(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 2

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O VAQUEANO

(NARRATIVA ).

IX.
A LEND A.

O posteiro estava desesperad'.) , chorava sobre os cadaveres da in -


ditosa familia, e, na exaltação de seu resentimento , accusava o mula -
tinho Moysés do horrendo crime que tivera lugar.
A dôr que lhe arrancava l agrimas e suspir os em brotões, tinha
tal caracter de sincer idade, que ninguem poderia duvidar da amizad e ,
que elle tributava a Gil de Avençal.
Porém foi injusto em suas recr iminações con tra Moysés.
O qeu então era este da casa? Que papel representava na familia ?
Nascera d'uma escrava e fôra liberto na pia baptismal. Nas sen-
zalas affirmava que era filho do estancieiro. Falta vam as provas, e,
quem as pudera apresentar, sua mãi, morrera na occasião de dal-o á
luz. Todavia o facto da manumissão, sem motivos plausíveis, mór-
mente n'esta época, deix,ava entrever p or ventura alguma coisa de ve r -
dadeiro no boato espalhado pelos negros da fazenda .
Q u ando consumou-se a catas trophe sanguinaria, elle estava ausente;
sahira a tropear, fac to que ou Cap ichos desconh e cia na accusação que
lhe fez, ou então de qu e quiz aproveitar para dist rahir a attenção de
sobre si.
De volta encontra de pé a calunia, apezar de defenderem-n'o todoi>
os escravos de Gil; e diante a imputação de crime tão horrendo des-
vaira, foge, busca os sítios mais impervios da serra, quando poderia
demonstra r sua innocencia com o depoimento das pessoas entre quem
se achava, quando se dera o acontecimento .
Só um anno depois, serenado o espírito, desce u dos retifos, onde
convivera com indomitas f éras e a já ming uada tribu dos guaycanan s,
procurou a justificação que devia lavar a pecha infamante atirada a
seu nome . Pela sciencia criminal a evasão agravaria o supposto de-
licto. Pobre sciencia, pois vê no rosto conturbado um documento com-
probativo! Pobre sciencia que não tenta sondar o oceano dos pheno-
menos moraes, que affasta de si, repelle com ar severo e movimentos
ríspidos o testemunho da physiologia! que admitiu uma craveira in-
variavel para o genero humano, como se todos os corações fosse m vasa-
dos n'um mesmo molde e todas as naturezas tivessem identica mani-
festação do sentimento! que emfim n ão d eduz dos fastos dos tribunaes
a luz da verdade que d eve conduzil-a e aclaral-a, e onde no entretanto
a fac e de L acenair e desorienta os juízes pela cynica coragem e dôce
placidez que a reveste, e o innocente L esurques estremece, titubu,
desmaia ante o apparato e espectaculo da vindicta social !
- 127

P or ella Moysés fôr a um sicario, soffre.r;ia- a ultima pena ; para &


P.9PS.c i~nç}a -do mulato e, 1p ar a De os a justiça da terra com metteria a
.i;nais clamorosa • das in iquidades. F elizmente n os tempos que iam, a
;viéhm a. d a . calumniosa imputação subiu sã e. salva. A acção judiciaria
não · chegava sen ão t ibia a l ugares distan tes; até garantia a impuni-
<;lad~. Nin guem portanto, _teve a lembran ça de fa zer aver iguaçqes re-
lativàs aos verdadeiros culpados. O anno decorido começar a d e apagar
a triste impressão, e o pó do esquecimento depu zera a primeira ca -
,n;i.ada sobre a téla de . horores.
' · · Moysés tinha lá comsigo desconfiança pouco mais ou menos vero-
_simeis. Recabiam de cheio em José Capichos. O posteiro tornara-se
dono de estancia, senhor opulento que trajava como o mais guapo mo-
narcha das cochilhas, despendia a las largas e pretendia os fóros de
caudilho , quando não havia muito arrastava a chilena á sombra de
'Gil. Fortuna e maneiras tão de rebate faziam-no reflcetir; mas na falta
d 'um indicio vehemente, que o gtúasse á verdade, recalcava n'alma
a suspeita e suspendia os juizos.
Soube então que o filho m ais velho de Avençal conseguira escapar
milagrosamente ao ferro homicida. Era José. Procurou-o. Tres annos
·os dispendeu elle em pesquisas infructiferas, até que foi deparal-o
n'uma distancia de cem leguas, Foi n 'essa occasião sabedor do que
ignorava a respeito dos episodios da noite do anno de 1813. O p e-
queno José fôra deitar-se e uma negra que servia na casa de mucamft
e o estimava como filh o. o entretinha antes de conciliar o somno com
um d'esses contos que todo o mundo relembra saudoso dos dias da in-
fancia . O menino a escutava pr-eso na atenção que se lhe d eff undia na
palpebra largamente descerrada.
A historia, vamos reproduzil-a, pelo caracter peculiar d e perten-
cer á província e m ais certo ao Brazil inteiro. E' uma lenda que suavi-
sa o calice amargo da escrav idã o, grin alda de odor osas fl ôres entrela -
çç1da ás algemas, balsamo anodyno sobre a ulcera que sangra no peito
da captivo . Ahi vai. Falta-lhe, em nosso estylo, o pittoresco da lin-
guagem e a fidelidade no d esenho dos costumes; resta-lhe, porém , a
verdade de fundo:

O RESÇUSCITADO .
- O pai .Curruira, filho do reino de Benin, acaba de morrer com
noventa e trez annos p elos calcu los de seus companheiros. Morreu e a
t:istesa não se stereotypa nos ros tos azevichados da cafraria ; a a~gus-
tia e o alarido de carpideiras .não cercam o corpo da finado , c ::nno ulti-
ma homena gem á seus restos. Ao contrario o urucongo e o bujamé
despendem sons festivos. Cada matrona e cada rapariga se ennastsou do
melhor que poude. Collares e manilhas de missangas de coral e vidri-
lho com caurins entremeiados ou pendentes lhes cingem a garganta e
os pulsos, fazendo ao reflexo variegado realçar ::> ébano da cutis. O
candombe deslaçado em meneios lascivos, o can to de diapasão aspero e
monotono, formam o cortejo mortuario em roda do cadaver.
. Presidia a festa, que similuva extranha m a cabra de vampiros ou
bruxas, Maria a Conga, a q u em a sen zala ·vener ava como rainha··· ou
,fetich e de u m culto profundo .
· - Mãe Mar ia, perguntou urµ cr ioulo vivo e experto como um d e-
monio , tr anqu ilo como todo o moleque, porq ue o branco chora , quando
morrem os seus, e o negro ri?
- 128 -
- O negr o, respondeu a r espeitavel veter ana, passando a 'masca
de t:umo d'um lado para o ou tro da bochecha, morre .a qui para viver
na Aftica." Vai ver o · b eiçó em·· q ue nasteu debaixo das tam areiras e
boabahs, vai correr as areias em que brincou n o tempo de criança, vai
vér a patria. ·
O crioulo arregalou ao principio os olhos, pensou por instantes e
<-•m seguida coçando a cabeça, a sacu diu em ar de duvida.
- Quem morre, en tão vive depois? ajuntou.
- Não crês, menino? Vou con tar o q ue aconteceu ao irmão
Inhabané.
- Mãe Maria vai contar uma historia! Hih! Hih! Hih! . . . Venham
ouvir. E de contente saltava C'.lmo um cabr ito.
Logo um cardume de cabeças infantis e alegre:;, mostrando os
den tes alvos como as prezas do elephante, com as p upillas de gazella
avi vadas pela curiosidade, fervem em torno da velha negra.
Musicas e cantos e dansas sustaram.
Todos quizeram ouvir a palavra do oraculo de suas crenças, da
pythonisa africana que guardava no coração as memorias da patr ia dis-
tan te. Mãe Maria tomou um cêpo junto ao fogo . Os mais cruzaram a5
pernas no chão de argila, pousando o cotovello sobre ellas e a face
sobre a mão. E' a attitude de quem quer ouvir attentamente .
Em pouco ne·m o mais leve ruido sahia do circulo de gente , cuj o
centro era a venerada Maria. Até a respiração p arecia estar soffreada .
Ella começou pausada corno a prudencia. solemne como um mys-
tc•rio:
- Muitos annos já vão, filh os, desde o tempo em que Inhabané.
juntos ás aguas de. Cuanza , fazia guerras aos h.:;nens do outro lado do
ma r' Muitos! Quantas vezes já as arvores. não despiram as folhas? '
- Quer.i. era In h abané. mão Maria? Quem era Inhabané? inter-
rogaram em côro.
- Rei e _senhor de Cassange .. _ A velha, que falla agora, não era
como v eem. H oje está curvada ao peso dos annos, não caminha, nem
póde trabalhar . . . O' n'aquelles tempos! ? Bons tempos em que tinha
nor cama finas esteiras de Loanda , e vestia lindas rou pas de pelle. e
tinha os carinhos do mar e pisava o t ibbar, ambição do branco ! Então
meu corpo era d ireito como a palmeira, ligeiro como o gamo dos mon -
tes cte Kong. Ah! bons tempos de Cassan ge que Maria ha de tor-
nar a ver! ...
- Bons tempos de Cassange! B ons tempos! repetia a multidão
com a fidelidade d'um echo, quando ella curvava a fronte seniol no seio
elas r ecordações e nas saudades do berço.
Depois de instantes de mystico recolhimento, prosegu iu:
- Os homens do outro lado do mar venceram a Inhabané, o
g uerreiro, o valente. a esperança de Cassange. Elle :foi preso, ligado e
vendido para as terras dos Brazis.
__ Máo branco! Máo branco! rumorejavam os ou vintes com as-
so mos do adio.
- Inhabané teve um ruim sen~or que amou a mulher do captivo
t' quiz tomal-a.
Era Kuniah, formosa entre as fo r mosas. E K uni.ah resistiu, por-
que tinha um coração que não era d 'ella, era de Inha b ané, seu senhor
e seu rei e pai de seus filh os. K un iah r esistiu e' teve o corpo corta do
ao açoite e foi vendida longe dos filhos e d o m arid o, alegr ia e sol d e
sua vida.
Que dôr, mãe Maria! Que dôr! gemia a t urba.
Inhabané teve uma te m pestade aq ui , e a velha pôz a mão ru-
-gosa sobre o peito, ferio o perseguidor de Kuniah. Pobre rei ! fo i
1evado ao tronco como o ultimo dos servos, o laço regou suas carnes .
o sangue do principe de Cassange enst,pou a terra do cativeiro.
- Ah! quizilia de branco! E a cafrana saltava de pé, tremula
•e fula de colera, o olhar ardente e sanguineo, as -faces crJspadas • p lo
-o dio e d,esejo.,.de .vingança, o· gesto ·saturado ·de ameaças. .
,· ::_ Fllhos, silencio! E desatou um ademan imperativo para q ue
sentassem.
Tudo voltou á immobilidade das carya tides no sopé do antigo mo -
numento .
- O rei de Casange soffreu muito . . . muito! Desespera do pro -
curou um jerivá que recordava a patria, em suas palmas, subio até o
olho do coqueiro, atou um cipó e enforcou-se.
- Pobre Inhabané! murmuraram em tom pungente.
- Feliz! feliz! repeti, filhos . . . E atirava longe de si a masca com
um movimento de inspirada.
Todos a fitáram pasmos .
Elia continuou :
- Ninguem viu d ependurado o príncipe, sem chorai-o . Quancl n
.foram n o outro dia buscar o corpo para enterrar , tinha d esappar ecid o.
- T inha desapparecido? ! gerguntaram boquiabertos.
- E' v,erdade, Inhabané , tinha .dormido nas t~rras do captiv iro.
para acordar nas terras da patria .
- Quem viu? interrogou o crioulo que dera motivo á narraçã o.
- Maria viu, menino . Era de madrugada. Maria inda era livr e.
ia ban har-se nas aguas do Cuanza . Então, Inhabané sabia d 'entre as
palmas d' uma tamare ira, contemplava como n' um sonho o paiz que ha
tanto d eixára e vinha de nov o possuir. Desceu e começou uma guerra
de morte com • seus inimigos.
. Esperaremos, filhos . O pai Curruira foi hoje , amanhã n ós iremos.
Quem diz é mãe Maria.
Assim concluio.
- Am anhã, nós iremos. . . n ós iremos, repe tiram com p rofu nda fé .
Por momentos trataram do caso, sem commen tal-o, e em segu ida
foram r enovar com mais enthusiasmo as festas em torno do finado.
Eis o q ue a escrava narrár a ao p equeno José de A vençal, po uca
mais ou men os. Era u ma scena que ha pouco assistira nos gal pões d ;:;
senzala .

XIV.

AMARAL .

Mal terminava , ouve um gritto tremendo , seguido de gemidog


dolorosos. Corre a ver o que era.
Na varanda , á luz d ' uma candeia de garavato, cujo eslabão fôra
torcido com grande esforço para arrancal o do muro, onde estava pre -
gado, presenciou um quadro, que a penna não traça com suas m ais
negras côres, e comprehel).de o só _quem póde . as.sistil-o .
· Sobre o soalho estorcendo-se em cruas vascas, Maria a esposa de
Gil; junto um homem degollando o filhinho que a desventura da mãe
amamentava. A misera toda retalhada de golpes, r otas a s arterias,
arquejante, ainda tinha forças nas derradeiras convulsões da vida para
erguer o corpo a meio e pedir com palavras, que vinham em ondas de
sangue, pela innocente victima. Sublime arranco da maternid ade! . ..
A escrava não poude reconhecer o assasino, pois estava en volto
- 130 -
n ' um immenso poncho talar e mergulhava o semblante nas largas àbàs
d' um sombreiro. Recuou ' espavorida, voou ao quarto de José, fechou
a , porta por dentro, · tomou o m enino ao collo ,- e, abrindo uma: janellâ
q ue d ava para o campo, vingou-a d 'um salto. De passagem encorporou
a fugida tres companheiros que encontrara, contando-lhes o occorridd
em phrases rapidas e interjectiva s, · ·
Depois, como o caminheiro que embebe sob as pata's do cavallo,
cochilhas, canhadas, sanga s e varzeas, fu gindo aos olhos azues dos
boitatás, elles atravessaram durante mezes larga extensão da capita-
nia, tendo o cuidado de evitar os povoados.
Grandes o nobres romeiros!
Quando podiam quebrar os grilhões da servidão , faziam timb1'e
eín mantel-os, guardando a infancia âo un ico senhor com todo disvélo ,
t odo o amor capaz de conter o cor ação humano para um filho, todo o
c ulto que derrama-se nas a r as divinas! O' não digam que era a fide-
lidade do cão ! Não, por Deos! Onde ha uma alma livre, uma cons-
ciencia, só póde haver sacrificio e abnegação, nunca o ·ras tej ar do ani-
ma l que é servil, s ubmisso, feliz atido ao j ugo, porque não concebe a
liberdade e muito menos póde aspira i-a.
Detiveram os passos n ' uma casa nas immediações d o sitio em que
hoje existe a fre guezia de Tahim ,
P ertencia ao cavalheiro de Amara l em que consequencia d 'uma
serie de d uellos contrarios ás disposições da Ordenação, fôra obrigado
a expatriar-se de P ortugal. Nobre p ela ascendencia, como pelos senti-
inentos que o exornavam , tivera até o momento em que embarcara
occultamente para o Brazil, urna existen cia agitada e ch eia de dissa-
bores, p<!lo caracter independente que manifesta sempr e, como por
d issen ções com outra familia do reino . Então casado e sem filhos, feliz
e tranquillo n'um recanto da Arnerica, era um ver dadeiro p hilosopho
a ver os dias deslisarem sem nuvens e tempe tades, a pensar quotidia-
na mente sobre o homem e a nature za , modificando a ssim idéas erro-
neas e grosseiros prejuizos que a educação e determinadas circums-
tnncias conseguir am inocular-lhe no espirito, Entre os ultimos sobre-
sahiam duas extranhas theorias sobre as raças e so bre os castelhan os,
mórmente estes, q ue por meio de a lguns falsos raciocinios elle che-
gava a separar do genero humano ,
Não tinha outros senões. Quanto aos motivos que lhe impuzeram
o voluntario desterro , n inguem os sabia , nem mesmo os dizia elle ,
e vitando com desgosto pronunciado a con versação sobre semelhante
a ssumpto.
E is a nova personagem em breve bosquejo.
Quando Amaral ouviu o acontecimento relatado no estylo rustico
da n egr a , conveio de si para si que a catastrophe era extraordin aria e
deliberou tomar averiguações. O que feito , confirmou-se a verdade .
O tópico fina l, a salvação d a criança , q ue lhe suggerira a n\.ais
te naz obj ecção , p ela gente que a tinha r ealisado , veio tra zer alguma
mudança em sua maneira de pensar,
Foi a occasião de admirar as frontes cafres aureoladas da esternma
d'uma realeza que eclipsava o ignobil ferrete da escravidão. P ela pri•
meira vez suggeriram-lhe pensamentos, os quaes a educação elo temp o
·e os preconceitos sociaes não haviam ainda prov ocado. O negro deixou
de ser o ourangoutango, o ente infer ior julgado não só incompleto e
defeituoso pelas fórmas, como pela intelligencia que lh~ transparecia
do craneo. O pobre Pongo, o poleá da colombia terra a seus olhos co-
meçou a reassumir os direitos que lhe n egavam por afferro de opiniã o
·ou torpe especulação d e negreiro ; desde então merecia para e lle o
13i -
titulá 1 de homem: Ponderotf cóm jústeza que a intelligenéfa. e: vir~ud~
não se tornavam privativas d'uma especie da grande familia humana;
e ·recebeu a caravana de · infelizes com -os braços abertos é o· mesmo
enthusiàsmb que manifestaria por qualquer dos seus. · · '
Trabalhou emfim para descubrir o motor de tantas desgraças;
porém;. como era· de esperar, a distancia Iieutralisou a boa· vontade e o
empenho empregados.
XV.
··1 A' SOMBRA DO UMBú.

José Capinchos, com faro de tigre que presente a victima, · muito


antes de Moysés descobriu o escondrijo do misero orphão.
Uma tarde Amaral recebeu tres hospedes. }\":ram o capataz e dois
asseclas do antigo posteiro. Vinham em embaixada para reclamar a
~~- .
O cavalheiro recebeu-os com altivez, sem quebra das leis de hos-
pitalidade. ·
- Diz a teu amo que o menino pertence-me ; já o estimo muito
para privar-me de sua companhia. Sou casado e não tenho filhos, vou
instituil-o meu herdeiro. Não duvido, quero mesmo crer com toda a
lealdade que elle fosse amigo dos pais; no entretanto devo recordar-
lhe o abandono e menosprezo lançado ao ultimo descendente d'uma
mal aventurada gente, pois deixaram-n'o de tão longe vir bater á
minha porta.
Quiz insistir o capataz. Elle fel-o emmudecer pelo tom em que
continuou: ·
Porfiar é inutil. Disputal-o hei como a um lance de senas. ·Agra-
deço as boas intenções, sem todavia aceital-as. Patentêa a teu amo
os respeitos e a estima de que lhe sou credor, desde que se interessa
· t anto pelo filho do finado Avençal.
O mensageiro enfiou e retirou-se murcho e cabisbacho, qual ra-
poso apanhado por galinhas. Planejara com tudo o rapto da criança e
o puzera em pratica, se no dia seguinte não vira no curral possantes
e rapidos ginetes pormptos á menor eventualidade, como peães arma-
dos de ponto em branco, na casa, nos campos, por toda a parte emfim.
Amaral tivera um presentimento ou o raio do crepusculo lhe foi
bom conselheiro. · ·
Refletira que, para de tão longiquas terras virem em demanda do
orphão, era necessario um grande move!, por isso puzera desde o cam-
bar do dia em armas toda a gente de que dispunha.
Adivinhara. O enviado de Capinchos teve de voltar, abanado as
mãos e com r econcentrado despeito contra o providencial protetor do
menino.
Mezes mal passados surgia Moysés.
- Venho visitar o pequeno de Avençal, disse logo de entrada.
- O cavalheiro franzia o sobrôlho e perguntou com presteza:
-'- D'onde vem?
Da Vaccaria.
Visos de cólera reverberaram-lhe de toda a physionomia.
E' muito teimar! disse .
- Como?!
- Como? ! E a voz estremecia·- lhe nas arcas do peito com extra-
nho rumor. Ninguem o vê, com rriil diabos!
13·2 -

- Ninguem o vê! repetia o outro já meio quente com os modos


de Amaral. ·
- Ninguem o vê, o repito. Minha casa . é franca para todo menos
para habitantes de Vaccaria. E ia virar-lhe as castas com medo de si
.-., m·e smo.
- Quem deu ao senhor um tal direito? exclamou o mulato com so--
branceiria.
- Quem deu-me, vil1ão!? O vens perguntar a mim que estou
em meus senhorios? E o diapazão de stentor echoou formidavel, como
o estr ondar de ,rc~has que despencam e embatem no declivE; de môrros.
- E eu reclam-v meu irmão, saltou o outro como uma esfuziada
de pampeiro.
A tempestade já desfeita na alma do cavalheiro esvaneceu como
um mant o de brumas á luz do sol.
- Seu irmão?! ! . . . E a interjeição prolongou-se semelhante ao
son1 nos accidentes do terreno derramacto em despenhos e montes.
- Seu irmão!!! E procurava associar no pensamento, duas coisas
que elle separaria em outra q ualquer occasião, como impossiveis de
liga, harmonia ou de qualquer laço de relação. Ainda o pr ejuizo nã o
desvanecera inteiramente. A intervallos voltava.
Dentro de pouco foi sciente de tudo .
O caça dor não· occultou a menor circumstancia, concluindo assim :
- Uma coisa peço a V. mercê, lhe não diga jámais que o mesm o
sangue nos corre nas veias. Póde algum dia envergonhal-o.
Amaral contemplou aquella fronte bronzeada com admiração. Uma
só phrase não occorreu-lhe de momen to. Apertou com força a mão
do mestiço. Tinha dito tudo . Com mais eloquencia fallavam as pal-
pebras rorejantes .. .
N'essa noite tornaram as considerações sobre as raças, ficando
indeciso sobre qual d'ellas obteria a primazia. Relat ivamente, pondo
em conta a abjecção a que estava votada a negra, a balança de seus
juízos pro pendia contra a branca.
- E' admiravel! accrescentou. Se estivesse em Portugal, jura- ·
ria por todos os santos do calendario que um filho d ' Africa valia tanto
como um macaco! Até Moysés, creação hybrida, mescla de diversos
sangues, nos a ctos é um gentilhomem de boa estôfa!
No dia seguinte vamos encontrai-os em animado colloquio.
O sol sumia a fronte no arrebol auri-rozeo da tarde.
Em face á vivenda, annoso umbú espalmava os galhos. As ra1zes
erguidas em socalco formavam commodo assento. N'uma d 'ellas está
sentado Moysés com o pequeno de A vença! sobre os joelhos. Ao lad o
Amaral n ' uma d'essas poltronas classicas de espaldo elevado, forr-adas
de couro lavrado de S . Vicente, com tachões amarellos e as pernas
em cruz. ·
A restea loira do crep usculo doirava a paysagem .
Era um soberbo painel.
De vez em vez Moysés osculava a face do pecurrucho adormecido ,
em cujo sorriso adunava-se o tenue raio da tarde e o raio da inno-
cencia.
- A vingança é dôce, mas os fructos são amargos. Eu que o diga
o quanto custa. Não fossem uns endemoninhados botes de espada, es-
taria a essa hora tranquillo no solar de meus avós.
- Mas . .. isso de matar em crianças como a pêrros ... Caramba '
- E' horrível, é! . ..
- Só tigres! só tigres! . . . José deve ser forte, valente, guapo,
manejador de toda a casta de armas: flecha, pistollão, mosquete, ada -
- 133
ga, lança, e mais coisas ainda; deve atirar o laço desembaraçado e
reter o mais chucro dos novilhos, jogar bolas de m aneiras a não perder
um tiro. Seus inimigos, pelo que penso, são todos campeir os.
- Emquanto ao que sei, h omem, bem ou mal ha de sahir-se ;
mas lá de frecha, adaga, bolas e laço. . . Caspite! nem sei por onde
tomai-as.
- Não d ê cuidado a V . mercê; aqui p asso um anno e . . . caram-
ba ! verá que o muschachito tira-se melhor que o mestre .
E os adversarios?
- Irei desencaval-os, inda que nas bibócas do in~rno.
- E se o matarem, o que não é difficil de prever em negocios
assim.
O mulato sorriu e ajunto u :
- Matarem o menino! Deos não seria Deos, e poderiam dizer q ue
Moysés, mal avisado andou quando tomou a espingarda para viver
nos matos. Se me chamasse Moysés de Avençal, não esperaria tanto
tempo , em pessoa iria buscai-os um per um e esmargar -lhes a cabe-
ça . . . raça 1de cobras!
XVI.
VOLTA AO S PAGO S.

O m enino cresceu. O rebento fez-se tronco. ' Porém, a harpa fre -


mente de seu coração vibrava a uma idéa fulminante, fibra por fibra
estremecia a uma só palavra do vocabulario das paixões humanas:
Vingança! ·
Vingan ça!? Vertigem do ultraje, ebriez de sangue, desforço da
honra e simultaneamente justiça fóra dos codigos!
Vinganna!? Mancenilha, - pomo de ouro n o galho, no labio fél
e veneno!
Vingança!? Abraço da alma sorridente n'um sonho e da alma
esmoida no ecúleo de angustia!
Vingança! E's tu tambem uma das sombras a embruscar os traços
magistraes do caracter rio~grandense, , falha que ninguem póde, nem
deve occultar. Que importa, no entr etanto? ! Talvez seja o quinhão
ou partilha dos povos cavalheirescos, a quem a hospitalidade, a lha-
neza, a honra e lealdade parecem antes virtudes innatas do que obe-
diencia ás leis do dever ou o resultado de obrigações moraes. Lá no
fun do de seu deserto, envolto no largo caftan, como o arabe se asse-
melha comtigo! Como a prcpria generosidade, que tanto o distingue,
parece arrancar-lhe do ímo do peito o griio de odio e morte, quando
foi cruelmente offendido?
Avençal, rôta e r.hisálida d a puerícia; não via outro fana l nos
horison tes da mocidade. Crescêra elado a 'um sentimento que tudo
fazia recordar, ora a voz insinuativa e grata de Amaral devassando-lhe
os segredos da esgrima, ora a solicitude maternal de Moysés prepa-
rando-lhe o braço nos r udes manejos do campo.
Infante, não teve outra balata acalentando-o no berço ; homem,
não tinha outra róta a seguir. Era a fatalidade d ' uma romagem : a
herança que o punhal do asrnssino codicillar a na garganta ensan-
guentada de seus paes.
O céu diria a elle pela voz do Evangelho: o perdão resgata o
crime.
A logica das paix6es diz.ia-lhe: A nodoa de sangue lava-se com
sangue.
Fôra for çoso obedecer aos pensamen tos pessoaes, e aos dictames
Inst. Hist. - 9
134
d'uma educação recebida e conforme ás leis que todas as idades tem-
chamado de- honra.
A vingança o armara, ella só devia d.esarm.,1-o um dia.
O cavalheiro nada descurou; mais previdente que o caçador , jun-
tára aos predicados corporeos os predicados do e·spirito. Iniciou-o nos
conhecimentG,'l a seu alcance. Deu-lhe mesmo uma tintura da arte he-
raldica, que emfim de nada servia para o moço, mas que satisfazia um
dos gostos especiaes d.o preceptor, evocando recordações e uropéas.
Quem censurará o esméro e cuidas para lance tão tremendo ? Quem?
Se a propria historia louva em Amílcar .o odio que perpetuou no filho
desde tenros annos? Que tamanha differença existe entre a patria e fa-
milia , duplices origens de sentimentos idenücos e fecundos. fócos lu -
minósos na esphera da vida social, cujos effluvios se embebem. amal-
gamam, liquescem confundidos e se entornam na mesma ambula - o
coração?
Arranquem a víscera que o produz, e, morto o homem , eil-os
destruídos para sempre nas desoladoras ruínas da huma n!dade. Então
- vingança - , como todos os sentimentos bon·s ou máos, sublimes
ou repugnantes, não será mais que uma articulação sem sentido, acor-
dand:, o silencio d'um êrmo, o hieroglypho estampado na pyramide
d'uma raça extincta.
José de Avençal attingira os dozoitos annos.
Em casa ae Amaral havia grande reboliço. Corria d 'aqui para ali ,
em contin ua dobadoura. Ajoujavam bois, enfreiavem cavallos, carre-
gavam carros, os homens de guerra poliam a~ armas. Balbu rdia por-
toda a parte. Dir-se-ia que marchavam á grande expedição , como um
magote de bandeirantes em vespera de partida .
Afinal sahiu a caravana.
A mulher do cavalheiro , a negra que salvara o moço, e os escra-
vos que auxiliaram n'a, tambem seguiam na comitiva .
Decorreram muitos sóes em viagem.
Uma manhã foram surprehendidos por Moysés que tra zia o con-
cur o de seus guaycanans.
O que era? Para que levantar tantos escarcéos ?
Iam installar Aven çal em seus domínios como "legitimo senhor
de juro e herdade" na phrase da antiga etiquetta man t ida por Amaral
no bando que mandou deitar entre a gente reunida .
Chegaram em pouco na estancia que, se com a catastroph e de
1813 ficára durante dois a nnos uma tapéra, depois pelos cuidados d e
Moysés prosperára mais que em mãos do primeiro dono.
A' chegada festas e bro.dios, " arruidos e folgares," como dizia es-
fregando as mãos jovialmente o cavalh eiro, autor de tanto barulho.
Avança! não sentiu alegria , como era natural. Abalou-o fund a co-
moção apenas viu o theatro do sanguinolento drama , onde paes e
irmãos haviam succumbido sob o p unhal vibrado por mão covarde,
t r aiçoeira, infame e anonyma, pois nem tivera a coragem de deixar
um signal, a assignatura pela qual se a reconhecesse! . . . Seu peito
arfou semelhante á primeira mareta formada ao cahir da tempestade.
Soltou das arcas um gem id o de cruciante magoa e desespero . . . F oi
laboriosa a systole, suffocava-o, todo o sangue affluira em tufos ao.
coração.
Quiz fallar. . . n enhuma palavra!
Accudiu-lhe aos olhos copioso pranto , refluxo salutar do soffr i-
mento, rocio vivificánte na extenuação da vida, que , como a aura suave
e o orvalho das n e voas ergu endo a flor debruçada no h astil, e r gu e ram
sua fronte pendida.
- 135 -
- Diz onde o encontrei, Moysés . . . Diz e irei buscal-o além do
mundo .
O caçador já desesperava por tal época de levantar o véo ao mys-
terioso acontecimento. Todavia tinha esperança de, mais dia, menos
dia, descobrir um só vestígio e tanto bastaria para achar o r esto. Era
o seu fio de Ariadne .
Conversando comsigo, sempre repetia entre dentes:
- Deixa estar, t heat!.no fuá , has de dar- a mão e depois corcoveia
. . . e veras.
' 1
Iriema.

(C ontinúa) .
RISOS E LAGRIMAS
AC1.'0 3. 0

QUADRO 3.0

A mesma decoração do 1. 0 a cto .


SCENA I.
Baronesa e um criado.

BARON. (dando ao criado o b ilhete q ue acaba de escrever). -


Sem demora, á casa do commendador Torres. Nã o voltes sem a res-
posta . (Ouvem-se palmas). Vae ver q u em bate ... Se fosse o com-
mendador, que ventura!
CRIADO (annunciando) . - O Dr. Benjamin.
BARON. (agitada). - Dize-lhe que n ão estou em casa ...
CRIADO. - P orém. . . eu ...
BARON. - Sempre és um imbecil! .. . Ma nda-o sub ir, e vae de -
pois executar a s minhas orden s ...

SCENA II.

Baronesa e o D1·. Benjam in.

DR. BENJ. -'- B om d:a , querida baron esa . . Aposto que me não
esperava tão cedo?
BARON. - Escapou por u m t riz de me encontrar ...
DR. BENJ. - Vai sahir então?
BARON . - E ' verdade, preciso ir á casa . . .
DR. BENJ. - Advinho, vae visitar o poeta ... Talvez o encontr e
cadaver. V . E x . ap plicou-lhe o caustico justamen te sobre o coração e
n ã o ha a menor espera nça de salvamento.
BARON. ( sorrindo) . - Está b rincnd o sm d uvida.
DR. BENJ. - F a llo serio. J ulio d'Aguiar está mor to ou l ouco à
esta h ora . V. Ex. teve coragem inaudita! . . .
BARON. ( tremula ) . - Não cr eio . está grace jando. . . (á parte) Sera
possível !
DA. BENJ. - Porque descara assim, b aronesa ? .. , V . Ex. t reme? ,
Ah! ah! ah! já serão effeitos do remorso?
BARON. (com odio)o - E quem induziu -me? não foi por ven -
t ura o Sr.? ...
DR. BENJ. - Valha-me satanaz! V. Ex. faz das suas e depois
quer tornar-me curnpli ce! . . . Em t odo caso morre o nosso poeta de uma
- 137 -
molestia raríssima n'este seculo em que o amor é um calculo e o casa-
mento uma convenção. Exemplos peregrinos, não é verdade? . .. Os
grandes amôres trazem fadarios loctuosos!
BARON. - Mudemos de assumpto ...
DR. BEN.1. - Tem r azão, estas conversações serias entre nós cau-
sam o mais insupportavel tédio. V. Ex. sabe muito bem que sou uni
homem incorrigível, como sei até a evidencia que não seria capaz de
oper ar em V. Ex. o milagre da redempção.
BARON. (com desespero) . - Pois ainda quer mais provas do meu
amor? !
DR. BENJ. - Queria a ultima! ...
BARON. (idem). - Nunca, impossível! ...
DR. BENJ. - N'esse caso ... .
BARON. -E onde estão as suas promessas? Como ha de cumpril-
as, se renuncia o meu amôr, os meus extremos, este affeto que só o
Sr. poude inspirar em minha alma?! Peça-me o que quizer, menos
esse sacrifício; mande, e obedecel-o-hei cegamente, como escrava hu-
milde!.. . (ajoelhando-se ).
DR. BENJ. - Levante-se, baronesa ; estas scenas . . . são ridiculas!
BARON. (erguendo-se). - O Sr. é um homem sem alma!
DR. BENJ. (com sarcasmo) - V. Ex. onde tem a sua?
BARON. - Coração de bronze! Ri-se agora; moteja em vez de
respeitar a victima!. . . Ah! mas não ha de triumphar, juro-lhe eu,
ainda que amanhã o meu nome seja infamado nas praças publicas! .. .
Póde ir propalar aos seus amigps que a baroneza de Tapagé foi sua
aman te! . . . Diga-lhes que . ..
DR. BENJ. - Acalme-se, baronesa; se assim continúa, desperta
a curiosidade dos criados! . . . Ama-me então seriamente? . . .
BARON . - B asta, Sr ., nem mais uma palavra !Não se esqueça
que está em minha casa!
DR. BENJ. - Confesse, baronesa, quantos amores tem tido depois
que enviuvou? Quantos amantes antes de conhecer-me?
BARON. (tocando a campainha) - Basta de obedecer! .. . (Quer
fallar ao criado que appar ece, e não póde).
DR. BENJ. (ao criado). - A senhora baronesa estava pedindo
agua, porém já não é preciso. (O criado retira-se). (Approximando-se
da baronesa) Dir-se-ia que V. Ex. transformou-se em estatua como a
m u lher de Loth! ... Ah! ah! ah!
BARON. (supplice). - Mate-me, Paulo, mate-me de um só golpe.
mas não me flagelle assim, não me enloqueça! Imploro-lhe compaixão,
aqui me t em outra vez á seus pés, diga q ue me ama, porque mereço o
seu amôr! . . . Piedade, Paulo, n ã o escarneça, não me torture tanto o
espírito . . . J á tenho soffrido demais por sua causa. . . (lacrimosa) . E'
ser muit o inexoravel escarnecer em face da victima!
DR. BENJ. (levantando-a). - V. Ex. falla em victimas! . . . (depoü,
de pausa) Quando a mulher descae um dia do pedestal sublime onde
a mão do Senhor a colocou , é porque essa mulher não tinha forças
para subjugar as paixões mundanas ; resvalou no pendor do erro, por-
que era fraca e não podia r esistir á lucta da materia com o espirita.
O fim de V. Ex. devia ser irremissivelmente desastroso! V. Ex. con-
taminou-se ainda muito cedo na alta sociedade; foi nas salas aristo-
craticas que esperdiçou os dias insontes. volteando em torno a pyra
das seduções! . . . Mentindo a uns e sendo illudida por outros, roçou
afinal as azas de anjo na charneca impura dos desejos sensuaes e como
por encanto viu-se de um dia para outro isolada! A mesma turba que
t hurificava V. Ex., murmurou ao depois; á lisonja seguiu-se o es-
- 138 -

tigma infamante! .. , Com tudo, V. Ex. casou-se, e seu marido dava-lhe


em troca da deshonra um titulo nobiliario!
DR. B E NJ. - V. Ex. tem precedentes nota veis!. . . Escuta-me
ainda. Quando pela primeira vez entrei nesta casa, no dia em que tive
a supr ema honra de penetrar no palacio de V. Ex. , (já lá são 3 m ezes)
desde logo reconheci que um homem a requestava.
BARON. - E' demais, já não me posso conter!
DR. BENJ. - Depois tive a coragem n ecessaria para seduzil-a e
no fim de 15 dias, no curto espaço de meio mez, V. Ex. repellia a côrtc
d 'aquelle para aceitar a minha . Nunca pensei que V. Ex . fosse tão facil !
BARON. - Cale-se!
DR. BENJ. - V. Ex . é realmente uma Omphalia! . . . Está choran-
do, baronesa? ... E ' verdade, não devo importunal-a mais . .. Até logo .
Hei de voltar para conhecer então quem é o Dr. Paulo de Ben
jamin. (Sae) .
SCENA III .
Ba1·onesa e depois o criado.

BARON. (com odio) . - Infame! ... Seja qua l fõr a minha e xpia-
ção, juro que não realisarás esse casamento! Basta de ser escrava! ...
CRIADO (annunciando) . - O Sr. commendador Torres.
BARON. - Acompanha-o até aqui. Eis um raio de esperança!
SCENA IV .
Baronesa e o comn1enclador Torres.

BARON. (apertando-se as mãos). - Esperava -o a nciosa.


COMMENDADOR - Teria vindo logo que recebi o bilhete de V .
Ex ., porém demorou-me wn negocio urgente.
BARON. (indicando ao commendador a cadeira junto ao sofá). -
Sabe quanto possuo, commendador?
COMl\lIENDADOR (sentando-se ) - V. Ex . deve possuir (calculan -
do ) approximadamen te mil contos de réis. . . m il contos mais ou
menos ....
BARON. - Calculou b em (pausa ). Como V. Ex . foi intimo amigo
de meu marido, e tenciono dar um passo arriscado, preciso consul-
ta l-o, antes àe o fazer.
COMMEN DADOR. - Um passo a rr iscado?! (á parte) Algum novo
roinance.
BARON - Da sua approvação ou r eprovação vai depender o m e u
destino. Penso em casar-me.
COMMENDADOR. - V. Ex . está gracejando.
BARON. - Não sei porq ue se admira tanto! Amo e sou amad a.
( Adelaide appa r ece á esquerda e occulta-se de quando e m quando ). O
ciume levou-me á e xcessos ... O cium e é sempre assim ; leva-nos até ao
crime muitas vezes! • Por ém ... sinto-me hojo mais feliz do que nunca .
Estôu convencida de que me ~ma , porque ouvi de seus labios a phrasc
sublime de u ma paixão incendida!
COMMENDADOR. - E poderei saber quem é o futuro marido de
V. Ex .? Naturalm ente o Dr . Ban jamin .. .
BARON. - Julio d' Aguiar. (Adelaid e mostra uma terrível emo-
ção). '
COMMENDADOR (com espan to) . - O Sr. Julio d 'Aguiar ?! . . ..
BARON. - Jesus, que admiração faz o commendador!. . . ·
- 139 -:-
COMMENDADOR. - Não é para menos, baron esa!. . . (á parte )
Q ue tratante !
BARON. - No en tr etanto, commendador, uma cousa me preoccupa
seriamente . Julio é moço e sobre tudo cheio de elev adas asp irações .. " A's
vezes vacillo ; não sei p orque u m véo d e tristeza desce até a minha
a lma e arreceio-me do futuro . .. Se t ivesse 20 annos não faria a m enor
reflexão , p orém hoje .. . tenho soffrido tanto n 'esta min h a vida!
COMMENDA DOR - Mas desde que V . .Ex. tem certeza de que o
Sr. Julio d ' Aguiar ...
BARON. - Se tenho certeza do seu amor ! . . .
COMMENDADOR. - Então. . . n 'esse caso. . . qualquer alvitre
seria desnecessario. ·
BARON - Julio fingia amar Adelaide para despertar-me o ciume.
Na ultima partida que dei, porém, n'um d'esses momentos de arro u-
bos, abrazamo-nos nas chamas ethereas d e um amor indeffinivel!
Que nóite feliz!
COMMENDADOR. - Então o que houve, aquella?! ...
BARON. - Uma combinação apenas para arredar quanto antes
Julio do coração de Adelaide .
COMMENDADOR. - Eu só tenho a d izer que V . Ex . já conta
alguns annos de experiencia. O que fizer está bem feito.
BARON. (á p arte ) - Passemos á segunda' parte. (Alto ). Mas não
.f oi só para isto que o importunei, commendador. Respondo pela di-
vida de meu irmão. Não calcula como me dóe na consciencia não ter-lhe
prestado o auxilio que dev ia por todos os títulos. Reconheço que
fui má ou caprichosa. . . Nunca , porém, é tarde o arrependimento, nem
o benificio. . . Trouxe a lettra? Estou prompta a resgatal-a immedia-
tamente. .
COMMENDADOR (confuso). - Se eu tivesse advinhado ... se
V. Ex . escr eve-me duas horas antes. . . Agora é h umanamente impos-
.sivel.
BARON. (inquieta ). - Impossível? ! Porque? !
COMMENDADOR. - Vendi-a . ..
BARON. - A quem?! E as suas pretensões então ?!
COMMENDADOR. - Desisti.
BARON. - Disistiu! ! ...
COMMENDA DOR. - Refleti melhor. Duas hora antes de r eceber o
bilhete de V . Ex. j á a letra estava em poder do Dr. P aulo de Benjamin.
BARON. (como aterrada) . - E m poder d 'elle! !
COMMENDADO:a (proseguindo). - Desisti por duas razões po~
-derasas. A primeira porque realmente commettia uma loucura sacrifi-
cando 100 contos de réis por uma mulher. . . Não sou tão rico como por
ahi suppõem. A segunda porque não gosto de inimizades com medicas . . .
V. Ex. não imagina que inimigo terrivel é o tal Dr. P aulo de Ben-
jamin! ...
BA RON . - O Sr. é um poltrão!
COMMENDA DOR (em acto de sahir). - V. Ex . póde dizer o que
1he approuver . . . está em sua casa .. .
BARON. (ap ontando -lhe a porta). - R etire-se!
COMMENDADOR. - Eempre ás ordens de V . Ex . (Sahe ) .
SCENA V .
Baron esa e depois Adelaide.

BAR ON. Coragem, coragem agora até o fim! (Para Adelaide


.que entra ). O que quer aqui?
- 140 -
ADELAIDE (com desespero). - E' verdade queV. Ex. vae casar-
se com o Sr. Julio?! . . . Pelo amor de Deos, não me illuda; diga-me a
verdade baronesa, eu lhe suplico . . . Custa-me a acreditar, V . Ex ..
BAR0N. (dando-lhe as costas) . - J á fatigam as suas lagrimas!
ADELAIDE - V. Ex. não póde avaliai-as, porque nun ca chor ou
talvez! (A baroneza encara-a com odio). Comprehendo agora tudo! .. .
Está explicado o seu empenho em querer unir-me ao commendador
Torres! . . . Custa pouco ceder ;:, coração dos outros, quando se tem per-
d ido o coração! . . .
BAR0N. - Atrevida!
ADELAIDE. - Póde insultar-me, aprc veite o ultimo dia . Amanhã
estarei bem longe d' aqui . . . Cumpra-se o meu destino, que não tem
outro a engeitada!

SCENA VI.
As mesmas e Fernando de Maganhães
BAR0N. (á parte) - Propicia occasião.
ADELAIDE (beijando a mão de F. de Magalhães) - Bom dia ,
padrinho.
F. DE MAG. - Porque tens os olhos arrazados de lagrimas?!
( á parte) Como estou ar rependido!
BAR0N. - O commendador veio procurai-o para saber da res-
p osta.
F. DE MAG. (á parte). - Meu Deos!
ADELAIDE. - Consultou-me hontem pela segunda vez e a minha
resolução está tomada ... Vou para um convento, meu padrinho.
BAR0N. (á parte). - Veremos quem ganha a partida!
F. DE MAG. - E julgas que serei capaz de consentir, Adelaide ?!
Nunca, minha filha , enxuga os teus olhos queridos! ...
ADELAIDE - Deixe-me ir, é o lugar das orphãs desvallidas
e das engeitadas. Deixe-me ir, prefiro a tunica da freira ; m il vezes
a soludão e terna do claustro a pertencer a u m homem que n em me
in spira amôr, nem odio. Ali ao mens, afastada d'esta sociedade gue
abomino, surda ao cortejo da miseria e da lisonja, eu serei feliz no
meu isolamento. Antes os cilícios da irmã da charidadde que esses
mil ouropeis com que o marido adereça a victima de suas ferezas para
occultar aos olhos ávidos da sociedade o pranto inconsolavel da virgem
incauta! Quantas não choram ahi amaldiçoando a familia , que lhes
ergueu o holocausto?!
F. DE MAG. - Tens razão , Adelaide! .. .
ADELAIDE . - Não sei o que tenho feito para soffrer tanto, nem o
que deve o Sr. áquelle homem para querer sacrificar a minha existen-
cial
F. DE MAG. - As tuas recriminações são justas . . .
BARON. (abatida; á parte) . - Q ual será o f im d e t udo isto!
ADELAIDE. - Mas não posso , nem devo ficar m a is u m d ia n 'esta
casa . .. Quero ir para um convento .. . Sabe o que é perder uma espe-
rança que resumia um futuro?! . ..
F. DE MAG. - Não te comprehendo!
BAR0N. - Adelaide tem razão de não ficar nem mais um dia
aqui. . . Confesse : o Sr. pôz em almoeda o futuro d'esta menina! ...
ADEL AIDE (sor presa ). - Meu Deos!
F. DE MAG . - Até a senhor a?!
- 141 -

BARON. - A mascara d evia cahir! Vamos, tenha coragem! .. .


Não é verdade que ia fazer d e um penhor sagrado ...
F. DE MAG (baixo á baronesa) - E o que fez de sua hon ra ?
(Em acto de sahir).
BARON. (aterrada). - Ah! . ..
ADELAIDE (chamando) . - Meu padrinho, meu padrinho!!
F . DE MAG. (voltando-se do fundo) . - Elia tem r azão; teu J.í)a-
drinho é um miseravel! (enxugando os olhos) .
ADELAIDE (cahindo-lhes aos pés) . - Oh! essas lagr imas ~ó
derrama o coração de um pae!

FIM DO QUADRO 3.0


TANCREDO
VI.

Tinham decorrido trez m ezes.


Já n ão estamos no estio, r eina o outono triste e m erencorio como
as brumas do crepusculo, despindo as galas com que as estações pa:--
sadas adornaram a natureza ...
J á o aláude da sabiá traduz a melencolia da solidão e a flores ta
transforma-se, porque a estação que impera arra nca-lhe as roupagen s
verdej a ntes e amarellece-lhe a cônrn , onde se ouve a cicio não interrom-
pido das folhas que cahem.
A viração que corre, não v em mais arroubada dos perfumes dos
rosaes, n em da poesia das auras estivas.
lVIas deixemos o outono e a na t ureza em suas transições e reate-
mos o fio da nosso narrativa .
Procuremos os protagonistas.
Onde vives, Tancredo?
Teu amor, poeta, é ainda existe ncia bafejada com o h alito da
fé ou r eminiscen cia de um sonho esvaecido no embryão'?
Acaso o simum destruidor feneceu em sua passagem as flores deli-
cadas que teu coração brotou tão cheio de enthusiasmo e de crença ?
Joven p eregrino, cançaste na romaria, ou nella não encontraste o
marco, onde podesses repousar a fronte suarenta , ou o regata que
saciasse tua sêde febricitante?
O que tens, romeiro ?
Tua fronte aureolada de mocidade, aninha uma ruga que surge
como um ponto negro n 'um horisonte côr de rosa . . . Teu olhar lampeja
como a chispa fulgente que rasga o manto de velludo negro do céo
tempestuoso e tua face pallida parece que velou a noite do sepulchro
de uma convicção . ..
O que é isto , moço ?
São zêlos ...
E quem amou, que não os teve?
Não machuques assim teu coração juvenil com uma leve descon -
fiança , nem aljofres com lagrimas a quadra dos sorisos . ..
.E tu , anjo da mocidade, abre as azas alvinitentes e abriga , espar-
gindo p erfumes da flor da esperança, sua fronte que pende alquebrada
pelo desalento.
Sentir o desanimo n o verdor dos annos, na idade dos sonhos e il-
lusões é cobrir com crepe a alma rescendente de crenças e fazer o co-
ração assistir em vida seus proprios fun eraes.
Não, Tancredo, teus vinte annos repellem essa velhice prematura ,
que jamáis poderá apagar o fulgor da estrella de teu porvir, não tens
a descrença n 'alma , mas sim o sceptcismo no coração ; o que te abate
é a duvida e não o desengano.
- 143 -
Corramos a cortina que intercepeta as escenas passadas nestes tres
mezes.
Tancredo não frequentava a casa de D . Margarida e fugia sempre .
<las ocasiões opportunas sue podiam favorecel-o, ou nascidas .do acaso .
ou proporcionadas de ambos os jovens e com ella sympatisando, que-
riam c01n a convivencia, entrelaçar a· inclinação que nascera de um p ara
outro; mas o moço evitava, diz.e ndo coms!.go:
Ma rina não é o ideal criado para esvaecer-se á primeira rajada da
realidade, nem a flor colhida nas minhas correrias de moço, p ara p er-
fumar algumas paginas do l ivro da juventude ...
Não, minhas pretensões aspiram mais; quanto tem ellas de nobre
e puras!
Quando minha posição sócial conceder-me recursos com que não
escassêe o necessario para partilhar com umo outra pessoa, eu não te-
r ei necessidade de ser apresentado; apresentar-me-hei sem auxilio de
ninguem, e dir -lhe-hei:
Amo-te, lVIarina , foste a esperança de meu passado, sê tambem
fé do · meu fut uro, vem commigo povoar a solidão do meu lar, onde
a
não existem minas de ouro, mas ha thes:mros de amor infinito!
Vem commigo. Eu converterei em flores o caminho que trilhar
teu pézinho de fada , embor a a terra ahi árida, só brote cardos; que-
brarei as cadeias do impossível, n em jámais crer ei em obstaculos,
crendo em ti. 1'ir-lhe-hei tudo isto e mais• que .o coração discer-me.
Não, não quero ser recebido ainda em casa de Marina, não irei
-emquanto não tiver a posição que almejo, modesta sim, mas necessa-
ria para a felicidade minha e d 'ella. '
E de que me serviria fre quentar sua casa, sem ter meios de r eali-
sar minhas aspirações?
E se em vez d'esta resolução , me relacionasse com D . Margarida
e a visitasse e a fortuna adversa que me persegue, persistir em acom-
panhar-me, forçando a espaçar por mezes, um anuo ou mais de um ,
porque minha união com sua afilhada pende de uma questão de tempo ;
minha amisade e assiduida d e não deporiam fortemente em desab ono
d e Marina, quando a calumn ia prompta a envenenar as intenções mais
puras, arremeçasse seu nome tão caro ,para mim, aos commentarios d o
mundo tão avivo de chronicas escandalosas?
P or certo que sim. Eu não irei aos pés d 'ella derramar m inha
a lma apaixonada n 'um extasi, mas tambem jáma is trançarei uma corôa
de espinhos, para enlaçar sua fronte de anjo.
Não irei. Se ella ama-me, não será n ecessario que eu lhe digaque
.esepere-tne; esperar-me-ha porque quem ama , cr ê e tem fé .. .
Se não amar-me. . . subirei o Golgotha r esignado, abraçarei a '
cruz, esfolhando as saudades de mihhas primaveras perdidas, e na im-
possibfüdade de u'm fu turo risonho que sonhei, viverei do passado tão
cheio de affectos, bebendo n as recordações o balsamo do consolo.
Quem não approvará essa lingu agem filha de uma alma delicada
e nobre?
Quem reprovará o procedimento tão louvavel do virtuoso moço?
Ninguem ...
Vejamos agora, que sabemos já a s causas porque Tancredo não
buscou relacionar-se com D. Margarida, se os seus zêlos tem os mes-
mos fundamentos e a mesma equidade em que basea -se seu procedi -
mento tão louvavel quanto honesto.
A duvida que grassa no coração do jovem será bem fund a?
As roupagens puras de Julieta terão sido trocadas por Marina
pelos _vestidos_. cortezãos de Dalila ?
- 144 -
O córação da virgem embeberá tão cedo o philtro venenoso da
tra ição , ou a alma apaixonada do moço é coisa de mais, porque
muito ama?
Quem sabe. . . tudo é possível. . . busquemos porém a realidade,
a bandonando o terreno das Sl:l.pposições.
VII.

Zêlos! . ..
Que estrophe de amargura é essa que desata a l yra dos amores,
entrecallando endeixa s entre os carmes doces e su a ves, que o alaúde da
alma apaixonada sólta?
O que sois? .. .
Qual mão estranha tocando a pudi ca sentiva, que retrahe-se me-
drosa e timid a, assim os zêbs fazem cur var a fronte entrestecida de
Tancredo.
Zêlos! .. .
Q ue sentimen to é este q ue cr esta o sorrizo n os labios e esvaece no
coração a esperança em flor?
O zêlo é a duvida, e a duvida atrophia o coração que ama .
l\lTa s quem amo u, que não os te ve? .. .
E q uem amou que n ão sentiu o san gue galopar nas ve'.as, o cora-
ção entumecer dorido, e a fronte empallidecer tristonha a essa palavra
- zêlo?
A d uvida m ata m a is que o d esengano, alliment a illusões para logo
desfazei-as, br ota a luz para a espan car com as trevas, aviva a fé para
arrojai- a com mais vehemencia na p y ra incendiaria do sacrifr::io, im-
molando m il convicções nobres no athaúde da descr en ça .
A d uvida - é o suicídio moral n'um corp o com vida, é a agonia
do espírito.
E ' ella que cria um mundo infinito e u m h orison te sem raias,
oceano sempre revolto, patria do vendaval e ninho da vaga que em
cada espanejo cava um tumulto, onde soçobra a vela alvacenta da espe-
rança.
Mas. . . a gora que nossa leitora sabe que a r nga que sombreia a
-fronte pallida do moço é filha d'um sentimento profunda, é preciso que
narremos como nasceu essa desconfiança em seu coração suscetível.
N'um dos capítulos precedentes dicemos que Tancredo desde que
abandonára os velhos habitas de sua solidão, quasi que diariamente
dedicava uma hora de passeio para v er Mar ina, momento de magia e
encanto que elle sentia, e Único passo que o tímido moço ousára dar em
favor de seu modesto amor. .
Assim tinham decorrido trez mezes, nos quaes Tancredo colhera
sorrisos em sua romaria, como esperança em seus amor es, sem que
uma nuvem negra sequer toldasse o céu dourado de seu sonhos ...
A ssim tinham decorrido, mas o tempo que ' tudo muda, criava uma
nova phase, rasgando a gase de um n ovo horisonte, ainda encoberto
na penumbra do futur o.
Uma flor mimosa e linda tem sempre admiradores.
Marina era b ella, valia uma luta ...
Tancredo tinha um rival . . . eis a explicação aos soffrimentos do
moço. Pertence-nos agora procurar seu adversaria no meio d'este tur-
bilhão de povo que passa, para apresental-o á nossa leitora .
Busquemol-o.
Eis ali um vulto que destaca-se no meio da turba .. .
Bellos dotes, phisionomia agradavel, ademans de cavalheiro e figu-
- 145 -

ra aristocratica, são qualidades que distinguem o jove m Jorge da Silva.


Tem apenas vinte e trez annos, é capitão, senhor d e uma fé de
officio que segm;ido dizem, conta desesete combates, treze cicatrizes e
não sei quantas commendas e habitos.
E' filho da norte e natural da cidade de Ouro Preto. ·
Qualidades acesorias ornam em profusão o jovem guerreiro; col,
lega algum · excede-o na delicadeza e mimo com que ata um laço em
sua banda, nem habilidade de calçar uma luva de pelica branca para
um dia de gala ; traja com gosto e á parisiense, porque desagrada-lhe
o trabalho nacional; é moço de espírito e gosa da reputação de possuir
uma intelligencia não vulgar.
Eis nem mais nem menos o rival deTancredo.
Para cumulo de felicidade Jorge soubera attrahir a sympathia d e
D . Margarida, que boamente concedia-lhe a palma de superiorídade
sobr e Tancredo, quer pelo lado social, quer m@ral; muito embora não
conhecesse intimamente nenhum dos dois moços, o que tornava impos-
sível um juízo seguro.
Por isso, quando encontrava a afilhada com a fron te inclinada
sobre o peito, como recolhida em uma profunda meditação, momen tos
estes em que talvez Marina buscasse ante sua consciencia uma solução
aos acontecimentos que march avam, ella evitava-lhe uma insinuação
esperando uma resposta que fosse favoravel ás pretenções de J orge, seu
protegido.
- Quem pensa, não casa, Marina, d!.zia D. Margarida, servindo-
se o velho annexim popular, para conseguir desvendar os intimo::;
pensamentos da jovem.
A moça sorriu se, ainda que contrariada ...
Dir-se-ia que a aza da p halena em seu adejo, roçára a sensitiva
q ue retrahia-se ferid a em seu pudor angelico ...
- Penso em cousas mais futés do que sérias, meus pensamentos
voam bem longe do ponto onde os julgo ...
- Bravo! . . . r oseguiu D. Margarida com malícia, não posso
deixar de admirar tanta- discripção em tão verdes annos . ..
- Madrinha, replicou a moça amuada, tentando por ·este modo
evitar uma conversação que podia arrastar o desenlace sobre o as-
sumpto; já vej o que quer adv'inhar á força .
- Eis o que chama-se vaidade de moça bonita ... -
- Como assim!?
-Simplesmente. Não é necessario muita perspicacia para sabei
o que vai dor uma cabeça de deseseis annos como a tua, ornada com
os primores da belleza e aureolada com os tributos da admiração .. .
_ Disse muit a cousa bonita, continuou a moça sorrindo-se, mas
sem ter advinhado nada. _
- Com razão justificada, porque não concedeste-me liberdade
para expandir-me.
- Fica concedida bda , minha madrinha, diga-me qual era a
causa da minha meditação, já que se mostra tão cheia de sua pene-
tração.
_ Presta-me attenção e escuta-me. Imagina que esta sala mo -
desta em que achamo-nos, converte-se pelo poder de minha palavra
em um jardim, e que cada objecto que encerra, não excluindo-te mes-
mo da minha colieção de objectos ...
Muito agradecida ...
Torna-se pelo mesmo modo uma flor .
Ah! e eu passo a flor?
- 146 -

- Si m . e como de todos és o de mais valor , faço-te rosa, que


e ntre suas irmãs sempre symbolisa a realeza .. .
- Muito bem, serei a rosa; mas Vmc. o que será minha madri-
nha? interrogou a moça inteiramente interessada pelo castello no ar ,
debuxado por D. Margarida.
- Curiosa, sou a jardineira , sendo tão cumpridora de meus de-
veres, que estou dando tratos á imaginação para saber que pesares
tem minha flor predilecta que e ncontrei-a pendida no hostil, envolta
n' um mar de scismas ...
- E sab e já a causa dos tristores da filha dilecta de seu jardim?
- Sei, em bora custasse-me muito trabalho e não pouco estudo ,
é uma historia bonita , q ue vou contar-te ...
E eu estimo, estou gostando tanto de ou vil-a .. .
- Lisongeira!. . . Ouve-me, sem licença de me interromper es.
- Ha duas creações na natureza , que sempre teem um prestigio
justo, preitos enthusiasticos; são as mulheres e a s flores, entes insepa-
raveis e tão ligados entre si que não podem amar um sem admirar o
outro, ambos insp irando amores a quem sabe venerar o b ello.
Foram estas as causas que tornaram e ntristecida a minha flor p r e-
dilecta , um colibri e uma borboleta rendem -lhe va ssalagem, e ella in-
clinada no hastil pedia a seus pensamentos intimas uma solução que
não é m ais nem menos do que uma escolha . Está finalisada a h istoria
promettida.
- Concluida!!? ... Sua historia é um e nigma indecifrave l, mi-
nha madrinha, se não quer que eu ignore, ponha-a mais visível á
minha pobre intelligencia .
- Pois bem, r ecorramos a inda á ima gin ação q ue é empr e fertil
em recu r sos. Imagina que a flo r, h eroína da minha historia, és tu; que
os dous vassa llos são os dous pretendentes que aspi r am teu amor e
ter ás facilmente o enigma decifra do.
- l\/Iarida en r ub ecera com um desenlace tão inesperado; tard e
conhecia os rodeios fe itos por sua madrinha para desvendar os arcanos
de seu cora ção de moça. Sentindo-se en tão ferida em sua vaidade por
ter quasi cahido no laço armado por sua m ãi adoptiva , jurou comsigo
não abrir o livr o de sua alrna senão para si, e deixando de lado o agas-
tamento q u e lhe inspira va semelhante procedimento, disse com um
sorriso fu,·çado : ·
- M uito grata lhe sou, madrin ha , pelo papel de protagonista que
concedeu-me cm sua historia .
-- Com sin ceridade, ·M arina, não er a uma escol ha , entre d ous
pr etendentes que fez-me e ncontrar-te meditativa ainda ha pouco ? E
na balança de tua consciencia não concedeste o melhor q uinhão á Jorge,
que com justiça não se pôde negar-lh e?
- Que! p óis é possível , disse a moça erguendo-se, que quem
sa be advinhar, esteja ainda em duvida!? Ah! já ve jo que a madri-
nha lê a buenadicha por vai.dade .. .
- Dizes bem , replicou D. Margarida , assim como tu és discreta
por capricho.
- Ora!. . finalisou a moça soltando uma risada, e retirando-se
da sala emquanto D. Margarida despeitada ficava murmurando en tr e
dentes :
· - Meninas! . . . meninas! .. .

( Continúa).
A MORTE DE UMA FLOR

N' uma aldêa visinha d'esta cidade, habitava ha poucos annos uma
familia, que se recommendava sobretudo pela austeridade de costu-
mes, e pela lhaneza com que obsequiava os viajores que a demanda-
vam em busca de repouso para as fadigas da jornada.
Dois velhos e uma linda menina - compunham essa feliz familia.
Aquelles, chegados . ao ultimo quar tel da vida , consagravam o
tempo em resar as suas contas e dar conselhos á interessante mocinha
sua neta.
Delmira era extremamente amada por seus avós, que nella admi-
ravam a peregrina bellesa da filha que Deos levára para si na prima-
vera dos annos.
Educar a neta nas virtudes que faziam o ornamento da filha ; en-
sinar-lhe os preceitos da r eligião christã; repetir-lhe lições de sã mo-
ral, - tudo isso era tarefa que os bons v elhinhos desempenhavam gos-
tosamente.
, Um_ dia Del mira sahiu a passear· pela campina com permissão de
seus avos.
Era n'uma d'essas magnificas tardes de Setembro.
Que delicia ver as longas !atadas de rosas a inundarem a campi-
na com o seu dulcíssimo arôma.
Que magico encantamento para as almas poeticas contemplar as
arvores cobertas de folhas, as flores a ornarem os campos, e a brisa
em brando cicio entoando um hynno ao creador de todas essas magni-
ficencias!
Horas de poesia! horas propicias, em que o deus do amor per-
corre deliciado a extensão do valle, t ocando com a ponta da setta
aquelles que encontra no seu caminho!
Tu lá estavas, Delmira; tu permanecias estatica diante de tão so-
berbo espectaculo, ainda mais realçado pela purpura do firm amento
e pelo prateado das aguas ao r eflexo do sol.
De repente notou Delmira que ao longe se erguia um monte de
poeira.
Julgou que fosse isso prenuncio de tempestade, e por mais esfor-
ços que fizesse para recolher-se á casa, estava irnmovel ; parecia que
uma força occulta a prendia no lugar onde parára.
A poeira mais e mais se foi approximando, até que Delmira póde
distinguir o vulto de um homem, que montava um fogoso cavallo.
O seu coração estremeceu n esse momen to, mas a sua agitação era
inteiramente desconhecida para a donzella ; um novo sentimento a
inspirava. _
O vulto approximou-se. .
O cavallo vinha furioso ; e as instigações do cavalleiro ainda mais
accendiam-lhe as iras. Assim foi que n'uma carreira vertiginosa o ca -
- 148 -
valleiro foi ao ch ã o, e o ca vallo á dispar ada sum io-se en tr e a r vor es que
ficavam junt o ao mar.
Delmira corr eu para junto do cavalleir o, que era um esbelto rapaz
de 28 annos mais ou menos.
O moço t inha u m leve ferimen to, m as estava semi-morto de can -
saço, v isto q ue não pu dera con ter a marcha ph renet ica d o anim al.
- Delmir a conduzia-o á casa e apr esentou-o a seu s avós, contando-
lhes fielmente o sucesso que se acabav a de dar.
Ajud ada dos b on s velh inhos, Delmira disp ensou toda a sorte de
cuid ados ao h ospede, v elando n oites inteir as á sua cabeceira, depois
q u e uma imprudencia do moço torn ou de gravidade a fer ida.
A n ton io Maria er a um m ancebo imp acien te, que ardia em r aiva
por cau sa do fatal incidente, q u e viera diffi cultar ou d emorar a mar-
ch a regular de seus negocios.
Delmira pouco v iv ia já p a r a seu s avós ; a maior somma de cari-
nhos era p ara o seu doente, a q uem a com panhav a algumas horas n o
dia e durante toda a n oute.
E' que a pobre m en ina n ão via m ais em A ntonio Ma r ia um indif-
ferente, que um acaso trou x er a á sua casa, e que seria esqu ecido ao
dia seguinte do seu resta b elecim ento e partida; D elmir a son h ava um
mundo de felicidades e indefiníveis deli.cias n os braços do homem para
quem o impulso elo coração a a ttrahia .
Amar em silencio ! Que martyri.o não deve ser suffocar no p eito
as pulsações vehem ente, abafar nos labios ungidos de amor a expressão
que trad uza o sentimento que nos enche a alma!?
Que cousa terrível par a a jovem Delmira amar com o fogo d os
15 a nnos, com a força de uma primeira paixão, e ter d e occultar a
todas as v'.stas a luta atroz em que se achava empenhada!
O resultado é que Delmira ficou extenuada de forças; as roseas
fa ces tornar am-se paliidas; os labios de anjo não mais · se e ntreabr i~
ram n'um riso, que resu mia u m poema de ineffaveis venturas.
Delmira cahiu doente quando A n~onio Maria obtinha licença par a
erguer-se do leito, e fazer cu rtos passei0:: pela manhã e ao cahir da
tarde .
O moço não voltava da sua digres ão sem trazer. á sua enfer meira
uma flôr colhid a no campo, cujo perfume ella sorvia a lon gos haustos,
dep ositando-a depois junto á cama.
Completamente curado e já r eanimado das perdidas forças, Anto-
nio Maria desp ediu-se dos seus bemfeitores, protestando aos velhos
p erenne gra tidão, e desejando a Delmira um marido, que pudesse dar
o devido a preço a um thesouro de tão alta valia.
Que espinhos tão crueis a lancearem o coração da pobre menina!
Para não ouvir taes palavras, Delmira fôra capaz de fa zer o sacri.-
f icio d a sua existencia .
Ver morrer n 'um instan te os sonhos doirados que a sua phantasia
creou· ver fugir o esposo que o coração escolhera, sem q ue nunca
lhe h~uvêsse dito uma só palavra de a mor; sentir v iuva a alma d os
novos affectos que silenciosamente se fora m nella creando, eram lan-
ces horriveis a que não podia resistir Delmira, já enfraquecida por
alguns dias de molestia. . .
Os v elhinhos t udo envidaram para salvar a d esditosa criança , so-
bre quem concentravam todas as suas esperanças e affeições; mas es-
tava escripto que mais uma pagina de via enche r-se no livro dos mortos.
Uma man hã Delmira q u iz despedir-se d os lugares onde se creára
e q ue haviam sido testemunhas da ve ntu ra d os seus primeiros a nnos ;
n ão a d issuamr--a:u do seu prop osito as obj ecções feitas em ' contrario.
- 149 -
Sahiu; percorr e,' o seu jardim; osculou as flores iriadas de or-
valho, que o vento da noite fechára e os beijos da manhã iam abrindo ;
pelos seus bellos olhos negros rolaram duas lagrimas, bastantes para
expressar o sentir de sua alma.
Olhou para tudo com tristeza e voltou pausadamente para casa.
Os velhinh os seguiam-n'a, occultando as lagrimas que lhes hu-
medeciam as palpebras.
Chegada á casa, Delmira tomou um espelho e olhou-se.
Que melancolico riso lhe pairou nos labios! A victima resignada
via prestes a consummar-se o •Seu sacrificio, e sorria talvez das tran s-
formações que a molestia lhe fizera nas candidas feições .
Depois dirigiu-se ao oratorio e permaneceu largo tempo de joe-
lhos toda entregue á oração. Delmira confessava-se á Deus, e pedia-
lhe perdão de tudo haver esquecido para amar com todas as veras
d'alma.
Os avós lançaram lhe a benção, e Delmira exhalou o derradeiro
suspiro com as m ãos erguidas ao céo e um riso angelico n os labios .
Pobre menina!
Morr eu por ter amado tanto, sem ser comprehendida!
O seu espírito alou-se ao seio de Deos, e o seu cor po ao dia se-
guinte era levado ao cemiterio.
Infeliz Delmira! o teu primeiro, o teu unico amôr foi tambem a
corôa do teu martyrio.
F lôr m imosa, nascida aos osculos da m adr ugada, acalentada aos
raios beneficos do sol, pendeu na haste ao sopro da ventan ia da noute.
Anjo de br ancas azas, passou sobre a terra immaculada , para ir
ajoelhar-se aos pés de Deos.
- oOo-
Os velhinhos n ão sobreviver am ao golpe.
Tendo v ivido da vida d'aquella m enina, seguiram-n'a na morte!
Aurelio de B ittencourt.

lnst. Hist. - 10
POESIAS
A F F ONSO MARQUES .
Amanhã gelida a fronte
Das lutas na desventura
Quem sabe na sepultura
Não sonharei mais em vão!

Affonso Marqu es .

AI! descansa um vulto n o silencio! Qua ndo lá da montanha o Nazareno


Os olhos j á sem luz estão cerrados, O suspiro fina l soltou pungente,
Os labios sem calor : Toda a terra tremeu!
A vida que inspirãra aquella fronte E perante as nações em lettras igneas.
O simun passageiro arreb atára Como as que Constantino viu nos ares
Nos m a rtyrios da dor! Mais um facto escreveu .
Porque se perde o pensamento huma no E o morta l ao nascer vê no horlsonte
Quando se arroj a n esse ch á os immen so, O sublima do s igno do Calvarlo
E o não pôde vencer? Abrasado d e luz !
E ' qual madeiro que no mar lançado E den tre os céos e o mundo levantar-se
A' tona vive n o vaivem das ondas Uma estrada r isonha e florescente:
Sem nunca perecer! De Jesus Christo a cruz!
o filho do Himalaya a rdendo em crenças Eu pobre caminheiro desta vida
Vai ao fundo do Ganges ver a morte Trago as flores m ais puras e singelas
Quando pensa nos céos: - Da saudade e do amor.
A ch a mma que refulge-lhe na mente E n essa cruz funerea que se eleva
E' que além d' este mundo existe um outro : Entre a minha exlsteucia e a eternidade
E' o institncto d e um Deos ! Hoje as venho d epôr!
Millevoye, recorda-me o caminho Oh! possam elas lembrar que os sentimentos
Que leva -nos d a terra ao lar celeste Que o pra nto me derrama d en tro d'alma ,
Além da cruz, do pó! Te perten cem, são t eus! .. .
Ensina -me a vereda d 'esse mundo, E vive lá no céo feliz e grande
Essa escada fatal com que sonhaste, Por sobre o p edestal d e .tantos louros!
Como outr ' ora Jacob! Adeus, Affonso, adeus.
Ah! se eu podesse p rescrutar o arcan o
Que guarda a lousa soliaria e m u da Agosto- 1872.
Na t réva sepulchral! .. .
Problema santo que só Deos decif ra:
Mas esperem os que se a corde o can to
De J osa ph at n o vai! J. e. L. Barreto.
- 151 -
RECITADA N' UM DIA DE ANNOS. AGAR.
De quem fôra t ão querida
Se q uiz a sorte que privada fosses Lá va i ella re!)ellida,
Dos mimos d ôces do p aterno a môr ... Lá caminha a pobre Agar!
Que no teu dia nata llcio, ao menos Nos braços leva seus filho ,
Não venhão threnhos d e a fflictiva dõr! Do deserto segu e o trilho,
Lá vai a triste a chorar.
Desça a alegria a illuminar-te os seios ,
Dê-te os enleios de um supremo gôso ... Por muitos dias, errante,
Que a poz as !netas da procella escura Desnort êa a escrava a mante
Vem da ventura perennal repouso. Nos p la inos d e Bersabé ;
Incerta, vagueia á tôa ,
Reviva a esp 'rança n o teu seio virgem . Bem co1no a. ave que vôa,
Demanda a origem d o supremo b em, Sem achar abrigo ao pé.
Semeia affectos n o correr d a vida,
Bu sca q uerida, o q u e dos céos só vem! Ao ardôr da. intensa. calma
Sente a dôr no fundo d 'alma,
E se algum dia te mostrar a sor te Quando ella o filhinho seu
Que és pouco fort e p 'ra munda n a cruz . .. Vê chorar d e fome e sêde!
Tens no m eu seio maternal conforto, Ergu e a vista, o espaço mede
Tens p 'ra o teu horto d aminh'alm a a luz ! O desert o abrange ... o céo !
Filha querida, nest e dia ao menos Sem um raio áe esperança,
Não venhão thren os de afflictiva dôr .. Ao ver d e sêde a criança
Se d eu-te a sorte da orph anda d e os louros Offegar, perder a côr ,
Tens os t hesouros do materno a m ôr. Sob uma arvore que via
A pobre escrava judia
Fol o menino depôr.
Ou tubro-1872,
A !Tlãe não tinha coragem
Para ver do filho a imagem
Athos. Fria, immovel se tornar ...
·'Vê -lo assim morrer não q u ero!"
Disse a escrava em desespero,
Disse a mãe a soluçar!
Mas pae é Deos por essencla
De desva.lida innocencia:
A voz do menino ouviu.
Um beijo. E, juncto á mãe succumbida,
Do Senhor logo em :1eguida
Anjo formoso surgiu.
Meu anjo, escuta: s'eu ou sasse agora,
Submisso tís plantas de teu t alhe a ltivo , Chamou por ella o enviado:
Pedir em paga d'este amôr - um beijo "Aqui neste descampado,
De a ffectos ch eio ... d'um penhor captivo; O que fazes tu, Agar?
Não temas, toma o menino,
Responde: acaso negarias, bella, Que a estrella do seu destino
Ao pobre vate que t e adora, ai tanto ... Inda muito t em que andar ..
- Um b eijo, um riso d'esperança infinda,
Um leve abraço de sublime encanto? "Teu filho, debil renôvo,
Será pai de um grande povo
Não creio . - E's boa, carinhosa e terna; Povo de eterna missão!"
Melga pombinha que seduz, que prende! E ergueu-se, e viu a escrava
Não pôde em meio a candidez d'essa alma Fonte do céu que espelhava
Brotar a chamma d 'um amôr que offende O porvir de uma nação!
E's boa e bella . . . Tanto amor Inspiras Deu ele beber ao innocente,
Desejos tantos - qu'inda mais não ha! · Que alli 1io deserto ardente
Por mais que o queiras recusar meu anjo Altivo e forte cresceu . ..
Não creio, archanjo, que tu sejas má! Tornou -se um habil frecheiro,
Chefe de um novo altaneiro.
Dâ-me portanto de teus labios, anjo , Que muitos pCrv·os venceu! ·
Um beijo em paga d ' este amôr que é teu:
- Unico anhelo - qu'ispiraste ao vate S tará se1nore na memoria,
Quando a teu lado tão feliz viveu! Eterna sei~á ua historia
Essa escrava d 'Israel;
E com fâma a ella u nido
Sctembro-1872 . Esse filho conhecido ·
Pelo nome d 'Is mael.

Theocloro , de · Mirnnd.a . Bernardo Taveira Junior


- 152 -

FOLHA SOLTA
DEVANEIO.
Si tu rêves, je t 'aime ...
S tatue , mais si belle, peut êtr e
Je t'aimerai.
E. Sauvestre .

Ao corr er da noute quando a alma scisma


E vai tristonli.a remontar-se a Deos,
Não sentes pura, divinal imagem
Passar serena pelos sonhos teus?
Um no v o m un d o não asso ma ingen te
Bello, su blime - primavera em flores,
E a ca sta imagem não te estende os braços.
Nã o diz-te : am em os em febris languores ?
Bem como o echo de suave accor de.
De h arpa eolea a melodia infinda , ,
Amuleto santo - do passado os sonhos.
Não vem a fronte te beijar ainda?
Depois imersa n'um scismar profundo
Agr a saudade não te a gita o Ser?
E a crença - incertà como o círio aos ventos.
Não sentes n'alma vaccilar, morrer?! .
Ai vinte a~nos! mocidade ardente,
Virgineo leito trescallando olores,
Poema santo de divinos cantos.
Prisma fulgente de brJlhantes cores! ..

Ou és, quem sabe, d'essas almas gelidas,


Estatuas gesseas - que só tem alvor,
Marmoreas fron tes a quem falta a vida
Peitos de neve p'ra vibrar amor?!
Mirraste acaso as Blusões floridas ,
Crença sublime de sagrado arcano.
Perola solta na -- p oeirenta estrada
Perdeste o brilho no lutar insano?!
Que importa! escuta: que a insomnia ardente
Por noutes longas me quedou a fronte ,
E ness·as scismas de tristura infinda
Amei na febre o teu semblante insonte .

Brisas que passão, trescallando puras,


Doces, suaves, celestiaes perfumes,
E a mente enlevão em languidez serena,
E o peito incendem com fulgentes lumes ;
- 153 -
Assim em minh'alma tua imagem pura
Passou divina, em radiante luz,
E ergui-te um canto como a prece pura,
Que o crente reza nos degráos da cruz! .. .
Só no mysterio; no silencio, a medo,
Tenho um romance de fatal amor;
Abri o peito da tristura aos cantos,
N' essa endeixas que alimenta a dor .
E amei na sombra . . . no deserto a planta
Occulta ao mundo por espesso véo,
Cresce e viceja ou se desponta e m:>rre
Não vio-a a turba, mas o soube o céo!
E tive medo de dizer-te : amo-te,
N'esse delírio de febril paixão;
Quem sabe - estatua em pedestal de ouro
Sorrindo gelida me dicesses - não! . . .
E amei-te muito, do porvir a gloria,
Crença sublime que a calenta a alma,
Tudo esquecera, - se pudera um dia
Do amor nas lutas alcançar a palma.
Mas não .. . A fronte me assellou tremendo
Negro fadario que é mister cumprir, .
Vive em teu leito de virgineas flores
Deixa meu canto n'amplidão carpir! . ..

Affonso Marques.
CHRONICA
O mez que hoje finda não abundo u em novidades, que mereçam
a honra de occupar as paginas da Revista.
O theatro que poderia dar assumpto para largos commentarios já
quanto ao merecimento da composição dramatica, já em relação ao
desempenho, fechou as suas portas, ficando senhores do edifício os
morcegos e as aranhas.
E' verdade que tivemos um concerto e dous bailes; mas posso eu
descer a detalhes sobre essas festas quando a imprensa diaria d'ellas
se occupou desenvolvidamente, com especialidade Degenais, o distincto
folhetinista da Reforma?
-OÜO-

Cessou o combate nos arraiaes políticos.


Os vereadores já fizeram soar a ultima nota do hymno de seu
triumpho ; os vencidos attribuem a causa da perda a este ou aquelle
motivo, e no campo da opposição retemperam as forças para a pugn a
que se seguir.
Ao movimento político, que occupou quasi geraes attenções, sue-
cede outro, que infelizmente passa desapercebido a muita gente.
Entretanto, se confrontarmos os resultados de um e outro sob
todos os pontos d e vista, chegaremos á conclusão de que a provincia
tem tudo a lucrar da agitação que agora se manifesta , e é consequen-
cia da tenacida de de esfor ços do Parthenon .
De facto, em 1868, quando alguns moços, poucos é certo , se con-
gregavam no proposito de arrancar a litteratura á prostração em que
se achava na capital, e fundavam o Parthe non, a sua nobre tentativa
era recebida com o ri so do ridículo por uns, qualificada de arrojada
pela maior parte.
Tendo n'a,Ima a fé e esperança , não descansaram os modestos
lutadores, e dentro em pouco os seus esforços em prol das letr as mere-
ciam unanimes applausos, porque todos afinal tinham comprehendido
que o acto de 18 de J unho de 1868 não fôr a mera d iversão de cr ianças.
Por um trabalho de todos os dias tem a associação consegu ido
muito no seu louvavel empenho; e hoje o Parthenon tem ra zão d e
ufanar-se quando a província, pela voz dos seus orgãos na impr ensa, o
aponta como autor da grande ebu lição que se opera e m relação á
litteratura rio-grandense .
D. Ama lia Figueirôa, inspirada poetisa rio-gr and ense, cujas estro-
p h es ungidas de sentimento não h a q uem deixe de ler com inter esse,
vai publicar um v olume de versos sob o titulo de - Crepusculos.
E m l uta constante com a adversidade, D . Amalia se apr esen ta aos
seus p atricios pedindo pr otecção para o seu mimoso livro, es~r ipto em
.horas de desalento e angustia ; e o publico por to-a legrense, que tan tas
155 -
vezes dá immerecida applicação ao dinheiro, deve animar a distincta
poetisa, incitando-a a mais arrojados vôos, para o que sobram-lhe
· disposições.
Mucio Teixeira, menino de 15 a11nos, e que já figura com vanta-
gem entre os poetas de nossa terra, vai tambem publicar um volume
de suas poesias, a que deu a denominação de - Vozes tremulas.
Formo a mais lisongeira idéa d'essa criança, e faço votos para que
não arrefaça o ardor no caminho que vai trilhando, certo de que con-
seguirá firmar brilhante reputação, se fôr constante ao estudo e docil
ás lições que consocios maJs autorisados lhe ministram.
-000-

Mais dous livros de versos devem ver a luz da publicidade no


Rio de Janeiro.
Os seus autores não são desconhecidos para muitas pessoas em
Porto Alegre.
O Dr. Luiz Guimarães Junior, nos folhetins do Diario do R~o e
em differentes livros já publicados como os Nocturnos, tem demons-
trado as louçanias de seu talento.
- Joaquim Serra, espirituoso folhetinista da Reforma, tambem em
delicados versos nos tem provado que não desmerece de tanta intelli-
genc!ia brilhante que tem produzido a província do Maranhão.
A litterat ura nacional precisa bem de ser enriquecida, e por isso
bem hajam todos aquelles que lhe consagram as horas de ocio.
Trabalhem para eleval-a á maior altura todos os que podem fa-
zel-o ; não lhes sirva de obstaculo o indifferentismo de uns, o máo
julgamento de outros; a justiça do futuro abençoará os serviços que
houverem postado á causa das letras.
Aurelio de Bittencourt.
REVISTA MENSAL

DA

SOCIEDADE

PARTENON LITERÁRIO

-oOo-

2.ª Série - Novembro de 1872 - N.0 5

- oOo-

PORTO ALEGRE
TYPOGRAPHIA DO CONSTITUCIONAL
1 87 2
COMMISSAO DE REDACÇÃO

Vasco de Ara uj o e Silva .


Appolinario Por to Alegre .
José Bernardino dos Santos.
Aurelio Virissimo de Bittencour t .
Francisco J. de Sá B r ito.
Man oel Gonçal ves J unior.

REDACTOR DE MEZ

Man oel Gonçal ves Junior.

DIRECTORES

Achilles Porto Alegr e.


1,·
Hilario Ribeiro.
D. DELFINA BENIGNA DA CUNHA
ESBOÇO HIOGRAPHICO

A província do Rio Grande deve sempre ufana r -se de ter sido


a patria de D . Delfina da Cunha , uma das mais distinctas poetizas
brasileiras- já por seu brilhante éstro, já por sua elevação de espírito.
sobrepujando á desventura, que, tomando-a no berço, foi-lhe guia até
.á sepultura.
Coração cheio de doces sentimentos, alma r epassada de uma tris-
tura infinda, D. Delfina da Cunha modulava carmes que bem expri.-
mião pezares.
Era uma infeliz talvez, que, não podendo vêr o recamo do céo
e das campinas, exhalava suspiros, que gem ião com as brisas em-
balsamadas, e ião transformar-se em h ymnos de adoração c1os pés
de Deos.

-oOo-

Nasceu D . Delfina da Cunha em a estancia do P ontal, de S . J osé


do Norte , em 17 de Junho de 1791 , sendo seus pais o capitão-mór
Joaquim F r ancisco da Cunha Sá e Menezes e sua mulher D . Maria
de P aula e Cunha.
Aos 20 mezes de idade, quando a p r ovíncia assaltada pela epide-
mia das bexigas, D . Delfina, ferida pelo terrível flagello , tinha as fa-
ces humedecidas pelo angustioso pranto de seus pais, que em fervo-
rosos votos, e curvados sobre o seu berço, pedião á Deus a salvação
d'aquella que lhes era doce consolo na :vida, e objecto de seus mais
puros affectos.
Deus ouvio as preces cordiaes que a seus pés subião, e a infeliz
creança ergueu-se, tendo na fronte a luz d ivina da inspiração.
Mas a doença terrível quiz deixar vestígios de sua passagem ,
privando da vista a infeliz apenas no despontar da vida.
Era uma magoa profunda a dilacerar-lhe o coração revestido de
sublimes virtudes, e por certo a causa da doce melancolia que repas-
sava os seus versos.
D. Delfina da Cunha, tacteando nas sombras de uma noite eter-
na, consolava-se nos cantos que produzia como um reflexo de sua alma .
Foi uma de suas primeiras composições o seguinte soneto , em
que traduzem-se os pezares que lhe ião no coração :

Vinte vezes a lua prateada


Inteiro rosto seu mostrado havia,
Quando terrível mal que já soffria ,
Me tornou para .sempre desgraçada.
- 162 -
De ver o céo e o sol sendo privada.
Cresceu a par de mim a magoa impia:
Desde então a mortal melancolia
Se vio em m eu semblant e debuxada.
Sensível coração deu-me a natura ,
E a fortuna cruel sempre comigo,-
M e negou toda a sorte de ventura.
Ne m sequer um· prazer breve comsigo:
Só para terminar minha amargura
Me aguarda o triste sepulchral jazigo.
Que harmonia, e ao mesmo tempo que t risteza!
Mas era natural ; não lhe bastava a luz do genio, e ra m ister a l uz
da vista que a desgraça lhe arrebatára.
Ella ouvia o sussurro dos r egatos, o segr edar das brisas p or en -
tr e as flores, e o modula r das aves; mas n ão via o esm eraldino da~
campinas, o brilho do sol e das estrellas, a placidez dos lagos espe-
lhando o azul dos céos, o magestoso emfim da natu reza.
Se a sua imaginação ardente esvoaçav a á s vezes em r e brill os.
1a mbem subito tombava , assaltado o espír ito pela id éa da desgr aça
q ue a ferira.
D. Delfina era uma poetisa-genio, não v ia o q ue cantava , e no
Pn ta nto dedilhava doces accordes em sua ly r a de oiro .
Sorihos mimosos poavã o-l he, talvez, o espír ito de imagens sera-
ph icas, que lhe inspir avão, e então canticos s;_ngellos desprendiã o-se
de seus labios.
A 's vezes, como que esquecendo pezares, ella começava a can tar
com o riso no coração, e remontava-se fagueira rompendo o espaço ;
mas logo esvaecia-se aquelle riso ao grito doloroso da alm a , deba-
te ndo-se aos vendavaes d o infortunio.
Além da tristura que a a companhava, D. Delfina da Cunha, pas-
sou em 1826 pelo dissab or de perder seu pai, golpe que renovou-se
em 1833, pelo fallecimento de sua boa mãi.
Mai s deserto assim seu coração, e pungido pela saudade filial.
0x halou doridos suspiros, ungidos da mais doce melancolia .
Disse ella em sua justa lamentação:
F oi perdendo-os, que eu vi, que nada via.
E assim , duas vezes de meus olhos
Vi sumir -se essa luz maravilhosa,
Essa luz, que procuro , e que não acho .
D. Delfina tendo implorado a cle mencia do Sr. D. P edr o I. assim
,·0 dirigio á quelle monarcha:
Quem te falla, senhor, quem te saúda ,
Não vê raiar de Phebo a luz brilhante ;
Dá-lhe pio agasalho um breve instante,
Seu fado i migo, em brando fado muda :

A sustentar o peso assás lhe ajuda


De Uma vida que á morte é semelhante,
Não chegue ser afflicta mendigante
Quem um tal protector roga lhe acuda
- 167 -
contemplação d e uma imagem que havia-se encarnado em sua pessoa .
Elle, com os cilios semi-cerrados em doce languidez a via destacar
dentro da retina ; a sentia unida a seu coração, tão unida como dois
cactos gemeos, como dois raios el e uma mesma estrella . duas petala~
de uma mesma flôr.
A imaginação o arrebatava do mundo em s uas azas coloridas ·e
o deixava entrevêr - uma mansão d e felicidade celeste ao lado do
anjo que lhe absorvia todol' os sentidos.
Baterão de rijo á porta, é antes que o despertassem, foi necessa-
rio repeti r as pancadas por varias vezes.
Ergueu-se a o ruido, sacudio os anneis de cabello derram ados so-
bre a testa e foi abrir.
- Que noite horrível! Quem será capaz de a ndar a 1-aes desh.oras
e com um tem poral d 'estes?
Correu os ferrolhos.
A lufada escancarou os batentes.
O mulato, que ha rvüto não lhe apparecia , surgio entr e os umbraes
entrou e . arremessando ae ·si. o ponche talar impregnado d 'agua , cingi0
com ternura o mancebo.
- Com tal tempo, Moysés?
- Cumpro um voto, Avençal, respondeu com solemnidade.
- Qual?
Não obteve resposta .
- Eu te quero como um filho .
- Tenho bem vivas p ro vas ...
Elle atalhou-o :
- Isso não! que não pude dar ainda como sinto aqui, e poz a
mão sobr e o peito. Sabes o que recorda est;;, sala ?
- Um crime que clama vigança
E uma ligeira sombra turbou-lhe o rostc
Pois bem, o pé no estribo e ávante!
Descobriste ! Interrogou com impetuosidade.
Sabes que teu pai, se morreu, fo i fór a d'aqui.
Sei.
Uma viagem ?
P erto, u mas cincoen ta quadr as.
Com escuro partirão. O temp:, estiava e promettia um bonito dia .
Breve deixarão o campo e sumirão-se sob o docel d a folha gem
pendente em laçarias que gotte javão brilhantes á luz matutina .
Irão silenciosos, embebidos em negros cogitares.
Em torno tudo respirava alegria.
Após uma n oite tempestuosa, nada h a de compar avel ao albor
da bonan ça . A vegetação, que aberta , r etoma m a is viço e esmeraldino
esmalte, m ais esp alma e estende as r amas ; o chilro dos passaros tem
mais frescura e melodia; é o idyllio , grand iosos da n atureza , que se
espand e depois de ume espasmo de terror.
O sol já m arcava seis horas, qu ando chegarão junto a uma can-
girana secular .
- Aqui, disse o ca ça dor .
Pararã o.
No chão havia grande parte de um esq ueleto . Falta va -lhe o lad G
direito desde o femur .
- Eis os res tos de teu pai.
O moço curvou-se r everen te , orou.
Moysés fez outro tan to.
Igual motivo os u nia .

lnst. Hist. - 11
- 168 -
. A prece rio sertão é sublime . Parece que Deus deve ser mais . vizi -
vel no 'espectaculo· maravilhoso da creação. Crêr-se hia a li que cada
folha , cada brisa, cada volatil , murmurarão .seu nonie em mystico se-·
gredar, cada gotta esp elha sua immensidade. Quantas vezes o homem.
a sós, no regaço da floresta , não ouve ruidos indefiniveis, que elle não-
p óde adunar no espir ito a coisa alguma conhec ida'? Ora, suave cicio ,
como a nota de uma harpa eolia a prurir-lhe a alma; ora , um som
profundo e mysteriosos a pre mar-lhe o anh elito no labio? Sempre co-
mo uma voz que faz vibrar-lhe as fibras do sensorio , uma por uma ,
c hélmando-o a cogitações transcedentes sobre o immaterial?
Qem . fa lla nas solidões?
D'onde vem o mysterio que recolhe a alma nas mais r econd itas
do btas de sua essenc ia ?
Porque essa especie de· respeito , melancolia e terror , que nos pos-
sue sob o pavilhão viridante das selvas?
Não será a intuição do infinito ?
O mesmo phenomeno moral que observamos nos vastos plaino&
do mar, quando aos pés temos os abysmos imprescru taveis das ag uas.
e sobre a fronte os abysmos sem fim do firmamento?
Por isso cremos não ha templo, onde a oração seja mais s incer a
e mais ouvida.
Em nossas cidades, estabulos e m qu e se cmbotão as sa n tas cre n-
ças e os ternos sentimentos, o labio balbucia geralmente o que n ã o
sente o coração. Dos fieis que enchem o recinto de uma igreja, pou-
cos resão com uncção, os mais satisfaze m as conveniencias socia es
c umprindo a uthomaticamente as fórmulas de uma etiqueta. O culto
das cidades, nos tempos que vão, é urha mentira, uma profanação
consequentemente. Tambem o Senhor não se mostra n::is fócos de egoís-
mo e hypocrisia; não tendo le vitas, n em adoradores. - deixa os rebanhos
co ntamina dos pela febr e do oiro , p elo virus de in ter esses reprovados.
e deixa -os para não vê-los escravos de si , dos vicios e do crime ...
Vae r eceber o voto das a lm as como Aven çal e Moysés .
Erguerã o-se os dois homens basta nte comm ovidos.
Moysés mostrou uma veronica de me ta l n o torso do esqueleto.
- Eis o como o conheci. Sabes onde foi ferido? No coração
traiçoeirame nte . E tirou d 'entre as duas costellas uma faca cravada
até o cabo. Ape nas shio este, o ferro estava carcomido pela ferru -
gem .~
Enterrem-os os ossos e mostrou á Ave nça l uma cova feita .
O moço pr een cheu para com os despojos paternos as ultima s
hon ras fun e bres, r esoluto , porém, sem dizer palavra. O mulato afas-
to u-se por espaço , voltando logo . Trazia a femur e a ossada da p er-
na e do p é.
- Alguma féra levou-os de certo , para longe .
Cheia de terra a cova, puzerão sobre um cruzeiro tosco de ma-
deira , de antemão preparado.
Avençal estendeu o braço para o symbolo das rendenções e dei-
x o u cahir com ligeira emoção estas palavra~:
- Meu pai, mais tres dias, o teu assassino nã o verá o sol n as-
cer .
Voltou--se para Moysés:
- Agora partamos. . . Antes diz quem foi elle. . . Quem foi?
- V ês isto? E indigitou-lhe um esqueiro meio soterrado no solo
e oxidado pela acção do tempo . Tomou-o no chão e en tr egou-o jun -
tamen te cç.m o cabo da faca , que era de chifre com rudes lavores.
- Então?
- 169 -

Con t inuemos .
Moysés!?
- A inda mais provas h e is d e v er .
C 0n tinuemos.
Devar arão mais alg umas dez braças.
Moysés parou . Fez-lhe vêr um novo objeto, q ue pelos vestígios
m ostrava te r estado tambe m e ncr avado na terra. Era um a enorme
ch_ile n a de p rata.
Entregou-a ao moço , que o contempla va com o que m não o com-
p r ehendia. ·
Retroced eu , sem •r esponder-lhe á muda como quem d o gesto, - e
em · ig ua l distancia da cangiraoa, n a parte opposta , col he u_ um fra g men-
t o . d e páq, um tanto e ivado e se mcôr distincta.
- E ra d e cot ia , d isse, foi cabo d e r êlha , a a çoite~r a a podreceu , .
e is o b ~:ra co e m qu e en t r a va o tento e ali está a argola . G il d e Avençal
foi bat ido primeiro com isto . . . aqui . . . A bordoad a a t ordoou-o e
d o poi.5 ch egoua v e z da faca . . . Sim ,fo i aq ui . . . pela ba nd a de l á ,
fug io . . . E erpm ude ceu v er gando a fr en te.
- Ainda não ?
O ca çador fa llou gr ave e p ou sadamente:
- H a cinco dia s fiz a descoberta q ue vês, m eu amigo, me u filho ...
Passe i muito por p erto d esta arvore e n ada v ia . . . A s p rJJ v as d o crim e
esta vã o escondidas de baixo de ga lheira secca e tron cos atr avessad os.
De scobri por um bamb u r ro. E u corr ia uma a n ta. O anima l na ca rre ira
d esembesta d a l evo u a madeira por d ian te e d e ixou-me vêr a ossamenta .
M as e u t r em o em dizer o nome de quem ...
Foi in terompido por um a ex plosã o :
- N ão sou n enhuma crian ça, Mo ysés! S e v ivo , sabes bem par a
q u e é.
- E ntão . ..
E vacillava.
O ' fa lla , p or D eos!
- T e ns na mão o n ome . . . N o cabo da fac a e do rêlho , n o esgueir o
e na chilena . . . Olha a m a rca . . . Corag em, meu irmão ! . . .
O moço r epar ou, d e sprende u um grito d e se pe rado e t er ive l , abra-
ço u- se a o estipi te de um coqueiro , porque os olhos se empan avã o na
ve rti gem ao estala r do cor a ção , e cahio nos braços de Moysés.
A marca e r a a mesma que tinha o gado de José Capinchos.

XIX

A CANGIRANA F UNERA RIA

Tre s d ias d ep ois vamos enco ntrar Aven çal, pallid o como um m orto,
e m s ua esta n cia. 1
Era uma mum ia do q ue f ôra .
A commoção m oral o t r ansfor már a em cu r to l a pso . H a u m quê
de a velhe n tado n 'aquelle corpo no e sflor ir d a juventude , uma ou
o u t ra plica já se esbóça n os braços hontem ch e ios d e fr escor e vida ,
ho j e sombr e ados por u m d esalento pre cursor da morte.
As velhice s prematuras são como os fructo s lampos, trazem no
seio acé tico amargume, qu e tr ansparece na p allor d a ep id erme.
O moço está a espera de alguem.
Pel as quatr o horas da tarde ouvio-se o chouto de um cavallo. Elle
chegou á janella . Um a ncião d e barbas bra ncas e l qngas, cutis t ostada
com vin cos profun dos e v e r t icaes no esvã o d a sob r ance lh a, olhar vi--
-- 170 -
perino, n ar iz adnnco como o do caracar á, apeou-se do animal, onde
os arreios de1,de a badana até a carona .iriavão mil fulgores de finas
pra ta s. O rabich o , o freio , a testei.ra ·e as cannas das redeas de delicada
lonca, não carregav ão rnenos thesou r os .
E ra José Capincho.s.
Fizerão mutuos cumprimentos.
- Entonces, que retirada de nossa casa _, Avençal? A Rosita não
e stá muito ás boas comtigo . . . Não queres d e ix a r mais a querencia ?
- Não é ; vou partir. O cavalheiro de Amaral está e m perigo d e
vida. In imigos poderosos o rodeião . Vou partir e quem sabe se vol-
tarei!? Moysés a companh a-me , por isso re tir o-me e ntregando-lhe a
administração da estancia .
-- Mas que tu t e ns l á com os negocios dos outros ?
- Amaral foi um pai que d eparei. Minha vida e haver es p erten-
cem -lhe, desde que os queira.
- Faz o que t e bacore ja o coração; porém e o casament o ?
O moço empa llid e ceu, m as com esfor ço hero ico respondeu sem
t itubar :
- Nada a rrecei.e. S e pari.o, deixo a al m a aqui. T en h o um th e-
souro occulto a li na ser r a , e como posso morrer vou confia l- o.
Um thesouro?! E os olhos la mpe jarão .
Ouro em p ó, e fito u -o com pen e traçã o.
Em negocios d e viver e morrer . ..
O Sr. ficará meu he rdeiro un iver sal . . . Esper e -me emquanlo
vou de centerral-o.
E ' l onge? pergun tou.
Não muito, uma .legua.
Vou comtigo.
P a r a que incomrnodar-se!
Vou, é perto . E ra boato ant;_go q~1e teu pai t in h a pa ne llas
enter radas com irnmensas riqueza s .
-- S a bia?
- P or ouvir dizer .
O esp irito ' do ex- posteiro soffr ia unia revolu ção , que se revelava
n os t raços e lhe faz ia ir machina lmen t e affa gar o cabo d e prata d e
uma fa ca terçada na- cinta .
Miseravel creatura 1 T alvez estivesse pe nsa ndo em ma tar o fil ho
de sua victima; algoz desapied ado!
Ambos montarão a cavallo. Avençal carr eg.ava urna enxa da .
Chegando na ourela da mata apoiar ão-se, pozerão a m a neia nos
animaes e desapparecerão.
O moc;o percebia nos ges os de Capinchos máos cles ignios, prece-
deu--o, mas guardando distancia.
P ar a r ão . A noite havia descido. O velhc> sentia ca lafrios, os ca-
bellos se lhe erric:avão na cabeça .
Avençal fez ponto de respaldo no tronco da cangirana, arr;.mou-sc
a ella com o coração aos ímpetos .
Capinchos, ta cteando a treva. tocou a cruz. Estre meceu e per·
guntou em tom de terror:
- Onde estamos, J osé?
- Sobre a sepultura ele m.eu pai , salteador!
A floresta illuminou-se ck subito aos clarões de muitos fachos .
Nin guem appareceu ; no entl'etanto, se fossem procurar, encontrarião
no cimo d as arvores, nos esgalhos, atraz dos troncos, acocorados em
t oice iras de arbustos, suspensos em cipós . de itados no chão, índ ios cujos
.arcos alveja vão n o · peito de Capinchos.
171 -
Na penumbra da cangirana havia u m vulto em pé. S eu braço
apontava um mosquete na mesma direcção, sua palpebra não intercep-
ta va 0 raio visual, parecia a de uma estatua de marmore.
- Era Moysés.
- Lembras-te d'este lugar ?
- Queres enxugar-me, dizia suffocando o medo para travar do
à cicalado forro.
- Quatorze- a nnos ha, meu pai cahio á traição! Tu , seu am igo
fos te o autor de tão negro crime!
Não quero assassinar-te , velho , quero matar-te j unto desta cruz . ..
Vês? no chão ha armas de toda a sorte.
Escolhe ... Devia tratar-te como um pêrro.
O outro retrucou com audacia:
- Como me trouceste, té aqui, caboteiro , senão por embustes?!
- E crês que uma vingança não é um thesouro? Pesado, velho ,
· em pesado! Fez estalar-me o coração! ·
Capinchos ia d ar m bote como uma caninana enfurecida.
Um grito terrivel abalou a floresta .
- Tento , Avençal! Não brinques com a cobra. Basta de negaceiar .
Era tão ouco e subterraneo , que dir-se-hi.a sahir da terra. Era
o caçador.
Capinchos saltou obre uma espada e enveredou para o mancebo ;
este aparou o golpe que resvalou pela enxada com um movimento
1;apido abaixou-se e tomou outra.
As laminas cruzar ão.
Por minha m ãi, e fustigou- lhe a face .
- Elle cahio de joelhos.
- Em nome de Rosita, não me mates . . . Sou um '.nfame, mas
- perdôa-me. Perdão ! Moço, não q ueiras gloria sobre um homem morto.
uebrado pelos arinos ... Sim, José . .. Pelo amor que tens a Rosita! .. .
A vença! arremessou a espada para longe de si.
- Não posso. . . não posso.
Moysés appareceu terrível como uma borrasca.
José, que fazes ? bramou.
- Moysés, nã.o posso ...
- Então . . . Tambem eu tive um pai ; vou vingal-0 1 porque tre-
meste, irmão branco! ... O filho mulato fará o que não fizes te . ..
O ex-posteiro aproveitando o colloquio que apartava a attenção
d'elle, i~ atirar-se sobre elles, quando ouvio-se o ciciante estriclor como
de um bando de passares ao levantar o vôo. Era uma chuva de
frechas que forão em beber-se-lhe no pe.ito.
Estava morto sem exhalar um gemido .
Os guaycanans mostrarão a face de cobi·e por toda a parte.
O caçador con templou o cadaver nas ultimas contorsões com des-
preso.
Tin ha tantas frechas que - um indio comparou-o a um coandú.
- Enforque-o no galho por cima da cruz. Amanhã os ur ubús
terão pasto, se quizer em comer carne tão ruim .
Os selvagens obedecerão em silencio.
Voltou-se para o irmão, que assistia o espectaculo sem consciencia.
- Te offenfü, José, perdôa-me.
O outro cahio-lhe nos braços desfeito em sol uços.
- Moysés, eu parto ; vou morrer por ahi, caminhando . . Fica
com os meus cabedaes.
Estás louco! ? Sou rico demais, sou senhor dos matos.
- Então r epa rte com os meus escr a vos . . . A vid a é insuppor-
- 172 -

tavel .. . quero morrer .


- Não partirás .. .
- O' Rosita! . . . Rosita ! .
E c horava como uma criança no estiolar das doces illusões · e · so-
nhos queridos ...
O mulato sa cudio a cabeça com tristeza e monologou mentalmente :
- Aquella gavotta botou tudo a perder! Eu bem pensava, mal.
que ba tesse palma s o bem fallante do ca valhe iro.
XX
VAQUEANIA

N o d ia seguinte André recebia um bilhete d' este t beor . pou co


mai s ou menos:
"Em com b a te fr en te a frente comigo teu pai morre u .
"Descobri n'elle o ass assino d e minha familia ; as provas ahi vã o .
Fui eu , e u só, não culpem outro ; tambem morri para o mundo'·.
Rosita t eve uma supplica verbal : que r e zasse por elle. pois o
que elle soffr.ia só Deus e ra sabedor.
E surnio-se d a Vaccaria .
Desde então vive u a caminhar. E caminhava de sol a sol !
Vinda a estrella do occaso , desencilhava a cavalgadura , estend ia ,
por terra as caronas e a manta , de bruça va a fronte exhausta sobre o
lombilho , rude travesseiro do rio-grandense e m viagem, e dormi a '
O' ning u ern lhe invejasse o repouso '
Que de ephialtas medonhos o recôrdo do passado lhe sugge ri a á
imaginação livre , sem pêas n a syncope do somno? !
Sopita va o corpo que brado da ardua provança do d ia ; a al m a
agonisa va n o martyrio devorador de annos.
Mal o frouxo clarão da alvorada come çava de jaspear o horison -
te , v er ão ou inverno, e e il-o de pé , e de novo a volver ás ve rtig in o-
sas marchas, a buscar perigos, a exhaurir gotta a gotta o alen to
exhuber ante de sua compleição athle tica . Não o p e rdia , no entre tanto :
alguma s horas de descanso durante a noite renovavão a força per-
dida ; Antêo de um supplicio sem nome apenas tocava a terra , remo -
çava ; a propria febre do desespero o nutria. A re vêzes escoou-lhe
pelo cer e bro o suicídio, como a unica taboa de salvação ; recua va .
não por m e do, mas porque o assemelha va a u11; d esertor , p écha p a ra
e lle m a is avi ltan te que a morte.
- C umpra -se o máo fado , dizia.
E caminha va adiante .
Corria do Prata até a feira de Sorocaba, das coure llas do littora l
á s fralda s dos Aneles. Não havia trilho e m tão larga área , que ellc
não tivesse pisado , torrão de que na m e moria não guardasse os d eli -
n e am en tos do pe rfil.
Não tinha pouso certo e nunca acontece ra fic a r dua s noites a
e ito n ' um m esmo sitio, sendo raramente nos povoados, cujo reboliço
o inquie tava . A campanha immensa ondeiando em cochilhas , sal -
picada de capões, como oasis do deserto , o sêrro empinado entestando
as frança s com os céos, davão alguma tregoa á magoa que o fl a ge1lav a .
A solidão da natureza consorciava-se á solidão de sua alma ; compre -
hendião-se talvez.
Uma trazia a expressão indefinida da creação depois de muitos
cataclismos , a outra o sello de uma agonia sem termo . Sob o manto
v erde do campo e sob o pe ito do home m , se ntião-se d ois infin.: tos
- 173 -

intraduziveis, duas a lmas cheias de vida, porém n ' uma luta titanica
c·o m os involucros, que as revestião. O globo e o homem são · uma sé-
rie de revoluções. Os seculos as assignalão por camadas e geraçõe:;'
José de Avençal apezar ·do genio que lhe era peculiar · e o isolava
<lo mundo, não havia quem o não conhecesse.
Como Bento Gonçalves, a gloria tradicional do Rio Grande, co1n
-Claudio o Contador, a maravilha de olhar de l ynce, como Quadrado
- nosso Democrito, e tantas outras popularidades da época , onde
passava, apontavão-.n'o com o dedo.
A profissão que escolhera ainda mais augmentava a celebridad e
O que é a vaqueania senão a · variedade de conhecimentos e r e -
lações a cada instante, nas viagens e trajectos? O que é um guia,
o cicerone de estradas, páramos e desertos, senão o homem de todo
o mundo, a quem procurão para as peregrinações e mudanças, a
,quem confião vida e thesouros por ermos campos · e bravios sertões.
E a elle podião entregar-se em corpo e alma . De mais fiel e segu-
ro conductor não se sabia .
Ahasvero do infortunio, não era por cobiça de salario , nem pela
mera ambição de accumular fortuna, ceitil a ceitil, que errava sobre
.a terra . Outro movel o impellia ás imm ensas jornadas, outra lei le -
vava o pallido caminheiro a longos estirões. Buscava affogar no can ·
.saço do dia as atribulações do espirito.
Dinheiro!? Taes naturezas não roção na moeda que azinhavra,
podião corromper-se ao attricto . Não são feitas para a craveira das
mediocridades, rebanho de miserias brotadas em cada angulo, com o
.a má herva . Apurarão-se no cadinho do soffrimento, despirão o
manto enlodado para revestir a tunica de Christo, aureola da apo-
theóse.
Dinheiro! ? Não o recusava , no entanto, o va queano . . . Era uma
propriedade adquirida pelo trabalho ; aceitava-o do rico e ia de pas-
-sagem com elle enx ugar a lagrima do pobre.
- Para si não carecia. Viajor da fatalidade tinha bastante no ca-
vallo, fído companheiro das lidas, e nos arreios, camilha da noite . O
1nais encontrava em qualquer choupana hospedeira .
Contavão o seguinte a respeito do desprezo que votava ao metal,
unico rei da sociedade humana.
Guiava , por exígua e sombria picada do rincão da "Cabeça funda "
.á s margens do arroio Colorado, um negociante em viagem de Bagé
a Caçapava. A picada esmorecia n'um fachinal.
Ao chegarem ahi, dois vultos erigirão o porte d 'entre os ralei-
ros de folhas ; um desfechou a pistola, cujo balazio esfloreceu face ao
viajante ; o outro não teve tempo para fazel-o , a faca do vaqueano;
-como alada gitirinaboia , cortando os ares embebeu-se-lhe na gargan-
ta, e um corpo medio a terra redondamente. O primeiro vendo frus-
trada a tentativa fugio em direcção a agua, porém a armadilha d o
laço de Avençal tomando-o pela cintura, reteve-à na carreira. Isto
foi obra de minutos. Fôra uma espera armada em consequencia de
um litígio de terras . ·
-- Chegados em Caçapava o homem de trato derramou a guayaca
<le onças nas mãos de Avençal, que recusou offendido da recompensa.
Não foi do conchavo , amigo.
- Veja que salvou-me a vida!
- A vida vale mais do que uma ponchada de onças. Aceito o
reconhecimento, e repellio com a mão o ouro para sobre uma mesa .
Partio para S. Gabriel.
A ' algumc1s leguas um proprio veio encontral-o , entregou uma
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bolsa de couro e sem mais explicações déra de reàea. Abrindo-a,


vio o dinheiro . O negociante resistira em galardoal-o. Apresilhou a
m tento a bolsa e proseguio na tirada.
Quando atravessava a cochilha do Fidelis, t eve de parar n'um
:rancho na orla da estrada . Ahi vi.via um habil lombilheiro e tran-
çador, com trinta e seis annos e numerosa prole.
O artífice trabalhava junto á banca, á sombra de urna arvore
n os botões de um boçalete.
Elle esteve contemplando a delicadeza da filigrana, e observou
depois de a lguns momentos de silencio:
- Porque não va:. para a cidade ?
Faria mais.
O outro levou-o para casa.
Havia dezesete pessoas n'um largo alpendre, a ma1 , doze f ilhas
e só quatro crianças de menor idade. Uns preparavão o tenro couro
de potrilho ou o desfiavão em tentos, outros trançavão os filetes
da alva lonca ou o manufacturavão em obras.
- Vê? Na cidade como poderia viver com este m u ndo de povo?
O argumento calou no animo do vaqueano, sobreesteve pensativo,
t irou uma palha do bolso, cortou-a, picou um pedaço da torcida de
fumo, fez o cigarro, ferio a pederneira sobre a isca de pita, e fu-
mou ; e durante que passeava , soltando immensas baforadas ao lado
d o guasqueiro, já de volta ao serviço, seu espírito . passava pelas crises·
de uma immensa elaboração. Pensava em proteger o operario intelli-
gente, sem offendel-o. Preparou o cavallo e foi aju star umas r edeas
com elle, recebendo-as por modico preço.
Uma menina apresentou-lhe uma cuia de mate .
- A gradecido , minha filha , tenho pressa de chegar á S . Ga-
briel , leve a seu pai esta bolsa, é o dinheiro da compra.
E cavalgou como uma setta pela estrada.
O acto traduz o homem.
Talvez fossem os unicos instantes de alegria , no correr de dias
amargurados, que passava!
Teve que supportar, no entanto , um polpe terrível, mezes de -
pois deste facto .
O Brazil abrira a campanha contra seu s vizinhos do sul.
Avençal estava longe, mas corre para deixar honrosamente nos
ampos de batalha uma vida que lhe pesaya. Já se havia empenhado
a acção de Ituzaingo, e quando chegou foi para chorar a morte de
Amaral , que ahi acabára , trocando uma existencia inutil pelo san-
g·ue de oito perros, como ell.e mesmo dissera , antes de expirar.
Iriêma.
(Continúa).
RISOS E LAGRilVIAS

ACTO 3.0
QUADRO 4. 0
A mesma decor ação
SCENA I
Adelaide e depois um criado

ADELAIDE (er gu endo-se ) - Ouvi bater palmas ... Quem será! .. .


O CRIADO (entrando ) - Lá em baixo está u m a senhora que de-
seja fallar-lhe .
ADELAIDE - A mim?
CRIADO - Sim, senhora.
ADELAIDE - Vem só?
CRIADO - Acompanha-a um homem de idade.
A DELAIDE - Bem , dize-lhe que suba.

SCENA II
Adelaide e O eia via
OCTA VIA (tremula) - D. Adelaide ...
ADELAIDE - Sou eu mesm a . . . (indicando a ssento) Queira sen- ·
tar-se.
OCTA VIA - Parecer -lhe -ha estranha a minha visita, no entanto ...
ADELAIDE - Póde fallar, minha senhora, eu a escuto . . . E '
verdade, o cavalheiro que a acompanhou não quiz subir ?
OCTAVIA - Era meu pai, e virá buscar-me depois . . . Um pode-
roso motivo forçou-me a procurar V . Ex.
ADE~AIDE - Peço-lhe que m e conceda um tratamento mais com-
pativel com a minha posição e aspirações. ExceHencia é demasiado
para uma pobre engeitada.
. OCTAVIA (á parte) - Engeitada !
ADELAIDE - O que deseja de mim ?
OCTAVIA - (tremula) O que desejo?! . . . ,
DELAIDE - Receia por ventura? Acaso inspiro-lhe vãos temo-
res? Pois acredite, está me consolando essa tristeza que diviso n o
seu olhar humedecido.
OCTAVIA (á parte) - Que mysterio! (alto) Pois a senhora soffre?
ADELAIDE - Admira-se?! O mundo julga sempre pela appa-
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rencia ! . . . Disserão-lhe que e u era muito rica e feliz , não é verda -


de? Que , emquaroto outras velão as noites acurvadas sobre o costu-
reiro, e u bocejava immersa nos coxins da . indolencia ou sorria e n -
levada pelas harmonias ruidosas dos saráos!. . . Foi isto o que lhe
disserão, e a senhora veio ao alcaçar da fortuna pedir talvez leniti-
vos á que m precisa d'elles! Mentirão-lhe!. . . Sob estes tectos opulen -
tos ha muita lagrima vertida no silencio da noite: sobre estes tapetes
luxuosos muito pó a desbotar-nos as illusões e affectos! No m e io
d 'estas a lfaias o coração vive asfhyxiado, triturão-se as flôr es v ir gi-
naes dos primeiros annos, tudo se extingue e morre n 'esta athmos-
phera mephitica! . . . Sabe o que é a mizeria doirada ? E ' isto que nos
cérca e deslumbra a vista ! . . . Quer saber onde existe suprema ve ntu-
ra? . . . Ide adiante, lá mais longe, n ' aquella choça isolada á borda do
caminho . . . Ali sim , é ali que mora a felicidade, a crença , o amor .
E ' a h a bita ção do prole tario, que passa desconhecido entre a turba-
multa , m a s qu e á noite repousa tranquillo no r e gaço da familia ! . ..
Ainda duvid a que eu sofra ? Pois bem, confie-m e os se us infortunios,
e enxugue se póde estas minhas lagrimas 1
OCTA VIA -Enga narão-me, ou eu me engan e i . . . Ningue m pe n -
será que a senhora é r ealmente infe liz. . . Ainda ainda ante- hon tem
divertio-se mui to.
ADELAIDE - Refer e- se ao baile? . . . Como se engana , minha se-
nhora. S e não fosse obrigada , nem á uma só teria assistid o. Violentão -
me, é um verdadeiro supplicio. Transportem a flôr que de vera cres-
cer e vicejar na penumbra do valle, para onde o sol brilha mais inten -
so e luminosos, e vel-a -hão fanar- se dia á dia! . . . ( pausa ) Porém, v a -
mos, o que deseja ?
OCTA VIA - R ele ve uma pe rgunta . Nunca a mou , nunca fo i
mamda?
ADELAIDE (sorpresa ) - Dir-se-hia que a senhora sabe a mi-
nha vida !
OCTAVIA - Talvez. Entre os seus adoradores. não encontro u
por ventura um moço de fronte contemplativa e ser ena, olhar melan -
colico , desconfiado e tímido como uma creança? . .. (tirando um r e -
trato da bolsa ) Ve ja se conhece, era assim talvez, olhe . . . Chamava-
se . . .
ADELAIDE - Esque ci o seu nome (reparando n o r e tra to ).
Ah ! ... (tapa os olhos).
OCTAVIA - Porque esconde os olhos ?
ADELAIDE (com desespero) - O que quer de mim , o que que r
de m im a senhora? ! ...
OCTA VIA - TranquilliS"e-se . . . Este moço é m e u parente, v ive -
mos juntos. crescemos um ao lado do outro . . . A sua vida está em
perigo .. .-
ADELAIDE (fóra de si) - Ah ! é demais, é demai s, meu Deus! ...
Combinarão-se para enlouquecer-me!! . . . '
OCTAVIA - Escute-me. Da senhora depende a felicidad e de m e u
primo . . . Nem elle sabe que vim á sua casa . . . Atenda . . .
ADELAIDE - Seu primo! Detesto-o, não creia n'elle, porque rou -
bou-me a paz e a alegria! . . . Movido pela mola do calculo e do inte-
resse sórdido, entrou n 'esta casa , e , semelhante á fera que acaricia a
victima para feril-a no ámago , fez-me acheditar no seu amor, quando
mentia cobardemente (pausa) . Corações de bronze, almas vis e gas~
tas! . . . (soluçando) Ah! póde dizer á esse homem que me vio cho-
rar . . . N ã o importa que saiba , são lagrimas que não envergonhão, n em
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humilhão ! Quer saber, era o primeiro amor que florescia em minh··a1-
1na, o primeiro amor, comprehende?!
OCTA VIA - Vejo que a senhora e meu primo forão victimas
de uma ignobil traição . Meu primo é mnocente, juro-lhe. E ' mistér
que a verdade resurja . Acredite sinceramente nas minhas palavras.
Julio ama-a muito. Apello para D eus que nos escuta, elle que seja o
juiz, se estou mentindo .
ADELAIDE (com subita e xpansão) - Então? ! Ah ! baroneza.
baroneza!
OCTA VIA - É de quem s queixa amargame nte.
ADELAIDE - D'ella?!
OCTAVIA - Sim, minha senhora, d 'ella , e do Dr . Paulo d e
B enjamin.
ADELAIDE - Dir-se-hia um sonho tudo isio!
OCTA VIA - Dou-me por feliz em ter vindo á sua ca a ; fo i De us
quem guiou-me e ouviu as minhas preces.
ADELAIDE - Consinta agora que lhe beij e i as mãos . . .
OCTAVIA - Eu é que de vo beij ar as suas ... (Abração- e e
beijão-se ) .
SCENA 'II
As mesmas, o criado, depois a baroneza
CRIADO - O Sr. seu pai .. .
ADELAIDE (interrompendo) - Porque não o fizeste subir?
OCTAVIA - Obrigada , são horas de ir (pa usa ). Poso então
,levar-lhe uma palavra de esperança? (A baroneza apparece ao fund o).
ADELAIDE - Consintia agora que lhe beij ei as mãos ...
BARONEZA ( baixo ) - O que significará isto!
OCTAVIA - Adeus, quaira-me bem.
ADELAIDE - Adeus, minha boa amiga (voltão-se e dão com a
baroneza; ambas ficão surprenhendldas) .
OCTA VIA (passando pela bar:m eza ) - Minha senhora . . . (Sabem;
l)Ouco depois e ntra Adelaide ) .
SCENA III
Adelaide e a baroneza
BARONEZA - Quem é essa mulher?
ADELAIDE (á parte) - Causa-me medo!
BARONEZA - Então não responde?
ADELAIDE ( tremula) - E' uma parenta do Sr. Julio d e Ag uiar
BARONEZA (aterrada ; á parte) - D'elle! ...
ADELAID E(á parte) - Meu Deus, coragem!
BARONEZA (fóra de si) - Tenho a dizer-lhe que não a quero
mais nem um dia nesta casa . Ouviu! Embusteira!
ADELAIDE ( tímida ) Porque me offende ? Nunca lhe fiz ,
m al, senhora! ...
BARONEZA - Julga que e ha de casar contra a minha vontade
,e a de seu padrinho? . . . Engana-se.
ADELAIDE (revoltando-se) - E julga que se impõe assim' ao
,coração?! . . . Não, nunca ! Aceito o martyrio da alma e repillo o
c ontracto do corpo!
BARONEZA ,(ameaçando) - In solente! Atrevida !
ADELAIDE (lacrimosa ) - Vitupére , insulte ...
BARONEZA - As uas lamentações já · cari.são .
178 -

UM CRIADO (annunciandoJ - O Dr . Paulo Benjamin.


BARONEZA (perturbada) - Que suba . (á Adelaide ) Ret ire-se .

SCENA IV
As mesmas e o D1·. Paulo de Benjamin
DR. P. DE BENJAMIN (á Adelaide ) - Seu padrinho não está?
ADELAIDE - Sah io. Talvez o encontre no escriptorio.
BARONEZA (baixo ) - Que irá e lle fazer!
DR. P. DE BENJAMIN - - No escriptorio não está , vlm. de lá
a gora. . . Provavelmente foi ao correio, chegou o paquete . (Adelaide
vai a sa!-Íir) Póde concede:r-me alguns instantes, D . Adelaide ?
ADELAIDE (voltando ; á parte) - Nem ouso encaral-o.
BARONEZA (á parte) - E ' o genio do mal este homem!
DR. P. DE BENJAMIN -- Sabe o que venho solicitar de seu
padrinho?
ADELAIDE - Ignoro, e pouco me importa saber.
DR. P. DE BENJAMIN - Jezus, V. Ex. odeia-me sem um motivo
justificavel; não lhe parece , baroneza?
BARONEZA - Estava distrahida, não ouvi .. .
DR~. P. DE BENJAMIN -- Trata-se de seu futuro, D. Adelaide.
ADELAIDE - Do meu futuro?! ...
DR. P. DE BENJAMIN - S im, venho soEcitar a sua mão .
ADELAIDE - Sem consultar-me? . .. E ' original! ... Então o que
sou?! ... Uma mulher que pensa e escolhe, ou uma cousa?' ... (o Dr
Paulo ri-se) Ria-se, póde rir-se! . ·. . A Providencia que véla do céo
será o juiz, como o senhor tem sido o meu algoz!
DR. P . DE BENJAMIN - S empre recriminações . . .
BARONEZA (baixo) - Qual será o desfecho d'esta comedia '
ADELAIDE - Se tivesse uma irmã, ah! se o senhor possu;.sse uma
irmã, saberia avaliar · o - coração da mulher, respeitaria essa creatura
fragil, que sabe ser mãi e esposa, em cuja fronte Deus asselou uma
missão divina. Porém, como eu, o senhor não conheceu familia; quando
a brio os olhos era orphão; quando eu abri os meus era - engeitada!
DR. P. DE BENJAMIN - V. Ex. chora?
ADELAIDE ( como delirante) - Pobre filh a do e rro !o teu patri -
mo.n io forão lagri.mas; darrama-se sobre o caminho ladeado de espinhos
excruciantes até chegares ao u ltimo marco! (Depois de longo silencio )
Ah! senhor, por sua causa tenho sido por demais mortüicada, por sua
causa lanção-me em rosto os benefícios que tenho recebido, accusão-me
de engeitada, chegão até a insultar a memoria de minha mãi! ...
BARONEZA - Mentirosa, calumniadora!! . ..
ADELAIDE - Calumniadora!
DR. P. DE BENJAMIN - Contenha-se, baroneza .
BARONEZA - Estou em minha casa. (avançando para Adelaide )
Intrigante! ! ...
ADELAIDE (fóra de si) - Meu padrinho , onde estás, meu pa -
drinho! ...
SCENA V
Os me smos e Fernando de Magalhães
F . DE MAGALHÃES (inq uieto) - O que tens, o q ue foi?! .. . O'
falla-me. . . Falla-se, filh a! . . . (á baroneza) A sen hora é . . . (abraça
Adelaide) .
- 179 -

BARONEZA - Basta de jogar-me insultos! ...


DR. P . DE BENJAMIN - (apresentando a letra á F. de Magalhães )
Venho receber a importancia d 'esta letra. O seu credor já não é mais o
,commendador Tm·res.
F. DE MAGALHÃES - Não tenho dinheiro , e faça o que entender.
ADELAIDE - Ah! comprehendo agora tudo! O'meu padrinho, eu
não sabia , nem poderia suspeitar! . .. P erdão, perdõe-me!. . . Se foi o
unico que salvou-me do infortunio, não maldiga quem, para salval-o,
é capaz de sacrificar a existencia l (voltando-sce _para o Dr. Benjamin)
Estou prompta, senhor, aqi.ti tem a minha mão. (baixo para elle) Senão
p osso ser esposa, sel-o-h ei escrava!
BARONEZA (aterrada) O' Providencia, Provid encia!
F. DE MAGALHÃES - Não, não consentirei! A pobreza honrada
não envergonha, filha . A minha resposta é a mesma, faça o que lhe
a prouver, senhor.
DR. P. DE BENJAMIN ( baixo ) - E ' orgulhoso !Serei inflexível.
F. DE MAGALHÃES ( tirando do bolso uma carta) - Desculpe
se tomei a liberdade de tirar esta cada do coreio. (entrega-a ao Dr.
Benjamú1) .
(Emquanto o Dr. Benjamin lé a carta, sentindo grandes commoções,
F. de Magalhães conversa com Adelaide ; a baroneza, porém , segue o..
movimentos do doutor ) .
DR. P. DE BENJAMIN (como fulminado ) - Ah!
F. DE MAGALHÃES E A BARONEZA (ao mesmo tempo) - O que
é, doutor?!
DR. P. DE BENJAMIN - Nada ... deixem-me , preciso r espirar ...
(levando as mãos á cabeça}. Meu Deus, meu D eus! Miseri cordia .
F. DE MAGALHÃES - Que tem?
DR. P. DE BENJAMIN (baixo, á F . de Magalhães) - Leia esta
carta .. . e cale-se. (ajoelhando-se diante de Adelaide) Perdôe, esqueça
tudo ... S e alg uem p ergun tar-lhe pelo Dr. Benjamin ... responda que
morreu.
F . DE MAGALHÃES (com alegria) - Será possivel !
DR. P. DE BENJAMIN - Consinta que lhe beije as mãos . .. e não
esqueça jamáis estas lagrimas inconsolaveis que o coração não pôde
suffocar no derradeiro adeus. . . (sahindo).
ADELAIDE (á parte) - Que m ysterio incomprehensivel.
F. DE MAGALHÃES (com explosão de alegria) - Abraça-o ,
Adela;,de, é teu irmão!
BARONEZA (acabrunhada , baixo) - Seu irmão?!
ADELAIDE (sorpresa) - Meu irmão!!
F. DE MAGALHÃES - S im , sim!
ADELAIDE (abrindo os braços para B enjamin) - Me u irmão"?.
DR. P. DE BENJAMIN (idem) Minha irmã' minha irmã!
(abração-se ).
BARON EZA (f ulminada) - Ah!
F. DE MAGALHÃES (aponta ndo para o quadro ) - Deus d ispõe.
F IM DO 4.0 QUADRO


TANCREDO
VIII
E' noite . ..
Alta vai ella . . . Inda sôa no espaço a ultima vibração do campa-
nario ela cathedra l, que tangera m e ia n oite, quebrando por momentos
a immensa solidão , par a dizer um ultimo adeus ao dia que e xpirár&,
arre batado nas azas elo tempo.
Porto Alegre, festiva e buliçosa, repousa ador mecida no tapii
de suas collinas á sombra da paz tranquilla que agasalha se u seio ...
· Tudo dorme . . . e o silencio em toda a parte rei n a , como um
saliente contraste a os ruidos do dia que findou .
E esta cidade onde trinta mil entes aspirão o ar da vida, á h ora s
mortas assemelha-se á uma mult idão de moimentos, encerrando em
seu s muros a mais profun da solidão.
Tu do dorme e repousa ... S ó a lu a , atalaia dos páram os e thereos.
percorr e v igilante a vasta amplipão , de rramando e m seu cur:::o as ir-
radiações de sua luz pallida e merencor ia . ..
A viração é fria e gélida a atravessar a m edula dos ossos, e como
mais um vivo contraste, a noite de luar não r eune em si o util ao
agr adavel.
E ' q ue as noites de lu ar do inve rno. embora as mais bellas, nã o
têm a poesia h a r moniosa das noites de estio das terras intertropicaes,
e nós estamos em Julho , no coração da quadra invernosa, que impera
desapiedamente n a atmosphera de noss:.i sul.
Não sei porque as estações em seus cursos periodicos sellão com
um signal peculiar sua passagem sobre a terra, deixando uma face
visível ao olhar investigador. Como as ruínas babylonicas ainda hoj e
atestão a grandeza de uma ge ração q ue l utou para não morrer esquecida
na poeira dos seculos, parece-n;ie que o tempo, tão vaidoso de si, como
as Sen,iramis d e se u mando r eal, colloca marcos na arena que trilh a ,
para serem as idéas v ivas da hi storia de sua época ...
E assim passa e caminha , ora sobre a estrada poeir enta tapetada
de sarças, ora so bre a v eiga esmeraldina alcatifada de flo res .. .
E caminha se mpre por entre as sar ças e fl ores, como o Aha sver o
da legen da buscando seu norte - o infinito. . . _
Conviva e terno no festim do mundo , com elle marcha , galopa no
espaço arrastando comsigo os elementos de que dispõe se u braço v e-
tusto . aos quaes s ua vontade so berana indica os rumos . . . e caminha
sempre na realeza sultão , tendo por harem o immensq orbe.
Viajor eterno marcha , atirando no vasto estadio um marco , que
é a u ltima pa gina que finalisa urna quadra , como e nceta os passos de
uma outra . . .
Agora reina o mez de Julho , como a bacchante sem i-nua r eclinada
n a mesa da orgia , fún ebre e sombrio como suas noites r evoltas do
pampeiro.
_:_ 181

Por entr e as nevoa s da noite de luar branqueja . a , casinha branca


na fra lda da collina. .
As fr estaF mal cerradas dos batentes das janellas deixão coar a
claridade baça e frouxa de uma luz branda .. .
Parece que para seus habitantes as · badaladas da meia noite não
tinhão marcado as horas de descanço, talvez porque no lar do pobre
são · escassos 6s momentes de repo uso, emquanto os de -labor sobejão ,
ou quem sabe se as azas negras da desgraça abrigavão mais uma vez
u ma pagina lutuosa p ara escrever no livro d om estico da familia da
casinha branca.
Quem sabe?! . ..
Approximemo-nos mais perto, e in vestiguemos -a origem de se-
melhante luz á horas tão mortas ...
As janellas meio erguidas deixão o ar penetrar livremente por entre
as portas apenas cerradas; o mais leve ruido não v em de dentro pertubar
o silencio de fóra , · e a p rimeira vista dir-se-ia que dormem todos nesta
casa, fac ilmente accessivel a o primeiro que nella quizesse entrar . ..
Entremos, já que não é n ecessario bater, porque a porta ta mbem
abe rta , como as janellas, facilita-nos a entrada sem ser preciso im-
portun ar a ninguem, annunciando-nos com o estrepito das palmas
estabelecidas pelas convenções sociaes, e livre de qualquer censura
ante nossos direitos de narrador.
A luz pallida de uma lamparina esclarece a modesta sa!a em que
nos achamos, lançando seus fracos clarões até a alcova .
Na parte apenas esclarecida projectão-se duas sombras junto de
um leito, que occupa o fundo da alcova , e sobre a qual existe um cor-
po, cuja respiração um tanto alta annuncia que dorme .
A casinha branca muda e silenciosa assemilha-se a um ermo po-
voado de tristores, onde apenas o crepitar da lamparina na sala de
visitas, e o respirar afadigado da pessoa adormecida na alcova, indi-
cão estar habitada .
As duas sombras que divisão-se, tomar-se-hião por duas estatuas ;
tal é a immobilidade de amb as, revelando terem os indivíduos que as
projectão suas faculdades concentradas n'um ponto unico.
Só n as fórmas e nas posições differem uma da outra; roupagens
feminis cobrem o que na borda do leito está sentado, e o que traja
vestes masculinas, de pé, junto da cabeceira do mesmo , faz realçar
mais, no m eio da penumbra, sua estatua varonil.
Ha muito que ahi estão sem terem, com uma p:;ilavra , quebrado
o silencio que os rodeia ...
De repente, as roupas do le ito agitarão-se bruscamente e a res-
piração do enfermo d esfez- se n 'um accesso de tosse.
O accesso foi tão rapido quanto inesperado. Os dois vultos ache-
gar ão-se mais ao leito, emquanto o doente, com voz desfallecida, m ur-
murava: - Luz e ar , que esta escuridão suffoca -me ainda mais que
as minhas dôres.
A explosão de um phosphoro clareou o apozen to; a mão que o
accendera chegou-o junto de uma vela , que achava-se sobre uma pe-
quena m esa, collocada junto da cabeceira da cama.
A l uz devendou um painel de variegadas côres.
Ali sobre aquelle leito uma nodoa de sangue purpureia as dobras
do alvo lençol, e sobre elle debate-se, com uma tosse pertinàz, um
moço de vinte annos apenas, ligado a um eculeô de dôr.
E ante esse quadro lutuoso , onde vinte primaveras desfolhão-se
uma por uma , duas imagens v enerandas curvão-se reverentes ao im -
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pulso de dois sentimentos sagrados, de duas religiões s ublim es - a do
a mor e a da caridade . . .
São uma mãi e um medico .. .
Erão os dois vultos que projectavão-se na sombra da alcova , ve -
lando junto do pobre enfermo.
Se ha destinos fataes , o de Tancredo é um delles.
Esse moço, que ainda hontem cheio de viela, sonhava um mundo
de encantos, eil-o prostrad o - fronte pallida borrifada com o halito
do sepulchro.
Ahi mesmo a dormecera , sonhando mil ven t ura s, risonhas illusões
de infinito amor, e acordára martyr sobre um leito de Procusto.
A sciencia de Galleno, representada pelo nobre ancião que muitas
vezes vellava junto do infeliz moço, era infructuosa ante os progres-
sos da molestia . No momento m esmo em que o velho medico conse-
guira acalmar a tosse do enfermo com uma poção que pre parára , tal -
v ez que nem um raio sequer de esperança alimentasse .
Com tudo sua fr on te não trahia a agitação interior ; se tinha receios.
sabia- os occultar tão b em que D . Elvira não descr era da situação, es-
perando vêr se u filho r estabelecido .
Pobre velha , com os padecimentos do fi h o envelhecera mais dez
annos, sem comtudo murmurar uma queixa contra a sorte cruel , que
anniqu ilava e a b atia a affe ição mai s cara de sua v ida.

- oOo-
São quatro horas da ma nhã . . .
Tancredo , dep oi s d e um a batimento de duas ho ras, occasionado
pelas golfa das de sangu~, melhorár a sensi velm en te , ap parecendo uma
reacção q ue prometia muito, e d eixav a ao pobr-: -c-:.>ço m omentos
1ranqu illos par a fruir docemente com aquelles que o amavã o.
A tr ansição er a tão 1·api da quanto fôr a o accesso q ue o a bater a ;
as molestias do peito trazem estas con tradições.
Quanto á n ós, na insuffic iencia de conhecimen tos da materia , nos
cingiremos á op inião do facultativ o que tem observado passo á passo
as alter nativa s desta na tureza ju ven il , lutand o tenazm en te com um
mal cruel.
Antes de ir adian te , digamos duas palavra· sobre o D r . A n dr é.
P oucas e singela s serão, mas justas e legitim as.
Qu ando em face de urna sociedade madra sta , o op Prar io d esta
gr a n de fa brica s0cial faz d a p rofi5 ão um sacerdocio. e se en te t em
algum tanto d e sublim e .. .
O Dr. And r é é u m destes p erfis ricos de caridade e amor.
Estima va extrem osamente a T an cr edo, á q uem con hecia desd e
os mais verdes annos, p ois fôra amigo de seu pai. corno abda o er a
da familia .
Assim , quando o m oço -cnEo-se ferido pela molestia, :í: ilha de
aco n tecim ent os imprevistos, o nobre med ico não abandonou a cabe-
ceir a de se u jovem amigo, onde par tilhou com a m ã i todos se us p e-
zares, como lam en tou a causa que os f izera n ascer , animan d o um e
outro com suas palavras ungidas com o b alsamo da ami ade .
Conhecedor intelligen t e de sua profissão, julga va q uão ctifficil
seria a cura , se em vez de combater a causa deixasse-a pelos effeitos.
A m olestia era oriunda de um mal m ôr al, e s ua longa experienci a
lembrav a-l he q ue taes soffri mentos n ã o se cur ã o com a med icina.
As molestias da alma combatem-se com a m edicina d o e spiri to.
a unica ra zoavel , e como o seu m elhor palliativo - o tem p o.
- 183 -

Assim fazia o Dr. André. Desde que passára a crise e o moço


sentira melhoras, tentou elle por meio de suas palavras e maneiras
joviaes desfazer as tristes impressões deixadas pelas ultimas golfa -
das de sangue, e que tanto tinhão ferido o animo já abalado de Tan-
credo.
Mas este revelava seu desalento nestas palavras docemente pro-
nunciadas e ungidas de immensa emoção:
- Doutor, não me illudo com meu estado de saúde , conheço-a
tão bem como o senhor ...
- Vaidade de rapaz, meu jovem amigo, interrompeu o medico ,
buscando com sua jovialidade desviar os pensamentos do doente de
semelhante conversação.
- Não creia, continuou Tancredo, meneando tristemente a ca -
beça ; meu peito é uma atmosphera abafada que aninha a morte . . .
- Socegue, disse o medico commovido o que o senhor preci sa
é , ácima de tudo, tranquillidade de espirita.
- Ah! dout or, quanto é facil exigir o qne pede, como é diffi-
cil de conreguir . . .
- Tam:redo! ... balbuciou queixosa e reprehensiva, com voz suf -
focada , D. Elvira, desgraçada estatua de uma dôr profunda.
Ha naturezas que conservão nos grandes soffrirrentos uma seren i-
-dade apparente, ~quanto no coração refervem mi' am ar gc~·es.
D. Elvira er a d'ellas, só Deus podia lêr sua ;1ma atribuü;:1.R de
mãi.
- Perdôe-me ... proseg uio o moço sensibilisado, apertando entre
suas mãos m acilentas a da p:ibre velha; perdôe -me . . . que quer? . . .
são fadarios . . . o de seu filho , minha mãi, foi sonhar um anjo onde
havia uma esta tua, buscar um leito de rosas e encontrar um tumulo . ..
- Cala-te, Tancredo, cala-te! ...
- Sej a razoavel, meu amigo, murmurava o. medico, que erguera -
se desassocegado com a emoção do doente.
- Deixe-me fallar, preciso expandir-me para desabafar meu pei-
to extrav asando martyrios, quero fitar o passado para aJoelhar-me
ante minha mocidade em flôr, ferida pela fatalidade, conversar com
meus sonhos de moço, rajados do pedestal de t antas aspirações á
a ridez d'um deserto,. Fadaria! fadaria! . ..
- Esqueça-se d'isso, interrompia o medico afflicto , emquanto D .
Elvira , com a voz embargada pelos soluços, concluía a phrase do fa-
eultativo:
- E viva para aquelles que o amão e cujas existencias são uma
partícula da sua .. .
- Esquecer! . .. Pedem um impossível; aspirei a l uz , nella quei-
mei-me . . . phalena louca, rompi a chysalida e voei. . . no meu vôo
arrojado perdi as azas . . . a quéda é justa, e ante ella curvo-me sem
forças de poder reagir contra o infortunio . . . São destinos, já lhe disse ,
e em face da fatalidade abraço-me á cruz de meu passado ...
E o pobre moço desato1,1 a chorar . . .
Ha dôres tão fundas, que felizes são aquelles que pódem orva -
lhal-as de lagr imas; estas se não curão , ao m enos suavisão.
Na situação, porém, de Tancredo semelhante emoção provocava
consequencias que, para esta natureza alquebr ada, devião ser fataes.
Assim aconteceu . . . ·
A tosse recomeçou trazendo as golfadas de san gue. I~ dôr e a
consternação estampavão-se nas fa ces das duas testemunhas -desta sce-
na lúgubre.
A força de beberagens conseguia o intelligente Esculapio, pela
- 184 -

segunda vez, suspender este novo accesso, sem comtudo reanimar a:;
forças extremamente abatidas do enfermo. Sua voz mal ouv;.a-se;
apenas pôde apontar para as janellas da sala de visitas.
Abrirão-nas.
Vinha rompendo a aurora.
Aurora merencorfa como são as dos céos nevoentos de Julho .. .
Fitou-a por um momento e cerrou as palpebras . ..
O senho do medico annunciou-se .. .
Pouco a pouco a respiração amorteceu até tornar-se imperce pti-
vel... '
- Doutor! doutor! . . . b albuciou afflicta· D. Elvir a a n te tão assus-
tadores symptomas. ·
Não se ouvia mais a r espiração. . . O Dr. André curvado sobre o
leito apalpava com uma mão um dos pulsos de Tancredo, emquanto
a outra tacteava sobre o coração ...
- Então, doutor, dizia desesp erada a pobre velha ; meu filho ,
"leu filho?! .. .
Todo commovido respondeu o nobre ancião :
- Resignação. . . Tancr edo repousa para sempre das lutas mun-
~clnas, no seio de Deus . ..
A quéda de um corpo resoou no pavimento da alcova . Era o de
uma mulher, á quem tinhão despedaçado o diadema de m ãi.

IX

Em sua marcha precipitada, os acontecimentos precedentes arras-


ta r ão-nos.
Forçados por elles deixamos fóra das scenas ultimas personagens
que achão-se intimamente ligadas aos factos que trouxerão por con-
sequencia o lamentavel fim do inditoso mancebo , qu e fechou com sua '
vida as ultimas palavras do capitulo an tecedente.
Entre Marina e Tancredo havia a barreira de uma lapida que os
separava para sempre da vida e gozos mundanos; o destino assim o
quizera.
Mas, que motivos imperiosos fizer ão aquella alma vasada para os
grandes commettimentos tombar desalentada e na quéda enrolar-se
n 'u m sudario?
Como a flôr, que a viração v:.ca o debil ramo , do\Jra: se no hastil
e n'elle desfolha-se, a.'lsim tarr,~m T&ncredo, ao estalar as cordas de
s ua alma apaixonar' - '1€ntir, --:,~ feridr., e baqueo J l
Pertence-nos agora examinar as causas que occasionarão ~eme -
!hante desenlace.
Somos forçados á retroceder, em busca do ponto de t)artida , ás
explicações necessaria& á continuação d'esta narrativa; a .leítora nos
perdoará este desvio.
Desgraçadamente os zelos que tivera Tancr edo não tinhão sido
sem f undamento. J or ge da Silva soubera insin uar-se tão bem no ani-
mo da moça, que esta deixou-se arrastar, sem r eagir contra o domínio
q ue as palavras do jovem official infundião sobre ella.
Não julgue ninguem que queremos, com um fórma engenhosa ,
reabilitar Marina e justificar seu procedimento. ,
Jámais. . . Só a mytologia grega podia apresentar-nos o halito
de Pygmalião animando a esta tua ...
E Mar ina é uma estatua cinzelada pelo buril da vaidade.
A mára Tancredo emquanto este n~o tivera um competidor ; mas ,
- 185 - ·

qu ando na arena de sua conquista apparecera mais um pretendente,


a moça correu após a novidade.
Do concurso appareceu a escolha definitiva , e ante ella Marina
vacillou ...
Tremia perante o desenlace . . . Era que o egoismo e a ambição
não tinhão de todo diluído aquella alma juvenil.
Do seio de suas incertezas vierão arrancar-lhe os acontecimentos,
precipitando o desfecho. ·
Jorge da Silva acabava de receber ordem terminante de r eunir-se
a seu batalhão aquartelado em uma das províncias do norte.
Esta ordem inesperada , que em outro qualquer talvez aniquilasse
as aspirações que tinha sobre Marina, foi pelo contr ario , para Jorge,
in cen tivo mais forte para vel- as satisfeitas.
Este não contava . a paixão por Marina como a primeira de sua
vida , em sua carreira de Lovelace tinha um repertorio de episodios
p ara formar excellentes enredos de uma dezena de romanl.'.es.
Seu coraçã o em questão de amor es não envelhecia, e ante ' um
olhar m eigo ou uma palavra carinhosa , renascia como a celebre Phe-
nix das fabulosas tradições egypciacas. Um dia, porém, o moço sen-
tia-se realmente su bjugado por uma paixão sincera, que não deixava
de ser b astante incoherente com seu genio leviano.
Marina tinha podido operar semelhante prodígio, sem q u e Jorge
tivesse tempo para comprehender a transformação subita p orque pas-
sav a . As naturezas levianas são assim, prendem-se sem sentirem aos
élos que as enlação : como ajoelhão-se aos p és de um falso ·culto, em
vez de uma religi'ão de ver dade, adorando um idolo em lugar de
uma idéa.
Preso, como achava-se o moço , sua posição não deixava de ser
bem critica ante a fatal ordem de marcha.
Uma manopla de ferro esmagava-o cruelmente .. .
O que restava-lhe, fo1 o que pôz em pratica:
Ou retirar-se, cedendo ampla liberdade a seu ri val, ou então p ar - ·
tir , ligando a moça por um compromisso . . .
Jorge não cavillou, optou pela segunda parte.
Pedio Marina . . . e foi aceito . ..
Desde então até o momento de part ir o j oven official frequ entou
assiduamente a casa de D . Margaridà .
Emquanto Jorge e Marina entregavão-se aos doces enleios das
confidencias, Tancredo. agonisava victima do olvido, com o m ar tyr su-
blime de seu amor.
A ssim correrão os dias placidos e seremos para ambos, sem que
mesmo para elles a morte de Tancredo annunciasse o céo de suas
aspir ações.
Emfim chegára o dia em que o jovem offical devia partir para
o norte.
O casamento realizar-se-ia d' ahi a quatro mezes.
Para isso , Jorge pediria uma licença , e no caso de nã o ser con-
cedid a , uma procuraçâo cortaria os abices que apparecessem.
O moço partio . . . com as lagrimas de Marina e a s bençã o de
D. Mar garida.

Tinhão decorrido quatro mezes depois das scenas antecedentes.


Era um bello dia.
Onze horas, a momentos tangera o car.npanario, e o sol quasi
tocava no zenith.
- - 186

Em uma casa de conhec·td os era tudo alvoroço n·esse dia.


O p aquete da côrte tinha fundeado no ancorndour o do Guahyba .
Na sala de visitas dessa pequena casa, respirando alegria e festa .
achavão-sc duas senhoras em traj es de quem espera alguem, que
annunciára sua vin da.
Erão D. Margarida e sua afilhada.
Marina trahia sua anciedade, revelando-a em cada gesto ou em
seu olhar fito na porta da entrada. .
Mais de uma vez sua boquinha tinha. despeitada , murmurado -
que demora! ·
Na anciedade e espectativa decorreu uma h :>ra .
O silencio reinava na sala . quando de repente ouvirão-se passos
ligeiros n o corredor.
Moça e velha e.cguerão-se subitamente, emquanto aquella, mais
ligeira e impaciente pelos annos, corria á porta, e abria-a; esta , me -
nos agil, par ára ·no meio da sala, prompta a r eceber o r ecem-chegado .
' Aberta a p or ta, assomára o vulto de uma escrava.
- Então, Maria?! .. , pergun to u a moça affEcta.
- Não veio, sinhá, respondeu a n egra ao m esmo tempo q ue es -
ten dia a mão entregando um papel.
Marina rasgou o envelope da carta, e desdobrou-a.
A' leitura d 'esta , as rosas purpurí:'as d o rosto lindo da :iove n dc -
:;:a,pparecerão substituidas por um pallor mortal.
D. Margarida correu á afilhada, arrancando-lhe a carta .
Marina estava desfeita em lagrimas, no momento em q•ue sua
madrinha lia na fatal missiva o que se segu e:

"Senhor<l .
"Debaix o da mais dolorosa impressão, traço estas linhas O de.s -
tino anniquila meus sonhos de outr' ora tão c:ii.eios de en cantos e ricos
ae poesia . . . As esperanças de me4 passado que quizera realizar , v e:jo
esvaecidas pela m ã o cruel da fatalidade . . . Entre nós existe um --
impossivel . . . Perdôe-me . . . Lamento a posição d esgraçada em que
.rríe acho, porqu e nem posso justificar-me . . . Desligo-a do compro -
m isso que contrahio commigo. Fica livre. . . e possa a senhora fi·uir
junto de outro a felicidade que e u não posso dar. . . Quan to á mi..'11. ,
livre tambem, viverei das doces reminiscenc ia s do passado.

Jorge da Silva".

D. ·Margar ida estava petrificada. Não tin ha ccr.:::.pr ehendido bem


o que lera, mas o final a ferira mais cruelmente do que tudo o que
precedera .
O casamento desfeito era o que ella julgava - imp ossível -
mesmo ante a a ssigna tura do noivo , v erdadeiro phantasm a d e uma
negra realidade.
P ar a cumulo de desespero a p obre v elha ign orava as ca usas que
motivavão uma r esol ução tão subita quanto inesperada.
Que juizo fazer de semelhante procedimen to? O silencio de J orge
encobriria uma desgraçB ou seu mysterio n'u rn caso tão grave era
filho de uma infamia? .
Estas e ou tras conjecturas vinhão ao espirita atordoado de D .
Margarida, sem achar uma solução que a deixasse menos perplexa.
Assim correrão as primeiras impr essões.
Quan to á nós, direm os sómente, que , se D. Mar garida tivesse
- 187 -

na noite d'esse mesmo dia percorrido os circulas femininos da capital,


teria facilmente en contrado as explicações que tão anciosamente de-
sejava .
Aqui relatamos o que se prop alava em alta voz.
Nem m a is, nem men os, garantia-se que alguem recebera parti -
cipação do proximo casamento de Jorge d a Silva com u ma joven e
rica herdeira de uma familia da côrte.
Se h avia veracidade no que contavão, é o que completamente
ignoramos.
-OÜO-

Algumas palavras sobre uma pessoa que nos é cara pelos laços
de sympa thia que nos soube msprrar .
F a llamos de D. Elvira, a infeliz mãi de Tancredo.
Ainda vive no seio da familia do Dr. André, que a conduzia para
seu lar dome:;tico desde a infausta morte do filho.
Ahi, subsiste rodeada do prestigio da veneração, que: suas v ir-
tudes gravadas na fronte senil, infundem em todos que a conhecem.
Seus labios, se não têm a inda sorrisos, é porque no cora~âo vi-
cejão saudades; comtudo, o tempo, balsamo que suavisa as dôres da
a lma, vai fazendo-a mais resignada ...
Vive completamente retirada do mundo que não tem mais encan-
tos para ella, apenas sahe uma vez por mez; é justamente no dia em
que seu filho tr ocou a existencia terrestre por uma mais bella.
Nessa dia, em companhia de uma filha do velho medico, ella d i-
r ige-se ao cemiterio. Interna-se com sua companheira por entre as
ruas de campaa que cobr em todas as direcções, t oma o lado esquerdo
e vai ajoelhar-se junto de uma lapida 1·odeada de goivos e saudades,
que tem por epitaphio um simples nom e.
Ahi, entre lagrimas conta ella á joven menina a historia inditosa
de Tancredo -- o sonhador.
rtpelles P orto Al e gl'e.
Porto A legre - 1872.
CONTOS RIO-GRANDENSES
INTRODUCÇ.ÃO

Desculpe o leitor se em um cantinho da Revista lhe vem tom ar


a attenção acostumada ás b ellezas do estylo flo rido e ás gran dezas ele
assumpto bem desenvolvido, penna m enos habil e mais deselegante
que outras muitas, que m ensalmente d esparge m as flôres d e uma ima-
ginação rica nas paginas da Revista .
Não t enho outra s pretenções com esta ousadia, senão estimular
com o exemplo d e 20ragem intelligencis, que alg ures existem, a en-
vidarem seus esforços e trabalharem n o d esenvolvimento de uma lite-
ratura patria.
Creio. como alguns escriptores nacionaes, que temos elem entos
de sobra p ara fazermos independenc ia litterana, e estabelecerm os n a
fecieração das !~ttras :republica á parte.
Como elles, acho que o cunho a~nericano deve-se oste ntar em to-
das as pr oducções do genio brazileiro ; q ue tan raio do sol das Ame -
ricas, que doira as n ::>ssas frontes juvenis, deve espalhar-se brilhante
nas prod ucções da m usa dos b r azileiros.
Dos hombros da na y a de do Amazonas affastemos o manto
servil da imitação européa, pesado para nosso clima ardente, e demos-
lhes as vestes leves, gentis, das virgen s da florestas natalicia,;!
Não modelemos tanto a s n ossas in spirações pelo cadinho europe:..
nós que na mais opulen te plaga lemos a cpopéa estupenda da creação
n o livro infinito da na tureza. De origin alidade ou a o menos naturali-
sação da idéa, precisa a litteratura patria, çue n ã o comporta sem e::,-
candalo as creações farsarias, á laia das do ingen io.:;0 P onson , e os
heroés exdruxu los, impossíveis, de Feval e Montepin.
A mesma no velho ou no novo mundo é a poesia do coraçã o . sã o
os m esmos os sentimentos poderosos que accordão na alma do filhu
deste ou daquelle h emispherio ; os m esmos que despenh ã o da cumia,;é!
agitada das paixães individuaes, ao impulso d o vento d o ;:'..i::,;espero, as
catastrophes da vida.
Mas. segundo a r egião, clima ou natur eza cio paiz, são as con d i-
ções de vida dos povfls; outra a face predom inante do seu caracter ;
outras as suas inclinações naturaes, o seu sentir social: como qu e todo!'
os povos têm uma alma natal.
Em qua lquer parte do mundo o homem é o mesmo ; porém, mais
ou menos modificado por influencia de civilisação no gráo que goza .
dos usos e costumes particulares a cada um, das in stituições que man-
tém e das crenças que adopta . Mesma phisicamente, immensas são as
distincçõe~ entre os filhos de paizes diversos .
Quem não distingue á primeira vista (fallo n o g<!ral), á r egub ,
~istancia, em uma roda de brazileiros o filho de Portugal ?
Não é preciso que elle falle para indicar-se-lhe a naturalidade!
- 189 -

E Portugal é d e algum modo nosso avoengo ; nossos antepassados


se ·entroncão na familia luzitana.
Entretanto de · commum temos a lingua que falllamos, já com
accentuada côr brazileira, a casa de Bragança e Bourbon, cujo sceptro
aguilhôa o gordo costado luzitano e a um pouco mais franzina lom -
beira brazileira, e instituições cadu cas, desprestigiadas, que mutuamen-
te se copl.ão.
No sangue do nosso povo corre, de mescla com as portuguezas ,
gotas de outra raça ; em n ossa imaginação pollulão outras idéas, em
nosso coração outro sentir e em nossa alma outras ambições.
Não é o bom lavrador do Minho, que após prolongap.o trabalho em
suas geiras descança ao crepitar dos velhos cepos no fogo da lareira,
- o audaz gaúcho que vôa nos pampas do sul montado no furioiios
oogual, tendo por patria a solidão sem fim , sem amores nem familia ,
sem laços que o detenhão em sua vida errante! Não é o barqueiro do
Douro, não é o saudoso pescador do Tejo, - o intrepido jangadeiro
dos mares do norte, que no fragil lenho arrosta a sanha do oceano sem
descôr; -- o r obusto caboclo do Pará, que enthronisado na piroga cor-
ta com o remo subtil as argenteas escamas do rei das aguas! O traba-
lhador da Beira, que passa longos serões ao lado do fogo na debulha-
da do trigo, - não é o escravo brazileiro, que ao cantar do gallo á
meia noite, mal dormido, corre ao som do sin0 da charr.1ueada, tre-
mendo d e frio que corta, sob o açoite ameaçador do capataz, á cancha,
para matar bois até d~ alto, e d'ahi até a noite lidar com carnes : isto .
mezes seg uidos, uma safra inteira!
E nos faremos n ós servis imitadores, e diremos não ter elementos
nroprios?
Do velho e Jecaciente Portugal, mortuario esquife onc.e repousàu
para sempre as glorias de um povo illustre, que ha dois seculos con -
duz á sepultura a dynastia de · Bragança, fatal coveiro, - ao Brazil
que, ainda envolto nas fachas da infancia, prega os- olhos scintillantes'.
onde boião inebriadas as aspirações do seculo, no véo azul que ven-
d_a o horisonte do futuro; entre o berço que nasce para a vida e a
tumba debruçada na morte, vacuo immenso se estende.
O genio portuguez, lida.dor . cançado, de · alvas cans á m ercê dos
ventos, assenta-se á beira da estrada, invalido hoje, a embeber-se nas
scismas de um passado venturoso de poderio e gloria ; rememorando
um por um todos os seus feitos grandiosos nas éras que já lá vão .
Volve olhos saudosos ao passado, relê folha por folha a historia gran-
diosa do seu arrojo e genio , e de seus labios frios como o bafejar da
m orte, a o vêr tumultuariamente desfraldarem o estandarte do seculo
nas ameias do progresso os povos viris , escapão-se as palavras: "Ai!
já não posso mais!"
Mal sabia Camões que, ao :iechar o seu immortal poema, fechava
para sempre as laudas alympicas de sua historia patria, que o arrojo
luzitano escrevera no dorso intermino do oceano , nas ilhas desconhe-
cidas, perdidas no leito dos mares da Oceania, verdejantes a boia-
rem sobre as aguas, quaes b erços de nenuphares nas correntes do
patrio Amazonas, e nas terras balsamicas do Indostão, onde agita a
campainha requebrada no laguido bailar a indiana feit iceira, onde
o cactus divino abre aos . affagos tépidos das emanações matutinas a
<..orolla esplendida no le~to do G an ges, e o pagode colossal dr: pedra
bo,ceja n as serranias do ·Himalaya sob o céo abrazador !
Mal sabia Camões que o diadema do senhorio dos mares e da
soberania do oriente tombava da fronte luza, a sepultar-se no oceano,
murmuradora testemunha de tanto heroismo!. Mal sabia que na epo-
190 -

péa gigantesca que traçára nas horas aziagas do desterro, lavrava o


testamento magestoso de sua patria. E que (coiI).cidencia fatal), ao
des.::errar-se a lousa sobre o poeta mendigo, de um povo rolava o ca-
da ver no mesmo chão de mor te!
Ha uma intima collisão entre a grandeza social dos povos e o
seu florescimento nas lettras. Quando corre impetuosa a seiva vital
n'uma nação que espaneja a fr onte deij,6 r en hada no ether puro das
idéas grandes, intima co,nmoção ar roj:, do coração da sociedade aos
quatro ventos as producções do genio . · Se ao contrario côa-lhe no
corpo . entorpecido a gelidez da indifferença, a estagnação da vida,
r esente-se nas lettras o mesmo torpôr que h\'unedece a fa ce bolorenta
á sociedade amortecida . E não peção fogo ao gelo, enthusiasmo á
indifferença , arlroj o ao estacionario, movimento á inercia , vida á
morte!
Sn novo Christo, trazendo a palav1a. inspirada das commoções
vitae1-- á essa pot>irenta Necro:;>olis, poderia , aquecendo ao calor do
fogo das te mpestades populares, erguer Lazaro da sua tumba secular,
hanhaào n as ondas de luz das crenças nobre. Só a palavra omnipo-
tente q ue descandê&. o furacão das paixões a turbilhonar nas ondas da
pop ulaça, poderia produzir a chispa electrica que gera as vocações
poderosas, desses que são na sociedade o coração da h umanidade.
Nestas épocas então, como que de cada restea do sol do ideal se
géra um desses filhos immortaes do incendio, a o choque das idéa s
que se combatem, arremessando, soberbos de energia e virilidade zm
·odos os sentidos, t>strophes de fogn , c:>ruscantes e terríveis que fa -
zem em sust os os reis nos thronos conchegarem a purpura ao corpo.
e as estatuas dos velhos monarchas estremecerem em sei; pedestal
de bronze!
Os vagos rumores, vozes inintelligiveis, se condensão, agiganteão ,
tornão-se uma orchestra formidavel. A scentelha torna-se fogueira , a
fogueira incendio após longa laboração, po1· vezes surda , no peito
popular: então da tela enrubecida, sob o céo inundado em luzes, des-
tacão-se os vultos colossaes dos Mirabeaus, dos Vergníauds, circum-
dados da pleiade sublime dos crentes do progresso, com as vozes a
d esfazerem-se em hymnos, e as idéas em epopéas esplendidas! E' do
fogo que alimenta o enthusiasmo nas intrepidas gerações de heróes,
q ue arrastarão por vezes o carr o da revol ução pela Europa, baptisada
na ·pia da razão, proclamando aos povos os principios immor:-ectouros
do direito, que nascerão os Hugos, Lamartines, os Beran gers, Mus-
ets, Mérys, Quinets, e outr os talentos poderosos q11 e o sepulchro
g uard ~.
Na Allemanha sonhara, agitada pelo pensamento democrat'.co d a
grande patria germanica, respondendo á mascula geração da França
é que Goethe, Schiller, Heine deslumbrão com o seu genio grandioso
a alma da humanidade ; emquanto a I~glaterra atira ao continen te.
er r ante, aventureiro o seu capr ichoso lord, q u,e foi expirar nos bra-
ços rta liberdade, a um s_orriso do céo oriental nas plagas feiticeiras
da Grecia. Irrompeu o genio brilhante de Shakspear e, irromperão os
r?,sgos omnipotentes da inspir ação de Milton, a os ar rebóes da revolu-
:-;ão ingleza, que decepára um rei, banir a uma dynastia, e d errocára
instituições nefandas, ateando para semprP. no coração inglez o senti-
mento da liberdade.
E o que é feito dessas almas, oceanos do genio, onde boiava a
arca do progressi:, aos lu m es da liberdade? Que o responda a u rna
ciner aria q ue guarda as cinzas fr ias dos apcstolos d a moderna civi-
lisação.
- 191 -
'
Um a um têm desapparecido todos esses coripheus da grande ér a
litteraria, e não têm tido herdeiros. .
E_ o que pótie nestas delicias de Capua, em que se embevece a
sociedade, inspirar a imaginação do poeta, a fazel-a soltar epico vôo
pelos páramos sublimes da poesia? As intrigas e côchichos dos bas-
tidores monarchicos? As farças mais ou menos nojentas do c onstitu-
cionalismo representativo? As scenas geralmente representadas pela
realeza, no lameiro da corrupção; as farças degradantes, aviltantes
do Baixo lmperio? ou a estagnação moral a que hemos tocado n 'este
lúgubre Asphaltita, quando as idéas do futur o, como que a custo r es-
pirão nos pulmões da humanidade?
Póde inspirar imaginação alguma de poeta , sériamente de poeta .
os gozos do materialismo? Desferir vôos epopeiacos? E n'esta época
em que a alma se emerge na descrença, e o coração esfria sem o calor
da fé? quando como a gangrena a indiíferença alastra?
Não! Sem interno queimor que accenda o facho da insp l~ação
n a fronte, sem a força motriz que a desvendar outros céos exalça a
alma.
E essa força motriz paira em outras regiões, que n ão as da
miasmatica actualidade .
Victor Valpirio
(Continúa)
MELANCOLIA

A ' tarde, na minha terra , O' m e us dias sP.n.uctores


Avistando além o ric, Da florida primavera,
Quando o vento passa fri0 Que bella a vida me era
Nas tymbaúvas da serra , N'es a quadra dos amores!
Eu oiço saudosas n<Aas Quantos anceios d~sfeitos!
Cantadas no dôce val , Quantos suspiros perdidos,
A' sombra do laranjal Qual bateis que vão fendidos
Çujas flôres rolão sôltas. Da procella nos effeitos!
E ' o cantor das campinas, As sombras descem ligeiras,
O canóro gaturamo, A n c ite en negr ece os céos,
Que pousado sobre um ramo E da tristeza n os véos
Canta á estrella vespertina . Mi nh'alma se envolve inteira.
N'essa dôce soledade E a m inha infancia boiando
Scisma a alma sonhadôra , Sobre e rio 'ao passado ,
E na tarde que descóra L eva os r isos desfolhados
Envia um h ymno á saudade. A saudade me deixando! . ..

E a minha infancia boiando


Sobre o rio do passado , Ama!ia Fig-ueirôa.
Qual o lyrio despencado, '
Vai nas aguas fluctu a ndo! .. . 1 Por to Alegre.
- 193 -

BOAS NOITES

Oh! quanto é linda a flôr das boas noites,


Que, da tarde ao cahir, se vai abrindo .. .
Em celestes effluvios se expandindo,
Como incenso voando ao Creador !
A lua, ao despontar, furta-lhe um beijo;
A brisa, no correr, dá-lhe um carinho;
E o orvalho, que tomba de mansinho
E' o amante feliz da casta flôr.
Minh'alma é como a flôr das boas noites :
Ao cahir do crepusculo, vai-se abrindo .. .
Em nuvens de poesia se expandindo,
São as preces, que envia ao Creador.
A lua, ao despontar, furta -lhe um beijo ;
A brisa, no correr, dá-lhe um carinho ;
Mas nunca ella sentio cahir mansinho
Esse orvalho celeste: o teu amor!
Damasceno Vieira.
Novembro - Julho de 1872.
CHRONICA

No dia 28 elo corrente inaugurou-se a bibliotheca publica.


De todos os fac tos que a chronica deste mez tem a registrar, este
é ·em duvida o m ais notavel. A garrida Porto Alegre que já a mui-
tos respeitos leva decidida vantagem sobre outras cidades do impe-
rio, não podia p or mais tempo estar privada deste grande melhora ·
mento .
As bibliotheca::; são o complemento das escolas, disse-o um emi-
nente publicista. Esta verdade foi compreh0ncUda pela actual assem-
bléa provincial, que na lei do vrçamento consignou uma verba desti -
nada á acquisição de livros para a proj ectada bibliotheca. Oxal á esta
medida salutar seja secundada p or outras subsequentes, e o publicc
se esforce para que não arraste vida ingloria , tão util instituição. Em
csta bele~ imentos d'esta natureza a fundação é o mínimo, na sua ma-
nute:nc> ·, o é que reside o maxímo. Adquirir alguns milhares de livros.
classifical-os, organisar por elles um catalogo e depois estacionar aqui.
ser ia o m esmo que construir uma machina a que faltasse a sua pri11-
c ipa l condição - o movimen to. A acquisição de livros deve ser !.n-
cPssan te e esta só se póde realizar com o favor dos governos e a a n i-
mação popular. porque despender avultadas sommas em benefic io do
publico, e receber como retribuição do beneficio a ind:i'feren ça , seria
prati ca r a m11is criminosa das prodigalidades.
Com o titulo Ensaios Litterarios fundou- se n 'esta capita l umél
as oci açào !itteraria . Irmãs nas aspir ações, banhadas pela l uz de um
mesmo sol, v Puthenon Litterario saúda com cnthusiasmo a sua joven
co-i.rmã, e estend endo-lhe affectuosa mão ambiciona-lh e glorias e
longa existencia.
- No mesmo dia cm que se inauguravão os Ensa ios Litterarios ins-
tallava-se um c!ub que po'steriormente r ecebeu a de nominação urr;
tanto eni.gmaticc,. de Club Z. E' amar o laconismo até o extremo . Com
a denominação Z cremos que os nossos leitor es nem de lev e suspeita-
rão quaes se:ião os fins d'cste Cluz. Tranqtdisem- se os que atr avez
d a ultima lettra do a lphabeto julgare m ser algu m a cousa de misterioso
e terrível.
O Club Z não é republi.cano n em monarchista. Não advoga a
causa da Internacional nem combate as d0utrinas do famoso Karl
Marx, é simplesmente !lm lugar de reunião, onde após o lidar diurno
se passão em agradavrl conve rsação algumas horas da noite.
Aca ba de sahir a luz o Alman:;ck Rio-Grandense; foi um serviço
importan te que á população d'esta provi ncia prestarão os Srs. Azevedo
L ima e Vascon:::ellos Ferreira. Avaliando as difficuldades que seria
necessario vencer para coorden ar pela primeira vez o material d'esta
utiEssima publicação , não podemos deixar de reconhecer, que, apezar
de algumas lacuna s, que nos annos segu intes se::-ão naturalmente pre-
- 195 -

€nchidas, estão as differentes secções que o Almanack encerra, dis-


postas com methodo e clareza, qualidade esta muito recommendavel
para quem tem necessidade de consultar a obra.
Approxima-se a festa do Menino Deus. Bem vinda seja. Com quantu
não se encontre n'esta festa a franca liberdade, e aquel!a doce pGtsia,
que tão encantadora torna as festas no campo, basta possuir ella o
condão de levar á .rü;unha capellinha a maior parte da nossa população.
para ser desej ada com alvoroço . Sl::o alguns dias em que se quebra
a m onc>tonia d'este nosso viver, e em que o nosso olhar se distrahe
com uma cout-.a, que sendo por demais sediça, tem sempre para n ó;;
um não sei que de novo, sorprehendente e até arrebatador: .!....:.. o r ede-
moinhar confuso da multidão. A companhia dos carris de ferro ten-
cion a franquear ao publico antes da festa os seus magníficos carros.
Oxa1á se realize este intep.to para que o povo fique mais bem ser vido
de locomoção, tanto em rapidez como em SE!gurança.
O b enevolo acolhimento que tem tido a nossa Revista, determinou
o augmento de oito paginas no presente numero . Que os nossos lei-
tores vejão n 'este augmen to u ma expressão de agradecimento sincer v
que pelo favor r ecebido lhes tributa o Parthenon Litterario.
M . J. Gonçalves Jn ior .

Noveirú1ro de 1872.
J '
REVISTA MENSAL

DA


SOCIEDADE

PA RTE N ON LITERARIO

2.ª Série - Novembro de 1872 - N.0 6*

TYPOGRAPHIA DO CONSTITUCIONAL
PôRTO ALEGRE
1 87 2

*) Engàno de dat.i. . O n .0 6 corresponde a dezembro de 1872. -


N . da Redação da R . elo I. H . e .G . do R . G . do Sul.
COMMISSAO DE REDACÇAO

Vasco de Arau jo e Silva.


Appolinario Porto Alegre.
José Bernardino dos Santos.
Luiz K raemer Walter.
Francisco J . de Sá Brito.
Manoel Gonçalves Junior.

REDACTOR DE l\lEZ

J osé Bernardinu dos , Santos.

DIRECTORES

Achilles Porto Alegr e.


Hilar.lo R ibeir o.
- 207 -

Era de noite. Elle entr ou na peça p r .l ncipal, e sentou-/e n'um


,cêpo perto de alen tador brazeir o, sem p ronunciar p ala vr a . Não se lhe
,enchergava o rosto n a penumbra do chapéo desabado. Silencioso e sorne
b r io pousou a barba n as mãos mergulhado em funda scisma . Sua im-
m obilidade o assemelhava a esses guer reiros amer icanos a cocorado
n os camucins da derradeira morada .
A amp ulenta do tempo vazava h or a sem que ninguem apparecesse.
S ó a sentinella guay canan descan çava sobre o arco q uasi de longura
-de u m corpo de homem. Parecia ador mid a, e no entretanto, ní_i attitude
de estatua era a personif icação da vigilançia. Imperturbavel como 'l
penedia erecta tinh a cem olhos de ar gus, não perdia o men or accidente
do theatro em que se achava; o ouvido er a uma acustica viva, o argueiro
que tombava, o zumbido ào noctívago insecto n'elle repercutião.
Avençal, Manduca, Moysés e outr os entr ar ão já sabedores da
prisão effectuada em sua ausencia.
Seria meia-noite.
O soldado ao vel-os soltou um grito e cahio nos braços do vaqueano .
- Avençal! murm urou.
-- Rosita! exclam ou elle.
Largo espaço estiverão unidos, seio contra seio, olhos debulhados em
lagrimas, os labios exhautos de carinhos.
N'uma exclamação tinhão dito tudo .
- Avençal e Rosita!
Que mais poderão dizer?
Aquelles dois nomes para elles não constituião uma religião. um
poema de amor, a immensidade do infortunio de duas almas nutridas
dos mesmos sentimentos, refociladas n a m esma cr ença ao pungir da
mocidade? Que fundião-se na mesma aspira ção? Tão irmãs como duas
flôre s de um corymbo , duas azas de beija-flôr?
Culto grandioso e sublime de d ois corações que se amão !de
Romeu e Julieta, máo grado os odios de r aça!
Em suas irradiações parecem superiores á natureza, ao tempo,
ao espaço e a Deus, embora caião inanimes na l uta!
Quem lhes bradará: Suspendão?!
Vã tentativa! a pyra recebe alimento , mais cresce a pa1xao a cada
óbice, a labareda corre como na queimada devoradora e rapida. e
torna-se como a entranha da terra, quanto maior pressão , mais a
cratéra volcanica fumega, arde, extravaza, v ence, m ata!
Reprimirão afinal os ímpetos do peito.
- A vença!, fujamos d ' aqui . . . Amanhã será tarde . . . Meu irmão
procura-te, Avençal. .. Foge, eu te acompanho ... Irei aonde fôres . . .
E travava-lhe das mãos com ar supplice.
- Tambem enverédo, disse o mulato ...
F ugir ?! não ; não posso ...
- P artamos, renov6u com o peito par tido de um soluço. . . Queres
morrer! I_J.ão vês que nossa ventura deixará de ser uma mentira?
A imagem de J osé Capinchos ped indo-lhe a vida em nome da
amante desta cou n o cer ebro d o m ancebo. Esta recordação repassou
-de amargume o jub ilo que por instantes lhe in nun dá r a a alma.
Tornou-o forte contra a ten tação.
Fa llou com sigo r esoluto : Cu mpr a -se o fad o! E a ella:
- Nossa ventu ra, minha Rosita , e volveu os olhos para o céo ...
Só lá! ...
An dr é, a penas chegára o exercito da Republica , fôra apresentar-se
a o general para prestar o auxilio que d 'elle carecesse, e de facto prestou
v aliosos ser viços, já em gen te su a r eun id a a o ex ercito, já em din heiros.
- 208 -

Não fôra o amor á causa quem o guiára. Foi o presentimento do odio.


Julgava encontrar não só o caçador, mas tambem o inimigo do intimo ,
mas a hora da vingança, hora ha tanto almejada e estremecida.
Acertrára.
Deparou ambos.
Captára o reconhecimento de Canabarro, podia operar livremente.
Pôz-se em campo. Porém, a sanha do tigre teve de q uebrar contra a
fera tempera dos aborigenas, dedicad os até a heroicidade. Moysés de
seu lado tambem o presentira e oppuzera a unica força capaz de
resistir -lhe, o unico elemento de fidelidade a toda a prova.
André queria tomar Avençal, a imaginativa deu-lhe o recurso·
de mil planos e emboscadas, malogr ados sempr e pela vigilia eterna
do gentio . Uma occasião no auge do desespero estrangulou um d'estes.
Outro appareceu, depois um outro e por fim, turmas que ião augmen-
tando progressivamente como onda após onda na folla dos mares.
Fugio. A irmã ao vêl-o chegar em casa com as feições descompostas,
abrigou-se ao quarto. Tinha tambem feito um plano. S uas facu ldades
e_stavão reconcentradas n'um só ponto : a salvação do amante. Queria
vêl-o e confiava em arrastal-o longe da Laguna. Ennoitecia, A h or a
er a p ropicia. O silencio reinava em torno da morada. Abria a rotula,
e, disfarçando o sexo nos trajes de homem, sahio .
Com o passo apressado e tremula foi dar nos arranchamentos.
como vimos. Não notára que dois vultos a seguião de longe: André e
u m peãa.
Quando voltára com o desalento e o desespero n' alma e a in-
tuição d'uma proxima desgraça, ao trans'pôr a janella, v io destacar
tremenda nos umbraes a figura do irmão, livida de colera, porém
calma no exterior como a face do oceano antes do furação.
Ligeiro arrepio frizava-lhe a espaços os traços, e um som cavo e
profun do regougava surdamente nas fauces prestes a escancarar-se.
Onde foste, R osita? perg untou.
- Que me queres? respondeu medindo-o allucinada.
- Que te quero? E um sorriso caustico como a pelle da tartarau-
na, como o leite da guararema, espadanou e foi borrificar a face da
mimosa donzella . Que te quero ?! Vai d izer tuas ultimas rezas. . . E
depois. . . irás contar á nosso pai o que fizeste por cá esta noite .. .
infame!
Rosita sentou-se á borda do leito e mergulhou a mão sob as roupas,
que oscillarão por momentos.
E placida e radiante a fronte como o lago em tarde serena, ferido
dos resplendores do occaso, esfolhou um sorriso como petalas de rosas,
com o accentos de harpas eólias, como dulias seraphicas :
- Eu te amo. Avençal. . . Adeus!
Foi um sussuro. . . O adeja do espírito que foge do corpo.
Estava morta. Tinha uma adaga cravada no coração.

XXII
O CORREDOR DO PANGARÉ
Manduca e João de Deus atarão uma carreira entre um alazão-
ruano e um pangaré. Logo no acampamento formarão partidos, apenas
feito o atilho, e a parada subio a tresentos patacões.
O vaqueano era o corredor do alazão . Do outro não se soube até.
o di a.
- 209 -

Os dois pujantes animaes, tratados a palha de jerivá e bem ami-


lhados, apparecerão na raia .
Havia ali um mundo de gente toda agitada, soltando alta grita ,
a effervescen cia da ar r aia miuda preparada para uma ~rande festa.
- Páro tres doblas no ruano , bradava um. Isto é que é g4i,ete,
pellichou de dias e já fino na raia como uma setta. O alazão não
reserva t iro nem parada em cii;i.co quadras . . . Coepuxa! E sacudiu o
r êlho com ar provocador.
- Sente-se no tiro, e a parada morta, disse outro . ão é 1.1m
salta-pedras que dá pancas.
- Envido, amigo , retorquio.
- Reenvido ...
Rebentou sáfara pocêma.
Um adherente do 'pangaré que não vira com bons olhos a pro-
vocação do primeiro interlocutor, tambem rugio-lhe aos ouvidos:
- Aquillo é um matungo, patricio! um reúno! . . . Largo-lhe na
colla a tiro de bola e ainda vou tomar-lhe o boçal. .
- Helá!! Este potranquillo agora desponta o colomilho e já no
partir mata o pangaré a sacar de paleta ...
- De fiador ...
- Nem de orelha . ..
- Eu torno a repetir que cem leguas em derredor não ha cavRllo
mais monarcheiador, voluntario e parelheiro ...
- Basta de levantar polvadeira! não ésó a boca que faz jogo: é
a raia que ha de fazei-o. Não épor escarcear que a se conhece o pingo.
N 'um prisco do pangaré vai tudo razo.
- Qual pangaré, nem meio pangaré! O ruano sim é que vôa, nem
risca o chão! . . .
- Por Deus e um patacão! Ao heup da carreira o bagual do ruano
se desmancha . . . E se ha quem diga o contrario pize-me no poncho,
que verá como o corto de arreiador. E desenfiando o poncho, e o re-
voluteiando nos ares arremessou-o por terra. N'um minuto facas d es-
pirão as bainhas e rebenques alçarão as açoiteiras.
Era imminente um grave conflito, se não fosse a intervenção de
Moysés e outros que interptarão e fi zerão abortar furiosas agachadas.
São preludias d as corridas.
- O que não dirá o general, advertio o mulato, se sabe que no
brinquedo houve rusgas?
Soceguemos, se não queremos conselho de guerra e fuzilamentos.
Appla cou-se a conflagração.
Ao tumulto succedeu o murmurio de vozes commentando baixinho
o sucesso.
Decorridos instantes um ponderou em tom alto :
- Com o diacho ! Onde está o corredor do pangaré? Esperão que
caia ali da carapuça do môrro? disse alludindo á' nevoa que corôava
o cume de Santa Martha.
Era motivo para novo disturbio ; porém J oão de Deus apazi-
guou-o.
- Ha dias veio um sujeito fallar-me para correl-o, affirmanào
que ganharia e ao contrario pagaria o dobro. A's duas horas elle vem.
Prometteu.
Moysés teve apprehensão tão repentina que bradou :
Vamo lá esperar! ... Corro eu com o mesmo conchavo.
- Não queremos. Não queremos, tornarão em côro um sem nu-
mero de vozes. Esperemos nosso corredor.
O mulato sobreesteve fulo de colera. Depois achegou-se ao va-
- 210 -

q uean o e pronunciou mansinho: Abandona o a l azão, q uem corr e o


out r o é A n dré Cap inchos.
O moço encolheu os h ombros com ind iff erença .
- P or Deus o digo, José.
O mesm o m ov imento.
Moy sés mostr ou impa cien cia e foi até o arran cha m e nto a con selh a r-
se com os indios.
As d uas h oras v ir ão um cavalle iro a toda a brida .
Chegou.
E ra A n d ré.
Avençal ne m d e le ve f ez-se surpreso.
Os corr edores puzerão-se em mangas de camisa, atarão um lenço
nos cabellos, tom arão dois talos de jerivá e mon tarão os cavallos em
p ello.
A car reira e r a em quatro quadras.
Os j ulgadores nomeiados forão par a a r a ia . O p oviléo apinhoscúra
em d uas im men sas t ur mas.
Começar ão a p artir .
- A ssassin o, d izia entremen tes And r é, h oje não tens um velho .. .
Covarde!
A s faces de Ave n çal ca rminarão levemen te, porém n ão r espondeu.
O ou tro proseguio:
- E ' necessar io que e u te córte a car a , p ara te fazer falla r ?
A ind a ornesmo silencio.
Q uem os v ia , d issera que conversa vão . Só M oysés a d v inhava o
q ue se passava , a cariciando a coron ha d' um pis tolão.
Na qua r ta vez, cerrarã o p ern a s e sahirão . Os animaes dilatarã o
as n a r in as, diste nder ã o o talhe esguio. A ssemelhavã o dois da r dos n 'um
a r r emesso violento á flôr da ter ra . Os dois homens inclinados n a v er -
t igem do galope, a toda a redea devor a vão o lançante do côrro com a
v elocidade do corisco . . . S eguil-os com os ol hos , fita l-os er a crêr nos
centauros m y thicos, era sentir as fo n tes latej a rem n o ourijo do pen sa-
m ento.
O ala zão começo u cortar luz de fi ador, Capin chos apro ve itou a
ocasião, levan tou o braço, ia f erir n a fac e a Avençal .. . Uma frech a
silvou d 'entr e a r ama d ' um salgueiro e arrancou-lhe o talo da m ão
er gu ida.
O facto pordu zio tão pr::ifun da sensa ção, que por m omentós p ar-
ly sou todas as linguas. D epois uma tempestade.
Moysés foi abraçar com enthusiasmo o guaycanan de v ista certe ira .
Os julgadores em vista da occur encia annularão o que se tinha f ei to.
Avençal na velocidade em que ia não vira o que passá ra .
Mal derão a assenta d a , pularão d os ca vallos.
A ndré esbravejou:
Houve trapaça d e p és e mãos, e m etter ã o caboclos no meio . ..
~ O vaqueano n ão pôde conter -se.
- Me n tiste, p erro! brado u .
D uas fa ca s lampe jarão.
Muita gente rodeou- os.
Moysés acercou -se dos grupos e disse com voz de t r ovão :
- De ixem -os brincar . . . Sã o contas a n tigas . . . Ca ramba ! deix em -
os, ou en tão faç o saltar os m iolos d o ultimo d os Capin chos, r aça de
m atador es . . . E tinh a na dextra o p istolão e n gatilhado e o cenho
ameaçador.
- Q ue r em pelejar r apazes ? r eflectio um ca pitão da R ep u blica ,
211 -

testemunha ocular do combate entre Bento Gonçalves e Onofre e


l'nuitos outros. Eu os arran jo, venhão cá.
E voltando-se para o alojamento, cujo maioria era composta de
soldados:
. - Retirem-se, ou mando •convidar o pellego do que não obedecer'.
A s mós do populacho pouco a pouco se rarefizerão, inda que com
murmu rio de descontentamento.
No dia seguinte vamos encontrar o referido capitão, os dois
adversarias e Moysés na costa d'um rincão. Ião atirar á faca n'uma
distancia de quinze passos. O capitão quiz sorteal-os, em conform;_da de
das leis da honra.
O vaqueano com o habitual sangu e frio e indifferença da vida e
quem sa.be por desprezo do antagonista, deu-lhe a primazia. Este acei-
tou com um sorriso, onde transluzia intimas jubilas, r eflexos d'al ma
que ia saciar a sêde de sangu e, alastro de adio profundo.
Tomarão os lugares.
Só o mulato tremeu diante da r esolução do amigo , mas não ou sou
fazer a menor consideração, deixou a Deus o desfecho do drama n egr o
-em que elle fi gurára entre as principaes personagens.
André empalmou a faca, ficando o cabo para fóra e a ponta da
lam'.na estendida sobre a parte interna do braço. Pinchou-a em direçã o
:ao peito de Avençal. fa feril-o no coração. · Porém , antes que o ferro
o tocasse, arredou o corpo e tomou-a no ar pelo cabo.
O caçad or respirou.
- Bravo! exclamou o capitão esfregando as mãos de contente.
isso é que é furtar a volta !
O filho de Capinchos empallideceu.
Avençal fez o mesmo moviménto , no entretanto· com admiração
<le todos não fitou o adversaria. ·
- Capitão, disse elle com voz onde o sarcasmo palpitava, v ê
aquella lix~guana na ponta daquelle galho?
Todos olharão, virão a faca transpôr um intervallo de quarenta
passos e vibrar encravada no centro da abelheira , a q ual o m nis qu e
tinha era um palmo de diametro .
Era a soberania do desprezo .
André rugio ao novo insulto, e travando do pistolão na cin ta .
d esfecho'u -o; o tiro seria mortal se Avençal presto como o galheiro
não se inclinasse ... n ' um salto , de rara agilidade cozeu-se com o com-
petidor , cingi.o-o pela cintura, ergueu-o do chão e fel-o rojar por terra
como um brinco. Pôz-lhe um joelho no peito.
- Andr?•. vês? P odia matar-te .. . não quero.
- Mai a-me, que eu não perdoarei nunca a morte de meu pai.
- E quem a ssassinou os meus · e a meus irmãos, roubando-lhes
suas riquezas? F oi J osé Capinchos, amigo d e casa. Fiz o que devia ...
Devia ter feito o m esmo em tua familia: olho por olho, dente por
dente. Não quiz. . . entendeste? De ixa-me, não me procures mais
ou então .. .
Mata-me , repet ia o outro, venceste, salteador, t ens direito . . .
Não te pouparei, se me deixas a vida.
- Vai-te, não temo os tigres. O outro montou a cavallo ralado
de ra'.va.
Avençal foi buscar a faca na colmeia.
O capitão fez-lhe os maiores elogios.
Só Moysés resmonneou entre d entes:
- Aquella gavotta! Aquella gavotta! que tanto apreciou o cava-
lheiro do Amaral!
- 212 -

O mulato entendia que , se o irmão poupava André, era por causa


de Rosita .
O vaqueano e o caçador, qu ando chegarão ao acampamento forão
rodeados do popular, o capitão narrou o combate com todas as parti-
cularidades. Produzio urras e algazarra formidaveis o acontecimento .
A popularidade do moço attingio mais alguns furos.
João de Deus bebia como um inglez. Dizia elle satisfeito:
- Por Deus! isto livra-me d'um p eso de cem arrobas. Fui eu
quem fez o amigo vaqueano ter a pendenga.
E os martellinhos de .vinho succedião uns após outros.
XXIII

A CABEÇA DE UM ANJO

A' noite reunirã o-se na bodega do B ino Capenga, homem que


seguia o exercito com negocio.
Moysés convidára seus amigos a uma patuscada , d'onde excluio é)
dansa , porque certo tempo votava-lhe singular ogeriza .
Havia que molhar a p alavra, cartas e violas. Bastava .
Avençal como sempre triste.
As violas tangião.
- Lã vai verso, disse um guasca typo, de cheripã , calças franja -
das e chapéo de barbicacho.
Era um bello moço que aborrecia a estada em Santa Catharina
a ponto de soffrer de terrivel nostalgia .
Começou:
Já não ando enrabichado,
Não arrasto o meu cambão!
Aos bamburraes da trh,teza
Foi-se o pobre coração.
Que de saudades que sinto
Das cochilhas lã do S u l,
Dos campos, onde escarceia
Meu parelheiro taful?
Ai vida lon ge dos pagos,
Vida tyranna , por Deus!
Quem não gosta da quer encia,
Da querencia que é dos seus!

Abom bado, cabisbaixo,


Ando nas terras de cá;
Deixo as bolas, deixo o laço ,
Deix o o pingo, tudo já.
Boi chucro que va~ de tropa,
·. ão chora o que eu já chorei:
Ai saudades de meu peito,
S audades do que d eixei!

Vem-me tudo na memoria:


As tronqueiras e o curral,
A estancia com seus potrciros,
O vargcdo e o m a ::cgal!
213 -

Vem-me a casa da Marucas,


J unto ao serro do Bahú,
Marucas, a morenita,
Sem parelha no tatú.
O' tempos que eu rozeteava
Com Marucas no serão,
Chilenas finas de prata
Repenicando no chão!
Adeus, barrigas - verdes,
Já vou a monarqueiar,
Gósto mais do meu churrasco
Que d 'esses bagres do mar.
Dos campos do meu Rio-Grande
Muito quero e té demais ;
Eu como dos seus rodeios
E bebo dos seus hervaes.
Volto á cancha dos amores,
A' cancha do meu viver,
Que só lá posso chibante
Estar com meu bem querer.
Eh! muchacha, se me viras,
Juráras que não sou eu;
Pois vou-me desbarrigado
Como quasi quem morreu.
E juráras por teu rosto,
Encarnadinho como uva,
Que fiquei-me sem pellego,
E tornei-me boitatá? . . .

Heup! Heup! ó meu cavallo ...


Ehpuxa! que vou partir! . ..
Risca a raia e teu relincho
Novamente faz ouvir.
Salta sangas e porteiras
Que depressa já me vou;
Pouco rodar e planchar-se
A campeiro como sou . ..

Retovei as boleadeiras,
Nova inhapa o laço tem.
Heup! Heup! A toda z tedea,
Prisco a prisco rompe além! .. .

Vamos, pingo , terra fór a ,


Feia terra que p~zei!
Ai saudades, ai saudades ,
Saudades do que deixei!
- 214 -

Terminou.
Os applausos chover ão sobr e o trovador, c uj as palpe bras humecta -
vão-se de pranto .
- Is to sim é botar ve rso s! Senti cé por dentro não ei o quê !
Parece que o coração tambem chorou-me . ..
A quem toca?
- A mim.
- E assim prosseguirao nos descantes, aca ba ndo pelo hymno a
Bento Gon ça lves, cuja primeira estrophe é a seguinte:
Bento Gonçalves da Silva
Da liberdade é o guia,
E' heróe, porque detesta
A infame tyrannia.
Todos o en toarão, excepto Avençal.
Emquanto uns jogavão a primeira , o trinta e um e a manilha ,
outros estalavão a lingua nos sôrvos d a aguardante que chamavão a
patrícia, e do vin ho do r eino, e alguns outros dedil havão nos instru-
mentos os classicos anum, tyranna, chimarrita e tatú , além dos im-
provisos e toada s e canções da época, elle, em seus pensamentos
isolado da reunião, ia longe refestelar o espíri to n ' uma imagem pura
e santa, aurora que nos primeiros annos lhe sorria com ta n ta volupi a .
que elle pudera esquecer em muito tempo de adversidade e esqueci -
m ento de si proprio, mas que ao tornar a vêl-a , faz ia como reviv er
todo um passado riso nh o, toda uma paixão nascida para ser logo suffo -
ca cla nos braços da consc.~encia . Na a thmosphera de tristeza e infor-
tu nio onde r espirava, CI'.ia entrevêr uma luz . . . miragem do naufrago
no m eio do oceano! O mundo não ti nha mais u m r a io para fecundar
a esterilidade de um semelhante coração. A alm a humana exposta a
um longo periodo de a n g ustia suprema , q uéda como o r chedo do
mar batido do vagalhão. Aquella não tem mais ger men de crenças
fundas, como este não tem mais germens de vegetação , a não ser
pelas fendas uma ou outra radícula moribunda.
U m guaycanan en trou . Entregou ao caçador uma ca ixa , dize ndo :
Irmão , trouxerão.
- Quem? perguntou Moysés.
- Não sabe o guerreiro. Entregou a caixa uma mão e xtranha ,
que clesapparece u li geira como a nhandú do ca mpo.
- Va mos abri l-a .
Todos, salvo Avençal, rodeiarão-n'a aç ulados pela cur iosidade.
Mal o ta mpo ligado com uma corda de imbé cedeu á mão de Moy-
sés u m grito d e terror partio de todos -os peitos. os cabellos our'.çarão
e m cada fronte.
Havia uma cabeça de mulh er.
Era a de Rosita.
O vaqueano despertou da scisma , ergueu-se e ve io ao grupo .
Ficou estatua.
André Capinchos! vociferou Moysés, quasi branco de fula que
estava. E não o mataste, quando hoje o pod ias, amigo! E voltando-se
pa r a o indio: Os g uaycanans sígão o inimigo , tragão-n'o vivo . . . Ca-
ram ba ! hei de fazer o que elle ensinou-me urn a vez .. .
E para os outros companheiros da tasca:
- A cavallo , patricios! Temos rebentona.
- A cava llo! ajunta rã o em côro phrenetico , palpando as a rma _
á cin ta.
- 215

A sala esvazio1u-se. Só José de Avençal ficára.


- Pobre Rosi1_:a! E o moço estreitou com veneração aquella ca-
beça inda mais b e rta d epois de morta, pallida como um bu to de lioz,
com os cílios entr ·eabertos como para inda uma vez vêr o amante,
com os labios qui~ parecião nas inflexões Pm que con gelarão estar
pronunciando um só verbo: Avençal!
Elle beijou-a em delírio.
- Victima do meu infortunio, perdôa-me, perdôa-m e . . . breve
serei comtigo.
E chorava , chorava o pobre moço!
XXIV
O P A VILIIAO TRICOLOR
O governo central assustou-se com a tomada da Laguna, vio a
ilha de Santa Catharina ameaçada de proxima invasão , como os na-
vios mercantes apresados por um inimigo, cuja audacia e valor não
tinhã o limites e chegavão até as fortificações de T a marin e Ratones.
Resolveu pois acabar com tão precaria situação.
Nome ou no intuito ao marechal Francisco José de S ouza Soares
d e Andréa cm"Ylmandante das armas da província invadida , e chefe
d'uma força naval ao capitão de mar e guerra Frederico 1\/Iariath.
No dia 15 de Novembro de 1839 entre imperiaes e r epublicanos
ia renhir-se porfiada luta , em que amba as facções tin hão de cobrir-
se de memorandn gloria .
Canabarro ca,mpava na bateria que defendia o porto. Garibaldi
com a esquadrilha em ordem de batalha.
Rompeu o fogo . . . .. . ... . .. . .
Q uantas façanhas , quantos actos de bravur a e heroísmo não fi-
carão sepultos n 'esse dia em nuvens de fumo , no fundo das agua e
no estrupido da peleja?
Como Canabarro e Gariba ldi sorrião jubilosos so b um céo de me-
tralha e fogo? L eões da guerra, columnas ava nçadas da Eberdade,
ceder ão; mas, quando o exercito disimado por forças sup eriores cons-
tituio um pugillo de b :r.avos, quando da flotilha vião-se apenas frag-
mentos boiantes sobre as ondas; cederão , é certo, ao numero e recur-
sos poderosos, não ao esfor ço e bizarria. Grandes na victoria e no
infort unio ! Grandes na derrota , porque tinhão n o coração as lagri-
mas do d esespero !
Derrota!!? Não . .. Retirada gloriosa , ressaca de vaga lh ões qúe
imprimirão o sello de sua pujança, onde baterão , fracassando.
Senão, porque não os segu irão aq uelles que cantavão os hymnos
triumphaes? Porque deixarão -n' os voltar sem offerecer combate, quan-
do er ão senhores da liça ?
Ra zão intuitiva. A natureza d o lugar sem amplo desenvolvimen-
to d e fortif~cações, deslocou-os, não os venceu. O riograndense con-
fia mais ern seus braços de Briaréo e em seus hombros de Atlan te
do que nos recursos offerec idos pela engenharia militar.
Retirando-se , poucos na verdade, ainda infundião ter ror nas hos-
tes con trarias, immo,bilisavão-n'as . . _
O r e ducto fôra arrazado. As pedras do parapc ~to al.ulhavao a be r-
ma ostentando calva a banqueta onde pisavão tantos valentes, onde
alg~ms davão a inda o ultimo arranco de vida pela Republica .
1\/Iariath varava a barra .
A bandeira tricolôr fluctuava na hastea , crivada de- balas, porém,
c omo sempre, medindo altiva a bandeira do im perio .
- 216 -

- Colhão a bandeira! bradou Canabarro , rti•bro de colera , tre-


mulo . de desesperação ... Coepuxa! que é impossiv el estacar mais um
momento! A posição vai ser tomada ...
E de facto varios destacamentos vinhão em clirecção.
- General, deixe-a, disse o vaqueano, eu fie o . . . vou dar-lhes
uma lição.
O chefe o conhecia muito bem para confiar-lhe o estandarte sem
susto. Não quiz saber mais, abraçou-o.
Tocou-se a retirada.
E parErão tantos heróes ainda com impetos d,~ retrocederem ,
se a voz do chefe ordenasse.
Quantos n 'aquelle momento não preferião ter ficado na arena da
batalha, ouvindo o som estridente das cornetas?'. Qua.ntos não se-
guião constrangidos? O contrario, no entretanto, era ir.npossiv>'.!l.
Mas o campeiro, onde é que vê impossíveis, elle habituado ,\s in-
temperies, vencendo dia após dia a natureza selvagem?
Partirão. Avençal só ali conservava-se. Por minutos desap~ are-
cera na casamata. Quando voltou trazia na mão um rnorrão acceso .
As feições ha tanto contrahidas pelos soffrimentos diffundião-se n'uma
alegria intima e ineffavel. Volveu os olhos para o céo e pronunciou :
- Rosita, espera. . . é um instante.
Os imperiaes approximavão-se.
Elle espalhou um rastilho de polvora através do terrapleno da
casamata até o mastro em que desfraldava o pavilhão. E sentou-se
junto d'elle n'nm comoro de ruínas.
Os legalistas galgarão a posição, julgando-a abandonada . com
tanta rapidez que nem viera a lembrança de reth'ar a bandeira. Vi -
nhão desprevenidos, porém, mal o virão, as arma~ procurarão a pon-
taria.
Não tiverão tempo.
Avençal bradou:
- Viva a Republica! E seu braço abaixóu o morrão; o rastilho
incendiou e . . . uma detonação horrenda , nuvens de fumo, espadanas
de fogo!
Quando o ar desannuviou vio-se que o pavilhão da Republica
não costumava render-se: ardia com seus inimigos.

Em frente á barra da Laguna ou do Tubarão demora a ilha dos


Lobos. Emquanto o cambate seguia as diversas evo~uções, ahi sobre
um penhasco um homem contemplava impassível a sç:ena. O fresco ·
do mar açoutava-lhe a fronte , e as ondas marulhavão-lhe ás plantas
sem demovel-o.
/ Tinha a physionomia carregada de odio. Parecia o ideal do máo
genio assistindo o espectaculo da destruição entre os homeI).S.
A rocha , que lhe servia de pedestal, não era mais immalleavel.
aspera e dura do que a tempera de seu caracter.
Vio a explosão.
O lampejo d'um pressentimento illuniínou-lhe a alma, sorrio.
Sorrio: - como Caliban ou Mephistopheles! Instillação de fel e veneno!
_ Meu pai, exclamou, gesticulando para o céo , estás vingado!
Meia hora depois um cadaver surgio ao longe. O sangradouro o
vomitava ao oceano. Elle em cima dq rochedo como o abutre fare -
217 -

jando a prêa, estendeu a vista e extorceu-se no accesso d'uma gar-


galhada .
- E' elle! E' elle! fremio.
E arrojou-se ao mar após o corpo do morto .
~ste homem e"í'a André Capinchos .

.,foysés chorava no acampamento.


O caso era virgem, por isso mesmo teve o respeito de todo o
-exercito.
N'aquelle dia que ia finar, perdera o querido irmão e quasi to-
dos os indios, seus fieis companheiros.
Os guaycanans desapparecião para sempre da terra , e!ltravão
no· domínio da posteridade, como uma tradição. Alguns vinte sobre-
vivião feridos e mutilados; poucos para representarem sua tribu guer-
reira.
Mas não era só a face do mulato que r orejava.
Todos que conhecião o vaqueano , inda que muitos lh,;; invejassem
a morte, choravão-n'o. E' que o pranto é sempre o epitaphio da sau-
dade n'uma ruína, onde vicejão flôres olentes.

1869.
lriêma.
FIM
CONTOS RIO-GRANDENSES
INTRODUCÇÃO
Qua ndo a s saturnaes do imperio , no proscenio immenso da Fran-
ça de Napoleão III, se representavão, e que as actrizes sémi-nuas aos
applausos phreneticos da multidão, calcavão com passo ousado o ta-
blado, que saudoso recordava as éras de Corneille e Hugo ; quando
reboava nas vastas abobadas odeoneas gargalhadas do truão , mu rchas
pendião , desfolhavão-se no chão dos cemiterios as corôas de harmo-
nias d'essas frontes sonhadoras .
Como no chão do alcouce ao calor do seio da cortezã, as violetas
pallidas, murchão, tombão sobre a tapeçaria lubrica.
Fugido do pestifero solo, lá no seu rochedo de Guernesey, a sós
com suas. m editações , espraiando ás vezes o olhar incerto na vastidão
immensa do oceano, ás vezes fixando olhos prescrutadores á varárem
as nevoas alvadias, · que do mar segredão ás costas verdejantes de sua
patria ; a sós com Deus, a :,olidão. a natureza , suas cogitações e seu
amor eterno á morta republica - na energia das paixões que tumul-
tuavão-lhe no peito , é que encontrava Victor Hugo forças para re-
sistir ao p endor fatal, para fulminar com as vozes timbradas de uma
colera omnipotente. ao homem negro. que embalde escorava o throno
vacillante na ponta das b ayon etas. Como que em seu coração abri-
gavão-se offegantes as tempestades que gemem no mar da Mancha,
para depois mais divinas rugirem no céo da Europa .
Assim , n ão é no bestial materialismo presente , n a submissão d o-
homem d egradado . sem outras ambições mais que as dos irracionaes,
ao despotismo real ; na abjecção do homem - machina ás mãos da
realeza - que se crião essas individualidades p oderosas, que como•
as pyramides do E gypto emergindo nos céos a cabelleira, desafião a
rasoura dos tempos impossiveis, symbolisando a grandeza excelsa de·
um povo morto, cuja sepultura os seculos g uardião . Não é deixando-
se insciente encurralar nos redil onde o imperialismo tosquia o reba-
nho romano .
E' necessario o fogo interno irromper do coração impetuoso á
voz senhoril do poeta , como ao toque da varinha magica do Moysés·
da Bil·,,. \!a , do rochedo agreste brotou a lympha espumante, em ,jor-
. ros df mpida agua. Mas, ai! que n ' esta opulenta região da Amrica,
a littera.ura, verdadeiro espelho do adiantamento moral do povo, jaz
em completo marasmo, como a socjedade que reflecte. Mal destôa
d 'esta geral pasmaceira, de v ez em quando alguma nova inspiração
da musa esplendida do grande poeta prosador, a quem admiramos e
veneramos como o mestre de nós todos, que vem nos mostrar, que-
ainda algum sopro vital corre no peito d 'esta nacionalidade.
A litteratura resente:se do abatimento geral. Não assume as pro-
porções epicas de mais faustosos períodos. Em vez d e produzir Her-
- 219

cu les e colossos, potencias de força que quebrão as cadêas do pen-


samento humano e abarcão na alma os conhecimentos universaes,
consente em um mundo á parte creado de roseas nuvens de dourada
phantasia , - que se criem typos sympathicos, que se não tem a
magestade das gigantescas estatuas que a antiguidade pagã levantava
no marmoreo templo dos deuses, ao menos possuem a belleza gentil
das estatuas que palpitão nos floc os de marmore ou jaspe sob o de-
li.cacto cinzel do artista moderno .
Talentos de segunda plana, divagão nas alamedas feiticeiras da
poesia. Não vão fazer interrogações á sphinge das gerações idas, n ão
se debrução sobre o tumulo da humanidade a escutar mysterios de
a lém-mundo, nem em si encarnão a individualidade d' um povo, fa-
zendo affluir ao seu coração todos os sentimentos que possão commo-
ver uma nacionalidade; mas deixão impressa a pagina traçada aos
posteros para compillarem na e popéa popular, da vida de uma ge-
ração. Apraz-lhes a sós scism·a rem nos encantos da uyára , nos vagos
murmurios da tarde, mescla de suspiros da natureza, harmonias do
a rroio que se espreguiça no sangão , melodias das arvores que balan-
ceão na lad eira do morro, a confundirem-se com os lamentos ternos,
saudósos da jurity no capão da ca;nhada que a lém recorta a varzea.
O lyrism o é a v oz que solta a civilisação infante nas canções sus-
piradas junto ao berço de uma nacionalidade. N'estas vozes mais odo-
r;.-feras que as cachopas da b aunilha , que as candidas flôres do bogari.
a spira-se um perfum e in ebriante de cavalheiresco enthusiasmo e ener-
g ica fé, que parecem apontar um futuro de esperança a compensar
o presente de desenganos.
O poeta reconcentra-se no seu mundo interior, e percorre em sua
lyra dourada a escala das notas que dizem: - · amor' e de sua alma
t ransbordão torrentes de l y rismo.
O Brazil acha-se ainda n'essa quadra juvenil; e a litteratura na-
ciona l mal tactêa nas trévas em b usca da vereda que guia no futuro.
Aos jovens sectari.os do progresso , ainda não gastos nos brodios
do materialismo, cumpre na escuridão ascender o facho luminoso
<la intelligencia ; a elles cumpre ser os ousados bandeirantes, que vão
nos sertões sel vagens da poesia buscar as gemmas preciosas que ful-
gcm no amplo veeiro.
- O ÜO-

A nossa litteratura não deve continuar a ser sediça imitação da


portugueza , como prega o Dr. Nabuco. Deixemos que gema o Tejo
hymno seu tradicional junto ás muradas de Lisboa , que o Amazo -
nas, que o Tocantins, bufando se deixão rolar pelos sertões, nos es-
pasmos dã pororoca! Que o vate luzitano recorde. á sombr a das
faias que er:.,ombrão os vergeis da patria, os aureos dias de Affonso
de Albuquerque nas terras do Oriente. que o Brazil iámais con tem-
plou o céo da Asia, jámais hasteou o seu pendão ás lufadas das auras
d os mares da Indi a , ou fez ouvfr seu nome aos gentios de Malabar.
Desde a mais r emofa era colonial teve o Brazil característicos
de povo original, quer influenciado pela natureza, clima e tradições
anterior es, quer pelas r elações especiaes que desde logo contrahio
com o paiz selvagem. A Engua enriquecida por neologismos, quer
de raiz estrangeira , quer proprios, quer indígenas, se transforma a
olhos vistos. A nossa raça tam'bem não é tão portugueza como muitos
dizem , nem tão abundante em nossas veias o sangue caucasiano.
As nossas t radições remontão ao descobrimento , mas não atra-
- 220

vessão os mares; antes radicão-se na America. Da Europa nos v eio o


fermento de mais apurada civilísação, instituições que não satisfazem
as rnaximas divinas do christianism o. Isto, porém, n ão basta ás nos-
sas aspirações,, que nos man dã o além d iscorrer em busca de idea l
digno .
Em materia litteraria devem os ter individualidade propria. Quan -
do rôtos estão os ferros que nos prendião á metropole, e para sem -
pre r epellido o jugo poli.tico de Portugal, não podemos continuar
in teilectualmente escravos da velha mãi-patria , nem sujeitarmo· v
pensamento nacional ao despot'.smo senhoril. No banquete da civili-
sação a terra de Santa Cruz para si toma lugar.
O Brazil litterario a imitar P ortugal, fica sériamente embatucado !
A:ffigura-se vêr um bom gaúcho dos pagos rio-grandenses, acostumado
ao d1urrasco mal assado e ao saboroso matahambre, nos a puros ter-
riveis de engulir o apetitoso caldo verde de Balbão ou São Cosm;,
n 'aquellas saudosas noites da espadellada d o Minho; ou ter de sorver
respeitavel t ijella de caldo d'tmto , labios que conhecem o sabor da
caúna q ue verdeia no con cavo da cuia prateada' A i! guasca, que
bailas no r a ncho colmado do sapé, ao saudoso descan te da viola, com
as morenas chinóca s, o teu voluptuoso tatú , a tua tyranna, ou o en,
thusiastico carangueijo, - que grotesca fi gura não farias d e poncho.
chiripá e ch Uenas, na roda dos rapazes d 'aldêa , a sapatear com as M~,
rias e Therezas as m a is requebradas figuras d a canna-verde!'?
A nacion alidade brazileira fez-se com elem e ntos portuguezes mes-
clados ao indígena e africano, de modo q ue na familia hum ana for ·
mamos já raça á p3rte. Dos da antiga me tropole differem m u;.~o os
nossos costumes; mui diverso é o n osso sentir; o u tra é a face do nosso
caracter; p ois em no sa nacionalidade pulsa o coração americano, e
á n obre commettime ntos nos impelle a alma do novo mundo , que a
nossa a intelligen cia ardentisa. Aggr egue-se a esses elementos o san -
g ue germanice que · infiltra no corpo das provincias m eridionaes cert<,
especialismo. e o genio francez de que se satura o Rio de J aneiro que
vai to mando especial feição, -- a expellirem o velho r anço iuzitano .
Differentes períodos póde espelhar a litteratura nacional: come-
çando o prime;_ro indubitavelmente na época do escobrimento. quan-
do audazes navegadores portug uezes le van tarão em terra desconhecida
a:> céo americano os braços agigantados da cruz, primeir a obra que er -
g ueu a industria européa na terra selvagem . Abra nge as primeiras i ú -
tas do colon o europeu co m o indígena habitante das costas: para leva11 -
tar o seu ran cho nas praias do Bras il, o nde se à ev;_3. crear n ovo civiii-
i'!açã que homolognsse raças diversas em um povo só.
V ai o segu n do do desco brimento á indepenclencia de v inte e dois :
corre desde a tyrannia dos governadores e capitães-móres até á agonia
do velho regímen despotico ás mão. do a bsolu tismo ;_naugurado pelo
Duque de Bragança com o imperio das bananeiras e melgueiras tam -
bem! A companha a s p ugnasdo invasor com os a borigenns em demanda
de terra: emquanto os a postolos do novo mund6 em pesca a~, alma~
para a n áo da Eter nidade affrontavão sós, iner mes. o desertr inesplo-
rado , e ao filho da natureza selvagem apresentavão pallida , ensan -
guentada a imagem do Christo Redemptor. S egue como aventureiro
das bandeiras pelas err..maranhadas florestas sombrias, a soffrer incle ·
meneias do tempo e da n a tureza , perseguido pelo índio vinga tivo, ex-
post o á sanha das feras e ao traiçoeiro bote do reptil, e m cata do pre-
cioso metal que a grupiára esconde avára no seio da ten·a. Vê p or·
vezes o colono barbara e amb icioso perseguir, q uaes pan the,; as, os f i-
lhos primitivos das florestas na talí cias: por vezes colli gado a un1a tribu
- 221 -

comba~er contra d iversa, e liga~a a esta, combater aquella, dar.do por


todos os meios ao seu alcance ao pobre indio ou ao exterminio ou a
escravidão ; por vezes ao lado de Vieira, sob o pendão de Portugal
combaterem as hostes gloriosas de Vida! de Negreiros, os robustos ne-
gros de Henrique Dias e os intrepidos guerr eiros potygu'.3ras de Cama-
rão ,cr,_ tra os valentes soldados de Batavia. Este gu erra apresenta er-
guid,J contra o estrangeiro o consorcio de tres r aças organicas de nos-
sa m~-eionalidade.
'P'rotestos con tra escriptores brazileiz:os que nos apresentarão como
u rr. ._,rolongamento da mãi-p 3.tria, na America, a cauda de Portugal, da
Europa estendida por sobre o m ar a pousar n 'este continente; e q ue nos
negão injustamente toda a individualidade propria. Desconh ecem ou
fingem desconhecer o nosso paiz, o povo que o habita desde o vaqueiro
do Pará ao gaúcho do Rio Grande, do tropeiro de S. Paulo ao roceiro
de Minas, d'este ao boiadeiro de Ceará, do boiadeiro ao tabaréo de
Pernambu co e d 'hai ao inculto mineiro de Goyaz, e no meio d'esse.,
matizes diversos um amalgama indeciso, confuso da população das cida-
des populosas em que predomina certo cosmopolitismo.
O Dr. Joaquim Nabuco, muit'.> brilhante intelligencia da geração
nova, justamente enthusi.asmado pelos Lusíadas do velho Camões, des-
conhece o sainete brazileiro que osten tão os deliciosos livros do Alen-
car, as paginas sublimes do L ui;;: Guimarães Junior e as produções sem-
pre famosas do Bernardo Guimarães, do Macedo e outros; sainete que
vê-se sempre, mesmo nas mais ligeiras produções do nosso illustrado
Iriêma.
Pedra de escandalo para o Dr. Nabuco é· o índio brazileiro tantas
vezes poeticamente photographado por Alencar e Benardo G uimarães ,
Felicio do Santos; e suas lendas e mythos, tão deliciosamente narrados
pelos labi os eloquentes de Gonçalves Dias. Não quer que o poeta na-
cional enxergue na historia da patria mais que o vulto do colon o p:>rtu-
guez, n em n 'este solo americano m ais do que o chão que pisa. Para elle
nada temos de commum com a r aça indígena, nem :> berço onde fomos
acalentados, nem a terra-mãi, cujo regaço se nos abrio ao primeiro
despertar na vida. No entanto consorciou -se com o colono, tão Intima-
m ente ligou-se a elle o povo aborigena, que nós seus descendentes her-
damos tantos termos e expressões indígenas, tantos idiotismos origi-
naes, que não ha negar.
Aos nossos rios, montes, arroios, serros, damos nomes q ue não se
pronuncião do outro lado do m ar; ás nossas arvores, animaes e passa-
~os, d amos nomes que o portuguez não pronuncia sem estropiamento
terrível. Muitos àos seus usos e costumes, de seus objectos domesticos,
de se us man jares h emos adaptado .
Entranhai- vos pelas campinas do Rio Grande; ide aos nossos pam-
pas, e tomai pouso entre os generosos gaúch os. Convivei com elles al-
gum tempo, o preciso para estudar-lhes a feição do caracter, costumes
e índole: aprendei as sua phrases picturescas, as suas tradicções -
crenças e religiões.
Vel-os-heis, pot exemplo, ao mesmo tempo, que fazem uma pro-
messa ao m ilagroso Santo Antonio, irem mais confiadamente · accen-
der uma vela de se bo no fundo da canhada ao negrinho ào pastoreio ,
par a que lhes traga a egua madrinha que se extraviou na manada.
Vel-os-heis credulos como bon:;: catholicos apostolicos etc., no po -
d er_ de Roma e na tinhosiàade da diabo, recuarem pallidos, espavori-
dos á repentina apparição do boi-tatá no alto da cochilha fronteira, ou
arrepiarem-se todos com a idéa de que em alguma noite em que
dormissem d escuidados, aproveitando-se das trévas, lhe viesse o trai-
- 222, -

çoe;.ro caipora lhes chupar o sangue. N'elles achão-se até consorciada s


as crenças catholicas ás superstições selvaticas, bem como são de raça
- mais americanos do que caucasianos.
Não podemos, pois, na confecção de nossa litteratura repellir o
indígena , nem suas lendas, que nos forão contadas na doce toada do
adormecer n'essa longas noites de inverno , quado a chuva abundante.
gemendo cae na calçada e o vento sacode raivoso as arvores do quin -
tal, emquanto nós cheios de temor infantil nos aconchegamos ao seio
materno, e uma por uma e ngulimos as tão suspiradas palavras da
histori a que nos prende.
Depois d 'este cavaquinh;:i que me será de bom grado desculpad o.
fechemoso parenthesis que já se tornava extenso, e prosigamos.
A indepen dencia de vint('; dois fecha o período propriamente
histor;_co, e apresenta-nos a pagina da vida contemporanea. Aqui cessa
a época colonial e começa a vida da nação, que reclama lugar n o
concilio dos povos no vaticano da civilisação. A litteratura reflexo
d 'esta época, como a das outras duas co-irmãs mal balbucia ainda .
A sociedade brazileira com o tal grito do Ypiranga, e mais aind a
com as negociações dipiomaticas d 'el-re i de Portugal e Algarves.
d 'Africa . A sia e Oceania, d'aquem e além mar , com o seu filho impera-
dor do imperio da cru z sa grada. tomou outro aspecto teve o seu cu
Ao vice-rei succede u o imperador : o governa dores chr ismarão-se pre-
sidentes.
Em vez das bravas milíci as de outr'ora , temos a L,riosa civic«.
um exerci to de condecorados, uma legi ão de barões de todos os form a-
tos e fe itios, e uma guarda pretoriana de calças azues. T udo •orno u
nova figura , até a carranca antiga dos prepostos d 'el-rei, que se amei
gou e dulcificou - que tem a elegante suavidade da prazenteira phy
sionomia de Anisio, e o meigo sorriso que esfrola os labios do Sr.
Paranhos.
O carrancismo antigo dos velhos de rabicho cedeu lugar á branda
e esErada indulgencia modern a, que não estabelece em negocio pu -
blico limite ao amigo patoteiro .
A sociedade completamênte transformou-se: banirão-se -os lenços
de Alcobaça e as missas de madrugada; os pais que brarão as rotulas,
e as filhas esvoação , borboleteão nos bailes do Cassino: e ati d as
beatas a phalange dissolveu-se; para crear-se das peccadoras o exer-
cito. Os juramentos não se fazem mais em nome do pio, clemente.
immortal , etc. , el-rei Nosso Senhor , mas sim, do mui alto e ooderoso
monarcha á quem Deus guarde etc. , S ua Magestade o Imperado r
constitucional, defensor perpetuo do Bra zil, etc. , e tal, como é d e
estylo e uso.
A antiga cô1• local do paiz cambiou de aspectu. :í:Ioje só longe d os
centros populosos se encontra o vive r de nossos avós rude e singello.
ainda não embui do do caracter fora steiro, que começão as nos:;as ci -
dades ainda as mais despovoadas, a tomar; só nos remotos sertõe .
na v astidão da campanha se encontrão, a par da santa ignorancia,
os costumes patriarchaes de nossos antepassados. No atrito da civi-
lisação das cidades as tradições do povo , gastas pelo dente acurado
das transformações diluidas se esvaem; só longe do rumor e do bu-
lício encon t ral-as-heis no rancho do tropeiro , ainda recendentes do
agreste perfume do manacá.
As faces multiplas de nossa nacionalidade estão a convidar pintor,
que lhes tire as feições peculiares de sua physionomia , em partes
j nsinuantes e atthraente, e no todo - vaga , indecisa.
P óde tambem a nossa litteratura diante dos teri1iveis problemas,
- 223 -

que lhe apresenta a sphinge da escravidão, tomar o caracter social


e philosophico, e ascender ás regiões altas da especulação huma-
nitaria. ·
Não necessitamos passar o Atlantico para irmos buscar na pa-
tria de Camões a inspiração , que chove nos raios brilhantes do sol
da patria ; nem encostarmos na velha fonte da Castalia labios sequio-
sos, quando a Tijuca debruçada do môrro nos offerta o seio inex-
gotavel da poesia , <?mquanto a ultima canção da tarde vibra saudoso
o sabiá nas mangudras da encosta, e toda em perfumes desfaz-se a
baunilha aos calidos beijos do aracaty da noite que se aproprinqua.
O leitor desculpará esta longa divagação, mais um peccado litte-
rario de que sou r esponsavel perante o tribunal das lettras. Quiz ex -
pender algumas idéas, e fui mais longe do que pretendia .
Ao findar estas linhas tenho em mente escrever, se dispozer d e
tempo , alguns contos ou narrações a que este embroglio serve de
prologo. Serão tentativas romanticas de caracter nacional. Conceda -
me , pois, indulgencia ,
Vict,>r Valpirio.
Pelot!l.s, 5 de Outubro de 1872.
RISOS E LAGRIMAS

ACTO 4. 0

QUADRO 5. 0

A mesma decoração do primeiro acto.

SCENA I

Manoel, Margarida.

MARGARIDA - T é que afinal chegou o dia desejado.


MANOEL - E a embrulhada , a embrulhada, Sra. Margarida~
Vmc. é uma mulhersinha como eu procurava . .. Palavra que eu nunca
me enganei.
MARGARIDA - Está muit o curioso?
MANOEL - Se não hei de estar.
MARGARIDA (mostrando uma carta) - Po is a qui a te!1s; tanto
f ;;z que apanhei-a .. .
lVfANOEL - Louvac'lo seja D eus! Vamos a isso , dê-m'a cá , Sra.
Margarid a . Ainda bem que aprendi o meu poucadinho a lêr . .
MARGARIDA (dando-lh e a carta) - Curiosos , cur iosos q ue sá o
estes homens!
MANOEL (lendo mal) -- Pari s, 5 de Maio de 1850 .
Meu querido Paulo.
É possível que não nos vejamos mais. Estou desenganado pelos me-
dícos e as forças quasi me abandonão n'este momento. A1 tes . po-
rém, de fechar os olhos devo revelar-te um segr edo que teu paJ
confiou-me nos seu ultimas instantes. Deve existir ahi na casa de
um negociante por nome Fernando de Magalhães uma menina que
deve contar hoj e 18 annos, chamada Adelaide. E ssa infeliz creatura.
a bandonada no primeiro dia de existencia é tua irmã. Cumpre-te
fa zer por ella o que teu pai esqueceu. Adeus , recebe a ultima oen-
ção de teu padrinho.

Luiz Amaral da Cunha.

MARGARIDA - E então?
MANOEL - Foi uma obra do céo esta carta ! ( coms;.go) Por isso
a Sra. baroneza foi lá para o convento. . . An , an. por isso .. .
Aquella mulhersinha era mesmo o tinhoso' ..
MARGARIDA - E o que é feito do Dr. Paulo"?
MANOEL - Eu sei cá, ninguem mais o vê, d esappareceu ..
Ah 1 Sra. Margarida, em · tudo lá vem o dedo de Deus! Esto u
- 225 -

realmente contente! .. . Se não hei de estar, quan do a minha querida


Sra. D. Adelaiue, que vi crescer, que acalentei n'estes braços. . . estou
pelos cabellos de contente!
MARGARIDA - Outro tanto não digo eu, Manoel; nã o reparas
como anda triste a menina Octavia? .. 1. Pensas que eu não sei o
que é a quillo? . ..
MANOEL - Sim? sabe? O que é, Sra . Marga rida? Eu tambem
p enso q ue sei . . . olhe . ..
MARGARIDA - Uns riem e outros chorão! . . . P ara aquelle ma.l
não lhe vejo remcdio! . .. (enxuga os olhos).
MANOEL - Está bem, vamos cuidar do serviço .. . (sa h e) .
MARGARIDA - Pobresinha, pobresinha!

SCENA II

Margarida, Octav ia

M ARGARIDA - Ahi vem ella . . . Pobre menina , pobre anj o !


OCTAVIA (visivel mente abatida; andar v acilla n te) - Deus, san-
to Deus, o que será de mim?! .. . Já não tenho lagrimas ... A mi-
n ha razão perde-se, eu enlouqueço!. . . Onde maic1r supplicio?! ...
(ajoelhando-se) O' m ãi da minh'alma , tu que vives lá no céo ampa-
ra-me, intercede por mim. . . lev a a tua filha d'este exílio. . . O '
minha mãi! minha mâí! ...
MARGARIDA (approximando-se) - Resignação , resignação .
OCTA VIA (e r guendo-se tomada de susto) - Ah! quem é?! . . .
MARGARIDA - Sou eu, sou eu, minha querida senhora. O que
se ha de fazer? Porque chora assim? . . . Isto córta o coração.
OCTA VIA - Ah! Margarid.a , Margar ida!
MARGARIDA - R esignação ...
OCTA VIA - Resignação, dizes tu! Perdia-a , Margarida , perdia-a
par a sempre. Quero morre r com este amor, com este culto irnmenso,
que foi o primeiro e ha de ser o ultimo.
Ha qua tro annos, ouviste, Margarida , ha quatro annos que esta
chamma dev ora e consome a minh'alma. N ão p osso sobreviver mais
um d;.a, não posso, é impossível!
MARGAR IDA - E porque veio? Eu bem lhe d izia.
OCTAVIA - Queria vir, precisava vir . . . Estou a s ist.indo os
meus proprios funeraes. (pausa) Para ella um altar, a feli_cidade, o
amor: para mim - um tumulo, o esquecimento. Nada ma is espero ,
nem desejo, Margarida. Ass!.m ama- se uma vez na v ida ; amor que
nasce e floreja enlaçado ao coração para morrer e extinguir-se com
elle . ·
MARGARIDA - As cousas parecem sempre peiores do que são . . .
Espere pelo tempo, que é remedio santo . ..
OCTAVIA (impaciente) - Cala-te, cala-te, Margarida; não d igas
mais um palavra; deixa-me por Deus , va.i-te!
MARGARIDA (retirando-se) - E u vo u, não p recisa zangar-se,
não fiq ue mal comigo.
OCTAVIA (arr ependida) - Mal comtig o ? O ' n ão, mi nha boa
Ma rgarida; tu não me comprehendes, não pódes comprehcn der esta
sit uação desesperada! J á não sei o que digo, nem o que faço ... P eràóa ,.
o meu espírito perde-se diante d 'este abysmo em que m e despenho .
Perdôa, bem sabes quanto te quero . . . Eu não mint o Margarida ,
amo-te quasi como se fôras minha mãi! . . . Mereces bem e ste doce no -
me; és digna d 'elle .. .
- 226 -

MARGARIDA (comovida ) - Porém a menina . . . Emfim, eu não


devo fallar; com tudo , eu cá . sei . .. A' vezes o melhoi· é a gente não se
mortificar assim ... Não quero dizer que .. . A menina , sim . . . (Octa -
via mostra-se impaciente) Depois está tão moça . .. depois o tempo .. .
A.h! não se zangue . .. eu não estou dizendo que a m er;.ina ... Vem gent,,

SCENA III

Octavia , ·F ernand o de l\fag·alhães

OCTA VIA (comsigo) - Vai-se approximando a hora.


MARGARIDA (sahindo - Até já . . (baixo) O Senhor se con~-
padeca d 'ella.
F. DE MAGALHÃES (traja casaca) - Ah 1 por a qui a m enin a?
OCTAVIA - Cheguei agora. E ntão, está muito contente, S r .
Magalhães? . . .
F. DE MAGALHÃES - Infelizmente a festa não é comple ta.
Riem u n s chorão outros . Pobre baroneza. infeliz irmã '. . Lá vive
isolada n ' uma cella. . . S e a visse adrn.iràr-se-ia ; tão differe nte ql e
parece outra .
OCTAVIA - E que nova s tem t ido do Dr . Paulo de Benjamin ?
F. DE MAGALHÃES - A té agora nenhumas. Seguio para os
Estados Unidos. e n em seq uer uma carta. (pausa) Como aquella na-
tureza tarnbem mudou! . .. O contacto da irmã regenerou-o completa -
mente : é a ue a virtude triumpha sempre e o vicio tem o seu dia df'
expiação. Ve ja o commendador Torres, d o alto da opulenc.;.a desceu a o
calabouço. Deixou de ·ser um millionario. é um calceta! 1
OCTAVIA - Porém. fallemos de Adelaide ; fallemos de sua fe l i.-
cidad e .
F. DE MAGALHÃES - Da sua f elicidade ? . . E que póde r es-
ponder pelo futuro?
Tenho cuidados ; se os não t ivesse ser ia um indifferente crim;_noso.
Que auer, faço as vezes de pai; não zélo o que é meu ; desvel o-me por
um thesouro que a Providencia confiou-me .
OCTAVIA - Du vida de amor de Julio?
F. DE MAGALHÃES - Não disse tal; creio n'ell e sinc1:,ramente .
OCT AVIA - E deve crêr. Adelaide não estende a mão a um
homem rico, é certo ; porém adormecer á tranquilla sobre o thalam o
conjugal embalada aos canticos de um amor condigno da sua ternura.
O sanctuario domestico semelha ao templo do Senhor ; não carece dC'
galas nem louçanias ; quanto mais simples e modesto , maior rel igiã o
inspira:
F. DE MAGALHÃES (applaudindo ) - Bravo, bravo!
OCTA VIA - Quando a Providencia nos concede uma a lma ir-
mã da nossa , medir então os sacrifícios seria o m esmo que inter rogal- o
o que nos dá em pagrl., se offerecemos um obulo ao necessitado qu e
bate á nosa porta. O amor que calcula , deixa de ser um p erfume da
alma para tornar-se um mi asma da abjecção: não eleva nem exalça
a creatura; deprimi-a , rabaixa-a. E' a degradação moral, a torpeza que
embota e aniquila os sentimet'.tos , agrilhôa a liberdade , esmaga os
affectos'
F. DE MAGALHÃES - Tem razão, a senhora é um anjo; {: assi m
que ~lles devem fallar.
OCTAVIA - Acre dite , Sr. Magalhães, o fu turo de Adelaide ha de
ser risonho.
- 227 -

F . DE MAGALHÃES - Deus queira, De u s abençôe as suas pa -


la vras. (escutando ) Batem palmas . .. E ' talvez o noivo . . . Com licen ça ,
até já. (Sahe) .

SCENA IV
Octa via, depois Adelaide (vestida ele noiva)

OCTAVIA (caminh ando ~ esmo) Emfim , está completa a m ~nha


missão ... Agora . . . nada m ais resta . . . Acaso posso eu viver mais um
<lia?!. . . Resignação, dizem elles . . . Resignação qu ando a v ida é um
d licio !. . Não sabem u que dizem, estão loucos!. . . R esign ação! . . .
Querem-me viva morre ndo todos os dias ! (vendo Adelaide) Ah' como
estás linda!
ADELAIDE - Sim? (beijando-a ) Lisongeira! (reparando nos olhos
de Octavia) Querida , tu choravas! . . . Não negues, meu anjo , o& te us
...,lhos condemnão-te.
OCTAVIA (contrariada) - Os teus é que te illudem.
ADELAIDE - Eu não me engano, meu amor ; d'sta vez con -
venci-me, senti a realidade, deparei com ella . . . bastá olhar para
o teu semblante. . . A tua face ainda está humida . ..
OCTAVIA - E $tás brincando . . .
ADELAIDE - De us abe o que silencia o te u pobre coraçã o:
OCTA VIA - Nadêt realmente, acredita . . .
ADELAIDE - Não posso . . . O teu sorri so contrafeito reflecte
a melancolia de tua a!ma ; através d'essa alegria simulada transparece
um doer profundo , immenso ... Sofre!,. 0 davia, e a tua mudez fla gella -
m E. . .
O CTAVIA - Queres que eu minta?
ADELAIDE - Queria que fosses sincera ; sou digna das tuas
confldencia~. . . Se é um segredo triste , conf ia-m'o sem receio ; quero
partilhar as tuas magoas . . . D á-me um quinhão do teu infortunio ...
Repar te commigo as t uas lagrimas!
OCTAVIA - Caprichos, lagrimas de criança .. .
ADELAIDE - De martyr, dize antes!
OCTAVIA (a gitada ) - Mudemos de ~ ! umpto .. . Fallemos antes
d e ti . ..
ADELAIDE - E scuta . H a d u ts mezes. n 'aquellas salas, entre o
ruido da multid ão, corte jada por uma turma d e admiradores, e u sen-
tia-me só e triste. Meu coração derre tia-se em pran tos. . . m eus la-·
bios saturados de fe l solta-:ão a phrase de laucu ra ; eu procurava a
morte como unico lenitivo , e teria morrido d e desalento se u m anj o
tutelar não v iesse amparar-m e sob suas azas candidas e protectora s! . . .
Esse anjo - foste t u , Octa via , foste t u , meu amor!
OCTA VIA - Nã o t ens que agradecer-me ...
A DELAIDE- - A i dos q ue soffrem, se não achão lá nas tre vas
da existencia uma a lma caritativa e m eiga, uma mão amiga, um sor-
siso celeste, um a vez com o a tt 1a , con solador a e prov idencial! Deu s
mandou-te á solidã o d e minh'alma ; n as tuas azas de anjo trazias a
luz da esperança, que m e fa ltava!
OCTA VIA - Deus, sim, foi quem guiou os m eu s passos.
ADELAIDE - Hontem - era meu padrinho arrancando-me ás
portas da mizeria e luto, abertas de par em par para receberem mais
victimas! . . . Quem ignora a sorte cruel e nefanda de quasi todas
essas creaturinhas q ue u ma mãi repellio e engeitou , que nunca sen-
- 228 -

tirão os affagos maternos, nunca a doce e suavíssima a legr ia d o lar!! ..


Eu ava l io as vossas l agrimas, minhas irmãs'. . . (soluçando).
O CTA V IA - Para l onge id éas tr istes.
A DELAI DE (enxugando as faces) - Depois vieste tu . . . sal-
v a ste-me!. . Pois b em, abre-me o cofre das t uas dôr es, mostra- me
o sacrario das tuas angustias . . . Encosta a fron 1"e desalentada sobre
o meu seio. . Dá-me metade dos teus espinhos crucian tes . . _ T u
soffres , Octavia, e eu não posso vêr-te ass im . isto não póde, nem
d e ve continua r!
OCTAVI A (afflicta) D epois, depois . . . a lguem se approxima ,
cala-te , m inha q uerida!

S CENA V

As mesmas, Rica rdo da Silva, Fe1·nando de Magalhães

F. DE MAGALHÃES - S ão mesmo duas pombinhas arrulhândo! ...


A D ELAIDE (lançando-se ao pescoço de F . de Magalhães) - Meu
rico padr ü;i.ho!
OCTAVIA (ba ixo ao pai) - Meu pai, meu pai!
R. DA S ILVA - E' p r eciso agora a_ue n mguem veja as tuas la -
g rimas!
F. DE MAGALHÃES - Olha que me esmagas ass im , rapariga !
E stás amarr otando-me a camisa!
ADELAIDE - T enho tentação de dar-lhe uma duzia d e a braços .
F. DE MAGALHÃES - S e o n oivo ouvisse . .
R. DA SILVA - Teria ciumes, não é verdade?
F . DE lV[AGALHÃES - Q u ero vêl-a de longe. . . Afaste -se . ..
mais ... ainda mais. alto, stop ! Que prenda!. . Ciumes tenho eu.
Por Deus que fallo sério . Dar um mimo d'estes. . . Custa, custa muito !
R. DA S ILVA - T em razão , sei avaliar .
ADELAIDE - Ainda está em tempo, pad ri nho ...
F. DE MAGALHÃES - Como ellas são, Sr. Ricardo. . . Zombão
depo is.
ADELAIDE - Bem sabe que metade d 'este coração pertence-lhe.
F . DE MAGALHÃES - Metade?
R. DA SILVA - E é contentar-se.
F. DE MAGALH ÃES - Isto agora , depois. f ica um homem
atirado ahi para ,1m canto . Promettem e faltão . A h! q ue se não
andarem d ireitinhos! . ( conversa com R icar d o).
ADELAIDE (á Oct avia) -- Nem ao menos um sor r iso n'este dia? !
OCTA VIA - Não crês n as a lmas p red es tinadas para o soffri-
m ento?
ADELAIDE - Ah! confessas então? 1 Obrigada! m il vezes obrigada!
· OCTAVIA -- H ei de dizer-te. u m dia, amanhã .. . Não fiques
tr iste.
A DELAIDE - A vida é assim, Octavia; o coração h u mano con-
frange-se até nos momentos mais ven turosos ! Eu m esma sinto aqu i
alguma cousa que amargura . (pa usa) Não falta aqui alguem?
OCT A VIA - F allas da haroneza?
ADELAIDE - S im, cresci ao seu lado, na .infanda goze i dos seus
carinhos . . _ A gra t idão é sempre uma virtude'
F . DE MAGALHÃ.ES - Está bem , são horas.
UlVI CRíADO (annun ciando) - O noivo .
OCTAVIA (comsigo) - ~eu.Deus!
- 229

F. DE MAGALHÃES - Vamos?
A DELAIDE - Dá-me o teu braço, Octavia .
OCTAVIA (agitada) - Vai in do . .. só dois minutos .. . eu já vou ...
(Adelaide e F . d~ M agalhães sabem vagarosamente) .

SCENA VI
Octavia, Ri cardo da Silva

OCTAVIA - Vê, me u pai? ja não tenho l agrimas!


R. DA SILVA - O' Deu s de Misericordia! ... Resignação , filha ,
-coragem , Octavia! . ..
OCTA VIA - Sempre esta palavra maldita! . . . Deixem-me! ...
- Afastem-se! . . . Não os que ro v êr!. : .
R. DA SILVA - Filha da minh '&Jm a? ! ... E ' teu pai quem i e
falla , escuta , ouve . . . Octav ia , Octavia! . . . .Ah! louca!!! (soluçando com
-desespero).
OCTAVIA - L á estão .. ~ os an jos descem so bre elles .. . Sóbem
agora o altar . . . fazem oração. . . c0m o estás lind a , Adelaid e! E tu .. .
.Julio . . . não m e conhe ces mais? ...
R. DA SILVA - O' Deus, Deus!! . . . S e n ão p ódes salval-a, ma-
ta-me iambem!
OCTA VIA - N ão ou vem ? . . . Vai começar o baile . . . Que har -
monia celeste .. . E n tão, J u lio, .n ão danças comi go ? . .. E a tua noiva .. .
onde está ella? . .. Ah ! sim ... es tou ven do.. ( convulsiva ) Afastem-
se! . . . deixem-me passar!. . . DeixPm-m e passar!
(N'este mom ento abrem-se os reposteiros do fundo e appa rece o
.altar illuminado; tem-se con clu ído a ceremonia . Julio de braço com
a noiva, em seguida F . de Magalhães).
R. DA SILVA (mostrando a filha) - Está louca a minha filh a !
TODOS - L ouca? !!
(Octavia solta uma gargalhada estridente, cahindo amparada nos
braços de Julio e Adelaide ) .
F. DE MAGALHÃES (apontando para o quadr o) - O que é a v i-
da! - Risos e lagr imas!
FIM DO DRAMA
MONOGRAPHIA
I

A GRUTA DAS BORBOLETAS


Ha poucos objectos naturaes que, vistos pela pr-i-
meira vez, excitem tanto a curiosidade e affectem a
imaginação, como as cavernas ou grutas" .
Os lugar es d enominados de - Cima da Serra - nesta localidade
q 11 e eu conheço, são ricos de variadas pa1zagens, amenas, cheias d e!
poesia, e que convidão á meditação. Em seus devaneios quiz a na-
tureza com profusão espalhar n 'este grande braço da serra, que se
prolonga para o sul, copiosa diversidade de suas obras incomparaveis,
- qual o artista que, não contente com as dimensões grandiosas do
edifício que concebeu e erigio , q uer ainda ornai-o com os primores
do cincel. Mas, os camponezes q ue habitão estas paragens são, pela
.m aior parte , insensíveis aos attractivos d 'estes thesouros de fecundas
inspirações, olhão-os, ou passão por elles sempre cheios de indifferença.
Um dia, em que, descendo pelo rio Pequiry, abaixo da cascata
do Macaco Branco, me entranhára largo espaço pela serra, deparei.
na margem esquerda d'essa fita prateada que, serpeando atravessa ta-
manhas devezas, - com urna gruta mui picturesca, á qual os donaires
da estação fazião ainda mais forinosa , corno em breves palavras va-
mos tentar descrever.
Da parte em que eu me achava fórma o solo um formidavel bar-
ranco, quas i a prumo e que, não obstante essa circunstancia. é po-
voado desde baixo at€ a sumidade de grossas a rvores e de arbustos
cm todo o genero: - sobre sua base, uma braça acima do leito do
r io , abre-se um vão de cousa de 15 passos de largura , com 8 de
a ltura, e que se prolonga para o interior, descrevendo uma meia curva ,
assás regular, de uns 40 palmos de extenção , e é este vão, esta aber-
tura, que formão a pequena gruta que temos denominado das
Borboletas.
Na sua entrada as paredes lateraes são formadas de pedras so-
b repostas, e o tecto em toda a extenção é composto de um unico,
penedo, formidavel mola ali collocada, e que sustenta sobre si mi-
lhares de milhares de arrobas.
Espesso mu sgo reveste todo o interior d'esta gr uta, exceptuando
o seu pavimento que, n'aquella occasião, que era pelo estio , se achava
coberto de um mimoso tapete de verdejantes capins, rara particulari-
dade no centro de .uma tão espessa mata . A um canto do lado es-
querdo cahe gôtta á gôtta , pelos interstícios das pedras superiores.
crystalina e pura agua , que dirigida a um ponto unico, sobre uma
!age , tem n 'ella formado uma especie de bacia , por cujas bordas
- 231 -

despeja incessantcrnent a supcr abu nd;i ncia da agua : - esta fórma,


logo em seguida , um a tenui ·sima cor ren te, argP.ntino fio que, em
uave declive se vai unir ao rio. á cu r ta distancia, silenciosa , sem
r uido, se m o mais leve m urmurio. Dos u mbraes da porta, por onde se
penetr a n este recinto, per fe itamente esclarecido pela luz do d ia, n as-
cem e cr escem, de modo inverso, pendentes sobre o solo, muitos pés
de primavéras, ( *) que, en tão carr egadas de centenares de s uas flôres
azues e brancas, tão odorosas quão bellas, compunhão um todo que
tanto tinha de aprazível á vista, como de inebriante e vol uptuoso para
os sentidos - como de romantica e sensível â imaginação do poeta
que ali fosse em b usca de inspirações ... Depois, além d 'isso, da parte
exterior d'esta habitação de Dryades, sobre uma gran de lage que lhe
serve de patamar , por entre as flôres, por m eio dos arbustos, pairavão,
esvoaçavão, adejavão myriades de borboletas amarellas e bran cas e
de quando em quarn,lo, colibris tão delicados como ellas, apparecendo
p or differentes partes do bosque, vinhão ali, n'aquellas flôres libar
esse nectar ambroziaco que dá novo b rilho á sua plumagem e um
duplo vigor a seus vôos.
Ah! na presença d'este quadro v ivo e animado, cheio de tantas
bellezas, escondido no centro de tão immensas devêzas, esqueci por
momentos o mundo, a sociedade dos homens, e mudo, immovel , en-
t regue a uma abstracção indefinível, só pensava em Deus e no seu
poder infinito, que, povoando o universo de milhões de mundos,
espalhou em cada um d'elles quiçá, variedade innumeravel de pri-
mores inimitaveis á sciencia h umana , e incomprehensiveis, muitas ve-
zes, a seus mais tenazes estudos e m-ais profundas investigações ...
Voltei d ' ali profundamente impressionado, e não sei porque, pos-
suído de uma tristeza meditabunda, m a s de agradavel sensação, que
mais de uma vez me induzia a voltar áquelle lu gar desvio, pois
que estes quadros, que a alma em seus mysterios tanto se compraz
de apreciar, vistos mil vezes são de mil differentes modos apreciados,
e tem sempre sobr e nosso animo, sobre nosso coração, uma saudavel
e benefica influen cia .
Itú em Missões, Novembro de 1'872.
F ran cisco cfa N. Fra nco

(*) Pequeno arbusto , que produ z em um mesmo pé, fl ôr es de


du as côres distinctas, formadas por cinco folha s uniformes, m ui a sse-
tinadas, com estames no centro, d 'ondt' irradião, e cujo perfmne agra-
davel se faz sentir de m u ita distan cia. Os serranos cham ão-o -
pri maver a - talvez porque só apparece n'esta estação.
A ' POETISA RIO-GRANDENS E

D. AMALIA FIGUEIROA
Feliz e doce ven tura O nde achaste estes lamentos
D'esse cantar de ternura De melindrosos accentos,
Na languidez do scismar! Que lh e dão tanto primor?
- Que trovas meigas, singe lla·;, Onde tu foste b uscar
Tão eloqu e n tes e b e llas, Esse brando ciciar
Que tu sabes murmurar! E x primindo tanta dôr? !

Como suspira sa udosa Esãa dôr _ . oh! não existe! ..


Amante rola queixosa, - Que te faz porém tão triste
Na floresta en t r isteeiàa, Como Agar pobre captiva ?
O u crepitante c,;1scata
Q ue da penha se desata Can ta ! que o dom sublime da p oesia
E banha a va rzea dor micla. Te de u a natureza!
T u que desprendes nos sentidos
Suave com o a cc:r.reüte [t:a r mes
De manso arroio dormente Um astro de be lleza !
Que fug itivo se esvae!
QÚal brand o e longo suspiro
Que os echos levão no gyro Canta! Segue avante, n obre virgem !
D izendo rna is do que u m : ai 1 Dedilha a ly r a grata ,"
Abraça ternamente o sentimento
Sã o te us versos tão ca dentes Qu'inspira , q u e arreba ta !
Como per olas fulgen tes
A soar sobre crysta!, Tens suspiros, tens gemidos,
Como tinir argentino, Vagos sons além sumidos,
Como voz dôce do sino Corno luz d'arnor esquiva!
N'um r ep ique fe stival!
Mas on àe achaste o segr edo
N' esses bran dos de vanei.os Que t u revelas a medo ,
Q ue desprendem teus gorgeios, A' temor de frio engano?
Quanta b elleza não ha? ! - - F oi aqui por entr'as b rumas,
E ' ouvir a vbz canóra N'esta praia entr'as espumas,
Soluçada em grata aurora Em n oite d e minuano?
Pelo brando sabiá!

Onde foi , oh'. flôr mimosa, Foi aqui onde as estrellas


A tua harpa sonorosa Tremulas, serenas, bellas.
Encontrar tanta harmonia?! Miráo as veigas sorrindo?
Onde achaste tantos lumes?' O nde o Gua hyba deslisa
Roubaste-os dos vagalumes? Ao soprar da mansa brisa ,
Roubaste-os da luz do dia? Como beijo , terno , infindo?!
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Foi aqui onde brotaste Canta! que a vida se passa
Onde os perfumes achaste ? Como ligeira fumaça
- J asmineiro d a poesia!! A ssopr ada pela aragem;
- Em cada flôr desprendida Feliz a barca fagueira
Que tu remettes á v ida, Que deixa no mar - esteira
Quanta b elleza e magia ! De sua breve passagem!!
Para ti - um céo aberto!
Feliz qu em p ôde algum dia Não tens o sol encoberto
A rrancar da phantasia Da mais siderea esperança!
Dôce quadro apaixonado - Embora digas que não
N'essa tristonha canção
Onde a alma se revella Chamada - DESEPERANÇA.
Santa, pura, nobre e bella, Além a voz fa gueira do futuro
Qual n'um prismá o céo r osado. Te acena com carinhos!
Se a estr ada d a gloria é pedregosa
Dep ois terás arminhos!
Canta! canta, p oetisa,
Que teu ser se divinisa Avante! que a patria ha de sau-
[dar-te
Nos mur murips da canção! A' luz da m elodia !
Solta aos échos os effluvios, Ha de coroar-te com festões mi-
As tor rentes, os diluvios [mosos
Das flôr es çio cora ção! Oh! anjo da poesia!

José de Sá Brito.
Novembro de 1872·.


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ENGANAS-TE

Dizes tu que os meus amôres, Ora diz-me: nunca viste,


São como os da borboleta, Q uando o vento açoutas as flôres
Que affagando muitas flôres, Como a borboleta insiste
Por nenhuma se inquieta. Em beijar os seus amôres?
Ser ã o ; mas a culpa grave, E como estes agitados
E' das flôres que m e deixão Pelo vento que ali corre,
Roubar-lhe o pollen suave Dão á triste taes cuidadàs
E do roub o nem se queixão . Que de axhaU-<:ta ás v ezes morre?
Se m ais esquiva um nadinha
Comigo fosse a belleza,
Crê que ha muito, oh doudasinha,
Verias minha alma presa.
M. J. Gonçalves Junior .
1870 - R io de Janeiro.
CHRONICA

Occupa o frontespicio d'esta Revosta o busto sandoso do illm:tr"'


r io,grandense .Dr. João Jacintho de Mendonça.
De dia a dia o Parthenon vai arrancando do esquecimento e da
obscuridade da campa os caracteres que souberão sem::;>re ennobrecer '
esta terra. Elevando-se acima de mesquinhas paixões, dos odios mo-
mentosos da política, o Parthenon reserva a sua galer ia para aquel:e ~
que se têm destinguido pelas lettras e artes, pelas armas e na política,
'iiem distincção de bandeiras Na nossa galeria só o verdadeiro merito
,erá lugar. E é por isso que hoje offerecemos ao nossos leitores o re-
trato e uma noticia biografica de uma das glorias mais brilhantes da
tribuna brazileira.
O nosso amigo, que se encarregou do esboço biografico, deixou
de fazer um trabalho mais prolixo como desejava, em consequenci:i
·. de seu estado de saúde e por lhe . faltarem na occasião os documentos
necessarios.
Mais dois nomes prestimosos inscreveu a província no catalogo
dos mortos: - Miguel Meirelles e Israel Dias de Castro. Aquelle poeta
ctistincto e dramaturgo; em cuja fronte enlevavão-se tambem as lau-
reas tribunicias, conquistára uma reputação brilhante ; este, moço, n;i
primavera dos annos, quando um futuro de esperanças sorria-lhe na
mente, tombou no chão negro dos desenganos, distante do berço natal .
Prestes a deixar os bancos academicos, mal pensava o inditoso mance-
bo, que antes de percorrer o cyclo espinhoso do medico , devia pend er
a fronte exangue no leito da morte!
Forão duas perdas seisíveis e o Parthenon por sua vez deplora o
infortunio de tã o preciasas existencias.
Crepusculos: Com ,este titulo acaba de sahir das officinas do Jor-
nal do Commerc.io um mimoso volume de poesias da nossa distincta con-
socia D . Amalia Figueirôa. Sandando com o maior enthusiasmo a espe-
rançosa poetisa, sentimos immensamente faltar-nos espaço e habilitações
para tratarmos de seu precioso livro.
Termina n 'esta Revista a introdução dos - Contos Rio-Granden-
ses, com que nos honrou um illustrado e modesto pelotense, que , sob
o pseudonimo de Victor Valpirio, encobre a sua dintincta individua-
lidade.
Breve começaremos a publicar o primeiro romance ou narrativa,
com que nos vai brindar o festejado escriptor.
Encetamos hoje a publicação de uns preciosos trabalhos mono-
graphicos, que nos enviou um nosso intelligente consocio. Oxalá qu-c
o novo collaborador da Revista continue a descrever-nos com seu mi-
moso pincel - quadros como a Gruta das Borboletas. Têm para
nós um valor subido estas descripções locaes da provincia ; e o Sr.
Natividade Franco, que de tão longe se esfor ça pela causa santa do
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I>arthenon, continuará por certo a enriquecer as paginas da Revisfa


com suas monographias.
Assim esperamos.
Graças a Deus! Até que afinal acabou a festa escandalosa, ondt
o luxo e a vaidade ião de mãos dadas fazer ostentação de suas galas
ante as angustias e lagrimas da pobreza desvalida . Em face da civi-
lisação que significava aquelle espectaculo triste do dia de anno bom'?
Logo pela manhã abrião-se as portas d a Caridade e a multidão curio'-
sa ~ ridicula , indifferente aos soffrimentos d o proximo, invadia os
hospitaes e ali junto ao leito d as a gonias, n em tinha um olhar de
compaixão nem um obulo de caridade! Felizw ente, porém, d'ora em
diante não se reproduzião as scenas repugnantes que se davão na
Santa Casa no 1.0 do anno.
Antes de terminar a Chronica, diremos que não nos competia
Ecscrever estas linhas. Vimos substituir, ainda que mal, a p enna fes-
tej ada do nosso consocio Sr. José Bernardin o dos Santos, que era o
redactor de m ez. Longe da cidade p or incommodos graves de saúde,
' sentimos que o n osso amigo não nos podesse auxiliar ainda d'esta vez.
E' verdade, duas palavras ainda:
Concluimos com este numero a 2.ª série da Revista. Estão ven-
cidos 6 mezes de lutas e obstaculos. Paremos um p ouco para refa-
zermos as forças . E ' apenas um dia, amanhã proseguiremos a no'>sa
jornada espinhosa. Vós, que nos auxiliastes até aqui, alentai-nos; não
pouparemos esforços nem sacrificios.

Achilles Porto Alegre. ...

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