A Inteligência Da Fé em Santo Agostinho

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http://dx.doi.org/10.15448/0103-314X.2015.3.

23607

A Inteligência da Fé

“nisi credideritis, non intelligetis”:


a inteligência da fé em santo agostinho
“Nisi Credideritis, Non Intelligetis”:
Intelligence of Faith in Saint Augustine

Daniel Chacon*

Resumo
O objetivo deste artigo consiste em elucidar o problema da inteligência da fé
cristã a partir de Santo Agostinho. Nesse sentido, o bispo de Hipona realizou
uma síntese pela dialética que pode ser compreendida a partir da máxima credo
ut intelligam, intelligo ut credam. O método proposto neste labor acadêmico
será o da revisão bibliográfica. As considerações desenvolvidas nesta pesquisa
situam-se na perspectiva de que a conciliação proposta por Santo Agostinho
consiste em pensar a relação entre fé e razão, sem, contudo, pressupor uma
rejeição arbitrária da fé ou uma atitude irracionalista frente a este drama. No
horizonte dessa síntese, no entanto, o problema da racionalidade da fé não
se resolve sumariamente; antes, para além de uma simples discussão restrita
à antiguidade tardia, o esforço de elucidação da inteligência da fé é ainda um
complexo dilema para a inteligência contemporânea.
Palavras-chave: Santo Agostinho. Fé. Razão. Intellectus fidei.

Abstract
This article aims to elucidate the problem of intelligence of faith based on Saint
Augustine. In this sense, the bishop of Hippo held conciliation from a dialetic that
can be understood by the maxim credo ut intelligam, intelligo ut credam. The

* Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia; Especialista em


Ciências da Religião e em Educação (Inspeção Escolar e Supervisão Escolar) e Licenciado
em Pedagogia, ambos pela Faculdade de Educação e Tecnologia – Fetremis; Licenciado
em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, Bacharelando em Filosofia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário
Metodista Izabela Hendrix (FATE-BH).

Teocomunicação Porto Alegre v. 45 n. 3 p. 247-268 set.-dez. 2015

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
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method in use in this academic work is the literature review. The considerations
developed in this research are from the perspective that the conciliation held by
Saint Augustine concerned the possibility of thinking the relationship between
faith and reason without assuming an arbitrary rejection of faith, or an irrational
attitude towards this drama. On the horizon of this synthesis, however, the
problem of rationality of faith was not definitively sorted out, but beyond a simple
discussion concerned to late antiquity, the effort to elucidate the intelligence of
faith is furthermore a complex dilemma for the contemporary intelligence.
Keywords: Saint Augustin. Faith. Reason. Intellectus fidei.

Introdução
Em face das exigências epistêmicas do gênio grego, o cristianismo
refletiu sobre a racionalidade de sua própria fé e, a partir dela,
desenvolveu uma interpretação singular dos dilemas essenciais que
interpelaram a cultura helenística da antiguidade tardia. Nesse cenário,
Santo Agostinho, o grande Doutor ocidental, como é conhecido na
tradição cristã, destacou-se por ser o responsável por erigir a primeira
grande síntese teológico-filosófica. À luz das correntes do pensamento
patrístico grego e latino, ele realizou uma ampla conciliação do dilema
fé e razão. A síntese por ele proposta tornou-se a forma mais elevada de
especulação filosófica e teológica que a antiguidade tardia desenvolveu,
e seu “filosofar na fé” veio a ser, certamente, um predicado indelével da
inteligência cristã1.
Nesse horizonte, o aforismo nisi credideritis, non intelligetis, ou
seja, “se não crerdes, não compreendereis”, manifestou-se, pois, no
centro da síntese agostiniana. Conforme postulou Santo Agostinho, a
fé é indispensável para o alcance da Verdade, pois ela descreve uma
espécie de esperança, um horizonte de intelecção que deve ser almejado
pela razão. Ora, a fé, particularmente nas Escrituras, proporciona os
axiomas a partir dos quais se deve investigar, a fim de se alcançar a
Verdade Eterna. Com efeito, a fé é uma exigência indeclinável para
alcançar a inteligência.

1
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et ratio. Ainda, conforme Gareth B. Matthews: “Com apenas
um leve exagero, poderíamos dizer que santo Agostinho inaugurou a consideração
filosófica de muitos tópicos que são hoje aceitos como questões correntes na filosofia da
religião. Um desses tópicos é ‘Fé e Razão’ ” (cf. MATTHEWS, Fé e razão, p. 135).

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Destarte, pretende-se destacar aqui, ainda que sumariamente, a


singularidade da inteligência da fé pensada a partir da dialética credo ut
intelligam, intelligo ut credam2 em Santo Agostinho.

1 Crer para compreender, compreender para crer


A questão do sentido e significado de crer em Santo Agostinho
requer, inicialmente, uma leitura que aproxime os principais textos
de seu corpus que versam sobre esse dilema3. Nesse horizonte, a obra
De praedestinatione sanctorum4, de cerca de 428-429 d.C.5, constitui
referência indispensável. Aí, Agostinho forneceu uma célebre definição
formal do significado de crer: “Assim acontece, embora o ato de crer
nada mais seja que pensar com assentimento”6. É bem verdade que a
presente definição aparece num contexto singular. O que estava em jogo,

2 Ainda que essa fórmula não tenha sido, de modo ipsis litteris, cunhada pelo próprio
Agostinho, certamente ela expressa a natureza dialógica da conciliação agostiniana,
conforme apontaremos aqui.
3 Contudo, Oliver Du Roy, em L’intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin,

sugere, corretamente, que qualquer estudo sobre o pensamento de Santo Agostinho deve
respeitar a cronologia de seus escritos (p. 15). Nesse sentido, a própria definição e relação
dos termos fé e razão devem ser interpretados à luz das exigências impostas por seus
interlocutores imediatos, pois a ênfase atribuída a cada um desses termos surge como
resposta a essas exigências que, por força, são simetricamente opostas (cf. NOVAES
FILHO, A razão em exercício, p. 93-94). Reconhecer, então, essa questão, não equivale
a afirmar a existência de uma impossibilidade radical de se perceber a relação fé e
razão a partir de um todo. Antes, o que se comunica aqui é que cada texto do corpus
agostiniano deve ser, necessariamente, compreendido a partir de seu contexto imediato.
A necessidade de contextualização não significa, também, que o exercício de diálogo pela
aproximação das obras de Santo Agostinho, mesmo entre aquelas produzidas em cenários
bem distintos, seja, em si mesmo, um absurdo. Com efeito, a relação pode ser legítima e
demasiadamente rica se, e somente se, considerar o horizonte de particularidade de cada
texto, pois conforme alerta Marrou seria um equívoco se interpretar um termo agostiniano
simplesmente tomando um texto de uma obra diferente (cf. MARROU, Saint Augustin
et la fin de la culture antique, p. 246). Muito embora Étienne Gilson também tenha
considerado o problema da existência de certa flutuação nos conceitos agostinianos, ele
mesmo fixou alguns pontos comuns na interpretação de importantes terminologias desta
filosofia (cf. GILSON, 2010, p. 96). Pressupor, portanto, uma ambiguidade absoluta na
compreensão dos conceitos agostinianos seria um enorme equívoco. Destarte, pretende-se
fazer uma aproximação entres essas obras, respeitando, entretanto, suas menores nuanças,
a fim de evitar sérios problemas. Não ambicionamos, entretanto, esgotar o conteúdo
desses textos.
4
As citações deste texto remetem à tradução do Frei Agustino Belmonte. Contudo, as
referências às obras agostinianas manterão a padronização clássica das versões latinas.
5
LANCEL, S. Saint Augustin.
6
De praedestinatione sanctorum, II, 5.

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ali, era a polêmica com os pelagianos. Segundo estes, a crença não era,
rigorosamente, uma dádiva de Deus, senão somente aumentada por
ele, em razão do mérito segundo o qual a própria fé se iniciou naquele
que crê7.
Em oposição aos pelagianos, Agostinho sustentou que a crença,
por si mesma, já era uma dádiva da graça divina. Retomou, pois, um
excerto bíblico que diz: “Não que sejamos capazes de pensar alguma
coisa, como se viesse de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem
de Deus” (2Cor. 3,5). Se, como expresso neste texto, não é possível
prescindir de Deus na cogitatio, isto é, se o ser humano não é capaz de
cogitar de maneira autossuficiente, soberana, então não é dado ao ser
humano produzir por si mesmo a crença, pois, a crença é um cogitar
com assentimento. Considerar, portanto, a fé como condição ex nobis,
ou seja, uma virtude simplesmente produzida pelo gênero humano seria,
na perspectiva agostiniana, um grave equívoco8.
Na esteira desse argumento, encontra-se, portanto, sua clássica
concepção de crença:

Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém


acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora
certos pensamentos precedam de um modo tão instantâneo e rápido
a vontade de crer, e esta vem em seguida e é quase simultânea ao
pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida depois
de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada
mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa,
crê, havendo muitos que pensam, mas não creem, mas todo aquele
que crê pensa, e pensando crê e crê pensando9.

Segundo esta definição, o pensar se antepõe ao crer, pois é necessária


a existência de uma estrutura cognoscível a priori no ser humano como
condição fundamental para se crer. As crenças só podem ser admitidas
se, e somente se, forem, em certa medida, compreendidas10. Enfatiza-se
aqui a expressão “em certa medida”, porque, para se crer, não se
necessita ter alcançado a plena compreensão racional dos conteúdos da
fé. Antes, a plena compreensão só se alcança por meio da própria fé. A

7
Cf. Ibidem, II, 3.
8
KOCH, I. Sobre a definição agostiniana de crença, p. 15-24.
9
De praedestinatione sanctorum, II, 5.
10
STEAD, C. A filosofia na antiguidade cristã.

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condição, então, a que se refere aqui seria uma espécie de preparação


para a fé por meio da razão11.
Semelhante concepção se encontra no Sermo XLIII. Nesta homilia,
Agostinho realizou um intrigante comentário à Segunda Epístola de
Pedro 1,18. Sua reflexão inicia com uma importante definição de fé:
“A fé consiste em crer no que não se vê, e sua recompensa é ver o
que se crê”12. Os termos dessa definição remontam ao que foi dito
aqui anteriormente, isto é: que a fé consiste numa etapa necessária
para a obtenção do conhecimento de Deus, seguida posteriormente
da contemplação do conteúdo apontado pela fé. Nesse sentido, a fé é
compreendida como propedêutica à beatitude.
Mais adiante, nosso filósofo-teólogo expressa sua compreensão da
origem da fé: “Nem sequer da fé podemos nos gloriar como se de nós
dependesse. [...] Pois, o que tens que não tenhas recebido?”13. Nesse
sentido, a fé não se originaria no ser humano como um mérito de seu
próprio esforço, divergindo, assim, da alegação pelagiana, conforme se
descreveu no De praedestinatione sanctorum. De modo contrário ao que
ensinava Pelágio, a fé teria sua origem em Cristo, conforme também
afirmou o autor do texto bíblico de Hebreus: “com os olhos fixos naquele
que é o iniciador e consumador da fé, Jesus [...]” (Heb 12,2).
Entretanto, essa questão não corresponde ao problema central da
homilia. A despeito dessa afirmação, Agostinho, diferentemente do que
acontece no De praedestinatione sanctorum, não direciona seu sermão
a uma disputa com os pelagianos. O aspecto capital de seu sermão se
encontra na descrição dada da relação entre fé e razão. Interpelado sobre
tal questão, Santo Agostinho argumentou:

Alguém me diz: ‘Tenho que entender para crer’. Respondo-lhe:


‘Creia para entender’. Havendo, pois, surgido entre nós uma espécie
de controvérsia a esse respeito, de modo que ele me diz: ‘Tenho
que entender para crer’ e eu lhe respondo: ‘Pois bem, creia para
entender’14.

11
É nesse sentido que Gilson (Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 64) alega que se
instaura o primeiro instante da relação fé e razão.
12
Sermo XLIII, 1. Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da versão espanhola da Biblioteca
de Autores Cristianos.
13
Sermo XLIII, 1.
14
Sermo XLIII, 3.

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A clareza com que o complexo dilema entre fé e razão é discutido


nessa homilia torna a reflexão sobre a temática extremamente
convidativa. A experiência pastoral do bispo de Hipona e, por
conseguinte, sua preocupação em instruir mesmo os fiéis mais néscios
quanto à inteligência cristã, fazem deste sermão uma referência singular
e indispensável ao tratamento da questão na antiguidade tardia.
Examinando esse dilema, Santo Agostinho remontou seu
argumento à autoridade judicativa do profeta Isaías, que, conforme a
tradução latina conhecida por Agostinho, teria dito: “Nisi credideritis
non intelelligetis”15, ou seja, “se não crerdes, não compreendereis”.
Não deixando dúvidas quanto a isso, o bispo de Hipona reafirmou:
“Ut intelligas crede” 16 – “creia para compreender”17. Contudo, o
reconhecimento da necessidade de uma estrutura a priori no ser humano
como condição de possibilidade para a fé se expressa com nitidez nesse
sermão. Diante da alegação de quem o interpelou, ele reconheceu:

Portanto, amados, aquele a quem me opus, dando origem a uma


controvérsia que me levou a pedir um profeta como juiz, não
profere palavras vazias de significado quando disse: ‘Tenho que
compreender para crer’. Pois, certamente, o que agora mesmo estou
falando, falo para que creiam os que ainda não creem. E, porém, se
não entendem o que falo, não podem crer. Portanto, de certo modo
é verdadeiro o que ele disse: ‘Tenho que compreender para crer’;
assim como é verdadeiro o que eu disse a partir do profeta: ‘Pois,
creia para compreender’. Ambos dizemos a verdade: coloquemo-nos
de acordo. Consequentemente, compreenda para crer, creia para
compreender. Em poucas palavras vou dizer como devemos
entender um e outro sem problema algum. Compreenda minha
palavra para crer, creia na palavra de Deus para compreendê-la18.

Eis, portanto, o desfecho do Sermo XLIII. Em confronto com o


dilema exposto, Agostinho remata: “Intellege, ut credas, verbum meum;
crede, ut intellegas, verbum Dei”19. Afirmar, entretanto, a anterioridade

15
Ibidem, 6.
16
Ibidem, 7.
17
Nesse sentido, é provável que, conforme nos sugere Cunha (2012, p. 420), o termo
“inteligir” fosse bem mais apropriado por força da correção terminológica; porém, o
termo carece de uso mais extensivo na língua.
18
Sermo XLIII, 3.
19
Ibidem, 9.

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da razão em relação à fé não significa atribuir uma equivocada


primazia da racionalidade sobre a fé. A máxima proferida pelo bispo de
Hipona “intellege ut credas, crede ut intellegas”20, deve ser, portanto,
interpretada à luz da exigência que a circularidade fé e razão impõe, a
saber: o reconhecimento da existência de uma capacidade cognitiva no
ser humano que o permita compreender o anúncio da fé cristã; pois, do
contrário, não seria possível sequer crer no verbum Dei. A dialética21
aqui expressa consiste, então, em compreender o anúncio daquilo em
que se deve crer; compreendendo, deve-se crer, e, crendo, deve-se
procurar alcançar a inteligência daquilo em que se tem crido.
Essa circularidade encontra fundamentação e maior acuracidade
em importante consideração realizada por Agostinho ainda no início
da homilia, a saber: a distinção entre os termos intellectus e ratio,
traduzidos nessa passagem, respectivamente, como “inteligência” e
“razão”:

Porque uma coisa é a inteligência, e outra, a razão. A razão,


possuímo-la antes de compreender; pois, do contrário, não
poderíamos compreender se não tivéssemos a razão. Portanto, o
homem é um animal capaz de razão; para dizer de forma mais clara
e rápida: um animal racional cuja natureza é parte da razão; antes de
compreender, possui a razão. Se quer, pois, compreender é porque
precede a razão22.

O termo intellectus, conforme expresso neste excerto, refere-se a


uma faculdade da alma superior à razão. A superioridade do intellectus
sobre a ratio se dá, na concepção agostiniana, pelo fato de que seria
possível haver razão, sem contudo, possuir inteligência, mas o contrário
não seria possível. Intellectus e intelligentia são termos correlatos,

20
Ibidem, 9.
21
A pluralidade de significações do termo “dialética” é evidenciada ao longo do próprio
corpus agostiniano. Assim, qualquer definição deste termo, interpretada de maneira
unívoca na obra agostiniana, apresenta-se como inverossímil (cf. FITZGERALD,
Diccionario de San Agustín, p. 394-398). Apesar da complexidade de significações e das
utilizações plurais deste termo na reflexão agostiniana e na própria tradição filosófica,
“dialética” se emprega, neste artigo, em seu sentido puramente dialógico, ou seja,
numa relação na qual se estabelece uma espécie de acordo e mutualidade (cf. MORA,
Dicionário de filosofia, p. 718-727). Dessarte, a presente pesquisa pressupõe uma relação
de mutualidade no centro do nexo entre fé e razão proposto por Agostinho, transcendendo,
assim, a mera aproximação de termos completamente distintos e independentes.
22
Sermo XLIII, 2.

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os quais designam uma visão interior que, iluminada pela graça


divina, percebe a Verdade23.
Nosso autor estabelece, então, uma importante distinção entre
compreender, enquanto capacidade de assimilar o que se enuncia (ratio),
e compreender, enquanto alcance da plenitude da inteligência da fé
(intellectus). Nesse sentido, a ratio, como estrutura cognitiva, precede
a fides e a fides precede o intellectus. Daí advém que: “compreendo
para crer e creio para compreender”; e, de igual modo, “creio para
compreender, e compreendo para crer”.
A fé, na acepção agostiniana, não prescinde, pois, da razão; antes,
o ato de crer impõe, por si mesmo, a tarefa do pensar. Na Epistula
CXX, de cerca de 41024 d.C., Agostinho instruiu a um certo Consêncio
sobre essa questão. Este procurava encontrar, na fé cristã, as condições
suficientes para prescindir do exercício teorético, especialmente da
sofisticação racional da filosofia. Nesse intuito, Consêncio escreveu a
Agostinho25 pedindo-lhe que o instruísse sobre a Santíssima Trindade,
porém, de maneira livre das amarras da racionalidade especulativa, pois,
conforme julgou aquele, a fé, diferentemente do refinamento do espírito
especulativo, não se restringe a determinada elite intelectual. À vista
disso, Agostinho escreveu-lhe, então, essa epístola, provendo a seguinte
orientação quanto ao problema:

Com efeito, quando começares a introduzir-te de algum modo na


inteligência deste grande mistério (coisa que eu não posso fazer
se Deus não o ajudar interiormente), não irei fazer no meu ensaio
outra coisa que dar-te minha razão, como puder. É razoável quando
tu pedes para que eu ou qualquer outro doutor te ensine para que
entendas o que crês? Deves tu, pois, corrigir tua convicção. Não
que vás rechaçar a fé, senão que contemplarás também com a luz
da razão o que, com a firmeza da fé, tu já admitias26.

23
A significação do termo intellectus, à luz do contexto do Sermão 43, não difere, em
absoluto, da definição deste vocábulo dada por Étienne Gilson. Portanto, segue-se aqui
a explicação deste conceito, conforme propõe Gilson em Introdução ao estudo de Santo
Agostinho. Vide GILSON, 2010, p. 96.
24
Conforme data sugerida na edição da Biblioteca de Autores Cristianos.
25
A carta de Consêncio consta no corpus agostiniano como Epistula CXIX. Todas as
traduções de excertos do epistolário agostiniano neste trabalho são nossas, a partir das
versões espanholas da Biblioteca de Autores Cristianos.
26
Epistula CXIX, 2.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 255

Contrariando as expectativas de Consêncio, Santo Agostinho o


exortou quanto à importância de se preparar para dar razões de sua
fé e esperança cristãs, conforme ensinam as Escrituras27. Por esse
motivo, o exercício racional consistiria numa capacidade legítima
e singular do espírito humano, sem a qual não haveria possibilidade
para a fé. Consêncio, então, não deveria abdicar do exercício racional
nem sequer se esquivar dele, alegando que, devido à racionalidade
filosófica, por exemplo, muitos se distanciaram da fé cristã. Agostinho
o interpelou nesses termos: “Vamos dizer que precisamos evitar
qualquer discurso porque existem discursos falsos? Igualmente não
deves evitar toda razão porque existe alguma razão falsa”28. Declinar
do desafio de refletir racionalmente a fé cristã seria, portanto, um enorme
equívoco:

Deus está longe de odiar em nós essa faculdade pela qual nos criou
superiores aos outros animais. Ele nos livre de pensar que a nossa
fé nos incita a não aceitar ou buscar a razão, pois não poderíamos
sequer crer se não tivéssemos almas racionais29.

As pretensões do interlocutor foram colocadas em xeque. Qualquer


intenção de desenvolver um discurso crente, que, todavia, o impelisse a
abdicar da racionalidade da fé, isto é, a prescindir da razão humana no
alcance da inteligência do mysterium fidei, equivaleria a um desprezo
à criação divina, porque, segundo Santo Doutor, não foi outra causa
senão o próprio Deus que graciosamente criou os humanos como seres
racionais, distinguindo-os, por essa razão, dos irracionais.
Os crentes são, por conseguinte, capazes de crer justamente porque
são seres racionais, aptos a cogitar; do contrário, a possibilidade de crer
lhes seria privada. Nesse sentido, a fides quae (ou seja, os conteúdos
da fé cristã, a dimensão objetiva da fé) pressupõe a razão como
condição essencial para a apreensão e comunicação dos conteúdos inter-
pretados como revelação do próprio Deus. De igual modo, a fides
qua (isto é, a própria dimensão subjetiva da crença) não surge de
uma lacuna na existência humana. Agostinho se distancia do fideísmo
irracionalista, pois não propõe qualquer espécie de nulidade racional

27
Ibidem, 4.
28
Ibidem, 6.
29
Epistula CXIX, 3.

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256 Chacon, D.

inicial como exigência para que o próprio ato subjetivo de crer se afirme
como tal30.
Assim, é inevitável o regresso à máxima presente no De praedes-
tinatione sanctorum, a saber: “[...] o fato mesmo de crer nada mais
é do que cogitar com assentimento”31. O retorno a essa definição
é necessário, porque, após elucidar que a fé é, essencialmente, uma
atividade do espírito humano, isto é, que a crença é um cogitar, impõe-se
a necessidade de esclarecer a natureza desse cogitar, pois, na acepção de
Santo Agostinho, a fides qua, neste caso, o horizonte da subjetividade
da fé do cristão, não é um ato racional qualquer, na medida em
que não coincide com uma atitude despretensiosa, falseada ou
ilusória, senão com um cogitar efetivamente assentido.
Contudo, antes de analisar o problema do assentimento da fé,
convém compreender, primeiramente, a crença num horizonte mais
amplo. Nesse sentido, a obra De utilitate credendi32 traz algumas
considerações indispensáveis ao tratamento da questão. A referida obra,
escrita cerca de 391-392 d.C.33, foi destinada a Honorato, um amigo
da seita maniqueia. O escrito possui uma preocupação simetricamente
oposta à carta que anos depois seria enviada a Consêncio. Enquanto este
questionou o valor da perspicácia racional na construção do discurso
crente, Honorato, tempos antes, almejou justamente o inverso, ou seja,
uma explicação claramente racional do conteúdo da verdade em que se
deve crer.
A polêmica, aqui, tem como alvo o maniqueísmo. Os adeptos deste
círculo religioso desprezavam e escarneciam a mensagem da fé católica.
A exigência de se crer antes mesmo de se compreender a plenitude
das verdades eternas era, na concepção maniqueísta, absurda e, por
conseguinte, inadmissível. A relação entre fé e razão constitui, portanto,
um aspecto capital desta obra. Com admirável agudeza de espírito, o
bispo de Hipona retorquiu as críticas maniqueístas à inteligência da
fé católica e se opôs diretamente a um sério problema, intimamente
relacionado à própria questão da racionalidade da fé, a saber: a recusa
ímpia e nociva à autoridade, bem como a legitimidade da revelação
presente no Antigo Testamento.

30
ROSA, J. A credibilidade da fé, p. 7-30.
31
De praedestinatione sanctorum II, 5.
32
Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da tradução espanhola, De la utilidad de crer, da
Biblioteca de Autores Cristianos.
33
LANCEL, S. Saint Augustin.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 257

Nesse cenário, Santo Agostinho desenvolveu uma reflexão sobre


a importância da fé para a vida humana. A crença, segundo ele, não
se restringe a uma adesão à revelação cristã nem a qualquer outra
expressão cúltica. Ao contrário, o ato de crer se estende para domínios
da existência humana não propriamente religiosos. Sem essa dimensão
cotidiana da fé, a vida social humana estaria fadada à ruína completa:
“Diversas razões poderiam ser citadas para demonstrar que não restaria
nada na sociedade humana se nos determinássemos a não crer além do
que podemos perceber por nós mesmos”34.
Conforme Agostinho, situações pessoais vivenciadas num passa-
do, que, por alguma razão, são inacessíveis à memória; eventos
históricos ocorridos em épocas remotas, mas que, todavia, são de
conhecimento popular; e, bem assim, a origem paterna e materna de
alguém são exemplos de questões que, em princípio, são reconhecidas
e assimiladas como verdadeiras a partir da crença na autoridade de um
determinado testemunho. Outro exemplo a se considerar consiste no
fato de que, antes de conhecer determinada ciência, é necessário que,
ainda que provisoriamente, primeiro se acolha a autoridade do mestre
que, versado na área, ensina os seus quanto aos conteúdos fundamentais
deste determinado saber.
As próprias relações humanas são fundadas em crenças, pois não se
tem acesso direto à interioridade do outro. As intenções e os sentimentos
de outrem são, em certo sentido, furtivos35. Nesse sentido, no De fide
rerum quae non videntur36, Santo Agostinho, por volta de oito a nove
anos após ter escrito o De utilitate credendi37, retomou aquele argumento
com que interpelou seu leitores: “Como vês o afeto de teu amigo? Porque
o afeto não podes ver com os olhos corporais”38.
No De fide rerum quae non videntur, o problema da credibilidade
da fé ocupa novamente o centro do temário presente na reflexão
agostiniana. Semelhantemente ao que ocorre no De utilitate credendi,
aí nosso filósofo procura demonstrar que a fé é uma virtude necessária
para a vida humana. Caso desaparecesse a fé, a vida social seria impos-
sível:

34
De utilitate credendi, XII, 26.
35
Cf. De utilitate credendi, X, 23.
36
Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da tradução, De la fé en lo que no se ve, da coleção
Obras de San Agustín.
37
RODRÍGUEZ, H. Introducción, p. 791-792.
38
De fide rerum quae non videntur, I, 2.

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258 Chacon, D.

Quem não percebe quão grande perturbação, que confusão espantosa


sobreviria se a fé desaparecesse da sociedade humana? Sendo o
amor invisível, como se amarão mutualmente os seres humanos se
não creem no que não podem ver? Desaparecerá a amizade, pois
se funda no amor recíproco. Que testemunho de amor receberá
um ser humano de outro se não crer que o pode dar? Destruída a
amizade, não se poderá conservar na alma os laços do matrimônio,
do parentesco e da afinidade, porque neles existe, também, a relação
amistosa. E assim, nenhum marido amará a esposa, nem ela ao
marido, se não crer no amor recíproco que não podem ver. Nem
desejarão ter filhos, porque não creem que possam concebê-los
[...]. Se não cremos no que não vemos, se não admitimos a boa
vontade dos outros, porque não podemos alcançá-la com nossos
olhos, perturbar-se-ão as relações entre os homens de tal maneira
que a vida social seria impossível39.

Em Confessionum40, Santo Agostinho também menciona a di-


mensão cotidiana do ato de crer. Nesse clássico, aludindo criticamente
ao problema do racionalismo maniqueísta, declarou:

Depois, Senhor, tu, pouco a pouco tocando e ordenando o meu


coração com mão suavíssima e misericordiosíssima, considerando
eu quão numerosas eram as coisas em que acreditava sem que eu
as visse ou estivesse presente ao serem feitas, como tantas coisas
na história dos povos, tanto sobre lugares e cidades que nunca vira,
tantas em relação a amigos, tantas quanto a médicos, tantas sobre
estas ou aquelas pessoas, tantas coisas em que, se não acreditássemos,
absolutamente nada faríamos nesta vida, e finalmente, considerando
eu quão inabalavelmente conservava fixo na minha convicção de
que pais tinha nascido, coisa que eu não podia saber se não tivesse
acreditado no que ouvia [...]41.

No De diversibus quaestionibus, Santo Agostinho, na questão


intitulada De credibilibus distinguiu três gêneros de crenças: no primeiro
caso, encontram-se os exemplos supramencionados. Estes serão sempre
objeto de crença; no entanto, nunca serão compreendidos plenamente;
o segundo gênero corresponde aos que se compreendem logo que se
39
Ibidem, II, 4.
40
As citações desse texto advêm da tradução portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, João
Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel.
41
Confessionum, VI, 5, 7.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 259

crê. A estes ele se refere como rationes humanae. Os conhecimentos


matemáticos e as diversas ciências são exemplos destas razões
humanas; o terceiro e último gênero de crença se refere à fé cristã e a
sua exigência de se crer como condição para poder alcançar a plenitude
do conhecimento42.
Contudo, o grande problema em jogo não é simplesmente a
crença em sua dimensão cotidiana, ou a das verdades matemáticas.
Santo Agostinho reorienta a questão da fé ordinária para o plano da
transcendência. Nesse sentido, a crença que se almeja legitimar é aquela
fundada na revelação cristã; é aquela fé que questiona toda forma
de soberba e ingenuidade oriunda do estabelecimento da razão em sua
plena autonomia e pretensão de apreender a totalidade da realidade e do
sentido último da existência humana. Em outros temos, a fé que se pensa
é, sobretudo, a fé teologal.
Agostinho assegura, desse modo, que a exigência prévia do
acolhimento de uma determinada autoridade se dá, na ordem da
religiosidade, por razões ainda mais certas:

Porque crer sem razões quando ainda não estamos em condição de


aprendê-las, e preparar o espírito por meio da fé mesma para receber
a semente da verdade, eu tenho não só por saudável, senão por
necessário para que as almas enfermas possam recobrar a saúde43.

Ora, o problema do De utilitate credendi e do De fide rerum


quae non videntur se dá justamente nesses termos. O argumento da fé
como dimensão essencial para a vida cotidiana se dá tendo em vista
a validação da exigência imposta pela religião cristã de se crer antes
de se chegar ao conhecimento perfeito do intellectus fidei. Conforme
elucidado, Agostinho de Hipona considerou a anterioridade do ato de crer
como condição imprescindível para que as almas enfermas pudessem,
posteriormente, alcançar a saúde perfeita, ou seja, o conhecimento da
Verdade Beatífica.
O aforismo nisi credideritis, non intelligetis consiste, portanto, num
aspecto capital da filosofia cristã44. Com efeito, ao analisar a perícope do
Evangelho de João, 7,14-18, Santo Agostinho, no notável comentário

42
Cf. Diversibus quaestionibus, XLVIII.
43
De utilitate credendi, XIV, 31.
44
GILSON, E. L’avenir de la métaphysique augustinienne.

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260 Chacon, D.

In evangelium Ioannis tractatus45, expressou a exigência da anterioridade


da fé nos seguintes termos: “[...] crês porque não compreendes, e crendo,
torna-te capaz de compreender. Se não creres, nunca compreenderás,
porque permanecerás menos apto. A fé, pois, te purifique para que vejas
a plenitude da inteligência”46.
Ainda neste mesmo tratado, Santo Agostinho insistiu:

O que se prometeu aos que creem, irmãos? ‘E conhecereis a


verdade’. [...] pois cremos para conhecer, não conhecemos para
crer. O que conheceremos nem ‘olhos viram, nem ouvidos ouviram,
nem o coração do homem imaginou’. O que é, pois, a fé, senão crer
no que não se vê?47

A inegociável exigência da anterioridade da fé reivindica, segundo


Santo Agostinho, uma autoridade que transcenda o simples ato subjetivo
de crer. A crença, pressupõe, portanto, um assentimento justificado,
fiado em certas garantias. A articulação, pois, entre cogitatio e assentio
é governada pela noção de auctoritas48. Nesse sentido, o De fide rerum
quae non videntur assegurou, por exemplo, a legitimidade da fé cristã a
partir da autoridade singular do testemunho profético:

Muito se equivocam os que pensam que sem provas suficientes


cremos em Cristo. Qual prova é mais evidente do que o cumprimento
das profecias? Portanto, os que pensam que não existe nenhum
motivo para crer em Cristo, que não o viram, considerem então o
que estão vendo49.

Neste excerto, apela-se à autoridade da mensagem profética como


evidência da validade da fé evangélica. Contudo, apesar de direcionar o
olhar dos não crentes, exortando-os para que atentem para o cumprimento
45
Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da tradução ao espanhol intitulada Tratados sobre
el Evangelio de San Juan.
46
In evangelium Ioannis tractatus, XXXVI, 7.
47
Ibidem, XL, 9.
48
KOCH, I. Sobre a definição agostiniana de crença, p. 15-24. A esse respeito, Brachtendorf
(Confissões de Agostinho, p. 129) esclarece: “A crença na autoridade, portanto, deve vir
antes, mas ela representa apenas uma procura. Quem prosseguir nesse caminho chegará
à intelecção e aprenderá cognitivamente o que procurou sob a orientação da autoridade”.
Com efeito, a fé fundada na autoridade não prescinde do exercício cognitivo. Sua função
consiste em orientar a razão quanto ao caminho que esta deverá seguir. A noção de
auctoritas, portanto, não se desdobra em qualquer concepção do tipo fideísta.
49
De fide rerum quae non videntur, III, 5.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 261

das profecias e, a partir daí, creiam, Agostinho não desejou, com isso,
assentar a percepção sensível como critério para o saber, ou ainda, como
fundamento último da fé. Ora, na concepção agostiniana, a referência à
autoridade não se dá apenas em termos de uma garantia fundada numa
prescrição exterior, captada pelos sentidos.
Com efeito, no livro XIII do De Trinitate, o bispo de Hipona
indicou a fonte da inspiração da fé cristã. Segundo ele: “Esta fé, porém,
promete, não pela argumentação humana, mas pela autoridade divina,
que o homem todo, que é constituído de alma e corpo, será imortal, e, por
isso, verdadeiramente feliz”50. Nesta passagem, assinala incisivamente
que a esperança do discurso crente se fixa, sem margem para a dúvida,
na divina auctoritas.
Na filosofia agostiniana, a divina auctoritas, conforme se men-
cionou, não diz respeito, entretanto, à referência a uma autoridade
estritamente externa ao ser humano. Apesar dessa autoridade transcendê-
lo, é no mais íntimo de seu ser que ela se manifesta como presença
atuante51. Agostinho, portanto, recorre a uma justificação da fé a partir
de uma atestação íntima, ou seja, por um viés internalista que recorre à
Praesentia interiora como divina auctoritas.
A Praesentia interiora, que assegura das promessas da fé, direciona
os puros de coração, da procura pela Verdade nos ruídos exteriores para
a alegria da contemplação no sossego interior52: “Porque havemos de
sair correndo a procurar, no mais alto do céu ou nas profundezas da terra,
aquele que está em nós se nós quisermos estar nele?”53. Esta Praesentia
interiora, que verdadeiramente vem a ser a fonte da inspiração da atitude
crente, é o próprio Deus que, por sua graça, deixa-se encontrar no mais
íntimo da alma humana e, deste interior clama, a fim de romper a surdez
dos que se precipitam em encontrar a Verdade apenas por meio dos
sentidos externos:
50
De Trinitate, XIII, 9, 12. De acordo com a tradução utilizada neste artigo, a saber: SANTO
AGOSTINHO. Trindade – De Trinitate: edição bilíngue. Tradução: Arnaldo do Espírito
Sando, Domingos Lucas Dias, João Beato, Maria Cristina de Castro-Maia de Souza
Pimentel. Prior Velho, 2007.
51
LIMA VAZ, H. A metafísica da interioridade, p. 93-106.
52
“San Agustín representa una filosofia que parte del hombre y vuelve al hombre, pero
cargada ya de la presencia que el refleja de lo divino. Por eso comienza con la vuelta del
espírito a sí mismo, busca la verdad, no la verdad existencial de cada uno, sino la verdad
eterna, que nos lleva en su resplandor a contemplar la presencia de Dios en el hombre. No
se queda esta contemplación en el hombre, sino que se trasciende y se eleva a la Verdad
misma” (CABA, La filosofía del conocimiento en san Agustín, p. 216-217).
53
De Trinitate, VIII, 7, 11.

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262 Chacon, D.

Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que
estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza,
precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo
e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que
não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste
a minha surdez, brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira;
exalaste o teu perfume, e eu aspirei e suspiro por ti, e tenho fome e
sede, tocaste-me, e abrasei-me no desejo da tua paz54.

O caminho da interioridade, entretanto, não reduz o valor e a


autoridade da mensagem das Escrituras. Ao contrário, segundo a
reflexão agostiniana, a fé capaz de transformar a existência humana
é justamente a fé salvífica que surge do encontro do homem com a
revelação cristã. Ao termo do De Trinitate, Santo Agostinho exorta a
seus leitores dizendo:

E, quando tiverem acreditado inabalavelmente nas Sagradas


Escrituras como as mais verdadeiras testemunhas, façam, rezando,
e procurando, e vivendo segundo o bem, por entender, isto é, façam
que aquilo que é possuído pela fé seja visto pela mente tanto quanto
é possível55.

Desse modo, a verdadeira crença encontra alicerce na Verdade reve-


lada nas Escrituras Sagradas e manifesta concretamente no interior do ser
humano. Nesse cenário, o caminho da interioridade e a revelação bíblica
compõem harmoniosamente a estrutura fundamental da argumentação
agostiniana no De Trinitate. Na verdade, apenas um olhar mediado
pelos dados da revelação bíblica, quando dirigido para si mesmo, para
a parte mais sublime e interior da alma, pode alcançar a Verdade, isto é,
vislumbrar, até o possível, certa visão das promessas aludidas pela fé.
À luz do exposto até aqui, situa-se então o sentido da exigência
epistêmica da filosofia cristã: Nisi credideritis non intelelligetis – “Se
não é possível alcançá-lo por meio da inteligência, agarremo-lo por
meio da fé, até que brilhe nos corações aquele que diz pelo Profeta:
Se não acreditardes, não compreendereis”56. Esse postulado, longe de

54
Confessionum, X, 27, 38.
55
De Trinitate, XV, 27, 49.
56
De Trinitate, VII, 6, 12.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 263

quaisquer obscurantismos, convida o ser humano ao aprofundamento


no mysterium fidei, a fim de alcançar, por meio da inteligência, aquilo
para que a fé insiste em apontar. Nesse cenário, se dá, portanto, a
realização da síntese do método agostiniano, a saber: a sentença credo
ut intelligam, intelligo ut credam, ou seja, “creio para compreender,
compreendo para crer”.
Conforme Agostinho, a fé descreve uma esperança, indica
um horizonte de intelecção a ser aspirado pela razão. Os conteúdos
indicados pela fé são primordiais para o alcance da compreensão do
real significado da existência humana e da vida feliz. Certamente, a fé
nas Escrituras proporciona alguns axiomas a partir dos quais a Verdade
precisa ser investigada. À luz, a razão deve perseguir as pistas da fé em
uma investigação em direção à Verdade Eterna anunciada pela fé, isto
é, ao próprio Deus-Trindade. Desse modo, fé e razão não são apenas
coincidentes e compatíveis, mas, em seu elo dialético, versam sobre os
mesmos domínios e compartilham os mesmos conteúdos, ainda que por
meios diferentes57.
Na verdade, a experiência crente consiste na expressão do
amadurecimento da própria razão. Diante da vivência da fé, a razão
humana, temporal e condicionada pelas vicissitudes da existência
mundana, ao indagar sobre sua real natureza, percebe que deverá fazê-
lo paradoxalmente, reconhecendo a necessidade de ir para muito além de
si mesma, a um outro que, no entanto, não é irracional. A razão, portanto,
deverá transcender-se em direção à fonte de sua verdadeira identidade.
Na concepção agostiniana, a razão não basta a si mesma; para fazer o
percurso mencionado, carece do impulso da fé, das pistas assinaladas
pela revelação cristã. Nesse sentido, a fé não é compreendida como uma
atitude alheia à razão, mas justamente como o caminho que leva a razão
ao reconhecimento de sua real identidade como extraposta, ou seja, não
se reduzindo às amarras da temporalidade e da transitoriedade que, no
momento presente, determinam-na58.
A fé no Deus eterno que adentrou a história se dá, assim, como
exigência inegociável para a transição do conhecimento da ciência,
ou seja, das coisas temporais e sensíveis para a verdadeira sabedoria,
compreendida como contemplação das realidades eternas e imutáveis.
Além do mais, é por meio da fé que os homens podem superar a

57
NOVAES FILHO, M. A razão em exercício.
58
Cf. Idem, p. 98.

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264 Chacon, D.

curiosidade pueril, pois não há outra, se não a própria fé, capaz de


indicar, a priori, uma ordem de realidade superior, despertando a
inteligência humana para a compreensão da necessidade de uma via
ascensional, que, partindo da realidade intramundana, contemple a
realidade transcendente.
Portanto, a fé se impõe a tarefa de salientar a incapacidade e
incompletude da razão, para que, enfim, purificada de toda mácula,
a razão possa ir além das imagens de temporalidade e materialidade
que carrega consigo. No seio da relação entre fé e razão existe, então,
uma importante oposição descrita na forma visibilia∕invisibilia ou
temporalia∕aeterna. Nesse sentido, a fé significa o percurso que conduz
a razão humana da esfera do visível para o invisível, do temporal para
as realidades eternas.
Por conseguinte, não apenas a razão, mas a própria fé não basta a si
mesma, pois ela se encontra, também, na esfera da temporalidade. Mesmo
condicionada a essa esfera, a fé, no entanto, vem a ser indispensável à
razão, pois não há outra capaz de desvelar a significação da realidade
visível. Dessa maneira, uma relação ordenada com a criação, ou seja,
um envolvimento adequado com os elementos visíveis e temporais é
possível se, e somente se, partir da inteligência da fé.
A fé, ainda que temporal, pode conduzir o ser humano para algo
além dela mesma, para uma realidade que transcende sua própria
contingência e limitação. Nesse sentido, a fé se dá em vista do eterno.
O tempo da fé consiste, portanto, num tempo necessário para que o
ser humano possa contemplar, na era vindoura, a Verdade: “Dessa
forma, não desprezemos o tempo da fé, como o tempo da semente,
não desprezemos, mas perseveremos, até que colhamos o que tivermos
semeado” 59.
Por essa razão, não se trata meramente de crer e compreender, como
se isso fosse um fim em si mesmo, senão para alcançar um determinado
objetivo. A relação dialética crer e compreender é, conforme já se expôs,
uma procura pelo conhecimento de Deus. Deve-se crer a fim de buscar
compreender e, compreendendo melhor, deve-se buscar com intensidade
ainda maior. O paradoxo aqui subjacente não implica a existência de
uma relação viciosa, como se o espírito circulasse sobre si mesmo
num imenso vazio; a dialética fé e razão encontra sentido e significado
apenas na Verdade que a transcende. A relação fé e razão vislumbra o

59
Sermo XLIII, 1.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 265

alcance de algo muito além de uma simples circularidade ensimesmada.


Essa relação aponta para fora de si, para o gozo da contemplação do
mysterium Trinitatis na vida eterna.
A busca pela felicidade inextinguível se inicia com a fé e se
realiza no conhecimento de Deus. A fé, indiscutivelmente essencial
para o alcance da vida feliz, solicita um aprofundamento reflexivo
dos conteúdos apontados por ela mesma. No entanto, esta questão
não se restringe à esfera da pura investigação racional das verdades
da fé. Conforme Santo Agostinho, o ato de crer em Deus é mais
do que uma simples concordância intelectual com a revelação cristã.
A fé, em sua capacidade de conduzir o ser humano a vivenciar a rea-
lização eterna da vida feliz, implica da parte deste uma entrega irres-
trita60:

O que é, pois, a fé n’Ele? É uma fé amante, uma fé plena de amor,


uma fé que te conduz a Ele e te incorpora em seus membros. Esta é
a fé que Deus nos exige. [...] Não se trata de uma fé qualquer, mas
da fé que age mediante o amor. Haja em ti essa fé e compreenderás
a doutrina61.

No nível das relações entre fé e razão, o De Trinitate apresenta


um terceiro termo, indispensável à progressão do conhecimento de
Deus, a saber: o amor. Nesse sentido, os atentos leitores são instruídos:
“A menos que o amemos agora, jamais o veremos”62. Ainda, noutra
importante obra, ele desenvolve a seguinte fórmula: “Não se chega à
verdade senão pelo amor”63. Destarte, crer em Deus, conforme Santo
Agostinho, significa penetrar no seu mistério de amor.

60
“Y, ¿por qué es necesario creer, antes de entender? Porque la fe opera una transformación,
una μετάνια [sic] en el hombre”. [...] la concepción más plenaria de los Santos Padres y,
entre ellos, especialmente de san Agustín, que concibe el acto de fe, además y sobre todo,
como credere in Deo, como una entrega confiada de toda la persona a un Dios que es amor
y que se revela al hombre para invitarle a entrar en su amistad. La fe así concebida es ante
todo una conversión. Por tanto, no solamente ilumina la razón, sino que sobre todo crea en
el hombre una actitud de buena voluntad, de amor sincero de la verdad” (PEGUEROLES,
El pensamiento filosófico de San Agustín, p. 18).
61
In evangelium Ioannis, XXIX, 6.
62
De Trinitate, VIII, 4, 6.
63
Contra Faustum, XXXII, 18. Tradução nossa, a partir da versão em espanhol, Contra
Fausto, da coleção Biblioteca de Autores Cristianos.

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266 Chacon, D.

Considerações Finais

O problema fundamental aqui analisado, qual seja, o da própria


inteligência da fé foi pensado a partir de uma relação dialógica entre
fé e razão expressa na máxima credo ut intelligam, intelligo ut credam.
Conforme Santo Agostinho, através dessa relação, o espírito encontra
as condições necessárias para se debruçar sobre a investigação do
conhecimento de Deus.
A proposta deste artigo, no entanto, mantém distância da pre-
tensão de sustentar uma leitura dogmatizante, ou canônica, de Agostinho.
Nesse sentido, ainda que a ênfase da interpretação aqui realizada
não tenha recaído sobre a especificidade das controvérsias entre os
intérpretes contemporâneos, não se deve esquecer que a filosofia
agostiniana foi sempre alvo de acalorados debates. Contudo, por razões
metodológicas, nossa ênfase aqui recai sobre o necessário e profícuo
diálogo interno entre as obras agostinianas, não sobre a problematização
das diferentes interpretações do sentido da relação fé e razão em
Agostinho.
Apesar do significativo mérito da conciliação entre fé e razão
proposta por Agostinho, e de seu insigne legado para a tradição
filosófica, tal síntese não finda com o drama da relação fé e razão. Seria
um contrassenso lastimável restringir esse problema à reflexão aqui
apresentada, desconsiderando, outrossim, a especificidade do dilema à
luz dos desafios suscitados pela inteligência moderna e contemporânea.
Com efeito, realizar um resgate da filosofia agostiniana como um cânone
sagrado na resolução desse dilema seria uma atitude demasiadamente
desastrosa.
A relação fé e razão se propõe como um intrigante drama da
existência humana. A complexidade desse dilema ganhou a devida
atenção na reflexão agostiniana e tem concitado a inteligência cristã
a desenvolver proficientes ensaios. Santo Agostinho, em seu filosofar
na fé, indicou a possibilidade da reflexão sobre a relação fé e razão,
sem, entanto, culminar numa rejeição arbitrária da fé ou em algum
estreitamento idealístico do tipo fideísta, ainda que mitigado. Contudo,
para além de uma simples querela patrística ou medieval, o esforço de
elucidação da razoabilidade da fé projeta-se ainda como um caro dilema
para a inteligência contemporânea.

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“Nisi credideritis, non intelligetis” 267

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Sando, João Beato, Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. Lisboa: Imprensa
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______. A predestinação dos santos. In: Graça (III). Tradução de Frei Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Patrística).
______. Trindade – De Trinitate: edição bilíngue. Tradução de Arnaldo do Espírito
Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, Maria Cristina de Castro-Maia de Souza
Pimentel. Prior Velho: Paulinas, 2007.
STEAD, Chistopher. A filosofia na antiguidade cristã. Tradução de Odilon Soares
Leme. São Paulo: Paulus, 1999.

Recebido em: 13/10/2015


Aprovado em: 16/11/2015

Teocomunicação, Porto Alegre, v. 45, n. 3, p. 247-268, set.-dez. 2015

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