(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 2
(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 2
(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 2
(NARRATIVA ).
IX.
A LEND A.
O RESÇUSCITADO .
- O pai .Curruira, filho do reino de Benin, acaba de morrer com
noventa e trez annos p elos calcu los de seus companheiros. Morreu e a
t:istesa não se stereotypa nos ros tos azevichados da cafraria ; a a~gus-
tia e o alarido de carpideiras .não cercam o corpo da finado , c ::nno ulti-
ma homena gem á seus restos. Ao contrario o urucongo e o bujamé
despendem sons festivos. Cada matrona e cada rapariga se ennastsou do
melhor que poude. Collares e manilhas de missangas de coral e vidri-
lho com caurins entremeiados ou pendentes lhes cingem a garganta e
os pulsos, fazendo ao reflexo variegado realçar ::> ébano da cutis. O
candombe deslaçado em meneios lascivos, o can to de diapasão aspero e
monotono, formam o cortejo mortuario em roda do cadaver.
. Presidia a festa, que similuva extranha m a cabra de vampiros ou
bruxas, Maria a Conga, a q u em a sen zala ·vener ava como rainha··· ou
,fetich e de u m culto profundo .
· - Mãe Mar ia, perguntou urµ cr ioulo vivo e experto como um d e-
monio , tr anqu ilo como todo o moleque, porq ue o branco chora , quando
morrem os seus, e o negro ri?
- 128 -
- O negr o, respondeu a r espeitavel veter ana, passando a 'masca
de t:umo d'um lado para o ou tro da bochecha, morre .a qui para viver
na Aftica." Vai ver o · b eiçó em·· q ue nasteu debaixo das tam areiras e
boabahs, vai correr as areias em que brincou n o tempo de criança, vai
vér a patria. ·
O crioulo arregalou ao principio os olhos, pensou por instantes e
<-•m seguida coçando a cabeça, a sacu diu em ar de duvida.
- Quem morre, en tão vive depois? ajuntou.
- Não crês, menino? Vou con tar o q ue aconteceu ao irmão
Inhabané.
- Mãe Maria vai contar uma historia! Hih! Hih! Hih! . . . Venham
ouvir. E de contente saltava C'.lmo um cabr ito.
Logo um cardume de cabeças infantis e alegre:;, mostrando os
den tes alvos como as prezas do elephante, com as p upillas de gazella
avi vadas pela curiosidade, fervem em torno da velha negra.
Musicas e cantos e dansas sustaram.
Todos quizeram ouvir a palavra do oraculo de suas crenças, da
pythonisa africana que guardava no coração as memorias da patr ia dis-
tan te. Mãe Maria tomou um cêpo junto ao fogo . Os mais cruzaram a5
pernas no chão de argila, pousando o cotovello sobre ellas e a face
sobre a mão. E' a attitude de quem quer ouvir attentamente .
Em pouco ne·m o mais leve ruido sahia do circulo de gente , cuj o
centro era a venerada Maria. Até a respiração p arecia estar soffreada .
Ella começou pausada corno a prudencia. solemne como um mys-
tc•rio:
- Muitos annos já vão, filh os, desde o tempo em que Inhabané.
juntos ás aguas de. Cuanza , fazia guerras aos h.:;nens do outro lado do
ma r' Muitos! Quantas vezes já as arvores. não despiram as folhas? '
- Quer.i. era In h abané. mão Maria? Quem era Inhabané? inter-
rogaram em côro.
- Rei e _senhor de Cassange .. _ A velha, que falla agora, não era
como v eem. H oje está curvada ao peso dos annos, não caminha, nem
póde trabalhar . . . O' n'aquelles tempos! ? Bons tempos em que tinha
nor cama finas esteiras de Loanda , e vestia lindas rou pas de pelle. e
tinha os carinhos do mar e pisava o t ibbar, ambição do branco ! Então
meu corpo era d ireito como a palmeira, ligeiro como o gamo dos mon -
tes cte Kong. Ah! bons tempos de Cassan ge que Maria ha de tor-
nar a ver! ...
- Bons tempos de Cassange! B ons tempos! repetia a multidão
com a fidelidade d'um echo, quando ella curvava a fronte seniol no seio
elas r ecordações e nas saudades do berço.
Depois de instantes de mystico recolhimento, prosegu iu:
- Os homens do outro lado do mar venceram a Inhabané, o
g uerreiro, o valente. a esperança de Cassange. Elle :foi preso, ligado e
vendido para as terras dos Brazis.
__ Máo branco! Máo branco! rumorejavam os ou vintes com as-
so mos do adio.
- Inhabané teve um ruim sen~or que amou a mulher do captivo
t' quiz tomal-a.
Era Kuniah, formosa entre as fo r mosas. E K uni.ah resistiu, por-
que tinha um coração que não era d 'ella, era de Inha b ané, seu senhor
e seu rei e pai de seus filh os. K un iah r esistiu e' teve o corpo corta do
ao açoite e foi vendida longe dos filhos e d o m arid o, alegr ia e sol d e
sua vida.
Que dôr, mãe Maria! Que dôr! gemia a t urba.
Inhabané teve uma te m pestade aq ui , e a velha pôz a mão ru-
-gosa sobre o peito, ferio o perseguidor de Kuniah. Pobre rei ! fo i
1evado ao tronco como o ultimo dos servos, o laço regou suas carnes .
o sangue do principe de Cassange enst,pou a terra do cativeiro.
- Ah! quizilia de branco! E a cafrana saltava de pé, tremula
•e fula de colera, o olhar ardente e sanguineo, as -faces crJspadas • p lo
-o dio e d,esejo.,.de .vingança, o· gesto ·saturado ·de ameaças. .
,· ::_ Fllhos, silencio! E desatou um ademan imperativo para q ue
sentassem.
Tudo voltou á immobilidade das carya tides no sopé do antigo mo -
numento .
- O rei de Casange soffreu muito . . . muito! Desespera do pro -
curou um jerivá que recordava a patria, em suas palmas, subio até o
olho do coqueiro, atou um cipó e enforcou-se.
- Pobre Inhabané! murmuraram em tom pungente.
- Feliz! feliz! repeti, filhos . . . E atirava longe de si a masca com
um movimento de inspirada.
Todos a fitáram pasmos .
Elia continuou :
- Ninguem viu d ependurado o príncipe, sem chorai-o . Quancl n
.foram n o outro dia buscar o corpo para enterrar , tinha d esappar ecid o.
- T inha desapparecido? ! gerguntaram boquiabertos.
- E' v,erdade, Inhabané , tinha .dormido nas t~rras do captiv iro.
para acordar nas terras da patria .
- Quem viu? interrogou o crioulo que dera motivo á narraçã o.
- Maria viu, menino . Era de madrugada. Maria inda era livr e.
ia ban har-se nas aguas do Cuanza . Então, Inhabané sabia d 'entre as
palmas d' uma tamare ira, contemplava como n' um sonho o paiz que ha
tanto d eixára e vinha de nov o possuir. Desceu e começou uma guerra
de morte com • seus inimigos.
. Esperaremos, filhos . O pai Curruira foi hoje , amanhã n ós iremos.
Quem diz é mãe Maria.
Assim concluio.
- Am anhã, nós iremos. . . n ós iremos, repe tiram com p rofu nda fé .
Por momentos trataram do caso, sem commen tal-o, e em segu ida
foram r enovar com mais enthusiasmo as festas em torno do finado.
Eis o q ue a escrava narrár a ao p equeno José de A vençal, po uca
mais ou men os. Era u ma scena que ha pouco assistira nos gal pões d ;:;
senzala .
XIV.
AMARAL .
(C ontinúa) .
RISOS E LAGRIMAS
AC1.'0 3. 0
QUADRO 3.0
SCENA II.
DR. BENJ. -'- B om d:a , querida baron esa . . Aposto que me não
esperava tão cedo?
BARON. - Escapou por u m t riz de me encontrar ...
DR. BENJ. - Vai sahir então?
BARON . - E ' verdade, preciso ir á casa . . .
DR. BENJ. - Advinho, vae visitar o poeta ... Talvez o encontr e
cadaver. V . E x . ap plicou-lhe o caustico justamen te sobre o coração e
n ã o ha a menor espera nça de salvamento.
BARON. ( sorrindo) . - Está b rincnd o sm d uvida.
DR. BENJ. - F a llo serio. J ulio d'Aguiar está mor to ou l ouco à
esta h ora . V. Ex. teve coragem inaudita! . . .
BARON. ( tremula ) . - Não cr eio . está grace jando. . . (á parte) Sera
possível !
DA. BENJ. - Porque descara assim, b aronesa ? .. , V . Ex. t reme? ,
Ah! ah! ah! já serão effeitos do remorso?
BARON. (com odio)o - E quem induziu -me? não foi por ven -
t ura o Sr.? ...
DR. BENJ. - Valha-me satanaz! V. Ex. faz das suas e depois
quer tornar-me curnpli ce! . . . Em t odo caso morre o nosso poeta de uma
- 137 -
molestia raríssima n'este seculo em que o amor é um calculo e o casa-
mento uma convenção. Exemplos peregrinos, não é verdade? . .. Os
grandes amôres trazem fadarios loctuosos!
BARON. - Mudemos de assumpto ...
DR. BEN.1. - Tem r azão, estas conversações serias entre nós cau-
sam o mais insupportavel tédio. V. Ex. sabe muito bem que sou uni
homem incorrigível, como sei até a evidencia que não seria capaz de
oper ar em V. Ex. o milagre da redempção.
BARON. (com desespero) . - Pois ainda quer mais provas do meu
amor? !
DR. BENJ. - Queria a ultima! ...
BARON. (idem). - Nunca, impossível! ...
DR. BENJ. - N'esse caso ... .
BARON. -E onde estão as suas promessas? Como ha de cumpril-
as, se renuncia o meu amôr, os meus extremos, este affeto que só o
Sr. poude inspirar em minha alma?! Peça-me o que quizer, menos
esse sacrifício; mande, e obedecel-o-hei cegamente, como escrava hu-
milde!.. . (ajoelhando-se ).
DR. BENJ. - Levante-se, baronesa ; estas scenas . . . são ridiculas!
BARON. (erguendo-se). - O Sr. é um homem sem alma!
DR. BENJ. (com sarcasmo) - V. Ex. onde tem a sua?
BARON. - Coração de bronze! Ri-se agora; moteja em vez de
respeitar a victima!. . . Ah! mas não ha de triumphar, juro-lhe eu,
ainda que amanhã o meu nome seja infamado nas praças publicas! .. .
Póde ir propalar aos seus amigps que a baroneza de Tapagé foi sua
aman te! . . . Diga-lhes que . ..
DR. BENJ. - Acalme-se, baronesa; se assim continúa, desperta
a curiosidade dos criados! . . . Ama-me então seriamente? . . .
BARON . - B asta, Sr ., nem mais uma palavra !Não se esqueça
que está em minha casa!
DR. BENJ. - Confesse, baronesa, quantos amores tem tido depois
que enviuvou? Quantos amantes antes de conhecer-me?
BARON. (tocando a campainha) - Basta de obedecer! .. . (Quer
fallar ao criado que appar ece, e não póde).
DR. BENJ. (ao criado). - A senhora baronesa estava pedindo
agua, porém já não é preciso. (O criado retira-se). (Approximando-se
da baronesa) Dir-se-ia que V. Ex. transformou-se em estatua como a
m u lher de Loth! ... Ah! ah! ah!
BARON. (supplice). - Mate-me, Paulo, mate-me de um só golpe.
mas não me flagelle assim, não me enloqueça! Imploro-lhe compaixão,
aqui me t em outra vez á seus pés, diga q ue me ama, porque mereço o
seu amôr! . . . Piedade, Paulo, n ã o escarneça, não me torture tanto o
espírito . . . J á tenho soffrido demais por sua causa. . . (lacrimosa) . E'
ser muit o inexoravel escarnecer em face da victima!
DR. BENJ. (levantando-a). - V. Ex. falla em victimas! . . . (depoü,
de pausa) Quando a mulher descae um dia do pedestal sublime onde
a mão do Senhor a colocou , é porque essa mulher não tinha forças
para subjugar as paixões mundanas ; resvalou no pendor do erro, por-
que era fraca e não podia r esistir á lucta da materia com o espirita.
O fim de V. Ex. devia ser irremissivelmente desastroso! V. Ex. con-
taminou-se ainda muito cedo na alta sociedade; foi nas salas aristo-
craticas que esperdiçou os dias insontes. volteando em torno a pyra
das seduções! . . . Mentindo a uns e sendo illudida por outros, roçou
afinal as azas de anjo na charneca impura dos desejos sensuaes e como
por encanto viu-se de um dia para outro isolada! A mesma turba que
t hurificava V. Ex., murmurou ao depois; á lisonja seguiu-se o es-
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BARON. (com odio) . - Infame! ... Seja qua l fõr a minha e xpia-
ção, juro que não realisarás esse casamento! Basta de ser escrava! ...
CRIADO (annunciando) . - O Sr. commendador Torres.
BARON. - Acompanha-o até aqui. Eis um raio de esperança!
SCENA IV .
Baronesa e o comn1enclador Torres.
SCENA VI.
As mesmas e Fernando de Maganhães
BAR0N. (á parte) - Propicia occasião.
ADELAIDE (beijando a mão de F. de Magalhães) - Bom dia ,
padrinho.
F. DE MAG. - Porque tens os olhos arrazados de lagrimas?!
( á parte) Como estou ar rependido!
BAR0N. - O commendador veio procurai-o para saber da res-
p osta.
F. DE MAG. (á parte). - Meu Deos!
ADELAIDE. - Consultou-me hontem pela segunda vez e a minha
resolução está tomada ... Vou para um convento, meu padrinho.
BAR0N. (á parte). - Veremos quem ganha a partida!
F. DE MAG. - E julgas que serei capaz de consentir, Adelaide ?!
Nunca, minha filha , enxuga os teus olhos queridos! ...
ADELAIDE - Deixe-me ir, é o lugar das orphãs desvallidas
e das engeitadas. Deixe-me ir, prefiro a tunica da freira ; m il vezes
a soludão e terna do claustro a pertencer a u m homem que n em me
in spira amôr, nem odio. Ali ao mens, afastada d'esta sociedade gue
abomino, surda ao cortejo da miseria e da lisonja, eu serei feliz no
meu isolamento. Antes os cilícios da irmã da charidadde que esses
mil ouropeis com que o marido adereça a victima de suas ferezas para
occultar aos olhos ávidos da sociedade o pranto inconsolavel da virgem
incauta! Quantas não choram ahi amaldiçoando a familia , que lhes
ergueu o holocausto?!
F. DE MAG. - Tens razão , Adelaide! .. .
ADELAIDE . - Não sei o que tenho feito para soffrer tanto, nem o
que deve o Sr. áquelle homem para querer sacrificar a minha existen-
cial
F. DE MAG. - As tuas recriminações são justas . . .
BARON. (abatida; á parte) . - Q ual será o f im d e t udo isto!
ADELAIDE. - Mas não posso , nem devo ficar m a is u m d ia n 'esta
casa . .. Quero ir para um convento .. . Sabe o que é perder uma espe-
rança que resumia um futuro?! . ..
F. DE MAG. - Não te comprehendo!
BAR0N. - Adelaide tem razão de não ficar nem mais um dia
aqui. . . Confesse : o Sr. pôz em almoeda o futuro d'esta menina! ...
ADEL AIDE (sor presa ). - Meu Deos!
F. DE MAG . - Até a senhor a?!
- 141 -
Zêlos! . ..
Que estrophe de amargura é essa que desata a l yra dos amores,
entrecallando endeixa s entre os carmes doces e su a ves, que o alaúde da
alma apaixonada sólta?
O que sois? .. .
Qual mão estranha tocando a pudi ca sentiva, que retrahe-se me-
drosa e timid a, assim os zêbs fazem cur var a fronte entrestecida de
Tancredo.
Zêlos! .. .
Q ue sentimen to é este q ue cr esta o sorrizo n os labios e esvaece no
coração a esperança em flor?
O zêlo é a duvida, e a duvida atrophia o coração que ama .
l\lTa s quem amo u, que não os te ve? .. .
E q uem amou que n ão sentiu o san gue galopar nas ve'.as, o cora-
ção entumecer dorido, e a fronte empallidecer tristonha a essa palavra
- zêlo?
A d uvida m ata m a is que o d esengano, alliment a illusões para logo
desfazei-as, br ota a luz para a espan car com as trevas, aviva a fé para
arrojai- a com mais vehemencia na p y ra incendiaria do sacrifr::io, im-
molando m il convicções nobres no athaúde da descr en ça .
A d uvida - é o suicídio moral n'um corp o com vida, é a agonia
do espírito.
E ' ella que cria um mundo infinito e u m h orison te sem raias,
oceano sempre revolto, patria do vendaval e ninho da vaga que em
cada espanejo cava um tumulto, onde soçobra a vela alvacenta da espe-
rança.
Mas. . . a gora que nossa leitora sabe que a r nga que sombreia a
-fronte pallida do moço é filha d'um sentimento profunda, é preciso que
narremos como nasceu essa desconfiança em seu coração suscetível.
N'um dos capítulos precedentes dicemos que Tancredo desde que
abandonára os velhos habitas de sua solidão, quasi que diariamente
dedicava uma hora de passeio para v er Mar ina, momento de magia e
encanto que elle sentia, e Único passo que o tímido moço ousára dar em
favor de seu modesto amor. .
Assim tinham decorrido trez mezes, nos quaes Tancredo colhera
sorrisos em sua romaria, como esperança em seus amor es, sem que
uma nuvem negra sequer toldasse o céu dourado de seu sonhos ...
A ssim tinham decorrido, mas o tempo que ' tudo muda, criava uma
nova phase, rasgando a gase de um n ovo horisonte, ainda encoberto
na penumbra do futur o.
Uma flor mimosa e linda tem sempre admiradores.
Marina era b ella, valia uma luta ...
Tancredo tinha um rival . . . eis a explicação aos soffrimentos do
moço. Pertence-nos agora procurar seu adversaria no meio d'este tur-
bilhão de povo que passa, para apresental-o á nossa leitora .
Busquemol-o.
Eis ali um vulto que destaca-se no meio da turba .. .
Bellos dotes, phisionomia agradavel, ademans de cavalheiro e figu-
- 145 -
( Continúa).
A MORTE DE UMA FLOR
N' uma aldêa visinha d'esta cidade, habitava ha poucos annos uma
familia, que se recommendava sobretudo pela austeridade de costu-
mes, e pela lhaneza com que obsequiava os viajores que a demanda-
vam em busca de repouso para as fadigas da jornada.
Dois velhos e uma linda menina - compunham essa feliz familia.
Aquelles, chegados . ao ultimo quar tel da vida , consagravam o
tempo em resar as suas contas e dar conselhos á interessante mocinha
sua neta.
Delmira era extremamente amada por seus avós, que nella admi-
ravam a peregrina bellesa da filha que Deos levára para si na prima-
vera dos annos.
Educar a neta nas virtudes que faziam o ornamento da filha ; en-
sinar-lhe os preceitos da r eligião christã; repetir-lhe lições de sã mo-
ral, - tudo isso era tarefa que os bons v elhinhos desempenhavam gos-
tosamente.
, Um_ dia Del mira sahiu a passear· pela campina com permissão de
seus avos.
Era n'uma d'essas magnificas tardes de Setembro.
Que delicia ver as longas !atadas de rosas a inundarem a campi-
na com o seu dulcíssimo arôma.
Que magico encantamento para as almas poeticas contemplar as
arvores cobertas de folhas, as flores a ornarem os campos, e a brisa
em brando cicio entoando um hynno ao creador de todas essas magni-
ficencias!
Horas de poesia! horas propicias, em que o deus do amor per-
corre deliciado a extensão do valle, t ocando com a ponta da setta
aquelles que encontra no seu caminho!
Tu lá estavas, Delmira; tu permanecias estatica diante de tão so-
berbo espectaculo, ainda mais realçado pela purpura do firm amento
e pelo prateado das aguas ao r eflexo do sol.
De repente notou Delmira que ao longe se erguia um monte de
poeira.
Julgou que fosse isso prenuncio de tempestade, e por mais esfor-
ços que fizesse para recolher-se á casa, estava irnmovel ; parecia que
uma força occulta a prendia no lugar onde parára.
A poeira mais e mais se foi approximando, até que Delmira póde
distinguir o vulto de um homem, que montava um fogoso cavallo.
O seu coração estremeceu n esse momen to, mas a sua agitação era
inteiramente desconhecida para a donzella ; um novo sentimento a
inspirava. _
O vulto approximou-se. .
O cavallo vinha furioso ; e as instigações do cavalleiro ainda mais
accendiam-lhe as iras. Assim foi que n'uma carreira vertiginosa o ca -
- 148 -
valleiro foi ao ch ã o, e o ca vallo á dispar ada sum io-se en tr e a r vor es que
ficavam junt o ao mar.
Delmira corr eu para junto do cavalleir o, que era um esbelto rapaz
de 28 annos mais ou menos.
O moço t inha u m leve ferimen to, m as estava semi-morto de can -
saço, v isto q ue não pu dera con ter a marcha ph renet ica d o anim al.
- Delmir a conduzia-o á casa e apr esentou-o a seu s avós, contando-
lhes fielmente o sucesso que se acabav a de dar.
Ajud ada dos b on s velh inhos, Delmira disp ensou toda a sorte de
cuid ados ao h ospede, v elando n oites inteir as á sua cabeceira, depois
q u e uma imprudencia do moço torn ou de gravidade a fer ida.
A n ton io Maria er a um m ancebo imp acien te, que ardia em r aiva
por cau sa do fatal incidente, q u e viera diffi cultar ou d emorar a mar-
ch a regular de seus negocios.
Delmira pouco v iv ia já p a r a seu s avós ; a maior somma de cari-
nhos era p ara o seu doente, a q uem a com panhav a algumas horas n o
dia e durante toda a n oute.
E' que a pobre m en ina n ão via m ais em A ntonio Ma r ia um indif-
ferente, que um acaso trou x er a á sua casa, e que seria esqu ecido ao
dia seguinte do seu resta b elecim ento e partida; D elmir a son h ava um
mundo de felicidades e indefiníveis deli.cias n os braços do homem para
quem o impulso elo coração a a ttrahia .
Amar em silencio ! Que martyri.o não deve ser suffocar no p eito
as pulsações vehem ente, abafar nos labios ungidos de amor a expressão
que trad uza o sentimento que nos enche a alma!?
Que cousa terrível par a a jovem Delmira amar com o fogo d os
15 a nnos, com a força de uma primeira paixão, e ter d e occultar a
todas as v'.stas a luta atroz em que se achava empenhada!
O resultado é que Delmira ficou extenuada de forças; as roseas
fa ces tornar am-se paliidas; os labios de anjo não mais · se e ntreabr i~
ram n'um riso, que resu mia u m poema de ineffaveis venturas.
Delmira cahiu doente quando A n~onio Maria obtinha licença par a
erguer-se do leito, e fazer cu rtos passei0:: pela manhã e ao cahir da
tarde .
O moço não voltava da sua digres ão sem trazer. á sua enfer meira
uma flôr colhid a no campo, cujo perfume ella sorvia a lon gos haustos,
dep ositando-a depois junto á cama.
Completamente curado e já r eanimado das perdidas forças, Anto-
nio Maria desp ediu-se dos seus bemfeitores, protestando aos velhos
p erenne gra tidão, e desejando a Delmira um marido, que pudesse dar
o devido a preço a um thesouro de tão alta valia.
Que espinhos tão crueis a lancearem o coração da pobre menina!
Para não ouvir taes palavras, Delmira fôra capaz de fa zer o sacri.-
f icio d a sua existencia .
Ver morrer n 'um instan te os sonhos doirados que a sua phantasia
creou· ver fugir o esposo que o coração escolhera, sem q ue nunca
lhe h~uvêsse dito uma só palavra de a mor; sentir v iuva a alma d os
novos affectos que silenciosamente se fora m nella creando, eram lan-
ces horriveis a que não podia resistir Delmira, já enfraquecida por
alguns dias de molestia. . .
Os v elhinhos t udo envidaram para salvar a d esditosa criança , so-
bre quem concentravam todas as suas esperanças e affeições; mas es-
tava escripto que mais uma pagina de via enche r-se no livro dos mortos.
Uma man hã Delmira q u iz despedir-se d os lugares onde se creára
e q ue haviam sido testemunhas da ve ntu ra d os seus primeiros a nnos ;
n ão a d issuamr--a:u do seu prop osito as obj ecções feitas em ' contrario.
- 149 -
Sahiu; percorr e,' o seu jardim; osculou as flores iriadas de or-
valho, que o vento da noite fechára e os beijos da manhã iam abrindo ;
pelos seus bellos olhos negros rolaram duas lagrimas, bastantes para
expressar o sentir de sua alma.
Olhou para tudo com tristeza e voltou pausadamente para casa.
Os velhinh os seguiam-n'a, occultando as lagrimas que lhes hu-
medeciam as palpebras.
Chegada á casa, Delmira tomou um espelho e olhou-se.
Que melancolico riso lhe pairou nos labios! A victima resignada
via prestes a consummar-se o •Seu sacrificio, e sorria talvez das tran s-
formações que a molestia lhe fizera nas candidas feições .
Depois dirigiu-se ao oratorio e permaneceu largo tempo de joe-
lhos toda entregue á oração. Delmira confessava-se á Deus, e pedia-
lhe perdão de tudo haver esquecido para amar com todas as veras
d'alma.
Os avós lançaram lhe a benção, e Delmira exhalou o derradeiro
suspiro com as m ãos erguidas ao céo e um riso angelico n os labios .
Pobre menina!
Morr eu por ter amado tanto, sem ser comprehendida!
O seu espírito alou-se ao seio de Deos, e o seu cor po ao dia se-
guinte era levado ao cemiterio.
Infeliz Delmira! o teu primeiro, o teu unico amôr foi tambem a
corôa do teu martyrio.
F lôr m imosa, nascida aos osculos da m adr ugada, acalentada aos
raios beneficos do sol, pendeu na haste ao sopro da ventan ia da noute.
Anjo de br ancas azas, passou sobre a terra immaculada , para ir
ajoelhar-se aos pés de Deos.
- oOo-
Os velhinhos n ão sobreviver am ao golpe.
Tendo v ivido da vida d'aquella m enina, seguiram-n'a na morte!
Aurelio de B ittencourt.
lnst. Hist. - 10
POESIAS
A F F ONSO MARQUES .
Amanhã gelida a fronte
Das lutas na desventura
Quem sabe na sepultura
Não sonharei mais em vão!
Affonso Marqu es .
FOLHA SOLTA
DEVANEIO.
Si tu rêves, je t 'aime ...
S tatue , mais si belle, peut êtr e
Je t'aimerai.
E. Sauvestre .
Affonso Marques.
CHRONICA
O mez que hoje finda não abundo u em novidades, que mereçam
a honra de occupar as paginas da Revista.
O theatro que poderia dar assumpto para largos commentarios já
quanto ao merecimento da composição dramatica, já em relação ao
desempenho, fechou as suas portas, ficando senhores do edifício os
morcegos e as aranhas.
E' verdade que tivemos um concerto e dous bailes; mas posso eu
descer a detalhes sobre essas festas quando a imprensa diaria d'ellas
se occupou desenvolvidamente, com especialidade Degenais, o distincto
folhetinista da Reforma?
-OÜO-
DA
SOCIEDADE
PARTENON LITERÁRIO
-oOo-
- oOo-
PORTO ALEGRE
TYPOGRAPHIA DO CONSTITUCIONAL
1 87 2
COMMISSAO DE REDACÇÃO
REDACTOR DE MEZ
DIRECTORES
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lnst. Hist. - 11
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. A prece rio sertão é sublime . Parece que Deus deve ser mais . vizi -
vel no 'espectaculo· maravilhoso da creação. Crêr-se hia a li que cada
folha , cada brisa, cada volatil , murmurarão .seu nonie em mystico se-·
gredar, cada gotta esp elha sua immensidade. Quantas vezes o homem.
a sós, no regaço da floresta , não ouve ruidos indefiniveis, que elle não-
p óde adunar no espir ito a coisa alguma conhec ida'? Ora, suave cicio ,
como a nota de uma harpa eolia a prurir-lhe a alma; ora , um som
profundo e mysteriosos a pre mar-lhe o anh elito no labio? Sempre co-
mo uma voz que faz vibrar-lhe as fibras do sensorio , uma por uma ,
c hélmando-o a cogitações transcedentes sobre o immaterial?
Qem . fa lla nas solidões?
D'onde vem o mysterio que recolhe a alma nas mais r econd itas
do btas de sua essenc ia ?
Porque essa especie de· respeito , melancolia e terror , que nos pos-
sue sob o pavilhão viridante das selvas?
Não será a intuição do infinito ?
O mesmo phenomeno moral que observamos nos vastos plaino&
do mar, quando aos pés temos os abysmos imprescru taveis das ag uas.
e sobre a fronte os abysmos sem fim do firmamento?
Por isso cremos não ha templo, onde a oração seja mais s incer a
e mais ouvida.
Em nossas cidades, estabulos e m qu e se cmbotão as sa n tas cre n-
ças e os ternos sentimentos, o labio balbucia geralmente o que n ã o
sente o coração. Dos fieis que enchem o recinto de uma igreja, pou-
cos resão com uncção, os mais satisfaze m as conveniencias socia es
c umprindo a uthomaticamente as fórmulas de uma etiqueta. O culto
das cidades, nos tempos que vão, é urha mentira, uma profanação
consequentemente. Tambem o Senhor não se mostra n::is fócos de egoís-
mo e hypocrisia; não tendo le vitas, n em adoradores. - deixa os rebanhos
co ntamina dos pela febr e do oiro , p elo virus de in ter esses reprovados.
e deixa -os para não vê-los escravos de si , dos vicios e do crime ...
Vae r eceber o voto das a lm as como Aven çal e Moysés .
Erguerã o-se os dois homens basta nte comm ovidos.
Moysés mostrou uma veronica de me ta l n o torso do esqueleto.
- Eis o como o conheci. Sabes onde foi ferido? No coração
traiçoeirame nte . E tirou d 'entre as duas costellas uma faca cravada
até o cabo. Ape nas shio este, o ferro estava carcomido pela ferru -
gem .~
Enterrem-os os ossos e mostrou á Ave nça l uma cova feita .
O moço pr een cheu para com os despojos paternos as ultima s
hon ras fun e bres, r esoluto , porém, sem dizer palavra. O mulato afas-
to u-se por espaço , voltando logo . Trazia a femur e a ossada da p er-
na e do p é.
- Alguma féra levou-os de certo , para longe .
Cheia de terra a cova, puzerão sobre um cruzeiro tosco de ma-
deira , de antemão preparado.
Avençal estendeu o braço para o symbolo das rendenções e dei-
x o u cahir com ligeira emoção estas palavra~:
- Meu pai, mais tres dias, o teu assassino nã o verá o sol n as-
cer .
Voltou--se para Moysés:
- Agora partamos. . . Antes diz quem foi elle. . . Quem foi?
- V ês isto? E indigitou-lhe um esqueiro meio soterrado no solo
e oxidado pela acção do tempo . Tomou-o no chão e en tr egou-o jun -
tamen te cç.m o cabo da faca , que era de chifre com rudes lavores.
- Então?
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Con t inuemos .
Moysés!?
- A inda mais provas h e is d e v er .
C 0n tinuemos.
Devar arão mais alg umas dez braças.
Moysés parou . Fez-lhe vêr um novo objeto, q ue pelos vestígios
m ostrava te r estado tambe m e ncr avado na terra. Era um a enorme
ch_ile n a de p rata.
Entregou-a ao moço , que o contempla va com o que m não o com-
p r ehendia. ·
Retroced eu , sem •r esponder-lhe á muda como quem d o gesto, - e
em · ig ua l distancia da cangiraoa, n a parte opposta , col he u_ um fra g men-
t o . d e páq, um tanto e ivado e se mcôr distincta.
- E ra d e cot ia , d isse, foi cabo d e r êlha , a a çoite~r a a podreceu , .
e is o b ~:ra co e m qu e en t r a va o tento e ali está a argola . G il d e Avençal
foi bat ido primeiro com isto . . . aqui . . . A bordoad a a t ordoou-o e
d o poi.5 ch egoua v e z da faca . . . Sim ,fo i aq ui . . . pela ba nd a de l á ,
fug io . . . E erpm ude ceu v er gando a fr en te.
- Ainda não ?
O ca çador fa llou gr ave e p ou sadamente:
- H a cinco dia s fiz a descoberta q ue vês, m eu amigo, me u filho ...
Passe i muito por p erto d esta arvore e n ada v ia . . . A s p rJJ v as d o crim e
esta vã o escondidas de baixo de ga lheira secca e tron cos atr avessad os.
De scobri por um bamb u r ro. E u corr ia uma a n ta. O anima l na ca rre ira
d esembesta d a l evo u a madeira por d ian te e d e ixou-me vêr a ossamenta .
M as e u t r em o em dizer o nome de quem ...
Foi in terompido por um a ex plosã o :
- N ão sou n enhuma crian ça, Mo ysés! S e v ivo , sabes bem par a
q u e é.
- E ntão . ..
E vacillava.
O ' fa lla , p or D eos!
- T e ns na mão o n ome . . . N o cabo da fac a e do rêlho , n o esgueir o
e na chilena . . . Olha a m a rca . . . Corag em, meu irmão ! . . .
O moço r epar ou, d e sprende u um grito d e se pe rado e t er ive l , abra-
ço u- se a o estipi te de um coqueiro , porque os olhos se empan avã o na
ve rti gem ao estala r do cor a ção , e cahio nos braços de Moysés.
A marca e r a a mesma que tinha o gado de José Capinchos.
XIX
Tre s d ias d ep ois vamos enco ntrar Aven çal, pallid o como um m orto,
e m s ua esta n cia. 1
Era uma mum ia do q ue f ôra .
A commoção m oral o t r ansfor már a em cu r to l a pso . H a u m quê
de a velhe n tado n 'aquelle corpo no e sflor ir d a juventude , uma ou
o u t ra plica já se esbóça n os braços hontem ch e ios d e fr escor e vida ,
ho j e sombr e ados por u m d esalento pre cursor da morte.
As velhice s prematuras são como os fructo s lampos, trazem no
seio acé tico amargume, qu e tr ansparece na p allor d a ep id erme.
O moço está a espera de alguem.
Pel as quatr o horas da tarde ouvio-se o chouto de um cavallo. Elle
chegou á janella . Um a ncião d e barbas bra ncas e l qngas, cutis t ostada
com vin cos profun dos e v e r t icaes no esvã o d a sob r ance lh a, olhar vi--
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perino, n ar iz adnnco como o do caracar á, apeou-se do animal, onde
os arreios de1,de a badana até a carona .iriavão mil fulgores de finas
pra ta s. O rabich o , o freio , a testei.ra ·e as cannas das redeas de delicada
lonca, não carregav ão rnenos thesou r os .
E ra José Capincho.s.
Fizerão mutuos cumprimentos.
- Entonces, que retirada de nossa casa _, Avençal? A Rosita não
e stá muito ás boas comtigo . . . Não queres d e ix a r mais a querencia ?
- Não é ; vou partir. O cavalheiro de Amaral está e m perigo d e
vida. In imigos poderosos o rodeião . Vou partir e quem sabe se vol-
tarei!? Moysés a companh a-me , por isso re tir o-me e ntregando-lhe a
administração da estancia .
-- Mas que tu t e ns l á com os negocios dos outros ?
- Amaral foi um pai que d eparei. Minha vida e haver es p erten-
cem -lhe, desde que os queira.
- Faz o que t e bacore ja o coração; porém e o casament o ?
O moço empa llid e ceu, m as com esfor ço hero ico respondeu sem
t itubar :
- Nada a rrecei.e. S e pari.o, deixo a al m a aqui. T en h o um th e-
souro occulto a li na ser r a , e como posso morrer vou confia l- o.
Um thesouro?! E os olhos la mpe jarão .
Ouro em p ó, e fito u -o com pen e traçã o.
Em negocios d e viver e morrer . ..
O Sr. ficará meu he rdeiro un iver sal . . . Esper e -me emquanlo
vou de centerral-o.
E ' l onge? pergun tou.
Não muito, uma .legua.
Vou comtigo.
P a r a que incomrnodar-se!
Vou, é perto . E ra boato ant;_go q~1e teu pai t in h a pa ne llas
enter radas com irnmensas riqueza s .
-- S a bia?
- P or ouvir dizer .
O esp irito ' do ex- posteiro soffr ia unia revolu ção , que se revelava
n os t raços e lhe faz ia ir machina lmen t e affa gar o cabo d e prata d e
uma fa ca terçada na- cinta .
Miseravel creatura 1 T alvez estivesse pe nsa ndo em ma tar o fil ho
de sua victima; algoz desapied ado!
Ambos montarão a cavallo. Avençal carr eg.ava urna enxa da .
Chegando na ourela da mata apoiar ão-se, pozerão a m a neia nos
animaes e desapparecerão.
O moc;o percebia nos ges os de Capinchos máos cles ignios, prece-
deu--o, mas guardando distancia.
P ar a r ão . A noite havia descido. O velhc> sentia ca lafrios, os ca-
bellos se lhe erric:avão na cabeça .
Avençal fez ponto de respaldo no tronco da cangirana, arr;.mou-sc
a ella com o coração aos ímpetos .
Capinchos, ta cteando a treva. tocou a cruz. Estre meceu e per·
guntou em tom de terror:
- Onde estamos, J osé?
- Sobre a sepultura ele m.eu pai , salteador!
A floresta illuminou-se ck subito aos clarões de muitos fachos .
Nin guem appareceu ; no entl'etanto, se fossem procurar, encontrarião
no cimo d as arvores, nos esgalhos, atraz dos troncos, acocorados em
t oice iras de arbustos, suspensos em cipós . de itados no chão, índ ios cujos
.arcos alveja vão n o · peito de Capinchos.
171 -
Na penumbra da cangirana havia u m vulto em pé. S eu braço
apontava um mosquete na mesma direcção, sua palpebra não intercep-
ta va 0 raio visual, parecia a de uma estatua de marmore.
- Era Moysés.
- Lembras-te d'este lugar ?
- Queres enxugar-me, dizia suffocando o medo para travar do
à cicalado forro.
- Quatorze- a nnos ha, meu pai cahio á traição! Tu , seu am igo
fos te o autor de tão negro crime!
Não quero assassinar-te , velho , quero matar-te j unto desta cruz . ..
Vês? no chão ha armas de toda a sorte.
Escolhe ... Devia tratar-te como um pêrro.
O outro retrucou com audacia:
- Como me trouceste, té aqui, caboteiro , senão por embustes?!
- E crês que uma vingança não é um thesouro? Pesado, velho ,
· em pesado! Fez estalar-me o coração! ·
Capinchos ia d ar m bote como uma caninana enfurecida.
Um grito terrivel abalou a floresta .
- Tento , Avençal! Não brinques com a cobra. Basta de negaceiar .
Era tão ouco e subterraneo , que dir-se-hi.a sahir da terra. Era
o caçador.
Capinchos saltou obre uma espada e enveredou para o mancebo ;
este aparou o golpe que resvalou pela enxada com um movimento
1;apido abaixou-se e tomou outra.
As laminas cruzar ão.
Por minha m ãi, e fustigou- lhe a face .
- Elle cahio de joelhos.
- Em nome de Rosita, não me mates . . . Sou um '.nfame, mas
- perdôa-me. Perdão ! Moço, não q ueiras gloria sobre um homem morto.
uebrado pelos arinos ... Sim, José . .. Pelo amor que tens a Rosita! .. .
A vença! arremessou a espada para longe de si.
- Não posso. . . não posso.
Moysés appareceu terrível como uma borrasca.
José, que fazes ? bramou.
- Moysés, nã.o posso ...
- Então . . . Tambem eu tive um pai ; vou vingal-0 1 porque tre-
meste, irmão branco! ... O filho mulato fará o que não fizes te . ..
O ex-posteiro aproveitando o colloquio que apartava a attenção
d'elle, i~ atirar-se sobre elles, quando ouvio-se o ciciante estriclor como
de um bando de passares ao levantar o vôo. Era uma chuva de
frechas que forão em beber-se-lhe no pe.ito.
Estava morto sem exhalar um gemido .
Os guaycanans mostrarão a face de cobi·e por toda a parte.
O caçador con templou o cadaver nas ultimas contorsões com des-
preso.
Tin ha tantas frechas que - um indio comparou-o a um coandú.
- Enforque-o no galho por cima da cruz. Amanhã os ur ubús
terão pasto, se quizer em comer carne tão ruim .
Os selvagens obedecerão em silencio.
Voltou-se para o irmão, que assistia o espectaculo sem consciencia.
- Te offenfü, José, perdôa-me.
O outro cahio-lhe nos braços desfeito em sol uços.
- Moysés, eu parto ; vou morrer por ahi, caminhando . . Fica
com os meus cabedaes.
Estás louco! ? Sou rico demais, sou senhor dos matos.
- Então r epa rte com os meus escr a vos . . . A vid a é insuppor-
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intraduziveis, duas a lmas cheias de vida, porém n ' uma luta titanica
c·o m os involucros, que as revestião. O globo e o homem são · uma sé-
rie de revoluções. Os seculos as assignalão por camadas e geraçõe:;'
José de Avençal apezar ·do genio que lhe era peculiar · e o isolava
<lo mundo, não havia quem o não conhecesse.
Como Bento Gonçalves, a gloria tradicional do Rio Grande, co1n
-Claudio o Contador, a maravilha de olhar de l ynce, como Quadrado
- nosso Democrito, e tantas outras popularidades da época , onde
passava, apontavão-.n'o com o dedo.
A profissão que escolhera ainda mais augmentava a celebridad e
O que é a vaqueania senão a · variedade de conhecimentos e r e -
lações a cada instante, nas viagens e trajectos? O que é um guia,
o cicerone de estradas, páramos e desertos, senão o homem de todo
o mundo, a quem procurão para as peregrinações e mudanças, a
,quem confião vida e thesouros por ermos campos · e bravios sertões.
E a elle podião entregar-se em corpo e alma . De mais fiel e segu-
ro conductor não se sabia .
Ahasvero do infortunio, não era por cobiça de salario , nem pela
mera ambição de accumular fortuna, ceitil a ceitil, que errava sobre
.a terra . Outro movel o impellia ás imm ensas jornadas, outra lei le -
vava o pallido caminheiro a longos estirões. Buscava affogar no can ·
.saço do dia as atribulações do espirito.
Dinheiro!? Taes naturezas não roção na moeda que azinhavra,
podião corromper-se ao attricto . Não são feitas para a craveira das
mediocridades, rebanho de miserias brotadas em cada angulo, com o
.a má herva . Apurarão-se no cadinho do soffrimento, despirão o
manto enlodado para revestir a tunica de Christo, aureola da apo-
theóse.
Dinheiro! ? Não o recusava , no entanto, o va queano . . . Era uma
propriedade adquirida pelo trabalho ; aceitava-o do rico e ia de pas-
-sagem com elle enx ugar a lagrima do pobre.
- Para si não carecia. Viajor da fatalidade tinha bastante no ca-
vallo, fído companheiro das lidas, e nos arreios, camilha da noite . O
1nais encontrava em qualquer choupana hospedeira .
Contavão o seguinte a respeito do desprezo que votava ao metal,
unico rei da sociedade humana.
Guiava , por exígua e sombria picada do rincão da "Cabeça funda "
.á s margens do arroio Colorado, um negociante em viagem de Bagé
a Caçapava. A picada esmorecia n'um fachinal.
Ao chegarem ahi, dois vultos erigirão o porte d 'entre os ralei-
ros de folhas ; um desfechou a pistola, cujo balazio esfloreceu face ao
viajante ; o outro não teve tempo para fazel-o , a faca do vaqueano;
-como alada gitirinaboia , cortando os ares embebeu-se-lhe na gargan-
ta, e um corpo medio a terra redondamente. O primeiro vendo frus-
trada a tentativa fugio em direcção a agua, porém a armadilha d o
laço de Avençal tomando-o pela cintura, reteve-à na carreira. Isto
foi obra de minutos. Fôra uma espera armada em consequencia de
um litígio de terras . ·
-- Chegados em Caçapava o homem de trato derramou a guayaca
<le onças nas mãos de Avençal, que recusou offendido da recompensa.
Não foi do conchavo , amigo.
- Veja que salvou-me a vida!
- A vida vale mais do que uma ponchada de onças. Aceito o
reconhecimento, e repellio com a mão o ouro para sobre uma mesa .
Partio para S. Gabriel.
A ' algumc1s leguas um proprio veio encontral-o , entregou uma
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ACTO 3.0
QUADRO 4. 0
A mesma decor ação
SCENA I
Adelaide e depois um criado
SCENA II
Adelaide e O eia via
OCTA VIA (tremula) - D. Adelaide ...
ADELAIDE - Sou eu mesm a . . . (indicando a ssento) Queira sen- ·
tar-se.
OCTA VIA - Parecer -lhe -ha estranha a minha visita, no entanto ...
ADELAIDE - Póde fallar, minha senhora, eu a escuto . . . E '
verdade, o cavalheiro que a acompanhou não quiz subir ?
OCTAVIA - Era meu pai, e virá buscar-me depois . . . Um pode-
roso motivo forçou-me a procurar V . Ex.
ADE~AIDE - Peço-lhe que m e conceda um tratamento mais com-
pativel com a minha posição e aspirações. ExceHencia é demasiado
para uma pobre engeitada.
. OCTAVIA (á parte) - Engeitada !
ADELAIDE - O que deseja de mim ?
OCTAVIA - (tremula) O que desejo?! . . . ,
DELAIDE - Receia por ventura? Acaso inspiro-lhe vãos temo-
res? Pois acredite, está me consolando essa tristeza que diviso n o
seu olhar humedecido.
OCTAVIA (á parte) - Que mysterio! (alto) Pois a senhora soffre?
ADELAIDE - Admira-se?! O mundo julga sempre pela appa-
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SCENA IV
As mesmas e o D1·. Paulo de Benjamin
DR. P. DE BENJAMIN (á Adelaide ) - Seu padrinho não está?
ADELAIDE - Sah io. Talvez o encontre no escriptorio.
BARONEZA (baixo ) - Que irá e lle fazer!
DR. P. DE BENJAMIN - - No escriptorio não está , vlm. de lá
a gora. . . Provavelmente foi ao correio, chegou o paquete . (Adelaide
vai a sa!-Íir) Póde concede:r-me alguns instantes, D . Adelaide ?
ADELAIDE (voltando ; á parte) - Nem ouso encaral-o.
BARONEZA (á parte) - E ' o genio do mal este homem!
DR. P. DE BENJAMIN -- Sabe o que venho solicitar de seu
padrinho?
ADELAIDE - Ignoro, e pouco me importa saber.
DR. P. DE BENJAMIN - Jezus, V. Ex. odeia-me sem um motivo
justificavel; não lhe parece , baroneza?
BARONEZA - Estava distrahida, não ouvi .. .
DR~. P. DE BENJAMIN -- Trata-se de seu futuro, D. Adelaide.
ADELAIDE - Do meu futuro?! ...
DR. P. DE BENJAMIN - S im, venho soEcitar a sua mão .
ADELAIDE - Sem consultar-me? . .. E ' original! ... Então o que
sou?! ... Uma mulher que pensa e escolhe, ou uma cousa?' ... (o Dr
Paulo ri-se) Ria-se, póde rir-se! . ·. . A Providencia que véla do céo
será o juiz, como o senhor tem sido o meu algoz!
DR. P . DE BENJAMIN - S empre recriminações . . .
BARONEZA (baixo) - Qual será o desfecho d'esta comedia '
ADELAIDE - Se tivesse uma irmã, ah! se o senhor possu;.sse uma
irmã, saberia avaliar · o - coração da mulher, respeitaria essa creatura
fragil, que sabe ser mãi e esposa, em cuja fronte Deus asselou uma
missão divina. Porém, como eu, o senhor não conheceu familia; quando
a brio os olhos era orphão; quando eu abri os meus era - engeitada!
DR. P. DE BENJAMIN - V. Ex. chora?
ADELAIDE ( como delirante) - Pobre filh a do e rro !o teu patri -
mo.n io forão lagri.mas; darrama-se sobre o caminho ladeado de espinhos
excruciantes até chegares ao u ltimo marco! (Depois de longo silencio )
Ah! senhor, por sua causa tenho sido por demais mortüicada, por sua
causa lanção-me em rosto os benefícios que tenho recebido, accusão-me
de engeitada, chegão até a insultar a memoria de minha mãi! ...
BARONEZA - Mentirosa, calumniadora!! . ..
ADELAIDE - Calumniadora!
DR. P. DE BENJAMIN - Contenha-se, baroneza .
BARONEZA - Estou em minha casa. (avançando para Adelaide )
Intrigante! ! ...
ADELAIDE (fóra de si) - Meu padrinho , onde estás, meu pa -
drinho! ...
SCENA V
Os me smos e Fernando de Magalhães
F . DE MAGALHÃES (inq uieto) - O que tens, o q ue foi?! .. . O'
falla-me. . . Falla-se, filh a! . . . (á baroneza) A sen hora é . . . (abraça
Adelaide) .
- 179 -
•
TANCREDO
VIII
E' noite . ..
Alta vai ella . . . Inda sôa no espaço a ultima vibração do campa-
nario ela cathedra l, que tangera m e ia n oite, quebrando por momentos
a immensa solidão , par a dizer um ultimo adeus ao dia que e xpirár&,
arre batado nas azas elo tempo.
Porto Alegre, festiva e buliçosa, repousa ador mecida no tapii
de suas collinas á sombra da paz tranquilla que agasalha se u seio ...
· Tudo dorme . . . e o silencio em toda a parte rei n a , como um
saliente contraste a os ruidos do dia que findou .
E esta cidade onde trinta mil entes aspirão o ar da vida, á h ora s
mortas assemelha-se á uma mult idão de moimentos, encerrando em
seu s muros a mais profun da solidão.
Tu do dorme e repousa ... S ó a lu a , atalaia dos páram os e thereos.
percorr e v igilante a vasta amplipão , de rramando e m seu cur:::o as ir-
radiações de sua luz pallida e merencor ia . ..
A viração é fria e gélida a atravessar a m edula dos ossos, e como
mais um vivo contraste, a noite de luar não r eune em si o util ao
agr adavel.
E ' q ue as noites de lu ar do inve rno. embora as mais bellas, nã o
têm a poesia h a r moniosa das noites de estio das terras intertropicaes,
e nós estamos em Julho , no coração da quadra invernosa, que impera
desapiedamente n a atmosphera de noss:.i sul.
Não sei porque as estações em seus cursos periodicos sellão com
um signal peculiar sua passagem sobre a terra, deixando uma face
visível ao olhar investigador. Como as ruínas babylonicas ainda hoj e
atestão a grandeza de uma ge ração q ue l utou para não morrer esquecida
na poeira dos seculos, parece-n;ie que o tempo, tão vaidoso de si, como
as Sen,iramis d e se u mando r eal, colloca marcos na arena que trilh a ,
para serem as idéas v ivas da hi storia de sua época ...
E assim passa e caminha , ora sobre a estrada poeir enta tapetada
de sarças, ora so bre a v eiga esmeraldina alcatifada de flo res .. .
E caminha se mpre por entre as sar ças e fl ores, como o Aha sver o
da legen da buscando seu norte - o infinito. . . _
Conviva e terno no festim do mundo , com elle marcha , galopa no
espaço arrastando comsigo os elementos de que dispõe se u braço v e-
tusto . aos quaes s ua vontade so berana indica os rumos . . . e caminha
sempre na realeza sultão , tendo por harem o immensq orbe.
Viajor eterno marcha , atirando no vasto estadio um marco , que
é a u ltima pa gina que finalisa urna quadra , como e nceta os passos de
uma outra . . .
Agora reina o mez de Julho , como a bacchante sem i-nua r eclinada
n a mesa da orgia , fún ebre e sombrio como suas noites r evoltas do
pampeiro.
_:_ 181
- oOo-
São quatro horas da ma nhã . . .
Tancredo , dep oi s d e um a batimento de duas ho ras, occasionado
pelas golfa das de sangu~, melhorár a sensi velm en te , ap parecendo uma
reacção q ue prometia muito, e d eixav a ao pobr-: -c-:.>ço m omentos
1ranqu illos par a fruir docemente com aquelles que o amavã o.
A tr ansição er a tão 1·api da quanto fôr a o accesso q ue o a bater a ;
as molestias do peito trazem estas con tradições.
Quanto á n ós, na insuffic iencia de conhecimen tos da materia , nos
cingiremos á op inião do facultativ o que tem observado passo á passo
as alter nativa s desta na tureza ju ven il , lutand o tenazm en te com um
mal cruel.
Antes de ir adian te , digamos duas palavra· sobre o D r . A n dr é.
P oucas e singela s serão, mas justas e legitim as.
Qu ando em face de urna sociedade madra sta , o op Prar io d esta
gr a n de fa brica s0cial faz d a p rofi5 ão um sacerdocio. e se en te t em
algum tanto d e sublim e .. .
O Dr. And r é é u m destes p erfis ricos de caridade e amor.
Estima va extrem osamente a T an cr edo, á q uem con hecia desd e
os mais verdes annos, p ois fôra amigo de seu pai. corno abda o er a
da familia .
Assim , quando o m oço -cnEo-se ferido pela molestia, :í: ilha de
aco n tecim ent os imprevistos, o nobre med ico não abandonou a cabe-
ceir a de se u jovem amigo, onde par tilhou com a m ã i todos se us p e-
zares, como lam en tou a causa que os f izera n ascer , animan d o um e
outro com suas palavras ungidas com o b alsamo da ami ade .
Conhecedor intelligen t e de sua profissão, julga va q uão ctifficil
seria a cura , se em vez de combater a causa deixasse-a pelos effeitos.
A m olestia era oriunda de um mal m ôr al, e s ua longa experienci a
lembrav a-l he q ue taes soffri mentos n ã o se cur ã o com a med icina.
As molestias da alma combatem-se com a m edicina d o e spiri to.
a unica ra zoavel , e como o seu m elhor palliativo - o tem p o.
- 183 -
segunda vez, suspender este novo accesso, sem comtudo reanimar a:;
forças extremamente abatidas do enfermo. Sua voz mal ouv;.a-se;
apenas pôde apontar para as janellas da sala de visitas.
Abrirão-nas.
Vinha rompendo a aurora.
Aurora merencorfa como são as dos céos nevoentos de Julho .. .
Fitou-a por um momento e cerrou as palpebras . ..
O senho do medico annunciou-se .. .
Pouco a pouco a respiração amorteceu até tornar-se imperce pti-
vel... '
- Doutor! doutor! . . . b albuciou afflicta· D. Elvir a a n te tão assus-
tadores symptomas. ·
Não se ouvia mais a r espiração. . . O Dr. André curvado sobre o
leito apalpava com uma mão um dos pulsos de Tancredo, emquanto
a outra tacteava sobre o coração ...
- Então, doutor, dizia desesp erada a pobre velha ; meu filho ,
"leu filho?! .. .
Todo commovido respondeu o nobre ancião :
- Resignação. . . Tancr edo repousa para sempre das lutas mun-
~clnas, no seio de Deus . ..
A quéda de um corpo resoou no pavimento da alcova . Era o de
uma mulher, á quem tinhão despedaçado o diadema de m ãi.
IX
"Senhor<l .
"Debaix o da mais dolorosa impressão, traço estas linhas O de.s -
tino anniquila meus sonhos de outr' ora tão c:ii.eios de en cantos e ricos
ae poesia . . . As esperanças de me4 passado que quizera realizar , v e:jo
esvaecidas pela m ã o cruel da fatalidade . . . Entre nós existe um --
impossivel . . . Perdôe-me . . . Lamento a posição d esgraçada em que
.rríe acho, porqu e nem posso justificar-me . . . Desligo-a do compro -
m isso que contrahio commigo. Fica livre. . . e possa a senhora fi·uir
junto de outro a felicidade que e u não posso dar. . . Quan to á mi..'11. ,
livre tambem, viverei das doces reminiscenc ia s do passado.
Jorge da Silva".
Algumas palavras sobre uma pessoa que nos é cara pelos laços
de sympa thia que nos soube msprrar .
F a llamos de D. Elvira, a infeliz mãi de Tancredo.
Ainda vive no seio da familia do Dr. André, que a conduzia para
seu lar dome:;tico desde a infausta morte do filho.
Ahi, subsiste rodeada do prestigio da veneração, que: suas v ir-
tudes gravadas na fronte senil, infundem em todos que a conhecem.
Seus labios, se não têm a inda sorrisos, é porque no cora~âo vi-
cejão saudades; comtudo, o tempo, balsamo que suavisa as dôres da
a lma, vai fazendo-a mais resignada ...
Vive completamente retirada do mundo que não tem mais encan-
tos para ella, apenas sahe uma vez por mez; é justamente no dia em
que seu filho tr ocou a existencia terrestre por uma mais bella.
Nessa dia, em companhia de uma filha do velho medico, ella d i-
r ige-se ao cemiterio. Interna-se com sua companheira por entre as
ruas de campaa que cobr em todas as direcções, t oma o lado esquerdo
e vai ajoelhar-se junto de uma lapida 1·odeada de goivos e saudades,
que tem por epitaphio um simples nom e.
Ahi, entre lagrimas conta ella á joven menina a historia inditosa
de Tancredo -- o sonhador.
rtpelles P orto Al e gl'e.
Porto A legre - 1872.
CONTOS RIO-GRANDENSES
INTRODUCÇ.ÃO
BOAS NOITES
Noveirú1ro de 1872.
J '
REVISTA MENSAL
DA
•
SOCIEDADE
PA RTE N ON LITERARIO
TYPOGRAPHIA DO CONSTITUCIONAL
PôRTO ALEGRE
1 87 2
REDACTOR DE l\lEZ
DIRECTORES
XXII
O CORREDOR DO PANGARÉ
Manduca e João de Deus atarão uma carreira entre um alazão-
ruano e um pangaré. Logo no acampamento formarão partidos, apenas
feito o atilho, e a parada subio a tresentos patacões.
O vaqueano era o corredor do alazão . Do outro não se soube até.
o di a.
- 209 -
A CABEÇA DE UM ANJO
Retovei as boleadeiras,
Nova inhapa o laço tem.
Heup! Heup! A toda z tedea,
Prisco a prisco rompe além! .. .
Terminou.
Os applausos chover ão sobr e o trovador, c uj as palpe bras humecta -
vão-se de pranto .
- Is to sim é botar ve rso s! Senti cé por dentro não ei o quê !
Parece que o coração tambem chorou-me . ..
A quem toca?
- A mim.
- E assim prosseguirao nos descantes, aca ba ndo pelo hymno a
Bento Gon ça lves, cuja primeira estrophe é a seguinte:
Bento Gonçalves da Silva
Da liberdade é o guia,
E' heróe, porque detesta
A infame tyrannia.
Todos o en toarão, excepto Avençal.
Emquanto uns jogavão a primeira , o trinta e um e a manilha ,
outros estalavão a lingua nos sôrvos d a aguardante que chamavão a
patrícia, e do vin ho do r eino, e alguns outros dedil havão nos instru-
mentos os classicos anum, tyranna, chimarrita e tatú , além dos im-
provisos e toada s e canções da época, elle, em seus pensamentos
isolado da reunião, ia longe refestelar o espíri to n ' uma imagem pura
e santa, aurora que nos primeiros annos lhe sorria com ta n ta volupi a .
que elle pudera esquecer em muito tempo de adversidade e esqueci -
m ento de si proprio, mas que ao tornar a vêl-a , faz ia como reviv er
todo um passado riso nh o, toda uma paixão nascida para ser logo suffo -
ca cla nos braços da consc.~encia . Na a thmosphera de tristeza e infor-
tu nio onde r espirava, CI'.ia entrevêr uma luz . . . miragem do naufrago
no m eio do oceano! O mundo não ti nha mais u m r a io para fecundar
a esterilidade de um semelhante coração. A alm a humana exposta a
um longo periodo de a n g ustia suprema , q uéda como o r chedo do
mar batido do vagalhão. Aquella não tem mais ger men de crenças
fundas, como este não tem mais germens de vegetação , a não ser
pelas fendas uma ou outra radícula moribunda.
U m guaycanan en trou . Entregou ao caçador uma ca ixa , dize ndo :
Irmão , trouxerão.
- Quem? perguntou Moysés.
- Não sabe o guerreiro. Entregou a caixa uma mão e xtranha ,
que clesapparece u li geira como a nhandú do ca mpo.
- Va mos abri l-a .
Todos, salvo Avençal, rodeiarão-n'a aç ulados pela cur iosidade.
Mal o ta mpo ligado com uma corda de imbé cedeu á mão de Moy-
sés u m grito d e terror partio de todos -os peitos. os cabellos our'.çarão
e m cada fronte.
Havia uma cabeça de mulh er.
Era a de Rosita.
O vaqueano despertou da scisma , ergueu-se e ve io ao grupo .
Ficou estatua.
André Capinchos! vociferou Moysés, quasi branco de fula que
estava. E não o mataste, quando hoje o pod ias, amigo! E voltando-se
pa r a o indio: Os g uaycanans sígão o inimigo , tragão-n'o vivo . . . Ca-
ram ba ! hei de fazer o que elle ensinou-me urn a vez .. .
E para os outros companheiros da tasca:
- A cavallo , patricios! Temos rebentona.
- A cava llo! ajunta rã o em côro phrenetico , palpando as a rma _
á cin ta.
- 215
1869.
lriêma.
FIM
CONTOS RIO-GRANDENSES
INTRODUCÇÃO
Qua ndo a s saturnaes do imperio , no proscenio immenso da Fran-
ça de Napoleão III, se representavão, e que as actrizes sémi-nuas aos
applausos phreneticos da multidão, calcavão com passo ousado o ta-
blado, que saudoso recordava as éras de Corneille e Hugo ; quando
reboava nas vastas abobadas odeoneas gargalhadas do truão , mu rchas
pendião , desfolhavão-se no chão dos cemiterios as corôas de harmo-
nias d'essas frontes sonhadoras .
Como no chão do alcouce ao calor do seio da cortezã, as violetas
pallidas, murchão, tombão sobre a tapeçaria lubrica.
Fugido do pestifero solo, lá no seu rochedo de Guernesey, a sós
com suas. m editações , espraiando ás vezes o olhar incerto na vastidão
immensa do oceano, ás vezes fixando olhos prescrutadores á varárem
as nevoas alvadias, · que do mar segredão ás costas verdejantes de sua
patria ; a sós com Deus, a :,olidão. a natureza , suas cogitações e seu
amor eterno á morta republica - na energia das paixões que tumul-
tuavão-lhe no peito , é que encontrava Victor Hugo forças para re-
sistir ao p endor fatal, para fulminar com as vozes timbradas de uma
colera omnipotente. ao homem negro. que embalde escorava o throno
vacillante na ponta das b ayon etas. Como que em seu coração abri-
gavão-se offegantes as tempestades que gemem no mar da Mancha,
para depois mais divinas rugirem no céo da Europa .
Assim , n ão é no bestial materialismo presente , n a submissão d o-
homem d egradado . sem outras ambições mais que as dos irracionaes,
ao despotismo real ; na abjecção do homem - machina ás mãos da
realeza - que se crião essas individualidades p oderosas, que como•
as pyramides do E gypto emergindo nos céos a cabelleira, desafião a
rasoura dos tempos impossiveis, symbolisando a grandeza excelsa de·
um povo morto, cuja sepultura os seculos g uardião . Não é deixando-
se insciente encurralar nos redil onde o imperialismo tosquia o reba-
nho romano .
E' necessario o fogo interno irromper do coração impetuoso á
voz senhoril do poeta , como ao toque da varinha magica do Moysés·
da Bil·,,. \!a , do rochedo agreste brotou a lympha espumante, em ,jor-
. ros df mpida agua. Mas, ai! que n ' esta opulenta região da Amrica,
a littera.ura, verdadeiro espelho do adiantamento moral do povo, jaz
em completo marasmo, como a socjedade que reflecte. Mal destôa
d 'esta geral pasmaceira, de v ez em quando alguma nova inspiração
da musa esplendida do grande poeta prosador, a quem admiramos e
veneramos como o mestre de nós todos, que vem nos mostrar, que-
ainda algum sopro vital corre no peito d 'esta nacionalidade.
A litteratura resente:se do abatimento geral. Não assume as pro-
porções epicas de mais faustosos períodos. Em vez d e produzir Her-
- 219
ACTO 4. 0
QUADRO 5. 0
SCENA I
Manoel, Margarida.
MARGARIDA - E então?
MANOEL - Foi uma obra do céo esta carta ! ( coms;.go) Por isso
a Sra. baroneza foi lá para o convento. . . An , an. por isso .. .
Aquella mulhersinha era mesmo o tinhoso' ..
MARGARIDA - E o que é feito do Dr. Paulo"?
MANOEL - Eu sei cá, ninguem mais o vê, d esappareceu ..
Ah 1 Sra. Margarida, em · tudo lá vem o dedo de Deus! Esto u
- 225 -
SCENA II
Margarida, Octav ia
SCENA III
SCENA IV
Octa via, depois Adelaide (vestida ele noiva)
S CENA V
F. DE MAGALHÃES - Vamos?
A DELAIDE - Dá-me o teu braço, Octavia .
OCTAVIA (agitada) - Vai in do . .. só dois minutos .. . eu já vou ...
(Adelaide e F . d~ M agalhães sabem vagarosamente) .
SCENA VI
Octavia, Ri cardo da Silva
D. AMALIA FIGUEIROA
Feliz e doce ven tura O nde achaste estes lamentos
D'esse cantar de ternura De melindrosos accentos,
Na languidez do scismar! Que lh e dão tanto primor?
- Que trovas meigas, singe lla·;, Onde tu foste b uscar
Tão eloqu e n tes e b e llas, Esse brando ciciar
Que tu sabes murmurar! E x primindo tanta dôr? !
José de Sá Brito.
Novembro de 1872·.
•
- 234 -
ENGANAS-TE