(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 1
(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 1
(1872) Revista Do Parthenon Litterario N. 117 A 120 (1872) - Parte 1
(f arthenon /2ítterarío
ANO DE 18 7 2
(2.ª série)
(Separata-da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do
· Rio Grande do Sul)
N. 117 a 120
0
•
1953
OFICINAS GRÁFI CAS DA IMPRENSA Ol'ICIAL
PÔRTO ALBGRB
REVISTA MENSAL
DA
SOCIEDADE
PARTENON LITERARIO
-oOo--
PôRTO ALEGRE
1 8 7 2
COMMISSAO DE REDACÇAO.
DIRECTORES.
Achilles Porto-Alegre.
H ilario Ribeiro d' Andrade e S il va .
NOTA - Prosseguimos hoje na reedição da "Revista do Partenon
Literário", que 'desempenhou relevante missão cultural na história
do Rio Grande do Sul. Em os números 113 a 116 da "Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano XXIX,
reproduzimos os dez primeiros números da aludida rublicação, cor-
respondentes ao ano de 1869, precedidos de nota explicativa, à qual
remetemos o leitor desejoso de maiores esclart.?cimentos sôbre o assunto.
- N. da R.
FELIPE NERI
IN_TRODUCÇÃO.
Deixem-n'o passar.
E' um pobre orphão com um destino de bronze. Não vem disputar
nem palmas, nem corôas na liça da imprensa e muito menos ambi-
ciona o plintho da gloria e as ovações dos triumphos.
Quer viver apenas, se é possivel a vida n'uma época enferma,
quando o coração chora a cada sentimento que se esfolha, e o espi-
rito esterilisa-se a cada ideia que morre.
A patria necessita de todos na marcha progressiva de sua exis-
tencia. Não ha para ella um homem inutil, como não ha uma pagina
-e scripta que não traga um pensamento aproveitavel .
Deixem-n'o passar.
Se as preoccupações serias d'esse tempo, em que a mocidade en-
velhece aos vinte annos, e traz a ruga da meditação na fronte em
vez do verde sorrizo da primavera, não vos deixarem bastante espaço
para a leitura amena, se a gravidade dos differentes misteres não pu-
derem distrahir--vos, deponde sobre a meza o livro do Parthenon,
d ipticos de seus trabalhos e esforços.
Tendes razão de não lei-o.
P or ém logo u ns dedos trefegos e curiosos virão folheai-o e talvez
que uns labios ainda saturados de frescura infantil e sem o descôr do
scepticismo lhes murmure em segredo :
- Bem vindo sejas!
S im, a Revista é p ara v ós creaturas sublimes, inimigas juradas
das f órmulas seccas da sciencia e da algebra dos principios.
O homem aclimatado ás abstrações póde viver sem ella, a dis-
cussão da imp rensa diaria póde sat isfazel-o em sua avidez pelas ques-
tões que se ven tilam, mas v ós, n ão. Filhas d 'um enlevo poetico de
Deos, amantes apaixona dos por instincto e por affinaidade das flores,
quereis vel-as desabrochar até no estylo.
A m etaphora- que scintilla, a imagem que exubera de v iço, vos
fallam com mais eloquencia, convencem com mais rapidez do que o
com passo de Arch imedes e os syllogismos do padre Ventura.
Por isso amaes os poetas.
Tendes tambem razão.
Quando quizerdes comprehender o sup remo architecto do mund o,
não é por certo nas sabias dissertações dos doutores da igreja, nem
no argumento muscubso da p h ilosoph ia, é na auror a que desponta,
na campina qu e floresce e no céo que rutila, é antes nas m elodias
melancolica s de Lamartine ou Chateaubriand.
Se a Revista do Parthenon puder inspirar sentimentos generosos e
doutrina profícua ás filhas do Rio Grande, seus v otos serão satisfeitos,
.sua missão preenchida.
Protegei-a pois, acalentai-a ao regaço.
Outr' ora os paladinos arrojavam-se á justa por uma dama de seus
8
Cahio o batalhador!
E par ece impossivel! Ainda creio ouvil-o n os momentos em que
a eloquencia illuminava-lhe a fronte ollympia, iriando-a em r eflexos
divinos; em q ue seu gesto animava-se de enthusiasmo com o o au gur
nos or aculos da antiguidade; creio ainda ler as paginas que decorr iam
fluentes de seu cálamo inspirado! Creio ainda ver-lhe assomar o vulto
elevado e magestoso, aqui, nos penetraes da mocidade, no P arthenon
oázis no meio d'um deserto!
Parece impossível! E no entretanto a realidade surge pallida ,
tr iste, azia ga , pavorosa, envolta em funerario crépe!
Parece imp ossível! Tu o dizes? ,
ó pobre alma a quem a duvida suspende, não vês o sudario que
pallej ou nos espaços da eternidade?
Basta de preocupações tranzientes, tudo passou, tudo foi um
sonho! O que resta hoje? Resta um tumulo, um cadaver n'elle e a fa-
talidade que o assella.
Misero do homem! A cadeia d'um destino contigen te, fa llivel e
precario o p r ende á terra. Nem se quer uma h ora do futuro lhe per -
tence, n ão póde contar com ella.
Morte, phantasma sombrio na face das gerações, porque lhe apon -
ta ste o marco final da romagem, quando o sol estava bem longe de
deitar -se sobre sua existencia, e elle contemplava o astro da vida
com o olhar fito da aguia?
Não foi tão cedo?
Porque has de debruçar no volutabro o gigante da serrania ,• cuja
fronte assoberbava os torreões do céo, cujas raizes irrompiam robus-
tas o seio da terra e em cujo tronco circulavam rios de ceiva em cada
fibra?
Era cedo, bem cedo ainda para detel-o no meio do caminho.
Grande era a missão, •immensa a estrada a percorrer .. . , e a ideia
gelou-se-lhe no cerebro encandecido!
Pobre amigo!
Quando borbulhavam-lhe na mente o alluvio de ideias que v inham
no mais esplendido florir do talento, quando ia, quem sabe, começar o
r epouso das lutas materiais da vida, repouso tão necessario para os
cer tamens da intelligencia, o simun d'além-tumulo passou ...
PERSONAGENS:
Fernando de Magalhães 1 Negociantes Pedro Joaquim.
Ricardo da Silva .1 Araujo.
Dr. Anselmo 1 Medicas Raymundo.
Dr. Paulo de B enjamim) Aifredo.
J ulio d'Agu iar Guarda-livros Eduardo.
Commendador Torres B. Magalhães.
Octavia Adelaide Amaral.
Adelaide Maria Angelica.
Baroneza de Tapagé ' Augusta Candiani.
Margarida Roza.
Manoel } Criados Manhonça.
Acção - no Rio de Janeiro.
Actualidade.
---000-
SCENA IV.
Adelaide.
ADELAIDE (agitada ). - Rir, fin gir sempre risos, em quanto o
coração distilla lagrimas de sangue! . . . Ah! piedade, senhor, já _ n ão
posso mais, sinto-me exhausta , mal tenho forças para supportar tão
longo ' supplicio! Protege-me, Deus de mizericordia, leva-me d'aqui,
para b em longe . . . Aquellas salas inspiram horror, e tenho medo de
enlouquecer! . . . (Pausa) Homens vis! Julgam que a mulher é uma
m ercadoria e que se impõe ao coração! . . . (Arrancando as joias e a ti-
rando-as ao chão). P ois bem, eu não preciso mais do que um claus-
tro ... De hoje em diante desfaço-me d'stas sedas, renuncio a s esme-
raldas e diamantes! ... (Cahe sol uçando no divan ).
SCENA V .
A mesm a e o Dr. Paulo de Benjamin.
DR. BENJAMIN (baixo). - Veremos quem é mais .forte, com -
mendador! (Approximando-se de Adelaide). Que agitação, minha se·-
nhora ! . . . V . Ex.ª chora? ... Sente-se por ventura incommodada ?
Inst. Hist. - 2
- 18 - •
SCENA VI.
Dr. Benjamin e Julio ele Aguiar.
SCENA VII.
Fernando de Magalhães e depois o commendaclor Torres.
gem para violental-a, Sr.! . . . Adelaide não é minha filha ; porém ado-
ro-a como se o fôra. . . E ' a minha unica alegria e sobretudo um pe-
nhor sagrado!
COMMENDADOR. - N' esse caso . ..
F. DE MAG. - Forçal-a. . . eu. . . ó, não, nu nca ! Depois q ue
lhe fallei , não sabe o Sr. que grande mudança se tem operado n 'ella! .. .
Foge-me, como se visse em mim o algoz do seu futuro; se é ob rigada
a fallar- me, já não é com a mesma confiança e serenidade de outr' ora! ...
Nem sei como ha paes, que violentam as filh as!
COMMENDADOR . - Compreh e ndo perfeitamente a farça , Sr.
F e rnando de Magalhães! ... O Sr. hypotecou a mão de sua afilhada á
quem lhe offereceu maiores v antagen s; mas esqueceu-se que existe em
meu poder a hypoteca de sua honra; o credito de um negocian te a r -
ru inado .
F . DE MAG. (com dignidade). - Sr. commendador! .
COMMENDADOR. - Sei eu que ha aqui um homem q ue lh e ga -
rante uma transação mais l ucra tiva, e por isso .
F. DE MAG. - E' demais, Sr.! .. .
COMMENDADOR (tirando tres letras da carteira) . - Conhece
estas letras ? . . . E stão vencidas ha 3 mezes! . . .
F. DE MAG. - O Sr. condemna-me á um súpplicio . . . Ex ige o
que não está em minhas forças! ...
COMMENDADOR. - Sacrifício por sacrifício . . . Disse-lhe q ue
amava sua afilhada e póde acreditar-me . . . P or ella sacrificaria u m a
fortuna ~olossal, que juntei moeda por moeda . . . Amo-a e se. ei seu
escravo ; dar-lh e-hei o que exigir para tornal-a inve javel de t oda s a s
mulheres!
F . DE MAG . - Julga p or ven t ura qu~ se impõe a felic idade ao
coraçã o ?! . . .
COMMENDADOR. - Ora, meu amigo, não me venha com essa s
palavras de romances. . . Passava-lhe quitação e não aceita! . . Ta n to
peor p a r a o Sr. . . . Deve-me innumeros favores e n ega-me o primeiro
qu e lhe peço . . . Prefere então o descredi to e a ruína ? .. .
F . DE MAG. (a parte) . - Horrível situação!
CQ.MMENDADOR. - Evite uma d esgraça . . . Ninguem sabe por
ora d o estado de seus negocios ; mas lembr e-se que per de r á a manhã a
rel?_utação de capitalista.
F. DE MAG. - Basta, Sr. commendador. Depois de amanhã da r-
-hei uma resposta decisiva.
COMMENDADOR. - Espero-a favoravel . . . N'este mundo ser v i-
mo-nos un s aos outros. (Saindo ) Vou á s salas; até já.
SCENA VIII.
Fernando de Magalhães, só.
SCENA X.
Baroneza e depois Julio de A guiar.
SCENA XI.
Os mesmos, e o Dr. Paulo de Benjamin.
PAYSAGEM MORTA.
A MARCHA.
José de Avençal!
Quem então o não conheceu, não por semelhante nome , mas pelo
de Vaqueano, que vinha da profissão?
Era uma natureza admiravel, não tanto pelas amplas manifesta-
ções dos musculos de ferro, como pela pericia e intelligencia com que
guiava os exercitos da republica, e a lhaneza e bondade do caracter.
Tambem jámais houvera rio-grandense que como elle, conhecesse
a província. Não lhe escapava uma geira de terra, ainda mesmo per-
dida nos invios sertões ou em banhados de largo perimetro. Tinha a
memoria fiel até para as nugas locaes. Era uma verdadeira vocação .
Seu calendario de nomes abraçava do capão sumido na campina á res-
t inga de mato ou arroio de exíguos cabedaes. Constituia de per si o
mais exacto archivo topographico, um mappa vivo e pittoresco.
Sempre sorria , quando os companheiros, ante a floresta, em que
o taquaraçú crescia unido, atado ás arvores gigantes por fortes cipós
e e ntretecide de finas e mimosas enrediças, exclamavam:
E' impossível!
Quando paravam desanimados na presença dos alcantis da cordi-
lheira ou das barrancas de caudeloso ribeirão , e ainda repetiam a
phrase de desalento .
Sorria. E o sorriso que lhe rugava o labio , era a craveira de
sua grandeza e superioridade.
Nos misteres campeiros ninguem o excedia.
Iguaes os encontrava, melhores nunca. O homem que nas brenhas
brincava com o guará, o tigre e o tapir e os subjugava ao braço como
tenra creciuma sob a pressão do vento, que receio terio do potro indo-
mito e bravio e do boi chucro e de pontas aguçadas?
Nos manejos de guerra não ficava somenos. A lança de duas
braças de longura• vibrava o bote tremendo, o pistollão atravessado na
guaiáca poucas vezes errava o tiro na andorinha que cortava os ares.
Porém , quando expandia o rosto era ao ver a rodilha do laço revolu -
- 31 -
teiar no esp aço e logo como uma goiaba aerea d istender -se, enristar-se,
cingir o corpo da victima, retel-a no ímpeto da carreira, soffreal-a
nas contorsões da sanha, envencilhal-a em estreito amplexo e estran -
gulal-a quasi abatendo-a, vendo-a humilde render-lhe homenagem ; ou
quando, as bólas em punho, rodeiado de adversarios, ia derrubando
um per um, a golpes terríveis. Essa arma de nossos camponezes rea-
liza para o homem o que realizavam as ballistas e catapultas antigas
para l\S muralhas. Onde batem, fazem uma brecha e ha quasi sem-
pre uma agonia . Trazem só uma difficuldade, o saber esgrim al-as, e
esgrimil-as não é atiral-as que é de uso ordinario.
Para os companheiros de acampamento, Avençal, o vaqueano, ti-
nha um bom lote de defeitos imperdoaveis. Não fallava senão em
caso de extrema necessidade, não bebia, jogava menos e fumava pouco
ou n a da. Já se vê que devia forçosamente ser censurado, vivendo na
t urba soldadesca, gente que tem por vida o presente como um pen-
dulo oscillante entre a botija, amante de affagos e sonhos inexgotaveis,
e o baralho, distracção necessaria para espairecimento dos sentidos
nas horas vagas.
Porém, nem por isto era menos querido e admirado .
Suppunham-lhe todos uma historia negra , factos de tem pos idos,
cujas lagrimas ainda transpareciam apezar da distancia; porque o viam
geralmente recolhido em profundas e melancolicas scismas que amar-
g uravam-lhe a existencia. Não ria, sorria apenas, o que com bem
largos intervallos se dava .
Admittiam uma hypothese, e portanto variavel como todas as h y-
potheses ; mas a tinham como verdade á luz meridiana .
Teriam razão?
O philosopho feito a fórmas dialecticas poder ia de ba ld e pregar- .
lhes largo sermão sobre o attentado, pregaria no dezerto ; que elles,
seguindo o como instincto campeiro, faculdade de longa vista mora;
que lobriga na tréva do passado e nas nevoas do futuro , iriam teimo -
sos após sua ideia.
O pressentimento, faro do desconhecido que nos preoccupa, tor-
nado certeza por mysteriosa elaboração no espírito do homem da na-
tureza, elaboração em cujo processo entra mais o sentimento do qu e
e razão, os camaradas do vaqueano envidavam todos os meios para
Ja zel-o fallar sobre o pa:,;sado. Quando isto acontecia , viam-n' o estre-
mecer e barafustar de pronto. Frustaram-se as m~is bem combina-
das tentativas.
Nos combates era o delirio personnificado. Em certo dia um offi-
::ial que o vira lançar-6e na peleja, dissera admirado : Aquelle ho-
m em tem a febre da morte. No entretanto talvez tanta audacia cons-
tituísse um escudo im~rmeavel ao ferro e ás balas. Sabia sempre
Jncolume, ainda que pe2aroso.
O leitor póde pôr em duvida o que levamos dito, julé3ndo phan-
tastica creação, que esfrola o cerebro ardente de poeta.
~gana-se.
Os principaes traços caracteristicos da physionomia que esboça-
,1;nos de leve, são tão reaes, que os encontramos a cada passo em nossa
'í)rovincia, desde o posteiro até o senhor da esfancia, desde a exis-
uencia errante do tropeiro até a existencia sedentaria do guasqueiro o u
trançador de lonca . O que ha de mais é a côr do mysterio, a som-
bra da intensa melancolia que o destaca do typo generico . Não mais
,fo ~·.:ie a acção de um drama n efasto.
Iriêma.
(Continúa) .
A RELIGIÃO NAS SOCIEDADES MODERNAS
Os povos agitam-se inquietos na elaboração de novas instituições,
fundida no grande e indestructivel molde da Justiça.
Do direito de cada homem, tomado isoladamente, no meio da
creação, tal como elle se· achou na terra, tal como a observação e o
estudo de si proprio o tem revelado, parte-se para o direito de todos ,
para a organisação social.
O direito individual, isto é, o direito de cada homem, constitue a
base, o t ypo, a norma do direito social. '
O direito social, ou por outra, o conjunto do direito de todos
fez nascer o Estado, que não é outra cousa, senão a entidade, em
cujas mãos delegam todos os membros de uma nação o dever de velar
pela justiça, que· é a satisfação de todos os direitos, na orbita em que
cada um deve exercer-se sem prejudica-r o direito de outro.
O homem se constitue, pois, em pessoa, responsavel unicamente
pelas infracções aos direitos alheios.
. Toda vez que no exercício de seu direito elle não prejudica á
outrem, embora se prejudique á si proprio, o Estado, o zelador dos
direitos geraes, não deve, não pode intervir na acção individual.
A religião é a crença, sob diversas fórmas, mais ou menos phi-
losoficas, mais ou menos absurdas e idolatras, na existencia de Deus
e na immortalidade do nosso espírito.
Crer em uma religião ou não crer, é um direito individual tão
inalienavel, como inalienaveis são o pensamento e o fôro intimo , onde
nenhuma outra acção se exerce senão a do proprio individuo.
Em que casos póde o uso d'este direito individual offender o di-
reito collectivo?
Quando é exercido sobre a via publica com exhibições de culto,
ou quando perturba a tranquillidade á que todos os cidadãos tem di-
reito, por meio de dobres de sino, ou ruido de matracas, ou então
quando se procura violentar a consciencia individual, apoiando-se uma
seita nos privilegias que lhe concede o Estado .
E' j ustamente o caso em que estamos no Brazil.
Esta nação admitte como membros da communidade os sectario s
de qualquer religião, mas reconhece como sua, como . official, uma
unica , á qual subvenciona e confere attribuições civis .
E' possível que por effeito d a immigração, ou por effeito do irre-
sistível progresso da instrucção, a religião , dita do Estado, esteja em
um mol"ílento dado em consideravel minoria no espírito publico'.
No entanto, em virtude do p rivilegio, essa religião tem a prero-
gativa de passear pelas ruas publicas os seus ídolos, de perturbar o
transito, de obrigar os transeuntes á descubrir-se e a dar mostras de
respeito e veneração.
Se um israelita passa1..· de chapéo na cabeça por uma procissão
catholica, expõe-se á ser victima dos fanaticos , aos quaes deu o E stado
- 33-
o privilegio de percorrer as ruas de andores alçados e tochas acesas.
Se. amanhã occorrer ao . nosso bispo exhibir nas ruas da cidade
a ima gem . de Santo Ignacio de Loyola, á fim de que o beatíssimo .
Santo opere o milagre de desapparecerem em um incendio geral todos
os livros que formam o cabedal das sciencias, escapando u n icamente
a monita secreta da Companhia de Jesus; eu e grande numero de
cidadãos aue não têm a ventura de acreditar nas santidades de Santo
Ignacio, de vemos curvar o joelho e adora-lo?
Não seria um attentado do bispo e de seus confrades a o m eu
direito e ao de todos os cidadãos que consideram Ignacio de Loyola
um homem funesto á humanidade, e sem jus á n ossa consideração?
Se morre um homem rico, cuja familia é bastante ignorante para
acreditar que os dobres funebres lhe facilitarão a entrada do céo ,
ver-se-ha o inaudito espectaculo de gemerem os ares com os sons
plangentes de dez, vinte ou trinta sinos, tantos quantos se balançam
nas torres catholicas.
Esta familia não commette um grave attentado á liberdade de
uma população inteira, azoinada em toda parte, na rua, no domicilio ,
á meza da refeição, na a:rpena convivencia de m festim, ou no leito
an gustioso da enfermidade, pela repercussão d'esses lamentos do bron-
ze, postos por dinheiro, ao serviço da superst ição?
E o que se ha de dizer da odiosa extorção que nos arranca o
Estado para a religião que elle reconhece?
E' justo, não é antes uma especie de roubo, obrigar a pagar im-
postos, á titulo de applica-los ás necessidades do Estado e inverter
uma boa parte d'elles em congruas para uma corporação sacerdotal,
em alfaias, em edifício · enormes, improd uctivos, e nullos para o
progresso do espírito e para o acrescimo da riqueza, quando pagam
esses impostos todos os habitantes do nosso territorio, Si-.!jam quaes
forem suas crenças repgiosas?
Ahi está o Estad o mentindo á sua missão, const ituído em infractor
da justiça.
O direito manda que cada cidadão adore á Deus como lhe aprou -
ver, ou não o adore absolutamente.
Nas relações sociaes cada individuo é livre de procurar aquellas
que lhe convém, ou de conservar-se no is01amento.
Cidadãos ha , dos mais uteis, dos mais virtuosos, que são athêos, e
outros que são fanaticos. Não resulta d'hai offensa para o direito <ie
quem quer que seja.
Ultimamente foi eleito para uma das cadeiras vagas da academié1
de sciencias da França, o Sr. Lithé, que é athêo ; mas que não deixa
por isso de ser uma notabilidade que honra o set paiz.
Ha alguem em França prejudicado por não acreditar o Sr. Lithé
ua existencia de Deos?
A religião não é meio de governo .
O Estado não recorre á ella, em caso algum para a reparação dos
direitos offendidos por qualquer membro da communidade.
O dominio da religião é puramente espiritual. Sua acção , toda
m oral, não póde estender-se além da consciencia.
Ora a consciencia está fora do alcance das leis positivas de um
~stado. Ella se rege unicamente pelas leis moraes. Toda a acção do .
Estado sobre a consciencia é portanto uma infrac.ç ão do direito indi -
vidual, é uma oppressão.
No gráo de adiant~men to á que te mattingido os conhecii;nentos
h mrianos, na altura .á que tem subido a personalidade do 'homem,
uma religião imposta pelo . Estado, ainda mesmo indiretament;e,. co~o
lnst. Hist. - 3
- 34-
II.
(Continúa ).
POESIAS
AO MARQUEZ DO HERV AL.
A MOCIDADE
Recitada na 4.ª Sessão Anniversaria do Partllenon Litei-ario.
SOCIEDADK
PARTE N O N LITER A R I O
Franscico J . de Sá Br ito .
DIRECTORES.
Achilles Porto-Alegre.
Hilario Ribeiro d' Andrade e Silva.
AFFONSO LUIZ MARQUES
AFFONSO LUIZ MARQUES (*)
"Não foi um nome que se apagou, uma
gota de menos no oceano da vida, um cor-
po frio n 'um leito de cal; - foi um busto
que o Brasil perdeu para a galeria das
grandes intelligencias".
Francisco Cunha.
TANCREDO
Offerecido ao m eu amigo F. de Sá Brito.
I.
lVIãi -- que magia encerra essa palavra, que faz da moça frívola
um ente archanjo?
Foi uma mãi que abriu á adolescencia de Tancredo bafejada com
o halito do infortunio - um mundo de esperanras.
Bt'mdicta sejas tu mulher-mãi ...
Quanto á sua mocidade . nós minha lei tora , vamos caminhar pa s!;O
á passo com ella.
II.
Tancredo tinha uma alma altiva; não era essa altivez enfa tuada
q ue é sempre filha da ignorancia, mas sim -a altivez q ue nobiiita e
que é irmã gemea do caracter independente.
E' possível, que moço e intelligen te, e agradando , (permittam- n s
a palavra da moda), Tancredo alcançasse uma d 'essas posições que
sei;npre conseguem os homens, cujo merito é rastejarem nos salões
entapetados, servindo d e capacho nos patamares das escada s palaciaes.
E' possível . . . mas elle preferira uma posição modesta conquis·
tada com o merecimento e o amor do trabalho á uma posicão elevad a
comprada com o opprobio e o aviltamento.
Jámais sua fronte juvenil abaixava-se para pedir, era pobre mas
não julgava a pobreza incompatível com a honra ; pertencia é essa
classe de homens que o mundo vulgar apon ta como orgulhosos, retem-
perados no cadinho do trabalho, que ensina a religião do dever, d'esses
que passam obscuros por entre as multidões, mas que têm e conser -
vam a realeza de seu valor perante Deus que é a - consciencia.
Era um typo original para o mundo positivista por calculo, que
prefere os pomposos trens e venera as fitas e os brazões, repellindo s,:
estamenhas que occultam a maioria das vezes thesouros de sentimentos .
A época que passa, não tem por divisa - honra e trabalho.
O tempo consumidor eterno, apaga da memoria i;:,orJular os ve-
lhos costumes que não podem alliar-se com o dinheiro e a moda .
O seculo que marcha é do dinheiro e do fraq ue parisiense.
A mão do dandy metti da em luva de p ellica, não va le a mão cal-
losa do operario no lidar da officina.
A blusa do artista é bastante grosseira para hom brear com o fino
tecido da casemira.
A palavra lhana do p roletario vibra mal no seio do salão, onde
mente-se para agradar. e a sinceridade flôr m imosa da alma nobre. é
grosseira n'uma sociedade que não vive para o sentimento , mas sim
par a o - tempo.
Para este mundo realista por excellencia , 'Tancredo n ão attrahia
os olhares senão como uma curiosidade, ou velha reliquia de uma
t radição apagada na poeira do passado e m orta na lembrança de todos
Para uns era o symbolo de uma velha anedocta, para outros não
passava de um visionario, admirador do preterihl e inimigo do p re-
sente.
P ara nós era o que já dissemos: - Um sonhador ..
III.
O nosso son hador não é um vulto rico , nem pobre de dotes
physicos.
E' um moço sympathico.
Sua_ altura é regular, e seu corpo proporcionado ,- não é nedio ma -
- 53 -
teriali sla, ne m sylpho vaporoso; n ão tem nos contor nos a perfeição que
a arte de Canova cinzela . nos ma.rmores, nem tambem as imperfeições
com que a natureza amesquinha alguns.
São seus cabellos castanhos aureola de mocidade que cinge-lhe a
fronte de moreno-pallido ; um leve colorido tinge-lhe a pelle macia da
cutis, e n em o bigode de v inte annos é tão esp esso para occultar as
curvas delicadas da boca 'pequen a.
Eis Tancredo n 'um leve esboço.
Porque é um moço sympathico ? pergun tar-me- ha a leitora curio -
sa e com o direito de o ser.
A sympathia para nós é como o amôr, sentimos em sabei-o ex-
p rimir com palavras; é um reverbéro de luz do espírito q ue passa
p ara a ma.teria, traduz-se n'um olhar, revela-se n 'uma phrase, des-
cobre-se em u m gesto e melhor do que nós, vai explicai-o o nosso
sonhador Tancredo.
Vamos, minha leitora, abri as azas da imaginação e deixai-a voar,
eu a guiarei até á soleira d'aquella cazinha branca que alveja na a b a
do monte, qual n ivea garça na esmeralda d'um lag''o. A brirei a
por ta com a liberdade de proprietario, porque não ha direitos de pro-
priedade para o romancista ...
Vamos, está aberta a porta e aconselhu-vos que entreis sem timi-
dez nem acanh am ento, pois desde j á vos concedo todos os direitos que
possuo como escripto1· d'esta narrativa.
Entremos ...
Esta salla é p equena, mas não deix a por isso de ser bem aprovei-
tada por aquelle que a occupa; é de v isitas e tambem de trabalho.
Agaro leitora, r eclamamos a attenção para aquelle folheto ma-
nuscripto, que está sobre a. meza junto da estante de livros . ..
Vamos lel-o:
P AGiNAS INTIMAS .
*
* *
F oi n ' uma d 'essas tardes, q ue te v i Marina.
O sol corr ia buscando os coxins de seu leito a ureo e o hori son te
tingia-se de r oxas v ioleta s prenuncio do crepusculo . . .
E ' a h ora das scismas, porque o cr e pu sculo é o ve rbo d a m e-
la ncolia:
T u scismavas e tua fro n te rad iava a luz de tuas desesseis pri-
m averas .
Tu er as b ella n o meio de teus scismares; t inha s a fa ce morena
r eclinada so bre a mãosinha de anj o e o corpo de madona colla do á ja -
nella , on de a essa h or a ias e mmoldurar as graças de te us encantos.
Foi assim q ue vi a primeira vez, as t ran ças de teu s cab ellos de
a zeviche cahia m sobre a s r oupagen s brancas q ue co briam-te as f ór m a s
voluptuosas e te us olhos negros desmaia va m de amores entr e supe r -
cilios avellu dados . . .
F oi a ssim q ue te v i e q ue m inha fr onte de moço desco briu-se
par a saudar- te, saudadção inspirada p or um a fo r ça occulta q ue n asceu
e sp ontanea .
T u retribuíste minha saudação com um sorriso; filho da cor tezia
ou n ão , eu só sei o que elle insp irou-me , só sei q ue m e u coração
pulsava com a v eh emencia dos vi nte annos.
Te u sor riso foi p ara mim uma auror a e um porvir, porque des-
cerro u um p oema de affe ctos ...
E e u amei-te n elle e p or elle d esde e n tão foste p a r a mim m ais
q u e a v ida , foste a m inha - r eligiã o.
( Continúa) .
A ESCRAVATURA
FABIO Ã SALUSTIO.
EPISTOLA TERCEIRA .
QUAD RO II.
SCENA I.
Octa via reclin ada sobre o r;9fá, tendo n m livro a berto entre as
mãos e Ricard.o d.a Silva qne t>ntra, páM-se contemplando a filha.
R. DA SILVA (baixo). - S empre t riste! . . . E não poder adevi-
nhar a causa à'esse soffrimento atroz! (approxim ando-se ) B om dia ,
f ilha.
OCTA VIA. - Ah!. . . A sua benção, meu pai.
R. DA SILVA. - O q ue tens tu, minha Octavia? ... Se me fo sse
' possível adevin har o que pensavas! . ..
OCT A VIA . - Estava com pletamente absor ta . ..
R. DA SILVA. - Valha-me Deos. Ha nas tuas pala vras, nos
teus gestos, na expressão do teu se mblante uma magoa tão funda, que
não é preciso ser pae para comprehender que soffres e muito. Dize-me,
filh a, acaso passou nuvem negra no teu céo côr de roza? . . . Porque
não has de rir como as outras q u e tem a tua idad e ? .. . Então emmu-
d eces?
OCTAVIA. - Que lhe hei de responder, se n ada sinto ...
R. DA SILVA. - Julgas por ventura que podes illudir-me ? . . .
Qua ndo o coração de uma filha é magoado, quand o seus olhos coam
essa t r isteza que em vão tenta occultar , o coração de um pae estremece
exuberando de cuidados. F alla-me, Octavia, o teu silencio martyrisa-me .
O CTA VIA. - Mas porque se h a de affligir a ssim, meu p a e? ! Bem
sabe que nunca fui alegre ...
R. D A SILVA. - Não, Octavia, não mintas á teu pae! .. . Ha 3
mezes que u ma grande mudança tem-se operado em ti. Já não és a
mesma, definhas dia por dia, e isto não póde, nem deve con t inuar! .. .
Vamos, minha filha; tira-m e do peito este peso que o esmaga . .. Uma
palavra ao menos . . . Eu te supplico! . ..
OCTAV IA (á parte). - Que martyrio! ...
R. DA SILVA. - Pois bem, l ogo que se restabeleça Julio, sahire-
mos d 'este lugar para semp re ; en tregar-lh e-h ei o escriptorio e iremos
v iver b em lon ge d'esta terra m a l dita . E' preciso que te distraias;
talvez mais f eliz . ..
OCTAVIA (agitada). - Sim, meu pae, iremos ... (á parte) Par -
tir!. . . Deixai-o! . ..
58 -
R. DA SILVA. - Ahi vem J ulio . ..• Como está desfigurado ! . . .
(indo ao encontro de J u lio ) .
OCTAVIA (idem ). - Nã o dev ia sahiT do q uarto . ..
SCENA II.
Os mesmos e Julio de Aguiar.
JULIO . - S into-me melhor, estou quasi bom .
OCTA VIA. - E ste ar frio da manhã póde fazer-te mal. . .
R. DA SILVA. - E o medico recommendou socego de espírito.
OCTAVI A . - J u lio é teimoso, não quer ouvir-nos, e a molestia
póde a ggravar-se .
JULIO . - Não hei d e mor rer , Octavia ... P reciso vive;:- agora mais
do q ue nun ca . Meu cora ção pulsa com todo o vigor da mocidade ...
A minh a existencia começa hoj e . .. U m a nova aurora brilha risonha ,
matizando a estrada do futuro . . . Não v ês? Que céo azul! . .. Repara,
como é lindo, Octavia ! . . . Flor es e l uzes! .. . Que primaver a rid ente! . . .
OCTA VIA (inquieta ) . - Delira ! ...
JULIO . - Olha . . . Não ouves? . . . Que ha rmonia infinda! . . . D ir-
se-ia u m cantico eolico . . . é talvez a v oz d o Senhor p erpassando lan-
guida n as r a m arias do arvoredo! . . . Que explendid as sala s. Vem co-
m igo, Octavia entremos . . . Dança m , são todos felizes !
R. DA SILVA. - O que é isto J ulio ?
OCTAVIA. - Julio ! Julio!
J ULIO . - Mas . . . o qu e vejo !. . . Sim, é ella , lá está . . . n ão m e
engano ... como desdenh a! ... D eixe- m e ... quer o vin gar me!. . . (Cae
prostr ad o sobr e uma cadeira ).
OCTAVIA (á parte ) . - Era o desenla ce q ue e u esperav a !
R. DA SILVA . - E ' mister ser h omem, J ulio.
OCTAVI A. - Vae para o q uarto, p r ecisas repousar ... Ardes em
febr e e este ar frio faz-te mal.
JULIO (olhando em red or ). - A h ! és tu, Octav ia! ... Como me
estimas e quanto te s :m a gr ad ecido ! Sen ta-te aqu i · junto á mim, quer o
fall ar -te, tenho tanta cousa a dizer-te ...
R. DA S ILVA . - Nã o, Sr., não con sin to que se d emor e a qui. ..
OCTAVIA. - Elle vae, meu pae .. .
R. DA SILVA (ba ixo ). - Preciso ir d e n ovo á casa do m edico ; o
caracter d 'esta molestia assusta-m e, dá-me serias cuidados (á Octa-
via) . J á v olto, vou ter com o Dr . . .. (á Julio) Animo , Julio, Deus
é grande e m isericordioso . Crer e espe r a r .
SCE NA III.
Octavia e Julio.
J ULIO (le vantand o-se) . - Crer e esperar ! Crer em quem ? Espe-
rar o que? Ah! nad a mais m e r esta. A estrella q u e brilhava lá
nas alturas, aluziando a vereda incerta , a pa gou -se . . . S ó trevas no
caminho, trevas na minh' al ma também . Destinos, Octavia . Qu e
importa . Os crentes não temem a morte , não é assim?
OCTA VI A. - Por que me h as de entr istece r? . . . De us ouvirá as
minhas or ações e ver -te-hei ain da m u ito f eliz.
JULIO . - F eliz! Nunca mais, é imp ossível . Qua ndo a a lma a doece,
a m orte é necessaria, ine vita v el. Quando se a m a como e u am ei e
que em paga d 'esse culto, em troca d'essa adoração receb e-se a mais
- 59 -
cruel ind iffer ença, o coração par alysa -se , a idéa mor re, fi ca a exis-
tencia do cataleptyco. As molestias do corpo curam-se: as da alma,
nunca Octavia. O que sinto aqui dentro é a morte .
OCTA VIA . - Cala-te , Julio, cala-te por p ieda de!
JULIO . - Não te enfades do m eu pedido, quem sabe se não será
o ultimo! ·
OCTA VIA (á p ar te). - O que ser á!
JULIO . - Quero que v ás tocar. Fiz u ns versos e ...
OCTAVIA. - Versos?
JULIO . - Sim , do que te admira s?. . . G uarda-os b em . . . Então,
não me fa zes esta ultim a vontade? Quero recital-os acompanhados
p or ti . ..
(Octavia senta-se ao piano e executa um acompanhamento para
recitativ o ) .
JULIO (r ecitando):
A njo querido , se amanhã no leito
Meu pobre peito n ão p ulsar, não chores:
Que vale a vida d e prazer es cheia,
Se é qual sereia, - seu cantar tr az dôres!
A vida é taça transparente e bella ,
Mas dentro d'ella só veneno existe:
E' manso lago que tran sluz e encan ta ,
Mas ai esp anta! ... Lá no f und o é triste!
A vida é nuvem que no céo se esgarça ,
E nos disfarça o tempor al que é perto ;
E ' fallaz sonh o, n os febris a rdores
Fanam-se as flores no cam inho incerto.
Por isso, ó anj o, se ama nhã no leito
Meu pobre peito n ão pulsar, não chores .
Além min h'alm a foi sorrir contente,
Aqui sómente supp or tou mil dores!
A morte . ..
OCTAVIA. (erguendo-se agitada) . - Ah! basta, não continues,
J ulio! ·
JULIO (dando-lhe os ver sos) - Aq ui tens, são teus, guarda-os,
minha prima. . . minha irbã. . . Consen te que eu te chame assim . . .
E ' um nome doce e tens direito á elle p elos teus affectos, por esses
cu id ados, por essas lagrimas, que e u agradeço!. . . Mas não chores
assim, não chores tanto! . . . 1
SCENA VI.
Octavia e o Dr. Anselmo.
OCTAVIA (afflicta). -- Diga-me, Dr. , tem esperanças de salvai-o ?
DR. ANSELMO. - P orque não?
OCTAVJA. - Mas elle está em per igo!!
DR. ANSEL MO. - Bem longe d'isso, minha Sr.ª
OCTAVIA. - Oh! Dr., Dr .! . .. Porque me ha de occultar talvez
- 62 -
uma verdade? ! Compaixão , seja franco , bem sabe que préso Julio
como se fosse meu irmão; criamo-nos juntos, a minha infancia escoou-
se ao lado da sua e .. . comprehende que devo interessar-me muito por
elle . . . que. . . depois de meu pai ...
DR. ANSELMO. - Socegue, minha Sr.ª , não vê como estou calmo?
OCTAVIA. - Ah! então póde salvai-o, não é assim? .. . Não está
em p erigo, o Sr. disse ; posso e devo confiar em sua palavra ? ! . .. De-
mais, o Dr. interessa-se mu ito por elle . . . E quem não se interessaria ,
se Julio nunca fez mal á ninguem !. . . Moço, intelligente! . . . Seria
u ma pena, Dr.! .. .
DR. ANSELMO. - Não receie cousa alg uma , confie em mim .
OCTA VIA. - Obrigada , Dr. , obrigada! (á parte) Oh virgem im-
macu la da !
DR. ANSELMO . - (á parte) . - Ella o ama sem duvida alguma!
(a lto ) com licença , vou ainda ver o doente (sae).
SCENA VII.
Octavia e depois R. da Silva.
OCTAVIA. - E agora o resto fica por minha conta!. . . (p a usa)
Ah! Julio, p or ti fa r e i todos os sacriffici os !. . . Sê tu fe liz, já que o
não posso ser!. . . (pa usa) Tu soffres agora muito, porém a tua dôr
não é ta vez igual á minha! . . . A mar com todo o ímpeto da alma e
sen tir o desengano em cada dia que passa ! Onde maior supplicio ,
Deu s? ! . . . (pau sa) p orém coragem até o fim , (Ricardo da Silva appa -
r ece) dae-me for ças, S en hor , para completar a minha obra!. . . (dan-
do com o pae) Ah! . . . (á p ~r te ) Teria ouvid::> ? ! .. .
R. DA SILVA (atormentado ) . - Ainda be m , não p odes dissimu-
la r , n e m m entir-m e agora!. . . Chor avas, Octa via_. choras ainda e . .
OCTAVIA. - Qu e lhe hei d e dizer, m eu pae '?! (soluçando). A
sua Octavia não sente cousa alguma . . . Acredite-me. T enho ás ve-
zes prazer em chorar . . . Quando me vir assim, ralhe-m e, porém não
se a mofine , não se afflija!
R. DA SILVA. - Está s mentindo , Octavia! . . . O coração de um
p ae nunca se engana . . . Ha na tua vida um mysterio . . . se i-o eu, di-
zem-me as tuas Iagrimas!. . . Pela m e moria de t ua mãe confessa-me
a causa das tuas tristezas! .. .
OCTAVIA. - Porque in siste meu pae?! . . .
R. DA SILVA. - Não mintas, filha! . . . Ex.iste forçosame nte o
quer que seja na tua vida . . . Um erro , (commovido) um erro, quem
sabe ? ! ...
OCTAVIA (com desepero). - Um erro! . . .
R. DA SILVA. - Confessas então? ... Ah! já o tinha pensado! . . .
Pois bem, não m 'o fizeste revelar e agora quero contas, já exijo
quanto antes a confissão do te u crime! ...
OCTA VIA. - Cale-se, cale-se, meu pae! . . . (apontando para o
quarto de Julio ). Silencio!. . . Elle está alli e póde escutar-nos! . . .
R. DA SILVA. - Oh! maldição sobre elle! . . . (Vae dir eito á porta
do quarto de J ulio, porém recúa detido por Octavia ).
OCTA VIA . - Que vae fazer , meu pae ?
R. DA SILVA. - E ainda perguntas?! . . . (baixo para ella) Hei
de matal-o! . . .
OCTAVIA . - Matai-o?! .. . Pois que fez elle? . .. Ouça-me, es-
cute-me ... Não julgue que sua boa Octavia está perdid a . . . Não, meu
pae! . . . Quer saber a causa das minhas lagrimas! .. .
- 63 -
R. DA SILVA. - Falla, Octavia, tira-me d'esta duvida horrivel!
OCTAVIA. - Quer saber? . . . (impondo silencio ao pae) Falle-
mos baixo . . . E' preciso que ninguem saiba. . . ninguem, ouviu, meu
pae! ...
R. DA SILVA. - Es amo's sós! .. .
OCTA VIA (apontando para o quarto de Julio). - Amo-o muito,
porém elle não sabe e não deve saber! . . . Cale-se, silencio, agora por
mim e por elle!
R. DA SILVA. - Comprehendo, és martyr! .. . Ah! Julio, mataste
a minha filha! ...
IV.
A CANGUÇú.
Sigamos o vaqueano .
Vai '!ansado da conversação que tive ra , ainda que nas respostas
denotasse verdadeiro laconismo.
Approxima-se d' um grupo em torno elo br azido , aquecendo os
membros engelhados de frio.
- Que novas? r epetiram q uatro ou cinco vozes r epassadas de
curiosa anciedade.
Elle por unica r esposta encolheu os hombros.
Os outros o comprehenderam; porque encetaram nova palestra ,
emborcando de vez em quando uma chaleira na b occa de duas cuias
que percorriam a roda .
- Chimarrão sem churrasco á laço sem argola ou relho sem
açoiteira , ponderou sentenciosamente Manduca Pereira , celebre doma-
dor de Ca çapava.
Os outros approvaram com vivos signaes de assentimento a refle-
xão do companheiro.
- Laço sem argola!? Antes mato sem madeira, a ccrescentou
um lenhador que havia trocado por circunstancias imprevistas o ma-
chado do trabalho pelo ferro dos combates. ·
- Lança sem lanceiro! regongou emphaticamente um negro, her-
cules de porte, pertencente á arma citada.
- Deos emfim se amercie de nós, porque n 'esse andar morremos
de fome antes de lá chegarmos, tornou outro do rancho. Pensem vocês
o que quizerem, que cu cá de mim para mim, vejo em tudo isto algu-
ma praga de urubú.
- Não mata a cavallo , por Deos, o digo!
- Mate ou não mate, o que é certo é que sete h oras vão e nem
um naco de charque passou-nos pelo gasnete. Chimarrão sem chur-
r asco! E por cima a inda ordem de não sahir do arranchamento para
carnear! insistia o lenhador.
- Nem caçar!
- Hão de v1r que lá o general ha de ter ...
- Cala-te, lingua de caramurú, atalhou o Manduca , não sabes
o que dizes.
Um vulto, sahindo da sombra , fulminou-os.
- Camaradas, o general não tem maior ração que vocês, e em
quanto elle corre o acompanhamento o lonqueais sem piedade. O que
não quizer assim, m onte no pingo e vá-se aos pagos, com os diabos!
- 75 -
AMOR E SEGREDO
Affonso Marques.
f
- 76
DESESPERANÇA
SOCIEDADE
PARTENON LITERARIO
PORTO ALEGRE
1872
COMMISS AO DE REDACÇAO.
REDACTOR DO MEZ.
DIRECTORES.
Achilles Porto-Alegre.
Hilario R ibeiro d' Andrade e Silva.
85
,· nt
, . Snt.i ms coar nos n'almà Ü~a dôce e pura emoção ao desdobrar-
mos ante nós a pagina que nos ocupa .
. . ' · É o retrato de , um homem que conhecemos até a intimidade, de ·
um homem que desde a infancia nos contumamos a venerar pela sua .
autoridade de m·e stre, de sarcedote, por sua nunca desmentidas vir-
tudes evangelicas, que vem tocar , nossos olhos e commover-nos o
espírito. . .. .. . .
O padre Thomé Luiz de Souza, vigario geral nesta provincia ppr
largos arinos antes da creação do bispo, e vigario da freguezia da Ma-
dre de Deos d'esta cidade, era uma d'essas e..'Cistencias na apparencia .
s'o cegadas, placidas, beatificas; o espirito porém do homem pensador
deve comprebender quantas lutas intimas, quantos triumphos sobre qs
ímpetos da n~:areza não. se ter iam passado na sua alma para chegar a
conseg11;: a aureola de virtude que lhe adornava a fronte. Deve ser um
vi~:--:Coso e bem formado espirito aquelle que se vence a si proprio, a
~raas paixões, a suas inclinações, á tendencia para os prazeres e
gosos, e assume o caracter de austeridade e de ,fominio sobre si que
o tornam notavel .entre os seus irmãos.
O amôr de Deos póde criar estes caracteres, póde dar estes trium-
phos coritra a propria natureza, póde formar homens que abneguem
de sua existencia em favor do proximo e que são o exemplo da mais
pura caridade.
O padre Thomé é um modelo de virtudes, difficil de emitar-se;
por isso, sua vida ahi ficou gravada no espírito do povo como de um
dos poucos que entre os eleitos soube cumprir sua missão.
Ainda está na memoria de muitos o acto de r espeito e de mutua
· veneração que se prestaram em face da população d'esta cidade, o
padre Thomé e o padre Feliciano Prates, 1.0 bispo d'esta diocese, no
dia em que fez aqui a sua entrada episcopal. Todos viram o mestre
e o discípulo, o padre e o bispo, ajoelhados um ante o outro, entre
lagrimas e confusão, sem saberem q ual devia ser o mais humilde.
Quadro digno de conservar-se no Pantheon de nossa cidade, para re-
memorar virtudes que podem vir a ser raras, mas que o não deviam
ser para felicidade dos povos!
De duas corporações soubemos nós que tentaram requerer a sua
beatificação, e que foram demovidas d'esse intento por autoridade
competente. Mas beato ou não, no índice da Igreja, elle foi um vulto
vener ando entre os seus coevos, e ha de ficar sempre como tal n a
memoria das gerações porvihdas nesta terra.
IV.
Thomé Luiz de Souza, nasceu na colonia do Sacramento, so bre a
foz do Rio da Prata., então dominio portuguez, em 21 de Dezembro de
1770, oriundo de familia portugueza, que no abandono q ue fez Por-
t ugal daquelle territorio r efugiou-se como os demais nesta província.
Era seu pai cirurgião-mór. .
. O jovem Thomé foi desde seus primeiros annos destinado pa:r;-a a
vida da Igreja, e por isso foi d'aqui enviado para o R io de Janeiro,
on de fez seus estudos no seminario de N. S. da Lana.
Bem cedo foi ordenado presbiterô pelo bispo D. José J oaquim Jus-
tiniano Castello-Branco, recolhendo-se a esta cidade, onde estava sua
famili? , e em companhia de seu irmã o e depois de seus sobrinhos.
- 86 -
viveu todo o longo estadio de sua vida, Jando o cxemr, lo v ivo da c<1 -
1·idade, da m ansidão e da mais n otavel castidade.
Foi mestre de la tim por muitos e dilatados annos e seus discipulo:,; ,
dos quaes a inda alg4ns existem sexagenarios, lembram-se com sauda -
de do mestre bondoso e intelligente que lhes descerrava aos olhos inda
infantes as bellezas de Lacio. Entre os já fallecidos conta-s.e . o l.º
bispo d'esta diocese, o padre F elidano José -Rodrigues Prates, qu<'
como e lle amou a virtude . ·
A sua provisão de professor publico de latim para a v illa de Porto
legre, tem a data d e 1 5 de Outu bro de 1807 e está assignada pelo
vice-rei Conde dos Arcos. Servia o lugar desde esse anno até 1831
Em trinta annos ele sua vida , de 1816 a 1846 é que o padre atra -
vessa toda a sua ascensão h ierarchica na igreja. lenta e obscura de
títulos, mas resplendente e aureolada de virtudes no coração do povo
que o amava e qu e o admira va.
Quando se ..:reou bi pado na província , todos os olhares voltaram -
para elle , e talvez atravessasse a mente do Imperador primeiro o
nome do santo homem que occupava o lu gar de vigario geral em
Porto Alegre ; mas cor~·eu um boato adrede inventado ou real e que
aproveita a aos que queriam dispensar favo r es em vez de servir ac.
paiz - e era que o padre Thomé não aceitaria o lugar de bispo l'
que mesmo era de uma bondade tal que não poderia arcar com a
corrupção e altaneir a em que v.iviam os padres da provinda. - O
padre Thomé era pm·o amÕl', não teria forças para derr ibar a matta
brava da nova diocese . Talvez houvesse exagera ção em quanto ao
sacerdocio do novo bispado, mas quando assim fo se, n 'uma religiã o
de amôr e perdão, seria aquelle padre, que era puro amôr, que se -
mearia com mais vantagem a palavra de Deos, e dirigiria com ma is
firmeza a nova igreja .
Exemplos de bon · padres havia-os inda, Thomé. e F eliciano U-
nham imitadores na pureza d 'alma e na sinceridade de suas crenças.
e algumas parochias viviam na paz e na tranquillidade do coração d '
seus pas tores.
E' em 19 de F evereiro de 1816 que por provisão do bispo D .
José Caetano d a Sih,õ Coitinho foi o padre Thomé nomeado exami -
nador synodal.
Em 9 de Dezembro de 1819 , por pro, i ão do mesmo , nomead o
defensor dos matrimo11ios.
Em 23 de Ou t ubrc , de 1823 teve as honras de conego d a cathedra l
do Rio de Janeiro , pvr provisão do mesmo .
E' ainda por pro visão do mesmo bispo, que em 4 de Maio d t.•
1832, foi nomeado vi;;ario encomendado da freguez ia de N . S . Ma -
d r e de Deos d'esta cidade , cargo que occupou até a sua morte.
Em data de 1 5 , 1e F e vere iro de 1833 , por provisão do viga rio
g-eral Antonio Vieira da Soledade foi no meado vigario da vara d c1
-comarca de Porto A l• gre.
E arcipreste por provisão de 4 de Dezembro de 1840 do v igari o
capitular Monsenhor arciso da Silva Nepomoceno. .
Tae eram os títulos do virtuoso padre, quando a qui chegou o
illustrado conde de !rajá , bispo da diocese, que poude de perto obser-
var a man sidão d'alrna , abnegaçffo do mundo pela observancia do:-
preceitos do Divino Mestre , e d_esin_!eres~e das_ glorias terrestres e
hier archias da igrej a. A sua admiraçao foi mamfesta, surpr ehendeu-<,
a realidade e sua boa alma prestou homenagem ao merito elevado I"
raro, nomeando por provisão de 30 de ~faneiro de 1846. vigari ger al
da província.
- 87 -
V.
VI.
Examinemos o padre Thomé sob qualquer das feições em que o
representamos, e teremos sempre ante os olhos um heróe , que no r e
t iro e sem ostentação bate-se dia por dia co tra as ten tações, contra
as seduções dos prazeres santificados pela grandeza do fim, que e
a existencia necessaria da familia, da propagação da especie.
Vêl-o-hemos pobre, derramando a esmola no ilencio da n oite pe-
las janellas e rotulas das casas das familias indigentes, temendo que o
saibam os que recebem, mas sem tem ~r a calumni.a ou má interpre-
tação dos que o podiam surprehender no seu mister de caridade.
Teve quasi um seculo de vida e seus honorarios nunca lhe deram
uma reserva ca paz de o pôr á s~lvo das maiores necessidades. Viveu
com os seus parcamente e ainda nos seus u ltimas annos, nós o víamos
dividir o que recebia com as parcas despeza s da casa e os pobres a
quem destinava os pequenos embrulhos de uma pataca cada um, para
dar aos que já não podia levar pessoalmente á ca a. _
L embra-nos ainda dos muitos que só a elle se confessavam, e só
d'elle queriam os conselhos, repassados de caridade e emoção, como
os daria o proprios Mestre.
A sua intelligencia só enfraqueceu nos u ltimos dous mezes de vida:
a té ahi elle procurava ir a cathedral e officiar ajudado do seu p resti-
moso coadiutor e digno sucessor, o malogrado m ancebo (1) a quem o
bispo D. ·F 1iciano havia dado as ordens de presbítero e ungido n a
0
pratica das vir t udes que aprend era do santo varão então quasi nona-
.iteuario .
O padre Thomé L u iz de Souza , rendeu seu espírito ao creador .
no m eio da . consternação dos seus e de toda a cidade, em 14 de DP-
zembro de 1858, com 88 annos de idade, e , na mente convencida do
povo , deixando o p erfume de su as rescendentes e raras vi rtudes.
VII.
N os ultimos dias de sua vida o padre Thomé teve provações amar-
gas, ás quaes respondeu, sem queixar-se, apontando para os que d'elle
dependiam e r ecebiam o conforto e a protecção.
A ESTANCIA DE GIL.
Devemos algumas explicações ao leitor.
Qq,qe,;. ?S :i:.elações do vaqueano com . o caçador·!
Porque o ultimo 'resolvera tomar parte na revol ução, reluctando
:ao principio em acompanhar quasquer das particularidades?
Lancemos uma vista d'olhos ao passado, onde descortinam-se
as peripecias d'um drama congenere do que vamos esboçando.
Em 1813, Gil de Avençal,. descendente d'uma antfga familia de vi -
centistas, que no começo do seculo XVIII viera em demanda de nova s
terras, vivia na Vaccaria feliz e abastado . Menos inquieto que a raça
cyclopea d 'onde provinha, raça que vencera todos os obstaculos e do -
tara o Brazil das fronteiras actuaes, Gil sentara a tenda sedentaria
no sertão e deixara a vida deslisar como trnnquillo regato ::í sombra do
arvoredo, Deos lhe déra para cumulo de venturas uma terna mulher P
quatro loiras crianças, prole mimosa e gentil em que •remoçava e IQ
cujos sorrisos transparentes de candura, desfra nzia o cenho de natural
carregado.
Possuia uma estancia de seis a sete leguas.
Quem no pino do dia contemplasse seus dila'tados domínios, o:;
immensos plainos a perder de vista, teria um espectaculo digno de
recrear-se. A ubera savana semelhava a uma alfombra de turmalina
com os mais variegados recamos, formados pelos reflexos de pellos
dos innumeros rebanhos. Ali a s r ezes não se contavam senão nos apartes.
Se havia necessidade de carnear uma, dois laços iam procurai-a; um a
enlaçava pelas aspas, o outro a pialava; e a abundancia era tal, que
levavam apenas a porção mis preciosa. O que largamente r emanescia
deixavam para repasto dos urubús aninhados nos calvos mamillos dos
sêrros, ou aos maracajás e cães selvagens de espreita no debrum da
selvas.
N'essa terra abençoada , onde a charrúa do progresso só ha quatro
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seculos . começou a rotêá'r, todos · têêtn ô seu ; quÜihão na distril5uição
dos bens;' irida · a esp'hinge . da miséria e do inforturiiO sem nome rtãô
:atiróu àos arigulos do êspàçO um eriiginâ desolador que faz aborrecer . a
. vída e blasphefuar· de · t>ecis. Ninguém rriõrré ·de fome. Os 'fructos pen~
dem das arvores seculares, ·a maniva r ebenta por mil estolhos do ter-
reno inculto, os campos peiam-se de-arrrientio sem con ta. Parecem dizer :
P assarõs · do céo; habitantes d ás florestas e das campinas, vinde, isto
tudo é vosso. O colono deixa a: patria•, e das praias ultramarinas vem
faminto, · s·e quioso, desesderadd ao eden de Colombo, á luz · d'um sól
que alenta · a m ã o mata. A Europa é o Promothêo mythico, em cüjas
visceras o bico d'um ab utre trabalha sem cessar : a communa, que ha
de arrojal-a morib,mda ás portas do futu r o. A's vezes 'o homem aqui
rriesmo arranca úrn grito de angustia , róla na degradação 'd e s ua propria
entidade. . . Porque? PorqUe herdamos · com uma dvilisação extr anha ,
importada diariamente, seu,i vicios organicos. '
Esquecemos· a originalidade que nos · era pl",')p ria p ela copia servil
q ue nos mo,:;tra contrafeitos. Deviamos ser para imita r e não imita-
dores.
Deixemos, porém, a díg.r essão e voltemos ao remanso de felicidade .
Fallem os de Gil. ·
Além d os cabedaes ri,encionados, dizia-se que elle tinha em ·cofre
r iquezas fóra de toda a estimativa, ouro que minerára em época r e -
mota nas lavras de Santo Antoni0, perto de Caçapava.
O maior amigo do esta11cieiro era José Capinchos. Occupava um
d os principais póstos da fazenda e era pago como n enhum posteiro do
tempo. Recebia m ensalmente qu atro dobrões, tres rezes para alimen-
tação, . uma raçã o de tudo que consumia-se em casa, devendo j untar-se
a ta es vantagens a per missão d e criar n'uma sesmaria de campos · e
m atos que lhe fôra doada.
Capinchos tinha rara habilidade para insinuar-se no animo do
amit;o, que, em qualquer negocio por mais intimo que fosse, o consul-
tava, fa zendo sempre prevalecer sua opin ião.
Maria , a mulher de Gil, via seus conselhos_ b ons e santos, como o
coração que lhe pulsava n o seio, destruidos ao influxo d'um extranho,
a quem d esde o principio vutára descor:fiança, e para e qual sentia / ão-
instinctiva aversão, que procurar exti_riguil-a foi sempr e da r -lhe incre--
mento.
Era um anjo, Maria: a aza negra dos presentimentos tocou-lhe o
cr istalino lago d'alma, riçou-lhe a superfície serena. Entristeceu a
olhos vistos. E a prevenção em que estava para com o posteiro fizeram-
n'a por veze~ como entrever planos tenebrosos que, incubados silen-
ciosament e no cerebro, vinham refletir-lhe na fronte sombria. P or ém
calava tudo, r ecolhia-se merencoria e r esignada no santuario de suas
vir.tudes, n o amor de seus filhos . Não queria qile o m ais tenue laivü
de dissabor annuviasse o céo do lar., onde j;í.mais crusara o lozango de
t empestades domesticas.,
Uma tarde Capinchos sahira com Avan ça! a uma correira na selva .
Dizem que voltára sósinho.
No dia seguin te a casa do estancieiro era um lugubre scenaric , um
quadro de horrores. Maria e trez filho s tinham sido assassinados. O
marido, ninguem sabia d'elle, bem como d o primogen ito das criancas.
N 'um ápice fôra consumada uma tremenda tragedia! A morte sel-
lára tantos labios scintiliantes de vida e innocencia ! Almas cand idas e
puras o braço do crime abriu-lhes as veredas celestes, correu -ihes a
cortina dos horisontes íntérminos, atirou-as aos braços de Deos.
Quem desfez o idylio da ventura ?
- 97-
Que ave maldita soltou o pio agoureiro sobre a mansão placida e
risonha, o retiro campestre sumido e obscuro na immensidades dos
desertos americanos? 1
TANCREDO.
IV.
Eis como nasce a sympathia e o amor . ..
Um sorriso é bastante para criar um mundo de illusões, é faisca
ardente que basta para incendiar.
Não erramos pois, quando precedentemente affirmamos que este•
sentimentos muitas vezes traduzem-se n'uma palav!.'a, ou revelam-se
em um gesto.
Estas paginas intimas não brotou-as a phantazia de poeta, o se.tti ·
menta que transbordam derramou o coração e não a penna.
Trancredo amava e amava muito ...
Marina era a estrella polar que o guiava no meio d'essa plaga infi-
nita onde não raream as rosas nem os espinhos; não calculava os obi-
ces que podiam surgir no trilho de sua jornada, porque o amor não
calcula, nem crê nos impossiveis que desfaz a esperança bebida na fé
do enthusiasmo.
A fronte do moço fervia em delirios.
Tancredo era outro homem ; já não era sua tez de vinte ann os
o espelho onde reflectia-se a placidez da alma, ella trazia o sello do sof•
frimento ·que é a vigilia.
Quem ama , luta tambem . . . é grandiosa a vugna, porque quasi
Inst. Hist. - 7
- 100 -
'
i;empre é o espírito debatendo-se, tentando quebrar o circulo- de ·ferro
das convenções sociaes.
Mas o mundo que passa ri-se dos esforços frageis dó lidador que
tra balha, e o gargalhar da turba cava um tumulo ás mais bellas aspi-
rações, porque mata a fé e sem ella não se vive, vegeta-se
Tancredo passava pela quadra d e illusões porque todos passam,
quando o coração extravasa borbotões de mocidade.
Almasonhadora, captiva-se ante um sorriso, que elle mesmo não
sabia definir se tinha sido filho da cortezia, ou inspiração de um sen-
timento mais elevado ; a phantazia abre as azas e vôa enlevada por
elle sem medir o vôo arrojado que faz nas regiões tempestuosas ãas
paixões. vôa desmedidamente sonhando um futuro de felicidade , olvi-
dando que quanto a imminencia é mais alta, mais feia tambem é a
quéda.
O que colherá o peregrino na affanosa romaria ? Elle mesmo o ignota
e quando a razão quer reassumir o domínio que lhe é devido, o coração
pulsa e em cada pulsação parece-lhe que o aconselha , murmuranao
caminha.
E o idealista jovem cede, dizendo -comsigo : Ao porvir o que é de
porvir. E ' que nem sempre o triumpho pertence á razão!
Mas ha uma pessoa que acompanha passo a passo as tr ansi çõe:;-
rapidas porquP passa o pobre moço, e querendo advinhar o que é , tem
por mais de uma v ez enxugado uma lagrima furtiva , sem ter (:ncon-
trado uma solução que satisfaça.
O ente que véla sollicito, é desnecessario dizél-o á min ha leitora,
que já sabe de ànten:,ão que não póde ser senão D . Elvira . a n obn;
mãi de Tancredo.
E ' real que ella não conhecia a causa , mas via os effeitos estampa,
dos na face pallidà do filho.
Até então sua vida methodica tinha dividido o tempo em horas de
trabalho e de descanço, as primeiras que eram do labor diario que
traziam ao lar o necessario á vida phisica , não tinham soffrido altera•
ção alguma, mas as ultim:cis que o moço partilhava entre a mãi e o:;;
l ivros, companheiros da solidão , tinham perdido uma hora que ~ra
~asta n'um passeio que fazia todas as tardes.
Esse passeio que invertia os costumes habituaes, ao mesmo ten,p,;
que sua physionomia deixava lêr as agitações que iam pelo interior ,
eram motivos bastantes fortes para attrahir a attenção da mãi ex tre-
mosa. para quem o filho era um pensamento constante.
Um dia elle chegando de volta da perigrinação. sentou-se fatigado
j unto a ella; esta sóube aproveitar a opportunidade que o acaso lhe
r·on cedia. uara s<>ber ::iquillo que ha muito procurava penetrar.
_ Escuta , filho, disse, será indiscripção minha perguntar-te o que
vai-te pela alma? isso que guardas . com tanto zelo no imo do peito,
mas que tua fronte de moço mal sabe disfarçar, e teus olhos em
cada lampejo trahem impiedosamente?
O que pergunta, mãi? murmurou elle ...
- Se não é indiscripção minha saber se soffres ?
- Indiscripção! estranho tanto a linguagem, porque é a primeira
vez que a oiço e não sei o que fiz para merecel-a . . .
-:-- Não, Tancredo, .a minha linguagem não mudou, porque a ori-
gem é sempre a mesma ; quem mudou foste tu, eu sou a mesma ; o
que fiz para perder a tua confiança, ignoro, só sei que soffres e não
me concedes como 01-1tr' o_ra o quinhão de teus pezares; isso magoa-me.
101 ~
V.
JUCA SERRAN O.
INGRATIDÃO.
IV.
DESAFFRONTA.
ESTUDOS PHILOLOGICOS
I.
Lige ira opinião sobre a formacão das linguas. Fórmas q ue revestem
segundo as épocas. Fórmas synthcticas e analyticas. P ri ncipaes pontos
de cliscriminação entre umas e outras.
- 112 -
POESIAS
A' LIBERDADE .
POR QUE?
Sueiro Junior.
CHRONICA
-000-
DA
PARTENON LITERARIO
-oOo-
1872
COMISSÃO DE REDACÇAO .
REDACTOR DO MEZ .
DIRECTORES .
Achilles Porto-Alegr e .
Hilario Ribeiro .
SANTA CAZA DA MIZERICORDIA - PORTO ALEGRE
RESUMO HISTORICO
DE
PORTO-ALEGRE.
--000-