Baleia de Graciliano Ramos Uma Meditacao Sobre A V
Baleia de Graciliano Ramos Uma Meditacao Sobre A V
Baleia de Graciliano Ramos Uma Meditacao Sobre A V
Abstract: In this essay, I examine the status of Baleia, the family dog in
Graciliano Ramos’s Vidas secas (1938). My principal interest is to analyse the
attenuation of distances and the differentiation of sensibility between humans and
animals in the novel. I argue that Baleia allows Ramos to leave aside an absolute
belief in human reasoning and think of the nonhuman animal as a being endowed
with complexity. In this, Ramos deviates from a speciesist appreciation of history
and sharpens the gaze of his readers with respect to the limitations of our
understanding of the world and its beings.
A história das relações entre animais e seres humanos é uma das mais antigas e,
assim, ambos vêm sendo colocados lado a lado, desde tempos que remontam aos
primórdios da história da arte. A literatura brasileira é rica neste particular,
oferecendo uma expressiva gama de figurações, destacando-se em sua produção
animalista a presença do cachorro.1 Entre as personagens caninas da ficção
brasileira, Baleia, a famosa cadelinha, personagem de Vidas secas (1938),
criação de Graciliano Ramos é, sem dúvida, uma das mais conhecidas e vem
1Além de alentada produção esparsa, a ficção animalista brasileira deu oportunidade, por exemplo,
ao surgimento, em 1947, da antologia Dez Histórias de bichos, organizada por João Condé. Dez
escritores entraram nessa “arca improvisada,” como a denominou o poeta Carlos Drummond de
Andrade, que para ela escreveu uma espécie de prefácio. Contos brasileiros de bichos traz textos
de Monteiro Lobato a Nélida Piñon. Mais recentemente foi publicada A linguagem dos animais
com contribuições, para a zooliteratura brasileira, de Machado de Assis e Carlos Drummond de
Andrade, entre outros.
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2 Em Perto do coração selvagem, Clarice Lispector destaca essa ignorância através de uma
percepção da meditativa e questionadora criança, Joana: “Encostando a testa na vidraça brilhante
e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-
iam-morrer” (13).
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Esse pequeno fait divers da história literária brasileira assinala a atitude de severa
autocrítica adotada pelo escritor, em todo o período de sua interação com a
linguagem, a qual incluía a ética do narrar, o que o impediria de resvalar para o
lacrimoso, e bem poderia ser sintetizada por meio de uma frase-súmula de sua
poética: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra
foi feita para dizer” 3 (Ramos, citado em Silveira, 284).
Reportando-se a Vidas secas, em Ficção e Confissão, Antônio Candido
observa ser o relato “constituído por cenas e episódios mais ou menos isolados,
alguns dos quais foram efetivamente publicados como contos; mas são na maior
parte, por tal forma solidários, que só no contexto adquirem sentido pleno” (45).
Naturalmente, a apreciação extensiva da obra fornece maior embasamento acerca
da viagem dos retirantes e da cachorra, contudo, mesmo a leitura isolada do
capítulo sobre a morte do animal encena um percurso no tempo, por intermédio
3 Veiculada inicialmente pela entrevista concedida a Joel Silveira em 1938, a afirmação seria
transcrita mais tarde em Silveira 284. Ver ainda: Ramos, Conversas 77.
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dos diversos flashes de memória que faíscam na mente da protagonista. São esses
lampejos de lembranças que reforçarão o registro existencial há pouco aludido.
Nesse sentido, vale sublinhar que em “Os bichos do subterrâneo,” ao referir-se a
Vidas secas, assinalando o abandono dos relatos em primeira pessoa dos
romances anteriores de Graciliano, Cândido pondera ainda que o escritor
“conserva, sob a objetividade da terceira pessoa, o filete da escavação interior,”
escavação que inclui Baleia, porque intuída como um ser portador de
dramaticidade (87).
A personagem Baleia proporciona uma leitura de rara plasticidade, em todo
o livro e particularmente no capítulo que lhe é especialmente dedicado. A
plasticidade se inaugura pela descrição marcadamente naturalista: “A cachorra
Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos,
as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e
sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços
dificultavam-lhe a comida e a bebida (Ramos, Vidas secas 85).” Vidas secas vem
inaugurar uma nova fala dentro do romance nordestino de 30, pelo fato de atenuar
o componente mesológico adotado por A Bagaceira, de José Américo de
Almeida, e O Quinze, de Rachel de Queiroz, por exemplo, em favor de um
realismo subjetivista, transcrito na “fuga persistente ao documental, bem
expressa na sobriedade das descrições de paisagem, na ausência de tons
coletivistas e na concentração de atenções sobre a família de Fabiano” (Cristovão
38). Como tal, após a crueza do retrato, que encima a história, surpreende a forma
como o escritor constrói uma narração em câmera lenta, com o ritmo cortante das
enumerações em série do parágrafo introdutório, dando lugar a uma
desaceleração dos eventos, no compasso gerundial do verbo finar-se.
O compasso moroso deverá ter surpreendido ainda bem mais a quem leu o
texto como uma narração autônoma, sem dispor dos dados da “biografia” da
cadelinha, esparsos nos oito capítulos anteriores do livro. Pode-se dizer que
Graciliano constrói uma biografia de Baleia ao longo do texto, porque os
pequenos acontecimentos dessas vidas parcas têm, como filtro, em muitas
ocasiões, a sensibilidade da cadela. O escritor molda-a como um ser de percepção
e desta forma questiona a apreensão do mundo apenas por meio de uma lógica
racional ou da sensibilidade do animal humano. Em outras palavras, é como se
Graciliano quisesse dizer que a história das pessoas também é contada pelos
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personagens “têm por dentro” (Ramos, Cartas, 194) faz com que ele adote como
estratégia narrativa o emprego do discurso indireto livre, acompanhando, em boa
parte, o relato em terceira pessoa. A fortuna crítica do escritor muito tem falado
sobre seu domínio dessa técnica de escrita, para realizar essa introspecção na
“alma” do personagem, agudizada na circunstância da morte.
“Baleia” não é um capítulo longo, ocupa até menos espaço no livro do que
“Festa” ou “Fuga,” cujos títulos revelam uma acentuada predisposição à
narratividade moldada em acontecimentos. Embora não seja longo, aparenta ser
até mais extenso do que os outros, pois sua leitura se dá num compasso de
lentidão, motivado por muitas paradas, tal como pensado por Roland Barthes em
“Escrever a leitura,” seção de O Rumor da língua. No ensaio, Barthes propõe
uma dupla pergunta, e mostra as pausas da leitura como motor do pensamento:
“Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não
por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações?
Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” (26).
A concepção da morte de Baleia, como um drama íntimo, ocasião em que
contracena, por intermédio do afeto, com todos os personagens da família,
encerra anacronias, que extremam na analepse correspondente à recordação de
seu nascimento. “Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa
camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão,
ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas” (Ramos, Vidas
secas 89). Seria possível, assim, imaginar um insulamento significativo entre
homem e animal não humano, quando o escritor os une através de uma meditação
sobre a própria morte feita pelo personagem canino? O liame entre os dois
reflete-se também por meio da semântica do sofrimento: o “coração pesado” de
Baleia encontra sua correspondência no “coração grosso” de Fabiano, já referido.
E, num reforço ao movimento de aproximação entre bicho e homem, o
padecimento da cachorrinha encontra a seguinte formulação: “Uma angústia
apertou-lhe o pequeno coração” (Ramos, Vidas secas 90).
Logo, com base no exercício de escrita do ficcionista nordestino, é possível
afirmar que o que faz a literatura, em sua condição de experiência de
descentramento do real, nesse caso, é conduzir o leitor a uma re-interpretação do
mundo circundante, a qual pode levá-lo a pensar sobre a incompreensível vaidade
humana de que falava Montaigne. Como compreendê-la, quando a finitude é o
único horizonte possível para todas as criaturas? Com a construção dessa anti-
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A partir dessa afirmação, vê-se que igualmente que a ciência, aí representada por
Darwin, junta-se ao parecer de Montaigne e Graciliano, questionando a soberania
do homem, junto aos outros animais, e, simultaneamente, manifestando a
potência de vida sensível dos bichos, particularmente o macaco e o cachorro. Por
esse ângulo, ao longo desse trabalho, foi visto que Baleia bouleversa esse
romance áspero, que é Vidas secas, canalizando o olhar do leitor para o
abrandamento da rígida segregação, que foi instituída entre homens e animais.
Prova disso é a dialética criada por Graciliano, nesse romance, no que tange ao
5Casimiro Lopes, pertence a S. Bernardo, e é outra personagem que foge à univocidade, pois deixa
à mostra o caráter, no mínimo, dual de sua psicologia. Sua ferocidade de assassino implacável não
o impede de compadecer-se do desprezo a que é relegada a criança mofina que é o filho de Paulo
Honório e Madalena: “Casimiro Lopes era a única pessoa que lhe tinha amizade. Levava-o para o
alpendre e lá se punha a papaguear com ele, dizendo histórias de onças, cantando para embalá-lo
as cantigas do sertão” (161). Tat twam asi tem como tradução: “você é isso!” Era a expressão
utilizada na antiga Índia, para definir a sensação experimentada por um homem, ao voltar sua
percepção sensorial para o mundo.
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aprender/ensinar, a qual faz com que o animal promova a sondagem interior dos
personagens, principalmente a do chefe da família, o que cria uma hesitação
sobre o estatuto de personagens do grupo de Fabiano, habitualmente tomadas
como pessoas toscas e embrutecidas pelo sofrimento. O escritor nos leva a intuir:
Por que não pensar que as explicações para o mundo podem surgir de outros
horizontes que não a racionalidade?
Não sem razão, portanto, Baleia é, no século vinte, a personagem canina mais
célebre de nossa literatura, devendo-se grifar que existem outras grandes criações
nesse âmbito, sendo possível lembrar, igualmente, a rosiana Pingo-de-ouro, uma
“cachorra bondosa e pertencida de ninguém, mas que gostava mais era dele
mesmo [...] no sentir de Miguilim” (Rosa 20), e ainda Vismundo, o cão de prima
Biela, de Uma vida em segredo, novela escrita por Autran Dourado. Essas
criaturas animais sucedem à geração nascida no século dezanove, e expandem
um veio literário, fundado por meio de, entre outros, o famoso Veludo,
protagonista do longo poema “História de um cão,” de Luís Guimarães Júnior,
publicado em 1870.6 Trata-se do mesmo ano do aparecimento dos Contos
fluminenses, de Machado de Assis, sendo “Miss Dollar,” o primeiro deles. A
cadelinha galga, dona de uma coleira fechada ao pescoço por um cadeado, em
que se lia a terna inscrição De tout mon coeur, expressa a afeição como um
modelo de relacionamento entre as pessoas e os cães. No caso de Quincas Borba,
o romancista embaralha os estatutos humano e animal, pela indiferenciação da
nomeação do filósofo e de seu cachorro, aspecto que torna a personagem cara
aos Estudos Animais, o que pode ser evidenciado em “Machado pós-humanista”
(Maciel 74-82).
Com Vidas secas, Graciliano incorporou definitivamente seu nome à escrita
animalista brasileira, e colaborou para firmar a identidade e a afinidade de nossa
literatura com essa vertente, inclusive pelo fato de fazer oscilar categorias tidas
como estanques, tais como zoomorfização e antropomorfização. Somente por
isso, já ficaria sem sentido a definição dada por ele mesmo, em discurso, à sua
produção literária—“arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios” (Moraes
6 Logo após o título, lê-se a informação: “Contada ao autor.” É esse o modo pelo qual Luís
Guimarães Júnior credita sua inspiração a “Moustapha—Histoire d’un chien,” conto de Adolphe
Destroyes. O poema de Guimarães contem também referências a naturalistas franceses do século
XIX: “Toussenel, Figuier e a lista imensa/ Dos modernos zoólogos doutores/ Dizem que o cão é
um animal que pensa:/ Talvez tenham razão esses senhores” (108).
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Obras citadas
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Journal of Lusophone Studies 2.2 (Fall 2017)
Moraes, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. José
Olympio, 1996.
Pinto, Rolando Morel. Estudos de romance. Conselho Estadual de Cultura, 1965.
Queiroz, Rachel de. O Quinze. José Olympio, 1930.
Ramos, Graciliano. Cartas. Record, 2011.
—. Conversas, edição de Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, Record, 2014,
pp. 66-72.
—. Insônia. Record, 2003.
—. S. Bernardo. Record, 2008.
—. Vidas secas. Record, 2003.
Rosa, João Guimarães. Corpo de baile. Nova Fronteira, 2010.
Silveira, Joel. Na fogueira: memórias. Mauad, 1998.
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