(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 1

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~evíJta do

(f arthenon /2ítterarío
ANO DE 18 7 2
(2.ª série)

(Separata-da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do
· Rio Grande do Sul)

N. 117 a 120
0

1953
OFICINAS GRÁFI CAS DA IMPRENSA Ol'ICIAL
PÔRTO ALBGRB
REVISTA MENSAL
DA

SOCIEDADE

PARTENON LITERARIO

2.ª Série - Julho de 1872 - N. 0 1

-oOo--

TYP. DA REFORMA - RUA GENERAL ANDRADE NEVES N.0 51

PôRTO ALEGRE
1 8 7 2
COMMISSAO DE REDACÇAO.

Vasco de Araujo e Silva.


Appolina r io Porto-Alegre.
J osé Bernardino dos Sant os.
Aurelio Viríssimo de Bittencourt.
F r ancisco J. de Sá Brito.
Man oel Gonçalv es Junior.
REDACTOR DO MEZ.
1ppolinario Porto-Alegre.

DIRECTORES.

Achilles Porto-Alegre.
H ilario Ribeiro d' Andrade e S il va .
NOTA - Prosseguimos hoje na reedição da "Revista do Partenon
Literário", que 'desempenhou relevante missão cultural na história
do Rio Grande do Sul. Em os números 113 a 116 da "Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano XXIX,
reproduzimos os dez primeiros números da aludida rublicação, cor-
respondentes ao ano de 1869, precedidos de nota explicativa, à qual
remetemos o leitor desejoso de maiores esclart.?cimentos sôbre o assunto.

- N. da R.
FELIPE NERI
IN_TRODUCÇÃO.

Deixem-n'o passar.
E' um pobre orphão com um destino de bronze. Não vem disputar
nem palmas, nem corôas na liça da imprensa e muito menos ambi-
ciona o plintho da gloria e as ovações dos triumphos.
Quer viver apenas, se é possivel a vida n'uma época enferma,
quando o coração chora a cada sentimento que se esfolha, e o espi-
rito esterilisa-se a cada ideia que morre.
A patria necessita de todos na marcha progressiva de sua exis-
tencia. Não ha para ella um homem inutil, como não ha uma pagina
-e scripta que não traga um pensamento aproveitavel .
Deixem-n'o passar.
Se as preoccupações serias d'esse tempo, em que a mocidade en-
velhece aos vinte annos, e traz a ruga da meditação na fronte em
vez do verde sorrizo da primavera, não vos deixarem bastante espaço
para a leitura amena, se a gravidade dos differentes misteres não pu-
derem distrahir--vos, deponde sobre a meza o livro do Parthenon,
d ipticos de seus trabalhos e esforços.
Tendes razão de não lei-o.
P or ém logo u ns dedos trefegos e curiosos virão folheai-o e talvez
que uns labios ainda saturados de frescura infantil e sem o descôr do
scepticismo lhes murmure em segredo :
- Bem vindo sejas!
S im, a Revista é p ara v ós creaturas sublimes, inimigas juradas
das f órmulas seccas da sciencia e da algebra dos principios.
O homem aclimatado ás abstrações póde viver sem ella, a dis-
cussão da imp rensa diaria póde sat isfazel-o em sua avidez pelas ques-
tões que se ven tilam, mas v ós, n ão. Filhas d 'um enlevo poetico de
Deos, amantes apaixona dos por instincto e por affinaidade das flores,
quereis vel-as desabrochar até no estylo.
A m etaphora- que scintilla, a imagem que exubera de v iço, vos
fallam com mais eloquencia, convencem com mais rapidez do que o
com passo de Arch imedes e os syllogismos do padre Ventura.
Por isso amaes os poetas.
Tendes tambem razão.
Quando quizerdes comprehender o sup remo architecto do mund o,
não é por certo nas sabias dissertações dos doutores da igreja, nem
no argumento muscubso da p h ilosoph ia, é na auror a que desponta,
na campina qu e floresce e no céo que rutila, é antes nas m elodias
melancolica s de Lamartine ou Chateaubriand.
Se a Revista do Parthenon puder inspirar sentimentos generosos e
doutrina profícua ás filhas do Rio Grande, seus v otos serão satisfeitos,
.sua missão preenchida.
Protegei-a pois, acalentai-a ao regaço.
Outr' ora os paladinos arrojavam-se á justa por uma dama de seus
8

pensamentos. Venciam, se ellas no amphiteatro lhes r obusteciam o


braço e a crença com um sorrizo e um olhar de animação.
Os t em pos mudaram. A espada foi substituida pela penna, o braço
pela ideia, todavia ficastes as mesmas. A litteratura aqui é tambem
uma peregrinaçã o por uma causa sublime, como a dos antigos caval-
leiros andan tes.
Sêde como ellas.
Acen ai aos romeiros, e nã o t itubiaremos an te os obices do ca minho.
Atai o perfumoso lenço de cambraia ao bá culo da viagem , e tere-
mos u m estandarte a d efender, mesmo quando a esclavina se torne em
cilício do m ar tyr na t unica de Dejanira.
Alentai-n os e seremos dignos uns de outros. O esforço complexo
será u til á patria. ·
Em vós: a confiança e estima para os h u mildes obreir os do progresso.
Em n ós : mais que nunca o resp eito á primitiva d ivisa:
Non far tregoa coi vili, i1 sant o vero
Mai n on tradir , ne proferir mai verbo
Che plauda al vizio, o la vertu derida.
Só a verdade é pura. Ella nos guie.
E ideias morrem, se palavras brilham
Que o vicio incensem e a virtude esmaguem.
Iriêma.
FELIPE NERI
ELOGIO F UNEBRE. (1)

Cahio o batalhador!
E par ece impossivel! Ainda creio ouvil-o n os momentos em que
a eloquencia illuminava-lhe a fronte ollympia, iriando-a em r eflexos
divinos; em q ue seu gesto animava-se de enthusiasmo com o o au gur
nos or aculos da antiguidade; creio ainda ler as paginas que decorr iam
fluentes de seu cálamo inspirado! Creio ainda ver-lhe assomar o vulto
elevado e magestoso, aqui, nos penetraes da mocidade, no P arthenon
oázis no meio d'um deserto!
Parece impossível! E no entretanto a realidade surge pallida ,
tr iste, azia ga , pavorosa, envolta em funerario crépe!
Parece imp ossível! Tu o dizes? ,
ó pobre alma a quem a duvida suspende, não vês o sudario que
pallej ou nos espaços da eternidade?
Basta de preocupações tranzientes, tudo passou, tudo foi um
sonho! O que resta hoje? Resta um tumulo, um cadaver n'elle e a fa-
talidade que o assella.
Misero do homem! A cadeia d'um destino contigen te, fa llivel e
precario o p r ende á terra. Nem se quer uma h ora do futuro lhe per -
tence, n ão póde contar com ella.
Morte, phantasma sombrio na face das gerações, porque lhe apon -
ta ste o marco final da romagem, quando o sol estava bem longe de
deitar -se sobre sua existencia, e elle contemplava o astro da vida
com o olhar fito da aguia?
Não foi tão cedo?
Porque has de debruçar no volutabro o gigante da serrania ,• cuja
fronte assoberbava os torreões do céo, cujas raizes irrompiam robus-
tas o seio da terra e em cujo tronco circulavam rios de ceiva em cada
fibra?
Era cedo, bem cedo ainda para detel-o no meio do caminho.
Grande era a missão, •immensa a estrada a percorrer .. . , e a ideia
gelou-se-lhe no cerebro encandecido!
Pobre amigo!
Quando borbulhavam-lhe na mente o alluvio de ideias que v inham
no mais esplendido florir do talento, quando ia, quem sabe, começar o
r epouso das lutas materiais da vida, repouso tão necessario para os
cer tamens da intelligencia, o simun d'além-tumulo passou ...

(1) Recitado na sessão funebre que o Parthenon celebrou na noite


de 8 de Fevereiro.
- 10 - .

E elle a penedia, onde quebrara-se sempre a vaga do infortunio e


das paixões terrestres, sem abalal-o, elle - cahiµ ferido . ..
Era homem!
Man, a pendulum, between a simile and a tear! como o disse o
poeta.
Mas ha mortes - cataclymos.
Sobre a lápida funerea q ue o reveste, não irão sómente a deso-
lada esposa e R 1.ri:;tc fil:1a . com as tr :rnças soltas. debulhar-se em
pranto, não; não irão sómente os amigos com o animo abatido e lu-
tuoso render-lhe uma ultima homenagem na corôa de saudades e
sempre-vivas, que depuzerem n o cruzeiro do jazigo, não; para ali
tambem a patria, essa mãe, que tantas vezes retribuio-lhe com in-
gratidão, caminha rá com passo lento e a fronte amergida, e de joe-
lhos sobre a campa elevará uma prece entre soluços; ao lado d'ella,
a liberdade, a consocia do den odado lidador, não terá lagrimas, terá
a agonia calma da desesperação sem consolo.
E os mesmos arraiaes contrarios compenetrados da grande perda,
que o paiz acaba de soffrer, saberão nas manifestações de profunda
magoa honrar as cinzas do adversario leal, do brasileiro distincto.
E' que Felipe Neri era um vulto de antiga tempera, d'esses he-
róes do - antes quebrar que torcer. As proeminencias da civilisação
potytheista cingem como elle diversas estemmas. São soldados, tri-
bunos e esciptores. .
Elle é como um Xenephonte entre nós, n ' um tempo em que taes
attributos se .excluem, e os homens nascem talhados differentemente .
Percorramos succintamente as estações de sua jornada sobre a terra.
Nasceu a 3 de Março de 1820.
O volcão da liberdade fremia surdamente no coração dos bra-
sileiros ; a colonia portugueza estava prestes a sacudir o dominio da
metropole. A alma americana reagia em toda a plenitude de sua ro-
bustez e virilidade .
Filho d'um militar distincto, habituado e affeito á vida dos acam-
pamentos, ao estrugir e tumulto dos combates, crescido e creado na
guerra, e sob os auspícios d'uma época revolucionaria, apenas a ado-
lescencia povoou-lhe a alma de sonhos, !obrigava a realisação d'elles
em horisontes, cujas brumas eram o fumo das bombardas e f uzilaria ,
cuj a área era o campo das batalhas. No olhar tinha a chispa do enthu-
siasmo, o relampago da coragem bellica. No peito rugia lhe uma tem-
pestade , o ardor, o anceio, a audacia da juventude que febril arranca
do cerebro a concepção e arma o braço para executai-a. Em 1839
entrava no serviço das armas e ahi se manteve até 1846, anno em que ,
pela morte de seu pai, retirou-se do exercito no posto de tenente de
caval!.aria do 2. 0 regimento. Depois como chefe das forças da guarni-
ção da fronteira de Uruguayana ainda servio em 1848, na guar:l.a
nacional.
Novo período vai-se-lhe abrir d'ora em diante. Não é mais a
espada que o veremos brandir. E' a penna, a arma sublime do pensa-
meqto, o instrumento que monda os terrenos do presente e roteia os
campos do futuro, a irmã da espada, porque esta rompe os obstaculos
que se apresentam áquella em sua missão de progresso, emfim o es1-y-
lete que grava a palavra, como o cinzel desbasta o marmore, e tantas
vezes tem alcançado mais victorias do que as catapultas, os canhões
e os exercitas formidaveis. Foi-lhe justa o Correio de Porto-Alegre ,
publicado por Pomatelli, onde elle escreveu até que em 1854 fundou o
Correio do Sul typographia q ue o Dr. Caldre F ião lhe cedera.
Jornalista alistou-se nas fileiras da politica e pouco depois vamos
- 11-
ouvil-o militando como um dos chefes do partido progressista , occupan-
do brilhantemente uma cadeira na assembléa provincial.
Se a expressão de seus actos em semelhante período ás vezes tra-
zem uma caracter vago e indistinctó, é intuitiva a razão . .
O programma das differentes parcialidades a_brangia ideias con-
tradictorias, não havia separado o que lhes pertencia de direito, o
que infelizmente na actualidade tem-_se ainda dado, pois não há muito
o partido conservador invadia a esphera do liberal, falseando seu in-
tuito e os princípios que symbolisão sua bandeira. A confusão das
ideias essenciaes nas evoluções políticas reproduz-se sempre nas per-
sonalidades que as consubstanciam. Mais tarde, em 1862, o encontra-
mos no parlamento do paiz, onde preenche o mandato de sua província
condignamente. D'aqui em d iante é outro h omem, estreia uma nova
phase. O talento que balbuciava na primeira serie do Correio do Sul,
tacteava entre as columnas da imprensa e no rostro popular, na se-
gunda mostra-se em todo o esplendor, musculaturas e soberan ia. So-
sinho arcava com todos partidos, o numero não o intimidava e· enge-
nhos superiores estremeceram ante aquelle Sansão da tribuna e do
jornalismo, a quelle Antêo que retemperava as forças nos impossíveis
Pel:a sua propria grandeza, atrozes calamidades, lutas gigantes-
C:!S servem-lhe de pedestal á gloria; mas nunca mordeu o pó da arena.
Nos dias de extremas angust ias que dev ia m ser terriyeis para cons-
tituição ' tão poderosa, era como o mytho de Encelado; na erupção
ener gica sacudida de sobre d o pezo dos infortunios. E quando , em-
bora laureado, achava-se exhausto e sentia como o corpo alquebrar-se
no affan e fadigas, corria a r:ejuvenecer o alento, a assumir nova
coragem e valor nos braços da esposa e nos sorrizos da filh a.
Era o lar o templo que ,se creava com desvelo e amor, onde foi
modelo de. todas as virtudes e talvez nem se quer um instan te rece iou
ver estr emecidos os élos da ventura. Se houve dias d itosos, foi ahi
que elle os gosou. O que para muitos torna-se insipidez o m on oton ia,
para elle constitui um retiro de paz e b onança, que amenisava o que
ha de fragoso, rude e aspero no mister de jornalista, onde q uasi sem-
pre, desvirtuava a sublime instituição da imprensa, faz-se d a penna
um escalpello de personalidades, em vez da dissecção dos pr incípios.
Era na intimidade dome&tica que bebia o mimo e delicadeza
de sentimento, abundancia e flores do coração , que, mal se affastava
do terreno maninho e sáfaro da política local, derramou por tantas
laudas artezoad as de estylo e palpitantes de poesia na essencia. Insisto
sobre esta particularidade, para muitos por ventura insignificante e
sem interesse, e para mim a luz da téla em que se d estaca seu vulto .
A política, principalmente no estreito perímetro das povoações, obseca
a alma , exsicca a fonte das alegrias intimas, elimina o que ha de ex-
tremamente sensível no fôro da consciencia, abrindo ao espírito arras-
tado pelo interesse fanati co do poder immensas veredas, é certo, ainda
que la deiadas de abysmos. E' a morte do coração a fa vor da cabeça .
E o calculo frio substituído a santas e puras effusões. Porém , Felipe
Neri foi um dos raros exemplos em contrario. Bastava ve-lo e ouvil-o
para advinhar quanta sensibilidade aninhava no adyto d o peito .
Os amigos, que muito os houve, até entre as fa cções adversas,
e a quem foi sempre fiel e dedicado, podem confirmar a s palavras
que ·vão ditas. Tambem a amizade foi outra flôr que acu radamente
cultivou depois da familia.
Eis em rapido bosquejo, quem é aquelle que hoj e pranteamos
com a província inteira.
Não é um panegyrista que falla, é um coração q ue exhubera de
í2 -

sa udade e tristeza diante d'uma campa immensa, urna cinera:ria d e


seus despojos terrenos e marco miliario de sua immortalidade. F elipe
Neri não é mais o homem de hontem que ouvimos a qui pleiteando
pela emancipação servil, é o indigete do Pantheon da historia.
O lidador cruzou as armas e descansa sob a ten da da eternidade .
Se teu espirito nos escuta n'este momento, benemerito cidadã o
recebe o humilde preito de saudade que te rende o mais obscuro de
te us consocios. Good night.
Iriêma.
RISOS E LAGRIMAS
DRAMA EM 4 ÀCTOS E 5 QUADROS
POR
HILARIO RIBEIRO .
Rep resentado a primeira vez em Porto Ale~re, no theatro S. Pedro,
em 20 de Setembro de 1870
---000-

PERSONAGENS:
Fernando de Magalhães 1 Negociantes Pedro Joaquim.
Ricardo da Silva .1 Araujo.
Dr. Anselmo 1 Medicas Raymundo.
Dr. Paulo de B enjamim) Aifredo.
J ulio d'Agu iar Guarda-livros Eduardo.
Commendador Torres B. Magalhães.
Octavia Adelaide Amaral.
Adelaide Maria Angelica.
Baroneza de Tapagé ' Augusta Candiani.
Margarida Roza.
Manoel } Criados Manhonça.
Acção - no Rio de Janeiro.
Actualidade.
---000-

Ao seu amigo Luiz Alves Pereira Machado, offerece esta primeira


tentativa dramatica o
AUTOR.
ACTO 1. 0

Sala luxuosamente decorada. Reposteiros ao fundo; e ·portas la-


teraes. Ao levantar do panno ouvem-se os ultimas compassos de uma
palka.
SCENA I.
Dr. Paulo de Benjamin e depois o Dr. Anselmo.

DR. BENJAMIN (observando de um reposteiro a sala do baile)


- 14 -

Pobre louc:>! segues atraz de um phantasma e te ajoelhas diante d'uma


estatua! (Vai sentar-se no divan).
DR. ANSELMO. - Porque deixaste as salas? A baroneza quer
ver o:s i;eus convivas alegres. Então não tencionas dançar?
DR. BENJ. - Encontro mais delicias nas espiraes do charuto,
que nos vórtices de uma walsa. Aquelle mundo phantastico é insí-
pido a matar de tédio. Não te parece?
DR ANSELMO. - O que me parece, é que ninguem será capaz
de definir o Dr. Paulo de Benjamin. Seriamente, de dia em dia com-
prehendo-te menos.
DR. BENJ. (accendendo o charuto) . - Sim? E depois Dr.?
DR. ANSELMO. - E 's bem curioso e singular! A's vezes, h a na
tua fron te esse sulco profundo que denota um amargor intimo, ou o
tédio das almas que se desfolham de castas e suavíssimas illusões.
Outras vezes o teu olhar lampeja como o do tigre e a tua voz fere
no sarcasmo que atiras á ponta dos labios.
DR. BENJ. _:_ E o resto?
DR. ANSELMO. - Que idéa fazes do amor e da amizade, não sei.
Encaras com a mesma estoica indifferença o que é santo e nobre,
como o que é mesquinho e despresivel. (Sorrindo) Estás sériamente
sceptico?
DR. BENJ. - Ah! ah! ah! nasceste para reitor de seminario,
meu caro: torceram-te a vocação , fizeram-te medico, quando devias
envergar uma sotaina de presbytero.
DR. ANSELMO. - Motejas; mas n'esse riso satanico quem sabe
se n ão transparece o abysmo, em que tua alma se convulciona atada
ao · eculeo? ! Rís, Paulo de Benjamin, porém apostava que soffres!
DR. BENJ. - Escuta. Err.. quanto a multidão se inebria n 'aquellas
salas sentindo o collo palpitar offegante de voluptuosidade; em quanto
essa mascarada ridícula e tôrpe folga e ri, anceia de febre e espasmo
como a cortezã nos coxins da lascívia, eu só tenho aqui (indicando o
coração) tedio e saciedà.d.e, o peor flagello qué póde sentir a crea-
tura. (Erguendo um dos resposteiros) Olha, tudo aquillo é mentiroso
e hypocrita! Se tivesses ali uma irmã, eu te diria: · Aquella mulher
é tão falsa e vale tanto como todas as outras!
DR. ANSELMO. - Que mysterio!
DR. BENJ. - Não é um mysterio, é a minha historia! Sabes
como entrei no mundo? De um lado tinha eu acervos de oiro e do
outro 9 crépe negro da orphandade! De um lado a fronte angustiada
e veneranda de meu pae, e do outro - junto ao meu berço o tumulo
da uma m ãi, que a minha existencia excavára!
DR. ANSELMO. - Continua.
DR. BENJ. - Contava eu apenas 10 annos, quando um homem
abrindo para mim os braços, mur murou banhado em prantos: -
Teu pae acaba de expirar, porém ficas rico e velarei sobre o teu fu-
turo. Aqui tens, em poucas palavras, a historia de minha infancia.
Nasci condemnado , os meus primeiros annos escoaram-se sem cari-
nhos e alegrias, porque deviam ser o prólogo de uma existencia in-
fausta!
DR. ANSELMO. - A orphandade deve ser horrível!
DR. BENJ. - Estudando medicina, o meu fim, a minha unica
ambição era tornar-me um dia o protector da orphandade indigente,
velar á sua cabeceira como pae e medico . . . (Pausa) A fatalidade, po-
rém, mudou completamente as minhas santas aspirações!. . . O acaso
approximou-me de uma mulher. Impellido por força ir resistível se-
gui-a como louco e adorei-a de joelhos!
-15-

Eu nunca tinha amado e a solidão ·e m que vivia minha alma iriou-


se por encanto! ·
DR. ANSELMO . - E depois?
DR. BENJ. - Depois?! Voltou o vacuo, voltou a solidão, volta-
ram dias mais tristes e noites mais lutulentas! Foi tudo um sonho
passageiro. . . (Pausa) Ah! mas para esquecer essa mulher infame, a
quem um só anno de auzencia bastou para postergar tantas juras e
promessas, atirei-me á vida sensual dos bordeis, calcinei-me na ebrie-
dade do vicio, a alma gastou-se nos seis flaccidos das Phrynés! Hoje
não ha ahi alegrias que me deleitem, nem desgraças que m e punjam.
Trucidaram-me fibra por fibra!
DR. ANSELMO (sorrindo). - Não me diceste hontem que estavas
apaixonado por Adelaide? O que me respondes?
DR. BENJ. - E acreditaste?
DR. ANSELMO. - Sériamente que duvidei. Se não fosses ami-
go de Julio poderia acreditar, porém ...
DR. BENJ. - Não tenho amigos e não sou amigo de ninguem.
Chamem-me embora de cynico· ou sceptico, materialista ou o diabo;
para mim é indifferente. Que me importam a mim os riv aes?
DR. ANSELMO. - E não temes o commendador? Disseram-me
que se casa com Adelaide.
DR. BENJ. - Não passará de um boato. O commendador quer
conhecer-me melhor.
DR. ANSELMO. - Ah! confessas a tua segunda paixão?! Eu
sempre ouvi dizer que o coração não envelhece, e o teu ha de resusci-
tar como a phenix de Homero.
DR. BENJAMIN. - Eu só creio no primeiro amor!
DR. ANSELMO . - E no segundo? . ..
DR. BENJ. - Sou caprichoso; sempre gostei de perseguir os ba-
rões e commendadores. ( Ouve-se o signal para a walsa).
DR. ANSELMO . - Não ouves? , Dão signal para a walsa e adeus,
meu excentrico! (Sae).
SCENA II.
Dr. Benjamin e depois um criado.

DR. BENJ. (tocando a campanhia). - Ao menos n'stas casas


ha cerveja e champagne na falta do amôr : é sempre a embriaguez
dos sentidos. (Para o criado) Traz cerveja para dois, e diz á senhora
baroneza que a estou esperando. (O criado retira-se) Ah! Ah! Ah!
(observando a sala do baile) . O commendador afinal morre entre
as minhas mãos como um frango! (Ao criado que entra) Fallou com
a b aroneza?
CRIADO. - A senhora já vem.
DR. BENJ. - Retira-te.
SCENA III.
Dr. Benjamin e depois o commendador Torres.

DR. BENJAMIN (deitando cerveja em um copo). Ignoro quem foi


o teu inventor, nectar sublime, mas quem quer que elle fosse, eu
b ebo á tua memoria, cabeça de gen io, e asseguro que valias bem um
monumento! (Reclinando-se no divan, depois de beber).
COMMENDADOR TORRES (limpando o suot:) . - E' de mais;
- 16
não se ri assim nas barbas de um homem serio e respeitado como
eu! Preciso e hei de vingar-me tão certo como dois e dois são qua-
tro . (Voltando-se para a sala do baile) Veremos se o orgulho não
ha de cahir! . . . (Depois de pequena pausa) Atrevida!. . . Rir-se á
minha custa, envergonhar-me, a mim, um commendador!
DR. BENJ. - Soffreu alguma contrariedade, Sr. commendador?
COMMENDADOR (voltando-se sobresaltado). - Ah ! (á parte)
Sempre esta sombra maldita!
DR. BENJ. - Cuidado, cavalheiro, - é um medico quem lhe
avisa: As paixões n 'essa idade são perigosas ... O amor a os 60 annos
não é outra cousa senão· uma parasita. Cuidado, que elle póde exhau-
rir-lhe as faculdades mentaes! (Solta uma risada) .
COMMENDADOR TORRES (irrequieto) . - Ahi vem o Sr. com
os seus gracejos pesados! Veja que sou grosso para palito! .. .
DR. BENJ. - Ora vamos, confesse, não está perdidamente apai -
xonado por D. Adelaide?
COMMENDADOR (quasi fóra de si). - E que tem o Sr. com
isso?! . . . Peior vae ella !
DR. BENJ. - (com sarcasmo). - Quaes são as suas intenções,
commendador?
COMMENLADOR. - E o Sr. o que pretendR requestando D.
Adelaide? ·J ulga que não tenho observado?
DR. BENJ. - Procu ro u ma mulher para cas--en·-me, n a da mai s
natura l e licito.
COMMENDADOR. - Espere então por sapatos d e defunto.
DR. BENJ. - Estou applicando os meios como V. S .
COMMENDADOR. - E se não conseguir os fins?
DR. BENJ. - Dar-me-hei por vencido. Com tudo pouco temo
a lucta. Até hoje, commendador, não tive um só desejo, um simples
capricho mesmo que se não realisasse segundo à minha vontade.
Nunca encontro obstaculos, porquanto não m eço a profundidade dos
abysmos. Creia-me, teria sangue frio para m atar aquelle que se an--
tepuzesse á minha vontade. E' mister que me fique conhecendo, e não
se arrepie do que lhe vou ainda dizer. . . Aos vinte annos e u tinha
um coração, hoje, aos 30 nem sei mesmo o que tenho aqui! . . . Como
o anjo do mal eu r io ante a cabeceira do enfermo, que se estorce no
eculeo do aesespero, implorando-me mizericordia; encaro a humani-
dade com a frieza estoica do philosopho, e desprezo tan t o os homens
quanto Christo sacrificou-se por elles!
COMMENDADOR. - Parece incrível!
DR. BENJ. - Não crê na metempsycose, commendador?
COMMENDADOR. - Metemp . . . Não sei o que quer dizer.
DR. BENJ. - Talvez o espírito de Satanaz passa sse para o meu
corpo.
COMMENDADOR. - Eu já desconfiava! . . .
DR. BENJ. - Tenho ouvido dizer que o oiro é o potentado da
terra, o mobil das paixões humanas ; talvez o ponto de apoio que
faltou á alavanca do sabio de Syracusa. . . Creio no entanto, na rea-
leza da medicina.
COMMENDADOR. - Dubito! Não pode ser, nego!
DR. BENJ. - Já vê, o respeitavel latinista, que sendo eu medico
e possuindo muito dinheiro, tenho dois poderosos elementos: p osso,
dominar pelo oiro e pela sciencia.
COMMENDADOR. - Noto que V . S. está um tanto gasto .
DR. BENJ. - Cynico, póde exprimir-se com franqueza. . . Sou
tão cynico como o commendador!
17 -

ÇOMMENDADOR. - Menos essa! Não admitto a compa ração .


DR. BENJ. - (Offerecendo um charuto) . Não fuma ?
COMMENDADOR. - Obrigado, sinto-me indisposto.
DR. BENJ. - Com que V. S . é meu r ival pela segunrla v ez'. . . .
Não imagina o quanto sinto.
COMMENDADOR. - Pois fique sabendo que d' esta vez não m e
-d arei por vencido. (Dispondo-se a sahir) . Vou até ás · salas que é o
melhor. Não dança?
DR. BENJ. (com sarcasmo). - Não, commendador, aprecio p ouco
€sse divertimento proprio para crianças e· velhos tontos. (O commen-
dador faz gestos de impaciencia). Prefiro o jogo; amo as sensações
fortes, que abalam mais o espir ito do que a ma teria. (A' parte) . Te -
mos explosão .
COMMENDA DOR. - Cá para mim o jogo é a distracção dos vaga -
bundos. Não lhe parece! (A' parte) . Vejamos o effeito da b om b a.
(Vai mirar-se no espelho) .
DR. BENJ. - Com que se acha p arecido V . S.?
COMMENDA DOR (furioso) . - Advirto-l he que taes gracejos p o-
dem trazer resultados funestos!
DR. BENJ. (deitando serveja nos copos). - Façamos tregoas.
Sejamos dois rivaes generosos (offerecendo um copo). Bebamos ao
triumpho do horóe, ou á memoria da victima, porque emfim, estou
disposto a luctar e a fazer-lhe uma guerra de exterminio. (Bebe ).
COMMENDADOR (bebendo). - A' saude, pois, do heróe! (A'
parte). Pessima bebida! (Retirando-se) . Até já, que estou com pressa.
DR BE NJ. ( tirando do b olso um v idro ) . - Uma palavra , com-
mendador. ·
COMMENDADOR (voltando-se) . - Queira dizer .
DR. BENJ. - Vê isto?
COMMENDADOR. - E ' um v idro .
DR. BENJ. - E' a morte!
COMMENDADOR (assustadissimo ). - Oh! estarei enven en ado!
( Sae rapidamente) .
DR. B ENJ. - Ah! ah ! ah ! como é cov arde! (Sae).

SCENA IV.
Adelaide.
ADELAIDE (agitada ). - Rir, fin gir sempre risos, em quanto o
coração distilla lagrimas de sangue! . . . Ah! piedade, senhor, já _ n ão
posso mais, sinto-me exhausta , mal tenho forças para supportar tão
longo ' supplicio! Protege-me, Deus de mizericordia, leva-me d'aqui,
para b em longe . . . Aquellas salas inspiram horror, e tenho medo de
enlouquecer! . . . (Pausa) Homens vis! Julgam que a mulher é uma
m ercadoria e que se impõe ao coração! . . . (Arrancando as joias e a ti-
rando-as ao chão). P ois bem, eu não preciso mais do que um claus-
tro ... De hoje em diante desfaço-me d'stas sedas, renuncio a s esme-
raldas e diamantes! ... (Cahe sol uçando no divan ).
SCENA V .
A mesm a e o Dr. Paulo de Benjamin.
DR. BENJAMIN (baixo). - Veremos quem é mais .forte, com -
mendador! (Approximando-se de Adelaide). Que agitação, minha se·-
nhora ! . . . V . Ex.ª chora? ... Sente-se por ventura incommodada ?
Inst. Hist. - 2
- 18 - •

A DELAIDE (com odio). - Deixe-me, Sr.! . . .


DR. BENJ. - Porque motivos me odeia assim ? ...
A DELAIDE (er guendo-se e fitando o) . - E' dema is 1.
DR. BENJ. - V . Ex .ª fez mal em deixar as salas. . . Quer vel-<>.
d 'aq ui ? ... (Levantando o r e posteiro) . Eil-o, pallido e triste , sonhando•
talvez o impossível! . . . (Descendo) Os poetas são assim, minha se-
nhora; criam um ideal, enlevam-se contemplando aquella miragem en-
ganadora , e da condição de sonharem sempre , provém a seu eterno-
infortunio .
Pobres scismadores! . . . Transviados da senda da vida real, vão-
de decepção em decepção , de descrença em descrença , e a ultima
estrophe que soltam, é a ultima blasphemia jogada ao mundo.
Dizem elles que ninguem os compreende e talvez assim seja ...
Malaventurados!. . . A poesia tira-lhes a força vital, porque a lava
ardente que lhes ateia o espírito semelha ao cancro : - róe dia por-
d ia, hora por hora e morrem na idade, em que nós outras começamos"
a viver. A poesia é como a tunica de Nessus ; não acha perfeita a
comparação, minha senhora?
ADELAIDE (com desprezo ). - Ne m sei o que disse !. (Que-
rendo retirar-se) .
DR. BENJ. - Queira ouvir-me então. Conceda um instante ao-
ultimo dos seus adoradores ...
ADELAIDE. - Julga acaso que esse incenso que a fa t u idade e a
mentira queimam no thuribulo da lisonja, chegue até á solidão de-
minh'a lma ?1 Ah! engana-se, Sr. Eu sou d'a q uellas mulheres que pre--
ferem a virtude na desgraça . á a bj ecção completa dos sentimentos! ...
Não ha oiro n a terra que m e deslumbre, nem oblações m entidas que·
P-1-e sed uzam.
DR. BENJ. - Perdão .
ADELAIDE (em acto de sahir) . - Quando a mulher comprehende
a sua missão , lucta e lucta sempre ; porque se ha um anjo máo per-
seguindo-a na terra , Deus véla do céo! (Sae) .
DR. BENJ. - Nunca é tarde. Não é verdade , baroneza? Pobres;
joias, estão definitivamente desprezadas? (Apanha-as e as colloca
sobre uma mesa). Ah! ah! ah! mulheres, mulheres!

SCENA VI.
Dr. Benjamin e Julio ele Aguiar.

JULIO. - Sim, é mister um esforço ; acima do amor está a dig-


nidade.
DR. BENJ. - Aonde vaes, rapaz? Que diabo tens tu? Estás
fu n ebre como um esquife!
JULIO. - Vou para casa ... Adeus . ..
DR. BENJ. - (detendo-o) - O que sucedeu?
JULIO. - Nada, cousa alguma .. .
DR. BENJ. - Não sejas criança. Falla , dize, o que aconteceu?
JULIO . - Fiz mal em acceder ás tuas instancias. O coração advi--
nhava!
DR. BENJ. - O que é que advinhava o teu coração?
JULIO. - Não imaginas como soffro!
DR. BENJ. (sorrindo). - Por causa de uma mulher? !
JULIO. - Amo-a e em recompensa só tenho desprezos! . . . Pedi-
lhe uma contradança logo que entrei, e nem ~equer respondeu-me .. _
- 19 -

Procurei-a aind a ha pouco , e sP.mpre a mesma indiffer e n ça ! . . . E'


d emais, o coração não deve humilhar-se tanto! ...
DR. BENJ. - Afinal te has de convencer que as minhas theorias
n ão são exageradas . . . Falta-te experiencia, meu poeta. Adelaide não
passa de uma mulher vulgaríssima ~ banal, como são todas as mu-
lheres, desde a Eva da Escriptura! Todas ellas se nos apresentam sob
a effigie de um anjo; porém não tomes a sombra pelo corpo. Adelaide
quiz ver-te humilhado á seus pés, escravo submisso beijando-lhe as
fimbrias do vestido! . . . Caprichos! N'estas regiões o amor é moeda
falsa?
JULIO. - No entretanto di-se-hia que ella soffre! .. .
DR. "BENJ. (com sarcasmo). - Lembra-te que Adelaide respi-
rando a athmosphera mephitica dos salões de baile, já perdeu o can-
dor nos torc1collos da walsa . S ó o contacto da baroneza perverteria
Magdalena , mesmo depois da sublime redempção!
JULIO. - Não, não consinto que digas isso ! ... Cafa-te , amo-a
e respeita-a ao menos na minha presença!
D:«. BENJ. - Pois escuta. Ha dois dias que a mão de Adelaide
foi pedida pelo barão , e sei com certeza que esse casamento se effectua
muito breve.
JULIO (indignado) . - Ah! é impossível, não cre io! .. .
DR. BENJ. - Verás, meu caro.
JULIO. - Se fosse verdade!. . . Não posso acreditar, é impossi-
vel ; ao menos que não seja uma imposição infame!
DR. BENJ. - Dá-me o braço . Lembra-te que eu já passei pelos
mesmos transes e não enlouqueci. Vamos. Emquanto o epycurismo
palp,ta n 'aquellas alminhas, que vocês poetas chamam de anjos e che-
rubins, embriaguemos os sentidos n'um copo de champagne. Cora-
gem , rapaz!
JULIO . - Não posso . . . Deixa-me ir para casa .
DR. BENJ. - Iremos juntos d'aqui a uma hora . (Saem pelo fundo) .

SCENA VII.
Fernando de Magalhães e depois o commendaclor Torres.

F. DE MAG. (triste ). - Fiz mal em ter fallado . .. Foi uma irre-


flexão imperdoavel . . . Pobre Adelaide! Quem lesse no teu coração ,
como eu tenho lido hoje, saberia o que vae n'elle de tristezas! . ..
(Senta-se).
COMMENDADOR. - Ora graças que o apanhei de geito! (Baixo)
Em que pensa, Sr. Fernando?
F . DE MAG. (abatido). - Nem sei mesmo.
COMMENDADOR. - O baile está animadíssimo ; m agnifica par-
tida!
F . DE MAG. - E' verdade, minha irmã não se cansa .. .
COMMENDADOR. - A Sr.ª baroneza sempre gostou dos bailes . . .
Fez epocha no seu tempo! (Pausa) Vamos ao que nos interessa. Em
primeiro lugar, fallou á sua afilhada , como me prometteu?
F . DE MAG. - Fallei, Sr. commendador, e a unica resposta fo-
ram lagrimas! t
COMMENDADOR (com grosseria). - Lagrimas que se desfazem
amanhã em sorrisos.
F . DE MAG. - Não creia. Adelaide se . . .
COMMENDADOR (interrompendo). - Então força -me .. .
1.. F . DE MAG. - E' impossível tal casamento .. . Não terei cora-
- 20 -

gem para violental-a, Sr.! . . . Adelaide não é minha filha ; porém ado-
ro-a como se o fôra. . . E ' a minha unica alegria e sobretudo um pe-
nhor sagrado!
COMMENDADOR. - N' esse caso . ..
F. DE MAG. - Forçal-a. . . eu. . . ó, não, nu nca ! Depois q ue
lhe fallei , não sabe o Sr. que grande mudança se tem operado n 'ella! .. .
Foge-me, como se visse em mim o algoz do seu futuro; se é ob rigada
a fallar- me, já não é com a mesma confiança e serenidade de outr' ora! ...
Nem sei como ha paes, que violentam as filh as!
COMMENDADOR . - Compreh e ndo perfeitamente a farça , Sr.
F e rnando de Magalhães! ... O Sr. hypotecou a mão de sua afilhada á
quem lhe offereceu maiores v antagen s; mas esqueceu-se que existe em
meu poder a hypoteca de sua honra; o credito de um negocian te a r -
ru inado .
F . DE MAG. (com dignidade). - Sr. commendador! .
COMMENDADOR. - Sei eu que ha aqui um homem q ue lh e ga -
rante uma transação mais l ucra tiva, e por isso .
F. DE MAG. - E' demais, Sr.! .. .
COMMENDADOR (tirando tres letras da carteira) . - Conhece
estas letras ? . . . E stão vencidas ha 3 mezes! . . .
F. DE MAG. - O Sr. condemna-me á um súpplicio . . . Ex ige o
que não está em minhas forças! ...
COMMENDADOR. - Sacrifício por sacrifício . . . Disse-lhe q ue
amava sua afilhada e póde acreditar-me . . . P or ella sacrificaria u m a
fortuna ~olossal, que juntei moeda por moeda . . . Amo-a e se. ei seu
escravo ; dar-lh e-hei o que exigir para tornal-a inve javel de t oda s a s
mulheres!
F . DE MAG . - Julga p or ven t ura qu~ se impõe a felic idade ao
coraçã o ?! . . .
COMMENDADOR. - Ora, meu amigo, não me venha com essa s
palavras de romances. . . Passava-lhe quitação e não aceita! . . Ta n to
peor p a r a o Sr. . . . Deve-me innumeros favores e n ega-me o primeiro
qu e lhe peço . . . Prefere então o descredi to e a ruína ? .. .
F . DE MAG. (a parte) . - Horrível situação!
CQ.MMENDADOR. - Evite uma d esgraça . . . Ninguem sabe por
ora d o estado de seus negocios ; mas lembr e-se que per de r á a manhã a
rel?_utação de capitalista.
F. DE MAG. - Basta, Sr. commendador. Depois de amanhã da r-
-hei uma resposta decisiva.
COMMENDADOR. - Espero-a favoravel . . . N'este mundo ser v i-
mo-nos un s aos outros. (Saindo ) Vou á s salas; até já.
SCENA VIII.
Fernando de Magalhães, só.

F . DE MAG. - O que hei de fazer, meu Deus! . .. Pobre A delai -


de! ... Julgas-me na opulencia a inda , e mal avalias o infortunio· d<'
teu p a drinho! . . . Que mundo e que m izerias !. . . E mquanto vamos
caminho da prosperidade não faltam amigos, n e m aduladores! . . . Se
baqueamo - oge m todos os amigos e os aduladores escarnecem! (sa e ) .
SCENA IX .
A Baroneza pelo braço elo Dr. Benjamin.

BARONEZA. - Ah! ah! ah!


- 21 -
DR. BENJ. - E V. Ex. a r ir-se !. . . R epito lhe que sinto-me pe-
r igosamente apaixonado.
BARONEZA. - E dil-o assim, Dr. ?! .. .
DR. BENJ. _ Por quem é, querida baroneza ; faça-me esta ultima
vontade . . . Bem sabe que· amo-a e que nada virá pertubar as nossas ...
. BARONEZA. - Ah! o Sr. tem um coração de bronze!
DR. BENJ. _ Não é tanto como suppõe ... Torna-se necessario
arredar quanto antes Julio d'esta casa . . . Adelaide ama-o, e é mister
desvanecei-a, seja qual fôr o meio.
BARONEZA. - E r eserva-me tão degradante papel?
DR. BENJ. - Breve terei as letras em meu poder , e as difficul-
dades desappar ecerão. . . P or quem é , baroneza!. . . Proteja-me!
BARONEZA (á parte). - Preciso ser escruva agor a! ...
DR. BENJ. - Posso dizer ao poeta, que V . Ex. o chama?
BARONEZA. - Diga-lh e o que quizer ...
DR. BENJ. (beijando a mão da baroneza). Até j á, querida ...
(sae).

SCENA X.
Baroneza e depois Julio de A guiar.

BARONEZA. - Vamos, coragem até o fi m!. . . (pausa) . · Ah! seja


bem vindo o festejado poeta!. . . ,
JULIO (agitado) . - V. Ex. mandou-me chamar?
BARONEZA. - Sente-se aqui ao meu lado . . . Está em minha
casa e aproveito a opportunidade para ralhar com o Sr ....
JULIO. - Se commetti alguma falta, aceito qualquer recrimina-
ção .. .
BARONEZA. - Porque razão ainda não dançou com Adela ide?
Já estamos em meio do baile e pelo que vejo .. .
J ULIO. - .A culpa não tem sido minha ...
BARONEZA. ,- Já no baile passado Adelaide queixou-se-me do
Sr., e estou resolvida a não d ar mais uma partida. por sua culpa ...
JULIO . -_ V. Ex . zomba?!
BARONEZA. - Que gosto selvagem apaixonar uma m enina in-
cauta , para ao depois fingir ciumes e vel-a triste!
JUL IO. - Baroneza! . ..
BARONEZA. - O seu procedimento tem sido reprovado por to-
dos. . . Esses zelos astuciosos são ridículos, não lhe ficam bem . .. An -
tes não viesse!
JULIO. - Se V. Ex. · nã'o instasse · ha pouco comigo, eu já estaria
bem longe d'aqui!
BARONEZA. - O Sr. Julio d'Aguiar decididamente não é poeta.
F az versos, porque possue o artificio das vulgaridades. Os poetas; meu
Sr., são dotados de um coração affectuoso e nobre, e o seu coração,
desculpe-me a rude fr anqueza. . . Ah! ah! ah!
JULIO. - Póde dizer sem rebuço.
BARONEZA. - Não quero agastal-o! . . . Ah! ah! ah!
J ULIO. - V. Ex. está abusando da sua posiçã o!
BARONEZA. - Sabe que Adelaide o ama?
JULIO. - P a ra que me ha de torturar tanto, baroneza? !.
BARONEZA. - R esponda: sim, ou não?
JULIO . - Eu amado por ela?! Houve um tempo em q u e a es-
perança parecia a lentar a m inh'alma e julguei-m e feliz ! Eram ilusões
- 22 -

de um louco que não media as distancias e julgava a felicidad e t ã:>


perto e facil! . . .
BARONEZA. - OSr. é mesmo uma criança. P ela ultima v ez:
acred ita ou não no amor de Adelaide ?
JULIO. - Como V . Ex . insiste, e u respondo . Acreditei , porém
tarde vi o esqueleto informe da realidade. Acreditei, baroneza, - foi
apenas um delirio! A estatua póde mover-se, mas não h á meio de
fazel-a sentir ...
BARONEZA. - O Sr. faz rir a gente com taes devaneios poeticos!
O Sr. Julio d 'Aguiar é capaz de dizer que D eus não é Deus, nos seus
incommensuraveis arroubamentos . . . Ah! se Adelaide soubesse! ...
JULIO . - Basta, Sr.ª; não sei até onde me quer levar!
BARONEZA. - E ' pena que não escutem os seus floreios ...
JULIO . - Póde zombar, tem r azã:> baroneza . (O Dr . Benjamin
aparece no fundo) A culpa é m inha, e só devo queixar-me de mim .. .
Eu v ia o abysmo, e em vez de fugir-lhe, lancei-me á e lle como o
marinheiro incauto atira-se sobre as ondas que rugem aos seus p és .. .
Não me ill udiram ; eu m e en gane i a mim mesmo! ... A provação foi
grande, e devia assim acontecer . . . O homem que v ive de um salario
não póde, não deve ter aspirações tão elevadas, não é verdade? ! .. .
A minha audacia merecia uma punição severa, e V . Ex . arrogou a si
o papel de apontar-me a craveira social!. . . E ' justo, e pe rdoe V . Ex .
o inconsiderado ... a quem esta lição não esquecerá _ jámais! . . . (Vae
a sahir ).
BARONEZA (interrompe ncl9) . - Ah ! ah! a h ! Quer uma das mi-
nhas carruagens?
JULIO . - O sarcasmo de V . Ex. é ridiculo !. . . A mulher qu e foi
uma v ez fraca descendo , não tem o direito de insultar o homem que
foi fraco subindo! . . . (A baroneza encara-o com adio ). Ah ! mas não
devo r eagir contra a sen hora. . . T enho bastante nobreza d'alma e sei
p erdoa r! . . . Alguem me vingará . . .
BARONEZA (tocando a campain h a). - Saia quan to antes ' ...
( Cae prostrada ).

SCENA XI.
Os mesmos, e o Dr. Paulo de Benjamin.

DR. BENJ. - O que fez , Sr.?!


JULIO. - Não dou explicações á ninguem!.
DR. BENJ. (apontando a porta). - Villão !
JULIO (sahindo ). - São dignos um do outro!
DR. BENJ. - Saia!
JULIO (no limiar da porta). - Vim buscar a felicidade e le vo
a morte !
FIM DO 1. 0 ACTO
O VAQUEANO
(NARRATIVA).

PAYSAGEM MORTA.

O inverno desatava as madeixas emperladas de gelo, tão triste


,que magoava o coração , e despertava ideias sombrias, como céos e
terras. Não sei que intima e mystica affinidade existe entre a na tu-
reza e a alma humana, que o mortecôr d'uma r eflecte- se n a outra
.como em bacia de límpidas aguas, que o múrmur surdo e merencorio
d'esta , como n 'um typano, encontra echos n 'aquella.
O inverno é um cemiterio! Razão de morte que nã o poupa a
tenra vergontea, n em as catasoes da aza do colibri! Por isso o ca-
lafrio que sente-se, quando elle se aproxima , o terror que vaga na flo-
resta e na campina, a pallidez do manto de verduras, a auzencia d os
cantores plumosos . . . e depois o minuano! Como é cruel, elle que
fustiga a arvore secular q ue aspergia dôce sombra no ardor da sésta.
até arrancar-lhe uma por uma as folhas de seu diadema! que cresta
.a varzea ha pouco vicejante alfombra! que torna a lympha de on d ;:i
argentina e anodyna, fria como uma geleira , silenciosa como um erm o ,
ingrata ao labio na exsiccação da sêde! ·
- Quem póde amar-te, quadra sem sombras, brizas, cantos e flo-
Tes? p eríodo que espasma a vida e congela a flor das alegrias ?
Só que não sente, alma embotada para as sensações brandas-e
suaves, que rodeiam a existencia d 'uma gaza transparente e rozca
que se chama poesia!
Era no dia 14 de Julho .
O sol cambava. O raio do crepusculo , c1rio que véla -um a taúde ,
lambia a face da terra. Expressão de agonia, lampejo precursor d a
morte, ia deitar-se o pai da natureza. Quem então o visse, diria que
buscava o leito de descanso, n 'uma sepultura immensa como elle pro-
prio, as profundezas do infinito. O scenario sobre que pairamos não
Tescendia menos tristeza .
Eram os campos da Vaccaria .
Ao norte o rio Pelotas arquejava, descantando febrilmente um
requiem; ao sul o Taquary o acompanhava em notas não menos l u-
,gubres ; d'um lado o lombo verde-negro da Serra-Geral, interceptando
o horisonte ; do outro o Mato Portuguez, cuja respiração simulava o
paroxismo cruel de leviathans que estrebuxam. O tecto - o céo. cujas
fimbrias eram as brumas alvacentas e de leve coloridas.
Ajuntai o effeito dos troncos quasi desnudos de roupas em pé no
1uco-fusco da tarde, phantasmas dos seculos estendendo longos e mus-
colósos braços para todas as direcções, sacudindo ao sôpro do pallido
arrebo1 as barbas grizalhas e venerandas ; ajuntai mais o mio, ora
profundo e cavernoso da onça , ora estridulo e agudo da jaguaritica ,
- 28 -

o solfejo aspero e atroador do itanha, o piar agoureiro das corujas, o-


bramido do minuano que fazia ranger os estipites e galhada da selva ,
que revolvia os capinzaes como oceanos, e tereis o quadro senão com-
pleto, em miniatura ao menos.
Ali só uma realeza que contemplava outra r ealeza.
Ali só o u rutáo sentia effusões, porque ainda tenue diluculo de
luz lhe banhava a retin a, embora mortiça e gelida. Feliz vivente que
passa os dias de modo tão extran ho! Rompe o dia e eil-o a saudar a
aurora , e il-o seguindo com a pupilla a r dente o astro r ei no seu ite-
nerario pelos dedalos da immensidade.
Não sei porque, m as amo-te, ave das solidões do meu berço , ana-
chor e ta das florestas natalícias. . . Tal vez traduzas um emblema su-
blime! ,
A noite desceu. O fir mamento era um pavilhão de azul seme-
lhante ao das v oragens marítimas, os troncos q ue cercavam os campos
da Vaccaria, eram suas, columnas. As estrellas que o esmaltavam,
encubriam-se por vezes, como em brancas mortalhas, nos capulhos
de nuven s que deliravam nos páramos infindos.
Cahia neve em flocos. O fr io, intenso. O mysterio d'aquella n a-
t ureza r ecolhida e inanime, profundo e terrível. · Não tinha só a m e-
lancolia do deserto, o v ago e indefinido que coam n'alma as savanas
e matas americanas, tinha mais o tom baço, a desoladora taciturni-
dade, a parylizia , a inercia, a apparencia de cadaver que resalta m d a
quadra hyberna. Só quem viajou por noites assim travez do êrmo
selvagem, póde com pr ehender a expressão a zi aga que lhe é propria, os
sentimentos ineffa veis que elle desperta , expressão e sentimentos que
jámais a linguagem conseguiria reproduzir , são tão indescriptiveis!
Então cada folh a, cada filamento de relva , cada seixo, parecem
ter um segredo m edon ho a contar, u m cohicho de torva ameaça! Tudo
anima -se, tulo falla. O rochedo agita-se, caminha, rodeia-nos, e solta
uma gargalhada de infrene sarcasmo . A arvore tem o gesto ira-
cund o. O vendaval ruge uma blasph emia em cada lufada. E o via 0
j ante acha -se cercado de Calibans e pavorosas lamias. A noite, o
inverno e a solidão o amesquinham á face do m undo e á fac e de Deos.
Ao resfriamento do corpo ad una-se o r esfriamento do mo r al. O ho-
mem é um authomato. Nem o proprio indigena que ali nasceu, vive e
ha de morrer, não se izenta do t error supersticioso; elle mesmo crê
em máos genios que povoam o sertão. Elle m esmo é u m atomo que
transcende no pensamento, porém, fraco e pueril ante as ma r avilha:::
de Deos, nos seios da creação virgem e grandioza.
II.

A MARCHA.

De r epente na tréva sulcou uma scentelha.


Crer-se-ia q ue fôra ferida uma pederneira.
A f.-l.isca inoculou-se, tomou corpo, distendeu as fórmas e logo•
d epois u ma língua de fogo serpeou r apida , crepitou, m omentos lu-
t ando com o regêlo athm ospherico , e alfim uma lab ar eda fluctuou os
igneos pennachos.
Meia hora decorrida a ourela dos matos da Serra -Geral formava
uma faixa luminósa.
Então distinguia m-se vultos que cruzavam o ambito illuminado.
Acerquemo-nos.
Dois homens estão j un tos a uma das fogueiras . Tomavam m ate.
- 29 -

Um de contornos amplos e estatura regular, tinha a physionomia


franca , jovial e insinuativa do campeiro r io-grandense. Por sobre
a farda trazia o poncho de panno azul forrado de baetilha e gola de
velludo, que em outra seria agaloada, porém, n 'elle, attenta sua sim -
plicidade de costumes e maneiras, apenas r ematava por singelo tran-
celim . Todavia os a lamares eram de prata. E a razão é obvia: esse
metal na província não é a insígnia distinctiva de certas classes, tan t o
se o depara na cabeçada do lombilho do estancieiro, como na do ulti -
mo da peonada. Ricos e proletarios ostentam-n'o com garridice . A s
pratarias constituem o ponto de contacto entre uns e outros, o laço de
irmandade das di-fferentes jerarchias.
Cobriam-lhe a perna e o pé altas rossilhonas que, desfraldadas d e
sobre o joelho, vinham ·terminar em vigorosas chilenas tambem de
prata, armadas de farpantes e rufadeiras rozetas .
O outro personagem de porte elevado, porém robus to e esvelto ,
trazia uma capa traçada no omoplata. Seu rosto não enganava á pri-
meira vista. Parecia destacar d'uma etern illuminura, d 'essas que
passam intactas atravez dos seculos. Exuberava irradiações deslum -
brantes detoda a physionomia. Era como a personificação, a apotheó-
se viva do genio da liberdade.
- - Quando chegaremos? dizia o ultimo com pronunciado sotaque
italiano. Estou que quanto mais andar, melhor ser á. O inimigo n ã o
deve acordar antes que cheguemos. Pois em negocios de guerra , penso
como Napoleão, a rapidez, o imprevisto, que trazem sempre uns ar es
de milagre, fazem mais do que os mais bem disciplinados ex ercitas.
- De accordo, mas crê entonces que não vamos de carreira batid a ?
Amigo , vamos que nem chimarrões esfomeados atraz de carn eação.
- .. Não digb o contrario, caminhamos a marchas forçada s, bem o
bem· ,o vejo ; quem sabe, porém, os rodeios que fazemos, quan do po-
diamns encurtar a distancia indo em linha recta.
-- Ahi vem você com as suas rectas! Não conhece o vaqueano!
Guia guapo como elle, não o ha em toda a redondeza .
- Realmente; podemos ainda interrogal-o.
- E já . .. Vai ver como é aquillo.
Não se desmancha nem pelo diabo.
E acenou para um soldado de sentinella. O soldado achegou-se.
- - Chama-me de lá o vaqueano. E pela vigesima vez encheu a
cu,ia . O que me admira, ponderou, é como estou verdeando tão mal-
dieta caúna.
Moment os depois veio o moço reclamado .
- Não haverá caminho mais curto d 'aqui á Lag una?
O interrogado correspondeu com leve m eneio aff ir mativo da
cabeça.
Porque não tomaste entã o?
Posso ir.
E porque não foste desde o principio ?
Perderíamos m a is de m etade da gente '?
Como: •
Bugres, onças, rios invadeaveis, largos e correntezas, ta imbés·.
banhados . . .
- Que t em isto? Chegaremos em menos tempo.
- Ma is seis dias, se não houvesse estorvos e embromações ; quin-
ze ao contrario. ·
O primeiro interlocutor r efletiu e aventurou mais uma in te rro-
gação :
- Conheces bem o caminho ?
30 -
O semblante do moço passou por subita metamorphose. As feições
contrahiram-se e logo por interno esforço distenderam e ficaram im-·
mergidas n'um véo de funda melancolia. Foi ephemera convulsão.
- Se conhece!? replicou ... E entre dentes murmurou com voz
dolente: Antes nunca o conhecesse!
- Retira-te, estou satisfeito.
- Não te disse, Garibaldi! ? Quem lá tem a cabeça do vaqueano ?
Chuéga, é um livro! Até guarda de memoria as macegas e pedregu--
Ihos das estradas.
No sertão não ha picada pela qual elle não se metta.
- Do que elle não gosta muito, Canabarro, é de fallar . Dá se m-·
pre as respostas pelo meio.
- Venetas. E ' um tanto chucro . . . Tambe1n no mais é um
homem, como se deseja.
Os republicanos com as grandes victorias adquiridas em 1838 ,
mórmente a do Rio Pardo em 30 de Abril, onde reunidas as forças de
Neto , Canabarro, João Antonio da Silveira e Bento Manoel, fizeram·
retirar o exercito imperial commandado pelo general Sebastião Barreto
Pereira Pinto, quizeram estender a área dos combates, e para tal in-
tuito determinaram tomar a provincia de Santa Catharina.
Ahi vão elles, agora que os encontramos, executar o plano con --
cebido.
III.
AVENÇAL.

José de Avençal!
Quem então o não conheceu, não por semelhante nome , mas pelo
de Vaqueano, que vinha da profissão?
Era uma natureza admiravel, não tanto pelas amplas manifesta-
ções dos musculos de ferro, como pela pericia e intelligencia com que
guiava os exercitos da republica, e a lhaneza e bondade do caracter.
Tambem jámais houvera rio-grandense que como elle, conhecesse
a província. Não lhe escapava uma geira de terra, ainda mesmo per-
dida nos invios sertões ou em banhados de largo perimetro. Tinha a
memoria fiel até para as nugas locaes. Era uma verdadeira vocação .
Seu calendario de nomes abraçava do capão sumido na campina á res-
t inga de mato ou arroio de exíguos cabedaes. Constituia de per si o
mais exacto archivo topographico, um mappa vivo e pittoresco.
Sempre sorria , quando os companheiros, ante a floresta, em que
o taquaraçú crescia unido, atado ás arvores gigantes por fortes cipós
e e ntretecide de finas e mimosas enrediças, exclamavam:
E' impossível!
Quando paravam desanimados na presença dos alcantis da cordi-
lheira ou das barrancas de caudeloso ribeirão , e ainda repetiam a
phrase de desalento .
Sorria. E o sorriso que lhe rugava o labio , era a craveira de
sua grandeza e superioridade.
Nos misteres campeiros ninguem o excedia.
Iguaes os encontrava, melhores nunca. O homem que nas brenhas
brincava com o guará, o tigre e o tapir e os subjugava ao braço como
tenra creciuma sob a pressão do vento, que receio terio do potro indo-
mito e bravio e do boi chucro e de pontas aguçadas?
Nos manejos de guerra não ficava somenos. A lança de duas
braças de longura• vibrava o bote tremendo, o pistollão atravessado na
guaiáca poucas vezes errava o tiro na andorinha que cortava os ares.
Porém , quando expandia o rosto era ao ver a rodilha do laço revolu -
- 31 -
teiar no esp aço e logo como uma goiaba aerea d istender -se, enristar-se,
cingir o corpo da victima, retel-a no ímpeto da carreira, soffreal-a
nas contorsões da sanha, envencilhal-a em estreito amplexo e estran -
gulal-a quasi abatendo-a, vendo-a humilde render-lhe homenagem ; ou
quando, as bólas em punho, rodeiado de adversarios, ia derrubando
um per um, a golpes terríveis. Essa arma de nossos camponezes rea-
liza para o homem o que realizavam as ballistas e catapultas antigas
para l\S muralhas. Onde batem, fazem uma brecha e ha quasi sem-
pre uma agonia . Trazem só uma difficuldade, o saber esgrim al-as, e
esgrimil-as não é atiral-as que é de uso ordinario.
Para os companheiros de acampamento, Avençal, o vaqueano, ti-
nha um bom lote de defeitos imperdoaveis. Não fallava senão em
caso de extrema necessidade, não bebia, jogava menos e fumava pouco
ou n a da. Já se vê que devia forçosamente ser censurado, vivendo na
t urba soldadesca, gente que tem por vida o presente como um pen-
dulo oscillante entre a botija, amante de affagos e sonhos inexgotaveis,
e o baralho, distracção necessaria para espairecimento dos sentidos
nas horas vagas.
Porém, nem por isto era menos querido e admirado .
Suppunham-lhe todos uma historia negra , factos de tem pos idos,
cujas lagrimas ainda transpareciam apezar da distancia; porque o viam
geralmente recolhido em profundas e melancolicas scismas que amar-
g uravam-lhe a existencia. Não ria, sorria apenas, o que com bem
largos intervallos se dava .
Admittiam uma hypothese, e portanto variavel como todas as h y-
potheses ; mas a tinham como verdade á luz meridiana .
Teriam razão?
O philosopho feito a fórmas dialecticas poder ia de ba ld e pregar- .
lhes largo sermão sobre o attentado, pregaria no dezerto ; que elles,
seguindo o como instincto campeiro, faculdade de longa vista mora;
que lobriga na tréva do passado e nas nevoas do futuro , iriam teimo -
sos após sua ideia.
O pressentimento, faro do desconhecido que nos preoccupa, tor-
nado certeza por mysteriosa elaboração no espírito do homem da na-
tureza, elaboração em cujo processo entra mais o sentimento do qu e
e razão, os camaradas do vaqueano envidavam todos os meios para
Ja zel-o fallar sobre o pa:,;sado. Quando isto acontecia , viam-n' o estre-
mecer e barafustar de pronto. Frustaram-se as m~is bem combina-
das tentativas.
Nos combates era o delirio personnificado. Em certo dia um offi-
::ial que o vira lançar-6e na peleja, dissera admirado : Aquelle ho-
m em tem a febre da morte. No entretanto talvez tanta audacia cons-
tituísse um escudo im~rmeavel ao ferro e ás balas. Sabia sempre
Jncolume, ainda que pe2aroso.
O leitor póde pôr em duvida o que levamos dito, julé3ndo phan-
tastica creação, que esfrola o cerebro ardente de poeta.
~gana-se.
Os principaes traços caracteristicos da physionomia que esboça-
,1;nos de leve, são tão reaes, que os encontramos a cada passo em nossa
'í)rovincia, desde o posteiro até o senhor da esfancia, desde a exis-
uencia errante do tropeiro até a existencia sedentaria do guasqueiro o u
trançador de lonca . O que ha de mais é a côr do mysterio, a som-
bra da intensa melancolia que o destaca do typo generico . Não mais
,fo ~·.:ie a acção de um drama n efasto.
Iriêma.
(Continúa) .
A RELIGIÃO NAS SOCIEDADES MODERNAS
Os povos agitam-se inquietos na elaboração de novas instituições,
fundida no grande e indestructivel molde da Justiça.
Do direito de cada homem, tomado isoladamente, no meio da
creação, tal como elle se· achou na terra, tal como a observação e o
estudo de si proprio o tem revelado, parte-se para o direito de todos ,
para a organisação social.
O direito individual, isto é, o direito de cada homem, constitue a
base, o t ypo, a norma do direito social. '
O direito social, ou por outra, o conjunto do direito de todos
fez nascer o Estado, que não é outra cousa, senão a entidade, em
cujas mãos delegam todos os membros de uma nação o dever de velar
pela justiça, que· é a satisfação de todos os direitos, na orbita em que
cada um deve exercer-se sem prejudica-r o direito de outro.
O homem se constitue, pois, em pessoa, responsavel unicamente
pelas infracções aos direitos alheios.
. Toda vez que no exercício de seu direito elle não prejudica á
outrem, embora se prejudique á si proprio, o Estado, o zelador dos
direitos geraes, não deve, não pode intervir na acção individual.
A religião é a crença, sob diversas fórmas, mais ou menos phi-
losoficas, mais ou menos absurdas e idolatras, na existencia de Deus
e na immortalidade do nosso espírito.
Crer em uma religião ou não crer, é um direito individual tão
inalienavel, como inalienaveis são o pensamento e o fôro intimo , onde
nenhuma outra acção se exerce senão a do proprio individuo.
Em que casos póde o uso d'este direito individual offender o di-
reito collectivo?
Quando é exercido sobre a via publica com exhibições de culto,
ou quando perturba a tranquillidade á que todos os cidadãos tem di-
reito, por meio de dobres de sino, ou ruido de matracas, ou então
quando se procura violentar a consciencia individual, apoiando-se uma
seita nos privilegias que lhe concede o Estado .
E' j ustamente o caso em que estamos no Brazil.
Esta nação admitte como membros da communidade os sectario s
de qualquer religião, mas reconhece como sua, como . official, uma
unica , á qual subvenciona e confere attribuições civis .
E' possível que por effeito d a immigração, ou por effeito do irre-
sistível progresso da instrucção, a religião , dita do Estado, esteja em
um mol"ílento dado em consideravel minoria no espírito publico'.
No entanto, em virtude do p rivilegio, essa religião tem a prero-
gativa de passear pelas ruas publicas os seus ídolos, de perturbar o
transito, de obrigar os transeuntes á descubrir-se e a dar mostras de
respeito e veneração.
Se um israelita passa1..· de chapéo na cabeça por uma procissão
catholica, expõe-se á ser victima dos fanaticos , aos quaes deu o E stado
- 33-
o privilegio de percorrer as ruas de andores alçados e tochas acesas.
Se. amanhã occorrer ao . nosso bispo exhibir nas ruas da cidade
a ima gem . de Santo Ignacio de Loyola, á fim de que o beatíssimo .
Santo opere o milagre de desapparecerem em um incendio geral todos
os livros que formam o cabedal das sciencias, escapando u n icamente
a monita secreta da Companhia de Jesus; eu e grande numero de
cidadãos aue não têm a ventura de acreditar nas santidades de Santo
Ignacio, de vemos curvar o joelho e adora-lo?
Não seria um attentado do bispo e de seus confrades a o m eu
direito e ao de todos os cidadãos que consideram Ignacio de Loyola
um homem funesto á humanidade, e sem jus á n ossa consideração?
Se morre um homem rico, cuja familia é bastante ignorante para
acreditar que os dobres funebres lhe facilitarão a entrada do céo ,
ver-se-ha o inaudito espectaculo de gemerem os ares com os sons
plangentes de dez, vinte ou trinta sinos, tantos quantos se balançam
nas torres catholicas.
Esta familia não commette um grave attentado á liberdade de
uma população inteira, azoinada em toda parte, na rua, no domicilio ,
á meza da refeição, na a:rpena convivencia de m festim, ou no leito
an gustioso da enfermidade, pela repercussão d'esses lamentos do bron-
ze, postos por dinheiro, ao serviço da superst ição?
E o que se ha de dizer da odiosa extorção que nos arranca o
Estado para a religião que elle reconhece?
E' justo, não é antes uma especie de roubo, obrigar a pagar im-
postos, á titulo de applica-los ás necessidades do Estado e inverter
uma boa parte d'elles em congruas para uma corporação sacerdotal,
em alfaias, em edifício · enormes, improd uctivos, e nullos para o
progresso do espírito e para o acrescimo da riqueza, quando pagam
esses impostos todos os habitantes do nosso territorio, Si-.!jam quaes
forem suas crenças repgiosas?
Ahi está o Estad o mentindo á sua missão, const ituído em infractor
da justiça.
O direito manda que cada cidadão adore á Deus como lhe aprou -
ver, ou não o adore absolutamente.
Nas relações sociaes cada individuo é livre de procurar aquellas
que lhe convém, ou de conservar-se no is01amento.
Cidadãos ha , dos mais uteis, dos mais virtuosos, que são athêos, e
outros que são fanaticos. Não resulta d'hai offensa para o direito <ie
quem quer que seja.
Ultimamente foi eleito para uma das cadeiras vagas da academié1
de sciencias da França, o Sr. Lithé, que é athêo ; mas que não deixa
por isso de ser uma notabilidade que honra o set paiz.
Ha alguem em França prejudicado por não acreditar o Sr. Lithé
ua existencia de Deos?
A religião não é meio de governo .
O Estado não recorre á ella, em caso algum para a reparação dos
direitos offendidos por qualquer membro da communidade.
O dominio da religião é puramente espiritual. Sua acção , toda
m oral, não póde estender-se além da consciencia.
Ora a consciencia está fora do alcance das leis positivas de um
~stado. Ella se rege unicamente pelas leis moraes. Toda a acção do .
Estado sobre a consciencia é portanto uma infrac.ç ão do direito indi -
vidual, é uma oppressão.
No gráo de adiant~men to á que te mattingido os conhecii;nentos
h mrianos, na altura .á que tem subido a personalidade do 'homem,
uma religião imposta pelo . Estado, ainda mesmo indiretament;e,. co~o
lnst. Hist. - 3
- 34-

acontece · no · Brazil, é um anachronismo, é uma impertinencia do pas-


sado, é uma consideração banal á uma usança que se desarraiga dos
costumes ao attrito da civilisação.
E' imperecível e profunda a palavra de Castellar :
"O Estado não tem alma".

II.

Confinada a religião nos seus limites naturaes, os da consciencia ;


expurgada das ambições mundanas que a deturpam e que dão-lhe o
caracter de uma vasta companhia occupada em explorar a tolice hu-
mana nas suas varias manifestações, como a vaidade, a ignorancia, a
superstição, a credulidade, desmamada dos orçamentos do Estado e
dos indebitos privilegias que lhe dão ingerencia na vida civil dos
cidadãos, occorre naturalmente uma interrogação.
A religião é necessaria?
Acredito que sim.
No estudo psychologico do homem, a maioria dos grandes pensa-
dores que se tem votado a esse intrincado labor está de accordo em
rec?~hecer no nosso ser certas relações, que se ligam á uma aspiração
rehg10sa.
Verificamos em nós em primeiro lugar a r elaçã o de perfectibili-
dade. Qual o homem, no u so regular de suas faculdades, que não se
empenha constantemente por elevar-se, por augmentar a sua força,
o seu poder? Os mais frisantes exemplos d'essa aspiração de nossa
natureza são a inclinação irresistível dos espíritos superiores pela glo-
ria, pela nomeada, pela distincção. O que instiga o sabio a lucubrar
durante uma vida inteira na investigação das leis da natureza ?
D'onde vem que, salvas mui limitadas excepções, a grande massa
do genero humano, sem distincção de ignorantes, illustrados abraça . a
crença da sobrevivencia do nosso espírito, senão d'esse ardente em-
penho de perfeição, que nos concita em cada momento da vida?
As ideias que formamos do justo, do verdadeiro, do bom, do bello,
não são outr as tantas relações que exigem um terceiro termo para
completar se, para explicar a existencia d'esses phenomenos no nosso
espírito?
Porque é o homem o unico no seio immenso da creação com as
prerogativas de pensar, julgar, comparar, com o sentimento moral e
com a consciencia de r esponsabilidade, dotado com o instrumento da
linguagem?
Não é elle o mais perfeito termo d'essa progressão de seres que
começa no imperceptível infusorio e termina nelle?
E se ha essa innumeravel gradação nas incarnações da vida , e
se o homem tão superior aos seres que conhece, não se julga, e ao
con trario sente-se em si proprio que não está completo, que acima
da sua organisação concebe organisações mais perfeitas, se além da
esphera que habitamos, ha outras que obedecem ás mesmas leis na-
turaes que r egem a nossa, não é claro, não basta a nossa unica im-
perfeita razão para demonstrar que a escala da creação não se acaba
em nós, mas que se continúa atravez do espaço nessas outras obras da
creação que devassamos, mas que estão á acima do nosso poder?
Forçosamente o nosso pensamento chega á concepção de uma
força omnisciente, omnipotente, omnimona, incommensuravel, indifi-
11ivel, superior ás formulas de nossa expressão, inaveriguavel para os
- 35-
fracos meios do nosso criterio, força de que todas as outras emanam
e dependem.
Eis o Deus da razão humana, como elle se apresenta naturalmen-
te, como o podemos conjecturar de boa fé, libertados de prejuízos,
de preoccupações, de tradições, como elle. é compatível com as as-
pirações nobres de nosso ser.
Temos na nossa natureza impulsos que nos elevam , e impulsos
que nos degradam. Os primeiros incontestavelmente são mais pode-
r osos e quanto mais aperfeiçoado é o homem, mais imperio exercem
sobre elle. Os impulsos máos que tambem nos arrastam são o con-
traste n ecessario para a pratica do b em, p ara a l uta do aperfeiçoa-
mento, o qual é a lei suprêma da nossa existencia nesta planeta que
habitamos.
O homem é pois um facto , na ordem da creação universal. A ana-
l yse d 'este facto , o estudo das leis que o regem nos leva á concepção
do principio , da synthese: o principio , a synthese é o Universo , o
conjucto de toda a Creação, em cujo complexo envolvemos a ideia
de De us.
O facto conhecemos, está ao nosso alcance. O principio está supe-
rior á nós, escapa á noss<1 acção, aos instru mentos incompletos do
nosso · poder.
O que nos cabe fazer? E ' pautar a v ida p or essas leis que senti-
mos em nós, as quaes são necessariamente as relações harmonicas que
existem entre a parte e todo .
A justiça, a- igualdade , a liberdade, o direito , a r esponsabilidade,
a dignidade, o trabalho são leis secundarias que completam a lei orga-
nica - a lei do aperfeiçoamento. Sigamos essas leis que se revelam
em nós indestructiveis e immanentes.
Obedecendo á ellas, cumprimos a missão que nos incumbe na
existencia actual, aquella de que estamos de posse, aquella de que
nos reconhecemos responsaveis.
Cumprindo essas leis satisfazemos o sentimento religioso, a aspi-
ração que nos leva a reportar á um Ser Superior tudo o que pra-
ticamos de bom, de util, de grande.
Mas se o nosso espírito tende a ultra passar as raias da existencia
actual, se levado p ela lei d e perfeição elle sente a necessidade de
dar fórmas comprehensiveis á existencia futura , com cuja ideia se
conforta na luta presente, concebamos um ideal dentro das inducções
logicas da nossa mesma natureza e compatível com o que possamos
aspirar de mais elevado e de mais sublime.
Admittamos a existencia progressiva , a transmigração do nosso
espirito atravez dos mundos innumeraveis que povoam o espaço, su-
bindo na escala da p erfeição á medida que se purificar no crysol
da vida . Acreditemos que as nossas boas obras contribuirão para al-
cançar um termo menos rude na progressão vital.
Adoremos á um Deus, que não nos queira nem humildes, n em
orgulhosos; porém dignos, confiantes e sobretudo gratos á superio-
ridade que nos concedeu sobre os outros animaes, sobre os quaes
exercemos o nosso dominio .
Concebamo-lo tão grande que não o possamos descrever ; 11as
acreditemos que elle nos destina ao goso ineffavel da sua compre-
hensão e da sua presença. Sirvamo-lo com a nossa virtude , mas não
com o nosso temor. Não consideremos orgulho a sciencia, ao con-
trario procuremos nas luzes com que ella nos aclara aproximar-nos
da ·grandeza de Deus pelo estudo de suas obras.
A sciencia eleva o seu pedestal, a ignorancia o rebaixa.
- 36-
A religião assim concebida é uma necessidade para a sociedad e
humana, uma parte da vida m oral que não se apagará nunca d a
·consciencia.
A civilisação actual já não tem outra, nem poderia ter sem ma -
nifes ta contradicção com os dictames da r azão livre e emancipada .
F. Cunha .

(Continúa ).
POESIAS
AO MARQUEZ DO HERV AL.

Escuta! Quando outr'ora a voz da fama,


Transpondo o · espaço de interpostos m ares,
Vinha aqui .segredar nos patrios lares,
Qual eras, entre o fer o combater;
Nós, · assombrados, á essa voz dizíamos :
Não póde tanto arr ojo . ser humano!
A' luta volve e vê se d'um engano,
- Echo mentido vens á · patria ser .
Corr iam d ias e essa voz v oltava :
- Oh não; n ã o nie enganei, na pugna · ingente.
"Vi-lhe, qual raio, o gladio refulgente
"Abr ir caminho ás turbas marciaes:
"E como : à rocha entre escarceos horrisonos,
"Desdenha a furia do revolto pego; .
"Eu mesma o vi, sublime de socego,
"Sorrir _ante as .·descargas infernaes!
"Era sublime aquelle horror! De um lado,
"Espessa nuvem para os céos se erguia. ,..... ,.
"Aqui, áléni, o bôjo se lhe abria ,
"De si jorrando rapidos clarões.
"Depois . . . ouvià-se um · bramir· medonho;
"E a terra, a mesma terra, se abalava,
"Era a morte sinistra que passava,
"Cuspida por :oinnumeros canhões!
" E Osorio cavalgan do o seu ginete ,
"Frente a frente entestando co'a metrálha ,
"Olhava attento as phases da batalha
"Como se a morte n ã o pairasse ali!
"Se o vísseis tã o sereno, julgaríeis
"Que fitava o brincar de mil cr eanças,
"Quando o porvir talvez, as esperanças
"Tinha da patria a depender de si!
"Era sublime aquelle horror! A s filas
"Pelo ferreo graniso fustigadas,
"Já rotas, vacillantes, rareadas,
"Iam de mortos alastrando o chão!
"Membros dispersos gotejando sangue!
38 -

"Corceis sem dono a vaguear perdidos!


"Lamentos com mil pragas confundidos '
"O reino em fim da tôrva assolação!

"Oh ! mas de subito o infernal concerto ,


''Acorda aos echos do clarim vibrante;
"E Osorio diz á soldadesca : - avante! -
" F ôra o toque o signal de arremetter."
"E como o raio que as montanhas fend e , ·
" Ou como a lava que um volcão vomita ;
"Ell e no turbilhão se precipita!
" Queria face a face a morte ver !

"Porém á voz que as almas elec trisa :


" - Avante! - o exercito em clamor murmura!
"E o rasto ingente desse heróe procura,
"Como quem dos triumphos vae senhor'
"Fascinação esplendida! A victoria
'Aos pés do seu corcel manietada :
· Onde me levas? . pergunta-lhe as:sm.. ada :
'- Irás comigo ond e o meu gladio fôr . -

"E foi como captiva que não póde,


"Do ·captiveiro espedaçar os ferros!
"Depois ouviu-se a retinir nos cerros,
" Nuncio de gloria , uma canto marcial.
"Era que nos reductos inimigos,
"Victor iosa a hoste brasileira,
"J á desfraldava a bicolor bandeira ,
"Aos crebr os sons do h ymno nacional!

E r a assim que na patria , a voz da fama ,


P e la tuba que algema o esquecimento,
Te e rguia pouco a pouco o monumento ,
Que teu nome ao futuro vae unir.
Como Bayard, como os heróes de Home t·o.
Ha de teu nome, na brasilea historia.
Passar aureolado pela gloria .
A 's gerações por vir!

Manoel Gonçalves Junior.


- 39 -

A MOCIDADE
Recitada na 4.ª Sessão Anniversaria do Partllenon Litei-ario.

Oh! moc,i dade, eia, , avante! Ide colher esses louros


Que as glorias p'ra vós são grandes ; Na lide das epopéas,
Erguei aligero o vôo, Para mostrar vossos feitos
Como o condor lá dos Andes. No combate das idéas.
E n'um voar cambiant~, Abri o peito á ventura ,
Alcançareis a victoria Com mais nobre enthusiasmo ;
Para escreverdes na historia Erguei-vos d'esse marasmo
Uma epopéa brilhan te! Que além o porvir fulgura .
Athléta sois do progresso Erguei, er guei vossos cantos
Co'o sôpro da inspiração Com celeste inspiração,
Podereis tocar a méta Sêde propheta dos povos
Na terra da promissão. Lidadores da nação!
Então com almo fulgor Um dia, talvez, bem cedo .. .
Sentareis n'esse docel, Direis aos vossos vindouros :
Tendo na fron te o laurel, · - Aqui colhemos os louros
Que ·sy mbolisa o labor. Como Alvares de Azevedo!
Que importa negros reveses Olhai a senda brilhan :~
Acompanhem vossa sorte, Que traçou Gonçalve.; Dias!
Se rutilante scintilla E vêdc Abreu inspirado
A estrella de vosso norte ?! . . . No leito das agonias!
Tendes· o genib : a sorrir . . . O corpo a terra consome,
A crença tendes na mente .. . Ambos morreram , é certo!
E o que vos falta sóm ente Mas q'importa , se coberto
Senão a senda seguir?! . . . De laureas têem o renome.
Segui ousados romeiros Assim mocidade, avante!
Por sobre laureas a flores! Que os feitos p'ra vós são grandes ;
Topetai co'a immensidade Erguei aligero o vôo
Como sublimes condores. Como o condor lá dos Andes .
E' sacrosanto este estadio! E n 'um voar cambiante
Seja a tribuna e a imprensa Alcançareis a victoria,
Vossa missão, vossa crença Para escreverdes na historia
O vosso eterno paladio. - Uma epopéa brilhante.
,,,.,,,..... . .... ,.,,~ .
,... ... , .(_ .,._ ...
~ ~
Aurusto Rodrigues Totta.
CHRONICA

Depois de uma ausencia de dous annos e meio, reapparece hoje


a Revista Mensal do Parthenon Litterario. Obrigada então por moti-
vos poderosos ao affa:stamento da liça da publicidade, ella surge agora,
mais cheia de vida, como a phenix de Homero d'entre as cinzas.
· · ·E · nem podia ser ao contrar io, A mocidade estudiosa riessa in-
termittencia não depôz a penna, - a arma mais convincente d'este
~eculo. Differente dos soldados de Annibal, a mocidade nas horas do
descanso, retirada embora _dos campos das lutas, exercitava-se com
affanoso ardor esperando a cada momento o signal do combate. Elle
soou! E os -velhos batalhadores não desampararam os seus antigos pos-
tos de honra. Eil~os mais dextros e animados, enr iquecendo com . n o-
vos e mais brilhantes commettimentos as paginas da Revistà: E. se
ella não servir de modelo, se em si não tiver rnerito algum, sirvà · ao
menos de incentivo á lidadores mais experimentados. ·
· ~ Honra-nos ;:i prim eir a pagina d'esta Revista, o busto venerando
de Felipe Neri. E' u m a divida sagrada que a mocidade do Parthenon
L itterario paga áquelle illustre finado. O trab alho sahi_u da lithogr a-
phia do Sr. · Wiedmann e faz h onra ao habil artista Brúggemann, que
foi o encarregado de sua execução. Quem não conheceu Felipe Ner i
senão de tradiccão, quem não o conheceu na intima convivencia, co-
nheça ao menos· a sua imagem. O retrato está perfeito. b Sr. Brúg-
gemann correu a mão sobre a pedra com talento e fidelidade; . talvez
mesmo se inspirasse em prese1)ça d'aquella physionomia ;franca, sym-
pathica . e insinuativa que inexperadamente a morte n_os l_evou,
- Ha tres mezes que a empresa Ismenia funcciona no S. Pedro .
O theatro no inverno é uma necessidade. Terra .pequena, sem outros
.p assatempos quem não vai ani, com a alegria n'alrna, es·q uecer a mo-
notonia e tristeza d'essas noites tão longas?.! Aben çoado, pois . o. dia
ell'._l q ue a Sr.ª Ismeia viu a sultana do Sut, á banhar-se nas aguas
ser enas do melancolico G uayba . A companhia resente-se .de pessoal .
A' excepção da ernpresaria e dos actores Motta e Araujo e . mais dous
ou trE;!S, o resto n em vae apenas mencionar. O repertório dos , dramas
é em sua gener alidq,de o · mesmo das emprezas que têm trabalhado aqui
nestes ultimos· cinco annos. O estrangeiro que tiver assistido todas
as representações da companhia dirá com . sobejas rasões, que o Brazil
não tem theatro seu. No elenco dos dr'amas não ha um só de author
bra.s ileiro. Será . porque Íião os haja? Não. O theatro nacional tem
dramas de subido valor , de incontestavel merito, corno a Historia de
uma moça rica, Omphalia, As azas de um anjo, Luxo e vaidade e
muitos outros. O mal todo já vem de longe. E' que o nosso povo ha-
bituou-se á receber tudo , o que traz em si o rotulo do estrangeiro.
E' um mal immenso, e é necessario, portanto, que aquelles que se
interessam pelo engrandecimen to da litteratura patr ia, busquem exter -
m inal-o de uma vez. Não julguem que pedim os o ostracismo das obras
de subido merecim ento, vindas do estrangeiro, não! O que queremos
é q ue as pr oducções nacionaes de rea l valor, sejam levadas ahi ta m-
bem á scena e não estejam condemn adas ao esquecimento.
Achylles Porto-Alegre.
REVISTA ME NSA L
DA

SOCIEDADK

PARTE N O N LITER A R I O

2.ª Série - Ag·osto d e 1872 - N .0 2

TYP. DA REFORMA - RUA GENERAL A N DRAD E NEVES N .0 51


PôRTO ALEGRE
1 87 2
COMMISSAO DE REDACÇÃO.

Vasco de Araujo e Silva .


Appolinario Porto-Alegre .
José Bernardino dos Santos.
Aurelio Viríssimo de Bitten court.
Francisco J . de Sá Brito.
Manoel Gonçalves Junior.

Franscico J . de Sá Br ito .

DIRECTORES.

Achilles Porto-Alegre.
Hilario Ribeiro d' Andrade e Silva.
AFFONSO LUIZ MARQUES
AFFONSO LUIZ MARQUES (*)
"Não foi um nome que se apagou, uma
gota de menos no oceano da vida, um cor-
po frio n 'um leito de cal; - foi um busto
que o Brasil perdeu para a galeria das
grandes intelligencias".

Dr. Felix da Cunha.

Paguemos-lhe o ultimo tributo trasladando o seu precioso retrato


para esta galeria mais dos mortos· que dos vivos.
Chegou a sua vez, assim aprouve á Providencia e ahi tendes o
busto de Affonso Marques.
Orvalhae-o de lagrimas vós todos que conhecestes a · sua imagem
insinuante e sympatica; pagae em prantos e saudades a memoria
eterna d'essa creatura sublime tão em verdes annos tombada no leito
mortuario.
Pranteemos a sua morte prematura, porque não perdemos só um
amigo e um irmão, perdeu o paiz um vulto talhad o para os mais
grandiosos e arrojados commettimentos do espirito humano!
Pranteemos a sua auzencia irreparavel, porque não foi só a tri-
buna do Parthenon que perdeu um grande orador, a tribuna brasi-
leira perdeu n'elle um Mirabeau ou um Massilon!
Quem não pasmou diante da eloquencia de Affonso Marques, se
elle possuia o condão de incantar os auditorios? . . . Quando levanta-
va-se para fallar, calmo e magestoso, o seu gesto impunha silencio, a
sua palavra irrompendo caudal como as lavas de um volcão era uma
centelha electrica que fazia vibrar uma por uma todas as fibras da
alma!
Era na tribuna que mais se manifestava a sua imaginação arro-
jada e opulenta. T inha momentos admiraveis, assombrosos; momen-
tos em que a phrase vehemente e inflammada tocava as eminen cias
do sublime!
E m orrer tão cedo !
Morrer quando o sol dos triumphos doirava-lhe a estrada do fu-
turo e o marco final ain da estava bem longe!

(*) Acha -se incumbido de escrever a biographia do nosso cho-


rado amigo, o Sr. Appolinario Porto-Alegre. Breve começar emos a
publicai-a .
- 46

Morrer bradando como Chénier : Pourtant, j'avais que lq uer chosc


lá! . . .
O dia 9 de Agosto deve ser uma data bem dolorosa para a pro-
v incia. Dia aziago, em que o povo da capital deb ruçou a fronte con -
tr istada e as lagrimas cavaram fundo sulco em todas as faces!
D ia lutuoso, em que não houve coração que se não commovesse
d iante de tamanha calamidade!
A propria natureza parecia recolhida quando o funebre pres-
tito rendia a derradeira homenagem áquella existencia infausta. A
natur eza mesma soluçava talvez uma nenia, o céo tin h a um sorriso
melancolico e tr iste e as brisas que passavam nos seus cabellos cicia -
vam um gemido agonisante!
Pobre Affonso !
Não ha desafogo , nem balsamo que s uavise o golpe profundo que
a mão selvagem da fatalidade desferiu em tantos peitos.
Parece ainda um sonho, dir-se-hia uma mentira que não lhe
escutemos mais a voz sympathica, não lhe apertemos mais a mão leal ,
não lhe vejamos a quelle riso sempre franco e affectuoso!
Ai! mas a verdade surge atrophiando-nos o espírito , a verdade
acerca-se de nós, en luta-nos e os dobres plangentes do enterro reper-
c utem em cada dia que avançamos!
Ha momentos de viva dôr e inconsolaveis amarguras: - E' quan-
do o genio na ante-manhã da vida decae do pedestal da gloria no
fundo do t umulo, e a front e que relampeava fagulhas sideraes pende
gelida e macilenta!
Ah! Deus _de misericordia! Porque entre a morte e elle não es-
la vas tu para quebrar a foice inexoravel que de via aniquilar uma
existencia tão preciosa?
Por tua face divina não se voltou contristada rio momento , em
q ue vinte e quatro primaveras iam desfolhar-se no caminho poeirento
do cemiterio?
Porque não enfreiaste o corcel medonho da morte , se na carereira
desatinada ia esma gar uma cabeça, que valia um resplendor ?
Porque não amparaste a queda de um anjo, que desatava as pan-
da s azas pelos plainos azulados do amor, dedilhando em lyra d 'oiro os
canticos un gidos de esperança e mocidade?
P orqu e não detiveste a lufada iracunda q ue foi desabar o tecto
s uavíssimo , onde só moravam mãi e filho : Ella - amphora do mais
e nternecido amor ; elle - a sua unica alegria , o seu unico amparo e
conforto, o cofre dos terníssimos anhelos? !
Porque não paraste a nuvem negra da eternidade, queôevia
obumbrar o astro fulgido a sobrenadar em luzes no v estíbulo do Pan -
theon brasileiro ? !

Mas porque chorai-o ?


Não é por ventura esta vida o começo de uma outra que nos ap-
proxima mais de Deus? S im.
E' além-tumulo o paraizo, onde se estanca o suor do sublime can -
saço e a fronte entristecida na terr a sacode a corôa d'espinhos par a
cingir uma a uréola.
E' no céo que começa a j ustiça de Deus par a ao depois a injus-
tiça dos homens se transformar em gr atidão , o esq uecim ento em culto,
o humilde epitaphio em monumento, um n ome n 'essas apotheoses que
perpassam de geração em geração na aza dos seculos!
- 47 -
Fadarios lutuosos os d 'aquelles que trazem do berço uma missão
providencial.
Mal transpõem o lumiar do mundo sentem as tristezas do exilado
o coração terníssimo recolhe-se para o sacrario das resignações ; o
espírito sobre-humano invoca a Providencia nos instantes de supre-
ma luta e provações.
Descansaste pois, Affonso!
A tua alma esvoaçou para o infinito, o teu espírito desprendeu-
se da materia e remontou ás espheras empyreas!
Tua existencia foi curta, porém tua memoria será infinda, por-
que na tua ephemera peregrinação sobre este val de lagrimas dei-
xaste um rasto luminoso como esses meteoros brilhantes que espada-
nam catadupas de luzes.
A tua intelligencia - ha de ser o teu monumento!
O teu nome - a nossa saudade!
Porto Alegre, Agosto de 1872.
Hilario Ribeiro.
A RELIGIÃO NAS SOCIEDADES MODERNAS
III.

Ha dezenove seculos que em um canto obscuro do imperio ro-


ma no nasceu uma religião; que avassalou mais tarde o grande collosso ,
sobreviveu á elle e existe ainda hoje.
Essa r eligião é o Christianismo .
Não cabe nos limites deste escript o uma analyse sincera e desa-
paixonada dos bens e dos males que d'essa crença religiosa vieram
á civilisação actual.
Foi moda por muito tem po attribuir ao Christianismo o progr esso ,
de que hoje desfructam os p ovos cultos. Alguns rapsodistas ainda
consideram um passo obrigado decantar o sacrifício do Golgotha e
preconisar a redempção que d'ahi veio á m isera humanidade. Esses
elogios interessados, ingenuos ou nescios esquecem de dizer-nos cla-
ramente como a cou sa se fez; pois dos observadores sinceros e des-
pr eocupados apparece o Christianismo, tal como tem sido interpre-
tado nos dezenove seculos de sua existencia, como o inimigo encarni-
çado e tenaz dos agentes d 'este mesmo progr esso.
A humanidade não deve y Igreja o menor passo na s sciencias, nas
artes. na r iqu eza publica e n o. desenvolvimento da força social . Ao
contrario ella se tem esfor çado, por todos os m eios, crueis ou astutos .
em perpetuar a ignorancia, a m iseria , a dependencia e a escravidão
dos seus sectarios.
Na ordem scientifica a Igreja não admitte a razão livre. porque
submette o pensamento e a consciencia dos seus fiei s á autoridade
infallivel de seu chefe supr emo.
Na ordem moral não ha outros impulsos de nossa alma · é obe-
decer que não sejam os consagrados nos livros divinos, chamados
Evangelhos.
Na ordem social ella condemna a liberdade e a igu aldade, defen-
dendo as castas e os privilegios, á exemplo da sua organisação hie-
r arch ica e despotica.
O justo, o verdadeiro , o bello, esses ideaes indeleveis do nosso
ser não devem, segundo a Igre ja, ter outra irradiação senão a que
marcar o circulo da s ua disciplina .
Dentro d 'esta estructura de ferro con teve por muito tempo a
Igreja a humanidade, esforçando-se por afogar em ondas de sangu e
as irrupções do espirito. Milhões de victimas, milhões de riquezas
malbaratou ella no seu insensa to empenho. E ao cabo d'essa esteir a
pavorosa de ruínas, de desolações, de horrores sem conta e sem qua-
lificação, achou-se ven cida e condemnada , esquecida á um lado do

(" ) Vide o l.º n . da REVISTA .


- 49 -
cam inho, como um obstaculo outr'ora perigoso e intransferivel, hoj e
im potente para deter a marcha da human idade.
O Christian ismo, desde que conseguia apc:1.iar -se n o braço do
Estado, n ão tem tido outr a missão senão embrutecer e subjugar os
p ovos em seu proveito e no dos potentados á quem se alliou.
Ahi está a h istor ia para attestar que essa seita r eligiosa não tem
sido outr a cousa senão uma theocracia audaz, lu tando de força, de
astucia, e de cr imes com os reis, para absorver-lhes o poder e consti-
tuir-se uma potencia universal, ou qu ando este sonho de ambição se
distanciava no h orisonte de suas esperanças submetter-se á esses mes-
mos potentados e partilhar com elles o despojo dos povos, aos quaes
ella chama com muita propriedade - o rebanho, as ovelhas da Igreja.
A enorm idade dos seus crimes e infamias tendo attingido ao que
ha de mais inaudito, uma grande parte da Europa levantou-se fremente
de indignação e de coler a e proclamou a reforma .
R eformou-se o Christianismo, depois de longas e encarniçadas
guerras, escapando ao dominio de Roma quasi todos os povos de
or igem germanica e slava.
Os povos da raça latina ainda gemem sob esse jugo degradante ,
prestes comtudo á uma emancipação completa, que não tardará muito .
A reforma melhorou consideravelmente a condição dos .povos que
a adoptaram. Confundido o chefe da religião com o chefe da nação,
deixou desde logo aquella de ser um interesse antagonico e hostil á
sociedade civil. Os soberanos, chefes ao mesmo tempo do corpo sacer-
dotal de seus estados, não tiveram desde logo obstaculos a vencer,
pois que os ministros do culto passaram a ser funccionarios, unicamen-
te dependentes do rei e por conseguinte adstrictos á sua influencia.
Tornaram-se, como era natural, instrumentos do despotismo civil ou
temporal; mas alliviaram os povos do consideravel peso do fanatismo
e de mil abusões e patranhas, abrindo assim novas valvulas ao espírito
de exame. Elevou-se o nível moral d'esses povos. E v emos alguns
d'elles, a Suissa e os Estados-Unidos regendo-se pela fórma republicana ,
avançarem rapidamente em grandeza e força social; outros como a
Inglaterra, em poder mercantil; a Allemanha unindo-se e engrande -
cendo-se: a Suecia, a Noruega, a Dinamarca, a Hollanda gosando de
feliz tranquillidade pelo trabalho intelligente, pela tolerancia, e pela
ausencia da compressão religiosa.
Ao passo que os povos protestantes tomam affoutamente a dian-
teira ela civilisação, elevando a personalidade humana e preparando-a
para os seus destinos inevitaveis, os povos latinos ainda se debatem
contra os botes da companhia romana, que explora a nossa ignorancia
e a nossa tolice.
Lá estão esses exploradores na Hespanha, bestialisada e arruinada
por elles, de escopeta ao hombro lutando pela santa causa do catho-
licismo.
No Brazil ainda não ha muito abrimos o cofre publico para dar á
cada bispo em viagem para o Concilio vint e contos de réis, justa-
mente como se fornecessemos a r mas á um inimigo que só tem em
vistas combater-nos.
A França, entregue, garro teada e amarrada ao bando negr o d'esses
abutres pelo idiota de Sedan, esteve á dois passos de sua completa
ruína, da qual felizmente a ha de salvar o seu genio immortal e a
grande missão de pr ogresso qu e se incuba em seus seios fecundos.
No entanto o christianismo reformado qu e vale mais sem duvida
do que o christianismo catholico, desaba com o este em ruina por todos
os lados.
Hist. Hist. - 4
- 50 -
Em vão levantam-se catholicos-liberaes e protestantes-liberaes, pro-
curando na communhão dos esforços amparar a vascillante :fabrica,
q ue nos legou a ignorancia e a escravidão dos nossos paes.
Em vão pensam elles, abrindo mão da divindade do Christo, crear
um christianismo genuino, como ainda não foi comprehendido, nem
t>raticada; pois que o chr istianismo da tradicção é um composto de
invenções, absurdos e incongruencias, que não resiste á mais ligeira
critica. Em vão o tentam. Para a humanidade livre e dignificada não
ha outra religião possivel, senão aquella que nasceu com o primeiro
homem :
A religião do direito e do dever, fundada na justiça.
O serviço unico que podemos e devemos prestar ao Ser invisil.-~
e indiscriptivel, que concebemos por inducção das leis que regem v
Universo, é seguir a lei da perfeição, ou do progresso, que nos impelle
:fatal e irresistivelmente para o desenvolvimento da nossa razão e das
nossas forças, como meios de realisar o nosso destino que, seja qual
:fôr, nos impelle para o justo, para o bom, para · o verdadeiro.
Esta religião não necessita de intermediarios entre nós e a divin°
dade , nem de futeis e apparatosas pompas. Cada ente humano tem na
sua razão o laço que o liga á Deus, na sua consciencia um altar para
amal-o, na personalidade a responsabilidade moral, correctivo para o
uso de sua liberdade.
Um Deus assim concebido, assim comprehendido e amado é bas-
tante grande e sublime para não se amesquinhar com os . progressos da
creatura racíonal, por mais surprehendentes que elles pareçam, por
mais alto que pretendam elevar-se.
Não ha receio de que este Deus venha, como o do catholicismo,
por meio do seu vigario e de seus livros-santos, condemnar a civilisa-
ção, a liberdade, a sciencia.
Para este Deus não ha inferno, . nem purgatorio, nem demonios,
nem penas eternas, nem escolhidos, nem reprovados, nem canones,
nem extorções de dinheiro em seu nome, nem Igrejas, nem Papa in-
fallivel, nem gordos bispos, nem rubicundos e ociosos frades, nem
revelação, nem dogmas, nem milagres, nem mysterios, nem lithurgia.
O Deus da humanidade tem por séde a obra immensa do Uni-
verso e por sacerdote, na terr a , a mais perfeita de suas creações o
- homem.
No dia em que esta fôr a religião, unica admissivel, como unica
racional, a humanidade ser á feliz, porque será livre .

Francisco Cunha.
TANCREDO
Offerecido ao m eu amigo F. de Sá Brito.

I.

Tancredo era um sonhador . . . Sua fronte de moreno pallido res-


cendia os perfumes de vinte primaveras . . .
Vinte primaveras placidas e serenas, como as andinas do regato,
que correm sobre o tapete esmeraldino da varzea.
Sua vida e mocidade não tinham sentido os ardores das caniculas,
nem o gelo dos invernos, o palco de sua existencia decorrera no lar
domestico, onde, se não fruia os gozos da fortuna que era nenhuma,
possuía abundancia e opulencia de carinhos e affetos que eram muitos.
Tancredo não é um typo de romance, nem o heróe de uma len-
da . . . Não, não é.
O seu passado é um drama ,simples, sem enredo, que resume-se
em tres actos: infancia de sorrizos, adolescencia de esperanças, e mo-
cidade d~ crenças.
S ua infancia é como todas as infancias, com riscos de criança e
lagrimas de menino . ..
Assim são todos, choram por pezares que não sentem e riem por
alegrias que não conhecem.
A nuvem da melancolia n 'uma fronte infantil tem azas de pha-
lena ; . .. vôa aqui, pouza ali . . . e assim vive.
Oh! abençoada sejas tu, _quadra da infancia, que não sabes dis-
tinguir pezares dos jubilos, nem riscos das lagrimas . . .
Abençpada sejas tu, que trazes sem pre n os labios o ramo de
oliva! . . . A adolescencia foi linda , ainda mesmo com um baptismo de
desgra ça - a orphandade paterna.
Tancredo tinha treze annos quando ficou orphão de carinhos pa-
ternaes, era muito jovem para aquilatar a perda sensível que soffria,
mas chorou , e chorou muito, foi na adolescencia que derramou as
primeiras lagrimas ungidas de l uto e dôr . ..
Foi a primeira vez que em seu coração brotaram saudades e goivos.
Mas os b eijos maternos, collados ás palpebras de Tan credo enxu-
gavam-lhe os olhos, o collo maternal, ninho sempre quente e hospi-
taleiro resguardava a fronte d'essa flôr - em botão - tocada pela
primeira rajada da · terppestade do infortunio .
A mulher-mãi sabe criar esses prodígios.
A mulher é mais que sublime, quando orna-lhe a fronte a au r éola
da maternidade, - é divina ; tem seus labios mais aromas que as
f lores, sua voz mais harmonias que a harpa eolia, seu braço é bordão
a ugusto que desvia o romeiro incauto dos precipícios da jornada e en-
sina o marco da peregrinação.
- 52 -

lVIãi -- que magia encerra essa palavra, que faz da moça frívola
um ente archanjo?
Foi uma mãi que abriu á adolescencia de Tancredo bafejada com
o halito do infortunio - um mundo de esperanras.
Bt'mdicta sejas tu mulher-mãi ...
Quanto á sua mocidade . nós minha lei tora , vamos caminhar pa s!;O
á passo com ella.

II.

Tancredo tinha uma alma altiva; não era essa altivez enfa tuada
q ue é sempre filha da ignorancia, mas sim -a altivez q ue nobiiita e
que é irmã gemea do caracter independente.
E' possível, que moço e intelligen te, e agradando , (permittam- n s
a palavra da moda), Tancredo alcançasse uma d 'essas posições que
sei;npre conseguem os homens, cujo merito é rastejarem nos salões
entapetados, servindo d e capacho nos patamares das escada s palaciaes.
E' possível . . . mas elle preferira uma posição modesta conquis·
tada com o merecimento e o amor do trabalho á uma posicão elevad a
comprada com o opprobio e o aviltamento.
Jámais sua fronte juvenil abaixava-se para pedir, era pobre mas
não julgava a pobreza incompatível com a honra ; pertencia é essa
classe de homens que o mundo vulgar apon ta como orgulhosos, retem-
perados no cadinho do trabalho, que ensina a religião do dever, d'esses
que passam obscuros por entre as multidões, mas que têm e conser -
vam a realeza de seu valor perante Deus que é a - consciencia.
Era um typo original para o mundo positivista por calculo, que
prefere os pomposos trens e venera as fitas e os brazões, repellindo s,:
estamenhas que occultam a maioria das vezes thesouros de sentimentos .
A época que passa, não tem por divisa - honra e trabalho.
O tempo consumidor eterno, apaga da memoria i;:,orJular os ve-
lhos costumes que não podem alliar-se com o dinheiro e a moda .
O seculo que marcha é do dinheiro e do fraq ue parisiense.
A mão do dandy metti da em luva de p ellica, não va le a mão cal-
losa do operario no lidar da officina.
A blusa do artista é bastante grosseira para hom brear com o fino
tecido da casemira.
A palavra lhana do p roletario vibra mal no seio do salão, onde
mente-se para agradar. e a sinceridade flôr m imosa da alma nobre. é
grosseira n'uma sociedade que não vive para o sentimento , mas sim
par a o - tempo.
Para este mundo realista por excellencia , 'Tancredo n ão attrahia
os olhares senão como uma curiosidade, ou velha reliquia de uma
t radição apagada na poeira do passado e m orta na lembrança de todos
Para uns era o symbolo de uma velha anedocta, para outros não
passava de um visionario, admirador do preterihl e inimigo do p re-
sente.
P ara nós era o que já dissemos: - Um sonhador ..
III.
O nosso son hador não é um vulto rico , nem pobre de dotes
physicos.
E' um moço sympathico.
Sua_ altura é regular, e seu corpo proporcionado ,- não é nedio ma -
- 53 -

teriali sla, ne m sylpho vaporoso; n ão tem nos contor nos a perfeição que
a arte de Canova cinzela . nos ma.rmores, nem tambem as imperfeições
com que a natureza amesquinha alguns.
São seus cabellos castanhos aureola de mocidade que cinge-lhe a
fronte de moreno-pallido ; um leve colorido tinge-lhe a pelle macia da
cutis, e n em o bigode de v inte annos é tão esp esso para occultar as
curvas delicadas da boca 'pequen a.
Eis Tancredo n 'um leve esboço.
Porque é um moço sympathico ? pergun tar-me- ha a leitora curio -
sa e com o direito de o ser.
A sympathia para nós é como o amôr, sentimos em sabei-o ex-
p rimir com palavras; é um reverbéro de luz do espírito q ue passa
p ara a ma.teria, traduz-se n'um olhar, revela-se n 'uma phrase, des-
cobre-se em u m gesto e melhor do que nós, vai explicai-o o nosso
sonhador Tancredo.
Vamos, minha leitora, abri as azas da imaginação e deixai-a voar,
eu a guiarei até á soleira d'aquella cazinha branca que alveja na a b a
do monte, qual n ivea garça na esmeralda d'um lag''o. A brirei a
por ta com a liberdade de proprietario, porque não ha direitos de pro-
priedade para o romancista ...
Vamos, está aberta a porta e aconselhu-vos que entreis sem timi-
dez nem acanh am ento, pois desde j á vos concedo todos os direitos que
possuo como escripto1· d'esta narrativa.
Entremos ...
Esta salla é p equena, mas não deix a por isso de ser bem aprovei-
tada por aquelle que a occupa; é de v isitas e tambem de trabalho.
Agaro leitora, r eclamamos a attenção para aquelle folheto ma-
nuscripto, que está sobre a. meza junto da estante de livros . ..
Vamos lel-o:
P AGiNAS INTIMAS .

A pagina do estio estava abe;ta n o li'vro das estações . . .


Na aza do tempo voava essa quadra amena em que as phalenas
buscam os leitos av elludados das flores , e as auras espanejam-se na
amplidão etherea arroubadas de p erfumes.
E ' a quadr a da mocidade, p orque é a estação dos risos e flores .
Quanta vida na natureza do sol americano ! Ali segredam div os
rumor ejas os seis das florestas gigantes; destillam meigos múrmures
a s catadupas christallinas que rolam sobre as campin'a s verde-mar ...
Que melodias desferem os trovadores de n ossas selvas quebrando
a solidão magestosa das serranias patrias .. .
E no seio d'essa natúreza luminoza, manifestada em t odos os
seres criados, destaca-se com o esplendor de sua realeza a morena
p atrícia.
Natureza de minha terra, eu te contemplo saudando-te ante a
gr andeza soberana do teu painel.

Como és linda, perola r io-grandense, entre as louçanias e galla:;


das tardes de estio!
Como és linda , cidad e do sul, reclinada nas fraldas das collinas,
mirando-te na superfície da aguas christalleas do teu Guahyba .
Ahi vem elle, embora senhor de r ecursos fataes que o tufão 'ma-
neja como elementos de morte, curvar-se submisso ás tuas plantas,
rendendo-te um peito de h omenagem.
Olha como aqui a poesia do mar não é a tempestade, e a onda
- 54 -
r evoltosa não tem a o uza dia de querer topetar com a nuvem ; n ão, a
onda do Guahy ba dorme placida em seu leito, apenas lambe a s plagas
a r enosas, raias de seu r eino marítimo , que tua vontade, cidade d o
sul, traçou-lhe . .
E os fr acos de espuma d e suas ondas azues, derra mam em te u
seio a vitalidade e a opule ncia ; encerram o segr edo d a prima vera
e terna, que con cedem com libera lidade e profusão . ..
Dorme tranquilla, nas fr aldas de tuas collinas, p erola r io-gra n-
den se, dor m e, que elle véla teu sonn o e é cioso p or te u porvir.
* :jc

Que terra de amores! ...


A aurora desabrocha entre manhãs gorgeiadas pelo sabiá , e a
tarde fen ece ao toque de Trindades gar gan teada p elo gaturamo en tr e
os galhos do in gaseiro á beira-r io.
Q ue terra de amor es e fl ores! ...
Aqui o r ei d a creação piza os tapetes a v elluda dos das campin as,
te n do p or tecto um céo de r oza; o m ais canóro ala ude que o embriaga
com m elodi.as, é o da natureza , cujas cor da s são , o céo de amor es, a
cascata murmurosa, a brisa perfumada e a varzea fl orida .. .
A q u i o trovador n ã o é o home m - é Deus.
Deus_ que criou o umbú altivo e o bosque secular, o pa m pa infi -
n ito e o pa mpeiro indomav el.
Aqui a cr eaçã o é eterna cacoi la q ue esparge sempr e divi nos olor cs.

*
* *
F oi n ' uma d 'essas tardes, q ue te v i Marina.
O sol corr ia buscando os coxins de seu leito a ureo e o hori son te
tingia-se de r oxas v ioleta s prenuncio do crepusculo . . .
E ' a h ora das scismas, porque o cr e pu sculo é o ve rbo d a m e-
la ncolia:
T u scismavas e tua fro n te rad iava a luz de tuas desesseis pri-
m averas .
Tu er as b ella n o meio de teus scismares; t inha s a fa ce morena
r eclinada so bre a mãosinha de anj o e o corpo de madona colla do á ja -
nella , on de a essa h or a ias e mmoldurar as graças de te us encantos.
Foi assim q ue vi a primeira vez, as t ran ças de teu s cab ellos de
a zeviche cahia m sobre a s r oupagen s brancas q ue co briam-te as f ór m a s
voluptuosas e te us olhos negros desmaia va m de amores entr e supe r -
cilios avellu dados . . .
F oi a ssim q ue te v i e q ue m inha fr onte de moço desco briu-se
par a saudar- te, saudadção inspirada p or um a fo r ça occulta q ue n asceu
e sp ontanea .
T u retribuíste minha saudação com um sorriso; filho da cor tezia
ou n ão , eu só sei o que elle insp irou-me , só sei q ue m e u coração
pulsava com a v eh emencia dos vi nte annos.
Te u sor riso foi p ara mim uma auror a e um porvir, porque des-
cerro u um p oema de affe ctos ...
E e u amei-te n elle e p or elle d esde e n tão foste p a r a mim m ais
q u e a v ida , foste a m inha - r eligiã o.

( Continúa) .
A ESCRAVATURA
FABIO Ã SALUSTIO.
EPISTOLA TERCEIRA .

. Si vales, bene est. Valeo.


Pareces convencer-te na tua ultima epistola de que são exagera-
dos os teus escrupulos acerca do direito de propriedade sobre o homem .
E dizes que a indemnisação traduzida no projecto apresentado á s
camaras é excessiva em quanto ao que diz r espeito á creação -dos fi-
lhos das escravas. Que o servilismo é uma idéa prejudicial á civili-
sação futura do p ovo , e que despertando a sordida ambição dos
senhores apaga todos os sentimentos de humanidade no seio das familias .
O teu bom coração dice a verdade, fallou a tua alma simples e
que se tem conser vado pura em meio das facções. ·
Mas tremes diante do desfalque do thesouro, quando fallas sobre
a necessidade de levantar-se asylos para a creação das creanças, e
mantença e educação na primeira idade .
Quasi que paguei-te o p r eito que prestaste ás minhas idéas, dei- ·
xando-me ar r a star pelos teus argumentos, e o teria feito de b om
grado, se a analyse á que o meu espírito se entregou desde logo, não
m e tivesse demonstrado claramente o erro em que te deixaste levar .
Eu disse que - a mãi escrava cria o filho livre no seio da familia
que é sua, porque ella tl?m um marido, e ambos tem direito ao traba-
lho e ás suas economias.
O filho livre criado pela mãi 1\scrava sem que se admittisse o ser-
vilismo, podia incarnar-se na familia e participar das vantagens mo-
raes que tem sua mãi, -embora em condições excepcionaes, mas que
está ligada p or um contracto aos que usufruem os seus serviços; podia
tomar os habitos nacionaes e dirigido á1; artes e officios ser talvez mo-
t or ou concurrente da liberdade de FUa mãi, o que moralisaria o
paiz excitando e provocando dedicações filiaes que seriam dignas de
respeito e contagiosas entre essa mocidade de operarios, de cidadãos
produ ctores.
Correndo a educação dos novos livres por conta de suas mãis, e
m esmo de senhores honestos e compassivos, a educação do trabalho
seria feita nas officinas ou nas granjas, e o paiz teria menos falta de
braços e mais homogeneidade na população , em quanto aos costumes ,
habitos, linguagem e religião.
Um cidadão assim formado á custa do trabalho de seus pais daria
á população o concurso de seu braço na grande causa é!.a mànumissão,
salvando seus progenitores das garr as do captiveiro.
A moralidade da nação, e o orçamento ganhariam tudo com a
edqoação assim feita . ·
Mas para obter-se esse resuhado seria mister que considerassemos
o escravo um homem, que se organisasse o trabalho e que se reduzisse
á contracto o gozo dos serviços comprados.
Não admittiste, porém, essas idéas, ainda que condemnaste o di-
reito de propriedade sobre o homem; não, quizeste resistir ao impetQ
da falsa opinião, e deixaste-te illudir pela miragem do projecto ( *) .
(*)
.
A lei n .0 2040 de 28 de Setembro de 1871 .
- 56 -
O ventre é considerado livre, - dizes-me ; e como a escrava per-
tence ao senhor, este póde ou deve criar o filho d'aquella med iante
600$ rs., dados pelo Estado, logo que tenha seis annos, ou conservai-o
servo até a idade de 21 annos.
Já te disse, e tu o disseste, - que o ventre era por sua naturesa
livre; que o abuso tinha tornado essa usurpação legal mas não leg i-
tima; que se era preciso uma lei era para indemnisar o paiz, e as
victimas da vergonha e dos vexames soffridos.
A declaração do ventre livre é uma ociosidade inqualificavel.
Tu comprehendes, Salustio, na simplicidade de tua alma , o que
excita o ganho de 600$ dad o ao senhor pelo E stado por uma criação
do fi lho livre da m ulher escrava. E ' um incentivo immoral que só a
subserviencia d'uma éamara póde permittir a um governo que o leve
ao seio da familia.
E' provavel que o não consiga, porque só a indifferença ou igno-
rancia a mais culpavel póde au torisar a votação de tal projecto.
Condemnaste o servilismo como prejudicial ao fu turo de um povo
n'esta época, em que a liberdade ganha no t erreno p r atico as p r opor-
ções da realidade.
Eu teu a càmpanho n'esse pensamento , e horripila-me a idéa de ver
servo, um quasi ou verdadeiro escravo, o meu patrício, o homem que
como eu e tu, viu a luz debaixo d'este céo tã o puro, tão azul e tão
esmaltado, e que respirou o ar que a gita as comas perfumadas das
florestas virgens.
Miragem enganadora, seduzio-te este projecto que não passa de
u m amontoado de falsidade e p erfidias.
O que te peza, o que te faz recuar, é o que dispõe o artigo 2. 0
a creação e a educação dos novos livres, em que parecer que lês a ne-
cessidade da creação dos asylos por parte do Estado, cousa para ti
quasi impratícavel.
Vejamos se nisso devo acompa nhar- te. D izes, Salustio, que o
estabelecimento de vin te asylos, pelo menos, para as vinte províncias
do !mperio é cousa que gastaria um capital de 20.0 00:000$000, em-
pregando-se em cada um 100:000$000 , o que não seria excessiv o con-
siderando as despezas das amas, dos creados de serviço e mais gastos
do estabelecimento; e que isto duplicaria dando-se 20 :0 00$000 an-
anues por cinco annos a cada u m para a sustentação dos mesmos, ca -
pital que avultaria sobremodo se attendessemos aos juros d'elle.
Diante de uma cifra de 40 mil contos, na á poca actual, quem não
recuaria? eu mesmo o teria feito se o meu espírito analytico se não
tivesse demorado para observai-a.
Não tens razão, Salustio, precipitaste o teu juízo, traduziste mal o
pensamento do projecto - o seu autor escreveu uma p a lavra vã , sem
significação, ôca de sentido; nunca esteve n a m ente d'elle - educar
brasileiros, fazei-os operarios, homens do trabalho.
Dos novos livres o Estado fará o que fez dos índios - deixou-os
no abandono, expoliou-os, e por fi m mandou-os acabar por patriotismo
nas guerras ruinosas.
Eu é que entendo que devemos criar asylos de liberdade para os
novos livres, que devemos ainda á custa de algum sacrifício arrancai-os
do servilismo para os educar no trabalho,, tornando-os cidadãos ca-
pazes de entrar com vantagem na communhã0 brasile ira .
E' isto de que te fallar ei na proxima epistola .
Bene.
Fabio.
RISOS E LAGRIMAS
A CTO II.

QUAD RO II.

(Sala modestame nte mobiliada . Um piano á d ireita ) .

SCENA I.

Octa via reclin ada sobre o r;9fá, tendo n m livro a berto entre as
mãos e Ricard.o d.a Silva qne t>ntra, páM-se contemplando a filha.
R. DA SILVA (baixo). - S empre t riste! . . . E não poder adevi-
nhar a causa à'esse soffrimento atroz! (approxim ando-se ) B om dia ,
f ilha.
OCTA VIA. - Ah!. . . A sua benção, meu pai.
R. DA SILVA. - O q ue tens tu, minha Octavia? ... Se me fo sse
' possível adevin har o que pensavas! . ..
OCT A VIA . - Estava com pletamente absor ta . ..
R. DA SILVA. - Valha-me Deos. Ha nas tuas pala vras, nos
teus gestos, na expressão do teu se mblante uma magoa tão funda, que
não é preciso ser pae para comprehender que soffres e muito. Dize-me,
filh a, acaso passou nuvem negra no teu céo côr de roza? . . . Porque
não has de rir como as outras q u e tem a tua idad e ? .. . Então emmu-
d eces?
OCTAVIA. - Que lhe hei de responder, se n ada sinto ...
R. DA SILVA. - Julgas por ventura que podes illudir-me ? . . .
Qua ndo o coração de uma filha é magoado, quand o seus olhos coam
essa t r isteza que em vão tenta occultar , o coração de um pae estremece
exuberando de cuidados. F alla-me, Octavia, o teu silencio martyrisa-me .
O CTA VIA. - Mas porque se h a de affligir a ssim, meu p a e? ! Bem
sabe que nunca fui alegre ...
R. D A SILVA. - Não, Octavia, não mintas á teu pae! .. . Ha 3
mezes que u ma grande mudança tem-se operado em ti. Já não és a
mesma, definhas dia por dia, e isto não póde, nem deve con t inuar! .. .
Vamos, minha filha; tira-m e do peito este peso que o esmaga . .. Uma
palavra ao menos . . . Eu te supplico! . ..
OCTAV IA (á parte). - Que martyrio! ...
R. DA SILVA. - Pois bem, l ogo que se restabeleça Julio, sahire-
mos d 'este lugar para semp re ; en tregar-lh e-h ei o escriptorio e iremos
v iver b em lon ge d'esta terra m a l dita . E' preciso que te distraias;
talvez mais f eliz . ..
OCTAVIA (agitada). - Sim, meu pae, iremos ... (á parte) Par -
tir!. . . Deixai-o! . ..
58 -
R. DA SILVA. - Ahi vem J ulio . ..• Como está desfigurado ! . . .
(indo ao encontro de J u lio ) .
OCTAVIA (idem ). - Nã o dev ia sahiT do q uarto . ..
SCENA II.
Os mesmos e Julio de Aguiar.
JULIO . - S into-me melhor, estou quasi bom .
OCTA VIA. - E ste ar frio da manhã póde fazer-te mal. . .
R. DA SILVA. - E o medico recommendou socego de espírito.
OCTAVI A . - J u lio é teimoso, não quer ouvir-nos, e a molestia
póde a ggravar-se .
JULIO . - Não hei d e mor rer , Octavia ... P reciso vive;:- agora mais
do q ue nun ca . Meu cora ção pulsa com todo o vigor da mocidade ...
A minh a existencia começa hoj e . .. U m a nova aurora brilha risonha ,
matizando a estrada do futuro . . . Não v ês? Que céo azul! . .. Repara,
como é lindo, Octavia ! . . . Flor es e l uzes! .. . Que primaver a rid ente! . . .
OCTA VIA (inquieta ) . - Delira ! ...
JULIO . - Olha . . . Não ouves? . . . Que ha rmonia infinda! . . . D ir-
se-ia u m cantico eolico . . . é talvez a v oz d o Senhor p erpassando lan-
guida n as r a m arias do arvoredo! . . . Que explendid as sala s. Vem co-
m igo, Octavia entremos . . . Dança m , são todos felizes !
R. DA SILVA. - O que é isto J ulio ?
OCTAVIA. - Julio ! Julio!
J ULIO . - Mas . . . o qu e vejo !. . . Sim, é ella , lá está . . . n ão m e
engano ... como desdenh a! ... D eixe- m e ... quer o vin gar me!. . . (Cae
prostr ad o sobr e uma cadeira ).
OCTAVIA (á parte ) . - Era o desenla ce q ue e u esperav a !
R. DA SILVA . - E ' mister ser h omem, J ulio.
OCTAVI A. - Vae para o q uarto, p r ecisas repousar ... Ardes em
febr e e este ar frio faz-te mal.
JULIO (olhando em red or ). - A h ! és tu, Octav ia! ... Como me
estimas e quanto te s :m a gr ad ecido ! Sen ta-te aqu i · junto á mim, quer o
fall ar -te, tenho tanta cousa a dizer-te ...
R. DA S ILVA . - Nã o, Sr., não con sin to que se d emor e a qui. ..
OCTAVIA. - Elle vae, meu pae .. .
R. DA SILVA (ba ixo ). - Preciso ir d e n ovo á casa do m edico ; o
caracter d 'esta molestia assusta-m e, dá-me serias cuidados (á Octa-
via) . J á v olto, vou ter com o Dr . . .. (á Julio) Animo , Julio, Deus
é grande e m isericordioso . Crer e espe r a r .
SCE NA III.
Octavia e Julio.
J ULIO (le vantand o-se) . - Crer e esperar ! Crer em quem ? Espe-
rar o que? Ah! nad a mais m e r esta. A estrella q u e brilhava lá
nas alturas, aluziando a vereda incerta , a pa gou -se . . . S ó trevas no
caminho, trevas na minh' al ma também . Destinos, Octavia . Qu e
importa . Os crentes não temem a morte , não é assim?
OCTA VI A. - Por que me h as de entr istece r? . . . De us ouvirá as
minhas or ações e ver -te-hei ain da m u ito f eliz.
JULIO . - F eliz! Nunca mais, é imp ossível . Qua ndo a a lma a doece,
a m orte é necessaria, ine vita v el. Quando se a m a como e u am ei e
que em paga d 'esse culto, em troca d'essa adoração receb e-se a mais
- 59 -
cruel ind iffer ença, o coração par alysa -se , a idéa mor re, fi ca a exis-
tencia do cataleptyco. As molestias do corpo curam-se: as da alma,
nunca Octavia. O que sinto aqui dentro é a morte .
OCTA VIA . - Cala-te , Julio, cala-te por p ieda de!
JULIO . - Não te enfades do m eu pedido, quem sabe se não será
o ultimo! ·
OCTA VIA (á p ar te). - O que ser á!
JULIO . - Quero que v ás tocar. Fiz u ns versos e ...
OCTAVIA. - Versos?
JULIO . - Sim , do que te admira s?. . . G uarda-os b em . . . Então,
não me fa zes esta ultim a vontade? Quero recital-os acompanhados
p or ti . ..
(Octavia senta-se ao piano e executa um acompanhamento para
recitativ o ) .
JULIO (r ecitando):
A njo querido , se amanhã no leito
Meu pobre peito n ão p ulsar, não chores:
Que vale a vida d e prazer es cheia,
Se é qual sereia, - seu cantar tr az dôres!
A vida é taça transparente e bella ,
Mas dentro d'ella só veneno existe:
E' manso lago que tran sluz e encan ta ,
Mas ai esp anta! ... Lá no f und o é triste!
A vida é nuvem que no céo se esgarça ,
E nos disfarça o tempor al que é perto ;
E ' fallaz sonh o, n os febris a rdores
Fanam-se as flores no cam inho incerto.
Por isso, ó anj o, se ama nhã no leito
Meu pobre peito n ão pulsar, não chores .
Além min h'alm a foi sorrir contente,
Aqui sómente supp or tou mil dores!
A morte . ..
OCTAVIA. (erguendo-se agitada) . - Ah! basta, não continues,
J ulio! ·
JULIO (dando-lhe os ver sos) - Aq ui tens, são teus, guarda-os,
minha prima. . . minha irbã. . . Consen te que eu te chame assim . . .
E ' um nome doce e tens direito á elle p elos teus affectos, por esses
cu id ados, por essas lagrimas, que e u agradeço!. . . Mas não chores
assim, não chores tanto! . . . 1

OCTA VIA (á parte) . - Q ue supplicio , santo Deu s!


SCENA IV.
OS mesmos e Margarida.
MARGARIDA (que tr az um ca ldo). - H a de to m al-o todo, foi
fe ito p ela m inha mão ...
OCTAVIA. - Aqui está o caldo, Juli o .. .
MARGARIDA. - Olhe que é para o seu bem , está tão fra eo . ...
JULIO . - P ar a que m e serve isto ? (b eb endo) .
- 60

OCTAVIA. - Falta um restinho , vamos, bebe todo ...


MARGARIDA (recebendo a chicara) . - Ora muito bem. A gora vá
para o quarto.
OCTA VIA. - E ' preciso, Julio.
JULIO. - Pois sim, eu obedeço, seja feita a tua vontade.
MARGARIDA (á parte) . - Quem o viu e quem o vê!
SCENA V .
Os mesmos e o Dr. Anselmo e Ricardo ela Silva.
DR. A:--TSELMO (baixo a R. da Silva). - Nada receie. Todas a s
molestias soffre m alternativas. Julio tem con tra si a imaginação apre-
hensivel e dep . .,is é de uma natureza debil.
R. DA SILVA. - Mas a febre recrudesce.
DR. ANSELMO. - Confie em meus e forcas. (Saúda Octavia e
dirige-se á Julio). Sentease melhor, não é verdade?
JULIO . - Eu não sinto cousa alguma.
DR. ANSELMO. - Tem menos febre hoje.
JULI0 (baixo ao Dr.). - Dá -me n oticias d'ella . Dr.. . Não posso
esquecel-a. ·
· DR. ANSELMO. - E no entanto precisa suppla n ta r de uma vez
esse amor inglorio . . .
JULI0. - Tem ra zão. Dr. Adelaide respirando a athmosphera dos
salões, embriagando-se nos perfumes da lisonja, perdeu a candura das
virgens, gastou-se n'aquelle mundo mentiroso e hypocrita! Illudiu-me
com o sorriso nos labios; á Rua palavra cheia de sentimento e suavi-
dade senti-me preso; á um gestou seu t ornei-me escravo submisso até
--er esmagado um , dia! Oh! fui u m insensato!
R. DA SILVA. - Socega, Julio; calma . .
JULI0. - Na febr e d'esse amor eu esqueci que era pobre e que a
sociedade· devia condem nar a minha audacia !. . . Foi un,a loucura! ..
Eu deveria ter comprehendido que d'esse affecto nasceria a minha eter-
na desgraça!. . . E quer saber, Dr., para esquecei-a hoje é tarde! . . .
Aqui ou longe, sob outro céo , n'outro clima arnal-a -hei , a sua ima -
gem viverá comigo, presa sempre á minh'alma!
DR. A NSELMO. - Tudo passa, o tempo desvanece todas as cousas.
JULIO. - Sociedade maldita! Proclamas a virtude e no entanto
vendes a alma e a consciencia como a miseravel cortezã de Roma
vendia o corpo ao tinir da m oeda q ue lhe arrojavam á face!. . Pro-
clamas-te rainha e supplantas o pobre com o teu despo tismo, e r gu endo
da lama o milionario , cortejando o agiota que véla , e,,cutando o solu-
çar das victimas!
R. DA SILVA . - Acalma-te, Julio .
.JULIO. - Eu acreditava no amor e na gloria -- o amor e a gloria
mataram-me! .. . Que vale adormecer de can.;;aço sobre os livros, em-
pallidecer á meza d o estudo, quando não se tem um pergaminho ou
um titulo nobiliario? !
DR. ANSELMO. - E' uma verdade bem triste!
JULIO. - No estrangeiro estudam p ara ganhar, aqui estudamos
para perder, escrevemos para morrer de fome! . . . Velando noites in -
teiras, apoz o tra balho d iurno sobre os livros do escriptorio, dediquei-
me ao estudo sacrificando até mesmo a saude, fazendo miseraveis eco-
nomias para comprar livros! .. . Envelheci n'esse afan que sentia por
subir, e, tanto mais baixo me achava, quanto minha intelligencia en-
r iquecia-se, porque antes uma ignorancia supina quando se tem uma
- 61 -
moeda d e our o, do que uma illustração, q uan do n ão se possue uma
moeda de cobre! .. .
DR. ANSELMO . - Porém ·f az mal com esses excessos.
JULIO . - Ha m omentos, Dr., em q ue a blasphem ia nos roça pe -
los labios roxeados! m omentos em que o espírito attr ioulado se perde.
-desvaira, p or qu_a n t;o ha dôr es super iores ás nossas for ças! . . . Oh! se
é ver dade que existe u m Deus! . ..
R. DA SILVA. - Julio!
DR. A NSELMO (baixo). - E' a fe bre; tenho pena.
J ULIO. - Oh a Providencia é surda e inexoravel! L ança-nos á
borda de um abysmo, dá-nos uma vida eivada ue fe l , cheia de amar-
gor es e no entanto ha de o homem soffre r r esignado e chamar esse
Deus bom e justo!
R. DA SILVA. - Dr. , 1enho medo .
DR. ANSELMO. - Confie em meus esforços. -
JULIO. - Nada tenho que agradecer á Deus! . . . Deu-me intelli-
gencia, essa febre que só o genio sente e que por sentil-a morre quasi
sempre tresvariand o á mingoa na espelunca do vicio, asphixían do a
alma na ebriedade do alcool apoz tantos sonhos e esperanças! . . . E o
-que é a ex istencia senão u m desengano? ! . . . Tu do mentira , tudo . .. .
·até . ..
DR. ANSELMO . - N'esta romaria ephemera pela terra a creatura
·enverga-se sob o peso de uma condição infeliz, é verdade, mas nem
por isso o verdadeiro christão póde clamar contra a Providencia. Aqw
soffremos, porque é aqui que a Divindade experimenta o homem .
Christo, o divino mestre deu-nos o exemplo. Seu sangue jorrando pela
terra, borrifou a face ·da humanidade inteira, e no entanto n 'aquelle
·baptismo estupendo, torturado o espirito, açoitado o corpo, clle não
maldice d e D eus, nem do seu semelhante! . .. A resignação é a maior
das virtudes!
JULIO. - P ois b em , cumpriu-se o m eu destino. Onde eu sonhava
-encontrar a felicidade , achei o desengano. . . Morreram todas as mi-
nhas esperan ças e agora irei pedir ás estatuas do vicio o esquecimento
da vida! ·. . .
Sim, depois que venha o mundo com o seu sarcasmo , róde trium-
phante o car.r o da sociedade sobre um corpo palpitante ainda, m a
cuja alma galvanisou-se na effusão do gôso depois de uma existencia
tormen tosa! . .. Que venham os moralistas! . .. riam-se da victima ,
lancem-me o fcr::ete da m aldição e eu lhes responderei com um sorriso
de escarneo. (Solta uma gargalhada, cahindo nos braços de Ricard o
e do Dr.).
OCTAVIA. - Que foi, m e u pai? !
R. DA SILVA - (impondo silencio). - E ' melhor fazel- o d eitar-se .
DR ANSELMO. - Sim, passa por uma crise nervosa, porém fal-o-
hei dormir; estas a gitações d o espírito vão cessar. (R. da Silva e Mar-
garida saem amparando Julio).

SCENA VI.
Octavia e o Dr. Anselmo.
OCTAVIA (afflicta). -- Diga-me, Dr. , tem esperanças de salvai-o ?
DR. ANSELMO. - P orque não?
OCTAVJA. - Mas elle está em per igo!!
DR. ANSEL MO. - Bem longe d'isso, minha Sr.ª
OCTAVIA. - Oh! Dr., Dr .! . .. Porque me ha de occultar talvez
- 62 -

uma verdade? ! Compaixão , seja franco , bem sabe que préso Julio
como se fosse meu irmão; criamo-nos juntos, a minha infancia escoou-
se ao lado da sua e .. . comprehende que devo interessar-me muito por
elle . . . que. . . depois de meu pai ...
DR. ANSELMO. - Socegue, minha Sr.ª , não vê como estou calmo?
OCTAVIA. - Ah! então póde salvai-o, não é assim? .. . Não está
em p erigo, o Sr. disse ; posso e devo confiar em sua palavra ? ! . .. De-
mais, o Dr. interessa-se mu ito por elle . . . E quem não se interessaria ,
se Julio nunca fez mal á ninguem !. . . Moço, intelligente! . . . Seria
u ma pena, Dr.! .. .
DR. ANSELMO. - Não receie cousa alg uma , confie em mim .
OCTA VIA. - Obrigada , Dr. , obrigada! (á parte) Oh virgem im-
macu la da !
DR. ANSELMO . - (á parte) . - Ella o ama sem duvida alguma!
(a lto ) com licença , vou ainda ver o doente (sae).
SCENA VII.
Octavia e depois R. da Silva.
OCTAVIA. - E agora o resto fica por minha conta!. . . (p a usa)
Ah! Julio, p or ti fa r e i todos os sacriffici os !. . . Sê tu fe liz, já que o
não posso ser!. . . (pa usa) Tu soffres agora muito, porém a tua dôr
não é ta vez igual á minha! . . . A mar com todo o ímpeto da alma e
sen tir o desengano em cada dia que passa ! Onde maior supplicio ,
Deu s? ! . . . (pau sa) p orém coragem até o fim , (Ricardo da Silva appa -
r ece) dae-me for ças, S en hor , para completar a minha obra!. . . (dan-
do com o pae) Ah! . . . (á p ~r te ) Teria ouvid::> ? ! .. .
R. DA SILVA (atormentado ) . - Ainda be m , não p odes dissimu-
la r , n e m m entir-m e agora!. . . Chor avas, Octa via_. choras ainda e . .
OCTAVIA. - Qu e lhe hei d e dizer, m eu pae '?! (soluçando). A
sua Octavia não sente cousa alguma . . . Acredite-me. T enho ás ve-
zes prazer em chorar . . . Quando me vir assim, ralhe-m e, porém não
se a mofine , não se afflija!
R. DA SILVA. - Está s mentindo , Octavia! . . . O coração de um
p ae nunca se engana . . . Ha na tua vida um mysterio . . . se i-o eu, di-
zem-me as tuas Iagrimas!. . . Pela m e moria de t ua mãe confessa-me
a causa das tuas tristezas! .. .
OCTAVIA. - Porque in siste meu pae?! . . .
R. DA SILVA. - Não mintas, filha! . . . Ex.iste forçosame nte o
quer que seja na tua vida . . . Um erro , (commovido) um erro, quem
sabe ? ! ...
OCTAVIA (com desepero). - Um erro! . . .
R. DA SILVA. - Confessas então? ... Ah! já o tinha pensado! . . .
Pois bem, não m 'o fizeste revelar e agora quero contas, já exijo
quanto antes a confissão do te u crime! ...
OCTA VIA. - Cale-se, cale-se, meu pae! . . . (apontando para o
quarto de Julio ). Silencio!. . . Elle está alli e póde escutar-nos! . . .
R. DA SILVA. - Oh! maldição sobre elle! . . . (Vae dir eito á porta
do quarto de J ulio, porém recúa detido por Octavia ).
OCTA VIA . - Que vae fazer , meu pae ?
R. DA SILVA. - E ainda perguntas?! . . . (baixo para ella) Hei
de matal-o! . . .
OCTAVIA . - Matai-o?! .. . Pois que fez elle? . .. Ouça-me, es-
cute-me ... Não julgue que sua boa Octavia está perdid a . . . Não, meu
pae! . . . Quer saber a causa das minhas lagrimas! .. .
- 63 -
R. DA SILVA. - Falla, Octavia, tira-me d'esta duvida horrivel!
OCTAVIA. - Quer saber? . . . (impondo silencio ao pae) Falle-
mos baixo . . . E' preciso que ninguem saiba. . . ninguem, ouviu, meu
pae! ...
R. DA SILVA. - Es amo's sós! .. .
OCTA VIA (apontando para o quarto de Julio). - Amo-o muito,
porém elle não sabe e não deve saber! . . . Cale-se, silencio, agora por
mim e por elle!
R. DA SILVA. - Comprehendo, és martyr! .. . Ah! Julio, mataste
a minha filha! ...

FIM DO QUADRO 2.0


O VAQUEANO
( NARRATIVA ) .

IV.

A CANGUÇú.

Sigamos o vaqueano .
Vai '!ansado da conversação que tive ra , ainda que nas respostas
denotasse verdadeiro laconismo.
Approxima-se d' um grupo em torno elo br azido , aquecendo os
membros engelhados de frio.
- Que novas? r epetiram q uatro ou cinco vozes r epassadas de
curiosa anciedade.
Elle por unica r esposta encolheu os hombros.
Os outros o comprehenderam; porque encetaram nova palestra ,
emborcando de vez em quando uma chaleira na b occa de duas cuias
que percorriam a roda .
- Chimarrão sem churrasco á laço sem argola ou relho sem
açoiteira , ponderou sentenciosamente Manduca Pereira , celebre doma-
dor de Ca çapava.
Os outros approvaram com vivos signaes de assentimento a refle-
xão do companheiro.
- Laço sem argola!? Antes mato sem madeira, a ccrescentou
um lenhador que havia trocado por circunstancias imprevistas o ma-
chado do trabalho pelo ferro dos combates. ·
- Lança sem lanceiro! regongou emphaticamente um negro, her-
cules de porte, pertencente á arma citada.
- Deos emfim se amercie de nós, porque n 'esse andar morremos
de fome antes de lá chegarmos, tornou outro do rancho. Pensem vocês
o que quizerem, que cu cá de mim para mim, vejo em tudo isto algu-
ma praga de urubú.
- Não mata a cavallo , por Deos, o digo!
- Mate ou não mate, o que é certo é que sete h oras vão e nem
um naco de charque passou-nos pelo gasnete. Chimarrão sem chur-
r asco! E por cima a inda ordem de não sahir do arranchamento para
carnear! insistia o lenhador.
- Nem caçar!
- Hão de v1r que lá o general ha de ter ...
- Cala-te, lingua de caramurú, atalhou o Manduca , não sabes
o que dizes.
Um vulto, sahindo da sombra , fulminou-os.
- Camaradas, o general não tem maior ração que vocês, e em
quanto elle corre o acompanhamento o lonqueais sem piedade. O que
não quizer assim, m onte no pingo e vá-se aos pagos, com os diabos!
- 75 -

AMOR E SEGREDO

Que luta! amar-te em silencio Das lutas na desventura


Sen tir febril em delirio Amanhã gelida a fronte
Do coração no martyrio Quem sabe na sepultura
O s ardores da paixão; Não sonharei mais em vão!
Ver-te candida sorrindo Tive fadario affanoso
Da mocidade nas flores, De sentir no peito a crença
Respirar os teus candores Ingente, febril, immensa ,
E amar-te na solidão! E amar-te na solidão!
Sentir meigos teus olhares Mas hoje que o seio pulsa,
Vibrando n'alma langores E a mocidade palpita
Da pureza nos fulgores Como a lava que crepita
Incendendo o coração; Na cratéra do Vulcão,
Em dôce enlevo mirar-te , Não posso, não, esquecer-te
Ouvir-te insontes as fallas Reide na sombra adorar-te,
No perfume que trescallas Nas minhas noites sonhar-te,
E amar-te na solidão! E amar-te na solidão!
E d a insania nos delírios Se n unca ou iste dos labios
Verter da saudade 6 pranto, Nenhuma phrase de amor
Sonhai:" o teu amor santo Ah! perdoa . . . ao sonhador
No siiencio da amplidão, Talvez d icesses que não ;
E do porvir nos arcanos Tive medo de fallar-te,
Erguer á luz da esperança E ' tão triste o desengano ,
1J~ mundo só de bcn ança , P refiro luta r insano
E amar-te na solidão! , E amar -te na solidão!

Affonso Marques.

f
- 76
DESESPERANÇA

Quando o sol vai desca mba nd o Quando a estrella vespertina


Doir ando os valles e o m ar, Vai brilhar no céo de anil,
Quando o orvalho vai tombando E apoz a peregrina
S obre a s fo lhas a brilhar, Morrem os outros á m il,
Quando v ai já se apagando Quando a fl ôr da tangeri n a
A paisagem do lugar, Desabroxa no alcantil,
E u p ergunto suspirando: Pergunto á luz mat utina:
·'P ois sou eu só a chorar? ! . "Morreu meu sonho infantil ?! . .
Quando o canto do campeiro Qqando no verde coqueiro
Vai dizendo sempre - Amor! O pyrilampo brilhou
Quan do o altivo pinheiro E nos fogos do tropeiro
Da tempesta de ao fr agor , O riso franco enchôou ,
Se debruça no ribeiro Qu ando a flôr do peéeguei r o,
Qual a t enra debil fl ôr , Ao vento sul desfolhou,
E u p er g unto ao mundo inteiro : Eu perguntei ao pampeir o:
"Pois sé, eu vivo de dôr? ! . . . ·· "A minha luz se apagou ? ! . . .
Foi então que amargo pranto
Deslisóu no rosto meu,
E vellou-me como u m ma n to
O olhar f ito no céo!
E depois em dôce cante
Que a desgraça en tristeceu,
Ouvi transida de espanto :
"T ua esper ança m orreu! .. .
Arnalia Figueirôa.
CHRONICA

Se tivessemos debaixo da epigraphe - CHRONICA. - de traçar


álgumas linhas sobre o estado actual da nossa politica, sem duvida
vasto campo encontraríamos para discorrer em semelhante assumpto,
aliás muito importante; porém ver-nos-hiamos forçados a deter-mos
ante u m energico protesto do nosso fo lheto que nos faria recuar.
Não é pois de nossa competencia escrevermos uma chronica po -
lítica , ainda mesmo na época que atravessamos em que o espírito po-
pular só d' isso occupa-se ; em que as discussões que se provocam em
todos o.s lugares e em todas as classes da sociedade, tendem unica-
mente a tratar ou do pleito eleitoral que acaba de ter lugar, ou do
esperado rompimento com os nossos _visinhos do Prata . E emquanto
todos se occu.pam d 'essa velha celibataria, á excepção do Parthenon
litterario , ninguem lembra-se da sua irmã e companheira a - litte-
ratura. '
Assim é o povo ; mastiga o pão sem procurar saber quem o amassou.
Julgamos irmãs a · politica e a litteratura; temos visto sempre ao
lado• uma da outra operarem suas revoluções, e juntas marcharem
para o progresso ; sua outra irmã , a religião, é mais morosa, por isso
mesmo que as revoluções d'esta effectuam-se com mais longos inter-
vallos e maior difficuldade devidas não só á tendencia que tem o
espírito do pov o inculto para a superstição, como ao despreso em que
elle lança a litteratura_, coisa que elle julga inutil ao ser humano.
trata da politica sem lhe conhecer os fins e encara a religião como
um hediondo phantasma.
Máo grado porém a todas essas difficuldades, serão as t-.:-es irmãs
que como fachos esplendidos em noites tempestuosas, conduzirão o
genero humano ao estado desejado da perfectibilidade.
Assim, essa base fundamental da grandeza dos povos, que tan_to
a doça os costume · e eleva , a humanidade ácima de todos os outros vi-
ventes, passa entre nós como uma fraca luz : um ou outro livrinho
que surge de tempos a tempos e fica esquecido no pó das prateleiras,
a imprensa diaria e o theatro, eis o que temos de litteratura a não
ser a Revista do Parthenon, que todos os mezes lá corre pelas estereis
e desertas estradas bradando:
Luz ! quem g_uer luz? Quem tem sêde?
O theatro mesmo , essa fonte ao alcance de todos, esse incentivo
que desperta o desejo de saber áquelle que encára o livro como artigo
inutil e prejudicial ao estomago, v ive quasi adormecido, sem ani-
maçã o. .
Os ultimos dramas que têm sido exhibidos pela - Companhia
I sm enia - são já muito conhecidos pelo publico , excepto Os Piratas
da Savana que pela primeira vez subio á scena n 'este mez.
Mais apparatoso que litterario não encontramos nelle avultado
- 78
m erecimento, comquanto tenha tido boa aceitação da parte de noss...
platéa, sempre amante mais dos enredos e movimentos scenicos do-
que do trabalho intellectual.
A arte dramatica .que depois da fundação da escola romantica .tão
vastos horisontes desvendou aos olhos da humanidade, já vai cansando
seus vôos; especialmente nestes ultimos annos como que um entor-
pecimento paralysa seus movimentos ,sugeitando-a em um só ponto.
As producções que apparecem esvoaçam na mesma esphera, como se-
a intelligenci a humana já estivesse esgotada ou encerrada ·e m um cir-
culo de ferro .
A comedia então sendo d e m a is difficil trabalho, não só pelo jogo
de espirito que deve encerrar, como pelos fins com que é aceita e deve
ser apresentada, permanece, ou antes, podemos dizei-o: jaz quasi aba-
fada por uma multidão de palhaçadas, que coro mais razão poderia-
m as intitular - Cousas de fazer rir.
. Parece impossível ouP na orbita tão vasta dos conhecimentos do-
homem, Moliere abs0···, esse todo um porvir inteiro! A revolução mes-
m o que deveria n -::;:•-lhe novo impulso, parece tel-a abafado a inda mais.
Os vaudevilles, entre-actor e zarzuelas vieram quasi que substi-
t uil-a , e se quizeram de novo os operarios das letras erg uei-a do pó,
do despreso e m que havia sido lançada , que lutas, quantos vãos es-
forços para tão pouco!
Com pretenções a fóros de comedia, apparece grande 'quant idade
de entremezes e scenas-comicas - histriões que em vez de mostrar
nossos costumes e defeitos, apenas nos fazem rir com suas mornices.
Victorien Sardou é quem nos tem ultimamente mandado traba-
lhos nesse genero de subido merito ; com especialidade a comed!a -
Os Intimos m erece muita attenção e será sempre applaud ida nos nos-
sos theatros.
Das comedias nacionaes uma ou outra surge com direitos a• esse
titulo, mas quasi todas as outras em turbilhão com o - Phantasma
Branco e a Torre em concurso do Dr. Macedo, não nos convidam a
um estudo serio.
Mais u m novo drama rio-grandense vai apparecer no theatr o d' esta
capital. O P arthenon ensaia hoje com a S.rª Ism enia e outras damas
de sua empreza , que cavalheiramente prestam-se a trabalhar, o drama
Aurelia, do nosso amigo e consocio o Sr. Hilario Ribeiro.
Julgamos tambem que juntamente com o drama subirá á sce na :-,
comedia - O Cidadão General, versão do allemão para o portuguez,
pelo Sr. Christiano Kraemer. Os actores que ensaiam são alguns moços
escolh idos en tre os membros do Parthenon , que para esse fim possuem
mais aptidão.
Ao publico os r ecommendamos , visto que a maior parte d 'elles
fazem sua estreia.
O busto que hoje acompanha a Revista é o d 'aquelle jovem cujo
fa llecimento ha tão poucos dias cobriu de lucto o Parthenon , e cons-
t.e rnou a cidade de Porto-Alegre.
Eil-o, apparece ainda com a fronte magestosa e o olhar radiante
de luz, como outr'ora na arena da discussão junto á sua cadeira de pri-
meiro orador, agora coberta de crepe! No dia 10 de Setembro, 30. 0 ·
de seu passamento, nas sallas da associação terá lugar uma sessão fu-
nebre em honra do mesmo finado.
O trabalho litrographico faz honra ao artista Brúggemann , quf·
o executou.
Agosto - 1872. Sá · B rito.
REVISTA MENSAL
DA

SOCIEDADE

PARTENON LITERARIO

2.ª Série ~ Setembro de 18'72 - N.0 3

TYP. -DA REFORMA - RUA GENERAL ANDRADE NEVES N.0 51

PORTO ALEGRE

1872
COMMISS AO DE REDACÇAO.

Vasco de Araujo e Silva.


Appollinario Porto-Alegre.
José B ernardino dos Santos.
Aurelio Virissimo de Bittencou:::~.
Francisco J. de Sá Brito.
Manoel Gonçalves Junior.

REDACTOR DO MEZ.

Vasco de Araujo e Silva .

DIRECTORES.

Achilles Porto-Alegre.
Hilario R ibeiro d' Andrade e Silva.
85
,· nt
, . Snt.i ms coar nos n'almà Ü~a dôce e pura emoção ao desdobrar-
mos ante nós a pagina que nos ocupa .
. . ' · É o retrato de , um homem que conhecemos até a intimidade, de ·
um homem que desde a infancia nos contumamos a venerar pela sua .
autoridade de m·e stre, de sarcedote, por sua nunca desmentidas vir-
tudes evangelicas, que vem tocar , nossos olhos e commover-nos o
espírito. . .. .. . .
O padre Thomé Luiz de Souza, vigario geral nesta provincia ppr
largos arinos antes da creação do bispo, e vigario da freguezia da Ma-
dre de Deos d'esta cidade, era uma d'essas e..'Cistencias na apparencia .
s'o cegadas, placidas, beatificas; o espirito porém do homem pensador
deve comprebender quantas lutas intimas, quantos triumphos sobre qs
ímpetos da n~:areza não. se ter iam passado na sua alma para chegar a
conseg11;: a aureola de virtude que lhe adornava a fronte. Deve ser um
vi~:--:Coso e bem formado espirito aquelle que se vence a si proprio, a
~raas paixões, a suas inclinações, á tendencia para os prazeres e
gosos, e assume o caracter de austeridade e de ,fominio sobre si que
o tornam notavel .entre os seus irmãos.
O amôr de Deos póde criar estes caracteres, póde dar estes trium-
phos coritra a propria natureza, póde formar homens que abneguem
de sua existencia em favor do proximo e que são o exemplo da mais
pura caridade.
O padre Thomé é um modelo de virtudes, difficil de emitar-se;
por isso, sua vida ahi ficou gravada no espírito do povo como de um
dos poucos que entre os eleitos soube cumprir sua missão.
Ainda está na memoria de muitos o acto de r espeito e de mutua
· veneração que se prestaram em face da população d'esta cidade, o
padre Thomé e o padre Feliciano Prates, 1.0 bispo d'esta diocese, no
dia em que fez aqui a sua entrada episcopal. Todos viram o mestre
e o discípulo, o padre e o bispo, ajoelhados um ante o outro, entre
lagrimas e confusão, sem saberem q ual devia ser o mais humilde.
Quadro digno de conservar-se no Pantheon de nossa cidade, para re-
memorar virtudes que podem vir a ser raras, mas que o não deviam
ser para felicidade dos povos!
De duas corporações soubemos nós que tentaram requerer a sua
beatificação, e que foram demovidas d'esse intento por autoridade
competente. Mas beato ou não, no índice da Igreja, elle foi um vulto
vener ando entre os seus coevos, e ha de ficar sempre como tal n a
memoria das gerações porvihdas nesta terra.

IV.
Thomé Luiz de Souza, nasceu na colonia do Sacramento, so bre a
foz do Rio da Prata., então dominio portuguez, em 21 de Dezembro de
1770, oriundo de familia portugueza, que no abandono q ue fez Por-
t ugal daquelle territorio r efugiou-se como os demais nesta província.
Era seu pai cirurgião-mór. .
. O jovem Thomé foi desde seus primeiros annos destinado pa:r;-a a
vida da Igreja, e por isso foi d'aqui enviado para o R io de Janeiro,
on de fez seus estudos no seminario de N. S. da Lana.
Bem cedo foi ordenado presbiterô pelo bispo D. José J oaquim Jus-
tiniano Castello-Branco, recolhendo-se a esta cidade, onde estava sua
famili? , e em companhia de seu irmã o e depois de seus sobrinhos.
- 86 -
viveu todo o longo estadio de sua vida, Jando o cxemr, lo v ivo da c<1 -
1·idade, da m ansidão e da mais n otavel castidade.
Foi mestre de la tim por muitos e dilatados annos e seus discipulo:,; ,
dos quaes a inda alg4ns existem sexagenarios, lembram-se com sauda -
de do mestre bondoso e intelligente que lhes descerrava aos olhos inda
infantes as bellezas de Lacio. Entre os já fallecidos conta-s.e . o l.º
bispo d'esta diocese, o padre F elidano José -Rodrigues Prates, qu<'
como e lle amou a virtude . ·
A sua provisão de professor publico de latim para a v illa de Porto
legre, tem a data d e 1 5 de Outu bro de 1807 e está assignada pelo
vice-rei Conde dos Arcos. Servia o lugar desde esse anno até 1831
Em trinta annos ele sua vida , de 1816 a 1846 é que o padre atra -
vessa toda a sua ascensão h ierarchica na igreja. lenta e obscura de
títulos, mas resplendente e aureolada de virtudes no coração do povo
que o amava e qu e o admira va.
Quando se ..:reou bi pado na província , todos os olhares voltaram -
para elle , e talvez atravessasse a mente do Imperador primeiro o
nome do santo homem que occupava o lu gar de vigario geral em
Porto Alegre ; mas cor~·eu um boato adrede inventado ou real e que
aproveita a aos que queriam dispensar favo r es em vez de servir ac.
paiz - e era que o padre Thomé não aceitaria o lugar de bispo l'
que mesmo era de uma bondade tal que não poderia arcar com a
corrupção e altaneir a em que v.iviam os padres da provinda. - O
padre Thomé era pm·o amÕl', não teria forças para derr ibar a matta
brava da nova diocese . Talvez houvesse exagera ção em quanto ao
sacerdocio do novo bispado, mas quando assim fo se, n 'uma religiã o
de amôr e perdão, seria aquelle padre, que era puro amôr, que se -
mearia com mais vantagem a palavra de Deos, e dirigiria com ma is
firmeza a nova igreja .
Exemplos de bon · padres havia-os inda, Thomé. e F eliciano U-
nham imitadores na pureza d 'alma e na sinceridade de suas crenças.
e algumas parochias viviam na paz e na tranquillidade do coração d '
seus pas tores.
E' em 19 de F evereiro de 1816 que por provisão do bispo D .
José Caetano d a Sih,õ Coitinho foi o padre Thomé nomeado exami -
nador synodal.
Em 9 de Dezembro de 1819 , por pro, i ão do mesmo , nomead o
defensor dos matrimo11ios.
Em 23 de Ou t ubrc , de 1823 teve as honras de conego d a cathedra l
do Rio de Janeiro , pvr provisão do mesmo .
E' ainda por pro visão do mesmo bispo, que em 4 de Maio d t.•
1832, foi nomeado vi;;ario encomendado da freguez ia de N . S . Ma -
d r e de Deos d'esta cidade , cargo que occupou até a sua morte.
Em data de 1 5 , 1e F e vere iro de 1833 , por provisão do viga rio
g-eral Antonio Vieira da Soledade foi no meado vigario da vara d c1
-comarca de Porto A l• gre.
E arcipreste por provisão de 4 de Dezembro de 1840 do v igari o
capitular Monsenhor arciso da Silva Nepomoceno. .
Tae eram os títulos do virtuoso padre, quando a qui chegou o
illustrado conde de !rajá , bispo da diocese, que poude de perto obser-
var a man sidão d'alrna , abnegaçffo do mundo pela observancia do:-
preceitos do Divino Mestre , e d_esin_!eres~e das_ glorias terrestres e
hier archias da igrej a. A sua admiraçao foi mamfesta, surpr ehendeu-<,
a realidade e sua boa alma prestou homenagem ao merito elevado I"
raro, nomeando por provisão de 30 de ~faneiro de 1846. vigari ger al
da província.
- 87 -

O padre Thomé com,ervou • a vigarari.:; da Madre de Deos até a s ua


m01:t~, p~lo amor q ue . tinha ás s~as OYfilhas, ao .povo q ue por elle es-
tremecia ,- e com q uem elle repartia, moeda por moeda, t odos os seus
honorarios, nunca alimentando a susperstição, e condemnando no seio
das fam ilias, a hypocr isia e os erros o)m o exemplo, com a palavra e
com o perdão. Í'lao quiz o provimento da nova parochia das Dores,
por ser pobre e não dever suportar :is propinas de um vigario que
se alimentaria á custa do poyo sem 1.ierramar a esmola para o bom
exemplo q ue é o conforto d'alma .
E nem pode haver má interpretaçõe:,, porq ue no seu espirito não
morava a ambição, nem o interesse. Como padre era o exemplo vivo
da caridade; e como homem e funccic ,na-rio nunca r eservou uma eco-
nomia, porque para elle ella estava no amôr do pobre , np amo r
ct·aquelles que sofriam.
Não lhe fa ltou , entretanto, incentivo par a ambição: desde os
primeiros dias da 'liberdade e do Imperio , seu nome foi lembrado pelo
povo, e quer no conselho da provincia , quer na assembléa provincial
legislativa, tomou assento para advogar a causa do processo e liber-
dade da patria. A sua presença ali, nos conselh,os populares, ~ra vene-
r anda , e mais . de uma vez, e sempre ultimamente era clle que presi-
dia-os, com a mansidão e calma que tudo temperava , exconjurando
os t umulos e a s exacerbações das más paixões.

V.

No meio da agitação política que tr,o uxe a revolução de 1835, o


pa drt! Thomé Luiz de Souza, então deputado á assembléa legislativa
da província, foi victima das más paixões, dos rancôres que dividiam
os dous partidos, e quando um juiz de paz (1) tomou a si a tarefa de
processar os chefes da revolução, o seu nome foi incluído na lista em
que figurarava:m Bento Gonçalves da Silva , José Gomes Jardim, Ono-
fre Pires da Silveira Canto , Pedro José d 'Almeida, Silvano José Mon-
teiro de Araujo e P a ula , e muitos outros, processados nos crimes, de
insurreição, rebellião, roubo, rapto, deturpamento, incendio, &c. , &c.
Poderia dar-se a os agitadores como causa directa ou inditecta de
taes ~rimes na província , visto que tomavam a r esponsabilidade da
resishmcia armada, e faziam levas de cidadãos para levantar um exer-
cito q ue trabalhou por mais de nove annos em guerra aberta, em
desabrida campanha contra as forças do Imperio ; m a s ao padre Thomé
era uma irrisão dal-o como autor de crimes taes. '
E' verdade que em virtude d'esse processo os indigitados nelle, fo -
r am perseguidos, emquanto que o padre Thomé foi r espeüado e já-
mais presidente algum ou chefe militar teve nem ao menos a inten-
ção de o levar ao carcere, como se fazia a todos os convencidos d o
crime de r ebeldia.
A sua mansidão evangelica, o seu amor á ordem, o punham. á
salvo de qualquer attentado contra sua liberdade, além d e suas im-
munidades sacerdotaes, e da influencia que exerciam seus parentes, o
Dr. Amer ico e marechal José Ignacio, o primeiro dos quaes exerceu
por mais de uma vez o cargo de vice-presidente da pl'ovincia.
Comprehende-se, no entanto, o que sofreu aq uella alma , toda dada
a o exercício da caridade, em face d'aquellas atrozes calum.nia . auto-

(1 ) Manoel José da Camara.


- 88 -
risadas e escriptas n ' uma sentença condemnatoria, que , pretendia in -
famal~o ante os olheis de seus:, ·cçnicidadãos. . . . . ·_· .. . .· ... . . , . , .... ,
Depois d'éste facto_ o tribunal e 'i nst ituiç&,o do juizaqo de paz,, da
magistratura popular, pelo qual t odos ·nós Iios estremecíamos,, escres
veú a sentença .de · seu proprio banimento, . tor nou-se .. ·otj,ioso, . e ab1;iu
margem á possibilidade d e uma r eforma, que depois , foi lei com data
de ·3 . de n ezembro . d e 1841. H aviam 'atirado .muito . aito . a . pedra d o_
escandalo, para .que não cahisse sobre apropria cabeça e os esmagasse ..
Era ferir muito o coração de um homem de .bem, e a larga scisura
teria derramado muito sangue, se d'ali. não manasse copioso o balsamo
d a càridade sobre os rancorosos que . a tinham feito. :
O padre Thomé era a mansidão evangelica, a caridade christã, o
typo raro da castidade. S ob a egide de taes virtudes elle soube trium-
phar das fraquezas humanas, da sorte asinha que só é p artilha dos
corações enfraquec idos .

VI.
Examinemos o padre Thomé sob qualquer das feições em que o
representamos, e teremos sempre ante os olhos um heróe , que no r e
t iro e sem ostentação bate-se dia por dia co tra as ten tações, contra
as seduções dos prazeres santificados pela grandeza do fim, que e
a existencia necessaria da familia, da propagação da especie.
Vêl-o-hemos pobre, derramando a esmola no ilencio da n oite pe-
las janellas e rotulas das casas das familias indigentes, temendo que o
saibam os que recebem, mas sem tem ~r a calumni.a ou má interpre-
tação dos que o podiam surprehender no seu mister de caridade.
Teve quasi um seculo de vida e seus honorarios nunca lhe deram
uma reserva ca paz de o pôr á s~lvo das maiores necessidades. Viveu
com os seus parcamente e ainda nos seus u ltimas annos, nós o víamos
dividir o que recebia com as parcas despeza s da casa e os pobres a
quem destinava os pequenos embrulhos de uma pataca cada um, para
dar aos que já não podia levar pessoalmente á ca a. _
L embra-nos ainda dos muitos que só a elle se confessavam, e só
d'elle queriam os conselhos, repassados de caridade e emoção, como
os daria o proprios Mestre.
A sua intelligencia só enfraqueceu nos u ltimos dous mezes de vida:
a té ahi elle procurava ir a cathedral e officiar ajudado do seu p resti-
moso coadiutor e digno sucessor, o malogrado m ancebo (1) a quem o
bispo D. ·F 1iciano havia dado as ordens de presbítero e ungido n a
0

pratica das vir t udes que aprend era do santo varão então quasi nona-
.iteuario .
O padre Thomé L u iz de Souza , rendeu seu espírito ao creador .
no m eio da . consternação dos seus e de toda a cidade, em 14 de DP-
zembro de 1858, com 88 annos de idade, e , na mente convencida do
povo , deixando o p erfume de su as rescendentes e raras vi rtudes.
VII.
N os ultimos dias de sua vida o padre Thomé teve provações amar-
gas, ás quaes respondeu, sem queixar-se, apontando para os que d'elle
dependiam e r ecebiam o conforto e a protecção.

(1) O padre LUIZ MANOEL GONÇALVES DE BRITO, ainda


.bem jovem fallecido .
e manações que pudessem tr a hil-os. E para ganhar tempo e deter o;:;
-cães, abateu o bugio que tivera a imprudencia de vir espreital-os.
Emquanto uns assim exhauriam os recursos de defesa, a peonada
-de André tão pratica e conhecedora de semeJhantes meios como elles
proprios, não os economisavam para alcançal-os. ·
D,esembar.ç and,o; ,cotiheceiam .:.1ogo-~o desàs"tre da 'perda dos cavallo~
,e conclúfram que: fugiam a pé. Puzeram pois os animais á pista.
- Furtam-nos a volta, disse um parando ante a preza que agonI-
sava atravessada d'uma fr echa. Vamos negaceal-os d e outro geito .
Divir'l.iu a gente em d uas turmas e cada uma tomou differente caminh o
-com o proposito de se reunirem n' uma campina fóra do mato.
O mulato e o companheiro sahindo do bosque, entraram n ' um des-
campado, onde agacnados entre as macegas proseguiam rapidos na r e-
t irada. Ahi encontraram uma partida volante de frroupilhas. Crearam
.alma nova , e, em vez de recuarem, avançaram, esperando a pé firme
O inimigo não tardou muito, vinha a marchas forçadas. Além da cer-
ração, o auxilio que viera como cabido das nuvens, deu a Moysés o
condão de fazer prodígios. E os fez. ·
Quando a gente de André pensava agarral-os e conduzil-os come,
terneirinhos á mangueira, soft:n::u tal refréga , que nenhum conseguiu
-escapar; uns mortos, outros prisioneiro;,.
- Caramba ! rugiu o mulato, que pech,ifila morruda!
IX.

A ESTANCIA DE GIL.
Devemos algumas explicações ao leitor.
Qq,qe,;. ?S :i:.elações do vaqueano com . o caçador·!
Porque o ultimo 'resolvera tomar parte na revol ução, reluctando
:ao principio em acompanhar quasquer das particularidades?
Lancemos uma vista d'olhos ao passado, onde descortinam-se
as peripecias d'um drama congenere do que vamos esboçando.
Em 1813, Gil de Avençal,. descendente d'uma antfga familia de vi -
centistas, que no começo do seculo XVIII viera em demanda de nova s
terras, vivia na Vaccaria feliz e abastado . Menos inquieto que a raça
cyclopea d 'onde provinha, raça que vencera todos os obstaculos e do -
tara o Brazil das fronteiras actuaes, Gil sentara a tenda sedentaria
no sertão e deixara a vida deslisar como trnnquillo regato ::í sombra do
arvoredo, Deos lhe déra para cumulo de venturas uma terna mulher P
quatro loiras crianças, prole mimosa e gentil em que •remoçava e IQ
cujos sorrisos transparentes de candura, desfra nzia o cenho de natural
carregado.
Possuia uma estancia de seis a sete leguas.
Quem no pino do dia contemplasse seus dila'tados domínios, o:;
immensos plainos a perder de vista, teria um espectaculo digno de
recrear-se. A ubera savana semelhava a uma alfombra de turmalina
com os mais variegados recamos, formados pelos reflexos de pellos
dos innumeros rebanhos. Ali a s r ezes não se contavam senão nos apartes.
Se havia necessidade de carnear uma, dois laços iam procurai-a; um a
enlaçava pelas aspas, o outro a pialava; e a abundancia era tal, que
levavam apenas a porção mis preciosa. O que largamente r emanescia
deixavam para repasto dos urubús aninhados nos calvos mamillos dos
sêrros, ou aos maracajás e cães selvagens de espreita no debrum da
selvas.
N'essa terra abençoada , onde a charrúa do progresso só ha quatro
96 -
seculos . começou a rotêá'r, todos · têêtn ô seu ; quÜihão na distril5uição
dos bens;' irida · a esp'hinge . da miséria e do inforturiiO sem nome rtãô
:atiróu àos arigulos do êspàçO um eriiginâ desolador que faz aborrecer . a
. vída e blasphefuar· de · t>ecis. Ninguém rriõrré ·de fome. Os 'fructos pen~
dem das arvores seculares, ·a maniva r ebenta por mil estolhos do ter-
reno inculto, os campos peiam-se de-arrrientio sem con ta. Parecem dizer :
P assarõs · do céo; habitantes d ás florestas e das campinas, vinde, isto
tudo é vosso. O colono deixa a: patria•, e das praias ultramarinas vem
faminto, · s·e quioso, desesderadd ao eden de Colombo, á luz · d'um sól
que alenta · a m ã o mata. A Europa é o Promothêo mythico, em cüjas
visceras o bico d'um ab utre trabalha sem cessar : a communa, que ha
de arrojal-a morib,mda ás portas do futu r o. A's vezes 'o homem aqui
rriesmo arranca úrn grito de angustia , róla na degradação 'd e s ua propria
entidade. . . Porque? PorqUe herdamos · com uma dvilisação extr anha ,
importada diariamente, seu,i vicios organicos. '
Esquecemos· a originalidade que nos · era pl",')p ria p ela copia servil
q ue nos mo,:;tra contrafeitos. Deviamos ser para imita r e não imita-
dores.
Deixemos, porém, a díg.r essão e voltemos ao remanso de felicidade .
Fallem os de Gil. ·
Além d os cabedaes ri,encionados, dizia-se que elle tinha em ·cofre
r iquezas fóra de toda a estimativa, ouro que minerára em época r e -
mota nas lavras de Santo Antoni0, perto de Caçapava.
O maior amigo do esta11cieiro era José Capinchos. Occupava um
d os principais póstos da fazenda e era pago como n enhum posteiro do
tempo. Recebia m ensalmente qu atro dobrões, tres rezes para alimen-
tação, . uma raçã o de tudo que consumia-se em casa, devendo j untar-se
a ta es vantagens a per missão d e criar n'uma sesmaria de campos · e
m atos que lhe fôra doada.
Capinchos tinha rara habilidade para insinuar-se no animo do
amit;o, que, em qualquer negocio por mais intimo que fosse, o consul-
tava, fa zendo sempre prevalecer sua opin ião.
Maria , a mulher de Gil, via seus conselhos_ b ons e santos, como o
coração que lhe pulsava n o seio, destruidos ao influxo d'um extranho,
a quem d esde o principio vutára descor:fiança, e para e qual sentia / ão-
instinctiva aversão, que procurar exti_riguil-a foi sempr e da r -lhe incre--
mento.
Era um anjo, Maria: a aza negra dos presentimentos tocou-lhe o
cr istalino lago d'alma, riçou-lhe a superfície serena. Entristeceu a
olhos vistos. E a prevenção em que estava para com o posteiro fizeram-
n'a por veze~ como entrever planos tenebrosos que, incubados silen-
ciosament e no cerebro, vinham refletir-lhe na fronte sombria. P or ém
calava tudo, r ecolhia-se merencoria e r esignada no santuario de suas
vir.tudes, n o amor de seus filhos . Não queria qile o m ais tenue laivü
de dissabor annuviasse o céo do lar., onde j;í.mais crusara o lozango de
t empestades domesticas.,
Uma tarde Capinchos sahira com Avan ça! a uma correira na selva .
Dizem que voltára sósinho.
No dia seguin te a casa do estancieiro era um lugubre scenaric , um
quadro de horrores. Maria e trez filho s tinham sido assassinados. O
marido, ninguem sabia d'elle, bem como d o primogen ito das criancas.
N 'um ápice fôra consumada uma tremenda tragedia! A morte sel-
lára tantos labios scintiliantes de vida e innocencia ! Almas cand idas e
puras o braço do crime abriu-lhes as veredas celestes, correu -ihes a
cortina dos horisontes íntérminos, atirou-as aos braços de Deos.
Quem desfez o idylio da ventura ?
- 97-
Que ave maldita soltou o pio agoureiro sobre a mansão placida e
risonha, o retiro campestre sumido e obscuro na immensidades dos
desertos americanos? 1

Foi o ninho do beija-flôr no sarmento da mucunan. O pamI?eiro


veio e levou-o!
Iriêma.
(Continúa)
A ESCRAVATURA
FABIO A SALUS'.rlO .
EPISTOLA QUARTA.

Aguardas a continuação da minha epistola.


E tu, S alustio, estás certo que não faltarei ao prometido .
Distrahiu-me o hebraísmo de Herder, mas sabes que não sou para
tratar de fosseis quando a natureza em todo o esplendor de suas pom-
pas viv.aces acena e me falla; H erculano pouco me dizia em suas
mumias e marmores neste momento em q,uc as la\'as do Vesuvio se
derramam sobre as aldeias dos arredores.
Deixei H erder pelo dialogo do discípulo de Socrates. O predecessor
das doutrinas do Crucificado da Judéa tem mais interesse para o meu
espírito -e conforma- se m elhor com o que tenho qu e dizer -te. E' da
moral, é da sorte do homem que Lu m e questionaste.
Tratemos do nosso negocio .
Quantos brasileiros, filhos de scravas, suppões t u que na sçam
nestes vinte e um annos?
Tu me dirás que excederão a um milhão, e aceito o teu arbitra-
mento.
Vês bem, Salustio, que trata-se nesta questão da sorte d e um mi -
lhão de creaturas que não devemos considerar só economicamente, mas
tambem religiosa e politicamente.
Achas que devemo deixar no aba ndono , sem ed ucação e sem ensino
todos estes brasileiros?
Achas que o projecto satisfaz a necessid·,.d e moral que r eclama a
existencia dos n ovos livres?
Achas que só o Estado deve tomar so bre si a tarefa r!e preparar
esses brasileiros para fazerem parte da vida nacional ?
Conheco-te bem, Salustio, para antecipar tua resposta .
A sorte dos n ovos livres está commettida ao dever do Estado e a o
patriotismo de cada um de nós. Pode ser ta mbem objecto de especula -
ção industrial .
O novo l ivre, criado no se io de sua mãi, dóde ser r ecolhido aos
oito annos aos asylos de liberdade, casas de educação m oral e de en-
sino profissional agrícola ou industrial, d 'onde saiam agricultores ou
industriaes, para rotear as terra s devolutas ou estabelecer o:fficina s ou
f ~"'>::icas.
1) novo livre deve ter a educação do trabalho.
P erguntarás quem deve sustentar os asylos de liberdade; e dir-te·
hei que elles se sustentarão por si, pelo trabalh o dos proprios edu -
candos.
Que gasta o Estado com os e tabelecimentos, que são productivos.
-99-

e augmentam de valor, convenho, porque esse capital voltará para os


seus cofres, por venda feita á companhias agrícolas, ou particulares.
Quando te disse que elles deviam igualmente ser confiados ao nosso
patriotismo, entendi qu~ comprehendias bem que criando em nossas
fazendas ou granjas, esses nossos patrícios, obtinhamos braços que lhe
eram aditos pelo habito e pela gratidão, melhores que os colonos es:-
trangeiros, a quem cteixamos pagar na justa razão do trabalho.
Dize-me, Salustio, (é uma pergunta que qualquer outro moralista
te faria) não seria preferível deixar no seio materno a creança até os
oito annos, e d'ahi leval-as ao asylo, á casa do trabalho, d'onde sahiria
para libertar sua mãi e ser cidadão operario hone1sto, do que abando-
nal-o á educação da senzala e ao se1·vilismo por vinte e um annos?
O projecto de lei que me apontas é mais do que faccioso: é crimi-
noso; e percebe~ que desejo que não seja norma para nossos acto~
legaes.
O asylo é uma empreza commercial de grande alca,"lce economico ,
porque obtem braços productivos e vigorosos quasi pela troca do ali-
mento, vestuario, e paga do administrador e mestres agronomicos.
Disse, pois, com muita propriedade que elles fariam ob:ier.to da es-
peculação industrial.
As quatro paginas de que disponho apenas neste momento , não m.,.
dão largas para ampliar-te o meu pensamento, mas é a ti que fallo e
tu comprehe-.ndes bem o plano que seria mister desenvolver nesse ne-
gocio.
A educação cio trabalho, a regeneração pela mocidade , o est,ab ele-
cimcnto e collocação dos novos livres - eis os elem entos que indico
em troca do art. 2.0 da projecto falla z e argucioso que só conduzirá á
miseria e ao morticinio.
D'esta vez não segui o preceito de Horacio - e t hrevis ct placeb1s
Ave, cultor, Minervoe.
Fabio.

TANCREDO.

IV.
Eis como nasce a sympathia e o amor . ..
Um sorriso é bastante para criar um mundo de illusões, é faisca
ardente que basta para incendiar.
Não erramos pois, quando precedentemente affirmamos que este•
sentimentos muitas vezes traduzem-se n'uma palav!.'a, ou revelam-se
em um gesto.
Estas paginas intimas não brotou-as a phantazia de poeta, o se.tti ·
menta que transbordam derramou o coração e não a penna.
Trancredo amava e amava muito ...
Marina era a estrella polar que o guiava no meio d'essa plaga infi-
nita onde não raream as rosas nem os espinhos; não calculava os obi-
ces que podiam surgir no trilho de sua jornada, porque o amor não
calcula, nem crê nos impossiveis que desfaz a esperança bebida na fé
do enthusiasmo.
A fronte do moço fervia em delirios.
Tancredo era outro homem ; já não era sua tez de vinte ann os
o espelho onde reflectia-se a placidez da alma, ella trazia o sello do sof•
frimento ·que é a vigilia.
Quem ama , luta tambem . . . é grandiosa a vugna, porque quasi
Inst. Hist. - 7
- 100 -
'
i;empre é o espírito debatendo-se, tentando quebrar o circulo- de ·ferro
das convenções sociaes.
Mas o mundo que passa ri-se dos esforços frageis dó lidador que
tra balha, e o gargalhar da turba cava um tumulo ás mais bellas aspi-
rações, porque mata a fé e sem ella não se vive, vegeta-se
Tancredo passava pela quadra d e illusões porque todos passam,
quando o coração extravasa borbotões de mocidade.
Almasonhadora, captiva-se ante um sorriso, que elle mesmo não
sabia definir se tinha sido filho da cortezia, ou inspiração de um sen-
timento mais elevado ; a phantazia abre as azas e vôa enlevada por
elle sem medir o vôo arrojado que faz nas regiões tempestuosas ãas
paixões. vôa desmedidamente sonhando um futuro de felicidade , olvi-
dando que quanto a imminencia é mais alta, mais feia tambem é a
quéda.
O que colherá o peregrino na affanosa romaria ? Elle mesmo o ignota
e quando a razão quer reassumir o domínio que lhe é devido, o coração
pulsa e em cada pulsação parece-lhe que o aconselha , murmuranao
caminha.
E o idealista jovem cede, dizendo -comsigo : Ao porvir o que é de
porvir. E ' que nem sempre o triumpho pertence á razão!
Mas ha uma pessoa que acompanha passo a passo as tr ansi çõe:;-
rapidas porquP passa o pobre moço, e querendo advinhar o que é , tem
por mais de uma v ez enxugado uma lagrima furtiva , sem ter (:ncon-
trado uma solução que satisfaça.
O ente que véla sollicito, é desnecessario dizél-o á min ha leitora,
que já sabe de ànten:,ão que não póde ser senão D . Elvira . a n obn;
mãi de Tancredo.
E ' real que ella não conhecia a causa , mas via os effeitos estampa,
dos na face pallidà do filho.
Até então sua vida methodica tinha dividido o tempo em horas de
trabalho e de descanço, as primeiras que eram do labor diario que
traziam ao lar o necessario á vida phisica , não tinham soffrido altera•
ção alguma, mas as ultim:cis que o moço partilhava entre a mãi e o:;;
l ivros, companheiros da solidão , tinham perdido uma hora que ~ra
~asta n'um passeio que fazia todas as tardes.
Esse passeio que invertia os costumes habituaes, ao mesmo ten,p,;
que sua physionomia deixava lêr as agitações que iam pelo interior ,
eram motivos bastantes fortes para attrahir a attenção da mãi ex tre-
mosa. para quem o filho era um pensamento constante.
Um dia elle chegando de volta da perigrinação. sentou-se fatigado
j unto a ella; esta sóube aproveitar a opportunidade que o acaso lhe
r·on cedia. uara s<>ber ::iquillo que ha muito procurava penetrar.
_ Escuta , filho, disse, será indiscripção minha perguntar-te o que
vai-te pela alma? isso que guardas . com tanto zelo no imo do peito,
mas que tua fronte de moço mal sabe disfarçar, e teus olhos em
cada lampejo trahem impiedosamente?
O que pergunta, mãi? murmurou elle ...
- Se não é indiscripção minha saber se soffres ?
- Indiscripção! estranho tanto a linguagem, porque é a primeira
vez que a oiço e não sei o que fiz para merecel-a . . .
-:-- Não, Tancredo, .a minha linguagem não mudou, porque a ori-
gem é sempre a mesma ; quem mudou foste tu, eu sou a mesma ; o
que fiz para perder a tua confiança, ignoro, só sei que soffres e não
me concedes como 01-1tr' o_ra o quinhão de teus pezares; isso magoa-me.
101 ~

e - se minas palavras são ungidas de amargura é porque são filhas dos


extremos - que te voto.
- Perdôe-me, não trazem minhas palavras a mais leve censura,
minha siceridade desfará a impressão d 'ellas ; não minto dizendo-lhe
que não soffro.
- Não soffres!? balbuciou a velha e um riso de duvida frisou-lhe
os labios; no entanto a tua tranquillidade passada não vive comtigo,
a s noites serenas e placidas deram lugar ás insomnias, unicas conso~
cias dos soffrimentos; o pó cobre os livros, companheiros insepa-
raveis d 'outros tempos, revela o despreso que merecem hoje : e a me-
lan colia apagou as alegrias dôces d'outr'ora que o coração reflectia em
te u rosto, e dizes que não soffres; não, não posso crêr-te ...
- Deve crêr-me ; não a illudo com falsos protestos, dizendo-lhe
a quillo que não sinto; repugna-me a mentira; não nego-lhe que meu
v iver de hoje tem agitações que em outras eras não as conhecia; se
não tem o sello da serenidade, não traz famb em o cunho do infortunio,
tenho uma alma que identifica-se com as impressões que recebo em
meu caminho. Se vejo aqui um deserto arido, onde o ardor do sol
mata o tenro arbusto, e onde impera alternadamente a calmaria e o
t ufão , fico triste, porque o deserto árido me entristece e a calmaria
me suffoca ; mas se alli encontro a véiga florida descerrando aroma:;;,
palpitando vida em cada flôr que desabrocha, sinto-me outro, porque
a veiga florida desperta-me o enthusiasmo , e a flôr que desabrocha
concede-me seus perfumes. Eis o que soffro e o que tenho.
- Pois bem, seja verdade o que dizes. o que não comprehendo e
o q ue não posso explicar a mim mesmo é como as impressões de hoje
d e ixam-te traços tão visíveis que as do passado não poderam deixar!!
- Explico-lhe eu, mãi, é que vivo- menos retirado que anterior-
mente, e mais pertq das agitações do mundo, que inspiram ...
- A melancolia ante o deserto árido, disse ella, concluindo a
phrase do moço, ·e o arrebatamento despertado pela veiga florida, 1: ão
é assim?
E ' mnha mãi; mas vi e encontrei ma is do que isso .. .
- E não seria imprudepcia perguntar o que foi?
- Não é; a impressão mais cára para mim, não fo i esta , fo i a de
tel-a encontrado, minha mãi, no meu caminho, coberta com as galas
e louçanias dos deseseis annos, moça e linda, desfolhando sorrisos em
min h a passagem ...
D . Elvira fitou o filho estupefacta.
- Vi mais; vi sua imagem de anciã r eflectia n ' uma fronte de
moça e sua alma de mãi incarnada n 'um corpo de anjo.
Vi tudo isto e am ei tudo o que via.
D . Elvira começava a comprehender os soffrime ntos do filho.
- E que nome dás, proseguiu ella com doçura, a esse pa inel de
côr es tão bonitas?
- Chama-se. . . Marina , murmurou o moço em effusão.
O silencio succedeu entre ambos ás ultimas p alavras.
Depois de a lguns momentos de mudez em que a nobre senhora
parecia recolhida com seus pensamentos, ella fitou o moço emquanto
que com uma das mãos alisava os cab ellos q u e cahiram-lh e sobre a
testa juvenil , ao mesmo tempo que seus labios descerravam um sorriso,
poêma de doçur a e b ondade.
Fitou-o algu ns momentos n 'um extasi de affecto e quebrou o si-
lencio com estas palavras, palpitantes de amor :
- Eu confesso, filho , que meu temor foi fem inil, porém, quando·
te via triste e alegre ao m esmo tempo , tinha medo, porque não p odia
- 102 -

comprehender como á sombra de um mesmo tecto se podesse alliar


sentimentos tão oppostos, scismava sem pod er adevinhar, não me v i -
nha á memor ia que t u ainda não tin h as pago tributos á mocidade que
te arfa impetuosa no seio ; agora que sei o que te vai pela a lma, peço -
te que tranquillizes-me de t odo . .. E 's amado?
- Crieio que sim, mãi. balbuciou o moço beijando-lhe a dextra.

V.

Duas palavras sobre a protogonista d 'este conto .


Marina merece um capitulo, porqu e seria imperdoavel que deixas -
semos nossa leitora cingir-se ás impressões receb idas nas - PAGINAS
INTIMAS - de Tancredo , que a pintou com a penna, espadanando ar-
roubos apaixonados.
Mariria é realmente o lyrio do val desce rrando as pétalas ao orva -
lho da alvorada.
Se ha um ser creado, para quem a natureza profusamente conce -
deu dons de b e lleza ; esse ser é ella .
O thuribulo do sacerdote não queimou insenso aos pés de uma falsa
divindade, nem o sonhador criou uma illusão desfeita ao primeiro
lampej o de luz matutina.
Quem ama tem por qualid ades indispensaveis ser poe ta e artista .
E Tancredo o é. Artista extasia-se ante uma das virgens de Ra -
phael; - poeta , a dmira um poema , que não é m a is que um sorriso
de mulher.
Tentemos um leve bosqueio de sua existencia .
Se fossemos fatalista diríamos que uma má estrella illuminaria
com o clarão da desgraça o berço innocente de Marina.
Seu pai m or r era t res mezes antes d'ella ver a luz do dia e sua
mãi pagara com a vida o t ributo da ma ternidade .
E o que seria da avesinha, que tinha ao nascer a orphandade, e
implume não p odia voar na amplidão i mmensa , nem caminhar sobre
a terra , onde brota á par da flor olente o espinho venenoso, se uma
mão generosa não acalentasse o berço da recemnascida ?
O que seria da rolinha no momento em que o machado do lenheiro
tombou o ninho com a quéda da arvor e?
O que seria senão a existencia de uma florinh a nascida ao romper
d'a lva e ao meio-dia crestada pelo ardor do sol no zenith . ..
Mas a dextra carid osa que cerrara as palpebras da mulher, infeliz
quando sentia fugir-lhe a v ida, no momento supremo que cingia á
fronte o dia dema de mãi, devia tamb cm cobrir de beijos a boquinha
infant il que soltava o primeiro vagido. . . Sublime painel que debu -
xava um tumulo e um berço, uma aurora e um crepusculo !
Assim foi e assim o fez D. Margarida.
Os laços contrahidos entr e Margarida e a mãi de Marina , jámais
0 tempo podera-os quebrar, tinham-se fraternisado nos bancos colle-
giaes e a affeição da infancia g radualmen te a u gmentaria nos lances
da vida positiva .
Margarida tinha sido o a njo da ternúra e da amizade junto do
· 1eito da amiga, não podia deixar d e ser a sacerdotiza da caridade ao
pé do berço insonte da orphãsinha .
Margarida comprehende u a religião do dever debaixo do modesto
nome de - madrinha ; e o arbustosinho fragil cresceu vicejante à
sombra do ipé copado, protegido dos vendavaes.
Acompanhar passo a passo a existencia de Marina , seria traçai·
u ma longa chronica , perfum;id;;i com o affecto e o amor ," lenda radian -
103 -
te do lar domestico, sempre rica de sentimentos, porém sem utilidade
para a narração; passaremos de longe por este período da vida da don-
zella, para acompanhai-a no momento em que attrahe nossa attenção .
A educação moral de Marina, dizemos com pezar, resentia-se de
alguma falta de modestia, que seria sublime, se podesse alliar-se á sua
belleza. Os extremos de sua madrinha foram a causa da vaidade que
lhe apagavam e escureciam qualidades que de outro modo realçariam .
Habituada a ouvir dizer sempre que era bonita, que disputava ao
jambo o moreno da côr e ao cysne os meneios graciosos, Marina, ao
principio corava ante os enthusiasmos de sua mãi adoptiva que lison-
jeava-lhe o amôr proprio sem pensar que indiscretamente alimentava
uma qualidade que não é vicio quando é limitado, mas que é funesta
quando a falta de bom senso não tem força para esmagar no embryão
o arrojo de um sentimento máo .
D . Margarida era boa, tinha os dotes precisos de uma mãi extre-
mosa, mas não possuía CIS predicados essenciaes de perceptora ; por-
que uma lagrima de Marina trocaria a severidade indispensavel por
uma doçura culpavel. E' com esta educação carinhosa de mais, mas
bastante nociva, que a moça tornou-se orgulho~a de seus attrativos,
orgulho que tinha habilidade de occultar a todos debaixo de uma falsa
modestia, não deixando sequer uma leve sombra de suspeita.
A imparcialidade de narrador força-n os a tocar ,com a censura o
t ypo sympathico da donzella, mas essa m esma equidade faz recahir
soqre sua madrinha toda a culpabilidade.
Um grande contraste apresentam as duas familias protogonistas
d'este conto, a diversidade de educação de ambos os jovens enlaçados
no mesmo affecto, affastava-os um do outro, porquanto - um bebia
no lar domestico a - vaidade; - o outro a - modestia ...
Serão felizes ?
O futuro nos dirá ...
(Continúa )
O TROPEIRO
CAPITULO I.
A S A FRA D A MAN DIOCA.

Era costume de minha familia assistir os primeiros dias da safra


da mandioca , em uma chacara, no Caminho do Meio.
Quando o inverno começava a entristecer os campos e a de ·maia r
o esmalte asulado dos céos, já aquella boa gente da chacara d av a
principio aos preparativos para a nossa recepção.
Quem passasse pela estrada e olhasse para a nossa casinha , veri a
logo , que havia festa al i.
As janellas abertas, as portas francas , o terreir o varrido sem uma
folha seca , o movimento emfim d 'aquelle povo, tudo denotava a o
mais indifferente olhar um grande acontecimento.
E a nossa estada a h i no inverno era realmente um grande acon -
tecimento para aquella gente.
Era a safra da ma ndioca, a que ia dar-se começo.
Quem não assistiu ainda ao primeiro dia da farinhada, não cal -
cula o que vai de .contentamento e prazer.
Todos vão á roça da mandioca que ondeia e brilha ao bater dos
ventos como um mar todo de esmeralda, estremecendo aos raios d o
sol. Ahi entregues ao trabalho , gracejam, espandem-se na intimidade~
da convivencia, emquanto um d 'elles canta uma d'essas cantigas sim -
ples que aprendeu creança. mas que só mais tard e , o coração e o iso -
lamento unge de poesia e sentimento .
A quebra ela mandioca é um trabalho que não cança, porq ue a
a legria e o enthusiasmo anima o braço que faz v ir á flôr da terra a s
raízes da p lanta.
Duas horas depois de terem ido á roça, já se vê na tafona o
monte, onde ao de redor se acommodam os velhos, os moços e os
meninos sem distinção de sexo, na permutação dos capotes.
Momentos depois oroclizio tra ba lha , e as prensas gemem sob o
impulso vigoroso do braço habituado ás lidas dos campos. E no mei o
d'aq uella agitação constante. mas cheia de sorrisos, e de gracejos.
cheia de a legrias sinceras, ouvem-se os sons da viola consorciad os ás
vozes melodiosas de uma moça , pura e innocente como uma d'essas
naturezas privilegiadas de que Deos formou o seu brilhante cortejo.
E o trabalho, e aquella t umultuosa alegr ia, vai até alta noite , em-
bora o vento frio sopr e impetuosamente, embora a neve em flocos caia
sobre o estendal das colinas, e torne em chrystal as aguas límpidas · e
puras das serenas fontes , onde se estampa o asul esplendido elos céos .
Na atafona nem de dia, nem de noite param as machinas e o
m ovimento; e quando vem o somno ou a fadiga , geme a viola no b ra -
ço do moço lavrador e uma voz dôcc logo se associa aos sons do in s-
trume nto .
- 105 -
Outras vezes depois do gemer da viola e da cantiga , um dos
raspadores suspende a faca , agita-se em posição de descanço no cepo
e ,começa a narração de um d'esses contos populares d e que está
cheia a n ossa província.
Uma noite eu estava entre elles, e ouvi o conto do tropeiro .
II.

JUCA SERRAN O.

Um dia Juca Serrano deixou sua mulher e a filinha , loura creança


de alvura de neve, e lá se foi á caminho da Vaccaria para em breve
voltar conduzindo alguma tropa.
Sob o poncho do tropeiro palpitava um coração nobre e ardente
de amor.
Laura, a s ua mulher, era seu idolo.
E se alguem por acaso lhe dissesse um dia mesmo gr acejando que
Laura não o amava com todo o estremecimento de uma natureza exces-
sivamente sensível, Juca Serrano, seria capaz de commetter um ho -
micidio , ou perder o uso das faculdades mentaes.
Já não era a.mor, o que elle sentia, era uma adoração sem limi-
tes, um fanatismo inconcebível que não se póde descrever, a nã
q uerer se comparar o e.n thusiasmo, o enraisamento, a grandeza d o
sentimento que se aninhava no coração do tropeiro , á uma d 'essas pai-
xões periodicas de que é victima a mocidade menos pensadora e cuja
existéncia dura tanto como uma flôr arrancada do hastil.
E como poderia elle deixar de amar L aura?! Ella era tambem sua
filha. Seus pais morreram deixando-a com cinco annos; e sem mais
parentes, Juca Serrano a recebeu em sua choupana , viu-a crescer e
tornar- se moça junto de si.
Se o tropeiro não deu-lhe o cultivo do espirita, ench eu- lhe o co-
ração de thesouros de virtudes.
Ríspido e severo com todos, physionomia concentrada sempre, só
Laura exercia o poder de vel-o alegre ,risonho e meigo como uma
natureza infantil.
Um sorr iso, um olhar seu, era só bastante para tornar branda e
<lar alegria á natureza aspera do tr opeiro.
Só junto de Laura , dizia o Ser rano , . é que sinto viver, ali so,u
feliz e nada mais desejo .
Quando elle segu ia para a Ser ra, despedia-se de sua mulher como
se fosse á longas terras, para n ão voltar tão cedo. ·
S eus olhos banhavam-se de lagrimas e sua · fronte ennuviava-se de
tristeza no adeus da despedida.
E quando se ia estrada fóra , nas horas calmas do dia, ou á luz
suave do luar, n 'aquelle isolamento immenso e cheio de tristezas, seu
coração desabafava os pezares na cantiga mela.ncolica do filho dos
campos.
III.

INGRATIDÃO.

Corria o mez de J u lho de 1836.


Na fra lda oriental do Morro de Sant'Anna , estavam acai~padas as
forças rebeldes ao mando d o cor onel On ofre.
O acampamento estendia-se das terras .do velho Francisco Terra ,
até quasi as proximidades do Capão da F umaça .
- 106 -
Ainda hoje vê-se n'uma eminencia como que dominando aquella
solidão a Casa Branca, transformada então pelos republicanos em
hospital. Era ao entestar com os campos d'esta fazenda que se via a
casinha do Juca Serrano, protegida por duas figueiras seculares, dei-
xando apenas ver-se a fachada, como uma garça escondida n'uma
moita, e com o peito unicamente descoberto.
Do acampamento á casa do tropeiro era apenas um galope.
Laura na ausencia do marido costumava receber as visitas de
um tenente das forças rebeldes, chamado Pedro Xavier.
Aquellas visitas amiudadas, a convivencia do tenente, foram logo
pela visinhança interpretadas com bastante pezar para Laura , e em
poucos dias não se fallava senão na conducta ignominiosa da mulher
do tropeiro. Porém d'esta vez a opinião publica não errara; Laura
havia-se deixado cahir do seu pedestal de virtudes, talvez para sempre.
Ella que apenas contava 17 annos, sem experiencia do mundo.
não teve a coragem necessaria para pisar o aspide da seducção que
havia de envenenar-lhe a existencia pura e immaculada.
Pobre Juca Serrano! Entranhado lá pelos sertões da Serra, cru-
sando caminhos cheios de asperezas e de precipícios, quando julgaria
elle que a desgraça e a vergonha haviam de mãos dadas transposto a
soleira do lar rustico e pobre, mas animado outr'ora de alegrias e
riquezas d'alma!
Pobre d'elle! Talvez lá fóra derramando n'uma de suas cantigas
singelas, pelas solidões tristes e silenciosas, o fél da saudade que
exuberava-lhe por cada fibra do coração.
Ah! pobre do tropeiro!

IV.
DESAFFRONTA.

Havia já decorrido um mez e meio da partida de Juca Serrano.


As sombras da noite desciam sobre a terra, algumas estrellas já
resplandeciam tristemente nas alturas.
Só quem presenciou o aspecto dos campos a esta hora solemne é
que póde aquilatar as tristezas, a melancolia que se allia a todos os
objectos da natureza.
Ao longe, - lá negrejam as serranias, uma ou outra arvore gi-
gantesca isolada, transparece nas eminencias, brilha á furto uma luz
na janella da cazinha do lavrador; tudo é silencio, só se ouve o far-
falhar da rama das arvores, a fonte a soluçar ou a voz do campeiro
que se perde além na immensidade.
N'essa noite o vento sopra va bem forte, reverberando impetuo-
amente os fogos que já luziam no acampamento, como um immenso
cardume de pyrilampos.
A lua não tardava a apparecer, já a pallida claridade que a pre-
cede por detraz dos morros annunciava a sua vinda.
Tudo er silencio. Ouvia-se bem longe sómente a cantiga de um
camponez, a qual pouco a pouco se tornava mais intelligivel, até que
afinal escutou-se perfeitamente a seguinte estrophe :
De saudades não se morre,
Se morresse eu não voltava ;
Pois distante d'estes pagos
Só por elles suspirava.
- 107 -
Logo todos conheceram aquella voz merencoria, que buscava no
canto mitigar as saudades da mulher e da filhinha, que já ha tanto
tempo não as via.
Era Juca Serrano!
De repente, porém o tropeiro emmudeceu.
Um visinho, seu amigo, conhecendo-lhe a voz, foi a seu encontro.
O tropeiro parou.
Então, disse elle, como vai isto por cá?
- Assim . . .
- E Laura e minha filha '?
- Laura?! . .. Esta reticencia e entoação suspendeu por um ins-
tante a palpitação do tropeiro .
- Morreu?
Morreu unicamente p ar a a tua affeição e sem mais preambulos o
visinho expôz o procedimen to imperdoavel de Laura.
- Oh! não creio, disse o tropeiro, atirando para traz com deses-
pero os cabellos negros e bastas, que a viração agitava, e apertando
como um desvairado o cabo da faca presa á cinta.
- Bem, disse o amigo, só te peço que sejas prudente; e retirou-se,
deixando o Serrano estatelado no meio da estrada, com a alma entre-
gue ás afflições de u ma dôr irremediavel.
Um raio da lua bateu-lhe em cheio na face lívida, vindo teste-
munhar a desesperação d'uma alma nobre e altiva e as primeiras
lagrimas repassadas de amargor que seus olhos derramavam na vida.
Moment os depois o tropeiro seguia a galope o caminho da casa, e
quando chegou lá perto, sentio gelar-se-lhe o coração, e a cabeça co-
mo ligada a um circulo de ferro.
A' sua chegada os cães latiram,. mas logo emmudeceram, reconhe-
cendo o senhor. Juca Serrano bateu á por ta ; sua mulher não se fez
esperar,· mas ao vel-o sentiu um abalo immenso, fico uimmovel como
uma estatua, e não teve um sorriso , um abraço para o pobre tropeiro
que ha tanto já não a via.
A frieza, os embaraços, aquelle abalo de Laura, a condemnavam
aos olhos do marido .
- Então com o está minh a filha , per guntou elle com os olhos
presos no chão.
- Vai indo bem, respondeu, sem podei-o fitar .
E nem mais uma palavra foi trocada entre ambos, por longo
espaço.
De repente Laura quebrou a mudez que reinava.
- O que tens, Juca?
- Estou doente.
- Mas o que sentes?
- Um mal que não se cura? !
- Um mal que não se cura?! repetiu ella.
- Sim. Estou deshonrado. O que fizeste , Laura, da tua virtude,
disse o tropeiro levantando-se e os olhos derramando chispas de fogo.
- Oh! não te entendo . . .
- Ja sei de tudo . . . Emquanto eu me expunha a atravessar os
matos da Serra, por ti e por minha filha, tu me abrias a sepultura.
Ingrata! Abandonada de todos eu te acolhi bem creança sob o meu
tecto, dei-te depois o meu amor, o meu nome, e em paga de tudo
isto, mulher infame, atraiçoaste-me.
Juca, basta . . . disse ella supplice, ajoelhando-se.
- Levante-se . . . a Sra. não tem direito de me pedir mais nada.
- 108
P,eça ao sed uctor que lhe mostrou o caminho · da deshonra e da des-
graça.
N'este momento a porta do quarto se abriu e Pedro Xavier lhe
disse:
- Eu aqui estou. Quer uma reparação, não é assim? Pois siga-
me e traga suas armas.
Juca Serrano foi á r ede em que dormia a filhinha e a beijou
como em delirio.
Emquanto á L aura, nem um olhar, nem uma só palavra lhe
dirigira.
Ella desesperada, quasi como louca , soluçava de joelhos de fron-
te a uma imagem de N . S. das Dôres.
Passados poucos instantes dois tiros repercutiam n 'a quella solidão ,
e Laura cahiu desmaiada.
Pedro Xavier morrera. Uma bala atravessou-lhe o coração , sahin -
do ferido o Serrano tarnbern no hombro esquerdo.
O tropeiro voltou á casa foi á rede, tirou a filhinha , e montou a
cavallo chorando como uma creança. Até hoje não se sabe para onde
fôra .
Laura ficou louca e dois mezes depois foi encontrada morta n ' uma
sanga profunda , nos campos da - Casa Branca.
Achylles Porto-Alegre.
Porto Alegre - 1872.
/

ESTUDOS PHILOLOGICOS
I.
Lige ira opinião sobre a formacão das linguas. Fórmas q ue revestem
segundo as épocas. Fórmas synthcticas e analyticas. P ri ncipaes pontos
de cliscriminação entre umas e outras.

As linguas se formam nas palingenezias sociaes e são a ex pr essão


de phases e revoluções operadas no seio da humanidade.
Querer entroncal-as a uma outra, filiando-as apenas pelo fana ti -
mo ás filiações, é desconhecer a verdade histor ica , é desnaturar a
marcha do espírito humana sempre em busca de melhores fórmas que
-correspondam com mais exactidão á suas ideias e sentimentos.
Assim o francez, portuguez , hespanh ol e italiano não mostram em
s ua formação a tão preconisada descendencia e origem da lingua la-
tina. Decompostos, separados no cadinho da analyse os quatro idiomas
mencionados, não apresentam senão uma amalgama de differentes
elementos em sua contextura . Applicado o mesmo processo exclusi -
vamente ao portuguez, não deparamos as feições latinas como tentam
fazer crêl-o, e sim uma mescla de caracteres diversos. Como o rauda l
d 'um rio, assim elle atravez dos seculos foi recebendo em sua passa -
gem os cabedaes que o constituem actualmente. Em cada período
aparfeiçoou-se, desde o celtiberico rude, pobre, e sel vagem até o brazi-
lico, em que supera bunda de riqueza e viço como a natureza americana.
e a phrase adquire contornos suaves e inflexões euphonicas, que em
Portugal estão,.longe de conhecer, e, quando lá o conhecem, o extra-
nh:am em apostrophes ás vezes desabridas, com o fez Pinheiro Chagas.
Mais tarde responderemos a tão distincto escriptor de além-mar.
Quanto á pretendida e decantada latinidade, vamos expôr as con -
siderações que o assumpto nos suggere. .
Uma lingu a morre, passa do labio humano para o sarcophago el e
esquecimento · absoluto ou para jazer nas estantes d' uma bibliotheca ,
não é por mero capricho dos destinos dos povos. E ' que esta lingua não
tem mais o direito de ser fallada, e, se ainda subsiste, é pelos traba-
l hos do pãssado manifestos na gratidão do presente. A India , Egypto.
Grecia, e Roma attestam-n'o claramente; e eis o motivo porque h oj e
procuram soletrar os hie r oglyph os d' uma pyramide ou da teocalli me-
xicana , e o espírito adiantado dos tempos m odernos esmerilha com ve-
neração os dípticos dos marinores de P aros, as r elíquias de Hercula-
num e Pompeia e os palimpséstos da era gothica . Constituíram um
poderoso auxiliar na antiguidade, foram tr aços característicos d 'uma
civilisação que herdamos, deviam forçosamente existir nos archivos d o
·f u turo. Outr as, não deixando monumento dign o de perpetuar-lhes a
memor ia , no dia que a pedra dos tumulos sobre ellas cah iu, morres
ram para sempre.
- 110 -
Formular pois sem mais nem menos uma conclusão que torne uma
das linguas vivas actuaes um como estôlho ou perfilhamento d'um
tronco morto, será sempre em nossa opinião o desconhecer radical-
mente o genio das d ifferentes épocas, dos povos e até a physionomia
geographica, que tem mais influencia do que suppõem por meio de
perfunctoria analyse. Quanto á ultima observação . para roboral-a bas-
taria lem brar que na Europa falla-se o inglez, o por tuguez e o hespa-
n hol, e as mesmas são falladas na America, porém já distanciadas na
pronuncia e no vocabulario do uso ordinario, muitos termos do qual
são verdadeiros neologismos, mineração riquissima e original produ-
zida pelas circumstancias do clima , costumes, &c.
As linguas modernas não nasceram sómente do influxo admiravel
das grandes revoluções operadas pelo christianismo e invasão dos bar-
baras,- que conseguiram demolir a gigantesca fabrica romana ; uma
outra necessidade facilitava e impellia seu apparecimento. O esp írito
humano tendia a manifestar-se com mais precisão e simplicidade, sem
o sequito de difíiculdades de que até então fôra rodeado , substituin-
do as fórmas analyticas ás syntheticas. Era toda uma questão de
futuro , toda uma nova phase historica , que separaria duas civilisações
tão completamente que o confundil-as seria para sempre impossivel.
Separação pelas novas raças que vieram povoar a Europa , pela reli -
gião e pela linguagem.
O idioma do Lacio, no momento em que elle attingira o auge de
esplendor e gloria, neste seculo denominado de Augusto , foi tambem
quando começou a ter consciencia dos defeitos que a deturpavam, da
obscuridade, difficiencia de clareza e concisão e falta de methedo que
impediam de reproduzir fielmente o pensamento em suas varias e mul-
tiplas graduações, na complexidade de seus cambiantes. Havia um la -
byrintho no systhem a dos casos e verbos, no gener o dos nomes classi-
ficados sem fundamento logico, na variedade infinita das dezinencias.
no hyperbatho, que, ás vezes usado com moderação imprime graça .
energia e elegancia á phrase, tornado porém construcção d'uma língua
não passa d'uma incongruencia insupportavel, que traz por companhia
o tedio e a fadiga.
Um r omano para sabei-o bem devia gastar tempo precioso e lon -
gas lucubrações, como um fleugmatico habitante do Celeste Imperio á
cata dos r epresentativos de cada palavra.
Por isso na propria Roma nem todos se exprimiam por identica
linguagem. O latim de Tacito, latim sabio pela estructura, não é
o de Plauto que reflecte com mais naturalidade a conservação fami -
liar, os costumes, a vida intima , nem o de Plauto é o dialecto que o ·
vulgacho fallava na cidade, como os rusticos e os povos das provincias
conquistadas. Os ultimos então necessitando de serem comprehendi-
d os em suas relações com os conquistadores adaptavam á linguagem
d'estes, polida e estudada, a barbaria da sua, grosseira e informe. O
ultimo facto põe em evidencia a anarchia que não iria em paizes tão
distantes nas trez partes do mundo avassalladas pelos descendentes
de R omulo.
As questões sobre orthographia não eram somenos, nem menos
complicadas. As origens perdiam-se na noite dos tempos. Hoj e depa-
r amos nos desaterros das cidades classicas adormecidas sob a crosta da
lava vezuviana inscripções que -fariam perder a cabeça ao m ais pertinaz
ruminante de etymologias.
Não é só ahi, em eminentes authores as mesmas controversias.
Augustus, o imperator, para debellar a desordem propunha o meio de
escrever as palavras conforme a pronuncia , meio racional e consequen -
- 111 -
temente o unico legitimo, que deviam pôr en. pratica entre nós, em
vez de evocar diariamente processos fósseis bazeados em analogas con-
tradicções. E não só o propunha, como o fazia.
Os romanos sobre a palavra autor, por exemplo , levantavam es-
carcéos. Uns a derivavam do verbo augere, outros do grego, ~ a dis-
sidencia trazia tres maneiras de represental-a: autor, auctor e author.
Ora taes ougas grammaticaes podem satisfazer a espiritos ociosos, se-
rão filhas de épocas, onde o pensamento sob a tutella do despotismo
ou da superstição, que não deixa de ser 'tambem uma de suas fórmaf
ostensivas, não ache outra esphera de actividade ; porém, á luz d'um
seculo de liberdade e conquistas democraticas em todos os sentidos,
não é simplesmente esperdicio de tempo, é outrosim a degradação de
si mesmo, a inconsciencia da missão da personalidade humana . En -
tretanto, ai do escriptor, que, como o padre Theodoro de Almeida ten-
tasse a escalada! O dente viperino da critica não lhe pouparia o crime
de leza-antiguidade.
Temos até então fallado quasi exclusivamente dos defeitos das
linguas que procedem pela synthese, como o latim, o grego, o sans-
cripto, &c. , isto é, das que regeram as primitivas civilisações.
Fallemos das que procedem pela analyse, isto é, das modernas.
Iriema.
(Continúa)
I

- 112 -

POESIAS

A' LIBERDADE .

Em tudo o que de grande e magestoso,


A mão do Eterno fez surgir do nada ,
Teu nome escripto está , em tudo o leio,
Dos céos oh filh a, oh e manação sagrada!
E tudo o que tem voz , murmurios, cantos,
Parece ai n da repetir teu n ome!
Estrella a scintilar por noute immensa
A t ua eterna luz nada a consome!
Teu brilho ás vezes se escurece um pouco ..
Nuvens que passam no teu céo , estrella!
Oh! mas depois ç'l e te offuscarem rapid~ s,
Tu volves a raiar inda mais b ella!

Oh liberdade, e u b e m te vejo e escuto ,


Em tudo o que de gr ande me rodeia !
No mar immenso que destróe colossos
E beija a suspirar a branca a r eia !
No correr do tufão que arranca á terra
O roble secular que ali nascera ,
E vai depois b eijar, todo em car inhos
A violeta que se en laça á hera.
No condôr que se eleva e rasga as nuve n s,
E nos a r rulhos das pombinhas m eigas;
No espadanar das aguas em rochedos
Na lympha a deslisar por entre as veigas.
Oh libe rdade ! oh m inha virgem loira ,
Mal h a ja quem te busca o longo manto,
E cob erto com elle inunda a terra
De sangue e maldições, de l uto e pranto .

Chamou-te a F rança e m a larido enor m e,


A ' Fran ça foste da Gironda ao brado ,
Mas quando o povo d elirou, que viste?
Por terra o teu vestido espedaçado.
Depois ergueu-se a t r eda g uilhotina,
E a voz que te chamara ali se cala.
Vergniaud! Vergniaud! . . . afflicta imploras
Mas a G ironda já não tinha fa lla.

Então que viste oh liberda de? . . . e u tremo


Só de lembrar o que teus olhos viram!
Tantos tyrannos e grilhões tão ferreos ,
Ne m a ntes, nem depois, homens sentiram.
113
Fugiste espavorida!·· as v estes ·rôtas,
E os cabellos de sangue inda manchad os!
Maldito aquelle que te erguer um templo
Assente sobre corpos mutilados.
E' santa a guerra e u bem o sei, se acaso
A voz da patria nossa brio inflama.
Na defesa do lar, como que o Eterno ,
As benções sobre nós ledo derram a.
Mas tu oh liberdade, oh loira vir gem ,
O troar do canhão e o sangue odeias,
Precisos não te são ; a heroica Hespanha
Sem. sangue espedaçou duras cad eias.
P or t i n ã o veio o Redemptor ao mundo?
E á voz divina tão sósinha e man sa ,
O cofre não ·se abriu de almas venturas,
E m que o nosso pres~n te inda descansa ? .
E o futuro v ir á; uma voz intima
Me diz que has de reinar de mundo a mundo.
Q u ando a luz da instrucção baixar ao p ovo,
Qu ebrand o o povo seu dor mir profundo .
P orto Alegr e - Ma io d e 1872.
Manoel Gonçal ves Junior.
-114 -

POR QUE?

Porque deixaste, pallida madona ,


No teu riso sonhar tantos amores,
Beijar a tua mão tão nivea e beUa ,
De teus cabellos respirar as flores ?

l\([uitos amores e u frui, sentindo


Dilatar-se-me a vida em doce enleio!
Porque na embriaguez de meu delirio
Não fugio-me a existencia no teu seio ?

Porque tu vinhas ao cahir da tarde -


De amores me fallar quando e u scismava ,
E me dizias a tremer? "escuta .. .
Vês quanto eu soffro?!" e te u pe ito arfava ! .

Porque v iste despertar-me n 'alma


Os preludios de amena phantasia ,
Se d evias fugir-me , arre batando
As doces illusões de que e u vivia ?

Se inda posso sen tir, p orque não volv es


Cheia de pejo segredar-me amores ..
Eu quero ver-te como d'antes pura
Dormir formo sa no tapis das flores.

O laran jal ainda tem p erfumes,


Seductora v isão de m eus anhelos,
Vem scisma r ! . . . qu ero v er-te enlang uecid a . .
Sólta as tra n ça gen tis de teus cabellos!

. Como a bonin a n o rigor da sésta


A fronte r eclinares pensativa,
E comprimindo tu a mão nas min has
Trem eres como tr eme a sensi tiva .

Como a gota do orvalho se p erfuma


No calice da flor que a noite enclina ,
Deixa que minha fronte no teu seio
Se embriague de amor, mulher d ivina !

Sueiro Junior.
CHRONICA

Não começarei dizendo a os leitores que esta chronica é escripta ao


correr da penna, não; estou certo que rrie não creriam; e de mais, nao
desejo o epitheto de fatuo; escrevo sem constrangimento ; se não agra -
dar é que não possuo o cabedal preciso para chronista.
Creio que esta confissão será motivo para esperar muita indul-
gencia, e é assim pensando que venho, a meu turno, traçar algumas
linhas, que significarão antes o cumprimento de um dever, do que
uma exposição expontanea de idéas. E screver uma chronica, como
<leve ser ella entendida, é ··tarefa summamente importante e superior
ás m inhas forças; pouco pois direi, conscio de que por isso não me
desejarão mal.

-000-

Começarei por dispertar nos leitores a lembrança de um moço


que ha pouco despiu as roupagens terrenas, e voou a envolver-~e em
nuvens de ouro e rosa aos pés de Deos.
Fall.o de Affonso Luiz Marques ,d'aquella fronte pallida, onde
scintillava a luz da intelligencia, e onde mais tarde deveriam viçar
corôas de louros.
Quem não o conheceu?
Quem não pranteou o seu prematuro passamento ?
Erguido apenas para a luta das idéas, tendo na fronte a in s-
piração, que expandia na eloquencia da palavra, tombou exhausto no
começo da romagem, legando ao mundo a sua corôa de vinte quatro
primaveras, recendente de perfumes.
· Foi de certo uma fatalidade! Affonso Marques honrava a sua
terra, e nella perderam as lettras patrias um dos seus mais esforçados
lidadores.
O Parthenon Litterario, que o contava em seu seio como um
athleta vigoroso, entristeceu ao vel-o desapparecer da terra, e, ferido
o coração, desprendeu nenias de pezar infindo.
No dia 10 do corrente, trigesimo do seu passamento, teve lugar
uma sessão funebre.
A salla estava coberta de luto, velava a bibliotheca uma cortina
de crepe, e apenas um ponto branco destacava-se em uma das pare-
des lateraes; era o retrato de Affonso Marques moldurado de sau -
dades e perpetuas.
A's 7 horas da noite, reunido um grande numero de so~ios, abriu
a sessão o Sr. presidente honorario Dr. Caldre Fião, e em um bem
elaborado discurso fez o necrologio do desditoso mancebo.
Em seguida se fizeram ouvir os Srs. Augusto Rodrigues Tota, Car-
los de Lavre Pinto, Zêferino Vieira Rodrigues e José de Sá B rito ,
Inst. Hist. - 8
116 -
que recitaram sentidos discursos, e os Srs. Hilario Ribeir o, João Da-
maceno Vieira, Francisco de Sá Brito, Gaspar Guimarães e Achylles
Porto-Alegre, que em tristíssimas endeixas attestaram o que lhes ia
no coração.
Muita lagrima humedeceu as faces d'aquelles, que com expressiva
inceridade, rendiam um preito de honra á memoria de um irmão.
Lugubre er a o momento; os olhares se encontravam como que se
interrogando, e iam cravar-se na cadeira enlutada onde sentava-se
Affonso Marques.
E' que ali havia um lugar 'de diffic;il"preenchimento ; é que a sau-
dade pallidecia -nos a fronte, e não mais reboava a voz suave ele um
amigo.
A's 10 horas levantou-se a sess_ã o , deixéj_nclo nos im1,:lersos em
vro.funclo tristôr.
- OÜ O -

Sempre que podemos annunciar o apparecimento de alguma obra


fazem ol-o com intenso prazer, e assim é que nos antecipamos em
noticiara um excellente trabalho, que consta nos estar no prélo.
E' elle um almanak da província, organisada pelos · Srs. Ignació
de Vasconcellos Ferreira e Antonio de Azevedo Lima. Ainda que
nada possamos dizer presentemente á respeito, pois aguardamos a
publicação; crêmos comtuclo ser um trabalho de merito, já por sua
natureza, já por seus autores vantajosamente conhecidos.
Saudamol-os pois, e fazemos votos para que não arrefeçam no
commettimento de identicas emprezas.
-oOo-
Mais um facto attesta que o Parthenon Litterario marcha sem-
pre hasteando o lábaro do estudo, e que o indifferenti smo, por mais
que lavre, jámais poderá matar idéas grandiosas.
Fallo da installação · do curso nocturno , cujas aulas começarão a
funccionar no dia 1. 0 de Outubro.
Negar a utilidade em um curso d'esta natureza, -m órmente quan-
do organisado como o que acaba de installar o Parthenon , seria negar
a existencia da verdade; assim dispenso-me . de · demonstrar o quanto
podem aproveitar aquelles, que , .:;ccupados durante o dia , queiram
ali instruir-se durante algumas horas da noite ..
O Parthenon, não tendo em vista senão prestar seu fraco auxilió
á quelles que d'elle carecem, julg~r-se-ha bem recompensado desde
que sejam cursadas as su as aulas.
-oOo-
Obrigado a restringir-me á vista do curto espaço de que dispo-
n ho ·n as paginas da Revista , d evo terminar, pedindo antes aos lei-
tores mais um momento ; devo recordar-lhes um vulto venerando, o
padre Thomé Luiz de Souza, cujo retrato _acompanha este numero.
Nninguem ignora quem era o padre Thomé, e aquelles, que não
o_ .c onheceram, poderão, 1.e ndo a sua biographia,. inteirar-se d'aquella
v ida sempre resplendente de virtudes.
-oOo-
, Terminando, corre-me o dever de, por parte da r edacção , agni•
decer o bom acolhimento dispensado á Revista em o seu primeiro tri-
mestre; e esperando a contim.iação d'esse favor é que invidarein9s
todos os nossos esforços.
Por to Alegre. - Setembro d e 72.
Araujo e Silva:
REVISTA MENSAL

DA

PARTENON LITERARIO

2.ª Série - o.;.tubr o de 1~72 ~ N~º 4

-oOo-

TYP. DA REFORMA - RUA GENERAL ANDRADE NEVES . 51

1872
COMISSÃO DE REDACÇAO .

Vasco de Araujo e Silva.


Appolinario Porto-Alegre.
José Bernardino dos Sant os .
Aurelio V. de Bittencourt.
Francisco J . de Sá Brito .
Manoel Gonçalves Junior .

REDACTOR DO MEZ .

Aurelio Virissimo d e Bi tten co urt.

DIRECTORES .

Achilles Porto-Alegr e .
Hilario Ribeiro .
SANTA CAZA DA MIZERICORDIA - PORTO ALEGRE
RESUMO HISTORICO

SOBRE A SAN'.rA CASA D E MISERICORDIA

DE
PORTO-ALEGRE.

A estampa que, com o presente numero da Revista, se distribµe.


representa o edifício da Santa Casa de Misericordia d'esta capital.
Compulsando documentos existentes sobre esse pio estabelecimen-
to, cujos serviços á humanidade não precisam ser encarecidos quando
são de todos os dias, apresentamos em seguida as informações que
nos pareceram de maior interesse.

--000-

~uando governador geral da capitania de Porto-Alegre o briga-


.1eiro Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Camara, costumava José
Antonio da Silva, conhecido pelo appellido de - Nabos a doze, - tinir
esmolas para os presos da cadêa , aos quaes distribuía um caldo todos
os domingos.
Fallecendo algum tempo depois, a preta Angela Reiuna , que mo-
rava n'uma casa contigua á de José Antonio da Silva na rua hoje de-
nominada do general Bento Martins, fup.dou um asylo para recolhi-
mento e curativo de enfermos, pela maior parte marítimos, com quem
mantinha relações desde S . José do Norte, onde antes residira.
Fallecendo esta. preta, Antonio José da Silva Flores e L uiz Anto-
nio da Silva, com o auxilio de esmolas, conseguiram edificar, sobre pi-
lares de tijolo, uma enfermaria em maiores proporções no largo que
depois se chamou da - Forca. .
Ahi durante muitos annos foram tratados os pobres que necessi-
tavam ae socorro, sendo cirurgião gratuito um filho do dito José An -
tonio da, Silva, que exercia iguaes funcções no corpo de tropas em
guarnição nesta cidade.
A enfermaria a que nos referimos, começou a funccionar nos pri-
meiros dias do anno de 1795, sendo d'ahi por diante sustentada pelo
incansavel esforço dos dous bemfei.tores, cujos nomes acima nomeá-
mos, e pelas esmolas com que concorria o povo.
Chegando á esta cidade em 1788 Joaquim Francisco do Livra-
mento, fundador do hospital de caridade da cidade do Desterro (Santa
Catnarina) , e mais tarde dos seminarios de Itú e Sant' Anna, na pro-
víncia de S. Paulo, de Jacuacanga, na do Rio de Janeiro, e dos or-
phãos de S . Joaquim, na da Bahia ; associou-se áquelles devotos e pro-
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seguiram os tres com todo o ardor na honrosa tarefa que se h a via m
proposto , ajudados tamb em pela camara, que entendeu dever tomar a
dianteira na partilha dos trabalhos a r ealisar.
Desejando aproveitar o r _.ligioso fervor de que se achava possuí-
d a a p opu laçã o, J oaquim Francisco do L ivra m ento pôz á disposição da
camara os seus ser viços, declarand o que estav a prompto a ir á Lisboa ,
se l h e foss em fa cultados os precisos d ocumentos, impetrar do prín -
cipe r egen te a g r aça da creação de um h ospital de caridade n est:.i
cidade.
A cam a r a, em nom e do povo que r epr~sen ~é\va, de u-lhe um a ttes-
tado, no qual, de pois de d emonstrar os ' honrosos' predicados de Livra-
m ento , solicitou á muito alta e poderosa pieda d e d e s ua alteza rea l a
graça de dignar-se conceder fa culdade p a ra o estab elecimento de u m
h ospital q ue os fieis p r e ten d iam á sua custa erigir, consideran do essa
concessão como um g ran d e serviço feito a Deos N osso Se nhor e aos
vassallos de sua alteza r eal d 'este continente.
Firmaram sem elhante documento, em 3 de Abril d e 1802 , os ci-
dadã os Antonio José Ma rtins Bastos, Ma theus J osé da Silva , J osé An -
tonio Vieira de Carvalho, Anton io José Pereira M ach a do e J osé A l-
vares R ibeiro G uim arães.
Seguiu J oaquim Fra n cisco do Livramento para a côrte de L isb oa
a dese mpenhar a m issão, que espontaneamente tomára sobre seus
h ombros.
A l i chegado , dirigiu ao príncipe regente a sua petição, juntando
o attestado que a camara lhe entregara.
O deferi mento não podia ser duv idoso, e assim foi exped ido do pa-
lacio de Queluz a os 14 de Maio de 1803 , p elo ministro de estado vis-
con de de Anadia , um real aviso permittindo a creação do hospital
com o producto de esmolas , e recommendando nuito ao governador
P aulo José da Silva Gama o proteger, animar e favorecer quanto pos-
sível fosse as pias e louvaveis fadigas das pessoas q ue tão bom empre -
. go fazi am de seu tempo e activid ade.
O citado aviso igualmente recommendou que ás esmolas ob tidas
não se désse outra applicação que não fosse a er ecção do estabeleci-
m ento.
A 19 de Outubro de 1803 , nas casas da camara , reunidos o j uiz
presidente e offic iaes da mesa, apresent aram-se o capitã o José Fran-
cisco da S ilv eir a Casado , Joaquim Francisco A lv a r es e Luiz Antonio
da Silva, que haviam sido conv ocados para servirem de thesou reiro,
escrivão e procurador d o novo hospital.
Perguntando-se-lhes se estava m dispost_o s a ex ercer esses l ugar es
sem direito á r emuneração pecunia r ia pelo seu trabalho, r esp onderam
q u e de boa vont ade se prestavam.
O padre Francisco F erreira L eitão offere ceu -se n essa occas1a o par a
procura dor supranumerario, procedi men to que muit o abona os senti-
.mentos r eligiosos d 'esse sacerdote .
Seguiu-se depois a ceremonia do juramen_to e posse dos cargo_s
referidos. . . ,
. Em fi n s d e 1803 te ve começo a constr ucção , sob a direcção do bri -
gadeiro Francisco João Rocio, que no anno antecedente, como gover -
nador interino da província , escolhera e concedêra o local, que é . .o
mesmo em que hoje está o edifício da Sant_a Casa.
T endo traçado o plano da obra , dirigiu-a aquelle brigadeiro a ~é
1806, anno em que falleceu, sem deixar o risco ,,por escripto. Tendo,
porém, o finado communicado QS seus projectos aos. administradores,
íacil fo i. levantar a . planta , de conforwidade com as declarações . dos
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mesmos_. administradores, . a qual por copia foi. enviada i secretaria _d e
Estado, · succed endo .que á .' briginal . des.a pparect)u até ' esta data. · _
,., · Sem novidade proseguir affi os trabalh os· até o começo _do _anno . çl'é
1814, época em que falleceu o escr ivão J oaquim Francisco Alvares. ·
· Este facto lamentavel deu . l ugar a q4e o·s _o u tros dois . membr os da
commissão requeressem ao governador D ... Diogo de Sóµza a eleição de
Úma mesa administrativa, afim de que a: obra cóntinuasse sob melhor
direcção, isenta dos defeitos que . já . visivelmente se notavam. ·
' ._ ,O requerimento , informado ' em 11 de Julho do. dito a,nno de 1814
pelo juiz de fóra Dr. Domingos Francisco· das Neves,. provedor de ca-
pellas e resíduos, foi em 3 de. Setembro favoravelmente. à.espachàdo ,
sendo o deferimento ·confirmado no quartel-general de R.io P ardo em
20 de Abril de 1819 pelo governador conde da Figueira.
Determinado que se procedesse em sessão dà camara á eleição ca-
nónica da mesa, teve ella lugar ein 5 de Janeiro de 1815, .sendo go-
vernador o marquez. de Alegrete.
O resultado da eleição foi este:
Provedor, o marquez de · Alegrete.
Vice-provedor, o tenente-general Joaquim Xavier Curado.
Escrivão, o marechal Miguel Lino de Moraes.
A 20 do mesmo mez foi a mesa empossada no palacio do governo .
Pretendeu aquelle provedor, que serviu até 1818, mudar o hos-
pital mili'tar para as duas enfermarias e. duas pequenas casas que a
esse tempo estavam concluidas, mediante· o aluguel que se pagava . á
casa particular occupada pelo mesmo hospital; porém a mesa recusou
acceder aos desejos do marquez pela poderosa razão de que o povo ,
unico onerado com as despezas da . construcção, queria que o novo
estabelecimento só tivesse por fim soccorrer as pessoas pobres acco;m-
;mettidas de molestias, e sem recursos para tratar-se. ·
· O marquez de Alegrete, contrariado com a resolução da mesa,
ordenou arbitrariamente que os presos militares fossem occupar a s
lojas da Santa Casa, apresentando como justificação d'esta med ida a
necessid ade de concertos na prisão militar. ·
Justamente indignado por tão abusivo procedimento, o Povo arre-
feceu o ardor com que se consagrava á sua nobre tarefa, e as obras
tiveram de parar por falta de meios.
Pensando que o novo governador conde da Figueira fizesse retirar
os presos, attendendo assim aos justos reclamos da população, a mesa
elegeu-o para provedor nos annos de 1819 a 1821. O conde não se
contentou só em manter o acto de seu antecessor; foi mais longe ;
pretendeu remover para a Santa Casa o hospital militar.
F ez ouvir sobre essa medida o physico-mór Dr . ·Julio Cezar Musi,
que energicamente contrariou-a, e mais tarde a junta 'd e fazenda,
onde as opiniões divergiram no seguinte ponto: -- a quem devia com,-
petir a administração, uma vez realisada a: fusão dos hospitaes, sendo
a maioria de parec·e r que fosse regµlada a administração por inspecção
·militar, se a mesa n'isso concordasse.
Ouvida esta officialmente, o escrivão_ desembargador . Luiz Corrêa
,T e_ixeira de Bragança, desenvolveu -contra· semelhante pretenção tão
valente argµmentação , que a Junta afinal _fqi · contraria á pretendida
remoção. _ · . : ·. . ·
Com esta decisão tão conforme á von'taçie geral,. zang'ou-se o pro-
vedor, que abandonou os interesses dei estabelecimento confiado á sua
gerencia, sendo os presos retirados pelo gover no do triunvirato, que
succedeu áquelle gover nador. ·
Na obra da enformaria do ?-º pavimento, cosinhfl provisoria · ~
igreja gastou-se até o anno de 1824 a somma de 32:475$578 rs., pro-
dueto de esmolas dos fieis e da 3.ª parte dos legados não cumpridos,
com excepç.ão de pequena quantia: adiantada pelo thesoureiro.
Ainda durante a administração do desembargador Teixeira de
Bragança; tentou o governo provisorio a remoção · do' ·hospital militar,
oppondo-se tenazmente a isso aquelle provedor, que servio de 1822
a 1824. '
Em 29 de Maio de 1822 o imperador confirmou a irmandade da
Santa Casa e concedeu-lhe as prerogativas de que gozam todas as ir-
mandades de misericordia.
O visconde de S . Leopoldo, que foi o primeiro enfermeiro-mór do
hospital, nomeado provedor em 1825, desenvolveu a maior actividade,
de modo que a l.º de Janeiro de 1826 realisou-se o acto solemne da
abertura do hospital, sendo nelle recolhidos os doentes reconhecida-
mente pobres.
Por decreto de 29 de Setembro de 1828, concedeu-se á Santa
Casa possuir até 60 contos de réis em bens de raiz, e sob representa-
ção da m esa , que com o tempo reconheceu ser essa concessão muito
limitada , foi por decreto n. 0 597 de 14 de Setembro d e 1850 autorisada
a a dquirir bens de raiz até o valor de 200 contos de réis, com a obri -
gação de, n ' um praso dado, converter em a polices da divida publica os
bens r,btidos em virtude do mesmo decreto.
Em 1827 foi eleito provedor João Marcos Vieira de Araujo Pereira,
que instituio a botica e n'ella despendei., regular quantia, visto que a
Santa Casa não dispunha dos necessarios meios para o seu custeio .
Deu-se com este provedor um facto not.avel.
Ma ndando o presidente da província Salv~dor José Maciel alg uns
pr esos militares para serem tratados na Santa Casa, o Sr. Arauj o Pe-
reira r ecusou r ecebel-os, e indo a palacio esplicar os fundamentos d e
.-ma recusa, o presidente ameaçou-o de o fazes seguir preso para o Rio
de Jan eiro, ao que respondeu o provedor que se sujeitaria á essa vio-
len cia, antes do que tolerar a infracção das leis do estabelecimento.
que jurar;:i observar.
De 1828 a 1829 serviu de provedor o commendador Rodrigo José
cte F igueiredo Moreira.
De 1829 a 1830 Joã José de Oliveira Guimarães.
De J.830 a 1831 o marechal José Ignacio da Silveira.
Em 1832 o capitão-mór Manoel Pires da Silveira Casado .
Em 1833 a 1834 Antonio Martins Barboza.
Em1835 o conego João Baptista Leite de Oliveira Salgado.
De 1836 a 1840 o padre Francisco Ferreira Leitão.
A administração d 'eset sarcedote no período de quatro annos,
q ua ndo a província se achava a braços com a revolução que rebentára
em 1835, foi importante. Os seus serviços nessa quadra foram tão no -
ta veis, tão grande a sua abnegação, tão forte a sua fé, tão prodigiosa a
sua actividade , que a Santa Casa inscreveu o seu nome na lista dos
mais prestantes bemfeitores.
Em 1841 foi eleito provedor o coronel Bibiano José Carneiro da
Fontoura. que. serviu por devoção no anno seguinte, sendo eleito o
conselheiro Saturnino de Souza e Oliveira, que se achava á testa da
administração da provincia.
Até então .estavão paradas as obras do hospital, porque as mesas
anteriores tlrthão julgado preferivel construir casas na Varzea e rua
da Misericordia, creando-se assim uma fonte de renda certa para cus-
teio das granrtes despezas que um tal estabelecimento exige.
O Conselheiro Saturnino. porém , entendeu que era tempo de pro-
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seguir na obr-l do hospital, e obteve para o effeito alguns valiosos


auxilios.
Foi na sua administração que deu-se regulamento para .a criação
dos "expo~tos . ( 12· de -Junho·•der 184?) sendo -a casa da roda removida
para o novo hospital em 1.º de Janeiro de 1844.
Seguiu-se na provedoria o marquez, hoje duque de Caxias, pre-
sidente da província, que a maior parte do tempo esteve na campanha
á frente do exercito. O coronel Bibiano continuava, entretanto, a exer-
cer o cargo por devoção, prestando assignalados serviços.
Em fins d e 1845 suas magestades imperiais visitaram o estabele-
cimento, fazendo o imperador doação de dez contos de réis, e a impe-
ratriz de dois.
Na provedoria do marquez de Caxias fundou-se o cemiterio extra -
muros, cuja administração ainda até agora está a cargo da Santa Casa.
Serviu em 1846 o commendador João Baptista da Silva Pereira,
depois barão de Gravatahy; ~m 1847 e 1848 o desembargador Manoel
José de F reitas Trava.ssos, que continuou em 1850 por ter sido cha-
mado á côrte o provedor eleito tambem em 1849, general Francisco
.José de Souza Soares de Andréa, mais tarde barão de Caçapava.
De 1851 a 1853 exerceu o cargo o negociante Lopo Gonçalves
Bastos, que muitos serviços prestou, sobresahindo entr e elles a acqui-
sição de africanos para o serviço da Santa Casa e diversos me-
lhoramentos que de seu bolso mandou fazer no edificto.
Succedeu-lhe em 1854 o Dr. Luiz Alves Leite de Oliveira Bello,
e no anno seguinte o Dr. João Rodrigues Fagundes, que, como escrivão
da mesa anterior, desempenhara quasi effectivamente as f unções de
provedor por impedimento do proprietario.
Segundo o testemunho do dcsesmbargador Freitas Travassos, o
Dr. Fagundes melhorou consideravelmente o pessoal e material da
Santa Casa, e prestou relevantes serviços na época do cholera-morbus,
quando aquelle estabelecimento não estava provido de certos recursos
e as difficuldades se accumulavam uma sobre outras.
Em 1856 foi provedor o Dr. Israel Rodrigues BarceUos, e em
1857 e 1858 o desembargodar Travassos, sob cuja administração fm
lançada no 1.º de Janeiro de 1858 a pedra fundamental da nova igreja.
De 1859 a 1863 foi provedor o Dr. Joã o R odrigues Fagundes.
Em 1864 o Dr. Manoel José de Campos.
Desde 1865 que é provedor o Exm. Sr . . marechal de campo
Luiz Manoei de Lima e Silva, que muitos e importantes serviços tem
prestado ao pio estabelecimento.
O rtumero das pessoas que nos annos de 1795 e 1796 se cotisa-
ram para coadjuvar as despezas com a enfermaria, sobe a 293.
As informações que ficam consignadas, foram ext,'rahidas dos
apontamentos para a historia da fundação da Santa Cas~, collecciona-
dos pelo desembargador Freitas Travassos, e cuja leitura · nos foi obse-
quiosamente permittida.
,. A necessidade de ceder lugar a outros escriptos, nos impede de
dar · mais desenvolvimento a este trabalho.
Aurelio de Bittencurt.

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