A Inteligência Da Fé em Santo Agostinho
A Inteligência Da Fé em Santo Agostinho
A Inteligência Da Fé em Santo Agostinho
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A Inteligência da Fé
Daniel Chacon*
Resumo
O objetivo deste artigo consiste em elucidar o problema da inteligência da fé
cristã a partir de Santo Agostinho. Nesse sentido, o bispo de Hipona realizou
uma síntese pela dialética que pode ser compreendida a partir da máxima credo
ut intelligam, intelligo ut credam. O método proposto neste labor acadêmico
será o da revisão bibliográfica. As considerações desenvolvidas nesta pesquisa
situam-se na perspectiva de que a conciliação proposta por Santo Agostinho
consiste em pensar a relação entre fé e razão, sem, contudo, pressupor uma
rejeição arbitrária da fé ou uma atitude irracionalista frente a este drama. No
horizonte dessa síntese, no entanto, o problema da racionalidade da fé não
se resolve sumariamente; antes, para além de uma simples discussão restrita
à antiguidade tardia, o esforço de elucidação da inteligência da fé é ainda um
complexo dilema para a inteligência contemporânea.
Palavras-chave: Santo Agostinho. Fé. Razão. Intellectus fidei.
Abstract
This article aims to elucidate the problem of intelligence of faith based on Saint
Augustine. In this sense, the bishop of Hippo held conciliation from a dialetic that
can be understood by the maxim credo ut intelligam, intelligo ut credam. The
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248 Chacon, D.
method in use in this academic work is the literature review. The considerations
developed in this research are from the perspective that the conciliation held by
Saint Augustine concerned the possibility of thinking the relationship between
faith and reason without assuming an arbitrary rejection of faith, or an irrational
attitude towards this drama. On the horizon of this synthesis, however, the
problem of rationality of faith was not definitively sorted out, but beyond a simple
discussion concerned to late antiquity, the effort to elucidate the intelligence of
faith is furthermore a complex dilemma for the contemporary intelligence.
Keywords: Saint Augustin. Faith. Reason. Intellectus fidei.
Introdução
Em face das exigências epistêmicas do gênio grego, o cristianismo
refletiu sobre a racionalidade de sua própria fé e, a partir dela,
desenvolveu uma interpretação singular dos dilemas essenciais que
interpelaram a cultura helenística da antiguidade tardia. Nesse cenário,
Santo Agostinho, o grande Doutor ocidental, como é conhecido na
tradição cristã, destacou-se por ser o responsável por erigir a primeira
grande síntese teológico-filosófica. À luz das correntes do pensamento
patrístico grego e latino, ele realizou uma ampla conciliação do dilema
fé e razão. A síntese por ele proposta tornou-se a forma mais elevada de
especulação filosófica e teológica que a antiguidade tardia desenvolveu,
e seu “filosofar na fé” veio a ser, certamente, um predicado indelével da
inteligência cristã1.
Nesse horizonte, o aforismo nisi credideritis, non intelligetis, ou
seja, “se não crerdes, não compreendereis”, manifestou-se, pois, no
centro da síntese agostiniana. Conforme postulou Santo Agostinho, a
fé é indispensável para o alcance da Verdade, pois ela descreve uma
espécie de esperança, um horizonte de intelecção que deve ser almejado
pela razão. Ora, a fé, particularmente nas Escrituras, proporciona os
axiomas a partir dos quais se deve investigar, a fim de se alcançar a
Verdade Eterna. Com efeito, a fé é uma exigência indeclinável para
alcançar a inteligência.
1
Cf. JOÃO PAULO II, Fides et ratio. Ainda, conforme Gareth B. Matthews: “Com apenas
um leve exagero, poderíamos dizer que santo Agostinho inaugurou a consideração
filosófica de muitos tópicos que são hoje aceitos como questões correntes na filosofia da
religião. Um desses tópicos é ‘Fé e Razão’ ” (cf. MATTHEWS, Fé e razão, p. 135).
2 Ainda que essa fórmula não tenha sido, de modo ipsis litteris, cunhada pelo próprio
Agostinho, certamente ela expressa a natureza dialógica da conciliação agostiniana,
conforme apontaremos aqui.
3 Contudo, Oliver Du Roy, em L’intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin,
sugere, corretamente, que qualquer estudo sobre o pensamento de Santo Agostinho deve
respeitar a cronologia de seus escritos (p. 15). Nesse sentido, a própria definição e relação
dos termos fé e razão devem ser interpretados à luz das exigências impostas por seus
interlocutores imediatos, pois a ênfase atribuída a cada um desses termos surge como
resposta a essas exigências que, por força, são simetricamente opostas (cf. NOVAES
FILHO, A razão em exercício, p. 93-94). Reconhecer, então, essa questão, não equivale
a afirmar a existência de uma impossibilidade radical de se perceber a relação fé e
razão a partir de um todo. Antes, o que se comunica aqui é que cada texto do corpus
agostiniano deve ser, necessariamente, compreendido a partir de seu contexto imediato.
A necessidade de contextualização não significa, também, que o exercício de diálogo pela
aproximação das obras de Santo Agostinho, mesmo entre aquelas produzidas em cenários
bem distintos, seja, em si mesmo, um absurdo. Com efeito, a relação pode ser legítima e
demasiadamente rica se, e somente se, considerar o horizonte de particularidade de cada
texto, pois conforme alerta Marrou seria um equívoco se interpretar um termo agostiniano
simplesmente tomando um texto de uma obra diferente (cf. MARROU, Saint Augustin
et la fin de la culture antique, p. 246). Muito embora Étienne Gilson também tenha
considerado o problema da existência de certa flutuação nos conceitos agostinianos, ele
mesmo fixou alguns pontos comuns na interpretação de importantes terminologias desta
filosofia (cf. GILSON, 2010, p. 96). Pressupor, portanto, uma ambiguidade absoluta na
compreensão dos conceitos agostinianos seria um enorme equívoco. Destarte, pretende-se
fazer uma aproximação entres essas obras, respeitando, entretanto, suas menores nuanças,
a fim de evitar sérios problemas. Não ambicionamos, entretanto, esgotar o conteúdo
desses textos.
4
As citações deste texto remetem à tradução do Frei Agustino Belmonte. Contudo, as
referências às obras agostinianas manterão a padronização clássica das versões latinas.
5
LANCEL, S. Saint Augustin.
6
De praedestinatione sanctorum, II, 5.
ali, era a polêmica com os pelagianos. Segundo estes, a crença não era,
rigorosamente, uma dádiva de Deus, senão somente aumentada por
ele, em razão do mérito segundo o qual a própria fé se iniciou naquele
que crê7.
Em oposição aos pelagianos, Agostinho sustentou que a crença,
por si mesma, já era uma dádiva da graça divina. Retomou, pois, um
excerto bíblico que diz: “Não que sejamos capazes de pensar alguma
coisa, como se viesse de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem
de Deus” (2Cor. 3,5). Se, como expresso neste texto, não é possível
prescindir de Deus na cogitatio, isto é, se o ser humano não é capaz de
cogitar de maneira autossuficiente, soberana, então não é dado ao ser
humano produzir por si mesmo a crença, pois, a crença é um cogitar
com assentimento. Considerar, portanto, a fé como condição ex nobis,
ou seja, uma virtude simplesmente produzida pelo gênero humano seria,
na perspectiva agostiniana, um grave equívoco8.
Na esteira desse argumento, encontra-se, portanto, sua clássica
concepção de crença:
7
Cf. Ibidem, II, 3.
8
KOCH, I. Sobre a definição agostiniana de crença, p. 15-24.
9
De praedestinatione sanctorum, II, 5.
10
STEAD, C. A filosofia na antiguidade cristã.
11
É nesse sentido que Gilson (Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 64) alega que se
instaura o primeiro instante da relação fé e razão.
12
Sermo XLIII, 1. Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da versão espanhola da Biblioteca
de Autores Cristianos.
13
Sermo XLIII, 1.
14
Sermo XLIII, 3.
15
Ibidem, 6.
16
Ibidem, 7.
17
Nesse sentido, é provável que, conforme nos sugere Cunha (2012, p. 420), o termo
“inteligir” fosse bem mais apropriado por força da correção terminológica; porém, o
termo carece de uso mais extensivo na língua.
18
Sermo XLIII, 3.
19
Ibidem, 9.
20
Ibidem, 9.
21
A pluralidade de significações do termo “dialética” é evidenciada ao longo do próprio
corpus agostiniano. Assim, qualquer definição deste termo, interpretada de maneira
unívoca na obra agostiniana, apresenta-se como inverossímil (cf. FITZGERALD,
Diccionario de San Agustín, p. 394-398). Apesar da complexidade de significações e das
utilizações plurais deste termo na reflexão agostiniana e na própria tradição filosófica,
“dialética” se emprega, neste artigo, em seu sentido puramente dialógico, ou seja,
numa relação na qual se estabelece uma espécie de acordo e mutualidade (cf. MORA,
Dicionário de filosofia, p. 718-727). Dessarte, a presente pesquisa pressupõe uma relação
de mutualidade no centro do nexo entre fé e razão proposto por Agostinho, transcendendo,
assim, a mera aproximação de termos completamente distintos e independentes.
22
Sermo XLIII, 2.
23
A significação do termo intellectus, à luz do contexto do Sermão 43, não difere, em
absoluto, da definição deste vocábulo dada por Étienne Gilson. Portanto, segue-se aqui
a explicação deste conceito, conforme propõe Gilson em Introdução ao estudo de Santo
Agostinho. Vide GILSON, 2010, p. 96.
24
Conforme data sugerida na edição da Biblioteca de Autores Cristianos.
25
A carta de Consêncio consta no corpus agostiniano como Epistula CXIX. Todas as
traduções de excertos do epistolário agostiniano neste trabalho são nossas, a partir das
versões espanholas da Biblioteca de Autores Cristianos.
26
Epistula CXIX, 2.
Deus está longe de odiar em nós essa faculdade pela qual nos criou
superiores aos outros animais. Ele nos livre de pensar que a nossa
fé nos incita a não aceitar ou buscar a razão, pois não poderíamos
sequer crer se não tivéssemos almas racionais29.
27
Ibidem, 4.
28
Ibidem, 6.
29
Epistula CXIX, 3.
inicial como exigência para que o próprio ato subjetivo de crer se afirme
como tal30.
Assim, é inevitável o regresso à máxima presente no De praedes-
tinatione sanctorum, a saber: “[...] o fato mesmo de crer nada mais
é do que cogitar com assentimento”31. O retorno a essa definição
é necessário, porque, após elucidar que a fé é, essencialmente, uma
atividade do espírito humano, isto é, que a crença é um cogitar, impõe-se
a necessidade de esclarecer a natureza desse cogitar, pois, na acepção de
Santo Agostinho, a fides qua, neste caso, o horizonte da subjetividade
da fé do cristão, não é um ato racional qualquer, na medida em
que não coincide com uma atitude despretensiosa, falseada ou
ilusória, senão com um cogitar efetivamente assentido.
Contudo, antes de analisar o problema do assentimento da fé,
convém compreender, primeiramente, a crença num horizonte mais
amplo. Nesse sentido, a obra De utilitate credendi32 traz algumas
considerações indispensáveis ao tratamento da questão. A referida obra,
escrita cerca de 391-392 d.C.33, foi destinada a Honorato, um amigo
da seita maniqueia. O escrito possui uma preocupação simetricamente
oposta à carta que anos depois seria enviada a Consêncio. Enquanto este
questionou o valor da perspicácia racional na construção do discurso
crente, Honorato, tempos antes, almejou justamente o inverso, ou seja,
uma explicação claramente racional do conteúdo da verdade em que se
deve crer.
A polêmica, aqui, tem como alvo o maniqueísmo. Os adeptos deste
círculo religioso desprezavam e escarneciam a mensagem da fé católica.
A exigência de se crer antes mesmo de se compreender a plenitude
das verdades eternas era, na concepção maniqueísta, absurda e, por
conseguinte, inadmissível. A relação entre fé e razão constitui, portanto,
um aspecto capital desta obra. Com admirável agudeza de espírito, o
bispo de Hipona retorquiu as críticas maniqueístas à inteligência da
fé católica e se opôs diretamente a um sério problema, intimamente
relacionado à própria questão da racionalidade da fé, a saber: a recusa
ímpia e nociva à autoridade, bem como a legitimidade da revelação
presente no Antigo Testamento.
30
ROSA, J. A credibilidade da fé, p. 7-30.
31
De praedestinatione sanctorum II, 5.
32
Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da tradução espanhola, De la utilidad de crer, da
Biblioteca de Autores Cristianos.
33
LANCEL, S. Saint Augustin.
34
De utilitate credendi, XII, 26.
35
Cf. De utilitate credendi, X, 23.
36
Tradução nossa, aqui e alhures, a partir da tradução, De la fé en lo que no se ve, da coleção
Obras de San Agustín.
37
RODRÍGUEZ, H. Introducción, p. 791-792.
38
De fide rerum quae non videntur, I, 2.
42
Cf. Diversibus quaestionibus, XLVIII.
43
De utilitate credendi, XIV, 31.
44
GILSON, E. L’avenir de la métaphysique augustinienne.
das profecias e, a partir daí, creiam, Agostinho não desejou, com isso,
assentar a percepção sensível como critério para o saber, ou ainda, como
fundamento último da fé. Ora, na concepção agostiniana, a referência à
autoridade não se dá apenas em termos de uma garantia fundada numa
prescrição exterior, captada pelos sentidos.
Com efeito, no livro XIII do De Trinitate, o bispo de Hipona
indicou a fonte da inspiração da fé cristã. Segundo ele: “Esta fé, porém,
promete, não pela argumentação humana, mas pela autoridade divina,
que o homem todo, que é constituído de alma e corpo, será imortal, e, por
isso, verdadeiramente feliz”50. Nesta passagem, assinala incisivamente
que a esperança do discurso crente se fixa, sem margem para a dúvida,
na divina auctoritas.
Na filosofia agostiniana, a divina auctoritas, conforme se men-
cionou, não diz respeito, entretanto, à referência a uma autoridade
estritamente externa ao ser humano. Apesar dessa autoridade transcendê-
lo, é no mais íntimo de seu ser que ela se manifesta como presença
atuante51. Agostinho, portanto, recorre a uma justificação da fé a partir
de uma atestação íntima, ou seja, por um viés internalista que recorre à
Praesentia interiora como divina auctoritas.
A Praesentia interiora, que assegura das promessas da fé, direciona
os puros de coração, da procura pela Verdade nos ruídos exteriores para
a alegria da contemplação no sossego interior52: “Porque havemos de
sair correndo a procurar, no mais alto do céu ou nas profundezas da terra,
aquele que está em nós se nós quisermos estar nele?”53. Esta Praesentia
interiora, que verdadeiramente vem a ser a fonte da inspiração da atitude
crente, é o próprio Deus que, por sua graça, deixa-se encontrar no mais
íntimo da alma humana e, deste interior clama, a fim de romper a surdez
dos que se precipitam em encontrar a Verdade apenas por meio dos
sentidos externos:
50
De Trinitate, XIII, 9, 12. De acordo com a tradução utilizada neste artigo, a saber: SANTO
AGOSTINHO. Trindade – De Trinitate: edição bilíngue. Tradução: Arnaldo do Espírito
Sando, Domingos Lucas Dias, João Beato, Maria Cristina de Castro-Maia de Souza
Pimentel. Prior Velho, 2007.
51
LIMA VAZ, H. A metafísica da interioridade, p. 93-106.
52
“San Agustín representa una filosofia que parte del hombre y vuelve al hombre, pero
cargada ya de la presencia que el refleja de lo divino. Por eso comienza con la vuelta del
espírito a sí mismo, busca la verdad, no la verdad existencial de cada uno, sino la verdad
eterna, que nos lleva en su resplandor a contemplar la presencia de Dios en el hombre. No
se queda esta contemplación en el hombre, sino que se trasciende y se eleva a la Verdad
misma” (CABA, La filosofía del conocimiento en san Agustín, p. 216-217).
53
De Trinitate, VIII, 7, 11.
Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que
estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza,
precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo
e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que
não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste
a minha surdez, brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira;
exalaste o teu perfume, e eu aspirei e suspiro por ti, e tenho fome e
sede, tocaste-me, e abrasei-me no desejo da tua paz54.
54
Confessionum, X, 27, 38.
55
De Trinitate, XV, 27, 49.
56
De Trinitate, VII, 6, 12.
57
NOVAES FILHO, M. A razão em exercício.
58
Cf. Idem, p. 98.
59
Sermo XLIII, 1.
60
“Y, ¿por qué es necesario creer, antes de entender? Porque la fe opera una transformación,
una μετάνια [sic] en el hombre”. [...] la concepción más plenaria de los Santos Padres y,
entre ellos, especialmente de san Agustín, que concibe el acto de fe, además y sobre todo,
como credere in Deo, como una entrega confiada de toda la persona a un Dios que es amor
y que se revela al hombre para invitarle a entrar en su amistad. La fe así concebida es ante
todo una conversión. Por tanto, no solamente ilumina la razón, sino que sobre todo crea en
el hombre una actitud de buena voluntad, de amor sincero de la verdad” (PEGUEROLES,
El pensamiento filosófico de San Agustín, p. 18).
61
In evangelium Ioannis, XXIX, 6.
62
De Trinitate, VIII, 4, 6.
63
Contra Faustum, XXXII, 18. Tradução nossa, a partir da versão em espanhol, Contra
Fausto, da coleção Biblioteca de Autores Cristianos.
Considerações Finais
Referências
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