Ensaio Sobre A Jangada de Pedra José Saramago

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Francisco Javier Hernandez Blazquez, 79374, Terça, 19h30. Proposta 3

A fratura incurável.
A literatura portuguesa recente, especialmente durante o período ditatorial, tem vários exemplos
de uso de alegorias e metáforas para criar um ambiente maravilhoso como ferramenta de crítica
social e política velada. Embora este uso do fantástico na literatura tenha sido uma necessidade na
ditadura, mesmo após a queda desta o uso do realismo fantástico, inclusive como corrente literária,
continuou. As obras de José Saramago recomendadas no presente ensaio (A jangada de pedra e O
ensaio sobre a cegueira) talvez não sejam as principais representantes deste “realismo mágico” na
literatura portuguesa (talvez sim as obras de Lidia Jorge e João de Melo) mas certamente ele utiliza
este recurso. Para definir o que é realismo mágico, usei o artigo de Branco (2014). Nele encontram-
se várias definições de diferentes autores. A autora do manuscrito, porém, não dá sua opinião e
nem indica que concorda com alguma definição, uma frustrante característica que tenho
encontrado com frequência nos artigos de ciências humanas: o autor não se posiciona. Enfim, de
todas as definições que ela cita no artigo, a que me parece mais correta é esta: “o texto do realismo
mágico é o que propõe a ocorrência de fatos reais e mágicos com a mesma autoridade em um
cenário real reconhecível, sendo que o componente mágico é aceito como parte da realidade
material”. Justifico esta escolha porque é a que melhor se aplica ao texto da Jangada de Pedra. Os
personagens simplesmente aceitam sem muita perplexidade o que está acontecendo por mais
insólito que seja e simplesmente se adaptam.

O componente mágico é introduzido no livro logo nas primeiras páginas de maneira bastante
explícita1. Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho que causa uma repercussão (cães
latindo) em uma cidade dos Pirineus chamada Cérbere. Somam-se assim várias referências
mágicas e sobrenaturais, o gesto de riscar (atos mágicos requerem rituais), a vara evocadora de
varinha de condão, o nome da cidade e sua relação com cães que ladram. Achei curioso que
Saramago não deixa muito espaço para a imaginação do leitor, ele mesmo é bem explícito ao
interpretar as referências mágicas de seu texto. Contudo, é interessante a escolha de Saramago
para a madeira da qual é feita a vara. Não é de freixo, da qual deveria ser feita se o folclore europeu
relativo a bruxas fosse levado em conta, especialmente o irlandês, mas é de negrilho. Mais
interessante ainda é que há um poema de Miguel Torga dedicado a esta árvore, o negrilho (A um

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aliás, logo depois que Saramago faz uma referência a Cervantes: ..”em um lugar de Portugal de
cujo nome nos lembraremos mais tarde..” , parafraseando o início do D. Quixote “..en un lugar de la
Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme... o que pode até passar despercebido para muitos
portugueses e para a maioria dos brasileiros, mas não para umespanhol. Parece ser um aceno do
português para seus vizinhos ibéricos (o livro também se dirije a vocês, estejam atentos).
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negrilho) onde a árvore é denominada poeta. Como demonstrei, há anteriormente uma referência
a um escritor espanhol. Seria o negrilho uma referência simétrica a um escritor português
escolhendo Miguel Torga, que tanto cantou a dor do exílio, e que qualifica no poema a árvore
negrilho como poeta? Acredito que sim. Se não, por que exatamente o negrilho? Se prosseguirmos
com a metáfora, a vara de negrilho que causou o risco, e como Saramago quer fazer o leitor
concluir (sem nunca o dizer), a vara de negrilho que também causou a separação da península
ibérica do resto da Europa, parece indicar que no fundo são os poetas e a poesia (ou a literatura)
dos dois países ibéricos que destacam (em todas as acepções do verbo destacar) a península ibérica
da Europa, no sentido de que lhe dão uma identidade diferente da identidade europeia. Cervantes,
Camões e Saramago destacam a península ibérica, assim como Gabriel Garcia Marques, outro
expoente do realismo fantástico, destaca a América hispânica.

Ao separar-se da Europa, a península ibérica deixa de ser Europa, é algo diferente, ganha outra
identidade. Os poetas que fizeram a glória cultural de Portugal e Espanha são culturalmente
ibéricos, só surgiram devido às condições socioculturais e políticas da península ibérica, muito
semelhantes em ambos os países durante as monarquias e durante as ditaduras. Bastante
significativo no livro é que Saramago poderia ter escolhido separar apenas Portugal da Europa,
mas não, Portugal carrega junto consigo a Espanha, como se Portugal e a Espanha tivessem mais
pontos em comum, uma identidade social, política e religiosa maior entre si que com o resto da
Europa. E de fato, se analisarmos a história, os atritos entre os dois países eram mais que nada
brigas entre parentes e vizinhos. Há um episódio em que Colombo avisa a Rainha Isabel de Castela
que talvez encontrasse Vasco da Gama lá pelas Índias (já em 1497) e a Rainha Isabel o avisa que
de forma alguma deveria maltratar os portugueses, porque seu rei era parente dela e os portugueses
eram um povo amigo (CERVANTES, 2021 p. 50). Em sua grande maioria os conflitos políticos e
territoriais eram resolvidos com tratados, como os realizados durante a época dos descobrimentos
e colonização quando os dois países dividiram tranquilamente o mundo entre si. A unidade ibérica
foi por muito tempo um ideal acalentado tanto por portugueses como por espanhóis. Talvez mais
por espanhóis e galegos, mas Saramago mostra que também era, pelo menos, simpático à idéia.

A história contada no livroé uma alegoria , portanto, que usa o realismo mágico como veículo de
idéias. É a alegoria de duas nações que não querem perder sua identidade, que sempre foi diferente
da identidade europeia, mas que agora têm essa identidade ameaçada pelo globalismo da União
Europeia e do Mercado Comum Europeu. O conflito e o dilema de Portugal e da Espanha é como
usufruir dos benefícios econômicos e políticos da integração sem perder sua identidade que foi
construída no isolamento a que os próprios países europeus submeteram os países ibéricos. Vale
lembrar que Portugal e Espanha, com a justificativa das ditaduras a que seus povos foram
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submetidos, foram deixados de fora da Comunidade Européia quando se formou em 1952 e depois
da União Européia quando foi fundada 1991. Fica assim plenamente justificada a frase da proposta
3, de “Que a Península faça parte da Europa é um dado, ao mesmo tempo geográfico e histórico,
irrelevante”. Os dois países que no passado eram a Europa, foram mantidos do lado de fora da
Europa, ainda que à Europa estivessem ligados geograficamente e historicamente, porque sua
identidade não era europeia, era algo diferente, exótico. Em outras palavras, foram exilados . A
Comunidade e a União Europeia se formou e bateu suas portas na face dos países ibéricos até 1985
(Portugal) e 1986 (Espanha), quando relutantemente as abriu de novo, uma longuíssima década
depois do fim das ditaduras. Saramago apenas transformou o exílio cultural e político, em um
fenômeno geográfico e separou os territórios fisicamente também, fazendo com que a península
assumisse seu estado de exílio como metáfora de preservação de sua identidade e cultura. Fez isso
assumindo um compromisso com seus leitores para que suspendessem sua incredulidade
(HOLLAND, 1967), adotando o realismo mágico.

Said (2003) em seu texto “Reflexões sobre o exílio” faz uma observação crucial que todo exilado
já teve a oportunidade de constatar por si mesmo: “O exílio é uma fratura incurável entre um ser
humano e um lugar natal”. Eu diria que o exilio é uma dupla fratura, entre o ser humano e o lugar
natal e o ser humano e o local de exílio também. Porque o retorno não cura o exílio, há o fator do
tempo que passou, que não foi desfrutado no local natal e que não volta mais, causando uma
sensação de perda pelo que não foi vivenciado, pela cultura popular à que não se teve acesso e ao
se constatar que as pessoas e as coisas mudaram e delas só restou a memória. É a mesma sensação
de pais que percebem que perderam o crescimento dos filhos. É a sensação do irrecuperável,
aumentada pela consciência de que não foi uma escolha voluntária e pela forte sensação de
injustiça. Há também a sensação de perda quando se deixa o local onde se viveu o exílio no caso
de retorno, que em geral traz lembranças boas, porque afinal se foi acolhido neste local. É a
sensação que Miguel Torga descreve ao dizer “É duro atravessar a vida nesta situação de
expatriado em meu próprio país” (NOGUERA, 2013) e quando diz que tem muita saudade e
lembranças da fazenda de seu tio no Brasil. Está-se em sua pátria, mas não se está em sua pátria
porque ela mudou e o exilado não mudou junto com ela. A Europa mudou, mas a península não
mudou com ela, foi-lhe exigido que mudasse depois, que se adaptasse, que alterassem costumes e
a maneira de tratar seu próprio povo. Além disso, para o expatriado que retorna, há o outro lugar
que deixou que também é sua pátria, com uma identidade completamente diferente, onde não se
está. É uma situação insolúvel, uma fratura dupla incurável. Como a que separou a península da
Europa no livro.
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Contudo, o livro de Saramago, assim como o trecho do texto de Cortázar (2001) , sugere que o
exílio também pode ter algo positivo, se o exílio não for visto como um desvalor, uma mutilação,
mas como uma oportunidade de reflexão. Como Cortázar diz, “o desarraigamento conduz a uma
revisão de si mesmo”. Talvez seja esta a mensagem de Saramago na separação da península da
Europa. Será que precisa-se tanto assim da Europa? Será que os países ibéricos precisam abdicar
de sua identidade para fazer parte da Europa? Não há todo um continente que os países
peninsulares povoaram e ao qual deram sua língua e parte de sua cultura, que fica no sul, justo
para onde a península parece estar se dirigindo no romance? Não seria talvez o momento destes
países voltarem mais intensamente (Portugal em especial) seu olhar para seus herdeiros culturais,
com os quais compartilham mais raízes culturais e sociais que com os países europeus? Não seria
talvez o momento de, ao invés de soltar o icônico “¿Por qué no te callas?”, dizer “Háblame que te
escucho”?.Saramago não diz nada disso no texto, mas se a península se separa e se distancia da
Europa, é inevitável perguntar-se para onde ela vai. E no final parece ir para o sul. Os portugueses
e os espanhóis já tiveram que fazer várias concessões culturais para permanecer na Europa política
e econômica e pela notícias atuais a Europa ainda não trata estes países com o respeito que
merecem, haja vista o apoio europeu velado ao separatismo catalão que está fraturando a Espanha.
Isso mostra como os conflitos de identidade dos países ibéricos e sua problemática relação com a
Europa, que é onde nos leva a reflexão sobre o livro “A jangada de pedra”, constituem ainda temas
atuais e continuarão sendo por muito tempo.
Referências Bibliográficas

BRANCO, Isabel Araújo. El “realismo mágico portugués”: las propuestas de José Saramago y João de
Melo. Colindancias, Lisboa, v. 5, n. 1, p. 131-142, set. 2014.
Cervantes, Fernando. Conquistadores. Una historia diferente. Turner Publicaciones, Madrid, 407 p.
2021.
CORTÁZAR, Julio. América Latina, Exílio e Literatura. In: SOSNOWSKY, Saúl. Júlio Cortazar Obra
Crítica 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 146-155. Tradução de Paulina Watch e Ari
Roitman.
LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
1990. 60 p.
HOLLAND, Norman N. The willing suspension of disbelief revisited. The Centennial Review 11, no. 1,
1967, 1-23. Acessado 2 Julho, 2021. http://www.jstor.org/stable/23737977.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: Said, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.46-60.
NOGUERA, M. ""Miguel Torga: del exilio exterior al exilio interior de un poeta"". In: Teresa Cid,
Teresa F.A. Alves, Irene M.F. Blayer, Francisco C. Fagundes (coord.), Portugal pelo mundo disperso, (pp.
271-281). Editorial Tinta da Chin a 2013.

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