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Caitité, Amanda Muniz Logeto. Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no
feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no


feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

Clues to a reinvention of epistemology: be affected, science in feminine


researchWITH and localized knowledge

Claves para una reinvención de la epistemología: verse afectado, ciencia en


femenino, pesquisarCOM y conocimientos localizados

Amanda Muniz Logeto Caitité1

Resumo
Em nossas pesquisas é comum encontrarmos, numa mesma instituição, diversos campos de
conhecimento. Neste ensaio, procuro refletir sobre a possibilidade de estudar esses diferentes saberes a
partir da epistemologia, de modo que a expertise e a autoridade de cada ator encontrado em campo sejam
preservadas. Viabilizar essa proposta requer que os enunciados sejam pensados em termos que passam ao
largo da oposição entre verdade e erro. Retomamos então textos que, ao menos de forma declarada,
defendem uma virada ontológica, legitimando as propostas de afastamento em relação à epistemologia
tradicional. Afirmamos, no entanto, a possibilidade de fazer a epistemologia existir como um projeto
irmanado à ontologia. Concluímos que um fazer epistemológico capaz de levar a sério a expertise do
outro é viável a partir de um fundamento pragmático e do privilégio da dimensão afetiva e do caráter
encarnado do ato de pesquisar.
Palavras-chave: pesquisarCOM, virada ontológica, epistemologia, pragmatismo, afeto.

Abstract

In our research we often find, in the same institution, several structured fields of knowledge. In this essay,
I try to reflect on the possibility of studying this different knowledge from the epistemological field, so
that the expertise and authority of each actor found in the field are preserved. Enabling this proposal
requires that the statements be thought in terms that go off the opposition between truth and error. Then
we resume texts that at least openly advocate an ontological turn legitimating proposals that scape from a
traditional epistemology. We affirm, however, the possibility to make epistemology to exist as a project
close to ontology. We conclude that an epistemology able to take seriously the expertise of the other is
viable starting with a pragmatic basis and favoring the affective dimension and embodied character of the
act of researching.
Keywords: researchWITH, ontological turn, epistemology, pragmatism, affect.

Resumen

En nuestras investigaciones encontramos a menudo, en la misma institución, varios campos estructurados


de conocimiento. En este ensayo, trato de reflexionar sobre la posibilidad de estudiar estos conocimientos
diferentes desde el campo epistemológico, por lo que la experiencia y la autoridad de cada actor que se
encuentra en el campo se conservan. La activación de esta propuesta exige que los enunciados pueden ser
pensados en términos que van a la oposición entre la verdad y el error. A continuación resumimos los

1
Psicóloga e mestre pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal Fluminense. [email protected]

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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textos que abogan al menos abiertamente un giro ontológico y legitiman propuestas que escapan de una
epistemología tradicional. Afirmamos, sin embargo, la posibilidad de hacer la epistemología existir como
un proyecto cercano a la ontología. Llegamos a la conclusión de que una epistemología capaz de tomar en
serio la experiencia del otro es viable desde una base pragmática y desde el privilegio de la dimensión
afectiva y del carácter encarnado de lo acto de investigación.
Palabras clave: pesquisarCOM, giro ontológico, epistemología, pragmatismo, afecto.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Onde quer que seres de discursivas, e levar em consideração a


diferentes espécies se associem e proposta, por parte de autoras centrais,
produzam enunciações afirmativas, uma de que abandonemos o uso dessa
multiplicidade de expertises pode ser palavra ou esse campo filosófico? Não
encontrada. As redes existentes em um posso afirmar ao certo se há ou não uma
terreiro de candomblé integram virada ontológica em curso na produção
elementos que não são encontrados em desses autores e autoras e se essa virada
um hospital, a expertise de uma mãe de implica num abandono da epistemologia
santo difere da de uma cardiologista, ou em si mesma, ou num conflito
do paciente que a ambas se dirige etimológico, numa rejeição motivada
procurando auxílio. Não é a mesma pelos sentidos que a palavra
expertise encontrada nos manuais de epistemologia evoca. Apesar de
medicina em uma biblioteca que, por encontrarmos na literatura referências a
sua vez, difere do saber de uma uma virada ontológica nas ciências
pesquisadora que transita nesses sociais, sua existência é controversa e
espaços. precisa ser mais bem elaborada em
outro momento. Neste ensaio, me
Como nos posicionarmos frente
detenho em considerar a saída do campo
a essas diversas expertises, sem
epistemológico em direção ao da
submeter formas de saber não
ontologia, como um deslocamento
científicas a um falseamento? É
explicitamente advogado por Mol
possível levar a epistemologia para
(2002) em seus textos.
além dos saberes científicos, ou seria o
fazer ontológico a única maneira de É no livro The Body Multiple
levar a sério a alteridade? Neste ensaio, que Mol (2002) defende com maior
tento responder a essas questões, clareza a relevância de que seus estudos
tecendo reflexões sobre pesquisar em sejam situados no campo da ontologia.
meio ao conjunto de práticas Desde o prefácio, a autora anuncia a
encontradas em campo, especialmente necessidade de empreender um
em meio às práticas discursivas. movimento que distancie suas pesquisas
Procuro encontrar um modo de falar do campo epistemológico. No entanto,
sobre os discursos na praxigrafia, no decorrer desse livro e em outros
registro inventivo das práticas momentos, Mol (2002) reverencia a
cotidianas, posto em cena por epistemologia de Canguilhem (2009) e
Annemarie Mol (1999; 2002). deixa claro que suas pesquisas são
fortemente influenciadas pelo autor.
O cuidado de refletir sobre o
Talvez essa adesão seja suficiente para
lugar do discurso na praxigrafia se deve
defender que Mol situa seus estudos
à constatação de que, em algumas
também no campo epistemológico.
situações de pesquisa, são práticas
Outra possibilidade seria ver nessa
discursivas o que encontramos com
reverência a Canguilhem um manejo
mais frequência. Além disso, estamos
cuidadoso da literatura, em que ela
sempre a pensar sobre o nosso próprio
demonstra cultivar, em relação a
fazer científico, nos nossos modos de
elementos da obra do autor, dissidências
estar em campo. Poderíamos situar
que prescindem de ruptura com a
essas reflexões como um fazer
totalidade de seus escritos.
epistemológico? Mas como falar em
epistemologia sem reeditar a divisão De todo modo, é extremamente
entre a realidade do mundo e o saber relevante procurar no texto de Mol
que dele produzimos? Como conciliar o (2002) outros posicionamentos que
estudo de conceitos, de práticas indiquem uma variação em relação à
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sua proposta inicial, ou seja, enunciados posso assimilar da experiência


demonstrando que ela está a defender etnográfica e filosófica de quatro
outra epistemologia e não a saída desse autoras: Favret-Saada (2005), Haraway
campo. Apesar de muito interessante, (1995, 2008, 2010, 2014a, 2014b),
deixarei essa busca para outro Moraes (2010) e Stengers (1989).
momento. Neste ensaio, Pretendo ressaltar em seus escritos
especificamente, me detenho na aposta aquilo que nos ajuda a encontrar um
de que partir de sua declaração mais posicionamento frente a propostas de
explícita também pode nos levar a virada ontológica e, a partir de então,
reflexões significativas. Sua proposta de pensar nas implicações de um possível
distanciamento em relação à resgate, afirmação, ou reinvenção da
epistemologia me parece oportuna para epistemologia (Nunes, 2008).
discorrer sobre algumas possibilidades
Porque uma virada ontológica?
de que esse campo da filosofia seja
afinado, de modo a compor projetos Como um fazer filosófico que se
consonantes à virada ontológica. investe da capacidade de distinguir
entre verdade e erro, o aparecimento da
Tomando então como ponto de epistemologia é indissociável da
partida a existência da opção pela emergência do projeto moderno de
ontologia por parte de autores a autoras ciência. É com a pretensão de
que nos são caros, eu me volto para um estabelecer os critérios de legitimação
dissentimento em relação à posição do conhecimento que esse campo se
mais explícita de Mol (2002):defendo apresenta como instância independente,
que sua necessidade de afastamento em soberana, destinada a avaliar os mais
relação à epistemologia pode ser diferentes enunciados. No entanto,
compreendida como fundamento de um dentre toda a diversidade de modos de
desdobramento desse campo e não saber, a epistemologia adota como
como uma justificativa para seu referenciais de legitimidade aqueles que
abandono. É possível encontrar na
são próprios à ciência moderna. Nessa
filosofia empírica de Mol (2002) o operação, o que resulta é uma
prelúdio de um movimento que equivalência imediata entre a palavra
considera o que a epistemologia pode conhecimento e o saber científico.
ser, além do modo como foi Todas as outras formas de saber são
tradicionalmente delineada. Afirmando submetidas a um falseamento, são
a potência desse campo para o excluídas do campo do conhecimento e
fortalecimento de uma ciência no atribuídas ao âmbito da ignorância, da
feminino, defendo que podemos incluir crença, do erro, da superstição, das
nossas pesquisas também como representações, da cultura. Ao
reflexões epistemológicas – sem que conhecimento científico, é atribuída a
isso implique na redução dos diferentes égide da neutralidade, da
enunciados encontrados em campo a imparcialidade, da objetividade (Nunes,
meras representações variadas de uma 2008).
realidade em si mesma unívoca e sem
que isso implique em trazer à existência Não deve surpreender, portanto,
uma hierarquia entre saberes distintos. o fato de que esse projeto filosófico da
epistemologia seja rejeitado por teóricos
Acredito que outras publicações, que acusam o que há de nocivo na
às quais ainda não tive acesso, ambição generalizante e exclusivista do
defendam um posicionamento projeto de ciência da modernidade. Seja
semelhante. Meus argumentos, no na antropologia médica, na
entanto, serão tecidos a partir do que
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etnoantropologia, nos estudos Tradicionalmente, pesquisas na


feministas, ou nos estudos sociais em área social partem da distinção entre
ciência e tecnologia, encontramos quem biologia e cultura, realidade e
reivindique o abandono desse campo, representação. No campo da saúde, essa
propondo novas formas de pensar sobre dualidade se atualiza na separação entre
a produção de saber, suas condições de disease (a doença, entendida como
existência, seus efeitos e suas relações dimensão biológica do adoecimento) e
com a ética e a política (Nunes, 2008). illness (a enfermidade, entendida como
É possível encontrar também, nessa conjunto de experiências pessoais e
literatura quem descreva essa rejeição fatores culturais associados à doença).
da epistemologia nos termos de uma Essa distinção delega a expertise sobre
virada ontológica. o corpo à medicina e o estudo de
representações às ciências sociais. É
Em pesquisas voltadas para
essa divisão que Mol (2002) entende
estudos de populações indígenas,
como derivada de uma abordagem
Viveiros de Castro (2003) chama a
epistemológica.
atenção para a maneira como o modo de
pensar posto em cena pela Ao legitimar o estudo do
epistemologia acaba por atribuir um biológico em sua materialidade a um
caráter de falsidade, de ilusão aos único grupo restrito, limitando-se à
sentidos encontrados. Ao ir a campo, investigação de conceitos (entendidos
levar a sério a diferença daqueles com como representações abstratas), adotar
quem convivemos requer ter em uma base epistemológica traria como
consideração que eles compartilham um prejuízo a perda do corpo como campo
mundo ainda desconhecido. As palavras da filosofia e das ciências que se
das pessoas precisam ser tomadas como ocupam do social. Favoreceria a
a realidade do mundo, não como um possibilidade de silenciam ento de
conjunto abstrato de crenças. Ao grupos politicamente engajados, através
pesquisador não cabe mais se deter nos da naturalização de práticas opressoras,
significados, ele deve voltar-se para a já que, nesse caso, as ciências
realidade prática do cotidiano, ou seja, o biológicas detêm a última palavra sobre
seu exercício deve ser o de fazer uma a realidade do corpo (Bellacasa, 2015;
ontologia (Souza, 2012). Harding, 1986; Haraway, 2008; Martin,
1987; Mol, 2012). Tal cisão entre
De modo semelhante, ao voltar-
materialidade e discurso dá margem à
se para as ciências médicas propondo a
formação de uma biologia que se
inclusão do corpo como realidade
pretende alheia às práticas sociais e de
passível de ser investigada pela filosofia
um corpo compreensível apenas por
e pelas ciências sociais, Mol (2002) não
especialistas do campo biomédico.
apresenta seus estudos como
Mantido de fora da análise das ciências
pertencentes ao campo epistemológico.
sociais, o corpo ganha o estatuto de
Sua intenção, ao se desviar desse
entidade unívoca, estabilizada, de
campo, é trazer para as ciências sociais
ontologia fixa. Como dimensão natural
o estudo do corpo em sua materialidade,
e imutável, o corpo garante àqueles que
em sua biologia. É romper com o
se dedicam ao seu estudo a autoridade
pressuposto de que existe uma
para proferir a última palavra sobre o
dimensão que escapa ao domínio social,
que há de imutável no mundo. É em
cuja expertise seria exclusiva a
meio a essa divisão de expertises que a
especialistas das ciências biomédicas.
produção científica legitima práticas
opressoras. A ideia de que mulheres são

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naturalmente passivas, submissas e Uma introdução apressada à


indefesas, por exemplo, é encontrada filosofia de Harding (1986)poderia levar
em resultados de pesquisas científicas à conclusão de que a autora recai num
nos campos mais variados (Bellacasa, dualismo e advoga que pessoas do
2015; Harding, 1986; Haraway, 2008; gênero masculino necessariamente virão
Martin, 1987; Mol, 2012). a produzir conhecimentos que
fortalecem o sexismo. No entanto, não é
A crítica à epistemologia, por
disso que se trata. O gênero importa,
esse motivo, é encontrada no campo dos
mas não como dualidade determinante.
estudos feministas. Embora não exista
Harding (1986) defende claramente que
um consenso quanto ao abandono do
a possibilidade de assumir a perspectiva
campo, há uma invenção de novas
de mulheres não é exclusiva às pessoas
formas de epistemologias, sedimentadas
do gênero feminino. Ao propor uma
na exposição de como as práticas
teoria do ponto de vista, a autora
científicas são permeadas por valores
defende que uma pesquisa tem mais
sociais e guardam o potencial de
chances de produzir um conhecimento
reforçar o sexismo (Bellacasa, 2015).
objetivo e fidedigno quando quem a
Para a filosofia da ciência tradicional,
realiza (seja homem, ou mulher) é
os resultados de uma pesquisa são
sensível ao ponto de vista de mulheres,
independentes do contexto de
independente do seu gênero. A metáfora
formulação do problema, de modo que
da visão poderia ter sido descartada, já
pouco se considera a influência do
que é fulcral à ambição de
gênero de quem pesquisa sobre os
universalidade da modernidade, mas é
resultados alcançados.
retomada de forma brilhante por
A crítica empreendida pelos Harding (1986) para fundamentar o
estudos feministas rompe o silêncio em conceito de objetividade forte, por ela
torno da dimensão política trazido à existência.
inevitavelmente presente no campo
Da metáfora da visão, Harding
epistemológico. Direciona-se à
(1986) dispensa o olhar neutro que
parcialidade das pesquisas em ciências,
existe por si só e que pretensamente vê
mais especificamente às consequências
de lugar nenhum, substituindo-o por
do fato de que os problemas que delas
olhos encarnados, que nada poderiam
emergem são formulados por homens.
alcançar sem a densidade material que
As pesquisas científicas não raro
os continua, ou seja, sem as demais
desfavorecem mulheres, ora por não
sensorialidades do corpo no mundo.
levarem em consideração o que
Haraway (1995) abraça essa metáfora,
apareceria como problema a partir de
afirmando que ninguém vê com um
suas experiências, ora por difundirem
Olho. A visão sempre acontece com
resultados que reforçam a posição de
olhos corporificados, imersa numa
dominação masculina. Como afirma
totalidade inacabada de sensorialidades
Harding (1986), algo só é identificado
e aparatos técnicos interdependentes. É
como um problema de pesquisa na
a partir do corpo, ou seja, de um
medida em que alguém o vivencia como
complexo enredamento técnico,
tal. As experiências sociais de homens e
sensorial e afetivo, que a visão tem
mulheres constituem pontos de partida
lugar. Essa entidade imaterial, o Olho
diferentes para o conhecimento,
de deus, que em tese teria o poder de
impulsionam e propagam (embora não
estar em toda parte e de tudo ver sem
determinem) modos de interrogar que
jamais ser visto, é, na concretude do
levam a resultados distintos.
fazer científico, a perspectiva não

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marcada do Homem Branco2 (Haraway, perspectiva de grupos oprimidos. Uma


1995). Os olhos existem como estratégia para aumentar o rigor das
continuidade de uma materialidade pesquisas é ampliar a participação de
corporal no mundo, como aparelhados a quem permanece de fora do meio
um ciborgue, um corpo híbrido de carne acadêmico, já que são pessoas capazes
e metal de onde não podem se de identificar, nos enunciados de um
desprender (Haraway, 2000). conhecimento, aquilo que decorre de
uma posição social privilegiada de
Para Harding (1986), quanto
quem pesquisa, perpetuando
menos explícito for o lugar de onde
desigualdades. Harding (1986) não
parte o cientista, mais distorcido será o
reivindica, portanto, um relativismo em
conhecimento por ele produzido.
que qualquer ponto de vista conta como
Propor-se a estar em todos os lugares
verdade. Tampouco defende o
simultaneamente, sem se fixar em parte
abandono da epistemologia.
alguma, produz um conhecimento
enviesado. Ao contrário, o olhar que Nos estudos feministas, foi em
proporciona à ciência uma objetividade Bellacasa (2015) que encontramos uma
forte é aquele que não apaga a aversão declarada à epistemologia e
materialidade de suas conexões e uma busca por sair desse campo. A
assume o ponto de vista das pessoas em autora não se opõe à proposta de
situação de vulnerabilidade. Se Harding (1986); ao contrário, enfatiza
conceitos formulados a partir do grupo as mudanças positivas que seus escritos
que se beneficia de uma posição de trouxeram e afirma a necessidade de
opressor forem privilegiados, os apoiar seu posicionamento como
resultados serão necessariamente estratégia política. O que Bellacasa
enviesados. A objetividade forte requer, defende é manter a teoria do ponto de
portanto, um estudo sistemático dos vista e a ideia de objetividade forte,
posicionamentos e valores sociais que levando essas contribuições para fora do
permeiam um processo de pesquisa. O campo referido como epistemologia.
conhecimento será tão mais fidedigno Harding (1986) defende claramente a
quanto mais próximo estiver da existência de um saber mais fidedigno
do que outro, o que Bellacasa parece
2
É imprescindível procurar compreender melhor entender como uma ambição normativa.
o que Haraway entende por “Homem Branco”. A autora vê esse posicionamento como
Assim como em Harding (1986), uma consequência inerente ao uso da palavra
introdução apressada aos termos da autora pode
fazer com que suas ideias sejam erroneamente
epistemologia, que, ao impor a
compreendidas como deterministas e dualistas. dicotomia entre verdade e ficção,
Por ora, entendo que, ao dizer “Homem inspira leis canônicas do conhecimento
Branco”, Haraway se refere a um lugar que não promotoras da hierarquia entre
pode ser atribuído de forma imediata, arbitrária diferentes formas de saber. Como uma
e necessária a pessoas brancas do gênero
masculino. Como um lugar composto por um
das possíveis saídas para pensar a
conjunto de práticas, o “Homem Branco” requer produção de conhecimento, sem
uma soma de elementos humanos e não- recorrer a essa palavra e suas
humanos para encontrar atualização e repercussões, Bellacasa aponta para a
perpetuação. Guardadas as devidas proporções e ideia de conhecimentos localizados, de
condições de possibilidade, ressaltando ao
extremo as distintas consequências, por ora
Haraway (1995). Essa autora retoma a
entendo que suas práticas podem também vir a metáfora de objetividade forte de
ser parcialmente reproduzidas por mulheres e Harding (1986), acrescentando
por pessoas não brancas. Suas práticas, jamais o modificações que a afastam da
seu lugar. dicotomia entre verdade e erro.

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Neste ensaio, defendo não só a tessitura do mundo e a nós interessa


legitimidade como a necessidade do mais situá-los quanto ao que produzem
posicionamento de Bellacasa (2015), de do que quanto à sua acurácia. Se na
Mol (2002), Viveiros de Castro (2001) e epistemologia de Harding (1986) o
de outros autores que reivindicam uma conceito de objetividade forte parece
virada ontológica e o abandono da evocar uma hierarquia dos saberes, na
epistemologia. Compreendo a ideia de saberes localizados ele faz
relevância que tem a problematização sobressair as dimensões ética e política
dessa palavra para os seus campos de envolvidas na produção de
estudo. Dificilmente poderíamos deixar conhecimento. Um saber situado,
de considerar o que há de nocivo na produzido a partir da perspectiva do
produção de conhecimento justificada subjugado, não garante um lugar de
pela epistemologia tradicional: o efeito inocência de onde seria possível proferir
desrealizante sobre povos colonizados; a verdade do mundo. Não implica
a cisão entre natureza e cultura, assumir uma identidade total e reificada,
materialidade e sentido, humano e não mas em poder responder pelas conexões
humano; a legitimação de sempre parciais que sempre se formam.
posicionamentos políticos reacionários Conexões totais, ou auto-identidades,
e genocidas; a desqualificação e objetivam e coisificam o mundo tanto
exclusão de formas de saber cujas bases quanto o Olho de deus. Nos dois
epistemológicas não se sujeitam às posicionamentos, o que resulta é a
hegemônicas; a arriscada presunção de última palavra, entidade silenciadora
conhecimentos que se supõem pretensamente capaz de encerrar
universais (Nunes, 2008). Reconheço a qualquer disputa política. A perspectiva
relevância estratégica da virada de pessoas subjugadas é sim preferível,
ontológica e não pretendo questioná-la, mas por não ter meios de apagar os
de forma alguma. Talvez possamos rastros de suas conexões. É menos
colocar a proposta de retomada da provável reivindicar um olhar neutro
epistemologia nos termos de uma quando se parte de um lugar marcado,
diferença que se afirme menos por cedo ou tarde se é chamado a responder.
contradição ou contraste e mais por uma Essa possibilidade de responder
continuidade variada (Bellacasa, 2015); parcialmente, sem pretensão de ser o
que permita cultivar desdobramentos outro, sem por ele falar, ou com ele se
firmados por uma “escuta não confundir é o que dá passagem ao
pacificada” do que dizem esses autores, inesperado. A conexão parcial é
fazendo aos seus enunciados uma preferível por permitir a agência do
referência que não negue possíveis mundo em suas muitas possibilidades
dissidências (Tibola, 2014). (Haraway, 1995).
“Saberes localizados”, É o acolhimento do mundo em
“pensarCOM”, “ciência no feminino” suas diversificadas versões que a
e “ser afetado” como possíveis formas preposição COM nos incita, quando
de reinvenção da epistemologia. associada ao verbo pensar. A expressão
pensarCOM foi levada adiante por
Concordamos, portanto, que,
Moraes (2010) em suas pesquisas de
para pensar o mundo dos outros sem
campo na área da deficiência visual. Ao
apelar para um eventual falseamento, é
subverter o esperado distanciamento
necessário fazer uma ontologia. Os
entre cientista e mundo, a autora aposta
diferentes saberes que produzimos e
que, uma vez em campo, o saber seja
encontramos em campo são elementos
produzido em parceria COM as pessoas
que se somam a outros elementos na
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que encontramos, não sobre elas de que ela era uma mulher a fazer
(Moraes, 2010). ciência.
A preposição “sobre” evoca uma Os modos do trabalho da
mirada que se dá por um distanciamento cientista pareciam estranhos e não
corporal e afetivo do sujeito e que tudo podiam ser compreendidos por seus
pode ver. Um olhar assim acaba por colegas. Bárbara não partia de uma
fazer a deficiência existir no mundo única questão elaborada
como uma entidade determinada, fixa, antecipadamente e não pretendia chegar
dada desde sempre. Não raro essa única a uma generalidade sobre o milho como
versão é a da falta, do fracasso, da totalidade. Sua atitude era permeada por
ineficiência. Nesse campo, a proposição uma curiosidade difusa em relação a
COM intervém de modo a criar no cada grão em sua singularidade. Difusa
pensamento uma abertura ao que a no sentido de que sua atenção se voltava
deficiência pode ser, às suas distintas para todos os problemas inesperados
versões. Uma vez que a produção de que cada grão de milho pudesse trazer.
conhecimento é partilhada com as Cada um deles participava ativamente
pessoas em campo, uma vez que elas de sua pesquisa e mostrava quais eram
são tomadas como experts, é possível as boas questões a serem formuladas.
aprender com elas a fazer arranjos que Bárbara formava parceria com o
produzam sua existência de formas material e imprimia em seu trabalho a
variadas (Moraes, 2010). Nesse sentido, lentidão e a sutileza necessárias para
pensarCOM é afirmar o caráter sempre permitir que ele contasse sua história,
interventivo da pesquisa. A reflexão em seu próprio ritmo. Ela criou meios
sobre que tipo de mundo pretendemos para que o material pudesse contar sua
construir deve ser parte do fazer história singular e, assim, expressar
científico que se enriquece na medida resistência ao consenso e ao
em que se afirma como politicamente dogmatismo dos modelos já prontos na
situado. Do mesmo modo, temos época.
responsabilidade por aquilo que É a esse modo de estar diante do
escolhemos incluir ou ocultar nos que encontramos em campo que
nossos textos e os termos que orientam Stengers (1989) denomina ciência no
essa decisão devem ser explicitados feminino. Não porque sua possibilidade
(Moraes, 2010). de existência esteja restrita ao fazer de
Acredito que também seja nesse mulheres, mas porque ela traz uma
sentido, de um fazer científico que marca de singularidade que não chega a
permita a agência do mundo, que ser delimitada num conjunto específico
Stengers (1989) apresenta uma ciência de métodos a serem seguidos, num
no feminino. Para ilustrar o que entende protocolo. É feminino porque não
por esse termo, a autora descreve o ambiciona se tornar hegemônico, uma
trabalho de Bárbara McClintock, vez que é em si mesmo aberto a
cientista que ousou quebrar protocolos invenções. É um modo de fazer sempre
de pesquisa comuns na sua época e, ao por fazer. De que maneira Barbara
estudar o milho, acabou fazendo chegou a estabelecer uma parceria com
descobertas que revolucionaram a cada grão de milho, qual foi o seu
compreensão do genoma. Stengers método? Nós não sabemos. Cada grão
(1989) encontra no trabalho de Bárbara, pediu um manejo distinto. O que
características muito peculiares e não Stengers (1989) chama de feminino é a
deixa de associar suas inovações ao fato disponibilidade para uma conexão que
deixe falar o material. Ela descreve a
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lentidão e a sutileza de Bárbara, mas âmbito da falsidade, da ilusão.


não como uma regra a ser seguida, a Apoiados no conceito de representação,
sutileza não é um protocolo. A lentidão esses estudos reafirmam a dissociação
foi o ritmo solicitado pelo material com entre a linguagem e o mundo,
que ela interagia. O ritmo do grão de agregando signos em coletâneas que
milho não se aplica a todos os materiais. convencionaram chamar de “crenças”.
O feminino diz mais sobre a conexão, a Reeditam, desse modo, a divisão
parceria e a disposição para deixar o colonialista entre primitivos e
mundo agir e surpreender. É não partir civilizados, em textos que operam uma
de problemas formulados de antemão e dupla exclusão: a do corpo do
aprender com o outro que questões pesquisador como instrumento legítimo
importam. Em uma ciência no feminino, de conhecimento e a da palavradas
os diferentes saberes, as diferentes pessoas que encontra como autoridade
expertises em campo são materiais etnográfica (Favret-Saada 2005;
tomados em sua singularidade. Clifford, 2011).
Podemos encontrar essa postura A falta de disponibilidade para
também no fazer etnográfico de Favret- experimentar e deixar-se afetar pelas
Saada (2005), antropóloga que, após situações encontradas em campo
estudar a feitiçaria entre camponeses do restringe as possibilidades de
Bocage, escreve sobre a importância de comunicação. A etnografia é reduzida a
firmar parceria com quem encontramos uma troca verbal descolada dos afetos
em campo, sem excluir os afetos que que a acompanham. Os processos que
perpassam as interações. Apesar de ter estão aquém ou além da representação
levado o corpo ao status de elemento permanecem incompreendidos, quando
necessário à prática científica não são tomados como inexistentes
antropológica, a etnografia ainda guarda
o potencial de operar o distanciamento com o pesquisador, partilhando com afinco os
do pesquisador e a constituição do outro detalhes de seus fazeres cotidianos. À primeira
como uma alteridade absoluta em vista, ela não dá conta de enunciar o vínculo
afetivo que se estabelece nessas interações e
campo. Muitos etnógrafos, mesmo após guarda o sentido de que aqueles que
o contato intenso com uma ampla encontramos são meros transmissores de
diversidade de elementos, limitam seus informações. Por isso substituí informantes por
escritos ao registro de aspectos companheiros, para que fique entendido que
intelectuais das práticas sociais: o que essas pessoas, além de serem significativas,
partilham conosco a autoria do trabalho
pensam os humanos, quais são suas realizado. É preciso deixar claro, no entanto,
perspectivas acerca de uma determinada que essa parceria na pesquisa não é resolvida a
realidade. Além de minimizar a partir de uma fácil declaração de que o
relevância do posicionamento do conhecimento resulta de um trabalho coletivo.
pesquisador frente ao campo, a Partilhar a autoria com quem encontramos em
campo é algo complexo, um problema cujas
dualidade entre cultura (compreendida soluções possíveis passam pela reflexão sobre a
como significados) e realidade (que escrita etnográfica. Para um levantamento de
seria a natureza objetiva) leva ao que exemplos do que tem sido feito nesse sentido,
Viveiros de Castro (2001) denomina ver Clifford (2011). É um texto antigo, mas
efeito desrealizante. A palavra dos digno de leitura. Além da adoção do termo
companheiro, defendo o uso intercambiável
nossos companheiros de campo com a palavra informante, desde que sejam
(informantes)3 tende a ser atribuída ao observados outros sentidos que a palavra pode
ofertar. Convém repensar o que acontece
3
A palavra “informante” é tradicionalmente quando alguém diz algo que nos interessa. Para
utilizada na antropologia para nomear as um conceito de informação como fundamento
pessoas que se relacionam mais intimamente do encontro com o outro, ver Simondon (2015).

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Caitité, Amanda Muniz Logeto. Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no
feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

(Goldman, 2005). Favret-Saada (2005) tamanha convicção a positividade desse


ressalta que a experiência de ocupar um inevitável enredamento está longe de
lugar em meio às atividades do outro ser uma postura convencional. A
não equivale a viver a realidade da ubiquidade do corpo nos resultados
mesma maneira que ele. Os afetos obtidos com qualquer dispositivo
vivenciados por ela nas práticas de científico não pode ser posta em
feitiçaria não informavam sobre os evidência sem subverter e pôr em
afetos dos camponeses, mas permitiam questão o alcance de certos modos já
um modo particular de comunicação legitimados e majoritários de fazer
com eles, em que sobressaíam questões ciência – aqueles guiados pelo ideal
que, de outro modo, sequer seriam moderno de purificação e neutralidade.
percebidas. Sua atitude não pode Porque retomar a epistemologia?
tampouco ser confundida com empatia.
Se existe a possibilidade de o Dentre as formas de pensar a
pesquisador experimentar as produção de conhecimento que
intensidades de um lugar, certamente é tomamos como referência, foram quatro
através de seu próprio corpo, não a as que apareceram neste ensaio.
partir de um exercício imaginativo Poderíamos falar em uma epistemologia
sobre o que o outro vivencia. no feminino? Ou numa epistemologia
forte? Como soa a expressão
Repetir efusivamente esse epistemologiaCOM? Seria possível
caráter encarnado do conhecimento é o fazer referência às nossas reflexões com
que parecem fazer as demais autoras um desses termos? O que esses modos
que tomo como referência neste ensaio. de fazer ciência e pensar a produção de
Com elas aprendo que permanecer em conhecimento afirmam é a possibilidade
mim não implica estar imersa numa de que a virada ontológica possa
dobradura hermeticamente fechada coexistir com uma tentativa de fazer
sobre si mesma. O meu corpo não uma modificação da epistemologia por
constitui um estorvo ao encontro
dentro. De fazer com que esse campo
objetivo com a realidade que pretendo possa abrigar novas formas de pensar a
conhecer. Ao contrário, meu dispositivo produção de conhecimentos (no plural),
de pesquisa torna-se mais propenso à de suas condições de existência, seus
emergência do inusitado – modos de efeitos e suas relações com a ética e a
fazer que ainda desconheço e que, política, atentando para o modo como a
portanto, dão sentido ao ato de ciência se posiciona frente a outras
pesquisar – quando me autoriza a formas legítimas de saber. Talvez seja
intervir na realidade que busco possível fazer com a palavra
compreender e quando me permite levar epistemologia o que Harding (1986) e
em consideração a forma como as Haraway (1995) empreendem com o
idiossincrasias que me constituem conceito de objetividade. Ao somar
matizam e são matizadas pelos forças ao resgate da epistemologia
encontros em campo. (Nunes, 2008), o que almejamos é
Além disso, um dispositivo que radicalizar a postura de fazer, das
me situa como parte de um campo palavras, territórios políticos em
pessoal-político é condição necessária disputa, e da escrita, um instrumento
para pôr em cena conhecimentos para subverter a rígida lógica
assentados em posicionamentos hierárquica que determina quem pode
explícitos, claramente dados aos falar, a ordem em que se fala, sobre o
embates que permeiam qualquer que se fala e quais são os métodos
produção acadêmica. Afirmar com
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Caitité, Amanda Muniz Logeto. Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no
feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

apropriados ao conhecimento (Clifford, lugar onde a questão da verdade é


2011). possível ser colocada (Nunes, 2008). É
certo que podemos encontrar em pelo
Novos sentidos para a palavra
menos uma das alternativas que citamos
epistemologia nos interessam, do
acima, uma aversão explícita ao projeto
mesmo modo que buscamos manter,
de epistemologia da modernidade. No
como pertencentes ao campo da ciência,
entanto, por maiores que sejam os
as pesquisas orientadas por práticas que
esforços de apontar os riscos de uma
divergem daquelas inauguradas e
epistemologia tradicional, não
recomendadas (quando não exigidas)
encontramos uma atitude de
pelo projeto de modernidade. Em
policiamento em Stengers (1989), nem
nossos estudos, nós nos servimos de
em Moraes(2010), nem em Haraway
propostas de fazer ciência que diferem
(1995) ou Favret-Saada (2005). Não
desse projeto e a elas nos referimos
propomos para a ciência um novo
como ciência no feminino (Stengers,
paradigma que permita identificar novos
1989), pesquisarCOM (Moraes, 2010) e
modos de conhecer a serem
saberes localizados (Haraway, 1995),
categoricamente excluídos,
dentre outras. Se nessa decisão
deslegitimados. Longe disso, propomos
reivindicamos o reconhecimento de que
uma epistemologia forte, capaz de
aquilo que fazemos não é outra coisa
sustentar a eclosão permanente de
além de ciência, seria importante
saberes e práticas. Numa epistemologia
defender que, ao pensar sobre nossas
capaz de celebrar a diversidade de
produções de conhecimento e sobre
ontologias, o pensamento é uma
múltiplas expertises, estamos fazendo
constante aventura. Riscos existem,
epistemologia.
mas, desde que essa diversidade não nos
Ao manter as práticas de leve a um relativismo, estaremos bem.
produção do conhecimento no campo da
Um primeiro passo nesse sentido
ciência, já que é de um contexto
talvez seja a afirmação da
acadêmico que falamos, e ao reivindicar
impossibilidade de um campo
que a reflexão sobre nossas práticas não
puramente conceitual, da necessidade
seja algo diferente de epistemologia,
de partir de outra concepção de
não o fazemos tendo em vista o status
pensamento, uma concepção fundada na
adquirido por aqueles que povoam
recusa da cisão entre materialidade e
campo científico e o consequente
discurso, humano e não humano, corpo
exercício de hierarquia de saberes que
e linguagem. Talvez esse primeiro passo
ele tanto fomenta. A epistemologia não
nos coloque diante da palavra
implica necessariamente a criação de
epistemologia. Ao estilo de Haraway
meios para afirmar o suposto abismo
(2008), poderíamos buscar outras
que separa o conhecimento acadêmico
possibilidades de uso das palavras,
de outras formas de conhecimento,
reciclar aquelas cujo sentido comum já
atribuindo somente ao primeiro o
não nos serve, inventando outros mais
domínio da verdade e da legitimidade.
interessantes, numa espécie de ecologia
O que propomos é justamente semântica. Tradicionalmente, episteme
uma tentativa de retirar da tem o significado de ciência e logos nos
epistemologia a oposição entre verdade remete ao discurso racional que instaura
e erro, retirar a ciência do patamar de regras gerais para que o conhecimento
superioridade, do lugar de padrão a exista. Numa proposta diferente,
partir do qual todas as demais formas de episteme poderia significar toda forma
saber devem ser avaliadas, de único de saber como prática e logos poderia

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Caitité, Amanda Muniz Logeto. Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no
feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

enunciar o corpo que se volta deixe de ser identificada como atividade


reflexivamente para a compreensão de de uma cognição autônoma, humana e
seus efeitos. individual. É preciso encontrar aliados.
Não consegui ir muito longe nessa
Talvez seja possível pensar em
tarefa de reformulação etimológica e
um logos centrado no corpo, entendido
não me preocupei em fazer um
como condição de existência da
levantamento do que outras pessoas
cognição e não como mero aparato
alcançaram nesse sentido. Sei que a
material de uma consciência abstrata e
própria Bellacasa (2012) aponta para a
independente (Csordas, 2008; Haraway,
possibilidade de encontrar, na filosofia
2000; Jaquet, 2011; Merleau-Ponty,
grega de Heráclito, uma concepção de
1994; Rabelo, 2005; Simondon, 2015;
logos que não se alimenta de uma
Spinoza, 2009; Valviese, 2013).A
ordem hierárquica e se posiciona como
cultura não seria, nesse caso, um
princípio dos devires.
agregado de discursos carentes de
vínculo com a natureza e com o mundo. Conclusão
Não há uma instância material única, Diante da diversidade de
natural e existente desde sempre sobre a expertises em campo, ao pesquisar com
qual seriam projetadas variadas aqueles que encontramos, pretendemos
abstrações culturais. O discurso é desde afirmar a possibilidade, ou melhor, a
sempre matéria e a nós interessa o que necessidade de inventar ou afirmar uma
ele faz fazer, como ele interpela os teoria do conhecimento que não seja
atores solicitando gestos, possibilitando instrumento de imposição do realismo
agências, compondo enredamentos. euro-americano, que não tenha como
Para obter os efeitos que almejamos, a objetivo a criação de dispositivos para
via de apreensão do sentido não é o distinguir entre crença, conhecimento e
registro de uma cosmologia verdade, mas seja uma análise das
supostamente abstrata. A proposta é práticas envolvidas na produção de
estudar o conhecimento a partir do
saber (Nunes, 2008). Que apreenda o
acompanhamento das conexões que o conhecimento não como uma entidade
possibilitam, através da presença afetiva abstrata, não como conjuntos de
diante do conjunto de práticas enunciados apartados da realidade,
enredadas às práticas discursivas. hierarquicamente estabelecidos, mas
Atentar para a condição encarnada dos como uma grande diversidade de
conceitos é reconhecer a especificidade práticas concretas que intervém no
de sua materialidade, é conceber o mundo e cria mundos a partir da
pensamento como uma atividade especificidade de sua materialidade.
possível somente e como imersa nas Nesse sentido, propomos uma
sensorialidades e nos enredamentos epistemologia de tal forma assentada no
técnicos que constituem um corpo no pragmatismo que dela seja possível
mundo (Csordas, 2008; Haraway, 2000; dizer que não é outra coisa além de uma
Jaquet, 2011; Merleau-Ponty, 1994; ontologia.
Rabelo, 2005; Simondon, 2015;
Spinoza, 2009; Valviese, 2013). A meu ver, é fundamental
sublinhar que é essa a epistemologia de
Precisamos de um pensamento Boaventura de Souza Santos,
sobre o saber que mantenha os ímpetos apresentada por Nunes (2008). Sob o
normativos serenados e privilegie o nome de “Epistemologias do Sul”4, ela
corpo como fundamento primordial da
cognição. Uma concepção de
pensamento em que a racionalidade 4
Ver especialmente Santos (2007).

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se fundamenta inclusive na objetividade fundamentam a reflexão sobre a


forte de Harding (1986), no produção do conhecimento, quando
conhecimento situado de Donna fazemos uso de ferramentas conceituais
Haraway (1995),na praxigrafia de por elas desenvolvidas. Evitamos, desse
Annemarie Mol (2002) e na filosofia de modo, dissolver sua autoria num campo
teóricos pragmáticos, além dos estudos mais largo de sistematização, de modo a
sociais em ciência e tecnologia. Nunes não repetir, em nossos textos, o
(2008) entende que qualquer reflexão apagamento intelectual de que tantas
sobre a legitimidade de um mulheres foram alvo na história da
conhecimento deve partir da ideia de ciência, quando tiveram suas ideias
que há uma simetria entre os diferentes apropriadas por colegas.
saberes e que a reflexão epistemológica No fazer dessa política textual, a
deve passar por um entendimento da referência a Mol, Bellacasa, Viveiros de
diversidade de conhecimento como algo Castro e outras pessoas talvez seja
positivo. Entende que nenhuma forma encarada como algo contraditório, já
de saber deve ser considerada mais que, em alguma medida elas propõem
adequada ou válida do que outra, sem uma saída da epistemologia e uma
que antes se tenha em consideração seus virada ontológica. No entanto, como há
efeitos. Para esse autor, um de ter ficado claro, não propomos uma
conhecimento é avaliado em relação ao relação entre epistemologia e ontologia
modo como contribui para o como dicotomia. Fazer epistemologia é
crescimento das comunidades uma estratégia política que, para ter os
envolvidas e dos membros dessa efeitos que almejamos, deve
comunidade, sendo que crescimento necessariamente irmanar-se com o fazer
tem o sentido de extensão das suas da ontologia. A relação entre os dois
capacidades de relação, ampliação de campos se dá como continuidade,
suas capacidades de agir e aumento de emparelhamento, imbricação. Podemos
seu bem-estar. dizer que é nessa continuidade que
Muitas propostas sobre como situamos nossos estudos, com a
pensar a produção de conhecimento já liberdade para seguir de um campo a
se encontram em Haraway, Harding, outro sempre que necessário,
Mol e Bellacasa. A epistemologia de escrevendo nossos textos de tal modo
Santos (2007) é quase uma que, diante da pergunta “O que vocês
sistematização dessas ideias, acrescida fazem é epistemologia?”, talvez
das de filósofos da pragmática e dos possamos responder: “Sim, também”.
estudos em ciência e tecnologia (Nunes,
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textual peculiar. Adotamos o resgate da s/puig.htm
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citamos o que traz de inovador. patológico (6a ed. rev.). Rio de
Acreditamos ser de grande importância Janeiro: Forense Universitária.
a referência direta às autoras que
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