TUNG-SUN, C. A Teoria Do Conhecimento de Um Filósofo Chinês
TUNG-SUN, C. A Teoria Do Conhecimento de Um Filósofo Chinês
TUNG-SUN, C. A Teoria Do Conhecimento de Um Filósofo Chinês
Chang Tung-Sun
Título Original: “A Chinese Philosophers Theor of Knowledge”,
publicado em ETC., São Francisco, vol. IX, nº 3, e aqui traduzido e
reproduzido
reproduzido por permissão
permissão expressa
expressa da “Internatio
“International
nal Society
Society for
General Semantica”, a quem agradecemos.
I
Neste ensaio, tentaremos
tentaremos lidar com o conhecimento teórico de maneira mais ou menos
abrangente. Trata-se de uma tentativa de teoria do conhecimento. Durante certo número de
anos, o autor entreteve a ideia de elaborar mais satisfatoriamente
satisfatoriamente uma indicação que lhe havia
sido dada pela descoberta de que os problemas filosóficos do Ocidente não eram exatamente
os mesmo que ocupavam o espírito dos filósofos chineses. Parece haver certa diferença entre
os processos intelectuais cineses e os ocidentais. Tendo isso em mente, será aconselhável
esclarecer melhor nossa concepção da teoria ocidental do conhecimento. Porque a teoria
ocidental considerou o conhecimento como conhecimento universal da Humanidade. Na
realidade, entretanto, trata-se apenas de um tipo de co-(-189-)-nhecimento, existindo outros
tipos em outras culturas. Uma confirmação do ponto de vista de que o conhecimento pode ser
estudado sociológica ou culturalmente apareceu recentemente na obra de Karl Mannheim,
Ideologia e Utopia: Uma Introdução à Sociologia do Conhecimento . Existem, entretanto,
algumas divergências entre as posições de Mannheim e as deste autor.
Hist
Histor
oric
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amen
ente
te fala
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o, a So
Soci
ciol
olog
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ento
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confun
undi
diu-
u-se
se com
com o
marxismo. Mas a interpretação marxista da sociedade difere do ponto de vista que será aqui
elaborado, pela ênfase que empresta ao antagonismo das classes econômicas. Sua sociologia
do conhecimento caracteriza-se, por conseguinte, pelos interesses de classes. Em outras
palavras, não é senão uma tentativa de encontrar, para o conhecimento,
conhecimento, antecedentes nas lutas
de classes. A semelhante teoria do conhecimento do ponto de vista da classe. É evidente que
não se pode
pode levar
levar adequ
adequada
adame
mente
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conta a influ
influênc
ência
ia das relaç
relações
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sociais
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pensa
pensame
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termoss de int
intere
eresse
ssess econô
econômic
micos.
os. O mérit
méritoo de
Mannheim está em ter ido além desse limite. Contudo, sua obra ainda deixa muito a desejar
por ter-se adstrito exclusivamente ao campo do pensamento concreto, ou ao pensamento
prevalecente num determinado tempo, como certos “ismos” e teorias em particular. É lícito,
por certo, analisar as relações sociais
sociais subjacentes a esse tipo de pensamento; devemos, porém,
compreender que, no pensamento social concreto, empregam-se também categorias e que
essas categorias em si mesmas também podem ser analisadas do ponto de vista sociológico.
Este ensaio visa sobretudo às últimas, isto é, às categorias usadas no pensamento social. Em
outras palavras, nós aqui nos interessamos mais pelas estruturas subjacentes ao pensamento
do que pelo pensamento concreto como tal. (-190-)
Em virtude da natureza do problema, nossa abordagem deveria assemelhar-se à de
Kant. O tipo kantiano de interesse pelo conhecimento volta-se para as condições fundamentais
dele
dele,, e, sob
sob esse
esse aspe
aspect
cto,
o, a teor
teoria
ia kant
kantia
iana
na pare
parece
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aceitá
táve
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l, porq
porque
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umaa teor
teoria
ia do
conhecimento
conhecimento deveria estudar as formas de conhecimento
conhecimento sem cogitar de seus conteúdos. Mas
uma teoria sociológica do conhecimento irá inevitavelmente além de Kant, porque o próprio
Kant supôs estar tratando das categorias universais empregadas no processo intelectivo de
toda
toda a Huma
Humani
nida
dade
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quando
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verdad
ade,
e, trat
tratou
ou apen
apenas
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formas
as de pens
pensam
amen
ento
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características da cultura ocidental. Não se julgue, entretanto, que isso significa ser impossível
ter categorias universais aplicáveis ao pensamento humano em geral, ou que só sejam
possíveis formas de pensamento étnica e culturalmente determinadas. Podem-se reconhecer
categorias universais para o pensamento humanos, mas não as definidas por Kant. A teoria
kantiana do conhecimento permanece dentro dos limites do tipo de conhecimento ocidental;
Kant
Kant proc
procur
urou
ou esta
estabe
bele
lece
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fundam
amen
ento
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para a gran
grande
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tradiç
ição
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Ociden
ente
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Evidentemente, ele próprio sofreu influência de sua época e da cultura da tradição ocidental.
Tentou utilizar o problema do conhecimento numa nova abordagem à Metafísica com o
intuito de lhe conferir novo alento. Em sua concepção, se ele tivesse conseguido deixar
estabelecido
estabelecido o aspecto não-empirico do entendimento humano, sua Metafísica, como prelúdio
à filosofia da vida, estaria solidamente fundamentada. Nosso problema atual não parece
equiparar-se ao dele.
Prec
Precis
isam
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os de um
umaa teor
teoria
ia do conh
conhec
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ento
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mas não
não para
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servir
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Metafísica. Por conseguinte, nossa atitude é diferente da de Kant. Aproxima-se mais da de
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Spengler.
er. Acomp
Acompanh
anhand
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último,
mo, podem
podemos
os atrib
atribuir
uir a gênese
gênese e as difer
diferenç
enças
as das
das
categorias
categorias de pensamento às diferenças culturais.
culturais. Uma cultura determinada
determinada deve dispor de um
determinado conjunto de categorias. O que significa que uma determi-(-191-)-nada cultura
derive de um determinado conjunto de categorias, nem que um determinado conjunto de
categorias
categorias dê origem a uma determinada
determinada cultura. Significa que o estabelecimento
estabelecimento da cultura e
das categorias é uma coisa só. A formação de uma determinada cultura está no uso de um
determinado conjunto de categorias, mas a relação entre elas não se estabelece em termos de
causa e efeito. São dois aspectos de uma mesma entidade.
Sendo o autor um filósofo e não um estudioso em Antropologia Cultural ou de
qualquer outra ciência social, o tratamento aqui dado ao conhecimento, a partir do ponto de
vista cultural, pode não coincidir necessariamente com o dos cientistas culturais e sociais. O
ponto de vista ora exposto decorre das descobertas da História da Filosofia. Cabe ao cientista
social rever ou modificar esta contribuição, se necessário.
Recapitulando o que ficou dito até agora: em primeiro lugar, é preciso tratar
simultaneamente a teoria do conhecimento e a história cultural; segundo, não é apenas o
pensamento social concreto que tem um fundamento social: as formas lógicas e as categorias
teóricas também têm os seus determinantes culturais; terceiro, a diferença entre o pensamento
ocidental e o oriental pode ser explicada a partir desse ponto de vista; quarto, a partir daí,
pode-se compreender que a Filosofia ocidental é apenas uma forma particular de
conhecimento característica da cultura ocidental e para uso dela. Todos esses pontos serão
elaborados mais demoradamente nas páginas que se seguem, onde se tentará estabelecer uma
nova teoria do conhecimento.
II
Antes de prosseguir, é bom estabelecer uma distinção entre os diversos tipos de
conhecimento. De um modo geral, existem dois tipos de conhecimento, o perceptivo e o
conceitual. Tomemos por exemplo uma mesa ou uma cadeira. Esses objetos podem ser
tocados e percebidos diretamente. É um conhecimento preceptivo. Por outro lado, a
uniformidade da Natureza e a noção de um Ser Supremo não podem ser verificadas pelos
sentidos, e a causalidade, a teologia, etc., são também de natureza conceitual. Pode-se
observar que o conhecimento preceptivo não pode estar fora do conceitual, nem se pode
separar o conceitual do perceptivo. Na realidade, todo conhecimento conceitual contém
elementos preceptivos e vice-versa. A diferenciação entre os dois visa sempre às simples
conveniências da análise. Eles não existem isoladamente.
O tipo de conhecimento de que se vai tratar neste ensaio, como se há de ver, não é
perceptivo, a importância do primeiro ultrapassa este aspecto, mas do ponto de vista da
história cultural será aconselhável dar-lhe ênfase.
O conhecimento conceitual é também de natureza interpretativa. Por interpretação,
entendemos a manipulação de conceitos e o emprego de categorias. Por exemplo: apreender
uma flor é percepção, mas é interpretação dizer que as flores vêm das folhas, ou que a
formação da flor tem como objetivo a reprodução. Numa interpretação dessa espécie, usam-se
pelo menos os seguintes conceitos: todo acontecimento precisa ter seu antecedente; toda
mudança deve ter sua causa; e o resultado final, num conceito de evolução, deriva
precipuamente da interpretação. Por conseguinte, o conhecimento interpretativo, visto que
contém conceitos e resulta em conceitos é conhecimento conceitual 1. A manipulação de
conceitos destina-se a interpretar os fatos percebidos. Deste modo, torna-se (-193-) evidente
que o conhecimento conceitual é conhecimento interpretativo, e que o conhecimento
interpretativo é conhecimento teórico.
Nesta altura, para fins de comparação, podemos mencionar a tese de Pareto 2, o
sociólogo italiano. Segundo afirma ele, o conhecimento teórico contém elementos muito
misturados: elementos descritivos, axiomáticos, concretos e imaginários, além dos que fazem
apelo aos sentimentos e convicções. Classifica também ele o conhecimento teórico em dois
tipos: o experimental e o não-experimental. E, tomando estes dois tipos como matéria, o nexo,
para ele é o lógico e o não-lógico. De modo que existem quatro classes: lógico-experimental,
não-lógico-experimental, lógico-não-experimental e o não-lógico-não-experimental. No que
nos diz respeito, não nos interessa desenvolver-lhe a teoria, mas salientar apenas que seu
conhecimento experimental está fora do conhecimento teórico aqui analisado.
A distinção de Pareto entre lógico e não-lógico indica a reduzida importância do não-
lógico, mas essa mesma expressão, “o lógico”, parece bastante ambígua. O pensamento do
Homem pode não estar necessariamente de acordo com a Lógica Formal, mas não pode deixar
de estar de acordo com uma lógica. Estamos tratando, portanto, não de Lógica Formal e sim
de lógica real. O tipo de lógica de que se valem os filósofos chineses difere da usada no
Ocidente, e os hindus podem ter uma lógica diferente tanto dos chineses quando dos
ocidentais. A Lógica acompanha a orientação geral da cultura. Os pensadores ocidentais
confundem muitas vezes sua lógica com a Lógica universal da Humanidade, como vi-(-194-)-
mos no caso de Kant. Sobre esse assunto, teremos algo a acrescentar mais adiante. Basta dizer
agora que a distinção entre lógico e não-lógico não tem nenhuma importância particular,
porque não há nenhum conhecimento teórico que não implique uma lógica real. Parece um
contra-senso falar em conhecimento teórico não-lógico. Pareto lavrou um tento ao dizer que a
aprovação e a desaprovação do conhecimento não-experimental dependem do sentimento;
falou ele, por conseguinte, em “lógica do sentimento”. Da lógica do sentimento devemos
excluir, porém, o conhecimento experimental, antes de passarmos adiante. O que nos interessa
aqui é um tipo de conhecimento que é tanto interpretativo como conceitual e exterior ao
experimental.
1
[Confrontar com a análise de Charles Morris dos “signos pós-liguísticos” em seus “Comments on Mysticism
and Its Language”,ETC., 9-3-8, outubro de 1951. N. de ETC.].
2
Vilfrido Pareto. The Mind and Society, tr. Andrew Bongiorno e Arthur Livingston (Nova Iorque, 1935), I, 8 ss
A recém-surgida escola de Viena observou esse aspecto. Carnap, por exemplo,
estabeleceu uma distinção entre os problemas de fato e os problemas de lógica 3. Os primeiros
são os que surgem dos fatos, enquanto os últimos são problemas de palavras que simbolizam
coisas, e dos julgamentos feitos a respeito das coisas. Tal distinção pode ser útil por que
coloca diante de nós o fato de que grande parte de nosso conhecimento não se relaciona
diretamente com as coisas e sim apenas com os pontos de vista a respeito delas. Semelhante
espécie de conhecimento ocupa um grande lugar na existência humana. Neste estudo,
trataremos desse tipo de conhecimento, o qual, em casos concretos, constitui-se de
pensamento político, pensamento social, pensamento filosófico e pontos de vista morais,
assim como da parte teórica das convicções religiosas. O conhecimento científico,
excetuando-se os seus elementos experimentais, também está aqui incluído sob forma de
teoria interpretativa. (-195-)
Vale a pena observar que o conhecimento experimental se norteia pelo conhecimento
conceitual, Whitehead é muito claro nesse ponto. 4 Em sua opinião, a Ciência é uma síntese de
dois tipos de conhecimento, sendo um a observação direta, e o outro, a interpretação. Refere-
se ele assim a uma “ordem observacional” e uma “ordem conceitual”. A primeira não só é
explicada como também suplementada pela segunda. Pode haver uma diversidade de pontos
de vista entre os estudiosos quanto à prioridade de uma sobre a outra, mas, desde que
emergiram as formas animais superiores, ambas têm coexistido. Observações novas podem
modificar conceitos originais, enquanto novos conceitos podem levar a novos pontos de
observação. Consideremos, por exemplo, a evolução da Física. A Física newtoniana parte da
matéria sob forma de coisas concretas. Daí as concepções de movimento absoluto e de espaço
e tempo absolutos. Mas a Física moderna toma conhecimento da matéria concreta apenas
como um ponto na estrutura do tempo e do espaço. Portanto, põe-se de lado aquilo a que
Whitehead dá o nome de “localização simples”. A partir daí, verifica-se que o
desenvolvimento da Física acompanha o esquema conceitual nela empregado. Em
complemento a Whitehead, o físico americano V. F. Lenzen, em sua The Nature of Physical
Theory , ilustrou as formações e desenvolvimentos dos conceitos físicos com relação à Física.
No campo da Biologia, Woodger, em seu recente livro The Axiomatic Method in Biology ,
demonstrou também, muito claramente, como as diferentes categorias orientaram a
observação. Esses exemplos todos mostram que o conhecimento experimental constitui um
conhecimento perceptivamente derivado, norteado e influenciado pelo conhecimento não-
3
Rudolf Carnap, The Logical Syntaz of Language (Londres, 1937), p. 277.
4
Alfred North Whitehead, Adventures in Ideas (Nova Iorque, 1933), c. 9.
experimental subjacente, ou conhecimento conceitual. É fácil verificar que o conhecimento (-
196-) experimental pode modificar o conhecimento conceitual, ao passo que, para muita
gente, não é igualmente óbvio que o conhecimento conceitual possa estar servindo de base ao
conhecimento perceptivo e norteando-o.
Outro ponto a ser assinalado diz respeito à natureza social do conhecimento
conceitual. Todo conhecimento experimental vem dos sentidos, sendo portanto individual e
particular; em outras palavras, não-social. Portanto, dificilmente o conhecimento perceptivo
será um conhecimento social. Contudo, nenhum conhecimento pode dispensar seu conteúdo
social, cuja emergência e existência só ocorrem no campo do conhecimento interpretativo. S.
Alexander 5 salientou que o problema da atribuição de valores é de natureza social e que sem
pressupor uma sociedade não se pode falar em valores. Escusa dizer que essa atribuição de
valores só é possível no campo do conhecimento interpretativo. No que diz respeito ao
conhecimento perceptivo, em virtude de ser ele individual e particular, não existe o problema
da valorização objetiva. A importância do conhecimento perceptivo é evidente por si,
enquanto o conhecimento não-experimental aparentemente carece de importância, porque
essa importância é tão evidente, muito embora seja real.
III
Desnecessário se torna ir buscar muito longe a razão da natureza social do
conhecimento teórico: tem-na por ser um raciocínio expresso em termos de linguagem, ao
qual, em terminologia científica, se dá o nome de “raciocínio linguístico”. Escusa dizer que a
linguagem é um produto social. Embora (-197-) a linguagem da criança passe por um estágio
de monólogo, é evidente que a linguagem implica ou pressupõe um auditório. O homem
primitivo, segundo nos afirma, toma muitas vezes a linguagem como uma entidade concreta.
Quanto mais rudimentar é a cultura maior o poder das palavras. Na sociedade primitiva, a
linguagem tem um poder mágico; há, portanto, uma conexão direta entre linguagem e
pensamento. Quando se acusa um homem primitivo de ladrão, é quase certo ele zangar-se.
Mas na sociedade moderna, um indivíduo sofisticado é capaz de por de lado a acusação com
um sorriso, desde que seja inocente. Podemos considerar o grau de poder das palavras como
medida para avaliar a extensão de um desenvolvimento étnico intelectual. Essa questão ficou
suficientemente demonstrada pelos modernos estudiosos da psicologia infantil e da
“mentalidade primitiva”; não carecemos portanto de insistir ainda mais nela.
5
Samuel Alexander, Space, Time and Deity (Londres, 1920).
Até agora, os argumentos parecem revelar a discrepância entre a linguagem e as
coisas, falado assim em favor de emancipar-se o pensamento da linguagem. Quase todos os
filósofos, desde tempos remotos até os nossos dias, tiveram consciência das limitações
impostas pela linguagem, assim como da implicação de que o verdadeiro pensamento não
pode ser revestido pela linguagem. A concepção corrente diz mais ou menos o seguinte: o
pensamento é primário e com novos termos ganha melhor possibilidade de expressão. Essa
argumentação, entretanto, não revela necessariamente a natureza do desenvolvimento do
pensamento humano. Na realidade, é melhor dizer que a linguagem tem sido um fator
favorável e não um obstáculo ao desenvolvimento do pensamento. Considerando o conjunto
da história da Humanidade, todo criação nova em linguagem, isto é, toda terminologia nova
representa um desenvolvimento do pensamento em nova direção. Linguagem e pensamento
são fundamentalmente inseparáveis. Todo pensamento, para articular-se, só poderá fazer
través da (-198-) linguagem ou do símbolo. O que não puder ser assim articulado dificilmente
será considerado pensamento. Embora não possam identificar-se de maneira absoluta, a
linguagem e o pensamento não podem ser separados. Não que a linguagem limite ou oculte o
pensamento: ele antes o cria e desenvolve. Se considerássemos esses dois pontos ao mesmo
tempo, isto é, que o pensamento se desenvolve com a linguagem e que a linguagem é uma
forma de comportamento social, ficaria claro que, com exceção dos elementos experimentais,
todo conhecimento é social.
Com o reconhecimento da determinação do pensamento pelas condições sociais,
desenvolve-se a Sociologia do Conhecimento. Mas a Sociologia do Conhecimento mostrou
apenas que o pensamento humano é determinado por forças socialmente visíveis ou
invisíveis, sem compreender que, independentemente de todas essas forças concretas
imediatas, existem também, subjacentes, outras forças sociais de natureza remota. Tais forças
remotas podem ser identificadas com as relações culturais. Todo pensamento, além de
influenciado por nosso ambiente social imediato, é também modelado por nossa herança
cultural remota. As forças imediatas determinam a tendência de nosso pensamento, enquanto
a herança cultural remota determina as formas nas quais se torna possível tal pensamento.
Todas essas forças contribuem para determinar o conhecimento interpretativo. Com as
diferentes interpretações, vêm as diferentes culturas. E, nascendo em culturas diferentes, as
pessoas aprendem a interpretar diferentemente. Podemos, assim, recorrer à cultura para
explicar as categorias, e às categorias para explicar as diferenças mentais; por exemplo: as
existentes entre o Ocidente e o Oriente. (-199-)
IV
Com referência aos tipos de linguagem, pode-se observar uma distinção entre
“linguagem emotiva” e “linguagem referencial”. A primeira é usada para despertar, com os
necessários gestos e sons adequados, gestos ou atitudes mentais correspondentes na pessoa a
quem se dirigem. A segunda é usada para nos referimos a coisas ou a ideias a respeito das
coisas, sobretudo em termos de símbolos organizados ou de linguagem articulada. Segundo
Darwin, as expressões animais sob forma de canto e de rugidos podem ser consideradas como
precursoras da linguagem humana. De modo que a linguagem emotiva está mais próxima das
expressões elementares e mais relacionada com as atitudes mentais, enquanto a linguagem
referencial, mais próxima do pensamento abstrato, prende-se mais a construções gramaticais
do que a meras alterações de sons.
Com a gramática e a estrutura da frase surge a lógica e, nessa ordem de ideias, teremos
de nos deter um momento na natureza da Lógica. Os lógicos ocidentais consideram assunto
pacífico que o objeto da Lógica seja o conjunto de regras do raciocínio humano. Esta
suposição, entretanto, não é inteiramente justificada. Tomemos, por exemplo, a Lógica
aristotélica, que se baseia evidentemente na gramática grega. As discrepâncias entre as formas
gramaticais do latim, do francês, do inglês e do alemão não acarretam qualquer diferença
entre a Lógica aristotélica e as regras de raciocínio próprias dessas línguas, porque elas
pertencem à mesma família linguística indo-europeia. Aplicada no entanto ao pensamento
chinês, essa lógica revelar-se-ia inadequada. Tal fato mostra que a Lógica aristotélica baseia-
se na estrutura do sistema de linguagem ocidental. Por conseguinte, não nos é lícito acompa-(-
200-)-nhar os lógicos ocidentais quando admitem como certo que sua Lógica constitui a regra
universal do raciocínio humano 6.
Na medida em que o objeto da Lógica está nas regras de raciocínio implícitas na
linguagem, a expressão desse raciocínio deve ser implicitamente influenciada pela estrutura
da linguagem, e as diferentes línguas terão formas de lógica mais ou menos diferentes. Daí a
diferença entre a Lógica chinesa e a Lógica aristotélica. O tipo tradicional de proposição
“sujeito-predicado” não existe na Lógica chinesa. Segundo a norma da Lògica ocidental,
numa sentença como “A se relaciona com B”, a forma não constitui uma proposição com
sujeito e predicado e sim uma proposição relacional. Porém, a sentença “A está relacionado
com B” vem na forma em questão, porque existe uma distinção entre o sujeito e o predicado.
6
Consultar S. I. Hayakawa, “What is Meant by Aristotleian Structure of Language? ETC., 5,225,230. Verão
1946. N. de ETC.
Para estas duas formas, entretanto, há apenas uma em chinês literário, isto é, chia lien Yi7 .
Muito embora se possa dizer em linguagem corrente chia shih lien Yi , a função do shih
corresponde à das chamadas “palavras vazias”, usadas apenas para emprestar ênfase ou dar
uma entonação, sem nenhuma função gramatical. Estas duas proposições chinesas significam
a mesma coisa, sem nenhuma distinção gramatical, a não ser a maior ênfase da última.
Nenhuma delas constitui uma sentença com sujeito e predicado. Lien estabelece uma relação
entre os dois termos chia e Yi, não sendo porém uma cópula.
Com relação às (palavras vazias) como che, yeh, hu, tsai, yi, wei, e assim por diante,
elas primitivamente não o eram, (-201-) mas seu significado original se perdeu. A função
delas se baseia em seus sons. Como esses sons não dispõem de caracteres próprios, são
representados por caracteres de sons similares, denominados palavras “emprestadas”. A
palavra “emprestada” denota apenas o som, sem nenhuma implicação com o significado. Por
exemplo, wei, mencionado linhas acima, significava originalmente hou, isto é, “macaco”. O
que se toma emprestado é o som e não o significado da palavra original. No formula che yeh,
che desempenha a função de uma vírgula e yeh a de um ponto final. De acordo com os tipos
de linguagem acima mencionados, o referencial e o emotivo, as “palavras vazias” chinesas
são palavras emotivas. Essas palavras vazias emotivas estão estritamente ligadas à natureza
ideográfica dos caracteres chineses, a respeito dos quais nos estenderemos mais para diante. É
suficiente dizer agora que a Lógica aristotélica se baseia na estrutura de frases caracterizada
pela forma sujeito-predicado. Basta alterar tal estrutura, para se poder questionar a validade da
Lógica aristotélica tradicional. Depois destas observações preliminares, podemos prosseguir
na análise das diferenças entre a família lingüística ocidental e a língua chinesa, e suas
respectivas influências sobre a Lógica.
V
O pensamento ocidental, em última análise, fica adstrito à Lógica aristotélica, muito
embora os recentes desenvolvimentos no próprio âmbito da Lógica tenham superado o
modelo aristotélico. A moderna Lógica Matemática, por exemplo, é apenas uma extensão da
Lógica Formal. Não pode, de maneira alguma, congregar todos os tipos de Lógica. O motivo
que levou Bertrand Russell a opor-se à noção de subestância reside exclusivamente no fato de
ter ele descoberto uma (-202-) nova Lógica não fundamentada na forma de proposição
“sujeito-predicado”. Na realidade, entretanto, esse novo sistema de Lógica aplica-se apenas,
7
(N.O.) O primeiro caráter é usado para inicar “a”, o terceiro, para indicar “B” (numa enumeração); o caráter do meio
significa “relacionar”, “conectar”: uma “carruagem” sobre um “pé” indicando movimento, no pictograma original).
além da Matemática, às Ciências Físicas. Não é aplicável às Ciências Sociais. Por
conseguinte, a Lógica tradicional ainda é a “lógica viva” no espírito dos pensadores
ocidentais. Pode-se agora demonstrar que as “dez categorias” e os “cinco predicáveis” ou
“categoremas” (ulteriormente modificados) da Lógica aristotélica têm como fundamento a
gramática grega. E na medida em que a divisão e a definição derivam das “dez categorias” e
dos “cinco categoremas”, elas, por sua vez, ficam limitadas pela gramática grega. As
“falácias” apontadas por Aristóteles são essencialmente as encontradas na língua grega.
Sem falar nos exemplos óbvios acima mencionados, pode-se considerar
definitivamente que a base da Lógica aristotélica está na forma sujeito-predicado da estrutura
da linguagem. Como se vê na sentença inglesa “it is”, que significa “existir”. O verbo “ser”
tem significado de existência, e a Lógica ocidental está intimamente ligada ao vermo “ser”
nas línguas ocidentais. Deve ter ocorrido, aos leitores de Platão, que o verbo “ser” é muito
rico em significado. Dele decorrem muitos problemas filosóficos. Por ter o verbo “ser” um
significado de existência, a “lei da identidade” é inerente à Lógica ocidental; sem ela, não
pode haver inferência lógica. Por conseguinte, a Lógica ocidental pode ser qualificada de
“lógica da identidade”.
A lei da identidade não se limita a controlar as operações lógicas, como as deduções e
inferências: influencia também os conceitos do pensamento. Como sabemos, a filosofia (203)
de Aristóteles foi possível exclusivamente em virtude da utilização da “lógica da identidade”.
Para ele, a substância é um simples derivado do sujeito e do verbo “ser”. Deste último porque,
implicando “existência”, leva naturalmente à ideia de “ser”, de “ente”, e do primeiro porque,
numa proposição com sujeito e predicado, o sujeito não pode ser eliminado. Partindo da
indispensabilidade do sujeito numa sentença, vai apenas um curto passo até a necessidade de
um substratum no pensamento. Quando dizemos, por exemplo, “isto é amarelo e duro”, na
“amarelidão” e a “dureza” constituem os chamados “atributos” de uma coisa qualquer que, no
caso presente é “isto”. A “coisa” geralmente é o substrutum. Como o substratum surge a ideia
de “substância”. A ideia de substância é, na verdade, o fundamento ou fonte de todos os
outros desenvolvimentos filosóficos. Havendo uma descrição qualquer, ela passa a ser
atributo. Um atributo deve ser atribuído a uma substância, de modo que a ideia de substância
é absolutamente indispensável do pensamento, assim como o sujeito é absolutamente
indispensável à linguagem. Por isso, na história da Filosofia ocidental, por mais diferentes que
possam ser os argumentos, favoráveis ou contrários à ideia de substância, o que constitui o
problema central é essa mesma ideia de substância 8.
A palavra inglesa “it” [isto] também tem suas próprias peculiaridades. É um “in-
definido”. Denota alguma coisa, mas não diz o quê. Uma vez definido esse quê, desenvolve-
se o sujeito e o predicado ou, em outras palavras, a substância fica caracterizada pelos seus
atributos e os atributos são atribuídos à substância. Dessa maneira, a separação entre a
existência e o “quê” foi a condição fundamental que presidiu ao surgimento do conceito de
substância. E tal condição só se expressa na estrutura da linguagem ocidental. Pode-se admitir
então, depois de considerar as peculiaridades do verbo “ser” e da palavra “it”, que muitos
problemas filosóficos são apenas problemas de linguagem. 9
FIGURA A: Conjunto ab onde a e b formam ab e ba.
FIGURA B: Conjunto a onde b está contido em a.
FIGURA C: Conjunto b onde a está contido em b.
FIGURA D: Interseção dos conjuntos a e b.
A língua chinesa tem as suas próprias peculiaridades. Em primeiro lugar, para uma
sentença chinesa, o sujeito não é essencial. Ele fica muitas vezes subentendido. Numa
sentença como hsueh erh hsi chih pu yi yueh hu (“quando o estudamos e o revelamos
constantemente, não é agradável”?), ou kou chih yu jen yi wu o yer (“Havendo dedicação à
benevolência, não há maldade”), elimina-se o sujeito. Os exemplos desta espécie são
numerosos demais para serem mencionados. Os dois acima foram colhidos ao acaso nos
Analectos . Segundo: em chinês não existe nenhum verbo “ser” comparável a forma inglesa. O
shih coloquial não transmite a ideia de existência. O wei literário, por outro lado, transmite
uma (-205-) ideia de ch’wng que significa “tornar-se”. Mas em inglês “becoming” (tornando-
se) é exatamente o oposto de “being” (sendo, ser). Uma fórmula como “... che ... yeh” não
significa algo “idêntico”, não constituindo consequentemente uma proposição lógica, no
sentido ocidental. Quando dizemos “jen che jen yeh” não podemos afirmar que o jen é
sujeito, e o segundo jen predicado.* Nessa sentença, a ideia não pode ser expressa, como é
costume na lógica ocidental, pelo diagrama correspondente à figura A, acima.
8
(Sobre a estrutura sujeito-predicado, consultar A. Korzybski, Science and Sanity: Na Intruduction to Non-Aristotelian Systens and General
Semantics) (Lancaster, Pa., 1933), pp. 62, 85, 92, 131, 189, 190, 224, 306, 371. Sobre substância, consultar A. J. Ayer, Laguage, Truth and
Logic (Nova Iorque, 1936), pp. 28, 32-3, 50, 195. (Nota do ETC.)
9
Este ponto de vista difere do da escola de Viena no sentido de que, para aquela escola, uma vez claramente definida a linguagem, alguns
problemas deixam de existir. A meu ver, entretanto, existem problemas decorrentes da linguagem que indicam impulsos emotivos, os quais
não podem ser eliminados.
*(N.O.) Trata-se de uma definição por justaposição analógica: “humanidade (jen) assim como homem (jen)”. Ver, a seguir, a explanação de
Yu-Kuang Chu, nesta mesma coletânea. O primeiro ideograma é uma abreviatura metonímica de homem (duas pernas) seguida de dois traços
que significam “pluralidade”, ou, como quer Ezra Pound, “o homem com todos os seus conteúdos” (humanista); o terceiro ideograma é, mais
desenvolvidamente, a mesma abreviatura para homem, “bípede” ereto sobre as pernas.
As outras figuras B, C, D, não podem transmitir com exatidão a ideia da sentença.
Pode ser qualquer das três, ou pode estar entre as três. Esta é a prova mais concludentes da
ausência da palavra “ser” em chinês.
VI
Vimos acima que a Lógica ocidental se baseia essencialmente na lei de identidade 10.
Nela se fundamentam a divisão, a definição do silogismo e até a conversão e a oposição. Isso
tudo se correlaciona e constituí um sistema. A estrutura básica do pensamento chinês difere
desse sistema. O sistema chinês de Lógica, se é que o podemos qualificar de sistema, não se
baseia na lei de identidade. (-106-)
Comecemos pela divisão lógica ocidental. Tendo como base a lei de identidade, ela
tem de dicotomizar-se em formas como “A e B” ou “Bem e Mal” não são dicotomias na
forma porque, além de A e B, pode haver C, e além de Bem e Mal pode haver Não-Bem e
Não-Mal. De modo que a classificação precisa da regra de exclusão. Mas o pensamento
chinês não empresta ênfase à exclusão, enfatizado de preferência a qualidade relacional entre
acima e abaixo, bem e mal, alguma coisa e nada. Todos esses relativos são considerados
interdependentes. Numa sentença como yu wu hsiang sheng, nan i hsiang ch’eng,ch’ang tuan
chial, ch”ien hou bsiang sui (“alguma coisa e nada geram-se um ao outro; o difícil e o fácil
são reciprocamente complementar; o longo e o curto são mutuamente relativos; frente e as
costas se acompanham mutuamente”), temos uma lógica de natureza bastante diferente.
Chegamos agora à análise da definição. Na definição lótica ocidental, impõe-se fazer o
sinal de equação entre o definiendum e o definiens . Por exemplo, “um triângulo é uma porção
de um plano limitada por três linhas retas”. Mas no pensamento chinês, nunca se cogita do
problema da equação entre os dois. Por exemplo: denota-se “esposa” como “uma mulher que
tem um marido”.
Para a Lógica ocidental, isso não pode constituir uma definição, devendo ser
condenado como falácia, ou por ser justamente o que deve demonstrar-se; é, porém,
característico da Lógica chinesa. Chuan Chu, “o uso inverso de uma palavra”, nos
comentários clássicos, pertence à mesma categoria. Assim também o uso “metafórico”, ou
chia chieh. Pode-se dizer que o conceito mais importante na China antiga dizia respeito a
“céu” (t’ien), mas de acordo com a definição no Shuo Wen, t’ien significa a “cabeça humana”
ou o que fica acima da cabeça. Evidentemente, o que fica acima da cabeça tal-(-207-)-vez não
10
As regras da “contradição” e do “terceiro excluído” são simples corolários da lei de identidade.
seja necessariamente o “céu”. Podem existir outras coisas, como nuvens, vento, a Lua,
pássaros e tantas outras coisas! Esse método “indicativo” de definição difere bastante do tipo
ocidental. Os exemplos dessa espécie de definição, como jen che jen, yui che jui yeb, são
muito numerosos nos clássicos chineses, é desnecessário reproduzi-los aqui. * Basta observar
que, além dessa diferença do tipo de definição ocidental, um termo chinês também pode ser
explicado ou indicado por outro termo de som semelhante e de significado associado.
Explicar um termo por meio de outros de som semelhante seria inconcebível para a Lógica
ocidental, pois essa lógica sempre visa a destacar-se da linguagem, e a explicação por meio do
som é apenas linguística, sem implicações lógicas. Em suma, pode-se até dizer com segurança
que a antiga literatura chinesa não contém nenhum método de definição comparável ao do
Ocidente.
Nesta altura, valeria a pena analisar os caracteres chineses fei e pu. ** Numa sentença
inglesa como "A is not-B" (A é não-B) ou "A is not B" (A não é B) a natureza afirmativa ou
negativa é facilmente determinável. Mas dizendo em chinês chia fei yi, a negação pode
referir-se tanto ao primeiro como ao segundo termo. *** A dificuldade não fica tão aparente
nesta proposição simples, mas está claro que a conversão é desnecessária e a oposição
impossível. Evidencia-se, portanto, no exemplo, que o pensamento chinês não se pode
enquadrar na moldura da Lógica ocidental. É preciso atribuir-lhe uma designação diferente.
(-208-)
*(N. O.) Os exemplos dados no texto significam: “humanidade assim como homem” (humanidade é a qualidade
do Homem); “ser correto é análogo a ser prestativo” (correção e prestatividade correlacionam-se).
**(N. O.) Fei e pu são caracteres usados para fórmulas de negação.
***(N. O.) "A" /não/ "B"; o caráter mediano, pictograficamente analisado, representa dois lados mutuamente
opostos.
VII
11
*(N. O.) Ambos os caracteres têm como elemento comum, à esquerda, o radical 170, que representava
originalmente um “outeiro” uma elevação em “declive”, e, por extensão, “fertilidade”, “abundância”, em yang
temos, à direita, o “sol” sobre o traço do horizonte, encimando uma “asa” (raios do sol, o lado ensolarado do
outeiro, sul); em yin temos, à direita, dois signos superpostos que, originariamente, representavam “nuvens”,
“nebulosidade” (o lado sombrio do outeiro, norte).
Emotivo, fleumático, afirmativo e resignado, feliz e infeliz.
A Natureza ideográfica dos caracteres chineses influencia não somente a estrutura da
linguagem chinesa, mas também (-210-) o pensamento ou filosofia do povo. O Livro das
Mudanças pode ser considerado conto o mais perfeito dos exemplos. Muito provavelmente, as
palavras eram a princípio forjadas como símbolos-emblemas. Por isto, está escrito: "O sábio
dispunha diagramas ( kua) de modo a ver a significação de cada signo ( hsiang )”. Embora não
se justifique inteiramente a afirmação de que os diagramas são os caracteres chineses
originais, pode-se tomar pelo menos como certo que a sua natureza se assemelha à dos
caracteres chineses. A criação dos diagramas atendia aos objetivos divinatórios, mas devem
ter existido limites preestabelecidos para as possíveis combinações destinadas a tais objetivos.
Cada combinação é um signo possível. "O céu indica a boa e a má sorte por meio de signos,
cuja significação é decifrada pelos sábios”. Esses "sábios" devem ter sido os heróis da história
cultural, como Pao Hsi Shih, a quem foi atribuída a invenção dos diagramas. Pode-se dizer
que os signos não simbolizam apenas algo externo, mas indicam também as possíveis
modificações. Por exemplo: foi a partir do diagrama yi que se inventaram os implementos
agrícolas, e o diagrama li inspirou a invenção das redes de pescar. O Dr. Hu Shih disse muito
acertadamente: "Confúcio pensava que, com a gênese dos signos, vieram as coisas. Os signos
são os arquétipos primevos, segundo os quais foram modeladas as coisas".
De acordo com o antigo pensamento chinês, primeiro vieram os signos e depois
engendraram-se e desenvolveram-se as coisas. Essa afirmação difere bastante da ocidental.
Embora as ideias platônicas apresentem uma semelhança superficial com ela, é preciso
lembrar que as "ideias" de Platão têm existên-(-211-)-cia própria, o que já não é verdade no
caso dos oito diagramas. Como vimos, o pensamento ocidental está firmemente baseado na
ideia de substância. Há, por conseguinte, necessidade de um substratum, e o resultado final
dessa corrente de pensamento dá origem à ideia de "matéria pura". Uma das características da
Filosofia ocidental é penetrar nos bastidores de uma coisa, enquanto a característica do
pensamento chinês é a atenção exclusiva às implicações correlacionais entre os diferentes
signos, como yin e yang , ho ("involução") e p'i ("evolução"). É também em virtude desse fato
que não existe nenhum vestígio da ideia de substância no pensamento chinês. Observe-se que
a presença de uma ideia dá origem a formas de palavras para expressá-la. Na China, não
existe a palavra substância. Palavras como l'i ("corpo") e yung ("função"), neng
("conhecendo") e so ("conhecido"), quando usadas para expressar sujeito e objeto, decorrem
da tradução das escrituras budistas. Para o espírito chinês, não faz a menor diferença que
exista ou não um substratum supremo subjacente a todas as coisas. Por serem ideográficos os
caracteres chineses, o pensamento chinês só toma conhecimento dos signos e das relações
entre eles.
Deve ter ficado evidente, até agora, que não somente existe uma estreita relação entre
a Lógica e a linguagem, como também que um sistema lógico deve pressupor uma filosofia,
isto é, uma cosmologia e uma filosofia de vida. A Cosmologia chinesa pode ser chamada
"significismo" ou "pressagismo". O caráter chinês hsiang , que se traduz por "signo", tem
todos os significados das palavras "fenômeno", "símbolo" e "presságio", devendo-se, porém,
observar que por trás de hsiang não estão implícitas determinadas coisas concretas. Seu
significado diz respeito apenas aos assuntos humanos. De modo que um signo tem como
objetivo transmitir lições ao povo e, consequentemente, todos os fenômenos do firmamento,
como as estrelas e os cometas, são com-(-212-)-siderados maus presságios. A Cosmogonia
chinesa, caracterizada pelo augurismo, é essencialmente um guia prático para a existência
humana. Também neste ponto ela difere da ocidental. Pode ser verdadeiro que na Filosofia do
Ocidente a Cosmologia represente um passo preliminar em direção à filosofia de vida, mas as
duas não podem ser confundidas. O pensamento chinês, pelo contrário, não estabelece
nenhuma distinção entre o cosmo e os problemas todos da existência humana.
De acordo com a tradição ocidental, a Filosofia pode ser classificada em Cosmologia,
Ontologia e filosofia de vida. Na China, há apenas a Cosmogonia e a filosofia de vida, sem
Ontologia nem Cosmologia propriamente dita e mesmo a Cosmogonia é compreendida na
filosofia de vida. Isto, em virtude do descaso pela lei de identidade por parte dos pensadores
chineses. Até certas expressões contidas no Lao Tzu como t'ien ti ken (céu, terra, raiz) e tao
chi (caminho, curso) dizem respeito apenas à origem do universo. Com o desenvolvimento
posterior no Chuang Tzu, uma sentença como: "que objeto seja feito ou não o seja; ele
permanece o mesmo", presta-se a ser frequentemente apontada como semelhante à
"substância" ocidental. Não obstante a meta do Chuang Tzu é exclusivamente "o grau
adequado de ajustamento". Por conseguinte, sua identificação do cosmo com o eu é apenas
uma espécie de experiência mística. Em outras palavras, ele se interessa mais pela
"participação" ou "transdução" 12 que pelo problema da existência. O livro Chuang Tzu tem
uma origem mista. Não é improvável que os sábios de Wei e Chin tenham (-213-) feito
inserções e alterações; é evidente, porém, que as concepções do autor são mais ou menos
idênticas às dos hindus.
O conhecimento subsequente, tardio, do problema da substância por parte dos chineses
deveu-se à influência da Índia. Os sistemas éticos das dinastias Sung e Ming não passam de
12
São termos colhidos de Jean Piaget, The Child’s Conception of the World (Nova Iorque e Londres, 1929).
reações contra o Budismo. Afirma-se com frequência que a Filosofia ocidental teve início
com a noção de substância, de que se libertou mais tarde, enquanto a China originalmente a
desconheceu, tendo-a adquirido posteriormente. Essa aquisição se fez através do contato
cultural, fato que suscita problemas cuja discussão não cabe aqui. O nosso problema é saber
se existem ou não forças originais que ainda servem de base ao pensamento chinês; saber, por
exemplo, se o espírito chinês ainda se caracteriza pelo desinteresse face à noção de
substância. Tudo leva a crer que, a despeito das inúmeras influências ocidentais, é o que ainda
acontece.
VIII
Como a noção de substância se relaciona com a noção de causalidade, as Ciências
ainda são determinadas, em sua maior parte, pelo conceito de causalidade. Nesta altura, é
preciso dizer que Kant foi o primeiro a revelar o mistério do pensamento ocidental. Ninguém
jamais o superou, nem mesmo em nossos dias. Ele coloca a ideia de reciprocidade entre as
ideias de substância e de causalidade de modo a tornar as três interdependentes. Por
conseguinte, onde há causalidade deve haver reciprocidade, e onde há reciprocidade deve
haver substância. Nenhuma das três pode ser dispensada. Daí nós podemos depreender que a
ideia de causalidade deriva da de substância. Esta mesma causalidade, posteriormente
combinada com a substância, dá origem à ideia do átomo. Nisto se baseia a nossa tese de que,
no pensamento ocidental, religião, Ciência e matéria-(-214-)-lismo são interdependentes,
posição que não é adotada pelos atuais pensadores chineses.
De um modo geral, existem no Ocidente duas formas de religião, a do tipo grego
arcaico e a do tipo cristão. A primeira nem foi monopolizada pelos gregos, nem é
exclusivamente ocidental. Assemelha-se à da existência chinesa primitiva. A tal respeito,
cumpre lembrar que na mitologia grega existem potencialidades materialistas. E a religião
primitiva da China, como a de todas as sociedades primitivas, ligava-se estreitamente à
Natureza. Mas, ao desenvolver-se a Teologia, foi preciso dar-lhe como fundamento a ideia de
substância. A ideia de um Ser Supremo ou Criador está intimamente relacionada com a ideia
de substância. Além disso, ela também se prende estreitamente à noção de identidade. A
Metafísica, que se baseia na substância, é religião. Uma Realidade Suprema é, em essência,
Deus. Pode-se assim sustentar que a filosofia metafísica ou ontológica é um tipo de
pensamento religioso. A Lógica caracterizada pela lei de identidade serve de fundamento para
esse tipo de raciocínio religioso. Finalmente, pode-se dizer que a antologia em Filosofia, a
ideia de Deus em religião, e a lei de identidade em Lógica são, essencialmente, uma coisa só.
Spengler 13 mostrou que "não existe Ciência Natural sem uma religião anterior".
Whitehead também sustenta que o desenvolvimento da Ciência moderna relacionou-se
intimamente com as convicções religiosas da Idade Média. Na medida em que a Ciência está
relacionada com a religião, deve-se compreender que na cultura ocidental ambas representam
apenas duas correntes diferentes de uma mesma fonte. Não são tão opostas quanto geralmente
se supõe. Isto, porém, não deverá ser interpretado em termos causais; uma não determina a
outra, (-215-) sendo ambas desenvolvimentos paralelos de uma fonte comum. Dessa maneira,
embora a Ciência e a religião superficialmente se contraponham, a natureza íntima de ambas
não é oposta.
Além disso, Spengler nos fez notar que a Cosmologia católica e o materialismo não
são coisas diferentes e sim uma mesma coisa, expressa em terminologias diferentes. Deixando
de lado o Catolicismo, podemos dizer que o pensamento materialista se fundamenta na noção
de átomo, e que a noção de átomo está relacionada com as noções de substância e de
causalidade. Pode-se afirmar que existem, no pensamento ocidental, três categorias
fundamentais: substância , causalidade e átomo. A religião tem como fundamento a
substância. Com a causalidade, desenvolveu-se a Ciência, e dos átomos decorreu o
materialismo. Por trás dessas três categorias, há uma outra a ligá-las: a da identidade. O
filósofo francês Meyerson prestou-nos um serviço quando observou que todas as teorias e
investigações científicas dizem respeito à identidade 14. Compreende-se facilmente que com a
identidade deve haver substância; com a substância, deve haver causalidade; e o átomo fica
entre as duas. Assim, o pensamento ocidental tem essencialmente como base essas quatro
categorias. Sem compreender a importância e a prioridade de tais categorias, não nos é
possível chegar a compreender a fundo a cultura e o pensamento ocidentais.
Por outro lado, a cultura chinesa não tem a menor relação com as categorias acima
mencionadas. Comecemos pela vida religiosa na China antiga. Ela não era muito diferente da
dos antigos gregos. Contudo, as concepções religiosas não se associavam, na China, aos
rituais de adoração e à instituição de templos oficiais. Não é certo que tenham existido (-216-)
outras divindades, antes do aparecimento do conceito de Céu. Mas, mesmo no que diz
respeito ao Céu e a Deus, os chineses jamais cogitaram deles de maneira primordial. Quando
falamos em Céu, temos em mente apenas a Providência, vista simplesmente como a
manifestação do Céu. Em outras palavras, os chineses se interessam pela vontade do Céu, sem
se deterem de maneira especial no próprio Céu, porque, de acordo com o ponto de vista
13
Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926-28, I, 380).
14
Êmile Meyerson, Identity and Reality (Nova Iorque, 1930).
chinês, a vontade do Céu é o próprio Céu, e cogitar do Céu sem dar atenção à sua vontade
seria logicamente inconcebível na China. O Céu e a vontade do Céu são uma coisa só. Não há
um primeiro, que é o Céu, e depois a manifestação de sua vontade. Sendo idênticos o Céu e
sua vontade, os chineses jamais consideraram o Céu como uma entidade, e não sendo uma
entidade, tampouco é uma substância. De modo que o Céu chinês não tem nenhuma relação
com a substância ocidental. A adivinhação serve de ponte, por sobre o abismo, entre o
Homem e o Céu. Os chineses só estão interessados em conhecer a vontade do Céu, a fim de
buscar a boa sorte e de evitar o infortúnio. Quanto à natureza do Céu como tal, eles se
mantêm indiferentes. Esse fato demonstra que os chineses não aplicaram a categoria de
substância à noção de Céu e não consideraram o Céu como suprema essência fundamental do
universo.
Outro aspecto interessante é o de que a maioria das formulações referentes à vontade
do Céu no Shang Shu nada mais são do que indicações sobre a transferência do poder político
entre as diferentes dinastias ou de uma dinastia para outra. O poder político alienava-se na
China de duas maneiras: a (-217-) hereditária e a revolucionária. Quando era violada a lei
hereditária, originava-se uma revolução. Os casos de transferência hereditária não suscitavam
conturbações, mas precisava haver uma justificativa para as revoluções, e essa justificativa era
encontrada na vontade do Céu. Uma transferência revolucionária acarreta grandes
consequências políticas e sociais. O fato de ela ser atribuída à vontade do Céu constitui uma
prova de que todas as grandes mudanças ficam além do controle da vontade humana, e de que
a vontade do Céu só se manifesta na vida política e social. É exatamente o oposto do que
acontece no Ocidente, onde o conceito de substância serve de fundamento para a ênfase
atribuída ao pensamento religioso.
Sob este aspecto, pode-se dizer alguma coisa a respeito das transformações e
influências da vida religiosa na China e no Ocidente. No Ocidente, o tipo grego de vida
religiosa chegou ao fim por ocasião da unificação do Império Romano, mas a nova forma de
religião sobreviveu à decadência do feudalismo. Consequentemente, religião e política
representam, no Ocidente, duas correntes. A vida religiosa na China, em muitos pontos
semelhante à da Grécia, constituiu um poderoso esteio do feudalismo, que era similar ao
europeu. Na época do Ch'un Ch'iu, o feudalismo foi abalado, o que sem dúvida alguma
repercutiu no pensamento do povo. Daí certas expressões como: "O caminho do Céu é
distante, o caminho humano é próximo"; "O que disse o Céu? No entanto as quatro estações
funcionam regularmente”. O Confucionismo, sem eliminar a doutrina do Céu, deixou-a fora
dos assuntos humanos. Esse tipo de pensamento tendia a reduzir a influência das convicções
religiosas na China, e mais tarde houve apenas política e não religião. A mesma tendência se
manifestou no pensamento, e podemos recapitular dizendo que a lei de identidade na Lógica,
a proposição tipo "sujeito-predicado" na estrutura da frase e a categoria de substância em
Filosofia têm, como fundo comum, o pensamento religioso. Isto é caracte-(218-)-rístico da
cultura ocidental. A lógica de correlação, a classificação não-exclusiva, a definição analógica
têm, como fundo comum, o pensamento político. O que é característico da cultura chinesa.
IX
Esses dois tipos de pensamento diferem não somente quanto às respectivas categorias
e leis básicas de Lógica, como também quanto às atitudes. Ao propor uma pergunta a respeito
de uma coisa qualquer, é característico da mentalidade ocidental interrogar: "O que é?" e em
seguida: "Como se deveria reagir diante disso?" A mentalidade chinesa não dá ênfase a o que
e sim ao como. O pensamento Ocidental se caracteriza pela "atitude de prioridade do o quê" e
o chinês pela "atitude de prioridade do como". Em outras palavras, os ocidentais usam o "quê"
para personificar e absorver o "como". O "como" deve ser determinado pelo "quê". Os
chineses, por sua vez, usam o "como" implicando o "quê". O tipo de pensamento do "quê"
pode-se desenvolver passando da religião para a Ciência. É esta uma das características do
pensamento científico. O tipo de pensamento que se caracteriza pela ênfase no "como" só se
pode desenvolver na esfera sociopolítica, particularmente em conexão com o problema da
Ética. O desinteresse pelo "quê" responde pelo desinteresse pela Epistemologia, ou pela
ausência desta na China.
Pode-se assim explicar que o pensamento chinês sempre se volte para os assuntos
humanos, descurando a Natureza. Alega-se com frequência que na Filosofia chinesa existem
controvérsias entre o nominalismo e o realismo e o problema da relação entre o Homem e a
Natureza, implicando-se com isto que a Filosofia chinesa assemelha-se à Filosofia ocidental.
Não é o que acontece, em verdade. O interesse chinês pelo pro-(-219-)-blema do nominalismo
e do realismo, assim como pelo problema da relação entre o Homem e a Natureza, volta-se
para o pensamento sociopolítico e para a filosofia de vida.
O pensamento chinês e o ocidental também diferem quanto à questão da inferência. O
silogismo, cujo fundamento está na lei de identidade, é a forma de inferência na Lógica
ocidental, enquanto os chineses recorrem à analogia em lugar da inferência. A fórmula acima
mencionada, jen che jen jeh (Humanidade assim como Homem), representa um tipo de
raciocínio analógico. Outros exemplos, colhidos em Mêncio, vêm mais a propósito; a saber:
"A bondade da natureza humana (é) como a tendência da água a descer pela vertente"; e:
"Vida não significa Natureza, assim como branco significa branco? A brancura de uma pena
branca não significa a brancura da neve branca? E a brancura da neve, não significa a
brancura do jade branco?... E se assim é, será a natureza do cão semelhante à do homem?" Em
Mêncio, esses exemplos são por demais numerosos para se fazerem necessárias outras
citações. Em seu Mencius on lhe Mind , I. A. Richards contrapôs esse tipo de argumentação ao
ocidental. O tipo chinês pode ser qualificado de "lógica de analogia". Essa lógica, na
realidade, embora não se possa aplicar adequadamente ao pensamento científico, é
amplamente utilizado nas argumentações sociopolíticas. A argumentação analógica é, de fato,
uma das características do pensamento político. Pode-se considerar o marxismo como um dos
melhores exemplos. A fórmula "tese-antítese-síntese", a ser aplicada a todo processo
histórico, é de natureza analógica. Da mesma maneira podemos considerar a transformação da
semente em árvore como a antítese da semente. Desta forma, também a teoria da luta de
classes constitui uma argumentação por analogia. Sem entrar aqui na crítica ao que há de
falacioso no (-220-) marxismo, será proveitoso observar neste ponto que a filosofia marxista é
de natureza política.
X
O tipo de pensamento que se interessa antes de tudo pela política também pode
apresentar algumas conexões com a linguagem. Assim, Confúcio era favorável à "retificação
dos nomes" ou cheng ming . A retificação dos nomes não foi defendida por Confúcio por
motivos de lógica, e sim como um recurso para manter a ordem da sociedade. Daí a
afirmação: "Quando os nomes não são corretos, a linguagem não está de acordo com a
verdade das coisas. Quando a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas, os
negócios não podem ser empreendidos com êxito. Quando os negócios não podem ser
empreendidos com êxito, os bons usos e a música não prosperam”. A função da retificação
dos nomes é discernir o que fica em cima e o que fica em baixo, é determinar o superior e o
inferior e distinguir o bem do mal. Sua meta está nos assuntos humanos, mais do que na
lógica, Por exemplo, matar um rei é qualificado de crime ou shih , ficando aí implícita uma
violação do superior pelo inferior. A morte de um inferior por um superior é denominada
execução ou chan, o que implica que o executado foi justamente punido, de acordo com a lei.
Com referência ao imperador, viajar é hsing ou "favorecer". "Vir diretamente" é Iai e "vir
para instalar-se" é Iai kuei. Ir dos distritos locais para o governo central é "subir" ou shang ,
como nas expressões "subir em direção ao oeste" e "subir em (-221-) direção ao norte". E ir
do governo central para os distritos locais é "descer" ou hsia. É como em "descer para o sul"
ou "descer para o leste". Existem distinções parecidas em inglês, como se pode verificar nas
traduções ("to go up", "to go down"), mas a ênfase que se lhes empresta não é tão óbvia e
sistemática. Para o Dr. Hu Shih, essas distinções todas são apenas derivadas das partes do
discurso com funções gramaticais. Observa ademais: "Ao retificar os nomes, Confúcio
tornou-se o primeiro lógico da China”. Mas, como vimos, não é isto o que acontece.
Poderíamos encontrar outras provas para efeito de um paralelo com as transformações
gramaticais no Ocidente. Tomemos a palavra inglesa sense , por exemplo. Suas modificações
podem assumir as seguintes formas: senses (senso, juízo), sensation (sensação), sensational
(sensacional), sensible (sensato), sensibility (sensibilidade), sensum, sensa (sentimentos,
pensamentos), sensationalism (sensacionalismo, sensualismo), senseless (sem sentido),
sensitive (sensitivo), sensitivity (sensibilidade), sensibly (sensatamente), sensory (sensorial),
sensorium (sensório) etc. Todas essas formas derivam de uma mesma raiz. Em virtude do uso
de flexões, casos, ou outras formas gramaticais, a "forma" constitui um elemento essencial
para o pensamento do Ocidente. A despeito do fato de a concepção aristotélica de "forma"
poder ser diferente da baconiana, e da "forma" de Bacon poder diferir da de Kant, pode-se
observar que existe em todos esses pensadores algo de básico e uniforme, a saber: a ênfase na
ideia de "forma". Os caracteres chineses são ideográficos; apesar de terem radicais ou p'ien
p'ang , não têm raízes. Os radicais são utilizados apenas com finalidade classificatória; por
exemplo, certas palavras pertencem ao domínio da água e outras ao domínio das plantas.
Sempre que (-222-) aparece uma ideia nova, é preciso inventar uma palavra nova, a qual não
será simplesmente derivada de uma raiz. Os ideogramas chineses não ficam sujeitos a
transformações gramaticais; não há flexão, declinação nem conjugação.
Como a criação de palavras novas deve-se basear nas necessidades da sociedade, será
interessante observar que a maioria dos termos chineses vem de dois setores ou domínios: um
deles, o parentesco, ilustrado por po (irmão mais velho do pai), shu (irmão mais novo do pai),
t'ang (primo por parte de pai), piao e yi ou outros tipos de primos; os outros vêm do domínio
da Ética, ilustrados por chung (lealdade), hsiao (piedade filial), lien (frugalidade nas
necessidades) e chien (frugalidade nos dispêndios). Todas as delicadas nuanças da
terminologia chinesa nesses dois campos poderão ficar agrupadas nos termos ingleses
brothers (irmãos), uncles (tios), cousins (primos), frugality (frugalidade). Esse agrupamento
se justifica no Ocidente, mas na China todas as diferenças têm de ser preservadas em virtude
de seu significado social e todos os finos matizes da terminologia chinesa podem ser
atribuídos à retificação dos nomes.
Seria preciso explicar também por que motivo o tipo de pensamento que se volta para
a política empresta maior valor à lógica de correlação. A razão está no fato de que, nos
fenômenos sociais, tudo pode ser considerado em termos de correlações, como macho e
fêmea, marido e mulher, pai e filho, o governante e o governado, o civil e o militar, e assim
por diante. É curto o passo que leva deste domínio para o da Cosmologia. Por exemplo: nós
dizemos "estando o Céu em cima e a Terra embaixo, o universo está determinado". Além
disso, as questões políticas podem ter implicações cosmológicas; por exemplo, dos princípios
positivo (yang ) e negativo ( yin) do cosmo podemos extrair o princípio de evolução e
involução que está por trás do universo e das questões humanas, e que se desenvolverá (-223-)
finalmente em conceitos como os de governo adequado ou desordem nos assuntos políticos.
Será conveniente lembrar que esse tipo de raciocínio é característico do pensamento político e
social.
Até mesmo aí, entretanto, existe uma diferença entre a China e o Ocidente. É bem
verdade que, sendo essencialmente uma filosofia voltada para as questões sociais e políticas, o
marxismo eliminou a lei de identidade e propôs a lei da oposição no raciocínio. Mas o que o
separa do pensamento chinês é o fato de que, enquanto o marxismo enfatiza a oposição e
portanto a luta de classes, o pensamento chinês enfatiza o resultado ou ajustamento dessa
oposição. Quando Mêncio afirma: "os trabalhadores intelectuais governam enquanto os
trabalhadores manuais são governados", a ênfase está na divisão do trabalho, tornando-se
assim possível a ajuda mútua, tal como ele a concebia. Em contraposição à lógica de
correlação dos chineses, o tipo marxista de lógica pode ser qualificado de "lógica de
oposição".
XI
Estamos agora em condições de discutir a relação existente entre as categorias lógicas,
por um lado, e a natureza humana, por outro. Face a um dado acontecimento, podemos ter
interpretações diferentes. Por exemplo, o pôr do sol é um fenômeno observado, com relação
ao qual podem existir diferentes interpretações, a saber: o Sol descamba por trás da Terra em
direção ao oeste, ou a Terra gira para leste. Por conseguinte, identidade, substância e
causalidade são interpretações, ou conceitos empregados no ato da interpretação, e esses
mesmos conceitos são de natureza interpretativa.
Pode-se perguntar, porém, de onde surgem tais interpretações, e como é que se tornam
válidas? Podemos ir buscar a terminologia em Pareto, sem acompanhá-lo nas demais impli-(-
224-)-cações. De acordo com ele, há "resíduos" e "derivações". Os primeiros são os impulsos
emocionais e os últimos as manifestações exteriores ou racionalizações. É possível uma
distinção entre dois tipos de resíduos, isto é, o "resíduo de persistência" e o "resíduo de
dominância". A partir do "resíduo de persistência", desenvolve-se o pensamento religioso; e a
categoria de substância, a proposição sujeito-predicado, a Lógica caracterizada pela lei de
identidade assim como o decorrente conceito de causalidade constituem derivações desse
"resíduo de persistência". Do "resíduo de dominância" vêm o pensamento social, as teorias
políticas e as instituições concretas delas decorrentes. Todas as derivações vêm de resíduos
cujas raízes se encontram nos impulsos emocionais. Para exprimir esses impulsos emocionais
existem todos os desenvolvimentos, ou derivações, políticos e religiosos. Aos que se
interessam pelo estudo da cultura não é lícito esquecer que esses resíduos, a persistência e a
dominância, são características universais do Homem. E deve-se ter como certo que não é
apenas nos campos político e social mas também nos campos linguístico e mental que se
podem observar as características universais do Homem. O motivo da existência de diferenças
culturais entre a China e o Ocidente parece estar simplesmente no desenvolvimento e no
subdesenvolvimento das derivações segundo certas linhas de força. Não que os chineses
sejam destituídos de "resíduo de persistência" e sim que, em sua cultura original ou em suas
derivações, esse resíduo não se desenvolveu. Mas, uma vez em contato com a Índia, os
chineses receberam-lhe calorosamente a religião, porque o Budismo suscitou o "resíduo de
persistência" adormecido em sua própria natureza. Sendo a cultura chinesa subdesenvolvida
sob este aspecto, o Budismo encontrou na China uma segunda pátria.
Também não se pode dizer que os ocidentais não tenham "resíduo de dominância". A
Filosofia ocidental é indiscutivelmente uma transformação da religião. Como sabemos, em (-
225-) seu estudo do conhecimento, Kant ofereceu uma justificativa teórica para a existência
da substância. Mas sua Crítica da Razão Pura deu margem à sua Crítica da Razão Prática. Se
no conhecimento a substância não fica revelada, é certamente na conduta que ela se realiza.
Sob esses aspectos, embora tentando analisar o pensamento ocidental, Kant fica por ele
limitado. Sua atitude, não nos esqueçamos, é a atitude ocidental tradicionalista: a utilização da
religião como recurso indireto para abordar a sociedade e a política. Partindo daí, observe-se
que toda a Metafísica ocidental é de natureza essencialmente sociopolítica. Mas essa relação
não é assim tão evidente. Um dos méritos do marxismo foi captar com clareza tal aspecto. É
pena, entretanto, que sua concepção seja por demais estreita, ao tomar as classes pela
sociedade. A Metafísica foi considerada como mera racionalização do pensamento social e
político. O aspecto puramente teórico da Filosofia ocidental é tão somente uma forma
disfarçada do pensamento sociopolítico. Esta observação talvez pareça exagerada, mas, na
realidade, a Filosofia faz parte da cultura e a cultura sempre constitui uma configuração total.
Política, sociedade e existência humana não podem ser separadas da Filosofia. Alega-se com
frequência que a Filosofia se interessa antes de tudo pelo desenredar dos segredos do
universo, mas esse ponto de vista parece bastante superficial. São geralmente duas as atitudes
assumidas diante dos problemas sociais e políticos do presente. Uma delas consiste em
procurar conservar, a outra em modificar as condições. O marxismo talvez tenha ido longe
demais ao identificar idealismo e conservadorismo, materialismo e revolucionarismo, mas não
se pode negar o fato de que idealismo e materialismo estejam ligados à sociedade e à política.
É sobre esta base que as concepções da escola de Viena, as de Carnap, por exemplo,
deveriam ser reconsideradas. Carnap considera "nonsense" todas as proposições filosóficas,
visto (-226-) não serem elas suscetíveis de verificação. Não é necessário lembrar que o
conhecimento humano contém muita coisa não suscetível de ser verificada; e não se pode
dizer que o que não é verificável não seja verdadeiro. A célebre frase de Rousseau "O homem
nasce livre" não pode ser verificada. Todavia, ela contribuiu para a Independência Americana
e para a Revolução Francesa. O pensamento social não se interessa pela verificação. Não é
verificável, mas é realizável. É este o fundamento da "Determinação do Homem a combater a
Natureza", como se diz na China. O pensamento metafísico ocidental é tão somente uma
teoria sociopolítica sob outra forma. E a Filosofia tem, por conseguinte, essa natureza não
verificável, mas realizável.
Antes de concluir o presente ensaio, terei de formular sucintamente a minha teoria
pessoal do conhecimento. A meu ver, o conhecimento humano deve ser examinado em quatro
grupos, cada um deles penetrando os demais e deles dependendo. O primeiro é o da
"estrutura" externa, responsável pela sensação imediata. Sendo o mundo externo
simplesmente "estrutura", só podemos conhecer-lhe as "propriedades matemáticas", para nos
valermos de uma expressão de Russell. Da sua natureza qualitativa, nada sabemos. Deve-se,
porém, salientar que essas propriedades matemáticas não são estáticas e rígidas, e sim
flexíveis e modificáveis. O segundo grupo é o dos sensa, para empregar a terminologia do
neorrealismo. Nossa sensação é uma coisa curiosa. Embora suscitada externamente, ela difere,
quanto à natureza, do universo externo. Pode-se dizer que entre ambos existe correspondência
mas não identidade. Por natureza, a sensação é algo independente. O terceiro grupo consiste
de "construções". Os objetos geralmente percebidos, como mesas, cadeiras, casas, amigos,
etc. são "construções". Essas construções são com frequência e in-(-227-)-genuamente
consideradas como coisas que têm uma existência própria e independente. São, porém, na
verdade, coisas construídas através das percepções do observador. O quarto grupo é o que já
analisamos como "interpretação". Esses quatro grupos são interdependentes .15
Comparativamente falando, os dois primeiros se relacionam mais estreitamente com o mundo
exterior, sendo, por conseguinte, mais objetivos, enquanto os dois últimos se relacionam mais
estreitamente com o mundo interior, sendo portanto mais subjetivos. O processo que leva dos
dois últimos aos dois primeiros pode ser denominado processo de "ligação", enquanto o
oposto pode ser designado como processo de "desligamento". O conhecimento teórico é um
processo de desligamento. Depois do desligamento, o conhecimento teórico ainda permanece
como uma base invisível para o conhecimento positivístico. O problema da validade só se
manifesta depois do processo de desligamento. Em virtude da possibilidade da existência de
diversas interpretações, suscita-se a questão de saber qual a correta e qual a errônea, ou qual é
razoável e qual não o é. (Na realidade, do ponto de vista cultural, existe apenas diferença, e
não certo ou errado.) E esta é uma das características do conhecimento teórico, ao qual
pertencem a Filosofia, o pensamento social, as teorias políticas e todas as convicções
religiosas.
Para concluir, podemos dizer que analisamos, pela ordem, os seguintes pontos, a fim
de mostrar que a cultura humana 16 constitui um todo. Primeiro, o que é Filosofia ocidental?
Segundo, qual a relação entre linguagem e pensamento? Ter-(-228-)-ceiro, qual é a relação
entre Lógica e Filosofia? Quarto, qual a relação entre Filosofia, sociedade, política e religião?
Quinto, qual a relação entre conhecimento teórico e conhecimento perceptivo? Sexto, qual a
relação entre natureza humana e cultura (entre "resíduos" e "derivações")? Sétimo, qual a
diferença entre os processos mentais chineses e os ocidentais? Todas essas questões foram
analisadas do ponto de vista filosófico; se elas tiverem algum significado para a Sociologia,
sua avaliação e crítica deverão caber aos sociólogos.
Se o leitor tiver tido a paciência de acompanhar toda a nossa análise, talvez lhe tenha
parecido que o autor descambou para o ecletismo. Há, porém, ecletismo e ecletismo. Se o
ecletismo se revelar útil, oferecendo uma visão mais sintética de todos os problemas tratados,
não terão cabimento muitos pedidos de desculpas.
15
(Confrontar Korzybski, op. cit., Capítulo XIV, “On Abstracting”. Nota de ETC.)
16
A cultura, em nossa análise, se restringe aspecto mental. Estando fora do escopo deste ensaio, seu aspecto
material não é aqui analisado. Não se deve, entretanto, considerar como implícito que a cultura não tenha
aspectos materiais.