(1869) Revista Do Parthenon Litterario N. 113 A 116 (1869) - Parte 2

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REVISTA MENSAL
DA

SOCIEDADE

PARTHENON LITTERARIO

1.º , ANNO. - AGOSTO DE 1869. - N. 0 6.

, ,

-o-0-o-

TYP. DO JORNAL DO COMMERCIO


PORTO ALEG]'lE
1869
COMISSAO DE ' REDACÇAO

Vasco de Araujo e Silva.


Appollinario Porto Alegre.
José Bernardino dos Santos.
Aurelio V , dê Bittencourt.
Nicolau Vicente Pereira.
Hilario Ribeiro de A . e Silva.
REDACTOR DE MEZ
Aurelio V . de Bittencourt.
DUAS IRMÃS
• ( Conto Moral)
A' JOVEM TYMIRA F. DA SILVA.
I
Amelia e Lucilia são duas moças, bellas como os amores.
Alberto da Cunha, seu pai, já na idade em ·que todas as aspira-
ções do homem se voltão para a outra vida promettida nos livros
santos, era obrigado a frequentar a alta sociedade, á cata de marido
para as suas filhas.
Ataviava-as ricamente, paFa que despertassem a attenção.
Em casa, nos bailes, nos passeios, nos theatros, em toda a parte,
brilhavão sempre as duas beldades, tendo constantemente em roda,
como se póde comprehender, uma multidão de adoradores.
Poetas, advogados, jornalistas, funcionarios publicos, negociantes,
cada um queimava o seu grão de incenso junto áquellas moças, por
todos divinisadas.
Amelia morria por essa côrte; vel-o,; todos a elogiar-lhe os dotes
d'alma, que nenhum conhecia, a belleza fascinadora, os olhos negros, a
-boca pequena, o nariz curto e arredondado, a pennugem que lhe bor-
dava os labios, a delicadeza do pé guardado n'uma botina de setim e
por fim o gosto da toilette, eis no que consistia toda a sua ventura.
Lucília, ao contrario, parecia sempre triste quando todos folgavão;
ás bajulações dos dandys respondia com um sorriso secco como de tedio.
Amelia preferiria a tudo o sequito dos lisonjeiros que dizião-lhe
viver de sua vida, amar do seu amor; Lucília, a quem chamavão ro-
mantica, manifestava-se pelas paginas de um bom liv1·0, onde pudesse
ver exemplos de sã moral.
Quantas vezes não disputavão as duas irmãs a primasia dos seus
gostos? Uma amava o prazer que se encontra nos salões do baile, pra-
zer ephemero e perigoso, porque vicia o coração da moça inexperta _
que se enleva nas phrases e meneios estudados dos galanteadores; a ou-.
tra preferia o theatro e os livros.
Uma estudava ao . espelho o melhor gesto para apparecer em pu-
blico e tornar-se agradavel aos moços; a outra, considerando que o seu
unico arrimo na terra era o pobre velho que tambem não podia ir lon-
ge, tratava de aprender os deveres da mulher em sociedade, sem que
tivesse repugnancia ao trabalho.
Sigamos-lhes os passos até o salão do baile.
A orchestra faz signal para uma walsa. A alegria reina entre todos
os convidados. Um, dois, tres, muito·s jovens vem solicitar de Amelia
a honra de seu braço para voltearem pelas salas; este quer ser o seu
par,_aquell'outro o seu vis-a-vis, Amelia a todos sorria, a todos attendia.
Perguntavão-se dois moços um ao outro, retirados á um canto:
- Aquella moça terá algum sentimento de amor por qualquer
d'aquelles que lhe seguem os passos?
Diverte-se ouvindo-lhes os protestos de amor eterno, e nada ·
mais

.
- _176-
- Mas aquellas maneiras estabanadas não ficão bem n'uma meni-
na, não julgas?
- Culpa não é d'ella, que não tem quem lhe refrêe os desregra-
mentos.
- E o pai? .
1- Ora o pai! repara, eil-o sentado. á banca do jogo.
- Pois elle ...
- Distrahe-se, meu amigo ; pois que hão de fazer os velhos? Tra-
zel-os á agitação das salas, seria deslocal-os.
Em quanto taes commentaribs se fazião, Amelia já tinha andado
pelo braço de seis ou sete mancebos, que não lhe poderião dizer mais
que banalidades.
O que é feito de Lucília? 1
O quanto tem de luxuoso o vestido que traja Amelia, tem o seu
de simples. Um vestido de musselina branca, sem mais enfeite; e um
botão de rosa no cabello.
Está ella sentada, quando Arnaldo Pinheiro vem occupar um logar
vasio que lhe ficava ao pé.
- Não dansa, minha senhora?
- Contento-me em observar.
- Permitta que lhe diga que faz mal; está na idade em que o pra-
ser é o unico sonho que nos occupa a mente . . . Quando todos se e11tre-
gão ás delicias que nos· dá os ritornellos da walsa, porque aqui tão pen-
sativa? Tem -algum pesar?
- O de ter vindo aqui!
- Não comprehendo. Dar-se-ha caso que o brilho d'estas luzes, o
aroma d'estas flores, o ruido d'esta gente a mortifique?
....:_ Quer saber? Se aqui vim, se frequento os bailes, é qut: a isso
me obriga Amelia. Prefiro a este movimento continuo, incessante, a so-
lidão do meu lar. L á, sinto infinito deleite relendo as paginas de Ma-
galhães ou Gonçalves Dias; Castello Branco ou Herculano ; Pipheiro
Chagas ou Cesar Machado; do romance ou da poesia passo' ao drama, e
leio Mendes Leal ou Lacerda, Alencar ou Assis, P. Guimarães ou Ho-
gan. Longe dos meus livros, vem-me o tedio e a abstração de tudo quan-
to se passa em roda de mim.
- No entanto D. Amelia é uma perfeita aptíthese de V . Ex. Veja
como se diverte ouvindo aquelle velho.
- Não · a invejo, creia. Minha irmã é muito ;noça, e tudo antevê
por entre um prisma seductor: tenho esperança de que ha de mudar.
Mas que estou dizendo? Esqueceu que a musica deu signal para uma
quadrilha?
- Por ouvil-a, pouco importára esquecer tudo. V. Ex. faz-me a
honra ...
- Não quero que me chame excentrica ... Vamos .
. . . . . . . . . ..... . .............................................. .
•/ •

- Ao saírem do baile, quanào no horisànte se desenhavão os pri-


meiros traços do dia, Amelia pesarosa lamentava ser obrigada a inter-
romper um colloquio amoroso que encetára com um gamenho guarda-
livros, e Lucília dava graça~ a Deus por fugir ás importunações dos of-
ficiosos que queriam conhecer o segredo do seu recolhimento.
II
Amelia é esposa de Guilherme Soares.
São passados tres mezes da noite do baile.
G'u ilherme Soares foi um dos muitos que rodearão-n'a então. D'um
vaso de flores collocado sobre um consolo tirou um raminho de alecrim,
e offereceu-o a Amelia dizendo que aquella flôr significava firmesa.
A travessa menina recebeu o ramo, deu-lhe um osculo erguendo os
olhos ao céo como em extasi e collocou-o no peito.
O moço desde esse instante perdeu a cabeça. Pensou que Amelia
só quizera dar-lhe uma prova de preferencia sobre os outros e julgou-se
o mais feliz de todos os homens.
No outro dia subia as escadas do velho Alberto da Cunha o nego-
ciante Guilherme a solicitar a mão de sua filha.
Amelia foi ouvida, e permaneceu silenciosa emquanto Albel'to lhe
dizia que o pretendente era um excellente moço, filho ,de uma familia
que tinha remotas ligações com pessoas' d'alta linhagem e outras tantas
• recomendações d'este gosto. Quando ouviu esta phrase - além d'isso
é senhor de uma boa fortuna - os olhos brilharão-lhe com uma luz si-
nistra, os labios dilatarão-se-lhe n'um riso satanico, e ella proferiu re-
soluta : - n-esnecessaria era a minha audiencia; bem sabe que eu não
lhe desobedeço! -
Guilherme, pobre moçQ! não cabia em si de contente; o coração ba-
tia-lhe forte e apressadamente, e como que em delirio osculou as mãos
do velho pai. . ·
Como sou feliz, meu amigo, dizia elle a um dos seus confidentes,
por possuir um thesoiro tão cubiçado e disputado.
No fim de um mez, o casamento effectuava-se sem ostentação, nem
mais testemunhas que as pessoas da familia dos noivos.
Dois mezes só decorrêrão, e já o desgosto entrou na habitação dos
jovens esposos.
Amelia, que passára as primeiras quadras da vida em pura ociosi-
dade , via-se a gora forçada a um trabalho rude e continuado desde ama-
nhecer até findar do dia.
últimamente Guilherme, desesperado pela má escolha que ti' uma
hora de tresvario fizera, passára aos maus tratos obrigando-a ao tra-
balho á força de exprobaçõe3. · '
Guilherme dirigia uma casa de commercio, para a qual não entrára
com capitaes, mas tinha parte nos lucros ; por conta d'estes gastava co-
mo se fôra um banqueiro. e q resultado dos esbanjamentos em coisas de
desproveito foi dentro em breve a pobresa.
Dando-se balanço á casa, conheceu-se que Guilherme ainda devia
á firma social.
Quando sentia necessidade de alguma coisa e não a podia haver, ·
vinga-se em accusar sua mulher como causa das desgraças que sobre si
pesavão; Amelia, alimentando-se das lagrimas, desculpava o 'marido
para accusar seu pai, que a deixára entregue ás proprias inclinações na
idade justamente em que lhe dévêra formar o coração e pr.eparal-a pa-
ra entrar na vida positiva.
- Enriquecêrão-me a intelligencia; acostumárão-me aos prazeres
passageiros que se experimentão no delirio da walsa, nos _i,>asseios; ven-
do a meus pés, supplices, tantos moços a pedir-me uma só palavra de
amor, eu que não conhecia o que significava esta expressão, mentida-
m ente ju rava a todos que erão os escolhidos de minha alma! Esqueci as
reflexões de minha irmã, e por vezes desci á inconveniencia para repel-
lil-a, porque eu não podia aceitar que ella, mais moça, me viesse dizer
como m e devia eu conduzir na sociedade; fôra viva minha mãi, e ella
velaria sobre mim, ensinando-me com a sua autoridade as regras que
conviria guardasse. Meu pai disse-me : - estou pobre, velho e cançado,
e é p reciso que cases ; fa-ze a diligencia por achar marido, que eu não
descurarei procurar-t'o! E hoje, n'esta minha longa agonia, ninguem me
ajuda a sorevr o calice amargo, nem uma só voz amiga me segreda ao
ouvido : - resigna-te!
Guilherme passa os dias a considerar nos meios de sustentar sua
mulher; sem credito no C!)mmercio, aguarda por algum outro emprego,-

Inst. H !st. - 12 .
-178-·
e emquanto isso, vai empenhando as joias que lhe trouxe Amelia!
Infelizes entes! Um desespera á falta de recursos;· a outra chora á
força do soffrer.
Dolorosos transes!
III
Arnaldo Pinheiro ficou encantado dos sentimentos de Lucilia no
. baile.
Tomando mais detalhadas informações á seu respeito, s_oube que a
virtude era uma de suas r;nais nobres· qualidades; tornava mais singela
o seu toilette afim de poder comprar livros e distribuir esmolas aos seus
pobres.
Uns chamavão-n'a - a romantica; - outros - a rolinha ; - ·Lu-
cilia tinha o genio docil, e a todos tratava com uma delicadeza de cap-
tivar.
Arnaldo solicitou a mão de Lucilia.
, A' consulta de seu pai, pediu permissão para reflectir por alguns
dias; é que tinha presente o exemplo de sua irmã, tão infeliz pelo pou-
co escrupulo na escolha. .
D'ahi a dois dias Lucilia accedia ao pedido de Arnaldo .
/ - Meu pai, vejo que cada vez mais se dobra ao peso da -velhice
e da enfermidade; se a mão da fatalidade me ferisse . agora, roubando-
m'o ás minhas caricias, ,não sei se poderia resistir ao golpe. Só na terra,
sem asylo, sem protecção de ninguem, a miseria viria tomar-me em
seus braços; se minha irmã houvesse sido feliz, na sua companhia es-
taria á coberto das precisões diurnas. Reflecti bem, por.tanto, no par-
tido RUe_se me apresenta: - ama-me com um amor sincero, puro, que
-l he vem do intimo do coração - serei digna do seu amor; em vez dos
bens da fortuna, das commodidades que o dinheiro offerece, pede-me
auxilio para ganharmos ambos o nosso sustento - a minha resposta é
a seguinte - aceito! Ha, porém, um additivo á :minha resolução; meu
pai ha de ir viver em nossa companhia;, os nossos cuidados hão de res-
tabelecel-o, e se é possível, dilatar-lhe os dias de . vida.
O bom velho chorava de contente; beijou-a na fronte e aôraçou-a
com todas as suas forças.
Arnaldo aceitou com prazer o additivo e prometteu adoptal-o .
Alguns mezes depois Lucilia e Arnaldo ligavão-se aos pés do al-
tar pelos laços do matrimonio.
De manhã vai á sua repartição, á tarde lê para distrahir seu sogro.
• Dispensa ao sogro e á esposa todos os carinhos, e tudo envida para
que uma só nuvem de tristeza não lhes paire no rosto!
Reina a felicidade na habitação do pobre!
Lucilia com justa razão se julga a mais feliz das mulheres, e to-
dos os dias agradece a Deus a ventura que desfructa na posse de um
marido que a ama estremecidamente.
Arnaldo julga-se feliz por viver d,o amor de um anjo, que com os
seus affagos lhe entorna a felicidade n'alma.
Alberto abencôa os seus dois filhos e pede para elles o auxilio cons-
tante de Deus. ·

IV
São passados tres annos.
Lucilia vive feliz, tendo já um :filhinho, loura e bella criança, que
faz os encantos do avô.
Amelia, a pobre Amelia, definha a olhos vistos; o desgosto, os sof-
-179-
frimentos, a tem abatido muito; quem a visse agora, desconhecel-a-hia
por certo .
.Arnaldo retempera as forças no trabalho; Guilherme, expellido da
sociedade honesta, espera que o pai lhe morra para haver a herança
dos seus bens.
Tinhão os genios düferentes ; tiverão desiguaes destinos na terra!
V
A moralidade do conto que acabou consiste no seguinte:
As moças não devem escolher os maridos pela fortuna que por-
ventura tenhão; antes de tudo devem indagar da nobresa dos seus. sen-
timentos, . do conceito em que a sociedade os tem, e só aceital-os por
maridos quando tenhão a prova evidente e irrecusavel de que são ver-
dadeiramente amadas.
Foi desgraçada a moça que deslumbrou-se ao brilho da fortuna ap-
parente d'um negociante; a felicidade bafejou a outra que -guiou-se pe-
las inspirações do coração.

Agosto de 1869.

Aurelio de Bittencourt.

-o-0-o-

.....
RECORDAÇÕES
Era Setemb'ro ...
Lembras-te, Emma? ...
As larangeiras em flor espargião perfumes, os sabiás canoros de-
dilhavão amenos modilhos, as christalinas cascatas sorrião-se amenj-
sando cantos, os colibris osculavão-se, as borboletas adejavão junto aos
nevados jasmins e as auras no perpassar dizião - Setembro - ...
Salve! tres. vezes salve a primavera dos pampas de , meu sul; salve!
ella que dá echos ás serranias e vozes aos rouxinóes da patria . . .

Lembras-te, Emma? .. .
.• ·-
Na alfombra da esmeraldina veiga, nós reclinados fitavamos esse
céo de chrysóes, essas nuvens alvinitentes como a graça do Uruguay, e
essa tela do sublime, bello e grandioso - a natureza . ..
E nós sorriamos .. .
Emma, sorriamos . .. . porque a infancia só tem sorrisos . ..
Escutavamos os garganteios dos gaturamos, o pepitar das rolas,
os trinos amorosos das juritys ...
Tudo era madrigaes de ài:nores . . .
E nós, tambem, filhos da creação, sentíamos nascer um sentimen-
to novo e affluir aos labios em borbotões ...
Tinham-nos curvado á essa lei da creação. . . amar!
E nos ama vamos . . .
Era um amor infantil, ingenuo, como o do c·y sne que banha-se no
regato, puro como o da borboleta para as flores .. .
Assim era nosso- amor .. .
Lembras-te, Emma? . . .

• •
Eu tinha treze annos . . . e as tuas 9oze primaveras não tinhão de-
sabrochado . . .
Eras uma flor em botão ...
Lembras-te, Emma? .. .
Recorda-te, não olvida o p_assado ...
Não queres? .. .
Eu t'o ·peço ... relê o livro de nossa infancia .. . e essas flores myr-
rhadas, essas flores sem vida, revive-as ao calor de teus beijos .. .
Tu podes . ..
Eu. . . não o posso mais ; jovem romeiro, tropecei na 'romaria sem
forças ; lyrio da primavera, já curvo o hastil. . . as petalas murchão-se
de dia em dia . . . e minha alma abatida vive envolta no sudario· da
soidão .' ..

• •
Era uma no,ite festival, festival como são as noites de baile . . .
Tinha decorrido um anno .. .
-181-
Se Outubro ,não guardou em suas ti-adicções essa noite . . . guar-
dei-a eu ... tu estavas tão bella . . . eu tão ébrio, tão louco d'amor ...
Lembras-te? .. .
Que olvido! .. .

• •
A orchestra . . . era harmonias . ·. .
As flores. . . perfumes . . .
As mulheres . . . vida . . . '
Lembras-te? ...
Nas salas o borborinho das walsas . . . e entre esse mar revolto de
valsistas .. . alegria, enthusiasmo e mocidade ... e se de vez em quando
o murmurio da floresta rumorejada pelas brisas da noite, o ruido de
uma catadupa que despenhava-se -com fracasso, vinha quebrar as notas
da orchestra, a embriaguez da walsa era mais louca, o bulício dos dan-
santes mais. forte . . . a alegria redobrava, o enthusiasmo duplicava . ..
Que noite, Emma! ...
Lembras-te ? ...
Sê generosa, diz-me ao· menos uma só vez, que em teu coração ain-
da pulsa uma fibra pelo passado, em tua fronte reminiscencia pelo nos-
so amor de criança . . . em tua alma uma saudade pela infancia . ..
E para mim . . . o que pedirei?
Nada! . ..
Não te creio mais .. .

• •
-Conheces, Emma, aquella menina que tem as mãos entrelaçadas
nas de seu jovem ·companheiro? que troca com elle sorriso por sorriso,
caricia por caricia, blandicia por blandicia? ...
Conheces? .. .
Fita-a bem .. .
Contempla suas formas airosas, cinzeladas em habil estatuaria ; sua
côr moreno-italiana pede um pincel. . .
Ah! Raphael teria harmonisado esse primor da natureza, no bello
de seu moreno, com a ingenuidade que em seus traços transluzia . . .
Seus cabellos são de ébano azevichado, e revoltos em caracóes bei-
jam a assetinada cu tis ...
Ser um, d'aquelles caracóes . . .
Louco desejo! ...
Mas se eu . podesse .. .
Seus labios de coral abrem-se graciosamente, mostrando a alva
dentadura de christal! . ..
Seus pézinhos de andaluza transparecem por entre a fímbria de
seu vestido branco . . .
Suas mã ozinhas .. .
Conheces, agora?
Eras tu aos treze annos ...

• •
Escuta ...
Ouve esse trocadilho de palavras ... uma trança de teus cabellos ...
Sim? . . .
Sim .. .
- · 182-·
E tua ,voz era rneiga, meiga como as cantilenas pastoris das filhas
de nossos pampas . . .
Tuas _palavras . . . harpejos de harpa éolia ...
Cumpriste tua promessa?
Não, nunca . . .
Tinhas mentido ...
Do perjuro, Emma, emanou o esquecimento ...
Perjuraste tua promessa de criança, tudo olvidaste, . e hoje, moça ,
tu lanças ao teu amor infantil o escarneo do despreso .. .
Fazes bem .. .
Variar é viver . ..
Já o disse alguem, e eu o digo tambem ... .

Emma, estou só e penso em ti. ..
O que farás tu? .. .
Pensarás em mim? .. .'
Perdoa-me, ainda sou muito credulo . . .
Crenças da infancia, que não morrerão de todo no coração do
mancebo .:.
Se um dia, Emma, meu nome chegar junto a ti. . . foi levado
pelos echos, e se morreu a teus pés, culpa a brisa que ergueu as cor-
tinas de teu sanctuario de virgem e o deixou 'Cahir ahi.
Emma, se perdoar aos que errão é uma acção nobre, eu te per-
dôo, e em retribuição á tua indifferença, dou-te - amisade ...
E ao teu esquecimento só direi:
Obrigado, Emma .. ,.
Adeus ...
Julho de 1869.

Apelles Porto Alegre.

J
.,

EPISTOLAS
I

Tu, alma de poeta, · seio ardente


Que se enleva ante o bello, ante o sublime,
Como vais ao cerrilho teus cabellos
Sem pavor entregar? E no cilicio
Da batina envolver-te, como o mortó
Nas dobras d'um sudario?

Tu, livre, pensador, como te arrojas


Ao Maelstron do infortunio?
Bem sabes que um apostolo de Christo
Se dopra ao Vaticano
Como authomato vil! Gregorio setimo
E o concilio de Trento em dia infausto
O tornarão em rocha.

E' sublime a missão do sacerdocio,


Mais sublime não ha, porém não hoje,
' Em que, além da estamenha,
Ha a soidão, o tedio, a morte em vida,
E o desprezo das turbas!

O homem está sujeito ao érro, errão todos,


Porém a leve falta- do levita,
Da creatura que a Deus somente serve,
Que seus dias e noites vota ás preces, ._
Que os prazeres da vida eterno olvida,
O poviléo levanta-se,
Insultos e baldões lhe atira ás ;faces. ~

Elle presta do templo ante os altares


Sagrados juramentos que não póde I
Jamais cumpr{l-os, e se uqi. dia os e:iuebra,
Se um dia a mão da natureza os rompe,
Ante o Deus que o ouvira e ante o mundo,
Éil-o perdido, infame!

Se procura cumpri! os, que martyrio!


Que angustias e que luctas! Mais ditosô
E' o . verme na terra rastejando!
Pois a lei natural jamais• repelle,
Nem á diva feitura sublimáda
Não tenta eliminar sequer um orgão.
Infame o que mutila a natureza!
Infame a lei que o sacrilegio ordena!
-184-
Se procura · cumpril-os, que martyrio!
Se vê um rosto lindo, uns olhos meigos
' Que n 'elle se fitarão , eil-o · em lucta
Sobre o catre mesquinhô!
Seus cilicios filtrão incendios , d'alma,
Sem; pulsos torcem-se em feroz delirio,
Sua tez queima em estuaste febre,
Todo elle treme, convulsêa· o misero!
Que tambem coração possue o padre.
Lembrando' que sósinho, sem ,familia,
Sobre o mundo vegeta, e que a donzella
Vista ha pouco, quem sabe lhe apontasse
A ventura da vida. Tão ,angelica
O animaria em improbos trabalhos,
Nas arduas excursões do sacerdocio ...
Vel-a, sentil-a, desejal-a sempre ...
O' que magoas! Que dores o conculcão!
Que desespero infrene lhe arfa o peito!
Como maldições despede em cada folego!
Como o punho cerrado desafia
O espectro que creára o celibato!
A razão lhe muqnura que espedace
A cadêa de bronze que o macera,
Os élos atirando, 'álém ·-=--- no Tibre;
O coração o leva a dôces gosos
Lhe mostrando as delicias da lareira;
Porém um juramento o prende, o \iga,
E o altar e a consciencia lh'o recordão.
O que ha de então fazer?
Desvaira o triste,
t a victoria ás paixões inconscio deixa!
E tríumpha Satan!
Mais um aposthta
A casa de Jesus recebe ao seio,
Mais um Iscariota conta o mundo!
Tu, primaverá rosea que viceja
Sob o sol do Equador, tenra planta,
Que quer ar, rocio e brisas, cuja fronte
Ennastra da esperança as flores lindas,
Cuja arteria da vid~ a seiva ostenta,
E cujo olhar radia a luz d'amores,
Como queres deitar-te n'este equuleo,
Onde o viver é morte, e o pensamento
Duro aguilhão que move a um cadaver?
Não, amigo, cadaver, frio, inerte,
Não o serás, affirmo, embora o <;iueiras!
O que vale ostentar presença gehda,
Se o volcão ferverá no seio ardente?
Se o Pitina nos Andes entre gelos
Effervesce constante?
Não creio, é impossivel. Se da vida
O peso te incõmmoda, e na sotaina
Busca~ prompto allivio ,a di1os males,
1
-185-
Se em seus abraços tem-te o dei,espero,
Escuta: que mais vale ser suicida
Na taça da peçonha, em fundos mares,
Que mais vale o punhal que sangra o peito
Que no burel, no claustro a morte lenta.
Antes corre da patria na defeza
E e>m imigos' bastiões a gloria alcança.
O homem serve ao Senhor, lhe rende preitos,
E' dever com· um pai que o filho adora,
Dever que se resume . em culto santo
E a natureza inteira dá-llie sempre,
Mas não o sacerdote! Como amal-o?
Como dos céos fundir no augusto solio
Palavras doces e sinceras ,preces, ·
Elle a quem em horrifica masmorra
De infortunios e dores arrojarão
Em nome do Senhor?
Até no labio
Muitas ve~es lhe passa atroz blasp_hemia!
E quando no mundo vejo as turbas
Cubrirem-n'o de insultos e improperios,
O lamento e perdôo. Conheço as causas.
O mal está na regra que o dirige,
E não na natureza que o formára.
II
Dizes que o homem vence a natureza
E em orgulhos0 tom a historia citas,
E entôas de victoria um canto altivo.
Meu amigo, lamento essa cegueira
Que no animo te apaga a luz celeste.
No estabulo dos erros és ditoso,
Pois ris de meus futeis devaneios!
Dos absurdos a treva te inebria,
Esqueces a razão e a liberdad_e;
E o homem já confundes na material
A historia é o fecundo pensamento
Que segue do progresso a róta fulgida
Atravez dos espaços e dos tempos.
O homem, se . doma a vaga que rebrama.
Se um freio põe aos ventos, se dirige
O rabido corisco, se da terra
Tira alimento e veste, crês que vence
E torce a lei divina n'este facto?
Engano! Elle prosegue na vereda
Que Deus indigitou-lhe ao - fiat lux
O rio que decorre, o grão que · gemma,
O passaro que vôa, o sol que brilha,
O corpo que p'ra a terra inclina e tomba,
O fogo q_ue produ z voraz incendio,
A natureza porventura esmagão"?
No entanto são diversos da feitura
Que a creação domina! Uns sem idéas,
Outros sem um resquício de vontade!
. .
-186-
Em falsos argumentos não te escudes
Q_u e · tardo arrependimento vem 0 nos sempre,
Quando as cégas trilhamos.
Inda uma . vez te digO':
Maldito o que mutila a natureza!
Maldita a lei que o sacrilegio ordena!

Dizes-me que o suicidio sancciono


Que t 'o aconselho mesmo! Longe d'isto
Vagou meu pensamento. Não me entendes!
O' temo por ti, temo que te percas
No dedalo de canones estereis,
De tão sáfara e fossil escholastica!
R~lê o que escrevi, e então reflecte,
Reflecte COII)O outr'ora, quando juntos
Passavamos a vida, meditando
Nos livros da sciencia e n'esse livro
Mais sabio que todos - a natura ; •
Então felizes sempre, irmãos vivemos
A' luz do sentimento e das idéas.
Que saudade hoje nutro d'esse tempo!
_S e voltassemos a elle, quão diverso
Não fôras do presente, nem sollicito
Agora te escrevera!
Escuta, amigo,
, Porque me dizes: "Não perturbes
"A paz de consciencia que demando,
"A vocação me arrasta, vou seguil-a? "
A vocação disseste?! Estás perdido! ,
Confundes o erro co'a verdade augusta!
E' vocação correr para os abysmos? ·
Cortar o corpo á disciplina crua,
Nos jejuns maceral-o eternamente?
Não, isso é que é suicidio, e um suicidio
Sem razão de · existencial
D'elle quero
Pressuroso afastar-te.
O anachoreta,
O padre sobre a terra ·inuteis vivem,
Só o seu braço concedendo a Roma .
Escravos da tiára, o mais odeião ...
Sem familia J! sem patria de que servem?
E sem Deus, porque d'elle até renegão ,,
Quando a carne lhes falla com facundia!

Assim sem luz, sem berço _.:... os grandes moveis


Do humano coração, tu bem conheces
Que dão á sociedade escarn~o intenso
Roma sobre elles vela, Roma os manda.
Por tudo é um suplicio o sacerdocio.
Tua alma grande e nobre não transige
_Com a verdade sacrosanta e pura,

Por isso assim m'exprimo, assim te fallo.


Não serás refractario . a teu passado.
A' doutrina dos mestres, aos deveres
Que a lei civil impõe, de nós reclama.
-187-
De precipicio foge, emquanto é tempo.
Não prosigas, senão . . . serás Luthero,
Melanchton talvez, em lucta ousada,
Er&uendo , out:ra Smalkalde nºesses climas .
.,
(Continúa.)

. ...,
PARECER
SOBRE A THESE:

Os · animaes têm · alma? Essa alma é immortal?

Os materialistas, e entre elles Diderot e Helvecio, affirmão que


não ha differença entre o homem e os animaes, senão qe sua orga-
, nisação. · . ·
Esta asserção tão audaciosa quanto absurda não se apoia, porém,
em nenhuma razão positiva. .
Qual o ponto de contacto que estabelece a igualc;l.ade entre o ho-
, mem e o animal?
Os animaes são dotados de suas forças distinctas; o instincto, e
um certo gráo de. intelligencia cuja faculdade, porém, não attinge · a
perfeição da intelligencia humana, pois que só é dado ao homem o
poder de reflectir, com o qual póde suspender as deliberações do en-
tendimento, fazei-as proseguir ou retroceder, segundo o seu arbítrio.
Os animais têm memoria, entendimento e vontade, porém estas
faculdades não operão n'elles livremente; são antes impellidos por u.r;na
força instinctiva, machinal, cega, como acontece ~m muitas acções dos
homens em cujas operações não entra a reflexão.
O homem, pois, distingue-se consideravelmente dos animaes, não
só pela perfeição dos orgãos dos sentidos, como pela supremacia de
suas faculdades, e sobretudo pela reflexão, com a qual entra em con-
selho comsigo mesmo e modifica as operações da vontade, o que não
acontece aos animaes, 'que obrão instinctivamente, segundo as leis de
sua propria natureza ordenados pelo Supremo Creador de todas as
cousas.
Onde está pois o ponto de contacto que marca ao animal o hon-
roso logar de igualdade na esphera ' da razão humana?
Os animais que pensão, que sentem, que lembrão e querem, têm
manifestado com o exercício d'estas faculdades alguns signaes de pro-
gresso intellectual? Reconhecem, porventura, como o homem, a exis-
tencia de um Ser Supremo?
De certo que não, porque, segundo a opinião de um philosopho,
só é dado •ao homem o poder de sentir que sente, de conhecer que
conhece e de pensar que pensa.
E' verdade que o animal tem orgãos dos sentidos que oppõe em
relação com o mundo exterior, do qual recebe impressões; porém, se-
gundo a opj.nião de um outro _philosopho, falta-lhe a alma para os
reconhecer, o que não acontece ao homem que tem alma, que vê, sente,
ouve e quer, ~om a qual aquilata essas impressões e sabe discernir o
bem do mal.
Por mais que- queira condescender com os apologistas d'essas dou-
• trinas perniciosas que affirmão a existencia da ·alma racional nos ani-
maes, doutrinas que mais nos impellem para a descrença da bemaven-
turança, do que para fortalecer a esperança de que após esta vida,
outra mais pacifica nos aguarda, não podemos aceitai-as sem detri-
mento dos princípios evangelicos da philosophia christã.
' 1

-189- .
Como admittir que o animal tenha alma, se elle não foi formado
do mesmo principio de que Deus tirou o homem?
A luz, o firmamento , os astros, animaes, sahirão do nada em vir-
tude de uma só palavra de Deus - Faça-se, - e -tudo se fez.
Deus, porém, não formou o homem em virtude de uma palavra de
mando - Faça-se o h omem, - não; Deus principiou a distinguil-o com
uma . palavra de conselho - Façamos o homem á nossa imagem, - o
que dá a conhecer que a formação do homem foi de mais transcenden-
cia que todas as obras da creação, pois que Deus principiou a honral-o,
não só formando-o á sua imagem, -como dotando-o com alma racional.
Essa alma, · porém, não foi tirada - dos elementos.
•Diz a Sagrada Escriptura : - Formou, pois, o Senhor Deus ao ho-
1 mem do limo da terra, e assoprou sobre seu rosto um assopro de vida,
e recebeu o homem alma e vida .
Por consequencia, o Senhor formando o homem da .µiateria , á sua
imagem; querendo, além das fórmas corporeas, distinguil-o ainda do
resto dos animaes, honrou-o com alguma cousa de immaterial, cuja
substancia infinita tirou de si mesmo, e a massa inerte do homem ins-
pirado com o divino assopro, recebeu alma e vida. Logo o homem foi
creado em virtude de dous principios: um material e o outro espiritual.
A parte corporea do homem é mortal porque foi tirada da materia, e a
parte espiritual é immortal, porque beus não a tirou do limo da terra
e sim de sua propria essencia e a infundiu no corpo humano por meio
do assopro divino . '
Essa particula espiritual que o homem recebeu do Creador, a que
se póde dar o nome de alma racional, é que constitue o imperioso pre-
domínio que o homem exerce sobre todos os animaes terrestres.
Os animaes forão tirados de um principio toa.o material. Diz a Sa-
grada Escriptura: - Disse tambem Deus: Produza a terra animaes vi-
ventes, cada um seguindo a sua especie, e a terra os produziu já com-
pletos com movimento e vida.
Esta animação, vital; porém, não foi infundida nos animaes por
meio de assopro divino, e sim tirado como o corpo dos elementos e por
conseguinte nada tem de immaterial.
Não, os animaes não têm alma ; a alma racional teve origem n'um
principio eterno, e essa vida animal a que os materialistas chamão al-
ma, não sahiu d'esse principio, e volverá indubitavelmente ao nada
d' onde sahiu.
Se, pois, negamos a existencia da alma racional nos animaes, nada
mais diremos de · su a immortalidade, porque não ha argwnentos para
justificar o nada, nem póde ser immortal aquUlo que não existe.
Porto Alegre, 1868.

Nicolau Vicente Pereira.


.

OS PALMARES· ✓
ROMANCE HISTORICO
POR
Appoiinafio Porto Alegre

(CONTINUAÇÃO)
PARTE I
CAPITULO I

Raiava ' o anno de 1869.


No espaço intermediaria entre Porto Calvo e a serra da Barriga
hoje na provincia de Alagôas, e na ép6ca a que nos reportamos, for-
mando uma comarca da capitania dé Pernambuco, d'entre basto arvo-
redo quasi em totalidade exotica, sobresahia severo e carrancudo o con-
torno de um edificio de vastas proporções na fórma, mas sem guardar
eurithmia no complexo de suas partes.
Distava meia jornada pouco mais ou menos de . Porto Calvo.
E' a fazenda de Pero Lopes, senhor de numerosa escravatura e de
engenhos, d'onde annualmente desde que a invasão hollandesa desap-
parecêra, derramava a cornucopia de product9s n'esta capitania, e inda
sobre outras comarcas.
Não será inutil antes de proseguirmos n'esta historia uma vista so-
bre o estado do paiz.
Na occasião em que a encetamos, não por uma, mas por varias
restaurações tem elle' passado. O dominio dos Paizes Baixos havia ba-
queado ante um heroismo a toda a prova, o íerreo mando da compa-
nhia de Jesus era supplantado em alguns , lugares e aborrecido no es~
pirita da grande colonia, e afinal começava a extremar-se a nacionali-
dade brasileira. Verdade é que os moveis de tão grandes e nobres sen-
timentos, nascião as mais das vezes do contraste de opiniões que re-
quintavão e progredião 'na lucta apaixonada, fervorosa e em certos ca-,
sos terrível, porque o sangue golfava; comtudo não deixava de existir
o embrião que annos depois faria surgir da chrysalida, factos supremos
e de magna importancia para o Brasil e para a civilisação.
A eliminação do poderio hollandez .e a extinção da CompanhiaGe-
ral do Commercio, forão a fonte de bens physicos e moraes que resal-
tarião mesmo emquanto o paiz se restabelécesse das innumeras ulceras
· abertas no longo periodo de trinta annos que durou a guerra.
Vieira e Vidal, Camarão e Henrique · Dias mostrárão no mais ex-
clusivo desamparo de Portugal, vivendo e ·alimentando-se dos seus pro-
prios, posto que comesinhos recursos, que, uma nação . aggredida por
outra soberana dos mares e senhora de exercitas formidaveis, póde man-
ter sua honra e integridade illesas, se o patriotismo e os grandes senti-
mentos de abnegação, em tão melindrosa emergencia, inspirão sómente
a seus filhos. '
-191
/

Emquanto á companhia de Jesus; d'esses maldictos filhos de Loyo-


la, já sem prestigio, rechaçados pela massa da população, pouca vida
se lhe augurava, embora o manto dos pontifices sobre elles estendesse
escandalosamente, embora em seu gremio houvessem vultos da tempera
de Vieira. A corrupção no maior auge tressuaya de seus conventos, a
gangrena apoderava-se de todos os seus membros.
Em pouco tempo um dos maiores politicos modernos, o celebre
ministro de D. José I, devia levantar-se como o raio que lasca a man-
cenilheira lethal, como o agricultor qu~ monda a má herva. E' a seu
apparecimento que os jesuítas vão tremer, tiritar de espanto.
Com o olhar de lynce com que seu genio de dimensões verdadei-
ramente atbleticas devorava o futuro, e escudado na egide do passado,
onde nos annaes dos outros povos bebera proficua experiencia, virá an-
niquilal-os e demonstrar que, se a -religião na puresa de seu archetypo
é uma lei necessaria para a moralidade do genero humano, não deixa
de ser um veneno delecterio, quando mente a seus fins, e desvirtua sua
realesa e brilho no conflicto de interessei, temporaes e no jogo de pai-
xões ignobeis. ·
Cada um, como elle, frisasse os actos na governança d'uma nação
pelos convincentes corollarios da philosophia da historia, tirando d'el-
les uma norma invariavel, e quão feliz seria a humanidade!
Assim não veriamos governos ainda J;ioje postergando tão sãos prin-
cipios e cingindo-se a anomalias e desregramentos que causão admira- .
çãó!
Era então que. a nacionalidade brasileira começava tambem a ter
consciencia.
A larva informe e inerte já sentia alguns movimentos, ·a seiva de
vitalidade começava a circular-lhe na arteria, um vislumbre de razão
fulgia-lhe passageiramente no cerebro. Era um prenuncio de um gran-
de acontecimento - a emancipação política de um povo; era a promes~
sa d'um esforço nas aspirações, d'um acto energico nos movimentos.
O colono portuguez gozava de immunidades e regalias que não ti:
nhão os colonos natos no paiz, até o ponto d'estes serem excluídos dos
diversos ramos da administração civil e militar.
Nem foi outra a causa primordial do ciume que já semeava a si-
zania entre uns e outros e mais tarde devia rebentar em sedição aberta
entre Recife e Olinda, cada uma representando uma das parcialidades.
Além de taes considerações, outras muitas podião vir ampliar o
perímetro deste capitulo; porém para não esquecel-as de todo, apenas
as esfrolaremos. Se por um lado a terra de Santa Cruz avançava nas
veredas do progresso, por outras · muitas causas concorrião para quasi
· neutralisal-o. Uma das mais salientes era o zelo estólido com que a côr-
te de Lisboa olhava o adiantamento e forças da grande co1onia portu-
gueza da America; por isso seu unico fito foi sempre enfraquecel-a.
Dominada por princípios adversos á verdadeira política, dividiu-a
em Estados independentes uns dos outros, e em quasquer projectos que
lhe erão relativos, mostrava tal volubiliçiade que só produzia distur-
bios e desperto de odios.
(Continua).
'I

UM SONHO
I (

E' uma linda noite ...


A viração agita as arvores da floresta.
Depois de escuridão espessa, lá apparece a lua çheia e avermelhada
como se fôra de sangue.
E 'mais e mais se alteia, a pouco e pouco mostrando seus esplendo-
res.
O céo de anil agora, está bordado de estrellas. Venus ostenta-se
garbosp. a desafiar as suas iguaes. ,.
Como é bello contemplar ás horas mortas os vastos campos da cos-
ta de Belém!
A- relva é verde, mas branqueja ao orvalho da manhã; os montes
que ficão perto cobrem-se de neblina.
E as arvores baloução-se, alastrando o chão · çie folhas.
II
Reina profundo silencio. /
E' sobre a relva o meu leito; servem-me de travesseiro alguns ra-
mos de umbú, e de coberta a vasta extensão dos céos.
De repente, quando descançava sob_a egiqe de Morpheu, vi appare-
cer por traz de um outeiro uma luz. Pouco depois mostrou-se-me uma
mulher, linda como um anjo, que caminhava em direcção ao logar em
que me achava. ·
A sua b~lleza fascinou-me; ergui-me ligeiro e fui ao seu encontro.
Era Marciria, a encantadora Marciria, que passeiava quando a ma-
drugada se approximava. _
De dia estivera ella em uma casa onde era eu hospede. Era domin-
go, dia religiosamente guardado pela gente da roça. Ella sentou-se á
•sala brincando or a com o seu alvo lenço pendento ao pescoço, ora com
um raminho de flor que tinha entre as mãos.
Fui sentar-me á seu lado; disse-lhe que tambem queria gozar dos
perfumes d'aquella flor, . que fazião a sua delicia, e ella sem disfarce,
sem mais demora respondeu-me: - mas se o senhor não é meu noivo,
como quer cheirar a flor?
- Mas posso sêl-o. A menina é mimosa ; tem a côr sympathica do
jambo; tem longos e pretos os cabellos, labios da côr da rosa e dentes
d'alvo marfim; as sobrancelhas pretas e espessas, os olhos vivos e es-
curos. Tem a cinturinha delicada . . . ,,
Quando ia para dar-lhe um abraço em prova do amor que estava
começando a sentir, · pedindo-me que lhe não fizesse cocegas, sahiu cor-
rendo para entre o laranjal. '
' Quiz seguil-a para fazer-lhe a declaração do meu amor; mas, tendo
apenas posto o pé fóra da porta, vi que o velho pai andava de gancho
em punho a colher laranjas. 1
Eu tinha uns amores muito castos; mas a declaração sem a presen-
ça do velho seria feita sem constrangimento, com melhor franqueza . ..
A' tarde pai e filha forão para casa, e eu segui-os de longe para
-193-
conhecer o local. Ao despedir-me da menina Marcira, olhei-a com tan-
ta ternura, que ella sorriu.
Disse acima que fôra ao seu encontro no momento em que a reco-
nheci.
Tive bastante coragem para fallar-lhe; aquelle sorriso da tarde pa-
recia-me prova de que já lhe · não era indifferente.
- Ah! bella Marciria, tão cedo é ainda, e já de pé!
- E o Sr. então que é da cidade e costuma erguer-se quando o sol
vai alto? São 4 horas; vou levar os carneiros ao logar do pa~to e volto
para servir de leite ao pai quando acordar.
- Bella missão, minha menina, mas enfadonha devéras sem um
companheiro. . . Quer a minha companhia? Eu sou muito bom e tinha
tanto que lhe dizer ...
- Não, eu ando sempre só. Se tem-alguma coisa a dizer-me seja
breve, que o dia não tarda a amanhecer ...
- Mas se o que lhe tenho a dizer. . . pois não adevinha? Eu .. .
eu . . . estou louco de paixão . . . pela senhora ...
- Mas se ainda hontem I,Il.e viu ... O Sr. não diz a verdade; com a
mesma pressa com que lhe veio essa paixão, póde extinguir-se e .. ,
- Ah! não, eu hei de. . . eu amo-a muito. . . Iremos aos pés ·do al-
tar para que Deus abençôe o nosso amor; levar-te-hei depois para a ci-
. dade, onde terás ricos vestidos de seda e velludo, de cambraia e moiré;
terás rendas, bordados, fitas, franjas, gregas e mais miudezas para en-
feitar-te; irás aos bailes, aos theatros, ás igrejás, aos passeios; dar-te-
hei todos os gozos em troca do teu amor.
· - Nada d' isso me serve . . . ainda se .. .
- Ainda se . ..
- Ainda se fosse para viver aqui.. , eu tenho tanto amor a meu
pai e aos nieus carneiros. . . Ai! adeus, Sr., o dia não tarda e tenho
pressa . . . Logo nos veremos.
E quando quiz fallar-lhe, já tinha partido.
III /

Marciria tomou a direcção da praia.


Eu tinha na algibeira um vidrinho de chloroformio, q ue m e fôra
pedido da cidade por uma velhinha, que n'esse dia o devia procurar.
Que idéa havia de apparecer-me ao espirito? .
Ella ia perto da praia; ahi estava o navio que me devia trazer
á cidade, carregando tijolos e telha d'uma olaria proxima; que pen-
samento sinistro, santo Deus! ·
Corri, voei, cõnsegui alcançal-a antes que houvesse ~hegado.
A p obre menina recuou tremula e atterrada; reconhecendo-me, de
joelhos imploroú a minha clemencia; a chorar apontou-me a casa onde
um velho honrado dormia, e pediu-me que o não matasse.
Segurei-a com forç·a e fil-a aspirar o cheiro do liqúido .. .
, Vi-a desmaiar nos meus braços. . . era tão bella. . . que delicia
infinda· ter a gente reclinada nos braços, sem sentidos, sem forças para
reagir, uma mimosa mulher! ...
Corri á praü!, levando-a ao collo; os carneiros gritavão com força
á falta de sua dona e seguião-me.
Olá do navio S. José! um bote que precisó embarcar.
Quem?
O unico passageiro d~ Pelotas para Porto Alegre que traz o
hiate. •
Vou acordar o mestre, faça o favor de esperar, gritou-me um
dos marujos.
Cada minuto de demora era para mim um supplicio.

Inst. Hlst. - 13.


-194-
Os carneiros tinhão-me rodeado ; já o dia se fazia ann unciar p elo
gorgeio dos passàros na ramagem dos arvoredos ; se alguem nos visse ...
Oh! mas eu fal-o-hia calar . . . imporia silencio com uma ameaça' de
morte.
- Oh do navio! tenho frio , estou a morrer, depressa com o bote!
De repente senti passos n 'uma curta distancia .
- . Alguem viu-me, alguem foi testemunha do r apto, e vem buscar
Marciria. Mas eu não a entregarei, porque pertence~me. Na cidade
dar-lhe-ei o inêu nome . . . Mas os passos . . . sinto-os mais perto . . . Oh!
do navio! . . . oh! do navio!
'E no esforço de gritar ,acordei!
... . . . . .. . :.- · ........... . .. ... ...................... • ,• .... ... ... .
Fôra tudo sonho !
Em vez de mulher, tinha nos braços um j ornal, que ao deitar
começára a ler. Em vez da praia, estava deitado no meu leito; em vez
da costa de Belém, estava: em Porto Alegre. ·
Tendo deixado. accesa a vela , porque dormira quandg lia, consu-
miu-se toda.. ·
Tive pena; o sonho fôra tão agradavel! ...

Agosto de 1869.
Aurelio de Bittencourt.

--o-o-o-
.A MISSA DO GALLO
(FRAGMENTOS DE UM LIVRO)
I.

O PEDIDO FOI ATTENDIDO .

. A's cinco horas da manhã do dia 24 de Dezembro de 1861, a· Sra.


D. Angelina da Silveira dormia preguiçosamente o somno da madru-
gada, ao lado de seu marido, que recostado indolentemente n'um sofá,
' lia com pasmosa velocidade, inda que interrompido por algumas pita-
das de simonte, as noticias commerciais consignadas na corresponden-
cia da côrte. .
A avidez com que o marido de Angelinar percorria os olhos 'pelas
columnas do Mercantil, deixava perceber claramente a dolorosa impres-
são que lhe causára a oscillação dos cambios, e por conseguinte o pre-
juízo imminente que o ameaçava em suas ultimas transacções, que,
graças ao seu genio iniciador e especulativo, raríssimas vezes acarre-
tavão funestas consequencias.
A' vista do que acima consignamos·, fica comprehendido que Am-
brozio da Silveira, que assim se chamava o marido de Angelina, era
· negociante de calculas palpitantes, de ·emôções mais ou menos agrada-
veis, com as quaes de'l.'.assava largos horisontes na esphera dos interes-
ses mercantis.
O tino e actividade de Ambrozio tinham lhe conquistado uma
opulencia invejavel, e por conseguinte poderia ser considerado, se nos
permittem a liberdade da qualificação: - negociante de grosso trato!
Deixemos, porém, o Sr. Ambrozio mergulhado em suas cogitações,
mercantis, e analysemos o inquieto dormir de sua cara metade, que
i_nda á primeira vista pareça nada offerecer de extraordinario, não
deixa toda'via de encerrar o quer que seja de mysterioso, que é mister
desvendar aos olhos de meus circumspectos leitores .
., A cada ruido da folha que seu marido, cedendo ao impulso de
uma _m á impressão, desdobrava impetuosamente, Angelina estremecia,
suspirava, mas continuava a dormir.
O · negociante, posto que tivesse todas as suas idéas empregadas
exclusivamente na correspondencia, ou absorvidf!S na inexgotavel mina
de suas explorações commerciais, não deixou todavia de observar aquelle
estremecimento produzido talvez por alguma idéa extravagante, aze-
dada pelo fel da venenosa prevaricação.
Ambrozio da Silveira, pouco dado como era, a perscrutar os phe-
nomenos da psycologia, longe mesmo de levar a sua phisolophia ao
ponto de investigar o segredo das paixões humanas, não suspeitou que
o estremecimento de sua mulher fosse filho das agitações tempestl..\osas
de um amor criminoso.
No entretanto Angelina continuava a estremecer, o que "levou seu
marido a encaral-a em profunda contemplação, de cujo resultado foi
attribuir aquelle movimento involuntario á necessidade physica de coçar
a mordedura de alguma pulga impertinente, e por conseguinte proseguiu
na leitura da corespondencia, que já ia approximando-se do ponto car-
-196-
dinal de seus desejos, que era a tabella dos preços correntes da praça
do Rio de Janeiro.
O bom do negociante tinha emprehendido um carregamento de
feijão para aquella cidade, de cuja remessa esperava colher um resul-
tado satisfactorio.
A fortuna, porém, foi-lhe adversa d'esta vez, e a maldita corres-
pondencia que elle- anciosamente devorava, foi a mensageira d'esse
desastroso acontecimento!
Quando Ambrozio deparou com a consideravel baixa de cincoenta
por cento no preço do genero que exportára, deixou escapar um grito,
que ' despertou totalmente a nossa formosissima heroiaa.
Ella, porém, que na physionomia do marido não descobriu a tem-
pestuosa revolução que lhe devorava as entranhas d'alma, aventurou
o seguinte pedi.do:
- Vamos hoje á missa do gallo, Ambrozio?
Escusado é dizer ao leitor a pungente impressão que aquelle in-
tempestivo pedido produziu no interior do negoéiante.
Ambrozio da Silveira encarando sua mulher com aspecto atter-
rador, r espondeu-lhe n' um tom, que nada recommendava os f óros que
. gosava de homem circumspectó e reflectido.
- Ora, Sra. Angelina . . .
O bom do velho faltou pela primeira vez ás regras da boa decencia,
e nós por um timbre de moralidade, não repetiremos aqui a palavrq
que lhe escapou dos labios, que, segundo a opinião ce Victor Hugo, se
tornára sublime pronunciada por Cambrone nos campos de Waterloo!
Ambrozio da Silveira, ainda que cigano em seus -negocios, era
todavia dotado de uma boa indole, e se uma ligeira tempestade o agi-
tava em desespero, em breve o santelmo da bonança se manifestava
na serenidade de seu rosto .
Como os espiritos fortes e os genios arrebatados são quasi sempre
quebrantados pelas ardilosas doçuras da mulher, Ambrozio teve de
ceder ao impulso d'essa lei immutavel da natureza.
Após/ profunda reflexão sobre os motivos que occasionarão uma
tal baixa de preço no feijão, concluiu que os lucros da penultima
transacção cobrião os prejuizos da ultima, e por conseguinte o bom
do velho, tomando um aspecto menos sorurr:ibatico, adubou o sorriso
que lhe pairava nos labios com o sorvo da decima quarta pitada.
Angelina que tinha tanto de formusa como de sagaz e astuta, não
querendo esperdiçar a occasião em que o contentamento transluzia no
rosto de seu consorte, aproveitou-se da situação como se diz em po-
litica, para aventurar o segundo pedido. -
- Mas então, meu velho, vamos á missa do , gallo?
- Vamos, sim; 'porque não havemos de ir, minha velha? respon-
deu o negociante.
Ambrozio da Silveira conhecia que o tratamento de - minha
velha - não era adequado á sua mulher, que estava ainda no verdor
da mocidade, mas para não transgredir o uso 'admittido nas sociedades
modernas, fa com a moda chamando-a · sempre sua velha.
Angelina radiante de prazer e contentamento pelo triumpho obtido,
levantou-se de subito e foi abraçar seu marido, que a recebeu nos
braços com aquella fleugmati._ca pachorrice que o caracterisa.
Na nossa, como em todas as sociedades do mundo, ha uma certa
classe de mulheres casadas, cuja perversão moral attinge a um tal ponto
de aviltamento, que seria difficil até á propria· intervenção divina ope-
rar a regeneração n 'essas almas crestadas pelo calor da vaidade e do
egoismo!
Estas mulheres, ou antes cancros venenosos, que vão contaminando
com a podriáão de seus costumes a sociedade decente, distinguem-se
-197-
quasi sempre das almas bem formadas, pelo desplante com que pre-
tendem convencer o publico de que adorão seus maridos, affectando
o desavergonhado ciume, que por elles manifestão publicamente.
Este apparente ciume tem dois fins a satisfazer: o primeiro é captar
a benevolencia publica com aquellas demon§trações de apreço, e a
segunda, é consolidar o imperio que exercem e · a consideração que
gosão nos corações dos desventurados maridós.
E ha alguns tão papalvos que após um d'estes ridiculos ensaios,
exclamão:
- Como ella me ama! como sou venturoso!
Angelina não attingia ainda a esse requinte de depravação; mas
se não era mestra jubilada, tinha-se matriculado n'essa escola e pro-
mettia grandes esperanças para o futuro.
Se o abraço com que Angelina remunerou a boa vontade com quú
o marido accedeu a seu pedido, foi uma especie de agua com assucar
com que ella adoçou os labios do velhote, afim de mais tarde fazel-o
tragar até ás fezes o lethal veneno, na taça do adulterio, é o que por
emquanto não podemos dizer.
O que, porém, podemos affiançar, é que o pedido foi attendido.
'-- . .
Nicolau Vicente.

(Continúa.)


.
POESIAS
SONHANDO.
Eu via um quadro de celestes gosos,
De leve a aura balançava a flor;
Depois correndo nos vergeis viçosos,
Em brando adejo murmurava amor.
Rubra asomava matutina aurora,
Envolta em dobras d'um sendal d'anil ;
Doirada nuvem percorria ess'hora
Um céo ignifero de amanhã gentil.
No val bramia perennal cascata,
De manso as agu as à rolar, veloz,
Cantor volatil desparzia á IJ1ata
Ternos gorgeios em sonora voz.
Um véo de rosas ondulava lindo,
Então n'um prisma de brilhante côr,
Eu via um mundo de prazer infindo . . .
Todo poesia - a me fallar d'amor . . .
Junto á floresta appareceu um anjo,
Por entre as flores n'um feliz vagar.
Era essa virgem porque a lyra tanjo,
Colhendo flores em gentil scismar.
Cobria as formas virginaes, mimosas,
Denso vestido de fulgente côr;
Longas madeixas a cahir ondosas
J,ob uma c'rôa de nevado alvor.
Esse de graças feminil composto,
Que ao r omper d'alva vagueava ali,
Nos laàios tinha um sorriso posto,
Ai! era Dylia, que formosa vi! .. .
Ao meu chamado, que vibrou instante
Cobriu-lhe as faces infantil rubor ;
Lançou em roda terno olhar d'amante
Dizendo : - és tu .. . é meu fiel cantor ...
Em louco anceio comprimi-lhe o peito,
Que effluvios n'alma px,elibava então ;
Tendo de flores perfumado leito
Beijei insano a divinal visão! . . .
Mas logo o sopro da real verdade,
Rompeu meu sonho, qual um véo de pó;
Já vendo um mundo d'infernal vaidade,
Triste, abat ido, desper tei - mas ~ó!
1867. Napoleão Poeta.
-199-

SEGREDO E AMOR
(RECITATIVO.)
Ha sonhos lindos aos desoito annos,
Fundos arcanos de febril queimor;
Que a nós, donzella, sobrevindo a medo
Guardão segredo murmurando amor.
Diz-me, adevinhas se quem vês agora
Louco te adora com voraz paixão?
Tanto segredo meu amor 'esconde ...
Diz-me, - responde - tu não sabes, não! . ..
Quando te olho, seductora e bella
Sonhas, donzella; n'esse olhar quem vê?
E' ao segredo d'este amor affeito
Morrendo o p-eito, sem que um ai só dê.
Como nas flores á occultar'-se essencias,
Ha existencias que ninguem sentiu;
Assim minh'alma no segredo immersa
De amor conversa com , quem nunca 'ouviu.
E' que ha na terra perennes arcanos
Que nunca humanos saberão transpor;
Mysterios, duvida, e descrença e medo,
Longo segredo de infinito amor.
Quando te vejo me assomar tão linda,
Que paz infinda que se abriga em mim! . ..
E tu não sabes se ·o segredo illudo
Do amor, de tudo que se diz n'um sim! . ~ .
E' que nas cinzas encuberto o fogo
Não brilha logo, se o não vem soprar;
Tal em segredo minha mente opprime
O amor sublime que trahiu no olhar.
Se .ora em ti penso, na fugaz vertigem,
Sabes, oh! virgem, de um praser -veloz?
Sonho em segredo n'este amor tyranno,
Que ouço um piano, que t'escuto a voz.
Se de ti perto meu sorrir confranjo,
Zombas, meu anjo, de me ver sorrir?
E' que em segredo d'este amor a . imagem
Vem qual miragem, para mim fulgir.
E' que ha mysterios aos desoito annos,
. Fundo·s arcanos de febril queimor ...
Que eu sempre, oh! virgem, te adorando a medo
Guardo segredo - murmurando amor.

, Agosto de 1869.
1
Francisco Antunes Ferrjlira da Luz.
EMENTARIO · MENSAL
Foi quasi totalmente destituido de factos notaveis o mef que finda
hoje.
Dois, no entanto, ha a mencionar, que interessão grandemente á
humanidade. '
O primeiro é a nova serie de victorias que o nosso valente exer-
cito tem alcançado no Paraguay, o que nos faz crer no proximo ter-
mo da guerra.
Reunidos todos os elementos de acção, parece que é proposito do
joven commandante em chefe perseguir o despota Solano Lopes até
fazel-o · deixar a terra que estragou.
O exercito que vivia contristado pela inacção a que o 'condemnára
um fatalissimo engano, tomou as armas com enthusiasmo para reco-
meçar a lucta. .
Peribebuy e Ascurra cahirão já em nosso poder, dizem-nos tele-
grammas do Desterro.
Os nossos soldados, animados pela presença do bravo Osorio, se-
guem na gloriosa marcha encetada. Que Deus os proteja e á causa
por que se batem, e os restitua breve á terra natal, á familia .

Não ha impedir o livre curso á emancipação.


O grito dos esclavagistas morre sem echo no coração do povo!
Este, aquelle, todos, comprehendendo o . degradante papel que o
Brasil faz ante os outros Estados que ha muito banir ão de seus do-
mínios o elemento servil, se reunem em associação para extirpar ,d'esta
terra que se diz livre o cancro da escravidão domestica.
Hontem era o Parthenon, que adherindo á feliz idéa do seu digno
presidente honorario, tratava de exhibir um espectaculo e applicar o
producto á liberdade de algumas infelizes crianças do sexo feminino
que nascerão escravas.'
Hoje é o directorio liberal que, seguindo o exemplo aberto pelo
Parthenon e a sociedade Acacia do Rio Grande, pretende installar no
_ dia 7 do futuro mez uma sociedade que tenha por principal missão
a liberdade de crianças.
O Parthenon trata com interesse de levar a effeito a sua idéa, ü
por felicidade tem encontrado o melhor acolhimento por p arte da ge-
nerosa população d'esta cidade.
A sociedade Libertadora nomeou commissões para acquisição de
socios, e submetteu á approvação do governo os respectivos estatútos.
De toda a parte nos chegão noticias, que dizem bem alto, q ue em
breves annos a extincção do elêmento servi:l será um facto consumado.
Aqui é um proprietario que declara livre o ventre d as escravas que
possue.
Acolá outro liberta onze escravos de maior idade. .
Além é uma associação libel'tadora que se installa, remindo da
escravidão a 7 criancinhas.
Mais além são alguns moços, estudantes, que applicão á liberdade
de 3 crianças as quantias que em annos anteriores empregavão erh fes-
tejos bahaes. ·
-201
. E outros e outros factos d'esta natureza que os leitores tem visto
registrados na imprensa diaria.
Abençoada propaganda!
Que o desanimo não chegue, que a este movimento ardente e gran-
dioso não succeda a apathia e o receio, para que breve possamos dizer
orgulhosos e satisfeitos: - a escravidão do:Q:lestica desappareceu do
mundo inteiro. O Brasil já não é uma triste excepção dos Estados que
derribarão a arvore maldita.

O limitado circulo reservado ao Ementario obriga-me . a esquecer


o theatro.
Contento-me em louvar o procedimento que teve Julieta Argeline
dando hoje liberdade a uma criancinha. '
Tenho sempre palavras de elogio para aquelles, não importa .a
condição, que amão a idéa dà liberdade e por ella são capazes de sa-
crificio.

Nenhuma novidade de' maior monta se dá pelo mundo litterario.


Por mais que procurasse, nada foi . possivel saber:
As folhas da côrte só tratão de política ou da Ristori.
A grande tragica tem· feito as delicias do_ povo fluminense, que
a obriga á repetição por vezes de cada peça de seu repertorio.
E deve ter razão.
Quem póde deixar de mesmo de longe, admirar o genio sublime
da mulher que, em tres noites personifica com geraes applausos o amor
lascivo da cortezã sem pejo; o ciume violento da esposa trahida, e de-
p ois a ingenuidade de uma menina, de pésinho á mostra, a servir á
mesa ou a engommar, em quanto lhe protestão amor? · ·
As ovações á Ristori contão-se pelas representações.
Os italianos, com especialidade, tem-lhe dado as mais significativa!:'
provas de apreço.
A eminente artista ficava a partir para .o Rio da Prata, onde os
seus compatriotas preparão-lhe uma esplendida recepção .
..Pena é que só possamos applaudil-a pelo juizo autorisado da im-
prensa da côrte. '
Pinheiro Chagas!- - . ,
Eis àhi um nome que não nos é desconhecido. ,
Lembrão-se os leitores do autor de uma lenda historica que ha dois
annos publicou o Jornal do Commercio?
Lembrão-se ainda do distincto autor de um escripto que fez furor
em toda a parte em que foi lido, e que deu sérias dores de cabeça á exe-
cranda I,sabel a catholica, - a noite de S. João em Aranjuez?
Pois bem; Pinheiro Chagas, profundo litterato portuguez, notave]
pelos seus deliciosos romances, acaba de publicár um livro, contendo a
biographia dos portuguezes celebres que mais lustre derão á sua patria
pelas virtudes, pelas letras, pelas artes ou pelas armas, àe Viriato a Gar-
rett. .
Comprehende-se a grandeza do serviço prestado ás letras portugue-
zas; sahir da linguagem faceira das lendas e romances para o estylo gra- .
ve e sentencioso da historia vale muito, porque no ultimo caso mór lucro
tem a nação.
O Sr. Dr. Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello p{iblicou
ultimamente na côrte n 'um pequeno volume a biografia do heroiço An-
drade Neves.
-· 202-
Os leitores conhecem a obra pela transcripção que fez a Reforma.
Para um tão grande heróe, tal biographo.
Se consigno o apparecimento do novo livro, é para louvar o jovem
historiador, nosso consocio, que tão bons serviços tem prestado á litte-
ratura. .
Quando publicou-se na côrte a Bibliotheca Brasileira, deu elle á luz
os seus Esboços biographicos, onde historiava a vida dos vultos grandio-
sos d'este paiz pela epocha da nossa emancipação politica.
De volta d'esta província, que presidiu por mais de um anno, pu-
blicou a continuação dos seus esboços, tendo d'aqui levado uma grande
copia de documentos, que lhe forão facilitados pelos seus amigos e pelos
archivos publicos.
N'uma viagem que fez ao Paraguay completou os dados sobre a vida
do desditoso Andrade Neves, e pagou um justo tributo á memoria do va-
lente general na publicação da sua biographia.
O livro foi offerecido á provincia do Rio Grande.
Nem só esse foi o resultado colhido do seu passeio á terra inimiga.
Em cartas que o Dr. Homem de Mello escreve á seu irmão, e que a
Reforma da côrte publica, ha muita preciosidade sobre a naturesa do Pa-
raguay, descripção do terreno etc.
Felicito de coração o Parthenon por contar no numero de seus asso-
ciados ao distincto escriptor.

Alguns jovens residentes na côrte tiverão a feliz idéa de reunir n 'um


volume de 112 paginas diversos escriptos em prosa e verso, publicados
já em jornaes.
E' um bom serviço prestado ás letras, e oxalá que todos tratassem
de seguir esse exemplo. ·
N'esta provincia quanta . bellesa · em poesia se tem perdido nas co
lumnas dos jornaes que quasi ninguem guarda!
No entanto conviria procural-as e reunil-as em volumes. Um pouco
de trabalho, e isso bastaria para alcançar-se um grande resultado.
Sabemos que alguem houve n ' esta cidade que tivesse a idéa de col-
leccionar todos os cantos dos nossos inspirados poetas; porque desani-
mou esse jovem e intelligente escriptor?

Vai muito desenxaibido o presente Ementaria. Culpa é da falta de


talentos de quem o escreve e tambem da monotoniá com que passárão-
se os dias d'este tão temido mez.
E' adagio popular: - Quem diz Agosto diz desgosto·. -
Será talvez por isto que fecho o Ementario com a noticia da morte
do bravo general rio-grandense João Manoel Menna Barreto.
Cahiu á 12 no campo de batalha, varado por duas balas• inimigas.
Parece que um mau fado persegue a esta briosa província'; cada com-
bate que se fere no Paraguay rouba-lhe um filho distincto e de alta pa-
tente militar.
João Manbel, companheiro de Osorio e Andrade Neves, não lhes era
inferior no valor com que se atirava ao inimigo, conquistando para a
patria novas e brilhantes glorias, e para si a .fama de destemido guerreiro. , ·
O Rio Grande pràntêa a morte do heroico soldado, que pelo valor
de que deu provas em frente dos paraguayos e em arriscadas expedi-
ções, mereceu dos escriptores do Rio da Prata o appellido de - Anni-
bal rio-grandense.
E disse. · 31 de Agosto de 1869.
Aurelio de Bittencourt.
I

-217-

POESIAS
NÃO SCISMES
I
Que sonhos fictícios são esses que envolvem,
tua alma encoberta p·or candido véo?
'-- são gratos enlevos, ó tímida virgem, , ·
que gozão : que sentem-os anjos no céo ?
.Será por saudades, por crença ou esp'rança
que scismas tão triste, que pensas assim?
Ou são os arroubos dos sylphos que fallão,
que fallão voando nos ares sem fim?
Serão as lembranças da infancia querida,
que assim tão dormente 'te fazem scismar?
ou é que no peito, já preso de aniores,
desbrochão as flores com .teu meditar?

-o-O-o-

Não sci.smas mais, linda virgem,


oh! não medites mais, não;
já me chora o coração
por te ver assim penar. . ...
Tem fé n.o amor, feiticeira,
deixa tu'alma sorrir,
não queiras a Deus mentir
tentando ao peito enganar.
És virgem, formosa e casta,
és innocente e criançá; .
e se tens n 'alma a esperança,
porque a fazes soffrer?
Não scismes. mais, ó donzella,
não entristeças assim.
· Ergue a fronte, cherubim,
que o scismar faz padecer.
Ergue a fronte, linda pomba,
esquece a dor, . esse enleio;
deixa o sorriso em teu seio
acalmar os soffrimentos:
O' não sejas tão calada
n'um ' retiro, suspirosa,
como a rolinha queixosa
que. á veiga solta lamentos!
Esquece a dor, virgemsinha,
. erg1:1e essa fronte sjngela,
que és a mais linda estr-ella
em céo ·sereno a brilhar;
Ah! não, queiras ver tão cedo
1 #

'-218-
teu coração innocente
viver triste e descontente
n'esse fundo meditar!
II
Casto enlevo que um peito de criança
alimenta na fé mais pura e viva,
. doce illusão que n'alma da donzella
entre visões de amor ergue-se altiva! .
Nasce do sonho. E a mente vaporosa
qqe um ideal formou em mundo vago,
se julga que respira só perfumes
vai -sorvendo a cicuta trago a trago.
Meditação! . . . Sonhar amargo e doce
que as trevas occultar em vão deseja ;
ros;;i. galante que o espinho acata
e mata o colibri que em torno adeja.
Lago profundp onde a lua argentea
banha-se núa prateando as aguas ;
é manso e bello, mas no leito fundo
guarda-se o lôdo que prediz as magoas.
Or-la de fumo em aspira! formato
que pouco a pouco se toldou nos ares,
globo de gelo que tornou-se liquido,
e jaz perdido na ~ xtensão dos mares.
Oh! não acordes, ou não durmas nunca
entregue ao goso de illusões tão bellasL
são puras nevàas que esvaecem logo,
e a vida póde esva~cer com ellas.
-o-0-o-
Sim; que o scismar é um tormento .d'alma
nectªr envolto de lethal cicuta, ·
é veneno crµel! .. .
E ai d'aquelle que, perdida a calma,
em vão tentando não cahir na lucta,
suga-lhe o fel.
Vem o delírio atormentar-lhe ao leito,
atroz martyrio de um punhal que offende,
e a fé perdida!
suffoca a angustia o coração no peito,
contorce irado, mais a dôr se estende,
foge-lhe a vida!
Criança loira que lá corre anciosa,
atraz da branca borboleta erguida
sobre a flôr; -
e n 'essa louca embriaguez que gosa,
não -sente o cardo que lhe rouba a vida,
não sente a dôr!
-219-
Assim a virgem que no peito sente
a chamma doce de um amor profundo,
pensa e delira . . .
fogem-lhe as horas n'um scismar ardente,
depois desperta, reconhece o mundo,
tudo é mentira!
III
E tu dizes que não amas,
que do peito não reclamas
mais ardor, •constancia e fé?
Para que teu labio mente,
se teu olhar innocente ·
diz a verdade qual é?
Eu não maldigo da sorte
de quem sente, e tem por norte
um amor candido e puro;
é o anhelo de uma virgem
é santa e casta vertigem,
é a crençã de um futuro.
Mas por àmar o - soffrer -
por um riso o - padecer
até na tumba finar!
Oh! isso, donzella, não,
não deseja um coração
que não sabe o que é scisinar.
Só deseja quem dormita
sonhando como o levita
que vive aos pés do Senhor!
E depois d' esse sonhar .
quem ama no meditar
e não tem fé n 'esse amor.
-o-0-o-
Oh! não medites mais, casta donzella,
nas doces illusões que vem de um sonho,
que a alma faz chorar; -
Para ti guarda .o mundo, porque és bella,
um formoso viver sempre risonho,
. um peito a te adorar.
E quando d'este mundo tristmente
pensativo eu descrer dos sonhos meus
. aonde me cónfranjo;
depois adormecer eternamente,
e para · os céos voar, direi a Deus
que és na terra um anjo!
Porto Alegre.
S. Brito.
-220-

A CUNHA VASCO

Eu li teus versos, inspirado mo~o,


E attonito fiquei sentindo o gemo
Que te referve n'essa f.ronte augusta,
Meu nome celebrar em aure.o metro;
N'esse que apenas só é dado a poucos
Com graça modular na lusa phrase.
A aguia soberba que no céo da gloria,
O sol abrasador fita sem medo:
As longas azas retrahiu, baixou-se,
E quiz depois arrebatar comsigo,
A timida avesinha que abrigada,
A' sombra da indifferença nã'o conhece, ,
Outro horisonte que não seja aquelle,
Onde medrosa e pipilando ensaia
Os rastejantes vôos.
Na cruel solidão de affectos meigos,
Em que tu, meu poeta, vês passarem,
/
Da mocidade os teus mais bellos dias:
Nunca se te inundou de pranto a face,
,/
Ao ver por noute calma a lua em ondas,
- Espargir um clarão que nos fascina,
Nos leva ao mundo de acordados sonhos?
Talvez, buscando, d'esse pranto a origem,
Trouxesses á memoria a leda infancia, _
O conforto do lar e os mil affagos,
Que em pequenino os teus irmãos te derão.
- Delicias que só podem ser julgadas
Ai, por quem como nós vaga no exilio!
Depois, fitando o teu olhar saudoso
No azul do mar ou na campina verde,
Sentisses n'alma aquella dor immensa,
Que inda nome não tem na língua humana:
Ser moço, e sem amar, morrer d'amores!
Como tu, meu poeta, eu sinto na alma:
Medonha solidão, escura noute!
Como os teus dias, os meus dias correm,
Sem que d'um brando affecto os doces laços,
Me prendão com amor ao mundo e á vida!
Ai quantas vezes no silencio triste
Das n01ites desvelladas, eu pergun'to ,
A mim, a Deus, á miriha sombra, a tudo:
Que vale ter no peito um cofre aberto
As brandas sensações, e vel-o apenas
No seio enthesourar negra saudade! ...
Então n'esses instantes melancolicos,
A musa da tristeza, a minha fada,
Vem debruçar a loura cabecinha
Sobre meus hombros, e cicia os cantos,
Que a ti, com timidez com susto ás vezes,
Em buspa da lição, eu hei mostrado.
Mas é debalde, que o segredo magico
· Não se transmitte! esse condão do genio,
'--

' -221- .,
Recebem-n'o de Deus os seus eleitos, -
E quando a pedra tumular os cobre,
Rasga a materia a emanação divina,
Vai para Deus, deixando á terra um nome.
Assombro ás gerações, ao mundo assombro!

Quando nos versos teus fito meus olhos,


E unidas vejo com tão raro acerto:
Fórma severa, idéa peregrina,
E tudo a respirar um sentimento
Tão cheio de puríssima candura;
Ai, crê minh'alma no seu grato arroubo,
Que alli no teu cantar palpita a queixa,
De criança chorosa a quem roubarão,
·o enlevo de seus olhos, o seu brinco.
Tanto mimo e ternura o canto encerra!
Então . . . não sei . . . mas um presagio negro,
Medonho, horrendo, me esvoaça em torno,
Da douda fanta~ia á dor propensa!
Receio, ouvindo-te, oh meu brancp cysne,
Que a morte impiedosa, venha e exclame :
- Na terra quem a voz d'anjos imita,
Não é da terra, a seus irmãos pertence! -

Eu sei que o meu temor é como as aves,


Pairando ao longe sobre o nada firmes;
São extremos talvez do muito affecto,
Que · ao mancebo tambem prende a minh'alma ;,.
Mas quem viu com saudade abrir-se um tumulo,
E n'elle ir-se esconder na flor dos annos,
O mimoso cantor das Primaveras:
Tambem por ti deve temer ,oh bardo!
Sempre foi esta do talento a ·sina!
Começa a gloria a entretecer grinaldas,
E a morte inclina-se a plantar cyprestes!
E tu que de repente - ave sublime -
Os echos da floresta assim acordas,
Com t aes preludios que · emmudecem cantos;·
Sim, tu, cujo talento irrompe fervido
D'esse teu craneo, como irrompe a lava
Do seio de um volcão; diz me : é _loucura,
• Dar o meu coração lugar ao medo,
E na mente abrigar tristes presagios
Se tudo e1!1 ti já denuncia ·um genio? ...

Esquiva-te, porém, á voz do susto, I


Que a lei fatal aos labios meus impede.
E' bella a vida, e tu és moço; oh canta,
Que eu vendo-te, qual és, criança ainda,
Um colosso futuro em ti prevejo!

1869, Setembro 15.


Gonçalves Junior.

!
- 222 -.

·CHERUBIM DE AMORES
(RECITATIVO)

A' . .. ..
Era de noite . , . dos ipés á sombra,
Na verde alfombra te beijava terno;
E no teu rosto de brilhante alvura
Qúanta doçura de um amor superno! ...
1
• Eramas juntos! . . . · Desmaiavà a lua
Na fronte tua de mortal pallor;
Convulsa, tremula, empallidecias
Porque temias meu febril amor.
,,, - Tu me fanavas, temerosa, meiga,
Como na veiga a jurity que chora;
Casado o pranto ao estalar dos , beijos,
Loucos desejos de quem muito ad9ra!
Tu me sorrias n 'um sorrir d'archanjo,
Eras meu anjo, meu ail).or, meu Deus;
Louco, perdido, me entreguei contente
E docemente aos mil affagos teus.
Ebrio d'amores duvidei da vida,
Julguei mentida tão ditosa scena,
Julguei sonhar em um febril delírio
Doce martyrio que o penar serena.
Eramas sós é dos -ipés á sombra,
Na molle alfombra te fallava a medo;
A viração louca soltava queixas,
Tristes endeixas em !)ubtil segredo.
' Em meu regaço adormecestes bella,
Sublime tela de innocente amor;
Cerraste os olhos á um beijo meu,
No rosto teu de sepulêhral pallor.
Oh n'esse beijo quanto amor bebi, , ,

Quanto sorvi de tua alma virgem ·


Nem mesmo sei, pois julguei sonhar
Ou.. delirar em divinal vertigem.
Era bem tarde! gemedora a brisa
De leve aUsa dos vergeis as flores ;
E d'entre os ra:rnos do·s ipés transluz
Serena luz em cherubim d'amores.

Julho de 1869.

Achylles Porto Alegre.


A MISSA DO GALLO
(Fragmentos d'um livro.)
(CONTINVAÇAO)

II.

DESARRANJOS CONJUGAES

Ambrozio da Silveira tinha descido para a loja de negocios, dei-


xando sua mulher no toucador luctando com uma alluvião de idéas
extravagantes, que lhe tumultuavão no cerebro.
Que a sumptuosidade <lo luxo, e a praga das modas, que conti-
nuamente importamos do estrangeiro, são os principais motores da
corrupção dos costumes sociaes, é para nós um problema resolvido.
Quasi podemos affirmar que a demasiada prodigàlidade com que
Ambrozio satisfazia as exigencias de sua cara metade, concorrerão .para
os derrancamen.tos de sua alma!
, Na existencia social da mulher, por índole - vaidosa, - ha sem-
pre um vacuo, um anhelo a satisfazer. ·
A sêde insaciavel dos desejos m~ltiplica-se á medida 'com que se
vai satisfazendo, e ai dQ desventurado marido que leva a sua com-
placencia a tolerar a realisação do ultimo, que a quéda da mulher é
inevitavel. , ·
Angelina habituada a ver todos os seus. caprichos satisfeitos, en-
controu-se um dia ao espelho e disse - Sou bonita, moça e rica! meu
marido não se poupa em colocar-me pelo explendor do luxo acima
de m inhas companheiras; porque não hei de tambem ter um amante?
Este desejo de possuir um amante não se manifestaria ·em Ange-
lina, se o desventurado marido, em logar de pianos, brilhantes e sedas,
lhe désse agulha e linhas afim de entre ter-lhe o espírito nos amanhos
domesticos. ,
Em frente á casa do Sr. Ambrozio morava um moço chamado
Eduardo.
Os attractivos d'este personagem tinhão chamado mais de uma vez
a attencão de' Angelina. ·
As -inclinações pronunéiarão se mutuamente aos reflexos vagos da
poetica luz crepuscular, que seja dito de passagem, a Sra. Angelina tinha .
o seu quê de poesia! .,. .
Os aventurados visinhos passarão rapidamente das formalidades
de um cumprimento glacial, aos olhares significativos, e logo em se-
guida aos poeticos devaneios de uma correspondencia epistolar.
Angelina dominada pela idéa da prevaricação tinha dado o pri-'
meiro passo na senda do crime.
Cumpre-nos fazer aqui uma observação, que longe de isentar An-
gelina do crime do adulterio, não deixa comtudo de attenuar-lhe a cul-
12.abilidade. ·
I

-224-
Ambrozio da Silveira, posto recommendar-se pela robustez de um
physico agradavel, tinha gasto o vigor da mocidade nos desenfreamen-
tos de uma vida desregrada. Alquebrado pela velhice e pelo abuso dos
praseres. que o privarão do exercicio de suas- funcções, não foi sem
grande descontentamento que o bom do velho se viu prohibido de per-
petuar pelo matrimonio a illustre próle dos Ambrozios Silveiras.
A' vista d'esta circunstancia, aliás pouco lisonjeira para um ca-
beça de casal, a joven e bella Angelina procurou no exterior um am-
biente mais perfumado e vigoroso, que o que respirava na athmosphera
abafadiça do lar domestico. ,
Este acontecimento monstruoso sirva do mais solemne protesto con-
· tra o matrimonio c;ontraido entre um velho decrepito com uma moça
cheia de vigorosa vitalidade!
Angelina tinha dansado com Eduardo no ultimo baile da soirée,
onde combinarão uma entrevista amorosa, que df?veria ter logar na
occasião da missa do gallo. ' -
Com as idéas embebidas exclusivamente nas delicias de um pra-
ser futuro, Angelina não pudera dormir tranquilla, como o demons-
tramos no capitulo antecedente. ·

A ho:ra fatal da entrevista approxima-se.


Veremos agora se os dois amantes forão felizes n'essa criminosa
aventura.
III .
• • • • • • • • • _. • • •• • , i , • • • • • • • • • • • • • • • • • •- • • • • • • • • • • . • • • .• • • • • • • • • •• • • • •

O JURAMENTO E O ADULTERIO
O sol ardente do dia 24 de Dezembro de 1861, que tinha raiado
esplendido, declinára no ocidente encoberto por um espesso véo de nu-
vens pardacentas. , ·
O vento sul principiava a soprar forte, e de quando em quando
a luz momentanea do relampago atravessava o ~spaço.
· Não .obstante a revolução dos elethentos presagiar uma noite te-
nebrosa e ameaçadora, as familias cruzavão as r,uas d'esta cidade em
demanda dos vaporés, que do trapiche da alfandega partirão para a
localidade do Menino Deus, onde o povo· convergia a saudar o nasci-
mento do Redemptor do mundo! ,
A's 11 horas da noite, porém, já reinava o silencio.
Apenas algumas familias mais devotas atravessavão a praça co~
o fim de assistirem 'á missa do gallo.
O vento que soprava c.om violencia tinha apagado · a maior parte
da illuminação publica.
A noite continuava borrascosa e ameaçadora.
Nenhuma só estrella rasgava aquella uniforme escuridão do firma-
mento!
Apenas alguns raios de luz coados pelas janellas do templo rever-
beravão nos edüicios fronteiros. •
E todavia a. igreja apinhava-se de gente!
Uma boa" parte da nossa luzida sociedade alli se achava ajoelhada
·e contricta ante a imagem de Deus e do gracioso encanto do berço de
Bethlem!
Perto do altar-mór permanecia de joelhos· um vulto de mulher.
-225-
Com os olhos fixos nas orações do Evengelho, parecia que a irra-
diação do amor divino inundava a alma de suavidade e luz!
De repente um movimento geral se manifestou na multidão dos
crentes, que tomavão unanimes uma attitude respeitosa.
• Era a imagem veneranda do sacerdote, que approximando-se do
altar, ia principiar o sacrüicio da missa.
O vulto da mulher de que acima fallamos, não querendo esper-
diçar aquelle momento de agitação, evadiu-se furtivamente pela porta
da sachristia ,sem que fosse presentida. ·
Alguns minutos depois aquelle mysterioso vulto permanecia atraz
da igreja calado e quedo, como a estatua do silencio!
A luz de um relampago illuminou o rosto d'essa mulher, em cujas
feições se distinguirão todos os .traços physionomicos de Ai;igelina da
- Silveir a!
Aquelle clarão electrico illuminando rapidamente o velho cemi-
terio, que a mão civilisadora de nossa diocese transformára em semi-
nario episcopal, desenhou aos olhos de Angelina uma alluvião .de visões
phant asticas q ue a fizeram estremecer de pavor!
Angelina, inda que tomada de susto e terror, esperava resoluta o
seu querido Eduardo.
Elle, porém, não se fez esperar. Surgindo d'uma especie de bar-
raca onde se tinha occultado, correu a abraçar sua extremosa amante.
- E '.s tu, Angelina?! meu anjo, quanto sou feliz em abraçar-te!
- Eduardo, não sabes a ·quanto me exponho por tua causa! Estou
assustadissima! muito póde o amor no coração da mulher que te adora!
- .tµ1gelina, eu sei avaliar, pelo perigo a que te expozeste, a ex-
tensão do amor que me consagras, e permitta o céo que · nos affagos
de meu peito, encontres a recompensa de teus sacrifícios.
- Ah! Eduardo, este momento de suprema felicidade pago com
a vida, não era caro! .
- Eu te agr-1.deço, meu amor ; mas diz, como foi que podeste vir
aqui?
· - Muito bem, Eduardo; como' saties, o meu marido para fugir
aos apertos da igreja, fica sempre no adro á espera que acabem as
solemnidades religiosas. -
- Comprehendo, Angelina ; não temos tempo a perdef; dá-me um
beijo, disse Eduardo, agarrç1ndo-a violentamente pelos pulsos.
- Eduardo, não abuses de minha fraqueza ; não exijas de mim
mais que os protestos de um sentimento affectuoso! disse Angelina, ce-
dendo comtudo aos impulsos do arrebatado amante.
Após alguns momentos de lucta silenciosa, Eduardo proseguiu:
- Não te esquives, Angelina, dá-me um beijo, um só.
- Não, Eduardo, ainda não . . . sim. . . eu não queria cahir no
teu desagrado, mas . . . não . . . receio. . . receio muito que a tua le-
viandade de moço me comprometta, que vás divulgar o segredo de
nosso amor. ·
- Eu te juro, Allgelina, pelas cinzas de minha mai! este -segredo
irá commigo ao tumulo!
- Mas se uma circunstancia qualquer nos descobrir aos olhos da
sociedade ?'
- Que ·importão os preconceitos sociaes quando a voz da nat u-
reza brada tão alto? Despe esses temores e deixa que eu comprima
d'encontro ao meu o teu collo voluptuoso.
Um beijo ardente estalou nos labios de Angelina, que tremula e
vacillante, n 'um deliquio amoroso, se deixára cahir nos braços do
mancebo. ·
E depois ?

I nst . Hlst, - '15.


-226-
O que se " passou · n'essa hora
E' segredo . . . não direi!
Foi um sorriso d'aurora
Um delírio . . . nem eu sei!
Foi um. balsamo celeste
Que tu ingrata lhe déste
De teus labios a sorver!
Foi d'amor terno ·gemido
Do seio d'ambos fugido · ·
Que ·v os tez enlouquecer!

Após longo silencio, óuviu-se· um tumultuar ruidoso.


Erão os fieis que deixavão o templo do Senhor.
Angelina apertando subitamente a mão de seu aÍflante disse:
Guardas segredo, Eduardo? ,
- Juro, respondeu elle. ·
- Pelo que ha mais sagrado? tornou Angelina.
- Pelas cinzas de minha mãi!
- Basta, Eduardo, adeus.
A imagem encantadora de Angelina desappareceu aos olhos de
Eduardo como a visão phanta·sti:ca d'um sonho , vaporoso!

EPILOGO.

São duas horas. Eduardo dorme a somno solto, son hando com as
aventuras d'essa noite.
Angelina da Silveira, depois de fazer d'um acto r eligioso instru-
mento de suas devassidões, disputa em -alta voz com seu marido por
ter ficado no adro da igreja.
Ha tantas ·mulheres assim!
Nicolau Vicente.
A LIBERTAÇÃO D~S CRIANÇAS
Não devia passar desapercebido para a , capital do Rio Grande o
dia da patria, o anniversario da nossa emancipação politica.
A cidade festejou-o dignamente, e á sua frente o Parthenon Lit.-
terari.o tornou-se o arauto da idéa liberal que devia remir o captivo
innocente em commemoração da liberdade politíca que haviamos con-
quistado no dia 7 de Setembro.
A situação é gelida, fria como os ·paramos do norte da montanhosa
Dalecarlia, escura como os seus breves dias de inverno; passaria na
monotona expressão do cortejo, de algum viva mal correspondido, e
na pallidez de descoradas luminal'ias postas como em sarcasmo nas ja-
nellas de edificios fechados onde funccionão as repartições publicas.
'.Passaria taciturna, como vão passando os echos dos gemidos d'outr'ora
do servo da gleba ante os ferreos _portões do castello russo.
Não o consentirão, porém, os. sentimentos :i;:,atrioticos que nos ani-
m ão. LembrãÓ-nos ainda as fervorosas ovações, os hymnos ardentes
que 'levantavão no dia da independencia á patria que quebrára os fer-
ros, e o odio gue vot avamos ao despotismo que viramos medonho descer
aninuilado para os antros escuros d'onde não devia ter sahido.
E estas reminiscencias patrioticas, estas tradições do enthusiasmo
popular, disserão-nos que tomassemos a' iniciativa na festa da liber-
dade; não hesitaII).os, quando nos lembramos que o Parthenon, esse
ninho da mocidade porto-alegrense, digna sempre no 'prelo das · idéas,
já nos havia considerado, e que nos podia entender no caminho em
que queriamos ir. · .
Formulamos a idéa, esboçamos o programma. O Parthenon acei-'
tou-o,s, fez mais do que tínhamos imaginado.
A festa, a commemoração do dia nacional devia ser feita, dando-
se a libérdade aos innocentes, ás ·c rianças que podessemos - haver do
berço escravo. , ·
O Parthenon fez correr uma subscripção entre a população, e tudo
dispôz para exhibir um espectaculo · de gala em honra do 7 de Setem-
bro, cujo . producto integral seria destinado á manumissão.
Era fervido o ent.husiasmo da mocidade, os liberaes concor-
rerão, um apoiado bem pronunciado partiu do seio do directorio li-
beral, o nobre e elevado coração do Exm. Sr. conselheiro conde de
Porto AlegFe não -ficou estranho á idéa, adiantou-se na arena e· traçou
um pensamento digno do generoso povo rio-grandense, creando a So-
ciedade libertadora' dos escravos, cujos estatutos acabão de ser appro-
vados.
Os esclavagistas estremecerão, alguns senhores mal intencionados
especularão; bagagem dos partidos, essa turma que está sempre á merçê
do poder, riu-se com estupido desdem, e a situação presentiu um golpe
certeiro que lhe -dirigíamos. ·
P'ahi os obices, as difficuldades com que o Parthenon teve de
luctar e que retardarão a festa santa da liberdade até o dia i9.
Mas, emfim, chegou o momentó. O Parthenon, radiante em seu
triumpho, ia desfechar um tremendo golpe nos prejuizbs e falsas idéas
de muitas gerações que forão nas passadas idades. Era a abolição da
• escravidão domestica no seu mais esplendido apparato. Artigos de jor-
-228-
n al , uma longa e bem dirigida propaganda não valem o mundo de
idéas, de grandiosos pensamentos que alli ião resumir-se.
O theatro estava ~itteralmente cheio, não havia um logar vago
em todo o salão, nem nos camarotes. A anciedade, e a espectativa
publica era imponente.
Levantou-se o panno: era o Elogio Dramatico que h av iamos esb o-
çado, e cujos versos deramos á composição dos jovens e ardentes poe-
tas da nossa cidade, que ia ser recitado. Os compositores tinhão com-
prehendido o pensamento e tornado-o sympathico.
A Liberdade visitando as plagas brasileiras encontra o Brasil, tão
varonil antes, languido e triste; anima-o, e reparando para, o fundo · da
floresta, vê o Escravo lugubremente cantando, coberto de andrajos e
cicatrizes r ecentes, entregue á lida ·diurna. Comprehende a sorte do
' Brasil e invoca o ·auxilio do céo; desce entãp um anjo mensageiro, pre-
diz a abolição gradual e entrega o Escravo á Liberdade como uma pro-
messa de Deus, e indo ao fundo ordena como um meio pratico a liber-
tação dos ventres, que é symbolisada por um grupo de vinte e uma
crianças que o Parthenon havia libertado, e que alli estavão pendentes
dos seios maternos, de suas mães ainda escravas.
A este espectaculo as lagrimas correrão, e o enthusiasmo dos co-
., rações sensíveis tocou até o delirio . Houve em todo o auditorio uma.
abstracção feliz, ninguem pensou 110 abuso da autoridade que repre-
senta a actual situação, era só a nação que alli estapa e cujas fibras
tangião· com força varonil os gratos sons do hymno nàcional; depois
foi só a liberdade que occupou todos os espiritos quando levantamos
os vivas á nação, ao progresso e á liberdade. ·
Foi como presidente honorario do Parthenon que alli fizemos ou-
vir a nossa v oz, e seja -nos licito dizer, com a franqueza que nos ca:rac-
terisa, no m omento em que estavamos com a nação, em que festejamos
a liberdade, esquecemo-nos do imperador, do filho do berço liberal,
educado como nós nas idéas santas da revolução que nos assegurou a
independencia , a const ituição. e o futuro do progresso por que temos
passado. E esse esquecimento justificou-o o sile;ncio do Sr. Dr. João
Sertorio, Na magna questão da abolição o actual ministro desvirtuou o
procedimento d'aquelle que exerce o poder moder~dor, e resfriado o
· coração, pódé n ão ter enthusiasmo senão pelos que ardentes sabem pro-
vocar-lhe as pulsações. Sob outras inspirações, debaixo da direção de
uma politica benefica, livre e progressista, todos os brasileiros amão
as i.Ílstituições que conquistarão, e como nação comprehendem a respon-
sabilidade dos poderes, que são os seus delegados,
Foi longa a impressão da abolição pratica produzida no auditorio
pelo Elogio . .,Nós o terminamos dando as cartas de liberdade aos inno-
centes alli reunidos.
Marcou-se uma epocha. Porto Alegre ha de lembrar-se sempre do
dia em EtUe se levantou bem alto no conceito da humanidade.
Seguiu-se, após, quant9 estava no programma.
A signora Candiani cantou, como inspirada, uma das melhores arias
· do seu reper torio. A sympathica D. Maria Lima recitou a Judia, e a
menina Paranhos, na festa da innocencia, veio ainda infantil dar mos-
. tras da sua rara aptidão musical.
O dr ama e a comedia adornarão de prazer o magico divertimento.
O Parthenon não deixou sem corôas, bouquets e agradecimentos
os artistas e amadores que concorrerão na festa da liberdade, e o Sr.
Magalhães no seu enthusiasmo, n 'um breve caBto, disse-lhe o quanto
valia a caridade e o sentimento patriotico que n'aquelle momento o
anima vão.
Porto Alegre 24 de Setembro de 1869.
Dr. Valle Caldre e Fião.

/
,,,

EMENTARIO MENSAL
O leitor conhece o que seja a macabra? O quadro medonho que a
media idade legou-nos desenhado nos muros de suas gothicas _ cathe-
'draes?
Pois vou fallar a proposito.
Ha muito que eu ouvia contar maravilhas que se passão á meia-
noite, e no entanto duvidava. .,_
Tenho a obstinação de S. Thomé: non video, non crederam. Será
defeito, mas um defeito que faz-me trabalhar na indagação .da verdade.
Não dêm-me por isto o epitheto de sceptico. Não nego a realidade de
Deus, da materia e da alma, como Aenesidemo e Hume; não pergunto-
me, como Montaigne: Que sei eu? .
Se nego, nego como Descartes, para deduzir uma affirmação, pa-
ra. . . mas onde vou eu, meu Deus?! Ia já internando-me pelo trevoso
mundo philosophico, 'mundo que dá toda a sorte de systemas, mas nun-
ca a verdade, tantas philosophias, quantos são os philosophos, semelhan-
do a essas regiões que Gulliver e Niel Klim, heróes de Swift e Holberg,
percorrerão! .
Fallava pois das duvidas que nutria sobre a dança dos mortos; mas
já as não tenho, estou crente, com9 um sectario de Mafoma, e capaz
·de jurar como as personagens das comedias de Plauto: Aedepol! Ab
Jove!
Crêdes? Dir-me-hão. ,
Sim, porque como S. Thomé assisti, toquei, vi .. .
Contemos o caso, como o caso foi.
Aconteceu n'uma das ultimas noites, quando o Parthenon ardia
em febre contra o mahometano Cabral, que eu lia a vida de Apollonio
de Tyana, Nostradamus, Paracelso, Cagliostro, Bosco e não sei quantas
outras celebridades da sciencia dos mysterios, além de alguns livros de
magia. Fazendo isto.,_ procurava um processo para trazer o capitão á
minha pres~nça, emoora sob a fórma d'uma pulga ou mosquito.
Os critiqueiro-s que tanto incommoctão o meu caro Hilario, consin-
tão que eu falle de pulga e mosquito. Nem devem fazer questão. (O ul-
timo, se a memoria não me falha, fôra poetisado por Salvandy em D.
Alonzo em Hespanha. Placentius h'um poema cantou o combate dos
porcos; Homero, segundo uns, o das rãs e ratos; A. de Macedo, os bur-
ros; Boileau uma estante do côro; Diniz um hyssope; Araujo Porto Ale-
gre na destruição. das florestas as surucucús, etc. etc. Arreda pois, cri-
tiqueiros! Deixem tambem passar: a pulga e o mosquito).
Maldito parenthese! Não sei para que inventarão esta figura!
Ia pois trabalhando á pista da incognita, quando barafustarão pe-
las frestas da porta, pelo buraco da fechadura . e pelo soalho os seguin-
tes Srs. D. Asrael, D. Asmodêo e D. Queiroga.
Mal entrarão, fechão-me os livros, rasgão-me alguns calculos co-
meçados, saltão-me sobre a mesa, cantão, assovião, tra~ão danças car-
navalescas, fazem uma balburdia infernal!
Então arrependi-me devéras de ter travado conhecimento com se-
melhante gente ...
O leitor não admira-se de ver Queiroga tão nossó amigo?

. .
f /

I
:' -230-
DE!pois que o Felippe Neri fez uma tão se:r;ia, justa e magistral
apreciação do 1. 0 numero da revista do Parthenon, Queiroga tornou-se
um verdadeiro amigo da ·mocidade. Parece que a pala;vra autorisada do
homem, cu ja fronte alveja ao sol d'um outomno brilhan te, e da penna
que constitue uma realeza, forão a vara de condão que operára' tal pro-
digio. 1
- O' moço, não se incommode comnosco, disse Asrael. Sabemos o
que queria e viemos satisfazel-o. Hoj~ estamos de ferias, temos a ma-
cabra .. .
- A m acabra?! Exclamei eu. ·
- Sim, e vamos leval-o.
- Mas como hei de dançar?.,
Soltarão uma tremenda gargalhada.
- Nada, .. não dança, não; nós vamos assistir á festa . V{i, temos
uma éeia, onde saboreará pela primeira vez manná,_ambrozia e figados
de pavão cevados com figos frescos, e onde terá, se lhe aprouver, igua-
rias desde o ran gifer laponio até' o ninho de passarinho aziatico. '
- E o Cabral?
- Havemos de vel-o transformado em uma ave e J1ão em um in- -
secto, como queria. ·
- E minha conducção? .
- Facil como tudo, respondeu Asmodêo. Veja . . . e começou a
inchar! a incharf e em breve tomou as· formas d'um aerostato, em quan-
to Asrael ia tomando as d'um barquinho. ··
- Entremos, disse Queiroga. · .
Eu acompanhei-o extremamente admirádo.
-O balão guindou o barco e vogou velleir9 nos espaços. Dez ' minu-
tos depois descia sobre a varzea do Gravatahy.
Erão· onze horas e meia da noite.
Sentamo-n os na relva e começamos a fumar em fleugmaticos ca- ·
chimbos flamengos. ·- ' ·
- Então conte-=-n os a festa do Parthenon, mancebo, disse Asrael.
- Foi uma bella festa! exclamou Queiroga.
- E p ara nós pessima, horrivel, infame! acudiu' Asmodêo!
:...._ Como?
- Sim, .porque a servidão é um mal. Os senhores peccão por alie-
narem a liberdade alheia, e os escravos por viverem n'um est ado de
completa estupidez que qs torna uma ameaça para os senhores, a atro-
phia da industria e do commercio,· e a immortalidade do lar domestico.
A mocidade, Sr. Boccacio, é o nosso maior inimigo! . . . FeHzmente que
temos a velhice para as conquistas do erro. '
-Conte-nos, no entanto . .. . ,
- E' inutil, porque se tj_uizerem, podem ler no pi:oximo numero
da Revista uma bella descripção, obra do Dr. Caldre e Fião.
- Fallem-nos antes os Srs. Asmodêo e Asrael do que ha pelo resto
do mundo, acudiu Quéiroga.
, - O que ha? Muito, muito!- mórmente por esse grandiloquo Bra-
sil .,. . Desde qu~ as mumias do passado sahirão de seus hypogêos, e os
fosseis resurgirão da camada de trevas a um. aceno nosso, o Brasil não
é Brasil, é sentina ; o amor da patria - egoista, as virtudes civícas -
apparencias, o erario publico - mangedoura dos molóssos imperiaes e
do nepotismo canceroso. Nós os espiritos do mal, temos · dois campos em
que não falha uma semente; à purpura dos reis e o estomago dos padres.
- Mas _u m dia, atalhei,_dará a polilha nos guarda-roupas reaes e
a purpura será pó; outro dia o mesenterio sacerdotal abrindo em pus-
tulas in'utilisará o estomago. - .
~ Não é assim, moço ; Roma não se fez n 'um dia, e as obras de
Chesps cimentad;:is com suor e sangue de myriades 'de ho~ ns, subsis-
7

.. /
tem itnpavidas ao passar dos seculos, attestando qµe ainda ha seiva pa-
ra nutril-as nos tempos de noje. .
- A verdade afinal brilha e . . .. . . . . .
- Ha de convellir o mal, não ~ o qu~ ia di_:,;er? Engano! .
A verdade é Deus e Deus é a luz em sua quinta esse:ncia; .tna.s nós
existimos em contraposição a Deus e somos a ~onte dos absurdos, erros
e preconceitos; n.§s - as sombras e a treva, semelhamos as manchas
que o sol traz em seu velamen de resJ?lendores. A humanidade divide-se
em duas porções; uns são : Melitos e Caiphazes e outros Socrates e Chris-
tos; aquelles pertencem á nossa gry; estes á communhão divina.
Que quer ?! O mundo é assim, o céo no ansverso da medalha, o in-
ferno no reverso . . .
O demonio da lascívia emmudeceu.
Uma b adalada echoou nos espaços sinistra e agoureira como um
requiem.
Er a meia noite.
Gelida br isa, que fazia ouriçar os cabellos, soprou sobre a varzea.
Lívidas lu zes illuminavão funereamente a noite. Erão os brandões dos ,
·boit atás tradiccionaes. Córos de virgens mortas no verdor dos annos
fazião-me o coração gemer, tanto sua tristeza era profunda, tanto sua
voz reçumava doridas queix as!
Dominou-me ao principio o terror.
Estava estatelado, com os olhos -cerrados, receiando ver as negras
peripecias da scena. quando Asrael tocou-me. Encarei-o, e elle indi-
gitou um-p onto Olhei. .. era meçlonho!
Fechei os olhos, abri-os de novo e assim continuei até acostumal-
os ao quadro.
Havia um throno . Era construido de arcabouços e carcassas de ra-
ças extinctas de animaes. Sobre elle destacava a morte com a inexora-
vel fouce. Em torno o tripudio dos mortos de todos os sexos, de t0das as
idades, de todas as raças, de todas as condições! E dansavão.
Dansavão como doudos, embatendo os esqueletos, saccudindo os
- sudarios. E rião no torvelinho dos círculos! que coisa mais horrível hi .
ha que a caveira que ri!? O que mais côa n'alma o gelo do pavor que
um craneo liso, de refl~xos eburneos á luz versa til dos tocheirós? !

,
Afinal desapparecerão os terrores que me incutia aquelfa scena.
Em vez de ver alli um motivo de reluctanciá, achei indefinível
prazer.
Eu -dizia: O' vaidade do mundo! ~is niveladas as raças, as jerar-
chias sociaes na macabra! ·
Queiroga, Asrael, Asmodêo apertavão as ilhargas, em accessos de
riso, ouvindo minhas considerações.
- Moço, deixe de reflectir, vamos ceiar; emquanto os mortos re-
voluteião em vortices delirantes, banqueteemo-rios . . . Façamos uma
ruidosa saturn al. A vida é : m oll.es in gramíne somnos, quando sabemos
gozal-a .. . Vamos brindar os heróes da taça, des'de D. Noé até John
Falstaff e Werner. E levarão-me para uma mesa á sombra de algumas
figueiras silvestres. Ahi estava um urubú-rei. A multiplicidade de igua-
rias açulavão-lhe o appetite, tentava tocal-os com o adunco bico, mas
fazia e~forços inuteis, ~offria o supplicio de Tantalo, estava preso por
uma força superior. Tambem para a voracidade d'esta ave, insaciavel,
como o tonel das Danaides, só um tal castigo!
E sabe o leitor, de que urubú-rei fallo?
Adevinhe .
. . . . . . . . . . . . . .,...... ...... ...... ......... . ' .. ' ..... .... . ' .... .. .

\
-232-
Estou com somno . . . quem vai á macabra, fica exhausto de for-
. ças. . . O' uma noite ao relento entre mortalhas é uma pilha electr ica!
As emoções são tantas e tão várias!
A penna treme-nos entre os dedos, cahe traçando apenas:
Good bye.

Boccacio.

;,
ATAS
4.ª sessão ordinaria em 14 de Fevereiro de 1869
, PRESIDENCIA DO SR. ERNESTO PAIVA
Aos 14 dias do mez de- Fevereiro de 1869, ás 8 horas da noite, pre:
sentes 12 Srs: socios, abriu-se a sessão.
Foi lida e sem debate approvada a acta da sessão anterior.
Em seguida foi lida uma proposta do administrador da empresa
da Actualidade, para a impressão da ".Revista Mensal" da associação . -
Ao conselho economico.
O Sr. 1.0 secretario procedeu á leitura do expediente a seu cargo.
Foram aceitos 2 socios effectivos, e 1 correspondente, residente no
Rio Grande.
O Sr. 1.0 orador saudou na forma do estylo a um Sr. novo asso-
ciado.
PRIMEIRA PARTE DA ORDEM DO DIA:
Nada houv;e a tratar.
SEGVNDA PARTE:
Continuou a discussão da these philosophica sobre a guerra. Orou
o Sr. Affonso Marques, tendo sido depois encerrada a discussão . \
O Sr. presidente deu para a ordem do dia da sessão seguinte o pa-
recer sobre a these historica: como deve ser considerado Juarez perante
a historia? cujo parecer fôra confiado ao Sr. ~chylles Porto Alegre,
e levantou a sessão ás 9 ½ horas da noite.
O 2. 0 secretario,
Àurelio V, de Bittencourt.
5.ª Sessão ordinaria em 21 de Fevereiro de 1869
PRESIDENCIA DO SR. ERNESTO PAIVA
A's 8 horas da noite, presentes 19 Srs. _socios, abriu-se a sessão.
Foi lida e sem debate approvada a acta da antecedente.
Foi lida a acta da 1.ª sessão d'este anno , do conselho economico. '
O Sr. 1. 0 secretario procedeu á leitura do expediente á seu cargo.
A' requerimento do Sr. Achylles Porto Alegre 1 o Sr. presidente
nomeou os Srs. Juvencio Augusto de Menezes Paredes ·e Hilario Ri-
beiro afim de darem os pesames ao sacio fundador Henrique Maya de
Castilho, em demonstração de sentimento pelo infausto passamento de
sua irmã.
Foram aceitos 3 socios effectivos e 6 correspm;:1.dentes, sendo d'estes
4 residentes em Pelotas, um em Taquary e o outro em S . Jeronymo.
O Sr. Bernardino dos Santos preveniu á casa de que na primeira
r

-234-
sessão, apresentaria o protesto de ~lguns socios c~ntra a eleição geral
a que se procedeu na sessão extraordinaria de 17 de Janeiro.
Travou-se discussão á respeito entre os Srs. Affonso, Achylles
Porto Alegre e Bernardino.
l. ª PARTE DA ORDEM DO DIA.

Nada houve a tratar.


2.ª PARTE.
1
O Sr. Achylle s Porto Alegre leu o parecer sobre a these historica:
Como deve ser Juarez considerado perante a historia?
Orarão sobre 0 assumpto os Srs. Menezes Paredes, Bernardino e
Achylles. Todos davão a Juarez as proporções de um heróe, liberta-
dor da patria _do jugo que a quizera escravisar; havendo no entanto
discordancia no modo de considerar a scena de Queretaro. De ü m lado
·sustentava-se que Juarez ainda se tornára maior, mandando executar
a sentença do conselho de guerra que condemnára Ma)!:imiliano á
morte, porque assim vingava elle o àssassino de tanto pai de familia,
a deshonra de tanta donzella, a ruina commercial do Mexico, autori-
sados pelo principe que Napoleão fizera sentar no throno ; d'outro lado,
porém, opinava-se que o audaz guerreiro, que não trepidára an te as
privações e as inclemencias de uma campanha para desthronar um r ei
illegitimo; mancharia os seus laureis fazendo derramar o sangue de
um irmão, que apenas fôra o instrumento do insaciavel desejo de con-
quista de um monarcha ambicioso . /
Indo adiantada a hora, foi adiada a discussão, ficando com a pa-
lavra o autor do parecer.
Levantou-se a sessão ás 10 horas da noite.
O 2.0 secretario,
Aurelio V. de Bittencourt.
/

REVISTA MENSAL
I
DA

SOCIEDADE

PARTHENON LITTERARIO

1. 0 ANNo·. - OUTUBRO DE 1_869.· - N.0 8 .

''
.

-o-O-o:-

TYP. DO JORNAL DO COMMERCIO


~

PORTO ALEGRE
1869
COMISSÃO DE REDACÇAO .

Vasco de Araujo e Silva.


Appollinario Porto Alegre.
José Bernardino dos Santos.
Aurelio V. de Bittencourt.
Francisco Isidoro de Sá Brito.
Hilario Ribeiro de A . e l;,ilva.
-
REDACTOR DE MEZ
José Bj'!rnardino dos Santos.
-- '

OS PALMARES
ROMANCE HISTORICO
POR
APPOLLINARIO PORTO AL~GRE

(CONTINUAÇÃO)
CAPITULO III
Avancemos um passo no interior. E' quasi no fundo, onde mal
!obriga-se a porta d'uma pequena camara.
A noite vai adiantàda e uma pallida e languida menina inda vela.
Reclinada no leito· com a fece apoiada sobre a mão, parece dar
livre curso á meditação. Ahi na màis lucida e aurea quadra do viver,
quando porventura devia encarar o mundo pelo prisma das illusões,
ella vê o esphacelo que o corróe, já possue seu cadaver dissecado,
bem como os augures de Roma a pagã, soletrou-lhe nas visceras a ver-
dade monstruosa.
Ahi nas noites sem somno, duradouras sempre como um seculo,
tem curtido asperas e lentas agonias, que, semelhantes á giboia enno-
velando a suçuapara, ião aos poucos lhe aquebrantando as forças, e
dando incremento aos paroxismos d'uma febre, que lhe absorvia a seiva
da existencia.
Tendes, leitor, conhecimento do que seja a combustão espontanea,
sequer d'outiva? Pois a dor que se abraça a uma entidade por larga
dura não lhe é somenos, quiçá mais cruciante, mais cerval, mais sa-
tanica e inconcebivel; porém fallamos da dôr moral, para · a qual não
ha panacéa, nem refrigeri"o, a não ser a leiva dos sepulchros. A eter-
nidade! A eternidade só lhe basta! porque só ella póde encher o abys-
mo de desespero e angustia que então se rasga, se amplia, se apro-
funda sem termo na alma do desgraçado!
Enfermidades corporeas em -que se lhe assemelhão?
A consumpção d~ intelligencia, a atrophia do coração é só das
almas grandes.
O cerebro vulgar do arrieiro e do hyppopotamo, do aulico e da
lagartixa, não tem um ventriculo em que possão hospedar as angus-
tias moraes . ..
Amelia, apenas sahira das faixas do berço infantil, tivera o equu-
leo do martyrio! O inferno pelo céo!
Pobre moça!
Magnifica flor do mandacarú, mal abrindo o botão da pubescen-
cia, e batida dos tufões na grimpa das serranias! . _
E com_o hei de stereotypal-a, pol-a em relevo? De que modo re-
produzir sua figura tão aerea, tão idealista, tão divina? Como retratar
U:m sorriso de Deus que chrystalisou-se ao descer á terra? ·
Timantho desesperando de exprimir a tristeza nos traços de Aga-
memnon, não correu sobre elles um véo? Imitemol-o, que se a veja
atravez da gaza d'uma ligeira descripção.
.-238-
, ··Na galeria social dois typos de mulheres se ostentão peculiarmen-
te. Umas são a gaivota apanhada na amplidão dos ares por uma ra-
jada impetuosa, 'resistindo ao principio, mas acabandq por cahir des-
fàllecida np limo das charnecas, onde mancha as brancas ph~mas.
Outras a lagrima das noites adormecida no seio da graciola: as auras
matutinas perpassão, brandêão a hastea da planta, arrastando n a oscil-
lação a gotta límpida e serena,. ora á extrema da petalá , ora ao fundo
da flor, até que o sol derramando-se sobre o valle a exalce ás regiões
do céo, transformadá em tenue e_ diaphano vàporzinho.
Amelia pertencia ao ulfüno grupo. ·
Ha donzellas lindas e sympathicas que angarião até pelos aderna-
nas um olhar d'amor, mas Amelia ... O' ella! ...
Quem não tem visto por entre torreões de caligens um raio do
sol coar? Pois ella ·era bella: como este raio do sol.
Seus cabellos em madeixas negras como a aza do anum , emmol-
duravão um rostinho pallido de lioz, cujas partes e contornos pro-
nunciavão-se em proporção continua e em cadencia de linhas suaves.
O porte dotado da flexibilidade da creciuma tinha um tanto do
impalpavel das pei:is que povoão os céos da Persia, dos gnomos azues
e transparentes que, na quebrada d'uma encosta, o mineiro sueco julga
deparar. .
Então trajava um vestido· de filele escuro, que fazia. sobresah ir
visivelmente a chernita das feições e das mãosinhas, escondendo em
parte a gentileza do talhe, esvelto como o d'uma palmeira, se bem
que as vibrações da mracha cheia de elação e vivacidade, o denotas-
sem. Abotoado na garganta, bem ajustado sobre o corpo, desenhava '
as evolutas d'um colo admiravel e d' uma cintura, cuja delgadez. o
olhar não cansava de admirar com o desejo de estreitai-a amorosa-
mente.
Amelia! 0 '. ella! . . . Quem não tem vjsto por entre torreõe~, de
calligens um ra10 do sol coar-se?
/ Pois ella era bella como este raio do sol.
Nunca olhar envolvera-se mais n'uma athmosphera humida de
melancolia, nunca filtrava um brilho tão morno e tão ineffavel, mas
tambem nunca absorvera um mundo de tanta meditação. Se o riso em
sua boquinha engraçada abria os labelos, era merencorio e pungente,
parecia um crepusculo da tarde. ' •
Quem a visse asim, librada entre o firmamento e a terr a ,diria
que assás pungia-lhe uma nostalgia de sua patria nativa : - a mansão
além dos astros.
Comprehenderia Amelia o sentimento e~p,o ntaneo d'esses arroubos
e d'essas scismas profundas?
Teria uma noção distincta dos phenomenos que a tornavão um
dedalo inextricavel para a psychologia? · ,
Não, que tudo isto decorria de sua natureza, como factos normaes.
Sempre, quando os olhos fruião tanta animação e deslumbravão
com tanta vida de pensamento, sua alma espairecia-se n 'uns longos
vagos e indei1nidos, n 'um mar sem praias banhado de q_ubia luz' cre-
puscular. .
Bracejando, n 'uma aspiração sublime para o infinito, esta franzina
creança debatia-se em ancia cruel, presa ao sólo de nosso planeta pe-
las adobas do involucro terreno. ·
O thema dos meditares que a arrancavão ao positivismo da exis-
tencia, durante longas horas, erão: Deus, patria, liberdade e amor,
bafejados do perfume da idealidade. · .
Porém , n~m constantemente saboreava taes momentos qe volupia.
O lozang.o d'um relampago cruzava o horisonte de seu viver solitario.
Uma .scena domestica, tehivel para ella no travo, porque -defendia-
-239-
se contra os ataques e as insolencias d'uma madrasta, tinha então lugar.
Depois no remanso de seu quarto as palpebras se lhe humectavão
de perolas d'um sofrimento inexprimivel.
Flebil voltada para o crucifixo impendente· do muro·, balbuciava
com voz maviosa e tremula: Maria! Frederico!
Mãi e irmão!
Pobre orphã de carinhos, não dor!l}es sob ;is azas da maternidade,
nem no teu irmão tens arrimo e consolações!
Amelia em taes momentos, curva sob a corôa de angustias . .. ,
Quem não tem visto ppr ·entre torreões de calligens um raio de
sol coar-se? ·
Pois ella era bella como esse raio do sol.
Quem deixára de amal-a? Quem não reclinara ante ella: - ado-
rando o Creador na creatura- como disse um poeta persa? .
Depois atirando-se sobre o leito com o seio partido pelos soluços,
com a expressão das magoas expandida pelas faces, era d'uma formo-
sura divina, traduzia o omega . a ulitma palavra da genesis material -
a perfeição plastica, o ideal do poeta e do artista.
Era uma d'essas mulheres que nascerão para ser um idolo eterno
e não para os gozos transientes do mundo. . . · .
Ella scismava quando entramos. Alguns instantes decorridÕs, ba- ·
tem á porta. Da atitude medifabunda, em que se achava, não se mo-
veu. Suas forças espiritua5:!s reconcentravão-se todas n'um ponto in-
trínseco.
, Qual? Deus o sabe.
Pancadas de novo -soarão mais fortes.
Apenas m~neou a cabeça, como se incommodada do ruido estranho
que vinha perturbar-lhe a paz. ,
Ouvindo-o outra vez, despertou-se completamente do lethargo, e
· Pet,untou:
- Quem está ahi?
- Minha senhora, mandarão chamar-lhe. 1
Quem?
O senhor.
Não sabes para que, Joanna?
Venha de pressa, está~ . . nem devo contar . . . venha.
Eil-a em pé mais pallida do que nunca. Com a mão comprime
o latego infrene do coração, os olhos debulhão-se-lhe em pranto copioso.-
caminha vacillante para a porta.
- Meu Deus! Minha mãi! Querem matar-me, pronunciou em tom
convulsivo- e plangente. ' , ·
CAPITULO IV.

E' um recinto sombrio entã-o illuminado por dois brandões que


prendem-se aos veladores.
Pêlos muros destaca-se um arsenal de guerra.
Pero Lopes' taciturno, os supercilios horrivelmente carregados, de
vez em quando deixava escapar das pupillas uma chispa fulminante.
Semelhava-se ,á féra, que occulta-se n'uma bastida e impacienta-se es-
perando a prêsa, em cujas carnes ha de sepultar o famelico dente.
Eulalia párecia indifferente, porém perscrutava de soslaio, os mo-
vimentos do esposo.
A's vezes, qual se fôra tocada do apparelho de Leyde, urri estre
meção involuntario e que ella com esforço ·s upremo procurava occul--
ta:c. vinha trahir a conflagração de contrarias paixões bem no adyto
do peito.
- 240-
Se Pero _L opes não fôra domt_nado dos .mesmos sentimentos, o teria
talvez notado.
Ambos soffrem em cruel espectativa.
O silencio sepulchral, que os rodeia, exhuberantemente o prova.
, Alfim no corredo_! se ouviu o ruido de passos e o farfalhar d'um
vestido. ·
- Eil-a! exclamaram em côro.
Amelia appareceu radiante. Crer-se-hia que um diadema cingia-
lhe a testa.
A Blandina do Senhor preparára-se para o sacrifício, reunindo
n 'este solemne m omento toda a energia de sua compleição féminil.
Acercou-se do pai sem trepidar.
Nas orlas virentes de uma lagôa, em nossa patria, quando a bor -
rasca abre as azas nos espaços, enruga a superfície das aguas, accu-
mula cylindros sobre cyfindros, quem não tem visto a garça de can-
dida plumagem arrostar com marcha airosa e altiva os furores da onda?
Assim Amelia.
- Mandastes chamar-I,Ile ,meu pai?
- S'im, disse timidamente.
Mas erguendo-se , de subito, debatendo-se co1,110 nas convulsões da
epilepsia, contra um poder intimo que o tornava miseravel e pusilla-
nime ante a filha, espumando ,torcendo os pulsos a verter sangue,
rugiu : , . · ·
- Sim, mandei chamar-te, . vergontea degenerada de uma nobre
raça, opprobrio de teus antepassados . ..
E parou suffocado de raiva , . . '
Depois de tomar folego, proseguiu:
- Sim, hei de vingal-os inda que necessar;io seja beber teu san-
gue no craneo de teu irmão . . . Beber teu sangue, não . . . não. . . que
é demais impuro. ,
Entregarei teu corpo aos molóssos e urubús da estrada, e creio
mesmo · que poucos hão de tocal-o. ·
Tu e teu irmão conspirão contra mitn e meus irmãos de berço!,
Tu e teu irmão!
E uma gargalhada estr epitosa e n evralgica reboou em todà a sala,
fez vibrar· os instrumentos bellicos suspensos nas paredes e inda foi
repercutir exter iormente.
Seus dentes rangião como os do caitetú na montànha.-·
. A virgem immovel, escudada em sua innocencia, nada respondeu,
mas seu coração pulsava irregular .
....:=... Ah! agora não fallas? Procuras os momentos que me acho au-
sente para insultar Eulalia! E que affrontas!
- Meu pai, nada disse, nada fiz.
- Não o fize_ste ? Então, qu..em mentiu, foi ella.
- Algum dia faltei-lhe a verdade?
A's vezes não fui mesmo franca em prejuízo meu? Que necessi-
dade teria em ateiar a discordia na familia? Meu pai conhece melhor
do que ninguem o genio" de que sou dotada, e que era impossível pro-
curar desavenças com minha madrastq.
· E algumas lagrimas a eito borbulhavão sobre a face setinosa da
Jinda moça .
- Olhem a innocente ovelha! Quem hoje ameaçou Eulalia com
o exterminio dos portuguezes no Brasil, denominando-os pelo alcunha
de - emboabas? Diz-me Amelia?
- Eu? ! Oh! o juro i)elas cinzas sagradas de minha mãi. . .
- E n o entanto serei eu a mentirosa? acudiu Eulalia com v oz
vibrante ; e t irou uma carta que apresentou a Pero Lopes, acrescentando :
-241-
Vê se poderei calumnial-a, se ha malignidade e odio em minhas inten-
ções. ,
• Elle arancou-lh'a das .mãos, e· em curto lapso devorou seu con-
teúdo.
- Esta carta, Amelia?
- De Frederico.
- E ouzas desmentir tua madrasta? Aqui os pensamentos nãp
combinão com ,tua insolencia de hoje?
- Estou tranquilla, meu pai, eu nada disse.
- Bem ,tu não viverás mais em nossa companhia, mandar-te-hei
para um convento, vil intrigante. E emquanto a teu irmão, tem vivido
de mais .. .
A pobre menina sentiu correr-lhe um calafrio pelos membros, es- ·
tremeceu pôr Frederico.
A jekeri, mal a bate o rabido alipede vento da noite, treme e re-
trahe-se toda; mas logo ao beijo da aurora expande-se, espaneja-se na
luz que a banha, na aura matutifl.a que a envencilha em abraço amoroso.
Assim Amelia. Ao principio recolheu-se ; mas depois animada pelo
sol d.'uma santa affeição, seu olhar coruscou na penumbra ~m que se
engolfava, distendeu a branca mãosinha, moveu os labios e sem cons-
ciencia do que ia pronunciar soltou estas tremendas palavras:
- Matai nos ambos, já que nos matastes a 'mãi.
O sentimento fraterno, o unico que lhe era permittido então fruir,
.l allucinára.
Pero Lopes desprendeu um rugido que abalou a casa nos alicerces.
Seu crime estava- descoberto pelos proprios filhos! -
Authomaticamente lançou-se sobre uma espada suspensa na pa-
rede, e ia vibrar o acicalado ferro no collo unmaculado da virgem do-
brada sobre os joelhos, quando no exterim.· restrugiu safara e ruidosa
pocema cazada a repetidos golpes de machados nas portas da sala.
Estacou com o braço erguido.
Erão os Palmares.
(Continúa.)

Inst. Hlst . - 16.


FREI CHRISTOVÃO DE MENDONÇA
ARTIGO HISTORICO

Em dous venerandos grupos dividirão-se os primeiros apostolos que


percorrerão os vastos sertões da América meridional .
.A' este pertencerão os Nobrega, Aspicuelta, Luiz da -Grã, Sardinha,
.o immortal Anchietta, e· outros illustres missionarios, que deramarão
os prim eiros germens da civilisação europea -as margens do Atlantico,
pregando o Evangelho entre os Tupiríambás, C_arijós, Tupiniquins; e
outras nações gentilicas, que acampavão em seu litoral e cercanias.
A'quelle, que invadia as cordilheiras que orlão o Pacifico, perten-
cerão os Cataldino, 1Mazeta, Diogo Torres, e . além de muitos outros. v·a -
rões' celebres, os illustres martyres Roque Gonçalves da , Cruz e Frei
Christovão de. Mendonça, os primeiros que penetrarão os ridentes valles
do Paraguay, Paraná e Uruguay, inaccessiveis· até então· aos proprios
exerci tos europeos, como aos ·tupys seus alliados, e onde fundarão esses
templos, que ainda hoje existem n 'esta provincia em magestosas ruinas.
Era nobre essa cruzada! divina a resignação e ·c onstancia d'esses
venerandos apostolos, como foi heroico o seu valor, zelo e caridade evan-
gelica.
A par dos conquistadores que .Portugal e Hespanha enviarão ao
novo mundo, marchava o soldado da fé; ali onde o canhão proclamava
o dominio de um rei, o Jesuita proclamava o do Christo; onde a espada
do us.u rpador qerribava uma victima, elle caváva um tumulo e erguia-
lhe uma cruz á cabeceira; e assim, emquanto a conquista avançava dei-
xando após si larga esteira de sangue, e junto a cada pél,drão que erguia,
hecatombes de tribus inteiras, elles se embrenhavão sós, indefesos, pe-
los sitios os mais remotos e asperos e ião no seio de florestas ignôtas
receber a gloriosa corôa do martyrio, ou arvorar o negro estandarte do
Golgotha, fundando povos a sua sombra augusta, edificando templos e
reduzindo ao gremio civil e ao christianismo hordas barbaras e noma-
das, reunindo os destroços das nações foragidas, dispersas e perseguidas
pelos europeos. ,
O J esuita penetrava o coração das florestas e ia ter ao amago das
tabas gentilicas, onde proferindo o verbo augusto, embriagava seus ha-
bitantes nos perfumes da fé, adormecia odios inveterados, e transfor-
mava-lhes a bárbarez dos costumes pela moral e dogmas da religião
que propagavão. · ·
Frei Christovão de Mendonça foi tão zeloso e venerado nas mis-
sões do Paraguay, qual havia sido Anchietta no Brazil; como este ma-
tizára de alá.êas o plainos do Pirátininga em torno de seu famoso tem-
plo e collegio, internou-se Frei Christovão para o interior da provincia
de Tayati, onde fundou o povo da Encarnação, máo grado a reluctancia
e ameaças de varios caciques, e do caracter feroz dos gentiõ's que ahi
habitavão.
C9mo o apostolo dos Indios, Frei Christovão, prosseguia gloriosa-
mente a sua propaganda, vendo engrossar por centenares o numero de
seus cathecumenos.
- · 243-
Já acima dissemos qual a vasta e fertil zonjl que era habitada pela
esforçada tribu guarany, raça indômita, guerreira e barbara até a an-
tJ;opophagia, que apesar de infinitamente subdividida em pequenas al-
dêas ou cacicados, era temida e intratavel para com os europeos, com
quem ez;tretiverão renhidos e varios combates, cabendo-lhes sempre,
além da victoria, os despojos que deixavão no campo da acção os inva-
sores, quando repellidos de seu territorio. ·.
Os Jesuítas, mal recebidos a principio, não desanimarão em seu in-
tento, e ap9s muito esforço baldado, conseguirão os perseverantes Ro-
que da Cruz, Montoya e Frei Christovão fazerem-se amar por essa na-
ção e ensinar-lhes a religião de que erão dignos apostolos.
• Segundo as chronicas escriptas por elles proprios, forão os Jesuítas
recebidos pelo gentio com asperezaà. desconfiança e ameaças; mas pou-
co tardou em serem por elles acata os com o respeito e veneração que
tributavão aos enviados d'esse Deos, de quem uma vaga, rrias enraigada
e geral tradicção lhes dava uma idéa; trad'icção narrada e aceita por
muitos autores, e tratada, inda que di~usamente, em sua historia pelo
respeitavel padre Pedro Lozano, que como Rodrigues Montoya e outros
testificão, é a da passagem e pregação do apostolo S. Thom é por esta
parte da America.
Além de muitos outros que sobre ella escreverão, eis o que a res-
peito de tal tradicção escrevêra em 1613 ao Provincial Diogo Torres o
veneravel padre José Cataldino. ,
"Muitas cousas me tinhão dito desde o principio estes indiós, ácer-
ca do glorioso Apost olo S. Thomé, q ue elles cham ão pae Zumé, e não
as tinha escripto antes, para melhor me certificar e averiguar a ver-
dade. Dizem pois os índios anciãos, e os caciques principaes, que tem
por certissimo, por fradiccão derívada de paes á filhos, que o glorioso
S. Thomé apostolo veio á - suas terras do lado do màr do Brazil, e que ,
atravessando o rio de Tibaxiba (onde elles e seus antepassado.s mora-
vão) · então povoadissimo de indfos, foi passando por seus campos ao
rio Haybay, e que d'ahi foi ao rio Piquiri, d'onde não sabem para onde
foi.
-Nas c~beceiras d'este rio, dizem os índios, se achão as pisadas do
glorioso sancto impressas em uma penha, e o caminho pelo qual atra-
vessou estes campos está ainda aberto, sem se ter nunca fechado, nem
ter crescido nunca a herva, apesar de estar no meio do ca mpo onde
não trilhão os indios, e assegurão que as penhas por onde vem este
caminho estão abertas, deixando no meio um caminho igual a·o mesmo
chão, e affiqnão terem-o elles visto." .
A' esta tradicção deverão os Jesuítas a mór facilidade e exito ·na
conversão dos gent ios• á crença de um unico e verdadeiro D~os.
Não é, porém, nosso intento, pois somos muit o obscuros para tal,
fazer um resumo histor ico' desses feitos grandiosos que illustrarão os
primeiros seculos do domínio colonial, mas sim, e simplesmente, render
preito --a santa memoria de úm illustre e venerando sacerdote que teve
em nossa Provinda o throno do martyrio, e um tumulo que ignoramos
onde ex iste.
Filho de um dos Governadores da Província de Santa Cruz da
Serra, descendia Frei Christovão de Mendonça, de uma muito nobre
familia h~spanhola.
Como Roque da Cruz, seu contemporaneo, emulo e seu socio .de
apostolado e martyrio, Frei Christovão, abandonou a nobreza, os titu-
fos, a fortuna, as delicias do lar e da familia e todos os prazeres com
que a opulencia circumda aos seus dilectos pelos duros encargos -da
Companhia de Jesus, começando por renegar o nome de Ruiz, que ti-
nha, pelo de Christovão, com que o conhece a historia.
Jovem de ameno trato, cuidada educação e rara intelligencia, pos-

/
-244.-
suia uma alma ardorosa e nobre, como era seu physico ornado de bel-
leza, graça e frescor, o que o tornava distincto entre os demais cava-
lheiros, e ao qual se prendião as maiores sympathias e as mais riso-
nhas esperanças de. sua familia e das nobres dçmzellas de sua alta so-
ciedade. . _
Elle, porém, parecendo insensivel a tantos extremos e affectos, fu-
gia desse ambiente morno e mephitico que respirava no solar paterno
para a solidão dos êrmos e dos bosques. Nada ali o deslumbrava, nada
o prendia ao fausto ; e julgando talvez, pouco brilhante e digno para si
esses brasões e glorias legados por seus antepassados, elle calcou-os com
o nome herdado, para conquistar outro mais nobre e glorifical-o com
seus proprios feitos.
Arrastr ádo pela vocaçffeo, por esse poder superior e providencial,
a que cegamente obedecia, ensurdeceo aos rogos de sua mãe, desobede•
ceo as ordens paternas, desprezou as lagrimas e supplicas da familia, e
foi ser do numero d'aquelles apostolos em cuja bocca pôz Junqueira
Freire, estes inspirados versos:
Era longe - bem longe: e eu vim primeiro
Scindindo as ondas d'essê mar profundo,
E por amor da Cruz vagÚei sosinho
Nas invia's mattas d'esse novo mundo .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ., . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Eu disse ás tribus : - Todas vós sois ricas,
Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.
Sois ricas tribus, - mas não sois felizes,
Porque uma crença de um só Deus vos falta .

E eu dei ás tribus úma crença doce,


Qual uma chuva de manná celeste:
E as tribus foram desde entam felizes,
Qual flor pomposa que os jardins reveste.

De mim as tribus barbaras, indomitas,


De m im o verbo do Evangelho ouviram.
E ergui a cruz nos píncaros dos montes,
E após o verbo os povos me seguiram!

Bem moço, pois, começou Frei Christovão de Mendonça essa sue-


cessão de p erigos, de miserias e dores que se chama o apostolado -
esse peregrinar incessante na derrama da caridade, do amor e da fé.
Curto, quão glorioso, foi porém a duração -do seu apostolado, pois
dous ferozes caciques, de nomes !bitirai e Manãndara, derão-lhe prema-
tura e barbara morte em Ceaguayu, no territorio de S. Borja, segundo _
o manuscripto, e conforme outros historiadores na serra dos Tapes, á
margem do rio Jacuhy, pouco mais ou menos no local onde hoje demo•
ra a colonia - Santo Angelo.
Assim , depois de uma existencia edificante, tão cheia de heroico
fervor e caridade evangelica, de tanto nobre zelo, dedicação ·e amor, e
tão memoravel por grandes commettimentos, virtudes e feitos, que até ·
-245-
,

hoje testificão, e perdurarã~ ainda aos tempos por vir, os povos da En-
carnação, São Miguel, S. Thomé e outros que, elle erguera como padrões
de sua gloria no serviço do seu Deos e Senhor ; e obrigando que seus
an;ligos o abandonassem, pois grande . era o :perigo que os ameaçava,
elle ergueo sua alma aos céos, deixando ainda seu corpo no eculeo do
mais atroz e cruel martyrio.
Prestes a exhalar o derradeiro alento, volve o olhar piedoso á seus
barbaros assássinos, e disse-lhes, com voz doce e ungida de dorida com-
paixão: '
"Vós mataes o meu corpo, mas não tendes poder de matar a minh' ·
alma que ha de viver sempre, e que vae subir ao céo para gozar da
gloria.
"Oxalá! que · cresseis na palavra de Deos que vos ensinei, porém
sois máos, por isso não me acreditaes."
E estas forão suas ultimas palavras, pois apenas pronunciadas, o
gentio enfurecido precipitou-se sobre elle, já moribundo, e partirão-
lhe a cabeça com dous garrotaços, e mais iniquios esses barbaros do
que o tigre de suas florestas, abrirão-lhe a garganta por onde tirarão
a lin~ua da victima, e depois rasgando-lhe o peito traspassarão-lhe o
coraçao em uma de suas hervadas frechas.
Tal foi o martyrio horrendo que pôz termo, no dia 26 de Abril de
1635, a vida illustre do veneravel Erei Christovão de Mendonça.

José Bernardino dos Santos.

Respondendo a uma carta anonyma


Logo após a chegada do paquete com a mala da Côrte, achando-
nos no escriptorio do Rio-Grandense, onde trabalhavamos com o seu
illustre Redactor, fomos agradavelmente sorprehendidos com a carta
anonyma, que abaixo publicamos, e a que respondemos.
Ao lêr seu contheúdo dous pensamentos, verdadeiros antipodas,
tumultuarão-nos o espirito deixando-nos perplexos sobre qual d'elles
deveriamos optar.
' Consultemos a varios amigos, cujos nomes n' ella se vêem d' envolta
com o nosso, e elles, como nós, como todos, opinarão que a respondesse-
mos. ·
Isto era perfeitamente impossivel, a não ser que a publicassemos,
e com ella a sua resposta.
E' o que .vamos fazer começando pela carta recebida, que trans-
crevemos aqui :
"Sr. José Bernardino dos Santos.
"Rio de Janeiro, 20 de Setembro de 1869.
"Tomo a liberdade de escrever-lhe para pedir, que attenda ao que
segue:
"Sendo o Sr., dos litteratos rio-grandenses, o que mais inclinação
tem provado para dotar a nossa provincia com e.scriptos, que mais fi-
lhos de seu sólo nos parecem, peço-lhe que continue a publicai na Re-
vista do Parthenon as lendas e crenças de nossa terra, escriptas com
a elegancia que o Sr. sabe dar aos fructos de sua imaginação ; que exe-
cute o pensamento que tem, de ver, em um drama todo original seu,
a Antonina Marquelou interprete da Guarany, da Charrúa, Minuana,
Tape: (já decantadas por Junqueird Freire, no hymno da Cabocla), em
- 246-
vez de reduzir á drama poêmás de outrem, porqµe muita e maior glo-
ria lhe caberia assim.
, "Escreva tambem romances, taés como o Guarany e Iracema, -
de Alencar, - Acayaca, de Felicio dos Santos, - e a Virgem de Gua-
raciaba, de Pinheiro Chagas; dê fructos verdadeiramente rio-granden-
ses, e os ponha a venda nas principais cidades dá Província e no Rio
de Janeiro; e aconselhe aos seus consocios que as suas composições
pratiquem o mesmo.
"Porque, o Sr., em vez de procurar um facto qualquer da Provin-
, eia, foi buscar uma composição de Gonçalves Dias, para com os pro-
prios versos d'elle reduzil-o á drama. .
"A Revista do Parthenon devia ser de maior formato, devia tra-
zer as actas, as theses discutidas, emfim, tudo quanto na Sociedade se
passasse : devia noticiar no · Ementario não só as obras publicadas na
Europa, Rio de Janeiro, S . Paulo, Bahia, Pernambuco &c., como tam-
bem em todo o Rio Grande: devia trazer as biographias de D. Rita Ba-
rem de Mello (de quem a Sociedade pediu, supponho que ao Fontana,
os apontamentós biographicos), de Felix da Cunha, de quem muito
poucos talvez saibão o dia e o lugar em que nasceo, do Dr. Bello, e de
outros illustres e notaveis rio-grandenses; deveria finalmente ter uma
chronica de tudo quanto n'ella se passasse, e então em vez de trinta
teria cem paginas.
"Aqui ha Sociedades formadas de ·estudantes de collegios, cem
vezes inferiores ao Parthenon, tendo entretanto - revista quinzenal -
de cincoenta paginas, contendo, é verdade, cousas que nada valem.
"O Sr. que naturalmente lê a Arcadia reflicta sobre - A littera-
. tura no Rio Grande - de A. Maria Pinto, pag. 129 da· 3.ª .serie, e -
Poétas e Poesia - de G. Pared·es, na pag. 273 da mesma serie; e ao
Rio Grande dê uma litteratura propriamente sua.
"Isto não será difficil n'üma Província que conta entre seus filhos
mais talentosos os Bernardino dos Santos, Taveira Junior, Appollinario
P. Alegre, Lobo da Costa, Carlos Ferreira, Villeroy, Hypolito Camargo,
Sá Brito, Ign acio de Vasconcellos, Achylles, Paredes, Salomé, Aurelio
& C., todos intelligentes, e que não encontrarão barreiras ante as quaes
recuem em sua aventurosa carreira.
"Nenhuma outra província do Imperio tem uma historia mais no-
bre e repleta de heroísmo. Porque então, pois, não serão aproveitadas
essas acções homericas para epopéas?
"Por acaso achar-se-hão gelados vossos corações a tal ponto que
não queiraes embocar a tuba épica?"
, Eis pois, transcripta a carta que nos fez dar tratos a imaginação
no intuito de descobrir qual a penna ' que mysteriosamente a traçou;
carta, que, por certo, guardaríamos em silencio, se corp nosso nome
não viéssem congraçados outros muitos de meus· illustrados collegas
e amigos, e que como eu são seus participes. ·
Será porém esta carta um epigramma que de tão longe n,os vem
ferir? Quem sabe! Quasi que o acreditamos quando nos manda es-
crever romances taes como o Guarany e a Iracema, d'aquelle que re-
putamos o Mestre, e a quem sagramos respeito e admiraçãO'.
Mas essa crença vacilla, e quasi que a queremos repellir, por-
que nós não merecemos o ridículo, que .n'esta hypothese, ella nos lan-
çaria; e dóe-nos no imo d'alma, que -alguem ludibriando sacrificicrs e
dedicação nos viésse arrancar . da feliz quiétação e obscurantismo em
que vivíamos, para, murchando esperanças, implantar-nos no coração
o desanimo e o desgosto. Isso seria até uma vilania cruel, de que não
queremos crêr á alguem capaz, e que nos leva a segunda hypothese.
Sim: e se ao contrario, se em vez do sarcasmo hi ha um conselho,
1.,1ma, palavra d_e affecto, de consono ou animação; se são essas phrases
-247-
échos dos sentimentos de que são susceptivefs as grandes almas; se
hi ha esse sentimento cujo perfume eleva a intelligencia e a alma ao
nobre, ao bello e ao justo, porque se occulta aquelle que nos anima,
e nos pede o trabalho e o sacrificio pela gloria de nosso porvir e do
de nossa grandiosamente bella e nobre patria, e quiçá nos poderia con-
duzir té ella? ·
Oh! porque, se somos dignos de vosso apreço, se vos agradamos,
se vos ·dignaes escrever-nos, porque negar vo'sso nome a nossa grattdão
e amor.
E no entanto não são só as palavras nimiamente bondo._sas que
para nós encerra esta carta, o que nos desvanece em jubilo quasi ao ,
mesmo tempo em que o pezar nos possúe: ha ainda um outro motivo
que ·nos obriga a júlgar insensata essa carta; esse é _:::: crêrmos ser
ella traçada por delicada mão feminina, pelo que julgamos dos finos
traços que formão os angulosos e delgados caracteres que a constituem.
Oh! se bastasse uma promessa; se fosse preciso pôr á prova a nossa
descripção; se emfim, nos exigissem um sacrificio mesmo; tudo faría-
mos gostosos em troca d'esse nome que tão· injusta,mente nos occulta,
e que no entanto, temos desconfiança que já o amamos .

. Porto Alegre, 17 de Outubro de 1869.

José Bernardino dos Santos.


O BRAZIL

Poesia recitada pelo autor em a noute de 19 de Setembro de 1869,


por · occasião do espectaculo do P ARTHENON LITTERARIO, no
Theatro São Pedro.

Tupã já volve á · terra a luz dos olhos . . .. . .


Cresce do bosque a sombra ao occidente ..... .
E o orvalho · da · manhã rorêja os ,prados,
Onde serpeia a trépida corrente.

Selvagem trovador, sàudando a aurora,·


O bosque acorda ao som de seus cantares;
E do universo o cantico de graças
Entôa a brisa na lyra dos palmares.

E, eu acordo tambem, salto da· rêde .


Tendo o riso no labio, e a esp'rança n 'alma,
E busco no clarão que-· des =eéos mãl)a
Da liberdade a luz, conforto e calma.

Qual a frecha subtil traspassa o fructo,


Eu, tão veloz, perpasso entre a ramagem
Do trançado sertão, galgo os outeiros,
Cr uzo a verde collina, e a extensa vargem;

Fórmo do' adunco peito breve igára


E rasgo á meio o limpido crystal
Do caudaloso rio, e corro, e sempre,
Quer pize flôres, relva, ou bravo urzal.

Em balde! .. . O ir1s não é da liberdade


Esse brilhante prisma que seduz;
E' sim , o• lampejar de flamma ephemera,
E não de Redempção sagrada luz!

Nem é tambem da morte o gladio acceso


Que na voz do trovão fulmina os bravos . ..
E , eu quizera os irmãos contar por crâneos
Do que os vêr gemendo - vis e escravos.
-249·'_
Quizera vôl-os todos, como hei visto,
Com honra, as gerações que já não são,
Mas que livres cahirão; qual nascerão,
Qual nasce e morre o cedro no sertão.

Mas fecha a noute : . : O céo se torna negro . ..


Depois. . . Inflama-se o oriente a luz d'aurora
- E' um dia que nasce, e outro que morre:
Ali · ha riso, ha festa.' . . Aqui ~ se chora!

Nem o dia que passou levou e'omsigo


Essa dôr tão, cruel que me pungia,
E nem esse que desponta traz-me a es'prança
De ser mai,;; do que ·hontem - melhor dia.

E qual _folha .a folha as arvores se despem,


No peito, as illusões, que eu alimento,'
Uma por uma vão myrrhando todas
Ao soprar da descrença .·.. ao desalento!

E assim passa outra vez a grande tréva


Sem vir o manitó fallar-me ao sonho ...
Esse dia que resurge é noute e trêda :
lndá o urutáo se carpe em pio medonho.

Oh! não despertes, guerreiro, antes da aurorai


Em que deve o mago sol da liberdade
Brilhar p.a .vasta, taba -americana
Sem ver da escravidão a potestade.

José Bernardino dos Santos,


-250,- ,

FLOR DO LAR
I.
Mulher! anjo do lar, querida amiga,
!dolo unico, que no mundo adoro!
Céde a meus rogos, vem ante o Deos vivo
As bençãos implorar sobre nós ambos,
Que ligue o meu· destino ao teu destino . . .
· Celeste creação de humana especie;
Amoroso conjuneto d'esperanças,
O' tu, inspiradora de meu estro,
Vem completar meu ser, guiar meu genio,
Meu lar embellecer, feliz ·fazer-me!.
Vem perennãl thesouro em que meus olhos
Enchergão só ventura! ·
Dizes que te não sou indifferente,
Qué compassiva, e circumspecta amante,
Escutas terna de meu peito os ais
A' ti levados pela cauta brisa, r
Que .os meus suspiros entretêm co'as azas.
Por Deos! O' divindade humanisada,
Santélmo que d'esta vida ao Bardo
As ' procellas amainas ;
E seu canto sentido ao céo transmittes. ·
Des_ce das regiões etqereas de .meus sonhos,
Vem, é á face de ,Deos jura que és minha;
E no solemne altar do amôr que invóco,
.Sob o tem})lo immenso deste céo augusto, .
Deixa que ao adorar-te eu m 'extasie .
..
. . . . . . . . . . . . . ( . .. .. .. ... .. .· , .. ..... .... ..
Oh! não! basta mulher! A fronte inclina,
Recebe o diadêma . . . são meus beijos,
Teu th;rono · é em meu peito,
O septro?_. . _. Nem eu sei. .. a minha penna ., .
Meu destino, sem custo, mudar podes.
. Enleio de minh'&lma,
Esthetica yisão dos meus s~ntidos!
Um beijo, mais um beijo, um outro beijo ...
Mas que rubor é esse que em teu rosto
Duas rosas desdobra perfumadas
Desse aroma do céo - . pudor - chamado?
Como encanta, mulher, esse perfume!
E quanta fragancia ao purpurar das faces!
E's mãe, ídolo m'eu? Cuida em meu filho,
E mais esse penhor de mim conserva,
Penhor que em duplo laço a ti me prende .

. II.

Qµe laços tão doces, estreitos, tão fortes,


Tão ternos, fagueiros, tão cheios d'amôr;
Que magicos laços, que tanta esperança!
Que dupla ventura, do céo que favor.
- . 251
E's mãe! Que grandeza, quê a,môr respeitoso,
. Que culto que ·inspiras c'o filho no collo.
Ser mãe é grandeza que a terra ennobrece,
Que ao m~ndo illumina c'o facho d'Apollq.

Que .. cousa sublime, mulher, é ser -mãe!


Trazendo no seio o. genio em embryão,
A' luz, n'um instante, do. mundo entregal-o;
Aos peitos nutri! o, formar-lhé a razão, ·.

C'o leite, c;os beijos, c'o riso, c'os olhos ;


Da eterna moral as· leis · lhe ensinar, · ·
Do · peito no imo, exemplos lhe dando,
Os brios, virtudes p'ra . sempre gravar.
- - . ~ -

Com graça e enlevo saber conçluzil-o;-


·No bello e sublime sabel-o inspirar;
Mulher, és a guia rio ·1ar ·e no pmndo!
Quem nobre e tão grande nos sabe criar? ·

.... -III.

O' fel1z · fôra eu se em . teu ·regaço ·


Gozar podesse de ·ventura tanta ...
Gozar assim é um sonhar, delicias
Que o . tempo -ericurt~ · quanto à ·vida ·encanta.

Louco por ti · miriha ·existencia foge .. .


Só a esperança ·me ·sustenta a vida! .. .
E's o meu sonho que a visãoembala,
A minha estrella na affanosa lida.

Setembro 20' de 1869:


M. Alves de Paula .
.J

\.
-252-

RÊVERIE

Meditar como é doce! E' o sonho d'alma, .


Scismar gozos do céos, gozando em mente!
Meditar no que? ... Em mim? pobre diabo.
Alvo de magoas, que .rios· risos mente.
Oh! não, a fé! que o não farei.
Meditar. . . eu meditar? Teria graça.
Pensar? ah! ah! em que? no meu futuro?
S'está louco tambem doudo me não faça.
Deixemos meditações, é melhor rirmos
Do que éstarmos sem lucro a · nos mentirmos.
Pensar no meu passado? Não, .não quero:
Se teve outr'ora flores 'stão fanadas ;
Dos risos, .do prazer, naseêrão dores;
E · p'ra o pranto, . e p'ra dôr dou eu rizadas.
O premio que anhelei, hoje regeito;
Ora pillulas! esse amor 'stá desfeito.
No presente? Oh! oh! oh! é bem feliz!
Vamos n'elle fallar: ·_ Eu tenho amores;
Tenho inda tabaco e o meu . cachimbo;
Tenho o ar que respiro; tenho ás flores;
Supponho que ·seja meu o mundó inteiro;
E. sou feliz assim, sem ter dinheiro.
NÓ futuro não penso,- elle é de Deos,
Que o dia d'amanhã nos dá ou tira.
Dizer - guardo este pão p'ra comer logo,'
Chama-se guardar · ó pão, comer mentira.
Que m'imp·orta o porvir? dou-o á sorte.
O que elle nos reserva? A dôr! a morte!
N'esta vida pensar _não vale a pena,
O mundo é como o vento, inda mais varia.
Vê-de como enganou-se a virgêm ·noivél,
Tomando por seu véo, negro sudario! ...
Se se morre do jantar na sobremesa.
Se morre o homem, o animal. e a natureza?
Em, que, pois, vou pensar se tudo é nada?
, Ora adeos! caro senhor, não 'stou disposto
A tomar, estravagante fashionable, ·
Medidas do prazer ou do desgosto.
O que me importa a mim, voltas do · mundo.
Se qual um casco velho hei de ir ao fundo?

Porto Alegre, 10 de Outubro de 1869.

Silvlo.
-253- ,r

IMAGE -
(DU CHANTIER.)

Quand la teínpête_ siffle au milieu des cordages, ·


Lorsque la vague. vient, comme un bras de Titan,
Se cramponner en ~áin áux solides bordages,
Quand les vergues, les mâts, sont ployes par l'autan,
Et que la mer -gemit sous . un vàisseau qui sombre,
Pius d'une fois, ces mâts, · ou sont pendus sans nombre
Dés câbl~s longs et noir~ tendus par l'ouragan,
M'ont semble, dans la nuit, des harpes eolossales
Vibrant avec fureur sous les doigts des rafales!

Charles Poncy.

,IMAGEM -
(Traducç~o immediata a _' leitura da poesia acima.)

Quando o temporal freme. entre o corlame,


E qué a · vaga titánea .o braço erguendo
AçoÚta embalde a solid~ amurada;
Quando ás vergas o· tufão despe o .velâme,
Dobrando os mastros, e a nave, rangendo,
Ergue em seu dorso a ónda ':ncapellada;
Mais de uma vez, Imagem, me recordas
· Uma harpa colossal, tocando os céos
-... C'os mastros, onde o vento entesa as cordas
Que tangem ao embater. dos escarcéos.

Porto Alegre, 7 de Julho de 1869.


Berna,dino dos I Santos. •
. i.
-254-

SETE DE SETEMBRO

Pobres ruínas de infeliz vaidade!


Solidões, onde ha pouco o despotismo
Estupido se -erguia, ~
Vós que'ouvieis fallar da liberdade
E occultas sempre em lutulento abysmo;•
Sem ver a luz do dia;

Escutae minha voz insulsa e rude,


Este canto sem metro e sem cadencia,
Mas franco e verdadeiro
Devaneio de estólido alaude;
Que ousa saudar o sol da independencia
Do Imperio Cruzeiro.

Hoje faz annos que · se erguendo um povo


Foi aos mundos da luz buscar a gloria,
Vestio-a senhoril!
Foi ao bello buscar um nome novo,
E em lettras immortaes gravou na historia:
"Imperio do Brazil!"

Depois fitou altivo a im'm ensidade,


Ergueo a fronte ao sé>l resplandecente
No firmamento azul;
E cheio de solemne magestad~
Com prazenteira voz altipotente
Que atrôa Norte e S~l,

Bradou: - Gigante, no berço


. 1 Hontem escravo - hoje . lmperio!
Eu sou a Nação primeira
Deste imponente hemispherio!
Té além do trópico austrino
Vão meus domínios immensos
• Sorver os raios intensos
Do sol de além do Equador!
E desde o cabo São Roque
No Oceano magestoso
Eu me estendo - portentoso
A's regiões do Condor! .
Tenho cedros como o Líbano,
Maior bahobab que o Egypto! (1)
Riquezas como as que eu tenho
Só póde ter o Infinito! . ..

(1) "Bahobab" - Arvore da Africa sob cuja rama podem formar milhares de
homens: -- Um natura1ista 'inglez descobrio ha poucos annos no Amazonas uma ou tra
a rvore de dimensões mais descommunaes, cop.hecida por "sumahumeira" e que aqu i
chamo de "Bahobab" por analogia.
- 255--=-
Minhas florestas, meus camp.os,
Meus rios, valles e montes
Limitão 'mil · horisontes
No espaço que Deos lhes deu!
Quatro gigantes rodeião
Meu domínio sobrehumano:
Prata, os Andes, o Oceano,
E o rei dos rios, que é o meu!

As auroras do Orienfo
Invejão meu ,céo azul!
Meu sabiá, quando · canta,
De inveja mata o bulbul ! (2)
As mais frondosas florestas,
As mais fecundas campinas,
As mais inexhaustas minas
Eu sómente encerro em mim!
Meus palmares são mais bellos
Que os do Oriente orgulhoso,
Meu m.olongó mais cheiroso (3)
- Que o mais olente jasmim!

Em tudo tenho riquezas,


Quaes nunca alguem possuio,
Quer do Equador. aos fulgores,
Quer além trópico ao frio!
Ha mais amor nos meus bosques,
E tudo é paz, tudo festas
Nas minhas verdes florestas!
Nos reconditos sertões
As Tapuias feiticeiras
Que as andaluzas mais bellas,
Mais formosas que as estrellas,
Tem fogo nos corações!

Não ha nada mais suave r"


Que as noutes no seio meu,
Quando as estrellas divagão
Pelos desertos do céo!
E quando a brisa· fagueira,
Beijando as aguas dormidas,
Canta nas folhas pendidas
Das pahnas do burity,
Derramando pelos ares
Em cada languida nota
Confundida a· essencia ignota
Da baunilha e do "humiry"! (4)

(2) "Bulbul" - Nome do rou xinol da Asla .


(3) "Molongó" - Flor de suavlsslmo perfume. abundante nas varzeas e margens
d os rios do P a rá..
(4) Humlry - Arvore do Pará, cujo oleo é t ã o perfumoso que a simples casca della
d epois de guardada annos conserva t od a a Intensidade.- do perfume. ·
De tão formosos · thesouros
Quem é . senhor como eu sou?
Quem tão estranhos portentos
No mesmo solo encontrou?!
Ninguem -:- a noute, ou na aurora
No Sul algente, ou no Norte!
Porque ninguem teve a sorte
De ser o ,Imperio da Cruz!
Sou o gigante das selvas,
Meu 'leito é mar de saphyras,
Meu manto de sucupyras,
Meu sceptro raios de luz.

Creança - no berço ainda,


Escravisado me achei!
Mas hoje a dura cadeia
Do captiveiro quebrei .. .
Um pygmêo, insensato _.
Ousou chámar-.me de escravo, .
Sem saber que, forte e bravo,
Nasci para ser senhor!_ ..
Esquecendo, pobre ·1ouco,
Que por minhas vastas zonas
Corre indômito o Amazonas ,
E vôa altivo o condor!
..
Sou o orgulho do Oceano
Que banha meu littoral, ;
Porque mar nenhum conhece
) . Qualquer que lhe seja igual!
,.Do Cruzeiro eu sou a gloria,
E dilecto das Espheras
Não sei contar primavérãs
Pois viver em perenne Abril!
E' meu caminho a virtude!
Meu destino a liberdade!
E, cheio de magestade,
Só eu me chamo -:- Brazil!

Jul~o Cezar Ribeiro de Souza.


CRENÇAS ARGELINAS
O MÃO-VERDE
O, Cherife arabe que commandava a insurreição contra Biskra, on-
de succumbio gloriosamente· o commandante São Germano, arrastou
em seu transito pelas montanhas uma infinidade de montanhezes indí-
genas, prevalecendo-se de uma mentira, aceita e muito commum entre
os rabes.
O Cherife fizéra uma peregrinação a Meca, e chegando ao tumulo
do Pro~)heta, foi tão feliz que metteo a dextra no interior do turbante
que cor ôa aquelle mausoléo, o qual tinha usado Mahomet em sua vida.
Este arabe voltou enthusiasmado por tanta honra, qual a de haver
tocado o turbante, e ting'lo-a de verde. Esta era a côr dilecta do Pro-
pheta, e a quem tem o turbante. '
Esta mão verde devia operar prodígios. O Cherife, dizia elle, nada -
mais precisava do que apresentar-se ante os roumi (nome que · dão aoll
francezes) , e os raios que se desferirião de sua mão bemdicta, os ful-
minaria , ou punha-os em ' fuga. .
Os francezes, pouco medo tiverão dos raios da Mão-verde, é ape-
nas o avistarão carregarão com tal impetuosidade sobre os arabes, que
commandava o tal Cherife, que cento - e setenta e cinco homens, sem
terem as mãos verdes, derrotarão quatro mil indígenas, pondo-os em
fuga, depois de lhes ter morto mais de tresentos.
Foi este um milagre com que não contava, e nem previra nunca
o Mão-Verde.
No entanto ainâa continúa vigorosa essa crença supersticiosa.
-o-0-o-
SANAFADA
E' crença geral e arraigada no espírito dos mnsulmanos que os
francezes não estenderão os seus domínios na Africa, e nada mais fa-
rão do que permanecer algum tempo em Argel.
Explicão sua cr endice por uma palavra mysteriosa ~ Sanafada,
que n ão tem em si mesma senso algum, porém que se compõe das let-
tras iniciáes dos nomes seguintes: Sultãos, - Nazarenos (christãos),
- Fatimas (cherifes) , ~- Dejalets (raça de pygmêos), - Ai:ça (Jesus).
Esta pr ophecia explica-se porém d'est'arte:
O reinado dos Sultãos foi substituido pelo dos Christãos, o d'estes
. dará lugar ao dos Cherifes.
Elles pr etendem que o Cherife, que deverá expulsar os francezes
da Argelia, fá está n'este mundo, pois que vira a luz do dia em Marok,
e que chegará de Meca trazendo comsigo todas as populações musulma-
nas por entre as quaes passar.
Depois de r einarem os Cherifes, serão subordinados a uma raça
de anãos, raça ínfima e perversa que será exterminada por Jesus. "--
O filho de Maria proclamará e derramará sobre toda a terra a
igualdáde e justíça até o fim do mundo. .
O prazo para o cataclysma universal dista dous mil annos da he-
gira, porque o Prophéta disse: - O mundo terá mil annos e mais, mas
não chegará aos dous mil completo,s.

Inst. Hlst. - 17.

. \
EMENTARIO

Decididamente em pleno seculo XIX ergue, 'arrogante e ameaça-


dora, a cabeça a instituição de Loyola, não sob o cunho ascetico, não
envoltos os seus discipulos na aspera sotaina de um Jesuita ou Laza-
rista, como antes; mas risonha, jovein, bella, lorette emfim, trajando
costumes dé phantesia, a classica casaca, o romantico frack e o discréto
sur-tout, por Jraz das ruinas do Parthenon. . .
Assim é, que, sendo nós um dos membros d'essa .terrivel sociedade,
já não somos mais um homem, aquella creatura imagem do Creador,
esse sêr previlegiado que pensa, escolhe e quer, e sim uma cousa, que
impellem, arrastrão, retrahem, e virão e revirão a seu talante. A fé!
que já não temos vontade propria, que somo~ uma especie de -Marquez
de Montfior, que pensava só e tudo quanto pensava D> José• de Santa-
rém, o 1.º Ministro de Carlos II de Hespanha - nós pensamos o que
a soéiedade pensa, e queremos só e tudo quanto a sociedade quer.
· n•est'arte foi g_ue no fim do mez chegarão-se a nós dizendo: - O'
seu aqúelle, a Revista d'este' mez lhe pertence - e, sem mais replica,
eis-nos já na elaboração do Ementario. E, não o fizessemos, a ver como
nos reduzião logo a bicarbonato de . . . qualquer cousa , ou nos exauto-
ravão em estatua como ao Cabral velho.
Nada, isso nunca! porque mesmo, méa culpa, méa culpa, méa ma-
xima culpa! nós somos, do numero' dos mais incançaveis no serviço da
sancta congregação . ..
Graças ao Creador reina paz na igreja Elvas! Esta nossa Porto
Alegre é mesmo uma igrejinha. . . e por ellà passou o mez de Outubro
como se fôra uma das castas irmãs de Barbara Ubrik, a freira de Cra-•
covia, nada, absolutamente ' nada deixando á registrar senão mais uns
cinco expostos nos livros da Santa Cc1sa de Misericordia. Ah! que se
não fôra o pranto clamoroso d'esses desgraçados innocentes, orphãos
de paes vivos, dir-se-hia que nós não viviamos.
A Hespanha perdeo u,m Mendez Nunes, a França um Niel; mas nós
nem tivemps , que ,perder, ao que parece: uma centena de valentes no
, Paraguay, um Theophilo Ottoni, um João Manoel e outros quejandos
o que valem?
Nada, ' sem duvida; porque a França e Hespanha chorarão: esta; o
marinheiro que queria honra sem barcos mais do que barcos sem honra;
aquella, o bravo de Sebastõpol e mais tarde commandante do 4. 0 Exer-
cito dos Alpes: porém quem chorou, quem já se lembra de João Ma-
noel, o vencedor de Tagy e Potreiro Obella, do bravo de Peribebuy
e do illustre Theophilo Ottc;mi? · •
Serenemo-nos. Aqui está o Sr. Pavillon das Orphãs da Caridade,
para nos dar o exemplo: "Com brandura ... , com brandura, chegare-
mos ao nosso fim." -
Agora ao fim do que chegaremos, é que quizeramos nos aconse-
lhassem. · •
Ah! Vejão, do que é causa uma surpreza ... Uma surpreza é cousa
horrivel, perde-se a voz, a disposição, a energia, a força, e até as vezes
nem se póde correr. . . E' uma emoção que embota as idéas, emmudece
y

-259- .
os tagarellas, faz fallar aos mudos, correr aos parlyticos e parar aos
gamos . ..
A surpreza é o mais logico contraste do ouro.
Este aplaina, remenda, limpa, illumina e consagra tudo; aquella
escalva, rompe, conspurca, obumbra e anáthematisa tudo quanto haja
de mais generoso e mais nobre.
Dissemos: que só se conhecia o progredir e a vida entre nós, por
esse thermometro da moralidade de um povo - a roda dos engeitados,
mas ainda é tempo de retractarmos-nos, e assim o fazemos; porque a
par da corrupção que avulta devastadora e gigantescamente, marcha o
progr esso moral e material nas azas d'essa brisa perfumada e veloce
que refrigera e purifica os miasmas sociaes.
Pqrto Alegre vive a vida do progresso e da civilisação; qual o
Ashaverus bíblico, caminha, sempre, e . não como aquelle em precursor
de flagellos, mas obreiro do porvir e da grandeza de um povo nobre,
enthusiasta e bemdicto de Deos! t
Vejamos senão; aqui a litteratura nacional, que, nascente embora,
palpita entre os louros que já lhe engrinaldão o berço infantil; ali aos
açoutes do simoum da morte, entre o fumo dos combates, o pavilhão
da liberdade que flamêa sobre as ruínas das alcaçares e das masmorras
de um tyranno ; a historia que resume nos heróes de uma nação todos
os archetypos dos das outras; a poesia da guerra, este mixto divino de
nenias e hymnos, de magnanimidade e barbarez, de bello e horrível,
esse . concerto do inferno, essa hormonia despedaçadora de soluços e
gemidos com os canticos do triumpho!
E, se á esses a gloria espera além tumulo, á outros sorri a fortuna.
Este povo, cuja fronte altaneira hoje se levanta laureada sobre os pín-
caros das cordilheiras do Paraguay á admiração do mundo civilisado,
tem acção em todas as fibras de seu corpo, colosso que impõe limites
ao Atlantico.
Deixando mesmo o que se passa além da Província, já não seria
facil enumerar o que n'ella se offerecE! digno de Jnenção. Seu progresso
material tanto como o moral é immenso e futuroso. Em curto lapso ve-
remos em seu seio lançado o trilho ferreo que deverá unir a capital ao-
emporio agrícola da Província, e outro que trará o producto de suas
minas ao porto, senão o melhor, o mais concorrido, e unico por onde
passão os generos que permuta o nosso commerciante. Assim tambem o
telegrapho ligará por minutos a correspondencía entre Porto Alegre e
as cid.ades e povos mais importantes e longínquos da Província, que
talvez em breve vejarp.os (graças a uma dedicação rara e a esforços
quasi impossíveis, taes os do intelligente l)r. Braga) unida a de Santa
Catharina por esse amplexo da civilisação e da fortuna , qual se póde
chamar ao ferro-carril.
E não são sómente os meios de communicação que facilitão as
- transacções commerciaes e o interesse publico e geral, o que temos pa-
ra, com razão, inda que antecipadamente, nos regosijarmos, não; a in-
dustria prossegue tambem, mais lenta, é verdade, porém fertil em r e-
sultados benéficos.
Sim, a industria é a felicidade tambem, porque é a intelligencia
dominando a materia que se molda e presta a sua vontade e necessida-
des, porque se estende desde a agricultura até a ultima das artes, até
o sublime das concepções do genio, subordinada a applicação da scien-
cia. E' da industria que assim falla um autor francez, cujo nome igno-
ramos:
"E' por ella que manifesta o homem sobre a natureza o seu poderio :
assim a cultura de um grão, o trigo; a descoberta de um metal grosseiro,
o ferro; o emprego. de um instrumento bem simples, a charrúa; os ser-
viços que aos homens prestão os animaes que domesticára; e isto seria
-260- -
sufficiente para mudar a face, para refundir as sociedades humanas;
para subtrahir o homem á muitas dependencias, livral-o de muitos. c~i-
dados e satisfazer-lhe necessidades as mais legitimas; para emfim, de-
senvolvel-o e tornal-o apto á exercer suas mais elevadas faculdades.
"Por uma lei providencial as necessidades do homem crescem na
razão directa do desenvolvimento de suas faculdades . Esta t éndencia
invencivel da n atureza é o mobii essencial de sua actividade, e pelo
qual é incessantemente impellido a tornar-se •de mais em mais livre,
ao mesmo tempo que, de mais em mais poderoso."
Conhecidas as vantagens, e inda que obscuramente, a historia da
industria, resta-nos então consignar o apparecimento de uma nova, na
Província; industria que , se . apresenta materialmente visível, rica de
futuro e de esperanças, offerecendo á navegação, ao commercio e ás
artes um novo genero á permuta e trafico com o estrangeiro, para o
trabalho; e quiçá para a gloria do paiz, que terá talvez, taes a .decre- -
pita Grecia e a orgulhosa Roma, a sua eternisação em seus marmores,
se talhados pela mão do genio modelarem em symbolos a sua historia ;
n'essas abundantes e explendidas jàzidas que superabundão nos muni-
cípios circumvizinhos d'esta capital, as quaes dormem; senão o somno
da ignorancia, o da inercia, e do abandono. - Oh! que Deos fade bem
essa patriotica empreza, que acaba de estabelecer-se no louvavel e gran•
dioso empenho de explorar e manufacturar os marmores do Rio Gran-
de do Sul. ' , ·
Deixemos, porém de parte, este assumpto, que talvez pareça á ;3.l
guem improprio para ser tratado em uma revista litteraria - parêt
adiantarmos ainaa algumas palavras sobre outros importantes assim.
Temos sob as vistas tres lindíssimas poesias, que nos merecem lou-
vores, e são: duas scenas poetico-dramaticas. - O Anjo da solidão, do
illustrado poéta coetaneo, Sr. Bernardo Taveira Junior, e O Anjo dos
Sepulchros, do talentoso Sr. Francisco Lobo . da Costa; e a Escrava fu-
gitiva, de nosso amigo o intelligente jovem Achylles Porto Alegre.
0 1 Anjo da solidão é - uma das mais bellas creações poeticas de
seu genero, e que bastaria para dar lustre ao nome do Sr. Bernardo Ta-
veira, se este fosse ainda obscuro. Desejamos poder aqui transcrever
completo esse -poêmeto, porque em sua leitura teria o autor elogio
mais eloquente, que todos quantos lhe podessemos tecer; mas o limita-
do espaço concedido ao Ementario não nos permitte a satisfação d'esse
desejo; não podendo, . porém, isso, cohibir-nos de notar, entre alguns,
entre todos -o~ · versos que o constituem, estes que são bellissimos:
"Cada cranêo é .um poêma
"N'esta gélida mansão.
"Cada cruz signala um _!lOme, .
"E cada nome um padrao.
"Este campo é uma historia,
"E eu me curvo á memoria
"Dos que repousão aqui;
"Cada qual foi um guerreiro, ,
"Foi um martyr do Cruzeiro
. "Por quem lagrimas verti.
"Quanta glória o mundo ignóra
"Do silencio na mudez!
"Quantas c'rôas reflorecem
"D'este sitio na rudez!
"Aqui, livres contra escravos,
"Eu vi batalhões de bravos
"Combaterem sem temôr,
-261
I,
"Vi-os cahir denodados
"Bradando enthusiasmados:
" Viva o nosso Imperador.

"Oh! em tão féros combates,


"Em tanto ardor· nos embates
"Qual d'elles heróe não foi?!

"Eia! ó cranêos, animai-vos!


"Vinde a historia coritar
"D'essas pugnas gloriosàs,
"D'essas lutas de pasmar! ,.
"Mas não! . . . Basta que um só falle,
"Pois d'um só a historia vale
"Para honrar uma nação;
"Iguaes n o arrojo e coragem,
"Combatião com a imagem
"Da patr ia no coração."

Este bello ~oêmeto foi pelo bardo rio-grandense dedicado a uma


das glorias do palco bra zileiro, a laureada actriz D. Adelaide do Ama-
ral.
O Anjo, dos sepulchros, como o Anjo da solidão desce entre as som-
bras da noute; em, horas tardas ao campo, onde se ferira o combate, e
então cem iterio; e ahi, ant e esse lugubre painel, elle se reclina a cruz
da valla onde dormem o somno eterno tantos heróes, e com voz ungida
de piedosa sau dç1de, er gue por elles uma prece ao Altíssimo, e evocan-
do a gratidão da patria,· faz-lhe o panegyrico dos seus gloriosos mar- .
tyres.
Só o poéta póde definir em sua sublime lingoagem as impressões
que o extr em ecem ante esse triste espectaculo : deix emos portan to, a
elle a sua descripção, e ouçamol-Q. admirados :

"Sombria corre a noute, e as vozes do mysterio,


"De manso, nas hervinhas começão a soprar . ..

"Tantas sepulturas. . . tantas cruzes! . ..


"Nem dardeja siquer um cirio além._ . .
"Vérmes, ossadas . . . aguçadas urzes! ...
"Oh! parece um terrível cataclysma!
'.'Diz-me, ó ar, que passaes, cortando as cópas
"Dos arvoredos, se isto é acaso scysma,
"Ou a ;verdade que meus olhos vêm? . . .
"O ar emmudeceo . . . nem me responde!
"Onde estou? . . . Ah! me diz agora a mente,
"Na mansão dos romeiros da saudade, .,
"Dos levitas da gloria e - Redempção!
-262-
"Róla o raio nos céos . . . rasgão-s~ as nuvens,
"E a turba féra nem siquer se aterra!
"Gemem feridos . . . hirtos de agonia!

"Que · espectaculo inda aquelle? ... tudo horrivel:


"Nas aguas um clarão como de incendio .. .
"As galeotas vão beijar o nivel
"Dos arroios, que espumão revoltosos!
"Boião cadaveres. . . mutilados todos!
"E o fumo se aproxima! Ah! cáem mortos
"Mil filhos do Brazil.

"A trincheira é raza!


"São leões que se arrojão no torneio . . .
"Exhala o sangue seu vapor que abraza,
"Jorrando immenso, fatal, imaginario;
"P arece uma mortalha se roçando,
"Rubra, nos braços de feral calvario!
"Tenho medo de ver! Que quadro feio !

"Amanhã . . . Ai! Quem sabe! pelo pó,


"E pelas murtas, que o pampeiro arrasta,
"Será este sitio, um mattagal tão só,
"Ignorado p'lo viajor que passa!

"Que importa! Amanhã, aqui, nas beiras


"D'este bosque feral sem •nome e luz
"Raiará o jardim das oliveiras;
"E o calvario, rasgando a mysteriosa
"Procella do abysmo inviolavel,
"Mostrará ao que passa, alma saudosà,
"O sepulchro dos Martyres da Cruz.

Passemos agora ao folheto ulthnamente publiéado por nosso con-


socio, o Sr. Achylles Porto Alegre, contendo uma poesia a que chamou
A Escrava Fugitiva. Não somos, nós bem o sabemos, dos competentes
para fazer uma critica sobre qualquer trabalho litterario, e m enos inda
sobre poesia. Té mesmo, nem o tentariamos se o fo$semos. Mas somos-
lhe affeiçoados, e muito francos e livres em nossos juizos, para dizer-
mos ao Sr. Achylles, o que pensamos sobre sua poesia; e ao contrario
de outros, começaremos por notar antes das bellezas, do merito que ella
encerra, aquillo que lhe julgamos defeitos, e são:
1. 0 - Que em sua poesia se aspira muito prônunciado o perfume
que trescalla da Judia, de Thomaz Ribeiro, de que é impressão imme-
diata e Escrava Fugitiva, como se vê nos seguintes versos :

Iremos tambem á Nubia,


N' Abyssinia e no Egypto,
A' patria das tradicções,
O berço das lendas sant?S
D'essas nobres gerações
Agora já mortas tantas.
que lembrão QS de Thomaz Ribeiro na poesia Judia:
·-263-
,
"Cresci, meu pae, uma noute
"Disse-me - E' já tempo ag.6,ra;
"Ergue-te ao romper d'aurora,
"Vamos partir amanhã;
"Vamos ver as terras santas,
"Sepulchros de teus monarchas,
"A patria dos pa"triarchas,
"Desde o Egypto a Chanaã.
Estes outros do Sr. Achylles:
Mãe . . . 6. . . não irei mais longe,
Cansei p 'ra sempre talvez,
O suor me alaga a face
O sangue me inunda os pés.
que são quasi os do poéta alludido:
" - Pae, cansei, mostra-me a patria,
"Quero dormir sem receio ...
"- Filha; encosta-te á meo seio.
, "Que não tem patria Israel!"
E ainda outros, imitação immediata aos do cantor portuguez, igual
até na construção, como vê d'esta quadra:
Dorme, filhinha das entranhas minhas
Dorme sosinha sobre os braços meus,
Dorme, que aqui eu chorarei por ti,
Anjo que vi esvoaçar aos céos.
Semelhantíssima a est'outra d'aquelle poeta:
"Dormes? E eu vélo, seductora imagem,
"Grata miragem que no êrmo eu vi, '
"Dorme - Impossível - que ~ncontrei na vida!
·'Dorme, querida, que eu descanço aqui!". ·
2.0 - Haver, se betn que raras vezes, como ·que um salto rapido
do commum ao bello e vice-versa; um como sopitar de chofre a fluidez
do verso, o ...encadear do pensamento, que parece quebrar-se; emfim,
um certo que, que não sal:;>eriamos explicar, mas que i;entimos de des-
troncamento quer na acção, quer na mudança das situações, como se
vê n'estes versos que são seguidos: ·
Antes morrer na miseria,
Sem familia e sem conforto,
Pelos seus abandonada,
Do que ser rica e captiva,
De um monarcha requestada,
Nas suas festas conviva.
Meu Deus, Senhor, dai-me forças!
Cansei, foi longa a romagem,
Mas poupa-me ainda uns dias
Até que eu chegue a Guiné; ,
Quero morrer de agonias
N'esse paiz que meu é.
- 264 -
3. 0 - . Finalmente, não differençç1r-se o genero do verso nas di-
versas passagens, n 'esses transporte.s que se poderião chamar muta-
ções .e scenas em gyria dramatica. _
E estes são os pequenos . defeitos, todos quantos taes nos parece-
rão, e que talvez não o sejão, o que estimavamos de coração. '
Vej amos agora o que ha digno, tàmbem' a nosso ver, está claro,
de elogio e de nota. Ha muito: ha quasi tudo. Vej amos por ém , e co-
mecemos pela pintura breve, mas linda e tocante, que -faz o poét11: da
triste condição da escrava: .
Se a pobre chora curvada
Ao pezo de mil tormentos,
Seu pranto não tem valia!
A escrava não teni direito
Pe verter pranto do peito
Pranto que a dôr allivia!
Se a miseravel captiva,
Curtindo tormentos· tantos,
Pensasse em amar um dia, ,
Sonhasse um mundo d'amores,
Louca de ·certo seria,
Crendo um riso em mar d'horrores.
E' cheia de sentimen to que ella con tem pla o seu estado, prefe-
r indo ;i morte pela extenuação no abandon o a con tin ual-o, e assim ex-
clama ,c om voz repassada de justa dôr:
Antes morrer sem lareira
No seio da solidão,
Sem um tecto, sem guarida,
Lavada a fronte em suor,
Do que ser-se n'esta vida ·
Escrava de um vil senhor.
Como é , sublime a sua prece, quaqdo erguendo o pensamento a
Deos o arastra pelas areias ardentes de sua patria, e com a alma a
transfundir-se no pranto · ,óra, e rézando falla ao passado, ás saudades,
ás reminiscencias! E então são estas as suas eloquentes palavras:
Meu Deos, deixae-me ao menos
Ver o céo de minha patria, ,
Se patria a captiva tem!
Não sei meu berço onde é,
Se nasci em Mesasem,
Em Loanda - ou em Kobé.
Qu'importa! nasci na Africa,
Na terra de Mesraim,
O' me·n ti! Já nem recordo
O torrão, onde eu nasci,
Roubada ainda creança,
Quando dez annos eu tinha,
'Só guardo fraca lembrança
Da mulher que sempre vinha
Cobrir-me as faces de beijos,
Acalentar-me_em seu collo .. .
- '265-
Porém, quem era meu Deos?
· Que sempre a meu lado via,
A embalar-me aos cantos seus
Sorrindo com alegria?!
, Em fim, depois de outras muitas strophes, onde a imaginação do
' poéta ascende.o bem alto, elle ainda soube significar a resignação da
mar.tyr, quando os últimos lampejos da esperança de patria se lhe apa-
gavão .n 'alma, com estes lindissimos versos:
Meu Deus, meu Deus, que fadiga!
O cansaço me suffoca,
Tenho sêde, mas a fonte
A secura · me não mata!
Em brazas arde-me a fronte,
Onde a dôr só se retrata.
Meu Deus, que sina maldicta,
Ir-se caminho da patria,
Quebradas tantas cadeias
De medonho captiveiro,
E ver-se· correr nas veias
Da morte o sôpro ligeiro.
\
, A escrava fugitiva tem por autor um jovem, intelligente e estu-
dioso que promette, se não desanimar c:omo tantos outros talentos e
vocações o têm feito, recuando o caminho da celebridade, ser o or- ...
gulho de sua província: ao menos isto é o que julgamos do Sr. Achyl-
les Porto-Alegre. , '
Quanto ao juízo que formamos de sua obra, e que julgamos rude,
porém sincero, nos faz lembrar a seguinte anecdota, que tem muita
analogia ao caso: - Quando em j_uncta se redigia o Dictionnaire de
l' Academie, e que 'o redactor da palavra minutieu1' marcára que o t,
n'esta circumstancia, se pronuncia como se fôra um c, um dos mem-
bros presentes exclamou aturdidamente: - "Ora é boa! Bem sabemos
nós todos que o t precedido d'uma vogal e seguido de um i toma o
som de c." Ao que respondeo Nodier, o redactor: - "Meu caro col-
lega tende picié de minha ignorancia, e faça me a amicié de i:epetir
a moicié do que acaba de dizer."
Assim tambem o poéta dirá algo sobre o nosso juizo á sua poesia.
Uma vez na maré das anecdotas, lembra-nos uma outra, que se
presta magnificamente a encaixe para fechar o Ementario, cuja anecdota
se pode chamar a dos dous adverbios; eil-a: .,,.
Um estudante da Universidade de Coimbra que nos ultimos annos
a frequentava, recolhendo se embriagado para casa, encontrou, de ma-
drugada, o lente de sua Faculdade.
- Como vae? perguntçm-lhe o ·magister.
- Vou bebado, respondeo o estudante.
- Pois já? ·
- Ainda, replicou-lhe o academico.
Assim fizerão comnosco a respeito da redacção d'esta Revista,
pois que pergunt~mos, surpre·zos, ao Pa,rthenon: pois já somos redactor
outra vez? ,
E elle, por seu orgão mais autorisado - o Continuo, nos, respon-
deo: - ainda.
Bernardino dos _Santos.

- '
-266-
Épilogo.
Desta vez fazemos um Ementario como os sonetos do fallecido
Sr. João de Pontes, que continuavão, mas é para offerecer aos nossos
dramaturgos o seguinte· e deploravel acontecimento, como thêma para
um drama historico, e que foi assim narrado em gazetilha da Reforma:
"Deo-se no dia 4 do corrente (Setembro d'este anno), na fregue-
zia da Aldêa dos Anjos, um facto extraordinario, que revela a ene.rgia
da mulher quando allucina-se pela paixão, e que se vê desprezada.
· "Maria Justina era uma mo~a, residente na povoação da Aldêa;
que segundo nos infórmão enamorara-se de um moço, negociante ali
estabelecido, sendo o seu amor real ou apparentemente correspondido. -
"Mais tarde espalhará-se o boato na povoação de que o moço de-
prezava Maria Justina, e que estava justo para casar-se com outra moça.
"A paixão e o resentimento puzerão nas mãos da corajosa moça
a arma com que pretendia vingar o seu amor desprezado, ou quem
sabe, a sua honra offendida.
"No dia 4 vestió-se Maria Justina em trages de homem; e ao es-
curecer dirigio-se á casa do moço, pedio para fallar-lhe, e ao apparecer-
lhe, recordou-lhe com resolução e energia o compromisso que havia
contrahido da sua vingança.
"Nesse momento apontára-lhe a pistola, porém· o esquecimento que
teve de armar o gatilho permittio a fuga do moço, que fechára-se em
um quarto.
"Maria Justina voltou á casa e ahi suicidou-se, desfechando um tiro
sobre o peito .
."Dizem-nos que a infeliz suicida pertencia a uma honesta familia."

..
- -o-0-o-

..
REVISTA MENSAL
DA

SOCIEDADE

PARTHENON LITTERARIO

1.0 ANNO . - NOVEMBRO DE 1869. - N. 0 9

-o-0-o-

TYP. DO JÔRNAL DO COMMERCIO


PORTO ALEGRE
1869
COMMISSAO DE REDACÇAO

Vasco de Araujo ·e Silva.


Appollinario Porto Alegre.
José Bernardino dos Santos.
Aurelio V. de Bittencourt.
Francisco Isidoro de Sá Brito.
Hilario Ribeiro de A. e Silva.
/

REDACTOR DE MEZ
Francisco Isidoro de Sá Brito.
OS PALMARES
ROMANCE HISTORICO
POR -
,APPOLLINARIO POilTO ALEGRE
(Continuação.)
CAPITULO V.

Mais de cem negros rodeão o vulto gigantesco de Pero Lopes, e


de oito homens d'armas de sua gente.
São ondas sobre ondas que batem um rochedo!
De todos os lados silvão golpes tremendos e elles inconcussos!
Ao principio descarregarão as armas de fogo, mas na continuação
do combate só fazião uso da espada.
· E então Pero Lopes?
Era admiravel, semelhava um colosso de granito em nossas cor-
dilheiras, onde o raio apenas roça-lhe o fastigio.
·o sangue frio, a flexibilidade de movimentos, a cértesa da vista,
não o desamparavão n'esse momento. Aparava o golpe martifero que
lhe atiravão com uma destresa pouco idonea á sua idade, e quando
feria um inimigo, rojava pelo chão banhado em sangue e praguejando
contra o leão portuguez.
A turba-multa de inimigos estimulada pela resistencia e pelo ar-
dor da peleja, soltava safara e selvatica pocema desesperando da pro-
secução d'uma lucta em que tão pouco disputavão o terreno, e quando
voltavão á carga era- com cego turor .. . ardor do desespero! ... Porém
desgraçados! Juncavão o soalho com outros cadaveres.
Depois de alguns vinte minutos, só restava Pero Lopes e dois de
seus companheiros já cobertos de feridas.
, Uma voz. sobrepujou o tumulto:
- Basta. . . Os Palmares não desconhecem a bravura em seus
contrarios.
Entre nós não ha um que o exceda em vaÍor.
Deixem-n'o livre.
Disse; obedecei.
Foi um bello e gentil africano quem fallou. Através o azeviche
do rosto transluzia-lhe a magnanimidade e a nobresa do coração.
Tinha o sello da magestade n-o porte e a soberania no olhar.
Acabára de entrar na sala.
Tambem á sua voz, á seu gesto de mando, as mãos descahirão e
reinou tµmular silencio. ·
Per.o Lopes, cruzando os braços, mediu ·de alto a baixo.
- Escravo rebelde, disse com sobranceiria, manda matar me, se-
não breve serei junto ás tuas cabanas com recursos que hoje me fal-
lecem. E tudo será arrazado . Nenhum habitante escapará ao fio de
espada.
Manda proseguir o combat_e, ou aliás -lembra te que a memoria
-270-
da injuria não ha de extinguir-se. em meu peito . . . Subupira de novo
será um montão de ruinas.
- Orgulhoso · portuguez, nada me deves. Se te deixo a vida,
agradece a teu valor. Estás livre, parte_ Se fores a teus_irmãos, dize-
lhes : que Gozki, filho do Zambi Fabul, os espera em seus entrinchei-
l'amentos. ·
Tens jús á vingança, não a temo.
Pero Lopes acena aos dois homens d'armas que ainda vivião :
- Acompanhem-me.
E transpoz a soleira da porta fulminando com profundo olhar de
despreso aquelle, cuja magnanimidade acabava de salval-o.
Gozki sorriu com o sorriso tranquillo que revela um triumpho.
Admira que homerts, como Pero Lopes, almas empedernidas, sem
uma fibra de evangelicos sentimentos, quando se tratasse da guerra,
iie transformassem radicalmente. E' que n 'estes aziagos tempos ainda
vislumbrava alguns vestigios da cavallaria, e apesar dos vicios dos co-
' lonos, se aceitava o legado das gei:ações passadas como uma veneranda
tradicção.
Via-se .então a pollucção grassando em toda a gerarchia social,
desde o donatario até o vendilhão das ruas, desde a garnacha até a
· sotaina; porém, a não ser por um jesuita, a infracção das leis de honra
e pundonor escasseava muito. '

CAPITULO ·v1.
Lancemos agora um lance d'olhos sobre a fundação e marcha
progressiva dos Palmares.
Aos nove gráos de lattitude norte, vinte leguas distante do m ar,
se elevão os mocambos dos negros Palmares, na fralda oriental da
serra da Barriga.
Outr'ora .. . em 1630, quarenta negros que dizem filhos de Guiné,
habituados ao infortunio e fadigas da guerra, acabrunhados sob o jugo
despotico dos senhores, e outrosim dominados pelo espirito de liber-
dade ,que os hollandezes . conseguirão inspirar-lhes, sacudirão as alge-
mas do captiveiro internando-se nas densas e vastas matas de Alagoas.
Caminharam alguns dias. /
O topo r ecortado de uma..montanha suspendeu-lhes a peregrinação.
Era de tarde. Uma tibia penumbra começava a rebuçar as trunfas
das arvores seculares, que ostentavão luxuriosá vegetação.
A bafagem crepuscular, tepida e doce, segredava ternas endeixas
no alaúde da melancolia.
O sabiá -ao recolher-se no docel da rama, despedia-se da luz
com um canto cheiQ de inspiração. ·
Era a hora da scisma, da saudade e do 'amor.
Alli, na encosta crescião e mergulhavão nos ares seus leques tre-
; mulos, grande porção de airosas palmeiras. .
A crista da montanha banhava-se no ouro do ·sol.
Era um painel soberbo!
Um scenario dos virgens sertões da America!
, Estes romeiros da desgraça pararão , estaticos, um assomo de ad-
miração emmudecera-os.
De· cada olhar deslisava um regato límpido e sereno. A patria,
esta terra d'além-mar tão longe e tão estremecida, o passado librado
entre o go_?o da liberdade e os amor es das moças africanas, os paren tes
de cujos peitos foram arrebatados, o areal com seus medões de areia,
a choupana de sua infancia, tudo isto reviveu-lhes no pensamento.
Chorarão estes homens de ·ferro!
-271
Mas era uma grata recordação borrifada do pranto de nobres co- 1
rações. .
Sob o ébapo de sua cutis dormía o gerll}en de grandes sentimen-
tos.
O quadro esplendido da natureza tocárá-os ao vivo .
Depois disserão unisonos:
Aqui. ,
E cada um depoz na gramma o fardel de romagem. ~-
E que sitio mais proprio encontrarião?
Como em se-u paiz natal, a palma retouçava-se em graciosos me-
neios n'uma athmosphera pura; o mio sonoro e grave da canguçú es-
morecendo n'um mar çie folhas, recordava-lhes o tigre e o chacal.
Além de que não mui longe estava um nucleo de civilisação que
serviria a seus serios intentos. · \

Pass~rão-se annos.
Tudo· soffreu uma mudança que pasma pela previdencia com que
alguns obreiros- destituídos d'uma intelligencia culta, poderão levar a
effeito semelhante• obra.
Aqui e alli uma derrubada assignala a mão do homem; a lavoura
substituiu á vegetação espontanea.
Aldeias se estendem na fralda da serra.
Os tujupares cobertos de sapé e pindoba se desenhavam na diapha--
na athmosphera, c9rtando-a com suas comiadas angulares.
Ruas alinhadas e de grande extensão onde homens e mulheres se
entregão tranquillamente aos misteres da vida, o cacarejar das . aves
domesticas, o gaseio tão estranho e simultaneamente agradavel dos pas-··
saros ,do bosque, tudo isto emfim desafia o cogitar do espectador.
Em 1695 era um grande povo com vinte mil habitantes pouco mais
ou menos.
A' primeira defecção adherirão outras,- ora excitados pelos funda-
dores dos mocambos, ora pela tendencia que todo o homem tem çlo go-
so da liberdade material, e por vezes para furtarem-se a castigos me-
recidos, ou finalmente por . aprisionamento, pprque estes mesmos afri-
canos que subtrahirão-se ao captiveiro, 11ão temião escravisar aquelles
de seus compatriotas apprendidos nas arduas correrias que fazião de
tempos a tempos, tão enraizada lhes ficára a idéa de posse sobre seus
semelhantes. '
Não é para censurar se quando os vemos natos no meio dos mais
absurdos erros e fanaticas superstições. ·
No berço, nas adustas regiões da Africa virão assim , praticar por
seus m aiores; no Brasil estiverão sob a manopla pezada dos senhores,
e d'ahi inda notavão 1nos indígenas o mesmo costume.
Era bem natural.
Logo que reuniu-.se um numero regular, a falta de mulheres fôra
geralmente i,entida.
Para remediarem semelhante óbice, adverso á sua união política-
resolverão atacar á mão armada as fazendas dos colonos visinhos. 1 '
Atiravão-se para isso sobre ellas, entregavão-n'as ao saque e re-
trocedião levando comsigo todas as mulheres, sem sequer acatarem a
familia dos lavradores. As esposas ou filhas d'estes sujeitavam usual- ·
mente a resgate ; porém, tambem não era caso novo o ficarem com ellas.
Em taes pormenores imitavão, sem o presumirem, aos fundadores
de Roma, e Rocha Pitta ajunta que o roubo das Sabinas não foi nem
mais geral, nem mais completo.
E inçia nota-se outra identidade com os antigos dominadores do
mundo, no modo por que fazião a guerra e por que retinhão as povoa-
ções limitrophes como tributarias. ·
Os habitantes de Porto Calvo e de outros logares proximos para
manterem as vidas e beni;,. transigião com elles, ministrando-lhes ar- .
mas, munições e outros generos de mercancia.
Era uma alliança implicita que- assim firma vão.
T.lnhão uma fórma de governo republicano, parà o qual era sem- •
pre escolhido como chefe, o mais sagaz, intelligente e valeroso d'entre
elles. Chamava-se a este Zambi, que por meio de maiores subalternos
ou ministros, fazia executar uma legislação oral que todo o cidadão de-
via conhecer.
Suas attribuiçõés cóllectivamente consideradas, circumscrevião-se
a velar pela prosperidade, socego e policia da nação .
Emquanto a seu codigo penal, era justo e fundado em principios
fecundos. ·
O homicidio premeditado, o adulterio e o roubo, castigavão com a
pena ultima. · .
O escravo que fugia, votava-se ao açoute e frequentemente ao cas-
tigo dos maiores delictos, severidade que de nenhuma si>"te póde .c: r 0

justificada. · ·
Os crimes de menor magnitude tinhão punições cork-i,JOndenteo~.
Em materia religiosa pertencião á communhão , christã meramente
aquelles que havião recebido · o baptismo. "Estes, diz Southey, conser-
varão ainda alguns, r~squicios do Christianismo, religião de que lhes
havião infundido principios tão corruptos, que, nem ~tes homens igno-
. rantes como erão, poderião t0rnal-as mais dissimilhantes de seu divino
prototypo."
Esmerilhemos as causas efficientes.
O escriptor severo, embora na estreita orbita d'uma' peça litteraria,
não deve prescindir' de asperger á verdade em seus trabalhos. Se a ques-
tão não decide-se a priori, reclame as circumstancias de tempo, locali-
dade, costumes, etc., é esta a argumentação idonea para modelar sua
obra pela natureza e logica dos factos. _
Os fautores erão os senhores e o jesuitismo, que, para manté.l-os
em céga obediencia, aproveitando-se df1S densas trevas que os envol-
vião, não recuavão na peccaminosa empreza de embuir-lhes os mais
grosseiros erros.
E quem não sabe quão facil e vigorosa r.ebenta a má semente em
terra sem cultura? !
Em frequentes ensejos o mesmo exemplo coopera; a com vehemen-
cia nas aberrações relativas á divindade, e á adoração transcendente do
espirito humano, . singela, e magestosa, se uma lithurgia e um 'dogma-
tismo incomprehensiveis não vem enredal-os n'um ordume de obscu-
ridade. ·
O catholicismo então . desprestigiava-se na America no verdor dos
annos e onde a civilisação estreiava o passo ge gigante abraçando a seu
lábaro a liberdade e a razão - os dous fanaes inextinguiveis do pro-
gresso.
E' que a filha de Colombo tinha um fo go divino a pulsar em cada /
arteria, um vofcão de verdades nós seios d'alma.
Os colonos, mórmente os mamelucos, arrostavão face a face a pre-
. potencia da Curia Romana, sem sequer crerem que offendião e cerceia-
vão de algum modo o- poder temporal do Papa.
Tambem como obrarem diversamente, se conhecião os crimes da
Inquisição e da Companhia de Jesus?
E o rancor entre colonos e jesuitas não era produzido senão pelo
in.t eresse com que uns e outros pleiteavão o trabalho do gentio.

\
-281-
coração -aos vinte annos, _cheio dé fé e de crenças ao eulto d 'esse amor,
esquecen do em seu- frenes i u m a fund a tristesa que desde a menenice
povoava suas scismas innócentes. / _
Leonel que trazia en nastrados em sua fron te os laureis de p oeta,
e mais infeliz talvez, do que ella, occultando sob a pallidez de seu rosto
o carinho de mil tormentos, a adorava ou por encontrar n'ella uma irmã
de- amarguras, ou porque Carlota era realmente bella, como a visão
que elle_ sonhára ao despontar-lhe a aurora da adolescencia.
*
* *
E' de tarde, o sol doira · apenas o cabeço dos montês, reflectindo-se
levemente ·sobre as agoas dormentés do Guahyba, onde .branqueijão
as velas de uma ou outra c;môa de pescador s. •
Carlota ternamente fita os céos, reben\ando entre os, negros cilios
uma ou outr a perola r ou bada sem sen tir á santidade de sua dor. Em
que pensaria ella? Em que pensamento_ profundo amergia Carlota sua
fronte descorada, sem as rosas do verdor dos annos, amarelle'cida em
noites de vigilias continuas?!. . . ' . r
H a n'este espaço que -decorre · do pôr do sol á imite, um quê de
inçlefinivel tristesa, que nos sensibilisa e entristece, arrebatando-n"os a
alma ás re_g iões eth ereas do sentimentalismo. '
Emquanto Carlota embebia-se nos paineis tristonhos que a natu-
reza descerrava aos seus olhos, u ma de suas mestras lhe trouxera uma ·
carta. ·
• Carlota ao receber sentiu um _ti;emor convulsivo, seu seio offegante
palpitava sob a branca escurnilha que lhe deixava. ver aquellas fórmas
divinas, mais arebatadoras do que as de Antiope de Ingres. Ao conhe-
cer a letra quiz sufocar .com sua mãó delicada a effervescencia de seu
cqllo, seu semblante tornqu-se pall_ido como a açucená que o. sol ca-
nicular sorveu-lhe a seiva e o 'matiz das petàlas. ·
_ Ao ler a carta u m grito de dor arrancado do intimo d'alma po-
voou- a mudez de seu domicilio, cahindo de joelhos com as mãos er-
guidas para o céo, e soltando de seus olhos dois fios de -lagrimas.
Leonel já não existia, a carta - fôra escripta momentos antés'êle
expirar, quando sua alma abençoava o mundo por ainda possuir Car-
lota , e os céos por ir gozar a suprema felicidade .
- Como não soffreu aquelle coração na hora extrema sem os affagos
da familia, e orphãô dos carinhos de um an jo que ll;le amenisárà sua
curta -exjstencia sobre a terra?! . . . -.
Leor:iel soffria do peito, uma das · r ázpes que lhe obstava de - já
se haver casado com Carlota ; coração nobre e não deixando-se arrastar
pelo tufão das paixões, preferiu sempre soffreal-as que ·sacrificar - o
resto de ·sua vida, a felicidade, o porvir de um anjo que o amava de 0
votadamente. - -
Leonel julgandd melhorar de seu incommodo, partira quasi com
•ª convicção· de voltar restabelec:iido d'elle; porém não calculou antes
de sua partida . nos subtis espinhos da saudade _:_ planta bemdita que
tem por orvalho - as lagrimas do coração purificada~ em nossas scis-
m as,- derramadas em nossas dôres, como um balsamo santo sobre san-
grenta ferida .
A estrella oscillante que pallideja-va na extrema dos céos nevoentos
de Carlota, apagára para sempre sob medonho negrume.
-*
., .
. um mez ha decorr.ido depois dos ultimos acontecimentos.
Por entre as cortinas de seu leito dormita umà mulher livida como
_ , 282-

uma estatim, comd Venus de Cnide cinzelada pela mão inspirada de


Praxiteles. Ella dorme e sorri. .
-N'este sanctuario onde a innocencia repousa, penetra um homem
com a fronte nevada pelos annos, tendo sobre as faces fundas rugas
mais aprofundadas pelo soffrimento e pelo estudo do que pela idade.
Elle abriu as cortinas; era Cai:lota que ahi estava prostrada pela · morté
de Leonel. · ' · , _
Seus cabellos da côr da flôr do · myrtho da vão mais realce ao pallor
de seu· rosto; seus seios estavão nús, sem uma rei:).da sequer que os co-
brisse, talvez devido ao desassocego da febre. O pintor Grego não pre-
firiria de certo para modelo de suas virgens os seios de Lais aos de
' Carlota. Passados alguns · instantes acordou-se.
-'- Então doutor, não me acha melhor? , ,
- Como sempre esperei vir encontral-a 'hoje.
Vái melhor da febre, tornou o medico examinando attentamente
as pulsações de seu pulso. '
, _:_ A febre é a vida, doutor.
- Não creia.
--. Olhe. . . .!?ara' mim é. . . nos delirios vem_-me todas as scenas
do passado, que nunca mais poderei gozar senão no céo. . . oiço a voz
d'elle . . . esta noite elle veio ter commigo . . . eu o vi ajoelhado bei-
jando-me as mãos . .. o fogo de seus labios extinguira-se, havia n'elles
a neve em vez d'aquella·: pyra que ·ainda senti no beijo de despedida
que elle imprimira em minha fronte ao abraçar-me pela ultima vez.
- Tudo isto é a febre, disse o medico' completamente absorto, co-
mo que consultando os mais reservados segredos de sua sciencia. ~
- Doutor, eu lhe peço' que não apague de meu corpo a febre, dei-
xe que ella me acompa_n he ao tumulô.
- Em breve estareis boa ...
- Boa! . . . Eu tenho a morte áqui, disse Carlota levando a mão
ao coração.
- A doença não é tão grave ...
- A ferida foi funcja demais; 'doutor.
- Tenho fé em Deus, que elle não abandona os seus anjos, lhe
disse o medico estendendo-lhe a mão.
- Adeus, meu -bom doutor..-
- Adeus.
Ao ·descer a escada o medicc1 levou aos olhos o lenço para enchugar-
duas lagrimas que lhe humedecerão as palpebras. -
Carlota conservava-se na mesma attitude em que o medico a dei- .
xára, contemplando por· um'a janella entre-aberta a immensidade dos
céus. ·
A noite· approxima-se e Carlota cerrava as palpebras sob as azas'
de _Morpheu como o cacto ao pôr do sol retrahindo _suas folhas. ?

Carlota, devido aos recursos da sciencia, depois de um ·mez e tanto


de continua febre pôde erguer-se do leito, de que ella julgára nunca
mais levantar-se.
Porém, ella soffria; na pallidez de sua face, sem aquelle brilho da
mocidade que . se ama e divinisa-sé, havia já talvez o bafo gélido da
~ morte. , ·
Ha corações que nascem para o soffrimento e para os · quaes a fe-
_licidade mundana não é mais que um sonho, uma miragem creada em
suas scismas e nutrida de amargoso pranto.
Carlota tinha um d'esses corações; no céo nublado de sua exis-

\
·-283-

tencia, a felicidade passára mais rapida que um meteóro nos espaços
na serenidade das noites do estio.
Isolada do mundo, na mudez de seu sanctuario, humedecidas as
faces n 'um prantear continuo, repassado das fezes de um luctar inces-
sante - sua vida cifrava-se agora nas lembranças do passado, n'aquel-
les doces philtros de um amor terno e innocente, como o de Croco e
Smilax.
Funda tristeza :transparecia em seus olhos, outr'ora cheios _d e vi-
vacidade; suas palavras arrancadas do isolamento de seu' peito, ·expri-
mião notas abemoladas como uma harpa desferida em noite de luar
aos beijos da viração, e cadenciadas aos gemidos dos salgueiros im-
plantados no chão dos mortos, como dizendo aos vivos - estes são os
marcos divisorios entre o mundo e os campos elysios.
*
* *
Ha um anno q4e a voz de Leonel para sempre emmudecera em
seus labios; ha um anno que a esperança extinguira-se do coração de
Carlota, como um cyrio nos umbraes de uma sepultura á uma rajada
em noite tempestuosa.
O mundo, a ventura, para ella desapparecerão sob a• lage tumular
de seu amante. · -
Nada mais lhe restava sobre a terra, nem uma illusão sequer se
aninhava agora em seus languidos scismares, onde outr'ora sua alma se
expan dia so,b as azas doiradas do amor e da esperança.
Pobre menina! Tão moça e sentindo nas veias de seus seios o gelo
da morte infiltrado em noites de insomnias, em noites de amargurado
pranto!
*
* *
Que voz é aquella, plangente, repassada de angustia, vibrada pela
corda mais funda do coração, como um harpejo do instrumento de Pa-
ganini, que se faz ouvir nos côros matinaes e ao anoitecer na saudação
angelica entre as paredes do Carmo?!'
Cada accento d'aquella voz é um grito dorido coado em rythmo e
harmonia, · como um gemido saturado de agonia entre as notas de um
orgão em deserto templo. . . ' .., ·
Essa voz eu a conheço. . . E' Carlota que cantando chora, como
Malvina das tradições dos céus nublados da Escossia descantando sob
· a impressão da morte de ,Oscar, s,eu amante, aos accentos divinos da
lyra de Ossian.
Carlota que definhava de dia em dia, que sentia a ·morte esvoaçar
através as bran~aS' cortinas de seu leito, sem mais um outro élo que a
prendesse ao mundo, vendo esvaecidas todas as esperanças desbrocha-
das ás auras do amor, julgando a felicidade terrena como um sonho,
trocára a ·vida do mundo pela solidão , de um claustro como Heloisa de
Abelard, despresando as galas, a opulencia e vindo sepultar-se para
sempre no convento Argentenil, victima de um amor infeliz.
A mulher que na flor dos annos abandona o mundo, suffocando
na amphora de sua alma os turbilhões de prazer, brotados ao sol ar-
dente da adolescencia - é porque negra ulcera 'lhe envenena os seios,
sentindo o acerbo espinho da descrença ferir-lhe o coração. ·
Carlota affastando-se do bulício social, ia I buscar na religião o
balsamo ás suas magoas. -
Um anno ha decorrido que Carlota viera habitar' o convento do
Carmo .

.,
/

-284-
São dez horas da noite; a ultima badalada ha pouco havia soàdo
solemne e grave na amplidão.
Junto ao leito de Carlota' um sacerdote firme, immovel, como
aquelle velho senador romano ,da invasão gauleza, 1~ um livro attenta-
mente.
Na céla reina profundo silencio, ouv.indo-se distinctamente as os-
cillações de um relogio, assestado n'uma das .p áredes.
De repente Carlota ,agita-se no leito, o sacerdote ergue a fronte,
que a "corôa da velhice cingilt, e' seus olhos buscão os da moribunda.
- O que deseja.s, filha? ,
- Tenho sede, muita sede.
- O medico privou-lhe de beber agua, filha? ..
- E' augmentarem o meu tormento; dêm-me ·agua, eu sei que mor-
ro, é questão de momentos.
, O sacerdote baixou os olhos sem responder.
O silencio de novo abriu suas azas n 'aquelle recinto .
- Padr e, tornou ella, alcance-me aquelle crucifixo, quero morrer
abraçada á elle.
O sacerdote entregou à imagem do Redemptor á moribunda e sen-
tou-se com os olhos fitos n'aquelle anjo, que batia as azas para trans-
por as regiões sidéreas. ~
ó , disse ella, não sei o rque sinto, nada soffro. . . nada, meu bom
padre . . . ·
ó, meu Deus, deixai-me respirar . . .
Ella estendeu a mão ao sacerdote que apertou-a entre as suas . . .
Carlota estava morta.

Achylies P. A.

-o-O-o-
PARTIDA

Sim! eu li, Dalia, os teus versos,


Me orgulhei de teu talento,
Perfumes e sentimento
Imagens de tanta dôr! ...
Mas ah! que é tarde, querida,
Cumpro as leis do fado iroso,
Vou partir . . . pois é forçoso,
Deixo a aima ,e deixo amor! ...

Ai meus tempos de ventura,


Paz, amor e poesia,
Vou tudo perder n'um dia,
No dia em que te perder!
Que a vida é como tu dizes:
Não passa nunca de um sonho, ·
Um dia bello e risonho -
Depois. . . tristeza e soffrer! ....

Como era bello esse sonho!


E como elle é bello ainda
Se te vejo sempre linda,
, 1 Triste, sim, mas me sorrir! ...
Oh! do tempo qu'inda resta
Até o ultimo instante,
Eu quero - poeta - amante -
Viver n'elle a me illudir! ...

E adeus, oh! noites felizes


Em que eu affrontava ufano
A tormenta, o minuano,
Para estar junto de ti!
Adeus, oh! tardes de nacar
E'm que eu te via formosa,
Fresca, linda como a rosa,
Mundano ideal da hury-!

Mas não chores, inda é cedo,


Nivea garcinha -de amores,
Já vai abrindo das flores,
Na primavera o botão; •

As andorinhas já voltão,
E o céo tem nuvens de prata ...
Não chores - olha na ·matta
. Já as aves trinando estão ...
-286-
Não chores; canta - na fronte
Tens o dom de poetisa,
Canta· amor e pede á brisa
Que te dê suspiros nieus:
E nas nuvens e nas auras,
· Na rolinha que suspira .. .
- Na saudade - sirn - te inspira
Em mim, em ti e em Deus.

E amanhão quando eu fôr ido . . .


Olha os céus e pede a lua
Que me leve a ~magem tua
Ao meu desterro de lá;
E quando as aves no inverno
P'ra o norte alçarem adejo,
Oh! então manda-me um beijo
Nas azas de um ·sabiá.

Relê depois estes versos


E roreja-os com teu pranto,
Traduzindo este meu canto
Na dulia de um serafim ...
Mas se acaso por tua mente
Passar de um outro a miragem, ·
Ai! não percas minha imagem
Ai não te esqueças de mim! . . .

Adeu's! amante adorada,


Acabou-se o nosso sonho,
Vou viver triste, enfadonho,
Porque sem ti vou viver;
Ai! Dalia, de ti tão longe
N'essa afanosa cidade,
Eu - n'ausencia e na saudade,
Que farei? irei morrer. (*)

Porto Alegre - 186 . . .

F. Antunes F. da Luz.

•·
( *) Verso de Gonzaga.
-287-

0 CELIBATO

EPISTOLA IV

Infatigavel vejo na estacada


O meu tão caro Pylades, mas lesto
Esquivando-se aos golpes que lhe atiro.
Recursõs não lhe faltão, seu engenho
Profusos os ministra a seu talante. ,
Se eu hoje fôr vencido lhe prometto
Que nunca mais o gladio da verdade
Me encontrará vibrando em outra arena.
·Refugium peccatorum, acredito,
São esses teus peccados de que fallas!
Deixar de rir não pude em ca'so s~rio,
Mas tens tal seriedade que conter me
0

Não foi possivel, ri e ri deveras! ...


Dizes que Adão legou-nos um peccado
• Antigo como o mundo, como os seculos: ·
Original o chamas, certamente
. Porque d'elle descende a nossa especie.
Ab Jove! o não conheço como o pintão.
Eva trazes á téla, como ·autora
Do crime abominavel qÚe condemna
Uma progenie toda a penas cruas; r
Mas o comer o fructo da sciencia,
Eu creio em nossa mãi não foi máo. gosto.
Antes hoje outras muitas a imitassem
Que menos ignorancia tinha o mundo,
E os filhos, como nós e tantos outros
Sahirião do berço armal).do pleitos,
Manejando algarismos e compassos,
E em subidas materias discutindo.
Em quanto ao demo - genio da maldade,
Que da . serpente a pelle revestira,
Juro que o não vi por vida minha,
"Non vídeo, non crederam" disse um santo;
E eu em estranho caso o sigo á lettra.
Não Il'.}.e dirás do assumpto já que tratas
Por que zonas s'estende o Paraizo?
Se é certo que demora junto ás terras
De Fohi e de Confucio ou é o reino
Do famoso Cibango que refere
O errante Marco Polo .. .
Eis d'uma duvida
Que eu quero me tirasses. Mas severo
Parece que estou vendo o meu amigo ,.
Reluctar na leitura ,d 'essa epistola.
Que queres pois que eu faça? Que eu consinta
E aceite o juizo erroneo tu desejas?
-288-
Os filhos onde ·vimos pelos crimes ,_
De seus pais responderem no presente?
Foi doutrina transacta, eu sei, amigo, .
Quando pela tragedia de Solyma
Israbel, pos dizião, vagueava,
Sem patria das nações escarnecidas;
Quando do despotismo o braço fero ,
Destacava impedindo a liberuade
Nos cimeiros adejos do progresso,
Os tectos arrazando furibundo, (
Salgando os campos -- palco de homens livres;
Quando golfava o throno de S. Pedro ~
Chuvas de excomm unhões e _de exorcismos
Sobre a misera e triste humanidade;
Mas 11 razão repelle tal doutrina
Que innocenfes arrasta ao cadafalso;
A justiça nos erros não repousa,
Principio de moral, . direito egregio
Do empyreo emanados não se calcão.

Innocente Terceiro em raiva acceso


:Póde matar a prole dos Catharos,
P óde o bronze soar de São Germano,
De Coligny , Caumont e Ferriéres
Ordenando execrando assassinato,
Póde um Borgia reinàr em mar de sangue
De incésto e de ignominia tendo a0 lado
Infame -Machiavello que o defenda ,
Póde. o Escu rial erguersse carrancudo,
E nos autos - de fé - o Santo Officio
Inson te gente inerme nas fo gü.eiras
Sem piedade arrojar, rrias resta a historia
- Areopago de arestos implacaveis,
E do genero humano a co~scienc_ia
Que n ão perecerá mercê de a lgozes. •
Se as leis da .terra os filhos não condemnão
Como crês que a causa do -Universo /
- Um Deos de bondade e de doçura
Inferior aos ho.rnens se pareça?

Como irás expiar um vão delicto,


Crirrie que não e
teu, e que apanhamos
Da tradicção nas ondas quasi mortas
Qual ambar que na praia o mar atira
E buscamos a fonte inutilmente?

Dizes ·que a morte, os males nos vierão


Da falta que Adão e Eva commetterão:
Que cr€ias convencido em taes sandices
Não creio~ não concebo, ás veras fallo.

., - Se outra vida · antes ci'esta nós tivemos,


Se fom os cherubins, prompto a ceito;
Mas não com 1 essas formas e esse cdrpo
Nos climas do planeta que habitamos. 1
-289-
A planta que viceja na floresta,
A alimaria que pasce na campina,
A ave que o céo azul pei:corre alada,
O insecto que nas folhas tem seu mundo,
O peixe que nas aguas nasce e vive,
Não os vemos morrer? E tem acaso
Peccado original por que respondão
Nos dias do presente?
Não pretendas
Com frivolos sophismas perturbar-me',
Que nullo intento fôra; o céo m'escuda;
A verdade defendo e seus direitos.
Dizes mais que te pezão mil remorsos,
Que mil magoas afligem-te incessante.
Quem falla não sou eu, ouve: é Christo.
Não nasce a luz de si, o sol não faz-se
E a terra não viveu dos tempos antes;
Os fizeram, se vivem. Quem creou-o/i?
Aquelle que no amôr resume tudo,
Que o nada vivifica n'um seu gesto,
Cuja voz aniquila, extingue mundos,
Cuja mão concedeu-te os bens que gozas.
Adoras a _teu Deus?
Sim, lhe respondes.
A mulher deu-te á luz, és fructo d'ella ·
Seu seio saciou-te a fome, a sêde,
Bebeste nos seus olhos ternos raios
E em sua voz a crença que sublima;
E o varão deu-te a sombra, e o sol ardia
E chegou seu braço ao teu, e em pé t'ergueste,
Andavas nú, lançou-te ao hombro a tunica
E depois teu espirito alentara
A senda te mostrando d'este mundo.
Honraste-os na velhice, foste sempre
A gloria de: teus pais?
Sim, tu i-espondes.
Filhos, eu te digo, todos os homens
D'aquelle que os creara, tanto os ama,
Do pai da natureza, pai bondoso,
D'aquelle cujo amor estreita o mundo
E não castiga os Africanos incolas
Por seu Deus adorarem no fetiche,
Porque a Vichnou e Siva curvem outros
Em Allah muitos creião, sigão muitos
De Budha e de Moysés, as leis escriptas
E um Tupan tonante a ponte dobrem;
Porque questão de nomes nada vale,
Vale a crença-fana! do sentimento,
Lume que o coração na voz, no gesto
Copioso irradia, intenso inflamma.
• Tu amas teus irmãos?

• Inst . Hlst . - 19.


-290'-•
Sim, lhe respondes.
A Naboth extorquiste os lindos cachos
Orgulhando o ver gel?
Não, · tornas inda.
De teu irmão o sangue derramaste,
Caim mataste Abel?
Não, o repetes.
Sua mulher cubiças? Nunca foste
De Urias assaltar o santo thalamo
Como David o fez?
Nunca, respondes.
Teu corpo nos excessos se apascenta?
Teu coração conserva más sementes
Que produzem o mal?
Porque emmudeces?
,,
Ah! Teu peccado, amigo, está nos err os
Que professas agora com soberba!
Na pugna em que uma lança forte vibras
Em prol · do celibato! Não nas eras
Onde em commum passamos dôce vida.
Estou cansado, a noite se adianta,
Mas ante-ponho o fecho, escuta ainda :
Jezus se retirando e- seus discipulos
A tarde de Bethania e vendo ao longe
Frondifera figueira, a ella forão ;
Porém só folhas tinha, nem · um fructo
E disse então J ezus: Ninguem teus f igos
Já'mais na terra os coma.
E a aurora crástina •
A figueira encontrou mirrhada e sêcca.
O padre é a figueira sem \er fructos?

Appollinario P. A.
----uOu----
-291'-

A AURORA

Eu amo a aurora dos vergeis do sul


Que a flor desbrocha d'infantis amores,
Meigo poema de harmonias cheio
Na , linda tela de mimosas cores.

N'um meio riso de fulgente aurora


Abre-se um mundo de gentil poesia,
Exhalão as flores mais perfumes, vida,
E a natureza mais descanta urri dia.

O lyrio murcho, que no hastil pendêra,


Ao grato orvalho reverdece então,
E a harpa eolia, que dedilha a brisa,
Traduz-se em notas de febril paixão.

Cobre-se o prado de roupagem alva


Da larangeira nas esparsas flores,
A selva em galas a sorrir florida
Tambem desperta a resfolgar de amores.

Veloz serpêa na montanha a fonte


Que o sol nascendo vem languil fitar-se,
E a branca espuma de christaleos flocos
Convida ao cysne_ para vir banhar-se.

Ha tanta vida n'essa voz suave


Que falla ao mundo no volver da aurora,
Que a fé renasce com meiguice n'alma
Vibrando ao peito doce amor d' outr1ora.

Eu amo a aurora dos vergeis do sul .


Que a flor desbrocha d'anfantis amores,
Meigo poema de harmonias cheio
Na linda tela de mimosas cores.

Porto Alegre. Novembro.


Appelles P. A.
-292-

A VIDA
(FRAGMENTOS DE UM
1
POEMA INEDITO)

I.
Levanta o albor da vida, e o caminheiro
Lá segue pela estrada;
Deixa no berço o marco da partida,
éumprir vai seu destino.
Ao principio são risos de esperanças,
Prazer, e dôce enleio .. .
Contempla o céo sorrindo na bonança,
No brilho das estrellas;
O sol, a natureza e o mundo inteiro
, Promettem o impossivel!
Eterna primavera lhe convida
Na amplidão virente,
O colhido perfume ás brancas flôres,
O mel colhido n 'ellas.
Pulsa o peito infantil impaciente
Chegar á raia extrema;
Estende a curta vista no horisonte,
O fim é já tão perto! ...
Os passos accelera; na passagem
Sacode o pó da estrada,
E caminha, caminha sem descanso,
Com fé mais pura n'alma!
Lança outra vez a vista no poente,
O engodo é sempre bello!
Tudo esquece; e no pensar, na ideia
Só tem almo conforto.

Que sonhos de prazer n 'alma alimenta


Em turbilhão de r isos,
Na debil nuvem que o rever alcança
Julgando o Parayso? !
Vem augÍnentar-lhe o calor das veias
O facho dos estios;
Passa a mão pela ·face empoeirada,
Sente o fogo da febre;
Lavada de suor a fronte ardente,
Lateja em descompasso!
Enlanguece um instante ;o sonho volve ;,
Vê tudo por um prisma!
Não lhe foge o anhello lisongeiro,
-· Oh! não lhe foge ainda,
Mas sente a dôr nas plantas laceradas,
Começo de um tormento:
Para que a carreira permanente
Na tão longa jornada,
Sem contemplar do céo a immensidade
Miragem de bellezas?
P ara que fatigar-se .. . a felicidade
Parece ali tão perto! . ..
-293- ,
II.
' A esperança siderea inda o confórta ,
Entre mil resplendores,
A noite de luar suavisa o sangue
Que pulsa nas arterias,
Os cirios, que nos ares pallidecem,
O fazem meditar.
Mas augmenta-se a dôr, nas chagas feitas
Dos cardos pela estrada,
Nas horas em que o sol em pino 8:quece
A poeira dos trilhos,
Quando pende no hastil a branca rosa,
E calão-se os insectos.

Só elle!' Eil-o que segue pela senda


Juncada de desvios!
Mas inda assim prosegue, inda tem _risos,
A''S crenças do futuro.
E' poeta; na mente afogueada
Quantas visões de amores?
Quantos sonhos ficticios de esperança
Lembrados n 'uma noite?!
E vai um apóz outro se apagando
Como as estrellas d'alva,
E vai um ·após outro dentro d'alma
Nascendo e refulgindo.
Soluça, treme . . . vem após um riso,
E sem cessar descanta!
São fragmentos de um sonho lisongeiro
Que não quer esquecer.
Falla á Deus inquerindo a brisa tibia:
'Porque nasci?.. . Pergunta.
Exaspera, comprime no seu ambito
O coração que chora,
Ao silencio fatal que lhe volteja,
Da natureza muda ...
Sorri depois á borboleta andante
De doirados matizes,
Onde quebra-se o sol prismando as côres,
De mil raios doirados.
Esquece as dores preso ao labirintho
De tantas commoções!
Colhe á beira da estrada roxo lyrio
Que murcha após instantes!
E vai o coração se requeimando
No t-ormento da sêde .. .
Sorve gôttas de orvalho na passagem
Pendidas na roseira;
Em vão as aguas de ehrystalea fonte
Bebeu e beb~ mais .. .

O cansaço o acolhe, os membros lassos,


Os passos lhe fraqueão ;
Vem o delirio calcinar-lhe o peito,
Quer descançar . , , não pode!
-294-
Uma voz se levanta entre a poeira,
E só lhe diz: - Prosegue! .. .
Então o forasteiro volta a . fronte ·
Quer ver o berço amigo,
Mas descobr e o infinito já sulcado, 1.
O marco está bem longe!
E caminha . . . caminlia! A dubia estrella
Sumio-se no horisonte .. ..
A nuvem se deslisa pelo ether
E lhe sombreia a fronte!
.,,
III.
, Foge-lhe então o prisma de illusões,
O mundo lhe apparece
Corrosivo qual é, entre esplendores
Pejado de miserias!
Que martyrios, que lutas incessantes
Ao · descer desse sonho!
Que pugna medonha se levanta!
Entre o peito e a razão!
As dores lacerantes dos espinhQs
Embebidos nas carnes;
O alento da vida esvaecido
Nos membros que fraqueião ;
O mundo encadeado á vis paixões,
Que renegão dos céos,
Fortalece a razão nessa descr..ença,
Pungente e dolorosa:
- · O amor, como Deos, é um mero sonho,
A vida, um só martyrio! -
E o coração lhe diz agonisante:
, - Tenho ainda esperança! .
Limpa as palpebras de lagrimas banhadas,
Mas a esperança é morta ! .. .
E caminha, caminha o peregrino
Na senda do infinito!
As horas da existencia estão contadas.
Não pode ter descanço!
A nuvem j á cubriu -lhe o firmamen to,
A escuridão perpassa . . .
Sem mão amiga que lhe limpe ao rosto
Os· suores da fraqueza;
Sem amparo que guie os debeis passos
Do corpo vascilante!
Revoltando-se então contra a natura
· Quer descançar. . . Embalde! . . ..
Inda imbelle supplica extenuado;
E a voz lhe diz : - Prosegue!". . .
E elle segue no trilho, a cada :passo,
Um gemido soltando! . . .
E caminha, caminha longo tempo ....
Por um seculo inteiro!

Até que cHega á raia da romagem!


Emfim parou agora! ; . .
Um abysmo mais. negro que a tormenta
-295-
Dista a penas um passo,
E' o ultimo gemido desse peito
Agonisante e fraco . . .
. Avança emfim, e no abysmo horrível
Para sempre sumio-se!

E o que resta depois d'essa jornada
Tão cheia de 'tormentos?
Os cantos de uma lyra que quebrou-se,
Lembranças de um p.assado.
E algumas flores murchas, desfolhadas,
- Colhidas- na passagem.
S. Brito.

,,,

---oüoo---

. ,.

·•
EMENTARIO

Delenda Carthago!
Abrão-se os diques, vomitem as cataractas ... converta-se o firma-
mento em nevoeiros de saraiva, abrase o sol o.·oceano, mas que venhão
noticias do chronista.
Grande coisa é ser chronista! Descreve trinta dias com a mesma
paciencia com que uma criança desfolha uma a uma as trinta· petalas
de uma rosa! . •
E não deve elle ser pretencioso? . .
Mas ... porque? O que é uma chronica? ... Quatro linhas escon-
didas no fundo de uma revista de trinta e duas paginas, meia duzia
de noticias esquecidas á primeira vista, e muitas vezes nem honrada
com a leitura do assignante. . . Finalmente. . . o tempo urge, e se con-
tinúo a divagar não poderei ser pretencioso, e farei o triste papel de
D. Quixote a combater os monstruosos gigantes · transformados em
1 moinhos. Pedreiro livre. . . mãos á obra.

*
* *

THEATRO. - Subiu á scena no dia 1.º d'este mez o mimoso dra -


ma· Carlos ou os fabricantes do Porto; é um trabalho puramente por-
tuguez, tanto pelos costumes como pela _linguagem.
· E' talvez o melhor drama portuguez que n'este deéennio tenha-se
exhibido no nosso theatro, mais da classe realista que da :romantica,
possue no seu singelo enredo, uma linguagem.modesta, mas á caracter.
Levado á scena em commemoração ao anniversario do rei D. Luiz
I, deu-nos uma noite aprasivel pelos esforços que fizerão -os actorse
para seu bom desempenho . .
A empreza dramatica resente-se por falta de pessoal; tem poucas
figuras boas, destacando-se sobre toda a companhia o actor Araujo.
E' um dos melhores actores que temos visto n'esta cidade; recom-
. menda-se pela intelligencia com que interpreta seus papeis, pela bel-
leza com que os executa, e pelo característico proporcionado; emfim,
nada deixa a desejar.
Vimol-o nos diversos dramas Dalila, Estatua de Carne, Mulher e
Mãi, na Graça de Deus, em D. Cezar de Bazan, assim como -em em
muitos outros, ·e o Sr. Araujo tem sempre revelado ser verdadeiro
actor- dramatico.
*
• •
DRAMAS. - Temos a inscrever mais dois trabalhos dramaticos:
Jeny a Irlandeza e A Vingança, são titulas de dois dramas do
Sr. Luiz Antonio de Almeida.
Não conhecemos o autor, nem queremos aqui analysar seus tra-
balhos; noticiamos e apena.s faremos algumas reflexões sobre elles.
· Jeny a Irlandeza, é extrahido do romance Rocambole, do escriptor
francez Ponson du Terrail.
/

r
-297-
Tem algum tanto de inverosimil como acontece nas obras d'aquelle
romancista. Sentimos que o autor se dê ao trabalho de extrahir o
enredo de seus dramas de outras peças litterarias.
Temos visto na Côrte subir á scena por dezenas de vezes, e sem-
pre applaudidos fervorosamente, os dramas Antonieta, e Margarida,
extrahidos do mesmo romance ; no entanto nunca procuramos conhe-
cer seus autores: é que se ahi colhe-se alguma gloria, ella pertence
ao autor do romance.
Sabemos que o Sr. Almeida é muito jovem; não queremos com
o que temos dito, pôr um obstaculo a que mais tarde colha louros na
senda litterar ia , não; antes pelo contrario , diremos sem pr e - Avantei
A Vingança, é um trabalho melhor organisado, e por isso sendo
uÍn primeiro ensaio, está acima d'aquelle outro, merecendo palavras
animadoras. Seus quadros estão melhor dispostos, seu enredo é bello,
notando-se apenas não finalisar o drama como devia. .
A litteratur a dramatica é. um trabalho que n ecesista de muito es-
tudo e cautela. · e
Deixamol-o por aqui, e passemos aos
*
* *

Cantos -do ·ermo e da cidade. E' um novo volume de poesias


do mimoso cantor Var ella, do filho dilecto do Guanabár a !
Devêra antes chamar-se - Flores do ermo e da cidade; flores!
ahi as ha singelas e puras, hescalando o aroma suave d'aquellas que
vegetão · nos prados solitarios, chrystalisados pelo orvalho do albôr;
existem tambe m adormecidas entre os salões esplendidos em vasos de
christal. ~
O que nos diz o. Canto do sabiá, A filha das montanhas, e o Vaga-
lume quando falla :
"A tribu das borboletas
Das borboletas azues, .
Segue teus gyros no espaço
Mimosa gotta de luz." ·
O que nos diz? .. .
A alma do poeta comprehende a bella obra da creação! Sublime
comparação!
Como sua lyra,_ se manifesta rodeada de esplendores na poesia -
As Letras?
"Na tenue casca de verde arbusto
Gravei teu nome, depois parti;
Forão-se os annos, forão-se os mezes,
Forão-se os dias, acho-me aqui.
Mas ai! o arbusto se fez tão alto, .
. Teu nome erguendo, q' mais não vi!
.... E n 'essas letras que ao céo subião
Meus bellos sonhos de amor perdi."

. - E tu, elevado cantor da - Minh'alma é triste, - qúe dormes


sob a lousa mortuaria, quando embriagado nos sentimentos de tua al-
ma, a brisa que passav·a não te murmurou um segredo, não te disse
que v oltaria sob o livre céo do Guanabára? . .. E ella voltou ... voltou
e viu-te adormecido nos p,á ramos da eternidade, mas achou <;>Utro can- .
- -298- -
tor que a esperava; era uma lyra doce e meiga como a tua. Olha . .. v2
n'esta voz a magica doçura dos teus cantos:
"Amo o silencio, os ' areaes extensos,
Os vastos brejos e os ser tões sem dia,
Porque meu seio como a sombra é triste, .
Porq' minh'alma é d'illusões vasia." ·
. . : .. . .. . . .. . . ... . .. . . . . ... . .. . ........ .
"Amo as .perpetuas que os sepulchros ornão,
As rosas brancas desbrochando •á lua, .
Porque na vida não terei mais sonhos,
Porque minh'alma é de esperanças nua." .
Não~é só isto; cadà um verso de Varella é uma perola estimada.
A Lenda do Amazonas, O General Juarez, Leviandades de Cynthia e O
Filho de Santo· Antonio, são preciosas poesias; e sobretudo quanto é
bello, mimoso e elegante quando diz em suas Estancias:
"O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo d'uma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem."
Que comparação podera ~elho; pintar os sentimentos da alma do
poeta?
E' este o s~gundo volume de poesias que o Sr. L. N. Fagundes Vô.-
rella tem dado á luz no correr d'este anno.
*
*

As victimas algozes - lê-se no frontespicio de dois volumes de ro-


mances do nosso distincto litterato -o Sr. Dr. Macedo. Tres novenas são
escriptas sob aquelle -titulo; é um trabalho original onde o autor pin-
tando essas scenas que diar ia mente se dão em nosso lar, r evela quão
prejdicial é.para a sociedade a escravatura.
A primeira novena, Simão o crioulo, é o escravo que desconhece o
sentimento da gratidão, e por ser escravo paga os benefícios recebidos
de seu senhor com ingratidão. .
A segunda, Pai Rayol, o feiticeiro, são dois escravos que se unem
para a destruição de uma familia ; é um quadro horrível do escravo re-
voltando-se contra o senhor, mas muito commum entre nós.
O ultimo; Lucinda, a mucama, é ainda o verme peçonhento que
tantas vezes tem corrompido o seio de nossas familiàs, é ainda a escra-
va respirando com as nossas virgens nó mesmo ambiente.
Triste verdade nos apresentá o Dr. · Macedo n'estes tres romances.
Vingança por vingança é o titulo de um drama publicado recente-
mente na Côrte por seu autor o Sr. Constantino Gomes de Sousa.
'
*
* *
Bibliotheca. - O Exm. Sr. Dr. M. Homem de Mello acaba de pre-
sentear ao Parthenon com um exemp1ar de cada um dos seus traba-
lhos biographicos e historicos.
O nosso illustrado consocio nunca se esquece da província que tão
sabiamente governou; e ainda mais, amando· a litteratura patria e de-
sejando seu engrandecimento, nunca s~ faz esperar em semelhantes oc-
casiões. . ·
Outro sim recebeu o Parthenon o l.º numero do Soldado e o Mari-
- nheiro, orgão da classe militar. Já se fazia esperar em nosso paiz, onde
todas as classes sociaes tem proprios defensores. ·
E' não recuarem os esforçados campeões a quem dese.jamos um fu-
turo brilhante. ·

Libertação de escravos. - O Parthenon foi surprehendido por um


officio assignado por algumas pessoas moradoras na Cachoeira, que re-
mettião-nos, para ser destinada á libertação da escravatúra, a quantia
de 313$740 réis. - ·
Era o producto de um espectaculo, que. alguns moços d'aquella ci
dade, desej9sos de ver erguido em nosso paiz o estandarte da civilisação
e da liberdade, exhibirão para coadjuvarem o Parthenon no solemne
festejo que teve li.gar na noite de 19 de Setembro .
. Um bravo unisono erguemos saudando essa mocidade, tão briosa
quão util á patria!
O sol da liberdade parece que lentamente vai desdobrando seus
raios aos martyres escravos!

Delenda Carthago! ,
Algumas palavras sobre a revista de Outubro. ·
Agradecemos ao illustrado redactor a nomeação que nos fez para
o cargo de - continuo, - isto é, - o orgão ,mais autorisado, -:: pois
cremos que quem o i:rítelligenciou de que seria redactor d'aquelle mez,
quem respondeu como aquelle estudante bebado - ainda - não foi ou-
tro senão o chronista de hoje.
Orgulhamos-nos da nomeação, mas não desmoralisamos o monu-
mento do Parthenon em ruinas, como fizerão os discipulos de Loyola
por tra_z da cruz da Re_d empção.
Outro sim o redactor d'este mez votou contra a publicação da car-
ta anonyma, porque não aceitariamos demonstração alguma por escrip-
to, visto seu autor acobertar-se sob profundo mysterio.

!amos esquecendo o resto .. .


O que dizem agora sobre as pretenções do chronista?
Deve elle as ter, ou não?
Eis.' concluida a tarefa, venha a recompensa; desejo tudo o que
amo.
Querem saber quaes são meus amores? Pois leião o seguinte So•
neto:
Eu adoro o viver onde a paixão
Em norridos tumultos se revela,
Amo p rouco gemer d'atroz procella
E o batel sobraçando ao vagâlhão.
-300'- ·.
Amo o mocho a piar no cemiterio
Quando banha-se a lua em mar celeste,
Ou quando o vendaval quebra o cyprestê
Querendo derrocar todo o hemispherio.

Amo mais a mulher q' deixa o leito


Onde fôra feliz, outr'ora amada
Do desprezo sentindo amargo effeito

E raivosa em- ciume, a mão armada


Embebendo o punh;al no ingrato peito
Solta após estrondosa g!).rgalhada.

Novembro de 1869.

---000'---

/
-305-
me o peito, niais amor para offertar-te! Nq lucta insana que travei com
o coração, o resultado foi este: hoje a doença, amanhã a morte . . . oh!
é horrivel .. . " •
A tosse suffocou o enfermo, e uma golfada de sangue sahiu-lhe
pela boca.
Passados alguns momentos, Guimarães fallou :
"Meus amigos, sinto que a minha ~erradeira hora se avisinha ; já
nem forças tenho para fazer-me ouvir. Cheguem-se a mim, que lhes
quero dar um· conselho. Accuso da minha mor te a sociedade. Desde os
primeiros annos revelou-se-me uma irresistível vocação para a5 letras.
Nas horas de ocio cantava na lyra e escrevia folhetins para jornaes.
Passei do folhetim ao romance, convencido de que o primeiro é como
a flôr de um dia, que a viração lança para longe. Quando o meu nome
começou a apparecer elogiado pelos mestres, senti-me orgulhoso, e dis-
se: ao menos assim ha uma c.Q_mpensação para o:, que se afadigam pelas
letras: A maledicencia e a invejçt não tardarão em lançar-me ào coração
o gelo da descrenç~; e no combate á que provoquei os materialistas da
epocha, -tive a infelicidade de ser vencido. • .
Cantei, e rirão-se estolidamente dos meus hymnos; e um mais ou-
sado houve, que perguntou o que guardava a cigarra para atravessar o
inverno .
. Escrevi folhetins aos domingos, e recebi-os ao outro dia envoltos
nos generos da taberna . .
Fiz romances, e não achei edi,tores nem subsêtiptores.
Tantas decepções enfraquecerão-me o animo ; e pela primeira vez
tive de curvar a cabeça á sentença dos homens que proclamavão a su-
premacia do dinheiro, e declaravão-se em guerra aberta ás letras.
Desanimei; lamentei ter consumido a melhor parte da minha vida
a estudar a litteratura, a aprender a historia.
Vi-me sem meios, mas repugnou á minha dignidade ir pedil-os aos
unicos que m 'os podião dar, aos que se dizião senhores absolutos por-
que tinhão muito oiro!
Preferi a miseria ; e querem saber porque soffro?
Tive fome muitos dias; quando quiz erguer-me para recorrer aos
poucos amigos que me restavão, não me -foi mais possível; a .e nfermi- '
dade não m'o consentiu.
O meu exemplo deve servir-vos de lição; não se cancem; se ainda
é tempo, deixem os livros, e tornem-se commerciantes; hoje no -mundo
tudo é calculo e commercio, até. . . no am<;>r . . . \,
E a tosse e a golfada de sangue repetirão-se.
Bem sabião os dois amigos do enfermo que, sobretudo, fôra O '
amor despresaçlo que matá.r a Guimarães; tinhão lhe surprehendido o_
. segredo n'um momento de febre; respeitarão n'o, fingirão ignorai-o! ·
A agitação de Guimarães foi crescendo, e em pouco conheceu-se
que a sciencia nada mais tinha a fazer.
Guimarães abraçou os dedicados companheiros que tinha em der-
redor, a agradeceu-lhes por não o terem deixado morrer só.
~ sua ultima palavra foi um perdão a Malvina, e uma absolvição
aos que o tinhão insultado.
Alberto e Leonardo fizerão o enterro do_ pobre poeta, roubado
á vida no ;verdor dos annos.
. No mesmo dia do sepultamento de Guimarães, Malvina recebia-se
em matrimonio com o escolhido da sua ambição, um ~ornem rico, que
comprãra a peso de oiro o .titulo de commendador.
Deus deve ter em sua santa gloria o moço que atravessára o ca-
minho da vida, sangrando os pés nos espinhos que lhe semeiarão; Mal-
vina soffre as consequencias do seu orgulho nos desgostos que o con-
sorcio lhe trouxe. Aurelio de Bittencourt.

Inst. Hist. - 20.


A PEDRA FENDIDA
LENDA NACIONAL.

A GUILHERME DA SILVEffiA

Surgindo n 'agua á flôr ·c oberta de verdura,


O mar em torno d'ella assim prando murmura :
Tú és de Gu anabara a mais mimosa filha!
Nenhuma como tú no seu regaço brilha,
Tão' bella e tão gentil, oh Paquetá saudosa!
Eu mesmo, nos vaivens da lida porfiosa,
Ao ver o solo teu ' coberto de verdores,
Em ti penso beijar a Ilha dos Amores;
Aquella que em meu· seio á voz de um genio surge,
E que ao repercutir ãa voz. inda resurge,
Bella qual a creou esse inspirado genio,
A que n o mundo deu o mendigar por premio. ~
Alli a tradicção conta uma triste lenda,
De que te faço, amigo, esta singela offrenda.

Paulo era pescador e mal entrava ainda,


Na idade das paixões; quadra risonha e linda, _
Em que elle, além do mar, que impavido sulcava,
Para tudo no mundo com desdem olhava.
De peq4eno, seu pae, um pescador tambem,
Ensinára-lhe a ver o que de horrendo Jem,
No seio a tempestade , quando ao mar e á terra,
Revolve a face n 'um e n 'outro abala a serra.
_. ' I Mas um dia &eu pae á choça não voltára,
A morte com traição do barco o àrrebatára!
Colhia o pobre velho a rêde sem cautella.
E . subito sentiu-se emmaranhado n 'ella; _
Desenredar-se quiz, porém -fatal sentença.
Já tinha a sorte escripto ; a superfície immensa
Ao corpo que tombava um largo espaço abriu,
E o corpo á superfície, ai, nunca mais subiu!

Paulo ao ' perder seu pai sentiu-se de repente,


Irmão e protector de linda adolescente.
Encanto e seducção dos rusticos visinhos;
Amelia, se chamava o -cofre dos carinhos,
D'aquella boa gente á lida acostumada ;
E Amelia, morto o pai, foi logo disputada! _
Era coisa de · ver a socegada ilha,
Alvoroçàr se toda a reclamar a filha!
Brava a contenda foi, mas Paulo a todos dera,
Razões tão naturaes, que a todos convencera.
/

-3.0T-· -
1 O triste assim fallou: - Se pae, se mãi perdi,
(Ha muito a mãi morrera) e Deus me tem aqui,
Errando sobre a terra, oh quereis vós roubar-me,
Quem póde este viver, sorrindo, amenisar-me? ...
Movidos eu bem sei que sois das carida_de,
Mas dae este consolo á misera orphandade;
Se minha irmã íevaes, o que será de mim? ...
Na vida encontrarei' a solidão sem fim -
Eu, que sulcando o mar as solidões só vejo,
Nem mesmo no meu lar terei o casto beijo,
A voz da minha Amelia a soluçar baixinho:
Oh Paulo, meu irmão, aqui n'este cantinho,
✓ somos nós e a saudade, mais ninguem se acolhe.-
E no mar, quando a vaga os meus vestidos molhe
Dizei! quem sobre a relva ha de estendel-os rindo?
Quando ao entardecer do mar vier fugindo, ·
Quem ha de ir esperar-me á sombra dos coqueiros;
A acenar-me de longe? ... ai, vós, meus companheiros,
Tendes, volvendo á praia, a esposa que suspira,
Que . mil affagos dá, que a vossa rede tira.
E cantando convosco as malhas lhe concerta.
Mas eu, triste de mim, -com a choupana aberta,
Ninguefu me levará, sequer a gota d'agua,
Um consolo ·ao soffrer, um lenitivo á magoa.
Amelia me , deixae, é rôla d'este ninho
Eu sei - que morrerei se me deixar sosinho. -

Quem se havia de oppôr? com seu irmão ficára,


E na desdita Paulo a sorte abençoára,
Por lhe ter concedido aquella criancinha,
Esteio que de pé o· corpo lhe sostinha .
.E ás lufadas da dôr à vida lhe abrigava.

Na quadra das pa1xoes Amelia penetrava;


A infancia a suspirar. por ella se ficou .
Como a quem desde o berço estremecida amou.
E nunca a mocidade abrira o seu regaço
A fronte mais gentil; Paulo moreno e baço,
Tostado pelo sol mostrava o rosto bello;
.E tinha no dizer um modo tão singello,
Que ouvil-o uma só vez, era ficar captivo!
Quando na capellinha ou n'um logar festivo,
O donairoso par taful apparecia:
- Que bonitos irmãos - o povo repetia.
E não faltava alli rapaz que não pensasse, ·
Ao ver a linda Amelia em venturoso enlace;
Mas se ella _presentia uns longes na conversa '
Do occulto pensamento, alli logo dispersa,
Ficava a companhia, e Paulo de repente,
Arremessado olhar lançava ao pretendente.
Então no grupo alguem vendo este irmão cioso,
De mansinho dizia: - oh nem que fosse esposo!
Se o mar era sereno e o céo era de anil,
A's vezes na canôa entrava o par gentil;
E quando o sol no occaso as serranias doura,
Como era lindQ vef' de Amelia a tran_ça loura,
-308-
Caprichosa ondulando á viração da tarde!
Um frio coração d'estes em que não arde,
Nem viva já se ateia a branda luz da fé.
Se visse no barqÜinho aquella moça em pé .. .
O sol a illuminar-lhe as faces e 'Os cabellos .' ..
E o mar a debuxar os seus perfi_s tão bellos . . .
Alma gasta, descrente, oh reprobo que fosse,
A' mente lhe viria um pensamento dôce;
De pae, de mãe, de Deus se lembraria emfim,
Se visse no barquinho á tarde Amelia -assim,.

Um dia alguem notou que á missa já não ia,


Amelia a devotinha, a flo:ç da freguezia,
A mesma que o vigario apresentava a todos,
Como exemplo a seguir na compostura e modos,
Que deve a· moça ter na casa do Senhor. ·
:E depois, •mais alguem, o povo fallador,
Raça damninha e vil que em toda a: parte habita,
, A que não ha fugir, pois quanto mais se evita,
M;üs nos devassa o lar e nos escuta a voz,
E se não vê nem ouve, ergue. a calumnia atroz.
_ Esse mopstro fatal a cujos pés rebrame,
Com a negra mentira a hypocrisia infame.
Tal povo e~im notou que o meigo par agqra,
Não era em seu viver- o mesmo par de outr'ora;
Faltava-lhe a . alegria, aquelle sol formoso,
Que doura a mocidade a palpitar de gôso.
Nos domingos á tarde entre o girar das danças,
Ai nunca mais se vira o fluctuar das tranças,
Nem o canto de Amelia acompanhando o côro
Do bando festival; dizia-se que em choro,
Alguem a surprendeu fitando um dia o mar,
Sem jamais se saber a cau~ do pesar,
Que de pranto inundavâ a face á linda moça.
Tambem agora havia_ em torno á humilde choça,
Um não sei que sinistro e de tristonho aspecto,
Morrera o sabiá ; pendente inda do tecto,
Se v ia abandonada a muda gaiolinha,
E o basfo roseiral por quem Amelia_ tinn.a,
Tão entranhado amor, á secca se mirrava,
Que desdita seria a que sem dó roubava, ·
Da socegada estancia o riso, o canto e as flores?

Era o quente verão ;• do mar os pescadores,


Fugiam com temor da proxima tormenta.
A tarde ia no fim ; já uma cor cinzenta,
N uncia do trovejar,, ao longe o céo cobriá;
Enormes, semelhando immensa serrania, ·
As_ nuvens em troJ?el sinistras avançavam;
Intenso era o calor, nem leve ciciavam
As folhas no arvoredo , e quem n 'este Bra_sii,
Não sabe como em ti oh Paquetá gentil,
São tanto de temer as seccas trovoadas?

As canôas á praia emfim já são c:hégadas;


De esposas, filhas, mã.e s, palpita desoppresso,
- .309-
E ledo o coração; oh quanto é caro o preço
Por que vós lhe compraes, os pobres pescadores,
O seu terno carinho e os seus ternos amores.
E' por ellas que vós sulcando o extenso mar,
Estaes sempre co'a morte alegres a b incar;
E' por ellas que vós sobre esse mar correndo,
Nem vos lembraes talvez que o vendaval tremendo,
Irado, dentro em breve arroje ás profundesas,
, Vossas vidas que estão já d'o'utras vidas presas.

Liberto o furacão, arqueja, ruge, freme,


E a terra ao seu embate, horrorü1ada treme ;
Do. mar a superfície agita-se alterosa,
Parecendo abalar co'a furia impetuosa,
Os rochedos que em torno a Paquetá ergueu
A sabia natureza; escuro e negro o céo,
Mais negro inda o tornava o approximar da nciute.
A tempestade erguendo o pavoroso açoute,
O medo, a assolação em tudo ia deixando.
Estalava o trovão e rapido passando,
O raio coruscante, illuminava a scena ♦
De fugaces clarões; ao longe a voz serena
De crianças que ao céo em côro a prece erguião,
Aos echos da tormenta os debeis sons união.
Subito, entre o bramir dos encontrados ventos,
Humana voz se escuta, e vem do mar; attentos
Os ôlhos atravez da escuridão procurão
D'onde vem o clamor; intensos já fulgurão
• Mil fogos sobre a praia o mar illuminando ;
Eis que ao longe se vê, nas vagas fluctuando,
Desmantelado e entregue á furia da tormenta
Pequenino baixel, que a custo se aguenta
Sobre horrido escarcéo; na práia os mais ousados
Querem ao mar sahir, e tentão, mas baldados
Os seus- esforços são; á praia elle devolve
Arrojado batel, que afouto se resolve
O seu dorso a galgar; perto o clamor já sôa,
E distincto se escuta assim: __: meu Deus perdôa,
--A mim que vou morrer, o meu peccado atroz!
Amelia! -o povo exclama ouvindo aquelta voz;
E , a triste para a terra os braços estendia, ·
Como se a multidão · que sobre- as praias via,
Podesse ir arancal-a á angustia em que penava.
A pobre em afflicção depois continuava :
Piedade, soccorro! . . . .
O coração confrange
O grito dolorido, e o que em redor abrange
A vista desvairada, oh, mais horrendo torna
O pavoroso quadro; o mar já quasi adorna
O alquebrado baixel, até que enorme vaga
De encontro a erguida rocha o pobre lenho esmaga;
Seguiu-se um grito, um só, medonho, pavoroso,
Que o -furacão levou rugindo furioso .
.,

Nas crescidas marés ás vezes destruir ;


Quando o barco de . encontro ali se foi partir, .
O instincto natural aos naufragos mostráí:-a
A unica salvação; um •-raio que passára,
De luz todo inundou em pedestal ingente,
Um grupo magestoso, um grupo commovente;
Ai, era Paulo e Amelia, os dois irmãos, que unidos
Erguião para Deos as mãos agradecidos.
De joelhos na praia o povo a Deus se prostra, _
E erguendo as mãos' tambem a gratidão lhe mostra ;
De repente, porém, novo trovão estala,
,,. E o feroz ribombar como que a terra abala.
Um raio que baixou das solidões do espaço,
A rocha bipartiu com horrido fracasso .

Serenára a tormenta e de entre o mar sahiu


Uma voz que na terra assim repercutiu:
- "Olhai d'estes ·irmãos, o fim negro e funesto,
E vêde como Deus sem dó castiga o incesto."
Perto de Paquetá fendida a rocha existe,
• 1 A memorar de Amelia e Paulo o caso triste .

1860, Rio de Janei.ro 30 de Junho.

M. -J. Gonçalves Junior .


-311

DOUS CULTOS
Era no templo! ennovelado etn ondas,
O incenso para Deus brando subia;
E a voz do orgão magestoso e grave
Todo o espaço inundava de harm,onia.

O sol era no occaso, um raio a furto,


Coando-se no vidro, illuminav1;1
Ao sacerdote a veneranda fronte,
E como que uma aureola _lhe dava.

Tudo ali era paz, socego tudo, '


E na prece a minha alma recolhida,
Quando já para Deus ia a ascender-se,
Em ti pousou oh sol da minha vida!
... ... .' ...... . . . . . . , . . .. . . ...... . ... .
Correrão dias e uma noute ouvindo, ,
Da tua meiga voz o brando accento ;
Essa candura que o teu lábio estilla,
Quàndo a phrase traduz o pensamento:

Lembrei-me então das sacras harmonias,


Do sol, da precé, que no templo erg:uêra;
E d'aquella visão terna e suave,
Que o santo enlêvo a~raiçoar viera.

E depois, quando a luz serena e límpida


D'esses teus olhos encontrava os meus,
Eu preso e fascinado pelo encanto,
Olhando para ti pensava em Deus!

Erão dous cultos, sirri, ampos unidos,


Ambos gerados pelo mesmo amor!
Se amando a Deus amava a creatura,
Na creatura amava o Creador!

Rio de Janeiro, 1868.

M. J. Gonçalves Junior.
-312-
/

O ENGEITADO
(Empressões da Julia, poesia de Thomaz Ribeiro.)

O' noute! Quanta belleza


Tinha a magica tristeza
Que teu silencio , infundia!
Nos céos - um arco de lua,
No r io - baixel que fluc tua
Ao arfar do m aresia.
No horisonte a densa esteira
Da gigante cordilheira, ·
Que s' estende desde o mar;
_ D'aqui, · d'ali ~ ilhas soltas
.E rios que, após de mil voltas,
Vem-se ao lago dérramar . ·
A meus pés frême o Guahyba,
E além, n'arenosa riba,
Reflue o mar a gemer;
Mais longe o écho estrugia
Sons de um clarim, e dizia:
- São horas de recolher!
O' noute! Que mago encànto
Reçumbrava de teu mab.to
Esparso a face da terra!
Sonhos de amor é poesia
Tinha o lago que dormia
Debruçado aos pés da serra.
E grata e doce a bafagem,
Da figueira entre a ramagem,
Dizia triste - saudade.
Aqui - phantasma do vicio,
Se erguia um negro edifício.
E lá em cima - a Caridade!
Tudo era bello, meu Deos!
A terra, o espqço, os céos
Resplendecião de encanto!
Mas qual a vaga eu gemia
Porque minh'alma eu sentia .
Sossobrar, afflicta, em pranto.
Soffria! . . . e sempre sosinho, .
Como um passaro marinho
Vagava, beirando os cá.e s . . .
Porque eu, qual n'um deserto,
Estendia o olhàr incerto
Sem nunca ver á meus paes!
Porque jámais esperava
Entre a turba, que passava
-313 -
Tão junto a. mim em seu trilho,
· Quem a dextra m'estendesse ,~.
Quem minha dôr compr~hendesse ... .
Quem me chamasse - · seu filho!
Ninguem! ninguem! sempre só! .. .
, Estatua lançada ao pó ·
Eil-o - engeitado e maldicto·!
Véde-o _:. que escarneo sublime!
- Insonte e filho do crime,
· Em todo o mundo proscripto·! ...
A' elle não se abre um seio,
. Não - que existe de permeio
Entre • mãe e filho . . : horror!
Em vez do amor tão sagrado.
Um anáthema - engeitado! .
E a miseria, a infamia, -a dor-!

Longe · d'arvore que se esfolha,
Pobre folha, .
Fragil brinco do tufão,
' Em que cqão
A misera irá parar?
Terá ella acaso abrigo,
. Seio amigo,
·Que lhe dê- o seu c alor,
Seu amor,
Onde possa dormitar?
Quem sabe! Mas eu anceio
N9 receio
De que role a pobresinha,
Tão mesquinha,
Senda azinha até morrer.
Tal sou eu - pobre engeitado.
Desgraçado.
Sem familia, nem lareira
Onde em hora deradeira
· Vá gemer. - .
\Tá morrer tão · malfadado .

Bem lllta vai a lua! E' findo o baile ; ·
Já bem longe fl11ctua o claro chaile .
Da donzella formosa,
Que volta. do saráo, onde entre as flores
A mais querida foi, scismando amores, • <
Ou d'elles desdenhosa.
· Prosegue a nouie; reprêso o mar é• quêdo ;
Não vejo a propr~a. sombra, e como a mêdo
Abraço a solidão. -
Após da festa não ·ha · nem ·luz, nem: vida,
E nem da orchestra siquer nota perdida
-Revibra no .salão.
, ~ . ~

Tolda-se o firmamento; as- sombras .descem;


Reina a tormenta; os ' astros dispareeem; ·
· E' todo negro o, norte! '
Sérpe ignita· _o ,raio -·enrosca as · vagàSí · ,
Que succedem-se·, gemendo, á -longe~ •· pl;ígas,
O cantico . da morte. . - : • ·
-
No entanto, a morte1 · que conservo n'alma,
·~·•·:,
Não dá-me, barbar.a, o repouso, a •calma
Da - c_ampa delectevia. ·
O' misero que sou-! . : . Eis minha -,-sorte: ·_:
Silencio .e ·sombra,:. isolamento e ,morte,
.
E , despreSo
.,,,,.,;_
•·', e··• miseria! . · · · . ·. • · -..'
---,_
Qual da Bethani~ o biblico . leproso
Eu .padeço ; e qual Job, nerh siquer ouso
A' meu Deos me queixar.
E inartyr, ·a . tortura e · ·o · esquecimento· ,
Calo n 'alma, sigillo o meu --tormento . ..
Padeço sem chorar. · ·. ---
O mundo de meu pranto zombaria- -
-.
Se m 'o visse verter , sim, se -r iria
Democrito cruel!
Porque sem compr'hender· seu · ri'so stulto,
Tyranno lançar-me hia ·atroz insultQ/
0

Os residuos do. fel!


.. •.. .. . ... . . . ... . . . .. . .. ... ..... .... .
"\' ~

. . . . . . . . . . . . ' .. .... ,.. .-.. :- ... . . .. ;- ... ~:..:. .... .

Mas o que importa a turba que .escarnce, \


Quando no peito a vida se esvaéce
-Transbordando de dor? ·1
Que importa mais um travo, ,um sof:frimento,
Um espinho de mais,. mais .um tormento,'
Na vida do 'êanfor? · · ~ : : -~· · /

Que importa m ;ris tini .gó°lpe ·só'bre a . chaga,


Que sangra eterna, qu~ jamais ·se apaga,
Que já cura não tem T
Ergão-se phariseos, lancem-me os dardos,
Eis o meu . p'eitó . . . ·crõem: me. de -cardos, _ ,,_.
E eu rirei·· tambem; • ·
.: - ' p e.

Rirei da · propria· dôr que ·me.-.turtura,


Rirei da minha infausta ·e ; má · ventura ·,
Escripta no' inferno . : f ,
E embora si!ilta pungir-me -..aguda pena,
R irei té' do juiz· que- me· conderrina;
.:( Serei um riso eterno!
- ·
-315', _
E rindo, crer-me-hão feliz. No níeu tugurio
Ninguem virá bradar-me: · - ·"O' filho ~xpurio,
Arréda, eu quero entrar!"
Mendigo, posso invocar a caridade,
Impetrar d'este mundo a piedade,
Sem ter do que corar.
Mas nunca amor supplica o coraçã6,
Que póde bem · ser nobre, e não ter pão,
Na miseria jazer!
O' que a .fome de Camões fêl-o mais nobre,
•E nem corava à Jáo pedindo um cobre,
Para lh'o vir trazer.
Não deshonrou a esmola a Belizario,
Quançio· da patria banido, adversario,
Triste fado cumpria,
Pelo braço da filha que o guiavç1.,
Doce. luz que ao grande cégo illuminava
A , deveza sombria.

E no entanto, eu ·soffro ... e muito ... .e. só!


Mas , não quero que de meus males tenha dó
· Quem negou-me um seu riso. ·
Não! .. . Regeito a compaixão por seu rancor,
Quero - inteiro seu odio, ou seu amor -
,. Inferno ou Paraizo!
No - orgulho cíue se nobilita no' tormento ·
Julgo o mendigo de amor vérme ·nojento,
Repugnante e vil . · ,' ·
Quero ser antes obelisco no deserto,
Do que poder esmagar-me, '-e.m 11asso incerto,
. · Um pé como a um- reptil. ·
1 *
,.
Todos os entes cr~ados
São mais felizes que eu;
Têm estes por patria os. prados;
Aquelles - nuvens do céo;
Este· outro no fundo, mar
Te-in seu berço que ·ha de. amar_.
,1
E lá na invía flóréstà, .
Inaccescivel, remota,
Nas horas 'da ardente séstà
A féra vae -senda ignôta;
Penetra as grotas dos morros, 1 .-
Onde àninha os seus caxorros.
· E toda amor, quem diria ·
· Ao vêl a a prole lamber,
0

Que é ella -a besta bfavia,


Que -de susto faz tremer?
Pois. na .caricia materna .\
. Tanto é docil, tanto é terna!. ·
-316-
E como a tigr-a na .selva
r Azylo aos filhos procura,
Buscg. a cadórna, de relva
Uma toiça mais segura, .
Onde faz cama macia, .
Sobre a qual seus· pintos cria.
A mosca, o pequeno insecto,
A serpente igriava e vil, ·
, O vérme o mais abjecto,
O mais noj.oso reptil,
Sentem o amor filial,
Todos, por. lei natural.
E á esta 1ei tão suave
- De amar tão caro objecto -
Nenhum, nem· fera, nem ave,
Nem o reptil, o insecto,
Nem o verme famulento
Se lhe esquiva ao ·mandamento.
Nenhum ao filho renéga!
E, irrisão! ao contrario,
Em quanto o bruto os offéga,
Vae ali, cruel sicario,
Humano desnaturado 1
Deita fóra ao seu gerado!
As maldições do inferno ,
Punão tal crime e infamia . . .
Que · o punja remorso eterno;
Que et~rna lhe seja a insania!
Que ,seu peito, sem ámor,
Seja eculeo á n;iortal dor.
Mas blasphemo, meu Deus!,... Perdão, Senhor,
Não fulminés a colera dos céos
- Nem sobre a mãe, que ao filho renegou;·
- Nem sobre o filho, que a mãe amaldiçôa! .. .
Perdão, Senhor, pe_!dão! ·

Estava louco . ..'


A · dor me obsecou e ardendo em febré "
Eu não senti dos labios; que queimavão., .
/
A- lava do anathema se expellir ...
Perdão! . . . Eu soffro muito!
. '
O' minha mãe, , ;,,
Te não ·podes queixar s~ aos céos mandei _
Contra ti -uma queixa ámargurada . . . .
.Eu não sei compr'hender o amor de -filho ,
Porque não tendo paes, nunca o · sénti!.
A êsmo, -lançado á praia, ao acordar-me

Do pezado let}:J.argo em que jazia, .


Tinha a meu 'lado o , mar erguido em furia ;
O céo era mais negro que o mysterio
• . 1

-317-
Da •m inha triste historia e nascimento;
E confusos, no horror da tempestade
Meus primeiros vagi~os s'extinguirão.

Edesde o leite que devia alimentar-me


Até o teu extremo e tuas bençãos,
Tu, me negaste tudo, ó minha. mãe.
Pr·a furtar-te a vergonha do teu erro
Optastes, cruel, meu sacrifício. . . ·
,Me man!faste engeitar da praia á beira!

. Mais• benigna serias dando em pasto


A' esfaimado~ cães m'eu fP.c.to imbelle,
Do quê deixar-me vivo, entregue aos homem;.

Me hão podes chamar - máo, inflexível,


Porqué não me ensinando uma virtude,
Não .me déste uma crença, e nem teu nome,
Para

evocanqo â Deos abençoal~o.
1

Se eu sou máo, é somente a culpa tua:;


Pois não póde ser bom quem não baurio
Nos seios de uma mãe leite e ternura. '

Repell!do , I?Qr ti, mulher sem alma,


Por ti, de quem sou parte em carne e sangue,
Quem da vida, na rota que percorro,
Me mq_straria o norte e o bom caminho?
Quem viria enxugar ·o pranto amargo
Que de meus .olhos verte c.opioso
Qual outr'ora d'Hoi:.eb o jorro ct·agua,
Na minha solidão, n'este deserto
Immenso como o Barca; ingrato assim?
Oh! nin.guem, mipha mãe! .. .... Se tu podeste
O fructo do teu amor, fracção de ti,
Jogare~ ao despr.esQ e aviltamento;
Repellido por ti, que só devêras
Morrer commigo ao seio, quem quizera~me,
Ou quem quizera eu - chan1ar de amigo?
Nínguem me quer a mim, e eu a nfnguem.

- Mas n'este isolamento da familia


Ha momentos horríveis, explosões _
De desespero e pena, de odio, de anêia,
Que espedação a alma, em que fallece
A mais robusta fé .. . ;1oras de ~npanía.

Sem crenças, sem esperanças, sem amores,


Que lhe inspire nas acções nobres e grandes,
Elle - engeitado· -,- por todos malquerido.,
A seu turno tambem descrê de t~dos;

I
-318-
E sceptico se torna, e se degrada ...
Suppõe na carne o goso e após o nada;
Ama, ou sé entrega ao goso da materia;
E deixando-se arrastar da~ vis paixões
Um degráo, outro e outro desce á crápula,
, Que na taberna immllndà a séde tem.
Ahi. se joga a honra contra ·o ouro
Desse templo infernal unico idolo;
Ahi se acalma a dor na embriaguez;
Ahi se 'apaga a sêde que devora,
Nos labios das Phrinés, ou no cognac, '
Que cresta nas labaredas milicôres
Os hervados espinhos do desgosto;
Ahi, cambaleando, em copos cheios •
Bebe-se o poncho, o rhum, .e o abysintho
Em louvor da materia em bellas fórmas! ;
A saude do corpo! .- a paz d'Epicuro!
Ahi, onde a mulher venal, sem pejo,
A' quem mór preço dá vende os encantos.
E exclamando - Per Ba.c cho amor e vinho!
Rodopia, frãqueia -e cahe por terra! ... .
E' onde vae esquecer a dor as vezes
O engeitado, o orphão de paes vivos!
Sim, é nessà ignobil furna tenebrosa,
N'esse barathro onde os vicios remoinhão·,
Que elle vae esquecer magoa profunda,
Que elle busca o prazer das sensações;
O suicidio ·emfim, dó corpo e d'alma.

Mas eu Rão desci tanto, não, o juro /


Por Deos, em cuja fé fui .,educado,
A' cuja omnipotenciíl eu eurvo humilde,
De quem conheço a obra-maravilha,
Essa, a mais sancta· das ~virtudes todas .
Ensinada por Elle; a - Caridade!
Não calquei um degráo siquer da escada,
Que descida. uma vez não mais se sobe,
E ·que vae ter pelo crime ao Cq_dafalso.
Não, beirando-a talvez, voltei a tempo:
Por que foi indo á ella que aprendi
A ter crença, a ter fé, a' ter espz,'ança . .
Já quasi· no pe~dor a descambar-me,
' Ergueo-se uma muiher, se sombra, ou corpo,
Não saberei dizer, mas sei que era
Tão bella como os anjos do Senhor,
Que, acaso, um milagre, ou a Providencia , I
Collocou - qual pharol erguido a costa,
Que ao nave_gante mostra onde os escolhos,
Que deve desviar. - em meu caminho,
E o passo suspen_d i na torpe senda,
E tive de mim mesmo pejo e dó.
E senti-me pequeno e acabrunhado
Ante a estatua que Deos reanimára
Para ser d'ora avanté. idolo ao bardo!
Se ella um anjo não é, se nunca o ·foi,
.Era modelo, que os gregos nãd tiverão
Para d'elle imitar de Chypre a Deosa. · /
E ou fosse illusãô geràda em fepte ,
Ou bella realidade, eu sei qüe a vi,
E que liº vêl-a ' esqueci quanto soffria
Para só a lembrar
. no meu amor.
~. . ,. - .._
'Ella era -um anjo, sim; ella ensinou-me .
A não desesperar do infortunio,
A esperaf, ·. e_renté' é!l). Deos, melhor porvir~ · ..- _
--
Ella era ·u:m anjo; ·sim; n'ella adorei
·: .

A mulher que odiãra em minha mãe!


E todo o odio que votava a esta
Transfundio-s'e eni ternura; em piédadei. : .
. . . . . . : . . .- . ,• , .··.. ·: : . . . . . : . . .. . .. . •' • . . . ·, .. -
0 ' Christo, como é bello o ·teu ,calvai\io
Onde chora ~agdale~á ,arrep~ndi.da! . ·,
' -
,Bem longe Vàe méia- noute; ·
(.

"<• ·
São noras de repousar;
Todos tranquifü>s jã' dormem, -'
Só eu estou a velar ...
Elles sonhão, - são ·felizes. : .
E éu-? Neip. posso sonhar!
Faz · frio, recrudesce- a chuva, ,
Eu me sin,~o enregelar; ·
Todos têm tecto, óu lareíra
Onde se vão abrigar. ,
Mas eu, mertdigo, engeitad(j,
Aonde 'irei perp.outar? .
Só tenho ·por leito as praias,
Ou das ruas a calçada; ·
Por coberta as intemperies,
1 E além- d'ellas mais nada. ,_
Mas como deitar-me agora
Se 'stã tão fria e molhada?'
· Passarei a noute inteira
Desperto sem precisão,
Collado ã fria párede, .
Ou de joelhos · no chão, ·
Seja pelo amor de ' I5eos
Rezemos pia oração.

Porto Alegre; 13 de. Outubro qe 1869.

-José• B~rnardino dos. Santos.

. '
O CELIBATO

Epistola V e ultima

"Maldicto o matrimonio e seus effluvios!


"Maldicta a lei que o matrimonio ordena!
Tu disseste!? Blasphemia! Impiedade!

Meia-noite echôa nos espaços


Entro em casa, me sento junto á mesa
Onde sempre te escrevo.
. Um velho amigo
Consocio de collegio e d'esses dias
Que nossas _frontes risos enfioravão
Da infancia na aprazível, doce . quadra,
Ha pouco visitei, com elle estive .

. .:,. ,., - ... Quando da pubescencia ardentes ásco~


No peito lhe ferverão, foi um louco
Arrastado nas ondas da volupia.
· Nada temia, além dos desenga~os
Em seus amores faceis e conquistas ..
Insano s'entregava ao tom dos ventos
Que• as paixões sopravão dentro d'alma,
Bem como o nenuphar na espumea lympha
D'uma torrente em tufos despenhada.
Lovelace o chamarão, Jacques Rolla . .

E não o ·era! Que apenas fôra o infante


Que a traz corre de varia borboleta,
E corre até cahir no prado exhausto.

Cansou ·um dia, arripiou no trilho,


E á lareira correra d'onde ausente
Por largo tempo esteve, sem lembrai-a.

Vi-o contricto vir, pallida fronte,


Macilento, sorrindo com tristeza.
A's pompas que pull1:1lão primave:ras, .
Ao •desbrochar dos annós vendo a vida ·
1- Como botão que murcha, como phálena,
Que na chrisalida - risonho berço,
Vai deparar a tumba cineraria!
Vi-o assim, mas por pouco.
De seus tectos
Inda agora sahi e trouxe n'a1ma
Doce perfume de caçoila: argentea
Alegria ineffavel que amenisa,
Que 'o espírito depura, a Deus exalça,
Fal-o energico, forte debater-se. '
,,
-321-
E sabes o que tinha ameno balsamo?
Sabes o que doçuras derramou-mi!,
Como a maveta o beijoim vertendo
Em caracóes azues de olente effluvio?
Foi um quadro singelo, mas sublime
Como o que a Raphael o typo dera
Da virgem da Cadeira.
Vou traçai-o
Em rapido bosquejo
· Sobre um leito
Enfermo jaz úm moço levemente,
A seu lado zelosa e terna esposa,
E d' elles de permeio curto berço
Onde gentil menina dorme o somno,
Que dormem anjos na morada cérula.
Que delicias frui assim os vendo!
I
Como abençoei o céo que :faz ditosos!
E no meu coração, quantas caligens
Não dissipárão breve a linda scenal

Deus é grande, exclamei, feliz o homem-


A consorte antavel, diligente
Do esposo soletrar nos olhos busca
O menor de seus desejos, a seus males
Blandicias derramando em doce trato
Que -á mulher só pertence, só é d'ella
Só póde dispensar, trato que viça
Aos femininos dedos pulchras flores
Da esperança vital, é que ao doente,
Ao homem que debruça nos abysmos,
Evoca do soffrer a seu aceno,
Pàra abrir-lhe o alcáçar de venturas.
Como Lazaro á voz do divo mestre
O sudario rompendo torna á vida.

A filhinlia desperta a nossas vozes,


E logo novo rumo toma a pratica.
Alli vela sorrindo, se animando
Ao amplexo paternal, da mãi aos beijos,
Vel-a balbuciar accentos tímidos
Que o labio infantil murmura cedo
Accentos. como canticos seraphicos.
Como harmonias que do templo . emanão,
Como brizas d'um lago á flor correndo,
As horas se deslisio eomo em sonhos
Ou bem quando a alma em abandono escuta '
As notas palpitantes - scismadoras
Da musica que prende attento ouvido,
O sentimento erguendo além da terra.
Eu amo das crianças o sorriso
Pois que n'elle o Jordão deparo sempre
Onde o bulcão dos odios s'esvaece,
Onde as rugas da fronte se distendem,
E o tedio, que o seio me banhava
Desfaz-se em subitaneo, ethereo jubilo.
No semblante infantil o céo s'espelha,
-322-.
Nos olhos de virginea, castidade, ,
Nas graças que enuncia em cada gesto,
Na palavra que o labio desabrocha ...
O' a infancia, a innocencia, é tudo o mesmo!

Depois a avó entrou, ruina esplendida


Por onde as idades passa a foice .
E no _seu nobre porte apenas traça
Um vinculo ligeiro que s'aminha
Av:ita experiencia aos filhos util,
Cuja testa cingi9-a de respeito
Ao sol do hinverno resplandece os gelos.

Havia tanta luz n 'aquelle grupo


Que alli a natureza apresentava,
Tanta expressão, e magia tanta
Que pintai-o, quem póde? Quem ousãra?
Pintor l~nça o pincel da tela longe,
O cinzel, .o buril alli se calem 1

Que seu sublime artista é Deus somente.


E tu, penna, do obscuro litterato
Que tentas sublimar-te, não prosigas,
Suspende n 'esse arrojo temerario .
Sente-se meramente, não traduz-se
A eloquencia expressiva d 'esse quadro.
De Timantes o celso imita o exemplo:
E' digno de imitai-o, quando vastas,
Immensas proporções o assumpto abrange.
Assim é. que eu ql.lizera o sacerdote :
Quizera-o ver modelo de virtudes,
Bom cidadão, arauto da verdade,
Archetypo dos pais pregando ardente
As venturas da vida na familia,
E repetindo em vez de sévo anathema:
Bemdicto o matrimonio e seus effluvios!
Bemdicto :3- lei que o matrimonio ordena!

Seguisse o Vaticano a voz do seculo,


Supplantand o os d efeitos d o pafil;ado,
Erroneas leis da igreja e preconceitos,
Revestindo a chlamide do progresso, . .
Grandiosa missão seria a sua,
E Roma houvera preitos ·entre os povos,
Roma altiva reinãra como outr'ora.
-323-

PERDÃO
Perdão! Lucia, perdão. . . se n'um momento
De arroubada paixão,
Minha voz foi d'insulto a teus ouvidos;
Se ameaças uni aos teus pedidos,
Perdão! Lucia, perdão!

Perdão! Se eu do pudor o véo rasgando


A flor dos labios teús,
Profanei d' esse amor o sanctuario
Como ·profana a mão do mercenario
As aras do seu Deus!

Perdão! se n'esses transes de delirio,


De escravo quiz ser rei;
Se respirando o· sopro de teu peito
Recusei uma vez render-te preito
No throno que jurei.

~as tu não te curvaste ás ameaças


Que louco proferi;
Despresaste-me só, que eras rainha
E eu que logo tombei d'altivez minha
Escravo sou de ti.

Ardia-me esta fronte em febre aceza


N'urri avido quelmor . ..
E eu suppliquei-te, morto de esperança,
Depois . . . • (meu Deus!) eu murmurei - vingança ...
Mas tudo só de amor!

Perdão! se n'esse arfar de ethereo gozo


Minh'alma viste arder;
Se enlevado de colera um instante,
Eu tentei acordar n'um peito amante
O medo entre o praser!

Não cedeste ao teror; á nuvem negra


A aguia não baixou;
Quiz do céo derribar-lhe iroso vento,
Ella firme parou - parou um momento
E mais
1
alto voou!

A aguia foste tu que revoavas


N'um peito a se incedir;
Eu fui o vento que tentou rojar-te .. .
Mas das azas de amor ~ subtil arte
Quem póde resistir? . . .
-324-
Perdão, porém, meu anjo de delicias
De um Eden divinal;
Perdão! se d 'essa chamma nos ardores
Ousei faltar mil juras, e de .amores
Fallar de u ma r ival!

Perdão, Lucia, de amor se arrebatado


Me havia o coração;
Se eu promessa s te fiz - ameaçando,
Se. em vingança fallei- te - supplicando,
Perdão! Lucia, perdão!

Porto Alegre - 1868.


F. Antunes F'. da Luz.
EMENTARIO MENSAL
Hoc opus hic labor est.
Eis ahi um dito de grande applicação nas cousas d'este mundo,
e que excellentemente casa-se n'este instan te com o meu m áo humor
litterario. Por mais que eu pense, por mais que procure inspirar-me,
nada _brota a imaginação, que cheia de visões informes, só tem con-
cepções sem belleza.
E escreva-se alguma cousa quando sómen te o tédio invade o es-
pirita, e a faculdade inventiva não dá de si.
· Ah! Camillo, Camillo, és um rei eterno a quem n'este momento
invoco; sopra-me de lá aos ouvidos algumas â'essas phrases ricas de .
idéas que costumas desprender dos labios, e a minha imaginação ex-
pandir-se-ha como a flor bafejada por m atutinas brisas: solta um brado
concitante que venha reboar ao Sul do gigan te americano, e o meu
espirita adejará vivaz, e serei fluente . ..
Entretanto reina a monotonia, e a sen tença - Hoc opus hic labor
cst não se me apaga da mente.
E' que quando a natureza entr istece e predispõe-se á lethargia,
difficilmente reanima-se; faz-se mister a exper imentação de fortes emo-
ções, e mais ainda, que alguma mão divin a lhe vá estremecer o seio.
Então ergue-se altiva, acerca-se do bello, e forte e vigor osa sub-
juga o mal.
Mas falho de emoções, baldo de crenças, que· poderei eu sentir á
afuguentar -me o tédio?
Nada, porque a emoção que - verdadeir amente inspira, aquella que
vem de um sentimento terno e vivificante do amor, não me vem ao
coração, que pulsa na placidez do ' lar ; n ada, p orque a -crença unica
capaz de produzir can tos e flores, envelheceu comigo no seio da familia .
E assim é apenas sob a pr essão de um dever, que escr evo o emen-
taria, não sabendo mesmo o que fazer par a- evitar aos leitores alguns
momentos de aborrecimento.
Emfim trabalhemos; se formos infelizes, nos dispensarão muita
indulgencia, certos de que veda-'n os o b om desempenho da missão a
frouxidão da intelligencia.
Comecemos; e como cum pre, noticiando o . apparecimento de al-
gumas obras, que sobejamente attestão o desenvolvimento rapido e
brilhante das letras no paiz.
Publicou-se n a côrte a segunda edição do qmito util e interessante
trabalho do Sr. Dr. Castro Lopes, intitulado Cathecismo de Agricultura.
Os serviços prestados ás sciencias e ás lettr as pelo distincto es-
criptor são tão conhecidos, que nos dispen samos de apotítal-os aqui,
deixando m esm o de dizer algo sobre o seu ultimo trabalho, que aliás
conhecemos.

* *
Encetou o Sr. José' de Almeida Soares, tambem na côrte, a publi-
cação da traducção de um a Historia do commercio de -todas as nações.
desde os tempos antigos até nossos dias,
-326-
Não temos o prazer de conhecer o Sr. Almeida Soares, mas sau-
damol-o pelo relevante serviço que presta á causa das lettras n'essa
parte transcendente, que faz o objec,to de difficeis estudos, e que sem- ·
pre recordará os vultos grandiosos de Gresham, ·Craveu, Beukel e outros.

Em S. Paulo, n'essa terra das tradiccões glorios,as, onde ao romu-


rejar das brisas nas florestas, desprendem-se cantares rescendentes de
patriotismo; ahi onde a intelligencia brota impetuosa e a imaginação
é. rica ; n'esse tprrão encantado, onde talvez a mocidade mais se depura
no estudo das lettras patrias, publicaram os Srs. H. Amaral e Candido
~arata um drama em quatro actos intitulado - O Soldado Brasileiro.
-N ão conhecemos o trabalho d'esses dois athletas nas lides littera-
rias, mas somos certos de que, sendo o thema sobre que escreveram
vastíssimo, deve ter sido beµi esboçado o genio do soldado brasileiro.

*
* *
z _ O distincto latinista o Sr. · Sotero dos Reis traduziu e publicou. no
Maranhão os. Commentarios de Cezar.
Que poderíamos nós dizer sobre tal trabalho, quando o conhece-
mos? ·
Nada, porque ao passaro que rasteja só é dado mirar a aguia em
seu rem igio ; n ada, porque á intelligencia que mingua á falta de ·cul-
tura, só é dado admirar o talento que se expande.

Lendas da província do Espirito Santo é o titulo de um livro que


acaba ae ser publicado pelo Sr. Dr. Peçanha Povoas.
Comquanto não conheçamos de perto o Sr. Dr. Povoas, pensamos
c.o mtudo que o seu livro deve ser importante, já pelo thema necessa-
riámente rico de episodios, já pelos dotes do autor, a quem pressurosos
saudamos. · ·
* *
I
. , O Sr. Dr. Joaquim Maria de Lacerda publicou uma geographia
destinada á instrucção secundaria.
· Temos ouvido, os maiores elogios sobre o livro do Sr. Lacerda,
nosso antigo . collega de academia, e a cuja 'intelligencia e illustração
sempre nos curvamos; e cremos que a boa justiça lhe assistirá toda
a vez que n·o vas producções sua~ apparecerem.
*
* *
J
Diversas outras publicações se fizerão e em outras províncias, que
deixamos de mencionar por não toí-narmo-nos mais enfadonho; apon-
taremos -apenas mais duas que, porque nascerão aqui, tornão-se dignas
de especial menção. São ellas o drama MuH,er e Mãe do dis tin cto
litte'.rato:-0 Sr. Eudoro Berlink, e Trêtas e Pêtas, collecção de romances
e. contos do não menos distincto poeta o Sr. Vasconcellos Ferreira.
:Quanto ao . primeiro, já representado no nosso theatro, nada pode-
-327-
mos dizer na occasiao, a não ser o que dissemos em o numero sete da
nossa revista, não só por faltar-nos o. tempo e o espaço preciso no emen-
taria, como porque pretendemos em artigos especiaes occupar-nos de-
tidamente d'esse bello trabalho.
Quanto ao segundo, que ainda não conhecemos, diremos alguma
cousa no proximo numero da revista.
*
* *
Apre! Os leitores sentem-se fatigados?
Pois tambem eu, apesar de nada ter feito. Quid facere? Nem to-
dos nascerão para tudo: não póde ser bom piloto quem nasceu para
arrieiro. Emfim façamos mais um esforço, e chegaremos ao porto.
*
* *
A companhia Cabral Junior vai, apezar dos pezares, com vento em
pôpa. Feliz gente! Mesmo repisando os dramas do seu fraco reper-
torio, não lhe vem calmaria. E' o caso de dizer-se: Audaces fortuna
juvat.
Que querem? Quando o povo é paciente e a quadra falha de . di-
vertimentos, a necessidade aconselha a tolerancia. Consta-nos que
retira-se da companhia a Sra. Marquelou, vindo substituil-a a eximia
actriz a Sra. Adelaide Amaral; não sabemos se é exacto, pouco nos
interessa mesmo isso, uma vez que esta.mos condemnados a admirar
tres ou quatro figuras, que por sua crassa ignorancia e requintado de-
leixo, compromettem os melhores artistas.
*
* *
Quizeramos dizer alguma cousa com relação aos actores Germano
e Pereira, mas sendo esta revista correspondente ao mez de Dezembro,
e demorada por motivos que se prendiam á nova eleição çia directoria,
não o fazemos, visto que o facto prende-se ao mez de Janeiro: Ao re-
dactor,que entra de mez .fl.ca essa tarefa que será melhor desempenhada
do que por nós.

Terminamos assegurando aos leitores, que escrevemos estas linhas
á ultima hora, e quando nos sentia.mos immersos em um mar de tedio.

A. e S.
Porto Alegre, Dezembro de 1869.

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