujeito encontrará, através da análise, os meios para
viver de acordo com o seu desejo.
Houve uma época em que se falava em sintomas egossintônicos e egodistônicos. No
caso da egossintonia, o sujeito não sofria com seus sintomas, mas sofriam os outros que
viviam em seu entorno. Na egodistonia, o sintoma pode não incomodar os outros, mas
incomoda aquele que o porta. A indicação e a contraindicação também passavam por aí, se
o sintoma era egodistônico.
Mas a indicação e a contraindicação foram substituídas pela presença ou ausência de
demanda do sujeito. Assim, importa menos o ego, do que a demanda que alguém que sofre
dirige a um analista. O sujeito apresenta sua demanda a um psicanalista nas entrevistas
iniciais. A tarefa do analista é verificar sua autenticidade, ou seja, o desejo que habita tal
demanda. Ao recusar uma análise a um sujeito que a demanda, o psicanalista não age no
sentido de uma contraindicação, pois a entrevista inicial não tem a finalidade de verificar se
o sujeito é neurótico ou psicótico, se ele é ou não acessível a uma análise, se a sua demanda
é indicação ou mesmo desejo de um outro.
Há mais de oitenta anos tinha-se a ideia de uma psicanálise pura, reservada à formação
de analistas. Mas, à medida que as práticas dos analistas se distanciaram daquelas que o
formaram, das condições de sua formação, ocorreu essa disjunção entre o psicanalista e a
psicanálise. A ênfase parece ter migrado da teoria, do saber e do fato de operar uma técnica,
para um cuidado de si como condição para o cuidado do outro.
Freud inventou um sujeito formado para interpretar o inconsciente e sustentar a
transferência (a psicanálise pura), mas também feito para suportar o automatismo de
repetição e encarnar o objeto da pulsão, um psicanalista-objeto. A questão que se põe então,

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desde o primeiro encontro com o futuro analisante, não é a natureza do problema que ele
traz, ou se ele é acessível, se o encontro com um analista será útil ou não, fará bem ou mal. A
questão, doravante, é situar a psicanálise pura de um lado e o psicanalista-objeto, de outro.
Em geral, o encontro com o analista faz bem, se o psicanalista sabe ser psicanalista-
objeto. Isso quer dizer, não sustentar um saber a priori sobre o outro, nada querer a priori
para o outro e, principalmente, para o bem do outro, e não ter preconceitos quanto ao bom
uso que seja feito dele enquanto analista. Espera-se que o psicanalista cultive a gentileza e a
abertura de espírito até saber ocupar o lugar de onde o sujeito analisante possa agir. Espera-
se que o psicanalista-objeto seja um olho de furacão, um ponto estável, de suporte, ao redor
do qual possam girar, por mais vãos e disparatados que sejam, os ditos de um paciente.
Mesmo que o Eu do analisante seja fraco, ou justamente ali onde aparecem as fraquezas
do Eu forte, o analista recolhe os ditos do sujeito, sem desejar consolidar uma organização
estável ou viável. Se o sentido está bloqueado, o analista o articula, introduz uma dialética
que o faça deslizar. Se o sentido é líquido, se escorre sem se deter ou se ligar em significações
substanciais, o analista intervém, cria pontos de parada, pontos de capitonagem que darão
ao sujeito uma rede de suportes. Assim, as contraindicações se reduzem drasticamente, a tal
ponto que possam ser decididas caso a caso.
Desse modo, o analista se oferece como psicanalista-objeto, como um vazio graças
ao qual o analisante tem o descanso de, por um tempo estrito, ser sujeito, de poder deixar
de ser aquilo que o identifica e não precisar responder àquilo que, supostamente, o Outro
lhe exige. Winnicott pensava a análise como um espaço intermediário, um entre o mundo
interno de cada um e o mundo externo dos outros, um espaço transicional, uma espécie
de avesso ou mesmo simulacro da vida cotidiana. Um espaço em que o sujeito transita nas
fontes dos sentidos que o habitam e o fazem sofrer, um lugar onde nascem as palavras, onde
os significantes se ligam e se desligam dos significados, onde a dureza das palavras molda os
sentimentos, em que as emoções e as palavras nada têm a ver com as sensações.
É possível simular essas condições de possibilidade da experiência analítica num
lugar-virtual, on-line?
O que podemos elencar até aqui é que não há contraindicações a priori à psicanálise.
Não há contraindicações ao encontro com um psicanalista, seja presencial ou remotamente.
Se há uma demanda legítima, se ela está dirigida a um analista, ou seja, se há sofrimento
e sintoma analisável, se o gozo do sintoma se apresenta como desprazer e isso implique a
transferência, então essas são as condições de qualquer análise, presencial ou remota. O
quadro de indicações e contraindicações pode ser superado desde que se faça a disjunção
entre psicanálise e psicanalista, entre as condições de formação de um analista e a prática
clínica de um psicanalista: as condições da formação analítica não são as condições da
prática. Se há um modelo para a formação (e isso diferencia as Escolas), há modelos para as
práticas. Entre elas, a on-line.

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5. Análise não é uma conversa

O texto de Guy Dana intitulado “Análise não é uma conversa” está publicado no site
da CyberpsyCO e ajuda-nos a pensar sobre algumas questões que envolvem uma análise
feita por telefone. Trata-se de um texto recente, escrito durante esse período da pandemia
da Covid-19. Dana escreve sobre a questão do corpo no processo de análise, pontuando que
nunca havia experimentado antes o quanto a presença dos dois protagonistas é indispensável
em uma sessão de análise. Ele pergunta: “A escuta por telefone é suficiente para a questão
mais ampla da presença”?
Dana aponta que se a psicanálise é uma prática do falar, não é necessariamente uma
conversa. Essa distância de uma conversa é sentida por ele através de um cansaço incomum.
De fato, temos escutado de diversos analistas essa opinião de que as sessões on-line são mais
cansativas do que as presenciais. Mas não somente de analistas, psicoterapeutas e médicos.
A percepção é generalizada, em relação às formas de trabalho remoto, como pudemos ler em
um artigo sobre o porquê de as videoconferências nos esgotarem tanto psicologicamente4.
Para Dana, essas sessões on-line são mais exaustivas do que as sessões presenciais,
justamente em decorrência do que falta a elas: o corpo, os corpos. A ausência do corpo físico,
humano, como suporte para o espaço entre as falas do paciente e do analista deixa um espaço
vazio que é preenchido pelos dispositivos. Sabemos que os dispositivos operam distorções. Se
pensarmos nas sessões feitas por videochamada, percebemos que experienciamos distorções
na voz (sentida, às vezes, como vozes mais “metálicas” ou robóticas), distorções no tempo
da conversa (os delays) e distorções na imagem (a textura da pele é diferente, os olhos são
vistos pelo outro como se o interlocutor estivesse sempre olhando para baixo).
A falta do corpo também pode ser sentida, por ambos, como um excesso de corpo.
Afinal, a voz do outro está bem dentro do nosso ouvido (com fones de ouvido), o rosto
do outro está muito mais próximo do que durante uma sessão presencial, na qual existe
uma distância confortável entre as poltronas. A modulação da voz é diferente, pois quando
estamos em videochamada frequentemente ficamos em dúvida se o outro está nos escutando
bem, o que faz com que as pessoas tendam a falar muito alto ou muito baixo. Os fones de
ouvido bloqueiam os sons ambientes da pessoa que o está usando, no entanto, a pessoa do
outro lado escuta o que se passa no ambiente do seu interlocutor. Sem falar nos momentos
em que escutamos ecos da nossa própria voz saindo e chegando para o interlocutor antes
que ele próprio a escute.
Frédèric Tordo (2020) escreve sobre esses aspectos apresentando uma explicação
sobre o motivo de nos sentirmos mais cansados em sessões on-line. Ele dá uma explicação
biológica para esse cansaço, que se refere ao mecanismo cerebral de simulação mental. Ele
exemplifica dizendo que nosso cérebro simula todo o nosso corpo quando ele se move ou

4 Leia mais sobre o assunto em reportagem do El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/


brasil/2020-05-06/por-que-as-videoconferencias-nos-esgotam-psicologicamente.html>.

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quando sentimos alguma coisa, a fim de acompanhá-lo na forma de múltiplas representações


mentais. Na neurologia, isso é conhecido como o esquema corporal, ou seja, uma simulação
do corpo dentro do cérebro, uma reprodução virtual.
Então, nas consultas on-line, qual é o nosso referencial? Seria o físico no relacionamento
com o outro (o paciente). Mas então o que o cérebro deve simular é este físico, porém, na
sua ausência. Sendo assim, todas as sensações e comportamentos físicos são reatualizados,
através de simulação, numa experiência digital. Isso significa que o cérebro precisa fazer
um esforço extra, suplementar, uma vez que deve corrigir, a fim de simular a presença do
paciente para ele e dele para o paciente.
Para Tordo, a tendência é que, com o passar do tempo e à medida que vamos atendendo
mais pessoas nessa modalidade, nosso cérebro irá se habituar a essa simulação, acreditando
que, ao internalizarmos a tecnologia (como fazendo parte do nosso próprio corpo e do
corpo do outro), nós passaremos a nos cansar menos. Em outras palavras, Tordo diz que a
tecnologia on-line deve ser internalizada como um enquadre.
Nas formulações de Dana sobre a análise não ser uma conversa, ele aborda mais
especificamente as análises por telefone do que por videochamada. Ele afirma que alguns
pacientes recusam categoricamente qualquer ideia de prosseguir por telefone, como se
uma outra forma de proximidade estivesse ocorrendo, uma proximidade mais próxima,
por assim dizer. Eles preferem guardar distância e o telefone lhes parece perigoso, nesse
sentido, porque contém o risco de uma conversa ou o que eles sentem como tal. Evita-se
uma proximidade demasiada, o que ronda precisamente uma conversa.
Resgatando a ideia do psicanalista-objeto, que encarna um espaço vazio para o
paciente, acolhemos a afirmação de Tordo ao escrever que a dificuldade de trabalhar por
telefone possa estar aí: na possibilidade de o analista esquecer de ser um espelho vazio e,
finalmente, estar muito presente, oferecendo uma conversa (ou um saber acabado), quando
deveria permanecer em segundo plano (ou na posição de não saber). Ele conclui dizendo
que, em última análise, esse entrelaçamento do corpo e do Outro é o que deve atravessar
a experiência analítica. Entendemos, assim, que a experiência corporal entre analista e
analisante continua sempre presente, mesmo na ausência do corpo físico (que precisa ser
simulado pelo cérebro, segundo Tordo), ou na presença do corpo digital (na figurabilidade).
Há ainda alguns pontos que precisamos considerar quando falamos em análise ou
atendimentos psicológicos on-line ou por telefone. Destacamos dois pontos que temos
identificado, especialmente ao longo do período de pandemia que vivenciamos neste ano de
2020, tanto nos atendimentos clínicos on-line quanto nas supervisões clínicas, que também
têm sido on-line: o lugar do silêncio e o lugar do imaginário.
O silêncio durante as sessões ganha um contorno diferente quando estamos em
atendimentos virtuais. Temos escutado uma pergunta que não nos era endereçada no
atendimento presencial: “você está me ouvindo”? E temos percebido que os pacientes evitam

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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períodos de silêncio e têm ficado menos em silêncio nos atendimentos virtuais, como se fosse
necessário preencher o espaço virtual ali instalado e garantir que está sendo ouvido. Ouvido
no sentido técnico de a voz ter atravessado o espaço e chegado até o analista. Quando a
sessão é feita por videochamada é mais fácil identificar quando houve uma falha na conexão,
por exemplo, naqueles momentos em que o vídeo congela, pois temos uma imagem como
suporte. Por outro lado, quando estamos em ligação telefônica (especialmente quando a
ligação depende de uma conexão via internet) e há silêncio do outro lado, sempre fica a
dúvida sobre a probabilidade de a ligação ter caído. Geralmente vem a checagem de algum
dos lados: “Você está aí? Oi? Você consegue me ouvir? Acho que agora voltou”.
Os psicanalistas têm tido diferentes experiências com os atendimentos on-line, que
só podem ser analisados caso a caso. Alguns relatam, por exemplo, que certos pacientes
sentem que conseguem falar coisas nesse tipo de atendimento que não conseguiriam
falar presencialmente. Sabem que, se a verbalização de determinados conteúdos se tornar
insuportável eles sempre podem apenas desligar o telefone, interromper a ligação, enquanto
no consultório teriam que encarar o analista pelo menos ao sair da sala.
Percebemos que muitos de nossos pacientes presenciais e que passaram a ser atendidos
on-line continuam preferindo o atendimento presencial. Mas também acreditamos que
muitos de nossos pacientes que buscaram atendimento on-line, nesse período, irão preferir
continuar com o atendimento on-line. Uma observação importante é a de que pacientes de
outras cidades, de outros estados e, inclusive, de outros países puderam nos acessar. Sabemos
que em muitos países estrangeiros os brasileiros recorrem a psicanalistas brasileiros, quando
os há, mas que as opções costumam ser restritas. A pandemia deu ocasião e pretexto para
que brasileiros dispersos pelo globo acessassem analistas de língua materna. Ora, nesse
novo estado de coisas, a análise on-line não é mais uma contingência ou um substituto. Ela
veio para ficar. Assim, a primeira coisa a ser definida nas entrevistas iniciais é: garantir uma
conexão com a internet que seja estável e veloz. Pensamos nisso como uma das principais
condições para possibilitar uma análise on-line.
Outra consideração importante é a de que uma análise on-line não é uma situação
provisória e os espaços domésticos também não são provisórios. O analista deve discutir
com o candidato à análise a segurança de um lugar privado e silencioso na casa do sujeito ou
em algum outro lugar. Temos presenciado situações de pacientes que chegam para a sessão
on-line deitados na cama, de pijamas, sem camisa, etc. O período de isolamento permitia
isso, como se todos estivessem presos em um fim de semana prolongado ou em férias em
casa. Entendemos que esse seja um elemento a ser trabalhado no período pós-pandêmico: a
figurabilidade de uma análise. Trabalhar o sentido de que ela é um encontro com a alteridade
e, não, uma situação familiar e doméstica. Ou seja, há questões que devem ser tratadas nesse
novo imaginário que não é mais o do consultório e o do presencial.
O lugar do imaginário deve ser destacado, pois tem ganhado contornos diferentes,
tanto por parte do analista quanto do analisante. No momento em que se sabe que todos

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estão em suas casas, ganha relevo a vida doméstica de ambos. Por conta dos barulhos
externos e das vozes de outras pessoas da casa, ninguém tem realmente certeza sobre o
que o outro está ouvindo do outro lado da linha. Alguns pacientes podem se perguntar se o
analista está atendendo de pijamas, deitado na cama – ou isso pode ser apenas o analista
imaginando o que o paciente pode imaginar. Alguns pacientes podem se perguntar se o
analista está protegido, se ele está se cuidando o suficiente para não se contaminar ou se em
algum momento ele pode morrer ou vai precisar parar de atender para se tratar. A presença
das crianças em casa também costuma gerar interrupções ou incômodos. “Será que se o meu
filho chorar, ou me chamar, meu analista vai imaginar que eu não consigo nem me organizar
direito para uma sessão”? Ou o inverso: “Será que vou parecer desnaturada se deixar meu
filho chorando para poder fazer a sessão”?
Na análise com crianças esse imaginário aparece de forma espontânea e é facilmente
verbalizado por elas. Algumas começaram a se interessar mais pela nossa vida familiar e
doméstica durante este período de isolamento e pandemia. “Tem um cachorro latindo aí, ele
é seu? Qual é o nome dele? Você tem marido, tem filhos? Onde eles estão agora enquanto
você está aqui comigo”? Outras não são tão diretas, mas incluem essas perguntas nas
brincadeiras feitas através do vídeo.

6. Considerações finais

Acreditamos poder contribuir a partir do que fomos aprendendo durante esses meses
e que poderá participar da estruturação dos atendimentos no segundo tempo, o tempo
pós-pandemia. O que vimos, ao menos provisoriamente, é que o quadro de indicações e
contraindicações pode ser mantido e ser superado, desde que se opere a disjunção entre
psicanalista e psicanálise, entre análise de formação e prática clínica. As condições da
formação analítica não são as mesmas da prática clínica. Se há um modelo para a formação,
também há modelos para as práticas. Entre elas, a on-line. Estamos vivendo uma época pós-
desconstrutiva, em que os quadros nosológicos clássicos foram desconstruídos, assim como
a distinção tradicional em gêneros, por exemplo. Todas essas mudanças incidem, também,
nos modelos de prática clínica, nos manejos, nas transferências, no enquadre.
A ênfase parece ter migrado da teoria, do saber e do ato de operar uma técnica, para um
cuidado de si como condição para o cuidado do outro. Em se tratando de atendimentos on-line,
isso implica numa atenção maior para as condições de trabalho, como, por exemplo, colocar em
prática horários que levem em conta qual o momento ideal para o atendimento por telefone ou
on-line. Implica em tomar o cuidado para que ambos, analista e paciente, estejam em condições
confortáveis para a realização do atendimento. Se encaramos o atendimento on-line como algo
que veio para ficar, precisamos pensar no enquadre desse tipo de atendimento desde o princípio,
tanto para aqueles pacientes que já o iniciaram on-line, quanto para os que permanecerão sempre
e absolutamente on-line, como é o caso daqueles que moram em outros países.

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Pretendemos pensar nos atendimentos on-line não apenas nesse período de pandemia,
mas como uma prática que ganhou força por conta dela e que perdurará. Nesse sentido,
retomamos a questão do sofrimento em dois tempos para refletir sobre como trabalhar
com atendimentos remotos, tendo em mente também as questões e particularidades que
virão como efeito da própria situação de pandemia. Consideramos a perspectiva de um
segundo momento, em que se projeta um “novo-normal” e um “mundo pós-pandemia”.
Como exemplos desse outro tempo de sofrimento devemos atentar para as consequências (e
sintomas) que podem aparecer em decorrência das perdas de familiares, dos muitos casos em
que não foi possível elaborar um luto, nem houve despedidas ou velórios. Outro efeito com o
qual certamente precisaremos lidar é o da perda financeira, de negócios falidos, de empresas
que precisaram encerrar suas atividades em decorrência da pandemia e as consequências
subjetivas dessas diversas modalidades de perdas.
Ao pesquisarmos sobre o que tem sido produzido acerca de atendimentos on-
line, nos deparamos com autores que são cautelosos em relação ao uso da tela para o
atendimento terapêutico. Em Screen Relations, Gillian Russell (2015) pede aos analistas
que façam uma pausa e reconsiderem mais profundamente as limitações do tratamento
mediado pela tecnologia. Ela pesquisa o uso do Skype nos tratamentos psicanalíticos e
entrevistou analistas e pacientes sobre suas experiências de análise on-line. Sua defesa
é a do ideal da copresença como condição fundamental para a psicanálise e adverte que
a tecnologia não pode substituir as interações espontâneas de duas pessoas na mesma
sala explorando pensamentos, desejos e sentimentos. Seu pressuposto é o ego. O ego é
um ego corporal e seria mais fácil para o paciente sentir confiança, quando o corpo do
paciente e do analista se encontram no mesmo ambiente. Já, para o analista, seria mais
fácil manter-se num estado de devaneio, sonhando juntamente com o analisando, num
ambiente de acolhimento seguro. Em se tratando dos atendimentos on-line, o analista
pode ter sua atenção reduzida, vivenciando falhas técnicas que criam interrupções e,
consequentemente, frustrações no paciente (RUSSELL, 2015, p. xi).
Há também autores francamente opositores aos tratamentos psicanalíticos on-line.
Por exemplo, Barbieri (2005), ao comentar um anúncio de serviços de psicanálise on-line:
Na era do instantâneo, do industrializado e dos transgênicos, na era da
profissionalização, da globalização e da informatização, a Psicanálise on-line é o extremo
de um processo de encaixotamento do saber e do fazer para “pronta entrega” (BARBIERI,
2005, p. 101).
Pensamos que a psicanálise, mesmo na modalidade on-line, absolutamente em nada
se parece com uma “pronta entrega”. Aliás, nada na psicanálise é “pronto” e muito menos
“entregue” ao sujeito. Em uma experiência psicanalítica, trabalha-se e trabalha-se muito. Para
Lacan, “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em
seu horizonte a subjetividade de sua época” (LACAN, 1998, p. 321). Esta afirmação de Lacan
alerta sobre o anacronismo em que podemos cair, enquanto analistas, se não estivermos

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

atentos ao que acontece ao nosso redor, aos sintomas sociais de nosso tempo, aos enquadres
possíveis e às mudanças necessárias.

Referências

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da psicanálise: conferência ética e real, ética e... Salvador: Associação Científica Campo
Psicanalítico, 2005. p. 101-111.

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com.br/>. Acesso em: 5 maio 2020.

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quarentena para principiantes (e-book). São Paulo: Boitempo, 2020.

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notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

INSTITUTO INCLUSÃO BRASIL. Recomendações para os psicanalistas sobre o uso da


videoconferência em sua prática clínica. Disponível em: <https://institutoinclusaobrasil.
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MILLER, J.-A. As contraindicações ao tratamento analítico. Opção Lacaniana, 25, 52-55.


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RUSSELL, G. I. Screen Relations: the limits of Computer-Mediated Psychoanalysis and


Psychotherapy. London: Karnac, 2015.

TORDO, F. (2020). Sessões on-line ou por telefone. Recuperado de: <https://cyberpsyco.


fr/wp-content/uploads/2020/03/Recommandation-PSY-1.pdf>.

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7
PLANTÃO PSICOLÓGICO ONLINE PARA JOVENS
LGBTI+: LEITURAS PSICOSSOCIAIS A PARTIR DE UMA
PROPOSTA EMERGENCIAL DE PROMOÇÃO À SAÚDE
MENTAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19
Tiago Corrêa
Benedito Medrado
Jorge Lyra

Os diálogos sobre uma experiência situada de teleatendimento, num plantão


psicológico online, desenvolvido voluntariamente por um dos autores, é o tema deste
capítulo. Apresentamos algumas questões, de ordem psicossocial, sobre saúde mental de
jovens LGBTI+5, abordando desafios e aprendizagens ao pensarmos em oferta de cuidado no
contexto da pandemia da Covid-19.
Inicialmente, identificamos informações e argumentos que justificam pensar em
ferramentas para o enfrentamento do sofrimento desse segmento populacional específico,
tendo em vista, por um lado, a morbimortalidade da população brasileira em geral e, por
outro, o impacto das medidas de contenção da propagação do Sars-CoV-2 (conhecido
como novo coronavírus) que tem agravado a discriminação vivenciada por jovens
LGBTI+. Somam-se, ainda, os obstáculos impostos ao acesso aos serviços de saúde e à
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em distintos territórios, seja devido à necessidade
de isolamento, seja pela interrupção do atendimento, ou mesmo pelo preconceito contra
LGBTI+. Esse sofrimento adquire expressões distintas que podem ser descritas como
efeitos de uma política que expõe (ou mesmo destina) à morte populações mais vulneráveis,
compreendidas com base nas dimensões de raça, sexualidade, gênero e idade, por meio da
atuação criminosa do governo federal na gestão eficiente e responsável da crise sanitária,
que recrudesce desigualdades e naturaliza o extermínio seletivo.
Em seguida, propomos a escuta, por meio do plantão psicológico, como uma das
ferramentas possíveis na oferta de cuidado, promoção de saúde e enfrentamento das

5 Utilizamos a sigla LGBTI+ para nos referirmos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexo
e outras orientações sexuais e/ou identidades de gênero, a exemplo de assexual, pansexual, tranvestigêneres,
entre outros (identificados a partir do símbolo +). Quando uma referência bibliográfica utiliza outra sigla,
respeitamos a denominação adotada pelos/as autores/as.
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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violências que se conformam sobre as condições de existência dessas pessoas. Com base nos
experimentos e contradições vivenciadas nessa escuta, realizada através de teleatendimento,
pensamos a necessidade de compreender o meio digital como potencial deslocamento da
noção de “território” no campo da Saúde Mental, abrindo caminhos para o uso clínico dos
recursos virtuais disponíveis. Ao repensarmos o território, a partir desses termos, vão se
delineando possibilidades de não só contornar as limitações físicas à promoção de saúde
mental, ocasionadas pela pandemia, mas de fazê-lo de maneira condizente com as vivências
da própria juventude LGBTI+ que, a despeito da desigualdade do acesso à conexão à Internet
no país, ainda tem nesse meio um importante mecanismo de produção de identidades e de
alternativas de agência e cuidados de si.
Por fim, considerando os atravessamentos dos jogos de poder, que compõem
esse território e conformam a escuta psicológica, buscamos apontar posições a partir de
múltiplas dimensões em intersecção (de raça, classe, gênero, sexualidade, idade, geração,
etc.) que estão envolvidas nas conexões agenciadas em seu uso. Essa leitura tem a finalidade
de afastar processos em espaços de cuidado que mantêm iniquidades sociais, reproduzindo
privilégios e opressões, orientando-os numa perspectiva crítica e igualitária como exercício
micropolítico de garantia de direitos e justiça social.

1. Sofrimentos de jovens LGBTI+ em meio a necropolítica pandêmica

Em março de 2020, a revista Lancet publicou um artigo sobre os impactos psicológicos


da quarentena, tendo por base uma revisão da literatura científica, a partir da qual os/as
autores/as enfatizam que as situações de quarentena produzem impactos diversos sobre a
saúde mental, agravando sintomas associados ao stress pós-traumático, como a depressão e
a raiva (BROOKS et al., 2020).
No mesmo mês, foi publicado outro artigo sobre implicações da Covid-19 para a
saúde mental de jovens LGBTQ6, produzido por autores/as vinculados a uma organização
estadunidense de prevenção ao suicídio e intervenção em crise para jovens LGBTQ. Alertava
que embora aqueles/as jovens, naquele momento, possuíssem menor risco de serem
contaminados e morrer da Covid-19, quando comparados com pessoas idosas, não estavam
imunes às consequências da doença, principalmente no que diz respeito ao impacto das
medidas de prevenção (notadamente o isolamento social, confinamento ou quarentena)
sobre sua saúde mental (GREEN; PRICE-FEENEY; DORISON, 2020).
Aquela publicação chamava atenção para o risco maior de adolescentes e jovens
adultos LGBTQ (principalmente trans e/ou não-binários) sofrerem ansiedade, depressão,
consequências indesejáveis pelo uso problemático de drogas (lícitas ou ilícitas) e suicídio,

6 Nos EUA, atualmente, a sigla mais utilizada é LGBTQ (do inglês: lesbian, gay, bissexual, transgender, queer
& questioning). Embora, também seja possível encontrar, em publicações brasileiras, o uso do Q, referente
a queer, tido como uma posição não identitária e como um anglicismo que não condiz com a denominação
utilizada na militância de LGBTI+.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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em razão do preconceito, da discriminação e da violência vivenciados. Os/as autores/as


foram cuidadosos ao afirmar que esse panorama antecedia a pandemia. Logo, apontavam
que era legítimo supor uma maior vulnerabilidade, com relação aos efeitos negativos sobre
a saúde psíquica dessa população, diante dos problemas que a Covid-19 viria a oferecer.
Naquele texto, três elementos são colocados como agravantes: 1) o distanciamento
físico, que apesar de necessário, poderia prejudicar vínculos que contribuíssem para o
bem-estar e a saúde mental de jovens LGBTQ e confiná-los em ambientes possivelmente
opressivos e violentos (especialmente o lar); 2) a dificuldade financeira, tendo em vista
a maior suscetibilidade dessa população ao desemprego e ao subemprego durante crises
econômicas, o que contribui para o acirramento do sofrimento psíquico e aumento nas taxas
de suicídio; 3) as incertezas sobre o presente e o futuro, envolvendo o risco da contaminação,
o tratamento que receberiam no sistema de saúde e a perspectiva de vida diante dos impactos
econômicos e sociais (fatores que afetam indistintamente qualquer pessoa, mas que são
potencializados para pessoas já tradicionalmente discriminadas no campo da atenção
pública em saúde).
Também na perspectiva de produzir questionamentos e explicitar problemas, o
Grupo de Estudos sobre Sexualidade, Saúde e Desenvolvimento da Universidade Federal
de Sergipe (SexUs) publicou, três meses depois (em junho de 2020), dados preliminares
de uma pesquisa denominada “Redes de apoio social e saúde psicológica em jovens LGBT+
durante a pandemia de Covid-19”, que permite traçar um paralelo com a realidade dos
EUA (CERQUEIRA-SANTOS; RAMOS; GATO, 2020). Obtidos a partir de uma amostra de
conveniência com 926 pessoas, no país, sendo que a maior parte declarou residir nas regiões
Nordeste (41,9%) e Sudeste (38,6%), seguidas das regiões Sul (11,5%), Centro-Oeste (4,7%)
e Norte (3,2%) e ter idades entre 18 e 32 anos, numa média de 22,2 anos.7
Cabe destacar que não há números representativos da população LGBTI+, como
um todo, no Brasil. Tanto em decorrência do preconceito e discriminação, que dificulta a
construção de metodologias de pesquisa capazes de acessá-la, quanto devido à negligência
do Estado em produzir dados sobre LGBTI+, o que torna pesquisas quantitativas realizadas
com amostras de conveniência um importante instrumento de visibilidade das características
e problemas enfrentados por esses grupos.
De todo modo, entre 9 a 23 de maio, quando foram aplicados os questionários, 86,9%
relataram ainda morar com a família enquanto os 13,1% restantes voltaram a morar, devido
à pandemia. Do total, 80% afirmou adotar isolamento total, como forma de prevenção à
Covid-19; 18,6%, parcial e 1,4% não realizava nenhuma medida de isolamento. Embora
7 Fazemos a ressalva da ausência significativa da menção ao quesito cor/raça, na amostra, bem como da
própria metodologia da pesquisa de aplicação de questionários online (solução possível diante das limitações
impostas pela pandemia, que pode ter implicado num perfil predominantemente com mais alta escolaridade,
renda mais elevada e moradores/as de centros urbanos). De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2018
(Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, 2019), 30% das residências, no país, não têm acesso
à internet, sendo esse índice de 52% quando consideradas as classes D e E, o que coloca o problema da
desigualdade também para o meio digital e as metodologias que se valem dele.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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somente 1,1% houvesse tido diagnóstico positivo para o novo coronavírus, 22,7% tinham um
membro da família ou amigo/a próximo infectado/a e 97% receavam serem infectados/as.
No que diz respeito propriamente ao sofrimento psíquico, vivenciado no contexto da
Pandemia, mais de 85% afirmaram se sentir bastante afetados/as emocionalmente, 80%
disseram estar desconfortáveis em se manter confinados com a família, 75% lamentaram se
sentir apartados/as de seus amigos/as e 65% declararam se sentir sufocados por não poder
expressar sua orientação sexual e/ou identidade de gênero no ambiente doméstico. Dentre
os que estavam num relacionamento afetivo, 50% se sentiam extremamente isolados em
relação a seus/suas companheiros/as.
Em finais de junho, o coletivo #VOTELGBT divulgou relatório de enquete igualmente
realizada via aplicação de questionários online, entre 28 de abril e 15 de maio, junto a 9.521
LGBT+ em todo o país, sendo a maioria, 59,5% da região Sudeste, seguida com 16,85% da
região Nordeste, 13,52% da região Sul e 6,72% da região Centro-Oeste (#VOTELGBT, 2020).
A taxa de desemprego entre os pesquisados/as foi de 21,6%, quase o dobro do
registrado pelo IBGE no restante da população. Dentre os desempregados, 24% perderam o
emprego em decorrência da Covid-19 e 30% estão sem trabalhar há um ano ou mais. Mais
da metade das pessoas trans (53%) declararam que não conseguiriam custear seus gastos
por mais de um mês, caso perdessem a fonte de renda. Pretos, pardos e indígenas possuem
22% mais chance de indicar a falta de dinheiro como a maior dificuldade da quarentena do
que brancos e amarelos.
Não foi apresentada a caracterização etária da amostra, sendo pontuada apenas
ao serem consideradas algumas questões, principalmente no tocante à saúde mental. De
acordo com o relatório, 42,7% declarou que sua maior preocupação era lidar com problemas
de saúde mental. Esse percentual aumentava para 50%, entre pessoas de 15 a 24 anos. No
total, 28% dos/as entrevistados/as já receberam diagnóstico prévio de depressão, índice
quatro vezes maior do que o registrado entre a população brasileira, com base nos dados da
Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2015). Mais da metade do universo da pesquisa, 54%,
afirmou necessitar de apoio psicológico.
Se na adolescência, essas dificuldades parecem estar associadas à dependência
financeira e à (não) aceitação da autoafirmação de orientação sexual ou identidade de gênero
pela família, na idade adulta, questões de saúde mental são combinadas com ausência ou
precariedade de trabalho e renda. Já entre os/as idoso/as, a solidão aparece como um dos
maiores desafios. Dentre os que relataram maior dificuldade, durante o isolamento físico,
metade tinha entre 15 e 24 anos. Na faixa dos 45 a 54 anos, a chance de indicarem a falta de
dinheiro como a maior dificuldade da quarentena foi 70% maior, do que na de 15 a 24 anos.
Já pessoas acima dos 55 anos apresentaram 80% mais chance de reportar solidão como seu
maior problema, quando comparados com as de 15 a 24 anos.
Quase metade (44,3%) daqueles/as em idade escolar tiveram suas atividades
totalmente paralisadas durante o isolamento. A interrupção das atividades pedagógicas,

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para além dos seus efeitos danosos sobre o aprendizado, tem implicações significativas para
a saúde de estudantes LGBTI+. Apesar de ser frequentemente apontada como um espaço
preconceituoso e de violação para estudantes LGBTI+, essa crítica necessita ser matizada
com outras análises.
Efetivamente, esse panorama, embora agravado com a pandemia, não é recente
e apresenta controvérsias. Por exemplo, a Pesquisa Nacional sobre Estudantes LGBT e o
Ambiente Escolar (ABGLT, 2016) informa que 73% dos alunos LGBT, entre 13 e 21 anos,
sofreram algum tipo de agressão na escola. Porém, Thiago Ranniery (2016), em sua tese
inspirada pela sua trajetória pessoal como “ex-aluno bicha de escola pública”, coloca esse
dado em questão. Para ele, a noção de que a discriminação e a violência sejam, ao menos no
caso de meninos gays, a única vivência possível no âmbito escolar, precisam ser sopesadas
com outras possibilidades de análise. Ao conversar com estudantes de quatro escolas públicas
da cidade de Aracaju, a escola – embora não se ignore episódios de agressão –, desponta não
como um espaço de violação, mas como local onde eles encontram suporte para enfrentar a
violência de suas famílias e da sociedade, através dos vínculos construídos entre amigos/as,
professores/as e gestores/as escolares.
A família, de fato, não parece ser sempre e inexoravelmente um espaço de cuidado.
Em abril de 2020, o pesquisador português Jorge Gato publicou o texto “Jovens LGBT+ e
a pandemia de Covid-19: quando a casa não é um porto de abrigo” (GATO, 2020), no qual
alerta que o estigma a que estão sujeitos pode acarretar riscos para a sua saúde mental e, em
casos extremos, colocar em risco sua própria vida. Nesse texto, o pesquisador alerta que, de
um modo geral, a família é vista como espaço de cuidado e proteção, mas no caso particular
de pessoas LGBT+ é identificada como fonte adicional de discriminação, potenciando
situações de mal-estar e vulnerabilidade.
Porém, se no convívio familiar a acolhida é exceção, tão pouco nos serviços de
saúde os jovens LGBTI+ podem encontrar guarida. Maríllia Andrade (2019), a partir de
uma revisão da literatura sobre a produção no campo, observa um consenso no que tange
às repercussões da violência institucional sobre LGBTI+, o que provocaria baixa procura
pelos serviços, inclusive da RAPS, uma vez que a discriminação existente desestimularia os
sujeitos de acessá-la. A autora aponta que a heteronormatividade dos/as profissionais de
saúde produz atendimentos pouco sensíveis ou até mesmo discriminatórios, o que repercute
na invisibilidade e exclusão da população dentro dos espaços de saúde, ao arrepio dos
princípios do SUS, cuja obediência implicaria no enfrentamento dessa forma de violência.
Os obstáculos e as dificuldades na Saúde se agravam entre a população LGBTI+ que
depende exclusivamente do SUS, tornando-se mais profundos e visíveis sob a pandemia de
Covid-19. A precarização do sistema de saúde, que tem sido gestada a partir de sucessivas
reformas neoliberais, potencializadas no atual governo federal, soma-se ao desmonte
que, na atual gestão, passou a ser promovido com relação aos programas voltados para
as populações mais vulneráveis. Além disso, o negacionismo da gravidade do problema

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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sanitário, a desinformação e o obscurantismo “cloroquíneo” (que aposta na distribuição de


medicamento de eficácia não comprovada), como política de comunicação e assistência em
saúde, além da falta de uma gestão efetiva do próprio Ministério de Saúde, em meio a uma
crise sanitária de tamanha proporção, materializam a necropolítica escancarada da gestão
de Jair Bolsonaro, o qual passou a apostar na implosão das tímidas medidas adotadas pelos
governos estaduais a fim de prevenir um número ainda maior de mortes.
Não por acaso, tanto se tem falado em tempos mais recentes sobre gestão política
baseada na morte ou “necropolítica”, um termo difundido por Achille Mbembe (2018) para
designar a expressão última da soberania, a qual reside no poder e na capacidade de ditar
quem pode viver e quem deve morrer. Seu mecanismo é operado através de distintas formas
de matar e deixar morrer, as quais podem envolver suportes afetivos e materiais necessários
para que as vidas humanas sejam vivíveis. Esses suportes (ou sua ausência), que dependem
do apoio de instituições e do mundo social, podem tornar alguns corpos individuais e/ou
coletivos situacional ou historicamente mais precários do que outros, ao submetê-los a
uma “condição politicamente induzida em que certas populações sofrem de falta de redes
de apoio sociais e econômicas e estão diferencialmente mais expostas a danos, violência e
morte” (BUTLER, 2010, p. 46).
No caso brasileiro, Peter Pál Pelbart (2018) descreve a necropolítica como uma
continuidade do período colonial, marcado pelo genocídio dos povos indígenas e a escravização
da população africana, continuamente desumanizadas, física e psicologicamente extenuadas,
por meio do trabalho pesado e da tortura e, inclusive, privadas de se associar como forma
de prevenir rebeliões. De acordo com o autor, embora a descrição da necropolítica seja
racializada há outras dimensões que ela atravessa, tais como gênero e sexualidade.
Na forma específica de LGBTIfobia, tal qual o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu, em 2019, equiparando-a ao racismo (ADO 26/DF), ela age sobre a saúde, a
sexualidade e o desejo dos corpos dissidentes da norma cisgênera e heterossexual. Ainda
mais, quando se trata de negros e periféricos, despojados reiteradamente de suas condições de
existência e expostos continuamente a violências, que vão desde a discriminação vivenciada
em família, passando pelo silenciamento produzido pela ausência de uma educação formal
inclusiva, pela invisibilização no acesso aos serviços de saúde, até humilhações e agressões
físicas sofridas nas ruas. Essa situação, que já não oferecia condições favoráveis à saúde
mental de jovens LGBTI+, antes da pandemia, anuncia-se mais trágica ao agravar sua
aniquilação social, psíquica ou mesmo física.

2. Sentidos de territórios em disputa: o uso do plantão psicológico virtual on-line

Os resultados preliminares publicados pelo SexUs é parte de estudo de abordagem


longitudinal e intercultural que vem sendo realizado em Portugal, Reino Unido, Itália, Brasil
e Chile, tendo por objetivos: 1) avaliar a saúde psicológica de jovens LGBT+ que vivem com

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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os pais durante a pandemia da Covid-19 e 2) compreender os mecanismos que subjazem à


saúde psicológica destes/as jovens. Esse estudo ressalta as orientações da Alta Comissária
para os Direitos Humanos da ONU (UNITED NATIONS, 2020), recomendando que “os
serviços de apoio, abrigos e demais redes de apoio social permaneçam particularmente
atentos e disponíveis, durante este período, para atender às necessidades dos/as jovens
LGBT+” (GATO; LEAL; SEABRA, 2020, p. 1).
Em março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já havia alertado sobre os perigos
à saúde mental das populações que enfrentavam a pandemia. A própria OMS e outras
instituições, como a Fiocruz, produziram materiais e ofereceram cursos com diretrizes para
atenção à saúde mental em meio à crise sanitária8. Desde então, individual ou coletivamente,
psicólogos/as passaram a se organizar para oferecer cuidados gratuita e solidariamente por
ferramentas de teleatendimento. Por exemplo, a fim de atender trabalhadores/as na linha
de frente de combate à Covid-19 – mais expostos à doença e afetados com a sobrecarga do
sistema de saúde, foi criada uma Rede de Apoio Psicológico9.
Aqui e ali, no entanto, começaram a surgir também ofertas de sessões terapêuticas
a “custo social” para lidar com estresse, ansiedade, luto ou outros problemas psicológicos,
emergindo críticas sobre os riscos que essa clínica compulsoriamente digital poderia
implicar. Despontaram ironias sobre a “uberização” do serviço, a “privatização” de um
sofrimento coletivo e sua exploração por uma “lógica de mercado” no bojo do “fetichismo
salvacionista” de seu caráter terapêutico, até a extensão de uma “perspectiva manicomial”
para a intimidade dos lares, a partir da patologização da vulnerabilidade social (REIS, 2020).
De fato, essas críticas merecem atenção. De acordo com o MediaLab.UFRJ, um
laboratório de comunicação com foco em pesquisas sobre tecnopolíticas, subjetividades e
visibilidades, somente num período de 12 dias (entre 14 e 26 de março de 2020) houve um
aumento de 226% em instalações de aplicativos digitais de saúde e fitness impulsionados
por anúncios. Dentre esses, uma série de aplicativos voltados para saúde mental, cuja oferta
tem aumentado significativamente no mercado global, com a promessa de diminuição do
estresse, alívio da ansiedade, melhora do sono, etc.

Boa parte dos aplicativos dirigem-se a um ‘sujeito ansioso’, ao qual


oferecem meios para cuidar de si mesmo, especialmente através do
automonitoramento e do autoconhecimento. No discurso e nas ferramentas
desses APPs, os sofrimentos psíquico e emocional, bem como a terapêutica
proposta, estão fortemente centrados no indivíduo. (...) Ressaltamos a falta
de transparência e clareza em relação ao tipo de dados que tais aplicativos
coletam sobre os usuários, bem como sobre a trajetória desses dados

8 Veja as cartilhas produzidas pela Fiocruz sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19.
Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-novas-cartilhas-abordam-mais-temas-de-
saude-mental>.
9 Leia mais sobre a Rede de Apoio Psicológico. Disponível em: <https://www.rededeapoiopsicologico.org.br/>.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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tanto no compartilhamento com terceiros quanto nas suas finalidades e


utilizações” (MEDIALAB.UFRJ, 2020).

Atentos a esses riscos, consideramos, no entanto, ser necessário compreender e


disputar o meio digital como constituinte da noção de território em saúde mental. O termo,
recorrentemente utilizado nesse campo, desde a Reforma Psiquiátrica, tornou-se marco de
um ideário crítico, emancipatório e antimanicomial de atenção à saúde mental. Apesar disso,
de acordo com Furtado, Oda, Borysow e Kapp (2016), por meio de um extenso levantamento
bibliográfico envolvendo artigos científicos e documentos oficiais, seu uso tem sido restrito
a uma noção burocrática e instrumental, a qual omite posições, jogos e relações de poder e
dificulta favorecer transformações socioespaciais para o convívio com as diferenças.
Estes autores alertam que a noção de território, originalmente cunhada pela Geografia
Crítica, não deve ser concebida como o espaço em sua dimensão meramente objetiva, mas
como relações de poder e posições de sujeito espacialmente delimitadas, operando, portanto,
sobre um determinado meio que pode, inclusive, ser imaterial. Ao diluir o termo em uma
noção vaga, como mera divisão territorial do SUS, os artigos e documentos analisados
podem produzir implicações para usuários/as da RAPS, ao não abarcar os recursos por eles/
as utilizados no seu cuidado e na relação com espaço e depreciados pelo estigma que sofrem.
Nesse sentido, no que diz respeito aos recursos explorados especificamente pela
juventude LGBTI+, os meios digitais despontam como relevantes para o modo como os jovens
se constroem a partir dele. É o que Jefferson Oliveira (2018) discute em sua dissertação,
após conviver com um grupo de estudantes LGBT+ de uma escola pública de Fortaleza,
mostrando que eles/as são permeados por tecnologias de informação e comunicação,
vivenciando sociabilidades em rede, por meio das quais acessam e produzem recursos
com que fabricam suas identidades, interagem com outras pessoas LGBT+, experimentam
diversas possibilidades corporais e afetivas, criando estratégias de contornar e combater o
preconceito e as discriminações enfrentadas.
Ao observar o hibridismo entre experiências presenciais e virtuais na vivência desses
estudantes, o autor nota o movimento que possibilita o desembaraço, no meio digital,
de constrangimentos eróticos, da socialização e de lazer entre LGBT+, com aplicativos e
redes sociais, o que repercute numa pedagogia cultural através da qual esses estudantes se
constroem, formam vínculos e desenvolvem ação coletiva dentro do próprio espaço escolar,
se fortalecendo para resistir às dificuldades que lhes são impostas:

A autonomia proporcionada pelas redes oferece aos indivíduos LGBT+, que


não encontram outros espaços de informação e diálogo sobre essa temática,
a construção de seus próprios percursos de aprendizagem sobre questões
pertinentes a si, sobre seus desejos e sensações que diferem da hetero-cis-
normatividade e a se debruçar sobre questões relacionadas a sua comunidade.
(OLIVEIRA, 2018, p. 65-66).

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Cabe, portanto, pensar numa perspectiva de promoção de saúde mental que atenda
às particularidades dessa população, viabilizando uma clínica digital não só limitada e
provisória, mas em toda sua potência e a partir dos recursos ainda a ser explorados. Tendo
isso em vista, apostou-se na ferramenta do plantão psicológico online como estratégia
de promoção de saúde de jovens LGBTI+. Em se tratando de uma iniciativa individual e
voluntária, seu alcance é obviamente bastante limitado, mas seu uso por serviços de saúde ou
clínicas-escola é aqui indicado como passível de ser explorado, a fim de facilitar a integração
dessa população numa rede institucional de cuidados mais efetivos, durante ou mesmo
depois do período de pandemia.
O plantão psicológico é uma estratégia de promoção de saúde voltada para o
acolhimento emergencial de pessoas em situação de crise. Diferentemente da psicoterapia,
que é adequada a problemas psicológicos mais duradouros e exige uma periodicidade
de encontros com tempo determinado, o plantão psicológico é ofertado diante de
uma situação-problema vivenciada como crise pela pessoa, que pode ser pontual ou
mais prolongada. Desse modo, envolve um encontro que pode ser único ou variar na
duração. O profissional administra a possibilidade de enfrentar os mais variados tipos de
demandas, sem necessariamente ter um planejamento prévio, possibilitando indicações e
encaminhamentos para outros serviços e abrindo a possibilidade de retorno (AMORIM;
ANDRADE; BRANCO, 2015).
Inspirado nas “walk-in clinics” populares nos EUA, nas décadas de 1970 e 1980,
focadas em atendimentos médicos e psicológicos emergenciais, o plantão psicológico teve
origem em meio à década de 1970, no Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo, a partir de uma flexibilização do processo de
aconselhamento para acompanhar processos pessoais de quem procurava o serviço, de
modo que, em seu início, se orientava pela Abordagem Centrada na Pessoa. Na década de
2000, com sua difusão por clínicas-escolas de todo país, passa a adotar também outras
orientações teóricas e ser um recurso voltado para formação de psicólogos/as na promoção
de saúde mental para a comunidade (AMORIM; ANDRADE; BRANCO, 2015).
Esses profissionais, ao se inserirem em diversas políticas públicas ou na atenção
básica de saúde, através de atendimentos em USF e NASF, têm proporcionado uma melhor
resolutividade da demanda reprimida de saúde mental ao contribuir para a solução de
problemas de saúde dos usuários/as em seus territórios ou seu encaminhamento mais
adequado, de acordo com o nível de complexidade. Na atenção básica, por exemplo, o
plantão psicológico tem sido uma prática facilitadora da inserção de usuários/as de saúde
mental na RAPS (AMORIM; ANDRADE; BRANCO, 2015).

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Jogos de poder envolvidos na escuta terapêutica: Dialogando a partir de uma


experiência situada

O anúncio foi feito numa postagem no perfil do psicólogo no Instagram (@tiagocorre)


e compartilhado por pessoas de sua rede pessoal. Assim, por meio do plantão psicológico
foram feitos cerca de dois atendimentos semanais, num total de 24, desde o final de março
até o final de junho, tendo sido destinadas as terças-feiras para esse expediente, perfazendo
um total de aproximadamente 15 pessoas atendidas.
A maioria dos encontros se deu através da videochamada via Whatsapp, devido à
facilidade das pessoas com o uso desse aplicativo, já instalado em boa parte dos aparelhos
celulares. Apesar das dúvidas do profissional com a segurança dos dados, julgou-se que
a emergência da Covid-19 e a inexistência de relatos que questionassem diretamente tal
segurança, o risco era justificável. Em duas ocasiões houve falta de privacidade para o diálogo.
Numa delas, a pessoa atendida precisou descer até a garagem do edifício e se abrigar dentro
de um carro. Em outra oportunidade, tiveram de fazer uso da ferramenta de texto.
Embora grande parte das pessoas atendidas fosse de estudantes universitários,
residentes no Recife, cidade em que o profissional atua e na qual possui inserção acadêmica
através da UFPE, houve uma surpresa bem-vinda referente à participação de pessoas de
baixa renda de municípios do interior e, inclusive, de outros estados, que contam com
pouca oferta de cuidados em saúde mental ou de profissionais com os quais fosse possível
estabelecer um pacto de confiança para dialogar sobre intimidades.
As demandas mais comuns acolhidas diziam respeito, como era esperado, à violência
psicológica promovida por familiares no ambiente doméstico. Numa oportunidade
inusitada, no entanto, foi realizado atendimento a um rapaz que se afirmava heterossexual,
mas estava em crise quanto à sua orientação sexual. Além dele, houve também atendimento
em separado a duas mulheres (um se desdobrou no outro) que haviam se separado devido a
conflitos conjugais, poucos dias antes do decreto das medidas mais restritivas de prevenção,
indo morar em estados diferentes.
Um aspecto mais especificamente relacionado a pessoas trans e/ou não-binárias foi
a interrupção dos atendimentos ambulatórias de saúde e as dificuldades para se dar início
à hormonioterapia. Isto, por que o afastamento ou a remoção de profissionais de saúde,
para atuar com pacientes de Covid-19, fez com que outras necessidades passassem a ser
secundarizadas. Em alguns casos, em que houve a necessidade de se recorrer a consultas
médicas particulares, era colocada a exigência de laudo psicológico como uma barreira
para se obter a prescrição, o que evidenciou a necessidade de se colocar em discussão essa
problemática junto à categoria médica.
Ao ser utilizado, através do teleatendimento, o plantão psicológico pode ser tanto
uma ferramenta de acolhimento e encaminhamento de demandas de jovens LGBTI+ como
uma forma de integrar o meio digital à noção de território em saúde mental, disputando as

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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relações de poder que o conformam e apostando na criatividade dos usuários na exploração


de recursos para o cuidado de si e para o enfrentamento de suas adversidades, orientando a
escuta no sentido de favorecer a compreensão dessas relações de poder. Também proporciona
ao/à psicólogo/a contato com uma grande diversidade de pessoas ao não atrelar a escuta a
um encontro presencial, possibilitando a ele agenciar distintas identidades sociais.
O teleatendimento, ao abordar grupos sociais constituídos por diferentes
dimensões de relações de poder e dominação, bem como permitir abordar seus efeitos
sob o reconhecimento da existência desses grupos, de seus saberes e de suas culturas, isso
não implica em determinar identidades fixas, a partir das quais a experiências subjetivas
se conformam de maneira similar, mas nomear posições que busquem, através da sua
demarcação, questionar a própria normatização da experiência e da realidade a partir de
saberes hegemonicamente disponíveis (MOMBAÇA, 2017).
Consciência social, relativismo cultural, ou sensibilidade política associam-se, desse
modo, na “construção de vínculo” –necessário para se produzir transformação através das
diferenças entre profissionais de psicologia e seus/suas usuários/as. Afinal de contas, ao
ser tomada em sua dimensão político-cultural, já que envolve o uso de linguagem, práticas
discursivas e conceitos, a escuta psicológica pode ser pensada com base nas identidades
sociais que interconecta, formando, portanto, dinâmicas de poder.
Sendo assim, o exame das opressões e privilégios no contexto da escuta psicológica
pode contribuir para apontar a localização social e institucional que delimita a relação entre
profissionais de psicologia e usuários/as, permitindo o questionamento tanto das referências
teóricas, dos métodos utilizados, da moralidade e das sensibilidades envolvidas em sua
prática e, finalmente, das políticas da profissão.
Pilar Hernández e Teresa McDowel (2010), ao tomar a dimensão de raça no modo
como produz dinâmicas de privilégio e opressão em sua intersecção com outras dimensões
no sistema terapêutico, aponta ser a raça uma das mais salientes na organização das
identidades sociais e profissionais, nos Estados Unidos da América. Nesse país, no qual a
branquitude, assim como aqui, é associada a poder e dominação, devido ao próprio processo
de colonização, as práticas terapêuticas e outras práticas sociais, promovem a supremacia
branca a partir de teorias eurocentradas, estabelecendo hierarquias sociais baseadas nos
sistemas de privilégio e opressão historicamente herdados.
A partir de uma perspectiva pós-colonial, elas denominam esse processo como
colonialismo, referindo-se à promoção das crenças e práticas que asseguram a posição de
centralidade das ideologias do grupo dominante. E, ao invocar essa perspectiva para pensar
as práticas terapêuticas, incitam a pensar como o capital cultural destas é detido por grupos
privilegiados e, em que medida contribuem para assegurar seu monopólio, desvalorizando,
marginalizando e destituindo outros grupos de seu capital simbólico (HERNÁNDEZ;
MCDOWELL, 2010).

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Ao se oporem à continuidade dessa agenda colonial – que, segundo as autoras,


privilegiam não só a branquitude, mas também as classes médias e altas, a masculinidade,
a heterossexualidade, a cultura europeia/estadounidense e a religião cristã – favorecem
a emergência de vozes dissonantes que se opõem à colonização e à subordinação. Isso
possibilita, a partir da multiplicidade de narrativas, a contestação de legados de dominação
no presente, que incluem o racismo, classismo, sexismo, a LGBTIfobia, dentre outras
opressões (HERNÁNDEZ; MCDOWELL, 2015).
No campo das práticas terapêuticas, as autoras sugerem que isso implica em se atentar
para a diversidade de contextos dos usuários, que envolvem inclusive as suas experiências
e de sua comunidade de privilégio e opressão, como ponto de partida para o cuidado.
Essas noções, para elas, são centrais para compreender os processos nos quais opressões
estruturais produzem relações interpessoais e saúde mental (por exemplo, no caso do efeito
da LGBTIfobia sobre jovens LGBTI+). Isso não significa agrupar pessoas por categorias
usando concepções estereotipadas de raça, gênero, orientação sexual ou outra diferença,
como se fossem estáticas e pudessem produzir generalizações a respeito das experiências
pessoais. Mesmo porque, isso implicaria em não questionar a cultura dominante e a forma
como ela categoriza os sujeitos como “marginais” ou “vulneráveis”, determinando como o
cuidado lhes é destinado.
Mas, com base no conceito de interseccionalidade de Patricia Hill Collins (2013, p.
205), é preciso atentar para “como grupos sociais são posicionados dentro de relações de
poder injustas”, numa forma mais complexa do que outras, focadas apenas em raça ou
classe ou gênero, sem desconsiderar a importância de uma contextualização específica
no modo como são produzidas hierarquias nessas relações, tendo em vista que opressões
não são equivalentes através de cenários distintos. Com isso, é possível explorar como
diferentes dimensões de iniquidade social afetam e organizam modos de subjetivação e
relações sociais e, principalmente, como estas dimensões são reconhecidas ou silenciadas
a partir do trabalho clínico.
A escuta psicológica que adota objetivo terapêutico, sem levar em consideração as
dinâmicas de posicionamento social e as opressões sociais, corre o risco de mantê-las intactas.
Seja por possibilitar a expressão catártica de afetos sem o correlato de mudança nas relações
dos indivíduos e/ou grupos, seja por colonizar seus saberes nos esquemas pré-concebidos
da psicologia produzida por grupos privilegiados, seja pelo silenciamento da experiência de
sofrimento de sujeitos de grupos sociais oprimidos. Ao invés disso, assumir as diferenças de
experiências, expertises, autoridades e posições pode contribuir para a construção de uma
relação mutuamente desafiadora e transformadora (HERNÁNDEZ; MCDOWELL, 2015).
Para aqueles, cujas experiências e identidades foram silenciadas por ausência de
condições materiais ou repertório discursivo, a delimitação de um espaço de cuidado físico
ou virtual, a partir do qual se dá a relação, é o que torna possível considerar o efeito do que
nós fazemos e dizemos ao nos propormos a escutar os/as diferentes outros/as. Implica, na

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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habilidade de reconhecer e desafiar sistemas sociais, políticos e econômicos opressivos e


desumanizantes, localizando a nós e nossos/as usuários/as em relações de poder, de modo
a encorajá-los a reconhecer e navegar pelas coordenadas opressivas de nossa sociedade e
suas instituições.

4. Considerações Finais

Nomear o sofrimento como efeito da violência LGBTIfóbica, conectando


sua experiência pessoal com a de uma população historicamente oprimida; pensar
conjuntamente as condições particulares de opressão e existência, construindo, em
colaboração, estratégias para o enfrentamento de preconceitos e discriminações
vivenciadas; apontar caminhos institucionais para o cuidado e para a denúncia das
múltiplas formas de violência; ofertar suporte diante dos sofrimentos produzidos numa
necropolítica pandêmica ou mesmo permitir acolher as dúvidas e confusões a respeito de
si e da relação afetiva com o outro são possibilidades construídas conjuntamente nesses
atendimentos virtuais, pontuais e limitados.
No entanto, essa experiência situada aponta para a necessidade de se lançar mão desse
instrumento, disputando o meio digital com outras ferramentas que vêm sendo colocadas
em operação pelas mídias e pelo mercado, nem sempre orientadas a partir de uma lógica
de cuidado e preocupadas com efeitos emancipatórios. Ao propor o espaço virtual como
constituinte do território, em Saúde Mental, esperamos contribuir para se pensar como
distintas populações, não só jovens LGBTI+, produzem e se relacionam com recursos a partir
dele, advogando a necessidade de mais pesquisas e relatos de experiências nesse sentido.

Referências

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Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015:
as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
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estratégias governamentais de promoção de direitos e enfrentamento à LGBTfobia em
Pernambuco. 2019. Dissertação (Mestrado em Psicologia)–Universidade Federal de
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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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103
8
NOVOS SENTIDOS DA PSICOLOGIA EM UM HOSPITAL
DE ENSINO E ASSISTÊNCIA NO PERÍODO DE
PANDEMIA
Jefferson Bernardes
Adriana Rêgo Lima Costa
Fayruz Helou Martins
Renata de Carvalho Cavalcante
Vanessa Ferry de Oliveira Soares

1. “Existirmos, a que será que se destina?” (Caetano Veloso) - a guisa de


apresentações

Somos um grupo formado por quatro psicólogas que atuam em diferentes setores
(oncologia, pediatria e terapia intensiva adulta e neonatal) e um professor de Psicologia
da Saúde, que supervisiona nossos estágios – todos/as inseridos/as no mesmo hospital
de ensino e assistência, o Hospital Universitário Professor Alberto Antunes (HUPPA),
integrante do Sistema Único de Saúde/SUS, situado em Maceió, Alagoas.
O contexto deste hospital não se fazia muito diferente do de outras cidades da região,
no período que antecedeu a pandemia: carência de profissionais, excesso de demandas,
dificuldades de infraestrutura. Entretanto, seguíamos construindo o território da psicologia
da saúde no contexto hospitalar.
No Brasil, a psicologia da saúde constitui-se atrelada à psicologia hospitalar. Com
o passar do tempo, foi se diferenciando, pois parte de uma leitura que as relações entre
psicologia e saúde não podem ficar restritas ao contexto organizacional.
A psicologia da saúde fundamenta-se num modelo biopsicossocial e no conceito de
clínica ampliada, derivados da Saúde Coletiva. De fato, em outros países, o termo psicologia
hospitalar não é usual, pois o hospital não é associado naturalmente como centro de atenção
à saúde (seja física ou mental). Aqui, vivenciamos os reflexos do hospitalocentrismo com
o qual nosso país historicamente cunhou as concepções de saúde e doença (CASTRO;
BORNHOLDT, 2004).
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

Por meio da Psicologia da Saúde, discutimos o que chamamos de “reviravolta dos


desimportantes”, visto que a pandemia trouxe consigo a demanda de reorganização das
práticas de trabalho, alçando a lugares de importância o que antes era secundário. Ao
mencionar os “desimportantes”, tomamos como referência o poeta Manoel de Barros que
no poema “O apanhador de desperdícios” coloca:

Dou respeito às coisas desimportantes


e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
(BARROS, 2010, p. 47).

Pegamos emprestada a simplicidade do poeta observador das pequenezas para refletir


o que vivemos no país, ao sermos invadidos por uma pandemia. Nada do que conhecíamos,
em termos técnicos, nos dava experiência o suficiente para enfrentarmos o “inimigo invisível”
do novo coronavírus, Sars-Cov-2. Foi em meio à tempestade, quando por vezes emergiram
ondas altas a nos afogar em emoções e excessos de informações, que nos afetamos para
mobilizar novos fazeres possíveis, ao tempo das mudanças rápidas de contexto, a fim de
reorganizarmos as prioridades. Nosso caminho foi sendo construído na valorização das
desimportâncias. Enfim, começamos a nos perguntar sobre a própria psicologia: a que será
que se destina…
Num primeiro momento, identificamos que as psicólogas atuavam em cenários
distintos, apesar de agrupadas em uma mesma instância setorial, e isso deixava com que
as rotinas de trabalho se constituíssem de forma particularizada, conforme a proposta de
cada uma. Era preciso integrar melhor as ações do setor, considerando a defasagem de
profissionais da psicologia e as demandas emergentes da pandemia. O primeiro foco de
atenção foi destinado à saúde das trabalhadoras/es.
Se antes, o uso de equipamentos de proteção individual (EPI’s) era rotineiramente
negligenciado e a saúde mental era relegada a segundo plano, neste momento tais questões
ganharam repercussão. Sendo assim, compreendemos que a Unidade de Atenção Psicossocial
(cuja equipe é constituída de psicólogas e psiquiatras) poderia auxiliar mais, se afastando
dos setores de referência, a fim de implementar uma rede de apoio à saúde mental de colegas
profissionais de saúde.
Em função do contexto da pandemia, a proposta não se baseou em oferta de terapias
ou atendimentos tradicionais no viés clínico, mas escuta terapêutica e apoio em saúde

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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mental pontual. Desde o início, a ideia era realizar uma ação temporária, sendo prevista sua
finalização ao término do período de quarentena. Isto porque, tal manejo só foi possível em
função da organização igualmente temporária de fechamento do ambulatório de psiquiatria
e remanejamento das atividades de rotina da psicologia. Assim, toda a atenção se voltou
para a saúde do/a trabalhador/a, a comunicação de notícias difíceis e o atendimento das
demandas emergenciais da assistência/internação.
Quando a UTI para pacientes com a Covid-19 foi inaugurada, em abril deste ano de
2020, logo surgiu a necessidade de assistência aos/às familiares, para além da demanda
dos/as funcionários/as trabalhadores/as do hospital. Assim, precisamos modificar as escalas
profissionais de diaristas para plantonistas, de modo a contemplar a redução de exposição
da equipe ao vírus. Os plantões foram elaborados com, pelo menos, três psicólogas e um/a
psiquiatra, por dia, propiciando a distribuição das demandas por turno.
As psicólogas iniciaram, então, o monitoramento das famílias, por telefone.
Paralelamente, docentes, técnicos/as e estudantes do Instituto de Psicologia, da universidade
à qual o hospital pertence, disponibilizaram o atendimento remoto para a equipe hospitalar,
através de um projeto de extensão.
Dois meses depois, a Unidade de Atendimento voltada para o tratamento da Covid-19
ampliou seus serviços e começou a funcionar, também, com leitos semi-intensivos e de
enfermaria.
Os/as usuários/as com a Covid-19, que se encontravam conscientes, se queixavam de
ociosidade, saudades da família e isolamento social extremo, decorrente da hospitalização,
que sequer permitia visitas. Nesse momento, percebemos que era pungente o retorno da
assistência da equipe a eles/as. A essa altura, as psicólogas já haviam prestado escutas
ocasionais, por meio de ligação telefônica, mas era preciso estruturar e institucionalizar uma
proposta de atendimento.
Em junho de 2020, considerando o suporte à saúde de trabalhadores/as provido pela
extensão universitária, as psicólogas tiveram suas atribuições redimensionadas. A frente de
apoio à saúde de trabalhadores/as foi finalizada. As/os psiquiatras já estavam em movimento
de retorno aos atendimentos ambulatoriais e as psicólogas passaram a empreender três
ações centrais como foco de trabalho no enfrentamento da pandemia: atenção, por meio de
telessaúde, para as pessoas acometidas pelas síndromes gripais; monitoramento das famílias
destas, via telefone, e a comunicação de notícias difíceis. Esses são os aspectos sobre os quais
iremos tratar daqui em diante.
E novamente, por mais um pouco de licença poética, já que, em meio à pandemia,
a cultura tem se mostrado um manancial para fortalecer a resiliência, utilizamos como
tópicos trechos de músicas de compositores que integraram a Tropicália, movimento
cultural brasileiro, que marcou a expressão artística em prol da resistência social às políticas
repressoras vivenciadas nos anos de 1968 e 1969.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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2. “As folhas sabem procurar pelo sol. E as raízes procurar, procurar...” (Os
Mutantes) - Ou, onde é para estar nossa Atenção

Um dos grandes desafios da nossa equipe foi pensar a atenção e o acolhimento aos
familiares dos usuários/as acometidos/as pela Covid-19, no momento da comunicação de
notícias difíceis, como a do óbito de um ente querido. Foi o momento de buscar outras raízes
epistêmicas, deslocar olhares, fazer novas leituras, redefinindo os objetivos de nossa prática
profissional.
No intuito de construir uma atenção humanizada, a equipe responsável pela
comunicação das notícias difíceis optou por uma ação presencial e multiprofissional, cuja
responsabilidade foi compartilhada entre médico/a, psicóloga e/ou residente de psicologia
e assistente social.
A comunicação de notícias difíceis nos demanda o exercício do cuidado com
delicadeza. O desafio torna-se ainda maior, no caso dos óbitos pela Covid-19, pois as
famílias se veem privadas dos rituais de reconhecimento do corpo e do funeral, devido
à alta transmissibilidade da doença. O acompanhamento do enterro é delimitado a dez
pessoas, com caixão lacrado. A saída do corpo do hospital se dá em quatro revestimentos
(dois lençóis de tecido e duas capas plásticas intercaladas). Tanto as orientações sobre o
risco do contato/contágio, no caso do reconhecimento presencial, como a proposição do
reconhecimento do corpo, por foto, como medida de segurança; bem como os cuidados
quanto às restrições dos rituais de despedida, passam a ser conteúdos de trabalho na
prestação do apoio psicológico.
Algumas famílias seguem o protocolo proposto de forma resignada; outras, se
mostram indiferentes às orientações dadas e, em certas ocasiões, posturas questionadoras
e combativas se apresentam. Muitas vezes são geradas contendas que vão além da aceitação
da perda de um ente querido, sendo expressados sentidos que passam pela não aceitação da
existência de um vírus ou de sua letalidade.
A pandemia se mostrou um gatilho capaz de desencadear, nessas famílias, uma gama
complexa de sofrimento emocional. O diagnóstico ou a suspeita da Covid-19 implicam na
necessidade de isolamento da pessoa adoecida que, ao se deparar com a hospitalização,
se vê desprovida da presença de acompanhantes ou visitantes, devido ao alto potencial de
contágio da doença. À distância, as famílias o acompanham, com informações por telefone.
A rotina de familiares das pessoas acometidas pelo coronavírus envolve grande
expectativa em torno do recebimento das informações clínicas, por meio do boletim médico,
que se dá diariamente, no turno da tarde. Esse boletim é feito de forma remota/telefônica,
diariamente, pelo médico/a regulador/a. O contato remoto desencadeia fortes afetações,
inseguranças e fantasias por parte dos familiares.
A escuta psicológica, nesse contexto, passa a agregar contornos de situações de
catástrofes, o que levou nossa equipe a buscar capacitações sobre os Primeiros Socorros

107
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Psicológicos - PSP. Trata-se da configuração do cuidado psicológico precoce e imediato, que


envolve o acolhimento dos sentimentos e se propõe a auxiliar o reconhecimento de estratégias
de enfrentamento da situação. É preciso se preocupar com a oferta de um cuidado empático
e não invasivo (OMS, 2015).
PSP é uma proposta nova dentro da Psicologia e vem se estruturando a partir do
fazer. Aproxima-se dos conceitos de intervenções em crise, resiliência, gerenciamento de
desastres, entre outros (BEJA et al., 2018). E sua aplicação se mostra pertinente ao contexto
de pandemia.
A intervenção em situações trágicas, como a deste momento, em que a alta frequência
das mortes e o medo do adoecimento são queixas recorrentes, tem como objetivo auxiliar a
reorganização psíquica e social das pessoas, minimizando possíveis agravos, especialmente
os de ordem emocional. PSP se pauta em três princípios básicos de intervenção: olhar, ouvir
e vincular. Assim, a prática se estabelece em parâmetros que preservam a segurança de si
e das/os envolvidas/os. A aproximação com as pessoas afetadas e a compreensão de suas
necessidades orientam o apoio prático e a informação (OMS, 2015).
A saúde mental das pessoas que passaram por eventos de desastres é fortemente
abalada e elas podem desenvolver manifestações de estresse agudo, estresse pós-traumático,
luto complicado, quadros depressivos, comportamento suicida, condutas violentas, consumo
indevido de substâncias psicoativas, entre outros (OPAS, 2006).
Portanto, um dos principais elementos da intervenção de PSP consiste em mostrar-se à
disposição e oferecer ajuda prática, como orientações e informações relevantes, desprovidas
de julgamentos. Não se trata de impor o que seria o melhor a fazer, mas auxiliar a análise de
possibilidades de maneira conjunta. A oferta de PSP visa amenizar ou prevenir adoecimentos
relacionados à experiência traumática. Mas é importante mencionar que algumas pessoas,
mesmo recebendo suporte no momento do evento estressante, não estão isentas e podem
incorrer nas mazelas apontadas (WERLANG; PARANHOS, 2015).
A vivência traumática de uma catástrofe, assim como a de uma pandemia, gera
desorganização e leituras relacionadas à incapacidade para manejar situações particulares,
utilizando formas já conhecidas para solucionar problemas. A intervenção psicológica em
um momento de crise é trabalhar na reorganização do sujeito e na mudança de leituras
a partir do reconhecimento de que as pessoas são capazes de produzir novos sentidos de
superação (BEJA et al., 2018).
Em situações de crise, o apoio psicológico busca a compreensão dos eventos de ruptura
e catástrofe, sem pretensão de realizar psicoterapias tradicionais ou de assumir o lugar de
especialista da saúde mental, mas na busca por inventar novas formas de contribuir com o
trabalho multiprofissional, em prol do cuidado em saúde.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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3. “Você me ama. Mas de repente, a madrugada mudou.” (Torquato Neto) -


monitoramentos das famílias

A gestão do hospital disponibilizou para a equipe da Unidade de Atenção Psicossocial


um curso sobre comunicação de más notícias, orientado para a informação sobre os óbitos
e agravos de saúde. Abriu-se, a partir daí, o Serviço de Comunicação de Más Notícias. Com
o início dos atendimentos, percebemos que havia uma estigmatização do Serviço, como algo
pesado e/ou negativo. Não era incomum que pessoas nos encontrassem nos corredores ou
nas imediações da sala de atendimentos aos/às familiares de pacientes acometidos pela
Covid-19 e expressassem, por meio de palavras e/ou gestos, seus temores com relação à
morte. Então, decidimos mudar o nome para Comunicação de Notícias Difíceis. Mais do
que um eufemismo, nossa intenção era amenizar o momento e os sentidos produzidos no
contato entre a equipe e os/as familiares.
Na constituição do Serviço, várias questões surgiram, como a clássica tentativa de
definição de “papéis” de cada área nessa missão. A medicina considerava que a psicologia
deveria se encarregar de fazer os comunicados às famílias. A psicologia defendia que essa
ação cabia ao médico assistente. O serviço social era chamado a contribuir também, com os
encaminhamentos pertinentes.
Por fim, após muito diálogo, foi estabelecida uma equipe multiprofissional que deveria
ser composta por médico/a, psicólogo/a e assistente social. Sendo assim, o médico ficaria
encarregado de transmitir a notícia, fornecendo detalhes sobre o quadro clínico; a psicologia
ofertaria apoio emocional e o serviço social informaria e encaminharia para os dispositivos
de suporte às situações de vulnerabilidade, quando necessário.
Não bastasse a necessidade de alinhar fazeres e dizeres multiprofissionais, as
psicólogas se depararam com uma demanda emergencial singular. Isto, porque, nas
situações de óbitos em época de pandemia, a identificação presencial dos corpos implica
em risco de contágio do/a familiar. Então, surgiu uma demanda nunca antes trazida,
de que a psicologia auxiliasse na interlocução desse reconhecimento. Foi necessário
aumentar a equipe com a participação da enfermagem. O fluxo estabelecido incluiu, como
atribuição do/a enfermeiro/a assistente, a realização de registro fotográfico do corpo e o
encaminhamento deste para um diretório institucional, ao qual a psicóloga deve ter acesso,
a fim de apresentar aos familiares dos pacientes e os orientar quanto aos riscos do contato
direto com o corpo e, ao mesmo tempo, prestar acolhimento às angústias das famílias
pelos rituais prejudicados de elaboração do luto. A família sempre deve ser chamada para
assinar um termo, referente ao reconhecimento por foto e, em casos excepcionais, quando,
mesmo assim, o familiar requer o reconhecimento presencial, deve assinar um termo de
ciência e responsabilidade pelos riscos.
Em tempos de pandemia, o diálogo sobre multi, inter e transdisciplinaridade, tão
utilizados na designação de trabalho conjunto, ganha novas perspectivas. Mais do que juntar

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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especialidades, exige que superemos nossas dificuldades em transpor modelos e articular os


diferentes discursos oriundos das teorias que nos formaram (POMBO, 2005).
É interessante discutir sobre essas disciplinas que insistem em não interagir. Se não
confrontarmos posicionamentos, tampouco atravessaremos as fronteiras que antes nos
afastavam de outras profissões. Para além da busca de uma fusão ou a distinção de “papéis”,
buscamos compreender os diferentes prefixos dados à palavra disciplinaridade. Mais do
que definir se as ações são de ordem multi, inter ou transdiciplinares, pautamos nossos
processos, suas criações e (re)conhecimentos (SOARES, 2019).
No início deste artigo, tomamos a liberdade poética de levar em consideração os
“desimportantes”. Assim, a tão temida morte, que muitos/as evitavam enfrentar, passou a
ocupar um espaço de relevância na rotina hospitalar. Chegamos a ter, em um único dia, uma
quantidade de mortes equivalente ao total de mortes do Setor de Pediatria do ano anterior.
Uma rotina assim não poderia cair na banalização, pois “de repente, a madrugada mudou”.
Na busca pelo estabelecimento de fluxos de trabalho, conseguimos identificar
dificuldades pessoais e, como consequência, refletir se tornou um ato contínuo para a equipe.
Ressignificamos discursos, identificamos estigmatizações quanto ao vírus, colecionamos
histórias, como a da ocasião em que fomos abordados/as por uma trabalhadora hospitalar que
sugeriu que fosse levantada uma barreira física, uma parede de acrílico, para além do uso de
EPI’s. Ou, quando recebemos a expressão preocupada de uma pessoa amiga, alertando para
que solicitássemos a disponibilização de um profissional de segurança na porta da sala de
atendimentos. Foram momentos como esses que nos levaram a questionar: Que psicologia
fazemos? Que sentidos atribuímos aos/às pacientes, às suas famílias e à própria pandemia?
Ou teríamos medo das nossas teorias e ciências não se fazerem concretas? Havia sentido de
desamparo na falta de referência dos procedimentos adequados?
Cercados/as de questões como essas, partimos para as possibilidades de movimentos.
Já com os processos em andamento, atentamos para o fato de que a ambiência da sala
utilizada não era apropriada ao acolhimento. Com acumulação de móveis, sem uso específico
e paredes frias, a sala mostrava-se pouco convidativa ou acolhedora.
Buscamos redefinir tal cenário. Se as famílias já nos encontravam repletos/as de
equipamentos (máscara, luva, capote, propés, toucas e protetor facial), o ambiente deveria
minimizar o distanciamento físico. Assim, dispusemos as cadeiras em semi-círculo e
buscamos nos posicionar em contato visual com nossos/as interlocutores/as. Se o contexto
não nos permitia estabelecer vínculos por meio do toque, tentamos pautar recursos como
palavras sutis e entonações de voz, associadas às expressões do olhar.
Passamos a considerar que era necessário retomar os questionamentos e, algumas
vezes, modificá-los. Trazemos, como exemplo, a decisão de delimitar o serviço de
comunicação aos horários diurno e verspertino, excluindo os plantões noturnos inicialmente
estabelecidos. A prática nos mostrou que o acionamento da família, à noite, despertava

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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reações emocionais potencializadas, em especial, nos horários da madrugada. Desse modo,


familiares de pacientes internados/as pela Covid-19 passaram a ser informados, desde o
monitoramento telefônico, que intercorrências noturnas seriam comunicadas na manhã
seguinte. Aos poucos, os fazeres se tornaram mais fluidos e nos apropriamos das novas
rotinas e condutas frente aos momentos que permeavam o colapso.

4. “O cérebro eletrônico faz tudo. Quase tudo. Quase tudo. Mas ele é mudo
(...) Só eu posso pensar se Deus existe, só eu. Só eu posso chorar quando estou
triste, só eu.” (Gilberto Gil) - sobre comunicação de notícias difíceis

Em meio às adaptações e mudanças anteriormente mencionadas, o uso de novas


tecnologias foi um dos destaques ocorridos na rotina de trabalho da Unidade de Atenção
Psicossocial. A utilização dessas novas tecnologias promoveu a integração entre profissionais,
pacientes e familiares de pacientes internados na Unidade Covid, mas também trouxe
estranhamentos na construção e na mediação dessa nova rotina.
A construção de conhecimentos apropriados à utilização adequada das tecnologias de
informação e comunicação (TIC), para fins de atendimento psicológico, apresentou-se como
uma nova barreira a ser superada pelas profissionais de psicologia. Fazendo um paralelo
com as teorias encontradas sobre a implementação de tecnologias no âmbito educacional,
assimilamos que estas podem ser empregadas para enriquecer o ambiente, logo, é possível
transpor esse conhecimento para a psicologia da saúde, tão acostumada a trabalhar frente a
frente com seus pacientes (LÉVY, 1999). O momento em que vivemos exige das profissionais
de psicologia que tomem novos posicionamentos dentro do hospital em questão, para que
pacientes e familiares continuem sendo assistidos/as e, ao mesmo tempo, as/os profissionais
fiquem resguardadas/os da possibilidade de contágio pela Covid-19.
Essa nova configuração fez com que nos deparássemos com barreiras, até então
pouco percebidas ou que pouco afetavam a execução de nossas funções. Eram barreiras da
infraestrutura física do hospital, em termos de equipamentos, conexão com a internet e até
mesmo insuficiência de apoio institucional. Os equipamentos que o hospital possuía não
tinham suporte técnico suficiente para empreender as ações, em especial, os atendimentos
por vídeo-chamadas.
Observamos que, por mais bem desenhados, os projetos apresentavam fragilidades
em sua execução, pois dependiam de articulações que iam para além da Unidade de Atenção
Psicossocial, o que dificultava sua implementação com agilidade.
Tendo em vista as dificuldades tanto de infraestrutura quanto de dinâmica de
funcionamento, a psicologia iniciou os trabalhos com as famílias dos/as usuários/as da
Unidade Covid com a “tecnologia” que estava ao seu alcance, o telefone. Por meio dele,
estabelecemos acesso diário às famílias e conseguimos cuidar e dar suporte psicológico
mínimo, em situações de angustia. Com isso, muitas famílias, neste momento, encontram

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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um espaço para falar de seus medos e preocupações de forma clara e direta, sendo acolhidas
em suas dores.
O uso de formas diferentes de tecnologias para o cuidado precisou ser revisto
constantemente, modificado e adaptado às várias fases da pandemia.
Concordamos com Cecílio e Merhy (2003), quando falam sobre o cuidar e dizem
que é o:

Somatório de um grande número de pequenos cuidados parciais que vão se


complementando de maneira mais ou menos consciente e negociada, entre
os vários cuidadores que circulam e produzem a vida do hospital. Assim,
uma complexa trama de atos, procedimentos, fluxos, rotinas e saberes, num
processo dialético de complementação, mas também de disputa, compõem o
que entendemos como cuidado em saúde. (CECILIO; MERHY, 2003, p. 2).

O cuidar vai para além do modelo biomédico. É um somatório de decisões quanto ao


uso de tecnologias, de articulação de profissionais e ambientes, em um determinado tempo
e espaço, tentando ser o mais adequado possível às necessidades de cada usuário/a (GRA-
BOIS, 2009).
As tecnologias envolvidas no trabalho em saúde podem se classificar como: leve, que se
refere às tecnologias de relações do tipo produção de vínculo, autonomização, acolhimento e
gestão, como uma forma de governar processos de trabalho; leve-dura, que diz respeito aos
saberes bem estruturados, que operam no processo de trabalho com saúde, como a clínica
médica, a clínica psicanalítica, a epidemiologia, o taylorismo e fayilismo; e dura, ou seja, a
utilização de equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, normas e estruturas organiza-
cionais (MERHY, 1997).
Ganha importância, portanto, as tecnologias leves, justamente pelas relações entre as
pessoas na produção do cuidado. O cuidado, boa parte das vezes, é centrado nas tecnologias
leves, no reconhecimento que o/a usuário/a – mesmo utilizando o instrumental tecnológico
–, se apresenta com um problema que traz consigo uma origem social, de relações sociais
e familiares, com uma subjetividade que conta sobre sua história, sendo ele/a agente trans-
formador do seu processo saúde-doença (MERHY; FRANCO, 2003). Afinal, “o cérebro ele-
trônico é mudo” e depende dos usos que produzimos a partir deles.
Fechamos esse capitulo à deriva de conclusões, mas compreendendo que os fazeres
estão terminantemente modificados e, gradativamente, as instituições de assistência hospi-
talar e a psicologia em si necessitarão rever suas condições de estrutura e funcionamento.
A pandemia trouxe uma quebra de paradigma quanto à assistência psicológica de forma re-
mota e utilizando novas tecnologias. A inserção de tecnologia, antes vista com desconfiança,
passou a contrapor modelos efetivos e acessíveis para a oferta de escuta segura e acolhimen-
to, frente ao risco de contágio e disseminação da Covid-19.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Referências

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CASTRO, Elisa Kern; BORNHOLDT, Ellen; Psicologia da Saúde x Psicologia Hospitalar:


Definições e Possibilidades de Inserção Profissional; Revista Psicologia: Ciência e
Profissão, v. 24, n. 3, 2004.

CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira; MERHY, Emerson Elias. A integralidade do cuidado


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Trabalho Centrada nas Tecnologias Leves e no Campo Relacional. Saúde em Debate, Rio
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GRABOIS, Victor. Gestão do Cuidado. Qualificação de Gestores do SUS, Rio de Janeiro:


EAD/Ensp, 2009.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

OMS. Organização Mundial da Saúde. War Trauma Foundation e Visão Global


internacional. Primeiros Cuidados Psicológicos: guia para trabalhadores de campo.
Genebra: OMS, 2015.

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situaciones de desastres. Washington: Organización Panamericana de la Salud, 2006.

PARANHOS, Mariana Esteves; WERLANG, Blanca Suzana Guevara Psicologia nas


Emergências: uma Nova Prática a Ser Discutida. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília,
v. 35, n. 2, abr.-jun., 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-
98932015000200557&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 20 jul. 2020.

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CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

POMBO, Olga. Interdisciplinaridade e Integração dos Saberes. Liinc em Revista, Rio de


Janeiro, v. 1, n. 1, p. 3-15, mar. 2005. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/article/
view/3082/2778>. Acesso em: 12 jul. 2019.

SOARES, Vanessa Ferry de Oliveira. A extensão universitária no processo de formação


profissional: experiência da TECA. 2019. 68 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)–
Universidade Federal de Alagoas. Instituto de Psicologia. Maceió, Alagoas, 2019.

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“CONTAR HISTÓRIAS E POVOAR O MUNDO”10:
TRABALHOS DO LUTO EM MEIO A UMA PANDEMIA
Marília Silveira

1. Introdução

Em tempos de pandemia da Covid-19, sinto não ter mais nada a dizer e aí me


convidam a escrever um capítulo para este livro. Disse sim ao convite, sem saber ao certo se
conseguiria finalizar um texto no prazo, mas o que insistia em mim era: “não tenho nada a
dizer”. Não ter nada a dizer, neste caso, significava que toda a minha trajetória até aqui, até
me ver diante de uma pandemia, perdia todo ou quase todo o sentido. Escrever sobre o quê?
Escrever para quem? Escrever com o quê/com quem? O mutismo narrativo que a experiência
me trouxe vinha junto com algumas perdas. Os estudos feministas, as interrogações das
feministas negras, os estudos críticos da branquitude e o giro decolonial vinham, desde
antes, colocando interrogações nos conhecimentos com os quais eu havia me formado. O
doutorado em Niterói/RJ (2014-2016) me fez sair do sul do país, e tomar uma decisão:
queria viver perto do mar. No trajeto da barca entre Rio de Janeiro e Niterói, descobri a
influência do mar nos modos de pensar. O estágio pós-doutoral na Universidade Federal
de Alagoas, em Maceió, vinha sendo (desde 2017) esse tempo de rever o caminho, refazer,
refazendo tudo, refazenda, como canta nosso amado ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil.
Vinha sendo, também, um momento de afirmação de práticas e de uma trajetória, trajetória
que registrei nos memoriais escritos para concorrer a diferentes concursos públicos docentes
em diferentes universidades pelo Brasil. Para quem se ocupa da escrita, desde as primeiras
produções acadêmicas, esse não era um trabalho simples: fazer nascer o texto de minha
história. Vasculhar memórias, narrar a própria história era necessariamente me rasgar e a
jornalista Eliane Brum é precisa nesse ponto:

Escrever, para mim é um ato físico, carnal. Quem me conhece sabe a


literalidade com que vivo. Eu sou o que escrevo. E não é uma imagem retórica.
Eu sinto como se cada palavra, escrita dentro do meu corpo com sangue,
fluidos, nervos, fosse sangue, fluidos, nervos. Quando o texto vira palavra

10 Referência ao artigo e ao trabalho das companheiras Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016).
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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escrita, código na tela do computador continua sendo carne minha. Sinto dor
física, real e concreta, nesse parto. Sou tomada por essa experiência. (BRUM,
2017, p. 127)

Escrever, dessa forma, torna toda tarefa mais intensiva no sentido da tensão que
produz. Ainda na escola, quando li uma entrevista de Luis Fernando Verissimo, dizendo que
a sua musa inspiradora era o prazo de entrega, não sabia o quão concreto isso se tornaria
também para mim. Então, de novo, eu aqui, premida pelo tempo, espremo essas linhas para
que cheguem nas mãos da revisora no prazo combinado.
Em março de 2020, a pandemia da Covid-19 se impôs para nós, no Brasil, como esse
tempo parado, essa suspensão de atividades, de planos, de fluxos de escrita, de trabalho,
de vida. No lugar de tudo isso, um medo imenso de adoecer e morrer. Para todas11 nós,
de lugares muito distintos, esse se tornou um problema central, nos transformou, além de
neuróticas, que já éramos, um pouco mais obsessivas com a limpeza (de si e das coisas), do
que o habitual.
A pandemia da Covid-19 me paralisou também. Percebi logo que era uma paralisia
seletiva e andante. Nada mais fazia sentido, nada do que eu tinha me programado para
escrever fazia sentido, nada do que tinha estudado me parecia ser útil para compreender
esse momento. Então, passei de um mês em que apenas acompanhava as notícias, para um
segundo mês de vida dentro de casa (um privilégio que deveria ser um direito de todas),
durante o qual consegui ler textos de diversos autores e autoras sobre o momento da
pandemia: pensavam os efeitos dela e prospectavam futuros. O deslizar das notícias para
os pensamentos produziu um espaço e possibilitou, entre outras coisas, este ensaio. Nessa
passagem, também a morte se fez presente.
A pandemia trouxe mais de 80 mil pessoas mortas –dados subnotificados, sabemos –,
até o momento em que escrevo essas linhas. Nos trouxe também o luto. Mesmo que ninguém
tão próximo tenha morrido (até agora), não há como dizer que não estamos de luto. Ainda
que alguns de nós prefiram ignorar ou desconsiderar essas mortes.

1. Tatear no escuro

A veces cuando pienso que todo está perdido / Voy hacia algunas de las
formas de la muerte / Me pego un tiro con una palabra / Que alguna vez
me fue tan transparente / […] Voy hacia el fuego como la mariposa / Y no

11 Na política de escrita adotada no presente texto escrevo no feminino. Não que o texto se dirija apenas às
mulheres, mas porque desde os primórdios da ciência, nós mulheres lemos textos no masculino, supostamente
neutro, inclusive quando falam de nós, inclusive quando escrevemos. Alio-me a Donna Haraway (1995),
Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016) para sustentar uma política de escrita com a qual venho apostando
coletivamente desde antes (SILVEIRA; CONTI, 2016). Que a estranheza de encontrar um texto acadêmico
flexionado no feminino seja perturbadora o suficiente para provocar também outras formas de escrever em
que lê este texto. Convido a leitora (o leitor e todo mundo que se posiciona entre esses dois termos) a ficarem
com esse problema enquanto leem este texto.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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hay rima que rime con vivir / No te pares no te mates / Solo es una forma
más de demorarse12

Este texto é uma tentativa. Uma tentativa pactuada comigo mesma de atravessar o
luto por dentro dele. Atravessar o luto, tenho aprendido, não significa passar por ele para
logo depois ficar imune. O luto é um processo estranho, inconstante, singular, irregular. É
um trabalho. Exige que tenhamos em conta as heranças, não como algo que nos é deixado,
mas algo que precisamos tomar para nós e transformar, para poder seguir adiante.
Há um ano e quatro meses atrás (era março de 2019, um ano antes da pandemia da
Covid-19), meu pai faleceu de um “infarto fulminante”, sozinho, em seu apartamento no sul
do país. Recebi a notícia por telefone e voei horas depois, de Maceió para Porto Alegre. Desde
o momento em que soube, uma espécie de narrativa da morte passou a me acompanhar. A
narrativa do momento da morte. Ela foi reconstituída por tudo o que falaram meus tios e tias
(que estavam lá), minha mãe (de quem ele estava divorciado e que me ligou para contar),
pelas coisas que vi no apartamento, quando entrei e soube pelo porteiro, que estava lá
naquela noite e fez questão de me narrar, dias depois, detalhadamente, os momentos finais
de meu pai. Eu havia ficado imaginando, mas o relato me chegou sem pedir licença, numa
noite em que saía do prédio e o porteiro me interpelou. Ele precisava falar. Na verdade,
todos precisavam falar e falaram comigo muitas coisas. Desde as mais ingênuas e bonitas até
as mais malvadas, mesmo disfarçadas.
O exercício a que me coloco, agora, é ir de encontro a uma das formas dessa morte,
seguindo a música de Baglietto, mencionada no início dessa seção. Sem ter certeza, enquanto
escrevo, aonde esse exercício pode me levar.

2. Os espectros

Há dias me assombra uma insônia. Há dias sinto uma sombra rondar. Uma sombra
que sussurra minhas inconstâncias. Não havia percebido o que era. Foram séries de en-
contros que me fizeram entender que essas sombras eram histórias. Eram narrativas que
assombravam. Uma narrativa (pelo menos) pedia passagem para ser escrita. Essa é uma
das formas com as quais o corpo que sou lida com o que me acontece. Pensei que era uma
narrativa pela qual eu precisava atravessar, imaginando, que depois dela, seria possível
respirar de novo e voltar a escrever. Como atravessar as sombras? Eu só sabia um jeito:
escrevendo. Descobri, estudando Derrida13, que a estas sombras poderia chamar de espec-

12 Él Témpano, música do cantor argentino Juan Carlos Baglietto. O trecho diz: Às vezes, quando penso que
tudo está perdido / Vou em direção a alguns dos caminhos da morte/ Dou-me um tiro com uma palavra /
Que alguma vez me foi tão transparente / [...] Vou até o fogo como a borboleta / E não há rima que rime
com viver / Não pare, não se mate, é apenas uma forma mais de demorar-se (tradução livre da autora).
Em uma belíssima versão de quarentena se pode encontrar neste enlace: <https://www.youtube.com/
watch?v=cZhouPL4gxk>
13 Agradeço a ideia da amiga Claudia Muller e o convite para o grupo de estudos de Derrida, agradecimento
estendido às parceiras Ana Rodrigues, Ana Rios, Mariana Pires e Sandra Torossian, pela parceria na distância

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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tros. Não se trata do fantasma do morto em questão ou das teorias escritas pelos autores
mortos. Era mais um rastro espectral, no sentido de carregar uma possibilidade de fazer
presente o que a pessoa ou a teoria nunca foi ou nunca alcançou. Espectros de Marx (DER-
RIDA, 1994) era o livro que estava lendo com as amigas na quarentena. O nome do livro
chegou a Derrida, antes mesmo dele reabrir o manifesto comunista, cuja primeira frase
diz: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”. “Como em Hamlet – diz
Derrida –, o príncipe de um Estado apodrecido, tudo começa pelo aparecimento de um
espectro” (DERRIDA, 1994, p. 18).

Mas afinal, o que é um espectro para Derrida?Um espectro é a frequência


de uma certa visibilidade; mas uma visibilidade do invisível. Ele tem uma
estrutura de aparecimento – desaparecimento. Não há como fechar os olhos
ou os ouvidos para ele. À princípio ele nos olha, nos encontra antes, nos
espreita. Produz uma frequentação angustiante. Podemos passar fugindo
desta frequentação, deste retorno, ou conjurá-lo. Ao conjurar um fantasma
convocamos e acolhemos; restringimos e expulsamos. Nesta tensão
conjuratória entre a promessa que ele traz e nos lembra e o esquecimento
necessário para impor nossa existência, neste vão, é que podemos criar o
novo. Derrida pontua que esta angústia frente ao fantasma é efetivamente
revolucionária; pois ao conjurá-lo invocamos a morte para inventar o vivo
e fazer viver o novo, para fazer vir à presença o que ainda não esteve aí
(PESSIN, 2015, s/n).

Fui percebendo a possibilidade de conjurar os mortos e convidá-los a se sentarem


comigo à escrivaninha para conversar por meio deste texto. Pensei que os lutos se conectavam,
que os espectros daquelas 80 mil mortes perturbavam o sentido do luto do meu pai morto.
Como se acordassem uns aos outros e a mim, ao mesmo tempo que alguma coisa se movia e
me impedia de dormir.
Há muito tempo a escrita é minha companheira, com ela delineio os meus lugares no
mundo, enquanto caminho. Descobri e apostei, ainda na graduação: escrever a si era escrever
o mundo (SILVEIRA; FERREIRA, 2013). Depois, fiz do narrar a minha metodologia de
pesquisa (SIVEIRA, 2013). E, durante o doutorado (SILVEIRA, 2016; SILVEIRA; CONTI,
2016), aprendi que escrevemos para povoar o mundo de narrativas (MORAES; TSALLIS
2016) e, assim, torná-lo mais denso e complexo.

3. Narrativas da morte

Há alguns anos havia aprendido a conversar com meus medos. De vários modos a
escrita se manteve central nesse processo. Incluindo um conto, que escreveram para mim e
outro, que escrevi durante a formação em psicodrama na Argentina, ambos, em espanhol.

para estudar, sem pretensões acadêmicas, só porque ler Derrida, como diz Ana Rodrigues, “me ajuda a
entender melhor outras coisas”.

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Às vezes, a recordação desse conto, escrito por um amigo colombiano, volta à baila das
lembranças. Trata da história de uma mulher que teme caminhar num labirinto escuro cheio
de fantasmas. No caminho, ela descobre que os fantasmas são apenas a sua própria sombra,
projetada no escuro, por meio de uma luz. Ao final, ela desenreda pelos fios das palavras
os seus medos e pode caminhar de olhos fechados, porque já não teme mais o caminho.
Reescrevi a meu modo essa cena, que virou material de trabalho psicodramático, no curso,
um ano depois. Foi também durante os dois anos desse curso, em Buenos Aires (2009-
2010), que vivenciei uma nação de luto, por duas vezes.
No momento em que a sombra dos mortos pela pandemia paira sobre o Brasil, penso
em como meu luto pessoal se conecta e se reconfigura a ele. Seja pela perda da vida que nos
acostumamos a levar e que não voltará a existir tão cedo, seja pelas mortes concretas de
amigos, colegas ou pela perda das rotinas e dos encontros. Sombras que entram e saem de
cena todos os dias, como espectros que nos rondam.
Essa compreensão de um luto que não é de uma pessoa próxima, mas um luto
que comove uma nação, experimentei nesta viagem. Era outubro de 2010, quando eu
embarcava para minha última ida a Buenos Aires, saindo de Porto Alegre. Uma das
inúmeras greves do Aeroparque (o aeroporto que fica próximo ao centro da cidade e hoje
só opera os voos nacionais) nos fez desembarcar em El Palomar. Quase perdi a conexão,
por conta dessa alteração. Era meu último ano no curso de Psicologia, na Unisinos, último
encontro do curso de Psicodrama en Psicopedagogia, com Alicia Fernández, e a quinta
vez que viajava a Buenos Aires, portanto, já me sentia bem mais “em casa” com a cidade.
Desci no El Palomar, já sabendo que um ônibus da Tienda León nos levaria gratuitamente
até o Aeroparque. El Palomar não era um aeroporto, mas uma base aérea na região
metropolitana. Descemos no que parecia um aeroporto improvisado e de onde, em poucos
minutos, o ônibus sairia. Eu já havia estado fora dos esquadros turísticos de Buenos Aires,
porque a Escuela de Alicia fica em Liniers, um bairro residencial de casas baixas, muitas
árvores, pouco movimento e bastante periférico (cerca de 40 minutos do centro). Então,
já conhecia outras paragens da cidade. Vistas do ônibus, novas paisagens, ainda mais
periféricas, se desenhavam. Mas, desde o primeiro muro que consegui ver estava escrito,
numa constante, “hasta siempre, Néstor” ou “fuerza Cristina” e outras frases de apoio,
suporte e duelo, por ocasião da morte do ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner.
Duelo, em espanhol, além de significar dor é, também, aquele momento em que as pessoas
se reúnem no funeral de um morto. Era possível sentir que a cidade estava de luto pela
morte do seu ex-presidente. Nessa época, eu já havia perdido alguns parentes, mas a
dor daquelas pessoas, naquele dia, me comoveu. Nesse movimento, conversei com uma
amiga brasileira, que residia em Buenos Aires, e ela me disse que aqueles eram tempos
de aprender sobre o luto, uma experiência estranha, até então, para ela. Contou-me sobre
o fato de ter estado na cidade e podido testemunhar os intermináveis dias do funeral de
Kirchner, com quase um mês de vivência de um país em luto.

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Ainda no caminho a bordo do Tienda León, passamos em frente ao Hospital Posadas,


palco do primeiro trabalho de Alicia Fernández, que a levou a escrever seu primeiro livro
La inteligencia atrapada14. Passando em frente ao hospital, me lembrei imediatamente das
viagens que fazia com meus pais, no interior do Rio Grande do Sul. No caminho entre São
Leopoldo e Santo Antônio da Patrulha, pela “estrada velha”, chegávamos por Gravataí e, nas
voltas por dentro da cidade, sempre passávamos em frente ao Hospital Dom João Becker,
onde nasci. Todas as vezes escutava de meu pai “tu nasceste aí”.
Naquele momento da viagem, estava escrevendo minha monografia de conclusão de
curso, que retomava minhas histórias com a escrita e com a formação e senti “una emoción
particular” (como dizia Alicia), ao me deparar com aquele hospital, cujas histórias conhecia
do livro, num momento em que também me refazia e renascia para me tornar psicóloga.
Contei essa passagem no grupo e me lembro de algo característico que Alicia fabricava nos
espaços do curso, a sala inteira parada, em silêncio, emocionada com a história. Os dois anos
daquele curso (quatro viagens de imersão) tinham me possibilitado aprender, fazendo, como
conduzir um grupo, com as pessoas e as histórias. O lapso temporal permitia a sensação
de que os seis meses passados, entre um encontro e outro, parecessem “ontem”. Nós nos
referíamos aos encontros anteriores como se tivessem acontecido “ontem”. Buenos Aires, os
argentinos e especialmente Alicia, Jorge, a escuela, fabricavam uma outra temporalidade,
na qual eu imergia, enquanto escutava Alicia falar e ao mesmo tempo percebia como o sol
batia no mobile colorido no meio da sala – essa imagem foi salva numa das fotos que tirei
com ela ali. Aprender a fabricar tempos, sendo ainda tão jovem (a mais jovem do grupo), era
curioso e desafiador.
Com a morte de Néstor Kirchner me recordei da morte de Mercedes Sosa, um ano
antes, também durante uma de minhas imersões em Buenos Aires. Lembro-me de ter me
sentado em algum restaurante simples, numa esquina qualquer na Feria de San Telmo, para
comer uma empanada, quando vi todos os presentes virados para uma pequena televisão
num canto alto do salão. Na TV, milhares de pessoas em procissão, para se despedirem de
Mercedes Sosa. Aquele era o final de semana do seu funeral. O início de nossa aula, naquele
encontro, foi outra tessitura de tempo, em que Jorge (companheiro de Alicia e professor do
curso) disse que precisávamos primeiro escutar uma música, antes de começar o trabalho.
Era Maria, Maria, de Milton Nascimento, interpretada por Mercedes.
Essas memórias da morte se conectam com a mais recente, a morte de meu pai, e com
a narrativa da hora da morte que escutei do porteiro do prédio dele. Numa das muitas noites
em que saí do apartamento para dormir na casa de meus tios, o porteiro me interpelou para
me contar, em detalhes, o que havia acontecido. Disse que meu pai interfonou para ele,
pedindo ajuda, porque estava passando mal. O porteiro ligou para o SAMU15, sem desligar
o interfone (outra situação parecida já havia ocorrido antes, no condomínio) e continuou

14 Fernandez, A. A Inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas: 1991.


15 Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.

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conversando, para saber se meu pai continuava vivo ou acordado. A equipe do SAMU estava
demorando a chegar, mas eles continuavam conversando, até que, de repente, meu pai
parou de responder. Caiu na cozinha, imagino eu, porque era onde estava o interfone. No
enterro, o médico, um amigo da família que fez o atestado de óbito, explicou que havia um
afundamento, uma marca na testa, porque ele deve ter caído de frente, com a testa no chão.
Depois, juntei esses detalhes, que o porteiro fez questão de me contar, com os outros do tio
que foi lá tomar pé da situação, do síndico e de todo mundo que recontou essa história para
mim durante aqueles dias, com as coisas que imaginei. Então, a equipe do SAMU chega, o
porteiro chama o síndico, que entra arrombando a porta, se deparam com meu pai deitado
no chão e procuram o telefone dele, a fim de chamar alguém da família. O primeiro contato
da lista é o de minha mãe (de quem ele estava separado havia oito anos) e ligam, às cinco
horas da manhã, para avisar que meu pai estava morto. Às sete horas da manhã, ela me
liga para dizer com a voz dolorida: “Marília, teu pai teve um ataque cardíaco fulminante
e morreu” – foram essas as palavras. Voei no mesmo dia para acompanhar o velório e o
enterro, no dia seguinte. Da insônia entre esses dois dias fiz um texto16, que li durante a
encomenda do corpo:

“Todos e todas que estão aqui e conheciam o meu pai sabem que ele
era um contador de histórias. Mesmo que as gerações mais jovens, em
vários momentos, tenhamos aprendido o repertório dele de cor e até nos
enfadado disso, eu, minha prima-irmã, Carol, e suas filhas, Nicole e Julia,
aprendemos e desfrutamos, enquanto crianças, dessa capacidade do pai de
contar histórias. Houve uma vez, quando eu escrevia a minha monografia
para concluir o curso de psicologia que me reencontrei com um livro que eu
amava quando criança, especialmente pela forma como tu lia aquela história
para mim. Ao abrir o livro da Girafa e o mede palmo, naquele momento, me
dei conta da data que constava nele: era março de 1983. Escrito com a tua
letra. Eu nasceria dali a seis meses. Sei que não fui exatamente um projeto,
mas me dei conta, ali, de que fui também desejada. Quer dizer, vocês me
esperavam, naquele momento, ainda sem um quarto, mas já com um livro.
Depois, eu pude te ver contar, incontáveis vezes, a história do lobo mau pra
Nicole, que morria de medo do lobo, mas amava aquele dindo17 contador
de histórias! O gosto pelos livros, por contar e ler histórias, eu certamente
herdei de ti. O que talvez a maior parte de vocês aqui não saiba é que fiz disso
minha ferramenta de trabalho. Hoje, eu não faço nada mais do que ensinar
aos meus alunos, no curso de Psicologia, a criar sensibilidades para escutar e
para contar histórias. Por isso pai, eu tenho essa lembrança tão viva de mim,
rindo, sentada no vaso em frente ao box, enquanto seu banho e a cortina
do box se transformavam no palco, para se transformar no maior zoológico
que uma criança poderia querer. Contigo, eu ia à biblioteca pública e fazia a

16 O texto carrega um “deslize” entre falar para as pessoas que estão no funeral e, depois, diretamente a meu
pai. Optei por manter essa “incongruência” exatamente porque desejava a conversa com interlocutores vivos
e mortos.
17 No Rio Grande do Sul, chamamos popularmente “padrinho” e “madrinha” de “dindo” e “dinda”.

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lista de livros para comprar na feira, ano após ano. Calhou de eu ter podido
estar aqui, nas duas últimas, sendo numa delas, como coautora. De um livro.
Assim, a essa capacidade de contar histórias, se agregou a capacidade da mãe
de costurar, com aquelas linhas e agulhas, as palavras nos textos, mesmo que,
no tecido, ela não tenha aprendido a fazer uma só bainha direta. O que vocês
dois me ensinaram enquanto estavam juntos se tornou a base toda do meu
trabalho hoje. Aí, eu queria dizer, que mesmo eu não tendo sido planejada,
mesmo eu não tendo realizado o projeto que vocês talvez tivessem pra mim,
ou seguido seus ideais políticos e religiosos, eu pude transformar tudo o que
aprendi com vocês numa coisa importante e tenho podido levar adiante.
Porque é assim a vida, ela leva adiante e se transforma nos encontros. E, se
hoje não me sinto tão desesperada pela tua morte inesperada é, também,
porque vocês me ensinaram a sempre andar com agulha, linha e uma porção
de palavras na mão. Mas, só foi depois e com outros tantos encontros,
que aprendi ser essa era a maior força que eu poderia ter, força que faz a
dor ganhar carne pela escrita e tocar os outros, provocar outras histórias,
transformar os outros, mas, também, a mim mesma e a minha história. Com
linha agulha a e palavra vamos tecendo a nossa história. Nesse caminho,
tenho também descoberto que aquilo que a gente ensina não volta pra gente
igual ou na mesma intensidade, mas segue adiante, vivo em outras histórias
que a gente jamais poderia pensar e escrever sozinha. Eu estou triste, sim,
mas não tenho medo desse dia, nem dessa morte, porque eles são mais um
pedaço da minha história. Além disso, estamos em março, daqui a 6 meses eu
já vou nascer de novo e tu vais estar lá a me esperar com A Girafa e o mede
palmo na mão, né? Um beijo, filha”.

As mortes da pandemia acionaram o luto de minhas mortes singulares, forçando o


agudo das lembranças. Os espectros desconhecidos fizeram presença, convocaram outros
ausentes, rondaram meu sono. Agora, conjurados, conduzem meu olhar para os rastros que
o caminho dessas narrativas fez surgir.

4. Um trabalho com as heranças

Para pensar o trabalho com as heranças já recorri (SILVEIRA, 2016; SILVEIRA;


CONTI, 2015) às fazedoras de histórias/criadoras de caso: Vinciane Despret e Isabelle
Stengers, em Les faiseuses d’histoires18 (2011). No livro, as autoras discutem questões relativas
à herança. Como herdaram da história de seus campos de pesquisa inúmeros problemas e
a eles puderam acrescentar outros tantos. O que interessa retirar dessa discussão é a forma
como o problema da herança é colocado. Despret e Stengers (2011) o colocam a partir de
uma fábula:

A fábula do décimo segundo camelo conta que um velho beduíno, sentindo


próximo o seu fim, chamou seus três filhos para partilhar entre eles o que lhe
18 Livro cujo título guarda uma ambiguidade: pode tanto significar “as fazedoras de histórias” quanto “as
criadoras de caso” – no sentido popular da expressão brasileira.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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restava de bens. Ele lhes disse: Meus filhos, deixo a metade de meus bens ao
primogênito, um quarto ao segundo, e para você, meu último filho, lhe deixo
a sexta parte. Em ocasião da morte do pai, os filhos ficaram perplexos pois
seus bens não passavam de onze camelos. Como dividir? A guerra entre os
irmãos parecia inevitável. Sem solução, eles foram à cidade vizinha, pedir
os conselhos de um velho sábio. Este refletiu, depois franziu a testa: Eu
não posso resolver este problema. Tudo o que posso fazer por vocês é dar-
lhes meu velho camelo. Ele é velho, magro, mas ainda muito valoroso, ele
os ajudará, talvez. Os filhos levaram o velho camelo e fizeram a partilha: o
primeiro recebeu então seis camelos, o segundo três e o último dois. Restara o
velho camelo magro que puderam devolver ao seu proprietário19 (DESPRET;
STENGERS, 2011, p. 33).

O décimo segundo camelo não é a solução da questão, porque ele não faz parte da
herança. Para as autoras, ao visitar o velho sábio em busca de um conselho, os filhos do velho
beduíno se fizeram herdeiros de um problema (que vinha junto com a herança) e definiram a
herança a partir desse problema. Ao invés de guerrear entre eles, os irmãos decidiram tomar
o problema, levá-lo adiante e, inevitavelmente, transformá-lo. Despret e Stengers (2011)
nos provocam a pensar que há sempre um trabalho a ser feito ao receber uma herança.
Aceita-se junto com ela um problema. Um problema que, para ser conduzido, precisa ser
transformado e isso se dá pela complexificação do problema.
Significa, em última instância, acrescentar um elemento a mais na conta, para que a
partilha possa ser feita. No caso da morte de meu pai, mesmo sendo a única herdeira, tive
que fazer a partilha (comigo mesma), em cartório, para poder receber a herança. Isso no
que tangia à herança das “coisas concretas”, pois a herança subjetiva exigia outros meios e
conjurações, que tentei delinear no texto escrito para o funeral.

5. Adiar o fim do mundo

Dentre as leituras que considerei possíveis, para o período da quarentena, estão as


obras do indígena Ailton Krenak, sendo, uma delas, dedicada às suas Ideias para adiar o fim
do mundo (KRENAK, 2019). Embora pareça, pelo título, não é um texto de salvação, nem
tampouco nos oferta utopias de um mundo melhor, mas uma das propostas colocadas nesse
livro diz assim:

E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre


poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando
o fim (KRENAK, 2019, p. 13).

A escritora espanhola Rosa Montero, em seu livro A louca da casa (2015), é mais
direta e afirma que escrevemos sempre contra a morte. A cosmologia dos Krenak aí se
19 A tradução do livro para a língua portuguesa foi feita num esforço coletivo do grupo PesquisarCOM, da UFF
e à generosidade do prof. Ronald Arendt da UERJ.

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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conecta: contar histórias para adiar o fim do mundo, contar histórias para adiar a morte. A
essa ideia, acrescento um ponto a mais, com Despret e Stengers (2011): escrever, também,
para produzir uma ancestralidade que outras de nós possam evocar mais adiante.
Ao produzir meu memorial, com vistas a concorrer aos concursos docentes e
preocupada com a sensação de ser jovem demais para realizar a tarefa (que geralmente
é feita para alcançar a última posição possível dentro da universidade, a de professor(a)
titular), achei por bem que não deveria escrever sozinha e iniciei o texto conjurando os
espíritos ancestrais.

Abre-se uma paisagem à sua frente agora, como se houvesse aberto os olhos
pela primeira vez, num lugar desconhecido. É uma planície o que você vê,
campo aberto e verde. Ao longe, uma figura humana, sentada no alpendre
de uma casa de madeira, uma chaleira pendurada no fogareiro. Uma figura
solitária sorve um líquido quente de uma cuia. Faz frio e o céu cinza contrasta
com o verde do prado em torno da casa. Desenha-se, no alpendre daquela
casa, a figura de um gaúcho. Exceto porque não é um homem ali sentado, sob
o grosso pala de lã, vê-se, ao chegar mais perto: é uma mulher. Ela que sorve
o líquido verde da cuia, como se por ela filtrasse os próprios pensamentos.
Pelo líquido verde e quente passam as palavras. Figura mítica de uma
história que nunca nos contaram, a velha senhora abre os olhos enrugados
pelo tempo. Tempo, aquele mesmo, o senhor de todas as histórias. Da boca
da velha senhora hão de sair as palavras que ninguém pôde escutar. Fios
embolados de memórias a ser destrinchadas. Registro de um processo, de
um caminho. Invoco a senhora de pele dobrada pelo tempo para revirar tal
baú de memórias. Pensei-me jovem demais para a tarefa de, solitariamente,
vasculhar os 36 anos de história, 19 anos de vida acadêmica e pensei que
seria melhor que fosse mais velha. Não podendo sê-lo, convoquei a velha
senhora: Jacy, a descendente branca de indígenas, que era também o nome de
minha avó. Do alpendre daquela casa de madeira, que nunca existiu, naquela
planície inventada e parecida com uma cidade qualquer, no pampa gaúcho,
Jacy desembaraça comigo os fios e as marcas de minha própria história.

Entretanto, apenas agora, ao reunir essas narrativas no mesmo texto, confiando nos
rastros espectrais, pude vislumbrar a conjuração feita. Como se tivesse aberto o baú das
memórias, das mortes, dos restos, com os quais, em diferentes tempos, constituí os ossos de
minha existência. Os tempos da formação, do luto e do trabalho memorial, agora evocados
pelo tempo parado da pandemia, enquanto escuto o burburinho das 80 mil mortes, que não
cessam, não cessam de morrer. Afinal, a despeito de toda essa organização feita para receber
as heranças...

Os fantasmas aparecem quando menos se espera: povoam e sustentam o


presente; daí a ideia de Derrida de que o presente não é contemporâneo.
A anacronia do presente produz medo e o desejo é o esquecimento. Sendo
assim, o espectro ameaça a ordem tranquilizadora dos presentes. Para

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Derrida, a não contemporaneidade do presente vivo cria o que poderíamos


chamar de experiência do desajuste, mal-estar daquilo que parece não se
ajuntar. Explicando melhor, o que desajusta é essa presença dos que não
estão tão claramente presentes e vivos, ou porque não estão mais ou porque
não chegaram ainda. Os fantasmas não são só os do passado, são os do devir.
Desde esta perspectiva a existência é uma obsessão porque ela se faz pelo
deslocamento dos fantasmas (PESSIN, 2015, s/n).

A pandemia da Covid-19 nos forçou ao trabalho de conjuração de nossos fantasmas.


Sem hora para aparecer, os espectros também insistem em nos fazer vislumbrar faíscas de
futuro, nem que seja para pensar no que não queremos mais.
No momento em que o Brasil se tornou um dos epicentros da pandemia, ela nos força
mais do que nunca à sustentação de um talvez. Enquanto o recrudescimento das verdades, o
rechaço à ciência, o fortalecimento das fake news e as respostas individuais para problemas
coletivos seguem nos atordoando, o vírus nos empurra apenas o talvez.
Não sabemos quando vai passar, não sabemos quando teremos uma vacina, nem se
estaremos a salvo. Não sabemos o amanhã, não sabemos a semana que vem. Nessa paragem,
dentro desse talvez, o vírus nos coloca também a necessidade de uma responsabilidade
coletiva para que possamos passar juntos por essa incerteza. Responsabilidade, evocada
aqui nas palavras de Donna Haraway (2016), como um convite para habitar um devir-
com, para nos tornarmos uns aos outros capazes de cultivar uma respons-habilidade. Não
a responsabilidade como uma lista de obrigações éticas ou políticas. Não se trata de ser
responsável e, sim, de como cultivar a capacidade de reagir no tempo e no espaço num
compromisso coletivo.

6. Uma aposta final

Desde a primeira linha deste texto, sustento o rastro de uma hesitação. “Sinto que não
tenho nada a dizer”. Foram muitos dias andando em volta dessa frase quando entendi que

Hesitar é verbo. O dicionário (FERREIRA, 2010) nos alerta que é “ficar em


estado de irresolução, incerteza, perplexidade. Exprimir-se com dificuldade;
gaguejar, titubear”. Para nós é quando ficamos cara a cara com o não saber e
é justamente esse momento que pode nos colocar a pensar com a diferença,
pois é quando perdemos nossas referências, que podemos nos reinventar
(SILVEIRA; CONTI, 2016, p. 59).

A pandemia trouxe o medo, a incerteza, um não sabido concreto. O modo que encontrei
de reagir ao tempo do luto imposto pela pandemia foi insistir nas narrativas, segurar com
as duas mãos a sensação de “não tenho nada a dizer”, ficar com ela por uns dias, perder o
primeiro prazo de entrega do texto, pensar em desistir de escrever. O prazo antes servido
como a musa de inspiração (aprendido com Veríssimo), se reconfigurou, se estendeu, sua

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exigência, entretanto, é peça chave para a efetivação da escrita. Com Donna Haraway (2016)
aprendi (sempre na partilha) que em todo trabalho de pesquisa (e de vida, porque não se
separam) é preciso “ficar com o problema” (MORAES; ARENDT, 2016), quando o campo (e
a vida) te apresentam um problema, não tente logo resolver, nem se esquive, tenha paciência,
fique com ele, alimente o problema, leve-o para passear. Em suma:

Ficar com o problema não é estagnar a prática diante do que parece


impossível, mas é esperar o tempo de ação dos atores, as alianças estranhas
que podem fazer e os efeitos que de modo algum podemos controlar. Ficar
com o problema é levá-lo adiante, andar com ele, para que se mova, se
transforme, recoloque as nossas perguntas, nos recoloque em nossa posição
no campo [e na vida] (SILVEIRA; CONTI, 2016, p. 63).

Nesse momento pandêmico apareceu o problema da morte, do luto e das memórias;


os espectros insistiram, não pude caminhar sem eles. Em tempos de pandemia, tive que
aceitar o passeio com a morte, sem sair de casa. Ouvi o murmúrio dos fantasmas e hesitei:
será que essa era mesmo a narrativa adequada a ser entregue? Mas era a única possível.
Com Despret e Stengers (2011) aprendi a criar caso para fazer histórias. Neste texto,
precisei criar caso com a morte, o luto e as memórias, pois só assim seria possível narrar,
passar com os afetos, deixá-los passar da insônia para os dedos, dos dedos para o teclado e,
então, para a tela do notebook, no qual escrevi estas linhas.
Esses caminhos entre as novas e as velhas histórias se cruzam e, ao mesmo tempo, se
dobram. Repetir, recontar as histórias é um exercício que torna mais densa a leitura desses
acontecimentos, dessas mortes.
Quando escrevo narrativas sempre hesito quanto ao efeito que elas possam produzir.
Porque, às vezes, quando alguém conta uma experiência mobilizadora a imagem dela
simplesmente cai na nossa frente, impedindo qualquer movimento. Venho descobrindo e
forjando, que os processos de escrita (e de vida) me permitam também encontrar ferramentas,
grandes martelos, com os quais possa quebrar essas experiências ao meio, vê-las ruir.
Ao quebrar o bloco da experiência, suas forças ficam evidentes, visíveis. Os cacos de
experiência já não têm a mesma força material que a lembrança – força arrasadora e impotente
–, aquele bloco de lembrança que não nos permite sair do lugar. Não, agora você pode ver cada
uma dessas linhas se despedaçarem, como tijolos de concreto em meio aos ferros retorcidos.
A experiência já não tem mais forma, mas sua força é evidente. Com ela, podemos nos nutrir
(SILVEIRA, 2016). São os espectros que carregam, também, as possibilidades.
A força de um ferro retorcido é possível colher, a fim de escrever outras histórias ou
mesmo para mudar os rumos da história que estávamos escrevendo. Escrevo e retomo o
passado para extrair dele uma força que não tem mais direção nem forma definida. Extraio
apenas a força em estado de possibilidade. Com essa força, qualquer outro desenho, qualquer
outra história é possível. Qualquer outra conexão pode servir. Qualquer caminho se pode

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seguir. É essa força, essa intensidade que ofereço a você que me lê. Partilho a aprendizagem
de que a força em estado de possibilidade me permite saber que, com ela, podemos caminhar
em qualquer direção. Que podemos forjar com essa força um mundo. Um mundo no qual a
nossa experiência também conta, a nossa dor conta. Descobri, assim, que se tem força para
escrever qualquer história, a sua inclusive (SILVEIRA, 2016).
E você que me lê, já parou para pensar quais espectros a rondam? Quais histórias
evocam? A quais narrativas a convocam?

Referências

BRUM, Eliane. O Olho da Rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São
Paulo: Globo, 2008.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho do luto e a nova


Internacional. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.

DESPRET, Vinciane; STENGERS, Isabelle. Les faiseuses d’histoires: Que font les femmes à
la pensée? Paris: La Découverte, 2011.

HARAWAY, Donna J. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o


privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

MONTERO, Rosa. A louca da Casa. São Paulo: Ediouro, 2004.

MORAES, Marcia; ARENDT, Ronald. O projeto ético de Donna Haraway: alguns efeitos
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MORAES, Marcia; TSALLIS, Alexandra. Contar histórias, povoar o mundo: a escrita


acadêmica e o feminino na ciência. Revista Pólis e Psique. v. 6, n. 1, Porto Alegre, 2016, p.
39 -51.

PESSIN, Liane. Um novo dogmatismo e a produção de intolerância: sustentação maníaca


do triunfo na denegação dos fantasmas. Boletim Online do Departamento de Psicanálise
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SILVEIRA, Marília. Vozes no corpo, territórios na mão: loucura corpo e escrita no


PesquisarCOM. Porto Alegre, 2013. 134 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
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Institucional) – Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, Instituto


de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

SILVEIRA, Marília. A formação na Gestão Autônoma da Medicação: políticas e práticas


de cuidado em saúde mental. 2016. 211f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de
Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense, Niterói/RJ.

SILVEIRA, Marília; CONTI, Josselem. Ciência no Feminino: do que é feita nossa escrita?
Pesquisas e Práticas Psicossociais v. 11, n. 1, São João del Rei, jan. a jun, 2016, p. 53-68.

SILVEIRA, Marília; FERREIRA, Ligia Hecker. Escritas de si, escritas do mundo: um olhar
clínico em direção à escrita. Athenea Digital, v. 13, p. 243-263, 2013.

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INFORMAÇÕES DAS/OS AUTORAS/ES
ADRIANA RÊGO LIMA COSTA
Especialista em Saúde Coletiva (Gama Filho), Especialista em Psicologia hospitalar
(Faculdade Futura). Psicóloga do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes -
HUPAA/UFAL. Pesquisa temáticas relacionadas a Psicologia da Saúde, Multidisciplinaridade
e Humanização.
E-mail: [email protected]

BENEDITO MEDRADO
Psicólogo. Mestre e Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP (2002), com pós-doutorado
pela UFPA (2013) e UAB/Espanha (2014). Docente dos cursos de graduação e Pós-Graduação
em Psicologia da UFPE. Atualmente, coordena o Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero
e Masculinidades - GEMA/UFPE (cadastrado no CNPq, desde 1998), integra a equipe da
coordenação editorial da Revista Psicologia & Sociedade - Qualis A2 (Gestão 2020-2023).
Bolsista de produtividade CNPq (2020/2022). Pesquisa temas relacionados a gênero e
sexualidade, na interface entre saúde, saúde coletiva e direitos humanos.
E-mail: [email protected]

BIANCA DE ARAÚJO SILVA


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Bolsista de projeto
de extensão pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Interesse em pesquisas que
articulem clínica psicanalítica, política e teoria social.
E-mail: [email protected]

CHARLES LANG
Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP). Mestre em Filosofia (UFRGS).
Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Professor e supervisor em Psicologia Clínica (IP/UFAL). Analista
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (RS). Pesquisas relacionadas à Psicanálise
freudiana e lacaniana, literatura, narrativas, ficção e transhumanismo.
E-mail: [email protected]
PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

CLEYTON ANDRADE
Psicólogo. Psicanalista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia – UFAL.
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Membro
da SIPP (Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia). Autor do livro “Lacan Chinês –
Ideograma, Poesia e Caligrafia Chinesa de uma Psicanálise” 1º lugar no Prêmio Jabuti 2016
na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento.
E-mail: [email protected]

DANIELLY SPÓSITO PESSOA DE MELO


Assistente Social. Doutora em Estudos de Gênero pela Universidade de Valencia (Espanha),
Mestra em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (2003), Mestra em
Gênero e Políticas de Igualdade pela Universidade de Valencia - Espanha e Assistente Social
do Núcleo de Acessibilidade da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Tem experiência em
diferentes áreas das políticas públicas e âmbitos de gestão, bem como experiência na área
de Direitos Humanos, Serviço Social, Movimentos Sociais, Políticas Públicas, Assistência
Social e Educação.
E-mail: [email protected]

FAYRUZ HELOU MARTINS


Psicóloga. Especialista em Psicologia Hospitalar (Faculdade Futura). Mestranda em
Psicologia (UFAL). Psicóloga hospitalar no setor Unidade Neonatal do Hospital Universitário
Professor Alberto Antunes- HUPAA (Maceió).
E-mail: [email protected]

JEFFERSON BERNARDES
Psicólogo. Doutor em Psicologia Social (PUCSP). Mestre em Psicologia Social e da
Personalidade (PUCRS). Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação Mestrado
em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Professor Colaborador do
Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional de Ensino na Saúde (FAMED/Ufal).
Diretor do Instituto de Psicologia da Ufal. Pesquisas orientadas ao construcionismo social,
saúde pública, clínica ampliada e formação em psicologia.
E-mail: [email protected]

JORGE LYRA
Psicólogo. Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP e Doutor em Saúde Coletiva pelo CPqAm/
Fiocruz; vice-coordenador do Curso de Pós-graduação em coordenação em Psicologia da
UFPE. Docente dos cursos de graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UFPE. Atualmente,

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

coordena o Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades - GEMA/UFPE


(cadastrado no CNPq, desde 1998), integra a equipe da coordenação editorial da Revista
Psicologia & Sociedade - Qualis A2 (Gestão 2020-2023). Pesquisa temas relacionados a gênero
e sexualidade, na interface entre saúde, saúde coletiva e direitos humanos.
E-mail: [email protected]

JULIANA FALCÃO
Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura (Universidade de Brasilia,
UnB). Mestre em Psicologia (UFAL). Especialista em Psicologia Clínica e Saúde Mental
(CESMAC) e Formação em psicoterapia de crianças e adolescentes (Centro de Pesquisa
em Psicanálise e Linguagem. CPPL/Recife). Psicanalista voltada aos temas do corpo,
adolescência, violência e automutilação. Autora do livro “Cortes & Cartas: estudos sobre
automutilação” (2021), Editora Appris.
E-mail: [email protected]

MARIA AUXILIADORA TEIXEIRA RIBEIRO


Psicóloga - (IP-USP-1976), Mestra - Psicologia Social - USP (1995), Doutora Psicologia
Social PUC-SP(2003), Pós-doutorado em Políticas Públicas - FGV-SP (2013) e Universidade
Autònoma de Barcelona (UAB-2014). Profa. Titular do Instituto de Psicologia da UFAL. Profa
Permanente do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia (IP-UFAL). Desenvolve
pesquisas na perspectiva do construcionismo social sobre as práticas psicológicas, nas
temáticas políticas públicas de saúde, assistência social, meio ambiente e desastres
socioambientais.
E-mail: [email protected]

MARÍLIA SILVEIRA
Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2016), pós-
doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL. Desenvolve pesquisas
na área da Psicologia e Saúde, com ênfase em saúde mental coletiva, gestão autônoma da
medicação, metodologias de pesquisas participativas e políticas de escrita. Tem interesse
especial nas práticas de saúde no SUS e na formação interdisciplinar em serviço.
E-mail: [email protected]

RENATA DE CARVALHO CAVALCANTE


Especialista em Psicologia Clínica Hospitalar (FAFIRE), Mestra em Psicologia (UFPE).
Psicóloga do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes - HUPAA/UFAL. Pesquisa
temáticas vinculadas a Psicologia da Saúde, Análise Comportamental e Feminismo.
E-mail: [email protected]

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PSICOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: REFLEXÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS CLÍNICAS
CHARLES LANG | JEFFERSON BERNARDES (ORG.)

TELMA LOW SILVA JUNQUEIRA


Psicóloga. Doutora em Estudos de Gênero pela Universidade de Valencia/Espanha.
Professora adjunta do curso de psicologia da UFAL (IP/UFAL). Tutora de psicologia no
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do/a Adulto/a do Idoso/a da UFAL/
HUPAA. Membra da CIES Estadual/Alagoas. Temas de pesquisa: Estudos feministas de
gênero desde uma perspectiva interseccional, Violência de gênero, Mito do amor romântico,
Políticas públicas, Psicologia Social.
E-mail: [email protected]

THIANNE LOURENA CARDOSO ROQUE


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Bolsista de iniciação
científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas – FAPEAL. Interesse
em pesquisas que articulem clínica psicanalítica, política e teoria social.
E-mail: [email protected]

TIAGO CORRÊA
Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Gênero e Masculinidade (Gema/UFPE). Possui
experiência em atendimento clínico em consultório particular e, como servidor público,
atendimento psicossocial com adolescentes em conflito com a lei e mulheres vítimas de
violência sexual e/ou doméstica.
E-mail: [email protected]

VANESSA FERRY DE OLIVEIRA SOARES


Psicóloga. Especialista em Saúde Mental (UFRJ), Mestra em Psicologia (UFAL). Psicóloga
hospitalar nos setores de Pediatria e Maternidade do Hospital Universitário Professor Alberto
Antunes - HUPAA (Maceió/AL). Temas de pesquisa: Psicologia da Saúde, Hospitalização
Infantil, Ludicidade, Gênero e Feminismo.
E-mail: [email protected]

132
E
ste livro foi selecionado pelo Edital nº 01/2020 da Universidade Federal
de Alagoas (Ufal), de um total de 44 obras escritas por professores/
as vinculados/as em Programas de Pós-Graduação da Ufal, com
colaboração de outros/as pesquisadores/as de instituições de ensino superior
(autoria, coautoria e coletânea), sob a coordenação da Editora da Universidade
Federal de Alagoas (Edufal). O objetivo é divulgar conteúdos digitais – e-books
– relacionados à pandemia da Covid-19, problematizando seus impactos e
desdobramentos. As obras de conteúdos originais são resultados de pesquisa,
estudos, planos de ação, planos de contingência, diagnósticos, prognósticos,
mapeamentos, soluções tecnológicas, defesa da vida, novas interfaces
didáticas e pedagógicas, tomada de decisão por parte dos agentes públicos,
saúde psíquica, bem-estar, cultura, arte, alternativas terapêuticas para o
enfrentamento da Covid-19, dentre outros, abordando aspectos relacionados
às diferentes formas de acesso à saúde e à proteção social, entre grupos mais
vulneráveis da sociedade.

ISBN 978-65-5624-055-8

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