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URDUME

Fevereiro 2019
Edição #01
Artes manuais têxteis, expressão e autoconsciência

OS FIOS PUNK DE MARIE


Inspirada pelo movimento punk,
a artesã vê no lema “do it yourself”
o caminho para a liberdade
Foto: Arquivo Marie Castro

TRAMAS TÊXTEIS PÁGINAS AZUIS TRICÔ IS THE NEW BORDADO POLÍTICO


E TEXTUAIS Betsy Greer YOGA
A linguagem dos fios no As experiências da autora Com benefícios similares Como um coletivo de
cuidado de si e do outro do livro "Craftivism" com aos de práticas integrati- mulheres vem renovando
artesanato e ativismo vas, o tricô pode ser usado a cultura do handmade no
como uma forma de Brasil
meditação

R$ 17,90
URDUME
Equipe

Idealização
Estefania Lima

Edição
Estefania Lima e Mariana Domakoski

Diagramação
Estefania Lima

Revisão
Mariana Domakoski, Estefania Lima, Gustavo Seraphim,
Cristine Bartchewsky e Belisa Rotoni

Apoio
Ubaiá Materna, Érica Galione, Monique Ferreira Fotografia,
Jardineiro Fiel, Zôdio Brasil e Micapullo

Fotos
Fotografias cedidas pelos entrevistados ou colaboradores

Para assinar
Site: www.urdume.com.br

Contato, releases e anúncios


[email protected]

Publicação independente
SUMÁRIO

NESTA EDIÇÃO
Colaboradores 06
Capa
Editorial por Estefania Lima 08

Os fios punk de Marie Castro


Saúde e bem-estar com Flavia Machioni 14
Por de trás de milhares de visualizações de vídeos

Fiada conversa Crocheteira Moderninha 16 tutoriais de tricô e crochê, há muito mais do que uma

boa professora: inspirada pelo movimento punk,


Design Badu Space Maker 17 a artesã Marie Castro vê no lema “do it yourself” o

caminho para a liberdade. P. 18


Canais mão na massa 21

Moda Slow Fashion 26

Sustentabilidade Wabi-Sabi 28

Brasil Bordando o Feminino 30

Tramas Brutas por Gustavo Seraphim 38

Técnica Cores da Natureza 42

Entrevista com Maria Rezende 46

Colunas Foto: Arquivo Betsy Greer

Daniela Nogueira 52
Páginas Azuis
Estefânia Verreschi 54
Mariana Domakoski entrevista Betsy Greer
Vilma Silva 55
A artesã e ativista Betsy Greer, dos Estados Unidos,

conversou com a URDUME sobre as intersecções entre


Gustavo Seraphim 56
artesanato e ativismo, sobre as próprias experiências

Psicologia Psicólogo-Artífice 57 com o fazer e sobre como identificar as sensações

durante o processo. P. 10
Livros por Nayamim Moscal 58

04 URDUME EDIÇÃO #01


SUMÁRIO

Relatos

Tramas têxteis e textuais

A linguagem dos fios no cuidado de si e do outro.

As fiandeiras do século XXI estão fazendo as pazes com

a ancestralidade e ajudando outras mulheres a fazerem o

mesmo. P.34

Foto: Banco de imagem

Especial Tricô

Tricô is the new yoga

Com benefícios similares aos de práticas integrativas,

o tricô pode ser usado como uma ferramenta de

relaxamento, diminuição de ansiedade e foco mental. P.48

Foto e bordado: Kamilla Domingues

Sociedade

Bordado político

Como um coletivo de mulheres vem renovando a cultura

do handmade através do bordado no Brasil. P. 22

Foto: Arquivo Clube do Bordado

URDUME EDIÇÃO #01 05


COLABOR ADORES

COLABORADORES
Thanina Godinho
estilista de visão mística

Formada em Design de Indumentária e Têxtil, tem


direcionado seu trabalho a práticas que valorizam
a sustentabilidade e o respeito à natureza, como
o tingimento e a estamparia botânica. Em 2017,
criou a marca de roupas naturais Tanina. @thanina_
Kamilla Domingues
designer e artesã

Borda a "com agulha com afeto"


e faz junto a seu esposo a
"Maderaria". @comagulhacomafeto
e @maderaria_

Laís Domingues
fotógrafa

Recifense, estudou Cinema e Gestão Cultural.


Trabalha com fotografia, vídeo e bordado. É
idealizadora do projeto Bordando o Feminino e faz
parte da equipe do ateliê Caverna Lunar.
@laiscdomingues

Iris Alessi
professora de tricô

Jornalista que atualmente dedica-se


quase que integralmente a ensinar Patricia Muniz
tricô. @flordeiris mestra em têxtil e moda

Dedica-se ao estudo e pesquisa de corantes naturais

para o tingimento têxtil, visando a valorização da

flora nativa e produção local, com foco na moda

sustentável. @patmuniz

Vilma Silva
doutoranda em educação Cristina Tomé
psicóloga
Atua há 22 anos na área de educação
e é fundadora e diretora pedagógica Pós-graduada em Artes Manuais para a Educação e
da “Calore – Educação, Cultura e Arte”. autora do projeto Psicólogo-Artífice.
@caloreatelie

06 URDUME EDIÇÃO #01


COLABOR ADORES

Cristine Bartchewsky
artista têxtil e professora

Jornalista, já atuou como repórter para diversas

publicações e foi proprietária da Amora Agência

de Comunicação. Atualmente é também artista e

professora pela marca Com Fio. @tramascomfio

Gustavo Seraphim
colunista

Pai, fotógrafo amador e entusiasta de


todo tipo de trabalho manual, atua como
gestor de projetos culturais e artísticos
pela Seraphim Projetos, da qual é sócio-

Mariana Domakoski diretor. @guseraphim

editora

Jornalista, já trabalhou em redação, deu aulas

de português no Equador e hoje atua com

comunicação institucional. Está descobrindo no

bordado novas formas de externalizar coisas e

silenciar.

Daniela Nogueira
colunista

Designer, educadora para design de


Emilie Andrade moda e mentora para a construção de

contadora de histórias identidade, é habitante de Curitiba e


flaneur por adoração. @flanar
Graduada em Artes Cênicas e especialista na Técnica

Klauss Vianna de dança e educação somática,

desenvolve pesquisa artística com a narração de

histórias há oito anos. @emiliehistorias

Estefânia Verreschi
Nayamim Moscal colunista
historiadora
Aromaterapeuta, reikiana, ThetaHealer
Auxiliar de biblioteca, tricoteira e mãe. Tentando achar
e alquimista, cria produtos naturais
um jeito de harmonizar todas essas facetas.
inspirados nas tradições e sabedoria
@gatodegola
popular e da terra. @ervariadasluas

URDUME EDIÇÃO #01 07


EDITORIAL

EDITORIAL

"Essa energia, por aqui, é força motriz de um parto metafórico, um


trabalho artesanal e simbólico. A URDUME é a síntese daquilo que o
fazer manual me ensinou e vem me ensinando. A artesania está em
tudo, embora seja delicioso e necessário o trabalho com as mãos."

Há quase um ano minha segunda gravidez Essa energia, por aqui, é força motriz de
não foi para frente. Algumas semanas depois um parto metafórico, um trabalho arte-
criei um blog e página de Instagram chama- sanal e simbólico. A URDUME é a síntese
dos Fios e Ritos. Fazia meses que eu sonhava daquilo que o fazer manual me ensinou e
com aquela criança, soube que estava grá- vem me ensinando. A artesania está em
vida antes mesmo de fazer o teste, e perder tudo, embora seja delicioso e necessário o
aquele ser anunciado foi dos golpes mais du- trabalho com as mãos.
ros dos meus já desafiadores 30 anos de vida.
Mas os fios me salvaram. Trabalhei incessantemente, de forma
artesanal, em cada parte desse projeto.
Bordar as dores da perda, do útero que se- Entrevistas, textos, edição, revisão, diagrama-
gurou um invólucro de uma vida que não es- ção, vendas e eventos, sendo responsável por
tava mais ali, foi o caminho para essa e mui- toda a criação e execução.
tas outras curas que estariam por vir, nos ritos
que estabeleci com os fios. Antônio (o nome Dei o melhor de mim, mas, como boa artesã,
que dei ao meu filho que não nasceu) abriu estou ciente do meu papel de aprendiz. Essa
caminho para outro filho que estava por vir, é a minha primeira revista, e já me animo
a URDUME. com a melhoria que alcançarei nas próximas.
A prática faz os mestres.
Uma iniciativa que, entre outros desejos la-
tentes, tem em seu cerne essa revista. Uma Falando neles, como não agradecê-los. Mari-
publicação destinada a falar de artes manu- ana Domakoski, minha parceira de edição,
ais, especialmente têxteis, expressão e auto- Belisa Rotondi, minha mentora das redes,
consciência, mas que, especialmente nesta André Boaventura dos negócios, e meu mari-
edição, quer mostrar ao mundo a essência do do, Gustavo, que não só me ensina a ser uma
feminino, que é a criação, seja humana, mate- pessoa melhor todos os dias, como apoia in-
rial ou ideal. condicionalmente todas as minhas escolhas
[inclusive passando as últimas noites em
Uma estreia pautada na força que origina claro comigo para fecharmos essa edição].
tudo, com toda sua potência. A edição #01 da Família, novos e velhos amigos, minha gra-
Estefania Lima URDUME traz mulheres que, das mais diver- tidão.
sas formas, têm usado as mãos, os fios ou a
escrita para mostrar ao mundo o poder uteri- Longos fios à Revista URDUME.
Idealizadora da revista
no. Betsy Greer com seu ativismo craft, as me-
URDUME, a comunicóloga,
ninas do Clube com seu bordado político, Ma-
mestre em Ciências Médicas
rie e seus fios punk, Maria e sua poesia, Flavia
e, agora, estudante de
na cozinha, e todas as colaboradoras que têm
Filosofia, encontrou nos fios
no universo têxtil seu ofício. Mesmo o único
sua metáfora para a vida.
homem a escrever para essa edição, aborda
No Instagram @fioseritos
em seu texto o feminino.

08 URDUME EDIÇÃO #01


EDITORIAL

URDUME EDIÇÃO #01 09


PÁGINAS AZUIS

O UNIVERSO DO
CRAFTIVISMO
A artesã e ativista Betsy Greer, dos Estados Unidos, conversou com a URDUME sobre as intersecções entre
artesanato e ativismo, sobre as próprias experiências com o fazer e sobre como identificar as sensações
durante o processo

Mariana Domakoski entrevista Betsy Greer

Durante uma parada de Halloween URDUME conversou com a mestre emocionante! Eu f icava feliz sempre
no ano de 2000, Betsy Greer se de- em Sociologia, com dissertação so- que estava fazendo tricô, embora
parou pela primeira vez com o im- bre a conexão entre tricô, cultura do tivesse que superar a f rustração de
pacto do artesanato para as cau- “faça você mesmo” e o desenvolvi- aprender, o que pode demorar um
sas. Bonecos fantoche gigantes dos mento de comunidades. pouco!
então candidatos à presidência dos
Estados Unidos desf ilavam. Como REVISTA URDUME. No seu livro Uma maneira fácil de começar a
a própria Betsy comenta, o silêncio “Craftivism: The Art of Craft and identif icar-se com esse sentimento
deles em meio à muvuca do even- Activism”, você diz que o fazer é pela quantidade de energia e pe-
to gerava uma reflexão diferente. A pode ser com o objetivo de nutrir los pensamentos que está tendo.
sensação permanece f resca em sua a nós mesmos. Quais são os senti- Você está animado? Pensando em
memória até hoje, quase 20 anos mentos que se pode experimentar novos projetos? Há uma sensação
depois. no fazer? Como identif icá-los? de leveza em qualquer parte do seu
Betsy. Primeiramente, você deve corpo? Estas podem ser pistas de
Desde então, seus olhos estão sentir. É uma longa história, mas, que você está fazendo algo que nu-
aguçados em busca de formas em quando eu descobri o tricô, eu es- tre você mesmo e sua alma
que o artesanato propõe reflexões tava meio entorpecida com relação
e sensações, e ela está sempre inte- ao mundo depois de alguns acon- URDUME. Fale mais sobre as
ressada em aprender como o que as tecimentos. Eu tinha me fechado suas próprias experiências,
pessoas fazem pode ajudá-las a te- completamente para tudo. O fato de sentimentos e sobre como você os
rem uma voz. Nessa busca, em 2014 passar um tempo em contato com o identif ica.
editou e publicou o livro “Craftivism: f io macio, algo totalmente seguro e Betsy. Às vezes leva tempo para sa-
The Art of Craft and Activism”, que que não pedia nada de mim, permi- ber como você se sente. Muitas ve-
traz os relatos de mais de 30 artesãos tiu-me começar a sentir novamente zes eu começo meu tricô ou borda-
e artistas sobre suas criações e sobre e ver o que eu estava perdendo. do triste ou f rustrada, e preciso de
como eles aliam seus talentos ao ob- algum tempo para criar, a f im de
jetivo de tornar o mundo um lugar Então, se você não consegue sentir que minha mente vá para um lugar
melhor. nada, artesanato como o tricô pode melhor e mais criativo. O movimento
ser um ótimo ponto de partida, já repetitivo de muitos of ícios pode ser
Nas palavras da própria Betsy, da que você pode apenas sentar e trico- muito meditativo se você se concen-
sua casa em Durham, Carolina do tar em silêncio e pensar sobre como trar no que está fazendo, em vez de
Norte (EUA), “ela cria bordados que você está se sentindo naquele mo- focar nos pensamentos que tomam
buscam tornar o mundo um lugar mento. Para mim, o fato de estar fa- conta da sua cabeça.
melhor, ao lado de um cachorro zendo algo enquanto tricotava com
malhado e um gato fofo”. minhas próprias mãos era realmente Eu ainda me sinto tão feliz quando

10 URDUME EDIÇÃO #01


PÁGINAS AZUIS

me sento para tricotar ou bordar te ajudar (ou ajudar quem f icar com URDUME. Qualquer pessoa pode
por alguns minutos, e posso sen- ele) no futuro. iniciar no craftivismo? Fale um
tir minha respiração f icando mais pouco sobre expertise, habilidade e
e mais profunda. Meus pensamen- Por vezes f iz peças em momen- pessoas que ainda não conhecem
tos focam em possibilidades, e não tos de dúvidas e raiva, e o ato de ou não descobriram o processo do
problemas, e minhas mãos são con- fazer (de agir) me ajudou a tra- fazer.
fortadas pelo movimento rítmico. balhar isso. O ato de fazer pode Betsy. Sim! A primeira coisa crafti-
Muitas vezes na minha vida o arte- nos ajudar a passar por sentimen- vista que f iz foi um cachecol de tricô
sanato se tornou um espaço sagrado tos dif íceis, o que também pode para um abrigo de violência domésti-
por causa de como eu me sinto ao ser benéf ico. E a superação de um ca. Há pessoas que fazem cartões
fazê-lo. sentimento versus permanecer com palavras encantadoras e deixam
em um sentimento é útil para que nas ruas, outras participam de atos
URDUME. Para você, craftivismo tomemos decisões melhores. aleatórios de bondade, fazendo
não tem a ver apenas com política. escolhas que tornam este mundo
Também tem a ver com autocons-
''Muitas vezes pode um lugar melhor. Para mim, são atos
ciência e sensibilidade. Como f ica haver uma ressonância ativistas. Eu acho que, por vezes, os
a parte do ativismo quando “não diferente entre os humanos complicam muito as coi-
se tem uma causa” para o que está sas, quando coisas simples também
conceitos de arte e
sendo feito? podem ser signif icativas.
Betsy. Para mim, a parte do ativismo artesanato, o que
entra em cena quando você usa o significa que as pessoas URDUME. Para você, o que é abra-
artesanato para te ajudar a ser uma çado pelo craftivismo? Quais são
têm estima diferente
versão melhor de si mesmo. Um os formatos (tricotar, desenhar,
eu mais calmo, consciente e pre-
pelos objetos acabados cozinhar, etc)?
sente vai tomar melhores decisões quando, essencialmente, Betsy. Em geral, o trabalho tradi-
sobre minha vida, em todos os não há diferença, exceto cionalmente visto como artesanato
aspectos: desde as causas e as pes- – embora isso se sobreponha à arte
o fato de que se uma
soas que apoio até como reajo a elas. – é o bordado, cerâmica, marcenaria,
E se no f inal desse processo eu tiver toalha é feita para ser joalheria, etc. Entretanto, você pode
em mãos um presente para mim usada, colocá-la na seguir o princípio do craftivismo, de
ou para alguém, ou uma peça para usar suas habilidades criativas para
parede pode ser um
exibir, melhor! Mas isso depende de tornar o mundo melhor, e aplicá-lo
como você def ine o ativismo. Para
desserviço". nos esportes, culinária, voluntariado,
mim, trata-se de fazer mudanças URDUME. Você diz que craftivismo etc.
para criar um mundo melhor. é mudança que vem de dentro,
além de ser a criação de coisas URDUME. O artesanato, para ser
considerado como tal, precisa ser
URDUME. E sobre o artesanato que para o mundo exterior. Fale um
necessariamente algo usável? Uma
fazemos e não compartilhamos pouco mais sobre isso.
toalha de tricô emoldurada, como
com ninguém, ou que não são f ru- Betsy. Tanto o processo artesanal uma pintura, pode ser considerada
to de um lugar de dúvidas, busca, quanto o produto dele são impor- arte?
raiva, etc? Isso também pode ser tantes. O processo é interno, no Betsy. Tudo depende das def inições
considerado craftivismo? qual você, o criador, se benef icia, individuais das pessoas sobre o que
é "arte" e o que é "artesanato". E se
Betsy. Eu acho que pode, pois enquanto sonha com ele, descobre
alguém tricota uma toalha e eu pen-
acredito que as coisas que fazemos o que quer fazer com ele, e no tem-
so nela como arte e não a uso como
levam um pouco de nós com elas. Se po que leva para criá-lo. Uma vez pretendido, então o que é? Estarei
o projeto f inalizado faz você pensar terminado, ele assume vida própria mais apta a usá-la se considerá-la
em uma questão, ocasião ou senti- como objeto, feito por você, e ganha como artesanato, uma vez que o
mento específ ico ao qual você gos- signif icado pelo destinatário ou artesanato é geralmente feito para
taria de dar forma, então ele pode pessoa que o encontra. ser usado?

URDUME EDIÇÃO #01 11


PÁGINAS AZUIS

Muitas vezes pode haver uma res- dizer se colchas, chapéus, cachecóis da pelo poder do artesanato?
sonância diferente entre os concei- ou qualquer outra coisa são ne- Betsy. Foi! Como esse desf ile é tão
tos de arte e artesanato, o que sig- cessárias. Quando eu f iz aquele ca- barulhento, tempestuoso e alegre,
nif ica que as pessoas têm estima checol para o abrigo de violência do- o silêncio dos fantoches políticos
diferente pelos objetos acabados méstica, lembro de querer que fosse marchando pela rua foi realmente
quando, essencialmente, não há perfeito porque estava indo para surpreendente. Eles usaram a so-
diferença, exceto o fato de que se outra pessoa. Fazer algo e depois noridade do desf ile em seu próprio
uma toalha é feita para ser usada, doá-lo pode ser um exercício muito benef ício, ao f icarem quietos. O con-
colocá-la na parede pode ser um interessante e de abertura do cora- traste me fez realmente estar ciente
desserviço. ção, pois muitas vezes temos uma do que estava acontecendo ao meu
pessoa em mente. Doar pode nos redor. O fato de os fantoches esta-
URDUME. O que signif ica para uma ajudar a nos identif icar com o con- rem em silêncio em meio àquela
pessoa com necessidades, uma forto que um item artesanal pode ocasião alegre foi a escolha perfeita,
cidade vítima de terrorismo, ou dar. porque muitos de nós estávamos
alguém que perdeu uma pessoa com medo do resultado daquela
amada, receber algo feito pelas URDUME. Fale um pouco mais so- eleição. Essa foi a primeira vez que
mãos de outra pessoa? Qual é o bre como você foi impactada pela vi o artesanato como algo que real-
poder disso, na sua opinião? parada anual de Greenwich Village mente tinha o poder de fazer as pes-
Betsy. Para algumas pessoas, ter Halloween de 2000 e os bonecos soas pensarem.
um item feito à mão signif ica tudo. fantoche de George W. Bush e Al
Para outros, não signif ica nada, Gore [então candidatos à presidên- URDUME. Como libertar-se do
e é por isso que é bom encontrar cia dos Estados Unidos]. Essa foi a medo de fazer algo “feio”?
agências ou grupos que possam primeira vez que você foi impacta- Betsy. Nós podemos continuar fa-

Imagem do projeto "You Are So Very Beautiful" de Betsy Greer. Foto: Arquivo Betsy Greer

12 URDUME EDIÇÃO #01


PÁGINAS AZUIS

"Eu olharia para as habilidades que você tem atualmente.


Sabe cozinhar? Tricotar? Algo mais? E então olhe para o que você
gosta, para o que importa para você. Quer ajudar os sem-teto?
Como você pode usar suas habilidades culinárias para alimentá-
los? Como você pode usar suas habilidades de tricô para mantê-
los aquecidos e confortáveis?

É sobre casar suas habilidades (ou habilidades que você está


aprendendo ou quer aprender) com o que você quer ver mudar."

zendo. Se estiver muito preocupado gato não vai ligar se o casaco não es- no que você está criando.
com o desperdício resultante de tiver perfeito, e talvez ele até odeie a
diferentes tentativas, você sempre coisa toda, porque gatos são linda- URDUME. Como começar? Qual é o
poderá optar por trabalhar com lon- mente meticulosos! Mas você saiu primeiro passo para deixar o arte-
gos f ios de malha ou tricô, para des- de dentro da sua cabeça ao mudar sanato e o craftivismo entrarem na
montar e começar de novo se estiver a escala do projeto. Então, depois sua vida?
insatisfeito com o que fez. Mas se de ter feito um casaco de boneca Betsy. Eu olharia para as habilidades
continuarmos experimentando no- ou para o gato, você pode ter menos que você tem atualmente. Sabe
vos desenhos, novas cores ou no- medo de fazer um para uma criança cozinhar? Tricotar? Algo mais?
vos padrões, estaremos permitindo e, um dia, para você mesmo. Tornar E então olhe para o que você
que nossos cérebros aprendam as coisas lúdicas pode facilitar. gosta, para o que importa para você.
e brinquem, em vez de apenas Quer ajudar os sem-teto? Como
consumirem. E sabe de uma coisa? Urdume. No relato de Inga Ha- você pode usar suas habilidades
É muito bom brincar! milton em seu livro, ela diz que "a culinárias para alimentá-los? Como
maravilhosa estranheza do arte- você pode usar suas habilidades de
URDUME. E como é possível sanato está no processo". Você tricô para mantê-los aquecidos e
libertar-se do medo de criar, deixar pode comentar um pouco sobre confortáveis?
a imaginação voar? Há uma téc- isso?
nica? Betsy. Para mim, a "maravilhosa es- É sobre casar suas habilidades (ou
Betsy. É assustador, né? Ser con- tranheza" do processo é que você habilidades que você está apren-
f rontado com o equivalente a uma pode sonhar com novas possibili- dendo ou quer aprender) com o que
página em branco?! Podemos dades enquanto faz algo. Muitas ve- você quer ver mudar. Descobrir uma
nos livrar do medo diminuindo as zes passamos tanto tempo com nos- maneira de mesclar os dois pode ser
apostas. Por exemplo, escolher sos telefones, assistindo televisão um exercício divertido, então pegue
fazer um casaco para uma boneca ou colados em nossos laptops, que um pedaço de papel e comece a lis-
ou meu gato versus fazer um casaco a alegria e entusiasmo em apenas tar suas habilidades e as causas que
para mim ou outra pessoa. Este úl- sentar e usar suas mãos para fazer te movem, e veja com o que você
timo caso pode ser mais assustador, coisas diferentes, não eletrônicas, f i- pode sonhar!
porque vou me preocupar se o ca- cam maiores! Seu cérebro começa a
saco tem qualidade suf iciente para funcionar de forma diferente, já que Betsy Greer - @craftivista
ser usado. Se for para uma boneca você não está tentando consumir
ou um gato que sempre está em mais e mais informações ou se di-
casa, é um projeto mais simples. Seu vertir. Em vez disso, você está focado

URDUME EDIÇÃO #01 13


SAÚDE E BEM-ESTAR

CONEXÃO ATRAVÉS DOS ALIMENTOS


Flavia Machioni conta como se reconectou consigo, e com o todo, por meio da alimentação

Foto: Divulgação Flavia Machioni


Flavia Machioni lançou o podcast semanal Bocadinho, disponível no Spotify.

Ao se descobrir intolerante à lactose, e desejando comer doces Flavia. Eu sempre gostei de cozinhar, doces principalmente
que tradicionalmente levam leite em sua composição, Flavia (risos), mas perdi um pouco do hábito na adolescência,
Machioni se viu entrando na cozinha, adaptando receitas, e e só retomei [o gosto pela cozinha] quando me descobri
compartilhando tudo no Lactose Não (www.lactosenao.com. intolerante [à lactose] e não podia mais comer os doces com
br), blog que mantém desde 2012. leite que eu adorava. Foi então que passei a adaptar receitas,
substituindo manteiga e leite por outros ingredientes, e criei
No entanto, se nos primeiros anos de blog Flavia compartilhava o Lactose Não para compartilhar essas adaptações [em 2012
receitas de pães, bolos e doces, hoje ela busca dividir com seus as informações sobre intolerância à lactose eram escassas
leitores as transformações positivas que o dia a dia na cozinha e receitas adaptadas eram raras]. Esse foi o começo, dali
lhe trouxe. em diante minha relação com a cozinha foi se estreitando na
medida em que eu percebia o interesse das pessoas naquilo
Para convidar seu público à reflexão, em janeiro de 2019, lançou que eu produzia.
o Bocadinho, podcast semanal sobre saúde e alimentação.
URDUME. Como essa relação se dá hoje em dia?
Em entrevista à URDUME, Flavia conta sobre como o contato Flavia. Hoje é um pouco diferente. Embora eu tenha ficado,
diário com os alimentos transformou diversas esferas de sua de certa forma, um pouco condicionada a essa relação com
vida. o outro, eu não consigo mais fazer algo que não tenha a ver
comigo. Meu interesse já não é mais em pão, bolo ou doce,
URDUME. Flavia, como a culinária entrou na sua vida? mas nos alimentos e no bem-estar que eles me proporcionam.

14 URDUME EDIÇÃO #01


SAÚDE E BEM-ESTAR

Por isso, embora eu ainda crie pensando em ajudar os outros, comigo a partir das minhas escolhas nutricionais, aprendi a
adequando essas criações ao meu negócio, hoje eu faço aquilo escutar o meu corpo e aos poucos fui percebendo que não só
que faz sentido pra mim. O blog está entrando no seu sétimo o que eu como influencia no meu bem-estar, mas também
ano e, nesse período, ambos mudamos. o lugar e a situação. Não adianta tomar suco verde todo dia
se você não está em um relacionamento saudável ou se está
URDUME. Como o fazer diário na cozinha influenciou nesse estressado no trabalho.
processo de mudança?
Flavia. Quando comecei a cozinhar resgatei esse processo URDUME. Para você, qual a relação entre as mãos e os
natural que é o de preparar o próprio alimento. A sociedade tem alimentos?
terceirizado esse preparo, e quando isso acontece perdemos Flavia. Eu gosto muito de pegar nos alimentos, sempre que
uma conexão básica com a natureza. Toda vez que eu pego posso eu preparo eles sem utensílios. É aquilo que a gente
um alimento, penso quantas pessoas foram necessárias para sempre ouve: “quando a cozinheira tá bem, a comida sai boa”.
que ele chegasse até mim. Pode parecer curioso, mas me Eu acredito muito em energia e que o toque nos alimentos
tornei uma pessoa mais empática através da cozinha. Passei a tem muito poder. Respeito muito esse momento [de cozinhar]
respeitar toda a cadeia do alimento. Plantio, cultivo, extração, e sempre faço com boas intenções, para mim ou para os
logística... É um momento de tanta presença, faço reflexões outros. É um momento de doação e entrega.
profundas quando estou cozinhando.

URDUME. Cozinhar transformou outros hábitos além dos


alimentares?
Flavia. Eu acredito que a alimentação é uma porta de entrada
para o autoconhecimento. Para mim foi assim. Hoje eu me
alimento com muito prazer, comendo alimentos naturais e
isso se reflete na minha saúde e disposição. Eu me conecto

CUIDA DE QUEM TE CUIDA


Iniciativa propõe espaço de cuidado para mães que trabalham
com as mãos

A Ubaiá, iniciativa de conexão entre mães empreendedoras através das mãos, iniciou
no mês de janeiro o programa "Cuida do que te cura". O encontro acontece todas as
quintas-feiras, às 18 horas, na Praça da Paz, perto do portão 8 do Parque Ibirapuera, em
São Paulo. O objetivo dos encontros é a criação de uma rede de apoio entre mulheres
que estejam fazendo transição de carreira, pós-maternidade, para atividades manuais.
Para saber mais acesse o Instagram da iniciativa: @ubaia_materna

URDUME EDIÇÃO #01 15


FIADA CONVERSA

CROCHETEIRA MODERNINHA
A artesã f inlandesa Molla Mills, autora do livro “Crochê Moderno”, veio ao Brasil ensinar a téc-
nica de tapestry crochet

Foi em conversas despretensiosas durante a H+H Cologne 2018, feira internacional de artesanato realizada anualmente
na cidade de Colônia, na Alemanha, que os artesãos Marcelo Nunes e Marie Castro convenceram Molla Mills, artesã
f inlandesa e autora do livro “Crochê Moderno”, a vir ao Brasil. A artista têxtil de 39 anos, criadora da técnica de tapes-
try crochet (crochê em f io conduzido), desembarcou por aqui em novembro de 2018 sem saber praticamente nada
sobre o país, para ministrar workshops em quatro cidades brasileiras, e se surpreendeu com a recepção calorosa dos
brasileiros.

Aproveitando a passagem de Molla pelo Brasil, URDUME fez algumas perguntas sobre as percepções dela sobre a via-
gem, o povo brasileiro e, claro, sobre crochê:

URDUME. Molla, qual era a sua expectativa sobre o Brasil


e os brasileiros?

Molla. Eu não tinha expectativas [sobre o Brasil]. Tento não criar


expectativas antes das viagens. Estar aqui é incrível! Tudo! Tenho
encontrado pessoas incríveis, experimentado comidas deliciosas.
Estado em cidades legais. Tem sido uma experiência maravilhosa
como um todo!

URDUME. O que você achou das cidades brasileiras?

Molla. Eu gosto muito de viajar e procuro estar sempre com a


mente aberta para conhecer novos lugares. Cada uma das cidades
que conheci aqui parece um país diferente. São Paulo me fez sentir
como se estivesse em Nova York. Já o Rio me lembrou a Índia e o
Leste Europeu.

Molla Mills conversa com Iris Alessi, durante sua passagem


pelo Brasil.

URDUME. O Brasil é um país tropical e reconhecido por seu estilo de recepção calorosa. Como foi sua
acolhida aqui?
Molla. Nasci em um país no qual as pessoas são consideradas mais f rias. Nós f inlandeses mantemos uma distân-
cia de um metro uns dos outros [risos]. Isso porque nos acostumamos a passar muito tempo com nossas famílias
dentro de casa, por causa do f rio. Mesmo assim eu não me senti intimidada com a reação dos brasileiros nos meus
workshops. Eu gosto de abraçar e de tocar. Me sinto confortável com isso. Acho muito legal começar os workshops
abraçando todo mundo.

16 URDUME EDIÇÃO #01


DESIGN

URDUME. Como o crochê entrou na sua vida?


Molla. Na Finlândia todo mundo faz crochê, eu aprendi muito cedo com a minha mãe e minha avó. A minha mãe fazia
roupas de crochê pra mim, mas é muito vergonhoso usar roupas feitas em casa quando você é uma adolescente, por
isso eu não gostava muito.

URDUME. E o que o crochê signif ica para você hoje?


Molla. O meu estilo de vida. Hoje tenho muito orgulho do trabalho que faço. Na Finlândia não havia muitas publicações
sobre o tema [a artesã tem cinco livros sobre crochê publicados].

URDUME. O seu estilo de crochê é reconhecido e admirado em todo o mundo. Quais são suas
inspirações?

Molla. Eu não sabia que meu trabalho era tão admirado até começar a viajar com os meus workshops. Fico muito
entusiasmada com esse carinho. Minhas referências são muitas, a principal delas são os próprios f ios. Além dos f ios, o
design gráf ico, a pop art e a arte geométrica também são a base para as minhas criações.

Espaço maker inaugura em Curitiba

Ao comemorar 5 anos de Com maquinário e tutores à dis-


existência, a Badu Design celebra posição de iniciantes e veteranos, a
seu aniversário com a inaugura- utilização do espaço se dará através
ção do seu primeiro espaço f ísico, do banco de horas creditadas no
o Badu Space Maker. O espaço BaduMaker, um cartão de acesso à
nasce com o propósito de reconec- estrutura. Com mobiliário produzido
tar as pessoas por meio da arte, a partir de um mutirão, muitas pes-
design e empreendedorismo e, soas que colocaram a mão na massa
para isso, contará com ateliê aber- garantiram horas no espaço mesmo
to de costura, marcenaria criativa, antes da inauguração.
workshops e feiras, além da loja,
onde serão expostos os produtos Informações:
confeccionados pela marca com re- Badu Space Maker
síduos têxteis. Rua Alferes Poli, 821 – Rebouças
Curitiba – PR
@badudesign
Mobiliário produzido com material de
reaproveitamento.

URDUME EDIÇÃO #01 17


URDUME EDIÇÃO #01
CAPA

Os fios punk
de Marie Por Estefania Lima

Por de trás de milhares de visualizações de vídeos tutoriais de tricô e crochê, há


muito mais do que uma boa professora: inspirada pelo movimento punk, a artesã
Marie Castro vê no lema “do it yourself” o caminho para a liberdade

Desde a adolescência, quando já fazia parte de uma banda O visual desleixado, as roupas rasgadas, os alfinetes pendu-
punk, Marie só encontrava sentido em trabalhos e atividades rados, os piercings e os cabelos curtos, coloridos e arrepiados
manuais alinhados com essa vertente do conceito de DIY [do marcavam a ideologia punk e o que ela pregava: a autonomia,
it yourself ou faça você mesmo]. E foi naturalmente que a a autodisciplina e as regras pessoais em vez de imposições
artesã assumiu tal proposta como postura de vida - aprendeu sociais.
a tricotar e cozinhar aos oito anos de idade podendo, desde
cedo, escolher o que vestir ou comer. Hoje, aos 29 anos, está à DIY e o movimento punk
frente de um canal no YouTube com mais de 210 mil inscritos,
no qual fala sobre moda têxtil [Marie ensina tricô e crochê em Com base no conceito de que cada um tem direito a criar as
tutoriais pela internet no canal que leva seu nome] e coloca próprias regras, nasce o lema punk: “se você não gosta do que
sua opinião sobre política, feminismo e consumismo. existe, faça você mesmo” - o famoso do it yourself, frase que
impulsionou não só um novo estilo de rock, mas toda a cul-
Uma luta contra as imposições sociais tura em torno dele. Neste ímpeto de confrontar o sistema e a
indústria cultural, os jovens começaram a criar suas próprias
O movimento punk nasceu nos anos 70, em Nova York (EUA), roupas, comprando em brechós e adaptando suas peças,
e ganhou força na Inglaterra quando, em 6 de novembro de montaram gravadoras independentes e fizeram publicações,
1975, a banda Sex Pistols fez seu primeiro show na St. Martin’s aos poucos se libertando da lógica de consumo das grandes
Art School, em Londres, ecoando seu estilo musical contesta- corporações.
dor para grupos de jovens insatisfeitos com o sistema.
Em oposição ao período originário do conceito, quando ha-
Naquele momento, na Inglaterra, muitos entendiam a anar- via escassez de produtos, na ascensão punk a ideia era jus-
quia como um caminho a ser seguido: o governo de esquerda tamente ir contra a imposição do consumo. "O punk foi
do Partido Trabalhista vivia uma crise econômica em 1975 e, um movimento de contracultura que promoveu o DIY pela
posteriormente, perderia as eleições para uma direita con- abundância de ofertas, algo que se relaciona muito com os
servadora - Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, do Partido dias de hoje, com o movimento de consumo consciente", co-
Conservador, chegou ao poder com uma apertada vitória nas menta Marie.
eleições de 1979.

URDUME EDIÇÃO #01 19


CAPA

Para saber mais sobre a relação de Marie com o DIY, conversa- "Eu gosto de significar as coisas,
mos com a artesã sobre infância, fios, liberdade, autoconheci-
mento e posicionamento. o meu cotidiano [...] Acho que no
URDUME. Marie, como o tricô e o crochê entraram na sua
crochê e no tricô isso também foi
vida?
Marie. Observando a minha família. Minha mãe e minha avó
faziam tricô, crochê, bordado, e desde criança eu tenho sede
um processo natural porque uma
por independência. Então, eu procurava aprender essas téc-
nicas para ter liberdade de vestir ou comer o que eu quisesse. técnica por si só não me basta, eu
Comecei a tricotar com 7 anos, e o crochê chegou um pouco
mais tarde, aos 13, mas fazia também muitas outras coisas. preciso contextualizá-la."
Adorava fazer coisas com sucata, por exemplo. Desde cedo eu
entendi a independência que o trabalho manual poderia me
dar.

URDUME. Em qual momento essa ferramenta de liberdade


se tornou um ofício?
Marie. Aconteceu de forma muito orgânica. Comecei a costu- de conteúdo para a internet e tudo gira em torno de números,
rar à máquina quando o acesso a peças diferentes era difícil. de métricas, então ao mesmo tempo em que eu preciso fazer
Eu não tinha acesso a tecidos, estampas diferentes, então algo que vem de dentro de mim, precisa ser algo que dê resul-
comecei a customizar camisetas e depois ampliar isso para tado, e é bem complicado. Nem sempre sai da maneira que eu
calças, casacos. Várias peças que fiz na minha adolescência, gostaria que saísse, mas o que eu tento fazer é sempre engajar
quando tinha minha banda punk, foram feitas de retalhos, de forma sincera, com coisas que eu gosto. Tento trabalhar ao
reaproveitando coisas que eu tinha em casa. Com 15, 16 anos máximo nessa conexão com o outro. Não somos tão diferentes
eu já fazia camisetas customizadas para vender no Mercado assim, então quando exponho minhas vulnerabilidades, con-
Mundo Mix [evento multicultural criado nos 90], já tentando sigo criar conexão.
empreender no ramo. Fazia parte do meu DNA punk. E apesar
de ter trabalhado com outras coisas depois, sempre foram tra- URDUME. Falando em métricas, nas eleições de 2018 você
balhos relacionados com moda ou trabalhos manuais. Então, se posicionou publicamente em relação a sua posição políti-
de alguma forma, handmade sempre esteve lá. ca. Como você equilibra essa relação delicada entre emitir
opiniões polêmicas e manter a audiência?
URDUME. Nas suas redes sociais você compartilha muitos Marie. Acho que tem a ver com o meu momento. No começo,
dos insights que o fazer manual traz para você. Como tri- eu tinha muito medo de me posicionar, era algo muito novo.
cotar ou fazer crochê contribuem para o seu processo de Eu não sabia qual era o limite, então aos poucos eu fui levando-
autoconhecimento? o mais longe. Esse ano eu me senti segura para me posicio-
Marie. Eu gosto de significar as coisas, o meu cotidiano, e des- nar sobre questões mais polêmicas porque isso faz parte da
de a escola gosto muito de escrever. Acho que no crochê e no significação do meu trabalho. Tem gente que não entende a
tricô isso também foi um processo natural porque uma téc- linguagem, pra onde eu quero ir, mas hoje eu faço isso com
nica por si só não me basta, eu preciso contextualizá-la. Então, confiança porque é o que acho correto. Eu penso muito em
sempre correlaciono as dificuldades que tenho com os fios como fazer isso de forma respeitosa, sem agredir ninguém,
com coisas que estou vivendo na minha vida. O jeito que eu mas entendo que é necessário que eu me posicione.
me comporto com a minha técnica é o jeito que eu me com-
porto no meu dia a dia. Todo processo de aprendizado reflete URDUME. Como você enxerga o retorno das artes manuais
os processos da vida. No tricô e no crochê então... você só tem têxteis como uma prática do feminino, agora extrapolando
uma agulha, uma linha e a sua força de vontade. É como a vida o ambiente de casa e se tornando uma ferramenta de posi-
na prática é, poucos recursos, pouca ajuda externa, em uma cionamento político?
atividade solitária... não é essa a história da autonomia? Marie. Eu acho um resgate fundamental para o nosso enten-
dimento e reencontro do que é mulher. Existia um preconcei-
URDUME. Você consegue manter essa maneira de lidar com to no começo de que as artes manuais eram uma atividade
a técnica e com a vida mesmo quando está produzindo para do lar, mas acho importantíssimo que o craft se revista desse
o trabalho? sentido de força feminina que a atividade está ganhando. Eu
Marie. Qualquer atividade que se torna um trabalho tem sempre signifiquei meus trabalhos manuais pelo punk como
partes que não são tão legais. É difícil pegar algo tão praze- uma questão de liberdade, mas para quem não entrou nesse
roso e transformar isso em um objetivo de vida, com expec- mundo assim, pode ser diferente. Então, acho ótimo quebrar-
tativas minhas, do público, das empresas apoiadoras, todas mos essas barreiras e mostrarmos que essas atividades tam-
as questões financeiras, e ainda casar com o significado disso bém têm uma carga política. Se a cada nova geração o dis-
tudo e com o próprio tempo. Por isso que eu respeito as pau- curso handmade ganhar novas camadas, o meu trabalho terá
sas necessárias para repensar o meu trabalho, as peças... re- valido a pena.
planejar a minha trajetória. Eu trabalho muito com produção

20 URDUME EDIÇÃO #01


YOUTUBE

Canais mão na massa


Eles te ensinam, você faz

Pris | Craft Room Ideas


Das agulhas para o YouTube

A vontade de compartilhar sua paix-


ão pelo tricô foi o que incentiv-
ou Priscilla Lopes a criar o blog e o ca-
nal Craft Room Ideas. "Acredito que é
possível aprender de tudo no YouTube. Criei o
canal para difundir técnicas que não são tão
conhecidas aqui no Brasil”, revela Pris.

Em seus vídeos, Pris busca ser objetiva, expli-


cando técnicas e pontos para que os tricotei-
ros possam aperfeiçoar seus projetos.
Marie Castro
Tricô, crochê e atitude

Em seu canal, Marie disponi-


biliza tutoriais de peças de
tricô e crochê, e produz con-
Paloma Cipriano
A "pedreira da internet"
teúdos sobre estilo de vida,
DIY, viagens e dicas.
O que nasceu para ser um vlog pessoal logo se transformou em um espaço de dicas de cons-
trução. Na época em que criou o canal, Paloma estava ajudando na reforma da casa de sua
família. Sem ideia para o primeiro vídeo, fez um tutorial de como havia colocado o piso em seu
quarto. Pronto, foi o suficiente para que a jovem ficasse conhecida como a “pedreira da inter-
net”.

Canário Handmade
Ideias em madeira

Em 2015, os publicitários Guilherme Glir e Renata Stra-


passon, então recém-casados, decidiram sair da ci-
dade de Curitiba e mudar para São Paulo por motivos
profissionais. Ao se depararem com um apartamento
alugado vazio, começaram a considerar fazer a própria
decoração. Inspirados em referências da internet, lo-
taram a nova casa de objetos e descobriram o amor pela
marcenaria. Esse foi o gatilho para que o hobby virasse
uma proposta de negócio e, em 2016, eles fundaram a
Canário Handmade, uma loja online de projetos especiais,
focada em decoração feita à mão. O negócio agradou tan-
to que, em 2018, eles lançaram um canal no YouTube para
compartilhar as experiências vividas dentro da oficina e
tutoriais de peças simples feitas em madeira.

URDUME EDIÇÃO #01 21


SOCIEDADE

BORDADO
POLÍTICO
Por Estefania Lima

O clube do Bordado é ator importante de um movimento de valoriza-


ção das práticas manuais no Brasil. Com a ajuda de plataformas virtuais,
as meninas que começaram sua trajetória com uma coleção de borda-
dos Soft Porn seguem quebrando paradigmas sobre a prática no país.

Juntas desde 2013, Amanda Zacarkim, Camila Gomes Lopes, Laís Souza, Marina Dini,
Renata Dania e Vanessa Israel são conhecidas por usarem as redes sociais para com-
partilhar conhecimento, experiências e promover a cultura do feito à mão pela internet.

No YouTube, são responsáveis por um canal que aborda desde pontos de bordado a
empreendedorismo e empoderamento feminino. Para dar sustentabi-
lidade à produção dos vídeos, em 2018, o Clube passou a oferecer um pla-
no de assinatura mensal. Com uma contribuição de R$ 17 por mês, as borde-
tes, como são conhecidas as assinantes do plano, garantem um pacote de
conteúdo digital, além de participarem em uma comunidade online de bordadeiras.

22 URDUME EDIÇÃO #01


URDUME EDIÇÃO #01
Foto: Arquivo Clube do Bordado

23
Fotos: Arquivo Clube do Bordado SOCIEDADE

Bordado do plano de assinatura do Clube do Bordado

URDUME. Renata, o bordado é uma prática historicamente que é o nosso plano de assinaturas. Nele o assinante contribui
associada ao feminino e ao lar e o Clube do Bordado é um com o valor de R$ 17 mensais e recebe um pacote de con-
dos responsáveis por estar transformando essa realidade no teúdo digital em seu email, com instruções técnicas de como
país. Como vocês enxergam esse movimento e como a inter- fazer um bordado temático, mais uma folha com ilustrações
net contribui para sua expansão? extras relacionadas ao mesmo tema e uma live no nosso You-
Renata. Fazemos parte de uma geração que tem liberdade Tube, tirando dúvidas de execução. O Clube do Bordado sem-
de escolha sobre suas atividades. Os trabalhos manuais, as- pre se destacou pelas ilustrações e cartelas de cores que cria.
sim como os domésticos, têm um histórico de desvalorização Vimos neste reconhecimento a oportunidade de fornecer
pela sociedade. Isso se intensificou na década de 60, quando este serviço para pessoas que gostam de bordar, mas não ne-
as mulheres sentiram necessidade de se distanciar dessas cessariamente querem criar um desenho próprio. Estes bor-
atividades para terem reconhecimento no mercado de tra- dados são de uso livre, então permite que artesãs revendam
balho. Hoje em dia isso mudou. Não é mais uma imposição estes produtos, gerando renda. As assinantes participam de
que aprendamos isso ou aquilo para ser mulher “prendada” e, um grupo fechado no Facebook que é a coisa mais linda; com
a partir do momento que as artes manuais passam a ser uma troca de conhecimento, todo mundo se ajudando e crescen-
opção, elas perdem o peso da obrigação e dos rótulos. Essa do junto. A ideia inicial deste plano era gerar uma renda fixa
ressignificação dos trabalhos manuais é um processo natu- para nossa empresa, já que é muito difícil conseguir retorno
ral, mas que fomentamos e incentivamos através das nossas financeiro através do YouTube, com o qual despendemos
redes sociais. Além disso, nos esforçamos para a conscientiza- muitas horas mensais para disponibilizar conteúdo educa-
ção da comunidade sobre o valor dos trabalhos manuais, en- cional gratuito. É um lindo ciclo de abundância que favorece
quanto patrimônio cultural e preço justo. todos os envolvidos.

URDUME. Há alguns anos vocês disponibilizam uma série de URDUME. Os vídeos do Clube impulsionam muitas
vídeos no YouTube que possibilitam que pessoas em qual- mulheres a transformações. Como isso é percebido e sentido
quer lugar do país (ou mesmo do mundo) aprendam a bor- por vocês?
dar. Em 2018, vocês passaram a fazer isso também através de Amanda. Ao longo desses anos, percebemos que esse
um plano de assinatura mensal. Como funciona esse modelo movimento de aprender e resgatar as técnicas manuais
e quais foram os frutos dessa nova iniciativa? está acontecendo numa esfera ampla, sem muitas bar-
Renata. Em fevereiro de 2018, lançamos este novo produto, reiras de gênero, conhecimento prévio e independente de

24 URDUME EDIÇÃO #01


SOCIEDADE

outras responsabilidades. Nós somos o interlocutor, mas Renata. Nós consideramos como parte da imagem do Clube
o agente é o público que, através de um desejo de equili- do Bordado compartilharmos nossos ideais através de nos-
brar melhor a vida entre os excessos do dia a dia - trabalho, sas redes. E todos esses assuntos nos representam e moldam
informação, telas, coisas prontas, industrializadas -, ressig- nossa forma de agir e trabalhar. É importante se posicionar,
nifica suas atividades e rotina... E esse gatilho para começar ainda mais nos tempos que temos vivido aqui no Brasil. Os
algum trabalho artesanal pode aparecer de diversas for- posts que fazemos sobre assuntos como feminismo e política
mas, seja pela curiosidade de aprender algo novo ou para são os mais movimentados nos comentários. Tem sempre
relembrar algo que era comum na infância e que ficou no uma parcela do público que é de novos seguidores e ainda
passado, por exemplo. O legal é que a partir disso surge não estão familiarizados com nossa postura. Por isso, muitas
um pequeno universo novo em que podem ser criadas no- vezes surgem comentários que discordam e criticam o fato
vas conexões: um novo grupo de amigas (os), o desafio de de nos posicionarmos. Mas o resultado da balança é sempre
testar materiais e técnicas novas, um jeito de lidar com inse- positivo, na nossa opinião.
guranças, ou um momento de bem-estar consigo mesmo.
Pois, enquanto as mãos trabalham, é possível deixar o pensa- URDUME. Vocês são seis mulheres. É muita gente e isso tam-
mento correr solto e aprender sobre o tempo que as coisas bém é algo muito inspirador na trajetória de vocês. O quão
levam para serem feitas. Com tudo isso, acredito que essas complexo e frutífero é equalizar todas essas relações?
transformações estão ligadas à expressão pessoal que essas Renata. O fato do Clube do Bordado ser formado por
técnicas favorecem. Num mundo em que tudo está "pronto", seis sócias é um grande desafio. A proposta da nos-
fazer algo com as próprias mãos é uma forma de colocar um sa empresa é de ter uma gestão horizontal, com poder
pouco da nossa personalidade nas coisas e de satisfação aces- descentralizado, em que as decisões e responsabilidades são
sível a todos nós. São muitos relatos incríveis que recebemos divididas igualmente entre nós. Este formato de empresa nos
diariamente e compilamos algumas dessas histórias no perfil força e nos possibilita exercitar diariamente nossa paciência,
@gentequeborda, no Instagram. compreensão e proatividade. O respeito com que nos trata-
mos é algo que sempre me orgulha. Deveria ser um requisito
URDUME. O Clube não deixa de se posicionar sobre básico para todas as relações, mas já trabalhei em outras em-
aquilo que acredita e isso faz muita diferença. Mais do que presas e sei que a prática não é bem assim, infelizmente. Tem
um coletivo que ensina bordado, vocês são mulheres que sido um grande crescimento e uma experiência profissional
usam a técnica como forma de empoderamento feminino, incrível ao longo da nossa trajetória.
esclarecimento sobre questões sociais e direitos humanos.
Como isso se dá para vocês? O quanto isso influencia na re-
ceptividade do público?

Bordado do plano de assinatura do Clube do Bordado

URDUME EDIÇÃO #01 25


MODA

QUE MODA É ESSA?


Slow Fashion, a sustentabilidade na passarela
Por Cristine Bartchewsky

Reformar um vestido de festa, pas- infantil, boas condições de trabalho roupas slow fashion, endossa essa
sar roupas de um f ilho para o outro, e contribuição para o bem-estar da conduta de contestar a veracidade
tricotar uma blusa... Práticas que comunidade. Propósitos que são do que é comunicado pelas marcas
soam nostálgicas, mas que foram contemplados pelo slow fashion. não só por consumidores, mas pelas
mantidas em algumas culturas e próprias empresas quando em bus-
famílias e agora são resgatadas na No slow, tudo tem um ritmo orgâni- ca de parceiros.
indústria da moda pelo movimento co, a relação entre produtores, de-
slow fashion, que, em tradução livre, signers, fabricantes, varejistas e “Os principais desaf ios são pela
signif ica moda lenta. consumidores é de conf iança mú- dif iculdade em encontrar marcas
tua. Há o estímulo da agricultura conf iáveis para parcerias. No mo-
Uma proposta sustentável de pen- familiar, do desenvolvimento de mento, temos poucas marcas na-
sar, fazer e consumir moda. Seu negócios locais, inovadores e inde- cionais que são transparentes em
oposto, o fast fashion, produz em pendentes, além do comércio jus- relação a aviamentos, tinturas sus-
larga escala, sem se preocupar com to – como citado acima. Tradições tentáveis e têxtil”, conta.
impactos ambientais e liga a moda à locais, diversidade cultural, social
imagem e necessidade de consumo e ecológica são elementos impor- Como entrar nessa moda?
baseado em tendências globais. tantes. Aí entra também a valoriza-
ção do que é feito à mão, que não O primeiro passo é pesquisar e
Segundo dados anunciados em 2018 tem um lugar digno no fast fashion. descobrir em que condições e do
pelo Comitê da Cadeia Produtiva da que são feitas as suas roupas. Se é
Indústria Têxtil, Confecção e Ves- “Falamos de sustentabilidade, mas produzida no Brasil, se os trabalha-
tuário da Fiesp (Comtextil), o mer- somos dependentes da cadeia têx- dores são respeitados, se o material
cado de moda no Brasil deve crescer til, de terceiros. O slow abre espaço é natural, orgânico ou se sua origem
3,1% ao ano até 2021, com possibili- para pequenos produtores e quando é de reuso, reciclagem e até se o pro-
dade de um recorde de produção de a pessoa se conscientiza do tempo e cesso reduziu resíduos e desperdício
6,68 bilhões de peças e superação trabalho para fazer uma peça, para de recursos, como no caso de tintura
da demanda em relação à oferta em de depender de grandes produ- natural.
2020. tores”, explica a mestra em Têxtil e
Moda pela USP, e especialista em Ainda é possível desacelerar o
Em contrapartida, uma pesquisa tricô, Cristiane Bertoluci, sobre a im- consumo e aumentar a vida útil
do Instituto Akatu, feita também portância do trabalho manual para das roupas ao aderir a brechós e
em 2018 com mais de mil pessoas, o avanço responsável da moda. Ela guarda-roupas compartilhados,
traçou um panorama do consumo f risa ainda que é importante ques- escolher peças com design atempo-
consciente no Brasil que aponta que tionar o próprio slow fashion, pois ral, fazer reparos, além da possibili-
cinco das oito causas que incenti- uma etiqueta não garante práticas dade de comprar de um artesão ou
vam consumo de um produto estão alinhadas aos valores do movimen- fazer à mão sua própria peça!
relacionadas às atitudes da empre- to.
sa. São elas inclusão de pessoas com E, para quem está iniciando como
def iciência, não discriminação de Renata Almeida, colaboradora cri- prof issional no mercado da moda, a
funcionários, combate ao trabalho ativa da Nauta Brasil, marca de estilista Dani Nucci sugere valorizar

26 URDUME EDIÇÃO #01


MODA

marcas nacionais que se preocupam com a cadeia de fashion. “Pretendo com o projeto GAIA incentivar mais
produção. À f rente de projetos editoriais como o GAIA pessoas a pensarem de uma forma sustentável, que tal
(a ser lançado ainda esse ano), voltado à moda susten- reciclar aquela peça que você já não usa mais?”, de-
tável, Dani escolheu trabalhar apenas com marcas slow saf ia.

URDUME EDIÇÃO #01 27


SUSTENTABILIDADE

O QUE É WABI-SABI E COMO


PRATICAR ESSA ARTE
Mais que um olhar poético sobre a vida, uma forma de viver em harmonia
Por Cristine Bartchewsky

Aceitar as imperfeições da vida parece contrassenso em uma Por ser um retalho, o fio de malha apresenta deformidades,
sociedade que nos cobra exatidão. Contudo, uma antiga filoso- como alteração em sua espessura ao longo do novelo, emen-
fia japonesa propõe novos olhares e ritmos ao nosso cotidiano. das, nós. Além de não ter uma cartela fixa de cores, texturas e
Oriundo do Zen Budismo – que tem como primeiro princípio a composição de suas fibras se comparado a fios que são fabri-
impermanência – o wabi-sabi está presente em diversas artes cados. Esses são detalhes que fazem dele um material singular
japonesas, como a cerimônia do chá, a cerâmica, o cultivo do e que, como costumo dizer, colaboram para nos tornar mais
bonsai, o jardim zen e o ikebana. flexíveis diante da vida. Os aparentes defeitos que oferece às
peças podem ser considerados efeitos, uma vantagem gen-
Esteticamente, o wabi-sabi pode ser identificado pelo mini- tilmente concedida pelas artes manuais, que também têm
malismo, pelo que é rústico, assimétrico, irregular, artesanal. como qualidade a originalidade.
Bem como pelo uso de objetos naturais, brutos, como madei-
ra, pedras, metais e plantas; ambientes que transmitem um Veja, não é necessário incorporar o wabi-sabi em sua rotina,
clima intimista, modesto e de aconchego. apenas percebê-lo. Um prato com a borda lascada, uma calça
desbotada, aquela mancha de copo na mesa, a tinta descas-
O desgaste em virtude do tempo, a incompletude, a inexorável cada na parede, o muro tomado por limo e trepadeiras... As coi-
impermanência e todo tipo de imperfeição não são apenas ad- sas aparentemente mais insignificantes podem ser apreciadas
mitidos, mas percebidos como belos e sublimes. Uma maneira ao invés de vistas como algo velho que precisa ser substituído
de viver mais confortável perante a vida e suas inevitabilidades, ou restaurado. Os detalhes contam histórias, revelam vida que
ao acolher aquilo que é como é, já que valoriza a imperfeição pulsa em ritmo orgânico.
das coisas e das pessoas como atributos e consequências na-
turais. No wabi-sabi, tudo é compreendido pela experiência, pelo
processo e a partir da ação do tempo. Assim como saudade,
No Japão, há outra filosofia chamada kintsugi, que é análoga wabi-sabi não tem tradução em nenhum idioma. Extrapola o
ao wabi-sabi. A arte do kintsugi, que consiste em colar com sentido de qualquer palavra ou definição e requer apenas um
laca espanada, ouro, prata ou platina objetos que se quebra- estado de disponibilidade, humildade para aceitar a vida como
ram, enaltece a marca na peça que conta sua história única. ela se apresenta, crua, com suas limitações e fragilidades, sem
Da mesma forma, considerando o lado comportamental, uma que isso seja necessariamente ruim.
mudança de ponto de vista pode nos levar a enxergar a beleza
que reside também naquilo que é imperceptível ou menos-
prezado. Ao respeitar os ciclos do tempo, nos permitimos en-
carar nossas cicatrizes como um meio de honrar nossa história
de vida e manifestar alegria e felicidade.

Outro exemplo é de um material que, recentemente, se tornou


popular entre artesãos e designers: o fio de malha. Proveniente
de resíduos da indústria têxtil, o que antes era visto como lixo e
poluía o meio ambiente, agora é utilizado em trabalhos manu-
ais e ganha um novo ciclo de vida.

28 URDUME EDIÇÃO #01


URDUME EDIÇÃO #01
BR ASIL

Bordando o Feminino
Intercâmbio cultural promove troca de conhecimento entre as artistas têxteis Laís Domingues e
Thanina Godinho e as tradicionais bordadeiras de Passira, em Pernambuco

No último semestre de 2018 o município de Passira, em Pernambuco, conhecido por seus bordados, recebeu o projeto Bordando
o Feminino, que propõe aproximação dos saberes de artistas têxteis e mulheres da região.

Idealizada pela fotógrafa Laís Domingues, a iniciativa contou também com a participação da estilista Thanina Godinho, que, as-
sim como Laís, ministrou oficinas para as bordadeiras de Passira. Tingimento natural e desenvolvimento criativo foram duas delas.
Um processo que resultou na coleção de roupas Filhas do Sol e na exposição fotográfica “Para si: um processo de ser”, que será
inaugurada em Recife após o Carnaval.

Conheça o projeto a partir do olhar de quem vivenciou essa experiência - as próprias Laís e Thanina:

O Projeto
Relato de Laís Domingues

O projeto Bordando o Feminino surgiu em 2015 quando eu, O projeto não foi aprovado em edital do governo por erro no
Laís Domingues, estava aprendendo a bordar. Desde 2011 tra- preenchimento do formulário. A burocracia não permitiu que
balho com fotografia, mas sempre tive uma inquietação com a o que eu havia passado mais de um mês escrevendo fosse lido.
fotografia digital, então sempre busquei intervir nas imagens
ou simplesmente optar pela fotografia analógica. Não desisti. Um ano depois voltei à associação e
perguntei à Dona Lúcia e Marcília o que elas achavam de am-
Em 2015, em um momento de extrema ansiedade, peguei pliarmos o projeto, e o que faltava para impulsionar e reavivar
linha e agulha e comecei a costurar algumas fotografias que a cultura do bordado na cidade e na AMAP. De imediato elas
tinha em casa. Desde então, não parei de experimentar e a- responderam que seria interessante lançar uma nova coleção
dentrar no universo das linhas. e oferecer aulas de bordado na própria cidade.

A curiosidade me levou a pesquisar intensamente e a querer Como não tinha tanto conhecimento sobre modelagem e
aprender e entender melhor todo o processo. Foi assim que costura, entendi que seria preciso encontrar alguém que au-
conheci o trabalho da AMAP (Associação de Mulheres Artesãs xiliasse e participasse do processo de criação das peças. A pri-
de Passira), conheci a mestra artesã Dona Lúcia Firmino e a meira pessoa que me veio à mente foi Thanina, amiga querida
atual presidente da AMAP, Marcília Firmino. que não encontrava há alguns anos, mas que, além de muito
sensível, tinha experiência com algumas comunidades tradi-
Como acredito na potência da troca de saberes, idealizei um cionais.
intercâmbio cultural em que elas me ensinariam a bordar, e
eu registraria o cotidiano delas em vídeo e fotografia, o que Thanina aceitou no momento que fiz o convite, e foi assim que
resultaria em uma exposição de fotografias bordadas. o projeto começou a se transformar em algo maior e poderoso.

30 URDUME EDIÇÃO #01


Foto: Laís Domingues
BR ASIL

  
Fotos: Laís Domingues

Submeti o projeto pela segunda vez na Secretaria de Cultura de Passira. Com ela, conseguimos tocar o coração de cada um
de Pernambuco e, no final de 2017, foi aprovado. que passava pelo nosso stand, que se identificava com a insta-
lação feita com as peças que falam do milho, das serras, dos
A partir daquele momento, muito trabalho pela frente, mui- pássaros, do sol e, por que não, da tão esperada chuva em uma
tas certezas e incertezas. Desde o início sabia que, apesar de região tão seca.
termos objetivos a serem executados, o processo era incerto.
Afinal, faríamos um intercâmbio entre mulheres com histórias Finalizamos a primeira etapa com 24 horas/aulas de oficinas
de vida bem diferentes da nossa. de pontos tradicionais, atualmente pouco utilizados na cidade,
como forma de resgatar e fortalecer a tradição em Passira.
Em um ano agitado, entre viagens, mudança de casa, encon-
tros e reencontros emocionantes e inesquecíveis, construímos Agora nos preparamos para a etapa final do projeto: minha
algo lindo e forte. Foram cinco meses andando pelas ruas e exposição “Para si: um processo de ser”, que será aberta após
serras de Passira, conhecendo pássaros e vegetação local, ad- o Carnaval, em Recife. A exposição trará imagens feitas du-
mirando cada pôr do sol, ouvindo histórias de força, amor e rante esses cinco meses, impressas em tecido com cianotipia
superação ao mesmo tempo. e marrom van dyke (processos de revelação artesanal) e pos-
teriormente bordadas, com pontos aprendidos nas aulas de
Cinco meses construindo laços que não vamos esquecer e tra- Dona Luzinete, bordadeira da cidade. As minhas fotografias
balhando duro para cumprir prazos e para que tudo transbor- bordadas, assim como as peças da coleção Filhas do Sol, vão
dasse sensibilidade . transportar os visitantes da exposição aos dias que vivemos
em Passira.
Terminadas as primeiras etapas do projeto, temos a coleção
cápsula Filhas do Sol, exposta na 32ª Feira do Bordado Manual

32 URDUME EDIÇÃO #01


BR ASIL

O bordado como transformação


e a coleção Filhas do Sol
Relato de Thanina Godinho

É grandiosa a possibilidade de compartilhar saberes e cocriar Oficinas de modelagem e tingimento natural, realizado com
com mulheres tão maravilhosas, autodidatas, que nos incenti- matérias-primas locais, como cajueiro roxo, açafrão-da-terra,
vam e nos ensinam muito, acima de tudo. eucalipto e o café, cujos cheiros ficam registrados no tecido.
Paleta de cor reduzida e significação emotiva. O conceito cen-
O projeto, para além do objetivo econômico (a independência tral da coleção, vale ressaltar, foi a força da natureza, que ins-
financeira que ele visa incentivar, e que não podemos perder pira o corpo, o território e a memória femininos, e como isso é
de vista), busca valorizar o trabalho coletivo e, ao mesmo tem- exteriorizado.
po, resgatar a individualidade de cada uma das participantes,
de modo que isso se reflita em sua criação, sua produção e no Já no plano têxtil foram escolhidos o algodão e o linho, tecidos
convívio com as demais mulheres e suas vivências. vegetais, nobres, ancestrais e resistentes, que evocam, inclu-
sive, essa sensação terrosa primordial.
Particularmente, é incrível constatar como o bordado e a cos-
tura podem transformar a vida de tantas mulheres. A coleção Toda coleção e processo remetem à capacidade feminina de
Filhas do Sol é fruto dessas transformações. A junção de mãos existir, construir, pertencer e estabelecer um olhar atento e
habilidosas, que bordaram cenários regionais e costuraram trabalhado em silhuetas super relaxadas, resultando numa
memórias. Uma cartela de cores da terra, tecidos vegetais e produção de roupas totalmente atemporais e que abraçam a
a significação do feminino em peças com silhuetas relaxadas pluralidade do corpo feminino. Feitas artesanalmente, com a
e desenhos revelam paisagens da cidade e da zona rural, revi- menor utilização de máquina possível, as peças perpetuam a
sitadas pelo grupo. antiga tradição de bordar, valorizando o trabalho coletivo e a
sustentabilidade ambiental. Uma ode ao rústico, ao orgânico,
ao Agreste.

URDUME EDIÇÃO #01 33


DEPOIMENTOS

TRAMAS TÊXTEIS E TEXTUAIS


A linguagem dos fios no cuidado de si e do outro. As fiandeiras do século XXI estão
fazendo as pazes com a ancestralidade e ajudando outras mulheres a fazerem o mesmo

Em um passado remoto as mulheres eram responsáveis por Durante muito tempo, para muitas mulheres, as tramas
fiar e tecer, transformando a natureza em cultura, através da tecidas em fios foram a única forma de expressão permitida.
tecelagem. Passavam os dias reunidas, tecendo, contando O que talvez explique a provocação de Olive Schreiner, escri-
histórias e, ao brincar com as palavras enquanto tramavam os tora sul-africana do século XIX, ao questionar se caneta ou lá-
fios, não só transformavam lã, algodão e linho em vestimentas, pis teriam ido tão fundo na história humana quanto agulha e
mas também criavam suas próprias narrativas. Nesse proces- linha.
so, dominavam a criação de dois dos símbolos mais primários
de civilização: linguagem e vestimenta. O reencontro

Saberes que nunca se perderam, mas que de certa forma fi- Felizmente, hoje os fios e palavras se encontram de novo. Por
caram adormecidos por um longo período. As práticas manu- todo o mundo mulheres se conectam com seu passado femi-
ais têxteis, antes coletivas, tornaram-se solitárias e circunscri- nino, reescrevendo suas próprias histórias entre letras e linhas.
tas ao espaço do lar. A linguagem oral, até então símbolo de São as fiandeiras do século XXI. Mais do que isso, essas mu-
sabedoria, foi aos poucos sendo substituída pela escrita, de lheres juntam não só os dois ofícios, como estão trabalhando
domínio exclusivo dos homens. com eles para reunir novamente o clã feminino.

Mudanças que, além de tudo, serviram como ferramenta de A seguir, confira a história de mulheres que não só re-
opressão à mulher. escreveram suas tramas com a ajuda dos fios, como assumi-
ram para si o compromisso de usá-los para promover a reco-
No entanto, se o passado da linguagem foi esquecido pela so- nexão feminina.
ciedade, os fios nunca o fizeram, ofertando às mulheres sua
vertente linguística, até que elas conquistassem o direito à es-
crita.

Foto: Arquivo Emilie Andrade

34 URDUME EDIÇÃO #01


DEPOIMENTOS

Sobre tecer uma roupa e recontar a própria história

Há pouco mais de um ano, quando conheci fios. Junto com essa tarefa, cada um deveria
o tear manual, uma parte da minha vida, ter um projeto individual ao longo do ano.
que vinha embaraçada há muito tempo, Foi assim que comecei a tecer o projeto-
ganhou sentido e eu fui, finalmente, capaz vestido-ferramenta-para-contar-histórias
de contá-la. Essa história começou comigo e ele não seria mais feito de retalhos de
menina nos desejos de ser outra. Não como outras histórias, mas de novas, tecidas com
uma brincadeira de metamorfose, mas por antigos fios.
desgostar de ser quem eu era por fora. Cresci
Emilie Andrade querendo ser outras e desquerendo ser eu. Nunca tinha pensado que eu poderia te-
Contadora de histórias
cer, e de repente, estava tecendo. Todo dia
Em 2010, encontrei a arte de contar histórias olhar os fios. Desembaraçá-los tantas vezes.
e soube que era isso que faria o resto da vida. Perceber a força que coloco nos gestos e
No mesmo ano, li um pequeno conto que fa- lembrar de quando era criança, minha mãe
lava de uma mulher com uma saia imensa me ensinando crochê e dizendo: “não pre-
e cheia de bolsos. De cada bolso saía um cisa tanta força, o ponto vai ficar apertado e
papelzinho com uma palavra e ela contava vai demorar um tempão pra terminar.” Per-
uma história como quem lê a sorte. Eu quis ceber que em tantas coisas na vida eu faço
ser essa mulher e vestir aquela saia, e foi as- mais força do que é preciso.
sim que nasceu, quase ao mesmo tempo, o
meu eu-narradora e o desejo por uma roupa O vestido ainda está sendo tecido. Tudo fei-
para narrar. to com lentidão absoluta. Não só porque a
vida acontece e transforma os desejos, mas
Alguns meses depois, minha mãe costu- porque tenho alguns desses medos que che-
rou uma saia igual para mim, mas percebi gam quando a gente tem que olhar para si.
que aquela não era minha roupa. Novas Agora sei por que os outros vestidos não me
referências foram vindo e fui desvelando o serviam. Só eu poderia construir essa roupa.
que seria esse meu vestuário. Na verdade, Só eu poderia construir a mim mesma.
ele era um vestido, uma roupa de xamã, uma
ferramenta para existir num lugar onde não Às vezes, me pergunto: e quando o vestido
se poderia existir sem ela. estiver pronto? Não sei. Só quando ele for
vestido, só quando ele se tornar pele é que
Algo que só se materializou sete anos após a vou descobrir o que ele será capaz de ativar
primeira tentativa, quando decidi como iria no mundo.
construí-lo. Seguindo desejo e intuição, pos-
tei no meu blog e redes sociais um pedido Hoje sei que é a velha que mora em mim que
aos conhecidos e desconhecidos: que me tece e que narra. Esse processo revelou um
doassem uma peça de roupa. Como eu não saber que não conhecia em mim. É no fazer
sei costurar, uma amiga se encarregou de que me lembro. Minhas mãos lembram na
juntar os retalhos e construir o vestido. medida que tecem. Minha voz lembra na
medida que conta. Olho para essa história
Algumas semanas depois, de novo por de- e vejo: eu-menina, eu-mulher, eu-narradora,
sejo e intuição, me inscrevi num curso que eu-vir-a-ser, e sinto como se estivesse tecen-
propunha o tecer e a escrita como cuidado do o presente, o passado e o futuro.
de si. Como as sincronicidades acontecem,
no primeiro dia recebemos a tarefa de trans-
formar peças de roupas significativas em
fios e, com eles, experimentar tecer pela
primeira vez. Assim, as roupas que tinha
ganhado dos amigos e algumas peças
importantes da minha história não seriam
mais transformadas em retalhos, mas em

URDUME EDIÇÃO #01 35


DEPOIMENTOS

Bem Me Quer: tecelagem e autoconhecimento

Quando nos conhecemos, percebemos Em 2018, levamos o projeto para diversos


que trabalhávamos da mesma forma, ali- grupos e um dos destaques foi uma ação
ando o fio ao autoconhecimento. Então, voluntária feita na Penitenciária I “José
descobrimos ter histórias parecidas: a Parada Neto” de Guarulhos e no Centro
tecelagem surgiu como bálsamo para de Detenção Provisória 4, em Pinheiros.
ambas, em processos desafiadores da As oficinas de tecelagem foram minis-
vida, e foi isso que nos levou a querer tradas para funcionários como parte das
compartilhar essa ferramenta com outras ações do Outubro Rosa, campanha de
pessoas. combate ao câncer de mama. Utilizamos Cristine Bartchewsky
materiais reciclados e abrimos diálogos Artista têxtil e jornalista

Desse encontro, nasceu o Projeto Bem sobre autocuidado.


Me Quer, no qual realizamos oficinas de
arteterapia aliadas a elementos do mind- A produção concreta de algo alimenta
fulness, da comunicação não-violenta, nosso senso de realização e a cada ponto
da psicologia positiva, do life coaching, que construímos na trama organizamos
do movimento DIY (faça você mesmo) e algo dentro de nós. Além disso, o fazer
do slow life para promover o autoconhe- manual é praticado como uma espécie
cimento dos participantes. Entre fios, nós, de resgate, de reconexão com a essên-
narrativas e diálogos, abrimos espaço em cia de cada um. E, desse lugar, brotam
um ambiente seguro e acolhedor para clareza, foco, coordenação motora, entre Mayra Aiello
uma pausa criativa na correria frenética outros atributos necessários para se viver Psicóloga e arteterapeuta
do dia a dia. bem consigo e com o outro.

Cada grupo que se forma tem uma inten-


ção e recebe uma história, que trabalha
a escuta ativa enquanto tece e convida
o participante a se desligar das deman-
das cotidianas, se voltar para ouvir seu
diálogo interno e deixar emergir conteú-
dos, como necessidades, desejos, dores...
Ou simplesmente o leva a se deparar
com uma interrogação – um detalhe que
talvez precise examinar com cuidado
para compreender a trama da vida.

A partir dessa conexão interior, crochê,


tricô e tecelagem são apenas ponte para
a autoexpressão, elaboração das emoções
e integração com os outros participantes.
O fio e as técnicas são recursos utilizados
de forma precisa, porém sutil, nos contex-
tos terapêuticos, que promovem uma es-
pécie de tecedura psíquica.

36 URDUME EDIÇÃO #01


DEPOIMENTOS

O bordado em mim

Não sei dizer ao certo quando comecei a bor-


dar, tecer ou pintar. Fios, agulhas, pincéis,
música, sempre estiveram presentes no meu
dia a dia. Não há dúvidas de que sou uma
privilegiada. Minhas ancestrais não só me con-
duziram ao fazer à mão, elas me ensinaram
e me incentivaram a ele. Mais do que isso, a
cada ponto ensinado, elas cultivavam em mim
o feminino. Ao elogiar os meus bordados, elas
fortaleceram a mulher que eu viria a ser.

Embora meu avô paterno seja músico e luthier,


meu pai tenha deixado em mim memórias de
seus desenhos e entalhes em madeiras, e o
homem que amo faça joias de madeira, resina

Foto e bordado: Kamilla Domingues


e plantas, na minha história o fazer à mão vem
entrelaçado ao feminino. Ou melhor, com a
desmistificação dos falsos conceitos sobre ele.

Aprendi desde cedo que fazer à mão não é


sinônimo de atividade que "subjuga" a mulher,
nem coisa de "mulher desocupada" ou "dona
de casa sem perspectiva". Tricô, crochê, pano
de prato pintado são sinônimos de mulher
em "home office" (muito antes desse conceito
ser tão usado), gerando renda e sustento.
Atividade de mulher inteligente, que usa suas
capacidades inatas de criar, gerar vida, delica-
deza e espalhar beleza para driblar as adversi-
dades e celebrar as alegrias.

Todos esses aprendizados ganharam forma


no meu trabalho de conclusão de curso em
design gráfico, minha segunda formação.
Para ele, bordei tipos que formaram palavras
F
presentes no meu processo de reconstrução
ot
o:

feminina.
M
árcia Koh

Bordei em mim e a mim. Bordei todas as mu-


lheres que me ensinaram que o fazer à mão
at

é o caminho feminino para reconhecer-se,


s

u
Foto e bordado: Kamilla Domingues

para gerar arte, beleza, conforto, protestar,


ganhar voz, sustento, construir um lar. Re-
sultados que compartilhei em um perfil do Kamilla Domingues
Instagram, espaço que alguns acreditam ser Designer e artesã
de divulgação de uma marca de bordado,
mas que entendo como parte do feminino
em mim e que me gera renda – o com agulha
com afeto (@comagulhacomafeto).

URDUME EDIÇÃO #01 37


FOTOGR AFIA

TRAMAS BRUTAS
Gustavo Seraphim apresenta os fios que encontra na natureza

38 URDUME EDIÇÃO #01


FOTOGR AFIA

URDUME EDIÇÃO #01 39


FOTOGR AFIA

40 URDUME EDIÇÃO #01


URDUME EDIÇÃO #01
TÉCNICA

CORES DA
NATUREZA
Texto: Patricia Muniz
Fotos: Felipe Borges

Recordo-me com deleite das trilhas que fiz, observando


os verdes das árvores e dos arbustos, os coloridos das
flores e dos inusitados frutos que encontrei. Encanta-
me, também, observar, quando vou à feira de domingo,
a multiplicidade de alimentos e a exuberante paleta de
cores formada. Sinto, igualmente, o coração se encher
de graça ao caminhar pela zona cerealista de São Paulo
e contemplar a infinidade de temperos, ervas, cascas de
árvores, grãos e sementes, cujas cores saltam aos olhos.

A natureza, fantasticamente, criou as mais variadas e en-


cantadoras cores e há milhares de anos o homem utiliza-
se de diferentes matérias-primas naturais para dar cor
às suas próprias criações. Nesse contexto, o tingimento
natural, aquela técnica milenar de usar pigmentos
naturais para dar cor a substratos têxteis, encanta pelos
resultados obtidos.

As fontes de onde é possível extrair esses corantes são


diversas, afinal, a natureza nos rodeia com suas cores
belíssimas. Temperar um alimento com açafrão-da-
terra é brincar de amarelar a comida. Experimente co-
zinhar um tecido com esse tempero, a cor obtida é um
amarelo que resplandece aos olhos. Na
cozinha, ainda podemos encontrar aquelas
sementes belas e cheirosas do urucum. Elas deixam os
tecidos com diferentes intensidades de laranja, depen-
dendo da fibra têxtil e do processo de tingimento.

42 URDUME EDIÇÃO #01


URDUME EDIÇÃO #01 43
TÉCNICA

"Temperar um alimento com E aquelas plantas verdes de onde se extraem os azuis fortes
e imponentes? Esse corante, conhecido como índigo, já era
açafrão-da-terra é brincar de
usado há 6.000 anos no Peru e é extraído pelo processo de fer-
amarelar a comida. mentação das folhas de diversas plantas, como as dos gêneros
Experimente cozinhar um tecido Isatis e Indigofera.

com esse tempero,


Rosas e roxos podem ser extraídos das flores de hibisco, das cas-
a cor obtida é um cas de uva e jabuticaba. Contudo, as cores dessas plantas são
amarelo que resplandece aos olhos." instáveis e variam muito com o pH devido às características
desses pigmentos, o que pode fazer com que o tecido apre-
sente manchas verde acinzentadas. Nesse caso, é preciso ante-
ver a aplicação do tecido que será tingido com elas.

44 URDUME EDIÇÃO #01


TÉCNICA

Para quem gosta dos tons beges e mar-


rons, as cascas de árvore são as aliadas, além
de possibilitarem cores muito resistentes. É
possível se obter diferentes matizes. Por exem-
plo, a casca da catuaba cria tons de marrom mais
avermelhados, enquanto a casca de copaíba, tons
de marrom mais amarelados. Mas cuidado! Há o jei-
to certo de retirar a casca de uma árvore para não
causar danos a ela. Para evitar erros, prefira sem-
pre usar a casca externa da árvore. Além disso, uma
lida no manual “Boas práticas de manejo para o
extrativismo sustentável de cascas”, de
Filizola e Sampaio, pode trazer um bom esclarecimento
sobre isso.

Falar sobre as cores naturais é sempre encantador, mas


precisamos ter consciência de que o tingimento natural
também deve se basear na preservação. Uma produção
industrial, ao modelo fast fashion, com o uso de plantas
corantes pode gerar um grande impacto no meio am-
biente. À vista disso, evoco as palavras de Fletcher e
Grose, em “Moda e sustentabilidade: design para mu-
dança”, de que o propósito do uso dos corantes na-
turais “não é atender aos padrões que a indústria impõe
a si mesma, mas, acima de tudo, trabalhar dentro dos
limites da natureza”. Dessa forma, conectarmo-nos com
a terra, compreender seu tempo e sua lógica é de ex-
trema importância para utilizarmos esses corantes.

Há um universo milenar sobre o tingimento natu-


ral. Se lançar nele é ver a beleza da natureza, é se en-
cantar com a mais sutil nuance das plantas, é se sen-
tir feliz em ver um tecido sair da panela com uma
nova cor, é testar diferentes processos e perceber que
uma única planta pode criar uma cartela de cores
maravilhosa. Enfim, é ir em frente, desvendando,
descobrindo, e não querer voltar atrás!

URDUME EDIÇÃO #01 45


ENTREVISTA

"EU VIVO DE CINEMA,


MAS É A POESIA QUE ME ALIMENTA"

Maria Rezende é poeta, performer, montadora de filmes e ce-


lebrante de casamentos. Seus três livros, "Substantivo femini-
no (2003), "Bendita palavra" (2008) e "Carne do umbigo" (2015)
já venderam mais de 3.000 cópias.

Famosa por poemas como “Pau Mole” e “Pulso Aberto”, Ma- colocar em palavras. E já aconteceu também de vir o poema
ria Rezende é sinônimo de força e gentileza em tudo que faz. todo, de eu ter que parar o carro e anotar o poema inteiro. Du-
Nascida em uma família de artistas, se diz privilegiada por ter rante muito tempo eu só escrevia em papel. Eu uso uns ca-
crescido com suporte emocional e financeiro suficente para derninhos pequenos, sem pauta, e, muitas vezes, acho que
se expressar e se reconhecer em seu ofício de poeta. isso faz com que meus poemas não sejam tão longos. Mas
hoje em dia eu já escrevo no celular, tem vezes que eles nas-
A URDUME conversou com Maria sobre poesia, expressão, cem como mensagem de texto, nascem no tec tec do dedão
processos criativos e trabalho na entrevista que você confere na tela.
a seguir.
Raríssimas vezes eu sento para escrever. Fiz isso uma vez para
URDUME. Maria, como a poesia entrou na sua vida? minha mãe, após fazer um poema para o meu pai e acreditar
Maria. Eu sempre li muito, desde pequena, cresci em uma que ela pudesse ficar com ciúmes, mas é algo que não cos-
casa de leitores. Com 13 anos ganhei de presente de ani- tumo fazer.
versário vários livros e me apaixonei por Vinicius de Moraes. Já
na adolescência eu rabiscava alguns versinhos, mas quando URDUME. Como é ter a poesia como profissão? Há uma
fiz faculdade de Letras, travei. Foi como se ter contato com os separação entre aquilo que você expressa como verdade e
grandes me tivesse feito pensar que já não havia mais nada como “produto”?
pra escrever. A poesia voltou pra mim através da palavra fala- Maria. A poesia, como ofício, teve algo que foi muito definidor
da, como a poesia da Elisa Lucinda. Fiz aula com ela, comecei para mim. Quando comecei a escrever poesia conheci uma
a recitar os poetas que eu admirava, e a minha poesia veio. jornalista que me contou que o fato dela fazer isso como o-
Comecei a escrever com 21, 22 anos. brigação fez com que ela parasse de escrever pra ela. Então eu
vivo de cinema, sou montadora de cinema e televisão e é com
URDUME. Como é o seu processo de criação? esse dinheiro que me sustento. A poesia tem na minha vida
Maria. Meu processo é muito intuitivo e livre. Tem a ver com um espaço de total liberdade. Só escrevo o que quero, como
sentimento, sensações, às vezes com as próprias palavras, quero e o que vem. Já celebrar casamentos me veio pela vida
pensamentos que eu amo. Tem ideias que ficam muito tem- de poeta, e ali tem filtros, mas eu não escrevo poemas para
po cozinhando por dentro, até que eu me sinta à vontade para cada casal. O que eu faço ali é contar as histórias do casal de

46 URDUME EDIÇÃO #01


Foto: Espetáculo "Carne do Umbigo"
arquivo Maria Rezende

uma forma poética e costurar com poemas meus ou dos ou- URDUME. O que significa escrever à mão?
tros. E para os espetáculos tem um desejo de comunicar, um Maria. Estava conversando com meu pai esses dias que a mão
foco. Mesmo assim, não tem um padrão de poema. O cinema pensa, que quando a gente escreve com as mãos, a mão toda
paga as minhas contas, mas é a poesia que me alimenta. está ali transmitindo pensamento e sensação para aquele tra-
balho. No computador são só os dedos. Na moviola, que era
Apesar disso, eu trato a poesia como trabalho. O fato de que a forma de edição antiga, o corpo todo do montador estava
nem todos eles me paguem na mesma proporção não faz ali, a serviço. Quando um montador queria cortar, tinha que
com que ele deixe de ser trabalho. Porque eu leio muito mais pegar tesoura e durex e cortar. Hoje é tudo no automático
poesia do que assisto filmes, por exemplo. Dividir o tempo en- do computador. O computador que tanto tem ocupado as
tre o cinema e a poesia não é simples, 2017 foi um ano que nossas vidas. O ócio perdeu seu espaço para as redes sociais.
dediquei muito à poesia, já em 2018 foi muito mais de cinema, Acho importante parar para me alimentar de poesia, de coisas
é um equilíbrio que vou tentando criar. manuais. Ano passado, no Carnaval, eu sonhei com uma saia.
Acordei e fiz, bordei, costurei… isso me dá um prazer... Remete
URDUME. Como ser poeta influencia em outras áreas da a minha avó, que me ensinou a costurar. E se eu costurar sei
sua vida? que isso vai me ajudar a escrever poesia, que é uma coisa que
Maria. Eu escrevo bem pouco. Não me lembro o úl- eu tenho feito pouco. Apesar de ser um privilégio ter um tra-
timo poema que escrevi, mas ser poeta é alguma coi- balho criativo como o cinema pagando as minhas contas, eu
sa que eu sou, independentemente de estar escreven- preciso desses outros espaços.
do ou não. É uma forma de olhar para o mundo, para a
linguagem. Para mim, ser poeta está além dos momentos
em que eu estou fazendo poesia. A poesia atravessa tudo.
Não tenho formação em cinema, por exemplo, e acho que o
melhor que tenho a oferecer ao cinema ou para qualquer coi-
sa, é o fato de ser poeta. Meu pai fala uma coisa cruel e linda,
que é muito maluco que eu ganhe dinheiro montando filmes,
não fazendo poemas. Ele fala “minha filha, você tem orquídea
para vender e as pessoas te pagam mais pelo esterco que você
tem a oferecer.”

URDUME EDIÇÃO #01 47


URDUME EDIÇÃO #01
ESPECIAL TRICÔ

Tricô is the
new yoga

Com benefícios similares aos de práticas integrativas, o tricô pode ser usado como
uma ferramenta de relaxamento, diminuição de ansiedade e foco mental
Textos: Estefania Lima e Iris Alessi
Fotos: Arquivo Micapullo

Foi-se o tempo em que o tricô era coisa da vovó. Segundo o criatividade está associada ao funcionamento emocional. No
Craft Yarn Council [conselho representante da indústria nos entanto, a maior parte deste trabalho se concentra em como
EUA], um terço das mulheres norte-americanas de 25 a 35 as emoções beneficiam ou dificultam a criatividade, e não se
anos tricotam ou fazem crochê rotineiramente. No Brasil a a criatividade beneficia ou prejudica o bem-estar emocional”,
adesão parece ser a mesma: mulheres (e cada vez mais ho- disse Tamlin Conner, líder da pesquisa, ao jornal The Tele-
mens) de todas as idades têm aderido às agulhas, dando ares graph.
mais modernos à técnica e usando o tricô como uma prática
de descanso do universo digital. No mesmo caminho, uma pesquisa realizada no Canadá sobre
os benefícios do tricô na recuperação de pessoas com tran-
Comprovadamente benéfico à saúde, o tricô tem se juntado a stornos alimentares (Managing anxiety in eating disorders
atividades como meditação e jardinagem, somando-se ao rol with knitting) demonstrou que o tricô colaborou para a di-
de práticas integrativas. Tricô is the new yoga. minuição da ansiedade de 74% das 38 mulheres pesquisadas.
Segundo os autores do estudo, isso acontece porque evidên-
A saúde pelas mãos cias teóricas e empíricas sugerem que a realização de uma
tarefa visual e espacial ao mesmo tempo reduz a intensidade
Um pesquisa da Universidade de Otago (Nova Zelândia), com emocional de imagens angustiantes. Algo que a fisioterapeu-
658 estudantes universitários, revelou que os jovens se sen- ta Betsan Corkhill percebeu na prática, ao receber relatos de
tiam mais felizes nos dias seguintes a práticas de atividades centenas de mulheres que diziam ter mudado suas vidas a
criativas como o tricô. partir do tricô, quando trabalhava em uma revista feminina. A
partir dessa experiência, fundou o Stitchlinks, negócio social
“Há um crescente reconhecimento na psicologia de que a voltado para a promoção do tricô terapêutico, e realizou, em

URDUME EDIÇÃO #01 49


ESPECIAL TRICÔ

Prática diária
“Reservar 20 minutos por dia para se envolver no processo
rítmico de tricotar pode ajudar a administrar essa dose diária
de estresse a que todos estamos sujeitos", afirma Betsan
Corkhill.

2010, juntamente com a Universidade de Cardiff,


do Reino Unido, uma pesquisa online sobre os
efeitos percebidos na relação entre o tricô e o
humor, sentimentos, pensamento, atividade so-
cial e habilidades.

O estudo recebeu 3.545 respostas e foi publicado


na edição de fevereiro de 2013 do British Journal
of Occupational Therapy, revelando uma relação
significativa entre o ato de tricotar e a sensação
de felicidade. Alguns dos entrevistados chega-
ram a relatar os efeitos positivos do tricô no fun-
cionamento cognitivo, como maior facilidade
na resolução de problemas ou encadeamento
lógico mais aprimorado.

“Através da linha, eu podia sentir os múscu-


los do meu pescoço se soltarem e meu corpo
começar a relaxar pela primeira vez em meses.
Eu quase podia sentir meu cérebro se desatan-
do, percebendo que não era tão ruim assim ser
eu mesma, fui me acalmando" é um dos depoi-
mentos do livro "Knit for Health and Wellness",
de Betsan Corkhill

No livro Knit, lançado em 2018, ela afirma que


o corpo humano não foi capaz de se adaptar
às transformações da vida moderna, e, por isso,
nossos níveis de hormônios do estresse estão
constantemente elevados, dando respostas exa-
geradas a questões desagradáveis, mas não ne-
cessariamente de ameaça à vida, como barulho,
trânsito e excesso de trabalho. Para a autora, ter
o hábito de realizar atividades de relaxamento,
como tricotar, é questão de sobrevivência. Os
movimentos rítmicos do tricô induzem a uma
sensação calmante e meditativa necessária ao
nosso dia a dia.

“Reservar 20 minutos por dia para se envolver no


processo rítmico de tricotar pode ajudar a ad-
ministrar a dose diária de estresse a que todos
estamos sujeitos. Ser capaz de 'desligar' por um
período de tempo é fundamental para a saúde
e o bem-estar, especialmente para nós, que vi-
vemos 24h por dia conectados à Internet. Nosso
corpo precisa de tempo para se curar, crescer e
se regenerar”, afirma Betsan.

Segundo ela, seu corpo não pode ficar alerta o


tempo todo sem sofrer consequências. Tricotar
pode ser um caminho de autocura.

50 URDUME EDIÇÃO #01


ESPECIAL TRICÔ

Nova geração

"Não raro, as pessoas chegam às minhas aulas procurando a 'professora


senhorinha'"
Iris Alessi, professora de tricô

De jornalista à professora de tricô: um caminho de descoberta

Por Iris Alessi

Desde quando decidi que seguiria Alguns duvidam da capacidade dessa


Armarinho Criativo
a carreira de jornalista, em nenhum possível iniciante, e outras comentam
momento passou pela minha cabeça algo como: “Ah, eu achei que a pro-
Iris dá aula duas vezes por sema-
dar aulas. Talvez naquele momento fessora fosse mais velha...”. Carinhosa-
na no Micapullo, armarinho cria-
eu acreditasse que não tinha aptidão mente respondo que “um copinho de
tivo localizado em Curitiba. Voltado
para ensinar, ou paciência para com- formol por dia faz esse efeito”. Apesar
para o artesanato contemporâneo,
preender as dificuldades das pessoas. de atualmente haver cada vez mais jo-
aliado ao design e ao compartilha-
vens fazendo trabalhos manuais, e se
mento de ideias, o espaço se desta-
Mas a vida me reservou surpresas que aprofundando nesse fazer, muita gente
ca por um olhar renovado a técni-
nem nas ideias mais malucas que tive ainda tem ressalvas sobre a atividade.
cas antigas como o tricô e o crochê.
em relação a minha carreira eu pode- Meu maior desafio é provar o contrário.
ria imaginar. Há pouco mais de três
A curadoria de produtos traz itens
anos passei a dar aulas de tricô e cro- Talvez por isso, mais do que ensinar,
importados, ergonômicos, alguns
chê. Transformei minha paixão em pro- aprender faça parte da minha rotina
autorais e de origem natural.
fissão. Levei para fora da minha casa diária. Adoro quando pedem para que
tudo aquilo que eu tinha aprendido ao eu ensine algo que ainda não fiz. Isso
Com uma vocação natural para
longo de anos fazendo essas duas artes me instiga a entender como a técnica
promoção de encontros, o local,
e, aos poucos, percebi que apenas uma funciona naquela determinada peça,
arquitetonicamente acolhedor,
delas me preenchia completamente. estudar novas técnicas e descobrir a
convida a um bom bate-papo, en-
Com o tempo, passei a me dedicar so- melhor forma de ensiná-las aos alu-
quanto se tricota, toma um café
mente ao tricô. nos, completando um ciclo que me dá
e curte o jardim. “A ideia é desco-
grande satisfação.
nectar tecnologicamente, para se
Desde então convivo com o espanto
conectar com você mesmo e com
de muita gente em relação a minha
outras pessoas, desvirtualizar ami-
idade e profissão. Não raro, as pessoas
zades, aprender e compartilhar
chegam as minhas aulas procurando a
algo novo”, diz Leticia Segalla, pro-
“professora senhorinha”.
prietária da loja-ateliê.

Com um público diversificado, de


tempos em tempos o armarinho
promove encontros que reúnem
desde práticas coletivas de crochê,
bordado e tricô para intervenções
- no espaço e na cidade -, até apre-
sentações musicais, bate-papos e
tatuagem, integrando pessoas de
todas as idades.

Iris Alessi dando aula de tricô no Micapullo, armarinho criativo localizado em Curitiba.

URDUME EDIÇÃO #01 51


COLUNA

DIVINO MARAVILHOSO ENTRE OS FIOS*

Até que a roupa fique pronta é preciso trindo também o pequeno produ-
um encadeamento de ações. Nasce tor, que concentrado em suas
daí o divino, que, quando se apresenta virtudes, manifesta, durante seu
lá na frente, não se identifica somente flow, aquilo que todo encadea-
com o material. O divino é resultado da mento busca proporcionar: o
aplicação da virtude, manifestada pela entrelaçamento entre partes.
mão, ao derrubar a semente da fibra na
terra que, lá na frente, faz nascer o ar- Partes constituintes de um todo,
tefato (habitante de um guarda-roupa). e que são vistas no processo. No
processo do fazer, o seu tecido, a
Sendo assim, olhar para o têxtil, sua roupa. Perceba então que, da-
modelado em um corpo, é mais do que qui por diante, ao olhar para um
afinar-se com sua estética. É sintoni- tecido solto ao chão, ou orbitado
zar-se com aquilo que não é visto ou ao corpo, dando-lhe forma, jamais
tocado, é compreender o divino como diremos apenas que bonito nos
um resultado que permeia o espaço parece. É preciso mais que isso,
entre a roupa e o corpo e só é sentido. para que se possa mensurá-lo.
Seria esse o dom divino da roupa, o
qual a moda persiste em aprisionar. É preciso que se traga para o
encadeamento quem perto de
E por que falo disso para você? Para você exerce uma atividade ma-
que seu olhar se esparrame e demore nual, faz escolhas entre cores e
sobre a trama, o urdume e a entrega texturas por aquilo que sente e
que há entre fios, mãos e agulhas na não por aquilo que pode vir a
construção de uma base sólida, que ser adjetivado pela moda. É pre-
tanto irá proteger, quanto acarinhar. ciso saber como a arte da manu-
São encadeamentos compassados que, alidade se manifestou na vida
postos em ordem, geram valor. Valor daquele que a faz, é preciso com-
que, por uma lógica de mercado, ao ser preender que o tempo de quem
mensurado, cravado em uma etiqueta, faz determina a permanência de
muitas vezes perde sua valia simbólica. um objeto têxtil no mundo, ser-
Porque o simbólico nunca é o explícito. vindo muitas vezes de espólio, de
herança afetiva. É tornar única e
Viveremos com mais intensidade es- visível num processo, muitas vezes
ses dias, até que desponte em uma instagramável, todas essas etapas
janela de oportunidades que nos per- na construção do têxtil para
mitirá cada vez mais olhar a intenção então sentir a potência da roupa.
das roupas, do material, do têxtil, da-
quilo que fica debaixo do nível da su- Engana-se quem viveu da roupa e
perfície, e que, quando exposto, traz não percebeu o tecido, o detalhe,
a energia daquele que a produziu. o único fio da trama que atraves-
Ao obter esse entendimento, a moda sou quilômetros de extensão
então se tornará mais substancial, nu- em cor diferente, o crochetar de

52 URDUME EDIÇÃO #01


COLUNA

alguém para arrematar uma situação ou


a intervenção do ponto cruz para anun-
ciar uma curva estratégica na estrada têxtil.

Se o divino, da forma como tentei caracterizar para


você até aqui, lhe pareceu realmente existir, porque
de hoje em diante você já sabe como o sentir, é
provável que sua experiência de consumo vire ago-
ra um ritual entre fios e ritos. E corpos precisam
de rituais, assim como a casa, o café, os laços de
pacotes de presente e a concepção inicial de qual-
quer produto por meio do seu processo criativo.

Se você também pretende, após o que aqui con-


versamos, abster-se de entender, passará muito
tempo vendo fio apenas como algo que, se não cui-
dar, faz nó. E essa seria, para os anos que chegam,
a pior coisa a acontecer, porque os nós tendem a
deixar a vida estática, e por vezes menos contem-
plativa. Quando nos envolvemos neles, para então
desarmá-los, estaremos vendo um simples fio
como um caminho de oportunidades construti-
vas para se chegar na roupa que habitará o corpo.

Se tudo isso não é divino, para os mais céti-


cos, consideraria apenas que é maravilhoso.

*Daniela Nogueira é habitante de Curitiba e


flaneur por adoração. Acredita na verdade da
roupa acima da moda.
@flanar

URDUME EDIÇÃO #01 53


COLUNA

AS MÃOS SAGRADAS*
"Dizem que as linhas contam as nossas próprias histórias, há quem leia nossos

dons por elas, nosso futuro ou missão."

São fontes de cura, acalentam, criam, tocam. poder, a Deusa como Fonte Criadora controlava e mantinha a
ordem cósmica, os ciclos naturais e a continuidade do mundo.
Se você parar para observar as próprias mãos perceberá a per- Fiar é um processo cíclico assim como também é a alternância
feição existente nelas, perceberá como os dedos de entrela- das fases lunares, das estações, da vida e da morte, do início e
çam, como as linhas conversam e contam histórias. Dizem que do fim. Inúmeros mitos descrevem deusas tecendo com fios
as linhas contam as nossas próprias histórias, há quem leia sutis o céu, o mar, as nuvens, o tempo, os elementos da na-
nossos dons por elas, nosso futuro ou missão. tureza, os ciclos e os destinos dos seres humanos”.

Muitos de nós exercemos nossos dons através das nossas Trabalhos manuais sempre foram formas de meditação e co-
mãos, é através delas que colocamos na matéria os milagres nexão. Quando eu me entrego à corrente mágica dos dedos
da vida e da criação. Calejadas ou não, são sempre sagradas. eu deixo fluir a energia criadora, eu alinho meus chakras e abro
a consciência em direção à inspiração divina.
Com as mãos se abençoa e se cura. Na cura prânica, na mace-
ração das ervas, nos banhos e bênçãos é por elas que se ema- Nossas mãos são assim, uma maneira simples de ativar nosso
na o amor divino. eu-energético, aquele que controla nossa intuição e nos aju-
da a sentirmo-nos conectados a algo maior. Se prestarmos
Desde as pinturas rupestres, muito de nossa história foi e é atenção estamos, a todo momento, movimentando energia
contada através de trabalhos manuais. As panelas de barro, através das mãos. Ao cozinhar, ao nos vestirmos, ao oferecer ou
cerâmicas, esculturas em madeira e mármore, o tear, as pin- tocar algo, todos esses gestos podem restaurar e trazer cura.
turas, a escrita.
Sendo assim, convido a todos, a mim inclusive, a prestar mais
A tecelagem, por sua vez, sempre esteve ligada à magia e à atenção a essas poderosas ferramentas que carregamos co-
psique feminina. Em várias tradições as Senhoras do destino nosco. Convido a todos a agradecer por suas próprias mãos e
tinham como símbolo a roda de fiar e entoavam canções que honrar tudo o que é produzido a partir delas, pois a partir de-
prediziam os destinos dos recém-nascidos. las emanamos a energia cósmica do universo que cria, ama e
gera vida.
Mirella Faur nos traz em um de seus textos a seguinte informa-
ção: “Fiar e tecer são antigas artes mágicas femininas e apa-
recem nos mitos de várias deusas como expressão dos Seus
poderes proféticos, criativos e sustentadores dos ciclos lunares,
das estações e da vida humana. Tendo o fuso como símbolo de

*Estefânia Verreschi é amiga das plantas desde a infância.


Tornou-se educadora a fim de entender melhor a cons-
trução e o desenvolvimento humano, mas foi nas terapias
que se encontrou.
@ervariadasluas

54 URDUME EDIÇÃO #01


COLUNA

A DECÊNCIA DE MÃOS
DADAS COM A BONITEZA*
"Paulo Freire já dizia, ética e estética devem caminhar de mãos dadas,

precisamos ver a decência ao lado da boniteza."

Estética, palavra que nos remete à arte e beleza, na verdade Princípios que só podem ser aplicados se os professores tive-
representa a dimensão da sensibilidade e criatividade que en- rem em si experiências frescas não só no campo da arte, mas
volve os nossos sentidos. A raiz grega de sua palavra aisthesis, principalmente no campo do sensível.
em português estesia, indica justamente a capacidade huma-
na de sentir a si próprio e ao mundo de forma integrada. É assim, ampliando a formação dos sentidos, aguçando a
imaginação, e dando asas à capacidade humana de compar-
Comumente abordada nos campos da psicologia e filosofia, na tilhar experiências, que os professores se tornam aptos a com-
educação a estética extrapola as linguagens artísticas, e se con- preender e comungar com a estética sensorial da infância.
centra nas percepções sensoriais humanas e sua construção
de repertório a partir do sentir, uma vez que nossa forma de Trabalhar a dimensão sensível é abordar a relação dos espaços
compreender o mundo se baseia em memórias, imagens, afe- educativos com o corpo, tão fragmentado pela ciência mo-
tos, ideias e sensações. derna, é dar luz às “insignificâncias” da vida cotidiana, descritas
tão bem por Manoel de Barros.
No campo da educação a estética também está ligada à ética.
O filósofo alemão Schiller (1759-1805) acreditava nessa ligação * Vilma Silva é pedagoga, doutoranda em Educação na Uni-
para construção de ideais humanos. Fundamentais para a for- versidade Federal Fluminense/RJ, atua há 22 anos na área
de educação e é fundadora da “Calore – Educação, Cultura
mação do sujeito, ética e estética juntas abrem caminhos para
e Arte”. @caloreatelie
novas formas de percepção, conhecimento e relações sociais.

Paulo Freire já dizia, ética e estética devem caminhar de mãos


dadas, precisamos ver a decência ao lado da boniteza.

Dimensão estética na infância

Para as crianças, desde que haja liberdade para isso, a esté-


tica se traduz em diversos mundos, o da alegria, do mistério,
da descoberta, da pesquisa, da curiosidade e liberdade, já que
elas vivem a dimensão estética no seu pensar, sentir e agir,
diferentemente dos adultos, que em sua maioria perderam
essa conexão e se distanciam dela tanto nos espaços privados
quanto coletivos.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil


(DCNEI, 2010) trazem princípios claros para pensarmos propos-
tas pedagógicas éticas e estéticas para as crianças, como os
éticos de autonomia, solidariedade, respeito ao bem comum,
às identidades e singularidades, e os estéticos de sensibilidade,
criatividade e liberdade de expressão nas diferentes manifesta-
ções artísticas e culturais.

URDUME EDIÇÃO #01 55


COLUNA

"DIZ QUE HOMEM NÃO CHORA .


TÁ BOM, FALOU"*
"Hoje percebo que, em uma sociedade machista, não adianta não ser machista,
é preciso ser anti-machista, parafraseando Angela Davis."

Cresci na década de 80, ouvindo pagodes românticos casa e com os filhos sejam feitos de formas iguais com
dos subúrbios paulistanos e sambas cariocas, cantan- a minha esposa.
do letras do tipo “mulher indigesta merece um tijolo
na testa” (Noel Rosa), “um homem de moral não fica Como se vê, estou mais para o rap do Mano Brown, “Diz
no chão, nem quer que mulher lhe venha dar a mão” que homem não chora. Tá bom, falou”, do que para o
(Paulo Vanzolini) ou “homem que é homem não chora, vacilão, cantado por Zeca Pagodinho, que acredita que
quando a mulher vai embora” (Martinho da Vila). Sam- mulher de valor é aquela que sai da cama na ponta do
bas conhecidos, com melodias agradáveis, que reafir- pé, pra não te acordar cedo e preparar o café.
mam um ideal de homem e de masculinidade não tão
agradáveis assim. Quero ajudar a construir, para o meu filho e para as pró-
ximas gerações, uma sociedade em que meninos e me-
Na música, no cinema, na literatura, a cultura está im- ninas possam vestir azul, rosa ou qualquer outra cor, em
pregnada desse estereótipo de homem, com carac- que todos possam declarar sua orientação sexual sem
terísticas patriarcais que o colocam hierarquicamente medo, em que mulheres tenham a mesma liberdade e
acima das mulheres ou daqueles que não se encaixam oportunidades que nós homens, em que nós homens
no modelo identitário. tenhamos coragem de aceitar nossa vulnerabilidade, e
isso eu pretendo fazer também com essa coluna.
Apesar das mudanças e avanços socioculturais, esse
padrão comportamental é responsável por muito da * Gustavo Seraphim é pai e entusiasta de todo tipo de
violência que vivenciamos ou lemos todos os dias nos trabalho manual, atua como gestor de projetos culturais
jornais. Crimes cometidos por machismo, homofobia e e artísticos pela Seraphim Projetos, da qual é sócio-

misoginia, assédios, estupros e feminicídios. Pois é, essa diretor. @guseraphim

nossa “macheza” tem nos tirado vidas.

Não me identifico com esse ideal de masculinidade, sou


pacífico, vulnerável, faço tricô e bordado, me emociono,
choro e demonstro amor por mulheres e homens. Mes-
mo assim, durante muito tempo busquei me encaixar
no tal padrão, cantei as músicas acima sem me dar
conta do coro que engrossava e já tive comportamen-
tos sexistas e homofóbicos.

Hoje percebo que, em uma sociedade machista, não


adianta não ser machista, é preciso ser anti-machista,
parafraseando Angela Davis. É preciso abrir diálogo nas
rodas de conversa pós-futebol (ambiente tradicional
de exacerbação da masculinidade tóxica), questionar
as piadinhas dos amigos, compartilhar minhas habili-
dades têxteis, como bordado e tricô, nas redes sociais,
fazer do meu lar um lugar em que os cuidados com a

56 URDUME EDIÇÃO #01


PSICOLOGIA

PISICÓLOGO-ARTÍFICE
A arte manual como recurso terapêutico
Por Cristina Tomé
Por volta dos sete anos de idade, a- regados de sentido.
prendi a fazer crochê com as mu-
lheres da minha família. Cada uma Na minha vivência junto às artes
delas ensinava o seu próprio modo de manuais, os fazeres do cotidiano, os
tecer, mas, curiosamente, todas tra- cuidados com a casa, as artes manu-
ziam uma mesma instrução básica: ais e suas variadas técnicas são um
“Vou ensinar, mas depois você faz do processo da vida que por si só traz
seu jeito”. para o campo da consciência os con-
teúdos que precisam de elaboração,
A orientação delas serviu para muita desafiando o indivíduo a redescobrir
coisa. É um saber que passa desper- e confiar em seus próprios recursos.
cebido se a gente não usar de boa Percebo o fazer das mãos como um
vontade, mas o fato é que elas es- espelho que reflete o interior e a arte-
tavam certas: o tempo todo, falavam sania que surge a partir desse fazer é
de singularidade. O termo origina-se sempre única e rica em significados.
do latim – singularĭtas – e significa “in- É o fazer de si que dá sentido, que
dividualidade, unidade”. mostra e torna possível descobrir mais
de si mesmo e do mundo, a partir da
O tecer em crochê me salvou de uma matéria-ato. De uma única vez, a arte
depressão na adolescência e, como manual reúne o pensamento à pala-
nunca mais parei de crochetar, de- vra e à ação, proporcionando um esta-
pois de me formar em psicologia e do de presença - único lugar onde se
me especializar em artes manuais pode ter um vislumbre da mudança.
para a educação, essa prática se trans-
formou em instrumento de pesquisa. O atuar das forças das manualidades
Observo o mover da vida que se dá a no psiquismo sensibiliza e resgata
partir do fazer das mãos e vejo que potências distorcidas, educa e desen-
acontece em um lugar profundo e volve. Prepara e permite ao indivíduo
íntimo, na alma, onde estão escondi- acompanhar os próprios passos na
das forças, potências, traumas, quali- jornada interior e a criar o próprio rito.
dades, habilidades e capacidades que Aquele rito que torna possível o retor-
buscam expressão e forma o tempo no do sagrado, que inclui o profano e
todo. traz sentido e significado para a dor.
Sem a compreensão da dor a aceita-
Ao longo do tempo, percebi que o ção não acontece. E sem a aceitação
desconhecido de si mesmo se revela não há cura. A partir da aceitação, o
no modo de fazer de cada um. Que processo de se tecer torna-se a es-
o material, nesse caso, fios, agulhas, colha de resgatar e cultivar as virtudes
teares, fusos e tecidos, é como instru- humanas na alma. Com isso, quero
mento de aferição de forças psíqui- dizer que a arte manual e seus in-
cas. Cada técnica de um modo ou de finitos desdobramentos possibilitam
outro tem funções específicas e atua uma metamorfose do que foi vivido
no aluno ou cliente como recurso e são um recurso de transformação
para a expressão de sentimentos e e evolução que promove o feitio de si,
para o surgimento de imagens cujo a partir do aprender em si para uma
teor simbólico é riquíssimo. Memórias, consciência de si.
pensamentos e lembranças são aces-
sados de um modo profundo e, prin-
cipalmente, chegam à superfície car-

URDUME EDIÇÃO #01 57


LIVROS

Dicas de leitura
Por Nayamim Moscal

Artífices do Rio de Janeiro Dissertação de mestrado The Book Made


Carlos A. Medeiros Cristiane Bertoluci Dani Dalledone

Ainda se faz muito importante a con- Proposta de método para desenvolvimen- O primeiro livro brasileiro de amigurumi
strução de novas narrativas sobre o papel to de produtos de moda a partir de técni-
dos negros na sociedade brasileira cas manuais e resíduos de malharia circu- A designer curitibana apresenta, com

lar de algodão todo seu talento, 11 receitas exclusivas de


Neste livro, o autor trata sobre as bichinhos fofos para você crochetar. O li-
relações de trabalho estabelecidas entre Pensar sobre os resíduos gerados no vro foi impresso com financiamento co-
os artífices no Rio de Janeiro, então capi- planeta é uma pauta urgente. Mais ain- letivo, e traz receitas em inglês e portu-
tal federal, no final do século XVIII e início da quando se trata de resíduos têxteis. guês.
do XIX, e sua ligação com a escravidão. Essa dissertação apresenta a proposta
Analisar a cidade a partir da perspectiva de reutilização de resíduos de malharias,
dos artesãos nos permite compreender a partir de técnicas manuais, para desen-
o cotidiano da época e quais suas per- volvimento de novos produtos de moda.
manências nos dias de hoje.

Carlos Alberto Medeiros Cristiane Bertoluci Dani Dalledone


Rio de Janeiro São Paulo Curitiba
2008 2018 2018

058 RUBY MAGAZINE ISSUE #115


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