O - Selvagem (1) - 220815 - 160338

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HD WIDENER

HW WJLME
RIO DE JANEIRO
NA LIVRARIA POPULAR
DE
A. A. DA CRUZ COUTINHO
LIVREIRO EDITOR
75 RUA DE S. JOSE 75

EXLIBRIS

LUIS MONT ROTILDEMONT


JEL

SAGOGO.7

HARVARD COLLEGE LIBRARY

SOUTH AMERICAN COLLECTION


A
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DE
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CCL

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TAS

THE GIFT OF ARCHIBALD CARY COOLIDGE , '87


AND CI '08
IN REMEMBRANCE C TIFIC CONGRESS
SANTIAGO EсVIII
"
1

TRABALHO PREPARATORIO PARA APROVEITAMENTO


DO SELVAGEM E DO SOLO POR ELLE OCCUPADO NO BRAZIL

SELVAGEM

CURSO DA LINGUA GERAL SEGUNDO OLLENDORF


COMPREHENDENDO O TEXTO ORIGINAL DE LENDAS TUPIS.

II

ORIGENS , COSTUMES, 1 REGIÃO SELVAGEM,


METHODO A EMPREGAR PARA AMANSAL- OS POR INTERMEDIO DAS COLONIAS
MILITARES E DO INTERPRETE MILITAR

Por Couto de Magalhães , Lord when .

Conseguir que o selvagem entenda o portuguez, o que


equivale a incorporal-o á civilisação, e o que é possível com
um corpo de interpetres formado das praças do exercito e
armada que fallem ambas as linguas, e que se dissiminarião
pelas colonias militares, equivaleria à : 1.0 Conquistar duas
terças partes do nosso territorio . 2.º Adquirir mais um
milhão de braços aclimados e utilissimos. 30 Assegurar
nossas communicações para as bacias do Prata e do Amazo
nas. 4. Evitar no futuro grande effusão de sangue_huma
e talvez despezas colossaes, como as que estão fazendo
outros paízes da America.

impresso por ordem do governo

RIO DE JANEIRO
TYPOGRAPHIA DA REFORMA
181 RUA SETE DE SETEMBRO 181
1876
SA 6060.7

Harvard College Library


Gift of
Archibald Cary Coolidge
and
Clarence Leonard Hay
April 7, 1909.
Iané Muruxáua reté Iára D. Pedro Imocóin i çupé

Iára.

Brasileiro itá quí , Iné nhāhá uahá reiumurorí pre


opa mahā irúmo omuturuçú quáu iane retāma ; aá

rece xa muçangáua quahá livro íoiepei óba Ne rera


irúmo .

Ixe xa purauke herund acaiú pucuçáua rupí ahé


rece. Xa ikỏ uana ramé maraári , xa iúmaenduári
iareko uahá ceíia iure ceíia kura itá oçain iane
retama mororima turuçuçáua rupí . Aramé temimutára
omunhã catú aitá çupé, iure omur rí Ineue , omehe
ix be kir/mauaçáua umbáua arāma quahá mu
rakécáua.

Ine requáu, Iára , maí uaçú omuhe nhehénga ,


míra inti orek ramé oiepé ami oiuquáuana oiumuen
çára rupí.
Cubire umbáua ana ; ixe ce rorí , maharece xa mehe

quáu Iné çupé, quahá livro upé, instrumento omun


gaturú arama raira itá iane retāma çuíuára , ocendi
arama aitá Tupana , iure murake çupé.

Janeiro Iac , 1876 acaiú ramé.

Ne remiaçúa

Munhangára.
I

CURSO DE LINGUA GERAL

PELO METHODO DE OLLENDORF

TEXTOS DE LENDAS INDIGENAS


AO LEITOR VII

AO LEITOR

Eu não escrevi este livro , amigo leitor , por ambição


de gloria litteraria , e sim com a de ser util , concor
rendo com uma pedra para o edificio da grandeza de
nossa patria. Como trabalho scientifico , eu sei que elle
está cheio de imperfeições e lacunas ; como trabalbo
pratico, como methodo de ensino de lingua , eu tenho
consciencia
de que è um bom livro , porque é n'elle que,
pela primeira
vez, se applica à lingua mais geral dos
selvagens
do Brazil , o methodo que os modernos phi
lologos europeus
hão inventado para vulgarisação das
linguas vivas.
c
C onstante tes da histo demo
temu ria nstr que
n a
por toda parte , e em todo hoos tem e m q u e uma raça
s pos

bearba se po em conta com uma raça civil ,


eavio forzça
sta sr c i
da ou a exttoermin - a , ou a ensinars-aldhae
al
sua lingua . ·
VIII AO LEITOR

Ora, o ensino de lingua só é possivel , quando


discipulo e mestre possuem uma , commum a ambos , na
qual se entendam..
!
Para que os selvagens , que não sabem ler , que não
possuem capitaes acumulados , aprendam o portuguez , é
necessario que nós , que sabemos ler, os habilitemos a
isso por meio de interpretes os quaes, conhecendo a
lingua delles , lhes possam ensinar a nossa.
Na memoria, que publico em seguida , vão desen
volvidos esses pontos . Eu chamo no entretanto vossa
attenção para a importancia do problema da domesti
cação de nossos selvagens , resumindo o que ali digo no
seguinte :
O territorio do nosso immenso Brazil é de 291 mil

leguas quadradas . Quasi duas terças partes d'esse ter


ritorio , ou 182,400 leguas quadradas , não pódem ainda
hoje ser pacificamente povoadas por familias christãs ,
porque estão expostas ás correrias sanguinolentas dos
selvagens .
Domesticar os selvagens ou fazer com que elles nos
entendam , o que é a mesma cousa, equivale a fazermos
a conquista pacifica de um territorio quasi do tamanho
da Europa, e mais rico do que ella.
Só essa conquista vale milhões ; feita ella , porém ,
não conseguiriamos somente a posse real da maior

parte do territorio do imperio ; conseguiriamos tambem


um milhão de braços aclimados , e os unicos que
se prestam às industrias, que por muitos annos serão
as unicas possiveis no interior - as extractivas е
pastoris.
AO LEITOR IX

Não é só a conquista pacifica de um territorio igual


á Europa, e a de um milhão de braços uteis, proprios
para desbravar a selvageria do nosso interior ; ha se
rios perigos a evitar, e que o Brazil deve antever Com
uma população selvagem , dez vezes menor do que a
nossa, com um paiz de mais face is communicações , a
Republica Argentina tem-se visto em serias difficuldades
por haver descurado a questão da domesticação de seus
salvagens ; n'este mesmo anno os selvagens destruiram
alli valores na importancia de mil e quatrocentos contos
de nossa moeda , além de vidas humanas , e de despezas co
lossaes que mister foi fazer com o movimento de verda
deiros corpos de exercito para batel-os . O mesmo tem-se

dado no Chile , Perú , Bolivia e Estados - Unidos .


E' com o duplo fim , por um lado , de tirar vantagens
do solo ainda occupado pelos selvagens , e por outro lado ,
de prevenir futuras difficuldades , que o governo im
perial me tem encarregado mais de uma vez de traba
lhos relativos à nossa população indigena, trabalhos
de que este livro é uma parte .

No Brazil as cousas não chegaram ao ponto acima


.
mencionado por duas razões : primeiro , porque temos
attendido mais a esse assumpto de nossos selvagens do
que o fizeram aquelles paizes ; segundo , porque nosso
territorio é mais vasto e o selvagem aqui está ainda
å larga.

Mas se não conjurarmos o mal , elle ha de chegar.


Este livro é um preparatorio para a creação do corpo
de interpretes, que , a exemplo do que fizeram nossos
maiores os portuguezes, (os quaes em materia de colo
X AO LEITOR

nisação foram grandes mestres) nós tambem devemos


crear aqui , sobretudo porque não importa novas des
pezas , pode-se aproveitar pessoal ja existente e pago,
limitando-se o esforço da administração a organisar e
dirigir o serviço .
Encarregado , ha annos, pelo Sr. conselheiro Diogo
Velho de organisar o serviço de catechese do Ara
guaya , eu suggeri o plano que alli se poz em execução ,
o qual consiste, em resumo , no aproveitamento do
interprete indigena para auxiliar o missionario , pela
mesma fórma por que procederam os antigos .
Sim -de que serve o missionario , com a santidade das
leis da religião , se elle não tem lingua por onde ensine
a regeneradora moral do christianismo ?
Não foi por ventura o proprio Christo que, com o
mandamento de espalhar sua doutrina pelo mundo , disse
aos apostolos que , antes de fasel-o , o Espirito Santo
desceria sobre elles e lhes daria o dom das linguas ?
Não quererá isto diser que o interprete é cousa tão
importante entre uma raça christã e uma raça barbara
que, sem elle , impossivel será trazer aquella a assimi
lar-se com esta?
Os antigos portugueses , que forão incontestavelmente
grandes mestres , como raça colonisadora , organisaram ,
com o nome de corpo de linguas os interpretes mili
tares , a cuja acção pacifica devemos hoje mais de ame
tade da população operaria do Brasil .
Os jesuitas hespanhoes e portuguezes creavão nos
seos collegios os interpretes , que não erão outros senão
os meninos selvagens a quem davão uma organisação
AO LEITOR XI

militar, e que depois espalhavão pelo meio da tri


barbaras . O padre Montoya , em instrucções dadas para
um dos collegios do Paraguay, dizia : « aquella tribú onde
houver um lingua (um interprete) é uma tribu mansa .»
Disem as chronicas que este mesmo padre Montoya,
(é o mesmo missionario que melhor fallou o guarani )
só por si amansou mais de cem mil indios !

Este unico facto não tornará evidente o immenso


poder do homem civilisado , diante do homem barbaro ,
desde que esse homem civilisado dispõe do interprete
para se fazer entender ?

Como é que o missionario , pobre estrangeiro que não


conhece o portuguez , que vem para cá em idade avan
çada, hade aprender linguas selvagens ?
Não é muito mais facil e economico dar-lhe o inter
prete ?

Este livro é um preparatorio para a realisação dessas


aspirações . Foi o respeitavel e honrado Snr. Conselhei
ro José Agostinho Moreira Guimarães quem sugerio-me
a idéa de applicar o methodo de Ollendorf à lingua geral ;
à elle devo o me haver constantemente animado e
insistido na realização de um trabalho por sua natureza
arido , e tanto mais difficil para mim quanto eu , vindo
dessas longas peregrinações pelo sertão , estava muito
·
longe de tudo quanto era movimento litterario nesse
ramo especial de sciencia . Elle deu-me um dos pri
meiros livros de philologia , que acompanhou -me ao
Araguaya, e lá , no meio d'aquellas solidões, servio-me
de pharol para me guiar no estudo methodico de uma
XII AO LEITOR

lingua difficilima , na ausencia absoluta de livros e


grammatica que della se ocupassem .
Foi assim que principiei e levei a mais de meio of
presente curso .
O meu respeitavel amigo, o Sr. Dr. Joaquim Manoel
de Macedo , deu-me uma das mais preciosas obras que
existe a respeito de uma lingua irmã do tupi : uma
sobre a lingua guarani , do padre Montoya.
Em 1874 tendo eu de ir ao Pará, por interesse meu ,
o Sr. conselheiro Costa Pereira encaregou -me de
estudar a estatistica selvagem do valle do Amazonas , e

de classificar as populações selvagens pelas linguas


que fallavam . (*)
Eu havia sido durante dous annos presidente do

Parȧ, e sabia que a grande riqueza d'aquelle valle ,


representada pela borracha , salsa, copahiba, castanha,
que se exporta já no valor de muitos mil contos , é

quasi exclusivamente devida ao braço do tapuio; o que


eu ignorava , porém , é que a quantidade dos que são
ainda selvagens , excede de muito à dos que são man
sos ; que existem nações numerosissimas , como a dos
Cahiapós e Mundurucús , a primeira das quaes tem uma
população de oito mil almas e a segunda a de quatorze
mil ; que em todas as nações, ainda mesmo nas que não
fallam o tupi , esta lingua é entendida , é o francez ou
inglez da immensa região amazonica .

( ) Como em nosso paiz ha algumas pessoas que tem o máu


habito de attribuir a interesse pessoal as opiniões dos outros,
seja-me licito declarar que as commissões que eu tenho desempe
nhado e desempenho , são gratuitas, no que aliás não ha merito por
que as viagens necessarias para desempenhal-as, tinhampor fim atten
der a outros assumptos de meu interesse privado.
AO LEITOR XIII

Com o auxilio de um lingua que à minha disposição


poz o illustre presidente do Pará , o Sr. Dr. Pedro Vi
cente de Azevedo , e com o de outros linguas que eram
marinheiros a bordo de um dos meos vapores , eu traba
lhei ardentemente , e assim conclui o curso.

Chegando ao Rio de Janeiro apresentei os trabalhos


ao chefe do respectivo serviço , o meu respeitavel col
lega e amigo Dr. Castro e Silva.

Elle havia então estudado minuciosamente todo o


assumpto de nossos aldeamentos , preparara cadernetas.
especiaes para registrar o que era peculiar a cada um
d'elles , e depois d'esses estudos e exame minucioso
dos documentos officiaes , chegára ás mesmas conclu
sões que eu havia chegado na pratica , isto é : a paz e
segurança de grande parte de nossas populações do
interior, nossas communicações internas, o aprovei
tamento de regiões fertilissimas, a vida das unicas
industrias productivas do interior - a pastoril , ex
tractiva, a de transportes pelo rios que não tem nave
gação a vapor; são outras tantas razões de ordem
social que solicitam os esforços do Brazil em bem do
amansamento de nossos selvagens .

Consultando então não só o que os portuguezes e


hespanhóes fizerám na America, mas o que fizeram
todos os povos civilisados , eu consignei os meios pra
ticos empregados por esses povos n'estas tres institui
ções COLONIA MILITAR, INTERPRETE , MISSIONARIO .

Temos o primeiro e o terceiro, falta-nos organisar


os elementos para ter o segundo .
XIV AO LEITOR

O meu mencionado collega fez do assumpto um su


culento resumo que foi presente ao actual ministro da
agricultura o Sr. conselheiro Thomaz J. Coelho de Al
meida .
A idéa de utilisar nossas colonias militares, como

auxiliares do povoamento dos sertões , para nellas se col


locarem interpretes que , fallando as linguas das popu
lações selvagens circumvizinhas lhes facilitariam as
relações com os mesmos selvagens , encontrou echo no
seio do gabinete e nomeadamente nos dous conspicuos
varões , por cujas pastas correm estes negocios : os da
Agricultura e o da Guerra.

Eu tive autorisação para auxiliar-me d'aquellas pra


ças do exercito que fallassem linguas selvagens , e assim
pude rever todo o trabalho que ora publico .
Oxalá produza elle os fructos que o governo teve em
vista.

A organisação do corpo de interpretes , que não


custa despeza nova , porque tanto monta guarnecer as
colonias militares com praças que não fallem
linguas dos selvagens vizinhos , como com homens
que as fallem , os quaes educados com os dous oficios de
ferreiro e carpinteiro , educação que é facil dar nos
arsenaes, se dessiminariam pelas colonias na vizi

nhança d'aquellas populações cuja lingua fallassem ;


a organisação de um tal corpo , repito , é uma das
medidas mais economicas e prudentes que podemos
agora tomar.
Deus ha de permittir que ella medre para bem e
engrandecimento de nossa patria .
20
V
AO LEITOR XV

Resumindo toda questão em poucas palavras , eu


repito aqui o que jå disse na epigraphe.

«Conseguir que o selvagem entenda o portuguez , o


que é possivel com um corpo de interpretes organisado
com praças do exercito e armada que fallem ambas as
linguas , e que , educadas nos arsenaes, se dessimina
riam depois pelas colonias militares , seria a um tempo :

1. Conquistar duas terças partes do nosso territorio ,


que ainda não pôde ser pacificamente povoado por
causa dos selvagens .

2º. Adquirir mais um milhão de braços aclimados


e utilissimos nas industrias pastoris , extractivas e de
transportes internos , unicas possiveis por muitos annos
no interior; esses braços são tambem os mais proprios
para a povoação de nossas remotas fronteiras , os
unicos aptos para desbravarem o interior , e serem os
predecessores naturaes da raça branca , n'um solo ainda
virgem .

3. Assegurar nossas communicações interiores para


as duas bacias do Prata e do Amazonas.

4. Evitar no futuro grande effusão de sangue hu


mano , e talvez despezas colossaes, como as que tem
feito outros paizes da America.

Para conseguir estes fins são necessarios esforços .


Mas , quaesquer que elles sejão , haverá alguma cousa
que nos impeça de tental-o agora em quanto é tempo?

Foi como preparatorio para execução deste pensa


mento que o governo me encarregou deste trabalho ,
XVI AO LEITOR

que eu executei conscienciosamente, na medida de


minhas forças , sem outro interesse , como já disse , além
de desempenhar-me do dever de prestar ao meo paiz
um pequeno serviço .

E' o fim pratico , leitor, que eu vos peço que tenhaes


em vista, quando julgardes este trabalho .

Rio, 2 de Janeiro de 1876

O AUTOR
INTRODUCÇÃO

Memoria apresentada a Commissão Su


perior da Quarta Exposição Nacional , onde
são estudados e discutidos os diversos pro
blemas economico-sociaes , que dependem
do amansamento do selvagem do Brazil, e
em que se pede á Commissão, em nome
de interesses futuros muito preponderantes
do imperio, que tome a si o recommendar
o assumpto á attenção das classes pensan
tes de nossa patria.

TRABALHOS SCIENTIFICOS REALISADOS RECENTEMENTE EM


DIVERSOS PAIZES DA AMERICA TENDO POR OBJECTO O
SELVAGEM .

A politica de engrandecimento pelas armas não é a


politica americana , e menos ainda é a politica do
Brazil .

As conquistas pacificas da intelligencia pelas suas


revelações nas artes , sciencias e industrias , eis o fim a
que marchamos .

O` chefe do Estado aínda ha pouco , abrindo a ex


posição , declarou no seu discurso que as festas da in
dustria eram as festas de sua predilecção . Este pensa
mento representa tambem a aspiração dos brazileiros .
XVIII INTRODUCÇÃO

No grande concurso , que se vai abrir em Philadel


phia, ha uma secção para sciencias; nessa , merecerão
por certo especial attenção aquellas obras que se re
ferirem ao homem americano , e aos esforços feitos
pelas raças conquistadoras para chamal - o à commu
nhão da civilisação christã .

Os argentinos podem ser representados nessa sec


ção pelo trabalho do Sr. Fidel Lopez : Les Races
Aryennes du Peru, Leur Langue , Leur Religion ,
Leur Histoire. Os peruanos , pelos recentes trabalhos
sobre a lingua dos Yncas do Dr. José Fernandez Nodal ;
os habitantes da America Central pelos trabalhos phi
lologicos do padre Brasseur de Bourburg ; os norte
americanos pelo mais collossal e gigantesco trabalho
scientifico emprehendido acerca das raças indigenas
da America , trabalho cuja impressão se está con
cluindo, que se diz haver custado a seu autor uma des
peza de mais de quatrocentos contos , e o concurso de
trinta jovens norte- americanos que puzeram em com
mum suas forças para leval -o a termo, e que tem por
titulo : The native races of the Pacific States- by Hu
bert H. Bancroft .

Tendo sido encarregado pelo governo imperial da


elaboração do curso que se segue , apressei à sua pu
blicação de modo a que elle podesse estar prompto
antes da abertura da exposição de Philadelphia, e peço
à Commissão que o remetta como testemunho de que
tambem aqui nos esforçamos para assimilar à civilisa
ção as raças indigenas do Novo Mundo .
INTRODUCÇÃO XIX

Não é este o unico objecto pelo qual escrevo esta


memoria .

O fim das exposições , colligindo os productos e ele


mentos de riqueza de um paiz , é chamar a attenção so
bre aquelles que , sendo susceptiveis de grande desen
volvimento para a riqueza publica, não tiverem obtido
ainda a necessaria attenção das classes pensantes .
No futuro nenhum assumpto talvez se entrelaçarà
tão geralmente com o desenvolvimento da riqueza e
engrandecimento do Brazil , como o do amansamento de
nossos selvagens .
Parecerá a muitos uma exageração .
Mas que não é exageração basta ponderar que o po
voamento de quasi duas terças partes de nosso terri
torio , nossas communicações interiores , e industrias
importantissimas , dependem aqui , até certo ponto , do
selvagem .

II

0 SELVAGEM COMO ELEMENTO ECONOMICO

Um dos sabios que mais estuda e ama o Brazil ,


Mr. Ferdinand Denis, que sempre nos defende na
Europa, encarecendo as nossas virtudes e attenuando
os defeitos que necessariamente existem em um povo ,
que ainda não venceu o periodo de elaboração para
constituir-se como nação homogenea , escrevia-me de
Paris o anno atrazado , as seguintes palavras , a pro
posito do meu escripto - REGIÃO E RAÇAS SELVA
GENS :
- « Eu estou convencido de que a grandeza
XX INTRODUCÇÃO

futura de vosso paiz depende do espirito de raça bem


comprehendido . » 1
E' assim.
Este grande colosso , que se forma ainda com 0
nome de Brazil , é um immenso cadinho onde o san
gue europeo se veio fundir com o sangue americano .
A futura população ―― operaria - do Brazil não
será uma, nem outra cousa.

Como1 na America do norte o anglo- saxonio , fun


dindo-se com o pelle vermelha , produzio o Yank,

representante de uma nova civilisação ; assim o la


tino , fundindo -se com o tupí , produzio essa raça ener
gica que constitue a quasi totalidade da população
de S. Paulo e Rio Grande , e a maioria do povo do
imperio.

Grande parte de nossos compatriotas ainda não quer


acreditar que o problema da população só será satis
factoriamente resolvido quando attendermos aos dous
elementos : o europeo e o americano .
1
A grande França, pela voz eloquente do Sr. de
Catrefages , nos está a bradar que , como elemento
de trabalho , nenhuma raça nos é tão proveitosa como
a do branco aclimado pelo sangue do indigena .

E, ao passo que importamos o branco , que nos é aliás


essencial me parece que devemos attender tambem a
um milhão de braços indigenas não menos preciosos ,
porque é a este,mesmo por causa de sua pouca
civilisação , que está reservada a missão de ser o
precursor do branco nos climas intertropicaes ,
INTRODUCÇÃO XXI

desbravando as terras virgens , desbravagem que


o branco não supporta .
Não queremos isso , porque nós os brazileiros

temos tanto que fazer no presente , que difficilmente


podemos olhar para as questões do futuro , ainda
as mais importantes .
Para aquelles , porém, que hão estudado o paiz real
sem preoccupações , o problema de seu povoamento
só tem uma solução complexa .
Povoar o Brazil, não quer dizer sómente importar
colonos da Europa .

Povoar o Brazil quer dizer :


1. Importar colonos da Europa para cultivar as
terras ja desbravadas nos centros , ou proximas aos
centros povoados .
2. Aproveitar para a população nacional as terras
ainda virgens, onde o selvagem é um obstaculo ; estas
terras representam quasi dous terços do territorio do
imperio. Tornar productiva uma população , hoje in
productiva , é , pelo menos , tão importante como trazer
novos braços .
0
3. Utilisar cerca de um milhão de selvagens que
possuimos , os quaes são os que melhores serviços podem
prestar nessas duas terças partes do nosso territorio ,
porque as industrias extractivas , unicas possiveis

nessas regiões ( emquanto não houverem estradas) só


tem sido , e só podem ser exploradas pelo selvagem .
Que proveito temos nós tirado dos selvagens ? per
guntam muitos .
Tiramos nada menos do que metade da população
XXII INTRODUCÇÃO

actual do Brazil , não da população que occupa os altos


cargos , as funcções publicas , os salões , os theatros , as
cidades ; mas da população que extrahe da terra mi
lhares de productos que exportamos ou consumimos ;
da população quasi unica que exerce a industria pastoril ; I

da população sobre quem mais tem pezado até hoje o im 1


posto de sangue , pois é o descendente do indio , o mes Į

tiço do indio , do branco e do preto o que quasi exclu 1

sivamente ministra a praça de pret , ou o marinheiro .


S. A. Real , presidente dessa commissão , comman {
dando o nosso exercito na guerra do Paraguay , vio nos l

homens de côr , de que se compunha a quasi totalidade f


das praças de pret, um transumpto da população ope
raria do Brazil.

Se mais tarde elle viajar todo o paiz encontrará


nelle o mesmo que vio no exercito , e que já tem visto
nas provincias de Minas , Rio de Janeiro , S. Paulo e
Rio-Grande .

Do prestimo e do valor desses homens como solda


dos ninguem melhor está no caso de julgar do que o
presidente dessa commissão .
E para recordar um só argumento , seja-me licito
ponderar o seguinte :
Quando elle assumio o commando de nossas forças , a
guerra ameaçava entrar nesse perigoso periodo em
que se acha actualmente a lucta civil da Hespanha .
Si o exercito fosse composto de homens habituados
a vida europea , não seria possivel alcançar Pirȧbebuy
senão um mez depois ; os recursos que alli foram es
magados , graças à rapidez das marchas , teriam se
INTRODUCÇÃO XXIII

acautellado com o dictador nas margens do Aquidaban .


Si S. A, prevalescendo- se da qualidade de seo exer
cito, perfeitamente proprio para a prompta mobilisa
ção, justamente por ser composto desses mestiços des
cendentes de troncos a longos seculos aclimados ao
solo e ás privações de uma vida semi-selvagem , não
houvesse podido alcançar o inimigo naquelle ponto ; si
não tivesse podido fazer avançar suas testas de colum
nas de modo a esmagar a guerra nas margens remotas
do Aquidaban , quem nos diz , si a guerra , conseguindo
converter-se em guerrilha , no centro daquella região
entre o Paraná e o Paraguay , não duraria até hoje ?
Assim como os homens aclimados ao solo , e habitua
dos á vida semi-barbara , foram condições essenciaes à
victoria, assim tambem esses homens , e n'essas condi
ções , são elementos indispensaveis de successo na luta
mais pacifica , porém não menos tenaz , da elaboração
da riqueza de um povo.
Seja-me licito proval- o , não á essa commissão que co
nhece o paiz , mas à aquelles de nossos patricios
que estudam . mais a Europa do que a terra a que
tem o dever de consagrar sua actividade e energia
para engrandecel - a , quando é certo que é só a con
sciencia d'esse dever que dá a qualidade de brazileiro .
O primeiro facto que prova a utilidade das raças
crioulas nas circumstancias do nosso paiz , ainda bar
baro em cerca de duas terças partes de seu solo , é
o seguinte :
O valle do Amazonas é por si só um territorio
maior do que o dos grandes estados europeus.
$

XXIV INTRODUCÇÃO

A sua população , que é pequena , exporta cerca de


20 mil contos .
E esses vinte mil contos resultam da borracha , salsa ,
castanha, cacão , copahyba , pelles de animaes selva
gens e em geral de productos colhidos da natureza pelos
tapuios do Brazil e das republicas vizinhas.
Como essa colheita depende de estar exposto às mat
tas , sem casas , sem commodo , nem os brancos se en
tregam a essas industrias , e nem poderiam fazel- o sem
succumbir.
A consequencia é :
Se o valle do Amazonas não possuisse o tapuio , se
ria actualmente uma das mais pobres regiões do paiz ,
quando , com elle , e justamente porque elle é semi-bar
baro e se pode entregar a essas industrias , a região é
uma das mais productivas que possuimos .
Tomemos um outro facto ;

O Brazil é um dos paizes que exporta maior numero


de pelles de boi para a Europa .

E' pois um dos paizes mais productores de gado vac


cum .

Liebig demonstrou o quanto a civilisação e os aper


feiçoamentos da raça aryanna dependeram d'esse pro
ducto .

Se não fora a raça aborigene ou não seriamos pro


ductores d'esse artigo, ou sel-o-hiamos em escala
diminuta .

N'esta industria , como na da extracção dos produc


tos naturaes , o homem proprio para sua exploração é
INTRODUCÇÃO XXV

aquelle que , pelo atrazo de sua civilisação , ainda pos


sue os habitos quasi nomades que ella exige.
Nas provincias creadoras o principal instrumento
d'este trabalho ou é o indigena civilisado , ou é o seu
descendente .

Esse facto vai desenvolvido adiante , e , o que fica dito ,


è quanto basta para provar esta verdade :
Assim como os habitos de uma vida ainda isempta
dos commodos da civilisação foram qualidades muito
uteis no nosso exercito, sem as quaes não teria sido
possivel movel - o , se não com uma lentidão que teria
feito talvez escapar a victoria, assim tambem essa
mesma falta de civilisação , é condição indispensavel de
successo na elaboração da riqueza nacional , que , si
exige uma lucta menos sanguinolenta do que a da
guerra , com tudo n'ella não se alcança a victoria se
não quando se a solicita pelos meios adequados .
Não é só uma questão de utilidade ; é tambem uma
questão de segurança no presente e no futuro . Consin
tam-me que eu insista sobre estes pontos , reprodusindo
factos de propria observação . Tendo eu ocupado du
rante cerca de seis annos as presidencias das provincias
em que existe maior numero de selvagens , Goyaz , Parȧ
e Matto Grosso , n'ellas minha attenção foi chamada
sobre a seguinte questão :

Sendo a superficie do Brazil de 291 mil leguas qua


dradas , só o territorio das tres supra mencionadas pro
vincias e da do Amazonas representão mais de me
tade, quasi dous terços do territorio do imperio , isto é :
182: 400 leguas quadradas , onde as populações christãs
XXVI INTRODUCÇÃO

e a civilisação não podem pacificamente penetrar por


causa do obstaculo que lhes oppõe cerca de um milhão
de selvagens aguerridos e tenazes , que não entendem a
nossa lingua, e nós não temos meios de ensinal- a por
que ignoramos a d'elles .

Na presidencia de Goyaz e Matto Grosso eu vi expe


rimentalmente que o principal instrumento de trabalho
na industria do interior - a creação do gado— é o indio
antigamente catechisado pelo jesuita , ou o mestiço seo
descendente . Mais tarde , viajando pela republica do
Paraguay , Corrientes , Santa fè e outras provincias ar
gentinas , eu vi que allí , como no interior do Brazil , e
provincias do Rio Grande , Paraná , S. Paulo- o prin
cipal instrumento da riquesa publica , o vaqueiro por
excellencia , não era nem o branco e nem o preto ,
e sim o gaucho , o caipira , o caburė, o caboclo , o ma
meluco o tapuio , nomes estes que todos indicão a mes
-
ma cousa, a saber: o antigo indio catechisado pelo
jesuita, ou pelos corpos de linguas e interpretes tão
sabiamente organisados pelos antigos portugueses e
hespanhoes .

Em todo o valle do Amazonas e seos grandes afluen


tes , quer no territorio do Brazil , quer nos da Bolivia ,
Perú, Nova Granada , Venesuela , etc , o instrumento
principal de riqueza não é nem a raça branca , nem a
raça preta . A raça branca representa os misteres intel
lectuaes ; mas o trabalho , a elaboração da riquesa que

alli depende em tudo de industrias extractivas ,


é exclusivamente filha do antigo indio amansado na
INTRODUCÇÃO XXVII

quelle valle pelos corpos de interpretes , auxiliares


indispensaveis da civilisação , e do missionario .
Não foi só isso tendo sido forçado a viajar muitas
veses do Rio de Janeiro à Matto Grosso , isto é a atra
vessar todo o Brazil de leste a oéste ; e a viajar de
Montividéo ao Pará pelo interior , isto é, a atravessar
todo Brazil de sul a norte , eu vi que todas as nossas
communicações pelo interior estavão a mercê dos sel
vagens , por que nós , população christã , possuimos ape
nas a circumferencia desta enorme área chamada Bra
zil : o centro está em poder do selvagem , que possue
tambem as regiões mais ferteis , assim como os cursos
dos grandes rios navegaveis , cada uma de cujas bacias
cobre um territorio tão grande como o das maiores
monarchias europeas, como Javary , Juruá , Purus , Ma
deira , Tapajós , Xingú , Araguaya , Tocantins , Japurȧ ,
Rio Negro , Rio Branco , só na bacia do Amazonas , sem
1 fallar nos da do Paraná .

O facto da existencia desse milhão de braços , ocu


pando e dominando a maior parte do territorio do Bra
zil , podendo irromper para qualquer lado contra as
populações christãs , é um embaraço para os progressos
do povoamento do interior, e é um perigo que crescerá
na proporção em que elles forem ficando mais aper
tados : a questão pois não versa só sobre a utilidade
que podemos tirar do selvagem ; versa tambem sobre
os perigos e despesas que faremos , se não cuidarmos
agora de amansal- os .
Não estará longe o dia em que seremos forçados , como
é a Republica Argentina , o Chile , os Estados Unidos
XXVIII INTRODUCÇÃO

a mantermos verdadeiros corpos de exercito para conter


nossos selvagens , si abandonarmos essa questão ao seo
natural desenvolvimento .

Em Janeiro d'este anno ainda os jornaes deram no


ticia dos estragos que elles fizeram na Republica Argen
tina, estragos que montaram , além da perda de vidas ,
em mais de mil e quatrocentos contos de nossa moeda !
Como estes assumptos em geral despertam muito pou
ca attenção da nossa sociedade , por que , ocupados como
nos achamos com muitas questões presentes , falta- nos
tempo para nos ocuparmos do futuro , eu peço a attenção
da commissão para esse facto , e aqui reproduso a parte
da correspondencia de Buenos Ayres, publicada no
Globo de 10 de Janeiro preterito :

« São ainda confusas , mas , em todo caso , assusta


doras as noticias da invasão dos indios , na provincia
de Buenos-Ayres.
Por desorganisação das forças da fronteira ou por
insufficiencia d'ellas , o certo é que os indios ainda não
foram detidos na sua marcha devastadora , e, além de
varios prisioneiros ja feitos por elles, avalia-se quejà
internaram no deserto mais de 60,000 cabeças de gado
cavallar , não incluindo o gado bovino , cujo numero é
ainda mais consideravel. »
São por tanto cento e vinte mil animaes que , ao pre

ço de 12$000 cada um, representam pelo menos um pre


juizo de mil quatrocentos e quarenta contos só em um
anno , afóra as vidas!
Estes prejuizos , as despezas que serão necessarias
com movimento de forças, as perturbações sociaes

H
INTRODUCÇÃO XXIX

que provirão de conflictos sanguinolentos no interior ,


mostram que quaesquer despezas , que fizermos agora
para assimilar os selvagens na nossa sociedade , serão
incomparavelmente menores do que as que teremos de
fazer, si, por não prestar attenção ao assumpto, formos
forçados a exterminal-os .

E nem se diga que não estamos expostos aos mesmos


perigos que os argentinos , chilenos e norte-americanos .

perigo ainda se não manifestou entre nós , é


porque aqui no Brazil temos sido mais previdentes , e
porque a população christã está por assim dizer confi
nada na costa . Aquella que é limitrophe dos selvagens
tem com elles constantes conflictos , e não ha quasi um
só mez em que os jornaes nos não dêem noticias de
taes conflictos .

Não só estaremos (desde que a população se alargue)


expostos aos mesmos perigos que os argentinos , como
estaremos expostos a maiores , e para assim julgar
basta ter presente ao espirito os seguintes factos :

A população selvagem da Republica Argentina é


avaliada em cem mil indios ; a nossa é avaliada em
um milhão , ou dez vezes mais . O territorio da Repu
blica Argentina é quasi todo accessivel por meio da
grande linha navegavel do Paraná ; alli o movimento
de forças é mais facil ao christão do que ao gentio ,
dispondo aquelle de vapores no rio , e em terra de im
mensa cavalhada . Nosso interior, muito mais remoto
.
da parte que possue população densa , não è accessivel
ao vapor ; possuimos menos cavalhada, e por tanto o

t
XXX INTRODUCÇÃO

movimento de forças aqui seria mais facil ao gentio do

Kring
que a nós.

Muitos de nós brazileiros tem a respeito do interior


não pequena cópia de idéas falsas ; a idéa que muitos
formam do interior , é que possuimos um paiz de flores
tas , quando , a excepção das da costa ou das que mar
geam os rios , todo o territorio é , quasi sem excepção ,
de eternas campinas. Uma outra idéa falsa que muitos
formam do interior é que a população selvagem do
Brazil compõe-se de pequenas tribus ; assim é pelo que
respeita as que estão logo em seguida à população
christã . Mas no interior, isto é , além da linha occu
pada pelos selvagens , que estão em contacto comnosco ,
existem poderosas nacionalidades que não despertam a
nossa attenção porque é ainda immenso o sertão do in
terior que não é de fórma alguma viajado ou conhe
cido . Só a bacia do Xingú é maior do que a França.
Não ha noticia de um só christão que a tenha tocado
até hoje. Não conhecemos nosso interior , ninguem o
conhece senão os mesmos selvagens ; è disso que vem a
crença de que as tribus são pelo commum de 100 a 200
individuos . Para citar só dous factos eu direi que a
nação que com os nomes de Gradahús , Gorotirės , Ca
hiapós , Carahós , (fallam todos a mesma lingua) habita
entre o Xingú e o Araguaya não deve ter menos de oito
a doze mil individuos . Na bacia immediata (a do Ta
pajós) conhecem-se tambem duas grandes nações : a
dos Mundurucús e a dos Maués ; a respeito destas pu
blicou o Jornal do Commercio em Novembro do anno
passado a seguinte estatistica :
INTRODUCÇÃO XXXI

INDIOS DO TAPAJÓS . -Lê-se no Diario do Grão


Parȧ :
@
Existem no rio Tapajós , entre as cachoeiras e es
parsos pelas campinas , dentro dos limites desta pro
vincia com a de Matto-Grosso , diversas raças de gen

tios , d'entre as quaes duas nações -a Mundurucú e a


Maués- , que se assignalam pelo contacto em que se
acham com a população civilisada e em mutuas rela
ções, e por conseguinte bem conhecidos . Estas duas
nações se dividem , a Mundurucú em 21 tribus , for
mando cada tribu a sua aldêa ou taba , e a Maués em
51 tribus , além de 5 que estão no districto de Villa
Bella , da provincia do Amazonas .

As 21 aldeas ou tabas dos Mundurucus contêm


13,910 almas , e as 51 dos Maués 775. »

Portanto , nem pelo numero nem pela posição , os pe


rigos à que as populações christãs ficarão expostas
desde que os selvagens se virem ' mais apertados , não
são inferiores , pelo contrario são maiores do que os á
que actualmente está exposta a Republica Argentina ;
e si alli ainda este anno os selvagens , que são dez vezes
menos numerosos do que os nossos , poderam destruir só
em uma incursão valores equivalentes a mil quatro
centos e muitos contos , -que esforços não devemos nós .
empregar para fugir de identica situação , com selva
gens mais numerosos e com um paiz de muito mais
difficil communicação , sobretudo quando esse selvagem
nos pode ser tão util?

1
XXXII INTRODUCÇÃO

III

ASSIMILAÇÃO DO SELVAGEM POR MEIO DO INTERPRETE

A experiencia de todos os povos, e a nossa propria,


ensinam que no momento em que se consegue que uma
nacionalidade barbara entenda a lingua da nacionali
dade christa que lhe está em contacto , aquella se as
simila á esta.

A lei da perfectibilidade humana é tão inflexivel


como a lei physica da gravitação dos corpos .

Desde que o selvagem possue , com a intelligencia da


lingua , a possibilidade de comprehender o que é civili
sação , elle a absorve tão necessariamente como uma
esponja absorve o liquido que se lhe põe em contacto .
Esses homens ferozes , e temiveis em quanto não en
tendem a nossa lingua, são de uma docilidade quasi
infantil , desde que entendem o que lhes fallamos .
Não são só elles .

Quem estudar o que os Inglezes fiserão na lndia - os


Russos na Azia e America , os portuguezes e hespanhoes
na Africa, Azia e America , verá a mesma cousa . Por
toda parte onde quer que uma raça civilisada se pôz em
contacto com uma raça barbara vio - se forçada ou a
exterminal-a , ou a aprender a sua lingua para com
ella transmittir suas idéas .

E' esse o alcance d'aquellas palavras de Christo


quando, dando aos apostolos a missão de levar a reli
gião de paz e caridade atravez das trevas do mundo
.
INTRODUCÇÃO XXXIII

pagão , lhes disse : « O Espirito Santo descera sobre


cos e cos dará o dom das linguis »
Sim, por toda a parte onde a civilisação da humani
dade se pôz em contacto com a barbaria , o problema de
sua existencia só teve um destes dous instrumentos :
Ou o derramamento de sangue ;

Ou o interprete.
Não ha meio termo . Ou exterminar o selvagem, ou
ensinar-lhe a nossa lingua pelo intermedio indispen
savel da sua, feito o que , elle está incorporado em nossa
sociedade , embora só mais tarde se civilise .
Desde então a creação de um corpo de interpretes des
tinado a ensinar aos selvagens nossa lingua , que elles
aprendem com grande facilidade , quando se lh'a ensina
na sua , fica evidente que será meio efficaz para rea-,
lisarmos a conquista pacifica de duas terças partes do
solo do imperio , de um milhão de braços hoje perdidos ,
de industrias que em poucos annos podem decuplicar ;
de assegurarmos nossas communicações pelo interior , e

evitarmos no futuro graves difficuldades .


E onde estão os elementos para crear-se esse corpo
de interpretes ?
Estão no exercito , na armada , e estão espalhadas
pela superficie do imperio que por si representa um
15.º da superficie terrestre do globo .

Reunil-os em um corpo , dar-lhes organisação , ensi


nar-lhes a ler e a escrever e os officios indispensaveis
de carpinteiro, e ferreiro , é tão facil que nada nos des
culpará de não emprehendel-o agora, quando para isso
temos todos os elementos .
XXXIV INTRODUCÇÃO

Esse corpo , desde que tivesse a organisação e a disci


plina militar , seria um auxiliar prestimoso para nossas
colonias militares, para nossas populações das fron
teiras , para as expedições que quizessemos mandar
ao interior , e para proteger nossas communicações
interiores, as quaes , repito , para as duas grandes bacias
do Prata e do Amazonas que estão a mercê do selva
¡
gem, e que nos seriam preciosas, desde que nos fosse
trancado o caminho do oceano , ou a fóz do Rio da
Prata ou do Amazonas ; este ultimo facto póde dar- se
não só diante de uma guerra externa como diante de
uma revolução.
Antigamente , quando se queria fundir uma população
em outra, o meio que logo occorria era a força.
A Inglaterra na Asia , a França na Africa , a Rus
sia na Asia e na America , nos demonstraram que os
corpos de interpretes são , não só mais economicos , como
muito mais efficazes .
Felizmente nós os brazileiros nos temos aproveitado
e havemos de nos aproveitar da lição dos povos mais
cultos do mundo.

Digo que nos havemos de aproveitar porque , feliz


mente , como já o referi no prologo , o governo se occupa
seriamente da questão ; oxalá não desanime .

EXTENSÃO GEOGRAPHICA EM QUE DOMINA A LINGUA TUPI

O estudo das grandes linguas indigenas do Brazil é


assumpto de consideravel interesse , não só debaixo do
ponto de vista pratico , come debaixo do ponto de vista
scientifico .
INTRODUCÇÃO XXXV

Quanto a seu interesse scientifico , eu transcreverei


aqui as palavras que vem na introducção da obra —
Alphabeto phonetico - de um dos mais notaveis lin
guistas dos tempos modernos , o Sr. R. L. Lepsius , de
Berlim; diz elle:
«Um dos maiores anhelos da sciencia moderna, e ao
qual só ultimamente se achou em circumstancias de
attender, é o conhecimento acurado de todas as linguas
da terra. O conhecimento das linguas é o mais seguro'
guia para a comprehensão intima das nações , não só
porque a lingua é o meio de toda communicação intel
lectual, como tambem porque é a mais copiosa , rica e
fiel expressão do deposito intellectual de uma naciona
lidade .»

Nenhuma lingua primitiva do mundo , nem mesmo o


sanskrito, occupou tão grande extensão geographica
como o
tupí e seus dialectos ; com effeito , desde o
Amapá até o rio da Prata pela costa oriental da Ame
rica meridional , em uma extensão de mais de mil
leguas , rumo de norte a sul ; desde o cabo de S. Roque
até a parte mais occidental de nossa fronteira com o
Perú no Javary, em uma extensão de mais de oitocentas I

leguas , estão , nos nomes dos lugares , das plantas , dos


rios e das tribus indigenas , que ainda erram por muitas
dessas regiões , os imperecedores vestigios dessa lingua.
Confrontando-se as regiões occupadas pelas grandes
linguas antigas , antes que ellas fossem linguas sabias
e litterarias , nenhuma encontramos no velho mundo ,
Asia , Africa , ou Europa , que tivesse occupado uma
região igual à da área occupada pela lingua tupí . De
XXXVI INTRODUCÇÃO

modo que ella póde ser classificada, em relação à


região geographica em que dominou , como uma das
maiores linguas da terra, se não a maior.
Pelo lado da perfeição ella é admiravel ; suas fórmas
grammaticaes , embora em mais de um ponto embrio
narias , são comtudo tão engenhosas que , na opinião de
quantos a estudaram, póde ser comparada às mais
celebres . Esta proposição parecerá estranha a muita
gente ; mas o curso que começo agora a publicar , e que ,
com o favor de Deos , espero levar ao cabo de um modo
completo , o deixará demonstrado . Muitas questões
hoje obscuras em philologia e linguistica encontrarão
no estudo desta , que cons.itue uma nova familia , a sua
decifração .
Estas duas palavras tupi e guarani não significavam
entre os selvagens que dellas usavam senão tribus ou
familias que assim se denominavam .
Estas duas expressões: lingua tupí, ou lingua gua
rani , seriam como se nós dissessemos : a lingua dos
mineiros , ou a lingua dos paulistas .
Se no Paraguay qualquer disser: guarani nhehen ,
para traduzir a expressão- lingua guarani- ninguem
o entenderá , porque para elles o nome da lingua é:
ava nḥehen, litteral : lingua de gente.
Desde que o homem falle duas linguas , comprehende
que aquelles que não fallam a sua se possam exprimir
tão bem quanto elle o faz na propria.
Mas entre povos primitivos , que não tinham a arte
de escrever , e para quem as linguas estrangeiras eram
tão inintelligiveis como o canto dos passaros ou os
INTRODUCÇÃO XXXVII

gritos dos animaes , muito natural era que elles só


considerassem como lingua de gente a sua propria .
A expressão avà nhehen , para exprimir a lingua
fallada por elles , mostra-nos que a idea que tinham
das outras é que ellas não eram lingua de gente .
Observa o Sr. Max Müller, com muita verdade , que
nós os homens do seculo XIX difficilmente podemos

comprehender toda influencia que exerceu sobre socie


dades barbaras este admiravel instrumento chamado
lingua .

Para o selvagem , aquelle que falla a sua lingua, é


um seu parente , portanto seu amigo , e é natural .
Elle não tem idéa alguma da arte de escrever; não
comprehende nenhum methodo de aprender uma lingua
senão aquelle pelo qual adquirio a propria, isto é:
pelo ensino materno ; por isso , quando um branco falla
a sua lingua, elle julga que esse branco é seu parente ,
e que entre a gente da sua tribu e na infancia é que
tal branco aprendeu a fallar.

Em uma das vezes em que os gradahús appareceram


á margem do Araguaya , eu acompanhei- os sosinho em
uma longa excursão , levado pela curiosidade de obser
var grandes aldeamentos inteiramente selvagens ; esses
gradahús achavam- se em numero superior a mil , eram

havidos por ferozes , e meus companheiros julgavam


temeridade visital-os . Eu , porém, o fiz sem coragem
alguma, porque , fallando um pouco da lingua delles ,
tinha plena e absoluta certeza não só de que minha
vida não corria o menor risco , como que elles me
XXXVIII INTRODUCÇÃO

procurariam obsequiar por todos os modos , e assim


succedeu .

Assim como para o selvagem, aquelle que falla a sua


lingua elle reputa de seu sangue , e , como tal , seu
amigo, assim tambem julga que é inimigo aquelle que
a não falla .

O citado Sr. Max Müller nota: que entre todos os


povos europeus a palavra que traduz a idea de inimigo
significa primitivamente : aquelle que não falla a nossa
lingua; que muito é que o mesmo se désse entre os
nossos selvagens?
Foi partindo deste importante facto que os jesuitas ,
em menos de cincoenta annos , tinham amansado quasi
todos os selvagens da costa do Brazil.
Seu segredo unico foi assentar a sua catechese na
base do interprete , base esquecida pelos catechistas
modernos , que por isso tão pouco hão conseguido .
Assim, pois , diziamos que a palavra guarani não é o
nome de uma lingua, e que a lingua que nós designa
mos por essa expressão , elles designam com a de―――
1
lingua de gente ou ava nhehen.
O mesmo diremos a proposito de lingua tupí .
Tupi era o nome de uma tribu que , ao tempo da
descoberta , dominava grande parte da costa.

Se dissermos a qualquer indio civilisado do Amazo


nas : falle em lingua tupí - elle não entende o que lhe
queremos dizer ; para que elle entenda que queremos
que elle se expresse na sua propria lingua , mister é
dizer-lhe: Renhehen nhchengatú rupi , litt.: fille lingua
boa pela, isto é : falle pela lingua boa.
.3
INTRODUCÇÃO XXXIX

Estes factos fizeram-me adoptar os vocabulos ava


nhehen e nhehengatú para exprimir , o primeiro, a lingua
guarani; o segundo , a lingua tupi .

NHEENGATU OU TUPÍ VIVO

A lingua tupi ou nhehengatú é , como vimos atraz ,


uma das que occupou maior superficie da terra . O que
nós encontramos actualmente é uma porção de linguas
muito semelhantes todas entre si. Dessas linguas algu

mas nos foram conservadas por monumentos escriptos ,


outras subsistem vivas e falladas por tribos mansas ; ẻ
provavel que algumas tenham já desapparecido com os
povos que as fallavam , e que muitas haja de que não
tenhamos noticia .

Cada nova lingua que se estuda , é mais importante


para o progresso da humanidade do que a descoberta
de um genero novo de mineraes ou de plantas .
Cada lingua que se extingue , sem deixar vestigios
escriptos , é uma importante pagina da historia_da
1
humanidade que se apaga, e que depois não poderá mais
ser restaurada . 1

No estado actual dos nossos conhecimentos , impossi


vel é dizer qual dessas linguas tupis é mais primitiva ,
e ainda mais difficil é dizer qual a lingua de onde ellas
vieram .

Entre as linguas tupis , conservadas pelos trabalhos


dos padres jesuitas , figuram o guarani ou tupi do sul ,
no qual está escripto um dos maiores monumentos
linguistas ,
o Thesouro da lingua guarani , do padre
Montoy
a,
XL INTRODUCÇÃO

A lingua escripta pelo padre Montoya é ainda viva


no Paraguay , Corrientes e em parte do territorio cha
mado de Missões . Foi , porém , profundamente modifi
cada pelo contacto com o hespanhol , de modo que já
ha, entre a lingua escripta por elle e a lingua actual
fallada pelos paraguayos, a distancia que separa um
dialecto de um outro.

Nem o tupí oriental , aquelle que era fallado na costa


quando os jesuitas o escreveram , e que faz objecto dos
diccionarios e grammaticas que nos legaram ; nem a
lingua Kiriri , um tupí que era fallado pela tribu desse
nome , não são hoje linguas vivas. Assim como os sel
vagens ou desappareceram ou subsistem mestiçados ,
assim a lingua ou desappareceu ou mesticou-se no
rustico fallar de nosso povo , conseguindo introduzir na
lingua portugueza do Brazil centenares de raizes .
A lingua viva actual é fallada hoje em alguns lugares
da provincia do Pará , entre elles Santarem e Portel ,
no rio Capim , entre descendentes de indios ou entre as
populações mestiças ou pretas , que pertenceram aos
grandes estabelecimentos das ordens religiosas . De
Manȧos para cima ella é a lingua preponderante , no
rio Negro , e muito mais vulgar do que o portuguez .
Só esta bàcia do rio Negro e seus affluentes abrange
uma área igual à das grandes monarchias europeas ,
pois tem em distancias geographicas , 250leguas de leste
a oeste, e 200 de sul a norte , ou uma área de 50,000
leguas quadradas .
Pela margem esquerda do Amazonas a região , que é
quasi exclusivamente dominada pelos selvagens , tem
INTRODUCÇÃO XLI

500 leguas de leste a oeste e de 200 a 250 de norte a


sul, ou a área colossal de 125,000 leguas quadradas .
Muitas linguas se fallam nesse immenso paiz , mas ,
sem a menor contestação , o tupi ou nhehengatú é a lin
gua geralmente entendida.
Ignoramos qual seja a população indigena existente
nessa vastissima região ; mas dizem alguns desertores ,
que hão penetrado parte della , que a população é mais
densa ao passo que afasta- se dos lugares accessiveis
aos christãos.

Eu não creio que a população selvagem seja densa


em parte alguma ; mas , ainda calculando-a muito rare
feita , isto é , dous individuos por cada legua, temos
que uma só parte da bacia do Amazonas , aquella cuja
área calculam.os em 175,000 leguas quadradas , terȧ ,
por essa regra, uma população indigena de 350,000
selvagens .

Em geral , nas cidades da costa, á excepção dos


homens que se dedicam a profissões litterarias , os
outros não tem idéas precisas das grandes extensões de
nosso paiz que são ainda dominadas pelos aborigenes ,
e, como elles desappareceram da costa , muitos os sup
põe quasi extinctos , julgando que a área povoada pelo
brazileiro christão é a quasi totalidade de nosso paiz .
A verdade é justamente o contrario , como ficou
demonstrado .

Esta só consideração basta para tornar patente o


empenho com que devemos nos prover de interpretes
para actuar entre esses barbaros , e impedir que elles
continuem a ser , como disse , um obstaculo para o povoa,
XLII INTRODUCÇÃO

mento de tão vasta porção do imperio , quando tão uteis


lhe podem ser desde que nos deliberemos a empregar
os meios para utilisal-os .
Se esta commissão , com seu prestigio , tomasse a si o
encargo de chamar sobre o assumpto a attenção das
classes pensantes , o que é de sua competencia, porque
seo fim principal é despertar a attenção do paiz sobre
aquelles objectos de que depende a riqueza publica pre
sente e futura ; se S. A. , o Sr. Presidente d'ella , se dig
nasse tomar, sob seu patrocinio , a idea do corpo de
interpretes , o prestigio de seu nome seria sufficiente
para congregar em torno d'ella o concurso de algumas
de nossas intelligencias, o que seria muito efficaz para
que produzisse seus fructos.
Alem dos fins economicos e administrativos que se

ligão ao assumpto, e que ficaram ligeiramente esbo


çados , ha um fim humanitario a attender-se e que não
pode ser indifferente a nem um povo civilisado , por
quanto :
Promover isto : seria tambem promover a realização

daquelle sublime mandato que Christo confiou a todo


povo christão diante de um povo barbaro , nas seguin
1
tes sublimes palavrs do Evangelho :
Ite ad eos qui in tenebris et umbris mortis sedant,
ad dirigendum pedes eorum in viam pacis .
<< Ide à aquelles que jazem sentados nas sombras e
trevas da morte , e dirigi seus passos pela estrada da
paz. »
Sobre estes pontos eu ouso chamar a attenção da
Commissão Superior da Querta Exposição Nacional .
INTRODUCÇÃO XLIII

O trabalho arduo a que ella tão patrioticamente se


devotou , as investigações acuradas a que procedeu
sobre os assumptos que podem interessar nossa futura
riqueza , fazem-me esperar que este será tomado na
devida consideração .

Rio 5 de Janeiro de 1876

J. V. COUTO DE MAGALHAES .
ADVERTENCIA

Este methodo foi redigido de modo que , independente


de aprender o tupí , todas as pessoas , que saibam lêr e
que estiverem em contacto com o selvagem, possam
ensinar ao mesmo selvagem a fallar o portuguez .

Eu peço especialmente aos habitantes das immensas


provincias do Pará e Amazonas , negociantes , serin
gueiros , donos de barcos , fabricantes de pirarucú ,
salça, oleo de copahyba , cravo , é em geral a todos
quantos dependem do braço selvagem que , nas horas
vagas, leiam ou mandem lêr å este a parte do curso ,
oue vai da pag. 14 até o fim das lendas , lendo primeiro
q tupi, e depois o portuguez correspondente , nome por
nome , oração por oração, e ficarão sorprehendidos da
rapidez com que o selvagem aprenderá nossa lingua .

Aquelles que tomarem em consideração esta lem


brança , consultarão a seus legitimos interesses , porque
o selvagem que falla o portuguez , vale , pelo menos ,
tanto como dous boçaes ; assim, cada cidadão desses se
converterå em um catechista , attendendo aos interesses
de seu commercio ou industria. O commercio e a in
dustria foram, em todos os tempos , os primeiros auxi
liares da fé e da civilisação . ,
----
mang
sam
Curso de lingua Tupí viva ou Nheengatú

Parte synthetica ou resumo das regras da gram


matica

21. ° DO MODO DE LER

1. Nas linguas não escriptas é mais essencial ler


bem do que nas linguas escriptas ; pouco importa , por

exemplo, que portuguezes do povo leiam ob com o som


de v , porque d'ahi não resulta desintelligencia do
vacabulo, cujo som assim alteram ; a orthographia , de
a muito fixada, não permitte na escripta a mesma li
berdade que existe na pronuncia .

Para ler bem uma lingua é necessario : 1. ° que as


letras tenham sons bem determinados; 2. ° que o accento

da palavra seja conhecido . Quanto aos sons das letras ,


nós adoptamos o alphabeto phonetico de Magnus Lep
sius com os valores que abaixo indicamos , do n . 2 ao

n . 14 ; quanto ao accento da palavra nós o indicaremos


sempre com um circumflexo na syllaba tonica.
2. Os sons que nós exprimimos pelo duro , j , 1 , v,
z, não existem n'esta lingua . Oré sempre brando ,

quer no principio quer no meio das palavras ; assim ,


a syllaba re, que é o signal de 2. pessoa nos verbos ,
pronuncia -se branda, como na palavra portugueza
querer . Usamos de-, com som de , antes
de a o u.
2 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU'

3.º A E O tem tres sons : aberto , fechado , nasal.


A-aberto tahá ; a fechado marama ; à nasal mahā.

Quando estas vogaes forem escriptas sem signal

algum no fim das palavras, se entenda que são quasi


mudas ; quando fechadas levarão um ponto em baixo ,
assim : a, e, o . U-tem o mesmo som que em portuguez

e allemão, e corresponde ao ou francez e aos dous oo


inglez.

O ã, è, ì , ō , u nasaes, representamos com um til, e


lêem- se como em portuguez am, em, im, om, um .

3. Ha um som gutural de difficil representação ,


porque não existe semelhante em nenhuma das linguas
europeas , e é o que representaremos pelo tartarico e
chinez . Para pronuncial-o abra -se a boca , encolha- sc
a lingua , contraiham-se os labios , e pronuncie-se o i
na garganta , e será o som. Este som é o que os gram
maticos jesuitas representavam pelo y, ou i grosso .

4. Nesta lingua as letras iniciaes das palavras


mudam algumas vezes , conforme a palavra é absoluta
ou não, segundo regras que ensinaremos na pratica .
Os, mesmo entre duas vogaes , nunca tem o som de z .

5. ° Quando o nome parece terminar em consoante ,


essa consoante é sempre seguida de um a , e, i, o breves ;
a palavra casar ――― alguns escrevem menar ; eu ,

porém , escrevo menára , porque é assim que elles pro


nunciam , em bora o ultimo a seja quasi imperceptivel .
PARTE SYNTHETICA 3

6. Oh é levemente aspirado ; assim , escrevemos a


palavra tahá com h na ultima syllaba , para indicar
que ella é levemente aspirada .

7. Empregamos o x com o som de ch em portu


guez, francez e inglez , como na palavra chapeo , ou
com o som do sch em allemão .

8. ° Casos ha , e mui frequentes , em que concorrem


duas syllabas só de vogaes, e como nesse caso a pro
nuncia seria incerta para quem lesse sem mestre,
tomamos o expediente de accentuar cada uma dessas
syllabas ; assim : iúúca , que significa tirar , compõe-se

de tres syllabas iu, u, ca, e, para evitar outra confusão


que poderia resultar do accento, fique entendido que o
ultimo é o tonico da palavra ; uáimi significa velha ;
compõe- se de duas syllabas , uái e mi . Empregamos
tambem dous accentos circumflexos sempre que a

palavra for composta de duas outras que separadas


tenliam significação ; assim : catúreté, muito bom , de
catú e eté.

9. Um som nasal é sempre longo ; um nasal no


fim da palavra indica que nelle está o accento da
palavra. Os accentos nesta lingua muito importam ,
assim como o facto de ser aberta , fechada ou nasal a
letra,
porque cada uma dessas circumstancias póde

alterar o sentido do vocabulo ; assim : túpa significa

rede de dormir , tupá raio e tupã significa Deos ; túpa


xăma, corda de rede , e tupã-xã na , corda sagrada ; púa,
4 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU'

cousa redonda; puá, levantar, empinar, e d'ahi ita-rúa


prego , itá-pua, pedra levantada , em pê , etc.

10. A proposito dos sons nasaes repetiremos a regra


dos padres José de Anchieta e Montoya , que é : o som
nasal antecedente nasalisa o consequente e vice-versa ;

assim, a palavra nheengatú, que significa lingua boa ,


compõe-se de nheè e catú; o è da primeira nasalisou o
i
cu da segunda e converteu- o em engá.

Nos casos em que uma palavra começar por uma


consoante nasal precederemos a tal consoante de um

I m; assim, mbaé, leia- se quasi como umbaé, sem ferir


muito o primeiro " .

11. Quando escrevermos qua, qui , o u é liquido ;

! quando o não for escreveremos ou kua, kui, ou

cua , cui, e devein- se lêr separadamente duas syllabas .

? 2° - RESUMO DA GRAMMATICA
1

-
1. ° Da declinação . — Como em portuguez , os nomes
se declinam por meio de preposições que, como vão
sempre depois do nome , chamaremos posposições ,
exemplo : Deos , Tupana; o genitivo de possessão se co
nhece porque a cousa possuida é posposta, ao possui
dor, como no inglez ; casa de Deos , Tupã roca; para
Deos, Tupã supé, ou Tupã arama ; em Deos , Tupã
upé; com Deos , Tupă irúmo ; de Deos , Tupã cui; por
Deos, Tupã recé, ou Tupána rece.

3
PARTE SYNTHETICA 5

2.º O lugar para onde se exprime pela posposição


keté que alguns dizem keti, kiti. Eu vou para minha
casa : Xasó ce róca kete. Rupi , por onde : vou a casa
pelo rio: Xasó ce roca hetę paraná rupi .

3. O lugar de onde alguma cousa vem , pela pos


posição çuí; eu venho do Icarahy: Xa iúri Carai çui ;
alguns dizem xii.

4. Olugar onde alguma cousa está se exprime pela

posposição upé ou opé ; eu estou na cidade , Xa iko mairi


upé. Quando a cousa está dentro , como de gaveta ou
caixa, por pupé : o anzol está
dentro da caixa : pinà

oiko patuá pupé. Em riba -áripe ; o castiçal está em


riba da mesa : caneatinga-rerú oiko mirá péua áripe.
No chão, sobre o chão ; iui rape ; ju significa chão ,
terra .

5. Adjectivo. O adjectivo segue o substantivo e


declina-se pelo mesmo meio das posposições
; o mesmo

se dá respeito aos pronomes pessoaes . N'alguns lugares


dativo é expresso por um u no fim : Ixeu paro mim ,
0indeu
para ti etc.

0
pronome
་ dativo ixupé pessoal da 3ª . pessoa do singular faz no
, para elle.

O adjectivo se une ao substantivo independente de


verbo, assim : minha espingarda é boa- ce mukáua

atú; se dissessemos : ce mukaua oiko catú , o sentido


seria-que a minha está agora boa ; exprimiriamos por
6 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU ’

tanto um attributo actual, e não uma qualidade per

manente , como melhor veremos na pratica .

6. Dos Numeros . Os numeros são 4, a saber :

iépé, um ; mokoin , dous ; moçapira , tres ; erundi,

quatro. Com estes 4 elles compõe os mais .


O numeral distribuitivo se forma repetindo o numeral ;
assim: um a um : iepé iepé ; dous a dous mokoin mokoin .

7.°.Demonstrativo . Ha tres : quahá este, nhãhã

aquelle ; nhāhā amu aquelle outro. Servem lanto


para o masculino como para o feminino .
0
8. Dos numeros : O plural de todos os nomes se
forma accrescentando-lhes esta particula itá , que cor
responde ao nosso s . Casa óca, casas ócaitá ; parente
anama ; parentes anãmaitá . Este itá é o etá da costa ,

que se vê escripto nos cathecysmos .

9. Só distinguem generos nas cousas animadas , e


estas ou tem palavras proprias para designar o macho
e a femea como irmão mu , irmă rendera , ou então ,

quando querem designar o sexo masculino , seguem o


nome da palavra apgaua , que significa macho , ou da
palavra cunha femea , assim cão -iauára apgaua, -ca
chorra iauára cunhã.

10. Dos interrogativos. Toda proposição interroga


tiva tem intercalada uma d'estas particulas : tahá ,
será, tá

Quem , qual ? auá; que cousa , o que?: mahá.


PARTE SYNTHETICA 7

Tanto um como outro é seguido da particula― tahá


Quem está ahi : auá tahá oiko ápc? O que você
está fazendo: mahá tahá remunha re iko? O que você vio
por ahi maha tahá re mãe rupi? Os interrogativos

de tempo , lugar , numero , occasião , razão , são os se


guintes : mairamé , quando ; mamé , onde ; mūira ,
quantos? mai, como ; mahá rèce, por que. Quando você
vem? mairamé tahá re iuri? Quantos remeiros vieram?

Muire iapucuiçára oúri? Como te chamas? · Mai tahá


ne rera?

11. Do comparativo e superlativo . - O comparativo

forma-se com a posposição pire . Pedro é melhor do


que João , Pedro catu pire João cui - litteral : Pedro é
bom mais João de . O superlativo forma-se com a pos

posição ètè , a qual toma r quando é antecedida de


vogal ; bonito , poranga ; muito bonito , poranga retė.

12. Do augmentativo e diminutivo . — Os adjectivos


turucu, grande,
e mirin , pequeno, são de um uso

muito frequente nesta lingua . Este turucu em compo


sição perde a primeira syllaba e fica açú
ou uacú ,
assim: peixe, pirá; balêa , piráuaçú; mar , parά; ocea

no , paráuaçú . Este nome passou para muitos de


logares e plantas na lingua brazileira , assim : Taquara ,
Taquaraçú . O diminutivo é mirin; maracujá-mirin ,
maracujá pequeno ; rio grande, paraná; os canaes do
rio grande que ficam apertados entre ilhas : paranã
mirin. Um outro diminutivo é o i no fim do vocabulo ;
8 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU’

taquara, taquari, taquara pequena , fina : páo , imirá;


vara , páo fino : imirai.
Pouco, quáiaira; muito, turuçú : é o mesmo aug
mentativo que empregam tão bem neste sentido , por
ex.: eu quero beber caxaça , Xá ú putari kanin; ponha
pouco, Enun quaiaira . Ponha muito : Enun turuçú.

13. Dos verbos . ――――― Os verbos pessoaes tem particu


las prefixas que indicam as pessoas. Ós grammaticos
jesuitas não comprehenderam isto, porque no tempo
em que escreveram a philologia estava muito atrazada ,
e por isso qualificaram estes prefixos de artigos. Estes

prefixos tem o mesmo valor que tem as terminações


dos verbos em portuguez, latim , francez , etc .; a diffe
rença está em que nas nossas linguas a particula está
no fim , ou segue a raiz , ao passo que no Tupí e em
quasi todas as linguas indigenas do Brazil ella está no
principio do verbo , ou antecede a raiz . Convem não
confundir a particula pessoal com o pronome pessoal.
Cada pessoa de verbo decompõe- se : 1 ° , no pronome
pessoal; 2 ° . no prefixo pronominal ; 3 ° , na raiz attri
butiva : Eu levo , xe araço; tu, Ine reraco ; Elle , Ahé
oraco ; Nós, Ine igrace; vós, Pen peraco; Elles ,
acti orico .

Quando se falla a lingua ouve-se, na primeira pessoa ,


esta palavra: xoraco : xe é o pronome pessoal da pri
meira pessoa, cujo e contrahe- se para deixar ficar o
som do a; a é o prefixo pronominal da primeira pessoa ;
raco é a raiz . No portuguez é a mesma cousa : Eu
CL
PARTE SYNTHETICA 9

levo; eu é o pronome pessoal ; lev é a raiz , e o é o suf


fixo pessoal da primeira pessoa . A differença , pois,
entre o portuguez é apenas a da posição da raiz. Para
não fazer distincção entre a escripta e a pronuncia eu
escreverei como todos escrevem, isto é , em vez de
Xe araço, escreverei Xa raço , neste e sempre que

tiver de empregar a primeira pessoa dos verbos pes


soaes.

Aetá , pronome da terceira pessoa do plural , é uma


contracção de ahé, elle, e etá ou itá que é signal de
plural; vide a regra, n . 8.

No uso dos pronomes pessoaes ha numerosos idio


lismos que , com os exercicios que se seguem, ficarão
perfeitamente entendidos , e de que aqui não tratamos
para não prejudicar a simplicidade destas regras.

14. Dos tempos. - O presente indefinido forma -se

pela união do prefixo pessoal á raiz : Xa mehén , re


mehén , ahé omehén , ianë iamchẹn , peén pemehẹn , aitá
omehen , eu dou , tu dás , elle dá , nós , vós , elles dão .

O presente definido forma - se pela posposição do auxi


liar iko , ser ou estar : assim : eu dou ou estou dando ,

Ấn mehien xu khô ; re mehiện ra đó , chẻ omhin oilô ;


ignê iamchên vaihô; peen prmehen pe iko; vitá omehện
oikó : Eu estou dando , tu , elle, nós , vós, elles .

15. O passado forma-se addicionando a particula


an ou ana ao presente indefinido . Eu dei, Xa mehện
ana.
10 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU'

16. O futuro forma -se addicionando a particula curi


ao presente indefinido : eu darei , xa mehen curi.

1 17. Com o presente, passado e futuro póde-se em


ultima analyse fallar uma lingua , e d'ahi vem talvez
que alguns grammaticos antigos disseram que a lingua
não tem outros tempos, o que não é exacto . O que se
dá é que as raizes de tempo ainda não estão incorpo
radas ao verbo , ou á raiz attributiva, como succede
nas linguas de flexão. Ha os outros tempos , que se
formam da maneira seguinte :

18 O preterito imperfeito forma- se do presente defi


nido, interpondo , entre o verbo e o auxiliar, a particula
ramé, a qual significa quando: Xa mehén ramé xa iko
eu dava ou quando eu dava .

19. O futuro imperfeito forma-se do futuro, ajun


tando-lhe este mesmo ramé : Xa munhan curi ramé,
quando eu fizer.

20. O futuro perfeito forma-se do perfeito assim :


Xa munhãn ana curi ramé, quando eu tiver feito .

21. O mais que perfeito forma-se do presente inde


finido com a addição de rame: xa munhan ramé,

quando eu fizer, e tambem se eu fizer .

22. Nunca usam do infinito impessoal senão nos ver


bos impessoaes ; o que se vè nos cathecismos e sermões
dos jesuitas com esta fórma é equivoco proveniente de
prejuiso de que todas as grammaticas deviam neces
PARTE SYNTHETICA 11

sariamente ter as mesmas fórmas que as das linguas

aryanas por elles conhecidas ; assim , esta oração : para


ir para o céo é bom dar esmolas , elles dizem por esta

duas fórmas para gente vae ao céo é bom dá esmolla


-mira ocỏ arama juáka ketê catú rete omehen Tu
pana potáua ; ou então dizem : para nós vamos para o
céo é bom nós damos esmolla . -Iaço arama uáka

kete catú retė ia mehen Tupãna putáua .

23. Sempre que quizermos traduzir os infinitos por


tuguezes, usaremos d'este arama com as particulas
ana, ou curí , segundo fôr passado ou futuro .
O leitor familiarisar-se-ha sem grande trabalho com

essas differenças , por meio dos exercicios . Alguns sol


dados desertores tenho encontrado que, sem a menor

educação litteraria , e só por terem vivido nas aldeas ,


fallam correctamente a lingua ; e pois isto nada tem de
difficil .

24. Idiotismos. O verbo putári querer, tem um mui


singular modo de figurar na oração ; sempre que elle
vem junto com outro verbo , é esse outro verbo que

recebe o prefixo pronominal , ao passo que elle fica in


variavel, assim eu quero ir para o Amazonas :
Xa çó putári Suriman kete, litteral : eu vou quer
Amezonas para
.

Quando querem dizer que vão mandar ou ordenar


qualquer cousa ajuntam kári ao verbo , o qual é por sua

vez verbo, que significa mandar ; qu vou mandar cha


mar o meu povo : Xaço xa cenóin kári ce miraitá.
12 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU’

25. Forma reciproca, passiva e activa dos verbos. O

reciproco é formado pelo prefixo iú unido ao verbo .


O verbo neutro fica activo ajuntando -lhe o prefixo
mu (mo) ; apagaste o fogo ? - Remuéu ána será tatá ? O
fogo apagou-se : tatá uéu ana.

26. Negações. A fórma negativa nos verbos ob


tem-se antepondo a negação intí , ou inti mahã ; eu
quero Xa putári : eu não quero, intí xa putári , ou
inti mahã xa putári .

Um adjectivo ou substantivo fica negativo ajuntan


do-se-lhe o suffixo ima ; catú bom , catuima , sem bon
dade ; akaga cabeça ; akagalma sem cabeça ou

louco ; aqúa entendimento , aquaima idiota ; tecú olho


ecaima cego.

27. Conjugação de nomes. E' uma particularidade


d'esta lingua o poder-se exprimir os nomes no pre
sente e no passado, e nisto ella é igual a todas as lin
guas indigenas americanas, e diversa de muitas lin

guas européas cabeça akanga ; cabeça que foi mas


d'aqual resta alguma cousa que já não é cabeça , ca
veira, akanguêra .

A pelle do animal em quanto está no corpo d'elle


¦
e tem vida , pi, depois de tirada do corpo pirera ; a
carne do animal emquanto está no corpo com vida
soó, fóra do corpo : çoó quèra .

Conclusão . Para não complicar estas regras, que

são as principaes , deixamos para o fim da parte pra


PARTE SYNTHETICA 13

tica , as relativas a formação de nomes e alterações que


elles soffrem segundo são absolutos ou relativos ,
porque, depois de ter passado os exercicios , a regra fi
cará clarissima , ao passo que , exposta agora, pareceria
difficil .

Devemos observar que as vezes escreveremos alguns


nomes de diversas maneiras ; assim : etá e itá, que
um e outro são a mesma cousa e signal de plural ― - e

o fazemos de proposito porque se os ouve geralmente


de ambos os modos. O a nasal escreveremos algumas

vezes an, outras a como akonga e akaga , - cabeça


para familiarisar o leitor com pronuncias que são ora

mais ora menos carregadas segundo as localidades


em que se usa da lingua.

M, P, B frequentemente se substituem n'esta lin


gua. Aconselhamos a quem a quizer estudar, que leia

sempre alto, e habitue-se a julgar do sentido das pala


vras PELO SOM QUE OUVE E NÃO PELA LETRA QUE VE .
Curso de lingua Tupí viva ou Nhehengatú

Parte pratica

LIÇÃO PRIMEIRA

Esta lingua não tem artigo definido . (*)

Ter Rekỏ
Tem você ? Rereko será ?
Sim , senhor , eu tenho. Cupi tenhén xa reko.
A espingarda . Mukáua.
Tem você a espingarda ? Rereko será mukáua .
Sim , senhor , eu a tenho . Cupí, tenhén, xa reko
mukáua .
O pão. Miapé.
O sal. Iukira .
A farinha. Uhí.
O mel. ira.
Batata. Iutica .

Os prefixos pronominaes, que antecedem os ver


bos , fazem n'esta lingua o efeito das nossas termi

Recommendamos muito ás pessoas que lerem


este curso, de o não fazer sem primeiro estudar o modo
de ler e pronunciar as palavras, do que tratamos na
parte syntethica , 21. ° de n . 2 a n. 10 , e recordamos
que o r é sempre brando ; que ã , è̟ , ì , ô , ù , leem - se
como an en in on un ; que os nunca tem som de nem
PARTE PRATICA 15

nações, e é por elles que se determinam as pessoas dos


verbos, assim eu tenho , tú, elle : arekó, rerekó, orekó .

a-é o prefixo que indica a 1.ª pessoa ; -re -o que


indica a 2. e - o- o que indica a 3. Vide a regra
13 do 22. • da 1.ª parte .

Minha espingarda. Ce mukáua .


Meu pão . Ce miapé.
Tem você a minha es Iné rerekó será ce mu
pingarda ? káua. ?
Sim , senhor, tenho vossa Cupí tenhén, xa reko ne
espingarda . mukáua .
Tem o seu pão ? Ine rerekó será ne miapé
(meapé) ?
Tenho o meu pão. Xa rekó ce miapé.

Em todas as phrases interrogativas vem uma des


tas particulas : será, tú, tahá, ou pá , cujo emprego o
uso ensinará . E' a unica distincção que ha entre as
phrases interrogativas e as affirmativas a presença de
uma dessas particulas , como já ficou visto nas orações
precedentes , e sel-o-ha constantemente nas outras .

Essas particulas muitas vezes substituem o verbo da


oração , como veremos praticamente .
mesmo
entre duas vogaes ; que um ponto em baixo das

uo
Y sgaameossa, o quer dizer que taes voga
e,-ç sã fe ada ;
do - com sedilha antes dees a oo u, ceht ems o

Som de -s- pela razão que daremos no capitulo final


em que tratamo da pronunc -prosodi e ortogra
s ia a
phia . Raras vezes usamos do -s- porque a lingua
em geral repelle o sibillo que lhe é proprio .
16 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEENGATU’

Que ? Mahá tahá?


Que espingarda tem vo Maha mukáua tahá
cê ? rercko ?
Eu tenho a minha es Xá rẻhỏ ce muháua .
pingarda .
Que pão tem você? Maha miapè tahá
rerekỏ ?
Tenho o seu pão. Xa reko ne miapé.

Os pronomes pessoaes : eu xe ou ixe , tu ne ou ine,


elle ahe, nós iane, vós penhe , elles aitá (aetá) nem sem

pre são expressos , excepto na 1ª pessoa , em que elle é


quasi sempre expresso , se bem que contraia em si
o prefixo pronominal dessa 1ª pessoa . Assim : Xá rekò
é uma contracção de Xẹ a rekỏ.
A's vezes , para darem mais expressão e energia á
phase , empregam o pronome duas vezes , uma sem ,
e outra com a contracção ; assim: Ixé xa rekó; Iné rerekó,
eu tenho , tu tens ,

THEMA

-
Tem você o pão? -Sim, senhor , eu tenho o pão.
Tem você o seu pão? -Tenho o meu pão . Tem você
o sal? - Eu tenho o sal. ―― Tem você o meu sal?―――――

Tenho o seu sal. - Tem você a batata? - Tenho a

balata. - Tem você a sua batata? - Que batala tem


Você? ―――――― Tenho a sua batata . Tem você o seu mel?

-Tenho o men mel. - Que mel tem você? - Tenho


o su mel . Que farinha tem você? -Tenho a minha
PARTE PRATICA 17

farinha. Tem você a minha farinha? -Tenho a sua


--
farinha . Que pão tem você? - Tenho o meu pão .
-Que sal tem você? -Tenho o meu sal.

NHEHENGATU' OU TUPI'

Rereko será miapé ?—Cupí tenhẽ , xa rekó miapé. (*)


-Rerekó será ne miapé? ――― Xa rekó ce miapé. W Ne
-
rerekó será iukira? -Xa reko iukira . — Rerekó será
--
ce iúkira? -Xa rekó ne iukira . Rerekó será iutica ?
-Xa rekó iutica . -Rerekó será ne iutica? - Mahá
iútica taha rerekó? -Xa rekó ne iútica . - Rerekó
será ne íra?-Xa rekó ce íra . -Mahá íra tahá rerekỏ ?
-
·Xa rekó ne íra . —Mahá uhí tahà rerekó ? —Xa rekó
ce uhi .-Rerekó será ce bhí?-Xa rekó ne uhí. - Maha
miapé tahá rerekó? --- Xa rekó ce miapé. ―――――――― Maha
iukira tahá rerekó? -Xa rekó ce iukira , (jukíra). (*)

(") Por falta de lettras do alphabeto phonetico dei


xaremos de empregar os signaes que indicam que a
lettra è fechada em uma palavra desde que a tal pa
lavra tenha sido anteriormente escripta muitas vezes
com os taes signaes .
( ) Sempre que pusermos um nome tupi entre pa
renthesis, entenda-se ser uma variante de alguns dial
lecto geral a qual é necessario conhecer para queo vo
cabulo não fique ignorado pela pessoa que o ouvir.
18 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO SEGUNDA

Tem vocé a minha es Ne rerekó será ce mu


pingarda ? káua ?
Sim , senhor, eu a tenho. Çupí tenhen , xa rekỏ ahé.

Em nhehengatú não se usa d'esta expressão : sim


senhor ; dizem simplesmente-ee- sim. Esta è è passou
para o uso familiar dos brazileiros, os quaes, quando
conversam , usam d'elle em lugar de sim.
O que se usa n'esta lingua , que é muito laconica,
quando se responde afirmativamente a qualquer per
gunta é―na verdade, por - sim senhor . Assim cupi
tenhen xa rekó ahé , quer dizer , palavra por palavra :
Verdade, sim, eu tenho ella .

Bom . Catú .
Máu . Puxí.
Bonito . Puranga (poranga) .
Feio. Puxí.
Velho, estragado. Ajua.
Velho, (homem . ) Tuiúé.
A rede (de dormir) . Kiçáua.
A rede de pescar. Picá.
O páo, a madeira . Mirá.
A linha , o fio . Inimă (inimbó).
O cão. Jauára (jaguára).
Tem você o cão bonito? Rerekó será iauára pu
ranga ?
Animal domestico . Cerimáu (xerimbábo) .
PARTE PRATICA 19

Não. Intimahã , ou somente


intí quando vem a nega
ção junta ao verbo.
Não tenho. Intí mahã xa rekó .
Eu tenho o pão. Xa rekó miapé .
Tem você a minha es Rerekó será ce mukáua
pingarda velha ? alua ?
Não senhor, eu não a
tenho. Intimahã xa rekó ahé.

Que
| Mahā tahá ?

Maha quando nos referimos a cousas inanimadas,


ou a animaes irracionaes ; quando porém, o-que- se
refere a homem , será traduzido por auá.

Que linha tem você ? Maha inimi tahá re


rekó?
Eu tenho a boa linha . Xa rekó inimă catú .
Que cão tem você ? Mahã iauára tahá re
rekó ?
Tenho o meu bello cão. Xa rekó ce iauára pu
ránga .

De .
| Cuí, cuí uára, Xiíuára .

Quando o-de-segnifica a materia de que alguma


cousa é feita , traduz - se por dous modos : ou antepõe- se
o objecto que é feito da tal materia, como kicé faca,
I 20 CURSO DELINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU ’

pedra itá, faca de pedra itá kicé ; ou então se diz : kicé


ita cuiuúra .

Algodão. Amaniú (amanijú) .


Linha de algodão . Inimu amaniú xiíuára ,
ou amaniù inimă.
Espingarda de ferro . Mukáua itá xiíuára .
Espingarda de páo. Mukáua m rá xíuàra .
Que espingarda tem Mahá mukáua tahá re
você? reko ?
Tenho a espingarda de Xa rekó mukáua mirá
páo. xiíuára .
Que fio tem você? Maha inimi tahá re
reko?
Eu tenho o meu fio de Xa rekó ce inimй ama
algodão. niú xiíuára.
Tem você o meu sapato Ne rerekó será ce sapa
de couro? tú pirera xiíuára?
Não, senhor , não 0 Intimahã xa rekó ahé.
tenho.

THEMA

Tem você o meu bello animal? - Sim, senhor , te

nho-o . Tem você a minha rêde velha de pescar?


Não , senhor , não a tenho . —Que cão tem você?
Tenho o seu bonito cão . - Tem você a minha farinha
ruim? - Tem você a boa rêde de dormir? -Tem você

a minha espingarda feia? - Que espingarda tem você?



-Tenho a sua bella espingarda . Que rêde tem
você? -Tenho a sua rêde de algodão . -Tem voce a
PARTE PRATICA 21

minha rede de algodão? -Não tenho a sua rêde de


-
algodão . Que espingarda tem você ? - Tenho a es
-
pingarda de páo. Tem você a minha espingarda de
páo? -Tem você o bom pão? -Não tenho o bom pão.
-Que rêde de pescar tem você? - Tenho a minha
bella rede de couro . ― Que batatas tem você? -Tenho
boas batatas. -- Que mel tem você? - Tenho mel de
páo.

NHEHENGATU' OU TUPI'

Ne rerekó será ce xerimbau puránga? ――――― Xa rekó


ahé. ― Rerekó será ce picá ajua? -Intimahã xa rekó
ahé. — Mahã iauára tahá rerekô? -Xa rekó ne iauára
-
puránga . — Ne rerekó será uhí aiua? -Ne rerekó será
kicáua catú ? - Ne rerekó será ce mukáua puxí? —
Maha mukáua tahá rerekô? -Xa rekó ne mukáua
-- Mahā kiçáua tahá rerekô? - Xa rekó ne
puránga . —
amaniú kicáua . - Ne rerekó será ce amaniú kiçáua?
-Intimahã xa rekó nẹ amaniú kiçáua . — Mahā mu
káua tahá rerekó? -Xa rekó měrá mukáua . —Rerekó

será ce mirá mukáua? - Rerekó será miapé catú? -


Mahã picá tahá rerekó ?-Xa rekó cẹ picá purănga
pirẻra xiíuára . ― Maha iutica tahá rerekó? -Xa rekó
iutica catú. ― Mahã íra tahá rerekó? -Xa rekó m rá
íra.
1
22 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO TERCEIRA

Tem você alguma cou Rerekó será maha?


sa?
Tenho alguma cousa. Xa rekỏ maha .
Não, nada . Intimahã , mahā .
Ixé intimahã mahã xa
Não tenho nada. rekó.
O vinho . Kaйi piranga (pirain) .
Meu dinheiro . Ce cuiára .

Ouro.
Oro (itajúbá) . Os indi
genas, não conhecendo nen
hum metal, não tinham
termos especiaes para disig
nal-os. Os jesuitas tradu
ziram por itajubá, em tupí
da costa, e a palavra quer
dizer : pedra amarella .
Cordão, corda. -
Tupáçãma, ou xáma .
Corda do arco .
Uirapára xăma .

Saquinho que trazem


dependurado ao pescoço ,
onde guardam o fuzil e
pertences de tirar fogo. Matirí.
Caldo. Iúkici.
Beijú (é vacabulo indi
gena que passou para o
portuguez,) Bejú ou meiú.
Tanga de penna com
que se enfeitam . Kuá xáma , (corda da
cintura).
PARTE PRATICA 23

Ou. Ou. (Ignoro qual era a


forma primitiva; a usada
é hoje esta.)
Tem você o meu anzol Rereko será ce piná , ou
ou o do meu parente? ce anăma piná?
Tenho o do meu pa Xa reko ce andma piná .
rente .
Tem você o meu pão ou Rereko será ce miapé ,
o do padeiro? ou miapé-munhangára
miapé ?
Tenho o de você. Xa reko ne miapé .
Não tenho o do padeiro. Intímahá xa reko miapé
munhangára miapé.

Meu, minha cousa. Ce, ce mahá.


Teu, tua cousa . Ne, ne mahá .
Sua, cousa delle . I , i maha .
Tem voce as minhas Rereko será ce mahá .
cousas?
Não; eu tenho as cousas Intimahá ; xa reko i
delle . mahá .

Tem você calor? Çacú será ine?


Tenho calor. Ixe çacú .
Não tenho calor. Ixe intímaha çacú.
Tem você frio? Ne rui será?
Não tenho frio. Ixe intimahá ce rui.
Tem você medo? Re cekiié será?
Não tenho medo. Ixe intimahá xa cẹ kiié.
Tenho medo. Ixé xa cekiié.

THEMA

Tem você a minha espingarda ou a sua ? -- Não


tenho nem a minha nem a sua . ――― Tem você a minha
24 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

―――
co da de algodão ou a de meu irmão ? Não tenho
nem a sua nem a de seu irmão ? - Que corda tem

você ? Tenho a corda do anzol . - Tem você guaraná


-
ou vinho ? - Não tenho nem guaraná nem vinho.
O menino tem a espingarda ; o menino não tem ; o
rapaz a tem. -Que tem você ? - Eu tenho somente
calor.

NHEHENGATU’

1
Rereko será ce mukáua, o ne maha ? ―― Inti xa
reko ce mukáua ; iuire intí xareko ne mukáua. - Re
reko será ce mu tupaxáma , o amaniù-xáma ? - Intí
---
xa reko ne mahá ; intí xa reko ne mi tupaxáma .
Maha tupaxăma tahá rereko? -Xa reko pináxáma.
Rereko será uaraná ou ka piranga ? -Intí xa reko

uaraná, intí xa reko kau piranga - Taína oreko


mukáua ; taína intí oreko mukáua ; kurumi uaçú oreko
ahé . — Mãháta rerekỏ ? - Anhй tenhe ixẻ ce racú .

}
PARTE PRATICA 25

LIÇÃO QUARTA

Este . Quahá.
Este anzol. Quahá piná ( pindá) .
O cão. Iauára.
O alfaiate . Ropa munhangára (o
fazedor de roupa).
O padeiro. Miapé munhangára (o
fazedor de pão .)
O visinho. Ruake-uára.
O amigo, o parente . Anāma .
Compatriota . Retǎma-uára (o que come
na minha terra) .

Ogenitivo de possessão se expressa , como em inglez ,


antepondo o possuidor ao nome da cousa possuida ;
pela mesma fórma se expressa , como já vimos , a
materia de que alguma cousa é feita .

Couro de cão . Iauára pirera.


Tesoura do alfaiate. Xirora-munhangára pi
ranha.
O pão do padeiro . Miapé-munhangára mi
apé.
A casa do meu parente . Ce anama roka.

Como os Tupís não tem artigo definito tambem não


tem estas expressões : o do, os dos, a da, as das. E' ne
cessario dizer o nome a que se refere o artigo, e então
elle fica em genitivo pelo methodo ensinado na regra
26 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU

precedente . Assim, nestas orações : Que pão você tem?


em vez de responder: eu tenho o do padeiro , dir- se-ha :

eu tenho o pão do padeiro .

O homem . Apgáua . (Esta palavra


significa o macho de todos
os animaes. A raiz que
significa homem é auá, da
qual só se usa em composi
cão com outra raiz.)
O amigo. Anăma .
A bengala, o porrete. Miráçanga .
Ornato da cabeca. Akaitar (akanga-atára) .
O carvão . Tatá puínha (migalhas,
restos do fogo).
Meu irmão. Ce mu.
O de meu irmão . Ce ma maha . (Litt. de
meu irmão, a cousa.)
A cousa de seu irmão I mi malá.
(delle) .

THEMA

Tem você este anzol?-Não , senhor , não o tenho .


Que anzol tem você? - Tenho o do meu parente .
Tem você o meu porrete ou o do meu amigo? -Tenho
--
o do seu amigo . Tem você o meu pão ou o do pa
-
deiro? - Não tenho o de você; tenho o do padeiro .

(*) A palaxra anamu significa parente e tambem


a migo.
PARTE PRATICA 27

? Tem você o cachorro do vizinho? ―― Não , senhor, não

3: o tenho. - Que cão tem você? - Tenho o do padeiro.


-
Tem você o seu akangatara , ou o do seu parente?
-
Tenho o meu . - Tem você a corda do meu cão? -

Não a tenho. Que corda tem você? -Tenho a minha


Ta
dos corda de algodão . -Tem você o matiri do meu irmão ,
que ou o seu? - Tenho o de seu irmão . — Que cafe tem
da Você? Tenho o do vizinho . -Tem você o seu cão ou
Posi o do homem? - Tenho o do homem. Tem você o

dinheiro do seu amigo? - Não o tenho . — Tem você


frio? - Tenho frio. -Tem você medo? ―――― Não tenho
tára . medo . - Tem você calor? -Não tenho calor . Tem
alhas,
somno? -Não tenho somno ; tenho fome . ― Tem sede?
-Não tenho sede.
Litt . de
Tem você o meu matiri ou o do alfaiate? - Tenho o
do alfaiate. ― Tem você o meu arco ou o do vizinho?
-Tenho o seu. Tem você o seu anzol ou o meu? -
Tenho o meu. ――― Tem você as suas batatas ou as mi

nhas? - Tenho as de seu irmão . Que pão tem você?


-Tenho o do alfaiate . - Que doce tem você? -Eu
nin tenho mel de páo . ―――――- Tem você a madeira velha do
ente. meu arco? Não ; eu tenho a do seu parente . - Tem
-Tenho Você a minha espingarda de pão , ou a de meu irmão?
do pa - Tenho sua . - Que farinha tem você? Tenho
eiro . - farinha de mandioca . Que tem você? -Não tenho
nada.
-Tem você alguma cousa do homem? -Tenho
as de seus
em (teus) parentes . - Tein voce alguma cousa
tamb
má? Não tenho nada máo . ---- Que tem você bonito?
28 CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’

- - Não tenho nada bonito. ――――


Tem você frio? - En
tenho frio. - - Tem você calor? - Não tenho calor. ---
Tem sede? Condi Não tenho sede , tenho fome . Tem
fome ou tem somno? - Eu tenho sede, eu tenho fome,
eu tenho somno . - Que tem você bonito? - Tenho o
lindo cão de meu irmão.

NHEENGATU'

Rereko será quahá piná? -Intimahá xa reko ah.e


- Maha piná tahá rereko ?
Xa reko ce andma mahá . Rereko serà ce mirá can
ga, ou ce andma mahắ ?

Xa reko ne kamarára maha . Rereko será miapé,


ou miapé-munhangára maha? - Intí xá reko ne maha ;
xa reko miapé- munhangára maha.-Rereko será ce
ruakí-uára akangatára? —Intimahá xa reko ahé . - Mahắ
iauára tahá rereko ? Xa reko miapé munhãngára maha
l
-Rereko será ne akangatára , ou cẹ anâma mahá?
Xa reko ce maha. -Rereko será ce iauára-xama ? —
Intimahá xa rekỏ ahé. -Mahá tupíxama tahá rereko?
A
Xa reko ce amaniú-xáma . Rereko será cẹ mu matirí ,
ou ne maha? - Xa reko ne mi mahá . - Mahá café
tahá rereko ? -Xa reko ce ruaki-uára maha. - Rereko
será ne iáuára, ou apgáua maha? -Xa reko apgaua
mahá . - Rerekỏ será ne kamarára cecuíára?-Intimahả
xa rekỏ ahé. -Ne ro será? Ixe ce rol. ――― Ne cekțié

será? ix intimahá ce klié.- Ne çacù será? - Ixe


PARTE PRATICA 29

a
intimaha çacú. --- Ne repoc será? -Ix intimahá ce
repost ; ixé ce iúmac . - Ine cei será? -Ixe intimaha
m ce i cei.
;
Rereko será ce matir , ou xirora-munhangára maha?
0
-Rerekỏ será c uirapára , ou cẹ ruak - uára mahá? —
Xa reko ne maha . -Ne rereko será ne piná , ou ce
maha. -Xa rekỏ ce maha .- Rereko será ne iutica, ou
ce maha? --- Xa reko ne mi mahá. - Mahá miapé
tahá rereko?
-Xa reko xirora-múnhangára maha. -
ah. Mahá cee' tahá rerek ? -Xa reko m'ra- íra . - Rerek
- Intimahá ; xa reko ne
será ce uirápara mi̟rá a'ua ? -

can anama mahů . - Rereko será ce mirá-mukauá , ou ce


mu maha? - Xa reko ne mahȧ . - Máhá uhí tahá re

apé, reko? -Xa reko maniaca uhí. - Maháta rerekỏ ?~


aha ; Intimahá xa reko mahá . -Rereko será apgáua amú
maha ?
Ta c -Xa reko ne andma-ita mahá . - Rerekó será
Mahá amú mahá puxí? -――――――― Intimahá
xa reko maha puxí.
nahá - Ne roí será? ― Ixe ce
Mahά purain tahá rereko?
-- Ixe intimahá çacú.- Ne
a? roí. -Çacú será inẹ?
cei s e rá?
a? - Intimahá cei cei ; ce iúmas!. - Ne
Nẹ iú
reko? mac será ou repoc! será? - Ixe ce cei, ce iúmact,
atiri, ce repoc . Mahá purain tahá rerek ? -Xa reko
¡café ce mi iauára puráin .

ereko
gána
naha

ekié

-Ixe
30 CURSO DE LINGUA TUPI VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO QUINTA

O comprador. Prepǎna-çára .
Sapateiro . Sapatú munhãngára.
Menino , (moço) . Curumi.
Menino ( pequeno) . Taína .
Guaraná. Uaraná .

Tem você o cacete do Rereko será prepana


comprador ? 이 çára máráçánga ?

Não, nem.
Iúire. (este iúire signi
fica e empregam-no
nos casos em que nós em
pregamos o nem, e então,
a phrase traduzida ao pé
da lettra , fica assim :
não tenho isto e não tenho
aquillo - o que equivale
dizer : ---- não tenho isto

e nem aquillo).
Não tenho nem o cacete Intimahá xa reko pire
do comprador nem o meu . pãnaçára mirá çanga, iù
ire intimaha xa reko ce
mahá.
Tem você fome ou sede ?
Re iumac será o ne !
cei será ?
Tem você calor ou frio ? Ne cacú será , o ne roí
será?
Não tenho calor nem
Ixe intimahá çacú , iú
frio .
ire ixê intimahá ce roí.
PARTE PRATICA 31

Tem você vinho ou pão ? Rereko será kāur pi


ranga o miapé ?
Não tenho vinho . Intí xa reko kaui .
Não tenho a minha li Intimahá xa reko ce pi
nha de anzol . náxăma .
Cesto. Panacú .
Caixa. Patuá.
Mesa . Mirá péua. (*)
Mel. İra.
Algodão. Amaniú .
Caixinha . Patuá-miri .
Carpinteiro. Mirá iúponaçára .
Ferro de cóva. Tacira.
Prego. Itapúă .
Prego de ferro. Itapúa itáxiíuara .

Que tem você ? Mãháta rereko ?


Não, nada . Intimahá.
Não tenho nada. Intimahá maha ,

THEMA

Não tenho fome e não tenho sede . Não tenho frio e


não tenho calor . Tem você frio ? Não ; tenho sede .
Tem você sede ? Não ; tenho fome . Tem você o meu
cesto ? Não tenho o seu cesto ; tenho a sua caixa .-
Que caixa tem , é a caixinha ?

(*) Mirá madeira, péua chata.


32 CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU

NHEENGATU

Ixe intimahá ce iúmaci ne cei cei . Ixe intimahá cẹ


roí ně sacú. - Ne roí será ?- Intimahá ; ce cei . Ne
¿ cei será ? Intimahá ; ce iumac . Rereko ce panacú .
--
— Intimahά ; xa reko ne patuá . -Mahā patuá tahá
rereko, patuá-mirin ?

Tem você fome? Ne iumaci será?


Eu tenho fome. Ixe ce iúmaci.
Eu não tenho fome . Intí maha ce iúmaci .
Tem você sede? Nei cei será?
Não tenho sede . Intí mahã ce cei.
Tem você somno ? Ne repoci será?
Tenho somno . Ixe ce repoc { .
Não tenho somno ! Inti ce repoc .

Alguma cousa boa. Maha catú .


Tem você alguma cousa Rereko será mahã catú?
boa?

Não , nada máo. ' ntimahă, mahã puxí .


Não tenho nada bom. ntimahã xa reko maha
catú .
Tem você alguma cousa Rereko será mahã pu
bonita? ránga? (purain) .
Não tenho nada bonito. Intimahã xa rekỏ mahā
puránga .
PARTE PRATICA 33

O que? Mãhá tahá ?


Que tem você? Mãhá tahá rerekỏ ?
Qu 1 tem você de bom? Maháta rerekỏ catú ?
Tenho bom caldo (de reko
Xa rhỏ gui
quú (soo ) in
carne). kici catú .

THEMA

Tem você o meu bom vinho? -Tenho-o . -Tem


Você o ouro? - Não o tenho . - Tem você o dinheiro?
-Tem você a corda do arco? - Não , senhor, não a
tenho.Tem você o seu facho de pescar? ▬▬▬▬▬▬ Sim, te

nho-o . Que tem você? ――― Tenho o bom beijú. - Te
nho a minha tauga . Tem você o meu matiri? — Que
matiri tem você? —Tenho o se matiri . ◄ Que corda

tem você? -Tenho a corda do arco . ----4 Tem você al

guma cousa? Tenho alguma cousa.- Que tem você?


-Tenho o bom pão . -Tenho o bom mel .-- Tem você
alguma cousa boa? -Não tenho nada bom . — Tem

Você alguma cousa bella? -Não tenho nada bello . —


Tenho alguma cousa feia . —Que tem você feio? — Te
nho o cão feio . Tem você alguma cousa bonita? -

Nada tenho bonito . - Tenho alguma cousa velha . -


"
Que tem você velho (estragado)? ― - Tenho o beijú ve
- Tem
Tho. você sede? -Não tenho sede . -- Tem você
fome?
-Não tenho fome ; tenho fome . -Tem você
Somno? - Não , senhor , não tenho somnc. ――― - Que tem
Você bello?-Tenho o seu bello cão . - Que tem você

máo? -Não tenho nada máo. - Que farinha tem você?


-Tenho boa farinha de sua casa . - Tem você o meu
34 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU

bello papagaio? - Sim , senhor, tenho o seu bello

papagaio .

NEHENGATU ' OU TUPI

Rereko será ce kaur piranga (purãin) catú? — Xa


reko ahé. -Intimahã xa rek ahé . Rereko será ce
kuiára? - Rerek será uira-pára xáma? - Intimahã
xa reko ahé. - Rereko será ne turí? - Xa reko ahé.—
Malã tahá rerekỏ? Xa rek bejú catú . -Xa reko

cę kuá-xáma ( póra) . -- Rerek será ce matiri?


Maha matirí tahá rerek ? - Xa reko ne matiri . - Mahā
----
tupá-çama tahá rereko ? — Xa rekỏ uíra-pára-xáma .
-
Rerckó será maha? -Xa rek mahã . - Mahā tahá
rereko? -Xa rek miapé catú . -Xa reko ira catú.
-
- Rereko será mahã catú? —Intimahã xa rekỏ mahā
catú . - Rereko será maha purain? - Intimahã xa
---- -
reko maha purain . — Xa reko será mahā puxi?
Maha tahá rerek puxí? W Xa reko iáuára puxí. —
Rereko será maha purain? ――― Intimahã xa reko maha
purăin . - Xa - Mãháta rerek
reko maha
aua .
ajua? -Xa reko meiú ajua . -- Ne cei serà? -- Inti
mahã cę ! cei. Re iumac será? - Intimahã ce iú
--
mec ; ixé ce iúmac . - Ne repoci será? Intimahã ce
--
repoc Mãháta rereko será purănga? -Xa reko ne
iauára purain . - Maháta rereko pux ? - Intimaba
xa reko pux . - Mãháta uhí tahá rereko? - Xa reko
-
uhi catú ne roka çuí. Rereko será ce parauá pu
rain?-Cupi tenhen , xa reko ne parauá purain .
PARTE PRATICA 35

LIÇÃO SEXTA

O boi . Tapiíra.
O biscoito. Meiú (bejú), (Não é pro
priamente biscouto , mas é
o que entre os selvagens
substitue a isso.
Cosinheiro.
Timiú munhangára . (*)
A vacca.
Tapiíra cunha. (*)

Tenho eu.
Xa reko será?
Você tem.
Inde, (ou ne) rereko.
Tenho eu fome?
Ce iumaci será?
Você tem fome? Inde reiumaci.
Você não tem fome? Inde intí reiúmaci
Tenho eu mêdo?
Ixe xacek ié será?
Você não tem mêdo? Inti receké .
Tenho cu vergonha? Xá ti xaiko será?
(estou com).
Você não tem vergonha . Intimaha reti .
Você tem vergonha? Re ti será?
Eu tentenho
ho vergonha. Ix xati xa iko.
(estou com).

Tenho eu um prego? (di Ixe xa reko será itá


zem: tenho prego , e não: púa?
tenho um prego).
Você tem um prego.
Rereko itá- púa.
Você não tem um prego. Inti rereko itá-pú .

(*) Timiú comida , munhanjára, o que faz .

( Tapiira boi, cunha fem a .


36 CURSO DE LINGUA TUP VIVA ou nhehengaTU'

Tenho eu alguma cousa Ixe xa reko será mahá


boa? catú?
Você não tem nada boin . Inti rereko mahắ catú.
Que tenho eu? Mãháta xa reko?
Você o tem . Rereko .
Eu o tenho . Ixé xa reko.
Não tenho . (Commum Intimahá.
mente elles não dizem :
não tenho e laconica
mente : não .
Manteiga. Ikáua.
Faca. Kicé.
Feio. Puxiuera.
Tenho cu a sia man Ixe xa reko ce ikáua , o
teiga ou a minha? né ikáua?
Eu tenho a sua man Xa reko ne ikána (ou
teiga. né káua).

Quem? Auá?
Quem tem? Auá tahá oreko?
Quem tem o meu arco Auá tahá oreko ce uirá
de frechar? pára?
O homein o tem . Apganá oreko aló.

O rapaz o tem. Kurumi uaçú oreko ahé.


A gallinha.. Sapucaia.
O barco, o navio. Maracate .
O joven. Kurum2.
A moça . Kanha-mucú .
Elle tem . Ahé oreko .
Elle não tem. Ahé intí oreko,
Tem elle? Ahé oreko será?
Elle não tem? Ahé intí orekỏ será?
Chomem tem? Apgaua oreko será?
PARTE PRATICA 37

Tem elle a faca? Ahé orekỏ será kicé?


O homem tem fome? Apgaua iumac será?
Elle está com forne . Apgaua iumac oiko .
Elle não tem fome, nem Ahé intimahá o iumac ,
sède . ahé intimahâcei .
O homem tem melo ou Apgáua ocehfié será, o
vergonha? loti sera?

O milho. Auatí.
O arroz . Auatií .
Feijão . Cumandá (cumaná).
Fava .
Cumandá uaçú .
Mandioca.
Maniáca.

O possessivo seu , referindo-se a terceira pessoa ,


traduz-se antepondo um ao nome possuido ; assim ,
seu cão (d'elle) , i imára. Algumas vezes antecede- se
o nome de um ", assim: casa, óc ; casa d'elle , çóc .

Vassou
ra.
Passar Tapixáua.
o. Tiná
Pé.
P.
Olho.
Ceçá .
Teu olho .
Ne cecá.

O escravo, o vas
criad . salo , o Miaçúa.
o
Tem o criado a caixa
d'elle ou a minha. Miaçúa orek será i pa
tui o ce maha
Elle tem a sua.
Ahé oreko i mahi.
38 CURSO DE LINGUA tupí VIVA OU NHEHENGATU

Alguem . Amú auá .


Tem alguem a minha Amú auá orekỏ será ce
espingarda ? mukàua?
Alguem a tem . Amù auá oreko ahé.
Alguem tem o meu mi Amù auá oreko serà ce
lho ? auatí?
Alguem o tem. Amù oreko ahé.

Ninguem. Inti auá .


Quem tem o meu cacete? Auá tahá oreko ce mi
ráçanga ?
Ninguem o tem. Intí auá oreko ahé.

THEMA PORTUGUEZ E TUPI '

Quem tem a minha caixa? - Auá tahá oreko ce


patuá? ― O rapaz a tem.curum uaçù orekỏ ané.
-Tem você sede ou fome? Ine re cei será , o re
iumaci será? www Não tenho sede e nem fome . - Inti

maha ce cei , intimahã ce iumac . -- Tem o homem a


gallinha? Apgaua oreko será capucaia? - Não ;
elle tem o seu milho (d'elle) . - Intimahā ; ahé oreko
auatí. -―――― Quem tem a minha faca? - Auá tahá
oreko ce kicé? ――― Ninguem tem a tua faca . — Intí auá
-
oreko ne kicé. De noite a agua mete medo? - Pi
túna ramé iauáité i será? - De noute a agua mete
medo ―――― Pitúna ramé iauáité . Você tem medo

(*) Juntamos aqui a traducção depois de cada oração


para facilitar a confrontação aos que principiam . De
vem , porém , copiar o portuguez somente , fazer por si
a tradução e depois confrontal- a com a que aqui damos .
PARTE PRATICA 39

d'elle? -
Recek ié será i quí? -Eu não tenho medo
d'elle. --- Intimã xa cek ié i çuí. - Você tem favas?

-Rereko será cumaná uaçú? -Elle tem milho e


mandioca . —Ahé oreko auati e maniáca . - Que

vassoura tem você? - Maha tapixáua tahá rereko?


Eu tenho a vassoura de piassava . - Xa reko tapixáua

piaáçua çuí-uára . - Quem tem a minha flecha ? -- —


Auá tahá orekỏ ce ružua . - Quem tem a flecha d'elle?
-Auá tahá oreko çu'ua? -
Ninguem tem a d'elle ;
eu só tenho a tua.
Inti auá oreko cujua : ixẻ nhữ
xa rekó ne ruua.

Elle tem olhos bonitos? 1443 Ahé oreko será ceçá pu

ranga? -Elle tem olhos feios . --Ahé oreko ceçá puxí .


Quem tem frio? - Auáta ru oiko? -Ninguem tem 1U
frio. -- Inti auá ruž oiko. - Alguem ten calor ? -

Amú auá cacú será? -Ninguem tem calor . —- Inti


auá oçacú oiko . Quem tem o meu? -Auá tahá
oreko ce maha? -Ninguem tem o teu; só tem o d'elle .

-Inti auá orẹkỏ ng maha ; oreko anhữ i mahá . —


0 -
O que elle tem? - Mãháta oreko ? - Tem o d'elle
Oreko i maha. ―― Tem alguem a minha espingarda ?==
Amú auá orekỏ será ce mukaua ? -- Ninguem a tem .
- Tem elle? - Ahé oreko sera?
-Intí auá orekỏ ahé . —
-Elle não tem nada . - Ahé intimaha mahá oreko.

-Tem elle o prego? -Ahé oreko será itapúa?


Não tem nem o seu , nem o d'elle . —Ahé intí oreko ne
mahá, nem i mahá . ·
---
O rapaz tem o arco do teu
irmão , ou o teu? — Curumiuaçú orko será neinuira
para , o ne nahá? -- Ele tem o te e o d'elle . - Ahe

1
40 CURSO DE LINGUA TUPI VIVA OU NHEHENGATU ·

oreko ne mahá , e i mahá.-―― Quem tem medo? -

Auáta ocekíié? -- Alguem tem medo. - Amú auá


--
oceklić .Elle tem somno? Ahé opoci será? Vocè
―――
tem o meu anzol? Ne rereko será ce piná? - Eu
não tenho o teu , tenho o d'elle . —Intí mahá xa reko "
――――-
ne mahã ; xa reko i mahá . Elle tem alguma cousa?
―― Inti
-O reko será maha? -Elle não tem nada .
maha oreko mahá . Quem tem o meu arco de páo?
--
-Auá tahá oreko ce uíra pára m'rá quí- nára?
-- nẹ
Alguem tem o seu arco de páo . Amú auá orekẻ ng
nira pára mira çuí-uára .

PC
ਲੈ
ਲੈਲੈ
J

ado
PARTE PRATICA 41

LIÇÃO SETIMA

O marinheiro .
Çurára paraná- póra (sol
dado que mora no mar). (*)
Sua arvore. 1 I iua.
Seu (d'elle) espelho . I uáruá.
Aljava . Ulua -rerú .
Seu pente. I kiuáua .
Sua esteira .
I tupé.
A pistola . Mukáua-miri (espingar
dinha).
O estrangeiro. Amú-tetǎma-uára.
Este . Aquelle. Quahá . Nhaha .

Seu-traduz-se por -i- anteposto ao nome , quando


este não começa por t our-Quando começa port our
perde este e toma em seu lugar um-ç- ; assim : —
reçá -olho ; olho d'elle-ceçá róca - casa ; çóca
casa d'elle .

Este boi.
Quahá tapiíra .
Esta herva .
Quahá capií.
Este homem .
Quahá apgáua.
Este viado.
Quahá çuaçú .

A ; palavra
soldado é porém curára é corrupção
a que está em uso. do portuguez
42 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU'

Você tem este boi ou Rereko será quahá ta


aquelle ? piíra o nhaha .
Tenho este ; não tenho Xa rekỏ quahá ; intí
aquelle. xa rekỏ nhaha .
Tenho eu este ou aquel Xa reko será quahá , o
le? nhaha?
Você tem este ; você Inde rerekỏ quahá ; intí
não tem aquelle . rerekỏ nhaha .
O homem tem esta pis Apgáua oreko será qua
tola ou aquella? há mukáua miri o nhahā .
Elle tem esta e não tem Ahé orekỏ quahá ; intí
aquella. orekỏ nhaha .
O grão, a semente , o Rainha.
caroço .
Tem você o meu espe Rereko será ce uáruá , o
lho ou o d'elle ? ¿ uaruá ?
Eu tenho aquelle, mas Xa rekỏ nhạhã , intí xa
não tenho este. reko quahá .
Eu não tenho aquelle, Inti xa reko nhahá ;
mas tenho este . ixé xa reko quahá.
A moça tem este espe Cunha-mucú orekỏ será
lho ou aquelle ? quahá uáruá o nhahă .
Ella tem este e tem Ahé orekỏ quahá, iúíre
aquelle. nhaha .

Que (relativo) traduz-se por uáhá , a que na fronteira


do Perú, valle do Amazonas , dão o som de ahá . Este
que (relativo) vai para o fim da oração , o que é neces
sario observar, por ser uma das construcções pecu
liares ás linguas americanas e que não tem simile em
nenhuma das européas ; assim : Você tem a flecha
que meu irmão me mandou ? Com a construcção tupí
PARTE PRATICA 43

fica assim : Você tem flecha meu irmão mandou que


mim para?

Que. Uáhá ( relativo) .


Você tem a flecha que Rereko será uiua ce mu
meu irmão me mandou ?
mundú (munú) ˜uáhá ixẻ
arama?
Cheiro , perfume. Çaquéna.
Flor . Putíra .
Dar. Mehe.
Cheirar, sentir pelo na Cetúna.
riz .
Você não sente o cheiro Inti re cetúna será ça
que as flores dão? quéra , putíra omehe uahá?
Eu não sinto esse per Intí xa cetúna nhahă
fume .
çaquena.
Eu não sinto aquelle Intí xa cetúna nhahã re
que você selite. cetúpa uáhá .
Eu não tenho o que Intí xa rekỏ nhahã , re
que você tem. reko uáhá .
Você tem o que eu Rereko será mahã xa
tenho .
rekỏ uáhá ?
Eu não tenho aquillo Ixe intí xa reko nhaha ,
Você tem .
rerekỏ uáhá .
Que semente tem você? Maha çaínha tahá re
reko ? W
Eu tenho aquella que Xa rekỏ nhahã rereko
Você tem.
uáh . E

Para pór os nomes no plural. —Aos substantivos ac


crescenta-se a particula itá, que corresponde ao nosso

8. O adjectivo quando vem junto com o substantivo


44 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

é inalteravel e conhece- se que está no singular ou no


plural, segundo está em um ou outro numero o nome
que elle qualifica . Advirta-se que só se emprega o
signal de plural quando é mister, e não quando, pelo
sentido da oração, se conhece que o nome está n'esse
numero. Assim conte esses jabutís : repapári nha h
iάuti e não nhahã iáutíitá .

Os homens bons. Apgáua-itá catú.


Os pentes . Kiuáuaitá.
Os páos . Mirá-itá.
Os bons páos . Miráitá catú .
O olho , os olhos . Teçá , teçá-itá.
Athesoura, as thesouras . Piranha , piranha-itá .

THEMA PORTUGUEZ TUPI'

Tem você os pentes ?-Rerekó será kiuáua itá ?


Eu não tenho os pentes que você tem . - Intí xa reko

kiuáua itá rerekỏ uahá. - Que perfume você sente ?


Maha çaquéna tahá recetúna uahá? - Eu sinto o per

fume das flores que você não sente . -Xa cetúna pu


tíra-itá caquéna intí recetúna uahá . ---- Que arvores
_
você possue (tem) ? Maha ua- itá tahá rereko? ---
Eu tenho aquellas que tú me d'estes . Xa rekỏ nhahã
remehe unhá ixẻ arama . -- Tem você o arco de ma

deira que eu lhe dei ? - Rereko será mirá uírapára xa


mehe uahá inde arama ? - Eu não tenho aquelle que
PARTE PRATICA 45

Você me deu ; tenho os de seu irmão. ―――――― Intí xa reko

nhahã remehe uahá ixe arama ; xa rekỏ ne mu mahā


-
itá. Quem tem os bons cães de meu irmão ? —

Auáta oreko ce mu iauára itá catú ? Eu não tenho

esses (esse), tenho aquelles. ――― Intí xa rekỏ quahá , xa


rekỏ nhaha . Que tem o marinheiro ? -Maha tahá

oreko cúrára paraná púra ?-Elle tem os seus bellos na


-
vios Ahé oreko i maracati itá puranga - Tem

elle o pente que eu tenho ? - Ahé orekỏ será kiuáua


xa rekỏ uahá ? - Que esteiras tem o marinheiro?
- -
Maha tupé tahá çurára paranapúra oreko ? Elle
tem as esteiras de páo. ―――――― Ahé oreko tupéitá mira
çuíuára .
46 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO OITAVA

O meu . Os meus . Ce mahã . Ce maha itá.


O de você. Os de você. Ne mahã . Ne maha itá .
O seu. Os seus . I mahā . I maha itá .
O nosso . Os nossos. Iané maha . Iané mahă
itá.

Maha significa cousa ; ce maha , minha cousa . Elles


não dizem só o adjectivo possessivo , e é por isso que
traduzimos o meu por- minha cousa . Quando, porém ,
o possessivo é seguido do nome da cousa possuida ,
então se o emprega só , sem o mahā ; assim : minhas
flexas ce ruua itá .

Você tem os meus es Rereko será cẹ uaruá


pelhos ? itá ?
Eu não os tenho . Intí xa reko aitá . (*)
Eu tenho os teus . Xa reko ne mahã itá.
Elle tem os meus pentes? Ahé oreko será cẹ kiu
áua itá ?
Elle tem os nossos . Ahé oreko iane mahā
itá.
Que flor você tem ? Maha putira tahá re
rekỏ ?
Eu tenho as flores da Xa reko cunhã-mucú
moça . putíra-itá.
Estas flores tem bello Quahá putíraitá oreko
perfume ? será çaquénaçáua puranga?
Elles tem bom cheiro. Aitá oreko caquéna
cáua catú.
A cuia (é vocabulo tupí) . Cúia.

(*) Aiti é uma contração de ahé itá ; ahé significa


elle, como já vimos.
PARTE PRATICA 47

Remo.
Apucuitáua .
Canoa.
igára.
Tem elle as minhas bel Ahé oreko será cẹ cúi
las cuias ? aitá puranga ?
Elle tem aquellas que Ahé orekỏ nhahã , re
você tem . rekỏ uahá .
Tem o homem as mi Apgáua oreko será ce
nhas bellas pistolas ? mukáua-mirin-itá purăn
ga?
Elle tem as de ferro. Ahé oreko itá-xiíuára
uahá .
Que remos tem você ? Mahă apucuitáua tabá
rerekỏ ?
Eu tenho os remos das Xa reko ne igára apu
suas canoas . cuitáua -itá.

Elles, ellas. Aitá .


Ellas tem as. Aitá oreko aitá.
Não as tem . Intí oreko aitá .
Quem as tem ? Auáta oreko aitá ?

Os brancos , os christãos . Caríua-itá .


Ostapuios os aborigines . Tapia.
O estrangeiro . Amú tetamauára , (de
outra patria) . ( *)
O companheiro (cama Irúmo uára( irúmo, com
rada amigo). uára , desinencia verbal que
significa diversas cousas e
aqui o que come com
nosco).

Como não conheciam metaes, a palavra ferro


traduziram por itá que significa pedra.

(*) Amú tetama uára significa litteralmente o que


come em outra patria .
48 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU

Não. Intí, tí , inti mahă , ti


mahă .

Leite Cami.
Manteiga . Icáua
Azeite , oleo . Iand (jandí na costa).
Faca. Kicé.
Canivete. Kicé-miri .
Lenha. Iepeá .
Você tem leite de vaca ? Rereko será tapiira ca
mi ?
Eu tenho leite e man Xa rekỏ tapiíra cami
teiga de vaca. e tapiíra icáua.
Você tem azeite ? Rereko será iandí ?
Eu tenho azeite vegetal Xa reko iuáiandí .
(oleo de fructa).
O azeite vegetal tem Iuá iand cetúna será
cheiro agradavel ? catú ?
Seu perfume é bom. I'çaquénaçáua catú .

THEMA

Tem você as minhas bellas cuias ? - Rereko será


cuia-itá puranga ? www - Eu as tenho . -- Xa reko aitá .

Tem você as bellas flores das tapuias ? - Rereko será


tapiția itá putira puranga ? - Não as tenho . - Inti
xa reko aitá. -Tenho as do christãos . -Xa reko

putíra caríua itá. ―――― Quem tem os meus pentes ?

Auá orekỏ tahá cẹ kiuáua itá ? — As moças os tem --


« G
Cunha -mucú- ilá, oreko aitá . Tem você os remos ?
-- Rereko será apacuitáua ? ---- Nossos companheiros

os tem.-lane irúmouára orekó a itá. -Qne facas tem


PARTE PRATICA 49

Você? -Maha kicê tahá rerekỏ? -Eu tenho as facas

que seu irmão tem . - Xa reko kicéitá ne mu oreko


uahá. -Que navios tem os christãos? - Mãháta ma
racati karíuaitá oreko? - Elles tem navios de ma
deira . - Aitá oreko maracati mirá cuíuára. - Os
marinheiros tem os nossos remos? Çurára paraná
pora oreko será íane apucuítáua? ―――――― Que faca vocêtem?
Maha kicé tahá rereko? -Eu tenho a faca do es
trangeiro - Xa reko amu-tetama - uára kicé. - — Que
flores tem você? ―――――――― Mahã mbutíra tahá rereko? ( ) -

Eu não tenho flores, tenho os pentes de seus compa

nheiros . -Inti xa reko putíra ; xa reko ne irúmouára


quiuáúa-itá. - Você tem lenha? - Rereko será iepeá?

--Eu tenho lenha, fogo e agua . -Xa reko iepeá ,


i. 1- Tem leite?
tatá, į. Rereko será cami ? - Não

tem leite mas tem excellente manteiga . - Intí orekỏ


camì ; orekỏ anhữ káua catù -rete . — Tenho eu lenha?
rekỏ será iepeá? - Você não tem lenha mas tem
- Xa reko
carvão .
-Intí rereko iepeá ; rereko anhu tatá puínha .
-Carvão: tatá- puínha. -- Tem o mancebo leite? -
Curumiuaçú
oreko será cami ? -
-Não tem leite mas
tem oleo .
-Intí oreko cami ; oreko anhu (nhunto)
iadí. -
As mulheres tem flores ? - Cunha - itá orekỏ
será putíra ? -— As mulheres não tem flores ; as

(") E' de regra que o som nasal antecedente nasallisa


consequente
oisso versa . flor,
e vise putira parte
Videé aaqui geral. -pela
Por
, como a palavra precedida
palavra mahã, cuja ultima lettra é nasal, muda op de

putira em mb, que se lerá ― imb .


50 CURSO DELINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

moças é que tem. - Cunhá intí oreko putíra ; cunhã


mucú anhu oreko ahé. - Quem tem o bello cão de
meu companheiro? -Auá tahá orekỏ ce irúmouára

iáuára puranga? E' aquelle que tem o espelho . -
Ahé nhahã oreko uáhá uaruá . Tem você compa
nheiros? - Rerekỏ será irúmouára? - Tenho excel
- Xa reko irumouára catù retẻ.
lentes companheiros . —
PARTE PRATICA 51

LIÇAO NONA

Um.
Iepé, oiepé .
Quano,ta, os , as, quan
tos? Muíri?
Sinão , mais que , so Iúm (aiúm , anhũ , nhun
inente. to , esta ultima fórma é
peculiar ao Rio- negro) .
Dous.
Mukú (mokoin ) .

Quantas flores tem você? Muiri putíra tahá rere


ko?
Eu tenho duas somente. Xa reko mukuì anhй .
Quantas mulheres você Muiri cunha tahá re
tem?
reko?
Não tenho mais que uma
(tenho uma somente).
Xa reko iepé iúnto .
Quanta farinha você
tem?
Muíri uhí tahá rerekỏ?
Eu tenho minha canoa
cheia (minha canda está
cheia ).
Xa rekỏ ce igára ipóra .

Muito a,
, os, as .
Ceíia, ou cetá .

Muito, ceii , só emp para expressa numeros ,


a rega m r
ou cousas que se possam contar . Quando , porém , o
a s
muito indica penas uperiorid na acção , como :
andei mu a e
ito , fallei muito , dorme dm uito , muito bom ,
muito bonito, entã segue-se o verb ou adje
o o ctivo do
52 CURSO DE LINGUA TUPI VIVA OU NHEHENGATU'

signal de superlativo que é reté, ou ete, segundo o


nome antecedente termina em vogal breve ou em
longa. Iremos vendo que esta lingua é , como já o
disseram os padres José de Anchieta e Montoya ,
muito mais escrupulosa do que muitas das actuaes
linguas cultas da Europa.

Muito pão. Miapé cetá.


Muito pão bom . Miapé cetá catú .
Muitos hòmens (nume
rosos) . Apguáa ceíia.
Tem você muitos ho Rereko será apágua
mens? ceíia?
Gente. Míra.
Eu tenho muita gente. Xa rekỏ míra ceíia.
Tenho muito . Xa reko rete .

Pouco. Quáiara (ás vezes mirì


quando se quer indicar
que é uma parte da cousa ;
assim: um pouco de fari
nha, uhi miri.
Valor (coragem) . Piá uaçú (coração gran
de).
Valor (valentia , força . ) Kirimáua-çáua.
Pimenta. Kiinha .
Vinagre. Içái (agua azeda ou vi
nagre) .
Tem você muita pimen
ta? Rereko será kiínha cetá?
Eu tenho pouca. Xa reho quái ra .
Eu tenho muita. Xa reko rete.
Não tenho nem uma. Intí xa reko mahã .
PARTE PRATICA 53

THEMA

Quantos companheiros tem você? - Mũíri irúmoára


tahá rerekó? -
— Eu tenho muitos. -- Xa reko ceíia .
Eu tenho poucos . -Xa reko quaiar . - Tem você
a
dous bahús bons ? - Rereko será muku? patuá catú?
-Não tenho dous bahus , tenho apenas um. - Intí

xa reko muku ? patuá ; xa reko iúm oiepé .-Quantos


barcos tem o branco ? - Muíri maracatì kariúa tahá
oreko ?—Elle tem dous barcos que você lhe deu . — Ahé
oreko mukui marakati.r ana uahá ixupé . - Quan
emehe
tas flexas tem seu irmão ? - Muíri ruúa ne mu tahá
oreko? -
Elle só tem uma . - Ahé oreko iepé iúnto .
-Tem você muita batata? -Rereko será útica ceíia ?
-
-Xa reko ceíia . O que tem o branco ? — Mãháta
cariúa oreko? - Elle tem muito feijão . -Ahé oreko
Cumaná reté. - Que cheiro tem esta flor? - Mahã ça
quenaçáua tahá oreko quahá putíra? ― Ella tem
muito cheiro . - Ahé o caquena rete . -Que gente você
tem? -- Mahã míra tahá rereko? -Eu tenho muita
gente boa. -
- Xa rekỏ ceiia míra catú . -
— Tem muitas
moças? Oreko será cunhamucú ceíia? -Tem poucas
moças e muitos meninos . - Oreko cunhamucú qua
iaira; oreko kurum? ceíia. ·
Quantos espelhos as
moças tem? - Míri uaruá cunhamucú tahá oreko?
Ellas temso
mente tres (tres , moçap ) .- Aita oreko
ire
júnto moç
apir .
e - Ós meninos tem leite? - Curumi
oreko ser ca ? - E
á m ? lles não tem leite ; tem mante
iga
v
de acca. Intí oreko cami ; oreko tapií ikáua . -
―― r a
-
54 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

Quantas facas tem você? Muiri kicé tahá rerekỏ? -

Eu tenho tres facas e dous canivetes . Xa reko mu


çapira kicé, mokoi kicé miri .
PARTE PRATICA 55

LIÇÃO DECIMA

Outro, a, os , outras . Amu, amžitá .


Tem você um arco de Rerekỏ será iepé mirá
páo? uirapára?
Não, eu tenho o outro. Intimaha; xa rekỏ amй.
Que facas tem você? Maha kicé tahá rereko?
Não tenho as outras ; Intí xa reko amйitá ; xa
tenho as minhas .
reko ce maha .

O braço. Iíuá .
O coração . Piá.
O mez.
Iaci (lua).
A obra .
Munhãnçáua.
Mais , ainda. Pire, raín .

Elles não usam dizer - eu ainda quero mais - e


dizem - ou : eu quero mais -ou então : eu ainda
quero.

VERBOS
Fallar
.
Nhehe (na costa nhe
Compr hèng) .
ar.
Corta Pirepȧna.
r.
Acaba Munuca (monóc) .
r.
Escolh Páu, ubáu.
er.
Olhar Parauáca .
. Mahǎ .
Saber e poder.
Querer. Quáu .
Espera Potárí, putárí .
r.
Estar. Çaharú.
Iko.
Medo .
Vergon Cek ié.
ha.
Tempo Ti . (tím)
. A'ra .
Trabalh
ar.
Purauke.
56 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU'

Putárí, querer, vai sempre depois do verbo que em


portuguez se lhe segue, e fica invariavel, recebendo

o outro verbo o prefixo prcnomina!, ou o suffixo


de tempo . Vide a parte geral art . verbos . No seguinte
exercicio e thema só nos occuparemos de habituar o
leitor a esta singular construcção que confunde um

--
pouco aos que principiam a fallar esta lingua .

Tu queres trabalhar ? Repuraúké putári será?


Eu quero trabalhar. Xa puraùké putári .
Tu queres fallar tupí ? Renhehe putári será
nhehengatu ?
Eu quero fallar mas não Xa nhehe putári ; intí
sei . xa quáu .
O que queres cortar ? Mãnháta remunúca pu
tári.
O que você quer acabar? Mãnháta re ūbáua pu
tári?
Eu quero acabar esta Xa báua putári qua
casa. há óca.
A quem você quer es Auȧ çupé tahá reçaharů
perar? putárí?
Eu quero esperar o ho Xa çaharu putári ap
mem . gáua.
Com quem você quer Auá irúmo tahá re ikỏ
estar? put íri?
Eu quero estar com Xa iko putári ne irùmo .
você.
Com quem você quer Auá irùmo tahá repu
tra palhar? rauke putári?
Eu não quero traba Inti xa puraúké putári ;
lhar, quero fallar. xa nhehe putári .
Quem quer trabalhar Auá opurauké putári intí
não tem tempo para fallar . orekó ára onhehen arama .
PARTE PRATICA 57

Quem quer fallar? 1 Auáta onhehe putári?


Eu quero fallar. Xa nhehé putári .
Quem quer comprar? Auáta op repana putári?
Ninguem quer comprar. Inti auá opire pāna pu
tári .
Quem quer cortar? Auáta omunúca putári?
Elle quer cortar. Ahé omunúca putári .
Quem quer acabar? Auáta umbáua putári?
Tu queres acabar. Re umbáua putári .
O que elle quer esco Maháta oparauáka pu
lher? tári?
Elle quer escolher sua Ahé oparauáka putári i
gente . míra.
0
O que você olha? Mãháta remahã?
Não quero olhar . Intí xa maha putári .
Eu quero saber fallar . ; Xa nhehe quán putári .
58 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO DECIMA-PRIMEIRA

VERBOS

Nas linguas europeas os verbos compoem- se de


uma raiz e um suffixo ou terminação , que indica as
pessoas ; assim : eu trabalho , decompõe- se em trabalh,
que é a raiz . e o, que é o suffixo indicativo da 1ª pes
soa. O mesmo se dá em todas as demais pessoas .

Nas linguas americanas de que eu tenho visto


grammaticas , e nas do Brazil que eu tenho ouvido
fallar, que não são poucas, o mechanismo é inversc ,
como já observei ; a saber: a raiz vai para o meio ou
fim , e, o que nas linguas europeas é terminação , nas
nossas é anteposição ou prefixo . Assim: trabalhar,
praú é; eu trabalho , a-puraukė; tu trabalhas , re-pu
rau e; elle trabalha, o-purauke, e assim por diante .
E' a este prefixo que os grammaticos antigos chamaram
artigo, e chamaram mal, porque não é senão a nossa
terminação com a differença de ser anteposta .

(*) Em geral quando o - e -e o-- não tiverem


signal circumflexo devem se pronunciar feixados , o
que advertimos por não ter sido possivel, sem expe
riencia, como ainda estão nossas typographias do al
phabeto phonetico , calcular a fundição dos typos de
modo que elles não faltassem.
PARTE PRATICA 59

Pronomes Pessoaes Prefixos pronominaes

Eu Ixé , ou xe, a
Tu Inde, ne , ou ine re
Elle Ahé 0
Nós iá
lande, ou iane
Vós Pehé ou penhe pe
Elles Aetá, ou aitá *

Presente indefinido

Eu trabalho
Xe apurauke
Tu trabalhas
Inde repurauke
Elle trabalha
Ahé opuraukė
Nós trabalhamos
Iané ápurauke
Vós trabalhais
Penh pepurauke
Elles trabalham
Aitá opurauke

Quando se falla nas primeiras pessoas é de rigor em


pregar o prono
me pessoal, o qual contrahe em si o

prefixo pronominal a , e perde o e , ficando, portanto,


Xá; xá é, pois , uma contracção de xe, eu , e de a ,
prefixo pronominal da 1ª pessoa . Eu trabalho : x
puraui.
e.
Quand
o se falla nas outra pesso
ordinar s as do singular, de
io, não empr o p
egam s ronomes pessoaes , e . os
prefixo bas
s tam para deter
minal - as sem possibilida
de
de confusão, salv se a oraç
o ão começa por pronome .

Nas outras não será erro empregar os pronomes .


60 CURSO DELINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU

Somente o in lio conhecerá logo que é um estrangeiro

que falla a sua lingua : an pisso que, quando se a


falla correctamente, ainda que com algun defeito de
pronuncia , elle fica persuadido que a pessoa é de sua
tribu , ainda que seja essa pessoa um branco.

Pedaço. Piçãuera .
Carne . Cooquera .
Quebrar-se. upina.
Quebrar. Mupena .
Apanhar. PЛú .
Pegar, segurar. P'cica.
Buscar, procurar. Cicári.

Você quer um pedaço Reputári será cooquéra


de carne? piçãuera?
Eu quero partir um pe Xa munúca putári iepé
daço . p'çãura .
Quem quer quebrar o Auáta omupena putári
remo? apucuitáua?
Quem quer apanhar esta Auáta opou putári qua
fruta? há uá?
Elle quer apanhar, po Ahé opoú putári , intí
rém não póde . oquau.
Seu irmão quer apanhar Ne mu opoú putári será
a fruta. uá?
Tu queres apanhar, elle Repoú putári ; ahé in
não. timahă .
Tu queres comprar uma Repropana putári será
cano ? iepé ¡gára?
Eu não quero comprar Inti xa pirepana putári
uma; eu quero dar duas. iepé; xa mehe putári mo
koi.
PARTE PRATICA 61

Elle quer quebrar a ca Ahé omnpena patári


Dôa?
se á ¡gára?
E' você e não elle quirm Remupina putári ; ahé
quer quebrar . intimahā .
Elle apanhou frutas? Ah opoú ana será uá?
Elle quer,mas não póde . Ahé oputári ;intí oquau .
O que você quer pro
curar?
Manháta recicári putári?
Eu quero procurar as Xa cicári putári ce ma
minhas cousas .
hã itá.
Você quer um pedaço Reputári será iepé coo
de carne?
piçãuera?
Eu não quero apanhar Intí xa poú putári iepé
um pedacinho , quero um piçãugra miri ; xa putári
pedaço grande .
turuçú .

Presente definido

O presente definido se fórna com o auxiliar ikɔ̃,

que significa estar. Eu faço : xa munhã; eu estou


fazendo: xa muhã xa iỏ . Ainda aqui a ordem da

construcção é ao inverso de todas as construcções nas


linguas europeas .

Você está fallando? Renhehê re ikó será?


Nós estamos fallando . Iane ianhenhe iáiko .
Vocês estão cortando?
Penhe pemunúca será
péiko?
Nós esta
m os cortando . Iané iamunúca jáikỏ .
Elles estão compra
ndo ? Aitá opirẹpana será
oiko?
Elles estão co .
mpra ndo Aitá op repana oikỏ .
62 CURSO DE LINGUA TUPI VIVA OU NHEHENGATU

O que é que nós estamos Mãháta iáumbáua será


acabando? iaiko?
Nós estamos acabando Iane iáumbáua iaiko
uma canoa . iépé gára.
Nós acabámos uma ca
Iane iáumbáua ana iepé
nôa.
igára .
O que você está esco Mãháta reparauáka re
lhendo? iko?
Eu escolho minhas fru
Xa parauáka ce iuá.
tas.
Elles estão olhando? Aitá omahã será oiko?
Vós olhais. Pehe pe maha.
Você entende o que eu
Requáu será mahã xa
estou fallando? nhehe xa iko?
Nós não sabemos o que
Iané intí iáquáu mahã
você está fallando.
penhehe peiko .
Você escolheu os cães? Reparauáka será iau
áraitá?
Nós os escolhemos.
Iané iaparauáka .
Nós apanhamos frutas? Iane iapoú sera { ua?
Vós apanhais . Penhe pepoú .
Por quem você está es Auáta reçarú reikỏ?
i perando?

Observação.
-E' de notar- se que, como os prefixos
fazem as vezes de terminação , quando um ou mais de
um verbo se seguem , é indispensavel pôr os taes pre
fixos; é assim que dizemos : pé nunúca péió , e não :
pemunúca ikó , como seria se a indole da lingua fosse
igual á das aryannas . Quando um verbo é seguido de
um outro, o pri neiro é para nós infinito ; renunúca
kári, tu mandas cortar : é no verbo cortar que está o

prefixo pronominal ; os exercicios que vamos dando ,


melhor do que regras , o ensinarão .
PARTE PRATICA 63

LIÇÃO DECIMA- SEGUNDA

VERBOS (CONTINUAÇÃO)

Fazer. ļ Munhã (monhã ).


Querer, * Putári ( potári) .
Accender, (fogo). 1! Mundica.

Quer você? Reputári será?


Quero. Xa putári .
Quer elle ? Ahé oputári será?
Elle que
r. Ahé oputári .
Nos queremos. Iane iaputári .
Vocês querem ? Peen peputári será?
: Elles querem. Aitá oputári .

Quer você accender o | Remondica putári será


meu fogo?
ce ratá? (*)
Eu
quero accender o Xa mundica putári tatá .
fogo.
Quero accendel - o . Xa mundica putári ahé.
Não
Elle qqueroc accendel -o . Intí xa mundica putári .
uer ompr a tua
canòa? ar Ahé op repana putári
será ne igára?
Elle quer compral-a . Ahé opirepana putári .

( Fogo, tuta; meu fogo, ce ratá pela regra :

em r o nome principia por tem absoluto , muda o


quando
quando o agente da oração é pronome de
primeira ou segunda pessoa .
64 CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’

Queimar. Cái , çap .


Aquentar, aquecer . Muacú (moacù) .
Rasgar. Muçurúca .
Caldo . Iukicé , ou iuk'ci .
Minha roupa branca . Ce mahǎitá murutínga .

Você aquentou a comi Remuacú ăna será te


da? miú?
Eu queimei a comida . Ix xa çap' ana temiú.
Quem a queimou? Auáta ocái ăna?
Ninguem se queimou . Intí auá oiúcái.

Ir. Ço .
A. em. Upé (opé) .
A ( lugar para onde) . Kete, kite, ou kití .
A (para alguem) , signal
de dativo . Çupé, arāma .
Estar. Ikó .

Elle está em casa de


meu irmão . Ahé oiko ce mu roca ope.
Eu vou á ou para minha
casa. Xa çó ce roca kete.
Elle vai para a casa de Ahé oço irumoára roca
seu companheiro . ketė,
Elle está em casa. Ahé oikó óca opé.

A casa de quem você Auá roca kete tahá recó


quer ir? putári?
Não quero ir a casa de Intí xa có putári auá
ninguem . roca keté.
Em que casa está teu Maha oca opé tahá oikỏ
irmão? ne mu?
Está na minha casa. Oiko ce roca opé.
Está elle em casa? Oiko será oca opé?
Não está em casa . Ahé inti oikó oca opé.
PARTE PRATICA 65

Cansado. Maraári .
Esta você cansado? Ne maraári será?
Estou cansado.
Ixé ce maraári .
Não estou cansado . Ixe intimahã ce maraári.
Elle está cansado? Abé maraári oiko será?
Nós estamos cansados. Iane iámaraári jáikỏ .
Elles estão cansados . Aitá omaraári oikó.

Beber e comer.
U.
Aonde , onde? Mamé?
Para onde? Mamé kete?

Que quer você fazer? Mãháta remunha pu


tári?
Seu irmão o que quer
Mãháta ne mu omunhã
fazer ?
putári ?
(Algumas vezes elles di Mãháta ne kuira pu
zem irmão kiuira , outras tári?
vezes mu).

Seu pai está em sua Ne rúba oiko será cóca


casa (delle)?
upé?
indigenas que tem
(Os to
contac
com os brancos
servem-s
e da palavra por
tugueza
pai, em vez do
Vocabulo
indigena túba,
rúba , çúba .)

Você
s quere comp Penh
m rar Penhee pé pirẹpăna pu
alguma cousa boa?
tári será maha puranga?

Em vez de dizerem alguma cousa boa , elles dizem


alguma cousa
bonita. Bondade physica para elles é o
mesmo
que boniteza , e vice- versa . A palavra catú,
66 CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU ’

bom , catuçáua , bondade, exprime ou qualidades mo


raes ou bondade que não se veja , como a de uma
planta efficaz para uma molestia.

Elles não querem com Aitá intí opirẹpăna pu


prar nada. tári mahã .
Querem comprar uma Aitá op repǎna putári
corda? será iepé tupaçãma ?
Elles querem comprar Aitá op repana putári
uma. iepé.
Você quer beber algu
ma cousa? Reú putári será mahā?
Não quero beber nada . 1 Intí xa ú putári mahā .

Quer vocé trabalhar? l Repurauke putári será?


Quero trabaihar , mas Xa purauké putári ; mai
estou cansado. ce maraári xa ikỏ .
Você quer quebrar mi Reumpúka putári será
nha canda? çe igára?
i
Eu não quero quebrar Ixe intí sa umpúka pu
ella . tári ahé .
Você quer procurar o Recicári putári será ce
meu filho? embira?
Eu quero procural - o . Xa cicári putári .
Que quer você apanhar? Maháta repoú putári?
Quero apanhar uma
fruta. Xa poú putári iepé má .
Seu companheiro quer Ne irúmoára op❜rẹpāna
comprar esta tartaruga ou putári será qualiá Iúrará
aquella? 0 nhâhả ?
Elle quer comprar as Ahé op/repâna putári
duas. mokór.
Este homem quer cortar Quahá apgaua omumúca
n *ua mão?
putár será ne po?
PARTE PRATICA 67

Não quer cortar a mi Intí ornunúca putári co


nha, quer cortar a tua . maha ; omunúca putári ne
mahã.
Você quer-me queimar? Nd recap putári será
ix??
Eu não te quero quei Ixe inti xa çapi putári
mar. iné.
68 CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEMENGATU

LIÇÃO DECIMA-TERCEIRA

(VERBOS, TEMPO PASSADO)

Onde, aonde? Mamé?


Esta alli. Oikó mími .

Levar. Raçó. (*)


Enviar, mandar. Mundú.
Conduzir, carregar . Çupíri.
Pote. Camuta.

Aquella mulherjá levou Quahá cunha oraçḍāna


o pote? será camuti?
Ella já o levou . Ahé oraço-ana .
Ella o vai carregando. Ahé ocupíri oikó.
Você já mandou o ho Remanlú-ana será
mem lá? apgaua apé?
Aonde? Mamé tahá?
A tua casa para levar a Ne róca kete, oraçó ară
farinha. ma uhí.

Tempo passado. -O presente indefinido seguido


do sufixo ã v (é o que os jesuitas escreveram an por
ser quasi mu lo o ultimo a) fica sendo preterito per
feito. Eu carrego: xi cupiri; eu carreguei : xa cupiri
ãna.

E' de notar- se . porém, que elles não empregam a


fórma passada senio quan lo isso é essencial para

(*) Recordamos que o nunca tem som aspero;


sempre brando; assim: a primeira syllaba da palavra
raço pronuncia-se branda como a ultima da palavra
portugueza queira.
PARTE PRATICA 69

clareza do seu pensamento . Já notámos o mesmo


quanto ao signal de plural .
Ha, por assim dizer, uma especie de preguiça na
lingua que faz com que ella não empregue as palavras
senão quando estas são essenciaes.

Elle os leva lá. I Ahé oracó aitá aápe .


Quer você mandal-o a Remundá putári será
casa de meu pai? ahé ce paia roca kete ?
Eu quero mandal-0 . Xả mundú patári
Quer você carregar este Recupíri putári será
paneiro de farinha? quahá uhí-uruçakãngá ?
Eu não quero carregar Inti xa cupíri putári
este paneiro de farinha ; quahá uhí-uruçakănga; xa
eu o levo na minha canoa . raço ahé ce igára pupé.

Voltar. 1
Iu'ri.
Quando? Maíramé?
Amanhã .
Uirande.
Hoje. Oii .
Hontem .
Ku cé.
Ante- hontem .
Amakuęce.
A, para alguma parte . Keté, amu kete.

Quer você ir a alguma


Recó putári será amu
parte? ket ?
Não quero ir a nem Ixe intí xa çó putári a
uma parte.
mu kete.

Quer você ir a casa? 1 Reço putári sera oca


ket??
Quero ir.
Xa ço putári.
Seu irmão está em casa? Ne kura oiko será óca
ope?
1
70 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU'

Está. Oiko.
Onde quer você ir ? Mamné kete tahá reço
putári?
Quero ir a minha casa. Xa çó putári ce roca
keté.
A que casa você quer Maha oca kete tahá
levar este paneiro? reraço putári quahá uruça
kanga?
Quero levar a casa de Xa raçó putári cẹ irú
meu companheiro . moára roca kete.
A casa de quem você Auá roca k té tahá re
quer levar minha espin racó putári ce mukáua?
garda?
Querem leval-a a casa Aitá oraco putárí ahé
dos tapuios . tapi ia roca kete.
Para onde essa mulher Mahá kete tahá quahá
quer levar a minha rede? cunha oraço putári ce
kiçáua?
Quer levar para casa
della? Oraçó putári çoca kéte?
Ella quer levar para ca Ahé oraço putari oca
sa? ket ?
Não quer leval-a . Ahé intí oraço putári .
Você quer vir a minha Reiúri putari será ce
casa? óca hete?
Não quero ir. Intí xa ço putári.
Onde quer você ir? Mamé kete tahá reço
putári?
Quero ir a casa de meus Xa çó putári ce anăma
parentes. itá óca kete.
Que quer você fazer na Maháta remunhã pu
casa de seus parentes? tári ne anama ili ỏca opé
Quero ir dansar lá ; ha Xa ço putári xa purac
lá esta noite uma dança . arama áne; quahá pitúna
ramé aiqué puracicáua ápe .
PARTE PRATICA 71

Onde querem ir aquel Mãhá kẹt tahá oco pu


las moças? tári nhaha cunhamucú itá?
Ellas querem ver os ta Aiti og putri omahă
puios dansar. arama tapia itá opurac .

Você quer levar seu ! Reraço putári será ne


filho a minha casa?
embira ce roca opé?
Não; eu quero leval- o a Intimaha ; xa raço pu
tua casa.
tári ne róca o é.
Quando quer levai - o ai Mairamé tahá reraço pu
minha casa?
tári ce roca opé?
Quero leval-o amanhã.
Xa raçó putári uirande .
Quer você carregar os
paneiros de farinha para
Reçupíri putári será
a canòa?
uhí uruçakanga /gára kete?
Quero carregal-os ama
nhã . Xa çupíri putári ui
rande.
Quando foi que você os Mamé tahá reçupíri ăna
carregou?
aitá?
Eu carreguei-os hontem . Xa çupiri ana aitá kuec ?
Seu filho quer ir a casa
algu em WING Ne emb'ra oco putár
de ?
será am auá roca kete?
Elle não quer ir a casa
Ahé intí oço putári ami
de ninguem.
auá roca ketẻ.
Onde
quer você leva
r Mamé kete tahá reraçe
estes passar ?
os putári quahá uirá itá?
En quero leval-os para
dentro da canòa . Xa raço putári ¿gára
keté.
Quer você mandar um
Remundú putárí será
ba
cohú a casa de seu amigo
mpan iepé patuá ne irúmoára
heiro)?
óca kete?
Eu não quero mandar; Intí xa mundú putári :
cu quero carregar um para xa cupíri putári iepé
ketė.
72 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’

Quando volta? Mairamé tahá reiuíri ?


Eu não sei quando Intí xa quáu mai ané
volto. xa iuíri.
O que aquella mulher Maháta quahá cunh
vai carregando naquelle oçupíri oikó quahá ca
pote? muti pupé?
Ella está carregando ¿.
Ahe oçupíri oikó į.
agua.

"
PARTE PRATICA 73

LIÇÃO DECIMA- QUARTA

(VERBOS — PRESENTE , PASSADO E FUTURO)


Olhar , ver . Xipiá , mahá .
Varrer . Iapiíri .
Matar. Iucá.
Poder , e saber . Quáu .

Qando farás a minha Mairamé tahá curí re


casa? munhã ce roca?
Eu a hei de fazer no Xa munhã ahé curí
outro anno .
ami acaiú upé .
Quando eu hei de vér Mairamé tahá curí xa
Você? maha nde?
Você me ha de vêr Remaha curí ixe ui
amanhã . randé.
Quando você me vio? Mairamé tahá remaã ana
ixe?
Eu já lhe vi . Ixẻ xa maha ana inde.

Quando vocé ha de fal Mairamé tahá curí re


lar lingua geral?
nhehe nheengatú?
Eu hei de fallar de Xả nhehe curí curuté .
pressa.
Quando você ha de var Mairamé tahá curí rc
rer o meu quarto?
Eu hei de varrer de piíri ce ocap/?
tarde . Xa piiri curí carúca ra
mé.
Futuro . —A particula curi, precedendo ou seguindo
o presen
interr te indefi
ogativ as nido, fórma o futuro . Nas phrases
ella precele o verbo , e é posta logo

depois da particula interrogativa ; nas affirmativas ella


segue immediatamente o verbo , como o leitor vio nos
exemplos acima , e como o iremos vendo nos seguintes .
74 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OUNHEHENGATU ’

THd
Cesto, paneiro. Uaturá, uruçácanga .
1 Canastra , caixa . Patuá.
Gato. Pixǎna .

Dativo. Como já vimos na parte synthetica , o


dativo se fórma seguíndo o nome da posposição cupė.
Quando o dativo é daquelles a que os antigos gram
maticos chamavam de commodo ou proveito, em vez

da posposição çupé usa-se de arăma .

Eu jà fallei a Pedro . Xa nhee anaPedro çupé.


Eu hei de trazer uma
Xa rúri curi iepé má
fruta para Pedro . Pedro arama .

A quem? Auá çupé? ou auá ară


ma?
Quem? Auá tahá?
Que? Mãháta?

Responder. Çuaxára.
A quem você quer res Äuá çupé tahá reçua
ponder? xára putári?
Eu hei de responder a Xa çuaxára curi ahé
elle .
cupé.

Alli , lá , acolá . Míme , ápe, aápe , á.


Quer você ir a minha
casa .
Reço putári ce roca upé.
Eu quero ir lá . Ixe xa co putári .
Lá aonde?
Aápe, mamé tahá?
Lá mesmo.
Aápe tenho..
Perto , junto , ao lado . Ruáké.
PARTE PRATICA 75

Buraco , vasio , espaço ,


contido dentro de qual
quer vasilha . Quára.
No buraco , ou dentro
do buraco . Quára ópé (quar'upé).
Fundo.
Tip .
No fundo .
¿pipe.
No fundo da caixa. Patuá quára opé.
O peixe está no fundo Pirá oiko será pipe?
da agua?
Elle está no fundo do Ahé oikó iapúna quára
forno?
opé.

No fogo, ao lado do
fogo. Tatá ruake.
Ao cabo , no extremo,
no fim , na extremidade . Pauçápe.
Caminho .
Pé.
No fim do caminho . Pé pauçápe.
Meu caminho .
Ce rapé.

Que tem você que fazer? | Manháta rerekó remu


nhã arāma ?
Eu tenho que por a
Ixe xa enu curi çoo
carne ao lado do fogo .
quera tatá ruaké .
Que tem você para co Manháta rereko reú arã
mer?
ma?
Havemos de ter muita
caça. Xá reko curí çoo celia.

Esta tarde, esta noite .


Quahá carúca ramé ,
Esta manhã . quahá pitúna ramé.
Quahá coema ranié.
Amanhã de manhã . • Uirande, coema
ramé .
Agora, agora mesmo . Cuhyre, cuhire tenhê.
}

76 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’

Tens medo? Recequié será?


Agora já não tenho ; Cuh re intíana xá rekó ;
hontem na verdade eu tive kuece çupí, xa cequié
medo. rai.
Tenho frio. Ixẻ ce roí xa ikỏ.
Cançado . Maraȧri.
Fallar. Nhehe .
Palavra, falla , lingua . Nhehenga .

Você está cansado de Inde re maraári será re


fallar? nhehe?
Não estou cansado ; eu Intímaha ce maraári
tenho vergonha de fallar. ixẻ xa ti xa nhehe.
Que lingua você falla? Mahã nhehenga tahá re
nheh ?
Eu fallo lingua geral. Xa nhehe nhehengatủ .
E porque me não res Mahárecê tahá intí re
pondes em lingua geral? çuáxara ixẻ nhehengatú
rupí?

Elles dizem eu fallo pela lingua geral ; é essa a tra


¦ ducção da phrase- xa nhehe nhehengatú rupí.

Quando você ha de fal Mairamé tahá curí re


lai commigo? hehe ce irúmo?
Eu hei de fallar com Ixẻ x nhehe curí ne
Você esta tarde.
irúmo quahá carúca ramé.
E porque não fallarás Maharecê tahá intí re
amanhã? nhehe uirande?

N'estes casos não empregam a particula curí; fallar


amanhã , é fallar no futuro .
PARTE PRATICA 77

LIÇÃO DECIMA-QUINTA

Sahir. Cema.
Ficar. Pita.
Quando você quer sa Mairamé tahá recêma
hir? pulári?
Eu quero sahir agora. Xa cêma putári cuhire .
Eu fico em casa . Ixẻ xa pitá óka opé.

Quer você ficar aqui? Re pitá putári será ikė?


Quero ficar. Xa pitá putári.
Quer o seu parente fi Ne anama opitá putári
cai các será iké?
Não quer ficar . Intí opitá putári .

Vai você? Recó será?


Vou.
Xa có .
Não vou. Intí xa có .

Todos os dias.
Opar åra opé.
Todas as tardes .
Opai karúča ramé.
Todas manhãs .
Opai coema ramé.

Os indigenas não dividiam o dia e a noite em horas


e sim em espaços , mais ou menos, de duas e tres horas ,
a saber :

Do nas até
cer do sol
h
9 oras .
Coema .
Das nove horas ao meio
dia .
Coarací iuaté (sol alto) .
Mei -dia .
Çaié ou landára.
Do mei -dia ás 5 hora . A'ra .
o s
78 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU

Das 5 ás 7. Carúca, Karúca.


Das 7 á meia-noite . Pitùna.
Meia-noite. Picaié .
Da meia-noite ás 4. Pitúna pucú (noite com
prida .)
Das 4 ás 6. Coema piranga. (*)
Das 6 ás 9. Coema.

De dia avaliam estas divisões pelo sol , de noite

pelas estrellas, pela lua , pelo canto do inambú , e oụ


tros passaros que piam a horas certas , como o gallo
entre os povos christãos . Vivendo em climas ardentes
como são alguns do Brazil , os que são navegantes prefe
rem de ordinario a noite para a viagem. Viajei desenas ,
talvez centenas de noites pelo Araguaya com guarni

ções de selvagens carajás-e sempre elles conheciam a


hora da noite por meio das estrellas , com precisão que

bastava perfeitamente para regular as marchas. Não


me envergonho de dizer que, n'esse tempo , eu conhe
cia muito menor numero de constellações do que elles .
Uma noite elles me fizeram observar que uma das
manchas do céu (que fica junta a constellação do cru
zeiro) , figurava uma cabeça de avestruz, e que ao passo
que a noite se adiantava -apparecia na via lactea a
continuação da mancha como pescoço e depois como o
corpo dessa ave . Entre os tupis o planeta Venus, que
chama-se iac -tatá-uuçú e a constellação das pleiades

(*) Cɔema piranga significa o vermelho da manhã ,


a madrugada .
PARTE PRATICA 79

(ceiúci) figuram frequentemente na contagem do tempo

durante a noite . Na collecção de lendas , que publico


adiante, vem , em uma d'ellas , uma curiosa explicação

de tempo .

A que horas (em que Mairamé tahá recika?


tempo) chegaste?
Cheguei á meia noite . Xa ç'ka p'çaié ana ou
p'çaié ramé.

O presente indefinido de
Participio presente.
qualquer verbo, seguido do auxiliar iko, faz com que

elle fique no participio presente , e seguindo o verbo


da particula ana , e esta do mesmo auxiliar , fica . o

verbo no participio passado.


Um outro modo de formar o participio presente é
repetir o verbo duas vezes . a primeira com , a segunda
sem o prefixo pronominal, e desta fórma usa- se quando
é necessario exprimir duração na acção do verbo :
aitá onhehë nhche oikó , elles estão fallando .

Esta fórma tupí passou para o portuguez fallado


povo do interior . Os sertanejos dizem : elles estão
pelo povo

falla fallando , para indicar que elles estão fallando


muito.

Numerosissimas fórmas da lingua tupí passaram


para o portuguez do povo; e como é o povo quem no
decurso de seculos elabora as linguas , essa se ha de
transformar ao influxo principalmente dessa causa , de
80 CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU'

modo que dia virá em que a lingua do Brazil será tão


diversa do portuguez, quanto este é do latim .

Eu fallo. Xa nhehe .
Eu estou fallando . Xa nhehe xa ikỏ .
Eu fallei ou tinha fal Xa nhehe ana xa iko.
lado.
Amar. Çaiçú.
Arrumar, arranjar , or Mukaturú , mugaturú.
denar. Significa tambem concer
tar. Vid . o vocabulario .

Ir. Çó.
Vir. fúre.
Ter. Reko.
Morrer . Mano.
' Mover. Katáca .
Querer. Putári , potári.
Beber e comer . ú.
Tomar. Picika.

Você ama a sua mulber? Ne reçaiçú será ng re


miricó?
Eu a amo muito. Xa çajçú reté ahé.
Eu não a amo . Intimahá xa çaiçú ahé.

Eu mando , tu mandas , Xa mundú , remundú ,


elle ´manda . ahé omundú .
Eu varro, tu varres, Xa piiri, repiíri , ahé
elle varre . opiíri.
Eu limpo , tu limpas , Xa iúc , reiúc !, ahé
elle limpa . oiúci.

Você já varreu a casa? | Repiira ana será oka?


Eu já a varri. Ixe xa piíri āna.
PARTE PRATICA 81

Sahir. Cemo . (Tambem significa


nascer. V. o vocabulario . )
Abrir. Pirári.
Conhecer (é o mesmo
que saber). Qáu.
Eu abro, tu abres, elle Xa pirári, repirári, ahé
abre. opírári .
Eu conheço , tu conhe Xa quáu , requáu , o
ces, elle conhece. quán .
(Conjugado com os pro Xa quáu , ne requáu ,
nomes pessoaes). ché oquáu .

Elle ja abrio os olhos? Ahe opirári ăna ceçá?


Nós já os abrimos. Iané iapirári ăna .
A quem tu amas? Auáta re çaiçú?
Eu amo a minha irmã . Xa çaiçú ce rendera .

Não usam desta expressão : eu gosto disto ; dizem so


mente: eu quero isto, salvo quando o sentimento é uma
necessidade de cuja privação vem dôr physica, porque

então empregam a raiz ac que envolve a idea de dor,


peso, difficuldade , etc. Em vez de dizer- se : tu gostas
de vinho , dir-se-ha simplesmente: tu queres vinho?
Esta expressão : tu amas o vinho: Re caiçú será kaur
piranga? seria inintelligivel ao selvagem .

Tu queres fumar? Re ú pitima putári será?


Não quero fumar . Intimahã xa ú putári
| pitima .
82 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO DECIMA-SEXTA

Procurar. 1 Cicári.
Encontrar. Uacémo .
Encontrar-se. Túiúauti .

O que você vio quando Manhata (o que) remaě


estava procurando sua fa ana, ou remaa ana (tu
ca? viste), recicári ramé rẹikó
(procurando quando esta
vas?) ne kicé ?
Eu procurava minha fa Xa cicári ramé ce kicé ,
ca e eu achei o teu cani xa uacemo ne kicé miri .
vete .
Com quem você se en Auá irúmo táha reiúiú
controu quando ia para anti , reço ramé oca kete?
casa?
Quando eu ia para casa Xa ço ramé ce roca kete
me encontrei com um vea xa iuiuanti çuaçú irúmo .
do .
Você o levou para casa? Reraçó ana será ahé
oca kete ?
Não o pude levar. Intí xa raço ana quáu
ahé.

Brincar . 1
Muçara , muçarai .
Dansar. Puraça , puraçái .
Cantar. Nhehengári.
Escutar. Iapiçáka .

O que vocês fizeram Mãháta pé munhãna


quando foram a minha pe cỏ ramé ce roca opé?
casa?
Brincámos , dansámos e Iamuçárai āna , ia pu
escutámos as moças can raçái ana, iap’çáka cunha
tar , mucú itá onhehengári .
PARTE PRATICA 83

Cotovello. Iíuá penaçáua (tortura


do braço).
Costa. Cupé.
Palma da mão. Po pitera (meio da mão).
Palma do pé. Pi pitera (id .)

Em vez de , em lugar de. Recuiára .


Em vez de trabalhar Repurauke recuiára re
Você está brincando. iumuçaraz réiko.
Em vez de cantar nós Ianhehengári recuiára is
dansamos. puraçãz .
Parece-me que você em Ine nungára reiap❜çáka
vez de escutar está fallan recuiára, renhehe re iko ;
do; não é verdade? çupí será?
Não é verdade; eu estou Intimaha çupí; xa nhehe
escutando em vez de estar recuiára xa iapiçáka xa
fallando . ikỏ .
Tu dormes em lugar de Repurauké recuiára re
trabalhar . kéri será?

O uso deste recuiára é, como o do verbo putári,

diverso do de nossas linguas europeas, como melhor o


leitor vai ver pela collocação das palavras portuguezas
na mesma ordem , em que estão as palavras indigenas

dos exemplos precedentes . Assim, a primeira oração


diz: Repurauke recuiára reiúmuçárai reiko , litteral :
Tu trabalhar em vez tú brincando estás . Ianhehengári
-
recuiára iá puraçãi — nós fallarmos em vez , nós dan
samos, isto é: em vez de fallar dansamos. Inė nungára
reiapicáka re cuiára renhehén reiko -vocè a modo .

de ouvir em vez , fallando estás , ou - a modo que você


em vez de estar ouvindo está fallando . Xa nhehe re

1
84 CURSO DELINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

cuiára, xa iapiçáka xa iko : eu fallar em vez de, eu


escutando estou .

Em vez de amar a Deos Recaicú recuiára Tu


você trabalha para o diabo . pana, repurauke reikó
iúruparí arāma.
Em vez de trabalhar Xa purauke recuiára
para o diabo eu adoro a iuruparí arāma , xa muite 1
Deos. (moete) Tupana çupé. }
Em vez de subir você Reiúpíri recuiára reúiê
desce? reiko será?
Eu desço em vez de Xa uiẻ recuiára xa iú
subir. píri xa ikỏ.
Por que você desce em Maharece tahá reúi re
vez de subir? cuiára reçupíri riko?
Porque é melhor descer Maharece catup ri míra
do que subir. oúie, míra ouipíri çuí .
Aprender. Iúmuhe .
Ensinar. Muhe.
Queres me ensinar tupí Remuhé putári será ixe
em vez de aprender por nhehengatú , reiúmuhe re
tuguez? cuiára caríua nhehenga?
Eu quero aprender em Xa umuhe putári xa
vez de ensinar. muhẻ recuíára.
O que você quer apren Máháta reiumuhe pu
der em logar do portuguez? tári caríua nhenhénga re
cuíara?
Eu quero aprender a Xa iúmohé putári xa
remar em vez de ensinar iápucúi , xa muhẻ recuaira
a fallar. onhebê.

Esta lingua não se serve do verbo desejar no sentido


em que nós o empregamos, e é substituido ou pelo
verbo putári querer, quando o acto effectivamente
PARTE PRATICA 85
1

depende da vontade humana , où das raizes ce cei


quando o desejo não é filho da vontade e sim uma ne
cessidade, como a de beber agua a de comer em geral.
Não deixa de ser singular que uma lingua fallada por
homens que quasi não tinham cultura intellectual seja .

tão escrópulosa n'estas distincções , que aliás repousaf


em idéas psycollogicas muito verdadeiras . E assim por
exemplo , quando elles dizem : eu quero comer, se ex
pressão : Xa iúnaci . A necessidade de comer não

depende da vontade . Si , porém dizem: eu quero comer


peixe , se expressam : Xa u putári pirá ; empregam
então putári, querer , porque , em vez de comer peixe,
podiam tomar carne ou qualquer outro alimento , e pois
ha na designação da substancia alimenticia um acto da
vontade .

Louco. Akanga ajua.


De manhã ou pela ma
nhã. Coěma ramé .
De tarde. Carúca ramé .
De noite. Pitúna ramé .
Cara , rosto. Ruá e çuá, (o 1º para
a 1º e 2ª pessoa ; o 2º para
a 3ª pessoa).
86 CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’

LIÇÃO DECIMA-SETIMA

Comparativo , superlativo , diminutivo . — Segundo


vimos na regra 11 , pag. 7 , o comparativo fórma-se
pela posposição pire, mais; Pedro catú pire Joãɔ çui,
Pedro é melhor do que João, litteral: Pedro é bom
mais João de . E' esta construcção tupí que alterou o
portuguez fallado pelo povo do norte do imperio, sobre
tudo pelo da provincia do Amazonas, o qual diz muito
commummente: é melhor de você, em vez de dizer:

é melhor do que você . Vejamos essa construcção prati


camente.

Molhar. Mururú (mú, fazer ; ru


rú, humido) .
Mostrar. Mucamehe, (muquáu
mehe .)
Tabaco, fumo. Pit'ma.
Fumar. U p'tima (u , ingerir no
estomago; pitima , fumo).

Elles fumam melhor ta Aitá où será pitima catú


baco do que vocês? pire penhe çuí?
Nosso tabaco é melhor Iane pit ma catú pire
do que o delles . aitá çuí .
Eu já mostrei minha Xa mucamehe ana será
casa a você? cę róca inde arama?
João me mostrou a delle João mucamehe imahá
que é melhor do que a tua . catup're uahá ne çuí.
Você já molhou a casa Ine remururú ana será
delle? çoca?
PARTE PRATICA 87

Amarello. Tauá.
Branco. Murutinga (na composi
ção fica somente tinga).
Preto. Pixúna (na composição
fica somente úna).
Vermelho. Pirǎnga.
Azul. Çuikira.
Verde. Takira.
Pardo. Tuira.

Branco (homem) . Caríua. (*)


Preto (homem). Tapaiúna. (*)
Indio . Tapi ia.

(*) Na costa Caraiba , no Paraguay carai . A raiz


car ou ra involve a idéa de dilaceração , e entra na
composição de muitos nomes de vegetaes providos de
espinhos retorcidos como garras, nos das aves e ani
maes que tem garras-exemplos: Taquára, caragua á,
carandi, maraja , (vegetaes de espinhos retorcidos);
caracará gavião, carará corvo d'agua , iauára cão , ia
raete onça , auará lobo, caráin arranhar, esfollar . A
2. raiz iba jua significa ruim ; de modo que o branco
foi designado pelo selvagem da America , com duas
raizes que exprimem a idea que elles formaram a prin
cipio de nossa raça, isto é : a raça voraz e má ; a his
toria das primeiras conquistas mostra que para elles
essa designação era tão real quanto vergonhosa para
nós. Por mais injurioso que seja o nome , elle ha de
passar a mais remota posteridade, castigo inde
level do sangue que derramamos, dos latrocinios e ra
pinas que fizemos entre elles!

(*) A palavra tapaiúna é uma aglutinação de tapûia


úna , isto é. tapuio preto .
88 CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’

Mestiço, mulato. Cariuóca . (*)


Escutar , ouvir. Iap çáka , ceno.
O que. Mahá .

Você ouvio o que eu Receno ana será mahá


The disse?
xa nhehe nahá ?
Eu não ouvi a falla Ixé intí xa ceno inhe
delle .
henga .
Que falla tu ouviste? Mahá nhehenga tahá rẹ
ceno?
Eu ouvi a falla do negro.
Ixe xa ceno tapaiúna
nhehenga .
Tu ouvisle a falla do Receno será caríua nhe
branco?
henga?
Eu ouvi a falla delle.
Ixe xa ceno i nhehenga.

Tirar. Iuúca .
Você vai trazer alguma
cousa?
Rẹrúri será mahá?
Eu vou trazer alguma
cousa.
Ixe xa rúri mahá?
Seu pai mandou buscar Ne paia omunú será re̟
alguma cousa? rúri mahá .
Mandou buscar leite. Ahé omunń xa rúri ca
miiúk❜ce.
De quem você tirou Auá cuí tahá reivúca
essas batatas? nhahá iut ca itá?
Eu as tirei da roça do Xa iuúca aitá tapaiúna
negro. cupixáua cuí.
Você trouxe batata ama
Rerúri será iut ca itauá ,
rella ou batata verde?
o iutica iakira?

(*) Cariuoca , é composto de cariúa branco , e oc


tirar O: tirado do branco , parte de branco , mestiço .
PARTE PRATICA 89

Saudação

Bons dias. Iane coema (nossa ma


nhã ) .
(Respondem) . Indaue .
Como passa? Maita reçaçáu?
Bem . Ce catúnte (ce catú ete),
Boas tardes . Iane carúca (nossa tar
de) .
(Respondem ). Indaue.
Boas noites . Iane pituna(nossa noite) .
(Respondem) . Indaue.
Entre e assente- se ; o Reike reuapica . Mãhá
que está fazendo? ta remunha reiko?
Venho ter com você. Xa uíre ne pire.

Para traduzir estas phrases: mais do que, melhor do


que, peior do que, segue-se a mesma fórma do compa
rativo que expuzemos atraz .

0 que é mais verde : a Mãháta iúkira pire : mi


folha da arvore ou a aguará cahá , o paranauaçú ¿?
do mar?
A folha da arvore é mais Mirá cahá iak ' ra pre
amarella do que a agua paranauaçú ¿ cuí .
do mar.
Quem é melhor: o ho Auáta catupire : caríua o
mem branco ou o homem tapaiúna?
preto?
O branco é melhor do Caríua catupire tapaiú
que o preto . na çuí.
0 que
O Mãháta ipurãga pire :
é mais bonito :
branco ou vermelho?
murutínga o ipirănga ?
O branco é mais bonito Murutínga purăga pire
do que o vermelho . pirānga quí .
90 CURSO DE LINgua tupi ' vivA OU NHEHENGATU’

Para traduzir esta expressão : menos que , ou me

nos do que, elles servem-se de miri pire, menos mais ,


que , com a transposição propria á lingua portugueza ,
faz : - mais menos. E' d'isto que resulta a expressão

popular mais menos , tão vulgar no povo do interior do


Brazil . Há mais gente lá do que aqui? A esta per

gunta, o povo do interior, quando quer responder que


ha menos , diz assim : - ha mais menos.

A palavra pouco, quando exprime que a acção do


verbo não foi completa ――― como: dormí pouco, andei

pouco , pouco bom , pouco bonito , traduz-se por miri,


que significa pequeno . Xa keri ana miri , durmi pouco ;
xa uatá ăna miri , andei pouco ; catú miri , pouco bom ;
puranga miri , pouco bonito. Como estás? - ·Eu estou

sinho bom . Esta segunda oração , que é uma corrup

ção mimosa do portuguez , prende- se á fórma tupí


enunciada n'esta regra . ,

Um outro modo de exprimir diminuição na acção do

verbo , ou no attributo expressado pelo adjectivo , é a


palavra xinga . Reçarú xinga ixe - espera-me um
pouco.

Quem demorou mais , Auáta oiko uãna pucú


foi você ou elle? pire, iné o ixe?
Eu me demorei tão pouco Ixe xa iko uana pucú
como você. miri pre ne iaué .
PARTE PRATICA 91

Vocêjá vae? Indé reço ana?


Eu já vou; espere-me Ixe xa ço ana; recarú
um pouco . xínga ixe .
Quem trabalha mais é o Auáta opurauke pre:
homem , ou é a mulher? apgá la o cunha?
Entre os tapuios , a mu Tapia piterape cunhã
lher trabalha tanto como o itá opurauke maí apgaua
homern .
iaué.

-
Para traduzir esta expressão : tanto como , elles
servem- se de mai iaué, como bem , ou como igual , que
estes sentidos tem o discillabo iaué.

Você comeu tanto como Iné reú ăna será maí


nós? iane iaué?
Nós comemos tanto como
você. Iaú ana maí ne iaué.

Eu fallo menos do que Xa nhehe mira pire ne


Nocê.
çuí .
O que anda menos : é a Maháta uatá miri pre
preguiça ou o caramujo? será: oli ou uruá?

Formação de nomes . - Se ben que tenhamos de des


envolver adiante as regras que presidem a formação dos
nomes, comtudo diremos em resumo o seguinte :

Em geral forma-se substantivo de um verbo , unin

do-lhe a terminação ára, çára, nára , ou çáua. Assim ,


fazer,munhã ; autor - munhãçara ; facto, obra , acção :
munhãçáua . As tres primeiras indicam o agente, a
ultima indica a acção, ou o lugar da acção.

*
92 CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ t

Depois dos exercicios que se seguem , quando o leitor


já estiver mais familiarisado com a lingua , desenvol
Est
veremos a regra que ficará com grande facilidade sa
bida desde que, na pratica dos mencionados exercicios,
ella se tiver manifestado à sua observação .

Observação . Com as lições antecedentes o leitor


familiarisou-se já com as fórmas mais usuaes da lingua .
Antes de passar aos exercicios que se seguem aconse
lhamos que faça uma recordação dellas, lendo sempre
alto para habituar o ouvido com os sons da lingua .
Os exercicios que se seguem darão praticamente a
conhecer novas fórmas grammaticaes, assim como
reproduzirão as que já ficaram atraz conhecidas, de
modo a tornal-as familiares ao leitor.
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 93

EXERCICIOS

Estes exercicios, como as anteriores lições, foram


redigidos segundo o methodo de Ollendorf, sob a
regra de que, nas palavras de uma pergunta estão
quasi sempre comprehendidas as palavras e gramma
tica da resposta , e que as regras grammaticaes
fixam -se com grande facilidade na cabeça , desde que
se as ve praticamente repetidas em um numero grande
de exemplos. Redigi estes exercicios de modo que , com
Os vocabulos de que já nos servimos nas lições ante
riores , e com os que se vão novamente aprender,
o leitor ficasse possuindo cerca de dous mil , nos
quaes estão todas ou quasi todas as raizes mono
syllabicas da lingua . Na redacção dos dialogos de
Ollendorf elle presuppõe o homem que viaja pela

Europa ; como as necessidades do que tenha de viajar


pelo interior do Brazil sejam mui diversas , tive de acom
modar os dialogos a taes necessidades , procurando de
preferencia familiarisar o leitor com aquella massa de

palavras que lhe seria ntil nas suas relações com os


selvagens
.

I'm dos melhores methodos de aprender consiste

em escrever a parte portugueza do dialogo e depois ir


compondo em voz alta a parte tupí.

I 1

Ter vontade, desejo de: iumutári :


ainda está com vontade: oiumutári
raì: já está com vontade: oiumutári
94 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

ana. Querer: putári ; concertar: mu


katúru, mugatúru .

Tendes vós ainda vontade de comprar a salsa do

meu amigo?-Reiúmutári (*) será repirẹpãna çalsa rapú


ce camarára?-Eu tenho ainda vontade de comprar , mas

já não tenho dinheiro . - Xa iùmutári ra xa pire


pāna arāma; intí xa rekỏ cẹcuiára . —O seu camarada
já está com vontade de dormir? -Ne camarára oiú

mutári ăna será okeri? -Concertar, mukatúru . —


Mande concertar a tolda da minha canoa : -Remuka

túru kári ce igára pãnacaríca .


Queres tú? -Reputári será? ――――
- Eu quero : - Ixe
-
xa putári . Quer elle? - Oputári será ahé? - Tú
queres. -Re putári . - Nós queremos : - Ia putári .

-Elles querem : -Aitá oputári . -Queimar : -- Capí :


- Aquentar : Muaçú . - Lavar : Iaçúca . - Rasgar
Muhi , mucurúca . - Minha roupa: Ce maha .

II

O verbo ço, ir, faz no imperativo


cóì, que se lê: cóin. Exercicio sobre
as seguintes expressões: ir em, ir á;
estar em; fórmas negativas e affirma
tivas. Sou bom, estou cançado; comer,
beber, fazer, trabalhar , etc.

(*) Já observámos a pag. 13 que nesta lingua


muitas vezes o p se muda em m; iú mutári, é composto
de iú reciproco e putári que mudou o p inicial em .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 95

Vá: Coin . - Em casa : ócopé (*) . - Para casa : oca

keté. - Estar em casa : iko ocopé . - Estar em casa.


do homem: iko apgáua ócopé. - Vá a . casa do ho
-
mem: Recóin apgáua ócopé. Elle está em casa
do meu amigo : ahé oiko ce camarára rócopé. Elle
foi a casa de meu pai : ahé oço ana ce pae roca kete.
Estou em minha casa: xa ikó ce roca opé. - Na tua :
-
xa ik ne roca opé. ――― Na delle : çóca opé . Está
em casa de alguem : oiko amú auá rỏca upé . —Vá a
――――――――
casa de alguem : recōin amu auá róca upé . Não vás
a casa de ninguem: intí reço auá roca upé . — A casa
de quem você quer ir ? Áuá roca upé tahá reçỏ putári?
-Não quero ir a casa de ninguem : Intimahã xa çỏ
putári auá róca opé. ― Em casa de quem está vosso

PANĚLAE
KENAAN
irmão? Auá róca upé tahá oiko nẹ mỹ? - Elle está em
nossa casa : ahé oiko ianẻ rỏca opé. Eu sou bom:
ixe catú. ―― Você é bom: inė icatú . - Elle está

cançado: ahé imaraári. -Elle quer beber: ahé où


putári . ---
— Elle quer comer alguma cousa : ahé où pu
tári mahã . —Você quer fazer alguma cousa? Rẹmunhã
putári será mahã ? -O que quer beber o seu irmão?
Māháta ne kļujra oú putari? ( *) — Elle quer beber

Ocopé é uma contracção de óca , casa , e pospo


sição opé ou upė , ná .

(*) Já observámos atraz que a palavra irmão tra


duz-se indifferentemente por mu ou kura .
EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF 96

boa caxaça : ahé où putari cau catú. E' certo


que elles querem comprar uma canòa? Çupi será aetá
opirepana putári iepé ¿gára? -E' certo : Çupi tenhẹn .
-Você quer beber alguma cousa? Reú putári será
maha ? --- Eu quero beber agua : -Xa ú putári ¿ . —Eu
não quero beber nada : Inti mahã xaú putári mahā .
-Você quer trabalhar? -Repurauke putári será? -Eu
quero trabalhar, porém eu estou cançado . - Xa pu
rauke putári ; iepé ixé ce maraári .

III
T
Exercicio sobre os verbos : apa
nhar, procurar, levantar, assar, cosi
nhar, aquecer, layar, ter vergonha,
esperar, ir, vir,. levar, mandar ; de
manhã, de tarde, meia-noite, etc.

O que é que aquelle camarada quer fazer? Maháta


nhahă camarára omunhã putári? -Elle quer apanhar

uassahy : Ahé opoú putári açahí . - Você quer ir vêr


caça? Recicári putári será cuú? -Não , eu quero ir
-
procurar peixe: Intimahã , xa cicári putári pirá . — O
que você quer levantar? Mãháta re umpuãmo putári? —
Eu quero levantar este esteio : Xaumpuãmo putári
quahá oca pitáçocáua (segurança da casa) . ――― Você

quer comprar esta canoa ou aquella? Repirepana pu


tári será quahá igára o nhaha? -Eu quero comprar
ambas: Xa pirepâna putári mocoin . ――― Você quer as

sar peixe? Remixíri putári será pirá? -- Não ; eu quero


uma panella para cozinhar : Intimahã ; xa putári iepé
CURSO DE LINGUA tupí viva OU NHEHENGATU’ 97

panera xa mimó arama . ――― Você quer fazer alguma

cousa? Remunhã putári será mahã ? -Eu quero aquen


tar agua para lavar uma ferida : Xa muacú putári ¿ xa
muaçúca arama iepé pereua . - Você quer fallar comi
1
go? Renhehe pulári será ce irúmo? -Eu quero fallar
com a sua irmã: -Xa nhehe putári ne rendera irúmo .
-Eu tenho vergonha de fallar com ella : Xa ti xa
nhehe ahé irúmo . — Nós queremos esperar a maré
aqui : Iaçarú putári paranauike (*) ike . ――――― Vamos espe
rar mais adiante , porque é melhor : Iá çó iaçarú tenoné
―――― Onde
catú pire. Carpinteiro mirá iupanaçára (*) .
estão os remadores? Mamé tahá oiko iapucuiçáua ?--On
de você quer ir agora? Mamé kete tahá reco putári cuhire?
Queres tu ir a casa do meu irmão? Reço putári será
ce mu roca kete? -Eu quero ir lá : Xa çó putári aápe .
-Vosso tio está em casa? Aiqué será ne tutira oca
opé? — Elle está lá: -Ahé oiko aápe. - Levar : raço .

-Leve fogo para minha irmã : -Rẹraço tatá ce rendera


cupé . - -Vem cá : iúri ike . — Vai lá : Rẹcoì ápe . —Você

quer mandar um recado para meu pai? Remundú pu


tári será quecatú (*) ce pae çupé? -Quando você
quer mandar? Mairamé tahá remundú putári? -Eu
quero mandar agora : Xa mundú putári cuhire.

() Paraná, rio, ike, enche; é o refluxo ; paraná


tipáu , agua do rio acaba; é a vasante ou fluxo da
maré.

(*) Mirá iupanacára , o lavrador de madeira .

() Quecatú significa recado e lembrança .


98 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

Queres tu ir a alguma parte? Reçó putári será amu


kete? Não quero ir a parte nem uma : Intimahã xa cỏ
putári amú kete . ― Eu vou de tarde : Xa ço caharúca
ramé. -- De manhã : Coēma ramé. - Eu vou ao meio

dia: Xa çó iandára ramé. - Meia - noite : Picaié.

IV

Poder fazer, e saber fazer, tradu


zem-se pela mesma fórma : -munhã
quáu. Verbs: cortar, levar, fallar
de mim, com, sobre, acerca, dar, em
prestar, viajar, etc.

Você pode fazer uma rêde? Remunhã quáu será iepé


kiçáua? - -
Eu posso fazer: Ixe xa munhã quáu.

Eu não posso fazer : Intimahã xa munhã quáu . Elles
podem fazer: Aitá omunhã quáu . - Seu irmão tem uma
faca para cortar mato? Ne mu orekỏ será kicẻ omunúca

arăma cahá? - Você quer ir a minha casa? Reço pu


tári será ce roca kete? -Eu quero ir, mas quero levar
meu filho : Xa çó putári ; maí xa raçó putári ce ra ra (*) .
-Eu quero fallar com sua mãi : Ixẻ xa nhehe putári nẹ
mãia irúmo . —Eu : Ixe. - De mim , a meu respeito : Ce
rece . - Elle fallou de mim : Ahé onhe ce rece.
――――
Elle fallou de você : Ahé onhehe ne rece. - Você
fallou delle : Inde renhehe i rece . - Você fallou a mim:

(*) O pai diz: ce ruira ; a mãi diz : ce menbira; a


razão é a que damos no Dicc .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU 99

Inde renhehe ixé çupé. ―― De ti: Inde rece. - Delle:

I rece. - De nós: Iane ręce . ―― Para nós ; lane arăma .


-Para elle: I xupé . - Para elles : aitá çupé. - Com
nosco: Iané irúmo . - Com elles : Aitá irúmo . - Você

quer me mandar alguma cousa? Nde remundú putári


será ixe arama mahã? — Eu não quero te mandar nada :
Intimahã xa mundú putári iné arama maha.- Eu

quero dar a você uma pacova : Xa mehe putári inde


cupe iepé pacóua . Você pode me emprestar tua ca
noa? Repurú quáu será ixe arama ne igára? -Eu não
posso lhe emprestar minha canòa : Intimahã xa purú
--
quáu ce igára . Porque eu teuho de fazer uma via
gem: Xacemoputári recé okára kete . ( ) -Elle quer
-
matar o meu gato : Oiucá putári ce pixana . Porque
O meu gato comeu a gallinha delle : Ce pixănúa ou rece
- Quant
i çapucaia . os arcos você tem? Muire uirapára
tahá rereko?-Eu tenho muitos : Xa reko cetá .

Exercicio sobre os verbos : mandar,


responder , dansar, estar, pescar, ca
çar, remar, estar cansado , assim
mesmo, comtudo etc.

Quem é? - Auá tahá ? - Sou eu: ―― Ixe. ― - Para

quem você manda isso? Auá, çupé tahá re mundú


nhaha? O que você manda levar? Maháta reraçó kári?

) Xa cemo putári okára kẹte litteral :


fó(* Sahir quero
ra para.
100 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

-Eu mando levar fogo para meu pai : Xa mundú oraçó


tatá ce paia çupé . -Responder çuaxára . ――――― Respon
der ao homem Çuaxára apgáua çupé . — A quem
Você quer responder ? Auá cupé tahá reçúaxára

potári? - Eu quero responder a meu irmão : Xa çua


-
xára putári ce mu çupé . Você quer responder a
mim? - Reçuaxára putári será ixe arama? - Quero
responder: - Xa çuaxára putári . - A dansa mu
―――
rac , ou puraci. Você quer ir dansar: Reço pu
tári será repuraci? - Elles estão dansando em casa de
minha irmã : - Aitá opurac oiko ce rendera roca

opé. Você quer ir la dansar? Reço putári será re
――――
puraci aápé? Eu quero ir la : -Ixẻ xa çỏ putári ápe .
-Vosso pai está na canòa? Ne paia oiko será igára
- Onde está o homen? Mamé tahá oikỏ apgaua ?
opé?

-Elle está na roça : Ahé oikó cupixápe . ( ) Roça :

cupicháu : - Eu agora vou no lago pescar : Ixe cuihre


✔-
xa çó ipáua kete xa pínaitica arama . Lago : ipáua .
-
Pescar: pinaitica . Eu estou pescando : Xa pina
tíca. (**) Eu agora vou caçar : Ixe cuhire xa cỏ xa ca
hamunй.-Caçar : cahámunu . -Quem quer responder

ao meu patrão? Auá tahá oçuaxára potári ce patrão

(*) Roça : cupixáu , ou cupixáua . Na roça : cupixápe ;


a posposição pé , na , aglutina- se no vocabulo, o qual
perde a ultima letra .

(**) Pinaitica , pescar de anzol ; picática pescar de


rede. Piná ou pindá anzol ; picá rede de pescar ;
kicána
1.0 rede de dormir.
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU ' 101

çupe?-Ninguem quer responder : Intímahã auá oçua


xára putári. -Quem quer responder a esta carta?
Auá tahá oçuaxára putári quahá papera? - Elle não
- Você
the quer responder : Ahé intí oçuaxára putári.
- Eu
quer ir ao lago? Reço putári será ipíua kete?
não quero ir ; mas meu irmão quer ir : Ixe itímahā
xa ço putári ; ce mu nhu oço putári . - Seu pai está
cansado? Ne paia (*) imaraári será?-Elle está cansado ;
comtudo elle vai remar : Ahé imaraárí ; iaué tenhě oco
oiapucúi .

VI
E

Verbos: fazer, ajustar-se, ganhar.


D'aqui para. Cahir, fundo, canto,
perto, ao lado. Passear, agora , logo.
Buscar, conduzir. Fundo d'agua, 0
fundo da caixa, fundo da canoa, etc.

Que tendes vós a fazer? Manháta rerekỏ remunhã


-
arāma? — Eu não tenho nada para fazer : Intímahā
xa rekỏ mahã xa munhã arama . - Com quem você
quer se ajustar? Auá irúmo tahá rẻiko putári? (· ) —Eu

( Já observamos a pag . 65 que os indigenas que


estão em contacto com os brancos não usão do voca
bulo tupí túba para traduzir a palavra pae ; servem - se
do vocabulo portuguez .

() Ajustar; não tendo elles a instituição , não


tinham a palavra para expressal-a ; hoje dizem : com
quem queres estar? como equivalente a isto: com quem
te queres ajustar? Este modo de exprimir é commum
ás bacias do Amazonas e do Prata .
102 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF
--

quero me ajustar com você: Xa 1ko putári ne irúmo .


- Quanto você quer ganhar? Muire tahá repotári?

De quem tu queres fallar? Auá xií tahá rẹnhehe pu


tári? - Eu quero fallar do branco : Ixe xa nhehẻ pu
tári caríua recé. ―――――――― Eu vou d'aqui a casa de meu pai

para fallar com o Joaquim: Xa çó ki xií ce pai roca


kete xa nhehe arama Joaquim irúmo . ---- Eu tenho

muita cousa que conversar com elle: Xa reko retẻ mahã


xa puruguetá arama ahé irúmo. -Onde está a minha

espingarda ? Mamé tahá oiko ce mukáua? -Está no


canto da casa: Oiko oca openaçáua opé . (canto , ope
naçáua). - O meu arpão cahiu no fundo d'agua : Ce
itapúa oári uána paranã ipipe opé .

(Cahir, ári. Fundo : pipe . Fundo da caixa :

patuá ripipe. -Fundo da canòa : igára ripipe: ――――


Fundo d'agua: iripipe. -No canto do fogo : tatá ruake.
(Ruake, ao lado , junto . - Perto da rede (de dormir) :
kiçáua ruake . )

Vamos passear em minha casa : Iaco iauatá ce roca


- -
opé: - Lá é muito bonito: Aápe iporãga rete . — Você
quer mandar buscar as pacovas que estão lá ?

Remundù putári será ipiama pacouaitá oiko uahá


aápe? __ Eu não tenho agora por quem mandar bus
cal- as : Intí xa rekỏ cuhire auá xa mundú arāma ipiāma .

(Buscar , trazer : ipiama.- Agora : cuhire . -Logo .


curumiri.)
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’' 103

VII

Exercicio de verbos no conjunctivo ,


futuro , participio . Por que. Sahir,
partir, ficar. Aqui , alli, acolá, no
alto, em riba , em baixo , em frente,
adiante, ao lado , furar, abrir, etc.

Eu mando buscar logo, quando tiver uma pessoa para


ir: Xa mundú curumiri ipiama , xa reko rame auá xa
mundú arama . -- Esta tarde eu hei de ir fallar com

Você: Quahá carúca ramé xa çó curí xa nhehe ne irú


-
mo. Nós temos muito que conversar: Ia reko rete

mahă iapurungueti arama . ―― Esta manhã eu estive


no porto fallando com o Joaquim: Quaha coēma xa ikó
igáraupáua upé xa nhehe nhehe Joaquim irúmo .
Diga ao carapina
ráiúpanaçár a que concerte a canoa : Renhehe mi
çupé omugaturú arāma {gára . Diga a

seu irmão que venha fallar comigo : Renhehe ne ku ra


cupé oúri arama onhehe ce irúmo . - Elle não póde

agora vir fallar com o senhor: Cuhire ahé intí oúri


quáu onhehe ne irúmo . -Por que tem muito que
fazer : Mahá recé ahé oreko omunha rete mahã . — Diga
á nossa gente que nós havemos de sahir com a maré

da noite : Renhehe iane míra çupé iac mo paraná


pitúna ramé.
Sahir: Ce
mo . -Ficar em casa : Pitá óca opé . ·――――
Elle fica em ca : Ahé op Elle sahe
sa itá oca opé .
fóra de casa: Ahé oc
emo óca çuí . - Aqui : ike.

Alli : mími . —Acol : Aápe . -No alto , em riba : Iuaté .


á
104 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

-Em baixo : Iuipe.- De banda : ruake . - Em fren

te: tenondé, tenoné . - Ponha ahi : Enữ ápe . -Ponha


debaixo da mesa : Enu mesa uírpe . <p > Eu puz em riba
――
da mesa : Ixe xa enu mesa áripe . Eu puz junto da
mesa: Ixe xa enữ mesa ruake. -Eu puz no canto da
casa : Xa enй oca openaçápe . - Feche aquella janella :
---
recknaú nhahã okena mirı . — Fechar: cikináu .
Abrir: Pirári . ---- Abra a porta : Repirári okena .

VIII

Exercicio sem traducção portugue


za. - Recordação dos verbos antece
dentes. Segurar, morrer, mover, pedir,
amar, esperar.

(Vão entre parenthesis as palavras que ou não se


tem empregado , ou ainda tem sido empregadas poucas
vezes . )
Mairamé tahá recemo putári?

Xa cemo putári cuhire.


Repitá (ficar) putári será ike?
Xa pitá putári . 1
Reço sera?
Xa ço .
Ahé oco putári .

Iane iaço putári .


Mãháta reço remunhã ?

Xa ço xa puraci, xa nhehengàri (cantar) .


Iné reço será ne mu roca opé?
Ixe xa có çoca opé , ára iaué iaué (todo dia) .
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OUNHEHENGATU' 105

се mu?
Quáu (conhecer) . Ine requáu será cẹ
Ixe intí xa quáu ahé ; xa quáu nẻ rendera .
Precisar. Putári rété (*) Ne putári rete será qahá kicé?

Ixe xa putári rete ahé .


Ixe intí xa putári ahé.
Mãháta (de que) reputári cuhire?
Ixẻ intimahã (de nada) xa putári .
Ahé oputári será dinhero? (*)
Ahé oputári rete ; auá tahá intí oputari?
Iné repítá putári será ou recèma putári?
Xa pitá putári , xa keri arama (para dormir) .
Ixe inti xa pitá putári ; xa cemo putári , quahá
carúca ramé .

Quahá apgaua opitá putári será ike?


Ahé
oço putári ipaia oca kete.

Ne reço será cahá kete?


Ixe intí xa có cuhire; uirande (amanhã) xa cỏ .
Ne mu oçó será paraná kete?
Ahé intí oço put
ári cuhire .

laçó ipiama (buscar) ne camará ( *) itá .


r a

(*) As raizes significam querer muito .


)
*
co( ind nas não usavam de moeda ; algum
mmerOscio, no ige
entretanto , se effectuava entre elles , ]por
meio de troca; a palavra que exprime troca é ce
cuiara , qu faz rec
e uiára quando o agente é um
pronome da 1ª ou.de 2ª pessoa .
camaradaA palavra tupí irumoára significa companheiro ,
; usam, porém , da palavra corrupta portu
gueza ――――――――
camarára .
406 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF ·

·
Iane intí iaço cuhire.
Maha tahá reço remunhã ne roca opé?

Ixe xa co xa maú (comer) xa iúmac xa iko .


Iné reço será tuxána roca upe?
Ixẻ intí xa co aápe; xa çó ce rendera roca opé.
Ine recó será opai -ára (todo dia) paraná opé?
Xa çỏ amu ára (alguns dias) ; amй ára intí xa ço.
Reiumutári será remahã (vêr, conhecer) cẹ mu?
Xa iumutári rete xa maha ahé.

Reputárí será cuh re ne ruua ita?


Intimaha xa putári iuiua ; anhu tenhè (porém) xa
putári m/rapára .

Penhe reputári será cuhire igára?


Intimaha reputári; iareko rece iang mahã .
Reputári será ixe? Intimahã xa putári ing .

Segurar, pitaçóca . Eu seguro , Ixẻ xa pitaçóca .


Morrer, mano ; mover , iaqirári ; poder , quáu ; tomar,
picirú; pedir, iúrure ; amar, çaiçú ; esperar, çaárú , ou
çarú.

Ine reçaicú será nợ ma Xa çaiçú ahé . Nợ mã çaicu


será inde ? Intimahã oçaiçú ixẻ . Recaicú ixe, será ?
Xa caicú iné . Auá tahá recaiçú ? Iacaicú iane
renderaitá . Măháta remunha putári quahá apgáua
irúmo? Xa maha pulári auh ahé. Maháta remehe
cẹ rendera arama? Xa mehe ixupé iepé vestido . (A
elle, a ella, ixupé) .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 107

IX

Emprestar. Nem . Acabar. Narrar,


referir, contar. Novo , de novo . Dor
mir. Mudar. Tudo isso .

A quem você emprestou a sua roupa ? Auá cupé


- Intimahã
(mahã, cousa) . —
tahá repurú nẹ mahā itá
xa purú auá çupé. - Você já acabou de fazer a canòa?
-
Rẹ umbáua āna será remunhã ¿gára? — O tuchaua
vende a canoa delle ? Tuxȧua ovendere será igára?
Elle nem vende, nem dá , nem empresta : Intimahā
ovendere, iuri intí omehe , iuire intí opurú . — Você
já vio a minha casa bonita? Remahāna será се rúca
poránga?
-Eu já a vi: Xa mahāna.- O que conta
de novo o seu irmão ? Mãháta ne mu ombéu picaçú ?
-Elle não conta nada de novo : Intimaha ombéu

mahã piçaçú . — Quando seu pai vai á cidade? Maira


mé tahá ne páia oço mairi kete? -
Elle vai amanhã
Ahé oço uirandé . - O que vocês vão fazer? Mãháta
pecó pemunha? -Nós vamos fazer a nossa roça : Iaço

iamunhã ianẻ cupixáua . -· Você conhece este homem?


Requáu será quahá apgáua? - Eu conheço elle desde
pequeno: Xa quáu ahé taina çuí uẻ.— Eu não conheço
quem é elle: Intimahã xa quáu auá ahé. - O que você
vai comprar? Manháta recó rep/repana? - Eu vou
comprar mantimento para levar: Xa p'rẻpāna timiú
xa raço arama .

O que você leva abi? Manháta reraço aápe ? Eu levo


108 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

aqui muita cousa : ―――――――――――――


Xa raço ike mahã ceiía . Elle
mandou para você um recado? Omundú será que- catú
(recado) nde arama?-Elle me mandou : Ahé omundú.

-Varrer: Piíre . ――――- Você já varreu hoje a casa? Re


-
piíre ana será oiíi (hoje) oca? — Eu ainda não varri
hoje, porque não tive tempo: Intí xa piiri oiii . inti xa
-
rekỏ ára . — Você já mandou a farinha para casa de
seu pai? Remundú ăna (já) será uhí ne paia roca kete?
-Eu ainda a não pude mandar , porque não tive di
nheiro para comprar: Intirai (ainda não) xa mundú
quáu mahá ręce ( porque) intira xa rękỏ cecuiára xa
prepana arăma. - Eu faço muita cousa cada dia : Xa
munhã rete mahā opain ( todos) ára upé. - Cada dia

eu como, ando , passeio , trabalho e durmo: A'ra iepe


iepé xa maú (como) xa uatá , xa purauke xa keri .
Tem tempo para fazer tudo isso? Rereko será ára re
munha páua nhahã (tudo isso)? ― Eu tenho tempo
para fazer tudo isso e para fazer muito mais: Xa reko
ára xa munhã arama rete mahā pire . - Mudar : Mu
tirica, muçaçáu .

Achar, procurar . Em vez , em


lugar de... Custoso . Conduzir. Es
cutar. Acender, apagar fogo .

Achar: Uacemo. P Você achou o que você estava


procurando ? Reuacemo será nhaha recicári uahá
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 109

reiko? -Eu achei outra cousa em lugar do que eu


estava procurando : Xa uacemo amú maha xa
cicári xa iko uahá recuiára. ― - Aquillo que eu procu
rava não encontrei : Inti xa uacemo nhahã xa cicári
uahá.Você me trouxe mandioca em vez de maca

chera: Rerúri ixe arama maniáca macaxera recuiára.


-Você quer aprender lingua geral? Rẹiúmuhé putári
será tap ia nhehenga? - Vamos aprender: Iaçó ia
iumuhe . ――― Será muito custoso aprender lingua geral?
Juaçú rete será míra oiúmuhe nhehengatú? - Não é
muito custoso : Intimaha uaçú rete . -- E' mais custuso
entender: Iuaçú pire míra oquáu . - Fallando todo
dia entende com facilidade : Renhehe ramé opaì ára upé
requáu curútéuára ; ( curuté-uára , n'um instante ) .
-Conduzir : Ceií. - Conduza estas cousas para a

canòa: Recei quahá mahã itá gára keté. -Aprender :


Iúmuhe .
-Brincar : Muçarai . - Você está brincando
em vez de aprender ? Reiumuçará reiko reiumuhe
recuiára? - Eu aprendo em vez de brincar : Xa iumu
he xa iumuçara recuiára . ― Este homem falla em
vez de escutar : Quahá apgáua onhehe , oiapiçáca re
cuiára. -
Acender o fogo : Mundica tatá . ――― Apagar o
fogo: Muheu tatá . -Acenda o fogo, porque está fa
zendo muita fumaça: Re mundica tatá ; tatatinga rete

rece. -
Olha o fogo que está quasi apagando : Rema
hã, tatá ueu putári ăna (ăna , já) . -
Elle acende o
fogo em lugar de apromptar a comida: Ahé omundica
tatá omunhã recuiára temiú . Elle está aprendendo
110 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

a fallar lingua geral: Ahé oiumuhe oiko onhehe nhe


hengatú.

XI

Exercicio somente em nhchengatú .

Ne mu oiumutári será ne rece?


Reiumutári será cẹce?
Xa iúmutari cece (delle) .
Tu xáua ovendére será iauára?
Ahé ovendere .

Remundú será apucuitáua mirá iupănaçára (cara


pina) roca ope?
Xá có xa mundú .
Repiíri (varreste) ana será ☀ca?
Ixe intí xa piiri : auá opiiri ce camarára.
Auá tahá op repãna pirarucú nhahã itá xií (daquel
les) ?
Nhahã cariuáitá opirepāna.

Auá tahá ocelí quahá tapiíra?


Quahá curumi oceЛí.
Reiumuhé será ?

Ixẻ intí xa iúmuhẻ quáu .


Manháta reiumuh 2 reiko?

Ixe xa iúmuhé caríua nhehenga .

Auá çúi taha reiumutári?


Xa imutári opãi maha catú.
Reiúci será reú xicolate?
CURSO DELINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU ' 111

Intimahã xa iuc xií.


Mahǎ çuí tahá brasilero itá oiuct?
Aitá oiúci opai mahã catú uahá itá xií .

Repirarii ana (já abriste) será ne rokena? (porta)

Intimahã xa pirári putári .


Reco putári será muraci a kẹte?
Intimahã xa ço putári ápe .
Auá taá oruri iauára?
Çurára paranapúra (marinheiro) orúri uăna .
Măbáta remunhãna reikỏ?
Ixe xa mu xa iko (estou rasgando) nhahǎ re muca

turú uahá (o que concertaste) .


Rep'repana será catú uahá uhí?

Xa pirẻpāna catu rẹtę uahá .


Reiumuhe (ler) será reiko ?
Intimahã ; xa iumuhe xa iumuçarái recuiára .
Reputári será kau café recuiára?

Xa putári café kau recuiára .


Auá tahá onhehe oiko?

Mirá iupanaçára onhehe oiko opurake recuiára .


Auá omuiaçúca kiçáua?

Auá tahá omuiaçú (armou) oiko ne camarára ?


Mãháta remunha reikỏ ?
Intamahã xa munhã xa ikỏ mahā .
Mãháta reputári?

Intimahã mahã xa putári .

Xaputári mahã (alguma cousa) .


Mäháta renhehe?
112 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

Intimahã xa nhehe mahã .


Mãháta remahā reiko ?

Xa maha opai (toda) mahã purănga .


Mãháta pé putári?
Iaiumuçárai putári .
Reiúmuhé será tapita nhehenga ?

Ixe xa iumuhe ; Ixe intimahã xaiumuhe.


Ine tapția o cariúa será?
Ahé imac oikó (elle está doente) .
Ahé icatú oikó (está são ou bom) .

Quahá paraná ipucú rete (é muito comprido) .


Quahá gára iatúca retê (é muito curta) . J
Iuúca , tirar .
ú café , beber café ; úį, beber agua . 24

Re ú ăna (já bebeste) será ne puçãnga (remedio)?


Xa ú opa pitúna pupé.

Quando, mairamé ; agora, cuhire ; logo , curumiri .


Quem, auá; o que , măháta ; onde , mamé .
Quantos, muire ; como , măí .
Maí tahá ne rera?
Maíramé reiuire?

Cuire tenhè (agora mesmo).


Mãháta remunhã reikỏ?
Mãí tahá ne paia rera?
Crera Juão.
Auá tahá oikỏ ápe? •
F
Intí auá (ninguem) .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 113

Dias da semana

Domingo, mituú , miteú ; segunda-feira , murakepé ;


terça-feira , nuraké mocoì ; quarta- feira , murake
muçapira ; quinta -feira , çupapáu; sexta-feira , iúcuacú ;
sabbado , saurú .

Não creio que verdadeiros selvagens dividam o mez


em semanas , e menos ainda que os dias da semana
tenham nomes . Os que ahi ficam indicados são

visivelmente o resultado do contacto com os brancos.

Mituú , descanço ; murakepe diz : primeiro trabalho, e

assim por diante . Çupapau , carne acabou , ou quinta

feira ; iúcuacú, jejum , ou sexta-feira .

XII

Exercicio sobre os verbos : mostrar,


fumar , contar , apagar , levantar,
principiar, acabar , ser necessario etc.
Uso destas expressões : boa vontade,
sempre, quando , algumas vezes, etc.

Você me mostra sua casa ? Remuquau mehe (*)

(" Composto de mu , fazer, quáu , saber , mehë dar;


dizem igualmente mucamchê .
114 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

ixe arama ne rỏca ? Eu te a mostro de boa vontade :


Xa mucámehè ce piá xií catú (*) (Mostrar mucámehe) .
Fumo , tabaco : pitima ; eu fumo: xa u pitima ; (eu fumo ,
ao pé da letra, equivale a: eu sorvo fumo) .-Elle fuma
bom tabaco? Ou será pitima catú? Não ; elle fuma tabaco
ruim : ---Intimahã ; oú pitima puxi.- Você sabe con
tar dinheiro ? Requáu sera repári (contar) cecuiára ?

Eu sei contar: Xa quáu xa papári . -Voçe quer
ir ao Amazonas? Reço putári será Corima kete?—
Eu quero ir Xa có putári.

Apagar-se ; ueu ; apagar: mueu .

Você já apagou o fogo? Remueu ana será talá?


Eu ainda o não apaguei : - Ixe intí raz xa muệu . ---
-
Elle está apagando : - Ahé omuu oiko .

Quando tu estavas apagando o fogo levanteste muita


cinza : - Remueu ramé reiko tatá , reumpuãmo rete
tanimúca (cinza) .

Sempre opa ára opé. Muitas vezes cetá i .


Eu vejo a elle mais vezes do que você: Xa mahā

ahé pire i ne çuí .Eu vejo elle menos vezes do que
você: Xa mahã ahé quaiara i pare ne çuí . -
— O que
você diz? Măháta renhehe? - Eu não digo nada : Inti
maha mahã xa nhehe . - O que eu faço? Mãháta xa

(*) Ce piá xií (çuí) catú , litteral : de meu coração


bom , isto é: de boa vontade .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 115

munhã? -Onde vou eu? Mamé kete ixe xa ço? ――


Principiar: Iupirú .

Você já está principiando a fallar? Reiúpirú ana


será renhehe?
-Nós estamos principiando a fallar:
Iaiúpirú iaiko ianhehe . - Antes de principiar a fallar

é necessario aprender : Ianhehe iaiupirú renone (antes


de) catú rai míra oiúmuhe . —Antes de brincar é

necessario trabalhar : Iaiúmuçarái renone catú raín


opuraúké . Para acabar uma cousa é necessario
1
principiar : Opaua arama iépé mahã , catú raín iupirú
(catú raz , é necessario) . ( *) —Para acabar bem é neces
sario principiar bem: Opáua catú arama iupirú catú
raín. -
Quando você quer partir (sahir)? Mãhiramé
tahá rescẻmo putári? - Pretendo partir amanha : Xa

- Eu quero sahir logo que eu


cemo putári uirande . —

esteja prompto: Xa cemo putári ce (*) mahãitá catú ra


meana.

Eu fallo bem? Xa nhehe será catú? - Você ainda


1
falla mal : Rẹnhehe raín puxí. —Mas seu irmão falla
bem: Ne mu nhũ (só , equivale a mas) onhehẽ catú.—
Sua irmã veste-se
GA

bem? Ne renera oiúmundéo será


catú?

tr(
") uzem
ad Catú raì
a ex pr,es
ou rain, significa é bom ainda; assim
são : é necessario.

(*)
A traducção litteral dessa oração é a seguinte :
Eu sahir quero minhas cousas bem quando já estejam.
146 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

XIII

Exercicio só em nhehengatú ou tupi.


Verbos : narrar, chegar, accender
fogo.

Xa nhehe será catu ? Ne renhehe catú rete. Xa u


rete será xa iko ? Intimahã omunhã mahã oú rẹtẻ (não
faz mal beber muito, ao pé da letra não faz cousa
beber muito . ) Xa reko iépé mahã xa mehé arama inde .
Xa munhã quáu iepé igára . Intimahã rẹmunhã quáu ,
intirece ne miráiúpanaçára (* ) . Iaiupirú ianhehe ta
plia nhenhega. Ne reiupirú renhehe ; intimahã rẹ
nhehe puxí . Mamé kete tahá reço ? Marama (para
o que) requáu putári? Xa quáu putári xa mbeú arama
ne paia çupé . Mamé çuí tahá reiúri? Ecoin uana (va-se

embora. ) Ixẻ xa cika (cheguei ) oií Manáos çuí . Ne


requáu será quahá apgáua , ovenderi oiko pitima ? Xa
quáu ahé rete . Mairamé tahá (quando) reço remahā
cęce (a elle)? Xa mahā ahé kuẹcẻ (hontem) . Mae tahá
remuiúquaú ce mu cupe ? (mostras , remuiuquáu) .
Xamuiuquáu ăna ixupé jauarete pirẻra xa iucá uahá .
(Eu mostrei a elle da onça couro eu matei que) . Iaço
ǎna iámaú . (Vamos comer) . Iúre remaú cooquéra
mixíra, (assada) . (Puxiru , reunião para ajudarem - se ;

(*) Esta oração póde servir de exemplo da in


versão desta lingua em comparação com o portuguez
por que, palavra por palavra , diz assim : Não tu fazer
podes, não, porque, tu es carpinteiro, ou : tu não pódes
fazer porque tú não es carpinteiro .
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’ 117

uaiurí é o mesmo que puxiru) . Auáta omundica


putári tatá ?

·
XIV

Verbos: receber, beber mais, beber


menos. Comparativos e superlativos;
carregar, encher, embarcar.

Você já recebeu aquillo que eu te mandei ? Ne rece


beri ana será nhahã xa mundú uahá inde arama? -

Aquillo que você me mandou eu ainda não recebi :


Intimahā rain (*) xa receberi nhahã rẹmundú uahá
ixe arama. -―
Quem bebe mais : são os tapuios ou os
brancos? Auáta oú pire (mais) : tapția itá o caríua itá?
-Os brancos bebem mais do que os tapuios: Caríua
ou pirantă pire tapuția xií .

Máo : puxí . -Peor : Puxí pire . -Pess


imo : Puxí
reté. Bom : catú . ― Melhor : catú pire . - Optimo :
catú rete .
―― -- Mais pequeno :
Pequen : Quaiar .
o a
Qr ―――― Pe : Quaiara rete . ――――
G aiara pire .
ua queniss
nde: Tu i
ruçú . -Maior : Tumrouçú pire . -Maximo :

Turuç ― Preg
ú rete. uiçoso : Iateima , ateima pire ,
iate ma rete:
-Este homem é melhor do que aquelle :
Quahá
apgaua catú pire nhahã xií ou cuí . --
Esta
mulhe
r é mais bonita do que aquella : Quahá cunhã

() Ainda não , intirain , ou intimahā rain.


148 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

puranga pire nhahã xií ou çuí . ―― Este homem é mais

trabalhador do que aquelle : Quahá apgáua murakeçára


― Esta canòa é mais ligeira do que
pire nhaha xií .
aquella : Quahá ¿gára uatá pre nhahã xií . - Ixẹ ca
tupire nhahā apgaua xií . Xanhehe catupire ne

xiíj(*) . Ne puxí rete opa? apgaua xií xa quáu uahá (tu


és o peor homem que eu conheço) .- Carregar: Pura
cári. _______ Carregue essa canoa com lenha: Repuracari
quahá igára iapeá cuí. ―――――― Encha esse pote com mel:
Repuracári quahá camuti íra çuí . Embarcar-se ,
iúruári ; embarcar, ruári . Embarque-se naquella
canoa para me levar da outra banda : Reiúruári nhahã

igára pupé reraço arama ixe çuáindápe kete . - Em


barque essa caixa: Rẹruári quahá patuá .

XV

Exercicio sobre estas expressões: de


quem é? E' meu e ten , é nosso, etc.
Verbos: andar nú, andar vestido,
calçado, etc. Uso destas expressões:
mais cedo, mais tarde. Verbos: casar,
ir-se embora, vender, etc.

De quem é esta roupa? Auá mahã tahá quahá mahã


-
itá? -E' de meu irmão: Ce mu maha . Esta faca é

minha: Quahá quicé ce maha . Este anzol é teu?

(*) Para não estar repetindo , note-se que tanto


dizem cui como xii.
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 119

Quahá piná nẹ mahã será? -E' nosso : Nhane mahã .


-Põe ahi: Renú ápe. - Ponha esse paneiro de fari
nha dentro da canôa : Renu quahá uhí rerú igára
upé. - Você anda nú na cidade? Reutá será chirora
-
¿ma mairipe? Eu ando vestido: Xa iumunệu uatá .
-Calce o seu sapato : Remuneu ne pi rece ne sapatú .
-Intira carúca: Ainda não é tarde . - Coema ete :
Cedo . ―
-Ainda é muito cedo para nos irmos: Coema
reté raín iaçó arama . -
— Você sahe tão cedo como
nós? Recemo será coema ete iane iaué? -Eu saio mais
cedo ainda do que vocês : Xa cemo coema ẹtę pire pelē
-
xií. — Você dorme até muito tarde : Rekere té cuaraci
juaté .
-Eu saio mais tarde do que você: Xa cemo ca
rúca pire pehe xií.

De
quem é este menino? Auá maha tahá quahá
curum miri? -E' meu : Cẹ mahã . -Auá mahã tahá
qualá matirí?-E' nosso: Nhane mahã . --Vosso irmão
é tão rico como você? Ne mu oreko será mahã mai nẹ
iaué? ―――
Elle é mais rico do que eu : Ahé oreko pire
mahā ixẻ xii . —-A tua espingarda é tão boa como a
minha
? Ne mukáua catú será maí ce mukáua iaué? -
-
Aminha é melh q
or do ue a tua : Ce maha catúpire ne
maha çuí
.-
nha? NÇe uí . — A vossa caschaça é tão boa como a mi
kaй catú rete erá ce hau iaué?
Quando vo
cê vai -se embora? Mairamé tahá reço
ana? Eu vou amanh cedo : Xaço uirande coema ete.
ã
-
- Este homem é casado? Quahá apgaua omendaçára
será? - Elle é casado e tem uma mulher muito boa
120 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

――――
Ahé omendaçára; ximiricó catuire reté . A tua faca
é maior do que a minha? Ne kicẻ turuçú pre será cẹ
kicẻ xií? -Ella é mais pequena : Ahé quaiaira pire.

‫ނ‬ A como esses taberneiros vendem o pirarucú? Muire

rupí tahá quahá cariuaitá ovendere pirarucú? -Aitá


ovendere cepiauaçú xií rete .

XVI

Algum dia, alguma vez, uma vez,


para traz. Verbos : cavar, vigiar,
embravecer, queimar. Cedo de mais ;
tarde de mais. Verbos pescar, alagar ,
espalhar.

Voçe algum dia vio o Curupíra ? Remahã será amu


ára opé Curupíra ? Uma vez eu já encontrei um no
matto Oiepé i (uma vez) xa uacemo iepé cahápe.
Como é que elle é ? Maiaué tahá ahé ? Elle é um tapyia
mirim santá paua . O Curupira tem o pé virado para
traz ? Curupíra orekó será i pi çacaquera (para traz) tay

keté ? Cada tirador de salsa tem um vigia por causa


onças : Opain míra opecõin (cavar) uahá oiko salsa
rapú (raiz) , oreko iépé apgáua omanhãna (vigia) arāma
ahé íauára eté xií. Opecoin, cavacar. (Salsa iuua) o
Cahipora só embravece quando queimão o couro de qual
quer caça . Kahipóra onharú (ocaru) míra oçapí
ramé mahā pirera (pirẻra.)

Esta expressão é uma curiosa mistura de por


tuguez e tupi , vulgar no Amazonas e significa : é um
tapuio pequeno todo duro .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ 121

Demais : retéãna. -Eu vim tarde de mais ? Xa iúre


será carúca reteana ? Não ; você veio cedo demais : In
tímahā ; reiúri coema reteana . -Esta canòa é gran

de, para 4 pessoas : quahá ¿gára turuçú rete erundi


míra arāma .-E' tarde demais para nos irmos : Carúca
reteana iaco arama . -Quasi sempre de tarde ha tem
pestade: Opain ára carúca ramé aiqué juitú ažua . -Um
lugar muito bonito para se ir é a ilha da Cotyjuba .
Rendáua (lugar) catú rete míra oco arama Coti
juba cahapo .-Já é tarde demais para nos irmos : Ca
rúca rẹtṇḍna iaço arãma. —Ainda não é tarde ; nos po
demos ir bem. Intirain carúca ; iaço quáu catú. -Agora

não se pode quasi pescar no lago Ararí por que os


campos
estão alagados : Cuhire míra intí opinatíca
quáu catú Ararí ¿ paúapé maharece ipple rain oiko
cemiua (semua beirada) .-O peixe agora não está
nem no lago nem nos ygarapés ; está espalhado pelo
campo: Piráitá cuhire inti oiko ipáua pupé, nem
igarapé pupé ; oçãi (espalhado) ¿páua turuçúçáua .

XVII

Verbos : fazer, dizer, pôr; isto .


aquillo , elle mesmo, nós mesmos,
Verbos: chamar, jogar fóra, apodre
cer, quebrar, molhar, abrir, seccar,
enchugar , tomar, dar, descansar,
acreditar, rezar.

0
que fizeste? Mãháta remunhana? -Não fiz nada :
122 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

Intimaha mahã xa munhãna . —O sapateiro fez os


meus sapatos? Çapatú munhãngára omunhãna será ce
çapatú? - Elle os fez : Ahé omunhãna . - Elle não os
fez: Intimahã ahé omunhãna . - Pôr: Enй . -O que

Você pôz ahi? Maháta reenй ápe? -Eu puz no bahu


toda sua roupa : Xa enu patuá pupé opáin ne mahā
itá. ―――――― Dissestes as palavras? Renhehe ana será mun
guitaçáua? -Eu as disse a elle como você mandou: Xa
nhehe i xupé mãí inẻ remunú uahá . -Isto: quahá .
- Aquillo: nhaha . ― Elle vos disse aquillo? Ahé
--

onhele iné arama nhahã? - Elle me disse isto e não

aquillo: Ahé onhehe ixe arama quahá , intimahã nhahã .


-Você disse a mim? Ine renhehe ana ixe será arama?
-Eu não disse ao senhor: Intimahã xa nhehe ana inẻ
---
cupé. Você disse a elle aquillo? Renhehe será ixupé
nhaha? - Você é o irmão do meu amigo? Ine cẹ mu
camarára será? -Eu o sou: Ixé ahé. -Eu sou elle
mesmo: Ixe ahé tenhe . - Você é irmão do meu cama
rada? Iné ce camarára mu será? -Nós o somos : Aitá
-
tenhẽ nhanẻ. — Você é pagé ou piloto ? Ine paié será o
iacumã pétáçokáu ? - Onde estão os outros? Mamé

tahá oikó amй itá? -Eu não sei onde elles estão : Inti
mahã xa quáu mamé aitá oiko. -Vá chamar os
outros : Reço receno amй itá . ― A quem você está
chamando? Auá tahá receno reiko? -Eu estou cha

mando os outros: Xa cenoi xa iko amй itá . - Onde


elles foram? Mamé tahá aitá oçỏ ăna? -Eu não sei
onde elles foram : Intimahã xa quáu mamé aitá oço
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU' 123

ana. -
Jogue fóra esse peixe que já está podre : Re
ombúre (jogue) ana quahá pirá ocára kete (para fóra)
íúca reteana (podre já muito) .- Para o que você jogou
fóra 1a minha flecha ? Mahá rece tahá rẻombúri okára
kete ce ruiua? -Porque ella estava quebrada e já não
prestava : Mãhá rece opena uana (estava quebrada)
intiana catú. ―――― Abrir : Pirári . —Abra essa caixa , tire

a roupa molhada , e estenda no sol : Repirári nhahã


patuá rẻiúúca nhahã irurú uahá oiko , reombúre
cuaracipe.- Eu já abri a caixa; não ha roupa mo
Thada : Xa pirári ana patná ; intimahā aiqué mahã
irurú . -
Toda a sua roupa está muito enchuta : Opáin
ne maha itá oticḍnga (enchuta) oikọ. —Tomc o remo
d'aquelle homem e traga: Repicirú nhahã apgáua
<
apucuitáua irerúri . —Eu quiz tomar, mas elle não me

quiz entregar: Xa picirú putári ; ahé intí omehe putári .


-Diga
a elle que fui eu quem mandei tomar , para
que elle possa descançar : Renhehe ixupe ixẻ xa mundú
xapicirú kári ahé opituú ( descançar) ręce arama .
Tu acreditas em Deos? Reruiári será Tupãna rece?
Eu acredito : Xa ruiári. Se tu acreditas , como não
―――

rezas ? Reruiári ramé, maí tahá intí reiúmuhê ?


Eu rezo todas as noites : Xa iúmuhe opa? pitúna ramé .

-Eu tenho rezado desde pequeno: Xa jumuhe taina


rece xií (taina, criança) .

XVIII

Verbos: fazer, rasgar, passar, es


124 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

vasiar o rio ou mar . Dentro, fóra .


Verbos : mandar, levar, embarcar,
carregar, limpar, aprender, deixar,
ter certeza, frechar, ouvir , entender.
Longe, perto.

Tendes alguma cousa a fazer? Rereko será mahã


remunhã arama? - Não tenho nada a fazer: Intimahã
xa rekỏ mahã xa munhã arama . - Que fizeste tu
hontem ? Mãháta remunhã kuecẻ ? - Eu nada fiz: In
timahā mahã xa munhãna . - Rasgastes a tua roupa?
Remui será nẹ mahã itá? — Rasguei : Ixe xa mu ana .
Qando foi a dansa? Maenramé tahá muraci? - Foi
ante-hontem: Amú kuecẻ. - Tinha muita gente lá?

Cetá será míra ápe? - Tinha muita gente lá : Cetá



míra ápe . O que fizeram com tanta fruta que eu vi
passar para lá ?
Maháta pemunhã opa uá xií xa
mahã oçaçáu uahá a kete? ― O que é que aquelle
homem disse a você? Mãháta quahá apgáua ophehe
ine arama? - Elle me disse que o rio já está muito
secco para nós fazermos a viagem: Ahé onhehe ixe
―――――
arāma paraná otipáua reteana iaço arama . E você
acreditou no que elle te disse? Nẹ ruviári será mahā
onhee uahá iné arama? Por que não havia de acre
-
ditar? Maha rece tahá intimahã xa ruviḍri ? — Estais
dentro ou fóra de casa ? Reiko será oca pipe, o ocára?
-Eu estou fóra : Ixe xa iko ocárape . - Algumas
vezes estou dentro, outras vezes estou fóra : Amú

ramé xa ikó ocapipe; amu ramé ocárape . - Mandar


CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 125

lavar muiaçúca kári. - Mandar varrer : Piíri


kári. - Mandar levar: Raçó kári. - Mandar em

barcar Ruái kári . - Mandar carregar : Cupíri


kári. - Já --
mandei : Xa mundú ăna . Vou

mandar: Xa çó xa mundú . - Hei de mandar : Xa


mundú curí. - Limpe essa faca Reiúc nhaha kicé .
-Já limpei: Xa iúc! ana . - Onde vocês deixaram a
nossa gente? Mamé tahá pexári iane míra itá? (Xári,
deixar.)
-Eu a deixei a dous dias de viagem d'aqui :
Xa xári mokói ára xa cemo ramé (quando, ramé) . ---

Quem te emprestou essa canòa? Auá tahá opurú nde


nhāhā igára? ―
Foi o seu irmão : Ne mu. - Aprender:
Iumuhe (iumuẻn).— Eu quero ter certeza : Xa ikỏ pu
tári çupí . —- Certesa eu não lhe posso dar : Çupí

retẻ uahá intimahã xa mehẻ quáu indẻ. — O que tu


aprendeste
quando estiveste na escola? Maháta rei u

muhe será mairamé reço escola opé? -Bem pouco


aprendi
, porque o mestre era vadio : Intimahã xa iu

muhe catú , mãhá rece ce iumuençára iatehima rete .

-Se você quizesse tinha aprendido: Reputári ramé


reiumuhe reiko
. ―
Como é que vocês podem frechar
Os pyrarucu
frechar s? Mahí tahá pehe ium quáu pirarucú ?
( , iumй) . — E' desta maneira: Quahá iaué. -
Vocês viram
as aldeas dos gentios ? Re -maha ana será

tapița itá tauá? - Nós não vimos : chegámos perto :


Intimaha
iamahan ; iacica cuake (perto, çuake) .
-
- E' muito longe do rio ? Apecatú retẻ será paraná
çuí?
Não é longe , é perto : Intimahã apecatú ; ike
126 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

nhúnto (ike nhunto:aqui mesmo ( *) .— Que idade


você tem? Muire acaiú tahá rereko? --Eu tenho 20
- 230
annos: Xa rękỏ 20 acaiú. — Seu pai que idade tem?
Ne paia muire acaiú tahá orękỏ? — Elle já é muito ve
lho ; eu não sei que idade elle tem : Ahé tuiué rẹtẻ ăna;
intimahã xa quáu mure acaiú ahé oreko . - Você

ouvio o que eu te disse? Recenữ será mahã xa nhehe


-
ine arăma? Eu ouvi , porém não entendi : Xa cẹnu ;
intimahã xa quáu . - Como não entendeu? Maíta intí
requáu? - Não entendi porque eu não sei ainda bem
fallar a lingua geral : Intí xa quáu maharece intí xa
quáu raín xa nhehe catú tapția nhehenga .

XIX

Fazer barulho, latir, bater , perder


cheirar, cheiro, embravecer, etc.

Barulho: Teapú.- Perder: Canhimo , caima . -Latir:


Çacemo . - Que barulho é esse lá no rio? Mãhã tahá

nhahã teapú paraná opé? —E ' o barulho da pororo ca:


Pororóca teapú . -E aquelle barulho no mato? Nhãhã

teapú tahá cahápe? - E ' o Curupira que está batendo


nas sapupemas : Curupíra opeteca (otucá) mirá rapupé

ma. (*) Onde está aquella cuia vermelha que eu te

(*) Ike nhúnto , aqui no masque , tal é a traducção


que os gauchos do sul dão a essa expressão .

(*) Rapú - raiz, pema chata .


CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 127

e idade dei? Mamé tahá oiko cuia piranga xa mehe uahá nde?
enho20 -Eu a perdi quando a canoa alagou : Xa muca ma
de tem? igára oiupipica ramé. - Vocês são muito descuidados ;
quito ve perdem tudo que se lhes dá : Penhe peiúmucúari nhahā
rete ana; míra omehe uahá penhe arama. -- Eu a perdi porque
- Você ella estava dentro da caixa , e não boiou : Xa mucażma
taphehe maha rece oiko patuá pupé ; intimahã uire (não boiou) .
Xa cenu; -Por que é que os cachorros estão latindo? Maharece
iauáraitá oçacema? -E' porque elles sentiram cheiro
inda bem de onça : Maharece aitá ocetúna iauarete pixé . ――――― E
aqui tem muita onça? Iko rete será iauarete? ---
è inti xa
O barranco está cheio de rastos dellas : Quahá ibitúra

pipóra çuí cetá . - E ellas agora são perigosas? Cuhire


aitá (onharon) ipuxí oiko? --- Nem sempre ; se estão

famintas são perigosas ; mas em estando de barriga


ter,perder
cheia são mofinas : Intimaha opãin ára opé ; aitá
; etc.
jumaci ramé, puxí oiko ; iapoú ( cheia, farta) ramé , pitúa
7. -Latit aitá (pitúa, mofina ) . - Saltam na gente? Aitá opuri
ha laha míra rece? -A's vezes saltam: Amuramé opúri . —
"Ororoca: Onde você mora? Eu moro na ilha de Marajó . Mamé
Nhabi tahá ne roca? Ce roca cahapu Maraió upé.
atenda
s
Hep
Cores
eu te

neção Branco: Murutínga.


-Preto : Pixúna . - Amarello :
Tauá. - Vermelho : Piranga . - Azul : Sużkire .
Verde: Iakire. - Pardo: Ituire .
128 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

XX

Tocar, bater, morder, voltar , ficar,


descascar, furtar. Lado esquerdo ,
lado direito . Procurar. Rio abaixo,
rio acima , do lado de cá, do lado de
lá , no meio , estás triste, etc.

Tocar: Ompú.- Bater: Tucá , ou nupă . --- Morder:

Çuú. Para que tocas o cão? Marama tahá reompú nha


-
hă iauára? Eu o toco porque me mordeu : Xa ompú
oçuú rece ixẻ . Quanto tu me deves? Munire tahá rẻ
devere ixe? - D'aquia pouco eu vou passear pelo
-
mato: Curumiri xínga xa ço xa uatá cahá rupí . -
Quando eu voltar fallaremos : Xa iúire ramè ia iú
-
nhehe . E quando é que você volta? Mairamé tahá
reiure? (Pauacape, no fim de) . ― Eu hei de voltar
d'aqui a tres dias: Ixe xa iure curí moçapire ára
pauaçape pupé. ――― que o senhor fica fazendo lá?
Mäháta ne rep tá remunhã aápe? ― Eu fico por ficar :
-
Xa pitá xa pitá recẻ. Vagarosamente: Meué rupí .
Tres dias é muito tempo : Moçapire ára ipucú retẻ .
E' muito tempo, mas passa depressa: Ipucú rete, oçaçáu
(curutem) curutē. Até onde você vai? Mamé catú

tahá recó? (Mamé catú até onde. ) (*) —Eu hei de ir até
-
Manaos : Xa çó curi Manáo keté catú . — Até quando

(*) Os que já tem contacto com os brancos ser


vem-se mui commummente do vocabulo portuguez
até, que commummente encurtam , dizendo te.
Fiy

129
'
NHEHENGATU
OU
VIVA
TUPÍ
DE
LINGUA
CURSO

Você fica lá em Manaos? Mairamé catú tahá repítá


mími Manáos opé? -Isso eu ainda não sei por ora:
tr, ficar,
Nhaha intiraín xa quáu cuhire . -Adeus , até amanhã :
squerda,
abaixo, Tupana irúmo, xa çỏ raín té uirande . — Adeus , até
lad de -
depois de amanhã : Tupãna irúmo té amú uirandé.
Eu trabalhei até agora : Xa purauke té cuhire .

(Puraque purauké , trabalhar .) — E eu descancei até


Morder:
agora: Xa pituú té cuhire . (Pituú ou mituú , descançar. )
ազն իր -Esta casa é nova? Quahá oca opiçaçú será? (piçaçú ,
Xa ompu nova . ) —Foi feita o anno passado e por isso é nova :
re tahá re Oiumunhã amú acaiú; cece piçaçú . - Quem me
ssear pelo furtou a minha polvora? Auá tahá omundá ce mukáua
uhí? -
á rupi. Foi aquelle caçador que a furtou : Nhaha caha
rameiai munuçára, ahé omundáu ana . - Qual caçador? Auá
cahamunucára será? ―――― Áquelle que passou por
i de voltar
aqui hontem ; é muito ladrão : Nhahã oçaçáu uahá
Capirean quecé kirup , mundauaçú . - Você vai até o meio do
azendo la caminho? Reco será pe piterpe kete? ---- Eu vou até o
porficar: meio do caminho: Xa ço pé piterpe kete.- Sua casa é
rapi do lado direito? Ne roca catuçáua xií será (catuçáua,
rete. direito)? ――― Minha casa é do lado esquerdo : Ce roca
Ocaçã oiko puxí catuçáua xií (puxí catuçáua , lado esquerdo ,
écati -
ruim) . — Nesse poço tem muito peixe? Quahá ¿paúap?
ir até pupé cetá pirá será? -Nesse poço tem muito; mas é
uandu muito fundo: Quahá ipaúap! pupé cetá ; teipi rete .
Depois que você come o que é que faz? Remaú riri
ser
(riré) māháta remunhã ? --- Depois que eu como, tra
guez
balho: Xamaú riri (riré) xa purauké (ou puraike).·――
·
130 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

Veio alguem me procurar? Oúri será amu ani ocicári


ixe? --- Ninguem veio lhe procurar : Intimaha auá oci
cári inde . - Eu esperava um homem que vinha me

fallar : Xa çarú iepé apgáua oúri uahá onhehe ix . —


Onde você vai caçar amanhã? Mamé tahá reço será
cahamunй u/rande? - Eu vou caçar rio a riba : Xa ço
xa cahamunu gahapira (para cima) ket . - Por que
não caça rio abaixo? Mãhá rece intí cahamun tumaçáua
kete? (Tumaçáua , foz . ) - Porque rio abaixo à caça já
está espantada : Mãhá recẻ tumaçáua kete çoo iaquáu
reteana . Onde você quer me esperar? Mamé tahá

reçarú putári ixe? -Eu vou lhe esperar do outro lado


do rio : Ixe xa có
co ne çarú paraná upé amй çuaxára.
-Por que não me espera deste lado? Maháręce tahá

intí reçarú ixe quahá çuaxára çuí?-Porque nós temos


sempre de atravessar o rio : Maharece iane iaiaçáu
-
tenhe cari paraná . — Por que razão você está tão
-
triste? Maháręce taha çaciara rete reiko ? — Eu estou
triste porque perdi o que mais amava : Xa çaciara xa
iko maháręce xa canhimo nhahã xa caicú rete
-
uahá . — Tive a desgraça de perder minha irmã : Xa
rekỏ ăna çacị xa mukajn ce rendera .

XXI

Tingir, Cores, Parecer, deixe estar,


precisar, chegar, dançar, cantar, to
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 131

car, experimentar, pedir, perguntar,


ser feliz, etc.

Todos fallam bem delle? Opa míra onhehe será catú


ahé cuí ? ―
Todos fallam bem delle: Opai míra
onhehe catú i çuí. - De que côr tingio você aquella
vela? Māhi tahá remuquatiára nhahã çutínga? — Eu a
tingi de branco e preto : Xa muquatiára murutínga
çuí , - Antes tivesse tingido de azul e
pixúna çuí. —
verde:
Catú pire remuquatiára ana cuikira çuí , o
iakira Cuí.- Azul e verde de longe parece folha:
Cuikira
o iak ra , apecatú çuí oiúqaú cahá iaué. -Então
tingisse
de vermelho e amarello ; branco e preto é
muito triste
: Requatiára ramé pirănga çuí, tauá cuí;
murutinga
pixúna apecatú cuí , caci rete. --
Agora
tenha paciencia , porque ella já está tinta : Cuhire te
nupá (deixa estar) oiúquatiári ăna . que eu vou
-
fazer a gora
? Mãháta xa çỏ xa munhã cuhire? - Agora
tu deves ir ter com os teus companheiros : Cuhire reco
quau ne
camarára ruake kete . ―――Você precisa de mais
alguria
cousa? Nde reputári raín será maha? - Eu
preciso
de mais farinha; essa não chega: Xa putári
pire uhí; nha nã nhum intí ocica. -Não
precísas ; essa

chega
ocica teaté voltares : Intimaha reputári ; nhahã nhữm
reiuíri: - Como se diz kau em portuguez?
Mahi
tahá mira onhehe kawin caríua nheénga rupi?
-Se diz caxaça
ou agua ardente: Mira onhehe kau
0
¿táia . - Este rapaz tem os olhos pretos? Quahá
132 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

tt
curumi uaçú oreko será ceçá pixúna? -Não , senhor,
elle tem os olhos pardos : Intimaha ; ahé oreko ceçá
--
tuire (tuira) . De que você precisa em casa? Mahã çuí
reputári oca opé? - Eu preciso de comida : Xa putári
mẹiú çui . ― Não precisa de mais nada? Intimahã será

reputári maha? - Preciso tambem de luz que não ha:


Xa putári iure candea. - Este homem é melhor do

que aquelle? Quahá apgáua catupire será nhaha çuí?


-Por que elle é melhor? Mahá rece tahá catú piri?
Porque é mais esperto para todo serviço : Mahá rẹce
ikirimáua pre opa murake arama.- Quem chegou
hontem lá em casa? Auá tocica kuece oca opé? ( *) Eu fui

o primeiro ; depois de mim chegou o Antonio : Ixe xa


― -
cica lenone; ce recuiára ocica Antonio . E depois do

Antonio quem chegou? Antonio rire auá tahá ocica?
Chegou aquelle seu companheiro chamado Leonardo :

Oc/ca nhahă ne irúmoára cera Leonardo . - E depois


delle quem chegou? Ahé rire auá tocica? -Chegaram
muitos outros que não conheço : Ocica cetá míra intí
mahã xa quáu . — O que foram fazer lá tantos homens!
Maháta oço omunhã aápe nhahã apgáua itá?-Depois
de ter comido , dançaram, cantaram e tocaram viola
até de madrugada : Aitá oú ramé , páua aitá opuraci,
aitá onheengári , aitá omuhapú maraká , té çapucaía

(*) Auá tahá oc/ka-na ligeiresa da conversação o


que se ouve é : auá tocka ; por isso escrevemos o
exemplo pela forma por que se ouve, embora essa não
seja correcta.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 133

onheengári. -Elles já experimentaram a canoa nova?

Aitá omuçãiana ¿gára piçaçú? - Já experimentaram ;


anda muito bem com o vento : Aitá omucãiāna ; uatá

catú rete uitú irúmo . - O que é que aquelle homem


está pedindo? Mãháta mhãhã apgáua oiururé oikó? —
Elle está pedindo licença para entrar : Oiururé oiko
licença oiké arama . -Diga a elle que entre; a casa é

franca : Renhehe ixupé oike arama ; oca icatú rete.
Você tem tudo de que precisa? Rerekỏ páua mãhã rẹ
putári uahá? —Eu tenho tudo de que preciso: Xa reko
-
opaì mãhã xa putári uahá . — O que é que você está
-
perguntando? Mãháta repuranú reiko? Eu estou
perguntando por onde é o caminho : Xa purandú xa
iko mahá rupí pé será? -O caminho é por alli, ou
-
por aqui : Pé nhahã rupí , ou ike rupí . O que é que
você vio por ahi ? Mãháta remahāna a rupi? — Eu vi
muita cousa bonita : Xa mahāna cetá maha puranga.

-Você não é infeliz ; eu só vejo cousas feias : Inde intí


panema ; ixe xa mahã nhúm mahā puxiuera . -E' por

que você não procura : Maha rece inde intí recicári . -


Bem que eu procuro ; mas não acho : Xa cicári catú
reté ; intimahã xa uacemo . - Eu lhe digo que isso é
cousa que não falta : Xa nhehe ne arāma mahā intí
uatári .
134 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

XXII

Auto de baptismo de S. A. I. 0
principe do Grão- Pará .

Eu revia as provas deste trabalho quando foi publi


cado o auto de baptismo de S. A. I. o principe do Grão
Pará, que eu traduzi , publiqueí na Reforma de 10 de
Dezembro , e assentei de incluir aqui como uma re

cordação da época de elaboração deste livro, e como


um exercicio de lingua.

Na traducção de documentos de um povo civilisado


na lingua de um povo barbaro é necessario fazer as

alterações exigidas pela differença de civilisação . Con


.
servar-se fiel ao pensamento é tudo quanto póde fazer
o traductor. Ponho de um lado a traducção e do outro
o texto , que eu alterei ligeiramente para accommodal - o
á indole de uma lingua fallada por um povo barbaro.
O leitor confrontará uma cousa com outra.

Portugues Nhehengatu

No anno de 1875 , de Iané lára Jesus Christo


pcis que Nosso Senhor ocema riré , 1875 acaiú
Jesus Christo nasceu , ramé ,
na imperial capella de S. quahá S. Sebastião do Rio
Sebastião do Rio de Ja de Janeiro imperial Tupã
neiro , róka miri upé,
reinando o Sr. D. Pedro II Jára D. Pedro 2° Muru
e sua esposa a Sra. D. xáua rete ramé, iuíri xe
Theresa Christina Maria: mirecó jára D. Theresa
Christina Maria:
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 135

estando o bispo em seu abaré uaçú cendá pé;


lugar ;
na presença dos chefes e tuixauaruçú-itá , iúíri mu
homens do governo da jakáraitá iane retamauá ra
nossa patria , çuápe;
e na presença dos homens muakáraitá amú tetăma
do governo de outras pa- uára çuápe; opa auá-ete
trias , e na dos homens itá catú, oceno uahá ,
principaes que foram con çuápe ;
vidados ;
como o outro baptismo, em maí amú cerucaçáua intí
artigo de morte, podia não ip catú , tajna omanō
estar regular , quáu ramé,
o bispo agora de novo auaré-uaçu kure oça ú
baptisou e pôs os san caana, oenu kariua- iand
tos oleos em S. A. I. o S. A. I. iára D. Pedro de
Sr. D. Pedro de Alcantara Alcantara Luiz Philippe
Luiz Filippe Maria Gastão Maria Gastão Miguel Ra
Miguel Raphael Gabriel phael Gabriel Gonzaga
Gonzaga , rece,
0 qual nasceu ás 4 horas e ocema uahá 15 ára outu
50 minutos da madrugada bro-iaci co ma piranga ra
de 4 de outubro: mé upe ,
filho da princeza Sra D. Muruxáua retỏ ražíra , iára
Isabel Chritina Lepoldina D. Isabel Christina Leo
Augusta Michaela Rafaela poldina Augusta Michaela
Gonzaga,
Rafaela Gonzaga mēbira,
e de seu esposo S. A. R. iú ri i mēna çuí , S. A. R.
0 Sr. D. Luiz Philippe iára D. Luiz Philippe Ma
Maria Fernando Gastão de ria Fernando Gastão de
Orleans , conde d'Eu : Orleans , conde d'Eu:
neto, pelo lado materno, temiárerú , i ci rupí, Iára
do Sr. D. Pedro II impe D. Pedro II quí , Brazil
rador do Brazil, e de sua Muruxáua rete, xemirecó
esposa a Sra. D. Theresa cuí, iára D. Theresa Chris
Christina Maria;
tina Maria:
136 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

neto , pelo lado paterno, temiárerú, túba rupi , S.


de S. A. R. o Sr. Luiz A. R. - iára Luiz Carlos
Carlos Philippe de Or Philippe de Orleans cuí ,
leans, duque de Nemours , duque de Nemours , iúri
e de sua esposa a finada xemirecó amíra - iára du
Sra. duqueza Victoria Au queza Victoria Augusta de
gusta de Saxe Coburgo Saxe Coburgo Gotha .
Gotha.
Foi padrinho S. M. I. o | Tub ' angáua S. M. I. iára
Sr. D. Pedro II , e madri D. Pedro II , c angáua S.
nha S. M. I. a Sra . D. M. I. iára D. Theresa
Theresa Christina Maria . Christina Maria .
Para os povos saberem-no Míra itá oquáu arama ,
em todo tempo, eu , José opa ára upé, ix José
Bento da Cunha Figueire- | Bento da Cunha Figuei
do, chefe nesta minha pa | redo , tuíxáua quahá ce re
tria, tăma upé,
mandei fazer dous autos , xamunhã kári mokó? au
um como o outro, tos, iepé ami iaué :
O Imperador e sua esposa Muruxáua rete iúíri xemi
puzeram seu nome no fim, recó oenu cera opaucápe ,
aquelle como padrinho e tuba-angáua iaué, ci an
esta como madrinha: gáua iaué;
um auto para ser posto na oiepé auto ombúri ārāma
capella imperial ; o outro imperial Tupãróka miri
para ser depositado no upé; amu ombúri arăma
archivo de nossa patria. ce retâma archivo pupé.
Eu puz o meu nome no Ixe xa muapica ana ce
fim . D: Pedro II , Theresa rera opauçápe . D. Pedro
Christina , sua esposa . José II . Theresa Christina i xe
Bento da Cuha Figueiredo . miręcó . José Bento da Cu
+ Pedro, bispo . nha Figueiredo . Pedro,
auaré-uaçú .
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU ' 137

Alguns jornaes fizeram reflexões a esta traducção,


das quaes passo a tomar em consideração duas, por

interessarem ao assumpto deste livro .


Na Nação estranharam que eu não traduzisse litte
ralmente a expressão - corpo diplomatico . Effectiva
mente eu não a traduzi litteralmente , assim como não

traduzi litteralmente as palavras : conselheiros de estado ,


deputados , senadores , e servi -me das expressões :
homens de governo da nossa patria, e homens de governo
de outras patrias ; traduzindo em uma lingua viva me
não era licito o uso de expressões que nella não são

intelligiveis .
O espirituoso folhetinista do Jornal do Commercio ,

que se assigna com o pseudonimo de Caipyra , pergun


tou-me se eu , usando do vocabulo portuguez baptismo ,
julgava que o selvagem me entendesse.
Eu não usei do termo portuguez e sim da expressão
tupí cerúcaçáua, que índica a ceremonia da imposição
do nome ao recemnascido . Certamente que o verbo

cerúca, pelo qual os jesuitas traduziram a palavra


baptisar, e o substantivo cericaçáua , baptismo , não
indicam, entre os verdadeiros selvagens, a ceremonia
christă . Tambem os mahometanos , budhistas, os anti
gos romanos não tinham o casamento christão , e nem
por isso a palavra casamento é intraductivel em arabe ,
chinez , ou latim .

A reflexão recorda-me que em geral nós , os brazi


leiros da costa , pensamos que a lingua tupí só é
138 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

fallada por pagãos . Ha engano nisso ; temos milhares


de compatriotas christãos que a fallam, e que não
fallam o portuguez , os quaes concorrem já com muitos
milhões para a riqueza publica , pagam todos os
impostos, inclusive o imposto de sangue. Na hora em
que escrevo isto, tenho como auxiliar do trabalho das

lendas , que vai adiante, um soldado do 2º regimento


de artilharia, que quasi não falla o portuguez , e
me diz que desde seus bisavós a sua familia é christã .

Asseverou-me um medico do exercito que , aqui na


côrte , morreu este anno de nostalgia um soldado que
não fallava o portuguez , e chamava-se Patrocinio , do
2º regimento de artilharia . Em Mato-Grosso, Goyaz ,
Pará e Amazonas estes exemplos são numerosos. A
raça indigena concorre para nossa riqueza , tem der
ramado o seu sangue em nossa defeza . Como raça
civilisada e christã não devemos perder de vista estes
factos, para podermos retribuir o serviço desses des
herdados com educação , que gradualmente os eleve
todos até o ponto do ora el labóra, a que tantos delles
hão chegado com tanto proveito nosso .

Como commentario linguistico , a proposito do voca


bulo cerúca, ajuntarei o seguinte :
Compõe-se a palavra de duas raizes : tera, que
significa nome em absoluto, e que, por ser vocabulo
começado por t, faz rera quando se refere a primeira
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 139

ou a segunda pessoa , assim: meu nome, ce rera; e


cera quando se refere a terceira pessoa , assim : nome
delle, cera . (Regra exposta na pag . 41. ) A raiz uc no

Amazonas, oc no tupí da costa, og em guaraní antigo,


significa tirar uma cousa que é parte do corpo ou do
todo de uma outra ; as raizes , pois , significam : tirar o
nome delle.
A razão desta singular etymologia prende-se ás

idéas religiosas dos antigos tupís , os quaes pensavam


que a alma do pai se passava para o filho, e que o pai
era quem adquiria tantas vezes uma alma nova quan
tos filhos tinha , e, como o nome era o característico do

indivíduo, o pai o transmittia ao filho e tomava um


outro nome. Não era , pois, o filho quem adquiria um
nome ; elle continuava o de seu pai , assim como era
supposto continuar-lhe a existencia ; seu pai é que
perdia o nome e d'ahi a razão da etymologia da pala

vra cerúcaçáua , tiragem, perda de nome .


Na recentissima obra do Sr. Bancroft (The native

races of the Pacific States) vejo que a ceremonia do


baptismo era para muitas tribus do norte da America
o mesmo que era para nossos tupís, isto é : a perda do
nome do pai , que continuava na pessoa do filho .

Perguntaram-me algumas pessoas se não havia


arbitrio de minha parte em traduzir a palavra impe
rador pelo vocabulo muruxdua rętę.
140 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

Não houve arbitrio ; os indios civilisados , quando


querem exprimir a idéa de chefe, empregam a palavra
tuixáua; velhas tradicções no Amazonas relativas aos
Incas do Perú , verdadeiros imperadores, referem que

elles eram designados pelos tupís e guaranís com a


expressão Muruxáua rete (tupí) Mburubixá (fórma
guaraní da mesma palavra) .
O padre Antonio Ruiz de Montoya , a mais compe
tente autoridade neste assumpto , diz , a pag . 217 do
Tesoro de la lengua guaraní, o seguinte :
Mburubixá- - compuesto depo continens, y tu

bixá grande ; el que contiene en si grandeza - principe,


senhor. Mburubixáb ete , Rey . »

XXIII

Truducção do Padre Nosso

Não me parece que se devão traduzir os textos

christãos litteralmente ; e sim que se os deva accom


modar á simplicidade , á infancia por assim dizer , de
uma civilisação que apenas começava . Conservar o
sentido fielmente, e traduzil-o de modo que o selvagem
entenda esse pensamento é tudo quanto se deve fazer.
A traducção dada pelos jesuitas no cathecismo que
acompanha a chrestomatia do Dr. França é a seguinte,
salvos os numerosos erros de impressão que eu aqui
corrijo :
ORE' RUB

a Ore rub bakepe tecoára ; imoete piram nde cera


CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU ' 141

toiko ; tour nde Reino ; nde remimotára ibipe ibákępe


onhemunhãnga iabé ; orẻ rebiú ára iabiondo ára ei

meẻng corí orebe ; nde nhiron ore angaipába rece ; orẻ


recomemoaçára çupé , orẻ nhiron iabé . Orẻ moarocára
¿mé tentatação pupé . Ore picirom iepé mbae alba

çuí. Amen Jesus . »

Não me parece que esta traducção dicesse ao indio


o pensamento do padre nosso de modo que elle o pu
desse rasoavelmente entender . Mesmo debaixo do

ponto de vista linguistico ella tem diversas faltas . Na

primeira oração as expressões : ikakepe tecoára para


significar morador do céu , devia ser : ibakeuára ;
não podia ter nem a posposicão pẻ , nem ter o tecó
que fica ahi sem sentido ; além disso , a expressão não
seria apropriada , por que uára indica uma residencia
de onde se tire o sustento , por que a raiz attributiva é

- ú ―que significa ingerir no estomago . A expres


são que estaes no céu , deve ser traduzida litteralmente

assim: iko uahá ibáke pé , no tupí da costa , e no do


Amazonas , como adiante diremos . Na segunda oração :
imoeté piram nde cera toikó , encontro duas faltas : em

tupí não é possivel usar dos verbos pessoaes sem os


prefixos pronominaes , porque não terão sentido algum
para os indigenas , pela mesma rasão por que não
terião sentido para nós os verbos, se nós usassemos só
das raizes sem as terminações , pois já vimos que taes

prefixos desempenhão n'esta lingua o papel das nossas


142 EXERCICIOS PELO METHODO DE OLLENDORF

terminações ; é isto o que se encontra actualmente na


lingua segundo o mostramos nas licções que preceden ;
o mesmo devia ser na lingua da costa, e é o que nos diz
o padre Montoya sobre o guarani ; sendo o verbo
moeté pessoal, devia estar na terceira pessoa e na
forma passiva isto é : oiemueté ; se o verbo se acha

ahi, como parece, empregado na forma do supino


passivo então a traducção seria: teo nome para ser san
tificado, o que não dá cousa intelligivel . A segunda falta
é: nde cera, em lugar de : nde rera , por que cera só

significa nome quando se refere a 3ª pessoa Ha outras


cousas que me não parecem certas e que provém do
prejuiso em que estavão os antigos de que todas as
grammaticas devião ser moldadas pela latina ; em nada
interessaria ao leitor apontar esses erros .

Na lingua do Amazonas a traducção que daria ao


selvagem o pensamento da oração dominical seria a
seguinte :

PADRE NOSSO NHANE' RUBA


Pai nosso que estais no Nhane rúba oiko uahá
céu ; ¿uáka opé;
Santificado seja o teu Ne rera oiúmuité toiko ;
nome;
Dai-nos o céo onde estás. Remehe jane arama
įuáka , mamé rẹiko ;
A tua vontade seja feita Né remimutára toiumu
no céo e tambem na terra ; nhã iuákapé, iure iu/pe ;
Dai-nos hoje o nosso Remehe oiií iane arama,
sustento de cada dia,; iane remiú ára iepé iepé
çuiuára;
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU ’ 143

Remehe ne iron iane


Dae teu perdão ás nos
sas culpas, assim como angaipáua ręce , maíiaué ia
daremos áquelles que fo mehe curí iane iron aitá
rem culpados para com- cupé intí omunhãna catú
nosco; uahá iane arama ;
Não deixeis , Senhor , Intí rexári , iane Iára
que façamos más obras . iamunha puxí mahā itá .
Livrai-nos de tudo Rep cirú iane opai mahã
quanto for mal. Amen ajua çuí. Amen Jesus .
Jesus.
144 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA, INTRODUCÇÃO

MYTHOLOGIA ZOOLOGICA NA FAMILIA TUPI


GUARANI . ( • )

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Por muito incompleta que seja ainda a presente


collecção , ella encerra o monumento mais authentico
e curioso que se tenha até hoje publicado a respeito do
elemento intellectual dos selvagens do Brazil , pelo
que eu supponho que ella attingirá ao futuro mais
remoto .

Diante das narrações , ainda mesmo dos viajantes


mais graves , é licita a duvida porque ninguem ignora
quão profundamente os factos podem ser alterados por
elementos provenientes do juizo daquelle que nol- os
narra, e de seus meios de informação , sempre tão difficeis
quando se trata de saber d'aquillo que pensavam povos
cuja lingua o historiador não conhecia .

Diante de textos originaes d'esses povos a duvida


desapparece , e seu obscuro mundo moral se revela tal
qual é ás investigações da sciencia.
D'ahi o ardor com que a positiva e energica raça anglo
saxonica tem investigado e colligido os textos originaes

das raças primitivas do centro e interior da Africa ,


da Asia e da America.

Eu tive a ambição de ser o colleccionador das lend as

(* ) Esta introducção foi lida nas sessões do Instituto Historico o


anno passado, e se bem que ella se não refira ao estudo da lingua
me parece que seu assumpto interessaria ao estudante da ngua
aborigene por tratar da authenticidade e valor dos textos que elle
passa a examinar.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ 145

aborigenes do Brazil , e venho trazer a esta associação


os primeiros fructos d'esse trabalho.
A historia natural do homem , que faz o objecto espe
cial da anthropologia , divide- se naturalmente em duas
secções :
¦
1. Aquella que trata das qualidades physicas das
differentes raças
.

2. ' Aquella que trata das mais fundamentaes mani


festações moraes .

Entre as manifestações moraes , tem merecido parti


cular attenção dos sabios as ideas religiosas e a mytho
logia das differentes raças .

O anno atrazado tive eu a honra de ler , perante esta


respeitavel associação , as primeiras investigações res
peito à theogonia da mais numerosa familia selvagem
sul- americana.

Depois disso tive necessidade de fazer uma viagem


ao Pará , e d'alli á foz do Amazonas , e assentei de apro
veitar a opportunidade para estudar novos factos .
Como eu houvesse empregado quasi todo o anno de
1873 em estudar a fórma amasonica da lingua tupí , com

a qual consegui familiarisar -me , achei-me preparado


com o
observação
principal e mais indispensavel instrumento para
de mythos que, entendendo com aquillo que

cada povo tem de mais intimo , escapam quasi comple


tamente
à observação dos viajantes , emquanto não po
derem fallar a lingua
do selvagem. Pude assim conse
guir parte da preciosa mythologia zoologica da familia

tupi. Confrontando depois essas lendas com outras que


eu ouvira em Matto-Grosso , como direi adiante , firmei
146 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA, INTRODUCÇÃO I1

o juizo de que ellas eram communs à familia tupí-gua


raní, e além de conter um codigo de moral , são pre
ciosos documentos para investigar -se o que é que
constituia o fundo geral do pensamento humano , quando
o homem atravessava o periodo da idade de pedra .
O que venho , pois , trazer ao conhecimento desta asso
ciação , são curiosas paginas de uma litteratura que
d'aqui a alguns annos terá desapparecido , porque ella
não se conserva em monumentos escriptos , e sim na
tradicção dessa pobre raça aborigene , que , pela inflexi
vel lei da selecção natural , ha de estar dentro em al
guns annos perdida e confundida dentro da nacionali
dade brazileira .

Esta primeira collecção é ainda muito incompleta ;


o trabalho de colleccionar estas cousas é muito diffi
cil todo aquelle que tem lidado com homens selva
gens , terá conhecido por propria experiencia o quão
pouco communicativos são elles em tudo quanto diz
respeito às suas idéas religiosas , suas tradições , e
suas lendas didacticas . Elles têm medo que o branco ,
o cariua, se ria delles , e , entre os selvagens , assim como
entre nós que nos julgamos tão superiores a elles , o
amor proprio é a força moral preponderante .

MYTHOLOGIA ZOOLOGICA

O Sr. Angelo de Gubernatis , professor de sanscrito


no Instituto superior de Florença , publicou em
Londres uma obra, hoje tradusida em francez , na
qual demonstra que as tradições populares entre os
povos da Europa decorrem todas dos Vedas, e são ex
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA.OU NHEHENGATU' 147

plicações symbolicas d'aquelles phenomenos astrono


micos que mais impressionaram a humanidade primitiva .
Antes de ler essa curiosa confrontação eu estava
muito longe de suppor que a Maria Borralheira dos
contos populares do Brazil , e que perde o seo chinello ,
é o écho remoto , conservado pela tradição oral do
povo por mais de seis ou sete mil annos , da deusa
Aurora do Rig Veda , a qual era tão veloz que um dos
hymnos vedicos a denomina apad, a donzella sem pés
ou sem calçado .
Assim como muitos dos mythos populares do Brazil
são mythos vedicos, assim tambem muitos são mythos
tupís .

Quem viaja o interior das provincias de S. Paulo ,


Minas , Goyaz
e Matto Grosso ouve constantemente his

torias em que o Saci Cererê, o Boitată , o Curupira ,


nos o chamamos , ou o Curupim , como o chamam
paraguayos e cuyabanos , representão importante papel
na vida do homem . Esses mythos tupis confundem- se
aqui nas tradições populares com os mythos vedicos de
que acima fallei . E isto mostra que :
Neste immenso cadinho da America , ao passo que se
fundem
e se amalgamão os sangues dos grandes troncos

da humanidade , fundem- se e amalgamão - se tambem


suas idéas moraes , por uma lei de conservaçã o confia

da a ção
tradi esse operario inconsciente e tenaz , a memoria e a
do povo illitterato .
Ao pas dos sabio se vão ala
so que as pesqu s r
gan s izas
do o a
bre o nim h ome , vai - se desc uma
al m obri
lei ndo
que conserva por assim dizer a unidade do typo nas
148 MYTHOLOGIA ZOOLCGICA, INTRODUCÇÃO

producções do espirito , assim como conserva a unidade


de typo physico apezar da variedade das raças. As
idéas moraes fizeram sempre o seu caminho pelos :
mesmos processos , e si notamos entre os povos tão
grandes differenças, é porque raros coexistiram no
mesmo grao de civilisação .
Na raça aryanna e suas derivadas os mythos são a
explicação symbolica e poetica daquelles phenomenos
metereologicos que mais impressionavam a humanidade ,
e são, ao mesmo tempo , poemetos didacticos onde , sob a
fórma de um episodio quasi sempre vestido de dialo
gos singelos , se ensina uma verdade moral . E ' corrente
hoje a explicação de todos os mythos pela theoria
chamada solar.

Aos que quizerem investigar esse assumpto remette


mos á obra do citado Sr. Gubernatis - Mythologie Zoo
logique , Pariz 1874 .
Eu estava muito longe de suppôr que existisse nos
selvagens do Brazil , que attingiram a tão pequeno grảo
de cultura intellectual , um systema mythologico iden
tico em substancia ao systema dos Vedas .
Coma eu espero que este assumpto ha de ser larga
mente discutido no futuro , seja me licito narrar as cir
cumstancias em que ouvi taes mythos e a fonte de onde
os colhi. Durante a guerra do Paraguay eu viajava
uma noite no rio Paraguay a bordo do vapor Antonio
João, e conservava- me no passadiço , debaixo do qual
um grupo de marinheiros , que não estavam de quarto ,
distrahia-se em contar historias ; um delles , apellidado
Para tudo, descendente dos indios cadeuéus , contou
CURSO DE LINGUA tupí viva OU NHEHENGATU 149

uma serie dellas , em que o jabuti representava o prin


cipal papel ;de quando em vez elle repetía em lingua
geral algum aphorismo que não podia traduzir em por
tuguez por fórma tão laconica como a em que elle
o fazia na propria lingua . Foi esta a primeira vez que
minha attencção foi despertada sobre mythos nacionaes .
As circumstancias desses tempos não eram taes que
eu dispuzesse da calma necessaria para estudar
esses mythos . Notei no entretanto que entre as taes
historias havia um thema singular, o qual consistia

em mostrar o jabuti , que alias é um dos animaes


mais fracos de nossa fauna , vencendo aos mais

fortes quadrupedes , a custa de astucia e intelligencia .


Apezar de ter notado isso , é muito provavel que
taes impressões se tivessem apagado de uma vez no
meu espirito , a não ter sido a viagem que fiz á fóz
do Amazonas de que acima fallei .
Em dias do mez de setembro do anno de 1874 , tendo
eu de fiscalisar o serviço de navegação a vapor em
ilhas da fóz do Amazonas , parei no Afuá , logar onde se
abrigam todos
os barcos que navegam para o Amapá e
Guyana
, e onde havia n'esse dia um consideravel ajun

tamento de tripulações .

Ahi ouvi pela segunda vez as lendas do jabuti , e


ouvindo
-as em logar tão distante do Paraguay , veju - me

pela primeira vez esta idea : não serão estas lendas


fragmentos da velha litteratura tupí , que , como a dos

gregos,
vada egypcios e hebraicos , foi muitos annos conser
pela tradição , visto que por outro meic era im
possivel
, pois não tinham a arte de escrever ?
150 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA, INTRODUCÇÃO

Posteriormente , voltando ao Pará , eu repeti uma


das lendas a um indio mundurucú que era marinheiro
a bordo de um dos meus vapores , o Aruan , o qual por
sua vez narrou- me algumas das que aqui estão collec
cionadas.
Chegando ao Rio de Janeiro , eu communiquei o facto
ao Sr. professor Carlos Frederico Hartt, e soube com
vivo prazer que elle havia encontrado as mesmas len
das no Tapajós , que as julgava velhas tradições astro
nomicas da familia tupí , motivo pelo qual elle tambem
colligira algumas ; ainda não vi a collecção do
illustre professor ; sei porém que é em outro dial
lecto , o que tem o grande merito de offerecer algumas
das mesmas historias em texto differente d'aquelle
em que eu as encontrei , e de assim fixar , não só sua
authenticidade , como seu caracter de generalidade.
O Sr. Professor Carlos Frederico Hartt publicou
recentemente um folheto com o titulo : The Amasoniam

Tortoise mythes , mythos do jabuti no Amasonas .


Apoiado na theoria chamada solar elle interpreta
alguns desses· mythos , mostrando que elles são theorias
astronomicas dos antigos selvagens americanos , onde o
jabuti representa de sol , e o homem de lua. Eu dei ao
Snr. professor um resumo em portuguez das minhas
lendas do jabuti , e eis aqui por suas proprias palavras a
enterpretação que elle dá a um dos mythos , a pagina 17
do seo folheto diz elle :

Dr. Couto de Magalhães gives me the following


--
the Jabuty that cheated
story, wich I will entitle
the man -Segue o resume do mytho - concluindo elle
1
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 151

accrescenta : ― So that we have here, once more repe

tead, the story of the race between the slowe tortoise or


sun, and the swifth moon or nan—
Eu não estou habilitado para acompanhar o illustre
professor nestas investigações ; não conheço os mythos
zoologicos dos Vedas senão pela exposição que d'elles
faz o Sr. Angelo de Gubernatis.
Por esse motivo eu me limitarei a encara- los de
baixo do ponto de vista linguistico e didactico. Nin
guem ainda publicou estes mythos em original tupí ,
e pois eu creio que presto não pequeno serviço a philo
logia patria e å anthropologia , dando- os agora á lume ,
embora o meo trabalho não passe do de simples collec
cionador.

ELEMENTOS PARA A HISTORIA DO PENSAMENTO PRIMITIVO

Além do interessse que a seguinte collecção offerece


como monumento linguistico , ella é o testemunho do
que pensava a humanidade em certos assumptos , quando
atravessava o periodo da idade de pedra , em que se
acha ainda o nosso selvagem .

Se a collecção não houvesse sido feita em tempo como


o presente , em que a lingua tupi ainda é commum no.
nosso
lendas povo , sobretudó na bacia do Amazonas , estas
havião de despertar no futuro tanta discussão
como a que despertou os poemas de Homero
, os Nie
belun
gen ,
sia, são incos poemas de Ossian , porque si
ompara inferio à aque, lcomo poe
las obras
velmen res
debaix te
o do ponto de vista anthr são mais im
opologi
portan co
tes, po se
r rem os vestigios da itteratura esponta
l
152 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA , INTRODUCÇÃO

nea de um povo antes que qualquer genero de convenção ,


interesse ou espirito de seita e partido , houvesse mo
Ty
dificado as producções espontaneas do espirito humano.
E si é verdadeira a theoria de que o homem pensou
da mesma fórma, qualquer que fosse a sua raça , em

quanto esteve no periodo de barbárismo que termi }
na-se com a fúndição dos primeiros metaes, a historia
do pensamento da raça americana, n'esse periodo , não
è só a de uma porção da humanidade ; é a de toda a hu
manidade , em periodo identico . ( 1 )

Não pode haver a menor duvida para o brasileiro


comtemporaneo de que estas lendas formão o fundo das
tradições dos indigenas , visto que ellas constituem o
actual fundo dos contos populares do interior ; o povo
não pode ter outras tradições que não sejão as que
recebeo da Europa , as que lhe vierão da Africa , ou as
que lhes vierão dos indigenas . Ora as lendas em questão
não são africanas nem europeas pois os animaes que me
nellas figurão são animaes sul americanos , assim
como americanas são as arvores , as circumstancias , os
habitos e costumes que ahi se descrevem, com tão
admiravel singelesa e propriedade .

(1 ) Para evitar qualquer duvida no futuro, devo dizer que aqui


mesmo no Rio de Janeiro ha diversas pessoas que conhecem a lingua .
a saber Sua Magestade o Imperador que conhece o tupí da costa
antigo ; o Sr. Dr. Baptista Caetano , que conhece o guarany antigo e
moderno ; o Sr. professor Carlos Frederico Hartt que conhece o tupi
antigo, e falla o tupí do Amazonas ; o Sr. General Beaurepaire que
conhece o tupi da costa; devem haver outros . Existem aqui nos corpos
da corte nada menos de 40 a 50 praças que fallam o tupi e , como são
indigenas, todos sabem de cór alguma das lendas que figuram n'esta
collecção; temos talvez mais de 100, entre marinheiros e soldados, que
fallam tupí ou guaraní .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ 153

Em materia de contos populares , é essa talvez a mais


rica mina que, logo abaixo do mytho , se pode explorar
para escrever a historia do pensamento primitivo da
humanidade: não ha talvez no mundo inteiro , paiz que

offereça melhor opportunidade para se colherem tão


grandes riquesas , como o Brazil , justamente porque ,
assim como aqui , no immenso cadinho de nossa patria , se
fundem actualmente os sangues dos grandes troncos
branco , negro, amarello e vermelho , assim tambem se fun
dem as tradições e crenças primitivas , o pensamento es
pontaneo de todos esses troncos . Ah ! que immenso e rico
museo não temos aqui nos quarteis do nosso exercito,
onde os soldados são mestiços vindos de todas as
provincias ! Que immenso museo vivo não possuimos
para preparar a historia do pensamento primitivo da
humanidade ! Cumpre não desprezar essa mina riquissi
ma que possuimos em nosso paiz , e , explorando e estu
dando a qual , podemos concorrer para o mais bello
monumento intellectual do seculo 19 , que é , na opinião
convencida do Snr . Beaudry, refaser a historia do pen
samento
espontaneo da humanidade , que se encontra

hoje somente em duas formas : na do mytho, e na do


conto popular .
Cumpr dous vestig
e porém não confund e
antiqui ir stes ios
ssimos do pensa h u m a no , e e u, para distin
mento
guil- os , peço perm
issão para transcrever as palavras
do autor, que ha pouc citei , palavr
o as que vem na
introd
ucção à mytol
logia oologica os Vedas .
z d
Entre o c
onto popular e o mytho , diz elle , existe
apenas uma s
imples defferenç de epoca e dignidad .
a e
154 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA, INTRODUCÇÃO

O mytho é o resultado directo e primitivo da trans


formação dos elementos mythicos em fabulas . E ' a
obra do espirito collectivo espontaneo , expressado pelos
poetas . O conto popular é o ultimo echo , com as
gradações que a transmissão lhe impoz .
Não é mais esta producção poetica na qual tomou
parte a humanidade superior; mas sim um residuo , si
nos podemos assim exprimir, refeito por pessoas mais
simplices , como as avós e as amas de leite.>>
«Ainda assim , diz o Sr. Reinhold Koller , o conto po
pular é tão importante ou talvez mais do que as in
scripções cuneiformes , porque é elle , abaixo do mytho ,
vestigio mais antigo do pensamento humano . >>
Nesta collecção de mythos existe um que o Sr. pro
fessor Hartt em sua obra Notes on the Tupi language
diz que foi encontrado identico na Africa , e em Sião , e

que dessa proveniencia figura já nas collecções mytho


logicas ; eis aqui suas palavras : I have, for instance,
found among the Indians of the Amazonas a story of
a tortoyse that outran a dear by posting its relations
at short distance apart along the rod, over wich the
race was to be run- a fable found also in Africa and
Siam !

Veja-se por ahi a grande luz , veja-se quantas pa


ginas da primitiva historia do pensamento da humani
dade, que se julgavam irremissivelmente sepultadas
no abysmo insondavel dos periodos prehistoricos , não
podem ser reconstituidas neste seculo , graças à memoria
rude mas fiel do nosso selvagem, que conserva tradi
ções muito mais antigas talvez do que as dos Vedas .
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 155

São como fosseis que se vão desenterrando , e , assim


como aquelles nos deram a historia do nosso planeta
muitos milhões de annos antes do homem , assim estes
nos reconstituirão a historia das gerações que se se
pultaram no passado , antes que dellas podesse haver
noticia por falta da escripta .
Como disse acima , eu colligi tambem essa lenda do
jabuti que venceu o veado na carreira ; tenko - a em
dous dialectos , ambos diversos dos em que a colligio o
Sr. professor Hartt ; ouvia-a desde pequeno nos contos
populares de Minas , e ahi a publico em dialecto do Rio
Negro .

E' redigida com a mesma singeleza das outras , e


com perfeito conhecimento dos habitos e localidades
frequentadas pelos animaes que nella figuraram, como
o leitor verificará ao examinal-a.

AS
LENDAS ENCARADAS COMO METHODO DE EDUCAÇÃO
INTELLECTUAL

Na collecção que se segue , além do sentido sim


bolico que as lendas possam ter, assumpto esse que eu

não trato de investigar, porque me faltam ainda estudos


de
intcomparação
elligen , é muito claro o pensamento de educar a
cia do selva p
gem por meio da fabula ou ara
bola, meth
odo geralment seguido por todos os povos
e
primit
ivos .

A collecção das lendas do jabutí , que não sei ainda


se è completa , com
põe -se de dez pequenos episodios .
Todos elles f com o fim de fazer en
oram imaginad
os
Y
156 MYTHOLOGIA ZOOLÓGICA , INTRODUCÇÃO

trar no pensamento do selvagem a crença na supre


macia da intelligencia sobre a força physica .
Cada um dos episodios é o desenvolvimento ou d'esse
pensamento geral , ou de algum que lhe é subordinado.
Com a leitura da collecção o leitor verà isso clara
mente ; sem querer antecipar o juizo do leitor , direi
geralmente que :
Como è sabido , o jabutí não tem força ; a custa de
paciencia elle vence e consegue matar a anta na pri
meira lenda a maxima pois que o bardo selvagem quiz
com ella plantar em seu povo foi esta : a constancia
vale mais que a força .
Como é sabido tambem, o jabuti é dos animaes de
nossa fauna , o mais vagaroso ; os proprios tupis tem
este proloquio : Ipucúi aúti maiaué, vagaroso como um
jabuti ; no entretanto , no terceiro episodio , o jabuti , a
custa de astucia , vence o veado na carreira ; quise
ram pois ensinar, mesmo pelo contraste , entre a vaga
resa do jabutí e aceleridade do veado , que a astucia e a
manha podem mais do que outros elementos para ven
cer-se a um adversario.

No quinto episodio a onça quer comer o Jabuti ; elle


consegue matal-a , ainda por astucia . E' o desenvol
vimento do mesmo pensamento , isto é : a intelligencia
e o savoir faire valem mais do que a força e a
valentia.

No nono espisodio , o Jabutí é apanhado pelo homem,


que o prende dentro de uma caixa , ou de um patuȧ ,
como diz a lenda ; prezo , elle ouve dentro da caixa o
homem ordenar aos filhos que não se esqueção de pôr
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’ · 157

agua no fogo para tirar o casco ao jabuti , que devia


figurar na ceia ; elle não perde o sangue frio ; tão
depressa o homem sae de casa , elle , para excitar a cu
riozidade das crianças , filhos do homem, pôe-se a can

tar os meninos aproximão -se ; elle cala-se : os me


ninos
pedem-lhe que cante mais um pouco para
elles ouvirem : elle lhes responde - ah ! si vocês estão
adimirados de me verem cantar , o que não seria se me
vissem dansar no meio da casa?

Era muito natural que os meninos abrissem a caixa;


que crianças haveria tão pouco curiosas que quisessem
deixar de ver o jabuti dansar ? Ha nisto uma força de
verosimilhança cuja belleza não seria excedida por
Lafontaine . Abrem a caixa , e elle escapa - se .

Esta lenda ensina que não ha tão desesperado passo


na vida , do qual o homem se não possa tirar com sangue
frio , intelligencia , e aproveitando- se das circums
tancias .

0
que principalmente distingue um povo barbaro , é
a crença de que a força physica vale mais do que a
força intellectual .

Napoleão I , por exemplo , nos refere, que os arabes


no Egypto muito custaram a acreditar que fosse elle o

chefe do exercito , por ser um dos generaes de mais mes


quinha
apparencia physica .
Ensina
r a um povo barba
ro que não é a força phy
sica que p
redomi , e sim a força intelle
na ctual , equi
vale a infundi -lhe o desejo de cultiv
i r ar e augmentar
sua ntelligencia .
Cada vez
que reflic n s
to a ingularid do poeta indi
ade
158 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA, INTRODUCÇÃO

gena de escolher o prudente e tardo jabuti para vencer


aos mais adiantados animaes de nossa fauna , fica-me
evidente que o fim dessas lendas era altamente civili
sador, embora a moral n'ellas ensinada divirja em
muitos pontos da moral christãa .
Não será evidente , por exemplo , que a concepção ap
parentemente singular de fazer um jabuti apostar uma
carreira com o veado , é muito engenhosa para gravar
em cabeças rudes esta maxima : que a intelligencia e
prudencia são mais importantes na lucta da vida do
que a força e as vantagens physicas?
Qual seria o selvagem que depois de comprehender ,
a vista da lenda , que um jabuti pôde por astucia alcan
çar victoria apostando uma carreira com o veado , qual
seria o selvagem , perguntamos , que não ficaria ante
vendo a superioridade da intelligencia sobre a materia?

SENTIDO SYMBOLICO

Ja citei a opinião do Sr. Hartt relativa ao sentido


symbolico de uma das lendas : a do jabuti e do homem.
A theoria, que prevalece hoje , entre os que estudam
anthropologia e linguistica , é a de que todas as lendas
35

são a discripção symbolica dos diversos phenomenos


methereologicos que occorrem com o sol , com a lua , com
outros astros , como já disse acima.
Inhabilitado , como por ora me reconheço , para en
trar n'essa investigação , comtudo me parece que a
theoria está confirmada não só na lenda citada pelo Sr. 1
Hartt, mas tambem em todas , ou em quasi todas as
outras.
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 159

E' assim que a primeira lenda , explicada pelo sys


tema solar , me parece offerecer no jabutí o symbolo do
sol , e na anta o symbolo do planeta Venus .
Na primeira parte do mytho o jabotí é enterrado
pela anta . A explicação parece natural desde que,
se sabe que , em certa quadra do anno , Venus appa
rece justamente quando o sol se esconde no occi
dente .

Chegado o tempo do inverno o jaboti sae , e , no en


calço da anta , vae successivamente encontrando-se
com diversos rastos , mas chega sempre depois que a
anta tem passado .
Assim acontece realmente com o sol e Venus que

quando apparece de manhã , apenas o sol fulgura ,


ella desapparece .

O jabutí mata finalmente a anta .


Isto é , pelo facto de estar o orbita do planeta en
tre nós e o șol , ha uma quadra no anno em que elle
não apparece mais de madrugada para só apparecer
de tarde . O primeiro enterro do jabutí é a primeira
conjunção , aquella em que o sol se some no occi
dente para deixar Venus luzir . A morte da anta pelo
jabuti , é a segunda conjunção , aquella em que Venus
desapparece
para deixar luzir o sol . Quer debaixo do
+
ponto de vista da theoria solar, quer como ensina C

mythosdidactico
mento , quer como elemento linguistico , estes
originaes são, a meu ver, de inextimave
valor. F
160 MYTHOLOGIA ZOOLOGICA , INTRODUCÇÃO

AS LENDAS ENCARADAS COMO ELEMENTO LINGUISTICO

Se estas fabulas são curiosas como especimens de


methodos de educação primitiva , e como elemento para
julgar-se de uma civilização que pouco a pouco se vae
apagando diante da nossa , como elemento philologico
são de um valor inextimavel.

Seria impossivel julgar da lingua de Virgilio e Cicero


pelos escriptos em latım dos padres da idade media.

Muito mais difficil ainda seria julgar da lingua tupi


pelos textos escriptos pela maior parte dos jesuitas ,
apezar do muito que elles sabem.

Ha uma infinidade de delicadesas que se percebem


em frente de um texto original , mas que são inimitaveis
pelo estrangeiro .

Nestas mesmas lendas , de principio a fim , existem


cousas que jamais poderião ter sido escriptas por um
homem que não houvesse bebido a lingua com o leite
materno, como eu o mostrarei quando fiser a sua lei
tura .
7
Uma das cousas nimiamente curiosas , e que indicão
a differença das duas raças , e que jamais podiam haver
sido inventadas por quem lhe não pertencesse , são as
sentenças .

Nos povos que adoptaram o christianismo , por exem


plo , quando , ao homem que persiste em uma resolução
desesperada , se observa alguma cousa , elle responde :
que leve tudo o diabo ! Na primeira das lendas nós ve
mos que a phrase correspondente a esta , entre os tupis ,
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 161

era a seguinte : o fogo disem devora tudo ! -tatta , pahȧ


oçapi opain rupi !
Um outro exemplo : -quando entre nós se objecta a
um homem que elle se expôe a uma morte provavel , e
que este homem quer indicar a sua resignação , nós
povos aryanos , disemos : eu não estou no mundo para
semente. A phrase correspondente no tupi , para este
caso, nós a encontramos ainda na primeira lenda, onde
ojabuti , ameaçado pelo rasto de ser uma segunda vez en
terrado pela anta , lhe responde ; - eu não estou neste
mundo para ser pedra ― Ixé intimaha xa ikó ce dra
uirpe ita ārama.

Pelo lado dos anexins populares , dessas maximas


que constituem por assim dizer toda a philosophia pratic a
de um povo , impossivel seria conhecel -os no tupi a não
serem os textos originaes de suas lendas . Foi por meio
de uma dellas que eu fiquei sabendo que muitos dos
dictados
populares do Brazil nos vierão do Tupi.

Entre outros , citarei o seguinte , que é muito vulgar


em todo o Brazil : quando se quer dizer que é muito
difficil illudir e enganar ao homem experiente , diz - se

no interior : macaco velho não mette a mão na cum


buca é um anexim tupi ; eu o encontrei até rimado, e

diz assim : macáca tuiue inti omumdeo i pỏ cuiambuca


opé, anexim que é , verbum ad verbum, o mesmo de que
nos servimos em portuguez .
Quant
o ao estylo das lenda , ha ahi algum cousa de '
s a
s
tão ingello
conhe infanti que é impossi lel - as sem re
cer quee h a nislso verdadeir vpeolesia selvage ,
a m
162 LENDAS

MOM UCÁUA COOITÁ ReceUARA


MYTHOLOGIA ZOOLOGICA

Dr. Couto de Magalhães oçãnhana quahá mome

uçáua itá , Brazil mororima opai rupí, omuapica ăna


papera upé maiaué ahé oceno Tapțiaitá omomẹú .

O Dr. Couto de Magalhães colligio estas lendas pelos


sertões do Brazil , e reduzio -as a escripto na mesma
forma pela qual ouvio os tapuios narral-as.

MAI PITUNA OIUQUAU ANA


Como a noite appareceu

Esta lenda é provavelmente um


fragmento do Genesis dos antigos sel
vagens sul-americanos. E' talvez o
éco degradado e corrompido das cren
ças que elles tinham, do como se formou
esta ordem de cousas no meio da qual
nós vivemos, e, despida das fórmas
grosseiras com que provavelmente a
vestiram as avós e as amas de leite,
ella mostra que por toda a parte o
homem se propôz resolver este proble
ma -de onde é que nós viemos? Aqui,
como nos Vedas, como no Genesis , a
questão é no fundo resolvida pela
mesma fórma, isto é: no principio
todos eram felizes; uma desobediencia
n'um episodio de amor, uma fruta
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 163

prohibida , trouxe a degradação . A


lenda é em resumo a seguinte: no
principio não havia distincção entre
animaes, o homem e as plantas ; tudo
fallava . Tambem não havia trevas .
Tendo a filha da Cobra Grande se
casado, não quiz cohabitar com o seu
marido emquanto não houvesse noite
sobre o mundo, assim como havia no
fundo das aguas. O marido mandou
buscar a noite, que lhe foi remettida
encerrada dentro de um caroço de
tucumã, bem cerrado , com prohibição
expressa aos conductores de que o
abrissem , pena de perderem - se a si e
a seus descendentes, e a todas as
cousas. A principio resistem á tenta
ção, mas depois, a curiosidade de saber
o que havia dentro da fruta os fez
violar a prohibição , e assim se perde
ram . Substituindo a fruta de tucumã
pela arvore prohibida , a curiosidade
de saber pela tentação do espirito ma
ligno, parece-me haver no fundo do
episodio tanta semelhança com o pen
samento asiatico que vacillo e pergunto
se não será um éco degradado e
transformado desse pensamento ?

Iupirungáua ramé intimaha pitúna; ára anhй


O principio durante não havia noite; dia somente

opaz ára
todo tempo op
emé..
164 LENDAS

Pitúna okeri oikói


ripipe.
A noite adormecida està da agua no fundo.

Intimahă coótá; opai mahã onhehe.


Não havia animaes ; todas as cousas fallavam.

Boia-Uaçú menbira , ipahá , oiumendári iepé


Da Cobra Grande a filha, contam, casara- se um

kurum -uaçú irúmo .


joven com .

Quahá kurumi -uaçú oreko muçapíra miaçúa


Este joven tinha tres vassallos

catú rete. Oiepé ára upé oceno muçapira miaçúa ,


fieis . Um dia em chamou os tres vassallos,

onhehè aitá çupé :


disse-lhes:

-Peco peuatá ; ceremirecó intí okeri putári


-- Ide passear; minha mulher não dormir quer

ce irúmo.
eu com .

Miaçúa oço-āna . Aramé ahé oceno


Os vassallos foram-se. Então elle chamou

xemirecó okéri arama ahé irúmo .


sua mulher dormir para elle com .

- Intí raz pitúna.


Xemirecó oçuaxára:
Sua mulher respondeu: - Ainda não é noite.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 165

- Intimahã pitúna ; ára ànhй.


-Não ha noite ; dia ha somente .

-Ce rúba oreko pitúna . Rekeri putári ramé


- Meu pai tem noite. Dormir queres se

cę irúmo remundú ahé,, paraná rupí.


piamo ahé
eu com tu mandes buscar ella, rio pelo .

Ahé oceno muçapira miaçúa ; xemirecó


Elle chamou os tres vassallos ; sua mulher

omundú aitá i
rúba oca píri , oço opiámo
mandou-os de seu pai casa á, irem buscar

arāma iepé tucumã (*) rainha . Aitá oc/ka ramé


para, um de tucuma caroço. Elles chegaram quando

Boia- Uaçú
óca upé , quah omeh aitá cupé
da Cobra Grande casa em, esta á deu e lhes

oiepé tucumã rainha , oiucikináu rete ,


um
de tucuma caroço , fechado perfeitamente ,
onhehe: -Ku reraco ; curí pe
çukúi ana ; tenhe ,
e disse: - Aqui está ;
levai ; eia, não 0

abrais Pepirári
pirári !! Abrird ramé
es se pecanhima curí.
o, vos perder eis.

cresce
(*) O tucumã
nos uma
valles édo linda palmeira
Amazonas espinhosa
e Prata. que,
Seu côco
de um vermelho côr de laranja brilhantissimo , serve de
alimen
to aos
um succulenselvagens , decomsaa
indige
to mingã,oque r apôlpa
bosua , mas
gradavpreparam
el
sto .
166 LENDAS

Miaçúa oçẻ ăna , oceno teapú tucumã


Os vassallos foram-se, ouviram barulho de tucumã

raínha pupé: ten , ten , ten ; ten , ten, ten.


do caroço dentro : ten , ten, ten ; ten , ten , ten.

.
Tucúra itá reapú , iúí itá irúmo ,
Dos grilos era o barulho, e dos sapinhos com elles ,

onhengári uahá pitúna ramé .


cantam os quaes noite durante .

Miaçúa oikó ramé ana apecatú oiepé


Vassallos estavam quando já longe um

çuíuára onhehe i irumoára itá cupé:


delles disse seus companheiros aos:

――――――- Mãháta quahá teapú? Iaço iamahã?


O que é este barulho? Vamos vêr?

Iacumãiua onhehe :
O piloto disse:

- Intimahã; curumй tahá iacanh'ma curí.


- Não; do contrario nos perderemos.

Peapucúi , iaço ana.


Remai , vamos embora.

Aitá oçó ăna .


Elles se foram .

Aitá ocenō oikó teapú; intí oquáu


Elles ouvindo estavam o barulho; não sabiam
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU ' 167

maha nhahã teapú uahá .


barulho que .
o que era aquelle

Aitá oiko apecatú reté ǎna ramé


Elles estavam longe muitissimo já quando

aitá oiúmuatíri igára pitera pé opirári arāma


elles ajuntaram - se da canôa meio em abrir para

tucumã raínha, omaha arama maha oikó


o que estava
do tucumã o caroço , vêr para

i pupé.
delle dentro .

iraiti
Oiepé omudica tatá; aitá omuiut cú
Um o breu
acendeu fogo ; elles derreteram

ocikináu oikỏ uahá tucumã raínha okena .


fechando estava que de tucumã do caroço a porta.

Aitá opirári ramé , curutèuára pitúna


Elles abriram quando , repentinam noite
ente

uaçú ǎna !
densa já!

Aramé iacumaua onhehe: -Iacanhimo !...


Então ―― Nos perdemos !...
o piloto disse:

Cunha-mucu , çoca iane


upé , oquáu ăna
A moça , sua casa em , sabe ja que nós

iapirár
i rainha.
abrimo quahá tucumã
s
este de tucuma caroço .
168 LENDAS

Aitá oco ána .


Elles seguiram viagem .

Cunha-mucú , cóca upé, onhehe i ména çupé :


A moça, sua casa em , disse seu marido a:

-Aitá opirári pitúna . Cuhire iaço


Elles soltaram a noite. Agora vamos

iáçarú coēma .
esperar a manhã.

• uahá
Aramé opa mahã, oçain oiko
Então todas as cousas espalhadas estavam que

cahá rupí, ocerẻo coo arama ,


bosque pelo metamorphosearam-se animaes em,

uirá arama .
passaros em .

Opăi maha oçain oikó paraná rupí,


Todos as cousas , espalhadas estavam rio pélo,

oierẻo ipeca arama , pirá arăma ;


metamorphosearam- se patos em , peixes em;

uruçakanga oierẻo iáuaraẹte arama .


o paneiro virou-se onça em .

Pirakaçára oierẻo , i igára irúmo, ipeca


O pescador virou - se , sua canôa com , pato

arăma: i akanga ipeca-akanga arăma; i


em ; sua cabeça de pato cabeça em ; seu
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU ' 169

apucuitáua oiereo ipeca retimã arama; ¿gára


remo virou de pato pernas em ; a canôa

ipeca cete arama.


do pato corpo em.

Boia-Uaçú menbira omahā ramé Iacitatá


Da Cobra Grande a filha vio quando a estrella

uaçú, onhehe i měna çupé:


Venus , disse seu marido á:

Coema oúri oiko; xa cỏ xa muin ára pitúna


- Manhã vindo está ; eu vou dividir dia noite

çuí.
da.

Aramé ahé omamana inimu , onhehe:


Então ella enrolou e dísse:
fio ,

-
· Indẹ cujubí (* ) curí , onhehengári arama coēma
-Tu cujubim seras , cantar para manhå

oúri ramé
curí .
vier quando.

Qua omu cujubim , omutinga i


A ssiím fez nhã akánga
o cujubim, branquejou delle a cabeça

tauá
tabatíng
tingaa irúm o omupiránga cetimă urucú
com , ,
avermelhou suas pernas urucu

ve() Uma espe


rmelha s, que ci e de jacú , de cabeç bran , pernas
canta de madruga a, conhceaci na
sciencia sob o no da do
me de; penelope cumanens .
is
170 LENDAS

irúmo , onhehe ixupé: - Renheengári curí, opaì


com , disse elle a: - Cantarás para

ára opé, coema oúri ramé.


todo sempre , manhã vier quando .

Ariré ahé omamãna inimu, onhehe :


Depois ella enrolou fio , disse:

-Inde inanbú curi. (*)


―― Tu inanbú serás.

Opicica tanimúca ombúri cece , onhehe ixupé:


Tomou cinza pôz sobre elle , disse a elle:

-Ine inambú curí , onhehengári arăma caarúca


Tu inambù serás , cantar para tarde

ramé , pitúna ramé , piçaié ramé, pitúna


em de noite em , meia-noite em, noite

pucú ramé, coēma piranga ramé.


alta em , madrugada em . (*)

Aá çuí uiráitá onhehengári ára


De então para cȧ os passaros cantaram tempos

( ) Pezus Niambu (Spix) , uma especie de perdiz


dos bosques do Brazil , que canta a horas certas da
noite.

(*) Dissemos na pag. 78 a que horas correspondem


cada um destes nomes .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 171

catú upé, coēma oúri ramé, omurórí arăma


proprios em, manhã vem quando , alegrar para

ára.
o dia.

Muçapira miaçúa ocika ramé curumi -uaçú


Tres
vassallos chegaram quando o moço

onhehe aitá çupé :


disse elles a:

Penhe intí peçupí uana! Penhe pepirári


- Vós não fostes fieis! Vos soltastes

pitúna! Penhe pemunhã uăna opar mahā


a noite! Vós fizestes todas as cousas

ocăima;
perdere aarecé peiereo macacaí arāma
m-se; por isso virareis
macaquinhos em

opaz ára opé; reuatá mirá rakanga


para todo sempre : andareis das arvores galhos

rupí eatíre.
sobre atrepados.
172 LENDAS

Traducção portugueza da lenda


antecedente . (*)

No principio não havia noite - dia sómente havia


em todo tempo . A noite estava adormecida no fundo das
aguas. Não havia animaes; todas as cousas fallavam.

A filha da Cobra Grande , contam, casara-se com um

moço.
Este moço tinha tres famulos fieis . Um dia elle cha
mou os tres famulos e lhes disse : - ide passear por

que minha mulher não quer dormir comigo .


Os famulos foram-se, e então elle chamou sua mulher
para dormir com elle . A filha da Cobra Grande res

pondeu- lhe :
- Ainda não é noite .

O moço disse-lhe :-Não ha noite ; somente ha dia .


A moça fallou : - Meu pai tem noite . Se queres

dormir comigo manda buscal- a lá, pelo grande rio .


O moço chamou os tres famulos ; a moça mandou-os
a casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã.
Os famulos foram , chegaram em casa da Cobra
Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito
bem fechado , e disse-lhes : — Aqui está ; levai-o .

(*) Não é minha intenção dar em geral outra tra


ducção além da litteral que já ficou atraz , porque o
principal objecto deste livro é o estudo da lingua e não
o das lendas . Comtudo , n'uma ou n'outra em que as
transposições forem muito numerosas eu seguirei a
traducção litteral de uma traducção portugueza , como
faço aqui.
1.

CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU ' 173 1

Eia ! não o abraes , senão todas as cousas se

perderão .

Os famulos foram-se , e estavam ouvindo barulho


dentro do coco de tucuman, assim : tem , ten , ten...

xi... (*) era o barulho dos grillos e dos sapinhos


que cantam de noite.
Quando já estavam longe , um dos famulos disse a
7
seus companheiros : - Vamos ver que barulho será 1
este ?

O piloto disse : --- Não : do contrario nos perdere


mos. Vamos embora, eia, rema!

Elles foram-se e continuaram a ouvir aquelle baru


lho dentro do coco de tucumã , e não sabiam que ba
rulho era.

Quando já estavam muito longe , ajuntaram -se no


meio da canôa , acenderam fogo , derreteram o breu que
fechava o coco e o abriram . De repente tudo escureceu .
O piloto então disse : - Nós estamos perdidos ; e a

moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de


tucuman ! Elles segu
iram viagem .

A moça , em sua casa , disse então a seu marido : —


Elles soltaram a noite : vamos esperar a manhã .

Então todas as cousas que estavam espalhadas pelo


bosque se transformaram em animaes e em passaros.

As cousas que estavam espalhadas pelo rio se trans

zumbido dos insectos


os selvagens
0 () Quando narramà esta
que cantam parte imitam
noite.
174 LENDAS

formararam em patos , e em peixes . Do paneiro gerou-se


a onça ; o pescador e sua canôa se transformarão em

pato ; de sua cabeça nascerão a cabeça e bico do pato;


da canoa o corpo do pato ; dos remos as pernas do pato.

A filha da Cobra Grande, quando vio a estrella


d'alva, disse a seu marido :
―――――――
A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia
da noite.
Então ella enrolou um fio , e disse-lhe: ― Tú serás

cujubin.. Assim ella fez o cujubim ; pintou a cabeça do


cujubin de branco , com tabatinga ; pintou-lhe as per
nas de vermelho com urucú , e então disse-lhe : -Can

tarás para todo sempre quando a manhã vier raiando.


Ella enrolou o fio, sacudio cinza em riba delle , e
disse tú seras inambú, para cantar nos diversos
tempos da noite , e de madrugada.
De então para cá todos os passaros cantaram em

seus tempos , e de madrugada para alegrar o principio


do dia.

Quando os tres famulos chegaram o moço disse-lhes:


Não fostes fiéis - abriram o caroço de tucumā , sol
taram a noite e todas as cousas se perderam , e vos
tambem que vos metamorphoseastes em macacos, an
dareis para todo sempre pelos galhos dos pȧos .
(A bocca preta, e a risca amarella que elles têm no
braço dizem que é ainda o signal do breu que fechava
o caroço de tucumã que escorreu sobre elles quando o
derreteram . )
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 175

AS LENDAS DO JABUTI

II

JAUTI TAPIIRA CAHAIUÁRA


Jabuti e anta do mato

N
ARGUMENTO . -Neste primeiro epi
sodio, a anta, abusando do direito da
força , pretende expellir o jabuti de de
baixo do taperabaseiro , onde este colhia
o seu sustento; e como elle se oppuzesse
á isso , allegando que a fruteira era
sua, a anta o piza e o enterra no
barro, onde elle permanece até que,
com as outras chuvas que amolleceram

a terra , elle pôde sahir , e, seguindo
pelo rasto no encalço da anta , vingou-se
della matando-a.
Parece que a maxima que o primi
tivo bardo indigena quiz implantar
na intelligencia de seus compatriotas
selvagens foi esta: a força do direito
vale mais do que o direito da força.
Apezar da extrema simplicidade
com que a lenda é redigida , revela tal
conhecimento de circumstancias pecu
liares aos individuos que nella tomam
parte, que seria muito difficil a qual
quer pessoa , que não o indigena , o
compôl-a. E' assim, por exemplo : a
fruta do laperebá é sustento favorito
de antas e jabutis; amadurece no
principio da secca; de modo que, se o
jabuti foi atolado no barro quando
176 LENDAS

colhia essas frutas, e se só sahio com


as futuras chuvas, segue-se que foi
atolado em Main , mais ou menos,
e que só sahio em Novembro; é justa
mente durante esses mezes que os ja
butis hibernam . Quand elle encontra
a anta , é em um braço do rio grande
-paraná mirim-; todos os caçado
res sabem que este animal prefere na
verdade os canaes estreitos para resi
dir em suas margens . Estas e outras
circumstancias, narradas com tanta
precisão, que era possivel fixar épocas
para cada um dos pequenos factos a
que a narração allude, indicam a
producção de uma intelligencia sim
ples, é verdade, mas perfeitamente
informada e conhecedora do scenario
em que se passa o pequeno episodio
ahi descripto .

Iautí míra catú, intimaha míra puxí . Oiko


Jabuti gente é boa, não gente é má . Estava

itapereДuá urpe, oçanhãna i temiú . Tapiíra


do taperebá em baixo , ajuntando sua comida . Anta

cahaiúára ocika ápe , onhehe ixupé: - Retirica


do mato chegou ahi, disse a elle: - Retire - se ,

iáutí , retirica kí (iké) xií . » Iauti oçuaxára


jabuti , retire--se aqui de. » Jabuti respondeu

ixupé : -Ixẻ ki xií (çuí) intí xa tirica mãhá


a ella:-Eu aqui de não me retiro que
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 177

rece xa iko ce iuá Mua


por (porque) eu estou de minna de fruta , arvore

uirpe. » -Retirica , iautí. curumú xa pirú


embaixo . - Retira-te , jabuti , senão eu pizo

inde . -Repirú ! ... re mahe arama , inẻ nhu será


voce.» - Piza!... tu veres para , se tu só és

apgaua ! » Tapiíra , iurúparí , opirú iáutí teté.


macho!» Anta,
juruparí, (*) pizou jabuti coitado .

Tapiíra oço ǎna. Iáutí quaí onhehe : --


Anta se foi embora . Jabuti assim disse:

Tenupá, iúruparí; amana ára ramé


Deixa estar , juruparí ; da chuva .o tempo quando

curí xa cẽmo , xa co ne racaquera mamé catú


fôr eu saio , eu vou em teu encalço onde até

xauácémo
ха nde: xa mehè curí inde arăma
eu encontrar você; eu darei você å

reiútima recuiára, ixe. » Amãna ára


de me enterrares o troco , eu. » Da chuva o tempo

ocika ana iáutí ocĕmo arama . Iautí ocemo oco


chegou o jabuti tirar para . Jabuti sahio foi

ána iúrupari uaçú racaquera . Oiúiúantí


embora do juruparí grande atraz. Encontrou-se

(*) Jurupari é o espirito que entre os selvagens cor


responde mais ou menos ao nosso demonio judaico ,
sem ser tão perverso como este .
178 LENDAS

tapiíra pipóra irúmo. Iáutí opuranú ixupé:


da anta rasto com . Jabuti perguntou a elle :

Muíri ára ăna ne iára oxári inde?» Pipóra


Quanto tempo já teu senhor deixou você?» Orasto

oçuaxára: Cuxiíma ana ce oxári. » Iáutí ocemo


respondeu : -Ha muito ja me deixou . » Jabuti sahio

a xií iepé iac rirí (riré) , oiúiúantí amй


alli de uma lua (um mez) depois , encontrou- se outro

pipóra irúmo . Iáutí opuraunú : - Apécatú raín será


rasto com . Jabuti perguntou : - Longe ainda

ne iára oiko ? D Pipóra oçuaxára : ― Reuatá


teu senh or estå ? Orasto respondeu : -- Tu andares

ramé moco ára reçuanti (reiuiúanti) curi ahé


quando dous dias te encontrarás elle

irúmo . » Iáutí onhehe ixupé:-Cę querana(*) xa


com.» Jabuti fallou elle å : - Estou aborrecido eu

(*) Quera ana , cura ana- aborrecido já . A forma


desta palavra , que entra na composição de muitas , é
identica no tupi da costa e no guarani antigo ; faz tam
bem ――― éra - Ou - guera segundo a euphonia o
exige. E ella que entra na composição das palavras
acanguera, tigu ra , coocuera , manicura etc.

A forma do adjectivo em guaraní antigo é : cuęraí ;


Montoya, Thesouro fl . 104 diz : compuesto de
cuéra - preterito, e - ai - esparcir enfado ; Xe
cuerá estoy enfadado,
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU' 179

cicári ; ahé ipo oçó reteana. » Pipóra


de procurar; ella pode ser foi · de uma vez . » Rasto

opuranú : - Mãhá rece tahá quité recicári


perguntou: -Por que razão que agora tu procuras

rete ahé? >> Iáutí ocuaxára : - Intimahă mahã


tanto ella?» Jabuti respondeu: - Nem uma cousa

arama ; Xa purunguetá putári ahé irúmo . »


para (para nada) . Eu conversar quero ella com .»
>

Pipóra onhehe: -Aramé reço uāna paraná miri


Rasto fallou : -Então tu vás río pequeno

kete; aápe curí reuacemo се rúba turuçú . » Iáuti


ao; lá acharàs meu pai grande . » Jabuti

quai onhehz : — Aramé xa çỏ rai. Ocika


assim fallou : - Então eu vou ainda . Elle chega

paraná miri pupé ; quai opuranú: - Paraná,


rio pequeno no ; assim perguntou: - Rio ,

mahá pa ne iára?» Paraná oçuaxára :


que é do teu senhor?» Rio respondeu :C

Tauquáu . » (Intí quau) . Iáutí onhehe paraná çupé:


Não sei. >> (
) Jabuti fallou rio ao:

(*) Quando se faz ao selvagem uma pergunta in


discreta , e que elle quer exprimir a sua má impressão
responde: tauquáu, em vez de responderem inti xá
quán .
180 LENDAS

-Mahá ręce tahá iaué catú renhehe ixe?


Por que razão que assim bem tu fallas a mim?»

(arama?) » Paraná oçuaxára : -Xa nhehe ine arāma


Rio respondeu: -Eu fallo você à

nhahã . iaué catú mãharece xa quáu āna maha


isto assim bem por que eu soube o que

ce rúba omunhã inde arama . » Iáutí onhehe :·


meu pai fez você ȧ .» Jabuti fallou : -

Tenupá oiko ; ixe curí xa uácemo ahé. Aramé


Deixe estar; eu hei de achar elle . Então

cuhire , paraná , xa có ne çuí; remahe ramé


agora, rio , me vou você de ; avistares quando

curí ixé ne páia reáuera irúmo uana . »


eu . de teu pai cadaver com estarei. »

Paraná onhehe : -Ten reiáúki ce rúba irúmo !


Rio respondeu: -Não bulas meu pai com !

tenupá okeri. » . Iáutí cnhehe: -Cuhire çupí ce


deixa elle dormir . » Jabuti fallou : - Agora certo me

rurí catú ; paraná xa ço rai.. Paraná


alegro bem; rio me vou ainda.» Rio

- in ipo reiúiútíma
oçuaxára: Ah , iáutí ,
-
respondeu : Ah , jabuti , você pode ser te enterrares "

putári moco uê! » Iáutí onhehe : Intimahã


queres segunda vez ! » Jabuti fallou : -- Não
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 181

xa ikỏ ára uirpe itá arāma ; cuhire xa có


estou mundo no pedra para ; agora eu vou

xamahe kirimáua pire uahá ce çuí; erẻ , paraná,


vêr se valente mais que eu do ; adeus , rio ,

Ха co rai.. Iáutí oço uăna; paraná


me Vou ainda.» Jabuti foi-se embora; do rio

miri remelua rupí uacemo tapiíra . Iáutí


pequeno margem sobre encontrou a anta. Jabuti

onhehe quahá iaué : -Xa uacemo nde o intimahã?


fallou a esta assim :- Eu encontrei você ou não?

Cuhire remahe cnrí ce irúmo . Ixe pahá


Agora tu verás eu com (comigo) . Eu , dizem ,

apgáua! » Opúri renoné tapiíra çapiá opé.


sou macho! » Pulou adiante da anta escrotos nos.

Quaí onhehe : -Tatá , pahá, oçapi opa rupí !.


Então fallou : -Fogo , dizem, queima tudo sobre ! » (*)

Iáutí opúri kirimáuaçáua irúmo tapiíra rapiá


O jabuti pulou valentia com da anta escrotos

recé. Tapiíra iacanhemo , opáka . Tapiíra quaí


sobre . A anta assustou-se , acordou . Anta assim

onhehe : - Tupana rece catú , iáutí , rexári ce


fallou: - Tupãn pelo bom, jabuti , deixa meu

(*) Em vez desta phrase popular: que leve tudo o


diabo, os indigenas dizem: o fogo devora tudo, »
182 LENDAS

rapiá . » Iáutí oçuaxára: Ixe intimahã xa xári


escroto. » Jabuti respondeu : Eu não deixo

mãhá recẻ xa mahe putári ne kirimáuaçáua. »


que por eu vêr quero tua valentia . >>

Tapiíra onhehe : -Aramé a iko xa co . Tapiíra


Anta fallou: - - Então estou me indo .» Anta

opuama , unhãna paraná mirì rupí; mocoi


levantou-se, correu rio pequeno sobre ; dous

ára pauacápe tapiíra omanu- ana ; Iáutí quaí


dias no fim , anta morreu . Jabuti então

onhehe: - Xa iucá nde, o intimaha? Cubire


fallou : - Eu matei você ou não? Agora

xa có xa cicárice anama itá oú


eu vou procurar meus parentes comerem

arama nde.
para você.

+
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 183 .

III

IAUTI IAURAETE
O jabuti e a onça

Neste 2º episodio parece que a ma


xima ensinada é a seguinte :-Quando
o poderoso faz partilha com o pequeno
este é quasi sempre o prejudicado . Ao
leitor não escapará a semelhança que
há entre esta e a fabula grega da par
tilha do leão com seus companheiros
de caça .

Iáutí oçacéma : -C ? anama itá! Ce anăma itá ,


Jabuti gritou.:- Meus parentes ! Meus parentes ,

iúre !
venhão !

Iauáreté oceno, oço a kete, opuranú : -Mauháta


A onça ouvio , foi là para , perguntou : -O que

reçacema reiko , Iauti ?


tu gritando estás , jabuti ?

Iauti ocuaxára : -Xa cenōin xa ikó ce


Ojabuti respondeu : -Eu chamando eu estou meus

anama ita oú arăina ceremiára uaçú


parentes comerem para minha caça grande

tapiíra.
a anta . »

:

184 LENDAS

Iauarete onhehe : -Reputári xa 1 mu


mui tapiíra
A onça disse : -Tu queres que eu parta a anta K

inde arama ? »>


voce para ?

Iautí onhehe : -Xa putári : remunúca iépe


Jabuti disse : -- Eu quero : tu separes uma

çuaxára ine arama ; amu , ixé arama .


W banda ti para ; outra mim para.

Iauarete onhehe : - Aramé reco reiúúca iepeá.


A onça disse : - Então vá tirar lenha.

Iauti oçó pucuçáua , iáuáreté ocupíri


O jabuti foi em quanto que , a onça carregou

iximiára, diáuáu.
delle a caça , e fugio .

Iautí ocika ramé uacema nhúnto ana


O jabuti chegou quando encontrou apenas

tiputí, diákáu iauáreté irúmo , onhehe : ――


fezes, ralhou onça com , disse : -

Tenupá ! amuára xa iúinantí curí


1
Deixa estar algum dia eu me encontrarei

ne irúmo . »
voçe com ; »
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 185

IV

JAUTI CUAÇU
Jabuti c Veado

Deve faltar aqui alguma cousa,


porque, tendo a onça carregado a anta
na lenda anterior, aqui neste episodio
vê-se que o Jabuti já a tinha rehavido.
O mytho é em resumo o seguinte:
tendo o veado apostado uma carreira
com o jabuti, este espalhou ao longo`
do caminho outros jabutis, e elle mes
mo se foi collocar na raia, de modo
que, quando corrião e o veado cha
mava pelo jabuti, sempre um dos ju
butis, postados no caminho , respondia
adiante.
A maxima desenvolvida neste epi
sodio é a seguinte : a astucia e a in
telligencia valem mais que a força ;
ensinar esta maxima por meio de um
episodio em que o jabuti, o mais va
garoso dos animaes , vence o veado na
carreira, não será muito christão ,
mas devia gravar indelevelmente esza
verdade na intelligencia do selvagem.

Iautí miri ocóãna ocicári i anama


Jabuti pequeno foi procurar seus parentes ,

itá (eta), oiúiúanti çuaçú irúmo . Çuaçú


encontrou- se veado com . Ö veado

opuranú ixupé : - Mahá kete tahá reco ?


perguntou a elle : - Onde para que tu vas?
186 LENDAS

Iautí oçuaxára : —- Xa cỏ xa cenoi ce


Jabuti respondeu : -Eu vou eu chamar meus

anama itá (eta) oúri ocicári arama (omahen


parentes virem procurar para

ce remiára uaçú , tapiíra . Cuaçú quaí


minha caçada grande , a anta . Ö veado assim

onhehe : ――― Aramé réiucá tapiira ? ! Cỏi


fallou : - Então voce matou anta ?! Va

recenoi ne míra itá (eta) ; ixé xa pitá


chame tu gente toda: quanto a mim , eu fico

ike xa mahe putári a itá (ae eta) rece. » Iáuti


aqui eu olhar quero elles sobre . Jabuti

quai onheh : - Aramé intiāna ха со :


assim fallou : - Então eu não mais • vou ;

qui xií tenhen xa iuri xa çarú arāma


daqui mesmo eu volto eu esperar

júca tapiíra , xa iuúca arama i căuêra


que apodreça a anta , eu tirar para seu osso

cerememi arāma ; erẻ, çuaçú , xa Ço


minha gaita para ; Esta bom, veado , eu Vou

rai . Cuaçú quái onhehe : -Re iucá tapiíra


já . Veado assim fallou : Tu mataste anta C

cuhire xa çaan putári ха nhãna ne


agora eu experimentar quero eu correr voçe
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 187

irúmo . Iaúti oçuaxára : - Aramé reçarú


com . Jabuti respondeu : — Então voçe espere

ixẻ ikê: ха Ço xa mahe maarupí xá


a mim aqui: eu vou ver por onde eu

―― Renhana
nhãna curí. Cuaçú onhehe :
correr heide. Veado fallou : - Tu correres

ramé amú çuaxára rupí , xa çapucái ramé


quando outro lado. por, eu gritar quando ,

recuaxára. Iauti onhhe : --- Xa có raín .


tu respondas . Jabuti fallou : - Me vou ainda .

- Ten curí reikó


Çuáçú onhenhe ixupé :
Ö veado fallou a elle : - Agora vå

pucú... (*) Xa mahe putári ne kirimauacáua »


demorar-se... Eu ver quero tua valentia»

Iautí quai onhenhé : Recarú xinga


Jabuti assim fallou : - Espere um pouco

ranhẹn , (rain ) tenupá xa cika çuáindá


ainda , deixa me chegar outrabanda

pe. Ahé ocika aápe


aápe ,, oin
ocengin
ocen ipáua i
na. Elle chegou alli , chamou todos seus

(*) Ten curí reiko pucú litter : Eia ! te fiques com


prido, isto é não sejas vagaroso , não te demores. A
lingua é cheia de methaforas como essa .
188 LENDAS

anāma . Ahé omuapire ipáua paraná mirim


parèntes. Elle emendou todos do rio pequeno

remijua rupí , ocuaxára arama çuaçú aquama


margem pela, responder para veado tolo

cupé ; aramé quai onhehe :– Cuacú, reiú


ao; então assim fallou : - Veado , Você

-
mungaturú ana será ? Cuaçú açuaxára : — Ixẻ
prompto já está ? Veado
Veado respondeu : - Eu

1.
xá iko ana . Iautí opuranú : - Auá tahã
eu prompto jȧ. Jabuti perguntou : -Quem que

onhãna tenoné ?
corre adiante ?

Çuaçú opucá, onhche : -Reço tenoné, iáutí


Ö veado rio-se , e disse: Tu vás adiante , jubati

tete. »
miseravel.»

Iáutí intí unhãna ; "oganāni


çuaçú, oço
O jabuti não correu; enganou ao veado , e foi

opitá ipauaçápe.
ficar no fim .

Çuaçú oikuente oruíári ręce ce tmãn


Ŏ veado estava tranquilo fiar-se por suas pernas

rece.
em. (O veado estava tranquillo por fiar-se em suas
pernas . ) 1
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 189

Iáutí anama oçacéma çuaçú recẻ . Cuacú


Do jubuti o parente gritou veado pelo . O veado

oçuaxára çacaquera kete. Quai


Quaí quaçú onhehe :
respondeu atraz para. Assim o veado fallou :

-
-Aique xa ço , iúrará cahapóra !
-
Eis-me que vou , tartaruga do mato!

Çuaçu unhãna, unhãna , unhãna , ariré oçacema :


O veado correu , correu , correu , depois gritou:

-Iáutí ! Iáutí anāma oçuaxára tenoné


-
Jabuti ! » Do jabuti o parente respondeu adiante

tenhe . Çuaçú onhehe: -Aiqué xa co apgáua .


sempre. O veado disse: -Eis-me que vou , ó macho.

Çuaçu unhãna C
unhana ,', unhãna , unhãna , oçapucái :
Ö veado correu , correu , correu , e gritou : ―

Iáutí ! » Iáutí tenoné tenhe oçuaxára .


Jabuti!» O jabuti adiante sempre respondeu .

---- Xa
Çuaçú onhehe : — ú raín . »
Ö veado disse: ― Eu vou beber ainda agua. »

Aápe tenhe çuaçú okirirí.


Ahi mesmo o veado calou-se .

Iáutí oçaçema, oçacema , ocacema ... Intí auá


O jabuti gritou , gritou , gritou ... Ninguem

Ocuaxára ahé . Aramé onhehe: -Nhaha apgáua


-
respondeu a elle . Então disse : Aquelle macho
190 LENDAS

ipó omanon ana: tenupá raín xa ço ха


pode ser que morreu já; deixa ainda que eu và eu

maha ahé .
vêr a elle .

Iáutí onhehe quaí irumoára itá arāma :


O jabuti disse assim seus companheiros para :

Xa co meué rupí xa maha ahé.


Eu vou devagarinho vêl-o .

Iáuti océma ramé paraná remiepe , onhehe


O jabuti sahio quando do rio na margem, disse

quaié: Tirain (intí rain) cereái.


assim: Nem se quer eu suei . (Quando o
jabuti sahio na margem do rio disse: nem se quer eu
suei.)

Aramé ocenōin çuaçú rece : -Cuaçú ! » Intimahā


Então chamou veado pelo: - Veado ! » Nem nada o

çuaçú oçuaxára ahé.


veado respondeu-lhe .

Iáuti irúmoára omahā ramé çuaçú


Do jabuti os companheiros olharam quando veado

ręce , onhehe ana: -Cupí-tenhe omanū-āna . »


sobre , disseram : -Em verdade morto já está . »

Iántí onhehe : -Iaçó iaiuúca 1 i cauera .


Jabuti disse : - Vamos nos tirar seu osso .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 191

Amuitá opuranú: -Marāma tahá reputári?


Os outros perguntaram: -Para que é que tu queres?

Iáutí oçuaxára : Xa peiú arāma i pupé


Jabuti respondeu :, Eu assoprar para elle em

opai ára opé.


todu tempo em.

Cuhire ха Co ǎna pé çuí te curí


Agora me vou embora aqui de atė

amuára opé.
algum dia em .
192 LENDAS

IAUTI OIUIUANTI MACACAITÁ IRUMO


O jabuti encontra- se macacos com

Talvez falte tambem alguma cousa


neste episodio, porque se não compre
hende bem qual a razão deste encontro
do jabuti com os macacos.

Iáutí miri ouatá , ouatá , ouatá mocói ára


Jabuti sinho andou , andou , andou de dois dias

pucuçáua, oiuiúantí macáca irúmo , oiko uahá


o espaço , encontrou -se macacos com , estavão que

zuá jua rece, onhehe macaca çupé: -Macáca ,


de fructa arvore sobre e disse macaco ao: ―― Macaco,

reomburi amú iuá ха й arama . Macáca


tu jogues alguma fruta eu comer para . Macaco

oçuaxára:
respondeu:

-Reiupirí, intí-será apgáua nde? Iáuti


-Suba, " por ventura não é macho Você? Jabuti
você?

onhehe: - Ixé
apgáua cupí ; intí xa iúpíri
disse: ――― Eu sou macho na verdade ; não eu subir

putári, ce maraári rece .


quero , eu estar cançado por. (Eu não quero subir por
CURSO DE LINGUA TUPI , VIVA OU NHEHENGATU ' 193

Macáca onhehe : - Manhúm (*) xa


estar cançado) . Macaco disse: -Somente o que eu

munhã quáu indeu xa co ne piamo , acuí


fazer posso a você é o eu ir você buscar d'ahi

ki kete . láutí onhehe : Aramé iúre cę piămo.


aqui para . Jabuti disse: Então venha me buscar.

Macaca oiie , puraço ¿uaté kete iáuti; aápe


Macaco desceu , carregou cima para o jabuti; lå

oxári ahé. Iáutí opita ápe moco ára


deixou elle. O jabuti permaneceu ahi dous dias

riré, intí quáu oié recé.


depois , não poder descer por . (Por não poder descer . )

(*) Manhúm- é uma contracção de— mahã anhữ—


aquillo somente.
194 LENDAS

VI

IAUTI IUIRI IAUARAETÉ


Jabuti e de novo a onca

Posto em cima de arvore, de onde


jabutis não podem descer, e appare
cendo alli a onça com fome, a situação
do jabuti era critica. A onça diz- lhe
que desca; elle comprehendeu que se
recusasse a onça subia e o agarrava
lá ; por isso pedio á onça para apa
ral-o com a boca o que esta fez de
boa vontade pois era o meio prom
pto de comer o jabuti em vez de sal
tar-lhe na boca, este saltou-lhe no fo
cinho, e assim matou-a . Um jabuti
grande póde pezar até quatro kilos, e
cahindo do galho de uma arvore, di
gamos de cinco metros de altura ,
podia sem duvida matar a onça.
Neste episodio , como em outros, o
pensamento parece ser este: a intelli
gencia unida á ousadia vencem situa
ções que parecem desesperadas.

Iauaraete oiuquáu árúpi . Iauaraete omahā


A onça appareceu por alli . A onça olhou

uaté kete xipiá autí teté , onhehe quaié :


cima para vio o jabuti coitado , disse assim:

O' iáutí, mahá rupí reiupíri? Iáutí oçuaxára :


O' jabuti , por onde tu subiste ? Jabuti respondeu :
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU ' 195

- I iuá ua rupí. Iauarete iumaciçáua


- Esta de fruta arvore por. » A onça fome

irúmo , onhehe :-Reoieana ! Iáutí quaí onhehe :


com , replicou : - Desca ! O jabuti asssim fallou :

Recuantí ixe aȧpe; repirári ne iúrú , intí arāma xa


Apare me lå; abra a tua boca, não para que eu

ári upe. » Iáutí opúriană , otucá


caia chão no .» O jabuti pulou , foi de encontro da

iauaraete tim ; omanй iuruparí. Iáutí


onça ao focinho ; morreu a diaba . O jabuti

oçarú nhum inca riré ana, oiuúca ana


esperou até ap od recer dep ois de , e tirou

i memi. Aramé iáutí oço anã , opeiú i


sua frauta. Então o jabuti foi-se tocava sua

memi quaié onheengári : -Iauraete cauera cereme


frauta, assim cantava: --Da onça o osso e a minha

mị’ -ih! -ih? »


frauta --ih ! -ih? » (*)

(*) Tirar o osso da canella do inimigo para com elle


fazer uma frauta , era entre os selvagens um dever de
todo guerreiro leal e valente . Aquelles que quizerem vèr
o que erão essas frautas ou memins encontrarão nume
rosas no Museu Nacional, feitas de canella de onça e
julgo que tambem de canellas humanas . Comprehen
de-se. a vista disso , o prazer e orgulho com que o jabutí
tocaria em um memin feito de canella de onça , pois
equivalia isso a celebrar sua victoria sobre um animal
muito mais forte do que elle.
196 LENDAS

VII

IAUTI AMU IAUARAETE


O jabuti e outra onça

0 pensamento desta lenda é o mesmo


da antecedente. Não escapará ao lei
tor a finura com que o jabuti altera a
canção, que injuriava a onça , até que
deparou um buraco junto ao qual a
podia cantar impunemente.
Não estará ahi contido o pensa
mento seguinte: -quando quizerdes
injuriar teu inimigo , vé primeiro se
estás em situação em que elle te não
possa fazer mal?

Amú iauaraeté oiapiçáca, oúri jáutí


Outra onça ouvio e veio jabuti

píri, opuranú ixupé :


ao , perguntou a elle :

-- Mãhí catú tahá repeiú ne mim mim!


- Como bem que tocas tua frauta!

Iáutí oçuaxára: -Xa peiú ceremmemim


O jubuti respondeu : -Eu toco minha frauta

quaie : a cauera cerememim


Çuaçú
assim : << Do veado O osso e minha frauta,

i! i! ――― Iauaraete onhehe : Intí


ih! ih ! A onça disse : A modo
:

CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 197

nungára quaié xa ceno repeiú. » Iáutí


que não foi assim que eu ouvi você tocar. » O jabuti

oçuaxára : - Retirica mi ketẻ xinga ; apecatú


respondeu : Afasta-te de aqui um pouco; de longe

çuí reapicáka puranga pire. Iáuti ocicári


escutarás bonito mais» . O jabuti procurou

upé, opejú i
quára opitá i okena
e tocou sua
um buraco pôz-se sua porta na ,

memim:-Iauarete cauera cerememim y ! y!


frauta: - Da onça O OSSO é minha frauta ih ! ih!

Iuarete oceno ramé , uiana opicika arama ahé ;


A onça ouvio quando correu agarrar para elle ;

Iáutí ouimuneo iuiquára rupí. Iuarete


O jabuti metteu-se do chão buraco pelo . A onça

omunẻo i pó, opicika nhúm се


della a mão , agarrou apenas delle a
metteu

timan recé. Iáutí opucá onhehe:


perna sobre. Ojabu ti deu uma risada e disse :

- Maité opicika ce retiman opicika


Pensou, que agarrou minha perna e agarrou

nhúm mirá rapú! Iauarete quaiê onhehe :


apenas de påo raiz ! A onça assim disse:

Tenupá oiko ..
Deixa estar. »
198 LENDAS

Oxári iáutí retiman. Iántí opucá


Largou do jabuti a perna. O jabuti rio-se

mucor uê, onhehe : Ce retimã


segunda vez e disse : -- Minha perna era

tenhé, iepé.
mesmo, porém.

Iauarete aquaima uaçú oçarú até omano.


A onça tola grande esperou até morrer .
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 199

VIII

IAUTI MICURA
Jabuti e raposa

O ensino contido nesta lenda é o


mesmo da fabula grega - A raposa e
o corvo - dando-se até a coincidencia
de, tanto nella como na fabula de
Phedro, ser o lisongeiro personificado
pela raposa . « Ninguem deve fazer a
outrem aquillo que elle pede depois de
lisongear, porque expõe-se a ser lo
grado. » A maxima é assim desenvol
vida: O jabuti recusou- se a emprestar
á raposa sua frauta; a raposa pe
dio-lhe então que tocasse ; o jabuti
tocou cousa muito sem graça , que no
entretanto deu motivo á raposa para
admirar-se do quanto elle jabuti era
formoso tocando o instrumento; o ja
buti, depois dessa lisonjearia, fez
que a principio recusára, isto é: em
prestou a frauta , e a raposa fugio
com ella.
A segunda parte da lenda é o des
envolvimento daquella outra maxima ,
a qual, como já noter atraz, parece
que sobre tudo preoccupava os mestres
selvagens, isto é: a intelligencia tudo
vence; o jabuti, com o ser um animal
vagarosissimo , consegue no entretanto
por uma espirituosa astucia rehaver
a frauta roubada pela raposa. A se
gunda parte da lenda é chocante para
200 LENDAS

nossos habitos. Aquelles que já leram


as comedias de Aristophanes, verão que
o indigena ficou muito áquem do poeta
· grego em materia de liberdade de
scena.

Iáutí , ipahá, oreko iepé mem ; oiepé ára ,


Jabuti dizem que tinha uma frauta ; um dia ,

opeiú ramé oiko cę memį , micúra pahá


tocando quando estava sua frauta , a raposa dizem que

ocenu oçó , onhehe iáutí çupé: - Repurú ixẻ ne


ouvir foi, e disse jabuti ao : - Empresta me tua

memi? D Iáutí oçuaxára: - Ixe tio , (intí)


frauta?» O jabuti respondeu : --- Eu não ,

remuiáuáu arama cerememi ! Micúra


fazeres fugir para a minha frauta! A raposa

onhehe : - Aramé repeiú , iaceno arăma ne


disse: - Então toque , nós ouvirmos para tua

rememį. » Iáutí opeiú ce memi qaiê : fin, fin,


frauta .» O jabuti tocou sua frauta assim: fin, fin ,

fin, fin, culo fon , fin . Micúra onhehe: - Mai


A raposa disse : - Como
fin, fin, culo fon, fin.

i pură reté ine ne rememi irúmo , iáutí!


formosissimo é você tua frauta com, jabuti!
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 201

Epurú xinga ixe arama .. Iáuti onhehe:


empresta um pouco mim a. >» O jabuti disse:

Repicika! Tenhe reraço cerememì ; reuidna


Tome!
Agora não leves minha frauta; se correres ,

ramé, xa iapí ne cupépe quahá iráit . » Micúra


eu atiro tua costa na esta cera. » A raposa

opicika, opeiú iáuti remem ; oçahan


tomou , e tocou do jabuti a frauta , experimentou

opuraçain , uacema ipuran rete ; unhãna ana


dansar , achou bonito muitissimo ; correu

memi irúmo. Iáutí unhãna çak quéra : maí


a frauta cem . O jabuti correu atraz: mas

timahā unhãna ; cenápe te pahá oiu


não correu; lugar no mesmo dizem que volta

úire oikó : aramé onhehe: - Tenupá ,


1 voltando estava ; então disse : - · Deixa estar,

micúra! curumirínte xa picika curí iné.


raposa! d'aqui a pouco eu apanharei você. ―――

Iáutí oçoãna cahá rupí, ocika paraná .


O jabuti foi bosque pelo , chegou do rio

remehipe , omunúca mirá omunhã arama mitá ,


margem a, cortou madeira fazer para ponte

oiaçáu arama i ári rupí; ocka çuaindá


atravessar para
cima por; chegou outra margem
202 LENDAS

pe, oiúpíri, omunúca íra mira , oiuúca mirá


na, atre pou , cort ou de mel arvo re , tiro u de påo

íra , oiuri ăna çakaquera kete , ocika micúra


mel, voltou atraz para , chegou da raposa

rapé pé, oiatica i akain (akanga) u pe,


sua cabeça chão no ,
caminho no , afincou

opic ka mira íra , omumúri xiquára pé . Cupucú


pegou de pão o mel , ungio D'ahi a

xinganté micúra ocka aápe , omahã nhaha


pouco a raposa chegou alli , e olhou àquella

!" rece: cinipúca purain nhaha ?!


agua sobre ; lustrosa e bonita que era aquella agua .

; Micúra onhehe: Ih ... mãháta tecuaha?» Ariré


A raposa disse : Ih... o que será isto?, Depois

omundeo i dedo , ocereu onhehe :-Hi ……. i ……. ¡ …….


enfiou seu dedo , lambeu e disse : -Hi ... i ... i ...

íra quahá! Amú micúra onhehe : - Mãhân! íra


mel é isto! Outra raposa observou- Que! mel

nhaha? Anhen ! Iáutí riquára nhaha , maí


aquíllo? Qual! Do jabuti é . aquillo , como

tahá? » Amù oçuaxára: ― - Mahã iáutí riquára


então?»> A outra respondeu : - Que de jabuti

quahá íra quahá , mai tahá? » Oinci rete


isso! mel é isso , como então?» Sedenta muito
CURSO DE LINGUA TUPI VIVA OU NHEHENGATU' 203

ǎna, omundéo ana i apeco i pupé . Iáutí


estava, introduzio sua lingua nelle . O jabuti

oiu/ca xi quára; cúra . oçacema: ― Rexári


apertou seu • a raposa gritou : - Deixa

ce apeco , (apecón) iáutí! » Amú onhehe :


a minha lingua , ójabuti ! »> A outra disse:

-Maháta xa nhehe inde arama? Iáuti riquára


- O que eu disse te? De jabuti

nhahã xa nhehe ra pahá nẹ arama : ine rẹnhehe :


isso eu disse que era ti á: tu disseste :

-Ira quahá , maí tahá? Iáuti onhehe: -


qaie
-
-Mel é isto, como então?» O jabuti então disse :

Han! han! mäháta xa nhehe ine arama? Mãháta


Ham ! ham ! o que eu disse você á? Cadê que eu

intí xa picka ine? Ine, pahá , oquáu


não te apanhei? Tu , dizem , esperta és

rete , micúra! Mahápa ahé cerememì » ?


muitissimo , raposa! Que é da minha frauta»?

Micúra oçuaxára: - Intimahă xa rekỏ, iáutí.


A raposa respondeu : Não eu tenho , jabuti .

Iáuti onhehe: Rereko , maí tahá? Erúri ,


O jabuti disse: Tu tens, como então? Traze ,

erúri , curute , curumu xa iuica rete , »


traze , já , senão eu aperto muitissimo . »

Micúra omehe Се memi 'uána .


A raposa entregou sua frauta já.
204 LENDAS

IX

IAUTI M¿CURA
O jabuti e a raposa

O jabuti e a raposa apostam para


vêr quem resiste mais tempo á fome.
Sendo ojabuti um animal que hiberna,.
pôde supportar a experiencia por dous
annos, e della sahir com vida; outro
tanto não aconteceu á raposa , que não
tendo a mesma natureza do jabuti
morreu em meio da experiencia.
*
Parece que a parabola quiz ensinar
que: pelo facto de um homem fazer
uma cousa , não se segue que todos a
possam fazer, e que, antes de empre
hendél-a, devemos primeiro consultar
se a natureza nos dotou com as qua
lidades necessarias para sua realiza
ção. Este mesmo pensamento é desen
volvido em uma serie de lendas, que
adiante publicamos com o titulo de -
Casamento da filha da raposa -sendo
de notar-se que, tanto nesta , como
naquellas, a raposa é a victima.
Entre os nossos indigenas, como entre
os gregos e romanos, a esperteza da
raposa é frequentemente exposta
ridiculo, e figurada como nociva á
mesma raposa .

Iáutí oikí iul ce


quára úpe , opeiú
Jabuti entrou do chão buraco em, assoprou sua
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 205

memi, opuraçain (opuraça ) oiko : fin , fin , fin ,


frauta , dançando estava:

fin , culo , fom , fin , fin , culo , fom , fin , culo fom , fin,

culo , fom , fin , te tein ! te tein ! te tein ! (*) Micúra


Raposa

ocika ocenor iáutí : -O iáutí?


veio chama o jabuti: -O' jabuti?

Iáutí oçuaxára : -U! Micúra onhehe:-Jaco


Jabuti respondeu : -U! A raposa disse : -Vamos "

iacaan iane quirimauaçáua? Iáutí oçuaxára :


experimentar nossa valentia? Jabuti respondeu :

-Iaço , micûra ; auáta tenoné? » Micúra onhehẻ :


--- Vamos, raposa : quem vai adiante? » Raposa disse :

-Ine, iáutí. »
-
- Tu , jabuti . »

Ere, Micùra ; muire acaiú tahá ,


-- Está bom, raposa ; quantos annos serão ,

micúra ? » Micúra oçuáxára : - Muçapira


raposa ? » respondeu :- Dous
A raposa

acaiú. » Aramé micúra ocikináu Iautí iui


annos. >> Então a raposa fechou o jabuti do chão

( ) Quando elles narram a lenda , cantam , nesta


parte, a musica attribuida ao jabuti , que eu não posso
reproduzir aqui , não obstante têl - a em manuscripto .
206 LENDAS

quára opé ; ocįkináu opáu rìrê , onhehe :


buraco em ; de fechar acabou depois que , disse:

Ere, Iautí , xa có . ăn .
Adeus , Jabuti , me vou embora . »

Acaiú iauê iauê oúrí , onhehe Iautí


De anno em anno vinha , fallar o jabuti

irúmo ; ocika lui quára rokena opé,


com ; chegava do chão do buraco porta na,

ocenor iautí - Oh iautí ! » Iautí oçuaxára :


chamava o jabuti : -Oh jabuti ! » O jabuti respondia :

-O micúra , itaud-na será tapereluá ?


-O raposa , amarellas já estarão as fructas do
taperebá ?»

Micúra oçuaxára :―――― Intí rain , iautí ; cu hre


Raposa respondia: - Ainda não , jabuti ; agora

ramún tapereiua i putira oiko ;


apenas os taperebaseiros em suas flores estão ;

.
ere, iautí , xa · coãna rêín. (rain) . » A cuí
adeus , jabuti , me vou embora ainda. >
» D'ahi

ocika ramé ára iautí océma arama ,


chegou quando o tempo o jabuti sahir para ,

micúra oúri , ocika iu? quára okena


a raposa veio , chegou do chão do buraco porta

opé, ocenoì . Iautí ― Itauána


opuranú :
em , chamou . O jabuti perguntou : - Amarellas já
ļ
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OÙ NHEHENGATU ' 207

Nhaha oçuaxára :
será tapereiuá ? -
estão as fructas do taperebȧ ? Aquella respondeu :

cupí ; iá
Iá, iautí, cuhire
Agora sim, jabuti , agora estão na verd ade ; agor a sim,

catú oikó ¿mirá uirape (urpe).


nama
grosso della bein está da arvore em baixo.

onhehe: euikí , micúra .


Iautí ocema ana ,
disse :- Entre , raposa. >>
Ojabuti sahio ,

Muire acaiú tahá ,


Micúra opuranú :
- Quantos annos ' serão ,
A raposa perguntou :

Iauti ? » Iauti oçuaxára - Herundi acaiú ,


O jabuti respondeu : - Quatro annos ,
jabuti ?»

micúra. Iautí omundeo micúra iu


a raposa do chão
raposa O jabuti metteu

Oiepé acaiú rirê


quára upé, oçoāna .
buraco no, e foi-se embora . Um anno depo is

iautí oiure , onhehe arama micúra irúno ;


pára raposa com
o jabuti voltou , fallar

-
ocika już, quára rokena upé , ocenoin :
chegou do chão do buraco porta em, chamou: -

micúra ? Micúra ocuaxára ▬ ▬ ▬ ▬ ▬ ▬ ▬ ▬ Itáuāna

raposa ? A raposa respondeu : -- Amarellos já

será naná , iauti ?» Jauti oçuaxára :


---
estarão os ananás , jabuti ? » O jabu ti respondeu ;
208 LENDAS

Iá inti raín , micúra : culire ramúm aitá


Qual ! ainda não , raposa ; Agora apenas elles

oçupíri oiko . Xa ço ǎna , re , micura. »


rossando estão . Eu vou embora, adeus , raposa.

muçapira acaiú riré, iauti. oiuire ocenor :


Dous annos depois , o jabuti voltou e chamou:

Oh micúra ! » O quirinínte ! Iautí ocenōi :


Oh raposa !» Calada ! O jabuti chamou

mucuinçáua . O quiririnte merú océma


segunda vez. Calada ! as moscas sahião

antana quára çuí. Iauti opirári już


iui
só buraco do . O jabuti abriu do chão

quára , onhehe : Quahá mamungára o manu


buraco , disse : ――― Este ladrão morreu

ana. Iautí ocike ocára kete :


jå. Jabuti puxou fôra para :

-Xa nhehe rapahá ně arāma ,


-Eu disse , o que foi que , você para,

micura ? Ine intimahan apgaua , rẻiuçaḍn


ó raposa ? Tu não eras macho , experimentar-se

arama ce irumo. » Iautí oxári ahé


para eu com .» O jabuti deixou -a

adpeoco ana.
ahi e foi-se embora.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ 209

IAUTI APGAUA
Jabuti e o homem

A proposito desta lenda eu disse na


Introducção o seguinte, que repito
para facilitar a analyse:
No decimo episodio , o jabuti é apa
nhado pelo homem, que o prende dentro
de uma caixa , ou de um patud , como
diz a lenda; preso , elle houve dentro
da caixa o homem ordenar aos filhos
que não se esqueçam de por agua no
fogo para tirar o casco ao jabuti, que
devia figurar na cêa; elle não perde o
sangue frio; tão depressa o homem
sahe de casa , elle, para excitar a cu
riosidade das crianças, filhos do ho
mem, põe-se a cantar: os meninos
aproximam-se; elle cala-se: os meninos
pedem a elle que cante mais um pouco
para elles ouvirem: elle lhes responde:
――――― ah! se vocês estão admirados de me
verem cantar, o que não seria se me
vissem dansar no meio da casa?
Era muito natural que os meninos
abrissem a caixa; que crianças have
ria tão pouco curiosas que quizessem
deixar de ver o jabuti dansar? Ha
nisto uma força de verosimilhança
cuja belleza não seria excedida por
Lafontaine. Abrem a caixa, e elle
escapa-se.
Esta lenda ensina: que não ha tão
240 LENDAS

desesperado passo na vida do homem


do qual se não possa tirar com sangue
frio, intelligencia , e aproveitando-se
das circumstancias . »

Iautí ocika oikó ce


tipláia opé, opeiú
Jabuti chegou covão no , assoprando estava sua

mẹmi . Míra itá ocaçáu oiko uahá, ocenu .


frauta . As gentes passando estavam que , ouviam .

Oiepé apgaua onhehe : -Xa ço xa picika nhaha


Um homem disse: -Eu vou eu apanhar aquelle

iáutí . >> Ocica tipiáia opé, oceno : O' iáutí! »


1
jabuti. » Chegou covão no, chamou: -- O' jabuti ! »

Iáutí oçuaxára: -U! Apgaua onhehe : -Iúri ,


O jabuti respondeu . -U!» O homem disse: YVenha ,

jáutí! »
jabuti. »
><

Ere, aiqué, xa ço . D Iáuti ocena,


Pois bem, aqui estou, eu vou. O jabuti sahio ,

apgaua opicika ahé , oraço ana oca kete, ocika


o homem apanhou elle , levou-o casa para, chegou

ramé ocaopé , ock náu sáu tí patuá pupé .


quando casa em , trancou o jabuti caixa dentro da .

Coẻma ramé, apgáua onhehe taína itá cupé :


Manhã sendo , o homem disse meninos aos : -
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 211

Tenhen pepirári iáutí; oço uana cupixáua


Agora não soltem vocês o jabuti ; foi-se roça

kete. Iáutí patuá quára opé, opeiú oiko


para. O jabuti da caixa dentro em , tocando estava

ce memi . Taina itá ocenй , oúri olapiçáca arăma ,


sua frauta . Os meninos ouvem, vem escutar para.

Iauti okirirí. A çuí taina itá onhehe :


O jabuti calou-se. D'ahi os meninos disseram:

Repeiú, iáuti ! » Iáuti oçuaxára: ―――― Penhe


Assopra, jabuti ! >» O jabuti respondeu:- Vocês

peuacema pura catú: mamété


catú; uacemo catú
acham bonito muito , como não achariam bello

pexipiá ramé, xa puracain! .... Taína itá


vocês vissem se , eu dansar !...>> Os meninos

opirári patuá, omaha arama iáuti opuraçain.


abrem a caixa , vêr para o jabuti dansar .

Iáutí opuraçain ocap ! rupí: tum , tum ! tum ,


O jabuti dansa quarto pelo: tum, tum! tum,

tum ! tum, tum ; tum, tum ; tein ! Açui iáutí


D'ahi o jabuti

oieruré taína çuí, oço ocarúca arama . Taína


meninos dos , ir ourinar para . Meninos
pedio

onhehe ixupé:-Ecoín, iáutí ; tenhen reiáuáu . »


disseram a elle: -Vá , jabuti ; agora não fujas . >>
212 LENDAS

Táuti océma óca cupé kete, unhana


O jabuti sahe de casa atraz para, correu

oiumími tipiáia piterape . Aramé taína itá


escondeu-se do cerrado meio em. Então meninos

onhehe -Iáutí oiáuáuana . A Oiepé aitá çuí onhehe:


disseram: -Jabuti fugio .» Um delles disse:

Cubire taté curí? Mãi tahá curi


Agora como ha de ser? Como é que havemos

onhehe iané rúba çupé, ocika curí ramé?


de fallar nosso pai 4. chegar . quando?

Iaço iaquatiára iepé itá iáutí pirera


Vamos pintar uma pedra do jabuti do casco

pinimaçáua iauê ; curumú ocika curí


a pinta como a; se não, elle chegar

ramé onupan curí iane. Iaué tenhen aitá


quando, bater-nos -ha. Assim mesmo elles

omunhã . Caarúca ramé aitá rúba ocika ,


fazem . De tarde delles o pai chega,

onhehe aitá Pemuapica itanhaé


cupé:
diz elles à: - Ponham a panella

tatá pe , iapirúca arama iáutí. Aitá onhehe:


fogo em , descascarmos para o jabuti . Elles disseram:

Aiquana tatá pé. Túba ombúri ăna itá quatiára


Está já fogo no . O pai pôz a pedra pintada
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU ' 213

itanhaen pupé, omaité iáutí quahá . Ariré onhehe


panella na,
na, pensa jabuti ser isso . Depois disse

aitá çupé: Peiúúca itanhae miri ia ú


elles å: Vocês tirem pratos nós comermos

arama iáutí. Taína itá oraçó ăna . Túba


para o jabuti . Os meninos levaram -nos . O pai

oiuúca iáutí itanhahe cní, ombúri ramé


tirou jabuti panella da , poz quando

itanhalë mirì upé , omupúca ana ahé . Túba onhehe


prato no, quebrou elle . O pai disse

taína itá cupé: -Penhe pexári será iáutí oiáuáu? »


meninos aos : - Vocês deixarão
o jabuti fugir?»

A itá onhehe: -Intimaha ! A itá onhehe ramé


Elles disseram : -Não ! Elles fallavam quando

cece, iáutí opeiú ce memi . Apgáua


sobre isso , o jabuti assoprou sua frauta . O homem

oceno ramé, onhehe:—Xa có xa picka iu re


ouvio quando , disse : Eu vou eu apanhar de novo.

ahé. Ocó , oceno : -O iáutí! Iáuti oçuaxára :


elle. » Foi , chamou : -O jabuti ! O jabuti respondeu :

U! Apgáua oco ocikári iaitua uirpe rupí .


U! » O homem foi procurar cerrado baixo por.

Oceno : Iúre , iáutí ! » Ahé oceno ramé amú


Chamou: -Vem , jabuti ! » Elle chamava uma
1
11

214 LENDAS

çuáxára çuí , iáutí ocuaxára çacaquera çuí.


banda de , jabuti respondia atraz de .

Apgáua oikere, oiúiri , oxári ahé.


O homem aborreceu-se , voltou , deixou elle .

1
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 215

XI

IAUTI CAHAPORA -UAÇU'


Jabuti e Gigante

A palavra - Cahupora- uaçú - sig


nifica: o grande morador do matto.
A presente lenda é, como as ante
cedentes, destinada a ensinar ao sel
vagem a supremacia da força da
intelligencia sobre a força physica,
ensino que, como observei na intru
ducção , tendia a elevar o selvagem do
estado de barbaria em que se achava
para o de civilisação . Cumpre porém
não esquecer que estamos diante de
povos pagãos , cuja moral não é chris
ta; portanto nada ha de estranhar se,
para mostrar o ascendente da força
intellectual sobre a physica , elles não
escrupulisam em empregar a astucia
eo engano como manifestações legiti
mas da intelligencia:
O jabuti, que não tem força physica ,
apostou com o Gigante a vér quem
arrastaria ao outro . Tomaram cada
um a extremidade de uma corda ; o
jabuti devia puxar de dentro d'agua ;
o gigante de terra . Aproveitando-se
desta circumstancia, o jabuti mergu
lha e amarra a eorda na extremidade
da cauda de uma balea, e, nadando
para terra por baixo d'agua , veio se
esconder na margem , de onde presen
ciou a luta, até que o Gigante, reco
216 LENDAS
1
nhecendo que não podia vencer, deu
parte de cançado; o jabuti mergulhou
de novo, e desatando a corda, sahio
para terra e cantou victoria.

Iautí ocika oiepé mirá quára


O jabuti chegou um de arvore buraco

pé, opeiú ana oíko ce memi ; Cahapóra ocenun


em , tocando estava sua frauta; Cahipora ouvio

onhehe: Intí auá nhahã intí Iauti ;


disse : Ninguem é aquelle senão o jaboti ;

Xa ço ха picica ahê. Ocka mirá


Eu You eu apanhar elle . Chegou da arvore

quára okena ruake . Iauti opeiú ce


do buraco porta junto . O jabuti tocou sua

memi fin , fin , fin , culo fom


fom fin . Cahapora
frauta fin , fin , fin , culo fom fin . Cahipora

oceno Iautí ?» Iauti · oçuaxára : U ! » —Iúri ,


-
chamou: O jabutí» O jabutí respondeu : U ! » — Vem ,

iauti, iaco iáçahã ja kirimáuaçáua .


jabuti , vamos experimentar nossa força . 1
1
Iauti onhehe : - Iaço iaiuçahă
O jabuti retorquio: - Vamos nós experimentar

mai reputári iauê. Cahapóra осо


como tu quizeres assim. Cahipora foi
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU 217

cahá pe , omunúca xipó , orúri xipó paraná


maito em , cortou cipó , trouce cipó do rió

reme ua kete, onhei iauti cupé


beirada à, .disse jabuti ao : -

Iaçã ăna , iauti : ine ipe : ixe


Experimentemos , jabuti , tu n'agua ; eu


uipe. » Iautíonhehe : Re , Cahapóra.
―――― Bom , Cahipora .
em terra.» O jabuti disse :

Iauti opúri ¿pe tupaçãma irúmo , ocó


O jabuti saltou n'agua corda com , foi

opuquára tupaçãma pirá-uaçú ruaia recé :


amarrar a corda da balêa cauda sobre :

Iauti oiúire in? kete, oiumími


O jabuti voltou terra para, se escondeu

iaitiua u/rape . Cahapóra ociki tupaçãma :


do cerrado em baixo . Cahipora puxou a corda ;

Pirauaçú oiumúquirimán , oracó Cabapóra


A balea fez força , arrastou o Cahipora

"
jáiúra rupí catú ipe. Caliapóra oiúmú
pescoço pelo até agua na. Cahipora fez força

kirimáu , omumúri putári catú piráuaçú


por queria até da balêa

ruáia jui pê. Piráuacú oimúkirimáu


a cauda terra em. A baléa fez força
218 LENDAS

oraço Cahapóra iaiúra rupí catú ¿pe.


arrastou Cahipora pescoço pelo até agua.

Iauti iaitiua uérape , omahã, opucá


O jabuti do cerrado em baixo , via , rindo

oiko . Cahapóra imaraári ăna ramé ,


estava. Cahipora cançado já quando estava ,

onhehe : - Aiana , iauti ! » Iauti opuca,


disse : - O jabuti riu -se
Basta , jabuti ! »

opùri ¿pe, осо oiuráu tupaçãma


saltou n'agua, foi desatar a corda

pirauaçú ruáia cuí. Cahapóra ocike ahé


da balêa cauda da . O cahipora puxou elle

tupaçãma irúmo . Iauti ocika juipe.


corda com!. O jabuti chegou em terra.

Cahapora opuranú ixuí : - Ne maraári


Cahipora perguntou delle : 63 Tu estás cançado

será, iautí ? » Iautí oçuaxára -Intimahan ;


jabuti ? » O jabuti respondeu : -Não ,

mahá pahá cereái ?» Cahapóra onhehe :


que é de que eu suei ?» Cahipora
. disse :

Cubire, cupí, iauti, ха quauana ine


Agora, certo , jabuti , eu sei que tu es

apgaua pire ce cui. Xa coana , re .


macho mais eu do que . Vou-me embora , adeus.
V

1
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 219

Com esta terminam-se as lendas do jabutí , que,


como o leitor viu , compõem-se de dez pequenos episo
dios . Tenho lembrança vaga de mais umas duas len
das , mas, não encontrando as copias que provavel
mente perdi em alguma de minhas viagens , não me
animo a incluil - as aqui de memoria .
As lendas precedentes eu as ouvi em muitos logares ;
mas, quando as tomei por escripto , o narrador das pri
meiras era do Rio Negro ; o da quinta e sexta era do
Tapajós ; o da setima até a decima era do Juruá ;
d'ahi algumas pequenas differenças na lingua, pecu
liares a essas localidades , differenças que conservei
para no futuro se poder avaliar o como os dialectos
se formaram .
T
220 LENDAS

XII

CUACU IAUARAETE
O vendo e a onça

A lenda seguinte, dividida em dons


pequenos episodios , é o desenvolvimento
da seguinte maxima:

Auá haha oiko uahá çuárána


irúmo intí opituù quáu.
Quem mora com o seu inimigo não
póde viver tranquillo .

A maxima é desenvolvida com


grande habilidade, sem lhe fa'tar o
interesse de uma acção dramatica
muito simples, mas muito propria
para fixa'-a na intelligencia infantil
de povos que não haviam ainda trans
posto o periodo da idade de pedra.
Como não seria natural que dous
inimigos fossem voluntariamente mo
rar juntos, o bardo indigena suppôz
que o veado, depois de haver escolhido
um lugar para casa, retirou-se; e que
a onça, ignorando a escolha prévia do
veado, escolheu o mesmo lugar; que
aquelle veio depois que a onça reti
rou-se, roçou e limpou o lugar; que a
onça, vindo depois que o veado se
havia retirado, julgou que Tupán a
estava ajudando, e assim trabalharam
successivamente, cada um suppondo
que era Tupán quem fazia o trabalho
do outro, até que, concluida a casa,
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OUNHEHENGATU' 221

quando deram pelo engano, para não


perder o trabalho, resignaram-se a
morar juntos, resultando d'ahi uma
situação de reciprocas desconfianças,
que é descripta com tanta singeleza
quanta felicidade de factos.

Para variar a fórma do exercicio ,


em vez de darmos a traducção litteral
por baixo de cada palavra tupi, damos
primeiro a lenda indigena e só em
seguida a traducção , na qual empre
gámos as formas usadas em portuguez
pelo nosso povɔ .

21

―-
Cuacú onhehe : Ixe xa çaçáu xa iko murak ; xa

co xa cicári tendáua catú xa munhã arama ce roca. »

Oco ana paraná remeina rupí , uacemo tendáua catú,

onhehe : Ike tenhe xa munhã ce rúca (róca) .


-
Iauarete iuri onhehee : Ixẻ xa çaçáu xa ikỏ

muraki; xa cỏ xa cicári tendáua catú xa munhã

arama ce roca. Oço ana paraná remețua rupí , ocika

mamé çuaçú parauáka , onhehe : -Ike tenhe xa munhã

ce roca.

Amú ára upé çuaçú oiúri , ocupíri , oiúpirú arama ;

oco ăn .

Amú ára opé iauáręte oúrí, omaha ramé tenáua


222 LENDAS

oiúcupíri ana , onhehe : - Tupãna opurauke oiko ixe

arama . Iaticá tianha , oiupirú úca (óca) , ariré oçó


ana .

Amú ára riré çuaçú oúri, onhehe : - Tupãna opu

rauke oiko ixe arama . » Pupéca ana óca , omunhã

muku ocapí; iépé ixupé; ami Tupana çupé; oço ana.

Amú ára opé, iauáraete omaha ramé opáua ana óca ,

onhehe: - Tupãna çupé qué catú retẻ. » Opitá iépé

oçap upé, okeri úana (ãna) .

Amú ára upé cuaçú oúri , opitá amú ocapí upé;

okeri uăna .

Amú ára opé aitá opáca ; aitá oiumaha ramé, iauá

raete onhehe çuaçú çupé :

-Inde será repurauke uahá ce irúmo ? » Çuaçú

oçuaxára: Ixe ahé tenhe . Iauáraete onhehe: -Cu

hire iaço iapitá iépé açú . Çuaçú oçuaxára : -Iaçó .

cỏ xa cahá
Amú ára upé iauáraete onhehe : -Xa có

munu. Inde reiúc quahá mrá rupitá itá ; rerúri ¿ ,

iépeá, maharecẻ , xa cica curí ramé , ce iúmac? curí

xa ikỏ.

Oçó cabá munú arama , oiucá iepé çuaçú , orúri óca

kiti (kete) , onhehe i irumuára çupé : - Remungaturú

ia u arăma.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 223

Çuaçú omungaturuana ; çaciára oiko ; intí óú ;

pitúna ocika ramé, intí okeri , ocekié oiko iauáraete

rece .

Amú ára upé , çuaçú oço cahamunữ , oiúiúantí amú

jauáraętę irúmo ; ariré oiúiúanti tamanduá irúmo ,

onhehe tamandua çupé : -Iauára ete onhehe oiko puxí

catú ne ręce . Tamandua oúri , uacemo iauáraętę

ocarain cardin mirá , ocika i cupé rupi meué rupi ,

oiúmána ahé , omungu i poampé ; iauárate amanuãna .

Cuaçú oraço-ana iauárate çóka kete, onhehe irúmo

ára çupé : -Kuçukúi uana ; rẹmungaturú iáú arāma .

Iauárate omungaturú ăna , intí óú ; oçaciara oiko .

Pitúna oczka ramé, aitá intí okeri quáu . Aitá

oiúcikiié oiko amú çui ; çuaçú omãiána iauárate,

iauárate omãiána çuaçú .

Piçaié ramé aitá repoci ramé ana , çuaçú akanga

otucá iura ręce . Iuaráte opúri , uiqua , omaité çuaçú

oiucá putári ahé. Quahá teapú ramé, çuaçú opáca ,

iacanhimu , opúri , uiána amú çuaxára kete . A itá


oiauȧu āna .

2 II

Cuaçú oço opitá arama iauára róca upé .


224 LENDAS

Amú acajú upé, iauáraté oczka iúri iauára róça úpe,

opitá arama ahé iúmo.

A itá oco cahamuni . Iaurate opicika putári iauára ,

oiucá arama ahé. Iauára oiure ramé, caarúca ramé,

orúri ximiára-mir - itá : acutí , páca, tatú , inanbú . Aitá

óú ăna , ariré aitá oço ouímuçarai . Iauaraté oíumu

çarai ramé, onhehe : -Inti xa picika quáu mahā xa

cahamunu xa iko . » —Iauára oiumuçarai ramé, onhehe :


--- Auá oreko cetimă iatúca intí cahamuni quáu . »

Aitá omuçarai ramé iaué , iauaraté opúri iauára rece;

iaúára , çuaçú , oiauȧu ana ; iauaraté opicika ramé

çuaçú , quahá oierẻo itá arama . Iauára oiaçáu cuá


-
inda kete, onhehe iauaraté çupé : — Reú putári ramé

ixe , reiapi nhahã itá ce rece. D Iauaraté opicika itá;

oiapí iauára ręce. » Itá oári ramé amú çuaxára ápe,

oçaçēma: - Mé ! ...» Oiereo iuire çuaçú arama . A çuí

iauára opitá iauraté ruaiana arama .

Traducção da lenda antecedente :


Historia do veado e da onça que fo
ram fazer casa .

O veado disse : eu estou passando muito trabalho e


por isso vou ver um lugar para fazer minha casa . Foi

pela beira do rio , achou um lugar bom e disse : E' aqui


inesmo.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 225

A onça tambem disse : eu estou passando muito


.
trabalho , e por isso vou procurar lugar para fazer
minha casa . Sahiu e , chegando ao mesmo lugar que o
veado havia escolhido , disse : Que bom lugar ; aqui
vou fazer minha casa.

No dia seguinte veio o veado , capinou e roçou o


lugar.
No outro dia veiu a onça e disse : Tupă me está
ajudando. Afincou as forquilhas , armou a casa .
No outro dia veiu o veado e disse : Tupã me está
ajudando . Cobriu a casa e fez dous commodos um
para si, outro para Tupã .
No outro dia a onça , achando a casa prompta, mu
dou-se para ahi , occupou um commodo , e poz-se a
dormir.

No outro dia veiu o veado , e occupou outro commodo .


No outro dia se acordaram , e quando se avistaram ,
a onça disse ao veado : ― Era voce que estava me
ajudando ? O veado respondeu : - Era eu mesmo . A

onça disse: Pois bem, agora vamos morar juntos . O


veado disse : Vamos .

No outro dia a onça disse : Eu vou caçar. Voce

limpe os tocos , veja agua , lenha , que eu hei de chegar


com fome.

Foi caçar, matou um veado muito grande , trouxe


para casa e disse ao seu companheiro : - Apromptá
para nós jantarmos .
O veado apromptou. mas estava triste, não quiz
226 LENDAS

comer, e de noite não dormiu com medo de que a onça


o pegasse.
No outro dia o veado foi caçar, encontrou-se com
outra onça grande e depois com um tamanduá ; disse
ao tamanduá : Onça está ali fallando mal de você.
O tamanduá veiu , achou a onça arranhando um páu ,
chegou por detraz de vagar, deu-lhe um abraço , met
teu-lhe a unha , a onça morreu .
O veado a levou para casa , e disse a sua compa
nheira : Aqui está ; aprompta para nós jantarmos .
A onça apromptou, mas não jantou e estava triste.
.
Quando chegou a noite os dous não dormiam , a
onça espiando o veado , o veado espiando a onça .
A meia noite elles estavam com muito somno ; a ca

beça do veado esbarrou no giráu , fez : tá ! A onça , pen

sando que era o veado que já a ia matar, deu um pulo.


O veado assustou-se tambem e ambos fugiram , um

correndo para um lado , outro correndo paro o outro.

II

O veado foi morar em companhia do cachorro .


Passado muito tempo , a onça tambem foi morar lá ,
porque o veado já se tinha esquecido d'ella .
No outro dia foram caçar. A onça queria pegar o
cachorro. O cachorro de tarde, quando voltou , trouxe
caça pequena , cutia , paca , tatú e inambu . Jantaram

e depois de jantar foram jogar. A onça jogava edi


zia : - O que eu cacei não pude pegar. O cachorro
CURSO DE LINGgua tupí viva OU NHEHENGATU' 227

jogava e dizia: -Quem te perna curta não deve

caçar. Assim jogaram até que a onça saltou no ca


chorro. O cachorro e o veado fugiram, a onça seguiu

atraz e, quando pegou o veado , este virou pedra .


--
O cachorro atravessou um rio , e disse para onça :
Agora se me queres pegar , só se me jogares uma pedra .
A onça agarrou na pedra e jogou . Quando a pedra
cahiu na outra banda gritou: mé! e virou outra vez em
veado. Foi d'ahi que gerou-se a raiva do cachorro con
tra a onça .
228 LENDAS

XIII

CUNHA MUCU OÇO UAHÁ OCICÁRI MENA


1 A moça vai que procurar marido

0 pensamento moral contido nesta


O
lenda é o seguinte: - Para a mulher
que procura um marido, não bastam
as riquezas; é necessario que o physico
do varão não seja repulsivo. Para
desenvolver esta verdade, o bardo pri
mitivo suppõe que, estando uma moça
padecendo de fome em casa de sua
mãi, e indo procurar marido , depa
rou-lhe a sorte primeiramente com a
raposa, que, apezar de poder ter a casa
em fartura com a muita caça que
agenciava, a moça vio-se forçada a
repellir o casamento pelo máo cheiro
que as raposas exhalam. O mesmo
aconteceu-lhe com o urubú, que, apezar
de rico de caça , era comtudo repulsivo .
Ella casou-se com o anajé (formosa
especie de gavião do Brazil), que era
formoso, caçador e valente. Para os
selvagens, que não tinham outras ri
quezas além das que directamente en
tendiam com a sua alimentação , dizer
que um individuo possue abundancia
de comida equivale a dizer que elle é
rico. Pelo contexto da lenda vê-se que,
entre os selvagens, como entre nós, o
ideal de marido é o homem formoso ,
rico e valente.
CURSO DE LINngua tupi , VIVA OU NHEHENGATU' 229

2 I

CUNHA-MUCU M¿CURA
A moça e o gambá

11
Oiepé cunhã mucú onhehe i ci cupé: Xa
Uma moça disse sua mãi á: - Eu

Co xa cicári се mena, xa purarári


Vou procurar um marido , eu estou padecendo

reté iúmaci. »
muito de fome.»

Ahé oço ana, ocika uana mamé oiko mocapira


Ella foi-se , chegou aonde haviam tres

pé, opuranú:
caminhos , perguntou :

-Māháta inaié pé?.


- Qal será do inajé o caminho? >

Oiepé pé upé, ahé omaha inambú ráua ;


Um caminho em , ella vio de inambús penas ;

aramé ahé omaité uana: -Quahá inaié pé.


então ella pensou : -Este é do inajé o caminho .

Ocỏ uana ahé rupí.


Foi-se elle sobre.

Opauca pe oiúiúantí oca mamé oiko oiepé uáim


No fim encontrou casa onde estava uma velha
230 LENDAS

uapica oiko uahá tatá remehipe , onhehe :


sentada, estava que do fogo na beira, disse :

- Iné será inaié ct?


- - Você é
do inaje mãi ?

Uáim oçuaxára : - Ixe ahé tenhe .


A velha respondeu : - Eu sou ella mesma.

Cunha mucú onhehe : -Xa iúre ahé pire xa


A moça disse: --· Eu venho elle à eu

mendári arama ahé irúmo .


casar para elle com.

Uáim onhehe: -Ce mbira míra puxí rete


A velha disse : - Meu filho é gente brava muito

ahé; aaréce xa có xa iumimi in .‫ ע‬Quahá náim


elle ; por isso eu vou esconder você . » Esta velha

intí inaié ci: micúra ci ahé.


não era do inajé mãi ; do gamba era mai ella .

Caarúka ramé i embira oc /ka uana , orùri uana


Tarde å seu filho chegou, trouxe

ximiára, uirá itá .


sua caça, passaros .

I ci omungaturú aitá óú arăma. Aitá


Sua mai apromptou elles comerem para. Elles

óú oikó ramé i ci opuranú ixuí:


comendo estavam quando sua mãi perguntou a elle:
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 231
1
Ocika ramé oiepé amú tetama uára ,
-
Chegasse se um de outra patria habitante,

mai tahá rerekỏ ahé?


como é que tu terias (tratarias) elle?

Micúra oçuaxára: ― Xa ceno ahé óú


O gambá respondeu : - Eu chamava elle comer

arama iane irúmo .


para nós com .

Aramé uáimi ocendi cunha mucú oiumími


Então a velha chamou a moça escondida

oikó uahá . Cunhã mucú óú ǎna aitá irúmo ;


estava que . A moça comeu elles com ,

micúra çori oiko maharece cunhã mucú purănga


O gamba alegre estava porque a moça formosa

rete.
era muito .

Pitúna opé, micúra oço ramé okeri arama


dormir para
Noite em, o gambȧ foi quando

cunha mucú irúmo , ahé ompúana ahé, onhehe :


moça com , ella enxotou a elle , disse :

Inti xa ieno putári ne irúmo , maharecê inema


Não eu deitar quero tu com, porque catinguento

rete-ine !
muito é você !
232 LENDAS

Coema ramé, uáimì omundú ramé cunhã mucú


Manhã em, a velha mandou quando a moça

oiuúca iepeá , cunha mucú oiauáu ana .


tirar lenha , a moga fugio.

2 II

CUNHÃ MUCU URUBU


A moça e o corvo

Ocika muçapira pé upé, ocó amú rupí ,


Chegou tres caminhos em, e seguio outro por,

ocika oca upé, oiiúanti amú uáimi irúmo ,


chegou casa em , encontrou outra velha com ,

opuranú ixuí: Inde será inaié ci? Uáimi


perguntou a ella:-Tu és do inajẻ mãi ? A velha

oçuaxára: -Ixe ahé tenhě. D Cunha mucú onhehe:


respondeu .-Eu sou ella mesmo . » A moça disse:

Xa iúre ahé pire, xa mendári arāma ahé irúmo .


-Eu venho elle á , eu casar para elle com.

Uáimà onhehè : – Xa có xa iúmími inde , ce


A velha disse : - Eu vou esconder você, meu

embira míra puxi rete rece .


filho gente brava é muito por que.

Quahá uáimi urubú ci. Caarúka ramé


Esta velha era do corvo a mãi . Tarde em
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 233

i embira ocika , orúri ximiára : itápurú miržitá ;


seu filho chegou , trouxe sua caça: vermes pequenos ;

onhehe i ci - Kuçukúi pirá miritá,


çupé:
disse sua mãi a: - Eis aqui peixes pequenos ,

ce ci.
minha mãi .

I ci omungaturú ximiára; aitá óú


Sua mãi apromptou a caça : elles comendo

oiko ramé, ahé opuranú : ― Auá çupé ocika



estavam quando, ella perguntou: A quem chegar

uahá amú tẹtāma çuí, mãháta remunhã ixupé?


que de outra patria, o que tu farás elle å?

Urubú oçuaxára: ――――― Xa cenoi ahé óú arama


O corvo respondeu : - Eu chamava elle comer para

iane irúmo. Aramé i ci ocenoi cunha mucú:


nós com . Então sua mãi chamou a moça ;

urubú çorí rete ana, cunhã mucú purănga


o corvo estava alegre muito , a moça formosa

rete recé. Pitúna upé, ahé oçó ramé


era muito por que . Noite em , elle foi quando

oieno ahé irúmo , cunha mucú ompú ana ,


deitar-se ella com , a moça o enxotou ,

inēma rece ahé . Amú coēma upé,


catinguento porque era elle . Outra manhã em ,
234 LENDAS

uáim omundú ramé cunhã mucú oiuúca arăma


a velha mandou quando a moça tirar para

iapeá , cunhã mucú oiuauáu uana .


lenha , a moça fugio .

2 III

CUNNA-MUCU INAIÉ
A moca eo gavião

Ahé ocika ramé mucapire pé upé,


Ella chegou quando tres caminhos em ,

oço amú rupi . Ocika ôca upé, omaha iepé uáim?


foi outro por . Chegon casa em, vio uma velha

puränga rete , opuranú ixuí: -Ine inaié


formosa muito, perguntou a ella: - - Você é do inaj ç

ci será?
a mãi ?

Uáim oçuaxára : - Ixe ahé tenhe.


A velha respondeu : - Eu sou ella mesma.

Cunha mucú onhehe: - Xa iúre ahé pire , xa


À moça disse: -Eu venho elle à, eu

mendári arama ahé irúmo .


casar para elle com .

Uáim onhehe: – Xa có xa uímimi inde ; ce


te
A velha disse : - -Eu vou esconder você; meu
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 235

embira míra puxí rete.


filho gente è brava muito.

Caárúka ramé, embira ocika, orúri ximiára


Tarde em, seu filho chegou , trouxe caça

cétá: uirá miritá , I ci omungaturú


muita: passaros pequenos , Sua mãi apromptou

uirá miritá aitá óú arama . Aitá


passaros pequenos , elles comerem para . Elles

óú oiko ramé i c? opuranú ixuí:


comendo estavam quando sua mãi pergunton a elle:

-Auá çupé ocika uahá ramê , amú tetama çuí ,


-
A quem chegar que quando, outra patria de ,

mãháta remunhã ixupé?


o que farás a elle?

Inaié oçuaxára : - Xa ceno


oçuaxára: ahé óú arāma
-
O inajé respondeu : Eu chamo elle comer para

ianė irúmo .
nós com .

Aramé uáimi oceno cunha mucú . Inaié córí


Então a velha chamou a moça . O inajé alegre

reté, cunha mucú puranga reté rece .


ficou muito , a moça era bonita muito porque .

Aitá okeri uana iépeuaçú . Amú ára upé urubú


Elles dormiram juntos . Outro dia em O corv o
236 LENDAS

ocika inaié óca upé, ocicári arama cunha mucú .


chegou do inajé casa em, procurar para a moça .

Aitá omuramunhã uana rete cunha mucú ręce.


Elles brigaram muito da moça por causa .

Inaié ompúca ana urubú akănga. I ci


O inajé quebrou do urubú a cabeça . Sua mãi

omuacú uāna , muiáçúca i akanga ;


(do urubú) aquentou agua, lavou sua cabeça ;

¿ çacú rete uana: aáręce i akanga


agua quente estava muitissimo : por isso sua cabeça

cáuaima opitá opa ára upé.


depennada ficou todo tempo em (para sempre) .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 237

XIV

MOMEUCAUA MICURA RECEUÁRA


Lendas da raposa acerca

Esta collecção das lendas da raposa


parece completa; e, como methodo di
dactico , forma o que de melhor encon
trei na tradicção dos selvagens . São
nove episodios que formão , a meu ver,
um verdadeiro colar de pedras finas ,
tanto pelo espirito e animação do en
redo, como pelo laconismo, sobriedade
das scenas, e clareza , com que o pensa
mento pratico, que nelles é ensinado,
se destaca da acção com que foi neces
sario envolvel- o para fixal -o na me
moria de povos ainda incultos . Estas
lendas soffreriam , sem desmerecer, a
confrontação com as fabulas de Esopo ,
Phedro ou Lafontaine.
O pensamento do primeiro episodio
é o mesmo que Phedro personificon na
fabula da cegonha que tirou o osso en
talado da guela do lobo . O primitivo
bardo indigena prega a mesma dou
trina, que não se deve fazer bem senão
a quem merecer, na parabola que
resumiremos assim: - Tendo a onça
sido gerada em uma cova de porta es
treita, cresceu tanto que não poude
sahir, e alli gemia quando, passando a
raposa, auxiliou a remover a pedra.
Tão depressa a onça se viu livre
quanto, pedindo- lhe a raposa a paga ,
ella pretendeu comel-a . (Até aqui a fa
bula é como a grega . ) À raposa apella
para o arbitramento do homem ; este
vai ao lugar, pede a onça que se meta
238 LENDAS

de novo na cova para elle poder melhor


julgar, e, desde que a onça o faz, elle
rola a pedra, e ella la fica presa como
estava d'antes. (A 2ª parte distancia a
fabula indigena da fabula grega, e
n'esta differença o ensino moral ga
nhou, por quanto: é certo que cedo
ou tarde os mãos são punidos pelos
ruins actos que praticão .)

Inti remunhã catú auá cupé intí requau .


Não faças bem quem á não conheces. (*)

Oiepé ára opé micúra , uatá ramé


Um dia em a raposa , andando quando

oiko , oceno cururúca iaué : um... um... um...


estava, ouvio • um ronco assim um ... um... um...

Mãhát: nhahã será ? xa ço mahã.


――― O que aquillo é? eu vou ver .

Iauarate omahã ramé ahé, onhehe: ――- Xa


A onça vio quando ella , disse : M Eu

iumunhã quahá itá quára opé ; ха


fui feita n'este de pedra buraco em ; eu

(*) Creio que o anexim portuguez que corresponde


a esse, é o seguinte :

Não faças bem sem saber a quem.



CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 239

iumuturuçú ăna, intí xa cema quáu . Repitimu será


cresci , e não sahir posso. Tu me ajudas

xa iuúca quahá itá?


a tirar esta pedra?

Micúra opitima ahé ; iauaraté océma :


A raposa ajudou-a ; a onça sahio ;

micúra opuranй i xuí : -- Mãhâta remehe


a raqosa perguntou a ella: - O que tu dás

ixe arama cecuiára ?


eu å em paga ?

Iauarate, oiumaci oiko uahá , oçuaxára :


A onça, faminta estava que , respondeu :

Ха çо Xa u inde. » Opicica ana micúra,


Eu 1 vou comer você. » Agarrou a raposa,

opuranú : -- Mãháta míra omehe auá cupé


e perguntou : - O que se då quem à

omunhã calú, recuiára ? Micura oçuaxára :


faz bem , em paga ? » A raposa respondeu :

Auá çupé omunhã catú , recuiára , míra omehe


A quem faz bem , em paga, se då

omunhã catú . Ike nhote (iunto) oiko oiépé


o fazer mora um
bem. Aqui perto

apgáua, oquáu uahá ораг maha ; iaço


homem, sabe que todas as casas; vamos
240 LENDAS

iapuranú ixuí.
perguntou a elle .

Aitá oiaçáu oiepé căpuй-miri kete,


Ellas atravessarão umá ilha pequena para,
4
micúra ombeu apgaua çupé ahé oiuúca
a raposa narrou homem ao, ella tirara

uahá iauaraté itá quára cuí, iauaraté óú


que a onça de pedra buraco do , a onça comer

putári ahé . Iauaraté onhehe : -Xá u putári


queria ella. A onça disse -Eu comer quero

ahé, maharece míra omenė omunhã puxí


ella , porque a gente då o mal

recuiára omunhã catú.


em troco do bem .

Apgauá onhehe : ― Inti cupí . Iaço


O homem disse : — Não é certo . Vamos

iamaha arama ne roca .


ver para tua cova.

Aitá muçapire oçoǎna


oçoăna omaha
omahã arama. Aitá
Elles tres forão ver para. Elles

ocika ramé , apgáua onhehe iauaraté


chegarão quando , o homem disse onça

cupé : — Reiumundeo iuire xa maha arama


å: - Encova-te de novo eu ver para
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 241

mai reikoana . » Iauaraté oiumuneo ; opgáua


como tu estavas . >> A onça encovou-se ; o homem

omuieréo itá árupí ; iauáraté intí


rolou a pedra ella sobre ; a onça não

ocema quáu . Araméana apgáua onhehe :


sahir poude. Então o homem disse :

Cuhire requáu rameãma : míra omehe


- Agora tu sabendo ficaste : a gente då

munhã catú recuiára munhã catú . »


o bem em troco do bem .>>

Iauaraté opitá ápe; amu itá oçoăna.


A onça ficou lå ; OS outros forão-se.

Traducção portugueza da lenda


antecedente: A raposa e a onça.

Não faças bem sem saber a quem.


Um dia a raposa , estando passeando, ouvio um
ronco: ... u ... u ...

-O que será aquillo? Eu vou vêr.


A onça enxergou- a e lhe disse :
-
Eu fui gerada dentro deste buraco, cresci , e
agora não posso sahir . Tu me ajudas a tirar a pedra?
A raposa ajudou , a onça sahio , a raposa pergun
tou-lhe: - O que me pagas?

A onça, que estava com fome, respondeu:


-
Agora eu vou te comer.
242 LENDAS

E agarrou a raposa , e perguntou:


-Com o que é que se paga um bem?
A raposa respondeu:
-
O bem paga-se com o bem. Alli perto ha um
homem que sabe todas as cousas ; vamos lá perguntar
a elle .

Atravessaram para uma ilha; a raposa contou ao


homem que tinha tirado a onça do buraco e que ella ,
em paga disso , a quiz comer .
A onça disse :
――――
Eu a quero comer , porque o bem se paga com o
mal.
O homem disse:
- Está bom; vamos vêr a tua cova.
Elles tres foram , e o homem disse à onça:

-Entra, que eu quero ver como você estava .


A onça entrou; o homem e a raposa rolaram a
pedra, e a onça não pôde mais sahir. O homem disse:
---
-Agora tu ficas sabendo que o bem se paga com
o bem .
A onça ahi ficou: os outros foram-se.
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 243

XV

MICURA APGAUA
A ruposa e o homem

Todos aquelles que tem alguma ex-`


periencia do mundo sabem que ha
muita gente de pouco senso , que se julga
com tanto mais direito a favores de
outrem quanto maior numero de bene
ficios tem recebido . O fazer bem tam
bem cança; é isto o que o indigena
ensina na fabula seguinte, que se resu
me nesta maxima: não é bom fatigar
a quem nos faz bem.

Micúra oço oíeno maárupi apgaua oçaçáu


a
A rapos foi deitar-se onde por o homem de passar

arama uahá ; oiúmanữ ( *) .


tinha que; fingio- se de morta .

Apgaua oúri , onhehe : -Micúra , taité ! (tete.) .


O homem veio , e disse : - Raposa , coitada !»

Omunhã quára , oiútima ahé, ogó ăna .


Fez cova , enterrou a , e foi-se.

() Por onde que o homem tinha de passar; -este


que ―― o nosso povo o tomou desta fórma tupí , e
assim passou para o dialecto popular do Brazil . Oiu
--
mano é a fórma reciproca e passiva e portanto a
traducção litteral ê: morreu-se; fórma que o portuguez
não tem .
A
244 LENDAS

Micúra uiāna cahá rupí, ocỏ vienen tenoné


A raposa correu mato pelo , foi deitar-se adiante

pépe, oiumano āna .


no caminho, e fingio-se de morta .

Apgaua ocika ramé , onhehe :: ➖➖ Micura ambira


O homem veio quando , disse: - Raposa morta

(amíra) iu¿re ! » Omuttrica ahé pé çuí,


outra vez!» Retirou a caminho do ,

opupéca cahá irúmo , ocỏ ăna .


cobrio folhas com , e seguio.

Micúra uiana (unhana) iure iaitua rupí,


A raposa correu outra vez cerrado pelo ,

oçó oieno tenoné pépe .


foi deitar-se adiante no caminho.

· Apgaua ocika onhehe: -Auáta oiucá- íucá (*)


O homem chegou e disse: -Quem andou mata ma

quahá micúra itá? » Omutiríca ahé pê


tando estas raposas?» Arredou a caminho

çuí, oçó ăna .


do , e foi-se .

(*) Ojucajuca; o nosso povo usa desta expressão:


mata matando , falla fallando , etc. , expressão que se
prende a essa fórma tupí, como observámos atraz .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 245

Micúra vidna iuire iaitiua rupí, осо


A raposa correu de novo cerrado pelo, foi

oieno tenoné pépe, ouimano āna .


deitar-se adiante no caminho , fingio-se de morta.

Apgáua ocika ramé, onhehe: - Tatá oçapí


O homem chegou quando , disse : -Fogo queima

opar rupí ! D Opicika çuaia racapíra rupí , oiapiāna


tudo sobre!» Pegou da cauda ponta pela , jogou

micúra iaitua rece.


a raposa cerrado sobre .

Aramé micúra onhehe : -Inti catú iamumaraári


Então a raposa disse: -Não é bom cançarmos

auá çupé omunhã catú uahá iane arama . Oço


quem á faz . bem que nos ȧ . Foi-se

āna .
embora .

Traducção portugueza da lenda


antecedente : a raposa e o homem.

A raposa foi deitar-se no caminho por onde o ho

mem tinha de passar , e fingiu-se de morta.

Veio o homem e disse : - Coitada da raposa !

Fez um buraco , enterrou-a , e foi-se embora.


246 LENDAS

A raposa correu pelo mato, passou adiante do ho

mem , deitou-se no caminho , e fingiu-se de morta .

Quando o homem chegou, disse : - Outra raposa

morta ! Coitada.

Arredou-a do caminho , cobriu-a com folhas , e se

guiu adiante .

A raposa correu outra vez pelo cerrado, deitou- se

adiante no caminho, e fingiu-se de morta .


O homem chegou e disse : - Quem terá morto

tanta raposa ? Arredou-a para fóra do caminho , e foi- se.

A raposa correu, e foi fingir- se outra vez de morta

no caminho .

O homem chegou e disse : - Que leve o diabo

tanta raposa morta ! Agarrou -a pela ponta da cauda

e sacudiu-a no meio do cerrado .

A raposa então disse : ――― Não se deve cansar a

quem nos faz bem .


CURSO DE LINGUA TUP VIVA OU NHEHENGATU ’ 247

XVI

MICURA IAUARATÉ

A raposa e onça

O pensamento desta lenda é o se


guinte : Quem é precavido não cahe
em poder do seu inimigo .

Iauaraté ocema ramé quára çui,


çui , onhehe :
sahio da , disse :
A onça quando cova

u micura. Ocó
- Cuhre xa ço
gò xa
――― Agora eu vou eu comer a raposa . Foi

ocicári ahé. Quatá oikó cahá rupí,


procurar ella, Andando estava mato pelo ,

quaié : Txáu ! tráu ! tráu !


oceno teapú
ouvio barulho assim : Txau ! txau ! txau !

Mãháta áhé ? » Omãhã , oxipia micúra,


será ?» Olhou e vio a raposa,
O que

oiuúca oikó xipó uahá . Micúra oxipiá


" vio
tirando estava sipo que. A raposa

ahé, onhehe : - puxiana xa


ramé Cubire
- mal eu
quando ella , disse : Agora

iauáraté, ipo , óú curi ix !» Onhehe


ikó :
estou ; pode ser, comer- me-ha ! » Disse
a onça ,

― Tuitú-ażna oúri oiko inde


iauáraté çupé :
á: ――― Furacão vindo está ; tu
onça
248 LENDAS

repitimй ixe será oiuúca arāma quahá


ajudas a mim tirar a este

xipó , opuquári arama ixẻ mịrá récé ?


sipó , amarrar para eu arvore sobre ?

Iauaraté oceklié
‫بابا‬ ǎna , onhehe micúra
A onça medrosa jå , disse raposa

çupé : Aramé repucuári ixe tenoné ; maharece


- Então amarra me primeiro ; por que

ixe turuçú píre ne çuí, iuitúajua oraç


eu grande mais voce do que, o furacão levar

quáu ixe tenoné. » Micúra omunú iauaraté


póde eu adiante. A raposa mandou a onça

oiumāna mirá rece , oiupucuári ahé, onhehe :


abraçar arvore com , amarrou ella , disse :

-Repitá ápe , iurupári , xa có ana .


-Fica-te ahi , diabo , que eu cá me vou .

Traducção portuguesa da lenda


antecedente a raposa e a onça.

A onça sahiu do buraco e disse : - Agora eu vou

agarrar a raposa . Andou , e passando pelo matto ou

viu um barulho - xáu , xáu , xáu! Olhou; era a raposa

que estava tirando sipó .


CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU’ 249

A raposa quando viu-a , disse : ― Estou perdida ;

a onça agora, quem sabe , me vae comer!

A raposa disse á onça : ― Ahi vem um vento muito

forte ; me ajude a tirar sipó para me amarrar n'uma

arvore , si não o vento me carrega.

A onça ajudou a tirar sipó, e disse á raposa : -- Me

amarra primeiro ; eu sou maior, o vento póde me


levar antes .

A raposa disse á onça que se abraçasse com um páu

grosso ; amarrou os pés e as mãos , e disse :- Agora

fica ahi , diabo ; que cu cá me vou!


1

250 LENDAS

XVII

JAUARATE' CUPII'
A onça e os Cupins

Aquele que é máu por naturesa


não se corrige com aprimeira punição.
Se o pensamento não é christão ,
ninguem negará que as mais das
vezes elle é verdadeiro na pratica.

A'ra pucù riré , cupií ítá ouri ana mamé


Tempo longo depois , os cupins vieram onde

iauaraté oiupucuári uahá oiko , oiupirú ana omunhã


a onça amarrada que estava, principiarm a fazer

çóca xipó rece. Iauaraté onhehe : Ah !


sua casa sipó sobre . A onça disse : ―― Ah !

cupií, penhe pe apgáua ramé curí, peuana curuten


cupins , voces machos se fossem , comiam depressa

quahá xipó , oiumupucuári ixe arama . A'ra pitúna


este sipó, desamarrar eu para. Do dia e da noite

pucuçáua cupií - itá ocuú cuú xipó. Iauaraté


o espaço os cupins roendo estavão o sipó . A onça

océma ramé , óúăna opa aita.


sahio quando , comeu todos elles .
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU’ 251

Traducção portugueza da lenda


antecedente a onca e os cupins.

Passado tempo, vierão os cupins e começarão a fazer


――
casa no pão em que a onça estava. A onça disse :

Ah cupins ! se voces fossem gente roião logo este sipó


e me soltavão.

--
Os cupins disserão : Nós soltamos você, e você

depois nos mata .

A onça disse : - Não mato.

Os cupins trabalharão toda noite e na outra manhã

a onça estava solta . Estava com fome , comeu os

cupins, e foi no encalço da raposa.


252 LENDAS

XVIII

IAUARAETE OPIRI MICURA RAPE


A onça varre da raposa o caminho

O pensamento deste episodio é o


seguinte: Quando teu inimigo fizer
alguma cousa , e disser que a fez em
teu beneficio , não acredita , sem pri
meiro examinar .

Ne ruaiana omunhã ramé iepé maha , onhehe ne


Teu inimigo fizer se uma cousa , e disser teu

catuçáua arama uahá , inde ne reiacú .


beneficio para que foi, tu te arisques.

Micúra, ocekié, ouatá pitúna ramé anh .


A raposa, de medo , andava noite durante somente.

Iauaraté opiíri micúra rapé, omunhã


A onça varreu da raposa o caminho, fez

iepé iuçána , oiúmími . Micúra ocika ramé ,


um laço , e escondeu -se . A raposa chegou quando ,

iauaraté onhehe ixupé: -Xa piíri ana iane rapé


a onça disse lhe; -Eu varri nosso caminho

iú rece. » Micúra iacú , onhehe: -


A raposa arisca , disse: -
espinhos por causa. >»

Aramé reço tenoné . »


Então và adiante.»
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 253

Iauaraté oçaçáu ramé , iuçana opeteca. Micúra


A onça passou quando , o laço bateu. A raposa

opúri ana cacaquera kete , oiáuáu .


pulou atraz para, e fugio.

Traducção portugueza da lenda


antecedente,

Se o teu inimigo fizer alguma cousa e disser que foi

para teu beneficio , tu te arisques .

A raposa, com medo , só andava de noite. A onça

armou um laço , limpou o caminho , e, quando a raposa

chegou , ella disse: - Eu limpei nosso caminho por

causa dos espinhos.

A raposa desconfiou e disse: ― Passa adiante .

Quando a onça passou , desarmou- se o laço .

A raposa pulou para traz e fugio.

1
254 LENDAS

XIX

MICURA IAUARACTE
A roposa e a onça

O pensamento desta lenda parece ser


este : quem mal se disfarça muito se
manifesta, por que o máo disfarce, não
tendo a vantagem de occultar a pessoa ,
que o toma, tem o grave inconveniente
de attrahir attenção sobre ella .

Uaraci omuticảnga páua paraná itá ; opitá


O sol seccou todos os rios ; ficou

iúnto oiepé i quára . Aramé iauaraté


apenas um de agua poço . Então a onça

onhehe : ―――― xa picka


Cuhire cupí ahé ,
disse : ― Agora na verdade eu agarro a,

xa mutucáia (*) quára opé . Micúra ,


eu vou tocaia-la de agua poço em . A raposa

iacú, ocika ramé, omahã tenoné opar


arisca , chegou quando , olhou adiante tudo

rupí, oxipiá iauaraté. Inti óú quán ;


sobre , enxergou a onça. Não beber pôde agua ;

Tocaiar passou para o portuguez -significa : es


perar espreitando alguem para attacal-o quando passe
pelo lugar.
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NIEHENGATU ' 255

oço ana, omaité oiko maí óú curí¿. Amú


foi- se, pensando estava como beberia agua . Outro

ára upe oxipiá opecatú çuí iepé cunha orúri


dia em viu de longe uma mulher trasia

uahá íra camuti . Micura unhana , tenoné ,


que de mel um pote . A raposa correu , adiante ,

oieno pépe. Cunha ocika ramé ,


se deitou no caminho . A mulher chegou quando ,

oçaçau amú cuaxára rupí , onhehe : - Taité !


passou outro lado pelo , e disse : - Coitada !

omani ana.
morreu jä.

Micura uiana iaitua rupi , oçó oieno tononé


A raposa correu cerrado pelo foi teitar-se adiante.

oiímano āna. Cunha ocika ramé, onhehe:


fingiu-se de morta . A mulher chegou quando , disse :

--
Amú micúra omano ana ! -o çaçáu . Micúra
- Outra raposa -
morreu já ! e passou . A raposa

uiāna iúiri , ojeno tenoné , oiumanō


correu novamente , deitou - se adiante , e fingiu -se

ana . Cunha ocika ramé , onhehe : Xa


de morta . A mulher chegou quando , disse : - Eu

picika ramé nhahã amuitá , xa reko ana curí


agarrasse se aquellas outras , eu teria ja
256 LENDAS

muçapíra . Omuií ju pe íra camuti , oiuiri orúri


tres . Arreou chão no de melo pote , voltou trazer

arama amú itá, (raposa) oço ana .


para as outras , e foi-se.

Micúra oiutuúma íra recé; ariré oiumuiereo


A raposa lambusou -se mel no i depois andou -se

iéréo cahá iakira uahá recẻ. Iaué uāna


revirando folhas verdes que sobre . D'essa fórma

Ocó óú Oúāna, oikiāna į pupé,


foi beber agua. Bebeu , entrou da agua dentro

irá oiúticú ana, cahá itá użuż aramé


o mel derreteu- se , as folhas boiarão ; então

júnto iauaraete oquáu ahé . opúri putári


sómente a onça conheceu a, pular queria

ramé, micúra oiauáu ăna.


quando , a raposa fugio já.

Traducção portugueza.

O sol seccou todos os rios , e ficou só um poço com

agua .

A onça disse : - Agora eu pego a raposa , porque

you tocaial- a no poço d'agua . A raposa , quando veio ,


CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 257

olhou adiante , e enchergou a onça ; não poude beber

agua , e foi-se , pensando como beberia .

Vinha uma mulher pelo caminho , com um pote de

mel na cabeça . A raposa deitou-se no caminho ,

fingio-se de morta; a mulher arredou e passou . A ra

posa correu pelo serrado , sahio adiante no caminho , e

fingio-se de morta. A mulher arredou-a , e passou

adiante. A raposa correu pelo serrado , e , mais adiante,

fingio-se de morta . A mulher chegou e disse : ― Se eu

tivesse apanhado as outras já tinha tres.

Arreou o pote de mel no chão , pôz a raposa

dentro do paneiro , deixou -o ahi , e voltou para trazer

as outras raposas . Então a raposa lambusou- se no

mel, deitou-se por cima das folhas verdes , chegou

no poço, e assim bebeo agua .

Quando a raposa entrou n'agua e bebeu, as folhas

se soltaram: a onça conheceu -a , mas quando quiz

pular sobre ella , a raposa fugio.


258 LENDAS

XX

MICURA IAUARETÉ
A raposa e a onça

O pensamento desta lenda é o˚ se


guinte: não ha situação tão desespe
rada de que o homem se não possa
tirar com energia e intelligencia .

Micura juri i
". cei ana oikỏ . Opeteca
estava. Bateu
A raposa de novo com sêde já

iepé cumă jua, oiumutuúma rete cicaătă


uma de sorva arvore , besontou-se bem resina de

cumã qua rece, oiere iereo caha xirica rece , oco


! e foi
sorveira com, e espojou - se folhas seccas em ,

i quára ket . Iauaraté oxipía ramé nhaha


da agua poço a . A onça vio quando aquelle

goo, onhehe :
animal , disse:

―――――- Auáta inde?


―― Quem é você?

- Ixe coo cahá xiríça .


- - Eu sou o bicho folha secca .

lauraeté onhehe :-Rẹ ú tenoné, repúri


A onça disse : -De beber antes , tu pules d'agua

pupé, xa maha arama intí uíri ramé ne pirera . »


dentro , eu vér para não boía se teu couro . »
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 259

Ahé opúri ana ; i pirera intí uíri ăna, cece cicătă


Ella pulou ; seu couro não boiou , porque resina

intí oiuticú pupé . Iaué tenhe micúra


não se derreteu d'agua dentro . Dessa fórma a raposa

óú quán amăna ára ocika catú


beber pôde agua, da chuva o tempo chegou até

ramê.
quando .

Traducçã › portugneza

A raposa estava outra vez com muita sede , bateu

um pé de sorveira , lambusou- se bem na sua resina ,

espojou-se sobre folhas seccas, e foi para o poço . A onça

perguntou :

- Quem és?

-Sou o bicho Folha Secca.

A onça disse : -Entra n'agua , sahe, e depois bebe .

A raposa entrou , seu disfarce não boiou , porque a

resina não se derreteu dentro d'agua ; sahio , e depois

bebeu , e assim fez sempre até chegar o tempo da


chuva .
260 LENDAS

XXI

MICURA IAUARATÉ
A raposa e a ɔnça

Desconfia de teu inimigo, ainda


mesmo depois de morto. Este pensa
mento, que é o da lendu abaixo, não é
certamente christão. Tão pouco não é
christão o seguinte anexim vernaculo:
Quem a seu inimigo poupa nas mãos
The morre .

Iauaraté onhehe: -Xa ço xa iuiano ;


A onça disse: - Eu vou fazer me de morta;

opa çoo itá oúri, curi omaha arama çupí


todos os animaes virão , vêr para verdade'

ramé . Micúra oúri curí tenhe ; aramé xa


se é. A raposa ha de vir tambem ; então eu

picka curi ahé. Coo itá oquáu ramé


apanhal-a-hei . Os animaes souberam quando

iauaraté omano ana , oço ana , oike ana i


que a onça morreu , foram , entraram de sua

quára pupé; aitá ocurí páua oçapucái :


cova dentro ; elles alegres todos gritavam :

Iauaraté omanй ana: quecatú rete Tupăna;


A onça morreu já ; graças sejam dadas a Tupã ;
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 261

çupé; ia quáu iaua tá!


já podemos passear!

Mcúra ouri tenh ; intí oike quára pupé,


A raposa veio tambem; não entrou cova na ,

opuranú okára çuí: - Opini ana será ahé?


e perguntou de fóra: - Arrotou já ella? (*)

Coo itá oçuaxára : - Intí rai .


Os animaes respondera m : - Ainda não .

Micúra onhche : -Ce ramúia amira, omauò ana


A raposa disse: -Meu avô finado , morreu

ramé , opinй muçapiraí.


quando , arrotou tres vezes .

Iauaraté ocenō ramé maha • micúra onhehe,


A onça ouvio quando o que a raposa disse ,

opino muçapiri í. Micúra oceno, opucá ,


arrotou tres vezes . A raposa ouvio , deu uma

onhehe: - Penhe peceno ana será , auá


gargalhada , e disse: - Vocês ouviram já , quem

omanz ana uahá , opinй?


morreo , arrotar?

Catú oii iauaraté intí opiçka quáu micúra ,


Até hoje a onça não apanhar pôde a raposa ,

---
() Vera significatio hujus verbi - pino - est
flatus ventris .
262 LENDAS

iacú reté rece ahé.


muito ladina por ser ella .

Traducção portugueza

A onça disse: -- Eu vou me fingir de morta , os

bichos vem ver se é certo ; a raposa tambem vem e

1 então eu a pego.

Os bichos todos souberam que a onça morreu ,

foram e entraram na cova della , e diziam: -A onça

já morreu , graças sejam dadas a Tupã ! já podemos

passear .

A raposa chegou , não entrou , e perguntou de fóra :

-Ella já arrotou?

Elles responderam : -- Não.

A raposa disse: - - O defunto meu avô quando

morreu arrotou tres vezes .

A onça ouvio e arrotou tres vezes .

-
A raposa ouvio , rio-se e disse: Quem é que já

vio alguem arrotar depois de morto?

Fugio, e até hoje a onça não a póde agarrar, por

ser a raposa muito ladina .


CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU ' 263

XXII

AMU' MOMẹUÇAUA MICURA ReCeUaRA


Outras lendas da raposa acerca

Como o leitor vio, o pensamento


geral das antecedentes lendas da ra
posa é este: a intelligencia e o sangue
frio assoberbam os maiores perigos.
Nesta colecção o pensamento geral é
justamente o complemento desse, isto é:
a toleima e a fatuidade criam perigos
e convertem as boas situações em más.
Nos quatro episodios, dos quaes só
publico aqui o primeiro, os philosophos
indigenas ensinam:
Que aquelle que pretende fazer uma
cousa só porque outrem a póde fazer ,
sem dispor das mesmas qualidades e
meios de que aquelle dispóz , além de
expôr-se ao ridiculo , prejudica- se
muito seriamente , e, se teima , expõe-se
á morte.
A primeira parabola em que elles
fixaram esse pensamento é a que se
segue:
Tendo o cameleão ou simimbú se
casado com a filha da raposa, e tendo
conseguido pescar atirando -se de
uma arvore sobre uma fogueira de
folhas, que, graças á sua agilidade e
á circumstancia de não ter cubellos
no corpo , pôde atravessar impune
mente; a raposa entendeu que podia
fazer o mesmo. Não dispondo , porém ,
1
264 LENDAS

da mesma agilidade do cameleão , e


tendo o corpo coberto de pellos , o fogo
prendeu-se-lhe, e ella escapou de mor
rer sem ter conseguido pescar.

Por esse motivo desfez o casamento.


Tendo a moça de novo se casado com
uma especie grande de Martim Pes
cador, e dispondo este, para a pesca.
do seu formidavel bico, a raposa julgou
que podia tambem pescar atirando- se
de cima de uma arvore, como aquelles
passaros fazem; ella , que não dispu
nha nom de azas, nem de bico, foi
mordida por um peixe e escapou de
morrer. Desfez tambem o casamento,
attribuindo ao genro a desgraça, filha ,
unicamente de sua fatuidade.

No terceiro episodio , casou a filha


com um maribondo ou caba, que,
graças a suas azas, póde roubar
peixe secco de um varal de pescadores.
A raposa , sem attender que não tinha
azas, tentou fazer a mesma cousa ,
resultando de sua fatuidade o perder
a cauda no dente dos cães que esta
vam de vigia ao varal. Desfez ainda
este casamento .

No quarto e ultimo episodio fez


casar sua filho com o carrapato , o qual,
tendo conseguido quebrar ouriços de
castanha,mandando jogal-os sobre sua
cabeça, que é molle; a raposa entendeu
que podia fazer o mesmo, e morreu
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 265

com a pincada que levou sobre a


cabeca .

2 I

MICURA RAÍRA OIUMENDÁRI CINIMй


Da raposa a filha casa-se com o sinimbú

Cinimu , ipahá , ocika micúra róca opé.


O sinimbú , contam , chegou da raposa casa em .

-- Ne caárúca, micúra .
―― Boas tardes , raposa.

- Indaué; reike , reuapika ; mãháta remunhã


-- As mesmas ; entre , assente- se; o que fazendo

reiko?
estás?

― Intimahã mahã ; xa iúre ne pire .


- Nem uma cousa ; eu venho com você ter.

- Mãháta ahé?
- O que ha?

Nde pa rereko ne raíra cunha mucú


- Tu po ve tua filha moça
r ntura tens

ǎna?
jå?

-Xa reko .
-- Eu tenho .
266 LENDAS

― Xa iúre xa iururé ceremireco arina .


- Eu venho pedil - a minha mulher para .

Micúra ocenoi i rajira, onhehe :


A raposa chamou sua filha , disse :

――――
Renendári putári será quahá apgaua?
-- Casar queres com este varão?

Taira oçuaxára:
A filha respondeu :

- Xa putári.
- Eu quero.

--
Aramé kuçukúi uana ahé , rẹiumendári .
―― · Então eil- o ahi , casem -se .

Amú ára riré , micúra ocenoi i rajira,


Outro dia depois , a raposa chamou sua filha ,

onhehe :
e disse:

――――――― Renhehe ne mena çupé , xa ú putári I


――― Dize teu marido a , que eu comer quero

pírá.
peixe.

Cunha mucú onhehe i ména cupe; aitá


A moça disse seu marido a; elles

oiúruári ana igára upé , oço ana çuáindápe


embarcaram - se canôa em , foram outra margem

I
1
(
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 267

kete. Aitá ocika , cinimu omundú ximiréco


a. Elles chegarem , o sinimbú mandou sua mulher

oiuúca xipó ixupé. Ahé oiupiri mirá recé,


tirar cipó para elle . Elle subio arvore sobre ,

onhehe ximirecó cupé:


disse sua mulher a.

Remuat ri cahá ceiía ; cejía ramé ǎna ,


- Amontôe folha muita ; muita quando tiver,

remund ca tatá i rece .


acenda fogo ella sobre .

Cunha mucú omunhã maí cinimú omundú ăna.


A moça fez como o sinimbú mandou .

Tatá turuçú ăna ramé , cinimu onhehe iuaté çuí.


O fogo grande já quando , o sinimbú disse de cima .


Aiqué xa ço !
- Lå me vou!

Opúri tatá piterape , oiapumi ¿ pupé,


Pulou do fogo meio em, mergulhou agua na ,

uíre çuáindápe , oçapucái ximiręco rece :


baiou do outro lado , gritou sua mulher por:

― Rerúri gára, reté quahá pirá !


- puci
-
- Traga a canôa , pesado muito é este peixe!

Aitá oiuruári ana tucunaré uaçú irúmo,


Elles embarcaram- se tacunare grande com ,
268 LENDAS

oço ana çoka kete; aápe cunha mucú omehe


foram -se sua casa para; lá a moça deu

nhaha pirá micúra çupé.


esse peixe raposa á .

Micúra opuranú maí i ména opicíka


A raposa perguntou como seu marido pegåra

uana pirá .
o peixe.

Cunha mucú ombeú ixupé maí cinimú


A moça narrou a ella como o sinimbů

omunhāna .
fez .

Amú ára opé, micúra onhehe ximiręco cupé:


Outro dia em, a raposa disse sua mulher a:

- laço japicika pirá , maiaué cinimi


Vamos apanhar peixe , como o sinimbú

opic/ka uana .
apanhou . 1

Aitá oço ana ; uáimì omundica tatá , mjcúra


Elles foram ; a velha acendeu fogo, a raposa

opúri piterape ; intí oçaçáu quáu ; tatá oçabereca


saltou meio em ; não passar pôde; o fogo saberecando

oiko i pirera; micúra oçacema :


estava sua pelle ; a raposa gritou:
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU 269

-Uáimi! reruri curute it Curumú xa mano !


-Velha! traze depressa agua! Senão eu morro!

fuaçúuára ahé ocema quáu .


Difficilmente ella sahir pôde .

Ahé oc/ka ramé coca opé, ocenoì i


Ella chegou quando sua casa em , chamou sua

ražíra, onhehe ixupé :


filha, e disse-lhe:

- Reompú ki xií ne mena ; intí xa putári ahé


―― Toca d'aqui ten marido ; não o quero

ike; omuni ana ха kái !


aqui ; fez com que eu me queimasse !
270 LENDAS

XXIII

CelUCİ MOMEUACAUA ReCeUARA


Da velha gulosa. lenda acerca (*)

A palavra Ceiuc significa a cons


tellação das Pleiades, a que o nosso
povo chama sete estrellas ; e significa
tambem ――― velha gulosa, ou uma fada
indigena que vivia perseguida de
eterna fome.
Todos os povos primitivos symboli
saram a luta da vida , na historia de um
homem que figurão vencendo trabalhos
desde a infancia , e não terminando-os
sinão com a velhice. A vida de Her
cules e as perigrinações de Ulysses são
a incarnação dessa tendencia do es
pirito. A historia de • Hercules ou de
Ulysses, contada pelas velhas, devia
perder muito de sua dignidade, embora
no fundo o pensamento permanecesse
o mesmo, isto é um homem bata
Thando para vencer este terrivel com

(*) Foi esta a primeira lenda que eu collegi , e fil- o


em 1865 , anno em que passei uns quatro mezes nas
solidões das cachoeiras da Itaboca , no Tocantins, onde
naufraguei , e onde morreram alguns de meus compa
nheiros . A lenda foi-me narrada pelo tuxáua dos
Anambés, infelizmente em tempo em que eu não
fallava ainda a lingua , e em que por tanto , para en
tender o que elle dizia , necessitava de servir-me de um
nterprete.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU' 271

bate da vida, com que todos lutamos


em main ou menor escala.
A historia da velha gulosa é ta'vez
um fragmento desse poema entre os
se'vagens da America, poema de que
nos chega apenas um echo remolo , con
servad pela tradicção grosseira das
aros e das amas de leite.

A lenda supõe um moço perseguido


pela insaciavel velha, que o quer devo
rar. A principio , o amor o salva; de
pois, elle começa uma longa peregrina
ção sem descanso, porque, quando quer
repousar, ouve nos ares um canto que
The indica a aproximação do voraz
inimigo, e, nessa luta , sempre fugindo ,
elle transpõe toda sua vida , de modo
que, quando de novo se recolhe a casa
paterna, está já coberto do cans . Não
será em fundo um symbolo como o
Hercules ou Ulysses, degradado pela
tradicção de povos grosseiros ?
Como en espero fazer ainda uma
demorada viagem pelos nossos certões ,
agora que eu conheço não só a lingua
geral, mas as fórmas mais importan
tes dos dialecios vivos , hei de ainda
talvez recolher ama melhor tradiccão
do que esta que eu collegi em 1865
quando apenas comecei meus estudos
desta materia.

Curumi uaçu , ipahá, opinaitíca oikó ăna pirá


Um moço, contam que , pescando estava peixe
272 LENDAS

mitá arúpi; oúri (Ceiuc , uáim tiára)


de um muta de cima ; veio (Pleiades , velha gulosa)

opiçáitica ( ) pirá garapé rupi; ahé omahã


pescando com tarrafa igarape pelo; ella avistou

curum uaçú anga ipipe , opupeca picá


do moço a sombra no fundo, cobriu-a rêde

irúmo; intí opuú curumi uaçú. Curumi uaçú


com ; não apanhou o moço. O moço

omaha ramé nhaha , opucá mặtá ára çuí .


vio quando aquillo , rio-se do muta de cima.

Uáimi tiára onhehe:: -- A'pe será reiko? Reuie


A velha golosa disse: Expe Ahi é que estás? Desse

iui kete , ce remiárerú.. Curumi uaçú


chão para , meu neto .>> O moço

- Uáim? onhehe: -Xiá curí


oçuaxára: Ixe tio ! »
respondeu:- Eu não!» A velha disse: -- Olha

ха munú adpe cáua !


que eu mandarei lá maribondos!

Ahé omunú ana . Curumi uaçú upena iepé


Ella mandou - os . O moço quebrou um

(*) Piçá, rede; itíca , apanhar; pescar com rede.


Piná, pindá, anzol; itíca, apanhar; portanto: pinaitica ,
pescar de anzol.
CURSO DE LINGUA TUPI ' VIVA OU NHEHENGATU ' 273

pacănga miri ; oiúcá cáua itá. Uáimi


ramo pequeno ; matou os maribondos . A velha

onhehe: - Reuié, ce remiarerú , curumi xa munú


disse: - Desce meu neto senão eu mando
, ,

tucandira.
tucandira . (* )

Curumi uaçú intí oię; ahé omunú tucandira


O moço não desceu ; ella mandou tucandiras ;

itá; quahá itá ombúri ahé " pupé; uáimi oiapí


estas puzeram-n'o
agua em ; a velha jogou

picá ahé rece , reté ahé,


opupéca
a tarrafa elle sobre , envolveu- o perfeitamente ,

oraço çóka kete. Ocika ramé aápe, oxári


levou-o sua casa para. Chegou quando lá , deixou

curumi uaçú ocára opé, oço omunhã iepeá .


o mogo terreiro no , foi fazer lenha.

Cacaquera oúri embira , onhehë: - Quahá ce


Atraz della veio a filha , e disse: - Esta minha

ci, oúri ramé


cahámunuçáua cuí , ombeú maha
mãi , vem quando caçada da, conta qual é

ximiára ahé oiucá; oií intí ombeú... Tenupá


a caça que ella matou ; hoje não contou ... Deixa-me

(*) Uma especie de formiga, cuja ferroada é dolo


rosissima , e póde produzir febre; no sul damos-lhe o
nome de caracutinga.
274 LENDAS

xa mahã ra mã háta ahé . Aramé ouimupupéca


olhar ainda o que é. Então desembrulhou

picá , oxipiá curumi uaçú . Curum uaçú onhehe


a rede , e vio o moço . O moço disse

ixupé :
lhe:

Reiúmími ixe.
-Esconde-me

Cunha mucú oiumími ahé; omutuúma inuá


A moça escondeu- o ; untou um pilão

iráit irúmo , opupéca picá irúmo , oxári


cêra com , embrulhou-o tarrafa com, deixou-o

cenáua opé tenhẻ.


lugar no mesmo.

Aramé uáim ocema calá çuí, omundica tatá


Então a velha sahio mato do , acendeu fogo

mukaë uirpi. Inuá ocacú ăna , iraiti


do muquem em baixo . O pilão esquentando - se , a cêra

oiticú ăna ; uáimì oçuãtí . Tatá oçapi ana


derreteu-se ; a velha aparou . O fogo queimou

picá, oinquán ăna inúa . Aramé uáimi onhehe


a tarrafa , appareceu o pilão . Então a velha disse

i embira çupé: Inde intí remukamche ramé


sua filha a: - Tu não mostrares se
CURSO DE LINGUA TUPI' VIVA OU NHEHENGATU' 275

ceremiára, xa iucá curí inde !


a minha caça, eu matar-te-hei!

Cunha mucú ocekțiéāna , omunú curum uaçú


A moça ficou com medo , mandou o moço

munúca uaçal ráua, omunhã arama panacú ;


cortar de uaçahy palmas , fazer para cestos ;

nhanhã panacú itá oieréo arama opa çuú


estes cestos virarem-se para todos animaes

arama. Uaimi oçoana çacaquera , ocika ramé,


em . A velha foi atraz , chegou quando ,

curumiuaçú omunú panacú itá oièreo tapiíra,


o moço mandou os cestos virarem-se em antas ,

cuaçú , taiaçu , opa çuu arama ; oierẻo uana .


veados , porcos, todas as caças em ; viraram -se.

Uaim tiára óúana aitá .


A velha gulosa comeu todos.

Curumiuaçú , omaha Framé temiú quaiatra,


O moço , viu quando a comida pouca,

oiáuáuāna: omunhãna matapí mamé oári rete,


fugiu ; fez um matapi ( ) onde cahiu muito

uahá, pirá . Uaim? ocka ramé ápe , oike


que , peixe . A velha chegou quando alli , entrou

(*) Matapí , é uma especie de cercado que os indios


fazem para apanhar peixe.
276 LENDAS

matapi pupé. Curumiuaçú muçatí iépé maraiá


do matapi dentro.O moço expontou um de marajá

iua .
pȧo.

Uazmi óú oikó, ramé, pirá, ocutúca


A velha comendo estava , quando , peixe , elle ferio-a ,

ahé , oiauáu uăna. Cunha mucú onhehe


e fugio . ' A moça disse

8
ixupé :-Recenō ramé oiepé uirá onhe @gári
à elle -Tu ouvires quando um passaro cantar

kankán , kankan , kankán , ce ci uahá


kan kin , kan kản , kan kản , ẻ minha mãi a qual

intimaha oiko pucú opicica arama inde.


não está longe pegar para voce .

Curumi uaçú uatá , uatá, uatá.


O moço andou , andou , andou .

Ahe oceno ana ramé: kankan , unbana,


Elle ouvio quando: kankán , correu ,

ocika mamé makáka ita omunhã oikỏ


chegou onde os macacos fazendo estavão

íra , onhehe ixupê: -Reiúmími íxẻ , makáka?


mel , disse-lhes : - Escondão -me , macacos?

Makáka omunéo abé oiepé camuti ipora ma


Os macacos metterão- no de um pote vasio
1
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU' 277

pupé. Vaimi ocika , intí uacémo curumi


dentro . A velha chegou , não encontrou o moço ,

uaçú, • oçaçáu tenoné keté. Ariré makáka


passou adiante para . Depois os macacos

omunú curumi uaçú og uana . Curami uaçú


mandarão o moço ir-se embora . O moço

uatá, uatá, uatá ; oceno : kankán , kankán ,


andou , andou , andou ; ouvio : kankan , kankan ,

kankán; ahé ocika curucucú oca opé, oiururé


kankan ; elle chegou do surucucú casa em , pedio - lhe

ixuí oiumími arama ahé . Curucucú oiumími


esconder para elle . O surucucú escondeo-0.
ana ahé.

Uaimi ocika, intimaha uacemo, ocóuana.


A velha chegou , não O encontrou , foi-se .

Caárúca ramé curumiuaçú oceno curucucú


De tarde o moço ouviu o surucucú

apurunguetá oikỏ i xemericó irúmo , omunhã


conversando estava sua mulher com, fazerem

arama mukae, aitá óú arama curumiuaçú .


para um muquem , elles comerem para o moço .

Aitá omunhã ramé oikó mukae, onhehenári


Elles fazendo quando estavam omuquem , cantou
278 LENDAS

oiepé makǎuă. Curumiauçú onhehe : -Ah ! ce ramuía


um makauan . O moço disse : Ah! meu avô

makaua , tenupá xa nhche ne irúmu . » Makauă


makauan , deixa que eu falle você com. » O makauan

oceno , oúri , opuranú : --- Mãháta ahé , ce remiárerú? »


ouviu , veiu , e perguntou : -O que é , meu neto ? >>

Curumiuaçú oçuaxára : - Aiqué moko çurucucú


O moço respondeu : ――― Ha dous surucucús

ότι putári uahá ixẻ. Makãnã opuranú múire


comer querem que eu . O makauan perguntou quantos

cemutíma tahá oreko ? Curumiuaçú oçuaxára :


escondrijos elles tinham ? O moço respondeu :

---Iepé iúnto »D Makana óú ana mokoi curucucú .


-Um somente . >> Omakauan comeu os dous sucurucús .

Curumiuaçú oiaçáu nhúme çuaxára kete, oiuiuantí


O moço passou do campo banda para , encontrou

iepé tuiúiú irúmo, opinaitica oiko pírá, oenй oiko


um tuiúiú com, pescando estava peixe , pondo estava

uatúrá pupé. Curumiuaçú aiurure ixuí oraço


uaturȧ (. ) em . O moço pediu a elle levar

arama ahé. Tuiuiú opinaítica páua ramé ăna ,


para elle . O tuiuiu de pescar acabo u quando ,

(*) Uaturá é um cesto de talas de cannas, cujo


nome passou para o portuguez .
CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OU NHEHENGATU’ 279

omună curumiuaçú opúri arama uaturá pupé , ueuệu


mandou o moço pular para uaturá em , Voou

ahé irúmo, oenй ahé mirá uaçú raç nga ręce,


elle com , poz elle de arvore grande galho sobre ,

intí oquáu oraço ahé tenoné . Iuaté çuí curumiuaçú


não pôde leval -o adiante . De cima o moço

omaha iepé óca : oié ocoana. Ocika cupixáua


viu uma casa ; desceu e foi. Chegou da roça

remehipe , oceno cunhä oiacáu oiko acutí


beira na, ouviu uma mulher ralhando estava cutia

irúmo intí arāma óú i maniáca.


com não para comer sua mandioca.

Cunha oraço curumi uaeú çoca kete :


A mulher levou o moço sua casa para ;

ocika ramé aápe , ahé opuranú ixuí : mamé


chegou quando lá , ella perguntou a elle : onde

cuí tahá ahé oúri . Curumi uaçú ombeú


de que elle vinha . O moço narrou

opar mahā , mai ahé ocarú oiko pirá


todas as cousas , como elle esperando estava peixe

igarapé remchipe , oúri ana uaim tiára


do igarapé margem na , veio a velha gluosa ,

oraço ahé çoca kete, curumi ramé rai


levou elle sua casa para , menino quando ainda era
280 LENDAS

ahé. Cuhire tuiué ana , murutinga i akaga .


elle . ȧgora velho já estava , branca sua cabeça .

Cunha omanuári cece , oquáu ana embira


A mulher lembrou -se delle, e conhecen que era seu

ahé. Curumi uaçú oike çóca ketė.


filho . O moço entrou sua casa para .

Observação sobre as lendas

Termino aqui a publicação das lendas , apesar de

possuir algumas outras , não só zoologicas, como a res

peito dos seres sobrenaturaes de que se compõe a my

thologia de nossos selvagens .

Creio porém que , com os textos que ahi ficam im

pressos e traduzidos, attingi em grande parte ao fim

pratico que o governo tevc em vista com a publicação

deste trabalho, que foi , como já disse , o de habilitar á

aquelles que por necessidade ou interesse estão em

contacto com o selvagem a ensinar-lhes o portuguez

fazendo a leitura das lendas nas duas linguas.

Além porém da utilidade pratica , ha questões scien

tificas de grande interesse para o estudo do homem , que

serão altamente esclarecidas com o conhecimento dos


CURSO DE LINGUA TUPÍ VIVA OÙ NHEHENGATU’ 281

textos que constituirão a litteratura tradiccional do ho

mem do periodo da idade de pedra, periodo em que se

acha actualmente, o nosso selvagem, e em que se não

encontra o homem em outras regiões do globo .

Como uma ordem dada pelo Exm . Sr. duque de Ca

xias, ministro da guerra, me facilita os meios de colli

gir essa litteratura entre os soldados que são indi

genas, en proseguirei no trabalho de colleccional

as, tanto quanto permittirem os outros encargos

que ne pezam sobre os hombros . Quando eu pú

blicar o Diccionario , cuja confecção já comecei , e

que espero terminar no anno vindouro , fal-o -hei se

guir de quantos textos novos eu houver alcançado

nessas investigações .

FIM DA PRIMEIRA PARTE


II

Origens, costumes e Região Selvagem

F
16
7
Esta segunda parte é a reproducção da memoria que
em 1874 li no Instituto Historico com o titulo de :

REGIÃO E RAÇAS SELVAGENS , cuja edição esgotou- se em

pouco mais de 3 mezes.

Nesta nova edição eu fiz augmentos e cortes no

intuito de melhorar o trabalho , para corresponder ao

benevolo acolhimento com que honrou-me o publico

não só aqui no Brazil como em algumas partes da

Europa.
O SELVAGEM DO BRAZIL

O HOMEM AMERICANO

Apparecimento do homem na terra . Periodo em que


apparece na America o tronco vermelho . Cruzamen

tos pre-historicos com os brancos . Avaliação de qual


era o estado das industrias selvagens pelos usos que

faziam do fogo.

Aquelles que estudam as diversas revoluções por que


tem passado a terra , desde o periodo em que fazia
parte da grande nebulosa que se decompôz no systema
solar , até nossos dias , ficarão convencidos de que os
phenomenos que nós denominamos vitaes estão inti

mamente ligados a taes revoluções .

O homem só podia apparecer nos fins da época ter


naria .

As hypotheses sobre a creação do homem , que me


parecem mais conformes com a geologia, são :
Como o tronco negro é que melhor supporta o calor ;
como a marcha do planeta que habitamos tem sido do
calor para o frio , e como todos os phenomenos vitaes

se ligam á marcha da temperatura , o tronco negro


parece que foi o primeiro creado , e devia sêl- o n'a
r. 1
2 O HOMEM AMERICANO

quella parte do globo , onde , primeiro do que em outras,


a temperatura desceu ao gráo que era compativel com o
organismo do homem.

Pela mesma serie de comparações creio que o tronco


amarello veiu depois do preto , o vermelho depois do
amarello , e finalmente o branco , que deve ser contem

poraneo dos primeiros gelos , foi o ultimo . Julgo tam


bem que, na ordem do desapparecimento , a natureza
ha de proceder pela mesma fórma- o tronco preto ha
de desapparecer antes do amarello , e assim successiva
mente até o branco . Este ha de talvez por sua vez des
apparecer tambem no fim do periodo geologico de que
somos contemporaneos para , quem sabe , dar lugar ao
apparecimento d'uma outra humanidade, tanto mais

perfeita e tão distante da actual quanto esta o é dos


grandes quadrumanos anthropomorphos que chegaram
até nossos dias.

A sciencia , por emquanto , não póde aceitar estas


cousas senão como conjecturas ; dia virá em que ellas
serão esclarecidas e provadas .
Eu supponho , pois, a actual familia humana dividida
em 4 troncos - O terceiro em idade é o vermelho ou
americano a que pertencem os selvagens de nossa
America .

APPARECIMENTO DO TRONCO VERMELHO

Por uma serie de considerações geologicas que eu

não posso agora desenvolver por que excedem aos li


/
O HOMEM AMERICANO 3

mites do quadro que tracei , parece que o homem ame


ricano appareceu primeiro nos altos chapadões ou
araxás (*) formados pelas grandes cordilheiras dos An
des, d'onde emigrou para as planicies .

Em que época teve lugar o apparecimento do homem


americano ?

O estudo comparativo das alturas acima do nivel


do mar, entre os araxás da America e da Asia , dá os

primeiros indicios , que por emquanto ainda não estão


confirmados por vestigios fosseis que se hajam desco
berto em regiões similares.

O Sr. Liais , em sua recente obra- Clima , Geologia


Fauna, etc. , do Brazil, cita a pag. 240 , n. 107, tres

factos de vestigios da industria humana em depositos


antiquissimos ; a elles eu posso accrescentar uma mó
de argilla roxa metamorphica durissima , e uma mão
de pilão de petrosilex , ambos polidos , que offereci ao
Museu Nacional , e que foram encontrados em cascalhos
que supponho serem quaternarios, d'um dos affluentes
do Araguaya .

(*) A palavra araxà è tupi e guarani , vem das duas


raizes ara , dia e xd , ver ; dão o nome de araxá à região
mais alta de um systema qualquer como sendo a pri
meira e ultima ferida pelos raios do sol , ou a que por
excellencia vê o dia; essa palavra está adoptada no
portuguez como nome de lugar: é o nome do mais alto
pico da Tijuca , e de uma cidade de Minas ; eu o aceito
em falta de vocubulo portuguez que exprima a idéa
com a mesma precisão .
4 O HOMEM AMERICANΟ

Sendo o periodo da pedra polida posterior a outros,


e encontrando -se instrumentos de pedra polida nos mais
antigos sedimentos da época quaternaria , segue-se que
o tronco vermelho é anterior a essa época , visto encon
trarem-se, no começo d'ella provas;de que esses homens
já tinham vivido anteriormente o tempo necessario
para attingirem áquelle periodo .
No entretanto esta alta antiguidade do tronco ame
ricano , que o iguala aos mais velhos do mundo , não

está ainda aceita geralmente pela sciencia, e é subjeita


á objecções, como direi adiante.

Segundo o testemunho de Lyell, os vestigios huma


nos mais antigos que se hão encontrado na America ,

indicam a presença do homem no principio da época


quaternaria . Esses vestigios não são por certo os mais
antigos ; estes devem ser encontrados nas regiões mais
altas , as quaes até hoje estão inexploradas .
Ainda assim , a antiguidade do homem americano é
grande, porque precede ás primeiras emigrações dos
Aryas na Europa, e remonta até á data do periodo pa
leolithico da parte oriental d'aquella região(*)
A consequencia que resulta d'estes factos é, que o

(*) Lyell's Princ .of Geology- tom . 2. ° , pag . 479


London 1872. << porém o estabelecimento da
humanidade na America , apesar de ser um facto
comparativamente recente , póde remontar até o pe
riodo paleolithico da Europa Oriental . Algumas das
ultimas transformações do valle do Mississipi e seus
tributarios puderam ter lugar quando já era possi
vel sepultar restos humanos e os de algumas das
O HOMEM AMERICANO 5

homem tinha apparecido na America muitos mil annos


antes do descobrimento do continente pelos europeos .

ANTIGOS CRUSAMENTOS

Tudo nos induz a crer que , ao tempo da descoberta ,


haviam aqui na America duas raças , uma - que é
tronco vermelha - cuja existencia remonta , como
disse, à muitos mil annos; outras cruzadas com raças
brancas .
Um dos cruzamientos com o tronco branco deixou de
si documento mais authentico do que os em que se
assenta a historia , e esse documento são milhares de
1
raizes sanscritas que se encontram no Quichua , se
gundo a comparação feita pelo Sr. Fidel Lopes, de
Buenos-Ayres, em sua recente obra - Raças Aryanas
no Perú ; identicos vestigios se encontram em outras
línguas , como o demonstra o padre Brasseur de Bour
bourg em sua « Grammatica da lingua Quiché , e seus
dialectos . D»

Existindo nas raças indigenas do Brazil vestigios de


antigos cruzamentos com o branco , sobre tudo entre os
que fallam a lingua tupí , e não existindo n'esta lingua
os vestigios do sanscrito que se encontram no Quichua ,

especies de animaes extinctos , e , atravez do periodo


d'essas mudanças geographicas , a cadêa dos Andes
podia estar ainda prolongada d'esde o Canadá até a
Patagonia, facillitando assim o desenvolvimento d'uma
só raça d'uma extremidade a outra do continente . >> P
1
6 O LIGMEM AMERICANO

segue-se que a raça branca aryana , que no tempo dos


Yncas cruzou o tronco vermelho do Perú e America

Central , não foi a que cruzou com nossos selvagens .

Encontrando -se vestigios de typos cruzados aqui no


Brazil , e devendo os selvagens do Brasil ter emigrado
para aqui dos araxás dos Andes, em periodo muito
anterior á vinda dos Yncas , segue- se que o cruzamento

que se nota aqui é de data muito mais antiga . O cru


zamento ao tempo dos Yncas é um facto comparativa
mente recente .

Com effeito , os historiadores são accordes em dizer ,


que a historia dos reis do Perú abrangia um periodo de
400 annos antes da descoberta da America. Laet (*) um

dos mais graves e antigos, diz-nos que Manco Capac,


o fundador da dynastia dos Yncas, veiu 400 annos
antes da descoberta da America . Havendo cerca de 400

annos que a America foi descoberta , segue- se que a


historia escripta d'essa familia americana não abrange
mais de 800 annos. (**)

(*) . Laet, Ind . Occid . L. 11 , cap. --


12 , pag . 396 -
ediç . de 1640.

(") . Muitas pessoas estranharam que se pudesse


ter conservado uma chronica completa dos reis do
I
Perú por espaço de tão largo periodo , e por isso pu
zeram em duvida a exactidão d'estas datas . No entre
tanto é facto hoje verificado que os Quichuas , nome
da nação sobre que reinavam os Yncas , podiam formar
I

O HOMEM AMERICANO 7

Mostrarei adiante o como a lingua , o estado relativo


de civilisação , as idéas moraes e religiosas , concorrem
para demonstrar estas cousas.
Este cruzamento nos veio das costas occidentes da

America. O outro veio provavelmente pela costa


oriental.

O que fica escripto habilita-nos a tirar as duas


conclusões seguintes :

1. O tronco vermelho ou americano é contempora

neo , pelo menos , do periodo paleolithico.

2. As antigas raças mestiças datam de tempos


immemoriaes, havendo talvez muitos mil annos que o

sangue do branco cruzou-se com o da primeira india.

A que periodo de civilisação haviam attingido esses


homens?

e effectivamente formaram verdadeiros livros , por um


methodo de escripta chamada QUIPO , e inventado pe
los Tahuantinuyanos , o qual consistia na combinação
de fios de diversas côres, com os quaes perpetuavam
o pensamento .
O fanatismo mahometano destruiu a bibliotheca de
Alexandria . O fanatismo christão veio tambem des
truir a bibliotheca dos Yncas . - Aqui vai o texto do
notavel documento , que prova esse facto , descoberto
o anno atrazado em Lima, e citado pelo Dr. J. F.
Nodal em sua Grammatica da lingua Quichua , Cuzco ,
1872, pag. 95.
Antiqui verò ab Ethnicis conscripti, propter sermo
nis elegantiam et proprietatem permittuntur, nulla

F
8 O HOMEM AMERICANO

Para mim é fóra de duvida que o selvagem do


Brazil estava na idade de pedra , e , differindo essen
cialmente n'este ponto dos do Perú , não conhecia a
arte de fundir os metaes, e nem mesmo os distinguia

das pedras , como adiante o mostrarei .

Que vistas foram as da Providencia conservando

essa pobre raça em tão grande atrazo e no primeiro


degráo por assim dizer da civilisação , emquanto as
outras executavam essas arrojadas conquistas da scien
cia que fazem o patrimonio de nosso seculo ?

Não o sabemos ; mas esse facto em nada autorisa

uma conclusão em desvantagem d'esta porção da


humanidade , porque todos os anthropologistas e,
entre elles , o maior dos mestres modernos , o Sr. de

Quatrefages , são accordes em que existem raças bran


cas em estado mais rudimental e barbaro do que os

amen ratione pueris prælegendi erunt . Et quoniam


aput Indos litterarum ignaros pro libris signa quedam
ex variis funiculis erant , quos ipsi QUIPOS vocant,
atque ex eis non parva superstitionis antiquæ monu
menta extant, quibus rituum suorum et ceremoniarum
et legum iniquarum memoriam conservant, CURENT
EPISCOPI HOEC OMNIA PERNICIOSA INSTRUMENTA PENITUS
ABOLERI . Primeiro concilio provincial de Lima , cele
brado em Setembro de 1653 , cap . 37 , secção 3.'
A traducção é a seguinte : « posto que sejam per
mittidos , pela elegancia e pureza da dicção , os li
vros que nos foram legados pelos gentios , comtudo
se não consentirà que elles sejam lidos pelos meninos .
A
0 HOMEM AMERICANO 9 1
4
nossos selvagens, e outras que , por vicios de toda #
sorle, se degradaram para muito abaixo d'elles.
Essa idade de pedra , pela qual passaram as raças
mais adiantadas da humanidade, tem seus periodos
que dividiremos assim :

1. Desde a creação do homem com seus instru


mentos e armas de pão quebradas dos troncos , e de
pedra lascada , até os instrumentos de pedra polida.

2. Desde essa idade até a da fundição dos pri


meiros cylicatos , que deram em resultado a industria
ceramica, a qual tão profundas modificações deveu
trazer na vida economica da humanidade, permittindo
o uso do fogo para cozinhar seus alimentos, industria
que foi mais importante para a humanidade n'aquelle
tempo do que a descoberta do vapor ou da electricidade
o foi para nós .
3.º O que vai da data da fabricação dos primeiros
vasos de argilla até a descoberta da arte de fundir o
ferro , que deveu ser empregado muito depois do ouro

E por quanto entre os indios , que ignoraram as nossas


lettras , os livros sejam substituidos por signaes a que
os mesmos denominam Quipos , dos quaes ressaltam os
monumentos da superstição antiga, nos em que està
conservada a memoria de seus ritos , ceremonias, e
leis iniquas , por isso , os BISPOS DEVEM CUIDar de que
TODOS ESSES INSTRUMEMTOS PERNICIOSOS SEJAM EXTER
MINADOS . » :
E assim apagou-se para sempre uma das mais cu
riosas paginas da historia da humanidade !...
2 r.
40 O HOMEM AMERICANO

e do cobre, attenta a sua maior difficuldade em ser


fundido.

A qual d'estes periodos attingio a civilisação de


nossos selvagens? O que era ella em relação ás diversas
fórmas de manifestação da actividade humana?
E' o que passamos a investigar, detendo-nos de

principio nas diversas applicações que os selvagens


faziam do fogo, o que , além de auxiliar-nos no estudo ,
porque o uso do fogo é o ponto de partida de todos os
periodos de civilisação , será curioso para o leitor
remontar comigo a essa vida rude de nossos selvagens ,
que eu aprendi a conhecer em longas e demoradas
viagens no interior .

E' fóra de duvida que todas as tribus do Brazıl


conheciam e conhecem o uso do fogo .

E' fóra de duvida que todas ellas desconhecem os


meios de fundir os metaes; exceptuado isto , applicavam
o fogo a variadissimos misteres .
Algumas conhecem a industria ceramica , e outras
não . Ha uma grande differenca nos habitos e costumes
das que conhecem esta industria em comparação das
que a não conhecem .
O FOGO COMO AUXILIAR DO SELVAGEM

Todas as tribus que eu conheço de vista propria, e


aquellas de que tenho noticia por meio da relação e
tradição d'essas com as quaes tenho estado, empregam
o fogo em diversos misteres e como auxiliar á vida:
1. Para assar alimentos ; este uso é commum a
todas.
O HOMEM AMERICANO 11

2. Para cozinhar alimentos ; este costume é peculiar

ás tribus que usam de alimentos cozidos , que são


unicamente aquellas que, conhecendo a arte ceramica ,
possuem vasos onde é possivel realizar-se esta ope
ração .

3. Para preparar conservas alimentares pelo pro


cesso da moqueação (permittam-me a expressão tupi ,
porque nos não temos na lingua portugueza um verbo
que substitua o moquear) . Este methodo de preparar
conservas de carne, peixe e fructas, que elles conse
guem moqueando estas substancias, isto é , submetten
do-as a um calor muito lento, porque não se moquea

bem uma carne sem o espaço de tres dias , é para elles


um recurso preciosissimo , porque , não conhecendo o
uso do sal , não teriam meio algum de preservar e
fazer conservas de substancias azotadas . D'estas con

servas ha uma, o a piracuhy ou farinha de peixe, que

goza de grande e merecida reputação ; remettida para


uma das exposições de Londres, mereceu as honras de
ser classificada como a mais perfeita das conservas de
peixe. I

Uma outra conserva , não menos notavel , é a que

fazem da carne do peixe boi por meio do fogo e graxa

do mesmo animal , e que é conhecida no Pará sob o


nome de mixira. Entre conservas de fructos, por

meio do fogo, ha a que constitue a deliciosa bebida


conhecida em toda a America do Sul, e hoje muito
12 O HOMEM AMERICANO

vulgarisada na Europa debaixo do nome Mauez de


—— guarand .

4. Empregam o fogo para coagular gommas, como


a da borracha , que constitue hoje um ramo de com
mercio que vale de seis a sete mil contos annuaes.
Para fundir e condensar resinas, citarei entre outras :
a do breu indigena , que é hoje o que eu emprego
exclusivamente nos barcos do Araguaya; produzido
por uma fusão de cera de abelha e resinas de diversas
arvores ; é mais duravel do que aquelle que nos vem
da Europa.
Com o fogo condensam tambem a resina da massa
randubá , que hoje já se exporta com o titulo de
gutta percha.
Condensam tambem algumas substancias estimu
lantes, e destinadas a substituir o sal, como seja : 0
caldo da mandioca , de que preparam uma conserva
que vende-se no Pará, e de que fazem alli um grande
uso, intitulada tucupi.
Preparam tambem por sublimação um veneno acre
com que hervam as pontas das flechas , para conseguir
com promptidão a morte dos animaes que atacam .
Extrahem tambem, com um processo combinado de
fogo e maceração , productos alimentares de certas
amendoas , sendo celebres entre estes as famosas bebi
das uassahi e bacaba , celebres não só por screm
alimentos de primeira qualidade para pessoas debili
tadas por doenças ou idade , como tambem pelo pere
O HOMEM AMERICANO 13

grino do sabor e perfume , tão delicado que mereceu


de um viajante americano o exclamar que : d'essas
bebidas, cuja tradição , segundo elle, foi levada pelos
phenicios ao velho mundo, nasceu a idéa do nectar e
da ambrozia dos gregos.
Uma outra gomma que preparam com o auxilio do

fogo, e que constitue um tão poderoso recurso para o


regimen alimentar dos enfermos nos extensos valles do
Amazonas e seus affluentes , é o amidon da mandioca ,
com o qual fazem a deliciosa tapio-cuhi ou farinha de
tapioca.

5. O quinto grande emprego do fogo consiste em


utilisal- o para auxiliar a industria de trabalhar a ma
deira ; debaixo d'eşte ponto de vista , empregam-no

para derribar as grandes arvores de que necessitam


para suas embarcações, accendendo junto a seus
troncos uma fogueira que em pouco tempo abate os
mais altivos ; com o fogo abrem-lhe bojo ; é assim que
fazem as suas canoas ou ubás , como as denominam .

Com o fogo vergam e espalmam os mesmos troncos de


modo a fazer uma canda muito mais larga do que era

o primitivo madeiro ; são as que os tupis denominam


ygara.

6. Usam do fogo como meio de fundir, ou , melhor,


de cozinhar a argilla para preparar vasos de agua

(ygaçaba), urnas funerarias, panellas, estatuas, brin


quedos para crianças , assovios para arremedar passa
ros,etc .
14 O HOMEM AMERICANO

7. ° Usam do fogo empregando- o como auxiliar da


caça, meio de signal para se darem uns aos outros
advertencia ao longe , e para a agricultura . Como
auxiliar da caça , porque fazem pequenas queimadas
no meio dos campos ; os veados (suassú), attrahidos

pelo cheiro da queimada, procuram-na para lamber a


cinza ; o indio , que está em um palanque construido
em cima de uma arvore , palanque a que elles deno
minam mutâ , flecha o veado a seu salvo e sem

cançar-se .
Outro auxilio que tiram do fogo para a caçada é o
de: -quando os caetetus (especie de porcos) e pacas se
« entocam , os indios , que não possuem enchadas para
desemboscal-os, empregam o meio muito simples de
accender fogo na porta e, com um abano de taquara ,
impellem para dentro a fumaça , de modo que os
animaes, quasi asphyxiados dentro, vêm-se forçados a
sahir para fóra, onde são apanhados.

Do fogo se auxiliam tambem para poder tirar o mel


de certas abelhas bravas, accendendo um facho com

que se approximam da colmêa dos ichú, mandaguahy,


arapua, sanharão e outras, de que nem um euro
pêo ousaria approximar-se.

Como exemplo do auxili que lhes presta o fogo ,


servindo-lhes de telegrapho ou meio de fazer signaes,
direi : é impossivel chegar ás aldeas dos Carajás no
Araguaya, mesmo a vapor e de aguas abaixo , e ellas
se estendem em uma zona de quasi trinta leguas , sem
O HOMEM AMERICANO 15

que as ultimas aldeas debaixo tenham aviso prévio da


chegada do eotêdáo, como elles denominam os va

pores ; o meio de que se servem é accender fogueiras ,


esperando hora em que não haja vento , porque a
fumaça sobe em columna para o ar.

Quando andam em caçadas servem-se tambem d'esse


meio para indicarem o lugar em que está o chefe,
porque o costume é o de espalharem-se de dia e
reunirem-se á noite para dormir . Não duvido asseverar
que elles usam d'estes signaes com certa perfeição , de
modo a designarem não só a presença de um chefe ,
porém qual dos chefes está presente , e affirmo isto
porque já se tem dado comigo esse facto mais de uma
vez.

Um outro emprego do fogo , como auxiliar da pesca , é


o seguinte: á noite os peixes de escama procuram
os baxios , para não serem devorados pelos enormes
peixes de couro , da familia dos syllurus, que n'essa
hora procuram de preferencia suas presas. Os indios
fazem com madeira rachada de ipé um facho ; levam

brazas na canôa , e , chegando ao baxio, accendem o


facho ; é de ver- se o como os peixes começam a saltar
e a cahir dentro da canòa , ás vezes em tal abundancia

que dentro em pouco tempo a enchem .

Para concluirmos com os diversos partidos que os


indios tiram do fogo , como auxiliar da caça e da pesca ,
eu referirei uma singular caçada a que assisti junto a
um lago das margens do Araguaya : Tendo-me encon
16 O HOMEM AMERICANO

trado com uma partida de Chambioás que andavam


caçando , segui com elles para um lago que diziam
ficava a não muita distancia da margem. Effectiva
mente lá chegamos com legua e meia de marcha, e
elles , depois de verificarem d'onde vinha o vento ,
prenderam fogo ao campo em semi- circulo , de modo a
cercar com o incendio aquella parte do lago em que
nos achavamos , para o fim , diziam elles , de caçarmos
uma especie de tartarugas de terra firme, pequenas,
mas de sabor delicadissimo , que existem em todo
valle do Amazonas . Com effeito , esse methodo de

caçar com o fogo é excellente , porquanto, apenas o


incendio começou a ganhar uma certa extensão , as
tartarugas começaram a procurar o lago , onde nós as
apanhavamos em abundancia e com grande facilidade ;
dentro em pouco , porém, de envolta com tartarugas ,

começaram a vir cobras que, como ellas, vinham pro


curar no lago um asylo contra o fogo; e as cobras,
filhos de jacarés e cutros reptis eram tantos que nós

os christãos (tori nos chamam) subimos sobre arvo


res, deixando aos Chembiods o resto da caçada ; e
nem elles , familiarisados naturalmente com aquillo,
desistiram d'ella senão quando o fogo chegou tão pro

ximo que o calor tornou-se insupportavel ; circumstan


cia em que nos mettemos pela agua á dentro , e
atravessamos o lago , conduzindo enormes collares das
taes tartarugas presas pelos pés a cipós.

E' com estes e outros engenhosos e faceis meios de


O HOMEM AMERICANO 17
:
obter caça que se explicam as enormes viagens do
capitão -môr Bartholomeu Bueno Anhanguera com du
zentas e mais pessoas por esses sertões, sem conduzir
provisões. E' o que explica tambem a facilidade com

que eu mesmo tenho feito tão longas viagens pelo


sertão , conduzindo muita gente e raras vezes sem con
duzir outros viveres além de sal, farinha , café e
assucar, porque os indios , que sempre levo n'essas
expedições , supprem-nos , com rara abundancia , de

peixe, caça , mel e quantidade de batatas, a rude , mas


sadia mesa do viajante do sertão .
Uma cousa que não deixa de ser curiosa é que os
indios, como todos sabem, tiram fogo da madeira , e
n'isto parece que elles são inventores originaes d'esse
processo, porque , pelo que supponho, os outros povos
rudes servem-se para este mister da pedra.
Este processo de tirar fogo da madeira , qualquer
não o póde empregar sem saber o como se faz , e é
assim : toma -se um cerne de madeira dura que esteja
perfeito no centro, mas que tenha uma camada de

alguns oitavos de polegada já poída ; faz-se com a


unha uma covazinha na madeira já poída , e n'ella
colloca- se a extremidade de uma vareta de madeira
de cerne bem duro e, tomando esta ultima entre as

pálmas das mãos, imprime- se - lhe um movimento rota


torio rapido; ao cabo de alguns minutos o fogo pren
de-se ao pó da madeira poída , communica-se a ella e
assim se o accende .
r. 3
18 O HOMEM AMERICANO

8. Servem-se do fogo como meio de elevar a tem


peratura nas noites frias, ou quando estão molhados
para enxugarem-se . As nossas tribus sul-americanas,

pelo menos as que estão comprehendidas entre o valle ,


do Rio da Prata e do Amazonas , não usam de especie
alguma de vestido senão como enfeite ; é o fogo que

restabelece o equilibrio indispensavel á saude nas


mudanças de temperatura , que tão sensiveis devem
ser a corpos que não estão protegidos por nenhuma
especie de vestimenta . Nas noites de neblina e frio , e
as ha bem frias n'esses chapadões de campinas desa
brigadas que dividem a bacia do Rio da Prata da do

Amazonas , elles accendem grandes fogueiras junto ás


quaes se` assentam os velhos, contando aos guerreiros
as historias das guerras e emigrações da tribu , em
quanto os mancebos dançam e cantam em torno
d'ellas. Quando dormem em suas redes, nas noites

frias, acce em por baixo um fogo , que fica mais ou


menos correspondendo á altura do peito.

Empregam tambem o fogo como agente therapeutico


nos casos de serem mordidos por animaes peçonhentos ,
como cobras e arraias ; não queimam as chagas como

nós fazemos, chegam o membro ferido junto ao fogo,


emquanto podem supportar o calor, retiram- no para
depois approximal-o de novo até que a dôr seja succe
dida por uma especie de torpor ou dormencia ; eu já
fui curado assim por elles .

Com o que levamos narrado vê-se que os indios sul


O HOMEM -AMERICANO 19

americanos, com estes variadissimos usos que fazem


do fogo, sabem tirar d'elle pelo menos tanto partido

quanto tira o nosso homem do povo , e mais ainda,


porque o applicam em misteres, ou desconhecidos do

nosso povo, ou que este tem aprendido d'elles .

IGNORANCIA DO FOGO

Agora tocarei no seguinte ponto : será exacto, como


referem alguns escriptores, entre outros o padre Ja
boatão em sua obra o Orbe Serafico, que algumas
tribus americanas desconheciam o uso do fogo e
comiam carnes crúas?

Não é exacto , e tenho para asseveral- o dous funda


mentos : pelo que fica exposto vê- se que os indigenas
sul-americanos não só conheciam o uso do fogo , como

alguns d'elles estavam já no segundo sub- periodo de


civilisação primitiva , isto é : n'aquelle em que se
emprega o fogo para queimar vasos de argilla .
Ora, não é verosimilhante que, se muitos annos
antes da descoberta da America algumas tribus já
estavam no segundo sub-periodo da idade de pedra ,
houvessem algumas ainda no primeiro periodo , isto é ,
n'aquelle em que o homem não conhece o uso do fogo .
D'esses objectos de argilla , que pela posição onde os
encontrei , no fundo de um aterro , denotam uma
grande antiguidade, trouxe aqui dous , a saber: um é
a cabeça de uma estatuazinha de homem ; o outro é
um assovio para imitar artificialmente o canto do
20 O HOMEM AMERICANO

inanbú, especie de perdiz de excellente carne , que até


hoje elles matam , escondendo-se e imitando-lhe o canto ,
ao qual elle acode no presupposto de ser o de um
companheiro.

Sabemos que a familia indigena que mais se esten


deu na America do Sul foi a guarani ou tupi , nomes

estes que para mim indicam quasi a mesma cousa .


Ora, todas ellas têm a palavra tatá , fogo - tata-itá,
pedra de fogo ou com que se tira o fogo -tata-quice,
para exprimir a palavra fuzil . Ora , não é rasoavel

suppôr a ignorancia da existencia d'um elemento , cujo


nome serve de componente d'outros que exprimem
objectos proprios para a cada momento reproduzil- o ;
por tanto tenho para mim que a opinião do padre Ja
boatão , Simão de Vasconcellos e outros , é a este res
peito sem fundamento.

FUNDIÇÃO DE METAES

Examinemos agora uma outra questão para termi


nar este segundo capitulo : Os indios do Brazil conhe
ciam algum metal ?

Não conheciam. Os antigos historiadores referem


nos que quando Solis penetron no Rio da Prata en

controu os indios de suas margens com objectos d'esse


metal.

Encontrei em Matto-Grosso um roteiro d'um filho do

capitão-mór João Leite Ortiz , companheiro do Anhan


O HOMEM AMERICANO 21

guera, o qual refere que os indios Ardes traziam ao

pescoço pequenas chapas de ouro .

O primeiro facto explica- se pelo contacto em que os


ndios do Chaco deviam estar com os Quichuas e mais

nações debaixo do governo dos Yncas que, como é


fóra de duvida , conheciam não só a arte de fundir
como de moldar e trabalhar o ouro , o cobre e a prata .
O segundo facto explica-se assim : o que os indios
traziam 1ao pescoço eram folhetas d'ouro , taes quaes se
ellas encontram na natureza , quando muito batidas.
D'este ornato usam até hoje os sertanejos do norte de
Goyaz .

Não creio que nossos indios conhecessem a arte de


trabalhar nem um metal , pelas seguintes razões :

Porque, todos os outros elementos indicam que elles


estavam ainda em um periodo de civilisação mais atra
Zado do que aquelle que suppõe a arte de fundir os
metaes ;

Porque, tendo eu estado em contacto com tribus


das mesmas regiões nunca encontrei entre ellas o me
nor vestigio de metaes ;

Porque, tendo eu feito e mandado fazer escavações


em antigos cemiterios indigenas, e encontrando quasi
todos os objectos de pedra ou argilla de que elles se
serviam , nunca encontrei nem soube que ninguem en
contrasse objecto algum de metal como seria tão natu
ral, e como succede nos tumulos dos Quichuus, dos
22 O HOMEM AMERICANO

Asteques e d'outras tribus que attingiram a um gráo


de civilisação mais elevado .
Porque, finalmente, a lingua tupí, de todas a mais
adiantada entre as brazileiras , confunde a idéa de
metal com a de pedra ; é assim que os metaes que
viram em nosso poder, ou objectos de metal , elles o
traduziram para sua lingua por palavras , cuja radical
era pedra ouro , elles traduziram por ita-jubá (ou pe
dra amarella) ; ferro, Ita-una (ou pedra preta) ; prata,
ita-tinga (ou pedra branca) ; cobre , ita-juba rana (ou
pedra de amarello falso) ; os objectos que são entre nós
necessariamente de metal , tem a mesma radical ita
em sua traducção ; por exemplo : faca , ita quice ; sino,
espada, ita nhaen , ita tacape.
Ora, é muito natural que em linguas de tão faceis
transmutações de vocabulos , como são estas e em ge
ral todas as que como ella estão ainda no periodo de
aglutinação , digo , é muito natural que , si os indios ti
vessem dos metaes uma idéa distincta da pedra,
1
tivessem para expressal -a um vocabulo que não fosse
aquelle pelo qual se exprime, essa idéa.

A' vista de quanto fica exposto eu concluo :


A grande familia sul-americana , excepto a familia
mestiça que esteve debaixo da influencia dos Yncas ,
havia attingido o periodo da civilisação denominado .
IDADE DA PEDRA POLIDA .

Encontram-se no Brazil vestigios de um periodo de

civilisação anterior a este? Ha instrumentos que deno


O HOMEM NO BRAZIL 28

tem que nossos selvagens hajam passado pelo periodo


de civilisação intitulado -IDADE DA PEDRA LASCADA ?
Nossos selvagens , que já eram agricultores, não tinham
sido pastores; como explicar estes factos?
Estudaremos essas questões no capitulo seguinte.

II

O HOMEM NO BRASIL

Periodo em que se deu a primeira emigração para o


Brasil, avaliado pela falta de instrumentos de
pedra lascada . - Periodo pastoril.- Ausencia de
monumentos . - Periodo geologico em que se encon
tram vestigios humanos no Brazil.

Concluimos o capitulo precedente, assignalando o


facto de que todos os selvagens do Brazil haviam
chegado à idade da pedra polida.
Passamos agora a assignalar dous factos que nos
parecem de importancia, e que , ou não hão sido nota

dos pelos escriptores que se tem occupado da etnogra


phia do Brazil , ou não tem ligado a elles a importancia
que nós lhe attribuimos . Queremos fallar : primeiro ,
da ausencia de instrumentos ou vestigios demonstrati

vos de que nossos selvagens hajam passado pelo pe


riodo de civilisação que importa o uso de instrumentos
de pedra lascada ; segundo , que elles hajam chegado a
ser agricultores sem haverem sido pastores. Estes
24 O HOMEM NO BRAZIL

factos vão , quanto a mim , lançar não pequena luz

respeito ao periodo em que o Brazil recebeu seus pri


meiros povoadores . Analysemos os factos .

FALTA DE INSTRUMENTOS DE PEDRA LASCADA

A anthropologia demonstra que o homem physico


passou sempre de um periodo mais atrazado para um
mais adiantado; a historia demonstra a mesma cousa

a respeito do homem moral . Toda raça que é encon


trada no periodo em que usa de metaes teve sua idade
de pedra . Toda que é encontrada com instrumentos de
pedra polida teve seu periodo de instrumentos de
pedra lascada.

São de pedra polida e não de pedra lascada, todos


ou quasi todos os instrumentos de nossa rica collecção
do Museo .

Certamente que a raça ou raças selvagens do Brazil


passaram' por esse periodo da pedra lascada ; qual a
razão, pois , por que não se encontram vestigios d'essa
idade , tendo- se aliás encontrado de outras em lugares
que deviam preservar perfeitamente tudo, como é o
fundo dos grandes e antiquissimos aterros que existem
nas provincias do Pará e Matto -Grosso?

Se bem que instrumentos d'esses , se existissem , não


teriam escapado á observação de homens da força de
Humboldt, Martius, Saint Hilaire , Castelnau , Hartt,
Liais e outros , comtudo , como eu não havia ainda

visitado museu algum onde existissem collecções de


instrumentos d'esse periodo , julguei que a pedra las
O HOMEM NO BRAZIL 25

cada pelo homem para seus usos grosseiros, devendo


differir muito pouco da que o fosse casualmente , não
podia despertar a attenção dos brazileiros do interior,
que são ordinariamente os que colligem os instrumen
tos antigos dos indios, de cujas mãos os recebem os
viajantes.
Tive, porém, occasião de vêr em 1873 uma collecção
de instrumentos de pedra lascada dos selvagens da
França, pertencente a S. M. o Imperador.
A vista d'esses objectos encheu a principio o meu
espirito de duvidas, fazendo-me claramente compre
hender, que era falsa a razão , que até então me havia
parecido verdadeira , para explicar a não existencia de
taes objectos nas collecções, que se hão feito de instru
mentos de nossos selvagens . Com effeito , se bem que
taes instrumentos indiquem a mais rudimental infancia
da arte , comtudo , é impossivel examinal- os sem reco
nhecer que foram lascados por um ser intelligente; é
assim, por exemplo , que as partes destinadas a cortar

abrem- se e espalmam-se á proporção que se contra


hem, e ao mesmo tempo se engrossam aquellas que
são destinadas a ser empunhadas ; em muitas o córte
descreve um arco de circulo , e revela-se já , no gros
seiro instrumento , a fórma dos córtes dos machados
de aço fundido que a raça branca inventou muito
depois de conhecer o uso do ferro . Estas e outras par
ticularidades indicam por parte do fabricante do ins
trumento a intuição de leis mechanicas que é partilha
r. 4
26 O HOMEM NO BRAZIL

exclusiva da humanidade , e impediriam ao observador


de confundir os instrumentos de pedra lascada com as
pedras que casualmente o fossem, ou por effeito de
phenomenos naturaes, ou pela acção não intencional
do homem .

Portanto , se taes instrumentos não são encontrados,


ou são -no mui raramente , é porque são rarissimos .
Não se póde suppôr que o nosso selvagem fosse
uma excepção de regra , que até o presente não a tem
encontrado na familia humana.

A unica explicação que ha para esse facto é que o


Brazil só possuio os seus selvagens por via de emigra
ção, e que esta deveu ter tido lugar depois que esses
homens haviam transposto em outra região o primeiro
periodo da civilisação ou barbaria humana .

Esta prova é robustecida por uma outra deduzida


tambem de instrumentos de pedra , e é a seguinte :

Na provincia de Matto-Grosso existem á margem do


Cuyabá e do Paraguay grandes aterros feitos pelos
antigos indigenas com o fim de , elevando o solo acima
do nivel das maiores enchentes , tornarem habitavel
uma região de sua natureza baixa e que , portanto , se
cobre de agua durante a estação pluvial . Entre os
aterros do rio Cuyabá, citarei o que deu o nome ao
furo do Bananal, e que é especialmente notavel por
seu tamanho , e pelo trabalho que devia ter custado a
homens que nem conheciam o uso do ferro para pre

parar objectos, onde pudessem carregar a terra, e nem


O HOMEM NO BRAZIL 27

eram auxiliados por nenhum animal de transporte,


como o eram os peruanos com o guanaco , a lhama, e
talvez a vicunha e a alpaca .

Em a bacia do Amazonas conhecem -se numerosos

d'esses aterros , e alguns d'elles , talvez os mais nota


veis, na ilha de Marajó, onde entre outros ha um que
é uma ilha artificial dentro do lago Arary . Esses
aterros , mais ou menos extensos , affectam por vezes
fórmas de animaes ; ha um no centro de Marajó , sobre
o qual já eu passei , que affecta a fórma de um jacaré
colossal, sobre cujo dorso deveu viver outr'ora uma
tribu inteira, e que serve ainda hoje para lugar de
construcção de casas dos fazendeiros de gado e seus
vaqueiros que habitam aquella região , que se cobre de
agua durante as cheias do Amazonas .

Considerando-se que as regiões onde elles existem são


alagadiças em muitas dezenas de leguas ; que , se as
tribus eram errantes e nomades, as guerras em que
andavam continuamente umas com outras, as deviam
impedir de alargarem-se por muitas leguas d'essas
regiões, vê- se que elles , desde que occuparam taes re
giões começaram esses aterros, sem os quaes seria im
possivel explicar sua existencia durante a estação
pluvial em lugares que se convertem em verdadeiros
mares mediterraneos .

Portanto, o principio de taes aterros é mais ou menos


contemporaneo da occupação d'essas regiões pelos sel
vagens .
28 O HOMEM NO BRAZIL

Pois bem , no fundo d'esses aterros encontram- se as


mais antigas urnas funerarias, sem comparação mais
grosseiras, tanto pelo preparo da argilla como pela es
tructura e lavores, do que aquellas que se encontram
nas camadas medias e superiores.

Se os principios de taes aterros são contemporaneos


mais ou menos da povoação d'essas regiões , o estado
de civilisação que elles indicarem será o estado de ci

vilisação dos selvagens quando para ahi emigraram.


Dentro d'essas urnas encontram-se não só instrumen

tos como ornatos de pedra polida , a que no Pará cha


mam itan , além de que a propria urna funeraria ,
de argilla cozida , indica só por si um periodo de civi
lisação mais adiantado do que o da pedra lascada .
Portanto, quando esses selvagens emigraram para

essas regiões , já haviam transposto aquelle periodo de


civilisação .

Não é só n'este genero de industria que os vestigios


de nossos selvagens indicam uma solução de continui

dade entre o periodo de civilisação em que os encon


tramos e os periodos de civilisação que deviam ter per
corrido antes de chegar a esse .
Vamos mostrar a ausencia no selvagem do Brazil
d'um periodo não menos importante do que aquelle
cuja falta vimos de assignalar, isto é a do

PERIODO PASTORIL

A philosophia e a historia ensinam, que o homem


O HOMEM NO BRAZIL 29

em relação a industria alimentar foi primeiramente


caçador e pescador, depois pastor, e só depois de ha
ver percorrido esses dous periodos é que foi agricultor .
A agricultura suppce habitos de vida sedentaria, e
usos que excluem grande parte da primitiva barbaria
do homem .

E' fóra de duvida, que nossos selvagens eram já


agricultores muitos annos antes da descoberta da
America.

Fallei acima dos grandes aterros da bacia do Para


guay e do Amazonas. Esses aterros conservam ainda
vivos os testemunhos de sua agricultura porque são

povoados de bananeiras (pacova é o nome tupí de que


fizemos pacova nome pelo qual a fructa é conhecida
em todo norte) .

Em uma fazenda de Marajós que pertenceu ao Sr.


senador Leitão da Cunha e que é hoje propriedade do
ineu amigo o Dr. J. J. de Assis , existe uma grande
plantação de cajueiros seculares que deu o nome á
fazenda, o qual cajual foi plantado , muitos annos antes
da descoberta da America , pelos Aruans , tribu
que habitaram outr'ora a face da ilha de Marajó que
fica contra o oceano .

Os viajantes antigos e modernos attestam todos a


existencia da arte da agricultura mais ou menos des
envolvida entre os selvagens .

Eu tenho estado em aldêas que nenhum contacto


tem tido com a raça conquistadora nos sertões do Ara
30 O HOMEM NO BRAZIL

guaya ; tenho conversado com chefes indigenas, entre


outros o dos Cahiapós de nome Manahó , que
me dão noticias dos indios da bacia do Xingú , intei
ramente desconhecidos de nós ; quer pela vista , quer

pelas relações ouvidas , todos esses indios cultivam , en


tre outras, as seguintes plantas : a mandioca , cujo
conhecimento attribuem á revelação sobrenatural, as
sim como os «༥ Aryas » attribuem a um Deus o conhe
cimento do trigo ; cultivam a bananeira , o cará , e di
versas especies de batatas e tuberculos farinaceos que
são poderosos auxiliares de seu regimen alimentar, e
cultivam e fiam o algodão , que propagou-se mesmo nas
tribus que não tiveram ainda contacto.com a raça con

quistadora.

D'elles aprendemos nós a cultura de algumas d'es


sas plantas , assim como do cacáo , tão importante hoje
como artigo de exportação . Ainda é cultivado exclu
sivamente por elles aquella planta mais rica em theina
do que o chá e o café, com cuja baga preparam os pães
de guaraná, tornando-se a tribu dos Mauez , que
habita o valle do Tapajós , famosa entre as outras pela
excellencia d'este producto, que começa hoje a ser
notado nos mercados europeos .

Não conheciam só os rudimentos da agricultura ; as


primeiras intuições de chimica já lhes tinham appare
cido; foi d'elles que aprendemos esse processo de
adubar o solo por meio de queimadas, processo des
truidor e barbaro , não duvido , mas com o qual temos
O HOMEM NO BRAZIL 31

enriquecido, sem o qual seria talvez impossivel a


agricultura em nossas mattas, e que ainda é o mais
geral em todo o Brazil .
Sabiam tambem extrahir alguns principios simplices

das plantas , entre os quaes a « tapioca » .

Conheciam processos de fermentação, pelos quaes


preparavam excellentes conservas alimentares e pro
prias para estomagos enfraquecidos pela acção de
miasmas paludosos; entre outras , citarei os bolos de
" carimă " , com os quaes quasi todos nós fomos ali
mentados durante o periodo de nossa infancia .
Portanto, tinham não só attingido ao periodo de
agricultura , mas já não estavam muito na infancia , e
prova-o o termos nós adoptado muitos dos seus pro
cessos , que , se não são os mais conformes com a

chimica agricola , são os mais faceis, e portanto os


mais praticos para nós, dadas as circumstancias em
que nos achamos.

No entretanto , não ha o menor vestigio de que esses


homens tenham sido pastores, nem mesmo que tenham
domesticado uma só especie zoologica brazileira , para

ser sua companheira na vida sedentaria que deviam


levar aquellas tribus que se tinham mais detidamente
entregue á agricultura .

Quando eu li esta parte da Memoria no Instituto


Historico foi suscitada a seguinte objecção , cuja diffi
culdade eu não dissimulo:
Os selvagens do Brazil não foram pastores porque
32 O HOMEM NO BRAZIL

as especies zoologicas da região que habitavam se não


prestavam a isso .

Se o argumento da falta do periodo pastoril fosse


isolado , no intuito de demonstrar a população do
Brazil posterior a esse periodo , eu cederia d'elle , por
que não posso desconhecer que a justeza d'essa obser

vação lhe tira em grande parte a força ; mas não é


isolado ; já mostrei atrás que esta irregularidade appa
rente na marcha da civilisação indigena manifesta-se
tambem pela ausencia do periodo da pedra lascada ;
por esse motivo me parece que a ausencia do periodo
pastoril merece , não obstante a escassez de familias

domesticaveis , ser tomada em consideração .

Certamente que não temos no Brazil uma só familia


que possa ser equiparada ao boi , ao carneiro e ao

cavallo , preciosos companheiros das raças do velho


mundo. Mas temos familias equiparaveis ao porco , ao

gato , ao cão, à gallinha . O queichad , o maracájá,


o guara ou lobo .. 0 mutun e o jucú seriam

sem duvida alguma especies domesticaveis se alguma


causa, cuja existencia suspeitamos, mas que por ora
não podemos determinar qual seja , o não houvesse
obstado .

Isto me parece tanto mais verdadeiro , quando é


certo que os indios do Perú domesticaram a lhama,
o guanaco , a vicunha, o gato e alguns outros

animaes de habitos não menos selvagens no estado de


natureza do que os de que eu fallei acima ,
O HOMEM NO BRAZIL 33

Uma outra consideração , que concorre para robus


tecer esta interpretação do facto , é o gosto singular
que têm nossos selvagens pela presença de animaes
em suas aldeas .
Quem visita uma aldea selvagem visita quasi que
um museu vivo de zoologia da região em que está a
aldea ; araras , papagaios de todos os tamanhos e
côres , macacos de diversas especies , porcos , quatys,
mutuns , veados, avestruzes , seriemas e até sycurijús ,
giboyas e jacarés , eu já tenho visto n'essas aldeas ali

mentados pelos selvagens com acurada paciencia . O


cherimbabo do indio (o animal que elle cria) é quasi
uma pessoa de sua familia . Tudo isto concorre para
indicar que , se a familia selvagem do Brazil não havia

domesticado uma só especie, não era por uma aversão


á arte de domesticar, e sim por outra causa .

AUSENCIA DE MONUMENTO'S

Assim como não encontramos o periodo da pedra


lascada e o periodo pastoril, factos que nos levam ,
sobre tudo o primeiro, a concluir que a povoação do
Brazil foi posterior a elles , assim tambem não encon
tramos monumentos .

Dir-se-ha que nossos selvagens não haviam attingido


ao estado de civilisação necessario para taes creações .
Não é assim; os povos mais barbaros os tem erguido .
Nas outras nações da America , e nomeadamente no
Perú, elevam-se ainda hoje soberbas ruinas : se os sel
34 O HOMEM NO BRAZIL

vagens do Brazil não attingiram á civilisação dos do


Perú, não estavam , comtudo , tão afastados que não
podessem ter attestado a sua presença por monumen
tos , embora mais grosseiros do que os dos peruanos,
mas em todo caso consideraveis .

Não os ha em parte alguma do Brazil , á excepção


dos aterros das bacias do Paraguay e do Amazonas ;
nota-se n'elles escassez de restos animaes que deviam
existir em grande quantidade , porque, como é sabido ,
esses homens , que se nutriam especialmente de ani
maes vertebrados , deviam ter deixado depositos im
mensos.

Nem um viajante que eu saiba mencionou até o


presente uma só construcção indigena antiga. Eu creio
que sou o primeiro que dá noticia de uma , e é uma

especie de forte circular de terra que existe na ilha de


Marajó, na citada fazenda dos Cajueiros, propriedade
do Dr. Joaquim José de Assis . Esse monumento , porém,
é evidentemente contemporaneo ou posterior aos ater
ros da mesma ilha.

PERIODO GEOLOGICO A QUE CORRESPONDEM OS MAIS


ANTIGOS VESTIGIOS HUMANOS NO BRAZIL

---- CLIMAS , GEO


Em sua recente e importante obra :
― o
LOGIA E FAUNA NO BRAZIL , — 0 Sr. Liais pretende que
se encontram provas da presença do homem no Brazil
durante os primeiros tempos da época quaternaria.
O HOMEM NO BRAZIL 35

A este respeito diz elle a pag. 240 n . 107 :


O deposito quaternario de seixos rolados ou casca
lho do Brazil, que comprehende , como acabamos de
vêl-o , os depositos auriferos e diamantinos do Brazil ,
não é desprovido de traços da industria humana pri
mitiva . N'elles se encontram machados de pedra em
tudo semelhantes aos de silex dos depositos quaterna

rios da França , com a différença unica de que são


feitos de um diorito granitoide , e de serem imperfeita

mente polidos . No sitio Lavra, fazenda de Casa Branca ,,


proxima ao Rio das Velhas , encontraram-se machados

e pilões de pedra, e um vaso de argilla muito grosseiros ,


de paredes excessivamenle espessas , jazendo no meio
de depositos de cascalho aurifero . M. Helmreichen
assignalou em depositos diamantinos, ao pé da Dia
mantina , dardos ou pontas de flecha , dous de quartzo
e um de petrosilex . Nas notas deixadas por Mr. Clausen
respeito a um animal de especie extincta , enviado por
este viajante do Brazil para o museu de Paris , lê- se :
«Apenas uma vez encontrei entre os ossos de um

animal de especie extincta , Platyoni Cuvierii , frag


mentos de louça, cabertos de uma crosta delgada de
stalagnite . O terreno não parecia ter sido revolvido .
Resulta evidentemente d'este facto a contemporanei
dade do homem e d'este animal que só se encontra nos

depositos antigos da época quaternaria. Craneos hu


manos foram descobertos pelo Dr. Lund nas cavernas
do Brazil ; mas, tendo sido tacs depositos revolvidos
36 O HOMEM NO BRAZIL

pela agua , elle não ousava affirmar a contemporanei


dade do homem no Brazil com os animaes
1 de especies
extinctas , no meio dos quaes elle encontrou os cra
neos. »

Não ha negar que estes factos seriam provas irres


pondiveis , si a idade dos terrenos em que foram encon
trados fosse determinada pelos autores que os citam
por propria inspecção visual e immediata dos - cas
culhos.

A este respeito eu me animo a oppòr duvida, por


que o dito de um mineiro , que affirma ter encontrado
taes objectos em um cascalho diamantino ou aurifero ,
não importa que esse objecto tenha sido encontrado

em deposito quaternario.
Eu sou filho de um districto diamantino ; conheço os
depositos de cascalho da Diamantina , na bacia do Je

quitinhonha , do Abaeté , na do S. Francisco , da Baga


gem na provincia de Minas , do Verissimo , Pilões , Rio
Claro e Cayapósinho na de Goyaz ; do Passa - Vinte ,
Barreiro , Rio das Garças, Caxoeirinha , em Matto
Grosso . Em todos estes lugares os mesmos trabalha
dores de diamantes distinguem esses depositos em tres
camadas, que indicam idades diversas , e , para servir
mo-nos dos nomes que elles empregam , os chamare
mos: cascalho virgem, o mais antigo ; pururuca, o mais

recente e de formação contemporanea ; e corrido , o


deposto intermediario entre a pururuca e o virgem .
D'estes depositos só o primeiro parece ser antigo , e
O HOMEM NO BRAZIL 37

é a elle sem duvida que o illustre naturalista assigna


a velha origem contemporanea das primeiras revoluções
da época quaternaria ; sendo todos estes depositos
designados pelos mineradores com o nome generico de
cascalho , o elles dizerem que um machado de pedra
ou resto de louça foi encontrado entre o cascalho , não
importa de fórma alguma o ter o objecto sido encon
trado em um deposito quaternario , se a especie de
cascalho não for examinada pelo naturalista de modo
a poder assignar- lhe a idade.
Faço esta reflexão porque já se deu comigo o se
guinte facto : Em 1871 remetteram-me á Leopoldina

uma mó de argilla petrificada roxa e uma mão de


pilão de petrosilex, objectos que se acham hoje no
museu nacional , remettidos com outros pelo Sr. C.
José Agostinho , que me havia pedido que lhe enviasse
com aquelle destino quanto eu encontrasse em minhas
viagens que pudesse interessar ás sciencias naturaes ,
Dizia-me o Sr. capitão Gomes Pinheiro que esses
objectos foram encontrados em cascalho diamantino

do rio Cahiapó . Verifiquei depois que o cascalho em


questão não era virgem , e fiquei na impossibilidade de
julgar da idade do deposito .
Quanto aos cacos de louça achados no terreno ,
em o qual encontrou- se tambem o Platyonix Cuvierii
remettido ao Museu de Paris pelo Sr. Clausen , sem
duvida nenhuma que demonstram a contemporaneidade
do homem com esse animal da época quaternaria , se o
38 O HOMEM NO BRAZIL

terreno não foi revolvido e o animal ou os fragmentos de


louça conduzidos para ahi por uma corrente ou qual
quer outra causa , visto como o envolucro de stalagnite
que os cobre, podendo ser contemporaneo , não é ga
rantía sufficiente de que esses objectos tenham sido
encontrados juntos pelo facto de serem contemporaneos .
Me parece , que não se póde por agora admittir uma
tão remota e antiga presença do homem no Brasil sem
muita reserva , sobre tudo quando, pelos factos prece
dentes , mostrarmos que essa mesma raça já tinha
vivido em outra região o tempo necessario para trans
pôr os primeiros periodos de barbaria .
A sciencia ainda não descobriu meio preciso de con
verter em calculo de tempo os periodos geologicos .
John Philips diz -nos que, tomando por base do cal
culo o tempo que um rio dos periodos modernos gas
taria para accumular sedimentos, os do carvão de
pedra de South Wales na Inglaterra teriam exigido o
enorme espaço de quinhentos mil annos (4. )

Se assim é para um periodo comparativamente curto,


qual não será o largo espaço de milhares de annos
que já decorre da data do apparecimento do homem
no Brasil até nossos dias, suppondo que elle aqui
appareceu no principio da época quaternaria ?

(4) On the whole, then , I have concluded that half a


million of years may problably have elapsed during the
grouth of the precious deposits of the coal formation .
John Phillips , A. Guide to geology - London - 1854 .
O HOMEM NO BRAZIL 39

Embora seja por emquanto impossivel conhecer com


precisão o espaço de tempo que decorreu do appare
cimento do homem no Brasil até nossos dias , comtudo
parece fóra de duvida que ha mais de cem mil annos

que elle aqui existe , tendo-se em consideração que os


sedimentos da época quaternaria deviam ter consu
mido muito mais tempo do que isso para serem depo
sitados.

Contando-se o tempo pela vida dos patriarchas tal


qual ella foi escripta por Moisés , Adão e Eva não exis
tiram a mais de cinco mil annos . Os textos do Velho
Testamento hebraico devem ser revistos porque , pela

fórma por que estão traduzidos , elles envolvem um


erro que destroe pelos fundamentos toda a theoria da

revelação immediata , do peccado original, e da re


dempção ; por que , assentando - se todas ellas no facto
da creação daquella famillia á cinco mil annos , fica a
revelação destruida com a existencia de gerações hu
manas por muitos milhares de annos antes de Adão e
Eva, povoando já todos os valles da terra , inclusive os
da America (5).

(5) < Cuvier tinha declarado muitas vezes que o ho


mem fossil não existia e nem podia existir ; na época
presente sabemos que elle é encontrado em toda parte
onde se o procura .
Tem-se descoberto traços do homem até nas épocas
terciarias modernas e talvez nas eocenes . Elle vivia
não só com o urso das cavernas , e com o mammouth ,
mas foi contemporaneo do Mastodonte, do Dinotherium ,
40 O HOMEM NO BRAZIL

Ill

LINGUAS

Classificação das tribus pelas linguas . Classificação


morphologica das linguas americanas no grupo das
turanas. Classificação segundo a estructura interna
das linguas em dous grupos . Grupos das Aryanas.
Grupo das linguas Tupis e sua extenção . Indole das
linguas deste grupo . Bibliographia do Tupi, e do
Quichua.

Leibnitz, em uma carta ao padre Verjus , dizia :


julgo que nada serve tanto para se poder bem julgar da
afinidade dos povos como as linguas. O grande philoso
pho tinha razão .
Como veremos no capitulo seguinte as raças abori
genes do Brasil apresentam dous typos : um primitivo ,
e outros cruzados com raças brancas que deverão ter
aportado á America muitos centos de annos antes da
descoberta della por Christovão Colombo .

e do Halitherium ; quanto mais antigos são os vestigios


humanos que encontramos tanto mais indicam nelle
sociabilidade e intelligencia rudimentares. Clemence
Royer, preface de la troisième édition de Darwin ,
Origine des especes, Paris 1870.
As pessoas que se quizerem inteirar da antiguidade
do homem sobre a terra podem ler com grande proveito ,
entre outras , as duas seguintes monographias de
Nadillac , Ancienneté de l'Homme , e o celebre Lyell ,
Antiquity ofMan.
LINGUAS 41

Além de caracteres physicos que demonstram este


cruzamento , ha um outro vestigio irrecusavel : é a pre
sença de numerosas raizes sanscritas em certas lin
guas da America .

Como para a classificação das raças os vestigios


deixados pelas linguas sejam documentos de incontes
tavel valor , antes de entrar naquella classificação ,
vamos estudar a das linguas americanas , assim como
os factos que se prendem a taes linguas , e que eluci
dam mais de um ponto obscuro de ethnographia .

CLASSIFICAÇÃO MORPHOLOGICA

Sendo a linguistica uma sciencia muito recente ,


seja-me licito entrar rapidamente em algumas genera
lidades que concorrerão para tornar mais claro este
assumpto de classificação ,
O notavel professor inglez o Sr. Max Muller, se
guindo as immortaes pegadas da Grammatica compa
rada de Bop , classificou todas as linguas humanas em

tres grandes secções : linguas monosyllabicas, linguas


de aglutinação , e linguas de flexão .
São monosyllabicas aquellas em que cada syllaba
tem um significado .

São de aglutinação aquellas em que as raizes primi


tivas, as monosyllabicas, tem em grande parte perdido
o seu significado quando isoladas , mas que adquirem
um desde que entram em composição com outra raiz .
42 LINGUAS

E' neste tronco que devem ser classificadas as nossas


linguas americanas, e o seu typo é a lingua turana .
São linguas de flexão aquellas em que as raizes já
totalmente se perderam , de modo que o pensamento
nunca póde ser expresso senão por meio de nomes de
syllabas , mas que não são
maior ou menor numero4 de
uma raiz .O sanscrito e o hebraico são typos nesta fa

milia , á que pertencem tambem o portuguez e as lin


guas européas .
Esta classificação , denominada morphologica porque
limita-se a fórma externa, a apparencia da lingua , se
nos é licito expressarmo-nos assim , significá apenas
maior ou menor gráo de adiantamento de uma lingua ;
não indica de modo algum qualquer gráo de paren
tesco entre ellas .

Quando a anthropologia estiver mais adiantada , a


linguistica , sua filha primogenita , ha de fixar regras
de uma classificação mais profunda das linguas, e
muito provavelmente esta classificação , partindo de
caracteres mais intimos do que a sua fórma externa ,
ha de auxiliar a classificação das familias humanas e
vice-versa ; esta hade por sua vez auxiliar a das
linguas .

A anthropologia já tem progredido hoje bastante


para poder affirmar, que no mundo intellectual não
existem factos isolados, assim como não os ha no
mundo physico .

Assim como hoje se sabe que o crystal de qualquer

1
LINGUAS 43

mineral não podia ser formado na mesma época em


que se geraram os vegetaes ou animaes nossos contem

poraneos, assim tambem se hade saber que as linguas


neste ou naquelle estado , as idéas religiosas e moraes
em maior ou menor gráo de perfeição , pertencem a

periodos de desenvolvimento intellectual onde tudo se


encadêa , se harmonisa e é relativo , como o são os
objectos e phenomenos physicos nos grandes periodos
geologicos .
Se a classificação das linguas pela sua fórma externa
não indica gráo algum de parentesco com a familia em
que ella é classificada , e indica pura e simplesmente o
periodo de desenvolvimento em que se acha , o facto de
classificar- se o tupí ou guaraní no grupo de linguas
turanas , não quer dizer que elle tenha o menor gráo de
parentesco com linguas asiaticas; indica apenas seu es
tado de desenvolvimento no periodo em que nós a
encontramos.

DOUS GRANDES GRUPOS NAS LINGUAS SUL AMERICANAS

Supposto que as linguas americanas tenham todas

chegado ao 2. ° periodo de desenvolvimento - o de


aglutinação , resta saber qual o gráo de parentesco que
ellas têm ente si.

Os estudos comparados respeito ás linguas america


nas estão apenas começando agora , e muitos annos
decorrerão antes de esclarecer-se completamente este

assumpto .
44 LINGUAS

Empregando o methodo naturalista, que não deixa


de fazer as grandes divisões pelo facto de não ter dados
para fazer as pequenas , propomos que se adopte a se
guinte classificação :

1. ° grupo, linguas aryanas, ou aquellas que conten-


do centenares ou milhares de vocabulos sanscritos, in
dicam um cruzamento entre os indios da America e 1

aquella grande famillia branca : o quichua , que era a


lingua fallada pelos Yncas , seja o typo predominante
d'esta grande divisão , na qual se virá agrupar mais
tarde uma outra grande lingua , a saber : o quiché com
seus dialectos o chaque-chiquel e o zutuil que, segundo
o demonstra o padre Brasseur de Bourbourg , são pa
rentas proximas de linguas europeas aryanas .

2.° grupo : linguas geraes não aryanas . N'este grupo


se comprehende o tupí e o guaraní entre os quaes não
ha maior differença do que a que existe entre o portu
guez e o hespanhol ; assim como comprehend em -se
numerosos dialectos d'essas linguas , entre os quaes o
dos indios Kiriris no qual possuimos um curioso ca
thecismo escripto em 1698 , impresso em Lisboa , de

que trato na noticia que dou no fim d'este capitulo ,


onde escrevo a bibliographia dous dos grupos de linguas
americanas : supponho que o segundo dous dos com
.
prehende tambem todas as linguas do Brazil .

3
1

LINGUAS 45

LINGUAS • ARYANAS DA AMERICA

Parece hoje fóra de duvida que o sanscrito forneceu


cerca de duas mil raizes ao quichua.

Relações entre linguas americanas e esta grande


lingua asiatica, de onde se originaram sete das grandes
linguas actuaes da Europa . haviam sido presentidas
de muito.

Os estudos serios de philologia comparada datam da


publicação da grammatica de Bop.

Homens estudiosos não recuaram diante da aridez

d'este estudo , e , com indizivel paciencia , escavaram


essas minas pejadas de thesouros da antiguidade, e
tem feito tantos progressos que talvez não esteja longe
o dia em que , com o estudo de uma só grammatica e
de um só systema de raizes , se consiga a chave para
entender todas as linguas e dialectos de um grupo ,

fallados pela humanidade .

Com referencia a America , eis o que dizia em 1862


o padre Brasseur de Bourbourg :

<< Plus d'un lecteur , en lisant le titre du vocabulaire,


s'étonnera du travail comparatif qu'il renferme. En effet,

qui se serait douté, il a quelques années , qui s'imaginerait


même encore en ce moment, si ce livre n'en apportait les
preuves les plus irréfragables , que les langues si longtemps
ignorés de l'Amérique centrale offrissent des affinités si
nombreuses e si remarquables avec les langues dites indo
46 LINGUAS

germaniques, mais surtout avec celles d'origine teutoni


que(6) ?
Ao passo que esse vigoroso estudo era concluido a
respeito das linguas da America central, um outro ,
não menos profundo, era proseguido com incansavel
ardor pelo notavel argentino o Sr. Fidel Lopes .
Auxiliado pelo general Urquiza que collegiu docu
mentos quichuas a peso de ouro , o Snr. Fidel Lopes
começou seus estudos comparativos entre a lingua dos
Yncas e a em que estão escriptos os Vedas , talvez o
mais antigo monumento da sabedoria humana . Auxi
liado depois por um distincto egyptologo, que proposi
talmente foi a Buenos-Ayres , elle publicou o anno
atrazado em francez , a sua obra : Raças aryanas do Perú ,
onde apresenta centenares de raizes quichuas identicas
a raizes sanscritas .

O quichua é das linguas americanas à que mais tem


sido estudada , como o mostraremos pelo catalogo das
obras que sobre ella se hão escripto na America e na
Europa .
A conclusão do Sr. Fidel Lopes é a mesma do pa
dre Brasseur de Bourbourg .
Quasi ao mesmo tempo um philologo peruano , o
Doutor em leis José Fernandes Nodal , publicava em

(6) Grammaire de la langue quiche mise en para


réllé avec ces deux dialectes chaque chiquel et zutuil ,
comprenante les sources principales du quiché comparées
aux langues germaniques . Par. 1862
LINGUAS 47

Cuzco (1872) os Elementos de grammatica quichua ou


idioma de los Yncas , um volume em 4. ° , com 440 pa
ginas, facilitando assim a comparação d'essa curiosa
lingua americana com o sanscrito .

Eu não conheço o sanscrito ; o que tenho estudado do


quichua me não habilita a julgar com tal segurança
de sua grammatica de modo a podel-a comparar com
a de • qualquer das linguas aryanas que fallo. Mas ,
para ver identidade de raizes , basta saber ler, e depois
de ter lido os trabalhos dos Srs . Fidel Lopes , Bras
seurde Bourbourg e Nodal, convenci-me de què as lin
guas de que tratam soffreram profundas modificações em
seus vocabularios por vacabulos sanscritos . Uma raça
aryana portanto esteve largamente em cruzamento
com os indios ámericanos , e os Yncas ou seus proge

nitores eram filhos dos plateaux ou araxás da Asia


Central.

Ignoro se existe no Brazil alguma lingua que possa


com justa razão ser classificada como tendo affinidade
com o sanscrito; se ha, o guaicurú deve ser uma d'ellas.
Nossos conhecimentos estão porém muito atrazados
para affirmal-o ou negal-o por emquanto .
A lingua mais geral na America meridional è o
tupi ou guarani. Consinta o leitor que por enquanto
confundamos estes vocabulos, visto que dentro em
pouco diremos em que consiste a differença .
A respeito da extensão d'esta lingua o benemerito
Jesuita hespanhol padre Antonio Rodrigues de Mon
48 LINGUAS

toya nos diz no prefacio do seu Tesoro de la lengua


guarani,Madrid, 1639 : lengua tá universal que domina
ambos mares; el del sur por todo el Brazil, y cinendo
todo el Perú.
Na bibliotheca do Instituto Historico conserva-se

um precioso manuscripto em inglez , 2 volumes em 4° .,


contendo grammatica e diccionario da lingua tupí,
onde seu autor, o Sr. John , Luccock, diz que ella
foi tambem fallada ao longo das costas orientaes da
America do norte ; aqui vão suas palavras: the lan
guage apears to have been spocken along the Western
cost of Nort America (7)
Que o tupí ou guaraní foi , é , e será ainda por muitos
annos a lingua mais geral da America do Sul , é ques
tão que não pode ser seriamente contestada , desde
que se admitta a quasi identidade das duas . Que ellas
são quasi identicas não ha a menor duvida para os
que a tem ouvido fallar pelos naturaes .
Se assim é, como explicar o facto de ser o voca
bulario da lingua brasiliana tão diverso do vocabula
rio de Montoya? Por exemplo : Quem lê os exemplos
citados pelo padre Luiz Figueira e os entende, não
entende senão com difficuldade os da arte da lingua

guarani do padre Montoya . A quem estudar as linguas


por monumentos escriptos isto succederá sempre,
emquanto se não adoptar um alphabeto phonetico

(7) Este precioso manuscripto foi doado ao Instituto


pelo benemerito consocio o finado Sr. Gonçalves Dias .
LINGUAS 49

que expresse com propriedade sons que nós não pos


suimos em nossa lingua , e que força foi á aquelles
grandes homens representar com as letras do nosso
pobre alphabeto . Como as opiniões acerca da grande
variedade de linguas americanas sejam exageradas ,
pela mesma razão porque se exageraram as differenças
entre o tupi e o guarani , isto é , por causa da falta de
um alphabeto, consinta-me que me detenha um pouco

sobre isto , porque assim ficará esta questão esclareci


da. O gammo das notas das linguas americanas è sem
comparação alguma mais rico do que o das linguas
aryanas , que são mais vulgares entre nós .
Os grammaticos jesuitas chegavam diante de um som
que não tinha representante nas linguas que elles
fallavam ; era muito natural que o expressassem por

uma letra de convenção; como não havia então os


meios de communicação que temos hoje , porque o
Brazil de 1873 está para o Brazil de 1600 fóra de
toda comparação , era natural , dissemos , que essa
convenção não passasse além de um circulo limitado.

A palavra agua por exemplo ê gutural , em tupi e


guarani.
Não ha som algum que possa representar no portu
guez, latim ou hespanhol, linguas que eram as cenhe
cidas por aquelles padres , uma vogal gutural , porque
essas linguas não possuem uma só . O que era natural
que fizessem? Uns escreveram simplesmente um I
italico com um trema ; outros escreveram o mesmo
50 LINGUAS

I com um ponto em cima , outro em baixo ; outros


escreveram um y com um accento particular ; outros
escreveram yy. Portanto , da falta de uma letra que
expressasse exactamente o som em questão , resultou
que escreveram a mesma palavra por quatro fórmas
distinctas, de modo que , quem lê é levado a pensar
que havia quatro expressões para designar a palavra
agua, quando os dialectos antigos e modernos não teem
mais que um só vocabulo .

Esta confusão cresce quando a vogal gutural é se


guida de vogal nasal aspirada ; por exemplo : sem
agua , que se diz : ima ; ora, qual o meio de expressar
isto com as letras do nosso alphabeto ? Não ha : por
tanto uns escreveram in , iji, outros igcima, de modo
que nós, que lemos as letras com os sons que ellas repre
sentam, em vez do vocabulo tupí temos escripto di
versos , dos quaes nenhum dá no som verdadeiro .

Um outro exemplo e com elle concluo .


Não temos sons nasaes no principio dos nomes, e
por isso não temos meio algum de represental - os sem
as convenções supracitados . A palavra , cousa , se diz
em tupí m'bae que se pronuncia quasi como umbać.
Para expressar o som tupí com as letras de nosso al
phabeto escreveriamos ou umbae, ou m'baé, ou imbae,
ou embac , isto são 4 nomes distinctos , dos quaes um
só é o tupí .
A vista d'isto comprehende- se como, para quem lè

a lingua antes de haver educado o ouvido pela falla ,


LINGUAS 51

cada novo autor que lhe caia nas mãos figura uma
nova lingua, ou pelo menos um dialecto diverso , sem
haver tal diversidade sinão na pobreza e falta do nosso
alphabeto , que certamente não podia representar sons
que não existem nas linguas para que elle foi feito.
Accrescente-se a isto , que os missionarios hespa
nhóes se serviam do alphabeto com os sons que elle
tem em castelhano, diversos em muitos casos dos sons
portuguezes ; e comprehende -se com toda facilidade
como o guaraní, que não é sinão o tupí do sul redu
zido a lingua escripta , apresenta uma apparencia ás
vezes tão diversa, que homens da força do benemerito
Martius de saudosa memoria , com tanto merito real, e
que aliás fallava o tupí, o julgava no entretanto dis

tincto do guaraní , como se lè a pag. 100 do seu Glos


saria linguarum braziliensium . Elle não conhecia of
guaraní sinão por leitura , e leitura do padre Montoya ,
de todos o unico que escreveu com signaes especiaes , e
que portanto escrevia muito diversamente de Martius

que, tendo aprendido o tupí pelo padre Figueira , adop


tou muito naturalmente o modo de escrever d'este

grande e profundo grammatico .


Outro argumento da differença apparente das lin
guas tupí e guaraní , e estou quasi tentado a dizer de
outras linguas americanas, resulta de circumstancias
geographicas que serão bem comprehendidas á vista
do seguinte exemplo :
No Paraguay se diz , gallinha : uruguaçu ; no Pará
i

52 LINGUAS

dizem os tupís : çapucaia . Ora, é absolutamente im


possivel encontrar identidade de raizes entre estas
duas palavras : uru guaçu, e capucaia ; quem não
conhecer a língua pensará mesmo que os vocabulos
pertencem a dous idiomas distinctos ; mas , desde que
conhecer a significação das palavras, verá que uru
guaçu quer dizer, perdiz grande ; em verdade a gal
linha se assembléa á perdiz ; mas, não havendo perdizes

no Pará porque não ha campos, o nome de uru era dado


a outros individuos da familia que em nada se asse
melham á gallinha, e portanto não era natural que
elles se servissem do mesmo qualificativo ; tomaram o
canto do gallo para significar a nova fórma , e assim
empregaram a expressão : capucaia que quer dizer : 0
que grita , tanto em tupí como em guaraní .
Estes argumentos são clarissimos , mas só podem ser
bem avaliados pelas pessoas que entenderem a lingua ,
e isto infelizmente não é vulgar entre nós , o que é de

lamentar - se porque , além de ser quasi a lingua verna


cula, é ella o grande vehiculo para levar civilisação e
religião a, pelo menos, 1 : 000 : 000 de nossos compa
triotas que erram ainda selvagens pelo meio de nossos
sertões , á espera de que lhes vamos levar a civilisação
e o trabalho .

Por esse motivo a estes argumentos eu accrescenta


rei um de natureza historica , e é o testemunho do Dr.

D. Lourenço Furtado de Mendonça , prelado da diocese


do Rio de Janeiro o qual , na approvação que deu a
LINGUAS 53

rte do padre Montoya , diz em 7 de Março de 1630 o


seguinte y oxalá los prelados que allà en el Brasil
tenemos nuestras Diocesis tan vezinas al dicho Para

guay, y Rio de la Platu, vieramos en ellas este espiritu,


este zelo , e estos frutos, pues confiesso que andãdo yo
visitado, me ayudé de uno destos iudios traidos del dicho

Paraguay para que en el Ingenio . adonde estava que


dasse con cargo de doctrinar à los otros del dicho Inge
nio . Mas os indios do Rio de Janeiro e S. Paulo falla

vam o tupi , logo o tupi é nem mais nem menos o


mesmo guarani, com algumas differenças (8) .

INDOLE DAS LINGUAS NO GRUPO TUPI'

Um facto que não deixa de ser singular e caracte

(8) Entre as differenças uma ha curiosa , e é a ten


dencia que manifesta o guarani em abandonar as
raizes primitivas dos vocabules aglutinados , e isto de
monstra que o guarani è posterior ao tupí ; exemplo :
cicurijú , é o nome da nossa grande serpente amphibia,
em tupi ; os guaranis dizem : curyju ; Cahapora , é o
nome de um genio de sua mythologia de que fallare
mos adiante , em tupi ; os guaranis dizem: Pora Curupi
ra. Matim taperé ou Saci Cereré é o nome de outro ge
nio em tupí; os guaranis dizem : Céréré; onça , jaguara
em tupi os guaranis dizem jagua . Estes exemplos ,
que eu poderia alongar a um grande numero de voca
bulos , indicam que é a mesma lingua em dois periodos :
o tupi em um periodo mais primitivo , quasi monosylla
bico , conservando com escrupulo as raizes com que
formou a aglutinação ; o guarani em um periodo mais
desenvolvido , aquelle em que a raiz monosyllabica
perde a significação para abandonal-a ao vocabulo
aglutinado . Portanto o tupi é anterior e por isso deno
minamos o grupo com o seu nome .
54 LINGUAS

ristico n'este grupo de linguas, é que as suas fórmas


grammaticaes são quasi todas ao inverso das nossas.
Passo a exemplificar isto , porque póde esta observa
ção levar a comparações de não pequeno interesse .
Todas as linguas conhecidas, e que têm sido objecto
de estudos, têm uma unica forma para exprimir as
pessoas do verbo , e essa forma é a das terminações ;
nas indo-latinas é assim : laud-o , laud-as, land-at,
laud-amus, laud-atis, laud-ant ; expressa as pessoas

pelo mesmo mechanismo porque o portuguez o faz :


louv-o , louv-as, louv-a , louv-amos, louv -aes, louv-am .
Entre o portuguez e o latim a raiz mudou , mas o me
chanismo é o mesmo .

O nosso tupi veiu fazer brecha n'essa regra dos phi


lologos, apresentando-lhes um mechanismo tão ou mais

simples, porém inverso , e por tanto distincto.


Todo mechanismo que serve para conjugar os ver
bos , quando é posposto á raiz nas linguas aryanas , é
anteposto no tupi ; e o que é anteposto nas linguas
aryanas, é posposto no tupí.
Logo em quanto as linguas classificadas significam
as pessoas dos verbos por uma posposição , conser
vando a raiz em 1 ° lugar , o tupi põe a raiz para o fim,
e começa por aquillo que entre nós é terminação . A
vista d'esta regra, em vez de uma conjugação diffi
cil e obstrusa , o mechanismo dos verbos fica tão

claro como em portuguez ; aquillo que os antigos


grammaticos chamaram artigo , não é senão a mesma .
LINGUAS 55

terminação , com a só differença de, em vez de ser


posposta , é anteposta , exemplo:

Portuguez . Tupi.

Verbo matar, ajucá .

Raiz . Terminação . Terminação . Raiz.

mat - 0 a - juca
nát -- as re juca
mat ― a 0 ― juca .

Quando queremos passivar um verbo, em os tempos


em que o podemos fazer sem cuxiliares, o conseguimos
pelo mesmo systema de posposição; elles o conseguem
por uma anteposição , e com um mechanismo muito
mais simples.

A indole do tupi é tão inflexível n'este particular


que, as mesmas preposições copulativas, são arremes
sadas para o fim da oração e pospostas aos proprios
nomes que copulam! Permitam-me mais um exemplo
para tornar patente esta singular e caracteristica lei :
« eu vim com um bom cão » , se diz em guaraní : che aju
<
petein jogua catuété dive, o que , aopé da letra , díz : eu
vim um cã, bon com . Não ha em uma só lingua classi
ficada transposição d'esta ordem , e isto indica uma
elaboração linguistica inteiramente nova , e que carac
terisará dentro em pouco um genero tambem novo .
Para formarmos os casos, nossas particulas , quando
necessarias , precedem o nome: entre elles é posposta .
56 LINGUAS

Entrego esses factos ao estudo e reflexão dos linguis


tas, persuadido de que ha ahi a primeira revelação de
uma grande lei philologica , que muito ha de esclarecer
o problema , até hoje tão obscuro , da diversidade das
linguas.

TRABALHOS SOBRE A LINGUA TUPI ' OU GUARANI ·

Parece-me que a palavra Tupi quer dizer: pequeno

raio , ou filho do raio , de Tupá― raio , e- i diminutivo .


A palavra Guarani parece corruptella da palavra
guarini que significa guerra .

Os padres jesuitas hespanhóes e portuguezes foram


os unicos que na antiguidade estudaram as linguas
selvagens, As linguas selvagens hoje são o mais valioso
documento para resolverem- se dous problemas impor
tantes da sciencia, a saber: os grãos de parentesco da

grande familia americana , e as leis a que o entendi


mento humano está sujeito no desenvolvimento da
poderosa faculdade de compôr linguas . Descoberta essa
lei , será possivel uma grammatica que sirva de chave
para entenderem- se todas as linguas de uma mesma
familia , o que será cousa mais importante para o
progresso da humanidade, do que a descoberta do
vapor ou das leis da electricidade.

Se o tupi é uma lingua primitiva , como tudo induz


a crer, sua antiguidade em relação ao sanscrito e ao
LINGUAS 57

hebraico , é tal que, a vista d'ella , essas linguas ficam


sendo quasi contemporaneas.

E' um dos mais importantes legados que o homem


prehistorico deixou ás gerações actuaes. Os homens
estudiosos têm n'ella mina riquissima de investigações
uteis e proveitosas , que não devem abandonar ás

gerações futuras , por que essas virão em tempo em que


talvez já tenham desapparecido os elementos indis
pensaveis para o seu estudo .
Com estas reflexões não quero por fórma alguma

inculcar que tenho conhecimentos extensos da lingua ;


eu a fallo tanto quanto é necessario para me fazer
entender pelos indigenas; mas ainda não conclui meus
estudos que a'iás eu tenho dirigido no sentido pratico .
Pena é que sejam hoje tão raros os livros sobre as
linguas indigenas , e tão raros que eu senti difficuldade
até para organísar um catalogo d'elles ; e como isso
será justamente a primeira difficuldade com que terá
de arcar aquelle que se empenhar n'esta ardua , mas
gloriosa senda , eu concluirei este capitulo com a

relação d'esses escriptos, alguns que conheco só por


noticia, outros que possuo ou que tenho visto .
O mais antigo e, a todos os respeitos , precioso
monumento que possuimos em portuguez , é a Gram
matica do jesuita padre José de Anchieta , o mais
notavel dos antigos catechistas. D'esta obra, que es
teve quasi perdida para as letras , os mais minuciosos
catalogos só mencionam a existencia de dois exem
58 LINGUAS

plares, um existente na bibliotheca do Vaticano , e um


pertencente ao Sr. conselheiro Macedo , ex-bibliotheca
rio da Torre do Tombo . Na America so existe um

exemplar , e esse pertence a S. M. o Imperador . Este


exemplar, que é um primor d'arte de calligraphia,
consta-me que S. M. o houve na Allemanha , e é copia
fac-simile do da bibliotheca do Vaticano . Eu o vi em
uma das sessões do Instituto , o anno passado. Pelo que

pude julgar com exame rapido que fiz d'essa obra ,


pareceu-me um trabalho grammatical do mais subido

valor . Desde que S. M. possue um exemplar, a biblio


theca do Instituto não ficará sem uma copia.

Em seguida a esta obra , as mais preciosas são incon


testavelmente as do padre Antonio Rodrigues Montoya ,

jesuita hespanhol , filho de Lima , e que floreceu no


primeiro meado do seculo XVII . Escreveu elle :
Arte e vocabulario de la lengua guarani, Madrid ,
1640. Esta obra é hoje rarissima ; existe na Europa ,
que me conste , um unico exemplar na bibliotheca publica
de Londres. Na America sei da existencia d'um perten
cente a S. Magestade, um que foi do Dr. Martius ,
pertencente á bibliotheca do Instituto, doado por S.
M.; um que me pertence e que foi tomado em uma
carreta em Cerro Corá por um official do nosso exercito.
7
Este livro é precioso pela multidão de textos que encerra
com o modest titulo de vocabulario .

O 2.° é o Tesoro de la lengua guarani do mesmo

autoré a obra mais completa , e o mais profundo


LINGUAS 59

estudo sobre a lingua ; é um monumento que ha de


passar ás mais remotas éras , si não perder- se agora;
só com seu auxilio seria possivel restaurar a lingua ,
se ella se perdesse . Existe um exemplar na bibliotheca
de Londres, um na de Santa Genoveva em Paris.

Na America sei da existencia de quatro; um perten

cente a S. M. o Imparador , um ao Dr. Baptista Caetano ,


que com tanto esmero se ha dedicado ao estudo da
a lingua ; um pertencente ao general D. Bartholomeu
Mitre, um que pertenceu ao general Urquiza , e que
penso pertencer hoje ao Sr. Fidel Lopes , de Buenos
Ayres. D'esta obra só tenho noticia d'uma edição ; da
Arte e vocabulario tenho noticia de duas: a que citei
acima , e uma outra feita em Santa Maria Maior ,
impressa ao que parece com typos de madeira ; esta
segunda edição traz acrescentamentos debaixo do titulo

de escolios, escriptos pelo padre Paulo Restivo , da


companhia de Jesus, 1724. Não creio que exista um
só exemplar na Europa , por que alguns bibliographos
até põe em duvida que ella tenha sido impressa , e todos
a citam com referencia. Existem na America , que eu

saiba, dois exemplares, um pertencente a S. M. o


Imperador, e outro qu pertencia á familia do marechal
Lopes, e que me foi dado. (9)

(9) Aos amigos da linguistica americana damos a


fausta nova de que o incansavel Snr . Barão de Porto
seguro esta fasendo reemprimir em Vienna d'Austria
o vocabolario e Thesouro do padre Montoya .
60 LINGUAS

A outra obra do padre Montoya é o : Catecismo de la


doutrina christã. Ha duas edições, uma de Madrid
que deve ser do mesmo anno de 1640 , e uma de Santa
Maria Maior, augmentada pelo mesmo jesuita, o padre
Paulo Restívo , ja citado . Só tenho noticía d'um exem

plar existente a'essa obra , e esse pertence a S. Magestade


o Imperador; ainda o não vi .

A 4. obra do padre Montoya é : Sermones de las


dominicas del ano e fiestas de los indios . Ignoro se esta
obra foi impressa , e menos ainda se subsiste hoje algum
1
exemplar d'esse precioso livro . Os bibliographos o
notam apenas pela referencia que d'elles faz o citadu
padre no proemio do seu Tesoro.
A's obras d'este, seguem-se as dos outros missiona
rios portuguezes .
Não sei que exista um só exemplar das grammati
cas de Manoel da Veiga, e Manoel de Moraes, que só
conheço pelas referencias que d'ellas faz o Sr. França
em sua Chrestomathia da lingua brusi ica , citando João
de Lact, notas á dissertação de Hugo Grotio , intitulada:
De origine gentium americanarum.
A bibliotheca fluminense, e creio que a do Rio de
Janeiro , possue um exemplar do cathecismo grande dos

Jesuitas, pelo qual elles ensinavam a doutrina christã


a nossos selvagens. Essa obra tem por titulo: Catecismo
Brasilico da Doutrina Christa; com o ceremonial dos
Sacramentos e mais actos parochiaes. Composto por pa
dres doutos da companhia de Jesus , aperfeiçoado e dado
LINGUAS 64

á luz pelo padre Antonio de Araujo , da mesma compa


nhia, emendado n'esta segunda impressão pelo padre
Bartholomeu de Leam , da mesma companhia . Lisboa,
1686. Off. de Miguel Deslandes . »
Grammatica da lingua geral dos indios do Brazil,
composta pelo padre Luiz Figueira , reimpressa na
Bahia em 1851 , aos esforços do Sr. João Joaquim da
Silva Guimaraes. No meu pensar , o padre Figueira
não conheceu tão profundamente a lingua quanto o
padre Montoya ; comtudo , na grammatica propriamente
dita , isto é na philosophia da lingua , me parece que
elle é superior ao dito padre Montoya, A edição de
Lisboa , que já não é vulgar , foi seguida d'um vocabu
lario com o titulo de : Diccionario Brasiliano . ( 10)

Outras obras ha antigas, que ou não tiveram a ce


lebridade e reputação d'estas, ou nunca foram im
pressas, e conservam-se nas bibliothecas de França ,
Inglaterra e Allemanha , até que, ha pouco tempo , a
curiosidade dos sabios singularmente despertada por

esta lingua que lhes vai ministrar, talvez , um ponto de

(10) Este padre Luiz Figueira é um d'esses vultos


angelicos, que illuminam as primeiras paginas da his
toria dos jesuitas , em nossa terra ; já velho e cançado ,
não cessava de viajar pelos sertões do Brasil para ca
techisar e doutrinar os pobres brazis , como com sin
cera ternura os denominava no prologo da sua gram
matica. Gozou da gloria do martyrio ; foi morto e de
vorado pelos indigenas da ilha de Marajó , no Pará .
Vide : A. Henriques Leal, Apontamentos para a
historia dos jesuitas no Brasil .
62 LINGUAS

comparação que lhes faltava para fixarem regras im


portantissimas de philológia , as está desenterrando do
pó de quasi dous seculos para trazel- as á luz da pu
blicidade .

Além d'estes trabalhos , que se referem ao tupí ou


guaraní, existe um mui curioso e importante sobre um
grande dialecto da lingua , que era fallada antigamente
em grande extensão do Brazil : referimo-nos á lingua
kiriri ; tem por titulo : Catechismo da doutrina Christã
na lingua brasilica da nação Kiriri , composto pelo pr
dre Luiz Vincencio Mamiani , da companhia de Jesus,
missionario da provincia do Brazil. Lisboa , 1698 , na
officina de Miguel Deslandes . - Os bibliographos dão
esta obra como perdida . Felizmente para nós existe
aqui no Rio de Janeiro um exemplar pertencente ao
Sr. F. A. Martins , digno conservador da bibliotheca
d'este Instituto .

Possue mais a bibliotheca d'este Instituto uma ver

dadeira preciosidade em guarani , de que não ha men


ção em catalogo algum , mas que está infelizmente tão
estragada pelas traças que ficará perdida se não cuj
darmos de sua reimpressão , ou pelo menos de tirar
uma cópia ; tem por titulo : Sermones e exemplos em
lingua guarani , por Nicolas Japuguay-En el pueblo
de S. Francisco en 1727. Como o nome indica , este
missionario devia ser algum mestiço que , com o leite
materno , bebeu os primeiros rudimentos da grande
LINGUAS 63

lingua sul-americana ; esta obra foi doada ao Instituto


pelo socio o Sr. conego Gay.
Possue tambem o Instituto um grande manuscripto
em dous volumes , contendo : Grammatica e Dicciona

rio da lingua tupi , escriptos uma e outra cousa em in


glez ; foi obtido em Vienna d'Austria e remettido a

esta associação pelo benemerito poeta e1 litterato o nosso


finado consocio o Sr. Antonio Gonçalves Dias. O ma

nuscripto tem por titulo : A Diccionary of the Tupy

language as spocken by the aboriginis, collected by John,


Luccock, Rio de Janeiro, 1818.
Não tive ainda sufficiente tempo para poder julgar
se é uma obra original ou uma simples traducção de
alguma outra , o que aliás não é cousa facil, porque ,.
como o leitor terá visto por esta noticia , é difficilima a
acquisição d'estes livros, e por tanto difficil a compa
ração, que não pode ser feita sem possuir um texto
diante do outro

Possue mais o Instituto : Compendio da doutrina


christã na lingua portugueza e brasilica composto pelo
padre João Filippe Betendorf, reimpresso em 1800 por
frej José Mariano da Conceição Velloso .
Entre obras contemporaneas possuimos : Diecima
rio da lingua tupy , por A. G. Dias, Leipzig -F . A.
Brockhaus, 1858 .

Crestomathia da lingua brasilica , pelo Dr. Ernesto


Ferreira França , Leipzig- F . A. Brockhaus, 1859 .
Glossaria Linguarum brasiliensium, do Dr. Carlos
64 LINGUAS

Frederico Philippe de Martius- Erlangen , Junge und


Sohn , 1863.
Vocabulario da lingua indigena geral para uso do

Seminario Episcopal do Pará, pelo padre M. J. S.


Pará , 1853..
Grammatica da lingua indigena gerai para uso do
Seminario Episcopal do Pará, pelo coronel Faria , pro
fessor que foi d'essa cadeira , Maranhão , 1870 .

TRABALHOS SOBRE A LINGUA QUICHUA

O tupi é uma lingua que não soffreu mescla com o


sanscrito . Para se ter um ponto de comparação com
.
linguas que foram alteradas por aquelle grande idioma
asiatico , é necessario ter livros quichuas , que é das
linguas americanas a que foi mais alterada pelo san
scrito, e tambem a que tem sido objecto de mais con
scienciosos estudos.

N'ella porém, como no tupi , a grande parte dos ho


mens de lettras ignora até o nome dos livros que se
ha escripto a seu respeito, livros hoje raros , mas que
se encontram nas grandes bibliothecas da França , In
glaterra e Allemanha .
Em nossas bibliothecas encontra-se a Arte e voca

bulario do Dr. Tschudi , que aliás dá bom elemento de


estudo para conhecimento da lingua .
Ultimamente (1872) publicou o Dr. José Fernandes
Nodal , em Cuzco , no Perú , Grammatica quichua , ó
idioma de los Yncas, e está imprimindo na mesma ci
LINGUAS 65

dade o seu- Gran Diccionario Castellano Quichua - y


vice-versa. O Sr. Fidel Lopes , de Buenos- Ayres, pu
em Pariz,
blicou cm o anno atrazado , a obra que citei
atraz Races Aryennes du Perú, que é uma curiosa e

profunda comparação entre o quichua e o sanscrito .


Infelizmente no Brasil Lada havemos feito recente
mente sobre as nossas linguas.

Com as obras acima citadas, o homem estudioso tem

os elementos necessarios para conhecer esta impor


tante lingua .

No entretanto, como é summamente raro um cata

logo dos escriptos antigos sobre o quichua , aqui vai a


relação dos mais notaveis , que extracto da obra do
Dr. Carlos Nodal :

Grammatica da lingua geral dos indios do Perú,


pelo dominicano frei Domingos S. Thomaz . Lexicon
da mesma lingua, (em hespanhol) . Valladolid , 1560 .

Arte Quichua, pelo jesuita padre Diogo Torres Ru


bio , com cathecismo christão , seguida de um vocabu
lario da lingua Chinchaisuyo, pelo jesuita Juan de Fi
gueredo , (em hespanhol) . Lima, 1700. Esta mesma
obra, melhorada, foi reimpressa em Lima em 1754.
Vocabulario da lingua geral do Perú, pelo padre
frei Juan Martinez . Lima , 1609 .
Grammatica da lingua geral do Perú, pelo padre
frei Diogo Gonsalez de Holguin . Cidade de los Reys ,
1608. Este jesuita escreveu tambem um vocabulario
que foi reimpresso em 1842.
66 LINGUAS

Arte da lingua Quichua, pelo Dr. Alonzo de Huerta .


Cidade de los Reys , 1616 . •

Grammatica da lingua indica, por Diego de Olmos .


Lima, 1644 .

Arte da lingua dos Yncus , pelo bacharel D. Estevam


dos Santos Melgar. Lima , 1691 .
1 Arte da lingua geral dos indios do Perú, por Juan
v Ocon. Lima , 1648.
Roxa Maxia y

Arte e vocabulario da lingua Quichua, manuscripto

na bibliotheca de Berlin , pelo barão de Humboldt.


Elementos para uma Grammatica e Diccionario Qui
chua , por R. Clemente Markham. Londres, 1864 .

COLLECÇÃO DE INSTRUMENTOS E ARTEFACTOS

Depois de fallar d'aquillo que colligimos das linguas


não deixaria de ser omissão não dizer o que temos co

lhido de outras manifestações da actividade dos nossos -


selvagens .
Possuimos no Museu Nacional uma riquissima e

preciosa collecção de instrumentos de pedra lascada ,


machados, dardos , facas, mós , e pilões ou indud, al
guns dos quaes de trabalho e lavor tão perfeito que
excitam a admiração .

Ao Sr. conselheiro Lopes Netto deve aquelle esta


belecimento uma preciosa collecção de antigos vasos ,
assim como uma facha de ouro que no Perú distinguia
os membros da familia real dos Incas , e idolos de ouro e
prata hoje rarissimos . Este illustre brasileiro cuja es
LINGUAS 67

tada na Bolivia nos foi tão util pelo tratado de limites


que consolidou a paz d'aquella republica com o nosso
paiz, não se esqueceu de dotar o nosso estabelecimento

de archeologia com o que de mais precioso alli en


controu .

A' elle devemos tambem um exemplar da pedra das


Amazonas, verdadeira raridade que falta á maior parte
das collecções de antiguidades americanas .
Em artefactos de argilla plastica possuimos tambem
uma collecção curiosa de antigas urnas funerarias, a
maior parte provenientes de Marajó devidas ás inves

tigações do nosso illustre compatriota o Sr. Domingos


Soares Ferreira Penna .

Em roupas e artefactos de penna , armas de ma


deira ou ossos, collares de fructas , sementes , ossos , a
collecção do Museu é esplendida , e devemol- a a S. M.
o Imperador.

A secção propriamente anthropologica , essa é pau


perrima. Apenas quatro crancos , e dous esqueletos e
tudo quanto possuimos para estudar as proporções é
caracteres do homem americano . Possuimos maior nu

mero de mumias do Egypto ! E' natural porém que as


collecções d'esta ordem se enriqueçam agora, com o
crescente interesse que vão tomando estas sciencias.
68 LINGUAS

IV

RAÇAS SELVAGENS

Raça primitiva . Raças mestiças antigas. Cruzamentos


recentes. Raças mestiças (Gaucho, Caypira, Caburė,
Tapuio) conio elemento de trabaho . Plano de cate
chese. Resultados provaveis dos cruzamentos actuaes
1
na futura população do Brazi!.

As raças encontradas no Brazil , e que estão ainda


extremes de qualquer cruzamento recente , são prove
nientes de um só tronco ?

Aqui vão os factos que eu tenho observado :


Entre caracteres que approximam os selvagens do
Brazil uns dos outros , ha no entretanto differenças
constantes e singulares, mediante as quaes me parece
que se podem distinguir tres raças diversas , a saber :
1.º O indio escuro , grande .

2. O indio mais claro , de estatura mediana .
3. O indio mais claro , de estatura pequena , pecu

liar á bacia propriamente do Amazonas.


Como direi adiante , me parece que o primeiro é um
tronco primitivo ; os dous ultimos são raças mestiças
filhas do cruzamento d'aquelle tronco com o branco .
Não me refiro a cruzamentos recentes, e sim aos que

deveram ter lugar muitos centos de annos antes da


descoberta da America por Christovão Colombo.
Vimos no capitulo antecedente o como nas linguas
RAÇAS SELVAGENS 69

encontravam- se vestigios irrefragaveis d'esse cruza


mento.

Agora vamos acompanhar esses vestigios em docu


mentos não menos incontestaveis do que aquelles, que

são a côr e a estructura physica de nossos aborigenes.


Nas informações que passo a dar a este respeito eu
não reproduzo nada do que tenho lido , e sim o que
tenho observado; tenho mesmo evitado lér a este res

peito, não porque desconheça o valor das opiniões de


pessoas muito mais competentes do que eu ; mas
porque , tendo tido aberto diante de mim o grande
livro da natureza , não desejei percorrer-lhe as paginas

com opiniões preconcebidas e formadas no gabinete .


Eis o que tem me parecido digno de nota.

O indio da raça primitiva , de que para mim são


typos o Guaicurú em Matto-Grosso, o Chavante em
Goyaz, o Mundurucú no Pará, é côr de cobre tirando
para o escuro (côr de chocolate), estatura ordinaria
mente acima da mediana até verdadeira corpulencia ,
cabellos sempre duros , o molar e a orbita salientes ,

quasi recto o angulo do maxillar inferior , o diametro


transversal entre os dous angulos posteriores do ma

xillar inferior é igual ao diametro transversal do craneo


de um a outro parietal , o calcaneo grosso , o tarso
largo, dando em resultado um pé solido, se bem que
algumas vezes de uma pureza admiravel de desenho .
Estes caracteres physicos , que resaltam logo aos olhos
do observador, os dístinguem dos outros , cuja côr
70 . RAÇAS SELVAGENS

amarella tírando para a da canella , estatura mediana ,


e ás vezes abaixo d'isso , cabellos muitos vezes finos e
até annellados , menos pronunciadas as saliencias das
orbitas e do molar , face menos quadrada , o dedo
grande do pé muito separado do index , pés e mãos de
uma delicadeza que faria o desespero dos mais ele
gantes da raça branca ; as mulheres de fórmas delica

das , regulares , e as vezes de grande belleza , quando


as outras são verdadeiros colossos , grosseiros e tão
solidamente musculadas como um homem robusto , são
outras tantas differenças que não deixam confundir
uma raça com outra.'

Na raça primitiva e escura , ha uma variedade que


se distingue tanto pelo exagerado desenvolvimento do
pennis, que os mesmos selvagens a caracterisam por
esse signal.
Nas raças mestiças, a do Pará distingue-se por
caracter opposto .

Quanto aos caracteres intellectuaes tenho duas ob


servações a fazer:

Pela experiencia de tres annos , que tenho no collegio


Isabel , vejo que os da segunda raça aprendem com
maior facilidade a nossa lingua, e a ler e escrever;

entre os da primeira, alguns ha de uma difficuldade


de comprehensão verdadeiramente desanimadora, para
tudo que não são officios mechanicos, nos quaes todos
elles mostram rara aptidão. Entre os segundos alguns
ha de intelligencia não vulgar.
RAÇAS SELVAGENS 71

O adiantamento comparativo nas idéas religiosas é


ainda um caracter distinctivo entre os dous typos . Os

jesuitas antigos , que aliás n'este ponto não eram


observadores sagazes, porque para elles todo culto era
tributado ao espirito maligno, e que não olhavam para
estas cousas com a isenção de espirito necessaria para
bem comprehendel-as; os jesuitas já haviam dito:

entre os Brazis alguns ha que têm idéas de Deus , ·


outros não . Isto não é exacto ; todos elles têm uma

religião; a differença é: uns tinham uma verdadeira


theogonia , ao passo que outros só tinham um ou outro
espirito superior , a quem attribuiam certas qualidades
sobrenaturaes .

Mas a distincção nem por isso é menos exacta,


n'este sentido: ha uma grande differença entre as duas
raças debaixo do ponto de vista do desenvolvimenio
do instincto religioso.

A primeira das duas , a que eu darei o nome de


abauna (indio escuro) para servir-me de uma designa
ção tupí , me parece uma raça pura, porque seus
caracteres são constantes .

Se algum dia se vier a confirmar a opinião da


origem do homem pelas diversas regiões geographico
geologicas do globo , é essa a familia autochthone do
nosso Brazil .

A outra familia , mais poderosa e intelligente, a que


eu chamarei abaju , me parece mestiça ; eu não me
refiro a um mestiçamento recente , depois da desco
72 RAÇAS SELVAGENS

berta da America , e sim ao que se deu en: tempos


prehistoricos , como já notei . Penso que ella é mestiça :
1°, porque se approxima mais da raça branca do que
a abauna; 2°, porque, ao passo que a côr da primeira
é constante e invariavel , esta apresenta nuanças mais
*
ou menos carregadas , o que seria inexplicavel a não
ser a primitiva fusão dos sangues , a qual , como se
sabe, produz commummente o phenomeno de repro
duzir , depois do intervallo de muitas gerações , os
typos dos progenitores, pela conhecida lei do atavismo .
D'estas differenças de côr nós encontramos vestigios
até na denominação das tribus, o que indica que o
phenomeno foi notorio aos proprios selvagens ; sir
vam-me de exemplo estas expressões: tupiuna e tupi
tinga , isto é: tupis pretos e tupis brancos, nomes que
designavam tribus do valle do Amazonas.
O phenomeno de differença de côr, que não póde
encontrar explicação na acção dos meios, porque esta
foi a mesma para todos elles, é documento de incon
testavel autenticidade para provar a mescla do sangue.

Os viajantes mais respeitaveis referem-nos que, no


meio dos aborigenes americanos , encontram-se alguns
quasi brancos .

Entre os tupís conheço typos muito approximados


do branco ; ha no collegio Isabel um menino guajajara,
de nome Vicente, que , a não ser uma leve obliquidade
nas arcadas superciliares, seria tomado como um
branco puro. A tribu appareceu no Araguaya em meu
RAÇAS SELVAGENS 73

tempo , vinda dos sertões, onde era improvavel um

cruzamento recente ; eu conheci os pais , indios legiti


mos, e bastante escuros, se bem que tupís. Portanto , é
esse um facto de atavismo bem caracterisado , e que

observei e póde ainda ser observado em todas as suas


circumstancias . Este facto é aliás commum entre os

tupís .
Na raça abauna , não só não se encontra isso , como
mesmo não se nota nuanças no seu amarello escuro
tirando para a côr do chocolate . Em compensação en
contram-se numerosos individuos reproduzindo o cabello
ruivo , que se suppõe ser um traço caracteristico do

homem primitivo ; entre outros citarei o capitão da


Aldea do Meio nas Intaipavas do Araguaya, da tribu
dos Chambioás, e de nome Dereque .
D'estes factos resulta : se o atavismo reproduz os
typos de onde veiu o cruzamento , segue- se que a raça
abaju é mestiça e portanto um ramo, e a raça abanna
é primitiva .

Approxima-se esta da mongolica pela cor amarella ,


estructura pyramidal da cabeça , obliquidade das ar
cadas superciliares, saliencia das orbitas e do molar,
pela depressão da abobada frontal, identidade na
côr dos cabellos e olhos , e na pouca densidade das
vellosidades .

Distingue-se pela cor que é mais fechada , pela


horizontalidade dos olhos que não acompanha a obli
quidade das sobrancelhas como no mongol , e que
74 RAÇAS SELVAGENS

n'este ultimo constitue um traço caracteristico ; pelo

angulo do maxillar inferior quasi recto , pela estruc


tura ampla e desenvolvida da caixa toraxica, tão fragil
e deprimida no mongol ; pela grossura do calcaneo e
largueza do tarso, que no mongol são ainda mais fi
nos do que no branco ; pela estatura elevada e solida

mente musculada , a qual contrasta com as fórmas


pequenas e fanadas do mongol , sobretudo na muscu
lação do torso, e na estructura ampla e desenvolvida
do tronco até á cabeça .

Eu tenho aqui uma cabeça de uma estatueta de ar


gilla , encontrada pelo Dr. Tocantins dentro de uma
ygaçaba dos antigos aterros de Marajó, onde o primi
tivo estatuario , fazendo uma obra tosca e grosseira,

reproduziu comtudo com admiravel fidelidade os carac


teres da raça que venho de descrever ; com effeito , na
grosseira e rude obra vê-se o plano pyramidal da es
tructura da cabeça , a obliquidade das sobrancelhas, a
horisontalidade dos olhos , o recto do angulo do ma
xillar inferior , e até a bracocephalia . Esta rude obra é
mais um documento que nos indica, que os caracteres
que eu assignalei eram de tal fórma communs que fo
ram notorios aos proprios selvagens .

CRUZAMENTOS RECENTES

Os cruzamentos modernos tomaram diversas deno

minações segundo os troncos progenitores . O indio e


branco produziram uma raça mestica , excellente pela
RAÇAS SELVAGENS 75

sua energia , coragem , sobriedade , espirito de inicia


tiva, constancia e resignação em soffrer trabalhos e
prívações ; é o mameluco , tão justamente celebre na
historia colonial da capitania de S. Vicente. Infeliz
mente estas boas qualidades moraes são compensadas
por um defeito quasi constante : o da imprevidencia ou
indifferença pelo futuro . O mameluco, como o indio seu
progenitor, não capitalisa , nada poupa . Para elle o
mez seguinte é como se não existisse . Será falta de
educação, ou falta de uma faculdade ? E' falta de edu

cação porque , para esses pobres, a patria tem sido


mad rasta .

O cruzamento do indio com o negro deu em resul


tado uma linda raça mestiça , côr de azeitona , cabel
los corridos , intelligente e com quasi todas as quali
dades e defeitos da precedente, e que é conhecida no
norte com o nome de cafuz , e no sul com o nome de
caboré.

Os traços physicos caracteristicos , ao menos para


mim , que subsistem da raça indigena n'estes dous
mestiçamentes, são a cabeça , a qual conserva a de
pressão da testa e a estructura , approximando-se da do
indio a vellosidade da fronte , estendendo- se em an
gulos salientes, nas frontes com os vertices oppostos ;
as orbitas e o molar salientes , o diametro transversal
dos angulos posteriores do maxillar inferior quasi igual
ao diametro parietal do craneo ; o cabello corrido e
extremamente negro ; barba e vellosidades do rosto e
1
76 RACAS SELVAGENS
1

pescoço extremamente raras. No corpo , a solida e

vasta estructura do tronco, a largura das espaduas em


contraste com o pouco desenvolvimento da bacia, a
energia da musculação e a finura e delicadeza das ex
tremidades, são traços que resaltam logo aos olhos do
observador.

O cruzamento d'estas raças, ao passo que misturou


os sangues , cruzou tambem (se nos é licito servirmos

nos d'essa expressão) a lingua portugueza , sobretudo


a linguagem popular. E' assim que, na linguagem do
povo das provincias do Pará , Goyaz, e especialmente
de Matto-Grosso , ha não só quantidade de vocabulos
tupís e guaranís accommodados á lingua portugueza e
n'ella transformados, como ha phrazes, figuras , idio 1
tismos , e construcções peculiares ao tupí . Este facto
mostra que o cruzamento physico de duas raças deixa
vestigios moraes, não menos importantes do que os
do sangue. O notavel professor norte-americano C. F.
Hartt nota que são rarissimos os verbos portuguezes que
tem raizes tupís , e cita como um d'esses raros exem
"
plos , talvez unico , o verbo moquear . Se o illustre pro
fessor houvesse viajado outras provincias , veria que
esse exemplo não é isolado , e que não temos um , mas
muitos verbos vindos do tupi , e alguns d'elles tão ex
pressivos e energicos que não encontramos equi
valentes em portuguez ; citarei entre outros os se I
guintes espocar (Pará) por : arrebentar abrindo ;

petequear (Minas, S. Paulo) por : jogar ; entocar (ge


RAÇAS SELVAGENS 77

ralmente em todo o Brazil) por : metter-se em buraco ,


ou figuradamente, por encolher-se , fugir á responsa
bilidade ; gapuiar (Pará, Maranhão) por : apanhar
peixe cutucar (geral ) por : tocar com a ponta ; espiar
(geral) por observar ; popocar (Pará , Maranhão) por
abrir arrebentando ; pererecar (geral) por : cahir e re
virar ; entejucar por : embarrear ; encangar por : met- .
ter os bois no jugo ; apinchar por : lançar , arremes
sar ; capinar, por limpar o matto ; embiocar , por :
entrar no buraco : bobuiar, por fluctuar ; catingar
por exhàlar máu cheiro ; tocaiar por : esperar, etc.
são outros tantos verbos com que o tupí enriqueceu a
lingua popular dos habitantes do interior do Brazil ,
lingua ás vezes rude não o contestamos , mas ás vezes
tambem de uma energia e elegancia de que só póde

fazer idéa , aquelle que tem estado em uma roda de


gaúchos folgazãos a ouvil-os contar a historia de seus
amôres , suas façanhas de valentia, ou as lendas , as
vezes tão tocantes e poeticas de suas superstições , me
tade christãs , metade indigenas .

Assim como muitos seculos depois de haverem pas


sado os povos que fallaram o sanscrito e o quichua , se
encontra n'esta ultima lingua os vestigios d'aquelli
familia ; assim tambem d'aqui a mil annos , quando
já não houver no sangue dos habitantes do Brazil a
mais leve apparencia d'esta pobre raça , que ainda hoje
domina talvez uma quinta parte do solo da nossa
terra , ahi estarão na lingua por elles modificada os
78 RAÇAS SELVAGENS

imperecedores vestigios de sua coexistencia e commu


nhão comnosco .

Se dos verbos passassemos aos substantivos , nomes


de animaes , logares, plantas, ver-se-hia que nada
menos de mil vocabulos, quasi uma lingua inteira ,
passou e veiu fundir- se na nossa, assim como com o

cruzamento tem passado e ha de continuar a passar o


sangue indigena a assimilar- se e confundir-se com o
nosso .

Aquelles que estudam estetica dizem, que nas


linguas dos povos barbaros , muito mais laconica e
muito menos analytica dos que as dos povos cultos , as
imagens succedem- se , supprindo ás vezes um longo
raciocinio. A poesia de nossos selvagens é assim: o mais
notavel é, que o nosso povo servindo-se aliás do
portuguez , modificou a sua poesia tradicional pela dos
indios . Aquelles que tem ouvido no interior de nossas
⚫ provincias essas dansas cantadas, que , com os nomes
de cateretê, cururú , dansa de minuanos e outras ,
vieram dos tupis incorporar-se tão intimamente nos
habitos nacionacs, notarão que de ordinario parece não
hayer nexo algum entre os diversos membros de uma
quadra. Lendo eu uma analyse de cantos dos arabes ,
tive occasião de notar a estranha conformidade que
havia entre aquella e a poesia do nosso povo: o critico
que as citava, dizia: ་ para nós que estamos acostuma
dos a seguir o pensamento em seus detalhes , é quasi
¡mpossivel perceber o nexo das idéas entre imagens
RAÇAS SELVAGENS 79

apparentemente destacadas e desconnexas; para os


povos selvagens , porem, esse nexo revela-se na pobreza
de suas línguas , pela energia das impressões d'aquellas
almas virgens , para quem a palavra fallada é mais
um meio de auxiliar a memoria , do que um meio de
traduzir impressões ». Appliquei esse principio de
critica á nossa poesia popular , sobretudo aos cantos
d'aquellas populações mestiças , onde as impressões das
raças selvagens gravaram-se mas profundamente , e vi

que effectivamente, supprindo- se por palavras o nexo


que falta ás imagens expressadas por elles em fórmas
laconicas, revela- se um pensamento energico , ás vezes
de uma poesia profunda e de inimitavel belleza , apezar
do tosco laconismo da phrase . Consintam-me que eu
analyse debaixo d'este ponto de vista tres quadrinhas ,
uma do Para, uma de S. Paulo e uma de Mato-Grosso ,
todas ellas ouvidas entre milhares de outras, quando,
nas longas viagens nos ranchos de S. Paulo , nas soli
tarias e desertas praias do Tocantins e do Araguaya,
ou nos pantanaes do Paraguay, meus camaradas ou os
tripolantes das minhas candas mitigavam com ellas as
saudades das familias ausentes , ou as tristezas d'aquel
las vastas e remotas solidões.

Comecemos pelo Pará , onde ouvi a seguinte :

Quanta laranja miuda .


Quanta florinha no chão
Quante sangue derramado

Por causa d'essa paixão .


80 RAÇAS SELVAGENS

Éstas imagens desconnexas, desde que seu applique

a regra critica de que acima fallei , traduzem um pen


samento profundamente poetico e expressado com
grande energia , pensamento que, se tivessemos de
traduzir em nossa linguagem analytica . ficaria assim :
་ Essa paixão passou por mim e fez derramar tanto

sangue como a tempestade, que derrama pelo chão as


flores ainda pequenas e os fructos não sazonados « .
Agore uma de S. Paulo :

Pinheiro, dá-me uma pinha ;


Roseira, dá-me um botão ;
Morena , dá- me um abraço ,
Que eu te dou meu coração.

Fazendo a mesma traducção que acima , as imagens ,


.
á primeira vista tão sem laço umas com as outras,
agrupam-se para traduzir energicamente o pensamento

do bardo semi-selvagem , que para nós seria redigido


assim : Um abraço teu , morena , é tão precioso como
a pinha o é para o pinheiro, como o botão de rosa o é
para a roseira; dá'me-o , que em troca dar-te-hei o que
tenho tambem de mais precioso que é o meo amor » .
Agora uma de Cuyabá, para mostrar que de uma
extremidade a outra do Imperio o systema da poesia
popular foi vazado no laconico , rude , mas energico
molde do lyrismo selvagem :

O bicho pediu sertão ;

O peixe pediu fundura ;


RAÇAS SELVAGENS 81.

O homem pediu riqueza ;


A mulher a formosura.

Isto é a formusura é tão indispensavel á mulher,


e a riqueza ao homem, como para o peixe é indispen
savel a fundura das aguas, e para o animal selvagem
a vestidão das terras interiores, a que chamamos
sertão » .

Ha sem duvida alguma , muita rudeża n'estas fór


mas, mas em compensação , quanta novidade e energia
de comparações !
Não cito estes exemplos como especimens de littera
tura popular ; n'esse campo eu tenho em meus apon
tamentos de viagem elementos para escrever um livro0 ;
trouxe-os para mostrar o como, a par do cruzamento
physico, a lingua e a poesia popular soffreram a ener
gica acção do contacto d'essa raça ; se me fora dado
entrar na analyse das superstições populares do
Brasil , o leitor veria que essa acção do cruzamento re
vela-se em factos moraes muito mais extensamente ,

do que a principio parece a nós , que raramente nos de


dicamos a observar estas cousas , porque, como diz um
escriptor, quanto mais communs os factos , mais diffi

ceis de observarem-se . Tenho porém necessidade de


proseguir, estudando um assumpto mais importante .
Nós temos sido ingratos e avaros para com esses
mestiços, que já concorrem em alta escala com o seu
trabalho para nossa riqueza . Eu que tenho experi
7

82 RAÇAS SELVAGENS

mentado a rara dedicação d'elles , por que devo duas


vezes a vida a individuos d'essa raça , peço licença para
examinar, mais detidamente , a sua influencia como
elemento de trabalho e de riqueza para nossa terra.

Ha ahi uma rica mina a explorar- se< , tanto mais


quando é hoje sabido , que a mistura do sangue indi
gena é uma condição muito importante para aclima
ção da raça branca em climas intertropicaes como o
nosso.

Talvez que com os factos que passo a expender ,

comprehendamos que, ao passo que gastamos quasi


esterilmente milhões com colonisação europea , é triste

que figure em nossos orçamentos apenas 200 contos


para utilisar pelo menos meio milhão de homens já
aclimados e mais proprios, mesmo pelos seus defeitos
e atrazos , a arcarem com os miasmas de um clima in

tertropical como o nosso , e com a salvageria de um


paiz quasi ainda virgem , onde a raça branca não póde
penetrar sem ser precedida por uma outra , que ar
roste e destrua por assim dizer a primeira braveza de
nossos sertões . E note-se que esses duzentos contos
além de serem recentes , são nominaes ; com selvagens
não se despende a quinta parte , por quanto, é com
a verba de catechese que se fazem conventos nos po
voados das capitaes, e pagam-se congruas a missiona
rios que preferem as cidades e povoações christãs ás
aldeas do selvagem,
RAÇAS SELVAGENS 83

RAÇAS MESTIÇAS COMO ELEMENTO DE TRABALHO

A experiencia, tanto aqui no Brasil , como nas repu


blicas sul-americanas, demonstra que o nosso indio
não se presta a genero nenhum de trabalho sedenta
rio . No entretanto uma das maiores e das mais espe

´rançosas industrias, que é a pastoril , vive na America


do sul quasi que exclusivamente á custa do trabalho
do indio , ou da raça mestiça , sua descendente , que
conserva quasi os mesmos costumes , e as mesmas ne
cessidades .

No sul do Imperio , as provincias , onde as industrias


pastoris hão attingido a um grande desenvolvimento ,
são as de S. Pedro, Paraná, Mato-Grosso, Goyaz e
S. Paulo. Se attendermos á circumstancia muito im

portante de que quasi todo o interior do Brazil é


coberto de campos, que os matos são raros , que o
velho mundo necessita mais de carne do que de café

ou de assucar, e que as industrias pastoris são as que


exigem menor numero de braços , menor emprego de
capitaes , e maior extensão de terras, em comparação
com outras industrias; se considerarmos ainda, que
só ellas quasi que não necessitam de estradas para
serem seus productos transportados a grandes distan
cias , ver-se-ha a immensa importancia que podem vir
a ter os terrenos do interior do Brazil , desde que se
fomente com methodo este genero de industria .
Quem viaja o interior do Imperio com algum espirito
84 RAÇAS SELVAGENS

pratico de observação nota o seguinte: A lavoura só é

sustentada em uma certa escala pela raça branca,


com o braço do escravo negro, ou do mestiço do
branco e do negro ; que a industria pastoril , proprie
dade aliás da raça branca , é mantida com o braço
indigena , ou com o mestiço do branco e do indígena .
Quem assiste pela primeira vez ás curiosas feiras

de Sorocaba, ao passo que vir chegarem as grandes


tropas de S. Paulo , do Paraná , do Rio Grande , do
Estado Oriental e das outras republicas do Rio da
Prata, ficará sorpreso da estranha conformidade que
ha de notar no typo do vaqueiro . Aquelles homens , de
longos cabellos pretos , tez bronzeada, cara quasi sem
barba, grande caixa thoraxica , cabeça , pés e mãos
pequenos, parecem todos irmãos, e antes membros da

mesma familia, do que povos de regiões e ás vezes até


de lingua diversa . O caipira de S. Paulo ou Pará, o
caburé de Mato -Grosso ou de Goyaz, o gaúcho de

S. Pedro ou das republicas do Prata , tem approxima


tivamente os mesmos traços, e estes tão caracteristicos
que é impossivel aos olhos menos exercitados fixal-os
com alguma attenção sem reconhecer n'elles a mesma

raça.
O descendente do indio ou o mestiço do indio e do
branco são o vaqueiro por excellencia em toda Ame
rica do Sul, ou pelo menos nas partes que eu citei ;
porque outra cousa não é o caipira de S. Paulo e
Paraná , o caburé de Mato-Grosso e Goyaz , ou o
RAÇAS SELVAGENS 85

gaúcho do sul . E nem ha n'este facto cousa alguma de


estranhavel . Hoje, que a anthropologia tem estudado
o homem natural, debaixo do duplo aspecto physico e
moral, sabe-se que as diversas raças humanas só são
productoras quando applicadas áquelle genero de tra
balho, que está conforme com o periodo de civilisação
em que ella se acha , periodo que não pode ser
transposto , ou invertido , sem destruir-se e quasi
anniquilar-se a raça que se pretende passar por esta
transformação; o estado actual do Brazil é fazer uma
confirmação pratica d'este postulado da sciencia.
A sciencia assignalaria duas poderosas razões , pelas
quaes o typo do vaqueiro na America do Sul é o indio

ou seu descendente , e não é, e nem póde ser , o branco .


A cultura dos rebanhos de ovelhas , manadas de gado ,
ou lotes de animaes muares e cavallares , expõe o

homem que se entrega a ella a uma acção mais directa


dos agentes atmosphericos, do , que aquelle que se
entrega á agricultura propriamente dita , e muito mais ,
sem comparação alguma , do que aquelle que se dedical
a industrias manufactureiras .

Supportará tanto mais facilmente a acção dos


agentes atmosphericos , ou exhalações teluricas, aquella
raça que mais aclimada estiver a ellas .

Ao passo que as raças aborigenes, expondo- se á


acção d'esses agentes , não fazem mais do que seguir o
curso natural d'aquelles velhos costumes , que pela
acção do tempo as tornaram immunes para soffrer
86 RAÇAS SELVAGENS

com o seu contacto ; a raça branca , que não goza da


mesma immunidade, por isso mesmo que é raça pere
grina, expondo- se a ellas , entrega - se voluntariamente
ou a uma causa de destruição , ou quando menos de
degradação . Atire-se uma semente de qualquer planta

peregrina no mais fertil de nossos campos e deixemol- a


entregue a si mesma . Ella germinará , mas não dará
fructo , suffocada dentro em pouco pela vegetação in

digena . A planta , o animal , o homem, obedecem


todos á mesma lei de aclimação .
Uma outra razão pela qual o trabalho do branco
não póde rivalisar com o do índio , ou do mestiço seu
descendente, nas industrias que suppõe a vida nomade,
é o gráo mais adiantado de civilisação em que se acha
aquelle em comparação com este.
Se a civilisação torna o homem mais forte pela
união com os seus semelhantes , e pela divisão do
trabalho , torna -o tambem muito mais fraco , muito mais

cheio de necessidades desde que se o isole da sociedade .


Qualquer de nós não poderia viver sem o trabalho
de mais de cem de nossos semelhantes ; as roupas, as

casas, a comida , os objectos mais indispensaveis da


vida, na nossa organisação social , dependem do con
curso de tantos , que esta expressão : um homem que
baste a si mesmo , é uma idéa que apenas póde ser
concebida pela imaginação , mas que não tem reali
dade.

Não acontece isto com o selvagem, nem com o seu


RAÇAS SELVAGENS 87 .

descendente. Quanto mais se isola tanto mais prepon


dera a sua superioridade .

O caipira de S. Paulo e Paraná , o caburé de Goyaz


e Mato-Grosso , o gaúcho do Rio Grande , Uruguay e
republica Argentina , são o vaqueiro, o pastor por
excellencia , porque são descendentes d'aquella raça
que está habituada á vida nomade.

Esse viver errante, passado em cima do cavallo , a


correr campos, a estar sempre em contacto com a
natureza, sentindo-lhe as impressões; as privações
mesmo d'essa existencia que seriam insupportaveis
para o branco; a necessidade de muitas vezes dormir

ao relento; a de alimentar- se exclusivamente de caça ,


mel e palmito , o que, para quem não está habituado ,
equivaleria a um regimen de privações , são para o
cripira, o caburé e o gaúcho outras tantas fontes de

prazer, elementos de felicidade e alegria , que tornam


para elle farta e regalada uma existencia que seria
insupportavel para o branco .

Quem, viajando as provincias pastoris de Corrientes


e Entre-Rios, tiver occasião de observar os preparati
vos com que um gaúcho se dispõe a fazer uma viagem

de muitos dias , comprehenderá a grande razão econo


mica que faz d'elle o typo insubstituivel do vaqueiro
americano. Os mais cuidadosos levam um surrãozinbo

de mate, uma garrucha , que é arma de defeza e de


caça , um laço enrolado nas argolas da silho , um pouco
1

88 RAÇAS SELVAGENS

de fumo no bolso do cheripá ; e a isto se limita a


bagagem com que transpõe centenares de leguas.
E ' essa sobriedade que explica a existencia de exer
citos como os de Lopez Jordan , e de outros caudilhos.
As industrias extractivas do norte estão no mesmo

caso, e só vivem e medram porque existe o tapuio , e


já representam nas provincias do Pará e Amazonas
uma exportação de doze mil contos annuaes .
Quem visita uma canôa de tapuios , que saia do
Pará para a safra da borracha , ficará tão sorprehen
dido da sobriedade dos preparativos d'essa expedição,
que pelo commum dura seis mezes , quanto aquelle
que tem occasião de observar os preparos que faz o
gaúcho oriental para suas viagens , e de que a pouco
fallei.
Na canôa destinada a servir- lhes de morada durante

seis mezes , vêm-se alguns paneiros de farinha , que de


ordinario não aturarão mais de oito dias , um pacote

com algumas arrobas de pirarucú secco , sal , anzóes ,


armas de fogo, mais provisão de polvora do que de
farinha , alguns molhos de fumo, violas e um adufo .
Os preparos para uma viagem d'estas, em uma canoa

que transporta toda a familia , de 10 a 15 pessoas , fa


zem-se com 30 a 40 mil réis ; em quanto que o opera
rio branco , com as necessidades filhas da civilisação ,

não a realisaria sem despender centos de mil réis , e


ainda assim sujeitando-se á privações a que raras
vezes sua saúde resistiria .
RAÇAS SELVAGENS 89

Quem visita os seringaes da foz do Amazonas co


nhece logo á primeira vista , que é o tupuio e não`o
branco que foi creado para aquella vida . A barraca
do regatão (é o nome do negociante branco) está pro
vida de tudo ; roupas, mantimentos , vinhos , licôres ;
elle colleccionou o que poude para trocar pela borra
cha do tapuio ; elle gosa de todos esses commodos ,
emquanto que a barraca do tapuio ou é a sua propria
canoa ou é uma vasta choça levantada sobre seis ou
doze forquilhas , aberta de todos os lados , e mal co
berta com palmas de bossú ou inajá . Um veado , uma
anta ou qualquer outro animal dependurado por uma
perna de um dos caibros da casa , algumas mantas de

peixes salgados , os utensilios para fabricar a borracha ,


que são un machadinho e panellinhas de argilla , al
gumas redes fumarentas atadas nos esteios da casa, as
armas de fogo dependuradas dos mesmos esteios ;
raras vezes um pote d'agua , ou um peito de jacaré,
para servir de cadeira , alguns arcos e flexas para apa
nhar peixe ; eis o interior da casa do seringueiro , que
na extracção da borracha , consegue um salario médio
de 10 000 por dia.
O branco no meio das florestas, com os commodos
de sua civilisação , é tão miseravel como o tapuío em
nossas cidades com seu arco e flecha .

Se visitaes a barraca do branco , tereis occasião de


avistar-vos com um ente pallido , quasi sempre in

chado, doentio e triste , no meio d'aquella abundancia


90 RAÇAS SELVAGENS

que elle reuníu alli para negociar com o mameluco .

Se visitaes a barraca do tapuio á tarde e depois do


serviço , comprehendereis pelas cantigas ao som da
viola, os contos alegres e historias animadas, como elle

' vive feliz e na abundancia no meio d'aquella pobreza ,


que para vós seria o cumulo das privações, e que para
elle é a mais alta expressão da riqueza e da abun
dancia.

D'esta serie de factos resulta o estado de atrazo de

civilisação de nossos selvagens ; suas poucas necessi


dades não são defeitos senão para empregal-os em in
dustrias sedentarias, para as quaes são completamente

improprios. Desde porèm que, seguindo o methodo


razoavel e unico productivo de empregar o homem
n'aquillo que está conforme com seus habitos, se tratar
de applicar o selvagem ás industrias pastoris e extrac
tivas , industrias estas a que está reservado um grande
futuro, elle se ha de prestar a ellas melhor do que
qualquer das raças que habitam a America , como se
está prestando .

O caipira de S. Paulo e Paraná , o caburé de Goyaz


e Matto-Grosso, o gaúcho do sul e republicas platinas ,
e o tapuío do norte, que não são senão o indio ameri
cano, ou o mestiço seu descendente, representarão na
producção da America do Sul um papel tão impor
tante como o branco , desde que se attribua a elles os
productos das industrias pastoris e extractivas , nas
RAÇAS SELVAGENS 91

quaes elles são o braço que trabalha , e portanto o


instrumento principal de taes industrías .
A' vista d'estes factos, cujo exame está ao alcance
de todos, e que já teriam sido observados, se nós não

tivessemos um gosto decidido para examinar as cousas


da França, Inglaterra e Estados-Unidos , com preteri
ção do estudo de nosso paiz e de nossas cousas ; á
vista d'estes factos, as pessoas que se occupam de re

solver o difficil e importantissimo problema de braços


para utilisar as riquezas quasi infinitas d'este solo
onde tudo é grande , excepto o homem : á vista d'estes
factos estou autorisado a concluir : o braço indigena é
um elemento que não deve ser desprezado na confec
ção e preparo da riqueza publica.
Tem-se-me observado muitas vezes, que os norte

americanos , muito mais adiantados do que nós, não


encontram outro meio de catechisar os seus selvagens
senão o exterminio . Certamente que os Estados-Unidos
são um grande paiz, e que tem muitas, muitissimas
cousas em que nos são superiores . Mas d'isto não se
segue, que, tudo que elles não poderam fazer, nós
tambem o não possamos, e nem tão pouco que nos se
jam superiores em tudo, porque, certamente que não
o são. Poderam elles por ventura libertar os seus es
cravos sem derramar rios e rios de sangue ? Não . Pois
nós vamos libertando os nossos no seio da mais pro
funda paz e sem ver parar e nem ao menos entorpecer
as fontes da nossa riqueza . Como notei acima , e esta
92 RAÇAS SELVAGENS

nota é de importancia capital , o braço indio não é pro


ductivo em industrias sedentarias ; ou examine-se esta

these perante a sciencia , ou empiricamente á luz dos


factos e da experiencia , a conclusão é uma só . Onde

quer que foi possivel empregar o selvagem como caça


dor ou pastor , elle excedeu muito á raça branca, ex
cedeu porque , como já reflexionei , seu proprio
atrazo, suas poucas necessidades que constituem ob
staculos invenciveis a que se elle adapte á industrias
sedentarias , constituem tambem virtudes e qualidades
de subido valor para todas aquellas que suppõe um vi
ver nomade errante, e independente d'isto , que para
nós são commodos indispensaveis , mas que para elles
são peias e incommodos, tanto quanto para nós seria
o adoptarmos seu genero de vida errante e selvagem .
Nós temos para utilisar o braço selvagem duas fon
tes de riqueza , em que elles hão feito suas provas, e
nas quaes temos tirado resultados conhecidos nossos
vastos campos apropriadissimos como os de nenhum

outro paiz do mundo as industrias pastorís ; e nossas


vastas florestas do Amazonas , Goyaz e Matto-Grosso,
abundantemente providas de materiaes para utilisar
milhões de braços nas industrias extractivas da borra
cha, cacáo, salsaparrilha , ipecacuanha , cravo , oleo de
copahyba , e multidão de outrasque já representam em
nossa riqueza publica, uma somma de cerca de 15
mil contos de valor annual de exportação . Os norte
americanos estavam por ventura nas mesmas condi
RAÇAS SELVAGENS 93

ções ? Não, por certo ; elles não podiam applicar o


braço indigena senão na agricultura ou nas fabricas ;
o indigena não se podia prestar a isso, porque por
uma lei traçada pela mão de Deus , e a que o branco
esteve, e está sujeito tambem, elle não póde ser agri
cultor sem ter sido pastor e caçador .

O argumento pois dos Estados-Unidos nada prova .


Os norte-americanos extinguiram seus selvagens ; nós
os sul-americanos havemos de aproveitar os nossos ,
como já os estamos aproveitando em escala muito
maior do que parece a quem não tem viajado o inte
rior, ou não presta a attenção devida á qualidade da
raça que ministra os mais abundantes braços de traba
lho para certas industrias. Se me fora licito entrar

aqui em um calculo da exportação que é na America


do Sul devida ao braço selvagem ou ás raças mestiças,
derivadas d'elle , ficar-se-ha sorprendido do elevado de
sua cifra ; talvez não represente nada menos de cem
mil contos annuaes !

Deixemos , poís , de parte a experiencia dos Estados


Unidos e das possessões inglezas da America do norte ;
n'este ponto elles têm que aprender comnosco , e muito
mais o terão desde • que nos deliberemos a emprehen
der n'este sentido um trabalho systematico e metho
dico, cujo plano peço licença a esta associação para
resumidamente esboçar ; e nem se me estranhe isto ,
porque é no seio das associações scientificas que na In
glaterra, na França e na Allemanha , se hão elabo
94 RAÇAS SELVAGENS

rado as resoluções dos mais ingentes problemas pra


ticos d'essas grandes nações .

Em escriptos anteriores , e nomeadamente em uma


memoria que ha dous annos , li n'esta associação , mos

trei que o primeiro elemento para collocar uma raça


em contacto com outra é a communidade da lingua .
Este é o primeiro passo de uma catechese regular .
Mas como conseguir que os brazileiros se dediquem
a estudar linguas selvagens ? Isto é impossivel ;
quando houvesse a boa vontade, faltariam os ele
mentos para esse estudo ; a pequena collecção que eu
possuo em uma unica lingua custou-me muito di
nheiro , e muito tempo.

Mas se não é possivel fazer os brazileiros estudarem


as linguas selvagens , é possivel , é facil educar meni
nos selvagens que , continuando com o conhecimento

da lingua materna , sejam nossos interpretes, o laço


entre a civilisação aryana, de que nós somos os repre
sentantes, e essa civilisação aborigene que ainda não
transpoz os limites da idade de pedra , e de que elles

são os representantes ,

Em 1871 creou-se n'este plano, e sob a protecção


da serenissima princeza imperial, o collegio Isabel ;
estão ahi representadas hoje todas as tribus do Ara
guaya, nos 52 alumnos que conta . Figure-se mais 10
annos ; representemos pela imaginação que em cada
uma d'essa tribus, algumas das quaes são inteira
mente barbaras , figuremos , digo, que o'viagente que as
RAÇAS SELVAGENS 95

tiver de visitar encontra 10 ou 12 pessoas que fallem

a nossa e a lingoa aborigene , que saibam ler e escrever ,


que sejam indigenas pela lingua e sangue, mas que
sejam brazileiros e christãos pelas idéas , sentimentos
e educação ; não é muito provavel , pergunto, que essa
tribu, seguindo as leis naturaes da perfectibilidade
humana , se transforme sinão em tudo , pelo menos
tanto quanto baste para começar a ser util ? Parece
que sim. A historia da humanidade dá testemunho

de que as transformações dos povos só se hão effec


tuado aos impulsos de um homem de sua mesma raça.
Ou eu me illudo muito , ou os numerosos indios
d'essa vasta região estarão utilisados em menos de 15
annos .

Avaliei as vantagens positivas , as que tocam a nossa

riqueza como Nação e a importantissima questão de


duas series de industrias que vão crescendo a olhos
vistos, e cuja importancia foi tão sabia e proficiente
mente demonstrada pelo barão de Liebig , cuja perda
a sciencia pratica da Europa tem tão amargamente
chorado.

Sa considerarmos porêm, que as grandes linguas


americanas são uma pagina importantissima da his
toria da humanidade , porque hoje sabe- se que tudo se
encadêa n'ella ; e que , linguas religião , idéas moraes,
nada é isolado na familia humana ; se considerarmos
que esta curiosa familia humana não tem ainda escri

pto a historia do homem do periodo de pedra ; e que


96 RAÇAS SELVAGENS

o nosso aborigene é um homem d'esse período , o que


equivale a possuirmos n'elle um livro de historia mais
antigo talvez do que o Genesis ou os Vedas ; se consi
derarmos o immenso interesse que resultárá para a
anthropologia, a sciencia das religiões e a linguistica
de conhecimentos aprofundados d'esta velha familia
americana, cuja civilisação como que parou ainda
antes do periodo em que a raça aryana fez as suas

primeiras irrupções para fóra dos grandes plateaux da


Asia central ; se considerarmos estas cousas, veremos ,
que uma instituição d'esta ordem , além de ser a solu

ção d'um problema pratico , que o nosso interesse de


brasileiros nos chama a resolver, será tambem uma
importante resurreição d'um velho passado , no qual
os grandes sacerdotes, os Calcas da humanidade , virão '
buscar a prophecia de mais d'um problema do futuro .

CONSEQUENCIAS FUTURAS DO CRUZAMENTO

A quantidade de sangue indigena que se tem mis


turado e confundido na nossa população do Brazil é
maior do que commummente se pensa . Mesmo em⚫
algumas provincias do sul (S. Paulo, Minas, Paraná ,

Rio Grande) essa população mestiça é consideravel, e


muito maior do que qualquer das provenientes pura
mente dos troncos branco e preto .

Ao passo que se remonta para o norte, o sangue


indigena predomina os mestiçamentos até que , no
RAÇAS SELVAGENS 97

Ceará , Piauhy, Maranhão, Pará , Amazonas, elle corre


mais ou menos misturado nas veias de cerca de dous

terços da população .
Para bem avaliarmos a extensão dos cruzamentos

no Brazil, podemos tomar sem receio de exageração o


algarismo de cinco milhões de brancos, pretos ou mu
latos, cruzados com aborigenes . Se ha erro n'este
algarismo é para menos e não para mais .
O Sr. Quatrefages, diante d'este extenso cruza
mento, pergunta : « Qual será o resultado em relação á
especie humana d'esta fusão de sangue , operada em
tão alta escala no immenso cadinho da America? »

Depois de estudar a opinião dos diversos escriptores


que se hão especialmente occupado d'essas questões
(dos quaes alguns sustentam que a especie humana

perderá com o cruzamento , porque a raça branca ,


incontestavelmente a melhor que existe, ficará degene
rada) , conclue, que o resultado final será benefico para
a humanidade; nós accrescentaremos que será benefico
tambem para o Brazil .
Sem poder entrar agora em um longo desenvolvi
mento do assumpto , porque só esta parte exigiria uma
memoria tao extensa como a que escrevemos , não me

dispensarei , comtudo , de citar alguns factos e leis


naturaes que confirmam, para nosso paiz, a consola
dora previsão que a sciencia deduz d'estes cruza
mentos .

Em primeiro lugar: Deus organisou a vida com leis


98 RAÇAS SELVAGENS

tão sabias e inflexiveis, que não é possivel suppôr- se


que taes cruzamentos fossem fecundos , si a Providen
cia Divina não tivesse em vista um melhoramento e

um progresso na especie. E' sabido que, desde que os


organismos dos seres vivos têm entre si differenças
especificas, ainda que seja fecunda a união dos dous ,
os filhos são estereis . Para não recordar senão um

facto , que é muito vulgar entre nós, eu citarei o

exemplo do cruzamento entre o cavallo e o jumento ,


cruzamento perfeitamente fecundo , ao passo que os
hybridos resultantes d'esta união tornam-se infecundos.
e são incapazes de reproducção entre si . Ora, tanto o
mulato, como o mameluco e o cafuz , não só gozam da

faculdade da reproducção, como parecem possuil - a


em maior extensão e desenvolvimento do que as raças
puras de onde provêm. E d'este facto resulta que a
differença entre os troncos humanos é accidental , sem

o que os filhos se não reproduziriam ; e que, se essa


differença torna- se importante quanto aos phenomenos
intellectuaes , não deve ser lançada á conta das raças
e sím á falta de educação , pobreza , clima e todas essas
que os naturalistas capitulam com o nome de acção
dos meios. Hoje está averiguado que existem raças
perfeitamente brancas , que ainda estão no periodo da
idade de pedra , e, portanto, iguaes em civilisação a
nossos selvagens , e inferiores aos negros do Haity e
S. Domingos .

Os troncos humanos não morrem; transformam- sc.


RAÇAS SELVAGENS 99

A unica transformação que vinga e predomina é


aquella que fica mais em harmonia com as circum
stancias locaes em que se têm de exercitar as diversas
e variadissimas funcções da vida . E' isto o que se dá
com os homens e com os animaes em toda a parte, e
é isto o que terá lugar com o Brazil . Não só o bom
senso indica a priori esta opinião ; ella resulta igual
mente dos factos que já podemos observar em nossa
curta historia do Brazil ; digo curta , porque : natura

non facit saltum , e suas transformações são lentas e


não se completam senão no decurso de muitos seculos .
Mas, não seria melhor que o Brazil fosse povoado
só por brancos? Para responder sensatamente a esta •

pergunta é necessario ter em consideração diversos


factos e leis physicas .

E ' cousa averiguada que a aptidão para a aclima


ção em um paiz quasi todo intertropical não é igual
para todos os troncos . O negro resiste melhor ao calor
do que o branco ; o indigena se deve considerar como
um termo medio entre esses dous extremos. Em 1857 ,

viajando eu de S. Paulo para Minas, succedeu que


pousassem comigo no mesmo rancho uma familia de

colonos allemães , recentemente chegados, e um comboi


de escravos pretos idos do Rio de Janeiro . Emquanto
os pretos se reuniam ao pé do fogo para aquecerem - se
――――
ao seu calor os allemães suavam e pereciam suffo
cados de calor dentro do rancho . Este contraste de

sensações oppostas, produzidas pelo mesmo gráo de


100 RAÇAS SELVAGENS

temperatura, indica bem claramente a aptidão de cada


tronco para habitar paizes quentes ou frios .
Um facto , que terá sido observado por todos, é a
prompta degradação da raça branca no Brazil , sobre
tudo nas cidades do littoral , ou nos lugares onde
abundam miasmas paludosos. Na provincia de Goyaz
existe uma grande região , conhecida com o nome de
váo do Paraná , onde só o negro , o mulato e o mame
luco podem viver; o branco, que alli fôr residir, morre
cedo ou tarde de febres paludosas ; a cidade de Mato
Grosso, na provincia do mesmo nome , está tambem
n'esse caso; a acção deleteria do clima tem alli extin

guido a raça branca . Nos vastos seringaes da provincia


do Pará , ao passo que o negociante branco (o regatão)
não vive alli alguns mezes sem voitar inchado , pallido
e anemico, o tapuio medra , cresce e multiplica- se.
Mens sana in corpore sano , é a regra geral , se não
o principio da superioridade intellectual. A raça
branca pura , na terceira ou quarta geração, sobretudo
nas cidades do littoral , dá apenas descendentes magros
e nervosos , ou gordos, de carnes e musculação flacidas ,
e de temperamento lymphatico ; se, sem robustez phy
sica, a intelligencia não é să - a raça branca não
póde conservar sua superioridade sem estes cruza
mentos providenciaes que, no decurso do tempo , lhe
hão de communicar esse gráo de força de que ella
necessita para resistir á accão deleteria do clima de
nossa terra.
RAÇAS SELVAGENS 101

Os estudos a este respeito tem descido já a grandes


mínuciosidades , e sabe- se hoje , que o melhor mestíço
é aquelle que resultar do tronco branco , no qual se
haja infiltrado um quinto de sangue indigena .
Não devemos conservar pois apprehensões e receios
a respeito dos futuros habitantes do Brasil . Cumpre
apenas não turbar , partindo de prejuizos de raças , o
processo lento, porém sabio , da natureza. Nosso grande

reservatorio de população é a Europa ; não continua


mos a importar africanos ; os indigenas, por uma lei
de selecção natural, hão de cedo ou tarde desappare
cer ; mas, se formos previdentes e humanos, elles não
desapparecerão antes de haver confundido parte do
seu sangue com o nosso , communicando-nos as immu

nidades para resistir a acção deleteria do climo inter


tropical que predomína no Brasil .
S. Agostinho dizia : Deus é tão grande nos arcanos
de sua providencia , que não permitte o mal senão porque
d'elle sabe derivar o bem ; quer isto dizer : nós julgamos
muita vez que uma ordem de factos é um mal , porque
a fraqueza de nossa intelligencia não póde alcançar
as consequencias finaes , que são ordinariamente o
bem ; certamente que os systemas e prejuizos humanos
perturbam e demoram muitas vezes a acção benefica
da natureza ; mas ella vence afinal, e a lei natural que
é lei de Deus , a despeito das convenções humanas ,
marcha e tem sempre uma realização completa e plena.
Aqui no Brasil as raças mesticas não apresentam
102 . RAÇAS SELVAGENS

inferioridade alguma intellectual ; talvez a proposição


contraria seja a verdadeira , se levarmos em conta que

os mestiços são pobres , não recebem educação , e en


contram nos prejuizos sociaes uma barreira forte con
tra a qual tem de lutar antes de fazer- se a si uma po
sição. De mais, nosso exercito e armada , com a lei
arbitraria do recrutamento (11) (pagina escura da nossa
historia , que cumpre eliminar quanto antes, porque é
uma causa de desmoralisação , que abala a sociedade
pelo mais poderoso de seus laços de união, que é o
respeito a liberdade individual) , perturba profunda
mente a paz das familias , e pesa quasi que exclusiva
mente sobre o mestiço . E nem se diga, que a quanti

dade da contribuição de sangue é tão diminuta, que


razoavelmente não se deve augurar que essa causa de
perturbação possa influir para retardar o desenvolví

mento da população crioula . Cumpre não julgar estas


cousas por alto, e pensar nos factos positivos e nos al
garismos antes de pronunciar taes juizos , que não po
dem ter valor senão tanto quanto são o resultado con
sciencioso da observação e dos factos . Quem examinar
isso , verá as grandes e poderosas razões que levaram
o governo a chamar a attenção do parlamento para
essa lei, cuja reforma elle compendiou entre as mais
urgentes. E com effeito , se considerarmos o Brasil com

uma população de 10 milhões de habitantes, e se vir


mos que não estão de facto sujeitos ao recrutamento 2

(11 ) Já está felizmente revogada .


RAÇAS SELVAGENS 103

milhões de escravos , 3 milhões de estrangeiros , 3 mi


lhões e quinhentos brancos ou mestiços ricos nacio
naes , resta uma população de 2 milhões , dos quaes ,
se deduzirmos a metade para o sexo feminino, um
terço para homens inferiores a 18 annos, ou maiores

de 40 , um 7 % para incapazes do serviço por molestia


ou defeitos physicos , um 7 L para os que se empregam
em profissões que os isentam do imposto de sangue ,
resta apenas una população de 421 mil habitantes ,
que é annualmente perturbada e esmagada por essa lei ,
cuja acção seria insensivel, se fòra repartida por toda
massa dos habitantes do Brasil.

Tendo em conta estas causas que impedem a educa


ção pela pobreza , que obstam á riqueza pela pertur
bação profunda do trabalho á aquelles que , para ad
quiril-a, não têm senão seus braços , póde- se por
ventura affirmar, que as raças mestiças no Brasil
apresentam inferioridade de caracteres intellectuaes e
moraes aos da raça branca ? Creio que não . A Bahia
é das provincias do imperio aquella em que a raça
branca mais intimamente se cruzou com a negra ; 0

desenvolvimento intellectual n'essa provincia é um dos


mais intensos do imperio.

S. Paulo e Maranhão são as provincias em que a

raça branca se cruzou mais profundamente com a in


digena ; S. Paulo está na vanguarda dos melhoramen
tos materiacs, e seria injusto aquelle que desconhe
104 RAÇAS SELVAGENS

cesse, que a provincia do Maranhao, attenta a sua

população e recursos , é a que representa o mais ener


gico movimento litterario do Imperio .

Nosso futuro por este lado é cheio de esperanças ;

não o perturbemos com guerras . A geologia nos ensina


que no mundo physico a acção do fogo foi sempre
perturbadora ; produziu essas grandes serras de gra
nito que encantam a vista, mas que são tão estereis
como as glorias das armas o são no mundo moral ;
os campos ferteis, as regiões privilegiadas , foram fi
lhas dos tempos de paz em que as aguas elaboraram
lentamente os continentes . Tomemos nós brasileiros

essa lição da natureza ; e já que somos a maior região


physica da America , procuremos ser tambem a maior
nação moral , não pela acção do fogo , mas pelos lentos
e methodicos trabalhos das artes , da economia e das
sciencias que são absolutamente incompativeis com as
estereis glorias das armas, quer se as alcance em paizes
estrangeiros , quer venham tintas com o sangue de
nossos patricios .
RAÇAS SELVAGENS 105

FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

Elementos moraes para classificação : familia, monoga


mia , polygamia e relação do homem com a mulher,
entre os selvagens do Brazil. Religião selvagem . Ins
tincto religioso. Idéa de Deus . Systema geral da theo
gonia tupi. Sentimento de gratidão para com o crea
dor. Immortalidade da alma . Transfigurações. Lenda
sobre Mani, que concebe em estado de virgindade. No
menclatura dos deuses selvagenes.

Não são os caracteres physicos e sim os moraes , que


entram como elemento principal em uma boa classifi
cação anthropologica . Segundo as regras ffxadas pela
sciencia, o instincto religioso de cada raça é um ele
mento muito importante ; e , se não é o primeiro , é
pelo menos um dos mais decisivos para tal mister . Não
é a força physica , a belleza , a gentileza da fórma , que
constituem , como entre os irracionaes , a superioridade
de uma raça humana sobre outra , assim como não são
as qualidades physicas que constituem a superioridade
de um homem sobre outro.

Ha , sem duvida alguma , certos laços entre as per


feições das fórmas e os dotes moraes, que não se po
dem contestar ; sobretudo ha certos limites que não

podem ser excedidos impunemente é assim que raras


106 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

vezes um anão será um homem intelligente. A' parte ,


porém , os extremos limites que não podem ser ultra
passados impunemente, nada ha nas fórmas physicas
do homem , que indique, com certeza , superioridade.
Partindo d'esta regra , cuja verdade é incontestavel ,
sogue-se que aquellas classificações, que se limitarem

a caracteres physicos , serão destituidas de importancia ,


porque omittirão justamente o que o homem tem de

mais caracteristico , que é sua natureza intellectual e


moral.

Os mestres da sciencia prestam partícular attenção


ao sentimento de sociabilidade e ao sentimento reli

gioso . Nós trataremos , pois, de estudar n'este capitulo


as manifestações d'esses sentimentos entre os nossos
selvagens. Este estudo é difficil por ser necessario evi
tar com igual cuidado , tanto o desdem, tão natural ao
homem civilisado quando vai apreciar instituições bár
baras ; como o sentimento , não menos natural ao co

ração humano , de exagerar as vantagens de um estado


de cousas qualquer, só porque o não conhece , e suppre,
por um ideal da propria imaginação , aquillo que elle
não sabe como é em realidade . Temos , pois, de evitar
com igual cuidado as suggestões pessimistas , assim
como o dominio do romance e da poesia.

PREJUIZOS ANTIGOS

O interesse é na historia um máo conselheiro .

Tanto os conquistadores hespanhóes e portuguezes ,


FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 107

como os jezuitas, consideraram o selvagem um instru


menlo de trabalho, uma especie de mina, cuja explo

ração disputaram encarniçadamente. Tudo quanto


elles escreveram respeito ao selvagem americano a não
serem as primeiras impressões de viagem é dominado
por esse pensamento fundamental.

Tanto a respeito da familia selvagem, como das reli


giões , merecem- me pouca fé os escriptores antigos. Es
tava nos interesses dos conquistadores deprimir o mais
possivel a raça conquistada ; com effeito só assim elles

podiam legitimar os medonhos actos de barbaria que


commetteram .

Para poder matar o indio , como se mata uma féra


bravia, para poder tomar-lhes impunemente as mu
lheres, roubar-lhes os filhos, crial-os para a escra
vidão, e não ter para com elles lei alguma de moral e
nem lhes reconhecer direitos , era mister acreditar que
nem tinham idéa de Deus, nem sentimentos moraes
ou de familia.

A historia fará algum dia plena justiça a essas as


serções .

Por outro lado, os padres jesuitas antigos, que com


o serem grandes homens, nem por isso deixavam de
ser homens, participaram em grande parte dos defeitos
de seus contemporaneos . N'aquelle tempo a crença no
poder do espirito maligno era tão grande , que Sata
108 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

naz representava na vida humana um papel quasi tão


importante como o do proprio Deus.

Não se entendia, como nós hoje entendemos , que


nada apparece na humanidade que não seja a conse
quencia infallivel de uma lei moral estabelecida pelo
Creador. Toda e qualquer manifestação religiosa era ,
pois, segundo as idéas do tempo, uma inspiração do
diabo, um culto prestado ao espirito das trevas . Im
pellidos por estes dons poderosos moveis, comprehen
de-se quantos erros não commetteram os primeiros his
toriadores, e a desconfiança com que devem hoje ser
lidos seus escriptos.

Feitas estas reservas, eu entro no estudo do primeiro


ponto, isto é :

FAMILIA SELVAGEM

Tendo eu recusado o testemunho dos escriptores an


tigos, o que passo a referir é filho da propria obser
vação , ou de testemunhos insuspeitos recolhidos nas
localidades , no decurso de longas peregrinações que
tenho feito nos ultimos dez annos pelo interior do
Brazil.

Em minhas viagens tenho já estado em mais de cem


aldeas de selvagens. Conheço cerca de trinta tribus,
constituindo dez nações indigenas, algumas já meio
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 109

civilisadas, outras ainda inteiramente ' extremes de

qualquer comparticipação de nossas instituições, idéas


e preconceitos .

De minhas observações tem resultado sempre que ,


na familia indigena existem desde as instituições ri
gidas e de uma severidade de costumes que excedem a
tudo quanto a historia nos refere , até a communhão
das mulheres. Refiro-me ao indio que não está cate
chisado , porque este é, por via de regra , nm ente de
gradado ; ou seja que o systema de catechese é máo ,

ou seja que o esforço dirigido especialmente para con


seguir um homem religioso , se esqueça de desenvolver
as idéas eminentemente sociaes do trabalho livre , ou
seja outra qualquer causa , o facto é este : o indio cate

chisado é um homem degradado, sem costumes ori


ginaes, indifferente a tudo, e , portanto á sua mulher
e quasi que á sua familia . Os aldeamentos indo-chris

tãos não têm, pois, costumes originaes : sua familia é


a familia christă , mais ou menos moralisada , segundo
o caracter individual do catechista .

Dissemos, porem, que os selvagens , que estão fóra


do contacto de nossa civilisação, apresentam nas
relações do homem com a mulher todos os typos , des
de a communhão de mulheres até uma severidade

desconhecida nas sociedades christãs. E' assim que


conheço tribus onde não ha casamentos, assim como
conheço outras em que a mulher adultera é punida
140 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

com a pena da fogueira ; e como taes instituições possam

parecer estranhas , cu necessito de justifical-as com


factos.

COMMUNISMO ENTRE OS CAHYAPÒS

Não se entenda por communismo de mulheres


alguma cousa de semelhante á prostituição . Aquelle
é um modo de familia de que a raça branca tem um
exemplo notavel entre os espartanos; esta é a negação
da familia .

E' tão importante esta distincção para bem compre


hender-se a familia selvagem, quanto é certo que n'a

quellas mesmas tribus , onde ha esse communismo , as


prostitutas são tidas em grande desprezo ; o que seria
-impossivel se as duas cousas se equivalessem .
Os Cahyapós, que me parecem ser a mais numerosa
tribu dos plateaux centraes do Brazil , são um exemplo
d'esta instituição .

Estes indios , subdivididos em tribus poderosas ,


debaixo dos nomes de Cahyapós, Gradahús, Gorotirés
e Carahós, estendem seu dominio desde as florestas da

provincia do Paraná , Matto-grosso , Goyaz, Maranhão ,


até o Pará, onde, sob o nome de Gorotirés, possuem
fortes aldeamentos á margem do Xingú .

A's margens do Araguaya elles entraram , ha poucos


annos, em relação comnosco , e têm seus aldeamentos

nas setenta leguas que medêam entre o rio Tapyrapé


e a Cachoeira- Grande, margem esquerda do Araguaya ,
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 111

com uma população que orça , mais ou menos por dez


mil homens, sendo actualmente governados por tres
chefes intelligentes e aguerridos, de nomes Manahó
Kamecran, não me occorrendo agora o nome do terceiro .
Não trato , pois , de uma pequena tribu , e sim de
uma grande e poderosa nação .
O communismo de mulheres entre elles consiste no

seguinte : a mulher , desde que attinge á idade em que


lhe é permitido entrar em relação com o homem ,
concebe daquelle que lhe apraz . No periodo da gesta
ção e amamentação é sustentada pelo pai do menino ,
o qual pòde exercer igual encargo para com outras , as
quaes, durante periodos identicos , moram na mesma
cabana . Desde que a mulher começa a trabalhar é livre
de conceber do mesmo homem, ou póde procurar outro ,
passando para este o encargo da sustentação da prole
anterior . Notarei que entre os selvagens o menino
começa a cuidar da propria subsistencia desde os dez

annos , sendo comtudo auxiliado pelos parentes até que


baste a si mesmo .

Os selvagens são em geral mui caridosos para com


todos os meninos , inclusive para com os de tribus
inimigas que tomam na guerra , aos quaes criam como
como se foram proprios.
Este modo de entender as relações do homem com a
mulher, isto é , fazêl-as exclusivamente depender da
vontade dos dous , pòde ter e effectivamente deve ter
grandes inconvenientes. Quaesquer, porém , que elles
112 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

sejam, não é a prostituição; é um modo de ser da fami


lia , que elles julgaram melhor, segundo suas idéas e
meios de vida.

EXCLUSIVISMO DOS GUATÓS E CHAMBIOAS

Tomarei agora dous typos diversos : os Guatós na


bacia do Prata , e os Chambioás na do Amazonas .
Os Guatós do Paraguay brasileiro são um typo exa
gerado dos direitos do homem sobre a mulher . Estes

Guatós são os indios que habitam os immensos cam


pos palludosos do Alto-Paraguay, S. Lourenço e

Cuyabá ; a região de sua residencia se estende , pela


margem direita do Paraguay, até a bahia denominada
por nós Gayba (o que se diria correctamente Ynga
hyba, que quer dizer lugar de arvores de ingá) ; pela
margem direita até a bahia a que chamamos Chanés
(o que correctamente se deveria dizer Echané- de

echa , vêr, e é, destreza , desembaraço, e que traduzi


riamos pelo circumloquio portuguez Bella-Vista , lugar
descampado) ; pelo Paraguay arriba suas habitações
vão até o morro do Descalvado ; pelo S. Lourenço até
a confluencia do Cuyabá ; e por este até dez leguas ao
sul do ponto do Cassange. Pelos limites que acabo de
traçar, vê-se que não tratamos de uma pequena tribu ;
e, se bem que não possamos nem de longe avaliar a
sua população , comprehende-se , pela área que occupa ,
que tratamos de uma grande nação , dividida talvez em
muitas tribus , o que por emquanto não sabemos, porque
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 113

habitando eles montes isolados em meio d'aquelles

vastos pantanaes , occupam por esse só facto uma re


gião pouco accessivel ; e o que dizemos de seus costu
mes ou nos foi referido pelos officiaes fugitivos de
Coimbra , ou pelo que pudemos observar , quando ,
para evitar a vigilancia das forças paraguayas na occa
sião em que as iamos atacar, tivemos necessidade de
fazer nossas marchas em centenares de canôas , por

pantanaes conhecidos por elles , e onde nos foram de


grande e valiosissimo soccorro , já indicando lugares
de descanço no meio d'aquellas immensas paludes, já
guiando á nossos soldados o caminho n'aquella emma
ranhadissima rêde de canaes . O Guató não é mono

gamo tem uma , duas ou tres mulheres, segundo a


agilidade que mostra na caça , pesca e colheita dos di
versos fructos que constituem a base de sua alimentação .
Parece, pois , que não liga idéa alguma de moral a este
facto, que elle regula segundo suas forças physicas , e
principalmente segundo a capacidade de alimentar a
familia . Nem conheço as diversas ceremonias de que .
usa para realisar o casamento, porque, quando estive
em Mato-Grosso, andava com o espirito muito preoc
cupado para podel - as observar, e nem mesmo viria

aqui á pello mencional- as (12) .

(12) Eu occupei a presidencia da provincia de Matto


Grosso durante os dois ultimos annos da guerra do .
Paraguay , e alli tive de lutar contra tres inimigos que
absorveriam a attenção de qualquer : os paraguayos , a
peste e a fome.
114 PAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

O que interessa á minha these é o recato das mulhe

res ; se uma Guató nos trazia um peixe , uma caça,


uma fruta silvestre, ou para obedecer á ordem do ma
rido, ou para procurar obter um objecto nosso que cu

biçava , fazia- o sempre com os olhos fitos no chão ou


voltados para seu marido.
Se nossos officiaes entravam de sorpresa em alguma
cabana, as mulheres , de ordinario assentadas no chão
sobre suas esteiras , lhes davam as costas , e viravam-se
todas para o marido ou pai de familia, e continuavam
o seu serviço sem dizer uma palavra , sem manifestar
a tão natural curiosidade de ver aquella grande por
ção de canoas e de homens armados , que passavam por

uma região até então virgem de outros que não fossem


elles mesmos . Este profundo e exagerado recato das
Guatós foi geralmente notado sempre pelas forças , onde,
reinando o espirito de libertinagem proprio aos acom
pamentos militares, eram todos accordes em dizer,

que entre os Guatós se não consentia genero algum de


prostituição . Comprehende-se que, diante de taes sen
timentos, nenhuma offensa será sentida tão dolorosa
mente pelo Guató como um desacato á sua familia .

Conserva esse povo até hoje grande animoşidade con


tra os hespanhóes ; e um velho pratico refiria-me sem
pre , como se fôra passado poucos dias antes, um roubo
que os hespanhóes havian feito de mulheres Guatós,

e que talvez já datasse de mais de cem ou duzentos


annos.
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 115

Para elles os paraguayos continuam a ser castelha


nos , assim como nós continuamos a ser portuguezes.
Quem sabe se não foram essas mulheres, roubadas ha
tanto tempo, a razão da extrema fidelidade que nos
guardaram sempre esses selvagens que, forçados desde
o principio da guerra a passar muitas vezes pelas
rondas paraguayas nunca denunciaram nossos movi
mentos ou presença nem por gesto? O Dr. Carvalhal ,
distincto medico do exercito , que , acossado pelo inimi
go no combate do Alegre , viu-se obrigado a refugiar-se
entre os Guatós , que com elles errou por muito tempo ,

e que, portanto . teve o espaço e vagar para notar seus


costumes, insistia em suas narrações sobre o singular
recato , modestia e honestidade da familia Guató.

Tomemos agora um outro typo mais severo ainda do


que o Guató, e na bacia do Amazonas , o Chambioá.

Os Chambioás com os Carajas, Curajahis e Javaés,


formam uma so nação , com sessenta ou oitenta aldeas
espalhadas á margem do rio Araguaya , desde o furo
Bananal até as Intaipabas (itaypabe, agua que corre
sobre pedregal) , o que mede uma extensão de 120 a
125 leguas, e com uma população de cerca de sete a
pito mil individuos. Entre esses indios ha dois factos
nimiamente curiosos nas instituições que regulam as
relações do homem com a mulher .

O primeiro d'estes é o haver nas aldeas homens


destinanos a serem viri viduarum . Esses individuos

não têm outro mister ; são sustentados pela tribu, e não


116 FAMILIA RELIGIÃO SELNAGEM

se entregam, como os outros , aos exercicios das longas

viagens e peregrinações, que todos fazem annualmente,


embora revesando-se .

Esta singular casta , sustentada pelos outros , des


pertou-me a curiosidade ; e tendo eu pela primeira vez
notado o facto em uma aldêa, cujo capitão era homem
muito intelligente , de nome Coinamá. tive occasião de

notar-lhe que me não parecia justo , que a aldea carre


gasse com o sustento d'esses homens . Elle retorquiu - me
que a paz de que gozavam as familias, e de que não
gosariam a não serem aquelles individuos ou antes
essa instituição , compensava de muito o trabalho que
pesava sobre os outros de sustental-os . A respeito da
severidade de suas leis , quanto ao adulterio , referiu
me mais de uma vez o venerando Fr. Francisco do

Monte de S. Victo , que estes Chambioás queimavam


as mulheres adulteras . Eu nunca tive occasião de

verificar este facto por propria observação (13)

IDADE PARA O MATRIMONIO

Todas as tribus impedem com grande cautela , e


algumas até com a severidade extrema da pena de
morte , a união dos dois sexos antes da completa pu
berdade da mulher , sobretudo do homem . Assegu

(13) Este Fr. Francisco é um velho e venerando


missionario capuchinho, que aldêou os Apinagés da
Boa-Vista, e que reside hoje em Santa Maria do Ara
guaya, onde é o superior dos capuchinhos .
FAMILIA RELIGIÃO SELVAGEM 117

rou-me Fr. Francisco , que a virgindade do homem era


por via de regra mantida até a época do casamento,
e que este não era tolerado antes dos 25 annos , sem
que comtudo seja isso o ordinario: o casamento é
commummente depois dos trinta.
A principal razão que dão os selvagens para isso é a
força e energia da prole , e a força e energia da prole
é cousa muita mais importente em uma sociedade bar
bara e rudimental, do que entre um povo civilisado ,
como é facil de avaliar ; a tribu que , por falta d'estas
instituições, deixar a raça abastardar- se, é uma tribu
vencida ; sem armas de fogo , sem os diversos recursos
que uma cultura mais andiatada pòde trazer á arte da
guerra, vence aquella tribu , cujos individuos dispozerem
de mais forças physicas: por aqui comprehende- se o pa
pel importante que representa esse elemento em taes
sociedades . Não é só isso . Entre nós, um menino fraco

e mal conformado póde vingar á custa de cuidados , e


em geral da ausencia absoluta de privações a que está
sujeito n'essa idade . N'uma socidade barbara, porém ,
onde não é conhecido a uso do sal , onde se não podem
enceileirar os alimentos-a fome, as intemperies de

que não são protegidos, nem pelas roupas, de que não


usam, nem por aquellas choupanas . verdadeiros rudi.
mentos de morada ; as peregrinações forçadas, ou pelas
estações , ou pela necessidade de buscar alimentos , são
outras tantas causas de eliminação a que não poderiam
resistir os meninos fracos e mal conformados . O instincto ,
118 FAMILIA RELIGIÃO SELVAGEM

pois , da propria conservação , o orgulho, o amor pater


no e materno, vêm em auxilio do sentimento de ho

nestidade, para fazer do indio um homem, pelo


commum, mais moral do que o christão civilisado .
A opinião contraria ou é fundada em observações
superficiaes, ou assenta-se em factos isolados , que
entre nós, assim como entre elles , existem; mas não
podem , sem imprudencia e notavel erro , ser elevados á
categoria de regras geraes. A consequencia que devemos
tirar dos factos é esta : a familia selvagem é tão res
peitavel como a christã , dadas as circumstancias de

costumes , religião e meios de vida de nossos indios .


A prostituição, que se nota em tão alta escala nas
aldeas fundadas por nós, é a consequencia forçosa do
aldêamento , o qual , trazendo a vida sedentaria a
homens que não têm as artes necessarias para viver
n'ella , sujeita-os á cultura da terra para obterem um
alimento inferior para elles, ao que com menor trabalho
conseguiriam na caça e na pesca , emquanto po
dessem livremente entregar- se a ellas na vida semi-no
made a que estão habituados . D'ahi o desgosto, a
preguiça, a ociosidade, que forçosamente corrompem
tudo e cream a prostituição , a embriaguez e outros vicios .
No estado selvagem.a familia indigena é o que deve
ser : a expressão exacta das necessidades sociaes , que
ella sente no gráo de civilisação em que se acha .
E' pois tão digna de respeito como a nossa, e não
póde ser alterada senão depois de incutirmos-lhe nossas
FAMILIA RELIGIÃO SELVAGEM 119

idéas e necessidades; e o primeiro passo para isso é


aprender a sua lingua , para podermos ensinar a nossa ,
e com ella nossas idéas .

Como já observei , os modernos catechistas não a


prendem as linguas indigenas . Já ouvi a um d'elles
sustentar convencidamente a opinião de que nossos
selvagens eram incatechisaveis por serem descendentes
de Caim. A experiencia dos jesuitas em ambas as
Americas prova o contrario .

Em vez de explicação genealogica, me parece muito


mais notavel affirmar-se , que é impossivel trazer um

homem qualquer ás nossas idéas , desde que nos falte


o meio de fazel-as conhecidas a esse homem, seja elle
filho de Caim ou de Abel . Se um derviche do Japão
viesse prégar entre nós sua religião , não encontraria
provavelmedte quem lhe quizesse ouvir os sermões

emquanto elle os prégasse na lingua japoneza .

Quando Deus quiz propagar o christianismo não se


satisfez que os apostolos o pregassem no dialecto syro
chaldaico que fallavam : fez baixar sobre elles o Espi
rito-Santo, afim de que podessem fallar todas as lin
guas. Se os apostolos , que tinham mais força , porque
receberam a missão directa da propagação da fé, o
não deviam conseguir senão por intermedio das lin
guas falladas pelos povos pagãos ; se isto é ensinado pelo
Espirito Santo , que é a propria sabedoria , como é que
aquelles que se afastam do caminho ensinado por
120 FAMILIA RELIGIÃO SELVAGEM

Deus se espantam de não chegar ao ponto a que elle se


dirige (14) ?
Todos nós brazileiros , creados nas fazendas do in
terior das provincias , sobre tudo nas vizinhanças dos
pequenos arraiaes compostos de populações mestiças de
indios , fomos, desde a infancia, embalados no meio das

tradições da religião dos selvagens .

Tempo houve na vida de todos nós , em que o Deus


dos christãos foi tão venerado e tão temido quanto os
deuses selvagens . Se nossas mãis nos adormeciam mui
tas vezes com canticos que recordavam a infancia da
Virgem Maria , ou o nascimento de Christo , nossas
amas de leite nos contavam as historias do Saci Ce
rêrê, narravam-nos o como um certo menino havia sido
desencaminhado nos bosques pelo Curupira ; o como

um velho tal , que caçava nos domingos , sem ouvir


inissa, fôra impellido pelo Anhanga a precipitar-se em
um abysmo ; o como uma lavadeira de roupa tinha
avistado no fundo dos poços o Unutara , e tantas outras
historias, que não são senão os fragmentos da theogo
nia aborigene , que, desde pequenos nos foi ensinada , e

( 14) Tinhamos escripto este capitulo quando nos


chegou ás mãos o noticioso relatorio com que o Sr.
Cardoso Junior abriu a assembléa de Mato-Grosso no
anno passado . N'este documento , onde encontramos
curiosas informações sobre as tribus selvagens de Mato
Grosso , se lê que a nação Guató , de que nos occupamos
atraz , está hoje quasi extincta por uma peste de bexi
gas que a assolou .
FAMILIA RELIGIÃO SELVAGEM 121

na qual, como disse , tempo houve em que todos nós


acreditamos.

Ainda hoje, não ha talvez um só caipira de S.


Paulo, ou um bruaqueiro de Minas, á quem possaes
dizer , que é um ente imaginario o Saci Ccréré, que elle
julgou encontrar por deshoras junto a alguma por
teira, que lhe saltou na garupa, ou que lhe fez alguma
outra tropelia .
As crenças e superstições indigenas passaram todas
para o nosso povo , e os deuses dos Tupis vivem ainda

em nossos campos, vida tão real como a que lhes
davam os aborigenes, no tempo em que seus pagés (e

não piagas) os adoravam escrever pois a theogonia


tupí, é quasi que escrever até um certo ponto as cren
ças de nosso povo, aquillo em que cada um de nós
acreditou até os 10 ou 11 annos.

Não me occupando eu , porém, de escrever uma mo


nographia a respeito da religião indigena , e , não devendo
tomar d'este assumpto sinão a parte que tem ligação
immediata com a anthropologia, eu limitarei este pa

ragrapho a registrar apenas aquillo que diz respeito a


estas tres idéas capitaes sentimento de gratidão para
com o Creador, immortalidade da alma, theoria de
penas e recompensas ; começando por dar uma idéa
geral do como era concebida pelos selvagens a noção
de Deus.
CONCEPÇÃO DA DIVINDADE

Examinando esta questão de religião como natura


122 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

lista, isto é ; sem sahir nunca do facto observado e

natural, o que a historia nos apresenta é o polytheismo


precedendo ao monotheismo .
Se os indios da Asia conceberam o seu Brama , e os

hebreus o seu Jehovah , Deus unico em substancia , se


bem que trino em suas manifestações ; os progressos
hoje do sanscrito e do estudo das antiguidades do
Oriente , já tem feito recuar muito para traz a epocha
da civilisação humana ; de modo que nada hoje nos
autorisa a pensar que o Brama dos Vedas , ou o Johovah
da Biblia , tivessem sido a primeira concepção que

esses povos fizeram de Deus ; é muito natural que es


sas idéas elevadas , e que já revelam tanta força de
abstracção , tenham sido precedidas de idéas toscas e
grosseiras, como foram aquellas pelas quaes todos os
outros povos marcharam , lenta e successivamente , até

a posse d'essas concepções já tão fortes e tão elevadas.


Como quer que seja , a idéa de um Deus todo pode
roso , e unico , não foi possuida pelos nossos selvagens
ao tempo da descoberta da America ; e pois não era
possivel que sua lingua tivesse uma palavra que a po
desse expressar. Ha no entretanto um principio superior
qualificado com o nome de Tupan a quem parece que
attribuiam maior poder do que aos outros .

THEOGONIA DOS INDIOS

A theogonia dos indios assenta-se sobre esta idéa


capital todas as cousas creadas tem sua mãi . E' de
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 123

notar- se que elles não empreguem a palavra pai ; esta


palavra pai , não indica a origem de um homem , se
não em uma sociedade em que o casamento tenha já
excluido a communidade das mulheres ; e portanto

não podia ser empregada por nossos selvagens em um


estado tão rudimental de civilisação . O aphorismo ro

mano pater est is quem justæ nuptiæ demonstrant , ex


plica claramente a razão porque um povo primitivo ,
quando tivesse a necessidade de exprimir a filiação ,
empregasse de preferencia a palavra mãi , como judi
ciosamente observa um escriptor.
O systema geral da theogonia tupí , parece ser este :
Existem tres deuses superiores : o Sol que é o creador
de todos os viventes ; a Lua que é a creadora de todos
os vegetaes ; e Perudá ou Rudá , o deus do amôr , en
carregado de promover a reproducção dos seres crea
dos. Como observarei adiante , as palavras que no tupí

exprimem sol e lua, me parecem indicar o pensamento


religioso que os nossos selvagens tinham para com
esses astros , e que fica indicado . Cada um d'estes tres
grandes seres é o creador do reino de que se trata : 0
sol, do reino animal : a lua , do reino vegetal ; e Pe
rudá, da reproducção . Cada um d'elles é servido por
tantos outros deuses , quantos eram os generos admit
tidos pelos indios : estes por sua vez eram servidos por
outros tantos seres, quantas eram as especies que elles
reconheciam e assim por diante até que , cada lago
ou rio , ou especie animal ou vegetal , tem seu genio
124 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

protector, sua mãi . Esta crença ainda é vulgar entre

o povo do interior das provincias de Mato-Grosso,


Goyaz , e sobretudo do Pará , e é provavel que tambem
do Amazonas.

O sol é a măi dos viventes , todos que habitam a


terra ; a lua é a mai de todos os vegetaes. Estas duas
divindades geraes , á quem elles attribuiam a creação

dos viventes e dos vegetaes, não tinham nomes que


exprimissem caracteres sobrenaturaes . As expressões ,
que indicam qualidades abstractas, deviam vir em um
periodo muito posterior á aquelle em que a civilisação
aryana, trazida pela raça conquistadora , veiu encon
trar os selvagens da America.
Não tinham termos abstractos para exprimil- os :
diziam simplesmente : mãi dos viventes, mãi dos vege
taes. E' sabido que a palavra sol é guaracy, de guara ,
vivente, e cy mãi. Lua é jácy, de já vegetal , cy mãi ( 15) .

AMOR E TEMOR DAS DIVINDADES

Qual o sentimento natural para aquelle que nos

creou a nós pela mesma fórma porque nossa mãi nos

(15) Estas ethimologias offerecem difficuldades em


linguas não escriptas . Os Tupis do norte dizem gua
racy ; Cuàra ou guara não differem senão no modo de
escrever ; a palavra pronunciada é a mesma ; guara
tem diversas significações , entre ellas as de morador,
vivente, e a do verbo ser ; todas estas redundam em
traduzir-se a palavra guaracy por mai dos viventes .
Os Tupis do sul (Guaranis) , pronunciam cuaracy ;
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 125

cria ? Não é necessario outra prova para concluir que :


o sentimento que os Tupis tributavam ao sol , devia
ser até certo ponto identico ao que tributavam a sua
mãi natural .

Qual o sentimento que alimentariamos para com


aquelle ser a quem attribuissemos a creação de todos
os vegetaes, isto é d'aquillo com que nos alimenta
mos ? Creio que não necessito de outros factos para
demonstrar, que os pobres selvagens tributavam a seus
deuses sentimentos tão puros de gratidão como aquelles
que nós os christãos tributamos ao nosso Deus . Na
oração que nos foi ensinada por Christo, o modo de
exprimir nossa relação fundamental para com o Crea

dor é a palavra pai . Elles empregam o nome de mãi ;


em que é que isto expressa a ausencia absoluta de

idéa de gratidão para com o Creador, como pretende


ram os portuguezes e sobretudo os hespanhóes ?

Quasi todos os Deuses dos indios americanos , dizem


elles , são Deuses maleficos , á quem attribuiam antes

esta corruptela deu lugar a que o sabio Montoya a


fl. 328 verso , do seu Tesoro , diga que ella vem de
cuara buraco , e acy pesado. Chamar o sol de buraco
pesado é extravagancia que nunca commetteriam
nossos indios , cuja lingua é sempre tão escrupulosa,
dando a cada objecto caracteres e predicados que elle
realmente tem . Jacy , não offerece duvida alguma ; ja
significa fructa , e tambem brotar, como a semente que
emerge do solo ; a palavra por tanto ou significa mãi
das fructas , ou mãi de tudo quanto nasce do solo .
126 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

o poder de fazer mal aos homens , do que o de lhes


fazer bem .

Eis aqui o resultado de querer escrever sobre cousas


que se não tem examinado . Isto é um absurdo ; a pro
posição contraria é que é verdadeira , isto é : com
excepção talvez do Jurupari, não ha um só ente so
brenatural entre os selvagens a que não se attribua a
acção benefica de proteger uma certa parte da crea
ção , de que elle era reputado um pai mais proximo do
que o sol ou a lua , mas em summa um pai . Isto é
facto que eu tenho examinado com o maior escrupulo .

O que eu nunca encontrei entre os selvagens foi a


concepção de um espirito sobrenatural , cuja missão
fosse exclusivamente toda mal, como é entre nós a

concepção de satanaz isso sim, isso é que não duvido


asseverar que não existe. O proprio jurupari não está
n'esse caso ; as tradições que eu tenho colhido a res
peito, e que só se encontram hoje no norte do Imperio ,
não são completas ; mas a palavra —jurupari—equi
vale a isso que nossas amas de leite nos descrevem
como pesadelo . E ' , segundo os indios , um ente que de
noite cerra a garganta das creanças, ou mesmo dos
homens, para trazer-lhes afflicções e mãos sonhos ( 16).

( 16 ) A palavra Jurupari parece-me corruptela da


palavra Jurupoari que ao pé da lettra traduziriamos :
boca, mão , sobre ; tirar da boca . Montoya , Tesoro ,
fl. 202 ver . , traz esta phrase che jurupoari , tirou- me a
palavra da boca. O Sr. Dr. Baptista Caetano , traduz a
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 127

Certamente que attribuem-se máos actos aos deuses .


Por ventura quem ler a Biblia, sem dar desconto ao
que a linguagem humana necessitou de introduzir de

seu , poderá conscienciosamente affirmar, que tudo


quanto ella attribue ao Deus dos judeus seja santo e
honesto ? Não fallemos da Biblia ; poder-se- ha dizer
que os gregos não tinham idéas de seres divinos , por
que attribuiam a Jupiter e aos outros acções indignas
da divindade ? Pois se , entre povos tão cultos e com
tão elevadas noções da divindade, deu- se isso , como
se pretende que os deuses de nossos selvagens são
todos entes maleficos, se os nossos selvagens , com
Hesiodo , Homero, e sobretudo com Aristophanes na

mão , podiam disputar a superioridade dos seus diante


d'aquelles ?

E ' difficil comprehender bem o espirito da religião


dos indios sem estar entre elles , sem ter a paciencia
necessaria, e os meios de interrogal- os ; e é d'ahi que
resulta essa Babel de informações inexactas que se
tem dado de suas idéas religiosas.

palavra por ser que vem a nossa rede, isto é ao lu


gar em que dormimos .
Seja ou não corrupta a palavra , qualquer das duas
traducções está conforme à tradição indigena , e , em
fundo , exprime a idéa supersticiosa dos selvagens , se
gundo a qual este ente sobrenatural visita os homens
em sonho , e causa afflicções tanto maiores , quanto ,
trazendo - lhes a imagem de perigos horriveis , os impede
de gritar, isto é tira-lhes a faculdade da voz.
128 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

Dizem os que negam boas acções aos deuses selva


gens : Anhanga , Curupira , Cahipora (aliás Cahapora),
são apenas conservados nas tradições dos brasileiros

como entes que podem fazer mal ao homem , sem lhes


poder fazer bem algum.
Assim é, se referem-se ás tradições vulgares do
nosso povo, modificadas pelo christianismo.
Mas a razão não é porque esses seres sejam por sua
· natureza maleficos.
"
Conforme disse acima , os indios attribuem a cada

ordem de creação um deus protector, uma especie de


mãi , que a defende contra tudo , e especialmente con
tra a acção destruidora do homem. Nas historias que
narram , ha quasi sempre um homem que persegue a
uma certa ordem de creação , e é a esse homem, que
persegue essa ordem de creação , que o deus apparece
fazendo algum mal ; o mal portanto , feito a tal ho
mem , não é um mal , é uma punição justa e merecida ,
segundo as idéas dos selvagens .
Tomemos os mesmos exemplos citados . Anhanga é
o deus da caça do campo ; Anhanga devia proteger
todos os animaes terrestres contra os indios que qui

zessem abusar de seu pendor pela caça , para destruil-os


inutilmente. Concebe - se sem esforço o papel impor

tante que a caça deve representar em povos que não


criam animal domestico algum , e que por conseguinte
só se alimentam dos que são creados nos bosques, ex
pontaneamente . Partindo d'essas idéas, haverá nada
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 129

de mais natural , do que haverem milhares de historias


em que Anhanga figurasse como fazendo maleficios aos
homens?

Da minha collecção de contos eu tomarei uma lenda ,


ao acaso, para servir de exemplo :
" Nas immediações da hoje cidade de Santarém
, um
indio Tupinambá perseguia uma veada que era seguida
do filhinho que amamentava , depois de havel- a ferido ,
o indio , podendo agarrar o filho da veada , escondeu- se
por detraz de uma arvore , e fel-o gritar ; attrahida
pelos gritos de agonia do filhinho a veada chegou- se a
poucos passos de distancia do indio - elle a flechou ;

ella cahiu : quando o indio , satisfeito, foi apanhar sua


presa reconheceu que havia sido victima de uma illusão

do Anhanga; a veada , a quem elle indio havia perse


guido , não era uma veada , era sua propria mãi , que
jazia morta no chão, varada com a flecha, e toda
dilacerada pelos espinhos . »

Eis aqui uma acção demoniaca , dirão . Não , digo eu ,


esta acção não repugna a uma divindade; é necessario
estudar estas cousas debaixo do mesmo ponto de vista
de quem as imaginou ; os indios tinham na caça o seu
sustento ; o instincto lhes tinha indicado que destrui
riam facilmente esse sustento, se não poupassem a vida

dos animaes que amamentavam ; e como não tinham


e nem podiam ter um codigo de leis para a caça , tinham
um preceito religioso . Esse conto , assim como todos os
outros, encerra uma profunda lição de moral , e é de
130 FAMILIA E RELIGIÃO SELNAGEM
·
mais a mais a manisfestação de uma regra eminente
mente conservadora, debaixo do seu ponto de vista ,
e no estado em que elles se achavam; cousas estas que
nunca se devem perder da memoria , pena de não
comprehender as cousas , e de escrever romances em vez
de escrever historia.

O Cahapora é outro exemplo. Homem colossal , de


corpo pelludo , montado em um porco do mato , ninguem
o podia vêr sem ser extremamente ínfeliz pelo resto de
sua vida. O Cahapora é pois um ente tão máo , que não
póde ser visto sem que arraste a infelicidade para quem
o avistar. Assim é ; mas, ouçamos a tradição , e ella nos
dará a explicação do facto . O Cahapora era o genio
protector da caça do mato, e só era visto quando ,
rodeando- se uma familia inteira de animaes selvagens ,

se a pretendia extinguir. Portanto , aqui , como na


tradição acima citada acerca do Anhanga, o que ha é
uma boa acção ; é um acto de protecção , exercido pelo
genio , contra quem pretendesse destruir aquelles seres
que, segundo as crenças selvagens, foram confiados
a seus cuidados , e de cuja não destruição os primeiros
interessados eram os proprios selvagens .
Eu não posso acompanhar em seus detalhes esta
discussão , porque seria mister passar em revista todas
as tradições indigenas ; e isso faz objecto de um livro

especial que comecei ha annos, e que hei de publicar


algum dia.

O que está escripto, porem, me parece sufficiente

$
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 131

para chegar a esta conclusão: entre os selvagens ,


assim como entre nós , a acção attribuida aos espiritos
sobrenaturaes é uma acção benefica ; quem recusar- se
a enchergar n'esses seres a manifestação de um verda
deiro e poderoso instincto religioso, a pretexto de que
entre elles taes seres são capazes de mal, esse negará
que os gregos e romanos tivessem taes instinctos .

Por muito rude e barbara que, á primeira vista ,


pareça uma instituição qualquer de um povo, ella deve
ser estudada com respeito . As instituições fundamen
taes dos povos, qualquer que seja seu gráo de civili
sação ou barbaria, são o resultado necessario das leis

eternas de moral e justiça que Deus creou na consci


encia humana, leis que em fundo são as mesmas no

selvagem ou no homem civilisado, embora susceptiveis


de manifestações diversas, segundo o gráo de adian
tamento a que cada um tem chegado .

IMMORTALIDADE DA ALMA

Acreditavam os selvagens na immortalidade da alma?


Distinguiam a alma do corpo ? Sem duvida alguma .
Todos elles o fazem. Tenho para affirmal- o provas ro

bustas. Em primeiro lugar : quem visita um cemiterio


indigena reconhece as sepulturas por panellas , que
elles depositam junto das covas , nas quaes collocam
comida; as arinas do morto o acompanham, porque elle
necessita da comida e das armas para prover a seu
sustento. Uma e outra cousa ser-lhe-iam desnecessarias
132 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

se a morte acabasse tudo . Asseveram-me pessoas

sisudas que as indias Chavantes , no estado selvagem,


devoram os filhos que morrem, na esperança de colhe
rem novamente a seu corpo a alma do menino .
Eu nunca presenciei esse facto ; estou mesmo em
muito boas relações com o mais poderoso , dos capitães
ehavantes de nome Zaquè ; já lh'o perguntei ; elle
riu-se e não me respondeu ; o que eu tomci por uma
confirmação ; porque é de notar- se, que os nossos in
dios são muito orgulhosos de suas crenças ; nada os
offende tanto como pôl-as em duvida , e d'ahi vem que
são nimiamente discretos quando conversam com um
christão sobre tal assumpto .
Muitas tribus do baixo Tocantins e do Amazonas

enterram seus mortos dentro da propria casa , e isto eu


já tenho presenciado ; fazem na esperança de , quando
dormirem , serem visitados pela alma d'aquelles a quem
amaram. Esses factos demonstram , a não deixar du

vida, que elles acreditam que, além da vida de que


gozamos n'este mundo, ha uma outra que é continuada
pelo ser, independente do corpo . Pensarão que ella é
eterna ? Acreditarão em um lugar de bemaventuranças ,
e de eternas penas ? Não sei ; ainda não pude verificar
essas cousas; como disse, os indios são muito reservados

e discretos em tudo quanto diz respeito a assumpto re


ligioso . No meio da conversação mais animada , se se
lhes dirige qualquer pergunta tendente a esclarecer
qualquer d'esses pontos, elles tornam-se immediata
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 133

mente frios, as vezes sombrios, e, ou respondem por


monosyllabos , ou nada respondem.

Além d'esse destino mysterioso , que o homem pro


segue depois da morte, e para o qual collocam elles a
comida e as armas do morto, temguera, junto a sua
sepultura ; possuo duas lendas que recolhi em Feve

reiro d'este anno no Pará , e que parecem indicar que


os Tupis admittiam uma especie de vida semelhante a
que nossas superstições attribuem as almas penadas ;
assim como admittiam a possibilidade da transfor
mação do homem em outros seres .

Ha ainda hoje em Cametá um celebre Honorato a


quem a população indigena do lugar, attribue a fa
culdade de transformar-se em peixe ou em cobra, e
viajar pelo fundo dos rios quando lhe apraz . Estas
superstições são restos de alguma crença religiosa dos
velhos Tupis , que, ou não chegou até nossos dias , ou
a não soubemos recolher.

LENDA DE MANI

Uma das lendas, a que me referi acima , conserva a


tradição de que o uso da mandioca , que tão impor

tante papel representa na vida dos indios , lhes foi reve


lado por um modo sobrenatural . A mandioca é não só
o pão do nosso selvagem, como tambem a substancia
de que tiram diversos vinhos, como o kauin, a mani

quera, o puchirum e outros . Sua descoberta foi para


134 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

elles mais importante do que a do trigo o foi para os


aryas.

Se bem que esta lenda pertença mais ao dominio


da poesia do que ao da sciencia , eu não posso fur
tar-me ao desejo de inseril- a aqui , como um especimen
curioso do producto da imaginação de nossos selvagens .

Eil-a tal qual me foi referida pela mãi do Sr. coronel


Miranda , ex-thesoureiro da thesouraria da fazenda do

Pará , senhora respeitavel de cerca 1 de 70 annos de


idade , e que reside em Belém. A lenda diz que a man
dioca foi descoberta assim :

<< Em tempos idos appareceu gravida a filha d'um


chefe selvagem , que residia nas immediações do lugar
em que está hoje a cidade de Santarém. O chefe quiz
punir no autor da deshonra de sua filha , a offensa que
soffrêra seu orgulho e , para saber quem elle era , em

pregou debalde rogos , ameaças e por fim castigos se


veros . Tanto diante dos rogos como diante dos casti
gos a moça permaneceu inflexivel , dizendo que nunca
tinha tido relação com homem algum . O chefe tinha
deliberado matal-a , quando lhe appareceu em sonho
um homem branco , que lhe disse que não matasse a
moça , por que ella eflectivamente era innocente , e não

tinha tido relação com homem. Passados os nove me


zes ella deu á luz uma menina lindissima , e branca,
causando este ultimo facto a sorpreza , não só da tribu ,
como das nações visinhas , que vieram visitar a
creança, para ver aquella nova e desconhecida raça .
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 135

A creança, que teve o nome de Mani , e que andava e


fallava precocemente, morreu ao cabo de um anno ,
sem ter adoecido , e sem dar mostras de dôr.

Foi ella enterrada dentro da propria casa, des


cobrindo-se-a, e regando-se diariamente a sepultura,
segundo o costume do povo . Ao cabo de algum tempo
brotou da cova uma planta que , por ser inteiramente
desconhecida, deixaram de arrancar. Cresceu , flores

ceu , e deu fructos. Os passaros que comeram os fruc


tos se embriagaram , e este phenomeno , desconhecido

dos indios , augmentou-lhes a superstição pela planta .


A terra afinal fendeu-se ; cavaram-n'a e julgaram re
conhecer no fructo que encontraram o corpo de Mani .
Comeram-n'o, e assim aprenderam a usar da man
dioca..

O fructo recebeu o nome de Mani oca, que quer di

zer : casa ou transformação de Mani , nome que con


servamos corrompido na palavra mandioca, mas que
os francezes conservam ainda sem corrupção.

Esta lenda encerra duas cousas communs á todas

as religiões asiaticas : 1° o attribuir a um deus o en


sino do uso do pão : 2° a concepção sem perder a vir
gindade. Será isto um simples producto da imagina
ção, será uma lei a que o entendimento humano está

sujeito, ou será alguma recordação de velhas crenças


asiaticas, conservada confusamente pela tradição oral ?
136 PAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

Qualquer d'essas cousas é possivel , mas por emquanto


não passa de simples conjectura .

NOMENCLATURA DOS DEUSES TUPIS

Os deuses superiores , a quem elles attribuem acção


geral sobre o mundo são , como já disse : o sol , a lua ,
e Rudá, ou o Deus do amor , ou da reproducção .
Guaracy, sol. Este Deus creou o homem e os viven

tes ; abaixo d'elle parece que haviam outros seres so


brenaturaes , especialmente adstrictos a certas ordens
de animaes.

O dos passaros ou Guirapurú; o nome quer dizer,


passaro emprestado , ou passaro que não é passaro .
Este Guirapurú toma a fórma de um passaro que anda
sempre rodeado de muitos outros . As superstições po
pulares do Pará , attribuem a tal passaro a virtude de
conduzir a casa d'aquelle que possue um d'elles, con
tinuado concurso de gente . Não ha no Pará, no Ma
ranhão e Amazonas , muitos taverneiros que não te
nham na soleira da porta enterrado um Guirapurú, a
quem attribuem a virtude de conduzir freguezes a sua
taverna. Um Guirapurú, por esse motivo, custa caro ;
eu possuo um morto (não é possivel apanhal-o vivo) ,
que custou-me 30$ no Pará.

O destino da caça do campo parece estar affecto ao


Anhinga. A palavra Anhanga quer dizer sombra ,
espirito. A figura com que as tradições o representam
é de um veado branco , com olhos de fogo . Todo
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 137

aquelle que persegue um animal que amamenta, corre


o risco de ver o Anhanga, e a sua vista traz febre e as
vezes a loucura.

O destino da caça do mato parece confiado ao


Cahapora . Representam-n'o como um grande homem ,
coberto de pellos negros por todo corpo e cara, mon
tado sempre em um grande porco de dimensões

exageradas, tristonho, taciturno , e dando de quando

em vez um grito para impellir a vara . Quem o encontra


tem a certeza de ficar infeliz , e de ser mal succedido

em tudo quanto intente; d'ahi vem a phrase portugueza :


estou cahipora, como synonima de : estou infeliz , mal
succedido no que intento.
A sorte dos peixes foi confiada a Uauyará. O
animal em que elle se transforma é o boto. Nem um
dos seres sobrenaturaes dos indigenas forneceu tantas
lendas á poesia americana como o Uauyará. Ainda
hoje no Pará não ha uma só povoação do interior que
não tenha para narrar ao viajante uma serie de histo
rias, ora grotescas e extravagantes , ora melancolicas e
ternas, em que elle figura como heroe . O Uauyará é
um grande amador das nossas indias; muitas d'ellas

attribuem seu primeiro filho a alguma esperteza d'esse


deus, que ora as sorprendeu no banho , ora transfor
mou-se na figura de um mortal para seduzil-as ; ora
arrebatou-as para debaixo d'agua , onde a infeliz foi
forçada a entregar- se a elle . Nas noites de luar no

Amazonas , conta o povo do Pará . que muitas vezes os


138 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

lagos se illuminam e que se ouvem as cantigas das


festas , e o bate-pé das danças com que o Uauyará se
diverte.

Os deuses submittidos a Jacy ou lua , que é a mãi


geral dos vegetaes, são : o Saci Cerêrê, o Mboitátá, o
Urutáu, e o Curupira.

O Saci Cerêrê é um dos que figura continuamente


nas tradições do povo do sul do Imperio. Com tudo , eu
as tenho encontrado tão confundidas com as superstições
christas , que não posso comprehender bem qual é a sua
missão entre os vegetaes. As tradições representam -n'o
com a figura de um pequeno Tapuio , manco de um pé,
com um barrete vermelho , e com uma ferida em cada
joelho.

O Mboitátá é o genio que protege os campos contra


aquelles que os incendeiam; como a palavra o diz
mboitatá é: cobra de fogo ; as tradições figuram-n'a como
uma pequena serpente de fogo que de ordinario reside
n'agua . As vezes transforma- se em um grosso madeiro
em brasa , denominado méuan, que faz morrer por
combustão aquelle que incendeia inutilmente os campos .
Não conheço as tradições relativas ao Urutaú , ou
urutaúi e por isso limito-me a consignar aqui o nome,
que significa : ave phantasma , de urú e táu .

O. Curupira ê o deus que protege as florestas. As


tradições representam- n'o como um pequeno Tapuio ,
com os pés voltados para traz , e sem os orificios neces
sarios para as secreções indispensaveis á vida , pelo que
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 139

a gente do Parâ diz, que elle é mussiço . O Curupira ou


Currupira, como nós o chamamos no sul, figura em
uma infinidade de lendas, tanto no norte como no su

do Imperio . No Pará , quando se viaja pelos rios e


ouve-se alguma pancada longingua no meio dos bosques,
os remeiros dizem que é Curupira que está batendo nas
sapupemas, a ver se as arvores estão sufficientemente

fortes para soffrerem a acção de alguma tempestade


que está proxima . A funcção do Curupira é proteger as
florestas. Todo aquelle que derriba , ou por qualquer
modo estraga inutilmente as arvores , é punido por elle
com a pena de errar tempos immensos pelos bosques ,
sem poder atinar com o caminho da casa , ou meio
algum de chegar entre os seus .
A estas duas ordens de deuses, que são subordina
dos como disse, ao sol e a lua, e que se reputam pre

postos á conservação dos viventes , segue- se um outro


deus superior , é Rudá , ou o deus do amor .
Rudá. As tradições o figuram como um guerreiro
que reside nas nuvens . Sua missão é crear o amor no

coração dos homens , despertar-lhes saudades, e fazel

os voltar para a tribu , de suas longas e repetidas pe


regrinações .

Como os outros deuses , parece que tinha deuses inferi


ores , a saber: Cairé ou lua cheia , Catiti ou lua nova , cuja
missão é despertar saudades no amante ausente . Pa
rece que os indios consideravam cada fórma da lua
como um ente distincto .
140 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

Ha incontestavelmente propriedade e poesia n'esta


concepção da lua nova e lua cheia como fonte e ori
gem de saudades.

A mesma senhora a quem devo a lenda que deixei


escripta acima, deu-me a letra e musica das invoca
ções que os Tupis faziam a Rudá e a seus dois
satellites .

Como são curtas, aqui as transcrevo taes quaes as


ouvi , parecendo- me que , ou alingua está adulterada,
ou é algum fragmento de tupí anterior ás transforma
ções porque já tinha passado a lingua , quando nos foi
conhecida , porque palavras ha que não entendo .

Estas invocações eram feitas ao pôr do sol ou da


lua, e o canto , como quasi todos os dos indios, era
pausado, monotono e melancolico .

A joven india, que se sentia opprimida de saudades

pela ausencia do amante n'aquellas peregrinações con


tinuas em que a caça e a guerra traziam os guerreiros;
a joven india , dizemos , devia dirigir-se a Rudá , ao
morrer do sol ou ào nascer da lua, e estendendo o

braço direito na direcção em que suppunha que o


amante devia estar, cantava :

Rudá , Rudá ,
Zuáka pinaié,
Amăna reçaiçú ...
Tuaka pinaié ,
Aiueté Cunhã
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 144

Puxiuera oikó

Ne mumanuára ce rece
Quahá caarúca pupé.

Não entendo a palavra pinaié -; pelo sentido

porém presumo que quer dizer que estaes, ou que re


sidis ; as outras entendem-se perfeitamente, e pois a
traducção é a seguinte :
-- O' Rulá,
tu que estaes nos ceos, e que amaes as
chuvas... Tu que estaes no céo ... fazei com que elle,
(o amante) por mais mulheres que tenha as ache todas
feias ; fazei com que elle se lembre de mim esta tarde
quando o sol se ausentar no occidente.
Como disse acima , as luas cheia e nova , que eram

segundo os Tupis , cousas distinctas , e seres diversos ,


constituiam auxiliares de Rudá, e tinham invocações se
melhantes ás que se cantavam áquelle deus, e para o

mesmo fim de trazer os amantes ao lar domestico pelo


poder da saudade .

A invocação á lua cheia , era a seguinte :

Cairé, cairé nú
Manuára danú çanú .
Eré ci, erú cika
Piape amu
Omanuara ce rece

Quahá pitúna pupé.

Não entendo os dous primeiros versos ; os outros


dizem :
142 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

Eia, o minha mãi (a lua); fazei chegar esta noite ao


coração delle (do amante) a lembrança de mim.
O nome da lua cheia era Cairé, o da lua nova Catiti;
esta tinha sua invocação distinct da que dirigiam á
lua cheia, si bem que com o mesmo fim .

A invocação á lua nova á a seguinte :

Catiti, Catiti
Iamára notiá
Notia iamára,

Epejú (fulano)

Emú manuára

Ce rece (fulana)
Cuçukúi xa iko
Ixẻ anhû i piá póra .

Não entendo o 3º e 4º verso ; o 1° e os ultimos di


zem o seguinte :

Lua Nova, o Lua Nova! assoprai em fulano lem


brança de mim ; eis-mc aqui estou em tua presença ;
fazei com que eu tão somente occupe o seu coração .
Estes cantos são ainda repetidos nas populações
mestiças do interior do Pará , e , como disse , conservo
d'elles tambem a musica. ( 17)

(17) Si bem que não tenha a importancia dos antigos


cantos sagrados , a seguinte cançoneta guaraní não
deixa de ser curiosa . A lingua e rima indicam que o
bardo indigena , seu autor, já tinha estado em contacto
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 143

O deus do amor tinha tambem a seu serviço uma

serpente que reconhecia as moças que se conservavam

com a raça conquistadora ; esta cançoneta é muito


popular entre o povo de Assumpção e Corrientes ; e foi
o facto de ouvil-a cantar muitas veses , ao som da viola
(maraca como elles chamam) que despertou -me a idéa
de conserval-a por escripto :

Ejo mi remaen . Xe nhuan nape .


Maenran p'ico? Maenran p'ico?
Ejo tenon. Xe nhuan tenon .
Aju ma n'ico . Xe nhuan ma n’ico .

Eguapi nape... Epuan nape.


Maenran p'ico? Maenran p'ico?
Eguapi tenon . Epuan tenon .
Aguapi ma n'ico. Apuan ma n'ico .

Ehenon nape . Te reho nape .


Maenran p'ico? Maenran p'ico?
Enhenon tenon . Te rehỏ tenon .
Anhenon ma n'ico . Ahá ma n'ico .

Uma serie de factos curiosos existem por estudar , a


proposito das modificações que soffre uma lingua posta
em contacto com outra . Ha um verdadeiro cruzamento ,
tal qual ha em uma raça posta em contacto com outra ,
e esse cruzamento da lingua é tão inevitavel , no caso
da justa posição de duas raças , quanto é inevitavel ,
nessa mesma circumstancia , o cruzamento do sangue .
E' por elle que as linguas soffrem as maiores transfor
mações . O portuguez do Brazil está irremediavelmente
modificado pelo tupi, e , ao passo que os annos se forem
acumulando , essa modificação ha de cada vez ser mais
sensivel , porque os germens modificativos são , por
assim dizer , dotados de força propria e continuam a
144 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

virgens , recebendo d'ellas os presentes que lhe leva


vam , e devorando as que haviam perdido a virgindade.

operar muito depois do desapparecimento da causa que,


para nos servirmos de uma expressão physica , os
infiltrou no organismo da lingua que sobrevive. O
mesmo dá-se no hespanhol do Rio da Prata, e presumo
que se dará no Perú e nas outras colonias hespanholas ,
onde os cruzamentos europeus e indigenas se operaram
em grande escala . O operario inconsciente dessa
transformação é o povo illiterato .

Os primeiros productos destes cruzamentos de lin


guas são grosseiros ; distinguem-se facilmente os ele
mentos heterogeneos que entraram na composição .
O mesmo dá -se com o cruzamento de sangue. Pouco a
pouco , porém , os elementos se confundem; seus signaes
caracteristicos desapparecem para dar lugar a um
producto homogeneo que , não sendo exactamente
nenhum dos dous que entraram na composição , parti
cipa da natureza de ambos . A cansoneta , que fica acima
publicada, é um exemplo de um desses productos , onde
já é quasi imperceptivel o cruzamento . Toda ella está
em bom guarani moderno. No entretanto a rima e o
metro são hespanhoes .

Eu tenho colligido no Brazil numerosas cansonetas


populares onde se nota esse cruzamento . Ora , ha nellas
a mistura primitiva e grosseira , isto é : as duas linguas
.entram na composição , com seus vocabulos puros , sem
que estes soffram modificação; um specimen curioso
deste primeiro cruzamento é a seguinte quadra que
ouvi muitas vezes cantada pelo povo do Pará :

Te mandei um passarinho ,
Patuá miri pupé ;
Pintadinho de amarello,
Iporanga ne iaué ,
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM 145

Os Tupinambás do Pará acreditavam que haviam


d'estas serpentes no lago Juá , pouco acima de San

Quer dizer: Mandei-te um passarinho, dentro de


uma caixa pequena ; pintadinho de amarello , e tão
formoso como você.
Comprehende-se bem que cansonetas assim em duas
linguas simultaneas pertencem ao periodo em que ellas
eram ignalmente populares . Pertencem , pois , ao pri
meiro , ao da justaposição e do igual predominio das
duas raças .

Pouco a pouco uma lingua predomina, e só ficam da


outra algumas palavras que , ou não tem correspon
dente na lingua que tende a absorver a outra , ou são
mais suaves para o systema auditivo da raça que vai
sobrevivendo . Como specimen deste segundo periodo
citaremos a seguinte quadra popular do Amazonas :

Vamos dar a despedida ,


Mandú sararå
Como deu o passarinho;
Mandú sarará
Bateu aza, foi-se embora,
Mandú sararà
Deixou a penna no ninho.
Mandu sarará

Finalmente , os vocabulos da lingua absorvida des


apparecem na lingua absorvente, para não ficarem
outros vestigios della senão o estylo, as comparações ,
algumas fórmas grammaticaes e algumas alterações de
sons . São deste ultimo periodo as quadras que eu citei
atraz quando notei o facto da introducção de vocabulos
e fórmas tupís no portuguez do Brazil . Citarei , como
pertencendo a este periodo , as duas seguintes quadras ,
que ouvi em Ouro-Preto em 1861 , as quaes me parece
que encerram o mesmo systema de imagens da que fica
146 FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM

tarém . Quando alguma donzella (cunhãtãí) era suspeita


de ter perdido a virgindade , seus pais levavam-n'a ao
lago , e ahi deixando -a a sós em uma ilhota , com os
presentes destinados á serpente , retiravam -se para a
margem fronteira , e começavam a cantar:

Arúra, arara mbóia ,


Cuçucui meiú.

Que quer dizer: Arara, oh cobra arara! Eis aqui está


o teu sustento .
A serpente começava a boiar e a cantar até avistar a

moça , e, ou recebia os presentes, si a moça estava

impressa acima , apenas em um periodo mais adiantado


de cruzamento :

Vamos dar a despedida , Vamos dar a despedida ,


Como deu a pintasilva ; Como deu a saracura ;
Adeus , coração de prata , Foi andando , foi dizendo:
Perdição da minha vida! Mal de amores não tem cura.

Notam-se ainda hoje no Brazil estes tres periodos de


cruzamento linguistico . Nas provincias , em que a popu
lação christã ainda está em contacto com a população
tupí , encontram-se versos compostos simultaneamente
nas duas linguas ; é o caso das provincias do Amazonas ,
Pará e Maranhão . Nas outras, especialmente nas de
S. Paulo , Minas , Paraná , Rio - Grande , ha uma verda
deira litteratura popular , um sem numero de canções
no genero das ultimas. A musica , essa quasi não soffreu
alteração . O paulista , o mineiro , o rio-grandense de
hoje, cantam nas toadas em que cantavam os selvagens
de ha quinhentos annos atraz, e em que ainda hoje
cantam os que vagam pelas campinas do interior .

1
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 147

effectivamente virgem, e n'esse caso percorria o lago


cantando suavemente , o que fazia adormecer os pei
xes, e dava lugar a que os viajantes fizessem provisão
para a viagem ; ou , no caso contrario, devorava a
moça, dando roncos medonhos .

Aqui , como nas outras lendas , ha um pensamento


moral . O fim da lenda era provavelmente proteger a
innocencia , influindo salutarmente no espirito das
donzellas indias, pelo terror que lhes devia inspirar a
perspectiva de poderem ser devoradas pela serpente ,
desde que perdessem a virgindade.

VI

O GRANDE SERTÃO INTERIOR

A região dos selvagens , A região do Prata. A região do


divisor das aguas. A região do Amazonas.

Sem tratar nem da margem esquerda do Amazo


nas nem da immensa bacia percorrida pelo Paraná e
seus afluentes, a grande região occupada hoje pelos selva
gens é o plateau ou araxá central do Brazil, e especial
mente a parte comprehendida entre as terras altas que
dividem as bacias do Prata da do Amazonas ao sul ,
Araguaya a leste, o Amazonas ao norte, e o Madeira
ao poente .

N'essa região por assim dizer virgem , existe uma


148 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

população indigena que alguns avaliam em dois mi

lhões de habitantes, que outros pretendem que não


excede a quatrocentos mil, mas que em todo caso é
consideravel . Essa região , que só por si daria um reino
maior do que a França , é quasi inteiramente desco
nhecida dos brasileiros, e dos homens civilisados. A

busina do selvagem , os seus cantos de amor e gritos de


guerra são quasi os unicos sons que por ora tem re
percutido os echos d'esse vasto paiz .
Se o leitor tiver paciencia para acompanhar- me ,
ficará tendo um juízo de como se transpõe esse reino

dos selvagens, que tenho viajado mais d'uma vez ,


correndo grandes perigos, devendo a vida a meu re
wolver ou a meus braços, mas onde tantas vezes senti
o inefavel goso de me ver a sós com Deus e com
à natureza .
Uma das mais curiosas viagens geographicas que se
póde fazer pelo interior do Brazil, ou melhor diremos ,
pelo interior da America do Sul , será aquella em que ,
penetrando pelo golfão do Prata , se vá sahir na foz
do Amazonas, ou vice-versa .

Uma viagem d'essas , aqui ha alguns annos atráz ,


seria reputada temeraria , alguma cousa de semelhante
ás viagens de LIVINGSTONE para descobrir as fontes
do Nilo.
Hoje , porem, se é ainda trabalhosa e arriscada , deixou

de ser temeraria , ao menos em certas direcções .


Eu a tenho feito diversas vezes: na primeira, segui
0 GRANDE SERTÃO INTERIOR 149 ←

ao norte de Minas até a Diamantina , atravessei os

valles dos rios Jequitinhonha, das Velhas, Paraopeba,


S. Francisco, Paranahyba , Corumbá , dobrei o divisor
das aguas no lugar denominado Bom Jardim , atraves
sei as cabeceiras do Tocantins , e descendo pelos rios
Vermelho , Araguaya e Tocantins , cheguei ao Pará
em 1864.
Outra vez subi do Pará pelo Araguaya e Tocantins,
segui pelo divisor das aguas em rumo de L. a O. até

Cuyabá, desci por esse rio , pelos de S. Lourenço , Pa


raguay, Paraná , Rio da Prata até Montevidéo . Tenho

feito outras viagens, entrando por S. Paulo e Minas , e


representam ellas, entre idas e vindas, a somma de
4,500 leguas viajadas pelo interior e todas tocando na
região de que acima fallei . N'essas viagens tenho ad
quirido alguns conhecimentos geographicos e topogra
phicos que me não parecem totalmente destituidos de

interesse, sobretudo pelo que respeita á região do di


visor das aguas , cuja estrada , sendo de recente data ,
ainda não deu passagem a nenhum geographo que

descrevesse esse immenso paiz , que na latitude sul de


15° a 16°, divide as duas maiores bacias fluviaes do
mundo.

DIVERSOS ROTEIROS

Comecemos por dar uma noticia dos diversos rotei


ros que seguiram nossos maiores para penetrar d'uma
bacia na outra , tomando em consideração somente
150 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

aquelles que podem servir á navegação á vapor . Su


bindo de Montevidéo pelos rios da Prata, Paraná e Pa
raguay, quem quizer ir ao Amazonas tem cinco grandes
roteiros a seguir, cada qual mais curioso.
1 °.-Seguir pelo Rio da Prata , Paraná e Paraguay
acima até a foz do Jaurú, subir este até o antigo re
gistro, ponto onde termina a sua navegação , tomar a
estrada de terra que com 20 leguas traspassa o divisor
das aguas, embarcar de novo no Guaporé, abaixo da
ponte na estrada que vai de Villa- Boa de Mato- Grosso
para Casalvasco e departamento boliviano de S. Cruz
de la Sierra, e descer o Guaporé até sua juncção com
o Amazonas .

Hoje esse caminho fluvial é obstruido por 70 leguas


de rapidos e cachoeiras que medeiam entre a ultima de
cima , denominada Guajará- mirim , e a ultima debaixo ,
conhecida sob o nome de S. Antonio .

Dentro em pouco , porém, a locomotiva , seguindo


pela corda de arco descripto pelo Madeira , transporá a
região das cachoeiras, fazendo- se á vapor o caminho
terrestre, que fica reduzido a 50 leguas , ligando per
petuamente os interesses d'aquella republica aos nossos ,
e garantindo-se a paz que nossos vizinhos não quere
rão mais perturbar .
N'esses sertões encontram-se dous grandes vestigios
da actividade de nossos maiores um é a fortaleza de
Coimbra na fronteira da costa do rio Paraguay com a

Bolivia pouco acima da Bahia Negra ; a artilharia


O GRANDE SERTÃO INTERIOR 151

d'esse forte, que não podia subir pelo rio da Prata ,


porque o governo hespanhol não consentiria, veio pelo
Madeira , foi varada por terra do Guaporé para o Jaurú,
e d'ahi desceu até o forte. Conheci ainda , já muito
avançado em annos, um piloto que serviu nos barcos
que a transportaram, sendo então de 15 annos de
idade ; esse homem, chamado João Antonio , residente
no meio do sertão de Cuyabá , no lugar denominado
Sangrador Grande , narrou-me mais de uma vez as
peripecias d'essas viagens em que gastavam um anno
lutando com os indios , com as cachoeiras, com a ter
rivel peste denominada maculo , e quasi sempre com a
fome. O outro vestigio da actividade de nossos maiores
n'esses sertões é o gigantesco forte do Principe da
Beira, situado na margem direita do Madeira defronte

á missão jesuita hespanhola de Moxos.


Calculo que as distancias a percorrer , segundo este
roteiro, sejam de 1,450 leguas , a saber: 730 de Monte
vidéo ao registro do Jaurú; 20 por terra , do registro á
ponte do Guaporé, dobrando ahi o divisor das aguas;
700 da ponte do Guaporé á foz do Madeira .
As viagens que de Matto- Grosso se faziam para o
Amazonas estão hoje totalmente abandonadas, devido
á maior facilidade que se encontra em outras commu
nicações , supprindo - se os habitantes de Villa Bella dos

generos de que necessitam em Cuyabá .


2.- O segundo roteiro seria deixar o Paraguay á

esquerda, subir o S. Lourenço e Cuyabá, atê a cidade


152 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

d'este nome , seguir 30 leguas por terra até a villa do


Diamantino , ponto esse em que se dobra o divisor das
aguas , com 8 leguas ir ao porto no Rio Negro que
serve a essa villa , e por elle abaixo , Jururema e Tapajós,
ir á cidade de Santarém no Amazonas , junto á foz do

mesmo Tapajós n'aquelle rio. Durante a guerra do


Paraguay esta navegação tomou algum incremento , e
ainda hoje se a faz especialmente para supprir- se a
população de Cuyabá com guaraná , genero de que
fazem um grande commercio na provincia, e que só
o podem haver dos indios Mauez que o fabricam no
Pará. Estimo a distancia a percorrer por este roteiro
em 1,128 leguas, a saber: 700 de Montevidéo á Cuy
abá; 30 de Cuyabá ao Diamantino , 8 do Diamantino
ao porto do Rio Negro, e 400 por elle, Juruema e
Tapajós até Santarém . Como é sabido , o Arinos , como
o Madeira e em geral todos os grandes confluentes do
Amazonas que descem do Plateau de Matto-Grosso e
Goyaz, venceu uma zona encachoeirada de cerca de 70
leguas. A mais famosa das cachoeiras do Arinos é o
Salto Augusto , para transpôr o qual é necessario varar
as canôas por terra. Do porto do Rio Negro á Itaytubá
os viajantes de Cuyabá gastam de 18 a 20 dias na
descida, e 3 a 5 mezes na subida , sendo auxiliados nas
cachoeiras pelos indios Apiacás, tribu pertencente á
familia tupi, de excellente indole, e amiga do trabalho,
que fornece aos viajantes boa parte de mantimento que
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 153

usam na viagem , ajustando-se como pescadores e


caçadores.
3.- O terceiro roteiro , que foi apenas explorado

pelos antigos , e que se não póde bem comprehender


olhando para nossos mappas, porque o curso do rio
que serve de intermediario entre as duas bacias (rio
Manso ) está errado , visto que o fazem confluente do
Cuyabá , quando elle pertence ao opposto systema do
Amazonas , facto este que eu verifiquei por mim mesmo ,
como direi adiante; o terceiro roteiro , dizemos , consis
tiria em tomar por ponto de partida o mesmo Cuyabá ,
seguir 20 leguas a éste até o rio Manso, que não é
outra cousa senão o mesmo que entra no Araguaya
com o nome de Rio das Mortes , descer por elle abaixo
até o Araguaya , e por este e pelo Tocantins ir ao Pará;
a distancia de Montevidéo ao Amazonas, por este ro

teiro , eu a calculo em 1,270 leguas , o saber: 700 a


Cuyabá, 20 por terra ao Rio Manso, dobrando ahi o
divisor das aguas, 200 do rio Manso ou das Mortes ,
que é a mesma cousa , e 350 do Araguaya e Tocantins
até o Pará ,

Affirmando eu que os mappas estão errados quando


dão o rio Manso como confluente do Cuyabá , e que elle

pertence ao opposto systema do Amazonas , e que não


é outro senão o Rio das Mortes , é de razão que dê os
motivos de minha affirmação . Não se trata d'um rio
secundario senão d'um que póde figurar entre os gran
des do mundo , pelo crescido volume de suas aguas e
154 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

extensão de seu curso que excede de 900 milhas. Ac


cresce a isto que este é dos confluentes do Amazonas o

que vem mais ao sul, porque suas fontes, que confu


dem-se com as do Cuyabá Mirim, ficam com differença
de minutos na mesma latitude que o Cuyabá , onde já
as aguas do Prata são navegaveis, e navegadas a vapor.
Quando eu explorei a nova estrada do Cuyabá para
o Araguaya, a que vem pelo alto do divisor, entrei , a
30 leguas de Cuyabá , pelo sertão a dentro em rumo
de norte, e a 5 leguas de distancia encontrei o rio
Manso, correndo já no rumo de O. a L. Mandei ex
ploral - o do Sangrador Grande, 50 leguas a O. de
Cuyabá, e o sargento que dirigiu a expedição encon
trou o rio já profundo e volumoso tanto ou mais que o
Cuyabá, a cerca de 7 leguas ao norte do destacamento ,

correndo o precitado rumo de O. a L. Em Cuyabá


communiquei estas observações ao SR. BARÃO DE MEL
GAÇO, a quem tanto deve a geographia d'aquellas re
giões, e elle me disse que havia deparado na secreta
ria do governo com um officio do mestre de campo
JOSÉ PAES FALCÃO DAS NEVES , em que dava conta

aos membros do governo da successão , em Cuyabá ,


d'uma exploração mandada fazer no rio Manso em fins
do seoulo passado ou principios d'este, pelo capitão
general CAETANO PINTO DE MIRANDA MONTENEGRO ,
afim de reconhecer- se , si este era o mesmo rio que no
Arraial dos Araés, corria com o nome de Rio das
Mortes. Esse officio vem acompanhado d'um mappa ,
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 155

e por elle se vê o que acabo de affirmar. Eu tomei

cópia d'elle , não só para prova d'esta asserção , como


porque contém uma descripção detalhada da navegação

d'esse rio, hoje completamente deshabitado e quasi es


quecido . E' nas margens d'elle que estava collocada a
povoação dos Araés, alli fundada por motivo da nar
ração feita pelo capitão BARTHOLOMEU BUENO ANHAN
GUERA, de que os indios d'alli , os Colomys e Cunha
tains, como elle diz , meninos e meninas, traziam ao

pescoço folhetas de ouro como ornato . E' tradição que


os povoadores do lugar , depois de haverem trabalhado
com pequeno resultado, durante anos, descobriram afi
nal as minas, dando em um caldeirão de ouro, que

desenvolveu -lhes de tal geito a ambição que mataram


se uns aos outros, fugindo o resto , e fazendo-se aos
sertões por medo do castigo que os perseguiria . Esta
tradição tem levado áquelles ermos alguns explora
dores audazes, e ainda o anno passado por lá andou
um que, como os outros, não foi bem succedido , não´

tendo podido trabalhar por falta de mantimentos e


recursos . Junto a cópia d'um officío que dá notícia da
mineração de ouro nos Araés antes da descoberta das
minas de que acima fallei, extrahido tambem da secre
taria de Mato-Grosso .

4.º O quarto roteiro que se póde seguir da bacia


do Prata para a do Amazonas estava perdido, e ro
deado de maiores obscuridades ainda do que o terceiro ,
por que o rio que serve de intermediario entre as duas
156 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

bacias , é totalmente desconhecido , nem mesmo vem


figurado nos mappas, e pelo contrario, na carta geral
do Imperio, vem desenhada uma serra justamente na
região que elle percorre, na qual aliás não existe serra
alguma . Eu já dei ao SR. DR . ERNESTO VALLÉE , en
carregado da nova carta geral do Imperio , tanto quanto
eu o podia fazer, os dados necessarios para traçal- o , e
a nova carta trará já essa importante correcção.
Eis aqui como me nasceram conjecturas relativas a
este roteiro. Na provincia do Pará eu encontrei entre
diversos pilotos velhos do Tocantins a tradição de que
os padres jesuitas d'alli communicavam-se com os do
Paraguay por um caminho fluvial , interrompido apenas
por 15 leguas de travessia de terra ; esta tradição que
eu encontrei em Baião, de que me fallaram tambem
em Juquirapua , nos Patos, etc. , era constante , uni
forme ; a passagem dos jesuitas no Tocantins e Ara

guaya é sabida por diversos ( documentos antigos,


entre outros pelas cartas do Padre ANTONIO VIEIRA, e
por nomes de lugares que provavelmente seriam pos
tos por elles, entre outros : um dos temerosos canaes
da cachoeira das Guaribas é conhecido até hoje com
o nome de canal Vitam eternam , isto é , caminho para
o outro mundo ; Canal do Inferno , o em que naufraguei
em 1866 , e que tem esse nome por que até então
os que alli tinham entrado , de lá não sahiram . Em

reiteradas viagens pelo divisor das aguas nunca


pude comprehender qual ou quaes seriam os rios
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 157

que seguiram aquelles energicos padres, subindo

o Tocantins e Araguaya para passarem-se, só com 15


leguas de travessia de terra, á bacia do Rio da Prata ;
que as aguas d'uma e outra bacia se entrelaçam e as
vezes se confundem, era facto averiguado ; que porém
as navegações d'uma e outra bacia se avizinhem tanto

n'essa altura, eis o que se não podia comprehender ,


por que os unicos rios traçados nas cartas, o Cahiapó
Grande e o Barreiro não chegam navegaveis á dis

tancia inferior de 40 leguas dos sens correspondentes


Taquary, e Pequiry, na bacia do Rio da Prata ; en
tendi portanto que a tradição I era exagerada , e n'essa
crença fiquei até o dia 5 de Junho do anno de 1871 .
N'esse dia , vindo eu de viagem pelo divisor das aguas

do Araguaya para Cuyabá , no meio de campos cerra


dos que existem entre o ribeirão da Ponte Grande e

o córrego dos Dois Irmãos, nossos cães de caça le


vantaram uma onça, em cujo encalço seguimos , e que
só pudemos matar depois de consideravel marcha e já
sobre tarde ; além de grande fadiga , por que fizemos

a pé a travessia d'uma mata , eramos torturados pela


necessidade de agua , o que nos obrigou a seguir pelo
leito d'um corrego secco . Assim, chegamos inespera
damente á margem d'um grandioso rio , quando espe
ravamos apenas encontrar um regato. Dois dias de

pois encontrei-me com um sertanejo audaz , que tem


explorado parte destes sertões, o capitão Antonio Go
mes Pinheiro, em companhia do qual fiz diversas
158 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

explorações até a latitude e a longitude da montanha

denominada Paredão que corresponde, na bacia do


Prata, á altura do leito do Ytiquira . Rasgou-se-me

então a venda dos olhos e eu comprehendi tão clara


mente o roteiro dos jesuitas como se houvera sido
companheiro de viagem desses audazes exploradores.
A vista destes factos o roteiro dos jesuitas do Paraguay,
para communicarem-se com os do Pará , era o seguinte:
Subiam o Paraguay acima até a foz do S. Lourenço ;
por este acima até a foz do Itiquira , por este á serra :
sahiam por terra e, com marcha de 15 leguas , ganha
vam as aguas do Amazonas por intermedio do rio de

que ha pouco fallei, ao qual , seguindo a tradição an


tiga , eu conservo o nome de rio das Garças, e por elle
abaixo até o Araguaya , e por este e Tocantins ao
Pará .

Estimo as distancias a percorrer por este roteiro dos


jesuitas entre Montevidéo e Pará em 1,225 leguas, a
saber : 640 até a foz do Cuyabá no S. Lourenço ; 60

pelo S. Lourenço , Pequiry, Itiquira até a serra ou o


divisor ; 15 de viajem por terra , dobrando o divisor
entre o Ytiquira e rio das Garças ; 50 ao Araguaya , e
460 ao Pará pelo Araguaya e Tocantins.
5.º O 5° roteiro seria subir como no terceiro os

rios da Prata , Paraná , Paraguay , S. Lou


renço , Cuyabá , até a cidade d'este nome ; seguir por
terra a L. por cima do divisor das aguas até o Ara
guaya, e por este e Tocantins chegar ao Pará . Dos ro
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 159

teiros que ficam descriptos é este o que está hoje mais


seguido , por causa da navegação á vapor do Araguaya ,
unica que possuimos na America do Sul em cima do

grande plateau central , d'onde defluem as aguas do


Prata para o Sul, e as do Amazonas para o Norte .
Estimo as distancias a percorrer por este traçado , que
eu mesmo tenho andado mais de uma vez, em 1,237
leguas entre Montevidéo e o Pará.

ASPECTO DA BACIA DORIO DA PRATA. RECORDAÇÕES DE


VIAGEM f

Os rios da bacia do Prata, ou pelo menos os que

compõe a sub- bacia do Paraguay são antes grandes ,


immensas campinas alagadas , côbertas de plantas a
quaticas, pelo meio das quaes passa um canal d'agua
corrente ao qual se dá propriamente o nome de rio .

N'essas campinas observam-se de espaço a espaço

grandes bacias d'agua serena e quasi sem corrente , a


que chamam bahias; outras vezes são cobertas de
plantas aquaticas, por leguas e leguas , apresentando
o aspecto verdejante e risonho de campos planos, por
vezes cortados por linhas de bosques densos em que
predomina, desde á foz do Vermejo até Albuquerque ,
a palmeira denominada Carandá ; d'ahi até os alagados
proximos a Cuyabá predomina uma linda arvore que
se cobre durante certas estações de flores amarellas.
D'estes factos resulta que, aquillo que se chama rio ,
160 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

divide--se em tres generos de regiões distinctas pelo


seu aspecto , se bem que confundidas em uma só cousa
por que são todas cobertas d'agua ; essas tres regiões
são: o leito do rio , asbahias e os pantanaes. O rio é de

aguas clarissimas, mas que unida n'aquella massa


enorme, parece negra ; nos dias em que o céo está co
berto de nuvens , os barcos a vapor que sulcam essas
aguas serenas, parecem navegar em um lago de tinta.
preta , com a qual contrasta a alvura de prata das
aguas espargidas pelas rodas do vapor; na estação das
aguas não se vêm barrancos , e não se distingue o rio
dos pantanaes, senão porque as aguas d'estes ultimos
são litteralmente cobertas de plantas aquaticas, e tão
completamente, que, a quem não tem experiencia ,
affigura-se que toda aquella verdura brota de um solo
firme, e fica muito longe de pensar que aquelle tapete

de hervas tem por baixo de si ás vezes 100 palmos


d'agua ! As bahias não são senão grandes lagos que
se destiguem dos pantanaes porque suas aguas, como
as do rio, não são cobertas de vegetaes. Estas bahias
estendem-se ás vezes por muitas leguas, e como as
1
margens são baixas, quem viaja por ellas sente a illu
são de estar viajando pelo mar, por que só avista céo
e agua. Outras vezes dá-se um curioso phenomeno de
illusão optica; as cupulas das palmeiras de carandá
parecem voltadas para cima , elevam-se no horisonte

como uma nuvem verdejante , e por baixo avista- se o


céo confundindo-se com as aguas no extremo do hori
GRANDE SERTÃO INTERIOR 161

sonte , de modo que as palmeiras parecem suspensas no


ar. Os pantanaes não são mais do que as partes em
que a agua está coberta pelas plantas aquaticas de que
acima fallei , em um tecido tão basto e compacto que
um homem deitado em cima sustenta- se; e tanto é isto

assim que , quando nas primeiras enchentes o rio des


taca algum pedaço d'este immenso tapete para arras
tal-o em sua serena e vagaiosa corrente , os tigres
costumam a embarcar- se em cima , e assim viajam dias ;
a planta que forma este tecido é uma especie de lyrio
aquatico de flores brancas em cachos, com o calice da
corolla ás vezes roixo, as vezes côr de rosa ; é conhecida
com o nome guaraní de aguapé . Do forte Olympo (Pa
raguay) até Albuquerque , a arvore que predomina estes
desertos dos pantanaes ê a palmeira carandá que as
semelha- se ao burity que é conhecido de todos nós; de
Albuquerque para cima os pantánaes são commumente
acompanhados e cortados de zonas estreitas , mas ex
tensas , de bosques muito densos , e as vezes muito
elevados, conhecidos com adesignação de capões (do tupi
cahapom) ás vezes , ao pé d'esses capões onde a
agua é mais baixa , crescem zonas , que vão a perder
de vista de arrosaes silvestres .

O indio Guató para colhel-o não tem outro trabalho


alem do de metter por elle a dentro a sua canôa, e de
bater indolentemente com o longo remo sobre as
espigas vergadas para dentro do barco , que dentro em
ponco tempo fica cheio com aquelle grão de que elle e
162 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

nós nos servimos como do arroz asiatico . As viagens


que se fazem em canôa pelo rio não são isentas de
accidentes; ha tres inimigos contra os quaes o viajante
deve estar prevenido e são : a piranha , o sycurijú , e o
tigre. A píranha é peixe de escamas côr de perola , que
raras vezes excede a um palmo , mas d'uma voracidade
que ultrapassa a quanto se pode imaginar ; é dotado de
dentes que cortam como navalha . Por occasião da

abordagem do vapor Jaurú, quando o distincto capitão


de fragata Balduino José Ferreira de Aguiar, no com
bate do Alegre, o retomou do inimigo , cahiram a agua
alguns paraguayos feridos ; attrahidas pelo sangue as
piranhas os devoraram quasi vivos , deixando em pou
cos minutos os esqueletos limpos.
Os tigres não são menos para temer-se, porque ,
ilhados nos pequenos altos que ficam acima d'agua ,
nem sempre têm os meios de alimentar-se, e , famin
tos, tornam-se ousados como leões ; o leitor o avaliará

pelo seguinte , que é tambem uma recordação da ex


pedição de Corumbá estavam na occasião da retirada

dous mil homens acampados em um morrinho , de


fronte á villa, cuja explanada seria menos de metade
do morro do Castello ; quer dizer que estava quasi
todo o espaço occupado pela força ; um tigre saltou
sobre um primeiro sargento do primeiro de volunta
rios , sacudiu- o sobre o hombro , e fugiu com tal preci
pitação que , perseguido e morto em menos de meia

hora , tinha tido tempo para decepar a cabeça do infe


O GRANDE SERTÃO INTERIOR 163

liz sargento , sugar-lhe todo sangue, e devcrar parte


do peito . Quanto aos sycurijús não tivemos durante a
expedição accidente algum causado por elles ; em com
pensação o cabo do meu piquete , que accumulava as
funcções de piloto da minha canôa, e que se chamava
Figueira, era interminavel em referir casos de ataques
d'essas gigantescas serpentes , casos, cujo numero me
parece que elle exagerava de proposito a fim de , pelo
terror, obrigar as sentinellas da canôa a velarem du
rante á noite .

Entre duzias de historias referia elle que uma noite

indo em uma parada a Coimbra com officios ao Sr.


Leverger (Barão de Melgaço) , pousou na foz do Rio
Negro no S. Lourenço ; á meia-noite, acordando aos

gritos d'um seu camarada que se debatia n'agua se


guro ainda por um braço a borda da canòa , elle cabo

viu um enorme sycurijú que segurava o soldado por


uma das espaduas ; o cabo deu-lhe tão certeiro golpe
de machado, que conseguiu decepar a cabeça da ser
pente, salvando o seu camarada que , recolhido á canôa ,
veiu ainda com a cabeça da cobra presa á espadua.
Já que toquei no cabo Figueira seja-me licito dizer, que
esse infeliz foi morto, depois de vigorosa resistencia ,
pelos indios Coroados 4 leguas a léste do Paredão no
sertão de Cuyabá, voltando de Ytacaiú com um des
tacamento ao mando do tenente Sabino , do 19 de in
" fantaria ; eu levantei uma cruz n'aquelle campo de
164 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

serto, e ella recorda n'aquella solidão a sepultura de


um bravo....

Dizem-me muitos sertanejos que os sycurijús attin


gem por vezes o comprimento de 60 palmos.
Ainda não vi maiores de 35 , e já houve tempo em
que tomei gosto em caçal-os ; é de notar-se que os cães
seguem a pista d'estas serpentes quando ellas andam

em terra ; e ellas , desde que se sentem acossadas pelos


}
cães, enroscam a cauda ao primeiro tronco de arvore
que encontram , e , contrahindo o resto do corpo em
fórma de caracol , silvam e dão botes sobre os cães ; se

algum foi alcançado pelo dente, é enroscado e tritu


rado com rapidez que impossibilita qualquer soccorro .
Dizem que engolem um boi depois de esmagal- o nas
poderosas roscas ; não o vi , mas julgo o facto possi
vel , porque já matei uma que tinha um suassuapára
(veado do tamanho d'úma novilha) dentro da barriga ,
e esta , destendida pelos gazes do animal em putrefa
ção dentro do estomago , apresentava a enorme circum
ferencia de sete palmos. A cabeça não era entretanto
maior do que a minha mão , e eu , para melhor com
prehender o como por um orgão apparentemente tão
pequeno tinha podido passar tão grande animal,
abria-a , e eis aqui o que notei : o craneo não é senão
a prolongação da espinha dorsal com tres pequenos
tuberculos que encerram a massa encephalica , cujo
diametro é pouco maior do que o da medulla espi
nhal ; nem o maxillar superior nem os inferiores são
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 165

ligados ao craneo ; digo maxillares por que os infe


riores são divididos em dous ossos desarticulados de

modo que póde aquella boca destender-se livremente


sem o embaraço d'esses ossos .

Defronte á Assumpçao do Paraguay o indio Paja


guá domina na região dos pantanaes, ou Chaco como
The chamam os hespanhóes. Acima da fronteira -do
Apa, para o norte , domina com diversos nomes a nação
Guaicurú, ou indios Cavalleiros ; um dos chefes-
• da
subdivisão conhecida com o nome de Cadiuéus- o ca

pitão Lapagate , foi-nos sempre de não pequeno auxi


lio na guerra, e de grande damno ás guarnições da
fronteira paraguaya do Apa . O paiz dos Guaicurús é
do Apa até pouco abaixo da foz do Emboteteú, ou rio

de Miranda . De Corumbá para cima é o paiz dos


Guatós, tribu de navegantes eternos que , consubstan
ciados com suas canôas, quasi como o caramujo com a
sua concha, erra e vive por aquellas alegres e fartas
regiões dos pantanaes do alto Paraguay, S. Lourenço e
Cuyabá . Para o indio essa é a região onde a vida é
facil : a caça e o peixe são ahi não só em grande abun
dancia , mas tão facilmente colhidos que , para viver e
gozar de abundancia, não é necessario trabalhar.

Desde que se entra em terra firme o rei do sertão é o


indio Coroado . Existem na bacia muitas outras tri

bus ; não entra em meu plano mencionar se não as


caracteristicas .

Quem viaja essa linda e curiosa região dos panta


166 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

naes não em vapor, porque este, indo pelo meio do rio,

não permitte a observação de detalhe, mas quem a


viaja em canôa , a par de alguns riscos que corre , tem
tanto que ver e observar, que os dias escoam-se com
prodigiosa rapidez . Ao contemplar essa região com
prehende-se a acção pacifica das aguas no processo de
elaboração e deposito dos sedimentos . Essa immensa
bacia revela-nos o processo que a natureza empregou

para formar a região dos pampas , e dia virá em que


ella emergindo das aguas ha de ter o mesmo aspecto
dos pampas do sul ou das savanas do norte.

A REGIÃO DO DIVISOR DA AGUAS

A bacia do Rio da Prata tem sido largamente de

scripta ; desde Azara até o norte- americano PAGE


tem-se publicado grande quantidade de obras . Do

Araguaya e Tocantins possuimos os roteiros de CÔRTE


REAL , as relações dos capitães- generaes aos reis de
Portugal ; o roteiro do Dr. RUFINO THEOTONIO SEGU
RADO, impressos estes ultimos na Revisla do Instituto

Historico. Em lingua que não a vernacula só conheço


a viagem do Conde de CASTELNEAU, que começa na

barra do Rio do Peixe no Araguaya e termina no


Pará .
A parte, pois , mais desconhecida é o divisor das
aguas , que eu passo a descrever ligeiramente na ex
tensão das 100 leguas que medeiam entre Cuyabá e o
rio Araguaya .
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 167

Cuyabá tem uma população de 25 mil habitantes


mais ou menos, e está edificada á margem do rio

d'esse nome, tendo do porto ao largo do Palacio 1,050


braças. Edificada sobre um solo regular de depositos

quaternarios apresenta a irregularidade de nossas ci


dades do interior. A principal industria da provincia
é a creação do gado vaccum , que se me não falha a
memoria, attinge ao numero de 200,000 cabeças , cifra
elevada para a população da provincia que provavel
mente não excede a 40,000 habitantes . A raça branca
alli está profundamente modificada pelo sangue negro
e indigena.
Dos povos do Brasil o cuyabano é o que mais se
assemelha por seus caracteres physicos ao povo para
guayo . Grandes cantores e amigos de dansa como to
dos os povos proximamente unidos aos indigenas , elles
não têm a indolencia de nossas populações mestiças ;

activos , laboriosos , emprehendedores, são dignos


herdeiros dos paulistas que lhes descobrtu o solo .
A alimentação da população campesina compõe - se
quasi exclusivamente de carne e peixe. O guaraná ,
que substitue ao chá e café, é bebida tão apreciada
pelo povo, que mesmo os pobres não se privam
d'ella , apesar de custar commummente o excessivo
preço de 200 000 por arroba .
Quem segue da bacia do Rio da Prata para a do
Amazonas pelo caminho em que eu tenho andado ,
toma , ao sahir de Cuyabá, o rumo de N. E. e, a 12 le
168 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

guas de distancia depois de atravessar os ribeirões do


Coxipó, a uma legua, Arica a 4 e meia da capital,
sobe a grande serra que n'esse unico lugar divide a
bacia do Rio da Prata da bacia do Amazonas , no pe

riodo comprehendido entre os rios Tapajós e Ara


guaya . Ha diversas estradas para galgar a serra ,
sendo a do Caguassú a mais geralmente trilhada .
Esta serra que vem figurada em alguns mappas
com o nome de serra de S. Jeronymo , é uma immensa
muralha de rochas silicosas que attínge á altura de
1,400 metros , sombreada de densa mata em que pre
domina a gigantesca palmeira conhecida alli com o
nome de Caguassú . Costa arriba pela serra fóra, o
viajante sobe os primeiros contra-fortes compostos de
terras , detritos das rochas que a formam, e todas ellas
representando diversas rochas trapeanas com base de
silica e magnesia ; do meio até quasi ao cimo passa
o caminho sobre rochas talcosas , e no cimo sobre

diversas grés permeadas de quartzo .


Chegando ao cimo da serra as mattas desapparecem ,
e abrem-se as eternas campinas que se estendem a
Leste e a Norte por centenares de leguas quadradas ;

as campinas não são interrompidas senão pelos raros


bosques que, de longe em longe, acompanham ambas
as margens das torrentes que , ora correndo para o
Norte , ora para o Sul , vão formar os dois gigantes
d'agua doce , que como grandes encanamentos rece
ben as aguas d'esse immenso telhado .
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 169

Subindo a algum dos mais elevados picos do serro,


se fora possivel dar á vista humana o poder de
abranger um raio de 1,200 leguas , eis aqui mais ou
menos o que enxergaria o viajante : elle estaria
na extremidade Sul do grande plateau central , que
formaria como uma sotéa no meio d'um telhado im

menso, plateau que tendo 200 leguas em rumo de


L. a O. (do Madeira ao Araguaya) e 200 em rumo
de S. a N. até a inclinação que determina os ra
pidos e cachoeiras dos affluentes do Amazonas, apre
sentaria a grande área de vista de 40,000 leguas
quadradas ! Ao Sul elle teria a bacia do Rio da

Prata plana como um salão , coberta de eternos palus


tres, morada de milhares de jacarés, sicurys, capi

varas, antas, tigres , e de innumeraveis familias aqua


ticas ; charcos , lagoas, esteros, ora apresentando o
aspecto de campinas risonhas e cobertas de arrosaes
nativos , juncos , nenufares, lyrios e plantas aquaticas ,
ora sombreadas por aquella melancolica e caracteris
tica palmeira a que o indio legou o nome de carandá .
Ao Norte do plateau avistaria como que dois degráos
antes de chegar ás planuras do Amazonas, degráos
que correm de L. a O. formando as cachoeiras do Ma
deira , Tapajós , Xingú , Araguaya e Tocantins . Até ahi

são campinas ; d'ahi em diante , rolando tudo isto pela


parte do N. , avistaria as soberbas florestas do Amazo
nas , que, como um manto de velludo de felpas colos
saes, envolve o rei dos rios .
170 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

Esta seria a vista ideal do todo da região de que


tratamos.
Passando, porém, do ideal ao real, e descendo dos
pincaros da serra para tomar a sella do cavallo de

viagem , eis o que encontra o viajante que segue a


actual estrada nova , que sobre o divisor das aguas vai
de Cuyabá ao Araguaya .
Nos mappas vem figurada uma serra fazendo a
divisão das duas bacias. Ha n'isso inexactidão ; o

divisor das aguas , á excepção das montanhas de que


fallei atraz , e que não abrangem grande extensão , é
em geral de campinas levemente accidentadas , com
pendores suaves , cujos declives não excedem pelo
commum a cinco por cento .
De Cuyabá até o rio Sangrador-Grande, que lhe
fica cincoenta leguas para rumo de L. , vai-se sempre
sobre o divisor das aguas, atravessando torrentes , que
ora vertem para o Rio da Prata, ora para o Amazonas,
e que se entrelaçam umas com as outras como as raizes

de arvores plantadas em terreno apertado. Não é raro


mesmo vadearem-se grandes lagoas que a um tempo
fornecem aguas para os dous rumos oppostos; entre
estas nasce a lagoa do Dr. Couto , que distingue- se
pelo volume de suas aguas e aspecto risonho que
apresenta , coberta como é de lyrios, victoria-régias ,
juncos, pelo meio dos quaes erram numerosos bandos
de marrecas , patos e passaros aquaticos , e em cujo
fundo negrejam ás vezes os lentos e enormes caracoes
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 171

da boa-constrictor . Do Sangrador-Grande em diante o


divisor das aguas, que ia em rumo de O. a L. , pende
para S. E. para depois , entre o Piquiry e Bahús ,
tomar o rumo de N. E. , em que segue até aos montes
Pyrinêos, na provincia de Goyaz, montes que dão as
ultimas aguas orientaes que vão ao Amazonas.
Do Sangrador ao Araguaya medêa a distancia de
cincoenta leguas . A sele leguas a L. do Sangrador ha
no meio das planicies montes elevados de campos
abruptos , de pequeno diametro e muita elevação , e
que semelham torres ou castellos gigantescos ; o mais
notavel d'estes é o Paredão . Estes montes , sem vege

lação aos lados, são vermelhos-escuros , arenaceos e


cobertos de crostas estractificadas de diversos saes de

ferro ou de conglomeratos da mesma base.


Desde minhas primeiras viagens que o aspecto mas
siço e a cor vermelha d'essas montanhas e rochas
chamou minha attenção , porque esse genero de forma
ção não é commum ao Brazil . Meus conhecimentos
geologicos eram então quasi nullos . Foi só na ultima
viagem que, vindo eu de Montevidéo para aqui com o
naturalista inglez James Armstrong, que vinha de
volta de uma expedição ao estreito de Magalhães, este
deu-me alguns fósseis (madeiras petrificadas pela sili
ca) , e eu , com sorpreza , vi então que havia passado
mais de uma vez por um banco importante d'esses
preciosos fragmentos da historia das revoluções da
terra, banco tanto mais curioso , quanto elle indica ,
172 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

pelo que supponho, uma bacia de terrenos carboni


feros.
A montanha denominada Paredão eleva- se, como

um castello colossal, no meio d'aquellas campinas .


Seus lados são talhados a prumo , altissimos e inacces
siveis, excepto pelo lado do nascente. A côr vermelha
d'aquelle colosso destaca-o grandiosamente das verdis

simas e humidas campinas que the velam os topes e


contrafortes. No meio da esplanada superior , que é

chata e coberta de musgos e de graminaceos mui pe


quenos ou de pequenos arbustos entortilhados, eleva-se

um cabeço , que como atalaia completa a illusão , figu


rando-o a um castello em ruinas . O viajante que ousa

subir ao pincaro d'essa esplanada (o que já fiz e que


qualquer póde fazer, como disse, galgando -o pela parte
do oriente) acha-se collocado talvez no mais alto ponto
do divisor das aguas do Amazonas e do Prata . Ao sul ,
poente e nascente avistam-se planicies, nas quaes se
destacam , como torres , algumas montanhas do mesmo
grés vermelho que constitue o Paredão . Ao N. e N. O.
as planuras estendem- se quasi a perder de vista , e bem
na extrema do horizonte, a dezeseis leguas de distan
cia, avista-se uma serra , que, correndo no rumo de
S. O. para N. E. , parece que divide as aguas do
Xingú (cujas cabeceiras são ainda inteiramente desco

nhecidas) das aguas do Rio das Mortes. Quando o


tempo está sereno , avistam-se subindo ao ar, d'aquellas
campinas, grandes columnas de fumaça que indicam
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 173

as aldeas dos indios , inteiramente selvagens e ferozes ,


que habitam essa região , compostos , pelo que suppo
nho, de Cahipó , Coroados, Gorotirés e algumas outras
tribus de que nós temos perdido os vestigios , ou de
quem nem tenhamos talvez a mais leve noticia.

Do Paredão ao Araguaya medêa a distancia de


cincoenta leguas , e a estrada, deixando á direita o
divisor das aguas, tema os altos de uma bacia secun
daria -os que dividem as aguas do rio das Garças
das do Rio das Mortes . Tudo é campo . A quatorze
leguas do Paredão atravessa-se o Barreirinho sobre

uma ponte, cujos esteios estão apoiados em lagedos de


grés vermelho ; seu aspecto atravez das aguas limpidas
do rio é summamente agradavel ; a vinte e duas leguas
atravessa-se o Barreiro-Grande : a ponte está lançada

sobre dous paredões de grés metamorphico, altissimos,


que ahi estreitam e encanam o rio, de modo que o
viajante passa por assim dizer dependurado sobre o
abysmo, no fundo do qual corre serena e quasi imper
ceptivelmente aquella massa opulentissima de aguas .
Eu sondei n'esse lugar o rio com uma linha de pescar

de vinte braças e não encontrei o fundo . O Barreiro


tem fóra do canal cerca de trezentos palmos de largo,
com a profundidade de dez a quatorze no talweg. Duas
e meia leguas adiante do Barreiro ha uma curiosa
fonte de aguas thermaes , uma das mais lindas cousas
que tenho visto n'estes sertões . O ribeirão d'agua
quente desce dependurado por uma lombada de terreno
174 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

suave, e vem por mais de uma legua em continuadas


cascatas; o viajante quando alli chega , depois de uma
marcha fatigante por um campo onde falta sombra,
extenuado de sol e cansaço , sente inefavel delicia com
o vêr aquellas aguas levemente azuladas, tão transpa
rentes como o diamente, precipitando- se sobre urnas
de pedras esverdeadas , povoadas de numerosos cardu
mes de peixes alvos, que libram - se nos rapidos, pare
cendo gozar n'aquellas aguas puras o prazer de viver
alegremente .

O ribeirão, no logar em que a estrada o transpõe , é


apenas morno, não tendo temperatura superior á do
corpo humano, pois que a thermal já vem misturada
com um outro regato de agua commum que lhe nasce
proximo . Tendo eu mandado exploral- o , disseram-me
que elle nasce a uma legua de distancia da passagem,
e que, brotando de uma rocha , é muito mais quente
no lugar de seu nascedouro , antes de confundir suas

aguas com duas outras fontes que lhe nascem proximas.


A região comprehendida entre o Barreiro e o lugar
denominado Taquaral do Fogaça é de terrenos lindis
simos , regada de innumeras fontes de agua , e em geral
mais vestida de matas do que a anterior , offerecendo ,
portanto , maiores e melhores proporções para ser
habitada . Os povoadores, porém, não se animam a
buscar aquellas paragens , que teriam pelo rio das
Garças e Araguaya escoadouro para suas producções ,
porque receiam -se das incursões dos indios . Diversos
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 175

presidentes de Mato-Grosso , e entre elles os Srs . vis


conde de S. Vicente e barão de Melgaço , propuzeram

a medida de crear- se um corpo de pedestres , que ,


guarnecendo destacamentos collocados de vinte em
vinte leguas, garantissem a segurança aos morado res
d'esses lugares . Seria esse o unico meio de ligar-se
a população de Mato-Grosso á do resto do Imperio,
população que está hoje separada por uma solução de
continuidade de cerca de cem leguas .

Do Taquaral do Fogaça em diante até o Araguaya ,


oito leguas , começam os baixios do Araguaya. O
grande rio é precedido por uma zona chata de seis
a dezeseis leguas de largura , que o acompanha em
ambas as margens e durante as duzentas leguas que
elle corre sobre o plateau. Essa região coberta quasi
toda de campos , e varzeas de arroz silvestre e mimoso ,
é talvez a parte do Brasil mais propria para a creação
de gado , e ha annos que já se o começa a criar em
pequena escala . Hoje é povoada de quantidade innu
meravel de indios , de animaes silvestres , varas de
porcos, manadas de veados , bandos de avestruzes .
maltas de lobos , onças , antas , macacos e toda sorte de
aves aquaticas, desde o gentil e pequeno marinheiro
até a garça real e o grande tuyuyú branco .

ASPECTO DA BACIA DO AMAZONAS . RECORDAÇÕES DE VIAGEM

A bacia do Amazonas, de Monte- Alegre para baixo ,


176 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

é, como a bacia do Prata, subdividida em tres regiões

cobertas de agua : a dos rios , a dos lagos , que corres


pondem ás bahias do Rio da Prata, e a dos pantanaes ,
que, á excepção dos da ilha de Marajo , são cobertos de
florestas , ora baixas e rachiticas, ora gigantescas ,
escuras e grandiosas. A bacia do Amazonas é muito

rica, mas em compensação é mais tristonha e mais


doentia .

Nada direi do aspecto dos rios senão que têm as


margens mais elevadas do que as do Prata, cobertas

de lama e as aguas barrentas . Os lagos são de grande


belleza , sobre-tudo na parte da bacia que fica em cima
do grande plateau ou araxá central . Suas margens são
ordinariamente cobertas de bosques espessos na pro

ximidade dos rios em que desembocam; ás vezes são


de campinas abertas ou de cerrados, nome com que os
homens do interior designam os campos sombreados
de algum arvoredo rarefeito e entortilhado, em que
predomina a arvore de lixa , o piqui e o murici . Estes
lagos são formados pelos ribeirões que defluem nos rios .
Mais de uma vez eu inqueri a mim mesmo como é que
esses pequenos ribeirões cavavam essas grandes bacias,
e eis-aqui a explicação, pelo que me parece, d'esse
phenomeno: sendo , como é , chato e quasi sem declive
esse terreno , o rio represa os ribeirões, porque sua
massa de aguas é maior e mais corrente ; elle representa ,

portanto , para com os ribeirões , o papel de dique ; re


presada a agua do ribeirão , sendo sua correnteza pelo
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 177

commum muito inferior á do rio, e sendo a pressão da


agua do rio muito maior no fundo do que na superficie ,
a corrente da massa de agua accumulada pelo ribeirão
se subdivide em duas: uma, a do fundo, que indo de
encontro á massa do fundo do rio , toma um curso de
retrocesso e remonta o ribeirão ; a outra , superior, que ,

elevando-se um pouco acima do nivel do rio , escoa-se


por elle fóra , graças ao excesso de pressão atmosphe
rica que ganha com a elevação do nivel ; esta explicação
me parece que podia dar a fórmula para o calculo em
cavallos mechanicos do trabalho desempenhado pela

agua do ribeirão para cavar e conservar limpas aquellas


bacias providenciaes, reservatorios de agua para manter
as do rio na estação secca , na qual , sem esses provi
denciaes reservatorios , o mesmo rio ficaria torrado na
expressão figurada , mas energica do sertanejo .
A região equivalente aos pantanaes do Prata é no
Amazonas a dos seringaes ou florestas alagadas, em que
predomina a arvore da gomma elastica ; essas florestas
emergem tambem de um solo alagadiço , mas a massa
de agua que lhes cobre as raizes é muito menos espessa
do que a que cobre os pantanaes do Chaco . Navega- se
em canoas na estação das cheias por baixo d'essas
florestas pela mesma fórma por que se navega nos
pantanaes do Paraguay, com a differença de: os cori
xos são substituidos pelos igarapés (significa caminho
de canôa) , nome com que na bacia do Amazonas
designam os ribeirões que estão sujeitos ao fluxo e
178 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

refluxo da maré. A região do Prata parece de formação

muito mais recente do que a do Amazonas.


Quanto á sua fauna : os passaros predominam na
do Prata; na do Amazonas os quadrupedes e os grandes
reptis amphibios. Em 1865 eu fiz uma viagem, atra
vessando a grande ilha de Marajó da costa do oceano
(Chaves) , até a parte que fica fronteira a Belêm, isto é,
á foz do Arary. No lago d'este nome e nos igarapês que
n'elle defluem , os quaes estavam reduzidos a grandes
poços , vi tal quantidade de jacarés , que creio não
exagerar calculando- os por milhões . Os rios do Ama
zonas são tambem mais abundantes de grandes peixes ,
avultando entre estes o pirarucú e o peixe-boi , que

merecem especial menção , porque são de grande


soccorro aos selvagens e aos viajantes das canôas. Os
selvagens (os Carajás do Araguaya) pescam o pirarucú
com redes que fazem de sipós . O pirarucú tem grande
força proporcional a seu corpo , que pesa , pelo commum ,
de tres a cinco arrobas.

Os Tupis do Para pescam-n'o com a sararaca , frecha


cujo dardo é unido á haste por uma linha comprida de
tucum enrolada á mesma haste e disposta de tal forma
que, quando crava-se no peixe, a haste solta-se , e , como
é de canna , ella fluctua sobre a agua , indicando assim
as direcções que o peixe ferido leva no fundo; o pira
Tucú , que tem necessidade de respirar ar atmospherico ,
quando vem á superficie do lago é novamente frechado ,
e assim o vão perseguido até exhaurir-lhe as forças
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 179

conseguido o que , os indios, tomando a haste da frecha ,


que está segura ao dardo cravado no peixe pela linha
de tucum de que fallámos , procuram leval-o a algum
baixio , saltam á agua , e , com uma pancada de massa
sobre a cabeça , o matam. O pirarucù é um peixe das
dimensões do mero , de cinco a oito palmos do compri
mento , de seis a oito de circumferencia , roliço , de
largas escamas , as quaes tem o diametro de uma polle
gada e meia , de um bello verde-escuro ; as escamas da
barriga e da parte posterior do corpo são orladas por um
semi-circulo de cor vermelha vivissima, e é d'ahi que

The vem o nome, porque pirá rucú quer dizer peixe


urucú, isto é, com pintas côr de urucú .
Disse eu acima que a região do Amazonas é de flo
restas, emquanto a do Prata é de campos ; fazem ex
cepção a estas florestas á ilha de Marajó e algumas da
foz do Amazonas , assim como a região que fica ao
norte de Macapá, que são cobertas de alegres e ferteis
campos , onde innumeraveis familias de passaros aqua
ticos, com a variedade de suas côres, e com seus pios
e cantos , alegram os olhos e ouvidos do viajante , des
truindo o silencio, monotonia e tristeza das regiões de
florestas. O solo dos rios do Prata é argilloso ; o dos

do Amazonas é arenoso . Isto indica o seguinte facto


geologico : eram graniticas as rochas que deram sedi
mentos para aquella região ; eram grés arenoso as que
deram os sedimentos para a do Amazonas. Não quer
isto dizer que se não encontrem regiões arenosas no
180 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

Prata ou argillosas no Amazonas ; eu fallo apenas do


que é geral e predominante .

A montanha do Paredão , que deixei descripta, ficou


ahi isolada no meio do plateau central para com seus
grés vermelhos nos indicar a historia da formação dos
valles do norte, assim como as inscripções runicas
foram providencialmente conservadas para nos trans
mittir a memoria das primeiras emigrações da familia

humana no começo dos tempos historicos .

Ao tempo da descoberta do Amazonas era a raça


Tupi que predominava n'essas regiões , com o nome
de Tupinambá . Por vestigios archeologicos de louça e
outros artefactos, por vestigios de linguas, eis-aqui o
meu modo de pensar respeito ás raças que povoam
essa região .

Encontram -se os vestigios de uma raça antiga , que

ninguem sabe de onde e nem como veiu parar ahi ; en


contram-se vestigios de uma emigração posterior, que
não deve datar de mais de oitocentos annos , de tribus
que desceram dos Andes ; encontram-se vestigios da
emigração para ahi dos Tupinambás , emigração que é
quasi contemporanea da descoberta da America : como
muitas vezes acontece nos tempos historicos , os ulti
mos emigrantes constituiram -se raça preponderante.
Eu não tenho dados sufficientes para deixar fóra de
duvida a historia d'estas emigrações , e não dou a
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 481

minha opinião a este respeito como cousa certa , e sim


como provavel.
NAVEGAÇÃO A VAPOR

Não será fóra de proposito dar ao leitor uma idéa


geral da actualidade das communicações entre estas
regiões .
As linhas de navegação a vapor do Araguaya , que
partem de Leopoldina, uma para o sul até a pequena
povoação de Matto-Grosso , denominada Ytacaiú , outra
para o norte até o presidio de Santa Maria, cortam o
plateau central no rumo de N. a S. em uma extensão

de 230 leguas. Ahi o vapor, passando por entre as


numerosas aldeas de indios que ainda andam nús,
apresenta em contraste os dois extremos da cadêa hu

mana : a raça mais civilisada que usa d'esse primeiro


agente do progresso, e o homem nú, imagem viva da
primeira rudeza e barbaridade selvagem de nossos
maiores.

Quando eu comecei minha vida publica , n'este


grande caminho do Amazonas ao Prata tinhamos

apenas sessenta leguas navegadas por vapores brasi


leiros . Muitas vezes , nas noites que eu era obrigado a
velar com o rewolver na mão para defender-me dos in
dios, perguntei a mim mesino quando a civilisação
chegaria a essas solidões . Hoje temos mil e trinta le

guas navegadas a vapor, e não sessenta que então


haviam . Mil e trinta leguas pelo interior, e ha brasi
leiros que desesperam de nosso progresso !
182 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

Conceda-nos Deus paz interior , como nos tem conce


dido até hoje, e talvez em futuro não mui remoto te
nhamos de vêr a estrada de ferro ligando essas regiões
ao Rio de Janeiro , tomando a fórma de um T collossal ,

cuja cabeça ligue o valle do Rio da Prata pelo Pequiry


ou S. Lourenço, o outro o do Araguaya , e , portanto o
do Amazonas, garantida assim a esse collosso sna in
tegridade territorial , que sem ella difficilmente con
servará.
Conceda-nos Deus paz, e isto , que parecerá agora
utopia, será dentro em alguns annos fertil realidade.
Tal é a grande região em que erram hoje as popu
lações aborigenes mais densas do Imperio .

CONCLUSÃO

• Ha muita cousa de grosseiro na fórma das crenças


selvagens .

Tambem as superstições christãs do povo ignorante


são grosseiras e extravagantes .
Desde porêm que se as examinar, pondo de parte os
nomes proprios, e procurando descer ás idéas funda

mentaes, ficar-se-ha sorprendido da notavel e profunda


philosophia e poesia que ellas encerram .
Tempo houve em que, graças aos esforços do Insti
tuto Historico , a litteratura nacional manifestoù a sa
lutar tendencia de estudar estes assumptos . Os cantos

de Gonçalves Dias , Bernardo Guimarães, alguns ro


mances de José de Alencar, composições mais antigas
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 183

de José Basilio e Santa Rita Durão , são um lindo col


lar de perolas que nossa geração legará á posteridade .
Posteriormente , alguns homens orgulhosos se bem
que notaveis por seu talento , e á sua frente João Fran

cisco Lisboa , promoveram a reacção . Elles que nada


conheciam da lingua , e que portanto nada podiam co
nhecer da indole do selvagem , porque o que está es

cripto é falso , como mostrei , procuraram lançar o ridi


culo sobre estas bellas tradições da velha America.
Como não haviam estudos serios e profundos de philo

logia, a reacção ganhou a victoria . ( 18)

(18) Em uma tão espirituosa quão benevola critica a


estes artigos , devida à elegante penna de Joaquim
Serra, e publicada na Reforma , nota- se que tendo
estranhado a guerra feita pelo nosso illustre Lisboa ao
estudo dos assumptos indigenas , me callasse a respeito
dsa opiniões prégadas no seio do proprio Instituto His
torico por um dos seus membros o Sr. barão do Porto
Seguro, segundo o qual o meio de catechisar indios é
reduzil-os á escravidão , ou matal- os .
Eu não tenho conhecimento d'esse escripto, e que ti
vesse , o Instituto Historico , como associação litteraria ,
não tem meio algum para precaver- se contra uma ou
outra doutrina extravagante , adoptada por qualquer
de seus membros , em quanto ella não é abraçada pela
associação , e esta a não propaga em seus escriptos .
Se é certo que um membro do Instituto sustenta a
barbara opinião , de que a raça selvagem do Brasil deve
ser exterminada à ferro e fogo , opinião que nunca vi
manifestada em nenhum dos escriptos d'aquelle emi
nente brasileiro , não é menos certo que tal opinião é
singular ; e que todos os esforços da associação hão
sido dirigidos até o presente no sentido de estudal -a ;
184 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

Os jovens talentos , em vez de haurir nas tradições


indigenas exemplos tão frequentes n'ella de dedicação
levada ao heroismo, amor da patria , desprezo da vida ,
e energia de caracter, exemplos estes proprios para
inspirar virilidade á uma nação que começa , foram
buscar na litteratura franceza os modelos mulherengos
de seus heroes efeminados .

Mas todas essas composições hão de passar. E' na


natureza estudada por observação propria , que se in
spira a grande arte, e nossos selvagens ministram so
berbos typos .

Oxalá renasça o gosto por estudos, que em tão má


hora, foram cobertos de desprestigio por quem já não
tinha a força para fazel-os .

Pelo que ficou escripto , o leitor terá visto que o sel


vagem do Brasil não é uma raça somenos e incapaz de

é esse o primeiro passo para assimilal-a à nossa socie


dade.

A Revista do Instituto è prova d'isso , e tambem a sua


bibliotheca , unica talvez no mundo que encerra ma
nuscriptos e publicações , rarissimas hoje , respeito às
linguas indigenas . Este ultimo topico está desenvol
vido convenientemente na parte d'esta memoria em que
eu trato da collecção de escriptos preciosos , relativos
ás antigas linguas sul-americanas ; collecção que é
hoje uma das mais raras do mundo , e sobre a qual a
curiosidade dos modernos linguistas se tem geralmente
despertado , desde que se começou a suspeitar que o
guarani ou tupí é lingua mais antiga do que o san
scrito.
O GRANDE SERTÃO INTERIOR 185

grandes aperfeiçoamentos moraes . Si me fora dado en


trar agora em outra ordem de considerações , eu de
monstraria que os mestiços do indio e branco consti
tuem raça energica e que mais iniciativa possue no
Imperio . Entre nossos homens illustres, alguns dos

quaes mais se distinguiram pela fortaleza de seu ca

racter, pela virtude da perseverança , que não é muito


vulgar entre nós , foram mestiços . Citarei entre outros

o padre Diogo Antonio Feijó . Contra o presupposto


de que os indios fallam uma gyria sem leis nem re
gras ; de que não têm idéas moraes , sentimento de re

ligião ; de que são indolentes e preguiçosos, protestam :


a bella lingua tupí, suas admiraveis instituições de fa
milia, suas tradições e crenças religiosas , sua extrema
actividade na pesca , na caça e na guerra, unicos tra
balhos cuja utilidade comprehendem . Não trabalham
nas cousas em que nós trabalhamos, porque nem foram
habituados a isso , nem sentem as nossas necessidades .
Sobrios, bons, dedicados até o heroismo , alguns os
chamam de traiçoeiros e falsos , porque quasi sempre
elles , sendo victimas de traições e falsidades que pra
ticamos , abusando de nossa posição de raça conquis
tadora , damo-lhes razão de sobra para reagirem contra
nós ; e si reagem com hypocrisia é porque essa é a
arma do fraco .

E' uma grande raça , repito . Temos muito a ganhar


pondo-nos em contacto com ella pelo orgão indispen
savel do conhecimento de sua lingua ; por muitos an

I
186 O GRANDE SERTÃO INTERIOR

nos os indios hão de ser os precursores da raça branca


em nossos sertões , e nem Deus promoveria a grande
fusão de sangue , que se está operando lentamente
n'este cadinho immeusodo Brasil, si com isso não tivesse

em vista a realisação d'um d'esses grandes designios


que marcam as epochas notaveis da historia.
APPENDICE

Mostrando qual é a posição do indio em presença da


raça conquistadora

(CARTA A JOAQUIM SERRA)

Mais de uma vez , nas palestras do Club da Reforma ,


V. e alguns dos illustres membros da redacção d'esse
jornal chasquearam a proposito de meus estudos de
linguas e antiguidades indigenas.
Apezar dos edificantes commentarios que V. tantas
vezes fez sobre este assumpto , eu vou publicar a me
moria , que sobre anthropologia nocional, acabo de ler
no Instituto Historico .
-
Como é que um homem pratico se occupa em
taes cousas ?
Como essa pergunta será feita por muita gente que
se suppõe com mais juizo do que eu , aqui vai a res
posta , a qual servirá de desculpa a esta publicação .
Em primeiro lugar, não ha estudo algum por mais
abstracto que pareça , o qual , cedo ou tarde, não traga
seus fructos praticos .
Em segundo lugar, se é util estudar, descrever e
classificar até a mais miseravel planta de nossos cam
pos, ver o mais rude e pobre mineral de nossos mon
tes ; muito mais nobre e util é estudar descrever e
classificar o homem americano , e vou proval -o .
Em nossa situação de raça conquistadora , nós que
tomamos o solo a esses infelizes , e que os vamos dia a
dia apertando mais para os sertões, temos o dever,
como christãos , de arrancal -os da barbaria sanguino
lenta em que vivem , para trazel -os á communhão do
trabalho e da sociedade em que vivemos . E é mais no
188

bre empenhar trabalho e esforço para conseguir isso ,


do que para descrever plantas ou mineraes.
Não é só nobre , é tambem nimiamente util.
Por muitos seculos ainda a raça mestiça do branco
e do indigena , ha de ser a precursora do branco nos
sertões do interior.

Não serão europeos, importados á não sei quantos


por cabeça , que hão de começar a povoação das terras
virgens .
Ha de ser, como tem sido até aqui , o indio ou o
mestiço, seu descendente .
Um distincto estadista brazileiro, fazendo o calculo
das despezas que temos feito com colonisação , chegou
ao resultado de que cada colono aproveitado, nos têm
custado cerca de um conto de réis . Digo aproveitado ,
para entender-se o que fica , deduzidos os que morrem
antes de acclimar-se, os que voltam , aquelles cujas pas
sagens pagamos e que aqui não chegam, aos quaes po
diamos bem ajuntar os vadios , que não trabalham, ou
que exercem industria de pouca utilidade, como : en
graxar botas , tocar realejo, ou vender bebidas espiri
tuosas.
Aquelles que estimam em menos a população selva
gem do Brazil , dizem que nós possuimos quinhentos
mil indios .
Eu creio que possuimos mais de um milhão . Mas
contemos só os quinhentos mil, os quaes, se é exacto
o calculo á que eu alludi acima, valem quinhentos mil
contos. Ora, quinhentos mil contos é a renda do Bra
zil durante 5 annos . Para adquirir de fóra uma popu
lação igual a dos selvagens , que já estão em nossa
terra , serão necessarias despezas por espaço de muitos
centos de annos .
Isto mostra , que o indio é um thesouro de immensa
valia para nós , que, mais do que nenhum outro povo
― 189

do mundo, temos sertões a povoar, e terras que não po


derão jámais ser occupadas pela raça branca sem pri
meiramente serem desbravadas por uma outra raça ,
menos sujeita ás influencias deleterias dos climas in
tertropicaes, e capaz de viver fartamente com um pouco
de cultura , caça e pesca n'aquelles mesmos lugares em
que os brancos morreriam á mingoa.
Mas, dizem, o indio é preguiçoso , estupido, bebado,
traiçoeiro e máu .
Coitados ! elles não têm historiadores ; os que lhes
escrevem a historia ou são aquelles que , a pretexto de
religião e civilisação , querem viver á custa de seu suor ,
reduzir suas mulheres e filhas á concubinas ; ou sào
os que os encontram degradados por um systema de
catechese, que , com mui raras e honrosas excepções , é
inspirada pelos moveis de ganancia ou da libertinagem
hypocrita , e que dá em resultado uma especie de es
cravidão que, fosse qual fosse a raça , havia forçosa
mente de produzir a preguiça , a ignorancia, a embria
guez , a devassidão e mais vicios que infelizmente acom
panham o homem quando se degrada .
Os escravos dos gregos e romanos eram de raça
branca, e não sei que a historia tenha conservado noti
cia de gente peior.
Qual é o meio de catechisar convenientemente o
indio ?
E' ensinar em cada tribu alguns meninos a lêr e a
escrever , conservando-lhes o conhecimento da lingua
materna, e sobre tudo : não aldear e nem pretender
governar a tribu selvagem.
Deixemol-os com seus costumes , sua alimentação ,
seu modo de vida . A mudança mais rapida é aquella
que só pode ser operada com o tempo , e no decurso de
mais de uma geração , pela substituição gradual das
idéas e necessidades , que elles possuem no estado bar
- 190 --

baro, em comparação com as que hão de ter desde que


se civilisem . Limitemo-nos a ensinar-lhes que não
devem matar aos de outras tribus . E' a unica cousa
em que elles divergem essencialmenie de nós .
Quanto ao mais, seus costumes , suas idéas mo

raes, sua familia , seu genero de trabalho para ali


mentar-se, são muito preferiveis , no estado de bar
baria em que elles se acham, aos nossos costumes que
elles repellem emquanto podem , e aos quaes se não
sujeitam senão quando , enfraquecidos por continuas
guerras , se vêm entregar a nós para evitar a morte e a
destruição .
Cada ibu que nós aldeamos é uma tribu que degra
damos , é a que por fim destruimos , com as melhores
intenções, e gastando o nosso dinheiro .
Porque razão sustental-os ou obrigal-os a fazer roça
a pretexto de que só assim perdem os habitos da vida
nomade , quando elles se sustentam perfeitamente bem ,
sem ter taes roças ?
Não entrará pelos olhos á dentro de todo homem de
bom senso que reduzir á vida sedentaria homens que
não tem as artes necessarias para subsistir n'ella , ou
equivale a destruil -os á custa de fome e privações, ou
equivale a fazer pesar sobre nós o encargo de sus
tental-os ?
Mas, dir-se-ha, os indios aldeados aprenderão logo
a cultivar a terra , e poderão viver á sua custa e fe
lizes .
Se a natureza moral de um povo fosse como uma
tira de papel , onde se escreve quanto nos vem á ca
beça , então seria tão facil mudar-lhes os costumes ,
como é facil escrever .
Feliz ou infelizmente não é assim. Esses costumes
rudes são mais tenazes do que os de um povo civili
sado ; entrelaçam-se com seus sentimentos , suas ne
▪ 191 -

cessidades , e até com suas crenças e superstições re


ligiosas. O mais rudimental conhecimento da natu
reza faz ver, que é impossivel alterar essas cousas sem
o decurso de algumas gerações, e por outro meio que
não seja a educação do menino, especial e dirigida
para esse fim, e com vistas de reduzil-o a interprete
que sirva de laço entre o indio e o christão .
Aldĉar o indio em um ponto , e obrigal-o a cultivar
a terra para obter um sustento de que elle não neces
sita ; é um peccado contra o senso commum , e d'esses
que bradam aos céos .
O indio sustenta-se quasi exclusivamente de carne
e peixe. Desde a lagartixa até a anta , a onça e o ja
caré, desde o caramujo e a ostra até o pirarucú e o
peixe-boi, tudo lhe é carne ou peixe, e lhe serve de
alimento, bom e sadio , e elle o prova com a sua robus
tez, e com o grande numero de annos a que attinge
antes de lhe vir a decrepitude .
Notarei para que se não faça idéa erronea de sua
hygiene alimentar, pelo que acabo de dizer , que , ao
passo que elles se alimentam de muitos animaes , que
não comeriamos sem grande rupugnancia , não comem
muitos dos que nós comemos ; exemplo a pirahiba ,
grande parte dos peixes de pelle , aves e pas
saros em certas épocas do anno, por serem nocivos
á saude.

Diziamos porém, que os indios se alimentam quasi


exclusivamente de peixe e carne , e que á vista de seus
costumes , elles tem na vida que levam um amplo cel
leiro d'esses alimentos , com pouco ou quasi nenhum
trabalho.

Diziamos que aldea-los , e por conseguinte sujeital- os


á vida sedentaria e a cultivar a terra que lhes dará um
alimento de que elles não usam, e que é realmente in
ferior, constituia um crime de leso senso commum .
- 192 -

Vou tornar este pensamento bem claro, figurando


um exemplo : Supponhamos que alguem nos viesse
fazer a seguinte proposta : « Proponho que os brasi
leiros, em vez de comerem carne de vacca, feijão e
arroz, se alimentem de lagartixas e jacarés, o que
lhes custará muito mais caro ou muito maior traba
lho . »

Creio que concordarás que não seria faci sujeitar


nos a isso. Sem palmatoadas, tronco e jejum , seria
muito pouco provavel que acceitassemos a proposta .
Depois de aceital -a a poder de pancada, jejum e tron
co, é muito natural que cada um de nós fosse rebel
de, e executasse o serviço de apanhar lagartixas para
comer, com muita má vontade.

Pois bem; é isso justamente o que succede ao indio


que aldêamos. Exigimos que trabalhe para ter um
sustento que repelle , tanto como nós repelliriamos o
jacaré e a largatixa ; privamol -o de alimentos que pre
fere , e que elle teria quasi sem trabalho, continuando
no genero de vida semi-nomade que lhe e natural .
Como isto é contra seus costumes , não é possivel
conseguil-o sem castigos ; castigamol-os , e, depois de
degradal- os , dizemos : preguiçosos , estupidos e mãos !
Não fôra muito mais util, e ao mesmo tempo muito
mais christão , aprender a sua lingua , para poder
ensinar-lhes a nossa , e não aldeal -os , porque o aldê
amento traz como consequencia forçada isso que venho
de referir , e que o simples bom senso convencerá a
qualquer pessoa que queira reflectir sobre o assumpto?
Toda tentativa para civilisar indios , que não se
assente sobre a base de fazer com que elles compre
hendam as vontagens de nossa civilisação , o que só se
póde conseguir gradualmente , e o ponto de partida é
o ensino da lingua , tudo que não fôr isto , como disse ,
Cro 193

e não me pejo de repetil-o , é um attentado contra o


senso commum ?
Mas como ensinar- lhes a lingua .
Pela mesma fórma porque o fizeram os jesuitas,
isto é começando por aprender a lingua d'elles , e
creando meninos a quem obrigavam á fallar o tupí ,
para se não esquecerem . Estes meninos, quando che
gavam a ser homens, eram escolas vivas , porque ,
possuindo igualmente bem as duas linguas , eram o
élo indispensavel para approximar as duas raças.
Os jesuitas antigos começavam por aprender a
lingua dos selvagens. Homens de bom senso antes de
tudo , comprehenderam que elles, que sabiam ler e
escrever, possuiam habitos de estudo , deviam primeiro
aprender a lingua dos selvagens antes de exigir que o
selvagem aprendesse a nossa . Si os modernos jesuitas
fizessem isso haviam de gozar do respeito e estima de
que gosavão os antigos.
Nada ha que o grande apostolo S. Paulo tenha
aconselhado com mais energia do que a conversão
dos gentios .

De aprender linguas selvagens, que é o primeiro


passo para cumprir esse preceito não me consta que
nem um se occupe ; duvido mesmo haja um só que
saiba o nome dos livros onde se póde adquirir esse
conhecimento.

Deixemos porem isso de parte.


Dizia eu, que os jesuitas antigos seguiam o methodo
de aprender as linguas selvagens , para poder ensinar
aos meninos indios o portuguez . Sem o conhecimento
de duas linguas é impossilvel ensinar uma.
Vai para tres annos que o governo entendeu que
me devia nomear chefe de um serviço de catechese .
Desde que eu aceitei o encargo fiquei na obrigação
de empregar os esforços necessarios para bem desem
194

penhal- o , sobre tudo quando tal encargo, era e é


gratuito.
Eis-ahi a razão pela qual me dediquei e continuarei
a dedicar-me ao estudo das linguas selvagens , e ao de
assumptos relativos aos indios . Ha brasileiros , que
conhecem e estudam entre nós o hebreu , o arabe e o
sanscrito , E' , pois, natural que hajam alguns que se
dediquem ao estudo das curiosas e ricas linguas dos
selvagens da sua terra , estudo a que se prende, como
mostrei , a solução de um problema importante .
Nossos homens de talento e que se sentem com vo
cação para este ramo de conhecimento , deviam estudar
o tupí de preferencia a qualquer lingua da Asia , e se
eu detive-me tanto n'este assumpto , foi com o fim de
vêr se , apontando vantagens praticas para o paiz , ob
tenho que alguns comecem a dedicar- se a este assumpto.
OBSERVAÇÃO
Apezar da pericia e boa vontade dos typographos que
compuzeram o curso de lingua , n'elle escaparam alguns
erros ; eu não fiz errata por ter passado por dias intei
ramente impedidos na occasião em que se terminava
aquella impressão ; não ha grande inconveniente por
que, sendo o methodo baseado na regra de repetir
muitas vezes a mesma palavra , o facto de haver em
alguma d'essas repetições uma troca de letra será
facilmente corrigido.
Não me foi tambem possivel emendar as provas da
2 parte, e n'ella ha entre outras a pag. 66 a affirmação
de que possuimos no Museu uma preciosa collecção de
instrumentos de pedra lascada , o que deve lêr- se : de
pedra polida.
Quanto aos erros da l ' parte eu notarei , que foram
quasi todos pela troca do ç pelo c; assim, por exemplo,
na 1ª lenda vem duas vezes repetido cooitá , em vez de
cooitá (animaes) ; na posposição çui tambem commet
teram mais de uma vez o de trocar o c duro pelo c
brando , assim como nas terminações çàua e çara.
Ha numerosas trocas de e fechado por é aberto , como
iauaraeté por iauaraeté; falta de letras dobradas , como
carúca, em vez de caarúca , piri, em vez de piiri .
Para fins praticos isto não tem inconveniente ; para fins
scientificos eu prepararei no futuro uma outra edição
d'esta obra, com tempo necessario , que de todo agora
me faltou .
Nos trabalhos seguintes vou adoptar em tudo o
alphabeto phonetico de Lepsius , o que não fiz agora em
algumas letras por não ter conseguido mandal- as fun
dir , resultando d'ahi o inconveniente de ser forçado a
adoptar o x para exprimir o som do ch portuguez ; ox
tem quasi os mesmos inconvenientes do ch, e o meio de
evital-os é empregar o signal proprio .
A unidade de alphabeto deve ser a mais essencial
aspiração de quantos se dedicarem ao estudo de linguas.
americanas, não só porque é o meio de evitar o incon
veniente de figurar o mesmo vocabulo como duas cousas
distinctas, como tambem de evitar que dous vocabulos
distinctos se confundam, o que não é menos importante.
Na moderna sciencia da linguagem é essencial que se
possam notar com a devida precisão todas as alterações
por que passa uma lingua; só assim reconhecer- se-hão
as leis que presidem ao phenomeno complicado da evo
lução linguistica . Por falta de typos substitui o cir
cumflexo pelo agudo , para indicar o accento da palavra.

Estava impressa esta obra quando me veio às mãos a


excellente revista Ensaios de sciencia , contendo um
soberbo estudo do Sr. Dr. Baptista Caetano sobre o
abanhehe, que, comquanto referente a lingua diversa
na fórma da que serve de objecto a este curso , me teria
servido para illustral- o com importantes annotações .
Na grande familia de linguas tupis eu creio que a
fallada no alto Amazonas é a mais antiga , e a que mais
se avizinha ao tronco commum (aimára?) de onde
provieram todas que chegaram a nosso conhecimento ;
tenho para assim pensar diversos motivos , e entre
outros o de estarem uniformemente substituidas alli
por vogaes as consoantes explosivos do tupi do baixo .
Amazonas do da costa , e do guaraní de Montoya ; no
da costa , o de conservar nos nomes maior numero de
raizes ; o de ter uma litteratura de lendas e cantos
muito mais vasta do que as outras . Este assumpto será
opportunamente desenvolvido .
Na mesma revista vem um excellente estudo do
Sr. Barbosa Rodrigues sobre antiguidades amazonicas ,
que me teria sido precioso auxiliar para a 2ª parte da
obra se eu o tivesse podido lêr em tempo de aprovei
tal-o . Indico a obra para que o leitor , procurando os
Ensaios de sciencia , goze da vantagem de lêr um livro
escripto por brazileiros , com caracter verdadeiramente
scientifico , e que felizmente não é , como tantos que
aqui se publicam, reproducção de leitura , e sim traba
lho original e consciencioso , e que todo versa sobre
assumptos patrios . Seja- me licito dar aqui a seus
illustres auctores os mais sinceros parabens .
:

INDICE

Ao leitor. VII
Trabalhos scientificos realizados recente
mente na America, tendo por objecto o
selvagem . XVII
O selvagem como elemento economico. XIX
Assimilação do selvagem por meio do inter
prete • XXXII
Nhehengatú ou tupí vivo. XXXIX
Advertencia . XLIV

Curso de lingua tupi viva ou nhehengatú

Do modo de lêr.
1

42238
Resumo da grammatica
Parte pratica .
Lição I •
Lição II . 18 +
Lição III.
Lição IV. 25
Lição V 30
Lição VI. 35
Lição VII 41
Lição VIII 46
Lição IX. 55
Lição X. 56
Lição X1. 58
Lição XII 63
Lição XIII 68
Lição XIV 73
Lição XV 77
Lição XVI . 82
Lição XVII . 86
Exercicios segundo o methodo de Ollendorf 93
Exercicio 1 ° 93
Exercicio 2° 94
Exercicio 3º 96
Exercicio 4° 98
Exercicio 5º 99
Exercicio 6° 101
Exercicio 7° · 103
Exercicio 8° 104
Exercicio 9° 107
Exercicio 10 • 108
Exercicio 11 · 110
Exercicio 12 · 113
Exercicio 13 116
Exercicio 14 117
Exercicio 15 118
Exercicio 16 · 120

Exercicio 17 • 121

Exercicio 18 • 123
Exercicio 19 · 126
Exercicio 20 • · 123
Exercicio 21 . · 130
Auto de baptismo do principe do Grão- Pará • • 134
Oração dominical . · 140
Mythologia zoologica na familia tupi-guarani . · 144
0 144
§ 1. Considerações preliminares •
§ 2. Mythologia zoologica . 146
0
§ 3. Elementos para a historia do pensa
mento primitivo 151

§ 4. As lendas como elemento de educação


intellectual . . . 155

§ 5 . Sentido symbolico 158


§ 6. As lendas como elemento linguistico . 160
Lenda 1 . Como a noite appareceu • • 162
Lenda 2 . O jabuti e a anta 175
Lenda 3. O jabuti e a onça · 183
9 • 185
Lend 4. O jabuti e o veado
a 192
Lenda 5 . O jabuti e os macacos .
Lenda 6 . O jabuti e de novo a onça • 194
a • • 196
Lenda 7. O jabuti e outra onça .
Lenda 8. O jabuti e a raposą . 199
Lenda 9. O jabuti e a raposa . 204
Lenda 10. O jabuti e o homem 209
Lenda 11. O jabuti e o cahapora . 215
Lenda 12. O veado e a onça 220
§ 1º. 221
§ 2º. 223
Lenda 13.A moça que procura marido . 228
§ 1. A moça e o gambȧ . · 229
§ 2. A moça e o corvo 232
§ 3. A moça e o gavião . 234
Lenda 14. (Contos sobre a raposa. ) 237
Lenda 15. A raposa e o homem • 243
Lenda 16. A raposa e a onça . 247
Lenda 17. A onça e os cupins . · 250
Lenda 18. A onça varre o caminho da raposa 252
Lenda 19. A raposa e a onça . · · 274
Lenda 20. A raposa e a onça • · 258
Lenda 21. A raposa e a onça . 260
Lenda 22. Casamento da filha da raposa 263
Lenda 23. A velha gulosa . • · . 270
Observação sobre as lendas . 280

SEGUNDA PARTE

PAGS..
O HOMEM AMERICANO . - Apparecimento do
homem na terra . Periodo em que apparece na
America o tronco vermelho . Cruzamentos pre
historicos com os brancos . Avaliação de qual
era o estado das industrias selvagens pelos
usos que faziam do fogo . 1

II

O HOMEM NO BRAZIL . - Periodo em que se


deu a primeira emigração para o Baazil ; ava
liado pela falta de instrumentos de pedra las
cada . Periodo pastoril . Ausencia de monu
mentos . Periodo geologico em que se encon
tram vestigios humanos no Brazil . 23
III

LINGUAS. - Classificação das tribus pelas lin


guas . Classificação morphologica das linguas.
americanas no grupo das turanas . Classifica
ção segundo a estructura interna das linguas
em dois grupos . Grupo das Aryanas . Grupo
das linguas Tupis e sua extensão . Indole das
linguas d'este grupo . Bibliographia do Tupi ,
e do Quichua. 40

IV

RAÇAS SELVAGENS.- Raça primitiva . Raças


mestiças antigas . Cruzamentos recentes . Ra
ças mestiças , (Gaucho , Caepira, Caburé ,
Tapuio) como elemento de trabalho . Plano de
Catechese . Resultados provaveis dos cruza
mentos actuaes na futura população do Brasil . 68
V
-- Ele
FAMILIA E RELIGIÃO SELVAGEM . —
mentos moraes para classificação : familia ,
monogamia, polygamia e relações do homem
com amulher, entre os selvagens do Brasil .
Religião selvagem. Instincto religioso . Idéa
de Deus . Systema geral da theogonia tupí .
Sentimento de gratidão para com o creador .
Immortalidade da alma . Transfigurações .
Lenda sobre Mani , que concebe em estado de
virgindade. Nomenclatura dos deuses selva
gens . 105
VI
O GRANDE SERTÃO INTERIOR . - A região dos
selvagens . A região do Prata. A região do
invasor das aguas . A região do Amazonas .
Conclusão · 147

VII

APPENDICE , mostrando qual é a posição do


indio em presença da raça consquistadora .
187
(Carta a Joaquim Serra).
con

DUE FEB 191917

DEG4 61 H
H

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