(1869) Revista Do Parthenon Litterario N. 113 A 116 (1869) - Parte 2
(1869) Revista Do Parthenon Litterario N. 113 A 116 (1869) - Parte 2
(1869) Revista Do Parthenon Litterario N. 113 A 116 (1869) - Parte 2
REVISTA MENSAL
DA
SOCIEDADE
PARTHENON LITTERARIO
, ,
-o-0-o-
.
- _176-
- Mas aquellas maneiras estabanadas não ficão bem n'uma meni-
na, não julgas?
- Culpa não é d'ella, que não tem quem lhe refrêe os desregra-
mentos.
- E o pai? .
1- Ora o pai! repara, eil-o sentado. á banca do jogo.
- Pois elle ...
- Distrahe-se, meu amigo ; pois que hão de fazer os velhos? Tra-
zel-os á agitação das salas, seria deslocal-os.
Em quanto taes commentaribs se fazião, Amelia já tinha andado
pelo braço de seis ou sete mancebos, que não lhe poderião dizer mais
que banalidades.
O que é feito de Lucília? 1
O quanto tem de luxuoso o vestido que traja Amelia, tem o seu
de simples. Um vestido de musselina branca, sem mais enfeite; e um
botão de rosa no cabello.
Está ella sentada, quando Arnaldo Pinheiro vem occupar um logar
vasio que lhe ficava ao pé.
- Não dansa, minha senhora?
- Contento-me em observar.
- Permitta que lhe diga que faz mal; está na idade em que o pra-
ser é o unico sonho que nos occupa a mente . . . Quando todos se e11tre-
gão ás delicias que nos· dá os ritornellos da walsa, porque aqui tão pen-
sativa? Tem -algum pesar?
- O de ter vindo aqui!
- Não comprehendo. Dar-se-ha caso que o brilho d'estas luzes, o
aroma d'estas flores, o ruido d'esta gente a mortifique?
....:_ Quer saber? Se aqui vim, se frequento os bailes, é qut: a isso
me obriga Amelia. Prefiro a este movimento continuo, incessante, a so-
lidão do meu lar. L á, sinto infinito deleite relendo as paginas de Ma-
galhães ou Gonçalves Dias; Castello Branco ou Herculano ; Pipheiro
Chagas ou Cesar Machado; do romance ou da poesia passo' ao drama, e
leio Mendes Leal ou Lacerda, Alencar ou Assis, P. Guimarães ou Ho-
gan. Longe dos meus livros, vem-me o tedio e a abstração de tudo quan-
to se passa em roda de mim.
- No entanto D. Amelia é uma perfeita aptíthese de V . Ex. Veja
como se diverte ouvindo aquelle velho.
- Não · a invejo, creia. Minha irmã é muito ;noça, e tudo antevê
por entre um prisma seductor: tenho esperança de que ha de mudar.
Mas que estou dizendo? Esqueceu que a musica deu signal para uma
quadrilha?
- Por ouvil-a, pouco importára esquecer tudo. V. Ex. faz-me a
honra ...
- Não quero que me chame excentrica ... Vamos .
. . . . . . . . . ..... . .............................................. .
•/ •
Inst. H !st. - 12 .
-178-·
e emquanto isso, vai empenhando as joias que lhe trouxe Amelia!
Infelizes entes! Um desespera á falta de recursos;· a outra chora á
força do soffrer.
Dolorosos transes!
III
Arnaldo Pinheiro ficou encantado dos sentimentos de Lucilia no
. baile.
Tomando mais detalhadas informações á seu respeito, s_oube que a
virtude era uma de suas r;nais nobres· qualidades; tornava mais singela
o seu toilette afim de poder comprar livros e distribuir esmolas aos seus
pobres.
Uns chamavão-n'a - a romantica; - outros - a rolinha ; - ·Lu-
cilia tinha o genio docil, e a todos tratava com uma delicadeza de cap-
tivar.
Arnaldo solicitou a mão de Lucilia.
, A' consulta de seu pai, pediu permissão para reflectir por alguns
dias; é que tinha presente o exemplo de sua irmã, tão infeliz pelo pou-
co escrupulo na escolha. .
D'ahi a dois dias Lucilia accedia ao pedido de Arnaldo .
/ - Meu pai, vejo que cada vez mais se dobra ao peso da -velhice
e da enfermidade; se a mão da fatalidade me ferisse . agora, roubando-
m'o ás minhas caricias, ,não sei se poderia resistir ao golpe. Só na terra,
sem asylo, sem protecção de ninguem, a miseria viria tomar-me em
seus braços; se minha irmã houvesse sido feliz, na sua companhia es-
taria á coberto das precisões diurnas. Reflecti bem, por.tanto, no par-
tido RUe_se me apresenta: - ama-me com um amor sincero, puro, que
-l he vem do intimo do coração - serei digna do seu amor; em vez dos
bens da fortuna, das commodidades que o dinheiro offerece, pede-me
auxilio para ganharmos ambos o nosso sustento - a minha resposta é
a seguinte - aceito! Ha, porém, um additivo á :minha resolução; meu
pai ha de ir viver em nossa companhia;, os nossos cuidados hão de res-
tabelecel-o, e se é possível, dilatar-lhe os dias de . vida.
O bom velho chorava de contente; beijou-a na fronte e aôraçou-a
com todas as suas forças.
Arnaldo aceitou com prazer o additivo e prometteu adoptal-o .
Alguns mezes depois Lucilia e Arnaldo ligavão-se aos pés do al-
tar pelos laços do matrimonio.
De manhã vai á sua repartição, á tarde lê para distrahir seu sogro.
• Dispensa ao sogro e á esposa todos os carinhos, e tudo envida para
que uma só nuvem de tristeza não lhes paire no rosto!
Reina a felicidade na habitação do pobre!
Lucilia com justa razão se julga a mais feliz das mulheres, e to-
dos os dias agradece a Deus a ventura que desfructa na posse de um
marido que a ama estremecidamente.
Arnaldo julga-se feliz por viver d,o amor de um anjo, que com os
seus affagos lhe entorna a felicidade n'alma.
Alberto abencôa os seus dois filhos e pede para elles o auxilio cons-
tante de Deus. ·
IV
São passados tres annos.
Lucilia vive feliz, tendo já um :filhinho, loura e bella criança, que
faz os encantos do avô.
Amelia, a pobre Amelia, definha a olhos vistos; o desgosto, os sof-
-179-
frimentos, a tem abatido muito; quem a visse agora, desconhecel-a-hia
por certo .
.Arnaldo retempera as forças no trabalho; Guilherme, expellido da
sociedade honesta, espera que o pai lhe morra para haver a herança
dos seus bens.
Tinhão os genios düferentes ; tiverão desiguaes destinos na terra!
V
A moralidade do conto que acabou consiste no seguinte:
As moças não devem escolher os maridos pela fortuna que por-
ventura tenhão; antes de tudo devem indagar da nobresa dos seus. sen-
timentos, . do conceito em que a sociedade os tem, e só aceital-os por
maridos quando tenhão a prova evidente e irrecusavel de que são ver-
dadeiramente amadas.
Foi desgraçada a moça que deslumbrou-se ao brilho da fortuna ap-
parente d'um negociante; a felicidade bafejou a outra que -guiou-se pe-
las inspirações do coração.
Agosto de 1869.
Aurelio de Bittencourt.
-o-0-o-
.....
RECORDAÇÕES
Era Setemb'ro ...
Lembras-te, Emma? ...
As larangeiras em flor espargião perfumes, os sabiás canoros de-
dilhavão amenos modilhos, as christalinas cascatas sorrião-se amenj-
sando cantos, os colibris osculavão-se, as borboletas adejavão junto aos
nevados jasmins e as auras no perpassar dizião - Setembro - ...
Salve! tres. vezes salve a primavera dos pampas de , meu sul; salve!
ella que dá echos ás serranias e vozes aos rouxinóes da patria . . .
Lembras-te, Emma? .. .
.• ·-
Na alfombra da esmeraldina veiga, nós reclinados fitavamos esse
céo de chrysóes, essas nuvens alvinitentes como a graça do Uruguay, e
essa tela do sublime, bello e grandioso - a natureza . ..
E nós sorriamos .. .
Emma, sorriamos . .. . porque a infancia só tem sorrisos . ..
Escutavamos os garganteios dos gaturamos, o pepitar das rolas,
os trinos amorosos das juritys ...
Tudo era madrigaes de ài:nores . . .
E nós, tambem, filhos da creação, sentíamos nascer um sentimen-
to novo e affluir aos labios em borbotões ...
Tinham-nos curvado á essa lei da creação. . . amar!
E nos ama vamos . . .
Era um amor infantil, ingenuo, como o do c·y sne que banha-se no
regato, puro como o da borboleta para as flores .. .
Assim era nosso- amor .. .
Lembras-te, Emma? . . .
•
• •
Eu tinha treze annos . . . e as tuas 9oze primaveras não tinhão de-
sabrochado . . .
Eras uma flor em botão ...
Lembras-te, Emma? .. .
Recorda-te, não olvida o p_assado ...
Não queres? .. .
Eu t'o ·peço ... relê o livro de nossa infancia .. . e essas flores myr-
rhadas, essas flores sem vida, revive-as ao calor de teus beijos .. .
Tu podes . ..
Eu. . . não o posso mais ; jovem romeiro, tropecei na 'romaria sem
forças ; lyrio da primavera, já curvo o hastil. . . as petalas murchão-se
de dia em dia . . . e minha alma abatida vive envolta no sudario· da
soidão .' ..
•
• •
Era uma no,ite festival, festival como são as noites de baile . . .
Tinha decorrido um anno .. .
-181-
Se Outubro ,não guardou em suas ti-adicções essa noite . . . guar-
dei-a eu ... tu estavas tão bella . . . eu tão ébrio, tão louco d'amor ...
Lembras-te? .. .
Que olvido! .. .
•
• •
A orchestra . . . era harmonias . ·. .
As flores. . . perfumes . . .
As mulheres . . . vida . . . '
Lembras-te? ...
Nas salas o borborinho das walsas . . . e entre esse mar revolto de
valsistas .. . alegria, enthusiasmo e mocidade ... e se de vez em quando
o murmurio da floresta rumorejada pelas brisas da noite, o ruido de
uma catadupa que despenhava-se -com fracasso, vinha quebrar as notas
da orchestra, a embriaguez da walsa era mais louca, o bulício dos dan-
santes mais. forte . . . a alegria redobrava, o enthusiasmo duplicava . ..
Que noite, Emma! ...
Lembras-te ? ...
Sê generosa, diz-me ao· menos uma só vez, que em teu coração ain-
da pulsa uma fibra pelo passado, em tua fronte reminiscencia pelo nos-
so amor de criança . . . em tua alma uma saudade pela infancia . ..
E para mim . . . o que pedirei?
Nada! . ..
Não te creio mais .. .
•
• •
-Conheces, Emma, aquella menina que tem as mãos entrelaçadas
nas de seu jovem ·companheiro? que troca com elle sorriso por sorriso,
caricia por caricia, blandicia por blandicia? ...
Conheces? .. .
Fita-a bem .. .
Contempla suas formas airosas, cinzeladas em habil estatuaria ; sua
côr moreno-italiana pede um pincel. . .
Ah! Raphael teria harmonisado esse primor da natureza, no bello
de seu moreno, com a ingenuidade que em seus traços transluzia . . .
Seus cabellos são de ébano azevichado, e revoltos em caracóes bei-
jam a assetinada cu tis ...
Ser um, d'aquelles caracóes . . .
Louco desejo! ...
Mas se eu . podesse .. .
Seus labios de coral abrem-se graciosamente, mostrando a alva
dentadura de christal! . ..
Seus pézinhos de andaluza transparecem por entre a fímbria de
seu vestido branco . . .
Suas mã ozinhas .. .
Conheces, agora?
Eras tu aos treze annos ...
•
• •
Escuta ...
Ouve esse trocadilho de palavras ... uma trança de teus cabellos ...
Sim? . . .
Sim .. .
- · 182-·
E tua ,voz era rneiga, meiga como as cantilenas pastoris das filhas
de nossos pampas . . .
Tuas _palavras . . . harpejos de harpa éolia ...
Cumpriste tua promessa?
Não, nunca . . .
Tinhas mentido ...
Do perjuro, Emma, emanou o esquecimento ...
Perjuraste tua promessa de criança, tudo olvidaste, . e hoje, moça ,
tu lanças ao teu amor infantil o escarneo do despreso .. .
Fazes bem .. .
Variar é viver . ..
Já o disse alguem, e eu o digo tambem ... .
•
Emma, estou só e penso em ti. ..
O que farás tu? .. .
Pensarás em mim? .. .'
Perdoa-me, ainda sou muito credulo . . .
Crenças da infancia, que não morrerão de todo no coração do
mancebo .:.
Se um dia, Emma, meu nome chegar junto a ti. . . foi levado
pelos echos, e se morreu a teus pés, culpa a brisa que ergueu as cor-
tinas de teu sanctuario de virgem e o deixou 'Cahir ahi.
Emma, se perdoar aos que errão é uma acção nobre, eu te per-
dôo, e em retribuição á tua indifferença, dou-te - amisade ...
E ao teu esquecimento só direi:
Obrigado, Emma .. ,.
Adeus ...
Julho de 1869.
J
.,
EPISTOLAS
I
. ...,
PARECER
SOBRE A THESE:
-189- .
Como admittir que o animal tenha alma, se elle não foi formado
do mesmo principio de que Deus tirou o homem?
A luz, o firmamento , os astros, animaes, sahirão do nada em vir-
tude de uma só palavra de Deus - Faça-se, - e -tudo se fez.
Deus, porém, não formou o homem em virtude de uma palavra de
mando - Faça-se o h omem, - não; Deus principiou a distinguil-o com
uma . palavra de conselho - Façamos o homem á nossa imagem, - o
que dá a conhecer que a formação do homem foi de mais transcenden-
cia que todas as obras da creação, pois que Deus principiou a honral-o,
não só formando-o á sua imagem, -como dotando-o com alma racional.
Essa alma, · porém, não foi tirada - dos elementos.
•Diz a Sagrada Escriptura : - Formou, pois, o Senhor Deus ao ho-
1 mem do limo da terra, e assoprou sobre seu rosto um assopro de vida,
e recebeu o homem alma e vida .
Por consequencia, o Senhor formando o homem da .µiateria , á sua
imagem; querendo, além das fórmas corporeas, distinguil-o ainda do
resto dos animaes, honrou-o com alguma cousa de immaterial, cuja
substancia infinita tirou de si mesmo, e a massa inerte do homem ins-
pirado com o divino assopro, recebeu alma e vida. Logo o homem foi
creado em virtude de dous principios: um material e o outro espiritual.
A parte corporea do homem é mortal porque foi tirada da materia, e a
parte espiritual é immortal, porque beus não a tirou do limo da terra
e sim de sua propria essencia e a infundiu no corpo humano por meio
do assopro divino . '
Essa particula espiritual que o homem recebeu do Creador, a que
se póde dar o nome de alma racional, é que constitue o imperioso pre-
domínio que o homem exerce sobre todos os animaes terrestres.
Os animaes forão tirados de um principio toa.o material. Diz a Sa-
grada Escriptura: - Disse tambem Deus: Produza a terra animaes vi-
ventes, cada um seguindo a sua especie, e a terra os produziu já com-
pletos com movimento e vida.
Esta animação, vital; porém, não foi infundida nos animaes por
meio de assopro divino, e sim tirado como o corpo dos elementos e por
conseguinte nada tem de immaterial.
Não, os animaes não têm alma ; a alma racional teve origem n'um
principio eterno, e essa vida animal a que os materialistas chamão al-
ma, não sahiu d'esse principio, e volverá indubitavelmente ao nada
d' onde sahiu.
Se, pois, negamos a existencia da alma racional nos animaes, nada
mais diremos de · su a immortalidade, porque não ha argwnentos para
justificar o nada, nem póde ser immortal aquUlo que não existe.
Porto Alegre, 1868.
OS PALMARES· ✓
ROMANCE HISTORICO
POR
Appoiinafio Porto Alegre
(CONTINUAÇÃO)
PARTE I
CAPITULO I
UM SONHO
I (
Agosto de 1869.
Aurelio de Bittencourt.
--o-o-o-
.A MISSA DO GALLO
(FRAGMENTOS DE UM LIVRO)
I.
(Continúa.)
•
.
POESIAS
SONHANDO.
Eu via um quadro de celestes gosos,
De leve a aura balançava a flor;
Depois correndo nos vergeis viçosos,
Em brando adejo murmurava amor.
Rubra asomava matutina aurora,
Envolta em dobras d'um sendal d'anil ;
Doirada nuvem percorria ess'hora
Um céo ignifero de amanhã gentil.
No val bramia perennal cascata,
De manso as agu as à rolar, veloz,
Cantor volatil desparzia á IJ1ata
Ternos gorgeios em sonora voz.
Um véo de rosas ondulava lindo,
Então n'um prisma de brilhante côr,
Eu via um mundo de prazer infindo . . .
Todo poesia - a me fallar d'amor . . .
Junto á floresta appareceu um anjo,
Por entre as flores n'um feliz vagar.
Era essa virgem porque a lyra tanjo,
Colhendo flores em gentil scismar.
Cobria as formas virginaes, mimosas,
Denso vestido de fulgente côr;
Longas madeixas a cahir ondosas
J,ob uma c'rôa de nevado alvor.
Esse de graças feminil composto,
Que ao r omper d'alva vagueava ali,
Nos laàios tinha um sorriso posto,
Ai! era Dylia, que formosa vi! .. .
Ao meu chamado, que vibrou instante
Cobriu-lhe as faces infantil rubor ;
Lançou em roda terno olhar d'amante
Dizendo : - és tu .. . é meu fiel cantor ...
Em louco anceio comprimi-lhe o peito,
Que effluvios n'alma px,elibava então ;
Tendo de flores perfumado leito
Beijei insano a divinal visão! . . .
Mas logo o sopro da real verdade,
Rompeu meu sonho, qual um véo de pó;
Já vendo um mundo d'infernal vaidade,
Triste, abat ido, desper tei - mas ~ó!
1867. Napoleão Poeta.
-199-
SEGREDO E AMOR
(RECITATIVO.)
Ha sonhos lindos aos desoito annos,
Fundos arcanos de febril queimor;
Que a nós, donzella, sobrevindo a medo
Guardão segredo murmurando amor.
Diz-me, adevinhas se quem vês agora
Louco te adora com voraz paixão?
Tanto segredo meu amor 'esconde ...
Diz-me, - responde - tu não sabes, não! . ..
Quando te olho, seductora e bella
Sonhas, donzella; n'esse olhar quem vê?
E' ao segredo d'este amor affeito
Morrendo o p-eito, sem que um ai só dê.
Como nas flores á occultar'-se essencias,
Ha existencias que ninguem sentiu;
Assim minh'alma no segredo immersa
De amor conversa com , quem nunca 'ouviu.
E' que ha na terra perennes arcanos
Que nunca humanos saberão transpor;
Mysterios, duvida, e descrença e medo,
Longo segredo de infinito amor.
Quando te vejo me assomar tão linda,
Que paz infinda que se abriga em mim! . ..
E tu não sabes se ·o segredo illudo
Do amor, de tudo que se diz n'um sim! . ~ .
E' que nas cinzas encuberto o fogo
Não brilha logo, se o não vem soprar;
Tal em segredo minha mente opprime
O amor sublime que trahiu no olhar.
Se .ora em ti penso, na fugaz vertigem,
Sabes, oh! virgem, de um praser -veloz?
Sonho em segredo n'este amor tyranno,
Que ouço um piano, que t'escuto a voz.
Se de ti perto meu sorrir confranjo,
Zombas, meu anjo, de me ver sorrir?
E' que em segredo d'este amor a . imagem
Vem qual miragem, para mim fulgir.
E' que ha mysterios aos desoito annos,
. Fundo·s arcanos de febril queimor ...
Que eu sempre, oh! virgem, te adorando a medo
Guardo segredo - murmurando amor.
, Agosto de 1869.
1
Francisco Antunes Ferrjlira da Luz.
EMENTARIO · MENSAL
Foi quasi totalmente destituido de factos notaveis o mef que finda
hoje.
Dois, no entanto, ha a mencionar, que interessão grandemente á
humanidade. '
O primeiro é a nova serie de victorias que o nosso valente exer-
cito tem alcançado no Paraguay, o que nos faz crer no proximo ter-
mo da guerra.
Reunidos todos os elementos de acção, parece que é proposito do
joven commandante em chefe perseguir o despota Solano Lopes até
fazel-o · deixar a terra que estragou.
O exercito que vivia contristado pela inacção a que o 'condemnára
um fatalissimo engano, tomou as armas com enthusiasmo para reco-
meçar a lucta. .
Peribebuy e Ascurra cahirão já em nosso poder, dizem-nos tele-
grammas do Desterro.
Os nossos soldados, animados pela presença do bravo Osorio, se-
guem na gloriosa marcha encetada. Que Deus os proteja e á causa
por que se batem, e os restitua breve á terra natal, á familia .
-217-
POESIAS
NÃO SCISMES
I
Que sonhos fictícios são esses que envolvem,
tua alma encoberta p·or candido véo?
'-- são gratos enlevos, ó tímida virgem, , ·
que gozão : que sentem-os anjos no céo ?
.Será por saudades, por crença ou esp'rança
que scismas tão triste, que pensas assim?
Ou são os arroubos dos sylphos que fallão,
que fallão voando nos ares sem fim?
Serão as lembranças da infancia querida,
que assim tão dormente 'te fazem scismar?
ou é que no peito, já preso de aniores,
desbrochão as flores com .teu meditar?
-o-O-o-
'-218-
teu coração innocente
viver triste e descontente
n'esse fundo meditar!
II
Casto enlevo que um peito de criança
alimenta na fé mais pura e viva,
. doce illusão que n'alma da donzella
entre visões de amor ergue-se altiva! .
Nasce do sonho. E a mente vaporosa
qqe um ideal formou em mundo vago,
se julga que respira só perfumes
vai -sorvendo a cicuta trago a trago.
Meditação! . . . Sonhar amargo e doce
que as trevas occultar em vão deseja ;
ros;;i. galante que o espinho acata
e mata o colibri que em torno adeja.
Lago profundp onde a lua argentea
banha-se núa prateando as aguas ;
é manso e bello, mas no leito fundo
guarda-se o lôdo que prediz as magoas.
Or-la de fumo em aspira! formato
que pouco a pouco se toldou nos ares,
globo de gelo que tornou-se liquido,
e jaz perdido na ~ xtensão dos mares.
Oh! não acordes, ou não durmas nunca
entregue ao goso de illusões tão bellasL
são puras nevàas que esvaecem logo,
e a vida póde esva~cer com ellas.
-o-0-o-
Sim; que o scismar é um tormento .d'alma
nectªr envolto de lethal cicuta, ·
é veneno crµel! .. .
E ai d'aquelle que, perdida a calma,
em vão tentando não cahir na lucta,
suga-lhe o fel.
Vem o delírio atormentar-lhe ao leito,
atroz martyrio de um punhal que offende,
e a fé perdida!
suffoca a angustia o coração no peito,
contorce irado, mais a dôr se estende,
foge-lhe a vida!
Criança loira que lá corre anciosa,
atraz da branca borboleta erguida
sobre a flôr; -
e n 'essa louca embriaguez que gosa,
não -sente o cardo que lhe rouba a vida,
não sente a dôr!
-219-
Assim a virgem que no peito sente
a chamma doce de um amor profundo,
pensa e delira . . .
fogem-lhe as horas n'um scismar ardente,
depois desperta, reconhece o mundo,
tudo é mentira!
III
E tu dizes que não amas,
que do peito não reclamas
mais ardor, •constancia e fé?
Para que teu labio mente,
se teu olhar innocente ·
diz a verdade qual é?
Eu não maldigo da sorte
de quem sente, e tem por norte
um amor candido e puro;
é o anhelo de uma virgem
é santa e casta vertigem,
é a crençã de um futuro.
Mas por àmar o - soffrer -
por um riso o - padecer
até na tumba finar!
Oh! isso, donzella, não,
não deseja um coração
que não sabe o que é scisinar.
Só deseja quem dormita
sonhando como o levita
que vive aos pés do Senhor!
E depois d' esse sonhar .
quem ama no meditar
e não tem fé n 'esse amor.
-o-0-o-
Oh! não medites mais, casta donzella,
nas doces illusões que vem de um sonho,
que a alma faz chorar; -
Para ti guarda .o mundo, porque és bella,
um formoso viver sempre risonho,
. um peito a te adorar.
E quando d'este mundo tristmente
pensativo eu descrer dos sonhos meus
. aonde me cónfranjo;
depois adormecer eternamente,
e para · os céos voar, direi a Deus
que és na terra um anjo!
Porto Alegre.
S. Brito.
-220-
A CUNHA VASCO
' -221- .,
Recebem-n'o de Deus os seus eleitos, -
E quando a pedra tumular os cobre,
Rasga a materia a emanação divina,
Vai para Deus, deixando á terra um nome.
Assombro ás gerações, ao mundo assombro!
!
- 222 -.
·CHERUBIM DE AMORES
(RECITATIVO)
A' . .. ..
Era de noite . , . dos ipés á sombra,
Na verde alfombra te beijava terno;
E no teu rosto de brilhante alvura
Qúanta doçura de um amor superno! ...
1
• Eramas juntos! . . . · Desmaiavà a lua
Na fronte tua de mortal pallor;
Convulsa, tremula, empallidecias
Porque temias meu febril amor.
,,, - Tu me fanavas, temerosa, meiga,
Como na veiga a jurity que chora;
Casado o pranto ao estalar dos , beijos,
Loucos desejos de quem muito ad9ra!
Tu me sorrias n 'um sorrir d'archanjo,
Eras meu anjo, meu ail).or, meu Deus;
Louco, perdido, me entreguei contente
E docemente aos mil affagos teus.
Ebrio d'amores duvidei da vida,
Julguei mentida tão ditosa scena,
Julguei sonhar em um febril delírio
Doce martyrio que o penar serena.
Eramas sós é dos -ipés á sombra,
Na molle alfombra te fallava a medo;
A viração louca soltava queixas,
Tristes endeixas em !)ubtil segredo.
' Em meu regaço adormecestes bella,
Sublime tela de innocente amor;
Cerraste os olhos á um beijo meu,
No rosto teu de sepulêhral pallor.
Oh n'esse beijo quanto amor bebi, , ,
Julho de 1869.
II.
DESARRANJOS CONJUGAES
-224-
Ambrozio da Silveira, posto recommendar-se pela robustez de um
physico agradavel, tinha gasto o vigor da mocidade nos desenfreamen-
tos de uma vida desregrada. Alquebrado pela velhice e pelo abuso dos
praseres. que o privarão do exercicio de suas- funcções, não foi sem
grande descontentamento que o bom do velho se viu prohibido de per-
petuar pelo matrimonio a illustre próle dos Ambrozios Silveiras.
A' vista d'esta circunstancia, aliás pouco lisonjeira para um ca-
beça de casal, a joven e bella Angelina procurou no exterior um am-
biente mais perfumado e vigoroso, que o que respirava na athmosphera
abafadiça do lar domestico. ,
Este acontecimento monstruoso sirva do mais solemne protesto con-
· tra o matrimonio c;ontraido entre um velho decrepito com uma moça
cheia de vigorosa vitalidade!
Angelina tinha dansado com Eduardo no ultimo baile da soirée,
onde combinarão uma entrevista amorosa, que df?veria ter logar na
occasião da missa do gallo. ' -
Com as idéas embebidas exclusivamente nas delicias de um pra-
ser futuro, Angelina não pudera dormir tranquilla, como o demons-
tramos no capitulo antecedente. ·
O JURAMENTO E O ADULTERIO
O sol ardente do dia 24 de Dezembro de 1861, que tinha raiado
esplendido, declinára no ocidente encoberto por um espesso véo de nu-
vens pardacentas. , ·
O vento sul principiava a soprar forte, e de quando em quando
a luz momentanea do relampago atravessava o ~spaço.
· Não .obstante a revolução dos elethentos presagiar uma noite te-
nebrosa e ameaçadora, as familias cruzavão as r,uas d'esta cidade em
demanda dos vaporés, que do trapiche da alfandega partirão para a
localidade do Menino Deus, onde o povo· convergia a saudar o nasci-
mento do Redemptor do mundo! ,
A's 11 horas da noite, porém, já reinava o silencio.
Apenas algumas familias mais devotas atravessavão a praça co~
o fim de assistirem 'á missa do gallo.
O vento que soprava c.om violencia tinha apagado · a maior parte
da illuminação publica.
A noite continuava borrascosa e ameaçadora.
Nenhuma só estrella rasgava aquella uniforme escuridão do firma-
mento!
Apenas alguns raios de luz coados pelas janellas do templo rever-
beravão nos edüicios fronteiros. •
E todavia a. igreja apinhava-se de gente!
Uma boa" parte da nossa luzida sociedade alli se achava ajoelhada
·e contricta ante a imagem de Deus e do gracioso encanto do berço de
Bethlem!
Perto do altar-mór permanecia de joelhos· um vulto de mulher.
-225-
Com os olhos fixos nas orações do Evengelho, parecia que a irra-
diação do amor divino inundava a alma de suavidade e luz!
De repente um movimento geral se manifestou na multidão dos
crentes, que tomavão unanimes uma attitude respeitosa.
• Era a imagem veneranda do sacerdote, que approximando-se do
altar, ia principiar o sacrüicio da missa.
O vulto da mulher de que acima fallamos, não querendo esper-
diçar aquelle momento de agitação, evadiu-se furtivamente pela porta
da sachristia ,sem que fosse presentida. ·
Alguns minutos depois aquelle mysterioso vulto permanecia atraz
da igreja calado e quedo, como a estatua do silencio!
A luz de um relampago illuminou o rosto d'essa mulher, em cujas
feições se distinguirão todos os .traços physionomicos de Ai;igelina da
- Silveir a!
Aquelle clarão electrico illuminando rapidamente o velho cemi-
terio, que a mão civilisadora de nossa diocese transformára em semi-
nario episcopal, desenhou aos olhos de Angelina uma alluvião .de visões
phant asticas q ue a fizeram estremecer de pavor!
Angelina, inda que tomada de susto e terror, esperava resoluta o
seu querido Eduardo.
Elle, porém, não se fez esperar. Surgindo d'uma especie de bar-
raca onde se tinha occultado, correu a abraçar sua extremosa amante.
- E '.s tu, Angelina?! meu anjo, quanto sou feliz em abraçar-te!
- Eduardo, não sabes a ·quanto me exponho por tua causa! Estou
assustadissima! muito póde o amor no coração da mulher que te adora!
- .tµ1gelina, eu sei avaliar, pelo perigo a que te expozeste, a ex-
tensão do amor que me consagras, e permitta o céo que · nos affagos
de meu peito, encontres a recompensa de teus sacrifícios.
- Ah! Eduardo, este momento de suprema felicidade pago com
a vida, não era caro! .
- Eu te agr-1.deço, meu amor ; mas diz, como foi que podeste vir
aqui?
· - Muito bem, Eduardo; como' saties, o meu marido para fugir
aos apertos da igreja, fica sempre no adro á espera que acabem as
solemnidades religiosas. -
- Comprehendo, Angelina ; não temos tempo a perdef; dá-me um
beijo, disse Eduardo, agarrç1ndo-a violentamente pelos pulsos.
- Eduardo, não abuses de minha fraqueza ; não exijas de mim
mais que os protestos de um sentimento affectuoso! disse Angelina, ce-
dendo comtudo aos impulsos do arrebatado amante.
Após alguns momentos de lucta silenciosa, Eduardo proseguiu:
- Não te esquives, Angelina, dá-me um beijo, um só.
- Não, Eduardo, ainda não . . . sim. . . eu não queria cahir no
teu desagrado, mas . . . não . . . receio. . . receio muito que a tua le-
viandade de moço me comprometta, que vás divulgar o segredo de
nosso amor. ·
- Eu te juro, Allgelina, pelas cinzas de minha mai! este -segredo
irá commigo ao tumulo!
- Mas se uma circunstancia qualquer nos descobrir aos olhos da
sociedade ?'
- Que ·importão os preconceitos sociaes quando a voz da nat u-
reza brada tão alto? Despe esses temores e deixa que eu comprima
d'encontro ao meu o teu collo voluptuoso.
Um beijo ardente estalou nos labios de Angelina, que tremula e
vacillante, n 'um deliquio amoroso, se deixára cahir nos braços do
mancebo. ·
E depois ?
EPILOGO.
São duas horas. Eduardo dorme a somno solto, son hando com as
aventuras d'essa noite.
Angelina da Silveira, depois de fazer d'um acto r eligioso instru-
mento de suas devassidões, disputa em -alta voz com seu marido por
ter ficado no adro da igreja.
Ha tantas ·mulheres assim!
Nicolau Vicente.
A LIBERTAÇÃO D~S CRIANÇAS
Não devia passar desapercebido para a , capital do Rio Grande o
dia da patria, o anniversario da nossa emancipação politica.
A cidade festejou-o dignamente, e á sua frente o Parthenon Lit.-
terari.o tornou-se o arauto da idéa liberal que devia remir o captivo
innocente em commemoração da liberdade politíca que haviamos con-
quistado no dia 7 de Setembro.
A situação é gelida, fria como os ·paramos do norte da montanhosa
Dalecarlia, escura como os seus breves dias de inverno; passaria na
monotona expressão do cortejo, de algum viva mal correspondido, e
na pallidez de descoradas luminal'ias postas como em sarcasmo nas ja-
nellas de edificios fechados onde funccionão as repartições publicas.
'.Passaria taciturna, como vão passando os echos dos gemidos d'outr'ora
do servo da gleba ante os ferreos _portões do castello russo.
Não o consentirão, porém, os. sentimentos :i;:,atrioticos que nos ani-
m ão. LembrãÓ-nos ainda as fervorosas ovações, os hymnos ardentes
que 'levantavão no dia da independencia á patria que quebrára os fer-
ros, e o odio gue vot avamos ao despotismo que viramos medonho descer
aninuilado para os antros escuros d'onde não devia ter sahido.
E estas reminiscencias patrioticas, estas tradições do enthusiasmo
popular, disserão-nos que tomassemos a' iniciativa na festa da liber-
dade; não hesitaII).os, quando nos lembramos que o Parthenon, esse
ninho da mocidade porto-alegrense, digna sempre no 'prelo das · idéas,
já nos havia considerado, e que nos podia entender no caminho em
que queriamos ir. · .
Formulamos a idéa, esboçamos o programma. O Parthenon acei-'
tou-o,s, fez mais do que tínhamos imaginado.
A festa, a commemoração do dia nacional devia ser feita, dando-
se a libérdade aos innocentes, ás ·c rianças que podessemos - haver do
berço escravo. , ·
O Parthenon fez correr uma subscripção entre a população, e tudo
dispôz para exhibir um espectaculo · de gala em honra do 7 de Setem-
bro, cujo . producto integral seria destinado á manumissão.
Era fervido o ent.husiasmo da mocidade, os liberaes concor-
rerão, um apoiado bem pronunciado partiu do seio do directorio li-
beral, o nobre e elevado coração do Exm. Sr. conselheiro conde de
Porto AlegFe não -ficou estranho á idéa, adiantou-se na arena e· traçou
um pensamento digno do generoso povo rio-grandense, creando a So-
ciedade libertadora' dos escravos, cujos estatutos acabão de ser appro-
vados.
Os esclavagistas estremecerão, alguns senhores mal intencionados
especularão; bagagem dos partidos, essa turma que está sempre á merçê
do poder, riu-se com estupido desdem, e a situação presentiu um golpe
certeiro que lhe -dirigíamos. ·
P'ahi os obices, as difficuldades com que o Parthenon teve de
luctar e que retardarão a festa santa da liberdade até o dia i9.
Mas, emfim, chegou o momentó. O Parthenon, radiante em seu
triumpho, ia desfechar um tremendo golpe nos prejuizbs e falsas idéas
de muitas gerações que forão nas passadas idades. Era a abolição da
• escravidão domestica no seu mais esplendido apparato. Artigos de jor-
-228-
n al , uma longa e bem dirigida propaganda não valem o mundo de
idéas, de grandiosos pensamentos que alli ião resumir-se.
O theatro estava ~itteralmente cheio, não havia um logar vago
em todo o salão, nem nos camarotes. A anciedade, e a espectativa
publica era imponente.
Levantou-se o panno: era o Elogio Dramatico que h av iamos esb o-
çado, e cujos versos deramos á composição dos jovens e ardentes poe-
tas da nossa cidade, que ia ser recitado. Os compositores tinhão com-
prehendido o pensamento e tornado-o sympathico.
A Liberdade visitando as plagas brasileiras encontra o Brasil, tão
varonil antes, languido e triste; anima-o, e reparando para, o fundo · da
floresta, vê o Escravo lugubremente cantando, coberto de andrajos e
cicatrizes r ecentes, entregue á lida ·diurna. Comprehende a sorte do
' Brasil e invoca o ·auxilio do céo; desce entãp um anjo mensageiro, pre-
diz a abolição gradual e entrega o Escravo á Liberdade como uma pro-
messa de Deus, e indo ao fundo ordena como um meio pratico a liber-
tação dos ventres, que é symbolisada por um grupo de vinte e uma
crianças que o Parthenon havia libertado, e que alli estavão pendentes
dos seios maternos, de suas mães ainda escravas.
A este espectaculo as lagrimas correrão, e o enthusiasmo dos co-
., rações sensíveis tocou até o delirio . Houve em todo o auditorio uma.
abstracção feliz, ninguem pensou 110 abuso da autoridade que repre-
senta a actual situação, era só a nação que alli estapa e cujas fibras
tangião· com força varonil os gratos sons do hymno nàcional; depois
foi só a liberdade que occupou todos os espiritos quando levantamos
os vivas á nação, ao progresso e á liberdade. ·
Foi como presidente honorario do Parthenon que alli fizemos ou-
vir a nossa v oz, e seja -nos licito dizer, com a franqueza que nos ca:rac-
terisa, no m omento em que estavamos com a nação, em que festejamos
a liberdade, esquecemo-nos do imperador, do filho do berço liberal,
educado como nós nas idéas santas da revolução que nos assegurou a
independencia , a const ituição. e o futuro do progresso por que temos
passado. E esse esquecimento justificou-o o sile;ncio do Sr. Dr. João
Sertorio, Na magna questão da abolição o actual ministro desvirtuou o
procedimento d'aquelle que exerce o poder moder~dor, e resfriado o
· coração, pódé n ão ter enthusiasmo senão pelos que ardentes sabem pro-
vocar-lhe as pulsações. Sob outras inspirações, debaixo da direção de
uma politica benefica, livre e progressista, todos os brasileiros amão
as i.Ílstituições que conquistarão, e como nação comprehendem a respon-
sabilidade dos poderes, que são os seus delegados,
Foi longa a impressão da abolição pratica produzida no auditorio
pelo Elogio . .,Nós o terminamos dando as cartas de liberdade aos inno-
centes alli reunidos.
Marcou-se uma epocha. Porto Alegre ha de lembrar-se sempre do
dia em EtUe se levantou bem alto no conceito da humanidade.
Seguiu-se, após, quant9 estava no programma.
A signora Candiani cantou, como inspirada, uma das melhores arias
· do seu reper torio. A sympathica D. Maria Lima recitou a Judia, e a
menina Paranhos, na festa da innocencia, veio ainda infantil dar mos-
. tras da sua rara aptidão musical.
O dr ama e a comedia adornarão de prazer o magico divertimento.
O Parthenon não deixou sem corôas, bouquets e agradecimentos
os artistas e amadores que concorrerão na festa da liberdade, e o Sr.
Magalhães no seu enthusiasmo, n 'um breve caBto, disse-lhe o quanto
valia a caridade e o sentimento patriotico que n'aquelle momento o
anima vão.
Porto Alegre 24 de Setembro de 1869.
Dr. Valle Caldre e Fião.
/
,,,
EMENTARIO MENSAL
O leitor conhece o que seja a macabra? O quadro medonho que a
media idade legou-nos desenhado nos muros de suas gothicas _ cathe-
'draes?
Pois vou fallar a proposito.
Ha muito que eu ouvia contar maravilhas que se passão á meia-
noite, e no entanto duvidava. .,_
Tenho a obstinação de S. Thomé: non video, non crederam. Será
defeito, mas um defeito que faz-me trabalhar na indagação .da verdade.
Não dêm-me por isto o epitheto de sceptico. Não nego a realidade de
Deus, da materia e da alma, como Aenesidemo e Hume; não pergunto-
me, como Montaigne: Que sei eu? .
Se nego, nego como Descartes, para deduzir uma affirmação, pa-
ra. . . mas onde vou eu, meu Deus?! Ia já internando-me pelo trevoso
mundo philosophico, 'mundo que dá toda a sorte de systemas, mas nun-
ca a verdade, tantas philosophias, quantos são os philosophos, semelhan-
do a essas regiões que Gulliver e Niel Klim, heróes de Swift e Holberg,
percorrerão! .
Fallava pois das duvidas que nutria sobre a dança dos mortos; mas
já as não tenho, estou crente, com9 um sectario de Mafoma, e capaz
·de jurar como as personagens das comedias de Plauto: Aedepol! Ab
Jove!
Crêdes? Dir-me-hão. ,
Sim, porque como S. Thomé assisti, toquei, vi .. .
Contemos o caso, como o caso foi.
Aconteceu n'uma das ultimas noites, quando o Parthenon ardia
em febre contra o mahometano Cabral, que eu lia a vida de Apollonio
de Tyana, Nostradamus, Paracelso, Cagliostro, Bosco e não sei quantas
outras celebridades da sciencia dos mysterios, além de alguns livros de
magia. Fazendo isto.,_ procurava um processo para trazer o capitão á
minha pres~nça, emoora sob a fórma d'uma pulga ou mosquito.
Os critiqueiro-s que tanto incommoctão o meu caro Hilario, consin-
tão que eu falle de pulga e mosquito. Nem devem fazer questão. (O ul-
timo, se a memoria não me falha, fôra poetisado por Salvandy em D.
Alonzo em Hespanha. Placentius h'um poema cantou o combate dos
porcos; Homero, segundo uns, o das rãs e ratos; A. de Macedo, os bur-
ros; Boileau uma estante do côro; Diniz um hyssope; Araujo Porto Ale-
gre na destruição. das florestas as surucucús, etc. etc. Arreda pois, cri-
tiqueiros! Deixem tambem passar: a pulga e o mosquito).
Maldito parenthese! Não sei para que inventarão esta figura!
Ia pois trabalhando á pista da incognita, quando barafustarão pe-
las frestas da porta, pelo buraco da fechadura . e pelo soalho os seguin-
tes Srs. D. Asrael, D. Asmodêo e D. Queiroga.
Mal entrarão, fechão-me os livros, rasgão-me alguns calculos co-
meçados, saltão-me sobre a mesa, cantão, assovião, tra~ão danças car-
navalescas, fazem uma balburdia infernal!
Então arrependi-me devéras de ter travado conhecimento com se-
melhante gente ...
O leitor não admira-se de ver Queiroga tão nossó amigo?
. .
f /
I
:' -230-
DE!pois que o Felippe Neri fez uma tão se:r;ia, justa e magistral
apreciação do 1. 0 numero da revista do Parthenon, Queiroga tornou-se
um verdadeiro amigo da ·mocidade. Parece que a pala;vra autorisada do
homem, cu ja fronte alveja ao sol d'um outomno brilhan te, e da penna
que constitue uma realeza, forão a vara de condão que operára' tal pro-
digio. 1
- O' moço, não se incommode comnosco, disse Asrael. Sabemos o
que queria e viemos satisfazel-o. Hoj~ estamos de ferias, temos a ma-
cabra .. .
- A m acabra?! Exclamei eu. ·
- Sim, e vamos leval-o.
- Mas como hei de dançar?.,
Soltarão uma tremenda gargalhada.
- Nada, .. não dança, não; nós vamos assistir á festa . V{i, temos
uma éeia, onde saboreará pela primeira vez manná,_ambrozia e figados
de pavão cevados com figos frescos, e onde terá, se lhe aprouver, igua-
rias desde o ran gifer laponio até' o ninho de passarinho aziatico. '
- E o Cabral?
- Havemos de vel-o transformado em uma ave e J1ão em um in- -
secto, como queria. ·
- E minha conducção? .
- Facil como tudo, respondeu Asmodêo. Veja . . . e começou a
inchar! a incharf e em breve tomou as· formas d'um aerostato, em quan-
to Asrael ia tomando as d'um barquinho. ··
- Entremos, disse Queiroga. · .
Eu acompanhei-o extremamente admirádo.
-O balão guindou o barco e vogou velleir9 nos espaços. Dez ' minu-
tos depois descia sobre a varzea do Gravatahy.
Erão· onze horas e meia da noite.
Sentamo-n os na relva e começamos a fumar em fleugmaticos ca- ·
chimbos flamengos. ·- ' ·
- Então conte-=-n os a festa do Parthenon, mancebo, disse Asrael.
- Foi uma bella festa! exclamou Queiroga.
- E p ara nós pessima, horrivel, infame! acudiu' Asmodêo!
:...._ Como?
- Sim, .porque a servidão é um mal. Os senhores peccão por alie-
narem a liberdade alheia, e os escravos por viverem n'um est ado de
completa estupidez que qs torna uma ameaça para os senhores, a atro-
phia da industria e do commercio,· e a immortalidade do lar domestico.
A mocidade, Sr. Boccacio, é o nosso maior inimigo! . . . FeHzmente que
temos a velhice para as conquistas do erro. '
-Conte-nos, no entanto . .. . ,
- E' inutil, porque se tj_uizerem, podem ler no pi:oximo numero
da Revista uma bella descripção, obra do Dr. Caldre e Fião.
- Fallem-nos antes os Srs. Asmodêo e Asrael do que ha pelo resto
do mundo, acudiu Quéiroga.
, - O que ha? Muito, muito!- mórmente por esse grandiloquo Bra-
sil .,. . Desde qu~ as mumias do passado sahirão de seus hypogêos, e os
fosseis resurgirão da camada de trevas a um. aceno nosso, o Brasil não
é Brasil, é sentina ; o amor da patria - egoista, as virtudes civícas -
apparencias, o erario publico - mangedoura dos molóssos imperiaes e
do nepotismo canceroso. Nós os espiritos do mal, temos · dois campos em
que não falha uma semente; à purpura dos reis e o estomago dos padres.
- Mas _u m dia, atalhei,_dará a polilha nos guarda-roupas reaes e
a purpura será pó; outro dia o mesenterio sacerdotal abrindo em pus-
tulas in'utilisará o estomago. - .
~ Não é assim, moço ; Roma não se fez n 'um dia, e as obras de
Chesps cimentad;:is com suor e sangue de myriades 'de ho~ ns, subsis-
7
.. /
tem itnpavidas ao passar dos seculos, attestando qµe ainda ha seiva pa-
ra nutril-as nos tempos de noje. .
- A verdade afinal brilha e . . .. . . . . .
- Ha de convellir o mal, não ~ o qu~ ia di_:,;er? Engano! .
A verdade é Deus e Deus é a luz em sua quinta esse:ncia; .tna.s nós
existimos em contraposição a Deus e somos a ~onte dos absurdos, erros
e preconceitos; n.§s - as sombras e a treva, semelhamos as manchas
que o sol traz em seu velamen de resJ?lendores. A humanidade divide-se
em duas porções; uns são : Melitos e Caiphazes e outros Socrates e Chris-
tos; aquelles pertencem á nossa gry; estes á communhão divina.
Que quer ?! O mundo é assim, o céo no ansverso da medalha, o in-
ferno no reverso . . .
O demonio da lascívia emmudeceu.
Uma b adalada echoou nos espaços sinistra e agoureira como um
requiem.
Er a meia noite.
Gelida br isa, que fazia ouriçar os cabellos, soprou sobre a varzea.
Lívidas lu zes illuminavão funereamente a noite. Erão os brandões dos ,
·boit atás tradiccionaes. Córos de virgens mortas no verdor dos annos
fazião-me o coração gemer, tanto sua tristeza era profunda, tanto sua
voz reçumava doridas queix as!
Dominou-me ao principio o terror.
Estava estatelado, com os olhos -cerrados, receiando ver as negras
peripecias da scena. quando Asrael tocou-me. Encarei-o, e elle indi-
gitou um-p onto Olhei. .. era meçlonho!
Fechei os olhos, abri-os de novo e assim continuei até acostumal-
os ao quadro.
Havia um throno . Era construido de arcabouços e carcassas de ra-
ças extinctas de animaes. Sobre elle destacava a morte com a inexora-
vel fouce. Em torno o tripudio dos mortos de todos os sexos, de t0das as
idades, de todas as raças, de todas as condições! E dansavão.
Dansavão como doudos, embatendo os esqueletos, saccudindo os
- sudarios. E rião no torvelinho dos círculos! que coisa mais horrível hi .
ha que a caveira que ri!? O que mais côa n'alma o gelo do pavor que
um craneo liso, de refl~xos eburneos á luz versa til dos tocheirós? !
,
Afinal desapparecerão os terrores que me incutia aquelfa scena.
Em vez de ver alli um motivo de reluctanciá, achei indefinível
prazer.
Eu -dizia: O' vaidade do mundo! ~is niveladas as raças, as jerar-
chias sociaes na macabra! ·
Queiroga, Asrael, Asmodêo apertavão as ilhargas, em accessos de
riso, ouvindo minhas considerações.
- Moço, deixe de reflectir, vamos ceiar; emquanto os mortos re-
voluteião em vortices delirantes, banqueteemo-rios . . . Façamos uma
ruidosa saturn al. A vida é : m oll.es in gramíne somnos, quando sabemos
gozal-a .. . Vamos brindar os heróes da taça, des'de D. Noé até John
Falstaff e Werner. E levarão-me para uma mesa á sombra de algumas
figueiras silvestres. Ahi estava um urubú-rei. A multiplicidade de igua-
rias açulavão-lhe o appetite, tentava tocal-os com o adunco bico, mas
fazia e~forços inuteis, ~offria o supplicio de Tantalo, estava preso por
uma força superior. Tambem para a voracidade d'esta ave, insaciavel,
como o tonel das Danaides, só um tal castigo!
E sabe o leitor, de que urubú-rei fallo?
Adevinhe .
. . . . . . . . . . . . . .,...... ...... ...... ......... . ' .. ' ..... .... . ' .... .. .
\
-232-
Estou com somno . . . quem vai á macabra, fica exhausto de for-
. ças. . . O' uma noite ao relento entre mortalhas é uma pilha electr ica!
As emoções são tantas e tão várias!
A penna treme-nos entre os dedos, cahe traçando apenas:
Good bye.
Boccacio.
;,
ATAS
4.ª sessão ordinaria em 14 de Fevereiro de 1869
, PRESIDENCIA DO SR. ERNESTO PAIVA
Aos 14 dias do mez de- Fevereiro de 1869, ás 8 horas da noite, pre:
sentes 12 Srs: socios, abriu-se a sessão.
Foi lida e sem debate approvada a acta da sessão anterior.
Em seguida foi lida uma proposta do administrador da empresa
da Actualidade, para a impressão da ".Revista Mensal" da associação . -
Ao conselho economico.
O Sr. 1.0 secretario procedeu á leitura do expediente a seu cargo.
Foram aceitos 2 socios effectivos, e 1 correspondente, residente no
Rio Grande.
O Sr. 1.0 orador saudou na forma do estylo a um Sr. novo asso-
ciado.
PRIMEIRA PARTE DA ORDEM DO DIA:
Nada houv;e a tratar.
SEGVNDA PARTE:
Continuou a discussão da these philosophica sobre a guerra. Orou
o Sr. Affonso Marques, tendo sido depois encerrada a discussão . \
O Sr. presidente deu para a ordem do dia da sessão seguinte o pa-
recer sobre a these historica: como deve ser considerado Juarez perante
a historia? cujo parecer fôra confiado ao Sr. ~chylles Porto Alegre,
e levantou a sessão ás 9 ½ horas da noite.
O 2. 0 secretario,
Àurelio V, de Bittencourt.
5.ª Sessão ordinaria em 21 de Fevereiro de 1869
PRESIDENCIA DO SR. ERNESTO PAIVA
A's 8 horas da noite, presentes 19 Srs. _socios, abriu-se a sessão.
Foi lida e sem debate approvada a acta da antecedente.
Foi lida a acta da 1.ª sessão d'este anno , do conselho economico. '
O Sr. 1. 0 secretario procedeu á leitura do expediente á seu cargo.
A' requerimento do Sr. Achylles Porto Alegre 1 o Sr. presidente
nomeou os Srs. Juvencio Augusto de Menezes Paredes ·e Hilario Ri-
beiro afim de darem os pesames ao sacio fundador Henrique Maya de
Castilho, em demonstração de sentimento pelo infausto passamento de
sua irmã.
Foram aceitos 3 socios effectivos e 6 correspm;:1.dentes, sendo d'estes
4 residentes em Pelotas, um em Taquary e o outro em S . Jeronymo.
O Sr. Bernardino dos Santos preveniu á casa de que na primeira
r
-234-
sessão, apresentaria o protesto de ~lguns socios c~ntra a eleição geral
a que se procedeu na sessão extraordinaria de 17 de Janeiro.
Travou-se discussão á respeito entre os Srs. Affonso, Achylles
Porto Alegre e Bernardino.
l. ª PARTE DA ORDEM DO DIA.
REVISTA MENSAL
I
DA
SOCIEDADE
PARTHENON LITTERARIO
''
.
-o-O-o:-
PORTO ALEGRE
1869
COMISSÃO DE REDACÇAO .
OS PALMARES
ROMANCE HISTORICO
POR
APPOLLINARIO PORTO AL~GRE
(CONTINUAÇÃO)
CAPITULO III
Avancemos um passo no interior. E' quasi no fundo, onde mal
!obriga-se a porta d'uma pequena camara.
A noite vai adiantàda e uma pallida e languida menina inda vela.
Reclinada no leito· com a fece apoiada sobre a mão, parece dar
livre curso á meditação. Ahi na màis lucida e aurea quadra do viver,
quando porventura devia encarar o mundo pelo prisma das illusões,
ella vê o esphacelo que o corróe, já possue seu cadaver dissecado,
bem como os augures de Roma a pagã, soletrou-lhe nas visceras a ver-
dade monstruosa.
Ahi nas noites sem somno, duradouras sempre como um seculo,
tem curtido asperas e lentas agonias, que, semelhantes á giboia enno-
velando a suçuapara, ião aos poucos lhe aquebrantando as forças, e
dando incremento aos paroxismos d'uma febre, que lhe absorvia a seiva
da existencia.
Tendes, leitor, conhecimento do que seja a combustão espontanea,
sequer d'outiva? Pois a dor que se abraça a uma entidade por larga
dura não lhe é somenos, quiçá mais cruciante, mais cerval, mais sa-
tanica e inconcebivel; porém fallamos da dôr moral, para · a qual não
ha panacéa, nem refrigeri"o, a não ser a leiva dos sepulchros. A eter-
nidade! A eternidade só lhe basta! porque só ella póde encher o abys-
mo de desespero e angustia que então se rasga, se amplia, se apro-
funda sem termo na alma do desgraçado!
Enfermidades corporeas em -que se lhe assemelhão?
A consumpção d~ intelligencia, a atrophia do coração é só das
almas grandes.
O cerebro vulgar do arrieiro e do hyppopotamo, do aulico e da
lagartixa, não tem um ventriculo em que possão hospedar as angus-
tias moraes . ..
Amelia, apenas sahira das faixas do berço infantil, tivera o equu-
leo do martyrio! O inferno pelo céo!
Pobre moça!
Magnifica flor do mandacarú, mal abrindo o botão da pubescen-
cia, e batida dos tufões na grimpa das serranias! . _
E com_o hei de stereotypal-a, pol-a em relevo? De que modo re-
produzir sua figura tão aerea, tão idealista, tão divina? Como retratar
U:m sorriso de Deus que chrystalisou-se ao descer á terra? ·
Timantho desesperando de exprimir a tristeza nos traços de Aga-
memnon, não correu sobre elles um véo? Imitemol-o, que se a veja
atravez da gaza d'uma ligeira descripção.
.-238-
, ··Na galeria social dois typos de mulheres se ostentão peculiarmen-
te. Umas são a gaivota apanhada na amplidão dos ares por uma ra-
jada impetuosa, 'resistindo ao principio, mas acabandq por cahir des-
fàllecida np limo das charnecas, onde mancha as brancas ph~mas.
Outras a lagrima das noites adormecida no seio da graciola: as auras
matutinas perpassão, brandêão a hastea da planta, arrastando n a oscil-
lação a gotta límpida e serena,. ora á extrema da petalá , ora ao fundo
da flor, até que o sol derramando-se sobre o valle a exalce ás regiões
do céo, transformadá em tenue e_ diaphano vàporzinho.
Amelia pertencia ao ulfüno grupo. ·
Ha donzellas lindas e sympathicas que angarião até pelos aderna-
nas um olhar d'amor, mas Amelia ... O' ella! ...
Quem não tem visto por entre torreões de caligens um raio do
sol coar? Pois ella ·era bella: como este raio do sol.
Seus cabellos em madeixas negras como a aza do anum , emmol-
duravão um rostinho pallido de lioz, cujas partes e contornos pro-
nunciavão-se em proporção continua e em cadencia de linhas suaves.
O porte dotado da flexibilidade da creciuma tinha um tanto do
impalpavel das pei:is que povoão os céos da Persia, dos gnomos azues
e transparentes que, na quebrada d'uma encosta, o mineiro sueco julga
deparar. .
Então trajava um vestido· de filele escuro, que fazia. sobresah ir
visivelmente a chernita das feições e das mãosinhas, escondendo em
parte a gentileza do talhe, esvelto como o d'uma palmeira, se bem
que as vibrações da mracha cheia de elação e vivacidade, o denotas-
sem. Abotoado na garganta, bem ajustado sobre o corpo, desenhava '
as evolutas d'um colo admiravel e d' uma cintura, cuja delgadez. o
olhar não cansava de admirar com o desejo de estreitai-a amorosa-
mente.
Amelia! 0 '. ella! . . . Quem não tem vjsto por entre torreõe~, de
calligens um ra10 do sol coar-se?
/ Pois ella era bella como este raio do sol.
Nunca olhar envolvera-se mais n'uma athmosphera humida de
melancolia, nunca filtrava um brilho tão morno e tão ineffavel, mas
tambem nunca absorvera um mundo de tanta meditação. Se o riso em
sua boquinha engraçada abria os labelos, era merencorio e pungente,
parecia um crepusculo da tarde. ' •
Quem a visse asim, librada entre o firmamento e a terr a ,diria
que assás pungia-lhe uma nostalgia de sua patria nativa : - a mansão
além dos astros.
Comprehenderia Amelia o sentimento e~p,o ntaneo d'esses arroubos
e d'essas scismas profundas?
Teria uma noção distincta dos phenomenos que a tornavão um
dedalo inextricavel para a psychologia? · ,
Não, que tudo isto decorria de sua natureza, como factos normaes.
Sempre, quando os olhos fruião tanta animação e deslumbravão
com tanta vida de pensamento, sua alma espairecia-se n 'uns longos
vagos e indei1nidos, n 'um mar sem praias banhado de q_ubia luz' cre-
puscular. .
Bracejando, n 'uma aspiração sublime para o infinito, esta franzina
creança debatia-se em ancia cruel, presa ao sólo de nosso planeta pe-
las adobas do involucro terreno. ·
O thema dos meditares que a arrancavão ao positivismo da exis-
tencia, durante longas horas, erão: Deus, patria, liberdade e amor,
bafejados do perfume da idealidade. · .
Porém , n~m constantemente saboreava taes momentos qe volupia.
O lozang.o d'um relampago cruzava o horisonte de seu viver solitario.
Uma .scena domestica, tehivel para ella no travo, porque -defendia-
-239-
se contra os ataques e as insolencias d'uma madrasta, tinha então lugar.
Depois no remanso de seu quarto as palpebras se lhe humectavão
de perolas d'um sofrimento inexprimivel.
Flebil voltada para o crucifixo impendente· do muro·, balbuciava
com voz maviosa e tremula: Maria! Frederico!
Mãi e irmão!
Pobre orphã de carinhos, não dor!l}es sob ;is azas da maternidade,
nem no teu irmão tens arrimo e consolações!
Amelia em taes momentos, curva sob a corôa de angustias . .. ,
Quem não tem visto ppr ·entre torreões de calligens um raio de
sol coar-se? ·
Pois ella era bella como esse raio do sol.
Quem deixára de amal-a? Quem não reclinara ante ella: - ado-
rando o Creador na creatura- como disse um poeta persa? .
Depois atirando-se sobre o leito com o seio partido pelos soluços,
com a expressão das magoas expandida pelas faces, era d'uma formo-
sura divina, traduzia o omega . a ulitma palavra da genesis material -
a perfeição plastica, o ideal do poeta e do artista.
Era uma d'essas mulheres que nascerão para ser um idolo eterno
e não para os gozos transientes do mundo. . . · .
Ella scismava quando entramos. Alguns instantes decorridÕs, ba- ·
tem á porta. Da atitude medifabunda, em que se achava, não se mo-
veu. Suas forças espiritua5:!s reconcentravão-se todas n'um ponto in-
trínseco.
, Qual? Deus o sabe.
Pancadas de novo -soarão mais fortes.
Apenas m~neou a cabeça, como se incommodada do ruido estranho
que vinha perturbar-lhe a paz. ,
Ouvindo-o outra vez, despertou-se completamente do lethargo, e
· Pet,untou:
- Quem está ahi?
- Minha senhora, mandarão chamar-lhe. 1
Quem?
O senhor.
Não sabes para que, Joanna?
Venha de pressa, está~ . . nem devo contar . . . venha.
Eil-a em pé mais pallida do que nunca. Com a mão comprime
o latego infrene do coração, os olhos debulhão-se-lhe em pranto copioso.-
caminha vacillante para a porta.
- Meu Deus! Minha mãi! Querem matar-me, pronunciou em tom
convulsivo- e plangente. ' , ·
CAPITULO IV.
/
-244.-
suia uma alma ardorosa e nobre, como era seu physico ornado de bel-
leza, graça e frescor, o que o tornava distincto entre os demais cava-
lheiros, e ao qual se prendião as maiores sympathias e as mais riso-
nhas esperanças de. sua familia e das nobres dçmzellas de sua alta so-
ciedade. . _
Elle, porém, parecendo insensivel a tantos extremos e affectos, fu-
gia desse ambiente morno e mephitico que respirava no solar paterno
para a solidão dos êrmos e dos bosques. Nada ali o deslumbrava, nada
o prendia ao fausto ; e julgando talvez, pouco brilhante e digno para si
esses brasões e glorias legados por seus antepassados, elle calcou-os com
o nome herdado, para conquistar outro mais nobre e glorifical-o com
seus proprios feitos.
Arrastr ádo pela vocaçffeo, por esse poder superior e providencial,
a que cegamente obedecia, ensurdeceo aos rogos de sua mãe, desobede•
ceo as ordens paternas, desprezou as lagrimas e supplicas da familia, e
foi ser do numero d'aquelles apostolos em cuja bocca pôz Junqueira
Freire, estes inspirados versos:
Era longe - bem longe: e eu vim primeiro
Scindindo as ondas d'essê mar profundo,
E por amor da Cruz vagÚei sosinho
Nas invia's mattas d'esse novo mundo .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ., . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Eu disse ás tribus : - Todas vós sois ricas,
Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.
Sois ricas tribus, - mas não sois felizes,
Porque uma crença de um só Deus vos falta .
hoje testificão, e perdurarã~ ainda aos tempos por vir, os povos da En-
carnação, São Miguel, S. Thomé e outros que, elle erguera como padrões
de sua gloria no serviço do seu Deos e Senhor ; e obrigando que seus
an;ligos o abandonassem, pois grande . era o :perigo que os ameaçava,
elle ergueo sua alma aos céos, deixando ainda seu corpo no eculeo do
mais atroz e cruel martyrio.
Prestes a exhalar o derradeiro alento, volve o olhar piedoso á seus
barbaros assássinos, e disse-lhes, com voz doce e ungida de dorida com-
paixão: '
"Vós mataes o meu corpo, mas não tendes poder de matar a minh' ·
alma que ha de viver sempre, e que vae subir ao céo para gozar da
gloria.
"Oxalá! que · cresseis na palavra de Deos que vos ensinei, porém
sois máos, por isso não me acreditaes."
E estas forão suas ultimas palavras, pois apenas pronunciadas, o
gentio enfurecido precipitou-se sobre elle, já moribundo, e partirão-
lhe a cabeça com dous garrotaços, e mais iniquios esses barbaros do
que o tigre de suas florestas, abrirão-lhe a garganta por onde tirarão
a lin~ua da victima, e depois rasgando-lhe o peito traspassarão-lhe o
coraçao em uma de suas hervadas frechas.
Tal foi o martyrio horrendo que pôz termo, no dia 26 de Abril de
1635, a vida illustre do veneravel Erei Christovão de Mendonça.
FLOR DO LAR
I.
Mulher! anjo do lar, querida amiga,
!dolo unico, que no mundo adoro!
Céde a meus rogos, vem ante o Deos vivo
As bençãos implorar sobre nós ambos,
Que ligue o meu· destino ao teu destino . . .
· Celeste creação de humana especie;
Amoroso conjuneto d'esperanças,
O' tu, inspiradora de meu estro,
Vem completar meu ser, guiar meu genio,
Meu lar embellecer, feliz ·fazer-me!.
Vem perennãl thesouro em que meus olhos
Enchergão só ventura! ·
Dizes que te não sou indifferente,
Qué compassiva, e circumspecta amante,
Escutas terna de meu peito os ais
A' ti levados pela cauta brisa, r
Que .os meus suspiros entretêm co'as azas.
Por Deos! O' divindade humanisada,
Santélmo que d'esta vida ao Bardo
As ' procellas amainas ;
E seu canto sentido ao céo transmittes. ·
Des_ce das regiões etqereas de .meus sonhos,
Vem, é á face de ,Deos jura que és minha;
E no solemne altar do amôr que invóco,
.Sob o tem})lo immenso deste céo augusto, .
Deixa que ao adorar-te eu m 'extasie .
..
. . . . . . . . . . . . . ( . .. .. .. ... .. .· , .. ..... .... ..
Oh! não! basta mulher! A fronte inclina,
Recebe o diadêma . . . são meus beijos,
Teu th;rono · é em meu peito,
O septro?_. . _. Nem eu sei. .. a minha penna ., .
Meu destino, sem custo, mudar podes.
. Enleio de minh'&lma,
Esthetica yisão dos meus s~ntidos!
Um beijo, mais um beijo, um outro beijo ...
Mas que rubor é esse que em teu rosto
Duas rosas desdobra perfumadas
Desse aroma do céo - . pudor - chamado?
Como encanta, mulher, esse perfume!
E quanta fragancia ao purpurar das faces!
E's mãe, ídolo m'eu? Cuida em meu filho,
E mais esse penhor de mim conserva,
Penhor que em duplo laço a ti me prende .
. II.
.... -III.
\.
-252-
RÊVERIE
Silvlo.
-253- ,r
IMAGE -
(DU CHANTIER.)
Charles Poncy.
,IMAGEM -
(Traducç~o immediata a _' leitura da poesia acima.)
SETE DE SETEMBRO
(1) "Bahobab" - Arvore da Africa sob cuja rama podem formar milhares de
homens: -- Um natura1ista 'inglez descobrio ha poucos annos no Amazonas uma ou tra
a rvore de dimensões mais descommunaes, cop.hecida por "sumahumeira" e que aqu i
chamo de "Bahobab" por analogia.
- 255--=-
Minhas florestas, meus camp.os,
Meus rios, valles e montes
Limitão 'mil · horisontes
No espaço que Deos lhes deu!
Quatro gigantes rodeião
Meu domínio sobrehumano:
Prata, os Andes, o Oceano,
E o rei dos rios, que é o meu!
As auroras do Orienfo
Invejão meu ,céo azul!
Meu sabiá, quando · canta,
De inveja mata o bulbul ! (2)
As mais frondosas florestas,
As mais fecundas campinas,
As mais inexhaustas minas
Eu sómente encerro em mim!
Meus palmares são mais bellos
Que os do Oriente orgulhoso,
Meu m.olongó mais cheiroso (3)
- Que o mais olente jasmim!
. \
EMENTARIO
-259- .
os tagarellas, faz fallar aos mudos, correr aos parlyticos e parar aos
gamos . ..
A surpreza é o mais logico contraste do ouro.
Este aplaina, remenda, limpa, illumina e consagra tudo; aquella
escalva, rompe, conspurca, obumbra e anáthematisa tudo quanto haja
de mais generoso e mais nobre.
Dissemos: que só se conhecia o progredir e a vida entre nós, por
esse thermometro da moralidade de um povo - a roda dos engeitados,
mas ainda é tempo de retractarmos-nos, e assim o fazemos; porque a
par da corrupção que avulta devastadora e gigantescamente, marcha o
progr esso moral e material nas azas d'essa brisa perfumada e veloce
que refrigera e purifica os miasmas sociaes.
Pqrto Alegre vive a vida do progresso e da civilisação; qual o
Ashaverus bíblico, caminha, sempre, e . não como aquelle em precursor
de flagellos, mas obreiro do porvir e da grandeza de um povo nobre,
enthusiasta e bemdicto de Deos! t
Vejamos senão; aqui a litteratura nacional, que, nascente embora,
palpita entre os louros que já lhe engrinaldão o berço infantil; ali aos
açoutes do simoum da morte, entre o fumo dos combates, o pavilhão
da liberdade que flamêa sobre as ruínas das alcaçares e das masmorras
de um tyranno ; a historia que resume nos heróes de uma nação todos
os archetypos dos das outras; a poesia da guerra, este mixto divino de
nenias e hymnos, de magnanimidade e barbarez, de bello e horrível,
esse . concerto do inferno, essa hormonia despedaçadora de soluços e
gemidos com os canticos do triumpho!
E, se á esses a gloria espera além tumulo, á outros sorri a fortuna.
Este povo, cuja fronte altaneira hoje se levanta laureada sobre os pín-
caros das cordilheiras do Paraguay á admiração do mundo civilisado,
tem acção em todas as fibras de seu corpo, colosso que impõe limites
ao Atlantico.
Deixando mesmo o que se passa além da Província, já não seria
facil enumerar o que n'ella se offerecE! digno de Jnenção. Seu progresso
material tanto como o moral é immenso e futuroso. Em curto lapso ve-
remos em seu seio lançado o trilho ferreo que deverá unir a capital ao-
emporio agrícola da Província, e outro que trará o producto de suas
minas ao porto, senão o melhor, o mais concorrido, e unico por onde
passão os generos que permuta o nosso commerciante. Assim tambem o
telegrapho ligará por minutos a correspondencía entre Porto Alegre e
as cid.ades e povos mais importantes e longínquos da Província, que
talvez em breve vejarp.os (graças a uma dedicação rara e a esforços
quasi impossíveis, taes os do intelligente l)r. Braga) unida a de Santa
Catharina por esse amplexo da civilisação e da fortuna , qual se póde
chamar ao ferro-carril.
E não são sómente os meios de communicação que facilitão as
- transacções commerciaes e o interesse publico e geral, o que temos pa-
ra, com razão, inda que antecipadamente, nos regosijarmos, não; a in-
dustria prossegue tambem, mais lenta, é verdade, porém fertil em r e-
sultados benéficos.
Sim, a industria é a felicidade tambem, porque é a intelligencia
dominando a materia que se molda e presta a sua vontade e necessida-
des, porque se estende desde a agricultura até a ultima das artes, até
o sublime das concepções do genio, subordinada a applicação da scien-
cia. E' da industria que assim falla um autor francez, cujo nome igno-
ramos:
"E' por ella que manifesta o homem sobre a natureza o seu poderio :
assim a cultura de um grão, o trigo; a descoberta de um metal grosseiro,
o ferro; o emprego. de um instrumento bem simples, a charrúa; os ser-
viços que aos homens prestão os animaes que domesticára; e isto seria
-260- -
sufficiente para mudar a face, para refundir as sociedades humanas;
para subtrahir o homem á muitas dependencias, livral-o de muitos. c~i-
dados e satisfazer-lhe necessidades as mais legitimas; para emfim, de-
senvolvel-o e tornal-o apto á exercer suas mais elevadas faculdades.
"Por uma lei providencial as necessidades do homem crescem na
razão directa do desenvolvimento de suas faculdades . Esta t éndencia
invencivel da n atureza é o mobii essencial de sua actividade, e pelo
qual é incessantemente impellido a tornar-se •de mais em mais livre,
ao mesmo tempo que, de mais em mais poderoso."
Conhecidas as vantagens, e inda que obscuramente, a historia da
industria, resta-nos então consignar o apparecimento de uma nova, na
Província; industria que , se . apresenta materialmente visível, rica de
futuro e de esperanças, offerecendo á navegação, ao commercio e ás
artes um novo genero á permuta e trafico com o estrangeiro, para o
trabalho; e quiçá para a gloria do paiz, que terá talvez, taes a .decre- -
pita Grecia e a orgulhosa Roma, a sua eternisação em seus marmores,
se talhados pela mão do genio modelarem em symbolos a sua historia ;
n'essas abundantes e explendidas jàzidas que superabundão nos muni-
cípios circumvizinhos d'esta capital, as quaes dormem; senão o somno
da ignorancia, o da inercia, e do abandono. - Oh! que Deos fade bem
essa patriotica empreza, que acaba de estabelecer-se no louvavel e gran•
dioso empenho de explorar e manufacturar os marmores do Rio Gran-
de do Sul. ' , ·
Deixemos, porém de parte, este assumpto, que talvez pareça á ;3.l
guem improprio para ser tratado em uma revista litteraria - parêt
adiantarmos ainaa algumas palavras sobre outros importantes assim.
Temos sob as vistas tres lindíssimas poesias, que nos merecem lou-
vores, e são: duas scenas poetico-dramaticas. - O Anjo da solidão, do
illustrado poéta coetaneo, Sr. Bernardo Taveira Junior, e O Anjo dos
Sepulchros, do talentoso Sr. Francisco Lobo . da Costa; e a Escrava fu-
gitiva, de nosso amigo o intelligente jovem Achylles Porto Alegre.
0 1 Anjo da solidão é - uma das mais bellas creações poeticas de
seu genero, e que bastaria para dar lustre ao nome do Sr. Bernardo Ta-
veira, se este fosse ainda obscuro. Desejamos poder aqui transcrever
completo esse -poêmeto, porque em sua leitura teria o autor elogio
mais eloquente, que todos quantos lhe podessemos tecer; mas o limita-
do espaço concedido ao Ementario não nos permitte a satisfação d'esse
desejo; não podendo, . porém, isso, cohibir-nos de notar, entre alguns,
entre todos -o~ · versos que o constituem, estes que são bellissimos:
"Cada cranêo é .um poêma
"N'esta gélida mansão.
"Cada cruz signala um _!lOme, .
"E cada nome um padrao.
"Este campo é uma historia,
"E eu me curvo á memoria
"Dos que repousão aqui;
"Cada qual foi um guerreiro, ,
"Foi um martyr do Cruzeiro
. "Por quem lagrimas verti.
"Quanta glória o mundo ignóra
"Do silencio na mudez!
"Quantas c'rôas reflorecem
"D'este sitio na rudez!
"Aqui, livres contra escravos,
"Eu vi batalhões de bravos
"Combaterem sem temôr,
-261
I,
"Vi-os cahir denodados
"Bradando enthusiasmados:
" Viva o nosso Imperador.
- '
-266-
Épilogo.
Desta vez fazemos um Ementario como os sonetos do fallecido
Sr. João de Pontes, que continuavão, mas é para offerecer aos nossos
dramaturgos o seguinte· e deploravel acontecimento, como thêma para
um drama historico, e que foi assim narrado em gazetilha da Reforma:
"Deo-se no dia 4 do corrente (Setembro d'este anno), na fregue-
zia da Aldêa dos Anjos, um facto extraordinario, que revela a ene.rgia
da mulher quando allucina-se pela paixão, e que se vê desprezada.
· "Maria Justina era uma mo~a, residente na povoação da Aldêa;
que segundo nos infórmão enamorara-se de um moço, negociante ali
estabelecido, sendo o seu amor real ou apparentemente correspondido. -
"Mais tarde espalhará-se o boato na povoação de que o moço de-
prezava Maria Justina, e que estava justo para casar-se com outra moça.
"A paixão e o resentimento puzerão nas mãos da corajosa moça
a arma com que pretendia vingar o seu amor desprezado, ou quem
sabe, a sua honra offendida.
"No dia 4 vestió-se Maria Justina em trages de homem; e ao es-
curecer dirigio-se á casa do moço, pedio para fallar-lhe, e ao apparecer-
lhe, recordou-lhe com resolução e energia o compromisso que havia
contrahido da sua vingança.
"Nesse momento apontára-lhe a pistola, porém· o esquecimento que
teve de armar o gatilho permittio a fuga do moço, que fechára-se em
um quarto.
"Maria Justina voltou á casa e ahi suicidou-se, desfechando um tiro
sobre o peito .
."Dizem-nos que a infeliz suicida pertencia a uma honesta familia."
..
- -o-0-o-
..
REVISTA MENSAL
DA
SOCIEDADE
PARTHENON LITTERARIO
-o-0-o-
REDACTOR DE MEZ
Francisco Isidoro de Sá Brito.
OS PALMARES
ROMANCE HISTORICO
POR -
,APPOLLINARIO POilTO ALEGRE
(Continuação.)
CAPITULO V.
CAPITULO ·v1.
Lancemos agora um lance d'olhos sobre a fundação e marcha
progressiva dos Palmares.
Aos nove gráos de lattitude norte, vinte leguas distante do m ar,
se elevão os mocambos dos negros Palmares, na fralda oriental da
serra da Barriga.
Outr'ora .. . em 1630, quarenta negros que dizem filhos de Guiné,
habituados ao infortunio e fadigas da guerra, acabrunhados sob o jugo
despotico dos senhores, e outrosim dominados pelo espirito de liber-
dade ,que os hollandezes . conseguirão inspirar-lhes, sacudirão as alge-
mas do captiveiro internando-se nas densas e vastas matas de Alagoas.
Caminharam alguns dias. /
O topo r ecortado de uma..montanha suspendeu-lhes a peregrinação.
Era de tarde. Uma tibia penumbra começava a rebuçar as trunfas
das arvores seculares, que ostentavão luxuriosá vegetação.
A bafagem crepuscular, tepida e doce, segredava ternas endeixas
no alaúde da melancolia.
O sabiá -ao recolher-se no docel da rama, despedia-se da luz
com um canto cheiQ de inspiração. ·
Era a hora da scisma, da saudade e do 'amor.
Alli, na encosta crescião e mergulhavão nos ares seus leques tre-
; mulos, grande porção de airosas palmeiras. .
A crista da montanha banhava-se no ouro do ·sol.
Era um painel soberbo!
Um scenario dos virgens sertões da America!
, Estes romeiros da desgraça pararão , estaticos, um assomo de ad-
miração emmudecera-os.
De· cada olhar deslisava um regato límpido e sereno. A patria,
esta terra d'além-mar tão longe e tão estremecida, o passado librado
entre o go_?o da liberdade e os amor es das moças africanas, os paren tes
de cujos peitos foram arrebatados, o areal com seus medões de areia,
a choupana de sua infancia, tudo isto reviveu-lhes no pensamento.
Chorarão estes homens de ·ferro!
-271
Mas era uma grata recordação borrifada do pranto de nobres co- 1
rações. .
Sob o ébapo de sua cutis dormía o gerll}en de grandes sentimen-
tos.
O quadro esplendido da natureza tocárá-os ao vivo .
Depois disserão unisonos:
Aqui. ,
E cada um depoz na gramma o fardel de romagem. ~-
E que sitio mais proprio encontrarião?
Como em se-u paiz natal, a palma retouçava-se em graciosos me-
neios n'uma athmosphera pura; o mio sonoro e grave da canguçú es-
morecendo n'um mar çie folhas, recordava-lhes o tigre e o chacal.
Além de que não mui longe estava um nucleo de civilisação que
serviria a seus serios intentos. · \
Pass~rão-se annos.
Tudo· soffreu uma mudança que pasma pela previdencia com que
alguns obreiros- destituídos d'uma intelligencia culta, poderão levar a
effeito semelhante• obra.
Aqui e alli uma derrubada assignala a mão do homem; a lavoura
substituiu á vegetação espontanea.
Aldeias se estendem na fralda da serra.
Os tujupares cobertos de sapé e pindoba se desenhavam na diapha--
na athmosphera, c9rtando-a com suas comiadas angulares.
Ruas alinhadas e de grande extensão onde homens e mulheres se
entregão tranquillamente aos misteres da vida, o cacarejar das . aves
domesticas, o gaseio tão estranho e simultaneamente agradavel dos pas-··
saros ,do bosque, tudo isto emfim desafia o cogitar do espectador.
Em 1695 era um grande povo com vinte mil habitantes pouco mais
ou menos.
A' primeira defecção adherirão outras,- ora excitados pelos funda-
dores dos mocambos, ora pela tendencia que todo o homem tem çlo go-
so da liberdade material, e por vezes para furtarem-se a castigos me-
recidos, ou finalmente por . aprisionamento, pprque estes mesmos afri-
canos que subtrahirão-se ao captiveiro, 11ão temião escravisar aquelles
de seus compatriotas apprendidos nas arduas correrias que fazião de
tempos a tempos, tão enraizada lhes ficára a idéa de posse sobre seus
semelhantes. '
Não é para censurar se quando os vemos natos no meio dos mais
absurdos erros e fanaticas superstições. ·
No berço, nas adustas regiões da Africa virão assim , praticar por
seus m aiores; no Brasil estiverão sob a manopla pezada dos senhores,
e d'ahi inda notavão 1nos indígenas o mesmo costume.
Era bem natural.
Logo que reuniu-.se um numero regular, a falta de mulheres fôra
geralmente i,entida.
Para remediarem semelhante óbice, adverso á sua união política-
resolverão atacar á mão armada as fazendas dos colonos visinhos. 1 '
Atiravão-se para isso sobre ellas, entregavão-n'as ao saque e re-
trocedião levando comsigo todas as mulheres, sem sequer acatarem a
familia dos lavradores. As esposas ou filhas d'estes sujeitavam usual- ·
mente a resgate ; porém, tambem não era caso novo o ficarem com ellas.
Em taes pormenores imitavão, sem o presumirem, aos fundadores
de Roma, e Rocha Pitta ajunta que o roubo das Sabinas não foi nem
mais geral, nem mais completo.
E inçia nota-se outra identidade com os antigos dominadores do
mundo, no modo por que fazião a guerra e por que retinhão as povoa-
ções limitrophes como tributarias. ·
Os habitantes de Porto Calvo e de outros logares proximos para
manterem as vidas e beni;,. transigião com elles, ministrando-lhes ar- .
mas, munições e outros generos de mercancia.
Era uma alliança implicita que- assim firma vão.
T.lnhão uma fórma de governo republicano, parà o qual era sem- •
pre escolhido como chefe, o mais sagaz, intelligente e valeroso d'entre
elles. Chamava-se a este Zambi, que por meio de maiores subalternos
ou ministros, fazia executar uma legislação oral que todo o cidadão de-
via conhecer.
Suas attribuiçõés cóllectivamente consideradas, circumscrevião-se
a velar pela prosperidade, socego e policia da nação .
Emquanto a seu codigo penal, era justo e fundado em principios
fecundos. ·
O homicidio premeditado, o adulterio e o roubo, castigavão com a
pena ultima. · .
O escravo que fugia, votava-se ao açoute e frequentemente ao cas-
tigo dos maiores delictos, severidade que de nenhuma si>"te póde .c: r 0
justificada. · ·
Os crimes de menor magnitude tinhão punições cork-i,JOndenteo~.
Em materia religiosa pertencião á communhão , christã meramente
aquelles que havião recebido · o baptismo. "Estes, diz Southey, conser-
varão ainda alguns, r~squicios do Christianismo, religião de que lhes
havião infundido principios tão corruptos, que, nem ~tes homens igno-
. rantes como erão, poderião t0rnal-as mais dissimilhantes de seu divino
prototypo."
Esmerilhemos as causas efficientes.
O escriptor severo, embora na estreita orbita d'uma' peça litteraria,
não deve prescindir' de asperger á verdade em seus trabalhos. Se a ques-
tão não decide-se a priori, reclame as circumstancias de tempo, locali-
dade, costumes, etc., é esta a argumentação idonea para modelar sua
obra pela natureza e logica dos factos. _
Os fautores erão os senhores e o jesuitismo, que, para manté.l-os
em céga obediencia, aproveitando-se df1S densas trevas que os envol-
vião, não recuavão na peccaminosa empreza de embuir-lhes os mais
grosseiros erros.
E quem não sabe quão facil e vigorosa r.ebenta a má semente em
terra sem cultura? !
Em frequentes ensejos o mesmo exemplo coopera; a com vehemen-
cia nas aberrações relativas á divindade, e á adoração transcendente do
espirito humano, . singela, e magestosa, se uma lithurgia e um 'dogma-
tismo incomprehensiveis não vem enredal-os n'um ordume de obscu-
ridade. ·
O catholicismo então . desprestigiava-se na America no verdor dos
annos e onde a civilisação estreiava o passo ge gigante abraçando a seu
lábaro a liberdade e a razão - os dous fanaes inextinguiveis do pro-
gresso.
E' que a filha de Colombo tinha um fo go divino a pulsar em cada /
arteria, um vofcão de verdades nós seios d'alma.
Os colonos, mórmente os mamelucos, arrostavão face a face a pre-
. potencia da Curia Romana, sem sequer crerem que offendião e cerceia-
vão de algum modo o- poder temporal do Papa.
Tambem como obrarem diversamente, se conhecião os crimes da
Inquisição e da Companhia de Jesus?
E o rancor entre colonos e jesuitas não era produzido senão pelo
in.t eresse com que uns e outros pleiteavão o trabalho do gentio.
\
-281-
coração -aos vinte annos, _cheio dé fé e de crenças ao eulto d 'esse amor,
esquecen do em seu- frenes i u m a fund a tristesa que desde a menenice
povoava suas scismas innócentes. / _
Leonel que trazia en nastrados em sua fron te os laureis de p oeta,
e mais infeliz talvez, do que ella, occultando sob a pallidez de seu rosto
o carinho de mil tormentos, a adorava ou por encontrar n'ella uma irmã
de- amarguras, ou porque Carlota era realmente bella, como a visão
que elle_ sonhára ao despontar-lhe a aurora da adolescencia.
*
* *
E' de tarde, o sol doira · apenas o cabeço dos montês, reflectindo-se
levemente ·sobre as agoas dormentés do Guahyba, onde .branqueijão
as velas de uma ou outra c;môa de pescador s. •
Carlota ternamente fita os céos, reben\ando entre os, negros cilios
uma ou outr a perola r ou bada sem sen tir á santidade de sua dor. Em
que pensaria ella? Em que pensamento_ profundo amergia Carlota sua
fronte descorada, sem as rosas do verdor dos annos, amarelle'cida em
noites de vigilias continuas?!. . . ' . r
H a n'este espaço que -decorre · do pôr do sol á imite, um quê de
inçlefinivel tristesa, que nos sensibilisa e entristece, arrebatando-n"os a
alma ás re_g iões eth ereas do sentimentalismo. '
Emquanto Carlota embebia-se nos paineis tristonhos que a natu-
reza descerrava aos seus olhos, u ma de suas mestras lhe trouxera uma ·
carta. ·
• Carlota ao receber sentiu um _ti;emor convulsivo, seu seio offegante
palpitava sob a branca escurnilha que lhe deixava. ver aquellas fórmas
divinas, mais arebatadoras do que as de Antiope de Ingres. Ao conhe-
cer a letra quiz sufocar .com sua mãó delicada a effervescencia de seu
cqllo, seu semblante tornqu-se pall_ido como a açucená que o. sol ca-
nicular sorveu-lhe a seiva e o 'matiz das petàlas. ·
_ Ao ler a carta u m grito de dor arrancado do intimo d'alma po-
voou- a mudez de seu domicilio, cahindo de joelhos com as mãos er-
guidas para o céo, e soltando de seus olhos dois fios de -lagrimas.
Leonel já não existia, a carta - fôra escripta momentos antés'êle
expirar, quando sua alma abençoava o mundo por ainda possuir Car-
lota , e os céos por ir gozar a suprema felicidade .
- Como não soffreu aquelle coração na hora extrema sem os affagos
da familia, e orphãô dos carinhos de um an jo que ll;le amenisárà sua
curta -exjstencia sobre a terra?! . . . -.
Leor:iel soffria do peito, uma das · r ázpes que lhe obstava de - já
se haver casado com Carlota ; coração nobre e não deixando-se arrastar
pelo tufão das paixões, preferiu sempre soffreal-as que ·sacrificar - o
resto de ·sua vida, a felicidade, o porvir de um anjo que o amava de 0
votadamente. - -
Leonel julgandd melhorar de seu incommodo, partira quasi com
•ª convicção· de voltar restabelec:iido d'elle; porém não calculou antes
de sua partida . nos subtis espinhos da saudade _:_ planta bemdita que
tem por orvalho - as lagrimas do coração purificada~ em nossas scis-
m as,- derramadas em nossas dôres, como um balsamo santo sobre san-
grenta ferida .
A estrella oscillante que pallideja-va na extrema dos céos nevoentos
de Carlota, apagára para sempre sob medonho negrume.
-*
., .
. um mez ha decorr.ido depois dos ultimos acontecimentos.
Por entre as cortinas de seu leito dormita umà mulher livida como
_ , 282-
\
·-283-
•
tencia, a felicidade passára mais rapida que um meteóro nos espaços
na serenidade das noites do estio.
Isolada do mundo, na mudez de seu sanctuario, humedecidas as
faces n 'um prantear continuo, repassado das fezes de um luctar inces-
sante - sua vida cifrava-se agora nas lembranças do passado, n'aquel-
les doces philtros de um amor terno e innocente, como o de Croco e
Smilax.
Funda tristeza :transparecia em seus olhos, outr'ora cheios _d e vi-
vacidade; suas palavras arrancadas do isolamento de seu' peito, ·expri-
mião notas abemoladas como uma harpa desferida em noite de luar
aos beijos da viração, e cadenciadas aos gemidos dos salgueiros im-
plantados no chão dos mortos, como dizendo aos vivos - estes são os
marcos divisorios entre o mundo e os campos elysios.
*
* *
Ha um anno q4e a voz de Leonel para sempre emmudecera em
seus labios; ha um anno que a esperança extinguira-se do coração de
Carlota, como um cyrio nos umbraes de uma sepultura á uma rajada
em noite tempestuosa.
O mundo, a ventura, para ella desapparecerão sob a• lage tumular
de seu amante. · -
Nada mais lhe restava sobre a terra, nem uma illusão sequer se
aninhava agora em seus languidos scismares, onde outr'ora sua alma se
expan dia so,b as azas doiradas do amor e da esperança.
Pobre menina! Tão moça e sentindo nas veias de seus seios o gelo
da morte infiltrado em noites de insomnias, em noites de amargurado
pranto!
*
* *
Que voz é aquella, plangente, repassada de angustia, vibrada pela
corda mais funda do coração, como um harpejo do instrumento de Pa-
ganini, que se faz ouvir nos côros matinaes e ao anoitecer na saudação
angelica entre as paredes do Carmo?!'
Cada accento d'aquella voz é um grito dorido coado em rythmo e
harmonia, · como um gemido saturado de agonia entre as notas de um
orgão em deserto templo. . . ' .., ·
Essa voz eu a conheço. . . E' Carlota que cantando chora, como
Malvina das tradições dos céus nublados da Escossia descantando sob
· a impressão da morte de ,Oscar, s,eu amante, aos accentos divinos da
lyra de Ossian.
Carlota que definhava de dia em dia, que sentia a ·morte esvoaçar
através as bran~aS' cortinas de seu leito, sem mais um outro élo que a
prendesse ao mundo, vendo esvaecidas todas as esperanças desbrocha-
das ás auras do amor, julgando a felicidade terrena como um sonho,
trocára a ·vida do mundo pela solidão , de um claustro como Heloisa de
Abelard, despresando as galas, a opulencia e vindo sepultar-se para
sempre no convento Argentenil, victima de um amor infeliz.
A mulher que na flor dos annos abandona o mundo, suffocando
na amphora de sua alma os turbilhões de prazer, brotados ao sol ar-
dente da adolescencia - é porque negra ulcera 'lhe envenena os seios,
sentindo o acerbo espinho da descrença ferir-lhe o coração. ·
Carlota affastando-se do bulício social, ia I buscar na religião o
balsamo ás suas magoas. -
Um anno ha decorrido que Carlota viera habitar' o convento do
Carmo .
.,
/
-284-
São dez horas da noite; a ultima badalada ha pouco havia soàdo
solemne e grave na amplidão.
Junto ao leito de Carlota' um sacerdote firme, immovel, como
aquelle velho senador romano ,da invasão gauleza, 1~ um livro attenta-
mente.
Na céla reina profundo silencio, ouv.indo-se distinctamente as os-
cillações de um relogio, assestado n'uma das .p áredes.
De repente Carlota ,agita-se no leito, o sacerdote ergue a fronte,
que a "corôa da velhice cingilt, e' seus olhos buscão os da moribunda.
- O que deseja.s, filha? ,
- Tenho sede, muita sede.
- O medico privou-lhe de beber agua, filha? ..
- E' augmentarem o meu tormento; dêm-me ·agua, eu sei que mor-
ro, é questão de momentos.
, O sacerdote baixou os olhos sem responder.
O silencio de novo abriu suas azas n 'aquelle recinto .
- Padr e, tornou ella, alcance-me aquelle crucifixo, quero morrer
abraçada á elle.
O sacerdote entregou à imagem do Redemptor á moribunda e sen-
tou-se com os olhos fitos n'aquelle anjo, que batia as azas para trans-
por as regiões sidéreas. ~
ó , disse ella, não sei o rque sinto, nada soffro. . . nada, meu bom
padre . . . ·
ó, meu Deus, deixai-me respirar . . .
Ella estendeu a mão ao sacerdote que apertou-a entre as suas . . .
Carlota estava morta.
Achylies P. A.
-o-O-o-
PARTIDA
F. Antunes F. da Luz.
•·
( *) Verso de Gonzaga.
-287-
0 CELIBATO
EPISTOLA IV
Appollinario P. A.
----uOu----
-291'-
A AURORA
A VIDA
(FRAGMENTOS DE UM
1
POEMA INEDITO)
I.
Levanta o albor da vida, e o caminheiro
Lá segue pela estrada;
Deixa no berço o marco da partida,
éumprir vai seu destino.
Ao principio são risos de esperanças,
Prazer, e dôce enleio .. .
Contempla o céo sorrindo na bonança,
No brilho das estrellas;
O sol, a natureza e o mundo inteiro
, Promettem o impossivel!
Eterna primavera lhe convida
Na amplidão virente,
O colhido perfume ás brancas flôres,
O mel colhido n 'ellas.
Pulsa o peito infantil impaciente
Chegar á raia extrema;
Estende a curta vista no horisonte,
O fim é já tão perto! ...
Os passos accelera; na passagem
Sacode o pó da estrada,
E caminha, caminha sem descanso,
Com fé mais pura n'alma!
Lança outra vez a vista no poente,
O engodo é sempre bello!
Tudo esquece; e no pensar, na ideia
Só tem almo conforto.
,,,
---oüoo---
. ,.
•
·•
EMENTARIO
Delenda Carthago!
Abrão-se os diques, vomitem as cataractas ... converta-se o firma-
mento em nevoeiros de saraiva, abrase o sol o.·oceano, mas que venhão
noticias do chronista.
Grande coisa é ser chronista! Descreve trinta dias com a mesma
paciencia com que uma criança desfolha uma a uma as trinta· petalas
de uma rosa! . •
E não deve elle ser pretencioso? . .
Mas ... porque? O que é uma chronica? ... Quatro linhas escon-
didas no fundo de uma revista de trinta e duas paginas, meia duzia
de noticias esquecidas á primeira vista, e muitas vezes nem honrada
com a leitura do assignante. . . Finalmente. . . o tempo urge, e se con-
tinúo a divagar não poderei ser pretencioso, e farei o triste papel de
D. Quixote a combater os monstruosos gigantes · transformados em
1 moinhos. Pedreiro livre. . . mãos á obra.
*
* *
r
-297-
Tem algum tanto de inverosimil como acontece nas obras d'aquelle
romancista. Sentimos que o autor se dê ao trabalho de extrahir o
enredo de seus dramas de outras peças litterarias.
Temos visto na Côrte subir á scena por dezenas de vezes, e sem-
pre applaudidos fervorosamente, os dramas Antonieta, e Margarida,
extrahidos do mesmo romance ; no entanto nunca procuramos conhe-
cer seus autores: é que se ahi colhe-se alguma gloria, ella pertence
ao autor do romance.
Sabemos que o Sr. Almeida é muito jovem; não queremos com
o que temos dito, pôr um obstaculo a que mais tarde colha louros na
senda litterar ia , não; antes pelo contrario , diremos sem pr e - Avantei
A Vingança, é um trabalho melhor organisado, e por isso sendo
uÍn primeiro ensaio, está acima d'aquelle outro, merecendo palavras
animadoras. Seus quadros estão melhor dispostos, seu enredo é bello,
notando-se apenas não finalisar o drama como devia. .
A litteratur a dramatica é. um trabalho que n ecesista de muito es-
tudo e cautela. · e
Deixamol-o por aqui, e passemos aos
*
* *
Delenda Carthago! ,
Algumas palavras sobre a revista de Outubro. ·
Agradecemos ao illustrado redactor a nomeação que nos fez para
o cargo de - continuo, - isto é, - o orgão ,mais autorisado, -:: pois
cremos que quem o i:rítelligenciou de que seria redactor d'aquelle mez,
quem respondeu como aquelle estudante bebado - ainda - não foi ou-
tro senão o chronista de hoje.
Orgulhamos-nos da nomeação, mas não desmoralisamos o monu-
mento do Parthenon em ruinas, como fizerão os discipulos de Loyola
por tra_z da cruz da Re_d empção.
Outro sim o redactor d'este mez votou contra a publicação da car-
ta anonyma, porque não aceitariamos demonstração alguma por escrip-
to, visto seu autor acobertar-se sob profundo mysterio.
Novembro de 1869.
---000'---
/
-305-
me o peito, niais amor para offertar-te! Nq lucta insana que travei com
o coração, o resultado foi este: hoje a doença, amanhã a morte . . . oh!
é horrivel .. . " •
A tosse suffocou o enfermo, e uma golfada de sangue sahiu-lhe
pela boca.
Passados alguns momentos, Guimarães fallou :
"Meus amigos, sinto que a minha ~erradeira hora se avisinha ; já
nem forças tenho para fazer-me ouvir. Cheguem-se a mim, que lhes
quero dar um· conselho. Accuso da minha mor te a sociedade. Desde os
primeiros annos revelou-se-me uma irresistível vocação para a5 letras.
Nas horas de ocio cantava na lyra e escrevia folhetins para jornaes.
Passei do folhetim ao romance, convencido de que o primeiro é como
a flôr de um dia, que a viração lança para longe. Quando o meu nome
começou a apparecer elogiado pelos mestres, senti-me orgulhoso, e dis-
se: ao menos assim ha uma c.Q_mpensação para o:, que se afadigam pelas
letras: A maledicencia e a invejçt não tardarão em lançar-me ào coração
o gelo da descrenç~; e no combate á que provoquei os materialistas da
epocha, -tive a infelicidade de ser vencido. • .
Cantei, e rirão-se estolidamente dos meus hymnos; e um mais ou-
sado houve, que perguntou o que guardava a cigarra para atravessar o
inverno .
. Escrevi folhetins aos domingos, e recebi-os ao outro dia envoltos
nos generos da taberna . .
Fiz romances, e não achei edi,tores nem subsêtiptores.
Tantas decepções enfraquecerão-me o animo ; e pela primeira vez
tive de curvar a cabeça á sentença dos homens que proclamavão a su-
premacia do dinheiro, e declaravão-se em guerra aberta ás letras.
Desanimei; lamentei ter consumido a melhor parte da minha vida
a estudar a litteratura, a aprender a historia.
Vi-me sem meios, mas repugnou á minha dignidade ir pedil-os aos
unicos que m 'os podião dar, aos que se dizião senhores absolutos por-
que tinhão muito oiro!
Preferi a miseria ; e querem saber porque soffro?
Tive fome muitos dias; quando quiz erguer-me para recorrer aos
poucos amigos que me restavão, não me -foi mais possível; a .e nfermi- '
dade não m'o consentiu.
O meu exemplo deve servir-vos de lição; não se cancem; se ainda
é tempo, deixem os livros, e tornem-se commerciantes; hoje no -mundo
tudo é calculo e commercio, até. . . no am<;>r . . . \,
E a tosse e a golfada de sangue repetirão-se.
Bem sabião os dois amigos do enfermo que, sobretudo, fôra O '
amor despresaçlo que matá.r a Guimarães; tinhão lhe surprehendido o_
. segredo n'um momento de febre; respeitarão n'o, fingirão ignorai-o! ·
A agitação de Guimarães foi crescendo, e em pouco conheceu-se
que a sciencia nada mais tinha a fazer.
Guimarães abraçou os dedicados companheiros que tinha em der-
redor, a agradeceu-lhes por não o terem deixado morrer só.
~ sua ultima palavra foi um perdão a Malvina, e uma absolvição
aos que o tinhão insultado.
Alberto e Leonardo fizerão o enterro do_ pobre poeta, roubado
á vida no ;verdor dos annos.
. No mesmo dia do sepultamento de Guimarães, Malvina recebia-se
em matrimonio com o escolhido da sua ambição, um ~ornem rico, que
comprãra a peso de oiro o .titulo de commendador.
Deus deve ter em sua santa gloria o moço que atravessára o ca-
minho da vida, sangrando os pés nos espinhos que lhe semeiarão; Mal-
vina soffre as consequencias do seu orgulho nos desgostos que o con-
sorcio lhe trouxe. Aurelio de Bittencourt.
A GUILHERME DA SILVEffiA
-3.0T-· -
1 O triste assim fallou: - Se pae, se mãi perdi,
(Ha muito a mãi morrera) e Deus me tem aqui,
Errando sobre a terra, oh quereis vós roubar-me,
Quem póde este viver, sorrindo, amenisar-me? ...
Movidos eu bem sei que sois das carida_de,
Mas dae este consolo á misera orphandade;
Se minha irmã íevaes, o que será de mim? ...
Na vida encontrarei' a solidão sem fim -
Eu, que sulcando o mar as solidões só vejo,
Nem mesmo no meu lar terei o casto beijo,
A voz da minha Amelia a soluçar baixinho:
Oh Paulo, meu irmão, aqui n'este cantinho,
✓ somos nós e a saudade, mais ninguem se acolhe.-
E no mar, quando a vaga os meus vestidos molhe
Dizei! quem sobre a relva ha de estendel-os rindo?
Quando ao entardecer do mar vier fugindo, ·
Quem ha de ir esperar-me á sombra dos coqueiros;
A acenar-me de longe? ... ai, vós, meus companheiros,
Tendes, volvendo á praia, a esposa que suspira,
Que . mil affagos dá, que a vossa rede tira.
E cantando convosco as malhas lhe concerta.
Mas eu, triste de mim, -com a choupana aberta,
Ninguefu me levará, sequer a gota d'agua,
Um consolo ·ao soffrer, um lenitivo á magoa.
Amelia me , deixae, é rôla d'este ninho
Eu sei - que morrerei se me deixar sosinho. -
•
-311
DOUS CULTOS
Era no templo! ennovelado etn ondas,
O incenso para Deus brando subia;
E a voz do orgão magestoso e grave
Todo o espaço inundava de harm,onia.
M. J. Gonçalves Junior.
-312-
/
O ENGEITADO
(Empressões da Julia, poesia de Thomaz Ribeiro.)
-317-
Da •m inha triste historia e nascimento;
E confusos, no horror da tempestade
Meus primeiros vagi~os s'extinguirão.
I
-318-
E sceptico se torna, e se degrada ...
Suppõe na carne o goso e após o nada;
Ama, ou sé entrega ao goso da materia;
E deixando-se arrastar da~ vis paixões
Um degráo, outro e outro desce á crápula,
, Que na taberna immllndà a séde tem.
Ahi. se joga a honra contra ·o ouro
Desse templo infernal unico idolo;
Ahi se acalma a dor na embriaguez;
Ahi se 'apaga a sêde que devora,
Nos labios das Phrinés, ou no cognac, '
Que cresta nas labaredas milicôres
Os hervados espinhos do desgosto;
Ahi, cambaleando, em copos cheios •
Bebe-se o poncho, o rhum, .e o abysintho
Em louvor da materia em bellas fórmas! ;
A saude do corpo! .- a paz d'Epicuro!
Ahi, onde a mulher venal, sem pejo,
A' quem mór preço dá vende os encantos.
E exclamando - Per Ba.c cho amor e vinho!
Rodopia, frãqueia -e cahe por terra! ... .
E' onde vae esquecer a dor as vezes
O engeitado, o orphão de paes vivos!
Sim, é nessà ignobil furna tenebrosa,
N'esse barathro onde os vicios remoinhão·,
Que elle vae esquecer magoa profunda,
Que elle busca o prazer das sensações;
O suicidio ·emfim, dó corpo e d'alma.
"<• ·
São noras de repousar;
Todos tranquifü>s jã' dormem, -'
Só eu estou a velar ...
Elles sonhão, - são ·felizes. : .
E éu-? Neip. posso sonhar!
Faz · frio, recrudesce- a chuva, ,
Eu me sin,~o enregelar; ·
Todos têm tecto, óu lareíra
Onde se vão abrigar. ,
Mas eu, mertdigo, engeitad(j,
Aonde 'irei perp.outar? .
Só tenho ·por leito as praias,
Ou das ruas a calçada; ·
Por coberta as intemperies,
1 E além- d'ellas mais nada. ,_
Mas como deitar-me agora
Se 'stã tão fria e molhada?'
· Passarei a noute inteira
Desperto sem precisão,
Collado ã fria párede, .
Ou de joelhos · no chão, ·
Seja pelo amor de ' I5eos
Rezemos pia oração.
. '
O CELIBATO
Epistola V e ultima
PERDÃO
Perdão! Lucia, perdão. . . se n'um momento
De arroubada paixão,
Minha voz foi d'insulto a teus ouvidos;
Se ameaças uni aos teus pedidos,
Perdão! Lucia, perdão!
*
* *
z _ O distincto latinista o Sr. · Sotero dos Reis traduziu e publicou. no
Maranhão os. Commentarios de Cezar.
Que poderíamos nós dizer sobre tal trabalho, quando o conhece-
mos? ·
Nada, porque ao passaro que rasteja só é dado mirar a aguia em
seu rem igio ; n ada, porque á intelligencia que mingua á falta de ·cul-
tura, só é dado admirar o talento que se expande.
A. e S.
Porto Alegre, Dezembro de 1869.