Mioto - Familismo, Direitos e Cidadania - Regina Celia Tamaso

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 223

FAMILISMO

DIREITOS E CIDADANIA
Conselho Editorial da
área de Serviço Social
Ademir Alves da Silva
Dilséa Adeodata Bonetti (Conselheira Honorífica)
Elaine Rossetti Behring
Ivete Simionatto
Maria Lúcia Carvalho da Silva
Maria Lúcia Silva Barroco

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Familismo, direito e cidadania [livro eletrônico] : contradições da política


social / Regina Célia Tamaso Mioto, Marta Silva Campos, Cássia
Maria Carloto , (orgs.). – São Paulo :
Cortez, 2015.
6,9 Mb ; PDF

Bibliografia.
ISBN 978-85-249-2401-9

1. Assistência social 2. Cidadania 3. Família 4. Proteção social 5.


Política social I. Mioto, Regina Célia Tamaso. II. Campos, Marta Silva. III.
Carloto, Cássia Maria.

15-06980
CDD-362.82

Índices para catálogo sistemático:


1. Famílias : Proteção social : Bem-estar social 362.82
FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA: contradições da Política Social
Regina Célia Tamaso Mioto, Marta Silva Campos, Cássia Maria Carloto (Orgs.)

Capa: de Sign Arte Visual


Preparação de originais: Jaci Dantas
Assessoria editorial: Maria Liduína de Oliveira e Silva
Editora assistente: Priscila F. Augusto
Revisão: Alexandra Resende
Composição: Linea Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização
expressa das autoras e do editor.

© 2015 by Autoras

Direitos para esta edição


CORTEZ EDITORA
Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes
05014-001 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
E-mail: [email protected]
www.cortezeditora.com.br

Publicado no Brasil — 2015


Sumário

Apresentação
Prefácio

O casamento da política social com a família: feliz ou infeliz?


Marta Silva Campos

Políticas Sociais, família e proteção social: um estudo acerca das


políticas familiares em diferentes cidades/países
Marlene Bueno Zola

Programas de transferências condicionadas, famílias e gênero:


aproximações a alguns dilemas e desencontros
Mónica De Martino

Mudanças nas famílias brasileiras e a proteção desenhada nas


políticas sociais
Carmen Rosario Ortiz Gutierrez Gelinski e Liliane Moser

Serviços sociais e responsabilização da família: contradições da


política social brasileira
Regina Célia Tamaso Mioto e Keli Regina Dal Prá

Programa Bolsa Família, cuidados e o uso do tempo das mulheres


Cássia Maria Carloto
Política social contemporânea: a família como referência para as
Políticas Sociais e para o trabalho social
Solange Maria Teixeira

Sobre as Autoras
Apresentação

A proposta que mobilizou um grupo de pesquisadoras a


escrever sobre a família surgiu da urgência em problematizar e
debater o caráter familista e o aspecto regressivo que tem
caracterizado o conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado
Brasileiro, no contexto da nossa política social, notadamente a partir
do final do século XX, em nome da focalização no Combate à
Pobreza e à Miséria, de forma a ferir a própria lógica dos direitos
sociais, forjada pela Constituição Federal de 1988.
O processo de responsabilização das famílias por encargos
dentro do sistema de proteção social, presente na configuração e na
condução da política social brasileira contemporânea, se insere no
debate sobre uma velha questão que é a da forma de incorporação
da família à política social. A discussão desse fenômeno não pode
ser realizada fora do quadro analítico que, tanto do ponto de vista
estrutural como em várias conjunturas, tem marcado historicamente
as relações entre família, política social e Estado.
Nesse quadro se apresentam aspectos importantes, dos quais
Chiara Saraceno destaca a grande dificuldade de estabelecer
consensos sobre o campo de inter-relações família e política social.
Mesmo existindo um acordo sobre a importância das políticas
sociais para sustentar a vida familiar, não existe concordância, nem
sobre o que é família, e nem acerca do que se entende por
sustentar a família. Este problema dá fórum a uma velha pergunta,
sempre presente nos debates e nos embates, que é a do quantum
de responsabilidade caberia à família e ao Estado. As famílias não
são homogêneas, nem em recursos, nem em fases dos ciclos de
vida, nem em modelos culturais e organizativos; também são
influenciadas e interagem com o conjunto da legislação e das
políticas sociais.
O segundo destaque dado pela socióloga italiana quanto à
Política Social é de que esta constitui um campo que dá ampla
visibilidade à interferência/participação do Estado na vida das
famílias, considerando que esta acontece tanto através da
legislação, como de suas políticas demográficas e econômicas.
Isso, sem desconsiderar o fato que o próprio Estado de bem-estar
social nasce de sua assunção de responsabilidades no campo da
reprodução social, que tradicionalmente é terreno compartilhado
com a família. Além disso, não pode deixar de ser assinalado o fato
que nas sociedades capitalistas ocidentais todos os sistemas de
proteção social sustentam-se na tríade Estado, mercado e família.
Desde os seus primórdios até a atualidade têm sido organizados a
partir da família nuclear burguesa, a saber, pai provedor e mãe dona
de casa e cuidadora. Isto nos leva ao terceiro destaque que é o de
constatarmos que, apesar das famílias terem se distanciado do ideal
burguês na sua conformação, ainda são mantidas as mesmas
expectativas sobre o seu papel e suas responsabilidades enquanto
um grupo/ arranjo de proteção e cuidados dos indivíduos. Apesar da
fecundidade das críticas já desenvolvidas, perdura em nosso meio a
compreensão de que a família é o locus de atuação da mulher e o
mercado de trabalho o locus de atuação do homem. Mesmo sendo
sabido que homens e mulheres estão presentes em ambos os
espaços, essa concepção é incorporada pelas intervenções estatais.
Assim as mulheres, a partir de seu trabalho não pago na esfera
doméstica-familiar fazem a mediação entre o Estado e a família no
desenvolvimento das políticas sociais específicas, em áreas como
assistência social, saúde, educação, habitação entre outras.
Compartilhando do desafio de enfrentar o debate enunciado
sobre a família no contexto da política social, este livro reúne
trabalhos de pesquisadoras vinculadas a núcleos de pesquisa de
Programas de Pós-graduação na área de Serviço Social de
diferentes universidades — Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal do
Piauí (UFPI) e Universidad de la República (UDELAR) do Uruguai. A
produção da maioria dos trabalhos é resultado de debates ocorridos
no V Encontro de Núcleos de Pesquisa em Política Social e Família,
ocorrido na UFSC em março de 2012 e apresentados no XIII
ENPESS realizado em novembro de 2012. Eles contemplam de
forma articulada diferentes eixos de discussão. Parte-se de uma
contextualização sócio-histórica sobre a incorporação da família na
política social, avança-se para o debate sobre a família brasileira
contemporânea e suas disposições regressivas em relação à
provisão de bem-estar, considerando suas configurações atuais.
Inclui a problematização da “(in)viabilidade” de manter a
centralidade na família como eixo estruturante da política social,
dados os processos de responsabilização da família através dos
serviços, pautados sobremaneira na questão do cuidado, e enfim, a
sobrecarga que tal cuidado representa no interior da família,
especialmente para as mulheres. Finalmente debruça-se na
centralidade da família na política social de assistência social,
focalizando a questão do trabalho com famílias.
Nessa lógica a discussão é aberta pelo artigo, ironicamente
intitulado “O casamento da política social com a família: feliz ou
infeliz?” toma como matriz teórica a discussão da visível contradição
entre o objetivo de promover direitos de cidadania — inerente à
política social — com a participação da estrutura da família,
estritamente hierarquizada e consagrada em seus padrões atuais.
As suas conclusões reforçam a importância da abertura da família-
domicílio, como grupo analisado em sua diversidade: unidade
distribuidora interna de renda, cuidado e afetos, com significativas
transferências materiais e imateriais, mas que encobre, dada a
hierarquização de gêneros, a mulher-mãe sobrecarregada pelo
trabalho domiciliar não pago e penalizada pela pior posição no
mercado de trabalho. O trabalho “Políticas sociais, família e
proteção social: um estudo acerca das políticas familiares em
diferentes cidades/ países” discute as transformações da família na
atualidade e o reconhecimento conceitual de políticas públicas
enquanto conteúdos concretos regulamentados ou executados pelo
Estado conduzindo à análise de várias legislações que, na
atualidade, fundamentam a matricialidade familiar e a convivência
familiar em âmbito internacional. Também ao reconhecimento de
programas, projetos, serviços e benefícios dirigidos à família, em
diferentes cidades/ países, da América Latina e Europa, parceiras
de um projeto comum de cooperação internacional. Em seguida, o
texto “Programas de transferências condicionadas, famílias e
gênero: aproximações a alguns dilemas e desencontros” visa
aproximar o leitor dos debates em torno dos Programas de
Transferências Condicionadas de Renda (PTCR) na América Latina,
a partir de duas perspectivas que pouco têm sido privilegiadas. A
saber: suas relações materiais e simbólicas com a família e as
construções de gênero ou generizantes que esses programas têm
para além dos elementos discursivos. Nesse sentido, destaca como
o discurso político e acadêmico sobre a pluralidade de arranjos
familiares e a necessidade de relações mais igualitárias de gênero,
perdem a oportunidade de materializar-se nesta nova geração de
políticas sociais. Além disso, questiona o reconhecimento contido no
discurso político da família como uma entidade privilegiada para
quebrar o ciclo da pobreza.
Aprofundando o debate na realidade brasileira são
apresentados os trabalhos “Mudanças nas famílias brasileiras e a
proteção desenhada nas políticas sociais”, “Serviços Sociais e
responsabilização da família: contradições da política social
brasileira” e “Programa Bolsa Família, cuidados e o uso do tempo
das mulheres”. O primeiro traça o perfil das famílias brasileiras nos
levantamentos demográficos recentes, tendo como pano de fundo a
percepção de família enunciadas nas políticas públicas. Os dados
mostram que as famílias estão menores, mais fragmentadas e com
mais idosos e que, mesmo com a tão propalada centralidade da
família nas políticas sociais, o Estado vem se desvencilhando há
mais de três décadas de uma série de responsabilidades e as vem
repassando para as famílias. As mudanças observadas na
população levam a concluir que estas terão cada vez menos
condições de dar conta dos encargos a elas propostos e, a despeito
do aumento da vulnerabilidade das mesmas, não há sinais de que
estejam sendo construídos sistemas de proteção sólidos para as
gerações futuras. O segundo discute a relação família e serviços
sociais no contexto da política social brasileira, tomando como foco
os programas Brasil Carinhoso e Melhor em Casa. Através deles,
demarca-se a tendência familista da política social considerando
que o objeto dos programas que são os serviços, marcam uma
inflexão nos rumos da política social e que ao reforçar a família no
cuidado em saúde e focalizar o acesso aos serviços educacionais
infantis à pobreza extrema, explicita-se o distanciamento ao
princípio da universalidade dos direitos sociais. Assim, coloca em
evidência a privatização da provisão de bem-estar através de dois
atores, o mercado e a família. O terceiro, fruto de pesquisas
desenvolvidas desde 2003, traz o debate sobre a participação das
mulheres em programas de transferência condicionada de renda, na
perspectiva de gênero. Os dados apreendidos, através de
entrevistas e grupos focais com mulheres titulares do Programa
Bolsa Família em diferentes cidades, sustentam a discussão desse
trabalho sobre as tensas relações derivadas das necessidades
geradas às mulheres para a conciliação entre a esfera dos cuidados
intra-familiares e o trabalho remunerado. Finalizando a coletânea,
encontra-se o trabalho “Política social contemporânea: a família
como referência para as políticas sociais e para o trabalho social”,
em que é reafirmado o debate sobre a centralidade da família nas
políticas sociais. Trata especialmente da centralidade nas políticas
de assistência social e saúde, que têm reatualizado as demandas
de trabalho socioeducativo e de educação em saúde com grupos de
famílias. No escopo desse debate problematiza-se tal centralidade,
ao retratar a trajetória histórica, com ênfase na contemporaneidade,
do modo de abordar e trabalhar com famílias nessas políticas, além
de oferecer contribuições para repensá-las em bases críticas.

As Organizadoras
Prefácio

A feliz incumbência de prefaciar este livro sobre familismo,


direitos e cidadania, organizado por Regina Mioto, Marta Campos e
Cássia Carloto — e constituído de textos cujas autoras, incluindo as
organizadoras, são reconhecidas estudiosas do assunto —
propiciou-me duas gratas satisfações: ter, de alguma forma, meu
nome incluído nesta oportuna e necessária publicação; e merecer o
privilégio de conhecer, previamente, o seu conteúdo. Além disso,
como interessada que sou por tudo o que diga respeito às políticas
sociais, a temática nele trabalhada incitou-me a expressar pontos de
vista sobre a contraditória relação entre a transformação da família e
posturas governamentais, assumidas ou não.
Afinal, este é o eixo em torno do qual as discussões nesta obra
são travadas. Sua atualidade candente, associada a mudanças
estruturais e histórias, particularmente no âmbito dos costumes,
respondem pela contínua alteração do padrão familiar convencional
em todo o mundo. Hoje não é mais novidade o fato de a família
estável, de elevada fertilidade, constituída de pai, mãe e filhos do
mesmo casamento, e sustentada por um provedor masculino, ser
raridade. E essa tendência tem produzido significativas reviravoltas
no acervo factual, doutrinário e normativo, que garantia a
reprodução consensual do Estado Social pós-bélico.
Desde então, a transferência estatal de encargos de natureza
social ao núcleo familiar, a título de parceria no cuidado mais
humanizado de crianças e idosos, mas na verdade essenciais à
reprodução do sistema capitalista, tornou-se anacrônica; e não só
por causa do estiolamento do pleno emprego (masculino) dos anos
dourados da política social, entre os anos 1945-1975; mas pelas
alterações desencadeadas por novas forças produtivas que
requeriam outros pactos e justificações sociais, políticos e jurídicos.
Como bem diagnosticou Esping-Andersen,1 já na década de
1990, as ameaças que, desde o final dos anos 1970, pairavam
sobre o Estado Social do segundo pós-guerra, procediam de duas
potentes forças globais: a transição demográfica, responsável pelo
irreversível processo de envelhecimento, e a transformação da
família também em franca ascensão.
Tais ameaças consistiam não no que, em si, elas expressavam,
pois dependendo da análise poderiam significar avanços
civilizatórios. O temor que passaram a inspirar era de outra ordem.
Devia-se à constatação de que o modelo de regulação social
keynesiano, vigente nos referidos anos dourados, e que poderia
articular estabilidade econômica, democracia política e capitalismo,
para enfrentar tais eventos, dava claros sinais de esgotamento.
Com efeito, o sistema de proteção social conquistado por
movimentos democráticos desde o final do século XIX, e pautado,
após a Segunda Guerra Mundial, pelo estatuto da cidadania, tornou-
se incompatível com a nova ordem socioeconômica emergente, de
filiação liberal, que se implantava com vigor. Por isso, era preciso
desacreditar o Estado Social, por meio de uma retórica avessa aos
seus princípios e critérios eminentemente públicos.
Não à toa passaram a vigorar slogans e juízos de valor que, ao
mesmo tempo em que veiculavam a ideia de que não mais havia
alternativas ao neoliberalismo triunfante (veja-se a ampla difusão da
sigla “Tina” — there is no alternative), reduziam o social à mera
soma de indivíduos. Um exemplo marcante desse culto às
individualidades e ao mérito pessoal foi um emblemático discurso
proferido pela ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher, no
qual pontuava que na Grã-Bretanha não havia sociedade, mas
apenas pessoas.
Essa mudança produziu efeitos disruptivos sobre o
protagonismo do Estado no processo de atenção pública às
demandas sociais, especialmente daquelas procedentes de
necessidades humanas coletivas. Com a dissolução do socialismo
real, que constituía, ao menos simbolicamente, uma meta
socialdemocrata a ser perseguida, esses efeitos destrutivos
ganharam cada vez mais legitimidade. Em função desse movimento,
novos atores institucionais privados recobraram notoriedade — não
que eles, no passado, tivessem ficado fora do circuito das ações do
Estado; mas sim que, agora, eles competiam com a liderança
estatal.
O primeiro ator privado a ser alçado à condição de protagonista
da vida econômica e social foi o livre mercado caracterizado por um
individualismo possessivo e pelo afã de privatizar o Estado, baratear
o trabalho e transformar bens e serviços sociais em mercadoria. Em
decorrência, uma cultura política que se consolidava em torno dos
direitos e da justiça sociais, inclusive no chamado Terceiro Mundo,
entrou em declive, dando vez ao domínio antissocial do sistema de
trocas mercantil, ao trabalho assalariado ou rentável, como produtor
de bem-estar, e das políticas econômicas monetaristas.
Sob a égide da privatização, laborização e monetarização,
outros atores privados, não mercantis, ressurgiram como substitutos
do Estado na provisão bens e serviços essenciais a indivíduos e
grupos, reduzindo-se, dessa forma, os gastos sociais públicos.
Dentre esses atores, destaca-se a família como fonte primaz de
reprodução humana e de solidariedades primárias no seu interior,
instituindo-se, com a sua participação, novos arranjos de ajudas
altruístas. Foi o caso do modelo misto ou pluralista de bem-estar
(welfare mix), iniciado na Europa, a partir dos anos 1980. Nesse
modelo, o Estado, o mercado e a família, além de outros setores
voluntários da sociedade, formariam uma cadeia de participações
não hierárquicas, equivalentes e corresponsáveis, para, com
recursos variados — específicos de cada um — enfrentar os “riscos”
gerados pela nova ordem socioeconômica mundial. E no rol desses
“riscos” figurava, com precedência, a própria transformação da
família, acompanhada do envelhecimento humano e populacional e
de outros eventos também considerados incompatíveis com a
linguagem da proteção social pública, na perspectiva da cidadania,
como as correntes migratórias. Ou seja, ironicamente, a família vem
sendo convocada para ajudar a amortecer os efeitos deletérios
produzidos por determinações estruturais e políticas, que têm como
prioridade o aumento da competitividade capitalista em escala
planetária.
Outro modelo recente, no qual a família ganhou centralidade,
como fonte privada de apoio social, na contramão da
responsabilidade pública, é o regido pelo chamado princípio da
subsidiaridade. Tal modelo baseia-se na prédica, de tom religioso,
que no fundo recomenda o amor ao próximo, principalmente ao
“mais próximo”, deixando os mais “distantes” (leia-se, o Estado)
como último recurso a ser acionado. Transportando essa retórica
pseudoeducativa/ altruística para o campo minado de interesses
opostos da política social, tem-se o prevalecimento da seguinte
estratégia protetora, que se situa à margem dos direitos devidos
pelo poder público: as pessoas necessitadas devem, em primeiro
lugar, recorrer a si mesmas, aos seus próprios recursos, ou como
sabiamente traduz um antigo dito popular: devem transformar suas
“tripas em coração” para continuar sobrevivendo. O segundo passo,
caso os indivíduos não possuam nenhum “ativo” de que possam
lançar mão para se autoajudar, deverá ser dado em direção à
família. É neste locus que carecimentos de ordem social se
individualizam e devem ser tratados como assuntos particulares.
Para enfrentá-los caberá à instituição familiar valer-se de uma
virtude que só ela possui — o dever moral da ajuda parental — a
qual deverá ser colocada a serviço de boas práticas voluntárias que
configuram externalidades econômicas, mas das quais o sistema
econômico dominante se beneficia. Contudo, na falta da família,
uma terceira instância privada a ser acessada por indivíduos
carentes repousa ainda no altruísmo associativo. Trata-se não só de
instituições filantrópicas, religiosas ou laicas, formalmente
constituídas, mas também de amigos e vizinhos; isto é, daquelas
estruturas de relações informais que se organizam e funcionam
movidas por sentimentos de fraternidade. Muitas delas, como as
redes de amizade, de companheirismo e de vizinhança, se
estabelecem espontaneamente, como forma de compensar a
ausência do Estado, as incompetências governamentais e a
inanição das políticas partidárias e dos representantes do povo; e se
caracterizam como estratégias de sobrevivência precárias de cuja
mutualidade todos os cooperantes podem se valer em situação de
desamparo. Donde se conclui que a eleição dos poderes públicos
como o último recurso a ser ativado, nada significa em termos
educativos ou de estímulo à autonomia individual. Pelo contrário, a
ausência do protagonismo estatal no processo de provisão social,
não apenas priva os cidadãos da fruição de direitos, que só o
Estado pode garantir, mas também sobrecarrega a família com
encargos que superam as suas possibilidades de bancá-los. Isso,
sem falar do incitamento à proliferação do assistencialismo, ou da
negação da assistência social como política pública, tal como
concebida na Constituição brasileira vigente, promulgada em 1988.
Essa tendência tem contribuído, sobremaneira, para o reforço
do familismo (ênfase na autoajuda familiar), onde ele já existia —
como no sul da Europa, América Latina, e particularmente no Brasil
— e para o enfraquecimento das experiências nacionais onde o
Estado constituía a principal fonte de proteção social, como na
Escandinávia. Até mesmo nesta região nórtica europeia, tida como a
mais socialdemocrata, a ingerência neoliberal tem limitado o escopo
e a intensidade protetora do Estado, fazendo com que indivíduos
necessitados, especialmente os estrangeiros, passem a contar com
o apoio de seus círculos informais privados. Em suma, tem-se, em
todo mundo, um afrouxamento da relação de mútua implicação
entre família, política social e direitos de cidadania.
Na realidade latino-americana e, especificamente, brasileira —
como demonstram as análises contidas neste livro além das
controvérsias sobre o conceito de família e sobre a definição de
atenções públicas mínimas aos seus membros mais fragilizados,
não existem sinais de que o Estado esteja se esforçando para
enfrentar as transformações familiares. Neste contexto geográfico-
cultural, enfatizam vários textos, não só se espera que as famílias
assumam a responsabilidade pelos cuidados pessoais em seu
próprio âmbito, mas também que se transformem em unidades
produtivas e em redes de proteção paralelas ao Estado. Impera o
que uma das autoras chama de “neofamilismo”, para nominar o
processo de refamilirização que se fortalece no rastro da
remercantilização das relações familiares com a sociedade. Tal fato
resgata e potencializa o assistencialismo, de conotação moralista,
cuja principal consequência é a institucionalização de desigualdades
sociais. Há, portanto, “um descaminho da lógica da cidadania”,
pondera uma das autoras. Há também, afirmam outras, ao se
referirem ao Brasil, flagrante descompasso entre os avanços sociais
formalmente previstos na Constituição da República vigente e os
atrasos ou retrocessos no respeito a esses avanços. E como era de
se esperar, os programas sociais, de caráter monetário,
condicionados a contrapartidas e focalizados na pobreza extrema,
endereçados às famílias latino-americanas, têm impactos reduzidos,
quando não perversos. Isso porque, muitos não têm foro de direito,
ou não estão positivados como tal; e, por definição própria, são
instrumentos de alívio da pobreza — uma frase de efeito, importada
de países regidos pelo ideário neoliberal, como os Estados Unidos,
que no fundo expressa o desinteresse governamental em atacar o
problema pela raiz. Disso se conclui que a magnitude das ameaças
globais de que falava Esping-Andersen não está merecendo contra-
ataques politicamente empenhados, nem no Brasil e nem alhures.
É tendo em vista essa problemática, que avança tal qual um
cavaleiro do apocalipse, não somente contra as famílias
contemporâneas, mas contra a própria humanidade, que estudos
como estes são sempre necessários e benquistos.

Península Norte/ Brasília, 26 de novembro de 2013.

Potyara Amazoneida Pereira Pereira


Professora titular e emérita da Universidade de Brasília (UnB)
O casamento da política social com a
família: feliz ou infeliz?

___________________________ Marta Silva


Campos

1. INTRODUÇÃO
A associação entre Política Social e família é tema que ganha,
hoje, mais força, na medida em que é reclamada a participação
familiar ativa dentro do sistema de proteção social, com cobertura
institucional extremamente favorável.
Para problematizar e debater essa acolhida atual da família,
enquanto instância necessariamente vinculada ao desenvolvimento
da política social, fazemos aqui um recuo ao tempo da
implementação das primeiras estruturas de bem-estar social, que
podem dar os fundamentos que permitem compreender a posição
atual da família na Política Social, ao propiciar o reconhecimento de
que as formas atuais não são fenômeno totalmente novo.
Chamamos a atenção para o fato de que essas formas existem, na
verdade, desde a constituição dos primeiros esboços do que seria a
Política Social brasileira.
Para ligar as concepções de Política Social e Estado de Bem-
Estar Social, mostramos uma aproximação, tomando a ideia de
Beveridge (apud Marshall, 1967, p. 97), de vincular ambas mediante
a continuidade e a transformação, ao falar numa “revolução
britânica”, sob “um desenvolvimento natural do passado”, ou seja:

[…] fusão das medidas de política social num todo o qual, pela primeira vez,
adquiriu, em consequência, uma personalidade própria e um significado
que, até então, tinha sido apenas vislumbrado. Adotamos a expressão
“Estado do Bem-Estar Social” para denotar essa nova entidade composta de
elementos já conhecidos.

Tal explicação permite ver a Política Social na condição de um


estágio pouco desenvolvido, precursor do Welfare State vigente na
sociedade inglesa entre os fins do século XIX e começo do XX.1
Assumimos, assim, a atual posição da família na Política Social
não como uma novidade, ao contrário do que, em geral, vem sendo
enfatizado em sua análise atual, pelos que a caracterizam apenas
como consequência da política neoliberal, em ascensão a partir dos
anos 1990.
Por essa razão, tratamos detalhadamente da primeira
combinação entre família e Política Social, base para a segunda
configuração. Essa demonstração segue no tempo, mediante
comentários ligados a diferentes bases conceituais relativas à
família e seu uso no desenho e cotidiano das diversas políticas de
caráter social. Recomendamos basicamente que se proceda à
abertura da realidade das famílias, analisando não só suas
transformações morfológicas, mas o sentido real do processo das
profundas mudanças que a caracterizam.
Enfim, tomamos como fio condutor a alusão ao paradoxo que
se apresenta na vinculação entre família e direitos de cidadania
existentes no país. De um lado, a busca intensificada do
protagonismo — leia-se responsabilidade — da família no sistema
de proteção social. De outro, a promoção da proteção social,
tradicionalmente objeto da Política Social, com base na
concretização de direitos políticos, civis e sociais, via de regra,
especificados individualmente. Parece contraditória a
simultaneidade da atribuição do caráter universal do direito de
cidadania a tal política e da responsabilização ampla da família em
seu desenho e desenvolvimento.
Com foco na atual situação brasileira, recorremos à
consolidada bibliografia internacional e à já consistente crítica
interna existente no País acerca dos fundamentos relativos à busca
de estratégias alternativas a partir dos esforços familiares, dentro da
questão aqui analisada.

2. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

2.1 Um primeiro casamento

A primeira Política Social, com a qual a família casou-se, surgiu


como produto histórico do período compreendido entre fins do
século XIX e primeira metade do XX, constituindo proposta coletiva
para solucionar a contradição entre interesses e demandas próprias
do desenvolvimento acelerado do sistema capitalista em sua forma
na época.
Nesse contexto, diferentes forças sociais contribuíram para a
construção de tal proposta: os sindicatos; movimentos e partidos de
trabalhadores; industriais, em sua maioria; partidos políticos;
governos; classes médias; outras instâncias e organizações da
sociedade. Em jogo, as condições e garantias para a força de
trabalho, a possibilidade de implantação de um regime antitético ao
capitalismo, ou, simplesmente, a busca da distensão e de menores
conflitos. Já no contexto do século XX, uniu-se bem com a
reconstrução pós-guerra da Europa, além de servir à demonstração
e defesa do sistema capitalista em tempos de Guerra Fria.
Um conjunto bastante heterogêneo de forças sociais,
econômicas e políticas, da consciência das incertezas vigentes, no
final do século XIX, são testemunhos às diferentes fontes de
aspiração por mudanças na sociedade: a Rerum Novarum, carta
encíclica papal de 1891; as lutas sociais, comunista e socialista; ou
iniciativas de matriz liberal.
2.1.1 A estrutura de apoio

Esta primeira proposta, ainda no fim do século XIX, foi


institucionalizada pela criação do seguro social, destinado aos
trabalhadores titulares de contratos de trabalho formalizados.2
A vinculação original do Estado de Bem-Estar Social à
formação, manutenção e controle da força de trabalho, destinou-se
a prover uma base sólida para o funcionamento da economia e
sociedade como um todo: sua prontidão — indispensável numa
economia caracterizada por períodos alternados de crescimento e
expansão produtiva —, ou depressão. Política de natureza
contributiva, com aportes de patrões e trabalhadores, que tem o
Estado como fiador político e suporte financeiro da gestão da
institucionalidade necessária, destinada à proteção contra eventuais
necessidades futuras relacionadas aos principais riscos sociais:
desemprego, morte, doença, envelhecimento e/ou invalidez e
origem do que se denomina previdência social, expandida pela
maioria dos países que construíram estruturas de bem-estar social
significativamente abrangentes.
Também no caso do Brasil, é consensual a aceitação dessa
forma como marco inicial de uma intervenção estatal mais
consistente, em termos de política social, na década de 1930,
momento de expansão industrial na economia nacional (Paula,
1992).
Do ponto de vista que interessa aqui, deve-se lembrar que o
funcionamento desse sistema de transferências sociais de caráter
financeiro, ocorre, como demonstrado, dentro do sistema
previdenciário, com base no princípio de trocas intergeracionais na
sociedade em geral.
Assim, oferece um lugar importante às famílias, quando
examinadas em seu interior: enquanto os adultos trabalham,
mantêm os mais novos e contribuem com parte de seus salários
para gerar um fundo de recursos de caráter público, que provê
aposentadorias e pensões para a geração anterior.
2.1.2 As dificuldades

Esta rememoração torna presente o fato de que é pelo ângulo


antes mencionado, com referência ao sistema de proteção social,
que se delineia em grande parte seu papel criador de
desigualdades, no tocante aos resultados da própria Política Social
vigente. Fato, de certa forma, surpreendente, pois, dado seu
estatuto de modelo redistributivista de recursos da sociedade,
deveria ser considerado predominantemente agente de diminuição
das desigualdades.
Para analisar os prós e contras dessa forma inicial de
associação entre a família e tal política social, impõe-se trilhar um
caminho teórico específico, abrindo a política previdenciária em sua
ponta, verificando como chega ao conjunto das pessoas
beneficiadas.
Com efeito, a organização do sistema previdenciário brasileiro
— como em qualquer parte centrado na ótica da proteção e controle
da força de trabalho — opera privilégios de várias formas. Em
primeiro lugar, ao favorecer basicamente o acesso dos
trabalhadores legalmente contratados, em detrimento dos atuantes
na informalidade. Desta maneira, são deixados de lado, por
exemplo, no Brasil, os trabalhadores rurais — uma massa
respeitável de pessoas —; também os autônomos, os empregados
domésticos, categorias que só vieram a contar com os benefícios
previdenciários de aposentadorias e pensões, por força da
Constituição de 1988.
Além disso, sua montagem se fez de forma incremental,
seletiva e negociada, de acordo com o peso das diferentes
categorias profissionais, em termos econômicos e políticos. Ao criar
inicialmente institutos de previdência social específicos para cada
uma delas, propiciou benefícios mais amplos para as categorias
contempladas com maiores salários, já que a contribuição de todos
ao sistema de seguro é proporcional a esses rendimentos. A
proporcionalidade da contribuição denuncia o caráter não
distributivo entre os diferentes níveis salariais.
A falta de isonomia espelha-se ainda na concessão de
aposentadorias de valor integral, iguais às dos vencimentos na
ativa, para funcionários públicos, contrastando com o seu
rebaixamento no caso dos empregados do setor privado. Trata
algumas categorias como especiais, para efeito dos benefícios,
estabelecendo gritantes diferenciais quanto às exigências de tempo
de contribuição ao sistema, caso da aposentadoria de
parlamentares e da pensão vitalícia a filhas solteiras de militares.3
Todas essas diferenças de tratamento certamente influem no
grau de proteção social às famílias, que são diferentemente situadas
em função dos recursos obtidos por meio do trabalho.
Mediante esses processos, portanto, tratando-se da
previdência social — estrutura tradicional de todo o sistema de
proteção social brasileiro — cujo desenho é orientado para
estabelecer um benefício de abrangência familiar calculado pelos
diferentes níveis salariais, são produzidas discriminações, pela
segunda vez, mediante o próprio sistema de proteção social.
E, ainda, aqueles que, no sistema previdenciário, são
considerados os titulares de direito, a quem são transferidos os
benefícios correspondentes, coincidiram majoritariamente com os
trabalhadores homens, dada a relativamente mais baixa inserção de
mulheres no mercado de trabalho, durante um longo período da vida
nacional quanto a seu sistema de proteção social.
Assim, observa-se que, nesse sistema, concretiza-se um
padrão de transferência dos benefícios para aquele que detém o
status de trabalhador, em geral, o homem “chefe de família”, e só de
forma derivada abrangendo a mulher e os filhos. Lewis (1997)
assevera que o seguro social, considerado um benefício de
“primeira classe”, é dirigido majoritariamente aos homens, enquanto
para as mulheres sobram os da assistência social, ou de “segunda
classe”. Como consequência, registram-se prejuízos para o acesso
das mulheres à proteção social vigente, conforme já mencionado,
especialmente devido à sua posição (em geral menos favorecida) no
mercado de trabalho e/ou quando o vínculo conjugal se torna
instável (Gornic, 1997, apud Esping-Andersen, 1999).
Para demonstrar a existência de implícita política de gênero —
e, conjuntamente, de organização familiar — na construção do
próprio Welfare State, o importante, na afirmação desses autores, é
o fato de registrá-las como dotadas de amplo alcance para a
estabilidade e o desenvolvimento social, em termos políticos, de
construção nacional.
Isto se explica perfeitamente, dentro do modelo normatizado e
naturalizado da família nuclear conjugal, que se apoia no “homem
provedor”, do qual a mulher é “dependente” (termo clássico) para
seu sustento, bem como os filhos da união. Nessa situação, ao
homem, considerado pelo seu status de trabalhador, correspondia o
papel de “chefe de família”.
Para o caso da Inglaterra, cujos primórdios, em termos de
proteção social, apresentam boas condições de acompanhamento,
pela existência de referências históricas amplas, há cabal definição
da “funcionalidade”, em termos de Estado, dessa base familiar
específica, presente no desenvolvimento inicial do padrão de
intervenção social estatal. Traz claramente uma explícita política de
gênero citada pelo próprio Beveridge (1942, apud Esping-Andersen,
1999), em seu Relatório:

[…] a grande maioria das mulheres casadas deve ser vista como ocupada
com um trabalho que é vital, embora não pago, sem o qual seus maridos
não poderiam fazer seu trabalho pago, e sem o qual a nação não poderia
continuar (tradução nossa).

2.1.3 A convivência

Glennerster (2007, p. 35) mostra a preocupação de Beveridge


com o sistema de seguro social inglês, quando este afirma muito
claramente seu pensamento relativo à família como “uma unidade
social básica, como o lar do homem, da esposa e das crianças
mantidas pelos rendimentos unicamente do primeiro”. Daí a
importância que atribui a uma razoável segurança do emprego para
o homem provedor. Enfatiza que, ao ter de lidar com grandes
mudanças em suas próprias concepções acerca do papel das
mulheres, esse defensor máximo de uma Seguridade Social ampla
se vê diante de “uma infeliz justaposição de sua visão das mulheres
como iguais e de seu papel dentro dos arranjos domésticos que
sabotavam e excluíam tal status” (op. cit. p. 35).
São disso evidência suas afirmações, em 1945:

[…] no casamento, uma mulher adquire um direito legal de ser sustentada


por seu marido, como uma primeira linha de defesa contra os riscos que
recaem diretamente sobre a mulher sozinha. Ou: É verdade que a maioria
das mulheres casadas não desejará sair para trabalhar porque elas terão
muito trabalho para fazer como donas de casa e mães. Mas numa
sociedade livre é preciso deixar à própria mulher e a seu marido a decisão
sobre isso.4

Em suas percepções, mostrando-se incomodado com a


contraditoriedade entre os princípios supostamente envolvidos
nesse tipo de associação entre família e política social, ele vem ao
encontro da reflexão aqui feita: a indesejabilidade dessa “infeliz
justaposição”, quer dizer, dessa dupla empresa de procurar
promover igualdade, e acrescentam-se, também, direitos de
cidadania, a partir de uma estrutura familiar, tendente à consagração
de sua hierarquia interna, em que pese certa plasticidade.
Observe-se que, nestes comentários sobre a família, o autor
tem como fundo bem visível sua decisão estratégica pelo seguro
social no sistema de bem-estar social inglês. Glennerster (2007)
comenta a contradição quanto à aspiração ao universalismo como
princípio do Welfare State, que ele expressou no Relatório, motivada
por seu “profundo desejo de incluir tudo e todos e sua escolha
metodológica: o seguro contributivo através do emprego”.5
Uma das consequências importantes dessa decisão, orientada
para o destaque do seguro social como instrumento da Política
Social, é costumeiramente o estabelecimento de uma superioridade
de gastos com transferências financeiras sobre os relativos à oferta
de serviços sociais enquanto instrumentos de políticas. A
organização de uma rede de serviços sociais que esteja realmente
disponível, como vias para a educação e criação das crianças e
para os cuidados gerais aos membros dependentes, fica nesse caso
bastante relegada dentro dos restritos orçamentos públicos.
Muito claramente, para a vida familiar, a disponibilidade dos
serviços é fundamental. Como expressam Campos e Reis (2009):
“Os serviços conferem materialidade às políticas sociais e, por
conseguinte, garantem direitos sociais”. Acrescentemos: conferem
materialidade de potencial mais satisfatório, mais refinado e seguro,
que as transferências financeiras.
E com Mioto (2010, p. 5):

[…] os serviços atuam como ponto de convergência e mediação de ações


vinculadas à proteção social e exercem papel fundamental no
desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social, além do
enfrentamento aos riscos circunstanciais.

Desvendando a partir do interior da família, configura-se mais


uma vez a situação desfavorecida da mulher-mãe (em geral, com
consequências indesejáveis para todo o grupo familiar) quanto à
divisão de recursos indispensáveis para esse cuidado, que cabe a
ela prover ou providenciar, dada a forte expectativa do cumprimento
de sua responsabilidade familiar de cuidadora. Reforça-se a
desigualdade do tratamento de gênero interno à família,
influenciando nela a própria vida no tocante à reprodução social.
Ao mesmo tempo, estimula-se a hierarquização entre o casal,
por meio dessa própria estruturação. A crítica teórica feminista
(Lewis, 1997; Pateman, 1989; Orloff, 1999) ressalta que, na
verdade, o que substancialmente opera na consolidação de tal
modelo de proteção social assim construído é o trabalho não pago
da mulher.
Fica bastante evidente, a partir dessa inclusão teórica da
questão de gênero, a relação do sistema de proteção social com o
mercado de trabalho e o próprio desenvolvimento econômico: à
mulher é reservado um papel subsidiário; seu regime e ritmo de
trabalho estão na dependência rigorosa das estratégias familiares e
das conveniências do sistema produtivo, de forma bem menos
vantajosa do que a do homem.
A ótica do feminismo intelectual alerta para a necessária
análise do tipo de relações que deverá sustentar a convivência a
que a família foi conduzida após esse casamento.
Pateman (2006) não hesita em denominar como The
Patriarchal Welfare State6 a seu texto emblemático do ponto de vista
dessa crítica, publicado em 1989.
Nele ressalta muitos modos — eficazes e dissimulados — de
impedir a igualdade de direitos da mulher que convive com um
homem provedor na família e demonstra alguns deles.
Partindo da ideia de que o modelo supõe a dependência
financeira da mulher em relação ao cônjuge (já que a formação para
o trabalho e a posição possível no mercado, além da força modelar
em termos culturais, não favorecem decisivamente sua
independência mediante inserção produtiva), a autora alerta para a
expectativa aí incluída de que o homem seja “benevolente”, quer
dizer, esteja disposto a compartilhar seu ganho individual de forma a
garantir um padrão de vida igualitário. Afirma que isso nem sempre
acontece, e conta que num único estudo que conseguiu localizar, de
William Thompson, foi constatado o erro de se esperar sempre esse
comportamento masculino, num longo período histórico7 (Pateman,
op. cit., p. 137; tradução nossa).

2.2 Um segundo casamento

Embora os efeitos do chamado segundo casamento não sejam


completamente distintos do primeiro, quanto a sua influência sobre a
desigualdade social e a cidadania, como veremos, é preciso analisar
como vem sendo instalada outra associação entre uma nova política
social e uma nova família.
Em ambas há muitas diferenças devidas à passagem do
tempo: a primeira desliza para o combate à pobreza e à miséria,
sustentada em grande parte pela expansão dos mundialmente
adotados programas de transferência direta de renda às famílias,
como ação dos governos. Relativamente pouco dessa transferência
está afeta ao sistema previdenciário — objeto de duas reformas
tendentes a limitar gastos, — em 1998 e 2003, configurando-se
como Assistência Social, portanto, Política Social não contributiva.
A família, por sua vez, vislumbrada nos chamados diferentes
“arranjos familiares”, distanciou-se ainda mais do antigo modelo
plasmado na modernidade e reforçado pela política social
contemporânea.
Ao passar a receber benefícios da assistência social, em
muitos casos constando da mulher sozinha,8 a família passou a ser
condicionada, e ainda mais responsabilizada, leia-se cobrada, por
certas obrigações definidas administrativamente em torno da
educação e saúde dos filhos, sob pena de perder o subsídio.
No Brasil, se considerados os níveis de remuneração do
trabalho e dos benefícios, vem sendo evidenciado o aumento dos
problemas de sobrevivência, especialmente no caso da mulher
única responsável por sua própria manutenção e a dos filhos.
O assunto foi bastante estudado no Brasil, tomando como base
a situação das famílias denominadas “monoparentais”, e
consubstanciado teoricamente no tema da “feminilização da
pobreza”.
Como já sugerido, a mulher enfrenta um caminho difícil, tanto
na ausência de um companheiro na convivência conjugal, como na
saída dessa união — principalmente se não reconhecida legalmente
— pela falta de cobertura da proteção pessoal para si e para os
filhos. Devido às suas demandas incontornáveis, e à sujeição
inevitável a trabalhos mal pagos, torna-se, em geral, diretamente
dependente do Estado, mediante subsídios assistenciais.
Complementarmente à denúncia de que o tema da distribuição
de renda dentro da unidade doméstica é em geral descuidado,9
Pateman (op. cit., p. 137; tradução nossa) registra o fato de a
mulher ter em geral sua situação piorada com a separação.10 No
Brasil, dados oficiais nacionais registram, nas últimas décadas,
evolução nesse sentido.
Apresentando esses e vários outros consistentes argumentos,
a autora afirma apropriadamente que “a cidadania das mulheres é
cheia de contradições e paradoxos” e que a negação de uma
cidadania completa inclui mesmo “o objetivo de mantê-las fora da
força de trabalho paga”.
Essas observações articulam-se no Brasil, de modo a afirmar a
configuração de uma nova situação estrutural, com referência ao
seu sistema de proteção social.
Apresenta-se, dentro dele, uma situação diferente, para a
família, ligada a maior esgarçamento da solidariedade familiar
intergeracional.
Dentro de uma tendência mundial, medidas que atingem
profundamente o sistema vigente de pensões e aposentadorias são
adotadas no Brasil, respaldadas na aprovação da Emenda
Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, e posteriormente
em nova legislação.
Com base em princípios de contenção de gastos, considerados
como agravantes do déficit do sistema previdenciário, e na garantia
de um sistema caracterizado como um mix público-privado, conduz-
se para a adesão a um sistema claro de dois “pilares”
previdenciários, um básico, estatal, e outro privado, mediante
operação de fundos fechados ou abertos de seguros, dentro de um
teto financeiro de aposentadoria bastante restrito — dez salários-
mínimos — para os trabalhadores de empresas privadas (com a
possibilidade de sua extensão para os funcionários públicos).
Utilizando-se do instituto da previdência complementar, já
existente no sistema brasileiro, suas medidas centrais se dirigem ao
retardamento da aposentadoria, ao estabelecer uma idade mínima
— 60 anos para homens e 55 para mulheres —, funcionando de
forma vinculada ao tempo de contribuição (35 anos para homens e
30 para mulheres) já vigente (exceto para professores
universitários), com o fim da aposentadoria concedida simplesmente
por tempo de serviço.
Também favorecem a redução substancial do montante do
“salário-benefício” a ser pago no caso das aposentadorias por idade
e por tempo de contribuição, com a introdução do “fator
previdenciário”, um corretor mais próximo de critérios atuariais para
o cálculo e construído a partir da diferente ponderação, no momento
da aposentadoria, do tempo de contribuição, da idade e expectativa
de vida.
Para a adequada compreensão do tipo de alcance que pode
ser esperado dessa mudança, é bom prestar atenção ao
posicionamento das forças que se alinham genericamente a uma
perspectiva neoliberal. No caso das organizações patronais, é
significativo o posicionamento da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), de importância nacional, favorável à
abolição da seguridade social como um conjunto, inclusive
orçamentário, propondo a previdência social contributiva com
caráter de seguro e uma Rede de Proteção Social ao Trabalhador,
composta pela Política de Assistência Social e de Saúde,
financiadas com recursos fiscais.
Baseia-se na mínima interferência governamental e abolição
das contribuições patronais, com a operação do sistema individual e
de capitalização para os que desejem benefícios acima dos limites
da previdência pública. O seguro de acidentes de trabalho seria
inclusive de natureza privada, a partir de contribuições compulsórias
dos trabalhadores.
Sem pretensão de tratar também da conformação do sistema
previdenciário brasileiro em geral, alguns aspectos específicos
devem ser lembrados para esta argumentação: a vinculação da
idade mínima para aposentadoria ao tempo de contribuição dilatou a
exigência de vida laborativa para aqueles que começaram a
trabalhar em idades mais baixas, presumivelmente os pertencentes
às camadas de menor renda; o cotejamento da idade mínima com a
expectativa média de vida dos brasileiros leva à previsão de pouco
tempo de sobrevivência para os aposentados; algumas mudanças
dos termos para recebimento do benefício causaram danos,
especialmente para aqueles que estavam prestes a gozá-lo.
Nesse sentido, num contexto de divergências profundas entre
interesses expressos e propostas conflitantes — com vitórias e
derrotas eleitorais e batalhas públicas, que produziram intensa luta,
com perdas e ganhos entre segmentos da população —, temos de
considerar que as normas previstas para a passagem gradual do
velho ao novo foram bastante rápidas, comparativamente, por
exemplo, ao caso italiano, no governo Dini.
Do ponto de vista da relação entre família e política social, essa
nova situação significa a deterioração da solidariedade
intergeracional à qual nos referimos ao tratar do primeiro
casamento.
A entrada do chamado “segundo pilar” da Previdência Social —
a previdência privada —, ao admitir a impossibilidade da estatal
fazer face à cobertura de riscos, desmonta a relação de interajuda
entre as gerações da família: os que trabalham hoje e mantêm as
aposentadorias e pensões dos que já deixaram o mercado de
trabalho e ao mesmo tempo cuidam de si e de seus filhos.
Torna-se difícil, devido à insegurança do modelo, servir àqueles
que devem manter-se e cuidar do seu futuro com proteção
financeira privada, dada a insegurança de seu rendimento a longo
prazo.
A estrutura familiar “securitária” não é mais garantia adequada
à permanência do grupo, dando origem a uma situação pior, do
ponto de vista da relação entre esse casamento, com a família
agora constituída, em relação à primeira união.
Deduz-se, assim, que a cada configuração de Política Social
corresponde uma dada família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão aqui feita reforça a importância da abertura da
família-domicílio em sua diversidade interna, para vê-la como um
grupo, dotado de estrutura própria, que inclui diferenciados
sentimentos, relações e posições, com seus consequentes poderes
e suas hierarquias.
Muitas transferências materiais e imateriais de monta ocorrem
dentro dela.
Trata-se seguramente de uma unidade distribuidora interna de
renda, o que se nota e se usa nos atuais programas de
transferência condicionada de renda.
Compreendê-la supõe evitar a indiferenciação de sua realidade
interna, o que provocaria desrespeito a um detalhamento mais
empenhado de sua realidade e sobre como tratá-la.11
A propósito, alguns critérios devem ser recuperados na
continuidade da compreensão dessa intimidade familiar e das
normas da família brasileira. Cabe lembrar que a posição de chefe
de família foi objeto de legislação estrita (hoje extinta) concedendo-
se, pelo Código Civil, ao homem, entre outras coisas, o direito de
fixar a residência do casal, sob pena, para a mulher, de caracterizar
“abandono de lar”, se desobedecido. Também o seu direito de
administrar os bens do casal e, para não deixar dúvidas: “o direito
de decidir, em caso de divergência”, conforme a letra da lei anterior
(apud Campos, 2010).
Dada essa forte configuração do papel proeminente do antigo
homem-chefe-de-família, convém não se afastar desse modelo
mediante o elogio à fortaleza da mulher como chefe da família,
respondo às avessas a hierarquização dos cônjuges dentro da
estrutura familiar. Ou seja, marcar antieticamente mudanças
“profundas” na organização familiar, abandonar a possibilidade de
estabelecer relações horizontais entre os cônjuges. Pior, refundar a
desigualdade interna de gêneros, depois de séculos de avanços
contrários, mas ainda desafiados.
Desse ponto de vista, parece bastante equivocado (além de
ilegal) insistir na recuperação de uma hierarquia familiar, ao
empenhar-se na afirmação da “Chefia Feminina” (Campos, 2010).
Tendência cujo inconveniente reside tanto no prejuízo à convivência
entre os cônjuges, e deles com os filhos e outros membros, como no
reforço a uma situação de pauperização da família, que
comprovadamente ocorre quando a mulher está só com seus filhos
no domicílio.
Estudo da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea, 2010, p. 21) confirma essa situação, ao examinar dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2009),
referentes ao caso dos “arranjos formados por mães com filhos, sem
a presença do cônjuge” dentro do “fenômeno das famílias chefiadas
por mulheres”. Observa que, nesse caso, a mulher é considerada
responsável pela família por ser a única adulta presente, com o
encargo do sustento de todos, nessa forma familiar.
Entretanto, admite que “não se pode considerar como
vantagem12 tanto o fato de mais mulheres serem consideradas
responsáveis por suas famílias, com a ausência do cônjuge,
especialmente no caso de haver crianças menores a serem
sustentadas. Isso faz com que a renda familiar seja, por vezes,
insuficiente e coloca essas mulheres em situação de maior
fragilidade”, visto que “[…] o arranjo parece estar mais relacionado a
uma situação de maior dificuldade” (op. cit., p. 21).13
Neste sentido, é preciso lembrar que o modelo nuclear conjugal
de família, que Parsons definiu, partindo dos Estados Unidos, nos
anos 1950, era coerente com a prosperidade econômica promovida
pelo fordismo da época, gerando salários altos, suficientes para que
o homem-pai fosse o provedor da família. Estendeu-se ao grosso
dos países do Ocidente, mas não vem funcionando em termos das
próprias funções que lhe são atribuídas. No Brasil, isso ocorre
desde o registro do desaparecimento do “homem provedor”, na
década de 1980, conforme constatado por Araújo e Scalon (2005). A
mulher teve de sair de casa e trabalhar, para “ajudar o marido”, dado
o nível salarial insuficiente do homem.
Retoricamente, enfim, a importância desse modelo parece ter
continuado, penalizando a compreensão da situação das mulheres
sós na família.
O reforço à financeirização da Política Social, tão ao gosto da
perspectiva liberal, ao jogar dinheiro rapidamente no mercado,
mediante uma política social de benefícios, extensiva a vasto setor
da população, estimula o consumo espontâneo. Embora, com isso,
cumpra um papel importante para os beneficiários atuais, ressente-
se da inexistência simultânea de estratégias políticas de curto,
médio e longo prazos para o problema da distribuição de renda e do
patrimônio, tão desiguais no País, devido aos seus determinantes
estruturais.
Em termos do empenho dessa nova união da política social
com a família — obrigatória, pela adesão em grau mais estreito a
um novo patamar de exigência —, é necessário incluir, além de
subsídios financeiros e programas, serviços adequados e medidas
relativas às condições do trabalho feminino no país.
Na atual Política Social, no tocante às mulheres, aspectos
indispensáveis, como seu trabalho, sua formação, igualdade
salarial, empregos, não constituem ainda os focos principais, de
efeito prolongado, na direção real de promover sua autonomia em
relação a certos entraves a uma emancipação humana.
Do ponto de vista teórico, pode-se reconhecer a importância da
variação das estruturas de proteção social, de seu caráter mais ou
menos amplo em termos de cobertura das necessidades e
demandas da população, para o desenvolvimento da concepção de
cidadania na sociedade. O alerta é para sua positividade,
principalmente para essa população, que dela passou a se servir em
suas lutas por mais direitos e difusão por um circuito mundial.
Vale dizer que medidas foram implantadas em países diversos,
alguns em que só remotamente havia a possibilidade de existir um
novo estatuto nas relações Estado-sociedade, no sentido da
democratização, pois muitos estavam mergulhados em ditaduras há
séculos.
Para o Brasil, também base para a redemocratização e
ampliação da consciência das necessidades e demandas
imperativas, houve impulso à legislação social.
Em decorrência, a abertura para a responsabilização dos
governos e das sociedades por respostas de enfrentamento dos
riscos, principalmente os tradicionais: doença, morte,
envelhecimento, incapacidades, além do desemprego; expansão da
atenção à saúde e extensão da educação. Mesmo diante de todas
as insuficiências que ainda encontramos, é certo.
Por outro lado, também à custa de muita desigualdade histórica
deixada intacta, à margem da sociedade, para além do que foi
claramente discorrido neste trabalho.
A fim de contrapor-se à reafirmação dessas injustiças, em
muitas situações sistemicamente repetidas dentro dos padrões
institucionais do exercício profissional, é imprescindível, ao trabalhar
com a família, em qualquer de seus casamentos com a política
social, atribuir profunda importância às matrizes políticas e
econômicas em que ela se desenvolve; aos programas, que delas
coerentemente descendem; e à ação direta com os membros das
famílias, em sua condição de pessoas, trabalhadores e cidadãos,
para lembrar o mínimo.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, M. S. Reforma do sistema previdenciário brasileiro: condições e


alternativas de mudança. COLÓQUIO INTERNACIONAL — “O MODELO LATINO
DE PROTECÇÃO SOCIAL” REFLEXÕES SOBRE O ESTADO PROVIDÊNCIA EM
PORTUGAL, ESPANHA E BRASIL. Anais…, Lisboa, ISEG, set. 2001, Ed. CD-
ROM, [email protected].
______; REIS, D. S. Metodologias do trabalho social no Cras. In: CRAS:
MARCOS LEGAIS. Capacita Cras, São Paulo, Secretaria Estadual de Assistência
e Desenvolvimento Social/Fundação Vanzolini, v. 1, p. 41-70, 2009.
CAMPOS, M. S.; MIOTO, R. C. T. Política de assistência social e a posição da
família na política social brasileira. Ser Social, revista do Programa de Pós-
graduação em Política Social, UnB, Brasília, n. 12, p. 165-190, jan./ jun. 2003.
______. Para que serve pensar a existência de uma “chefia feminina” na família
atual? In: MARTINO, M. (Comp.). Infancia, familia y género: multiples
problemáticas, multiples abordajes. Montevideo: Ediciones Cruz del Sur, 2010.
ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of post industrial economies. New
York: Oxford University Press, 1999.
FONSECA, A. M. M. Painel: Que família é essa?: a família é sempre um tema
fascinante. In: WANDERLEY, M. B.; OLIVEIRA, I. de M. C. e (Orgs.). Trabalho
com Famílias. São Paulo: IEE, PUC-SP, 2004. (Textos de Apoio, v. 2.)
GLENNERSTER, Howard. British Social Policy: 1945 to the Present. 3. ed.
USA/UK: Blackwell Publishing, 2007.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). PNAD 2009 —
Primeiras análises: Investigando a chefia feminina de família. Comunicados do
Ipea, Brasília, n. 65, nov. 2010.
LEWIS, S. “Family Friendly” employment policies: a route to changing
organizational culture or playing about at the margins? Gender, Work and
Organization, v. 4, n. 1, p. 3-23, 1997.
MARSHALL, T. H. Política social. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MIOTO, R. C. T. Família e política social: uma introdução ao debate sobre os
processos de responsabilização das famílias no contexto dos serviços públicos.
In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO
SOCIAL/ENPESS, 12., 2010.
OLIVEIRA, Z. C. A provisão da família: redefinição ou manutenção dos papéis. In:
ARAÚJO, C.; SCALON, C. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro:
FGV, 2005. p. 123-147.
ORLOFF, A. S. Frommaternalism to “employment for all”: state policies to promote
women´s employment across the affluent democracies. In: LEVY, J. (Ed.). The
State after Statism. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 230-68.
PATEMAN, C. The Patriarchal Welfare State. In: PIERSON, C.; CASTLES, Francis
G. (Eds.). The Welfare State reader. London: s/ed., 2006.
PAULA, L. F. R. de. Estado e políticas sociais no Brasil. Rev. de Administração
Pública, Rio de Janeiro, FGV, n. 4, 1992.
PEREIRA, P. A. P. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica
ao pluralismo de bem-estar. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C.
(Orgs.). Política social, família e juventude. São Paulo/Rio de Janeiro: Cortez/Ed.
da UERJ, 2004.
Políticas Sociais, família e proteção
social: um estudo acerca das políticas
familiares em diferentes cidades/países

____________________________ Marlene Bueno


Zola

1. INTRODUÇÃO
As sociedades humanas, no decorrer da história, criaram
formas de proteger seus membros para a produção e reprodução da
espécie. Nas sociedades modernas, a proteção social dos
indivíduos, e da sociedade como um todo, ocorre pela combinação
das funções da família, do trabalho e do Estado, que exercem, entre
si, poderes e produzem efeitos, conforme a dinâmica e as forças
sociais.
As transformações familiares, inseparáveis do massivo
ingresso da mulher no mundo do trabalho e da democratização das
relações sociais, vêm alterando a composição familiar e sua
dinâmica interna, impactando na tão naturalizada capacidade de
proteção social. A interdependência do trabalho e a organização
familiar podem ser bem observadas pela dificuldade da família, em
especial da mulher, em conciliar as atividades familiares com o
trabalho remunerado e manter a base relacional em equilíbrio. Esse
descompasso coloca em evidência, além das desigualdades entre
os gêneros, o forte comprometimento com a produção e reprodução
social, demandando mudanças culturais e a regulação do Estado
para apoiar a proteção social de indivíduos e sociedade.
O objeto de estudo fundamenta-se em reconhecer as inter-
relações e tensões existentes entre a família e o Estado para o
desempenho da proteção social. A abordagem metodológica baseia-
se nos procedimentos bibliográfico, documental e na pesquisa
aplicada. Tem por base analítica literaturas e legislação, brasileira e
internacional, e também dados obtidos de fonte primária, a partir de
um estudo de cooperação internacional realizado entre
cidades/países europeus e latino-americanos sobre as políticas
sociais voltadas ao apoio familiar. Definidas como os conteúdos
concretos da decisão política, foram identificadas a partir de
legislação específica, quando da inserção do tema na agenda
política, e também no momento de sua operacionalização, por meio
de programas, projetos, serviços e benefícios desenvolvidos pelas
cidades/países pesquisados.
O texto é organizado em três eixos. No primeiro, apresenta o
debate teórico sobre proteção social e as inter-relações da família e
políticas públicas, para sua consecução, com diferentes acepções,
que expressam a recursiva presença da família nas expectativas
públicas, em diferentes períodos históricos. O segundo contém
estudos e políticas sociais, implícitas e explícitas, de apoio familiar
desenvolvidas na atualidade, em âmbito internacional. São
classificadas três linhas de convergência das ações públicas em
articulação com a família: apoio para os cuidados de seus membros;
combate à pobreza; e conciliação de trabalho e família. O terceiro
coloca em questão os cuidados familiares na contemporaneidade e
a difícil igualdade de gênero.
Com essa análise, pretende-se contribuir para o
aprofundamento da discussão em torno das políticas sociais e da
família. Destacam-se as transformações sociais, suas tensões e a
necessidade de aprimorar a efetividade das políticas sociais. A
interdependência do trabalho e a organização familiar doméstica, na
atualidade, de intrincada conciliação para proteger os membros
familiares e de difícil igualdade entre os gêneros masculino e
feminino, evidenciam o comprometimento com a produção e
reprodução social, em especial de famílias pobres.
Distingue o avanço dos estudos e a implementação de políticas
de proteção social na atualidade brasileira. Reconhece, todavia, que
as políticas sociais fortalecem, em seu desenho, a concepção
tradicional de família, que atribui à mulher a função de provedora de
cuidados dos membros familiares. Essas políticas atuam para
reduzir a pobreza e têm como prioridade a criança e o adolescente,
mas são insuficientes e incapazes de intervir nas disparidades das
relações de gênero.

2. PROTEÇÃO SOCIAL E INTER-RELAÇÕES DA FAMÍLIA NAS


POLÍTICAS SOCIAIS

A pesquisa sobre o tema família e suas relações com as


políticas sociais para desenvolver a proteção social recebeu impulso
nas literaturas brasileira e internacional, no decorrer da década de
1980. O debate teórico é apresentado em três eixos: a proteção
social desenvolvida pela família em diferentes períodos históricos; a
proteção social expressa por intermédio das políticas públicas; e
suas interligações, quando passa a ter centralidade nas políticas
públicas sociais, em âmbito mundial.

2.1 Família e proteção social: transformações e impacto na


capacidade de proteção de seus membros

A família, histórica e naturalmente, tem se colocado como um


dos eixos de proteção social existentes na sociedade. Ao longo do
tempo, tem sido a forma básica de organização social para a
sobrevivência, produção e reprodução da espécie humana,
compartilhando as funções de cuidados de seus membros, com
dimensões sociais, econômicas e afetivas (Parsons, 1980; Nazzari,
2001; Giddens, 2003; Campos e Mioto, 2003; Singly, 2007;
Venâncio, 2008).
O estudo de Muriel Nazzari (2001) identifica a organização
social, em São Paulo, no período compreendido de 1600 a 1900, e,
focalizado nas famílias que tinham posses, fundamenta as relações
econômicas, de propriedade e de poder existentes, organizadas a
partir dos clãs familiares ou famílias extensas. A estrutura social e a
familiar se confundiam e se fortaleciam, de acordo com sua
representação, na quantidade de parentes, índios e escravos
africanos. Essa forma de organização social e o desempenho de
funções socioeconômicas próprias das famílias patriarcais extensas
garantiam a proteção social e dispensavam a intervenção do
Estado.
A proteção social realizada no meio rural, pela sociabilidade de
famílias extensas ou da comunidade, no período colonial, pode ser
observada também em artigo intitulado Maternidade negada, de
Renato Venâncio (2008). Ao discorrer sobre os efeitos do processo
de urbanização, em contraposição à vida nas áreas rurais, o autor
destaca a sociabilidade das comunidades em acolher crianças, seja
como agregado ou filho de criação, reduzindo os desequilíbrios
sociais, tão acentuados nas cidades.
A revolução industrial e o consequente crescimento da
urbanização promoveram o declínio das famílias extensas
empregadoras e provocou a nuclearização das famílias, de forma
ampla, com o fortalecimento de vínculos de privacidade,
cumplicidade e afetividade decorrentes do isolamento conjugal.
A conexão inter-relacional, configurando a família num sistema
harmônico e facilitador do equilíbrio social, é bem defendida por
Parsons (1980), ao analisar a sociedade americana dos anos 1950,
quando sugere funções sociais aos gêneros que atuam de formas
solidária e complementar. Compete à atuação masculina, a esfera
pública do trabalho e, à feminina, a esfera privada do lar e dos
cuidados com os filhos; esta última, de natureza secundária:
A família “moderna” nuclear é uma unidade solidária, um sistema baseado
no princípio comunalista, sendo “que a responsabilidade principal para este
apoio recai sobre o membro masculino adulto da família nuclear” pai
exemplar e trabalhador. Cabe à mulher casada a responsabilidade pelo
cuidado dos filhos e pelos assuntos internos da família (ibidem, 1980, p. 55).

Essa visão tradicional, que atribui funções discriminadas aos


gêneros, no âmbito da família nuclear, além da necessária
solidariedade interna, encerra a dimensão econômica de
dependência, privada e pública, que é alertada por Marta Campos e
Regina Mioto (2003, p. 169):

[…] o grupo familiar aparece com dupla face, a de uma unidade econômica
com dependentes e “chefes de família” que redistribuem renda e a de
unidade “doadora de cuidados”, também a partir de redistribuição interna.
Nele, a da mulher-mãe se espera que seja a principal provedora de
cuidados para seus membros, mantendo-se economicamente dependente
de seu marido. Assim supõe-se, por um lado, as responsabilidades do
“chefe de família” com o sustento, e por outro, as da mulher com o cuidado.

É dessa forma que, no âmbito privado, se gera a dependência


dos filhos e da mulher ao homem provedor. Também o âmbito
público é calcado na dependência do trabalho familiar desenvolvido
pela mulher. Compete a ela dar a sustentação para a organização
interna da casa, desempenhando os chamados afazeres
domésticos, que incluem os cuidados dos membros familiares, com
a garantia da harmonia e do equilíbrio interno, capaz de produzir o
bem-estar e reproduzir a sociedade vigente.
Anthony Giddens (2003, p. 70) observa o surgimento do valor
do afeto, com a privatização da família. Considera que a unidade
familiar é baseada em “comunicação emocional” ou “intimidade
emocional” e destaca três situações que dão base afetiva à família:
“os relacionamentos sexuais e de amor, os relacionamentos pais-
filhos e também a amizade”. Utiliza-se da ideia de “relacionamento
puro” para análise desses laços de intimidade e dos processos de
confiança existentes na relação, com recompensas mútuas e apoios
decorrentes do relacionamento, em que a franqueza é condição
essencial, seja em relação ao casal e, destes, na relação com os
filhos.
Cabe ressaltar que o relacionamento puro fundamentado na
confiança e no respeito mútuo não comporta o sentimento de
exploração, desigualdade, opressão, pois existem direitos e deveres
mutuamente cultivados e acordados que podem ser abalados e a
família pode se tornar um espaço de conflitos e dificuldades.
A afetividade, conforme a concepção de Spinoza (2009, p. 98),
é reconhecida na célebre e complexa definição de afetos: “As
afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada
ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias
dessas afecções”. A afetividade é compreendida em suas duas
dimensões: pelas emoções alegres e tristes. Quando o corpo é
afetado de modo a aumentar sua potência, ele apresenta alegria;
em seu contrário, a infelicidade.
A base relacional, em suas interações, gera vínculos e tensões,
encerra consensos e dissensos e expõe felicidades e sofrimentos,
quando, diante desses últimos, pode exigir reajustamentos sociais, o
que contribui para entender as novas formas de organização do
núcleo familiar, na atualidade.
A individualização é apontada como importante determinação
para as transformações da família, com início em seu processo de
nuclearização e, depois, em seus avanços na atualidade. Singly
(2007) atribui duas dimensões ao processo atual de individuação da
família, que possibilita aos seus membros o sentimento de
liberdade: a autonomia e a independência. A independência é,
principalmente, analisada em sua perspectiva econômica, em que o
indivíduo, graças aos seus recursos pessoais, depende cada vez
menos dos outros. E a autonomia é o conhecimento do mundo em
que se insere.
Esse processo vai provocando, além da individualização da
família, também, a individualização na família, e cria as condições
para a construção de novas individualidades. A mulher reivindica um
processo pessoal de desenvolvimento, pois a concepção tradicional
representada na família nuclear, em que a realização feminina se dá
a partir dos resultados obtidos pelo marido e filhos, passa a ser
insuficiente para manter a relação conjugal.
Pode-se citar, dentre outros, alguns indicadores que vêm
atestando essa transformação da morfologia das famílias em quase
todas as sociedades na atualidade: o aumento do número de
divórcios ou separações; o aumento de filhos fora do casamento;
casamentos em idade mais tardia; permanência de filhos com mais
idade na casa dos pais; o nascimento de filhos com idade mais
avançada da mulher. Esses fatores, por sua vez, vão configurando
diversas formas de organização familiar, como famílias nucleares,
extensas, reconstituídas depois do divórcio, casais homoafetivos,
unipessoais, monoparentais, estas últimas, em especial, compostas
por mães e seus filhos.
A breve análise histórica sobre família possibilita sustentar que
os tipos observados não se esgotam em seus tempos, ou com o
surgimento de novos modelos, mas convivem vários tipos de família,
que demonstram prevalência de características, em alguns
períodos, configurando-se como fenômenos sociais datados,
determinados pelas ordens política, econômica e social. São
permeados por valores patriarcais, que atravessam os tempos,
sofrem transformações e convivem, na atualidade, com um
processo cada vez mais comum de individualização da família. Mas
ainda é simbolizada, no imaginário coletivo, a partir de visão
funcionalista, como um grupo privilegiado de proteção social, em
dimensões econômica e afetiva.
Um descompasso colocado em evidência, destacadamente
quando são observadas as dificuldades da família, em especial da
mulher, em conciliar o trabalho familiar com o trabalho remunerado e
manter o equilíbrio da base relacional e a proteção social dos
membros familiares.
A alteração do lugar da mulher na sociedade, principalmente
por sua maciça entrada no mercado de trabalho, e o aumento da
instabilidade conjugal, transformam o modelo de família tradicional,
apoiado nas funções de pai, mãe e filhos, e sobrecarregam as
funções familiares, como o cuidado com as crianças e os idosos.
Indicadores que colocam em relevo a necessidade de
ajustes/regulação pública e a desigualdade entre os gêneros.

2.2 O Estado e a proteção social pública: abordagem


conceitual

A origem da concepção de proteção social pública é atribuída,


por vários estudiosos do tema, ao avanço do processo de
industrialização e às contradições entre o capital e o trabalho,
registradas na Europa do século XIX. Considerado o risco dos
trabalhadores e suas famílias enfrentarem doenças, velhice,
desemprego, ou morte, nos primórdios da industrialização, num
mercado de trabalho competitivo e ainda instável, se reconheceu e
evidenciou, na sociedade, o fenômeno do pauperismo, enquanto
questão social. E sobre as respostas à questão social, Behring e
Boschetti (2009, p. 51) apontam as políticas sociais como forma de
proteção social:

As políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são


desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento — em
geral setorizadas e fragmentadas — a expressões multifacetadas da
questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de
exploração do capital sobre o trabalho.

Luciana Jaccoud (2009, p. 58) define proteção social como “um


conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a
provisão de serviços e benefícios sociais visando a enfrentar
situações de risco social ou de privações sociais”.
A proteção social, conforme Carmelita Yazbek (2010, p. 4), é
uma “intervenção do Estado no processo de reprodução e
distribuição da riqueza, para garantir o bem-estar dos cidadãos”.
Aldaíza Sposati (2009, p. 21) ressalta o “caráter
preservacionista” no conceito de proteção social que supõe “tomar a
defesa de algo, impedir sua destruição” e aponta duas dimensões
da proteção social, a “noção de segurança social” e a de “direitos
sociais”. Considera a segurança como uma “exigência antropológica
do indivíduo” e as políticas sociais como ferramentas usadas pelas
sociedades para assegurar a proteção e os direitos sociais de seus
membros.
Na área do Serviço Social, observa-se o uso alternado das
terminologias política pública e política social, ora como sinônimos,
ora como distinção. Potyara Pereira (2008, p. 92) considera a
política social como uma “espécie do gênero política pública”. A
espécie política social é uma classificação ou especialização que se
subordina ou deriva do gênero da política pública. A política pública,
de caráter mais geral, possui outras espécies, como, por exemplo,
política econômica.
Marta Campos (2011, p. 119), de outra forma, também debate o
tema e amplia o conceito quando imprime ação e responsabilidade
às políticas. Situa a política pública na ação executiva dos governos
e a política social trabalha nessa esfera do Estado, com as
estratégias de proteção social. Em suas palavras:

A expressão “políticas públicas” deve ser entendida no sentido das


“estratégias governamentais” relacionadas às várias áreas de sua atuação.
É, portanto, conotativa do investimento dos governos em áreas tanto
econômicas como sociais, de grande efeito na sociedade, incluindo, por ex.,
transportes, produção agrícola, impostos etc. Por “política social”
designamos aquelas estratégias mais diretamente ligadas ao sistema de
proteção social stricto sensu: Seguridade Social com seu tripé: saúde,
previdência social e assistência social […].

Na distinção de política pública, as inter-relações e a


demarcação conceitual têm apontado as diferentes dimensões da
política, e, embora imbricadas, possuem objetos e características
diferentes.
Potyara Pereira (2008, p. 101) distingue dois principais
significados da política, a política clássica e a política pública. A
política clássica é a “base institucional da atividade política”. É
relacionada aos temas clássicos do processo político-eleitoral, como
partido político, parlamento, votação, governabilidade. E política
pública “têm como uma de suas principais funções a concretização
de direitos de cidadania conquistados pela sociedade e amparados
pela lei”.
A literatura inglesa adota três dimensões da política, ao
caracterizar os estudos da policy science. A polity, para designar as
instituições políticas, refere-se ao ordenamento do sistema político e
à estrutura institucional político-administrativa. A politics, para
denominar os processos políticos, a dinâmica do relacionamento
político para a tomada de decisões, frequentemente de caráter
conflituoso, diante dos interesses e objetivos. A policy, para nomear
a política pública, considerada a materialidade das decisões
políticas para implementação dos programas de governo (cf. Frey,
apud Zola, 2011, p. 70).
Essas considerações, acompanhadas da prática desenvolvida,
possibilitam sustentar o conceito de que política pública, da espécie
social, ao equivalente da expressão inglesa policy, é definida como
os conteúdos concretos da decisão política, representadas por um
conjunto de ações ou normas de iniciativa governamental, que
asseguram os direitos sociais. É realizada por meio de programas,
projetos e serviços; regulamentados ou desenvolvidos pelo Poder
Executivo, ou em parceria com setores da sociedade civil;
demandam legislações e orçamento; são direcionadas a alterar uma
realidade, em resposta às demandas, pressões e prioridades da
sociedade.

2.3 Articulação e centralidade da família nas políticas


públicas: diferentes abordagens sobre o lugar atribuído à
família na proteção social

A articulação dos temas família e Estado, para a proteção


social, é analisada por Claude Martin (1995, p. 54) que reconhece o
lugar ocupado pela família nos sistemas de proteção social,
especialmente na atualidade. Atribui a centralidade como
decorrência da crise do mercado e também pelo Estado, que trouxe
de novo “à ribalta mecanismos tradicionais de integração social”.
Considera que a partilha de responsabilidades está na ordem do dia
e, tendo como referência os países europeus, interpreta a presença
da família e, também, de outras formas de sociabilidade e de
entreajudas estimuladas pelas políticas públicas, como forma de
enfrentar a crise econômica dos sistemas de proteção social.
No Brasil, segundo a legislação e os programas sociais
atualmente vigentes, as políticas de proteção social têm como
diretriz a matricialidade familiar e o reconhecimento do direito
fundamental dos indivíduos às convivências familiar e comunitária.
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (Brasil, 2004,
p. 41) considera a família como “espaço privilegiado e insubstituível
de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos
seus membros […]”. A matricialidade significa que a ação pública
para proteção dos indivíduos tem como eixo nuclear a expectativa
de diversas funcionalidades familiares mediadas pelas famílias entre
seus membros e a coletividade. Conforme a política de assistência
social, a família “é o núcleo social básico de acolhida, convívio,
autonomia, sustentabilidade e protagonismo social […] núcleo
afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança ou afinidade,
que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas
em torno de relações de geração e de gênero […] (Brasil, 2005, p.
86).
A promulgação do Plano Nacional de Promoção, Defesa e
Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária (PNCFC), em 2006, é um avanço
empreendido com relação ao tema e sobre a capacidade familiar.
Fundamenta-se em vários autores, que afirmam ser a família o
melhor lugar para a socialização e o desenvolvimento dos filhos.
Sobre a estrutura familiar, o referido plano problematiza a
definição legal de família, com base atual na família nuclear (pais e
filhos) e propõe uma definição sócio-antropológica mais ampliada,
considerando a família como um grupo de pessoas unidas pela
consanguinidade dos vínculos conjugais, pelas relações de aliança
ou parentesco entre os cônjuges e de afinidade. Considera parentes
afins os consanguíneos de um cônjuge ou companheiro (a) em
relação com o outro cônjuge ou companheiro (a).
A inter-relação e o foco sobre a família, pela política social, não
é um fato isolado e nem inovador (Marshall, 1967; Campos e Mioto,
2003; Campos, 2004). A estratégia de intervenção na família, como
unidade e forma de potencializar os efeitos entre seus membros, já
era observada na Lei dos Pobres inglesa, para fins de cálculo
financeiro e organização do serviço, por considerar que na família
estavam as condições que haviam conduzido à pobreza (Marshall,
1967).
Marshall (apud Campos, 2004, p. 4) fundamenta-se nas
instruções inglesas de 1912, consideradas como preventivas e
humanizadoras, quando estabelece um total de auxílio destinado a
famílias com crianças, baseado em um padrão financeiro “com o
qual se pode esperar que a mulher eduque sua família”.
Martin (1995) reconhece também que a tendência da
centralidade na família para a proteção social de seus membros,
transfere atribuições e sobrecarrega, destacadamente a mulher, e
correlaciona com a expressão de Giovanni Sgritta (apud Martin,
1995, p. 62), sobre a situação italiana:

A transferência de responsabilidade social do setor público para as famílias


implica inevitavelmente um aumento do grau de exploração do trabalho
familiar e, consequentemente, das tarefas e dos serviços desempenhados
pelas mulheres no seio da família.

Marta Campos (2003/04) e Regina Mioto (2003, p. 165)


fundamentam o fato de que a família sempre esteve relacionada
com a política social. Diferenciando-se, conforme as autoras, em
três tipos: “A família do provedor masculino, o ‘familismo’ e a família
no Estado de Bem-Estar Social de orientação social-democrata” (p.
165).
A família do provedor masculino é a perspectiva tradicional de
proteção social realizada a partir da família nuclear, centrada no
modelo previdenciário. Tendo por base dois eixos, o seguro social
público para a cobertura dos riscos do curso de vida, doenças,
velhice, morte e, de outro lado, a existência de solidariedade
familiar, baseada nas trocas internas e no apoio da mulher aos
cuidados familiares.
Campos e Mioto (2003) consideram essa modalidade de
cobertura de renda e de direitos sociais, aos dependentes do
homem, como de “direitos derivados” e não de primeira classe. O
crédito da proteção social é atribuído ao mercado e ao Estado,
sendo desconsiderada ou naturalizada a função de provedora de
cuidados desenvolvida pela família, no caso, pela mulher, em suas
funções de reprodução social e de provisão e manutenção do
cotidiano e do próprio grupo familiar.
Bruschini et al. (2008, p. 64), de outra forma, também considera
a família como um grupo social voltado à reprodução da força de
trabalho, a partir das funções de gênero, no qual, os “membros do
sexo feminino se encarregariam da produção de valores de uso na
esfera privada, cabendo aos homens a produção de valores de
troca, por meio da venda de sua força de trabalho no mercado”.
Nessa perspectiva, fundamentada na tradição marxista, a família,
representada pela mulher, assume a função mediadora entre o
mercado de consumo e o trabalho, quando possibilita ao trabalhador
“a reposição de suas forças para o trabalho produtivo”, por meio dos
cuidados e afazeres domésticos. E, num segundo plano, também as
“tarefas da formação da nova geração de trabalhadores para a
sociedade”, com a procriação e reprodução da espécie (Bruschini et
al., 2008, p. 64-65).
O familismo é analisado por Campos e Mioto (2003, p. 170) na
perspectiva da baixa oferta de serviços pelo Estado, tendo, as
famílias, “a responsabilidade principal pelo bem-estar social”.
Acepção decorrente do modelo tradicional da família do provedor
masculino, o foco da ação pública conclama à centralidade da
família, para a proteção de seus membros e, diferentemente de um
sistema “pró-família”, que estabelece cuidados à família para o
exercício do cuidar,1 o familismo se pauta na solidariedade dos
membros. Reitera as funções protetoras femininas e a naturalização
da família como instância responsável pela reprodução social e se
expressa em graduações diferentes, conforme a
desresponsabilização pública, quer pela omissão e, também, pelo
compartilhamento de metas ambiciosas, diante de situações
adversas e de difícil solução, com parcos investimentos.
Nos sistemas de proteção social de orientação social-
democrata, a centralidade da ação pública não é na família e sim
nos direitos dos indivíduos, sendo responsabilidade do Estado a
universalização dos serviços. Possibilita a equidade de
oportunidades e a “oferta de serviços de apoio aos encargos
familiares constitui alternativa clara, favorecendo uma política de
liberação do trabalho feminino para o mercado” (Campos e Mioto,
2003, p. 174). Pauta-se principalmente pela prevenção, evitando o
esgotamento da capacidade familiar.
Característico dos países escandinavos, avançou do modelo do
provedor masculino para o padrão atual de família, com dois
provedores fortalecidos pela provisão ampliada de cuidados à
criança, licenças de trabalho para cada um dos pais, sendo a família
um espaço de pertencimento e não uma instituição para provisão de
deveres.
Chiara Saraceno e Manuela Naldini (2003, p. 338) ampliam o
conceito da ação pública para o fortalecimento das atribuições
familiares quando as qualificam e introduzem a nomenclatura
política familiar. Consideram o conceito de política familiar como
indefinido, mas usado para designar medidas legislativas, subsídios
e serviços destinados a melhorar as condições familiares. Analisam
as diferenças de políticas familiares praticadas na Europa e
consideram que poucos países desenvolvem uma política familiar
“explícita”. Por essa classificação, é entendido “um conjunto de
programas de política social intencionalmente destinado a alcançar
finalidades específicas relacionadas com o bem-estar familiar” e não
contribuições “implícitas”, como política de apoio a rendimentos, que
também contribuem com a família e, conforme classificação anterior,
são voltados ao combate da pobreza.
Destacam a França, a Bélgica e Luxemburgo, como países que
realmente possuem uma “política social explícita” direcionada às
famílias, abalizadas na conjugação de três indicadores de apoio: a
referência ao estímulo demográfico, decorrente do declínio de
fecundidade observada; aos custos para o cuidado dos filhos; e ao
desenvolvimento de ações que possibilitam a paridade entre os
sexos, visando à conciliação de cuidados familiares e trabalho
remunerado (idem, 2003).
Contrariamente, classificam os países do sul da Europa, a
Itália, Grécia, Espanha e Portugal, como fundamentados no modelo
das solidariedades ou obrigações familiares intergeracionais,
condição em que o Estado desenvolve subsidiariamente a proteção
social. Esse modelo baseado na cultura de valores tradicionais
desenvolve a política familiar implícita, apresenta alto grau de
fragmentação de política social e, por longo tempo, não desenvolveu
políticas de conciliação de trabalho e família.
Uma nova expressão da questão social perceptível na
atualidade apresentada por Esping-Andersen (2009) é a mudança
estrutural da família e da sociedade, a partir do lugar ocupado, nela,
pela mulher. A “revolução feminina”, inconclusa e irreversível, é um
fenômeno de várias ramificações sociais, que impacta a sociedade e
família.
Apesar do reconhecimento das transformações familiares que
impactam na sua capacidade de proteção, a política pública
convoca a família e a proclama como parceira privilegiada para o
desempenho da proteção social.

3. POLÍTICAS FAMILIARES: UM ESTUDO EM DIFERENTES


CIDADES/PAÍSES

A cooperação internacional para o desenvolvimento da


pesquisa teve o apoio financeiro da Comunidade Europeia, por
intermédio do programa URBA-AL2 e contou com participantes
governamentais da cidade de Milão, na Itália, e Nantes, na França,
pela Europa. E, pela América Latina, Bellavista, no Peru; e Soriano,
no Uruguai; sob a coordenação da cidade de São Bernardo do
Campo, no Brasil, desenvolvida por intermédio da Fundação
Criança de São Bernardo do Campo. Também teve a parceria da
Associazione Amici dei Bambini (Aibi), organização não
governamental que opera, desde 1986, na Itália, com filiais em 32
países no mundo, dentre eles, o Brasil, a França e o Peru.
O projeto comum fundamentou-se na troca de experiências
sobre as políticas públicas desenvolvidas para a garantia da
convivência familiar e comunitária de crianças, adolescentes e
famílias, em situação de vulnerabilidade social. Os principais
objetivos e produtos foram: Identificar as legislações existentes nas
cidades sócias; Identificar a rede de serviços de proteção social das
cidades sócias; Identificar e realizar o intercâmbio de best practices
em encontros internacionais; Instrumentar os atores envolvidos para
articular a Rede Local de Serviços; Desenvolver um site; editar uma
revista/livro com os resultados (Zola, 2008b, p. 10).
A metodologia de trabalho, além da pesquisa participante
durante toda a consecução do projeto comum, das informações
fornecidas durante a dinâmica em rede virtual com abrangência de
18 meses e presencial, realizada em dois encontros internacionais,
com cinco dias de duração cada, envolvendo diretamente cerca de
400 participantes, em seminários, oficinas e visitas técnicas,
também envolveu o levantamento de dados com questionários.
O questionário para levantar as informações foi dividido em
quatro eixos de informação: a) identificação do município, dados
populacionais e socioeconômicos; b) legislação específica de
proteção especial à criança, ao adolescente e às famílias; c)
políticas públicas de proteção social direcionadas à criança, ao
adolescente e às famílias; d) informações complementares. Os
informantes participantes são autoridades públicas responsáveis
pela formalização dos contratos de parceria entre as cidades/países.
As políticas familiares estudadas, definidas como os conteúdos
concretos da decisão política, são identificadas a partir de legislação
específica, da inserção do tema na agenda política, e também, no
momento de sua operacionalização, por meio de programas,
projetos, serviços e benefícios.
Identificamos na legislação a precedência focalizada na criança
e no adolescente, para a proteção e o combate de violação de
direitos sociais. O princípio da convivência familiar e comunitária é
um direito previsto para as crianças e os adolescentes na legislação
dos cinco países parceiros da América Latina e Europa.
Signatários da Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, ratificada em 1989, possuem leis específicas. Peru e
Uruguai possuem Códigos da Criança e do Adolescente similares ao
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) brasileiro no que
concerne ao direito da convivência familiar e comunitária. A Itália
também possui legislação característica para a promoção dos
direitos da criança e do adolescente e a França adota legislação
específica inserida no Código da Ação Social e da Família.
Entre os países latino-americanos, o Brasil é o pioneiro a ter
legislação fundada na doutrina da proteção integral da criança e do
adolescente, tratados como sujeitos de direitos, pessoas em
desenvolvimento, com prioridade absoluta de tratamento pela
família, sociedade e Estado. O ECA brasileiro foi lançado em 1990;
o peruano é datado do ano de 2000; e o uruguaio, em 2004.
A legislação brasileira e a italiana avançam nos procedimentos
para a operacionalização do direito à convivência familiar e
comunitária como direito da criança. Ambas preveem no texto legal
a absoluta prioridade e o apoio à família de origem e distinguem
outras formas familiares, na impossibilidade justificada da primeira.
A Itália, com a Lei federal 149, intitulada de Direito da Criança a
Uma Família, promulgada em 2001, prevê, de forma pioneira, o
fechamento dos institutos de acolhimento, ao mesmo tempo em que
propõe profunda reforma na configuração da modalidade de
acolhimento institucional, denominada, para esse fim, como do “tipo
familiar”.
Art. 1º A criança tem o direito de ser criada e educada em suas famílias. As
condições de pobreza dos pais ou pai, como o responsável legal, não pode
ser um obstáculo ao exercício do direito de família da criança. Para esse
fim, devem ser realizadas intervenções para o apoio e ajuda à família. […]
As autoridades podem também promover a guarda em comunidades do tipo
familiar, organizar cursos de formação e de aperfeiçoamento para
assistentes sociais e formação e preparação para as famílias e as pessoas
que querem ter filhos adotivos. […].
Art. 2º A criança temporariamente privada do ambiente familiar, apesar das
intervenções de apoio e assistência prestada, é atribuída a uma família, de
preferência com filhos menores, ou uma única pessoa, capaz de prover o
apoio, a educação e as relações afetivas de que ela precisa. […] será
permitida a inclusão da criança em uma comunidade do tipo familiar […]
(Itália, 2001, arts. 1º e 2º; tradução nossa).

A legislação brasileira, com a Política Nacional de Convivência


Familiar e Comunitária (2006) e a Lei de Adoção (2009), reconhece
a convivência familiar de crianças e adolescentes em quatro tipos de
famílias: a de origem, a extensa, a acolhedora, e a substituta, e
estabelece limites de prazo para permanência em unidades públicas
de acolhimento institucional.
A França, por sua vez, dentre os países citados, é a que legisla
de forma mais explícita a garantia da convivência familiar à criança
e ao adolescente, com prioridade estabelecida nas políticas
familiares. Observado desde 1956, com edição do Código da
Família e Bem-Estar Social, e suas várias adequações, oriundas da
dinâmica social, tem ampla atualização na versão de 2007.
Configurado em cinco livros, apresenta detalhadamente os
princípios, tipos de benefícios e serviços, as regulamentações e
formas de monitoramento das políticas públicas de atenção à
família.
Tendo como precedência absoluta a criança e o adolescente,
pois a abordagem legal tem perspectiva preventiva sobre as
dificuldades parentais, a legislação francesa atual identifica, no
Código da Família e Bem-Estar Social, três áreas prioritárias de
proteção: a prevenção perinatal, a prevenção de dificuldades
educativas dos pais, e vários subsídios e serviços de apoio aos
cuidados das crianças em âmbito familiar.
Quando o objeto é a família, contudo, as cidades pesquisadas
demonstram incompletude e também diversidade quanto à
atribuição de seu lugar no sistema de proteção social.
O levantamento das políticas de apoio familiar possibilita
reconhecer a diversificação de serviços, que distinguem as cidades
em grau de cobertura de políticas familiares. Entre as cidades
sócias, detectam-se três modalidades de abordagem da família: o
familismo; as políticas implícitas de apoio familiar; e as políticas
familiares explícitas.
Os estudos teóricos e a análise dos dados empíricos permitem
identificar três eixos de convergência das ações públicas em
articulação com a família e permite classificá-los como três
grupamentos de políticas familiares: apoio à família para os
cuidados de seus membros; combate à pobreza; e conciliação de
trabalho e família.

3.1 Políticas de apoio à família para os cuidados de seus


membros

A disposição do apoio à família para os cuidados da criança e


do adolescente é desmembrada em três eixos, conforme o tipo de
atendimento realizado, tendo como referência, para o agrupamento,
a oferta de políticas sociais básicas educativas e proteções sociais
afiançadas. Para categorizar as formas de proteção social, são
utilizadas as diretrizes da PNAS (Brasil, 2004) brasileira.
Do primeiro eixo, fazem parte programas, projetos, serviços e
benefícios públicos sociais básicos para os cuidados da criança e do
adolescente que possibilitam seu desenvolvimento, processo
educativo e a proteção social básica. Nos segundo e terceiro eixos,
são observadas situações de contingências e riscos sociais, com
demandas de serviços especializados, considerados de proteção
social especial, distinguidos na realidade brasileira como de média e
de alta complexidade.
Para caracterizar a complexidade, conforme a PNAS, são
consideradas, nas famílias, as “dificuldades em cumprir com
funções de proteção básica, socialização e mediação” o que
“fragilizam, também, a identidade do grupo familiar, tornando mais
vulneráveis seus vínculos simbólicos e afetivos”. Nessas situações,
a função da proteção especial é desenvolver “estratégias de
atenção sociofamiliar que visem a reestruturação do grupo familiar e
a elaboração de novas referências morais e afetivas, no sentido de
fortalecê-lo para o exercício de suas funções de proteção básica ao
lado de sua auto-organização e conquista de autonomia” (Brasil,
2004, p. 36-37).
O reconhecimento da distinção entre as complexidades da
proteção social, de clara alusão à parceria entre políticas sociais e
família, tendo como referência a legislação brasileira, está
relacionado à manutenção ou ao rompimento dos vínculos
familiares. A proteção social especializada, de média complexidade,
é decorrente de situações de risco e fragilização de vínculos
familiares. “São considerados serviços de média complexidade
aqueles que oferecem atendimentos às famílias e aos indivíduos
com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário
não foram rompidos” (Brasil, 2004, p. 38). Ao passo que os serviços
de proteção social especial de alta complexidade são os que
demandam proteção integral “para famílias e indivíduos que se
encontram sem referência e/ou, em situação de ameaça,
necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ ou,
comunitário”3 (idem, p. 38).
A seguir, no segundo eixo, estão agrupados os programas,
projetos e serviços públicos especializados, de média complexidade,
para os cuidados da criança e do adolescente e, no terceiro eixo, os
de proteção social especializada de alta complexidade. Neste
último, distingue-se a função restauradora de vínculos familiares e
adota-se o conceito de interrupção, em vez de rompimento de
vínculos familiares. Classifica-se, assim, por considerar que as
relações estão temporariamente abaladas e interrompidas, não
existindo a ruptura das relações, esta, de caráter inconciliável e com
demanda não de políticas de apoio familiar, mas sim de sua
substituição familiar.

3.1.1 Programas, projetos, serviços e benefícios públicos


sociais básicos de apoio à família para os cuidados da
criança e do adolescente

Apesar de nomenclaturas, idades e tipos de serviços com


diversificadas formas de apoio aos cuidados familiares, tendo por
perspectiva prioritária a criança e o adolescente e as situações de
pobreza nas cidades, observam-se duas linhas comuns de apoio
aos cuidados de crianças e adolescentes. A primeira, na forma de
atendimento diurno para crianças, principalmente para a
socialização e proteção da primeira infância e, a segunda, como
espaço de atividades arte-educativas, culturais, esportivas e de
iniciação ao trabalho para os adolescentes.
Distinguimos algumas experiências que diferem do modelo
comum de creches, pré-escolas e centros da criança e juventude
comuns nas várias cidades. A França possui expressiva cobertura
de serviços públicos com a metodologia de Assistentes Maternais,
mulheres cadastradas, treinadas e pagas pelo Estado para oferecer
cuidado diário para duas a três crianças. O subsídio financeiro
repassado diretamente às famílias que cuidam de seus membros é
outra modalidade empregada pela França, que propõe políticas
explícitas de apoio familiar. A Itália também apoia financeiramente
famílias, a partir do terceiro filho.
Soriano possui ação integrada nacionalmente entre os órgãos
públicos das áreas de Educação, Desenvolvimento Social e o
Instituto da Criança e do Adolescente e possui dois programas
voltados ao fortalecimento da escolaridade e à proteção social,
destacadamente da primeira infância. A pré-escola, articulada ao
serviço público, é oferecida em centros de atenção à criança e à
família. Esses últimos são extensivos às gestantes e visam à
melhoria dos cuidados familiares, educativos e nutricionais da
criança. Outro programa de proteção básica, destacado por Soriano,
para os cuidados da criança e do adolescente, é o de professores
na comunidade. Destinado às crianças e aos adolescentes com
dificuldade de aprendizagem e repetência escolar, é também dirigido
a comunidades escolares localizadas em regiões com indicadores
de alta vulnerabilidade social. São atividades no domicílio e nas
escolas, dirigidas às crianças e aos grupos familiares, para
fortalecer os cuidados próprios.
É também observada, na cidade de São Bernardo do Campo, a
oferta de serviços integrados entre as áreas da educação, saúde e
assistência social dirigidos à primeira infância e à família. Apesar do
Programa Bolsa Família acompanhar indicadores de
desenvolvimento nas áreas de Educação, Saúde e Assistência
Social, essa prática experimental, observada em São Bernardo do
Campo, e valorizada na experiência uruguaia, não tem aderência na
realidade brasileira.
A Educação Infantil brasileira, na forma de creche,
diferentemente dos demais países, não é classificada como política
assistencial de apoio à família ou à mulher trabalhadora, mas sim
reconhecida como primeira etapa da Educação Básica. Essa
condição, baseada no direito da criança à política educacional, é
uma forma de possibilitar oportunidades iguais ao desenvolvimento
integral e proporcionar melhor qualidade dos serviços, com a
exigência de gestão, sob a responsabilidade dos órgãos públicos,
da área de Educação municipal. Entretanto, esse enfoque prioriza o
acesso ao direito de crianças com mais idade, por isso, a cobertura
do atendimento em creche é significativamente menor do que a da
pré-escola.
As políticas públicas direcionadas às crianças em faixa etária
superior à Educação Infantil e ao adolescente são desenvolvidas
pelas cidades em espaços de convivência com atividades
educativas, culturais e esportivas. São Bernardo do Campo destaca
serviços voltados à preparação e inserção do adolescente no mundo
do trabalho, em atividades públicas de promoção da cidadania, com
o recebimento de recursos financeiros na forma de bolsa-auxílio e,
Bellavista, o programa de Promotores Escolares, como forma de
fiscalizar e fornecer orientação sobre os direitos da criança e do
adolescente.
As cidades europeias possuem modalidade inovadora e
personalizada de serviços de caráter preventivo, explicitamente
dirigidos às famílias em períodos de necessidades específicas.
Denominadas como políticas de tempo, proporcionam o
atendimento de crianças em períodos diurno, noturno, parcial, em
fins de semana, período de férias, ou outros, conforme interesse da
família. São transformações institucionais articuladas às trajetórias
individualizadas da vida familiar que exigem diversificadas formas
de apoio.

3.1.2 Programas, projetos e serviços de proteção social


especial de média complexidade, para o apoio à família,
em seus cuidados às crianças e aos adolescentes em
situação de risco ou vínculos fragilizados

Os dados possibilitam reconhecer, nas cidades parceiras, a


presença e o sentimento da complexidade de situações de
vulnerabilidade social vivenciadas por crianças e adolescentes e
famílias. Em todas as cidades, são assinalados serviços de
atendimento e combate às piores formas de violação de direitos
humanos, destacadas as situações de rua, abuso e exploração
sexual, trabalho infantil, violência doméstica, ou problemas de saúde
da criança ou do responsável.
Além dos serviços dirigidos ao atendimento ou denúncia das
situações, para a proteção das crianças, são também apontados
apoios familiares. Desdobram-se três principais tendências de
caráter preventivo à separação de crianças de suas famílias:
atendimento público para o fortalecimento de vínculos familiares, na
forma de mediação de conflitos e de caráter psicossocial;
atendimento público para a restauração das capacidades genitoriais
visando à desinstitucionalização de crianças; e tratamentos
especializados na área da Saúde.
A solidariedade da rede comunitária também é ressaltada, nas
localidades parceiras para o apoio familiar. Nas cidades europeias,
na modalidade de mútua ajuda de apoio familiar, é prática
observada em ações preventivas e também para a restauração de
vínculos familiares. Essa forma de solidariedade familiar comum nas
cidades de Nantes e Milão vem sendo apoiada pelo poder público
em sua capacidade de cadastramento e treinamento de famílias
apoiadoras ao convívio e à guarda familiar.

3.1.3 Programas, projetos e serviços de proteção social


especial de alta complexidade, para o apoio à família,
em seus cuidados às crianças e aos adolescentes, com
função de proteção e, também, restauração de
situações em que os vínculos familiares encontram-se
interrompidos

Várias e diversificadas configurações de acolhimento para os


cuidados de crianças e adolescentes são observadas. A modalidade
de acolhimento institucional para a proteção social é reconhecida
nas várias comunidades. Sua forma, desenvolvida isoladamente,
conduz à institucionalização, uma ruptura de vínculos comunitários e
afetivos, entretanto, acoplada a outras políticas de apoio familiar e
preservadas a individualidade e as relações familiares e
comunitárias da criança pode, transitoriamente, desenvolver ações
de proteção e restauração de vínculos.
O reordenamento dos espaços de acolhimento institucional
manifesta-se nas várias cidades, identificado pela redução do
número de abrigados, à exceção de Bellavista, que possui essa
forma de proteção em grandes instituições.
Nas cidades da América Latina, à exceção de São Bernardo do
Campo, onde ocorre, é observada menor oferta de serviços de
acolhimento destinados a atendimentos especializados, como
tratamento aos usuários de drogas; apoio às mães e aos filhos
vítimas de violência doméstica. Nota-se, entretanto, em São
Bernardo do Campo, diferentemente de Soriano, a inexistência do
serviço de acolhimento familiar, uma prática ainda incipiente na
atualidade brasileira, apesar de estimulada na legislação. Bellavista
possui espaços de acolhimento em grandes instituições.
Nas cidades europeias, além de serviços de acolhimento
especializados, é observada diversidade de cuidados alternativos à
proteção familiar. Guiado pelo direito à convivência familiar, cuidado
alternativo é um conceito proposto pela ONU e indicado para
situações em que a criança está privada de cuidados parentais.
Cabe, nessa concepção, a intervenção pública, determinada pelo
melhor interesse da criança, permanecendo o apoio à família de
origem e o retorno às suas funções, quando sanadas as causas
geradoras do afastamento (ibidem, 2009).
Os serviços europeus centrados em famílias acolhedoras com
guarda provisória oferecem várias alternativas ao acolhimento
institucional. E, além da guarda para os cuidados em período
integral, também existem projetos de guarda por algumas horas,
durante a semana, só nos fins de semana, e em horário noturno.
Na Itália, são observadas diversificadas formas de acolhimento
centradas na família ou no modelo familiar. Oferece o acolhimento
do tipo familiar e também domiciliar. Esta última modalidade é
ofertada por casais que podem abrigar em seus domicílios até seis
crianças, denominadas de casa-família ou comunidade familiar.
Apesar da similaridade dos serviços das cidades europeias,
distinguem-se na forma de gestão. Nantes tem a presença estatal
mais forte. O programa de assistentes familiares, composto por
mulheres que prestam o acolhimento familiar de crianças, é
profissionalmente legalizado e financiado pelo Estado. Em Milão, o
Estado desenvolve a função reguladora, cabendo ao voluntariado e
às associações privadas as ações executivas, para as quais
recebem contribuição financeira para as despesas, não se
configurando a profissionalização e o recebimento de salário.
Serviços para o estímulo da autonomia de jovens e famílias são
destacados nas cidades de São Bernardo do Campo e Milão. A
primeira, na forma de moradia subsidiada para jovens e, a segunda,
com apartamentos para jovens e também mães acompanhadas de
crianças.

3.2 Políticas de combate à pobreza

Os dados apresentados não permitem analisar a abrangência


dos programas de combate à pobreza das cidades sócias,
entretanto, possibilitam reconhecer que todos os parceiros realizam
programas de combate à pobreza na forma de transferência de
renda para a população pobre e/ou em extrema pobreza. A França é
pioneira entre os países pesquisados, com oferta desde 1988 e o
Uruguai e Peru, os mais recentes, desde 2005.
Os programas de transferência de renda na América Latina são
focalizados na corresponsabilidade das famílias beneficiárias para
os cuidados de alguns aspectos de saúde e educação de seus
filhos. Em Bellavista, o Programa Juntos é direcionado às famílias
com filhos até 14 anos de idade e as condicionalidades exigidas são
a prestação de cuidados infantis nutricionais até os 3 anos de idade
da criança e a garantia de educação para as crianças acima dessa
idade. A cidade também destaca políticas de combate à fome como
medida de segurança alimentar de populações em extrema pobreza.
O Programa Nacional de Atenção à Emergência Social uruguaio
também é centrado nas condicionalidades familiares de saúde e
educação à criança.
O Programa Brasileiro Bolsa Família (PBF), de ampla cobertura
nacional, é voltado à superação da pobreza em suas três
dimensões, ou seja, transferência direta de renda à família; direitos
sociais de Saúde e Educação, por meio do cumprimento de
condicionalidades; e inclusão e promoção complementares em
outras políticas sociais, com prioridade da criança e do adolescente.
É estabelecida uma forma de parceria entre Estado e família e a
contrapartida familiar é manter as crianças e os adolescentes
frequentando a escola; e cumprir os cuidados básicos em saúde,
como a vacinação para as crianças com idades até 6 anos, e a
agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em fase de
amamentação.
A partilha de responsabilidades estabelecida não distingue
atribuições de gênero. Entretanto, conforme afirma a ministra do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello,
sobre a participação no PBF: “Em 93% dos casos, o recurso é pago
às mulheres, mães de famílias” (Correio Brasiliense, 21/5/2013). A
prevalência feminina do PBF é apontada, em alguns estudos,4 como
função emancipatória das mulheres, não apenas relacionada à
capacidade de melhorar a renda das famílias, mas também por
elevar a autoestima feminina e promover seu empoderamento no
âmbito da família, inclusive, sua imagem diante de seu
companheiro.
Tema que demanda melhor análise, apesar do reconhecido
acesso aos direitos de cidadania, proporcionado à criança, pelo
PBF, não são previstas matrículas para crianças na primeira
infância, como creche, o que possibilitaria maior apoio familiar às
mães que dela necessitam. Na área da saúde, como contrapartida
ou monitoramento, são observadas várias convocações familiares,
como: “Levar a criança para vacinar”; “Levar a criança para pesar”;
“Participar das atividades educativas”,5 demandas de cuidados e
acompanhamento familiar que dificulta, para a mulher-mãe, mesmo
que tenha a oportunidade, de se inserir num trabalho formal de 8
horas diárias.
A pobreza, na Europa, está relacionada prioritariamente à
reestruturação produtiva e às populações migrantes. Em Milão, 13%
da população é imigrada, proveniente de cerca de 90 países. Castel
(2007) a atribui às transformações econômicas e à crise da
sociedade salarial, na atualidade, construída na base do trabalho e
em suas formas de proteção.
Serge Paugam (2003) confere aos programas de transferência
de renda europeus (RMI) o papel de integrar os assistidos, mas
podem também, com sua focalização, contribuir para a construção
de identidades negativas. Segundo o autor, o enfoque do assistido
corresponde a “um status social específico, inferior e desvalorizado,
que marca profundamente a identidade de todos os que vivem essa
experiência”. Quando mais frequente a pobreza e fundada
estruturalmente, a sociedade não discrimina os assistidos (ibidem,
2003, p. 45).
Os programas de transferência de renda são propostas
emergenciais necessárias, possuem respostas imediatas, mas
devem ter mais conexão com outras políticas sociais estruturantes.
Por si, são “essencialmente operações de reposição para preparar
para dias melhores” (Castel, 2007, p. 27).
Todas as cidades sócias também apontam a existência de
programas de inserção produtiva e profissionalização, formas de
intervenção pública em nível local para a inclusão econômica e
adequação às novas exigências do mundo do trabalho.

3.3 Políticas de conciliação de trabalho e família

Os direitos trabalhistas, orientados pelo seguro social, abordam


a proteção social de uma perspectiva fundamentada na relação
tripartite de Estado-Mercado-Trabalhador e têm, na Organização
Internacional do Trabalho (OIT), convenções e recomendações
como forma de instituir padrão e a proteção do trabalho para
melhorar as oportunidades de emprego/renda para mulheres e
homens.
Desde sua origem, a OIT demonstra em seus tratados
preocupar-se com a proteção da maternidade da mulher. Na
atualidade, com consignações revisadas, mantém e amplia esse
direito. É determinando um período mínimo para a licença
remunerada, disciplinando condições para as mães e bebês em
amamentação, prevê proteção à saúde das mulheres empregadas
e, igualmente, a garantia ao emprego, contra a demissão.
Os países/cidades, parceiros do projeto comum, propõem
diferentes períodos de concessão e também de regulação da
remuneração desse direito social. Os mais longos períodos de
licença-maternidade são concedidos pela Itália, Brasil e França. A
legislação de todos os países afiança a estabilidade de emprego.
Na Itália, a duração da licença-maternidade é de cinco meses.
No Brasil, são assegurados de quatro a seis meses, dos quais 180
dias para funcionárias da área pública e de empresas cidadãs, da
área privada. Na França, a concessão é variável, de 16 semanas
para o primeiro filho até 26 semanas, para o terceiro filho.
No Peru e Uruguai, as licenças-maternidade se assemelham,
sendo de 90 dias para o primeiro e 12 semanas, para o segundo.
À exceção da Itália, onde a remuneração da licença-
maternidade corresponde a 80% do valor salarial recebido, nos
demais países, é assegurado o provimento integral do salário.
A licença-paternidade, que possibilita ao trabalhador o direito
de ausentar-se do serviço após o nascimento do filho, também é
bastante diversificada, no período, e de reconhecimento recente. A
mais longa licença, de 14 dias, ocorre na França, com três dias
atribuídos pelo empregador e 11 dias pelo Estado. No caso de
nascimentos múltiplos, a licença é de 18 dias. No Brasil, a
Constituição Federal (CF) de 1988 reconhece cinco dias e, no
Uruguai, é concedido o direito de dois dias aos pais. No Peru e na
Itália, essa modalidade não é destacada e, na legislação italiana,
sua previsão ocorre como alternativa à licença-maternidade, em
caso de morte, adoecimento grave da mãe, ou custódia única do
pai.
A OIT, desde a década de 1960, também incorpora a temática
das responsabilidades familiares e, em 1981, com a Convenção 156
e Recomendação 165, define a igual oportunidade de
responsabilidade de gênero, masculino e feminino, em relação aos
filhos ou outros membros dependentes da família:

Esta Convenção aplica-se a homens e mulheres com responsabilidades


com relação a seus filhos dependentes, quando estas responsabilidades
restringem a possibilidade de se prepararem para uma atividade econômica
e nela ingressar, participar ou progredir; […] aplicar-se-ão também a
homens e mulheres com responsabilidades com relação a outros membros
de sua família imediata que manifestamente precisam de seus cuidados ou
apoio […]. (OIT, 1981, Convenção 156, art.1º).

Em seus artigos 4º e 5º propõe que sejam tomadas as medidas


compatíveis com as possibilidades e responsabilidades nacionais
dos Estados-membros, para que se estabeleçam condições de
conciliação de encargos familiares, ao trabalhador, em igualdade de
oportunidades e de tratamento aos gêneros, com
corresponsabilidade social do empregador e da área governamental,
como se constata:
• dar condições a trabalhadores com encargos de família de
exercer seu direito à livre escolha de emprego e levar em
consideração suas necessidades nos termos e condições
de emprego e de seguridade social;
• levar em consideração, no planejamento comunitário, as
necessidades de trabalhadores com encargos de família e
desenvolver ou promover serviços comunitários, públicos ou
privados, como serviços e meios de assistência à infância e
família. (OIT, 1981, Convenção 156, arts. 4º e 5º).

As tratativas sobre responsabilidade familiar contribuíram para


que as cidades europeias tenham licenças parentais, uma
modalidade inexistente nas cidades da América Latina, parceiras do
projeto comum. Motivadas para a conciliação do trabalho
remunerado com o trabalho de cuidados a familiares,
destacadamente aos filhos, tem em sua concepção a equidade
entre os gêneros, quanto à oportunidade de cuidar dos filhos.
A licença parental foi introduzida em 1974, na Suécia, e hoje é
um direito regulamentado nos vários países europeus, com
aplicabilidade variada, quanto ao tempo de concessão e de
remuneração (Saraceno e Naldini, 2003).
Na França, a licença parental possibilita à mãe, ou ao pai,
afastar-se do trabalho, sem remuneração e com o contrato em
vigência, até os 3 anos da criança, para se dedicar à sua educação.
É um direito opcional para trabalhadores de ambos os sexos, com
pelo menos um ano de tempo de serviço em empresas públicas e
privadas e o afastamento pode ser total ou parcial, período em que
existe um subsídio governamental. Em caso de doença, ou
deficiência grave da criança, a licença parental pode ser prorrogada
por um ano.
Na Itália, também dirigida a ambos os cônjuges, possibilita a
concessão da licença não remunerada de seis meses, que pode ser
gozada até a criança completar 8 anos de idade. Com algumas
pequenas variações de acréscimo do período, de acordo com o
número de filhos e com a monoparentalidade, feminina ou
masculina, se usufruída até os 3 anos da criança, é custeada em
30% do salário, pelos órgãos governamentais, conforme a renda
familiar. A Itália também possui legislação que permite ao pai, ou à
mãe, tirar licença não remunerada por período de tratamento de
saúde dos filhos com idades de até 3 anos; e dos 3 aos 8 anos, é
permitida a concessão de cinco dias ao ano, para os cuidados
parentais.
Atualmente, o avanço das medidas capazes de proporcionar
maior vinculação entre pais e filhos alimenta o debate sobre a
licença parental que, em alguns países, é também interpretada
como licença-paternidade. Para ilustrar sua importância, entre pais
noruegueses, 90% passam pelo menos três meses com seus filhos
recém-nascidos (Chemin, 2011).
Uma transição cultural em curso na Europa, sobre as
responsabilidades de gênero, onde, apesar da prevalência dessa
licença ser ainda um recurso adotado pelas mães, cada vez mais
vem sendo praticada e estimulada pelos pais. Citam-se os
depoimentos do ministro norueguês da Infância, da Igualdade e da
Coesão Social, Audun Lysbakken, e do ministro da Justiça, Knut
Storberget, que tiraram, respectivamente, quatro e três meses de
licença, após o nascimento das filhas:

Eu queria passar tempo com meu bebê e mostrar que o trabalho, por mais
importante que seja, não justifica que se fuja das responsabilidades
familiares […] Estar em casa é preocupar-se ao mesmo tempo com
pequenas e grandes coisas: saber quando o bebê comeu, conhecer seus
hábitos, arrumar suas roupas e estar lá quando ele sorrir pela primeira vez
(Lysbakken, 2011, apud Chemin, 2011, s/d.).
Alguns anos atrás, essas licenças certamente teriam suscitado uma grande
polêmica […] Mas hoje é ao contrário: não tirá-las é que criaria uma
controvérsia! Em vinte anos, as mentalidades mudaram completamente: os
noruegueses acham normal que os pais passem tempo junto de seus filhos.
Se queremos que as mulheres consigam a igualdade no mundo do trabalho,
é necessário que as responsabilidades sejam mais bem divididas em casa.
(Storberget, 2011, apud Chemin, 2011, s/d.).

Cabe destacar que a Convenção 156, Sobre a Igualdade de


Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres
Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família, é um
importante instrumento para o apoio aos cuidados familiares e não
tem o Brasil como signatário. Conforme documento da OIT-Brasil,6
várias tratativas estão sendo realizadas para ratificar a convenção
que demanda acordo entre as forças envolvidas e autorização
legislativa para consecução.
O modelo bismarckiano de proteção social, baseado no
mercado e na legislação trabalhista, foi construtor e conformador da
nuclearização das famílias e da clara distinção da funcionalidade
existente entre seus membros e entre os gêneros. Apesar da
igualdade de acesso da mulher ao mercado de trabalho e do
reconhecimento das transformações familiares, a perspectiva
baseada na solidariedade dos cuidados familiares manifesta-se no
ideário social e nas legislações familistas destinadas a esse fim.
A presença da família nos sistemas de proteção social não é
uma inovação. Analisá-la, hoje, possibilita, entretanto, observar
diferentes concepções que determinam graduações díspares da
intervenção pública e contribuem para a formulação de políticas
públicas sociais mais expressivas das demandas e da possibilidade
de avanços societários.
4. CUIDADOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE E A
DIFÍCIL IGUALDADE DE GÊNERO

Reconhecer as inter-relações entre Estado e família significa


entender o movimento das forças e dos interesses sociais e,
também, as concepções instituídas que fundamentam as políticas
públicas ou a ausência delas.
O estudo evidencia o tema dos cuidados familiares, um assunto
que merece aprofundamento na análise sobre sua natureza e
formas de proteção, entretanto, permite evidenciá-lo por demonstrar
ser uma dificuldade de conciliação da família contemporânea e um
descompasso para a igualdade entre os gêneros, fortalecido pelas
políticas públicas em suas expectativas funcionais sobre a família,
ou insuficiências de regulação pública.
Esping-Andersen (2009) considera a mudança estrutural da
família e da sociedade, a partir do lugar ocupado, nela, pela mulher,
uma nova forma da questão social tornar-se perceptível na
atualidade. Um importante desafio das sociedades deste século é
compreender as mudanças da dinâmica familiar e agir para prevenir
e proteger seus membros, adaptando políticas sociais aos novos
papeis exercidos pelas mulheres.
A interdependência do trabalho e a difícil conciliação da
estrutura doméstica podem ser bem observadas pela dificuldade da
família, em especial da mulher, em conciliar o trabalho familiar com
o trabalho remunerado e manter a base relacional em equilíbrio.
Essa falha coloca em evidência, além de desigualdades entre
os gêneros, o forte comprometimento com a produção e reprodução
social, demandando mudanças culturais e a regulação do Estado
para apoiar a proteção social de indivíduos e sociedade.
Em 1992, as pesquisas oficiais brasileiras, principalmente a
Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD), produzida
pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
passam a captar como um trabalho os afazeres domésticos e, a
partir de 2001, realizam a medição do tempo utilizado, segundo os
respondentes da pesquisa.
A definição de afazeres domésticos, pelo IBGE (1992, apud
Bruschini et al., 2008, p. 70), é dividida em quatro eixos e apreende
as atividades realizadas no âmbito familiar:
• arrumar ou limpar toda ou parte da moradia;
• cozinhar ou preparar alimentos, passar roupa, lavar roupa
ou louça, utilizando ou não aparelhos eletrodomésticos para
executar estas tarefas para si ou para outro(s) morador(es);
• orientar ou dirigir trabalhadores domésticos na execução
das tarefas domésticas;
• cuidar de filhos ou menores moradores.

Essa abrangência conceitual do IBGE, salvo atualizações, não


abarca as atividades relacionais, públicas e privadas, para manter a
rede de solidariedade de parentesco, vizinhança e serviços. Em
trabalho anterior, Bruschini (1990, apud Bruschini et al., 2008, p. 70-
71) já apresenta definição mais ampla de trabalho doméstico.
Agrupando as diversas atividades em cinco blocos, reconhece as
tarefas que são realizadas na moradia, como limpeza e arrumação;
alimentação e higiene pessoal, tanto da casa como de seus
moradores; a prestação de serviços de cuidados físico e psicológico
aos familiares, inclusive acompanhamento de atividades escolares;
administração da unidade doméstica, como pagamento de contas,
compras diversas para a casa e família; e, também, a manutenção
da rede de parentesco e amizades, que resultam em contatos que
favorecem as redes de solidariedade e de convivência. Este último
também é apontado por outros autores como determinante para a
proteção social de famílias e indivíduos.
Saraceno e Naldini (2003) analisam a interdependência entre o
funcionamento do mercado de trabalho e a organização familiar na
sociedade contemporânea a partir de quatro diferentes abordagens,
as quais contribuem para compreender a dinâmica familiar e a
estratificação social de gênero. Consideram o trabalho doméstico
familiar, a divisão do trabalho na família e no sistema de emprego,
tempo de trabalho e tempo da família e a economia da família,7
todos temas articulados que evidenciam a dinâmica familiar e a
difícil conciliação entre trabalho profissional e família,
destacadamente para a mulher, porque implica a combinação
dessas duas dimensões, seja pelo entrosamento como pela
sobreposição.
Ao avaliarem, na realidade europeia, os afazeres familiares,
definem como um trabalho contínuo, meticuloso e diversificado,
necessário à criação, manutenção e reprodução da família.
Geralmente realizado pelas mulheres, em sua qualidade de mães e
esposas, o trabalho familiar, segundo as mesmas autoras, envolve
cinco grandes eixos de ação: os afazeres e a organização da casa;
os cuidados com os membros familiares; o trabalho ligado ao
consumo e à transformação; e a manutenção das bases relacional,
pública e privada. Representam:

[…] todos os trabalhos necessários hoje em dia à reprodução e criação


quotidiana da família e dos indivíduos que compõem: desde o trabalho
doméstico em sentido estrito, ao trabalho de cuidados a familiares não
autossuficientes por razões de idade ou invalidez, ao trabalho de consumo,
que não compreende apenas a compra e eventual transformação de bens,
mas também o trabalho necessário para utilizar adequadamente os serviços
públicos e privados que hoje constituem uma parte importante dos recursos
familiares, até ao trabalho de relação. Este último refere-se à atividade (sic)
de criação e manutenção de relações, de comunicação dentro da família,
entre esta e a rede parental, bem como entre a família ou cada um dos seus
membros e o sistema de serviços (ibidem, 2003, p. 276-7).

Bruschini et al. (2008, p. 80) considera a assimetria sexual


nessas atividades familiares. Destaca o debate que distingue as
atividades ligadas ao “trabalho doméstico”, das atividades de
“cuidado com a família”, sendo estas últimas, na atualidade, mais
compartilhadas, embora não equilibradas entre os gêneros e com
influência de idade e socialização de gênero:

Em geral os maridos se envolvem pouco com as tarefas de limpeza e


arrumação, concentrando-se mais naquelas relacionadas aos(às) filhos(as).
Acompanham o dever de casa, levam e/ou buscam na escola, alimentam,
dão banho e trocam roupas e fraldas, embora esse comportamento não seja
predominante.

Saraceno e Naldini (2003) destacam a substituição do termo


“trabalho doméstico” por “trabalho familiar”, na Itália, como forma de
incluir todas as atividades necessárias à criação e reprodução da
família, de natureza material e também simbólica, na medida em
que, além dos serviços domésticos, o trabalho familiar exige
relações, cuidados e tratamento individualizados.
A divisão do trabalho na família e no sistema de emprego é
analisada por Saraceno e Naldini (2003) a partir da correlação entre
a oferta de trabalho e as necessidades próprias da família,
influenciadas pelas diferentes fases do ciclo de vida de seus
membros e pelos modelos culturais atribuídos aos gêneros feminino
e masculino.
O período de maior “plenitude” da presença masculina no
trabalho é equivalente ao de maior plenitude da mulher no trabalho
familiar, observadas “pelo menos nas fases mais exigentes da
formação da família: existência de filhos pequenos, em idade pré-
escolar e escolar” (Saraceno e Naldini, 2003, p. 263).
Apesar da domesticidade das mulheres não ser notada em
tempo integral, da existência de diferenças entre cidades e países,
observa-se a “trabalhadora de regresso” após o crescimento dos
filhos e a trabalhadora em part-time, reforçando a interdependência
entre funcionamento do mercado e a organização familiar na busca
de combinação do trabalho profissional e do familiar.
Enquanto, para os homens, a forma de participação no
mercado de trabalho depende das demandas e das qualificações
para o desempenho das funções, inclusive valorizando e
considerando mais responsável o homem que constitui família, para
as mulheres, especialmente as casadas, a participação no trabalho
remunerado decorre de estratégias de tempo para a conciliação
com o trabalho familiar, desempenhando trabalhos com tempos
mais curtos e mais próximos da casa (cf. Saraceno e Naldini, 2003).
Sobre o uso do tempo com os afazeres domésticos e sua
classificação por gênero, na realidade brasileira, Bruschini et al.
(2008) apresenta dados comparativos da PNAD-IBGE de 2002 e
2008 em que é mantida a prevalência feminina nos cuidados
familiares e também uma média semanal maior de horas
trabalhadas, comparativamente ao homem.
Conforme dados de 2002, apenas 16,4% do gênero feminino
declarou que não cuidava de afazeres domésticos, contra 83,6% do
masculino. E considerando o número médio de horas semanais
dedicado aos afazeres domésticos, o tempo investido pelas
mulheres representou 27,2 horas e, o dos homens, 10,6 horas, o
que reitera o maior tempo gasto pelas mulheres. Tendo como
referência o número médio de horas produtivas, por gênero, ocorre
inversão, embora mantendo muito próxima a participação feminina
no mercado de trabalho. Os homens, incluídas as horas de
deslocamento, utilizam em média 49 horas semanais com o trabalho
produtivo, contra 43 horas gastas pelas mulheres. Essas
informações confirmam a conciliação de trabalho familiar,
prioritariamente realizado pela mulher (idem, 2008, p. 144).
Entretanto, se considerado o tempo total gasto com o trabalho
produtivo e com o trabalho familiar, observa-se que as mulheres
trabalham em média mais, com 63,6 horas, e os homens, pelo
mesmo período, trabalham 58,6 horas (PNAD, 2002, apud Bruschini
et al., 2008).
Situação que se mantém, segundo as informações de 2008,
pois, ao se conjugarem as informações referentes às horas de
trabalho dedicadas ao trabalho familiar com aquelas destinadas à
jornada exercida no mercado de trabalho produtivo, constata-se
que, apesar da jornada semanal média das mulheres, no mercado
de trabalho, ser inferior à dos homens, 34,8 contra 42,7 horas, ao
computar-se o trabalho realizado na esfera familiar, a jornada média
semanal total das mulheres alcança 57,1 horas e ultrapassa em
quase cinco horas a dos homens, com 52,3 horas.
A pesquisa empírica8 realizada por Bruschini et al. (2008)
reafirma que, nas famílias de baixa renda, as mulheres abrem mão
de oportunidades de desenvolvimento profissional para se dedicar
ao cuidado dos filhos ou recorrem à ajuda, muitas vezes, de amigos
ou família extensa, para essa necessidade, pela insuficiência de
serviços públicos. Na busca de conciliar o tempo entre trabalho
familiar e remunerado, possuem carreiras descontínuas, priorizam
trabalhos de menor qualificação, na sua maioria informais e, nas
famílias com duplo provedor, seu salário é considerado como “ajuda
financeira” ao domicílio (ibidem, 2008, p. 93).
O trabalho familiar possibilita identificar uma dimensão
econômica não contabilizada e um sistema de gênero na família,
essencial à sua manutenção e reprodução, compartilhado
desigualmente entre seus membros. Decorre daí que, embora tenha
importância essencial para a sociedade contemporânea, o trabalho
familiar, diferentemente da produção, que gera bens ou lucros, se
constitui de tarefas ligadas à reprodução social, consumidas
individualmente, sem rendimentos ou valor.
Expectativa naturalizada no âmbito da família e
desempenhada, nela, pela mulher, no que se refere aos cuidados
dos membros familiares, é também fortalecida, como já citado, nos
programas de enfrentamento à pobreza, com destaque as
condicionalidades do PBF brasileiro. Considera-se que a acepção
de gênero, tendo a perspectiva de cultura tradicional, é reproduzida
nessa perspectiva, quando é atribuída à mulher a função de
cuidadora e parceira da política pública, que, em reconhecimento,
provê transferência econômica, para o enfrentamento da fome e
pobreza.
A premissa da capacidade e da solidariedade familiar também
pode ser colocada em questão, com o aumento do acesso da
mulher no mundo do trabalho ou com o crescente aumento da
monoparentalidade feminina, ou seja, a mulher torna-se responsável
pelos cuidados e pelo provimento familiar. Apesar de avanços nas
políticas de proteção social brasileira, para o enfrentamento da
pobreza, não se pode, entretanto, repassar para a família, e nessa a
mulher, responsabilidades das quais não consigam assumir, ou
mesmo sobrecarregá-la e gerar relações de dependência pública,
impeditivas de acesso a outras proteções, geradoras de autonomia,
como a educação e o trabalho. Condições que provocam e
fortalecem a diferença entre os gêneros feminino e masculino.
Ter a crítica sobre as tensões e contradições contidas nas
expectativas e práticas que naturalizam os tipos de família e nelas,
as funções de gênero, pode contribuir para a melhor adequação das
intervenções públicas relacionadas à proteção e reprodução social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da articulação entre família e Estado para o


desempenho da proteção social instigou esta análise e possibilitou
constatações de natureza teórica e ético-política, que contribuem
dentro do campo das políticas sociais.
Diferentemente de um tema circunscrito à esfera privada, a
família, como forma de organização básica das sociedades, para a
sobrevivência, produção e reprodução da espécie humana, sofre
determinações de ordens econômica, política e cultural, que
impactam a esfera do cotidiano e da totalidade e provocam
transformações na dinâmica interna e em suas configurações.
Apesar do reconhecimento das transformações atuais no
âmbito familiar, as respostas institucionais vêm se mostrando
insuficientes para o reequilíbrio societário. O modelo tradicional e
naturalizado de proteção familiar ainda é mantido nas
representações sociais e nas expectativas que norteiam as políticas
sociais.
A pesquisa sobre as políticas públicas nas cidades sócias do
projeto comum, apesar dos diferentes contextos, permitiu
reconhecer as tendências e possibilidades de políticas para apoio
aos cuidados das crianças, ao combate da pobreza e à conciliação
do trabalho e família, condições combinadas que permitem constituir
referências para o êxito das capacidades familiares e das
intervenções públicas.
A análise empírica das expressões da questão social que
impactam as famílias com demanda de proteção social possibilita
identificar três dimensões de natureza estrutural que demandam
ação pública: problemas econômicos; transformações familiares; e
ausência ou inadequação de intervenções públicas.
As transformações familiares, com a crescente inserção
feminina no mundo produtivo; a redução do tempo doméstico, com
mudanças nas composições familiares; o aumento de famílias
monoparentais; dentre outras situações, conflitam a base afetivo-
relacional e a naturalizada capacidade funcional das famílias para
os cuidados de seus membros.
As políticas públicas, por sua vez, necessárias ao equilíbrio e à
proteção social, nem sempre são adequadas ou suficientes para
intervir nas diversificadas manifestações da questão social.
A análise dos dados coletados possibilita reconhecer, nas
cidades sócias, a precedência de políticas públicas sociais,
enfocadas na criança e no adolescente, para a proteção e o
combate de violações de direitos sociais; todavia, demonstram
incompletude e lugares diferentes quando a análise tem por objeto a
família.
A família é reconhecida em todas as cidades parceiras como
importante instância provedora de proteção social e considerada
como estratégica para o êxito das políticas públicas. No entanto, as
condições de intervenção pública distinguem-se entre os parceiros e
podem ser observadas três modalidades de abordagens
direcionadas à família: o familismo; a existência de políticas
implícitas de apoio familiar; e políticas familiares explícitas.
Observa-se, ao analisar os serviços e benefícios públicos
existentes nas cidades, a determinação da regulação social tardia
na América Latina, decorrente do recente processo de
democratização e com sistemas de proteção social inconclusos.
Nota-se, também, a falta de apreensão de algumas significações, de
ordem estrutural, que impactam a organização social.
As políticas sociais públicas de conciliação do trabalho e
família, tendo a licença parental em sua dianteira, são observadas
apenas nas cidades europeias. Podem representar, juntamente com
as políticas de conciliação de tempo para cuidados parentais,
ajustes de horários de serviços públicos, importante iniciativa de
apoio aos cuidados parentais e de equidade entre os gêneros,
medidas facilitadoras de mais equilíbrio nas tensões internas da
família.
A inserção na agenda política é a primeira etapa para o início
da implementação de políticas públicas e ocorre quando um tema
ganha visibilidade e a sociedade assume que deve fazer algo sobre
ele. Acreditamos que a assinatura da Convenção 156 da OIT, pelo
Brasil, pode-se configurar em importante instrumento para a
conciliação entre trabalho e família. Apesar de dirigida a famílias
trabalhadoras, possibilita a mudança cultural, ao inserir políticas
para igualdade de oportunidades entre os gêneros e o apoio às
responsabilidades familiares.
Os cuidados familiares não podem se caracterizar apenas
como estratégias familiares, basicamente femininas, circunscritas à
vida privada. As organizações familiares, na atualidade, foram
afetadas pelo movimento societário e, por sua vez, também
retornam à sociedade na forma de expressões da questão social.
Caracterizam-se como fenômenos sociológicos e exigem a
integração social e a regulação pública, como forma de proteção
social, prevenção de violências diversas e melhor desenvolvimento
societário. Sua ausência é impeditiva do melhor desenvolvimento
infantojuvenil e de conflitos na dinâmica interna familiar
Na realidade brasileira, este estudo é um incentivo à reflexão e
à ação em várias áreas de intervenção das políticas sociais, como a
Assistência Social, Educação, Saúde e Trabalho. Articula-se com a
proposta de construção do projeto ético-político do Serviço Social,
em um cenário em que são reconhecidas as oportunidades para
avanços de direitos de cidadania, na perspectiva da existência de
uma sociedade mais justa e equitativa, social e economicamente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal n. 12.435, de 6 de julho de 2011. Altera a Lei n. 8.742, de 7


de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social.
Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.
2011.
______. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, aprovada pelo
CNAS. Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009. Publicada no Diário Oficial
da União, de 25 de novembro de 2009.
______. Lei federal n. 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção.
Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.
2009b.
______. Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e
Adolescentes à convivência familiar e comunitária. Brasília: MDS, 2006.
______. Suas: configurando os eixos de mudança. Capacita Suas, MDS/ IEE-
PUC-SP, Brasília, v. 1, 2008.
______. Política Nacional de Assistência Social — PNAS/2004 & Norma
operacional básica. NOB/Suas. Brasília: MDS, 2005.
BRUSCHINI, Maria Cristina et al. Articulação trabalho e família: famílias urbanas
de baixa renda e políticas de apoio às trabalhadoras. São Paulo: FCC/DPE, 2008.
CAMPOS, Marta. Políticas públicas e exigências éticas. In: BAPTISTA, SANCHEZ
(Orgs.). Teologia e sociedade: relações, dimensões e valores éticos. São Paulo:
Paulinas, 2011. p. 119-130.
______; MIOTO, Regina. Política de assistência social e a posição da família na
política social brasileira. Ser Social, revista do Programa de Pós-graduação em
Política Social do Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília,
Brasília, n. 12, p. 165-190, jan./jul. 2003.
______. Família e proteção social: alcances e limites. In: ZOLA, Marlene (Org.).
Cooperação internacional para proteção social de crianças e adolescentes: o
direito à convivência familiar e comunitária. São Bernardo do Campo: Fundação
Criança de São Bernardo do Campo, 2008. p. 23-33.
______. Família e política social: caso brasileiro e estudo particular de São Paulo.
A questão social no novo milênio. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO
DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 8., Coimbra, 16, 17, 18 de setembro de 2004. Disponível
em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MartaCampos.pdf>. Acesso em: 30 jun.
2013.
CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: BELFIORE-WANDERLEY,
Mariangela; BÓGUS, Lucia; YAZBEK, Maria Carmelita. Desigualdade e a questão
social. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Educ, 2007. p. 17-50.
CHEMIN, Anne. Na Noruega, pai pode ficar com recém-nascido pelos três
primeiros meses. Le Monde, 28 jun. 2011.
ESPING-ANDERSEN, Gosta. Três lições sobre o Estado-providência. Lisboa:
Campo da Comunicação, 2009.
GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Cortez, 2011.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 2003.
ITÁLIA. Legge n. 149/2001 — Diritto del minore a una famiglia. Publicado no
Diário Oficial n. 96, 26 abr. 2001. Roma: Diário Oficial da República, 2001.
JACCOUD, Luciana. Proteção social no Brasil: debates e desafios. In: BRASIL.
Concepção e gestão da proteção social não contributiva no Brasil. Brasília:
MDS/Unesco, 2009. p. 57-86.
MARSHALL, T. H. Política social. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MARTIN, Claude. Os limites da protecção da família. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, Centro de Estudos Sociais, n. 42, p. 53-72, maio 1995.
MIOTO, Regina Célia. Trabalho com famílias: um desafio para os assistentes
sociais. Revista Virtual Textos & Contextos, n. 3, dez. 2004.
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança
social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
OIT. Convenção (156) sobre a igualdade de oportunidades e de tratamento para
homens e mulheres trabalhadores: trabalhadores com encargos de família.
Genebra, 3 jun. 1981. Disponível em <http://www.cutpr.org.br/conv_156.pdf>.
Acesso em: 20 jan. 2013.
OIT-BRASIL. A abordagem da OIT sobre a promoção da igualdade de
oportunidades e tratamento no mundo do trabalho. Texto, Brasília, n. 139, 8 mar.
2010. Disponível em:
<www.oitbrasil.org.br/topic/gender/doc/08_marco_2010_texto_139pdf>. Acesso
em: 15 mar. 2013.
PARSONS, Talcott. La familia en la sociedad urbana industrial de los Estados
Unidos, extraido de “The American family: its relations to personality and the social
structure”. In: ANDERSON, Michael. Sociologia de la familia. Mexico: Fondo de
Cultura Económica, 1980. p. 43-60.
PAUGAM, Serge. A desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São
Paulo: Educ/Cortez, 2003.
PEREIRA, Potyara. Discussões conceituais sobre política social como política
pública e direito de cidadania. In: BOSCHETTI et al. (Orgs.). Política social no
capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. p. 87-107.
SARACENO, C.; NALDINI, M. Sociologia da família. 2. ed. Lisboa: Estampa,
2003.
SINGLY, François. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: FGV,
2007.
SPINOZA, Benedictus [1632-1677]. Ética/Spinoza. Tradução de Tomaz Tadeu.
Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
SPOSATI, Aldaíza. Modelo brasileiro de proteção social não contributiva:
concepções fundantes. In: BRASIL. Concepção e gestão da proteção social não
contributiva no Brasil. Brasília: MDS/Unesco, 2009. p. 13-55.
VENÂNCIO, Renato. Maternidade negada. DEL PRIORI, Mary (Org.). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 189-222.
YAZBEK, Maria Carmelita. Estado e políticas sociais. Praia Vermelha: estudos de
política e teoria social, Rio de Janeiro, UFRJ, n. 18, p. 72-95, 2008. Disponível
em: <http://www.ess.ufrj.br>. Acesso em: set. 2013.
______. Sistema de proteção social brasileiro: modelo, dilemas e desafios.
SEMINÁRIO INTERNACIONAL DO BPC. Brasília, MDS, 2010. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br>. Acesso em: 13 dez. 2012.
ZOLA, Marlene Bueno (Org.). Cooperação internacional para proteção social de
crianças e adolescentes: o direito à convivência familiar e comunitária. São
Bernardo do Campo, São Paulo: Fundação Criança de São Bernardo do Campo,
2008.
______. Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes — a
questão das políticas públicas/sociais em relação à família: estudo acerca de suas
possibilidades em diferentes cidades. Tese (Doutorado em Serviço Social) —
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2011.
Programas de transferências
condicionadas, famílias e gênero:
aproximações a alguns dilemas e
desencontros*

__________________________ Mónica De Martino

1. INTRODUÇÃO
Este capítulo pretende aproximar o leitor dos debates em torno
dos Programas de Transferências Condicionadas de Renda (PTCR)
na América Latina, a partir de duas perspectivas que pouco têm sido
privilegiadas. A saber: suas relações materiais e simbólicas com a
família e as construções de gênero ou generizantes que esses
programas têm para além dos elementos discursivos.
Assumimos três resultados primários obtidos a partir da
literatura consultada. Já faz algumas décadas que têm sido
registradas em nosso continente, em termos de família, mudanças
objetivas em suas estruturas e dinâmicas. O que tem impulsionado,
em primeiro lugar no mundo acadêmico, o apelo pelo plural do
substantivo famílias em vez de família. Também se percebe que
desde os anos 1980, e particularmente desde a década de 1990, os
PTCR desempenham um papel central nas ressignificadas matrizes
de proteção social. Tais programas colocam na família uma
responsabilidade fundamental: a ruptura da reprodução
intergeracional da pobreza. Mas, em linhas hipotéticas, indicamos
que tais processos têm se dado de forma independente. Ou seja, o
discurso político e acadêmico sobre a pluralidade de arranjos
familiares e a necessidade de relações mais igualitárias de gênero
perdem a oportunidade de materializar-se nesta nova geração de
políticas sociais.
Como já foi dito, as famílias são reconhecidas no discurso
político como uma entidade privilegiada para quebrar o ciclo da
pobreza. Não só dos vários PTCR desenvolvidos na América Latina
e no Caribe, mas também desde instâncias internacionais como as
agências multilaterais de crédito. As famílias se tornam um
segmento privilegiado de intervenção, transversalizadas, nas
palavras de Foucault (1986), por outras dimensões, tais como
território, comunidade, etnia, raça etc. Também em âmbitos
acadêmicos, como na Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe — Cepal — e no Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento — PNUD — têm sido criados espaços de trabalho
e reflexão sobre esse assunto, a partir do quais surgiram
problematizações, análises comparadas, sugestões e
recomendações. Os estudos sobre família e gênero foram
consolidando-se, seja no âmbito político ou acadêmico, como um
campo de conhecimento em que se realizam diversas leituras que
contribuem para problematizar a ideia de família e reconhecê-la
como uma entidade social complexa, atravessada por múltiplas
mediações. Tais estudos e sua vinculação com as esferas políticas
reforçam a ideia de que a família sempre tem sido pensada em
termos de intervenção sociopolítica (Cichelli e Cichelli, 1999).
Portanto, pode-se dizer, numa primeira aproximação, que não há
nada de novo sob o sol nestes tempos de matrizes de
transformação de proteção social. Assim como no século XIX, a
família é concebida, recuperada e redefinida por causa de diversos
tipos de intervenção sociopolítica (Cichelli e Cichelli, 1999).

Í
2. NOVOS OLHARES SOBRE AS FAMÍLIAS. AS
ADEQUAÇÕES ACADÊMICAS

Durante os anos 1980 e 1990, primeiro na academia e depois


no nível político, supera-se o conceito de família e se impõe o plural:
famílias. Tal mudança não é um mero jogo de palavras, expressa o
processo que ajudou a superar a imagem naturalizada e tradicional
da família, composta por pai, mãe e filhos vivendo sob o mesmo
teto, e passa a reconhecer outras formas familiares consideradas
até então como fora do padrão ou disfuncionais (Beck Gernsheim,
2003).
A pluralidade de arranjos familiares resume, basicamente, dois
processos, um relacionado às mudanças sociodemográficas e outro
associado ao aumento da participação das mulheres no mercado de
trabalho. A desnaturalização da ideia de família única tornou visíveis
outros modelos de organização familiar e também permitiu
questionar o tipo de organização patriarcal no qual o chefe de
família tem o controle e decisão sobre os outros membros (Jelin,
2000). A família, por sua vez, deixou de ser vista a priori como um
lugar de felicidade (Mioto, 2001) e, também, passou a ser vista
como lugar de conflitos, tensões e abusos. Especialmente quando o
processo de individuação e autonomia pessoal das mulheres e dos
jovens minou o poder patriarcal e colocou a família como uma
expressão marcante de escolhas individuais (Jelin, 2000, 2012).
Mas esses processos podem ser interpretados de forma
diferente. Alguns autores analisam a diversidade de arranjos
familiares como expressão de processos culturais ligados à
individuação e à construção de biografias mais flexíveis e
autônomas, tornando o sistema mais equitativo nas relações de
gênero. O aumento das taxas de divórcio, o atraso na idade de
casamento e no nascimento do primeiro filho, a redução das taxas
de fertilidade nos segmentos mais abastados da sociedade,
implicam na família como espaço de encontro e negociação de
projetos de vidas independentes, em detrimento da associação
mulher/maternidade/cuidado do lar (Cabella, Peri e Street, 2005;
Arraigada, 2002).
Mas, Ariza e de Oliveira (2007) indicam o caráter seletivo e
heterogêneo desses processos sociais, tanto em termos de classes
sociais como países e regiões. Todos os autores citados coincidem
em reconhecer que os aumentos dos níveis educacionais, das taxas
de emprego feminino, da idade do casamento, do controle de
natalidade e do declínio das taxas de fecundidade estão associados
a grupos sociais com rendimentos mais elevados e com tendência a
redefinição das relações de gênero. Enquanto que

o aumento da pobreza e vulnerabilidade social reforçam formas de vida


familiar características da desigualdade de gênero e as fortes e persistentes
desigualdades sociais de classe e gênero, por sua vez contribuem para
compensar parcialmente os efeitos positivos das mudanças sócio
demográficas no bem-estar das famílias (Ariza e Oliveira, 2007, p. 37).

De acordo com a literatura sobre a família, a redefinição das


responsabilidades familiares é mais difícil para os pobres, assim
como encontrar pontos de contato entre os interesses individuais e
coletivos. Parece que negociar padrões de distribuição de tarefas é
mais difícil nas famílias onde os recursos são escassos.
De outra perspectiva, na América Latina, o discurso do modelo
de desenvolvimento em vigor durante os anos 1960 e 1970 deu
grande importância para o fortalecimento da família, entendida,
explícita ou implicitamente, como ajustada a um modelo único e
desejável. Porém, paralelamente, foi omitida ou subestimada na
concepção e avaliação de políticas sociais (Arriagada, 2002). Mas a
discussão sobre o conceito de família entrou em evidência e se
fortaleceu após a declaração de 1994 como o Ano Internacional da
Família e a realização da Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, no mesmo ano.
No Relatório de Cairo se reconheceu que as ideias tradicionais
sobre funções domésticas e dos progenitores já não refletiam a
realidade e as aspirações atuais, pois cada vez mais as mulheres
ocupavam espaços no mundo público. Na mesma linha, foram
reconhecidos os direitos sexuais e reprodutivos, fato reforçado na
Quarta Conferência Internacional sobre a Mulher, em Pequim, em
1995.
Já no novo século, a Cepal reconhecia que o modelo de família tradicional,
composta por pai provedor, mãe dona de casa e crianças, não correspondia
à estrutura predominante das famílias na América Latina. Na ocasião
reconhecia que há mais de uma década, os lares e as famílias latino-
americanas urbanas vinham mostrando uma crescente heterogeneidade,
entre outras coisas, devido a que os países da região partilham muitas das
tendências globais que afetam a evolução das famílias […] em um contexto
de persistentes desigualdades e mecanismos de exclusão social e
estratificação social (Arriagada, 2007, p. 20).

Ao mesmo tempo, tornou-se prioritário considerar a família


como capital social, como um recurso estratégico de grande valor e
se tornou visível em países onde a cobertura das políticas sociais
universais é deficiente e as famílias são a única forma de proteção
social frente a circunstâncias difíceis e assumem os seus membros
dependentes (Arriagada, 2007; Martínez Franzoni, 2008a, 2008b).
Também no plano regional, devemos notar a fragmentação
institucional quando se trata de organismos específicos destinados à
formulação e consolidação de políticas públicas para as famílias.
Isso proporcionou a convivência de instituições mais tradicionais
com outras mais propensas a incorporar as recomendações e
debates atuais. Assim, coexistem organizações encarregadas da
problemática associadas a gênero ou à condição feminina e à
família e organizações dedicadas à infância que também intervêm
no campo da família etc. (Arriagada, 2006).
Os PTCR que têm a família como destinatário privilegiado
devem ser vistos como um campo de disputas ideológicas, onde
vários atores contrapõem concepções acerca da sociedade e da
família e sua relação mútua (Flaquer, 2004). Mas é interessante
notar que, tanto em círculos acadêmicos como de especialistas em
políticas públicas, a partir de finais dos anos 1980, começou a se
discutir a necessidade de considerar a heterogeneidade das famílias
não só em termos de estrutura, mas, também, da sua dinâmica em
relação ao ciclo de vida da família, da composição entre as
gerações, entre outras. Tudo isso levou a revisar visões da família
que se haviam tornado uma verdadeira ideologia (família parsoniana
ou nuclear como modelo normativo), bem como a alocação de
papéis quase fixados de acordo com o sexo. Por outro lado, tornou-
se relevante a discussão sobre a provisão de bem-estar a partir da
relação entre o Estado, a família, o mercado e a sociedade,
expressa no debate sobre modelos familiarizadores ou
desfamiliarizados (Esping-Andersen, 1993), debate ao qual
retornaremos no próximo item.

3. A REVISÃO DA RELAÇÃO FAMÍLIA-POLÍTICA

Na obra clássica de Esping-Andersen (1993), a tríade


conceitual (mercado, família e Estado) é apresentada como a base
para a definição e compreensão dos regimes de seguridade social.
Do ponto de vista de Sunkel (2005, 2007), até final dos anos 1980,
os regimes de bem-estar na América Latina eram familistas, pois
combinavam proteção social contributiva com a figura do homem
provedor e davam centralidade à família e às mulheres como
responsáveis pelo bem-estar da família. O autor também assinala
que os anos 1980 e 1990 implicaram mudanças na engenharia do
padrão de proteção social e no formato das políticas públicas, mas
se manteve a orientação familista enquanto deslocamento para as
famílias de responsabilidades que anteriormente eram assumidas
pelo Estado, o que temos chamado de neofamilismo (De Martino,
2001). Na atualidade, de acordo com Sunkel (2007), existe uma
elevada sensibilidade axiológica pela temática família, mas é um
campo não definido claramente. Se bem a diversidade familiar foi
aceita pela academia e pelos especialistas, não parece haver
hegemonizado as apresentações predominantes nas instituições e
agentes do Estado.
Se essas contribuições de Esping-Andersen já são bem
conhecidas, também o são as críticas recebidas por não ter
incorporado a perspectiva de gênero. Lewis (1992), por exemplo,
sugere a necessidade de incorporar a relação entre trabalho
remunerado e não remunerado e a análise das contribuições que
este prevê na produção de bem-estar. Propôs uma tipologia
diferente dos regimes de bem-estar. Ou seja, regimes que se
baseiam em um modelo com o homem como provedor forte, como
nos casos da Irlanda e da Grã-Bretanha, com uma participação
marginal das mulheres no mercado de trabalho, escassos serviços
de cuidados infantis e também direitos associados à maternidade.
Outra categoria, denominada de modelo do homem provedor forte,
no qual se encontraria a França, onde a participação das mulheres
na população economicamente ativa — PEA — é um pouco mais
intensa bem como o reconhecimento dos seus direitos, tanto de
mães como de trabalhadoras. Suécia, por último, é um exemplo do
modelo familiar do homem provedor fraco, onde o típico seria uma
família com duplo emprego, com serviços de acolhimento (creches),
licenças amplas por paternidade/maternidade e impostos de renda
individuais.
Além disso, se pode entender a desfamiliarização de acordo
com o grau com que os adultos podem atingir um padrão de vida
aceitável, com independência nas suas relações familiares, seja
através do trabalho remunerado ou da provisão da seguridade social
(Esquivel; Faur e Jelin, 2012).
Finalmente, Saraceno (1995) indica que o familismo não
necessariamente esteja baseado exclusiva ou prioritariamente no
arrimo masculino, mas numa família percebida como uma unidade
de rendas. Ela argumenta que o que é dado como certo não é tanto
a figura do homem provedor, mas os laços de solidariedade familiar
e a responsabilidade prioritária que as mulheres têm na prestação
dos cuidados e do bem-estar. Tudo isso mostra uma concepção
tradicional de família, livre de conflitos e lutas pelo poder, ignorando
as relações de poder estabelecidas ligadas ao volume e à estrutura
de capital detido pelos membros que compõem a família (Bourdieu,
1997).
Esping-Andersen (2000), ante tais críticas, revisou seu trabalho
e, junto a Saraceno, sustenta que uma dimensão essencial da
análise é a medida na qual as famílias absorvem os riscos sociais,
portanto ambos falam de graus de familiarismo e de
desfamiliarização. No geral, Esping-Andersen acredita que regime
de bem-estar familiarista é aquele em que a política responsabiliza
em maior grau a família pelo bem-estar dos seus membros. E um
regime é desfamiliarizado quando tenta aliviar o fardo que as
famílias têm na provisão do bem-estar. O familismo corresponde a
uma política familiar pouco desenvolvida, associada a sistemas de
proteção social baseadas no homem provedor e na centralidade da
família como provedora de cuidados e de bem-estar. A
desfamiliarização, pelo contrário, é expressa em políticas que
reduzem a dependência dos membros em relação à família e que
maximizam os recursos econômicos dos indivíduos
independentemente das obrigações familiares ou conjugais (Esping-
Andersen, 2000). No primeiro caso, a produção de bem-estar está
associada à família, às mulheres e às redes de parentesco. No
segundo caso, é colocada no mercado e nas instituições públicas a
maior proporção de responsabilidades na produção de bem-estar.
Mas essa distinção é questionada por Martínez Franzoni (2008)
em termos de sua adequação para América Latina e as diferenças
existentes em relação à Europa e América do Norte. De acordo com
aquele autor, a noção de familiarização é mais ampla na América
Latina: não só se espera que as famílias assumam a
responsabilidade de cuidar das famílias, mas que também se
transformem em unidades produtivas e redes de proteção. Nessa
linha, Esquivel, Faur e Jelin (2012) questionam se na América Latina
seria apropriado falar de um sistema de cuidados de saúde ou de
um diamante de cuidados (família, Estado, mercado e comunidade)
ou se deveríamos reconhecer uma variedade de diamantes
definidos de acordo com os estratos sociais, que também são
produzidos e reproduzidos através da oferta segmentada de
políticas de diversa qualidade, de acordo com a classe social.

3.1 Programas de transferência condicionada de renda

No âmbito da implementação das políticas neoliberais


desenvolvidas durante os anos 1980 e 1990 na América Latina, as
políticas sociais sofreram uma transformação substantiva. Nas
propostas que foram criadas em vários domínios, três termos se
tornaram recorrentes: pobreza, família e risco. Vinculados esses
termos há três aspectos-chave das novas intervenções
tecnopolíticas sobre a questão social: (i) focalização1 das
intervenções estatais nos pobres, na sua maioria urbanos; (ii)
redefinição do papel da família nas novas formas de gestão dos
problemas sociais; e (iii) incorporação de risco como critério pra a
categorização e ponderação das questões e grupos populacionais.
Estas medidas foram baseadas no pressuposto de que a
recuperação econômica e a distribuição primária de renda
resultariam na elevação do padrão de vida pelo efeito “derrame”, o
que permitiria a definição de serviços pagos e contributivos para os
não pobres, que teriam capacidade de pagamento, enquanto que no
campo não contributivo os pobres receberiam a assistência
necessária para sair da pobreza.
Assim, surgem, e de acordo com as recomendações das
agências internacionais de crédito, os programas focalizados de
corte assistencialista,2 geralmente definidos como de alívio da
pobreza ou de “combate à pobreza”. Repetto (2001) faz uma análise
crítica desses programas salientando que eles tiveram uma
“estratégia limitada”, com excessiva focalização e sendo
gerenciados a partir de várias áreas. Ele também acrescenta que
houve uma baixa capacidade de governança para levar adiante
políticas eficientes, resultado talvez da desconexão entre a
capacidade técnica e política.
A privatização, a descentralização e a focalização se juntaram
a outra característica típica: a maior responsabilização das famílias
e da comunidade para sustentar as condições de vida das pessoas
— o neofamilismo (De Martino, 2001). De acordo com Esping-
Andersen (1993) e Adelantado et al. (1998), houve um processo de
remercantilização do bem-estar e uma maior familiarização.
Na América Latina, se o Uruguai pode ser identificado como um
país com níveis de universalismo estratificado,3 é nestas décadas
que se processa ou a transferência da responsabilidade do Estado
na provisão do bem-estar para o mercado, a família e a
comunidade. Se até os anos 1980 parecia haver uma sincronia
entre a organização social e a organização das famílias, com as
políticas neoliberais, se produz um desajuste: o Estado começou a
delegar responsabilidades sociais em uma fase em que a
incorporação das mulheres no mercado de trabalho começava a ser
maior (De Martino, 2001; Pautassi, 2008; Schmukler, Scornik e
Fields, 2009). E essas responsabilidades recaíram em grande parte
no seio das famílias e, dentro delas, nas mulheres.
Desde meados dos anos 1990, mas com especial ênfase no
novo século, os programas focalizados foram perdendo o seu lugar
diante da implementação do PTCR, embora no caso do Uruguai, o
regime de Asignaciones Familiares, paradigmática política de
transferência de renda, se de fato pode ser considerada como tal,
tem suas origens em 1943, começando como um pagamento
associado ao trabalho formal de certos ramos de atividades.
Esse tipo de programa surge como crítica a uma visão
reducionista da pobreza e pelo desenvolvimento de concepções
mais amplas, multidimensionais e dinâmicas da mesma, sensíveis a
aspectos demográficos e do ciclo vital (Draibe e Riesco, 2009). As
transferências são geralmente atribuídas às mães, buscando com
isso e com as devidas contrapartidas promover o capital humano
das famílias. Embora discursivamente se sustentem no
reconhecimento dos direitos — de caráter universal por definição —
mantêm uma estrutura de focalização extremamente difundida
(Pautassi e Abramovich, 2006).
Cohen e Franco (2006) consideram que os PTCR constituem
um “novo” modelo de política social contra a pobreza. Mas nós, em
concordância com outros autores, vamos questionar essa definição.
Alguns autores reconhecem que esse tipo de programa constitui
uma inovação nos sistemas de proteção social latino-americana, em
particular por optar pela transferência de renda em países que
tradicionalmente haviam instalado a oferta de serviços públicos.
Outro aspecto que atribui uma dose de inovação é o seu apelo para
as condicionalidades ou corresponsabilidades por parte dos
“beneficiários”, geralmente associados à permanência no sistema
educativo formal e controles de saúde das gerações mais jovens.
Além dessas inovações outros sugerem que se trata de um
aggiornamento do caráter assistencialistas dos programas sociais
(Pautassi; Zibechi, 2010; Grassi, 2012).
Além disso, estes subsídios diretos se instalam em redes mais
amplas de intervenções direcionadas para a família e os seus
membros, de acordo com idade, sexo e status (deficiência, gravidez
na adolescência etc.). Assim, o novo regime de transferências
familiares do Uruguai, que estende a prestação da Asignación
Familiar ao dissociá-la do trabalho formal e vinculá-la com carências
materiais, encontra-se incorporado ao Programa de Equidade e
dentro da Rede de Assistência e Integração sociais — RAIS. E é
acompanhado por outra série de intervenções a nível familiar, ou
das novas gerações (Jóvenes en Red etc.).
Desde outra perspectiva, este tipo de programas está se
movendo em duas temporalidades diferentes. Se o subsídio visa
combater a pobreza de imediato, as corresponsabilidades tendem a
reduzir a reprodução intergeracional da pobreza. Também a partir
deste sentido, os PTCR são integrados em uma rede de serviços
(Draibe e Riesco, 2009). Espera-se que esses programas, então,
contribuam para a melhoria da cobertura e da qualidade da
educação e pelos serviços de saúde, mas isto se encontraria mais
estreitamente ligado às conquistas de cada país em termos da
universalização dos serviços sociais básicos (Repetto, 2009).

3.2 PTCR, família e gênero. Entrecruzamentos pouco visíveis

Analisar as famílias como beneficiários de políticas sociais num


modelo mais familiarizador ou mais desfamiliarizador insere esta
problemática no contexto de debates em torno de: a família como
modo de organização da vida privada dos indivíduos, a questão de
gênero como relação social entre homens e mulheres e a questão
social, que permite intervenções públicas para reduzir as diferenças
entre os indivíduos (Aguirre, 2004). Vejamos como essas dimensões
são articuladas nos PTCR.
No geral, queremos enfatizar alguns aspectos dos PTCR. São
eles: (a) sua qualidade de políticas assistenciais ou políticas
familiares; (b) a percepção da família como um espaço de gestão de
recursos; (c) algumas ideias sobre a dinâmica das famílias pobres; e
(d) os pressupostos de gênero que lhes subjazem.

3.2.1 Políticas familiares ou assistenciais?

Se na década de 1990 os programas de combate à pobreza


tinham como alvo pessoas em situação de pobreza ou
vulnerabilidade, os PTCR têm como destinatários e como locus a
família, como entidade privilegiada em termos de socialização e de
ruptura da reprodução intergeracional da pobreza, como já foi dito.
Disso deriva a ambiguidade do seu perfil: são políticas assistenciais
ou políticas familiares? Combinam atributos de ambas: não significa
que as políticas familiares sejam uma novidade, trata-se de novas
modalidades e novas ênfases dadas às mesmas.
Flaquer (2004) define as políticas familiares como aquelas
intervenções públicas que fornecem recursos para as pessoas que
têm responsabilidades familiares com a finalidade de cumprir as
suas tarefas e responsabilidades resultantes de tais atividades nas
melhores condições possíveis, em particular, a atenção para
membros menores de idade dependentes. Além disso, Arriagada
(2007), no âmbito da CEPAL, distingue no âmbito das políticas
familiares: (a) as relacionadas a reformas normativas na área do
direito da família, violência doméstica e a regulamentação de novos
tipos de arranjos familiares; (b) aquelas que, a partir da definição
dos direitos associados à cidadania, fornecem um nível de
segurança básica para as famílias mais vulneráveis ou em situação
de pobreza/miséria; (c) outras que apontam para outras questões
relacionadas a gênero e a padrões familiares patriarcais; e (d)
aquelas que visam melhorar a capacidade das famílias de satisfazer
as suas necessidades básicas, sublinhando a relação entre família e
trabalho, educação e trabalho etc. De acordo com esta tipologia
desenvolvida por Arriagada (2007), os PTRC podem estar
localizados no segundo tipo e com alguns traços e características do
terceiro e quarto.
De acordo com Pérez Díaz (2007), existem diferenças entre os
programas de combate à pobreza na década de 1990 os PTCR, em
termos de uma evolução positiva. De uma noção de beneficiário
universal, passivo, sem sexo, a programas que fazem esforço para
identificar os membros da família a partir da idade (idosos, crianças,
adolescentes) ou traços territoriais, étnica, por sexo ou por
estratificação social. Mas esse esforço foi baseado no desenho de
políticas destinadas a membros da família que individualmente
deveriam relacionar-se com o sistema público a partir de uma lógica
de segregação familiar (idosos, binômio mãe/filho ou só homens).
Inversamente, indica a autora, nas primeiras décadas do novo
século, programas como Chile Solidario, o Oportunidades no
México, o Fome Zero no Brasil ou o Plan de Emergencia no Uruguai
estabeleceram um viés ao definir a família como foco de intervenção
e reconhecer seus membros como detentores de direitos. No
entanto, a autora chama a atenção para o risco de cair em uma
espécie de ilusão a respeito da relação da família e pobreza, como
se a família fosse uma “instituição fundamental, assexuada e
resiliente capaz de proteger, formar, receber e transferir recursos,
punir membros na dialética do bem e do mal e, porque não dizer,
cobrir o Estado nos seus déficits de produção e proteção social para
a comunidade” (Pérez Díaz, 2007, p. 22-23).
Mas cabe-se perguntar, junto a Arriagada (2006), se os PTCR
são uma mudança radical na maneira de conceber as famílias
pobres, se não há uma visão idílica das famílias e também por que é
mais conveniente que as destinatárias sejam as famílias. A pobreza
atravessa gerações, por isso a família é vista como o melhor locus
de intervenção para quebrar o círculo. Mas acreditamos que há
nuances na forma como são definidas essas famílias como sujeitos
de intervenção.
Como já foi dito, as famílias como “corpo” — agente coletivo —
e como “campo” aparecem como locus de cooperação e de conflito,
onde se atua a partir do racional e onde as necessidades e as
posições de poder de cada membro (Bourdieu, 1997). Por exemplo,
alguns autores questionam as políticas que não levam em conta a
forma como a família aloca sua renda, como se tal distribuição fosse
pautada de modo privado e como se todos os membros fossem
igualmente pobres e tivessem o mesmo poder. Pareceria que a
suposição é de que o bem-estar resulta de uma distribuição
consensual que ignora as assimetrias de gênero e de gerações. Há
pesquisas que explicam que as variáveis gênero e idade influenciam
na distribuição do bem-estar na família, criticando, assim, os
indicadores de pobreza baseados em informações agregadas das
famílias (Aguirre, 2003).
Segundo Arriagada (2006) são errôneas tanto as políticas
fragmentadas destinadas a certos membros (crianças, idosos,
mulheres) quanto aquelas que tomam a família como uma unidade e
ignoram sua dinâmica pautada por vínculos assimétricos e de
gerações. Nesta base, a autora argumenta que as políticas
familiares podem ser um segmento de intervenção apropriada se
não escondem as diferenças entre os membros nem os interesses
divergentes. Se não questionamos essa visão idealizada da família,
que parte da existência de solidariedade familiar infalível, é provável
que o efeito dos PTCR seja um aprofundamento da dependência de
seus familiares e parentes, limitando o potencial desfamiliarizador —
se houver um — dos programas.

3.2.2 A família como unidade racional e homogênea de


recepção de renda

A ênfase colocada nas transferências monetárias significou


uma mudança significativa em termos do desenho e da concepção
de políticas sociais. As transferências apelam a dois pressupostos
básicos: (i) que a família é uma unidade racional de gestão dos
recursos; e (ii) se bem pode associar-se a relativa “liberdade” em
termos de consumo (Martínez Franzoni; Voorend, 2008), isso traz à
tona uma tensão em relação a que se os lares são aqueles que
sabem como usar melhor os seus recursos.
Bourdieu (1997), tal como já foi assinalado, proporciona um
modo de leitura da família extremamente rica, quer seja como uma
categoria social ou como estrutura objetiva e, por outro lado, como
um corpo e como um campo social. Enquanto corpo se refere à sua
produção e reprodução, como do grupo integrado a partir do
sentimento de unidade que transmite aos seus membros. Refere-se
a seu status de um sujeito coletivo que transmite seu capital, tanto
em termos de estrutura quanto de volume. Como campo, a família
assume as características de cada campo: pode ser pensada como
um lugar onde as relações antagônicas a partir da estrutura e dos
volumes do capital detidos pelos membros. Tais lutas são dadas
para preservar e transformar essas relações de poder (Bourdieu,
1997; Alonso Benito; Criado; Moreno Pestaña, 2004). A família
tende a funcionar como um campo, mas a construção de um
“espírito de família”, do “sentimento familiar” habilita e legitima a sua
operação como um “corpo”. Como um campo e, como um corpo,
habilitada como um coletivo, a família desempenha um papel
fundamental na manutenção e na reprodução da ordem social. Mas
é nesse traço da família como reprodutiva de “famílias de classe”
(Bertaux, 1979), no que se baseia a aposta dos PTCR para as
famílias. Como veremos mais adiante, parece que os PTCR
observam a família como unidades administrativas, material e
simbolicamente falando, do conjunto de ativos e passivos familiares
apostando a sua “administração” frente às oportunidades de
mercado.
Bertaux (1996) faz algumas considerações à perspectiva de
Bourdieu, que analisa as relações de poder com base nos conceitos
de interesses, ganhos e perdas. Bertaux define a família como um
sistema autopoiético, que se autorreproduz, cujos membros estão
unidos não só por interesse. Processos familiares não podem ser
analisados somente a partir de uma lógica racional, mas também de
uma “cadeia infinita de obrigações recíprocas” (Soldano, 2005).
Ambos os autores distinguem a dialética entre os interesses
individuais e os interesses coletivos. A gestão da renda é uma
janela adequada para analisar os processos familiares e a sua
relação com os interesses.
Chaippori et al. (1993) propõem dois modelos familiares a
respeito. O modelo unitário, no qual a família e suas tensões são
naturalizadas a partir da ideia de que eles têm uma única pessoa
que toma as decisões sem ter em conta as relações assimétricas de
gênero e gerações. Esse modelo tem recebido várias
denominações: altruísta, de preferências comuns, ou de ditador
benevolente. O outro modelo é conhecido como modelo coletivo de
provisão de recursos e leva em conta as preferências individuais
que se agregam em uma decisão coletiva. Este último modelo se
diferencia em modelo cooperativo e não cooperativo. Os recursos
unificados requerem o exercício do princípio da autoridade por um
membro da família que tem o poder de controlar seus membros e
punir aqueles que não cumprem as regras coletivas. Do ponto de
vista político, esses modelos têm implicações importantes na
concepção de políticas e programas sociais. Parece que os PTCR
aderem ao modelo unitário, pensando que não importa a quem está
dirigida a iniciativa, o efeito independe do titular.
A necessidade de saber se as famílias pobres sabem o que
precisam e sabem como gerir os seus recursos nos leva ao próximo
item.

3.2.3 A sexualização do altruísmo parental e a miopia das


famílias pobres

Lo Vuolo (2010) e Rodriguez Enriquez (2011) colocam as


condicionalidades como imperativos do Banco Mundial e distinguem
três tipos de argumentos enunciados por essa agência: (i) aqueles
relacionados aos fundamentos de paternalismo; (ii) outros
associados a critérios de economia política; e, por fim, (iii) os que
nos levam ao conceito de “eficiência social”.
Assim, da escolha racional que prevaleceu na década de 1990,
que observa toda decisão econômica individual como derivada
racionalmente da equação custo-benefício, nos PTCR se considera
que as famílias pobres nem sempre sabem o que é melhor para
elas. As famílias pobres podem não ter as informações necessárias
ou ter informações deficientes (miopia), especialmente no que diz
respeito aos níveis de escolaridade. Também seria comum a
existência de conflitos de interesses entre pais e filhos (altruísmo
parental incompleto) e entre pais e mães, na medida em que estas
últimas podem ter um altruísmo mais completo.
Em tal situação o Estado estaria autorizado a regulamentar os
conflitos no seio das famílias pobres, as quais se apresentam como
um espaço para tutelar ou disciplinar. Várias leituras ao respeito
(Donzelot, 1986) respaldam interpretações que continuam vendo os
PTCR como uma renovação do histórico campo da
socioassistencial.
De outra perspectiva, os argumentos endereçados à economia
política assimilam que os cidadãos “contribuintes” concordariam
com pacotes de políticas sociais se as transferências fossem
destinadas a famílias que manifestam interesse em sair dessa
situação. Com isso se reedita novamente a distinção entre pobres
merecedores e não merecedores — própria da filantropia do século
XIX. Por outro lado, tais argumentos são a base da
corresponsabilidade ou do acordo família/Estado. Mas as famílias
não são só responsáveis pelo cumprimento das exigências —
controles sanitários, permanência no sistema de ensino das novas
gerações a — mas da redução da pobreza, são seus próprios
suportes para sua própria saída da pobreza (Pautasse e Zibecchi,
2010).
No que diz respeito aos argumentos relacionados à eficiência
social, podemos afirmar que estão ligados ao valor da educação e
da saúde, como bens cujo consumo não só trazem como resultado
o bem-estar individual, mas que também aumentam as chances de
empregabilidade futura e promoveriam comportamentos “mais
adequados” o que reduziria a ação de comportamentos anômicos e
os custos destinados a atender os problemas sociais derivados
deles.
Alguns autores colocam em questão estes aspectos,
reconhecendo que as condicionalidades não distinguem aspectos
materiais e simbólicos da dinâmica familiar. Assim, por exemplo,
Villatoro (2008) demonstrou que as ideias que as famílias tinham a
respeito do trabalho infantil — evita a dependência de drogas e as
“más companhias” ou permite uma melhor integração no mundo
adulto — se configuravam como obstáculos para satisfazer os
requisitos relativos à educação.
De outro ponto de vista, Cohen e Franco (2006) colocam a
temporalidade dos PTCR como componente que ameaça a
eficiência social. Os prazos estabelecidos são muito curtos para
alcançar os objetivos propostos em especial a mudança de atitude
em relação ao capital humano e, por consequência, na ruptura do
círculo da pobreza.

3.2.4 A reprodução de papéis imputados por sexo

A análise a partir de uma perspectiva de gênero tem estado


presente nos estudos dos PTCR. A equação básica dos mesmos é
que o recebimento de renda resultaria no empoderamento das
mulheres. No entanto, podem ser visualizados impactos diferentes
ao esperado: responsáveis pelos cuidados, as mulheres também
são responsáveis pelo cumprimento das condicionalidades o que
sublinha o seu papel de cuidadoras, limitando suas já escassas
possibilidades de inserção no mercado de trabalho.
Os PTCR não favorecem uma distribuição equitativa do
trabalho associado aos cuidados, mantendo a divisão sexual do
trabalho doméstico, o modelo da mulher reprodutora e do homem
provedor que é incapaz de gerir eficazmente a renda familiar. A
mulher é suspeita de não ser eficiente nas tarefas laborais
extradomésticas e o homem é suspeito de não distribuir
adequadamente a renda familiar (Pautassi e Zibbechi, 2010).
Martínez Franzoni e Voorend (2008) estudaram
comparativamente os programas Chile Solidario, Avancemos de
Costa Rica e Red Solidária de El Salvador, tentando reconhecer os
graus de igualdade de gênero a partir das dimensões propostas por
Nancy Fraser (1994). Apontam que tais programas destacam
positivamente as mulheres como nexo com a política social, que são
baseadas em suposições materialistas, que apenas residualmente
promovem as mulheres como trabalhadoras e que quase não
outorgam ao homem o papel de cuidador. Em outras palavras,
esses programas não promovem uma negociação de papéis no
âmbito doméstico. Esse aspecto é deixado a cargo da própria
família.
Ao contrário, esses programas têm por base e reforçam
capacidades genericamente construídas como, por exemplo, a
mulher como administradora de recursos e cuidadora das crianças.
Conclui-se daí que as mulheres sejam valorizadas em ambas estas
qualidades e não como cidadãs e trabalhadoras. Aos mesmos
resultados chegam Zibecchi (2010) e Goren (2011).
González de la Rocha e Escobar (2002) apontam para outro
tipo de impacto: a administração das transferências gera conflitos
internos nas famílias, separações, abandonos ou redução do apoio
econômico masculino. Todavia, as autoras também registram o
empoderamento das mulheres e dos seus laços com a vizinhança
para combater essas atitudes masculinas.
Portanto, os PTCR não permitem negar e superar a ideia de
família normativa e heteronormativa, nem permitem quebrar o
padrão heterossexual predominante e a importância atribuída ao
sexo como o primeiro “nível” a partir do qual é tecida uma série de
atributos socioculturais imputados segundo o fato biológico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de um ponto estritamente sociopolítico, as famílias


podem ser pensadas em termos institucionais, a partir de sua base
marital ou conjugal, ou seja, como uma instituição, baseada na
conjugalidade e no parentesco, o que teria como objetivo básico a
satisfação de determinadas necessidades humanas associadas à
condição biológica ou à reprodução em sentido amplo: sexualidade,
reprodução, sobrevivência etc. Enquanto isso, a família como grupo
social pode ser analisada como um grupo de pessoas unidas por
laços baseados em vontades ou inclinações particulares, com
interações quotidianas e enquadradas em relações tanto de
parentesco, como de consumo e residência compartilhada (Jelin,
2000; Torrado, 2003).
Mas aqui queremos enfatizar outra forma de abordar a família.
Como já foi dito, o campo das políticas é um campo onde se
discernem lutas pela imputação de significado às diversas
instituições sociais. Saberes, ideologia, senso comum, interesses e
preocupações não acadêmicas ensejam rupturas na coerência das
mesmas. Também, todos esses elementos estão presentes nas
definições envolvidas. Neste caso, quem são os pobres, o que se
entende por família etc.

[…] Nas sociedades modernas o principal responsável pela construção de


categorias oficiais, segundo as quais são estruturadas a população e os
estados de ânimo, é o Estado, que através de um trabalho de codificação
combinando efeitos econômicos e sociais reais (como as transferências
familiares) vem favorecer certa forma de organização familiar fortalecendo
aqueles que estão em condições de estar de acordo com essa forma de
organização e incentivar, por todos os meios, materiais e simbólicos, o
conformismo lógico e o conformismo moral como sistema mundo de
apreensão e construção do mundo, da qual forma de organização, esta
categoria é a chave (Bourdieu, 1990, p. 138).

Também o mesmo autor assinala:

Assim, por exemplo, as grandes comissões que tem tomado decisões sobre
a “política familiar” (transferências familiares etc.) ou, em tempos passados,
a forma que devia ter a ajuda do Estado, no que diz respeito à moradia, tem
representado uma importante contribuição para a modelagem da família e a
representação da vida familiar que os levantamentos demográficos e
sociológicos registram como uma espécie de dado natural (Bourdieu, 1997,
p. 138).

A partir dessa perspectiva, ele argumenta que a família


depende de um longo processo de ações públicas, portanto a
família para ele seria uma ficção, um artefato social, uma ilusão que
se sustenta, se funda, se produz e se reproduz com a ação do
Estado, e, além disso, do Estado o necessário para a subsistência.
Para o caso argentino, Grassi (1996) colocou em destaque a
obviedade da família. O autor observa que, desde o final do século
XIX, a família tem sido alvo de programas e políticas, quer seja de
modo explícito ou implícito, funcionando como um pressuposto
referente ao tipo de arranjo que conformam ou deveriam conformar
os beneficiários de tais políticas, além de dar como supostos
também os deveres, atividades, direitos e responsabilidades que se
processam na sua intimidade.
A força do óbvio desses pressupostos implícitos sobre os
comportamentos dos agentes institucionais que derivam deles o
sentido das suas ações, produzindo mensagens que prescrevem
comportamentos. As concepções de família ficam assim expressas
nas justificações e nas considerações dos funcionários. Mas “esses
códigos ocultos (ou não) e essas mensagens prescritivas ou
coercitivas não devem ser entendidos como produções
fantasmagóricas de organismos burocráticos e abstratos, mas
apenas como parte das representações da época” (Grassi, 1996, p.
107).
E, como afirma Bertaux (1996), não existe a família, mas as
famílias e suas respectivas classes. As famílias pobres ou
indigentes, para além de mensagens moralizantes e indicações
prescritivas, são deixadas à própria sorte, com apoio do Estado,
para reproduzir a sua pobreza e os modos de vida associados a ela,
reforçando um modo particular de reprodução antroponômica.4 Não
só com a marca de “classe”, mas de “gênero” e “geração”.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, V. Y.; PAUTASSI, L. Dilemas actuales en la resolución de la


pobreza. El aporte del enfoque de derechos. En: JORNADAS JUSTICIA Y
DERECHOS HUMANOS: políticas públicas para la construcción de ciudadanía,
en el marco del Seminario Taller: Los Derechos Humanos y las políticas para
enfrentar la pobreza y la desigualdad. Organizado por Unesco, Secretaría de
Derechos Humanos y Universidad Nacional Tres de Febrero. Buenos Aires, 12 y
13 de diciembre de 2006.
ADELANTADO, J.; NOGUERA, J.; RAMBLA, X.; SÁEZ, L. Las relaciones entre
estructura y políticas sociales: una propuesta teórica. Revista Mexicana de
Sociología, año LX, n. 3, p. 123-156, jul./sept. 1998.
AGUIRRE, R. Familias urbanas del Cono Sur: transformaciones recientes.
Argentina, Chile y Uruguay. Reunión de Expertos Cepal: Santiago de Chile, 28 a
29 de octubre de 2004.
______. Procesos de empobrecimiento y desigualdades de género: desafíos para
la medición. Reunión de Expertos sobre Pobreza y Género. Santiago de Chile:
Cepal-OIT, 12 y 13 de agosto 2003.
ALONSO BENITO, L.; CRIADO, M.; MORENO PESTAÑA, J. Pierre Bourdieu. Las
herramientas del sociólogo. Madrid: Fundamentos, 2004.
ARIZA, M.; OLIVEIRA, O. Familias, pobreza y desigualdad social en
Latinoamérica: una mirada comparativa. Estudios Demográficos y Urbanos,
México, Colegio de Abogados, v. 22, n. 1, ene./abr. 2007.
ARRIAGADA, I. Futuro de las familias y desafíos para las políticas. Santiago de
Chile: Cepal, División de Desarrollo Social, 2008.
______.Transformaciones familiares y políticas de bienestar en América Latina.
En: ARRIAGADA, I. (Coord.). Familias y políticas públicas en América Latina: una
historia de desencuentros. Santiago de Chile: Cepal, 2007a.
______. Familias latinoamericanas: cambiantes, diversas y desiguales. En:
CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE SOCIOLOGÍA
(ALAS), 106., Mesa 46. Debates actuales sobre Sociodemografía en América
Latina, 2007b.
______. Cambios de las políticas sociales: políticas de género y familia. Santiago
de Chile. Cepal: 2006.
______. Cambios y desigualdad en las familias latinoamericanas. Revista de la
Cepal, n. 77, ago. 2002.
BECK GERNSHEIM, E. La reinvención de la familia: en busca de nuevas formas
de convivencia. Barcelona: Paidós, 2003.
BERTAUX, D. Historias de casos de familias como método para la investigación
de la pobreza. Revista de Sociedad, Cultura y Política, Buenos Aires, v. 1, n. 1, p.
3-32, jul. 1996.
_____. Destinos pessoais e estrutura de classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
BOURDIEU, P. Razones prácticas: sobre la teoría de la acción. Barcelona:
Anagrama, 1997.
______. Sociología y cultura. México: Grijalbo, 1990.
CABELLA, W.; PERI, A.; STREET, M. Buenos Aires y Montevideo: ¿dos orillas y
una transición? La segunda transición demográfica en perspectiva biográfica. En:
TORRADO, S. (Org.). Trayectorias nupciales, familias ocultas. Buenos Aires:
CIEPP/Miño y Dávila, 2005. p. 207-232.
CICCHELLI-PUGEAULT, C.; CICCHELLI, V. Las teorías sociológicas de la familia.
Buenos Aires: Nueva Visión, 1999.
CHIAPPORI, P. et al. Unitary vers. Collective. A case for shifting from the unitary
to the collective model models of the household. Time to shift the burden of proof?
The World Bank Ghana Resident Mission, Policy Research Working Paper, n. 12,
17 Nov. 1993.
COHEN, E.; FRANCO, R. (Coord.). Transferencias con corresponsabilidad: una
mirada latinoamericana. México: Flacso, 2006.
DANANI, C. Pobreza, trabajo y desigualdad: el viejo problema de América Latina.
En: LASTRA, M.; BERTOLOTTO, M. (Comp.). Políticas públicas y pobreza en el
escenario post 2002. Buenos Aires: Carrera de Trabajo Social
(FCS)/UBA/Cefomar Editora/ Secyt, 2007.
DE MARTINO, M. Políticas sociales y familia. Fronteras, revista del Departamento
de Trabajo Social (FCS)/Udelar, n. 4, p. 103-114, sept. 2001.
DONZELOT, J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
DRAIBE, S.; RIESCO, M. El Estado de Bienestar Social en América Latina: una
nueva estrategia de desarrollo. Madrid: Fundación Carolina, 2009. (Documento de
Trabajo, n. 31.)
ESPING-ANDERSEN, G. Los tres grandes retos del Estado de Bienestar.
Barcelona: Ariel, 2010.
______. Fundamentos sociales de las economías postindustriales. Barcelona:
Ariel, 2000.
______. Los tres mundos del Estado de Bienestar. Valencia: Alfons el Magnánim,
1993.
ESQUIVEL, V.; FAUR, E.; JELIN, E. (Ed.). Las lógicas del cuidado infantil: entre
las familias, el Estado y el mercado. Buenos Aires: Ides/UNFPA/ Unicef, 2012.
FILGUEIRA, F. Entre pared y espada: ciudadanía social en América Latina (i),
1999. Disponible en: <http://www.henciclopedia.org.uy>. Acceso en: 15 abr. 2013.
FLAQUER, L. Las políticas familiares en una perspectiva comparada. Barcelona:
La Caixa, 2004.
FOUCAULT, M. A política de saúde no século XVIII. In: ______. Microfísica do
poder. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 193-208.
FRASER, N. Iustitia interrupta: reflexiones críticas desde la posición “post-
socialista”. Traductoras Magdalena Holguín, Isabel Cristina Jaramillo. Santafé de
Bogotá: Siglo del Hombre Editores/Universidad de los Andes, Facultad de
Derecho, 1997.
GONZÁLEZ DE LA ROCHA, M.; ESCOBAR, A. Evaluación cualitativa del
Programa de Desarrollo Humano Oportunidades, 2002. Disponible en:
<http://www.progresa.gob.mx/eoportunidades/evaluaciónimpacto/2002/Evaluaciòn
CualitativaFinaldic02pdf>. Acceso en: 29 jan. 2015.
GOREN, N. La asignación universal por hijo. ¿Conquista de nuevos derechos?
¿Viejas o nuevas identidades femeninas? En: CONGRESO NACIONAL DE
ESTUDIOS DEL TRABAJO (ASET), 10., Buenos Aires, 2011.
GRASSI, E. La política social y el trabajo en la Argentina contemporánea: entre la
novedad y la tradición. E Latina, revista electrónica de estudios latinoamericanos,
v. 10, n. 39, p. 5-33, 2012. Disponible en:
<http://iealc.sociales.uba.ar/publicaciones/e-latina/>. Acceso en: 23 abr. 2012.
______. El asistencialismo en el Estado Neoliberal. La experiencia argentina de la
década de los 90. E Latina, revista electrónica de estudios latinoamericanos, v. 1,
n. 4, 2003. Disponible en: <http://iealc.sociales.uba.ar/publicaciones/e-latina/>.
Acceso en: 23 abr. 2012.
______. La familia: un objeto polémico. Sociedad Revista de Ciencias Sociales, n.
9, set. 1996.
JELIN, E. Las familias latinoamericanas en el marco de las transformaciones
globales. En: ARRIAGADA, I. (Coord.). Familias y políticas públicas en América
Latina: una historia de desencuentros. Santiago de Chile: Cepal, 2007.
______. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires/ Ciudad
de Méjico: FCE, 2000.
LEWIS, J. Gender and the development of welfare regimes. Journal of European
Social Policy, v. 2, n. 3, 1992.
LO VUOLO, R. Las perspectivas de ingreso ciudadano en América Latina. Un
análisis en base al “Programa Bolsa Família” de Brasil y a la “Asignación
Universal por Hijo para Protección Social de Argentina. Buenos Aires: CIEPP.
2010. (Documento de Trabajo, n. 75.)
MARTINEZ FRANZONI, J. Domesticar la incertidumbre en América Latina:
mercado laboral, políticas sociales y familias. Costa Rica: Editorial UCR/ Instituto
de Investigaciones Sociales, 2008a.
______. ¿Arañando Bienestar? Trabajo remunerado, protección social y familias
en América Central. Buenos Aires: Clacso, 2008b.
______; VOOREND, K. Transferencias condicionadas e igualdad de género:
¿blancos, negros o grises? Revista de Ciencias Sociales, Universidad de Costa
Rica, v. IV, n. 122, 2008.
MIOTO, R. Novas propostas e velhos princípios. Fronteras, Montevideo,
DTS/FCS, n. 4, p. 93-102, 2001.
PAUTASSI, L. Familias en transformación: la respuesta de las políticas públicas.
In: GROSMAN (Dir.) HERRERA, M. (Comp.). Familia monoparental. Buenos
Aires: Editorial Universidad, 2008.
______. La provisión de cuidado y la superación de la pobreza infantil. Programas
de Transferencias de Condicionadas en Argentina y el papel de las
organizaciones sociales y comunitarias. Santiago de Chile: Cepal, 2010. (Serie
Políticas Sociales n. 159.)
______; ZIBECCHI, C. Programas de transferencias condicionadas de ingresos.
¿Quien pensó en el cuidado? La experiencia Argentina. In: RICO, N.;
MALDONADO C. (Eds.). Las familias latinoamericanas interrogadas: hacia la
articulación del diagnóstico, la legislación y las politicas. Santiago de Chile:
Cepal/UNFPA, 2011.
PÉREZ DÍAZ, C. Pobreza, familia y relaciones de género: lecciones a partir de la
experiencia. En: REUNIÓN DE ESPECIALISTAS FUTURO DE LAS FAMILIAS Y
DESAFÍOS PARA LAS POLÍTICAS PÚBLICAS. Santiago de Chile, Cepal/UNPFA.
2007.
REPETTO, F. Protección Social en América Latina: la búsqueda de una
integralidad con enfoque de derechos. Revista del Clad, n. 47, 2009.
______. Gestión pública y desarrollo social en los noventa: las trayectorias de
Argentina y Chile. Buenos Aires: Universidad de San Andrés/Prometeo, 2001.
RODRIGUEZ ENRÍQUEZ, C. Programas de transferencias condicionadas de
ingreso e igualdad de género. ¿Por dónde anda América Latina? ______. Cepal.
Santiago de Chile, 2011. (Serie Mujer y Desarrollo, n. 109.)
SARACENO, C. Familismo ambivalente y clientelismo categórico en el Estado de
Bienestar italiano. En: SARASA, S.; MORENO, L. (Eds.). El Estado del Bienestar
en Europa del Sur. Madrid: CSIC/Iesa. 1995.
SCHMUKLER, B.; CAMPOS. M. Las políticas de familia en Méjico y su relación
con las transformaciones sociales. Méjico: Cooperación Internacional, 2009.
SOJO, A. La trayectoria del vínculo entre políticas selectivas contra la pobreza y
políticas sectoriales. Revista de la Cepal, n. 91, 2007.
SOLDANO, D. Subjetividad y vida política: transformaciones identitarias en
tiempos de exclusión. 2005. Disponible en:
<http://www.insumos.com/lecturasinsumisas/Subjetividad/vidapolítica.pdf>.
Acceso en: 4 abr. 2013.
SUNKEL, G. Regímenes de Bienestar y políticas de familia en América Latina. En:
ARRIAGADA, I. (Coord.). Familias y Políticas Públicas en América Latina. Una
historia de desencuentros. Santiago de Chile: Cepal, 2007.
______. El papel de la familia en la protección social en América Latina. Santiago
de Chile: Cepal, 2006. (Serie Políticas Sociales, n. 120.)
TORRADO, S. Historia de la familia en la Argentina moderna (1870-2000).
Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2003.
VILLATORO, P. Las transferencias condicionadas en América Latina: luces y
sombras. In: SEMINARIO INTERNACIONAL EVOLUCIÓN Y DESAFÍOS DE LOS
PROGRAMAS DE TRANSFERENCIAS CONDICIONADAS. Brasília, 2008.
ZIBECCHI, C. Programas Sociales y responsabilidades del cuidado infantil: un
abordaje desde las estrategias de los actores. En: PAUTASSI, L. La provisión de
cuidado y la superación de la pobreza infantil. Programas de transferencias
condicionadas en Argentina y el papel de las organizaciones sociales y
comunitarias. Santiago de Chile: Cepal, 2010. (Serie Políticas Sociales, n. 159.)
Mudanças nas famílias brasileiras e a
proteção desenhada nas Políticas
Sociais

__________________________Carmen Rosario
Ortiz Gutierrez Gelinski Liliane Moser

1. INTRODUÇÃO
Na esteira da crise econômica dos anos 1970 que marcaria o
fim do Estado keynesiano, as políticas sociais, sob a nova roupagem
do welfare mix, deixaram de ser uma atribuição exclusivamente
governamental. Segmentos da sociedade, como empresas, ONGs ou
famílias, seriam “convocadas” para participarem da execução de
ações de proteção social (Pereira, 2004; Mioto, 2008). A convocação
para que a sociedade civil participasse dos encargos que cabiam ao
Estado na oferta de proteção social não seria a única alteração
significativa nos regimes de bem-estar social europeus. A menção é
feita aos novos mecanismos de ativação das políticas sociais que
tem se revelado portadores de uma lógica que imprime, aos
programas, projetos e ações, conteúdos disciplinadores, punitivos e
baseados em contrapartidas em relação aos benefícios sociais
recebidos. Trata-se do workfare, perspectiva que se afasta da noção
de bem-estar (welfare) associada a direitos sociais, difundindo
políticas sociais vinculadas ao mérito ou ao exercício do trabalho
como imposição, a exemplo de inúmeras tentativas de inserção dos
pobres no mercado de trabalho via inclusão produtiva ou projetos de
geração de renda. Tais práticas são consideradas por Pereira (2009)
a ortodoxia do momento por obscurecer objetivos que não visam o
atendimento de necessidades humanas, mas a inserção de pessoas
num mercado de trabalho precário, de curto prazo e socialmente
desprotegido.1
Particular atenção deve ser dada à família que a partir desse
momento deveria ter uma participação mais ativa. Não que até então
estivesse ausente dos cuidados, pois, como recorda Mioto (2008), já
cumpria esses papéis desde a Idade Média. A novidade estaria no
repasse formal de ações que até então eram desempenhadas pelo
Estado, como o tratamento domiciliar de familiares doentes,
justificado amplamente pelas vantagens para a família e para o
doente. Discurso que obscurece o fato de ser uma estratégia de
redução de custos para o Estado.2
O Brasil, mesmo sem ter tido uma política de bem-estar social
estruturada nos moldes dos países europeus, também repassaria
para as famílias ações de proteção social, como ficaria plasmado nas
políticas e programas setoriais elaboradas a partir da Reforma
Constitucional dos anos 1980. A questão que se coloca neste texto é
que nem sempre o repasse de responsabilidades parece ter sido
acompanhado de uma compreensão das concepções de famílias, da
sua dinâmica interna e da maneira como elas estariam executando
as ações de proteção. Além disso, as mudanças demográficas
podem afetar a capacidade das famílias darem conta das ações
propostas. A intenção deste trabalho é mostrar que o fato da família
ganhar destaque nas políticas públicas não implica necessariamente
que tenha sido entendida de maneira adequada nem que tenha uma
definição uniforme. Essa discussão é necessária por dois motivos:
para detectar as funções que o Estado atribui ao núcleo familiar e
para perceber os mecanismos de apoio que disponibiliza para o
cumprimento dessas funções.
Nessa direção, este trabalho discute a percepção de famílias
que é enunciada nas políticas públicas e resgata o perfil das famílias
brasileiras nos levantamentos demográficos mais recentes. Desde
uma perspectiva mais ampla o que está em questão é mostrar os
limites que a nova configuração das famílias (retratada pelos dados
demográficos) apresenta para a execução das ações de proteção
social para as quais as famílias são convocadas.
Este texto está dividido em três partes, além desta introdução. A
primeira levanta as concepções mais gerais do conceito de família. A
segunda recupera a concepção de família dentro das políticas
públicas. Ali assinala-se o tratamento conceitual que os grupos
familiares têm recebido nas políticas públicas, em particular nas
políticas de assistência social e da saúde, e quais os mecanismos de
apoio que essas políticas preveem. A terceira parte revela o perfil da
família que emerge dos levantamentos demográficos mais recentes.
Entende-se que a família deve ser vista como um ente em mutação e
teme-se que o desconhecimento das tendências populacionais não
esteja sendo incorporado efetivamente no desenho das políticas
sociais que afirmam estar centralizadas nas famílias.

2. CONTROVÉRSIAS SOBRE O CONCEITO DE FAMÍLIA

Inúmeras controvérsias cercam a definição de família.


Extensamente estudada quanto a suas formas e funções ela ainda é
um tema em construção. Na análise de políticas públicas fica em
evidência a mutiplicidade de conceitos e critérios operacionais que
definem as famílias.
Na literatura brasileira, em particular, é possível perceber dois
grupos de estudos sobre famílias. O primeiro grupo caracteriza as
funções e a estrutura das famílias a partir de elementos históricos da
formação da sociedade brasileira. Os argumentos desenvolvidos por
essa linhagem terão claros impactos na legislação sobre família e
sobre as questões civis a ela relacionadas. O ponto de partida
desses trabalhos é a importância da família patriarcal como elemento
colonizador do Brasil (Freyre, 1954) e como organizador da vida
social com impactos na configuração dos serviços públicos como a
saúde (Costa, 1983). A concepção patriarcal influenciaria de maneira
decisiva o marco jurídico que regularia a vida em família e em
sociedade, como a legislação sobre casamentos de 1890. De forma
semelhante, mudanças na concepção da família no século XIX
apontariam para novos marcos legislativos (como o Código Civil de
1916) que oferecem amparo à família nuclear (Kroth, 2008).
Os estudos do segundo grupo concebem os condicionantes
históricos da formação da família brasileira como elemento dado e,
na maioria das vezes, tais estudos não entram no mérito desses
aspectos. Preocupam-se mais com questões como provisão das
famílias, sua constituição, de forma ampliada ou em rede,
desempenho de papéis sociais, divisão de tarefas domésticas ou
questões geracionais (Guedes e Lima, 2006; Scott, 2006; Sarti,
2005, 2007; Serapione, 2005).
Dentro dessa segunda linha ganham importância os trabalhos
que percebem a família como uma complexa rede de relações (Sarti,
2005, 2007), aspecto sobre o qual é mister tecer algumas
considerações. A ideia da família em rede se contrapõe à definição
clássica de família de Murdock (1949, apud Gerstel, 1996, p. 297)
que a definia como “grupo social caracterizado pela residência
conjunta, a cooperação econômica e a reprodução, [a qual incluiria]
adultos de ambos os sexos, pelo menos dois dos quais mantêm um
relacionamento socialmente aprovado, e um ou mais filhos, próprios
ou adotivos, dos adultos que coabitam sexualmente”. Para Gerstel
(1996, p. 297) essa definição teria perdido a sua aplicação até
mesmo para o Ocidente e que, desde a década de 1960, ela só daria
conta de uma minoria de lares. “A família, alegam os críticos de
Murdock, em geral consiste em um único genitor (o típico é que seja
a mãe) e filho, ou adultos coabitando sem filhos”.
A noção de família tem se transformado substancialmente. Além
de haver casais de classe média que vivem em casas separadas
(devido a compromissos de trabalho ou por opção), a própria noção
de parentesco, intimamente ligada à de família, tem sofrido
modificações. O parentesco, principalmente para famílias pobres,
supera os laços de sangue e transforma vizinhos, ou amigos
próximos, em parentes. Eles possibilitarão trocas de dinheiro, de
apoio e de afeto. Sarti (2007, p. 68), por exemplo, assinala que a
sobrevivência de grupos familiares chefiados por mulheres “é
possibilitada pela mobilização cotidiana de uma rede familiar que
ultrapassa os limites das casas”. A ideia de família para a população
desfavorecida remete a “[…] uma rede local — não um lar, nem uma
vizinhança […] é a unidade que permite a sobrevivência e que
organiza o mundo das pessoas” (Gerstel, 1996, p. 298). Dessa
forma, a família ganha novos contornos: A rede familiar difunde-se
por vários lares, com base no parentesco “[…]. Uma imposição
arbitrária de definições amplamente aceitas sobre família, a família
nuclear, ou a família matrilocal bloqueia o caminho para se
compreender como as pessoas em suas casas descrevem e
organizam o seu mundo” (Stack, 1974, p. 31). A família, nessa
linhagem de estudos, ganha o atributo ou a forma de uma rede local
destinada a garantir a sobrevivência e, ao mesmo tempo, organizar a
vida das pessoas. Dentro dessa rede, os laços familiares e os papéis
atribuídos a seus integrantes diferem de determinado padrão
hegemônico de família. Mais especificamente, as características das
famílias (incluindo aí a sua condição socioeconômica e as redes
sociais que possuem) definirão as funções que as mesmas
desempenham.
Vale destacar que, embora não explicitamente, as políticas
sociais tanto trabalham com a visão de família em rede, e
consideram que esse espaço configurado é essencial para o êxito
dos programas, quanto partem de pressupostos fortemente
embasados na concepção da família patriarcal e na definição de
funções por gênero.3

3. AMBIGUIDADES A RESPEITO DO CONCEITO DE FAMÍLIA


NAS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS

Para além de questões específicas (e fundamentais) como a


concepção da família como parte de uma rede, do seu formato
extenso ou nucleado e das relações que se processam no interior
dela, interessa agora resgatar num nível macro a percepção que o
Estado brasileiro tem das famílias. Nessa direção, Itaboraí (2005)
chama a atenção para o fato de que as famílias historicamente têm
sido definidas a partir das suas funções (políticas, econômicas, de
proteção social, reprodução biológica ou cultural) e que o Estado de
uma ou de outra forma tem regulado essas funções, seja por ação ou
omissão, via legislação, políticas públicas ou currículos escolares.
Menciona por exemplo, a preocupação com a função reprodutiva da
família, plasmada em políticas concretas de planejamento familiar ou
ações específicas de fornecimento de condições de amparo para as
famílias.
Na sociedade brasileira, a centralidade da família nas políticas
públicas mais recentes ficaria estabelecida na Constituição Federal
de 1988, o que não impede que esse conceito seja permeado de
controvérsias. Kroth (2008), por exemplo, mostra que, a despeito da
centralidade da família estar prevista na Carta Magna, os juristas
questionam o que seja a família e propõem que a sua compreensão
passe por um olhar multidisciplinar que inclua estudos no campo do
direito, da antropologia, da sociologia, da psicologia, da psicanálise e
de pesquisas quantitativas (como a PNAD do IBGE). Isso seria
necessário para “afirmar a complexidade das relações familiares e
para demonstrar a existência de componentes psicossociais e
culturais na compreensão das famílias” (Kroth, 2008, p. 119). Para a
autora, a intenção desses estudos seria qualificar a noção quase
imortalizada de que a família é a base universal da sociedade e
colocar a questão da afetividade como elemento integrador da
família.
Na Carta Constitucional, a família, além de ser considerada a
base da sociedade, passa a gozar de proteção especial por parte do
Estado. Tanto na Constituição quanto na legislação
infraconstitucional se explicitam direitos para a família e seus
membros. Merece atenção a definição de família expressa na Carta
Magna. O artigo 226 declara a família como “base da sociedade […
com] especial proteção do Estado” e a define a partir do casamento,
da união estável ou da monoparentalildade. Para Kroth (2008, p.
137) isso mostra que “a estrutura da família continua a ser
configurada pelo tripé pai-mãe-filhos (com exceção da
monoparentalidade, que é constituída por pai e filhos ou mãe e
filhos) evidenciando o núcleo básico presente no modelo nuclear de
família”. A autora considera que o texto constitucional deixou de
incluir famílias que fogem a esse padrão.
Em termos das políticas públicas, há menções específicas à
definição de família e à forma de proteção que é oferecida para as
famílias. Aliás, é nessas políticas que se corporifica o claro chamado
para que as famílias assumam parcela de responsabilidade na
proteção social, conforme será visto na área da assistência social e
da saúde.
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) reconhece
explicitamente a centralidade das famílias “como espaço privilegiado
e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de
cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e
protegida” (Brasil, 2004, p. 34). Para isso estabelece que no seu
trabalho com famílias:

[…] deve considerar novas referências para a compreensão dos diferentes


arranjos familiares, superando o reconhecimento de um modelo único
baseado na família nuclear, e partindo do suposto de que são funções
básicas das famílias: prover a proteção e a socialização dos seus membros;
constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de
identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros
com outras instituições sociais e com o Estado. […] As novas feições da
família estão intrínseca e dialeticamente condicionadas às transformações
societárias contemporâneas, ou seja, às transformações econômicas e
sociais, de hábitos e costumes e ao avanço da ciência e da tecnologia
(Brasil, 2004, p. 29 e 35).

A PNAS trabalha com a compreensão de que as dimensões


clássicas que tradicionalmente definiam a família (sexualidade,
procriação ou convivência) já não estão tão entrelaçadas entre si e
coloca em evidência a percepção da família como rede de cuidados.
“Nesta perspectiva, podemos dizer que estamos diante de uma
família quando encontramos um conjunto de pessoas que se acham
unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade”
(Brasil, 2004, p. 35). No Programa Bolsa Família (PBF) também
consta especificamente que a família é “a unidade nuclear,
eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam
laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico,
vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de
seus membros” (Brasil, 2006, p. 1).
Portanto, a família, para Política de Assistência Social, além de
ser fundamental na execução dos cuidados, é elemento chave na
superação da focalização das políticas públicas: “o desenvolvimento
de uma política universalista prevê o entrelaçamento das suas ações
com transferências de renda a partir de redes socioassistenciais que
suportem as tarefas cotidianas de cuidado e que valorizem a
convivência familiar e comunitária” (Brasil, 2004, p. 35).
Na área da saúde, a compreensão da família, sua configuração
e atribuições nos cuidados são elementos fundamentais para a
definição de direitos e responsabilidades, ou recursos e deveres.
Isso porque, no novo modelo de atenção (a Atenção Básica à Saúde)
a família é considerada uma aliada na definição de ações de saúde
— quer seja na promoção da saúde, na prevenção ou na cura.4
Entretanto, e a despeito da sua centralidade, alguns autores chamam
a atenção para o fato de que as ações em saúde pública nem
sempre têm claro quem é a família, objeto da sua prática (Elsen,
1994; Carvalho, 1998; Trad e Bastos, 1998; Ribeiro, 2004; Resta e
Motta, 2005; Serapione, 2005), nem dos laços de parentesco que se
apresentam nela, aspectos que têm implicações no tratamento
terapêutico (Scott, 2006).
A falta de orientação sobre como perceber a família na área da
saúde está plasmada, por exemplo, na configuração do formulário do
Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), no qual percebe-
se a ausência de campos para registrar o grau de parentesco dos
moradores de uma casa. A noção de que a família em certas
comunidades se dilui na categoria parentesco (que se alarga para
agregar vizinhos ou famílias próximas) — noção esta que guia a
prática dos Agentes de Saúde — decorre da convivência desses
profissionais com a população adstrita e não das ferramentas e
orientações normativas que norteiem o trabalho com famílias (Scott,
2006).
Ainda na área da saúde, a Estratégia Saúde da Família (ESF)
— enquanto elemento estruturante do modelo de Atenção Básica no
país — considera que

[…] a família passa a ser o objeto precípuo de atenção, entendida a partir do


ambiente onde vive. Mais que uma delimitação geográfica, é nesse espaço
que se constroem as relações intra e extra familiares e onde se desenvolve a
luta pela melhoria das condições de vida — permitindo, ainda, uma
compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da
necessidade de intervenções de maior impacto e significação social (Brasil,
1997, p. 9).

A ESF claramente estabelece como um dos seus objetivos


básicos: “eleger a família e o seu espaço social como núcleo básico
de abordagem no atendimento à saúde” (Brasil, 1997, p. 11). No
entanto, e embora conste explicitamente nos documentos da ESF
que a família é o objeto da sua atenção, na prática diária das equipes
de saúde, muitas imprecisões giram em torno da sua compreensão e
definição. Chama a atenção que no documento que assinala a
reorientação do modelo em saúde (cf. Brasil, 1997) a ênfase recai
precisamente na reversão do modelo de atenção e na reorganização
da prática assistencial (do hospitalocêntrico para a atenção básica e
seus aspectos preventivos) e não em definir o real significado dela
estar centrada na família, nem a forma como esta concretamente
deverá participar. Percebe-se, também, que embora a ESF tenha
como pilar a corresponsabilidade das famílias nos cuidados, não há
menção, nos documentos que a normatizam, à parte que cabe às
famílias nessa partilha de responsabilidades: “enquanto os
trabalhadores em saúde (médicos, enfermeiros, agentes
comunitários de saúde etc.) têm as suas funções estabelecidas,
parece não haver o mesmo nível de clareza no que tange aos
encargos das famílias na corresponsabilidade pelos cuidados”
(Gelinski, 2011, p. 98). As famílias são convocadas a serem
corresponsáveis, mas não têm conhecimento do que se espera
delas.
Em comum, nas políticas públicas percebe-se a centralidade
das famílias e a concepção delas num sentido ampliado que abarca
a rede como suporte importante às ações de cada política específica.
E que, mesmo com as imprecisões em torno do conceito, ela é
considerada elemento fundamental para a proteção social e para o
êxito das políticas sociais. Diante disso, interessa agora definir o
perfil de família que emerge dos dados demográficos para verificar
se ela terá condições de executar as ações de proteção social que o
Estado lhe atribui.

4. CONDICIONANTES SOCIODEMOGRÁFICOS DA FAMÍLIA


CONTEMPORÂNEA

O relatório do Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2011a) capta as


mudanças nas famílias a partir da categoria domicílio — espaço
destinado a servir de habitação. Tanto que o IBGE define a família
como “o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco,
dependência doméstica ou normas de convivência, todos residentes
na mesma casa ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar”.
Informações relevantes são elaboradas a partir dessa categoria,
tais como o tipo de domicílio em que as famílias vivem (se
apartamento, casa, oca, maloca etc.); sobre a condição de
responsabilidade pelo domicílio (pessoa responsável, cônjuge, filho,
pai, mãe etc.); ou sobre a espécie de unidade doméstica (unipessoal
ou nuclear).
Mesmo com as limitações que o uso da categoria domicílio
impõe para a compreensão das características das famílias, cabe
destacar cinco elementos de mudança nas famílias brasileiras
observadas nos levantamentos demográficos mais recentes.5
Elementos esses que se bem não são novos, consolidam os traços
característicos da família deste início do século XXI, em contraste
com aquela que a mesma possuía na década de 1960 — ponto de
inflexão nos costumes e na formação das famílias, devido
principalmente ao ingresso acentuado das mulheres no mercado de
trabalho e ao controle da natalidade propiciado pela pílula
anticoncepcional.
O primeiro elemento é a queda substancial do tamanho da
família. Se em 1981 o número médio de pessoas por família era 4,3,
em 2011 esse número caiu para 3,1. A explicação pode ser atribuída
à queda significativa que a taxa de fecundidade (ou o número médio
de filhos por mulher em idade de procriar, isto é, de 15 a 49 anos),
vem apresentando nas últimas cinco décadas (Figura 1). Enquanto
em 1960, a média era 6,3 filhos por mulher, em 2010 esse número
cai para 1,86. Inferior, portanto, à taxa de reposição da população, de
pelo menos 2 filhos por casal.

Figura 1. Taxa de fecundidade no Brasil (1960-2010)

Fonte: PNADS (1991 e 2009) e Censo (1960, 1970, 1980, 2000 e 2010).

Pela constante queda da taxa de fecundidade, estima-se que


em 2040 o país atinja o chamado “crescimento zero” e partir daí
apresente queda do seu contingente populacional (IBGE, 2008).
O segundo elemento é o aumento da idade média da
população. Os dados revelam que juntamente com a queda
pronunciada da fecundidade há uma elevação da expectativa de
vida. Em 1940 a esperança de vida ao nascer no Brasil era de 45,5
anos, em 2010 passou para 73,48 e para 2050 a estimativa é de
alcançar 81,3 anos. Isso tem reflexos na estrutura etária da
população: se em 2008, para cada 100 crianças de 0 a 14 anos
existiam 24,7 idosos de 65 anos ou mais, para 2050 estima-se que
para cada 100 crianças de 0 a 14 anos existirão 172, 7 idosos (IBGE,
2008, 2011b). Com isso, a estrutura da pirâmide populacional terá
um alargamento do topo e um estreitamento da base (Figura 2).
Mudanças na estrutura etária da população afetam o
financiamento da previdência social.6 Dado relevante para isso é a
relação entre pessoas que ingressam nas idades ativas (15 a 64
anos de idade) e aqueles que atingem as chamadas idades
potencialmente inativas (acima de 65 anos). A esse respeito,
percebe-se que, no ano 2000, para cada pessoa que tinha 65 anos
ou mais de idade, aproximadamente 12 estavam na faixa etária ativa.
Já em 2050, estima-se que a relação entre ambos os grupos de
idade será de um para pouco menos de três (IBGE, 2008). O tema
preocupa gestores previdenciários ao redor do mundo, a ponto de
levar a afirmações polêmicas como a feita por Taro Aso (ministro de
Finanças e ex-primeiro ministro do Japão) que, no ano 2013, causou
polêmica ao afirmar que idosos doentes são um peso para esse país
e que deveriam morrer logo em vez de prolongar a vida com
tratamentos que custam caro aos cofres públicos (Kovalick, 2013). A
despeito de ser uma opinião no mínimo desastrada, a afirmação toca
num aspecto que preocupa tanto países desenvolvidos quanto
emergentes pelo número crescente de idosos a requerer sustento e
tratamento enquanto reduz a proporção de jovens para trabalhar e
pagar impostos.

Figura 2. Alterações na pirâmide etária do Brasil 1980 e 2050


Fonte: IBGE (2008).

O terceiro elemento diz respeito à manutenção da taxa de


nupcialidade legal e aumento do número de divórcios. A taxa de
nupcialidade legal refere-se à proporção do número de casamentos
para cada 1000 habitantes. Na análise dos dados do registro civil
percebe-se que enquanto a taxa de nupcialidade permanece entre
1999 e 2008 relativamente estável (em torno de 6,5%), a taxa de
divórcios apresenta comportamento ascendente: em 1999 era 1,2%
e em 2010 pula para 1,52%, o que significa um crescimento de mais
de 25% no período em questão (IBGE, 2011d). Chama-se a atenção
aqui para o fato da fragilização dos laços familiares.
Em quarto lugar verifica-se o aumento do número de famílias
cuja pessoa de referência é a mulher. No conjunto de arranjos
familiares, embora ainda prevaleça o tipo de família formada por
casal e filhos, ganha destaque aquele formado por mulheres sem
cônjuge e com filhos (IBGE, 2011a). Este elemento é um dos mais
reveladores em termos da nova configuração das famílias. A Figura 3
mostra o percentual crescente de mulheres que declaram ser a
pessoa de referência dos lares, ou “chefes de família”.7 Em 1985 as
mulheres eram responsáveis por 18,2% dos lares, percentual que se
elevou para 27,3% em 2001 e 38,7% em 2010. Portanto, só nos
últimos dez anos houve um acréscimo de 11,4 pontos percentuais.
Em termos absolutos, significa que praticamente dobrou o número de
mulheres nessa condição na última década: eram 11.160.635 em
2001 e passaram para 22.242.88 em 2010.

Figura 3. Percentual de famílias cuja pessoa de referência são mulheres (1960-


2010)
Fonte: PNADS (1991 e 2009) e Censo (1960, 1970, 1980, 2000 e 2010).

Por último, é importante destacar o aumento do número de


famílias unipessoais. Dentre todos os arranjos familiares, este foi o
que teve o crescimento mais expressivo. As pessoas que moram
sozinhas representavam 8,6% da população no ano 2000. Dez anos
depois representam 12,1% da população. E em alguns estados esse
valor é mais expressivo, caso do Rio de Janeiro, onde mais de
15,6% dos lares têm apenas um morador (IBGE, 2011c).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo a intenção de explorar o perfil da família brasileira e


a percepção que se tem delas nas políticas sociais tinha por objetivo
verificar se as famílias terão condições de assumir os encargos de
proteção social que lhe são propostos e chamar a atenção para o
fato de que as mudanças demográficas em curso podem impedir que
elas executem as funções de proteção social para as quais são
convocadas.
Sem dúvida o retrato da família brasileira mudou
significativamente nos últimos cinquenta anos. No geral, as famílias
são menores, as pessoas alcançam idades mais avançadas, a
proporção de mulheres sozinhas cuidando de filhos não é mais fato
isolado, da mesma forma que aumenta o número de pessoas que
simplesmente optam por morar sozinhas e nem sempre são
provenientes de segmentos com elevados níveis de renda.
Parte dessas mudanças pode ser oriunda de decisões
individuais e algumas até podem ser consideradas conquistas
pessoais ou resultado do empoderamento de alguns segmentos
(como morar sozinho, decidir o tamanho da família ou o estado civil
mais conveniente). Outra parcela dessas mudanças pode ser
considerada alheia à vontade das pessoas, mas não que
necessariamente signifiquem um ônus, como o caso do aumento da
longevidade resultante de avanços da medicina ou de melhores
condições de vida. Há ainda mudanças que a vida em certa forma
impõe às famílias, como o enfrentamento das adversas condições
com que se deparam aquelas cujos cuidados recaem unicamente
sobre a mulher, situação potencializada pela pobreza.
Avaliar se essas mudanças são positivas ou negativas para a
sociedade seria fazer uma análise precipitada e é tema que foge ao
escopo deste trabalho. O que interessa salientar é que independente
das mudanças serem oriundas de decisões conscientes ou não,
coletivas ou individuais, chamam a atenção para o tipo de proteção
social que o país terá que disponibilizar para daqui a 50 ou 60 anos.
E aí alguns questionamentos se impõem: dada a centralidade das
famílias na execução das políticas sociais e as mudanças
demográficas em curso, quem assumirá o encargo de cuidar de
doentes e idosos? Quem cuidará das pessoas que moram sozinhas?
Com a queda da taxa de natalidade, quem contribuirá para o
financiamento da previdência social? Nesse caso, o sistema terá
condições financeiras de prover proteção social nos moldes da que
muitos países europeus oferecem a seus cidadãos já desde o
alvorecer do século XX?
A questão é que, mesmo com a tão propalada centralidade da
família nas políticas sociais, o Estado vem se desvencilhando já há
mais de trinta anos de uma série de responsabilidades e as vem
repassando para as famílias, e isso a despeito do aumento da
vulnerabilidade das mesmas, e não há sinais de que estejam sendo
construídos sistemas de proteção sólidos para as gerações futuras.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da família: uma estratégia para a


reorientação do modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de
Assistência à Saúde, 1997.
______. Lei n. 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Conversão da MP n. 132, de 2003.
Cria o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Brasília, 2006.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Secretaria
Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social. Brasília,
2004.
CALDAS, C. P. Envelhecimento com dependência: responsabilidades e demandas
da família. Cadernos de Saúde Pública, v. 19, n. 3, p. 733-781, 2003.
CAMPOS, M. S. Para que serve pensar a existência de uma “Chefia Feminina” na
família atual? In: MARTINO, M. (Org.). Infancia, família y género: multiples
problemáticas, multiples abordajes. Montevideo: Ediciones Cruz del Sur, 2010.
CARVALHO, M. C. B. A priorização da família na agenda de política social. In:
KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira, a base de tudo. Brasília/São Paulo:
Unicef/Cortez, 1998.
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ELSEN, I. Desafio das enfermagem no cuidado de famílias. In: PENNA, Cláudia
Maria de Mattos et al. (Orgs.). Marcos para a prática de enfermagem com famílias.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994.
GELINSKI, C. R. O. G. A questão da corresponsabilidade prevista na estratégia
saúde da família. Política & Sociedade, v. 10, p. 97-11, 2011. Disponível em:
<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/21404>. Acesso em:
15 abr. 2014.
GENTIL, Denise Lobato. A política fiscal e a falsa crise da seguridade social
brasileira: análise financeira do período 1990-2005. Tese (Doutorado em
Economia) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 244f.
Disponível em: <www.corecon-rj.org.br/ced/tese_previdencia_denise_lobato.pdf>.
Acesso em: 6 jun. 2013.
GERSTEL, N. R. Família. In: OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T. (Eds.). Dicionário
do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
GIAMBIAGI, F.; TAFNER, P. Demografia: a ameça invisível: o dilema previdenciário
que o Brasil se recusa a encarar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
GUEDES, S.; LIMA, M. da S. Casa, família nuclear e redes sociais em bairros de
trabalhadores. In: BARROS, M. L. Família e gerações. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2006.
IBGE. Projeção da população do Brasil por sexo e idade 1980-2050: Revisão 2008.
Rio de Janeiro: Brasília: IBGE, 2008. (Informação Demográfica e Socioeconômica,
n. 24.)
______. Censo Demográfico: características da população e dos domicílios.
Resultados do universo, 2011a. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?
id_noticia=2017&id_pagina=1&titulo=Censo-2010:-Mais-da-metade-dos-
emigrantes-brasileiros-sao-mulheres>. Acesso em: 2 dez. 2011.
______. Em 2010, esperança de vida ao nascer era de 73,48 anos, 2011b.
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?
id_noticia=2032&id_pagina=1>. Acesso em: 2 dez. 2011.
______. Indicadores sociais municipais: uma análise dos resultados do universo do
Censo Demográfico, 2011c. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?
id_noticia=2019&id_pagina=1&titulo=Indicadores-Sociais-Municipais-2010:--
incidencia-de-pobreza-e-maior-nos-municipios-de-porte-medio>. Acesso em: 2 dez.
2011.
______. Registro civil 2010: número de divórcios é o maior desde 1984, 2011d.
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?
id_noticia=2031&id_pagina=1>. Acesso em: 2 dez. 2011.
ITABORAÍ, N. R. A proteção social da família brasileira contemporânea: reflexões
sobre a dimensão simbólica das políticas públicas. In: SEMINÁRIO FAMÍLIAS E
POLÍTICAS PÚBLICAS, Anais…, Porto Alegre, ABEP, 2005.
KOVALICK, R. Ex-premiê japonês diz que idosos doentes são um peso para o
país. Bom Dia Brasil, TV Globo, 23 jan. 2013. Disponível em:
<http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/01/ex-premie-japones-diz-que-
idosos-doentes-sao-um-peso-para-o-pais.html>. Acesso em: 28 mar. 2013.
KROTH, V. W. As famílias e os direitos no Brasil: conceituação sócio-histórica,
previsão legal e decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal e Supremo
Tribunal de Justiça entre a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002.
Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) — Universidade Federal de Santa
Catarina, Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, Florianópolis, 2008.
MIOTO, R. C. Família e políticas sociais. In: BOSCHETTI, I. et al. (Orgs.). Política
social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008.
MOSER, L. A nova geração de políticas sociais no contexto europeu: workfare e
medidas de ativação. Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 6876, jan./jun. 2011.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rk/v14n1/v14n1a08.pdf>. Acesso em: 6
maio 2013.
PEREIRA, P. A. P. Pluralismo de bem-estar ou configuração plural da política social
sob o Neoliberalismo. In: BOSCHETTI, I. et al. (Orgs.). Política social: alternativas
ao neoliberalismo. Brasília: Ed. da UnB, 2004.
______. Do Estado social ao Estado antissocial. In: PEREIRA, Potyara A. P. et al.
Política social, trabalho e democracia em questão. Brasília: Universidade de
Brasília, Programa de Pós-graduação em Política Social, Departamento de Serviço
Social, 2009.
RESTA, D. G.; MOTTA, M. da G. C. Família em situação de risco e sua inserção no
programa de saúde da família: uma reflexão necessária à prática profissional.
Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 14, número especial, p. 109-115,
2005.
RIBEIRO, E. M. As várias abordagens da família no cenário do programa/
estratégia de saúde da família (PSF). Revista Latino-Americana de Enfermagem, v.
12, n. 4, p. 658-664. jul./ago. 2004.
SARTI, C. A Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Roja; VITALE, Maria Amália
Faller (Orgs.). Família: redes, laços, e políticas públicas. São Paulo:
Cortez/Instituto de Estudos Especiais/PUC-SP, 2005.
______. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo:
Cortez, 2007.
SCOTT, P. Gerações, comunidades e o Programa Saúde da Família: reprodução,
disciplina e a simplificação administrativa. In: BARROS, M. L. Família e gerações.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
SERAPIONE, M. O papel da família e das redes primárias na reestruturação das
políticas sociais. Ciência e Saúde Coletiva, v. 10, supl., p. 243-253, set./dez. 2005.
STACK, C. All our kin. Nova York: Harper & Row, 1974.
TRAD, L. A. B.; BASTOS, A. C. de S. O impacto sociocultural do Programa de
Saúde da Família (PSF): uma proposta de avaliação. Cadernos de Saúde Pública,
v. 14, n. 2, p. 429-435, abr./jun. 1998.
Serviços sociais e responsabilização da
família: contradições da Política Social
brasileira

______________________ Regina Célia Tamaso


Mioto Keli Regina Dal Prá

1. INTRODUÇÃO
O redesenho da política social brasileira efetuado
especialmente a partir da contrarreforma do Estado nos anos de
1990 não só colocou em cheque as conquistas efetuadas com a
Constituição Federal de 1988, como veio reforçar processos
altamente naturalizados no contexto da sociedade brasileira
referentes a proteção social. Ao engendrar orientações e
mecanismos que dessem materialidade às premissas do pluralismo
de bem-estar social encaminhou/reforçou o amplo processo de
privatização da seguridade social brasileira. Privatização que se
realiza tanto através do setor comercial (mercado), como dos
setores voluntário (organizações sociais não governamentais) e
informal. De acordo com Pereira (2004), o pluralismo de bem-estar
consiste na quebra da centralidade do Estado na provisão de bem-
estar, típica do Estado de Bem-Estar Social, em favor do mercado e
dos setores não governamentais e não mercantis, como atores
fundamentais nas decisões e na prática da política social. Nessa
perspectiva, a autora insiste que o pluralismo de bem-estar não é
uma “distinção de forma, como fazem crer os seus defensores, mas
uma mudança de princípios e critérios no próprio processamento da
política” (Pereira, 2004, p. 33). Ainda para a autora, ele é ideológico
e incorpora uma mudança de fundo. Nessa configuração, o setor
informal é constituído pelas “redes primárias e informais, de apoio
desinteressado e espontâneo, constituída da família, da vizinhança
e dos grupos de amigos próximos” (Pereira, 2004, p. 32).
Particularmente, as famílias vêm sendo cada vez mais chamadas a
responder pela provisão de bem-estar. Nesse contexto é que se
instaura o debate sobre os processos de responsabilização da
família no campo da política social. Processos que vem sendo
analisados a partir das formas como a família é incorporada pela
política social, bem como pelo caráter instrumental que assume no
seu interior.
Nessa perspectiva, é possível verificar que nos regimes de
bem-estar social tal incorporação tem variado dependendo da
construção histórica dos diferentes estados nacionais. Nesse
movimento pode-se dizer que numa ponta encontram-se aqueles
regimes denominados de familiaristas, devido a aposta incondicional
que fazem na família como principal instância de provisão de bem-
estar. Na outra ponta estariam aqueles vinculados à social-
democracia que, através de uma ampla oferta de serviços públicos
de caráter universal, buscam amenizar antecipadamente os custos
enfrentados pelas famílias. Assim, as reconfigurações que se
desenham atualmente nos próprios regimes de bem-estar social e
na família em face às transformações do próprio capitalismo,
impõem a necessidade de análises da política social. Especialmente
daquelas de natureza socioassistencial (Saraceno, 1996; Campos e
Mioto, 2003; Campos e Teixeira, 2010; Carloto e Mariano, 2010;
Barcelos, 2011). A análise das políticas de natureza
socioassistencial, embora necessárias, é bastante problemática
considerando o conjunto e a complexidade das relações dentro das
quais são definidas. Por isso, os serviços sociais se tornam um
importante vetor dessa análise à medida que são o locus de
materialização de tais políticas. Os serviços sociais podem ser
concebidos pelo prisma da operacionalização das políticas sociais e
pela efetivação dos direitos. Nessa identificação reside sua
importância na provisão de necessidades sociais da população, ao
mesmo tempo que a ausência ou o sucateamento da prestação de
serviços sociais afeta perversamente esta mesma população (Mioto,
2012).
A proposta de analisar os processos de responsabilização das
famílias a partir dos serviços sociais está originalmente ancorada na
proposição de Saraceno (1996) que, considerando a complexidade
e as contradições existentes no debate sobre família e política
social, propõe três níveis analíticos. O primeiro refere-se aos
mecanismos redistributivos efetuados pela política social, onde
destaca a distribuição dos serviços sociais (educacionais, sanitários
e sociais) nos territórios, além das transferências de recursos
monetários, como fator fundamental na produção e reprodução das
desigualdades. Para a autora, o modo como os recursos públicos
são distribuídos é elemento crucial nos processos de produção e
reprodução das desigualdades. A desigualdade de distribuição dos
serviços, tanto em relação ao número quanto à qualidade,
demarcam de forma especular a distribuição da riqueza.
No segundo nível, a autora considera o sistema família-
serviços, enfatizando as formas como as famílias usufruem dos
serviços tendo em vista que são essenciais para o bem-estar e
organização das famílias. Por último, indica um terceiro nível
analítico que é a interferência da política social especialmente
através dos serviços, no âmbito do trabalho familiar. Considera-se
que os tempos e os modos de alocação do trabalho familiar não
dependem somente do mercado de trabalho, mas também das
requisições dos serviços. Dessa forma, o trabalho familiar pode ser
utilizado como recurso da política social e funcionar como um
mecanismo importante para reforçar a divisão sexual do trabalho
dentro das famílias e também manter a invisibilidade do próprio
trabalho. A autora entende o trabalho familiar como o conjunto de
atividades relacionadas às tarefas domésticas; ao cuidado de seus
membros, especialmente os dependentes; e também os
investimentos que as famílias têm de fazer no campo das relações
com outras instituições que lhe exigem tempo, energia e habilidades
(Mioto, 2010).
O debate sobre as relações entre serviços e família tem se
referenciado especialmente na organização dos serviços sociais.
Nela, a responsabilização das famílias tem sido realizada,
essencialmente, através de um nebuloso campo de indefinições e
negociações que podemos denominar de “campo do cuidado”. É
justamente nesse campo que ocorre, no cotidiano dos serviços, os
deslizamentos em torno de atribuições de responsabilidades na
provisão de bem-estar. Sob a égide do cuidado se articulam
diferentes estratégias de imposição ou transferência dos custos do
cuidado para as famílias. Tais custos situam-se tanto no arco dos
custos financeiros, como emocionais e de trabalho. Assim, segundo
Saraceno (1996, p. 237), os serviços modulam níveis de adequação
e de requisições para as famílias e isso demonstra o caráter
contraditório dessa relação, pois ao mesmo tempo em que são
organizados para cumprir determinadas finalidades ou aliviar as
tarefas da família, requerem trabalho e se definem como agenzie
legittime di definizione delle norme. Essa relação se torna ainda
mais candente, quando se traz à baila a questão da desigualdade
social. Ou seja, as famílias não se encontram nas mesmas
condições materiais e culturais, e com isso as possibilidades de
usufruírem dos serviços também se tornam desiguais. Tanto para
avaliá-los e negociar sobre as condições e qualidade dos serviços
ofertados, quanto para a combinação de recursos para usufruir dos
serviços. Essa combinação implica tanto em trabalho familiar, como
em recursos materiais da família que inclui os auxílios da rede social
primária (família extensa, amigos, vizinhos).
Além disso, deve ser destacado que as tarefas familiares as
quais os serviços aliviam, requerem ou redefinem, são realizadas na
sua grande parte por mulheres. Isso representa um dos vieses por
meio do qual a política social tende a reforçar o modelo da divisão
sexual do trabalho e portanto a desigualdade de gênero (Saraceno,
1996; Parella, 2001). Nesse sentido, assinala-se que os serviços
têm as mulheres como importantes protagonistas tanto na condição
de usuárias como na condição de trabalhadoras. Duque-Arrazolla
(2006, p. 89) assinala que a queixa das mulheres em relação ao
tempo, expressa as suas relações cotidianas de subalternidade.
Estas, segundo a autora, são mediadas pelas relações de serviço
que configuram real e simbolicamente grandes exigências para a
prática cotidiana da maternagem e da reprodução social da família
que são consideradas socialmente como tarefa e responsabilidade
“inquestionável” das mulheres. Porém, é necessário atenção sobre
as alternativas que se apresentam no processo de equacionamento
dessa questão à medida que uma das alternativas mais
evidenciadas é o aumento da participação dos homens no âmbito do
trabalho familiar, ou seja, no trabalho não remunerado. Essa
alternativa, sem dúvida, contribui enormemente no campo da
promoção da igualdade de gênero, porém ela não resolve a questão
central que é a sobrecarga da família em relação à provisão de
bem-estar. Essa é uma chave importante para compreender a
posição dinâmica que a família ocupa nos processos de produção e
consumo de bem-estar (Esping-Andersen, 2000).
De acordo com Maldini e Saraceno (2007) os processos de
responsabilização das famílias no âmbito dos serviços ocorrem
através de duas formas a saber, sob forma de prática administrativa
e sob forma de participação. Sob a forma de prática administrativa
considera-se todo movimento que envolve a burocracia dos serviços
e nelas situam-se as atividades necessárias para o acesso ao
próprio direito e para a sua fruição. Nos serviços de saúde Sgritta
(1988) salienta o papel da família especialmente naquilo que
denomina fase não organizada da doença, que implica em escolhas
sobre as alternativas de atendimento, envolvimento com práticas
administrativas relacionadas aos serviços sanitários, relações com o
ambiente de trabalho do doente ou de responsáveis pelo doente,
dentre outras questões. Quanto à participação das famílias nos
serviços, essa participação é requerida tanto através de práticas
formais de integração como de práticas informais, geralmente
relacionadas às deficiências dos serviços. Dessa forma, o uso dos
serviços requer das famílias a organização de seu tempo e de seus
recursos. Assim, o funcionamento dos serviços e as propostas sobre
as possíveis mudanças na qualidade da atenção, repousam em
grande parte nas relações com a família, trazendo, de quebra, juízos
sobre o seu funcionamento. Assim, os serviços se colocam frente às
famílias. Aquelas que acolhem e oferecem sustentação aos seus
doentes e entram nos serviços para humanizá-los, são as
conhecidas como boas famílias. Aquelas que delegam seus
membros necessitados aos serviços e se furtam de sua presença e
de seus cuidados são tidas como más famílias.
No entanto, é fundamental atentar, para além das
considerações efetuadas, que o desenvolvimento do processo de
responsabilização das famílias nas suas diferentes formas ocorre a
partir de determinadas condições que dão sustentabilidade à
direção desse processo. Entre essas condições merece destaque a
indução desse processo pela conformação da própria política social.
Ou seja, a política social na sua postulação e na sua conformação já
prevê a incorporação da família no campo da proteção social.
Campos e Mioto (2003) evidenciaram os elementos legais e
operacionais constantes na política social brasileira que sustentam
substantivamente o papel da família na proteção social. Segundo as
autoras, por exemplo, a Lei n. 8.842/1994, que dispõe sobre a
Política Nacional do Idoso, afirma entre as suas diretrizes básicas, a
prioridade absoluta da família como instituição mais capaz de
produzir o bem-estar dos idosos. Além da incorporação da família
nos textos de lei, ou mesmo que ela não apareça num primeiro
momento, essa incorporação no Brasil vem sendo construída no
interior dessas políticas. Tanto por meio de normativas e orientações
que incidem diretamente na organização e na provisão de serviços,
como é sinalizado por Mioto (2012) no campo da saúde, como mais
recentemente por meio de lançamento de programas
governamentais. Através da análise dos programas do governo
federal — Brasil Carinhoso e Melhor em Casa, objetiva-se levantar
alguns aspectos que demonstram a indução de processos de
responsabilização das famílias na provisão de bem-estar. Para tanto
realiza-se uma breve apresentação dos referidos programas e a
partir dela expõe-se um primeiro esboço analítico. Em seguida,
algumas conclusões provisórias.
2. OS PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS, OS SERVIÇOS
SOCIAIS E OS PROCESSOS DE ESPONSABILIZAÇÃO DAS
FAMÍLIAS

Partindo das considerações iniciais busca-se, neste item,


esboçar o debate sobre a centralidade do papel dos serviços sociais
na responsabilização das famílias pela provisão de bem-estar social
pautada em dois itens: os programas governamentais e as
evidências sobre a intensificação da responsabilidade familiar na
provisão de bem-estar: descaminho da lógica dos direitos sociais.
Do primeiro item constam informações de documentos e falas
oficiais sobre os Programas Brasil Carinhoso e Melhor em Casa. Do
segundo, a composição de um esboço analítico efetuado a partir
dos marcos teóricos que sustentam o debate crítico em torno da
família no campo da política social.

2.1 Os programas governamentais Brasil Carinhoso e Melhor


em Casa

A Agenda de Atenção Básica à Primeira Infância — Brasil


Carinhoso, que compõe o Plano Brasil Sem Miséria, lançado em
maio de 2012, tem como foco principal retirar da “miséria absoluta
todas as famílias brasileiras que tenham pelo menos uma criança de
zero a seis anos de idade” (Rousseff, 2012), através da integração
de ações de três ministérios: Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate a Fome (MDS), Ministério da Educação (MEC) e Ministério
da Saúde. Prioritariamente a Agenda se concentra em três eixos: o
pagamento de R$ 70,00 a cada membro das famílias com crianças
na faixa etária de 0 a 6 anos, a ampliação do acesso dessas
crianças a creches e ao atendimento de saúde específico para a
primeira infância.
O compromisso governamental com o Programa foi ampliado
após seu lançamento oficial. A partir de dezembro 2012 passam a
ser beneficiadas as famílias que tiverem crianças de 7 a 15 anos. A
expansão do Programa se justifica pela elevada taxa de pobreza na
faixa etário até os 15 anos.
Os dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica e
Aplicada (IPEA) em 2012 indicam que a taxa de pobreza infantil é
superior à de outros grupos da sociedade brasileira. Nas faixas
etárias de 0 a 4, 5 a 9 e 10 e 14 anos a percentagem de crianças e
adolescentes em situação de extrema pobreza até 2011 era
respectivamente de 21%, 22% e 21%. Mesmo na faixa etária
seguinte de 15 a 19 anos o percentual é elevado (15%) se
comparado ao restante da população adulta e idosa, já que a taxa
mais elevada nestas faixas etárias não ultrapassa 11% (Neri, 2012).
Esta expansão visa beneficiar aproximadamente 8,1 milhões de
crianças entre 0 e 15 anos, que se encontram em extrema pobreza
e estejam no Cadastro Único (CadÚnico) para Programas Sociais
do governo federal e alcançará, no total, 16,4 milhões de brasileiros.
Em relação às ações desenvolvidas pelos três ministérios
envolvidos na execução da proposta do Programa pode-se indicar
(Brasil, 2012a):
Educação — ampliação do acesso a creches e pré-escolas a
partir do aumento do número de vagas nas instituições públicas e
conveniadas. A previsão é construir mais de 1.500 creches em todo
o país por meio de repasses realizados aos municípios pelo
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2). Está previsto o
repasse aos municípios de 50% a mais no valor pago pelo governo
federal (o valor de R$ 2.725,00 aluno/ano será complementado com
mais R$ 1.362,00 aluno/ano) para cada criança matriculada na
creche ou pré-escola cuja família esteja cadastrada no Programa
Bolsa Família (PBF) e também o aumento em aproximadamente
70% do valor dos repasses destinados aos municípios para reforçar
a alimentação nas creches.
Saúde — expansão do Programa Saúde na Escola (PSE) às
creches e às pré-escolas, com o objetivo de ampliar a promoção e a
prevenção à saúde na primeira infância. O PSE, desenvolvido nas
escolas com o apoio da Estratégia de Saúde da Família (ESF),
atendia estudantes com idade entre 5 e 19 anos. Outras duas
medidas se concentram na expansão da distribuição de doses de
vitamina A para crianças entre 6 meses e 5 anos nas Unidades
Básicas de Saúde (UBS), visando a suplementação nutricional e a
distribuição gratuita de medicamentos para asma nas unidades do
Aqui Tem Farmácia Popular.
Assistência Social — ampliação do PBF visando garantir às
famílias que tenham pelo menos uma criança com até 15 anos de
idade e renda mínima por pessoa superior a R$ 70,00 mensais. Esta
ampliação será viabilizada com o Benefício para a Superação da
Extrema Pobreza na Primeira Infância, cujos critérios para as
famílias serem contempladas são: 1) ter em sua composição familiar
crianças de 0 a 15 anos de idade e 2) apresentarem renda familiar
mensal igual ou inferior a R$ 70,00 por pessoa, mesmo após o
recebimento dos benefícios do PBF (Brasil, 2013a).
O Programa Brasil Carinhoso é considerado pela Presidente
Dilma Rousseff como a principal iniciativa de combate à pobreza
extrema na faixa etária da primeira infância. No discurso de
lançamento do Programa indicou que a meta é retirar da pobreza
extrema as famílias destas crianças, por meio da garantia de uma
renda mínima.

E por que […] damos essa contribuição a todas as pessoas da família que
tenha pelo menos uma criança de zero a seis anos? É porque quando a
gente garante a renda mínima a cada membro de uma família em condição
de extrema pobreza, nós estamos reconhecendo que somente é possível
retirar uma criancinha da miséria se retirarmos, junto com ela, toda a sua
família (Rousseff, 2012, s/p.).

Na continuidade do discurso a Presidente reafirmou que o


investimento em retirar, não somente a criança da condição de
pobreza, mas toda sua família se deve em função desta ser a
unidade de proteção para as crianças e os jovens. Salientou que os
esforços se concentrarão em garantir a instalação das creches em
todo o país, mas especialmente nas regiões mais pobres como no
Nordeste e no Norte, pois nessas regiões está concentrada a maior
parte das crianças carentes, já que 78% das crianças brasileiras em
situação de pobreza absoluta vivem nessas duas regiões, sendo
60% delas no Nordeste (Rousseff, 2012).
No entanto, não estão previstas no Programa ações diretas de
atenção aos membros da família fora da faixa etária de 0 a 15 anos,
apenas a indicação de que para os adultos ou para os jovens é
necessário garantir oportunidades de emprego e de melhoria na
educação (Rousseff, 2012).
O IPEA, em nota técnica sobre a situação do PBF após a
implantação do Programa Brasil Carinhoso, analisa o potencial do
programa para a superação da pobreza extrema1 (Osorio e Souza,
2012). O estudo realiza simulações que sugerem que a introdução
do benefício do Programa Brasil Carinhoso pode provocar o
aumento da efetividade do PBF no combate à pobreza extrema, em
particular entre as crianças.
A indicação do estudo do Ipea se deve em função de que o
Programa Brasil Carinhoso introduz na determinação do valor da
transferência do PBF importante peso ao “hiato de pobreza extrema”
que é a diferença entre a renda familiar e a linha de elegibilidade.
No desenho anterior do PBF este hiato não era considerado central
“para a determinação do valor do benefício, pois estratificava seus
beneficiários em pobres e extremamente pobres, com os últimos
fazendo jus a uma transferência de valor fixo por família, o benefício
básico”, que não necessariamente garantia a saída da condição de
extrema pobreza (Osorio e Souza, 2012, p. 5).
O Brasil Carinhoso muda a orientação do desenho dos
benefícios. Considerando a soma dos benefícios por composição
familiar do PBF com o Programa Brasil Carinhoso,

a transferência total passa a ser no valor do hiato de pobreza extrema para


as famílias com crianças de 0 a 15 anos que permaneceriam extremamente
pobres após receber a transferência por composição familiar. Assim, os
maiores valores transferidos a título do benefício variável do PBC [Programa
Brasil Carinhoso] são para as famílias grandes, com muitos adultos e muitas
crianças, para as quais o PBF não era efetivo (Osorio e Souza, 2012, p. 7).
A expectativa, segundo o Ipea, é de que este novo desenho
possa em análises pós-2013/2014 demonstrar a redução da taxa da
pobreza extrema na população com faixa etária até 15 anos para
menos de 1%.
Com esta ampliação do Programa Brasil Carinhoso estaria fora
da elevação da renda acima da faixa da extrema pobreza aquelas
famílias sem membros de zero a 15 anos. Estas continuariam a ter
sua transferência definida em função da composição familiar, e
provavelmente permaneceriam na extrema pobreza. Tendo em vista
esta disparidade o governo federal estendeu, em fevereiro de 2013,
o Programa Brasil Carinhoso às demais famílias do PBF, ou seja,
complementando a renda de 2,5 milhões de beneficiários do PBF
que estariam em situação de extrema pobreza.
Segundo o MDS (2013, s/p.), a ampliação do Programa Brasil
Carinhoso é um importante passo para a erradicação da extrema
pobreza no Brasil. Com esta medida, “não existirá mais nenhuma
família beneficiária do Bolsa Família com renda mensal inferior a R$
70,00 por pessoa”.
Na agenda da saúde, no contexto da redefinição2 da atenção
domiciliar no Sistema Único de Saúde (SUS), foi lançado em
outubro de 2011 o Programa Melhor em Casa. O programa é
voltado para o atendimento de pessoas com necessidade de
reabilitação motora, idosos, pacientes crônicos sem agravamento ou
em situação pós-cirúrgica que terão assistência multiprofissional
gratuita em seus lares, com cuidados mais próximos da família (MS,
2012a). O Programa representa talvez a expressão mais importante
no contexto da política de saúde sobre a incorporação da família no
seu interior. Segundo Caetano e Mioto (2012) esta incorporação foi
sendo construída ao longo do tempo, por meio de normativas e
orientações que incidem diretamente na organização e na provisão
dos serviços. Dentre estas são destacadas a Portaria n. 2.416, de
1998, que passou a considerar a internação domiciliar como
instrumento que proporciona a humanização no atendimento e o
acompanhamento dos pacientes, aumentando o contato com a
família, favorecendo sua recuperação e diminuindo os riscos de
contaminação hospitalar (MS, 1998).
Segundo o Ministério da Saúde, o Programa Melhor em Casa
trará como principal benefício a melhora e a ampliação da
assistência no SUS a pacientes com agravos de saúde, que possam
receber atendimento humanizado, em casa, e perto da família. Além
da redução dos riscos de infecções hospitalares, o atendimento na
casa do paciente favorece o “carinho e a atenção familiar aliados à
adequada assistência em saúde” (MS, 2012a, s/p.).
Também são enfatizadas, com a implantação do Programa
Melhor em Casa, a redução na ocupação de leitos hospitalares, a
economia de até 80% nos custos de um paciente, se comparado ao
custo desse mesmo paciente quando internado na unidade
hospitalar e a redução nas filas das urgências e emergências já que
a assistência, quando houver a indicação médica, passará a ser
feita na própria residência do paciente, desde que haja o
consentimento da família (MS, 2012a).
A assistência em saúde prestada no ambiente domiciliar,
considerando as relações familiares estabelecidas, que se diferem
da relação estabelecida entre equipe de saúde e paciente, segundo
o Ministério da Saúde (2012b, s/p.), “tendem a humanizar o cuidado,
(re)colocando o usuário no lugar mais de sujeito do processo e
menos de objeto de intervenção”.

A casa possibilita um novo “espaço de cuidado” que “pode remeter a uma


identificação e proximidade do cuidador para além da função técnica e da
instituição hospitalar”. Este novo local permite um leque de opções na
produção do cuidado e uma maior autonomia para a família do usuário (MS,
2012b, s/p.).

O Programa Melhor em Casa compõe a redefinição da atenção


domiciliar no SUS regulada pela Portaria n. 963 de 2013. Esta
legislação define os elementos essenciais ao funcionamento dessa
nova proposta como: 1) o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD); 2) a
atenção domiciliar — como uma nova modalidade de atenção à
saúde, substitutiva ou complementar às que já existem,
caracterizando-a como um “conjunto de ações de promoção à
saúde, prevenção e tratamento de doenças e reabilitação prestadas
em domicílio, com garantia de continuidade de cuidados e integrada
às redes de atenção à saúde”; e 3) a figura do cuidador que é a
“pessoa com ou sem vínculo familiar, capacitada para auxiliar o
usuário em suas necessidades e atividades da vida cotidiana”
(Brasil, 2013b, s/p.).
O cuidador a que se refere a Portaria é o foco central das
atribuições da equipe multiprofissional que irá oferecer assistência
aos pacientes inseridos no Programa. Esta equipe deverá:

[…] II — identificar e treinar os familiares e/ou cuidador dos usuários,


envolvendo-os na realização de cuidados, respeitando os seus limites e
potencialidades;
III — abordar o cuidador como sujeito do processo e executor das ações;
IV — acolher demanda de dúvidas e queixas dos usuários e familiares e/ou
cuidador como parte do processo de Atenção Domiciliar;
V — elaborar reuniões para cuidadores e familiares;
VI — utilizar linguagem acessível a cada instância de relacionamento;
VII — promover treinamento pré e pós-desospitalização para os familiares
e/ou cuidador dos usuários (Brasil, 2013b, s/p.).

Das nove atribuições previstas pela Portaria para a equipe


multiprofissional seis delas se referem diretamente ao
preparo/capacitação do cuidador, que pode ou não ser um membro
da família.
A inserção dos usuários nas modalidades de Atenção
Domiciliar 2 e 3 previstas para situações que exigem maior
complexidade nos cuidados devido ao agravamento das condições
de saúde do usuário depende da indicação do cuidador por parte da
família. Os gestores também devem incluir no Projeto de
Implantação da Atenção Domiciliar como requisito um programa de
qualificação destes cuidadores.
Tendo em vista a racionalização dos gastos com internações
em unidades hospitalares e o fortalecimento da atenção domiciliar
no SUS, em julho de 2012, o Ministério da Saúde divulga novos
critérios para a adesão dos municípios ao Programa Melhor em
Casa. Estes critérios estão expressos na Portaria n. 1.533, de 2012,
onde os municípios com mais de 40 mil habitantes poderão
implantar o Programa, desde que tenham cobertura do Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou serviço próprio de
atenção às urgências e possuam um hospital de referência no
município ou região a que pertencem (Brasil, 2012b). Anteriormente
estavam aptos a aderir ao Programa municípios com população
igual ou superior a 100 mil habitantes ou cidades com população
igual ou superior a 40 mil habitantes desde que estivessem
localizadas em regiões metropolitanas.
A expectativa da Coordenação do Programa no Ministério da
Saúde é de que haja um aumento de 130% no número de
municípios que passem a ter equipes de atenção domiciliar. Esse
aumento será favorecido também com a possibilidade dos
municípios com mais de 150 mil habitantes poderem implantar uma
segunda equipe de atendimento domiciliar, uma vez que essa
ampliação era permitida somente para os municípios que
alcançassem 200 mil habitantes.
A rápida expansão do Programa Melhor em Casa pode ser
identificada através dos números divulgados pelo Ministério da
Saúde, onde os dados acumulados referente aos meses de abril a
outubro de 2012 indicam um total de 25.415 internações
domiciliares. O número de Equipes Multidisciplinares de Atenção
Domiciliar (EMAD) habilitadas passou de 85, em dezembro de 2011,
para 511, em dezembro de 2012, e as EMAD implantadas no país
no mesmo período correspondem de 44 a 159 equipes
respectivamente (MS, 2013a).
Os investimentos do Ministério da Saúde para a consolidação
da atenção domiciliar também contemplam um Programa de
Qualificação Profissional em Atenção Domiciliar à Distância com
previsão de que até 2014 sejam ofertadas 10.000 vagas em
extensão, 2.000 vagas de aperfeiçoamento e 1.000 vagas em
especialização. Além da meta estimada para 2014 de ampliação
para 1.000 EMAD e 400 Equipes Multiprofissionais de Apoio
(EMAP) (MS, 2013b).
Segue a tendência de ampliação do Programa a
regulamentação do exercício da profissão de cuidador de idosos. De
acordo com o projeto de lei, em tramitação na Câmara dos
Deputados, os cuidadores poderão prestar apoio emocional a
pessoa idosa, auxílio e acompanhamento na realização de rotinas
de higiene pessoal e ambiental e de nutrição e cuidados de saúde
preventivos, administração de medicamentos e outros
procedimentos de saúde. O cuidador poderá atuar em parceria com
as equipes públicas de saúde, sendo orientado por estes
profissionais e deverão ser capacitados por meio de cursos de
formação de natureza presencial ou semipresencial, conferido por
instituição de ensino reconhecida.
No entanto, mesmo com o esforço em garantir — via
regulamentação — a capacitação e qualificação dos cuidadores, o
perfil destes reforça a expansão do cuidado dos pacientes inseridos
no Programa Melhor em Casa às famílias. A pesquisa realizada pelo
Ministério da Saúde em 2012 apontou que 50% dos cuidadores são
filhos dos pacientes, 16,8% são marido/mulher e 10,3% são pai/
mãe. Indicou também que 38,9% dos cuidadores possuem nível
fundamental incompleto ou completo e 31,3% nível médio completo
(MS, 2013c). Os resultados do estudo não mencionam se houve a
contratação de cuidadores formais por parte das famílias inseridas
no Programa.

2.2 Evidências sobre a intensificação da responsabilidade


familiar na provisão de bem-estar: descaminho da lógica
dos direitos sociais

Partindo das informações oficiais sobre os Programas em


pauta o primeiro ponto a ser destacado e que justifica a sua análise
no debate sobre a relação família e serviços sociais é justamente
porque os serviços se constituem em objeto desses Programas. Um
que prevê a criação de serviços/creches e a articulação entre
serviços de diferentes ministérios, visando famílias com crianças de
0 a 15 anos em condição de miséria. O outro que indica, incentiva e
normatiza a presença das famílias no cuidado em saúde,
especialmente dos idosos e doentes crônicos.
Um segundo ponto a ser considerado é que ambos marcam
uma inflexão importante nos rumos da política social brasileira. O
Programa Brasil Carinhoso que, para além de ser altamente
focalizado na pobreza extrema, “re-inaugura” a prática de critérios
socioeconômicos para acesso a serviços também governamentais
no campo da educação (creches), ao incentivar os repasses de
verbas aos municípios que atenderem a famílias cadastradas no
PBF. Isso é impactante à medida que até então parecia haver
consenso sobre a necessidade de se avançar em direção a garantia
de um direito universal de cidadania, mesmo nos debates no interior
dos programas de transferência de renda. Nesse sentido observa-se
o alargamento da lógica da focalização, até então concentrada
fundamentalmente na provisão de recursos monetários através do
PBF, para o acesso a serviços. Além disso, o Programa ao
direcionar-se às famílias com crianças de 0 a 15 anos, também para
a transferência de recursos monetários, tende a dificultar ou mesmo
excluir do acesso à renda famílias que não preencham esse perfil.
Ou seja, não apenas focaliza na família pobre, como duplica essa
focalização ao se fixar em famílias com crianças de 0 a 15 anos.
Nessa perspectiva, implica reconhecer que a política social ao
eleger a família como foco na destinação de recursos e serviços,
sempre está elegendo também um determinado tipo de família e,
consequentemente, ferindo o princípio da universalidade de direitos.
Por isso é que se tem insistido na inconveniência de se ter a família
como destinatária da política social. Por mais que ela seja
abrangente em relação às formas familiares, ela jamais conseguirá
abranger todos os tipos de famílias (Barros, 1995; Campos e Mioto,
2003; Carloto e Mariano, 2010).
No Programa Melhor em Casa essa inflexão acontece ao
explicitar oficialmente a incorporação das famílias na gestão do
cuidado em saúde, atribuição precípua dos serviços de saúde.
Expressão clara de tal incorporação é o número de atribuições
previstas pela Portaria emitida pelo Ministério da Saúde para o
preparo/ capacitação do cuidador (que pode ou não ser um membro
da família) pela equipe multiprofissional e a exigência da indicação
de um cuidador, por parte da família, nos casos de maior
complexidade, conforme previsto na modalidade Atenção Domiciliar
2 e 3.
Com base nos documentos oficiais que demarcam esse
Programa, é importante ressaltar que ele é parte de um movimento
já instaurado no campo da política de saúde e cujas bases podem
ser rastreadas nas recomendações do Banco Mundial nos anos de
1990. De acordo com Nogueira (2002, p. 212-213), o Banco Mundial
recomenda explicitamente o fomento de um ambiente que propicie a
melhoria da saúde das famílias. Segundo a autora, essa
recomendação vai em direção à “[…] adoção das políticas de
ajustamento que preservem a efetividade das despesas de saúde
em relação ao seu custeio, à expansão da instrução formal e à
ampliação do status político e econômico da mulher”. Ilustra tal
orientação no campo discursivo do Ministério da Saúde do Brasil,
ainda nos anos 1990, através de um comentário do então Ministro
José Serra, ao fechar uma clínica de idosos “[…] quem eram os
idosos que estavam lá? Doentes? A maioria não. A maioria era de
rejeitados pelas famílias, que crescentemente jogam para cima do
governo o que no passado era seu encargo, sua responsabilidade”.
Esse movimento foi se reforçando sob a égide da Política de
Humanização do Ministério da Saúde (Brasil, 2004) que ofereceu
guarida para a inclusão, cada vez maior, da família na gestão do
cuidado. Tanto na Política Nacional de Humanização e no Guia
Prático do Cuidador, é possível verificar claramente a naturalização
da responsabilidade da família e o uso instrumental da família pela
política social através da ênfase na solidariedade e no cuidado. O
cuidado, calcado numa concepção de amor ao próximo e atitude de
humanidade. Explicitamente, a cartilha “Visita Aberta e Direito a
Acompanhante”, justifica a defesa da participação da família nos
serviços por considerar que esta deve ser chamada a sua
responsabilidade quanto ao cuidado de seus membros, além de
reafirmar o apelo à solidariedade (Caetano e Mioto, 2012).
Nesse contexto a família vai sendo incluída tanto através de
requisições nos domicílios, como através da participação nos
serviços. Passa a ser invocada e evocada como sujeito fundamental
no processo de cuidado tanto no sentido de sua responsabilidade do
cuidado, como de ser objeto de cuidado. Nesse sentido, uma rápida
visita à literatura demonstra essa assertiva. Os grupos de familiares
têm sido uma tônica nos serviços de saúde e eles aparecem
segundo Bieleman et al. (2009, p. 137), “[…] como uma forma de
inserção da família e uma estratégia utilizada pelo serviço para
contribuir no processo terapêutico do usuário, incluindo a família no
serviço e instrumentalizando-a para o cuidado”. Também no
enfrentamento de problemas como a desnutrição, a qual é
reconhecida como consequência de causas sociais amplas, a
solução também passa “[…] pela valorização das mães como
sujeitos da ação de recuperação das crianças e oferta de ações
complementares, com vistas à promoção e emancipação das
famílias” (Pinheiro et al., 2004, p. 4).
A partir de entrevistas com profissionais de saúde, em
instituição hospitalar, Barcelos (2011) observou que os processos de
responsabilização da família relacionam-se em grande medida às
expectativas da equipe de saúde em relação ao protagonismo que a
família deve assumir no cuidado e no acompanhamento do usuário.
Segundo a autora o cuidado é visto de forma naturalizada e
intrínseco às famílias e, por isso, altamente solicitado através da
figura do acompanhante. Há consenso entre os profissionais que o
conjunto de ações desenvolvidas pelos familiares impacta o
cotidiano das instituições, à medida que o acompanhante executa
inúmeras tarefas que aliviam a carga de trabalho em todo o
ambiente hospitalar e também desempenha uma função importante
no controle do tratamento. Ainda, de acordo com os profissionais, o
familiar acompanhante é um fator de proteção, pois contribui para
prevenir possíveis erros da equipe de saúde. Nessa conjuntura, as
expectativas vão se sofisticando cada vez mais em relação ao
cuidado e a participação das famílias é tanto mais requerida quanto
mais se verifica o déficit de profissionais e as deficiências nos
serviços de saúde.
Dessa forma a assistência domiciliar foi sendo incorporada por
prefeituras, hospitais públicos e privados, seguradoras de saúde,
medicina de grupo como estratégica para o processo de
desospitalização no Brasil. Além de ser uma solução frente ao
aumento dos custos, evita a exposição de pacientes aos riscos
(Mendes Junior, 2000; Fabrício et al., 2004).
Portanto, nesse movimento que atinge seu ápice no
lançamento do Programa Melhor em Casa o que se confirma é a
ascensão da categoria — cuidado — no contexto do debate da
humanização.3 Segundo Mioto (2010) é justamente através do
campo do cuidado que ocorrem, na prática, os deslizamentos em
torno de atribuições de responsabilidades na provisão de bem-estar.
Na tônica do cuidado são articuladas diferentes estratégias de
imposição ou transferência dos custos do cuidado às famílias.
Custos de natureza financeira, emocional e principalmente do
trabalho do cuidado. Além disso, Franco e Merhy (2008) chamam
atenção para o fato que a produção de cuidado no ambiente do
domicilio passa a ser “tecnificada”, com a transferência de
conhecimento e tecnologias de cuidados à família que fica
responsável por grande parte de cuidados cada vez mais
sofisticados.
A diversidade na compreensão sobre quais os cuidados a
serem transferidos para as famílias é também um elemento a ser
evidenciado nesse processo. Vão desde cuidados básicos até uma
internação caracterizada por cuidados mais intensivos e exigências
multiprofissionais, podendo ser comparada ao “hospital em casa”,
acompanhando e realizando tratamento de pacientes com grau de
complexidade moderada ou alta (Rehem e Trad, 2005). Estes
cuidados como os exigidos em uma internação domiciliar, por
exemplo, se caracterizam como atividades continuadas onde se
oferece tecnologia, equipamentos, materiais, medicamentos e
recursos humanos para pacientes em estados graves ou complexos,
que exigem assistência intensiva semelhante à oferecida em
ambiente hospitalar (Lacerda, 2006).
Além desta tecnificação do cuidado, Feuerwerber e Merhy
(2008) destacam que os serviços de atendimento domiciliar
promovem uma alta precoce da instituição hospitalar, ampliando a
rotatividade dos leitos através do processo de desospitalização, bem
como a redução de gastos hospitalares a partir do compartilhamento
de gastos como as famílias, na medida em que transferem uma
parte do cuidado dos pacientes para o ambiente domiciliar.
Também percebe-se uma sobrecarga de demanda na rede
básica de atenção à saúde, principalmente no quesito hospitalar,
devido o crescente aumento de doenças crônicas degenerativas
bem como o crescimento da população idosa necessitada de
cuidados mais intensivos. Essa mudança no perfil demográfico e de
saúde reforça a ideia de reorganização do sistema de saúde com
base na redução de custos a partir de novas alternativas de
assistência, como, o atendimento domiciliar complementar ao
modelo hospitalar (Martins e Lacerda, 2008).
Desta forma os serviços de atenção domiciliar aparecem como
novos espaços para o cuidado e como estratégias de diminuição
dos custos hospitalares e racionalização dos recursos destinados à
saúde, visando aliviar a carência de leitos hospitalares e diminuindo
filas para internações (Silva et al., 2005).
As análises de custos realizadas por Silva et al. (2005)
confirmam que, para o SUS a relação de custo/benefício com a
implementação de programas de atenção domiciliar como o Melhor
em Casa é positiva se comparada à internação hospitalar, porém
estas análises não contemplam os custos arcados pelas famílias
que recebem o paciente em seus domicílios.
Finalmente um terceiro aspecto merece atenção nesse debate.
Ambos os Programas ao focarem os serviços sociais colocam em
movimento, de forma coordenada, os atores principais para a
efetivação do processo de privatização da provisão de bem-estar,
que são o mercado e a família. O Programa Brasil Carinhoso abre
um nicho de relações com o setor privado e público não estatal ao
afirmar a possibilidade da prestação de serviços de educação
infantil através de convênios. Esse recurso, já utilizado em escala
crescente na política de saúde, vem reforçar a seletividade e a
focalização num processo de crescente mercantilização no
atendimento às necessidades humanas (Simionatto e Luza, 2011;
Iamamoto, 2007).
Além disso, salienta-se que o Estado, ao focalizar o acesso a
serviços sociais às famílias mais pobres, deixa em descoberto a
maioria das famílias e com isso abre um grande flanco para o
aumento de serviços privados. Ou seja, as famílias que não se
enquadram nos critérios de acesso às creches tendem a buscar no
mercado serviços dessa natureza, cuja qualidade vai depender dos
recursos disponíveis da família para pagamento. Como já assinalou
Braverman (1974, p. 238) a grande maioria das famílias continua
sendo forçada a “arrojar-se na ação para sobreviver e ‘ter êxito’ na
sociedade de mercado”.
Esse flanco mercadológico abre-se também quando a ordem é
“Melhor em Casa”, pois a família ao ser incorporada na gestão do
cuidado passa a ser “oficialmente” requisitada para tal. Nessa
condição, ela tem basicamente duas alternativas. Uma é a
contratação de cuidadores, que agora podem ser indicados como os
responsáveis pelo cuidado de acordo com a portaria ministerial.
Outra alternativa continua sendo a utilização do trabalho familiar,
não pago e invisível, que recai majoritariamente sobre as mulheres.
Esping-Andersen (2000) ao debater a mediação do nexo
família e bem-estar aponta a dificuldade de aferir o quantum de
investimentos que a família realiza, considerando que os seus
serviços não são remunerados e não são incluídos no PIB (Produto
Interno Bruto) nacional.4 De acordo com o autor uma possibilidade
de aferição indireta, embora frágil, do dispêndio de trabalho familiar
é através da averiguação da existência, ou não, de serviços públicos
disponíveis para atender as necessidades de cuidados. Nesse
debate, aponta também que o mercado raramente substitui os
serviços públicos e os serviços prestados na família e pela família,
considerando que a compra de serviços pela família no mercado
depende de três importantes fatores. O primeiro refere-se à
existência de uma renda familiar que permita incrementar o
consumo não essencial. O segundo é o preço relativo dos serviços
considerando que no largo prazo os preços podem aumentar
considerando que esses serviços, dada a sua natureza não podem
aumentar significativamente a sua produtividade sem perda de
qualidade. Essa condição pode anular o primeiro fator. O terceiro
fator apontado por Esping-Andersen (2000) é o problema em
relação aos salários relativos. Ou seja, se os prestadores de
serviços se adequarem a produtividade relativa, provavelmente não
ganhem o suficiente, e se ao contrário, queiram acompanhar os
setores mais produtivos certamente desapareceria a demanda pelos
seus serviços. Assim verifica-se a dificuldade de substituição do
trabalho familiar por serviços do mercado, particularmente quando
se considera a renda das famílias mais pobres. O autor ainda
considera que mesmo quando o acesso das famílias a serviços
privados são facilitados por meio de subvenções públicas, em raras
ocasiões estas são suficientes. Portanto, a dependência de
soluções do mercado criará, inevitavelmente, desigualdades e as
famílias com menor renda certamente sempre serão excluídas
dessa alternativa. Além disso, é importante assinalar que quando as
alternativas do mercado e do Estado falham as famílias são
obrigadas a produzir o próprio bem-estar e consequentemente
quando estas não têm possibilidades para tal ocorre a carência de
bem-estar.
Na conjuntura brasileira se evidencia como possível solução, o
apelo à filantropia — através, especialmente, das organizações não
governamentais — marcada pela lógica do velho princípio da
subsidiaridade,5 dentro de uma tendência histórica de um mix
público/privado permeado por mecanismos clientelistas e
patrimonialistas (Campos, 2007; Teixeira, 2007; Schutz, 2013). Essa
tradição vai ser reavivada com a reforma do Estado, ocorrida nos
anos de 1990, na qual a transferência da gestão e da prestação dos
serviços sociais para organizações privadas — através de insígnias
diversas: terceirização, concessão, parceria — foram sendo
implementadas.
Finalmente, cabe destacar a inconsequência desse processo
de intensificação da responsabilidade da família na gestão do
cuidado considerando as suas profundas transformações. Uma
família menor, múltipla em suas configurações, convivendo com a
saída massiva das mulheres para mercado de trabalho e muitas
delas contando com a presença de um só adulto no grupo familiar
(geralmente mulheres) e, com a presença cada vez maior de idosos.
Além disso, convive com as transformações no mercado de trabalho
que lhe impõe ritmos e organizações diferenciadas em condições
cada vez mais instáveis e adversas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão desse artigo situou-se no âmbito das relações


entre família e serviços sociais, por meio das quais se instauram os
processos de responsabilização da família que representam a
contra-face da privatização da seguridade social brasileira. Sobre tal
relação é importante destacar que tais processos de
responsabilização estão condicionados tanto pela organização
interna dos serviços como pelo próprio movimento de proposição de
programas governamentais.
As orientações emanadas dos programas governamentais
lançados parecem indicar, por um lado, o aprofundamento do
caráter familiarista que marca historicamente a política social
brasileira. Familismo entendido como a perspectiva em que a
política pública considera — na verdade insiste — que as unidades
familiares devem assumir a principal responsabilidade pelo bem-
estar de seus membros (Esping-Andersen, 2000). Isso corresponde
a uma menor provisão de bem-estar por parte do Estado e uma forte
presença do mercado. Em análise da realidade espanhola Parella
(2000) dá pistas interessantes sobre características que marcam o
familismo na política social contemporânea. Dentre elas estão: uma
legislação que reforça as obrigações familiares; prestações
econômicas claramente assistenciais, marcadas pelo viés da
pobreza; serviços sociais subsidiários e insuficientes e uma política
em relação a maternidade baseada numa familiarização ambígua.
Por isso a insistência em se concordar com a afirmação de
Esping-Andersen (2000) que a forma de gerir e distribuir os riscos
entre o Estado, o mercado e a família, faz grande diferença nas
condições de vida da população. Martinez-Franzoni (2008)
acrescenta que o bem-estar depende das possibilidades de manejo
que as famílias têm dos recursos provenientes dos outros setores
que podem ser sinérgicas ou não. Segundo a autora, na América
Latina na maioria das vezes não são.
Considerando a centralidade que a categoria cuidado vem
assumindo no contexto da política social, aqui expressa no
Programa Melhor em Casa, há de se convir que tal centralidade tem
levado a uma intensificação do trabalho familiar. Dessa forma é
necessário considerar que o cuidado enquanto trabalho de
reprodução — não remunerado —, desenvolvido pela família ou
através dela, conforma um campo de problemas referentes tanto a
investigação como a intervenção social situado intercessão entre
famílias e políticas sociais (Aguirre, 2005; Pautassi et al., 2005). Por
isso, nesse momento, deve merecer atenção redobrada.
Para concluir é importante lembrar que a clareza em relação
aos processos de responsabilização da família ocorridos nos mais
diversos níveis da política social, é essencial para o exercício
profissional dos assistentes sociais. Considerando que os serviços
sociais são os espaços privilegiados da atuação profissional, o
conhecimento apurado desses processos torna possível realizar o
tensionamento dessa perspectiva que se presentifica no cotidiano
profissional. De acordo com March (2011, p. 179) “os trabalhadores
do serviço público são um componente crítico das reformas a serem
implementadas no setor público, podendo atuar como indutores da
mudança ou importantes elementos de resistência à mesma”.

REFERÊNCIAS

AGUIRRE, R. Los cuidados familiares como problema público y objeto de


políticas. ______. Lineamientos de acción y propuestas de políticas hacia las
famílias.Santiago de Chile: Cepal, 2005. p. 291-300. (Serie Seminarios y
Conferencias, n. 46.)
ALVES, F.; MIOTO, R. C. T.; GERBER, L. A Política Nacional de Humanização e o
Serviço Social: elementos para o debate. Serviço Social e Saúde, Campinas,
Unicamp, n. 6, p. 35-52, 2007.
BARCELOS, M. S. A incorporação da família nos serviços de saúde: um debate a
partir das concepções dos profissionais num hospital de alta complexidade.
Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal de Santa Catarina, Centro
Socioeconômico, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Florianópolis,
2011.
BARROS, N. A. El analise de las políticas sociales desde una perspectiva familiar.
Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 49, p. 78-95, 1995.
BIELEMAN, V. L. M.; KANTORSK, L. P.; BORGES L. R. et al. A inserção da
família nos centros de atenção psicossocial sob a ótica dos atores sociais. Texto e
Contexto Enfermagem, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, p.
131-139, 2009.
BRASIL. Governo lança o Brasil Carinhoso. Disponível em:
<http://www2.planalto.gov.br/imprensa/releases/presidenta-dilma-lanca-o-brasil-
carinhoso-que-vai-combater-a-pobreza-extrema-na-primeira-infancia/view>.
Acesso em: 21 maio 2012a.
______. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.533, de 16 de julho de 2012b. Altera e
acresce dispositivos à Portaria n. 2.527/ GM/MS, de 27 de outubro de 2011, que
redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Disponível em: <www.saude.gov.br>. Acesso em: 4 mar. 2013.
______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: a humanização
como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do
SUS. 2004. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/humanizasus_2004.pdf>. Acesso em:
10 maio 2013.
BRASIL. Expansão do Brasil Carinhoso vai beneficiar 2,9 milhões de crianças e
jovens. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/noticias/arqui-
vos/2012/12/10/pagamento-da-expansao-do-brasil-carinhoso-comeca-na-proxima-
segunda-feira-10>. Acesso em: 15 fev. 2013a.
______. Portaria n. 963, de 2013b. Redefine a atenção domiciliar no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0963_27_05_2013.html>.
Acesso em: 27 nov. 2013.
BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no
século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1974.
CAETANO, P. S.; MIOTO, R. C. T. A política de saúde e a participação da família
nos serviços. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO
SOCIAL (ENPESS) — Serviço Social, acumulação capitalista e lutas sociais: o
desenvolvimento em questão, 13., Anais…, Juiz de Fora, 2012.
CAMPOS, M.; MIOTO, R. C. T. Política de assistência social e a posição da
família na política social brasileira. Ser Social, Brasília, UnB, n. 12, p. 165-190,
2003.
CAMPOS, M. S. Doutrina Social da igreja e Políticas Públicas. In: PASSOS, J. D.;
SOARES, A. M. L. (Orgs.). Doutrina social e universidade. 1. ed. São Paulo:
Paulinas, 2007. v. 1, p. 10-46.
______; TEIXEIRA, S. M. Gênero, família e proteção social. Katálysis,
Florianópolis,Universidade Federal de Santa Catarina, v. 13, n. 1, p. 20-28, 2010.
CARLOTO, C. M.; MARIANO, S. M. No meio do caminho entre o privado e o
público: um debate sobre o papel da mulher na política de assistência social.
Estudos Feministas, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, p.
451-471, 2010.
DUQUE-ARRAZOLLA, L. S. Política de assistência social e os tempos sociais
femininos: um caso brasileiro. Nómadas, Bogotá, Central da Colômbia, n. 24, p.
80-90, 2006.
ESPING-ANDERSEN, G. Fundamentos sociales de las economías
postindustriales. Barcelona: Ariel, 2000.
FABRÍCIO, S. C. C. et al. Assistência domiciliar: a experiência de um hospital
privado do interior paulista. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo,
USP, p. 721-726, 2004.
FEUERWERKER, L. C. M.; MERHY, E. E. A contribuição da atenção domiciliar
para a configuração de redes substitutivas de saúde: desinstitucionalização e
transformação de práticas. Revista Panamericana de Salud Publica, v. 24, n. 3, p.
180-188, 2008.
FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Atenção domiciliar na saúde suplementar:
dispositivo da reestruturação produtiva. Ciência e Saúde Coletiva, v. 13, n. 5, p.
1511-1520, 2008.
IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,
trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.
LACERDA, M. R. et al. Atenção à Saúde no Domicílio: modalidades que
fundamentam sua prática. Saúde e Sociedade, v. 15, n. 2, p. 88-95, 2006.
MARCH, C. A contrarreforma do Estado brasileiro e seus efeitos no trabalho em
saúde nos serviços públicos. Revista Tempus — Actas de Saúde Coletiva.
Brasília, UnB, p. 175-186, 2011.
MARTINEZ-FRANZONI, J. ¿Arañando bienestar? Trabajo remunerado, proteción
social y famílias en América Central. Santiago de Chile: Clacso, 2008.
MARTINS, S. K.; LACERDA, M. R. O atendimento domiciliar à saúde e as
políticas públicas em saúde. Revista Rene, Fortaleza, v. 9, n. 2, p. 148-156, 2008.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME (MDS).
Nova ampliação na cobertura do benefício para superação da extrema pobreza.
Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/informes/informe-
gestores/Informe353.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2013.
MENDES JUNIOR, W. V. Assistência domiciliar: uma modalidade de assistência
para o Brasil? Dissertação (Mestrado) — Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro, 2000.
MIOTO, R. C. T. Família e política social: uma introdução ao debate sobre os
processos de responsabilização das famílias no contexto dos serviços públicos.
In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL
(ENPESS), 12., 2010.
______. Processos de responsabilização das famílias no contexto dos serviços
públicos: notas introdutórias. In: MORAES SARMENTO, Hélder Boska de (Org.).
Serviço Social: questões contemporâneas. 1. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC,
2012. v. 1, p. 125-138.
______; SCHUTZ, F.; BARCELOS, M. Processos de privatização dos serviços
sociais na política social brasileira: o foco na responsabilização da família. In:
SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL: DESAFIOS DA POLÍTICA
SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE, 5., Anais…, Brasília, 2012.
MINISTÉRIO DA SAÚDE (MS). Programa Melhor em Casa. Disponível em:
<www.saude.gov.br>. Acesso em: 20 maio 2012a.
______. Atenção Domiciliar. Manual Instrutivo. Disponível em:
<http://189.28.128.100/dab/docs/geral/instrutivo_atencao_domiciliar.pdf>. Acesso
em: 26 maio 2012b.
______. Avanços Melhor em Casa: 2012. Disponível em: <www.saude.gov.br>.
Acesso em: 4 mar. 2013a.
______. Melhor em Casa: metas. Disponível em: <www.saude.gov.br>. Acesso
em: 4 mar. 2013b.
______. Coordenação-Geral de Atenção Domiciliar/DAB/SAS/MS: 2012.
Disponível em: <www.saude.gov.br>. Acesso em: 17 fev. 2013c.
______. Portaria n. 2.416, de 23 de março de 1998. Estabelece requisitos para
credenciamento de Hospitais e critérios para realização de internação domiciliar
no SUS. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/portarias/port98/GM/GM-
2416.html>. Acesso em: 20 nov. 2013.
NERI, M. O progresso infantil recente: contextualização. 2012. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/121226_notatecn
ica14_disoc_neri2.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2013.
NOGUEIRA, V. M. R. O direito à saúde na Reforma do Estado brasileiro:
construindo uma nova agenda. Tese (Doutorado) — Universidade Federal de
Santa Catarina, Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-graduação em
Enfermagem, Florianópolis, 2002.
OSORIO, R. G.; SOUZA, P. H. G. F. O Bolsa Família depois do Brasil Carinhoso:
uma análise do potencial de redução da pobreza extrema, 2012. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/121221_notatecn
ica14_disoc.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2013.
PARELLA, S. Las Políticas Familiares. In: ADELANTADO, J. Cambios en el
Estado del Bienestar: políticas sociales y desigualdades en España. Barcelona:
Icaria, 2001.
PARELLA, S. La relación entre política familiar y estructura social: el cas
espanyol. Revista Catalana de Sociologia, Barcelona, n. 12, p. 111-139, 2000.
PAUTASSI, L. C.; FAUR, E.; GHERARDI, N. Legislación laboral y género en
América Latina. Avances y omisiones: políticas transversales hacia las famílias.
Santiago de Chile: Cepal, 2005. p. 11-129. (Serie Seminários y Conferencias, n.
46.)
PEREIRA, P. A. P. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica
ao pluralismo de bem-estar. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C.
(Orgs.). Política social, família e juventude. São Paulo/Rio de Janeiro: Cortez/Ed.
da UERJ, 2004. p. 25- 42.
PINHEIRO, E.; DAMASCENO, M. A.; FRIAÇA, M. D. A concepção da desnutrição
no olhar da família: possibilidades de intervenção. In: MOSTRA DE ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE, 1., Juiz de Fora, 2004.
PUCCINI, P. T.; CECILIO, L. C. O. A humanização dos serviços e o direito à
saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, p. 1342-1353, 2004.
REHEM, T. C. M. S. B.; TRAD, L. A. B. Assistência domiciliar em saúde: subsídios
para um projeto de atenção básica brasileira. Ciência e Saúde Coletiva, n. 10,
supl., p. 231-242, 2005.
ROUSSEFF, Dilma. Discursos. Disponível em:
<http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-
republica-dilmarousseff-na-cerimonia-de-lancamento-da-agenda-de-atencao-
basica-a-primeira-infancia-e-de-assinatura-de-termos-de-compromisso-para-
construcao-de-creches-do-programa-proinfancia-pac2>. Acesso em: 21 maio
2012.
SARACENO, C. Sociologia della famiglia. Bologna: Il Mulino,1996.
SENADO. Projeto de Lei do Senado n. 284, de 2011. Dispõe sobre o exercício da
profissão de cuidador de pessoa idosa e dá outras providências. Disponível em:
<www.senado.gov.br>. Acesso em: 22 maio 2012.
SCHÜTZ, F. O debate sobre os serviços na política social: implicações para o
serviço social. Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal de Santa Catarina,
Centro Socioeconômico, Programa de Pós-graduação em Serviço Social,
Florianópolis, 2013.
SGRITTA, G. B. Famiglia, mercato e stato. Milano: Franco Angeli, 1988.
SILVA, K. L. et al. Internação domiciliar no Sistema Único de Saúde. Revista
Saúde Pública, v. 39, n. 3, p. 391-397, 2005.
SIMIONATTO, I.; LUZA, E. Estado e sociedade civil em tempos de contrarreforma:
lógica perversa para as políticas sociais. Revista Textos e Contextos, Porto
Alegre, PUC-RS, n. 2, p. 215-226, 2011.
TEIXEIRA, S. M. Políticas sociais no Brasil: a história (e atual) relação entre o
“público” e o privado no sistema brasileiro de proteção social. Sociedade em
Debate, v. 13, n. 2, p. 45-64, 2007.
Programa Bolsa Família, cuidados e o
uso do tempo das mulheres

___________________________ Cássia Maria


Carloto

1. INTRODUÇÃO
Há alguns anos, desde 2006, temos realizado pesquisas tendo
por foco a Política Nacional de Assistência Social e programas de
transferência de renda que tem as mulheres como principais
titulares. A família passa a ser um locus privilegiado das políticas
públicas, notadamente os de combate a pobreza a partir da década
de 1990 com a consolidação de medidas neoliberais, a exemplo de
Programa Bolsa Família. Nesse contexto nossas análises tem se
concentrado na instrumentalização das mulheres a partir de seu
trabalho na esfera doméstico familiar para o bom desempenho
desses programas e o modo como o estado se apropria desse
trabalho não pago das mulheres na esfera dos cuidados servindo
como importante pilar dos sistemas de proteção social com maior o
menor intensidade.
Saraceno (1995, p. 222) comenta que a disponibilidade de
trabalho feminino gratuito de assistência, é um dos três elementos
constitutivos, embora implícitos, da maioria dos sistemas de Welfare
State — “os outros são justamente o acesso ao mercado de trabalho
e o acesso à previdência social e a vários tipos de serviços”. Esses
três elementos, como aponta a autora, mantém equilíbrios diferentes
conforme o país e seu modelo de proteção social. Algumas
diferenças importantes remetem ao modo como definem a
dependência econômica dentro da família e o modo como fornecem
serviços de assistência em substituição ao que é realizado pelo
trabalho não pago das mulheres na esfera doméstico-familiar.
Como afirma Anzorena (2010) há subjacente a ideia de um
modelo universal de família nos quais predomina uma visão
naturalizada da divisão sexual do trabalho e uma
complementariedade hierárquica entre mulheres e homens. Nesta
concepção na qual ocorre uma profunda vinculação entre
capitalismo e patriarcado, as mulheres aparecem como o grupo
mais idôneo para aplicar planos paliativos e obter maior impacto. Os
efeitos desses programas se orientam no sentido de reforçar o papel
doméstico das mulheres e consolidar estereótipos do feminino. A
autora afirma que o que define as mulheres-mães-pobres como
funcionais aos objetivos das políticas sociais é a naturalização de
seu papel como cuidadora na esfera doméstica-familiar o que as
coloca como um dos setores mais prejudicados pelo modelo
neoliberal excludente. Há uma interdependência entre a política
social no modelo capitalista, notadamente nos programas de
combate à pobreza, e o trabalho de cuidados na esfera doméstico-
familiar.
Para autoras como Carrasco (2003, p. 19), que tem contribuído
para o campo de conhecimento da Economia Feminista,
historicamente os sistemas socioeconômicos têm dependido da
esfera doméstica e têm mantido uma determinada estrutura familiar
que lhes permita garantir a oferta de força de trabalho por meio do
trabalho das mulheres”. Em particular naqueles grupos da
população de baixo recursos econômicos, a dependência do
sistema econômico tem significado uma verdadeira exploração da
unidade doméstica. Pichio (1999) comenta os aspectos econômicos
e relacionais do trabalho familiar doméstico absolutamente
necessários para que o mercado e a produção capitalista possam
funcionar: o cuidado da vida em sua vertente mais subjetiva de
afetos e relações, o papel da segurança social do lar, a gestão e a
relação com as instituições.

Todas essas atividades são destinadas a criar e manter pessoas saudáveis,


com estabilidade emocional, segurança afetiva, capacidade de relação e
comunicação etc., características humanas sem as quais seria impossível
não somente o funcionamento da esfera mercantil capitalista, mas também
a aquisição do chamado capital humano. Porém a economia segue
ocultando a relação capitalista que o âmbito familiar doméstico mantém com
o sistema social e econômico, que permite “externalizar os custos social
como amortecedor final do ‘dumping social’” (Picchio, 1999a, p. 223, apud
Carrasco, 2003, p. 21).

Nesse caminho de pesquisa fomos, a partir de diversos artigos,


analisando os resultados na vida das mulheres a partir da inserção
em programas de transferência de renda tendo como eixo de
análise a divisão sexual do trabalho, a relação produção e
reprodução, a autonomia econômica das mulheres e seu
empoderamento. Recentemente começamos a pesquisar os
processos de monitoramento e avaliação na perspectiva de gênero
e indicadores do Programa Bolsa Família e ampliar nossas reflexões
sobre o trabalho não pago das mulheres para administrar as
condicionalidades exigidas pelo PBF.
Neste texto resgataremos inicialmente algumas das discussões
já disseminadas em diversos artigos1 para a seguir introduzir o
debate sobre o uso do tempo das mulheres no trabalho não pago
como um importante indicador de monitoramento de políticas
públicas que tem por foco o combate a pobreza.

1.1 Estado, Mercado e Família nos sistemas de proteção


social

Todos os sistemas de proteção sustentam-se na tríade Estado,


mercado e família, do período de concepção à atualidade e são
organizados a partir da família nuclear burguesa, a saber, pai
provedor e mãe-dona de casa e cuidadora (Saraceno, 1995; Palier,
2010; Esping-Andersen, 1995). Esses autores observam que os
direitos sociais nos sistemas de Welfare State continuam sendo
direitos do trabalho, pois de um lado estão ligados a um estatuto de
trabalho remunerado passado ou presente, ou até futuro como no
caso dos programas voltados a inserção dos jovens no mercado de
trabalho. Os direitos sociais quando são desvinculados da relação
de trabalho configuram-se na maior parte como direitos mais
precários, discricionais, de tempo limitado, condicionais. Isso vale
tanto para o direito a uma renda mínima quanto para os serviços
sociais prestados às pessoas.
Saraceno (1995, p. 222) comenta que o vínculo privilegiado dos
sistemas de proteção social com o estatuto de trabalhador tem
consequências diversas tais como a produção de desigualdades de
classe em relação aos direitos sociais entre trabalhadores estáveis e
trabalhadores não estáveis; entre trabalhadores e não
trabalhadores. A autora comenta também que esse tipo de vínculo
reforça as relações de poder e dependência econômica dentro da
família, entre as gerações e, sobretudo entre os sexos. Deixam de
fora também a esfera dos direitos voltados à satisfação de
necessidades individuais e sociais, particularmente as de
assistência e socorro às crianças, aos doentes hospitalizados ou
não, aos idosos dependentes. “Eles permanecem geralmente
confinados no todo ou em parte à família e às mulheres da família e
são ao mesmo tempo, depreciados no seu valor social e até
econômico”.
Segundo Sunkel (2006) os sistemas de proteção social
vinculados ao emprego, como é caso da América Latina, foram
desenvolvidos supondo que o núcleo de força de trabalho é
masculino com a família dependendo do homem pai de família como
principal provedor. Embora os sistemas tradicionais de seguridade
social tivessem por princípio a universalidade da cobertura, a
igualdade, a solidariedade e a integralidade dos serviços, todos
estavam condicionados pela seguridade laboral do homem pai de
família. Segundo o autor este regime de proteção social poderia ser
caracterizado como familista à medida que combina o papel do
homem provedor com a centralidade da família como responsável e
protetora última do bem-estar de seus membros. Esse regime supõe
que assegurado a renda proveniente do salário principalmente do
homem, a família pode se encarregar da maioria das funções
relacionadas ao bem-estar.
Com o desenvolvimento de medidas neoliberais, a partir da
década de 1970 acirra-se a perspectiva familista nos modelos de
proteção social na América Latina e dentro desta destaca-se o
Brasil. Dentre as estratégias utilizadas pelo Estado, para a
adaptação à lógica do capital se encontra o resgate da família como
a principal provedora do bem-estar dos seus membros, conforme
assinala Pereira (2008):

[…] o resgate contemporâneo da família, em escala internacional, como a


principal fonte de proteção social na esfera privada, ao lado da comunidade
local, da vizinhança, dos amigos próximos, enfim, dos grupos informais, no
dizer de Johnson (1990), tem sido considerado não só como um olhar
conservador nostálgico para o passado, mas principalmente, como parte de
um amplo plano de privatização dos serviços de bem-estar social. (Pereira,
2008, p. 230).

Neste contexto de cortes de gastos em relação aos serviços


públicos que garantam direitos sociais, muitos trabalhos de
assistência particularmente os relacionados às crianças, idosos e
doentes são delegados às famílias, e dentro destas às mulheres. Há
um fortalecimento de um modelo econômico no qual o papel do
Estado perde protagonismo na garantia de direitos sociais e o
mercado ganha força como pilar privilegiado na tríade Estado-
Familia-Mercado. Mantém a orientação familista, com o regime não
absorvendo as responsabilidades familiares num contexto de
entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho.
Também as análises de Goldani (2002, p. 38) sobre o Brasil,
nos apontam que a partir dos anos de 1990 “as famílias estariam
sendo acionadas não só como importante suporte para seus
membros, mas, também, como fonte de organização central na nova
forma de divisão da riqueza social”. A autora sustenta sua tese
citando os programas de renda mínima que garantem um
rendimento “mínimo” para as famílias e não para os indivíduos
justificando que a pobreza ocorre na família e que cabe à mesma
ser solidária na gestão e no consumo dos rendimentos.
Como exemplo típico desta solidariedade familiar, se apresenta
o Beneficio de Prestação Continuada (BPC), Lei n. 10.741/2003,
que é um benefício assistencial de um salário mínimo, é individual,
não vitalício e intransferível. Os recursos financeiros do BPC são
originários da seguridade sociais (alocado no Fundo Nacional de
Assistência Social) e transferidos para o Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS) que é o órgão responsável pela
operacionalização deste benefício, que se destina aos idosos de 65
anos ou mais, sem benefício previdenciário, com renda mensal
familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo vigente no país e
às pessoas com deficiência de qualquer idade, mediante
comprovação de renda mensal familiar per capita inferior a um
quarto do salário mínimo e cuja deficiência o torne incapacitado para
o trabalho e a vida independente (esta avaliação deve ser realizada
pelo Serviço Social e perícia médica do INSS).
Há, ainda, o Programa Bolsa Família (PBF), Lei n. 10.836/2004
que também é um programa de transferência renda direto à família
ou a seus membros dependentes. No Programa Bolsa Família, os
benefícios são transferidos mensalmente às famílias beneficiárias
cujos critérios de elegibilidade são a renda mensal per capita e o
número de crianças e adolescentes até 17 anos.
Campos (s/d., p. 25, apud Castilhos, 2012) no documento
Cooperação Internacional para Proteção Social de Crianças e
Adolescentes, adverte-nos quanto a esta relação entre proteção
social e família, a qual “revela claramente a expectativa de que ela
corresponda um aprofundamento de funções consideradas
publicamente importantes, promovendo a imprescindível satisfação
de necessidades ligadas à reprodução social”. Outro aspecto
relevante apresentado pela autora no mesmo documento se refere à
insuficiência de serviços sociais para “amparar” as famílias na
criação dos filhos e nos cuidados com seus dependentes. Situação
que demanda das famílias novas estratégias para assegurar a
proteção de seus membros. Além da ineficiente oferta pública de
serviços na esfera dos cuidados, há ainda uma dificuldade de
acesso das famílias mais pauperizadas, penalizando-as ainda mais.

Em relação aos serviços de creches, para o total de crianças de zero a três


anos de idade, segundo o IBGE (2006), a frequência era de apenas 13,3%.
Este acesso era ainda mais restritivo às famílias pobres, com rendimentos
de até 1/2 salário mínimo per capita, com um percentual de 8,6%, bem
abaixo da média, enquanto que, para as crianças de famílias com
rendimento acima de três salários mínimos a taxa chegava a 35,8%. Este é
certamente um fator de restrição ao trabalho das mulheres no mercado e de
ampliação da sua carga horária semanal de serviços domésticos. Isso sem
contar a insuficiência de serviços domiciliares de atendimento aos idosos
dependentes, crianças com deficiência, serviços de ocupação do tempo
livre, de socialização, de formação para a cidadania, de capacitação para o
mercado de trabalho para jovens, adultos sem emprego, dentre outros
eventuais membros das famílias (Campos e Teixeira, 2010 p. 26, apud
Castilhos, 2012).

A insuficiência de serviços públicos na esfera dos cuidados


penaliza mais as mulheres de famílias mais empobrecidas, à
medida que “atrapalha” a inserção delas no mercado de trabalho, e
aumenta o tempo de trabalho (não remunerado), na reprodução dos
membros da família e ainda limita a cidadania feminina, à medida
que inviabiliza sua inserção e permanência qualitativa no mercado
de trabalho e na participação de decisões coletivas. Se associarmos
a pobreza à condição de raça-etnia, no caso das mulheres negras
aumenta as dificuldades de inserção no mundo trabalho.
Os aspectos problemáticos que decorrem dessa situação são
apontados por Gonzalez de la Rocha (2006) quando comenta o
Programa de Transferência Condicionada de Renda do México —
Oportunidades. Relata a autora que os possíveis aumento de
escolaridade das crianças e jovens, o aumento do consumo
alimentar e o aumento de acesso aos serviços de saúde, tem por
base a participação das milhares de mulheres sobrecarregadas de
trabalho. O programa, assim como é caso de todos os programas da
América Latina opera com uma noção tradicional de família, na qual
a mulher é vista como provedora de serviços domésticos e
reprodutivos e que pode dedicar seu tempo e seu esforço as
condicionalidades que o programa exige.
Desde o início, os Programas de Transferência de Renda se
orientam majoritariamente às mulheres. Em função do caráter
“feminizado”, desses programas, existe uma tendência em
considerá-los uma política pública para as mulheres. Se assim
fosse, deveriam atuar sobre os elementos que impedem a
autonomia das mulheres e sobre os principais obstáculos à
igualdade de gênero. São programas destinados às mulheres, mas
não são programas com perspectiva de contribuição para a
equidade de gênero.

1.2 A centralidade na mulher

Em pesquisa realizada por Castilhos (2012), da qual


selecionamos alguns trechos e comentários, os entrevistados,
quando questionados sobre a operacionalização da centralidade na
família na política de assistência social, comentam a sobrecarga
familiar e o reforço de sua função protetiva. E ao mesmo tempo,
como neste relato que segue, situam a mulher como a responsável
pelo bem estar da família, aos cuidados do lar e dos demais
membros.

entende-se que é mais viável, porque é a mulher que acaba sendo a


responsável pelos cuidados da família mesmo. E ela que acaba vindo
buscar os benefícios. O homem vai buscar por esse modelo que nós temos,
que é o homem quem tem que estar trabalhando fora. Então quem
comparece mais aqui no CRAS são as mulheres (Técnica CRAS 5).

A centralidade na mulher, conforme o relato desta entrevistada


nos mostra quem é o membro da família que a representa, quando
se trata de acesso ao CRAS e ainda nos indica a permanência da
responsabilização pelos cuidados da família na figura da mulher
mãe e dona de casa. Esta centralidade se justifica de acordo com a
fala que segue, no fato de que é a mulher quem acessa os serviços,
programas e benefícios ofertados pelo CRAS (Castilhos, 2012).
centralidade na família? Centralidade na mulher, a gente fica na centralidade
na mulher, porque é ela que vem aqui, que vem buscar a cota, vem
participar do grupo (Técnica CRAS 2).

Esta corporificação da família, na figura da mulher, não se


encontra nos documentos orientadores da política de assistência
social, o que de acordo com Carloto e Mariano (2010) denota um
distanciamento entre o legal e o real, ou entre as orientações legais
e a operacionalização da centralidade na família, conforme segue:

O que é silenciado nos documentos orientadores não pode ser ocultado


nem negado na prática. Nesse sentido há um claro distanciamento, um
descolamento, entre os documentos que instituem as orientações e a
operacionalização da política. Aqueles não dizem que a mulher é a
representante preferencial da família, mas na prática as estratégias são
dirigidas para a participação da mulher/esposa/mãe (Carloto e Mariano,
2010, s/p.).

Este distanciamento entre o legal e a prática, apontado pelas


autoras, é visibilizado nas falas dos sujeitos. Eles informam que não
há orientações nos textos legais, sobre a preferência de titularidade
na mulher, como a representante da família, mas, existem
orientações informais a partir dos critérios de titularidade do
Cadastro Único e do Programa Bolsa Família, com estratégias de
ações direcionadas à mulher/mãe (Castilhos, 2012).

O benefício na mão da mulher, tem muito mais chance de chegar a atingir


os objetivos dele. Assim, não há nada que se defina, deve cobrar da mulher,
mais aqui acaba sendo natural, porque a mulher dá mais esse corpo, ela
compra mais isso, ela traz isso para si mesmo. Enquanto o homem vai se
afastando, é isso, os papéis vão sendo diferentes, para um e outro (Técnica
CRAS 4).

Neste relato, segundo Castilhos (2012), as justificativas para a


titularidade feminina, nos cadastros do CRAS, são pautadas na
gestão e na sustentabilidade do serviço/programa, e na boa gestão
feminina, a partir da responsabilização das mulheres na esfera
doméstico-familiar.
A respeito destas justificativas para a titularidade feminina, as
análises de Tatau Godinho (2004, p. 17, apud Castilhos, 2012) nos
indicam que elas se ancoram em argumentos como estes: a mulher
“é boa gestora da pobreza e ainda é capaz de se ‘virar’ com pouca
renda para tornar a socialização menos rebelde”. Para Campos
(2004, apud Castilhos, 2012), por trás desta decisão de situar a
mulher como titular, encontra-se pressupostos referentes à natureza
das mulheres, vinculados à maternidade, à nutrição e ao cuidado
das crianças
De modo crítico, o relato a seguir nos traz indicativos destes
pressupostos elencados pela autora, e da sua transposição para o
campo da cultura de forma “naturalizada” do pai-provedor e da mãe-
dona de casa e cuidadora.

Aquela história bem senso comum de família, pai, mãe e filhos. O pai
trabalha, a mãe cuida dos filhos, então o prontuário no nome da mãe,
porque é sempre a mãe que vem no CRAS, porque é sempre a mulher que
está aqui, dessa forma você continua remetendo a uma questão burguesa
(Técnica CRAS 2).

As contrapartidas e condicionalidades impostas à família, pelo


PBF como a frequência escolar, a vacinação e ações relativas à
saúde reprodutiva são cobradas da mulher, enquanto representante
do grupo familiar para efeitos do programa, aumentando a
responsabilidade e o trabalho das mulheres na esfera doméstico-
familiar o que dificulta o acesso à educação e ao trabalho, condição
fundamental para possibilidades de ampliação da autonomia
econômica das mulheres.
Nesse sentido, embora as mulheres sejam as beneficiárias
preferenciais do programa, não recebem o benefício a título pessoal,
senão em virtude de relações de parentesco com os verdadeiros
titulares do direito: seus filhos e filhas. “Desse modo, não são, as
mulheres a beneficiárias finais, senão as beneficiárias operativas da
transferência que como mães podem e devem operar a
transformação desse benefício para melhorar o capital humano de
seus filhos e filhas” (Cepal, 2013).
As reflexões e debates sobre programas sociais que têm por
centralidade a superação da pobreza devem levar em conta a
relação entre pobreza e gênero e os limites à autonomia econômica
das mulheres. Segundo Arriagada (2005), a pobreza tem sido
conceitualizada e medida tradicionalmente pela renda e nível de
satisfação das necessidades básicas, sem considerar fatores
culturais como os relativos a gênero, raça e etnia. Para a autora há
cinco fatores, ao menos, relacionados ao bem-estar que deveriam
ser compreendidos na análise da pobreza: os direitos de acesso aos
serviços ou bens governamentais gratuitos ou subsidiados; a
propriedade ou direito de uso de ativos que proporcionam serviços
de consumo básico (patrimônio básico acumulado); os níveis
educativos, as habilidades e as destrezas como expressões da
capacidade de fazer e entender; o tempo disponível; a autonomia
das pessoas.
Conforme o Censo 2010 (IBGE), as mulheres são a maioria da
população em situação de extrema pobreza, ou seja, apresentam
renda de até R$ 70,00 mensais, representando 50,5% do total, ou
seja, cerca de 8,2 milhões de mulheres em todo o Brasil. As
mulheres são maioria em quase todas as regiões, com destaque
para a região Sudeste com 52,8% conforme o senso 2010. Há um
predomínio das mulheres em situação de extrema pobreza na zona
urbana. (Disponível em: <www.feminismo.org.br>. Acesso em: 9
nov. 2011). Se levarmos em consideração o quesito raça/etnia
constamos que são as mulheres negras que predominam entrem os
mais pobres. De acordo com o Retrato das Desigualdades de
Gênero e Raça, em sua terceira edição, “em 2007, enquanto as
mulheres brancas ganhavam, em média, 62,3% do que ganhavam
homens brancos, as mulheres negras ganhavam 67% do que
recebiam os homens do mesmo grupo racial e apenas 34% do
rendimento médio de homens brancos” (Pinheiro et al., 2008, p. 33).
Outro aspecto desse debate remete a situação de pobreza
entre as famílias monoparentais que têm a mulher como referência.
Os grupos domésticos monoparentais femininos podem representar
maior vulnerabilidade e, estão mais presentes entre as famílias em
situação de pobreza em razão das condições de inserção das
mulheres pobres no mercado de trabalho que se dá nas ocupações
com menores rendimentos e de maior precariedade. Em
levantamento feito no Estado do Paraná pela Secretaria de Estado
da Família e Desenvolvimento Social (SEDS/PR) em maio de 2012
verificou-se os seguintes números: do total de 1.086.299 de famílias
cadastradas, 967.612 tem como responsável familiar às mulheres.
Entre as/os beneficiários do Programa Bolsa Família são 405.435
mulheres e 28.428 homens.
Poderíamos deduzir destes números a razão pela qual o
Programa Bolsa Família prioriza as mulheres-mães na titularidade
do beneficio. Mas é a capacidade feminina de gerência do recurso
dos programas de transferência de renda para beneficiar a família,
principalmente as crianças, que tem sido citada por diferentes
autores e gestores dos programas de combate à pobreza, nos
diferentes escalões, desde o âmbito federal até o municipal. É em
razão dessa capacidade que a preferência pela titularidade do
benefício tem recaído sobre a mulher. Realmente, as mulheres, na
sua grande maioria, utilizam o benefício para melhoria das
condições de vida da família, em particular das crianças, nos
quesitos alimentação, vestuário, compra de material escolar,
mobiliário para a casa e material de construção para melhoria das
condições físicas da casa.
Estas questões apontam a necessidade discutirmos melhor a
esfera dos cuidados doméstico-familiares para sustentação e
eficácia de programas como o Bolsa Família.

1.3 Cuidados domésticos familiares

Utilizaremos como introdução a concepção desenvolvida por


Aguirre (2009) em seus estudos e pesquisas de uso do tempo. A
autora comenta que este debate foi inicialmente desenvolvido pelas
correntes feministas no campo das ciências sociais a partir dos anos
1970. O conceito de cuidado2 foi sendo construído
progressivamente a partir da observação das práticas cotidianas e
mostrando a complexidade dos arranjos que permitem atender as
necessidades de cuidado e bem estar. Aguirre concebe o cuidado
como uma atividade feminina geralmente não remunerada, sem
reconhecimento ou valorização social. Compreende tanto o cuidado
material como o imaterial que implica em um vínculo afetivo,
emocional e sentimental. Supõem um vínculo entre quem cuida e
quem é cuidado. Está baseado na relação e não é somente uma
obrigação jurídica estabelecida por lei, mas também envolve
emoções que se expressam nas relações familiares, ao mesmo
tempo em que contribuem para sua construção e manutenção.
Uma dimensão comum às estudiosas do tema tem sido o de
dar visibilidade à dimensão emocional e afetiva dos cuidados. Para
Bathianny (2009, p. 95, apud Hochschield, 1990), estabelece-se um
vínculo emocional, geralmente mútuo entre o que cuida e o que
recebe cuidados; um vínculo pelo qual o que propicia cuidados se
sente responsável pelo bem-estar do outro e faz um esforço mental,
emocional e físico para poder cumprir com essa responsabilidade. O
cuidado é o resultado de muitos atos pequenos e sutis, conscientes
ou inconscientes que não se pode considerar que sejam
completamente naturais ou sem esforço. Assim coloca-se muito
mais que natureza no cuidado, colocamos sentimentos, ações,
conhecimento e tempo.
Para Carrasco (2003) é difícil distinguir trabalho doméstico de
cuidados, por que nos bens e serviços produzidos no lar é mais
complicado separar os aspectos afetivo-relacionais da atividade em
si, porque envolvem elementos pessoais, diferente dos bens
mercantis.
A questão do tempo gasto pelas mulheres nas atividades não
mercadorizáveis, ou trabalho de cuidados domésticos familiares
também é abordada nas reflexões de Carrasco (2003). A autora
chama a atenção para uma característica desse trabalho que é não
ser linear, pois segue o ciclo da vida, intensificando-se quando se
trata de cuidar de pessoas dependentes: crianças, pessoas idosas
ou doentes. Outra característica lembrada pela autora é que os
tempos de cuidados diretos são mais rígidos no sentido que não
podem ser agrupados e muitos deles exigem horários e jornadas
bastante fixos e, em consequência, apresentam maiores
dificuldades de combinação com outras atividades. É só lembrarmo-
nos dos horários das unidades básicas de saúde, da escola das
crianças e dificuldade das mulheres que trabalham fora do lar.
Saraceno (1997, p. 182) fala em trabalho familiar, pois estes
termos mais que o termo trabalho doméstico, consegue abranger
todos os trabalhos necessários à reprodução da vida cotidiana da
família e dos indivíduos que a compõem: “desde o trabalho
doméstico em sentido estrito, ao trabalho de consumo, que
compreende apenas a compra e eventuais transformações de bens,
mas também o trabalho necessário para utilizar adequadamente os
serviços públicos”. Este último trabalho nos interessa
particularmente, pois como já relatado, são sempre as mulheres as
principais interlocutoras de programas, ações e atividades
vinculadas às políticas públicas de assistência, educação e saúde
como já relatado.
A autora citada chama a atenção para o fato de que o uso de
qualquer serviço exige como pressuposto indispensável uma parte
de prestação familiar, que ela define como trabalho necessário para
o consumo de serviços. Este vai desde o cumprimento de práticas
burocrático-administrativas necessárias para o uso dos serviços
como o empenho em conseguir o acesso aos mesmos (creches,
escolas, sistemas de saúde, programas habitacionais, benefícios da
rede sócio-assistencial, entre outros). Além disso, é necessário
nessa relação serviços-família que a família organize o tempo e os
recursos internos em torno dos tempos e das exigências dos
próprios serviços trabalho não pago quase sempre realizado pelas
mulheres.
Carrasco (2003) aponta uma questão, que nos interessa
particularmente quando se pretende abordar o uso do tempo das
mulheres para administrar as condicionalidades exigidas pelo PBF,
qual seja, que não se trata apenas de quantificar as horas gastas,
pois o gerenciamento de atividades na esfera dos cuidados
doméstico-familiar vai além de uma simples organização de
horários. Como pontua a autora é um gerenciamento de tempo,
responsabilidades, afetos, emoções, redes, trabalho e lazer,
participação, todos os elementos difíceis de classificar em espaços
separados.
As políticas de cuidado, como comentam Montaño (2010, p.
32), ocupam um lugar secundário e quando existem são concebidas
como benefícios para as mulheres, o que resulta numa
desvalorização simbólica e social. Para as autoras,

As políticas públicas têm convertido a responsabilidade das mulheres em


obrigação exclusiva e excludente. Por isso é fundamental a) fortalecer o
acesso ao emprego com igualdade de oportunidades; b) desfamiliarizar a
política social e mudar o foco sobre as mulheres como beneficiárias para
reorientá-la a quem necessita de cuidados, desde uma perspectiva de
direitos. O cuidado de terceiros não é assistência às mulheres, é um direito
de cidadania; c) realizar mudanças nas políticas de direitos reprodutivos,
incluindo os homens como sujeitos; d) realizar mudanças nos serviços
públicos (educação, transporte, saúde), de maneira que o trabalho de
cuidados sejam compatíveis com horários de trabalhos de pais e mães; e)
realizar mudanças na carga de cuidados familiares dos filhos, mediante
políticas explícitas de conciliação e responsabilidade compartilhada como as
licenças parentais.3

1.4 Indicadores de uso do tempo

É necessário nesse contexto dar visibilidade e reconhecimento


ao trabalho não pago das mulheres para sustentação de programas
com claro viés familista como o PBF e como esse tempo usado
pelas mulheres obstaculiza a construção de uma autonomia
econômica e pessoal, condições essas fundamentais para o
rompimento do ciclo geracional da pobreza. A partir disso
colocamos como proposta ações voltadas ao monitoramento do uso
do tempo das mulheres na administração das exigências colocadas
no trabalho social com famílias particularmente o cumprimento de
condicionalidades. Como aponta Castilhos (2012) em sua pesquisa
sobre a operacionalização do trabalho com famílias na proteção
básica, a gestão do PBF tem sido a principal ocupação das técnicas
nos CRAS. Toda a organicidade da proteção social básica, no seu
locus operacionalizador, tem como objetivo precípuo atingir uma
gestão eficiente das condicionalidades do PBF, para garantir o
repasse de recursos federais para a materialidade desta modalidade
protetiva no município.
Em relação ao monitoramento e avaliação do PBF, o Ministério
de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) possui uma
Secretaria específica para avaliação e monitoramento das políticas
sociais de sua responsabilidade — a Sagi, a qual construiu uma
serie de indicadores para monitoramento e avaliação das famílias
beneficiárias do PBF. Um dado ilustrativo sobre as pesquisas de
avaliação do PBF está no Caderno de Estudos Desenvolvimento
Social em Debate n.13, de 2010, o que demonstra que o MDS
contratou entre 2006 e 2010 quatro (4) pesquisas de avaliação do
PBF, sendo: 1) estudo sobre controle e fiscalização do Programa
Bolsa família; 2) avaliação do impacto epidemiológico e social do
Programa Bolsa Família em município Baiano; 3) avaliação da
implementação do Programa Bolsa Família; 4) pesquisa de
avaliação de impacto do Programa Bolsa Família: segunda rodada.
Destes, apenas um se propõe avaliar a condição do
empoderamento das mulheres no espaço doméstico entre seus
objetivos específicos. Contudo, restringe a discussão de como as
mulheres têm utilizado o recurso para o bem-estar da família e das
crianças, assim como o aumento do consumo. “Segundo o
documento “o empoderamento das mulheres se revelou no controle
absoluto do dinheiro recebido com o qual se compra bens
prioritariamente para os filhos, mas também para elas próprias”
(MDS, 2010, p. 24). Dessa maneira justifica a transferência de renda
centrada na mulher para o combate à pobreza, contudo não
demonstra as implicações disso na vida das mulheres, por exemplo,
disponibilidade de tempo e acesso a serviços de qualidade, entre
outros.
O fato dos indicadores serem quantificáveis e obtidos pelo
cadastro da família, segundo Barbosa (2007) apresenta alguns
benefícios: são atualizáveis periodicamente, mensuram não
somente os rendimentos monetários, mas os aspectos sociais das
famílias em questão, as informações são reais do público
beneficiário, ou seja, independente de amostras e possibilitam a
reaplicação de forma contínua e sistemática. Além disso, a autora
destaca a utilização de outros indicadores como, por exemplo, o
índice de Gini (mensura a concentração de renda) e a Pesquisa
Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), realizada anualmente
pelo IBGE.
Entretanto, identifica-se que estes indicadores voltam-se mais
para a caracterização das famílias beneficiárias do que para o
impacto que o Programa tem tido na qualidade de vida destas
pessoas ou, ainda, de que forma contribui para o atendimento de
suas necessidades para além do consumo. Outros indicadores
utilizados para acompanhamento das famílias, como já
mencionamos, referem-se às condicionalidades nas áreas de saúde,
educação e assistência social, os quais também se reduzem ao
aspecto quantitativo do número de famílias que estão cumprindo as
condicionalidades, não questionando a oferta dos serviços ou os
motivos que levaram ao não cumprimento.
Por outro lado, o monitoramento deveria possuir instrumentos
que incluíssem dados qualitativos para acompanhar em que medida
está favorecendo a melhoria das condições de vida dos
beneficiários e, considerando a centralidade que o Programa possui
nas mulheres, é necessário avançar no sentido de identificar se
contribui (ou não) para a autonomia econômica das mesmas.
Contudo, percebe-se que no desenho dos indicadores do Programa
apenas uma das metas se vinculada à mulher e, ainda, enquanto
gestante, que é a taxa de acompanhamento das condicionalidades
da saúde das gestantes.
A pesquisa qualitativa também é importante para detectar as
diferenças de resultados nos diferentes grupos. As pesquisas com
as mulheres beneficiadas pelo PBF em região de extrema pobreza
no norte e nordeste do Brasil apontam diferentes resultados
daqueles com as mulheres moradoras de grandes centros urbanos,
em geral essas últimas informam que o beneficio “ajuda” mas não
“muda” sua vida.
Como aponta a United Nations Evaluation Group (Uneg) (2011,
p. 16), independente da dimensão da intervenção, a avaliação que
se preocupa com a desigualdade de gênero deve usar métodos
quantitativos e qualitativos. Os primeiros podem aportar informações
confiáveis sobre a dimensão dos resultados para certos grupos
interessados, os segundos podem ajudar a explicar como se
conquistam os resultados. Os métodos qualitativos também
permitem que os grupos mais vulneráveis sejam escutados.
No debate sobre o papel das mulheres no cumprimento às
condicionalidades do PBF, cabe destacar o uso do tempo gasto para
isso. Quanto tempo as titulares gastam administrando o acesso à
educação e a saúde das crianças? O aumento das
responsabilidades relativo às condicionalidades não aumentam o
tempo gasto com o trabalho familiar doméstico, aumentando assim
as dificuldades de desenvolvimento de autonomia pessoal e
econômica? Devemos considerar no debate dessas questões, que o
tempo dedicado ao trabalho dos cuidados e doméstico não é um
tempo livre, mas que apresenta uma rigidez como o trabalho para o
mercado, não só porque crianças, principalmente, devem ser
cuidados em horários estabelecidos, como, por exemplo, o horário
das refeições, como também esse trabalho depende dos horários
das instituições escolares, de saúde, comércios, transporte entre
outros.
A condicionalidade vem atrelada a uma noção de
corresponsabilidade. Isto implica que o cumprimento dos requisitos
tem deixado de ser uma condição para receber os benefícios e tem
se transformado em um mecanismo pelo qual as mães são agora
responsáveis de garantir um correto investimento no capital humano
de seus filhos e filhas. Assim, o cumprimento das condicionalidades
exige um maior tempo de dedicação por parte das mulheres (Cepal,
2013).
Aguirre (2009) comenta que no tempo que se dedica ao
trabalho doméstico familiar se manifestam desigualdades sociais e
diferenças entre homens e mulheres. Por meio desse indicador
podem-se capturar realidades que são visíveis com os instrumentos
convencionais de medição. Seu estudo contribui para visualizar a
divisão sexual do trabalho nas famílias, fator chave para entender as
limitações que as mulheres têm para o efetivo exercício de seus
direitos sociais, econômicos e políticos. As reflexões sobre o uso do
tempo nas atividades da esfera doméstica familiar tratam da
tradicional dicotomia trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.
De forma sintética as pesquisas de uso do tempo têm como
objetivo medir o tempo dedicado aos distintos tipos de atividades
que realizam as pessoas. Esse tipo de instrumento permite obter
uma maior visibilidade de todas as formas de trabalho que se
realizam tanto fora como dentro do domicílio, sejam estes
remunerados ou não remunerados. O uso do tempo dos indivíduos
está relacionado também com práticas culturais e condições
materiais e econômicas dos domicílios.
Para a Cepal (2010, p. 14),

Na América Latina e no Caribe as pesquisas sobre uso do tempo tem


respondido principalmente às necessidades de informação derivadas das
análises de gênero, em um contexto que se caracteriza: por uma economia
globalizada; pela flexibilidade nas relações de trabalho; por uma crise
financeira de amplo espectro; por sociedades que enfrentam uma dinâmica
demográfica marcada pelo envelhecimento da população; pelo
redimensionamento do tamanho e das funções do setor público e uma
crescente demanda de serviços públicos e de cuidados de pessoas e de
saúde. A deterioração das condições do mercado de trabalho, os débeis
sistemas de seguridade e assistência social, a falta de instrumentos que
conciliem a vida dos lares e a vida das atividades econômicas, fazem
particularmente difíceis a situação das mulheres. Neste contexto, colocar o
trabalho remunerado e não remunerado como centro de atenção nos
estudos sobre o uso do tempo é um passo adiante para as análises de
gênero, econômicas e sociais.4

Assim, percebe-se a necessidade de avançar com a


construção de novos indicadores que abordem a questão de gênero
presente no PBF, no sentido de desvendar como o programa tem
contribuído para a manutenção da desigualdade entre homens e
mulheres, uma vez que a ocupação do trabalho e do tempo das
mulheres dificulta o acesso ao trabalho remunerado e, assim,
passar a garantir ações que visem a igualdade de oportunidades.
Com isso, diferencia-se da economia neoclássica que
centraliza a análise na utilização racional e eficiente dos recursos e
coloca como tema central o atendimento das necessidades, por
isso, apresenta indicadores que também valoriza o não remunerado.
A proposta tem como base a identificação de capacidades a partir
do acesso à saúde, à educação e ao conhecimento, a um espaço
doméstico adequado e seguro, a um trabalho remunerado e a
rendimentos, à mobilidade, aos cuidados, ao tempo livre, a uma vida
livre de violência, à participação social e política na comunidade e,
por fim, inclui indicadores específicos para a população imigrante.
Segundo Teixeira (2012, p. 16) o uso de indicadores se
dissemina a partir dos anos 1980, em um contexto cujo debate
central dizia respeito ao impacto das decisões políticas sobre os
níveis de pobreza. Nesse período se formulou um grupo de
indicadores sociais, com destaque para o IDH, com o objetivo de
acompanhar a evolução em áreas como saúde, educação e
emprego, entre outras. Mas como comenta a autora esses
indicadores não levavam em conta as diferenças de sexo, é partir da
década de 1990 que a variável sexo ganha relevância na produção
de índices. A ONU é que irá formular em 1995 os primeiros
indicadores com recorte de gênero. Segundo Teixeira (idem), a IV
Conferência Internacional da ONU sobre as Mulheres, realizada em
Pequim, em 1995, contribuiu para impulsionar o desenvolvimento de
índices desagregados no âmbito dos governos.
Decorre desse contexto, conforme Teixeira (idem) o surgimento
de várias iniciativas, em diferentes países, para elaborar e monitorar
indicadores desagregados por sexo, que tinham como objetivo
avaliar as condições socioeconômicas das mulheres e servir de
instrumento de planejamento e execução de programas de governo.
A autora comenta que nos anos 1990 disseminou-se a produção de
índices sintéticos de gênero por diferentes organismos
internacionais, com o propósito de comparar a realidade das
mulheres de diferentes países através de uma escala de
classificação. Segundo Teixeira (idem), atualmente há oito índices
sintéticos de gênero internacionais, três deles formulados pela ONU:
o Gender-related Development Index (GDI), o Gender
Empowerment Measure (GEM) e foi lançado o Gender Inequality
Index (GII) publicado juntamente com o Índice de Desenvolvimento
Humano de 2010. No âmbito da União Europeia, foi criado o Social
Institutions and Gender Index (SIGI). Por sua vez, o Fórum
Econômico Mundial desenvolveu o Gender Gap Index (GGI) e a
sociedade civil elaborou por meio do trabalho da rede Social Watch,
o Gender Equity Index (GEI). Além disso, está disponível o Women’s
Economic Opportunity (WEOI), proposto pelo Banco Mundial.
Voltado para os países africanos, existe o African Gender and
Development Index (AGDI).
Para Teixeira (2012, p. 28),

A iniciativa de desenvolver um sistema de indicadores não é uma tarefa


fácil, entre outras razões porque a concepção desses indicadores precisa
ser confrontada com as possibilidades de acesso às informações. Nesse
sentido, a proposta tanto dialoga com indicadores existentes, quanto formula
propostas para futuras coletas. A configuração local será sempre muito
importante na definição das variáveis que irão compor um sistema de
indicadores, a fim de evitar a utilização de indicadores universais e
abstratos, que não reconhecem as complexidades locais, em que uma
mesma variável pode representar diferentes práticas.

No caso do Brasil, segundo a autora citada (idem), “qualquer


proposta de sistema de indicadores tem que considerar a própria
diversidade existente entre as mulheres, no campo da cor-etnia e no
pertencimento à vida urbana ou à rural”.
Segundo Teixeira (2012, p. 20) os métodos estatísticos padrão,
utilizados por economistas neoclássicos, “baseiam-se em extensos
grupos de dados, costumeiramente coletados por agências
governamentais. Por sua vez a informação obtida é imperfeita e
inclui desde respostas impessoais até questões ambíguas”. Nesse
sentido, segundo a autora, é importante valorizar depoimentos
colhidos a partir de entrevistas, de levantamentos detalhados, de
pesquisa de profundidade, de pesquisa observador-participante e do
uso de grupo focal, “como parte das estratégias inovadoras em
andamento”.
Como apontam as autoras referenciadas neste tópico, há uma
ausência de dados desagregados por gênero na maioria das
estatísticas disponíveis, representado um grande desafio para a
construção de um sistema de indicadores, principalmente de
monitoramento, que possam contribuir para dar visibilidade às
dificuldades que as mulheres encontram para a conquista de
autonomia econômica ao serem responsáveis e responsabilizadas
nos programas de transferência de renda pelo cumprimento das
condicionalidades e penalizadas pelo seu descumprimento. Nossa
premissa é que o tempo gasto para administrar o cumprimento das
condicionalidades aumenta a sobrecarga de trabalho das mulheres
o que dificulta, entre outros fatores, o acesso ao mercado de
trabalho e/ou atividades que gerem renda suficiente para romper o
ciclo de dependência de programas de transferência de renda
condicionada. O seu descumprimento também pode estar
relacionado às dificuldades em ter condições, que incluem tempo,
para cumprir as condicionalidades, particularmente as voltadas a
ofertas de políticas públicas na esfera dos cuidados. Aguirre et al.
(2005, p. 11), comentam:

Nossa proposta centrada no trabalho não remunerado no uso do tempo se


inscreve dentro de uma corrente que em nossa região, frente a insuficiência
de indicadores convencionais — as necessidades básicas, a linha de
pobreza e os índices de desenvolvimento humano — coloca a necessidade
de gerar novos marcos analíticos e indicadores que deem conta das
desigualdades de gênero nos processos de empobrecimento. A ideia que
sustenta esse trabalho é que os processos de empobrecimento das
mulheres estão estreitamente vinculados à dedicação às atividades não
remuneradas e a escassez de tempo. Nesse sentido se propõem a
exploração das potencialidades de medição da divisão das atividades dos
lares e do uso diferencial do tempo nessas atividades. Com isso se procura
contribuir para desenvolver uma linha de investigações que permitam captar
melhor a dinâmica da reprodução da pobreza e dos sistemas de gênero.5
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A igualdade de gênero conforme a Uneg (2011) se refere à


igualdade de direitos, responsabilidades e oportunidades de
mulheres e homens, meninas e meninos. Igualdade não significa
que as mulheres e os homens são ou devam ser iguais, senão que
os direitos, responsabilidades e oportunidades não dependerão do
fato de uma pessoa tenha nascido homem ou mulher. Implica que
se tenha em conta os interesses, necessidades e prioridades tanto
de homens como mulheres, reconhecendo-as. Não é um assunto de
mulheres, deve ter relação e envolver a homens e mulheres, é um
assunto do campo dos direitos humanos e uma precondição e
indicador de desenvolvimento sustentável. É também uma condição
essencial para a realização de todos os direitos humanos.
Escutamos muitas vezes que os programas de transferência de
renda não têm como principal objetivo a igualdade de gênero, mas
ao mesmo tempo tem uma dimensão de gênero pois se entende
que está contribuindo com o empoderamento das mulheres à
medida que são privilegiadas na titularidade do programa. Duas
questões se colocam, primeiro que um programa que pretende
combater a pobreza não pode ignorar as desigualdades de gênero e
tem que contemplar sistemas de avaliação e monitoramento que
contemplem indicadores para e aferição de promoção de autonomia
econômica, política e pessoal das mulheres. Segundo que a
titularidade do cartão e a responsabilidade por administrar o
cumprimento das condicionalidades, relacionada à escassez de
ofertas de serviços públicos de cuidados à criança, idosos e
doentes, na maioria das situações, como têm demonstrado nossas
pesquisas reafirma e reforça os papeis tradicionais na esfera
doméstico-familiar, impondo um clausura doméstica como bem
percebeu Teixeira (2008) em suas pesquisas.
Privilegiar as mulheres nos programas sociais não significa
contemplar uma transversalidade de gênero. De acordo com o
informe do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas de
1997, a transversalidade de gênero se define como a avaliação das
implicações para mulheres e homens de toda ação planejada,
incluída a legislação, políticas e programas em todas as áreas e em
todos os níveis. É uma estratégia para que as preocupações e
experiências de homens e mulheres sejam uma dimensão integral
do desenho, implementação, supervisão e avaliação de políticas em
todas as esferas políticas, econômicas e sociais, para que as
mulheres e os homens possam beneficiar-se igualmente e não se
perpetue a desigualdade.
Os programas e projetos sociais com claro viés familista pouco
contribuem para a superação da desigualdade social das mulheres.
Ao mesmo tempo reforçam o que Saraceno (1995, p. 226),
denominou como paradoxo da dependência feminina, que consiste
no fato de que as mulheres “dependentes” são tais porque outros
dependem dela, aqui incluídos tanto a esfera privada da família
(maridos, crianças, idosos, doentes, vizinhos entre outros) como
uma esfera política e econômica por meio da instrumentalização de
seus papéis na esfera dos cuidados para o bom desempenho de
programas como, por exemplo, o Programa Bolsa Família. É
necessário o fim da visão maternalista da política social. As
mulheres têm direitos próprios, que não podem ser derivados de sua
posição nos lares e nem de sua condição particular de mães. É
necessário também rever a imposição de condicionalidades e não
controlar ou orientar punitivamente a vida das mulheres.
Como afirma Saraceno (1995, p. 227) “cidadãs incompletas” do
ponto de vista dos direitos sociais e da própria possibilidade de
acesso e ação na cidadania política correm o risco de parecer
cidadãs inadequadas e más, quando por motivos objetivos e
subjetivos, não têm condições de cobrir as necessidades que lhes
são confiadas, não porque são cidadãs, mas porque são mulheres
dentro da família e da comunidade.

REFERÊNCIAS

AGUIRRE, R. Las bases invisibles del Bienestar Social: el trabajo no remunerado


en Uruguay. Montevideo: Unifem/Doble Clic Editoras, 2009.
AGUIRRE, R.; GARCIA SAINZ, C.; CARRASCO, C. El tiempo, los tiempos una
vara de desigualdad. Santiago de Chile: Cepal, 2005. (Série Mujer y Desarrollo, n.
65.)
ANZORENA, C. “Mujeres”: destinatarias privilegiadas de los planes sociales de
inicios del siglo XXI: reflexiones desde una perspectiva crítica de género. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 336, 2010.
ARRIAGADA, I. Dimensiones de la pobreza y políticas desde una perspectiva de
género. Revista de Cepal, n. 85, 2005.
BARBOSA, L. C. S. Sistema de indicadores de monitoramento e avaliação de
programas sociais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS), 2007. In: SEMINÁRIO POPULAÇÃO, POBREZA E DESIGUALDADE,
Anais…, Belo Horizonte, de 5 a 6 de novembro de 2007.
BATTHYÁNY, K. Cuidado de personas dependentes y género. In: AGUIRRE, R.
Las bases invisibles del Bienestar Social: el trabajo no remunerado em Uruguay.
Montevideo: Unifem/Doble Clic Editoras, 2009. p. 87-121.
CAMPOS, M. S. Família e proteção social: alcances e limites. In: ZOLA, Marlene
Bueno (Org.). Cooperação internacional para proteção social de crianças e
adolescentes: “o direito à convivência familiar e comunitária”. São Bernardo do
Campo: s/d. p. 21-32.
______. No meio do caminho entre o privado e o público: um debate sobre o
papel das mulheres na política de assistência social. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 18, n. 2, 2010. Disponível: <http://www.scielo.org.br>. Acesso em:
20 fev. 2012.
CARLOTO, Cássia M.; MARIANO, Silvana, A. No meio do caminho entre o
privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na política de
assistência social. Revista Estudos Feministas, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, v. 18, n. 2, maio/ago. 2010.
CARRASCO, C. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres. In:
______. Produção do viver. São Paulo: Cadernos SOF, 2003. p. 11-49.
CASTILHOS, C. F. V. A operacionalização do trabalho social com famílias nos
CRAS de Maringá-PR. Dissertação (Mestrado) — Pós-graduação Política Social e
Serviço Social, Departamento de Serviço Social, Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2012.
CEA/CEPAL. Directrices y referentes conceptuales para armonizar las encuestas
sobre uso del tiempo en America Latina y el Caribe. Santiago de Chile: CEA/
Cepal, 2010. p. 21-29. (Documento de Trabajo.)
CEPAL. Informe Anual 2012. Los bonos en la mira: aporte y carga para las
mujeres. Observatorio de Igualdad de Género de América Latina y el Caribe,
Santiago de Chile, 2012. Disponible en:
<http://www.cepal.org/publicaciones/xml/7/49307/20121042_OIG-
ISSN_WEB.pdf>.
ESPING-ANDERSEN, GOSTA. O futuro do Welfare State na nova ordem mundial.
Lua Nova, revista de Cultura Política, São Paulo, Cedec, n. 35, 1995.
GODINHO, T. Na família, a mulher é boa gestora da pobreza; é capaz de “se
virar” com pouca renda para tornar a socialização menos rebelde. In: ______.
Trabalho com famílias: textos de apoio. São Paulo: IEE, PUC-SP, 2004. v. 2, p. 17-
20.
GOLDANI, A. M. Família, gênero e políticas: famílias brasileiras nos anos 90 e
seus desafios como fator de proteção. Revista Brasileira de Estudos de
População, v. 19, n. 1, p. 29-48, 2002.
GONZÁLEZ DE LA ROCHA, M. Procesos domésticos y vulnerabilidad:
perspectivas antropológicas de los hogares com oportunidades. Ciudad de Méjico:
Publicações da la Casa Chata, 2006.
MIOTO, R. C. T. Família e políticas sociais. In: BOSCHETTI, I. et al. (Orgs.).
Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez,
2008.
MONTAÑO, S. El cuidado en acción. En: MONTAÑO, S.; CALDERÓN, C.
(Coords.). El cuidado en acción. Entre el derecho y el trabajo. Cuaderno de la
Cepal, Santiago de Chile, n. 94, p. 24-32, 2010. Disponible en:
<www.eclac.org/cgibin/getProd.asp?xml=/publicaciones/xml/9/40119/P40119.xml>.
OBSERVATÓRIO DE IGUALAD DE GÉNERO DA AMÉRICA LATINA E CARIBE.
Los bonos en la mira. Aporte y carga para las mujeres. Informe anual. Santiago de
Chile: Publicación de las Naciones Unidas, 2012.
PALIER, B. Um Estado del Bienestar para las envejecidas sociedades
posindriales. In: ESPING-ANDERSEN, G.; PALIER, B. Los tres grandes retos del
Estado del Bienestar. Traducción de Paul Joan Hérnande. Barcelona: Editorial
Planeta, 2010. (Ariel Ciencia Política.)
PEREIRA, P. A. P. Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008.
PINHEIRO, L. et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 3. ed. Brasília:
Ipea/SPM/Unifem, 2008.
PICCHIO, Antonella. Visibilidad analítica y política del trabajo de reproducción
social. In: CARRASCO, C. (Ed.) Mujeres y economia. Barcelona: Icaria, 1999.
RAMOS TORRES, R. Metáforas sociales del tiempo en España: una investigación
empírica. En: RODRÍGUEZ, Carlos Prieto (Coord.). Trabajo, género y tiempo
social. Madrid: Hacer/Complutense, 2007.
RODRIGUES, M. T. Equidade de gênero e transferência de renda: reflexões a
partir do Programa Bolsa Família. In: BOSCHETTI, I. et al. (Orgs.). Política social
no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2008.
SARACENO, C. Sociologia da Família. Lisboa: Estampa, 1997.
______. A dependência construída e a interdependência negada: estruturas de
gênero e cidadania. In: BONACCHI, G.; GROPPI, A. (Orgs.). O dilema da
cidadania. São Paulo: Ed. da Unesp, 1995.
SOARES, L. T. R. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina.
Petrópolis: Vozes, 2001a.
SUNKEL, G. El papel de la família en la protección social en América Latina.
Santiago de Chile: s/ed., 2006. (Série Cepal, n. 120.)
TEIXEIRA, M. O. Sistema de indicadores de gênero: instrumento para conhecer
reconhecer a experiência das mulheres. In: CARRASCO, C. Estatísticas sob
suspeita: proposta de novos indicadores com base na experiência das mulheres.
Tradução Valenzuela Perez. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista,
2012.
UNITED NATIONS EVALUATION GROUP (UNEG). Integración de los derechos
humanos y la igualdad de género en la evaluación: hacia una guía del Uneg-ONU,
2011. Disponible en: <www.feminismo.org>. Acesso em: 9 nov. 2011.
Política Social contemporânea: a família
como referência para as Políticas
Sociais e para o trabalho social

_________________________ Solange Maria


Teixeira

1. INTRODUÇÃO
A família tem “ressurgido” no contexto das políticas sociais
“pós-ajuste” como agente de proteção social informal dos seus
membros. Pode-se dizer que a tendência atual na esfera das
políticas sociais e econômicas nacionais e internacionais é a de
ressaltar a centralidade da família como objeto, sujeito e instrumento
das políticas públicas.
Ressalta-se o contexto dessa re-emergência. De um lado, a
crise do Estado de Bem-Estar Social e o avanço das reformas
neoliberais, com sua noção de Estado reduzido nas ações
econômicas diretas e nos gastos sociais, e o retorno ao ideário
liberal de que a questão social e as saídas das crises são
responsabilidades de todos. Foram os liberais que inicialmente
defenderam as potencialidades da família para assumir algumas
intervenções mais burocráticas1 e custosas do Estado, como forma
de lhe reduzir demandas e custos e valorizar outros provedores de
bem-estar social, como a comunidade, as organizações não
governamentais e o próprio Estado, mas com ações focalizadas nos
mais pobres.
De outro lado, destacam-se as lutas nacionais e internacionais
pela desinstitucionalização, desospitalização dos usuários da saúde
mental e da assistência social. O modelo asilar e dos hospitais
psiquiátricos eram criticados pelas práticas de confinamento,
segregação social e violência institucional, prejudiciais ao
desenvolvimento humano e cidadão, além de serem extremamente
onerosos aos cofres públicos.
O modelo antagônico à institucionalização, o extra-hospitalar,
valoriza o retorno à família e comunidade, reforçando o direito à
convivência familiar e comunitária, a autonomia e cidadania dos
sujeitos usuários das políticas sociais e sua inclusão na vida social
mais ampla. Como destaca Rizzini et al. (2006), em meados dos
anos 1990 firma-se, por exemplo, uma posição internacional oposta
à institucionalização de crianças e adolescentes e ressalta-se-lhe o
caráter excepcional na Convenção das Nações Unidas pelos
Direitos de Crianças e Adolescentes. No plano nacional, esses
direitos são normatizados no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). Em relação às lutas por desospitalização de pacientes
psiquiátricos, essa década de 1990 é marcada pela adesão de
vários países e a adoção de medidas alternativas ao hospital.
Assim, seja nas propostas neoliberais, seja dos movimentos
pela desinstitucionalização de crianças e adolescentes, idosos,
portadores de doenças mentais, mesmo em sentidos contrários,
elas valorizam as famílias e lhes ressaltam competências, papéis e
funções clássicas, como educação, socialização, guarda, apoios
principalmente a de cuidado doméstico de dependentes doentes ou
idosos.
No âmbito institucional e normativo e na implementação das
políticas públicas, a re-abordagem da família e das redes sociais é
incorporada e defendida como estratégia mais adequada para
desenvolver políticas e programas sociais efetivos, eficientes e
eficazes para enfrentar e atender à pobreza. A relação
custo/benefício sobressai-se porque se pode contar com recursos
dessas instituições de proteção informais e com ações mais
próximas ao ambiente natural das pessoas e do seu território de
vivência.
Essas novas formas de abordar e valorizar a família e incluí-las
nas políticas sociais geram expectativas e demandas por trabalho
social com famílias em diversas dessas políticas, sejam as dirigidas
à família, sejam às endereçadas aos segmentos com ações
dirigidas às famílias. Nessa perspectiva, o objetivo desse artigo é
retratar e problematizar o modo como a família é tomada como
referência nas políticas sociais e explicitar como se vem efetivando
o trabalho social com as famílias, no contexto dessas políticas, além
de ressaltar as suas possibilidades, numa dimensão crítica. Essa
problematização tem dirigido as pesquisas recentes que venho
desenvolvendo, em especial a destes dois últimos anos, que discute
a centralidade da família nas políticas sociais.

2. CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS


CONTEMPORÂNEAS

No contexto brasileiro, destacam-se as políticas de saúde, de


assistência social, a crianças e adolescentes e aos idosos, dentre
outras que adotam a centralidade da família na sua formulação,
condução e implementação.
Na política de saúde, em especial na atenção básica, destaca-
se a Estratégia Saúde da Família — ESF, que visa substituir o
modelo tradicional de atenção (centrado no médico, no indivíduo
doente, no hospital e em ações curativas), cujas ações alternativas
centram-se no trabalho em equipe, na família como objeto de
trabalho em ações de promoção, prevenção e proteção. Dentre os
objetivos da ESF, destacamos o de “eleger a família e seu espaço
social como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde;
humanizar as práticas de saúde através do estabelecimento de um
vínculo entre os profissionais de saúde e a população” (Brasil, 1997,
p. 10).
Em que pese os avanços e atendimento de parte das
reivindicações dos movimentos sociais na saúde, com a priorização
da atenção básica não mercantil, o Programa é focalizado nas
famílias pobres em situação de risco ou vulnerabilidade, sendo
contrário ao princípio da universalização do serviço. Além disso, o
enfoque na família pode limitar-se à transmissão de conhecimentos,
comportamentos e atitudes esperadas para o controle das doenças
e os cuidados necessários a serem desenvolvidos no ambiente
doméstico pela própria família, restringindo a participação pública e
a noção de promoção à de capacitação da família para
desempenhar as funções de prevenção e de cuidados.
De acordo com Rosado (2011, p. 4), para evitar cair na
responsabilização familiar, a atenção básica deve “ocorrer
associada à disponibilização de serviços das demais unidades de
atenção no SUS”, o que exige reordenação dos serviços de saúde e
de recursos disponíveis, em articulação com outros serviços sociais
e instituições da sociedade.
Na política de saúde mental tem-se valorizado os serviços
alternativos no tratamento do portador de transtorno mental e a
participação da família no cuidado doméstico, no modelo extra-
hospitalar. Muitos estudiosos da temática (Furegato, 2002; Melman,
2001) defendem a importância da inclusão da família na assistência
ao tratamento do portador de transtorno mental, por considerarem-
na a unidade básica de atenção à saúde e, portanto, do cuidado,
“pois é nesse contexto social que se mantém a saúde e se lida com
as doenças” (Brasil et al., 2011). Reconhecem, entretanto, que “faz-
se necessário uma assistência familiar, um suporte de apoio para
que ela seja uma grupalidade capaz de responder aos cuidados que
seu familiar com transtorno mental demanda, para além das
condições materiais, em seu cotidiano” (Nogueira e Costa, 2011).
Nessa perspectiva, reconhecem que o sistema de saúde não
está preparado para receber e dar suporte à família e às equipes,
por carência de serviços institucionais efetivos, más condições de
trabalho, falta de adesão (negam-se, por exemplo, a trabalhar a
subjetividade e objetividade do cuidado com o portador de
transtorno mental, exigindo-se que a família aceite e lide com a
doença sem lhe oferecer suporte e orientação). Fica explícito que,
se a família for capacitada, orientada e conduzida, ela poderá cuidar
do seu doente sem o auxílio dos serviços institucionais.
As legislações como ECA e a Política Nacional do Idoso
instituem formalmente o direito à convivência familiar e comunitária
quando afirmam que “toda criança e adolescente tem direito a ser
criada e educada no seio de sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurando a convivência familiar e comunitária
[…]” (Brasil, 1990, p. 20). Ou, ainda, quando asseveram “priorização
do atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em
detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que não
possuam condições que garantam sua própria subsistência” (Brasil,
1994, p. 7).
Como destaca Steffenon (2011), há, nas entrelinhas dessas
legislações, uma tendência de apontar a família como responsável
por seus dependentes, incluindo os idosos, sendo chamada a
assumir esses e novos encargos, independentemente de laços
afetivos e de condições para cumpri-los.
Nesses casos, teóricos como Rizzini et al. (2006, p. 21)
defendem que “há que se criar outras formas de suporte básico à
família para apoiá-la no cuidado dos filhos”, destacando ainda que,
entre os fatores que dificultam a permanência da criança com a
família, estão a insuficiência ou inexistência das políticas públicas, a
falta de suporte à família no cuidado aos filhos, as dificuldades de
gerar renda e inserção no mercado de trabalho, a carência de
creches e escolas públicas de qualidade, em horário integral, dentre
outros.
Na Política de Assistência Social, a matricialidade sociofamiliar
constitui um dos princípios fundantes, em especial na proteção
social básica, que visa fortalecer vínculos familiares e comunitários.
Mas seu desenho padece de contradições, pois, de um lado, toma a
família como central para concepção e implementação dos
benefícios, serviços, programas e projetos, o lhe que reforça a
dimensão como sujeito de direitos à proteção social e lhe põem
suas demandas como matrizes de organização e oferta de serviços
pela rede de proteção social. Por outro lado, reconhece e visa
potencializar os papéis familiares na prevenção, pois são suas
funções básicas “prover a proteção e a socialização dos seus
membros; converter-se como referências morais, de vínculos
afetivos e sociais; identidade grupal […]” (Brasil, 2004, p. 35).
A PNAS (Brasil, 2004, p. 41) destaca ainda que o enfoque na
centralidade da família está no “pressuposto de que para a família
prevenir, proteger, promover e incluir seus membros é necessário,
em primeiro lugar, garantir condições de sustentabilidade para tal”.
Estudiosos das diversas políticas, entre eles Rizzini et al.
(2006), reconhecem um descompasso entre a importância atribuída
ao papel da família e a falta de condições mínimas de vida digna e
de suporte e serviços familiares ofertados pelo poder público, o que
mostra que na prática ocorre mesmo é uma responsabilização da
família pela proteção social de seus membros. A autora destaca
ainda a tendência de se reduzirem os recursos para as formas
institucionalizadas e a contínua demanda por esse tipo de serviços,
porque faltam serviços de inclusão da família que promovam
mudanças nas condições de vida, aliados aos serviços
socioeducativos.
Em todas essas passagens de legislações e posicionamento de
teóricos é visível a adoção de um novo paradigma: o de que a
família deve ser apoiada, protegida e capacitada para proteger e
cuidar de seus membros dependentes. Complementando essa
premissa, há a de que não é possível fazer políticas públicas sem as
parcerias, sem a gestão em redes com entidades públicas e
privadas.
O que se percebe, entretanto, em relação ao sistema de
proteção social, é a visível adoção do princípio da subsidiariedade
da intervenção do Estado que, nunca exclusivamente estatal, e só
aparece quando a família falha na proteção e cuidados. Sua
intervenção em nível de proteção social básica, preventiva e
promocional é sempre para potencializar e valorizar as funções
protetivas e de cuidado na família, para que a assistência seja
realizada na e pela própria. Trata-se, de condicionalidades,
explícitas ou implícitas, para a família se constituir em sujeito de
direitos, não sendo um direito incondicional advindo apenas da
condição de cidadania e do direito das pessoas de serem criadas,
desenvolverem-se e permanecerem no grupo familiar.
A noção de parceria com a família sobressai-se como parte da
rede de proteção social, que também conta com outros provedores
de bem-estar social, cabendo ao Estado a coordenação, o
financiamento, a capacitação das famílias para o cuidado no
domicílio e o oferecimento de serviços alternativos. Todavia, a noção
de parceria não é uma novidade: mesmo em fase de maior
intervenção do Estado, a família sempre permaneceu como
parceira, e em muitos países, com mercados pouco estruturados e
inclusivos e de sistemas de proteção social subdesenvolvidos, ela
se constituiu na principal fonte de proteção social.
A novidade na conformação atual dos sistemas de proteção
social é a legitimação e legalização da responsabilidade familiar. O
que já ocorria na esfera informal, movida pelos laços afetivos de
solidariedade e cooperação viraram obrigações formais, passíveis
de ser reclamada judicialmente, com punição às famílias. Mas quem
pune o poder público por não garantir condições dignas e às vezes
mínimas de vida capazes de evitar as rupturas familiares, as
violações de direitos e as violências?
Esse processo de instauração e legitimação de um pluralismo
de bem-estar social é um retrocesso e uma despolitização da
questão social e de suas formas de enfrentamento. Na verdade, o
reconhecimento da questão social implicou a responsabilização
coletiva da sociedade pelos problemas que extrapolavam a esfera
individual e familiar, levando ao financiamento público e à
administração pelo Estado das ações contra esses problemas e
mazelas sociais. O modelo atual do funcionamento das políticas
sociais em rede, em parcerias, incluindo a família, a comunidade, as
ONGs, o mercado e o Estado, o financiamento continua público,
agora apenas intermediado pelas instituições, com execução da
responsabilidade de todos.
Sem dúvida, é importantíssima a centralidade da família nas
políticas sociais, mas na direção da inclusão social (e não de reforço
de papéis clássicos, histórica e culturalmente divididos por gêneros)
e da oferta de uma rede intersetorial de serviços para atender suas
necessidades e demandas que de fato possa garantir a vida familiar
e evitar as rupturas e violações de direitos. Para isso, a política
social deve ser desfamiliarizante ou familiar ativa, no sentido
utilizado por Esping-Andersen (1999), que desresponsabilizam o
grupo familiar da função principal de responsável pela provisão de
bem-estar aos seus. Isso implica a oferta universal de serviços
dirigidos à família, como suporte, apoio, cuidados domiciliares e
serviços alternativos diurnos para os membros dependentes, por
idade, problemas de saúde, desemprego, falta de qualificação e
para ocupação do tempo livre de idosos, adolescentes e crianças
com atividades socializadoras, esportivas e educativas, dentre
outras.
Trata-se de políticas que assumem coletivamente as
necessidades familiares, liberam as mulheres para o trabalho e as
permitam conciliar família e trabalho para que possam criar
estratégias sustentáveis de superação da pobreza. O oposto dessa
tendência é o familismo,2 que reforça a família como a principal
provedora de bem-estar, o que se dá pela escassez de serviços e
benefícios, pelo seu caráter seletivo e focalizado, pelas
condicionalidades que enfatizam os cuidados no âmbito doméstico,
numa reafirmação dos papéis tradicionais que sobrecarregam as
mulheres.
Ao contrário do que defendem alguns teóricos (Fonseca, 2006;
Carvalho, 1998), a revalorização da família tem significado um recuo
das responsabilidades do Estado, considerando que a privatização
não ocorre apenas pela venda direta do patrimônio público, mas
também pela falta de investimentos, que promove a precariedade
dos serviços e favorece sua oferta no setor privado ou não
governamental. Nessa perspectiva, a redução do gasto social afeta
as condições de trabalho das equipes de profissionais, marcadas
pela precariedade, ausência de serviços alternativos à
institucionalização, e de uma rede em que o poder público ofereça
serviços à família, sem dizer da elevada população adstrita por
equipes no ESF, nos CRAS e Creas, dentre outros.
Nesses termos, um projeto político comprometido com a justiça
social, a cidadania e a redistributividade dos recursos sociais é
antagônica ao pluralismo de bem-estar social, às ações focalizadas
e ao retorno da família como agente principal de bem-estar social.
Defendemos que quanto mais sobrecarregada é a família, quanto
mais se aposta no fortalecimento e valorização de papéis clássicos
e ideais, menos equidade de gênero se promove e mais se geram
sofrimentos, culpabilizações, sentimentos de impotência, conflitos e
até rupturas, o que ocorre pela incapacidade de cumpri-los e pela
menor capacidade de lidar com as transformações familiares, em
suas novas configurações.
Os problemas mais frequentes na condução familista da
política social, a mais adotada, são falta de cuidadores em tempo
integral, redução da família e das redes de apoios informais,
empecilho à revolução feminina e à inserção plena das mulheres no
mercado de trabalho em condições de igualdade, descompasso com
a nova realidade de parte significativa de famílias em que mulheres
trabalham fora de casa, de famílias monoparentais e de famílias
chefiadas por mulheres. A grande dificuldade de diagnóstico dessa
tendência das políticas sociais se dá em razão de seus atuais
objetivos e das formas de trabalho social com as famílias que
preconizam, geralmente, valores de cidadania, de sujeito de direitos
e de autonomia, dentre outros que camuflam suas tendências
conservadoras.
A condução familista da política social contemporânea ganha
contornos de modernidade quando se soma às novas formas de
intervenção social em redes, como alternativa aos modelos
tradicionais de intervenção social.

Í
3. INTERVENÇÃO EM REDES: A FAMÍLIA COMO PARCEIRA
NA PROTEÇÃO SOCIAL

Vale ressaltar que o modelo de intervenção ou gestão em redes


emerge no contexto das empresas reestruturadas e globalizadas,
logo, da crise capitalista e das saídas da crise, tais como a
reestruturação capitalista e superestrutura neoliberal que a sustenta
e move, gerando novas formas de regulação estatal. Nesse contexto
as empresas tendem a lançar mão da estrutura de rede, “como
parte de um conjunto de estratégias destinadas a minimizar custos e
capital imobilizado, adquirir competência tecnológica de vanguarda
e compartilhar recursos e informações” (Minhoto e Martins, 2001, p.
83).
Para os autores nas novas estruturas empresariais
descentralizadas tende a prevalecer a noção de cooperação,
integração, parcerias sob a forma de redes de locação,
subempreitadas e contratação de terceirizadas, com os setores de
montagem e com empresas de países em desenvolvimento
formando redes interorganizacionais com empresas colaboradoras.
Esse modelo de redes se expande para outras organizações,
inclusive para a gestão pública. Embora os teóricos tenham
delimitado que nas redes empresariais prevalece a razão
instrumental, econômica e nas redes de organizações públicas e
não estatais ou comunitárias prevaleça o interesse coletivo e a
noção de solidariedade. Todavia, essa estratégia vem sendo
utilizada no mesmo sentido da primeira, como saída em contexto de
redução de gastos sociais e ampliação das demandas, para reduzir
a demanda do Estado, maximizar a proteção oferecida somando-se
aos recursos dos parceiros, a sua infraestrutura, a sua tendência
espontânea de proteção social, dentre outras. Além de fundar-se na
lógica de redução de custos e maximização dos benefícios.
Entre as vantagens da intervenção em redes na gestão das
políticas sociais públicas ou das empresas estão as noções de
ausência de relações hierárquicas, a que se deve a pretendida
horizontalidade entre os parceiros, “à necessidade de resguardar a
autonomia de seus participantes e ao compartilhamento de
informações, recursos e atribuições de que dependeria, no final das
contas, a própria viabilidade e o sucesso da rede” (Castells, 1998;
Najmonovich, 1995 apud Minhoto; Martins, 2001, p. 86).
A novidade da proposta de gestão em rede se coloca como a
necessidade de romper com os modelos hierárquicos e
centralizados de organização, para um modelo descentralizado,
flexível e horizontal de organização da proteção social, contando e
articulando a contribuição e os recursos de cada agente dessa
proteção.
Mas, subjacente a essa noção de rede e de intervenção e
gestão em rede estão três fenômenos: o primeiro é a legitimação do
pluralismo de bem-estar social e como ele a legitimidade e
viabilidade dos novos sujeitos do “fazer social”: o Estado, o
mercado, organizações não governamentais, a comunidade e o
próprio público alvo da ação políticas, tais como o indivíduo e a
família.
O segundo, a legitimidade e difusão de uma nova visão do
Estado e de suas funções. Como destaca Brant de Carvalho (2008,
p. 2), “advoga-se a presença de um Estado forte na regulação, sem,
contudo eliminar ou esvaziar a riqueza democrática de parcerias
com outros atores sociais”. Portanto, um Estado como regulador
importante, mas externo, coordenador da rede, um Estado
descentralizado, flexível que visa fortalecer a sociedade civil e
compor um novo pacto e condições de governabilidade. Logo, uma
concepção próxima à visão liberal do Estado que responsabiliza a
sociedade civil pela implementação ou execução das políticas
sociais.
A ideia-chave é de que a sociedade civil e iniciativa privada são
corresponsáveis pelo bem comum, pelo coletivo. Possuem deveres
numa sociedade democrática e de direitos “devem partilhar o
compromisso com o bem comum e com a necessária tarefa de
promover equidade e justiça social” (Brant de Carvalho, 2008, p. 3).
Portanto, um deslocamento do Estado como garantidor dos direitos
sociais, para a sociedade. O que significa desvirtuamento da noção
de direitos sociais, seu esvaziamento, desmantelamento e
deslegitimidade desses como responsabilidade do Estado
Democrático de Direitos.
O terceiro, o pressuposto que somente a articulação,
combinação de ações — entre políticas, intersetorial,
intergovernamental e entre agentes sociais — potencializa o
desempenho da política social pública. Assim, o pluralismo de bem-
estar social torna-se parte do metier, do modo de fazer política
social na contemporaneidade, como um processo naturalizado.
Nas tipologias das redes essas são classificadas de primárias
ou secundárias. De acordo com Gonçalves e Guará (2010, p. 20-22)
as redes primárias ou de proteção espontâneas são aquelas que se
organizam na perspectiva do apoio mútuo e solidariedade, como
nas relações afetivas, de parentesco, de proximidade com amigos,
vizinhos e nas relações entre os indivíduos de uma mesma
comunidade. Elas são informais e “tecem a partir do espaço
doméstico, da família, da vizinhança; da rua, do quarteirão; da
pequena comunidade”.
As redes formais ou secundárias se organizam por princípios
variados e podem ser tipificadas em estatais, de terceiro setor e de
mercado. Segundo Marcondi e Soares (2010) as redes formais são
constituídas por instituições sociais de existência oficial e
estruturação precisa que desenvolvem funções e serviços
específicos e especializados.
Segundo Sanicola (2008, p. 62), as redes formais estatais são
constituídas pelo conjunto das instituições estatais que formam o
sistema de bem-estar social da população. Fundamentadas no
princípio da igualdade, do direito e da cidadania. “[…] utilizam a
redistribuição, como método, e a lei, como meio […]. A relação
social é caracterizada pelo fato de poderem ser exigidas por seus
usuários (exigibilidade). Essas redes fazem parte do sistema
normativo e, em geral, constituem uma obrigação para a realidade
social”.
As redes públicas foram historicamente marcadas pela
setorialidade, hierarquizada e verticalizada, cujas alterações são
recentes e instauradas pela Constituição Federal de 1988 que
alteram as características do sistema de proteção social instaurando
a descentralização, a intersetorialidade, o controle social, dentre
outras.
As redes do terceiro setor são aquelas que prestam serviços
sociais sem fins lucrativos. São as cooperativas sociais, as
organizações, associações de voluntários e as fundações, também
denominadas de redes sociocomunitárias.
As redes secundárias de mercado referem-se às atividades ou
produção de bens e serviços rentáveis que visam lucros para as
empresas que prestam os serviços ao público.
Merece destaque as redes sociais movimentistas que se
colocam entre as redes primárias e secundárias. Como destacam
Gonçalves e Guará (2010, p. 25) essas redes oxigenam todas as
demais redes nascidas na comunidade/sociedade, conformando-se
como movimentos sociais de defesa de direitos, de vigilância e luta
por melhores índices de qualidade de vida.
Essas redes sempre funcionaram de modo paralelo e
complementar ao Estado. Nesse novo modelo de proteção social
elas atuam de modo coordenado e incentivado como forma legítima
de dar resposta às refrações da questão social, logo, um processo
de reprivatização do trato da questão social, de
desresponsabilização do Estado e redução de suas demandas.
Nesse contexto de redução do Estado e reenvio das demandas
para outros agentes sociais da rede, “paralelamente, vem sendo
aumentada a relevância das redes de serviços do voluntariado e
reforçada a ideias de solidariedade familiar” (Saraceno, 1998;
Faleiros, 1999 apud Mioto, 2002, p. 55).
Ainda de acordo com Mioto (2002), as redes primárias ou as
famílias e os próprios beneficiários ressurgem nesse cenário como
agentes de proteção social e não apenas como sujeito a ser
protegido. Em relação à família esse ressurgimento está vinculado
ao apelo moral sobre suas funções, do que sobre as possibilidades
objetivas de cumprirem as expectativas sociais e de sua situação de
vulnerabilidade social.
A participação da família como estratégia de proteção social e
como agente dessa proteção é constantemente acionada pelas
políticas sociais que visam potencializar essa sua função protetiva.
Como destacam Marcondi e Soares (2010) essa nova perspectiva
centra-se no que a família tem como recurso, em lugar do que lhe
falta.
Essa leitura tem implicações diretas no trabalho social com
famílias, pois, como destacam: “esse modo de ver e agir com
famílias significa ajudá-las a reconhecer a existência de seu
patrimônio para, depois, estimular seu uso e seu fortalecimento”
(Marcondi e Soares, 2010, p. 74). Nessa perspectiva, os problemas
sociais que sofrem são tratados de forma limitada aos seus
recursos, aos muros internos da família, reproduzindo a ditadura da
intimidade, da privacidade dos assuntos ou casos de família.
Essa perspectiva parte do pressuposto de que de sua rede
social, a pessoa ou família recebe sustento, ajuda material,
emocional, serviços de cuidados, assistência diversa, informações
etc., independente das vicissitudes sociais e da convivência, e que
se for bem informada, habilitada e treinada poderá ser um
importante elemento para a inclusão social e de prevenção dos
riscos sociais. Uma visão conservadora e inadequada para prevenir
problemas sociais que reforça a responsabilização da família por
situações e problemas que ultrapassam sua capacidade de
resposta.
Essa responsabilização da família é expressa de forma clara
nos discursos de teóricos:

Defendemos a potencialidade das redes primárias de proteção social


espontânea como abordagem importante na construção ou resgate dos
vínculos de afeto e cuidado no âmbito familiar ampliado. São as pequenas
redes pessoais de apoio que todos têm e que, no caso de crianças e
adolescentes em maior vulnerabilidade, são fundamentais para sua inclusão
social e afetiva (Guará, 2010, p. 50).
Mas também está expressa no desenho das políticas sociais,
em normas operacionais, em programas, e em outros mecanismos
de implementação das políticas sociais. A título de exemplo, um dos
objetivos do serviço de proteção integral às famílias — PAIF é:
“Fortalecer a função protetiva na família e prevenir a ruptura dos
seus vínculos, sejam estes familiares ou comunitários, contribuindo
para melhoria da qualidade de vida nos territórios” (Brasil, 2012, p.
15)
Assim, a questão da convivência familiar e comunitária nas
várias políticas, entre elas a de assistência social define escolhas e
modos de tomar a família com referência, como matricialidade. É
uma escolha que se contrapõe a institucionalização presente na
história dos serviços sociais, que toma a família como parceira de
uma rede de proteção social mista, envolvendo organizações
governamentais, não governamentais, família e comunidade, que
distribui responsabilidades e diminui responsabilidades públicas
estatais.
Uma das leituras dessa centralidade da família na política de
assistência social e suas repercussões no trabalho social com esse
público, expressa bem essa tendência: “o trabalho com as famílias,
como indica o Sistema Único de Assistência Social (Suas), torna-se
basilar para que ela possa oferecer proteção e cuidados adequados
ao bom desenvolvimento de seus filhos” (Guará, 2010, p. 52). A
política não é vista como suporte, como ações de cuidados, de
apoio às famílias, mas como mecanismo que despertará e habilitará,
através do trabalho com famílias, suas funções de proteção social.
Essa perspectiva continua julgando as famílias vulneráveis
como incapazes, incompetentes para criar seus filhos, como
responsáveis pelos problemas que seus membros enfrentam. Mas,
com potencialidades de proteção social, desde que conscientizadas,
educadas e habilitadas para tal. Como se a família vulnerável, como
qualquer outra já não mobilizasse todos os seus recursos e
capacidades para sanar os problemas, tanto nas redes de
parentesco, como de vizinhança e amizade. Como se o que a
caracterizasse não fosse a falta de condições objetivas e muitas
vezes subjetivas que viabilize esse enfrentamento, necessitando do
suporte do poder público para garantir o direito à convivência
familiar e comunitária.
Um trabalho social inovador com famílias, que ultrapasse a
perspectiva normativa, disciplinadora, centrado nos papéis sociais
para mães e pais, deve se fundamentar numa perspectiva analítica
que compreenda a família inserida num contexto social mais amplo,
e a natureza social de suas necessidades.

4. TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS NAS POLÍTICAS


SOCIAIS: TRAJETÓRIA HISTÓRICA

O modo com a família é incorporada à política pública reflete na


organização dos serviços e na proposição e organização do trabalho
com ela no cotidiano dos serviços, projetos e programas (Mioto,
2006).
Na organização das políticas sociais brasileiras, no período de
1930 a 1980, a família ocupou um espaço secundário na
conformação do Sistema de Proteção Social. Considerando que as
políticas estavam orientadas para indivíduos, categorias
combativas3 e segmentos4 fragmentados em problemáticas, como
no caso da assistência social, na qual os serviços foram dispostos a
partir de “indivíduos-problemas” e “situações específicas”, como
trabalho infantil, abandono, exploração sexual, delinquência, idade
ou sexo, bem como para crianças e adolescentes, mulheres e
idosos, dentre outros. Isso não contemplava a família como uma
totalidade.
Em relação aos pobres, subjacente à lógica da assistência
social estava a ideia de que essas famílias eram constitutivas do
problema social e seus responsáveis não tinham capacidade de
criar, educar e proteger seus membros. Imperava, da emergência do
sistema de proteção social até a década de 1980, o paradigma da
incapacidade familiar e da institucionalização dos seus membros,
como crianças, adolescentes, idosos, portadores de doenças
mentais, dentre outros, considerados uma ameaça para a sociedade
pelos problemas de que eram portadores.
Essas famílias são consideradas incapazes por suas
debilidades, desagregação conjugal e pobreza, dentre outros
fatores, cabendo ao Estado, nessas situações-limite, livrar seus
membros dependentes dos riscos por via da institucionalização, do
afastamento do ambiente familiar, “legitimando as internações, as
reclusões, os asilamentos, tomados também como medidas de
segurança para a família e sociedade” (Fontenele, 2007, p. 49).
Como destaca Fonseca (2006), nesse período e ainda hoje
ações dirigidas às famílias instalam ou aprofundam a vivência do
paradoxo entre a família idealizada e reconhecida formal e
juridicamente como a confirmação saudável e legítima (a “normal”,
ou “nuclear”, heterossexual, monogâmica e patriarcal) e a família
real efetivamente vivida pelos pobres e que os profissionais
desqualificavam como “desestruturadas” ou “irregulares”. Seu
funcionamento em redes de apoios, que extrapolavam a residência
e os laços de parentescos, para incluir a de compadrio e amizade,
era interpretado como uma ameaça aos sujeitos dependentes de
cuidados.
Ainda como ressalta Fonseca (2006, p. 7), essa é uma
compreensão suportada por uma lógica que naturaliza e despolitiza
a pobreza e a inibe de respeitar política e ideologicamente as
diferenças presentes nos núcleos familiares.
Mioto (2004; 2006) sintetiza o trabalho social com família,
anteriormente e ainda na atualidade, como baseado em:
a) Concepções estereotipadas de famílias e papéis
familiares, centradas na noção de família padrão e as
demais como “desviantes”, “desestruturadas’, com
expectativas das clássicas funções alicerçadas nos papéis
atribuídos por sexo e lugar nos espaços público e privado.
b) Prevalência de propostas residuais, para determinados
problemas, segmentados e fragmentados da totalidade
social e tomados como “desviantes”, “patológicos” e
sujeitos ao trabalho psicossocial individualizante e
terapêutico, para cujo diagnóstico e solução envolve-se a
família, responsabilizada pelo fracasso na socialização,
educação e cuidados de seus membros.
c) Focalização nas famílias em situação-limite, em especial
nas “mais derrotadas”, “incapazes” e “fracassadas”, e não
em situações cotidianas da vida familiar, com ações
preventivas e oferta de serviços que lhe deem
sustentabilidade.

Nessa perspectiva, esse trabalho social dirigiu-se às chamadas


famílias “desestruturadas” e “incapazes”, sob o paradigma da
patologia social e com os recursos terapêuticos do trabalho
psicossocial individualizante. As práticas socioeducativas com esses
grupos de família dos segmentos atendidos, quando não
institucionalizados ou retirados do convívio familiar, eram
desenvolvidas numa dimensão normatizadora e disciplinadora
(dimensão moral e doméstica, geralmente dirigidas às mulheres).
Nesses casos, como destaca Mioto (2006), a família é tomada como
parte do problema, cuja solução e dificuldades estavam centradas
nela própria, o que fortalece, direita ou indiretamente, uma visão
dela como produtora de patologias.
Na contemporaneidade, como já destacado, a família assume
centralidade nas políticas sociais, seja como objeto, seja como
instrumento ou estratégia dessas políticas, seja como sujeitos.
Também constitucional e juridicamente se avança na compreensão
do grupo familiar em sua diversidade de organização e em suas
transformações.
As políticas sociais, no seu desenho normativo, apresentam
avanços significativos em relação aos modelos tradicionais de
proteção social, nos institucionalizados, nos hospitalacêntricos, no
médico-tecnicista, no clientelismo e assistencialista. Há novas
perspectivas de garantir direitos, inclusão social e serviços
alternativos que promovam a convivência familiar e comunitária. Ou
seja, formalmente tomam a família como sujeito coletivo e
protagonista de direitos, com demandas e expectativas de que o
trabalho socioeducativo ou de educação em saúde promova
cidadania, autonomia e protagonismo.
As condições objetivas, de investimentos sociais, de criação de
infraestrutura básica, trabalho interdisciplinar e condições laborais
seguros, estáveis e contínuos numa conjuntura de enxugamento
dos recursos públicos para a área social, com prioridade nos
benefícios monetários, sem uma adequada e vasta rede pública de
serviços, pode limitar bastante as suas potencialidades, recaindo
sobre as famílias responsabilidades pela assistência aos seus
membros que se vê interpretada como uma forma de gerar
autonomia e protagonismo.
Na saúde pública, em nível de atenção básica, o trabalho de
educação em saúde tem enormes potencialidades. Mas, devido às
condições institucionais oferecidas, a quantidade de famílias a
serem acompanhadas e diagnosticadas no seu estado de saúde, a
falta de capacitação das equipes e de visitas e serviços domiciliares
contínuos com toda a equipe, inclusive o médico, faz com que os
ranços conservadores prevaleçam na educação em saúde.
Como destaca Rosado (2011), a educação em saúde ainda
carrega marcas de uma trajetória balizada pela transmissão
unilateral de conhecimentos, entendidos como representação da
verdade, e focalizada na prescrição de comportamentos que atribui
passivamente aos usuários, desconsiderando-lhes seus
conhecimentos, cultura e condições concretas de vida. Como
destaca a autora, essas práticas ainda se centram na doença, na
dimensão corporal dos sujeitos, no repasse de informações e no
cuidado para o âmbito da família sendo preciso avançar para um
trabalho educativo político, não apenas na formação de uma
consciência sanitária, mas também na reflexão crítica de sua
realidade, da política de saúde, das lutas e da participação nas
estratégias de controle social dessas políticas.
Na política de saúde mental, o trabalho com famílias não deve
limitar-se a capacitá-las para aceitar e cuidar do portador de
transtorno mental, ou em desmitificar os preconceitos em torno da
doença e lidar com os sofrimentos, dúvidas e sobrecargas
familiares. É necessário um trabalho educativo que reforce o
protagonismo das famílias na luta por serviços de inclusão social
dos portadores de transtorno mental na vida social, como serviços
alternativos diurnos, parcial ou integral, com retorno ao fim do dia
para a convivência com a família e comunidade, serviços de
ocupação do tempo livre, de inclusão no mundo do trabalho, de
serviços contínuos para atender às situações de crise, além de
espaço para ouvir e trabalhar com a família. Desinstitucionalizar não
é apenas retirar do hospício e enviar para a família tratar e cuidar: é
criar alternativas de serviços extra-hospitalares, não sendo menos
Estado, porém mais Estado, sob novas perspectivas de intervenção.
Na Política de Assistência Social, os estudos de Teixeira (2009,
2010) destacam que, de acordo com as normas do MDS para o
trabalho com famílias, em especial o socioeducativo, este se volta
majoritariamente para a discussão de questões internas ao grupo,
no sentido de gerar habilidades e aquisições para o cuidado
doméstico, reforçando, a partir dos novos conhecimentos
adquiridos, da discussão e reflexão do seu cotidiano ou da
resolução de conflitos familiares, intergeracionais e de gênero, as
responsabilidades das famílias.
Essas práticas são herdeiras da educação disciplinadora e
normatizadora da família, que assumem versões modernizadoras
que lhe escamoteiam a dimensão normativa dos papéis sociais, dos
comportamentos esperados para pai e mãe, em nome de processos
educativos que visam potencializar o grupo familiar e gerar sua
autonomia. Tais formas de conduzir o trabalho com famílias são
compatíveis como a PNAS, ECA e PNI, dado que essas legislações
contribuem para a valorização do papel social da família e do seu
lugar na produção de bem-estar dos seus membros.
Mas, como destaca Campos (2008), essa responsabilização da
família, nos cuidados de seus membros é sustentada cultural e
socialmente por concepções do adequado desempenho de papéis
dos seus membros responsáveis, em especial a mulher, sobre quem
recai grande parte dessas responsabilidades e expectativas.
Apesar dos objetivos do trabalho social na proteção básica
serem inovadores (fortalecer os vínculos familiares antes de sua
dissolução, atuar de forma preventiva para evitar riscos e violações
de direitos através de benefícios e serviços socioeducativo) é
preciso superar a noção de autonomia, protagonismo e
empoderamento tomados no aspecto individual e liberal dos termos,
que se constroem pelo aconselhamento individual ou grupal,
centrados na mudança da subjetividade dos usuários dos serviços,
como forma de libertá-los da dependência dos benefícios sociais e
ensiná-los a “andar com as próprias pernas”, cuidar sozinhos dos
filhos e outros dependentes, resolver os conflitos familiares
mediante processos profissionais que fortalecem a autoestima e
prepare para o cuidado e responsabilidade familiares e melhore a
capacidade produtiva, dando-lhes condições de empregabilidade,
como se a ausência de trabalho se devesse apenas à não
capacitação ou à falta de vontade e de crença nas suas
potencialidades.
A noção de autonomia e a capacidade de cada sujeito de “dar
conta de sua vida” e dos cuidados necessários para que caminhe
sem a necessidade de benefícios sociais, aconselhamento e
acompanhamentos, podem induzi-lo a buscar saídas nele mesmo,
em suas potencialidades, inclusive no reforço de suas
responsabilidades familiares e individuais, e não na luta pelo
benefício como um direito universal e como dever do Estado de
prover certo padrão digno de vida a todo cidadão cujas condições
decorrem de desigualdades que afetam as relações na família.
Cabe direcionar o trabalho socioeducativo com famílias para
além dessa dimensão liberal, individual e subjetivista de autonomia,
no sentido de articular significados e práticas, partindo-se da
compreensão de que as subjetividades se alteram pelas práticas
sociais e não por simples conscientização, daí ser fundamental o
acesso a condições objetivas, fornecidas pelas políticas públicas
como direitos. Nisso se incluem a apropriação e produção de novos
sentidos pessoais e a inserção da pessoa no engajamento coletivo
por melhores condições de vida (Kahhale, 2004), para o que é
indispensável não só o processo de informação e reflexão, mas
também de organização dos diferentes grupos que compõem o
território, para que seus direitos sejam garantidos e novas
conquistas sejam inseridas nas políticas públicas, a partir de suas
demandas.
Assim, a constituição de sujeitos de direitos se dá no processo
de compreensão das determinações sociais de suas condições de
vida, material e afetiva, no reconhecimento da força do coletivo, no
caso específico de famílias, e nas possibilidades concretas de
acesso aos bens e serviços produzidos socialmente.
Apesar dessas limitações, o trabalho socioeducativo e de
educação em saúde com e para as famílias tem potencialidades,
desde que ultrapasse a indução de reflexões e fechamento da
família nela mesma, nos seus muros internos, ou no uso do grupo
como troca de experiências e ajuda mútua, para se transformar em
instrumento de construção de um novo conhecimento, partilhado e
crítico, que a leva a sair do imediatismo de suas necessidades para
entendê-las coletivas, como necessidades sociais de classe, que
devem ser atendidas pelo poder público como condição fundamental
para a garantia de direitos e de qualidade de vida.
Nessa perspectiva, o foco das ações socioassistenciais,
socioeducativas e de educação em saúde deve ser as necessidades
das famílias e a garantia dos direitos de cidadania, cujas propostas
e ações ultrapassam o âmbito específico de uma política para uma
perspectiva intersetorial, integrada e articulada.
Assim, o trabalho socioeducativo em grupo se encaminha para
o reconhecimento das famílias e de seus membros como sujeitos de
direitos, sendo a pessoa participante do grupo levada a ver-se como
representante de uma família, com problemas comuns a muitas
outras que sofrem as mesmas determinações e participam de um
grupo maior, em situações semelhantes. O grupo deve enxergar-se
como tal, identificar e encaminhar demandas e visualizar possíveis
soluções e ainda superar a responsabilização individual pelo bem-
estar social para incluir a dimensão pública e social, mediante
articulação de serviços e políticas que promovam a proteção social.
Acredita-se que, com essa perspectiva, se ultrapasse a noção
de subjetividade individual para a dimensão coletiva e se promova a
organização grupal e coletiva das famílias, a participação popular e
a passagem da necessidade ao direito como possibilidade concreta
de construção de novos significados e práticas, inclusive a de
sujeitos de direitos. Assim, a autonomia, como capacidade de
decidir, optar e eleger objetivos, metas e crenças, é condição
fundamental para que se alcancem uma participação social,
principalmente para o reconhecimento da força do grupo, da
organização e das lutas coletivas. A noção de autonomia, segundo
Mioto (2004), implica o desenvolvimento da capacidade de discernir
as mudanças possíveis no âmbito dos grupos familiares e de suas
redes e que lhes exigem o engajamento, organizados em coletivos,
em processos sociais mais amplos, para que ocorram
transformações mais gerais e a efetivação de direitos. Isso envolve
capacidade de opinar, escolher, decidir e agir intencionalmente,
mediante suportes oferecidos e situações refletidas, informadas e
debatidas, devendo ser esses os objetivos da educação que visa à
emancipação.5 Para efetivar essas potencialidades, urge ainda
superar o trabalho socioeducativo em grupo como espaço
terapêutico e clínico pela troca de experiências comuns.
O reducionismo das funções socioeducativas pode fortalecer
práticas normativas e disciplinadoras que se dirigem a ensinar as
famílias a gerir recursos, disciplinar os filhos e a exercer as funções
de cuidado, proteção e educação, sem alterar as situações que as
impedem de fazê-las como há cinquenta anos. É preciso
compreender as mudanças, inclusive, culturais, sociais e de valores,
e buscar estratégias de convivência com elas, a partir,
principalmente, do apoio do poder público e da rede social, com
acesso igualitário a oportunidades e a recursos públicos e privados.
As alternativas metodológicas para o trabalho com família
devem ser pensadas e executadas buscando superar a dicotomia
entre assuntos internos e externos, sem hipertrofiar um em
detrimento do outro, mas trabalhar sua dialética, entendendo os
internos não fechados nos muros domésticos, mas decorrentes da
estruturação da sociedade e de suas dinâmicas de transformações
e a necessidade do fortalecimento do coletivo na luta pela garantia
de respostas públicas às necessidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A centralidade da família nas políticas sociais apresenta


aspectos significativamente positivos, como redução de custos
sociais, que seriam maiores se os serviços tivessem como foco os
indivíduos; como estratégia para se romper com a lógica da
fragmentação, posto que põe a família no centro das ações e não
mais o indivíduo, pelo fato de representar ela uma unidade de
referência mais abrangente; por articular ações e políticas diferentes
no enfrentamento das suas necessidades, como possibilidade de
uma intervenção articulada, mesmo quando há atendimentos por
segmentos esses estão relacionados à realidade e demandas da
família; ao fortalecimento do princípio da vida familiar e comunitária,
com suas diferenças e conflitos (Teixeira, 2009). Os paradoxos
aparecem na medida em que a família ora é tomada como sujeito de
direitos, merecedora de proteção social, ora como agente de
proteção social, provedora de assistência e cuidado aos seus
membros como principal estratégia das ações de prevenção.
O trabalho com famílias, profundamente marcado por esse
viés, termina assumindo versões normatizadoras e disciplinadoras
sobre os papéis sociais hegemônicos e os comportamentos
esperados, o que inibe a dimensão emancipatória que poderia ter ou
proporcionar. Todavia, isso pode ser redirecionado a partir de novas
diretrizes que, de fato, se traduza em um trabalho social que visa à
autonomia, cidadania e protagonismo social das famílias.
REFERÊNCIAS

BRANT DE CARVALHO, M. do C. A ação em rede na implementação de políticas


e programas sociais públicos. 2008. Disponível em: <www.redesabara.org.br>.
Acesso em: 10 ago. 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a
reorganização do modelo assistencial. Brasília: MS, 1997.
______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.
______. Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Política Nacional de
Assistência Social. Brasília: MDS, 2004.
______. Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Política Nacional do
Idoso. Brasília: MDS, 1994.
______. Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Orientações técnicas
sobre o PAIF. Brasília: MDS, 2012.
BRASIL, C. da C. et al. A política da saúde e a centralidade da família: um olhar
sobre as conquistas e desafios da Estratégia Saúde da Família. In: JORNADA
INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICA, 5., São Luís, 2011. [CD-ROM.]
CAMPOS, M. S. Família e proteção social: alcances e limites. In: ZOLA, M. B.
(Org.). Cooperação internacional para proteção de crianças e adolescentes: o
direito à convivência familiar e comunitária. São Bernardo do Campo: Fundação
Criança de São Bernardo do Campo, 2008.
CARVALHO, L. Famílias chefiadas por mulheres: relevância para uma política
social dirigida. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, ano XIX, n. 57, 1998.
ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of posindustrial economies. New
York: Oxford, 1999.
FONSECA, M. T. N. M. Famílias e políticas públicas: subsídios para a formulação
e gestão das políticas com e para a família. Pesquisa e Práticas Psicossociais,
São João Del-Rei, v.1, n. 2, 2006.
FONTENELE, I. C. O controle da pobreza na ordem do capital: a centralidade da
assistência social no Brasil do ajuste neoliberal. Tese (Doutorado em Políticas
Públicas) — Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2007.
FUREGATO, A. R. et al. O fardo e as estratégias da família na convivência com o
portador de transtorno mental. Texto e Contexto, São Paulo, 2002.
GONÇALVES, A. S.; GUARÁ, I. M. F. R. Redes de proteção social na
comunidade. In: GUARÁ, I. M. F. R. (Coord.). Redes de proteção social. São
Paulo: Associação Fazendo História, 2010. (Col. Abrigos em Movimento.)
GUARÁ, I. M. F. R. Proteção integral em redes sociais. In: ______ (Coord.).
Redes de proteção social. São Paulo: Associação Fazendo História, 2010. (Col.
Abrigos em Movimento.)
KAHHALE, E. M. P. Subjetividade e transformação social. In: WANDERLEY, M. B.;
OLIVEIRA, I. C. (Orgs.). Trabalho com famílias: textos de apoio. São Paulo: IEE,
PUC-SP, 2004. v. 2.
NOGUEIRA, C. da C; COSTA, L. F. A. da. Política de saúde mental e o cuidado
familiar: convivendo com a diferença. In: JORNADA INTERNACIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICA, 5., São Luís, 2011. [CD-ROM.]
MARCONDI, M. A.; SOARES, M. L. P. V. Família e rede social. In: GUARÁ, I. M. F.
R (Coord.). Redes de proteção social. São Paulo: Associação Fazendo História,
2010. (Col. Abrigos em Movimento.)
MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a relação entre profissionais
de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras, 2001.
MIOTO, R. C. T. O trabalho com redes como um procedimento de intervenção
profissional: o desafio de requalificação dos serviços. Katalysis, Florianópolis, v. 5,
n. 1, p. 51-58, 2002.
______. Que família é essa. In: WANDERLEY, M. B.; OLIVEIRA, I. C. (Orgs.).
Trabalho com famílias: textos de apoio. São Paulo: IEE, PUC-SP, 2004. v. 2.
______. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no
contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar. In: SALES, M. A.;
MATOS, M. C. de; LEAL, M. C. (Orgs.). Política social, família e juventude: uma
questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
MINHOTO, L. D.; MARTINS, C. E. As redes e o desenvolvimento social. Cadernos
Fundap, n. 22, p. 81-101, 95, 2001. Disponível em: <www.abdl.org.br/…/287/as-
redes-e-o-desenvolvimento-social.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2012.
RIZZINI, I. et al. Acolhendo crianças e adolescentes: experiências de promoção
do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil. São Paulo/ Brasília:
Cortez/Unicef, 2006.
ROSADO, I. V. M. A dimensão educativa da estratégia saúde da família:
reproduzindo o modelo curativo ou construindo o protagonismo dos sujeitos. In:
JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICA, 5., São Luís, 2011. [CD-
ROM.]
SANICOLA, L. As dinâmicas de rede e o trabalho social. São Paulo: Veras, 2008.
SARACENO, C. Sociologia da família. Lisboa: Estampa, 1992.
STEFFENON, R. Institucionalização de idosos e responsabilização familiar. In:
JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICA, 5., São Luís, 2011. [CD-
ROM.]
TEIXEIRA, S. M. Família na política de assistência social: avanços e retrocessos
com a matricialidade sociofamiliar. Revista de Políticas Públicas, v. 13, n. 2, p.
245- 264, jul./dez. 2009.
______. Trabalho social com famílias na política de assistência social: elementos
para sua reconstrução em bases críticas. Serviço Social em Revista, v. 13, 2010.
[Impresso.]
Sobre as Autoras

CARMEN ROSARIO ORTIZ GUTIERREZ GELINSKI


Economista. Mestrado em Economia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Sociologia Política.
Professora do Departamento de Economia e Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Vice-líder do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa Sociedade, Família
e Políticas Sociais/UFSC. Produção científica concentrada no
campo das políticas públicas, mercado de trabalho, setor informal,
sociologia da saúde, famílias e gênero.

CÁSSIA MARIA CARLOTO


Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutora em
Serviço Social pela PUC-SP. Professora da Universidade Estadual
de Londrina. Líder do grupo de pesquisa Gênero, Políticas Públicas,
Família. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. Desenvolve
pesquisas, desde 2001, relacionadas à inserção das mulheres nos
Programas de Transferência de Renda.

KELI REGINA DAL PRÁ


Assistente Social. Professora do Departamento de Serviço Social e
do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre e doutora em Serviço
Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS). Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa
Sociedade, Família e Políticas Sociais e do Núcleo de Pesquisa
Estado, Sociedade Civil, Políticas Públicas e Serviço Social da
UFSC. Concentra seus estudos no campo da formação profissional,
Serviço Social e políticas sociais, especialmente na política de
saúde.

LILIANE MOSER
Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Mestre em Sociologia
Política pela Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC).
Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP). Professora do Departamento de Serviço Social da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Líder do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa Sociedade, Família e Políticas
Sociais/UFSC. Concentra suas atividades de pesquisa no campo
das políticas sociais e programas de transferência de renda, família,
trabalho e práticas profissionais.

MARLENE BUENO ZOLA


Psicóloga. Mestre e doutora em Serviço Social, com concentração
em Políticas Sociais e Movimentos Sociais, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Experiência
profissional em Gestão Pública de políticas sociais, nas áreas da
Saúde, Trabalho e Assistência Social, em órgãos estadual e
municipal. Foi assessora especial de Políticas Sociais do Município
de São Bernardo do Campo, Presidente da Fundação Criança de
São Bernardo do Campo, Coordenadora da Coordenadoria de Ação
Social da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do
Estado de São Paulo. Desenvolve atividades de consultoria sobre
os temas: infância e juventude, família, direitos humanos, políticas
sociais. É professora do Curso de Serviço Social da Uninove e do
Curso de Psicologia do Centro Universitário da Fundação Santo
André.

MARTA SILVA CAMPOS


Assistente Social. Mestrado e doutora em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-
doutora pelo European University de Firenze, Itália. Professora
Associada da PUC-SP no Programa de Pós- graduação em Serviço
Social. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Família. Ocupou cargos de gestão pública, dentre eles o de
Secretária de Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São
Paulo. Sua docência, produção bibliográfica e de pesquisa se
concentra atualmente nos temas da política social e da família. Na
política social a ênfase recai na historicidade do sistema de proteção
social e seus fatores implícitos de desigualdade social e o combate
à pobreza em confronto com o direito a cidadania na política social
brasileira. Sobre família trabalha na análise dos processos
condicionantes das transformações familiares e o particular impacto
dos padrões de sociabilidade contemporânea sobre elas e as
consequências destas mudanças para a ação profissional.

MÓNICA DE MARTINO
Assistente Social, graduada em Serviço Social pela Escola
Universitaria de Serviço Social — Uruguai (1981). Mestre em
Sociologia pelo Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (1996). Doutora em
Ciências Sociais também pela Unicamp (2004). Atualmente é
professora titular em regime de dedicação integral no Departamento
de Serviço Social da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade da República do Uruguai (Udelar). A produção
acadêmica se articula no campo teórico-metodológico do Serviço
Social com ênfase em crianças e adolescentes, família, gênero,
políticas sociais, práticas e formação profissional. Inclui vários livros
autorais e inúmeros artigos publicados no Uruguai e outros países
da América Latina.

REGINA CÉLIA TAMASO MIOTO


Assistente Social. Professora da Universidade Católica de Pelotas
— Programa de Pós-graduação em Política Social e professora
colaboradora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre e doutora pela
Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutora pelo Instituto de
Etnologia e Antropologia Cultural da Universidade de Perugia, Itália.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. A produção
intelectual concentra-se no campo da família e proteção social,
Serviço Social, políticas sociais e práticas profissionais
interdisciplinares.

SOLANGE MARIA TEIXEIRA


Assistente Social. Professora do Departamento de Serviço Social e
do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da
Universidade Federal do Piauí (UFPI). Pós-doutora em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
no Núcleo de Pesquisa sobre Família. Doutora em Políticas Públicas
pela UFMA e mestre em Serviço Social pela PUC-SP. Autora dos
livros: Envelhecimento no tempo do capital (2008) e Família na
política de assistência social (2013).
1. Esping-Andersen, Gosta. Dilemas del Estado de Bienestar. Colecccíon
Igualdad. Madrid: Fundación Argentária, 1996.
1. Para o Brasil, deriva-se o imperativo de aceitar uma Política Social que não se
desenvolveu como Estado de Bem-Estar Social, e, portanto, impossível de ser
assim nomeada.
2. Sua criação, na Prússia, ocorreu com o intuito confesso de Bismarck de
impedir a formação de um partido operário, devido ao nível vigente de agitação e
organização política dos trabalhadores, dadas as suas condições de
miserabilidade.
3. As Reformas de 1998 e 2003 corrigiram muito dessa falta de tratamento
igualitário, mas, considerando que o sistema começou a operar nos anos 30,
gerações o vivenciaram sob desigualdade de tratamento, no decorrer do período
de amadurecimento do sistema.
4. Todas as últimas citações de Glennerster (2007) são de tradução nossa, da
fonte original em inglês.
5. Um reforço para a decisão por ele efetivamente tomada, também importante
na correlação de forças da época, teria sido a aceitação pública entre os
trabalhadores especialmente, do princípio contributivo, que, em contraposição a
um longo período de administração de benefícios através de “means-test”,
característico das Leis dos Pobres, conferia um valor moral aos beneficiários
pagantes. Também Keynes, defensor de um sistema de impostos progressivo e
universal, teria concordado com esse “expediente temporário”.
6. Tomo a atribuição de um caráter “patriarcal” a esse modelo familiar, na
verdade, claramente nuclear conjugal, como referência a um arquétipo, não se
confundindo com a realidade histórica da família brasileira como um todo.
7. Aponta ainda que, na exigência, para a mulher, de uma “contribuição grátis em
bem-estar” destinada a todos os outros familiares, está incluído o fato de que ela
tem de cuidar de si própria também.
8. Entre outros fatos, a presença do homem, o antigo chefe, diminuiu bastante.
9. Ela conclui: “A distribuição de renda dentro da unidade doméstica (household)
não tem sido um objeto frequente de interesse dos economistas, dos teóricos
políticos ou daqueles com protagonismo na argumentação sobre classe e Welfare
State […]” (Pateman, op. cit., p. 137; tradução nossa).
10. Citando pesquisas norte-americanas da época, a autora fala da evidente
queda, entre os pobres, de 75% do padrão de vida da mulher e de sua subida em
quase 50% para o homem, com o divórcio.
11. A professora dra. Ana Fonseca, em palestra na PUC-SP (19/11/2002),
comentou que “não existe a família, ninguém nunca se encontrou com ela, nunca
disse ‘muito prazer, eu sou uma família’; existe rede de relações de parentesco,
com afinidades, obrigações e direitos […]”. Quer dizer que ela inclui muitas
pessoas que falam.
12. Informa sua pesquisa que o nível de ocorrência desse tipo de família não tem
se alterado muito no País, constituindo, segundo a PNAD em estudo, cerca de
17,3% dos “arranjos”. Essa sensata crítica à inconveniência de se festejar
unicamente o que seria uma evolução da capacidade feminina não impediu que o
levantamento de dados feito deixasse de ressaltar o exercício dessa chefia,
mesmo nos casos em que estavam presentes ambos os cônjuges, baseando-se
na informação espontânea do entrevistado sobre quem considerava a “pessoa
principal responsável do domicílio”. Ou “da família”. Isto mesmo reconhecendo
que a expressão é usada por “tradição”, pois já deixou de existir, mesmo
legalmente, entre outros comentários. O que não impediu certamente a excelência
de muitas outras informações e análises disponibilizadas.
13. Informa sua pesquisa que o nível de ocorrência desse tipo de família não tem
se alterado muito no País, constituindo, segundo a PNAD em estudo, cerca de
17,3% dos “arranjos”. Essa sensata crítica à inconveniência de se festejar
unicamente o que seria uma evolução da capacidade feminina não impediu que o
levantamento de dados feito deixasse de ressaltar o exercício dessa chefia,
mesmo nos casos em que estavam presentes ambos os cônjuges, baseando-se
na informação espontânea do entrevistado sobre quem considerava a “pessoa
principal responsável do domicílio”. Ou “da família”. Isto mesmo reconhecendo
que a expressão é usada por “tradição”, pois já deixou de existir, mesmo
legalmente, entre outros comentários. O que também não impediu certamente a
excelência de muitas outras informações e análises disponibilizadas.
1. Para aprofundamento, ver: Mioto, Regina Célia. Trabalho com famílias: um
desafio para os assistentes sociais. Revista Virtual Textos e Contextos, n. 3, dez.
2004.
2. O estudo foi realizado na segunda fase do programa URB-AL, inserido na rede
10, intitulada: A luta contra a pobreza urbana, articulada pela cidade de São Paulo
e os dados foram obtidos de janeiro de 2007 a junho de 2008. O programa trata
da cooperação descentralizada da Comissão Europeia, que tem como objetivo
incentivar o intercâmbio entre cidades da União Europeia e da América Latina. A
proposta é desenvolver parcerias diretas entre governos locais, regionais e
sociedade civil, criando ambiente para o intercâmbio de novas experiências e
conhecimentos.
3. A Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009, que aprova a tipificação
nacional de serviços socioassistenciais referenda a mesma distinção dos níveis
de média e alta complexidade do Suas. Sendo classificado como alta
complexidade os vários serviços de Acolhimento Institucional, também
Acolhimento em República e em Família Acolhedora. A exceção classificada
nesse quesito é o Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e
de Emergências, que pode ser extensivo a famílias.
4. O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) promoveram, em 8 de março (Dia
Internacional da Mulher), o seminário Mulher e Bolsa-Família, estimulando o
debate sobre o impacto do programa de transferência de renda para a valorização
das mulheres (Ipea, 11/3/2013) Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 25
mar. 2013.
5. Portaria MEC/MDS n. 3.789, de 17 de novembro de 2004. Disponível em:
<www.mds.gov.br>. Acesso em: 15 mar. 2013.
6. A abordagem da OIT sobre a promoção de iguais oportunidades e tratamento
no mundo do trabalho. Texto 139. Brasília, em 8 de março de 2010.
7. Grifo nosso.
8. A pesquisa intitulada Articulação trabalho e família: famílias urbanas de baixa
renda e políticas de apoio às trabalhadoras teve como público-alvo famílias
urbanas de baixa renda, moradoras da cidade de São Paulo (SP) e por objetivo
principal analisar a administração das dificuldades e dos conflitos que surgem na
vida cotidiana de mulheres que trabalham fora de casa (Bruschini et al., 2008).
* Traduzido por Carmen Rosario O. G. Gelinski.
1. Alguns autores indicam que a ideia de focalização passou a ser uma
ferramenta política, um “princípio filosófico”. Sojo (2007) argumenta que na
década de 1970 a focalização foi associada à redistribuição e às causas da
pobreza e que nos anos 1980 a focalização foi reduzida tanto conceitualmente
quanto politicamente. Danani (2007) indica que com as políticas neoliberais o
conceito de focalização passou de um nível instrumental para outro de caráter
“político-filosófico”.
2. Grassi (2003) aponta como características de assistencialismo: a
institucionalização das desigualdades de classe (“de partida”) como carências do
sujeito particular e o caráter moral da ação assistencial dirigida a agentes
extremamente individualizados (individualização dos problemas sociais).
3. Classificação de Filgueira sobre os regimes de bem-estar na América Latina.
Inclui nessa categoria, “a primeira dimensão central que caracteriza a este grupo
de países é que até 1970 todos eles protegiam de uma ou de outra forma a maior
parte da população mediante sistemas de seguridade social, de serviços de saúde
e tinham estendido a educação primaria e a secundária para toda a população.
Em outras palavras, todos eles ofereciam amplos níveis de decomodificação
(desmercantilização) tanto na prestação de serviços fora do mercado como na
prestação de benefícios monetários para diversas situações de impossibilidade de
trabalhar. A outra característica central destes sistemas é a forte estratificação de
benefícios, as condições de acesso e do grau de proteção em matéria de
seguridade social. […] Em outras palavras, os grados de decomodificação se
encontram diretamente estratificados nesses países. No entanto, e este é um
ponto que deve ser notado, a estratificação dos serviços sociais amorteceu, não
reforçou a pauta de estratificação social” (Filgueira, 1999, p. 9-10).
4. A partir de abordagens que assinalam o seu papel político, as famílias podem
ser vistas como um conjunto de relações de produção, reprodução, consumo e
distribuição, localizada em um lugar da estrutura social de acordo com sua origem
de classe. As famílias desenvolvem determinadas estratégias de mobilização de
suas energias para garantir a reprodução física e biológica do grupo familiar, de
acordo às classes ou camadas sociais a que pertencem. Estas estratégias de
mobilização de energias são desenvolvidas a partir de condições de vida objetivas
e anteriores, lembrando, assim, as limitações de classe identificadas por Marx em
suas obras e resgatadas por Bertaux (1979), autor desta visão particular. Em
suma, para Bertaux (1979) as famílias desempenham um papel fundamental no
processo antroponómico de reproduzir a vida, não só em termos materiais, o que
implica a distribuição dos sujeitos nos espaços da estrutura social, o que
determinará um no consumo societal específico de suas energias.
1. Cf. a respeito Pereira (2009) e Moser (2011).
2. Mioto e Dal Prá dedicam um capítulo deste livro a essa discussão.
3. Ver, por exemplo, o capítulo deste livro de De Martino sobre as percepções das
relações de gênero que estão na base dos programas de transferências
condicionadas de renda.
4. A atenção básica, ou primária, à saúde tem por foco os aspectos preventivos e
de promoção à saúde em contraposição ao anterior modelo — o hospitalocêntrico
— cuja ênfase recaía nos aspectos curativos.
5. Além do Censo, para esta caracterização utilizaram-se dados da PNAD
(Pesquisa Nacional por Amostra Domicílios) e estatísticas do registro civil.
6. Sobre este tema há um acalorado debate polarizado, de um lado, pelos que
vaticinam a crise iminente do financiamento da previdência (Giambiagi e Tafner,
2010) e, de outro, pela corrente progressista que considera a crise um mero
artifício contábil para justificar a introdução de medidas neoliberais (Gentil, 2013).
7. Embora desde o Censo de 2000 a condição de “chefia do lar” tenha sido
substituída pela de “pessoa de referência”, a primeira expressão ainda é usada
largamente. Importante reflexão sobre a condição da chefia feminina é feita por
Campos (2011).
1. O PBF possui duas linhas de elegibilidade desde sua criação: as famílias que
ao serem inscritas no CadÚnico declaram renda familiar mensal inferior a R$ 70
per capita são consideradas extremamente pobres, enquanto aquelas que
declararem renda familiar mensal entre essa e a linha superior (R$ 140), são
consideradas pobres (Osorio e Souza, 2012).
2. O Serviço de Atenção Domiciliar no âmbito do SUS vem substituir a
modalidade de Internação Domiciliar.
3. Para uma discussão crítica sobre humanização, consultar Puccini e Cecílio
(2004) e Alves, Mioto e Gerber (2007).
4. É digno de nota o esforço de inúmeros autores, especialmente as feministas,
para inclusão do trabalho não remunerado no campo das contas nacionais
através da medida do tempo despendido nesse trabalho.
5. O princípio da subsidiaridade tem sua origem na teoria social católica da
solidariedade social. Foi enunciado na Encíclica Rerum Novarum, do papa Leão
XIII (1891), que foi a primeira grande intervenção da Igreja na questão social na
época moderna e foi formulado, precisamente, pelo papa Pio XI em 1931. Em
linhas gerais ele estabelece que: instâncias superiores devem prevalecer sobre
instâncias menores quando estas falham na satisfação de atribuições que lhes
competem.
1. Carloto, Cássia M.; Mariano, Silvana A. A família e o foco nas mulheres na
Política de Assistência Social. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 14, n. 2, jul./dez.
2008.
Carloto, Cássia M. Gênero, políticas públicas e centralidade na família. Serviço
Social & Sociedade, São Paulo, ano XXVII, n. 86, 2006.
2. Ver também Carloto, Cássia M.; Mariano, Silvana A. Empoderamento, trabalho
e cuidados: mulheres no programa bolsa família. Revista Textos e Contextos,
PUC-Porto Alegre, v. 11, n. 2, 2012.
3. Las políticas públicas han convertido la responsabilidad de las mujeres em
obligación exclusiva y excluyente. Por ello resulta fundamental: a) fortalecer el
acceso al empleo en igualdad de oportunidades; b) desfamiliarizar la política
social y cambiar el foco sobre las mujeres como beneficiarias para reorientarlas a
quienes necesitan cuidado, desde una perspectiva de derechos. El cuidado de
terceros no es asistencia a las mujeres, es un derecho de ciudadanía; c) realizar
cambios en las políticas de derechos reproductivos, incluyendo a los varones
como sujetos; d) realizar cambios en los servicios públicos (educación, transporte,
salud), de manera que las labores de cuidado sean compatibles con los horários
laborales de padres y madres; e) realizar cambios en la carga de cuidado familiar
de los hijos, mediante políticas explícitas de conciliación y responsabilidad
compartida como los permisos parentales.
4. En America Latina y el Caribe las encuestas sobre uso del tiempo han
respondido principalmente a las necesidades de información derivadas del
análisis de género, en un contexto que se caracteriza por una economía
globalizada; la flexibilidad en el trabajo; una crisis financiera de amplio espectro;
sociedades que enfrentan una dinámica demográfica que anuncia el
envejecimiento de la población; un redimensionamiento del tamaño y las
funciones del sector público, y una creciente demanda de servicios públicos y de
cuidado de personas y de salud. El deterioro de las condiciones del mercado
laboral, los débiles sistemas de seguridad y asistencia social, la falta de
instrumentos que concilien la vida de los hogares y la vida de la actividad
económica, hacen particularmente difícil la situación de las mujeres. En este
contexto, colocar el trabajo remunerado y no remunerado como centro de
atención en los estudios sobre uso del tiempo es un paso adelante para el análisis
de género, económico y social.
5. Nuestra propuesta centrada en el trabajo no remunerado y en el uso del tiempo
se inscribe dentro de la corriente que en nuestra región frente a la insuficiencia de
los indicadores convencionales — las necesidades básicas, la línea de pobreza y
los índices de desarrollo humano — se plantea la necesidad de generar nuevos
marcos analíticos e indicadores que den cuenta de las desigualdades de género
en los procesos de empobrecimiento. La idea que se sustenta en este trabajo es
que los procesos de empobrecimiento de las mujeres están estrechamente
vinculados a la dedicación a las actividades no remuneradas y a la escasez de
tiempo. En ese sentido se propone la exploración de las potencialidades de la
medición del reparto de las actividades en los hogares y del uso diferencial del
tiempo en esas actividades. Con ello se procura contribuir a desarrollar una línea
de investigaciones que permitan captar mejor la dinámica de la reproducción de la
pobreza y de los sistemas de género.
1. Dentre as ações burocráticas, compreendidas como ações com longos
trâmites, com necessidades de atestados, papeladas que comprovem
necessidades, pareceres de profissionais, decisões de juízes que precedem a
institucionalização em asilos, abrigos e outros expedientes que consomem
grandes parcelas dos gastos públicos.
2. Termo utilizado por Saraceno (1992) e Esping-Andersen (1999) para tratarem
da orientação das políticas sociais que responsabilizam as famílias por grande
parte da proteção social, considerando o princípio de que o Estado só deve
intervir quando elas não conseguem resolver os problemas. A consequência é um
subdesenvolvido sistema de serviços para as famílias.
3. Entre as categorias combativas destacam-se, na emergência do sistema de
proteção social, ferroviários, bancários, comerciários e várias profissões inseridas
no sistema público e na esfera privada que pressionavam por mais benefícios.
4. Entre os segmentos destacam-se as crianças, adolescentes, idosos,
deficientes e lactantes atendidos pela assistência social.
5. Emancipação no sentido de superação da subalternidade, de conquista de
autonomia e até de superação da ordem social que gera desigualdades sociais.

Você também pode gostar