Gildo Volpato - Jogo, Brincadeira e Brinquedo - Usos e Significados No Contexto Escolar e Familiar

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GILDO VOLPATO

JOGO,
BRINCADEIRA E BRINQUEDO
Usos e significados no contexto
escolar e familiar
2017 ©Copyright UNESC Universidade do Extremo Sul Catarinense
Av. Universitária, 1105
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GILDO VOLPATO

JOGO,
BRINCADEIRA E BRINQUEDO
Usos e significados no contexto
escolar e familiar

Criciúma
UNESC
2017
Editora da UNESC
Editor-Chefe:
Dimas de Oliveira Estevam
Revisão ortográfica e gramatical: Guilherme Medeiros Honorato
Projeto gráfico, diagramação e capa: Luiz Augusto Pereira

As ideias, imagens e demais informações apresentadas nesta obra são de inteira


responsabilidade de seu autor.
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
V931j Volpato, Gildo.
Jogo, brincadeira e brinquedo : usos e significados
no contexto escolar e familiar / Gildo Volpato. – 2. ed.
– Criciúma, SC : UNESC ; São Paulo : Annablume,
2017
231 p. : il. ; 21cm.

Modo de acesso: <http://www.unesc.net/portal/


capa/index/300/5886/>.

ISBN: 978-85-8410-072-9

1. Jogos infantis. 2. Brincadeiras. 3. Brinquedos –


Aspectos sociais. 4. Brincadeiras no espaço escolar.
5. Jogos educativos. 6. Crianças – Desenvolvimento.
I. Título.

CDD – 22.ed. 790.1922


Bibliotecária Eliziane de Lucca Alosilla - CRB 14/1101
Biblioteca Central Prof. Eurico Back - UNESC
Aos meus pais, pela vida e pela educação que me proporcionaram.

À minha esposa, Marisa, pelo incentivo, compreensão e paciência em me ouvir


constantemente falar desta produção.

Às minhas filhas, Maíra e Laíse, por entenderem minha ausência em muitas das
suas brincadeiras, porque souberam entender a importância da realização deste
trabalho para o próprio brincar.
SUMÁRIO

Apresentação ..........................................................................................17
Introdução ..............................................................................................21

CAPÍTULO I Uma viagem ao passado do jogo e do brinquedo .....27


Origem dos brinquedos .........................................................................28
O significado do jogo nas festas e rituais ............................................32
Algumas concepções clássicas do jogo .................................................35
As históricas relações do jogo com a educação ..................................39

CAPÍTULO II O jogo e o brinquedo na perspectiva histórico-cultural


....................................................................................................................47
O surgimento do jogo de faz de conta ..................................................51
O papel do jogo e do brinquedo no desenvolvimento da criança ....57
Do jogo de faz de conta ao jogo de regras ...........................................63
Sentidos e significados atribuídos ao jogo, à brincadeira e ao
brinquedo ................................................................................................ 69
CAPÍTULO III O jogo, o brinquedo e a modernidade ................... 75
Valores simbólicos e papéis sociais implícitos nos brinquedos ........76
Meios de comunicação de massa, jogo e brinquedo ..........................81
Tempo e espaço para o brincar .............................................................90

CAPÍTULO IV O jogo, a brincadeira e o brinquedo no contexto


escolar ...................................................................................................... 97
Jogo espontâneo e jogo educativo ....................................................... 99
O jogo e a brincadeira no âmbito da escola ......................................113
A prática do jogo em uma perspectiva progressista de Educação
Física ...................................................................................................... 119
Sobre a necessidade de a escola ser prazerosa .................................. 129

CAPÍTULO V Conhecendo e compreendendo os jogos, brincadeiras


e brinquedos das crianças ....................................................................137
Brinquedos e jogos (de) que as crianças mais praticam e gostam ..138
Os pais diante dos jogos, brincadeiras e brinquedos dos filhos ......155
Fatores que influenciam na escolha dos jogos e brinquedos das
crianças .................................................................................................. 163

CAPÍTULO VI Importância que a escola atribui aos jogos, brinca-


deiras e brinquedos dos alunos ...........................................................171
Um olhar sobre os documentos da escola .........................................172
Analisando a sala de aula .....................................................................180
Analisando as aulas de Educação Física ............................................192
Observando o recreio da escola ..........................................................202
Apontando indicadores de a escola vir a ser prazerosa .................. 207

Considerações finais .......................................................................... 213


Referências bibliográficas ..................................................................223
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

APRESENTAÇÃO

Apresentar um trabalho é algo difícil e, ao mesmo tempo,


prazeroso, pelo fato de ser possível contemplar várias linhas, eixos e
direções para análise, e por isso se torna, também, um trabalho ímpar.
A iniciativa do Gildo em lançar a presente obra abre a pers-
pectiva para que a Universidade, ainda elitista, transforme-se em um
dos agentes eficazes na melhoria de vida do brasileiro, tão carente nos
aspectos socioculturais, educacionais e econômicos. Como educador,
Gildo se sente estimulado em aprofundar-se no tema complexo e pa-
radoxalmente simples da criança e, também, por que não, do próprio
ser humano, que é o jogo, a brincadeira e o brinquedo.
O presente trabalho é fruto da dissertação de seu mestrado,
resultado de uma minuciosa busca, e traz no seu bojo o processo de
construção de conhecimentos a partir de inquietações do cotidiano
escolar, tendo como embasamento as percepções, os jogos, as brinca-
deiras e os brinquedos, principalmente das crianças.
O trabalho do autor constitui-se em um marco que nos leva
a contemplar o transcorrer da história do jogo e do brinquedo em
diferentes modelos de sociedade, tendo o seu próprio significado e

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

as suas variadas expressões como forma de linguagem e de apren-


dizagem do fazer e do ser. Além disso, percorre vários caminhos
delimitados pelo mundo do jogar, brincar, que todas as crianças do
mundo sonham e anseiam possuir e realizar.
A rigorosa busca metodológica deste trabalho revelou o
quanto é diversificado o universo lúdico das crianças, pois são evi-
denciados brinquedos e jogos dos mais tradicionais até os mais so-
fisticados e eletrônicos, passando pelas brincadeiras e jogos de faz de
conta e dos jogos de regras explícitas, sendo que todos estes são muito
significativos para as crianças. Ainda, deve-se destacar que as relações
que as crianças estabelecem com brinquedos eletrônicos e com jogos
e brincadeiras tradicionais são diferenciadas. Não obstante, ambas
contribuem para ampliar os movimentos e, como consequência, o
conhecimento.
A riqueza de dados e das muitas relações no trabalho do
Gildo levam o leitor a se deliciar com as descobertas surpreendentes
relacionadas aos pais e aos professores, além de fornecer peculiari-
dades do mundo da criança e do seu brincar e jogar, como forma de
apreensão do conhecimento e do desenvolvimento social.
O livro “Jogo, brincadeira e brinquedo: usos e significados
no contexto escolar e familiar” aborda as questões do mundo da
criança em diálogos com a melhor literatura científica do mundo e,
dessa forma, presta um inestimável trabalho para o mundo acadêmi-
co. Somos-lhe gratos por nos brindar com esta obra, que com certeza
foi um trabalho hercúleo de leitura, criação e redação.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O trabalho transcende o mundo acadêmico da escola e deve


ser lido e discutido por todos os pais que amam e desejam o cresci-
mento pleno dos seus filhos.
Viktor Shigunov
Professor Doutor da Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Desportos - Departamento de Educação Física

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

INTRODUÇÃO

Neste livro, são apresentados os resultados de uma pesqui-


sa sobre os jogos, as brincadeiras e os brinquedos das crianças, e
aborda a importância atribuída a essas atividades tanto no ambiente
escolar quanto familiar, no contexto atual.
Trata-se de uma segunda edição revisada em aspectos de
forma e de alguns conteúdos expostos na apresentação da obra e em
ajustes no texto de maneira geral.
Estudar o jogo e a brincadeira é sempre algo fascinante, pois
a magia, o entusiasmo, a emoção e o prazer de fazer e de aprender,
presentes em situações de jogo e de brincadeira, não podem ficar
ausentes, nem mesmo quando se trata de pesquisa e de literatura.
O jogo, a brincadeira e, da mesma forma, o brinquedo vêm
sendo alvo de muitas investigações, principalmente nas últimas dé-
cadas. São estudados nas mais diversas áreas do conhecimento, como
Antropologia, Educação, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia e
Educação Física, que buscam melhor interpretá-los e compreendê-
-los como fenômenos que continuam e, ao mesmo tempo, transfor-
mam-se em diferentes contextos históricos e sociais.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Diferentes enfoques, às vezes até contraditórios, auxiliam-


-nos a melhor compreender o fenômeno, pois a multiplicidade de
olhares, por sua vez, pode também ser complementar, contribuindo
para uma visão da totalidade que envolve a singularidade do jogo,
da brincadeira e do brinquedo.
As primeiras representações apontavam o jogo como algo
que se contrapunha ao trabalho e às atividades sérias, por isto era
visto como recreação, descanso do espírito para o duro trabalho fí-
sico ou intelectual, ou ainda como dispêndio de energia física, como
algo não sério.
Também foi compreendido como atividade natural de sa-
tisfação de instintos infantis, ou como preparação para a vida séria,
ou ainda como catarse para purgar o indivíduo de tendências antis-
sociais.
Apesar da contribuição dos estudos que deram suporte a
esses entendimentos, fez-se necessário avançar neste campo do co-
nhecimento, uma vez que os mesmos trataram de justificar a pre-
sença do jogo e da atividade lúdica na vida humana como energia
instintiva, ou seja, de ordem inata, ou como uma reação de causa e
efeito, como afirmam as teorias mecanicistas.
Foi na contramão desses entendimentos que nos propomos
a pesquisar com o objetivo de compreender a dinâmica que se esta-
beleceu em torno dos jogos e das brincadeiras das crianças, em dife-
rentes tempos e contextos históricos e culturais e o que se estabelece
na contemporaneidade, no âmbito da escola e da família, visto as
constantes mudanças que ocorrem no sistema político, econômico,
social e cultural.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A necessidade de entendimento do que representa o jogo, a


brincadeira e o brinquedo na vida das crianças, no contexto de nossa
sociedade, tem sido a razão constante de nossas reflexões. Em espe-
cial, essas reflexões têm-se pautado na busca de uma compreensão
dialética do papel que o jogo, a brincadeira e o brinquedo podem
cumprir no processo de educação e de formação das crianças de nos-
so tempo.
Ao longo dos anos, trabalhando com Educação Física em
escolas públicas, principalmente na Educação Infantil e séries ini-
ciais do Ensino Fundamental, o jogo foi sempre atividade marcante
em nosso fazer pedagógico, proporcionando alegrias e, ao mesmo
tempo, gerando muitas dúvidas e inquietações. Da mesma forma,
essas inquietações e preocupações não eram menores quando traba-
lhávamos esse conteúdo na disciplina “Recreação”, no curso de gra-
duação em Educação Física, e na disciplina “Movimento Humano e
Educação”, no curso de Pedagogia da UNESC (Universidade do Ex-
tremo Sul Catarinense), situada no município de Criciúma, em Santa
Catarina. Eis a razão da escolha deste tema para o desenvolvimento
da dissertação de Mestrado, defendida na UFSC (Universidade Fede-
ral de Santa Catarina), em 1999, que deu origem a esta obra.
Foi possível perceber, por exemplo, o quanto os jogos e as
brincadeiras faziam as crianças vibrarem e participarem com prazer
das aulas de Educação Física. Esta alegria e prazer também foram
evidenciados quando as professoras da Educação Infantil e séries
iniciais proporcionavam às crianças, em sala de aula, brincadeiras e
atividades de jogo. Nos períodos de recreio, era raro ver uma criança
que não estivesse brincando de alguma forma após fazer seu lanche,
ou até durante o mesmo.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Aliás, nos parques, nas ruas, em casa, em qualquer lugar,


a criança quase sempre está jogando ou brincando de alguma coi-
sa. Foi possível perceber, também, que algumas transformações, nas
formas e conteúdos do brincar, foram ocorrendo ao longo do tempo.
As diferenças, às vezes, estão relacionadas à idade das crianças, ao
sexo, aos fatores socioculturais e aos fatores econômicos.
O que é inegável, apesar das mudanças que ocorreram na
sociedade, é que o jogar e o brincar continuam fazendo parte da
vida das crianças, tanto nos espaços educacionais quanto familiares,
apesar de muitas vezes serem motivo de irritação por parte de pro-
fessores e pais, talvez pela pouca compreensão sobre o papel do jogo,
do brinquedo e da dimensão lúdica no processo de aprendizagem e
desenvolvimento da criança.
A maioria dos estudos e pesquisas realizadas sobre o jogo, a
brincadeira e o brinquedo ocorreu na Educação Infantil. Raramente
encontramos estudos que priorizaram o momento em que a criança
ingressa no Ensino Fundamental.
Portanto, este livro apresenta resultados de uma pesquisa
que priorizou a compreensão dos jogos, brincadeiras e brinquedos
das crianças que deixaram a Educação Infantil e ingressam na 1ª
série do Ensino Fundamental.
Os sujeitos da pesquisa foram 22 alunos matriculados na 1ª
série do Ensino Fundamental, a professora de sala de aula, a profes-
sora de Educação Física, a diretora da escola e os pais das crianças de
uma escola da rede municipal de ensino de Criciúma, em Santa Ca-
tarina. As técnicas de coleta de dados utilizadas foram: a entrevista
semiestruturada, a observação participante e a análise documental.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Os objetivos da pesquisa foram os seguintes:


• Conhecer, analisar e discutir os diferentes tipos de jo-
gos, brincadeiras e brinquedos das crianças nas diversas
situações da vida cotidiana, além de verificar a impor-
tância atribuída a essas atividades no ambiente escolar
e familiar;
• Identificar e compreender os temas e os conteúdos dos
jogos de faz de conta e os jogos de regras mais pratica-
dos pelas crianças;
• Identificar o sentido e o significado que as crianças atri-
buem aos jogos, brincadeiras e brinquedos;
• Verificar os fatores que interferem na escolha dos jogos
e dos brinquedos das crianças;
• Verificar o espaço e o tempo destinado aos jogos e brin-
cadeiras, tanto no ambiente escolar quanto familiar;
• Buscar indicadores na família e na escola que apontem
as possibilidades de práticas pedagógicas mais signi-
ficativas e prazerosas, tendo o jogo, a brincadeira e o
brinquedo como mediadores no processo pedagógico.
O propósito deste livro é socializar os resultados da pes-
quisa e os conhecimentos produzidos a partir deste estudo, por
entendermos que são relevantes para que os professores, principal-
mente da Educação Infantil, séries iniciais e Educação Física, além
de psicólogos e pais, possam compreender o jogo, a brincadeira e o
brinquedo como uma necessidade lúdica e como propulsores de de-
senvolvimento das capacidades psicológicas superiores, ampliando
dimensões intelectuais, culturais e afetivas da criança.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

I
UMA VIAGEM AO PASSADO DO JOGO E
DO BRINQUEDO

Jogo, brincadeira e brinquedo só podem ser entendidos se


vinculados aos fatores históricos e culturais que propiciaram o seu
aparecimento, ou seja, dentro da produção coletiva dos homens em
sociedade.
Falar em jogo, brincadeira e brinquedo consiste em lidar
com questões que lembram a origem até as formas mais sofisticadas
de produção de brinquedos e de brincar. Remete-nos a refletir sobre
como os adultos, em diferentes tempos históricos, concebiam o jogo,
a brincadeira, o brinquedo, a educação e a própria criança.
Muitos conhecimentos que atualmente podemos encontrar
em livros, ensaios e trabalhos acadêmicos são resultados de incan-
sáveis pesquisas em objetos, fotografias e pinturas. São tentativas de
interpretar e explicar o fenômeno do brinquedo e o ato de jogar e de
brincar no contexto histórico de diversos grupos sociais.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A concepção histórica que privilegia a análise do jogo e do


brinquedo, a partir da imagem de crianças presentes no cotidiano
de determinado tempo histórico, está submetida às relações sociais
que cercam o brincar naquele contexto sociocultural. É por isso que
Kishimoto (1994) nos diz que a compreensão de jogos e de brinque-
dos do passado exige o auxílio da visão antropológica, que também
discute os comportamentos considerados lúdicos e seus significados
em cada cultura.
Nesse sentido, a criança e os seus jogos, brincadeiras e brin-
quedos, necessariamente, constituem-se em fonte de saber e conheci-
mento, pois, como bem lembrou Benjamin (1984), onde as crianças
brincam, existe um tesouro enterrado. Ao pensar em revelá-lo, neste
primeiro momento apresentamos questões históricas e culturais que
deram origem ao jogo, à brincadeira e ao brinquedo.

Origem dos brinquedos

Por ser considerado como o material utilizado para jogar e


brincar, o brinquedo é um objeto de estudo de profunda riqueza. É
um dos elementos que revela a cultura, os valores, as crenças e as con-
cepções de mundo de cada povo, em cada tempo histórico.
É possível conhecer e identificar, na história, brinquedos que
ainda hoje encontramos nas mãos das crianças ou em estantes e prate-
leiras de grandes lojas de brinquedos. Muitos foram utilizados duran-
te muito tempo como objetos ligados às atividades artísticas, sacras,
místicas ou de trabalho, mantendo estreitas ligações com colheitas e
fertilidade, antes de serem considerados efetivamente brinquedos de

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

criança. Felipe Ariès (1981), por meio de inúmeras representações


iconográficas, realizou um importante estudo na tentativa de explicar
como surgiram os brinquedos. Na interpretação desse autor, alguns
deles “nasceram do espírito de emulação das crianças, que as levou
a imitar as atitudes dos adultos, reduzindo-as à sua escala: foi o caso
do cavalo de pau, numa época em que o cavalo era o principal meio
de transporte e de tração” (p. 88), como na Idade Antiga. Da mesma
forma, a técnica dos moinhos de vento, iniciada na Idade Média, logo
foi motivo de imitação das crianças com as pás que giravam na ponta
de uma vareta. Apesar de os moinhos de vento há muito tempo te-
rem desaparecido em alguns países, os cataventos continuam sendo
confeccionados e vendidos, principalmente em feiras e em festas re-
ligiosas.
A julgar pela iconografia, principalmente a que retrata o
Século XV, conforme Ariès (1981), o pássaro amarrado parece ter
sido um dos brinquedos mais comuns na Idade Média. Geralmente
a criança era representada brincando com um pássaro, que em geral
estava amarrado a uma cordinha. Às vezes, ele era uma imitação de
madeira. Nilsson1 informa-nos que, tanto na Grécia antiga como na
Grécia moderna, era costume nos primeiros dias de março os me-
ninos fazerem uma andorinha de madeira enfeitada com flores, que
girava em torno de um eixo. O pássaro era levado de casa à casa, e
os meninos recebiam presentes. O pássaro, ou sua imitação, não era
brinquedo individual, mas elemento de uma festa coletiva sazonal,
da qual a juventude participava. Mais tarde o pássaro se tornou um
brinquedo individual, destituído de qualquer conteúdo social, sem
relação com a comunidade ou com o calendário de festividades. Con-
1.  Citado por Ariés, 1981, p. 89.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

forme o autor, esse brinquedo parece ter sido no início ligado às ceri-
mônias tradicionais.
Nilsson também mostra como o balanço, brinquedo tão fre-
quente na iconografia ainda do Século XVIII, fazia parte da festa da
juventude, interpretada como o rito da fecundidade, prevista no ca-
lendário. Nesse ritual, os meninos pulavam sobre odres cheios de vi-
nho, e as meninas eram empurradas em balanços. Havia uma estreita
relação entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira, que,
com o tempo, libertou-se do simbolismo religioso, tornando o balan-
ço um brinquedo cada vez mais reservado às crianças.
Conforme Ariès (1981), a boneca e os demais brinquedos
miniaturas levam-nos às hipóteses semelhantes. Os historiadores dos
brinquedos e os colecionadores de bonecas e de brinquedos minia-
turas sempre tiveram muita dificuldade de distinguir a boneca, brin-
quedo de criança, de todas as outras imagens e estatuetas, porque, na
Antiguidade, as réplicas de objetos de culto doméstico ou funerário
tinham significação religiosa, sendo frequentemente encontradas em
túmulos. A boneca era também o perigoso instrumento do feiticeiro
e do bruxo. Por sua vez, Bogoraz-Tan2 diz que as bonecas tchuktchis
eram dadas às meninas como agentes protetoras da fertilidade. Quan-
do uma moça se casava, levava suas bonecas e as escondia em um saco
que guardava na cabeceira, para, com sua influência, ter filhos logo.
O gosto em representar as coisas e as pessoas da vida cotidia-
na, de forma reduzida, hoje reservado às crianças, foi resultado tam-
bém dos famosos presépios napolitanos, realizados principalmente na
Europa, em épocas passadas, para a satisfação dos adultos e a distração
das crianças, como nos afirma Ariès (1981). O bimbeloterie, ou seja, o
2.  Citado por Elkonin, 1998, p. 65

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

bibelô antigo, era na França um brinquedo destinado tanto aos adultos


quanto às crianças. Em 1747, surgiram em Paris os brinquedos chama-
dos fantoches, o qual Barbier escreve: “São dados de presente a todas as
mulheres, meninas, e a loucura chegou a tal ponto que, no início deste
ano, todas as lojas se encheram deles para vendê-los como presentes
[...]”3.
No livro “Os Melhores Jogos do Mundo”, podemos identi-
ficar a origem do xadrez e da perna de pau. O xadrez teve sua ori-
gem na Índia há muitos séculos e, na sua trajetória para o Ociden-
te, peças representando elefantes, marajás e carros de guerras foram
sendo transformados em bispos, reis e torres de castelos, mostrando
a influência dos acontecimentos de uma determinada época, princi-
palmente dos acontecimentos políticos. Na época de Napoleão Bo-
naparte, o rei branco do xadrez foi substituído pela figura do general
e imperador4. A perna de pau está associada às práticas religiosas e
mitológicas bem remotas. Era utilizada na África pelos feiticeiros e
em ritos de iniciação por algumas tribos, nas quais os jovens eram
admitidos no mundo adulto.
O chocalho, um dos primeiros brinquedos presenteados aos
bebês, foi inicialmente um objeto de adoração indígena e, conforme
Benjamin (1984, p. 72), “desde tempos remotos [...] é um instrumento
de defesa contra maus espíritos, o qual justamente deve ser dado ao
recém-nascido”.
Muitos dos mais antigos brinquedos (a bola, o papagaio, o
arco e a roda de penas) foram impostos às crianças, de certa forma,
como objetos de culto, e somente mais tarde, devido à força de imagi-

3.  Citado por Ariés, 1981, p. 91.


4.  Citado por Bruhns, 1993, p. 64.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

nação das crianças, transformados em brinquedos5. Em termos gerais,


parece que o mundo dos brinquedos está marcado por toda parte,
pelos vestígios de gerações passadas. Essa percepção levou Benjamin
(1984) a dizer que a infância tornou-se o reservatório dos costumes
abandonados pelos adultos.

O significado do jogo nas festas e rituais

As competições e os jogos ocuparam um lugar muito impor-


tante nas mais diversas culturas, seja pelo fato de estarem relaciona-
dos aos rituais ou ao divertimento.
Desde a origem dos jogos, segundo Huizinga (1996), veri-
ficam-se características lúdicas de ordem, tensão, mudança, movi-
mento, solenidade e entusiasmo. Essas mesmas características eram
encontradas no ato do culto, sobretudo no sentido de transferir os
participantes, por um espaço de tempo, para um mundo diferente da
vida cotidiana.
Na sociedade antiga, o trabalho não tinha o valor que lhe
atribuímos há pouco mais de um século. Não ocupava tanto tempo
do dia, tampouco tinha tanta importância na opinião comum. Em
contrapartida, os jogos e os divertimentos eram um dos principais
meios de que dispunha a sociedade para estreitar seus laços coletivos
e se sentir unida. Isso se aplicava a quase todos os jogos, e esse pa-
pel social era evidenciado principalmente em virtude da realização
das grandes festas sazonais e tradicionais previstas em datas fixas no
calendário. As crianças e os jovens participavam das atividades jun-
5.  Benjamin, 1984.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

tamente com os adultos e desempenhavam um papel reservado pela


tradição.
Aliás, em Ariès (1981), encontramos informações que na so-
ciedade antiga, a duração da infância era reduzida a um espaço muito
curto de tempo. Logo que a criança atingisse certo controle motor,
misturava-se aos adultos e participava de seus trabalhos e jogos. Até o
Século XII, as crianças não eram representadas pela iconografia. Isso
ocorria porque, na sociedade medieval, o sentimento de infância não
existia, o que não quer dizer que as crianças eram abandonadas ou
desprezadas.
Corresponde, nas palavras do autor:

[...] à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que


distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa cons-
ciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições
de viver sem a solicitude constante da mãe ou de sua ama, ela ingressava
na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes (p. 156).

Adultos, jovens e crianças se misturavam em toda a ativi-


dade social, ou seja, nos jogos e nas brincadeiras, no exercício das
profissões e nas tarefas diárias, no domínio das armas, dentre outras.
Havia certa indeterminação em relação à idade. Essa confusão, que
parecia passar despercebida, era um dos traços mais característicos
da antiga sociedade.
Na Festa de Reis, segundo a tradição, era uma criança que
sorteava e distribuía o bolo de Reis. Nas loterias oficiais do Século XII,
as crianças tiravam a sorte. De certa forma, essa tradição se conser-
vou até nossos dias, pois muitas vezes se sorteiam a loteria, a roleta, o
bingo e a rifa como se sorteava o bolo de Reis.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Outras grandes festas reservavam à juventude o monopólio


dos papéis ativos. Essas festas já tinham a aparência de festas da in-
fância ou da juventude. A terça-feira gorda, identificada no Século
XII, era a festa dos meninos de escola e da juventude. Em Londres,
segundo Fitz Stephen:

[...] a terça-feira gorda começava com brigas de galo que duravam toda
a manhã. À tarde, todos os jovens da cidade saíam para os arredores,
a fim de jogar o famoso jogo de bola [...]. Os adultos, os parentes e as
autoridades vinham, a cavalo, assistir aos jogos dos jovens e voltavam a
ser jovens como eles6.

Qualquer papel atribuído à infância ou à juventude obedecia


sempre a um protocolo tradicional e correspondia às regras de um
jogo coletivo que mobilizava todo o grupo social, envolvendo todas
as classes de idade.
Outro fator de extrema importância a ser ressaltado nessas
festas era seu caráter místico. Nas representações sagradas, principal-
mente nas civilizações primitivas, encontrava-se em jogo um elemen-
to espiritual, difícil de definir, algo de invisível e inebriante ganhava
uma forma real, bela e sagrada.
Conforme Huizinga (1996, p. 17), “os participantes do ritual
estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação,
faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que
habitualmente vivem”. Apesar desta intenção estar restrita à duração
do ritual e da festividade, acreditava-se que seus efeitos não cessariam
depois de acabado o jogo, pois sua magia continuaria sendo projetada
6.  Citado por Ariès, 1981, p. 98.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

todos os dias, garantindo segurança, ordem e prosperidade de todo o


grupo, até a próxima época dos rituais sagrados.
Huizinga (1996) afirma que, segundo uma velha crença chi-
nesa, é atribuída à dança e à música a finalidade de manter o mundo
em seu devido curso e obrigar a natureza a proteger o homem. Assim,
a prosperidade de cada ano dependia de competições sagradas reali-
zadas nas grandes festas. O grupo social celebrava a mudança das es-
tações, o crescimento e o amadurecimento das colheitas, o surgimen-
to e o declínio dos astros, a vida e a morte dos homens e dos animais.

Algumas concepções clássicas do jogo

Várias teorias procuraram explicar, ao longo da história, a ori-


gem do jogo no homem e, a título de ilustração, procuramos apresentar
algumas que são consideradas clássicas.
Segundo Kishimoto (1994), em tempos passados, não se
chegou a definir o jogo em si. O fato de se ter apontado o que não
era jogo fez com que se contrapusesse ao trabalho e às atividades
consideradas sérias. “As primeiras representações postulam o jogo
como recreação, descanso do espírito para o duro trabalho intelec-
tual” (p. 117).
Em Aristóteles (1966, p. 159), o jogo, que ele chamou de ati-
vidade de relaxamento e entretenimento aparece como contraponto
do trabalho. Dizia ele:

O trabalho provoca sempre esforço e cansaço. Aí está porque é necessá-


rio, quando se buscam os prazeres, atentar para o instante próprio para

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

deles fazer uso, como se apenas se desejasse usá-los a título de remédio.


O movimento que o exercício transmite ao espírito livra-o e descansa-o
pelo prazer que lhe confere.

Na mesma trilha de pensamento de Aristóteles, Tomás de


Aquino considerava o prazer advindo de atividades lúdicas como
necessidade para o trabalho intelectual. Dizia que “o jogo em si,
malgrado as aparências, tem um fim normal: o repouso do espírito,
graças ao qual nós podemos em seguida nos dedicar às atividades
sérias”7.
Outra teoria clássica que coloca o jogo como oposição às
atividades sérias é a Teoria do Excesso de Energia. Para essa teoria,
a criança teria um excesso de vitalidade e, por não ter atividades sé-
rias, as energias seriam acumuladas, fazendo com que ela procurasse
o jogo como forma de equilíbrio 8.
Essa energia excedente estaria relacionada ao fato de que
crianças e animais, quando pequenos, são inteiramente dependentes
e protegidos pelos pais. Essa tese foi defendida por Schiller e, confor-
me Mello (1989), foi questionada por Claparède, “ao constatar que
crianças muito cansadas e, até mesmo, em estado de convalescença,
procuravam praticar diversos tipos de jogo” (p. 64).
Outra crítica é apontada por Courtney (1980), explicando as
atividades dos animais como tendo objetivos claros e definidos. Quan-
to às crianças, Coutney coloca que dificilmente a energia que possuem
pode ser chamada de excedente, uma vez que jogam pelo interesse
demonstrado. Também Spencer partilha da Teoria do Excesso de
Energia. Para ele, esse excesso está relacionado ao funcionamento do
7.  Citado por Brogère, 1993, p. 52.
8.  Faria Júnior, 1996, p. 47.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

sistema nervoso. Devido às “faculdades” estarem carregadas de ener-


gia, as pessoas movimentam-se sempre ou estão em funcionamento
constante. Isso se torna uma necessidade orgânica9.
A Teoria do Exercício Preparatório, defendida por Karl
Gross, é mais uma clássica concepção que merece nossa atenção.
Nessa, o jogo seria uma preparação para a vida séria. Cada classe de
animais utilizaria certos jogos que corresponderiam às atividades dos
animais adultos de sua espécie 10.
A Teoria de Gross faz uma ponte entre a Biologia e a Psico-
logia. Para esta teoria, o jogo é pré-exercício e, por remeter ao natural,
universal e biológico, é necessário para treino de instintos herdados11.
A Teoria do Ativismo, ou da Recapitulação, apresentada por
Stanley Hall, estabelece relações entre os períodos de evolução históri-
ca da humanidade e as características dos jogos de crianças e de ado-
lescentes na sequência das faixas etárias. Para essa teoria, a ontogênese
recapitula a filogênese. Conforme Kishimoto (1994), essa concepção
deu suporte ao uso metafórico do jogo como conduta prazerosa e es-
pontânea, que correlaciona a infância do indivíduo à da humanidade,
uma vez que se poderia entender a infância como idade do imaginário,
da poesia, à semelhança dos povos dos tempos da mitologia.
Uma das críticas feitas à Teoria de Stanley Hall refere-se à
não-consideração do meio ambiente como fator importante na varia-
ção dos jogos, bem como a uma prisão estática relativamente maior ao
passado do que ao próprio crescimento e desenvolvimento da crian-
ça no presente12. Também Wallon (1979) discorda terminantemente

9.  Citados por Bruhns, 1993, p. 24.


10.  Faria Júnior, 1996, p. 47.
11.  Kishimoto, 1994, p. 121
12.  Bruhns 1993, p. 25, faz a crítica, baseando-se na obra Courtney.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

da Teoria da Recapitulação. Para ele, trata-se de uma analogia vaga


e equivocada, a de que os comportamentos sucessivos das crianças,
em particular os lúdicos, recapitulem as atividades fundamentais dos
povos antepassados.
A Teoria dos Instintos, conforme Bruhns (1993), é prove-
niente de um conceito popular do Século XIX. Supõe a presença de
poderes inatos nos seres humanos, herdados de geração em geração.
Dentre os instintos humanos, o jogo seria um deles, pois se consti-
tui de impulsos naturais da personalidade e do comportamento dos
homens. Para Bruhns, seus seguidores conduziram o surgimento da
Teoria da Catarse, utilizada pela psicanálise, que considera o jogo
uma atividade libertadora de emoções, uma válvula de escape para
emoções reprimidas. Nesse sentido, a função do jogo seria purgar o
indivíduo das tendências antissociais e sexuais, latentes no indivíduo.
Essa teoria tem Freud como um dos principais precursores.
Essas teorias, de modo geral, são bastante reducionistas, uma
vez que oferecem visões parciais do fenômeno, colocando basicamen-
te a importância em aspectos biológicos e fisiológicos. Geralmente
partem dos indivíduos e, de forma linear, procuram apresentar aspec-
tos evolutivos, não considerando a vida do homem em sociedade e
sua cultura, influenciando-o em suas ações, seus jogos e brincadeiras.
No entanto, para podermos fazer uma crítica mais consis-
tente sobre essas concepções, utilizando as palavras de Bruhns (1993,
p. 26), “deveria ser considerado o momento histórico no qual foram
elaborados, pois, dessa forma, seria percebido a intenção sustenta-
da pelos valores dominantes na época do surgimento”. Todavia, fazer
essa análise não foi nossa intenção.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

As históricas relações do jogo com a educação

O jogo geralmente pode ser relacionado à educação, pois o


fato de se pensar o brincar nos obriga a pensar também na criança
que brinca, e não podemos pensar na criança que brinca sem pensar
também o contexto sociocultural em que acontece o jogo e a brinca-
deira.
Platão, um dos maiores pensadores da Grécia Antiga, afir-
mava que os primeiros anos da criança deveriam ser ocupados com
jogos educativos, praticados em comum pelos dois sexos. O jogo e
a cultura intelectual deveriam caminhar juntos na formação da per-
sonalidade. Introduziu também uma prática matemática lúdica. Di-
zia Platão que todas as crianças deveriam estudar Matemática, pelo
menos no grau elementar, introduzindo desde o início atrativos em
forma de jogos13.
Aristóteles (1966), discípulo de Platão, já dizia que, para
educar as crianças, elas deveriam, em seus jogos, imitar as atividades
sérias dos adultos, como forma de preparo para a vida futura. Os jo-
gos que prevaleciam na época eram os de combate e eram destinados
principalmente à preparação do soldado.
Conforme Kishimoto (1990), no início da educação greco-
-romana, não existia ainda o uso de letras para auxiliar na alfabe-
tização da criança. No início de nossa era, é que se começou a dar
importância às letras de madeira para serem utilizadas em jogos e
brincadeiras. A autora aponta Horácio e Quintiliano como sendo os
pioneiros em assinalar a presença de guloseimas em formas de letras,

13.  Citado por Almeida, 1998, p. 19-20

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

elaboradas pelas doceiras de Roma, preocupadas em aliar o jogo aos


ensinamentos elementares nos estudos.
Ainda, conforme a autora, a partir do Século V, ao longo de
toda a Idade Média, a sociedade ocidental foi dominada pelo cristia-
nismo, que impôs uma educação altamente disciplinadora. Conse-
quentemente, o jogo passou a ser banido da educação, pois, para a
Igreja Católica, o mesmo era considerado pecaminoso.
Com os novos ideais, advindos do Renascimento, no Século
XVI, houve certa reabilitação do jogo e, conforme Kishimoto (1990),
aos poucos voltou a fazer parte do cotidiano da educação. Além de
ser utilizado para a preparação física, era também visto como im-
portante para o desenvolvimento do espírito. Concebeu-se o jogo e
a brincadeira como condutas livres que favorecem o desenvolvimen-
to da inteligência e facilitam o estudo. Ao atender às necessidades
consideradas infantis, o jogo, nas palavras de Kishimoto (1994, p.
119), “torna-se forma adequada para a aprendizagem dos conteúdos
escolares. Assim, para se contrapor aos processos verbalistas de en-
sino à palmatória vigente, o pedagogo deveria dar forma lúdica aos
conteúdos”.
Dessa forma, os jogos educativos começaram a se multipli-
car e, com os jesuítas, ganharam mais força, pois eles acreditavam que
os jogos eram importantes para a educação, tanto para desenvolver o
físico quanto a inteligência. Sobre a utilização dos jogos pelos jesuítas,
Ariès (1981, p. 112) faz as seguintes considerações:

Os padres compreenderam desde o início que não era possível nem de-
sejável suprimi-los ou mesmo fazê-los depender de permissões precárias
e vergonhosas. Ao contrário, propuseram-se a assimilá-los e a introduzi-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

-los oficiamente em seus programas [...] e considerados a partir de então


como meios de educação tão estimáveis quanto os estudos.

Nesse período, os jesuítas chegaram a editar tratados de gi-


nástica em latim que forneciam regras dos jogos recomendados e
passaram a aplicar nos colégios a dança, a comédia e os jogos de azar,
transformados em práticas educativas para auxiliar na aprendizagem
da ortografia e gramática 14.
Rabelais, em sua clássica obra “Gargântua e Pantagruel”,
propõe o jogo como instrumento de educação para ensinar conteú-
dos, gerar conversas, ilustrar valores e práticas do passado, valori-
zando também as brincadeiras dos tempos passados. Recomendava
inclusive, em dias de chuva, brincar com ossinhos, enquanto se dis-
cute como povos do passado pensavam e brincavam. Entre os jogos
citados por Rabelais, aparecem os de cartas, trunfo, vinte e um, jogos
de seleção, como, por exemplo, par e ímpar, cara ou coroa e muitos
jogos tradicionais, como volante, bilboquê, chicote queimado, car-
niça, beliscão, quebra-cabeça, pular o carneiro, catavento e outros15.
Ainda no Século XVI, Montaigne divulga o caráter educa-
tivo do jogo. Critica os jogos de caça, passatempo dos nobres e a
dança, tida como lazer popular. Para ele, o jogo é um instrumento
de desenvolvimento da linguagem e do imaginário. Sua prioridade
era o escritor, o poeta, por isso priorizava os jogos que valorizavam
a escrita16.
Conforme Almeida (1998), Montaigne partia para o campo
da observação, fazendo a criança adquirir curiosidade por todas as

14.  Almeida, 1998, p. 21.


15.  Citado por Kishimoto, 1997, p. 28-9.
16.  Citado por Kishimoto, 1997, p. 29.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

coisas que visse ao redor, seja uma ponte, uma casa, um homem ou
um lugar qualquer.
No Século XVII, tanto Kishimoto (1990) quanto Almeida
(1998) apontam Comênius como um filósofo preocupado com a edu-
cação das crianças. Ele resumiu seu método em três ideias que consi-
derou centrais: naturalidade, intuição e autoatividade. Valorizava os
sentidos e as imagens para facilitar o processo de aprendizagem das
crianças pequenas. Por isso deu muita ênfase ao ensino por meio de
jogos com imagens atraentes e criou livros com histórias ilustradas.
Dizia Comênius: “Esse método natural, que obedece às leis do desen-
volvimento da criança, traz consigo rapidez, facilidade e consistência
no aprendizado”17.
No Século XVIII, aumentaram-se os investimentos na área
da educação. Com a explosão científica, surgiram publicações de en-
ciclopédias ilustradas, e as figuras eram utilizadas pelos preceptores
para confeccionar jogos para auxiliar no ensino dos filhos dos gover-
nantes. Só os filhos das elites tinham preceptores que estavam sempre
à caça de novidades18.
Foi nesse momento histórico que Rosseau (1968) começou
a falar da natureza infantil. Ele chamou de natureza infantil o que
Ariès (1981) chamou de “sentimento de infância”, ou seja, a consciên-
cia da particularidade infantil que distingue adulto e criança. Em sua
obra “Emílio ou da Educação”, Rosseau (1968) se preocupou em de-
monstrar que a criança tem maneiras de sentir, de ver e de pensar que
lhe são peculiares. Para ele, a criança não aprende nada, senão por

17.  Citado por Almeida, 1998, p. 21-2.


18.  Palestra “O brinquedo na Educação Infantil”, proferida em um encontro realizado na FDE/SP, em
maio de 1989, por Kishimoto. A mesma está registrada em vídeo do programa de desenvolvimento de
pessoal – Rede Municipal de Ensino do Estado de São Paulo – área de pré-escolar.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

meio de uma conquista ativa. Dizia: “Não deis a vosso aluno nenhu-
ma espécie de lição verbal: só da experiência ele deve receber” (p. 7).
Ele deu importância ao fato de se buscar observar o interesse que a
criança sente ao participar de um processo que corresponde à sua ale-
gria natural. Essa forma de conceber o jogo e usá-lo metaforicamente
como conduta prazerosa e espontânea teve suas origens na Teoria da
recapitulação, conforme estudos realizados por Brougère (1993).
Rosseau faz referência também ao aprendizado da leitura e
da escrita, ao qual Almeida (1998, p. 4) descreve nos seguintes termos:
“Tem-se grande trabalho em procurar os melhores métodos para en-
sinar a ler e a escrever. O mais seguro de todos eles, de que sempre se
esquece, é o desejo de aprender. Dê a ele esse desejo e abandone dados
e tudo mais, e qualquer método será bom”.
Entre as últimas décadas do Século XVIII e primeiras do
Século XIX, surge Pestalozzi. Conforme Almeida (1998), graças a
seu espírito de observação sobre o desenvolvimento psicológico
dos alunos e sobre o êxito ou o fracasso das técnicas empregadas
na época, abriu-se um novo rumo para a educação moderna. Para
ele, a escola era uma verdadeira sociedade onde o senso da respon-
sabilidade e as normas de cooperação eram suficientes para educar
as crianças, e o jogo era um fator imprescindível que enriqueceria
o senso de responsabilidade e fortificaria as normas de cooperação.
Kishimoto (1990) fala que, no Século XIX, surgiu na
Alemanha a experiência mais valorizada em educação. Froebel, dis-
cípulo de Pestalozzi, percebeu que os sentidos muitas vezes nos en-
ganavam, e o mais importante era o estabelecimento das relações que
as crianças faziam com os objetos. Com esse pensamento, criou uma
série de brinquedos que, além do contato físico, proporcionavam às

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

crianças oportunidade de estabelecerem uma série de relações, como


as caixas de construções e jogos de cubos, por exemplo. Afirmou que
as crianças não destroem os brinquedos porque têm espírito destruti-
vo, mas porque querem conhecer o que tem dentro deles.
Froebel dizia também que a pedagogia deveria considerar a
criança como atividade criadora e deveria despertar, mediante estí-
mulos, suas faculdades próprias para a criação produtiva. Para ele, a
melhor forma de conduzir a criança à atividade, à autoexpressão e à
socialização seria por meio dos jogos. Tal teoria realmente tratou os
jogos como fator decisivo na educação das crianças.19
Esse século ficou marcado também pelo surgimento da Psi-
cologia da Criança, que, recebendo grande influência da Biologia, fez
transposições dos estudos com animais para o campo infantil.
Segundo Kishimoto (1997), nesse eixo de pensamento, sur-
giu a Teoria de Gross, que considera o jogo pré-exercício de instintos
herdados. Dessa forma, ele adotou o pressuposto biológico da espécie
e acrescentou a vontade e a consciência infantil (aspectos psicológi-
cos) em busca do prazer, para justificar os processos biológicos. As-
sim, “se o jogo remete ao natural, universal e biológico, ele é necessá-
rio para a espécie para o treino de instintos herdados” (p. 31). Nesse
período, a Teoria Darwinista também estava em evidência e, refor-
çando a Teoria da Recapitulação e do pré-exercício, ofereceu novo
estatuto ao jogo, permitindo sua divulgação no seio da Psicologia e
da Pedagogia.
A importância dos jogos na educação ainda é mais eviden-
ciada no início do Século XX, com o norte-americano Dewey. Para
esse pensador, as formas de ocupação ativa têm a oportunidade de
19.  Almeida, 1998, p. 23

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

filiar-se à vida, de fazer o ambiente natural da criança. Somente dessa


forma aprenderia a viver retamente, pois, em vez de a criança apren-
der simplesmente lições que tenham uma abstrata e remota referência
a alguma vida possível, aprenderia com atividades que corresponde-
riam ao seu interesse20.
Maria Montessori constitui-se também uma referência
obrigatória em qualquer reflexão sobre o jogo na educação. Tanto
Kishimoto (1990) quanto Almeida (1998) apontam que foi em Froe-
bel que ela encontrou a ideia dos jogos educativos e reforçou a neces-
sidade desses para a educação de cada um dos sentidos. Por isso criou
uma série de jogos, de mimeógrafos e de cartelas para trabalhar os
sentidos das crianças. Não é por acaso que os jogos sensoriais estão
ligados a seu nome.
Claparède (1956) buscou, na Psicologia da Criança, uma for-
ma de conceituar pedagogicamente a brincadeira. A questão central
para Claparède estava em explicar que é sobre a base biológica que se
ergue a vida inteligente, e que a base psicológica e a vida mental têm
seus fundamentos na base biológica. Assim, postulou o jogo como
ação espontânea e natural da criança e, como tal, afirmou que o jogo
é o motor do autodesenvolvimento e, em consequência, método natu-
ral de educação e instrumento de desenvolvimento. Para Claparède, é
por meio da brincadeira e da imitação que ocorrerá o desenvolvimen-
to natural, um dos postulados da Pedagogia da Escola Nova.
O lúdico tomou verdadeira forma como aspecto educativo,
com os pressupostos apresentados por Freinet (1960), ao definir o
trabalho-jogo. Em princípio, ele parecia querer excluir os jogos da
atividade educativa. Nas palavras do autor, “Tentaremos não mais nos
20.  Almeida, 1998, p. 24

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

deixar levar a essas atividades arbitrariamente impostas que suscitam


e pedem os jogos de relaxamento compensados, os quais são como
antecâmara dos jogos de lucro e dos jogos-haxixe” (p. 192). No entan-
to, investiu contra a pedagogia dos jogos que levava a criança a jogar
segundo estratégia concebida pelo adulto (de fora para dentro). Nesse
sentido, colocou-se contra a prática pedagógica que substitui todas as
espécies de atividades sérias (trabalho) pelos jogos, com o intuito de
satisfazer apenas às necessidades de prazer e alegria das crianças. Para
Freinet, a criança deveria se dedicar ao trabalho como se ele fosse um
jogo (satisfação e prazer), mas nunca ao jogo em si, simplesmente
pelo fato de jogar. Conclui ele: “O trabalho nem sempre é jogo e, se é
nefasto trabalhar sempre, não é bom jogar sempre” (p. 197).
Nesse mesmo eixo de informações, acerca das históricas
das relações do jogo com a educação, teríamos ainda outros autores
que poderiam ser contemplados, como Piaget, por exemplo. Todavia,
como este autor continua sendo muito discutido no âmbito da educa-
ção, optamos por apresentá-lo fazendo contrapontos com Vygotsky e
com a perspectiva histórico-cultural.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

II
O JOGO E O BRINQUEDO NA
PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

O interesse em explicar como se formaram as características


de comportamento tipicamente humanas e como elas se desenvolvem
em cada indivíduo singular ao longo da história constitui-se a base
da abordagem histórico-cultural, desenvolvida por Vygotsky e seus
colaboradores.
Segundo Van der Veer e Valsiner (1998), Lev Semyonovich
Vygotsky nasceu em 05 de novembro de 1896, em Orsha, cidade pro-
vinciana nas proximidades de Minsk, interior da Rússia. Formou-se
em Direito, em Literatura e, mais tarde, em Medicina, na Universidade
de Moscou. Foi professor em escolas estaduais e professor e pesquisa-
dor nas áreas de Literatura, Psicologia, Deficiência Física e Mental e
Educação. Em 1934, aos 38 anos, faleceu, vítima de tuberculose.
Segundo Oliveira (1995), as ideias de Vygotsky não para-
ram após sua morte. Pelo contrário, multiplicaram-se e se desenvol-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

veram na obra de seus colaboradores, dos quais os mais conhecidos


são Alexis N. Leontiev e Alexander R. Lúria. Esses dois pesquisadores
faziam parte de um grupo de jovens da Rússia pós-revolucionária,
que trabalhavam em um clima de grande efervescência intelectual,
na busca de uma ligação entre a produção científica e o regime social
recém-implantado.
Para explicar os processos psicológicos do homem, Vygotsky
se baseou na filosofia marxista, que concebe o mundo como resultado
de processos histórico-sociais que alteram não só o modo de vida da
sociedade, mas também as formas de pensamento do ser humano. Foi
partindo desse pressuposto que Vygotsky se dedicou ao estudo das
chamadas “funções psicológicas superiores”, que consistem no modo
de funcionamento psicológico superior tipicamente humano. Den-
tre suas funções, podemos destacar a capacidade de planejamento, de
memória voluntária, de imaginação, pois se referem a mecanismos
intencionais, de ações que podem ser conscientemente controladas.
Para ele, esses processos não são inatos e se originam nas relações
entre indivíduos humanos e se desenvolvem ao longo do processo
de internalização de formas culturais de comportamento. Os que são
inatos, na concepção de Vygotsky, são os “processos psicológicos ele-
mentares”, que estão presentes na criança pequena e nos animais, tais
como: reações automáticas, ações reflexas e associações simples, que
são de origem biológica.
Conforme Vygotsky (1994), Leontiev (1988) e Fontana e
Cruz (1997), a criança não nasce em um mundo “natural”, mas hu-
mano. Começa sua vida em meio a objetos, a língua e a todos os
fenômenos criados e recriados pelas gerações que a precederam. É
nesse processo que lentamente ela vai se apropriando dele, conforme

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

se relaciona socialmente e participa das atividades e práticas cultu-


rais. É por meio dessa constante interação com os adultos, os quais
compartilham com ela seus modos de dizer, de fazer e de pensar as
coisas, integrando-a aos significados produzidos e acumulados histo-
ricamente, que as reações naturais de resposta aos estímulos do meio,
herdadas biologicamente, vão aos poucos sendo substituídos por
processos culturalmente organizados, transformando-se em modos
de ação, de relação e de representação, caracteristicamente humanos.
Desde o nascimento, a criança tem com o mundo uma rela-
ção mediada pelo outro e pela linguagem. O adulto ensina a criança
a utilizar os objetos, ele agita o chocalho diante dela, ajuda a pegá-lo,
ensina-a a chutar a bola, a comer com talheres, a tomar banho, a ves-
tir-se, a falar ao telefone. É por isso que Leontiev (1978) diz que cada
indivíduo aprende a ser homem. Aprende a ser diferente em cada
contexto sociocultural diferente. Nesse mesmo sentido, Lúria (1987)
postula que as experiências sociais diferentes proporcionam conheci-
mentos distintos e estimulam diferentes tipos de processos mentais.
O que define a diferença entre o homem e os animais é o
processo de trabalho, por ser o elemento que une o homem e a natu-
reza por uma relação dialética e ação de transformação mútua.
Segundo Leontiev (1978), o trabalho é o criador da cultu-
ra, da história humana, das mediações, constituindo-se em um fato
universal específico da espécie humana. Por essas mediações, desen-
volvem-se as atividades coletivas e, consequentemente, as relações
sociais, bem como a criação e o emprego de instrumentos, em espe-
cial a construção da linguagem. Isso significa que, para Leontiev, os
artefatos culturais são ao mesmo tempo materiais e conceituais, ou
seja, são manifestações físicas e de ideias. Sendo assim, só os seres

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

humanos têm a capacidade de materializar ou de cristalizar as suas


ideias e experiências em objetos ou, conforme Leontiev, em instru-
mentos.
A Teoria de Leontiev (1978) é um desdobramento dos
pressupostos básicos de Vygotsky, de que o ser humano é capaz
de se relacionar com o mundo de forma voluntária e intencional,
mediada por instrumentos, para atingir determinados fins. Dessa
forma, a atividade emerge da relação do homem com o mundo e
sua estrutura é criada pelas condições sociais e as relações humanas
delas decorrentes. Sendo assim, a atividade individual se dá sempre
em um contexto de trabalho, ocasionando um sistema de relações
sociais e de vida social. Os motivos e os objetos da atividade do ho-
mem são determinados pela divisão do trabalho na sociedade. Por
isso, seus componentes formam um todo indissociável e interde-
pendente. O gerador da atividade é o motivo. Portanto, a atividade
só existe porque existe um motivo. Este, por sua vez, exprime-se
nos fins. O motivo, a que Leontiev se refere, não designa o senti-
mento de uma necessidade, mas “aquilo em que a necessidade se
concretiza de objetivo nas condições consideradas e para as quais
a atividade se orienta, o que a estimula” (p. 97). Subjacente a um
motivo há sempre uma necessidade.
Podemos dizer, considerando os autores mencionados, que
são os sistemas produtivos, geradores de novos modos de vida, que
modificam também o modo de pensar do homem. Dessa forma, toda
conduta do ser humano, incluindo seus jogos, brinquedos e brinca-
deiras, é construída como resultado de processos econômicos e so-
cioculturais.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O surgimento do jogo de faz de conta

Elkonin (1998), colaborador de Vygotsky na década de 30


e que, após sua morte, vinculou suas investigações ao trabalho de
Leontiev, avançou em seus estudos, para provar a origem histórica
do jogo, demonstrando que o jogo de faz de conta é de origem social.
Nessa linha de pensamento, o nascimento do jogo de faz
de conta está relacionado às condições sociais concretas da vida da
criança na sociedade, e não à ação de energia instintiva inata, interna,
de nenhuma classe. Portanto, está relacionado ao processo de cons-
trução de nossa sociedade, à sua divisão em classes sociais e à divisão
social do trabalho.
Elkonin (1998) aponta diferenças significativas nas caracte-
rísticas das atividades de jogo e brinquedo ao longo do desenvolvi-
mento do ser humano e de suas relações sociais. Conforme o autor,
nos povos mais primitivos, as atividades das crianças se baseavam em
compartilhar de todas as atividades de seus pais e de sua comunidade,
sejam de trabalho, sacras ou jogos.
Essa relação também foi apontada por Ariès (1981), quando
dizia que, na Antiguidade, adultos, jovens e crianças se misturavam
em toda a atividade social, ou seja, nos jogos e brincadeiras, no exer-
cício das profissões e das tarefas diárias, no domínio das armas, den-
tre outras, pois a ideia de criança, tal como a concebemos hoje, não
existia antes do Século XVII.
Elkonin entende que, em séculos passados, o principal fator
de desenvolvimento da criança era justamente a sua participação di-
reta na vida dos adultos, mesmo que isso implicasse a incorporação

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

precoce de crianças ao trabalho produtivo, por não haver fronteira


delimitativa entre adultos e crianças.
Com o tempo, as formas de produção do trabalho foram
se modificando e exigindo novas formas de relação. Com a divisão
entre agricultores e pecuaristas e, consequentemente com o desen-
volvimento da indústria doméstica e do intercâmbio regular, surgiu
também a necessidade de nova divisão do trabalho. Ao complicar-se e
redistribuir-se, houve a necessidade de afastamento das crianças nos
diversos aspectos do trabalho.
Assim, postulou-se a tese mais importante para a teoria do
jogo protagonizado21, abordada por Elkonin (1998, p. 80): “[...]esse
jogo nasce no decorrer do desenvolvimento histórico da sociedade
como resultado da mudança de lugar da criança no sistema de rela-
ções sociais”.
Para ele, não é possível determinar com exatidão o momento
histórico em que apareceu o jogo protagonizado, pois esse processo
poderia ter-se dado de forma diferente, conforme as condições con-
cretas de existência de cada povo. O que importa para esse autor é
deixar demarcado que, em épocas passadas da humanidade, quando
as forças produtivas ainda se encontravam a um nível menos desen-
volvido no sentido tecnológico, e que as ferramentas permitiam in-
cluir diretamente as crianças nos trabalhos dos adultos, não existiam
nem exercícios especiais para aprender o manejo das ferramentas,
nem mesmo o jogo protagonizado. Todavia, com a criação de alguns
instrumentos, a inclusão das crianças em algumas esferas do traba-
lho exigia preparação especial sob a forma de aprendizagem do ma-
nejo das ferramentas simples. Houve a necessidade de produção de
21.  Jogo protagonizado para Elkonin: é o jogo de faz de conta em que as crianças desempenham papéis.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

aparelhos de tamanhos reduzidos, adaptados às possibilidades das


crianças de utilizarem em condições aproximadas dos adultos. Con-
forme Elkonin (1998, p. 61), “no tocante às esferas de trabalho mais
importantes, ainda inacessíveis a ela, apresenta-se à criança a missão
de dominar o mais cedo possível as complicadas ferramentas desse
trabalho”. Assim aconteceu com arcos e flechas, laços, arados, pá, en-
xada e outros instrumentos que os meninos iam utilizando desde a
mais tenra idade, para desenvolverem destreza e hábitos necessários à
vida de trabalho adulto. Às meninas, coube cada vez mais a tarefa de
auxiliarem suas mães nos afazeres domésticos.
Conforme o autor, o tipo de aparelho produzido para a
criança estava sempre em consonância com o ramo de trabalho
fundamental, que predominava na sociedade onde estava inserida.
Outra questão que ele coloca é que arcos, flechas, laços, varas de pes-
ca e outros aparelhos aumentavam de tamanho conforme a criança
crescia.
O que o autor constata, nesse período do sistema de pro-
dução, é que, apesar de não mais compartilharem diretamente com
o trabalho dos pais, as crianças passavam o maior tempo realizan-
do atividades com características muito próximas ao trabalho deles.
Dentre vários exemplos, o autor cita a função de trabalho e treino
de habilidades que a boneca representava para os povos do extremo
Norte da União Soviética. Ao costurar vestidos a uma boneca, a me-
nina adquiriria hábitos importantíssimos para as mulheres, de costu-
rar as indumentárias.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Surge aqui uma questão para Elkonin (1998, p. 75):

Os dados apresentados da carência de jogos protagonizados entre as


crianças que crescem em sociedades menos desenvolvidas também são
desse período. Tampouco se encontra aí, entre as crianças, ou só se en-
contra muito raramente, o jogo protagonizado em forma evoluída.

Em outras palavras, os jogos de faz de conta, ou seja, de re-


presentação de papéis sociais, quase não faziam parte da vida coti-
diana das crianças dessa época. Essa descoberta aponta para o fato de
que, nessa etapa da evolução, os jogos de imitação de papéis de adul-
tos no processo de produção não faziam parte do conteúdo de suas
atividades, porque não havia necessidade de imitar o que era realida-
de para eles. Podemos dizer que não havia necessidade social alguma
de praticá-lo. No entanto, conforme pesquisas realizadas por N. N.
Jaruzin22, havia necessidade de representar outras situações inacessí-
veis ou proibidas na vida das crianças ou nas relações com os adultos,
como, por exemplo, os rituais de casamentos, que eram representados
sempre às escondidas dos pais, pressupondo que estes tenham sido
proibidos para os filhos. Nesse mesmo sentido, Mead23, estudando
grupos culturais da Nova Guiné, escreveu que pouquíssimas vezes
registrou jogos em que os meninos de seis anos construíam casinhas
de madeira e brincavam imitando afazeres domésticos ou cantando
canções de ninar embalando bonecos de madeira. A antropóloga res-
saltou, em várias ocasiões, que pouquíssimas vezes viu esse fato, e que
pôde ver em casos contados.

22.  Citado por Elkonin, 1998, p. 76.


23.  Citado por Elkonin, 1998, p. 76.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Podemos supor que os jogos de imitação que aparecem nes-


te grau de desenvolvimento foram um modo peculiar de penetrar
em uma esfera vedada na vida das crianças e nas relações com os
adultos.
Com o desenvolvimento do processo de industrialização, as
formas de trabalho e a utilização de instrumentos sofreram transfor-
mações, provocando mudanças significativas nos diversos setores de
produção e nas formas de brincar.
Ainda segundo Elkonin (1998), podemos afirmar que, com
a complicação dos instrumentos de trabalho, as crianças não pude-
ram mais aprender o manejo das ferramentas com modelos redu-
zidos. Ao ser diminuída, a ferramenta perdia suas funções funda-
mentais, conservando apenas a aparência exterior de ferramentas de
trabalho empregadas pelos adultos. Assim, por exemplo, enquanto
o arco reduzido não perdia sua função principal, ou seja, dava para
disparar com ele uma flecha, um rifle reduzido não passava de uma
figura de rifle, com o qual não se podia fazer um disparo, mas apenas
simulá-lo. O mesmo aconteceu com a agricultura de enxada. Com
um modelo reduzido, a criança podia desfazer torrões de terra, pois
essa enxada reduzida era muito parecida com a dos pais, não só pela
forma, mas pela função. Ao passar para a agricultura de arado, o ara-
do reduzido, por mais parecido que fosse ao verdadeiro em todos os
sentidos, perdeu as funções fundamentais de ferramenta, pois não se
podia lavrar, muito menos adicionar a ele um boi.
Quanto maior os avanços tecnológicos na fabricação de
instrumentos de trabalho, exigindo maior conhecimento e domínio
técnico, maior a distância entre a vida de trabalho dos adultos e a
vida das crianças. Daí surge a necessidade de satisfazerem desejos

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

insatisfeitos pela situação posta, observadas por Vygotsky principal-


mente em crianças de idade pré-escolar.
Dessa forma, a necessidade de vivenciar a vida de trabalho
dos pais ou adultos faz com que a criança crie uma situação imaginá-
ria, e, nesse sentido, utilizando as palavras de Vygostky, o brincar da
criança é imaginação em ação..
Sendo assim, Elkonin (1998) define o jogo como atividade
social em que se reconstroem as relações sociais sem fins utilitários
diretos. O aspecto central que constitui a unidade fundamental do
jogo é o papel assumido pela criança, relacionado com suas ações. O
que influi diretamente na unidade papel-ações é a esfera da ativida-
de de trabalho humano e as relações sociais, tornando-se o conteúdo
fundamental do papel assumido pela criança na reconstituição desse
aspecto da realidade.
Elkonin destaca também que, da mesma forma que a ativi-
dade concreta das pessoas e suas relações são variadas na realidade,
também são variados e mutáveis os temas dos jogos. E é por isso que
ele diz:

Nas diferentes épocas da história, segundo as condições sócio-históricas,


geográficas e domésticas concretas da vida, as crianças praticavam jogos
de temática diversa. São diferentes os temas dos jogos das crianças de
diferentes classes sociais, dos povos livres e dos povos oprimidos, dos
povos nórdicos e dos povos meridionais, dos que habitam em regiões
arborizadas ou desérticas, dos filhos de operários industriais, de pesca-
dores, de criadores de gado ou de agricultores. Inclusive uma mesma
criança muda os temas de seus jogos segundo as condições concretas em
que se encontra temporariamente (p. 34-35).

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Santin (1997, p. 23) relata um fato que representa bem essa


questão apontada por Elkonin, “[...] em um levantamento recente fei-
to espontaneamente em acampamentos dos sem-terras, foi constata-
do que as crianças brincavam de fazer assembleias, de invadir pro-
priedade ou de se esconder da repressão policial”.
Elkonin (1998) nos mostra que as teorias biológicas do jogo
não podem dar conta de explicar seu conteúdo social, pois o impac-
to que a atividade humana e as relações sociais produzem no jogo
evidencia que os temas não são extraídos unicamente da vida das
crianças, mas têm um fundo social, nascem das condições de vida das
crianças na sociedade e possuem, portanto, origem histórica.
Dessa forma, o autor conseguiu demonstrar que o jogo de
papéis com que as crianças brincam é de origem social. Buscou na
ontogênese as condições em que o jogo aparece devido à educação,
demonstrando que as atividades e relações humanas são o seu con-
teúdo fundamental, pois o jogo é uma forma de orientar as motiva-
ções da atividade humana e constitui a condição mais importante
para que a criança acesseno âmbito das relações sociais e as modele
de forma peculiar na atividade lúdica. Sendo assim, as relações reais
que as crianças estabelecem no jogo revelam as funções do jogo no
desenvolvimento.

O papel do jogo e do brinquedo no desenvolvimento da


criança

O jogo e a brincadeira são atividades que predominam na


infância. O fato chamou a atenção de Vygotsky (1994), que, com seus

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

trabalhos, preocupou-se em demonstrar as relações destes com o de-


senvolvimento da criança.
Quando Vygotsky discutiu o brinquedo, referiu-se princi-
palmente à brincadeira de faz de conta. Mesmo fazendo referência a
outros tipos de brinquedos, era a brincadeira de faz de conta a privile-
giada em suas discussões a respeito da importância do brinquedo no
desenvolvimento. Nos afastamos de Vygotsky somente quando utiliza
o termo brinquedo para designar o jogo de faz de conta, pois enten-
demos como brinquedo o objeto de brincar.
Vygotsky condena as teorias que o definem, pura e simples-
mente, como atividade que dá prazer à criança, da mesma forma que
critica também as que ignoram o fato de que o brinquedo preenche
necessidades da criança. Por isso, ele afirma que, “se não entender-
mos o caráter especial dessas necessidades, não podemos entender a
singularidade do brinquedo como uma forma de atividade” (p. 122).
Piaget (1978) também considera importante a brincadeira
da criança. No entanto, para ele, o jogo simbólico não tem finalida-
de adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas men-
tais. Embora considere importante para a constituição de símbolos
que servem para representar objetos ou acontecimentos, ampliando
o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento está sempre
subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência. Já para
Vygotsky (1994), a brincadeira tem um papel fundamental no desen-
volvimento do próprio pensamento da criança. É por meio delas que
a criança aprende a operar com o significado das coisas e dá um passo
importante em direção ao pensamento conceitual, que se baseia nos
significados das coisas e não nos objetos.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Pelo fato de a criança não realizar a transformação de sig-


nificados de uma hora para outra, Vygotsky vê a brincadeira como
a principal atividade da criança, por possibilitar a passagem de uma
operação baseada na relação entre significado e objeto concreto para
outra onde a criança passa a operar com significados separados dos
objetos.
Conforme Fontana e Cruz (1997), a partir do momento que
a criança assume um papel qualquer na brincadeira, ela passa a ope-
rar com o significado de sua ação e submete seu comportamento a de-
terminadas regras. “Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da
capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente
relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de
ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por
meio de regras” (p. 128). Ao brincar com um taco de madeira como se
fosse um carrinho, a criança se relaciona com o significado em ques-
tão, ou seja, a ideia de carro, e não com o objeto concreto, real que tem
em mãos. Assim é quando ela brinca de cavalinho com um cabo de
vassoura ou usa um pedaço de pau para representar um telefone, epor
exemplo. Da mesma forma, ela terá que agir representando ações e
comportamentos que se assemelham a dos adultos em situações reais.
Dessa forma, essas atividades servem como representação de uma
realidade ausente e ajuda a criança a separar objeto e significado, e,
conforme Oliveira (1995, p. 66), “constitui um passo importante no
percurso que a levará a ser capaz de, como no pensamento adulto,
desvincular-se totalmente das situações concretas”.
Vygotsky (1994) chama atenção também para o fato de que,
no jogo, a criança frequentemente faz coisas que ainda não consegue
fazer na realidade. Nas atividades do cotidiano, a criança em idade pré-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as situações concretas,


tendo dificuldade de controlar voluntariamente seu comportamento e
submetê-lo a regras. É por isso que, como ele diz, precisamos estar o
tempo todo dizendo o que deve fazer. Por exemplo, chamar para tomar
banho, lembrá-la de escovar os dentes, falar para guardar seus brinque-
dos, e assim por diante. No entanto, em uma situação de faz de conta,
ela poderia fazer tudo isso, submetendo-se a regras de comportamento,
imitando, por exemplo, situações em que elas ocorrem na realidade.
Tanto pela criação da situação imaginária como pela defi-
nição de regras específicas, o brinquedo cria uma zona de desenvol-
vimento proximal, pois, como afirma Vygotsky (1994, p. 134), “no
brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento
habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brin-
quedo, é como se ela fosse maior do que é na realidade”.
Conforme Oliveira (1995, p. 65-66):

Comparada com a situação escolar, a situação de brincadeira parece pou-


co estruturada e sem uma função explícita na promoção de processos de
desenvolvimento. No entanto, o brinquedo também cria uma Zona de
Desenvolvimento Proximal na criança, tendo enorme influência em seu
desenvolvimento.

A Zona de Desenvolvimento Proximal é entendida por


Vygotsky (1994) como o potencial de aprendizagem do sujeito, ou
seja, compreende tudo aquilo que o indivíduo pode fazer com o
auxílio de uma pessoa mais experiente. Tudo aquilo que o indiví-
duo é capaz de realizar sozinho, Vygotsky chama de conhecimen-
to real. Como exemplo, podemos dizer que, se uma criança de 7

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

anos, recebendo pistas, consegue resolver problemas mais comple-


xos do que outra da mesma idade, é porque ela tem uma Zona de
Desenvolvimento Proximal mais ampla, significando que seu poten-
cial de aprendizagem é maior naquele momento.
Em relação a esse fato, Kolyniak Filho (1995, p. 25) fala:

Tal constatação aponta para a importância de se levar em consideração o


potencial de aprendizagem dos alunos nas situações de ensino, ao mes-
mo tempo em que mostra que o bom ensino deve incidir sobre a Zona
de Desenvolvimento Proximal dos alunos, a fim de favorecer seu desen-
volvimento.

Vygotsky (1994) destacou também a importância da inter-


nalização como processo que permite que uma função interpsico-
lógica (atividade social externa) se torne intrapsicológica (atividade
individual interna), possibilitando o desenvolvimento das capacida-
des psíquicas superiores. Em outras palavras, as funções psicológicas
superiores aparecem duas vezes no desenvolvimento do indivíduo:
primeiro como processos interpessoais, para, depois de internaliza-
dos, se estabelecerem como processos intrapsíquicos.
Dessa forma, quando o professor oferece informações aos
alunos a respeito de algum jogo ou brincadeira, está atuando como
representante do processo cultural que produziu este conhecimento.
Ao mesmo tempo, está-se cumprindo nessa relação a primeira par-
te do processo, ou seja, o processo interpessoal, que se completará
quando os alunos vierem a apropriar-se daquilo que está sendo ensi-
nado. Provavelmente, daí decorre o interesse constante das crianças
em fazer questão de repetirem os mesmos jogos várias vezes, seja na

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

sala de aula, nas aulas de Educação Física ou fora dela. Nesse sentido,
a busca se justifica na necessidade que a criança tem de se apropriar
daquele conhecimento que está sendo vivenciado, ou seja, de torná-
-lo, no termo vygotskiano, intrapessoal ou intrapsicológico.
É importante destacarmos que, para Vygotsky, a linguagem
surge inicialmente como meio de comunicação entre a criança e as
pessoas de seu meio sociocultural, e, aos poucos, vai se convertendo
em linguagem interna, contribuindo para organizar o pensamento da
criança, transformando-se em função mental interna. Sendo assim,
toda experiência que a criança vivenciar com seu corpo representa
uma alavanca ao processo de desenvolvimento integral da criança.
Pelo jogo, a criança aprende, verbaliza, comunica-se com pessoas
que tem mais conhecimentos, internaliza novos comportamentos
e, consequentemente, desenvolve-se. O jogo é a atividade principal
da criança. Em conexão com essa atividade, ocorrem as mudanças
consideradas por Vygotsky e Leontiev como as mais importantes no
desenvolvimento de processos psíquicos da criança, e preparam o
caminho da transição para um novo e mais elevado nível de desen-
volvimento.
A grande importância do jogo para o desenvolvimento da
personalidade da criança, para Elkonin (1987), reside no fato de que
os processos psíquicos se elevam a uma escala superior, graças ao
desenvolvimento de sua personalidade e sua consciência.

No jogo, a criança toma consciência de si mesma, aprende a desejar e a


subordinar a seu desejo seus impulsos afetivos passageiros, aprende a
atuar subordinando suas ações a um determinado modelo, a uma norma
de comportamento. Assim, no jogo, a submissão à necessidade não é

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

imposto de fora, pois responde à própria iniciativa da criança como algo


desejado. O jogo, dessa maneira, por sua estrutura psicológica, é o pro-
tótipo da futura atividade séria. Da necessidade que o jogo faz desejada à
necessidade que se torna plena consciência: este é o caminho que vai do
jogo às formas superiores da atividade humana (p. 100).

Muitas coisas ainda devem ser explicadas a respeito do


jogo da criança, mas a peculiaridade mais importante da Psicologia
Histórico-Cultural é a superação, no campo da Psicologia Infantil,
das teorias naturalistas e mecanicistas do jogo.

Do jogo de faz de conta ao jogo de regras

Tanto Vygotsky (1994) quanto Piaget (1978) concordam que


há evolução no jogo da criança, porém atribuem razões diferentes a
ela.
Para Piaget, a evolução acompanha o desenvolvimento da
inteligência e do pensamento; enquanto para Vygotsky ela se deve a
mudanças que ocorrem na interação da criança com o meio social,
em razão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas
que lhe são colocadas.
As mesmas características são evidenciadas no processo de
evolução dos jogos da criança, porém, enquanto o olhar de Piaget se
voltou a explicar como a criança passa de um estágio do jogo para
outro, sempre relacionado com o desenvolvimento do pensamento
e da própria inteligência, o olhar de Vygotsky se dirigiu ao contexto
social e procurou explicar as interações sociais que se estabeleciam

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

em torno das crianças, que eram responsáveis pela evolução de seus


jogos e brincadeiras.
Piaget chama os primeiros jogos que a criança realiza de
jogos de exercício. Compreende os exercícios de repetição por puro
prazer de comportamento que a criança já aprendeu. Segundo o au-
tor, esse estágio compreende as crianças de até aproximadamente 18
meses. O segundo estágio de evolução refere-se às crianças que se en-
contram na fase entre dois a seis anos de idade, e os jogos que apare-
cem nessa fase são os jogos simbólicos. Para Piaget, surge na criança,
quando seu pensamento se torna capaz de representação simbólica, a
capacidade de representar objetos e acontecimentos ausentes. O ter-
ceiro estágio compreende os jogos com regras, que aparecem por vol-
ta dos 7 anos de idade e acontecem devido à crescente socialização do
pensamento da criança, que conduz a substituição do símbolo lúdico
individual pelas regras.
Também Dietrich (1980) reconhece essa evolução. Ele tam-
bém a divide em três fases distintas e apresenta em cada uma delas as
relações com o meio ambiente com as quais a criança entra em contato
com o jogo, as funções de movimento que se ativam nesse processo e as
experiências que podem ser realizadas. Ele as divide em “jogos explo-
ratórios”, que vão até os três anos de idade, “jogos de papéis”, que ini-
ciam a partir dos três anos, e “jogo com regras”, a partir dos sete anos.
De acordo com Vygotsky (1994), desde que a criança nasce,
tem necessidades que são atendidas pelos adultos que dela cuidam. Aí
começam a se estabelecer as primeiras interações, pois tem que haver
um adulto que faça a leitura de tais necessidades para poder comu-
nicar-se com ela. Dessa forma, reações que eram puramente fisioló-
gicas transformam-se também em atos e reações sociais cujo objeto

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

é o adulto. Sendo assim, o mundo da criança pequena se restringe ao


adulto que cuida dela e que a faz estabelecer relações com o meio.
É por isso que Elkonin (1998) fala que a comunicação da
criança se dá na interação prática, inicialmente orientada pelos adul-
tos. As ações e os modos sociais de utilizar os objetos são aprendi-
dos pelas crianças, sob a direção do adulto que muitas vezes oferece
também modelos de ação. Ao brincar, a criança tenta agir sobre os
objetos, como os adultos.
Ele afirma isso baseando-se no fato de que crianças muito
pequenas agem de acordo com o que veem. Ao verem um cabo de
vassoura, no máximo o que podem fazer é puxá-lo, bater em algo,
procurando imitar o adulto no ato de varrer. Ao verem um copo, que-
rem logo levar a boca, encher de água ou outro líquido qualquer e
derramar, pois é isto que geralmente os adultos fazem com estes ob-
jetos.
Dessa relação, que provoca na criança a necessidade de do-
minar o mundo dos objetos humanos, surgem para Vygotsky as pri-
meiras brincadeiras.
A brincadeira evolui porque, segundo Leontiev (1988), o
mundo objetivo que a criança conhece está continuamente se ex-
pandindo, e chega a um momento em que a criança não se satisfaz
mais apenas com os objetos que constituem o ambiente que a envolve,
como seus brinquedos, utensílios e objetos com que está sempre em
contato e com que pode agir, e passa a interessar-se pelos objetos com
os quais os adultos operam e sobre os quais ela não pode agir. Passa a
se interessar por uma esfera mais ampla da realidade e sente necessi-
dade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é a principal forma de que
a criança dispõe para conhecer e compreender a realidade.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Nesse período, ela tenta atuar não apenas sobre as coisas às quais
tem acesso, mas, conforme Fontana e Cruz (1997, p. 122), “esforça-se para
agir como um adulto: quer, por exemplo, dirigir um carro, fazer comida”.
Ou como podemos observar no cotidiano, quer montar um cavalo, dirigir
um trem, alimentar um bebê, dentre outras.
Durante o desenvolvimento dessas brincadeiras, as relações
humanas incluídas nessas ações começam a se expandir e aparecer
mais claramente. As crianças não se satisfazem mais em brincar ape-
nas de dirigir o carro, pois sentem necessidade de reproduzirem as
relações humanas mais amplas em que o motorista está envolvido. Já
não importa apenas a relação entre o motorista e o carro, mas tam-
bém o posto de gasolina onde ele vai abastecer, a garagem onde vai
guardar o carro, a ponte por onde vai passar, o pedágio que vai ter que
pagar. Da mesma forma, ao brincar de boneca, a criança maior já não
se contenta em reproduzir as ações maternas, de dar banho, de dar
de mamar, de embalar, mas busca incluir essas ações em um contexto
maior de relações, levando a boneca ao médico, à escola, ao passeio
no parque.
Pela necessidade de ampliar o universo das relações a serem
representadas, as crianças maiores começam cada vez mais a buscar
brincadeiras em grupos, onde as relações sociais são reproduzidas nas
relações das crianças entre si. Em situações em que não podem brin-
car com mais crianças, criam situações imaginárias onde fazem de
conta que essas pessoas e situações existam.
Para Vygotsky, toda situação imaginária já contém regras.
Essas regras, mesmo não estando estabelecidas a priori, contêm regras
de comportamento a que a criança se submete ao brincar. A criança
imagina-se como mãe e a boneca como criança e, dessa forma, deve

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

obedecer às regras do comportamento maternal; imagina-se motoris-


ta de ônibus e procura agir como tal. Dessa forma, tanto o papel que
a criança representa como a relação dela com um objeto que tem seu
significado modificado sempre se originarão de regras baseadas nos
comportamentos sociais.
No dizer de Fontana e Cruz (1997, p. 135):

Reguladas por regras implícitas de comportamento, essas relações são


uma pré-condição importante para que aos poucos, as crianças tornem-
-se conscientes da existência de regras na brincadeira. É sobre essa base
que surgem os jogos com regras (como amarelinha, esportes, cartas).

Vygotsky (1994) também procura mostrar que os jogos, que


aparentemente são somente de regras, contêm implicitamente uma
situação imaginária. “Da mesma forma que uma situação imaginária
tem que ter regras de comportamento, todo jogo com regras contém
uma situação imaginária” (p. 125). Fala ainda que o mais simples jogo,
assim que é regulamentado por certas regras, transforma-se imedia-
tamente em uma situação imaginária, pois várias possibilidades de
ação são eliminadas. Vygotsky cita como exemplo o jogo de xadrez.
Apesar de ser um jogo de regras, contém uma situação imaginária,
na medida em que as peças só podem ser movidas no tabuleiro de
maneiras específicas, determinadas por uma situação imaginária. O
mesmo ocorre nos jogos com cartas, no futebol, no jogo de bolinha
de gude e em outros.
Para Vygotsky (1994, p. 126), “o desenvolvimento a partir de
jogos em que há uma situação imaginária às claras e regras ocultas para
jogos com regras às claras e uma situação imaginária oculta delineia

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

a evolução do brinquedo das crianças”. Dessa forma, a brincadeira se


desenvolve no contexto das práticas histórico-culturais, passando de
uma situação claramente imaginária, com regras implícitas, para ou-
tra, com regras e objetivos claros e uma situação imaginária implícita.
Fantin (1996, p. 42), coloca essa questão de forma bastante
clara, nos seguintes termos:

Na brincadeira da criança pequena, a situação imaginária é evidente, as re-


gras organizam as ações, mas não aparecem explicitamente, estão ocultas.
Com a evolução da brincadeira, no jogo de regras, a situação se inverte, as
regras são evidentes e o que está oculto são os elementos de ilusão que o
jogo envolve.

A aceitação das regras indica nova etapa na vida das crianças.


O atributo principal na brincadeira é que uma regra torna-se um de-
sejo, pois o brinquedo cria na criança nova forma de desejos. Segundo
Vygotsky (1994, p. 114), “ensina-a a desejar, relacionando seus desejos
a um ‘eu’ fictício, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa maneira,
as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo,
aquisições que no futuro tornar-se-ão seu nível básico de ação real e
moralidade”.
Enquanto, na idade pré-escolar, a brincadeira de faz de conta
é a principal atividade da criança; na idade escolar, os jogos com re-
gras e os esportes tornam-se os mais importantes, aponta Vygotsky. A
partir do momento em que a criança começa a frequentar a escola, a
instrução formal, culturalmente valorizada e estimulada, passa a ocu-
par o papel central no desenvolvimento da criança.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Sentidos e significados atribuídos ao jogo, a brincadeira


e ao brinquedo

Falar em apropriação e produção de sentidos e significados


remete-nos necessariamente a pensar as relações que se estabelecem
entre adultos e crianças no seio de qualquer sociedade. Mais preci-
samente, quando queremos desvelar sentidos e significados atribuí-
dos a jogos, brincadeiras e brinquedos, precisamos essencialmente
conhecer os processos de inserção na cultura de cada um de seus
participantes. Isso implica, portanto, considerar, de uma perspectiva
vygotskiana, que a significação, atribuída a qualquer palavra ou ativi-
dade concreta existe primeiro para os outros e, apenas subsequente-
mente, para a própria criança.
O adulto, do lugar social que ocupa, destaca e dimensiona as
produções da fala, dos gestos e das atitudes da criança, interpretan-
do-as e atribuindo-lhes significados. Assim também acontece com o
universo de jogos e brinquedos das crianças. Por sua vez, a criança no
processo de interação verbal com o adulto acaba apropriando-se das
significações que aí se produzem, em um movimento em que suas
palavras se tornam gradativamente convencionais.
É nesse processo de apropriação, pela criança, das significações
sociais que devemos nos embasar quando desejamos analisar os sentidos
e significados dos jogos, brincadeiras e brinquedos, pois fazem parte do
cotidiano, com os quais a criança se relaciona, mediada pelos pais ou por
outras pessoas com quem convive. Assim, além dela ir se apropriando
dos significados convencionais, do que representa o seu brincar para os
pais ou outros adultos que com ela interagem, vai atribuindo um sentido

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

singular e um conceito em relação às suas ações concretas com os jogos,


brincadeiras e brinquedos.
É por isso que Bakhtin fala que devemos observar a lingua-
gem da criança quando se expressa, pois ela só se torna “própria”
quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando
a domina pelo discurso, torna-a familiar com a sua orientação se-
mântica e expressiva. O autor diz isso, baseando-se no fato de que ne-
nhum discurso, até o momento em que foi apropriado, existe em uma
língua neutra e impessoal (pois não é do dicionário que ele é tomado
pelo falante), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem
e a serviço das intenções de outrem: e é lá que é preciso que ele seja
isolado e feito próprio24.
As formulações de Vygotsky (1989) se aproximam de
Bakhtin, pois, para ele, as crianças não selecionam o significado de
uma palavra, não atribuem por si só um valor a uma ação ou a uma
atitude. Esses lhes são dados no processo de interação verbal, ou mes-
mo gestual, com os adultos. Em geral, as crianças não criam sua pró-
pria fala; elas dominam a fala existente dos adultos que as rodeiam,
e essa interação influencia diretamente na construção dos sentidos
e significados que atribuem a seu próprio ato de brincar. Conforme
Cruz (1997, p. 60):

[...] no jogo interativo com o adulto, e com base em suas interpretações,


constitui-se um núcleo de estabilização das significações, um movimen-
to de apreensão dos significados convencionais pela criança, à medida
que ela ‘torna próprio’ (apropria-se de) algo que é ‘pertinente/apropria-
do’, do ponto de vista de seu grupo social, a contextos discursivos deter-
minados.
24.  Citado por Cruz, 1997, p. 54.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Implica também, segundo a autora, modos de participação


ativa da criança na produção de sentidos, pois:

[...] tornar própria e pertinente uma palavra, em uma dada situação de


interlocução é um movimento interior ao próprio processo de produção
de sentidos. Ou seja, a criança apreende a unicidade da palavra, com
base em sua participação na produção de significações; ela se apropria
da palavra viva múltipla e una – no contexto de enunciações concretas
(p. 60).

A atividade humana, conforme já dizia Leontiev (1978), tem


como qualidade especial e peculiar o fato de ser “social”. Isto significa
dizer que é pela atividade que os indivíduos estabelecem relações so-
ciais com a realidade, com os outros indivíduos e consigo mesmo. E é
em torno da realidade que se constrói o sentido e a significação. Em-
bora sejam conceitos distintos, para Leontiev, estão intrinsecamente
ligados por uma relação inversa. O sentido é uma relação que surge
na atividade cotidiana do sujeito, traduzindo a relação do motivo ao
fim. Sendo assim, todo sentido é sentido de algo, isto é, de manifesta-
ções humanas. Portanto, não há sentido em si mesmo, puro. O sentido
particular depende do motivo impulsionador da atividade realizada
em uma determinada ação. O sentido pessoal depende do motivo e ele
cria a disposição para a ação.
As significações são encontradas prontas pelo indivíduo. Elas
são elaboradas historicamente, e o homem se apropria delas como se
apropria de um instrumento. A significação é peculiaridade do cé-
rebro humano. Representa a forma pela qual um homem absorve as
experiências produzidas historicamente pela humanidade. Ela per-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

tence, pois, ao mundo dos fenômenos objetivos históricos. Leontiev


(1978) define a significação como sendo aquilo que um objeto ou fe-
nômeno se descobre em um sistema de ligações, de interações e de
relações. Ela mediatiza o reflexo do mundo pelo homem na medida
em que ele vai tomando consciência deste. A função mediadora da
significação se manifesta no momento em que o homem absorve o
reflexo do mundo, valendo-se da experiência da prática social.
Leontiev (1978) afirma que o significado é o reflexo (apro-
priação) da realidade elaborada historicamente pelo homem. É fixado
como significado linguístico, conceito, norma, técnica, conhecimen-
to.
A diferença básica entre sentido e significação pode ser as-
sim considerada: o sentido, embora social, tem uma conotação mais
pessoal, enquanto a significação é codificada social e culturalmente.
Para elucidar a diferença básica entre sentido e significado, imagine-
mos uma criança envolvida em um jogo de queimadas. Nessa ativi-
dade, o objeto da ação é tentar se manter o maior tempo possível sem
ser “queimado”. A significação são as relações que o homem sistema-
tizou historicamente em torno desta atividade, tais como as regras,
os procedimentos, a linguagem específica, as estratégias de ação. O
sentido é pessoal, refere-se ao motivo que levou a criança a sugerir
ou a participar da atividade. Se a criança tem como motivo sugerir a
atividade para liderar o grupo de amigos, o sentido é um. No entanto,
se o motivo é o prazer de participar de atividades em grupo, o sentido
é outro. O motivo pode estar atrelado à certa “obrigatoriedade” de
participação em aula de Educação Física, à necessidade de se movi-
mentar, de vencer desafios e a muitas outras.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) aponta um


exemplo que auxilia na compreensão da diferença entre sentido e sig-
nificado. Cita o voleibol como um objeto de conhecimento que tem
formas, procedimentos e movimentos, com características específicas
e regras definidas institucionalmente; “portanto”, com “significados”
objetivos produzido nas relações sociais que é compartilhado por to-
dos que o praticam. Em relação ao “sentido”, ele é particular, é subje-
tivo, decorrente do contexto de uso em que cada praticante se situa.
Isso significa dizer que podemos praticar o voleibol por motivos de
competição, de trabalho ou ainda de lazer. Está ligado também ao ca-
ráter afetivo, que diz respeito aos sentimentos que se manifestam nas
relações com quem se pratica, como: satisfação, superação, exclusão,
raiva, emoção e alegria, por exemplo.
Mesmo explicitando o fato mais na perspectiva da psicaná-
lise, Bruhns (1993) relata o exemplo de Erickson, que nos chama a
atenção para o cuidado na análise do sentido que uma atividade está
tendo para a criança.

Quando uma criança brinca com um objeto, como um carretel puxado


por um barbante, deve-se ter o cuidado para perceber se isso correspon-
de a uma brincadeira de todas as crianças de determinada idade, em de-
terminada coletividade, ou se esse brinquedo está tendo um significado25
único para aquela criança que perdeu uma pessoa ou um animal e, em
consequência, dá ao jogo uma significação particular (p. 23).

Ao fazer parte de uma cultura, no seu grupo social, a criança


cria uma cultura infantil e, por isso mesmo, sempre se relacionará
com os jogos, brincadeiras e brinquedos dispostos em seu meio, in-
25.  A palavra “significado” está sendo utilizada com o mesmo significado de “sentido” em Vygostsky.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

corporará os significados atribuídos a eles nesse meio e atribuirá sen-


tido particular, dependendo de sua intenção e relação.
A partir dessas considerações, podemos dizer que é no con-
texto histórico-cultural em que cada um de nós está inserido que nos
produzimos como sujeito único e singular, e é nele que nos apropria-
mos dos significados, produzimos e damos sentido a nossas ações.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

III
O JOGO, O BRINQUEDO E A
MODERNIDADE

A discussão atual sobre o papel do jogo, da brincadeira e do


brinquedo no desenvolvimento da criança tem sido fértil, principal-
mente pela diversidade destes ante as novas realidades econômicas,
políticas e culturais, definidoras do mundo contemporâneo e que re-
tratam, de certa forma, o projeto de modernidade instalado a partir
do Iluminismo do Século XVIII.
Muita coisa foi transformada e está continuamente se trans-
formando em nossas vidas, devido aos avanços tecnológicos e cientí-
ficos com os quais estamos constantemente nos relacionando, direta-
mente ou não, querendo ou não.
Conforme Piacentini (1994, p. 13):

Nós, latino-americanos, somos bombardeados cotidianamente pelo pen-


samento europeu, como precursor da modernidade, e pelo pensamento

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

do Primeiro Mundo econômico-cultural como um todo, destacando o


norte-americano, como sintomas do que ocorre ao redor e (por que não
arriscar?) dentro de nós.

A autora ainda fala que a realidade tipicamente moderna é


assim, uma sociedade de consumo que procura adaptar os indivíduos
ao formidável mundo novo da violência, da massificação e do auto-
matismo.
Ortiz (1994) fala na tendência de uma cultura mundializada
que não se sustenta no espaço apenas tecnológico. Há um universo
habitado por objetos compartilhados em grande escala. São eles que
constituem nossa paisagem, mobilizando nosso meio ambiente. Sen-
do assim, não podemos deixar de analisar e discutir o jogo e o brin-
quedo no contexto do mundo moderno. Brougère (1997, p.8) aponta
o brinquedo como “rico de significados que permitem compreender
determinada sociedade e cultura”, que, no nosso caso, trata-se de cul-
tura globalizada ou, como preferem alguns autores, mundializada.

Valores simbólicos e papéis sociais implícitos nos brin-


quedos

Em séculos passados, havia certa margem de ambiguidade em


torno dos brinquedos, principalmente na sua origem. A maior parte
deles eram compartilhados tanto por adultos quanto por crianças, tan-
to por meninos quanto por meninas, nas mais diversas situações do
cotidiano. Essa ambiguidade começou a desaparecer, principalmente
com o início da especialização dos brinquedos, que passou a ocorrer

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

no Século XVIII, com o advento do capitalismo. O brinquedo passou


a ser comercializado com fins lucrativos. A partir daí, os objetivos do
brinquedo começaram a se afastar da sua origem.
Pela crescente tendência de racionalização, principalmente
das sociedades ocidentais, as características do brincar e do jogar fo-
ram se modificando. O que antes era motivo de profundas relações
familiares, com valores e sentidos culturais muito significativos, tor-
na-se objeto destinado a um público-alvo, com um fim em si mesmo.
Conforme Benjamin (1984, p. 68), “uma emancipação do
brinquedo começa a se impor; quanto mais a industrialização avança,
mais decididamente o brinquedo subtrai-se ao controle da família,
tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também
aos pais”.
Todavia, apesar de todas as mudanças que possam ter ocor-
rido ao longo dos tempos, as crianças continuam brincando, conti-
nuam jogando e se expressando por meio das atividades lúdicas. Se
isso ocorre mesmo em uma sociedade que supervaloriza o trabalho
em detrimento do lazer e que atribui ao tempo um valor financeiro,
é porque é atribuído ao brinquedo e ao brincar algum significado ou
valor social.
Para Brougère (1997), é preciso aceitar o fato de que o brin-
quedo está inserido em um sistema social e suporta funções sociais
que lhe conferem razão de ser. Diz ainda: “Para que existam brinque-
dos é preciso que certos membros da sociedade deem sentido ao fato
de que se produza, distribua e se consuma brinquedos” (p. 7).
Muitos dos brinquedos são fabricados para “ensinar” com-
portamentos, gestos, atitudes e valores considerados “corretos” em
nossa sociedade. Por isso, muitosdeles já está pronto e catalogado,

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

contendo todas as instruções de uso, idade, sexo, número de partici-


pantes e tempo de duração do jogo, bastando segui-las.
Como diz Santin (1990, p. 26):

Infelizmente o homem adulto, do negócio e do trabalho acabou se apro-


veitando desta dimensão lúdica da criança. Explorando essa ludicidade
da criança, o adulto a induz, com artifícios, a adotar os valores do adulto.
A astúcia do adulto começa pela produção de brinquedos que a introdu-
zem no mundo do trabalho e das funções do adulto.

No ato de brincar, os papéis são desenhados com muita cla-


reza: a menina torna-se mãe, professora, tia, comadre e irmã; por sua
vez, o menino torna-se pai, motorista, índio, polícia e ladrão. Dessa
forma, as crianças procuram nos brinquedos, principalmente naque-
les que são miniaturas de objetos de uso adulto, imitar os papéis so-
ciais estabelecidos na prática cotidiana.
Parece mais comum aos meninos aprenderem brincadei-
ras que tenham relação com uma aceitação de atitudes masculinas,
como ser destemido, arriscar mais, explorar, correr, enquanto brincar
de boneca e de casinha demonstra afetividade, sensibilidade, cari-
nho, que em nossa sociedade encerram sentimentos relacionados às
meninas, mulheres e futuras mães. Por isso, em nossa sociedade, os
meninos são presenteados com carrinhos, revólveres, espadas, robôs,
dentre outros; enquanto as meninas, com bonecas, carrinhos de bebê
e objetos de uso doméstico em miniatura.
Elkonin (1998) cita pesquisas realizadas pela antropóloga
Margaret Mead, para demonstrar como o brincar de bonecas, clás-
sico jogo de meninas em nossa sociedade, mais do que manifestação

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

do instinto maternal, é reprodução de relações sociais existentes em


determinadas sociedades, mais precisamente a divisão social do tra-
balho no cuidado das crianças pequenas.
Ao estudar grupos culturais da Nova Guiné, Mead constatou
que as meninas pequenas não tinham bonecas, nem o costume de
brincar de bebês. Os bonecos de madeiras eram oferecidos aos meni-
nos pequenos, que brincavam com eles embalando e cantando can-
ções de ninar como seus pais, que eram muito carinhosos para com
os filhos.
Já em nossa sociedade, conforme Brougère (1997, p. 21), “o
universo feminino parece ficar junto da família e do cotidiano, en-
quanto o do menino, que começa, sem dúvida com a miniatura do au-
tomóvel, traduz a vocação para a descoberta dos espaços longínquos,
escapando do peso do cotidiano”.
Essas atitudes, para cada sexo, são consideradas “normais”
em situações de brinquedo, pois esse tipo de comportamento faz par-
te de suas rotinas.
Isto nos lembra Bourdieu (1990, p. 158), quando diz:

Se o mundo social tende a ser percebido como evidente e a ser apreen-


dido [...], é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é, as
estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são
em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social.

Dessa forma, para garantirem a continuidade dos hábitos de


sua coletividade, os pais procuram direcionar, por meio dos brinque-
dos e dos jogos, as atitudes e os gostos considerados característicos
para cada sexo.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Conforme Brougère (1997, p. 63), o brinquedo é a “materia-


lização de um projeto adulto destinado às crianças (portanto, vetor
cultural e social) e que tais objetos são reconhecidos como proprie-
dade da criança, oferecendo-lhe a possibilidade de usá-los conforme
a sua vontade, no âmbito de um controle adulto limitado”. Ou como
diz Benjamim (1984, p. 14), “de uma maneira geral, os brinquedos
documentam como os adultos se colocam com relação ao mundo da
criança”.
Todas essas questões devem ser consideradas quando se de-
seja realizar um estudo sobre jogo e brinquedo em qualquer cultura.
Entretando, devemos estar sempre atentos e abertos a possíveis mu-
danças que possam ocorrer no sistema de relações sociais, pois essas
podem interferir em mudanças de valores, de conceitos e, até mesmo,
na diminuição de certos preconceitos em torno do ato de brincar.
O problema que aqui se apresenta é que muitas mudanças
ocorreram no sistema de produção, principalmente nos últimos anos,
fazendo com que as mulheres assumissem trabalhos ou funções que,
até então, eram exclusivas para homens. Nos dias atuais, podemos
observar mulheres desenvolvendo diversas atividades em fábricas e
empresas, frentistas nos postos de gasolina, policiais e motoristas de
ônibus, táxi, caminhões e carros. Da mesma forma, não é raro encon-
trarmos homens desempregados, desempenhando funções domésti-
cas em suas casas, enquanto suas esposas mantêm o emprego.
Diante desse fato, é “normal” que as meninas, aos poucos,
passem a ter necessidade também de brincar de carrinho e de polícia
e ladrão; enquanto os meninos também, de casinha, de boneca, den-
tre outras; pois é por meio do faz de conta que a criança se apropria
da realidade social, interage e conhece o mundo real.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Outro fato que gostaríamos de destacar é a influência dos


meios de comunicação de massa no mundo dos jogos, brincadeiras e
brinquedos das crianças.

Meios de comunicação de massa, jogo e brinquedo

Os modos de experiência e os padrões de interação em nossa


sociedade se transformaram, principalmente a partir da chegada dos
meios de comunicação de massa.
Dia após dia, aumenta o número de palavras e imagens, in-
formações e ideias a respeito de produtos e acontecimentos, via tele-
visão, rádio, jornais, internet e redes sociais, tornando-se pontos de
referência comuns para milhões de indivíduos de diversos pontos do
país e, até mesmo, do mundo.
Para Thompson (1995, p. 219), “mesmo as formas de entrete-
nimento que existiram por muitos séculos, tais como a música popular
e a competição esportiva, estão hoje entrelaçadas com os meios de co-
municação de massa”. Conforme o autor, “todo indivíduo presente em
um local doméstico privado, possuidor de um aparelho de televisão,
tem acesso potencial à esfera da publicidade criada e mediada pela
televisão” (p. 318). A internet e as novas tecnologias aceleraram esse
processo, diminuindo e modificando o conceito de tempo e de espaço.
Desse modo, as crianças são alvo fácil da indústria do brin-
quedo. Pela propaganda, elas são informadas sobre novos brinquedos
que estão no mercado e que prometem proporcionar aos que com-
prarem, maior prazer, emoção, alegria. A diversidade de imagens que
mostram crianças brincando com os mais variados tipos de bonecas,
bicicletas, carrinhos e outros brinquedos, incentivando e apontando

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

estratégias de como consegui-los com seus pais, é cada vez mais fre-
quente na televisão e nas redes sociais, principalmente em determina-
das datas do ano, como Natal e Dia das Crianças.
A propaganda procura passar uma realidade que não é a de
todas as crianças. A de que o brinquedo pode ser adquirido por toda
e qualquer pessoa. A realidade não é essa, e as diferenças podem ser
verificadas nas ruas no dia seguinte a essas datas. Basta olharmos nas
mãos das crianças; pois é de se esperar que os conflitos e contradições
desta sociedade se manifestem também em seus brinquedos e brin-
cadeiras. Todavia, esse é “apenas” um detalhe que não importa muito
aos meios de comunicação de massa. Conforme Chauí (1994, p. 32),
os assuntos transmitidos pelos meios de comunicação de massa “co-
locam os receptores em um universo de atualidade por eles desejada,
ainda que as transmissões possam reforçar a apropriação desigual dos
chamados bens culturais pelas diferentes classes sociais”.
Os meios de comunicação tendem a invalidar os brinquedos
e os jogos confeccionados pelas próprias crianças, que podem sen-
tir-se inferiorizadas por não possuírem um igual ao veiculado pela
mídia. Os meios de comunicação de massa, pela sua capacidade inti-
madora, impõem, conforme Chauí, uma estrutura cultural na qual os
indivíduos são convidados a participar, sob pena de exclusão e invali-
dação sociais ou de destituição cultural.
Piacentini (1994) fala que o centro da sociedade, a chamada
modernidade, é o cenário.

E tudo o que se encontra distanciado do centro da sociedade aparece


como estranho e indecifrável: ali habita o camponês, longe da cidade, e
olhando-o em grupo, podemos descrevê-los como ‘remotos’ ligeiramen-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

te arcaicos em seu modo de vestir-se e falar, parcos, adeptos de expres-


sar-se em forma e fórmulas tradicionais (O. Paz)26.

A criança, para entrar no cenário, precisa da veste específica,


do brinquedo da moda, do jogo que dá ibope, da coleção de figuri-
nhas que é novidade, do carrinho de controle remoto que é a sensação
do momento, e assim por diante. Para Chauí (1994, p. 35), “a sedução
ainda é maior porque responde a uma exigência real do espaço de-
mocrático, [...]. A circulação pública das informações e a formação de
uma opinião pública informada que possa julgar e decidir”.
O que podemos fazer no momento é questionar e denun-
ciar as formas sutis de violência, de discriminação e de preconceito às
quais as pessoas das classes sociais mais baixas são submetidas, pois,
no dizer de Chauí, “sob a aparência do direito à fruição do ‘moderno’,
efetua-se a verdadeira destituição cultural” (p. 41).
Em nossa sociedade capitalista, também é comum encon-
trarmos brinquedos que estimulam a competição, o individualismo e
a vitória a qualquer preço, efetuando, como diz Neto (1996), uma as-
sociação ideológica destes valores com os países capitalistas centrais,
como os Estados Unidos.
Conforme Oliveira (1986), muitos brinquedos são lançados
no mercado para exaltar o herói, cultuando o desempenho individual
e ultrapoderoso de determinados personagens:

Essa reverência é levada ao exagero, privilegiando-se o caráter indivi-


dualista, as façanhas de um ser superdotado, capaz de derrotar tudo e
todos, fazendo-se reconhecer, distintivamente em relação aos simples

26.  Citado por Piacentini, 1994, p. 15.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

mortais, por sua força, sua invencibilidade, seu poder. Na maior parte
dos casos, os heróis não aparecem localizados historicamente. Em geral,
são apátridas. Mas, mesmo quando isso ocorre, seus nomes são, invaria-
velmente, americanos (p. 85).

No mundo globalizado, os artefatos e imagens de uma vida


agradável nos ideais americanos são exportados facilmente para o
mundo inteiro. Esse fato tem sido visto por alguns críticos, confor-
me observa Featherstone (1997), como indicador da homogeneização
global da cultura, na qual a tradição dá lugar à cultura americana do
consumo de massa.
Como vimos, tanto o brinquedo quanto as formas de brincar
e de jogar já passaram por inúmeras transformações ao longo da histó-
ria. Todavia, esta mesma história não nos mostra outro tempo em que
ocorreram tantas mudanças e massificações em torno do brinquedo
e do brincar como nestes últimos anos, “coincidindo” com o cresci-
mento da “informação”. Isso não é difícil de entender, se levarmos em
consideração que, em um mundo globalizado, “o cidadão” passa a ser
“o consumidor” internacionalmente, e não apenas de seu país.
Conforme Ortiz (1994, p. 122), “o dever primeiro de todo o
cidadão é ser um bom consumidor. O universo do consumo surge as-
sim, como lugar privilegiado da cidadania. Por isso, os diversos sím-
bolos de identidade têm origem na esfera do mercado”.
Esse crescente processo de homogeneização em torno
do brinquedo é considerado, por Marcellino (1990), como um fur-
to e desrespeito em relação à cultura do lazer na infância, enquanto
Benjamin (1984) acusa a indústria cultural do brinquedo por colocar
a criança diante de uma realidade pré-fabricada.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Brougère (1997, p. 57) fala que, nos países que aceitam a pu-
blicidade de brinquedos pela televisão, “os brinquedos mais vendidos
são, na maior parte dos casos, aqueles que são objeto de uma campa-
nha publicitária televisiva”. Atualmente essas campanhas são poten-
cializadas pela internet e redes sociais.
Em 1997, presenciamos dois fenômenos típicos de massifica-
ção dos brinquedos e padronização do brincar, promovidos pela tele-
visão. Foi o caso do “bichinho virtual”, chamado Tamagouch, que vi-
rou mania internacional, fazendo com que crianças do mundo inteiro
atendessem às solicitações programadas nele, tais como: dar de comer,
beber, tomar banho, ser vacinado, apagar a luz, fazer carinho, fazer es-
tudar, dentre outras.
No âmbito nacional, presenciamos um rápido esvaziar nas
prateleiras de supermercados e lojas de brinquedos de um bambolê
chamado “Bambotcham”, do grupo É o Tchan, em uma versão mais
colorida, mais atraente, principalmente por fazer parte da coreografia
de uma música chamada “Bambolê”, deste mesmo grupo. Assim, ano
após ano, surgem novos brinquedos que viram febre, cada vez mais
avançados tecnologicamente e mais atrativos, relcionados ao mundo
digital, ao videogame e a filmes americanos.
Para Kunz (1994), a crescente homogeneização que faz com
que os brinquedos e jogos das crianças na Europa, EUA, Japão ou
Brasil se assemelham, não acontece apenas por interesses mercado-
lógicos.

Há um certo interesse, também, no controle social pela influência dos


brinquedos e objetos de jogo industrializado, sobre o imaginário infan-
til. Pois, a criança forma o seu imaginário social, cultural e lúdico, por

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

meio do seu pensar, agir e sentir, que, até a idade do adolescente, con-
figura-se, especialmente, pela brincadeira e o jogo. No entanto, se pelo
simples brincar a criança é afastada de sua realidade, o seu imaginário é
facilmente dominado e sua subjetividade controlada, facilitando, assim,
a submissão e a obediência (p. 87).

No seu brincar, a criança constrói e reconstrói simbolica-


mente sua realidade e recria o existente. Entretanto, esse brincar, cria-
tivo, simbólico e imaginário, enquanto poder infantil de conhecer o
mundo e de se apropriar originalmente do real, está sendo ameaçado
pela interferência da indústria do brinquedo.
Os preconceitos e as discriminações que muitas vezes são
veiculados nos próprios brinquedos eletrônicos também merecem ser
pontuados. Para exemplificarmos, podemos citar partes do conteúdo
da matéria publicada na Folha de São Paulo, “Vídeogames racistas e
neonazistas viram mania em escola da Áustria”, de autoria de Sandra
Lacut, da “France Press”27. Esses jogos estimulam preconceitos racis-
tas, incentivando a derrota de tudo que se opõe aos valores arianos,
consagrando, assim, o nazismo.
Diz Lucut: “Os videogames trivializam o Holocausto (assas-
sinato em massa de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes, du-
rante o nazismo) e incitam ao ódio contra os judeus e os turcos” (p.
114). Outro jogo tem como objetivo propor uma hierarquização das
pessoas por raças, fazendo crer na hegemonia da raça ariana.
Conforme a autora:

Outro, chamado ‘Prova Ariana’, coloca perguntas que revelam ao joga-


dor seu grau de pureza racial. Aquele que for apenas ‘meio ariano’ pode
27.  Citada por Neto, 1996, p. 114.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

se desforrar, ‘matando comunistas’. De acordo com o grau de ‘impureza


do sangue’, o jogador só pode ser varredor ou limpador de privadas. E o
‘judeu’ é automaticamente atirado na câmara de gás (p. 114).

Neto (1996) conclui que é possível que o autor deste jogo se


tenha inspirado no terrível mundo criado por Aldous Huxley, cha-
mado “Admirável Mundo Novo”, onde as pessoas eram divididas em
castas desde o berço, sendo que os “alfas” representavam o topo da
hierarquia; enquanto os “ipsilons”, o seu grau mais baixo, sendo res-
ponsáveis por “limpar privadas”.
Infelizmente, esses valores que podem estar implícitos no
jogo nem sempre são observados, ou melhor, analisados e criticados.
Eles geralmente escondem-se atrás de muita ação, de muita cor, luz e
som, característicos dos brinquedos eletrônicos.
Apesar dessas observações e cuidados que devemos ter em
relação às interferências, muitas vezes arbitrárias, dos meios de comu-
nicação de massa no mundo dos jogos, brincadeiras e brinquedos das
crianças, não podemos esquecer-nos de que o brinquedo materializa
princípios e valores correspondentes a um momento histórico deter-
minado.
Gramsci (1987) demonstrou ter esse entendimento ao es-
crever, em 09 de abril de 1928, à Tânia, falando de sua análise sobre
um brinquedo chamado Mecano28, que gostaria de comprar para seu
filho Délio. “O princípio do Meccano é por certo ótimo para os me-
ninos modernos” (p. 109). Em outra carta enviada à Giulia, em 01
de julho de 1929, novamente ele fala no brinquedo, dessa vez rela-

28.  Segundo Nosella (1992, p. 74), “trata-se de uma caixa cheia de pequenas peças metabólicas, fu-
radas, com vários parafusos e instrumentos mecânicos, para que a criança possa brincar construindo
guindastes, torres e estruturas variadas de metal”.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

cionando-o ao desenvolvimento psicológico. “A própria invenção do


Meccano indica como o menino se intelectualiza rapidamente” (p.
137).
O problema não está nos brinquedos eletrônicos. Pelo con-
trário, sabemos da sua necessidade nos tempos atuais e da sua con-
tribuição no desenvolvimento de habilidades de movimentos e psico-
lógicas da criança. O que deve ser analisado, criticado e, se possível,
redimensionado é o conteúdo de alguns desses jogos e brinquedos.
Apesar de toda interferência dos meios de comunicação de
massa e da indústria do brinquedo, as crianças não são meras recep-
toras do que é veiculado. Nesse processo, há também uma elabora-
ção pelas próprias crianças dos elementos de seu patrimônio cultural.
Mesmo dizendo que as crianças geralmente agem incorporando nor-
mas e padrões de comportamentos, a partir dos elementos simbólicos
que a sociedade lhes impõe, existem mudanças e contradições. Os
brinquedos, como afirma Brougère (1997, p. 105), “orientam a brin-
cadeira, trazem-lhe a matéria. [...] só se pode brincar com o que se
tem, e a criatividade, tal como a evocamos, permite, justamente, ul-
trapassar esse ambiente, sempre particular e limitado”.
A cultura lúdica está impregnada de tradições diversas, pois
nela podemos encontrar, além de inúmeros jogos e brinquedos que
retratam os novos tempos, brincadeiras tradicionais no sentido estri-
to, como também brincadeiras recriadas, reestruturadas, elementos,
temas e conteúdos ligados à programação infantil e à representação
dos mais velhos.
Segundo Brougère (1997, p. 59), “novos conteúdos, em par-
ticular os originados pela televisão [...], vêm se inserir em estruturas
anteriores disponíveis e dominadas pelas crianças”.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

É provável que as brincadeiras contemporâneas se incorpo-


rem a um núcleo mais constante da cultura lúdica da criança, garan-
tida pelo menos a diversas gerações. Para Brougére, parece não haver
oposição entre as brincadeiras tradicionais e aquelas oferecidas pela
televisão, pelo menos na cultura viva, constituída pelas brincadeiras
das crianças. Afinal, mesmo com toda a produção de telefones infan-
tis, o barbante amarrado em duas latinhas continua se tornando um
telefone, as latas de alumínio sobrepostas se transformando em jogo
de boliche. Pneus, plásticos, madeiras e muitos outros objetos aparen-
temente sem conotação lúdica continuam chamando a atenção das
crianças, as quais os transformam em prazerosos brinquedos.
Mesmo com alguma ressalva, são especiais as palavras de
Benjamin (1984, p. 77), ao dizer que:

Elas (as crianças) sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços


que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da ativi-
dade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses restos que sobram, elas reco-
nhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só
para elas. Nesses restos, elas estão menos empenhadas em imitar as obras
dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, por
meio daquilo que criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente
relação.

A ressalva a que fizemos refere-se ao fato de que, mesmo


quando se trata de restos e destroços, geralmente as crianças criam
e recriam situações de brincadeiras que têm alguma relação com as
atividades dos adultos de seu meio ou, até mesmo, com os brinquedos
industrializados. Afinal, como nos diz Brougère (1997, p. 59), “a brin-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

cadeira é, entre outras coisas, um meio de a criança viver a cultura que


a cerca, tal como ela é verdadeiramente, e não como ela deveria ser”.
A reflexão aqui apresentada tem a intenção de evidenciar
que atividades aparentemente sem importância podem ter um senti-
do especial para os que a vivenciam. Sentidos que, muitas vezes apre-
sentados de modo diferente do nosso habitual entendimento, revelam
nossa relativa limitação em compreender as realizações do outro.
A responsabilidade social é de cada um e de todos nós. Por
isso, essas atividades que continuam, apesar do novo, lançam-nos o
desafio de perseguir, de encontrar e de cultivar estas práticas e pen-
samentos em nós mesmos, no mundo que nos cerca, com as pessoas
que conosco convivem, ainda que venha a constituir um caminho
dissidente, que se recusa a aderir à tirania do novo pelo novo.
Somente dessa forma podemos considerar que o processo
de globalização não produz a uniformidade cultural. Ela nos tor-
na, sim, conscientes de novos níveis de diversidade, como nos diz
Featherstone (1997).

Tempo e espaço para o brincar

O controle do tempo é uma dimensão fundamental em nos-


sa sociedade, que articula nossos sistemas físicos, controla as relações
sociais e, até mesmo, adapta os sistemas biológicos. Podemos dizer
que é uma necessidade criada pelo homem.
Todavia, nem sempre foi assim. A história nos dá testemu-
nho que houve um época em que a própria natureza dava a dimen-
são de tempo e de espaços. O próprio processo de transformação

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

da natureza transformou o homem e, nesse movimento dialético,


ele foi se produzindo e produzindo instrumentos que facilitassem
o seu modo de agir sobre a própria natureza. Nesse processo, até
mesmo os conceitos de tempo e de espaço, necessariamente, diante
da realidade de cada época, foram se modificando.
Conforme Gebara (1997, p. 62), “diferentes culturas viven-
ciam diferentes formas de marcar e considerar o tempo; do mesmo
modo, historicamente tem variado a duração de tempo necessário
para a execução de tarefas similares”.
Com o desenvolvimento do capitalismo, houve um proces-
so de generalização e uma necessidade criada de universalização da
medição do tempo. Para Thompson (1993), esse processo de domínio
do tempo do homem se consolidou com a generalização do uso do
relógio, permitindo a universalização e a uniformização da medida
do tempo. A frase que todos nós conhecemos “tempo é dinheiro” pro-
vavelmente teve sua data de nascimento nessa época histórica. Esse
processo de controle e regularidade do tempo, em função do traba-
lho, implicou também a existência de um tempo de não-trabalho.
Gebara (1997) fala que, historicamente, esse tempo de não-
-trabalho, por não ter sido incluído no universo produtivo, no qual
o tempo de trabalho foi “disciplinado”, foi frequentemente pensado
como tempo ocioso, uma contrapartida à racionalidade do sistema
econômico.
Dessa forma, foi-se estabelecendo cada vez mais a dicotomia
entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho, sendo o primeiro
considerado como tempo de compromisso e sério, e o segundo como
tempo de brincadeira, de lazer e de prazer, portanto, não-sério.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

No entanto, para Bruhns (1997, p. 34):

A aparente existência de uma dicotomia lazer/trabalho encontra-se rela-


cionada a tempos marcados e controlados por vários instrumentos (re-
lógio, calendários e outros), estabelecendo espaços específicos e muito
determinados, para uma e outra atividade. Dessa forma, vemos afastada
(porém não impossível de conquista) a possibilidade de um trabalho
mais lúdico, ou de um lazer mais comprometido com o desenvolvimento
pessoal e social.

É na contramão dessa dicotomia que nos colocamos, por en-


tendermos que trabalhar e brincar faz parte de uma mesma unidade,
a das necessidades humanas.
Ao partir dessa premissa, é que discutimos o tempo e o es-
paço para o jogo, a brincadeira e o uso do próprio brinquedo como
um problema essencial das sociedades contemporâneas ou pós-in-
dustriais. O uso do espaço, os objetos de jogo e o tempo disponível
devem ser reconsiderados, de acordo com as mudanças e razões de
mobilidade de cada população, seja no meio urbano, nas periferias ou
zonas rurais. Essas mudanças podem ter implicações relevantes a vida
da criança, no sentido de ampliar ou reduzir o nível de oportunidades
na prática de jogos e brincadeiras.
A composição familiar, os hábitos cotidianos e os modos
de vida em geral transformaram-se drasticamente, e as adaptações
sociais e individuais nem sempre seguiram a melhor direção. A ten-
dência cada vez maior de controlar o tempo das crianças e a redução
de espaços para a prática de seus jogos e brincadeiras são assuntos
intrigantes na atualidade. Segundo Neto (1997, p. 11), “em muitas so-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

ciedades, a possibilidade de mobilidade da criança e do jovem tem


decrescido largamente nas últimas décadas”.
O tempo da criança não é fácil de gerir. Essa dificuldade se
agrava quando pais ou membros da família têm dificuldades de orga-
nizar o tempo e os horários de seus filhos, por passarem a maior parte
do tempo fora do ambiente familiar, e, quando o fazem, baseiam-se
geralmente em seus princípios e modos de pensar, que nem sempre
são os mais indicados.
A concepção que muitos pais tem sobre a necessidade da
criança de jogar e de brincar é pouco convincente (para eles mesmos),
impedindo, em muitos casos, que tomem atitudes favoráveis à sua
prática. Geralmente eles têm conhecimentos, ideias, desejos e suporte
financeiro, de acordo com o seu nível social, econômico e cultural.
Nesse sentido, o mais provável é que a solução final para a escolha das
atividades dependerá do que os pais pensam, do que está disponível,
do que custa menos, da oferta das indústrias de brinquedos e do que
as instituições escolares oferecem.
Neto (1997, p. 12) faz um comentário a respeito dessas es-
colhas: “as melhores soluções para os adultos e indústrias são pobres
soluções para as crianças”. Ele faz esse comentário porque acredita
que o conceito de jogo e de atividade física para os adultos e para as
crianças é frequentemente diferente, e, neste embate, muitas vezes a
criança perde.
Outra questão preocupante nos tempos modernos é o espa-
ço físico. No entanto, de que espaço físico estamos falando? Stucchi
(1997, p. 36) responde: “O espaço da ‘habitação’, dos ‘percursos’ da ‘es-
cola’ e o espaço do ‘trabalho’. Todos eles parecem somente existir pe-
los signos da seriedade que sempre vêm com um sentido de obrigação

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

para o compromisso social”. O que diríamos dos espaços para ativida-


des lúdicas, para o prazer, para os jogos e brincadeiras das crianças?
Conforme Neto (1997, p. 15), “a primeira constatação cen-
tra-se nas consequências impostas por um modelo de envolvimento
físico que não facilita o desenvolvimento da criança por meio do jogo”.
As oportunidades de espaço para brincar são cada vez mais limitadas,
promovendo modelos de controle e direção segundo atitudes e valo-
res considerados socialmente adequados. O aumento populacional e,
consequentemente, o de tráfego, bem como o estilo de vida das famí-
lias e o controle do tempo das crianças, é fator que pode impedi-las de
ter acesso ao espaço da rua e dos espaços verdes.
Neto (1997) fala de dados que demonstram uma progres-
siva restrição no espaço habitacional e uma progressiva dificuldade
em a criança fazer amigos e que o nível de autonomia da criança, no
percurso casa e escola, diminui consideravelmente quanto mais nos
aproximamos dos grandes centros, por ser feito em poucos minutos
e porque geralmente as crianças são acompanhadas pelos pais ou ir-
mãos mais velhos29.
A situação do recreio nas escolas apresenta realidade tam-
bém preocupante. Pode parecer paradoxo, mas os espaços e os tempos
de recreio nas escolas têm grande potencial, que, na maior parte dos
casos, encontram-se desvalorizado. Reduzi-los pode parecer atrativo
para alguns diretores de escolas, menos atentos ao valor educativo e à
importância desses espaços para as crianças. São necessárias, além do
tempo disponível, áreas diversificadas de recreio, que normalmente
não existem.

29.  Maiores informações podem ser encontradas na obra “Jogo e Desenvolvimento da Criança”, por
Carlos Neto (1997).

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Conforme Pereira, Neto e Smith (1997, p. 238), “a natureza


do recreio não está direcionada e, por isso, perde-se a sua identidade
e o sentido desse contexto”. Geralmente, inicia-se com um toque ba-
rulhento, informando o recreio para todas as turmas, que já saem em
disparada para o pátio, atropelando-se em algazarra.
Muitas vezes, as crianças ficam rondando de um lado para o
outro do pátio, sem saber o que fazer. Ainda não se tem clara a razão
dessas manifestações que ocorrem no recreio. Contudo, fatores rela-
cionados ao contexto organizacional, como curto espaço de tempo,
várias restrições em relação aos espaços, brincadeiras e brinquedos,
falta de diversificação de atividades, ausência de um professor media-
dor, superlotação de crianças, dentre outras razões, podem estar as-
sociados. Muitas dessas razões já foram apontadas por Pereira, Neto
e Smith (1997).
Essas reflexões certamente nos remetem a pensar sobre o
tempo que as crianças estão tendo para brincar e os espaços reserva-
dos a elas, diante de tantas mudanças que ocorreram no contexto de
nossa sociedade contemporânea. Como está sendo pensado o recreio
nas escolas? Que alternativas podem ser favoráveis para que o recreio
se torne espaço de aprendizagens prazerosas e significativas para as
crianças?
Não é nossa intenção avançar nessa reflexão, mas demarcar
nossa preocupação com os espaços e os tempos que dispõem as crian-
ças para o brincar.
Convém salientar que há ainda poucas informações sobre
essas questões. Mesmo assim, as investigações e conclusões existentes
não são fáceis de serem transferidas, pois depende de contexto para
contexto, de cultura para cultura.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

IV
O JOGO, A BRINCADEIRA E O
BRINQUEDO NO CONTEXTO ESCOLAR

A importância do jogo e do brinquedo no processo de apren-


dizagem e desenvolvimento de habilidades cognitivas. emocionais e
corporais da criança e suas aplicações como recurso didático-pedagó-
gico, principalmente nos primeiros anos escolares, têm sido defendi-
das constantemente por estudiosos da Educação e Psicologia.
No entanto, experiências práticas de forma sistematizada,
fundamentadas em referenciais teóricos que apontam essa necessida-
de e possibilidade, quase não são conhecidas. E se o jogo e a brinca-
deira não forem considerados como pano de fundo no projeto políti-
co pedagógico de qualquer escola, provavelmente os professores não
estarão empenhados em proporcionar experiências nesse sentido, e,
consequentemente, as possibilidades de se realizar um trabalho mais
significativo e prazeroso para as crianças serão limitadas.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Segundo Hartmann (1997, p. 170):

Apesar de serem utilizados jogos didáticos nas escolas do ensino básico


de quase todos os países, a maior parte dos professores não demonstra
experiência na promoção de situações de jogo espontâneo com as crian-
ças e revela uma atitude muito céptica em relação a isso. Devido à falta
de conhecimento e experiência no domínio da pedagogia da atividade
lúdica, os professores mostram falta de vivências práticas relacionadas
ao arranjo de espaços e seleção de jogos na sala de aula.

Apesar das históricas relações e associações do jogo com


o ensino, com a educação no sentido geral, ainda percebemos certo
preconceito, medo, receio de se trabalhar em uma perspectiva mais
lúdica na sala de aula.
Para Santos (1998, p. 22):

o que se vê no interior da escola é uma aprendizagem apoiada em méto-


dos mecânicos e abstratos, totalmente fora da realidade da criança, em
que o corpo é apenas objeto de manipulação dos professores a serviço
dos ‘conteúdos’ escolares, predominando durante as aulas a imobilidade,
o silêncio, a disciplina rígida.

O professor exerce papel fundamental, como mediador no


processo de alfabetização das crianças. No contexto atual, o grande
desafio para o educador é trabalhar os conteúdos propostos pelos
programas curriculares ou recriá-los de forma a torná-los mais sig-
nificativos e prazerosos às crianças. Por isso, tanto o professor que
atua na Educação Infantil como o que atua nas primeiras séries do

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Ensino Fundamental, ao elaborarem suas propostas de trabalho, de-


vem reconhecer e valorizar o “veio” da necessidade de que as crianças
têm de representar a realidade social, característico do faz de conta,
bem como o surgimento de necessidades de participarem de jogos
com regras, como um espaço de investigação e construção de conhe-
cimentos.
Nesse sentido, desenvolvemos alguns temas que nos fazem
refletir sobre o que caracteriza o jogo como atividade espontânea,
e o que o caracteriza como trabalho educativo. Outra questão que
procuramos pontuar foi a concepção de jogo contemplada em uma
proposta mais recente de Educação Física. Por último, abordamos a
necessidade de a escola vir a ser um lugar mais prazeroso, onde o
jogo, a brincadeira e o brinquedo possam ser valorizados, pois eles
já são uma realidade, basta nos despirmos de qualquer preconceito
e voltarmos atentamente nosso olhar para as crianças reais da escola.

Jogo espontâneo e jogo educativo

Antes de discutirmos o papel do jogo como recurso didático


pedagógico, é importante apresentarmos algumas características que
diferenciam o jogo espontâneo do jogo educativo.
Para se chegar à ideia de jogo, Kishimoto (1992) estabelece
algumas condições que devemos considerar, tais como: identificar as
características daquilo que se chama jogo, descrever o comportamen-
to por ele expresso e explicar as razões que levam a pessoa a jogar.
Ao partir dessas condições, selecionamos alguns autores que já foram
apresentados por Kishimoto (1997) e por Fantin (1996), por terem

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

organizado um quadro a respeito da ideia do que é jogo, suas caracte-


rísticas e atributos principais.
Comecemos com Huizinga (1996), que considera o jogo
como elemento da cultura, e o estuda em uma perspectiva históri-
ca. Huizinga considera o jogo como forma específica de atividade,
como elemento significante e como função social, além de conside-
rar o seu caráter estético. Ele apresenta como critérios fundamen-
tais do jogo:

1. É uma atividade voluntária em que o jogador demonstra


prazer (as crianças brincam porque gostam de brincar, e o
prazer por ele provocado o transforma em uma necessida-
de);
2. É uma atividade livre, com liberdade de ação do jogador
(se imposta, deixa de ser jogo);
3. Possui caráter não-sério;
4. Há separação, suspensão da vida cotidiana (evasão da vida
real para uma esfera temporária de atividade, com orienta-
ção própria);
5. Limitação do tempo e do espaço, pois o jogo possui um
caminho e um sentido próprio;
6. Existência de regras;
7. Possui caráter fictício.

Alguns desses critérios, estabelecidos por Huizinga, mere-


cem ressalvas ou críticas.
O caráter de prazer colocado por Huizinga, se contrapor-
mos com Vygotsky (1994), o mesmo pode ser inseguro, pois, como
ele afirma, “existem jogos nos quais a própria atividade não é agra-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

dável, como, por exemplo, predominantemente no fim da idade pré-


-escolar, jogos que só dão prazer à criança se ela considera o resul-
tado interessante” (p. 121). Apesar dessa ressalva, o autor não nega
a presença da busca do prazer, porém afirma que ela não pode ser
definidora do jogo.
Huizinga (1996) faz importante contraposição entre o jogo
enquanto atividade livre em busca do prazer e das obrigações de tra-
balho, que merecem ser consideradas: a atividade de jogo “jamais é
imposta pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca cons-
titui uma tarefa, sendo sempre praticado nas ‘horas de ócio’. Liga-se
a noções de obrigação e dever apenas quando constitui uma função
cultural reconhecida” (p. 11).
Essa colocação de Huizinga nos permite dizer que esse pro-
cesso de reconhecimento e valorização do jogo na escola pode vir a
ser culturalmente reconhecida.
Henriot30 critica principalmente o critério “jogo enquanto
atividade não séria”. Isso nos faz lembrar a célebre frase de Piaget:
“Nada mais sério do que uma criança brincando”.
Quando Huizinga usa a expressão “atividade não séria”
para designar o jogo, não o faz no sentido de julgamento de valor,
do que é sério, sisudo, valer mais do que o que não é sério. Parece
estar relacionando ao estado de espírito de quem pratica. Isso pode
ser percebido quando Huizinga (1996, p. 11) diz: “[...] esta cons-
ciência do fato de ‘só fazer de conta’ no jogo não impede de modo
algum que ele se processe com a maior seriedade, com um enlevo e
um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos tempo-
rariamente, tiram todo o significado da palavra ‘só’ da frase acima”.
30.  Citado por Kishimoto, 1992.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Para Kishimoto (1997), o caráter “não sério” apontado por


Huizinga não implica que a brincadeira deixe de ser séria, pois não
há dúvidas de que quando a criança brinca, ela faz de forma bastante
compenetrada. Também para a autora a pouca seriedade a que ele se
refere está relacionada ao cômico, ao riso, que geralmente acompanha
o ato lúdico, que se contrapõe historicamente ao trabalho, considera-
do atividade séria. Já para Fantin (1996, p. 49), Huizinga não dá conta
de esclarecer o impasse e reforça o sentido de que “a criança joga e
brinca na mais perfeita seriedade, mas sabe perfeitamente que o que
está fazendo é um jogo”.
O critério que Huizinga apresenta como “há uma separação
da vida cotidiana” também é criticado por Henriot, ao lembrar que,
no faz de conta, a criança representa fatos e situações relacionadas à
realidade social.
A concepção de Elkonim (1998) se assemelha a de Henriot,
pois, para ele, é importante que se saiba que o jogo, apesar de ser
imaginário, está na esfera da realidade. O jogo não é irrealidade, pois
a criança atua no jogo com objetos da vida real. O autor fala também
que, no jogo de faz de conta, em que a criança assume outro papel e
atua com objetos reais, as ações apresentam caráter representativo e
não real. Todavia, ao mesmo tempo, o representativo não deixa de
estar ancorado no real.
Nenhuma dessas contribuições descaracteriza o critério
postulado por Huizinga. Ao contrário, aprofundam a questão, escla-
recem, limpam o terreno, pois, mesmo que a criança represente no
faz de conta temas da realidade social, não deixa de ser uma represen-
tação e não a realidade em si. Quando a criança brinca, “toma certa
distância da vida cotidiana, entra em um mundo imaginário” (KISHI-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

MOTO, 1997, p. 24). No dizer de Fantin (1996, p. 49), “a criança atua


no real, mas a partir de um distanciamento do próprio real. Ela sabe
quando determinada situação é jogo”.
O critério com que Huizinga estabelece o jogo como ativida-
de livre, iniciada e mantida pela própria criança, está intimamente li-
gada à sua improdutividade. Essa “natureza improdutiva do jogo” está
relacionada ao fato, na interpretação de Kishimoto (1997), de ser uma
ação voluntária, de não poder criar nada e não visar a um resultado fi-
nal. O que importa para a criança é o processo em si de brincar. Quan-
do brinca, ela não está preocupada com a aquisição de conhecimen-
to ou desenvolvimento de qualquer habilidade, seja mental ou física.
Wallon (1981) coloca que os temas que o jogo se propõe não devem
ter razão fora de si mesmo, pois, se a atividade se torna utilitária e se
subordina como meio a um fim, perde o atrativo e o caráter de jogo.
Callois31 considera muito importante o critério do jogo como
sendo algo improdutivo, pois possibilita diferenciar uma situação de
jogo livre de outra em que se utiliza o jogo com finalidade eminente-
mente pedagógica, onde determinada intenção explícita (para produ-
zir algo) anula a característica de liberdade e incerteza quanto ao seu
resultado.
Essas considerações, no nosso entendimento, são importan-
tes, pois ajudam a demarcar o que é jogo e o que é trabalho pedagógico.
No entanto, o caráter “sem propósito”, “livre” de forma generalizada,
não é aceito por autores da Psicologia Histórico-Cultural.
Elkonin (1987, p. 95), por exemplo, destaca que, no jogo de
representações de papéis, existe finalidade e resultado:

31.  Citado por Kishimoto, 1992, p. 13.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A finalidade da atividade jogo consiste na realização do papel assumido.


Estando, por seu conteúdo interno, saturado de funções e normas sociais
de conduta, o papel determina o procedimento e o caráter das ações da
criança no jogo. O resultado deste é como se realiza o papel assumido.

No entanto, Leontiev (1988) observa que o jogo de faz de


conta, por não ser uma atividade produtiva, o alvo não está em seu
resultado, mas na ação em si mesma e, por isso, estaria livre dos as-
pectos obrigatórios de agir e operar.
Com Vygotsky (1994), podemos ampliar a discussão, pois,
segundo o autor, na medida em que o jogo se desenvolve, observa-se
um movimento em direção à realização consciente de seu propósito.
Por isso, ele afirma ser incorreto conceber o brinquedo32 como ativi-
dade sem propósito.

Nos jogos atléticos, pode-se ganhar ou perder; em uma corrida, pode-se


chegar em primeiro, segundo ou em último lugar. Em resumo, o propó-
sito decide o jogo e justifica a atividade. O propósito como objetivo final
determina a atividade afetiva da criança no brinquedo (p. 117).

No nosso entendimento, a divergência aparente entre


Huizinga e os autores soviéticos está pautada no significado que cada
um atribui à palavra improdutivo. Quando Huizinga fala em “impro-
dutivo”, está se referindo ao fato de que o jogo e a brincadeira não es-
tão ligados ou subordinados ao sistema produtivo, não produzem um
bem material, um valor de mercadoria. Em contrapartida, os autores
da Psicologia Histórico-Cultural estão mais preocupados em afirmar
que o jogo, e a brincadeira têm uma finalidade, que, no faz de conta, é
32.  Vygotsky utiliza a palavra brinquedo para designar o jogo de faz de conta.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

o próprio processo de representar papéis, e, com o desenvolvimento do


próprio jogo, o propósito se desloca para o ganhar, para o chegar em
primeiro lugar, e esse motivo justifica a atividade. Portanto, trata-se de
coisas diferentes.
Ao mesmo tempo em que buscamos esclarecer pontos con-
vergentes e divergentes entre os autores, surgem sempre novas ques-
tões, novos problemas. No entanto, partindo do princípio que esse
é sempre um processo dialético e que jamais vai ser esgotado, opta-
mos em apresentar as características apresentadas por Piaget (1978),
Vygotsky33 e Christie34, que nos ajudam a demarcar o que é jogo e o
que é trabalho pedagógico, como havíamos proposto.
Para Piaget, os jogos aparecem relacionados aos estágios do
desenvolvimento cognitivo, sendo um dos aspectos desse desenvolvi-
mento. Ao analisar a gênese do jogo, ele distingue três etapas que clas-
sifica em: jogo de exercício, jogo simbólico e jogo de regras. As carac-
terísticas e especificidades do jogo vão estar sempre relacionadas aos
estágios do desenvolvimento infantil. E foi a partir dessa classificação
que Piaget elaborou os seguintes critérios do jogo:

1. O jogo tem finalidade em si mesmo;


2. O jogo é espontâneo, porque não é controlado. Por isso,
opõe-se às obrigações do trabalho e da adaptação real;
3. O jogo é uma atividade que dá prazer. Essa busca está sem-
pre subordinada à assimilação do real ao eu;
4. Há relativa falta de organização no jogo. Não tem a organi-
zação que é encontrada no pensamento sério;

33.  Citado por Elkonim, 1998.


34.  Citada por Kishimoto, 1997.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

5. Há libertação de conflitos. No jogo, ou a criança ignora os


conflitos ou libera o eu por meio da compensação;
6. O jogo é uma atividade que envolve motivação intensa.

Muitas das características apontadas por Piaget não diferem


na essência dos critérios estabelecidos por Huizinga, sobre os quais
já fizemos algumas considerações com base em outros autores. O
fato realmente novo é a aproximação com a Psicanálise, no critério
de liberação de conflitos internos. O que podemos acrescentar é que
Piaget interpreta os jogos, situando-os no conjunto de contexto do
pensamento da criança, enquanto Vygotsky busca, nas relações com
o contexto social, compreender o jogo da criança.
Apesar de Vygotsky não ter formulado especificamente cri-
térios do jogo, Elkonin (1998, p. 199-200) relata pontos importantes
de uma conferência que ele havia realizado em 1933, no Instituto Pe-
dagógico Herzen de Leningrado, que dão pistas do que ele conside-
rava jogo:

1. Seu conteúdo principal é o sistema de relações sociais com


os adultos;
2. O que é central e típico da atividade lúdica é a criação de
uma situação “fictícia”, que consiste na adoção do papel de
adulto pela criança e, em circunstâncias lúdicas, criadas por
ela própria, representá-lo;
3. Todo jogo na situação “fictícia” é, ao mesmo tempo, jogo
com regras, e todo jogo com regras é um jogo com a situação
“fictícia”. As regras do jogo são as que a criança se impõe, as
de autolimitação e autodeterminação interiores;
4. No jogo, a criança opera com significados separados das coi-
sas, mas respaldados em ações reais;

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

5. O prazer específico do jogo está relacionado à superação dos


impulsos imediatos, com a subordinação à regra implícita
no papel;
6. O jogo é o tipo de atividade, senão predominante, pelo me-
nos principal da idade pré-escolar. Contém todas as ten-
dências do desenvolvimento, é fonte de desenvolvimento e
cria zonas evolutivas do mais imediato. Na esteira do jogo,
ocorrem as mudanças de necessidades e as de consciência de
caráter geral.

Em sua obra “A formação Social da Mente”, Vygotsky (1994)


aponta a brincadeira de faz de conta como a principal atividade da
criança em idade pré-escolar. Já na idade escolar, os jogos com regras
e os esportes tornam-se os mais importantes. Para ele, os jogos com
regras e os esportes têm papéis específicos no desenvolvimento, mas
não são tão fundamentais como o faz de conta na idade pré-escolar.

Nas palavras do autor:

Para uma criança em idade escolar, o brinquedo torna-se uma forma


de atividade mais limitada, predominantemente do tipo atlético [...]. Na
idade escolar, o brinquedo não desaparece, mas permeia a atitude em
relação à realidade. Ele tem sua própria continuação interior na instru-
ção escolar e no trabalho (atividade compulsória baseada em regras). A
essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do
significado e o campo da percepção visual – ou seja, entre situações no
pensamento e situações reais (p. 136).

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Se os demais autores que discutimos, pelos critérios que apre-


sentaram para caracterizar o que é jogo, limitam as possibilidades de
se trabalhar o jogo como recurso didático pedagógico, por não poder
chamar essa atividade de jogo, em Vygotsky encontramos essa possi-
bilidade. Na verdade, pelo que entendemos, na pré-escola, as propos-
tas pedagógicas deveriam ter como pano de fundo a brincadeira, mais
especificamente atividades de faz de conta; enquanto que, no Ensino
Fundamental, deveriam ser incentivados os trabalhos que envolvessem
as crianças com jogos de regras e esportes, por favorecer a formação da
personalidade, por meio do confronto entre situações no pensamento
e situações reais, pela negociação, combinação e respeito às regras co-
letivas, o que caracteriza o próprio prazer no jogo, segundo Vygotsky.
Christie35 apresentou pesquisas atuais, apontou algumas ca-
racterísticas do jogo, que se destinguem de certa forma das que foram
até aqui apresentadas. São critérios para se identificar o que é jogo para
ele:

1. A não-literalidade: as situações de brincadeira caracterizam-se


por um quadro no qual a realidade interna predomina sobre
a externa. O sentido habitual é substituído por um novo. São
exemplos de situações em que o sentido não é literal, como o
ursinho de pelúcia servir como filhinho e a criança imitar o
irmão que chora;
2. Efeito positivo: o jogo infantil é normalmente caracterizado
pelos signos do prazer ou da alegria, entre os quais o sorriso.
Quando brinca livremente e se satisfaz, a criança o demons-
tra por meio do sorriso. Esse processo traz inúmeros efeitos
positivos aos aspectos corporal, moral e social da criança;
35.  Citada por kishimoto, 1997, p. 25-6.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

3. Flexibilidade: as crianças estão mais dispostas a ensaiar no-


vas combinações de ideias e de comportamentos em situa-
ções de brincadeira que em outras atividades não-recreati-
vas. A ausência de pressão do ambiente cria um clima pro-
pício para investigações necessárias à solução de problemas.
Assim, brincar leva a criança a tornar-se mais flexível e bus-
car alternativas de solução;
4. Prioridade do processo de brincar: enquanto a criança brin-
ca, sua atenção está concentrada na atividade em si, não em
seus resultados ou efeitos. O jogo só pode receber esta desig-
nação quando o objetivo da criança é brincar.
5. Jogo educativo: utilizado em sala de aula, muitas vezes des-
virtua esse conceito ao priorizar o produto, a aprendizagem
de noções e de habilidades;
6. Livre escolha: o jogo infantil só pode ser jogo quando esco-
lhido livre e espontaneamente pela criança. Caso contrário,
é trabalho ou ensino;
7. Controle interno: no jogo infantil, são os próprios jogado-
res que determinam o desenvolvimento dos acontecimentos.
Quando o professor utiliza um jogo educativo em sala de
aula, de modo coercitivo, não oportuniza aos alunos liber-
dade e controle interno. Predomina, nesse caso, o ensino, a
direção do professor.

Os indicadores mais confiáveis para se encontrar o jogo,


segundo Christie, são as quatro primeiras características, ou seja: a
não-literalidade, o efeito positivo, a flexibilidade e a prioridade do
processo de brincar. Para auxiliar pesquisadores na tarefa de discri-
minar se os professores concebem atividades escolares como jogo ou
trabalho, ela indica os dois últimos como os mais úteis.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Estudos, como o de Costa36, demonstram que as crianças


concebem como jogo somente as atividades iniciadas e mantidas por
elas. Isso viria a confirmar que, na percepção da própria criança, é
jogo se a atividade for de livre escolha e se seu desenvolvimento de-
pende dela.
Kishimoto (1992, p. 15), a partir dos critérios estabelecidos
por Christie e outros apontados por Henriot, apresenta uma defini-
ção prévia para o jogo:

Chamar-se-á jogo (título provisório) toda situação estruturada por re-


gras, nas quais o sujeito se obriga a tomar livremente um certo número
de decisões tão racionais quanto possíveis, em função de um contexto
mais ou menos aleatório.

Os elementos caracterizadores do jogo nos remetem a bus-


car uma ideia geral, sintetizadora. Todavia, se analisarmos mais pro-
fundamente o jogo concreto, real, podemos ver que as especificidades
das situações de jogo requerem que é necessário situar as diferenças
nos aspectos ou dimensões predominantes em diferentes jogos. Por-
tanto, partindo dessas considerações, não existe o jogo em si, mas
jogos, no plural.
Brougère e Henriot37 apontam níveis de diferenciação dos
jogos que podem ser apresentados como:

• Resultado de um sistema linguístico que funciona dentro de


um contexto social: o sentido do jogo depende da linguagem
36.  Citada por Kishimoto, 1997, p. 26.
37.  Citados por Fantin, 1996, p. 56-7.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

de cada contexto social. No entanto, assumir que cada con-


texto cria sua própria concepção de jogo não pode ser visto
como redução à mera ação de nomear. O uso ou emprego
de um termo pressupõe um grupo social que o compreende,
fala e pensa da mesma forma. Enquanto fato social, o jogo
assume a imagem e o sentido que cada sociedade lhe atribui.
Conforme Kishimoto38:

[...] considerar que o jogo tem um sentido dentro de um contexto sig-


nifica a emissão de uma hipótese, a aplicação de uma experiência ou de
uma categoria fornecida pela sociedade, veiculada pela língua enquanto
instrumento de cultura dessa sociedade. Toda denominação pressupõe
um quadro sociocultural transmitido pela linguagem e aplicado no real.

• Sistema de regras: permite identificar em qualquer jogo uma


estrutura sequencial que especifica sua modalidade. São as
estruturas das regras que permitem diferenciar cada jogo.
• Um objeto: refere-se ao jogo enquanto objeto. É a materia-
lidade do objeto que permite uma primeira exploração do
jogo, dentre os significados atribuídos por diferentes cultu-
ras que o caracterizam.
Wittgenstein39 faz interessantes colocações a respeito dessa
dificuldade em se fechar um único conceito em torno do jogo. Afirma
que não existe algo em comum entre os diferentes tipos de jogos, mas
semelhanças e parentescos, e, por isso, ele diz que os jogos “formam
uma família”.
38.  Citada por Fantin, 1996, p. 56.
39.  Citado por Kishimoto, 1994, p. 111-2.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Ele inicia a explicação pedindo que se procure ver algo em


comum entre jogos, como: o jogo de tabuleiro, de cartas, de bola e de
torneios esportivos, por exemplo. Se contemplarmos verdadeiramen-
te os jogos acima, não veremos algo em comum a todos, mas seme-
lhanças, parentescos e, até mesmo, toda uma série deles. Ele pede que
se considerem os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos,
passando em seguida para os de carta. Conforme o autor, podemos
encontrar muitas correspondências, porém muitos traços surgem en-
quanto outros desaparecem. Pede que se passe ao jogo de bola, ao xa-
drez, à amarelinha e à paciência, observando-os como muitas coisas
comuns se conservam, mas muitas se perderam. Nos jogos de bola,
há um ganhar e um perder, mas, se a criança joga bola na parede e
pega outra vez, esse traço desapareceu. E a questão da habilidade e
da sorte? E como é diferente a habilidade no xadrez e no tênis. E nas
brincadeiras de roda, quantos outros traços característicos desapare-
ceram. Podemos percorrer muitos outros grupos de jogos e veremos
semelhanças surgirem e desaparecerem.
Enfim, após essas considerações, podemos dizer que os cri-
térios que caracterizam o jogo, embora se difereciem, apontam mais
para pontos em comum, como elementos que interligam a grande fa-
mília dos jogos, e são tais características que nos permitem identificar
o que pertence a ele e, por exclusão, poder considerar o que é trabalho
pedagógico.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O jogo e a brincadeira no âmbito da escola

Após a análise das características do jogo e nas diversas for-


mas de identificá-lo e interpretá-lo, avançamos na discussão, conside-
rando-o enquanto possibilidade de ser mediador de aprendizagens e
propulsor de desenvolvimento no ensino formal, mais especificamen-
te nas primeiras séries do Ensino Fundamental. Por isso, passamos a
discutir o jogo e a brincadeira no âmbito da escola.
O jogo e a brincadeira estão presentes na escola nas mais
variadas situações e sob as mais diversas formas. Também são diver-
sas as concepções sobre o lugar e a importância dessas atividades na
prática pedagógica.
Fontana e Cruz (1997) apresentam três concepções distintas
que frequentemente são encontradas nas escolas, e essas diferenças
podem ser identificadas na observação das formas de encaminha-
mentos metodológicos. Uma concepção é aquela que pode ser tradu-
zida na frase exposta pelas autoras “criança vai à escola para apren-
der, e não para se divertir” (p. 119). Conforme essa concepção, jogo e
brincadeira somente podem ser permitidos na hora do recreio.
Outra concepção é a de que a criança tem necessidade na-
tural de brincar, porém, na escola, é preciso separar brincadeiras e
“tarefas sérias”. Portanto, o tempo destinado para jogos e brinca-
deiras é determinado pela idade das crianças, pela série em que se
encontram, ou ainda pelo andamento da programação pedagógica.
Há uma terceira concepção, que pode ser traduzida em mé-
todos educacionais que valorizam a brincadeira e buscam evitar dis-
tinção rígida entre jogo e “tarefas sérias”. Nesse caso, os jogos e brin-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

cadeiras das crianças podem e devem ser introduzidos como recursos


didáticos importantes, pois “brincando a criança aprende”.
Todavia, é importante fazer algumas considerações em tor-
no dos jogos, das brincadeiras e dos brinquedos, como recursos didá-
tico-pedagógicos.
Certamente o brincar na escola não deve ser o mesmo que
brincar em casa ou na rua, pelo menos quando não se trata do brin-
car na hora do recreio, pois o cotidiano escolar tem características e
funções que a definem enquanto instituição formadora, responsável
pela socialização do conhecimento historicamente produzido. Esse
objetivo da escola faz com que, na maioria dos casos, o professor se
defronte com as dificuldades de conciliá-lo com o jogo e a brincadei-
ra. Por isso, o jogo e a brincadeira são negados ou vinculados somente
a objetivos didáticos, privilegiando-se assim a atividade cognitiva, em
detrimento de seu caráter lúdico.
Nesse caso, o jogo aparece, segundo as autoras, confundi-
do como material concreto para ensinar Matemática, como recurso
para fixar regras ortográficas ou de conteúdos a serem memorizados
ou, ainda, como meio para elaboração conceitual. Para esse fim, são
utilizados jogos de memória, dados, bingos de diversos tipos, dentre
muitos outros. O risco que se corre nesse tipo de atividade é que os
procedimentos utilizados para a sua execução, muitas vezes, não vêm
ao encontro de uma proposta que tem o jogo e a brincadeira como
mediadores de aprendizagens significativas para as crianças, justa-
mente por não assegurarem as características do jogo. Essa preocu-
pação é evidente em Fontana e Cruz (1997, p. 139), que se expressam
com as seguintes palavras:

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Quando perde sua dimensão lúdica, sufocada por um uso didático que
a restringe a seu papel técnico, a brincadeira esvazia-se: a criança explo-
ra rapidamente o material, esgotando-o. Isso se dá quando, em vez de
aprender brincando, a criança é levada a usar o brinquedo para aprender.

Em nosso entendimento, o fato de ser proposto na escola,


por um professor, como, por exemplo, “vamos brincar de fazer rima”,
“vamos jogar dominó”, “vamos brincar de supermercado”, não torna
o jogo menos jogo, nem descaracteriza a brincadeira, o que de certa
forma contraria uma das características apontadas por quase todos os
autores. O que faz do jogo um jogo e o que caracteriza uma brincadei-
ra é a possibilidade que a criança tem de tomar decisões, de combinar
regras, de negociar papéis, de agir de maneira transformadora sobre
conteúdos significativos para ela, de ter liberdade e prazer. Isso possi-
bilita que a criança torne-se cada vez mais autônoma, mais consciente
de suas ações.
A situação ideal de aprendizagem é aquela em que a ativi-
dade é significativa de tal modo que aquele que aprende a considera
como um trabalho e como um jogo. Ao brincar com quantidades,
com a língua de seu país, com os elementos da natureza e da cultura,
as crianças estarão se relacionando de maneira adequada e prazero-
sa aos muitos conteúdos da Aritmética, da Língua Portuguesa e da
Ciência40.
Segundo Almeida (1998), o sentido trabalho-jogo se define
como algo inerente [...], porque é por meio da atividade-jogo que a
criança preserva o esforço de se dar por inteiro na atividade que rea-
liza. Segundo Piaget:

40.  Menino quem foi teu Mestre?. Produção Vídeo Ciência, Fundação Roberto Marinho, 1989.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Pelo fato de o jogo ser um meio tão poderoso para a aprendizagem das
crianças, em todo lugar onde se consegue transformá-lo em iniciativa
de leitura ou de ortografia, observa-se que as crianças se apaixonam por
essas ocupações tidas como maçantes41.

A importância dessa relação prazerosa e significativa da


criança com os elementos da cultura, inclusive com a linguagem fa-
lada e escrita dos jogos e brincadeiras, também é reconhecida pela
UNICEF. O caderno Todos Pela Educação no Município, uma pro-
posta para dirigentes, publicado em 1993, aponta que pesquisas rea-
lizadas na América Latina e em outros países do chamado Terceiro
Mundo revelam o fracasso em massa de crianças de primeira série,
principalmente das que pertencem a famílias de baixo poder aquisi-
tivo, por não terem tido acesso a jogos e brincadeiras e contatos com
a linguagem escrita. Isso nos faz lembrar as sábias palavras do filó-
sofo italiano Gramsci (1995, p. 139), “os filhos de pais escolarizados
familiarizam-se naturalmente com as tarefas escolares, enquanto aos
filhos dos trabalhadores custam lágrimas de sangue”.
Esse mesmo documento do UNICEF aborda que brincadei-
ras, como, por exemplo, montar, desmontar, rabiscar, “ler” textos, ver
figurinhas, brincar com letras, palavras, recortar revista e jornais e re-
citar textos e quadrinhas, quase não fazem parte da realidade dessas
crianças. Aponta ainda que, em municípios que buscaram priorizar
essa relação da criança com o mundo em todos os sentidos, desde a
mais tenra idade, o desenvolvimento e a apropriação da escrita pela
criança foi um processo “natural”, sem dificuldades e traumas.

41.  Citado por Almeida, 1998, p. 51.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Hartmann (1997), baseado em vários autores, afirma que


muitos países têm dado determinados passos para integrar o jogo nas
escolas do ensino básico. Na Alemanha, têm sido utilizados materiais
fora do convencional em escolas de Ensino Fundamental, tais como
bonecas, peluches e conjuntos para construções. Na Áustria, em con-
sequência de um estudo realizado sobre a importância da utiliza-
ção do jogo e do brinquedo no Ensino Fundamental, o conceito de
“aprender pelo jogo” tem sido recomendado nos currículos do ensino
básico, desde 1987. Em outros países como Portugal, têm-se montado
ludotecas nas escolas do ensino básico, que estão abertas às crianças
para brincarem livremente em determinadas ocasiões. Na Noruega e
na Suécia, a idade de entrada na escola foi antecipada dos 7 para os 6
anos. Esses países procuram simultaneamente integrar as atividades
lúdicas no currículo do ensino básico, de acordo com o modelo aus-
tríaco. Recentemente no Brasil, a entrada na escola também passou a
ser com 6 anos de idade.
Como vimos, em vários países já se concebe que as ativida-
des lúdicas, além de serem por si só propulsoras de desenvolvimento
do ser humano, podem contribuir para que a criança se aproprie sig-
nificativamente e prazerosamente do conhecimento. As brincadeiras
e os jogos são as formas mais originais que a criança tem de se re-
lacionar e se apropriar do mundo. É brincando que ela se relaciona
com as pessoas e objetos ao seu redor, aprendendo todo tempo com
as experiências que pode ter. São essas vivências, na interação com as
pessoas de seu grupo social que a possibilita se apropriar da realidade,
da vida em toda a sua plenitude.
A presença do adulto que interage com a criança, que nos
primeiros anos provavelmente se resume aos pais, parentes e amigos,

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

constitui a condição de sucessivas superações em todos os sentidos. A


partir do momento em que a criança entra na escola, esta passa a ser a
essência de sua formação. Nela, as relações se ampliam e, com as múl-
tiplas experiências, ela internaliza novos conhecimentos. Os jogos,
nessa prática educativa, são atividades que auxiliam e enriquecem a
internalização dos conhecimentos, sem fazê-las perder a satisfação ou
prazer de realizar, de buscar. O fato de a criança se mostrar motivada
em atividade de jogo, faz com que, “ao se aplicar em qualquer ativi-
dade, mesmo maçante, as crianças se interessam e se apaixonam por
essas ocupações” (ALMEIDA, 1998, p. 54).
Nesta perspectiva, jogo, brincadeira e brinquedo têm muito
a contribuir com as atividades didático-pedagógicas durante o de-
senvolvimento de qualquer aula. Até mesmo para tentar diminuir a
dicotomia existente entre trabalho e divertimento, atividade séria e
“brincadeira”.
A tentativa de diminuir a dicotomia entre trabalho e diver-
timento também pode ser observada pelas pessoas que discutem o
lazer. A “Carta do Lazer”, fixada no Seminário Mundial de Lazer,
promovido pela Fundação Van Clé-Bruxelas, afirma, no seu artigo
4º, que “a família, a escola e todos os educadores têm papel determi-
nante a desempenhar quando da iniciação da criança em uma ativi-
dade lúdica e ativa de lazer, na qual a frequente contradição entre o
ensino e a realidade necessita ser eliminada”42.
Um dos maiores pensadores da comunicação humana,
McLuhan, afirma: “[...] é errôneo pensar que existe uma diferença en-
tre ‘educação’ e ‘diversão’. É o mesmo que estabelecer distinção entre
‘poesia didática’ e ‘poesia lírica’, sob o fundamento de que uma ensina
42.  Citada por Marcellino, 1990, p. 64.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

e a outra diverte. Contudo, nunca deixou de ser verdadeiro que aquilo


que agrada ensina de forma muito mais eficaz”43.

A prática do jogo em uma perspectiva progressista de


Educação Física

A Educação Física é uma disciplina que trata, pedagogica-


mente na escola, do conhecimento de uma área denominada, pelo
Coletivo de Autores (1992), de cultura corporal e tem como objeto de
estudo o movimento humano.
Por ser parte do conhecimento historicamente produzido,
acumulado e transmitido às novas gerações, constitui-se em um direi-
to de todos os que passam pela escola, e, por isso, deve reunir o que
for de mais significativo ligado ao movimento humano, a fim de ser
vivenciado, compreendido e reelaborado, contribuindo, assim, para a
formação do cidadão. Portanto, essa área de atuação e de conhecimen-
to, é configurada com temas ou formas de atividades de movimento,
particularmente corporais, as quais constituem seu conteúdo. O jogo,
enquanto movimento humano, integrante da cultura corporal, é um de
seus conteúdos específicos.
Situá-lo na prática da Educação Física não incorre nas mes-
mas necessidades de demarcar as diferenças entre trabalho pedagógi-
co e jogo, por ser ele mesmo um dos conteúdos da área. Na Educação
Física, muitas vezes o jogo é considerado uma atividade em que a
criança se exercita, distrai-se, de forma alegre e prazerosa, ao mesmo
tempo em que libera energias acumuladas. Muitas vezes é utilizada
43.  Citado por Almeida, 1998, p. 54.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

como recreação, sempre com a finalidade de controle, determinando


o espaço, o tempo e o movimento da criança, objetivando diminuir o
cansaço e a tensão criada pelas atividades “sérias” desenvolvidas den-
tro da sala de aula. Esse tipo de recreação dá ênfase à preparação para
o futuro, desconsiderando o ser humano que se encontra presente na-
quele momento da vida. Outra vertente da recreação que se confun-
de muitas vezes com as características do jogo é aquela derivada do
movimento da Escola Nova, que se caracteriza pelo espontaneísmo,
onde a criança é que decide o que vai jogar, sem que haja intervenção
sistematizada do professor44.
Outra confusão frequente é considerar jogo e esporte a mes-
ma coisa. Na tentativa de estabelecer as diferenças entre essas duas
manifestações sociais, embasamo-nos em Bruhns (1996). Segundo
ela, o que caracteriza o esporte são certas restrições pré-determina-
das, como imposição de regras, modelos, busca de rendimento, recor-
des, medalhas, juízes e capitães; enquanto o jogo apresenta-se como
um espaço com regras menos determinadas, portanto de maior li-
berdade, maior flexibilidade, menor preocupação com os resultados,
apresentando componentes como: criatividade, fantasia e expressivi-
dade, com características culturais próprias.
Segundo Bruhns (1996), tem-se sentido uma sobrevalori-
zação do esporte em detrimento do jogo, dentro e fora dos muros
escolares. Esse acontecimento, para a autora, está relacionado ao fato
de o esporte se enquadrar melhor dentro de uma ideologia a serviço
da racionalidade do sistema capitalista. Não é por acaso que “[...] o
advento do esporte surge paralelamente ao nascimento da sociedade
individualista [...], como uma atividade que acarretará grandes somas
de recursos materiais e humanos, nacionais e internacionais” (p. 35).
44.  Maiores informações podem ser encontradas em Marcellino (1990).

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Na verdade, o jogo é que foi sendo esportivizado em virtu-


de dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais. Quanto a essa
questão, Pinto (1996, p. 31) afirma:

Com a história da transformação do jogo em esporte, é demonstrada a


maneira como a modernidade descobriu o corpo e o jogo como objetos e
alvos do poder manipulável para esquemas de docilidades necessários ao
aumento das forças produtivas, que requer o trabalho, com vistas à ob-
tenção de lucros econômicos (gestos eficientes alargam a produtividade)
e político (corpo obediente aumenta possibilidade de controle social).

Essa supervalorização do esporte performance muitas vezes


leva os profissionais a não mais perceberem a dimensão educativa do
jogo, privilegiando atividades onde os mais “poderosos” merecem
atenção, enquanto os perdedores transformam-se nos “naturalmente”
eliminados.
A competição, presente no jogo de regras, deve servir para
estimular o jogar com o outro de forma cooperativa, onde o adver-
sário seja visto como parceiro que possibilita a realização do próprio
jogo, não como inimigo a ser vencido ou aniquilado. Na verdade, essa
é uma das características que mais diferencia jogo e esporte de rendi-
mento.
Com a intenção de não permanecermos nas concepções que
percebem o jogo com um fim restrito, ou seja, utilitário e compensa-
tório, justificado muitas vezes pelo pragmatismo oportunista de nos-
so modelo de sociedade, apresentamos algumas considerações acerca
do jogo como elemento sociocultural, que devem ser observadas na
prática de uma educação física que busca situar os sujeitos singulares

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

como seres históricos e sociais. Nessa concepção, podemos dizer que


jogo é expressão humana, portanto, representação de fenômenos so-
ciais. E é no seu grupo social que a criança aprende os jogos de sua
época, ao mesmo tempo em que se relaciona com objetos e práticas
que perduram por muitas épocas.
Nesse sentido, devemos levar em conta o desenvolvimento
da criança como ser social e a produção histórica do conhecimento
acerca do jogo e dos diversos elementos da cultura corporal, consi-
derando o referencial de experiência que a criança traz de sua comu-
nidade, a possibilidade de mudar as regras e produzir novos jogos,
favorecendo a reflexão e a produção coletiva45.
Os jogos nos possibilitam as mais variadas experiências de mo-
vimentos. O correr, o saltar, o puxar e o esconder-se não são ações iso-
ladas do indivíduo, nem tão pouco atos mecânicos, isentos de sentido e
significados.
Baseados na Proposta Curricular de Santa Catarina (1998),
que tem seus pressupostos teórico-práticos fundamentados na Psico-
logia Histórico-Cultural, podemos dizer que correr simplesmente, sem
propósito, não é uma atividade interessante, mas, quando tem um obje-
tivo claro, uma regra, como exemplo, tocar o maior número de colegui-
nhas para “congelá-los”, isto faz com que o correr adquira significado, a
criança se motive e se envolva afetivamente, atribuindo sentido ao mo-
vimento. Da mesma forma, durante o jogo Lobo Mau e Chapeuzinho,
a criança deverá assumir posturas, de confronto entre o bem e o mal, o
novo e o velho, a perseguição e a fuga, que exigirá habilidade de correr,
esquivar-se e esconder-se, e ainda a necessidade de tomar decisões e fa-
zer escolhas sobre o papel que irá representar na atividade. Toda a trama
45.  Proposta Curricular de Santa Catarina, 1998, p. 225.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

que se estabelece entre ela e a situação fictícia faz com que conceitos,
objetos e palavras se tornem algo concreto.
A metodologia utilizada nessa perspectiva deve ser aquela que
coloca o professor como mediador no processo de conhecimento, ao
mesmo tempo em que leva o aluno a interagir com o conteúdo de forma
dinâmica, reflexiva e aberta. Os questionamentos que costumam surgir
na prática dos jogos oportunizam a busca de múltiplas respostas que
possibilitam a troca de experiências, bem como a vivência de movimen-
tos diversificados. As dúvidas que surgem no decorrer do jogo devem
ser discutidas e esclarecidas em grupo, favorecendo a aprendizagem,
que ocorre entre o diálogo e o conflito, na busca da superação do indi-
vidualismo. Dessa forma, será possível favorecer a produção coletiva,
mudando regras, produzindo novos jogos que privilegiem a convivência
entre as diferenças e que atendam, de certa forma, aos interesses de to-
dos os participantes.
As intervenções pedagógicas poderão ocorrer a todo momen-
to, apoiadas no conhecimento do professor e oriundas do próprio gru-
po com que se está trabalhando. Nesse processo, tanto aluno quanto
professor apropriam-se do conhecimento de forma dialética, poden-
do melhor compreender o caráter histórico das coisas, que nos leva a
perceber a provisoriedade da verdade que, às vezes, incorporamos sem
pensar.
O Coletivo de Autores (1992) contempla essa perspectiva e
apresenta o exemplo de uma aula na qual o professor incentiva a cria-
ção de jogos pelos próprios alunos, a partir do tema “Rebater”, para a
qual coloca à disposição materiais diversos. Em um primeiro momento,
o professor questiona os alunos sobre as formas que poderiam ser en-
contradas para bater na bola, para lançá-la ao colega que irá rebatê-la.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Depois propõe que os alunos encontrem formas coletivas de jogos de


rebater. No final, alunos e professor discutem sobre as características dos
jogos criados e possibilidades de serem praticados na rua com amigos.
A experiência de rebater permite às crianças identificarem as
habilidades de lançar, acertar, correr, saltar e receber. Com a mediação
do professor, poderão imprimir características diferentes como força,
velocidade, resistência e flexibilidade. Esses dados serão aos poucos
sistematizados em diversas classificações de jogos, os quais, nas formas
individuais ou coletivas, poderão gerar conflitos nas relações interpes-
soais, dando ao professor oportunidade de abordá-los e orientar os alu-
nos para as questões do coletivo e das regras necessárias à convivência
social.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física
(1997) , também podemos encontrar procedimentos a serem obser-
46

vados na prática dos jogos na Educação Física Escolar, dos quais al-
guns merecem ser apontados:

• Uma atividade só se tornará desinteressante para a criança


quando não representar mais nenhum problema a ser resol-
vido, nenhuma possibilidade de prazer funcional pela repe-
tição47 e nenhuma motivação relacionada à interação social
(p. 36).
• As propostas devem desafiar e não ameaçar o aluno (p. 37).

46.  Apesar das críticas que podem ser encontradas no livro organizado pelo Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (CBCE), publicado em 1997, com o título “Educação Física Escolar Frente à LDB e
aos PCNs”, profissionais analisam renovações, modismos e interesses.
47.  Prazer funcional pela repetição caracteriza principalmente a etapa do jogo de exercício, apontada
por Piaget.

124
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

• As situações de ensino e aprendizagem contemplam as


possibilidades de o aluno arriscar, vacilar, decidir, simular
e errar, sem que isso implique algum tipo de humilhação ou
constrangimento (p. 38).
• Tomar todas as decisões pelos alunos ou deixá-los total-
mente livres para resolver tudo dificilmente contribuirá para
a construção dessa autonomia (p. 60).
• Mesmo sendo o professor quem faz as propostas e conduz
o processo de ensino aprendizagem, ele deve elaborar sua
intervenção de modo que os alunos tenham escolhas a fazer,
decisões a tomar, problemas a resolver. Assim, eles podem
tornar-se cada vez mais independentes e responsáveis (p.
60).
• A compreensão das regras e a autonomia para a organiza-
ção das atividades permitem ainda que os aspectos estraté-
gicos dos jogos passem a fazer parte dos problemas a serem
resolvidos pelo grupo (p. 69).
• Existe a possibilidade de se abordarem diferentes jogos e
atividades e se discutirem as regras em conjunto com os alu-
nos, tentando encontrar as razões que as originaram, pro-
pondo modificações, testando-as, repensando-as, e assim
por diante. A compreensão das normas que pode advir daí é
completamente diferente de quando as regras são considera-
das absolutas, inquestionáveis e imutáveis (p. 86).

Experiências significativas nesse sentido vêm sendo feitas


em vários estados brasileiros e, para título de ilustração, apresenta-
mos alguns exemplos:

125
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Carlos Fioravanti, em reportagem na Revista Nova Escola,


em outubro de 1997, publicou que “uma gama de professores procura
ensinar não só a arte de competir e ganhar, mas, acima de tudo, a cha-
mada cultura corporal, que trata, na teoria e na prática, da história e
dos significados dos movimentos humanos” (p. 40).
Fioravanti apresenta o trabalho realizado na Escola Muni-
cipal Henfil de Recife, em Pernambuco, pelo professor Pedro Ferrei-
ra da Silva Júnior. Nessa escola, os alunos da 3ª série pesquisaram
brincadeiras, danças e jogos que os pais e avós praticavam quando
pequenos e apresentaram as descobertas para a turma. Verificaram
que algumas brincadeiras desapareceram e outras permanecem. Ao
mesmo tempo, praticam as escolhidas pelo grupo. Nesse trabalho,
o professor procura mostrar também a importância de meninos e
meninas brincarem juntos. O professor Pedro propõe mudanças nas
regras dos jogos, buscando a participação de todos os alunos, mas
sente dificuldade maior quando se trata das regras dos esportes. Diz
ele: “É mais fácil adaptar as regras de jogos populares do que as de
esportes competitivos, como o futebol e o vôlei”48. O professor co-
mentou que, em muitas situações, os meninos tentam impedir que
as meninas joguem, enquanto elas reclamam que eles são muito vio-
lentos. Em conjunto, por meio do diálogo, chegaram a um consen-
so. Combinaram que os meninos não podiam disputar no corpo a
corpo, com as meninas.
Outra experiência apontada por Fioravanti foi a realizada
pelo professor Agripino Alves Faria Júnior, na escola de Aplicação da
Universidade Federal do Maranhão, em São Luís. O professor iniciou
sua experiência juntando as turmas de meninos e meninas. “Sepa-
48.  Citado por Fioravanti, 1997, p. 42.

126
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

rar a classe significa reproduzir os preconceitos da sociedade”, diz ele.


No início, colocou meninos contra meninas, reconstituindo a típica
“guerra dos sexos”. O que geralmente acontecia é que, na queimada,
as meninas ganhavam, enquanto que, no futebol, os meninos saíam
vitoriosos. Depois de muito diálogo, começaram a formar times mis-
tos. “Quando surgem conflitos, paramos o jogo para resolver a situa-
ção em conjunto”, diz o professor. Segundo ele, o objetivo maior não
é a atividade física em si, mas a discussão dos papéis do homem e da
mulher, a fim de se formar uma sociedade mais justa e igualitária. Em
pouco tempo, o professor constata que, na hora do recreio, meninos e
meninas se mostraram mais unidos e, juntos, passaram a jogar quei-
madas.
Essa concepção que busca trabalhar meninos e meninas
juntos é conhecida na prática da Educação Física como Coeducação.
Para Schaefer e Schaller (1982), a coeducação é entendida como uma
prática conjunta de meninos e meninas, homens e mulheres, desen-
volvida em uma prática pedagógica que tenha por base o sistema so-
cial em seu processo de autoentendimento e transformação.
A coeducação é uma perspectiva prática capaz de instru-
mentalizar o educando para penetrar nas relações de sentido do con-
texto social e, nestas, poder problematizar os padrões estabelecidos
na sociedade do que é ser homem ou mulher. Isso é importante para
que entendamos, por exemplo, segundo Saraiva-Kunz (1996, p. 124):

[...] uma possível vontade de dançar em meninos e de jogar futebol em


meninas e, para que não se tolha ou fruste essas vontades e possibilida-
des, por puro preconceito ou incapacidade dos professores de lidar com
as diferenças de gênero. A partir da problematização dos possíveis, do

127
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

porquê e como, na coeducação, deve-se chegar a novos consensos e, com


isto, sermos capaz de um novo agir.

A experiência da professora Lúcia Helena Corrêa Lenzi, rea-


lizada no Colégio de Aplicação da UFSC (Universidade Federal de
Santa Catarina), publicada na Revista Motrivivência, em dezembro
de 1996, demonstra que é possível uma prática transformadora na
Educação Física, tendo o jogo como conteúdo.
O projeto da professora Lenzi, “Resignificando jogos nas au-
las de Educação Física, a partir das ideias de Vygotsky”, conta com
três etapas. Na primeira, chamada de “reprodução”, os alunos tratam
de apresentar um jogo selecionado e distribuído pela professora. Na
segunda etapa, a “desconstrução”, os alunos, mediados pela profes-
sora, trabalham no sentido de reconstruir um jogo, com referenciais
mínimos, como material, espaço e disposição dos alunos. Na terceira
e última etapa, a “construção”, os alunos se reúnem com o objetivo de
construir novos jogos, partindo de critérios colocados pela professo-
ra, que tem o papel de mediadora, incentivando e apontando possí-
veis caminhos a cada grupo, sempre que necessário. Utilizava diferen-
tes formas de composição dos grupos, tendo como meta a vivência de
jogar com o outro e não contra o outro.
A professora conclui:

As divergências, as discussões, as trocas e as devolutivas das crianças,


que são ricas, densas, refletidas e consistentes, confirmam e legitimam
a ideia de que o novo só se constitui a partir da diversidade e da contra-
dição. É nesta perspectiva que este projeto se edifica e se constrói, a fim
de que possa ser reproduzido, desconstruído, construído e reproduzido
(p. 332-3).

128
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

As discussões aqui apresentadas e as experiências relatadas


nos levam a refletir sobre as necessidades e possibilidades de se tra-
balhar em um programa de jogos, em uma perspectiva mais crítica e
superadora ou, ainda, emancipatória, como preferem alguns autores.
Em um programa de jogos para as diversas séries, principal-
mente as primeiras do Ensino Fundamental, é importante que os con-
teúdos dos jogos sejam selecionados, considerando a memória lúdica
da comunidade em que o aluno vive, que são as mais significativas em
um primeiro momento, para, a partir daí, fazer mediações no sentido
de ampliar e enriquecer esses conhecimentos, oportunizando o co-
nhecimento dos jogos de diversas regiões brasileiras e de outros paí-
ses, de nosso tempo, bem como de tempos remotos, além de procurar
sempre incentivar a criação de jogos pelos próprios alunos.

Sobre a necessidade de a escola ser prazerosa

Compreender o jogo, a brincadeira e o brinquedo como ma-


nifestações culturais de profunda significação, principalmente para a
criança que brinca, bem como reconhecer a necessidade dessas ativi-
dades no processo de desenvolvimento infantil, no mínimo implica
levantar questões bem profundas no processo educativo e, de modo
especial, na ação da escola. Analisar essas implicações e, ao mesmo
tempo, propor uma alternativa educacional que as considere, prin-
cipalmente no início do processo de escolarização, é importante, so-
bretudo pela necessidade urgente de a escola vir a ser um lugar mais
prazeroso.

129
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Temos aqui uma dupla necessidade colocada. Uma se refere


às necessidades do próprio aluno, de desenvolver suas capacidades
psicológicas superiores e de se apropriar da realidade social de forma
ativa, dinâmica e significativa. Outra diz respeito à própria escola, que
diante da riqueza de possibilidades de prazer e de informações fora
dela, sente necessidade de tornar-se ambiente de apropriação e pro-
dução de conhecimentos, muito mais agradável, tanto para os alunos
quanto para os professores.
Diante da necessidade de se apropriar do mundo, as crianças
se motivam a jogar e a brincar. E nós, professores, o que estamos fazen-
do diante dessa necessidade? Conforme Rosa Spinoza, “tudo o que é
necessidade motiva, e tudo o que motiva é importante”49.
Snyders (1988, 1996), em sua obra “A Alegria na Escola e
Alunos Felizes”, afirma que uma nova qualidade a escola deve ter e
que essa tem que ser construída pelas pessoas envolvidas no proces-
so. Essa a questão desenvolvida pelo autor deve servir para repensar
a escola, como torná-la mais prazerosa, onde os alunos possam dizer
que são e que se sentem felizes nela e por ela.
Snyders (1988) fala na tristeza como prerrogativa do espaço e
tempo escolar, pregada tanto na sociedade religiosa que predominou
até o Século XV quanto com o nascimento da sociedade burguesa.
Conforme Gadotti (1995), com o surgimento da sociedade burguesa,
a escola não mais estava submetida à doutrina da igreja, mas a serviço
dos estados nacionais. Já no final do Século XIX, a escola passa a ser
universalizada nos países mais desenvolvidos, com o objetivo de sus-
tentar o projeto político e econômico instalado: o capitalismo. Com

49.  Essa fala foi pronunciada em sala de aula, no dia 27 de janeiro de 1999, quando ministrava a disci-
plina “Concepções atuais da educação”, no curso de Mestrado em Educação da UNESC, Criciúma - SC,
promovido em convênio com o IPLAC (Instituto Latino Americano e Caribenho de Cuba).

130
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

isso, Gadotti afirma que o ensino foi orientado para o futuro, buscan-
do-se formar homens adaptados e utilizáveis. Historicamente, foi-se
construindo uma resignação em torno da possibilidade de a escola
ser um espaço de alegria no processo de conhecer. Dessa forma, dei-
xa-se a alegria para depois da escola. Nas palavras de Gadotti (1995),
é como se fosse dizendo à criança:

Fique tristinha aí agora. A escola tem que ser triste mesmo, porque ama-
nhã é que você vai se encher de contentamento. Hoje, a escola tem que
ser triste, sisuda, porque o saber é uma coisa muito difícil de se adquirir.
É amanhã que você vai ter a recompensa pela tristeza de hoje. Você tem
que adiar sua alegria para depois da escola (p. 237).

Makarenko (1985), pedagogo russo, já nos dizia, nas primei-


ras décadas desse século, que qualquer modelo pedagógico deveria
manter uma relação direta com o presente vivido, pois a coletividade
infantil recusa absolutamente viver uma vida preparatória. Ela deseja
um fenômeno da vida real, e a vida real para a criança é o hoje, o pre-
sente, não uma outra prometida para mais tarde. Makarenko recusa
toda e qualquer oposição entre o princípio da realidade e do prazer.
A realidade pode e deve tornar-se a base, a própria fonte do prazer,
e deve estabelecer uma relação entre o dever, a alegria presente e a
aspiração a um futuro feliz.
Olivier e Marcellino (1996), baseando-se em uma metáfora
de Rubem Alves, falam da lógica do “depois” que a escola procura
impor às crianças, pela qual a felicidade é sempre adiada. Primeiro, o
dever; depois o prazer, dita a escola (e não só ela, como toda a socie-
dade), e nós saímos, se não dizendo, mas pensando, pela vida afora:

131
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Serei feliz depois da aula, depois da lição de casa, depois das provas, de-
pois do vestibular, depois da faculdade, depois de me casar, depois, de-
pois, depois. Por essa lógica, chega-se ao absurdo de que a felicidade, na
vida, encontra-se na morte. Não fosse o fato de que a morte é o fim da
existencialidade, o fim do humano (p. 120).

Baseados ainda em Oliver e Marcellino, podemos dizer que,


com a lógica do depois (o que você vai ser quando crescer?), a esco-
la desvaloriza as experiências atuais, concretas da criança, além de
desconsiderar a própria infância e suas peculiaridades. A alegria que
a escola promete à criança é uma alegria que só pode ser desfrutada
“depois de muito esforço, muita disciplina, muitas lições de casa, mui-
tas provas, muitas brincadeiras não brincadas” (p. 121).
No entanto, esse sonho de reconciliar a escola e a alegria,
aqui e agora, não data de hoje. Para dar sustentação a esse fato,
Snyders (1996, p. 34) remonta ao Século XVII, fala em Rabelais, na
frase de madame de Maintenon: “[...] uma educação triste é uma tris-
te educação”, e cita Fénelon, que diz:

Observai uma grande falha das educações habituais: coloca-se todo o pra-
zer de um lado e todo o aborrecimento de outro; todo o aborrecimento
no estudo, todo o prazer nos divertimentos. Que pode fazer uma criança
senão suportar impacientemente essa regra e correr ansiosamente atrás
dos jogos? (p. 34).

O ideal da alegria na escola nunca desapareceu.


Para Snyders (1996), apesar de encontrar poucos testemunhos des-
sa alegria entre os escritores, diversas causas parecem favorecer as
iniciativas atuais. Nas últimas décadas, a Pedagogia e as Ciências da

132
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Educação preocuparam-se com os métodos e as relações pedagógi-


cas, e, assim, realizaram-se progressos nesse sentido.
Um dos motivos que leva o autor a pensar favoravelmente
sobre as possibilidades de mudança na escola é a discussão recente
sobre a importância de se repensar os conteúdos ensinados. Não bas-
ta que na escola se formem os instrumentos, os métodos e os hábitos
destinados essencialmente a servir ao “mais tarde”. Sendo assim, co-
meça a haver uma preocupação com a cultura escolar suscetível de
responder às demandas atuais das crianças e jovens.
Uma segunda razão é que, nos dias atuais, um número cada
vez maior de jovens passam muito mais tempo na escola, não só
todas as fases da infância, mas uma grande parte da adolescência, e
estão cientes disso. “Não se trata mais de um período breve no qual
é possível resignar-se com a ausência de alegria – provisoriamente”
(p. 35).
Um terceiro ponto que Snyders (1996) ressalta é que a escola
atual recruta uma parte de seu “público” nos meios sociais, onde o
presente, a alegria do presente e, até mesmo, a festa do presente ocu-
pam um espaço considerável em suas vidas. Portanto, os argumentos
clássicos de preparação para o futuro têm poucas possibilidades de
serem aceitos. Crianças e jovens de hoje têm mais oportunidade em
relação ao passado, de conquistar essa alegria. Passam facilmente a
procurá-la, a solicitá-la e a exigi-la com mais intensidade. Conforme
Santa Catarina (1996, p.36), “mesmo que ainda quase não se diga que
educar é ir em direção à alegria, afirma-se, menos que antigamente,
que educar é ir contra a alegria”.

133
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Diante de uma escola que oferece pouca alegria, os jovens dão


provas de crescente impaciência, e a resistência manifesta-se por meio
da rebeldia, da apatia e, até mesmo, da recusa em frequentá-la, quando
as condições são favoráveis.
As colocações de Snyders nos fez lembrar a música “Estudo
Errado”, de Gabriel, o Pensador, que faz procedentes críticas ao ensino
tradicional. Diz ele, em uma parte da música: “O estudo é uma coi-
sa boa. O problema é que, sem motivação, a gente enjoa [...] Tá tudo
errado e eu já tô de saco cheio. Agora me dá minha bola e deixa eu ir
embora pro recreio”.
Marcellino (1990) apresenta argumentos que devem embasar
a necessidade da vivência plena do componente lúdico da cultura da
criança. Diz o autor:

O primeiro e fundamental aspecto sobre sua importância é que o brin-


quedo, o jogo e a brincadeira são gostosos, dão prazer, trazem felicidade.
E nenhum outro motivo precisaria ser acrescentado para afirmar a sua ne-
cessidade. Todavia, deve-se considerar também que, por meio do prazer,
o brincar possibilita à criança a vivência de sua faixa etária e ainda contri-
bui, de modo significativo, para sua formação como ser realmente huma-
no, participante da cultura da sociedade em que vive, e não apenas como
mero indivíduo requerido pelos padrões de produtividade social (p. 72).

O que está em jogo é o papel que a escola deve desempenhar


diante da realidade, pois, além do compromisso de socializar todo o
saber historicamente acumulado e de produzir novos conhecimentos,
precisa garantir à criança ou adolescente a alegria, a satisfação e o pra-
zer de viver a cada momento. No nosso tempo, o que está posto é a
necessidade real de reconciliação entre a escola e a alegria.

134
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Conforme Paulo Freire50, a alegria na escola é necessária, por-


que, gerando-se em uma alegria maior à alegria de viver, a alegria na
escola fortalece e estimula a alegria de viver. Se o tempo da escola é um
tempo de enfado, em que educador e educadora e educandos vivem os
segundos, os minutos, os quartos de hora à espera de que a monotonia
termine, a fim de que partam risonhos para a vida lá fora, a tristeza
da escola termina por deteriorar a alegria de viver. É necessária ainda,
porque viver plenamente a alegria na escola significa mudá-la, significa
lutar para incrementar, melhorar, aprofundar a mudança. Para tentar
essa reviravolta indispensável, é preciso deixar longe de nós a distorção
mecanicista. É necessário encarnar um pensar dinâmico, dialético. O
tempo que levamos dizendo que, para haver alegria na escola, é preciso
primeiro mudar radicalmente o mundo é o tempo que perdemos para
começar a inventar e a viver a alegria. Além do mais, lutar pela alegria
na escola é uma forma de lutar pela mudança do mundo.
Ainda Freire (1998), em sua obra “Pedagogia da Autonomia”,
fala-nos da relação entre a alegria necessária, a atividade educativa
e a esperança. Conforme o autor, “há esperança de que professor e
alunos, juntos, podem aprender, ensinar, inquietar, produzir e, juntos,
igualmente, resistir aos obstáculos à alegria” (p. 80).
Nessa mesma trilha de pensamento afirma Snyders (1996,
p. 12):

A escola como local de alegria não representa uma utopia, simples desejo
desvinculado daquilo com que alunos e educadores sonham e de que
sentem falta. A escola contém elementos válidos de alegria. Ela não é
oposta à alegria, esse sentimento já é possível na escola atual, o que torna
ainda mais lamentável que ela não esteja entre seus objetivos primor-
50.  No prefácio à edição brasileira do livro de Snyders “Alunos felizes” (1996).

135
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

diais. É, a partir da própria escola, dos fragmentos que ela deixa trans-
parecer, que se pode começar a pensar em como superar a escola atual.

Após essas considerações, podemos dizer que a escola tem


uma necessidade urgente de ser transformada e, nas séries iniciais,
essa mudança passa pela incorporação e valorização dos conteúdos
culturais das crianças, como ponto de partida para qualquer aprendi-
zagem que se quer denominar significativa. Por isso, há necessidade
por parte da escola de reconhecer o jogo, a brincadeira e a utilização
do próprio brinquedo como elementos culturais que representam a
particularidade da infância, justamente por ser a principal atividade
propulsora de desenvolvimento da criança, conforme nos apontam os
autores da Psicologia Histórico Cultural.
Diante desses conhecimentos, cabe à escola definir o que fa-
zer, pois “as sociedades humanas têm possibilidades de fazer escolhas,
valorizar mais alguns aspectos que outros”51. Como nos disse Freire
(1994), no âmago, toda escola define-se pelos conteúdos que selecio-
na, propõe, privilegia e os que ela silencia, e é daí que decorrem as
abordagens correspondentes, porque é o que define o tipo do homem
que se espera ver sair da escola. E, nesse caso, desejamos que saia da
escola com conhecimento e alegria de viver.

51.  Expressão utilizada pela Profa. Maria José dos Reis, no dia 18 de novembro de 1997, em sala de
aula quando ministratava a disciplina “Teorias e Cultura”, no programa de Mestrado “Educação e Cul-
tura” da UDESC.

136
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

V
CONHECENDO E COMPREENDENDO OS
JOGOS, BRINCADEIRAS E BRINQUEDOS
DAS CRIANÇAS

Este capítulo foi estruturado em três partes diferentes, em


que apresentamos os resultados da pesquisa, sendo que cada um de-
les contempla a análise e discussão de várias questões que foram alvo
desse estudo.
Na primeira parte, optamos por chamar “Brinquedos e jogos
(de) que as crianças mais praticam e gostam”. Nesse espaço, apresen-
tamos os jogos e brinquedos de que as crianças mais gostavam e que
mais praticavam, bem como suas características, principalmente rela-
cionadas ao faz de conta e ao jogo de regras.
Na segunda parte, que chamamos “Os pais diante dos jogos,
brincadeiras e brinquedos dos filhos”, apresentamos os resultados so-
bre a importância que os pais atribuem a essas atividades, as quais
resultaram de várias perguntas que fizemos aos mesmos.

137
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Na terceira parte, apresentamos os principais “Fatores que


influenciam na escolha dos jogos e brinquedos das crianças”.
Baseados em Brougère52, podemos dizer que ninguém co-
nhece a priori o que é a brincadeira da criança, porque cada criança
é a construção de uma situação particular. Isso significa dizer que,
para conhecer a brincadeira da criança, só há uma forma, observá-
-la. Um trabalho pedagógico não pode ser apoiado sobre conside-
rações gerais sobre o que é a brincadeira. Ele deve ser apoiado sobre
o que é a brincadeira de crianças particulares. Conforme o autor,
seria ideal conhecer as características dessas mesmas crianças em
situações extra-escolares, a fim de conhecer melhor os elementos
da cultura lúdica dessas crianças fora da escola. E também foi isso
que procuramos fazer.

Brinquedos e jogos (de) que as crianças mais praticam e


gostam

Para conhecermos os tipos e as características dos jogos


mais praticados pelas crianças, perguntamos para os pais qual o jogo
ou quais os jogos que seu filho(a) mais gostava de jogar. Pedimos
também às crianças que dissessem quais os jogos que mais gostavam
de jogar. A partir das falas dos pais e das crianças, organizamos uma
tabela a qual apresentamos a seguir.

52.  Em conferência realizada no I Sebrinq (Seminário de Brinquedo na Educação Infantil), realizada


em 22 de agosto de 1998, na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

138
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tabela 1 - Jogos mais praticados pelas crianças


Na fala dos pais Na fala das crianças
Tipo de jogo
Meninos Meninas Meninos Meninas
n % n % n % n %
Futebol 10 34.5 1 8.3 9 56.3 1 12.5
Jogo da vida 1 3.4 - - 1 6.2 - -
Cabana 1 3.4 - - - - - -
Bingo - - 1 8.3 - - 1 12.5
Baralho - - 4 33.5 1 6.3 1 12.5
Picar a bola - - 1 8.3 - - - -
Vídeo-game 2 7.0 - - 1 6.2 - -
Bicicleta 2 7.0 - - - - - -
Ver desenho 1 3.4 - - - - - -
Pião 2 7.0 - - - - - -
Tazo53 3 10.3 - - 1 6.2 - -
Bolinha de gude 4 13.8 - - - - - -
Pular corda - - 1 8.3 - - - -
Jogo de montar - - 1 8.3 - - 1 12.5
Casinha/boneca - - 2 16.7 - - - -
Xadrez - - 1 8.3 - - 1 12.5
Figurinha 1 3.4 - - - - - -
Skate 1 3.4 - - - - - -
Carretilha 1 3.4 - - - - - -
Dominó - - - - 2 12.5 1 12.5
De matar - - - - - - 1 12.5
Futebol game - - - - 1 6.3 - -
Jogo da memória - - - - - - 1 12.5
53
Fonte: Elaborada pelo autor.

O total de jogos apresentados é maior do que o número de entrevistados por terem sido admitidas

múltiplas respostas.

Ao observar a Tabela 1, podemos perceber que foi consenso,


tanto na fala dos pais como na fala das crianças, que o futebol é o jogo
favorito dos meninos. O segundo jogo preferido pelos meninos, na
opinião dos pais, é a bolinha de gude, porém os meninos não men-
cionaram tal jogo.

53.  Esse jogo é praticado com cartelas em forma de círculo e consiste em lançar uma cartela sobre a
outra com força. O tazo foi lançado como “brinde”, acompanhando os salgadinhos da Elma Chips.

139
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tanto para os pais quanto para os meninos, o futebol foi fácil


de ser identificado como jogo, por conter regras explícitas e por se
tratar de uma atividade muito praticada não só pelas crianças, mas
também pelos adultos. Tal fato não ocorreu em torno da identificação
dos jogos das meninas pelos pais e pelas próprias meninas. Somente o
baralho foi citado por quatro pais, como o jogo que as meninas mais
praticam; enquanto o bingo, o futebol e o xadrez apareceram uma
única vez. Também apareceram como sendo jogo, na fala dos pais,
atividades como picar a bola, pular corda e casinha. Parece que as me-
ninas foram mais rigorosas ao dizerem os jogos que mais praticavam,
pois citaram apenas aqueles cujas regras estão explícitas no próprio
jogo ou no brinquedo (enquanto objeto de jogar), como futebol, bin-
go, baralho, jogo de montar, xadrez, dominó, jogo de matar e jogo de
memória, conforme nos mostra a Tabela 1.
Ainda observando a Tabela 1, podemos analisar dois fatos
importantes. O primeiro é a existência de uma grande diversidade de
jogos praticados pelas crianças, principalmente pelas meninas. O se-
gundo fato é referente a presença de jogos considerados tradicionais,
como o pião, a bolinha de gude e a brincadeira de cabana, que pare-
cem conviver com os jogos e brinquedos mais atuais, tais como: vi-
deogame, futebol game e jogo da vida. Isso pode demonstrar que uma
série de brinquedos considerados tradicionais, de confecção mais ar-
tesanal e que estão aos poucos desaparecendo ou se transformando54,
não deu lugar por completo aos jogos e brinquedos industrializados.
Vejamos a fala de dois pais, como exemplo, que nos auxiliam nessa
análise:
54.  Como é o caso do tazo, que foi substituído pelo jogo de virar ourinho, feitos com papel de carteira
de cigarro, que, até duas décadas, era comum nos pátios das escolas e nas ruas, segundo nossas próprias
vivências.

140
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Existe uma diferença até pela tecnologia [...]. Hoje ele anda mais de bici-
cleta, joga mais videogame. Todavia, sempre sobra um tempinho voltado
para aquele tempo, brincadeira de rua, montar cabana, brincar de índio,
ainda tem isso, como eu fazia (Gilmar, pai do Thomaz).

Eu acho que até não tem muita diferença, ele brinca de bola, se tiver pião
ele joga pião também. Ele brinca de bicicleta, de ré, de bolinha de gude.
Disto nós também brincávamos quando criança. Só em relação ao brin-
quedo que é diferente, porque hoje eles têm de tudo, naquele tempo não
tinha tudo isso como tem hoje (Samuel, pai do Maicon).

Várias brincadeiras parecem romper com as fronteiras do


tempo e conseguem conviver com os avanços tecnológicos. Isso de-
monstra que alguns pais, de certa forma, ainda que indiretamente,
continuam proporcionando a seus filhos experiências de jogos e brin-
cadeiras de suas próprias infâncias. Isso nos remete a Abramovich
(1983, p. 153), que afirma que, se ninguém se refere às pipas, bolinhas
de gude, é porque foi passada a responsabilidade lúdica à civilização
tecnológica e se deixou de lado a cultura popular.
As mudanças no mundo dos jogos, brinquedos e brincadei-
ras das crianças são percebidas por todos os pais, que falam das faci-
lidades e da riqueza de opções atuais. Alguns deles conseguem fazer
uma leitura bastante crítica da realidade, apontando as resistências,
as transformações e a impossibilidade da permanência de muitos
dos jogos e brinquedos diante dos avanços científicos e tecnológicos,
como podemos perceber nesses depoimentos:

Naquela época, era brincar de pegar, de se esconder. Os brinquedos eram


bem diferentes, mas não é possível hoje. Eu acho que não é possível as

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

crianças de hoje terem a mesma mentalidade. Pela evolução, as coisas


mudaram e, hoje, nós vivemos em uma época muito boa, essa facilidade
de possuir brinquedos para as crianças (Sebastião, avô da Ana Claúdia).

Hoje em dia, os brinquedos são modernos. As meninas querem brincar e


têm aquelas casinhas de boneca. Para os meninos, já se tem tudo de pri-
meira qualidade. Antigamente, os meninos tinham um carrinho de ma-
deira feito pelos próprios pais, funda, era tudo coisa assim praticamente
sem significado, mas, para aquela época, tinha bastante significado. Eu
acho que naquele tempo a gente se divertia e aproveitava o tempo da-
quela maneira, porque era aquela maneira que tinha. E, hoje é diferente,
porque eles têm várias opções (Irma, mãe da Francine).

O próprio Gramsci (1987), nas primeiras décadas do século


passado, já estava convencido de que o brinquedo materializa princí-
pios e valores educativos correspondentes a um momento histórico
determinado. Assim ele escreveu em 1º de julho de 1929, à Giulia:

Penso que uma vida infantil como a de 30 anos atrás torna-se agora im-
possível [...]. O rádio e o avião destruíram para sempre o robinsonis-
mo, que foi a forma de fantasiar de tantas gerações. [...] Seu herói não
pode ser Robinson, mas o policial ou o ladrão cientista, pelo menos no
Ocidente (p. 137).

Gramsci ajuda a elucidar a realidade atual, ou seja, uma rea-


lidade diversificada, onde se misturam os jogos mais tradicionais com
os mais modernos, relacionados aos avanços científicos e tecnológi-
cos.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

No entanto, os jogos tradicionais foram mais frequentes do


que os jogos eletrônicos, na época da pequisa. É provável que ,se fosse
realizada a coleta nos dias de hoje, o resultado seria diferente.
Procuramos conhecer também os brinquedos de que as
crianças mais gostavam e chegamos a eles, por meio de perguntas
aos pais e às próprias crianças. Na Tabela 2, podemos perceber que os
brinquedos eletrônicos aparecem novamente, porém em menor esca-
la do que os considerados tradicionais e que ambos parecem conviver
um com outro, enriquecendo o repertório lúdico das crianças.

Tabela 2 - Brinquedos de que as crianças mais gostam


Tipo de Na fala dos pais Na fala das crianças
brinquedo Meninos Meninas Meninos Meninas
n % n % n % n %
Cabana 1 7.1 - - - - - -
Bonequinhos 1 7.1 - - - - - -
Boneca/casinha - - 6 75 - - 8 100
Carrinho 2 14.2 - - 3 21.5 - -
Dominó 1 7.1 - - - - - -
Bicicleta 2 14.2 1 12.5 2 14.3 - -
Bola/futebol 3 22.0 - - 4 28.7 - -
Pião 1 7.1 - - - - - -
Bolinha de gude 1 7.1 - - 1 7.1 - -
Tazo 1 7.1 - - - - - -
De pintar - - 1 12.5 - - - -
Vídeo-game 1 7.1 - - - - - -
Avião c/ remoto - - - - 1 7.1 - -
Skate - - - - 1 7.1 - -
Revólver - - - - 1 7.1 - -
Futebol game - - - - 1 7.1 - -
* Fonte: Elaborada pelo autor.

Se compararmos a Tabela 1 com a Tabela 2, podemos per-


ceber que a dificuldade e as contradições em termos de diferenciar

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

o que é jogo, brincadeira e brinquedo se refletiram principalmente


na fala dos pais. Houve uma certa ambiguidade em torno de alguns
jogos e brinquedos, pois aparecem repetidos tanto na Tabela 1, que
sintetiza os jogos que as crianças mais praticam, quanto na Tabela 2,
que é a síntese da fala das crianças sobre os brinquedos de que mais
gostam. Verificamos essa ambiguidade no caso de: cabana, futebol/
bola, videogame, bicicleta, pião, tazo, bolinha de gude, boneca, carre-
tilha. Devemos considerar que isso pode ter ocorrido, devido ao fato
de que muitos desses brinquedos, como a bola, o videogame, o pião, o
tazo e a bolinha de gude, são brinquedos que possibilitam o jogo que
contém regras.
A ambiguidade que apareceu na fala dos pais, na identifi-
cação do que é jogo e o que é brinquedo, diminuiu sensivelmente
na fala das crianças, pois aconteceu somente no caso do futebol e do
futebol game. As crianças foram mais rigorosas ao classificarem o que
são jogos e o que são brinquedos, pois, para elas, brinquedo é o ob-
jeto de brincar. Assim sendo, nem todas as atividades de brincar são
jogos para elas, nem tão pouco toda brincadeira consiste em um jogo.
Todavia, para algumas atividades, elas aceitam as duas expressões, ou
seja, jogo ou brincadeira, como é o caso do futebol, por exemplo. Eu
posso jogar futebol e brincar de futebol (Lucas V., 8 anos). No entan-
to, para outras atividades, não são aceitas as duas expressões, como
nos indica esta fala: “Eu não posso jogar de bicicleta, nem jogar de
casinha, de carrinho eu também não posso jogar, eu brinco disso”
(Alessandra, 7 anos).
Em termos científicos, de produção de conhecimentos, prin-
cipalmente na perspectiva histórico-cultural dos autores soviéticos,
podemos utilizar o termo jogo de faz de conta para as atividades de

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

representação de papéis sociais e de temas da realidade, mas, para a


criança, isto não representa jogo, mas brincadeira. Isso nos dá indi-
cadores de que só tem significado de jogo a atividade que tiver regras
explícitas, enquanto as atividades que não as contêm explicitamente
não podem ser consideradas jogo, mas brincadeira, principalmente
pelas crianças que as praticam.
Outra questão que nos propomos a analisar refere-se à evo-
lução dos jogos de faz de conta para os de regras.
Na Tabela 1, podemos verificar que a maioria dos jogos ci-
tados, tanto pelos pais quanto pelas crianças, foram jogos de regras.
Se fôssemos analisar as atividades das crianças somente pela
Tabela 1, poderíamos simplesmente concluir que as crianças da pri-
meira série pesquisada têm preferências somente por jogos que con-
têm regras explícitas, e não por jogos de faz de conta. No entanto,
sabemos que as brincadeiras e os jogos de faz de conta não aparece-
ram por não serem considerados jogos nem pelos pais e nem pelas
crianças. O jogo de faz de conta vai aparecer justamente associado aos
brinquedos, quando lhes perguntamos quais os de que mais gostavam
de brincar, e isso pode ser verificado na Tabela 2. Houve quase um
consenso nas respostas, tanto dos pais quanto das meninas, em re-
lação à boneca, como sendo o brinquedo favorito das meninas. Uma
delas apontou as panelinhas para fazer comidinha como o brinquedo
de que mais gostava. As atividades de faz de conta ainda fazem parte
da vida das crianças nessa série, mesmo que não atribuam esse nome
para esse tipo de atividade. Quanto aos meninos, cinco deles respon-
deram que o brinquedo de que mais gostam é a bola, quatro mencio-
naram o carrinho, enquanto outros ainda responderam aviãozinho e
revólver. As respostas dos pais já foram mais diversificadas, mesmo

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

assim mencionaram brinquedos que apontam para o faz de conta, tais


como: cabana, bonequinho, carrinho e bola.
No nosso entendimento, a bola, enquanto brinquedo que
possibilita o desenvolvimento do jogo de futebol, abre possibilidades
para novos desdobramentos, pois, para além das regras explícitas, há
toda uma situação imaginária implícita e uma incorporação de per-
sonagens, que, nesse caso, são jogadores de futebol da seleção. Essa
identificação pode ter sido reforçada pelo momento histórico que es-
távamos vivenciando, pois as investigações foram iniciadas após dois
meses do término da copa que se realizou em junho de 1998. Além
disso, não podemos esquecer que o futebol é um esporte vinculado à
cultura brasileira e recebe diariamente, pela mídia, uma atenção mui-
to especial. Como já dizia Rodrigues (1976, p. 78), “a bola, simples e
divertida, constitui, de todos os jogos e brinquedos, o preferido das
crianças de qualquer idade. E o que parece, dos adolescentes e adultos
brasileiros também”.
O futebol vem assumindo, ao longo dos anos, um caráter
cada vez mais de trabalho especializado, principalmente no trato com
seus jogadores. Essa constatação nos leva a pensar que o maior in-
teresse das crianças, em participar de atividades esportivas, e nesse
caso, do futebol, pode estar relacionado também à necessidade de
representação de jogadores e do desporto de rendimento que é hege-
mônico em nossa sociedade, desempenhando, assim, o papel de jogo
de faz de conta ou protagonizado, como falou Elkonin (1998). Essa
ambiguidade em torno das características do jogo de futebol, quando
praticado pelas crianças, apareceu na fala de muitos pais, como pode-
mos perceber nos exemplos abaixo:

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Eles acompanham praticamente o que eles veem na televisão de fute-


bol. A seleção brasileira começou a jogar e, mais ou menos na época,
eles começaram a imitar. Eles pegam para eles e o que aprendem fazem
(Reinaldo, pai do Leandro).

Um é o Tafarel, outro é o Romário. Esses da seleção eles imitam tudo


(Zenir, mãe do Alex).

A fala de uma das crianças também apontou para a possibi-


lidade de o futebol, para as crianças de primeira série desempenhar
mais a função de um jogo de faz de conta do que propriamente um
jogo de regras.

Eu imito jogar futebol, porque os grandes também jogam futebol (Lucas C.,
7 anos).

Também em uma aula de Educação Física isso foi constata-


do. A professora encaminhou a atividade com bola, solicitando que
as crianças, em dupla, criassem formas de passar a bola uma para a
outra. Imediatamente, quatro duplas de meninos começaram a chutar
a bola para o colega agarrar e, cada vez que agarrava, eles gritavam
“Taffarel”55.
Em relação ao futebol, por se tratar de um jogo praticado
por quase todos os meninos, os que não gostam de praticá-lo sen-
tiam certo desconforto, talvez por terem sido discriminados em al-
gum momento. Evidenciamos isso na fala de um dos meninos e na
fala da própria mãe, pois, quando perguntados sobre o jogo que mais
55.  Diário de Campo, Segunda-Feira, 24.09.98.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

gostava de praticar, começaram se justificando por que não gostava


do futebol.

Não gosto de futebol, porque eu não sei jogar. Ninguém vai lá na minha
casa jogar. Daí eu não consigo (Ricardo, 7 anos).

Ele não joga bola, eu não sei se não é porque ele não brinca com ninguém,
nunca joga ou, se tivesse puxado pelo pai, porque o pai gosta. Às vezes, ele
joga com o pai, mas ele não gosta muito (Vilma, mãe do Ricardo).

As entrevistas foram realizadas em dias diferentes e sem que


pai e filho estivessem juntos. No entanto, quando perguntado sobre o
jogo que mais praticava e o brinquedo de que mais gostava, Ricardo
respondeu em ambos que era o futebol game, que foi o pai quem lhe
deu e o ensinou a jogar. Talvez, isso possa ter sido uma forma de com-
pensar o fato de não gostar de jogar futebol, o que é esperado para os
meninos.
As questões referentes à presença do faz de conta na vida
das crianças podem ser analisadas a partir da observação da Tabela 3,
elaborada a partir da fala dos pais das crianças entrevistadas, em res-
posta à pergunta que realizamos no sentido de saber se eles (os pais)
já haviam percebido se seu filho costumava imitar algum personagem
de televisão, ou as atividades de trabalho e ou de lazer do adulto, bem
como se percebiam quais eram os mais evidentes.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tabela 3 - Jogos de faz de conta que as crianças mais praticam na visão dos pais

Faz-de-conta Meninos % Meninas %


Personagens de TV 10 37.1 - -
Carrinho/caminhão 5 18.5 - -
Jogador de futebol 4 14.8 - -
Polícia e ladrão 4 14.8 - -
Mecânico 2 7.4 - -
Médico 1 3.7 1 5.2
Dentista 1 3.7 1 5.2
Escolinha - - 7 36.9
Casinha/boneca - - 7 36.9
Lojinha/mercado - - 3 15.8

Fonte: Elaborada pelo autor.

A soma total das atividades de faz de conta é superior ao número de entrevistados por terem sido admi-

tidas respostas múltiplas.

Ao observar a Tabela 3, podemos verificar que, na opinião


dos pais, os filhos imitam mais os personagens de desenhos e filmes
da televisão (representando 37.1% do total das brincadeiras aponta-
das). Em contrapartida, nenhum pai apontou personagens da tele-
visão como influenciando no mundo de faz de conta das meninas,
embora saibamos que também influenciam, dependendo da progra-
mação. Esse fato pode estar relacionado às características dos filmes
e desenhos que passam no período em que as crianças estão em casa,
ou seja, no período matutino, que, na sua maioria, são de lutas e os
personagens são heróis do sexo masculino. As características dos de-
senhos justificam, de certa forma, o fato de serem os meninos que os
representam. Dessa forma, tivemos a oportunidade de perceber que
a televisão, apesar de todas as críticas que podem ser feitas em vários

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

sentidos, não deixa de ser um instrumento que favorece o enriqueci-


mento do repertório dos jogos de faz de conta das crianças. Isso ficou
evidente na fala de muitos pais.

Ele é sempre o Zorro da caverna dele. Um cavalo estava ali a pouco, um


cabo de vassoura que ele sai daqui do quarto correndo. Ele brinca tam-
bém de Power Rangers. Ele conversa o tempo inteiro. Ele brinca e conver-
sa sozinho (Cláudia, mãe do Guilherme V.).

Ele imita o Himen. Tem um brinquedo novo que eles brincam muito
agora que é o Super Patos. Eles ficam combinando: eu sou esse, eu sou
aquele, eles dividem e saem brincando (Lenir, mãe do Lucas C.).

Essa última fala representa exatamente o processo de divisão


de papéis que acontece no estágio mais desenvolvido do faz de conta,
como nos apontou Vygotsky (1994).
A brincadeira de caminhãozinho ou carrinho apareceu, na
opinião dos pais, como sendo o segundo tema de faz de conta dos me-
ninos (representando 18.5% do total das atividades apresentadas). Os
tipos foram os mais diversos, como carrinhos pequenos, caminhões,
ambulância, moto, tratores, caçamba, entre outros. Diante de mui-
tas falas, destacamos a de uma mãe, frente à riqueza de informações
que nos ofereceu, relacionando a brincadeira de seu filho da primeira
série e do irmão da pré-escola com a profissão de seu marido, que
trabalha no transporte de casas. Disse ela:

Esses dois puxam o carro o dia inteiro, porque ele é motorista e trans-
porta casa. Então, eles pegam um caminhãozinho, botam uma caixinha

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

encima e ficam puxando casa direto. Eles pegam o caminhãozinho e um


vem do quarto e diz: eu vou levar a casa prá tal lugar e daí um puxa prá
cá, o outro puxa prá lá (Ivonete, mãe do Filipe).

Outro tema que se mostrou muito significativo no faz de


conta dos meninos (representando 14.8% dos totais dos jogos prati-
cados) foi a brincadeira de polícia e ladrão.

Ele brinca de polícia e ladrão, só que ele diz que quer ser policial (Zenir,
mãe do Alex).

Percebemos a preocupação de alguns pais pelo fato de seus


filhos brincarem de polícia e ladrão e representarem no seu faz de
conta o uso da arma, conforme podemos verificar na fala abaixo:

Ele imita polícia, ele tem capacete, tem espada, tem revólver, eu com-
prei, tem de tudo. Não deveria, pois brinquedo de arma quase sempre
gera violência [...], mas ele sabe que aquilo não passa de uma brincadei-
ra, ele gosta de imitar esse tipo de coisa. Ele sabe que eu trabalho com
arma, ele sabe do perigo que tem (Gilmar, pai do Thomaz).

Nesse depoimento, percebe-se o fato de o filho estar repre-


sentando principalmente a profissão do pai, que é vigilante. Outra
questão pontuada pelo pai e que, de certa forma, representa uma
das características do jogo, conforme os critérios estabelecidos por
Vygotsky (1994), Piaget (1978), Huizinga (1996), Elkonin (1998),
dentre outros, é o fato de a criança no fundo saber que aquilo que

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

ela faz, embora representando no faz de conta uma realidade, não é


a realidade e, portanto, não oferece perigo imediato.
O fato de as crianças representarem o papel de ladrão tam-
bém preocupa alguns pais, como se com isso corresse o risco de eles
se tornarem ladrões no futuro.

Ele assistiu a um filme de policial e bandido, chegou em casa e disse:


agora eu sei como vou me defender da polícia [...]. Daí eu disse: — Oh,
meu filho, tu queres ser um bandido ou um policial? Tu tens que ser um
policial. Tu não podes ser um bandido (Adão, pai do Samuel S.).

É provável que essas preocupações sejam decorrentes da fal-


ta de informações e conhecimentos sobre o que representam esses
jogos na vida das crianças, principalmente nesse momento de suas
vidas.
Oliveira (1995, p. 67), baseando-se nas ideias de Vygotsky,
fala que o faz de conta é a principal atividade propulsora de desen-
volvimento, pois “a criança comporta-se de forma mais avançada do
que nas atividades da vida real e também aprende a separar objeto e
significado”. É o espaço destinado a compreender a realidade social.
Uma vez que ela não pode desempenhar diversos papéis na realidade
concreta, ela representa-os em situações de jogo para compreender.
O futebol, mais uma vez, aparece (representando também
14.8% do total das atividades) como uma atividade de faz de conta
ou de imitação de papéis sociais. Para as crianças de primeira série, o
jogo de futebol não só representa um jogo de regras, como também
cumpre um papel importante como possibilidade de representação
de papéis sociais.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Os demais temas de faz de conta apareceram apenas uma ou


duas vezes, sempre relacionados a uma situação específica, particular,
em que as crianças tiveram oportunidade de interagir, em condições
concretas, com fatos da realidade, para depois serem motivos de suas
representações.
Em relação às meninas, os temas de faz de conta mais fre-
quentes são a escolinha e a brincadeira de casinha e boneca (represen-
tando cada uma delas 36.9 %). Podemos perceber que a brincadeira
de casinha ainda está muito presente na vida das meninas da primeira
série. Foram consideradas como brincadeiras de casinha também as
que envolviam bonecas ou fazer comidinha.

Eu já peguei ela imitando bastante, dando de mamar para as bonecas, tro-


cando frauda e dando banho (Clarisse, mãe da Alessandra).

Ela faz comidinha com terra, pega retalho de roupa e faz roupinha para as
bonecas (Irma, mãe da Francine).

Conforme os autores soviéticos, principalmente Vygotsky


(1994) e Elkonin (1998), há uma expansão nos temas de faz de conta,
na medida em que as crianças começam a se relacionar com outras
esferas das relações sociais, como acompanhar os pais no supermer-
cado, locadoras, casamentos, escolas, bibliotecas, dentre outras. Sendo
assim, as crianças passam a se interessar por uma esfera mais ampla da
vida social (ver Tabela 3) e passam a representá-las por meio de suas
atividades.

É lojista [...], ela é a dona e eles vêm comprar, ela vende. Fazem mercado
e os irmãos entram na roda. Ela é assim: tudo que vê, ela faz. Um dia ela

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

foi ao dentista comigo, quando chegou em casa começou a brincar. Tudo


o que ela vê, ela brinca (Bento, pai da Elis).

Por meio da fala dos pais, podemos perceber que o tema


escolinha também passou a ser mais frequente a partir do mo-
mento em que as crianças entraram na 1ª série.

Brinca de escolinha, ela tem um quadro. Esse ano o que ela brinca mais
é de escolinha (Sônia, mãe da Suelen).

Ela tem um quadrinho, ela faz de tudo. Ela faz de conta que tem as meni-
nas e os meninos da sala dela (Irma, mãe da Francine).

Com base nos autores da Psicologia Histórico-Cultural, po-


demos dizer que as meninas passam a representar com maior fre-
quência o papel de professora, a partir do momento em que ingres-
sam na 1ª série, porque fica mais clara a função social da professora a
partir das cobranças de frequência, avaliações, notas, tarefas, horários
mais fixos e rígidos, que passam a ser evidentes a partir dessa série.

Ela faz de conta que a sala está cheia, ela grita, ela briga. Tem recreio, tem
Educação Física, tem lanche, tem tudo (Clarisse, mãe da Alessandra).

As meninas pesquisadas confirmaram o que os pais falaram,


pois quase todas apontaram a escolinha como sendo a atividade de
que mais brincam em suas casas.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Após essas análises a respeito dos tipos de jogos, brinca-


deiras e brinquedos que as crianças mais praticam, bem como dos
brinquedos que mais gostam, passamos a segunda partede apre-
sentação dos resultados, em que procuramos mostrar a importân-
cia que os pais atribuem ao universo lúdico de seus filhos.

Os pais diante dos jogos, brincadeiras e brinquedos dos


filhos

Os pais exercem grande influência sobre os filhos, principal-


mente nos primeiros anos de vida, quando as relações destas com a
realidade é restrita ao ambiente familiar. Por isso, quando as crianças
chegam à escola, já atribuem significados às suas brincadeiras e às de-
mais instâncias da realidade sociocultural, como vimos em Leontiev
(1978) e Brougère (1997). Nesse sentido, foi importante sabermos o
que os pais tinham a dizer sobre os jogos e brinquedos dos filhos, para
poder melhor entender as crianças pesquisadas.
Perguntamos aos pais quais eram as razões que atribuíam
ao fato de as crianças gostarem tanto de brincar. Obtivemos como
respostas dos 33 pais entrevistados os itens representados na Tabela 4.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tabela 4 - Razões para o brincar das crianças, atribuídas pelos pais


Porque as crianças brincam total %
Não tem compromisso/trabalho 11 33.3
É uma fase da própria criança 10 30.3
Tem muita energia para gastar 5 15.2
Tem muita liberdade 5 15.2
Descobrir novidades, aprender 1 3.0
Porque são inteligentes 1 3.0
Fonte: Elaborada pelo autor.

O mais significativo (representando 33.3% do total) foi a jus-


tificativa de que as crianças brincam porque não têm compromisso,
não têm preocupação com o trabalho, brincam para passar o tempo.
Isso demonstrou o desconhecimento a respeito do que representa o
brincar na vida das crianças e suas implicações no desenvolvimento.
Essa falta de conhecimentos, lamentavelmente pode levar os pais ao
esquecimento da seriedade, do compromisso que assumiam ao re-
presentar papéis no faz de conta e da responsabilidade partilhada nos
jogos de regras, vividos na infância.

Elas brincam porque é o único trabalho deles. Como não tem nada o
que fazer, a única coisa que eles têm que fazer é brincar (Lenir, mãe do
Lucas C.).

Todavia, foi significativo o número de pais (30.3 % deles)


que reconhecem a infância como um tempo diferente, uma categoria
social que tem uma particularidade, que não é um adulto em minia-
tura, como era considerado principalmente até o Século XII. Eles se
expressaram de diferentes formas:

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Porque é uma fase da criança. Deve ser da própria criança, né? (Gilmar,
pai do Thomaz).

É o ser de criança. Tem que ter a mentalidade de criança, inocência


(Maria Eremita, mãe do Leandro).

O brincar das crianças foi visto por 15.2% dos pais, como
uma forma de gastar energias acumuladas, por não terem outras ati-
vidades. Um mesmo número de pais apontaram o excesso de liberda-
de como causadora do fato de as crianças gostarem tanto de brincar e
fizeram comparações com o próprio passado delas.

As crianças de hoje são mais livres. Não tem mãe e pai que dão em cima.
Eles têm mais liberdade. Antes era bem diferente, não era fazer o que a
gente queria, era fazer o que os pais queriam, agora não (Fátima, mãe do
Thomaz).

Um pouco é pela falta de trabalho, porque, se eles tivessem trabalho, não


teriam tanta disposição para brincar. Como eles não tem trabalho, então
acham que podem brincar, brincar, brincar (Zenir, mãe do Alex).

Esse último depoimento integra algumas razões para o brin-


car das crianças, ou seja, ao não-trabalho, ao excesso de energia e à
liberdade.
Apenas um dos pais atribuiu um sentido de necessidade de
descobertas e oportunidades de aprendizagens ao brincar, e a avó de
uma das crianças indica o brincar como um sinal de inteligência. No
entanto, já faz algum tempo que Vygotsky (1994, p. 126), afirmou: “É

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma crian-


ça”.
O fato de as justificativas se aproximaram mais das concep-
ções clássicas, ou seja, de que as crianças brincam em decorrência de
uma natureza infantil, que é espontânea ou que precisam gastar ener-
gias acumuladas, de certa forma garante o espaço reservado à prática
dessas atividades. Mesmo que as razões foram ora espontaneístas, ora
mecanicistas, foi possível identificar que todos concordam que é mui-
to importante a criança brincar. Entretanto, a contradição apareceu
quando perguntamos diretamente qual a importância do brincar na
vida dos filhos, já que todos disseram ser importante. Em muitos ca-
sos, a importância foi atribuída às mesmas razões anteriores, porém
um número significativo de pais (31% do total) reconhece a impor-
tância do jogar e do brincar para o desenvolvimento da mente e do
corpo, para a rapidez, para incentivar a criança, para dar coragem.
Isso pode ser identificado em falas como:

Acho que é bom, porque desenvolve tanto a vida espiritual quanto a ma-
terial e corporal. Eu acho que é bom para o desenvolvimento das crian-
ças (Clarisse, mãe da Alessandra).

Acho importante, porque desenvolve bastante. A criança que se cria


brincando, praticando um esporte, elas não são crianças envergonhadas.
Elas vão mais, tem mais coragem (Naide, avó da Joeine).
Uma pergunta que fizemos às crianças, a fim de ver se elas
percebiam a importância que os pais atribuíam a seus jogos e brinca-
deiras, foi a seguinte: “Teus pais gostam quando tu brincas?”. Das 22
crianças pesquisadas, 16 (72.7%) disseram que os pais gostam quan-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

do elas brincam, e os motivos que as levaram a afirmar isso foram


diversos. A fala de algumas crianças apontam para uma visão um tan-
to utilitária do brincar, por parte de alguns pais, conforme podemos
identificar nas seguintes falas:

Gostam. Eles gostam de me ver brincando na rua, para não bagunçar


dentro de casa (Samuel S., 8 anos).

Gostam. Porque eles ficam felizes se a gente se diverte (Guilherme V., 7


anos).

Gosta. Ela gosta de ver eu brincar com meus irmãos. É para eu cuidar
deles. E daí eles gostam de mim (Elis, 8 anos).

Das 22 crianças pesquisadas, 6 delas (27.3%) demonstraram


ter dúvidas se seus pais gostam ou não de que elas brinquem, dei-
xando isso transparecer em falas do tipo “Ah, eu acho que eles gos-
tam, não sei, mas acho que o pai e a mãe gostam de que eu brinque”
(André), e, em algumas delas, aumentava a dúvida pelo peso maior
que os pais colocavam ao ato de estudar, como podemos perceber na
fala do Samuel:

A mãe gosta de que eu estude, não sei se ela gosta de que eu brinque. O
pai tem vez, não sei se ele gosta de que eu brinque, mas ele gosta de que
a gente estude (Samuel F., 7anos).

Podemos perceber nessa fala a dicotomia entre o estudo e o


jogo, entre o sério e o riso, o prazer.

159
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Os pais foram unânimes em dizer que seus filhos têm tempo


para brincar. A única condição apontada foi o compromisso com os
deveres da escola.

Tem todo o tempo. São só os deveres e a escola. Todo o resto é para brin-
car (Sebastião, avô da Ana Cláudia).

Isso pode ser confirmado na fala das próprias crianças, pois


foram comuns expressões do tipo:

Tenho muito, muito tempo mesmo. É só fazer os deveres. Tenho tempo


pela manhã, à tarde e à noite (Ricardo, 7 anos).

A lógica “primeiro o dever, depois o prazer” expressa, por


Oliver e Marcellino (1996), que já se tornou um dizer popular, con-
firmou-se na realidade pesquisada, porém o mais importante é que,
além de dispensarem um tempo exclusivamente para estudarem, as
crianças dispõem de um bom tempo para brincarem.
Em relação aos espaços para jogos e brincadeiras, no local
onde foi realizado a pesquisa, foram identificadas muitas condições
nas ruas, nos lotes baldios e em casa de amigos. Verificamos que 22
pais entrevistados (66.7%) não demonstraram ter preocupação em
limitar as brincadeiras dos filhos ao espaço de suas casas ou lotes,
pois o local onde moram oferece relativa segurança. A preocupação
em limitar os espaços do brincar dos filhos ao lote onde moram foi
apontada por 11 pais (33.3%), por residirem próximos à rua mais mo-
vimentada do bairro, que dá acesso a outros bairros da cidade ou por
residirem em locais próximos a bairros e a vilas que se formaram por

160
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

meio de invasão de terras, alegando, assim, medo da marginalidade e


de tráfico de drogas, como foi o caso de dois deles.

Ele pode brincar no porão, na rua ao redor de casa, dentro de casa. Fora
do terreno não. Há muito movimento nessa rua (Cláudia, mãe do Gui-
lherme V.).

Por vários lugares, na rua, aqui na frente. Só não ali para baixo, há muita
droga, é muito perigoso (Zenir, mãe do Alex).

Da mesma forma que os pais, as crianças reconheceram que,


além de tempo, elas têm bons espaços para brincarem, pois todas mo-
ram em casas de planta baixa e, mesmo quando não podem sair para
brincarem na rua, possuem o espaço do lote.

Eu tenho bastante espaço, eu vou brincar na casa de um monte de ami-


guinhos (André, 7 anos).

O espaço é dentro de casa e no cercado, fora a mãe não deixa (Ricardo,


7 anos).

Isso não ocorre em toda parte. Em várias partes do mundo


e também no Brasil, há um verdadeiro “roubo da infância” de muitas
crianças, que são exploradas na medida em que são submetidas ao
trabalho duro durante muitas horas diárias, principalmente nos cen-
tros urbanos e em fazendas da região norte e nordeste56. Felizmente,
56.  Sobre esse assunto, ver os trablahos de Maurício Roberto da Silva. Dentre eles, podemos citar “Tra-
balho e lazer: reflexões introdutórias acerca dos sonhos das crianças brasileiras sem infãncia” (1997).

161
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

isso não ocorre, com as 22 crianças pesquisadas. Isso confirma mais


uma vez o perigo das generalizações em pesquisas, principalmente
quando se trata de conhecimentos relacionados às Ciências Sociais.
Se essa pesquisa fosse realizada no centro da cidade, possivelmente
as crianças não teriam os mesmos espaços e, mesmo em relação às
questões de tempo, é bem provável que haveria variações.
Também perguntamos aos pais se eles já haviam confeccio-
nado algum brinquedo para o filho, bem como se costumavam par-
ticipar de alguma brincadeira ou jogo. Essa mesma pergunta foi feita
também às crianças. A maioria dos pais, 81.3% deles, disseram que já
haviam construído pelo menos um brinquedo para os filhos. Descre-
veram também o momento e o tipo de brinquedo que construíram.
Na fala das crianças, esse número se reduziu para 47.6%, pois muitas,
provavelmente por não lembrarem, responderam que os pais nunca
tinham construído nenhum brinquedo para elas. Em contrapartida,
houve maior aproximação entre a fala dos pais e das crianças quando
se referiram ao brincarem juntos. Um percentual de 82.4% do total
de pais respondeu que costumavam brincar com os filhos, sempre
que podiam. Alguns deles disseram que era uma forma de compen-
sar a ausência, devido ao trabalho.

Na hora em que eu tenho tempo, brinco com eles. Às vezes, eu estou


sentado e eles ficam pedindo: – Pai, vem brincar! Mas, eu gosto, porque
sei que a criança se apega na gente. Então, toda hora que dá certo eu vou
brincar para compensar (Roberto, pai do Ricardo).

Na fala das crianças, esse número se reduziu um pouco. Mes-


mo assim, 72% delas disseram que os pais participam de seus jogos e
brincadeiras, sempre que podem.

162
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tem vez que brincam meu pai e minha mãe. Minha mãe, às vezes, brinca
de futebol, e meu pai também brinca de carrinho (Maicon, 7 anos).

Os pais demonstraram preocupação em garantir alguns es-


paços para participarem das atividades lúdicas de seus filhos. O im-
portante é que as próprias crianças confirmaram esse fato.

Fatores que influenciam na escolha dos jogos e brinquedos


das crianças

Algumas questões já foram apontadas como definidoras


na formação dos gostos por determinados jogos, brincadeiras e
brinquedos. Apesar disso, temos algumas considerações mais es-
pecíficas e objetivas a fazer ,a partir das análises das entrevistas.
Procuramos saber qual o último brinquedo que os pais ha-
viam dado ao filho ou filha, e o motivo. Os brinquedos apontados
foram diversos e os critérios para a compra também. Uma grande
quantidade dos pais (64.7% deles) alegou ter dado o brinquedo por-
que era o que o filho ou filha queria.
Muitos deles falaram na insistência dos filhos até conseguirem
o brinquedo:

Uma boneca grandona. Ganhou porque ela queria, ela viu na televisão. Ela
é um tipo de criança que onde ela vai ela cisma em um brinquedo, e fica
perturbando, até que a gente se enche e dá (Salete, avó da Mariana).

163
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Foi um carrinho de controle remoto, porque ele pediu, insistiu até ganhar
(Vilmar, pai do Rafael).

Um percentual de 23.5% dos pais disse que deu o brinquedo


porque quizeram dar, porque haviam gostado ou porque sabiam que o
filho ou filha iria gostar. Apenas 11.8% dos pais disseram que usaram
como critério dar o brinquedo mais educativo, que ajudava no desen-
volvimento dos filhos. Alguns deles chegaram a substituir o que os fi-
lhos pediram por algo semelhante, com fins mais educativos, como no
caso a seguir:

Ele pedia o videogame, mas eu acho que o videogame não tem tanta tática.
Então, o Magic Computer, já é um mini-computador. Ele escreve, educa,
faz continha. Tem diversas coisas e qualidades, por isso é melhor do que o
vídeogame (Carlos, pai do Guilherme V.).

Outra questão que apareceu foi o quanto a televisão e as pró-


prias lojas, com as mais variadas opções, influenciam as crianças nos
pedidos dos brinquedos. Segundo Brougère (1997, p. 57), “a televisão
tem influência sobre a imagem do brinquedo e sobre seu uso e, é claro,
estimula o consumo de alguns deles”. Podemos observar o fato em falas
como:
Eles querem porque eles veem. É mais a televisão, porque o Lucas tudo o
que vê, na televisão, quer (Lenir, mãe do Lucas).

Porque hoje você vai a uma loja, em qualquer lugar a gente vê brinquedo
de todo tipo. O que a gente pensar de brinquedo existe (Roberto, pai do
Ricardo).

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A partir de muitos outros depoimentos que foram nessa


mesma direção e do critério de os pais darem aos filhos o brinquedo
que eles pedem (64.7% deles), poderíamos dizer que as questões eco-
nômicas não interferem nesta definição. Todavia, em meio às falas,
as contradições apareceram e as dificuldades econômicas surgiram
também como definidoras, pois influenciam na hora da compra dos
brinquedos das crianças.

A gente não vai comprar aquilo que não pode. O Bambotcham, a gente
não deu porque era muito caro, daí nós demos o outro (Salete, avó da
Mariana).

Eu e o meu marido nunca fomos de comprar muito brinquedo, só o que


tiver no nosso alcance nós damos (Lenir, mãe do Lucas C.).

As crianças pesquisadas têm pouco acesso aos brinquedos


eletrônicos, principalmente por dificuldades financeiras dos pais. As
próprias crianças percebem que, conforme o preço do brinquedo, elas
não têm possibilidade de obtê-los:

Eu queria um carrinho de controle remoto. Não ganhei porque a mãe


não tinha dinheiro (Alex, 8 anos).

Eu vi na loja uma bicicleta de 18 marchas. Eu quero uma daquelas, mas


só vou ganhar depois da geladeira (Lucas C., 7 anos).

Mesmo não sendo objetivo desse estudo, não podemos dei-


xar de apresentar algumas questões de gênero que apareceram nos

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

depoimentos dos pais e das próprias crianças ao falarem dos jogos e


dos brinquedos que mais praticam e de que gostam, principalmente
relacionados às atividades de representações de papéis sociais.
Baseados no referencial teórico que fundamenta este estu-
do e, em nossas investigações, podemos dizer que, tanto os meninos
quanto as meninas, já têm internalizado os brinquedos e as brincadei-
ras específicas para cada sexo em nossa sociedade. A forma de brincar
representa padrões que devem ser seguidos, como podemos perceber
na fala das próprias crianças.

Eu brinco de boneca, por que é coisa de menina (Elis, 8 anos).

De boneca? Hããã eu brinco com meus brinquedos, eu não sou mulher


(Samuel S., 7 anos).

De casinha não, porque eu não sou menina (Rafael, 9 anos).

De carrinho não, porque eu sou menina (Alessandra, 7 anos).

Essas falas somente surgiram, porque, em alguns momentos


de nossa conversa, tivemos que provocá-los, pois sentíamos um certo
constrangimento por parte das crianças quando tinham que falar so-
bre jogos e brinquedos que não condizem, em nossa sociedade, com
brinquedos ou brincadeiras que caracterizam o que está determinado
para o seu sexo. Em muitos desses momentos, durante as entrevis-
tas, principalmente por parte dos meninos, para “confessarem” que
já brincaram de algumas atividades ou brinquedos que são conside-
rados de meninas, chegaram a baixar a voz, parecendo estarem com

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

medo de que mais alguém os escutassem. Isso pode ser evidenciado


principalmente em brincadeiras como casinha e boneca. Dentre os
entrevistados, 7 meninos admitiram que brincam, porém em situa-
ções muito particulares.

De casinha não, de boneca não (rindo). (Por quê?, perguntamos). Por-


que sim, tem vez que eu brinco com uma menina. Agora eu não brinco
mais, porque a mãe não deixa (Samuel F., 7 anos).

De boneca e casinha não (rindo), porque não. Tem vez, né? (baixinho),
quando a minha prima me chama, quando eu vou lá na casa dela (Mai-
con, 7 anos).

Em relação à própria brincadeira de escolinha, 10 meninos


apontaram que brincam, mas como alunos, ficando o papel de pro-
fessora a uma menina.

Eu já brinquei de escolinha. Era professora, não era professor. Era a


Milena que era professora (Leandro, 7 anos).
De escolinha não, não tem ninguém pra brincar (Guilherme V., 7 anos).

O fato de o Maicon ter baixado a voz ao falar que já brincou


de casinha, como outros também fizeram, e o “ninguém” expresso na
fala do Guilherme V. nos fizeram lembrar do alerta de Ludke e André
(1995, p. 36):

O entrevistador precisa estar atento não apenas [...] ao roteiro preesta-


belecido e às respostas verbais que vai obtendo ao longo da interação.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Há toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não-ver-


bais, hesitações, alterações de ritmo, enfim, toda uma comunicação
não-verbal cuja captação é muito importante para a compreensão e a
validação do que foi efetivamente dito.

Nesse sentido, na leitura que fizemos da fala de Guilherme


V., o “ninguém” significava a falta de uma menina para ser professora,
pois as meninas, se estão de fato sozinhas, representam o papel de
professora e imaginam a presença de muitas crianças como alunos.
Isso pode ser identificado na fala dos pais de todas as meninas:

Ela vai inventando nome de crianças, nome mesmo de crianças que hoje
estudam com ela. Ela faz de conta que estão todos aqui na sala com ela
(Clarisse, mãe da Alessandra).

As meninas confirmaram o que os pais falaram, pois todas


apontaram a escolinha como sendo a atividade de que mais brincam
em suas casas.
A influência dos pais na internalização das representações
sociais, na construção do imaginário do que é brinquedo e brincadeira
de homem e o que é de mulher ficou evidente na fala de algumas
crianças:

Não, porque de boneca eu não gosto, porque o pai falou que é coisa de
menina (Lucas V., 8 anos).
Eu nunca brinquei de carrinho, porque o pai não deixa eu brincar
(Suelen, 7 anos).

168
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Da mesma forma, podemos apresentar recortes de falas dos


pais que nos permitiram constatar a influência que suas mediações
exercem sobre a formação dos processos de representação mental,
do que é brinquedo e brincadeira de menino e o que é de menina,
que são internalizados pelas crianças. Muitos deles demonstraram ter
consciência dessas interferências.

Às vezes, nós mesmos adultos colocamos na cabeça das meninas e dos


meninos essa diferença, porque nós dizemos: - Não se mete, porque são
as meninas que estão brincando. É brincadeira de menino, é brincadeira
de menina (Salete, avó da Mariana).

A gente é que não deixa também. Às vezes, meu neto quer brincar de
casinha com a Joeine. Aí ele começa também a trocar roupa de boneca, e
a gente logo vai dizendo: – Isso aí não é pra ti, é coisa de menina. Aí nós
tiramos (Naide, avó da Joeine).

Essas falas nos remetem a Leontiev (1978), quando diz que


a realidade se apresenta ao homem, de maneira particular na sua sig-
nificação, a qual é refletida e fixada na linguagem, garantindo a sua
estabilidade. Nesse sentido, Brougère (1997, p. 71) afirma que “[...] a
manipulação de brinquedos permite, ao mesmo tempo, manipular os
códigos culturais e sociais e projetar ou exprimir, por meio do com-
portamento e dos discursos que o acompanham, uma relação indivi-
dual com esse código”.
Diversos são os fatores que podem estar influenciando na
definição dos gostos e preferências dos jogos e brinquedos das crian-
ças, e eles aparecem no meio de contradições que muitas vezes nos

169
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

levam a explicá-los de maneira simplista, correndo o risco de reduzir


os fatos a um único motivo.
Por meio das entrevistas, tivemos oportunidade de identifi-
car os critérios que os pais utilizam para dar os brinquedos aos filhos.
Conseguimos também verificar, dentre vários fatores, que o precon-
ceito, principalmente o relacionado às questões de gênero, também
é um dos fatores que impede as crianças de jogarem ou brincarem
com determinados brinquedos. Da mesma forma, vimos a influência
da televisão na definição dos gostos e preferências pelos brinquedos,
bem como a dos próprios pais na definição dos significados que pos-
suem internalizados.

170
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

VI
IMPORTÂNCIA QUE A ESCOLA
ATRIBUI AOS JOGOS, BRINCADEIRAS E
BRINQUEDOS DOS ALUNOS

Neste capítulo, apresentamos, em cinco momentos diferen-


ciados, os resultados que mostraram a importância que a escola atri-
bui ao jogo, à brincadeira e ao brinquedo das crianças.
Em um primeiro momento, apresentamos o texto “Um olhar
sobre os documentos da escola”, em que, a partir de análise de docu-
mentos, expomos nossas interpretações.
Em seguida, relatamos as análises das observações realizadas
na sala de aula, durante o horário escolar, as quais, para efeito didáti-
co, chamamos de “Observando a sala de aula”.
No terceiro momento, apresentamos os resultados a partir
de nosso olhar sobre o desenvolvimento das aulas de Educação Física
na escola.

171
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Um pouco do que acontece no recreio da escola é apresenta-


do como o quarto item deste capítulo.
E, por último, tratamos de apresentar os indicadores que nos
abrem possibilidades de se pensar a escola como um lugar de apren-
dizagens mais significativas e prazerosas, tendo o jogo como elemen-
to mediador.

Um olhar sobre os documentos da escola

Nem sempre há coerência entre o que as pessoas pensam e


falam e o que elas fazem. Esse fazer, principalmente quando se trata
de uma instituição formal, como é o caso da escola, deve estar articu-
lado e ser coerente com uma proposta, um projeto, um planejamento
e um plano de aula. Por isso, na tentativa de apreender toda essa rede
de relações entre o pensar, o planejar e o fazer, é que procuramos
analisar alguns documentos da escola. Essa análise ocorreu no final
do ano de 1998, paralelamente às entrevistas com a direção e as pro-
fessoras.
A escola em que realizamos a pesquisa atendia, em média, a
450 alunos, que estudavam distribuídos em 16 turmas, desde a Edu-
cação Infantil até a 8ª série do Ensino Fundamental. O corpo de fun-
cionários era composto por 27 pessoas, das quais cinco exerciam a
função de serventes e merendeiras, 18 eram professores e quatro fa-
ziam parte da equipe administrativa, sendo uma diretora, um auxiliar
de direção, uma secretária e uma orientadora educacional.
Primeiramente, vamos falar sobre o projeto político pedagó-
gico da escola. Nossa atenção se voltou especificamente para a iden-

172
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

tificação de procedimentos e ações que a escola se propõe a realizar,


contemplando as atividades de jogos, brincadeiras e brinquedos na
unidade escolar.
Identificamos várias questões contempladas no projeto e
apontadas como pontos fracos do ambiente interno da escola, como a
falta de materiais e estrutura para a prática do esporte e dos jogos, os
quais foram priorizados para o ano de 1998. Foram elas: ausência de
jogos de salão para a prática de Educação Física, lugar para a prática
desportiva que não atrapalhe as outras salas e pintura da quadra e
calçadas com jogos. Perguntamos à diretora da escola quais as ações
que foram realizadas para que essas prioridades fossem alcançadas.
Informou-nos que não compraram jogos de salão, pois a prefeitura
havia mandado uma mesa de tênis. Em relação ao local para a prática
da Educação Física, fomos informados que não faltou empenho para
conseguir que a prefeitura aplainasse o terreno, mas não foi possível
encontrar o dono para dar autorização para o uso. Quanto à pintura
dos jogos nas calçadas, ela disse:

Não foi feito. No ano anterior foi pintado. Os professores de Educação


Física e de Educação Artística não tiveram hora atividade, pois fizeram
isso. Faltou vontade, um pouco de empenho também (Diretora da esco-
la).

Ainda na análise, detectamos que, na parte de prioização


dos problemas apontados no projeto, havia um item, entre os cinco
apontados, que abria novas possibilidades de ser priorizado no es-
paço escolar o jogo, as brincadeiras e o brinquedo. Esse item dizia:
“Promover cronogramas de atividades que resgatem e contemplem

173
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

as partes cívicas, esportivas, religiosas e culturais”. O nosso próximo


passo, então, foi a análise do cronograma de atividades da escola re-
ferente ao ano de 1998. Dentre as seis atividades programadas, duas
contemplavam as atividades lúdicas das crianças: a festa folclórica,
agendada para 08 de agosto, e a rua de lazer, programada para 03 de
outubro. Ao conversar com a direção da escola, constatamos que a
festa folclórica não havia acontecido, e os professores, em suas salas
de aula, fizeram atividades alusivas ao folclore. Quanto à rua de lazer,
pudemos verificar que ela também não havia sido realizada, pois já
nos encontrávamos na escola desde agosto e não a vimos acontecer.
O que ocorreu de fato foi que, em alguns dias da semana, em come-
moração ao dia da criança, elas tiveram aula na sala até o recreio, de-
pois participaram de atividades recreativas na quadra. Na entrevista,
a diretora disse que a festa folclórica e a rua de lazer não aconteceram
porque houve mudança no calendário, que passou de 200 para 180
dias letivos, não havendo necessidade de cumprir as atividades pro-
gramadas para os sábados.
Ficou claro que atividades dessa natureza não têm muita im-
portância, a partir das atitudes tomadas pela escola. Inclusive, isso
também está implícito no discurso da própria diretora, ao se referir
às atividades da semana da criança: “Até o recreio foi aula normal e
depois foi atividade”. Leiamos, portanto: “depois do recreio foi anor-
mal, estranho para uma escola, que é um lugar sério, de trabalho e de
estudo”.
Em relação aos materiais que orientavam os trabalhos
em sala de aula, como apostilas e textos enviados pela Secretaria
de Educação do município de Criciúma, elaboradas com a participa-
ção dos professores de 1ª série, pudemos perceber certa preocupação

174
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

com atividades pedagógicas que garantissem ao aluno a possibilidade


de se apropriar do conhecimento, de forma mais prazerosa e signifi-
cativa.
A apostila “Pontos Básicos para a Reflexão sobre o Trabalho
com Escrita e Leitura” (1998), enviada pela Secretaria, iniciava dessa
forma: “[...] as crianças podem trabalhar com vários tipos de textos de
forma lúdica e interessante. O trabalho escolar para ser competente
não precisa ser pesado e cansativo”. A apostila “Construindo com a
Criança: Subsídios para Professores de 1ª série” (1996) trazia em sua
introdução o seguinte texto: “Esperamos que este trabalho possa con-
tribuir para a construção de uma prática pedagógica dinâmica e praze-
rosa”. Esse documento iniciava indicando os vários tipos de jogos que
são necessários em um ambiente alfabetizador, tais como: quebra-ca-
beça, dominó, bingo de letras, palavras, figura, numeral, nomes com
rótulos de embalagens, brinquedos de roda e música que envolvam o
nome dos alunos, dramatização, jogos dramáticos, brincadeiras, trava-
-línguas, dentre muitas outras atividades que não cabe aqui enumerar.
Como a contradição é uma constante nessa apostila, ela apa-
receu, pelo menos, em dois momentos: na proposição de como fazer
uma descrição, que dizia: “Nossa cabeça pensa o tempo todo. Pensa-
mos em brincadeiras e brinquedos, pessoas e animais e muitas outras
coisas. Agora pense em uma pessoa de que você gosta muito e escreva
sobre ela”. Houve dois inconvenientes nesse encaminhamento: o pri-
meiro deles refere-se à legitimação da dicotomia entre corpo e mente,
como se fosse possível pensar só com a cabeça. O segundo, por iniciar
pedindo às crianças que lembrassem de suas brincadeiras e brinque-
dos e, depois, solicitar que escrevessem sobre uma pessoa, perdendo a
oportunidade de escreverem sobre algo muito significativo para elas,

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

ou seja, os jogos, as brincadeiras e os brinquedos que foram solicitados


que lembrassem. Outro destaque nesse mesmo texto foi a expressão:
“O que vai ser essa criança, quando crescer?”, que encaminhava uma
atividade de interpretação para as crianças. Essa é uma forma de se
expressar, que pode estar carregada de preconceito, pois desconsidera
a criança presente, como se ela já não fosse, só será no futuro, depen-
dendo da profissão que virá exercer.
Também analisamos o programa de conteúdos da 1ª série,
em que constavam todas as disciplinas e o rol de conteúdos que de-
veria ser trabalhado durante o ano letivo. As possibilidades lúdicas
na sala de aula apareceram na disciplina de Educação Artística, mais
especificamente distribuídas em dois conteúdos: expressão musical e
expressão cênica. No conteúdo expressão musical, como exemplos de
atividades constavam: brinquedos cantados, música popular, erudita
e folclórica, sempre relacionadas a alguma forma de representação,
análise e registro, com fins educativos. No conteúdo expressão cênica,
apareceram a mímica, os jogos dramáticos (ações e representações) do
cotidiano, do imaginário e da ficção, as lendas, as fábulas, a poesia e a
música.
O caderno de plano de aulas da professora da primeira sé-
rie também foi analisado. O que verificamos foi que a professora não
costumava registrar no caderno de planos, diariamente, as atividades
que planejava e que executava com seus alunos. Quando pegamos o
caderno de planos para ser analisado, a professora foi logo dizendo:

Tem uma coisa, eu não costumo planejar todas as aulas e registrar no


caderno. Eu quase não registro57.

57.  Diário de campo, sexta-feira, 20 de novembro.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Outra expressão que caracterizou certo espontaneísmo, por


parte da professora, e, por isso, uma não-necessidade premente de
planejar foi durante a entrevista:

Eu trabalho o que acontece, então eu não posso trabalhar uma coisa que
já esquematizei em casa. Não tem como (Prof.ª da 1ª série).

Os planos de aula, registrados no caderno, não eram claros,


porque as atividades não estavam desenvolvidas, mas colocadas em
forma de tópicos, impossibilitando maior compreensão sobre o que
havia realmente ocorrido em sala de aula, em cada dia.
Mesmo assim, foi possível observar, nos planos registrados,
que, no mês de agosto, haviam sido intensificadas as atividades como
brincadeiras e lendas folclóricas. Encontramos planejadas, em algu-
mas datas, atividades como: recordar cantigas, bingo silábico, bingo
de número, música e canto.
No planejamento anual de Educação Física, elaborado para
os alunos de 1ª e 2ª séries, encontramos uma forma bastante tradi-
cional de se elaborar objetivos e conteúdos. A maioria deles voltados
ao desenvolvimento de habilidades psicomotoras, como motricidade
ampla, percepção tátil e visual. Muitos enfatizavam o desenvolvimento
de concentração, percepção, raciocínio e memória. “Treinar habilida-
des para se chegar aos jogos pré-desportivos” também era um dos ob-
jetivos no planejamento, e o conteúdo era jogos recreativos. A forma
de elaborar o objetivo “Treinar habilidades” é uma maneira bastante
tecnicista/mecanicista, enquanto o conteúdo relacionado aos “jogos
recreativos” apontava para uma atividade mais espontânea, prazerosa.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

“Desenvolver o espírito competitivo” também era um dos ob-


jetivos presente no planejamento, apesar de todas as discussões e crí-
ticas atuais em torno desse assunto, como tivemos oportunidade de
ver na Proposta Curricular de Santa Catarina (1998), no Coletivo de
Autores (1992), em Bruhns (1996) e nas reportagens de revistas citadas
anteriormente. Outro objetivo estava assim colocado: “Desenvolver
concentração, espírito competitivo - proporcionar relaxamento e me-
morização”. Há uma inadequação nesse objetivo: primeiro, porque são
quatro objetivos em um só; segundo, porque é muito difícil uma ativi-
dade de concentração e competitiva ser relaxante; terceiro, porque os
conteúdos relacionados a esse objetivo se resumiam em jogos intelec-
tuais. Outro objetivo bastante amplo e vago foi o seguinte: “Atividades
que desenvolvam criatividade, espontaneidade e prazer”. O conteúdo
correspondente para se alcançar esse objetivo era apenas jogos rítmi-
cos.
O único objetivo que abria possibilidades de se trabalhar, em
uma perspectiva voltada à valorização e ao enriquecimento da cultura
corporal, apareceu no terceiro bimestre, que correspondia aos meses de
agosto e setembro. Esse objetivo estava colocado nos seguintes termos:
“Resgatar brincadeiras folclóricas que passam de gerações a gerações”.
Os conteúdos correspondentes a esse objetivo se resumiam a “brinque-
dos folclóricos e atividades complementares”. Esse termo “atividades
complementares” é um termo bastante utilizado nos planejamentos de
Educação Física, mas vago, pois, como conteúdo em si mesmo, não nos
diz nada.
Quanto ao caderno de planos de aula, identificamos uma di-
versidade bastante grande de jogos e brincadeiras tradicionais, como:
“galinha quer por”, “coelhinho sai da toca”, “compadre rato está em

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

casa”, “bate manteiga”, “de matar”, “passar anel”, “morto/vivo”, “anjo


bom/anjo mau”, “eu sou pobre, pobre, pobre de marré” e outras. Tam-
bém encontramos registradas atividades de corda, bola, arco, bastão,
atividades com música, corrida, estafeta, estátua, dentre outras. O que
nos chamou a atenção foi a separação de meninas e meninos nos pla-
nos de aulas que tinham como atividade o futebol. “Para as meninas,
corda e bambolê; para os meninos, futebol”, assim diziam os planos de
aula. Encontramos registrado dez vezes o futebol como atividade, das
quais oito vezes estavam separados meninos e meninas e, em duas ve-
zes, estava registrado apenas “futebol”, o que não nos permitiu saber
se as meninas participaram ou não da atividade.
Pelos resultados que acabamos de apresentar, baseados na
análise de vários documentos da escola, podemos dizer que há in-
coerências e contradições nos próprios documentos e uma distância
muito grande entre o que está registrado no papel e o que ocorre de
fato na realidade. Isso podemos dizer com base na constatação de
que nem sempre a professora de classe planejava as atividades de sala
de aula, bem como as metas que estavam no projeto pedagógico da
escola não foram orientadoras das ações e motivos das decisões. Esses
documentos, infelizmente, em algumas vezes, são feitos só para se
cumprir uma exigência administrativa, não tendo uma ligação orgâ-
nica com a realidade. Ou também podemos dizer que a dicotomia en-
tre teoria e prática ainda é uma constante na escola, que não consegue
perceber o quanto a teoria ilumina a prática e que essa, por sua vez,
aperfeiçoa cada vez mais a própria teoria.

179
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Analisando a sala de aula

A sala de aula da 1ª série era um local de muita conversa,


de muito “passeio” entre as carteiras, de muitas expressões de faz de
conta, de muitas trocas e de muitas experiências compartilhadas. Po-
deríamos dizer que era um ambiente agradável, com alunos muito
ativos e uma professora bastante dinâmica, esbanjando entusiasmo
com seus 25 anos de magistério. Na entrevista, ela nos disse porque é
professora de 1a série:

É porque eu amo de paixão. Adoro quando a criança está no pré-silábico


e vem se desenvolvendo, eu fico muito feliz. Como é gratificante quando
a gente consegue (Prof.ª da 1a. série).

Pelas observações, fazia parte da rotina da sala de aula a pro-


fessora cantar uma música com os alunos, todos os dias, demons-
trando sempre com muita alegria os movimentos e os gestos que a
caracterizavam. Identificamos, no mínimo, dez músicas diferentes
cantadas e dramatizadas em sala de aula, durante o período que esti-
vemos na escola. As crianças geralmente registravam a música no ca-
derno, após cantá-las, mesmo não entendendo porque o faziam. Isso
pode ser identificado em falas como a do Ricardo, que, em voz baixa,
disse para à Mariana:

Sempre que a professora canta uma música nova ela quer que a gente
escreva no caderno. Não sei para quê.58

58.  Diário de campo, terça-feira, 20 de outubro de 1998.

180
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Durante esse período, pudemos perceber o esforço da pro-


fessora em buscar fatos da realidade muitas vezes das próprias crian-
ças, a fim de relacionar com os conteúdos que queria introduzir. A
professora nos disse na entrevista que realizávamos que, sempre que
possível, utilizava jogos na sala de aula, desde que conseguisse in-
troduzir os seus objetivos ou, conforme ela, “introduzir não, eles já
sabem, eu quero é reforçar”. Podemos citar como exemplo algumas
atividades que discorreram nesse sentido, tais como: aproveitar as bo-
linhas de gude para realizar problemas de Matemática; escrever frases
sobre o final de semana que passaram; dramatizar o nascimento e
crescimento de uma semente; falar sobre o que dá prazer na escola;
formar frases a partir de figuras de personagens conhecidos.
Não podemos nesse espaço descrever todas as atividades;
por isso, optamos por apresentar duas delas que demonstraram como
o brincar ainda é muito significativo para as crianças dessa série. A
primeira delas foi uma atividade de grupo de cinco a seis crianças, em
que a professora solicitou que escrevessem, em um pedaço de papel
pardo, as coisas que fossem mais prazerosas na escola. A primeira
equipe, representada pelo Ricardo, disse o seguinte:

Nós gostamos do cantinho da bela vista, da professora e da direto-


ra. Também da professora de Educação Física e gostamos muito da
Educação Física.

A professora perguntou: “O que é o cantinho da boa vista?”.


“É o nosso clube. A gente brinca”, disse Ricardo. “É perto do muro, lá
no canto, lá no cimento. A gente brinca, conta piada, é a nossa barra
quando a gente brinca de pegar”, disseram Mariana e Ricardo.

181
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Para a segunda equipe, o que proporcionava mais prazer na


escola eram as brincadeiras (Ana Cláudia, 7 anos), a Física (André, 7
anos), os desenhos (Samuel S., 8 anos) e os carros (Guilherme V., 7
anos). A professora pediu para eles lerem o que escreveram no papel,
Guilherme V. passou a ler:
“Recreio, física, estudar, sala de aula (“isso, muito bem”, disse
a professora), a diretora e os amiguinhos”. “Por que gostam do re-
creio?”, perguntamos. “Porque a gente brinca,” disse Guilherme V.
“Porque daí a gente se diverte”, disse Ana Claúdia. “Por que gostam da
Educação Física?”, perguntamos. “Porque a gente se diverte, porque a
gente fica alegre”, disse Guilherme V. “Por que é legal a sala de aula?”,
perguntamos. “Porque tem as gravuras”, disse Ana Cláudia. “Porque
a gente estuda, a gente aprende, a gente pode cantar musiquinha às
vezes, dançar”, complementa Mariana.
A terceira equipe foi mais objetiva nas respostas: “Leite, me-
renda e bar” Perguntamos: Por quê? “Porque tem comidinha, doce,
pão, amigos, física, porque é legal tem bambolê, tem corda, bola, es-
crever, estudar é bom, pois a gente aprende”, falou Guilherme I.
No quarto grupo, o Alex falou pintar, estudar, aprender,
prestar atenção na professora, jogar futebol, desenhar, recortar, teatro,
continhas, escrever no quadro, basquete, bambolê, brincar e meren-
da59.
A outra atividade que mereceu nosso destaque foi a elabora-
ção de frases a partir de uma figura onde o Mickey e a Eliana, apre-
sentadora de programa infantil na televisão, apareciam abraçados. As
duas primeiras frases que surgiram foram: “A Eliana está brincando
de abraçar o Mickey” (Elis, 8 anos) e “A Eliana brinca com o Mickey

59.  Diário de campo, terça-feira, 08 de setembro de 1998.

182
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

de pega-pega” (Lucas C., 7 anos)60. A figura embora não representava


nenhuma situação de brincadeira deu asas à imaginação das crianças,
as frases remeteram ao brincar.
É notório como as crianças apontaram as atividades lúdicas
como as que dão mais prazer na escola. No entanto, não podemos
deixar de registrar que também o estudar e o aprender, mesmo em
situações formais, sem a presença do jogo, foi bastante mencionado
como algo que dá prazer na escola. A dicotomia entre o lúdico, o pra-
zer e o trabalho escolar parece não ser tão forte ainda nas crianças
dessa série. Todavia, a própria professora, sem perceber, em meio as
contradições, também contribui para que aos poucos isso ocorra, pois
era comum ela dizer: “Minha gente, vamos trabalhar”61, sempre nos
momentos em que as crianças tinham que registrar algo por escrito.
O que observamos também na sala de aula, durante o de-
senvolvimento das atividades, foi uma ênfase muito grande na inte-
ligência e no raciocínio. Quase que diariamente a professora usava
expressões como:

Agora eu quero ver o inteligente da sala. Vamos ver se ele é inteligente


mesmo62.

Vamos usar o raciocínio antes de responder. Não pode deixar o colega


copiar, porque vai ter aquele aluno que não vai saber raciocinar63.

60.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto 1998.


61.  Diário de campo, terça-feira, 24 de agosto 1998.
62.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto 1998.
63.  Diário de campo, terça-feira, 20 de agosto 1998.

183
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Em alguns momentos, a professora utilizava expressões que,


mesmo amenizadas pela forma e pelo tom de voz, não deixavam de
ser preconceituosas e discriminatórias:

Certo eu já sei que tu és bem rápido. Visse como tu andas distraído64.

Dizem que quem mama fica mais inteligente65.

Oh, Samuel, seja homem, Samuel66.

No entanto, apesar de expressões como essas, a relação entre


a professora e as crianças era permeada de muita afetividade e amiza-
de: todos se chamavam pelo nome, inclusive a professora. Essa rela-
ção permitia certa liberdade para as crianças manifestarem seus dese-
jos, suas necessidades, seus gostos e desgostos, e isso nos possibilitou
observar e registrar ricas e fascinantes ações e representações, tanto
dos alunos quanto da professora. Entre as propostas de trabalho no
quadro negro, as explicações, as correções, os encaminhamentos de
registro nos cadernos, os intervalos, muitas manifestações ocorriam
nos bastidores do oficial, como resistência ao que era recomendado
ou estabelecido.
Este fato nos fez relembrar de Oliver e Marcellino (1997, p.
126), ao afirmam que, “se o lúdico for expulso da escola [...], ele con-
tinuará, no entanto, presente na vida [...]; a vida que sempre encontra
uma maneira de se manifestar”.
64.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto 1998.
65.  Diário de campo, segunda-feira, 14 de setembro 1998.
66.  Diário de campo, terça-feira, 22 de setembro 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A professora, na entrevista, disse-nos que percebia que mui-


tas crianças brincavam durante as atividades de escrever, nos interva-
los, durante as correções e demonstrou dúvidas sobre o porquê de isso
acontecer.

Eles são passados, às vezes eles brincam. É falta de atenção, concentração


ou eles não querem fazer aquilo? Ou não chamou a atenção ainda? Pode
ser, aí é preciso dar uma puxada: – Vamos lá, tu sabes o que é para fazer?
(Prof.ª da 1ª série).

As reações das crianças eram diversas e as expressões de movi-


mentos se manifestavam desde um subir e descer da cadeira, escorregar
no assoalho da sala, dar uma volta ao redor da carteira, dançar até o fre-
quente e significativo “ritual do lixo”, o qual chamamos o ato de apontar
o lápis, que acontecia todas as vezes que os alunos tinham que registrar
atividades no caderno. Em uma das tardes, propusemo-nos a registrar e
chegamos a um número de 18 vezes de idas ao lixo para apontar o lápis,
pelas crianças. Algumas vezes, a professora tentava evitar, dizendo, por
exemplo: “Mas já Guilherme, apontar lápis?” 67, ou ainda quando estava
com pressa: “Vamos, Joeine, depois eu faço pra ti”68.
A professora em atividades de pintura favorecia o movimento
em sala de aula, pois colocava em um local determinado uma caixa de
lápis de cera e as crianças iam pegar um a um, conforme as cores que
iam precisando. Em uma tarde em que a professora encaminhou uma
atividade de pintura, por curiosidade, chegamos a contar o número de
vezes que as 22 crianças se levantaram, e chegamos a um número ex-
pressivo de 244 vezes69.
67.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto 1998.
68.  Diário de campo, segunda-feira, 14 de setembro 1998.
69.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

As imitações e o faz de conta, nos mais variados temas e con-


teúdos, também ocorriam frequentemente em sala de aula. Dentre os
muitos momentos que ocorreram, elegemos alguns para demonstrar.
Enquanto a professora passava e corrigia os cadernos, a Mariana vi-
rou-se para trás, pegou um lápis de cera do penal do Ricardo e fez de
conta que estava passando batom lentamente em seus lábios e, em
seguida, trocou de lápis e passou nas sobrancelhas70. Em um outro
dia, quando voltavam do recreio, Guilherme V. entrou na sala apon-
tando um revólver de brinquedo para o Guilherme I., que se fazia de
assustado, enquanto o Guilherme V. dizia: “Já está morto, morto!”71.
Nesse mesmo dia, enquanto a professora falava sobre as diferenças
entre animais de penas, de pelos, ovíparos, mamíferos e outros, o Lu-
cas C. pegou um lápis pequeno e lançou no chão da mesma forma que
se lança um pião real.
Entre uma atividade e outra, era comum as crianças se agru-
parem para conversar e brincar. Em um dos intervalos, Guilherme V.
e Thomaz estavam brincando com seus lápis, fazendo de conta que
eram bonequinhos e conversavam: “Olá, amiguinho, tudo bem?”, dis-
se Guilherme V. “Tudo. Vamos brincar”, disse Thomaz. O Samuel V.
entrou na brincadeira com seu lápis, fazendo de conta que era uma
espada e logo todos começaram a lutar, transformando seus lápis em
espadas72.
Outra conversa comum em sala de aula era combinarem do
que iriam brincar na hora do recreio. O André foi o garoto que mais
demonstrou interesse em jogar bolinha de gude e quase todos os dias
ele dizia: “Oh, eu trouxe para jogar no recreio”. Ao mesmo tempo, já
70.  Diário de campo, sexta-feira, 28 de agosto 1998.
71.  Diário de campo, terça-feira, 1º desetembro 1998.
72.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

combinava com quem iria jogar: “Primeiro eu jogo com ele, depois
contigo”73. O Samuel V. e o Lucas C. eram seus maiores parceiros no
jogo de bolinha de gude.
Uma simples figurinha foi motivo de muitos olhares, de vá-
rias falas e discussões férteis, comparações, trocas e admirações em
sala de aula, que poderiam ter sido transformadas em momentos de
debates, produções e registros coletivos muito significativos para as
crianças. A maioria das crianças faziam coleção em álbuns, ou ti-
nham coladas nos cadernos figurinhas das mais diversas variedades,
da copa, do Mickey, das Chiquititas, de Chicletes, de Chips e de ou-
tras. Em alguns tipos de figurinhas, havia palavras escritas em inglês,
e as crianças logo queriam saber o seu significado.
O tazo também se fazia presente na sala de aula, às vezes
sendo jogado na própria carteira, de preferência quando a professora
estava de costas.
No espaço da sala de aula, também aconteciam muitas trocas
de brinquedos, sem que a professora notasse. Eram troca dos tazos por
bolinhas de gude, bolinhas e tazos por figurinhas e outros objetos. Em
uma tarde, Samuel S. veio até a carteira do Lucas V. e pediu para trocar
uma bolinha por um tazo. Lucas V. logo disse: “Não, porque essa boli-
nha é viciada em mim, eu acerto todas com ela”. Nesse mesmo dia, o
Samuel S. fez uma troca com o Rafael. Guilherme I. quis saber a opinião
da professora se a troca estava justa: “Oh, professora, esse aqui trocou
esse carrinho por um tenaz, será que vale?”. A professora não ouviu ou
fez que não ouviu, pois continuou a escrever no quadro74.

73.  Diário de campo, segunda-feira, 21 de setembro de 1998.


74.  Diário de campo, terça-feira, 29 de setembro de 1998.

187
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Nas entrevistas que realizamos com as crianças, pudemos


perceber que todas essas manifestações, essas trocas, essas expressões
de faz de conta, que ocorreram no espaço da sala de aula, não apa-
receram em suas falas, quando perguntados se jogavam algum tipo
de jogo na sala de aula. Apenas foram lembrados os jogos que foram
desenvolvidos com a participação de todos os alunos da sala, sob a
orientação da professora. 19 crianças disseram já ter jogado na sala
de aula e três responderam que não. A expressão “brincar na sala de
aula” parece não ter sido muito aceita pelas crianças, embora brinca-
vam na realidade. Elas aceitavam mais a expressão “jogo na sala de
aula” e podemos ver isso representado na fala do André: “Nós não
brinquemos, às vezes nós jogamos joguinhos”.
Quando pedimos que citassem os jogos que eles mais joga-
vam na sala de aula, o mais lembrado foi o dado, apontado por seis
crianças. O quebra-cabeça foi apontado por quatro delas. O bingo e os
jogos de número e de adivinhar palavras ou coisas, por três. Também
foi citado o jogo de fechar casinhas, contar histórias e cantar músicas.
Na entrevista com a professora, percebemos porque o dado foi o jogo
mais lembrado, pois era um dos recursos utilizados para trabalhar
vários conteúdos, principalmente Matemática e Língua Portuguesa.

Eu fiz um jogo de Matemática com dado, com dezenas, adição, subtra-


ção, noção de tempo e horário. Eles adoraram e só queriam jogá-lo. Ou-
tro jogo foi em equipe, eles jogavam o dado e tinham que ler o que estava
escrito, se não conseguisse passava a vez de jogar. Também dado de figu-
ra, aí eles tinham que olhar e contar uma história. Esse foi de leitura oral
e saiu muitas histórias interessantes (prof.ª da 1ª série).

188
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Isso nos remeteu a Fontana e Cruz (1997, p. 139), quando


afirmam:

Nas sociedades urbanas contemporâneas, ler, escrever e estudar tornam-


-se as atividades fundamentais para as crianças em idade escolar, e os
jogos e as brincadeiras só têm lugar na prática pedagógica quando auxi-
liam a elaboração e construção de conhecimentos sistematizados.

A professora disse, na entrevista, que as atividades que im-


plicavam jogos eram as que mais atraíam as crianças, e se expressou
assim:

É o jogo, o jogo de palavras, qualquer tipo de jogo eles adoram. Falou em


jogo, eles adoram, estão ligados. A história também eles adoram. Naque-
la casinha de fantoches, todos querem ir.

A falta de articulação entre teoria e prática apareceu na


entrevista com a professora, pois nos informou que, nos encontros
pedagógicos encaminhados pela Secretaria de Educação, sempre foi
orientada para dar atividades a partir de jogos. Disse ela:

Nós temos curso, temos teórico e prático paralelos. Nós fizemos a teoria
e, depois, a prática [...]. Tudo o que elas passam nos encontros pedagógi-
cos, tudo é a partir de jogos.

Todavia, quando perguntamos se eram discutidos nesses en-


contros o significado do jogo, suas origens e os motivos que levam
as crianças a gostarem de jogos e de brincadeiras, ela nos respondeu:

189
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

“Não, eu acho que era mais a título pedagógico”. Entendemos, nessa


fala, que ela considera pedagógico somente as técnicas e as estratégias
de usar o jogo para prender a atenção da criança nas atividades pro-
postas. Perguntamos também se já havia lido algum livro sobre esse
assunto. Obtivemos a seguinte resposta: “Eu até já li, mas nem lembro
mais”.
As razões que a professora atribuiu ao fato de as crianças
gostarem de jogar e brincar e de imitar os adultos no faz de conta
demonstraram a não-compreensão desta necessidade para o próprio
desenvolvimento das crianças, pois, como podemos identificar em
sua fala, são muito parecidas com as razões apresentadas pela maioria
dos pais:

Porque deve ser próprio da criança. Ela tem uma necessidade. A criança
não para e, se parar, é porque deve estar doente, tem que levar ao médico.
É porque geralmente elas se espelham no adulto. Se ela adora o pai, ela
procura fazer aquilo que o pai faz, a fim de chamar a atenção dele, da
mãe ou qualquer pessoa. Elas acham importante aquilo que o adulto faz
(Prof.ª da 1ª série).

Podemos dizer, baseados nessa constatação, que a falta de


conhecimentos está relacionada à falta de cursos mais específicos,
com maior profundidade, e à falta de leitura desse assunto.
Esteve sempre presente em todos os dias que realizamos as
observações em sala de aula a preocupação das crianças com a aula
de Educação Física. “Oba, a Educação Física é na próxima, depois
dessa”, disse André (olhando pela janela)75. Diariamente, as crianças
75 .  Diário de campo, sexta-feira, 28 de agosto de 1998.

190
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

perguntavam umas às outras, em voz alta, na sala, e, às vezes, para a


professora: “Tem física, Ricardo?”, perguntou Guilherme V. “Não, é só
segunda, terça e quinta-feira!”, responderam em coro as crianças76. O
André interrompeu a professora e perguntou: “Professora, hoje tem
Física?”. A professora respondeu: “Acho que tem”, e continuou dizen-
do o que era para eles fazerem77.
As crianças demonstraram gostar muito da Educação Física
e, quando a professora chegava à sala, era aquela vibração. Em um
desses dias, assim que a professora abriu a porta, o Guilherme V. dis-
se: “Todo mundo gosta da Educação Física”. A professora de Educação
Física disse: “Por que será, né? Por que não precisa lápis e caderno?”.
Esse comentário da professora contribuiu para reforçar a dicotomia
entre o trabalho em sala de aula e a Educação Física. A sala de aula
como obrigação, tristeza, prisão. A Educação Física como atividade
espontânea, alegre, livre. Diante desse comentário da professora, o
Guilherme V. disse: “Para se livrar da sala de aula”. A professora de
sala demonstrou ter ficado aborrecida com esses comentários e disse:
“Muito que vocês usam mesmo o caderno, tinha que ser a outra mes-
mo, aí sim vocês podiam dizer”78.
A professora de classe deu essa resposta, referindo-se à pro-
fessora que havia lhe substituído no início do ano, por três meses, e
que ficara conhecida como muito rígida na disciplina e na quantidade
de registros no caderno. E foram todos para a aula de Educação Física.

76.  Diário de campo, sexta-feira, 28 de agosto de 1998.


77.  Diário de campo, segunda-feira, 21 de setembro de 1998.
78.  Diário de campo, terça-feira, 20 de outubro de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Analisando as aulas de Educação Física

As aulas de Educação Física geralmente aconteciam na qua-


dra da escola, exceto em três dias de observação. Em dois dias de forte
calor e sol, as aulas se desenvolveram em um espaço atrás da escola e
no pátio da igreja, que fica do outro lado da rua, embaixo de árvores.
Apenas em um dia choveu e a aula ocorreu dentro da sala. A profes-
sora, em cada aula, buscava as crianças e levava a turma, em fila, até
o local onde seriam desenvolvidas as atividades. Muitas crianças já
começavam a realizar diversos movimentos, como estrelinha, chutes,
lutinhas, dançar e outras formas de expressões, na própria fila, en-
quanto a professora, de costas, as conduzia.
Quando chegavam ao local, muitas vezes a professora tra-
tava imediatamente de fazer a formação: “Eu quero todo mundo em
fila de dois, em parzinho”79, e conduzia toda a aula apresentando e
direcionando cada passo do jogo ou atividade. Em outros momentos,
a professora iniciava as atividades e abria alguns espaços para os alu-
nos sugerirem formas diferentes de movimentos: “O que dá para fa-
zer com essa corda esticada?”80. Em algumas aulas, a professora tinha
uma postura completamente diferente, deixando os alunos totalmen-
te livres para escolherem do que eles queriam brincar. Quando ela
assim procedia, geralmente surgiam duas ou três sugestões de brinca-
deiras diferentes, e os alunos escolhiam aquela de que mais gostavam
de participar. Em todas as aulas que a professora deixou livres, a pri-
meira atividade escolhida foi o tradicional brincar de se esconder. A
própria professora se surpreendia diante do fato de sempre quererem
79.  Diário de campo, terça-feira, 25 de agosto de 1998.
80.  Diário de campo, terça-feira, 08 de setembro de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

brincar de se esconder. Ela repetiu muitas vezes a expressão: “Ah,


mais gostam de brincar de se esconder, eu nunca vi”81. “Se deixar, eles
brincam todo dia”. Em uma escola com espaço tão aberto, eles que-
rem isso82. Esse pode ser um dos motivos, conforme nos disse uma
das crianças em entrevista:
De se esconder é que é bom de brincar, porque a escola é
grande e tem bastante esconderijo (Lucas C., 7 anos).
Quando ficavam livres, geralmente escolhiam em segun-
do ou terceiro lugar “brincar de pegar”, “alerta” e “pé-na-bola”, que
também são jogos tradicionais praticados, principalmente na rua. A
professora nos disse que muitas vezes aproveitava as brincadeiras das
crianças, mas tinha dúvidas se podia fazer, pois nunca aprendeu se
podia dar esse tipo de atividade nas aulas de Educação Física.

Eu aproveito, como, por exemplo, o esconde-esconde. Foram eles que


começaram a pedir e eu nunca tinha brincado em uma aula de Educação
Física. Imagina, brincar de esconde-esconde em uma aula de Educação
Física. Nunca vi em livro, nunca li, nem em curso soube que podia. Eles
também trouxeram o alerta. O jogo do ABC e, depois, matar. Foram eles
que sugeriram, eu nem sabia. Hoje nos livros não há essas brincadeiras e,
quando a vemos, temos um monte de atividades novas que eles trouxe-
ram para nós. Eu acho isso super interessante, porque eles gostam.

Ao cruzar as formas de como a professora conduzia suas au-


las com sua explicação a respeito do fato de as crianças brincarem,
percebemos certa incoerência. Disse ela:

81.  Diário de campo, segunda-feira, 21de setembro de 1998.


82.  Diário de campo, segunda-feira, 14 de setembro de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Eu acho que é para desenvolver a criatividade. Elas têm necessidade de


criar alguma coisa.

Apesar de assim se expressar, são poucos os espaços nas au-


las onde as crianças são desafiadas a criar algo novo, pois, na maioria
das vezes, seguem o comando da professora ou ficam livres para esco-
lherem a brincadeira ou jogo que já conhecem e o reproduzem, não
havendo nenhum trabalho de desconstrução e reconstrução, nenhum
desafio, nenhuma criação.
Segundo Oliver e Marcellino (1997, p. 125), “os jogos orga-
nizados, com suas regras fixas e pré-estabelecidas dificultam o pro-
cesso de criação, recriação, porque não espantam, não incomodam,
não geram conflito”.
Fazia parte da rotina da Educação Física, nas quintas-feiras,
os meninos jogarem futebol e, quando isso não ocorria por algum
motivo, como chuva ou forte calor e sol, os meninos logo cobravam:
“Ah, mais hoje não era futebol?” (Leandro, 7 anos). “Por que a profes-
sora trouxe a bola, para nada?” (Maicon, 7 anos)83.
A professora reafirmou o que fora combinado com os alunos
em relação ao futebol, e isso pôde ser verificado na resposta que deu
ao Alex, quando disse que queria jogar futebol: “Que dia é hoje? Na
quinta-feira, sim, a gente joga”84. Durante o tempo que permanece-
mos na escola, os meninos jogaram quatro vezes futebol, enquanto
as meninas e dois meninos brincavam de corda ou bambolê. Essa se-
paração entre meninos e meninas no futebol confirmou o que veri-
ficamos nos planos de aula de Educação Física. As meninas também
confirmaram nas entrevistas:
83.  Diário de campo, quinta-feira, 29 de outubro de 1998.
84.  Diário de campo, terça-feira, 08 de setembro de 1998.

194
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tem vez que os meninos jogam futebol e as meninas pulam corda e brin-
cam de bambolê (Alessandra, 7 anos).

Os meninos jogam, mas nós não jogamos, nós só pulamos corda, só


dançamos e fazemos outras brincadeiras que a professora manda (Ana
Cláudia, 7 anos).

A própria professora, durante uma aula onde as crianças te-


riam que conduzir uma bola com os pés até um local, fez a seguinte
observação: “Ai, ai, ai, menina chutando bola”85. Essa atitude da pro-
fessora, de certa forma preconceituosa, também apareceu durante a
entrevista.

Tem meninos que discriminam outros porque não gostam de futebol.


Também não sei o porquê de eles não gostarem. São duas crianças que
até hoje não entendi por que não gostam de futebol. Tem alguns que não
gostam, mas ficam trepando nas árvores, e esses dois ficam brincando
com as meninas, com as atividades das meninas. E um deles dança muito
bem (Prof.ª de Educação Física).

A contradição apareceu na sua fala, pois, apesar do que ob-


servamos e ouvimos, ela nos disse:

Eu nem falo em meninos e meninas [...]. Eu particularmente esqueço


que um é menino e outra é menina, e trabalho com eles da mesma forma.
Eu nunca separei, é coisa que nem passa pela minha cabeça (Prof.ª de
Educação Física).

85.  Diário de campo, segunda-feira, 24 de agosto de 1998.

195
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O que a professora disse em relação à separação de meninos


e meninas, de certa forma procedia, pois, na grande maioria das au-
las, as crianças faziam juntas, sem distinção alguma de sexo, exceto
quando se tratava do futebol.
Saraiva-Kunz (1996, p. 124) nos fala da necessidade de se
multiplicar as possibilidades de vivências corporais, desde que sejam
oferecidas as crianças “mais atividades que propiciem experiências
iguais a serem exploradas por ambos os sexos, do que as propiciadas
pelos esportes normativos tradicionais”.
Em algumas aulas, a professora estava atenta às atitudes e
aos comportamentos das crianças, pois mudava a atividade quando
percebia desinteresse. Todavia, em outros momentos, ela tinha uma
reação completamente diferente e, ao invés de mudar a atividade, usa-
va expressões que demonstravam certa indiferença em relação ao que
estava sendo desenvolvido. Em uma atividade de pular por cima de
bancos, algumas crianças estavam demonstrando cansaço e uma de-
las disse: “Ai, socorro, ai, socorro, ai cansei”. A professora, ao ouvir as
reclamações, falou para todos ouvirem: “Ah cansaram, por que será?
Vou fazer sempre”86. Em outro momento, sua atitude se resumiu a
fazer comparações entre ela e as crianças. Diante da fala da Mariana
“Ah, professora, eu já estou cansada”, a professora respondeu: “Isso
que é a tua primeira aula, e eu que já é a terceira aula”87.
As atividades de competição, conforme havíamos encontra-
do como objetivo no planejamento, também se fizeram presentes em
algumas aulas. Ouvimos, durante o período de observações, expres-
sões como: “Vamos ver quem chuta melhor a bola” e “Quem tem mais

86.  Diário de campo, quinta-feira, 29 de outubro de 1998.


87.  Diário de campo, segunda-feira, 24 de agosto de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

habilidade vai ficar, vai ganhar”88. Durante as atividades de competi-


ção, tivemos oportunidade de ver mudanças significativas nas atitudes
das crianças, que não apareceram em nenhum outro momento. Em
uma atividade de chutar a bola, realizada em forma de estafeta (duas
filas, uma contra a outra), ouvimos Thomaz dizer para Suelen: “Ai que
lerda”, e o Guilherme I, para o Lucas V.: “Ai, esse cara é burro!”89.
Em um dia de chuva, a professora ficou na sala com as crian-
ças e, ao chegar, disse: “Hoje vamos separar, vai ser meninos contra
meninas, no jogo de fechar casinha”. Assim que a professora terminou
de dizer essa frase, quatro meninos, imediatamente, começaram a fa-
zer gestos de soco para as meninas dizendo: “Porrada, porrada” (Alex,
Samuel F., Maicon e Guilherme I.). Após cada ponto que os meninos
marcavam no jogo, diziam mostrando soco e vaiando: “Aqui para vocês,
oh!” (Guilherme V., Thomaz, Leandro e Ricardo). Nesse dia, Mariana
chegou a reclamar: “Oh, professora, o Ricardo também vaia, ele nunca
vaiou a gente antes”90. A professora, em alguns momentos, pediu para
pararem com isso, mas não fez nenhuma reflexão mais profunda, nem
tão pouco tomou outra providência e o jogo continuou em meio a esse
tipo de provocação.
Na Educação Física, também as crianças resistiam diante de
atividades propostas pela professora, realizando movimentos não cor-
respondentes com a atividade que estava sendo desenvolvida “oficial-
mente”. Era comum ver as crianças realizando diversos movimentos
como brincar de lutinha, representar um personagem, fazer estrelinhas,
entre uma atividade e outra, ou mesmo durante uma atividade que esta-
va sendo desenvolvida sob o “comando” da professora.
88.  Diário de campo, 24 e 25 de agosto de 1998, respectivamente.
89.  Diário de campo, segunda-feira, 24 de agosto de 1998.
90.  Diário de campo, terça-feira, 22 de setembro de 1998.

197
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Quando perguntada se já havia feito cursos e lido livros que


tratavam das questões mais teóricas do que representa o jogo e as
brincadeiras na vida das crianças, a professora primeiro respondeu
que não, que nunca tinha feito e nem lido. Em seguida, fez vários co-
mentários contraditórios:

A gente faz esses cursos e um diz que é de um jeito e outros dizem que é
de outro, daí a gente sai ainda mais confusa. Porque não pode ter com-
petição, dizem. Daí tu mudas. Eu não li nenhum livro desses, até porque
conhecimento de um autor eu não tenho, eu não sei onde a gente vai
pegar uma bibliografia boa para ler (Prof.ª de Educação Física).

Essas expressões apontam para a necessidade de capacitação


e de orientações bibliográficas referentes a esse assunto.Apesar das
contradições entre as ações e as representações que a professora de-
monstrou ter em relação às diversas questões já discutidas, as crianças
foram unânimes em dizer que adoravam as aulas de Educação Física.
Várias atividades foram mencionadas pelas crianças, quando
perguntadas sobre o que faziam nas aulas de Educação Física. Senti-
mos necessidade de fazermos um levantamento para sabermos quais
as atividades que foram mais lembradas, organizamos, portanto, os
resultados na Tabela 5, a fim de facilitar a apresentação e a discussão.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tabela 5 - Atividades das aulas de Educação Física lembradas pelas crianças

Jogos ou brincadeiras total %


Brincar de se esconder 18 82.0
Jogar futebol 17 77.2
Brincar de pegar 14 63.6
Pular corda 12 54.5
Brincar de matar 6 27.3
Picar a bola, jogar na cesta 5 22.7
Bambolê 5 22.7
Brincadeira de roda 5 22.7
Dançar 3 13.6
Fazer cambalhota 2 9.0
Pegar a bola no centro 1 4.5
Brincar de alerta 1 4.5
Corrida 1 4.5
Jogar vôlei 1 4.5

Fonte: Elaborada pelo autor.

O número total de jogos e brincadeiras não corresponde ao número de crianças por ter sido solicitado

que apontassem todas que lembrassem.

Ao observar a Tabela 5, podemos constatar que a brincadei-


ra de esconder foi a mais lembrada pelas crianças, confirmando, dessa
forma, que é a preferida da maioria, quando há opção de escolha. O
futebol foi a segunda atividade mais citada pelas crianças.
Em ordem decrescente, foram citadas atividades como: brin-
car de pegar, pular corda, brincar de matar, picar a bola e jogar na
cesta, brincar de roda, bambolê, dançar, cambalhota, pegar a bola,
alerta, corrida e vôlei.
Procuramos saber também das crianças qual a atividade de
que mais gostavam de participar nas aulas de Educação Física. Mais

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

uma vez se confirmou que o futebol atrai a atenção da grande maioria


dos meninos (71.5 %), pois eles disseram que era o jogo que mais gos-
tavam de praticar nas aulas de Educação Física, conforme podemos
verificar na Tabela 6.

Tabela 6 - Jogo ou brincadeira de que mais gostam na aula de Educação Física

Jogo ou brincadeira de que mais


Meninos % Meninas %
gosta na educação física
Jogador de futebol 10 71.5 - -
Brincar de se esconder 2 14.3 3 37.5
Pular corda 1 7.1 4 50.0
Brincar de matar 1 7.1 1 12.5

Fonte: Elaborada pelo autor.

Talvez, mais um motivo por gostarem do futebol pode estar


relacionado às características do jogo apresentadas por Wisnik: “O fu-
tebol coloca em confronto duas forças, mas, ao mesmo tempo, o futebol
também relativiza isso, porque você muda de time, o que era seu adver-
sário em um jogo está no seu time, no outro jogo, e volta tudo a zero a
zero, afinal todos os jogos terminam e começam tudo de novo. Eu acho
que o futebol coloca essa grande oposição, mas ele faz que essa oposição
tenha mobilidade”91.
Apareceram também, na fala de uma ou duas crianças, ati-
vidades como brincar de se esconder, pular corda e brincar de matar
(28.5 %). As meninas apontaram a brincadeira de pular corda como
a atividade que mais gostavam de fazer nas aulas de Educação Física
e, em seguida, citaram o brincar de se esconder. Apenas uma menina
falou que gostava mais da aula quando era brincar de matar. Quando
91.  Produção Vídeo Ciência, de 1989, Realização: Fundação Roberto Marinho. Série: Menino que foi
teu Mestre?

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

perguntávamos por que gostavam, iam logo respondendo: “Porque é


bem legal, porque gosto”.
Se compararmos a Tabela 6 com a Tabela 5, podemos ob-
servar que as quatro atividades citadas pelas crianças como as de que
mais gostam nas aulas de Educação Física (Tabela 6) apareceram en-
tre as cinco primeiras atividades lembradas pelas crianças, quando
falaram do que faziam nas aulas de Educação Física (Tabela 5). As
crianças lembram e falam mais das brincadeiras e dos jogos que são
mais significativos para elas.
Na perspectiva de Vygotsky (1994), a criança vai atribuindo
um sentido particular e um conceito em relação às suas ações concre-
tas com os jogos, brincadeiras e brinquedos, principalmente aqueles e
aquelas que fazem parte do seu cotidiano, com o qual ela se relaciona
o tempo todo, mediada pelas pessoas com quem convive.
As razões porque gostavam de determinadas atividades ge-
ralmente estavam relacionadas ao sentimento de prazer que a ativida-
de lhes proporciona, pois se expressaram da seguinte forma:

Eu gosto, porque é bem legal (Francine, 6 anos).

Porque daí a gente se sente alegre, vai brincar pra se divertir (Lucas V.,
8 anos).

Perguntamos também às crianças do que elas não gostavam nas


aulas de Educação Física, e as respostas foram diversas, principalmente
por se tratar novamente de um sentido pessoal, de um motivo particular,
construído muitas vezes na própria dinâmica das aulas. Constatamos que
o fato de não gostarem de participar de um determinado jogo ou brin-
cadeira nas aulas de Educação Física estava relacionado principalmente

201
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

a dois aspectos: ou por não conseguiram realizar a contento a atividade


proposta, ou por questões de gênero, em achar que determinada atividade
era de menina ou de menino. Podemos observar esses aspectos em falas,
como:


De bambolê eu não gosto. Porque é muito ruim. Eu não gosto, porque eu


bamboleio só um pouquinho e cai. Não consigo, ele só cai (Elis, 8 anos).

Quando ela manda a gente dançar, geralmente é música de menina. Eu não


gosto, porque é coisa de menina. Ela bota a música das Chiquititas (Lucas V.,
8 anos).

Essas são questões fundamentais para serem observadas ao se


planejar uma aula de Educação Física.

Observando o recreio da escola

O recreio era parte integrante da rotina da escola. Enquanto as


crianças se dirigiam para o pátio em euforia para brincar, os professores
se deslocavam para a sala dos professores para tomar um cafezinho. Pode-
mos dizer que era um tempo curto, mas de muita vibração, barulho, gri-
tos, correrias e, acima de tudo, de muito movimento no espaço da escola.
No nosso entendimento, essas características não diferem muito de escola
para escola, sejam elas particulares ou públicas, pois criança é movimento,
ação, e não importa a origem, raça, religião ou classe social de que provém.
O espaço físico da escola é bastante propício ao desenvolvimento
de atividades de jogos e brincadeiras. Nossa estratégia para apreendê-las

202
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

se deu de duas formas: uma por meio de entrevistas com as crianças e ou-
tra por meio de observações diretas. Nas entrevistas, as crianças falaram
sobre uma diversidade de jogos e brincadeiras que costumavam realizar
na hora do recreio.
Podemos observar na Tabela 7, que é a síntese do que as crianças
brincam na hora do recreio, segundo elas próprias, que o futebol não é o
jogo mais praticado pelos meninos.

Tabela 7 - Jogos e brincadeiras praticados no recreio


Jogo/brincadeira Meninos % Meninas %
Brincar de correr 3 10.0 1 4.3
Brincar de pegar 9 30.0 6 26.1
Brincar de se esconder 6 20.0 3 13.1
Jogar bolinha de gude 3 10.0 - -
Jogar figura 1 3.3 - -
Brincar de atirei o pau no gato - - 1 4.3
Brincar de viuvinha - - 1 4.3
Jogar futebol 2 6.9 - -
Brincar de moral 1 3.3 - -
Brincar de implicar os outros 1 3.3 - -
Brincar de terra do chocolate 1 3.3 2 8.8
Brincar de polícia e ladrão 1 3.3 - -
Brincar de pular no banco - - 1 4.3
Brincar de amarelinha 1 3.3 2 8.8
Brincar de bruxa 1 3.3 1 4.4
Brincar de bola - - 1 4.3
Brincar de ponte - - 4 17.4
Fonte: Elaborada pelo autor.

O número de jogos e brincadeiras não corresponde ao número de crianças entrevistadas por aceitarmos

múltiplas respostas.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Tivemos a oportunidade de identificar, na fala dos meninos, que isso


ocorre mais pelo fato de não terem bola para jogar do que por opção
própria: “Ah, não tem bola.Às vezes, algum traz, daí todo mundo quer
jogar” (Alex, 8 anos).

Do que as crianças mais brincavam no recreio é de pegar e


de se esconder. Ao analisar os tipos de jogos e brincadeiras, podemos
perceber, além da diversidade bastante grande de atividades, a predo-
minância de jogos com características semelhantes, principalmente
no sentido de terem poucas regras explícitas, como é o caso das brin-
cadeiras de pegar e de se esconder, e muitos com regras implícitas,
como polícia e ladrão, ponte, bruxa e terra do chocolate, demonstran-
do mais uma vez que as crianças dessa série se sentem ainda atraídas
por jogos de faz de conta.
Além da fala das crianças, acompanhamos o recreio e pro-
curamos observar do que elas brincavam, como se organizavam e de-
senvolviam suas atividades. Diante das correrias frequentes, em que
crianças de todas as idades passavam umas pelas outras, nem sempre
foi possível voltar a atenção somente às crianças da série a qual está-
vamos pesquisando. Mesmo assim, destacamos algumas brincadeiras
e jogos que mais nos chamaram a atenção, justamente por terem sido
os mais praticados durante o recreio.
Várias vezes encontramos meninos “brincando de tourinho”,
que era o que chamavam quando colocavam a brigar duas lagartas
que costumavam tirar de um buraco no chão, com um pedaço de ca-
pim. Também tivemos oportunidade de ver brincadeiras em grupos.
Em algumas delas, meninos e meninas separados; em outras, juntos.
Era comum, por exemplo, vermos pequenos grupos de meninos brin-

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

cando de bolinha de gude, meninas brincando de amarelinha e me-


ninos e meninas brincando juntos de pegar. Também encontramos
várias vezes meninos, em dupla, jogando tazo.
As brincadeiras de rodas cantadas, que eram as preferidas
no passado, segundo os próprios pais entrevistados, parecem ter de-
saparecido da escola. Não encontramos em nenhum momento as
crianças brincando de cantigas de roda. Parece que essa atividade está
deixando, a cada dia, de ser característica de nossa cultura. Conforme
Durham (1977), os padrões culturais sobrevivem na medida em que
persistem as situações que lhes deram origem ou alteram seu signi-
ficado para expressar novos problemas. Provavelmente, a realidade
concreta está oferecendo poucas condições de as crianças continua-
rem a brincar de rodas cantadas.
Ao se basear em Durham e nos pressupostos teóricos da Psi-
cologia Histórico-Cultural, podemos dizer que a necessidade de brin-
car de rodas e brinquedos cantados, com o passar do tempo, foi sendo
substituída pela necessidade de se apropriarem das músicas e coreo-
grafias dos grupos de cantores da televisão, rádio e aparelhos de som,
praticando-as no seu cotidiano. Isso se deve ao fato, pelo menos em
parte, de que nem a escola e nem os pais estão estimulando a prática
de rodas e brincadeiras cantadas. Por meio da mídia, principalmente
da televisiva, as crianças recebem diariamente uma quantidade muito
grande de informações que devem ser consideradas pela escola e se
necessário, redimensionadas. No entanto, o que parece é que a escola
não utiliza essas e não preserva as folclóricas, as tradicionais, a não ser
na semana do folclore, de maneira muito tímida. Portanto, é “natural”
que isso esteja ocorrendo.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Também nos chamou a atenção o fato de muitas crianças


aparentemente não brincarem no recreio e ficarem sentadas ou en-
costadas nas paredes conversando à espera do sinal de entrada. To-
davia, algumas delas aproveitavam até o último segundo, como foi
o caso do André, que, mesmo após ter batido o sinal, disse: “Lucas,
vamos jogar rápido antes que a professora venha” (André, 7 anos) 92.
Talvez, para algumas crianças, nem valesse a pena iniciar,
pois o recreio durava apenas de dez a 15 minutos.
Os critérios que permearam a discussão entre professores e
direção sobre o tempo de duração do recreio nos deixou clara a pouca
importância atribuída a esse tempo para o brincar das crianças, pois
sua redução deu-se exclusivamente para atender aos interesses dos
professores da escola. Vejamos algumas falas dos entrevistados:

Para mim, nós poderíamos sair às 17 horas; para outra não dava. Daí
fizeram a proposta de entrarmos antes das 13 horas, daí eu não aceitei.
Ninguém quis começar às 13 horas e 15 minutos e sair às 17 horas e 15
minutos, por causa do ônibus. Então, a diretora disse: “Vamos diminuir
o recreio e continuar saindo às 16 horas e 50 minutos” (Prof.ª de Educa-
ção Física).

Tem professor que, se não pegar o ônibus das 17 horas, só às 17 horas e


15 minutos (Prof.ª da 1ª série).

A diretora da escola reconheceu na entrevista que tem pro-


blemas para resolver na escola, em relação ao recreio, pois, assim, ex-
pressou-se:
92.  Diário de Campo, sexta-feira, 28 de agosto de 1998.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O nosso recreio é deficitário, porque colocar os professores a se envol-


verem com o recreio é impossível. Eu, particularmente, não consegui.
Na realidade, nós estamos comendo dez minutos de aula diariamente.
Só que, assim como foi proposta a mudança no meio do ano e os pro-
fessores reclamaram, eu combinei de ficar no esquema antigo (Diretora
da escola).

Em nenhum momento, os entrevistados falaram da importân-


cia que o recreio teria no desenvolvimento das crianças e no prazer que
lhes proporcionava. Isso, de certa forma, justifica o não-empenho por
parte de toda a escola, no cumprimento de um dos objetivos do pro-
jeto político pedagógico, que era o de pintar jogos e brincadeiras nas
calçadas e na quadra durante o ano letivo de 1998, conforme já vimos
anteriormente. Provavelmente, o alcance desse objetivo representaria
o enriquecimento do repertório de possibilidades lúdicas das crianças,
pelo menos antes do horário da aula e no recreio.

Apontando indicadores de a escola vir a ser prazerosa

Uma vez que estabelecemos como um dos objetivos especí-


ficos buscar indicadores que apontassem as possibilidades de a escola
vir a ser um lugar mais prazeroso, de aprendizagens mais significa-
tivas, nosso caminhar se deu na esperança de encontrá-los em meio
às falas e às ações dos sujeitos pesquisados. Nesse sentido, passamos
a apresentar o que, sob nosso olhar e interpretação, pôde ser con-
siderado como sinal que apontasse essa possibilidade, tendo como
base a fala dos pais, das crianças, dos professores e das observações
realizadas.

207
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

A concepção de que sala de aula é um lugar de coisas sérias,


de não brincadeira, vinculada à existência de uma relação autoritária
muito mais forte em décadas passadas, ficou evidente no depoimento
dos pais.

Não brincava, era sério mesmo, a gente não podia nem se mexer. A gente
não dava nenhum pio na sala. Eram quatro horas de aula. Era severo
demais (Salete, avó da Mariana).

No meu colégio, a coisa era mais séria também, não tinha muita brinca-
deira dentro da sala de aula, não. A professora era rigorosa, não podia
sair fora da linha (Reinaldo, pai do Leandro).

Apesar dessa relação autoritária, os pais foram quase unâ-


nimes em dizer que brincavam e se movimentavam na sala de aula
quando crianças. Chegaram a relatar estratégias que utilizavam para
poder brincar. Vejamos algumas expressões:

Nós jogávamos aquele de fruta, de verdura, de nome de cigarro, de ani-


mais, dentro da sala de aula. A professora não via, nós brincávamos es-
condidos. Nós brincávamos de forca também na sala de aula, sem a pro-
fessora ver (Cláudia, mãe do Guilherme V.).

Dentro da sala de aula, a gente quase não brincava. A gente tinha uma
professora muito brava, mas, assim que dava certo, um ia à carteira do
outro, ia apontar o lápis. Quebrava, às vezes, a ponta do lápis com os
dentes para sair da carteira (Lenir, mãe do Lucas C.).

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Essas declarações, no nosso entendimento, são reveladoras


de uma pré-disposição para os pais compreenderem o jogo e a brin-
cadeira como uma necessidade das crianças, mesmo quando estão na
sala de aula.
Perguntamos aos pais se o jogo e a brincadeira poderiam fa-
zer parte da escola. Alguns pais foram diretos e se colocaram favo-
ráveis a uma mudança na forma de se trabalhar, principalmente no
sentido de garantir que a criança tenha prazer e goste da escola.

Deve ter jogo, deve ter brincadeiras, porque a escola é quase uma vida in-
teira. Porque começa aos seis anos e vai até... A escola tem que ser uma
coisa muito boa para não enjoar, porque é praticamente a vida inteira
(Ivonete, mãe do Filipe).

Não só pode como deve. É importante. Eu acho que os professores de-


veriam tirar alguns minutos para envolver mais a criança, buscar mais a
atenção dela. Para deixar a criança mais à vontade na escola tem que ter
uma brincadeira (Gilmar, pai do Thomaz).

Outros o colocam na esfera da própria vida da criança, como


podemos perceber nessa fala:

Ele pode estar e tem que estar, mas desde que ensine a respeitar o espaço
do outro. Pode estar na sala de aula também, em qualquer lugar, porque
vai interferir em uma boa formação para a criança, pois a vida é um jogo
e eles vão estar apreendendo a viver (Cláudia, mãe do Guilherme V.).

209
Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Mesmo tendo um sentido de descanso, de pausa entre os tra-


balhos escolares, o jogo apareceu na fala dos pais como uma possibili-
dade, e essa perspectiva também deve ser considerada.

Pode ter uma brincadeira, porque, se a criança vai sempre à escola, deve
ter um intervalo, porque, caso contrário, ela fica nervosa. Às vezes, a
criança cansa, aí tendo uma brincadeira, ela já se anima (Fátima, mãe
do Thomaz).

Outro fato indicador de possibilidade de se valorizar as ati-


vidades de jogo e de brincadeira na escola foi a forma saudosista com
que os pais falaram sobre suas brincadeiras no recreio.

Brincava bastante. Era muito bom, quando chegava o recreio, era ótimo.
Brincava de roda, de amarelinha e de se esconder (Maria Eremita, mãe
do Leandro).

As crianças também nos deram indicadores de que é preciso


repensar o cotidiano da escola, pois, ao serem perguntadas sobre de
que mais gostam na escola, 12 delas (54.5%) deram uma dessas res-
postas: do recreio, de brincar, de futebol ou de Educação Física.

Eu gosto mais do recreio, pois a gente pode brincar. Eu brinco de correr


e de pegar (Samuel S. 8 anos).

Um total de seis crianças (27.3%) respondeu que gostavam


mais de estudar, enquanto duas responderam que gostavam mais da
professora, uma da merenda e outra de pintar. As seis crianças que

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

citaram o estudar como o que mais gostavam de fazer na escola de-


monstraram estar, pelo menos na hora de responder, preocupadas
com o futuro:

O que eu mais gosto é de estudar. Porque eu vou aprender mais um pou-


co e daí eu vou aprender a trabalhar (Bruna, 7 anos).

Com isso não queremos dizer que estudar não proporciona


prazer. Ao contrário, entendemos que estudar deve ser prazeroso aqui
e agora, que o ato de conhecer deve ser encarado com muita serie-
dade, acompanhado de muita satisfação, curiosidade e prazer, tanto
quanto o jogo e a brincadeira, ou pelo jogo e a brincadeira, e não se-
rem vistos apenas como uma preparação para o futuro.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar refere-se ao fato
de a maioria das crianças (15 delas, ou 68.2 %) reconhecer que elas
aprendem alguma coisa jogando ou brincando. Algumas delas fala-
ram que aprenderam no e com o próprio jogo ou brincadeira, en-
quanto outras deram maior ênfase ao fato de terem aprendido um
jogo ou brincadeira com os pais, irmãos mais velhos ou na escola.

Eu jogo, daí eu vou apreendendo mais ainda o jogo (Bruna, 7 anos).

O meu irmão me ensinou a andar de bicicleta quando eu não sabia. Eu


aprendi a jogar o jogo da memória na sala (Alessandra, 7 anos).

Algumas crianças imaginaram uma escola diferente daquela


em que estudavam e falaram na entrevista que se pudessem fazer uma
escola ela seria:

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

[....] grande, com um pátio bem grande para a gente brincar, ia ter flores
em roda” (Guilherme I., 8 anos).

Bem legal. Ia ter um monte de crianças e coisas para a gente brincar. Ia


ter uma caixa de areia (Alessandra, 7 anos).

Ao interpretar a fala das duas professoras entrevistadas e da


diretora da escola, podemos dizer que elas apontaram também para a
possibilidade de a escola vir a ser um lugar mais prazeroso, na medi-
da em que falaram da importância das crianças jogarem e brincarem
para o próprio desenvolvimento.

Eu acho que desenvolve até o intelectual deles (Prof.ª de Educação Física).

Eu acho que desenvolve bastante (Prof.ª de 1a série).

Eu acho importante porque é uma forma de eles se desenvolverem de


uma forma mais sadia (Diretora da escola).

A partir dessas considerações apresentadas, discutidas e


interpretadas a partir da relação entre o referencial teórico e a fala
dos pais, das crianças, dos professores e das observações realizadas,
podemos dizer que é extremamente necessário tornar a escola um
ambiente mais agradável, mais vivo, mais prazeroso para todos, pois
conhecimento e alegria constituem-se em necessidades humanas.

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir um trabalho de pesquisa, ao fazer uma síntese,


abrem-se sempre possibilidades de novos olhares, novas interpreta-
ções sobre o objeto pesquisado. Essa dinâmica é que enriquece o co-
nhecimento, torna-o dialético, provisório. É com esse entendimento
que passamos a apresentar, de forma aberta e flexível, nossas conside-
rações finais (e provisórias) a respeito do tema pesquisado.
A pesquisa nos mostrou o quanto é diversificado o universo
lúdico das crianças, pois se entrelaçam brinquedos e jogos tradicio-
nais com brinquedos eletrônicos e didáticos, brincadeiras e jogos de
faz de conta com jogos de regras explícitas, e todos estes são muito
significativos para as crianças.
Quanto aos jogos, brincadeiras e brinquedos tradicionais,
verificamos que muitos deles ainda estão presentes na vida das crian-
ças, como é o caso da bolinha de gude, do pião, das brincadeiras de
pegar, de esconder, de fazer cabana, entre outras.
Os brinquedos eletrônicos também estão presentes no coti-
diano das crianças pesquisadas, porém, enquanto os brinquedos tra-
dicionais são de fácil acesso e visíveis o tempo todo, os eletrônicos são

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Gildo Volpato
Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

muito mais restritos. Esse fato nos leva a dizer que, da mesma forma
que os pais de menor poder aquisitivo são expropriados de muitos
instrumentos da mais alta tecnologia produzidos pela humanidade,
como o computador, o videcassete, o automóvel, os filhos o são tam-
bém dos brinquedos eletrônicos mais sofisticados, como o videoga-
me, os carrinhos de controle remoto, dentre tantos outros. Da mesma
forma que os pais podem ter desejos de possuir esses bens, podemos
dizer que as crianças também os têm, conforme tivemos oportunida-
de de perceber em suas falas.
Ao partrir de nossas constatações e do princípio de que tam-
bém é pelo brincar que a criança apreende a realidade social, apro-
priando-se do meio ambiente e atribuindo significados ao mundo
adulto, podemos dizer que, diante das inovações tecnológicas e dos
avanços científicos, nem a família nem a escola podem negar as ne-
cessidades que estão colocadas na atualidade, ou seja, a de as crianças
sentirem-se motivadas a brincarem também com brinquedos ele-
trônicos. O que seria estranho, pelo menos na perspectiva histórico-
-cultural, é se isso não estivesse ocorrendo.
O que não podemos deixar de considerar é que, mesmo
diante de todas as inovações tecnológicas em torno dos brinquedos,
muitos dos brinquedos, das brincadeiras e dos jogos tradicionais con-
tinuam presentes na vida das crianças pesquisadas e, se isso está acor-
rendo, é porque de alguma forma a realidade social está garantindo
essa continuidade.
As relações que as crianças estabelecem com brinquedos ele-
trônicos e com jogos e brincadeiras tradicionais são diferentes, inclu-
sive com qualidades diferentes, mas ambas ampliam as possibilidades
de movimento, enriquecem o conhecimento cultural e desenvolvem
aspectos psicológicos.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Em relação aos fatores que interferem nas escolha dos jogos,


brincadeiras e brinquedos das crianças, muitos deles podem estar
ocorrendo concomitantemente. Esses fatores são determinados pela
realidade concreta de cada criança, ou seja, estão relacionados ao tipo
de vida que levam às necessidades de apreensão da realidade social
e às mudanças dessas necessidades, às suas relações com os adultos,
ao tipo de trabalho dos pais, às questões de gênero, aos amigos que
têm, aos programas a que assistem na televisão e às condições so-
cioeconômicas.
As concepções de jogos e brincadeiras, tanto dos pais quan-
to dos professores, são muito parecidas, pois atribuíram ao fato de
as crianças brincarem os mesmos motivos. Também sentiram sau-
dades ao lembrarem do passado de seus jogos, brincadeiras e brin-
quedos, disseram que seu tempo de infância era melhor, ao mesmo
tempo que reconheceram que há uma variedade muito maior de
opções na atualidade, que ajudam no desenvolvimento das crianças.
Falaram que a escola é um lugar que deve ser levado a sério, que tem
que ter hora para tudo, mas que precisam brincar, precisam jogar.
Houve muitas contradições nas falas, tanto dos pais quanto
das professoras, e é nelas que encontramos indicadores de se po-
der construir uma nova escola, não uma “Escola Nova”, espontâ-
nea, livre, mas uma escola que tem o compromisso de socializar o
saber historicamente construído, não de forma pronta e acabada,
mas como processo, em constante movimento, abrindo novas pos-
sibilidades, colocando novos desafios e, por isso, proporcionando
prazer. É nesse sentido que o jogo e a brincadeira entram como pos-
sibilidades, pois uma de suas peculiaridades é a de ser sempre um
novo jogo, uma nova brincadeira, mesmo quando se trata do mes-

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

mo jogo, da mesma brincadeira. Da mesma forma acontece com o


brinquedo: pode ser sempre o mesmo, mas oferece sempre a possi-
bilidade de um novo brincar. É nessas características que podemos
encontrar a abertura para o possível, para o inusitado, para o inédi-
to, para a superação do atual estado da escola e, quem sabe, para a
própria sociedade.
A existência do jogo, da brincadeira e, timidamente, do brin-
quedo é inegável na escola, mesmo não estando oficializados no pro-
jeto político-pedagógico. Eles aparecem e desaparecem, mesmo em
lugares e momentos convencionalmente proibidos, como na sala de
aula. O discurso de que o jogo dispersa as crianças, que muitas vezes
ouvimos de pais e professores, deve sofrer uma reinterpretação, ba-
seada no que acontece realmente, pois não há atividade que congrega
mais, que interessa mais e que concentra mais as crianças em torno
do que estão realizando do que o jogo ou a brincadeira, inclusive na
sala de aula.
Sabemos das dificuldades e da inviabilidade de se trabalhar
todos os conteúdos em forma de jogo. No entanto, sabemos também
que há muitas possibilidades de se ampliar essas atividades, mas que
não estão sendo viabilizadas.
Em relação à prática do jogo na Educação Física, três ques-
tões ficaram bastante claras durante todo o processo de pesquisa e,
portanto, devem ser observadas quando se planeja a Educação Física
e se desenvolvem atividades, principalmente para crianças de primei-
ra série.
A primeira delas está relacionada à constatação de que as
crianças dessa série, pelas expressões, pelos comportamentos e carac-
terísticas das atividades citadas como as de que mais gostavam, têm

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

necessidades de participarem de jogos que oscilam entre o faz de con-


ta e o jogo com pequenas regras aparentes. O “brincar de se esconder”,
por exemplo, é um jogo que contém regras explícitas muito simples e
que não deixa de ter uma situação imaginária envolvida. Basta obser-
varmos atentamente o seu desenvolvimento. Todavia, atividades que
contêm estas características, ao mesmo tempo que devem ser diver-
sificadas, problematizadas e transformadas, devem ser repetidas para
que as crianças possam, de forma dinâmica e interativa, apropriar-se
delas, internalizá-las nos termos vygotskyanos.
O segundo ponto que deve ser observado está relacionado
à importância de incentivar e tentar garantir a todas as crianças que
se apropriem dos diferentes tipos de movimentos, sem traumas, sem
constrangimentos, sejam eles em torno de objetos ou não. Essa preo-
cupação deve-se ao fato de constatarmos a aversão que as crianças
têm às atividades que não sabem fazer com desenvoltura.
Um terceiro ponto que deve ser ressaltado está relacionado
às questões de gênero, que ainda se fazem presentes nas aulas de Edu-
cação Física, pois, apesar de a escola ter superado a separação de se-
xos nas aulas de Educação Física, os preconceitos apareceram em al-
guns encaminhamentos das aulas e na própria fala das crianças, como
tivemos oportunidade de ver. A superação do preconceito se faz ne-
cessária, uma vez que são limitadores de movimentos, de expressões,
de autonomia e conquista da liberdade, pois muitas crianças ficavam
constrangidas em participar de jogos e brincadeiras que consideram
de menino ou de menina. Da mesma forma, a superação de outros
preconceitos se faz necessária, como a dos brinquedos eletrônicos, a
dos jogos e a das brincadeiras em sala de aula, a da presença de brin-
quedos no âmbito da escola, dentre outras.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

Baseados nesses conhecimentos é possível planejar e execu-


tar atividades que vão ao encontro das reais necessidades das crianças,
ou seja, necessidades de apreensão da realidade, de conhecimentos, de
desenvolvimento e de prazer.
No entanto, convém salientar que não seriam atividades li-
vres, espontâneas. Pelo contrário, seriam atividades carregadas de pro-
pósito, de intenções, pois não há nenhum ato pedagógico neutro.
Isso aponta para a necessidade de maior compreensão, por
parte dos professores e de todos os componentes da escola, sobre o
que significa o jogo, a brincadeira e o brinquedo na vida das crianças,
o que só poderá ocorrer por meio de um trabalho contínuo de capaci-
tação dos docentes que atuam principalmente nas primeiras séries do
ensino básico e na Educação Física. Conforme Andaló (1995, p. 187):

Não se trata de um otimismo pedagógico ingênuo, que acredita na possi-


bilidade de resolver os complexos problemas do ensino por meio do tra-
balho com os professores, mas de uma tentativa de encontrar alternativas
a respeito da situação existente.

O recreio poderia ser redimensionado e instrumentalizado


no sentido de ampliar as possibilidades de jogos e de brincadeiras das
crianças, e uma das formas seria a pintura de jogos diversos nas cal-
çadas da escola. Outra ação que contribuiria significativamente para o
enriquecimento das atividades lúdicas de recreio seria promover mo-
mentos de trocas de experiências, com o intuito de aumentar o reper-
tório coletivo de músicas, brincadeiras de roda e jogos diversos e, da
mesma forma, incentivar a prática de trazer brinquedos para a escola.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

O que a escola não pode mais fazer é negar essa realidade,


fazer de conta que não vê, que não ouve, que não percebe essa ne-
cessidade e esse fato que se manifesta diariamente no espaço escolar,
principalmente por parte das crianças que frequentam os primeiros
anos escolares.
O jogo, a brincadeira e o brinquedo têm quatro grandes mo-
tivos de serem valorizados pela escola:
O primeiro refere-se ao fato de que, mesmo não oficializa-
dos, eles já se encontram na escola, basta redimensioná-los e ampliar
as possibilidades de vivências e experiências.
O segundo, por serem elementos da cultura e que, portanto,
são extremamente significativos para a criança.
O terceiro, por ser a principal atividade da criança, respon-
sável pelo desenvolvimento das habilidades de movimento e das ca-
pacidades psicológicas superiores, segundo os autores soviéticos.
O quarto grande motivo está relacionado ao prazer que ge-
ralmente essas atividades proporcionam, o qual tivemos oportuni-
dade de identificar por meio das observações e na fala das próprias
crianças.
É possível, por meio de um projeto político pedagógico con-
sistente, compartilhado com toda a comunidade, tornar a escola um
lugar de muito mais alegria, a partir de atividades significativas, tendo
o jogo, a brincadeira e o brinquedo como mediadores de aprendiza-
gens.
Um assunto tão amplo, tão polêmico, longe de estar esgo-
tado, promete muitas descobertas e novos voos. Para orientar novos
voos, ousamos apresentar algumas sugestões:

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

• Que sejam pesquisados os tipos e as características dos jo-


gos das crianças, levando em consideração as diferentes ida-
des e séries do Ensino Fundamental.
• Que sejam estudadas mais profundamente as implicações
ligadas à quantidade e qualidade de jogos, brincadeiras e
brinquedos, principalmente em relação às possibilidades e
às limitações no desenvolvimento das capacidades de movi-
mento e psicológicas da criança.
• Que sejam verificadas as diferenças nas habilidades de mo-
vimentos e psicológicas, desenvolvidas por meio dos jogos
tradicionais e jogos e brinquedos eletrônicos.
• Que seja identificado como as questões de gênero estão co-
locadas no universo do jogo e do brinquedo das crianças,
além de como elas estão se relacionando, frente às mudanças
no sistema de produção e na dinâmica das relações sociais.
• Que sejam pesquisados os jogos, brincadeiras e brinquedos
de crianças que estudam nessa mesma série, mas que resi-
dem em localidades muito diferentes, tais como: em condo-
mínios fechados, em aldeias indígenas, na zona rural, dentre
outras.

Para que o jogo, a brincadeira e o brinquedo possam ser


melhores utilizados na escola, deve-se pensar em desenvolver um
projeto de capacitação permanente, que atenda principalmente aos
professores que atuam nas séries iniciais do Ensino Fundamental. É
necessário que esse processo se dê em uma relação muito mais próxi-
ma com os professores. Para que isso seja possível, precisamos conhe-
cer os educadores, não apenas em seu papel, mas como sujeitos, isto

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

é, como pessoas que organizam suas vidas e seus trabalhos dentro das
condições materiais que cada escola lhe oferece, e que se apropriam,
seletivamente de saberes e práticas, que se constituem na especifici-
dade de cada instituição.
Lembramos uma fala da professora cubana Rosa Spinoza:

O importante é o que eu vou fazer depois que alcançar aquilo que me


motivou. Gostaríamos de dizer que, a partir do momento em que nos
sentimos motivados e nos propomos a realizar essa caminhada em bus-
ca de respostas a muitas inquietações iniciais, mesmo surgindo sempre
outras, temos um compromisso ético, moral e social assumido diante
daqueles que nos possibilitaram a realização da pesquisa e da produção
dos conhecimentos que aqui se encontram registrados. O mínimo que
podemos fazer é socializar esses conhecimentos com o máximo de pes-
soas interessadas nesse assunto.

Esperamos ter contribuído, no sentido de darmos mais um


passo em busca de uma escola e de uma infância mais prazerosa e
mais rica de significados.

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Jogo, Brincadeira e Brinquedo:
Usos e significados no contexto escolar e familiar

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