O Ursinho Polar
O Ursinho Polar
O Ursinho Polar
Era uma vez um ursinho polar. Um dia o ursinho foi ter com a me e perguntou-lhe a tremer:
Oh Me!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho??
E a me respondeu-lhe. - Claro que s um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai um urso polar puro. Concerteza que s um urso polar! Qual a dvida?! Agora duvidas da tua famlia? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que s o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso que s hoje. Seu ingrato depois de tudo o que fiz por ti desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes.
O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o av e perguntou-lhe:
- Oh Av!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
Ao que o av respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar. - Oh meu neto! s um ursinho dos mais puros, um ursinho purssimo! Todas as geraes antes de ns eram ursos polares da raa mais pura da espcie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raa de ursos polares de que h memria. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,
- Claro que s!
Mas pressentindo que no era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraou-o e perguntou-lhe: - Por qu, meu filho, por que perguntas se s mesmo um ursinho polar, meu querido filho?
Pgina 1
Esta histria, que o pretexto para vos contar uma outra histria dentro da histria, pode ser lida como uma anedota, uma estria inconsequente que nos faz sorrir ou embevecer ao imaginar o ursinho cheio de frio na sua pele.
Mas esta mesma histria tambm pode ser lida metaforicamente, se lhe impusermos uma certa grelha de leitura. A grelha de leitura de quem pensa o mundo em termos de arqutipos, de grandes princpios universais que se repetem milhes de vezes, em mirades de formas diferentes, mas que nos ensinam sobre os temas fundamentais e eternos da natureza humana atravs, e apesar, das suas mltiplas experincias humanas no mundo. A grelha de leitura de quem v a vida como a manifestao de processos dinmicos e energticos regidos por leis rigorosas e que tm como fundamento, e como destino mais glorioso, a produo de conscincia.
Todas as histrias comeam com era uma vez. Naquele tempo, in illo tempore, num tempo remoto, sem data nem incio, no num qualquer momento no passado, porque de repente j havia - j tinha comeado sem comear. Os tempos sem tempo criam um rompimento no fundo da memria, e assim nos podemos abrir a uma histria eterna, que sempre existiu e sempre existir, e ela assim pode fluir atravs de ns, sem estranheza e sem necessidade de reconhecimento, e a histria circular pode manifestar-se num ponto do tempo, o do momento em que ouvimos a histria pela primeira vez, de cada vez. O ponto no crculo do eterno o eterno aqui e agora. Era uma vez a ligao do aqui e agora com outro aqui e agora que tanto existe no passado como existir no mesmo stio no futuro, sempre no mesmo stio e em todos os tempos possveis, ao mesmo tempo. Ou em stio nenhum, em tempo nenhum. Simplesmente uma vez.
Um ursinho polar uma personagem com quem fcil identificarmo-nos. Provavelmente dcil, fofinho, peludo, inofensivo e branco. Uma personagem do imaginrio infantil, com reminiscncias de peluche e a pureza da branca de neve. O arqutipo perfeito da parte mais inocente, principiante, inofensiva e desprotegida de ns.
Um dia o ursinho polar foi ter com a me e perguntou-lhe a tremer: tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?
No difcil assumir que o ursinho tremia por estar inseguro, ou com medo no momento de fazer a pergunta, porque temos a tendncia profundamente humana de projectar a nossa prpria
O Ursinho Polar uma astro-estria para adultos oferecida por http://www.nunomichaels.com
Pgina 2
subjectividade sobre o exterior e sobre os outros, interpretando e reduzindo tudo nossa prpria escala.
Assim como ao deprimido tudo parece triste e sem graa e ao agressivo tudo sinal de ameaa hostil, pessoa que no confia no seu prprio valor qualquer comentrio dos outros soa a julgamento depreciativo e criticismo e ao sexualmente reprimido tudo parece imoral, sujo e mau assim estamos todos condenados a fazer julgamentos que nascem das nossas interpretaes subjectivas, assumindo que a verdade a nossa prpria produo subjectiva de significados. E quando treme o ursinho polar ao dirigir-se me, fcil assumir que por desconforto emocional, insegurana ou por estar amedrontado quando lhe pergunta sobre a sua verdadeira origem: tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?
A primeira pessoa para quem nos viramos em busca de conforto e segurana, perante as inquietaes da existncia ou simplesmente para encontrar colo, calor e comida, a nossa me. Desde o nascimento estamos instintivamente programados para buscar um seio e nesse seio refgio, espelho da nossa identidade, confirmao da nossa existncia, proteco, sobrevivncia. Todos nascemos com a expectativa arquetpica de que um mamfero mais forte, mais seguro, mais auto-suficiente nos proteja e cuide at sermos capazes de o fazer por ns prprios. E sabemos que da qualidade dessa primeira interaco que depende a futura capacidade de nos tranquilizarmos a ns prprios e de cuidarmos dos outros, de nos sentirmos merecedores de colo e carinho, de confiar que a vida boa e sempre satisfar as nossas necessidades de afecto, segurana, proteco e nutrimento, venha ele sob a forma de amor, dinheiro, alimento ou gratificao e bemestar emocional. E de podermos dar aos outros o que ns prprios recebemos, porque difcil poder dar o que se no recebeu.
E sabemos, por isso, que a capacidade instintiva da me empatizar com o filho, reflectir os seus sentimentos e saber acolh-los, de sintonizar o seu ritmo emocional com o ritmo da sua criana, saber espontanea e imediatamente como responder a esses estmulos emocionais essa capacidade no nasce da reflexo, da anlise, de ponderao das vrias possibilidades, da lgica e do questionamento, de ler livros ou assistir a cursos sobre como cuidar do beb.
Nasce, sim, de um instinto inato que eclode nas prprias entranhas, do -vontade com os prprios sentimentos, com a qualidade da sua prpria experincia emocional, da qualidade da sua relao com a sua prpria me e com a capacidade daquela lhe ter espelhado de forma pura os prprios sentimentos e da capacidade de receber, simplesmente, o que o filho lhe traz a cada novo momento, aceitando e validando os estmulos e reaces emocionais pelo que so sentimentos que, pela sua
Pgina 3
prpria natureza, no obedecem a regras da lgica, no precisam de justificao, e no tm nada que ver com o prprio desempenho como me.
Mas para isto, preciso que a me no interprete pessoal e subjectivamente as reaces emocionais do prprio filho isto , que saiba aceitar a dinmica prpria dos sentimentos do outro sem que tudo tenha necessariamente que ver consigo, com o seu valor como me, com o seu desempenho materno. Em suma, sem que a insegurana do filho active a sua prpria insegurana interna. Se no, a insegurana ou instabilidade no filho vo fazer emergir a dolorosa insegurana e instabilidade na prpria me, que no vai poder acolher, aceitar e validar os sentimentos do outro sem julgar ou julgar-se, sem questionar ou questionar-se, sem duvidar de si prpria, sem cair na facilidade da autojustificao, na culpabilizao ou no lamento.
Mas esta ursa no tinha espao para acolher os sentimentos do filho, porque perante a inquietao o que respondeu foi: claro que s um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai um urso polar puro. Concerteza que s um urso polar! Qual a tua dvida?! Ai agora duvidas da tua famlia? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que s o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso polar que s hoje. Seu ingrato depois de tudo o que fiz por ti desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes.
A resposta instintiva desta me no foi a de aceitar e validar o que o ursinho lhe trazia. De ficar com a pergunta e abrir-se ao que ela traria por detrs. De fazer mais perguntas para se certificar da verdadeira pergunta do filho. Esta ursa no sabia que por detrs do discurso manifesto existe sempre um discurso latente, isto , que uma coisa o que se diz e outra o que realmente se quer dizer.
A resposta instintiva desta me foi a de invalidar a pergunta do filho sem sequer perceber qual era a pergunta. Esta me no tinha espao. Escondeu-se por detrs da gentica (Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai um urso polar puro) para demonstrar que a pergunta do filho estava errada e no tinha razo de ser. Depois, sentindo-se acusada, defendeu-se acusando: ai agora duvidas da tua famlia? E, boa maneira de quem no sabe lidar com o mal-estar do outro sem se sentir por ele posto em questo, fez o filho sentir-se mal por sentir como ela prpria assumira que ele sentia. Controla a culpa e controlas o filho, l-se na cartilha maternal de algumas mes, e esta fazia parte desse bando. Depois de tudo o que fiz por ti, lamentava a ursa, ainda tens a coragem de pr em questo a tua me, as tuas origens, a tua educao. Como se fosse dela que se tratava, e no do filho. Como se fosse a sua ddiva, o seu empenho, a sua entrega, o seu altrusmo, a sua generosidade, a sua capacidade maternal, a sua imagem, o seu valor, que estivessem em jogo; e no, simplesmente, os sentimentos do filho dos quais ela nem realmente se apercebeu, de to auto-envolvida que estava com o seu prprio drama emocional.
O Ursinho Polar uma astro-estria para adultos oferecida por http://www.nunomichaels.com
Pgina 4
O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o av e perguntou-lhe:
- Oh Av!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
Na ausncia de eco, e de resposta, por parte daqueles de quem mais imediatamente esperamos apoio, entendimento, compreenso e afecto, viramo-nos para outras figuras significativas na nossa vida afectiva. E foi o que fez o ursinho, quando foi ter com o av para lhe levar a questo que o atormentava desde o incio da histria: serei mesmo um ursinho polar?
Ao que o av respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar
- Oh meu neto! s um ursinho dos mais puros, um ursinho purssimo! Todas as geraes antes de ns eram ursos polares da raa mais pura da espcie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raa de ursos polares de que h memria. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,
O av ficou contente pela oportunidade de dissertar sobre a pureza da raa e a graa da sua genealogia. Possivelmente pouco habituado a ter platia para as suas divagaes, recordaes e memrias, aproveitou a pergunta do ursinho para rebuscar no ba das memrias todos os gales que confirmassem o valor dos antepassados fundadores e assim mesmo dos descendentes actuais, e na sua voz rouca quase adivinhamos o orgulho de pertencer a tal linhagem, a fora da tradio, o poder quase sagrado dos mitos fundadores. E o ursinho talvez tivesse ficado a ouvir e aprender, imaginamos, se no estivesse to angustiado com a questo original que o levara de parente em parente em busca de uma resposta.
s vezes o passado no tem como responder ao presente, embora o tenha fundado. Cada novo momento de vida emerge e ultrapassa o momento imediatamente anterior que lhe deu origem, o que quer dizer que o futuro sempre mais rico do que o presente. Se assim no fosse, e se o passado fosse o limite do presente, o presente limitar-se-ia a repetir o passado e o futuro, o presente e o passado seriam todos a mesma coisa.
E porque nesta situao no era o passado que servia questo do ursinho, o ursinho seguiu adiante. E enquanto o av enrolava os bigodes e relembrava o passado o ursinho correu para o pai
- Claro que s!
Pgina 5
Mas pressentindo que no era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraou-o e perguntou-lhe:
- Por qu, meu filho, por que perguntas se s mesmo um ursinho polar, meu querido filho?
E no pai o ursinho encontrou finalmente a resposta que procurava. No tanto a confirmao de que era mesmo um urso polar, porque essa j a me e o av lha haviam dado e a dvida ainda assim subsistira; o que o ursinho encontrou foi um espao de receptividade: um abrao e a vontade de o compreenderem, de o escutarem, de o receberem na sua dvida, no seu questionamento, na sua incerteza, na sua necessidade de confirmao. Por que perguntas, que como quem diz, o que que se esconde por detrs da tua pergunta? O que h que te leve a colocar essa questo? Qual o mal-estar que posso tentar mitigar?
E agora tudo se desvela, tudo se desvenda, tudo se resolve. O ursinho tremia por causa do frio, e no (tanto) por qualquer medo que tivesse. Mas o frio, aqui, ao invs de encerrar a histria e d-la por terminada, abre caminho a uma nova histria, a outra histria, verdadeira histria.
O ursinho sentia-se inadequado, sentia-se profundamente desconfortvel por estar aqum do que seria de esperar de um urso polar, em falta para com aquilo que define um habitante do rtico. O ursinho sentia-se corrodo pelo sentimento de inadequao por no estar altura das expectativas, das funes, do papel de um urso polar. Adivinhamos-lhe a vergonha, o desconforto na prpria pele, o medo de no ser suficientemente bom, a ambivalncia de saber intelectualmente, por um lado, que um urso polar no tem frio e a honestidade em admitir, por outro lado, o que verdadeiramente sentia embora soubesse ser um urso.
E aqui encontramos mais um tema arquetpico da nossa existncia: para cada papel que desempenhamos existe um conjunto de atribuies, expectativas, funes e capacidades intimamente a ele associadas. Espera-se de um urso polar que coma peixe, que esteja coberto de pelo e largas camadas de gordura, que viva confortvel no seu habitat glaciar. No se espera que tenha frio, assim como no se espera que suba s rvores, que rache cocos com os dentes ou que acasale com morsas.
A existncia de papis confere uma identidade social a cada um dos elementos de um grupo, atribuilhes funes e comportamentos relativamente previsveis, gostos, preferncias, rotinas e padres. Os papis contribuem para a estabilidade e para a coeso social, de modo a que cada um sabe o que deve fazer e o que esperar de cada um dos outros. A aprovao dos outros, o sentimento de integrao no grupo, o sentimento de adequao e normalidade vm com a capacidade de desempenhar
O Ursinho Polar uma astro-estria para adultos oferecida por http://www.nunomichaels.com
Pgina 6
adequadamente esses papis. O caos social e a alienao individual nascem quando os indivduos se recusam, se sentem incapazes ou indisponveis para desempenhar adequadamente os seus papis como o ursinho que tinha frio.
E se grande parte do nosso sentimento de valor nos devolvido pela aprovao dos outros, pelo sentimento de encaixar adequadamente no nicho que nos atribudo pelos nossos papis e pela nossa desenvoltura em assumi-los, compreendemos o quo inadequado, inferiorizado e inseguro se sentiria o ursinho polar que tinha frio. Era um ursinho deslocado, condenado marginalizao ou autoexcluso, revolta e alienao ou um ursinho condenado a lidar sozinho e secretamente com a sua prpria falha apercebida, processo to mais angustiante quanto mais o ursinho se obrigasse, a prazo, a ocultar de si prprio e dos outros a verdade do seu interior, a verdade da sua hipotermia.
E a prazo, medida que mais e mais energia fosse mobilizada para defender o corpo do frio, ou para viver altura de um papel para o qual no tinha capacidade, o ursinho deprimiria e sucumbiria, finalmente, ou ao frio ou evidncia da necessidade de se agasalhar defraudando assim tudo quanto seria esperar de um ursinho polar mesmo purinho, purinho.
Mas porque este ursinho foi capaz de procurar ajuda para lidar com o seu prprio senso de inadequao, e encontrou no pai a receptividade sua angstia, pde desabafar e admitir perante o outro o terrvel segredo que o consumia. Em vez de continuar a ocultar dos outros a verdade de quem era, e a sofrer secretamente a grande dor inconfessvel, o ursinho procurou e encontrou o meio e o contentor com quem partilhar a verdade de quem era, apesar de ter conscincia do que deveria sentir (ou, neste caso, no sentir) e de antecipar, eventualmente, as possveis consequncias de no estar altura do seu papel, das expectativas dos seus parentes, da sua raa, da sua sociedade e da memria de dezenas de geraes antes dele, que habitam ainda gravadas em cada um dos seus genes.
Astrologicamente, falaramos no arqutipo do Sol e de Saturno e da necessidade de os integrar: o Sol refere-se capacidade de se assumir na integridade de quem se e na necessidade de ser reconhecido, aceite e encontrar aprovao para nossa identidade, e Saturno simboliza a capacidade de estar altura dos papis sociais que assumimos. Por isso se fala em Saturno como responsabilidade, ou seja, a capacidade (habilidade) de dar responsa, isto , resposta; e qualquer interaco entre Sol e Saturno simboliza, assim, a necessidade de assumirmos responsavelmente (Saturno) quem somos (Sol).
Por isso, tambm, qualquer interaco entre Sol e Saturno num tema astrolgico fala da necessidade de encontrar aprovao social, isto , exterior, para quem somos. E por isso, ainda, as interaces entre o Sol e Saturno falam da necessidade de iluminar (Sol) os nossos medos e sentimentos de inadequao (Saturno), de no estarmos altura, de no sermos suficientemente bons. E por isso
Pgina 7
falam tambm da capacidade de nos aceitarmos na nossa imperfeio e na capacidade de admitirmos que somos quem, e como, somos a cada momento de vida.
Por isso falam tambm da capacidade de nos aprovarmos (Saturno) a ns mesmos (Sol), e de trazer luz do dia (Sol) o hiato entre quem somos (Sol) e o que acreditamos que deveramos ser (Saturno), o que a nossa sociedade espera de ns (Saturno), o que as figuras de autoridade esperam de ns (Saturno), o que os nossos papis sociais (Saturno) implicam, o que precisamos de ser (Sol) para termos aprovao, aceitao e estatuto (Saturno). Por isso falam tambm na limitao (Saturno) dos nveis de calor (Sol) do organismo, manifestando-se como o frio crnico de que sofria o ursinho.
Quem sabe o ursinho tivesse nascido sob uma destas quadraturas, e com uma Lua difcil (a me) que no o soube conter. Talvez o ursinho tivesse nascido com um Urano (o planeta da diferena, da originalidade singular, do inesperado e de tudo o que vai contra o que normal, aceitvel, aprovado ou esperado pelos outros) muito forte. E talvez este Urano estivesse na Casa IV do seu tema astrolgico, que a Casa do lar em que se nasceu, sugerindo que o ursinho tivesse nascido a sentir-se alienado daquele meio, como se ali no pertencesse e no pudesse cumprir-se, ou ser feliz, no seu local de origem.
Talvez o tema astrolgico do ursinho sugerisse a dificuldade em aceitar a encarnao como urso, pelo menos naquele glaciar e naquele tempo histrico, com o conjunto de papis atribudos aos ursos polares pela sociedade de ursos em que nasceu. Talvez estivesse a simbolizado um karma de no ser feliz enquanto no tivesse a audcia e a coragem de romper com os esteretipos sociais associados a ser urso. Talvez o ursinho, merc do Urano, estivesse condenado a tornar-se um ursano.
Talvez este ursinho estivesse condenado a sentir-se para sempre miservel, infeliz e inadequado na sua roupagem de urso polar, mobilizando todas as suas energias, que seriam cada vez menos, para estar altura do que se espera de um urso. Talvez aguardando a situao-limite do esgotamento ou de uma fuga desesperada e despreparada para outras paragens, quando fosse por demais insuportvel viver altura do que no se . Talvez ansiando secretamente encontrar um dia outro urso que fosse como ele, mas um que fosse suficientemente corajoso para lhe contar que tambm vivia com frio para que ele prprio no precisasse de o fazer e ainda assim ter com quem se identificar clandestinamente e margem das expectativas, para aliviar o peso da solido e da alienao. Quem sabe a que estaria o ursinho condenado?
Mas porque foi capaz de o fazer, de admitir que tinha frio e por no ter desistido de procurar quem o ouvisse, o contivesse e o ajudasse ou, pelo menos, que o aceitasse -, o ursinho transcendeu o karma de ser um ursinho cheio de quadraturas da Lua, do Sol a Saturno e Urano na IV.
Pgina 8
E assim, o ursinho inaugurou talvez uma nova era glaciar, em que pela primeira vez um urso polar admitiu que tinha frio, e talvez tenha com isso dado origem a uma nova sociedade de ursos no futuro. Qui nesse momento o pai tivesse optado pelo amor ao seu filho em detrimento da sujeio cega tradio e normalidade e tivesse escolhido ajud-lo a ser quem ele era, um ursinho polar cheio de frio. Quem sabe o pai tivesse dado incio a uma campanha de sensibilizao para os ursos polares que vivem com frio e outros ursinhos inadequados se tivessem permitido sair do segredo e do desconforto das prises dos seus prprios papis sociais e se tivesse criado um movimento dos ursos com frio; quem sabe naquele glaciar tivesse sido criado um programa especial para enviar para os trpicos os ursinhos que tivessem frio, ou passasse a ser socialmente aceite que os ursos que queiram pudessem usar casaco, gorro e samarra. Quem sabe o pai tivesse pegado nas suas economias e enviado o ursinho para a savana africana, ou o tivesse inscrito num programa de intercmbio com girafas calorentas.
Quem sabe o que aconteceu a partir desse momento. Mas podemos imaginar, sonhar, e supr.
A ns, s nos resta esperar que cada um de ns possa admitir, perante si prprio e perante os seus pares, o frio que cada um de ns sente na certeza que no existe outro caminho para a integrao emocional, para o poder pessoal, para a libertao da tirania dos papis sociais, e para a evoluo da sociedade de que fazemos parte. No imaginamos o que fazemos pelo conjunto quando fazemos a nossa parte como partes.
E um dia, assim corajosos e inteiros, todos estaremos em harmonia connosco prprios e contribuindo medida do nosso frio e da nossa coragem para admitirmos quem somos - para um futuro em que a verdade de quem somos, e no a tradio e as regras, ditem os limites da integridade, da liberdade pessoal, e do saudvel auto-respeito pelo que somos, sentimos, e precisamos para sermos felizes. Nuno Michaels
Pgina 9