Muslim Woman Marilene Felinto

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Véus

O título

O conto, escrito por Marilene Barbosa de Lima Felinto, uma autora brasileira nascida no Estado

de Pernambuco em 1957, é construído como um enigma cuja primeira pista a ser descoberta está

no título. Por ser um título em inglês em um conto escrito em português, que é a língua nativa tanto

da autora como de seus leitores, causa estranheza e leva a supor que um de seus de seus propósitos

é chamar a atenção. Insinua também um mistério. Quem é, o que representa, em que ação muslim

woman participa? Esta incógnita só vai ser desvelada por quem chegar ao final do conto. Ao sugerir

essas perguntas, cuja resposta fica oculta até o final, o título remete o começo do conto a seu fim,

quando a figura da muçulmana e seu sentido no texto são revelados. Pode-se dizer que devido ao

título, o conto se inicia pelo fim. Cumpre assim o que Barthes (2001 p. 310) determina como sendo

sua função: “o título tem por função marcar o início do texto” e a função que Culler (1999 p.86)

atribui ao final: “deve haver um final que se relacione com o começo”. O título deste conto se

reveste assim de um sentido próprio, é uma unidade de leitura (lexia) que tem como possível

sentido “aquilo que ele enuncia, ligado à contingência do que vem adiante” (BARTHES 2001 p.

310). Utilizando ainda o conceito de conotação da lexia do mesmo autor, ou sentidos segundos,

que podem ser ainda relações muito distantes no texto, há realmente uma relação entre o título e a

muçulmana. Não há uma relação entre dois lugares, como Barthes (2001 p. 306) explica, mas é

uma relação entre duas interpretações ideológicas possíveis, como se discorre a seguir.

O título em inglês acarreta algumas características gramaticais e sintáticas que não seriam

possíveis em português e que têm reflexo no sentido do enunciado. Em inglês o substantivo muslim

não requer concordância de gênero como sua mesma referência em português. Além disso exige a

palavra woman (no presente caso) como adjetivo quando determina o gênero de muslim.

Entretanto, ao colocar os dois pontos entre as palavras muslim e woman a autora impede a

subordinação de uma palavra à outra porque as duas palavras permanecem como dois substantivos,

com maior ênfase em muslim (que se lê primeiro) e menor em woman. Assim, a palavra woman,
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justamente pela presença dos dois pontos, não é apresentada como hipônimo de muslim, mas tem

sua própria importância e sentido, não há uma relação implícita de subordinação da mulher à

religião muçulmana. Em português não se obteria o mesmo efeito porque a tradução de muslim

exigiria concordância de gênero. As escolhas da autora na construção do título enfraquecem a

interpretação ideológica ocidental de opressão da mulher muçulmana. Em inglês lê-se que há

alguém que é da religião muçulmana e que também é mulher, sem indício de conflito, sugerindo

livres escolhas, inclusive na roupa que usa. Esta questão é importante, uma vez que para o texto e

para a protagonista, a burka deve ser percebida como uma defesa, como um véu que oculta um

mistério a ser revelado, uma opção, e não como um instrumento de subjugação masculina. Claro

que também se poderia argumentar que a autora escreveu o título em inglês porque o diálogo entre

a protagonista e a muçulmana foi em inglês e que o título só reflete isto. Mas qual foi a real intenção

da autora? Como o texto dever ser interpretado? Barthes (1988 p.25) escreve que “não há uma

verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas a verdade lúdica”. Eco (1990 p.145) sugere

que há uma terceira opção de interpretação entre a intenção do autor (difícil de saber e até

irrelevante) e a intenção do intérprete, “who (to quote Richard Rorty) simply beats the text into a

shape which will serve his own purpose,”. Segundo Umberto Eco, esta terceira opção de

interpretação é a intenção do texto, a qual, como mostrado no conto de Bolaño (2012), pode diferir

bastante da intenção do autor quando é interpretada pelo leitor. Naquele conto, a intenção de B foi

irrelevante para a interpretação do texto por A.

A narrativa

A história é narrada em primeira pessoa por uma mulher casada, em trânsito com seu marido, no

momento em que há uma parada em um aeroporto de um país africano, um lugar muito aberto e

que a expõe ao olhar alheio. A narração é construída pelos pensamentos da mulher, por sua

descrição das cenas e pelos seus diálogos com os outros personagens. Friedman (2002 p. 177)

classifica este ponto de vista como sendo o do narrador-protagonista: “o narrador-protagonista,


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portanto, encontra-se quase que inteiramente limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e

percepções”, conforme se pode notar pelo extrato que se segue.

Estava fazendo tudo tão ao contrário do que eu esperava que ele fizesse que aquilo ia aos poucos
anulando minha existência, numa prova cabal de que de não me via........
A protagonista serve-se da cena composta pelo aeroporto, seus grandes salões, as pessoas

africanas, do salão mais vazio, do ruído das rodas das malas para situar seu desconforto com sua

exposição aos outros, causado por seu sentimento de não pertencimento e inadequação. Culpa o

marido por não ter previsto este aspecto de sua personalidade, indicando que ele não se esforça

por compreendê-la, ou vê-la como ela realmente é. Contudo, a escolha do ponto de vista da

narradora-protagonista já sugere que ocorrerá uma transformação, uma vez que, ainda segundo

Friedman (2002 p.177) este ponto de vista da narração é o mais adequado para “...traçar o

crescimento de uma personalidade à medida que ela reage a experiências...”. A escolha do ponto

de vista é onde se faz sentir com mais intensidade a presença da autora neste texto, afinal faz parte

da estratégia dela para atingir o objetivo específico de mostrar a transformação na mente da

personagem, a autora não consegue apagar-se totalmente. Esta marca que a autora deixa no texto

pode levar o leitor a refletir qual foi a intenção da autora ao apontar para esta transformação e

quanto da autora está presente na protagonista, ou mesmo se a autora se reconhece ou não na

protagonista, o mesmo dilema que Borges explora no conto Borges e eu (BORGES, 1999).

Realmente a personalidade da protagonista muda quando, vencendo sua relutância à

exposição, se atreve a revelar-se um pouco mais ao marido, quando lhe diz que as rodas da mala

são só um detalhe e que a verdadeira razão de sua raiva é que ele não se dá ao trabalho de pôr-se

no lugar dela para entendê-la.

“É isso. É exatamente isso. Você não tem qualquer interesse em pensar naquilo que pode ser um
problema pra mim, em me enxergar como eu sou, como eu estou....”
A narrativa aborda o conflito entre a manutenção da máscara do eu externo, imperfeita e

superficial, porém protetora, e a necessidade da exposição do eu interior ao olhar alheio, o eu real,

porém mais vulnerável, para ser compreendida. Este desvelamento é um ato de fé, ou de amor,

mas este ato não é suficiente, o outro, na visão da protagonista, tem de oferecer a contrapartida
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que é esforçar-se por ver o eu real que lhe é descoberto, com suas características e necessidades.

A protagonista se desaponta por julgar que seu marido não percorreu sua parte do trajeto de

reconhecimento para vê-la como realmente é e entra em conflito consigo mesma ao compreender

que terá de revelar-se mais ainda para que ele a reconheça, o que vai contra sua natureza reservada

e introvertida.

.....; e de que, se eu quisesse ser vista precisava me mostrar. Mas como isso eu não faria por ninguém no
mundo, nem faria por mim, quem quisesse que me visse, se quisesse me ver
A história é situada em um aeroporto. Aeroportos são espaços muito movimentados, onde

apesar da grande exposição ao olhar e ao julgamento alheio, o indivíduo ganha uma certa

anonimidade pelo efeito de multidão dos viajantes, desde que não chame a atenção para si em

demasiado. Uma situação que convém perfeitamente a uma pessoa reservada, introvertida e

insegura com sua aparência externa como a protagonista. Entretanto, o aeroporto era vasto, o salão

onde se sentaram estava quase vazio. Assim, além da falta do efeito protetor da multidão, eles

chamavam a atenção pelas suas características físicas diferentes das dos usuários do aeroporto

africano e pelo ranger barulhento das rodas da mala.

No salão quase vazio sentamo-nos, sob a tensão do episódio da mala. Eu tinha atravessado aqueles
salões do aeroporto transtornada pelo calmo desespero da descoberta de que finalmente eu era uma
farsa. Arrastando pelos salões a grande mala de rodinhas que rangiam, eu era uma farsa escandalosa,
barulhenta.....
O efeito de anonimidade e invisibilidade que a protagonista preferia fora quebrado. O

marido não percebia seu incômodo, sua sensação de vulnerabilidade, não via sua natureza

reservada e avessa à atenção, não via a frustração dela com a situação e, por extensão, a frustração

dela com o próprio marido.

Entretanto, naquele aeroporto e por causa da mala, eu fora atingida por ele na minha reserva, na minha
necessidade de discrição e defesa.
A situação se encaminha então para um impasse entre ela e seu marido. Ela não quer se

mostrar mais e o marido não a consegue ver como ela quer ser vista, há uma parada emocional que

se estende. Aeroportos também são lugares de parada, onde se termina um evento, a chegada ao

aeroporto, e se espera que outro evento se inicie, a partida do aeroporto. Contudo, a parada sempre

cessa: para o viajante a situação se resolve sempre com uma partida, com resultados desejados ou

não. A protagonista sabe que tem de resolver o impasse. Alinha argumentos para não ter de se
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desvelar, mostrando com os eventos no aeroporto e de sua infância como é difícil para ela sair de

sua concha protetora, de seu abrigo secreto, de suas guaritas e trincheiras, abrir mão de sua

necessidade de discrição e defesa, segundo suas próprias palavras. As consequências de não se

revelar seriam a separação, uma nova partida. Por fim, toma uma decisão e contra sua vontade,

resolve por a descoberto um pouco mais de seus motivos.

Começamos a discutir, embora minha vontade fosse guardar comigo aquilo, para que ele nunca
soubesse o motivo exato de por que eu o largaria, se fosse largá-lo.
Mais adiante expõe-se mais: Olhe para mim e veja-me realmente como eu sou, decifre-me.

—Você é que não devia me esquecer tão descaradamente como você faz; esquecer de quem eu
sou, entende? Porque aí quem arma a confusão é você, meu filho.
Ele não responde e ela duvida se mostrou o suficiente do seu ser interior para que a visse e

se entristece ao pensar que talvez não tenha sido vista, a separação para ela não é realmente o tipo

de resolução do impasse que ela procura. Haverá uma nova partida, mas não para onde ela quer

estar. Nesse momento aparece a mulher muçulmana, envolta em véus que a protegiam e a isolavam

dos olhares alheios, como os véus que a protagonista se impunha, embora as naturezas dos véus

de ambas fossem diferentes. Para resolver o impasse com o marido, a protagonista havia removido

um véu, facilitando-lhe a tarefa de vê-la. Compreende, vendo a muçulmana, que há pessoas que

não desejamos que nos vejam e para os quais não se tiram os véus, mas que há pessoas para as

quais é necessário desvelar-se, as pessoas que queremos que nos vejam, como o marido da

muçulmana quando ela se desvela à noite, e se não nos vêem, a culpa não é só destas pessoas que

não nos vêem, mas também nossa e dos véus que permanecerem interpostos.

Quando o marido traz o carrinho de malas, ela percebe que foi vista e entendida e que o

desfecho do impasse será o que ela realmente deseja, ficar junto com o marido. Apenas será

necessário, quando ele não a veja, deixar cair um ou mais véus e mostrar, como a muçulmana fez

no final, que por baixo do véu há uma linda mulher que merece ser vista.

A conclusão
Este é um texto que permite várias leituras possíveis, cada uma delas exigindo uma releitura e

reinterpretação do texto segundo o sentido descoberto pela primeira leitura. Por exemplo, o texto

do trabalho pode ser lido como um discurso sobre a hermenêutica, ou a hermeticidade dos textos
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literários. O sentido do texto não se mostra por si mesmo, ele exige um esforço de interpretação

por parte do leitor, percebendo as pistas da solução do enigma que estão no próprio texto. O leitor

que por meio deste esforço vai removendo os véu que cobrem o sentido, é recompensado pela

beleza até então oculta desse texto.

Outra leitura seria entender o texto como uma crítica à pressão que a sociedade impõe à

mulher quanto à imagem pública ideal que ela deve apresentar, uma imagem de uma figura magra,

bem cuidada, maquiada, depilada, com as unhas e os cabelos bem cuidados e roupas da moda

combinando com os “acessórios”. Essa pressão gera um conflito interno na mulher moderna. Pode

ser porque a imagem que ela apresenta para satisfazer a sociedade não é a imagem pela qual ela se

vê e é vista, é uma farsa, ou porque ela não considera que sua imagem pública seja o que a

sociedade espera, assim talvez fosse melhor não chamar a atenção para sua figura pública. A

angústia com a imagem pública falsa ou inadequada e o conflito entre o eu interno e o eu público

é tão grande que por momentos a burka é invejada porque reduz a figura pública ao mínimo, mas

preserva a verdadeira e autêntica beleza por baixo. Em ambas as situações, o eu exterior não é o

verdadeiro eu pelo qual elas querem ser vistas e precisa ser desvelado, porque o eu interior, ou é

mais belo, ou é mais verdadeiro.

Outras leituras possíveis envolvendo os temas de extroversão/introversão,

adequação/inadequação, aparência/realidade poderiam ser usadas para fundamentar uma releitura

do texto. Quem pode dizer qual releitura é a melhor, qual interpretação é a mais adequada, quando

muitas vezes os próprios autores confessam que não sabem? Aqui concordo a terceira opção de

Eco (1991 p.145) quando diz que a interpretação deve apoiar-se na intenção do texto, mas

concordo mais ainda com Barthes (1988 p.25) quando afirma que “não há uma verdade objetiva

ou subjetiva da leitura, mas apenas a verdade lúdica”. Considero as duas primeiras interpretações

do sentido do texto expostas no começo da conclusão igualmente válidas e apoiadas no texto, mas

sob a perspectiva de Barthes, a que mais me agrada é a primeira, porque é a que envolve menos

ideologia, menos política e menos estereótipos, além de que a primeira interpretação leva o leitor
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a divagar sobre os textos literários, a segunda interpretação força o leitor a concordar ou a

discordar. Na verdade, a interpretação que mais comove é a que poderia fazer sobre a

extroversão/introversão e suas consequências nas relações humanas. Muitas vezes nos queixamos

de não sermos vistos porque não nos desvelamos o suficiente e não sabemos como fazê-lo. Quando

um texto literário oferece ao leitor estas oportunidades de descoberta a cada leitura, cumpre uma

das importantes funções da obra literária que é fazer refletir e causar uma impressão no espírito do

leitor. É arte.
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Bibliografia

BARTHES, Roland. Análise textual de um conto de Edgar Poe. In: BARTHES, Roland. A
aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 303-339.
BARTHES, Roland. Escrever a Leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 26-29.
BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges – Obras Completas II. Rio de Janeiro. Editora Globo.
1999.
BOLAÑO, Roberto. Uma aventura literária. In: BOLAÑO, Roberto. Chamadas telefônicas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 54-65. Tradução de Eduardo Brandão.
CULLER, Jonathan. Narrativa. In: CULLER, Jonathan. Teoria Literária. São Paulo: Beca
Produções Literárias, 1999. p. 84-94.
ECO, Umberto. Interpretation and Overinterpretation: World, History, Texts. 1990. Disponível
em: <https://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/e/Eco_91.pdf>. Acesso em: 18 out.
2019.
FELINTO, Marilene. Muslim: Woman. Em: Postcard. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.11-19.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficça o: o desenvolvimento de um conceito crí tico.
Trad. Fabio Fonseca de Melo. Revista USP, Sa o Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002.

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