Doutor Sócrates - Andrew Downie

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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário
Prefácio
Notas sobre o texto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Epílogo
A vida de Sócrates em imagens
Agradecimentos
Bibliografia
Notas sobre as fontes
Sobre o autor
Para Mari e todos os que lutam contra o autoritarismo e a
favor da democracia.
A vida não refletida não vale a pena ser vivida.
Sócrates, por volta do século V a.C.
Prefácio
À medida que o tempo passa, percebemos cada vez mais
que Sócrates ficará gravado para sempre como um
personagem incontornável da história do Brasil.
Ícone de um período importantíssimo do nosso país e de
um movimento que mudou os rumos — e continua a
influenciar o destino — deste gigante da América do Sul, ele
foi, sem dúvida, um dos grandes líderes e símbolos da nossa
redemocratização após mais de duas décadas de uma
violenta ditadura militar. Sem falar no craque genial do
esporte mais popular e concorrido do planeta.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.
Este é o nome completo de meu irmão mais velho. Temos
pouco mais de onze anos de diferença: ele nasceu em 19 de
fevereiro de 1954, e eu, em 15 de maio de 1965.
Na minha infância, eu obviamente não tinha noção do
quão especial e inusitada era minha família — não apenas
pelos nomes, mas também pelas histórias de vida dos
personagens que dela fazem parte. A começar por nossos
pais.
Seu Raimundo, nordestino de origem pobre, autodidata,
com uma linda carreira no funcionalismo público. Cursou
três universidades depois de ter os seis filhos, entre elas a
faculdade de Direito, uma de suas paixões. E ainda lecionou.
Dona Guiomar, paraense, professora primária também
autodidata, funcionária pública. Mãe exemplar, com uma
sensibilidade e carisma excepcionais.
Entre mim e o Doutor Sócrates há mais quatro filhos,
todos homens: Sóstenes, Sófocles, Raimundo e Raimar.
Figuras interessantes, carismáticas, inteligentes, de
personalidades e talentos variados: teve jogador de
basquete, campeão de xadrez, músico, engenheiro... Todos
atenciosos e carinhosos com o irmão caçula. Que privilégio!
E lá do outro lado dessa montanha de irmãos, estava o
nosso Magrão.
Uma pessoa um tanto quanto distante de mim para um
irmão, sobretudo pelos anos de diferença entre nós, mas, ao
mesmo tempo, muitíssimo próximo para um ídolo. Sim,
especialmente durante minha infância e adolescência,
Sócrates foi acima de tudo um grande ídolo, um semideus,
minha referência.
Quanto mais velho eu ficava, mais ele e sua história
pareciam teimar em escolher o caminho do inatingível, a
figura que podia qualquer coisa, que enfrentava tudo e
todos, que perturbava, provocava.
Alguém que também não tinha medo de se entregar aos
deleites, delírios, abismos e transbordamentos do que ele
considerava sua maior obsessão: a liberdade. Livre para ser,
para se mostrar como de fato era. Certo ou errado, porém
totalmente autêntico em busca dessa verdade.
As liberdades que ele perseguia, na maioria das vezes,
eram encarnadas e identificadas pela representação e
idealização política da democracia. Sócrates parecia definir
liberdade de expressão, de debate, de posicionamento e de
experimentação como um estado de espírito democrático.
Até o final de sua carreira de jogador de futebol, nossa
relação, apesar de um pouco mais próxima na última etapa,
restringia-se a trocas de ideias, conselhos e
compartilhamento de vivências. Quando ele nos visitava, eu
ficava nervoso e demorava algumas horas para me dar
conta de que aquela entidade era meu irmão. Sempre o
acompanhei como alguém que estava a todo instante
fazendo e participando ativamente da história, seja do
esporte, do comportamento, da política ou do país — em
muitos casos, era o que realmente estava acontecendo.
Mesmo seguindo tudo isso com olhos já de adolescente, ou
um jovem adulto, eu ainda o via como herói. Da mesma
forma que foi e é para milhões de outras pessoas.
Depois de certo tempo — e para minha alegria —, meu
irmão esteve cada vez mais próximo, mais acessível e mais
humano, principalmente a partir do início de sua nova fase
longe dos gramados e das arquibancadas. Longe de seu
teatro. Como ele mesmo dizia: ninguém deixa o futebol, o
futebol é que nos deixa.
Mas Sócrates não é só o herói. E esta biografia, muito
bem escrita, resultado de ampla pesquisa e inúmeras
entrevistas, traz os detalhes de como meu irmão era, em
grande parte, gente como a gente.
Ainda que sempre inquieto e constantemente à procura
de algo que causasse impacto, tinha como inspiração sua
origem simples, os amigos fiéis, parceiros de suas
experiências que passaram a ser mundanas e cada vez
mais próximas do ordinário. Isso não o desagradava, muito
pelo contrário. Sua sofisticação intelectual sempre foi
nutrida no contraponto entre suas referências e os prazeres
regionais e interioranos de suas raízes.
A biografia nos aproxima, por vezes em demasia, do
cotidiano do ídolo, expondo a real beleza da complexidade
de sermos humanos e imperfeitos.
Fato é que, por mais que procuremos e precisemos dar
normalidade aos acontecimentos de uma infinidade de
horas, dias e fases de uma vida, Sócrates era único. Cursou
medicina na USP e jogou futebol profissional de alto nível ao
mesmo tempo. Foi um dos esportistas mais influentes da
história, essencial na construção de uma democracia e de
seus processos dentro de um grande clube de futebol, além
de ter pregado e exercido a liberdade democrática e de
costumes em plena ditadura militar. Tornou-se não apenas
incontornável, mas indispensável na nossa história e
também no nosso futuro.
Um símbolo de resistência do que nunca mais queremos
viver.
RAÍ
Notas sobre o texto
Quando Sócrates estreou profissionalmente, o futebol no
Brasil era dirigido pela Confederação Brasileira de
Desportos (CBD). Em 1979, a CBD se dividiu em diferentes
unidades e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF)
assumiu a direção do esporte.
O primeiro Campeonato Brasileiro foi realizado em 1971,
mas teve diferentes nomes e formatos, geralmente
culminando em fases eliminatórias e até mesmo decisões
em melhor de três jogos, até que o atual sistema, ao estilo
europeu, foi introduzido em 2003. Para simplificar, eu me
referi ao campeonato nacional por seu nome atual, o
Brasileiro, ao longo do texto.
Campeonatos estaduais foram muito mais importantes do
que o campeonato nacional durante a carreira de Sócrates.
A competição nacional era nova e as rivalidades estaduais
eram intensas e se prolongavam no tempo. Refletindo essa
importância, o Campeonato Paulista e o Campeonato
Carioca ocupavam a maior parte da temporada. Os
formatos e datas mudavam a cada ano. Por vezes, os
campeonatos estaduais começavam no início do ano e
depois eram seguidos pelo campeonato nacional. Em outros
anos, a ordem se invertia. Os estaduais chegavam a durar
até nove meses, enquanto o Brasileiro tinha no máximo
quatro.
As estações do ano no hemisfério Sul são opostas às do
hemisfério Norte e todas as referências são relativas ao
Brasil. Por exemplo, o inverno corresponde aos meses de
junho, julho e agosto.
Capítulo 1
Desde os onze, doze anos, ele já era conhecido na cidade como um
jogador de nível diferente. Pessoas que entendiam de futebol sabiam que
ele ia ser alguma coisa. Onde ele fosse jogar, tinha alguém o
acompanhando.
Sóstenes, irmão de Sócrates

O Brasil levou nove homens à área da Itália e o relógio


mostrava 90:02 quando Éder correu para cobrar o último
escanteio do jogo. Um dos grandes times da história
precisava desesperadamente de um gol para chegar às
semifinais da Copa do Mundo de 1982. Éder moveu as
placas de publicidade para se posicionar e bateu na bola
com o pé esquerdo, com curva, direto para o gol. Dino Zoff
saltou para socá-la e respirou aliviado quando o apito soou
marcando uma falta. O goleiro veterano gastou o tempo que
pôde antes de passar a bola a um defensor, recebê-la de
volta e mandá-la para o outro lado do campo. Foi o último
chute do jogo. Segundos depois, o árbitro soprou o apito e
um dos mais empolgantes jogos de futebol já disputados
estava encerrado. Itália 3 × 2 Brasil, e os favoritos estavam
eliminados: o Brasil estava indo para casa.
Giuseppe Bergomi correu até Sócrates para pedir sua
camisa e, enquanto os jogadores reservas italianos
invadiam o gramado para comemorar, Bergomi dançava no
meio do campo com seu prêmio amarelo enrolado em uma
das mãos. O capitão brasileiro colocou a camisa de Bergomi
no ombro e saiu desolado em direção ao vestiário. Seu rosto
era um vazio e Éder, Paulo Isidoro e Waldir Peres seguiam
em direção ao túnel à frente dele, suas expressões também
tomadas pela descrença.
Nas entranhas do estádio Sarrià, o vestiário do Brasil era
como um velório. Muitos jogadores choravam
descontroladamente. Paulo Isidoro repetia: “Nossa Senhora,
nós perdemos pra Itália?”, como se fosse algo estranho
demais para ter acontecido. O preparador físico Gilberto Tim
deu um soco na porta, atravessando-a com o punho. “Vocês
não estavam de saco cheio, com vontade de ir embora?
Então, amanhã vocês vão estar em casa. Estão contentes
agora? Não podiam fazer um sacrifício para ficar uma
semana a mais, pô?”, dizia Oscar, em choque.1
Sócrates sentou-se calado, mas a calma aparente
escondia o que chamou de “angústia imensa” e ele não
tinha palavras para descrever o que sentia. Havia passado o
mês anterior escrevendo um diário para a revista esportiva
Placar, registrando descontraidamente suas anotações no
bloco de papel do hotel e entregando-as ao editor Juca
Kfouri. Quando Juca se aproximou para pegar o último
relato, tudo o que Sócrates conseguiu dizer foram as
palavras que ilustraram a capa da revista: “Que pena,
Brasil!”.
“Juquinha, você sabe exatamente como estou me
sentindo, eu não consigo escrever. Escreve pra mim.” Ele
passou pelos repórteres que esperavam do lado de fora do
vestiário e parou apenas para abraçar um amigo, antes de
entrar silenciosamente no ônibus da equipe. O clima na
viagem até o hotel foi fúnebre. Segundo Sócrates, “era
como se cada um viajasse em um carro diferente, indo para
o mesmo cemitério, para ser enterrado”.2
Quando finalmente chegaram ao hotel, a uma hora de
distância, nas colinas da Catalunha, os 22 jogadores e toda
a comissão técnica fizeram uma última reunião. O técnico
Telê Santana disse que eles tinham jogado o melhor futebol
do torneio e deveriam ir para a casa com a cabeça erguida.
O presidente da CBF, Giulite Coutinho, agradeceu por tudo.
Júnior tentou falar, mas não conseguiu completar uma frase
sem se emocionar. Juninho Fonseca, o brincalhão do grupo,
chorou como um bebê. Finalmente, Sócrates se levantou.
“Gente, nós perdemos o jogo, mas não podemos perder o
que temos aqui”, disse o capitão, num discurso inspirado
sobre orgulho e amizade que nenhum jogador esqueceu.
“Essa união maravilhosa vai ficar para o resto de nossa
vida. É isso que vale.” Sua voz seguiu em meio aos soluços.
Não havia um par de olhos secos na sala.3
A geração dourada do Brasil foi devastada pela derrota.
Zico, Cerezo, Leandro, Júnior, Serginho — eles eram mais do
que companheiros de time: eram grandes amigos e lidaram
com toda a repercussão da única maneira que conheciam.
Incapaz de digerir o revés e dormir, Sócrates liderou um
grupo de jogadores que decidiram virar a noite acordados.
Meses antes, eles tinham combinado de parar de beber e
fumar para alcançar a forma perfeita para o que sabiam que
seria a melhor chance de alcançarem um título mundial. E
ali resolveram recuperar o tempo perdido: beberam até as
cinco da manhã e, quando acordaram, algumas horas
depois, ir ao bar pareceu a única opção razoável. O dia 6 de
julho foi o mais quente do ano na Espanha, com
temperaturas acima dos 37 graus. Sentado à beira da
piscina do hotel, com cervejas num balde de gelo, Sócrates
ainda não conseguia explicar como tinha perdido o jogo que
caracterizou como “o mais emocionante de que já
participei”.
“Difícil para mim, na realidade, é compreender a derrota.
Se tivesse havido falhas, até que entenderia. Seria mais
fácil explicar, botar para fora. Acontece que não vi erros,
não consigo enxergá-los, embora este tenha sido o dia em
que mais me abalei jogando futebol. Inclusive dentro da
partida, o ritmo foi alucinante. Foi o jogo mais emocionante
de que já participei. Foi pau a pau, disputado a todo
instante. Um momento diferente do outro, cheio de
alternativas. E temos consciência de que não jogamos mal.
Repito: se tivéssemos jogado mal, tudo bem, estaríamos
conformados. Mas, não — estivemos dentro do nosso nível.
Agora não cabe questionar, não creio que se deva cobrar de
ninguém. Não houve bobeira. Futebol é um jogo de erros.
Você sempre está brigando para não errar. E não há mesmo
explicação para essa derrota. Isso torna a eliminação mais
chocante.”4
A Copa de 1982 marcou um ápice, em certo ponto de
inflexão, para Sócrates. Nos anos seguintes, ele ganharia
mais troféus e se tornaria uma estrela ainda maior dentro e
fora do mundo do esporte. Mas nunca mais se dedicaria tão
por inteiro a um objetivo futebolístico.
De forma mais importante, talvez, o torneio também foi
um marco para o próprio futebol. A derrota do Brasil foi um
histórico fracasso para os puristas que a enxergaram como
o triunfo do mal sobre o bem. Johan Cruyff chamou o Brasil
de “campeão moral”, Zico disse que o futebol morreu
naquela tarde de sol no Sarrià, e Sócrates declarou que o
Brasil nunca mais jogaria com a mesma classe.
“A derrota daquela seleção, no fatídico jogo de Barcelona,
para a Itália — que acabou se sagrando campeã do mundo
— foi um duro golpe no jeito brasileiro de jogar que aquele
time tão bem representava. Naquele instante começava a
se dar ênfase, mais do que até então, ao futebol de
resultados, pois o negócio futebol crescia assustadoramente
e os recursos financeiros sempre correm atrás dos
vencedores, mesmo oferecendo espetáculos de pior
qualidade. O futebol brasileiro, a partir dali, jamais seria o
mesmo.”5
A derrota para a Itália, entretanto, não foi tão absoluta
para um homem cuja vida era muito mais do que futebol.
Mesmo enquanto o Brasil se preparava para enfrentar a
Itália no maior jogo de sua carreira, Sócrates pensava em
batalhas mais importantes. Ele já tinha iniciado o que se
chamou de “Democracia Corinthiana”, o mais transformador
exemplo de poder emanando dos jogadores já visto num
clube de futebol profissional. Os atletas do Corinthians
estavam assumindo o controle do time e vinham exigindo
uma voz na administração das coisas do clube. Sócrates
desejava liberdade, e não apenas para ele. Queria que o
Brasil inteiro o acompanhasse, para tirar do poder os
ditadores militares e recuperar o país. Ele tinha capacidade
e personalidade, e uma nação de 130 milhões de habitantes
seguia cada movimento seu. Se um sonho não tinha se
realizado na Espanha, ele não estava disposto a permitir
que outro, o da democracia, escapasse tão facilmente.
Sócrates sempre foi diferente. Uma tarde, no início dos
anos 1970, o time júnior do Botafogo de Ribeirão Preto
jogava em Batatais, uma pequena cidade no coração
agrícola do Brasil. As tempestades de verão banhavam as
plantações de algodão e cana-de-açúcar, e a chuva caía em
pingos grossos. Sócrates jamais gostou de jogar na chuva,
mas estava bem e já tinha marcado dois gols quando
recebeu a bola no meio do campo. Ele passou por um
marcador, driblou outro e avançou pela lama. Havia dois
defensores à frente dele e, fingindo que chutaria, Sócrates
enganou um deles, que se jogou num carrinho desesperado.
Passou pelo segundo e entrou na área, onde driblou o
goleiro e parou antes da linha do gol. Então, Sócrates se
virou, olhou para os outros jogadores e tocou de calcanhar
para marcar seu terceiro gol, o sexto do Botafogo. Foi um
lance maravilhoso, ainda mais espetacular por causa das
péssimas condições do campo. Mas em vez de socar o ar ou
correr todo o gramado para celebrar, o adolescente meio
desengonçado apenas sorriu. Seus companheiros pularam
em cima dele, gritando e puxando seu cabelo, mas ele
voltou calmamente para o centro do campo com seu andar
desajeitado, cumprimentando alguns jogadores e tentando
se limpar um pouco para o reinício do jogo.6
O árbitro, um ex-jogador do Coritiba chamado Leal, correu
na direção dele e puxou um cartão vermelho. “O que há de
errado?”, perguntou Marinho, o capitão do Botafogo. “Vou
expulsar o Sócrates”, disse o árbitro. “Ele está de
sacanagem.” Jogadores brasileiros sempre adoraram exibir
habilidades — o drible pelo meio das pernas, as
embaixadinhas. Mas o riso de um é a vergonha do outro e
os envergonhados sempre respondem com uma chegada
mais forte. Humilhar o adversário é uma ofensa na América
do Sul. “Pelo amor de Deus”, reclamou Marinho. “Ele não fez
isso por sacanagem. Ele é frio assim mesmo.” “Isso é
humilhação”, disse Leal. “Ele está fora.”
Marinho conhecia o árbitro de outros jogos e postou-se na
frente dele, revezando dois gestos clássicos: o de falar com
o juiz com as mãos para trás e o de juntá-las como se
estivesse em oração. “Ele não está fazendo de sacanagem”,
o jogador argumentava. “Por favor, Leal, acredita em mim.
Ele é assim.”
Leal deu um passo para trás e, aceitando o pedido do
capitão, recolocou o cartão vermelho no bolso. “Pô, Marinho,
mas não é possível…”, disse o árbitro. Quando o jogo
acabou, Leal e Marinho caminharam juntos pela grama
enlameada até os vestiários. “Esse cara aí pra mim não
existe…”, comentou o árbitro, antes de apertar a mão de
Sócrates e descer para os chuveiros, sem acreditar no que
tinha visto.7
Num país onde o drama está em todas as esquinas, nas
telas de televisão e nos relacionamentos, Sócrates era o
completo oposto de seus sentimentais compatriotas. Ele
nunca compreendeu por que seus companheiros se
empolgavam tanto com o futebol. Aquilo tudo era muito
divertido, mas continuava sendo apenas um jogo e, de
verdade, como poderia ser tão importante se era tão fácil
marcar gols como aquele?
Ele herdou essa calma de seus pais, pessoas humildes e
trabalhadoras nascidas no Norte do Brasil. A vida é quente e
difícil, e as pessoas que lá vivem construíram uma cultura
que é totalmente diferente do que se vê nas cidades mais
desenvolvidas do Sul. Elas foram moldadas pelo isolamento,
pelo calor e pela pobreza para suportar as dificuldades
diárias com estoicismo e bom humor.
O pai de Sócrates, Raimundo Vieira de Oliveira, foi uma
dessas pessoas. Ele nasceu em Messejana, pequena cidade
próxima de Fortaleza, a capital do estado do Ceará. Com
orgulho e humor, dizia que a cidade viu o nascimento de
três brasileiros importantes: o autor José de Alencar, o
presidente Castelo Branco e ele mesmo. Raimundo
conseguiu um emprego a 1.300 quilômetros de distância, na
cidade amazônica de Igarapé-Açu, onde conheceu sua
futura mulher, Guiomar Sampaio de Souza. A cidade
mantinha um ritual de flerte e namoro em que os homens
formavam um círculo e giravam em uma direção, e as
mulheres formavam outro, dentro do círculo dos homens,
girando na direção oposta. Assim se analisavam potenciais
candidatos, e demorou apenas um segundo para que
Raimundo, um homem de mais de 1,80m, e a baixinha
Guiomar descobrissem que tinham sido feitos um para o
outro. Eles trocaram olhares, apresentaram-se, e o resto é
história. “O papinho começou, jogamos conversa fora, daí
não teve mais jeito”, disse Guiomar. “Ninguém nos
segurou.”8
O primeiro filho deles foi Sócrates Brasileiro Sampaio de
Souza Vieira de Oliveira, nascido às 22h20 do dia 19 de
fevereiro de 1954, na Santa Casa de Misericórdia de Belém,
cidade tropical às margens do rio Amazonas. Seu pai
adorava ler os clássicos e estava lendo A República, de
Platão quando o filho nasceu. Ele deu dois nomes a seu
menino: Sócrates Brasileiro, como se houvesse alguma
chance de confusão entre o garoto da Amazônia e seu
homônimo da Grécia antiga. Treze meses depois — quando
Raimundo se envolvia com a leitura de obras religiosas —, o
segundo filho do casal recebeu tratamento semelhante, e
Sóstenes foi batizado com o nome de um coríntio
mencionado na Primeira epístola do apóstolo Paulo aos
coríntios. Quando o terceiro filho nasceu, dois anos mais
tarde, o pai lia Édipo Rei e o nome escolhido, Sófocles, foi
uma homenagem ao dramaturgo grego.9
Guiomar já estava cansada de nomes gregos
impronunciáveis na época em que o quarto filho nasceu, em
setembro de 1959; e, de forma mais prosaica, Raimundo
Júnior recebeu o nome de seu pai. Depois vieram Raimar,
seguindo o hábito brasileiro de juntar partes dos nomes dos
pais, e Raí, também de acordo com o costume de dar nomes
a filhos começando com as mesmas letras. Os nomes
estavam ficando mais curtos, e Guiomar brincava que era
melhor parar em seis filhos porque um sétimo se chamaria
apenas “R”.
Sócrates foi uma criança feliz e suas primeiras memórias
eram da biblioteca de seu pai. A floresta amazônica estava
ali ao lado, uma aparentemente infinita vastidão sem
fronteiras além de árvores e rios, mas Sócrates se lembra
de estar em casa, protegido do calor e da luz, e rodeado de
clássicos, manuais e enciclopédias. Seu pai devorava todos
os livros que encontrava, frequentemente lendo sob a luz de
lamparinas, porque não havia energia em casa. Sócrates se
sentava perto dele.
Seu Raimundo era obcecado pelo aprendizado e lia
avidamente, tanto por prazer quanto por necessidade.
Assim como seus três irmãos e duas irmãs, ele não terminou
a escola primária e foi obrigado a trabalhar antes da
adolescência. Seus irmãos trabalhavam com as mãos e
valendo-se das habilidades que tinham, mas seu Raimundo
vendia redes na praia e tinha um balcão no mercado local
para vender rapadura. Todos eles trabalhavam para garantir
o sustento da família, mas seu Raimundo compreendia o
valor da educação com mais clareza do que seus irmãos e
usava todo o tempo livre com livros. Ele aperfeiçoou a
leitura e a escrita — um feito num país em que grande parte
da população é analfabeta — e viu seu esforço compensado
quando conseguiu um emprego no instituto de estatística
do governo, para trabalhar no censo.10
Mesmo depois de se casar e formar uma família,
Raimundo continuou lendo após colocar os filhos para
dormir e não demorou para conseguir um diploma de ensino
médio. Era apenas o começo, porque ele sabia que o melhor
caminho para evoluir era passar em um concurso público.
As prefeituras e os governos estaduais e federal ofereciam
concursos para diversos empregos, de advogados a
alfandegários e professores universitários. A aprovação nos
exames exigia meses e até anos de estudos, mas havia
recompensa. Funcionários do setor público recebiam
excelentes salários, eram demitidos apenas em
circunstâncias extraordinárias e podiam se aposentar aos
cinquenta anos com uma pensão equivalente à última
remuneração.
O alvo de seu Raimundo era o emprego mais desejado de
todos: inspetor fiscal. Os inspetores eram conhecidos como
“os príncipes do Brasil” graças ao salário duas vezes maior
que o do presidente da República, que ainda podia ser
aumentado com os bônus por multas aplicadas aos
sonegadores de impostos. Novas vagas eram raras e,
quando surgiam, existiam milhares de interessados. Mas
sua paciência e trabalho duro foram recompensados e, no
final dos anos 1950, seu Raimundo foi uma das 33 pessoas
— o único sem um diploma universitário — aprovadas no
exame.
Ele contaria com outro lance de sorte depois de começar
no novo emprego, quando vagas foram abertas no estado
de São Paulo. Nordestino orgulhoso, sabia muito bem que a
mudança o levaria a 3.200 quilômetros de distância de
parentes que talvez jamais voltasse a encontrar. Mas seu
Raimundo estava determinado a proporcionar uma vida
melhor a seus filhos e as oportunidades estavam no Sul. Ele
pôde escolher sua nova base após viagens a São Paulo,
Campinas e Santos, mas terminou optando por Ribeirão
Preto — cidade de cerca de 145 mil habitantes na época, a
315 quilômetros da capital.
Ribeirão Preto era uma das cidades mais ricas do estado e
um centro regional de indústrias e fornecedores de serviços
para produtores de café, milho, algodão e pecuaristas que
trabalhavam nas regiões próximas. A cidade estava
crescendo, com uma visível comunidade de nordestinos
atraída pela oferta de empregos e pelo clima semelhante ao
que conheciam. Com inverno quente e verão tórrido, em
que as temperaturas frequentemente se aproximavam dos
quarenta graus, os habitantes locais brincavam que só
havia duas estações: “o verão e o inferno”. Mas isso não era
um problema para quem cresceu perto da Linha do
Equador, e, no primeiro dia do ano de 1960, seu Raimundo
embarcou com sua mulher e quatro filhos num avião e se
mudou para o Sul.
Seu Raimundo adorava esportes, especialmente futebol, e
semanas depois de chegar a Ribeirão Preto, deu a seu filho
mais velho uma camisa do Santos, como presente de
aniversário de seis anos. Sócrates jogava bola sempre que
podia e ouvia os jogos do Santos no rádio do pai, atraído por
Pelé, Coutinho, Pepe e um dos melhores times que o Brasil
jamais viu.
Ele também adorava as cores e os sons do futebol no
estádio. Para sua felicidade, seu pai tinha um carnê para ver
os jogos de um dos times locais. O dom de seu Raimundo
para a administração lhe rendeu uma eleição para o
conselho do Botafogo, e ele levava o filho ao estádio todas
as semanas para ver futebol. Sócrates sentava em seu colo
ou nos degraus da escada mais próxima, porque era mais
barato do que comprar outro ingresso. O menino torcia para
que a pessoa do assento vizinho faltasse e ele tivesse um
lugar para se sentar. “Bandeira na mão e sorriso no rosto
eram o meu uniforme”, dizia, e sua felicidade chegava a
outro nível quando o Santos ia jogar em Ribeirão contra o
Botafogo.11
Uma de suas primeiras lembranças era a de ter visto Pelé
marcar três gols numa goleada por 7 × 1 sobre o Botafogo,
em 1965. E um sinal de sua altura avantajada veio aos nove
anos, quando ele quebrou um lustre de casa ao saltar para
socar o ar na comemoração de um gol do Santos contra o
Milan, na final do Mundial Interclubes.12
Mas embora Sócrates adorasse assistir ao futebol, ele
gostava mais de jogar. Seu Raimundo estimulou os filhos a
se envolver com todas as modalidades, até mesmo abrindo
uma conta na loja de material esportivo da cidade para que
eles tivessem o equipamento que quisessem. Sócrates
tentou o judô e o boxe, mas logo ficou claro que seu talento
real era com uma bola nos pés. Onde esse talento se
originou era um mistério, e seus irmãos brincavam que sua
mãe deveria ter sido uma excelente futebolista, porque o
pai certamente não era. Seu Raimundo dizia a todos que
tinha jogado como zagueiro no Ypiranga Futebol Clube,
quando morava em Igarapé-Açu, mas a história foi
desmascarada durante a visita de um parente, que revelou
que seu Raimundo — que era o presidente do clube — jogou
apenas uma vez: quando precisou escolher os jogadores
para uma partida à qual o técnico faltou.13
O primeiro time de Sócrates foi o Raio de Ouro, um clube
amador que realizava seus jogos em um dos diversos
campos espalhados pela cidade. “Foi a primeira experiência
que eu tive num time de futebol fora do colégio. Eu tinha
onze anos e era talvez um dos poucos times do que a gente
chamava de várzea, organizado, tinha camisa e tal, tinha
treino.” Ele se lembra de um teste num final de tarde de
sexta-feira. “Eu fui lá treinar. Nós saímos da escola e fomos
lá, final da tarde, já estava escurecendo e tal. O treinador
era o João e ele disse: ‘Você trouxe chuteira?’. Eu não tinha
levado, mas respondi que jogaria descalço.” O treinador
perguntou em qual posição Sócrates jogava. “Eu falei que
era meio-campo, e ele disse: ‘De meio-campo está cheio
aqui, mas tem uma vaga na lateral direita… Você não quer
treinar um pouquinho?’, e eu treinei na lateral. E a minha
glória é que, depois de um tempo, fui chamado para jogar
no domingo.”14 Sócrates tinha onze anos e estava pronto
para jogar em qualquer posição. Não demorou, porém, para
que os jogadores mais velhos percebessem que ele era bom
o suficiente para cumprir um papel mais importante no
meio de campo. Sócrates adorava a camisa “branca, como a
do Santos, mas com uma faixa dourada no peito”, assim
como o senso de pertencimento ao fazer parte de um time
bem estabelecido.
Sua estreia aconteceu em Bonfim Paulista, uma pequena
cidade a poucos quilômetros de Ribeirão Preto, e Sócrates
viajou até lá junto com os novos companheiros na caçamba
de um caminhão. O time do Raio de Ouro tinha jogadores de
todas as idades e trajetórias, o que foi marcante para o
garoto vindo de uma sólida família de classe média. Ele se
tornaria famoso, no futuro, pela atuação contra as injustiças
que fizeram do Brasil uma das nações mais desiguais do
mundo, mas aquela era a primeira vez que testemunhava
as dificuldades da vida fora da bolha em que vivia. Teve
contato com pessoas que jamais teria encontrado em outros
contextos. Mais tarde, Sócrates diria que aqueles primeiros
jogos foram alguns dos mais importantes de sua vida,
porque o apresentaram a realidades cotidianas cuja
existência ele não conhecia, muito menos tinha visto de
perto.
“As pessoas me perguntam: ‘Pô, qual foi a sua grande
glória?’, e eu digo que a minha grande glória foi aquele
comecinho no Raio de Ouro, porque subir numa boleia de
caminhão com um monte de negão, cada um de um jeito,
um tipo de vida, com um monte de necessidade… Pô, eu
tinha almoçado, tinha gente que não tinha almoçado para
jogar uma pelada! Cara, aquilo lá era um aprendizado que
eu nunca tive na escola. Ninguém me falou disso, nem em
casa. Porque meu pai viveu tudo aquilo e nunca passou para
a gente. Eu fui descobrir muito tempo depois que ele tinha
passado esse sufoco todo, mas, para nós, ele nunca contou.
Não queria que a gente tivesse ideia do que ele tinha
vivido.”15
Sócrates encarou tudo aquilo como pôde e, se os colegas
não o tratavam de maneira diferente por conta da idade,
logo começaram a reparar no seu futebol, porque ele era
muito talentoso. Sócrates passava, chutava e controlava a
bola com facilidade, e fazia a leitura do jogo como um
veterano. Habilidades que começou a exercitar perto de sua
própria casa. Depois de passarem os primeiros quatro anos
em Ribeirão Preto numa pequena casa perto do centro da
cidade, os Vieira foram morar num lugar novo — construído
por seu Raimundo e alguns amigos —, que era grande o
suficiente para acomodar a família que crescia. Havia um
anexo onde os irmãos menores de Sócrates, Raí e Raimar,
viveriam mais tarde, e também uma área gramada onde
todos eles jogavam futebol.
Naquele momento, a família estava crescendo, e não só
porque seu Raimundo e dona Guiomar tiveram seis filhos
em onze anos. Eles também recebiam primos, sobrinhos e
outros parentes, e alguns ficavam instalados durante anos.
Seu Raimundo os convidava para passar um tempo em
Ribeirão e ajudar na casa, com a condição de que eles
também estudassem.
Era conveniente, porque o pai de Sócrates costumava
passar semanas inteiras estudando em São Carlos ou São
Paulo, só retornando nos fins de semana. Os meninos não
sabiam direito onde o pai estava ou o que estava fazendo, e
seu Raimundo sentia vergonha de admitir que ainda não
tinha conseguido seu diploma.
Alguns dos hóspedes ficavam mais tempo e se tornavam
membros permanentes da família. Sócrates se lembra de
uma prima de seu pai, Iranilda, e da sobrinha Zezé, que se
tornaria professora de enfermagem, como duas mulheres
que dividiam com sua mãe as tarefas maternas e atuavam
quase como “segundas mães”. Dona Guiomar tinha
trabalhado como funcionária pública por alguns anos após
ter tido o primeiro filho, mas a chegada das outras crianças
a levou a abandonar o emprego e se dedicar à família e à
casa. Era uma casa tradicional e, embora dona Guiomar
fosse espirituosa e cheia de personalidade, seu Raimundo
tinha o controle.
Nas palavras de Sócrates: “Minha mãe não teve muita
chance de influenciar demais a nossa formação, porque ela
era sobrecarregada. O que nós temos com relação à minha
mãe é aquela coisa de proteção, de carinho e tal; mas a
influência principal ficou sendo aquela coisa de homem
mesmo. Quer dizer, minha mãe teve que se adaptar, porque
eram sete homens na família”.
“Então, ela sempre tocava o barco sozinha, quer dizer,
não podia ser uma mulher dengosa. Precisava tocar a casa,
segurar seis homens dentro de casa. E tudo moleque sem
nenhum tipo de cuidado com a participação comunitária;
era ela que sempre administrava isso tudo, não dava tempo
de ser outra coisa além de administradora do lar.”
A nova vizinhança não era rural, mas também não era
urbana. Erguida nos arredores da cidade, que se expandia
rapidamente, tinha campos que eram maravilhosos parques
verdes. Os garotos cortavam a grama com foices e depois
construíam gols com troncos e pedaços de madeira. A
infância era simples, sem computadores, telefones celulares
ou mesmo televisões. Eles tinham pouca coisa para fazer
além de ir à escola e brincar. Quase não aconteciam crimes
e o clima era perfeito, por isso passavam o tempo todo fora
de casa, andando de bicicleta ou jogando bola. Sócrates
jogava onde pudesse e, se ele e os amigos não tivessem
uma bola, usavam o que fosse mais parecido,
frequentemente descascando abacates que ficavam pelo
chão para jogar com o caroço. Nem todo mundo admirava
aquela iniciativa e o entusiasmo infantil os transformou em
alvos — às vezes, literalmente — quando jogavam em
jardins ou em propriedades particulares.16
Um dos lugares em que mais gostavam de jogar se
localizava a poucos quarteirões da casa de Sócrates, um
gramado ao lado do Seminário dos Estigmatinos. Os
seminaristas se incomodavam com os garotos correndo e
gritando enquanto tinham de estudar ou orar, e não eram
muito bondosos em sua reação. Primeiro, construíram um
muro e colocaram postes no gramado. Quando os meninos
insistiram em jogar futebol ao lado do santuário, eles
usaram rifles de sal grosso para atirar em quem os
atormentava. Sócrates, o alvo mais visível por sua altura,
era normalmente o primeiro a ser atingido, antes que todos
fugissem. Mas ele diria mais tarde que os ataques sofridos e
os obstáculos — tanto os naturais quanto os feitos pelo
homem — foram cruciais para ajudá-lo a desenvolver seu
controle de bola e sua visão de jogo.
“Na verdade, quanto mais dificuldade você tem no início,
mais interesse você acaba tendo em aprender. Se você joga
num campo cheio de buraco, cheio de cupim, com árvore no
meio, com a bola meio quadrada, você desenvolve algumas
habilidades que, em outras situações, não seria obrigado a
desenvolver. Cansei de jogar em campo de futebol com uma
mangueira no meio. O tempo todo você tem de estar de
olho virado para a mangueira, senão dá uma porrada nela
ou na raiz, que fica na superfície. Então já surge a tendência
de você começar a enxergar o jogo de forma diferente, não
só a bola”.17
No final da década, jogando muito bem pelo Raio de Ouro
e depois de ajudar o Colégio Marista a ganhar o torneio de
escolas de Ribeirão Preto por dois anos seguidos, o meio-
campista desengonçado começou a chamar a atenção de
olheiros. Onde quer que Sócrates jogasse, ficava claro que
ele tinha talento e as pessoas começaram a comentar. Num
golpe de sorte, um dos professores do Marista também
trabalhava com as categorias jovens do Botafogo, e, em
1970, convenceu Sócrates a fazer um teste no clube.
O Botafogo era um típico time de cidade pequena, onde
todos se conheciam e vários jogadores tinham pais, tios ou
irmãos mais velhos que jogaram ou trabalharam no clube.
Foi fundado em 1918, quando os membros de três times no
bairro de Vila Tibério decidiram juntar seus recursos e
formar um superclube. Dizem que o nome escolhido foi uma
homenagem ao mais conhecido Botafogo do Rio de Janeiro,
mas segundo uma lenda mais romântica os jogadores e
dirigentes que organizaram a fusão demoraram tanto para
decidir sobre o nome que alguém gritou: “Vamos resolver
isso logo, senão eu vou botar fogo neste lugar”.
Sócrates e alguns amigos já tinham feito um teste no
Comercial, mas o outro clube de Ribeirão os deixou
esperando do lado de fora do campo, e eles não ficaram
muito satisfeitos com o tratamento. Sócrates, que já
preferia o Botafogo de qualquer forma, ficou encantado
quando a oportunidade surgiu do outro lado da cidade.18
Ele deixou uma ótima impressão no teste e os dirigentes
do clube queriam contratá-lo para o time júnior, mas o
garoto de dezesseis anos já exibia a autoconfiança pela qual
ficaria famoso. O futebol era divertido, mas seu sonho era
ser médico e seu pai o inscreveu em aulas noturnas a fim de
prepará-lo para o vestibular. O curso era no mesmo horário
dos treinos do time, então Sócrates aceitou a oferta do
Botafogo com uma condição: eles poderiam contar com ele
para jogos nos fins de semana, mas sua presença nos
treinos, duas vezes por semana, não era uma garantia.
O acordo foi perfeito para Sócrates, porque ele adorava
estudar e odiava treinar. Ele achava que correr em volta do
campo era uma perda de tempo e não se importava. Tudo o
que queria era a bola nos pés. Também relutava em gastar
tanto tempo com algo que considerava um hobby. Embora
sem saber por que, Sócrates estava determinado a ser
médico e, ao longo da adolescência, comportou-se como se
o futebol fosse uma mera distração em relação a seu
objetivo principal de entrar na universidade. O Brasil ainda
era pobre e dividido, e o futebol não era uma profissão séria
para jovens de classe média. Sócrates se dedicava a realizar
seu sonho e, se alguma vez teve dúvidas sobre qual
caminho seguir, seu pai nunca o deixava esquecer quais
eram suas prioridades.
O primeiro sinal de que o futebol era mais importante do
que ele fazia transparecer veio quando Sócrates tinha
dezesseis ou dezessete anos e estava perto de terminar o
ensino médio. Testes simulados em seu cursinho foram
marcados para uma manhã de domingo, mesmo dia em que
o Botafogo enfrentaria o Comercial na final de um torneio
júnior local. Sócrates comentou com o pai sobre o conflito e
seu Raimundo passou a semana perguntando ao filho se ele
preferia fazer as provas ou jogar a final. Sócrates não queria
decepcionar seu pai e garantiu que faria o teste e tiraria
uma ótima nota.
Seu Raimundo deixou o filho no local da prova na manhã
de domingo, mas Sócrates sabia que estava cometendo um
grande erro. Andou até a sala de aula, olhou para as fileiras
de cadeiras e decidiu que não era ali que queria estar. Então
se virou, saiu da escola e foi correndo até o estádio Santa
Cruz. Quando chegou, estava exausto e preocupado por
desapontar o pai, mas deixou essas preocupações de lado e
teve ótima atuação, para deleite dos torcedores do Botafogo
que foram ver os jovens.
Quando seu pai chegou em casa, perguntou como tinha
sido a prova. “Foi tranquila, pai, não se preocupe”, mentiu
Sócrates. “Eu vou passar, fique sossegado.” Sócrates não
sabia, mas alguns torcedores do Botafogo que assistiram ao
jogo voltaram para ver o time principal à tarde e fizeram
elogios a Sócrates. Seu Raimundo descobriu tudo e se
enfureceu, mais pela mentira do que por qualquer outra
razão, e a coisa ficou séria na casa dos Vieira naquela noite.
Foi uma das poucas vezes que ele bateu no filho, mas
Sócrates podia ao menos argumentar que a desobediência
tinha valido a pena no sentido futebolístico. Ele havia
marcado os dois gols do Botafogo na vitória por 2 × 0.
Atuações como aquela ajudaram o time júnior do Botafogo
a vencer o campeonato da cidade de Ribeirão Preto por três
anos seguidos, entre 1970 e 1972. O clube terminou em
terceiro lugar no campeonato estadual, um resultado
excelente para um time do interior que enfrentou equipes
da capital, como Corinthians e Palmeiras, e todos puderam
ver que o meio-campista magrinho tinha potencial para
chegar ao nível profissional.
Os jogadores do time principal do Botafogo já sabiam
disso e tentaram convencer Sócrates a se juntar a eles. Mas
conseguir a assinatura dele em um contrato com o clube
não foi fácil. Embora se sentisse atraído pelo aspecto
financeiro, Sócrates não queria a responsabilidade que um
contrato exigiria e também não queria se dedicar
integralmente ao futebol e abandonar o sonho da medicina.
O clube tentou pressioná-lo a fazer musculação para ganhar
massa, mas o plano deu errado quando ele decidiu que
preferia não jogar futebol se tivesse que passar seus dias na
academia.
Sócrates foi procurado novamente quando os diretores
perceberam o erro que haviam cometido e, em 1973, ele
assinou um contrato preliminar que o vinculava ao clube e
permitia algumas liberdades dentro e fora do vestiário. O
acordo lhe rendeu o primeiro salário e, ainda que não fosse
muita coisa, era mais do que os trocados que seu pai lhe
dava. Era uma bem-vinda fonte de renda para um
adolescente cujos interesses estavam se expandindo para a
música, garotas e cerveja.19
Mais tarde, Sócrates ficaria famoso como um dos
verdadeiros rebeldes do mundo do esporte, um homem que
questionou figuras de autoridade dentro e fora do jogo,
como também as regras que sempre existiram nesse meio a
respeito de descanso, nutrição e treinamentos. Ele herdou
essa rebeldia de seu Raimundo, ou melhor, ele a
desenvolveu durante as brigas com o pai. Raimundo e
Guiomar eram pessoas tranquilas, que gostavam de uma
vida calma. Mas quando chegou à adolescência, Sócrates
descobriu como irritá-los. Ele gostava do conflito,
constantemente arrumava confusão com os irmãos, em
especial com Sóstenes, um ano mais novo, e discutia com o
pai.
Em uma obra de referência chamado Raízes do Brasil, o
sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda descreveu o
brasileiro como um “homem cordial”. Sua versão de
cordialidade, porém, não é exatamente a que se refere a
boas maneiras e civilidade, mas deriva da palavra cor em
latim, ou seja, “coração”. O homem cordial é comandado
pela emoção. Sócrates se encaixava perfeitamente na
descrição. Ele dizia o que pensava e não se importava com
as opiniões dos outros. Adorava ser contraditório, por vezes
beligerante, e o prazer que sentia ao se comportar assim
funcionou como o incentivo ideal para depois lidar com
generais, presidentes de clubes e os gritos de milhões de
torcedores.
Seu primeiro grande ato de rebelião aconteceu por volta
dos dezesseis anos, quando se preparava para o
competitivo vestibular. O curso noturno em que seu pai o
matriculou tinha aulas duas vezes por semana, das nove às
onze da noite. Depois de dois meses, Sócrates deixou de
frequentá-las. Em parte, era uma reação à insistência do
pai, mas a atitude também tinha um quê de insurreição
adolescente. Sócrates saía de casa com os livros na
mochila, mas, em vez de ir para o curso, dedicava-se —
como eufemisticamente dizia — a “descobrir o mundo”. Ia
ao cinema, frequentava bares e lia livros. Acima de tudo,
divertia-se com os amigos. Ele fingia que estava estudando
e o pai, que tinha um emprego em período integral e outros
cinco filhos para cuidar, só descobriu o que estava
acontecendo quando Sócrates foi reprovado nos exames
para os quais supostamente vinha se preparando.20
Seu Raimundo o repreendeu e explicou o quanto era
importante ele entrar na universidade. Sócrates era
inteligente o suficiente para perceber que, se quisesse
realmente ser médico, deveria estudar para isso, e logo se
convenceu. Um ano depois, pouco antes de completar
dezoito anos, ele prestou o vestibular para cinco
universidades e foi aprovado em quatro, com excelentes
notas. Milhares de pessoas de todo o Brasil concorreram.
Sócrates foi o primeiro colocado na lista da Universidade de
São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP) e ficou perto dos melhores
nas outras três, nas cidades de Catanduva, Pouso Alegre e
Marília. Ele não passou no exame da Santa Casa, em São
Paulo, e escolheu a USP-RP para poder ficar perto da família e
dos amigos.
Sua vida adulta estava para começar, e com ela viriam
novos dilemas, novas responsabilidades, novas paixões.
Duas das coisas que lhe dariam mais prazer nos anos
seguintes cobrariam um preço cada vez maior. Mas ao
entrar na universidade e se juntar ao time principal do
Botafogo, a cerveja e as mulheres ainda eram interesses
secundários. No começo dos anos 1970, o que tirava seu
sono era a batalha por seu futuro. Um debate que o
incomodaria durante a maior parte de uma década: futebol
versus medicina.
Capítulo 2
O futebol lhe dá um contato com a realidade que outras profissões não
oferecem. […] Porque o futebol é muito democrático. Desde garoto eu
estava envolvido com esse jogo, mesmo que nunca estivesse pensando em
me tornar profissional. Eu convivia com pessoas de uma situação social
diferente, de um nível educacional diferente. Quer dizer, você está ao lado
da realidade. Conviver com a realidade, essa foi a experiência que o
futebol me permitiu.21
Sócrates

Sócrates fez sua estreia profissional em 2 de julho de 1972,


quando substituiu o centroavante Hércules num amistoso
contra o Nacional Futebol Clube, em Uberaba. O jogo
acabou em 0 × 0 e foi tão sem graça que nem mesmo
Sócrates se lembra dele como sua primeira atuação.
Quando perguntado sobre seu início no Botafogo, ele se
lembrou de dois jogos decisivos. O primeiro, contra a Ponte
Preta, no verão de 1974, serviu como aviso. Um
companheiro passou mal pouco antes do jogo e Sócrates,
que estava sentado na arquibancada em Campinas, foi
chamado com urgência ao vestiário. Quando chegou lá,
sentiu forte cheiro de incenso e viu uma equipe lavando
todas as dependências, cheias de velas e galinhas mortas.
O jovem Sócrates não entendeu nada até que lhe
explicaram que aquela era uma prática comum em partidas
decisivas, para desestabilizar os visitantes.
Foi um desastre. Sócrates estava completamente sem
ritmo. “Não peguei na bola e pensei: ‘Puta, que merda… Vou
ter que melhorar muito, porque assim não vai dar’.”22
Algumas semanas depois, em 6 de fevereiro de 1974, um
jogo em casa contra o América de Rio Preto se tornou o
primeiro momento definidor de sua carreira. Sócrates, até
então, já tinha feito doze jogos pelo clube, a maioria
começando como reserva e em amistosos, e estava
novamente no banco na partida que o Botafogo precisava
vencer para avançar de fase no Campeonato Paulista.
Quando o meio-campista Maritaca deslocou o ombro numa
queda no primeiro tempo, Sócrates entrou em seu lugar e
mostrou que estava pronto para aquele nível de futebol. Seu
bom desempenho ajudou o Botafogo a ganhar por 1 × 0. Os
torcedores se surpreenderam pela forma como ele assumiu
o controle do jogo e liderou o time. Sócrates se lembra de
como a partida mudou sua vida.23
“Porra, eu estava num sossego aquele dia… Não esperava
jogar e aí deu tudo certo. Eu joguei pra cacete. Ali eu tive
certeza de que não ia sair do time.”24 Ele estava certo. Foi o
início de uma temporada de sonho para o rapaz de vinte
anos. Mesmo depois de recuperado, dois meses depois,
Maritaca não conseguiu tirar Sócrates do time, que
terminou o campeonato em sétimo lugar na primeira divisão
do Paulista. Sócrates fez 49 jogos, marcou doze gols e
recebeu o troféu Chuteira de Ouro como jogador revelação
do ano.
Sócrates jogava em qualquer posição do meio de campo e
do ataque, às vezes aparecendo na ponta esquerda e até
como meio-campista defensivo. Sua função principal era
criar chances para os atacantes, e aqueles primeiros meses
de 1974 foram memoráveis principalmente pela parceria
fatal que ele formou com Geraldão, o agitado centroavante
do Botafogo. Com Maritaca ainda no time, Sócrates não
havia jogado nas primeiras oito rodadas da temporada e
Geraldão não tinha marcado nenhum gol. Mas com o auxílio
do novo companheiro, Geraldão encontrou sua melhor
forma, fazendo 23 gols e se transformando em artilheiro do
campeonato.25
Geraldão foi para o Corinthians em 1975, mas não
conseguiu repetir o desempenho, o que levou alguns
torcedores a brincar dizendo que o clube tinha contratado a
flecha, mas havia esquecido o arco. Sua saída do Botafogo,
entretanto, permitiu que Sócrates passasse a cumprir um
papel mais ofensivo, mesmo que sua posição exata nunca
tenha ficado clara. Nessa época, ele usou o número 8 numa
formação em 4-4-2, e foi escalado principalmente como
ponta de lança — posição entre o meio de campo e o
ataque —, normalmente do lado direito do campo. Às vezes,
jogava como meia-armador, um pouco mais recuado, e
também fez aparições como centroavante.
Independentemente da função, Sócrates queria a bola nos
pés, e quando tinha tempo e espaço, fazia mais estragos.
Todos viam como ele era diferente, e não por causa de seu
peculiar tipo físico, muito alongado, com braços
telescópicos e pernas bastante compridas que pareciam
ainda mais longas por causa dos calções justos usados na
época. Sócrates tinha uma aura, um quê de celestial que as
pessoas podiam notar, mas não eram capazes de descrever.
“O que me chamou atenção nele não foi só a técnica, a
habilidade, a inteligência, o posicionamento, a versatilidade
— porque ele podia jogar como volante, armador, meia,
ponta de lança, como centroavante, jogava naquelas três
posições no meio, mas, sim, a sensação de que ele
trabalhava numa frequência diferente dos demais,
entende?”, disse Alberto Helena Júnior, colunista do Jornal
da Tarde e um dos primeiros jornalistas de fora de Ribeirão
Preto a escrever sobre Sócrates. “Ele não era um jogador de
habilidade extraordinária, não era um grande chutador,
enfim, ele não tinha uma característica técnica mais
marcante. Por exemplo, o Gérson era um lançador, o
Jairzinho era corredor, velocista, enfim, cada um tinha uma
característica, mas ele tinha essa coisa, trabalhava numa
outra frequência, num padrão próprio, diferente dos demais,
mesmo dos grandes craques. E isso foi me
entusiasmando.” 26

Sócrates adorava jogar futebol, mas sua paixão era a


medicina. O Brasil tinha vencido três das quatro Copas do
Mundo anteriores e os brasileiros se viam como os
verdadeiros expoentes do jogo. A Grã-Bretanha era o berço
do futebol, mas eram os brasileiros que jogavam como se
devia jogar e o esporte estava firmemente enraizado na
cultura nacional. No entanto, o futebol ainda era muito
associado às classes mais baixas e seu Raimundo insistia
tanto para que Sócrates cursasse o ensino superior que,
mesmo com aparições regulares no Botafogo, ele nunca
considerou o futebol mais que um passatempo, algo para
fazer quando sua cabeça não estivesse nos livros.
Sócrates se matriculou na USP-RP em fevereiro de 1972 e seus
estudos continuaram a ser prioridade em relação aos
treinamentos. Mesmo depois de renovar o contrato, no
começo de 1974, ele deixou claro que o futebol ainda
estava atrás da ginecologia, da ortopedia e da neurociência
na sua lista de coisas a fazer. Informou ao clube que
tentaria acomodar os treinamentos em sua rotina na
universidade, e faria todo o possível para se apresentar
para jogar. Mas, na verdade, ele fazia poucos esforços para
comparecer às sessões de treinos, a não ser quando se
tratava de exercícios de ataque contra defesa ou jogos-
treinos entre titulares e reservas. Sócrates odiava qualquer
coisa que não envolvesse o ato de jogar.
O clube não ficou muito satisfeito com a situação, mas
sabia que não existia alternativa e não queria perder sua
estrela. Os professores de Sócrates, na maioria torcedores e
presenças frequentes no estádio do Botafogo,
ocasionalmente reagendavam aulas ou provas conforme os
compromissos do time. Eles entendiam a pressão que
Sócrates enfrentava e colaboravam com ele. Amigos e
outros colegas também lhe passavam anotações quando ele
perdia alguma aula e o ajudavam nos estudos.
Durante o primeiro ano na universidade, as aulas foram
realizadas na faculdade do Hospital das Clínicas, o melhor
hospital público de Ribeirão Preto. Eram quatro aulas por
dia: duas pela manhã, das 8h às 12h, e duas à tarde, entre
14h e 18h. Sócrates se sentava no fundo da sala, onde era
mais fácil manter a cabeça baixa e não ser notado, e
tomava notas com uma caligrafia digna das mais ilegíveis
receitas médicas.
“Alguns professores pegavam no pé de alguns alunos,
pressionavam e chegavam a xingá-los, mas isso nunca
acontecia com o Sócrates. As exigências em relação a ele
eram um pouco diferentes das que eram esperadas de
outros estudantes”, relembrou o colega e amigo, dr. Said
Miguel.
“Sócrates era muito inteligente, tinha memória de
elefante e quase nunca estudava. Ele conseguiu terminar o
curso porque frequentava as repúblicas. Eram muitas,
incluindo a minha, e ele chegava na véspera das provas e
escutava a gente estudando, conversando, debatendo — e
ele absorvia tudo. Os professores o adoravam e o ajudavam,
e com isso ele conseguia passar, mesmo que raspando. Ele
passava com notas cinco ou seis, mas passava. E terminou
o curso sem repetir nenhuma matéria.”27
No Botafogo, a semana era dividida em duas, pois os
jogos normalmente aconteciam no domingo à tarde e na
quarta-feira à noite. Os jogadores tinham folga na segunda-
feira depois da partida de domingo, treinavam a parte física
na manhã de terça, e, à tarde, faziam um treino coletivo de
preparação para o jogo seguinte. Nas noites de terça, os
jogadores ficavam na concentração, isolados. A quinta-feira
era de folga, na sexta e no sábado se repetia a
programação da terça, e no sábado à noite eles estavam de
volta à concentração. No caso do Botafogo, era um rancho
convertido em hotel, para que os jogadores pudessem
descansar na véspera dos jogos.
Sócrates quase sempre faltava às sessões matinais por
causa das aulas, e também não era presença frequente nas
sessões vespertinas. Às vezes, aparecia à noite para algum
trabalho individual, mas raramente via seus companheiros
quando não era dia de jogo ou na concentração, onde ele
estudava e jogava cartas. Quando estava no clube à noite,
normalmente era para correr uma volta ao redor do campo,
só para dizer ao técnico que fez alguma coisa.
Os outros jogadores logo se acostumaram àquela rotina
pouco usual e havia pouca contrariedade quanto ao
tratamento privilegiado. Quando viam o que Sócrates era
capaz de fazer no campo — e ganhavam bichos por vitórias
graças a ele —, qualquer possibilidade de reclamação logo
perdia força.
“A gente sabia que ele recebia tratamento especial, mas o
importante era o que ele fazia no jogo”, disse o zagueiro
Ney. “Ele recebia esse tratamento especial por um motivo:
era o melhor jogador e ganhava os jogos. Dois ou três
jogadores falaram com o seu Jorge Vieira, e ele respondeu:
‘Sócrates ganha jogos. Melhor não treinar e ganhar jogos do
que treinar e não fazer nada no dia do jogo’. Ou ele dizia:
‘Vai estudar também e você vai receber o mesmo
tratamento’.”28
Os problemas de peso e falta de massa muscular de
Sócrates sempre foram exacerbados por seu curioso
desinteresse por comida. Ele gostava de beber, mas virava
o nariz para as refeições. Pesava 81 quilos, muito pouco
para alguém que media 1,93m. Em casa ou em bares,
beliscava aperitivos ou roubava garfadas dos pratos das
outras pessoas. Mulheres e mães de amigos cozinhavam
refeições para o grupo todo, mas ele pouco tocava na
comida. Bebia o que estivesse disponível, mas nunca comia
o prato todo. Sua mãe contou que ele tomava copos e copos
de suco natural, mas raramente comia as frutas, porque,
como se brincava em família, tinha preguiça do trabalho de
descascá-las e mastigá-las.29
Sócrates sempre foi magro — seu pai, ironicamente, o
chamava de “gordo”, mas seus amigos o conheciam como
Magrão —, entretanto, sua relutância em ganhar massa o
tornava ainda mais vulnerável aos defensores adversários e
à exaustão física. Ele perdia tanto peso durante os jogos
que voltava para o vestiário seriamente desidratado. Mesmo
considerando seu reduzido regime de treinos, o dia seguinte
às partidas era dedicado a massagens, com os
fisioterapeutas tentando injetar um pouco de vida em seus
frágeis e doloridos músculos. Quando Sócrates extraiu as
amígdalas e ficou uma semana sem conseguir comer nada
sólido, seu peso caiu para 68 quilos e ele quase desmaiou
nos jogos seguintes, por causa da baixa resistência.
Sócrates estimou que seus níveis físicos eram 30% ou
40% mais baixos que os dos outros jogadores, e seus
companheiros sabiam que tinham de compensar sua falta
de energia, especialmente quando os jogos se tornavam
mais cansativos. Ele ganhou a reputação de jogador de
primeiro tempo, e frequentemente pedia a companheiros
que lhe dessem cobertura quando a fadiga se instalava. Mas
mesmo caindo de produção sensivelmente no segundo
tempo dos jogos, ele raramente era substituído porque
podia decidir a partida com um de seus passes perfeitos.
O clube tentou fazê-lo aperfeiçoar a forma, mas ele
resistia heroicamente a qualquer tipo de treino com pesos
ou exercícios físicos. Mesmo quando as tentativas não
envolviam treinamentos muito exigentes, ele encontrava
um jeito de recusar, porque não gostava de receber ordens
e porque as alternativas eram sempre mais atraentes.
“Ele estava bem abaixo do peso porque fumava muito e
bebia”, contou o veterano massagista e preparador físico do
Botafogo, João Sebinho. “E naquela época a gente fazia
Frutoplex na veia, uma vitamina para ganhar peso. Nós
tínhamos uma semana de folga. Eu morava perto do
estádio. Ele tinha um Opala e ficou de vir todos os dias à
tarde: entre 15h e 15h30 ele vinha. Aí, ele me ligava —
naquela época não tinha celular, só tinha telefone fixo,
então ele me ligava em casa e eu descia pra dar a injeção
nele. Nesse dia, eu demorei pra descer e ele começou a
buzinar. Eu falei pra minha mulher: ‘Esse aí é o Sócrates. Ele
não vai querer tomar injeção’. Eu fui lá, abri o portão e ele
falou: ‘Não tem Frutoplex hoje’. Estava com duas sacolas
cheias, com latinhas de cerveja, salaminho, muçarela,
presunto, aquela quantidade toda. Nós ficamos lá na
escadaria até as 18h tomando cerveja. Só nós dois.”30
“Nos nossos passes, nossos dribles e nossos floreios com
a bola, há alguma coisa de dança e de capoeira, que
arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses
e por eles jogado de forma tão angulosa. O nosso futebol,
com a criatividade e a alegria, é uma expressão de nossa
formação social, democrática e rebelde a excessos de
ordenação interna e externa, a excessos de uniformização,
de geometrização, de estandardização, a totalitarismos que
façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade
pessoal. O futebol no Brasil se fez marcar por um gosto de
flexão, de surpresa que lembra passos de dança e que
permite o improviso, a diversidade e a espontaneidade
individual.”31
Sócrates escreveu essas palavras em 2010, quase quatro
décadas depois de impressionar o Brasil pela primeira vez
com um movimento que resumia o amor do país pela
diversidade e pela espontaneidade pessoal. O toque de
calcanhar, desenvolvido durante a transição do futebol de
salão para o futebol de campo, o fez famoso. Como muitos
jovens brasileiros, Sócrates aperfeiçoou suas habilidades
com uma bola menor e mais pesada. O futebol de salão, ou
futsal, era mais adequado para garotos, especialmente em
Ribeirão Preto, por ser jogado numa quadra pequena e
protegida do sol forte.
O jovem Sócrates se diferenciava graças a seus dribles e
seu controle de bola, mas não tardou a perceber que essas
habilidades eram de pouca utilidade num campo grande,
contra defensores bem mais fortes. No amplo gramado, ele
não tinha a velocidade ou a energia para ir muito longe. E
os adversários, mesmo quando eram superados, dispunham
de espaço para persegui-lo e tentar desarmá-lo pela
segunda ou até pela terceira vez. Sócrates logo passou,
então, a executar um jogo de toques de primeira no qual a
bola era quem mais corria.
Outros motivos para jogar dessa maneira eram seus pés
pequenos e a pouca massa muscular. Os pés tamanho 41
ofereciam uma base reduzida para as manobras de um
corpo alongado, e ele tinha dificuldades para girar com
rapidez. Sócrates aprendeu que soltar a bola com um toque
curto mantinha a jogada em evolução e evitava que ele
fosse atingido pelos rivais.
“Quando cheguei ao time principal do Botafogo, eu era
um antiatleta”, disse Sócrates. “Minha realidade física era
muito distinta da dos adversários. Eu comecei jogando
contra garotos, depois passei a enfrentar gente grande e
bem preparada fisicamente. Minha sobrevivência dependia
do desenvolvimento de uma técnica alternativa, diferente
daquela a que as pessoas estavam habituadas. Comecei a
jogar dando só um toque na bola, recebia e passava, porque
não podia ter contato físico, eu não tinha estrutura muscular
para isso, era muito alto e magro. […] O que pudesse usar
eu usava para dar apenas um toque — bunda, joelho,
cotovelo e o que acabou por me caracterizar, o calcanhar.
Era um processo de sobrevivência. Foi uma solução minha.
Passei a me aprimorar. A sensação que eu tinha era a de
não poder errar nenhum passe, porque eu tinha total
incapacidade física para enfrentar o contato.”32
Ele usava o calcanhar sempre que podia, embora a coisa
toda fosse um pouco mais complexa. Era mais do que
apenas um toque na bola com a parte de trás do pé. Como
ninguém, antes ou depois dele, Sócrates usava todas as
partes de seus pés para passar a bola. Usava o calcanhar
para bater de voleio, para tocar a bola de lado e para fazer
passes de vinte metros que rasgavam a defesa, e
frequentemente pisava na bola e a rolava para
companheiros atrás ou à frente dele.
O calcanhar se tornou sua marca registrada e o
estabeleceu como um dos jogadores mais originais e
fascinantes da época. Os torcedores vibravam com o que
parecia ser uma maneira de se exibir, mas os passes quase
sempre tinham um propósito prático. Ele era um jogador
pragmático que tocava de calcanhar com um objetivo claro,
não para chamar atenção. Segundo Zico, o calcanhar deu a
Sócrates uma dimensão da qual os adversários não
dispunham e os zagueiros não sabiam se defender. Pelé
disse que ele jogava melhor de costas para o gol do que
muitos jogadores quando estavam de frente.
“Nunca vimos ninguém jogar desse jeito antes. Os
jogadores que o marcavam ficavam confusos. Iam para um
lado e, de repente, a bola estava atrás deles”, contou
Geraldão. “Os defensores rivais não sabiam o que estava
acontecendo quando jogavam contra ele”.33
Outros companheiros disseram que a imprevisibilidade de
Sócrates também os fez melhores, porque eles precisavam
pensar nas opções disponíveis quando tinham a posse da
bola. “Sócrates era muito imprevisível, ele antecipava tudo,
e o parceiro dele no jogo precisava entender o seu
pensamento com rapidez”, disse Casagrande, centroavante
que se tornou amigo íntimo de Sócrates quando os dois
jogaram juntos no Corinthians. “É até engraçado falar, mas
as jogadas dele eram tão elaboradas, às vezes complexas
mesmo, que podiam acabar ferrando o centroavante.
Quando ele pegava na bola, a gente não sabia o que ia
acontecer. Se você marcasse bobeira e não acompanhasse
minimamente o pensamento dele, ia ficar perdido e acabar
desmoralizado. Porque ia correr toda hora para o lado
errado. Nesse sentido, é mais cômodo atuar com um
jogador comum, porque a gente sabe exatamente o que se
pode esperar dele. […] Eu precisava ter na cabeça várias
hipóteses que podiam se concretizar com a genialidade do
Sócrates. Eu não era gênio nem o craque que ele foi, mas
tinha características de jogador que completavam as dele,
além de ser inteligente jogando. Eu ocupava o espaço vazio
no momento certo e, quando um companheiro pegava a
bola, já imaginava três ou quatro possibilidades do que ele
poderia fazer.”34
Muito tempo depois de se aposentar do futebol e alternar
empregos e esposas, um amigo perguntou a Sócrates o que
ele queria da vida. “Eu quero encontrar a felicidade”, foi a
resposta. “E a felicidade das outras pessoas?”, o amigo
insistiu. “Eu não me importo com a felicidade dos outros”,
Sócrates respondeu. “O meu dever é buscar a minha.”
Sócrates tinha dezesseis anos quando encontrou a
felicidade pela primeira vez com Regina Cecilio, uma aluna
do ano abaixo do dele na escola e praticamente sua vizinha
também. A casa dos pais de Regina, na avenida Presidente
Vargas, ficava atrás da residência de Sócrates, do outro lado
do quarteirão. E quando ele se apaixonou por ela, não
tentou esconder de ninguém. Enquanto a maioria dos
adolescentes lidava com o amor com algum
constrangimento, Sócrates o recebeu com os braços
abertos. Mesmo depois de terminar o ensino médio e passar
a estudar à noite, todas as manhãs, às 7h, ele estava
acordado e de banho tomado, esperando na porta da casa
de Regina para acompanhá-la até a escola.35
Sóstenes, seu irmão mais novo, os apresentou no carnaval
de 1970. Eles se deram bem e Sócrates impressionou a
jovem ao subir no palco, tomar o microfone do cantor e
interpretar uma canção com uma das piores vozes que ela
já tinha ouvido. Nada aconteceu naquele primeiro encontro,
mas quando se viram casualmente alguns meses depois,
Sócrates a convidou para sair e um encontro oficial
confirmou a conexão entre os dois.
O casal esteve sempre junto durante os primeiros anos da
década de 1970 e o relacionamento se consumou graças a
uma noite de ginástica rítmica no Fusca usado de Sócrates.
Se para ele já era difícil entrar no carro para dirigir, imagine
fazer sexo. Mas eles conseguiram; e, quando Regina ficou
grávida, em setembro de 1974, o badalar dos sinos,
anunciando o casamento, não demorou a ser ouvido. Três
dias após o Natal, Sócrates acompanhou sua noiva até o
altar, trajando smoking e gravata-borboleta, com uma faixa
de campeão acrescentada na sessão de fotos que se seguiu.
Até então, a união em matrimônio nunca tinha sido
discutida, mas deixar sua namorada criar o filho sozinha
não era uma opção e Sócrates iniciou, ao lado de Regina,
uma feliz — e não planejada — nova vida.
Eles ainda eram estudantes e tinham alguma dificuldade
para pagar as contas com o salário de Sócrates no
Botafogo, mas recebiam ajuda de suas famílias,
especialmente do pai de Regina, que contava com um bom
emprego em um banco. Fausi Cecilio tinha algumas
propriedades em seu nome e emprestou uma de suas casas
a Regina e Sócrates, assim o casal se mudou um pouco
antes da chegada do filho Rodrigo, em 1975.
Em muitos aspectos, Regina era totalmente diferente de
seu marido. Estudante de matemática que cresceu como
filha única em uma boa família, era pacata e de modos
tradicionais. Enquanto Sócrates passava todo o tempo na
rua, Regina era mais feliz em casa, levando uma vida calma
no ambiente familiar. Ela rapidamente se adaptou ao papel
de esposa e mãe ao lado do homem que chamava de
“Cratêis”.
Eles talvez não tivessem se casado se Regina não
engravidasse, mas o início de sua vida juntos foi feliz.
Regina era o porto seguro de Sócrates. Ela o mantinha
tranquilo e cuidava de suas inquietudes. Era excelente mãe
e sua firmeza com as coisas da família permitia que ele se
concentrasse nos estudos e no futebol. Eles ajudavam um
ao outro, respeitavam o espaço de cada um e Regina era
muito parecida com a mãe de Sócrates, discreta e
equilibrada — satisfeita por cumprir um papel tradicional
em casa.
Se as mulheres na vida de Sócrates eram discretas, os
homens nem tanto. Seu pai era determinado e reservado,
mas era uma dessas pessoas que enlouqueciam quando se
tratava de futebol. Seu Raimundo não era o torcedor mais
conhecido do Botafogo, mas, definitivamente, podia se
converter em um daqueles fanáticos que passam a ser
chamados de “figuras” no meio da torcida. Seus gritos de
encorajamento e as ofensas que proferia — em boa parte
direcionadas ao filho — divertiam as pessoas que estavam
por perto quase tanto quanto o jogo. Às vezes até mais.36
Em 1968, o Botafogo tinha se mudado da Vila Tibério para
um novo estádio chamado Santa Cruz. O estádio foi
construído numa colina na parte sul da cidade e tinha
arquibancadas descobertas em três lados. A parte
construída em alvenaria era pintada com as cores do clube:
vermelho, branco e preto. A outra parte era pura terra. Na
parte baixa da colina havia um enorme setor coberto, cujo
objetivo era proteger os donos das cadeiras, mais do sol do
que das tempestades diárias durante as temporadas de
chuva. O teto de metal fazia uma sombra que ia cobrindo o
gramado vagarosamente durante a tarde, e Sócrates
costumava procurá-la como se fosse um pedaço de metal se
aproximando de um ímã. Ele nunca fazia esforços quando
podia evitá-los, e durante os jogos passava mais e mais
tempo perto da linha lateral. Nas cadeiras, o pai de Sócrates
assistia a tudo com crescente irritação.
“Sai da sombra, número oito!”, ele gritava. “Gordo! Sai da
sombra!”
Seu Raimundo ia ver o filho jogar sempre que podia. O
velho gritava e gesticulava com as mesmas doses de
energia e paixão que o técnico à beira do campo. O pai de
Sócrates era um crítico ácido e seu filho não recebia
tratamento especial. Um domingo, ele abusou tanto de
Sócrates que um pequeno grupo de torcedores ameaçou lhe
dar uma surra. Sócrates era a estrela do time do Botafogo e
os torcedores mais devotados não queriam que ele deixasse
o clube por causa de um crítico mais exaltado.
Aproximaram-se de seu Raimundo com intenções
ameaçadoras e, se não fosse a intervenção de amigos que
estavam próximos, o pai de Sócrates não teria se livrado da
enrascada. “Mas Sócrates é meu filho”, ele se queixou
tentando evitar o incidente.37
A fama de Sócrates cresceu em 1974 e ao longo de 1975,
sua primeira temporada completa, mas ele continuava
sendo uma espécie de outsider, cujas peculiaridades
intrigavam os companheiros mais velhos. Só aparecia em
dias de jogos e se sentava calado no canto do vestiário —
às vezes, com livros ou anotações de estudo — quase
sempre absorto. Sua aparência era diferente; o rosto era
todo marcado por cicatrizes das acnes da adolescência, e
ele mantinha uma incontrolável juba de cabelos pretos.
Soava diferente, também, por causa do vocabulário mais
amplo oferecido pelo ambiente universitário. Mas quando
tinha coragem para falar, ele só murmurava. Sócrates era
contraditório, erudito e educado, mas simples e com os pés
no chão, e seus companheiros não sabiam como lidar com
ele.
Dentro do campo, entretanto, as coisas eram diferentes, e
ele parecia crescer em confiança no momento em que saía
do vestiário. O futebol de Sócrates melhorou pouco a pouco
enquanto o Botafogo se estabelecia firmemente na primeira
divisão do Campeonato Paulista, e clubes de São Paulo e do
Rio de Janeiro começaram a se interessar por ele. A Folha
de S.Paulo, um dos maiores jornais do Brasil, escreveu o
primeiro artigo a respeito dele em outubro de 1975 e o
Palmeiras manifestou o desejo de contratá-lo, mas ouviu
que a possibilidade estava fora de cogitação enquanto
Sócrates não se formasse na universidade.
A atenção não era surpresa para Sócrates, que sempre
havia se destacado por causa do futebol. Fosse jogando
contra jovens como ele nos campos de Ribeirão Preto ou
enfrentando trabalhadores com o triplo de sua idade em
fazendas de cana-de-açúcar nas redondezas da cidade,
sabia que as pessoas falavam sobre ele. No time júnior do
Botafogo e depois na equipe profissional, a atenção
aumentou com os elogios de jornais e emissoras de rádio
locais, sempre fazendo previsões de um grande futuro para
a jovem revelação. A imprensa local o elegeu o jogador do
ano em Ribeirão Preto em 1974, 1975, 1976 e 1977.
Toda essa proeminência significava um problema, mas
também uma oportunidade para alguém tão tímido.
Sócrates havia desenvolvido um senso de autoconfiança
que advinha não só do futebol como da escola e da
universidade, onde seu desempenho lhe valia elogios
permanentes. Mas se tinha consciência de que merecia os
aplausos, ele era modesto e tímido demais para manifestar
isso. Não gostava de falar sobre futebol porque sabia que
isso traria mais responsabilidade e mais exigências.
Minimizar as expectativas para evitar a pressão e ao final
corresponder a elas foi uma tática que Sócrates utilizou
durante toda a vida.
Por outro lado, o novo tipo de atenção que recebia lhe
dava mais segurança e o ajudava a enfrentar um mundo
que se interessava cada vez mais por sua vida. Mas não era
só isso que o ajudava a sair de sua própria casca. Ele já
tinha encontrado outra colaboradora infalível. No início,
Sócrates relutou em admitir o quanto precisava dela, mas
enquanto sua confiança crescia e seu lugar de destaque no
Botafogo se consolidava, ele tomou a decisão consciente de
reconhecer a verdade: adorava beber e não mais
esconderia isso de ninguém.
Capítulo 3
Nossa família é tímida e introspectiva, e o Magrão contornava isso com
cerveja. Ele era uma pessoa diferente quando bebia. A bebida, para ele,
funcionava como antídoto à má disposição, à introspecção excessiva e à
rabugice. A cerveja era como remédio para ele. Libertária.
Raimundo, irmão de Sócrates

Sócrates caminhava lentamente para o treino do Botafogo,


como fazia todos os dias, com sua sacola nas mãos e a
cabeça nas nuvens. Não havia muitas pessoas no local, mas
o diretor Hamilton Mortari imediatamente notou seu
principal jogador chegando. Mortari tinha sido informado
sobre a escapada de Sócrates na noite anterior, em que
uma esticada num bar da cidade se transformou num
incidente. Logo ao ver Sócrates, ele se aproximou.
“Sócrates, quero falar com você”, gritou Mortari. “Na
minha sala.” Sócrates olhou para ele e respondeu com sua
postura característica: “Você não precisa falar comigo na
sua sala. Já sei o que você quer”, disse. “E eu quero deixar
bem claro pra você. Eu tenho vinte anos. A vida é minha e
eu faço o que quiser. Eu tenho um compromisso com o
Botafogo da porta pra dentro. Da porta pra fora, a vida é
minha. E sabe por quê? Senão eu paro.”38
Sócrates continuou andando na direção do vestiário,
deixando o diretor, estupefato, para trás. Ele tinha
manifestado claramente sua posição: não havia problema
nenhum com ordens relacionadas ao futebol, mas ninguém
diria a ele como viver sua vida.
Sócrates começou a beber aos treze anos, e bebia por
uma razão principal. Sem o álcool em seu sistema, era
tímido e reservado, um jovem que ficava quieto, à margem
das conversas, secretamente desejando se envolver. O
álcool lubrificava suas cordas vocais e, quando Sócrates
bebia, seu papo — divertido, inteligente e sarcástico — era
tão memorável quanto seu futebol.
Não era incomum que jovens começassem a beber tão
cedo, porque, em Ribeirão, tomava-se cerveja como se
fosse água. Com as altas temperaturas — especialmente no
verão, mas até mesmo no inverno —, era uma maneira de
as pessoas se refrescarem. A cerveja, leve e clara, era
consumida diretamente do congelador, com temperatura
negativa, e Sócrates, como quase todas as pessoas na
cidade, jurava que beber de manhã até de noite era a única
forma de se manter hidratado.
Sua vida em casa era outro fator significativo. Seu
Raimundo era conhecido na cidade graças à sua importante
posição profissional, e os migrantes chegando do Pará e do
Ceará o visitavam em casa aos fins de semana para
homenageá-lo. O velho era sério em relação a muitos
assuntos, mas adorava socializar e, como seu primeiro filho,
ficava mais solto quando bebia. Os fins de semana na casa
dos Vieira eram sempre movimentados, e os visitantes do
que se chamava carinhosamente de “Embaixada do Ceará”
nunca ficavam sem cerveja ou companhia. Os garotos Vieira
logo associaram a bebida à diversão e à amizade.
O Sócrates adolescente a princípio bebia de forma
moderada, mas logo ficou mais à vontade com os
companheiros do time júnior do Botafogo. Eles muitas vezes
bebiam até seis ou sete da manhã, corriam para casa para
tomar um pouco de leite ou algo que servisse como café da
manhã, banhavam-se e iam jogar. Ele sabia que esse
comportamento não era aprovado entre os profissionais,
mas, ao ganhar confiança em si próprio, não via por que
mudar. Com vida social ativa na universidade e noitadas
regulares com os colegas de time, não demorou a ganhar
fama por causa da quantidade de cerveja que era capaz de
ingerir.
Alguns dos jogadores mais experientes do clube se
preocupavam com o impacto da bebida em seu futebol e
tentaram falar com Sócrates. Maritaca, que era mais
maduro e disposto a ajudar, deu-lhe conselhos que
entraram por um ouvido e saíram pelo outro. As ideias
moralistas de gente como Mortari tinham chance ainda
menor de fazer efeito.39
A cultura do futebol da época também lhe dava liberdade
para se deixar levar. O Botafogo, como a maioria dos clubes
brasileiros, tinha um ambiente no qual os jogadores bebiam
depois dos jogos e nos dias de folga. As exigências físicas
eram muito menores do que nos dias de hoje e muitos dos
jogadores conseguiam absorver quantidades significativas
de cerveja e de cachaça.
Beber era permitido, desde que os jogadores não
perdessem o controle e causassem constrangimentos ao
clube. Muitos deles tomavam cerveja após os treinos
semanais, e os que mais bebiam reuniam-se depois dos
jogos aos domingos ou para churrascos que duravam toda a
segunda-feira.
Havia permissão para tomar algumas cervejas no ônibus,
na volta de jogos fora de casa, caso tivessem vencido. Na
hipótese de derrota, isso não acontecia. Mesmo assim,
haveria bebida no ônibus se os jogadores conseguissem
algumas cervejas antes de saírem; eles abafariam o barulho
da abertura das latinhas tossindo alto ou fingindo espirros.40
Sócrates e Zé Bernardes, que era seu colega na faculdade
de medicina e no Botafogo, corriam risco ainda maior ao
levar cerveja para a concentração. Nos quinze minutos que
demoravam para chegar, eles bebiam quantas latas fosse
possível para aliviar o tédio de passar a noite com nada
além de uma televisão, cartas ou uma mesa de pingue-
pongue para entretê-los.
Sócrates nunca bebeu em dias de jogos, mas odiava ficar
confinado nos fins de semana longe das bebidas, e logo
percebeu que alguns dos jogadores mais velhos do time
tinham tomado providências para que os sábados não
fossem secos. A cozinheira do clube preparava o jantar e o
café da manhã antes de ir embora no final da tarde. Alguns
jogadores a convenceram a, secretamente, preparar alguns
coquetéis também. Uma ou duas garrafas de batida de
cachaça ou vodca ficavam escondidas no freezer, embaixo
dos pratos de comida.41
Era comum que Sócrates se apresentasse para treinar
com sinais de ressaca, mas sua idade ainda lhe permitia
escapar ileso e seu estilo de vida boêmio — além de beber,
ele também fumava — não afetava sua forma. Os diretores
e a comissão técnica se preocupavam com o mau exemplo
para os demais, mas ele era tão decisivo dentro de campo,
e tão irredutível, que escolheram fingir que não viam nada.
Com o tempo, surgiu uma regra dentro do clube para
Sócrates e outra que valia para o resto do time.
Isso nunca ficou tão evidente quanto no fim de semana
em que o técnico Jorge Vieira pediu a João Sebinho que
levasse dois jogadores do Botafogo para representar o clube
num casamento importante. Um político local se casaria e
Sócrates, junto com o zagueiro Mario, foi à recepção numa
noite de sábado, às margens do rio Pardo.
Eles estavam lá fazia poucos minutos quando Sebinho,
com uma coca-cola na mão, olhou para o bar e viu Sócrates
segurando uma garrafa de uísque. “Magrão, porra…”, disse
Sebinho, em uma vã tentativa de fazê-lo mudar de ideia.
“Qual é o problema, Sebinho?”, perguntou Sócrates.
“Eu tenho que ficar de olho em você”, ele respondeu, já
temendo o pior. “Você vai me foder.”
“Não!”, disse Sócrates. “Apenas diga o que você viu.”
“Certo. Então pode beber à vontade”, rebateu Sebinho,
resignado.
A noite seguiu e Sócrates estava se divertindo, mas os
jogadores precisavam descansar. Sebinho os convenceu a ir
embora pouco depois de uma da manhã. Quando eles
chegaram à concentração, Vieira estava sentado no lobby,
esperando.
Sócrates estava claramente embriagado e, quando viu o
técnico, abriu os braços e gritou: “Cheeeeeeefe!”.
Vieira olhou para Sebinho e perguntou: “O que
aconteceu?” Sebinho deu de ombros. “Eu olhei para ele e
disse: ‘Seu Jorge, não precisa nem falar, né?’ E no dia
seguinte, o Sócrates marcou dois gols. Não se falou mais no
assunto.”42
Ninguém estava marcando muitos gols para o Botafogo no
começo de 1976. Foram apenas oito tentos nas doze
primeiras rodadas — Sócrates tinha feito três —, antes de o
torneio sofrer uma pausa no meio de maio para a seleção
brasileira jogar sete amistosos.
Quando o campeonato recomeçou, um mês depois, o
primeiro jogo do Botafogo era contra a Portuguesa Santista.
A Portuguesa, muito distante em termos de desempenho
histórico do time mais famoso da cidade de Santos, estava
num momento ruim, com cinco derrotas seguidas e saldo
negativo de catorze gols. O jogo aconteceu numa tarde de
domingo, no estádio Santa Cruz, e foi um evento marcante
para Sócrates. Ele colocou o Botafogo à frente aos
dezessete minutos e fez outro gol quatro minutos mais
tarde, antes de dar passes para os gols de João Marques e
Zé Mário. Quatro a zero, antes do intervalo.
Sócrates voltou para o segundo tempo muito inspirado e,
depois de Alfredo marcar o quinto, entrou no modo
destruição. Marcou mais cinco gols entre os minutos 18 e
42, elevando o placar para 10 × 0. Foi a maior goleada do
Campeonato Paulista naquele ano e os sete gols de
Sócrates só ficam atrás de uma marca de Pelé — que, em
1964, marcou oito numa vitória do Santos sobre o Botafogo
por 11 × 0 — em termos de recorde de gols num mesmo
jogo na história do campeonato estadual.
O talento de Sócrates para fazer gols já não era novidade
para técnicos e torcedores de São Paulo. Ele foi mencionado
pela primeira vez nos jornais do Rio de Janeiro, e os grandes
diários paulistas deram a seus correspondentes em Ribeirão
Preto o espaço adequado para perfis detalhados do doutor
futebolista.
O desempenho também levou a uma nova rodada de
consultas por parte de pretendentes mais ilustres.
Corinthians, Palmeiras, Portuguesa, Santos e São Paulo
entraram em contato para verificar sua disponibilidade, e o
Internacional de Porto Alegre se juntou a eles com uma
oferta de 2,5 milhões de cruzeiros. Os clubes sabiam que a
medicina ainda era a prioridade e alguns incluíam cláusulas
específicas sobre esse tema em suas ofertas. O Santos se
propôs a providenciar a transferência de Sócrates para um
hospital da cidade, enquanto a Portuguesa disse que ele
poderia continuar morando em Ribeirão Preto durante a
semana e vir a São Paulo nos dias de jogos.
O Botafogo se recusou a cogitar a venda de sua estrela e
Sócrates não pensava em deixar a cidade. Gostava da
atenção que despertava, mas vivia feliz com a vida que
levava. Tinha apenas 22 anos, não sentia falta de
sofisticação nem de atrações mais mundanas, e o
pensamento de deixar o núcleo da família e dos amigos não
era uma perspectiva que o inspirava. Além disso, Sócrates
— e seu pai, cuja influência sobre ele permanecia poderosa
— ainda enxergava o futebol como um passatempo de
importância secundária em relação à medicina. Achava
difícil imaginar que não seria médico, muito menos
encontrar satisfação por intermédio do futebol.
“Pegar um avião para São Paulo no fim de semana e
voltar depois do jogo e ir direto para a faculdade? É muita
coisa. Eu prefiro ficar aqui, onde pelo menos tenho tempo
de tomar uma cerveja depois do jogo. Depois que me
formar, talvez eu pense em ganhar dinheiro e vá para
algum clube grande da capital. Mas, mesmo assim, eu não
sei se vale a pena. A vida aqui é muito tranquila, sem muita
confusão. Ribeirão Preto é uma cidade muito boa para que
alguém vá embora dela sem pensar muito. Todo dia vou até
minha casa para ver meus pais, sempre vejo meus amigos
da faculdade e de infância, às vezes nos reunimos todos na
casa de alguém. Hoje seria muito difícil deixar tudo isso
para jogar num time grande. Sou meio acomodado para
isso.”43
As boas atuações faziam Sócrates ser cada vez mais
citado como futuro jogador de seleção, mas ele ainda
tratava o futebol profissional como uma atividade paralela
em relação à importância da universidade e da medicina.
Raramente falava do futebol com o cuidado devido, e nem
mesmo a fama repentina e a perspectiva de uma carreira
como verdadeiro esportista o convenciam a rever suas
prioridades.
Um exemplo perfeito desse desdém pelo jogo profissional
se deu numa noite de quarta-feira, em 1976. Era uma noite
cinzenta de julho no estádio do Morumbi, um mês e um dia
depois de ele ter ganho as manchetes com os sete gols
contra a Portuguesa Santista. O jogo contra o São Paulo
terminou em 1 × 1 e era quase meia-noite quando Zé
Bernardes saiu do vestiário e encontrou um grupo de
amigos da universidade, esperando no estacionamento. A
faculdade de medicina tinha um time na Intermed, torneio
disputado anualmente entre as universidades do estado de
São Paulo; haveria um jogo em Santos naquela noite e os
amigos queriam que Zé Bernardes e Sócrates se juntassem
a eles. “Zé, nós estamos atrasando o jogo contra a Paulista,
em Santos”, disse um deles. “Nós precisamos ganhar esse
jogo. Vocês não querem ir jogar?”
Zé Bernardes tinha ficado na reserva e estava
desesperado para jogar, e foi buscar Sócrates no vestiário.
“Magrão, os caras estão aí fora e querem que a gente vá
com eles para Santos. Você topa?”
“Claro que topo”, disse Sócrates. “Vamos!”
“Como assim, vamos? É melhor avisar o Tiri”, disse Zé. “O
resto do time está voltando para Ribeirão hoje à noite.” Eles
foram falar com o técnico do time, Tiri, e, meio que
perguntando, meio que avisando, disseram que estavam
indo para Santos em vez de voltar para casa com os outros
jogadores.
“De jeito nenhum”, disse Tiri. “Nós temos jogo no
domingo. Eu preciso de vocês dois.”
“O caralho!”, disse Sócrates, virando-se e correndo para o
estacionamento. O motor do furgão já estava ligado,
Sócrates jogou sua sacola pela janela e entrou, com Zé
Bernardes logo atrás dele.
Eles desceram em alta velocidade pela serra rumo a
Santos e, uma hora depois, a pequena quadra de futebol de
salão foi à loucura quando Sócrates apareceu com uma lata
de cerveja na mão. Os jogos da Intermed eram disputados
em ginásios municipais ou de universidades, e centenas de
estudantes compareciam para ver seus colegas jogando.
Todo mundo conhecia os dois jogadores do Botafogo, e os
gritos com o nome de Sócrates tomaram conta do local
assim que ele chegou. A USP-RP ganhou por 4 × 0, deixando a
torcida ainda mais enlouquecida, e quando soou o apito
final, um grupo que tinha dirigido cinco horas desde
Ribeirão comemorou virando a noite. Os jogadores pegaram
uma carona já com o dia amanhecendo, Sócrates dormindo
no banco de trás e Zé Bernardes no da frente. Quando
chegaram a Ribeirão Preto, tomaram um banho, comeram
alguma coisa e foram direto para a faculdade.
Quando Sócrates apareceu para treinar no Botafogo,
naquele mesmo dia, esperava ser repreendido, mas não se
preocupava com isso. Realmente acreditava que sua
carreira no futebol se encerraria quando se formasse, e
jogar com os amigos, diante dos colegas da faculdade, lhe
dava muito mais prazer do que atuar por um clube
profissional. Para surpresa dele, o técnico agiu como se
nada tivesse acontecido.
“Não falaram nada”, disse Zé Bernardes. “Você acha que
eles iam reclamar do Sócrates?”44
O dia da mentira em 1964 não teve graça nenhuma.
Durante a madrugada do 1o de abril, tropas motorizadas se
deslocaram no Rio de Janeiro para derrubar o presidente de
esquerda João Goulart; um Congresso impotente logo
capitulou, forçando Goulart a se exilar no Uruguai e
marcando o início de uma horrível ditadura que duraria 21
anos e transformaria o Brasil.
Depois de um começo brando, em que tentaram
neutralizar os oponentes em vez de assassiná-los, os
militares foram gradualmente se tornando mais violentos.
Concederam a si mesmos poderes mais amplos e
aprovaram uma rígida nova constituição em janeiro de
1967; pouco menos de dois anos depois, antes do Natal de
1968, decretaram no dia 13 de dezembro o Ato Institucional
Número 5 (AI-5), dando início ao período mais duro do
regime. Com o AI-5, abandonaram qualquer pretensão de
legitimidade, fecharam o Congresso e começaram a demitir
e aposentar servidores civis que não aprovavam suas ideias,
além de pressionar os meios de comunicação de oposição.
Acima de tudo, a brutalidade avançou até adotar práticas
como sequestro, tortura e assassinato em proporções nunca
antes vistas no país.45
O período entre 1968 e 1974 ficou conhecido como “os
anos de chumbo”, coincidindo com a chegada de Sócrates à
idade adulta. Embora o envolvimento em política estudantil
tenha sido proibido em 1969 e a principal associação de
estudantes do país tenha sido banida dois anos depois, a
repressão exercida pelos militares não era um segredo na USP-
RP. A universidade não constituía um foco de oposição, mas

um pequeno grupo de ativistas encontrava formas de


transmitir sua mensagem.46
Sócrates, entretanto, não se importava. Ele conhecia
alguns dos professores e estudantes que tinham sido presos
por se manifestar contra a ditadura, e tinha noção de que se
opor ao regime poderia cobrar um alto preço. Mais tarde,
diria que era de “uma geração alienada, que não tinha
informação política, e, além disso, uma geração de medo”. É
verdade, mas Sócrates também foi honesto ao admitir que
se isolou. Com tanta coisa acontecendo em sua vida, ele
tomou a decisão consciente de olhar para o outro lado.
“Nós todos sabíamos sobre a repressão, acontecia muita
coisa”, disse o dr. Said Miguel, um amigo. “Havia um grupo
de militantes na universidade. Muita gente da faculdade de
medicina foi presa pelos militares por seu ativismo. Muitos
professores e estudantes foram presos. Mas nós não
podíamos fazer nada. A atmosfera era bem pesada. Havia
um grupo mais envolvido com política, mas Sócrates
tentava manter distância. Ele só queria viver sua vida e
jogar futebol. Sócrates era totalmente desinteressado por
política.”47
Isso ficou evidente em julho de 1976, quando ele deu uma
longa entrevista ao jornal Diário da Manhã, a primeira vez
que falou abertamente sobre assuntos fora do futebol.
Sócrates era um leitor voraz, mas com sua vida girando
em torno da universidade e do futebol — recém-casado e
com um bebê de um ano em casa —, evidentemente tinha
pouco tempo para acompanhar política, e menos ainda para
se atualizar sobre o que estava acontecendo no mundo ao
seu redor. Ele contou que tinha lido seu homônimo mais
famoso e brincava que gostaria de seguir pelo mesmo
caminho da filosofia, mas suas opiniões sobre temas não
relacionados ao futebol, à saúde pública e à faculdade eram
as de um jovem desinformado e indiferente, que acreditava
no que os ditadores militares diziam.
Ele admitiu que votou em João Cunha para prefeito de
Ribeirão Preto porque era seu amigo — “A maioria da
população do país não conhece o que pensam os
candidatos. Votam pelo nome, pelo coração e pelo estímulo
da publicidade” — e expressou admiração por Mao Tsé-Tung
e pelo presidente norte-americano assassinado, John
Kennedy. Era contra o controle de natalidade e acreditava
que o problema da aceleração demográfica deveria ser
abordado com métodos culturais e educacionais, e não com
remédios ou DIU. Mas o mais surpreendente era o seu
pensamento sobre a censura.
Sócrates protestou contra o Decreto-Lei n. 477, baixado
logo após o AI-5, que baniu a possibilidade de qualquer
manifestação por parte de professores ou estudantes.
Muitas pessoas acusadas de ser contra o governo foram
desligadas de centros de estudos, mesmo depois de as
principais lideranças estudantis já terem sido presas e
torturadas. “A medida preventiva do governo contra
elementos mal-intencionados do meio estudantil acabou
afetando a totalidade dos estudantes”, disse Sócrates.
Mesmo assim, em termos gerais, o jovem não se
posicionava totalmente contra a censura.
“A censura à imprensa, em termos, é necessária”, disse
Sócrates. “Mas não deve ser levada até um ponto crítico,
porque causa a extinção de iniciativa. E, se a gente for
pensar na não existência da censura prévia, ou alguma
coisa desse tipo, acredito que as coisas se complicariam
para o governo. Aí seria difícil controlar a divulgação dos
fatos, em salvaguarda da imagem do governo perante a
população. Pessoalmente, acho muito importante o governo
manter a boa imagem diante do povo. Aqui está havendo
uma transformação desde a Revolução de 1964.”
Quando os entrevistadores contestaram seu ponto de
vista, ele respondeu: “Pessoalmente acredito que (a
censura) é necessária não só no Brasil, como também em
outros países que estão em fase de reconstrução
governamental”.48
O uso do termo “revolução” é fundamental para
compreender sua visão de mundo. A derrubada de Goulart
foi um golpe militar sob todos os aspectos, mas a junta
tentou camuflar suas ações batizando-as de “revolução” e a
decisão de Sócrates de aceitar esse conto de fadas era um
claro sinal de que ele engolia a versão dos generais sobre
os eventos.
Havia muitas explicações para essa postura. As escolas da
época ensinavam “Educação Moral e Cívica” e “Organização
Social e Política do Brasil”, disciplinas que tinham o objetivo
de doutrinar as jovens mentes em nome do nacionalismo e
do governo militar. As crianças eram ensinadas a respeitar
Deus e o país acima de tudo e eram avaliadas
positivamente caso soubessem cantar o hino nacional. Além
da censura estabelecida, o início dos anos 1970 marcou o
ponto mais baixo do regime com os decretos destinados a
calar a oposição de uma vez por todas.
Outro fator importante era o crescimento da economia. Os
militares investiram pesado em infraestrutura e o Brasil
cresceu exponencialmente com a abertura de fábricas, a
construção de estradas e a expansão da classe média.
Pessoas foram do estado de pobreza à condição de comprar
televisões, geladeiras e carros. Entre 1968 e 1976, o
crescimento anual nunca ficou abaixo dos 5%. Em alguns
anos, chegou a 14%.
O ambiente em que Sócrates vivia também contava.
Ribeirão Preto era conservadora por natureza, como a
maioria das cidades rurais dominadas pela agricultura e
rodeadas por proprietários de terras. A cidade crescia
rapidamente e já estava na casa de 250 mil pessoas, mas
tinha poucos canais de televisão, seis emissoras de rádio e
quatro jornais, todos censurados para garantir coberturas
favoráveis ao regime. Sócrates prestava pouca atenção à
imprensa, e, quando lia, a mensagem que recebia era
filtrada para apresentar os militares da melhor maneira
possível.49
A explicação mais simples, no entanto, é a de que ele
ainda era imaturo. Quando não estava jogando futebol ou
estudando, estava paquerando ou tomando cerveja — ou
ambos. Tinha noção das desigualdades do Brasil e se
incomodava com elas, mas ainda era conservador em
questões sociais. Ele se opunha ao controle de natalidade,
era “totalmente contra” misturar política e esporte, e
dispensava qualquer ideia de que sua formação privilegiada
ou educação superior faziam dele um líder no time do
Botafogo.
“Não gosto de participar. Nunca fui de tomar partido e de
ser líder em nada. Enfim, não gosto de manifestar minhas
opiniões a ninguém a não ser no círculo de amizade da
minha confiança. Sou muito retraído, então procuro manter
minhas opiniões comigo mesmo.”
Quando perguntado sobre o que seria da sociedade se
ninguém expressasse suas opiniões, ele riu: “Uma coisa eu
tenho certeza: poderia não haver progresso, mas também
não haveria guerra”.50
O único progresso que interessava a Sócrates em meados
de 1976 era no Campeonato Paulista. O Botafogo voltou ao
seu normal após golear a Portuguesa Santista e se
classificou para a fase seguinte do torneio graças ao saldo
de gols que construiu.
O time iniciou a sequência do campeonato com um novo
técnico, Jorge Vieira, que retornava após um período no
Coritiba. Filho de um bem-sucedido industrial carioca, Vieira
não chegou a ser jogador profissional e iniciou sua carreira
de treinador com vinte e poucos anos. Aos 26, conquistou
seu primeiro troféu, quando conduziu o América ao título do
Campeonato Carioca. Depois de deixar o América, ele
passou dez anos entre o Brasil e Portugal, invariavelmente
incutindo em suas equipes a crença de que poderiam ter
desempenho superior às próprias expectativas. Levou o
desprestigiado Galícia ao primeiro título baiano em 25 anos,
foi campeão estadual com o Bahia e com o Coritiba, e, em
1974, dirigiu a melhor campanha do América-MG na primeira
divisão do Campeonato Brasileiro. Vieira passou a segunda
metade de 1975 no Botafogo e retornou um ano depois com
a promessa de que teria a chance de lutar por títulos.
Sócrates sabia que tinha muito a aprender e que técnicos
experientes como Jorge Vieira eram vitais para seu
amadurecimento como jogador. Mas a abordagem
autoritária de Vieira era exatamente o tipo de atitude que o
levava a questionar se o futebol realmente valia a pena.
Vieira ficou famoso por ter dito que muitos jogadores
precisavam ser tratados como crianças e reuniu o elenco no
primeiro dia para avisar que a palavra final seria sempre
dele. Ninguém teria tratamento especial, Vieira disse ao
grupo ao explicar os planos de construir um time que
pudesse competir bem no Campeonato Brasileiro.
Acreditando que a mensagem era endereçada diretamente
a ele e a seus privilégios de estudante, Sócrates
deliberadamente se virou e começou a se distanciar.
Vieira o trouxe de volta e o abraçou. Era um disciplinador,
mas não era insensato. Sabia que não poderia fazer nada
sem o melhor jogador do time e que os torcedores não o
perdoariam se forçasse a saída de sua estrela. Ele acalmou
Sócrates e garantiu que seu acordo com o clube não seria
alterado.
Os dois não chegaram a ser grandes amigos, mas
Sócrates desenvolveu muito respeito pelas habilidades
motivacionais de Vieira, qualificando-o como “o único
técnico capaz de mudar um jogo no intervalo”. Mas ele não
ficou muito impressionado quando Vieira insistiu em
adiantá-lo para o papel de centroavante. Sócrates fez três
gols nos quatro jogos que se seguiram à goleada sobre a
Portuguesa Santista, mas não se adaptou às novas ideias de
Vieira e passou nove jogos sem marcar. (Seu irmão,
Sóstenes, se deu melhor, marcando um gol contra o
Jardinópolis, no primeiro jogo de uma curta carreira
profissional.)
Sócrates perdeu diversas oportunidades de encerrar o
jejum no empate em 0 × 0, em casa, contra o América, no
dia 8 de agosto. Estava sentindo claras dificuldades para
jogar de costas para o gol. Sua compleição física — aqueles
pés pequenos novamente… — dificultava os giros e, quando
ele conseguia se desmarcar, sempre havia outro zagueiro
para atrapalhá-lo.
A seca de gols significou que Sócrates precisaria marcar
no último jogo do campeonato para ficar com o prêmio de
artilheiro, e foi exatamente o que aconteceu. Jogando mais
recuado, marcou os dois gols da vitória por 2 × 0 sobre o
São Bento. O resultado deu ao Botafogo a quarta colocação
no Campeonato Paulista, posição bastante respeitável para
um time em construção. Eram boas as expectativas para a
campanha seguinte, a primeira experiência em um
campeonato nacional. Seria um teste para um time pequeno
do interior e não se tratava de um campeonato que eles
pensavam ter chances de vencer. Já o Paulista era outra
conversa. Eles estavam prontos para fazer história.
Aquela quarta colocação era um sinal de uma mudança
maior em curso no futebol brasileiro. Desde que Charles
Miller trouxe o primeiro livro de regras ao atravessar o
Atlântico em 1894, os clubes das grandes cidades sempre
haviam dominado o esporte. Essa supremacia começou a se
enfraquecer nos anos 1970 e, em nenhum outro lugar, as
mudanças foram tão evidentes quanto em São Paulo, o
estado mais rico e populoso do Brasil, onde Miller se
instalou. O setor agrícola florescente e o fluxo de migrantes
vindos de outras partes do Brasil estimularam as cidades do
interior, e seus clubes usaram essa força para investir em
estádios maiores e manter seus melhores jovens jogadores.
O Botafogo se recusou a vender Sócrates e o atacante Zé
Mário; a Ponte Preta manteve Carlos, Juninho e Oscar,
futuros jogadores de seleção; e o zagueiro Amaral, de estilo
clássico, permaneceu no Guarani.
Eles também receberam a ajuda das novas regras e de
quem as fazia. A lei que temporariamente aboliu o
rebaixamento, em 1969, permitiu que jogassem sem medo
de cair de divisão, e a eleição de Alfredo Metidieri, do São
Bento, para o cargo de presidente da Federação Paulista de
Futebol — o primeiro presidente de um clube pequeno a
dirigir a entidade — lhes deu maior influência.
Os efeitos logo ficaram mais claros. O América de São José
do Rio Preto terminou em quarto lugar o Campeonato
Paulista de 1975, à frente de Corinthians e Palmeiras. O XV de
Piracicaba foi vice-campeão em 1976, e a Ponte Preta, que
se estabelecia como potência a ser reconhecida, ficou em
segundo lugar em 1977. O Guarani, que chegou entre os
quatro primeiros do Paulista três vezes entre 1976 e 1979,
foi forte o bastante para se destacar em nível nacional,
vencendo o Campeonato Brasileiro de 1978 — um feito que
nenhum outro time do interior jamais igualou.
O Botafogo desejava muito se juntar a essa nova elite e o
presidente do clube, Atílio Benedini, com o suporte de um
grupo de diretores ricos que recebeu o apelido de “os
homens de ouro”, investiu muito para ter sucesso. Seis
jogadores foram contratados antes de o Campeonato
Brasileiro de 1976 começar no dia 4 de setembro, e,
entrosando-se rapidamente, o time perdeu apenas dois de
seus primeiros oito jogos — uma sequência que incluiu um 0
× 0, fora de casa, com o Cruzeiro, então campeão da Copa
Libertadores — e se classificou para a fase seguinte em
primeiro lugar em seu grupo. O Botafogo não diminuiu o
ritmo na segunda fase, perdendo apenas uma vez em cinco
jogos e empatando em 1 × 1 com o Fluminense, que tinha
Rivellino e Carlos Alberto Torres, diante de um público
recorde de 44.292 torcedores no estádio Santa Cruz.
A terceira fase, de acordo com Sócrates, era como prestar
o vestibular depois de fazer dois cursinhos preparatórios.
Mas se o caso fosse esse, o Botafogo não teria sido
aprovado. O time perdeu os dois primeiros jogos, contra a
Ponte Preta e o eventual campeão, o Internacional, e,
embora tenha se recuperado e vencido três das seis últimas
partidas, um Sócrates exausto não conseguiu marcar
nenhum gol — e a temporada chegou ao fim.
Mesmo assim, encerrar o campeonato em décimo terceiro
lugar entre 54 times foi um resultado muito respeitável para
a primeira experiência em competição nacional do
Botafogo, e ainda mais impressionante para Sócrates, por
causa de sua crescente carga horária na universidade. O
quinto ano é quando os estudantes de medicina começam a
trabalhar com pacientes, e no início de 1976 ele passou a
acompanhar médicos e a colaborar em pequenas cirurgias.
Isso significava turnos que atravessavam a noite,
começando às 19h e terminando doze horas depois.
Seus colegas alteravam suas agendas para que ele
estivesse disponível para os jogos, e Sócrates passava
metade de suas férias cobrindo alunos que o haviam
ajudado no ano anterior. Ainda que nunca tenha deixado de
se apresentar para jogar, isso não aconteceu por muito
pouco.
Um dos incidentes mais famosos aconteceu quando o
Botafogo jogou com o Corinthians, em São Paulo. A partida
era à noite e Sócrates tinha aulas até o final da tarde, de
modo que um carro do clube o buscou na universidade e o
levou até a capital. A viagem durou mais de quatro horas e
ele chegou ao Pacaembu minutos antes do apito inicial.51
“Você sabe onde é o vestiário?”, Sócrates perguntou ao
motorista, enquanto o carro se aproximava da belíssima
entrada art déco do estádio. “Não tenho a menor ideia”, ele
disse.
“Merda, nem eu”, disse Sócrates. “Me deixa aqui que eu
entro e me viro.”
Sócrates desceu do carro e passou pelos torcedores em
direção à entrada. Comprou um ingresso para o jogo e
entrou pelo portão principal na praça Charles Miller. Uma
vez dentro do estádio, aproximou-se da primeira pessoa que
parecia um funcionário.
“Onde é o vestiário?”, perguntou.
“O visitante é do outro lado”, o homem respondeu.
Sócrates segurou sua mala embaixo do braço e deu a
volta no campo o mais rápido que podia. Do outro lado, um
segurança estava sentado numa cadeira perto de um portão
de metal.
“Você pode me deixar entrar?”, pediu, ofegante. “Eu jogo
no Botafogo.”
O homem olhou para o jovem à sua frente. Ele era magro,
mal conseguia respirar depois de correr desde a entrada do
estádio e seu cabelo apontava para todas as direções.
Estava vestido com um avental branco e segurava uma
mala médica na mão. Parecia alguém que tinha escapado
de um hospital psiquiátrico. O segurança riu.
Sócrates reclamou, implorou e conseguiu convencê-lo a
mandar um recado para chamar o técnico no vestiário do
Botafogo. Pouco tempo depois, o técnico Tiri apareceu e
Sócrates entrou pelo portão. Os jogadores do Botafogo já
estavam esperando no túnel. Sócrates se trocou o mais
rápido que pôde e correu para o gramado pouco antes de a
partida começar.52
Esse é um exemplo extremo, mas situações similares
eram usuais. O clube fazia todo o possível para facilitar seus
movimentos, até oferecendo o carro com motorista. O
suporte foi particularmente importante durante seus últimos
dois anos no clube, quando os estágios de medicina em
áreas rurais, as provas e os longos turnos no hospital o
impediam de viajar com o restante do elenco. Seu status de
estrela tinha crescido tanto que clubes pequenos de todo o
Brasil pagavam o Botafogo para disputar amistosos com a
condição de que Sócrates jogasse. Se ele não estivesse no
time para o início do jogo, o valor da cota caía pela metade,
de forma que o clube fazia de tudo para que ele aparecesse
na hora combinada. Benedini suspeitava que Sócrates, às
vezes, abusava desse privilégio para recuperar algumas
horas de sono, mas fingia que não se importava porque o
clube queria que ele estivesse descansado e precisava dele
em campo.
“Quando ele não aparecia, nós mandávamos um carro
para procurá-lo em casa e o colocávamos no avião”, disse
Benedini. “Eu tinha um pequeno avião, monomotor. Era ele
e o piloto, e de vez em quando eu ia junto. Outras vezes a
gente alugava um avião. Um dos diretores tinha um avião e
a gente usava, também pedíamos que grandes torcedores
do Botafogo emprestassem seus aviões. Não eram viagens
longas, talvez uma hora até Uberaba, Campinas. Acontecia
sempre. A gente precisava dele lá porque, se ele não fosse,
a cota não era a mesma. Mas valia a pena. Ele tinha muito
mais qualidade”.53
Como se as coisas já não fossem suficientemente
complexas, 1977 era o último ano de Sócrates na
universidade e sua vida ficou ainda mais complicada por
causa do estágio obrigatório em regiões rurais, que o levou
para longe de Ribeirão Preto. Pequenas cidades de todo o
Brasil precisavam de médicos, e estudantes no último ano
de medicina eram enviados, aos pares, para atender nessas
localidades. As clínicas eram bem rudimentares, contavam
com um carrinho com alguns poucos medicamentos e o
equipamento mínimo necessário para medir frequência
cardíaca e pressão sanguínea.
Em março, Sócrates passou duas semanas em São
Joaquim da Barra, cerca de setenta quilômetros ao norte de
Ribeirão Preto. Em outubro, foi até Cássia dos Coqueiros,
oitenta quilômetros ao leste da cidade. No segundo período,
ele teve a companhia de Said Miguel e morou num anexo da
clínica, onde um cozinheiro providenciava comida e
necessidades básicas. A chegada de Sócrates para ser o
médico local foi o maior acontecimento da história da
cidade, e Miguel suspeitava que os pacientes apareciam
com problemas imaginários apenas para encontrar o
jogador e conseguir seu autógrafo numa receita.
Sócrates adorava aquele papel, participava de eventos
locais e fazia amizade com cantores sertanejos que ele
visitava à noite ao longo da semana, para tocar violão e
cantar. Ele gostava de estar em contato próximo com
brasileiros pobres e até apareceu para jogar no time de
Cássia dos Coqueiros no confronto anual com o Cajuru, rival
local.54
Mas a distância praticamente impossibilitava que ele
treinasse e, embora Said o cobrisse nos dias de jogos, as
viagens eram cansativas, especialmente na segunda
metade do ano. Ele também precisava lidar com os exames
finais, além de cuidar da esposa e da família. A pesada
carga de trabalho influenciou seu desempenho à medida
que a temporada evoluía. Ele estava exausto e todos
conseguiam perceber isso.
Mas antes de toda essa correria, vieram os agradáveis
dias do início de 1977. Sócrates e Jorge Vieira tinham
superado suas diferenças iniciais, após o técnico
compreender sua importância para o time e concluir que,
com Sócrates, uma relação de cumplicidade seria mais
produtiva. Vieira implorou para que ele deixasse de fumar e,
ao perceber que não adiantaria, tentou o sucesso com
caramelos, imaginando que Sócrates fumaria menos se sua
boca estivesse ocupada com outras coisas.
Sócrates liderava o time ao lado do imprevisível atacante
Zé Mário, e Vieira foi inteligente ao cercá-los de um grupo
de jogadores experientes que ainda tinham algo a provar.
Entre os contratados durante a segunda metade de 1976
estavam Raimundo Aguilera, goleiro paraguaio que havia
tido problemas nos joelhos; Lorico, meio-campista de 37
anos que tinha jogado com Pelé na seleção do exército; e
Arlindo, centroavante à moda antiga, com muito faro de gol.
Eles se adaptaram bem e o Botafogo estava pronto para
tentar o título paulista.
O time adotava uma formação versátil, que se modificava
entre o 4-4-2 e o 4-3-3 dependendo da função de Sócrates,
como meio-campista ou atacante ortodoxo. O Botafogo
levava poucos gols e a velocidade pelos lados do gramado,
combinada aos gols e passes precisos de Sócrates, garantia
um contra-ataque letal.
Vieira estava convicto de que o time poderia ir longe e o
começo da temporada se deu em ritmo muito bom, com
cinco vitórias e dois empates nos sete primeiros jogos.
Aqueles primeiros seis meses do ano estão entre os mais
memoráveis da carreira de Sócrates. Ele jogou em grande
estilo contra o Santos em março, marcando dois gols na
vitória do Botafogo, fora de casa, de virada. Seu
desempenho num raro jogo transmitido pela televisão,
incluindo um gol em que ele rolou a bola para a rede com a
sola da chuteira, foi brilhante a ponto de Pelé elogiá-lo mais
tarde. Alguns jogos depois, um torcedor ergueu uma faixa
no Morumbi, declarando: “Sócrates é o novo Pelé”.55
Seus gols levaram o Botafogo ao topo da classificação na
metade da temporada e direto ao playoff decisivo da Taça
Cidade de São Paulo, o troféu dado ao melhor time do
primeiro turno do campeonato. O Botafogo tinha o segundo
melhor ataque e a melhor defesa, e um 0 × 0 com o
Guarani valeu uma vaga na decisão contra o São Paulo.
Era o maior jogo da história do clube e, embora a final
tenha acontecido no estádio do São Paulo, o Botafogo não
se sentiu incomodado. O público de mais de 56 mil pessoas
— incluindo 15 mil que viajaram de Ribeirão Preto — viu o
time visitante exibir um pouco de nervosismo no início, mas
logo se recuperar e se mostrar superior ao rival. Sócrates
mandou a bola para as redes depois de ganhar uma dividida
na intermediária e bater de fora da área, mas o árbitro
julgou que ele levantou demais o pé e anulou o lance. O
empate em 0 × 0 durou os noventa minutos e houve pouca
ação até os segundos finais da prorrogação, quando Waldir
Peres defendeu um chute cara a cara de Motoca.
O apito final soou logo depois e um exausto Sócrates
levantou os braços e correu para comemorar no meio do
campo. A vitória no jogo não veio, mas o triunfo sim. O
Botafogo era campeão do primeiro turno do campeonato, o
primeiro time do interior a ganhar esse troféu em 75 anos.
“Um técnico que ganha títulos com times grandes, que
estão acostumados a chegar às finais, está apenas fazendo
seu trabalho”, um extasiado Sócrates disse após o jogo. “No
Botafogo, um time pequeno do interior, é diferente. Posso
dizer que hoje é um dos dias mais felizes da minha vida
profissional.”
Muito tempo depois de se aposentar, Sócrates foi
perguntado sobre em que ponto da carreira jogou seu
melhor futebol. A resposta, para a surpresa de alguns, foi o
período no Botafogo. No time de Ribeirão Preto, técnica era
tudo o que ele tinha. Ele era magro, não tinha força física e
nem sempre estava comprometido como deveria. Mas,
mesmo assim, era capaz de controlar um jogo de futebol
usando apenas seu talento, e isso bastava para que ele e o
Botafogo aparecessem no mapa.
“Pô, time pequeno, eu não treinava, eu tinha que jogar
pra caralho! Claro que não era o mais regular dos jogadores,
eu não estou falando de regularidade. Juntando tudo,
técnica, parte física e tal, foi o Campeonato Brasileiro de
1982, sem dúvida. Mas, no Botafogo, eu tinha que jogar
muito tecnicamente, tinha que fazer milagre.”56
Sócrates já tinha manifestado muitas vezes seu desejo de
jogar pela seleção brasileira, e ele esperava que as pessoas
que dirigiam a CBD reconhecessem seu brilhantismo e lhe
dessem a chance de vestir a famosa camisa amarela. O
problema era que poucas pessoas fora de Ribeirão Preto, e
quase ninguém fora de São Paulo, o haviam visto jogar
regularmente. Longe de sua cidade, ele ainda era percebido
como uma anomalia ou um fenômeno passageiro, ou
ambos. Tinha fãs, mas ainda existiam dirigentes, técnicos e
até mesmo jogadores que o viam com desconfiança. Para
quem não o conhecia, sua dedicação à medicina, o valor
que ele dava à cerveja e aos cigarros, e sua relutância em
treinar, comemorar gols ou repetir frases feitas típicas de
jogadores, pareciam não apenas falta de profissionalismo,
mas falta de interesse. Após ver Sócrates jogar em 1977, o
almirante Heleno Nunes, o presidente da CBD, disse que “era
melhor ele se dedicar à medicina”, porque não tinha futebol
nem para jogar na seleção de Ribeirão Preto.
A seleção brasileira era supervisionada por militares, e os
dirigentes e técnicos no comando estavam habituados à
hierarquia. Mesmo homens sofisticados como Claudio
Coutinho e Carlos Alberto Parreira gostavam de jogadores
que seguissem ordens, e temiam que Sócrates, que fazia as
coisas a seu modo, fosse um exemplo perigoso para os
demais. Ele era um rebelde e os homens que dirigiam o
futebol não se davam bem com rebeldes.
A mídia, por sua vez, era mais aberta, e muitos membros
da imprensa paulista estavam convencidos de que Sócrates
seria convocado para a viagem do Brasil aos Estados Unidos
em maio de 1976. O técnico Osvaldo Brandão o ignorou
naquela ocasião, e ter sido escolhido para jogar na seleção
paulista contra a seleção brasileira, em janeiro de 1977, não
foi compensação suficiente para ele. Mas se Sócrates
achava que seu bom desempenho nesse jogo poderia lhe
abrir algumas portas, infelizmente estava enganado.
Sócrates não foi chamado para os quatro jogos de
eliminatórias para a Copa do Mundo, em fevereiro e março,
e acabou preterido novamente mais tarde, quando a
seleção fez oito partidas amistosas em preparação para a
rodada seguinte do torneio eliminatório. Quando Zé Mário
se tornou o primeiro jogador na história do Botafogo a ser
convocado para defender o Brasil em tais partidas, ninguém
se surpreendeu, mas a ausência de Sócrates chamou
atenção suficiente para que um grande jornal publicasse a
seguinte manchete: “Zé Mário convocado, Sócrates não”.57
As atuações extraordinárias de Sócrates na campanha do
título do Botafogo convenceram muitos torcedores de que
ele estava pronto para ir à Copa do Mundo da Argentina,
mas suas esperanças diminuíram por causa da queda de
rendimento no início de 1978. Coutinho já tinha dado um
sinal de suas intenções no ano anterior, ao dizer que
Sócrates não era um verdadeiro profissional por ainda estar
cursando a universidade. Sócrates observou que tinha sido
o maior goleador do principal campeonato estadual do país,
mesmo treinando pouco e fazendo turnos noturnos no
hospital.
Esse argumento, porém, não impressionou os homens que
tomavam as decisões e, depois que Heleno Nunes viu o
Comercial controlar Sócrates num empate em 1 × 1 em 23
de abril, ele declarou publicamente que se tratava de “uma
estrela em declínio”. A CBD deixou suas opções em aberto ao
incluir Sócrates na lista de quarenta nomes que poderiam
ser inscritos no Mundial, mas quando Coutinho escolheu 22
jogadores na véspera do embarque, Sócrates não esteve
entre eles. Seu sonho de jogar pelo Brasil numa Copa do
Mundo teria de esperar.
A solução, ele concluiu, era se transferir para um grande
clube. E foi o que ele fez.
Capítulo 4
Jogar no Corinthians é como ser convocado para uma guerra irracional e
jamais duvidar que ela é a mais importante de todas as que existiram. É
ser sempre chamado a pensar como Marx, lutar como Napoleão, rezar
como o Dalai-lama, doar a vida a uma causa como Mandela e chorar como
uma criança.
Sócrates

Em dezembro de 1977, Alberto Helena Júnior recebeu uma


carta que o convidava para a cerimônia de formatura de
Sócrates. Nela, havia uma mensagem escrita à mão: “Muito
por sua causa, decidi pendurar o diploma e calçar a
chuteira”.58
A nota era um sensível agradecimento pelos artigos que
Helena Júnior tinha escrito desde cedo, cruciais para chamar
a atenção da imprensa de São Paulo para o surgimento de
Sócrates. Mas as palavras não contavam a história de como
ele esteve perto de preferir o estetoscópio ao futebol.
Durante os quentes meses de dezembro e janeiro, Sócrates
suou até escolher que caminho tomar, chegando ao ponto
de se candidatar a uma posição de residente num hospital,
para então desistir no último minuto, quando assinou um
novo contrato com o Botafogo.
O fator que mais pesou em sua decisão foi o mais óbvio,
como seu pai sempre observou: ele poderia praticar a
medicina depois de ter jogado futebol, mas não poderia
jogar futebol depois de ter praticado a medicina. O dinheiro
também foi importante. Mesmo numa era em que a
distância remuneratória entre futebolistas e outros
profissionais não era tão grande, Sócrates ganharia dez
vezes mais como jogador do que como um jovem médico, e
não teria de fazer turnos de madrugada todos os meses
para pagar as contas.
Seus amigos mais próximos sabiam como a decisão era
difícil para ele, mas não ficaram em cima do muro: eles — e
às vezes parecia que a cidade inteira também, de
companheiros a jornalistas e vizinhos — imploraram para
que Sócrates não desperdiçasse seu talento.
Sócrates escreveu a Helena Júnior dizendo que tinha
escolhido o futebol, mas não estava cem por cento decidido.
Dias antes do prazo final para iniciar a residência, os dois
estudantes de medicina que jogavam no Botafogo se
sentaram num quarto na concentração do time e debateram
o dilema de Sócrates.
“Você ainda não me disse o que pensa. Eu devo desistir
ou continuar jogando?”, Sócrates perguntou a Zé Bernardes,
que estava três anos abaixo dele na USP-RP.
“Você tem que continuar”, disse o centroavante.
“Porra”, disse Sócrates. “Por quê?”
“Porque eu sei que você é um craque e o Brasil não sabe”,
Bernardes respondeu. “O Brasil tem que conhecer você
também.”
Sócrates jogou um travesseiro no amigo e se deitou na
cama. Em poucos dias, passaria a ser jogador em tempo
integral.59
Tomada a decisão mais difícil de sua vida, Sócrates sabia
que teria de elevar seu jogo se quisesse ter sucesso. Os
primeiros meses de 1978 marcaram o primeiro período em
que ele treinou todos os dias, e o aumento da carga de
trabalho deveria se traduzir em atuações mais robustas.
Mas o ano começou de forma decepcionante, com partidas
inconsistentes que evidenciaram como ele sentia o peso das
exigências do futebol.
O Botafogo perdeu vários dos jogadores que tinham feito
do time um adversário tão difícil de derrotar no ano anterior.
Aguilera e Mineiro deixaram o clube e Zé Mário sucumbiu
tragicamente à leucemia, com apenas 21 anos. O time teve
desempenho decente no Campeonato Brasileiro de 1978,
que começou em março, apenas três semanas depois de o
título de 1977 ter sido decidido. O Botafogo passou,
tranquilo, pelas duas primeiras fases, mas ficou em terceiro
lugar no estágio seguinte e, como apenas dois times
avançavam às quartas de final, o velho hábito de deixar o
ritmo cair na fase mais aguda voltou a cobrar seu preço. A
classificação final — 13o lugar entre 62 times —
aparentemente confirmava que aquele era o limite máximo
para o clube.
Apesar de seus problemas, Sócrates fez bem mais do que
o suficiente para assegurar a transferência que tanto
aspirava, e o clube favorito para contratá-lo era o São Paulo.
Ao lado de Palmeiras, Corinthians, Santos e Portuguesa, o
São Paulo compunha o grupo dos cinco clubes grandes do
estado, e era considerado um dos mais bem dirigidos. O
presidente são-paulino trocou um aperto de mãos com seu
colega Atílio Benedini no final de 1977, e eles concordaram
que o Botafogo daria ao clube da capital a preferência
quando Sócrates estivesse pronto para sair. O São Paulo
queria um pacote que incluía também o zagueiro Ney, e os
dois clubes decidiram que, no momento apropriado, a dupla
custaria 7 milhões de cruzeiros e pegaria a rodovia
Anhanguera em direção a São Paulo.60
Sócrates assinou um novo contrato em fevereiro, com a
condição de que o Botafogo o deixasse sair quando o
primeiro clube grande quisesse contratá-lo. Sem receber
maiores detalhes, ele sabia do acordo de cavalheiros com o
São Paulo, mas esperou pacientemente — e em vão — para
que o clube fizesse algum movimento.
O Brasil passou a primeira metade de 1978 focado na
Copa do Mundo da Argentina, e, quando o torneio terminou,
a atenção se voltou para os jogos decisivos da primeira
divisão do Campeonato Brasileiro, em que o Guarani bateu
o Palmeiras e se tornou o primeiro clube do interior a
ganhar a competição. O bom desempenho do Palmeiras
justificou o fato de o clube não estar tão interessado em
novas contratações, e o Corinthians, que tinha investido
fortunas em alguns jogadores nos dois anos anteriores,
nunca foi realmente considerado um candidato. O caminho
estava aberto para o São Paulo selar o acordo.
Entretanto, o clube da capital tinha de vender jogadores
antes de comprar, e esperava receber o dinheiro
proveniente da transferência mais comentada do ano, a ida
de Chicão para o Corinthians. O clube alvinegro estava atrás
do forte meio-campista havia meses e, no começo de
agosto, finalmente parecia estar pronto para contratá-lo.
Aos 29 anos, jogador da seleção, Chicão sabia que aquela
talvez fosse sua última chance de uma negociação lucrativa
e queria sua recompensa — receberia 15% do valor do
contrato —, além da oportunidade de brilhar em um time
que parecia estar a caminho de grandes objetivos. Além
disso, seu estilo incansável tinha tudo para agradar a
torcida do Corinthians.
Antônio Leme Nunes Galvão, o presidente do São Paulo,
conversou com Vicente Matheus, presidente corintiano, para
tentar finalizar o acordo. Os dois dirigentes marcaram um
almoço no restaurante do Jockey Club, que ficava no nono
andar e oferecia uma vista espetacular da cidade. Matheus
era um showman, famoso pela filosofia simples de vida e
por sacadas hilárias, e sua versão do que aconteceu faz
parte do folclore do futebol.
Depois de Galvão concordar em vender Chicão ao clube
rival, Matheus disse que foi embora do restaurante e
determinou a seu irmão, Isidoro, que acertasse os detalhes
finais. Mas o velho cartola tinha preparado uma armadilha.
Enquanto seu irmão ganhava tempo, Matheus entrou no
carro e dirigiu até Ribeirão Preto. Durante todo o tempo,
Matheus queria Sócrates e usou Chicão como cortina de
fumaça. Quando o São Paulo percebeu o que estava
acontecendo, já era tarde. Matheus e Benedini tinham feito
um acordo para tornar Sócrates jogador do Corinthians.
A história é boa, mas a realidade é mais prosaica. O
técnico do Corinthians à época era contra a contratação de
Chicão, porque a transação daria ao São Paulo o dinheiro
para comprar Sócrates e Ney, dois jogadores que
reforçariam um time rival. José Teixeira tinha assumido o
cargo havia menos de um mês e disse a Matheus para
esquecer a contratação de Chicão, que ele considerava
muito propenso a lesões, e trazer Sócrates. Ele levou
Matheus ao Jockey Club e ficou esperando no carro,
enquanto o presidente corintiano informava Galvão de que
o clube não contrataria mais Chicão. Na manhã seguinte,
por insistência de Teixeira, Matheus dirigiu até Ribeirão
Preto e contratou Sócrates.61
O vice-presidente do Botafogo à época contou uma
história similar. Hamilton Mortari disse que quando a
negociação por Chicão foi interrompida, o presidente do São
Paulo telefonou-lhe para dizer que demoraria mais do que
esperava para arrumar os recursos para contratar Sócrates.
O Botafogo, que estava precisando de dinheiro, ligou para o
Corinthians para saber se havia interesse e, por volta do
meio-dia do dia seguinte, Matheus estava no sítio de Mortari
para fechar os detalhes.62
Matheus não perdeu tempo. Concluiu rapidamente a
transação por 5,68 milhões de cruzeiros (300 mil dólares) e,
no final da tarde, telefonou para Sócrates e seu pai para
discutir — ou melhor, informar — os termos pessoais do
contrato de dois anos. Sócrates tinha solicitado a
transferência e estava preparado para ir a qualquer lugar,
por qualquer preço. Ele recebeu 1,1 milhão de cruzeiros (61
mil dólares) de luvas, mas ingenuamente aceitou a primeira
oferta de Matheus com salários de 30 mil cruzeiros (1.667
dólares) por mês no primeiro ano e 45 mil cruzeiros (2.500
dólares) por mês no segundo.
Foi um erro de principiante que custaria caro. O salário
era apenas 2.500 cruzeiros (140 dólares) maior do que ele
recebia no Botafogo. Sócrates não apenas deixou de
considerar o maior custo de vida na capital do estado, como
também se esqueceu de que não pagava aluguel para
morar em Ribeirão Preto, pois vivia numa casa emprestada
por seus sogros, que o ajudavam a pagar as contas.
O desencontro financeiro causaria vários tipos de
problemas a ele e ao Corinthians nos meses e anos
seguintes, ameaçando continuamente sua permanência no
clube.
Na tarde ensolarada de 4 de agosto de 1978, torcedores
do Corinthians, ansiosos para ver a nova estrela,
aglomeravam-se na entrada do Parque São Jorge, sede e
local de treinamentos do clube. O Corinthians mantinha
longa tradição de fazer soar uma sirene para anunciar a
chegada de uma nova contratação, e quando Sócrates
passou pelo portão numa Mercedes branca, o som foi
acompanhado por fogos de artifício.
A contratação de Sócrates tinha sido uma grande jogada e
os torcedores depositavam muita esperança no jogador que
tinham visto se desenvolver e se transformar numa das
grandes promessas do país. O caso de amor de Sócrates
com o novo clube, porém, começou com indiferença. O
Corinthians tinha demonstrado pouco interesse nele e
Sócrates havia retribuído na mesma moeda, mas como o
garoto pouco atraente que finalmente é convidado a
dançar, Sócrates não prestou muita atenção em quem fez o
convite.
Para ele, aquela era uma relação de negócios pura e
simples. O Corinthians era um empregador como qualquer
outro. Ele precisava estar em um clube grande para
concretizar sua ambição de jogar pela seleção brasileira e o
nome desse clube tinha pouca importância. Perguntado se
era torcedor do Corinthians, sua resposta foi tão chocante
quanto sincera: “Eu nunca torci para o Corinthians”, ele
disse aos repórteres que o cercaram em sua primeira
entrevista. “Ao contrário, eu era um grande torcedor do
Santos.”63
Tamanha sinceridade era inédita e rapidamente gerou
constrangimentos. Sócrates sabia que suas palavras
poderiam exaltar alguns ânimos, mas não conseguia deixar
de responder com honestidade. A reação dos repórteres o
levou a logo esclarecer que sua lealdade agora era
destinada ao Corinthians, e ele assegurou que o amor pelo
Santos ficara no passado e que daria tudo pelo novo clube.
“Enquanto for jogador profissional, vou me dedicar apenas
ao futebol”, ele disse. “Quero conseguir tudo o que não
consegui durante a época em que estava estudando
medicina. O Corinthians e sua torcida vão me ajudar
bastante. A partir de hoje, sou corintiano. Mas nem sempre
fui corintiano: quando eu era garoto, talvez influenciado por
Pelé, era santista. Não vejo a hora de fazer minha estreia. Já
conhecia a torcida do Corinthians como adversária, mas
estou ansioso para conhecê-la de perto, como um dos seus
jogadores. E do Corinthians, quero chegar à seleção
brasileira.”64
Para o Botafogo, por outro lado, o acordo tinha sido
desastroso. Um diretor renunciou ao saber da negociação e
os torcedores ficaram compreensivelmente desapontados. O
presidente Benedini explicou que o clube precisava de
dinheiro para terminar a construção do estádio e disse que
vender Sócrates era a única forma de conseguir os recursos.
Ele pediu aos torcedores que tivessem paciência por um
ano até que o estádio estivesse concluído, e prometeu que
voltaria a investir em jogadores. O diretor financeiro do
Botafogo, Benedito Sciência, que acompanhou Sócrates a
São Paulo, estava indignado. “Nós não queríamos vender o
Sócrates, mas o Matheus insistiu. Nós chegamos a oferecer
500 mil cruzeiros (28 mil dólares) para ele voltar para São
Paulo e esquecer o Sócrates”, disse. “Agora estou aqui e
pensando em oferecer um milhão para ele nos devolver o
jogador.”65
Se era verdade ou apenas um jogo de palavras para
acalmar a torcida, só Benedito podia dizer. Mas ele estava
certo ao avaliar o tamanho da perda de Sócrates para o
clube do interior. No curto prazo, sem ele, o time não
ganhou nenhum dos nove jogos seguintes e não marcou gol
em seis. Vinte e três anos se passariam até que o Botafogo
pudesse sonhar com um título paulista novamente.
O Corinthians era um dos maiores times do Brasil, mas
durante um bom período não fez jus a seu tamanho. O clube
ganhou quinze títulos estaduais entre sua fundação e o ano
de 1954, e depois ficou mais de duas décadas sem tocar em
outro troféu. O torturante jejum finalmente acabou em
outubro de 1977, quando João Roberto Basílio fez o gol
vencedor na série em melhor de três jogos contra a Ponte
Preta. O alívio não foi enorme apenas para os torcedores; foi
uma bênção para Sócrates, recém-chegado a um clube que
tinha exorcizado os fantasmas que o haviam assombrado
por quase 23 anos. A atmosfera no Parque São Jorge era
mais leve e menos exigente do que em qualquer período
desde os anos 1950.
Matheus dispensou metade daquele time vencedor alguns
meses depois da conquista, para desgosto tanto dos
jogadores quanto da torcida. Mas ele evitou qualquer
chance de revolta com uma ida às compras em que o
atacante Píter, do Goiás, o zagueiro Amaral, do Guarani, e o
meio-campista uruguaio Martín Taborda foram contratados.
A chegada de Sócrates foi a mais curiosa de todas, em
parte por ter sido tão repentina. Alguns de seus
companheiros no Corinthians o conheciam de alguns jogos
amistosos ou pelo torneio estadual, mas eles não sabiam
bem o que esperar de um jogador que era obviamente
diferente.
“Ele foi uma contratação estranha”, disse Zé Maria, líder e
capitão do time à época. “O Corinthians queria Chicão. A
gente sabia quem era o Sócrates, mas não era ele que a
gente esperava. A gente esperava alguém mais eficiente,
mas quando o Magrão chegou, ele logo mostrou que tinha
talento e inteligência, e que tinha a solução para alguns dos
nossos problemas.
“Alguns jogadores demoram um pouco para se adaptar,
mas não foi o caso dele; Sócrates logo se encaixou e foi de
vento em popa. A gente sabia que os jogadores mudam
quando vão para um time grande e o Magrão mudou. A
gente sabia que ele era médico e que não ia para a
concentração. E a gente sabia que ele gostava da noite,
como qualquer estudante. Mas a gente também sabia que
ele estava vindo para jogar futebol, não para estudar, então
a gente esperava que ele mudasse.”66
Depois de duas semanas de exames e de idas e voltas a
Ribeirão Preto, Sócrates fez sua estreia contra o Santos, no
dia 20 de agosto, na abertura do Campeonato Paulista de
1978. Mais de 117 mil pessoas lotaram o Morumbi para ver
os dribles de corpo e os passes de calcanhar de Sócrates,
jogando à direita no meio de campo. Ele quase coroou o que
seria uma estreia perfeita, mas foi derrubado antes de
marcar ao tentar passar pelo goleiro na entrada da área. Na
cobrança de falta do próprio Sócrates, a bola saiu por
pouco, e o jogo terminou empatado em 1 × 1. Foi um bom
começo.
Menos de uma semana depois, Sócrates deu um passo à
frente, marcando o primeiro gol e sendo o melhor em
campo na vitória por 2 × 0 sobre a Ferroviária. O
Corinthians continuou invicto nas primeiras seis rodadas,
mas os gols escapavam de Sócrates, que demorou mais oito
jogos para voltar a marcar. A ausência de um meio-campista
defensivo — Taborda foi contratado, mas só estreou em
outubro — forçou o técnico José Teixeira a utilizar Sócrates
num papel mais recuado, longe do gol. Dois outros jovens
estrearam no mesmo dia que ele, e muitos jogadores
estavam atuando fora de posição. Quando as lesões
impediram o atacante Palhinha de jogar em setembro e
outubro, Teixeira pediu que Sócrates atuasse como
centroavante ortodoxo, outra função que não o favorecia. O
time era desequilibrado e inexperiente, e Sócrates foi um
dos que mais sofreram nesse processo de construção.
A lesão de Palhinha era um grande problema. Sócrates
tinha se entendido bem com o ex-atacante do Cruzeiro
naqueles primeiros jogos e a imprensa elogiava o potencial
da dupla para fazer estragos. Teixeira disse que “parecia
que eles jogavam juntos há anos” e havia até algumas
comparações exageradas com Pelé e Coutinho, o dueto do
Santos conhecido pelo entrosamento quase telepático de
mais de uma década antes.
Rápido, astuto e com faro de gol, Palhinha tinha sido um
jogador fundamental no time do Cruzeiro que conquistou a
primeira Copa Libertadores do clube, em 1976, e foi a
contratação mais cara do Corinthians no ano seguinte. Sua
média de um gol a cada três jogos pelo clube o transformou
em um favorito da torcida, e ele foi uma das estrelas do
time que ganhou o Campeonato Paulista de 1977. Palhinha
gostava de correr e Sócrates gostava de dar passes. O
desempenho inicial da dupla prometia grande sucesso à
frente.
Palhinha era também o principal parceiro de Sócrates fora
do campo. Quatro anos mais velho e com um ano de
experiência morando em São Paulo, ele sabia o que era vir
de uma cidade mais pacata para a grande metrópole, e
cuidou de Sócrates. Encontrou um apartamento para o
companheiro no mesmo prédio em que vivia, e eles iam e
voltavam juntos dos treinos. Ambos tinham dois filhos e, por
coincidência, suas mulheres tinham o mesmo nome: Regina.
Elas também ficaram amigas, o que rapidamente os tornou
inseparáveis.
“Desde o começo eu tentei ajudar, porque vi que ele tinha
dificuldades em São Paulo”, lembrou Palhinha. “Quando
você vem de uma cidade pequena, como Belo Horizonte ou
Ribeirão Preto, para visitar São Paulo, é uma coisa. Mas
quando você vem morar aqui… Há pessoas que moram em
São Paulo há anos e não conhecem São Paulo. É difícil se
adaptar e se acostumar quando você chega. Eu disse a ele:
‘Sócrates, você está chegando e, se precisar de uma ajuda,
tem um apartamento para alugar no meu prédio. Vamos dar
uma olhada’. E ele gostou. Eu morava lá fazia um ano,
então ajudou. Nós aprendemos juntos. Ele tinha uma ótima
memória. Aprendia um caminho até o clube e me ensinava,
e eu aprendia alguma coisa e ensinava a ele.
“Quando ele era seu amigo, era de verdade, e nós nos
demos bem, no aspecto familiar e como jogadores. Eu
joguei com muitos atacantes e o jeito como me relacionei
com Sócrates foi quase perfeito. Isso ajudava muito. Foi o
melhor momento da minha carreira. Nessa época, a gente
estava atravessando a nossa melhor fase.”67
Não há nada de que jogadores gostem mais do que jogar
com companheiros inteligentes, e os que atuavam ao lado
de Sócrates não eram diferentes. Mas depois do apito final,
quando voltavam ao vestiário, as coisas ficavam um pouco
mais complicadas. Sócrates era claramente diferente da
maioria dos jogadores do time e sua chegada alterou a
dinâmica do grupo.
Não era só uma questão de parecer diferente. Não era
nem mesmo porque ele se sentava sozinho e lia livros. O
técnico não sabia direito como lidar com ele e, confuso com
sua presença, se dirigia a Sócrates usando um português
formal, enquanto falava com os demais de maneira mais
simples. Seus novos companheiros o achavam reservado e
até mesmo distante, e ficavam perplexos por seu desprezo
pela própria aparência. Sócrates quase sempre usava
calções e sandálias havaianas sob o calor massacrante de
Ribeirão Preto e não demonstrava nenhum interesse não
apenas por moda, mas por roupas. Ele manteve esse estilo
descompromissado em São Paulo e se apresentava para
treinar de camisetas e calções amassados, e usando tênis
velhos com solas descoladas. Como é comum no ambiente
de vestiários, seus companheiros jogavam seus tênis no
banheiro e queimavam suas cuecas, porque eram muito
velhas. “Ele não estava nem aí”, disse o goleiro Jairo. “Pedia
os chinelos do Paulo, o roupeiro. Colocava no pé e ia
embora.”68
Ele também não tinha medo de viver como queria, e
continuou com a estratégia, aperfeiçoada no Botafogo, de
não treinar pela manhã após uma noite mais pesada.
Sócrates frequentemente saía com amigos após os jogos ou
os convidava para ir à sua casa, onde bebiam até de
madrugada. Na manhã seguinte, seu corpo estava dolorido
por causa do esforço do jogo e sua cabeça estava confusa
por causa das aventuras posteriores. Ele inventava
incômodos e dores e passava a manhã na cama de
massagem ou na sauna.
Uma característica que confundia — e muitas vezes
irritava — seus companheiros era sua honestidade. Em um
de seus primeiros jogos pelo Botafogo, o árbitro marcou um
pênalti em Sócrates e ele surpreendeu os repórteres ao
dizer, depois do jogo, que a decisão tinha sido errada. Seus
companheiros não ficaram satisfeitos e seu pai disse que
ele corria o risco de nunca mais ter um pênalti marcado a
seu favor. A sinceridade, no entanto, também o ajudava. Ele
nunca discutia com árbitros porque sabia que não
adiantava, e nunca levou um cartão vermelho na carreira.
“Ele sempre foi muito correto”, disse Basílio. “Tem jogador
que simula algumas coisas dentro de campo, mas é o
aprendizado que ele tem. O Magrão não tinha isso. O
Magrão jogava sempre em pé. Dificilmente você via o
Magrão cair. Quando caía, era falta. Todas as quedas do
Magrão dentro de campo eram falta em cima dele. Caso
contrário, o cara podia chegar firme nele e ele ficava
sempre em pé, sabia muito bem como proteger a bola. Ele
não usava essa manha que outros jogadores usavam.”
Sócrates pode não ter sido um malandro no futebol, mas
poucos homens eram tão “lisos” quando o assunto era
mulher. Seu charme e o olhar sempre interessado lhe
garantiam uma boa quantidade de flertes, mas seu sucesso
com as mulheres se devia mais à sua fama e carisma do
que a qualquer atributo físico ou de indumentária. Ele era
desengonçado e despenteado, talvez até mesmo feio, mas
os apelidos desagradáveis que seus companheiros lhe
davam não o incomodavam de forma alguma. Uns o
chamavam de “dez pras duas”, por causa do jeito estranho
de andar. Seus amigos mais gentis no Botafogo o
chamavam de “Magrão”, enquanto os apelidos menos
elogiosos iam de “Caveira” a “Ducha”, porque seu rosto
cheio de marcas lembrava um chuveiro.
Sócrates simplesmente ria dos insultos, tranquilo pelo fato
de que não precisava estar bonito para se dar bem. Ele
tinha uma aura e uma franqueza a respeito de si mesmo
que a maioria dos outros jogadores não possuía. Mulheres
mais velhas enxergavam essas características como uma
vulnerabilidade e tentavam cuidar dele, enquanto as mais
jovens eram seduzidas por sua sinceridade e atitude
despreocupada perante a vida.
“Era impressionante”, contou Zé Bernardes. “Eu saía com
ele e você precisava ver as mulheres. Ele era feio pra
caramba, mas as mulheres que ficavam olhando…”
Como muitos homens latino-americanos de sua idade,
Sócrates perdeu a virgindade com uma prostituta em uma
das zonas de meretrício espalhadas pelas grandes cidades
brasileiras. Menores de idade eram proibidos de entrar nos
bares e prostíbulos e a polícia costumava proteger a área a
cavalo ou em viaturas. Sócrates tinha catorze ou quinze
anos e seu primeiro encontro sexual foi tenso e rápido. “A
experiência não foi das melhores, não…”, ele contou em
entrevista à Playboy, em 1979. “A tensão, os carros da
polícia por perto. Imagina o clima de instabilidade
emocional. Um garoto… A primeira vez…”69
A experiência deixou cicatrizes, mas foram superficiais.
Sócrates admitia que o apelo de conquistar mulheres era
forte o bastante para que ele procurasse a companhia delas
com frequência, e não apenas por sexo. “É um ambiente de
que eu gosto”, ele confessou mais tarde, sobre os
prostíbulos. “Eu gosto de putaria, eu gosto de puta, eu
gosto de… São pessoas extremamente interessantes, eu
sempre gostei de bater papo e tal. Sempre me envolvi de
alguma forma.”70
Ele não era o único, e os jogadores do Botafogo
costumavam ir com frequência aos mesmos bares onde
Sócrates tinha perdido a virgindade alguns anos antes.
Vários deles eram conhecidos das garotas — muitas eram
estudantes tentando fazer dinheiro para pagar a faculdade.
Como clientes, eles eram tão bons que quando as garotas
descobriam que eram jogadores de futebol, viravam
torcedoras e até apareciam nos treinamentos para vê-los.
Quando os treinos terminavam, elas ficavam na porta de
saída dos jogadores, esperando pela chance de um
encontro. Quando a presença delas era muito evidente e os
contatos se tornavam escandalosos, os diretores do
Botafogo resolviam o problema e faziam as garotas se
afastarem.
Sócrates gostava de uma prostituta em especial. Numa
noite de bebedeira, ele chegou a escalar o muro do bordel e
a gritar o nome dela. Levou uma bronca da cafetina, que
disse que a preferida de Sócrates estava com outro cliente.
Ele tinha casos com estudantes e mulheres que conhecia
em bares, mas conseguia mantê-los com discrição. As
pessoas do futebol sabiam desses relacionamentos, que
nunca eram divulgados por causa de um código de conduta
que prevalecia. Muitos repórteres eram amigos dos
jogadores e ninguém tinha interesse em escrever sobre
esse tipo de coisa. Além disso, Sócrates nunca falava sobre
suas conquistas, mesmo quando os casos já tinham se
encerrado.
“Ele não era do tipo que ficava desfilando com mulher,
falando de mulher”, disse Alberto Helena Júnior, que
testemunhou algumas dessas ocasiões e conhecia os
jogadores e técnicos dos anos 1970 melhor do que qualquer
um. “No fundo, no fundo, ele era um tipo muito romântico,
no sentido pleno da palavra, na visão do mundo, na relação
com os amigos, com as coisas, com a política. Ele era
extremamente romântico, idealista. Não era um tipo
galanteador, aquele cara que gosta de se exibir, mostrando
a mulher, estou com essa, com aquela, comi, estou a fim
daquela… Não tinha muito esse negócio, não. Ele
conversava muito sobre política, música, sobre livros,
futebol, mas pouco sobre mulher.”71
As farras, surpreendentemente, tiveram pouca influência
em sua vida pessoal e profissional. As infidelidades
continuaram depois que Sócrates se mudou para São Paulo,
mas sua mulher não sabia ou não queria saber, e ele ainda
era jovem o suficiente para ser capaz de beber até de
madrugada e acordar cedo para ir treinar.
“Ele chegava para mim e falava: ‘Meu irmão, vamos dar
uma saidinha à noite’, lembrou Arlindo, parceiro de Sócrates
no campo e na noite. “Como eu não era casado, a gente
saía muito junto. A gente saía com a Regina, a mulher dele.
Só que tinha uma hora que ela não aguentava mais e
falava: ‘Arlindo, me leva embora, me leva embora porque
ele vai ficar mais um pouco, eu sei que ele vai ficar’. Eu
levava a Regina embora e ele ficava. Aí eu voltava, dava
uma hora, uma e meia, e eu falava: ‘Magrão, vamos
embora, velho, amanhã tenho que treinar’. Ele dizia assim:
‘Deixa para lá. Amanhã você põe um chinelinho e nós
vamos pra enfermaria’. Eu dizia: ‘Você pode fazer isso, eu
não posso’. Eu não tinha os privilégios que ele tinha. Se, por
exemplo, eu perdesse um gol, a torcida ia me encher o
saco. Ele podia perder e a torcida não falava nada. Ele fazia
uma jogada errada e cinco boas depois. Não tem como você
vaiar um jogador desses.”72
Sócrates se livrava dessas transgressões porque, como
Arlindo e todo mundo sabia, ele resolvia os jogos em campo.
Isso não mudou no Corinthians e ele não teve grandes
dificuldades para manter o mesmo comportamento.
Terminou sua primeira temporada com 25 gols em 52 jogos
e confirmou o que se esperava dele. A próxima missão era
fazer a mesma coisa na seleção brasileira. Ele não esperaria
muito. Seu primeiro sonho futebolístico estava prestes a se
realizar.
Capítulo 5
[O Corinthians] era uma coisa muito agressiva para mim, eu estava num
processo, vinha mudando e levando porrada que eu nunca tinha levado…
Isso aí é um caminhão passando por cima de você o tempo todo, todo dia.
Mas aí você vai, devagarinho, vai criando vínculos, criando relações,
sentimentos e tal…
Sócrates

Quando o Corinthians jogava contra o Flamengo, Zico


provocava Sócrates chamando-o de “Frankenstein”.
Sócrates respondia com “Baixinho”. Zico, de 1,76m, rebatia
que “tamanho não importa”.73
Era provocação, mas uma provocação amistosa e os
astros dos dois maiores clubes do Brasil forjaram uma
relação que ultrapassou o campo de futebol. A primeira vez
que se cruzaram foi em junho de 1977, quando o Brasil
enfrentou a seleção paulista, no Morumbi. Zico já tinha treze
jogos pela seleção brasileira e era o homem ao redor de
quem o time seria construído por quase uma década. O
craque do Flamengo estava ansioso para se encontrar com
aquele rapaz de aparência estranha sobre o qual tanto
falavam, e que gerava manchetes jogando pelo Botafogo de
Ribeirão Preto. Eles sentiram uma afinidade imediata ao
conversar antes e depois do empate em 1 × 1.
“Bastou aquela partida”, Zico disse, anos depois. “Eu
estava diante de um grande craque, sem dúvida nenhuma.
Aquela antevisão dos lances, de saber para onde os
companheiros iam se deslocar. Ali, ele conquistou minha
admiração.”
Uma relação de verdade, no entanto, só se desenvolveu
em 1979, quando o técnico Claudio Coutinho começou a
reconstruir a seleção após uma infeliz Copa do Mundo na
Argentina. Os anfitriões ganharam um torneio manchado
para sempre por acusações de manipulação dos resultados
e, como único time invicto, o Brasil não viu problemas em
se considerar o “campeão moral”.
Mas a seleção brasileira não tinha um técnico em tempo
integral, e Coutinho se dedicou a seu clube, o Flamengo,
enquanto o Brasil passava onze meses sem jogar depois do
terceiro lugar na Argentina. Quando o time retornou à ativa
para uma série de três amistosos em maio de 1979,
Coutinho convocou Sócrates, o lateral do Flamengo que
gostava de atacar, Júnior, e Éder, ponta-esquerda de 21
anos que colecionava gols pelo Grêmio.
Sócrates diria mais tarde que Coutinho foi um dos
melhores técnicos que conheceu, mas ambos pareciam ter
pouco em comum. Coutinho era um capitão do exército que
nunca havia jogado futebol profissional. Conseguiu uma
oportunidade por causa de suas conexões militares — seu
pai era general — e a agarrou com as duas mãos. Foi para a
Copa do Mundo de 1970, no México, como preparador físico
e, junto com Carlos Alberto Parreira, capacitou o time para
jogar na altitude e sob forte calor.
Depois, Coutinho trabalhou como supervisor na seleção
peruana, e voltou ao Brasil para ser o coordenador técnico
de Zagallo na Copa do Mundo de 1974. Após um curto
período na França com o Olympique de Marselha, foi
convidado para dirigir o Brasil nos Jogos Olímpicos de 1976,
em Montreal. Embora não tivesse experiência como técnico,
Coutinho levou o time às semifinais, quando o Brasil perdeu
para uma seleção polonesa supostamente amadora, que
contava com futuros grandes nomes do esporte como Jan
Tomaszewski, Grzegorz Lato e Kazimierz Deyna. Foi o
melhor desempenho do Brasil nas Olimpíadas até então. Ele
acabou contratado pelo Flamengo pouco depois e causou
surpresa quando foi anunciado para substituir Osvaldo
Brandão como técnico da seleção brasileira, em 1977.
Como muitos torcedores de futebol naquela época,
Coutinho havia ficado maravilhado com o futebol total da
Holanda, e queria que o time praticasse uma versão tropical
da novidade, chamada de “losango móvel”. A formação
contaria com um diamante giratório no meio de campo e ele
via uma parceria entre Zico e Sócrates como parte
fundamental da ideia. Coutinho os elogiou durante os
primeiros meses de 1979, até mesmo comparando Sócrates
a Tostão como um jogador capaz de entrar e sair da área,
trocando de posição com Zico — como Tostão fazia com
Pelé.
Essa perspectiva encantava Zico e Sócrates, cujo respeito
mútuo foi selado quando a Placar, revista semanal de
esportes, os reuniu antes dos amistosos e perguntou o que
eles traziam para a nova seleção brasileira.
Sócrates previu que eles formariam uma “ótima dupla” e
que inventariam a “criatividade rotativa”.
“Sua capacidade para drible curto e passe de média
distância cai bem dentro do meu estilo de tabelinhas curtas,
deslocamentos rápidos”, disse Sócrates. “Formaremos um
ataque móvel, envolvente. De início, você ocuparia mais a
faixa central do campo e eu iria mais pelas laterais e,
durante a partida, nos movimentaríamos. Formaremos uma
seleção livre, solta, descontraída, que devolveria a alegria e
a confiança ao povo.”74
“E nós dois nos entrosaríamos rapidamente”, Zico
concordou. “Nosso futebol é parecido, se completa —
técnica é com a gente mesmo. Vai dar gosto fazermos
tabelinhas como as que você faz com o Palhinha. Adoro
jogar com toques rápidos e curtos, daqueles que o beque
nem vê por onde passa a bola.”
“Três coisas me surpreendem nele: a inteligência com que
executa as jogadas; o fato de ser alto e, ao mesmo tempo,
rápido; e, por fim, sua mobilidade. Ele aparece em vários
lugares do campo, sempre criando jogadas.”75
“Nós vamos fazer muitos gols na seleção”, Zico
acrescentou, confiante. “Difícil mesmo será ir até aí em
cima para abraçar você.”76
A série de amistosos foi um aquecimento para a Copa
América e Sócrates finalmente teve a chance que esperava
havia tanto tempo. Estava seguro de que tinha o talento
para ser bem-sucedido no nível internacional e só precisou
de cinco minutos, contra o Paraguai, para mostrar o que era
capaz de fazer, quando passou pelo lateral e cruzou para
Éder marcar. Zico fez o segundo, de pênalti, e Sócrates
novamente foi o garçom, com um passe pelo meio da
defesa para Nilton Batata tocar por cobertura. O Brasil
venceu por 6 × 0, mas a diferença poderia ter sido muito
maior e Sócrates foi merecidamente apontado como um dos
melhores em campo.
Ele não teria de esperar muito até a oportunidade
seguinte, quando o Brasil enfrentou um inexperiente time
do Uruguai no Maracanã, duas semanas depois. Sócrates
estava novamente no time titular e marcou dois gols na
vitória por 5 × 1. O primeiro foi um lindo toque com a lateral
do pé, após dominar com o peito um passe de Falcão, e o
segundo foi de cabeça, de bem perto. Raúl Bentancor, o
técnico do Uruguai, escolheu Sócrates e Falcão como os
melhores em campo e fez vários elogios a eles.
O jogo mais interessante, no entanto, foi o terceiro, contra
um rival europeu pela primeira vez. O Brasil tinha feito
planos para jogar contra a Polônia, mas os poloneses
desistiram e um amistoso contra o Ajax — que fazia uma
turnê pela Argentina — foi organizado para resolver o
problema. Os jogadores brasileiros só viam os times
europeus na Copa do Mundo ou em raros amistosos, de
modo que os encontros com adversários tão exóticos eram
muito esperados.
O Ajax era o campeão holandês e da Copa da Holanda,
mas já não tinha a equipe de alguns anos antes e o Brasil
venceu com facilidade, por 5 × 0. Sócrates teve outra
excelente atuação, marcando dois gols e comandando o
meio de campo antes de ser substituído aos dezessete
minutos do segundo tempo, por causa de uma pancada no
tornozelo.
Seu primeiro gol no jogo foi particularmente memorável
porque teve de tudo — elegância, habilidade e precisão.
Com menos de nove minutos, Falcão pegou a bola já no
campo de ataque e fez um longo passe que cruzou o
gramado, da direita para a esquerda, até Sócrates, que
estava a trinta metros do gol e posicionado entre dois
defensores. Correndo em direção ao gol, Sócrates dominou
com o peito e deixou a bola quicar antes de driblar um dos
zagueiros com um toque de pé esquerdo. Ele fingiu que ia
chutar, enganando o segundo defensor e preparando a
finalização com um movimento para a direita. Da entrada
da área, e com outro holandês chegando para desarmá-lo,
Sócrates bateu no canto esquerdo baixo do goleiro, com
incrível precisão.
Foi um lindo lance, que coroou uma grande atuação para
surpresa dos holandeses, que nunca tinham ouvido falar
dele. “Eu não esperava que este número 9 fosse tão bom”,
disse Cor Brom, o técnico do Ajax, após o jogo. “Por ser
muito alto, ele parece desajeitado. Mas, na verdade, é um
jogador muito útil para seu time. Lança muito bem e se
desloca com perfeição.”77
O jogo também foi memorável por enfatizar as rivalidades
mesquinhas que caracterizavam o futebol brasileiro na
época. O Brasil sempre girou em torno do eixo Rio-São Paulo
e as duas cidades competiam entre si constantemente.
Os torneios estaduais ainda eram mais importantes do
que o Campeonato Brasileiro, e a cobertura de televisão era
regional — de modo que os telespectadores raramente viam
jogos de fora de seus estados. Isso significava que os
torcedores só conheciam os jogadores dos times locais e
muitos se recusavam a acreditar que os “de fora” eram tão
bons como se dizia. Muitos na imprensa de São Paulo, por
exemplo, achavam que Zico era superestimado, que fugia
de divididas mais fortes e só jogava bem no Maracanã. Zico
marcou os dois últimos gols da vitória por 5 × 0 sobre o
Ajax, mas o operador do placar eletrônico do estádio do
Morumbi agiu como se nada tivesse acontecido.
“Estava 3 × 0 para nós”, lembrou Zico. “Eu marquei um
gol e o placar eletrônico não mudou. Marquei outro e o
placar continuou ignorando a minha presença. Até o final, o
placar mostrava 3 × 0. Eu não sei por que os responsáveis
pelo estádio não tiveram a brilhante ideia de contar meus
gols para o Ajax.”78
A imprensa dos dois estados começou a estimular um
debate — e até uma rivalidade — entre as qualidades das
duas estrelas. Sócrates e Zico eram os mais empolgantes
jovens jogadores a aparecer desde que o Brasil tinha
vencido a Copa do Mundo no México e, embora fossem
completamente diferentes — um era alto e desajeitado, o
outro era compacto e ágil —, os papéis que executavam não
eram tão distintos.
Ambos eram atacantes modernos que ofereciam uma
alternativa instigante aos centroavantes estáticos que ainda
estavam na moda. Eram letais dentro da área, mas faziam a
maior parte do trabalho mais longe do gol, trocando passes,
cobrando faltas de todos os ângulos e recuando para
conectar o meio de campo e o ataque.
Em 1979, existiam poucas dúvidas de que Zico era dotado
de mais habilidades, como o próprio Sócrates dizia para
evitar o acirramento de uma rivalidade. Embora fosse
apenas onze meses mais velho, Zico, aos 26 anos, já tinha
jogado uma Copa do Mundo e era considerado o principal
nome da seleção de Claudio Coutinho. A revista Placar
calculou seu valor de transferência na casa de 2,4 milhões
de dólares, mais do que o dobro da quantia atribuída a
Sócrates.79
Mas as atuações de Sócrates pelo Brasil chamaram a
atenção de todo o país para seu futebol, gerando
encantamento por seu estilo dentro e fora de campo. Uma
pesquisa feita em cinco das maiores cidades do país
mostrou uma população praticamente dividida quanto à
indicação sobre qual dos dois era o melhor. Sócrates ganhou
em Recife e Salvador; Zico foi o preferido em Belo
Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Na média, 54% dos
torcedores entendiam que Zico era o jogador mais
completo.80
Uma semana depois, outra pesquisa da mesma revista
perguntou a mais de dois mil torcedores de dezessete
grandes clubes qual dos dois eles queriam que seu time
contratasse. As torcidas de nove clubes preferiram Sócrates;
as de oito escolheram Zico.
Diferentemente de muitos jogadores que vestiram a
camisa amarela pela primeira vez, Sócrates não mostrou
nenhum receio e seu desempenho lhe deu ainda mais
confiança. Um jogador mais assertivo retornou ao Parque
São Jorge após a parada para os amistosos da seleção, e
seus companheiros no Corinthians notaram a mudança.
Jogar pelo Brasil foi um momento transformador para ele,
por perceber que era bem mais do que suficientemente
capaz de atuar ao lado daqueles que já tinham
representado o país diversas vezes.81
Sócrates perdeu os dois jogos seguintes da seleção por
causa de uma lesão muscular, em julho, mas voltou para
partidas importantes da Copa América no mês seguinte. O
torneio era diferente do formato atual, que se parece com
uma versão em menor escala da Euro ou da Copa do
Mundo. À época, a Copa América era disputada com
confrontos em casa e fora, ao longo de cinco meses entre
julho e dezembro.
O Brasil ficou num grupo com Bolívia e Argentina, e
perdeu o primeiro jogo, em La Paz, por 2 × 1. Depois venceu
a Argentina pelo mesmo placar, no Maracanã, no começo de
agosto. Sócrates se recuperou da lesão para jogar na vitória
por 2 × 0 sobre a Bolívia, no Morumbi, em 16 de agosto,
mas foi o jogo contra a Argentina, cinco dias depois, em
Buenos Aires, que ficou em sua memória.
Ele nunca tinha jogado fora do Brasil e foi uma
experiência assustadora, em todos os aspectos. A Argentina
vivia sob uma terrível ditadura militar, com sequestros
acontecendo à luz do dia, tortura e assassinato de
opositores. Números oficiais registraram 8961 pessoas
mortas ou desaparecidas, embora a realidade esteja mais
próxima de 30 mil. Foi nessa atmosfera que o Brasil jogou
numa noite fria e ventosa na capital argentina, precisando
de um empate para se classificar às semifinais.
Sócrates ficou impressionado com as patrulhas da polícia
dentro e fora do estádio, e as ensurdecedoras vaias com as
quais a seleção foi recebida quando entrou em campo
definitivamente não o acalmaram. Mas quando o jogo
começou, ele rapidamente mostrou que podia suportar as
pressões. Fez o primeiro gol, de cabeça, aos dezessete
minutos, e assumiu uma posição de liderança quando Zico
foi expulso, dez minutos depois, por causa de uma briga
com Américo Gallego.
Daniel Passarella empatou para os anfitriões um pouco
antes do intervalo, mas Sócrates continuou bem, e, quando
o Brasil teve um pênalti marcado a seu favor, Coutinho
ordenou que ele batesse. A decisão foi uma surpresa total,
porque não havia um plano B para quando Zico estivesse
ausente, mas Sócrates manteve-se inabalável e marcou o
gol duas vezes, porque o árbitro mandou voltar a cobrança
por causa de invasão à área. Rubén Díaz fez 2 × 2 quando
faltavam dezenove minutos, mas o empate era suficiente
para o Brasil e Sócrates superarem outro teste.
“É claro que eu já tinha passado por situações
estressantes como aquela, mas jamais com tal magnitude.
Em Buenos Aires, seria muito diferente: uma experiência
nova e assustadora. Mas não havia como fugir: era tudo ou
nada. Peguei a bola, coloquei-a sob meu braço e,
lentamente, me encaminhei para a área do inimigo. A
multidão me vaiava, xingava e tudo o mais que fosse
possível naquele momento para me enervar. Quando notei a
torcida calada, e a bola no fundo das redes, pude entender
que emoção não me faltaria na profissão que havia
escolhido.”82
Em setembro de 1979, o general João Batista Figueiredo
fez uma visita ao Corinthians como convidado e foi recebido
com sonoros aplausos. Dias antes, o novo presidente tinha
assinado um decreto de anistia que daria a liberdade aos
primeiros presos políticos no Brasil. eLivross que tinham
deixado o país para escapar da perseguição também
tiveram permissão para voltar ao país sem medo de serem
presos. Figueiredo foi convidado a ir ao Parque São Jorge
para celebrar o sexagésimo nono aniversário do clube.
Quase duas mil pessoas o aplaudiram de pé quando ele
chegou para um almoço cujo cardápio era salada Waldorf e
supremo de frango.83
Figueiredo disse aos presentes que torceu pelo
Corinthians por toda a vida, em seguida ajudou Vicente
Matheus a apagar 69 velas e, então, cumprimentou o
jogador que ele mais queria conhecer. O presidente tinha
requisitado especialmente uma camisa assinada por
Sócrates e o jogador, que numa entrevista alguns dias antes
havia dado nota dez ao desempenho do ex-chefe do serviço
secreto como comandante da ditadura, ficou feliz por
realizar seu desejo.84
O futebol sempre foi usado pelo regime, especialmente
depois de 1970, quando apresentou o triunfo na Copa do
Mundo como uma conquista para o “Brasil Grande”. O
primeiro Campeonato Brasileiro foi organizado pela CBD no
ano seguinte como um gesto nacionalista, destinado a unir
o país. A competição cresceu de dezenove para 94 times
oito anos depois, principalmente porque o governo militar
entendia que acrescentar clubes menos conhecidos ao
campeonato aumentaria o apoio dos torcedores. Um slogan
popular à época fazia referência a essa iniciativa pelo
partido do governo, a arena (Aliança Renovadora Nacional):
“Onde a arena vai mal, um time no Nacional”. Quando mais
clubes foram adicionados ao longo da década, o slogan foi
alterado: “Onde a arena vai mal, um time no Nacional; onde
vai bem, um time também”.
Entretanto, embora o torcedor médio fosse proveniente da
classe trabalhadora, a maioria das pessoas que frequentava
estádios era tão desinteressada por política quanto os
jogadores, e somente em 1979 — não muito depois de
metalúrgicos lançarem as primeiras greves gerais contra o
regime — o esporte e a política chegaram juntos às
arquibancadas. Figueiredo tinha revogado o Ato Institucional
Número 5, um dos mais severos decretos vigentes até
então, e torcedores do Corinthians se sentiram encorajados.
Numa noite de fevereiro no Morumbi, um pequeno grupo
exibiu uma faixa que tinha entrado secretamente no estádio
para um jogo contra o Santos. A faixa dizia: “Anistia ampla,
geral e irrestrita”. Foi o primeiro sinal de que torcedores de
futebol estavam dispostos a assumir uma posição contra o
regime.
Sócrates não fez comentários sobre a faixa depois de
marcar um gol na vitória por 2 × 1 diante de 109 mil
pessoas. Mas Figueiredo certamente a viu, e um protesto
público tão ousado sem dúvida teve papel importante em
sua decisão de assinar a Lei da Anistia em agosto daquele
ano, o primeiro passo para o que foi oficialmente descrito
como uma “abertura lenta, gradual e segura” da política
brasileira no retorno à democracia. Ele não apresentou um
cronograma e suas promessas foram recebidas com
ceticismo, mas a linha dura estava definitivamente
afrouxando. A economia brasileira estava perdendo força e
os efeitos da crise global do petróleo se tornavam cada vez
mais evidentes. A moeda, o cruzeiro, foi desvalorizada cinco
vezes contra o dólar nos primeiros três meses de 1979, e a
inflação estava em quase 50% e ganhando velocidade. A
falta de petróleo significava postos de gasolina abertos por
períodos limitados, e greves de trabalhadores por aumento
de salários para que pudessem suportar a inflação eram
cada vez mais comuns. Os generais perceberam que as
coisas estavam piorando e precisavam de uma saída.
Como muitas pessoas, Sócrates se esforçava para não se
envolver em política. Ainda era politicamente ingênuo —
desinteressado, acima de tudo —, mas havia um tema que
ele não podia ignorar. Os jogadores brasileiros eram de
certo modo “escravos” cujas carreiras eram controladas
pelos clubes que os empregavam, e Sócrates não conseguia
entender por que seus companheiros permitiam que
técnicos e diretores os explorassem.
O assunto chamou sua atenção em 1976, quando o meio-
campista veterano Lorico chegou ao Botafogo de Ribeirão
Preto. Aos 37 anos, Lorico tinha jogado com alguns dos
maiores craques de todos os tempos, como Pelé e Bellini, o
capitão do Brasil na conquista da Copa do Mundo de 1958.
Sócrates tinha 22 anos, mas ficou chocado ao ver Lorico ser
tratado como um “garoto grande” sem se importar. O
tratamento a Sócrates era melhor porque ele era da classe
média e educado, e seu pai era conselheiro do clube e tinha
influência na comunidade. Poucos de seus companheiros
contavam com as mesmas vantagens, e sabiam que, caso
se manifestassem contra o sistema, suas carreiras estariam
em risco. O Botafogo poderia simplesmente mandá-los para
outro clube, ou, pior, recusar-se a negociá-los e deixá-los à
margem.
Sócrates acreditava que esse tratamento era intencional,
para manter os jogadores na linha. “Eu percebi que era uma
maneira de desrespeitá-los, colocando-os em uma posição
inferior”, ele disse. “Desde o começo, sempre achei que o
tratamento dado aos jogadores tinha o objetivo de reduzir a
sensação de poder que eles poderiam ter em termos de
comunicação.”85
Sócrates identificava a ausência de jogadores com o
passe livre como o principal tema relacionado aos
futebolistas, e ele tentaria, por anos, fazer seus colegas se
conscientizarem da necessidade de mudanças. Ele não se
importava com política, mas se interessava por liberdade
pessoal, e gostaria que seus companheiros fossem mais
independentes. No Botafogo, tentou iniciar conversas sobre
assuntos gerais e economia, mas não teve sucesso e tentou
outra rota. A cada fim de semana na concentração, ele
chegava com um jornal. Sócrates retirava as páginas de
esportes e deixava o resto em cima da mesa como um
convite para que seus colegas se informassem.
“Ninguém mexia no jornal”, lembrou. “Eu disse a eles: ‘Pô,
gente, vocês têm que se informar, crescer como pessoas’.”86
Embora essas atitudes fossem um indício do papel de
liderança que ele assumiria mais tarde, Sócrates ainda
estava muito distante de se tornar o ativista engajado que
geraria manchetes nos anos seguintes. Sua visão de mundo
tinha avançado desde os elogios aos militares em 1976,
mas, mesmo depois de se mudar para São Paulo e passar a
jogar no Corinthians, ele admitia que a mudança de suas
posições políticas ainda estava em curso. Sócrates
continuava acreditando, por exemplo, que jogadores de
futebol não tinham obrigação de assumir posturas relativas
aos temas do cotidiano fora do esporte.
Em um dos incidentes mais surpreendentes, Sócrates e
seus colegas entraram em conflito com Lula, que criticou os
jogadores por participarem de uma partida organizada pelo
governo de Paulo Maluf, no dia primeiro de maio de 1980. O
governo estadual organizou uma festa no Pacaembu e
pagou para que as seleções da capital e do interior se
enfrentassem. A entrada era gratuita e o cachê pelas
aparições foi para o Sindicato dos Atletas, que então era
dirigido por Palhinha. A entidade estava em dificuldades
financeiras e precisava de dinheiro para as ações
trabalhistas de jogadores contra os clubes, e também para
abrir sua própria sede, fora do prédio da Federação Paulista
de Futebol. Mas o jogo aconteceu na mesma hora em que o
Sindicato dos Metalúrgicos organizou um comício com mais
de cem mil pessoas em São Bernardo. O encontro no
estádio da Vila Euclides foi um dos maiores protestos contra
o governo em anos, e os organizadores ficaram irritados
com o sindicato dos jogadores. Lula, que ainda não conhecia
Sócrates pessoalmente, publicamente chamou os jogadores
de “palhaços” e “moleques de calças curtas”.87
“Pelas minhas próprias características, não sou de
reclamar de nada”, disse Sócrates, quando perguntado
sobre seu posicionamento contra injustiças ou se
encorajaria seus companheiros a fazer o mesmo. “Não
adianta querer que eles façam o que não podem. Se alguma
coisa que eu fizesse resolvesse os problemas, eu tentaria.
Mas não resolve. Quando eu acho que não vou conseguir o
objetivo que procuro alcançar, não tento.”88
O mais surpreendente, considerando o homem que viria a
se tornar uma liderança na campanha das Diretas Já, é que
Sócrates ainda era hesitante em relação ao modo como o
Brasil deveria conduzir suas eleições. Ele queria uma
transição rápida do governo militar para uma administração
civil, que gostaria que fosse “um regime socialista, onde
todos tenham os mesmos direitos e deveres”. Mas tinha
dúvidas sobre como chegar lá. “Existem situações em que
as indiretas são necessárias”, ele disse em setembro de
1979. “É o caso da presidência da República atualmente.
Porque, com eleições diretas, poderíamos ter presidentes
sem nenhuma condição de ocupar o posto.”
A falta de interesse de Sócrates pela política formal até
então era uma bênção disfarçada. Em 1976, quando ele deu
a entrevista ao Diário da Manhã em que apoiava os
militares, ainda era um jovem talentoso do interior, alguém
que não tinha provado que era bom o suficiente para jogar
em um clube grande. As pessoas dentro do futebol o
enxergavam com desconfiança por causa de sua educação
e seu estilo de vida boêmio e despreocupado. Se
soubessem que ele também era um progressista radical,
sua carreira poderia ter acabado antes de começar.
Havia boas razões para acreditar que uma visão de
mundo liberal e articulada poderia ser fatal para a carreira
de um jogador. No Botafogo do Rio de Janeiro, um meio-
campista criativo tinha sido marginalizado alguns anos
antes, após assumir uma postura pública a respeito dos
direitos dos jogadores. Em 1970, Afonsinho se desentendeu
com Mário Zagallo, então técnico do Botafogo, e foi
emprestado ao pequeno Olaria, como punição. Quando
retornou, seis meses mais tarde, com cabelos compridos e
barba farta, Zagallo disse que o jogador mais parecia um
hippie do que um atleta de futebol, e ordenou que ele
cortasse barba e cabelos. Afonsinho se recusou e foi
perseguido com ainda mais intensidade. O clube não o
escalava para jogar nem o negociava, então ele foi à Justiça
num caso que precedeu o de Jean-Marc Bosman, na Europa,
em 25 anos. Em 1971, Afonsinho ganhou os direitos sobre
seu passe e, embora a decisão não tenha se estendido a
todos os jogadores, ele estabeleceu um precedente tão
importante para seus pares que Pelé famosamente o
chamou de “o único homem livre no país”. Documentários
foram feitos sobre o caso de Afonsinho, livros foram
escritos, e Gilberto Gil compôs uma canção chamada “Meio
de campo”.89
Vicente Matheus, reconhecidamente autoritário, não
tolerava tamanho disparate, e teria pensado duas vezes
sobre contratar Sócrates se soubesse dos desafios que ele
traria ao clube. Imigrante da Espanha que não terminou o
ensino médio, mas cujo tino para negócios ajudou a
pequena pedreira da família a crescer e se tornar uma
empresa que fabricava asfalto e pavimentava ruas, Matheus
era louco pelo Corinthians e atuou como presidente do
clube em um primeiro mandato que foi de 1959 a 1961,
voltando ao poder em 1972. Era ditatorial a ponto de seus
críticos o chamarem de “Idi Amin” (em referência ao ditador
ugandês) e famoso por ser econômico nas negociações de
contratos.90
Sócrates tinha muito respeito pela inteligência e pela
sabedoria de Matheus, mas recebia um dos menores
salários do clube, menos de um quinto do que os jogadores
mais experientes ganhavam. Seu desejo de jogar em um
clube grande o levou a aceitar apenas 30 mil cruzeiros
(1.667 dólares) por mês, e embora ele quase dobrasse esse
valor com os bônus a cada mês, cerca de metade de sua
remuneração era usada para pagar aluguel, com o resto
destinado à babá de seus filhos e a necessidades essenciais
como comida e roupas.
Ele tinha investido as luvas da assinatura do contrato em
títulos de um ano, e conseguia se manter graças a
patrocínios da Topper, de roupas e chuteiras, e da Arapuã,
uma cadeia de lojas que vendia aparelhos eletrodomésticos.
Os tempos eram tão apertados que seu sogro enchia o carro
com compras de supermercado todas as semanas e dirigia
de Ribeirão Preto até São Paulo para ajudá-los.
Sócrates estava voando depois de suas apresentações
pelo Brasil e sentia que o momento era apropriado para
pedir um aumento. Em julho de 1979, procurou Matheus
com uma proposta que entendia ser boa para as duas
partes. Seu contrato ainda tinha um ano de duração e seu
salário estava prestes a ser aumentado para 45 mil
cruzeiros (2.500 dólares) por mês. O valor ainda era baixo, e
Sócrates propôs uma renegociação do acordo para estendê-
lo por mais um ou dois anos. Passaria a ganhar 125 mil
cruzeiros por mês e, em troca, o Corinthians o manteria por
mais tempo. Matheus rejeitou a ideia no ato, e Sócrates saiu
de seu escritório irritado, mas decidido e com um plano.
Pela legislação brasileira da época, a renda de um jogador
no último ano de contrato era utilizada para calcular o valor
de seu passe. Quanto mais ele recebesse, em salários e
aditivos, mais alta seria sua transferência. Sócrates estava
tão bravo com a relutância de Matheus em negociar que
decidiu parar de receber qualquer bônus para, com isso,
diminuir seu valor de mercado. O clube não queria que ele
saísse por pouco dinheiro, e depositava milhares de
cruzeiros na conta de Sócrates todos os meses. E todos os
meses, Sócrates devolvia o dinheiro.
“Foi uma guerra”, ele escreveu anos depois. “Nas
primeiras vezes em que eu me recusara a receber os
prêmios, todo o setor administrativo do clube estranhou,
mas não se deu conta da profundidade daquele gesto. Que
só viria a se tornar público alguns meses depois, quando
eles tentaram me pressionar especulando sobre um
eventual depósito em juízo, o que rechacei de imediato. E
assim foi durante boa parte do segundo ano de contrato.
Como resultado desse simples ato de exercício de um direito
— pouco usual no nosso país, principalmente neste meio —,
passei a representar um perigo para as instituições,
tamanha reação se produziu. Mas o mais importante foi que
eu, naquele momento, possuía um alto grau de valorização
no sistema e um valor relativamente pequeno no mercado
de transferências, o que me possibilitava até pensar em
utilizar alguma forma de viabilizar o resgate da minha
liberdade com recursos próprios, já que havia feito alguns
contratos publicitários que me deram alguma folga
financeira. Além do que, passei uma mensagem clara e
direta a todos os meus companheiros de profissão: que eles
deveriam conhecer melhor os seus direitos explicitados na
legislação vigente na época, que já não eram muitos. O final
desse embate com a direção do Corinthians aconteceu um
ano após o início dos confrontos. Acabei por renovar o meu
contrato com o time por um valor excepcionalmente maior
do que aquele que recebia até então: saltei de um salário
de 26 mil para 1,25 milhão de cruzeiros por mês, o que
correspondia a mais de dez vezes o que havia pleiteado um
ano antes. Como veem, valeu a pena o arrocho.”91
A briga foi muito incômoda para Sócrates e ele diria mais
tarde que foi um momento definidor em sua carreira, o
ponto em que ele percebeu que precisaria “brigar com o
sistema de várias formas” se quisesse viver a seu modo.
Até chegar a São Paulo, Sócrates sempre esteve no
comando do seu próprio destino; mas isso mudou no
Corinthians e fez de seu primeiro ano no clube um período
tenso. Ele enfrentou exigências muito maiores, tanto do
ponto de vista físico quanto mental, e recebendo atenção
muito mais intensa do que imaginava por parte dos
torcedores e da mídia, Sócrates se sentiu à deriva e até
mesmo com medo. Sua timidez o impediu de fazer mais e
ele admitiu que suava frio com a simples ideia de ter de ir
ao banco ou ao correio. Não sabia como falar com pessoas
desconhecidas e reconheceu que, quando jovem, “talvez
tivesse medo do mundo”. Em São Paulo, precisava enfrentar
um punhado de situações novas. Os desafios se
apresentavam diariamente.
Um dos maiores choques foi ter de se adaptar a novas
regras. Ele tinha de treinar todos os dias e passava várias
noites por semana na concentração. Sócrates não era mais
livre para ir e vir como desejava e as horas intermináveis
gastas com pessoas que ele mal conhecia foram um baque.
Ele sentia falta do suporte de sua família e dos amigos de
Ribeirão — sem falar nos churrascos de fim de semana e
nas noites quentes tomando cerveja —, e fazia poucos
esforços para se integrar com seus novos companheiros.
Foi, como Sócrates disse, um período de sua carreira em
que ele nem mesmo tentou se encaixar, e seu impasse com
Matheus o diferenciava ainda mais dos colegas. Ninguém
jamais tinha se recusado a ganhar os “bichos” por vitória e
a posição de Sócrates causou alvoroço. Alguns torcedores
achavam que ele estava afrontando o clube, e não
incomodado com a situação. Passaram, então, a questionar
seu compromisso com a causa.
Sócrates também tinha dificuldades para se adaptar ao
ritmo frenético da vida em sua nova casa, São Paulo, uma
efervescente aglomeração de diferentes municipalidades
em que habitavam milhões de pessoas. Comparada com
Ribeirão Preto, a cidade era assustadoramente
esquizofrênica: ia da modernidade glamorosa à pobreza
rural em questão de quilômetros, e dos tons sombrios ou
monocromáticos a um colorido maravilhoso em poucos
quarteirões. Cheia de edifícios, impessoal, algumas vezes
quente e seca, em outras fria e molhada; os poucos parques
em meio à selva de concreto não conseguiam compensar a
depressiva ausência de espaços ou de paisagens
verdejantes.
Sócrates era um dos rostos mais famosos do país àquela
altura, com críticos e torcedores apaixonados por seu
futebol e sua personalidade honesta. Em setembro, a
revista Placar publicou uma edição especial contando sua
história de vida, e ele também foi o entrevistado do mês da
Playboy, uma rara honraria concedida apenas às pessoas
mais interessantes do país. O ponto negativo é que ele não
conseguia levar seus filhos ao parque por causa do assédio.
Restringiu suas idas ao cinema e ao teatro pela mesma
razão, e até se mudou para uma casa sem telefone porque
seu número foi divulgado e desconhecidos passaram a ligar
para conversar. A pressão era maior do que qualquer coisa
que ele já havia sentido antes e, como muitos trabalhadores
que chegavam a São Paulo vindos do interior, parecia que
as paredes iam se fechando à sua volta. Em setembro, a
coisa chegou a tal ponto que ele pensou em desistir.
“É uma hipótese sobre a qual tenho pensado muito
ultimamente”, disse, em entrevista à Placar. “Em menos de
um ano minha vida sofreu uma transformação radical, que
tem me deixado muito confuso. O futebol está se
convertendo num peso para mim. No Botafogo, eu jogava
pelo prazer e sentia prazer em jogar. O lado profissional era
apenas uma consequência. Hoje, as coisas mudaram. O
Corinthians é muito grande e exige um envolvimento muito
maior. Agora eu sinto cada vez mais o lado profissional de
jogar futebol, e isso me assusta. Entro em campo com a
sensação de obrigação mais forte do que de prazer. Não é o
problema de treinos, concentração, jogos seguidos. Para
isso eu estava preparado. O problema é que há uma
pressão tão grande, um compromisso tão forte, que fica
difícil jogar por simples prazer.”92
“É um processo difícil, porque quero viver minha vida, dar
a atenção que devo à minha família, quero fazer as coisas
que gosto e que já não posso. Não tenho mais direito à
privacidade, não tenho mais direito de dispor de mim
mesmo. Não tenho liberdade para sair de casa, não posso
ficar à vontade em lugar nenhum. Mesmo em minha casa, o
telefone toca o tempo todo com pessoas me fazendo
solicitações de todo o tipo. Estou tentando me reorganizar
para enfrentar essa nova situação. Está difícil, mas quero
colocar cada coisa no seu devido e merecido lugar. Uma
coisa é certa. Se tiver de escolher entre viver minha vida
com minha família e jogar futebol, eu não tenho dúvida.
Paro com o futebol. E não espero nem a Copa do Mundo.”93
A ameaça era genuína — naquele momento, ele não
conseguia enxergar um jeito de aproveitar sua nova vida de
glamour sem perder os benefícios da antiga. Mas isso
também era típico de Sócrates. Ele dizia o que passava por
sua cabeça o tempo todo. A chance de desistir do futebol
antes da Copa do Mundo era quase zero. Ao contrário, como
Claudio Coutinho observou com perspicácia, seu desabafo
“mais parecia um pedido de ajuda”.
Era um pedido exacerbado por sua incapacidade de
conseguir uma sequência de jogos com a camisa branca do
Corinthians. Sua campanha no Campeonato Paulista
começou bem, com três gols em três jogos no início de
julho, mas Sócrates perdeu grandes trechos da temporada
por causa de lesões e compromissos com a seleção, e, de
forma frustrante, tanto ele quanto o time foram
inconsistentes durante a segunda metade do ano.
O Corinthians fez o suficiente para se classificar para a
segunda fase do Paulista como líder de seu grupo, mas não
atuou de forma convincente. Uma derrota para a
Internacional de Limeira no Pacaembu foi a gota d’água
para os torcedores mais devotados. Alguns tentaram chegar
ao camarote da diretoria para tornar suas insatisfações mais
claras a Vicente Matheus.
A fúria era típica do Corinthians, mas bastante imerecida.
Embora o time tenha sido inconsistente no começo do ano,
o desempenho melhorou e levou a uma classificação
confortável para o estágio seguinte da competição. A
decisão dos jogadores de desacelerar o ritmo e preservar
forças para a segunda fase, no entanto, não agradou aos
torcedores que exigiam cem por cento de esforço em todos
os jogos, assim como um retorno mais perceptível dos 20
milhões de cruzeiros investidos em novos jogadores. O
técnico José Teixeira foi um dos principais alvos de protesto
— o mesmo aconteceu com seus filhos — e pediu demissão.
Sócrates também foi criticado. Depois dos deslumbrantes
primeiros jogos pela seleção, seu desempenho no clube caiu
e ele foi prejudicado por lesões persistentes. Precipitou o
retorno de um problema no tornozelo e jogou diversas
partidas (mal) com medo de piorar o quadro. Uma tosse
insistente — “acontece com fumantes de vez em quando” —
não ajudou em nada, assim como a tabela de jogos. O
Campeonato Paulista foi tão longo que o Corinthians optou
por não disputar o Campeonato Brasileiro porque os
jogadores estavam exaustos.94
Ele estava cansado, estressado e infeliz, e admitia
abertamente que o crédito que conseguiu no bom primeiro
ano tinha sido apagado por algumas más atuações. Durante
uma semana não tão incomum no final de outubro, Sócrates
foi ao Paraguai para a semifinal da Copa América numa
quarta-feira, voltou para jogar pelo Corinthians no domingo,
em Bauru, e três dias depois, estava no Rio de Janeiro para
a partida de volta contra o Paraguai. O acúmulo de jogos
fazia que ele e os outros jogadores da seleção que viviam
em São Paulo “se apresentassem à CBD em estado
deplorável”, disse Coutinho. Sócrates “está morto, vítima do
desorganizado futebol paulista”.95
A torcida do Corinthians sabia que ele não tinha a mesma
energia que os outros jogadores, mas ficava irritada ao vê-lo
brilhar pela seleção e desaparecer nos jogos do clube. A
paciência estava no fim. Alguns torcedores achavam que
Sócrates estava boicotando as próprias atuações para dar o
troco em Matheus no conflito pelo aumento de salário e o
criticavam mais do que nunca. O “Doutor”, cujos passes
destruíam defesas, agora era chamado de “Enfermeira”.
Grande parte do problema era que Sócrates não entendia
os apaixonados torcedores do Corinthians. Logo depois de
sua chegada, Palhinha o avisou de que os corintianos
precisavam acreditar que os jogadores amavam o time da
mesma forma que eles. Como namoradas inseguras,
precisavam de demonstrações públicas de afeto.
“Logo no começo, eu disse a ele: ‘Sócrates, você precisa
comemorar quando fizer um gol’”, contou Palhinha. “Ele
tinha esse hábito de ser mais reservado, de nunca mostrar
emoção. Eu disse: ‘Você precisa mudar. Se você jogar mal,
mas correr e der tudo, eles vão reconhecer. Mas os
torcedores do Corinthians percebem quando você não luta
pelo time’.”
“Uma vez nós perdemos um jogo e estávamos saindo do
Pacaembu no carro dele. E os torcedores cercaram o carro e
o levantaram do chão. Nós perdemos, e eles exigiam
coragem e determinação. E eu disse para o Sócrates: ‘Você
entende o que quero dizer? Quando você marcar um gol,
corra para a torcida, pule e comemore como eles, porque a
torcida do Corinthians gosta’. Depois disso, ele mudou o
jeito de comemorar. Ele corria para o alambrado, com a
torcida.”96
O Corinthians tem a segunda maior torcida do Brasil,
depois do Flamengo, mas seus torcedores acreditam que
são diferentes de maneiras que transcendem os números. A
crença vem, em grande medida, de um jogo no Rio de
Janeiro, em 1976, quando cerca de setenta mil corintianos
viajaram até o Maracanã para a semifinal do Campeonato
Brasileiro, contra o Fluminense. O Corinthians não vencia
um título importante desde 1954 e sua torcida acreditava
que aquele finalmente seria o ano em que a seca
terminaria. Torcedores percorreram — de carro, ônibus,
avião e até a pé — os 435 quilômetros que separam São
Paulo do Rio de Janeiro, em uma gigante caravana para ver
o time se classificar para a final, nos pênaltis. Uma semana
depois, o Corinthians perdeu a decisão para o Internacional,
mas o evento ficou imortalizado como a “Invasão
Corintiana” — uma expressão também usada para
descrever a presença das dezenas de milhares de
torcedores em Tóquio, para a final do Mundial de Clubes da
Fifa, contra o Chelsea, em 2012.
A paciência, entretanto, era inversamente proporcional à
devoção. Quando o Corinthians jogava em casa e tinha a
posse da bola, a bateria de escola de samba que ficava no
meio da torcida marcava um ritmo rápido, chamando os
jogadores para a ação. Quanto o time perdia a bola, o som
desacelerava, e ouvia-se uma batida pesada, quase raivosa.
A pressão era tremenda sobre o time da casa, e os
visitantes sabiam que, se conseguissem manter as coisas
equilibradas no início dos jogos, a torcida do Corinthians
logo perderia a paciência.
O mundo tomou conhecimento de Sócrates na Copa do
Mundo de 1982, e não apenas porque ele passava a bola
melhor do que todos os outros. A seleção brasileira era
divertida de ver, a mais legal do torneio, e Sócrates
capitaneava essa imagem. O socialista doutor Sócrates era
amplamente desconhecido dos telespectadores
internacionais e ainda não tinha se estabelecido como
defensor dos pobres. Os comentaristas de televisão
contavam aos europeus que ele era um médico que fumava
como uma chaminé e gostava de tomar cerveja, mas a
imagem que ele passava era intrigante. Enquanto os outros
21 jogadores no campo corriam como se suas vidas
estivessem em risco, Sócrates era relaxado, sereno, e
parecia se esforçar apenas quando realmente não existia
alternativa. Falando francamente, ele parecia não dar a
mínima.
Havia um bom motivo para que passasse essa impressão.
Na primeira metade de sua carreira, por oito anos no
Botafogo e mesmo depois de um ano no Corinthians,
Sócrates realmente não se importava de verdade. Em 1979,
ainda enfrentando dificuldades para lidar com as exigências
de um novo clube e uma nova cidade, e ainda dividido pela
decisão de abandonar a medicina, Sócrates enxergava o
futebol como um jogo inferior a ele. Algo que, de alguma
forma, não era digno de sua atenção, um jeito de passar o
tempo que era mais uma questão de força do que de
agilidade mental. Sócrates regularmente tentava convencer
as pessoas de que o futebol era jogado tanto com a cabeça
quanto com os pés, e vivia sempre tentando apimentar sua
rotina com desafios mais voltados para a intelectualidade.
Ele sabia que os torcedores do Corinthians eram exigentes
e queriam ver sangue e coragem em campo. Mas era um
corintiano que continuava descontraído e não estava
disposto a mudar seu estilo relaxado apenas para agradar
alguns milhões de torcedores. A decisão sobre como um
time deveria se comportar sempre dependeu de uma
espécie de batalha de vontades, e Sócrates estava
determinado a mudar a mentalidade vigente na época. O
futebol brasileiro vivia um certo marasmo após não ter
vencido as Copas do Mundo de 1974 e 1978, e um grupo
bastante eloquente atribuía as derrotas a um movimento na
direção de um estilo de jogo mais lento e trabalhado,
personificado por Sócrates e por Ademir da Guia, meio-
campista do Palmeiras. Rondinelli, zagueiro do Flamengo,
declarou que o futebol precisava de jogadores mais fortes
fisicamente e Búfalo Gil, do Botafogo, culpou os jogadores
de classe média que não tinham o desejo e o
comprometimento daqueles cuja origem era mais pobre.97
Sócrates não se desculpou por ser de classe média e
observou que Björn Borg, frio como o gelo, era tão eficaz
quanto John McEnroe, sanguíneo e explosivo. Sócrates se
comparava ao sueco e acreditava que se ele controlasse o
centro do campo e Amaral desse um toque de classe à
defesa, o Corinthians não precisaria ser um time apressado
e impaciente. Se o futebol fosse música, o Corinthians teria
estilo heavy metal e Sócrates gostaria de produzir algo mais
agradável aos ouvidos.
Ele conversou com Amaral, que também queria mudar de
rota, e os dois se reuniram com os outros jogadores e a
comissão técnica para formular um plano. Sócrates e
Amaral eram jogadores da seleção que haviam alcançado o
topo jogando um futebol de posse e paciência, e
convenceram os companheiros de que manter a bola, em
vez de persegui-la continuamente, levaria a mais vitórias.
Eles concordaram em fazer uma experiência e os
treinamentos foram adaptados para enfatizar o jogo de
toques curtos, com menos enfoque na preparação física.
Gradualmente, o time passou a evoluir e, para reforçar sua
mensagem, Sócrates também se preocupou em ensinar
paciência aos torcedores. Quando o Corinthians sofria um
gol, o silêncio momentâneo era seguido de manifestações
de indignação e revolta. Sócrates tratava de silenciá-las ao
buscar a bola no fundo da rede e caminhar lentamente até
o círculo central a fim de recomeçar o jogo. Isso permitia
não só que ele esfriasse os ânimos, mas também que
conversasse com os companheiros enquanto passava por
eles. Quando as coisas ameaçavam ficar muito frenéticas,
ele fazia o gesto com as mãos e pedia calma ao time. O
pedido era para os companheiros, mas também se tratava
de uma mensagem à arquibancada.
Os jogadores entendiam, mas a torcida precisava de mais
elementos para se convencer. Sócrates e Amaral não
estavam apenas tentando alterar um estilo que tinha sido
forjado durante décadas. O jogo mais lento e elaborado era
muito semelhante ao do Palmeiras, o grande rival. Grupos
de torcedores mais apaixonados iam ao Parque São Jorge e
exigiam explicações a cada sessão de treinamentos.
Sócrates e Amaral, os dois jogadores mais articulados no
elenco, ouviam as reclamações.
“Por que o time mudou desde que vocês chegaram?”, um
torcedor gritou, acusando a dupla. “O Corinthians sempre
foi um time de lutadores, agora é só técnica.”
“Não estamos mudando, só estamos tentando fazer o
time evoluir”, respondeu Amaral. “Não podemos jogar do
mesmo jeito para sempre; não podemos nos contentar com
vitórias por 1 × 0. Temos que mostrar que somos um grande
time, um time digno de respeito. Esse time pode ir longe.
Mesmo se você vencer todos os jogos em casa jogando um
futebol médio, não terá o respeito de ninguém quando
estiver fora de casa. Você tem que conquistar o respeito
aqui e muito mais lá fora.”
“Não queremos ver esse futebol, pelo menos não o tempo
todo”, outro torcedor gritou. “Queremos jogadores que
corram pela camisa.”
“Você não pode jogar com um estilo em uma partida e
com outro estilo em outra”, Sócrates disse a eles. “O time
vai mudando aos poucos e vocês verão o nosso novo estilo.
Digam daqui a um ano se melhorou ou piorou.”98
Os problemas que tinham marcado a segunda metade de
1979 foram aliviados por uma série de eventos tipicamente
brasileiros, que trouxeram benefícios ao Corinthians. O
clube era um dos doze times que haviam se classificado
para a segunda fase do Campeonato Paulista e, no meio de
novembro, a Federação Paulista de Futebol tomou a
incomum decisão de estabelecer uma rodada dupla de
jogos no Morumbi. Vicente Matheus se recusou a permitir
que seu time jogasse contra a Ponte Preta, argumentando
que o Corinthians contava com mais torcedores do que
Ponte, Palmeiras e Guarani juntos (os dois últimos clubes
fariam o primeiro jogo da rodada dupla). Matheus não
queria dividir a bilheteria com os rivais e foi à televisão e ao
rádio para dizer aos torcedores do Corinthians que não
fossem ao estádio, porque o Corinthians também não iria. A
Federação ignorou os apelos para o cancelamento dos
jogos, o que levou a um episódio bizarro, no domingo, em
que onze jogadores da Ponte Preta entraram em campo e
esperaram, em vão, pelos adversários.
O problema foi parar nos tribunais, causando um atraso
que fez as semifinais do Paulista de 1979 serem disputadas
no fim de janeiro de 1980. Até a pausa, o Palmeiras era o
time mais em forma, estava invicto na segunda metade do
campeonato e tinha marcado o dobro dos gols de seu rival.
Mas a paralisação forçada interrompeu a boa fase e deu
força ao Corinthians. Os times empataram em 1 × 1 no
primeiro jogo das semifinais, e o Corinthians ganhou o
segundo com um gol de canela marcado por Biro-Biro.
A final foi uma melhor de três partidas com a Ponte Preta.
O Corinthians venceu a primeira por 1 × 0, e a segundo
terminou empatada em 0 × 0. O Corinthians precisava de
um empate para conquistar seu segundo título em três
anos, mas terminou ganhando com tranquilidade. Sócrates
e Palhinha marcaram os gols da vitória por 2 × 0.
Era o maior triunfo de sua carreira, mas Sócrates não se
entusiasmou demais. Ele correu para a torcida após marcar
o primeiro gol, aos onze minutos do segundo tempo, mas
não deu a volta olímpica nem fez saudações à torcida
depois do apito final. Tinha prometido sua camisa para um
jovem torcedor, mas alguns fãs a tomaram e Sócrates
correu até o vestiário para pegar outra e entregá-la ao
garoto.
De novo no vestiário, sentou-se calmamente e segurou a
emoção, como se estivesse tentando manter a imagem que
cultivava: a personificação da frieza. A vitória significava
muito para ele, mas os sentimentos eram atenuados pelos
dias difíceis que a haviam precedido e pela relação
conflituosa com a torcida do Corinthians. “Eu tenho a
sensação de que fiz meu dever”, disse a repórteres após o
jogo. “Tenho a sensação de dever cumprido. Apenas isso. É
uma questão de temperamento. Sinto-me realizado, como
se tivesse trabalhado direito durante um bom tempo.”99
Palavras curiosamente insondáveis, proferidas por alguém
que tinha acabado de ganhar um troféu importante.
Sócrates sentia que a conquista o redimia e que a medalha
era uma recompensa por ter suportado os dias sombrios dos
últimos meses de 1979. Mas se ele achava que tudo seriam
flores de então em diante, é porque ainda não conhecia o
Corinthians. O clube era famoso por fazer seus torcedores e
seus jogadores sofrerem, e 1980 seria um ano que não
apenas poria à prova sua determinação, como também
testaria se, em sua essência, ele tinha o que era necessário
para se tornar um verdadeiro corintiano.
Capítulo 6
Ele dizia que o futebol era uma atividade intelectual. Você usa seu corpo,
mas joga com a cabeça. Se ele estivesse cem por cento em forma, mas
com a cabeça fora de lugar, não importava. Ele não jogava bem.
Wladimir

Quando Sócrates ganhava uns trocados de seu Raimundo,


uma das primeiras coisas que comprava eram discos. Era a
época dos Beatles e dos Rolling Stones, e jovens se
rebelavam pela Europa. Mas o rock and roll ocidental era
considerado lixo imperialista por muitos brasileiros e, àquela
altura de sua vida, Sócrates era um deles. Mais tarde, ele
escolheria John Lennon como um de seus heróis, mas,
quando jovem, o que realmente amava era a música que
falava com ele diretamente, a música cuja letra em
português expressava o que ele via e sentia no mundo que
se transformava a seu redor.
Os pais de Sócrates gostavam de música popular e foram
esses sons, autênticos, mas pouco sofisticados, que o
encorajaram a encerrar quatro anos improdutivos de aulas
de piano para tentar o violão. Ao longo de sua vida, não
havia nada de que Sócrates gostasse mais do que reunir
amigos em torno de cerveja e cigarros, tocando violão.
“Sócrates foi a primeira pessoa que eu vi que tinha um
acervo gigante de discos”, disse seu irmão Raimar. “Tinha
de tudo, variedades mil. Ele tinha desde sertanejo, samba,
MPB, gostava e tinha de tudo. Ele sempre comprava. E ele

conhecia: comprava, gostava e cantava todas as canções.


Sabia todas as letras, todos os intérpretes. A música sempre
esteve entranhada nele. A arte em si.”100
No começo de 1980, o diretor artístico da RCA abordou
Sócrates com uma ideia inovadora. Osmar Zan frequentava
o mesmo bar de karaokê visitado por jogadores de futebol
após as partidas e, diferentemente de todas as pessoas que
haviam ouvido Sócrates cantar, achou que ele tinha
potencial. Ele ofereceu a Sócrates um contrato e a chance
de gravar um disco com qualquer repertório, sertanejo ou
MPB, o que ele quisesse.

“Eu era próximo dos jogadores do Corinthians e também


dos jogadores do São Paulo”, lembrou Zan. “E eu sabia que
Sócrates era de Ribeirão Preto e adorava música sertaneja.
Eu queria fazer coisas novas, então perguntei se poderia
conversar com o Sócrates. Ele foi até a RCA, nós conversamos
sobre algumas ideias e eu propus que fizéssemos um disco
sertanejo. Ele gostou e disse: ‘Claro’. E nós escolhemos
algumas músicas. Chamamos alguns músicos e
gravamos.” 101

O disco se chamou Casa de Caboclo e tinha doze faixas, a


maioria de clássicos sertanejos ou baladas tradicionais que
ele conhecia desde a infância. Composta em 1928, a faixa
título fala sobre a população pobre do interior do Brasil e
ainda é gravada por artistas nos dias atuais.
A popularidade crescente de Sócrates em um dos maiores
clubes do país lhe dava a confiança para tentar coisas
novas, e a voz verdadeiramente terrível para cantar não foi
um obstáculo. A gravadora contratou um fonoaudiólogo
para prepará-lo, mas ninguém estava preparado para o
poder de persuasão de Sócrates. Nas duas ocasiões em que
o profissional foi à casa dele, Sócrates o convenceu a beber
alguma coisa antes de começarem, e as sessões não
tiveram nada a ver com gravações, porém tudo a ver com
bebidas. Ele teve dificuldades quando entrou no estúdio
pela primeira vez e se aproximar do microfone o deixou
receoso. Mas se acalmou com o passar do tempo e logo se
sentiu seguro o bastante para pedir regravações e
alterações à produção.
Cerca de cinquenta mil cópias do disco foram feitas, mas
as vendas não foram boas. A RCA o retirou do catálogo dois
anos depois e Sócrates não guardou nenhum exemplar do LP.
Ele não tinha tempo ou intenção de promover o álbum, e
uma vez gravadas todas as faixas, imediatamente se
esqueceu do disco. Era apenas uma questão de tentar fazer
algo diferente e assim confundir os conformistas. “Eu aceitei
o trabalho porque queria combater o preconceito urbano
com a música sertaneja”, explicou.102
A voz de Sócrates podia não ser das melhores, mas ele
estava afinado quando voltou a jogar futebol.
O Corinthians começou bem o Campeonato Brasileiro de
1980, ganhando sete dos primeiros nove jogos e se
classificando com facilidade para a segunda fase. O bom
momento prosseguiu com apenas uma derrota nos seis
jogos posteriores, valendo um lugar na fase seguinte —
apesar de solitária, a derrota foi marcante: 5 a 2 para o
Vasco, com cinco gols de Roberto Dinamite, no Maracanã.
Sócrates marcou onze gols em treze jogos na competição.
A terceira fase do campeonato tinha quatro grupos de
quatro equipes, que se enfrentavam apenas uma vez para
classificar o mais bem colocado para as semifinais. O
Corinthians tinha a desvantagem de jogar duas das três
partidas fora de casa e começou da pior maneira possível,
quando Vilson Taddei acertou um chute de trinta metros
para dar ao Coritiba a vitória por 1 × 0.
A derrota significava que o Corinthians teria uma
montanha para escalar caso quisesse chegar às semifinais,
e a tarefa ficou ainda mais difícil por causa de comentários
do presidente Vicente Matheus. O presidente disse que Jairo,
o goleiro do Corinthians que tinha jogado no Coritiba,
cometeu um “erro estranho” e deveria ter defendido o
chute de Taddei. Alguns jogadores acharam que a
insinuação tinha motivação racial; outros, que Matheus
estava sugerindo que Jairo, goleiro do Coritiba entre 1972 e
1976 e ídolo do clube, deliberadamente havia ajudado seu
ex-time. Independentemente da intenção, os comentários
do dirigente causaram revolta no elenco.
Jairo ficou em Curitiba após o jogo para ver familiares, e
perdeu a maior parte da controvérsia. Quando voltou a São
Paulo no dia seguinte, foi cercado por repórteres que
queriam saber sua opinião sobre os comentários de
Matheus. Jairo ficou furioso e foi direto à casa de Matheus
para falar com ele, mas Matheus não estava. Marlene, a
mulher do dirigente, prometeu a Jairo que Matheus entraria
em contato. O presidente pediu a Jairo que fosse a seu
escritório, mas o goleiro se recusou e a atmosfera no clube
se tornou mais pesada. Jairo também não quis encontrá-lo
no dia seguinte, e só na quarta-feira, três dias depois, o
goleiro recebeu um merecido pedido público de desculpas.
A verdadeira história, no entanto, aconteceu naquela
noite, quando o Corinthians precisava vencer o Grêmio. O
time da casa saiu na frente no segundo minuto, com
Geraldão, e Sócrates fez outro gol catorze minutos mais
tarde. Na comemoração, ele correu direto para a área do
Corinthians para fazer uma homenagem especial a Jairo e
lhe dar um abraço. Os outros jogadores, até mesmo os
reservas, se juntaram a eles.
“Os outros jogadores sabiam o que ia acontecer, mas eu
não sabia”, disse Jairo. “Foi muito emocionante. Eles
pularam em cima de mim. A Gaviões da Fiel [torcida
organizada] aplaudia toda vez que eu pegava a bola. E eles
gritavam meu nome o jogo inteiro. Tudo porque o Sócrates
me apoiou.”
“Nem Sócrates nem ninguém me explicou nada. Eu
perguntei a ele depois e disse: ‘Magrão, você é fogo!’. E ele
respondeu: ‘Jairo, é o mínimo que você merece’. E xingou o
presidente. Quando Matheus o chamou para conversar
sobre o que tinha acontecido, ele disse: ‘Não quero falar
com ele. Foda-se’. E então o Matheus deu uma entrevista
dizendo que o Sócrates estava tentando jogar a torcida
contra ele. Foi a mesma coisa que ele disse sobre mim. Mas
o Sócrates nem ligava. Ele só disse: ‘Foda-se!’. Ele era
muito legal.”103
A vitória do Coritiba sobre o Botafogo por 1 × 0, na
mesma noite, significava que o Corinthians precisaria
vencer o Botafogo, fora de casa, e torcer para uma derrota
do Coritiba para o Grêmio na última rodada. O Coritiba
perdeu por 1 × 0, mas o Corinthians não conseguiu os
pontos no Maracanã. Outro erro de Jairo custou um gol e,
embora Vaguinho tivesse empatado, o resultado deixou o
Corinthians em terceiro lugar no grupo e quinto na
classificação geral do Campeonato Brasileiro de 1980.
Havia menos de uma semana entre o fim do Campeonato
Brasileiro e o começo do Campeonato Paulista, e, nesse
período, o ambiente no Parque São Jorge ficou ainda pior.
Jorge Vieira, que tinha substituído José Teixeira, deixou o
clube após o jogo com o Botafogo, e Julinho, o treinador de
goleiros, dirigiu o time enquanto outro técnico era
procurado.
Jairo foi forçado a treinar sozinho após Matheus criticar
seu erro contra o time carioca e afirmar que o goleiro tinha
feito ameaças a ele. Matheus também atacou Wladimir, o
vigoroso lateral que liderava o emergente movimento black
power no Brasil e que Sócrates rapidamente identificou
como alguém que se destacava pela inteligência. Wladimir
disse que Matheus tinha prometido que o clube pagaria o
imposto referente às luvas da assinatura de seu contrato.
Quando notou que o dinheiro tinha sido retirado de sua
conta, chamou o dirigente de mentiroso. Matheus exigiu
uma retratação formal e Wladimir ficou exposto, enquanto
os advogados do Corinthians tentavam um acordo para
resolver a questão.
Portanto, apenas cinco dias depois da eliminação no
Campeonato Brasileiro de 1980, o Corinthians entrou em
campo para enfrentar o Botafogo-SP na estreia do
Campeonato Paulista. O jogo terminou empatado em 1 × 1
graças a um gol tardio de Toninho para o Corinthians, e se
alguém imaginou que o resultado pudesse trazer alguma
estabilidade, estava enganado.
A crise se aprofundou três dias depois, num jogo em casa
contra o XV de Piracicaba. O Corinthians foi muito mal na
derrota por 2 × 1 e setores do público presente culparam os
jogadores. Os principais alvos foram Sócrates e Amaral,
que, numa decisão infeliz considerando o momento, tinham
sido fotografados na véspera segurando camisas da Roma e
da Lazio. Não eram nada mais do que fotos tiradas na hora
errada, que só aconteceram pelo pedido de alguns fãs. Mas
era fácil fazer uma interpretação equivocada das intenções,
por causa da fase ruim do time. Poucos minutos após o
início do jogo, torcedores já os chamavam de mercenários, e
com apenas doze mil pessoas no estádio do Pacaembu, era
possível ouvir todos os insultos e agressões verbais.
As coisas pioraram ainda mais depois do apito final. Um
grande grupo de torcedores permaneceu para protestar
contra os jogadores. Sócrates e Amaral corajosamente
apareceram na porta, mas o estacionamento estava cheio
de torcedores que queriam sangue e eles voltaram para a
segurança do vestiário. Ambos tinham ido ao estádio
dirigindo seus próprios carros e os diretores do Corinthians
concluíram que os torcedores se desmobilizariam se todos
os jogadores fossem embora no ônibus. Caso contrário,
Sócrates e Amaral teriam de esperar até que os ânimos se
acalmassem.104
Quando eles finalmente conseguiram sair, muitas horas
depois e com proteção policial, seus carros tinham sido
vandalizados. Um Amaral aterrorizado ficou com tanto medo
de futuros ataques que disse a repórteres que buscaria sua
mulher e filhos e deixaria a cidade. Sócrates se sentiu ainda
mais perseguido porque seu carro, um pequeno Fiat, era da
cor verde, a cor do arquirrival Palmeiras — os amigos o
pressionavam para pintar o carro de preto ou trocar o
modelo, mas ele se recusava.
Ambos ficaram indignados com o que foi, mesmo para os
padrões irracionais da torcida do Corinthians, um protesto
desproporcional em relação ao resultado. Amaral qualificou
o episódio como o momento mais humilhante de sua vida e
Sócrates se declarou “profundamente magoado”. Ter sido
chamado de mercenário foi especialmente difícil,
considerando que ele ganhava cerca de um décimo do que
recebiam jogadores como Zico e Falcão. Sócrates criticou a
falta de respeito da torcida e foi forçado a se retratar no dia
seguinte, para evitar ofender a imensa maioria de
torcedores que não teve nada a ver com o ato de
vandalismo. Ele então culpou um pequeno grupo da torcida
organizada pelo problema, mas não conseguia esconder sua
dor e, uma vez mais, ameaçou deixar o clube.
“Sempre penso em parar quando acontecem certas
coisas”, ele disse aos repórteres. “E pensei nisso ontem. É
opção de vida. Não estou bem financeiramente, mas isso é
o que menos importa. Se ganhar muito pouco como
residente, tudo bem. É claro que meu nível de vida vai cair,
mas se precisar de dinheiro, consigo, pois tenho dois braços
e duas pernas. […] Não é toda a torcida, mas esses caras
me ferem, sabe? É muito fácil dizer: ‘Não liga, não’, mas não
é apenas o ego que pode responder. Para mim, para o meu
jeito, é muito chocante. Estão atingindo nesse caso o
homem; se fosse o profissional, pouco me importaria.”105
Mas a novela ainda não havia acabado. A resposta mais
memorável de Sócrates veio quatro dias mais tarde, em São
José do Rio Preto. O Corinthians viajou cerca de 440
quilômetros para enfrentar o América e precisava de uma
vitória para evitar uma crise gigantesca. E conseguiu graças
a um gol de Sócrates aos 35 minutos de jogo. Mas em vez
de comemorar, ele se virou na direção do círculo central,
abaixou a cabeça e voltou andando. Seus companheiros
foram cumprimentá-lo e ele os evitou, com expressão séria.
Foi um protesto calculado, que teve pouca repercussão
porque o jogo aconteceu numa noite de quarta-feira, sem
transmissão pela televisão. Sócrates sabia que precisaria
repetir o gesto num cenário mais relevante se quisesse
alcançar o objetivo desejado. Então, exatamente uma
semana depois de ter sido impedido de sair do Pacaembu,
ele retornou para encarar seus algozes com a intenção de
enviar uma mensagem. E o fez com estilo, marcando três
gols na vitória por 4 × 2 sobre o Comercial.
Sócrates se recusou a celebrar o primeiro gol, uma
espetacular cobrança de falta quase da bandeira de
escanteio do lado esquerdo, que entrou no ângulo alto do
gol. Ele levantou o braço lentamente, de propósito, após
marcar o segundo, e repetiu o gesto relutante — além de
pedir para ser substituído — quando fez o terceiro, cobrando
um pênalti que ele mesmo sofreu.
Não foi a primeira vez que Sócrates visivelmente se
recusou a comemorar um gol, mas era a primeira vez que
ele fazia isso em resposta ao comportamento dos
torcedores. Isso reforçou sua imagem de jogador frio, que
não se emocionava, e lhe deu a injusta reputação de um
homem infeliz, que não se importava quando marcava um
gol. Entretanto, sua reação havia sido atípica e Sócrates
explicaria mais tarde que suas comemorações poderiam ser
medidas de acordo com a importância do gol. No início de
sua carreira, elas eram mais espontâneas, e ele
frequentemente corria para a torcida com os braços
abertos. Depois, ganharia fama por celebrar erguendo o
punho cerrado, numa espécie de saudação militante. Mas
ao claramente se recusar a comemorar seus gols contra o
América e o Comercial, ele estava enviando uma mensagem
à torcida, particularmente aos membros da Gaviões da Fiel,
o principal grupo organizado.
“A não comemoração dos gols começou como uma reação
contra uma atitude da torcida”, Sócrates disse mais tarde a
Jorge Vasconcellos, em conversa para seu livro Recados da
bola. “Havíamos perdido uma partida e, na seguinte, ao
fazer um gol, não vibrei. Foi a forma que encontrei para
comunicar: ‘Olha, não gostei do que vocês fizeram no jogo
passado’. A torcida tinha reagido de forma agressiva, então
mostrei dentro do campo que não estava satisfeito com
aquela reação. Era como se dissesse: ‘Vamos jogar aberto:
eu sou assim, quando acho ruim alguma coisa, mostro, digo,
do meu jeito de me expressar’. […] Quando alguém trabalha
com o público, tem que saber se relacionar com ele, senão
está jogando fora um grande potencial. Quem ganha um
espetáculo é quem o público quer, por isso é preciso saber
trabalhar essa psicologia coletiva, essa energia coletiva. Eu
tinha que criar uma comunicação com o meu público para,
de alguma forma, trabalhar junto com ele e não contra ele.
Caso contrário, estaria prejudicando o meu trabalho e o de
todo o time. […] É preciso ter consciência da importância e
do poder da presença do público. Ele derruba e levanta o
time, você tem que saber trabalhar isso, quem está no
campo tem que saber o que é isso, pois se você conseguir
criar essa comunicação e potencializar aquela energia, é
muito mais fácil. No Corinthians, então, é aquela coisa
emocional, uma loucura. Se você não racionalizar [...] A
minha perspectiva era: ‘Para colocar rédea nisso aqui,
vamos trabalhar direito’.”106
Sócrates tinha sido celebrado depois de sua atuação
espetacular contra o Comercial, mas não estava disposto a
declarar um cessar-fogo unilateral em sua guerra com o
clube. Tanto ele quanto Amaral se apresentaram à seleção e
não jogaram a partida seguinte, uma vitória por 2 × 0 sobre
o São Bento diante de apenas 6.571 pessoas, o menor
público do Corinthians na temporada. Por acaso ou não, a
ausência dos dois coincidiu com semanas difíceis para o
clube, com seis empates consecutivos, quatro deles sem
gols.
Mesmo servindo a seleção, Sócrates ainda pensava muito
sobre o incidente. Ele tinha investido dois anos de sua vida
no clube e não queria que esse esforço fosse em vão.
Estava se acostumando a viver em São Paulo, com pessoas
que já considerava amigos seus. Sócrates era um dos
jogadores mais conhecidos do país e não deixaria que
alguns torcedores mais exaltados estragassem isso.
Ele decidiu buscar algum tipo de compensação no
momento da negociação de um novo contrato, no mês
seguinte. Queria permanecer no Corinthians por causa da
enorme plataforma que o clube lhe oferecia para falar com
uma cidade inteira, além de saber que uma transferência
faria pouco sentido porque torcedores são instáveis em
qualquer lugar. Ele disse que já sentia “uma conexão” com o
clube e que tinha “criado uma base que não deveria e não
poderia ser desperdiçada”.
Mas se ia permanecer e se arriscar a novos episódios de
desaforo da torcida, ao menos gostaria de ser
recompensado apropriadamente. Sócrates deu outra longa
entrevista enquanto estava com a seleção, repetindo sua
preocupação com o comportamento dos torcedores e se
comprometendo com o Corinthians. Mas a entrevista foi
interessante porque continha a primeira sugestão de que
ele queria ter um papel fora do campo. A Democracia
Corinthiana ainda estava distante, mas Sócrates começava
a pensar em comandar o show.
Naquele momento, ninguém deu muita importância aos
comentários. Jogadores nunca tinham almejado o controle
de um time de futebol e um homem como Matheus jamais
cederia poder, especialmente num país em que a
democracia não tinha tido espaço para uma geração inteira.
Mas, em retrospectiva, a mensagem de Sócrates era clara.
Ele se enxergava como mais do que um jogador de futebol.
“O que eu quero é demonstrar que sou importante para o
clube e vice-versa”, disse. “Talvez até já existam sinais
disso. Eu tenho a sensação de que o presidente está mais
próximo, independentemente do fato de eu estar tentando
essa aproximação. Eu quero melhorar as relações dentro do
clube, fazer mais, participar mais das decisões. O retorno do
grupo será imediato e as coisas não serão baseadas apenas
no dinheiro. Os jogadores precisam sentir uma conexão
emocional e é nisso que eu quero um papel para mim.
Talvez até minha racionalidade — o que, no fundo, é a maior
barreira entre mim e os torcedores, embora eu ache que
eles deveriam entender —, até isso possa mudar. Se eu
pudesse participar das decisões dentro do clube, meu
comportamento mudaria de várias maneiras.”107
Antes que pudesse começar a pensar em seu papel fora
do campo, Sócrates precisava garantir seu lugar dentro
dele, com um novo contrato. Ele tinha ficado irritado com a
recusa de Matheus em renegociar o acordo vigente no ano
anterior, mas assumiu uma postura pragmática e
implacável. Decidiu não reclamar e seguir jogando. Sócrates
acreditava que seu desempenho ia melhorar, o que o
valorizaria. Estava certo, e queria que Matheus pagasse por
sua intransigência.
Sócrates, de forma afetuosa, chamava Matheus de “o
velho” desde sua chegada ao clube e tornou-se um dos
favoritos do dirigente nos primeiros meses. Via Matheus
como “uma das pessoas mais honestas que conheci” e o
respeitava como administrador profissional que não apenas
tinha os interesses do clube como prioridade, como também
“assumia a responsabilidade por seus atos”, uma raridade
no mundo obscuro do futebol brasileiro. “O Corinthians, na
época de Matheus, era corretamente administrado. Gestão
absolutamente redonda.”108
Matheus, entretanto, era também uma das pessoas mais
difíceis no trato que Sócrates já havia conhecido, e para
alguém que valorizava os compromissos, isso era garantia
de sofrimento. O impasse no ano anterior tinha deixado
Sócrates perplexo, porque ele entendia que sua proposta
era boa para os dois lados. Teve dificuldades para perdoar a
teimosia de Matheus.
O contrato de Sócrates expirava em 3 de agosto de 1980
e as negociações para a renovação se converteram numa
novela que durou semanas, deixando a imprensa inflamada
e os torcedores tensos. Sócrates fez quatro jogos pela
seleção em junho — contra México, União Soviética, Chile e
Polônia — e retornou ao clube como o novo capitão do
Brasil, após receber a faixa na vitória por 2 × 0 sobre o
México. Mas ele não ficou no Parque São Jorge por muito
tempo.
O Corinthians terminou o Campeonato Brasileiro em
quinto lugar e não se classificou para as semifinais do
Campeonato Paulista em julho, e a parada forçada de três
semanas deu às duas partes a oportunidade de resolver a
situação. As posturas de ambos os lados, no entanto,
endureceram-se e ninguém queria ceder, mesmo depois
que a ausência de Sócrates foi sentida na derrota para o
São Paulo por 4 × 0, no primeiro jogo do segundo turno do
Paulista. Uma vez mais, Sócrates ameaçou se aposentar se
não fosse remunerado como achava justo e, quando
perguntado sobre quais eram suas chances de ficar no
Corinthians, numa escala de 1 a 100, ele respondeu:
“Nenhuma”.
Dois dias depois da derrota para o São Paulo, o pai de
Sócrates tentou reativar as negociações com uma proposta
de 33,6 milhões de cruzeiros (1,24 milhão de dólares) por
dois anos. Depois de consultar o Flamengo e o Internacional
para saber quanto pagavam a Zico e Falcão, os dois maiores
salários do Brasil, o Corinthians respondeu com uma oferta
máxima de 28,4 milhões de cruzeiros (1,05 milhão de
dólares).
Sócrates tinha três fatores trabalhando a seu favor no
impasse frente à famosa teimosia de Matheus. O primeiro
era o fato de o Corinthians estar em um momento ruim e
obviamente sentindo a falta de seu melhor jogador. O time
tinha vencido apenas três jogos em nove rodadas desde o
começo de julho, e perdido três de quatro clássicos, dois
deles para o São Paulo, rival contra o qual havia ficado
invicto durante quatro anos.
O segundo fator era o retorno de Osvaldo Brandão,
substituto de Orlando Fantoni, que havia treinado a equipe
por apenas treze jogos. Brandão tinha deixado o Corinthians
alguns meses antes de Sócrates chegar, em 1978, e tivera
algum sucesso na Ponte Preta, na Portuguesa e no
Palmeiras. Era muito experiente e tinha ótimo olho para
bons jogadores. Brandão queria Sócrates de volta ao
Corinthians e uma das primeiras coisas que fez foi insistir
com ele e com Matheus para que solucionassem o
problema.
O terceiro fator era que outros clubes estavam
acompanhando a novela com interesse. O São Paulo pediu
publicamente para conversar com Sócrates — oferecendo,
numa troca, o centroavante Serginho, que jogaria a Copa do
Mundo pelo Brasil — e o Flamengo preparou uma oferta de
30 milhões de cruzeiros (1,1 milhão de dólares) mais o
meio-campista Adílio. O Internacional enviou olheiros de
Porto Alegre, e o Santos e o Botafogo também
demonstraram interesse. Matheus era maluco, mas não
estúpido, e sabia qual seria a reação da torcida se ele
vendesse seu melhor jogador para um rival.
Seu Raimundo apresentou uma nova proposta que incluía
o direito de usar o distintivo do Corinthians em acordos de
publicidade, assim como 10% da bilheteria de amistosos no
Brasil e 15% de amistosos internacionais. Matheus acusou
Sócrates de querer “metade do Parque São Jorge” e vazou
suas exigências para a imprensa, descaradamente dizendo
a um programa de rádio que Sócrates estava pedindo um
percentual da bilheteria de todos os jogos do Corinthians,
não apenas dos amistosos. A mentira enfureceu Sócrates
ainda mais.
Sócrates estava atento ao fato de que muitos dos
torcedores que pagavam ingressos para vê-lo ganhavam o
salário mínimo de 4.149 cruzeiros (78 dólares) por mês, e se
preocupava com a possibilidade de perder o apoio da
torcida definitivamente, mesmo se voltasse ao clube.
Torcedores que participavam de programas de rádio por
telefone responderam a uma pesquisa que mostrou que a
opinião geral era a de que Sócrates estava pedindo demais.
Ele já tinha sido injustamente acusado de mercenário e a
última coisa que desejava era mais repúdio da
arquibancada. Depois de ir a Ribeirão Preto encontrar
familiares e amigos, ele voltou a São Paulo com uma atitude
diferente. Sócrates retornou aos treinos no dia 19 de agosto
e pediu aos torcedores que o apoiassem.
“Nenhum jogador pode se sentir indesejado em seu
próprio clube”, ele disse. “O maior estímulo para um atleta
é ter a torcida a seu lado. Se não fosse por isso, eu não
concordaria em permanecer no Corinthians. E para que isso
aconteça, eu vou precisar de uma base, de condições
psicológicas. […] Eu não posso assumir a responsabilidade
pelo time”, acrescentou. “Acho que preciso ter consciência
profissional e mostrar meu valor no campo. Se o clube me
paga X ou Y, é por causa do que sou capaz de fazer. Eu não
vou jogar bem ou mal dependendo do que ganho, mas sim
pelo que posso fazer. Eu acho que um cara deve ganhar de
acordo com o que ele dá para a empresa.”109
Era uma estratégia preventiva. Sócrates não aguentava
mais a incerteza e os jogos de cena. Ele apareceu sem
avisar na casa de Matheus no dia seguinte e ambos
rapidamente acertaram um acordo. Quando terminaram,
Sócrates telefonou para o pai, para que ele viesse e
finalizasse os detalhes. Quando os papéis estavam
assinados, Matheus pediu comida, e eles jantaram frango a
passarinho e tomaram vinho e uísque por longas horas.
Embora os termos do contrato não tenham sido
divulgados, os jornais especularam que Sócrates ganharia
luvas de 12 milhões de cruzeiros (219 mil dólares) pela
assinatura, e salário de 500 mil cruzeiros (9.100 dólares) por
mês no primeiro ano e 700 mil cruzeiros (7.100 dólares) por
mês no segundo ano [a diferença de câmbio se deve à
redução do valor do dólar]. Matheus disse que Sócrates
tinha passado a ser um dos mais bem pagos jogadores do
Brasil, e Sócrates declarou que não precisaria mais se
preocupar com dinheiro.110
Sócrates também afirmou que a promessa de uma maior
participação na forma como o time era administrado foi o
fator-chave para que ele assinasse o compromisso. Mas ele
ainda via um problema. Em meio às negociações, tinha
admitido que ainda não amava o clube e se enxergava
como um empregado de uma multinacional. Estava apenas
sendo honesto, mas sabia que esse nível de franqueza era
perigoso quando se tratava de Corinthians. Sócrates estava
ansioso pela recepção que teria no jogo contra o América e
se sentia nervoso quando entrou no Pacaembu.
A preocupação era desnecessária. Torcedores do lado de
fora gritaram “Doutor! Doutor!” quando ele desceu do
ônibus, e seu nome foi o mais aplaudido quando as
escalações foram anunciadas. Era seu primeiro jogo em
quase sete semanas e Sócrates recompensou o público de
37 mil pessoas com uma atuação extraordinária na vitória
por 2 × 1. Quando o América saiu na frente, aos três
minutos do segundo tempo, ele pegou a bola e lentamente
caminhou até o centro do campo, num gesto calculado para
dar confiança aos jogadores e mostrar à torcida que, apesar
de toda a controvérsia, ele não tinha mudado. Cinco
minutos depois, sofreu falta dentro da área e cobrou o
pênalti. Sócrates também se envolveu na jogada do gol da
vitória, de Toninho, dezessete minutos mais tarde.
Cercado pelos repórteres e câmeras de TV depois do jogo,
Sócrates tentou explicar o que aquilo tudo significava para
ele, mas logo isso ficou impossível. Cerca de duzentos
torcedores extasiados conseguiram entrar no vestiário,
gritando seu nome. Eles passaram pelos jornalistas e pelos
outros jogadores, então o levantaram do chão, celebrando
seu retorno. Finalmente, Sócrates não conseguiu se conter e
chorou.
O novo contrato fez dele um dos jogadores mais bem
remunerados do país, e trouxe uma nova lista de
responsabilidades. A principal era a necessidade de provar
aos torcedores que tinha passado a ser um deles, que a luta
para assinar um novo acordo o havia comprometido de
corpo e, principalmente, de alma com o clube.
Ele comemorou o gol de pênalti contra o América
correndo para a torcida, com os braços abertos e os punhos
cerrados. O tipo de celebração que seus companheiros
tinham insistido para que ele adotasse durante anos, mas
Sócrates não se sentia confortável fingindo que amava o
time tanto quanto aqueles torcedores de vida inteira, que
acompanhavam o Corinthians em fases boas e ruins.
Sócrates tentava dizer a eles que ser sereno não significava
não ter paixão; que ele era capaz de controlar suas
emoções pensando num bem maior, ou, em suas palavras,
que tinha um “equilíbrio indispensável nos momentos
precisos”.111 Ele entendia que os torcedores eram
emocionais e que ele era diferente. E entendia que nem
todos se identificariam com sua forma de ser. Era a recusa a
aceitá-lo como ele era que o incomodava, e ele muitas
vezes pediu aos torcedores que apoiassem o time e
transformassem sua impetuosidade em algo mais positivo.
Seus apelos eram sinceros e a promessa de Matheus de
lhe dar mais participação nos assuntos do clube foram
fundamentais para convencê-lo a se esforçar mais. Agora
tinha um dos maiores salários do clube, e amigos o
convenceram que era vital que ele desse mais em troca.
Sócrates curtiu uma breve lua de mel após assinar o novo
contrato. O Corinthians venceu o Marília, o Santos e o xv de
Jaú pelo mesmo placar de 3 × 0, fez 4 × 0 no Guarani e
perdeu apenas uma vez em catorze jogos, resgatando suas
chances de classificação para as semifinais.
Sócrates fez três gols contra o XV e marcou ambos os gols
do Corinthians na vitória por 2 × 1 sobre o Palmeiras,
totalizando dez gols em catorze jogos. Mas a esquizofrenia
que atormentava o Corinthians nunca esteve distante e
inevitavelmente reapareceu após uma derrota por 1 × 0
para a Portuguesa, no Morumbi. O Corinthians criou chance
após chance, mas não foi capaz de concluí-las e viu o
adversário marcar o gol decisivo nos minutos finais.
Os torcedores ficaram malucos e Sócrates novamente foi
o alvo principal. Com gritos de “Mercenário!” soando em
seus ouvidos, torcedores violentos tentaram agredi-lo ao
sair do vestiário e, embora a polícia tenha garantido sua
segurança, seu carro não teve a mesma sorte: os torcedores
jogaram uma pedra que atravessou o vidro da frente,
quebraram as lanternas e amassaram as portas e o capô.112
Ele reagiu com tranquilidade, concluindo que não tinha
nada a ganhar se atacasse de volta. Sócrates publicamente
admitiu que talvez tivesse tratado o futebol como um hobby
por tempo demais e prometeu ser mais profissional no
futuro. O Corinthians ainda conseguiu se classificar para as
semifinais do segundo turno, graças, em grande parte, aos
dois gols de Sócrates contra o Noroeste no penúltimo jogo,
mas não foi páreo para a Ponte Preta, que fez 4 × 1 no
placar agregado de duas partidas.113
Isso significava que o time finalizaria a temporada com
três semanas de amistosos sem importância. Eles foram
especialmente sem significado para Sócrates, que estava
ansioso por uma pausa em toda aquela irracionalidade. Ele
tinha batalhas mais importantes para travar. Um novo
começo com um novo técnico o esperava na seleção. As
preparações para sua primeira Copa do Mundo estavam
chegando.
Capítulo 7
Quem tem o dom de liderar é o Sócrates. Ele é inteligente, sério na
profissão e humilde no relacionamento com a gente. Funciona como uma
espécie de ímã do grupo: atrai as dificuldades e se encarrega de resolvê-
las.
Zico

Em 30 de março de 1980, Sócrates entrou no Hotel


Paineiras, no Rio de Janeiro, para se preparar para um
amistoso contra a seleção brasileira de novos. O hotel ficava
no alto de uma colina, com vista para o Cristo Redentor.
Papagaios e micos apareciam vindos da floresta verde que
ficava ao redor. Sócrates chegou ansioso e cumprimentou
seus companheiros com abraços e sorrisos. Sentado num
sofá estava o técnico Telê Santana, que levantou e lhe deu
um caloroso aperto de mão como boas-vindas.
“Cheguei ao hotel apreensivo, pois seria a primeira vez
que nos encontraríamos. Não sei exatamente por que, mas
sempre me sinto um pouco desconfortável quando devo
enfrentar situações desconhecidas, seja por culpa do
ambiente ou das pessoas. Felizmente, a maior parte dos
outros companheiros eu já conhecia bem. Entrando no hall,
percebo algumas pessoas sentadas à minha direita. Dirijo-
me até ali para cumprimentá-las, Telê estava entre elas.
Percebi que se vestia com simplicidade e estava sentado
confortável e discretamente. Quando ele me viu, abriu um
largo e tímido sorriso e fez questão de se levantar para se
aproximar. Demo-nos as mãos. Seu olhar era profundo e
incisivo e despertava absoluta confiança. Sua pele áspera e
rude estampava sua trajetória de vida.”114
“Apesar de sua pequena estrutura, passava uma
impressão forte e segura. Não pude deixar de compará-lo a
meu pai. Soube, a partir daquele instante, que nos daríamos
muito bem. Indivíduos que possuem entre suas virtudes a
sensatez e a sinceridade facilitam os relacionamentos,
mesmo em posições hierárquicas diferentes. As relações,
nesse caso, sempre são transparentes e honestas.”115
Telê, nascido numa pequena cidade rural em Minas
Gerais, tinha nove irmãos. Seu único interesse era o futebol.
Ele começou a carreira de jogador no Itabirense, clube local,
e foi para o América de São João del-Rei antes de assinar
com o Fluminense, onde seu corpo magro e seu estilo
incansável lhe renderam o apelido de “Fio de Esperança”.116
Depois de ganhar uma série de títulos no clube carioca
nos anos 1950, o atacante teve passagens mais curtas no
Guarani, no Madureira e no Vasco da Gama, até se
aposentar e começar a trabalhar como técnico. Nessa
posição, tinha vencido campeonatos estaduais com o
Fluminense, o Atlético Mineiro e o Grêmio, e chegou à
seleção brasileira em 1980 — o primeiro técnico da história
a ocupar a posição em tempo integral.117
Telê era um homem do futebol que vivia e respirava o
jogo. Ele costumava aparecer no centro de treinamento dos
clubes em que trabalhava para regar e cortar a grama,
porque sabia que os bons jogadores gostavam de jogar em
superfícies impecáveis. Os treinamentos eram mais
exercícios com a bola do que atividades atléticas, e quando
assumiu a seleção, ele convidou times de juniores e equipes
locais para enfrentá-los em amistosos, a fim de que seus
jogadores se conhecessem num ambiente competitivo.118
Era famoso por ser muito exigente, mas seus jogadores o
adoravam porque ele era justo e lhes dava liberdade para
jogar futebol. Telê escalava os melhores e os estimulava a
fazer o que sabiam, sem muitas preocupações com táticas
ou filosofias, preferindo focar em manter um equilíbrio e um
espírito de equipe que deixava os próprios jogadores
cultivarem.
Telê também insistia para que seus atletas jogassem para
ganhar — e com estilo. Para ele, as qualidades mais
importantes de um jogador e de um homem eram o
trabalho duro, a disciplina e a integridade.
“Um cara faz um gol com a mão aos 47 minutos do
segundo tempo e ganha o jogo. Isso me satisfaz? Não. Eu
vou receber a gratificação pela vitória, mas vou ficar com
vergonha por ganhar o jogo assim. Eu quero ver o bom
futebol. Todo mundo quer ver o bom futebol. Isso não é
melhor do que ver pontapés, chutar a bola para qualquer
lado? Eu não vou ao campo para ver isso.”119
Telê assumiu a seleção em fevereiro de 1980, apenas
quinze dias depois de o Palmeiras que ele dirigia ter perdido
para o Corinthians na semifinal atrasada do Campeonato
Paulista de 1979. A eliminação do Brasil pelo Paraguai na
Copa América de 1979 foi o segundo fracasso consecutivo
de Claudio Coutinho, algo imperdoável para técnicos
brasileiros. Novas ideias eram necessárias.
Na noite seguinte à apresentação dos convocados para o
jogo contra a seleção de novos, Telê deixou claro que
Sócrates não seria titular absoluto, o que surpreendeu a
muitos porque se tratava de um dos mais extraordinários
jogadores brasileiros naquele momento. O técnico explicou
que queria ver seus jogadores atuando nas mesmas
posições que ocupavam nos clubes, e Sócrates estava
jogando como meio-campista mais recuado no Corinthians.
Ele queria um centroavante mais ortodoxo e deu o papel a
Reinaldo.
Sócrates substituiu Falcão no intervalo do jogo (um de
sete substitutos, incluindo, curiosamente, Baltazar, que
jogou nos dois times) e deu mais fluidez ao time. Após fazer
2 × 0 no primeiro tempo, o Brasil melhorou no segundo e
ganhou por 7 × 0.
A decisão de Telê de manter Sócrates no banco era uma
tentativa, sem muita convicção, de testá-lo. Telê não
conhecia Sócrates pessoalmente, mas tinha ouvido os
mesmos rumores que as outras pessoas e não estava certo
de que ele tinha a disciplina necessária para jogar em seu
time.
Jornalistas mais próximos tinham avisado Sócrates de que
precisava ganhar a confiança do novo técnico, e ele fez o
papel do bom moço. Calmamente, aceitou um lugar no
banco e passou no teste com louvor. Telê o escalou para
começar o jogo seguinte, um mês depois. Outra partida não
oficial no Maracanã, dessa vez contra uma seleção de Minas
Gerais. Sócrates fez o terceiro gol na vitória por 4 × 0 e
causou boa impressão. Quando escolheu o time para
enfrentar o México, em junho, Telê deu a faixa de capitão a
Sócrates, o que ele chamou de “uma surpresa muito
agradável”.
“Sabia que aquilo era uma tremenda responsabilidade
que ele colocava sobre os meus ombros. Chegar à seleção
brasileira sempre foi um sonho e foi o que me fez retardar a
carreira médica, mas jamais havia imaginado que um dia
assumiria algo tão portentoso. Carregar aquela tarja verde-
amarela no braço esquerdo era um peso e uma honra que
eu precisava entender exatamente o que representava.
Porém, mesmo assustado com a novidade, sentia-me
orgulhoso e confiante. O que mais me intrigava era: por que
ele havia me escolhido, se no primeiro jogo nem mesmo fui
titular? Que tipo de lógica ele tinha utilizado para
determinar essa nova ordem? Até hoje não tenho convicção
das suas razões, mesmo que tenha suposições que
eventualmente possam esclarecer essas dúvidas, mas só
ele pode responder a essas questões. Só sabia que a partir
dali eu teria, mais do que nunca, que fazer de tudo para
corresponder à sua confiança.”120
O ano de 1980 foi um período de transição na seleção.
Depois dos dois jogos contra o time de novos e a seleção
mineira, o Brasil jogou nove amistosos oficiais, perdendo
apenas um, para a União Soviética, por 2 × 1, em junho.
Utilizado fora de sua posição, como atacante pela direita,
Sócrates fez seu pior jogo pela seleção até aquele momento
e foi vaiado ao ser substituído — merecidamente, disse —
porque tanto ele quanto o time não jogaram nada que se
aproximasse de seus melhores níveis.
Aquele, porém, seria o único contratempo. Chile, Uruguai,
Paraguai (duas vezes) e Suíça foram todos derrotados, e a
Polônia saiu do Morumbi com um empate em 1 × 1.
Sócrates foi o capitão do time em todos os jogos.
Os amistosos foram uma preparação para a Copa Ouro, no
final do ano. Um torneio organizado para comemorar o
aniversário de cinquenta anos da primeira Copa do Mundo,
no Uruguai, em 1930. Também conhecido como Mundialito,
o torneio foi disputado por todos os campeões mundiais,
exceto a Inglaterra, que recusou o convite e foi substituída
pela Holanda, finalista nas duas Copas anteriores.
Para o Brasil, o Mundialito seria uma reminiscência de
duas das suas Copas do Mundo mais memoráveis, mas por
razões muito diferentes. Assim como em 1970, a seleção
viajou para a competição com poucos torcedores
acreditando na conquista. E da mesma maneira que havia
feito no México, o Brasil desafiou as previsões mais
pessimistas e as probabilidades. O time não teve dois dos
seus melhores jogadores, Zico e Reinaldo, que,
machucados, nem viajaram. E o goleiro Carlos, titular,
voltou para casa após deslocar o ombro no primeiro jogo.
O Brasil ficou no grupo B, com Argentina e Alemanha
Ocidental. O vencedor do grupo iria para a final, onde
encontraria o ganhador do grupo A, que tinha Uruguai,
Holanda e Itália. Sócrates estava em ótima forma, marcando
gols por um inconsistente time do Corinthians. Ele se
recuperou de uma lesão no joelho sofrida num treino e foi
liberado para jogar na estreia do Brasil, contra a Argentina.
Os argentinos não venciam a seleção brasileira desde
março de 1970, e estavam dispostos a quebrar a sequência.
Foi um clássico sul-americano tipicamente tumultuado, com
Diego Maradona abrindo o placar com meia hora de jogo, e
Edevaldo empatando logo no início do segundo tempo. O
Brasil teve diversas e ótimas chances para marcar
novamente, além de um gol equivocadamente anulado por
impedimento, enquanto a Argentina teve uma bola na trave
e perdeu um gol claro. No apito final, em vez de camisas, os
jogadores trocaram socos no círculo central.
O resultado significou que o Brasil precisava vencer a
Alemanha Ocidental — que tinha perdido na estreia para a
Argentina, por 2 × 1 — por dois gols de diferença para
avançar à final.
Uma vez mais, o Brasil ficou em desvantagem, quando
Klaus Allofs completou um cruzamento aos 9 minutos do
segundo tempo. Mas a seleção se recuperou e atropelou os
campeões europeus. Júnior empatou com um bonito gol de
falta aos 12 minutos, Cerezo colocou o Brasil à frente três
minutos mais tarde, e depois, aos trinta do segundo tempo,
veio o gol decisivo, quando Sócrates, em sua única
contribuição real em todo o jogo, passou pelo defensor
Bernard Dietz e rolou a bola para Serginho marcar. Zé
Sérgio ainda fez o quarto gol, aos 36 da etapa final.
A vitória classificou o Brasil para a final contra os
anfitriões, que tinham deliciado a torcida local ao bater os
frágeis times da Holanda e da Itália pelo mesmo placar, 2 ×
0.
A final, entretanto, relembrou uma Copa do Mundo menos
feliz para o Brasil: o Maracanazo de 1950, quando a seleção
perdeu para o Uruguai por 2 × 1. Da mesma forma que
trinta anos antes, o Brasil era o favorito, mas foi
surpreendido pela força e pela determinação do Uruguai. O
time da casa marcou aos 5 minutos do segundo tempo,
quando uma hesitação na defesa permitiu um chute de
curta distância de Jorge Barrios. Após uma jogada que
começou no meio do campo, Sócrates foi derrubado na área
doze minutos mais tarde. Ele mesmo cobrou o pênalti e
empatou. Mas o Uruguai reagiu e retomou a vantagem
faltando dez minutos para o fim do jogo, graças a outro erro
defensivo.
E foi isso, com o placar de 2 × 1, não só repetindo o
famoso resultado de 1950, mas também marcando a
primeira vitória do Uruguai sobre o Brasil em mais de vinte
anos.
O torneio deu a Sócrates uma fundamental experiência
internacional, mas ele pareceu despreparado para o
aumento da exigência física no enfrentamento com os
melhores do mundo. Sem Zico e Reinaldo, Telê o escalou
fora de posição, como um atacante de referência, e seu real
impacto aconteceu quando ele recuou para abrir espaço
para o centroavante Serginho. Se o torneio teve algo de
memorável para ele, foi o bigode mexicano que usou na
estreia contra a Argentina — raspado no dia seguinte, por
causa da intensa zombaria dos companheiros.
Do Uruguai, a seleção partiu para uma turnê latino-
americana que teve dois amistosos e dois jogos de
eliminatórias para a Copa do Mundo. O Brasil levou sorte
por cair no grupo mais fácil, com Bolívia e Venezuela, mas
se preocupava com o jogo em La Paz, por isso viajou à
Colômbia e ao Equador a fim de se preparar na altitude para
o que considerava um jogo chave. Após empatar em 1 × 1
com a Colômbia, a seleção venceu a Venezuela por 1 × 0
pelas eliminatórias, e goleou o Equador por 6 × 0 em um
amistoso nas montanhas de Quito.
O jogo contra a Bolívia foi o mais difícil de todos, mas
Sócrates deu um espetáculo e justificou a decisão de Telê de
fazer dele um líder. Embora tivesse sérias dúvidas sobre sua
forma física para suportar o ar rarefeito em La Paz, ele
ofereceu uma grande exibição, marcando o primeiro do
Brasil e dando o passe para o gol de Reinaldo. Sócrates
recebeu oxigênio no intervalo e também ao lado do campo
durante a partida, enquanto o Brasil lutava para conter a
Bolívia depois da expulsão de Cerezo, com uma hora de
jogo. O jogo deveria estar resolvido àquela altura, pois a
seleção tinha mandado três bolas na trave, mas o time se
segurou até o final, assim como as pernas de Sócrates. Ele
perdeu quatro quilos durante o confronto. Mas quando
voltou para casa, seu prestígio estava maior do que nunca.
Após as vitórias fáceis em casa, contra Bolívia e
Venezuela, garantirem um lugar na Copa da Espanha, a
seleção foi para a Europa para testar sua força contra os
melhores do mundo. A excursão de duas semanas para
enfrentar Inglaterra, França e Alemanha Ocidental foi a
primeira viagem de Sócrates para fora da América do Sul, e
ele ficou fascinado pelo que tinha ouvido de repórteres a
respeito de Londres, Paris, as galerias e os museus. Ver a
Mona Lisa no Louvre era sua prioridade, ele disse, mas a
fotografia mais memorável da viagem foi a que o exibia feliz
da vida ao descer de um ônibus vermelho de dois andares
em Londres.
As lições de cultura, no entanto, aconteceram nos campos
de jogo, onde o Brasil superou com classe os três
adversários. A vitória por 1 × 0 em Wembley marcou a
primeira vez que a Inglaterra perdeu em casa para um rival
sul-americano. Os 3 × 1 em Paris significaram a primeira
derrota dos franceses no Parque dos Príncipes desde 1975.
E a vitória por 2 × 1 sobre a Alemanha Ocidental mostrou
uma superioridade brasileira bem maior que a sugerida pelo
placar.
Os resultados restauraram um pouco do brilho que o
Brasil tinha perdido na década sombria depois de sua última
conquista de Copa do Mundo. Os alemães chamaram a
seleção de “o melhor time do mundo”, e as casas de
apostas inglesas calcularam que o Brasil era o favorito para
ganhar seu quarto Mundial um ano mais tarde. O sucesso
levou a torcida brasileira a enxergar a disputa de mais um
título quase como uma formalidade, enquanto a mídia
europeia elevou Sócrates e Zico ao seleto grupo das
estrelas mundiais, junto com Karl-Heinz Rummenigge, Ruud
Krol, Diego Maradona e Kevin Keegan.
Sócrates se sentiu lisonjeado pelos elogios, mas, sempre
na direção oposta da maioria, disse que talvez fosse melhor
o Brasil não ter ganhado os três jogos de forma tão
convincente, porque tamanha superioridade poderia levar a
crer que não havia necessidade de melhora até o evento
principal.
“O perigo está aqui em nós mesmos”, ele disse,
profeticamente. “Melhor que o Brasil não tem ninguém.
Temos que acreditar nisso, pois foi o que constatamos na
Europa. Mas — e acho que se concentra aí o ponto central
da questão — não podemos nos acomodar e meter na
cabeça que ninguém pode nos vencer. Creio que esse será
nosso grande desafio daqui para a frente.”121
Depois de derrotar a Alemanha Ocidental, os jogadores
saíram para tomar cerveja e comemorar em Stuttgart.
Repórteres, ao encontrarem Sócrates cercado por
companheiros e garrafas de cerveja, perguntaram se
poderiam gravar uma entrevista. Sócrates concordou e um
repórter se moveu para retirar as garrafas vazias da mesa.
“O que é isso, rapaz?”, perguntou Sócrates.
“É para não comprometer sua imagem…”, o repórter
respondeu.
“Larga isso aí!”, Sócrates gritou. “Eu bebo na hora que
quero. Já estou velho e cheio de filhos. Só tenho um pai e
não preciso de outro.”122
Nem a atenção mais intensa recebida no Corinthians, nem
a ascensão na seleção fizeram Sócrates beber menos. Ele
se recusava a esconder seus hábitos e queria que as
pessoas soubessem que era um futebolista profissional que
podia atuar no nível máximo, não se importando com o que
pensavam dele.
Vencer depois de beber era melhor do que apenas vencer,
porque oferecia a resposta perfeita para quem dizia que
jogadores de futebol deveriam tratar seus corpos como
templos.
“Hoje, quando me elogiam, ninguém fala que fumo meus
cigarros e que gosto de tomar meus chopinhos”, disse.
“Engraçado, por que só falam isso quando estou mal? O
futebol é mesmo uma coisa muito instável e ilusória.”123
Sócrates já vivia em São Paulo fazia quase três anos e
estava começando a ganhar a reputação que merecia em
relação à bebida. Depois de passar os primeiros anos na
cidade bebendo em casa ou com discrição, ele já havia feito
amigos e a metrópole não o assustava mais como antes.
Jogadores tinham seus pontos preferidos e os repórteres os
conheciam, mas não faziam uso dessa informação, porque
isso significaria o fim do acesso privilegiado aos atletas.
Ocasionalmente, conselheiros ou outras figuras dentro dos
clubes reclamavam dos excessos dos jogadores, mas
Sócrates os achava ingênuos por não entenderem que a
bebida preferida dos futebolistas não era a cerveja, mas a
cachaça, muito mais forte. Tomar cerveja era o menor dos
males e ele entendia que os jogadores de futebol deveriam
ser parabenizados por pegar relativamente leve e não
esconder o que faziam.
Sua recusa em se desculpar por seus hábitos lhe causou
dificuldades no Corinthians, mas ele preferia confrontar os
críticos a se esconder. Havia bares dentro do Parque São
Jorge e, antes de Sócrates chegar ao clube, os jogadores
raramente ousavam beber lá, porque os torcedores
poderiam ver. Se perdessem um jogo no dia seguinte, eles
sabiam que a resposta seria imediata e desagradável.
Após se estabelecer como o jogador de mais destaque no
clube no início da década, Sócrates tinha prazer em levar os
jogadores ao Bar da Torre. Localizado embaixo de uma torre
de água, a cerca de cinquenta metros do vestiário dos
atletas, o bar era um humilde café que vendia aperitivos e
bebidas. Nos anos seguintes, os jogadores o chamariam de
“o Senado”, o local onde eles debateriam sobre a
Democracia Corinthiana, mas a princípio era apenas um
lugar para relaxar depois dos treinos.
“Quando acabavam os treinos, no sábado de manhã, a
gente tomava uma, duas, três caixas de cerveja no Bar da
Torre”, disse o companheiro Basílio. “Os cornetas e os
conselheiros do clube — os velhos, como nós os
chamávamos — ficavam putos. Não era todo mundo que
entendia. Eles diziam: ‘Pô, vocês estão na farra, bebendo?
Tem jogo amanhã! Isso é uma bagunça, vocês estão de
sacanagem? Se o time perder, vamos bater em vocês’. A
gente não estava nem aí. Ninguém saía bêbado, porque
éramos um mundo de gente. Mas sabíamos que no outro
dia tínhamos que nos apresentar bem para que aquilo não
virasse contra nós. E quando começamos a ganhar um jogo
após o outro, a cornetada passou a falar: ‘Podem deixar,
essa rodada a gente paga’.”124
Beber em público tinha a ver com desafiar a autoridade,
mas era também uma questão de companheirismo.
Sócrates era um animal social e nada o fazia mais feliz do
que estar cercado de amigos: bebendo, rindo e caçoando
dos outros sem dó. O lado escuro dessa sociabilidade,
entretanto, era o medo de se sentir sozinho. Era uma
fraqueza tipicamente brasileira, que em seu caso tanto
podia ser cômica quanto irritante, e que, por vezes, levou a
problemas com seus amigos. Sócrates com frequência dava
festas que iam até o amanhecer. Ele não tinha nenhuma
dificuldade para beber a noite inteira, mas nem todos
achavam tão fácil. Se alguém não aguentasse, tudo bem.
Mas deixá-lo beber sozinho era uma ofensa, e se a festa
começava a esvaziar antes que ele estivesse pronto para
decretar seu final, Sócrates escondia a chave da porta para
que ninguém saísse. Em São Paulo, ele fechava a chapelaria
do hotel Hilton, onde comemorava seu aniversário, para que
as mulheres não pudessem pegar seus casacos e bolsas
para ir embora. No Rio, onde morou numa mansão cercada
por um muro alto, trancava a porta e jogava a chave fora.125
“Depois que todo mundo chegava, ele jogava a chave da
casa do outro lado do muro, e o muro era alto”, relembrou
Leandro, seu companheiro na seleção e no Flamengo. “A
primeira pessoa que queria ir embora era quem descobria.
Mas ele dizia: ‘Eu não sei onde a chave está, alguém deve
ter pegado, talvez alguma das crianças, tá cheio de crianças
correndo por aqui’. Eu adorava. Era solteiro e se tivesse que
ficar até as seis, sete horas da manhã, pra mim estava tudo
bem. Mas tinha uns caras que eram casados e precisavam ir
embora. Algumas pessoas nunca mais voltavam. Eles
diziam: ‘Sócrates, eu amo você, mas, da próxima vez, você
vem para a minha casa, ou a gente pode se encontrar em
algum restaurante, mas eu não volto mais aqui pra ficar
trancado de novo’. […] Quando ele fazia isso de jogar a
chave fora, o que ele queria dizer, na verdade, era: ‘Que
bom que você está aqui, eu adoro ter você ao meu lado.
Isso é importante para mim e eu vou manter você ao meu
redor o máximo que eu puder’. Ele sempre ficava muito feliz
ao estar cercado por pessoas. Tinha dois lados: adorava ler
e ficar sozinho, mas preferia estar com muita gente,
conversando, bebendo cerveja e dando risada.”126
Sócrates nunca intelectualizou o futebol. De fato, nunca
foi de falar muito sobre o jogo. Ele acreditava que o futebol
era um esporte para ser jogado e assistido, não para ser
discutido. Escutava pacientemente os torcedores quando
eles falavam sobre jogos e gols, mas achava a conversa
entediante. Ele não gostava de análises e muito menos de
nostalgia. Como muitos outros grandes jogadores, Sócrates
não era capaz de explicar como fazia o que fazia, e não
tinha nenhuma intenção de tentar.
Ele nem mesmo via os jogos em que atuava. No início de
sua carreira, teve a chance de rever seu desempenho em
vídeo e concluiu que preferia se lembrar do próprio ponto de
vista no campo. Depois disso, quase nunca assistiu a
gravações de seus jogos.127
Em vez de falar sobre futebol, Sócrates falava sobre todo
o resto. Sua persona pública, especialmente depois que ele
foi parar nas manchetes por suas visões políticas e ativismo
social, era a de um homem sério com voz rouca, que de
modo casual transmitia palavras inteligentes sobre temas
importantes. Mas para as pessoas que conviviam com ele,
para seus familiares, entrevistadores, para os que ouviam
suas palestras e apresentações depois que Sócrates se
aposentou, ele não era nada sério. Era engraçado e irônico
consigo mesmo, tirava sarro de todo mundo sempre que
podia.
“Sacaneava tudo, sacaneava todos, como muitos
jogadores”, disse Mauro Beting, jornalista que trabalhou
com Sócrates na televisão e apresentou algumas das
palestras corporativas que ele deu alguns anos antes de sua
morte. “Mas às vezes, no meio da piada, no meio do humor
ferino, na sacanagem, ele vinha com algum conceito de
erudição. E aí, nessa erudição, ele ia entrando numa espiral,
ia girando, girando, girando e às vezes se perdia
completamente. Ele tinha essa coisa de estar sacaneando,
mas aí vinha alguma coisa, um tema na cabeça e ele
começava a falar sério pra caralho e depois voltava.
“Ele conseguia falar de qualquer coisa. Era
impressionante. Ele passava uma paixão e convicção em
qualquer assunto, que era muito legal. Um lado meio
iconoclasta, mas não daquele iconoclasta inconsequente.
Tinha alguns argumentos. Era aquela coisa muito
apaixonada e, ao mesmo tempo, um humor ferino muito
legal, tão divertido que podia ser a patacoada que fosse,
mas era o Sócrates falando. Patacoada no sentido de que
era uma bobagem. Podia ser uma coisa mais idiota, mais
pueril, ou nada a ver, ou nonsense, ou baseada numa
premissa falsa, mas que com ele ganhava um ar de
erudição, tipo: ‘Não, o Sócrates falou’. E, às vezes, era
interessante. ‘Não, ele estava bêbado, não estava sóbrio’. E
às vezes ele, bêbado, elucubrava raciocínios mais brilhantes
ainda. Isso era uma coisa legal, ele já enrolava a voz,
porque a voz já era enrolada naturalmente, bebendo às
vezes um pouco mais, mas a bebida dava um ar de bom
humor, de paz, e ele se divertia pra cacete.”128
Seu humor cáustico também aparecia em outro de seus
passatempos: dar apelidos às pessoas. A informalidade do
dia a dia no Brasil faz com que todo mundo tenha um
apelido, independentemente de sua origem ou posição
social. Essa informalidade prevalece de forma destacada no
futebol — onde ninguém conhece Edson, Arthur ou Manoel,
mas todos reconhecem Pelé, Zico e Garrincha. Sócrates
dava apelidos aos companheiros como uma forma de criar
uma conexão instantânea com eles, e não se importava se o
alvo tinha alguma objeção. Na verdade, ele se orgulhava
por ser capaz de irritá-lo.
Wladimir jamais gostou de ser chamado de “Saci”, em
referência à mítica criatura do folclore brasileiro. E Zé Maria,
o capitão do Corinthians, ficou satisfeito pelo fato de o
apelido “Bocão”, dado a ele por causa do radiante sorriso
que preenchia seu rosto, não ter pegado.
Algumas das ideias de Sócrates eram mais criativas que
outras: Maurinho Saquy, amigo que jogou com ele no
Botafogo, sempre foi chamado de “Aleijado”, por causa das
lesões persistentes que encerraram sua carreira ainda
jovem; as entradas no cabelo de Elzo, um meio-campista
vigoroso, lhe deram o apelido de “Carequinha”; o lateral
Branco era o “Coruja”; Batista era “Barney”, personagem
dos Flintstones; Júnior era “Capacete”, por causa do corte
de cabelo afro; Leandro era chamado de “Piscina de Favela”,
pois, de acordo com a explicação de Sócrates, tinha “a cara
toda estragada, com dois olhos azuis que destoavam”; o
presidente Lula era o “Barba”; e Marinho, também seu
companheiro no Botafogo, foi batizado de “Preguiça”,
porque odiava treinar. Uma de suas mais memoráveis
criações se deu na Fiorentina, com a chegada de um
adolescente de Vicenza com um corte de cabelo meio liso,
meio ondulado, típico de um pop star dos anos 1980: “Seu
nome é Boy George”, Sócrates disse ao garoto, que sorriu
com timidez. O nome verdadeiro dele? Roberto Baggio.129
Quando Sócrates retornou do giro da seleção pela
América Latina, em abril de 1981, encontrou o Corinthians
em crise. O clube começou o ano da mesma forma que
havia terminado o anterior, ganhando apenas quatro de
quinze jogos do Campeonato Brasileiro disputados sem seu
líder. Após perder por 4 × 1 em casa para o Santa Cruz, a
segunda derrota por três gols em uma semana, Matheus
tomou uma decisão drástica: colocou à venda alguns
jogadores titulares como Amaral, Geraldão e Vaguinho.
Wladimir, o representante dos jogadores, queria que
Sócrates interviesse, mas ele estava do outro lado do
continente e, quando retornou, três semanas depois, as
negociações já haviam sido concluídas.
O futebol de Sócrates melhorou muito durante o ano
anterior e suas experiências na seleção haviam sido
extremamente benéficas. Telê confiava nele o suficiente
para deixá-lo mudar o time ou a tática durante uma partida
e ele passou a pensar mais no jogo. Seus chutes ficaram
melhores — ele se aproximava mais da bola e batia com
mais força — e não havia ninguém no Brasil que passasse e
se posicionasse tão bem quanto ele. Tinha se tornado um
jogador mais coletivo do que no Botafogo e, ao alcançar
melhor forma física, era mais consistente em campo. A
subida de produção, ele disse, se devia à maturidade e à
responsabilidade que precisava exercitar em casa. Um
segundo filho, Gustavo, nasceu em 1977, e Marcelo veio
dois anos depois. Ainda que Sócrates frequentemente
agisse mais como irmão mais velho do que como pai, ele
acreditava que o aumento de responsabilidade produzia um
efeito em sua forma de jogar.
“Tenho muito claro para mim que meu jogo melhorou
como consequência de um amadurecimento pessoal. A
experiência de vida, a tranquilidade interior e a segurança
são fatores que influem no meu rendimento. Sabe por quê?
Porque eu precisei fazer tudo muito cedo. Antes dos
dezessete já estava na faculdade, onde convivi com pessoas
mais velhas e interessantes. Aos dezenove anos, era
jogador profissional e me mantinha com recursos próprios.
Aos vinte, casei — e não precisei pedir dinheiro à família.
Aos 21, era pai. Quando cheguei à seleção, aos 25, estava
com a cabeça feita. E foi tudo mais fácil.”130
Mas mesmo com seu principal jogador de volta, o
Corinthians não foi bem no Campeonato Paulista. Sócrates
estava em forma e, em junho, fez dois gols que estão entre
os que considerava os mais bonitos de sua carreira: um de
calcanhar contra o Guarani, em Campinas, e outro
maravilhoso, uma semana depois, contra o Botafogo,
quando, na entrada da área e de costas para o gol, ele
ergueu a bola com o pé direito dando um lençol no
defensor, girou e bateu de voleio com o pé esquerdo.
Infelizmente para o Corinthians, ele não vinha dominando
as partidas como tinha feito pela seleção brasileira algumas
semanas antes, e demorou um pouco até recuperar o
melhor ritmo. Ele defendeu sua escassa influência nos jogos
como algo temporário, uma fase que resultava de sua
ausência de quase quatro meses do clube. Sócrates ficou
surpreso com as mudanças no time enquanto esteve longe.
O Corinthians contratou vários jogadores para substituir os
que haviam sido dispensados por Matheus, e Sócrates se
preocupava com a possibilidade de o time voltar a jogar da
maneira apressada que não via como a ideal. Ele ainda não
tinha estabelecido uma conexão com os novos
companheiros e sentia dificuldades para jogar com eles e
por eles. Os jogadores da seleção eram seus amigos,
pessoas por quem ele sentia muito respeito por causa de
suas carreiras internacionais, e isso fazia muita diferença
em suas atuações. Acreditava que jogava melhor quando
estava entre amigos do que com estranhos. “O futebol para
mim é apenas uma passagem”, disse. “O que vale é a
amizade.”131
Sócrates também era jogador de jogos grandes, um
desses homens que têm a capacidade de elevar seu nível
de atuação para os encontros que mais importam. Gostava
dos jogos em estádios imensos, com ampla cobertura da
mídia e intensa pressão da torcida. Não é que simplesmente
gostasse dessas ocasiões; ele acreditava que jogar contra a
Argentina no Monumental de Núñez lotado era mais fácil do
que encontrar motivação para enfrentar o São Bento diante
de algumas centenas de pessoas em Sorocaba.
Os jogos do campeonato estadual deveriam ser mais
fáceis para os atletas do Corinthians, mas as dificuldades
continuaram na segunda metade do ano. Sócrates disputou
dezenove das 25 rodadas do Paulista entre agosto e
novembro, e o torneio ganhou mais importância do que
nunca por ser classificatório para o Campeonato Brasileiro
de 1982. Os melhores sete times dos estaduais se
classificavam para a competição nacional, mas o
Corinthians ganhou apenas oito jogos e ficou em oitavo
lugar, fora da zona de classificação. O resultado significou
que o clube iniciaria o ano de 1982 na Taça de Prata —
efetivamente, a segunda divisão brasileira.
A crise era, em parte, um reflexo do que acontecia no
campo. O técnico Osvaldo Brandão pediu demissão em 15
de julho, após um empate em 3 × 3, em casa, com o
Juventus. Ele foi substituído pelo treinador de goleiros
Julinho, que durou apenas três meses no cargo. Mário
Travaglini assumiu no final de setembro e se tornaria um
aliado importante para Sócrates no decorrer do ano, mas as
mudanças mais importantes haviam acontecido no nível da
diretoria.
O estatuto do clube impedia Vicente Matheus de concorrer
a um terceiro mandato consecutivo como presidente, mas o
astuto dirigente fez um acordo com Waldemar Pires, seu
vice e amigo. Matheus não queria deixar o poder e Pires
estava satisfeito em ser o número dois — de modo que,
embora tenham trocado de papéis na chapa da eleição, eles
combinaram que deixariam tudo como era antes, com
Matheus no comando e Pires como seu assistente. A
manobra era clara para todos, mas ninguém se importava e
quando os votos foram contados, no começo de abril, eles
venceram. O novo arranjo funcionou bem durante os meses
de inverno, mas começou a desmoronar de forma
memorável quando o autoritário Matheus foi longe demais:
ele não apenas se recusou a desocupar o escritório e a vaga
de estacionamento da presidência, como seus seguranças
impediram Pires de se sentar no camarote da diretoria para
ver um jogo.
A humilhação levou Pires a agir e, em agosto, ele
surpreendeu a todos — Matheus, em particular — ao exigir
seu devido posto como presidente. A princípio, Matheus
hesitou. Depois recuou e, quando percebeu que o ex-aliado
não mudaria de ideia, ele renunciou, deixando Pires montar
seu próprio time.
O episódio teria profundo impacto no futuro do clube,
mas, para Sócrates, o presente exigia mudanças nas suas
próprias perspectivas e em sua maneira de ver as coisas.
Ele havia enfrentado dificuldades de adaptação no
Corinthians, mas, passados dois anos e meio, o pior já tinha
ficado para trás e ele estava pronto para admitir que tinha
desenvolvido sentimentos pelo clube.
Talvez tenha sido em função de sua posição de destaque
em relação aos torcedores. Ele era o único corintiano numa
seleção que tinha seis jogadores do São Paulo, cinco do
Atlético Mineiro e três do Flamengo, e a torcida do
Corinthians percebia que ele era o jogador de brilho intenso
em um time que, de resto, era mediano.
Talvez tenha sido por todos os conflitos vividos. Os
companheiros sempre pediram para que ele abraçasse o
fato de a torcida do Corinthians não se importar apenas com
o resultado dos jogos e, após assinar um novo contrato, ele
decidiu aceitar a paixão lunática dos torcedores e tentar ver
seu lado positivo. Talvez tenha sido todo o tempo passado
com a seleção e sua ausência do clube, mas o fato é que
seu coração se sentia diferente.
Seja qual for a razão, enquanto estava nas frias
montanhas colombianas assistindo ao Corinthians passar de
um constrangimento a outro, Sócrates escreveu uma carta
de amor apaixonado ao Corinthians, pedindo mais espaço
no clube e declarando que, finalmente, não era só mais um
jogador do time, mas também um torcedor.
“Descobri um negócio importantíssimo aqui na Colômbia”,
Sócrates escreveu. “Se por acaso parasse de jogar futebol
agora, eu torceria para o Corinthians (e um pouco para o
Botafogo de Ribeirão Preto) até o fim da vida. Deve ser por
isso que estou cada vez mais louco de vontade de vestir
outra vez essa camisa que aprendi a amar por causa de
vocês.”132
Foi uma atitude bastante apropriada. Porque as mudanças
na diretoria eram o prenúncio de uma revolução no Parque
São Jorge. A forma como Sócrates agiria ao longo do ano
seguinte acabaria definindo sua carreira.
Capítulo 8
O que aconteceu ali é dessas raras coincidências que acontecem na
história. De repente, no mesmo lugar, juntaram-se pessoas com cabeças
diferentes, mas voltadas mais ou menos para a mesma direção e no meio
de uma baita necessidade.
Juca Kfouri

Em 1977, quando o Botafogo estava jogando bem e os


prêmios por vitória se acumulavam, Sócrates procurou seus
companheiros com uma ideia. Ele ainda não tinha interesse
em política ou partidos políticos, mas via injustiças e
desigualdades a seu redor e decidiu falar em nome dos
homens e mulheres que ajudavam o clube nos dias de
jogos. Ele achava que o massagista, a moça da lavanderia e
o faxineiro do estádio tinham papéis quase tão importantes
quanto os do lateral direito, do goleiro reserva e do
assistente técnico, e propôs que ficassem com uma
porcentagem da premiação.
“Olha, até a dona Palmira que lava roupa”, ele disse aos
companheiros depois de um treino. “Vamos estender à dona
Palmira, porque se a gente está aqui hoje com o uniforme
limpo, isso se deve a ela. E o Compadinho, zelador do
estádio? O Sebinho não pegava nada. Isso aqui não está
certo. Nós estamos numa fase boa. Vamos dividir com todo
mundo.”133
Seus companheiros gostaram da ideia e decidiram
oferecer aos funcionários um quinto dos prêmios pagos aos
jogadores. Eles levaram a sugestão aos diretores, que a
aprovaram.
Sócrates lutou essa mesma batalha, com sucesso, pouco
depois de chegar ao Corinthians, e cerca de um ano mais
tarde, liderou outra campanha. Os jogadores recebiam
apenas duas camisas oficiais por mês da patrocinadora
Topper, e não foram atendidos quando pediram mais à
empresa. Se eles quisessem uma camisa extra para alguma
ação especial ou para dar de presente a um amigo, teriam
de pagar por ela.
Sócrates reuniu os jogadores e sugeriu que treinassem
com as camisas viradas do avesso, de modo que a marca da
patrocinadora não aparecesse na televisão e nos jornais.
Eles concordaram e o efeito foi instantâneo: a Topper
reclamou com o clube, que disse que a questão dizia
respeito aos jogadores. Dois dias depois, a empresa
concordou em dar dez camisas por mês aos jogadores, para
uso pessoal.134
“Eu lembro que essa foi a primeira vez que ele assumiu
um papel de liderança”, disse o goleiro Jairo. “Ninguém
tinha pensado em Democracia Corinthiana até aquele
momento e, para mim, aquele foi o início. Para nós, os
jogadores, o respeito que ele tinha por nós e que nós
tínhamos por ele não mudou em nada, mas ele começou a
ter mais liderança. Ele decidia mais.”135
Alguns meses depois, em fevereiro de 1981, Sócrates fez
seu apelo mais explícito por mais participação na
administração do clube. O time do Corinthians passava por
um péssimo momento e Sócrates, que estava na Colômbia
para disputar as eliminatórias para a Copa do Mundo, fazia
muita falta. Para ele, a origem da crise não estava nos
jogadores ou nas táticas, mas na hierarquia exagerada que
mantinha os jogadores subservientes. Ao mesmo tempo em
que expressava seu amor pelo clube, ele pedia mais espaço.
A chave do sucesso era fazer gols, dizia, mas a chave para
marcar gols era a solidariedade.
“O que se necessita no futebol do Corinthians — e não só
no Corinthians, nem unicamente no futebol — é estreitar a
distância que separa o patrão do empregado”, ele disse à
Placar. “No nosso caso específico, o empregado, que é o
jogador, tem seus deveres muito bem colocados. Tudo
perfeito. Só que o relacionamento acaba exatamente aí.
Você nunca deixa de ser exclusivamente um empregado. O
ser humano não existe. As questões pessoais não são
levadas em conta.
“Ora, diante de uma mentalidade dessa, o profissional vai
fazer o quê? Vai fazer o essencial, vai bater o seu ponto e
vai embora na hora marcada. Ele não tem estímulo para
agir além do dever, para criar, para amar seu ambiente de
trabalho. Sinceramente, eu respeito e admiro as empresas
com capacidade para levar seus funcionários a dizerem em
público: ‘Nós, da empresa tal…’. Como eu gostaria que o
time todo falasse: ‘Nós, do Corinthians…’ ou ‘Nós,
corintianos…’, e não ‘Eu, fulano’ ou ‘Eu, beltrano’.
“O que eu queria — e sei que outros companheiros
também querem — é que o Corinthians fosse a extensão da
família de cada um de nós. E, no entanto, não é. Por isso,
prometo aos corintianos que, ao voltar a São Paulo,
continuarei lutando, com a força do prestígio que adquiri
nesses anos de futebol, para mudar esse quadro.”136
Essas eram as sementes da Democracia Corinthiana que
Sócrates vinha plantando havia mais de um ano. Elas
finalmente começaram a germinar no final de 1981, nas
condições apropriadamente quentes da Bacia do Caribe.
O Corinthians terminou o Campeonato Paulista daquele
ano na oitava colocação geral. Como o Estadual definia a
classificação ao Campeonato Brasileiro do ano seguinte, o
clube, que fez campanha irregular no Paulista, se classificou
apenas para a Taça de Prata, uma espécie de Série B. Em
1982, liderou a segunda fase de grupos do torneio e por
isso, de acordo com o regulamento da época, saltou para
fases avançadas da Taça de Ouro, a primeira divisão.
Ainda em 1981, porém, a eliminação precoce no Paulista
deu ao Corinthians tempo no fim do ano para fazer uma
excursão de três semanas ao México, Guatemala e Curaçao.
O time ganhou o troféu Feira de Hidalgo em Pachuca, ao
vencer o Independiente (da Argentina, por 2 × 1) e o Club
América (do México, por 2 × 0). Depois, voou para a
Guatemala, onde venceu o Comunicaciones por 1 × 0 e
empatou em 0 × 0 com o Aurora. A viagem terminou em
Curaçao, com uma goleada de 6 × 0 sobre a seleção do
país.137
Muitos jogadores nunca tinham passado tanto tempo
longe de suas famílias e tiveram dificuldades para lidar com
o ambiente estranho, o idioma estrangeiro e os longos
períodos de tédio que caracterizam essas viagens. Sócrates
ficou chateado por perder o aniversário de um de seus
filhos; Paulo Cézar expressou sua frustração por não ser
titular; e Caçapava chorava quando ouvia os mariachis
cantando melosas baladas românticas na Cidade do México.
Mas em vez de permitir que a viagem os afetasse, eles se
uniram ainda mais. Viram coisas que nunca tinham visto
antes e conversaram sobre elas. As conversas extrapolaram
o futebol e, na companhia de cervejas geladas — e, de vez
em quando, algum coquetel exótico —, eles se
aproximaram.
Um dos incidentes mais memoráveis envolveu Paulo
Cézar Lima, o PC Caju, exuberante meio-campista ofensivo
que jogou no Botafogo e no Olympique de Marselha e atuou
em quatro dos seis jogos do Brasil na Copa do Mundo de
1970. Numa noite, os jogadores estavam bebendo no
saguão do hotel quando Caju, recém-contratado, juntou-se a
eles. Enquanto a maioria saboreava cervejas, Sócrates
percebeu que ele pediu duas garrafas de champanhe; pela
lembrança de Wladimir, porém, foram quatro doses de licor
Grand Marnier.138
Fosse como fosse, disse Sócrates, Caju desapareceu sem
pagar sua parte da conta. “Depois da segunda garrafa, ele
se dirigiu ao sanitário e sumiu, literalmente. Os bobos aqui
tiveram de pagar aquela extravagância do PC Caju e até
hoje estamos a ver navios.”139
Os jogadores ficaram chateados e o ambiente não
melhorou no aeroporto de Caracas. O voo de volta de
Curaçao para o Brasil era via Venezuela, mas um
planejamento malfeito e a tentativa de economizar
significavam que eles teriam de fazer uma escala de catorze
horas, e os ânimos se exaltaram durante a longa espera,
com os jogadores sentados em cadeiras de plástico ou
deitados no chão diante do portão de embarque. Em certo
momento, eles conversaram sobre dividir o dinheiro dos
patrocínios pessoais. A maioria concordou com a ideia, mas
houve quem manifestasse oposição.
O incidente levou a um debate sobre qual tipo de jogador
era mais adequado ao Corinthians, e eles chegaram à
conclusão de que estariam mais bem servidos com
jogadores experientes que trabalhassem duro em vez de
figuras mais individualistas. Caju entendeu o recado e não
demonstrou muito incômodo. Quando chegou ao Parque São
Jorge, seu armário no vestiário estava cheio de baratas, o
que o deixou chateado com a falta de organização e de
respeito. Ele deixou o Corinthians algumas semanas mais
tarde, depois de ter jogado apenas quatro vezes.140
“Nessa excursão, nós percebemos duas pessoas
individualistas, que eram o (goleiro) Rafael (Cammarota) e o
Paulo Cézar Caju”, disse Wladimir. “O Rafael, às vezes,
achava que tinha que ganhar a posição no grito. O Paulo
Cézar Caju também pensava só nele, achava-se o
bambambã, campeão do mundo, essa coisa toda.”141
“Caju não combinava com a gente”, disse Wladimir. “Nós
decidimos que queríamos jogadores que contribuíssem para
o clube. O Caju se achava melhor do que a gente, então
decidimos tirá-lo. […] Foi na excursão que, realmente, tudo
ficou claro. Quando fomos viajar, éramos peças de um
quebra-cabeças bagunçado. Durante a viagem, as peças ou
se encaixaram em seus próprios lugares ou acabaram de
fora.”142
O outro fator extremamente importante para transformar
as ideias progressistas de Sócrates em algo mais concreto
foi a nomeação de Adilson Monteiro Alves como diretor de
futebol. Filho do vice-presidente Orlando Monteiro Alves,
Adilson deixou a administração da empresa de biscoitos da
família para trabalhar no Corinthians no começo de
novembro.
Ele foi uma escolha incomum, mesmo porque era
sociólogo por formação e não escondia sua inexperiência.
Seu primeiro encontro com os jogadores era para ser uma
rápida conversa de apresentação, mas se transformou num
debate de horas em que Adilson admitiu abertamente não
saber nada sobre a direção de clubes de futebol, e os
jogadores — liderados por Sócrates — aproveitaram a
oportunidade para dizer a ele exatamente o que estava
errado e o que poderia ser feito para mudar.
Foram discutidas ideias inéditas como o fim da
concentração, a diminuição das enormes discrepâncias
salariais no elenco e o oferecimento aos jogadores de um
percentual da bilheteria.143
Surpreendentemente, a conversa tocou em assuntos que
iam muito além do futebol, e Adilson disse aos jogadores
que eles poderiam ser agentes de transformação.
“Estou transmitindo a eles que não temos de aceitar a
vida tal como ela se apresenta”, disse Adilson. “Devemos
questioná-la, discutir. Mudar, se for preciso. Foi assim que o
povo brasileiro conseguiu a abertura. E é assim que o
Corinthians poderá se tornar um time espiritual e
financeiramente mais forte do que o São Paulo e o
Flamengo, por exemplo. Somos potencialmente mais ricos
do que eles.”144
A disposição de Adilson para considerar ideias tão radicais
foi apenas uma das razões para que os jogadores o
aceitassem rapidamente. Ele ainda estava na casa dos
trinta anos de idade, pouco mais velho do que os jogadores
que lideraria, era aberto, ambicioso e sensato. Havia sido
um estudante ativista, tinha um senso de humor mordaz e o
fato de usar barba era um sinal inquestionável de
liberalismo num país em que o adereço ainda era
exclusividade de roqueiros, hippies e comunistas. Em sua
apresentação aos jogadores, ele disse: “Eu conheço
biscoitos e sociologia, mas não futebol. Então me digam o
que estamos fazendo de errado”. Foi música para os
ouvidos de Sócrates, que imediatamente respondeu: “Nós
temos uma solução, vamos começar a exercer”.145
Antes mesmo da viagem ao Caribe, Adilson tinha
apresentado sua ideologia para que todos a conhecessem.
Corintiano de toda a vida, ele se entusiasmava com a
possibilidade de retorno da democracia ao país e sonhava
em usar o clube como um veículo para acelerar o processo.
Disse publicamente aos jogadores que eles deveriam
questionar o que acontecia a seu redor, e se aproximou
ainda mais de Sócrates quando declarou que clubes de
futebol não eram “empresas capitalistas que existem para
obter lucro”.146
Adilson tinha um aliado importante em Travaglini, que não
era o típico técnico brasileiro. Zagueiro experiente que se
aposentou aos 29 anos e passou a ser treinador, Travaglini
era uma dessas raras pessoas no mundo provinciano do
futebol brasileiro que era tão bem-vinda no Rio de Janeiro
quanto em São Paulo, seu estado natal. Ele conduziu o
Palmeiras a títulos estaduais e nacionais no final dos anos
1960 e foi campeão brasileiro com o Vasco, em 1974. Um
solteiro convicto que vivia com a irmã e exaltava os valores
familiares italianos, Travaglini era uma das pessoas mais
populares do futebol no Brasil, famoso pela insistência em
tratar os jogadores com respeito e dignidade.
Ele rejeitava a ideia convencional de que os futebolistas
eram crianças que precisavam ser orientadas, idiotas que
queriam ser mimados, ou delinquentes que deviam ser
colocados na linha. Enquanto Adilson dizia aos jogadores
que eles eram funcionários do clube como todos os outros,
devendo ter os mesmos direitos e receber tratamento
respeitoso, Travaglini declarava que eles eram adultos mais
do que capazes de entender a diferença entre o certo e o
errado. Ele os encorajou a estabelecer o próprio sistema de
multas e punições e a utilizá-lo sempre.
“Rapidamente eles perceberam que todos tinham poder e
que nenhum deles queria ser punido”, disse. “Ou eles se
disciplinavam ou receberiam as punições previstas.”147
O efeito global de tudo isso foi aproximar jogadores e
diretoria, e eles conversavam muito. Não eram mais eles e
nós, chefes e funcionários, mestres e servos. Pela primeira
vez em muito tempo, o Corinthians era um time.
Os jogadores retornaram da folga de Natal em janeiro e a
nova atmosfera pôde ser notada desde o primeiro dia. Eles
normalmente passariam por uma bateria de exames para
avaliar a forma física, mas Adilson queria preservar o
momento e, em vez de testes, organizou um churrasco. Os
jogadores foram avisados com antecedência e César dirigiu
cerca de 2.400 quilômetros de sua cidade natal, Maceió,
com um dourado de dezenove quilos no porta-malas do
carro. O clube ofereceu carne e frango e não economizou na
cerveja. Sócrates e Paulinho trouxeram violões e, horas
depois, promoveram uma cantoria coletiva.148
O elenco era pequeno, mas esses encontros especiais
significavam que o grupo se unia cada vez mais, e Adilson,
com Sócrates e Wladimir como tenentes no vestiário,
moveu-se rapidamente para colocar as novas ideias em
prática. O novo sistema se baseava na participação de
todos e na noção de que decisões importantes que
envolviam o time de futebol deveriam ser colocadas em
votação e aprovadas pela maioria. Embora alguns jogadores
nunca tivessem votado na vida, Adilson os convenceu de
que deveriam discutir seus objetivos e intenções, e tomar
decisões não como indivíduos, mas como um time. A cada
semana — ou com maior frequência, se alguém solicitasse
uma reunião de emergência — eles se reuniam no vestiário
ou na sala de musculação e debatiam os assuntos
propostos.
A ideia inicial era fazer os jogadores falarem uns com os
outros, mas qualquer tema podia ser discutido: eles
votavam em que dia deveriam viajar para jogos em locais
distantes, horários de início e fim dos treinamentos, e se o
ônibus deveria ou não fazer paradas na volta de jogos fora
de casa. Todos os envolvidos com o time profissional,
incluindo reservas e equipe de suporte, tinham a chance de
dizer o que pensavam, embora, na prática, Adilson,
Sócrates e Wladimir liderassem os debates. Eles estavam a
par da situação financeira do clube e consideravam essa e
outras realidades para tomar as decisões.
Uma das primeiras resoluções foi permitir que os
jogadores fizessem o check-in no aeroporto, uma questão
menor, mas que decorria da confiança na capacidade deles
de realizar suas próprias tarefas. Não demorou, no entanto,
para Sócrates puxar suas ideias para a pauta e sugerir um
debate a respeito da concentração, a antiga instituição do
futebol baseada na premissa de que não era possível
confiar na responsabilidade dos jogadores.
Sócrates odiava a concentração por várias razões,
algumas mais nobres do que outras. Ele acreditava que
quando os jogadores ficavam confinados por dias, não
focavam no jogo, mas no apito final que significava
liberdade. Odiava ser tratado como um criminoso que
precisava ser trancado para seu próprio bem, e ficava
indignado que um adulto de 28 anos não pudesse ir e vir
como quisesse. Sócrates tinha esposa e filhos em casa e
queria estar com eles. Também era um hedonista que
queria passar o tempo bebendo e se divertindo.
A discussão sobre a concentração era a mais importante
de todas para Sócrates, e encapsulava a razão pela qual ele
investiria tanto no novo movimento. O maior objetivo de
Sócrates — o que foi a luta de sua vida — não era a
democracia, mas a liberdade. Ele odiava que alguém
dissesse o que ele deveria fazer, e, quando alguém dizia,
seu primeiro instinto era se rebelar.
“Toda a vida ele buscou ajustar a estrutura do futebol
profissional a seu estilo de vida boêmio”, disse Raimundo,
seu irmão. “A questão da concentração, por exemplo, era
mais sobre estender sua ideologia pessoal ao grupo social.
Ele reivindicava a liberdade de estar em casa numa sexta-
feira, ou mesmo num sábado à noite, e de assumir a
responsabilidade sobre seus atos, inclusive o de beber, ou
não, sua cerveja; para isso, o regime da concentração
precisava ser revisto. Ele não poderia conquistar isso
sozinho: era necessária a Democracia Corinthiana. Não que
tenha feito tudo conscientemente, mas sua motivação era,
em grande parte, harmonizar seu ambiente profissional ao
seu estilo de vida nada convencional.”149
Sócrates sabia que a concentração era uma prática
arraigada e que eventuais mudanças levariam tempo.
Mesmo desejando sua abolição imediata, convenceu-se a ir
passo a passo. Primeiro sugeriu tornar a concentração
opcional para todos, mas Travaglini queria uma exceção
para os jogadores solteiros e mais jovens, muitos dos quais
viviam sozinhos ou em condições precárias. Hospedar-se
num hotel luxuoso na véspera de jogos lhes oferecia
tranquilidade e era uma garantia de alimentação e
descanso apropriados.
Levou alguns meses para que uma decisão fosse tomada.
A princípio, reduziu-se a concentração de duas noites para
uma. Foi um sucesso e, antes do final do ano, eles
resolveram permitir que os jogadores casados não se
concentrassem. Não era uma norma obrigatória e muitos
dos casados preferiam uma noite tranquila num bom hotel
às distrações caseiras com esposas e crianças pequenas. No
final da temporada, Sócrates se via tão envolvido em fazer
o movimento crescer e tão confortável ao lado dos outros
jogadores que até mesmo ele, algumas vezes, escolheu
ficar no hotel com os companheiros.
Outra decisão crucial que ficou sob responsabilidade dos
jogadores era a relativa a novas contratações. Quando o
Corinthians precisava de um novo jogador, a diretoria
apresentava uma lista com três possíveis alvos e o elenco
debatia sobre uma recomendação. O mundo do futebol era
fechado e eles sabiam quais eram os jogadores que
resolviam, os que se machucavam com frequência e quem
abraçaria ou rejeitaria o projeto de democracia. Quando
chegavam a uma decisão, eles informavam o nome
escolhido aos diretores, que — se o clube tivesse condições
— fariam todo o esforço para contratá-lo.150
Os jogadores eram estimulados a discutir seus problemas
abertamente, fosse dinheiro, táticas, escolhas do técnico ou
temas pessoais. Mas isso transcorria no Brasil do início dos
anos 1980, depois de quase duas décadas de um regime
repressor e autoritário. As pessoas não estavam
acostumadas a ter voz e alguns atletas demoraram um
pouco até que se sentissem confortáveis para dizer o que
pensavam. Parte deles tinha receio de uma repercussão
negativa caso expressassem suas opiniões, e outros tinham
medo de soar como estúpidos. O zagueiro Mauro disse que
muitos simplesmente decidiram agradar a Sócrates e
colaborar. Os jogadores não eram intelectuais. Eles sabiam
pouco sobre democracia e se interessavam menos ainda, e
acreditavam que era apenas uma questão de tempo até que
o clube tomasse medidas ou os militares acabassem com
tudo.151
A velha guarda estava igualmente cética, e receava que
uma flexibilização das restrições poderia dar aos jogadores
— muitos dos quais eram, não por coincidência, negros e de
formação carente — a chance de acabarem dando as ordens
no clube. Os conselheiros do Corinthians relacionavam
democracia a anarquia e, quase todos os dias —
particularmente depois de um resultado ruim —,
reclamavam de maneira clara e áspera, culpando a abertura
e declarando o movimento pouco mais do que uma
desculpa para que os jogadores fizessem o que quisessem.
Sócrates e seus companheiros tentaram neutralizar essas
preocupações esclarecendo que sempre colocavam o
futebol em primeiro lugar e que as demarcações rigorosas
que separavam os papéis de cada um não seriam alteradas.
Numa tentativa de acalmar o temor de uma revolução,
criaram um lema: “Liberdade com responsabilidade”.
“O que era diferente era a forma como os jogadores
participavam”, explicou Hélio Maffia, o veterano preparador
do clube. “Não era só o técnico dizendo: ‘Você faz isso e
aquilo’. Nós todos tínhamos as nossas responsabilidades. O
departamento médico decidia que tratamento era indicado
para cada jogador. E o técnico mostrava aos jogadores
como a coisa seria.
“Facilitou muito meu trabalho”, disse Maffia. “No sentido
da responsabilidade. O jogador, no treino, não está nem aí.
Se você manda correr para lá, ele corre; se manda correr
para cá, ele também corre. Reuníamos todos e
explicávamos que íamos fazer esse tipo de trabalho por
esse ou aquele motivo.
“Todo mundo falava em democracia como se fosse uma
bagunça. A Democracia Corinthiana não era; era o
contrário.”152
Uma das lembranças mais claras da infância de Sócrates
era a de seu pai fazendo uma fogueira no jardim, quando
ele tinha dez anos. O golpe militar tinha acontecido fazia
pouco tempo, e seu Raimundo estava queimando livros.
Sócrates era muito pequeno para entender o porquê e,
quando pediu ao pai que explicasse, ouviu: “Ah, são só
livros velhos, filho”. Sócrates não captou o que estava
acontecendo, mas ao ver as chamas aumentarem,
instintivamente percebeu que algo estava errado. Só
alguma coisa muito séria levaria seu pai a destruir seus
objetos mais valiosos.
O incidente se reproduziu na cabeça de Sócrates ao longo
dos anos e, quando ele pôde ler os clássicos e os filósofos,
costumava checar para ver se o autor era um dos que
tinham tido seus livros queimados na fogueira do jardim.
Finalmente, juntando algumas pistas com seu pai e se
aprofundando na obra de Platão, Nietzsche e Orwell, ele
compreendeu o acontecido.
“Ele tinha um pouco de medo por causa da função pública
que exercia”, lembrou Sócrates. “Tinha literatura, tinha O
Capital, de Marx, tinha Engels, tinha todo mundo, ele lia
tudo, da direita à esquerda. Gramsci, Maquiavel… E ele saiu
queimando, porque achava que aquilo poderia criar
constrangimentos para ele. E foi chocante. Eu não entendi,
porque ele não me explicou.
“Depois comecei a correr atrás dessa literatura. O que
era? Comecei a incomodá-lo. Por que queimou? Que tipo de
livro era? Aí ia tirando dele os pedacinhos da história e
correndo atrás. Mesmo que eu não entendesse muito o
conteúdo daquilo tudo, é algo que ficou marcado em mim. A
partir do momento que eu comecei a ter noção e
capacidade de entendimento daquilo tudo que nos estava
sendo mostrado historicamente, comecei a correr atrás de
muito mais coisas.”153
Uma das pessoas que apresentaram a ele ainda mais
novidades foi Adilson, o cérebro do novo movimento e um
homem que tinha lido muito mais livros do que todo o
elenco do Corinthians. Adilson — assim como os jogadores,
ele era conhecido apenas pelo primeiro nome — sentiu
imediata afeição por Sócrates e rapidamente reconheceu
que, para o movimento ter chances de sucesso, ele
precisaria do apoio do melhor jogador do time.
Adilson era um animal político e tinha sido líder estudantil.
Foi a influência dele que ajudou a transformar o cidadão
consciente num provocador político. Ele deu a Sócrates
livros para ler, adorava lhe ensinar princípios de filosofia e
sociologia, e o apresentou a políticos, acadêmicos e artistas
que ampliaram ainda mais seus horizontes. Fez tudo isso
enquanto encorajava Sócrates a beber e se divertir, e
participava dos momentos de hedonismo quando tinha
chance.
Outra grande influência sobre Sócrates foi Juca Kfouri,
editor da Placar. Kfouri estudou sociologia na Universidade
de São Paulo alguns anos depois de Adilson e trabalhou
como motorista e mensageiro de militantes de esquerda
que se preparavam para lançar uma rebelião armada no
final dos anos 1960. Ele ingressou no jornalismo na década
seguinte e conheceu Sócrates quando preparou uma edição
especial sobre sua vida, em 1979. Embora fosse apenas
quatro anos mais velho que o jogador sobre o qual escrevia,
Kfouri confrontou Sócrates após uma entrevista em que ele
elogiava ditadores e políticos de direita. Sócrates não
estava acostumado a ouvir pessoas criticando o regime tão
abertamente, mas absorveu tudo e, em pouco tempo, Kfouri
passou a recebê-lo para jantares em que compartilhavam
fettuccine Alfredo, seguidos de horas e horas de drinques e
conversas. Kfouri ficava admirado com a fome de Sócrates
por informação de todos os tipos e sua facilidade para
compreender.
“Ele sempre me perguntava: ‘Que livros está lendo, que
filmes você foi ver?’. Ele ia pouco ao cinema, mas lia muito.
Era um devorador de livros. Então ele perguntava. Eu me
lembro de Tudo que é sólido se desmancha no ar, por
exemplo. Ele amou. Aquele livro do Marshall Berman… Eu
estava lendo e ele me perguntou: ‘E aí?’. Eu disse que era
muito legal, estava gostando muito. Ele comprou o livro,
terminou antes de mim e veio falar comigo. Eu falei: ‘Mas eu
não acabei ainda!’. ‘Pô, você é muito lento’, respondia. E era
assim. Era sempre assim. Às vezes, eu falava pra ele, de
sacanagem: ‘Você não leu inteiro, não é possível que tenha
lido essa merda inteira’. E ele tinha.”154
O outro fator fundamental no processo de politização de
Sócrates era seu novo entorno. A cidade de São Paulo era
tanto um catalisador quanto um teste para ele, o lugar em
que amadureceu. A maior metrópole do Brasil estava
repleta de músicos, intelectuais, artistas, escritores,
políticos, sindicalistas e ativistas de diversos tipos, e, como
o maior nome do time de futebol de maior torcida da
cidade, Sócrates tinha acesso a todos eles. Ele aproveitou
ao máximo e passou tardes e noites em cinemas, teatros,
galerias de arte, boates e, mais até do que jogar futebol,
adorava passar longas horas debatendo política e filosofia
em mesas sobre as quais havia muitas garrafas de cerveja.
Desde o primeiro dia, Sócrates foi o rosto do novo
movimento nascido no Corinthians, o jogador que, junto
com Wladimir, articulou suas ideias para os torcedores e a
mídia. Era uma posição que gerava aplausos e adulação de
quem estava do seu lado, mas sobressaltos e indignação de
quem era contrário às novidades.
Sócrates aceitou o papel com sua tranquilidade
característica. Sabia que poucos de seus companheiros
tinham a capacidade intelectual — e ainda menos o desejo
— de encarar a imprensa com frequência a fim de explicar o
que eles estavam tentando fazer. Muitos dos jogadores
haviam tido apenas o ensino primário e, enquanto talvez
apreciassem a maior liberdade, essa não era sua luta e eles
não estavam prontos para se colocar na linha de frente. A
liderança era natural para Sócrates e veio com a vantagem
adicional de permitir a ele que determinasse a agenda do
movimento.
Ele também sabia que o sucesso em campo era
absolutamente vital para a prosperidade do movimento, e
as vitórias vieram, embora não tão rapidamente. O
Corinthians começou sua campanha na Taça de Prata com
uma vitória por 2 × 0 sobre o América, e depois escorregou
em empates com o Colatina e o Catuense, resultados
pobres que significaram que seria necessário ganhar os dois
jogos restantes para manter as chances de classificação. Foi
o que aconteceu, graças, em grande parte, a Casagrande —
um atacante de dezoito anos que marcou quatro gols em
sua estreia, a vitória por 5 × 1 sobre o Guará, e que
também fez um gol nos 3 × 1 sobre o Leônico.
Sócrates tinha machucado o tornozelo num amistoso de
pré-temporada e não pôde atuar nessa instável primeira
fase, mas retornou para ser o parceiro de Casagrande pela
primeira vez nos dois jogos seguintes, contra Fortaleza e
Campinense. As vitórias obtidas graças ao entendimento
que a dupla desenvolveu rapidamente levariam o
Corinthians de volta à primeira divisão. Sócrates marcou na
vitória por 4 × 2 em Fortaleza e deu assistências para
Casagrande e Eduardo nos 2 × 1 sobre o Campinense.
Os resultados conduziram o Corinthians para a Taça de
Ouro e, apenas dias depois, o time estreou na fase seguinte
num grupo com Atlético Mineiro, Flamengo e Internacional.
Os três oponentes já tinham conquistado o Campeonato
Brasileiro e poucas pessoas davam ao Corinthians alguma
esperança de classificação entre os dezesseis melhores
times.
Mas as mudanças que aconteciam dentro do clube
tornaram os jogadores mais unidos e deram a eles um
senso de propósito. O Corinthians empatou em 1 × 1 com o
Flamengo, time que dois meses antes tinha vencido o
Liverpool para conquistar o Mundial Interclubes. Depois, fez
2 × 0, fora de casa, no Internacional, e 3 × 1 sobre o
Atlético Mineiro, em Belo Horizonte, com Sócrates e
Casagrande marcando gols nos dois jogos. As vitórias fora
de casa foram muito importantes para os jogadores, que
transformaram o time, quase da noite para o dia, de uma
equipe oscilante de segunda divisão, que não conseguia
vencer adversários inferiores em casa, num conjunto
confiante e goleador, capaz de derrotar dois dos maiores
times do país em seus estádios.
Os resultados contra o Atlético e o Inter foram seguidos
de novas vitórias em casa, o que significou que o
Corinthians já estava classificado para a fase seguinte antes
de jogar no Maracanã e perder para o Flamengo por 2 × 0.
O time manteve a boa forma nas oitavas de final,
vencendo o Bahia por um placar agregado de 6 × 3, e
passando depois pelo Bangu, nas quartas, pelos critérios de
desempate. A campanha terminou nas semifinais, com uma
derrota para o Grêmio pelo placar agregado de 5 × 2, mas
um lugar entre os quatro melhores do Brasil foi uma
conquista admirável para uma equipe que sequer havia
começado a temporada na primeira divisão.
O futuro do Corinthians era bastante promissor, dentro e
fora do campo. Sócrates estava jogando bem e se sentia
revitalizado, otimista em relação aos destinos do clube. Mas
foi forçado a colocar esses pensamentos de lado depois da
derrota para o Grêmio. O momento que mais esperava
estava chegando. Ele iria para a Espanha para liderar seu
país na Copa do Mundo.
Capítulo 9
Só tenho uma certeza: eu vou ser campeão do mundo em 1982. Custe o
que custar.
Sócrates

Sócrates chegou ao centro de treinamentos do Brasil para a


Copa do Mundo prometendo jogar como goleiro se isso
ajudasse a seleção a ganhar. Ainda se sentia energizado
pelo brilhante início de temporada no Corinthians e estava
preparado para fazer qualquer coisa por seu país. Jogar
como goleiro era improvável, assim como deixar de beber
ou de fumar. Mas essa era, ele acreditava, sua melhor e
talvez única oportunidade de tentar a maior glória do
mundo do futebol, e assim decidiu que valia a pena
abandonar temporariamente os hábitos de uma vida inteira.
Uma das muitas razões pelas quais Sócrates preferiu o
futebol à medicina foi a chance de jogar o torneio mais
glamoroso de todos, e ele tomou a decisão consciente de
fazer todos os sacrifícios necessários para a ocasião.
Embora seu pai tivesse insistido durante anos para que ele
parasse de fumar, Sócrates só considerou diminuir o uso de
cigarros em meados de 1980. Até então, fumava até dois
pacotes de Minister por dia, mas tinha conseguido cortar
para meio pacote na metade daquele ano e se sentiu muito
melhor. Ganhou peso, passou a sentir menos dificuldade
para treinar e pôde aproveitar mais o futebol.
Os hábitos ruins eram uma irritação constante para Telê
Santana, que parou de fumar em 1965 e sempre falou aos
jogadores dos males provocados pelo cigarro. Dois anos
antes da Copa, Telê disse abertamente a seu capitão que o
que o separava da verdadeira grandeza era o tabaco.
“Se Sócrates se cuidasse como o Zico, que não fuma, ele
seria o melhor jogador do Brasil”, disse Telê. “Atualmente,
Sócrates compensa sua deficiência física com a juventude e
uma indiscutível categoria. Mas o tempo passa e, até a
Copa, eu não sei se ele continuará a conseguir isso,
fumando do jeito que fuma.”155
Telê falou sobre Sócrates, mas o corintiano estava longe
de ser o único futebolista daquele tempo que gostava de
fumar — e muito menos de beber. Um a cada cinco
jogadores brasileiros admitia que fumava — o número
verdadeiro era, sem dúvidas, muito maior — e Júnior,
Luizinho, Serginho e Batista eram apenas alguns do elenco
da Copa do Mundo que mantinham esse hábito.156
Quase todos os jogadores tomavam cerveja e Toninho
Cerezo estava acostumado a sempre tomar um gole de
cachaça depois do banho, porque acreditava que isso o
ajudava a não ficar gripado.157
Sócrates tomou a traumática decisão de parar de fumar
no começo de 1982, depois de uma longa conversa com o
preparador físico Gilberto Tim. Nacionalista convicto, assim
como Sócrates, Tim era o grande motivador na preparação
da seleção, e disse ao capitão do time que se ele parasse de
fumar e bebesse menos, assombraria o mundo.
Sócrates adorava a intensidade e a convicção de Tim e se
sentia motivado para tentar deixar sua marca. Quando
Sócrates voltou das férias oito quilos acima do peso, Tim,
com a ajuda do preparador físico do Corinthians, Hélio
Maffia, colocou-o num rigoroso regime para transformar
aquela gordura em músculos. Sócrates rapidamente perdeu
alguns quilos e estabilizou seu peso em 84 quilos, mais
apropriado a alguém que media 1,93m. Após cinco meses
de trabalho duro na academia e no centro de treinamentos,
seu peitoral, bíceps e coxas ganharam massa, enquanto sua
cintura permaneceu com a mesma medida.158
As mudanças o transformaram em um jogador mais forte
e mais rápido. Quando os médicos da seleção avaliaram o
desempenho físico dos jogadores, antes da Copa, Sócrates
foi especialmente bem em comparação com seu histórico.
Podia saltar mais alto, em movimento, do que qualquer
outro companheiro, e ninguém percorria trinta metros mais
rápido que ele. Somente Edinho tinha um chute de pé
direito mais forte.159
Telê anunciou a convocação em três estágios. Sócrates se
apresentou em 20 de abril, após a eliminação do
Corinthians da Taça de Ouro. O último grupo de jogadores,
dos finalistas Flamengo e Grêmio, chegou ao centro de
treinamentos do Cruzeiro, em Belo Horizonte, seis dias
depois. Falcão e Dirceu se juntariam ao grupo quando as
campanhas de seus clubes na Europa, Roma e Atlético de
Madrid, terminassem, em maio.
Preocupado com os efeitos do calor espanhol, Tim
preparou um ultrarrigoroso regime de treinamentos para
todo o elenco, com tiros de velocidade, voltas no campo e
exercícios de alongamento. Era como uma tortura para
Sócrates, que vomitou ao lado do campo em diversas
ocasiões. Mas sua dedicação à causa inspirou os demais.
Seus companheiros podiam notar como o capitão da seleção
tinha colocado os interesses do grupo acima dos próprios e
ficaram impressionados.
“Pô, Magrão, puxando fila, hein?!”, gritou Zico, para
gargalhada geral. “O que está acontecendo?”160
“O grande momento que lembro com muita alegria e
prazer foi a transformação dele na Copa de 1982”, contou
Zico. “Ele queria ganhar, sabia da importância daquilo,
parou com tudo e só se dedicou à parte física, técnica e
tática durante aquela preparação para a Copa. Foi muito
bacana; como capitão, o cara puxando fila.”161
A escalação do time estava praticamente definida, com
uma questão pendente em relação ao papel de
centroavante. Reinaldo era o favorito, mas Telê questionava
seu comportamento fora de campo e uma lesão selou seu
destino no início do ano. A briga para substituí-lo ficou entre
Serginho e Careca, o goleador de 21 anos do Guarani.
Careca iniciou os últimos dois amistosos antes do embarque
para a Europa e seria o titular, mas teve uma lesão
muscular na coxa num treinamento e perdeu o lugar às
vésperas do torneio. O papel de centroavante coube a
Serginho, com Roberto Dinamite como seu coadjuvante.
Havia outro dilema no meio de campo. Telê estava em
dúvida sobre jogar num 4-4-2 com Falcão, Cerezo, Sócrates
e Zico na faixa central, ou sacar um deles para a entrada de
Paulo Isidoro, meia do Grêmio, que era escalado por Telê na
ponta direita e ajudava mais na recomposição.
Pareceu que ele tinha escolhido a segunda opção nos
últimos jogos preparatórios em maio, com Paulo Isidoro
como titular em todos e o quarteto de meio de campo
atuando por apenas vinte minutos no ensaio final, uma
goleada por 7 × 0 sobre a Irlanda, em que o placar poderia
ter sido o dobro.
Mas não importava quem eram os titulares. O Brasil
estava cheio de confiança e tinha convicção de que seria
campeão do mundo. Desde o começo de 1980, quando se
iniciou o período de Telê Santana, o Brasil jogou 33 partidas,
três delas contra seleções estaduais ou de juvenis, e perdeu
apenas duas vezes, para a União Soviética e para o Uruguai,
ambas por um gol de diferença. O time deixou de fazer ao
menos um gol em apenas um jogo, alcançando a média de
2,5 por partida. O futebol da seleção era rápido, de toques
de primeira e com todos os jogadores confortáveis com a
posse da bola e a maioria predisposta a atacar.
Era um futebol luminoso, que fazia lembrar tanto o Brasil
de 1970 quanto a Holanda de 1974 — embora Telê, com
certa arrogância, tenha rejeitado qualquer comparação com
os mestres holandeses, dizendo: “Nosso jeito de jogar é
similar ao da Holanda de 1974, mas nós temos mais
jogadores habilidosos e não perdemos tantas chances”.
Ninguém tinha dado um nome para aquele estilo ou
sistema, mas Sócrates, com seu característico humor direto,
resolveu criar uma expressão para caracterizá-lo. Descreveu
o futebol da seleção brasileira como uma “bagunça
organizada” e algo essencialmente brasileiro, por ser
improvisado, criativo e imprevisível.
“Todos têm liberdade para jogar do jeito que quiserem,
desde que se cumpram algumas funções básicas. Por
incrível que pareça, dá certo. Atuo na ponta, sou
centroavante, quarto-zagueiro, médio-volante… Conforme a
circunstância da partida”, disse. “Surge mais do poder de
criação do grupo em campo, da improvisação, mas também
do conhecimento que foi adquirido em dois anos de
trabalho. Mesmo que não chegue (o título), já terá alterado
os esquemas tradicionais do 4-2-4, 4-3-3 e o que mais se
tenha inventado.”162
Quando Sócrates liderou o Brasil na subida ao gramado do
estádio Ramón Sánchez Pizjuán, em Sevilha, a ocasião
marcou o final de uma odisseia pessoal e o começo de
outra. Ele estava finalmente realizando seu antigo sonho de
jogar uma Copa do Mundo. Quando olhou para as cadeiras e
viu milhares de torcedores brasileiros cantando os primeiros
versos do hino nacional, sentiu-se mais orgulhoso do que
em qualquer outro momento de sua vida.
A partida de abertura era contra a União Soviética e as
condições em Sevilha claramente favoreciam os sul-
americanos. Um ambiente de festa permeava a cidade, com
os torcedores do Brasil colorindo as arquibancadas de
amarelo e o sol da tarde fazendo sua parte, banhando o
estádio com um brilho dourado. A temperatura estava ao
redor de 25 graus e a seleção se perfilou com sua
costumeira descontração ao som de uma bateria de escola
de samba. Vestindo calções azuis curtos e as icônicas
camisas amarelas, eles até suavam com elegância.
Os soviéticos, no entanto, pareciam inabaláveis. Não só
tinham se classificado para o torneio sem perder nenhum
jogo, como haviam sido um dos dois únicos times a vencer o
Brasil desde que Telê assumiu. Eles atacaram desde o início,
criando três boas chances no primeiro quarto de hora e
tendo um claro pênalti ignorado pelo árbitro espanhol. A
União Soviética claramente jogava melhor e conseguiu o gol
que merecia aos 34 minutos, quando Waldir Peres permitiu
que um chute de trinta metros, de Andrei Bal, passasse
entre suas mãos.
Com Cerezo suspenso por conta de uma expulsão nas
Eliminatórias, Sócrates começou o jogo do lado esquerdo do
meio de campo, atuando mais recuado do que fazia em seu
clube, e sentindo dificuldades para causar impacto no jogo.
Em certo momento do primeiro tempo, levou um drible pelo
meio das pernas. Ele passou boa parte do intervalo
tranquilizando os jogadores e afirmando que o jogo não
estava perdido, e o time ganhou fôlego novo quando Telê
mandou Paulo Isidoro substituir um ineficaz Dirceu. A
mudança deu mais amplitude à equipe e o segundo tempo
foi uma história diferente, porque o ponta fez sua presença
ser sentida e o meio de campo foi dominado por Sócrates e
Falcão. Sócrates avançava mais e mais à medida que os
soviéticos se cansavam, e quando o Brasil finalmente teve
seus esforços recompensados, foi graças a seu capitão.
Aos 30 minutos do segundo tempo, os soviéticos não
conseguiram afastar a bola da defesa e Sócrates a dominou
na intermediária. Ele ergueu a cabeça e passou por dois
marcadores. A cerca de 25 metros do gol, nem precisou
olhar para saber exatamente onde estava, e mandou um
maravilhoso petardo de pé direito que o goleiro Rinat
Dasaev não alcançou — e a bola entrou no canto direito
alto. Treze minutos mais tarde, o Brasil fez o gol da vitória,
outra vez por intermédio de uma finalização de fora da área.
Éder já tinha tentado meia dúzia de chutes de longe, todos
para fora. Mas, desta vez, não errou. Paulo Isidoro fez o
passe para Falcão, que deixou a bola passar entre suas
pernas. Éder deu um leve toque para levantar a bola e
bateu sem deixá-la cair.
O Brasil venceu na estreia, mas teve sorte e sabia disso.
Os soviéticos sofreram com o calor e tiveram outro pênalti
não marcado no segundo tempo, quando Luizinho tocou a
mão na bola dentro da área. Mas uma vitória é uma vitória
e, de acordo com suas memórias, publicadas em 2017,
aquele foi um dos dias mais importantes de toda a carreira
de Sócrates. Ele investiu mais tempo naquele jogo do que
em qualquer outro, com a emoção, o orgulho e o alívio do
gol tornando a ocasião única.
“Enfrentamos a ansiedade de estar perdendo até quase o
final da partida”, lembrou Sócrates. “Tentávamos de tudo
para alcançar o gol dos russos. Parecia que uma defesa
segura e um goleiro magnífico iam nos impedir de realizar o
nosso sonho. Em certo ponto, sobrou uma bola para mim.
Tinha à minha frente uma barreira de camisas vermelhas
dispostas a jorrar sangue para me bloquear. Ameacei chutar
e desviei para a direita. Uma brecha se abriu. Ameacei
novamente e outra brecha maior apareceu. Era a hora.
Descarreguei todas as energias em minha chuteira. E o grito
do gol veio à tona: ‘Gooool!’. Gol, não. Foi um orgasmo
infindável. Inesquecível!”163
Os brasileiros celebraram com uma paella depois do jogo
e alguns dos jogadores tiveram um raro dia de folga no
centro de Sevilha. Sócrates queria ver a cidade e aproveitou
para se encontrar e tocar violão com seu amigo Raimundo
Fagner, grande cantor brasileiro, antes de sair para ver o
jogo dos próximos adversários.
A Escócia venceu a Nova Zelândia por 5 × 2 e os
brasileiros estavam em dúvida se os escoceses causariam
mais problemas do que os soviéticos. Zico achou que os
jogadores dirigidos pelo técnico Jock Stein eram mais
rápidos e mais criativos, mas Sócrates não tinha tanta
certeza. Com sua típica inconsistência, num dia ele os
descreveu como “melhores do que os soviéticos”, e no outro
como “gastadores de tempo” que jogavam o tradicional
futebol britânico de bolas altas e por isso não deveriam ser
temidos.164
O jogo era importante para o Brasil porque marcava o
retorno de Toninho Cerezo ao time após a suspensão
cumprida na estreia. Zico, que tinha levado uma pancada
contra a União Soviética e não treinou, sabia que seu papel
mudaria com a volta de Cerezo e o Brasil demorou para se
encontrar.
David Narey colocou os escoceses em vantagem após 18
minutos, para surpresa de quase todos os presentes ao
estádio. Zico empatou pouco antes do intervalo com uma
sublime cobrança de falta, mas os brasileiros não estavam
satisfeitos e houve muito descontentamento no vestiário.
Zico reclamou que os outros meios-campistas o haviam
deixado sozinho no lado direito e disse a Telê e aos
companheiros que, se não tivesse mais ajuda, preferia ser
substituído.165
Eles todos concordaram em se movimentar mais e o Brasil
dominou o segundo tempo. Oscar fez um gol de cabeça
após um escanteio logo aos 3 minutos, e Éder — num lindo
arremate — encobriu o goleiro Alan Rough aos 18,
marcando o gol que praticamente tirou a Escócia do jogo. O
fato de o travessão ter sido colocado três centímetros mais
baixo do que determina o regulamento não fez diferença.
Um chute de Falcão de fora da área, faltando três minutos
para o fim do jogo, coroou uma ótima atuação.
Sócrates outra vez começou a partida mais recuado do
que estava acostumado, mas avançou quando Serginho foi
substituído por Paulo Isidoro, a dez minutos do fim. Fez um
bom jogo, mas o melhor momento da noite estava por vir.
Ele foi escolhido para um teste antidoping, mas estava
severamente desidratado por ter jogado noventa minutos
sob o calor abrasador e precisava beber alguma coisa para
ter qualquer chance de fornecer uma amostra de urina. Os
organizadores tinham preparado geladeiras cheias de
bebidas e os olhos de Sócrates se arregalaram quando ele
viu tanta fartura. Havia cerveja, champanhe, vinho e várias
prateleiras de garrafas de água, suco e refrigerante. Ele não
precisou ser convidado duas vezes para participar do que
chamou de “diuréticos comemorativos”.166
“Quando o cara abriu a geladeira, eu tentei disfarçar o
sorriso”, lembrou Sócrates, em seu livro de memórias.
“Estava entulhada de todos os tipos de bebidas. Uma
beleza! Tomava a minha segunda latinha quando percebi
que os outros já haviam terminado a missão. E eu, sem
nenhuma vontade. Na verdade, não queria que aquilo
terminasse nunca. Acabei com o estoque de cerveja e
passei para o champanhe. E nada. Vinho, nada.
Refrigerante, nada. Só quase três horas depois, consegui
colher o material. Quando saí do estádio, ninguém mais do
time me esperava, mas eu era o mais feliz dos homens.
Estava em êxtase. Foi um dos melhores dias de minha
vida.”167
Sócrates ficou encantado com a forma como o Brasil tinha
vencido a Escócia e atribuiu as críticas ao desempenho no
primeiro tempo a ajustes pela nova formação. Mas enquanto
as coisas progrediam no campo, o ambiente não era tão
agradável do lado de fora, com os jogadores começando a
se irritar com o tempo passado longe de casa. A maioria não
via suas famílias desde que saíra do Brasil, um mês antes, e
a saudade estava batendo forte.
Eles tinham apenas cinco minutos por dia para telefonar
para casa, e Sócrates ficou feliz e triste ao mesmo tempo ao
falar com o filho Rodrigo no dia do sétimo aniversário dele.
Sentia falta de sua família e queria estar em casa com os
filhos. Os jogadores tinham muito pouco tempo livre, em
dias estruturados em torno dos treinamentos e de outras
obrigações do time. Máquinas de fliperama foram instaladas
no saguão, mas Sócrates preferia ler. De seu quarto, podia
ver os campos de girassóis em volta da cidade de Carmona
e se deitava com uma pilha de livros que incluía O processo,
de Franz Kafka, O sol também se levanta, de Ernest
Hemingway, e uma edição autografada do romance mais
recente de Jorge Amado, enviada a ele pelo autor.168
Todos os dias, ele usava o bloco de notas do hotel ou
arrancava páginas de um caderno para fazer anotações e
escrever seus pensamentos para o diário que seria
publicado na revista Placar. Escreveu cartas para familiares
e amigos, jogava baralho e xadrez no joguinho eletrônico
que tinha comprado na Europa no ano anterior, e lia os
jornais e cartas que chegavam diariamente do Brasil. Pelé
mandou uma mensagem de boa sorte e torcedores
enviavam telegramas sugerindo mudanças na escalação e
no jeito de jogar da seleção, ideias que o divertiam.
“Recebemos telegramas e telefonemas de vários locais do
Brasil, em alguns casos querendo até escalar o time, mas
fundamentalmente para nos dar os parabéns pela
classificação. Em futebol, realmente, o brasileiro quer
participar.”169
Os jogadores também organizavam festas sempre que
podiam, especialmente aniversários. E raramente iam
dormir antes de uma da madrugada, porque os três jogos da
fase de grupos tinham sido marcados para o horário
noturno. No dia 15 de junho, celebraram os trinta anos de
Dirceu com uma pequena comemoração no hotel; cinco dias
depois, fizeram um bolo para o aniversário de 28 anos de
Oscar.
Mesmo com saudades, eles estavam adaptados a Sevilha
e os primeiros resultados estimularam a confiança de
Sócrates, a ponto de ele dizer abertamente como levantaria
o troféu dezenove dias depois.
“Às vezes, fico pensando nessa história de ganhar o
título”, disse. “E no momento de erguer a taça. Não acho
justo com os companheiros da seleção que seja apenas um,
o capitão, a levantar o troféu. Tem que ser todos. […]
Eu não gostaria de reproduzir a pose dos outros capitães
brasileiros, que ficaram imortalizados pelas fotografias, nas
copas anteriores, segurando a Jules Rimet. Seria melhor
achar um jeito de todos segurarem o troféu e posarem
juntos para as fotos. Os onze, ou até mais, quem coubesse:
reservas, comissão técnica…”170
Seus comentários soaram como os de alguém colocando o
carro à frente dos bois, mas Sócrates estava tentando
avaliar a opinião pública sobre como uma comemoração
deveria ser. Era, em parte, uma questão de promover uma
celebração coletiva, e não individual, mas também uma
reflexão sobre o ato de levantar o troféu, que tinha um
significado especial no Brasil. Com exceção de Mauro, em
1962, quase todos os capitães brasileiros que levantaram a
Copa do Mundo fizeram do seu próprio jeito, começando
com Bellini, em 1958, e terminando com Cafu, em 2002,
que escreveu uma mensagem na camisa e ficou em pé no
pódio para erguer a taça após a vitória por 2 × 0 sobre a
Alemanha.
Em 1958, na Suécia, Bellini recebeu a taça das mãos do
Rei Gustavo, no campo, momentos após o final do jogo. Um
fotógrafo gritou para que ele levantasse o troféu para que
todos conseguissem fazer uma boa foto, e a imagem de
Bellini erguendo a Jules Rimet sobre a cabeça com as duas
mãos se tornou icônica no Brasil.
Mauro repetiu o gesto em 1962, e oito anos depois, na
Cidade do México, Carlos Alberto Torres adicionou um toque
de classe brasileira ao beijar a taça. Em 1994, o Brasil não
ganhava o torneio havia 24 anos, mas o time jogava um
futebol feio e os torcedores e a mídia não demoraram a
deixar clara sua insatisfação. Ninguém esperava que a seca
terminasse e, quando a seleção venceu a Itália nos pênaltis
em Los Angeles, o capitão Dunga recebeu a taça do vice-
presidente norte-americano Al Gore e gritou, com doses
iguais de alegria e provocação aos críticos: “Tetracampeão,
porra!”. A explosão levou o jornalista Marcelo Barreto a
dizer, memoravelmente, que: “Bellini inventou o gesto de
erguer a taça. Carlos Alberto, o de beijar a taça. E o Dunga,
o de xingar a taça”.171
Sócrates podia estar se lembrando de algumas dessas
celebrações e pensando em uma forma de superá-las, mas
falar tão cedo sobre como levantaria o troféu parecia, na
melhor das hipóteses, presunçoso; na pior, um desafio ao
destino. Não era, no entanto, fora do normal. Sócrates
adorava o lado psicológico do jogo — ele sempre dizia que o
futebol era jogado mais com a cabeça do que com os pés —
e com tempo disponível e a mídia mundial a seu dispor,
gostava de poder jogar com as ideias.
Uma das grandes questões que o preocupavam antes do
torneio era como incorporar tantos egos no mesmo time.
Sócrates, Zico e Falcão eram considerados as três estrelas
da seleção, com Cerezo não muito atrás. Esse quarteto
representava quatro dos maiores estados do Brasil, e a
mídia, às vezes, sucumbia à tentação provinciana de jogar
um contra o outro. Sócrates, o psicólogo, acreditava que se
o time se unisse em torno de um jogador, não haveria
brigas ou ciúmes. Ele poderia escolher qualquer um deles,
inclusive a si mesmo, o capitão do time no auge de sua
forma.
Mas Sócrates preferiu o papel de assistente, chegando a
dizer que era mais feliz como copiloto. Ele meditou por
semanas sobre o que fazer e, por fim, chegou a uma
decisão. Embora Falcão estivesse na melhor forma de sua
vida, ele vivia na Itália e, por causa da distância, jogou pelo
Brasil apenas duas vezes em dois anos. Ele não conhecia os
companheiros tão intimamente quanto os outros
candidatos. Zico, por outro lado, conhecia toda a equipe e
era respeitado por suas habilidades e sua integridade.
Sócrates e Zico eram próximos, assim o capitão tomou a
decisão consciente de colocá-lo num pedestal e pediu aos
jogadores que apoiassem sua escolha.
“Aquela porra: ‘Quem é melhor, Zico ou Sócrates?’, é o
que mais perguntavam pra gente”, lembrou. “Nisso,
coloquei o Galo na frente. Eu falei: ‘O melhor jogador do
mundo é o Zico’. Isso eu fazia questão de colocar, primeiro
porque eu acho mesmo que ele era um puta jogador, era
um cara que definia para o time. Eu podia fazer política,
certo? Mas achava que ia me ferrar se fizesse, analisando
como o capitão do time. Eu podia fazer política: ‘Ah! Todo
mundo no mesmo nível’. Me tirava e colocava os outros no
mesmo nível. Eu não, tem que colocar um na frente — e era
ele. Eu fiz isso por quê? Porra, se você estimula algum tipo
de competição interna, jamais vai ter um grupo forte. Então
eu, como capitão do time, coloquei isso colaborando para
diminuir essa rivalidade que é intrínseca. Senão um vai
querer jogar melhor que o outro, claro; mas quanto mais a
gente controla, é melhor para o time todo. O objetivo
basicamente foi esse, quer dizer, um cara na frente, porque
essa é a concepção que eu tenho de um time de futebol. Se
você não tem uma referência, um grande jogador, o melhor
jogador, esse time jamais vai jogar. Se você não tiver um
cara melhor que os outros, não tem time de futebol, é um
amontoado de gente se digladiando. Se colocar onze caras
no mesmo nível, eles não vão jogar.”172
A bicicleta de Zico foi o momento mais memorável da
vitória por 4 × 0 sobre a Nova Zelândia, no último jogo do
grupo, em 23 de junho. Zico estava jogando bem e o
resultado deu ao Brasil o primeiro lugar no Grupo 6, o que
significava que a seleção se despediria de Sevilha e voaria
para Barcelona, onde enfrentaria a Argentina e a Itália na
segunda fase.
Todos os três times jogariam entre si, com o campeão do
grupo avançando às semifinais. O Brasil era o favorito
destacado e, com a melhor campanha na fase inicial,
enfrentaria o perdedor de Itália × Argentina, em 2 de julho;
no dia 5, a seleção enfrentaria o vencedor. Ambos os jogos
estavam marcados para o estádio Sarrià, a casa do
Espanyol, com capacidade para 44 mil pessoas.
Os brasileiros se hospedaram num hotel a cerca de
cinquenta quilômetros de Barcelona, ao qual se chegava por
uma estrada tão estreita e sinuosa que alguns jogadores
reclamavam de náusea sempre que desciam do ônibus. O
hotel era espartano, mas Sócrates não se importava com o
novo ambiente — o que o incomodava era o isolamento. Ele
estava se cansando de ficar tão longe de casa e sentia
ansiedade pelo nascimento do quarto filho, que se
convenceu de que seria uma menina e se chamaria
Mariana. Não pela última vez, reclamou de saudade do
Brasil e escreveu em seu diário para a Placar: “O simples
fato de estar longe da minha gente faz com que qualquer
hotel seja igual. O Copacabana Palace ou o ‘pulgueiro de
Sofia’ são a mesma coisa. Quero ir para casa”.173
A mudança para a Catalunha também marcou uma
alteração importante na rotina dos jogadores. Nas primeiras
três semanas na Espanha, eles acordaram tarde e dormiram
tarde porque os jogos na fase de grupos foram à noite. Os
dois jogos seguintes em Barcelona seriam à tarde, e por isso
eles tiveram de acordar mais cedo e passaram a treinar
pela manhã e à tarde.
Os brasileiros acompanharam a vitória da Itália sobre a
Argentina por 2 × 1, no dia 29 de junho, e não ficaram
impressionados com nenhum dos times. O que chamou a
atenção deles foi a violência, e a seleção esperava que a
Argentina continuasse a bater no Sarrià, onde o time de
César Luis Menotti queria encerrar um período de doze anos
sem vitórias sobre os rivais sul-americanos. O técnico
italiano Enzo Bearzot chamou os argentinos de “touros que
atacam às cegas” e Edinho disse que o Brasil estava se
preparando para uma “verdadeira guerra”.174
“Pancada você está arriscado a levar em qualquer partida.
Não vai ser novidade”, disse Sócrates. “Que eles batem
muito e com maldade não há dúvida, os italianos são
testemunhas. Não se espera moleza nem muita lealdade.
Vai ser uma partida dura, difícil, provavelmente violenta, e
resta só ter a cabeça no lugar e muita disposição para
vencer.”175
Cerca de 13 mil argentinos viviam em Barcelona e
Maradona tinha acabado de se transferir para o Barça, de
modo que os brasileiros sabiam que a maioria no estádio
estaria contra eles. Além disso, o intervalo entre os jogos
contra a Nova Zelândia e a Argentina foi de nove
intermináveis dias, marcados por solidão e muitos jogos
mentais.
Maradona vinha provocando os brasileiros desde o
primeiro dia, ignorando Zico e Sócrates ao apontar Éder,
Falcão e Júnior como os três melhores jogadores da seleção
na fase de grupos, e mais tarde declarando Karl-Heinz
Rummenigge “um jogador muito melhor” do que a estrela
do Flamengo. Menotti disse que seria mais fácil vencer o
Brasil do que a Itália, porque a defesa da seleção brasileira
era inferior. Maradona afirmou que a Itália era a favorita
para vencer o grupo e chegar às semifinais.
Sócrates pediu aos companheiros que ignorassem as
provocações, mas a tensão aumentou com a chegada dos
jogos decisivos. Os jogadores italianos não estavam falando
com a imprensa, por causa de reportagens a respeito de
brigas sobre premiações e a divulgação de que dois deles
estavam mantendo casos extraconjugais. Na concentração
do Brasil, Edinho declarou que era melhor do que o titular
Luizinho, e Batista e Roberto Dinamite reclamaram que não
estavam recebendo oportunidades para mostrar o que eram
capazes de fazer. A alardeada solidariedade era evidente
entre os titulares, mas os jogadores reservas estavam
inquietos.
Sócrates seguia muito incomodado com o isolamento,
distante de toda a agitação de Barcelona, onde torcedores
do mundo inteiro se congregavam para beber e cantar nas
famosas Ramblas. Ele queria se envolver com a Copa do
Mundo não só como jogador, mas também como cidadão do
mundo. A impossibilidade de se engajar com os jogadores e
torcedores o levou a uma dessas explosões periódicas que
ele mais tarde repudiaria.
“Estou meio deprimido”, escreveu em seu diário para a
revista Placar, em 30 de junho. “Nem é bom voltar a falar da
saudade de casa. É gozado. Toda minha vida eu quis jogar
uma Copa. Estou nela, tenho consciência de que não estou
indo mal, mas, sem dúvida, estou frustrado. A Copa não é o
que eu imaginei, não permite intercâmbio com o pessoal de
outros países, fica cada um do seu lado e ponto. Imagino
que seja melhor assisti-la do que dela participar. Por isso,
não tenho mais dúvidas: outra Copa, nunca mais. Quem
sabe eu possa acompanhar a próxima com a Rê e as
crianças. Será bem mais divertido.”176
Ao final, o jogo contra a Argentina foi mais fácil do que se
pensava. Sócrates previu que os argentinos criariam mais
chances, mas o Brasil ganharia o jogo no segundo tempo
por causa da melhor condição física, e sua análise foi
precisa. A Argentina precisava vencer, de preferência por
uma boa vantagem, para ter qualquer chance de avançar às
semifinais, e começou melhor. Mas o Brasil marcou um gol
em sua primeira finalização no jogo. Uma violenta cobrança
de falta de Éder bateu na parte inferior do travessão e Zico
chegou para o rebote antes do goleiro Ubaldo Fillol.
A Argentina seguiu com mais posse de bola, mas se
mostrando vulnerável quando a perdia. Júnior fez uma
atuação extraordinária, Zico e Éder criaram muito perigo
com a bola nos pés, e as mudanças de ritmo da seleção no
último terço do campo causaram todos os tipos de
problemas para a defesa argentina.
O Brasil chegou ao segundo gol aos 21 minutos do
segundo tempo, depois de desarmar Daniel Passarella no
círculo central. O time avançou, Falcão não caiu na linha de
impedimento e cruzou para Serginho, na segunda trave,
cabecear para o chão e para o fundo das redes. Júnior
colocou o resultado acima de qualquer dúvida nove minutos
mais tarde, ao receber um passe magistral de Zico pelo
meio da defesa e tocar por baixo do goleiro Fillol.
Até aquele ponto, a Argentina tinha mantido a
compostura. Mas não durou muito. Passarella atingiu Zico,
que teve que sair do jogo. Cinco minutos depois, Maradona
deu uma solada na barriga de Batista e recebeu um
merecido cartão vermelho. O gol de Ramón Díaz, no último
minuto, não valeu mais do que uma anotação de pé de
página.
Sócrates teve sua atuação mais discreta, particularmente
no primeiro tempo, quando pareceu um pouco sem ritmo.
Mas, ainda assim, foi um dos brasileiros mais elogiados,
com vários jornais espanhóis o selecionando como um dos
grandes jogadores do torneio.
Mas nem todo mundo estava tão otimista. No dia do jogo
contra a Argentina, um amigo chegou de Ribeirão Preto com
cartas de amigos e parentes. Uma das mensagens tinha a
costumeira visão crítica de seu pai, e Sócrates não
conseguiu evitar as risadas. “Fiquei muito feliz, apesar das
duras do velho. Ele acha que não estou jogando tudo o que
posso. Ele quer que eu participe mais do jogo, chute mais
ao gol. Gozado: o jornal espanhol me considerando o melhor
jogador da Copa, chamando-me de ‘cérebro del Brasil’. Acho
que eles estão cegos. O velho Raimundo, pela TV, está vendo
melhor.”177
Os torcedores também conseguiam ver que o Brasil era o
time mais extraordinário do torneio. Um dos eventos
culturais que aconteciam paralelamente com a Copa era um
festival com dançarinos dos países participantes. Um pôster
do lado de fora da sede do evento, no centro de Barcelona,
divulgava um espetáculo de dança das terras altas
escocesas e, embaixo, um brasileiro escreveu seu próprio
anúncio: “O Brasil vai dar um baile nos adversários nos dias
2 e 5 de julho, no estádio Sarrià”. A primeira noite recebeu
ótimas críticas. A apresentação final reuniria um elenco de
estrelas e era uma das mais ansiosamente aguardadas pelo
público.
Capítulo 10
Estamos defendendo o futebol de nosso país e isso tem importância, sem
dúvida alguma. Mas não é questão de vida ou morte — é o que
procuramos transmitir. Podemos perder. Nós não temos medo de perder.
Mas também podemos ganhar, pois nos preparamos para isso.
Sócrates

Os jogadores brasileiros tocaram tamborins, usaram caixas


de fósforos como se fossem maracás e marcaram o ritmo
batucando o teto do ônibus, sambando no caminho até o
Sarrià para enfrentar a Itália. A atmosfera era alegre, mas
azedou quando o veículo alcançou o sinuoso trecho
montanhoso da estrada. Os organizadores estavam
preocupados com a possibilidade de que terroristas
separatistas bascos do ETA, ou das Brigadas Vermelhas
italianas, grupos ativos na Europa na época, atacassem os
times da Copa do Mundo a caminho de algum estádio.
Como medida de segurança, os motoristas dos ônibus
sorteavam as rotas aleatoriamente. A viagem até o estádio
do Espanyol levou quase uma hora — tão longa que os
jogadores não tinham mais sambas para cantar. Alguns
atletas desceram do ônibus nauseados por causa do trajeto
e ficaram aliviados por chegar à “terra firme”.178
A vitória por 3 × 1 sobre a Argentina deu ao Brasil uma
vantagem sobre a Itália, que tinha vencido os argentinos
por 2 × 1. A seleção só precisava de um empate para se
classificar às semifinais. Os italianos começaram mal o
torneio, empatando os três jogos da fase de grupos, contra
Polônia, Peru e Camarões, e só alcançaram a segunda fase
porque marcaram dois gols nestes jogos, um a mais do que
os camaroneses, que também obtiveram três empates.
Menos de dois meses antes da Copa, Telê Santana tinha
minimizado as chances dos italianos, dizendo que eles se
achavam os melhores do mundo e por isso não mudavam
seu antiquado estilo de jogo. Ele criticou a preferência pela
marcação individual e sugeriu que a Roma era o único time
da Série A que jogava futebol moderno, porque tinha Falcão
no elenco. E embora seus espiões tivessem avisado que a
Itália contava com uma das melhores equipes do torneio,
ele não optou pela prudência na véspera do jogo,
declarando: “A marcação italiana não terá êxito contra o
Brasil. Nossa seleção não depende de apenas um jogador,
como a Argentina de Maradona”.179
Seus jogadores estavam igualmente confiantes. O Brasil
tinha marcado treze gols em quatro jogos, contra quatro dos
italianos, e era o melhor time do Mundial até o momento. As
atuações tinham trazido ao elenco um perigoso sentimento
de euforia e muitos deles estavam tratando o jogo como um
triunfo inevitável. Antes de os grupos da segunda fase
serem conhecidos, os jogadores brasileiros torceram para
enfrentar a Itália, por imaginarem um confronto menos
complicado. Suas preces foram atendidas e, depois do que
viram no jogo entre Itália e Argentina, a confiança
aumentou ainda mais.
“Fomos assistir ao jogo Argentina e Itália”, lembrou Oscar.
“A Itália ganhou da Argentina e jogou muito mal. Aí jogamos
com a Argentina, metemos 3 × 1 e pensamos: ‘Porra, a
Itália… Agora vamos atropelar aquele time feio’… Então, a
gente tinha quase certeza de que ia vencer…”180
Funcionários da CBF pensavam da mesma forma, e nada
exemplificava melhor o excesso de confiança do que as
discussões sobre premiação. O tema dos prêmios em
dinheiro incomodava Sócrates desde antes do torneio. Os
jogadores se reuniram previamente à chegada na Espanha
para debater sobre como abordar a CBF a respeito das
premiações e Sócrates queria assumir uma postura dura.
Após alguma discussão, eles decidiram pedir 100 mil
dólares e Sócrates convenceu a todos de que deveria ser
tudo ou nada. Se a CBF quisesse negociar para pagar menos,
como era praxe, Sócrates se manteria irredutível. Se não
quisessem pagar os 100 mil dólares, os jogadores tomariam
o caminho da superioridade moral e jogariam de graça. Era
uma estratégia arriscada, mas os demais concordaram.
Sócrates ficou furioso e decepcionado quando a CBF fez uma
contraproposta de 35 mil dólares e vários jogadores
aceitaram imediatamente.
“A posição, decidida por todos, era simples e radical: não
recuaríamos um único centavo. Era tudo ou nada!”, lembrou
Sócrates. “E assim mantive a postura durante todo o
processo de negociação achando que, dando tudo errado,
jogaríamos só pelo prazer de jogar. Mas não foi isso que
aconteceu. Dias antes da estreia, em uma assembleia, a
maioria aceitou a proposta dos dirigentes: 35 mil pelo título.
Que frustração! Os caras abriram as pernas. Nunca me senti
tão lesado. Infelizmente jamais pudemos quantificar o
trauma que aquela decisão provocou na alma de alguns de
nós.”181
A questão dos pagamentos a serem feitos pelos
patrocinadores do time foi ainda mais prejudicial, porque
surgiu justamente antes do encontro com a Itália. O
presidente da CBF marcou uma reunião com o elenco na
véspera da partida para atualizar os jogadores sobre o
dinheiro dos patrocínios. Sócrates e Zico pensavam que era
loucura discutir esse assunto 24 horas antes do jogo mais
importante de suas vidas e se recusaram a participar. Com
os dois jogadores mais importantes do time ausentes, o
encontro terminou depois de apenas cinco minutos.182
No entanto, os dirigentes não esqueceram o assunto. Na
manhã do dia do jogo, o zagueiro Edinho chegou à preleção
e encontrou Giulite Coutinho, o então presidente da CBF.
“Edinho”, disse Coutinho, entusiasmado enquanto
esperava pelos outros jogadores. “Pô, Edinho, nós
conseguimos aquela premiação.”
“Presidente, eu acho que não é o momento para falar
disso agora, na preleção”, respondeu Edinho. “Nós estamos
preocupados agora em ganhar o jogo.”183
Coutinho não valorizava a humildade e logo estava
prometendo câmeras de vídeo e outros objetos para a casa
dos jogadores. “Os olhos de muitos ficaram arregalados na
hora”, disse Edinho. “Foi Giulite anunciar o prêmio e a
reunião virou falatório. No ônibus que nos levou ao estádio,
muita gente boa só falava do dinheiro. Não havia
concentração para a partida.”184
A preleção também foi marcada por uma rápida conversa
sobre tática. Bruno Conti, companheiro de Falcão na Roma,
conversou com ele após a vitória da Itália sobre a Argentina
e disse, na base da brincadeira, que os italianos estavam
com as malas prontas porque esperavam ser derrotados.
Eles tinham visto como o Brasil estava jogando bem e
planejavam se fechar e tentar algo no contra-ataque. Falcão
ponderou se o Brasil deveria jogar mais fechado do que o
habitual nos primeiros minutos, para assim ter uma ideia
mais clara sobre o rival. Eles conversaram sobre manter os
laterais mais recuados a fim de conter os contragolpes da
Itália, mas a ideia foi recusada pelos companheiros, que não
concordavam com a alteração de um estilo que estava
funcionando tão bem. Muitos jogadores tinham receio de
que, se a seleção abandonasse a ofensividade e perdesse,
seria massacrada no país por trair seus próprios ideais. Se
fosse para o Brasil perder, que perdesse fazendo jus a seu
glorioso futebol ofensivo.
O dia 5 de julho, uma segunda-feira, foi mais um lindo dia
em Barcelona; quando os times saíram do túnel, logo depois
das cinco da tarde, o sol ainda se fazia presente. A fumaça
dos fogos de artifício pairava sobre o gramado e pipas
verde-amarelas dançavam no ar. Atrás do gol de Waldir
Peres, pessoas nos prédios próximos ao estádio se reuniam
nas varandas para assistir ao espetáculo.
O jogo terminou sendo um dos mais emocionantes da
história das Copas do Mundo e tinha apenas cinco minutos
quando o Brasil sofreu seu primeiro golpe. Antonio Cabrini
fez um cruzamento do lado esquerdo e Paolo Rossi,
desmarcado, surgiu na segunda trave para cabecear para o
gol. Rossi era a surpresa no time italiano, retornando de
uma suspensão de dois anos por seu envolvimento no
Totonero, escândalo de manipulação de resultados, e o gol
foi seu primeiro pela seleção em mais de três anos.
A desvantagem no placar assustou o Brasil, mas o time foi
para a frente como estava acostumado a fazer e Serginho
deveria ter empatado momentos depois, mas errou a
finalização diante de Dino Zoff. O 1 × 1 logo chegou, graças
a uma ótima jogada de Zico e Sócrates. O craque do
Flamengo recebeu um passe de Sócrates e fez um giro
brilhante antes de devolver a bola ao corintiano, que já
avançava em direção à área. Sócrates passou por um
marcador, deu um toque na bola e bateu entre o goleiro e a
trave esquerda. Ele correu para o alambrado, exultante, e
Zico, depois Júnior, Falcão e Luizinho se juntaram na
comemoração.
Mas a alegria deles não durou muito e, treze minutos mais
tarde, a Itália estava de novo na frente. Cerezo tinha a bola
na intermediária de defesa, pela direita, e fez um passe
descuidado que atravessou o campo. Três defensores
brasileiros hesitaram, e Rossi correu para roubar a bola,
avançar e marcar o segundo gol.
Zoff defendeu uma cabeçada de Sócrates quase sobre a
linha no minuto 35, e Zico sofreu um pênalti, não marcado,
quando Claudio Gentile rasgou sua camisa com um puxão
dentro da área. O placar permaneceu inalterado até o
intervalo e Sócrates foi para o vestiário com uma sensação
estranha. Antes de o torneio começar, ele comentou com
Juninho Fonseca sobre uma premonição: a de que ele
marcaria o primeiro e o último gol do Brasil na Copa. Depois
que Sócrates fez o tento de empate contra a União Soviética
na estreia, Juninho brincou que ele nem deveria pensar em
marcar outro até a final. Foram se lembrando disso com
bom humor no decorrer do torneio, mas Sócrates estava
incomodado e, no momento do gol contra a Itália, sentiu um
frio na espinha e disse a si mesmo: “Ah, não, estamos
fodidos”.
A sensação, no entanto, foi passageira, e o vestiário da
seleção durante o intervalo estava excepcionalmente
confiante para um time que se via a apenas 45 minutos da
eliminação. Todos os jogadores acreditavam que o Brasil
não merecia estar perdendo, e nenhum imaginava que o
segundo tempo deixaria de trazer os gols necessários para
a classificação. Eles se encorajaram mutuamente, com
Júnior, Sócrates e Zico, as três personalidades mais fortes
do time, pedindo aos companheiros que mantivessem a
concentração e continuassem jogando o futebol de sempre.
O segundo tempo foi inesquecível. O Brasil quase
empatou segundos após o reinício, quando um chute de
Falcão passou na frente do gol e saiu por pouco. Zoff
defendeu uma tentativa de Leandro e se antecipou para
evitar um gol de Cerezo, após um ótimo passe de Zico pelo
meio da defesa. Serginho tentou um gol de calcanhar,
bloqueado por Zoff, e Cerezo mandou um voleio na trave. A
Itália também teve suas chances. Bruno Conti deveria ter
concluído melhor uma perigosa jogada de contra-ataque, e
Rossi poderia ter anotado seu terceiro gol após um passe de
Francesco Graziani, mas chutou mal.
O Brasil estava jogando melhor e aos 23 minutos do
segundo tempo conseguiu o merecido gol de empate,
graças a Falcão. Júnior passou por Conte e se moveu da
esquerda para o meio, fazendo a bola chegar ao meio-
campista da Roma na entrada da área. Cerezo atraiu os
defensores para lhe dar espaço, e Falcão controlou a bola
movendo-se para a meia-lua. Um grande buraco se abriu à
frente dele e o chute de pé esquerdo não deu nenhuma
chance a Zoff. Um comentarista da TV Globo mostrou-se tão
confiante quanto os jogadores e não tardou a declarar que o
gol “permite ao Brasil pensar em vencer, não apenas em
empatar”. Mas, outra vez, os italianos reagiram. Seis
minutos depois, Rossi aproveitou uma bola solta na área
após um escanteio e mandou para o gol de Waldir Peres.
Com quinze minutos faltando, a Itália vencia por 3 × 2.
Sócrates passou a jogar como centroavante após a
substituição de Serginho por Paulo Isidoro, logo depois do
gol de Falcão. Ele conseguiu colocar a bola na rede faltando
onze minutos para o final do jogo, mas o assistente
levantou a bandeirinha, e depois teve muitas dificuldades
contra a excelente defesa italiana. Com a seleção brasileira
jogando cada vez mais à frente, espaços se abriram no
campo de defesa e Gabriele Oriali deu o quarto gol a
Giancarlo Antognoni, incorretamente anulado por
impedimento. Então, com dois minutos por jogar, o Brasil
teve a última chance clara do encontro. Zoff saltou para
defender um cabeceio de Oscar, segurando a bola quase
sobre a linha do gol. O Brasil tentou, porém não foi
suficiente. Zoff fez dezoito defesas contra quatro de Waldir
Peres, mas a seleção estava fora da Copa.
Sócrates não foi apenas o melhor brasileiro em campo, foi
um dos poucos a manter a cabeça fria quando todos se
descontrolavam. Cerezo tinha chorado quando Falcão
marcou o gol de empate, e Júnior declarou que precisou dar
uma “sacolejada” nele. Sócrates, no entanto, em nenhum
momento achou que o Brasil deixaria de se classificar. Até o
apito final se manteve calmo, pedindo aos companheiros
para jogarem como sabiam, mesmo quando o empate
parecia cada vez menos provável.
Quando o árbitro apitou, Sócrates caminhou abatido para
o túnel e quase imediatamente encontrou Telê Santana.
Sócrates sentia a dor da derrota não apenas por si mesmo,
mas também pelo homem que tinha se tornado um segundo
pai para ele. Telê foi aplaudido quando apareceu para a
entrevista coletiva depois do jogo, um gesto tão tocante
quanto inesperado. Críticas de que ele deveria ter protegido
o empate se arrastaram durante anos, mas ele se manteve
irredutível. O Brasil era um time ofensivo e seus jogadores
não poderiam jogar para empatar, mesmo que ele
ordenasse. Sócrates, como a maioria dos jogadores do time,
concordou plenamente e disse que, se o jogo fosse repetido
cem vezes, o Brasil venceria em 99 delas. O resultado foi
uma coisa do futebol e ele isentou Telê de qualquer culpa.
Quando ambos se encontraram na saída do gramado,
abraçaram-se e palavras não foram necessárias, ou
possíveis.
“A primeira pessoa que vi depois do término da partida foi
ele. Sua face era a própria expressão da dor que todos nós
sentimos. Mas ele tentava desesperadamente nos consolar.
Esperou-nos à beira do campo e a cada um demonstrava o
seu carinho. No vestiário, o sofrimento era imenso. Uns
choravam copiosamente enquanto outros remoíam as
próprias entranhas para desabafar. Ele olhava para o infinito
e parecia tranquilo, apesar do golpe. Sentia-se confortado
por nosso esforço, acredito. Nem por isso deixava de sofrer.
Eu queria muito abraçá-lo, protegê-lo. Não tive forças. Mais
uma vez, transportou-me a meu pai. Julguei que a dor que
os dois estavam sentindo era da mesma intensidade. Chorei
por eles muito mais que por outra coisa, mas as lágrimas
escorriam com dificuldade. Eu estava esgotado e ressecado.
Só vim a saber exatamente o que representava aquele
sentimento muito tempo depois, quando meu velho partiu.
Queria ser um milagreiro para trazê-lo de volta, assim como
para resgatar aquele título mundial a quem mais o merecia:
Telê Santana.”185
Do outro lado do mundo, o pai de Sócrates sofria tanto
quanto ele. Em Ribeirão Preto, dezenas de pessoas —
incluindo alguns jornalistas amigos — se reuniram na sala
da casa da família Vieira para assistir à transmissão do jogo
e se fez um silêncio sepulcral no momento do apito final.
Seu Raimundo ficou desolado e, depois de conversar com
Sócrates por telefone mais tarde, passou a maior parte dos
dias seguintes dentro de seu quarto, triste demais para
enfrentar o mundo. Raí, que assistiu ao jogo com amigos,
ficou tão chocado que saiu correndo de casa. Seus irmãos o
encontraram horas depois, sentado numa praça próxima,
com o rosto ainda vermelho por causa das lágrimas.186
A decepção tinha se aliviado um pouco quando a seleção
chegou em casa, no dia 7 de julho, e a raiva que os
brasileiros frequentemente direcionam a perdedores na
Copa do Mundo não se fez presente. A maioria dos
torcedores concluiu que a derrota foi uma dessas coisas do
futebol e que o time tinha feito tudo o que podia para
vencer. O pouco rancor existente tinha sido reservado a
indivíduos específicos, e mesmo assim não era muito
convicto. Cerezo foi criticado por causa do segundo gol e
pela falta de controle emocional; Serginho, Waldir Peres e
Luizinho foram apontados como pontos fracos do time, e os
pragmáticos culparam Telê por não segurar o empate.
“Nós não tivemos humildade”, Luizinho reconheceu anos
mais tarde. “Nós queríamos vencer o jogo, mas só
precisávamos empatar. No futebol, há dias em que não
importa o que você faça, não vai conseguir vencer. Aquele
não era o nosso dia e nós deveríamos ter jogado pelo
empate. E não havia liderança no campo; alguém dentro do
campo deveria ter dito: ‘Leandro, Júnior, recuem. Vamos
fechar o meio de campo, vamos garantir o empate que nos
classifica’. Ninguém disse isso e nós tínhamos jogadores
experientes e um técnico experiente, e mesmo assim
ninguém mudou nossa maneira de jogar. Alguém deveria ter
dito que não era o nosso dia, vamos jogar pelo empate,
quando estava 1 × 1 ou 2 × 2. Ninguém imaginou que nós
perderíamos; nós sempre acreditamos que reagiríamos.”187
Sócrates pensou que era bobagem procurar por culpados
ou apontar o dedo, mas realmente guardou ressentimentos
de um jogador. Nunca mencionou seu nome em público,
mas, durante anos, reclamou de Éder, o atacante que tinha
sido um dos melhores jogadores do Brasil. Anos mais tarde,
Éder foi acusado de comemorar gols durante a Copa de
1982 na frente de certas placas de publicidade, em troca de
um pagamento de mil dólares. Jorge Kajuru, amigo de
Sócrates, disse que o capitão da seleção descobriu o
esquema antes do jogo contra a Itália e ficou magoado,
porque isso ia contra o espírito do grupo. “Um dia antes, ele
viu o Éder discutindo dinheiro, bicho”, disse Kajuru. “E
tomou conhecimento de que o Éder estava ganhando
dinheiro por fora para comemorar os gols na frente de uma
placa de publicidade, e isso o afetou muito, porque ele era
grupo.” Éder negou que tenha agido assim, mas Sócrates
tinha outro motivo para questionar seu comprometimento.188
Ele achava que Éder estava jogando para si mais do que
para o time, porque tinha ciúmes dos meios-campistas que
recebiam todos os elogios. O capitão acreditava que o
individualismo tinha sido um dos fatores principais para a
derrota contra a Itália. Não era apenas o fato de Éder ter
insistido para bater todas as faltas, errando o alvo e
chutando cinco de seis tentativas na barreira. Não era nem
o fato de ele ter tentado fazer um gol olímpico nos
acréscimos. Aos 24 minutos do segundo tempo, segundos
após o gol de Falcão, Éder pegou a bola perto da área da
Itália. Tinha um defensor à sua frente e Sócrates passando
pela direita. Mas em vez de fazer um passe para Sócrates
tentar um chute ao gol, ele optou por driblar o zagueiro e
perdeu a bola.
Éder tinha sido egoísta numa situação similar mais cedo
no torneio, e Sócrates ficou tão incomodado que pediu ao
preparador Gilberto Tim que falasse com Telê. Ele nunca
soube se Tim de fato falou, mas estava convencido de que o
individualismo de Éder tinha sido crucial e não conseguia se
livrar da irritação. Tocou no assunto não apenas em seu livro
de memórias não publicado, mas também em conversas
sobre uma planejada biografia com Juca Kfouri.
“É claro que não conheço todas as variáveis que
passaram pela cabeça dele naquele instante e que
determinaram a opção pela atitude menos lógica e mais
favorável ao adversário, mas não há dúvidas de que foi a
pior escolha independentemente do resultado”, Sócrates
escreveu em sua autobiografia. “Ele até poderia ter driblado
o italiano e feito o gol, porém o risco era muito grande para
a importância da partida e pelo fato de que o resultado
ainda se encontrava em aberto. Quando se está vencendo
com larga diferença, este tipo de ação não produz tantas
consequências, contudo quando se está em um jogo
equilibrado e difícil, pode pôr tudo a perder. E foi
exatamente isso que aconteceu.”189
Sócrates gostava de Éder e eles permaneceram amigos,
mas aquela foi uma lição sobre ego da qual ele nunca se
esqueceu.
O encontro com a Itália foi o melhor jogo de que Sócrates
participou, mas ele havia confessado que “nunca teve
coragem” de se sentar diante de uma televisão para vê-lo
novamente. Teve coragem de jogá-lo de novo, juntando-se a
seus antigos companheiros para enfrentar os adversários
italianos na partida de despedida de Júnior em Pescara, em
1990. (Éder foi o único titular que não participou da vitória
por 9 × 1)
Então, numa noite no meio dos anos 1990, ele se sentou
num bar em Tóquio com o amigo Rui Ramos. Sócrates fazia
uma viagem de duas semanas pela Ásia e marcou um
encontro com Ramos, jogador brasileiro que se mudou para
o Japão e atuou na seleção nacional do país. Eles decidiram
sair para passar a noite no bairro de Roppongi, famoso pelos
bares, boates e karaokês. Os dois amigos estavam se
divertindo num bar brasileiro chamado Amazônia, quando,
bem depois da meia-noite, alguns rostos familiares surgiram
na tela de uma televisão acima deles. Era Brasil × Itália.
“Lá pelas duas da manhã, começou a passar o jogo. Eu
estava batendo um papo, o jogo na televisão, eu comecei a
olhar e assisti ao jogo inteiro, fiquei lá. Eu achei do caralho,
um puta jogo, fantástico, eu acho que foi o melhor jogo que
eu vi na minha vida, e nunca tinha visto. Eu não vou atrás,
não! Eu não gosto de ver jogo, não, mas coincidiu e acabei
assistindo.”190
Muito antes disso, Sócrates tinha formulado uma leitura
alternativa do significado do resultado. O resto do mundo
lamentou a derrota e tratou tanto de suas razões quanto de
suas consequências, mas Sócrates rapidamente fez as
pazes com a eliminação prematura do Brasil. A derrota o
surpreendeu e, nos dias e semanas seguintes, ele teve
dificuldades para se concentrar em qualquer outra coisa.
Mas tinha pensado bastante sobre as consequências de um
título mundial bem antes de jogar pela seleção e era
ambivalente a respeito delas. Ganhar a Copa do Mundo
acabaria com a motivação de qualquer pessoa, e quando
você atinge o auge no futebol, o único caminho a seguir é
para baixo.
Ponderou esses argumentos no dia seguinte ao jogo, mas
iria ainda mais longe no futuro. Com o passar dos meses e
anos, Sócrates começou a dizer que a derrota tinha sido
uma coisa boa, porque as enormes exigências sobre alguém
que era campeão do mundo seriam muito difíceis de
administrar. Na verdade, ninguém no elenco de 22
jogadores do Brasil seria mais capaz do que ele de lidar com
essas demandas, mas Sócrates usou essa justificativa para
racionalizar a mais dolorosa derrota de sua carreira.
“Eu queria ganhar, claro, eu achava que a gente merecia
isso, eu queria ser campeão, mas eu não mudaria nada”,
ele disse. “Ia ser muito mais complicado administrar isso, ia
ser uma coisa imensa, eu já tinha uma bomba nas mãos
para carregar, ia ser um quilo de bombas. Isso é
complicado, você administrar a popularidade e essa coisa
virtual que a fama dá, é foda; imagina, campeão do mundo
naquele time ainda.”191
Sócrates sempre falou sobre se aposentar depois da Copa
de 1982, mas essa ideia tinha como premissa a conquista
do torneio e ele não havia previsto o crescimento da
Democracia Corinthiana ou seu despertar para a política. Na
manhã seguinte ao jogo contra a Itália, já falava sobre
disputar mais uma Copa do Mundo quatro anos mais tarde,
estimulado por Zico, que imediatamente se comprometeu a
também tentar ganhar o título.192
Mas, naquele dia, quando ele se sentou para tomar
cervejas à beira de uma piscina na Catalunha, a Copa do
Mundo seguinte estava muito distante. Naquele momento,
seu foco alcançava apenas os dias e semanas por vir. Seu
quarto filho estava para nascer a qualquer minuto, ele ia
voltar para casa para ser pai novamente. Se isso não fosse
suficiente para animá-lo, o retorno à Democracia
Corinthiana era igualmente uma perspectiva atraente. O
movimento estava para entrar numa decisiva segunda fase
e Sócrates mal podia esperar.
Capítulo 11
A Democracia Corinthiana ajudou, sim, a levar a mensagem a muita gente.
O Corinthians é um dos principais times do Brasil, muito popular, e ver os
jogadores colocando em prática a ideia de democracia deu a dimensão da
importância daquela luta.
Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil

A decepção do Sarrià ainda estava fresca na memória, mas


o brilhantismo da seleção não tinha muita importância para
as pessoas que dirigiam o Corinthians. A revolução que
ameaçava transformar o futebol no Brasil estava quase
encerrada antes mesmo de começar de verdade, graças a
outra demonstração de hostilidade no Parque São Jorge. Os
clubes brasileiros eram administrados por amadores
entusiasmados, eleitos por torcedores, e os presidentes
passavam tanto tempo construindo seus próprios pequenos
impérios quanto montando times vencedores. Vicente
Matheus seguia furioso por ter sido praticamente deposto e
decidiu se vingar de Waldemar Pires. Antes do fim de julho,
ele iniciou um movimento para remover Pires do cargo com
base em uma proposta de patrocínio do Bradesco, um dos
maiores bancos privados brasileiros.
O governo tinha legalizado o patrocínio nas camisas e o
Bradesco negociava um acordo com o Corinthians para
expor seu nome no uniforme do clube. Mário Campos,
assistente de Matheus, afirmou que o negócio tinha sido
discutido sem consulta aos conselheiros do clube, e
Matheus convocou uma reunião extraordinária para propor o
impeachment de seu rival. Embora menos de um terço dos
trezentos conselheiros do clube tenham aparecido, os
presentes eram na maioria pró-Matheus e votaram pela
saída do presidente.193
Foi uma decisão questionável em muitos aspectos, e a
torcida e os jogadores ficaram indignados. Torcedores
expressaram seu apoio a Pires com cantos e faixas quando
o Corinthians jogou com o Juventus, no Pacaembu, e
Casagrande e Zenon seguiram o exemplo de Sócrates ao
não comemorarem seus gols na vitória por 2 × 0. Sócrates,
cujo contrato terminava no mês seguinte, enviou uma
mensagem ainda mais dura ao ameaçar deixar o clube se o
golpe prosseguisse e Matheus voltasse.
No âmbito judicial logo se decidiu que a saída de Pires
havia sido ilegal e ele foi reconduzido à presidência do clube
alguns dias depois. A tentativa de golpe foi uma dádiva para
Sócrates, porque a torcida apoiou a marcha progressista
que ele e Pires propunham. Adilson, com o suporte de seu
capitão, entendeu a rejeição como um sinal de que eles
poderiam avançar com os planos ambiciosos de
transformação do clube.
Adilson apresentou abertamente ideias para estabelecer
um domínio em escala mundial, declarando que o
Corinthians tentaria contratar jogadores consagrados, que
poderiam levar o clube ao seu primeiro título do
Campeonato Brasileiro, depois à Copa Libertadores e ao
Mundial Interclubes, no Japão. Fora do campo, eles
explorariam novas receitas com parcerias comerciais e
acordos de patrocínio como nunca se havia visto no Brasil.
Como o maior astro do Corinthians, Sócrates era parte
crucial do projeto, e não via problemas nos objetivos
comerciais do clube. Ele enxergava que o futebol estava
entrando em uma nova era e a questão principal não era se
deviam abraçá-la ou não, mas como fazer isso com
integridade. Ele estava aberto ao patrocínio do uniforme,
diferentemente de muitos que não queriam ver a camisa do
clube preenchida por anúncios, e ficou lisonjeado com os
planos para a produção de um boneco do Corinthians que
viria em duas versões; uma vestindo o uniforme do time e
outra com a roupa de um médico. Tornar-se uma peça de
brinquedo não era uma decorrência de ser famoso, ele
insistia, mas de ser bom o suficiente para merecer a honra e
seguir sendo um jogador de equipe. Se ser bom trazia
benefícios tanto para ele quanto para o Corinthians, então
essa seria a recompensa, dizia Sócrates.194
Ele já era o jogador mais bem remunerado do clube e
tinha um quinto das cotas de amistosos internacionais, a
mesma porção que era dividida por todos os outros
jogadores. Seus companheiros aceitaram o acordo porque
suas atuações extraordinárias os ajudavam a ganhar
dinheiro e aumentar os valores de suas próprias
transferências. Com ele no time, o Corinthians ganhava 20
milhões de cruzeiros por jogo; sem ele, a cota era pouco
maior do que a metade.195
Os torcedores também toparam seu envolvimento com os
aspectos comerciais que envolviam o clube porque
passaram a acreditar na maior estrela da companhia. Sua
declaração de amor pelo clube no ano anterior não tinha
passado despercebida, nem seu compromisso com ela no
campo de jogo. Os torcedores perceberam a transformação,
deixaram de chamá-lo de “Doutor” e começaram a usar
“Magrão”, algo mais familiar. Ele já não era o estranho
distante que tinha chegado ao clube dizendo que o futebol
era apenas um trabalho, e o Corinthians, um clube como
qualquer outro. Agora Sócrates era um deles.
Com a seleção retornando às atividades apenas em abril
de 1983, Sócrates pôde passar nove meses se dedicando
exclusivamente ao Corinthians, e aproveitou ao máximo. Foi
seu maior período ininterrupto no clube desde o início de
1979, um dos trechos mais movimentados de sua carreira.
Apesar dos acontecimentos de sua vida pessoal — o
quarto filho, Eduardo, nasceu quatro dias após sua chegada
da Espanha —, Sócrates passou o tempo todo pensando no
Corinthians e na revolução que ajudou a iniciar. Quando não
estava jogando ou treinando, ele debatia ou divulgava o
movimento e seus objetivos. Os jogadores do Corinthians
logo se habituaram à cobertura intensa na mídia esportiva
brasileira, mas Sócrates transcendia o esporte. O
movimento democrático, imediatamente depois de suas
atuações brilhantes na Espanha, elevou-o a um outro nível
de estrelato e ele saboreava a atenção recebida.
Sócrates se posicionou como um porta-voz da população
pobre do Brasil e passava tanto tempo falando de
democracia e justiça social quanto de futebol. Entrevistas
de rádio e televisão começavam com perguntas sobre jogos
e escalações, mas as respostas de Sócrates logo se dirigiam
para política, educação, saúde pública e economia. As
entrevistas, que deveriam durar dois minutos e tratar do
jogo seguinte, muitas vezes se transformavam em debates
de meia hora sobre políticas públicas.196
Ele se reuniu com políticos e assumiu posições que
chamavam a atenção não só por o apresentarem como uma
pessoa sensível aos problemas alheios, mas porque
mostravam alguém à frente de seu tempo. Suas propostas
de expansão do número de escolas técnicas, aumento do
alcance da medicina preventiva e oferecimento de títulos de
propriedade a moradores de favelas foram algumas das
iniciativas que seriam implementadas pelos governos anos,
e até décadas, mais tarde.197
Seu ativismo coincidiu com um crescente clamor por
mudanças em todos os setores da sociedade brasileira. Os
bons tempos tinham acabado, com a economia encolhendo
pela primeira vez em mais de trinta anos e a inflação anual
saltando para 100%. Os ditadores pareciam cada vez mais
anacrônicos e, quanto mais se agarravam ao poder, mais
insatisfação geravam. Em 1982, o governo imprimiu mais
dinheiro do que jamais tinha feito e baniu a importação de
muitos produtos estrangeiros, numa tentativa de proteger a
indústria local. Os aluguéis dobraram, os preços de
alimentos dispararam e o racionamento de petróleo
novamente voltou para as primeiras páginas. A necessidade
de mudança estava na boca de todas as pessoas e a voz de
Sócrates foi uma das mais ouvidas. Pela primeira vez na
história do Brasil, um esportista tinha um megafone e os
torcedores estavam prestando atenção.
No final de setembro, não muito tempo depois de assinar
um contrato que fez dele o jogador mais bem pago do
Brasil, Sócrates foi para os Estados Unidos para jogar na
partida de despedida de Carlos Alberto Torres no New York
Cosmos. O Flamengo foi o convidado de honra e o Cosmos
também convidou alguns jogadores e ex-jogadores a
integrarem sua equipe na disputa contra o time carioca. No
time habitual, o Cosmos já contava com superastros como
Franz Beckenbauer e Johan Neeskens; Sócrates — que
graças às suas atuações na Copa do Mundo, atraía cada vez
mais atenção de clubes estrangeiros — era um dos
convidados especiais que jogariam mais de uma hora de
uma partida empolgante.
O Flamengo dominou o primeiro tempo e fez 3 × 0, com
gols de Zico, Wilsinho e Júnior. Mas o Cosmos deliciou os 37
mil presentes com uma reação no segundo tempo, e Giorgio
Chinaglia fez três gols nos primeiros doze minutos de jogo
depois do reinício.198
A partida foi memorável, mas não tanto quanto o voo de
volta para casa, ao menos para Sócrates, que entrou para o
clube do “amor nas alturas” com uma comissária de bordo
entre Nova York e São Paulo. Mas a verdadeira bomba que
explodiria em sua vida pessoal chegou mais tarde naquele
ano, depois de um jogo no Morumbi. Um evento com
músicos e cantores tinha sido organizado para a mesma
noite e, quando os maiores nomes do mundo do esporte e
do entretenimento se reuniram no saguão do estádio,
Sócrates trocou olhares com Rosemary Pereira Gonçalves.
Rosemary — ela era chamada apenas pelo primeiro nome,
como os jogadores de futebol — era uma loira estonteante
que tinha alcançado a celebridade nos anos 1960 com uma
série de sucessos musicais. Também era uma atriz
conhecida, cuja voz encantadora lhe valeu um convite para
cantar para Jimmy Carter na Casa Branca, e com curvas que
a colocaram na capa da revista Playboy não apenas uma,
mas duas vezes. Eles não tiveram chance de conversar, por
causa do constante assédio dos repórteres, mas trocaram
números de telefone e o olhar de Sócrates não deixou
dúvidas sobre suas intenções. “Eu olhei pra ele, e a gente
deu um ‘oi’”, Rosemary lembrou. “Eu senti que ele me olhou
como homem, e eu o olhei como mulher.”199
O casamento de Sócrates com Regina tinha esfriado após
oito anos e quatro filhos, e a deslumbrante cantora o deixou
fascinado. As agendas complicadas só permitiram que eles
se encontrassem três meses depois, mas ele ligava para ela
sempre que podia e os dois conversavam por horas durante
a noite, criando uma conexão sólida que ia além do óbvio
desejo que sentiam um pelo outro.
Sócrates nunca foi fiel, mas, até conhecer Rosemary, as
outras mulheres em sua vida raramente significaram mais
do que uma noite. Ele dormiu com secretárias das empresas
que visitou, garçonetes de bares que frequentava, além de
irmãs, primas e amigas de seus amigos. (Um possível filho
não reconhecido apareceu em São Paulo em 2016,
solicitando um teste de DNA.) Também se envolvia com
mulheres no início de turnês internacionais do Corinthians e
as levava para o restante da viagem.
Com Rosemary, no entanto, foi diferente. Ela havia
nascido sete anos antes de Sócrates, e tinha uma
maturidade que o atraía. Ao contrário de Regina, que era
caseira e nunca se interessou muito por moda, Rosemary
era uma superestrela que exalava sex appeal. Entendia o
que era estar constantemente sob os holofotes e Sócrates
estava preparado para arriscar tudo para estar com ela.
Rosemary vivia no Rio de Janeiro, a 430 quilômetros de
distância, mas isso não era um obstáculo para um Sócrates
apaixonado. Ele mandava passagens para que ela viesse
visitá-lo em São Paulo, tomava providências para que ela
estivesse em cidades onde o Corinthians jogaria, e um dia
chegou a pegar seis aviões entre São Paulo e Rio apenas
para passar uma ou duas horas com ela.
“Acordei de madrugada para tomar café com ela”, ele
escreveu em suas memórias. “Logo em seguida, voei para
São Paulo para o treinamento da manhã. Ao meio-dia, voei
de volta para almoçar com ela. No começo da tarde, nova
travessia para a capital paulista. Algumas horas depois,
retornei para jantar junto da amada. Quando desembarquei
de volta em Congonhas — naquela que seria a última
viagem —, lá pelas dez da noite, e ainda na sala de
desembarque, bateu uma saudade no meu peito, uma
vontade de ficar ao lado de quem amava, daquelas
impossíveis de relevar, e senti a necessidade, o desejo, a
loucura de dormir com ela. E, quase sem racionalizar,
acabei voltando para os braços queridos. Aquele último voo
representava o êxtase, a comunhão de sentidos, a
felicidade plena.”200
O affair começou discretamente, mas Sócrates e
Rosemary não demoraram para começar a planejar a vida
em torno dele. Em pelo menos uma ocasião, Sócrates
estava tão desesperado para vê-la que pediu para ser
substituído no intervalo de um jogo e foi embora do estádio
para se encontrar com ela. Amigos e companheiros
encobriam suas escapadas e pressionavam repórteres a não
escrever histórias sobre os dois nem fotografá-los juntos.
Regina não suspeitou de nada ou talvez tenha decidido
olhar para outro lado, e Sócrates sempre tinha algum álibi:
sempre estava treinando ou viajando com o Corinthians e a
seleção; quando não estava, algum de seus patrocinadores
tinha reuniões e eventos agendados. Às vezes, Rosemary
descobria onde ele jogaria e o surpreendia com uma suíte
reservada quando ele chegasse.201
Uma rotina como essa não é simples, mas eles davam um
jeito, e se por algum momento ele esteve em dúvida, sua
forma em campo era um lembrete de que o caso lhe fazia
bem. Sócrates acreditava que as pessoas — particularmente
os jogadores — eram mais criativas quando estavam
relaxadas e talvez não tenha sido um acaso que algumas
das melhores atuações de sua carreira tenham ocorrido
durante o período em que se relacionou com Rosemary.
“É que quando estamos apaixonados, parece que o foco
do nosso sentimento somos nós mesmos”, ele disse. “Nós
nos vemos com muito mais carinho e respeito, e
acreditamos piamente que estamos acima de qualquer
eventual restrição que o cotidiano nos coloque. A paixão nos
torna fortes como jamais supúnhamos.”202
Após um início irregular no Campeonato Paulista, em
julho, a campanha do Corinthians decolou contra o rival
Palmeiras, no dia primeiro de agosto. Casagrande vinha
mostrando a mesma forma letal do começo da Taça de
Prata, e marcou gols nas vitórias sobre o Santo André e o
Juventus.
Mas ele foi sensacional contra o Palmeiras, fazendo três
gols em quatro minutos, para garantir uma vitória por 5 × 1.
Sócrates colocou o Corinthians à frente (2 × 1) ao cobrar
um pênalti, na metade do segundo tempo e, com apenas
dez minutos por jogar, Casagrande assegurou os pontos da
vitória com três gols de oportunismo, todos eles dentro da
pequena área.
O jovem centroavante marcou mais dois naquela mesma
semana, na vitória por 2 × 0 sobre a Francana, outros dois
nos 2 × 1 sobre a Ferroviária, e voltou a marcar duas vezes
na vitória sobre a Internacional de Limeira, no dia 11 de
agosto, totalizando nove gols em quatro jogos.
Algum tempo antes, Sócrates tinha dito aos repórteres
que ajudaria Casagrande a se tornar o melhor centroavante
do país e declarou que se dedicaria a colaborar para que o
companheiro fosse o artilheiro do campeonato. Ele passava
a bola para Casagrande quando podia chutar ao gol e o
deixava cobrar pênaltis quando as vitórias já estavam
asseguradas.
Os dois jogadores se entrosaram dentro de campo e logo
se tornaram inseparáveis do lado de fora, com Sócrates
assumindo o papel de irmão mais velho de Casagrande.
Nascido e criado na Penha, bairro de classe trabalhadora
próximo ao Parque São Jorge, Casagrande sempre torceu
para o Corinthians. Havia sido expulso da escola e levou a
fama de jovem causador de problemas para o futebol. Fez
seu nome ao marcar quatro dos seis gols do Corinthians na
Copa São Paulo de Futebol Júnior de 1980, mas os técnicos
nunca apostaram totalmente na chegada do adolescente
explosivo ao time principal. Osvaldo Brandão chegou perto,
depois de convocá-lo para um jogo e, sem cerimônia,
dispensá-lo na véspera. Casagrande ameaçou lhe dar um
soco e foi emprestado à Caldense, um clube pequeno de
Minas Gerais.
Ele marcou muitos gols por lá e foi chamado de volta por
Travaglini no começo de 1982, para ter sua chance.
Casagrande era o jogador de mais visibilidade de uma
geração que surgia justamente quando o futebol brasileiro
se transformava. Os brasileiros já não tinham tanto medo de
dizer o que pensavam e os futebolistas estavam começando
a ganhar mais dinheiro graças ao aumento da publicidade e
da capacidade de consumo no país.
Casagrande não era um intelectual como Sócrates, mas
era claramente mais esclarecido e independente que a
maioria dos jogadores. Vestia-se como um típico
adolescente, com jeans e camiseta e tênis da marca
Converse de cano alto, completando o visual rock and roll
com óculos escuros e cabelos compridos. Com 1,90m,
gostava de chamar a atenção no gramado, usava as meias
abaixadas, perto dos tornozelos, e a camisa do Corinthians
para fora do calção.
Sócrates adorava a energia de Casagrande e se
identificava com sua rebeldia juvenil. Ele o via como uma
versão mais jovem de si mesmo, de voltagem mais alta, e
percebia que Casagrande era naturalmente afinado com a
juventude insatisfeita com a qual queria se comunicar.
Casagrande, por sua vez, usava Sócrates para se desviar de
algumas de suas próprias controvérsias e, ao mesmo
tempo, aprender com a experiência dele.
A forma como Sócrates se identificou com um adolescente
da classe trabalhadora, nove anos mais novo, e ainda foi
seu mentor, era um indicativo de seu impressionante
talento para se conectar com as mais distintas
personalidades no vestiário do Corinthians, a maioria anos-
luz aquém dele do ponto de vista intelectual.
Nos anos 1980, o futebol brasileiro ainda era praticado
quase que exclusivamente pelos pobres e desfavorecidos. A
classe média do país não tinha começado a crescer, e a
elite que comandava a nação ainda enxergava o esporte
como um refúgio de delinquentes que não tinham outra
forma de escapar da pobreza. No Corinthians, Sócrates
estava rodeado de jogadores que não conheciam nada além
do futebol. Que nunca tinham tido chance de ir à escola, ou
que haviam deixado de estudar muito cedo, e o futebol era
sua única esperança na vida. Quando Sócrates falava sobre
teorias políticas ou aperfeiçoamento pessoal, eles riam.
“Ele bebia e vinha com essas ideias. Que vocês têm que
ler… uma cultura a mais…”, disse Ataliba, um dos
brincalhões do elenco. “Ô, vai tomar no cu! Para com isso,
caralho! Vamos jogar bola, mano. Eu vou ler livro? O outro
vai ler livro? O Casagrande, doidão, vai ler livro? Nunca,
cara… Ele quis pôr isso aí, mas a gente… ‘Porra, Magrão,
para, cara!’”203
Sócrates conseguia se conectar com pessoas como
Ataliba graças, em parte, a um comentário feito por um ex-
companheiro mais de uma década antes. Ele ainda jogava
pelo time amador do Raio de Ouro e um dos jogadores mais
velhos do time elogiou sua atuação com as palavras: “Pena
que você não é filho de pedreiro”. Sócrates interpretou o
comentário como um aviso — o frágil garoto de classe
média não sobreviveria num mundo habitado por homens
duros e implacáveis. Aquelas palavras permaneceram com
ele durante anos e o inspiraram a tentar ser como o filho do
pedreiro, ou ao menos a tentar entendê-lo.204
Apesar da distância intelectual em relação a jogadores
como Ataliba, Sócrates nunca se comportou de forma a
evidenciar isso. O doutor, com seus livros, suas palavras
complicadas e sua amante capa de Playboy, poderia
facilmente ser percebido como arrogante ou esnobe. Em vez
disso, fazia questão de ajudar os outros jogadores quando
não estavam jogando, e em suas declarações costumava
dar muito destaque à contribuição deles dentro de campo.
Biro-Biro disse que Sócrates às vezes se sentava com eles
depois que davam entrevistas e os ajudava com vocabulário
e dicção. Sempre que alguém elogiava suas atuações ou
seus gols, Sócrates imediatamente respondia com sua
própria interpretação, repassando o crédito aos colegas.
Sócrates podia ter vencido o jogo, mas sem a entrega de
Biro--Biro ou os cruzamentos de Ataliba ou os desarmes de
Paulinho nada teria sido possível, ele dizia. O resultado era
que, mesmo que seus companheiros o achassem estranho e
distante, sempre foram extremamente leais a ele.
“Ele era diferente”, disse Ataliba. “Como homem, como
pai, mas principalmente como atleta, como gente, fora ou
dentro de campo. Eu tenho essa ideia dele, não vou dizer
uma gratidão. Gratidão quem cria é a gente. Mas nesse
espaço de dois anos e meio juntos, não tem como dizer algo
de ruim dele. Não tem.”205
Uma das características que mais impressionavam seus
companheiros era sua confiança. Os jogadores do
Corinthians eram pobres, negros, ou ambos, e assim como
seus compatriotas pobres e negros, estavam acostumados a
ser tratados como cidadãos de segunda classe. A
experiência ensinou a jogadores como Ataliba e Biro-Biro
que eles não escapariam impunes se fizessem o que o
doutor de classe média fazia — fossem os casos
extraconjugais, as bebedeiras antes dos jogos ou a maneira
como ele audaciosamente dizia o que pensava. Mas tudo o
que Sócrates fazia e dizia reafirmava que ele estava do lado
dos colegas de time.
“Tem jogo amanhã. A gente chegava no hotel, o Magrão
estava lá e ficavam quatro ou cinco com ele e tal”, disse
Biro-Biro. “Eu não ficava. Eu ia dormir. Mas ele passava essa
confiança para a gente, porque chegava no outro dia e era a
mesma coisa. Parecia que não acontecia nada. O time
jogava da mesma forma, não tinha problema nenhum. Eu
sempre falava: é errado. Mas como ele passava essa
confiança para a gente, então a gente falava: ‘Pô, está tudo
bem’. […] Mesmo não estando bem dentro do jogo, ele não
participava nos noventa minutos, mas nos trinta ou vinte
minutos de que participava — ou dois minutos —, ele
resolvia a partida. Passava essa confiança para o grupo,
então o grupo acabou assimilando, aceitando, aquilo que
ele fazia fora de campo.”206
Jogadores de times vencedores — e, às vezes, até de
times que não vencem — adoram fingir que são todos
melhores amigos dentro e fora do campo. Normalmente é
papo furado, porque, como Sócrates sempre salientou,
embora o futebol seja um esporte coletivo, cada jogador é
um indivíduo competindo com outros indivíduos por mais
minutos em campo, mais dinheiro e mais reconhecimento.
O time do Corinthians de 1982 tinha suas divisões, mas
eram pequenas. No âmbito dos clubes, foi o time mais unido
em que Sócrates jogou. O ônibus trazia os jogadores de
volta a São Paulo após as partidas fora de casa, mas o
ambiente era tão bom que eles não iam direto para casa. Às
vezes, estendiam o fim de semana, saindo juntos ou se
sentando para tomar algumas cervejas em vez de voltar
para suas mulheres e famílias. Eles estavam ganhando, o
que sempre gera uma atmosfera alegre, e estavam jogando
bem, com Zenon, Wladimir, Biro--Biro, Paulinho, Casagrande
e Ataliba entre os que mostravam, naquele ponto, o melhor
futebol de suas carreiras. O que um dia foi heavy metal
tinha evoluído para um power pop e já estava se
aproximando de algo como o jazz. Nas palavras memoráveis
do escritor corintiano Marcelo Rubens Paiva, era futebol ao
estilo da banda Earth, Wind and Fire.
O time de personagens fortes, cada um assumindo sua
personalidade distinta, era uma dádiva para a mídia.
Sócrates era o pensador, que de forma descontraída imitou
a pose da escultura de Rodin para a capa de Placar. Biro-
Biro era o atleta mais reconhecível no campo, com suas
meias abaixadas e uma juba loira que não tinha concorrente
até o surgimento de Valderrama. Zenon mantinha o visual à
la Beatles, o bigode preto e jogava com a camisa para fora
do calção — algo raro na época —, enquanto Casagrande
era o rebelde, com os óculos escuros, tênis brancos e
opiniões sobre tudo. Os veteranos Wladimir, com seu
compromisso duradouro tanto com o clube quanto com o
movimento black power brasileiro, e Zé Maria, o cavalo
incansável, eram os arquétipos do corintiano, e, por isso,
imensamente populares.
Essa aura de extravagância sempre havia representado a
antítese do perfil trabalhador do Corinthians, mas Sócrates
mudou isso também. Os torcedores adoravam a irreverência
e, desde que vencessem, os jogadores podiam fazer o que
quisessem.
E fizeram. Durante a segunda metade de 1982, eles
tentaram coisas que nenhum time de futebol brasileiro tinha
tentado antes. O Brasil nos anos 1980 ainda era fechado e
conservador, mesmo numa cidade relativamente
cosmopolita como São Paulo. Esses limites eram o que
Sócrates mais odiava, e, quanto mais poder ele angariava,
mais procurava modificá-los.
A seu pedido, o Corinthians contratou um psicólogo pop,
famoso por suas colunas de jornal em que tratava de
relacionamentos pessoais. Muitos jogadores pensavam que
Flávio Gikovate não passava de um promotor de autoajuda
— ele disse que o Brasil perdeu para a Itália porque os
jogadores brasileiros tinham medo de ser campeões do
mundo —, mas Sócrates o adorava e eles foram amigos por
um tempo.
Uma das mentes mais criativas do Brasil se juntou ao
departamento de marketing do clube. Washington Olivetto,
corintiano fanático, formou amizades para uma vida inteira
com vários dos jogadores, nenhuma mais forte do que a que
estabeleceu com Sócrates. Olivetto era carismático e muito
bem relacionado, e procurou seus amigos na indústria da
música e da televisão para ajudar a promover o novo
movimento.
Os jogadores se envolveram ativamente na renovada
cena musical brasileira, com Casagrande levando grupos de
colegas a shows todas as semanas. A ideia das bandas de
garagem tinha chegado ao Brasil e uma nova onda de
roqueiros raivosos descontava frustrações em suas
guitarras. Numa noitada planejada dias antes das eleições
de novembro, um marco, Sócrates, Casagrande e Wladimir
subiram ao palco durante um show de Rita Lee e cantaram
sua música “Vote em mim”. Casagrande queria dar uma
camisa do Corinthians para a cantora vestir, mas se
esqueceu de levar uma e teve de pedir que alguém no
público entregasse a sua. Sócrates surgiu no palco com a
camisa corintiana sobre a sua camiseta, tirou-a e a ofereceu
a Rita Lee, torcedora do clube. Os quatro dançaram
animadamente e Sócrates resolveu colocar um dos anões
que se apresentavam como dançarinos em seus ombros,
mas caiu do palco quando saía — felizmente ninguém se
machucou.207
Vários jogadores se tornaram politicamente ativos fora do
vestiário: Zé Maria se juntou ao PMDB; Casagrande e Wladimir
se filiaram ao PT, partido fundado pelo futuro presidente Lula.
Sócrates preferiu se manter acima dos partidos políticos,
uma posição que decepcionou militantes de esquerda que
queriam apresentá-lo como um deles. Nos anos seguintes,
ele adoraria falar de política e formaria amizades
duradouras com Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso,
e também com Lula, Eduardo Suplicy e com o ribeirão-
pretano Antonio Palocci.
Mas ele seguiu transmitindo sua mensagem de mudança.
Em uma de suas atitudes mais ousadas, os jogadores do
Corinthians entraram no gramado para um jogo no fim de
outubro contra o São Bento com a inscrição “Dia 15, vote”
em suas camisas. A mensagem para encorajar as pessoas a
participar das eleições estaduais marcadas para 15 de
novembro era política demais para os poderes constituídos,
e eles foram forçados a tirar a mensagem do uniforme, mas
o objetivo em termos de repercussão havia sido atingido.
Alguns problemas também afloraram à medida que os
elogios subiam à cabeça dos jogadores. Sócrates insistiu em
organizar uma festa antes da decisão do segundo turno
contra o São Paulo — se vencesse, o Corinthians seria
campeão direto, pois havia vencido o primeiro turno — e
ofereceu aos colegas uma feijoada completa, uma refeição
sabidamente pesada. O Corinthians perdeu no dia seguinte
e alguns companheiros de time ficaram irritados com sua
falta de profissionalismo. Num episódio mais sério,
Casagrande se envolveu com drogas e foi preso por posse
de cocaína, pouco antes do Natal. Embora as acusações
tenham sido retiradas mais tarde por falta de provas, o fato
chamou mais atenção para o time e cada jogo se tornava
um evento. O foco no Corinthians era constante e os
jogadores já não jogavam para si mesmos, ou para a
torcida. O país inteiro estava olhando e os resultados
ganharam um significado que foi além do futebol.
“Nossa responsabilidade aumentava”, lembrou Biro-Biro.
“Porque nós estávamos criando uma democracia que mexia
com o país, pô, e cada jogo que a gente jogava era uma
decisão. Cada jogo a gente tinha que ganhar e isso pegava
a confiança do torcedor, do povo brasileiro. A
responsabilidade aumentava, politicamente, por causa
disso. Querendo ou não as pessoas levavam para o campo.
Se a gente perdesse, se as coisas dessem errado, seria
difícil (a democracia continuar). Sem dúvida, sentimos mais
pressão.”208
Sócrates gostava da pressão, mas não era imune a ela.
Ele não tinha superstições, mas lidava com o estresse dos
grandes jogos de uma forma peculiar. Quando estava feliz,
sua mente viajava e ele tinha dificuldade para se manter
concentrado. Então, se chegasse ao estádio de bom humor,
tentava encontrar um motivo para ficar triste. Não era
sempre uma decisão consciente, mas ele instintivamente
colocava o cérebro para dormir antes de jogos importantes.
“O fato de estar triste ajudava a me concentrar, o fato de
estar alegre prejudicava a concentração, então eu cortava
rápido”, disse. “Era intuitivo isso, eu não tinha muita noção.
Lembro que quando eu estava triste por algum motivo, ou
puto com alguma coisa, eu me encolhia no meu canto,
chegava até a dormir no vestiário antes de entrar em
campo. Eu me concentrava muito mais no jogo.
Gradativamente, comecei a manipular isso. E eu acho que
tem a sua lógica, porque era uma forma de extravasar, eu
ficava muito mais ligado fisicamente, emocionalmente,
naquilo que estava fazendo. O esporte tem essa vantagem,
você esquece o mundo.”209
Seus companheiros e amigos começaram a notar como a
preparação mental era importante para ele, e passaram a
se comportar de acordo. “Quando eu chegava no vestiário e
ele estava quietinho… sentava lá, às vezes nem pegava um
livro, eu falava: ‘Pô, não mexe com ele… hoje vai
arrebentar’”, recordou Biro-Biro.
“Quando ele deitava e descansava, porra, ele jogava
muito mais do que se chegasse animado. Quando se
concentrava, ai, ai…”210
Gikovate também acreditava que Sócrates jogava melhor
quando estava preocupado e Olivetto, notando sua
necessidade de engajamento intelectual, organizava
eventos para afastar sua mente do futebol. Antes de jogos
importantes, Olivetto convidava um arquiteto, um músico
ou um novelista para jantar, e eles ficavam bebendo e
conversando por horas a fio.211
Os métodos funcionaram e o Corinthians navegou sem
problemas pelo Campeonato Paulista, que tinha retornado a
um formato mais razoável, com o vencedor do primeiro
turno enfrentando o vencedor do segundo na final, em
dezembro. O Corinthians dominou a primeira metade da
temporada, terminando com cinco pontos de vantagem
sobre o São Paulo, bicampeão vigente, e com um saldo de
gols que era o dobro do rival. O time ficou muito perto de
repetir o desempenho na segunda fase, mas duas derrotas
nas rodadas finais deram a posição ao São Paulo, marcando
um clássico entre eles na final, disputada em dois jogos.
O Corinthians ganhou o primeiro, graças a um gol de
Sócrates num jogo tão brigado que mal lembrou futebol, ele
disse. Então, o elenco todo se reuniu antes da finalíssima,
três dias depois, no que Sócrates prometeu que seria a
última concentração obrigatória antes da abolição da
prática no ano seguinte. Foi o septuagésimo sexto e último
jogo da temporada corintiana, e o time conquistou o título
com uma vitória por 3 × 1.
O sucesso do Corinthians foi o triunfo da democracia e
também o dos torcedores neutros que queriam o fim do
regime militar. Foi igualmente um ponto alto para Sócrates,
que disputou treze dos dezenove jogos do primeiro turno e
todas as partidas do segundo. Ele marcou dezoito gols e foi
o vice-artilheiro do campeonato, dez gols atrás de
Casagrande, goleador do torneio em sua primeira
temporada completa como profissional.
A vitória foi importante para o Corinthians, o primeiro
título estadual do clube em três anos. O time celebrou
direcionando o ônibus para a mansão de Waldemar Pires e
surpreendendo o dirigente com a exigência de uma festa. O
presidente não pôde dizer não e os jogadores foram da sala
para a adega, onde brindaram ao sucesso alcançado.212
A conquista foi significativa para Sócrates não apenas por
coroar a melhor temporada de sua carreira, até aquele
momento, com um troféu. Ele comemorou seu gol no
primeiro jogo erguendo o braço para o alto e cerrando o
punho numa saudação que lembrava a de um militante
engajado. Embora não tivesse certeza do que o levou a
adotar essa comemoração, ela se transformou em sua
marca. Mais tarde, ele mencionaria o gesto dos Panteras
Negras no pódio da Olimpíada do México, em 1968, como
uma das suas influências, e tinha clara noção de seu
histórico antifascista. Não foi a primeira vez que a usou —
suas comemorações nesse estilo começaram em 1978 —,
mas o gestual se encaixou perfeitamente com sua nova
agenda progressista, e ele passou a usá-la mais
frequentemente.
Provavelmente a decisão mais memorável durante
aqueles últimos meses de 1982 tenha sido tomada em uma
universidade, e não por um jogador, técnico ou mesmo um
diretor do clube. Embora já contasse com quase um ano de
vida, o movimento ainda não tinha um nome. As pessoas se
referiam a ele como “o poder aos jogadores”, chamavam o
Corinthians de “o time democrático”, ou usavam expressões
como “a revolução corintiana”. Isso começou a mudar em
novembro, após um debate na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Olivetto, Sócrates e Adilson sentaram-se no palco diante
de centenas de estudantes e torcedores para discutir o
movimento e seus objetivos, ajudados pelo moderador Juca
Kfouri, que, num determinado momento, ironicamente
resumiu as coisas com um comentário: “Então se os
jogadores continuarem participando das decisões do clube,
se os dirigentes não os impedirem, e se a imprensa
esclarecida lhes der suporte, o que a gente vê aqui é uma
democracia, uma democracia corintiana”.213
Foi um desses momentos que Olivetto, um homem de
relações públicas, jamais esqueceu.
“Quando ele falou aquilo, eu disse: ‘Meu Deus, achei o
nome!’, e anotei: Democracia Corinthiana”, contou Olivetto.
“No outro dia, cheguei na agência, e pedi que o diretor de
arte fizesse um logo da Democracia Corinthiana, que
misturasse a estética da marca da Coca-Cola — porque eu
queria algo pop, pode olhar, ela tem muito isso — com a
estética do PMDB, que era o partido de oposição ao governo. E
assim o nome ficou: a Democracia Corinthiana.”214
Sócrates achou o nome preciso, mas de certa maneira
inconveniente, porque a palavra “democracia” seria um
problema para os conservadores que trabalhavam para
manter o status quo. De qualquer forma, a expressão colou
e entrou para a história como o nome do movimento mais
transformador ocorrido dentro de um grande time de
futebol.
Sócrates acreditava que vencer o título paulista em
dezembro tinha sido uma prova de que a abertura trazia
recompensas, e foi para a praia em suas férias de fim de
ano com grandes planos para expandir o movimento em
1983. Seu otimismo, no entanto, mostraria-se excessivo. Na
medida em que as ambições cresciam, os problemas
decorrentes seguiam no mesmo ritmo. Democracia era
agora um nome, mas seu real significado seria dissecado de
forma cada vez mais minuciosa. Os meses seguintes
ensinariam a Sócrates que o conceito de democracia tinha
diferentes sentidos para pessoas diferentes. Poderia ser
usado de várias formas. Ou, quando interessasse a ele, não
precisaria ser usado de forma nenhuma.
Capítulo 12
Em 1983 foi mais difícil pra todo mundo, mais sofrido. A gente esperava
que o ambiente fosse o mesmo de 1982, mas as coisas não são iguais,
nunca são iguais.
Casagrande

Numa tarde chuvosa no início de fevereiro de 1983, Adilson


chamou os jogadores do Corinthians para uma reunião no
Parque São Jorge. Cerca de 24 jogadores formaram um
quadrado com os bancos e Adilson começou a falar.
“Nós estamos pensando em contratar um goleiro e
estamos pensando em Leão”, Adilson disse a eles. “O que
vocês acham?”
Émerson Leão era um dos jogadores mais controversos do
Brasil, um goleiro brilhante que tinha vencido quatro
Campeonatos Brasileiros e disputado três Copas do Mundo,
mas cujo individualismo tinha lhe valido inimigos por onde
passou.
Muitos jogadores do Corinthians ficaram felizes com a
ideia de receber Leão, por causa de suas habilidades como
goleiro. Mas alguns foram veementemente contra. Os três
goleiros do elenco, além de Casagrande e Wladimir,
expressaram oposição de forma clara. O tom subiu no
debate que se seguiu, com metade do time temendo que a
chegada de Leão viesse a ameaçar a harmonia que eles
tanto tinham lutado para criar, e a outra metade disposta a
arriscar essa harmonia para contratar o melhor goleiro do
país.215
“Vamos votar”, disse Adilson, quando a discussão perdeu
força. Quando a contratação de Leão foi aprovada pela
votação, ele fez algo que ninguém ali esperava.216
Zenon se lembrou da cena com clareza. “Nós estávamos
na sala de musculação. Os banquinhos formando o
quadrado, o pessoal ali todo sentado.”
“Bom, já que votamos a favor, eu vou apresentá-lo a
vocês. Ele está aqui agora”, disse Adilson.
O silêncio foi instantaneamente quebrado por um coro de
vozes surpresas, perguntando: “Como assim, ele está aqui
agora?”.
“Ele está aqui”, repetiu Adilson, chamando Leão para que
se aproximasse e encontrasse seus novos companheiros.
Leão, que ouviu o debate sobre contratar um grande
goleiro ou rejeitar um potencial criador de problemas,
apareceu e se apresentou. O exercício tinha sido uma farsa,
e Leão jogaria no Corinthians com ou sem a aprovação dos
companheiros.
“Ficamos surpresos com aquela situação, entende?”, disse
Zenon. “O cara estava do lado de fora, talvez estivesse
escutando tudo o que nós estávamos falando antes da
votação, alguns falando que não seria bom…”
Adilson explicou mais tarde que, diferentemente das
contratações anteriores, que tinham sido debatidas
previamente com todos os jogadores, a chegada de Leão foi
acertada com os líderes do elenco. Sócrates, Wladimir e Zé
Maria, que tinham jogado com Leão na seleção, foram
questionados sobre a aquisição, assim como Travaglini e o
preparador Hélio Maffia, que o conhecia dos tempos de
Palmeiras. Todos os cinco concordaram que as vantagens de
contratar um goleiro tão bom superavam as desvantagens
de trazer uma personalidade tão controversa. Isso foi
suficiente para Adilson, que fez o negócio. Só então ele
informou o restante do elenco, e, graças em parte ao poder
de persuasão de Sócrates, uma votação muito equilibrada
aprovou a contratação e evitou um racha potencialmente
fatal.
Mesmo depois da votação, a decisão enfureceu mais do
que apenas os goleiros do time. Casagrande, que disse que
seus contatos com Leão “não eram muito agradáveis”, foi
tão explícito que levou uma suspensão de quarenta dias, e
as tensões aumentaram muito no início da temporada.217
A forma ardilosa como a contratação havia sido fechada
deixou o movimento e os líderes Adilson, Sócrates, Wladimir
e Casagrande em uma situação desconfortável. A influência
deles levou os críticos a se referirem ao movimento com
expressões como “a democracia de quatro homens”, ou “a
aristocracia corintiana”. Eles achavam engraçado, embora
reconhecessem que, nas democracias, algumas pessoas se
envolvem mais do que outras. O episódio, no entanto, foi
uma afronta ao conceito de democracia e colocou o caráter
do movimento em questão.
A trama acabou dando certo pela simples razão de que a
maioria dos jogadores do Corinthians não se importava com
a condução da contratação de Leão, ou não tinha
conhecimento suficiente do que era democracia para se
opor. O movimento tinha apenas um ano e importância
secundária para a maior parte do elenco. Eles eram atletas
pouco sofisticados, com mínima experiência em processos
eleitorais ou ética coletiva, e não estavam conscientes de
que os verdadeiros líderes democráticos não manipulam
eleições.
“A gente sabia muito pouco de democracia”, admitiu Zé
Maria. “A gente queria uma democracia, mas não sabia por
que a gente não tinha isso no clube. Passou a ter essa
democracia. O pessoal começou a entender melhor o que
eles tinham de direito, o que podia, o que não podia.”
Sócrates sabia que eles estavam cometendo uma
injustiça, mas concordou com o plano porque tinha se
convencido de que o clube precisava contratar os melhores
jogadores se quisesse conquistar o Campeonato Brasileiro.
Vencer era mais importante do que ele admitia e, embora
dissesse a amigos que havia cometido um erro, em público
não foi tão nobre. Num livro de 2002 sobre a Democracia
Corinthiana, do qual foi coautor, Sócrates afirmou não se
lembrar das exatas circunstâncias da chegada de Leão.
A controvérsia aconteceu em um momento delicado. A
imprensa brasileira estava dividida a respeito da
Democracia Corinthiana: alguns jornalistas conhecidos
apoiaram seus objetivos, mas a maioria das publicações
relevantes tornou-se abertamente hostil. O público em
geral, enquanto isso, acompanhava de perto e debatia a
importância do movimento numa época que começava a se
parecer com uma encruzilhada. No início de 1983, o Brasil
estava cada vez mais apreensivo, pois os estilhaços do
boom econômico começavam a provocar estragos. A moeda
nacional foi desvalorizada em 30% no começo do ano, a
inflação cresceu ao maior nível mensal em duas décadas, e
o governo introduziu controles de preços para tentar manter
a economia andando. O desemprego crescia, assim como a
dívida governamental, e as tensões chegaram às ruas, onde
greves e depredações passaram a ser comuns.
No Corinthians, a contratação de Leão foi seguida de uma
eleição crucial disputada entre Pires e Vicente Matheus.
Manter Pires no comando era fundamental para a
continuação do movimento, e Sócrates se envolveu mais do
que nunca. Não só ameaçou deixar o Corinthians caso
Matheus retornasse; seu nome integrou a lista de
candidatos ao conselho, junto com os de Wladimir e Zé
Maria.
A eleição aconteceu no domingo, 6 de março, o dia em
que o Corinthians jogaria com o Fluminense, no Maracanã.
Mas Sócrates gostaria que seus companheiros
participassem. Tentou convencê-los a adiar o voo por um dia
e viajar para o Rio apenas depois de terem votado na
manhã de domingo, e solicitou uma votação entre eles para
resolver o assunto. Sócrates perdeu por pouco, mas, mesmo
sem poder comparecer ao clube, ele e os dois companheiros
de time acabaram eleitos pelas milhares de pessoas que
foram até o Parque São Jorge.
Suas carreiras políticas duraram pouco, porque as
reuniões do conselho aconteciam às segundas-feiras, o
único dia de folga dos jogadores. Relutantes em trocar um
dia de churrasco e cerveja por outras funções no clube,
foram retirados do conselho após faltarem a três reuniões
consecutivas. Sócrates não se importava, e tinha tentado,
sem sucesso, retirar seu nome das cédulas após descobrir
que as eleições não eram diretas. O mais importante,
porém, foi que Pires acabou facilmente reeleito, com 5.138
votos contra 2.336 de Matheus. A revolução seguiu sua
marcha oscilante.218
Apesar do episódio com Leão, Sócrates, mais do que
nunca, acreditava no poder dos jogadores e estava
genuinamente intrigado pelo fato de os outros times não
estarem tentando copiar a experiência. Apenas um ou dois
jogadores apoiaram publicamente a causa e, embora Carlos
Alberto Torres tenha prometido mais abertura no Flamengo
e jogadores do Cruzeiro, do Fluminense e da Ponte Preta
tenham discutido sobre buscar mais controle das decisões
que os envolviam, nenhum clube chegou perto de replicar a
Democracia Corinthiana. Vários jogadores de alto nível —
particularmente os do São Paulo — disseram que era um
modismo e pediram a seus companheiros que se
concentrassem no futebol e esquecessem todo o resto.
Sócrates ficou desanimado pela falta de conscientização
dos colegas, mas, com o passar do ano, precisou se
preocupar com os rumos da democracia em seu próprio
clube, pois Leão fez sua presença ser sentida. O goleiro era
um profissional consagrado, o primeiro a chegar nos treinos
e o último a sair. Mas acreditava que a ideia de jogadores de
futebol como agentes de mudanças políticas era uma
grande piada e trabalhou claramente para enfraquecê-la.
Respeitado e articulado, conseguiu o apoio dos jogadores
reservas e dos mais jovens, e os convenceu de que os
líderes do movimento ganhavam mais dinheiro do que eles
porque eram amigos dos dirigentes. Adilson e Sócrates se
reuniram com Leão para discutir sua postura, mas ele riu e
disse que se eles o consideravam um problema depois de só
um mês de clube, deveriam esperar mais algum tempo,
porque conseguiria o apoio necessário para levar todo
aquele sistema ao esquecimento.219
Sua hostilidade explícita enfurecia Sócrates, que via com
desgosto sua influência diminuir e a atmosfera no vestiário
se tornar cada vez mais tensa. O racha cozinhou em fogo
baixo durante toda a temporada e virou motivo de conflito
antes da semifinal do Campeonato Paulista, em dezembro,
contra o Palmeiras. Sócrates e Adilson estavam fartos das
tentativas de Leão de desacreditar o movimento e o
confrontaram no hotel, antes do jogo. Os ânimos se
exaltaram, as vozes se levantaram e Adilson teria dito: “Se
você levar um gol e o Corinthians for eliminado, nós iremos
à imprensa e diremos que você fez de propósito”.
Leão deu uma aula de atuação como goleiro, e o
Corinthians venceu por 1 × 0, mas as discussões constantes
tornaram sua posição insustentável. Quando o campeonato
acabou, ele retornou ao Palmeiras depois de menos de um
ano jogando pelo rival.
Sócrates nunca perdoou Leão por tentar destruir seu
projeto, e os dois passaram o resto de suas vidas em
desacordo. Leão se recusava a falar sobre seu desafeto,
mas Sócrates não se importava, dizendo certa vez que: “Se
Deus criou o homem, então o diabo inventou Émerson
Leão”. Seu ressentimento era ainda mais notável porque
eram raras as inimizades em sua vida. Quando Sócrates não
gostava de alguém, simplesmente o eliminava de seu
círculo, da maneira mais simples possível, muitas vezes
ignorando a pessoa. Refletia e agia rápido quando percebia
que alguém queria tirar alguma vantagem dele ou de sua
fama. Sócrates não tinha problemas com quem pensasse
diferente e gostava de debater ideias com qualquer pessoa
que tivesse um ponto de vista contrário, por isso pareceu
tão estranho o rumo seguido por seu relacionamento com
Leão.220
Os conflitos no vestiário tiveram efeito prejudicial, mais no
ambiente do que nos resultados do time. Sócrates começou
a temporada em ótima forma, marcando quatro gols na
vitória por 10 × 1 sobre o Tiradentes, e ajudando o
Corinthians em um bom começo de Campeonato Brasileiro.
O time perdeu apenas dois dos primeiros dezesseis jogos,
mas uma bomba explodiu em março, quando Travaglini
inesperadamente pediu demissão.
O popular técnico disse que estava “cansado, desanimado
e desgastado”, mas também surgiram histórias de que
estaria farto da “democracia dos quatro homens” e não
queria mais saber daquilo. Ele admitiu que os problemas
disciplinares de Casagrande, os protestos públicos dos
jogadores ao não serem escalados ou substituídos, e os
problemas relacionados à chegada de Leão tinham
contribuído para sua saída, mas afirmou ainda acreditar na
Democracia Corinthiana e disse que seu ato de demissão
não era uma condenação ao movimento.221
Travaglini tinha avisado Adilson de suas intenções alguns
dias antes de o Corinthians vencer o Bahia, por 2 × 0.
Depois do jogo, o diretor de futebol chamou Sócrates,
Wladimir, o zagueiro uruguaio Daniel González e o médico
Luis Carlos Campos para debater o próximo passo do clube.
Adilson sugeriu Zé Maria como um possível substituto e,
dispostos a manter a Democracia Corinthiana viva, eles
concordaram que escolher uma pessoa de dentro do time
permitiria a continuidade do movimento.
Quando vazou a informação de que Travaglini estaria
deixando o clube, o nome de Sócrates apareceu como
potencial sucessor e ele manifestou interesse na
oportunidade. Sócrates disse que dirigir o Corinthians seria
uma opção “totalmente viável” e, com sua descontraída
autoconfiança, declarou que seria apenas mais um trabalho
para alguém que estava sempre disposto a colocar suas
ideias revolucionárias em prática.
Adilson, no entanto, precisava de Sócrates no campo, e
seus companheiros, quando consultados sobre a escolha de
Zé Maria, concordaram que o querido lateral seria o melhor
substituto de Travaglini. Super Zé estava prestes a se
aposentar como jogador e, quando Travaglini pediu
demissão, o clube se preparou para uma transição suave.
Zé Maria assumiu um dia depois de Sócrates receber o
prêmio de melhor jogador do ano de 1982, mas Sócrates
claramente evitava chamá-lo de técnico, preferindo se
referir a ele como “nosso representante”. O ex-lateral,
entretanto, era um homem tão tranquilo quanto popular, e
operar como o “representante” do time provavelmente não
era a abordagem ideal para lidar com um grupo de pessoas
tão determinadas, especialmente com Sócrates
aproveitando todas as chances para mostrar sua própria
autoridade dentro do clube. Seu período no comando não foi
um desastre completo — o time venceu três jogos, empatou
três e perdeu dois — mas não foi suficiente para levar o
Corinthians à fase de mata-mata do Campeonato Brasileiro
e ele deixou o cargo no dia 3 de maio, apenas cinco
semanas depois de ter assumido.222
O período de Zé Maria como técnico ficou conhecido como
autogestão, e deu aos adversários do movimento uma nova
oportunidade para atacar a Democracia Corinthiana. Nas
palavras de Sócrates, tinha sido “a nossa maior vitória até
então”, mas a ideia de jogadores comandando seu próprio
time significou um abalo não só para as forças
conservadoras que comandavam o futebol, mas também
para os políticos, executivos e barões da mídia que temiam
que o movimento se tornasse um modelo para as classes
trabalhadoras que eles haviam controlado por tanto tempo.
Os posicionamentos adversos se tornaram mais duros,
especialmente na imprensa, e a Democracia Corinthiana,
tão legal e inovadora em 1982, lentamente se transformou
em algo que devia ser temido e desafiado.223
“Em determinado momento, a gente sofreu algumas,
como diria… A gente recebeu alguns bilhetinhos, do pessoal
lá de cima, do governo, pra gente falar menos… Não ser tão
contundente. O governo, os políticos, mandaram
mensagens para nós”, disse Zenon. “Só que essas
intervenções aumentaram nossa responsabilidade, dentro
de campo, a responsabilidade de buscar os resultados para
que pudéssemos ter a tranquilidade de dar depoimentos a
respeito do que gostaríamos que acontecesse no país.”224
Mais tarde, Sócrates admitiu que talvez tenham tentado
fazer muita coisa ao mesmo tempo, e a falta de resultados
de Zé Maria os forçou a dar um passo atrás e viver o resto
do ano “consolidando uma posição, em vez de avançando”,
nas palavras decepcionadas e diplomáticas de Adilson.
Parte dessa ideia envolveu a busca por um técnico mais
convencional, e Jorge Vieira retornou ao clube para
trabalhar com Sócrates pela quarta vez. O treinador,
conhecido por ser autoritário, recebeu a tarefa de recuperar
o controle do time. Os jogadores tinham se aventurado por
outros territórios, e não apenas pelas discussões sobre a
contratação de Leão ou a escolha de Zé Maria como técnico.
Casagrande e Zé Maria atuaram em filmes de comédia de
baixa qualidade, o que gerou críticas de adversários mais
conservadores — e Casagrande, ainda lidando com a
repercussão da prisão por porte de drogas, teve dificuldades
para administrar a pressão e só marcou um gol nos
primeiros seis meses do ano.
Na mesma época, Hélio Maffia entrou em seu escritório
após uma sessão de treinamentos e encontrou Sócrates,
Casagrande e Ataliba com os pés sobre a mesa, tomando
cerveja. Indignado, o preparador os expulsou e reclamou
que eles estavam muito espaçosos. Sócrates argumentou
que estavam bebendo para se reidratar e se refrescar, mas
a explicação era bastante duvidosa e reforçou a ideia de
que os malucos tinham tomado o controle do hospício.
O poder de Sócrates como astro do futebol, nessa época,
estava em seu auge, e não apenas no Brasil. Suas atuações
na Copa do Mundo haviam chamado a atenção de clubes
estrangeiros e, com o processo de encerramento das
restrições de movimento na Europa, clubes da Espanha e,
particularmente, da Itália, tornaram seu interesse
conhecido.
Sócrates sabia, fazia tempo, que clubes de fora do Brasil
queriam levá-lo do Corinthians. Ele recusou uma oferta do
New York Cosmos que incluía a garantia de uma residência
médica após um contrato de três anos, e também rejeitou
uma proposta de Dubai, ridiculamente lucrativa, explicando
que “dinheiro não compra felicidade”.
O Barcelona o tinha procurado para substituir Bernd
Schuster, quando o jogador alemão se machucou, em
dezembro de 1981, mas ele temeu que se mudar para a
Europa poderia ameaçar seu lugar na seleção para a Copa
do Mundo, e recusou. O mais perto que chegou de uma
transferência foi em 1983, quando a Roma tentou torná-lo o
segundo estrangeiro do time, ao lado de Falcão. Ele discutiu
os termos do contrato com o clube da capital italiana e
Adilson voou para a Suíça para tratar da parte financeira.
Mas as negociações terminaram quando os italianos se
recusaram a dispensá-lo da prática da concentração. A ideia
de jogar na Itália e conhecer uma nova cultura e um novo
idioma era atraente — assim como o dinheiro envolvido —
mas não a ponto de fazê-lo perder a liberdade. Para
Sócrates, isso não tinha preço.225
Sócrates estava feliz no Brasil, onde sabia como usar seu
poder e influência, como bem ilustrou o episódio no
escritório de Maffia. Se lhe dessem um centímetro, Sócrates
avançaria um quilômetro, e sua fama e charme conseguiam
livrá-lo das situações mais difíceis. Seu futebol, porém,
estava começando a sofrer, e até mesmo seus
companheiros questionavam se ele estaria passando muito
tempo falando sobre política e pouco pensando em futebol.
Esses receios aumentaram ao longo de uma temporada
problemática. Vieira tentou reinstalar a concentração, mas
Sócrates se recusou, dizendo que seu contrato o autorizava
a se apresentar apenas no dia do jogo. O comando do
futebol brasileiro — que ainda estava sob supervisão dos
militares — se sentia igualmente ameaçado e obrigou o
Corinthians a remover a inscrição “Democracia Corinthiana”
de seu uniforme, por se tratar de uma mensagem política.
Sócrates teve problemas até mesmo em casa, quando
ladrões invadiram seu apartamento enquanto ele e a família
não estavam e roubaram uma mala com 20 mil dólares. Os
bandidos tinham a chave e sabiam exatamente onde estava
o dinheiro, e a ideia de que amigos ou parentes poderiam
estar por trás do assalto era realmente assustadora.226
Não havia descanso, também, em seu santuário usual, a
seleção. O novo técnico Carlos Alberto Parreira o manteve
como capitão numa excursão de quatro jogos pela Europa,
em junho, e durante uma malsucedida Copa América. Mas
os dois não tinham uma relação próxima e as exigências de
Parreira por um estilo mais pragmático ofenderam as
sensibilidades de um jogador que acreditava que o Brasil
não deveria jamais copiar os europeus.
“Ele ficou mais fechado. Ficou mais mal-humorado”,
recordou Casagrande. “O ano de 1982 tinha sido tão
gostoso, tudo tão maravilhoso, que 1983 deixou a gente
chateado porque não foi igual. Eu acho que cada um de nós
ficou um pouco mais triste. Ou menos alegre. Acho que o
primeiro semestre foi totalmente ruim, em termos de
ambiente, de resultado, a gente começou mal no
Campeonato Brasileiro. O Sócrates… Não dava pra ele
segurar tudo por si só, exceto se a gente estivesse também
jogando muito bem. E ele também não esteve bem no
primeiro semestre.”227
Sócrates encontrou algum consolo fora do futebol e da
política e seguiu trilhando seu próprio caminho. O caso com
Rosemary ainda continuava firme e ele era uma presença
frequente no Gallery — na rua Haddock Lobo, a melhor
boate de São Paulo na época —, onde aparecia de jeans e
tênis apenas para mostrar que as regras valiam para todos,
menos para ele.
Ficou amigo de várias celebridades, incluindo os cantores
Fagner, Chico Buarque e Toquinho, o escritor Marcelo
Rubens Paiva e os editores do jornal O Estado de S. Paulo.
Gostava da companhia de mentes criativas e resolveu
investir o próprio dinheiro numa peça chamada Perfume de
Camélia, um romance que evoluía para se transformar em
drama e terminava como comédia.
Fã de teatro, Sócrates escolheu o diretor, o elenco e
participou como pôde dos quatro meses de ensaios. A peça
não foi exatamente um sucesso, lotou o teatro apenas na
última das trinta noites em que esteve em cartaz, mas
Sócrates não desanimou. Estava fazendo algo diferente e
criativo e não se importava com a opinião de ninguém. O
teatro, segundo ele, era “a arte que mais se identifica com a
realidade”. Pensou em adaptar outra história para o palco e
Wladimir, Casagrande, Juninho e Eduardo concordaram em
atuar. Sócrates queria teatro de rua, onde todas as pessoas
poderiam ver, e chegou a cogitar a possibilidade de
apresentar a peça no Corinthians. Mas com sua agenda tão
apertada, a ideia não sobreviveu.
A única vez em que Sócrates sentiu medo de verdade
num jogo de futebol foi num Corinthians × Botafogo, em
1974. Com uma hora de jogo, ele deu um passe para
Geraldão fazer 1 × 0 para o time de Ribeirão. Os jogadores
do Corinthians acharam que o lance era para impedimento
e foram reclamar com o assistente. Rivellino deu um chute
na canela do bandeira e seus companheiros se juntaram na
pressão. O público no Parque São Jorge ficava muito próximo
do gramado, e torcedores revoltados tentaram derrubar o
frágil alambrado e invadir o campo. Garrafas, pedaços de
madeira e de concreto foram atirados e o árbitro foi
obrigado a paralisar o jogo. Os jogadores do Botafogo não
conseguiram ir para o vestiário e tiveram de se refugiar no
centro do gramado, onde, por meia hora, foram protegidos
pelos escudos de cem policiais do batalhão de choque.228
“O pessoal foi em cima do bandeirinha… uma baita
confusão. O Rivellino não queria sair de campo e tal, e a
massa começando a se mover, como um leão querendo
romper a jaula. Aí foi todo mundo para o meio de campo. Eu
falei: ‘Vixe, não vou sair vivo daqui hoje’. Deu medo mesmo.
Tinha até vivido algumas situações quando moleque,
jogando em campeonato amador; a gente jogava em
fazenda, sem alambrado, sem nada, aquelas intimidações.
Mas, nesse dia, eu passei medo mesmo.”229
É difícil descrever como as coisas eram malucas nos
estádios de futebol no Brasil. A violência aumentou
exponencialmente nos anos 1970 e 1980, e embora as
torcidas rivais ficassem separadas, existiam confrontos, por
vezes com uso de armas de fogo. Era permitido vender
cerveja dentro dos estádios, e, do lado de fora, amendoim,
cachaça e pernil estavam à disposição nas ruas. Dentro, a
atmosfera era elétrica, com faixas, bandeiras enormes e
fogos de artifício disparados quando os times entravam em
campo. Rolos de papel higiênico eram atirados dos anéis
superiores e papel picado era lançado ao ar. Então, os
torcedores juntavam os montes de papel e ateavam fogo.
No segundo tempo, seções inteiras de arquibancadas se
iluminavam com as fogueiras. Os banheiros eram tão
rudimentares que torcedores se aliviavam em sacos ou
copos e os jogavam fora, ou simplesmente urinavam onde
estivessem. Sete torcedores morreram em Salvador, em
2007, após caírem da arquibancada do estádio da Fonte
Nova, corroída durante anos por cerveja e urina.
Foi nesse tipo de atmosfera que o ônibus do Corinthians
chegou ao estádio do Morumbi, para o jogo de volta da
semifinal do Campeonato Paulista, contra o Palmeiras, em
dezembro de 1983.
Jorge Vieira tinha conduzido o time à sua melhor forma
após o período com Zé Maria, e o Corinthians tinha feito um
bom campeonato. Com atuações extraordinárias de Leão no
gol, e os recém-contratados Juninho Fonseca e Luís
Fernando (elogiado por Sócrates como seu sucessor)
jogando bem, o time se recuperou da fase ruim no início da
temporada. Em novembro, depois de jogar 38 partidas em
seis meses, o Corinthians arrancou para um encontro com
seus arquirrivais.
O ônibus deixou o hotel mais tarde que o programado,
depois da discussão com Leão sobre sua oposição à
Democracia Corinthiana. O time deveria estar no Morumbi
uma hora antes do início do jogo, marcado para 21h15, mas
o trânsito estava horrível e o motor do veículo, que já
apresentava problemas no trajeto, parou de funcionar a uns
duzentos metros do estádio. Os jogadores, com a adrenalina
em alta, interromperam o samba dentro do ônibus e
olharam para seus relógios. Já passava das nove da noite e
Sócrates tomou a iniciativa: “Vamos sair daqui”, ele disse e,
segundos depois, liderava os jogadores pelas ruas
residenciais ao redor do estádio. Quase 96 mil pessoas
foram ao jogo e aquelas que chegaram mais tarde não
puderam acreditar quando viram os jogadores do
Corinthians correrem do ônibus até o estádio, carregando
suas malas. Torcedores tentaram agarrá-los e desejar boa
sorte, mas os jogadores procuraram se mover o mais rápido
possível em meio à multidão. Houve gritos, cantos e fogos
em volta deles, mas eles conseguiram entrar quando ainda
faltavam nove minutos e evitaram a derrota por não
comparecimento ao jogo.
Quando a partida começou, vinte minutos mais tarde, o
drama prosseguiu. A partida de ida havia terminado em 1 ×
1. Sócrates fez o gol do Corinthians, cobrando pênalti, mas
tinha sido anulado por um defensor de 21 anos chamado
Márcio Alcântara, que tinha recebido a missão de marcá-lo
individualmente e a cumpriu com perfeição, chegando ao
ponto de acompanhar Sócrates para fora do campo em
certo momento, quando o corintiano foi buscar a bola para
cobrar um lateral. Sócrates não estava acostumado a ser
neutralizado pelo brilho de um adversário, e se enfureceu
com a própria atuação. Minutos após o término do jogo, já
dizia aos companheiros que a segunda partida, quatro dias
depois, seria uma história diferente.
O encontro foi novamente memorável pelo duelo entre o
jovem defensor e o experiente atacante. Desde o primeiro
minuto, Alcântara não deu um segundo de paz a Sócrates,
mas ele sabia o que o esperava e respondeu com a
estratégia mais inteligente — e hilária — possível. Logo
após o apito inicial, Sócrates trotou de um lado do gramado
para o outro, com Alcântara um passo atrás dele. Sócrates
seguiu com esses movimentos, mesmo quando a bola
estava do outro lado do campo. Alcântara o seguiu
dedicadamente, de uma linha à outra, sem lhe dar sossego.
Nos escanteios, Sócrates debochadamente apontava para
Alcântara sem que ele percebesse, e aproveitou um
momento quando o jogo estava parado para correr na
direção da bandeira de escanteio, como se estivesse
perseguindo uma bola invisível. Alcântara instintivamente o
perseguiu e a torcida vibrou, enquanto Sócrates exibia um
largo sorriso. “Sacaneei um pouquinho”, Sócrates disse. “A
galera delirava.”
A cena tinha sido cômica e os torcedores passaram a rir
do defensor palmeirense. Alcântara percebeu que tinha sido
feito de bobo e se distanciou de Sócrates. Era exatamente o
que ele planejava; de repente, estava livre novamente.
Apenas alguns minutos mais tarde, com 21 minutos de jogo,
ele recebeu um passe de costas para o gol. Estava a uns
trinta metros da meta e seu marcador o perseguia com
alguma distância. Houve espaço suficiente para Sócrates
girar para a esquerda e deixar o adversário para trás. Ele
avançou, deu mais um toque na bola e bateu cruzado,
rasteiro, para fazer o gol da vitória.230
“Foi a melhor coisa que ele fez num campo de futebol”,
disse Luís Fernando, sobre a estratégia para constranger
Alcântara. “E a bola nem estava perto dele.”231
A vitória levou o Corinthians à final contra o São Paulo, o
líder da classificação geral do campeonato. O São Paulo era
o favorito não só porque Casagrande e Leão estavam
suspensos do primeiro jogo, mas também porque o time era
treinado por Mário Travaglini, que conhecia tanto os
jogadores do Corinthians quanto Jorge Vieira.
Completamente tranquilo quanto às críticas que sofreu
por causa do episódio da feijoada antes de um jogo contra o
São Paulo no ano anterior, Sócrates teimosamente decidiu
repetir a ideia, se reunindo com Juninho e amigos para
comer pizza e tomar cerveja na noite anterior à final.
Ele chegou em casa bem depois da meia-noite, mas isso
não fez diferença. Sócrates teve atuação extraordinária na
vitória do Corinthians por 1 × 0, marcando o gol decisivo —
o terceiro em três jogos — aos 33 minutos. Depois,
comandou o time sob a chuva que começou a cair leve
antes do intervalo e se transformou numa tempestade de
proporções bíblicas, tornando impossível o ato de passar a
bola.
O resultado significou que o Corinthians só precisava de
um empate na partida seguinte, no dia 14 de dezembro,
para levantar o título paulista pelo segundo ano
consecutivo. O jogo era muito importante para Sócrates e
para a Democracia Corinthiana. O movimento estava sob
pressão desde o início da temporada e o time não vinha
jogando com a mesma classe do ano anterior. O Corinthians
precisava de uma vitória e de um posicionamento firme, e
ao se sentarem no saguão do hotel Hilton na manhã do dia
do jogo, os jogadores debateram sobre a melhor forma de
demarcá-lo.
“Passamos o ano inteiro tomando pancada por causa da
defesa da democracia, dos nossos princípios de trabalho”,
disse Casagrande. “Agora que chegamos à final, está na
hora de mostrar que foi pela democracia que chegamos
aqui.”
Adilson considerou mandar o time entrar em campo com o
logo da Democracia Corinthiana na camisa, mas o ambiente
político ainda estava sensível e a ideia foi descartada por
temor de uma repreensão dos militares.
“E se a gente entrasse em campo com uma faixa falando
do Natal e da Democracia, juntando as duas coisas?”,
sugeriu Casagrande.
“É que Natal é coisa meio elitista, Casa”, disse Adilson.
“Vamos falar pela democracia, sem o Natal.”
“Por que não uma faixa dizendo: ‘Vitória ou derrota, mas
sempre com democracia’?”, sugeriu o jornalista Luiz
Fernando Rodrigues, que participava da conversa.
“É isso aí!”, Casagrande e Adilson concordaram.232
Eles obtiveram a autorização de Waldemar Pires na hora
do almoço e a faixa foi produzida rapidamente.
Algumas horas mais tarde, pouco depois das nove da
noite, o Corinthians pisou no gramado do Morumbi com uma
enorme faixa que trazia uma pequena alteração da ideia
original, e dizia: “Ganhar ou perder, mas sempre com
democracia”.
Os torcedores do Corinthians sempre bradaram que seu
clube era maior do que qualquer vitória ou derrota, e
Sócrates concordava plenamente com esse sentimento. Mas
traduzi-lo em palavras foi um dos mais icônicos momentos
da Democracia Corinthiana. Ninguém acreditava,
obviamente, que ganhar o jogo não tinha importância —
independentemente das visões políticas — e, mesmo que
um empate bastasse para ficar com o título, o Corinthians
não iria a campo para jogar por um ponto.
Foi uma partida muito disputada, que pendeu em favor do
Corinthians quando faltavam quinze minutos para o fim e
Darío Pereyra foi expulso por uma falta em Casagrande. O
placar permanecia 0 × 0, mas se ainda havia dúvidas
quanto ao vencedor, Sócrates, inevitavelmente, lá estava
para acabar com elas. Já nos acréscimos, com a torcida do
Corinthians se preparando para invadir o gramado, ele
recebeu um belo passe de calcanhar de Zenon e bateu para
o gol ao entrar na área. Sócrates foi cercado por torcedores
e repórteres que invadiram o campo, e o árbitro teve
dificuldades para retirá-los dali. Não importou que o São
Paulo tenha se lançado ao ataque e conseguido empatar na
última jogada da partida. O resultado era suficiente e o
Corinthians se sagrava campeão pelo segundo ano seguido
— a primeira vez que isso acontecia em mais de trinta anos.
Ironicamente, a chegada de Leão e a maneira ambígua
como foi conduzida sua contratação tiveram consequências
importantes para o Corinthians e para Sócrates, tanto
dentro quanto fora do campo. Leão fez sua estreia contra o
Fluminense em março, e uma falha dele foi crucial no gol
decisivo. Mas em vez de admitir o erro ou recorrer à ideia
coletiva de que se ganha e se perde como um time, Leão
culpou os jogadores da defesa. Sua atitude incomodou
Sócrates e, depois de uma noite nos bares do Rio, ele bateu
no quarto de Casagrande às três da manhã para admitir que
o jovem centroavante estava certo. Casagrande, meio
dormindo e ainda irritado, mandou-o se foder e fechou a
porta na cara dele.233
A reação de Sócrates foi elevar seu nível de jogo e fazer
tudo o que pudesse para mostrar que, embora fosse
responsável pela chegada de Leão, não permitiria que o
goleiro afundasse o time. Enquanto Leão se comportava à
sua maneira e a Democracia Corinthiana estava sob risco,
Sócrates fez de tudo. Seu desempenho excelente durante a
segunda parte da temporada foi uma resposta à bobagem
que havia feito.
“O ambiente não era tão bom em 1983, e ele tinha
responsabilidade nisso, porque foi a favor da contratação do
Leão”, disse Casagrande. “Eu acho que ele se arrependeu
no meio do caminho, aí pensou: ‘Putz, o ambiente não está
tão legal, então isso é responsabilidade minha. O time não
joga tão bem, as pessoas não estão tão felizes, isso é um
pouco responsabilidade minha’. Eu acho que ele assumiu
isso. E aí acho que ele botou na cabeça: ‘Meu, nós temos
que ganhar o campeonato de qualquer maneira’, pra ele se
sentir melhor. Não pra dar uma resposta. Por exemplo:
‘Caramba, trouxe o Leão, mas consegui fazer o time
ganhar’. Tipo, empatou. Na cabeça dele, empatou, porque
eu acho que ele estava se sentindo responsável.”234
Sócrates recordou 1983 como uma das temporadas mais
difíceis de sua vida, mas aqueles quatro últimos jogos se
sobressaíram. Sócrates tinha uma definição particular a
respeito do que era o futebol. Para ele, a atuação perfeita
não era uma questão de marcar gols, ou mesmo vencer,
embora essas coisas fossem importantes. Sua visão era
mais abrangente e o jogo perfeito acontecia quando os
jogadores, os torcedores, o desempenho e o resultado se
combinavam harmoniosamente. O time de 1983 não tinha o
mesmo atrevimento do ano anterior — e certamente não
era tão unido. Mas quando Sócrates se lembrava dos
melhores momentos de sua carreira, colocava aqueles onze
dias em dezembro de 1983 como algo próximo do auge.
“Eu sempre busquei um objetivo jogando futebol: a
perfeição. E todas as vezes que me aproximava dela, eu me
sentia extremamente satisfeito”, ele contou a Juca Kfouri.
“Essa era a grande emoção para mim toda vez que eu
jogava futebol, então, o que eu buscava toda vez que
entrava em campo era não errar nenhum passe, ser
solidário, conseguir perceber cada nuance do jogo, o
aspecto psicológico, trazer a torcida para ficar junto do meu
time, diminuir a torcida de lá e tal. Perfeição para jogar era
isso, quer dizer, se eu conseguisse fazer tudo isso… Chegar
perto de tudo isso era ótimo para mim. Nisso não estava
incluído fazer um gol, não estava incluída uma coisa
específica. […]
Então, pô, quando você é envolvido por um movimento de
massa, tipo o de um título no Corinthians, isso é uma coisa
impressionante, é exuberante. Naqueles meses, nos quatro
jogos do título, eu fiz um gol em cada jogo, quer dizer, eu
me senti extremamente participante daquele processo, é
obvio que era importante.”235
A conquista do título baixou as cortinas de um ano
estressante da melhor maneira possível. Os desafios da
Democracia Corinthiana poderiam muito bem ter afetado
seu desempenho, mas, ao contrário, Sócrates cresceu nas
adversidades. Apaixonado por Rosemary, transbordando
confiança e livre de lesões, ele disputou 55 dos 72 jogos do
Corinthians, marcando 37 gols ao longo do ano. Quando ele
estava no time, o Corinthians fez quase dois gols por jogo.
Sem ele, a média foi pouco superior a um gol. Seu papel e
sua importância eram maiores do que nunca.
Mas havia mais por vir. Em 1984, perto de completar
trinta anos, ele transcenderia o futebol ao assumir uma
posição central em uma das mais importantes campanhas
políticas que o Brasil já tinha visto. A mensagem que ele
transmitiu foi tão exemplar quanto inesperada. E teria sérias
repercussões em seu futuro.
Capítulo 13
Ele contribuiu com o carisma e a força dele num momento em que era uma
estrela inquestionável do esporte, inquestionavelmente também
fundamental no Brasil. Então, a participação política dele, no que acabou
redundando no fim da ditadura, é indiscutível.
Flávio Gikovate, psicoterapeuta do Corinthians durante a Democracia
Corinthiana

Marinheiros portugueses desembarcaram no litoral nordeste


do Brasil em 22 de abril de 1500, e, por trezentos anos,
mandaram na costa ornamentada por palmeiras e na
exuberante floresta atlântica, eliminando e cooptando povos
indígenas e repelindo tentativas de franceses e holandeses
de invadir seu novo território. Essa terra que chamaram de
Brasil serviu como fonte vital de riqueza para a família real
portuguesa, que governava a colônia a 7.300 quilômetros
de distância, em Lisboa.
A Coroa Portuguesa se satisfazia em oferecer feudos
brasileiros a amigos e colher as recompensas em ouro,
prata, madeira, café, cana-de-açúcar e frutas exóticas. Mas
quando Napoleão Bonaparte marchou pela Europa no
começo do século XIX, aliando-se à Espanha e rumando para
Lisboa, a família real de Portugal temeu por sua vida e
procurou uma rápida saída. O Brasil oferecia um porto
seguro e então, dias depois de as tropas de Napoleão
cruzarem a fronteira de Portugal, a família real e centenas
de cortesãos embarcaram em navios e atravessaram o
Atlântico na direção sudoeste.
O rei João VI adorou sua nova casa no Rio de Janeiro e
mesmo depois de Napoleão ser derrotado em Waterloo, em
1815 — um revés que foi um alívio para os portugueses —,
não voltou tão rápido para casa. O rei demorou seis anos
para finalmente concordar em retornar e, quando o fez,
deixou seu filho de 22 anos, Pedro I, no comando.
Um ano depois de voltar a Lisboa, o rei ordenou que seu
filho fizesse o mesmo e devolvesse o status de colônia ao
Brasil. O jovem príncipe respondeu com uma das
declarações mais memoráveis da história brasileira. Em 9
de janeiro de 1822, tomou posição e contrariou o pai com as
palavras: “Digam ao povo que fico!”, colocando o Brasil,
assim, na rota da independência. Esse dia seria, para
sempre, o Dia do Fico.
O Dia do Fico de Sócrates aconteceu em 16 de abril de
1984, e não teve menos drama.
Foi um dos dias mais comoventes de um período
emocionante que teve início em março de 1983, quando
algumas pessoas se reuniram numa pequena cidade do
nordeste chamada Abreu e Lima, região do Grande Recife,
para exigir eleições diretas para presidente. Os generais
finalmente tinham concordado em deixar o poder, mas
queriam controlar a transição. Decidiram que o primeiro
líder civil seria escolhido não por uma eleição geral, mas por
um colégio eleitoral cheio de parlamentares a favor dos
militares.
Milhões de brasileiros contestaram o que soava como
mais uma afronta, e um congressista pouco conhecido
chamado Dante de Oliveira decidiu se arriscar. Oliveira
apresentou ao parlamento uma emenda constitucional
exigindo a votação direta para presidente. A proposta
ganhou suporte gradual ao longo de 1983 e seguiu se
fortalecendo após a virada do ano. Mais de 30 mil pessoas
saíram às ruas para apoiar a ideia em Curitiba, em janeiro;
250 mil apareceram em São Paulo, quinze dias depois; um
mês mais tarde, 300 mil foram às ruas de Belo Horizonte.
Um milhão de pessoas compareceram a um comício no Rio
de Janeiro, no dia 10 de abril e, quase todos os dias,
dezenas de milhares se faziam perceber numa cidade ou
outra, expressando seu apoio. A campanha das Diretas Já
captou a imaginação das pessoas, e pesquisas mostraram
que quase 80% dos brasileiros eram a favor da ideia.
Autorizados a votar para governadores dos Estados pouco
tempo antes, após anos sem voz, os brasileiros queriam
escolher seu próprio líder.236
A campanha parecia ter sido feita sob medida para
Sócrates, que tinha passado os anos de 1982 e 1983
falando sobre as virtudes da democracia — e ele não perdeu
tempo. O homem que, em 1979, disse que os brasileiros
não estavam prontos para votar em seu próprio presidente,
rapidamente emergiu como um dos mais visíveis e
eloquentes propositores do sufrágio para todos. Usou sua
posição privilegiada para falar claramente, pelo tempo e
com a frequência convenientes, sobre a necessidade das
eleições diretas, e encorajou seus companheiros a fazer o
mesmo.237
Casagrande, Juninho e Wladimir foram os participantes
mais dispostos, e embora a maioria do elenco não quisesse
se envolver tanto, houve alguns esforços, diferentemente
do que se deu na maioria dos outros clubes. A campanha
pediu às pessoas que se vestissem de amarelo para mostrar
seu apoio, e Sócrates ajudou a convencer seus
companheiros no Corinthians a usar algo de cor amarela nos
dias de jogos. Ele jogou com uma proteção de tornozelo
amarela sobre as meias, Wladimir escolheu uma braçadeira
da mesma cor, outros simplesmente usaram faixas
amarelas nos pulsos. O acaso também fez sua parte. Antes
de a campanha decolar, alguns jogadores do Corinthians
compraram novas chuteiras numa excursão ao Japão. As
chuteiras tinham uma listra amarela na lateral e, quando os
jogadores voltaram para casa, repórteres quiseram saber se
o simbolismo era proposital. “Claro”, eles responderam.238
A Câmara dos Deputados concordou em votar a emenda
de Oliveira e, quando o último comício aconteceu em São
Paulo, em 16 de abril, mais de um milhão de pessoas
mostraram aos generais o quanto queriam votar para
presidente. Foi a maior aglomeração pública desde o golpe
militar, vinte anos antes, e uma atmosfera de carnaval se
apoderou da cidade, com um dragão chinês se movendo na
multidão, crianças empinando pipas e uma orquestra
sinfônica e grupos de samba fazendo o acompanhamento
musical.
Sócrates concordou em levar um grupo de jogadores do
Corinthians para participar, e eles se encontraram no clube
antes de sair para o centro da cidade. A tarde estava quente
e úmida, e a multidão impossibilitava que os carros
passassem, então Sócrates deixou seu carro no metrô e
pegou um trem rumo ao centro, com Casagrande, Wladimir
e Regina. Os torcedores tiveram de olhar duas vezes para
crer que o jovial capitão da seleção brasileira, rindo e
brincando com os amigos, estava ali usando o transporte
público e caminhando em direção à área em frente à
estação Anhangabaú. Enquanto ele andava até o palco em
que as autoridades falariam com o público, muita gente o
saudou com gritos e abraços. Houve até homenagens a ele
feitas das janelas dos prédios das ruas estreitas do centro
de São Paulo.239
Sócrates adorava a atenção que despertava e adorava
representar uma causa, mas, acima de tudo, adorava o fato
de as pessoas estarem envolvidas. Era o melhor que o Brasil
tinha a oferecer e ele sentiu o potencial do país como nunca
havia acontecido antes. Especulações de que seria
contratado por um clube italiano circulavam fazia semanas
— ele recebeu diretores da Internazionale em Ribeirão
Preto, durante o Carnaval —, mas ao subir os degraus em
direção ao palco, a conversa sobre ir para a Europa parecia
perder importância. Sócrates vivia para aquilo e nenhuma
quantidade de dinheiro poderia fazê-lo mudar de ideia.
Quando chegou ao microfone, tinha tomado uma decisão.
Ele confidenciou o segredo ao mestre de cerimônias
daquela noite, Osmar Santos, que rapidamente o puxou
para a frente do palco para dar a notícia.
“Sócrates deu a seguinte sugestão”, Osmar timidamente
contou à multidão à frente deles. “Diga de novo, doutor.
Você vai para a Itália ou não?”
Sócrates sorriu e o público gritou: “Nããããoooo!”.
“Então diz, Sócrates”, repetiu Osmar. “Presta atenção,
Brasil!”
Sócrates sorriu novamente e coçou a cabeça, para fazer
suspense. Então deu um passo à frente e se abaixou um
pouco para alcançar o microfone.
“Se a emenda Dante de Oliveira passar na Câmara dos
Deputados e no Senado, eu não vou embora do meu país”,
disse, exultante.
O público explodiu num urro coletivo e Sócrates deu um
passo para trás.
Osmar Santos pegou o microfone e valorizou o momento:
“Repita, doutor, repita. Se a emenda for aprovada, você
não…”
“Eu não vou embora do NOSSO país!”, Sócrates gritou.
A multidão vibrou e começou a cantar:
“Vai ficar! Vai ficar! Vai ficar!”
Sócrates tinha colocado a democracia no Brasil à frente
de sua própria segurança financeira. Tinha declarado
publicamente que ficar no país para ajudar na transição
rumo a uma verdadeira democracia era mais importante do
que assegurar o próprio futuro.
“Foi naquele comício que eu percebi o que era ir para a
guerra e morrer”, ele disse anos depois. “Porque você não
vai com seu corpo, vai com sua alma.”240
Os companheiros o provocavam chamando-o de “príncipe
Pedro” e Sócrates explorou a repercussão alcançada alguns
dias mais tarde, aparecendo na capa da revista Placar
vestido como um nobre português do século XIX. Ele estava
sempre disposto a fazer algo divertido, especialmente se
houvesse uma causa por trás, e permanecia determinado a
fazer qualquer coisa para encorpar o apoio à emenda antes
da votação de 25 de abril na Câmara. Os outros jogadores o
acharam ridículo naquele traje, mas também se sentiram
inspirados, e não foram os únicos. Na manhã da votação, o
jornal Folha de S.Paulo publicou um tributo às iniciativas de
Sócrates, com a manchete: “Não queremos que Sócrates vá
embora”. Ao lado de uma fotografia dele e da equipe de
jornalistas esportivos do jornal, a Folha elogiou
personalidades como Zico, Emerson Fittipaldi e Pelé, que
apoiaram a campanha das Diretas Já. Mas o jornal destacou
Sócrates por ter dado um passo mais à frente e apostado na
defesa de um princípio. Ele era “gênio, craque e cidadão”,
escreveu a Folha. “O Brasil não pode se dar ao luxo de
perdê-lo”.241
O tributo foi mais uma tentativa de pressionar os
deputados que votavam na emenda de Dante de Oliveira
naquela noite e Sócrates ficou lisonjeado. Como muitos de
seus 130 milhões de compatriotas, ele estava convencido
de que a emenda seria aprovada, tal era o apoio percebido
no país nas semanas e meses que haviam precedido o
debate.
Mas Sócrates subestimou a determinação do governo. Os
militares haviam decidido que a emenda não deveria passar
e usaram todo tipo de tática de intimidação nos dias e horas
que antecederam a votação. Políticos foram impedidos de
entrar no parlamento para que sua presença não
influenciasse o processo, e a imprensa em Brasília — onde
estavam os membros da Câmara — foi proibida de publicar
matérias relacionadas à proposta. Centenas de soldados
cercaram o parlamento para impedir que protestantes pró-
democracia se aproximassem muito, e tropas entraram na
Universidade de Brasília para evitar que os estudantes se
envolvessem na militância. Os militares não queriam que
ninguém dissesse aos parlamentares como a maioria dos
brasileiros se sentia.
Milhões de cidadãos responderam com uma “noite do
barulho” na véspera do debate, com buzinaço nas ruas,
panelaço nas janelas e fogos de artifício. Sócrates, Regina e
seus filhos foram para a varanda e fizeram todo o alvoroço
que puderam.
Sócrates ficou em casa na noite da votação, impedido por
uma lesão de ir ao Morumbi, onde o Corinthians venceu o
Atlético Paranaense por 2 × 0 — e garantiu a passagem
para as quartas de final do Campeonato Brasileiro. Ele
estava impaciente demais para conseguir assistir ao jogo e
passou a noite ouvindo rádio e falando ao telefone,
tentando acompanhar a contagem dos votos.
A emenda precisava de maioria de dois terços do total de
votos possíveis para passar e, por volta de 2h30, quando o
último voto foi contabilizado, o resultado foi de 298 votos a
favor e 65 contra. Faltaram 22 votos para a maioria
necessária, uma derrota causada pelos 113 parlamentares
que, pressionados pelos militares, não compareceram à
votação mais importante de suas vidas.
Se a democracia era a razão pública para Sócrates dizer
que ficaria no Brasil, o amor era a razão de ordem privada.
Quando anunciou que não sairia do país se a campanha das
Diretas Já fosse vitoriosa, Sócrates talvez já tivesse feito um
rápido cálculo: se eu for para a Itália, terei segurança
financeira para o resto da vida, jogarei com os melhores do
mundo, e poderei tentar salvar meu casamento. Se ficar no
Brasil, eu poderei participar da transição para a democracia,
permanecerei no clube que amo, e ainda terei Rosemary.
Era uma aposta, mas todas as cartas dele eram ases.
O caso de Sócrates com Rosemary ainda seguia firme um
ano e meio depois de ter começado, e o relacionamento
tinha sido crucial para ajudá-lo ao longo de uma temporada
de altos e baixos. Sócrates havia mudado desde que se
apaixonou novamente e, às vezes, era difícil não notar. Ele
nunca tinha prestado atenção em dinheiro, mas parou
completamente de se preocupar com suas finanças, dizendo
a Marinho, um ex-companheiro de categorias de base que o
ajudava nas tarefas diárias: “Você cuida disso, eu não
consigo pensar em mais nada”.242
Ele cobria Rosemary de joias e presentes, e até trocou as
velhas camisetas e tênis surrados por paletós e camisas
depois de a cantora, sempre elegante, convencê-lo de que
ele era uma estrela mundial e precisava se apresentar
melhor. Isso aconteceu na época em que ele quase foi
contratado pela Roma, e Sócrates respondia aos
comentários inevitáveis dizendo que estava se
acostumando a se vestir como os italianos.
Amigos diziam que ele estava maluco e pediam para ele
pensar duas vezes no que estava fazendo, por causa de
Regina e dos filhos. Mas Sócrates estava tão envolvido que
nada mais importava.
“Um dia, ele me deu uma pulseira e disse: ‘Marinho,
entrega essa pulseira pra mim’. Eu não sabia para quem
era. Quando cheguei no local indicado, vi aquela mulher.
Pensei: ‘O que é que ele está arrumando?’. Ela era linda. Na
hora em que eu a vi, assustei. Muito linda.
“Ela disse: ‘Entra, Marinho! Eu já sei, o Sócrates me ligou’.
Ela começou a falar: ‘Eu sei que o Sócrates não está muito
bem no casamento’. E começou a me contar o que ele
contava a ela. Aí eu falei com o Sócrates, né? Eu disse:
‘Você já pensou no que está fazendo?’. E ele respondeu: ‘Eu
estou apaixonado por essa mulher’.”243
Sua promessa entusiasmada de ficar no Brasil se as
eleições diretas fossem aprovadas foi uma das declarações
mais memoráveis da vida de Sócrates. Mas haveria outra,
ainda mais inesquecível, que continuaria viva por mais
tempo do que ele. Quando Sócrates morreu, em dezembro
de 2011, a internet estava inquieta com a referência a uma
previsão que ele supostamente havia feito em 1983: “Eu
quero morrer num domingo, num dia em que o Corinthians
ganhe um título”.
A suposta premonição quanto ao dia de sua morte foi
repetida e reimpressa milhões de vezes e lhe valeu a
reputação póstuma de um sábio do futebol. Prever a própria
morte era exatamente o tipo de coisa que seus devotos
mais apaixonados, especialmente os torcedores do
Corinthians e as pessoas de esquerda que concordavam
com suas visões e já o enxergavam como o mais descolado
e espirituoso de todos os jogadores, gostariam que ele fosse
capaz de fazer. Entretanto, ninguém jamais apresentou uma
gravação ou qualquer registro escrito comprovando essa
fala de Sócrates. Depois de sua morte, sua mãe, idosa,
afirmou que ele fez a previsão pouco antes de morrer. Os
amigos de Sócrates concordam que esse é exatamente o
tipo de coisa que ele diria depois de algumas cervejas.
Tendo dito ou não, o fato é que a anedota agora faz parte do
folclore futebolístico brasileiro.
Quando criança, Sócrates já gostava de dar declarações
ousadas para provocar as pessoas. Em casa, com seu pai e
irmãos, ele costumava iniciar uma discussão e esperar para
ver de que lado eles ficavam, para aí escolher uma visão
oposta. Seu gosto inato pela contrariedade permitia que ele
assimilasse pontos de vista diferentes e o preparou para
uma vida de debates. Sócrates terminou sendo muitas
coisas para muitas pessoas — talvez até mesmo um sábio
para algumas — mas de todos os papéis que assumiu,
nenhum se adequou tanto a ele quanto o de advogado do
diabo.244
“Quando alguém me diz: ‘É assim’, a primeira reação que
eu tenho é: ‘Não é!’”, ele disse. “Eu vou buscar respostas,
outras diferentes daquela, e isso esteve muito presente em
mim. Não é fácil viver comigo, eu sei. Porque eu não
consigo deixar de ser assim. Eu sou dez pessoas diferentes
em um dia. Todas essas pessoas em uma, é complicado.”245
Ele aperfeiçoou a arte do antagonismo amistoso à medida
em que envelhecia e sentia um prazer especial em ser
diferente. Se todos iam a um evento usando ternos, ele
fazia questão de ir de jeans e tênis. Enquanto a maioria dos
jogadores prometia que não comemoraria gols marcados
contra um ex-time, ele dizia que isso lhe causava “um tipo
de prazer diferente”. Sócrates sentia imenso prazer, como
ele mesmo disse, ao vencer o Santos, o clube para o qual
torcia quando menino. Quando o Brasil fez um referendo
constitucional, em 1993, o ardente apoiador de Fidel Castro
defendeu um retorno à monarquia. Seu argumento era o de
que sustentar um rei era mais barato do que sustentar um
presidente, mas essa lógica era, na melhor das hipóteses,
duvidosa. A intenção dele, ao que parece, era confundir a
expectativa das pessoas e gerar uma discussão.
Sócrates rejeitava as ideias convencionais por princípio e
adorava provocar as pessoas. Ele se livrava de problemas
porque era Sócrates, e porque, mesmo quando falava com
mais agressividade, sempre dava um sorriso ou uma
piscada. Ele condicionou as pessoas a esperar declarações
pouco usuais e dispensava as críticas à sua incoerência
lembrando de uma frase famosa de Raul Seixas, um ícone
brasileiro: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do
que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Havia
poucas coisas que ele odiava mais do que ser enfadonho ou
previsível. Da mesma forma que não conseguia tolerar as
restrições físicas da concentração, Sócrates não suportava a
prisão mental da consistência.
“Eu sou radical até mudar de ideia”, disse. “Aí passo a ser
radical do outro lado. E nem quero compromissos com a
coerência.”246
Depois de dizer a um milhão de pessoas que ficaria no
Brasil se o parlamento aprovasse as eleições diretas,
Sócrates se sentiu obrigado a deixar o país por causa do
desfecho do processo. Mas, mesmo que a transferência para
a Itália fosse se tornando cada vez mais real, ele ainda tinha
coisas a fazer no Corinthians. O time estava a noventa
minutos da fase decisiva do Campeonato Brasileiro e um
título seria a despedida perfeita. E mesmo nessa ocasião
tão importante, sua falta de profissionalismo — ou seu
compromisso com os amigos e as festas — desempenharia
um papel. Na véspera do último jogo da fase de
classificação do campeonato, contra o Atlético Paranaense,
Sócrates foi a Ribeirão Preto participar de um evento
beneficente organizado pelas famílias Vieira e Garcia.
Milhares de pessoas se reuniram para assistir às duas
famílias mais conhecidas da cidade disputarem um jogo de
basquete e um de futebol, mas um desastre aconteceu nos
últimos minutos do jogo de futebol, quando Sócrates sofreu
uma lesão muscular na perna.247
A lesão foi mais um golpe na já pressionada Democracia
Corinthiana. Opositores do movimento e torcedores
quiseram saber por que o jogador mais importante do clube
estava arriscando sua condição física em um momento tão
crucial da temporada. A reação negativa foi inevitável e
algumas pessoas no clube sugeriram que Sócrates evitasse
controvérsias ficando em casa e fingindo que tinha se
machucado numa sessão de treinamentos no dia seguinte.
Sócrates e Adilson se recusaram a mentir e falaram
publicamente sobre o que tinha acontecido, mesmo
sabendo que seriam atormentados por isso. A honestidade
dos dois ofereceu mais munição para aqueles que queriam
o fim do movimento.
O problema muscular impediu Sócrates de atuar na vitória
por 2 × 0 sobre o Atlético, resultado que levou o Corinthians
às quartas de final do campeonato. Mas sua ausência foi
mais sentida quatro dias mais tarde, quando o Flamengo foi
muito superior numa vitória por 2 × 0, no Maracanã. O
prognóstico inicial foi o de que Sócrates ficaria três semanas
em recuperação, mas ele se sentiu culpado por se
machucar de forma tão infantil e ignorou ordens médicas,
forçando-se a jogar na partida de volta, uma semana
depois. Ele não estava em condições — e talvez tenha se
arriscado a uma lesão ainda mais grave — mas foi uma
figura inspiradora na vitória por 4 × 1. Envolveu-se em três
dos quatro gols do Corinthians na melhor atuação do time
na temporada, que levou a equipe às semifinais contra o
Fluminense.
Sócrates era capaz de heroísmos de vez em quando, mas
milagres já eram mais difíceis, e ele não pôde evitar a
derrota do Corinthians, em casa, por 2 × 0, no primeiro
jogo. Ele insistiu que o confronto ainda não estava decidido,
mas um contrato com a Fiorentina já tinha sido acertado e
sua cabeça estava em outro lugar. Ele estava em forma
para jogar a partida de volta uma semana depois, no
Maracanã, mas não foi um fator de desequilíbrio no empate
em 0 × 0. O Corinthians foi eliminado, e o sonho de um
título nacional e um lugar na Copa Libertadores teve de
esperar mais um ano, pelo menos.
Sócrates ficou desconsolado pela forma como as coisas se
desenrolaram, mais por causa das Diretas Já do que pela
derrota para o Fluminense. O fracasso político o deixou à
deriva, e agora ele se sentia forçado a ir embora do Brasil,
não apenas porque tinha feito uma promessa, mas também
pela decepção de ser forçado a assistir a uma transição
vacilante rumo à democracia. Horas depois da emenda de
Dante de Oliveira ser reprovada, ele disse aos repórteres
que tudo tinha acabado, e que aceitaria a oferta dos
italianos e deixaria o país na primeira chance que tivesse.248
Não há dúvida de que sua promessa foi sincera e de que
ele teria permanecido em São Paulo se a emenda tivesse
passado. Por algumas semanas extremamente felizes de
sua vida, o futebol foi assunto secundário a ponto de ele
jurar que cumpriria qualquer papel que fosse necessário a
fim de ajudar a construir uma nova democracia, fosse como
médico, jogador de futebol ou até mesmo lixeiro. Ele se
inebriou de um senso de propósito coletivo como nunca
aconteceu antes — ou depois.
“Nós podemos definir aquele tempo como um período em
que o país reaprendeu a sorrir, tentou se reerguer, tentou se
reconstruir, encontrar seu caminho”, disse ele ao
documentário Democracia em preto e branco. “O sorriso
estava de volta nos nossos rostos. Um sorriso substituiu
muitas lágrimas. Foi sem dúvida o período mais rico da
minha vida, o período que me deu quase tudo o que eu sou
hoje. Como ser humano, como pessoa, como ativista ou
qualquer coisa, eu aprendi ali.”249
A derrota das Diretas Já também foi uma derrota para a
Democracia Corinthiana. A saída iminente de Sócrates seria
o golpe fatal no movimento. Sem ele como figura central, a
mobilização perdeu força e, posteriormente, outros líderes
como Wladimir, Casagrande e Juninho Fonseca também
saíram do clube, “cada um levando consigo um pedaço da
Democracia Corinthiana”, na definição de Sócrates.250
Quando Adilson perdeu a eleição para substituir Waldemar
Pires como presidente do Corinthians, em abril de 1985, o
movimento se encerrou definitivamente.
Foi um triste final para algo que havia deixado uma marca
tão indelével tanto no clube quanto no país. À medida que a
ditadura caminhou para um final previsivelmente patético, a
oposição ficou mais e mais ruidosa, com a Igreja, os
sindicatos e os partidos políticos de esquerda exigindo o
retorno a um governo civil. Poucos grupos, entretanto,
foram tão importantes quanto a Democracia Corinthiana. Os
demais agrupamentos eram administrados por políticos ou
sindicalistas ou ativistas sociais, e seus esforços foram
inquestionavelmente vitais para forçar os militares e
retornar aos quartéis. Mas apenas os músicos, que usavam
suas belas melodias para driblar a censura e transmitir suas
mensagens veladas, conseguiam alguma conexão com as
massas. Poucos brasileiros sentiam amor por política ou
políticos. Muitos milhões — e a maioria ainda vivia na
pobreza — nem mesmo sabiam quem eles eram.
O futebol, no entanto, era diferente. Ninguém se
importava com o que o presidente dizia numa reunião em
Washington, mas todos ouviram o que Sócrates disse antes
da Copa do Mundo. Sócrates aproveitou a oportunidade
para falar não só sobre futebol, mas sobre tudo o mais
também — e, ao fazer isso, ajudou a apresentar o conceito
de democracia a quase duas gerações de brasileiros que
nunca tinham experimentado nada além de repressão,
censura e brutalidade.
No exato momento em que os militares decidiram
entregar o poder, Sócrates estava presente para oferecer
tutoriais quase diários sobre a alternativa existente — o que
era a democracia, como ela funcionava e por que era
desejável. Ele explicou o que era uma votação e o que isso
significava, e como poderia ser usada para dar uma vida
melhor àqueles que nunca tiveram voz. Falou sobre o
respeito por pessoas que pensavam de forma diferente,
sobre a necessidade de um salário mínimo e de uma rede
de proteção para os pobres, e insistiu na necessidade de
educação.
“Discutir esses temas num meio como o futebol amplia
consideravelmente o espectro da discussão”, disse
Sócrates. “Quer dizer, ela chega a pessoas que têm menos
informação, menos educação, menos tudo, porque é um
meio popular. Acho que esse foi o principal benefício do
movimento, ter possibilitado a mais gente discutir política.
De futebol, no Brasil, todo mundo entende. De política, não,
porque a maioria não tem cultura. Mas se você juntar as
duas coisas, pode-se educar muita gente e provocar
transformações na sociedade.”251
Sócrates disse muitas vezes que todos os envolvidos no
movimento, inclusive ele, poderiam olhar para trás em suas
vidas e demarcá-las em dois estágios: o antes e o depois da
Democracia Corinthiana. Essa foi a dimensão de sua
importância. Mudou as pessoas para sempre.
Infelizmente para ele, o “depois” chegou num momento
crucial em sua carreira. Na segunda metade de abril de
1984, a sorte abandonou Sócrates. Depois de anos em que
tudo se encaixou — tanto no âmbito profissional quanto no
pessoal —, o dilema com Rosemary, mais um fracasso na
tentativa de ganhar o Campeonato Brasileiro e a derrota no
Congresso foram os primeiros sinais de que sua vida
encantada tinha chegado ao fim e de que sua sorte estava
mudando. Sócrates ficaria mais rico e mais famoso nos anos
seguintes, mas nunca mais voaria até as mesmas alturas. A
partir daquele momento, começaria a descer a ladeira.
Capítulo 14
Estava no auge das Diretas. Cheguei com a cabeça a mil por hora. Foi
como sair do carnaval de Salvador para um convento beneditino. Uma
broxada.
Sócrates

O presidente da Fiorentina, Ranieri Pontello, assistiu à Copa


do Mundo de 1982 com prazer indisfarçado, e quando o
torneio acabou, fez uma lista de jogadores que queria levar
para o clube toscano. O primeiro era Daniel Passarella, e
Pontello não perdeu tempo para contratar o capitão
argentino, que se juntou ao compatriota Daniel Bertoni
como segundo jogador estrangeiro do clube para a
temporada 1982/1983. O segundo atleta a impressioná-lo
foi Karl-Heinz Rummenigge. Pontello tentou contratar o
astro alemão no verão de 1984 e, quando Rummenigge
decidiu jogar na Internazionale de Milão, Pontello se
concentrou no terceiro nome da lista — Sócrates.
Clubes italianos foram informados da disponibilidade de
Sócrates no começo do ano, quando um ex-piloto de aviões
chamado Marcello Placidi convenceu Sócrates a permitir
que ele fosse seu representante. O homem de negócios que
vivia em São Paulo tinha boas conexões na Série A, e a
Internazionale, o Verona, a Sampdoria, o Napoli, o Milan e a
Fiorentina estavam entre os clubes que entraram em
contato para expressar interesse.
A Fiorentina assumiu a pole position para contratar
Sócrates em maio, e o diretor-geral do clube, Tito Corsi,
voou até São Paulo para abrir as negociações. Sócrates
ainda estava sentido pela derrota da campanha das Diretas
Já e demorou apenas vinte minutos para concordar com a
proposta de dois anos de contrato.
O Corinthians, no entanto, não foi tão receptivo.
Waldemar Pires se reuniu com diretores da Fiorentina em
seu escritório, na avenida Paulista, e pediu 4,6 milhões de
dólares pela transferência, enquanto a Fiorentina avaliava
pagar cerca de 1,8 milhão. Pires se encontrou com Corsi
numa festa naquela noite, e já tinha baixado a pedida para
3,5 milhões. A distância diminuiu ainda mais no dia
seguinte, quando os dois voltaram a conversar na casa de
Pires e os italianos aumentaram a oferta para 2,5 milhões.252
Sócrates deixou claro que queria sair e as negociações
continuaram. Um acordo parecia iminente, mas o
Corinthians estava disposto a arrancar o máximo possível
dos italianos. Na terceira noite, Pires e Corsi se reuniram
com Sócrates e seus advogados uma vez mais, e a coisa
quase saiu dos trilhos. A meia-noite se aproximava e ambos
os lados ainda discutiam sobre os valores, e Sócrates
explodiu numa mistura de frustração e tristeza.
“Eu sou gente!”, ele gritou, batendo a mão na mesa. “Me
respeitem! Eu não sou uma mercadoria!” Levantou-se, com
lágrimas no rosto, e saiu da sala.253
Sócrates não era de exibir suas emoções e seu estado de
fragilidade estimulou os dois lados a chegar a um acordo.
Pires finalmente entendeu o quanto a transferência
significava para o jogador e, no dia seguinte, baixou o preço
pedido pelo Corinthians para 3,2 milhões de dólares. Corsi
concordou em pagar, embora mais algumas negociações
tenham levado a um valor final de 2,7 milhões. Os italianos
gastaram mais várias centenas de milhares de dólares para
cobrir o que Sócrates pretendia receber, e o jogador
renunciou a parte de seu percentual relativo à transferência
para garantir o negócio.254
No começo dos anos 1980, era possível contar nos dedos
das duas mãos o número de brasileiros que tinham ganhado
títulos em algum dos principais clubes da Europa.
Evaristo de Macedo brilhou durante anos extraordinários
no Barcelona, de 1957 a 1962, marcando 178 gols em 226
jogos e ganhando duas ligas e duas Copas das Feiras.
Depois de marcar o gol que eliminou o Real Madrid da Copa
da Europa na temporada 1960/61, encerrando a sequência
de cinco títulos do clube merengue, mudou-se para Madri e
venceu mais dois campeonatos com os gigantes da capital
espanhola.
Didi jogou pelo Real Madrid entre 1959 e 1960; Mazzola e
Dino Sani conquistaram a Copa da Europa pelo Milan, em
1963; Mazzola ganhou Liga e Copa da Itália com a Juventus
em 1973 e 1975, e Jair da Costa conquistou títulos na
Internazionale e na Roma durante uma década jogando na
Itália.
A Fiorentina também teve brasileiros notáveis. Julinho
Botelho ainda é considerado um dos grandes jogadores da
história do clube graças a um glorioso período de três anos
vivido na metade dos anos 1950, em que ajudou o clube a
ganhar seu primeiro título italiano. Amarildo, o atacante que
substituiu Pelé na Copa do Mundo de 1962 e cujos gols
levaram o Brasil ao título e lhe valeram o apelido de
“Possesso”, também ganhou um scudetto pelo time da
Toscana em 1969.
Como os únicos dois títulos do clube foram conquistados
graças aos gols de atacantes brasileiros, não surpreende
que os diretores da Fiorentina tenham enxergado em
Sócrates o homem que os conduziria ao terceiro.
O futebol na Itália estava em alta depois da vitória na
Copa do Mundo de 1982 e os clubes, ricos, contratavam os
maiores nomes do futebol. Glamorosa, atraente e bem-
sucedida, a Itália era o lugar para estar e a elite do futebol
da Europa embolsou todas as liras que pôde e se mudou
para a península.
Foi um dos mais sensacionais períodos de transferências
já vistos e, ao longo das seis semanas seguintes à
assinatura de contrato de Sócrates com a Fiorentina, Júnior
foi negociado com o Torino, Graeme Souness com a
Sampdoria e, no maior de todos os negócios, Diego
Maradona deixou o Barcelona e foi fazer história no Napoli.
A Juventus tinha o francês Michel Platini e o polonês
Zbigniew Boniek; Hans-Peter Briegel e Preben Elkjær
desembarcaram no Verona; enquanto os ingleses Mark
Hateley e Ray Wilkins chegaram ao Milan.
A Fiorentina tinha terminado o campeonato em terceiro
lugar na temporada anterior, e o clube estava otimista a
respeito do novo brasileiro que poderia levá-los a voos ainda
mais altos. Mais de cinco mil torcedores acompanharam a
partida do time para a viagem de pré-temporada e Sócrates
não diminuiu as expectativas, dizendo a eles que tinha
chegado “para ganhar a Copa da Itália, a Copa da Uefa e o
scudetto”. Era exatamente o tipo de coisa que os torcedores
adoravam ouvir.
No primeiro dia em seu novo clube, Sócrates se juntou a
seus companheiros para exames médicos. Enquanto
esperava para subir na esteira para os testes respiratórios e
cardiológicos, ele calmamente acendeu um cigarro. O
médico do clube chegou e mal pôde acreditar no que via:
“O que você está fazendo, fumando? Nós vamos examinar
sua respiração!”, ele reclamou.
“Mas, doutor, eu estou aquecendo meus pulmões para o
exame”, Sócrates brincou.
Seus companheiros gargalharam e o médico foi embora,
irritado.255
Foi uma brincadeira, mas também uma espécie de
mensagem intencional do brasileiro, e o incidente resumiria
à perfeição a passagem de Sócrates pela Fiorentina. Desde
o primeiro dia, ele deixou absolutamente claro que faria as
coisas como quisesse. As coisas seriam do jeito dele — ou
não aconteceriam.
A exemplo de muitos times italianos, a Fiorentina realizou
seu período de treinamentos de pré-temporada nas
Dolomitas, onde o ar puro, a altitude e as encostas
íngremes eram ideais para o novo time e os astros
contratados se prepararem para o ano que viria. A região ao
redor de Madonna di Campiglio, base da equipe, reúne
alguns dos mais belos cenários da Europa, mas Sócrates só
conseguia ver agruras. Desacostumado a treinar na altitude
ou a longos períodos de preparação intensa, sentiu-se mal e
ficou tonto depois de uma sessão de corrida, e, em outra,
desistiu após dez minutos. Seus companheiros completaram
a sessão de meia hora e encontraram o brasileiro,
insatisfeito, esperando por eles com uma pergunta típica de
Sócrates.
“Por que eu tenho que subir montanhas correndo?”,
questionou. “Eu quero correr com a bola.”256
Os jogadores da Fiorentina não demoraram a se
acostumar com as posturas pouco ortodoxas de Sócrates, e
inicialmente as atribuíram às dificuldades usuais com os
treinamentos de pré-temporada. O preparador Armando
Onesti era famoso por seu rigor e nem todos os atletas
suportavam seus métodos, especialmente no ar rarefeito
das montanhas. Eles também conheciam a reputação de
Sócrates e suas excentricidades, algo que logo se
confirmou. Na viagem de ônibus para um jogo, ele se deitou
num dos bancos na parte de trás, em vez de se sentar ao
lado de um companheiro. Contra o Napoli, pela Copa da
Itália, jogou de tênis porque o gramado era muito duro. E se
irritava com os rígidos horários determinados por Onesti,
que dava aos jogadores pouco tempo livre.
“Onesti prestava atenção a detalhes como o tempo das
refeições”, disse o goleiro Giovanni Galli, companheiro de
quarto de Sócrates e um de seus poucos amigos no clube.
“Ele não achava necessário gastar um longo tempo
comendo, então nos dava apenas vinte minutos para
almoçar. Aí ele nos fazia andar ao redor do campo para
digerir a comida, e, um dia, Sócrates se levantou da mesa
com o prato na mão e andou em volta do campo,
comendo.”257
Sócrates também incomodou algumas pessoas em suas
primeiras semanas no clube ao aparecer para eventos
oficiais usando jeans e camiseta, e houve algum
desapontamento quando, depois de atuar no primeiro
amistoso da pré-temporada — uma vitória por 7 × 1 sobre o
Pinzolo — ele não jogou o encontro seguinte e nem as duas
primeiras partidas da Copa da Itália, em razão de uma
misteriosa lesão. Sócrates também se recusou a dar o
simbólico pontapé inicial de um jogo beneficente, e um
furioso Placidi reclamou dele à imprensa local, que ampliou
a controvérsia.
Sócrates não deu valor às reclamações, dizendo aos
jornalistas que o que ele fazia com seu próprio tempo era
assunto particular. Quando os repórteres o pressionaram
sobre o hábito de beber e sobre o que chamaram de
posições controversas, ele subiu o tom um pouco mais,
respondendo: “Eu fumo, eu bebo e eu penso”,
acrescentando que as pessoas deveriam se acostumar a
isso.
Os incidentes eram sinais de que Sócrates tinha a
intenção de desafiar a ordem estabelecida. A liberdade
pessoal seguia como prioridade, mesmo em outro país, e
depois de dois anos de Democracia Corinthiana, ele tinha se
habituado a fazer o que queria. No Brasil, quando
discordava de alguma coisa, Sócrates simplesmente
ignorava sua existência ou tomava providências para mudá-
la. Achou que poderia levar esses mesmos aspectos de sua
personalidade forte à sua nova casa, mas toda a estrutura
italiana estava estabelecida fazia muito tempo e eles não
estavam dispostos a alterar seus hábitos por causa das
opiniões de um estrangeiro.
Ignorar as idiossincrasias de Sócrates foi uma decisão
fácil, porque a Fiorentina teve um início de temporada
decente. O elenco era forte e tinha condições de lutar pelo
título. Nas quatro primeiras rodadas do campeonato, a
Fiorentina ganhou dois jogos e empatou outros dois. Na
Copa da Itália, três vitórias e dois empates classificaram o
time para as oitavas de final, e duas vitórias sobre o
Fenerbahçe significaram uma vaga na segunda fase da
Copa da Uefa. Sócrates atuou por quase todo o tempo nos
primeiros seis jogos e foi o melhor jogador em campo em
dois deles: a vitória na estreia na liga italiana contra a Lazio,
fora de casa, e o triunfo na Turquia, na Copa da Uefa. Um
lindo gol na goleada por 5 × 0 sobre a Atalanta, na quarta
rodada do campeonato, levou a Fiorentina ao segundo lugar
na classificação e pareceu confirmar o otimismo da pré-
temporada.
As duas derrotas em jogos equilibrados contra Sampdoria
e Verona, no final de outubro, não chegaram a ser
desastrosas, mas atrapalharam os planos do clube, e as
coisas pioraram alguns dias mais tarde, contra o Anderlecht.
O jogo de ida do confronto na Copa da Uefa terminou
empatado em 1 × 1, em Florença, com Sócrates marcando
o gol da Fiorentina. A partida de volta, no entanto, foi um
massacre. Sócrates fez o gol de empate, de pênalti, depois
de o Anderlecht ter aberto o placar no início do jogo, mas os
belgas demoliram os visitantes no segundo tempo: 6 × 2.258
Foi a maior derrota da Fiorentina em torneios europeus
até então e Sócrates foi um dos jogadores mais criticados,
não apenas por ter jogado mal. Ele tinha sido contratado
precisamente para agregar experiência internacional ao
elenco, na esperança de dar ao clube seu primeiro troféu
europeu desde o título da Recopa, em 1961. Mas, ao
contrário, Sócrates desapareceu no jogo mais importante da
temporada.
A derrota marcou o começo de uma sequência de nove
jogos sem vitória que se estendeu até 1985 e expôs as
divisões existentes no time. Os jogadores se trancaram no
vestiário por três horas depois de uma derrota para a Roma,
onze dias mais tarde, e palavras duras foram trocadas na
viagem de ônibus de volta para casa. Um Sócrates
indignado deu um sermão aos companheiros no trajeto,
dizendo a eles que deveriam estar “envergonhados pra
caralho” e exigindo mudanças. Fazia tempo que ele
suspeitava que algo estava acontecendo, mas não sabia
dizer exatamente o que era, e após a derrota em Roma, as
coisas enfim se esclareceram.259
O vestiário da Fiorentina estava rachado; um lado era
liderado por Daniel Passarella e o outro pelo capitão do
time, Eraldo Pecci. O técnico Giancarlo De Sisti tinha
conseguido colocar um esparadrapo sobre a ferida, mas
quando ele foi hospitalizado com um abscesso no cérebro,
no final de agosto, um vácuo de poder destruidor se
instalou. Onesti passou a ser o treinador interino e foi
incapaz de se impor, o que permitiu que transbordassem os
ressentimentos que vinham permanecendo no limite da
superfície enquanto o time vencia.
Inicialmente, Sócrates não sentiu nenhuma simpatia
particular por Passarella ou Pecci e relutou a escolher um
lado, não apenas porque sabia que o time jamais
conseguiria vencer se estivesse dividido, mas também
porque fazê-lo seria aceitar um papel de subordinado a um
dos dois. Mas vários dos jogadores escolheram lados e
Sócrates ficou no meio. Ele estava convencido de que
alguns de seus companheiros o evitavam deliberadamente
e se sentiu perseguido tanto por ser estrangeiro quanto por
ser progressista.
Ele ficou vulnerável sem o suporte do técnico que o
contratou e, sem aliados, transformou-se em bode
expiatório. Muitos de seus companheiros achavam que ele
não vinha fazendo sua parte e vários tinham objeções ao
que consideravam atitudes antiprofissionais e falta de
esforço de sua parte. Sócrates nunca tinha sido de correr
muito nos jogos, mas seus companheiros não sabiam disso
e se irritavam ao identificar o que viam como egoísmo — e
também por causa dos já abundantes rumores de seus
excessos fora de campo.
No Corinthians, Sócrates tinha Biro-Biro, Paulinho e vários
outros que corriam para ele no meio de campo. Seus
companheiros o admiravam não apenas como jogador, mas
quase como uma pessoa especial, e estavam preparados
para fazer mais por ele e pela causa que compartilhavam.
Ironicamente, os jogadores da Fiorentina eram muito mais
igualitários. Homens como Passarella, Pecci e Claudio
Gentile não jogavam futebol para se divertir. Eram atletas
internacionais estabelecidos e personalidades fortes, não
habituadas a ser coadjuvantes de ninguém, muito menos a
fazer o trabalho dos outros. Queriam vencer e não se
impressionavam com a atitude descontraída de Sócrates.
“Esses caras eram profissionais dentro e fora do campo e
não entendiam por que Sócrates, que podia ser grande
dentro, não era fora também”, disse Galli sobre seus
companheiros. “Ele não tinha profissionalismo e não queria
fazer sacrifícios. Queria que os outros jogadores corressem
por ele e os outros diziam: ‘Eu corro por Sócrates, ele
precisa correr por mim’. Na cabeça dele, os outros
jogadores deveriam ser mais como ele, não o contrário. Mas
eles acreditavam que ele precisava se acostumar ao nosso
mundo. Esse foi o grande erro de Sócrates. Ele se recusou a
fazer qualquer concessão.”260
Sócrates também foi prejudicado pela decisão dos
técnicos de utilizá-lo num papel em que ele tinha pouca
margem de manobra. Sua posição em campo, próxima à do
centroavante, era similar à função de ponta de lança que
desempenhou no Botafogo de Ribeirão, mas os defensores
italianos jogavam um pouco mais avançados e estavam
sempre próximos dele. Os atacantes — muitas vezes era um
só — queriam a bola na frente, para poderem correr, mas
Sócrates estava mais habituado a passar a bola no pé e
tinha dificuldades com um sistema que lhe pedia para
lançar a bola a um jogador que estava de costas para ele.
O dinheiro também foi uma questão. Atletas que
chegavam recebendo grandes salários precisavam provar
seu valor cedo, mostrando que eram muito melhores do que
os outros ou que eram jogadores de equipe. Sócrates não
fez nem uma coisa nem outra, e para alguns companheiros
era absurdo fazer todo o trabalho duro enquanto ele
embolsava o maior cheque.
Sócrates perdeu ainda mais respeito do grupo ao chegar
tarde para os treinamentos ou se dirigir frequentemente
para a sala de tratamento a fim de fazer massagens em vez
de suar ao lado dos companheiros. Quando ele de fato
treinava, fazia questão de deixar claro seu desdém por tudo
aquilo.
“Ele fazia tudo o que se pedia a ele, mas quando não
estava disposto, não se dedicava”, disse o defensor Celeste
Pin. “Todo mundo fazia tiros [de corrida] em sete segundos,
ele fazia em dez. Esse era o jeito dele de dizer não ao
profissionalismo. Estava sendo obrigado a fazer algo que
não queria fazer. O futebol era um divertimento para ele.
Nós achamos estranho. Talvez seja assim quando você é um
menino, mas não é assim quando você é um profissional.”261
O descontentamento de Sócrates era exacerbado pelas
dificuldades para se adaptar à vida italiana fora do campo.
Florença é uma cidade antiga, cruzada por ruas estreitas
que inesperadamente chegam a praças espetaculares com
igrejas, bibliotecas e monastérios ainda mais maravilhosos.
As ruas são ladeadas por antigos edifícios de pedra,
coloridos por séculos de fumaça e fuligem. As igrejas têm
mais de cinco andares de altura, torres e cúpulas dominam
o horizonte com as colinas da Toscana ao fundo.
Sócrates, entretanto, via muito pouco disso. Ele se mudou
com a família para uma mansão em Grassina, uma vila no
alto de uma colina a cerca de dez quilômetros do Stadio
Comunale. A casa de dois andares tinha uma grande lareira,
uma adega e era cercada por pomares que produziam uva
chianti e azeitonas.262
Giancarlo Antognoni e Gentile estiveram entre os
convidados para jantar na casa de Sócrates, mas Antognoni
perderia toda a temporada por causa de uma lesão e,
embora Sócrates provocasse Gentile — que nasceu na Líbia
— apelidando-o de “Gaddafi”, eles nunca foram próximos.
Certo dia, Sócrates convidou parte dos jogadores para um
churrasco e, para seu desgosto, apenas um deles apareceu.
A relutância dos italianos em socializar era um problema
sério para um homem que enxergava a amizade e a
camaradagem como prioridades, e a frieza dos
companheiros aprofundou sua sensação de solidão. Sem
amigos no time e com poucos conhecidos na nova cidade,
ele se voltou para os brasileiros em busca de conforto.
Sócrates e Regina estabeleceram uma amizade com José
Trajano, um jornalista que conheciam de São Paulo e estava
viajando num ano sabático com a namorada. Trajano, ex-
editor de esportes da Folha de S.Paulo, aproveitava o
período para escrever sobre o futebol na Itália. Os dois
casais se tornaram próximos e, após mais uma de tantas
noites regadas a vinho que terminaram com Trajano e a
namorada dormindo no quarto de hóspedes, eles foram
convidados a deixar a pensão onde se hospedavam e se
mudar permanentemente. O isolamento mútuo e a saudade
de casa aproximaram Sócrates e Trajano, como, nas
palavras de Sócrates, dois bêbados infelizes que se
apoiaram um no outro para sobreviver.
Juntos, eles formaram um grupo de amigos um pouco
mais amplo, que incluía um cabeleireiro, um agente de
viagens, um vendedor de sapatos e um homem de negócios
que comprava e vendia mármore. O grupo se reunia na
mansão de Sócrates todas as noites para fazer grandes
jantares, jogar cartas ou simplesmente conversar e beber.
Muitas vezes eram eles que traziam Sócrates de volta para
casa após os jogos fora da cidade — sempre parando no
primeiro posto para comprar cervejas —, encontrando-se
com as esposas e namoradas no meio do caminho para
jantar.263
Sócrates e Trajano iam à cidade para comprar discos ou
comer em alguma trattoria local, ou então ficavam apenas
em casa bebendo e conversando. Mas mesmo quando seu
círculo de amigos cresceu, Sócrates ainda considerava a
vida italiana intolerável. Ele tinha ido à Itália, em parte, para
aproveitar a cultura do país, mas demorou meses para ver o
Davi de Michelangelo ou os Caravaggio, Botticelli e Da Vinci
na Galeria Uffizi, pois os treinos em dois períodos,
combinados com sua vida familiar e social, o mantinham
ocupado.
O inverno mais frio em cem anos não ajudou em nada.
Sócrates odiava o frio e as temperaturas de 23 graus
negativos ao menos permitiam que ele impressionasse os
visitantes colocando a cerveja para gelar do lado de fora da
casa. Mas o clima gélido também causava hipóxia em seus
pés e todas as dez unhas caíram. Correr e dar passes nos
gramados enlameados era quase impossível, e sua
conhecida falta de condicionamento físico o levava à
exaustão muito antes do apito final.
A divisão no vestiário se tornava cada vez mais evidente,
enquanto o time cambaleava nos jogos de dezembro e após
a virada do ano. Sócrates acreditava que alguns jogadores
só passavam a bola para amigos e aliados, e não era o
único. Na véspera de um jogo em 19 de janeiro contra a
Lazio, e depois de nove partidas sem vitória, Passarella
deixou o campo no meio de um treino e foi mancando para
o vestiário. Repórteres temeram que ele não pudesse jogar
e seus companheiros se preocuparam com a perda de seu
líder defensivo. Passarella não disse qual era o problema,
mas, no dia seguinte, chamou os jogadores em seu quarto
de hotel para uma reunião improvisada.
“Estou perfeitamente bem”, disse o zagueiro argentino,
furioso. “Não estou nem estive machucado. A razão pela
qual deixei o campo ontem foi ter visto jogadores de meio
de campo não passarem a bola para certos companheiros.”
Passarella, um dos homens mais duros do futebol,
apontou de forma ameaçadora para Pecci.
“Eu vou jogar hoje”, ele prosseguiu. “E se algo assim
acontecer eu vou sair. E se eu sair, estarei esperando por
você ao lado do campo no final do jogo.”264
A ameaça teve o efeito desejado e a Fiorentina venceu por
3 × 0, iniciando uma pequena reação que levou o time à
segurança do meio da tabela. De modo mais notável,
entretanto, o incidente aproximou Passarella e Sócrates.
Tanto no Brasil quanto na Itália, a mídia tentou criar uma
cisão entre eles e existiam várias razões superficiais para se
acreditar que poderia surgir um conflito. Um dos jogadores
era o descontraído líder da seleção brasileira, que tentava
se estabelecer como presença dominante em seu novo
time, enquanto o outro era o sério capitão da seleção
argentina, no clube havia dois anos e já com o seu espaço
garantido.
Mas Sócrates gostava de Passarella e viu solidariedade
em seu gesto, levado adiante dois dias depois de o
argentino ter pedido publicamente aos jornalistas e
torcedores que dessem ao companheiro brasileiro mais
tempo para se adaptar. Sócrates acreditava que os sul-
americanos eram vítimas de preconceito, e sugeriu até
mesmo que o tratamento dispensado a eles tinha contornos
fascistas. Numa entrevista polêmica à revista France
Football, em 2007, foi ainda mais longe e acusou Pecci de
tentar combinar o resultado de um jogo ao dizer aos colegas
que a partida precisava terminar em 0 × 0.
Ele repetiu a acusação em outras entrevistas, mas vários
jogadores negaram que o incidente tivesse acontecido e as
lembranças de Sócrates não batiam com outros detalhes
que ele havia mencionado. Pecci também negou o fato e
ameaçou processá-lo por difamação, mas nunca foi à frente.
Contrariando todos os outros relatos, argumentou que o
elenco não estava rachado, mas admitiu que os italianos
não receberam bem os estrangeiros e observou que
Sócrates teve muito pouco tempo para se aclimatar a seu
novo entorno.
“Sócrates passou apenas um ano na Itália e nós que
estávamos aqui não o ajudamos”, disse Pecci. “Platini
precisou de seis meses para compreender a liga italiana,
Falcão também. O único que jogou bem desde o início foi
Zico. Um período para se assentar é muito importante.”265
Soando até mesmo um pouco ridículo, Pecci afirmou ter
amizade com o homem que ele chamava de “Magron”, e
reconheceu que Sócrates não deveria ser responsabilizado
por aquela frustrante temporada da Fiorentina. “Muitos
jogadores não renderam o esperado. Quando as coisas não
vão bem, as pessoas procuram razões em exageros com
mulheres ou na vida noturna. A verdade é que vários dos
jogadores não jogaram bem e nós não conseguimos os
resultados.”
E havia também a política.
Horas depois de chegar ao clube, Sócrates foi
apresentado à torcida numa cerimônia improvisada no
Stadio Comunale. Milhares de torcedores se reuniram do
lado de fora para ver a nova estrela, e foram à loucura
quando Sócrates lhes fez uma saudação com o braço
erguido e o punho cerrado. Ele não sabia, mas o gesto com
o punho cerrado era usado pelo Partido Comunista Italiano,
o que criou problemas com os donos do clube, todos
apoiadores dos democratas cristãos, o partido de direita que
era o maior do país. Quando o evento acabou, eles
almoçaram juntos e diretores do clube discretamente o
puxaram de lado e pediram para que não repetisse o gesto.
Sócrates ficou perplexo com a controvérsia, mas não estava
disposto a esconder suas preferências.
“Por que você fez aquele gesto?”, o presidente do clube,
Ranieri Pontello, perguntou a ele.
“Porque aquilo sou eu, é o símbolo da minha vida”,
Sócrates respondeu.
“De onde vem esse gesto?”, Pontello quis saber.
“Eu não sei exatamente, mas me lembra do movimento
black power nas Olimpíadas do México, em 1968. Tem a ver
com várias coisas. É um símbolo, sei lá, uma comunicação
com o público… Seja qual for essa comunicação.”
“Você sabia que é o símbolo do Partido Comunista
Italiano?”, Pontello perguntou.
“Não”, disse Sócrates. “Mas adorei saber.”266
Pontello ficou surpreso, mas depois do almoço levantou
uma bandeira branca e convidou Sócrates para uma festa
que estava organizando para sua filha. A celebração
aconteceria na mansão de Pontello no mês seguinte, e a
presença de Sócrates era importante para o que certamente
seria um evento bastante formal. Sócrates, no entanto, não
pensava em ceder. Estava satisfeito por ter desferido um
golpe involuntário na direita local e, ainda que os Pontello
fossem discretos e amistosos, ele achava que estava sendo
usado para fins políticos e para que a família aumentasse a
própria popularidade.
“Agradeço o convite, mas não vou”, disse a seu chefe. “O
que vocês vivem não é o meu ambiente, prefiro não ir. Não
é para mim, gosto da liberdade, gosto de estar junto do
povo, esse negócio não é comigo, não.”267
Sua recusa em dançar conforme a música foi como um
tapa na cara do presidente do clube, e, como se não fosse
suficiente, Sócrates ainda piorou as coisas acidentalmente.
No mesmo dia em que os Pontello deram uma festa para a
filha deles, Sócrates foi a um debate organizado pelo Partido
Comunista Italiano na Casa del Popolo, um dos centros
comunitários de esquerda que eram comuns em cidades
italianas. O debate era sobre futebol e política, e milhares
de pessoas compareceram para ver Sócrates falar italiano
pela primeira vez. Sua dicção e vocabulário não foram
perfeitos, mas não havia como deixar de compreender o
duro recado aos democratas cristãos e aos Pontello.268
Sua atitude irredutível iniciou um conflito desnecessário
com os homens que dirigiam o clube, que se amplificou
ainda mais com os rumores de que ele estava tendo um
caso com uma mulher do clã Pontello. Anos mais tarde, os
Pontello relembraram a passagem de Sócrates pela Itália
com resignação. Niccolò Pontello, primo de Ranieri e diretor
do clube à época, disse que o problema com Sócrates nunca
foi a política. Observou que a Fiorentina não tinha nada a
ganhar ao censurar seu astro ou fazê-lo se sentir
indesejado. Eles conheciam sua história antes de contratá-lo
e, embora seu envolvimento com os comunistas não os
deixasse felizes, eles mantiveram essa insatisfação no
âmbito privado. O problema, disse Pontello, foi no campo,
onde o desempenho de Sócrates foi insatisfatório.
“Todos conheciam a história dele com a Democracia
Corinthiana”, disse o ex-diretor. “Nós estávamos preparados
e sabíamos como ele era. Lembre-se, a Fiorentina está
numa cidade tradicionalmente de esquerda e a maioria dos
torcedores pensa assim. Não foi um problema para nós.
Estávamos mais interessados em que ele fosse um bom
jogador.
“Mas ele era tão diferente e peculiar que os outros
jogadores o acharam estranho. Se você é diferente e faz o
time ganhar, todos os problemas desaparecem. Mas se os
resultados não vêm, tudo se torna mais difícil. Ele era um
bom jogador, mas isso não foi suficiente. As razões pelas
quais ele não foi bem não foram táticas ou técnicas; ele
apenas não se adaptou à vida italiana. Ele nunca se
integrou.
“Nós tentamos conversar com os amigos dele, saber quais
eram os problemas e tentar ajudar, mas não fez nenhuma
diferença e não aconteceu quase nada. Fizemos várias
reuniões, mas, no fundo, ele era muito peculiar. Não tinha
equilíbrio na vida. Ele não era feliz. Um jogador precisa se
sentir valorizado e ter um bom relacionamento com os
outros, e ele nunca teve isso.”269
As ideias de esquerda de Sócrates não eram uma
surpresa para seus colegas, mas os futebolistas italianos
consideravam que o melhor era não se envolver em política,
especialmente se isso significasse contrariar seus chefes.
Sócrates foi para a Itália com alguma esperança de
introduzir um tipo de movimento ao estilo Democracia
Corinthiana na Fiorentina, mas subestimou as reprovações e
o desinteresse de seus novos companheiros.
Ele tentou falar com alguns sobre os assuntos do dia a dia
e fez indagações das mais variadas ao instruído De Sisti,
abrangendo temas como as regras de transferências no
futebol italiano e a insistência do clube no uso de calças
sociais e paletós nas viagens.
“Nós nos encontraremos aqui amanhã às duas da tarde
para viajar, e eu quero todos com o traje oficial”, De Sisti
disse aos jogadores antes da primeira viagem para um jogo
fora de casa.
“Isso é mesmo necessário?”, Sócrates perguntou a Corsi.
“É assim que viajamos para jogos na Itália”, ouviu como
resposta.
Sócrates perguntou se podia falar com o capitão sobre
isso e abordou Eraldo Pecci para saber a opinião dele.
“É assim que nós representamos a Fiorentina”, Pecci disse
a ele, e Sócrates questionou se os outros jogadores estavam
confortáveis com as regras. Pecci concordou em fazer uma
pesquisa e se levantou no vestiário antes do jogo seguinte.
“Sócrates quer saber se todos estão de acordo com o traje
para viagens”, Pecci perguntou.
Todos concordaram e, no dia seguinte, Sócrates apareceu
devidamente vestido com o traje oficial. Nunca mais tocou
no assunto.270
O envolvimento de Sócrates com a cena política local não
foi bom para suas relações dentro do clube, mas o
revitalizou numa época em que ainda tentava se acostumar
com a cidade e fazer amigos. Ele não conseguia evitar falar
de suas posições da maneira mais clara possível, e se
aproximar de políticos e ativistas de esquerda o ajudou a se
sentir mais em casa. Florença era uma das cidades mais
militantes da Itália, com uma câmara municipal de esquerda
e um prefeito socialista, e o envolvimento de Sócrates era
uma validação bem-vinda. Nas reuniões de que participava,
ele incendiava a sala com as ideias e perspectivas de
alguém que vinha de fora, falando sobre desigualdades,
globalização e direitos dos trabalhadores.
As reuniões também eram uma forma de trazer os
torcedores para seu lado. No Brasil, onde os altos índices de
analfabetismo tornavam o rádio mais importante que os
jornais ou mesmo a televisão, Sócrates repetia
incansavelmente as mesmas mensagens — que não
recebiam filtros — para microfones e câmeras de televisão.
Na Itália, a mídia era dominada pela imprensa escrita e os
grandes diários apoiavam os democratas cristãos.
Sócrates — com alguma razão — sentia que eles o
perseguiam e tentava contorná-los sempre que podia.
Encontros em lugares como a Casa del Popolo eram um jeito
de fazer isso. O outro era o contato direto com os
torcedores. Ele achava que os italianos eram mais fanáticos
por futebol do que os brasileiros, mas eram também mais
respeitosos e pensavam duas vezes antes de abordar seus
ídolos. Sentia falta dessa conexão humana e demorou até o
final da temporada para fazer algo a respeito.
Faltando apenas três jogos para o fim do campeonato, a
Fiorentina jogaria contra a Udinese e Sócrates, machucado,
foi assistir ao jogo de calção e chinelos. Ele chegou tarde e,
em vez de se dirigir ao camarote da diretoria, pegou uma
cerveja e se posicionou perto da grade para ver o jogo a
poucos metros da linha lateral. Os diretores gritaram para
que se juntasse a eles, mas Sócrates ignorou os pedidos e
os esnobou ainda mais. Um amigo, comediante local, estava
perto dele e, no intervalo, Sócrates sugeriu que eles fossem
ver o segundo tempo na Curva Fiesole, o setor atrás do gol
onde se reuniam os “ultras” do time — os torcedores
organizados.
Eles foram recebidos como heróis quando chegaram e a
experiência de passar 45 minutos perto de torcedores reais
foi uma das memórias mais duradouras de sua passagem
pela cidade. Inevitavelmente, entretanto, a aventura serviu
para agravar as relações com os diretores e companheiros.
Os Pontello ficaram irritados por terem sido esnobados e os
jogadores acharam que Sócrates era louco. A distância
entre eles estava ficando grande demais.
Um dos poucos momentos ensolarados durante aquele
inverno gelado aconteceu em janeiro, quando Sócrates foi a
Roma para se encontrar com Tancredo Neves, o homem que
o Congresso tinha escolhido para ser o primeiro presidente
civil do Brasil em 21 anos. Sócrates adorou encontrar
Tancredo, que morreria tragicamente antes de tomar posse,
e sentiu mais saudades de casa do que nunca ao pensar
que uma mudança tão profunda estava acontecendo em
seu país sem que ele pudesse testemunhá-la. Mas o
encontro no hotel Excelsior, em Roma, teve pelo menos um
efeito positivo.
Os jogadores brasileiros que foram convidados
reclamavam da aborrecida vida social na Itália, e
combinaram de organizar alguma coisa na época do
Carnaval. Sócrates adorava o Carnaval e enxergou as
celebrações como uma oportunidade não só de reunir os
jogadores brasileiros, mas também de tentar mostrar aos
companheiros de clube como fazer uma festa de verdade.
Ele passou semanas gravando fitas cassete com seus
sambas favoritos e comprou 200 litros de cerveja alla spina,
antepasto suficiente para alimentar um estádio lotado e um
leitão para fazer um churrasco, na parte de fora da casa,
sob temperaturas abaixo de zero.271
Sócrates dividiu o evento ao longo de dois dias, com os
brasileiros chegando na segunda-feira e os italianos no dia
seguinte, que, por coincidência, era seu aniversário de 31
anos. A festa começou timidamente no domingo à noite,
quando ele voltou de Bérgamo após marcar no empate em
2 × 2 com a Atalanta, mas as coisas realmente
esquentaram na manhã seguinte, quando os brasileiros
chegaram para a “fase 1”. Zico veio em sua BMW com
Pedrinho, do Catania. Cerezo chegou de Roma e Júnior
apareceu com toda a família e um pé enfaixado. Edinho
chegou em sua Maserati turbo. Só Falcão, que estava
machucado, perdeu o evento.
A tradição no Brasil, em tempos carnavalescos, era
cheirar lança-perfume, e Sócrates não seria derrotado pela
ausência da droga — que era parte integrante do Carnaval
brasileiro nos anos 1980, tanto quanto o samba e o sexo.
Ele conseguiu que o cabeleireiro de Regina trouxesse spray
para cabelo, que tinha o mesmo efeito intoxicante, e
quando os convidados passavam pela porta, tentava
convencê-los a experimentar.
“Esse baile foi planejado por muito tempo”, lembrou
Trajano, hoje um respeitado comentarista. “Ele passou dias
gravando músicas de carnaval, comprou serpentina para
decorar a casa. Ele falou: ‘Pô, baile de carnaval sem um
lança-perfume não tem graça’, e comprou, com esse
cabeleireiro da Regina, uma caixa de laquê. Com todo
mundo que entrava, os jogadores também, ele pegava o
lenço e punha para a pessoa cheirar. Só que cada laquê
tinha uma cor. Tinha amarelo, verde… Durante a festa, tinha
gente com nariz verde, amarelo, vermelho.”272
A recepção aos companheiros da Fiorentina, no dia
seguinte, foi igualmente inesperada. Eles chegaram
vestindo ternos, exibindo a típica elegância italiana, e
Sócrates, em seu uniforme usual — roupas amassadas e
tênis surrados —, não perdeu tempo na tentativa de tornar
a festa mais brasileira. Havia preparado um par de tesouras
de jardim para acabar com as formalidades e, quando os
convidados entravam na casa, o anfitrião se divertia ao
anunciar que as gravatas Armani e Dolce & Gabbana
estavam prestes a ser aparadas.273
Oriali, Massaro, Galli e Gentile foram algumas das vítimas,
que não tiveram escolha a não ser se render. Passarela se
ajoelhou e implorou para que Sócrates poupasse seu caro
acessório. Antognoni argumentou que sua gravata tinha
sido um presente de sua mãe e quase chorou. Sócrates
adorou e, com seu típico bom humor, ignorou os pedidos e
abraçou cada um deles com metade de suas gravatas nas
mãos. Estava radiante com a presença dos companheiros e,
por um breve momento, imaginou que o feito de reunir os
jogadores italianos para socializar poderia funcionar como
um estímulo para o time.274
“Agora, sim, somos um time de futebol”, ele disse. “O
espírito da Democracia Corinthiana bem que podia baixar
aqui de vez.”275
Seu otimismo durou apenas cinco dias. No domingo
seguinte, a Fiorentina jogou em casa, contra a Sampdoria,
com o objetivo de aumentar a série de quatro partidas sem
derrota que tinha começado contra a Lazio. Em vez disso, o
atacante inglês Trevor Francis os destruiu, marcando dois
dos três gols da vitória do time de Gênova por 3 × 0. Mais
duas derrotas nos três jogos seguintes deixaram a
Fiorentina apenas três pontos acima da zona do
rebaixamento, e a equipe permaneceu dividida.
Sócrates também estava dividido sobre o que fazer a
respeito de Rosemary. Ele passou boa parte de seu tempo
na Itália sentindo falta dela e pensando se deveria trocar a
esposa pela mulher que amava.
Sócrates estava casado com Regina havia onze anos e,
embora ele tivesse se transformado radicalmente, ela ainda
era a moça discreta que ele acompanhava à escola todas as
manhãs. Sócrates tinha mudado mais do que a mulher,
mas, no fundo, era um menino tradicional do interior, que
valorizava o casamento e a família. Seu coração o mandava
deixá-la e assumir o romance com a cantora famosa, e sua
cabeça ordenava que ele permanecesse leal à namorada da
adolescência e mãe de seus quatro filhos.
Sócrates tinha dezoito voos para o Brasil como parte de
seu contrato, e os utilizava para passar fins de semana em
casa. Bebia no voo de ida, passava o fim de semana com
amigos ou parentes, então bebia no voo de volta para
Roma. Teve casos com mulheres na Itália, mas sentia
saudades de Rosemary e telefonava para ela de quartos de
hotel para cantar o grande sucesso daquele ano: “I Just
Called to Say I Love You”.276
A decisão de encerrar o affair com Rosemary e tentar
salvar seu casamento lhe custou muito — e não apenas
porque seu casamento não duraria tanto. Praticamente
desde o momento em que desembarcou na Itália, Sócrates
se arrependeu por ter tomado a decisão mais fácil, tendo
seu ressentimento se manifestado no que Flávio Gikovate
chamou de “um comportamento autodestrutivo cada vez
mais forte”.
“A impressão que me dá é que ele foi pra lá
extremamente autodestrutivo, castigando a si mesmo, não
se perdoando por ter feito a má escolha do ponto de vista
sentimental. Não estou dizendo que a Regina era uma má
escolha, mas ele não teve a coragem de fazer a escolha que
queria. Então, por mais extravagante, excêntrico, por mais
outsider que ele fosse, na hora H, de se separar para casar
com uma estrela da música e com uma mulher mais
exuberante, mais linda, mais independente… ele não teve
coragem.
“Ele fugiu de uma relação maior do que a que tinha com a
Regina. Esse era um relacionamento aconchegante em
termos de conforto, mas não era emocionante. E ele era um
homem que gostava de emoções. Então, ele fugiu do que
realmente queria, e acabou ficando acomodado na situação
que era apenas confortável. Eu acho que ele nunca se
recuperou. É minha impressão. E também um pouco da
minha experiência profissional com outras pessoas. Quem
evita uma relação amorosa — e no caso quem fugiu foi ele,
e por covardia — dificilmente perdoa a si mesmo.
“Por medo da felicidade, ele não se achava competente
do ponto de vista psicológico para ter uma mulher daquele
tamanho, e aí ficou fragilizado e começou a ter
comportamentos que misturavam o ser um outsider com a
autodestrutividade. Tudo jogando contra ele mesmo,
fazendo gol contra. Não acho que ele chegou à Fiorentina
tentando fazer amigos, não. E acho que não foi só o fato de
os jogadores da Fiorentina terem ficado incomodados com a
chegada dele, que era um herói… Ele também não fez
nenhum esforço para melhorar a situação.”277
De Sisti não se recuperou totalmente da cirurgia no
cérebro e foi substituído por Ferruccio Valcareggi, o
respeitado técnico que tinha dirigido a Itália na Copa do
Mundo de 1970. Mas a atmosfera era tão corrosiva que
Sócrates pediu uma reunião urgente e os jogadores foram
convidados a se encontrar na mansão de Pontello. Sócrates
estava convicto de que tinha descoberto a razão para o
racha no vestiário, e queria fazer algo a respeito.
“Por que você pediu esse encontro?”, Pontello perguntou,
de um lado da enorme mesa de seu escritório.
Os jogadores se ajeitaram nervosamente em suas
cadeiras e murmuraram alguns chavões inconclusivos,
enquanto olhavam para Sócrates, do outro lado da sala.
“Eu quero dizer uma coisa”, ele respondeu, e começou
com a costumeira cordialidade brasileira, antes de fazer
acusações controversas.
“Se eu puder explicar”, ele disse. “O que aconteceu foi o
seguinte: um cara está dormindo com a mulher de outro e
formou seu próprio grupo. Agora esses caras não falam com
os outros caras, e esse grupo não passa a bola para os
caras do outro grupo. A única solução é mandar o capitão
embora.”
“De jeito nenhum”, disse Pontello. “Não vou fazer isso.
Ninguém vai sair.”
“Tudo bem”, disse Sócrates. “Então me deem licença.”
Ele se levantou e saiu.278
O desinteresse de Sócrates tornou-se evidente, e ele
passou a sentir uma mistura de ressentimento, tristeza e
apatia. As relações com os outros membros do elenco eram
cada vez mais tensas e o defensor Stefano Carobbi disse
que, num trote particularmente maldoso, alguém teria
urinado na garrafa de água de Sócrates na volta de um jogo
fora de casa. Ele sabia que não tinha chance de ser feliz
fora do Brasil e literalmente contava os dias para o fim
daquele pesadelo.279
“Quando Sócrates entrava no vestiário, ele
cumprimentava todos com a seguinte declaração: ‘Bom dia,
hoje faltam 200 dias’, ou ‘Bom dia, hoje faltam 150 dias’”,
lembrou o defensor Pin. “Era como se ele estivesse
contando os dias para poder ir embora. Era sua maneira de
mostrar sua insatisfação.”280
Ele só queria que aquilo acabasse e teve a ajuda de um
jovem atacante chamado Luca Cecconi. Faltando quatro
jogos para o fim da temporada, uma lesão impediu Sócrates
de viajar a Turim para enfrentar a Juventus, e Cecconi, de 21
anos, fez sua quarta aparição no campeonato. Ele marcou
um gol na vitória por 2 × 1 sobre os maiores rivais da
Fiorentina, e o destino de Sócrates estava selado. Os
torcedores tinham encontrado um novo herói. Sócrates
nunca mais vestiu a camisa do clube.
“Para ele, o futebol era uma questão de felicidade”,
refletiu Carobbi, que depois se tornou treinador. “Ele queria
estar sempre feliz. Na Itália, temos uma mentalidade
diferente. Aqui você precisa ter sua mente focada no jogo.
Não é possível sorrir antes de um jogo e isso o fez sofrer. De
acordo com ele, o time tinha que transmitir alegria, mas nós
transmitíamos o oposto. Hoje eu sou treinador e percebo
que ele estava certo. Não é uma questão de vida ou morte.
Nós vamos para um jogo para desfrutar. Ele era o único que
entendia isso.”281
Sócrates tinha mais um ano de contrato em Florença, mas
sabia onde encontrar a alegria que buscava e não era na
Europa. Ele estava desesperado para ir para casa. Talvez um
pouco desesperado demais.
Capítulo 15
Era uma loucura. Ele era um cara que acordava de manhã e dizia:
“Quer uma cerveja?”. E eu respondia: “Eu quero o café da manhã”.
Juca Kfouri

Sócrates não foi o único jogador brasileiro que teve um ano


para esquecer na Itália. Zico, Falcão e Cerezo perderam
longos trechos da temporada por causa de lesões; Edinho
não reproduziu a forma do ano anterior na Udinese, e até a
consistência de Dirceu no Ascoli foi insuficiente para evitar o
rebaixamento do clube. A Lazio de Batista e a Cremonese
de Juary também caíram para a segunda divisão, enquanto
Pedrinho e Luvanor precisaram lutar para evitar a queda do
Catania para a Série C.
O único a melhorar sua reputação foi Júnior, que teve um
ano brilhante no Torino, colaborando na campanha do vice-
campeonato e terminando a temporada como vice-artilheiro
do time, atrás de Aldo Serena. Os jornalistas esportivos
italianos o elegeram o segundo melhor estrangeiro do
campeonato, à frente de Michel Platini, Karl-Heinz
Rummenigge e Liam Brady, e atrás de Diego Maradona.
O desempenho frustrante dos brasileiros e o sucesso de
jogadores mais robustos, embora tecnicamente inferiores,
como Mark Hateley, Hans-Peter Briegel e Preben Elkjær
foram usados como evidências de que os brasileiros não
tinham resistência ou vigor, e talvez lhes faltasse até a força
mental para lidar com os gramados pesados, o frio e os
famosos defensores italianos.
Sócrates refutou essa ideia diversas vezes e tentou
convencer tanto a si mesmo quanto aos outros de que sua
temporada em Florença não tinha sido um fracasso total.
“Fora o período de inverno, fiz uma boa campanha. No
inverno não consegui jogar, mas na primavera e no outono
joguei pra caralho. Mas o time era uma bosta, havia uma
puta guerra interna, aquela situação que você não consegue
imaginar que é possível. O time estava dividido, tinha cinco
caras de um lado, quatro do outro, o goleiro e eu. Os cinco
daqui não passavam a bola para os quatro de lá, os quatro
não davam a bola para os cinco, e os dois grupos não
passavam para mim. Como é que se joga num time desses?
Os caras não trocavam bola, não se olhavam, não se
cumprimentavam. Era uma zona. Esse foi o time em que eu
caí. Não tinha como andar.”282
“O único erro que eu diria que cometi foi falar uma nova
linguagem muito cedo e com muita honestidade. E,
principalmente, ser algo novo e diferente para o mundo do
futebol italiano.”283
Ele insistiu que não faria nada diferente e que sentiu falta
do calor humano e das interações que eram uma parte tão
importante de sua vida no Brasil. Sócrates possuía as
habilidades para ser bem-sucedido — Giovanni Galli, que
jogou com Ruud Gullit, Marco Van Basten e Roberto Baggio,
disse nunca ter visto alguém que passasse tão bem quanto
ele —, mas tinha tido suas vontades atendidas durante
tanto tempo que não entendia a necessidade de fazer
concessões. A Fiorentina, também, poderia ter sido mais
inteligente e permitir que ele fizesse as coisas como queria.
No Botafogo e no Corinthians, Sócrates sempre resolveu as
coisas quando foi deixado em paz. Mas o resumo é que ele
era incompatível com o futebol italiano, que exigia que os
jogadores corressem e se comprometessem, e com a vida
italiana, formal e estruturada.
Era o homem errado no lugar errado na hora errada, e a
única solução era voltar pra casa.
No começo de agosto de 1985, com a nova temporada
italiana se aproximando rapidamente, Sócrates estava tão
desesperado para encerrar seu exílio que consideraria
qualquer oferta. Havia muitos rumores sobre clubes
interessados nele, mas a primeira proposta sólida veio da
Ponte Preta.
A Ponte nunca tinha vencido um título importante, mas
vivia o melhor momento de sua história: vice-campeã
paulista em 1977, 1979 e 1981, com jogadores de seleção
como Carlos, Oscar e Juninho Fonseca no elenco, e terceira
colocada no Campeonato Brasileiro de 1981. O time não
conseguiu repetir esse sucesso nos anos seguintes, mas
continuou revelando muitos bons jogadores jovens,
importantes nas conquistas em 1981 e 1982 da Copa São
Paulo de Futebol Júnior, o torneio de maior prestígio das
categorias de base no Brasil.
O acordo para trazer Sócrates foi ancorado por Luciano do
Valle, um narrador de futebol que também se envolvia em
negócios do esporte e conhecia Sócrates porque cobria a
seleção brasileira. Torcedor fanático da Ponte Preta, Luciano
queria ver Sócrates jogando em seu time e — com toda a
pompa de uma personalidade de televisão — anunciou ao
mundo que tinha costurado um acordo para que empresas
locais pagassem o salário de Sócrates por intermédio de
inovadores contratos de patrocínio.
Em 11 de agosto de 1985, Sócrates deixou a Itália rumo a
Campinas e, poucas horas depois de chegar, apareceu
diante de torcedores extasiados vestindo a camisa da Ponte
Preta. Seis ônibus lotados de torcedores foram recebê-lo no
aeroporto, onde todos cantaram: “Doutor, eu não me
engano, seu coração é ponte-pretano!”. Sorrindo, Sócrates
disse a eles que estava “de volta ao lugar que é meu”.284
A Ponte Preta tinha grandes planos para seu novo astro e
Campinas, uma cidade moderna a pouco mais de oitenta
quilômetros de São Paulo, borbulhava de expectativa. O
clube rapidamente vendeu milhares de carnês de ingressos
para toda a temporada, convidou o Boca Juniors para ser o
adversário no jogo de estreia, em 23 de agosto, e planejou
apresentar o novo contratado num passeio de limusine
conversível pelas ruas da cidade. Um dos bares mais
conhecidos da região até contratou o barman do local
favorito de Sócrates em Ribeirão Preto, para que ele tivesse
um rosto familiar para lhe servir cerveja exatamente do
jeito que gostava.285
Mas Sócrates ainda não tinha assinado o contrato, e
menos de uma semana depois de ter vestido a camisa da
Ponte, ele estava de volta à Itália com o rabo entre as
pernas. O acerto que havia dito estar 95% certo, agora,
estava quase morto. Luciano do Valle tinha falado bastante
diante das câmeras, prometendo que as luvas da assinatura
do contrato estavam esperando por Sócrates no cofre de
um banco de Campinas. O dinheiro, entretanto, nunca
existiu e, quando Sócrates percebeu a trama, ficou furioso.
Luciano pediu que ele esperasse, mas não tinha reunido
empresas suficientes para ajudar a financiar o acordo, e
com o prazo para a inscrição de jogadores se encerrando,
não havia tempo para buscar mais ajuda.
A CBF, ansiosa para ter uma de suas estrelas jogando
regularmente no período prévio à Copa do Mundo de 1986,
se propôs a levar a seleção brasileira para um amistoso
lucrativo em Florença, a fim de disponibilizar a renda para
pagar o retorno de Sócrates ao Brasil. O montante cobriria
uma parte dos 400 mil dólares que a Fiorentina ainda devia
a Sócrates, que de pronto aceitaria um desconto para se
libertar de seu purgatório toscano. Mas o acordo foi por
água abaixo e seu futuro permaneceu incerto.286
Durante todo esse tempo, Sócrates cometeu um erro que
lhe custou demais. Enquanto as negociações com a Ponte
Preta ainda estavam em andamento, ele assinou um
documento em que abria mão dos valores que a Fiorentina
lhe devia. Argumentou que o documento continha uma
cláusula que determinava sua validade desde que o acordo
com o clube de Campinas fosse finalizado, mas a Fiorentina
refutou essa interpretação e usou o papel para se livrar de
alguém que tinha se tornado um constrangimento. Quando
a conversa com a Ponte esfriou e Sócrates voltou para a
Itália, ele foi tratado como um ex-jogador. Tentou seguir
como se tudo estivesse normal, mas Pontello não queria
mais saber dele.
Os torcedores da Fiorentina estavam igualmente irritados
— em parte porque Sócrates tinha aconselhado Falcão a não
jogar no clube, e em parte porque um jornal local
maliciosamente publicou comentários pouco elogiosos,
atribuídos a Sócrates, sobre os italianos. Quando ele leu as
aspas fabricadas, ficou tão indignado que pegou seu carro e
dirigiu cem quilômetros até Viareggio para contar o seu lado
da história. Sócrates chegou atrasado para o amistoso da
Fiorentina contra o Monza e foi conversar com os torcedores
para explicar que não tinha dado nenhuma entrevista no dia
anterior, muito menos insultado os italianos. Mas a torcida
já queria vê-lo pelas costas para contar com a vaga aberta a
outro estrangeiro no elenco, e não estava no melhor dos
humores. Sócrates disse que foi bem recebido pela ala mais
popular da torcida, mas quem esteve lá se recorda de que
ele passou alguns apuros.
“Só havia dois estrangeiros por time naquela época, então
o problema era que, se ele não fosse embora, Falcão não
poderia vir”, lembrou Alberto Polverosi, um jornalista local
que conhecia Sócrates e estava em Monza. “Os torcedores
estavam furiosos e queriam pegá-lo, fisicamente. Eles
gritavam e xingavam, e quando ele percebeu como a coisa
estava feia, teve que sair dali. E foi aí que tudo ficou bem
complicado para ele.”287
Sócrates se apresentou para treinar no dia seguinte, mas
seu acesso foi negado com a justificativa de que ele não era
mais jogador da Fiorentina. O insulto final veio quando ele
foi proibido de aparecer na foto tradicional de pré-
temporada, com todo o elenco, 24 horas depois. “Você já
pertence à Ponte Preta”, Pontello lhe disse.288
Sócrates ficou indignado pela maneira como foi tratado e
prometeu fazer tudo o que estivesse a seu alcance para
receber o dinheiro que lhe deviam, chegando até a fazer
ameaças vagas ao presidente da Fiorentina.
“Admito abrir mão dos 850 mil dólares que tenho a
receber pela temporada que vem. Mas exijo o dinheiro do
tempo já trabalhado e irei às últimas consequências. Agito
até o Partido Comunista Italiano para não dar sossego ao
conde.”289
Foi uma ameaça inócua, mas que mostrou como ele
estava irritado. Sócrates nunca jogou futebol por dinheiro,
mas odiava se sentir enganado. Pior ainda, sentiu-se usado
e desrespeitado. O tratamento dispensado a ele tanto pelo
clube quanto por alguns torcedores durante aqueles últimos
dias do verão o deixou revoltado. Ele o descreveu como o
lado “o mais frio e sujo do ser humano”. Foi a confirmação
final — como se ele ainda precisasse — de que não se
encaixava ali.
A resposta para os seus problemas veio do Rio de Janeiro,
uma cidade apaixonada por futebol, um reduto de
descontraída anarquia que era a casa do Maracanã, de Zico,
Garrincha e Jairzinho; e do Botafogo, do Flamengo, do
Fluminense e do Vasco da Gama.
O prazo para inscrições ainda estava aberto no Rio e
quando o Flamengo soube da disponibilidade de Sócrates,
quem fez seu movimento foi um prodígio do marketing, de
33 anos, que tinha trazido Zico da Udinese algumas
semanas antes: Rogério Steinberg queria os dois maestros
juntos no meio de campo do time de maior torcida da
cidade, e reuniu patrocinadores suficientes para pagar seus
salários.
Era uma vitória enorme para o Flamengo, e a solução
perfeita para Sócrates. O Rio era bonito e encantador,
conhecido no mundo inteiro pelo futebol, mas também
pelas praias, pelo Carnaval, e pelo clima quente que
acentuava uma cultura de forte sensualidade. Os cariocas
são famosos pelo calor humano, pela sociabilidade e por
sua natureza informal e extrovertida. Sócrates estava
desesperado por amor e afeto após o ano vivido no frígido
norte italiano, e sabia que uma mudança para o Rio seria
uma boa ideia.
O Rio era, e ainda é, a cidade da eterna juventude, onde
as pessoas falam, se vestem e agem como adolescentes. O
uniforme não oficial masculino é calção, camiseta e chinelo;
a bebida não oficial é a cerveja gelada, a qualquer hora do
dia ou da noite; e planejar as coisas é para os chatos e
rígidos. Era sob medida para alguém que dizia não
conseguir pensar mais de dez segundos adiante.
“O Sócrates nasceu no Pará e cresceu em Ribeirão Preto,
mas sua alma era carioca”, disse Paulo Sérgio, goleiro
reserva da seleção de 1982, nascido e crescido no Rio de
Janeiro. “Para mim, ele era um carioca. Era descontraído e
sabia como aproveitar a vida.”290
Sócrates desembarcou no Rio bem cedo na manhã de 13
de setembro, uma sexta-feira. Centenas de torcedores do
Flamengo, incluindo percussionistas da Mangueira, foram
recebê-lo com o maior alvoroço. Zico estava lá com
Steinberg para dar as boas-vindas ao velho amigo. A torcida
cantou: “Retornar é viver, doutor, vou beber com você”.
Sócrates deu uma rápida entrevista no aeroporto, foi
treinar na sede do Flamengo, na Gávea, e retornou ao clube
à noite para uma festa que, ao melhor estilo carioca,
acabou às onze da manhã do dia seguinte.
Seus primeiros comentários depois de voltar ao país se
limitaram a elogiar o Rio e celebrar os avanços
democráticos do Brasil, mas ele tentou concentrar sua
atenção no futebol, e não nas atividades fora do campo.
“Sou um privilegiado”, disse. “Primeiro, o Corinthians;
agora, o Flamengo. Isso é tudo o que um jogador pode
ambicionar em sua carreira.” Declarou que, junto com Zico,
formaria “o maior time do mundo”, e o técnico Joubert
basicamente o dispensou de cobrir os companheiros no
campo, dizendo: “Sócrates não é um jogador para ficar
marcando; tem é de ser marcado”.
Mas ele sabia que, pela primeira vez em sua carreira,
existiam dúvidas sobre suas capacidades, se o que ele não
havia conseguido mostrar na Itália tinha se perdido para
sempre. Alguns críticos sugeriram que Sócrates poderia ser
um mau exemplo para os outros jogadores, que não era
suficientemente profissional e se preocupava mais com
política do que com futebol, mas ele se recusou a morder a
isca e foi admiravelmente honesto em sua resposta.
“Estou precisando refazer minha cabeça e acho que vou
mudar de atitude daqui por diante. Chega de botar a cabeça
para baterem.”
Quando perguntado se trabalharia por mais democracia
em seu novo clube, ou solicitaria o fim da concentração, ele
pediu mais tempo para tirar conclusões.
“Estou chegando. Não sei o que acontece. Depois eu falo.
Quando foi implantada a Democracia Corinthiana, as
pessoas confundiram tudo. Era uma democracia porque
todos trocavam ideias e isso é sadio. Nada era decidido sem
que as partes fossem ouvidas.291
“Sou e sempre fui contra o autoritarismo. Primeiro quero
entender o clube para depois tomar posições. Se a maioria
do grupo é a favor da concentração, serei o primeiro a
encampá-la.”292
Sócrates estava em alto astral quando viajou para
Ribeirão Preto, na noite seguinte, para passar o fim de
semana com a família e amigos.
Mas não demorou muito para que as coisas começassem
a fugir do roteiro. Embora não tivesse treinado durante
semanas, o Flamengo esperava que Sócrates fizesse sua
estreia contra o Fluminense, uma semana depois de chegar
ao Brasil. Dois dias antes do jogo, porém, ele saltou para
cabecear a bola num treinamento e torceu o tornozelo
esquerdo na queda. O diagnóstico inicial foi uma distensão,
mas logo ficou claro que o estrago era mais sério e novos
testes revelaram uma fratura na tíbia que o deixaria em
recuperação por até quatro meses.
Foi um golpe devastador para o jogador e o time,
especialmente por acontecer logo depois de Zico ser
diagnosticado com uma lesão no joelho que o deixaria fora
de ação até o Ano-Novo. Sócrates queria jogar para mostrar
aos torcedores que não havia perdido suas habilidades
enquanto esteve na Europa. Os brasileiros tinham acesso
limitado ao futebol italiano, mas sabiam das dificuldades do
craque, o que contribuía para a sensação de que ele já não
vivia mais seu auge. Sócrates também precisava provar que
merecia um lugar no grupo que iria à Copa do Mundo do
México. Mas, agora, em vez de mostrar seu talento no
Maracanã, ele passou o resto do ano usando muletas e
fazendo fisioterapia.
Quando Sócrates fez sua estreia, no começo do ano
seguinte, ela aconteceu no improvável cenário do deserto
árabe. Desde os anos 1950, os clubes brasileiros faziam
turnês pelo mundo regularmente, com os gloriosos times do
Santos de Pelé e do Botafogo de Garrincha visitando não só
a Europa, mas a África, a Ásia e a América do Norte em
viagens que duravam meses e rendiam muito dinheiro. Nos
anos 1980, essas excursões se deslocaram para o Oriente
Médio, onde as nações árabes contratavam jogadores e
técnicos brasileiros para aprender com seus conhecimentos
e experiência.
Depois de se recuperar da fratura na tíbia, Sócrates
estava pronto para jogar em janeiro, e doze mil pessoas
foram a um jogo no Bahrein para vê-lo ao lado de Zico, que
fazia sua primeira aparição depois de ter operado o joelho
esquerdo, em outubro. O Flamengo venceu o West Riffa por
3 × 1, com Sócrates não só jogando bem, mas exibindo boa
forma física.293
Originalmente, o Flamengo jogaria mais duas partidas na
região, mas um jogo no Iêmen do Sul foi cancelado de
última hora, por causa de um golpe militar, e um amistoso
na Arábia Saudita também não se confirmou. O time
encerrou a excursão em Bagdá, onde venceu o Iraque —
onde Edu, irmão de Zico, era técnico — por 2 × 0. Mas,
antes disso, viajou à Itália para um amistoso com a
Fiorentina, acordado como parte da negociação pela
transferência de Sócrates — que ficaria com a renda da
partida e, em troca, se comprometeria a não entrar na
justiça contra o clube italiano por causa do dinheiro que lhe
era devido.294
Sócrates, de maneira insensata, reabriu feridas antigas
antes do jogo ao criticar Pontello por explorá-lo, e achou
que os italianos sabotaram o evento deixando de fazer
qualquer tipo de divulgação. Para piorar, a Itália jogaria
contra a Alemanha num amistoso, em Avellino, dois dias
depois, e vários jogadores da Fiorentina não estavam
presentes. Passarella apareceu, mesmo com uma lesão na
coxa sofrida cinco dias antes, mas a Fiorentina teve apenas
quatro titulares em sua escalação. A noite foi fria e úmida.
Apenas 4.100 pessoas compareceram.
Sócrates jogou um buquê de flores amarelas aos
torcedores na Curva Fiesole, mas não houve muitos outros
bons momentos. O Flamengo teve uma atuação ruim e
sofreu três gols num intervalo de oito minutos, no primeiro
tempo. O clube brasileiro ensaiou uma reação na segunda
parte, com dois gols, mas não alcançou o empate. O
pequeno público rendeu a Sócrates apenas seis mil dólares,
muito longe dos quatrocentos mil que ele tinha deixado de
ganhar por causa do imbróglio contratual. Ele não se
mostrou arrependido na entrevista depois do jogo,
declarando que a vida não era questão de dinheiro.
“O dinheiro não é importante”, disse. “A felicidade é feita
de homens e não de dólares. Não tem importância quantos
torcedores vieram. Nunca provoquei unanimidades nas
pessoas. Os poucos que me apoiam são extremamente
leais.”295
Ranieri Pontello, que assistiu ao jogo das cadeiras, disse
que se arrependeu da “decisão maluca” de contratar
Sócrates e, num último insulto, sarcasticamente declarou
aos jornais italianos que: “Pelo que ele jogou, até que
recebeu muito dinheiro”.296
Sócrates afirmou que se divertiu muito e prometeu voltar
à Itália quando tivesse férias.
Perguntado se consideraria voltar a jogar no futebol
italiano, ele foi direto ao ponto. “Não”, respondeu.
Duas semanas depois, o Flamengo estreou no
campeonato estadual contra o Fluminense, no Maracanã. O
Fluminense tinha conquistado o torneio nos três anos
anteriores e queria se tornar o primeiro time em oitenta
anos a ganhá-lo quatro vezes seguidas.
O vestiário do time foi decorado com uma faixa que dizia:
“Obrigado, Tricampeões! Feliz 1986, o ano do Tetra”, e a
torcida provocou Zico com cantos homofóbicos que
serviram apenas para estimulá-lo. Ele deu um show, com
três gols — o terceiro foi seu gol número setecentos como
profissional — na vitória por 4 × 1.297
Zico não era apenas uma estrela no Flamengo, era um
mito. Um garoto que torcia pelo clube e se tornou o maior
jogador de sua história. Sócrates ficaria em segundo plano
em relação ao número 10 dentro e fora do campo, e estava
de acordo com isso. Ele percebeu que não só precisava se
provar novamente, como também ajustar seu jogo para se
complementar ao maior astro do time.
Para Sócrates, isso significava jogar um pouco mais
recuado, algo que o deixava confortável. Ele podia ver o
jogo à sua frente e não se importava em ceder a liderança
do time em que atuava. Eles se conheciam bem da seleção
brasileira e o técnico Sebastião Lazaroni, que tinha
substituído Joubert, acreditava que Zico se beneficiaria dos
passes de Sócrates.
Sócrates esteve um pouco fora de ritmo contra o
Fluminense, mas com Adílio e Andrade completando o meio
de campo — a dupla jogou com Zico quando o Flamengo
destruiu o Liverpool no Mundial Interclubes, cinco anos
antes —, o time pareceu pronto para o que seria uma
temporada longa e difícil.
Nenhum dos dois, entretanto, teria papel muito
importante nela. Para a sorte de Sócrates, Telê Santana
tinha retornado à seleção brasileira, após a relutância inicial
do Al-Ahli em liberá-lo do contrato entre eles. O período de
Telê na Arábia o impediu de se manter atualizado sobre o
futebol brasileiro, e, quando anunciou sua convocação em
fevereiro, ele apelou para os homens que o haviam servido
tão bem quatro anos antes. Zico, Falcão, Cerezo, Éder,
Júnior e Leandro estavam entre os escolhidos, e Sócrates se
juntou a eles, ainda que o jogo contra o Fluminense tivesse
sido sua primeira atuação oficial em sete meses.
Faltavam três meses e meio para a estreia na Copa do
Mundo, mas Telê não queria correr nenhum risco. No dia
seguinte ao Fla-Flu, Sócrates e outros 24 jogadores que
atuavam no Brasil (quatro que estavam na Itália os
encontrariam mais tarde) passaram por exames médicos no
Rio e viajaram para Belo Horizonte, onde ficariam
hospedados na Toca da Raposa, o mesmo centro de
treinamentos do Cruzeiro em que Telê tinha preparado a
seleção para a Copa do Mundo da Espanha. Sócrates
prometeu parar de beber e fumar, afirmando que “a seleção
precisaria de toda a capacidade de todos os jogadores na
Copa do Mundo”, e disse que estaria ainda melhor do que
em 1982.298
Era uma promessa otimista, pois ainda existiam dúvidas
até mesmo sobre sua presença no México. Suas poucas
atuações eram uma preocupação real, e, mesmo que ele
ainda fosse popular entre os torcedores — 32 mil leitores da
revista Placar o incluíram em sua escalação preferida do
time que iria ao Mundial —, sua convocação estava longe da
unanimidade. Telê não disse nada publicamente sobre o
tema, mas mantinha reservas a respeito dele, e os técnicos
que conheciam bem Sócrates revelaram suas inquietações.
A exata natureza do risco estava relacionada à sua forma
física e a seu comportamento, e foi o segundo assunto que
ganhou maior relevância, porque Sócrates se esforçava para
prejudicar sua reputação. Uma semana antes de se
apresentar à seleção, ele foi um dos jurados do carnaval do
Rio de Janeiro.
Sócrates foi convidado para julgar os desfiles porque era
considerado “incorruptível”, mas essa imagem foi mitigada
por sua falta de experiência no assunto — e por sua decisão
de beber antes mesmo do início das apresentações.
Sócrates era um dos responsáveis pelas notas das
baterias das escolas de samba. Os jurados ficavam nas
arquibancadas para poder ver melhor a passagem das
escolas, mas ele desceu as escadas e foi para a avenida,
tirou sua camiseta e começou a dançar vestindo apenas
uma bermuda branca. Os organizadores não gostaram e,
relutante, ele teve de retornar ao setor onde deveria assistir
aos desfiles. Mas haveria mais. Sem conhecimento técnico,
Sócrates resolveu usar seus próprios critérios de avaliação:
se o público estivesse de pé e cantando quando uma escola
passasse, ele dava nota 10; se estivesse de pé, mas sem
cantar o samba, nota 9; se ninguém se levantasse nem
cantasse, a nota era 8. Não era nada sofisticado e Sócrates
terminou dando a nota máxima a oito das quinze escolas.
Outras quatro receberam a nota 9, e as três demais ficaram
com a nota 8.299
Reunidos para acompanhar a apuração, torcedores da
Portela ficaram furiosos com Sócrates por ter retirado um
ponto da bateria da escola, ainda que a nota não viesse a
fazer diferença no resultado final. Antes mesmo de os votos
serem contados, o presidente do Salgueiro o acusou de
estar tão bêbado que “não tinha condições de julgar nada”.
Ele queria anular os votos de Sócrates e teve de ser
convencido por amigos a mudar de ideia, o que evitou um
enorme constrangimento. O Salgueiro, que ironicamente
recebeu nota 10 de Sócrates, terminou em sexto lugar. A
escola vencedora do carnaval foi a Mangueira, “um
prenúncio da vitória do Flamengo”, disse Zico, pelo fato da
escola ser muito popular entre os torcedores do clube.300
Imagens de Sócrates cambaleando com uma lata de
cerveja na mão geraram exatamente o tipo de repercussão
da qual ele não precisava às vésperas de um jogo do Brasil,
mas, coerentemente, ele não se importou. Talvez a
percepção fosse diferente se estivesse jogando bem, ou
apenas jogando, mas o Fla-Flu tinha sido sua primeira
partida oficial desde junho, e Sócrates deveria estar se
preparando física e mentalmente para aquela que seria sua
temporada mais importante em anos. Alguns torcedores, e
inimigos que enxergavam seu liberalismo como uma
ameaça, aproveitaram o incidente para salientar o que
consideravam não apenas falta de profissionalismo, mas
algo pior: falta de compromisso com a seleção brasileira.
A revista Placar sempre havia apoiado o jogador, e seu
diretor, Juca Kfouri, era ainda um amigo e admirador. Mas
nem mesmo a Placar podia ignorar que a reputação de
Sócrates tinha sofrido um baque. Desde seu retorno da
Europa, Sócrates não tinha feito nada no campo de futebol e
só produzia manchetes por causa do hábito de beber. Para
resumir sua situação, um editorial afirmou: “Jornais,
revistas, rádio e televisão tratam Sócrates como um
fumante inveterado e um bêbado mais interessado em
retórica política do que em sua tarefa principal:
simplesmente jogar um futebol admirável”. Sócrates nem
mesmo tentou apresentar explicações para seu
comportamento.
“Este é o país em que mais cachaça se bebe no mundo e
parece que eu bebo sozinho”, disse à Placar. “Ou que sou o
único a tomar porre. Já levei muita porrada por minhas
posições. Há uma tendência a destruir o que presta —
querem me destruir. Não fico ofendido, mas as pessoas ao
meu redor ficam, e isso me chateia. Não querem que eu
beba, fume ou pense? Pois eu bebo, fumo e penso. Fui para
a avenida brincar, bebi direitinho. Não fico me escondendo
para fazer as coisas.”301
Questionado se estava prejudicando sua imagem antes da
Copa do Mundo, ele respondeu: “Minha imagem de homem
público é a de um autêntico. Não sou de falso moralismo.
Minha imagem é a de sinceridade, e o público saca. Há
pessoas que sentam para escrever e fazer a cabeça do
povão. Conservadoras, são resquícios do regime anterior.
Estou aqui, convocado por Telê, e não o vejo preocupado
com minha imagem.”302
O escândalo virou manchete não simplesmente por causa
do momento, ou porque Sócrates não estava jogando. Na
ausência de uma causa política para defender, beber
ostensivamente foi a maneira que Sócrates encontrou para
desafiar a sociedade, uma nova forma de mostrar a seus
detratores que, apesar de todas as críticas, ele ainda podia
se comportar como um adolescente e jogar futebol para
estar na Copa do Mundo. Mas ele tinha 32 anos e seu corpo
estava se recuperando de lesões sérias e meses de
inatividade. Como qualquer outro esportista claudicando na
direção da quarta década, ele não podia fazer o que fazia
cinco anos antes sem pagar um preço. O tempo estava
mandando uma mensagem, mas Sócrates não queria ouvir,
e os sons estridentes do Rio de Janeiro criavam ainda mais
dificuldades.
A atmosfera de festa no Rio era sedutora e amigos
percebiam que ele estava se soltando gradativamente. Seu
casamento estava em crise e, embora o caso com Rosemary
tivesse esfriado, havia vários outros flertes e envolvimentos
passageiros para mantê-lo ocupado. No Flamengo, Sócrates
às vezes saía de barco no dia seguinte aos jogos, com
companheiros e amigos. Eles carregavam cerveja, carne e
mulheres e iam para a ilha de Jurubaíba para fugir dos
fotógrafos. Os jogadores rebatizaram o local de
“Surubaíba”.
Sócrates amava o Rio, mas a mídia e os torcedores
cariocas nunca entenderam verdadeiramente a Democracia
Corinthiana, e a antipatia natural pelos paulistas não
ajudou. A imprensa parou de tratá-lo como queridinho e
houve mais questionamento do que nunca a respeito de seu
futebol, seu engajamento político e até mesmo seu jeito de
falar. Ele deixou de carregar no “r”, como é comum em São
Paulo, e passou a pronunciar o “s” com som de “sh”, com
sotaque carioca. Sendo ou não algo intencional para se
encaixar na cidade, o fato é que todos perceberam e seus
amigos achavam cômico. “Você não tem nenhuma
personalidade, você muda conforme as circunstâncias”,
disse-lhe um deles — brincando, pelo menos parcialmente.
Sócrates não queria admitir, mas estava frustrado por
seus problemas no casamento e por perder Rosemary, pelo
desgaste com a Fiorentina, e pelas lesões que o impediam
de jogar ao lado de Zico no Maracanã lotado. Como era
típico, entretanto, ele se recusou a reviver o passado, em
especial porque o presente era muito atraente, e se dedicou
a curtir as atrações que sua nova cidade oferecia. Sócrates
subiu em palanques no Rio de Janeiro e em São Paulo para
defender seus candidatos a prefeito. Envolveu-se em
campanhas educativas para informar os brasileiros sobre a
aids. E visitou as favelas do Rio, tomando cerveja, ouvindo
samba e comendo espetinhos ao nascer do sol. O simples
ato de entrar em seu condomínio fechado acompanhado de
músicos pobres e negros lhe causava satisfação. Estava
fazendo exatamente o que as pessoas não queriam que ele
fizesse, e com isso se sentia vivo.303
Enquanto isso, Telê seguia preocupado, mas era muito
inteligente para deixar isso transparecer. Ele tinha passado
a maior parte do ano anterior na Arábia Saudita e não tinha
visto todos os jogadores que gostaria, por isso ainda não
havia decidido qual seria seu time ideal no México. Sabia
que o futebol tinha se tornado um jogo mais físico desde a
Copa do Mundo anterior, e avisou seus meios-campistas de
que teriam de trabalhar mais duro e marcar mais do que
tinham feito na Espanha. Seu retorno deu esperanças a uma
seleção que tinha sido dirigida por três técnicos em três
anos, sem que nenhum deles se aproximasse da magia de
1982.
Carlos Alberto Parreira assumiu no começo de 1983, mas
suas tentativas de renovar a seleção não tiveram sucesso e
ele foi demitido após vencer apenas cinco dos catorze jogos
que disputou. Sócrates atuou em três deles e o Brasil não
perdeu nenhum, mas sete empates levaram à queda de
Parreira, substituído por Edu, irmão de Zico. Seu período
começou da pior maneira possível, quando um time que
tinha cinco jogadores estreantes perdeu para a Inglaterra de
Mark Hateley e John Barnes no Maracanã. Sócrates não
jogou esta partida e as duas seguintes, um empate e uma
vitória, mas a seleção não agradou e Edu foi demitido
depois de apenas três jogos.
Evaristo de Macedo entrou em seu lugar em abril de 1985,
mas sua decisão de não convocar nenhum jogador que
atuava fora do Brasil não agradou nem a Sócrates nem à
maioria dos torcedores. Seis jogos e um mês depois, ele
também estava fora, deixando o Brasil à deriva, um ano
antes do início da Copa do Mundo no México.
Telê ainda era extremamente leal ao grupo de 1982, mas
não podia negar que havia jogadores mais jovens e em
melhor forma pedindo um lugar, e no meio de campo isso
era mais do que evidente. Uma das surpresas do ano
anterior tinha sido Elzo, do Atlético Mineiro. Silas e Alemão
estavam muito bem no São Paulo e no Botafogo,
respectivamente. Júnior sobressaía no meio de campo do
Torino, e tanto Falcão quanto Zico estavam recuperando seu
melhor nível, agora que estavam de volta ao Brasil e livres
de lesões.
Telê convocou 29 jogadores em fevereiro, com a intenção
de cortar sete na véspera da Copa. A decisão foi criticada
por criar rivalidades quentes (por vezes, quentes demais) no
elenco, com jogadores competindo entre si por um lugar na
lista final. Mas com vários deles ainda em recuperação de
lesões, Telê queria ter todas as opções à mão para o time
titular e os possíveis reservas.
Os 25 jogadores que atuavam no Brasil se apresentaram
no Rio e, após fazerem os exames médicos de rotina,
viajaram para Belo Horizonte, onde se encontrariam com
Cerezo, Júnior, Dirceu e Edinho depois do encerramento do
Campeonato Italiano.
Telê se reuniu com Sócrates na Toca da Raposa, e, com a
sabedoria paterna que o jogador tanto admirava, deu
alguns conselhos a seu ex-capitão. O técnico reforçou sua
confiança nele e pediu que Sócrates se concentrasse em
provar que seus críticos estavam errados. Sócrates foi
ridicularizado em certos círculos por ter dito “eu bebo, fumo
e penso”, e Telê ficou chateado e preocupado. Na conversa
no saguão da Toca, Telê lhe pediu mais maturidade. “Dos
jogadores mais velhos, você é o que tem mais
responsabilidade”, ele disse. “Quero que você seja um
exemplo para os mais jovens. Não é útil para ninguém,
principalmente para você mesmo, um certo tipo de atitude,
certas declarações. A quem serve você dizer à Placar que
fuma e bebe? […] Eu gosto de você como se fosse uma
pessoa da minha família. E eu sei que você gosta de mim,
também. Por isso dói quando vejo alguém querendo
ridicularizar uma entrevista sua, uma atitude sua. E eu
acredito em você e tenho certeza de que você não vai me
decepcionar.”304
A promessa de Sócrates de que entraria em forma era
exatamente o que Telê queria ouvir, e Gilberto Tim foi tão
exigente com ele e com os demais jogadores, naquelas
primeiras semanas, que eles lhe deram o apelido de
“Mengele”, por causa do sádico médico nazista. Mas
Sócrates sentia um incômodo na coxa que o impedia de se
alongar completamente. Começou como um desconforto e
depois virou algo mais sério, porém os médicos não
conseguiam identificar o problema e tratá-lo. Era mais
desconfortável do que dolorido, mas, com o passar das
semanas, o problema o irritou cada vez mais e o prejudicou
na tentativa de garantir um lugar no time.
Era apenas mais uma das muitas dificuldades daquele
outono, e as nuvens negras que pairaram sobre seus
primeiros meses no Flamengo o seguiram na seleção e
expandiram sua influência negativa. O maior escândalo
aconteceu uma semana depois da apresentação. Telê deu
uma noite de folga aos jogadores, mas pediu que fossem
prudentes e estivessem de volta à meia-noite. Leandro e
Renato Gaúcho passaram do ponto e foram flagrados
tentando entrar na concentração às quatro da manhã. Telê
ficou indignado e queria mandá-los para casa no ato, mas,
relutantemente, concordou em lhes dar uma segunda
chance após Sócrates e outros jogadores mais experientes
apelarem em nome dos indisciplinados. Sócrates afirmou
que, se Leandro e Renato fossem cortados, ele também
deixaria a seleção.305
No dia 4 de março, Zico torceu o joelho seriamente
durante um treino — o mesmo joelho esquerdo que tinha
sido operado cinco meses antes — e precisou ficar fora por
um mês. Três dias depois, Leandro torceu o tornozelo
esquerdo. Ambos não puderam jogar os amistosos contra a
Alemanha Ocidental e a Hungria.
O jogo em Frankfurt, em 12 de março, evidenciou a falta
de seriedade na preparação do Brasil. A temperatura era de
apenas três graus, e os brasileiros não quiseram passar um
minuto além do absolutamente necessário no frio. Enquanto
os alemães enfrentaram o clima para se aquecer para o
jogo diante dos torcedores, os jogadores do Brasil fizeram o
aquecimento dentro do vestiário climatizado do
Waldstadion. Não por coincidência, os brasileiros ainda
estavam frios quando a Alemanha fez o primeiro gol, aos
noventa segundos de jogo, com Hans-Peter Briegel. Klaus
Allofs adicionou mais um no final do encontro para fechar a
confortável vitória por 2 × 0. Bobby Robson, técnico da
Inglaterra, declarou que “o Brasil usou as mesmas táticas de
1958”.306
Sócrates foi um dos melhores em campo, mas os
problemas na coxa o impediram de jogar contra a Hungria,
em Budapeste, quatro dias depois. E, outra vez, a seleção
foi muito mal. Telê incluiu os estreantes Elzo e Silas —
quatro jogadores tinham feito o primeiro jogo pelo Brasil
contra os alemães — no meio de campo, numa formação
não testada ao lado de Alemão. O experimento falhou
miseravelmente na derrota por 3 × 0.
Os jogadores estavam começando a se preocupar com a
falta de comunicação entre eles e a comissão técnica, e
Casagrande pediu a Sócrates que assumisse um papel de
liderança para melhorar essa relação. Mas, pelo fato de não
estar jogando regularmente e ainda sofrer com as críticas,
Sócrates não se sentia como o líder que um dia havia sido e
relutou a se posicionar dessa forma, especialmente porque
o Brasil tinha um capitão perfeitamente capaz em Oscar.
Na verdade, Sócrates tinha se cansado de tentar liderar
jogadores brasileiros que, ele concluiu, não podiam ou não
queriam ser liderados. O grupo estava reunido fazia menos
de trinta dias e a perspectiva de passar mais três meses
longe de sua família já o deixava deprimido. Ele passou a
ter a percepção de que, mesmo depois de anos de
Democracia Corinthiana desafiando o sistema, nada havia
mudado. Os jogadores estavam exatamente na mesma
posição de quatro anos antes, vivendo sob as mesmas
regras restritivas. O jogo ainda era dominado pelos mesmos
políticos conservadores de sempre — um deles, chefe da
delegação brasileira na Copa do Mundo do México, era José
Maria Marin, o futuro presidente da CBF que seria preso por
causa do escândalo de corrupção na fifa cerca de trinta
anos depois.307
“Não é preciso ficar tanto tempo isolado do mundo para
se formar um time”, ele disse, em março, em sua única
entrevista antes da Copa do Mundo. “É todo um contexto
em que ninguém tem peito para mudar nada. Porque, se
mudar, aí o país vem abaixo, você sabe disso. Já tentamos
mil vezes mexer com isso, agora desisti. Chega. Vou cuidar
um pouco de mim. A gente leva muita porrada, tem uma
hora em que é preciso dar um tempo.”308
Qualquer chance de Sócrates assumir uma posição de
influência desapareceu quando Branco e ele foram
acusados de ficarem bêbados no voo de volta da Europa.
Quando perguntado se ele se sentia sob o risco de ser
cortado da lista dos jogadores que iriam ao Mundial,
Sócrates respondeu de forma pouco encorajadora: “Ainda
não”.
A CBF organizou um mês de jogos amistosos com o objetivo
de dar a Telê todas as oportunidades para encontrar seu
melhor time. Mas os problemas no caminho para a Copa do
Mundo se encontravam tanto fora de campo quanto dentro.
O presidente da CBF foi a Brasília, no começo de abril, para
pedir dinheiro, porque não havia como financiar toda a
excursão. Ao final do mês, a CBF ainda não sabia onde a
seleção treinaria no México, porque ninguém tinha ido ao
país visitar hotéis e locais de preparação. A confederação
comunicou aos jogadores que tinha orçamento para levar o
time ao Mundial e trazê-lo de volta, mas não para pagar
prêmios em caso de vitória. Márcio Braga, o deputado
carioca que deveria chefiar a delegação ao México, desistiu
da posição no começo de abril, dizendo que o futebol estava
podre, “cheio de pederastas, bicheiros e paulistas”. As
coisas estavam tão ruins que Pelé, aos 46 anos, se ofereceu
para deixar a aposentadoria e ajudar o time.309
No campo, a situação não era muito melhor. A coxa de
Sócrates não melhorava e Zico não conseguia recuperar a
forma após a lesão no joelho. O Brasil venceu o Peru por 4 ×
0, a Alemanha Oriental e a Finlândia por 3 × 0. Mas Telê fez
muitas alterações no time e as atuações não foram
convincentes. Sócrates jogou uma hora contra o Peru, não
enfrentou os alemães e foi substituído depois de uma
partida ruim contra a Finlândia. No dia seguinte, Telê passou
a escalá-lo entre os reservas nos treinamentos e disse que
estava claro que ele “ainda não estava na melhor forma
física ou técnica”.310
A incerteza de Telê quanto ao time titular era evidenciada
pela oportunidade dada a dez jogadores estreantes nos
cinco primeiros jogos sob seu comando. Telê queria dar a
Sócrates todas as chances de se provar, mas o tempo
disponível estava acabando, e as experiências terminaram
em abril, quando o Brasil venceu a Iugoslávia por 4 × 2, em
Recife. Zico retornou ao time e marcou três gols, e pela
primeira vez em meses, pôde se sentir um sopro de
esperança. Sócrates ficou fora do time de novo, mas
sobreviveu à rodada seguinte de cortes que significou o
adeus de cinco jogadores à oportunidade de jogar a Copa,
incluindo Renato Gaúcho, que reagiu dizendo a Telê que
queria atropelá-lo.
Havia apenas um último amistoso antes da viagem ao
México, e o time que iniciou o jogo contra o Chile, em
Curitiba, era o que se imaginava que Telê pretendia escalar
para enfrentar a Espanha na estreia na Copa, dentro de três
semanas. Novamente, Sócrates não esteve entre os
titulares, e, novamente, Telê disse que ele não estava em
forma. Sócrates acabou jogando, mas pelo pior motivo
possível, depois que Zico torceu o joelho e teve de ser
substituído no intervalo. Os torcedores ficaram tão irritados
com o empate em 1 × 1 que jogaram pedras no ônibus da
seleção.
Os jogadores tiveram meio dia de folga antes de voar
para o México, e muitos se reuniram na casa de Sócrates,
no Rio, para um último churrasco. Ninguém estava satisfeito
com a CBF e ninguém acreditava na previsão das casas de
apostas de que o Brasil era favorito. Eles tentaram saborear
a última refeição antes da viagem, mas enquanto
relaxavam os nós das gravatas e esticavam as pernas no
avião, ainda em solo, chegou uma notícia bombástica:
Leandro tinha decidido deixar a seleção. O lateral tinha feito
as malas e estava na porta de seu apartamento, quando
disse a um amigo que o levaria ao aeroporto: “Eu não vou”.
Depois de tentar convencer Leandro a mudar de ideia, sem
sucesso, o amigo correu para o aeroporto para dar a notícia,
e Zico e Júnior entraram num carro e voltaram para
conversar com Leandro. Mas ele estava irredutível. Após
quase uma hora de apelos, as duas estrelas do Flamengo
retornaram ao aeroporto e Telê teve de viajar para o México
sem seu lateral direito titular.311
Leandro disse que o problema era seu joelho. Argumentou
que não aguentaria mais um mês de subidas e descidas
pela lateral do campo, e que gostaria de jogar como
zagueiro central, como fazia no Flamengo. Telê já tinha três
zagueiros muito capazes em Oscar, Edinho e Júlio César. O
caráter reservado de Leandro e o isolamento cada vez
maior do técnico impediram que eles conversassem sobre o
assunto. Rumores maliciosos trataram da amizade entre
Leandro e Renato Gaúcho, e muita gente pensou que
Leandro estava dando o troco a Telê por causa do corte de
seu melhor amigo.
Mais tarde, Sócrates classificaria a atitude de Leandro
como “talvez o mais bonito gesto público que eu vi nestes
cinquenta anos”, e considerou seriamente se juntar ao
boicote, mais por solidariedade a seu amigo do que por
discordância da decisão de Telê. Adotar uma postura tão
radical era algo muito tentador para Sócrates, e ele
admirava Leandro por ter a coragem de colocar a própria
felicidade acima de tudo. “O ato de Leandro é a maior inveja
que eu tenho na vida”, disse Sócrates. “Eu queria ter feito
aquilo.” Mas ele também sentia lealdade por Telê e seus
companheiros, e não queria perder o torneio ou magoar o
técnico que ainda admirava. Além de ter os próprios
problemas para resolver.
Fora de campo, Sócrates tomou a decisão de evitar atrair
atenção. Ele sabia perfeitamente que teria de se provar
novamente e só poderia fazer isso jogando e tendo
atuações importantes. Deu menos entrevistas e evitou
manifestar opiniões sobre temas controversos. Em um de
seus poucos comentários antes da viagem, tentou encontrar
aspectos positivos no caos dizendo: “Se da outra vez
fizemos tudo certo e perdemos, quem sabe agora que está
dando tudo errado, não podemos ganhar?”.312
As coisas começaram a melhorar um pouco para o Brasil e
para Sócrates pouco depois de chegarem ao México. Os
médicos finalmente descobriram a causa de seu problema
na coxa e passaram a tratá-lo com intensas sessões de
fisioterapia. Em questão de dias, ele passou a demonstrar a
serenidade e a confiança que não eram vistas fazia meses.
Sócrates substituiu Elzo no intervalo de um amistoso com o
Atlante, e o time melhorou imediatamente. Foi dele o gol da
vitória por 2 × 1, ao completar um cruzamento de Müller, e
se notou algum otimismo por uma atuação que poderia
mostrar o caminho, a ele e ao time, para o sucesso.313
Essa sensação acabou sendo reforçada três dias depois,
quando Sócrates foi igualmente decisivo no amistoso contra
o América. Novamente, ele entrou no segundo tempo e
conduziu um time que vencia por 1 × 0 ao placar de 4 × 0.
Sócrates foi titular no terceiro amistoso, contra a
Universidad de Guadalajara, e jogou bem na vitória por 3 ×
1, ainda que tenha demonstrado cansaço ao final da
partida. Foi suficiente para lhe garantir um lugar entre os
titulares contra o time júnior da UdG, em 29 de maio. O
Brasil venceu por 9 × 1. Sócrates tinha feito o bastante. Ele
seria titular na estreia contra a Espanha.
Capítulo 16
O gostoso é jogar bonito. Mas, quando isso não é possível, o jeito é jogar
para ganhar. E é exatamente isso que nós vamos fazer.
Sócrates

Quando Casagrande se casou, em outubro de 1985,


convidou Sócrates para ser seu padrinho. O convite foi
aceito com satisfação, mas, quando chegou o grande dia,
não foi a noiva que deixou todo mundo esperando. Uma
hora e meia depois que a cerimônia deveria ter começado,
Sócrates ainda não tinha chegado. O padre ficou
impaciente, depois irritado e, em seguida, disse ao noivo
que tinha outros compromissos. Afirmou ainda que, se
Casagrande quisesse se casar, deveria escolher outro
padrinho. Oscar assumiu o posto, a noiva beijou o noivo e
eles foram declarados marido e mulher. Bem depois de uma
da tarde, com mais de duas horas de atraso, Sócrates
apareceu, claramente alterado. “Espera aí”, ele disse: “Eu
tenho algo contra esse casamento… Ele não pode ser
consumado sem o padrinho”. Se a intenção era roubar a
cena, ele teve sucesso, antes mesmo que o noivo e vários
convidados fossem jogados de roupa na piscina.314
Uma das consequências de viver só para o momento é
que os momentos das outras pessoas não importam.
Sócrates fazia o que queria, quando queria, e as pessoas à
sua volta deveriam se juntar a ele ou sofrer em silêncio. E
quanto mais velho ele ficava, menos tempo tinha para
moderação ou restrições.
Era fácil sair impune dessas situações quando ele era um
dos rostos mais conhecidos e admirados do país. Mas,
agora, com o brilho de sua estrela já esmaecendo, ia se
tornando mais difícil. As posições baseadas em princípios
que ele assumiu como jogador e ativista passaram a ser
frequentemente substituídas por explosões de imaturidade
e isso criou um problema entre ele e alguns de seus amigos
mais próximos.
Sócrates foi como um irmão mais velho para Casagrande
em seus dois primeiros anos de clube, mas as coisas
mudaram à medida que Casagrande ganhou experiência e
foi perdendo a paciência. Ele se sentia frustrado pela rota
“semialcoólatra” trilhada por Sócrates ao longo da vida e os
dois se distanciaram no início dos anos 2000, depois de
Sócrates dizer que Casagrande tinha se vendido ao aceitar
trabalhar na TV Globo. Sócrates tinha pedido a Casagrande
que conseguisse um teste no canal alguns dias antes, mas
quando a Globo não topou, ele se voltou contra o velho
amigo e eles ficaram sem se falar por anos. Quando um
amigo em comum finalmente conseguiu reuni-los num
debate público, alguns anos mais tarde, Sócrates
novamente se atrasou mais de uma hora, enfurecendo
todos os envolvidos e aumentando o distanciamento que só
voltou a ser encurtado no final de sua vida.315
Casagrande sempre considerou Sócrates uma das figuras
mais importantes de sua geração — sem falar da
importância do amigo em sua própria vida. Mas também era
famoso por ser direto com as palavras e não se furtava a
dizer para Sócrates as verdades que os outros preferiam
evitar.
“Ele era um egoísta que fazia mal para o emocional das
outras pessoas”, disse Casagrande. “Não era um egoísta de
ferrar você. Não era um mau-caráter. Era um egoísta que,
emocionalmente, fazia mal para as pessoas.”316
O individualismo sempre foi uma das características
dominantes em Sócrates, mas as pessoas ao seu redor
simplesmente não o enxergavam em meio às brumas da
grandeza e da fama. A análise de Casagrande se deu depois
da morte de Sócrates, mas foi precisa e era especialmente
pertinente em relação àqueles tumultuados meses que
antecederam a Copa do Mundo de 1986. Sócrates era capaz
de tratar mal mulheres e amigos, e nem sempre foi o
melhor dos pais para seus meninos. Mas quando se tratava
de assuntos profissionais e coletivos, e não pessoais ou
individuais, ele era mais do que capaz de dominar seus
demônios.
Às vésperas da Copa, Sócrates não conseguia se livrar de
sua misteriosa lesão na coxa e seu lugar no meio de campo
foi ocupado por vários jogadores inexperientes. Mas mesmo
enquanto seu sonho de tentar conquistar um Mundial
parecia se dissipar, ele nunca se perturbou demais ou
perdeu o controle. Sócrates trabalhou duro para voltar ao
time e, de maneira exemplar, fez tudo o que podia para que
os jovens se sentissem à vontade.
“Dá pra saber quando um jogador está amargurado, de
mau humor, mesmo se ele não fala nada”, disse o lateral
Édson Boaro, companheiro de Sócrates no Corinthians e na
seleção. “Mas o Sócrates não era assim, era sempre
profissional. A maioria dos jogadores são egoístas, sempre
veem as coisas pelos seus pontos de vista, mas ele não. Ele
via o todo e não pensava só nele, mas sempre no grupo.
Sempre ajudava e participava com o time todo.”317
A Copa do Mundo de 1986 foi originalmente planejada
para acontecer na Colômbia, mas acabou transferida para o
México porque problemas financeiros e políticos obrigaram
os colombianos a desistir do evento. Entretanto, na
madrugada de 19 de setembro de 1985, o torneio esteve
em perigo por causa de um grave terremoto na Cidade do
México. Ao menos dez mil pessoas morreram e grande parte
da cidade foi destruída. Mesmo que o governo mexicano
insistisse que o Mundial seria realizado conforme o
planejado, havia muitas dúvidas sobre se seria correto
investir dinheiro em futebol enquanto centenas de milhares
de pessoas estavam desabrigadas e passando fome,
tentando reconstruir suas vidas.
O Brasil chegou à Cidade do México oito meses mais
tarde, mas os estragos ainda eram visíveis, e no caminho do
aeroporto ao hotel, Sócrates não pôde deixar de notar os
prédios destruídos, o entulho espalhado pelas ruas, as
calçadas todas esburacadas. Ele instantaneamente sentiu
solidariedade pelo povo mexicano e desejou fazer algum
tipo de declaração. Refletiu sobre algumas ideias, mas não
chegou a nenhuma conclusão sobre o melhor a fazer. Então,
algumas noites depois, deitado em seu quarto em frente à
televisão ligada, ele viu uma menina usando uma tiara. Foi
um “momento eureca”. Ele escreveu algumas palavras
numa meia e a amarrou na cabeça para ver como ficava. O
protótipo era bom o suficiente e, no dia seguinte, ele
procurou alguém que pudesse confeccionar uma faixa com
aquela mensagem.
Os dizeres que ele escolheu para a estreia contra a
Espanha foram: México sigue en pie [“México, siga em pé”],
e os mexicanos apreciaram seu gesto. Seus companheiros,
no entanto, não tinham sido avisados de nada. Sócrates não
disse a ninguém o que planejava fazer. Nem a Zico, nem ao
capitão Edinho, nem mesmo ao seu melhor amigo,
Casagrande. Ele colocou a faixa na cabeça quando estava
no túnel, subindo para o gramado.
As fotografias de Sócrates com a faixa na testa, abaixo do
cabelo despenteado, tornariam-se algumas das imagens
mais icônicas da história das Copas do Mundo. Seu rosto
barbado e carrancudo remetia à famosa foto de Che
Guevara e ganhou destaque numa carreira que já era
repleta de registros fotográficos emblemáticos.
A expressão carrancuda que ficou consagrada se devia
em parte ao problema que quase atrasou o começo do jogo
e ameaçou arruinar o impacto que Sócrates desejava
causar. Ele sabia que as câmeras o focalizariam durante o
hino nacional e que as palavras escritas na faixa gerariam
manchetes. Mas depois de uma longa espera, os
organizadores tocaram a música errada, o “Hino à
bandeira”, que quase nenhum jogador sabia cantar.
Sócrates rapidamente percebeu o que estava acontecendo
e ficou indignado. Ouvir o hino nacional antes de todos os
jogos o inspirava e, despojado desse prazer, ele balançou a
cabeça em reprovação e não esperou a música terminar. Os
jogadores do Brasil se dispersaram prematuramente para
fazer o aquecimento. Foi um início pouco auspicioso para a
última Copa do Mundo de Sócrates.
Para a sorte dele e da seleção, foi a única coisa que não
funcionou a favor dos brasileiros. A Espanha teve um gol
perfeitamente legal anulado quando o árbitro não viu que a
bola chutada por Míchel tinha quicado dentro do gol, depois
de bater no travessão. E Sócrates aproveitou um chute de
Careca, que também se chocou contra o travessão, para
cabecear, sem goleiro, e marcar o gol da vitória.
Num aceno à premonição que havia tido em 1982,
Sócrates prometeu marcar o primeiro e o último gol do
Brasil no torneio, e causou um alvoroço muito maior nos
dias seguintes ao jogo, sugerindo que a Copa do Mundo
estava arranjada para favorecer os maiores times. Ele disse
que o gol de Míchel tinha sido “totalmente legítimo” e
criticou o árbitro que não o validou. Sua afirmação de que o
México, anfitrião, e os países com maior tradição no torneio,
como o Brasil, tinham tratamento especial provocou um
grande escândalo e levou a CBF e a fifa a abrirem
investigações. Sócrates manteve sua posição, dizendo, com
certa razão, que as maiores seleções costumam ter para si
as decisões mais favoráveis.
“Sobre o jogo Brasil e Espanha, eu disse que o juiz e os
bandeiras não estavam bem colocados e poderiam ter dado
o gol. Depois, afirmei que times como Corinthians,
Flamengo, Juventus de Turim e outros não são campeões
apenas por terem os melhores times; eles têm mais torcida,
mais força política, mais representação. Com relação à
Copa, é obvio que há equipes cuja permanência interessa à
competição. Para isso é que existem cabeças de chave.
Depois da primeira fase, a coisa fica mais aleatória — não
há como controlar, todas as partidas são eliminatórias.”318
A controvérsia se arrastou por dias, e a CBF terminou
proibindo jogadores de fazer comentários políticos, sob
pena de serem enviados para casa. João Havelange, o
brasileiro que presidia a fifa naquela época, teria ligado
para a CBF e pedido que a confederação controlasse Sócrates,
como se essa fosse uma opção viável. Sócrates não deu
mais entrevistas depois do incidente, mas somente em
setembro a justiça esportiva brasileira o absolveu da
acusação de ter desobedecido os regulamentos internos
que proibiam declarações políticas.319
Escândalo à parte, uma das coisas mais notáveis sobre
Sócrates no período foi sua relativa quietude. Ele não deu
nenhuma grande entrevista nos dois meses anteriores ao
Mundial, e mesmo depois de o torneio ter começado, evitou
falar com os repórteres após os treinamentos. Em nenhum
momento deu detalhes sobre suas razões para a faixa na
cabeça ou o significado da mensagem, e claramente não
estava tão confortável quanto na Espanha, quatro anos
antes.
Em parte, isso acontecia por causa da lesão na coxa e a
insegurança a respeito de sua vaga no time. Os meses de
dúvida sobre sua titularidade mexeram com sua confiança.
Outra razão era a desunião no elenco e sua incapacidade
para fazer algo a respeito. Leão, reserva, manteve sua
postura arrogante; Casagrande reclamou aos quatro ventos
por ter sido substituído após os dois primeiros jogos — ele
sentia que Telê dava preferência a seus jogadores favoritos,
Sócrates e Zico entre eles; e Edinho, que recebeu a faixa de
capitão em cima da hora, irritou muita gente ao revelar que
Serginho e Éder tinham recebido dinheiro durante a Copa da
Espanha para comemorar os gols em frente às placas de
publicidade. Oscar, que seria o capitão, perdeu seu lugar
depois de liderar um grupo que reclamou da preparação, e o
elenco todo se incomodou com a recusa da CBF em discutir os
prêmios em dinheiro e a comunicação de que resolveria o
problema em outro momento.320
Em um exemplo bastante revelador dos problemas
existentes ao longo da preparação para a Copa, o substituto
de Leandro, Josimar, não jogava desde o começo de março,
quando foi chamado por Telê. O lateral do Botafogo se
esqueceu de trazer suas próprias chuteiras e participou dos
primeiros treinos com um par emprestado pelo cardiologista
do time.321
Por estar fora do país, ou machucado, na maior parte dos
dois anos anteriores, Sócrates mal conhecia alguns dos
jogadores mais jovens do elenco, e havia uma clara divisão
entre a velha guarda — que já tinha passado de seu auge —
e os novatos inexperientes que queriam se estabelecer.
Estavam todos disputando ferozmente o mesmo espaço e
as tensões criaram uma atmosfera ultracompetitiva na
concentração. A frequência de atritos era praticamente
diária, levando a Folha de S.Paulo a publicar uma manchete
que dizia: “A seleção treinou sem nenhuma briga”.
Em outros tempos, Sócrates teria interferido para
convencer os companheiros a jogarem uns pelos outros,
mas, dessa vez, a desunião não era algo que ele seria capaz
de mudar com algumas palavras inspiradoras, e ele não
percebia que suscitava nos companheiros o mesmo
respeito. Tinha preocupações suficientes, como a de entrar
em forma a tempo, e ter recebido a camisa número 18 foi
uma indicação clara de que não havia nenhuma garantia de
que estaria no time titular.
Quando os jogos começaram, Sócrates ficou um pouco
mais relaxado e assumiu com prazer o papel de mentor dos
mais jovens, muitos dos quais não faziam ideia do que era
representar o Brasil numa Copa do Mundo. Oito dos onze
titulares contra a Espanha estavam em seu primeiro
Mundial e Sócrates sabia exatamente que tipo de pressão
enfrentavam. Ele tomou a iniciativa de chamá-los para
conversas frequentes durante a primeira fase, na esperança
de que uma voz calma e reconfortante os ajudaria a lidar
com a competição.
“Ele sempre se preocupava em falar para a gente não
cometer erros”, disse Elzo, o estreante meio-campista de 25
anos. “Vinha perto da gente quando tínhamos a bola nos
pés e dizia o que a gente tinha que fazer, nos dava
confiança principalmente no início do jogo. Sempre dizia:
‘Não vamos cometer erros’. Ele queria que a gente
começasse bem, dando os primeiros passes de modo
simples, e só depois começasse a fazer passes mais longos.
Era tipo um pai protetor. Ajudava muito.”322
O grupo conseguiu se unir, sofreu um pouco para
conseguir uma vitória por 1 × 0 sobre a Argélia, e depois
bateu a Irlanda do Norte por 3 × 0, no jogo que ficou
marcado pelo gol de fora da área de Josimar e pela primeira
aparição de Zico no torneio, substituindo um excelente
Sócrates na metade do segundo tempo.
Mas as tensões dentro do elenco aumentaram após as
oscilações nas duas primeiras partidas. Casagrande e
Alemão foram fotografados sem camisa fora da
concentração depois de um jogo, e Alemão foi substituído
para dar lugar a Müller depois da vitória sobre a Argélia. Ele
não ficou feliz, assim como Zico, que queria jogar desde o
início. A incapacidade do Brasil de dominar os primeiros
encontros levantou todos os tipos de questionamento a
respeito do sistema tático e Telê quase brigou com Gilberto
Tim, que ficou ao lado dos jogadores ao opinar que o técnico
tinha tido uma postura muito conservadora. Os jogadores
também achavam que Tim havia errado em seus métodos
de treinamento, exigindo demais dos jogadores mais velhos,
e quando Casagrande fez um comentário nesse sentido, Tim
o agarrou e ambos quase trocaram socos. Sócrates e Falcão
foram excluídos de um treino por ignorarem as ordens de
Telê e fazerem as coisas como queriam, um comportamento
que enfureceu o treinador. Sócrates imediatamente recuou,
mas Falcão saiu do time e nem mesmo ficou no banco de
reservas nos jogos restantes.323
Com a dupla do São Paulo, Müller e Careca, iniciando o
jogo pela primeira vez contra a Irlanda do Norte, o Brasil
pareceu mais perigoso e foi igualmente cirúrgico no
primeiro jogo eliminatório, contra a Polônia. A seleção
brasileira começou mal e os poloneses chutaram duas bolas
na trave nos primeiros 25 minutos, mas, para confirmar a
tese de Sócrates sobre o favorecimento aos grandes, outro
erro de arbitragem ajudou a seleção a encontrar o caminho
da vitória. O próprio Sócrates converteu um pênalti
duvidoso depois de meia hora de jogo, e outros três gols no
segundo tempo selaram a vitória mais convincente do
Brasil.
A quarta vitória em quatro jogos significou que a seleção
seguiria em Guadalajara, a cidade que sempre foi sua casa
longe de casa. Na Copa do Mundo de 1970, o Brasil jogou
cinco partidas lá, antes de viajar para a Cidade do México
para disputar a final. Desta vez, o encontro de quartas de
final, contra a França, ocorreu no mesmo estádio Jalisco
onde a seleção jamais tinha perdido e na auspiciosa data de
21 de junho, exatos dezesseis anos depois da atuação
histórica nos 4 × 1 sobre a Itália, quando o Brasil ergueu a
taça Jules Rimet pela terceira vez.
Sócrates entrou no gramado com uma faixa na cabeça em
que se lia: Violencia No [“Violência não”], mostrando-se
uma presença imponente no que foram os mais
emocionantes 45 minutos da Copa do Mundo até então. Ele
obrigou Joël Bats a uma grande defesa aos quinze minutos,
e viu Müller chutar uma bola na trave depois de um ótimo
passe cruzado de Careca — que havia recebido um longo
lançamento de Sócrates. O próprio Careca tinha colocado o
Brasil à frente no placar aos 17 minutos, mas Michel Platini
empatou no final do primeiro tempo, aproveitando um
cruzamento desviado.
O segundo tempo foi igualmente entusiasmante, mas não
houve gols, e coube a Zico o maior destaque. O astro do
Flamengo tinha pedido para iniciar o jogo, mas Telê não
acreditava que seu joelho suportaria os noventa minutos.
Zico entrou no lugar de Müller quando faltavam dezoito
minutos para o fim da partida, e fez sua presença ser
sentida quase imediatamente, com um passe perfeito em
profundidade para Branco. O lateral que entrava na área
tentou driblar Bats, mas foi derrubado e o árbitro romeno
apontou a marca do pênalti.
Sócrates tinha cobrado o primeiro pênalti para o Brasil, na
rodada anterior, contra a Polônia, mas Zico era o batedor
oficial e queria a responsabilidade para si. Enquanto os
brasileiros celebravam a decisão do árbitro como se fosse
um gol, Sócrates se aproximou do amigo e disse: “Vai, Galo,
é seu”.324
“Deixa comigo”, Zico respondeu.
A cobrança de Zico foi baixa e na direção do canto
esquerdo do goleiro, mas Bats espalmou e o placar seguiu
em 1 × 1. O jogo ficou lá e cá até o final, e a igualdade
permaneceu durante a prorrogação, quando ambos os times
mostraram cansaço. A partida tinha começado ao meio-dia,
sob forte calor e Sócrates foi um dos que mais se cansaram
com o passar dos minutos. Ele teria sido substituído se
Júnior não levasse uma pancada e precisasse sair do jogo na
prorrogação, mas ainda foi capaz de subir ao ataque nos
segundos finais e quase alcançou a glória ao se esticar para
completar um cruzamento que passou na frente do gol. O
jogo terminou empatado, mas o drama estava longe do fim.
Vieram os pênaltis.
Numa noite úmida no começo de 1976, Sócrates estava
exausto enquanto caminhava até a marca do pênalti no
estádio Moisés Lucarelli, em Campinas. Ele era o último dos
cinco cobradores do Botafogo, e, se fizesse o gol, o Torneio
Vicente Feola, de pré-temporada, seria conquistado. Nas
arquibancadas, o pai de Sócrates sofria e rezava.
Seu Raimundo ainda não tinha visto o filho jogar em uma
final profissional e a forma como Sócrates batia pênaltis o
deixava nervoso. Não era só sua atitude meio
desinteressada, como a de alguém que estava indo pegar
uma cerveja. Era o estilo, com a paradinha, a estratégia de
fazer uma pausa antes do chute e escolher o canto depois
de o goleiro se mover para um lado. O plano funciona
quando o goleiro se mexe, mas pode ser um desastre se ele
ficar parado. Sócrates fez o gol naquela noite contra a Ponte
Preta e o Botafogo foi campeão, mas seu pai não deixou de
dizer o que pensava.
“Ele bate com paradinha, não sabe bater de outro jeito. E
se o goleiro não se mexer, ele não consegue chutar forte”,
disse seu Raimundo. “Então ele foi bater, o Carlos escolheu
um canto e ele chutou no outro. Depois do jogo, eu disse a
ele: ‘Você não vai mais bater pênaltis’.”325
Sócrates ignorou os conselhos do pai e continuou batendo
pênaltis. Deixou de fazer a paradinha durante algum tempo,
mas logo voltou ao seu truque, e, nos anos 1980, obteve
confiança suficiente para diminuir a caminhada até a bola
para apenas um passo. Era divertido, e aumentou a mística
em torno dele, mas seu pai sofria palpitações quando
acontecia.
Quando Telê fez a lista de cobradores ao final da
prorrogação, olhou para Sócrates e disse que ele seria o
primeiro. Sócrates sempre bateu o último pênalti e
imediatamente reclamou.
“Deixa eu bater o último”, disse.
“Não”, Telê respondeu. “Eu quero que você vá primeiro.”326
Sócrates gostava de ser o último por duas razões. Num
nível pessoal, isso permitia que ele estudasse a reação do
goleiro aos quatro primeiros pênaltis. Observando o goleiro,
ele conseguia uma ideia melhor de quando e para onde o
rival mergulhava, e tomava decisões de acordo com o que
via. A segunda razão tinha a ver com a responsabilidade
coletiva que tanto apreciava. Ele se sentia bem com a
pressão por ser o último batedor e gostava de fazer sua
parte ao ajudar na preparação dos que cobravam antes
dele.
“Batendo por último, você consegue ajudar os outros
porque a responsabilidade é sua”, ele disse. “Na cabeça de
todo mundo, o último é quem vai decidir se o time ganha ou
perde. Se você é o primeiro, porra, se faz o gol já se livrou;
se perde, fodeu o time! Essa é a reação de todo mundo,
como é que você vai participar ajudando no resto das
cobranças?
“[Quando você é o último] Dá para ficar perto do cara
dando uma força dentro do possível. Tem uns que estão
mais nervosos, outro está mais tranquilo, então você faz
uma brincadeirinha com ele, descontrai… Quebra um pouco
a pressão em cima do cara. Quando você é o primeiro,
acabou, de qualquer jeito acabou, não tem jeito.”327
Sócrates achou que Telê estava traumatizado com o erro
de Zico, e o havia escolhido para ser o primeiro na disputa
decisiva porque ele, Sócrates, era o que havia de mais
próximo de uma garantia de gol no time brasileiro. Sócrates
tinha perdido apenas quatro pênaltis em quatro anos no
Botafogo, e só três em quase quarenta cobranças nos seis
anos no Corinthians.
Esse excelente retrospecto foi construído sobre o que
Sócrates entendia ser um jeito infalível de cobrá-los. A
aproximação podia ser com apenas dois ou três passos, com
um leve movimento de corpo quase imperceptível para
fazer o goleiro se mexer. Quando o goleiro mergulhava, ele
simplesmente rolava a bola para o outro canto. Como o
goleiro já tinha tomado uma decisão, Sócrates nunca
precisava se preocupar em fazer uma cobrança muito
colocada ou muito forte. E, embora ele olhasse para o
goleiro e não para a bola, essa estratégia se mostrava
menos problemática porque ele chutava com precisão.328
Contra a França, Sócrates fez exatamente o mesmo que
contra a Polônia: deu dois passos adiante, parou e bateu no
canto direito alto do rival. O goleiro polonês foi para o lado
errado e a bola entrou, mas o francês Bats havia feito sua
lição de casa — ele tinha visto a cobrança de Sócrates
alguns dias antes e se recusou a escolher um canto. Quando
o chute veio, Bats foi para a direita e espalmou a bola. O
Brasil já estava em desvantagem.329
Os seis jogadores seguintes, incluindo Zico, acertaram
suas cobranças. E então Michel Platini, no dia de seu
trigésimo primeiro aniversário, foi para a cobrança e chutou
por cima, para trazer a seleção de volta à disputa. Com o
empate na contagem, cada time ainda teria uma cobrança.
O zagueiro Júlio César vinha sendo o melhor brasileiro no
torneio, de modo que era provavelmente inevitável que ele
chutasse a bola na trave e devolvesse a chance da vitória
aos franceses.
Com a missão de decidir o jogo, o meio-campista Luis
Fernandéz caminhou lentamente para a área, com a cabeça
baixa. Carlos tentou desconcentrá-lo ao pisar na marca do
pênalti no caminho para o gol, mas Fernandéz estava
imperturbável. Carlos escolheu um lado, a bola entrou no
outro, e o Brasil foi eliminado. Pela segunda vez
consecutiva, a geração de ouro do Brasil falhou e a última
chance de glória na Copa do Mundo foi desperdiçada.
O momento post mortem se concentrou nos pênaltis
perdidos por Zico e Sócrates, os dois cobradores regulares e
jogadores mais talentosos do Brasil. Especialistas
ofereceram explicações, muitos deles argumentando que o
astro do Flamengo não estava apropriadamente aquecido e
ainda não tinha se habituado ao ritmo do jogo. Sócrates
achou que essa análise era ridícula e defendeu o amigo por
ter tido a coragem de bater um pênalti logo depois de
entrar em campo.
“Pênalti só perde quem bate”, ele disse. “Dizem que Zico
estava frio. Pô, que frio! Para bater pênalti você precisa
estar quente? Se eu levantar da cama e for bater pênalti,
faço 99 e erro um.”330
Quando o assunto foi seu próprio erro, Sócrates mostrou-
se igualmente irredutível.
“Agora vão dizer que bati de forma displicente, só porque
não marquei o gol. Cobrei como sempre faço, só que desta
vez o gol não saiu. Contra a Polônia, consegui fazer,
começou a goleada e tudo foi festa. Todo mundo está
sujeito a errar uma cobrança de pênalti. Só perde quem
está dentro de campo e é escalado para bater. Neste jogo,
ou o goleiro francês foi feliz ou eu, infeliz. Só acho que todo
mundo tem o direito de errar e não posso ser crucificado.”331
Sócrates alegou ter experimentado a mesma sensação de
derrota vivida na Espanha, mas o fato é que nenhum dos
jogadores veteranos se sentiu da mesma forma que quatro
anos antes, o que também era verdadeiro quando se
tratava dos torcedores, que não estabeleceram a mesma
relação com a seleção e não tampouco esperavam que ela
vencesse. O time foi reunido tardiamente, com os testes e
as mudanças acontecendo até as vésperas da estreia. Os
torcedores não se conectaram com os jogadores, que, por
sua vez, não tiveram a chance de mostrar a mesma paixão
testemunhada em 1982. Os principais entre eles, Sócrates,
Zico, Falcão, Júnior, tinham todos já ultrapassado o próprio
auge e os jovens ainda não haviam se estabelecido. De
forma mais evidente, a seleção não jogou com a mesma
alegria do Mundial anterior e a saída precoce, num
momento de crise no Brasil, foi apenas mais uma entre
tantas decepções, uma metáfora para uma promessa não
cumprida. No final, a Copa do Mundo de 1986 ficaria na
história como um torneio para ser esquecido, como os de
1966 e 1974. Livros não foram escritos sobre ela, não se
falou em grandes aventuras ou fracassos gloriosos, e muitos
jogadores simplesmente caíram no esquecimento.
Entretanto, em muitos aspectos, a eliminação foi mais
injusta do que a derrota para a Itália quatro anos antes. O
Brasil não perdeu por causa de repetidos lapsos defensivos
ou por uma estratégia equivocada, e não existiu uma figura
como Paolo Rossi que, na maior atuação de sua vida,
acabou com as chances do Brasil. A seleção não se viu atrás
no placar em nenhum jogo da Copa do México. Foram
quatro vitórias, um empate e uma eliminação invicta, com
dez gols marcados e apenas um sofrido, e desempenho
melhor que o das quatro seleções semifinalistas. O Brasil
também contou com a melhor defesa, com Carlos ficando
401 minutos sem sofrer um gol, quase alcançando o recorde
de 445 minutos de Gordon Banks em Copas do Mundo. Um
dos pênaltis cobrados pelos franceses bateu na trave, nas
costas de Carlos e entrou no gol. Desta vez, a sorte
simplesmente esteve contra eles. O Brasil de 1986 pode
não ter sido o cintilante Brasil de 1982, mas ficou longe de
passar vergonha.
“O time era diferente”, disse Sócrates. “Foi mais ou menos
formado na última semana, tinha muitas deficiências, era
um time mais fraco. Então, talvez a expectativa fosse um
pouco diferente. A gente estava se divertindo muito mais,
claro, no time de 1982. Nesse do México, a gente tinha mais
preocupações — consertar aqui, consertar ali e tal. O time
foi se estruturando durante a Copa, mas o grau de
envolvimento era diferente. Ao mesmo tempo, eu achei
também que, na Copa de 1986, o melhor jogo nosso foi o
que nós perdemos, não é?”332
“Estou triste, mas não tenho nenhum arrependimento e
nem me sinto frustrado pelo que aconteceu em 1982 ou
1986. O que aconteceu com a gente, aconteceu com os
húngaros em 1954, com os holandeses em 1974 e 1978, e
mesmo com o Brasil em 1950 e 1954. Não é incomum que
grandes jogadores e grandes técnicos não ganhem os
títulos que merecem.”
Provavelmente nada ilustrou melhor a mudança no humor
geral do que a reação dos jogadores à derrota. Em 1982,
eles concordaram que dividiriam a responsabilidade,
reuniram-se e beberam. Em 1986, cada um tomou seu
caminho.
“Depois do jogo contra a Itália, a gente bebeu toda a
cerveja do hotel, não sobrou uma lata”, lembrou Júnior. “Foi
um momento de consolação para nós, depois de passar
tanto tempo juntos. Foi um festival de lágrimas. Quando
perdemos para a França, éramos casados e fomos jantar
com nossas esposas, o Sócrates, o Zico, o Edinho e eu. As
mulheres ficaram conversando. Sabíamos que tinha sido a
nossa última chance.”333
O pênalti perdido foi o último chute de Sócrates pela
seleção. Ele sabia, antes de o torneio começar, que viveria
seu canto do cisne e, apesar de nunca ter acreditado que o
time montado às pressas venceria, ao menos esperava sair
da Copa com sensações positivas. Em vez disso, suas
memórias mais duradouras foram de sofrimento. Ele sofreu
tentando garantir um lugar no time. Sofreu com a dor da
lesão na coxa. Sofreu pelo amigo Zico. Sofreu nas cobranças
de pênaltis. E ele sofreu por Telê, que entrou no vestiário
após o jogo contra a França e soube que seu pai, o senhor
João Veríssimo, teve um ataque cardíaco no Brasil.
Como sempre, Sócrates quis deixar a derrota para trás o
mais rápido possível, e impôs a si mesmo o desafio de
entrar em forma e se motivar para o que inevitavelmente
seria uma lenta caminhada até a aposentadoria. Ele queria
se estabelecer no Flamengo e retribuir a confiança que o
clube havia depositado nele, mas suas costas doíam e ele
podia sentir o desgaste de tantos anos começando a cobrar
seu preço. Pelo lado bom, também conseguia ver o ilimitado
potencial da cidade maravilhosa. Mais diversão o
aguardava.
Capítulo 17
Sempre achei que o Magrão tinha parado cedo demais. Ele criou uma ideia
utópica sobre a medicina e não percebeu como seria difícil se desligar
assim de uma atividade que exerceu por tanto tempo. Eu sempre soube
disso e ele está descobrindo agora.
Zico

Em 29 de julho de 1986, Sócrates se submeteu ao que


deveria ser uma cirurgia de rotina para reparar uma hérnia
de disco. A operação durou quatro horas, porque o estrago
era mais sério do que os médicos pensavam. Quando o
viram por dentro, eles mal podiam acreditar que Sócrates
tinha conseguido jogar por tanto tempo com lesões tão
debilitantes.
A cirurgia o deixou fora de ação por quatro meses, tempo
que ele passou lendo, bebendo e fazendo campanha em
favor de candidatos da eleição que se aproximava. Já era
novembro quando ele voltou a estar em condições de jogar
novamente, e, quando o fez, 132 dias depois de perder o
fatídico pênalti contra a França, foi contra o Goiás em uma
atuação bastante convincente.
Num dia muito quente em Goiânia, ele deu um passe
perfeito para Kita marcar o primeiro gol. Mais tarde, aos 26
minutos do segundo tempo, quando Bebeto se preparou
para cobrar uma falta, Sócrates lhe disse: “Deixa comigo, é
meu último chute”. E colocou a bola no ângulo, antes de
sair aplaudido.
Os resultados do Flamengo antes do Natal foram
irregulares, mas, como se tratava de Brasil, o Campeonato
Brasileiro de 1986 ainda continuaria em 1987 e o time
acabou ficando entre os dezesseis classificados — antes de
perder o confronto de dois jogos, pelas oitavas de final,
contra o Atlético Mineiro, em fevereiro. A eliminação foi um
baque para Sócrates, que sonhava vencer seu primeiro
título nacional e esperava que aquele fosse o ano em que
ele conseguiria ter uma boa sequência de jogos para
retomar sua melhor forma.
Mas enquanto Sebastião Lazaroni em público destacava
sua importância para o time no torneio estadual que se
aproximava, Sócrates mantinha nos treinamentos uma
atitude apática que irritava o treinador, efeito idêntico ao
que provocava com sua tendência de passar tempo demais
perambulando pelo círculo central durante os jogos. A
cirurgia nas costas tinha sido um sucesso, mas a dor e a
rigidez no local nunca desapareceram totalmente. Sócrates
foi sincero com Lazaroni e explicou que precisava diminuir o
esforço em determinadas ações, como a marcação. Assim
teria mais liberdade para fazer o que sabia de melhor: criar
jogadas de ataque. Ele não conseguia se mover como antes
e Lazaroni começou a utilizá-lo como substituto, quando o
time precisava de uma injeção de criatividade.
Sócrates e Lazaroni não mantinham um bom
relacionamento e o jogador passou a evitar o clube sempre
que podia. Contra a vontade do Flamengo, Sócrates
começou a voar para São Paulo com frequência cada vez
maior após os jogos realizados aos domingos, para voltar
apenas três ou quatro dias depois. Lazaroni decidiu que a
conhecida baixa resistência de Sócrates havia se reduzido
ainda mais, a ponto de impedi-lo de atuar por noventa
minutos, e ele não jogou por mais de meia hora, sempre
saindo do banco, em nenhuma das quatro primeiras
partidas da temporada de 1987.
“Ele ficou de fora por conta de sua condição física”, disse
Lazaroni. “Sócrates queria passar a segunda, a terça e a
quarta-feira em São Paulo, e depois fazer um treino light na
quinta, antes de jogar no sábado ou no domingo. Isso é
impossível para um jogador profissional. Talvez uma vez ou
outra, quando um atleta tem que resolver algum problema
pessoal, mas com ele acontecia constantemente e isso
causava o conflito entre a gente.
“Talvez eu não tenha sido claro o suficiente para
convencê-lo a mudar seu comportamento, mas ele tinha
esse problema pessoal que o estava afetando, uma
separação é sempre difícil. A gente discutia muito sobre
isso. Cara, existem dois Sócrates e eles estão em conflito.
Um era o craque nos gramados e o outro era o não muito
craque fora do campo. Existia um grande conflito entre os
dois, e eu questionava isso e queria que ele pensasse sobre
o assunto, mesmo estando no final da carreira. Eu queria
que ele entendesse que para o Sócrates que era o grande,
que triunfava dentro dos campos, para que ele mostrasse o
seu melhor, teria que superar o Sócrates que existia fora
dos campos.”334
Sócrates, entretanto, acreditava que seus problemas se
originavam da lesão — “Eu não consigo girar, me sinto
como um navio”, ele contou a Zico — e sugeriu a Lazaroni
que usasse Zinho, futuro jogador da seleção e campeão do
mundo em 1994, nas funções defensivas que o liberariam
para um papel mais ofensivo. Mas Lazaroni achou que
Sócrates estava tentando passá-lo para trás e o manteve
fora do time. A impressão de Sócrates era a de que estava
sendo punido por ser honesto.
“Aquela situação era para mim um misto de injustiça e
traição pela forma como nasceu”, Sócrates declarou. “Se eu
não tivesse colocado nada sobre as minhas condições
físicas, jamais teriam tido coragem de me tirar do time.”
Outros jogadores não teriam falado nada sobre suas
lesões, ele acreditava, e seguia pensando que era bom
demais para ficar no banco do time.335
Seus companheiros concordavam com essa visão e o
queriam na equipe. Numa repetição da situação vivida dez
anos antes no Botafogo, seus colegas não se importavam
que ele estivesse em forma, pois sabiam que Sócrates ainda
era capaz de momentos de magia que poderiam
transformar jogos difíceis em importantes vitórias.
“Sócrates não era um jogador para se deixar no banco de
reservas”, disse Leandro. “Se ele não estava em forma,
tinha que treinar até que entrasse em forma de novo. Não é
que ele tinha problemas em ficar sentado no banco de
reservas, ele ficava sem problemas, mas eu percebia que
isso era doloroso para ele. E vê-lo fora de campo doía em
mim também.”336
Depois das quatro aparições como substituto em fevereiro
e março, a gota d’água veio em Itaperuna, uma pequena
cidade ao norte do Rio, onde o Flamengo foi enfrentar o
Porto Alegre. Sócrates ficaria na reserva e, quando Lazaroni
terminou a preleção no hotel, ele indagou calmamente, bem
ao seu estilo:
“O que você entende por justiça?”, perguntou ao técnico.
“Lazaroni disse que ele não jogaria”, relembrou Leandro.
“E ele lançou uma pergunta que deixou o Lazaroni meio
chocado. Eu não lembro bem o que ele disse, mas demorou
para responder e, no final, ele só murmurou alguma coisa.
Mas foi meio surpreendente. Ele ficou vermelho ao
responder, e o Sócrates disse: ‘Obrigado’.”337
E foi isso. O pequeno Porto Alegre colocou o Flamengo na
roda e, embora o time tenha melhorado quando Sócrates
entrou — o Flamengo perdia por 2 × 0, já aos onze minutos
do segundo tempo —, sua participação não foi suficiente
para mudar o jogo. Sócrates não estava contente, e, quando
o ônibus parou num posto de gasolina na volta para o Rio,
ele comprou uma garrafa de uísque. Lazaroni não estava no
ônibus, mas ficou sabendo e o desafiou.
“Eu disse a ele que aquilo não aconteceria de novo. Mas
ele mudava de assunto. Não queria enfrentar esse tema.”338
A relação entre os dois ficou insustentável e alguns dias
depois, em 16 de março de 1987, Sócrates decidiu que não
dava mais. Ele participou de uma leve sessão de
treinamento na Gávea e, ao caminhar para a saída do
campo, tirou suas chuteiras e as atirou num cesto de lixo. ‘É
isso”, anunciou. “Para mim, deu. Vou me aposentar.”
Dos 67 jogos que o Flamengo fez em 1986, Sócrates
atuou em apenas treze e fez dois gols. No total, ele jogou
vinte vezes pelo clube, com cinco gols. Ele e Zico jogaram
juntos em apenas três ocasiões, e em só um jogo oficial, a
vitória por 4 × 1 sobre o Fluminense.339
Lazaroni tratou a partida de Sócrates com tranquilidade,
dizendo que ele não estava física, técnica e
psicologicamente preparado para jogar futebol de primeiro
nível. Ficou satisfeito por se livrar de um jogador que tinha
prometido muito e entregado pouco. Sócrates, àquela altura
já cansado das idas e vindas e aliviado por ter tomado uma
decisão, optou por não entrar em discussões, mas explicou
sua atitude aos perplexos torcedores.
“Tenho consciência de que posso ser titular do Flamengo.
Ele, não. O que me segurava era jogar. Cheguei à conclusão
de que, com essa comissão técnica, nunca jogaria. Se não
posso jogar, não posso também fazer jus ao salário que
recebo. É uma questão de ter uma posição crítica.”340
“Sei que meu padrão de vida cairá sensivelmente.
Começarei a trabalhar como médico residente,
possivelmente na Ilha do Fundão, o mais rápido possível.
Estou preparado psicologicamente para este reinício de
vida. Não me faltam forças para superar o que terei pela
frente. A começar, os estudos, já que há muito tempo não
leio nada sobre medicina. O que me auxiliará neste período
de estágio é um contrato de dois anos que fiz com a Topper
há cerca de oito anos, já pensando no dia em que trocasse o
futebol pela medicina.
“O importante é estar bem com a minha consciência. Não
poderia continuar a receber altos salários sem merecer.”341
Na verdade, Sócrates já pensava havia algum tempo em
se aposentar. Ele sempre disse que pararia de jogar quando
não estivesse mais desfrutando e esse momento tinha
chegado. Suas dores nas costas eram mais ou menos
constantes e ele não tinha mais capacidade de competir
com os jovens nos treinamentos e jogos.
Sócrates odiava a concentração, em que, no Flamengo,
dividia um quarto com quatro ou cinco jogadores, e um
banheiro com quase dez. Até poderia lidar com essas
situações se realmente quisesse, mas o fato é que não
queria. Ele não tinha disposição para treinar, sentia-se
entediado e num beco sem saída, e ser colocado na reserva
lhe deu a desculpa que procurava para sair seis meses
antes do final do contrato.342
A natureza abrupta de sua aposentadoria o impediu de
cumprir uma antiga promessa. Sócrates sempre disse que,
no dia em que encerrasse a carreira, interromperia o treino
e colocaria um barril de chope no meio do campo, para que
todos pudessem celebrar sua retirada.343
Em vez disso, deu seu uniforme de presente ao roupeiro e
não olhou mais para trás.
Paulo Roberto Falcão costuma dizer que jogadores de
futebol morrem duas vezes: a primeira é quando são
forçados a parar de jogar. A falta repentina da droga que os
manteve tão vivos por tanto tempo é um choque no sistema
que pode se provar letal para muitos futebolistas. Sócrates
foi um pouco menos fatalista e disse que jogadores não
abandonam o futebol, o que acontece é o inverso.
Desde que se mudou para o Rio de Janeiro, Sócrates teve
de viver sem muitas outras coisas além do futebol. Sentiu
uma afinidade com a cidade e as pessoas, e adorava estar
cercado pelas praias, as montanhas e as lagoas próximas à
sua casa. Mas algo estava faltando. Ele não tinha um
propósito.
“Eu largaria tudo por uma paixão, e não necessariamente
uma mulher”, disse certa vez. “Paixão, para mim, é mais
importante do que tudo, é um momento sublime. Se você
me perguntar se eu fiz algo pela metade, eu diria que não.
Eu fui tão longe quanto sentia que poderia e fiz todo o
possível.”344
A falta de uma paixão se tornou mais evidente do que
nunca em 1987. Ele tinha deixado o futebol e não era mais
uma figura relevante no mundo da política. Até mesmo sua
vida amorosa tinha esfriado. Sócrates não se encontrou com
Rosemary desde que passou a morar no Rio, e embora a
tenha procurado quando saiu do Flamengo, foi para passar
uma noite como amigos, não como amantes.
A medicina foi um consolo temporário, com um curso na
Universidade Federal do Rio de Janeiro se iniciando logo
depois que ele deixou o futebol. As aulas eram similares às
do terceiro ano da faculdade, e ele aproveitou tanto o
aprendizado quanto as oportunidades de beber e flertar
com as alunas mais jovens.
Mas a nova rotina também gerava complicações. A
universidade ficava do outro lado da cidade em relação à
casa onde Sócrates morava, na Barra da Tijuca, e enfrentar
o trânsito diariamente, sob o forte calor, o deixava exausto.
Mais importante, o hospital da universidade estava
sucateado e sem verbas, e ele se sentia como se estivesse
trabalhando com uma camisa de força. Quando o Natal
chegou, Sócrates decidiu se transferir para Ribeirão Preto e
continuar seus estudos no Hospital das Clínicas da cidade.
Ficou imediatamente mais feliz com a volta ao lugar que
considerava sua casa, cercado de amigos e parentes e
frequentando uma universidade que conhecia bem. E
poucos meses após a mudança, sua vida sofreu uma
reviravolta inesperada por causa de um encontro com uma
jovem tenista.
Silvana Campos — que vivia em Ribeirão e já tinha sido a
número um do mundo juvenil do tênis — idolatrava
Sócrates, o herói local. Torcedora fanática do Corinthians,
acompanhou a carreira dele desde o começo no Botafogo e,
alguns anos antes, só concordou em sair com um
pretendente depois que ele prometeu dar a ela uma camisa
da Fiorentina. Com vinte anos de idade, Silvana sempre
tinha sonhado em conhecer Sócrates e a oportunidade
surgiu uma tarde, na escola que ficava do outro lado da rua
da casa de seus pais. Sócrates tinha voltado ao Colégio
Marista para participar de um jogo beneficente envolvendo
ex-alunos, e Silvana foi assistir. Lá, encontrou Zé Bernardes,
que se ofereceu para apresentá-la a Sócrates. Ele estava
atrás do gol, sem camisa, quando Zé Bernardes fez as
introduções.
“Ô Magro, essa aqui é a Silvana. Silvana Campos”, ele
disse.
“Ah, a tenista”, disse Sócrates, suado, ao se mover para
cumprimentá-la com um beijo.
“Prazer”, disse Silvana.
“Prazer”, disse Sócrates. “Você não está fazendo nada,
pega uma cerveja para mim.”
Silvana era jovem, mas tinha personalidade forte e não
estava acostumada a ser tratada dessa forma.
“Eu sou atleta”, ela respondeu. “Não gosto que me vejam
com bebida na mão.”
“Metida, hein?”, disse Sócrates, rindo.
Silvana ficou um pouco envergonhada, mas eles
conversaram por alguns minutos e ela foi para casa,
contente por ter encontrado o homem de seus sonhos. Ela
enxergava Sócrates como um homem bonito, charmoso e
engraçado, e ele ficou igualmente impressionado com ela.
Sócrates pegou o telefone de Silvana com Zé Bernardes e,
algumas semanas depois, eles passaram a primeira de
muitas tardes juntos num motel local.345
Sócrates tinha tido vários relacionamentos como esse,
mas, desta vez, a sensação era diferente. Ele descreveria o
momento como um dos períodos mais vulneráveis de sua
vida, e estava definitivamente à procura de algo novo. A
louca chama da paixão por Rosemary tinha se abrandado e
o casamento com Regina havia se transformado a ponto de
se tornar mais um relacionamento entre amigos do que
entre amantes. Ele precisava se apaixonar de novo e a
jovem Silvana preencheu sua vida do sentimento de desejo
na hora em que ele mais precisava.
Sócrates hesitou por algumas semanas quanto a deixar
Regina e finalmente chegou a uma decisão numa noite de
sexta-feira, na Câmara Municipal de Ribeirão Preto. Ele
recebeu a chave da cidade numa cerimônia especial e
Silvana foi convidada, como uma das personalidades
esportivas da região. Sócrates não sabia que ela estaria
presente, por isso teve de olhar duas vezes quando a viu
sentada na primeira fila, vestindo uma minissaia e sorrindo.
A família de Sócrates também estava no local, por isso ele
e Silvana não se falaram. Mas quando o evento terminou,
por completa coincidência, ambos foram a um show do
Gonzaguinha, que era amigo de Sócrates havia anos.
Sócrates e Regina se sentaram numa mesa grande ao lado
da família de Silvana; embora eles tenham controlado os
olhares, ao final da noite ele a seguiu até o banheiro
feminino para beijá-la.
“Não dá mais”, ele disse. “Não dá mais pra gente
disfarçar.”
“Eu vou para São Paulo amanhã pra jogar um torneio”,
disse Silvana. “Vou ficar duas semanas lá e você não vai me
achar, porque não sabe onde vou ficar. Chega, não dá
mais.”346
Foi um ultimato disfarçado de convite, e Sócrates captou a
mensagem. Ele tinha planejado levar a família, no dia
seguinte, para o sítio de Maurinho Saquy, onde eles
costumavam passar as tardes na piscina, bebendo e
fazendo churrasco. Regina chegou no início da tarde, mas
Sócrates deu uma de suas sumidas e só apareceu à meia-
noite. Ele passou quinze minutos conversando como se
nada estivesse acontecendo, depois puxou Maurinho para
contar que estava prestes a deixar sua mulher. Pediu ao
amigo para cuidar dela e dos meninos, e ainda avisou que
era possível que eles não se vissem por um tempo.
Maurinho sabia que Sócrates estava envolvido com Silvana,
mas ficou surpreso pela decisão repentina. Tentou
convencer Sócrates a não encerrar seu casamento, mas a
decisão estava tomada. Quando eles terminaram a
conversa, Sócrates calmamente se aproximou de Regina, a
informou que o casamento deles de treze anos tinha
chegado ao fim e saiu pela porta, deixando a mulher em
choque.347
Na manhã seguinte, Sócrates deu a notícia ao pai de
Regina e levou os meninos novamente ao sítio de Maurinho.
Ele tocou a campainha, deixou os filhos e desapareceu de
novo. Foi a última vez que seus amigos o viram em anos.
Silvana, por sua vez, tinha resolvido terminar tudo. Estava
sentimentalmente envolvida, mas desconfortável por ser “a
outra”, então decidiu que a única forma de esquecer
Sócrates era saindo da cidade e não o vendo mais. Mas
enquanto ela esperava pelo ônibus que a levaria a São
Paulo naquela tarde de domingo, o alto-falante anunciou
seu nome, com o pedido de que fosse ao escritório da
rodoviária. Quando ela chegou lá e pegou o telefone,
Sócrates estava do outro lado da linha.
“Oi, tô no posto de gasolina, na saída de Ribeirão. Pega
um táxi e vem para cá agora. Eu saí de casa. Já conversei
com a Regina e já comuniquei todo mundo. Tô fora, acabou,
nós vamos ficar juntos.”348
Ela pegou um táxi, e, algumas horas depois, eles estavam
em São Paulo, prontos para iniciar uma nova vida.
A separação de Regina — e particularmente a forma fria
como aconteceu — desagradou muitas pessoas que
conheciam Sócrates muito bem. Regina era uma santa, sua
companheira de alma e seu refúgio, uma mulher que se
manteve a seu lado por toda a sua vida adulta. Ela amava
Magrão, o homem, não o futebolista ou a celebridade, e
muita gente temeu que Sócrates entraria em parafuso sem
sua presença para proporcionar a estabilidade que ele
obviamente não tinha.
Mas Sócrates estava decidido, e quando contou ao pai,
Seu Raimundo lhe apresentou um retrato de seu próprio
casamento. O patriarca aconselhou o filho a ficar com a
esposa, mas Sócrates detalhou todas as razões que o
faziam pensar que o casamento não sobreviveria. Seu
Raimundo tinha uma resposta para cada uma delas. Ao
final, um exasperado Sócrates disse: “Pai, o casamento não
está bem”. “Filho”, disse Seu Raimundo, “e qual casamento
está bem?” A união dele com Guiomar durou décadas, até
Raimundo morrer em 2003. Houve altos e baixos, mas eles
nunca pensaram em desistir.
Sócrates sumiu depois de encontrar Silvana. Foi o
primeiro de uma série de desaparecimentos que viriam a
acontecer logo que uma nova mulher aparecesse em sua
vida. Quando ele conhecia alguém, o que se dava com
frequência, nada mais importava. Velhos amigos eram
abandonados e novas amizades eram iniciadas. Ele estava
sempre à procura de uma paixão, sua curiosidade natural e
inteligência o estimulavam a encontrar algo que
alimentasse seu coração e sua mente. Quando se tratava de
mulheres, ele adorava o suspense da conquista e, quando
sua presa era abatida, costumava ser apenas questão de
tempo até que ele saísse para caçar de novo.
“Eu sou uma pessoa extremamente inquieta, e não tenho
limites para nada”, afirmou. “A busca por prazer enquanto
ele existir é única, e isso, eventualmente ou em boa parte
da minha vida, é incompatível com uma série de outras
necessidades e responsabilidades que eu tenho… Então, o
tempo todo é essa eterna briga na minha vida e o
casamento, na verdade, é um limite para mim, um grande
limite.”349
Sócrates acreditava que a maneira como agia com as
mulheres se explicava pelo fato de nunca ter tido uma forte
influência feminina em sua casa. A mãe sempre esteve por
perto e foi uma presença amorosa por toda a sua vida, mas
com seis filhos e um marido que frequentemente viajava a
trabalho ou estudava à noite, ela era obrigada a
desempenhar um papel paterno também. Ele admitiu que
tinha tido “erros gritantes” em sua formação como pessoa,
até mesmo em relação a tarefas simples que nunca
aprendeu, como cozinhar coisas básicas ou lavar a louça.
Seu pai proibia os meninos de entrar na cozinha, e eles
bagunçavam todos os outros lugares da casa, deixando
roupas e sapatos por todo lado e fazendo a mãe arrumar
tudo. Sócrates saiu ao pai. Seu Raimundo fazia o tipo
machão à moda antiga e queria que seus filhos estudassem,
em vez de cozinhar ou lavar.350
Essas deficiências foram amplificadas com Silvana, que
era assertiva e confiante. Eles rapidamente foram morar
juntos, mas ela não era o tipo de mulher que ficava em casa
e não estava habituada a um papel submisso. Silvana
também era mais próxima, em idade, do filho mais velho de
Sócrates do que propriamente de seu novo parceiro. Havia
doze anos de diferença entre ela e Sócrates, e quando eles
passaram a viver juntos, ela não estava preparada para ser
uma esposa, muito menos uma madrasta para quatro
rapazes. Os filhos de Sócrates gostavam dela e eles se
relacionavam bem, mas Sócrates nunca se interessou em
lidar com crianças, mesmo com suas próprias. A chegada de
um filho para o novo casal em 1990 — o primeiro dela e o
quinto dele, chamado Sócrates Júnior — não fez nada para
aliviar a tensão.
“Eu queria coisas que uma jovem quer”, disse Silvana.
“Eu era uma jovem com físico perfeito, na minha idade, era
atleta, cheia de gás, a mil por hora, e o que eu tinha ao meu
redor? O Rodrigo tinha dezesseis anos e eu tinha só oito a
mais que ele. Eu era muito mais próxima do filho mais velho
dele do que dele mesmo. Eu ia no shopping com os cinco
moleques e parecia irmã deles; era uma maluquice, eu tinha
24 anos.”351
Sócrates não encontrou apenas um novo amor naquela
primavera. Seu relacionamento com Silvana foi seguido de
um reencontro com o seu primeiro amor.
Encorajado por Silvana, que queria ver o parceiro voltando
a fazer o que mais gostava, Sócrates assinou contrato de
um ano com o Santos em outubro de 1988. O casal queria
escapar dos olhares de reprovação em Ribeirão Preto, onde
eram figuras públicas, e a perspectiva de viver perto da
praia parecia mais atraente do que nunca. O Corinthians se
interessou e ele recusou uma oferta de um milhão de
dólares do México, mas na verdade não havia real
competição. Sócrates sentia dificuldades para se acostumar
à vida como médico e decidiu que um ano jogando futebol
seria exatamente a terapia de que precisava para ajudá-lo a
refletir sobre seu futuro na medicina. Sócrates se encontrou
com dois diretores do Santos e eles demoraram poucos
minutos para chegar a um acordo que incluía uma promessa
do Flamengo de pagar a fortuna que lhe devia com a renda
de três amistosos. O Santos ofereceu a Sócrates um salário
fixo e um percentual de direitos de imagem, mas não faria
nenhuma loucura financeira, porque ambas as partes
sabiam que o mais importante não era o dinheiro.352
Para o Santos, que se debatia na parte debaixo da tabela
de classificação, era uma questão de evitar o rebaixamento
e trazer um pouco de experiência ao meio de campo de um
time jovem. Para Sócrates, o movimento tinha como
motivação seu desejo de jogar no clube pelo qual torceu
quando criança, e ele fez questão de estabelecer uma rotina
em seus próprios termos: treinaria quando quisesse, não era
obrigado a ir para a concentração, e Silvana poderia
acompanhá-lo em jogos fora de casa e viagens. Ele tinha 34
anos e as dores nas costas ainda eram um problema. Antes
da estreia, ele praticamente admitiu que estava retornando
ao futebol para se divertir.
“Agora é que me dei conta de que curti muito pouco a
minha carreira”, disse. “Ficava incomodado com o assédio
dos torcedores etc. Agora, não. Nunca estive tão bem
comigo mesmo e quero aproveitar cada momento daqui por
diante.”353
Sócrates estreou num amistoso contra o Cerro, do
Uruguai, no dia 29 de novembro. Ele jogou à direita no meio
de campo, ao lado de César Sampaio, então aos vinte anos
— dez anos mais tarde, ele marcaria o primeiro gol do Brasil
contra a Escócia, na abertura da Copa do Mundo da França
— e não mostrou nenhum sinal de que se tratava de seu
primeiro jogo de futebol em mais de um ano. Sócrates criou
o primeiro gol do Santos com um passe de cabeça para
Mendonça, fez o segundo com um lindo cabeceio e quase
marcou um dos gols mais bonitos da sua carreira ao
arrancar do meio do campo, driblar três jogadores e tocar
por cima do goleiro, mas muito alto.
“Foi a realização de um sonho e muito mais”, ele
declarou, depois do jogo.
A realidade, no entanto, não estava tão distante, e, dois
dias depois, torcedores invadiram o vestiário após o time
perder para o Cruzeiro, por sorte, por apenas 3 × 1. Um
segurança deu tiros para o alto para assustar os invasores e
a magnitude da tarefa que Sócrates teria pela frente logo
ficou mais evidente.
Ele, contudo, fez sua presença ser sentida e liderou o time
numa rápida reação, suficiente para evitar o rebaixamento.
O Santos perdeu só um dos últimos cinco jogos e venceu o
Corinthians por 2 × 1 numa noite emocionante no
Pacaembu, para terminar o campeonato em décimo oitavo
lugar entre 24 times.
“Nós tínhamos muitos jogadores jovens e ele os liderou”,
disse o técnico Marinho Peres. “Era um herói para muitos e
eles gostavam de ir ao quarto dele na véspera de um jogo
para conversar. Sócrates participava das preleções antes
dos jogos e era quem falava com os jogadores antes de
entrarem em campo. Ele foi brilhante na psicologia. Disse
aos jogadores que eles eram bons o suficiente para sair da
situação em que a gente se encontrava e também disse que
ficaria tudo bem se não conseguíssemos, que o futebol não
era uma questão de vida ou morte. E eles absorveram
tudo.”354
Àquela altura, Sócrates tinha descartado qualquer chance
de reproduzir um movimento como a Democracia
Corinthiana em outro clube. O Brasil já contava com um
presidente civil, uma nova constituição, e os eleitores
votavam para prefeitos, governadores e deputados. O fim
da ditadura, em 1985, roubou da esquerda um motivo para
se reunir em torno de uma causa, e, com a inflação
superando os 700% anuais em outubro, as pessoas estavam
mais preocupadas com a economia do que com a política.
O país seguiu em frente e Sócrates, mesmo relutando, fez
o mesmo. Ele ainda acreditava que havia muito trabalho a
ser feito, especialmente para que os jogadores tivessem
mais consciência de sua força, mas sabia que a maioria não
se importava, e, então, se concentrou em se divertir. Deu
certo.
Com as expectativas reduzidas e sua vida pessoal se
acalmando, o ano de Sócrates no Santos foi seu período
mais feliz desde que deixou o Corinthians, em 1984. Ele
sentia falta do jogo e se arrependeu por ter tratado o
esporte com tanta indiferença. O futebol, ele concluiu afinal,
não era apenas um passatempo; era algo mais sério do que
isso, que tinha um valor intrínseco. Tardiamente, percebeu
que era um jogo que ele de fato amava. Sócrates sabia que
o Santos não tinha os jogadores necessários para brigar
pelo título do Campeonato Paulista ou do Campeonato
Brasileiro, mas ele não estava ali para ganhar troféus. Sua
única motivação era realizar o sonho de jogar pelo clube
pelo qual torcia quando menino. Pela primeira vez, desde
que começou a jogar pelo Botafogo, estava jogando futebol,
acima de tudo, para se divertir.
Sócrates teve a ajuda de diretores e de membros da
comissão técnica, e os jogadores assumiram uma postura
de reverência frente à lenda que convivia com eles.
Sócrates não passava muito tempo no clube, mas era
amistoso e prestativo. Era um prazer estar na sua
companhia. Sócrates costumava tomar cerveja com os
companheiros depois dos jogos e se sentia bem no papel de
um veterano sábio.
“Uma vez nós tivemos um problema. Não lembro se foi
um jogador que foi substituído ou não foi escalado, mas
houve um conflito”, recordou César Sampaio. “Ele reuniu o
time para resolver as coisas e disse que tínhamos de nos
respeitar, independentemente do que acontecesse, e que
tínhamos de mostrar nossos sentimentos. Aquilo foi uma
novidade para mim: dizer o que eu achava que estava certo
ou errado. Ele falou com todos, perguntando o que eles
pensavam. E me perguntou se eu queria falar alguma coisa
e eu respondi que não. Naquele momento, eu achava que
era muito jovem para ter o direito de dizer o que passava na
minha cabeça. Mas me lembro de pensar como era legal
que ele quisesse nos ouvir. Aquilo nos ajudou. Nós nos
respeitamos mais.”355
Sócrates retornou ao Santos depois do Natal e do Ano-
Novo, mas o desempenho do time no Campeonato Paulista
de 1989 foi pobre, e o time só se classificou para a segunda
fase por causa do esdrúxulo regulamento do torneio. O
Santos se classificou em oitavo num grupo de onze times, e,
como era de se esperar, foi eliminado na fase seguinte,
ganhando apenas um jogo em quatro rodadas e se
despedindo do campeonato em junho.
A saída precoce deu ao clube dois meses em que poderia
tentar explorar o potencial comercial de seu novo astro,
mas uma série de amistosos deprimentes era exatamente o
que Sócrates não precisava viver. Ele jamais conseguiu se
animar para jogos sem significado e o final de sua carreira
estava próximo. Quando chegou, foi no Extremo Oriente,
onde o Santos se tornou o primeiro time brasileiro a jogar na
China em 25 anos. O clube ganhou uma cota de 20 mil
dólares em troca de cada um dos oito jogos no país e em
Hong Kong, mas houve descontentamento desde o início,
com alguns jogadores insatisfeitos por Sócrates ganhar três
vezes mais dinheiro em diárias do que eles.356
A viagem foi longa e mal planejada, com alguns jogos
adicionados durante a excursão. Sócrates atuou na maioria
dos amistosos, porque a cota seria diminuída se ele não
estivesse em campo, mas logo se cansou de viajar e quis ir
embora. Para piorar as coisas, na hora em que parecia que
a provação estava terminando, o clube agendou mais dois
amistosos nos Estados Unidos. Os jogos estenderam a
viagem para cinco semanas, e aquilo foi demais. O melhor
amigo de Sócrates no time era Juary, um atacante veterano
que ele conhecia dos tempos de Itália. Na véspera da
partida para os Estados Unidos, eles se sentaram no bar do
hotel em Hong Kong e afogaram suas angústias.
“Não aguento mais”, Sócrates confessou.
“Por quê, Magrão? As coisas estão começando a ficar
boas”, disse Juary.
“Não, para mim não dá. Não quero mais.”
“Só tem mais uma semana. Vamos para os Estados
Unidos e depois vamos para casa”, Juary disse a ele.
“Não. Chega. Vou voltar para o Brasil, quero descansar”,
respondeu Sócrates.
Juary olhou para o amigo e não disse mais nada. Sócrates
parecia querer chorar.357
Na viagem de volta ao Brasil, ele fez uma escala em Los
Angeles, onde levou Silvana à Disneylândia antes de
pegarem um avião para São Paulo. Sua partida foi um
constrangimento para o Santos, que já havia marcado
amistosos nos Estados Unidos em função dele. Seus
companheiros também ficaram insatisfeitos, pois Sócrates
já tinha recebido mais dinheiro e tido mais privilégios — por
exemplo, o fato de Silvana tê-lo acompanhado o tempo todo
— e, de repente, desistiu. Eles tinham passado mais de 24
horas em três voos diferentes, de Hong Kong para Tóquio,
Los Angeles e depois Boston, e estavam exaustos. Saber
que Sócrates havia ido embora foi a gota d’água.358
Os dirigentes tentaram convencer Sócrates a voltar aos
Estados Unidos para os dois últimos jogos e discutir a
renovação de seu contrato, que terminava no último dia de
setembro. O Campeonato Brasileiro começaria no dia 7
daquele mês e o Santos queria que ele assinasse um novo
contrato antes do início da temporada. Mas Sócrates não
entrou no avião, explicando que tinha ficado preso no
trânsito a caminho do aeroporto. O presidente ficou furioso
por ter esperado por ele em Boston, e, para piorar, os
jornais santistas informaram que, em vez de retornar aos
Estados Unidos, Sócrates havia se encontrado com
dirigentes do Corinthians para discutir o encerramento de
sua carreira no clube.359
A conversa com o Corinthians não deu em nada, em parte
porque os diretores não queriam arriscar a volta do líder da
Democracia Corinthiana ao clube para desafiar o status quo.
Sócrates finalmente abriu negociações com o Santos sobre
um novo compromisso, mas pediu valores tão obscenos que
os dirigentes santistas decidiram não fazer uma
contraproposta.
Sua carreira no futebol, ao que parecia, estava encerrada.
Ou quase.
Sócrates rejeitava jogos de despedida por considerar
essas ocasiões um nonsense sentimental e se retirou da
maneira que queria: com o mínimo alarde. Ele chegou a
imaginar uma festa de adeus que não se realizou, mas o
foco seria reunir amigos e tomar cerveja, sem futebol e
certamente sem a presença do público.
“Viriam todas as pessoas que conviveram comigo de que
eu gostei, seria fechado, chope pra caralho e tal, a minha
galera. É isso que eu tinha imaginado, mas não um jogo.
Seria uma confraternização com as pessoas com quem
convivi. Isso eu gostaria de ter feito, tipo reunir a galera
toda, dirigentes que fizeram parte da minha vida e que de
alguma forma criaram uma relação legal comigo. Convidar
para um churrascão e jogar uma bolinha. Despedida, não.
Eu não gosto de despedida.”360
Em vez disso, sem poder encerrar a carreira no
Corinthians e rejeitando ofertas de lugares distantes como o
Japão, Sócrates deixou o Santos e foi para o Botafogo, para
um breve “canto do cisne” no clube em que tudo começara
quase duas décadas antes. Ribeirão Preto sempre foi sua
casa; embora ele tivesse se ausentado durante dez anos,
em muitos aspectos Sócrates nunca saiu realmente de lá.
Não era só o lugar onde estava seu coração. Sua família
vivia lá, seus amigos estavam lá, e tanto sua atual mulher
quanto sua ex-esposa — àquela altura, ele tinha se
divorciado de Regina — eram da cidade. Ele voltava sempre
que podia, muitas vezes dirigia durante a noite para passar
a manhã com sua mãe ou ficava até tarde no sítio de
Maurinho Saquy para aproveitar todos os momentos
possíveis de um churrasco com os amigos mais próximos.
O retorno ao Botafogo não seria muito mais do que um
pretexto para conferir alguma simetria a uma trajetória de
carreira que sofreu guinadas de todos os tipos. O clube
passava por momentos difíceis na segunda divisão do
Campeonato Paulista, e, embora o técnico fosse ninguém
menos que Mário Travaglini, existiam poucos sinais de que
seu retorno seria triunfante. Até mesmo os torcedores
estavam divididos, alguns encantados com o retorno do
herói, outros insatisfeitos pelo fato de o clube estar
gastando um dinheiro de que não dispunha com alguém
que claramente já tinha deixado para trás seus melhores
dias.
Uma semana depois de deixar o Santos, Sócrates assinou
um contrato curto e fez sua estreia em 16 de setembro, na
vitória por 2 × 1 sobre o Uberlândia no estádio Santa Cruz.
Ele sentia dores quase constantes por causa da hérnia de
disco, e as coisas pioraram quando uma joelhada forçou sua
substituição depois de apenas 23 minutos.361
O momento pareceu lhe oferecer uma pausa para refletir
e ele não disputou o jogo seguinte, contra o Goiânia, fora de
casa. Sua segunda aparição aconteceu três semanas mais
tarde, numa vitória por 2 × 1 sobre o Grêmio Catanduvense,
o segundo de quatro jogos com sua presença em que o
Botafogo ficou invicto. O desempenho foi suficiente para
que o time se classificasse para a segunda fase, mas o
elenco era tão vulnerável quanto as pernas de Sócrates, e o
Botafogo caiu no primeiro confronto eliminatório, em dois
jogos contra o São José.362
Teria sido o final, mas ainda faltava um desnecessário
amistoso. Em 26 de novembro de 1989, Sócrates fez seu
último jogo profissional, um empate em 1 × 1 com o
Itumbiara, em Goiás. Pouco mais de mil pessoas
apareceram para vê-lo comandar o meio de campo, antes
de sair discretamente na metade do segundo tempo.
E foi isso. Não houve alvoroço ou anúncio oficial de que
ele estava pendurando as chuteiras. A dor era muito
grande, assim como a amolação. Depois de dezessete anos,
mais de setecentos jogos e mais de trezentos gols, um dos
mais inspiradores futebolistas que o Brasil já produziu
encerrava sua carreira. Ao menos como jogador.
Capítulo 18
Ele estava buscando algo que nunca encontrou.
Sóstenes, irmão de Sócrates

Os estudantes de medicina no campus da USP de Ribeirão


Preto têm uma associação chamada Centro Acadêmico
Rocha Lima. O nome, no entanto, não enganava ninguém.
Na verdade, o centro era um prédio de bares e instalações
esportivas dirigido pelos alunos, que organizavam
conferências, festas e competições entre faculdades dentro
da USP-RP e também entre as universidades do estado.
O presidente da associação era eleito pelos estudantes, e,
após uma noite de bebedeira, Sócrates e seu amigo Aloisio
Abud decidiram concorrer. Eles achavam que os dois
candidatos principais eram chatos e muito “políticos”, então
resolveram se apresentar como uma terceira via cuja
plataforma era, basicamente, promover festas. A campanha
que criaram com quatro amigos recebeu o nome sem
sentido de “Itch Le Nitch”, e seu manifesto era um comando
à diversão. Foi só quando o boca a boca indicou um certo
equilíbrio e começou a dar a impressão de que a nova
chapa poderia ganhar que eles perceberam que a
brincadeira estava fugindo do controle. Pressentindo o peso
da responsabilidade, eles recuaram em desespero e
pediram às pessoas que não votassem neles, por medo de
serem encarregados de dirigir uma das instituições de maior
visibilidade da universidade.363
Na noite da votação, reuniram-se no bar dos alunos para
assistir à apuração e tirar uma onda com os outros
candidatos. Sócrates enviou telegramas falsos aos
adversários, em nome do presidente norte-americano Jimmy
Carter e do líder soviético Leonid Brejnev; quando o
vencedor foi anunciado e sua chapa perdeu por apenas
treze votos, o alívio foi grande.364
Esse flerte precoce com o poder foi o primeiro contato de
Sócrates com um cargo eletivo, mas não sua última
incursão na política organizada. Em 1991, sentindo-se numa
encruzilhada e ainda sem ter certeza do que queria fazer
pelo resto de sua vida, ele foi encorajado pelo futuro
presidente Fernando Henrique Cardoso a se juntar ao PSDB,
partido que emergia como um dos mais importantes do
país. Sócrates mantinha uma relação de amizade com Mário
Covas, que era próximo de seu pai e uma das lideranças do
partido, e foi sondado para concorrer à prefeitura de
Ribeirão Preto contra Antonio Palocci, um médico, torcedor
do Botafogo, que ele conhecia da universidade e do futebol.
O candidato do Partido dos Trabalhadores não queria
disputar a eleição com alguém que ele considerava um
amigo e que tinha potencial para constrangê-lo nas urnas.
Palocci entrou em contato para discutir uma aliança — o PT
acabaria formando uma chapa junto com o PSDB — e ficou
agradavelmente surpreso quando ouviu de Sócrates que ele
não queria concorrer e estava se retirando da corrida antes
mesmo de a disputa começar.365
Palocci agradeceu profundamente e mais tarde lhe
ofereceu a posição de secretário de esportes da cidade, que
Sócrates imediatamente aceitou. Sua reputação como
alguém que se esquivava dos detalhes e de qualquer
medida de administração ou planejamento — sem falar no
hábito de abandonar os projetos bem antes de sua
conclusão — não era alvissareira, mas, para a surpresa de
Palocci, Sócrates se envolveu bastante com o trabalho.
“Ele era conhecido por ser um cara que não gostava de
tocar projetos por muito tempo”, disse Palocci. “Mas não foi
o que aconteceu de fato: ele se dedicou muito na secretaria
e teve resultados muito bons. Para minha surpresa — achei
que o Sócrates ia mais emprestar seu nome —, ele ia todo
dia trabalhar na secretaria. E, em cada programa que ele
lançava, não precisava fazer propaganda: apareciam mil
meninos, dois mil meninos, teve muito impacto, foi muito
legal. Ele investiu o prestígio dele, não só o nome. Ia lá,
participava, organizava, fazia reunião com a equipe. Eu
fiquei surpreso por ele ter se dedicado assim, cinco a oito
horas por dia, todos os dias.”366
A política de uma cidade pequena tem seus problemas,
mas Sócrates compensava a falta de experiência com
carisma e bons contatos. Um de seus maiores feitos foi
convencer a CBF a levar a seleção brasileira a Ribeirão Preto
para um amistoso com a Polônia, em março de 1993.
Quando uma data foi acordada, ele ligou para o Botafogo
para saber se o estádio Santa Cruz poderia ser utilizado. O
clube disse que sim, mas quando uma equipe chegou para
preparar o gramado, os planos quase foram abandonados
por um problema ligado a… cervejas. A CBF era patrocinada
pela Brahma, mas as placas publicitárias do estádio eram
da concorrente, a Antarctica. O impasse entre duas das
maiores cervejarias do Brasil poderia facilmente terminar
em desacordo e ações na justiça. Em vez disso, Sócrates
telefonou diretamente para os presidentes das duas
companhias, que não quiseram desapontar uma lenda. As
coisas foram resolvidas amigavelmente e o jogo aconteceu
como planejado.
“Ele resolvia as coisas muito bem”, lembrou Palocci.
“Fazia do jeito dele, da maneira dele. Era muito informal,
mas nunca irregular. Essas coisas ele ia atropelando, não
ficava parado.”367
Depois de mais de um ano no cargo, Sócrates finalmente
se cansou do trabalho, e uma questão envolvendo a melhor
localização para um parque público foi a gota d’água.
Moradores de uma comunidade de baixa renda queriam o
parque diante de suas casas, em vez de entrar em acordo
sobre onde a comunidade mais precisava do equipamento.
Sócrates ficou decepcionado com o egoísmo que presenciou
e concluiu que, se as pessoas não pensavam coletivamente,
não havia mais o que fazer.368
A incapacidade de união das pessoas em torno de planos
que beneficiariam a todos, ou ao menos à maioria, era uma
frustração constante para ele. De jogadores do Botafogo
que não queriam estudar, a jogadores da seleção que não
passavam a bola para companheiros em melhores posições,
a comunidades que não colocavam suas necessidades
coletivas acima dos interesses individuais — esse tipo de
coisa fazia Sócrates se desesperar. Quando se tratava de
projetos pessoais, ele era, em muitos aspectos, o perfeito
individualista; mas enxergava no egoísmo um defeito
nacional que custava muito ao Brasil.
“É o grande problema do nosso país”, ele declarou em
1999. “Por que o nosso país não saiu do buraco? Nosso povo
tem uma cultura individualista. A culpa não está em cima,
não está nos governantes: a culpa está embaixo. O dia em
que nós tivermos espírito comunitário, disponibilidade
comunitária, não tem quem segure esse país. Cada um
individualmente não vale nada, aí o mais forte ganha do
mais fraco. Agora, se você junta um monte de gente, não
tem quem derrote isso.”369
A vitória de Lula, sob o tema da “esperança que venceu o
medo”, o levou a repensar essa convicção, mas o estrago já
estava feito.
No geral, entretanto, a experiência na política foi positiva
para Sócrates e para o PT, e o partido sugeriu que ele fosse
candidato ao Congresso no ano seguinte. Sócrates
concordou, mas mudou de ideia algumas semanas depois,
e, apesar de receber ligações de Palocci, Lula e outras
figuras do partido, manteve-se irredutível. O PT queria fazê-lo
viajar pelo estado como uma celebridade capaz de angariar
votos e ele percebeu a enormidade do trabalho que teria
pela frente. Sócrates quase concorreu ao senado pelo PT, em
2002, mais uma vez com o apoio de Lula. A ideia acabou
vetada e lhe ofereceram, como prêmio de consolação, a
chance de disputar a eleição para deputado federal, mas ele
recusou.
O que Lula fez, como presidente, foi utilizá-lo como
conselheiro ocasional, mas até mesmo essa experiência foi
infeliz. José Dirceu convidou Sócrates, Soninha e Juca Kfouri
para que ouvissem as ideias do governo a respeito da
Timemania (loteria de incentivo fiscal para ajudar os clubes
esportivos a saldarem suas dívidas com o governo), no
começo de 2005. O trio conversou com Dirceu e Lula, então
fez suas recomendações, aconselhando o governo a tratar
qualquer recurso enviado aos clubes como contrapartida
social à obrigatoriedade de profissionalização. Mas, dias
depois, Lula assinou a medida provisória da Timemania sem
observar nenhuma sugestão e Sócrates lamentou que os
conselhos tenham sido ignorados.370
Sócrates sabia muito bem que se frustrava quando as
coisas não corriam do jeito que ele queria, por isso viu que
seria difícil promover grandes mudanças por intermédio da
política. Ele entendeu a complexidade de desafiar o sistema
e, embora soubesse que poderia ser eleito com o apoio de
um partido grande, tinha receio de se desiludir e decidir
abandonar seu cargo, decepcionando os eleitores que
teriam confiado nele. Sócrates acreditava que poderia ter
mais influência do lado de fora — e a ideia de perder a
independência e passar horas, dias e semanas em meio a
longas reuniões não o agradava.
E, o mais importante, a perspectiva de longos e sóbrios
encontros com homens vestidos de ternos era a visão do
inferno para Sócrates, que também odiava a ideia de ser
obrigado a apoiar políticas com as quais não concordava.
“Eu adoro política, mas odeio partidos políticos”, ele disse
alguns anos depois, num perfeito resumo do que pensava.
O futebol era o meio em que ele poderia criar impacto, e
havia poucos clubes mais apropriados do que o Botafogo,
onde ele ainda tinha amigos tanto no vestiário quanto na
diretoria. Sócrates foi nomeado treinador em 1994, e logo
em seu segundo jogo no comando, disse aos jogadores o
que esperava deles.
“Tirei todo mundo da sala [menos os jogadores] e falei:
‘Por cinco minutos, eu não quero ver jogo de futebol, eu
quero ver show’.”
Os jogadores olharam primeiro uns para os outros, depois
para ele, sem saber o que dizer.
“Como assim?”, um deles perguntou.
“Eu não quero que vocês joguem para ganhar, para fazer
gol… É para dar drible, chapeuzinho, ficar prendendo a bola
e tal.”
“Porra! Sério?”, perguntou um atleta. “Tem que fazer isso
mesmo?”
“Sim”, disse Sócrates. “Eu quero que vocês façam isso.
Depois vão jogar bola, mas nos primeiros cinco minutos tem
que ser isso. Eu quero ver levantar a torcida.”371
O jogo terminou 2 × 2, mas a estratégia pedida aos
jogadores resumia a filosofia de Sócrates como técnico e era
inteiramente compatível com sua forma de jogar futebol.
Seu trabalho dependia dos resultados, mas, para ele, o
prazer era mais importante do que os pontos. Perder era
aceitável desde que os jogadores ao menos tentassem
entreter.
Sócrates tinha retornado ao clube em 1993. O Botafogo
era o lugar em que seu legado ainda resistia e onde os
diretores o adoravam e faziam suas vontades. Ele aceitou
um convite para servir como “conselheiro” do presidente
Laerte Alves, e quando o técnico José Galli Neto foi demitido
pelos maus resultados que levaram o time ao nono lugar na
segunda divisão, Sócrates concordou em substituí-lo até
que outro treinador fosse contratado.
Ele trouxe seu estilo ao clube imediatamente, observando
treinamentos de bermuda e chinelos enquanto seus
auxiliares coordenavam as atividades. Sócrates aboliu a
concentração e às vezes era o último a se apresentar para
os jogos, chegando ao estádio após passar o dia bebendo e
fazendo churrascos com amigos. Tratava os jogadores como
iguais — algo novo e surpreendente para a maioria deles —
e raramente se importava com tática, esquemas ou o que o
adversário podia ou não fazer.
“Ele reunia o time e perguntava como a gente queria
jogar. Sempre queria ouvir a nossa opinião, se a gente
queria ficar recuado ou marcar mais alto”, disse Édson
Boaro, ex-jogador do Corinthians e da seleção, que jogou
sob a direção de Sócrates no Botafogo. “Queria nos dar
liberdade para jogar e fazia isso para diminuir a pressão
sobre nós. Era interessante, porque a gente não ficava tão
preocupado em fazer gols ou com medo de perder. Como
técnico, ele nos deu essa liberdade de expressão.”372
Como era seu costume, Sócrates levou a coisa ao
extremo. Certo dia, ele colocou o gelo usado para tratar
lesões no freezer cheio de cervejas. Quando um dos
jogadores se machucou, seu assistente teve de pedir sacos
de gelo emprestados ao time adversário.
A estratégia de aliviar a pressão dos jogadores, no
entanto, teve efeito positivo. O time empatou o primeiro
jogo, contra o São-Carlense, por 0 × 0, em 27 de fevereiro.
Uma semana depois, no dérbi da cidade contra o Comercial,
novo empate por 2 × 2. Embora o Botafogo não tivesse
somado todos os pontos, os jogadores atenderam a seu
pedido por um futebol expansivo e o desempenho foi
suficiente para que Sócrates fosse efetivado no cargo. Seu
estilo de comandar era pouco ortodoxo, mas o time ganhou
dois dos três jogos seguintes e subiu para o sexto lugar na
classificação.
Entretanto, um episódio no último dos três jogos, uma
vitória em casa sobre o Paraguaçuense, o incomodou e o
levou — uma vez mais — a abandonar um projeto
precocemente.
Sócrates repetiu o pedido por espetáculo e disse aos
jogadores que a única coisa que deveriam fazer nos
primeiros dez minutos era passar a bola para o atacante
Toninho. Eles seguiram as instruções perfeitamente e
Toninho fez o lateral direito adversário sofrer tanto que o
jogador foi substituído no intervalo por alguém cuja única
função era conter seus avanços. A resposta de Sócrates foi
tirar Toninho do jogo e passar a concentrar os ataques do
Botafogo no outro lado do campo. Os torcedores ficaram
furiosos com ele e o vaiaram por ter substituído o melhor
jogador do time, mas a decisão surtiu efeito: o Botafogo
marcou três gols e venceu por 3 × 1.
O grande problema aconteceu no intervalo, quando o
assistente Tiri — o mesmo Tiri que trabalhava no clube
quando Sócrates iniciou sua carreira — orientou os
jogadores. O veterano auxiliar criticou o time por ter ficado
muito tempo com a bola e não ter marcado gols; mas
quando ele saiu do vestiário, Sócrates teve que dizer aos
jogadores que esquecessem tudo o que tinham ouvido e
continuassem fazendo o que ele havia pedido antes.
Sócrates não queria desautorizar Tiri, que era um de seus
amigos mais antigos e uma lenda no Botafogo, mas refletiu
sobre o incidente quando voou para o Japão alguns dias
depois.
Ele tinha um compromisso acertado para dar algumas
clínicas de futebol em Tóquio e Osaka, e cedeu o comando
do time do Botafogo por duas semanas. Seu primeiro jogo
depois da volta foi uma vitória por 3 × 0 sobre o Olímpia,
seguida por uma derrota por 4 × 0 para o Araçatuba.
Quando o Botafogo não conseguiu vencer a partida
seguinte, em casa, contra o Catanduvense, ele decidiu que
já tinha visto o bastante. Seu período como técnico do clube
teve três vitórias, três empates e duas derrotas,
desempenho que levou o Botafogo do nono para o quarto
lugar na tabela. Mas ele não tinha estômago para aquilo.
Era muito estresse, muito trabalho duro e muitas
inconveniências.373
“Um técnico tem que ser o primeiro a chegar de manhã e
o último a sair à noite”, disse Serginho, seu amigo e
companheiro na seleção de 1982, que também trabalhou
como treinador. “Você tem que ser capaz de pegar pesado
com os jogadores, às vezes tem que gritar com eles. Não
pode ser amigo deles. Sócrates não tinha a personalidade
para ser técnico.”374
O retorno de Sócrates ao Botafogo foi uma diversão para
os torcedores, mas não tanto para Silvana Campos. Nos
primeiros anos da década, Sócrates bebeu e fumou menos
enquanto vivia uma lua de mel prolongada com a mulher
com quem se casou numa cerimônia discreta em maio de
1990. Como atleta que era, Silvana gostava de estar em
forma e tentou que seu marido fizesse o mesmo. Eles saíam
juntos para caminhar pela manhã e andavam de bicicleta
nos fins de semana, e a chegada do primeiro filho do casal,
em setembro de 1990, deu a Sócrates um incentivo a mais
para cuidar da saúde.
O que também o ajudou foi seu tão aguardado retorno à
medicina. Ele passou o início dos anos 1990 estudando para
se atualizar em relação às técnicas mais recentes e depois
passou a atuar como médico em tempo integral pela
primeira vez na vida. Adorava fazer as duas coisas e aquele
período foi um dos mais felizes de sua vida, ainda que
tivesse se mantido sempre extremamente ocupado. Em
1990, ele dirigia 650 quilômetros para ir e voltar de São
Paulo três vezes por semana, a fim de frequentar um curso
de medicina esportiva, e também viajava pelo Brasil para
encontros e congressos das suas áreas de especialidade.
Sócrates esteve indeciso durante anos a respeito da área
à qual se dedicaria, primeiro imaginando ortopedia e
pediatria, e nunca se enxergando seriamente no mundo do
futebol. Isso mudou quando ele percebeu que não queria
passar os dias dentro de um hospital, e se inscreveu num
curso de pós-graduação em medicina esportiva na Escola
Paulista de Medicina. Ele acreditava que a especialidade
ainda era muito subestimada e inteligentemente percebeu
que, com o aumento dos casos de diabetes, obesidade e
hipertensão, seu campo de atuação só se ampliaria.
Alguns anos antes, Sócrates havia comprado uma
propriedade em Ribeirão Preto, quando pretendia abrir uma
clínica esportiva, e começou a contratar pessoas e equipar o
local para lidar com seus novos pacientes. Administrar o
Centro de Medicina Sócrates, no início de 1992, começou
como um sonho realizado, mas logo se converteu em
pesadelo. Seu maior desafio era moral: enfrentar os
conflitos éticos profissionais. Ele ficou chocado com o
número de diagnósticos errados e recomendações de
cirurgias desnecessárias, e constantemente se deparava
com a difícil escolha entre criticar colegas ou deixar as
coisas acontecerem. No final, um de seus funcionários o
processou por uma questão administrativa e facilitou sua
decisão: Sócrates não tinha tempo nem energia para uma
arrastada batalha judicial e fez um acordo, fechando o
centro de medicina.375
Perder a clínica e o trabalho que havia planejado por toda
a vida foi um dos maiores reveses que ele sofreu, e Sócrates
voltou a beber em excesso. O processo se iniciou quando
ele retornou ao Botafogo, primeiro como conselheiro e
depois como técnico. Jogadores de futebol gostam de beber
e a socialização era parte importante do trabalho,
especialmente em Ribeirão Preto, onde o calor exige a
hidratação e tantos amigos antigos estavam sempre
disponíveis para compartilhar cervejas e conversar sobre os
velhos tempos.
Silvana, entretanto, não aprovava esse hábito, o que
desgastou o relacionamento deles. Os desentendimentos se
repetiam; e, em maio de 1994, Sócrates saiu de casa. Eles
quase reataram no Natal, mas — mesmo depois de voltar à
clínica, após ter deixado novamente o Botafogo — ele
continuou bebendo demais, muitas vezes ligando para o
trabalho com a desculpa de que estava doente apenas para
poder sair e beber mais algumas cervejas. Seu coração não
estava mais no trabalho, tampouco no casamento, e ele
decidiu pôr um fim em ambos.
Sócrates dizia orgulhosamente que vivia apenas para o
momento presente e que o futuro cuidaria de si. Mas a
insistência em viver dessa maneira trazia um problema. No
mundo de Sócrates, tudo era fugaz e ele não tinha a
capacidade de relaxar e aproveitar os bons momentos. A
satisfação era como uma droga e cada instante de
felicidade era rapidamente esquecido, para que ele fosse à
procura do próximo.
Isso era compreensível no mundo do futebol, onde um
título ou uma atuação extraordinária rapidamente tem de
ficar no passado, numa cultura em que o que importa é
essencialmente o resultado seguinte. Porém, era uma
dinâmica mais prejudicial no aspecto pessoal, porque a
família e os amigos tinham dificuldades para acompanhá-lo.
“Eu diria que o grande prazer para mim é aquilo que eu
estou vivendo”, disse. “Vamos imaginar que fazer o gol da
final da Copa do Mundo seria um grande prazer. Duas horas
depois, a gente se sentaria para bater um papo superlegal,
que a gente não ia querer acabar nunca. Já matou isso aí,
matou o gol, não vale mais nada, já foi, é sempre o atual
esperando o próximo.
“A glória, qualquer que seja, é absolutamente efêmera.
Para o indivíduo em si, para um jogador de futebol ainda
mais, ela não vale nada. Eu nunca penso no que vai
acontecer amanhã, bicho, nunca. Minha mulher fica louca.
‘Pô, vamos programar…’. Que programar! Vamos viver,
vamos viver!”376
Silvana culpava o álcool e sentia que o hábito havia
transformado seu marido numa caricatura de alguém que
ele não era. Sem a bebida, Sócrates era quieto e pacato. Em
casa, sozinho, sem uma cerveja na mão, ficava tão
absorvido por um livro ou um programa de televisão que
esquecia que havia outras pessoas na sala. Mas quando
bebia, Sócrates era agitado e imprevisível.
“Uma pessoa que vive somente o hoje, usando um
artifício que a modifica, está escondendo alguma coisa”,
opinou Silvana. “Então, não está vivendo o hoje como a
pessoa que é. Está vivendo o hoje como uma pessoa que
ela está criando. Que a bebida está criando.”377
Silvana salientou que, quando a bebida estava sob
controle, Sócrates se dedicou a projetos que o faziam feliz
— primeiro como um jovem na universidade e no Botafogo,
e mais tarde a seu lado, no começo da década de 1990,
fazendo o curso de pós-graduação e trabalhando como
secretário de esportes. Mas quando a muleta do futebol
deixou de estar à disposição, ele flertou com iniciativas
variadas, jamais se apegando a nada nem sendo totalmente
feliz. Como uma criança viciada em açúcar, Sócrates
admitia abertamente que precisava de estímulo constante.
“Eu tenho que estar criando”, disse. “O que passou,
passou. Eu tenho que estar criando e tem que ser coisa
nova, nada é igual. Quando eu faço alguma coisa que se
repete com alguma regularidade, me dá uma angústia filha
da puta, a sensação que eu tenho é a de que estou
morrendo, eu não consigo. Preciso inventar, inventar
alguma coisa diferente.
“Claro que há coisas que me dão muito prazer e de
alguma forma eu consigo mantê-las próximas a mim — e
elas continuam me dando prazer. Mas elas não podem ser
únicas, jamais, porque eu não consigo conviver com isso,
com um negócio único.”378
Depois de deixar o Botafogo e fechar a clínica, Sócrates
passou os anos seguintes tentando trabalhar na televisão.
Ele brincava que nunca foi bonito o suficiente para estar na
TV, mas chegou a fazer pequenas participações em alguns

programas, como apresentador ou convidado, sempre com


desenvoltura. As pessoas que trabalhavam com ele ficavam
contentes por estar ao lado de um ídolo, e os
telespectadores adoravam sua visão e sua sinceridade. As
primeiras tentativas em programas de entrevistas, em
Ribeirão Preto, serviram como experiência vital para
trabalhos posteriores em rede nacional, como convidado
nos programas de debate esportivo que dominam a
televisão brasileira quase todas as noites.
Seu maior fracasso aconteceu na posição de
comentarista. Sócrates foi contratado pelo SporTV, em
1995, para analisar partidas de futebol, mas chegou
atrasado a uma de suas primeiras transmissões, a final do
Campeonato Paulista, entre Corinthians e Palmeiras. O jogo
foi realizado em Ribeirão Preto e ele foi para o estádio direto
de um churrasco na casa de Maurinho Saquy. Era
perceptível que ele tinha bebido e não havia se preparado
para a transmissão. Para agravar a situação, passou boa
parte do jogo torcendo ostensivamente para o Corinthians.379
Executivos do SporTV receberam reclamações de
torcedores do Palmeiras, mas não encontraram outro ex-
jogador do Corinthians para substituir Sócrates no segundo
jogo da decisão, por isso foram obrigados a seguir com ele.
Sócrates chegou na hora, mas entrou no campo para saudar
a torcida corintiana antes do jogo e deu um grito quando o
time marcou um gol. Os torcedores do Palmeiras ficaram
indignados, os executivos do canal de televisão não sabiam
o que fazer e a carreira de Sócrates como comentarista se
encerrou praticamente antes de ter começado de verdade.
A separação de Silvana o levou a uma espiral negativa, e,
quando o divórcio foi concluído, em 1996, Sócrates saiu do
país para tentar um recomeço. Depois de seu ano
desastroso na Itália, ele nunca tinha voltado a considerar
viver fora do Brasil novamente. Adorava o caos informal de
sua terra natal e considerava a Europa muito estruturada e
impessoal.
Mas, quando a chance de ir para o Equador se
apresentou, ele a agarrou não exatamente com as duas
mãos, mas com a clareza de que a experiência poderia lhe
dar algo em que concentrar suas energias. O presidente da
Liga Deportiva Universitaria (LDU), clube da primeira divisão
do futebol do país, tinha bons contatos no Corinthians e
visitou São Paulo com a intenção de contratar alguns
jogadores. As conversas o levaram até Sócrates, e Darío
Ávila retornou ao Equador com quatro jogadores do
Corinthians e um novo técnico.380
Sócrates não fez grandes exigências e ficou feliz em
receber um salário razoável e um pequeno apartamento
para chamar de casa. Ele levou seu próprio assistente e um
preparador físico, mas teve dificuldades desde o momento
em que desembarcou no país. A LDU estava construindo um
novo estádio e queria um técnico famoso para inaugurá-lo
no ano seguinte, mas logo ficou claro que Sócrates não
permaneceria no clube por tanto tempo.
O principal problema foram os resultados — apenas uma
vitória em cinco jogos e três derrotas por 1 × 0, todas em
casa. Ainda mais surpreendente foi o fato de Sócrates não
ter conseguido se conectar com os jogadores. Ele reclamou
que os equatorianos não tinham boa técnica, e, quando um
dos atletas contratados do Corinthians criticou
publicamente a falta de profissionalismo dos jogadores
locais, criou-se uma divisão incontornável.
Fora de campo, Sócrates nunca se dedicou a aproveitar
Quito, uma das capitais mais charmosas do mundo. Na
altitude dos Andes, a cidade é rodeada por vulcões nevados
e tem um belo e preservado centro em estilo colonial.
Sócrates pouco viu além do estádio e do apartamento em
que passava noites escrevendo poesias e assistindo a
vídeos dos adversários. Ele arrumou uma namorada local,
mas nem isso foi capaz de animá-lo. Apenas duas semanas
depois do início de sua estada nos Andes, disse ao
presidente do clube que estava pensando em se demitir. Os
diretores tentaram convencê-lo a permanecer e se
revezaram em jantares para que ele se sentisse mais em
casa. Mas os esforços dos equatorianos foram em vão, e
Sócrates deixou o cargo após menos de dois meses.381
“Ele reclamava da técnica dos jogadores. Com quinze
dias, disse que desistiria e que queria ir embora, como se
tivesse se dado conta de que aquilo não era para ele”, disse
Edwin Andara, diretor de futebol da LDU à época. “Era um
sujeito melancólico, de uma tristeza profunda. Nunca o vi
alegre com a vitória ou triste com as derrotas, ele estava
sempre do mesmo jeito, com a mesma expressão. A
princípio, os jogadores o admiravam. Quem não admiraria
um monstro do futebol mundial? Depois, não o entendiam e
passaram a evitá-lo. Lamentavelmente, ele não conseguia
motivar os jogadores, era alguém muito triste. Esteve aqui
por dois meses, mas não se acostumou. Depois do último
jogo, quando perdeu para o El Nacional, veio falar conosco e
disse que ia embora, que não havia nenhum problema para
resolver, não queria nem receber. Para nós foi um alívio,
porque o time não andava bem, não jogava nada e o
impacto midiático já tinha se diluído.”382
Sócrates ainda tentava encontrar seu lugar, mas
continuava, como sempre, disposto a fazer o que não fosse
usual, e, em 1996, aceitou um convite para conhecer
Muammar al-Gaddafi na Líbia, país que sofria um embargo
econômico. Ele dirigiu durante a noite, partindo da Tunísia
num comboio de veículos 4×4 e os dois se encontraram
primeiro no deserto, depois na casa em que o ditador havia
criado um altar para sua filha adotiva, assassinada por um
bombardeio norte-americano ocorrido uma década antes.383
Eles conversaram sobre “futebol, política, história e
sentimentos”, e Gaddafi ofereceu a Sócrates apoio
financeiro para concorrer à presidência do Brasil, o que ele
educadamente recusou.384
Em vez de tornar a enveredar pela política, ele retomou
passatempos mais mundanos, principalmente o hábito de
escrever, que considerava estimulante. Sócrates assinou
uma coluna na revista Carta Capital que duraria uma
década, foi coautor de um livro sobre a Democracia
Corinthiana com Ricardo Gozzi e se dedicou a escrever uma
autobiografia que misturava memórias, filosofia e histórias
do futebol. Ele costumava brincar que era um artista
multimídia e que escrever e apresentar programas de TV
eram acréscimos a um currículo que já registrava suas
investidas no teatro e na música nos anos 1980. Sócrates
continuou compondo músicas até o fim de sua vida, muitas
vezes escrevendo letras em guardanapos encontrados na
mesa de bares em Ribeirão Preto — ao lado de Bueno, seu
fiel parceiro de bares e composições. Projetou parcerias com
Toquinho, Zeca Baleiro e Fagner, e até gravou um CD
chamado Sócrates, Bueno e convidados. Mais tarde, ainda
pintaria e escreveria poemas.
Escrever era fácil para ele, mas a atividade nunca se
pareceu com uma carreira, e quando Sócrates foi
apresentado à oportunidade de voltar ao futebol, não
conseguiu dizer não. A chance veio no final de 1999,
quando o prefeito de Cabo Frio abordou o velho amigo
Leandro e lhe perguntou se queria dirigir o time local. O ex-
lateral do Flamengo e da seleção nasceu em Cabo Frio, e
voltou à cidade para abrir uma pousada depois de se
aposentar do futebol. O local era popular entre turistas —
especialmente entre torcedores do Flamengo —, que iam
aproveitar as praias de areias branquíssimas e conhecer a
coleção de troféus de Leandro, ao lado de uma parede com
registros fotográficos de seus dias de glória.
Leandro não se enxergava como treinador, mas gostou da
ideia de se envolver com o lado administrativo do clube e
ligou para Sócrates para contar a notícia. Ele ficou surpreso
com a resposta entusiasmada do amigo.
“Ele me disse: ‘Leandro, me leva contigo. Eu quero me
envolver nisso, quero ajudar’”, relembrou Leandro. “E eu
disse: ‘Você tem certeza? Realmente quer deixar Ribeirão
Preto e vir para Cabo Frio?’. Ele disse: ‘Sim, tenho
certeza’.”385
A ideia de dirigir um time pequeno perto da praia se
aproximava da perfeição nos parâmetros de Sócrates, mas
logo no início ele percebeu que se tratava de algo mais do
que futebol. Ainda que estivesse fora daquele ambiente
fazia anos, ele ainda acreditava na filosofia da Democracia
Corinthiana, e queria ver se conseguia fazê-la funcionar em
um clube menor, sem estrelas e com pouca atenção da
mídia. O futebol estava se tornando uma atividade muito
mais comercial, o que serviu apenas para incrementar o
desafio, e seu entusiasmo cresceu após a primeira visita ao
lugar onde o time jogava.
O estádio tinha salas vazias embaixo da arquibancada, e
as preocupações de Sócrates envolvendo a questão da
educação logo afloraram. Ele tinha colocado caixas com
livros no carro — mais livros do que roupas, lembrou o
amigo Bueno — e dirigido quase novecentos quilômetros
com a intenção de estimular seus novos jogadores. Como já
dispunha do espaço, Sócrates conseguiu alguns
computadores e quadros-negros; duas semanas depois de
chegar a Cabo Frio, já estava liderando grupos de discussão
sobre os temas do momento antes dos treinamentos.
Algumas vezes, pegava uma página do jornal e a fixava na
parede para que os jogadores a lessem. Em outras ocasiões,
eles conversavam sobre um livro. E, de vez em quando, ele
simplesmente escolhia um assunto que o interessava. O
tema e o método não importavam. O mais importante era
ver jovens jogadores falando sobre algo diferente de
futebol.386
O experimento foi um sucesso, e Sócrates decidiu seguir e
tentar criar outro movimento como a Democracia
Corinthiana. Seu sonho era acabar com a concentração e
ele colocou a ideia em votação para os 41 funcionários do
clube. Notando como os jogadores respondiam aos debates
diários, ele estava otimista. Achava que teriam coragem de
assumir mais responsabilidades fora do campo. Mas o
resultado foi um golpe que, de uma vez por todas,
confirmou a morte dos ideais que ele lutou incansavelmente
para implantar.
“Coloquei em pauta também o processo democrático.
Vamos votar o que interessa a todos, né? A concentração,
por exemplo, perdi de 40 a 1. O único voto contra foi o
meu.”387
Sócrates teve mais sucesso com o time dentro de campo,
mesmo que tenha chegado a um clube com apenas dez
jogadores sob contrato, seis deles machucados. Como não
havia categorias de base e nenhum trabalho de observação,
eles recorreram a velhos amigos para ajudá-los. O irmão de
Leandro sugeriu jogadores que tinha visto em São Paulo.
Sócrates ligou para ex-colegas e pediu recomendações. Zico
emprestou alguns jogadores de seu clube no Rio.
A ideia era usar os últimos meses de 1999 para construir
um time que pudesse competir no campeonato estadual do
Rio de Janeiro na temporada seguinte, e eles foram bons o
bastante para subir da segunda para a primeira divisão —
embora não fosse uma tarefa muito difícil, já que oito de
dez times conseguiram o acesso. Entretanto, o clube não
tinha dinheiro para qualificar a equipe depois da promoção
e o nível de dificuldade da primeira divisão foi demais para
eles. Após dois empates e uma derrota nos primeiros três
jogos, a Cabofriense demitiu Sócrates.
“A gente tinha um time capaz de nos levar para a primeira
divisão, mas não um time que pudesse nos manter na
primeira divisão”, reconheceu Leandro. “O que importa são
os resultados e a gente começou a perder. O prefeito pediu
para eu despedi-lo, mas eu disse que não ia fazer isso:
‘Você pode pedir pra outra pessoa, eu não tenho coragem
pra isso’. Então, alguém tomou a providência. O Sócrates
não fazia ideia de que isso aconteceria. Ele tinha assinado
um contrato só de quatro meses com um apartamento, mas
sabia que o futebol é assim, que essas coisas acontecem
quando você perde. É normal.”388
Os seis meses que Sócrates passou em Cabo Frio foram
profundamente prazerosos no aspecto pessoal, mas
também uma trágica confirmação de que sua ética
democrática era anacrônica. As sementes que ele plantou
com tanto sucesso no Corinthians não criaram raízes.
Nenhum clube adotou suas ideias e, até os dias de hoje, os
clubes brasileiros funcionam muito mais como ditaduras do
que como democracias. Os melhores clubes do Brasil se
tornaram mais profissionais também e agora têm modernos
departamentos de marketing, observadores por todo o país
e centros de treinamento tão bons quanto os europeus.
Mas a participação dos jogadores é limitada a jogar
futebol, e eles têm pouca ou nenhuma influência sobre
como as agremiações são dirigidas. Alguns clubes
suspenderam temporariamente a concentração ao longo
dos anos, mas não porque os jogadores tenham exigido
mais liberdade ou porque os clubes os tenham considerado
maduros o suficiente para cuidarem de si mesmos na noite
anterior aos jogos. Ao contrário, atletas de clubes como o
Botafogo, a Portuguesa e o Vasco da Gama se recusaram a
se concentrar, como forma de protesto pelo atraso no
pagamento dos salários. Em alguns casos, os clubes
estavam tão endividados que eliminar custos com hotéis foi
uma opção fácil. Mas assim que as finanças se
reequilibraram, a concentração acabou restabelecida. Os
jogadores que, de repente, foram liberados das restrições
pré-jogo revelaram satisfação, mas nenhum deles jamais
solicitou o fim definitivo do sistema.
Em vez de dar mais liberdade aos jogadores, os clubes
tomaram providências para contê-los ainda mais. Atlético
Mineiro, Cruzeiro e, ironicamente, o Corinthians estão entre
os que construíram suas próprias acomodações dentro dos
centros de treinamento, como forma de manter os
jogadores isolados antes das partidas.
“O jogador é conservador, em geral, porque o sistema é
conservador”, disse Sócrates, em 2011, muito tempo depois
de ter ficado claro que a Democracia Corinthiana nunca se
repetiria. “Ele nasce dentro desse sistema e não consegue
romper com ele. Aceita porque é cômodo para ele. Aceita
ser tratado como criança a vida toda. Por isso eles têm
grandes problemas quando encerram a carreira. Porque aí
você tem que virar gente, tem que fazer as coisas.”389
Sua saída forçada da Cabofriense não o perturbou em
nada. Sócrates ficou mais preocupado por não poder mais
andar na areia e sair à noite com Leandro do que por ter
perdido o emprego no time. Sabia que as demissões eram
inevitáveis no futebol e sua saída foi notável, acima de
tudo, por ter sido a primeira vez desde que deixou a
Fiorentina que Sócrates não escolheu o momento de partir.
A demissão, no entanto, se tornou significativa por outro
aspecto: foi seu último trabalho em tempo integral num
clube de futebol. Quando saiu, Sócrates sentiu mais falta do
jogo do que deixou transparecer, mas o que mais o afetou
foi não ter um propósito na vida. O novo milênio traria
outras oportunidades e ele estava pronto para elas. Mas a
maioria eram atividades passageiras. Preso entre um
passado que ele não tinha desejo de revisitar e um futuro
para sempre indefinido, Sócrates se concentrou no presente
e no que mais gostava de fazer: na última década de sua
vida, sua companhia mais constante foi a bebida.
Capítulo 19
Ele era um homem desencantado. Não tinha nenhum motivo que o
prendesse o bastante. Eu acho que ele era um homem muito atormentado
e que procurava um sentido para a vida e nunca o encontrou.
Mino Carta, amigo de Sócrates, editor da revista Carta Capital

Em dezembro de 1980, a revista Placar pediu a Sócrates


que imaginasse como seria sua vida em 2004, aos
cinquenta anos.
Então com 26, ele imaginou que estaria aposentado após
conquistar a Copa do Mundo de 1982 e que se dedicaria a
trabalhar numa clínica de ortopedia infantil em Ribeirão
Preto. A clínica teria poucos sinais de que ele tinha sido um
jogador de futebol famoso, sem fotos nas paredes ou
revistas esportivas na sala de espera, e ele não teria
nenhum interesse em visitar o estádio com capacidade para
duzentas mil pessoas no qual o Corinthians estaria
mandando seus jogos.
Ele participaria de peladas aos fins de semana com
amigos da faculdade e do trabalho, e talvez fosse ver o
Botafogo jogar de vez em quando. Mas, em sua projeção, o
futebol profissional estaria no passado e ele estaria feliz
assim — ou, ao menos, era nisso que ele queria que as
pessoas acreditassem.
Sócrates pensou em algumas palavras que Regina diria,
projetando a vida imaginária do marido: “Sócrates disse ao
mundo que não quer saber de futebol, mas tem momentos
em que ele não consegue resistir e pega o álbum de
recordações para olhar para trás”.
“Eu acho que esse álbum está trancado numa gaveta e só
ele tem a chave”, imaginaria Regina. “Às vezes, ele passa
horas em seu escritório e, quando sai, seus olhos estão
vermelhos, como se ele tivesse chorado. Sócrates não diz
nada, mas eu sei por quê. Ele nega, mas o futebol marcou
sua vida.”390
O futebol teve um efeito muito maior em Sócrates do que
ele jamais admitiu, e uma das tragédias de seus últimos
anos foi não ter encontrado nada que, mesmo
remotamente, lhe trouxesse tanta satisfação. Sócrates
nunca tinha imaginado fazer qualquer outra coisa que não
fosse praticar a medicina, e quando esse sonho
desmoronou, ele também ficou aterrado.
“A vida inteira ele imaginou que, na hora em que parasse
de jogar, seria médico”, disse seu irmão Sóstenes. “Isso
estava colocado para ele. Fez seis anos de medicina, deixou
aquilo de lado para ter uma carreira no futebol e, quando
terminasse, voltaria à carreira de médico. Como isso não
deu certo, ele não se adaptou, acho que se perdeu, não
sabia mais o que fazer. Eu acho que ele estava naquela fase
também de muita boemia, se apaixonou aqui, se apaixonou
ali — eu acho que isso não ajudou. Ele estava procurando
alguma coisa, mas não encontrou. Nunca o vi empolgado
com um projeto. Ao começar um projeto, ele falava muito a
respeito, mas nunca vi uma consistência, uma coisa que ele
realmente quisesse.”391
Na verdade, naquele ponto, mais do que antes, Sócrates
tinha se tornado um filósofo. Era um homem de palavras,
conceitos e teorias, não um homem de obras e ações.
Sempre tinha ideias, mas não contava com a energia ou a
paciência para convertê-las em projetos de trabalho. Ele
rapidamente perdia a paciência com o mundo real e suas
tediosas barreiras burocráticas, administrativas e
financeiras.
Seu velho amigo Trajano conta que os encontros com
Sócrates muitas vezes eram sobre planos que nunca
decolavam. “Sempre era uma coisa que começava, às vezes
nem começava; quando começava, terminava dois dias
depois. Uma hora ele ia empresariar torneios de tênis, outra
hora ia cantar música sertaneja, fazer cineclube, filme, o
escambau.”392
A última ambição não realizada de Sócrates era a de
trabalhar com jogadores jovens, preferencialmente no
Corinthians. Ele queria dirigi-los dentro e fora do campo,
ensinando-lhes sobre a vida e a política e as armadilhas que
os aguardavam. A finalidade do trabalho seria produzir
grandes jogadores, mas, acima de tudo, ele queria produzir
jovens lúcidos que estivessem prontos para o mundo e
cientes de como o status de que gozariam poderia
transformá-lo. Infelizmente, ele nunca chegou a formular
um plano detalhado, e, mesmo que tivesse feito isso, os
clubes de futebol do Brasil, sempre tão conservadores, não
cogitariam contratar alguém com as visões independentes
dele. No século XXI, revolucionários eram ainda menos bem-
vindos do que na época da Democracia Corinthiana.
Em vez disso, ele seguiu escrevendo colunas de jornais e
revistas e até mesmo um livro de memórias [que seria
publicado postumamente], e produziu e apresentou
programas de entrevistas na televisão em Ribeirão Preto.
Compôs e gravou com seu amigo, músico, Roberto Bueno;
envolveu-se com o Cineclube Cauim, uma entidade cultural
em Ribeirão; e viajou pelo país ensinando esportes para
crianças carentes em locais distantes das maiores cidades
brasileiras. Também frequentou um curso MBA de
administração esportiva na Fundação Getúlio Vargas.
Ocasionalmente deu palestras com foco no mercado
corporativo, e permaneceu como embaixador da marca
Topper, cuja linha de produtos associados a Sócrates ainda
era uma das mais bem-sucedidas de seu catálogo vinte
anos após seu auge como jogador. Em 2004, Sócrates
esteve em Paris para receber um prêmio da fifa como um
dos maiores jogadores de futebol ainda vivos.
Sócrates encontrou um propósito, embora breve, para
estimulá-lo no início do milênio, quando participou de uma
campanha por mudanças na CBF. Os líderes da organização,
entre os quais haveria indiciados no escândalo da fifa mais
de uma década depois, foram acusados de crimes como
evasão de divisas, extorsão e lavagem de dinheiro numa CPI
conduzida pelo Congresso brasileiro. Sócrates ficou
indignado com as descobertas, e embora o estatuto da
confederação não lhe permitisse nenhuma chance de ser
eleito presidente, ele se apresentou como candidato
alternativo para poder bater forte nos dirigentes. Mais tarde,
dias após o Brasil ter sido escolhido como sede da Copa do
Mundo de 2014, ele manifestou preocupação com os
perigos de superfaturamento e uso inapropriado de dinheiro
público, além das inúmeras promessas de maravilhosos
legados e benfeitorias fantásticas. Ele nunca aliviou as
críticas a Ricardo Teixeira — presidente da CBF durante 23
anos e um dos que seriam indiciados nos Estados Unidos —
e deliciou os repórteres, ao deixar o hospital, perto do fim
de sua vida, gritando “Fora, Teixeira!”, quando perguntado
como estava se sentindo.
Em novembro de 2004, numa de suas experiências mais
memoráveis, Sócrates, aos cinquenta anos, deixou a
aposentadoria para jogar no Garforth Town, um clube da
nona divisão do futebol inglês. O dono do clube, Simon
Clifford, era um grande fã do Brasil e adorava futsal, esporte
que levou ao Reino Unido por intermédio de uma
organização com seiscentas escolinhas de futebol. Sócrates
fez um acordo para disputar algumas partidas, mas o frio
extremo o afetou demais e sua única aparição foi nos treze
minutos finais de um empate em 2 × 2 entre o Garforth
Town e Tadcaster Albion. Clifford e Sócrates viajaram pelo
país dando clínicas de futebol todos os dias e bebendo
todas as noites, e, juntos, planejaram uma revolução no
futebol mundial. Inevitavelmente, Sócrates não foi adiante,
e a memória mais duradoura de Clifford a respeito da
viagem é a do amigo brasileiro tentando convencê-lo a
começar a fumar, porque era cruel permitir que ele bebesse
e fumasse sozinho.
“Numa das primeiras noites, estávamos num restaurante
e ele disse: ‘Se você não vai beber, podia pelo menos
fumar’”, lembrou Clifford. “Sócrates disse: ‘Ou você é meu
irmão, ou não é’. Eu fumei quando estava na escola, mas
fazia muito tempo, então pensei: ‘Ok, vou fumar um cigarro.
Posso parar na semana que vem’. Bem, nove anos depois,
eu ainda continuava fumando.”393
Essas iniciativas punham Sócrates em contato com gente
nova e interessante, o que ele adorava. O público que
apareceu para vê-lo jogar pelo Garforth foi dez vezes maior
do que o habitualmente visto no campo, e ele era festejado
por onde passava, inclusive no Manchester United, onde Sir
Alex Ferguson interrompeu um treinamento para apresentá-
lo a seus profissionais multimilionários, muitos dos quais
eram jovens demais para se lembrar de Sócrates. Mas tudo
aquilo era mais entretenimento do que trabalho, e
certamente não havia futuro ali. O objetivo principal, como
era comum em seus últimos anos, era simplesmente se
manter ocupado e se divertir.394
“Ele realmente não conseguia se achar
profissionalmente”, disse Sóstenes. “Se você não tem uma
profissão e também não está estável na vida sentimental, a
boemia toma conta. Ele não conseguia se apegar a uma
coisa. Então ficou, de certa forma, pulando de paixão em
paixão. Ficou com essa vida, de boemia.”395
Sócrates estava descendo a avenida Nove de Julho, em
Ribeirão Preto, quando encontrou Hamilton Mortari, ex-
diretor do Botafogo. Foi no começo dos anos 2000 e Mortari
estava indo comprar um celular. Sócrates foi junto.
“Eu vou com você e ajudo a escolher um número”, disse
Sócrates.
Mortari, já envelhecendo, ficou feliz por encontrar o amigo
e eles se sentaram juntos diante de uma tela para escolher
um número.
Quando o cursor mostrou “51”, que é também o nome da
marca de cachaça mais conhecida do Brasil, Sócrates disse:
“Para aí, esse número é pra você!”.
“Por que 51?”, Mortari perguntou.
“Porque, com o 51, você vai se lembrar de mim pelo resto
da vida”, Sócrates respondeu, sorrindo.396
Sócrates sempre brincou com seu caso de amor de uma
vida inteira com a bebida. Disse a seu amigo e parceiro de
bar, Fernando Kaxassa, que sua mulher, Barbara, era a
mulher perfeita, porque tinha dois bares em seu nome.397
Quando foi apresentado a Fernando Beer, um executivo de
vendas na Topper, ele sorriu e disse: “Eu já gosto de você”
[beer é “cerveja” em inglês]. Ao menos dois bares em
Ribeirão Preto tinham mesas especialmente reservadas
para ele — e um deles, o Pinguim, permitia que ele bebesse
de graça, porque sua presença atraía clientes.398
Para Sócrates, beber era sinônimo de diversão. Ele nunca
levou o alcoolismo a sério ou sequer admitiu que tinha um
problema. Saindo do hospital semanas antes de sua morte,
ainda insistia que não tinha nenhum arrependimento e
prometia que não mudaria. “Eu faço o que eu quero e vou
continuar fazendo. Se me dá prazer, vou continuar. Se eu
não quiser fazer, não faço. Eu não sou viciado em nada, não
sou dependente de álcool. Não tenho sintomas de
abstinência, não sou quimicamente dependente.”399
Sócrates escolheu viver a vida ao máximo, mas os longos
anos de abuso do álcool começaram a cobrar seu preço e os
amigos passaram a notar sutis mudanças em seu
comportamento. Ele nunca foi do tipo que ficava agressivo
ou caía de tanto beber — e como preferia beber cerveja
fraca, sem pressa, era difícil notar quando estava mal. Mas,
quando passou dos cinquenta anos, seu corpo apresentou
dificuldades para suportar o hábito. Ele já não conseguia
beber o dia inteiro sem sentir os efeitos. As ocasiões em
que tropeçava ou falava enrolado ainda eram raras, mas
estavam se tornando mais comuns.
Seu primeiro susto com a saúde aconteceu em 1996,
quando ele tossiu sangue no meio da noite e teve de dirigir
sozinho até o hospital. A mesma coisa se passou nove anos
depois; mas, em ambas as ocasiões, ele ignorou as ordens
médicas para parar de beber e fumar, ou pelo menos
diminuir a frequência. Na verdade, Sócrates fez o oposto:
sem um trabalho para preencher seus dias, a bebida se
tornou seu único passatempo regular; no final dos anos
2000, ele estava bebendo como se não houvesse amanhã.400
Seus amigos perceberam que ele ia ladeira abaixo e
alguns ligaram para um amigo de Sócrates dos anos de
faculdade, dr. Aloisio Abud, para pedir ajuda. Depois de não
ir à primeira consulta com Abud, Sócrates apareceu para
fazer exames de sangue, uma endoscopia e um ultrassom.
Os resultados não foram encorajadores, mas Sócrates não
se preocupou em buscá-los por seis meses. Ele não se
importava com nada e Abud, preso aos princípios éticos de
sua profissão, não podia comentar a gravidade do caso com
amigos e parentes.
Os exames revelaram que o fígado de Sócrates estava
afetado a ponto de não conseguir trabalhar em toda a sua
capacidade, mas ele se recusava a admitir que tinha cirrose
e descrevia sua condição como uma fibrose, algo menos
sério. A fibrose inevitavelmente leva à cirrose, mas o
“doutor” Sócrates vivia em estado de negação e ninguém
conseguia fazê-lo se preocupar.
Em vez de mudar de hábitos, ele continuou a beber,
convencendo-se de que, se a cerveja poderia lhe fazer mal,
o vinho lhe fazia bem. Sócrates não sabia, ou não queria
saber, que há mais álcool no vinho do que na cerveja.
Alguns amigos se recusavam a lhe servir sua bebida
favorita, e ele odiava tomar cerveja sem álcool porque,
dizia, “tem gosto de merda”. Então, eles relutantemente
tomavam vinho juntos e Sócrates bebia cabernet e merlot
com litros e litros de água, pois acreditava que a prática
diluía o teor alcoólico do vinho.401
“Ele estava indo para a beira do precipício e, em vez de
diminuir a velocidade, acelerou”, disse Maria Adriana Cruz,
sua parceira por oito anos no início da década. “Todo dia era
uma festa. Ele acordava, tomava café e saía para andar. Às
10h, abria uma cerveja e ia para o computador, escrever.
Ele almoçava, depois descansava e, às 16h, encontrava um
amigo para beber com ele. Ficava bebendo até tarde e fazia
isso todos os dias da semana”.402
Kátia Bagnarelli era jovem, loira e atraente; em janeiro de
2010, foi contratada para produzir uma série de palestras
corporativas que Sócrates faria para empresas
multinacionais com sede no Brasil.
Na primeira vez que se encontraram, eles debateram as
apresentações que ele faria aos clientes dela. Na segunda
vez, Sócrates já falava abertamente sobre se tornar marido
dela. No terceiro encontro, Sócrates cantou sambas para
Kátia e eles dormiram juntos. Logo estavam morando juntos
e, em novembro de 2010, casaram-se numa pequena
cerimônia civil em Campinas, cidade natal dela.403
Sempre que encontrava uma nova namorada, Sócrates
abandonava os antigos amigos e se dedicava cem por cento
ao novo amor, e isso aconteceu especialmente após sua
separação de Silvana Campos, em 1994. Sócrates odiava
ficar sozinho e o fim do casamento com Silvana o levou a
olhar para o passado. Não foi a primeira vez que ele
percebeu que tinha cometido erros com as mulheres de sua
vida e, depois de romper com Silvana, tentou voltar com
Regina, ligando para ela e pedindo a amigos que
interferissem. Não importava que sua primeira mulher
tivesse se casado novamente com um homem que Sócrates
conhecia e de quem gostava, que era um maravilhoso
padrasto para seus quatro filhos. Sócrates percebeu que
tinha errado e insistiu em reconquistá-la; chegou a parar
seu carro diante do portão da casa dela e aumentar o
volume do som, colocando músicas que haviam marcado o
relacionamento deles. Regina ligou para a melhor amiga,
que, sabendo o quanto ela ainda amava o ex-marido,
manteve-se com ela ao telefone e a convenceu a não
descer para não ceder à tentação.
Depois de retornar do Equador e ter um rápido caso com
uma modelo adolescente, Sócrates conheceu Simone
Corrêa, uma estudante de odontologia dezesseis anos mais
jovem que ele. Ele se apaixonou instantaneamente pela
prática Simone, e — após uma campanha planejada para
seduzir a moça de 26 anos, que ainda hesitava — ela se
tornou sua terceira mulher em maio de 1997. Simone
conseguiu fazê-lo reduzir a bebida, dizendo a Sócrates que
cerveja era algo que se bebia em bares à noite, não durante
o café da manhã em casa, e o casal ficou devastado quando
ela sofreu um aborto durante a Copa do Mundo de 1998.404
Eles se distanciaram no ano seguinte, quando Sócrates
conheceu Maria Adriana Cruz ao participar de um torneio de
veteranos durante a Copa América de 1999. Aos 45 anos,
Sócrates ficou tão enfeitiçado pela divorciada de 34 anos,
que dirigia 570 quilômetros de Cabo Frio a São Paulo apenas
para vê-la por algumas horas, antes de voltar no meio da
madrugada. Maria Adriana era um animal social como
Sócrates, e, embora o relacionamento entre eles tenha sido
um dos mais tempestuosos de sua vida, eles tinham um
bom entrosamento.
Entretanto, isso mudou quando tiveram um filho, em
setembro de 2005: outro menino, chamado Fidel, em
homenagem ao líder cubano que Sócrates tanto admirava.
Crianças faziam Sócrates se sentir preso — “Era como se ele
achasse que, com a criança, o que nós tínhamos precisava
durar para sempre”, disse ela — e ele tratou o filho recém-
chegado como algo a ser evitado. Começou a frequentar
bares novamente e a inevitável separação, quando
aconteceu, foi diferente de todas as outras. Sócrates
sempre se esforçou para garantir que os rompimentos
fossem amigáveis; mas, desta vez, as coisas foram lentas e
difíceis. Fidel tinha apenas três anos e a amargura se
arrastou durante anos, enquanto eles brigavam por pensão
alimentícia e acesso à criança. Sócrates chegou a ficar
longos períodos sem ver o filho mais novo.405
Houve outras namoradas nos intervalos entre os quatro
casamentos, e ele perdeu contato com muitos de seus
amigos mais próximos. Quando uma nova mulher aparecia,
ele se atirava de corpo e alma ao relacionamento — sempre
chamando a nova parceira de “minha linda”, para não
trocar nomes — e os amigos eram esquecidos em
detrimento do amor que o cegava completamente. Quando
conheceu Kátia, ele não via amigos próximos, pessoas como
Palhinha, Adilson e Casagrande, fazia anos.
“Ele simplesmente desaparecia”, disse Regina Saquy.
“Quando não o víamos por meses, sabíamos que as coisas
estavam indo bem com a nova mulher. Mas quando os
problemas começavam, ele voltava correndo.”406
O padrão se repetiu com Kátia. O casal se mudou para
uma nova casa em Alphaville, em janeiro de 2011, dois
meses depois do casamento, e comemorou com uma festa
no mês seguinte. Só um de seus filhos foi ao casamento —
os outros cinco irmãos não foram convidados — e o casal se
distanciou dos amigos ao se estabelecer no novo endereço.
A diferença de 26 anos não foi um obstáculo para o amor
entre eles, e Kátia adorava o novo marido a ponto de
acreditar que ele tinha o poder de curar doenças apenas
impondo as mãos sobre um paciente. (Mais tarde, ela
chegou a aparecer na televisão em emocionantes
entrevistas com médiuns que a convenceram de que
Sócrates lhe enviava mensagens do túmulo.)407
Anos antes, Sócrates tinha encontrado o Espiritismo, o
que lhe deu uma paz interior que nunca tinha sentido — a
ponto de ele começar a frequentar os centros espíritas,
onde participava das palestras sobre a doutrina.408
Ele, no entanto, continuava bebendo, e os efeitos
acumulados do álcool eram cada vez mais visíveis. Sócrates
apareceu no casamento de seu afilhado, João, em outubro
de 2010, com uma gravata amarrada ao redor da cabeça e
carregando um quadro, que tinha terminado horas antes,
como seu presente para os noivos. Seu estado era
lamentável e o pai de João, Maurinho Saquy, tentou
convencê-lo a morar com sua família por algum tempo. O
sítio deles foi um santuário para Sócrates durante toda a
vida, um lugar em que ele podia relaxar na companhia dos
amigos mais íntimos. Eles acreditavam que Sócrates
poderia ficar ali e melhorar, mas o amigo estava apaixonado
por Kátia e não demorou para o inevitável acontecer. Em
julho de 2011, Sócrates acordou no meio da noite com dores
na barriga e, antes que chegasse ao banheiro, caiu
vomitando sangue sobre a parceira. Kátia o levou às pressas
para o hospital, onde ele passou dois dias antes de voltar
para casa.
O diagnóstico foi de hemorragia digestiva crônica,
causada pela cirrose. O mais claro aviso até então. O casal
manteve o incidente em segredo, torcendo para que fosse
um episódio isolado, que poderia se resolver com
abstinência e hábitos mais saudáveis. Kátia tentou mantê-lo
afastado dos antigos amigos, pessoas que ela acreditava
serem más influências (porque bebiam junto com Sócrates),
e ele foi capaz de controlar melhor sua rotina, dedicando-se
à pintura e a escrever sua autobiografia.
Estava determinado a se manter saudável o suficiente
para aproveitar uma lua de mel tardia em Cuba, onde havia
concordado em discutir a hipótese de dirigir a seleção
nacional. Também queria ir à Venezuela, entrevistar o
presidente socialista Hugo Chávez.409
Entretanto, antes de poder viajar ao Caribe, voltou a tossir
sangue e, em agosto, passou nove dias no hospital e um
mês convalescendo em casa, muito fraco para ir ao
casamento de seu filho Marcelo. Dessa vez os vômitos
foram mais intensos e se estenderam por mais tempo, e ele
entrou em coma. Os médicos conseguiram salvá-lo, mas a
situação era muito grave, e quando ele foi liberado para
voltar para casa, quase uma semana depois, recebeu um
duro aviso: “É sua última chance. Nem uma gota de álcool.
Não pode beber absolutamente nada. Se parar de beber, aí
você pode pensar num transplante”.410
Sócrates finalmente foi a Havana, em setembro, com
Kátia, mas para uma viagem mais curta do que eles
gostariam. As planejadas entrevistas com Fidel Castro e
Chávez, que estava na ilha para um tratamento de câncer,
não aconteceram. Sócrates estava tão fraco que Kátia o
convenceu a adiar mais um plano: o de fazer tratamento de
inseminação para ter as filhas gêmeas com as quais os dois
sonhavam.
Mas não havia descanso. Um dia depois de retornarem do
Caribe, Sócrates foi novamente levado ao hospital em razão
de novos sangramentos, provavelmente devidos à sua
insistência em tomar vinho quando visitaram o centro de
Havana. O clima na capital cubana era quente e abafado, e
Kátia sentia um frio na espinha cada vez que Sócrates
erguia uma taça de vinho tinto. Mas não conseguia fazer
nada para impedi-lo. O estado de saúde de Sócrates era o
pior possível; e, embora os médicos tenham cauterizado
algumas de suas veias para conter a hemorragia, seu
estômago também começou a sangrar — e houve
momentos em que pareceu que, daquela vez, não haveria
como salvá-lo. Uma equipe de cirurgiões novamente foi
capaz de trazê-lo de volta do precipício, mas o quadro era
tão ruim que ele passou mais dez dias em coma. Incapaz de
aprender a lição, muito menos de acatar ordens, ele insistiu
em fumar um cigarro na sacada do hospital antes de ir
embora.411
Sócrates diminuiu a frequência dos compromissos e
melhorou gradualmente entre outubro e novembro. Estava
saudável o bastante para recomeçar a trabalhar, fazendo
palestras e participando do programa Cartão Verde, na TV
Cultura. Mas ainda fumava e seus amigos se preocupavam.
“Você resolveu ligar o ‘foda-se’ e desistir?”, um exasperado
Juca Kfouri perguntou a ele pouco antes de sua morte.
Sócrates apenas deu de ombros.412
Em 2007, logo depois de se separar de Maria Adriana
Cruz, Sócrates procurou uma velha amiga no Rio de Janeiro.
Mais de vinte anos após encerrar o tórrido caso com
Rosemary, ele queria vê-la de novo.
O rompimento com Rosemary, em 1986, foi traumático.
Ele decidiu terminar o relacionamento ao retornar da Itália,
porque tinha medo do desconhecido e se preocupava com o
que poderia acontecer com sua mulher e filhos se os
abandonasse. Mas nunca teve certeza se havia feito a coisa
certa. Suas dúvidas se originavam do fato de ter tomado a
decisão com a cabeça, não com o coração. Confiava mais
em suas emoções, e nunca tinha deixado de sentir afeto por
ela. Rosemary não era o amor de sua vida — essa posição
talvez fosse de Regina — mas definitivamente era a mulher
que mais ele havia desejado, sua musa inspiradora durante
um dos períodos mais tumultuados de sua vida.
Assim, quando o casamento com Maria Adriana terminou,
ele procurava um rosto familiar e o óbvio a fazer era tentar
reacender uma antiga chama. Àquela altura, Rosemary
tinha quase sessenta anos, mas ficou encantada com o
contato de Sócrates. Ela também sentia que havia coisas
mal resolvidas, e assim os dois iniciaram um novo affair que
prosseguiu até o último ano da vida de Sócrates.
Rosemary manteve um digno silêncio durante mais de 25
anos, recusando-se a falar sobre o relacionamento deles.
Mas ela também sentia que o amor que nutriam um pelo
outro nunca havia morrido. “Nós fomos um quadro
inacabado”, disse. “Era difícil para ele, com todas as
responsabilidades. Nós não conseguimos ficar juntos. Eu
coloquei meus sentimentos numa caixinha e tranquei. Mas
ele sempre soube o que eu sentia por ele, e eu sempre
soube o que ele sentia por mim.”413
Eles continuaram se encontrando em intervalos
irregulares; no começo de 2011, semanas depois de se
casar com Kátia, Sócrates levou o filho Gustavo para passar
o Carnaval na casa de Rosemary, no Rio de Janeiro. Eles se
sentavam na varanda, à noite, para tomar prosecco, e ele
foi vê-la cantar com a Mangueira. Foi a última vez que se
viram e a viagem terminou em frustração. Sócrates não
conseguiu se abrir e dizer a ela como se sentia, e não queria
preocupá-la revelando a gravidade de sua cirrose. Rosemary
suspeitava que seu estado era grave e notava como a
bebida cobrava seu preço. De seu jeito, sutil, pediu a ele
que parasse de beber e se cuidasse melhor. Mas nem as
palavras de Rosemary surtiam efeito. Sócrates não podia
mais ser ajudado.
A questão sobre como um homem tão inteligente pôde
enganar a si mesmo tão profundamente se apresenta tanto
como uma contradição quanto como um mistério. Sendo
médico, Sócrates claramente sabia o que a bebida fazia
com seu organismo, mas mesmo depois de vomitar sangue,
das internações e dos dias em coma, ele não conseguia ou
não queria fazer nada para se ajudar. Ainda mais intrigante
era sua incapacidade de admitir que tinha um problema.
Quando questionado se se considerava um alcoólatra,
Sócrates quase sempre se escondia atrás da indiferença ou
de explicações pretensiosas.
“É tudo semântica”, disse a um repórter do SporTV que
fez a pergunta com todas as letras, depois de uma das
internações de Sócrates. “As pessoas gostam de rotular as
coisas. Se me chamam de literato porque gosto de ler, não
há nenhum problema. Na verdade, sou pouco afeito a
dogmas, rótulos. As pessoas têm que buscar aquilo que lhes
interessa, que as deixa bem e felizes, satisfeitas. Não sou
dependente de nada. Não sou dependente do álcool. Não
sou dependente do cigarro, apesar de fumar. É uma opção
pessoal, faz parte do meu cotidiano. No caso da bebida,
fazia, porque não quero mais, já que criei uma
hipersensibilidade. E o cigarro, vou continuar fumando, até
achar que está me incomodando. Tem essa possibilidade,
como qualquer um de nós. A escolha é sempre pessoal e
individual.”414
Outra escolha pessoal foi a de não buscar um transplante
de fígado o quanto antes. O médico e amigo Zé Bernardes o
encorajava desde 2008 a colocar seu nome na lista de
transplantes porque, ainda que precisasse parar de beber
por seis meses antes de uma eventual cirurgia, primeiro ele
tinha que entrar na lista e avisar os médicos de que era um
candidato. Sócrates suspeitava que seus amigos quisessem
fazer seu nome subir na lista e se recusava até mesmo a
considerar uma opção que desse a impressão de que estava
querendo passar na frente de alguém em maiores
dificuldades. Ficava espantado quando estranhos se
ofereciam para doar seus próprios órgãos, mas ainda assim
parecia não perceber que seu problema era real.415
Bernardes, um dos melhores hematologistas de Ribeirão
Preto, tentou fazê-lo entender a severidade de sua
condição, mas o velho amigo era impermeável à lógica e ao
bom senso.
“Eu acho que ele não acreditava que aconteceria com
ele”, disse Bernardes. “Eu já pensei muito, muito nisso. Não
consigo entender, mas, na minha opinião, na cabeça dele,
ele falava: ‘Não vai acontecer nada’. Médico é assim. Vou
falar uma coisa pra você, mas sou eu que estou falando,
não é ele, não. A faculdade ensina você a mandar. Médico é
mandão. Manda no paciente, manda na mãe da criança,
manda na avó, manda na enfermeira, manda no serviço
social. Então, você fica meio prepotente. Claro que está
cheio de médico que não é, mas a faculdade treina pra isso.
Aí você se julga um pouco Deus: ‘Eu sou imune, então eu
trato da doença, mas comigo não vai acontecer’.”416
Na quarta-feira, 30 de novembro de 2011, após mais um
mês de vida relativamente normal em sua espaçosa casa
em Alphaville, Sócrates deu uma palestra para
documentaristas. Ele não parecia bem e teve dificuldades
para encontrar as palavras, mas sentiu vontade de comer
alguma coisa após o evento. Ele, Kátia e cerca de vinte
produtores e diretores foram almoçar um estrogonofe num
hotel próximo.
À noite, ele comeu apenas um picolé e biscoitos de água e
sal. Ao acordar na manhã de quinta-feira, estava com 39
graus de febre. Queria suar até melhorar, e Kátia o manteve
aquecido como ele pediu. Juntos, eles torceram para que o
pior passasse.
Mas logo ele começou a vomitar de novo e Kátia, em
pânico, ligou para o médico. Sócrates implorou para ficar
em casa, mas já estava cinza e parecia mal. Uma
ambulância chegou rápido e os levou para o mesmo
hospital Albert Einstein onde ele havia passado boa parte
dos últimos quatro meses. Sócrates estava lúcido e
brincando com os paramédicos, mas claramente em estado
grave; os médicos da UTI o diagnosticaram com choque
séptico, provavelmente causado por uma bactéria ingerida
no almoço.417
Ele acordou na sexta-feira com boas notícias: o
infectologista disse que os medicamentos estavam surtindo
o efeito esperado e que ele estaria em casa em alguns dias.
Sócrates fez diálise, mas seu nariz começou a sangrar, e,
por causa da dificuldade para respirar, os médicos lhe
deram oxigênio.
Kátia começou a se preocupar e entrou em pânico na
tarde de sábado, quando um ofegante Sócrates olhou para
ela e disse: “Meu amor, não pense no meu corpo. Minha
alma sempre estará com você. Não me deixe”.
Ela imediatamente chamou o infectologista e os médicos
correram para intubá-lo. Algumas horas depois, após a
meia-noite, Sócrates piorou e um médico quis conversar
com sua mulher. “Kátia, você precisa se preparar”, ele
disse. “Está quase no fim, você precisa estar ciente disso.
Ele não tem mais muitas forças. Nós fizemos tudo o que era
possível.”
Entre 2h e 4h25, a pressão sanguínea de Sócrates chegou
aos níveis mais baixos possíveis: 20/20, comparada ao que
é normal, 120/80. E enquanto a frequência cardíaca normal,
em descanso, oscila entre sessenta e cem batimentos por
minuto, Sócrates estava tão fraco que seu coração batia
apenas uma vez a cada dois segundos. Às 4h25, o coração
parou completamente.
Epílogo
Sócrates foi uma lenda, mas nada que ele tenha feito ou
dito tornou-se tão lendário quanto sua fatídica premonição:
“Eu quero morrer num domingo, num dia em que o
Corinthians ganhe um título”. Era um desejo tão mórbido
quanto romântico — e, em 4 de dezembro de 2011, seu
desejo se tornou realidade. Ele tinha apenas 57 anos.
Como é tradição no Brasil, quando grandes
personalidades morrem seus corpos são velados em
público, para que os fãs prestem suas últimas homenagens.
Atores, cantores, atletas e escritores são colocados em
caixões abertos nos saguões de câmaras municipais ou
teatros, para que as pessoas, enlutadas, possam vê-los.
Os tributos são ainda mais grandiosos para os maiores
entre os grandes — pessoas como Garrincha ou Ayrton
Senna. Superastros como eles, que capturam a imaginação
ou o espírito de uma época, são levados em carros de
bombeiros, que trafegam lentamente pelas ruas de suas
cidades natais. Centenas de milhares de pessoas se
aglomeram para dizer adeus, tomando avenidas e pontes,
às vezes subindo em postes e árvores.
Sócrates foi um desses raros jogadores cujo apelo
transcendeu o futebol, mas não contou com uma cerimônia
desse tipo, e isso não o chatearia. O capitão da maior
seleção brasileira que não conquistou uma Copa do Mundo
e o líder da Democracia Corinthiana, o mais extraordinário e
progressista movimento a chacoalhar os arcaicos corredores
do futebol brasileiro, era avesso à idolatria. Ao se aproximar
do fim num quarto de hospital em São Paulo, Sócrates
queria apenas que, quando tudo acabasse, fosse levado
para casa e enterrado no lote da família com o mínimo
alarde.
Tão logo os médicos preencheram os papéis, seu corpo foi
embarcado num carro fúnebre para ser transportado a
Ribeirão Preto. Em um dos veículos estava seu irmão, Raí,
que tinha decidido realizar um enterro simples e reservado.
Em outro, estava a mãe dos dois, Guiomar, de noventa
anos. Wladimir, o líder black power que tanto havia
contribuído para a Democracia Corinthiana, vinha logo
atrás.
O comboio rumou direto para o cemitério Bom Pastor,
onde um grupo de pessoas tinha se reunido diante do
portão para receber Sócrates. Ele não era apenas pai de
seis filhos, um de seis irmãos e um filho dedicado: era uma
das figuras mais conhecidas e queridas da cidade, um
médico que preferia beber, cantar e dar risadas enquanto
falava palavrões e provocava as pessoas ao seu redor com
seu sorriso malandro. Todos em Ribeirão o conheciam ou
conheciam alguém que era próximo a ele, e centenas de
pessoas foram lhe dizer adeus. Quando o cortejo passou
lentamente pela Avenida das Lágrimas e se aproximou do
portão do cemitério, os fãs, vestindo camisas do Botafogo e
do Corinthians, seguiram o carro entoando seu nome.
O caixão foi levado a uma sala climatizada, onde
familiares e amigos puderam se despedir. Dona Guiomar
ficou em um aposento anexo, confortada pelas pessoas
mais próximas e queridas. Quatro ex-mulheres de Sócrates
estiveram presentes, assim como seus filhos e irmãos.
Regina ficou ao lado do corpo, alisando o cabelo do ex-
marido. Perto dela, supervisionando tudo, estava Raí, que
assumiu, sem esforço, o papel de patriarca da família.
Já era fim de tarde quando o simples caixão de madeira
foi colocado de volta no carro e conduzido lentamente para
dentro do cemitério. Fazia sol e centenas de pessoas,
vestindo calções e camisetas, percorreram o trajeto entre as
magnólias e a grama bem aparada até o lote número 1.126.
Quando chegaram ao jazigo da família Vieira, o túmulo já
estava preparado — e, de forma tipicamente caótica, os
coveiros manobraram o caixão até o espaço ao lado do pai
de Sócrates, enterrado ali sete anos antes.
Depois de uma breve cerimônia, as pessoas ao redor
rezaram um pai-nosso e cantaram o hino nacional antes de
o túmulo ser fechado, sob uma bandeira do Corinthians.
Todos aplaudiram. Enquanto flores eram distribuídas para
decorar o local, Bueno, amigo de Sócrates, pegou o violão e
todos os presentes cantaram.
Naquele exato momento, na capital do estado de São
Paulo, torcedores tomavam o caminho do estádio do
Pacaembu. O Corinthians estava prestes a enfrentar o rival
Palmeiras, no último jogo da temporada. O ex-time de
Sócrates precisava de apenas um ponto para conquistar seu
quinto título de Campeonato Brasileiro, mas no caminho
pelas ruas arborizadas ao redor do estádio, a expectativa
dos corintianos se misturava a uma quase palpável
sensação de perda.
A morte de Sócrates foi manchete no noticiário brasileiro
e seu falecimento foi o principal assunto das conversas para
muitas das 34 mil pessoas presentes no jogo. Mais do que
simplesmente um dos maiores jogadores da história do
Corinthians, Sócrates — com sua barba irregular, seu andar
desengonçado e suas visões assumidamente libertárias —
foi indiscutivelmente o mais icônico. Ele não jogava pelo
clube desde a metade da década de 1980, mas era um
corintiano fanático e a torcida não conseguia esconder o
sentimento de luto. Atrás dos gols, onde ficam os torcedores
mais devotados, sem camisa e pulando sob o sol do fim da
tarde, havia bandeiras e faixas: “Dr. Sócrates, descanse em
paz”, dizia uma delas, feita com spray e pendurada na
arquibancada; “Sócrates, eternamente em nossos
corações”, dizia outra, fazendo referência a um trecho do
hino do Corinthians e feita à mão minutos antes de o jogo
começar.
Homenagens foram prestadas em jogos por todo o país,
mas quando o sistema de som do Pacaembu anunciou um
minuto de silêncio, homens crescidos choraram e os gritos
de “É, Sócrates! É, Sócrates! É, Sócrates!” ecoaram no
magnífico estádio art déco. Os torcedores ergueram a mão
direita com o punho fechado, exatamente como Sócrates
fazia quando comemorava um gol. No gramado, os atletas
do Corinthians, ao redor do círculo central, fizeram o
mesmo.
O jogo que se seguiu foi irreconhecível em comparação ao
praticado por Sócrates em seu auge. O futebol, há muito
tempo, renegou o espírito esportivo e o ativismo que
haviam feito de Sócrates uma figura tão envolvente. Táticas
e tatuagens são tudo o que importa agora. O Corinthians
empatou em 0 × 0 e somou o ponto de que precisava para
levantar o título, mas os momentos finais — com muitas
discussões e empurrões, e quatro jogadores expulsos —
construíram exatamente o tipo de cena que indica que o
futebol não é mais o jogo que Sócrates amou. Ele teria
continuado observando tudo, com uma cerveja gelada em
uma mão e um cigarro na outra, mas teria perdido as
esperanças.
A singularidade de Sócrates talvez esteja no fato de ter
sido um futebolista brilhante que se tornou mais importante
fora dos campos do que dentro deles. Suas atitudes
ajudaram a transformar não só um clube de futebol, mas
um país. Ele ajudou o Brasil durante os anos cruciais da
transição da ditadura para a democracia, e colocou o país
antes dos próprios interesses ao prometer rejeitar as
riquezas da Europa e permanecer em casa a fim de
colaborar com o seu povo.
Quando o sol se pôs em Ribeirão Preto e São Paulo
naquele domingo, o mais original dos homens, onde quer
que estivesse, estaria esboçando um sorriso cínico por ter
confundido o mundo pela última vez. “Eu quero morrer num
domingo, num dia em que o Corinthians ganhe um título”,
diz a lenda. Ele conseguiu. E eles conseguiram. E o capítulo
final de sua vida extraordinária estava completo.
A vida de Sócrates em
imagens
Sócrates (primeiro à direita), seus irmãos e alguns amigos formavam um belo
time. (coleção da família Vieira de Oliveira)
Sócrates às vezes era convencido a deixar a bola um pouco de lado. Aqui o
vemos (à direita) com os pais e o irmão Sóstenes. (coleção da família Vieira de Oliveira)
Passeio de família pelo parque em 1960, quando Sócrates (o segundo da direita
para a esquerda) tinha seis anos de idade. (coleção da família Vieira de Oliveira)
Desde criança, Sócrates (sentado do outro lado da mesa) já gostava de uma boa
festa. (coleção da família Vieira de Oliveira)
Posando para fotos (agachado, o terceiro da esquerda para a direita) com o time
amador do Botafogo em 1972. (coleção particular de Marinho)
Um valioso acréscimo para qualquer time universitário (em pé, o terceiro da
direita para a esquerda). (coleção da família Vieira de Oliveira)
A cerimônia de formatura de Sócrates. (coleção particular do Dr. Said Miguel)
Com cigarro e duas bebidas nas mãos, Sócrates curte sua festa de formatura.
(coleção particular do Dr. Said Miguel)
Sócrates, Fagner e Regina. (coleção particular de Fagner)
Ao lado da esposa Regina, foi padrinho de casamento do amigo Maurinho Saquy.
(coleção particular de Maurinho e Regina Saquy)
Sempre disposto a tentar algo diferente, Sócrates lançou um disco — com
clássicos sertanejos e baladas tradicionais — que não fez grande sucesso. (coleção
particular de Kátia Bagnarelli)
Sócrates comemora um gol do Corinthians. (arquivo do Sport Club Corinthians Paulista)
Sócrates em ação pelo Corinthians contra o São Paulo. Um clássico recheado de
jogos decisivos. (arquivo do Sport Club Corinthians Paulista)
Sócrates ganhou fama por comemorar seus gols levantando o braço direito com
o punho cerrado. (Estadão)
Muito mais que um jogador, Sócrates formou-se como médico.
Foi um símbolo da democracia. (Estadão)
E foi um ativista convicto. (Estadão)
Sócrates se livra de um carrinho de Ray Wilkins no jogo entre Brasil e Inglaterra
disputado em maio de 1981, em Wembley, vencido pelos brasileiros por 1 a 0. Na
mesma viagem, o Brasil também derrotou a França e a Alemanha Ocidental,
ganhando o status de favorito para conquistar a Copa do Mundo de 1982. (PA)
Em um dos jogos mais emocionantes da história das Copas do Mundo, o Brasil foi
derrotado pela Itália por 3 a 2, em 1982. Aqui, Sócrates encara Dino Zoff. (Getty
Images)
Suas apresentações na Copa do Mundo inevitavelmente atraíram a atenção dos
clubes mais ricos da Europa, e em 1984 Sócrates assinou com a Fiorentina, onde
não viveu um período feliz. (PA)
Depois da batalha para entrar em forma para a Copa do Mundo de 1986,
Sócrates marcou o gol da vitória contra a Espanha, na partida de estreia no
torneio. (PA)
Perto do fim da carreira, Sócrates defendeu o clube para o qual torcia na infância,
o Santos. (Estadão)
Sócrates fez uma última – e inusitada – aparição em um jogo oficial, disputado
em novembro de 2004, quando atuou pelo Garforth Town, que jogava a nona
divisão do futebol inglês. (PA)
Depois de se aposentar do futebol, Sócrates continuou sendo uma figura
influente no Brasil. Em 2005, juntou-se ao presidente Lula para uma partida na
Granja do Torto. (Getty Images)
A terceira vez é a que dá sorte? Sócrates se casa com Simone, dezesseis anos
mais nova, em maio de 1997. (coleção particular de Simone Corrêa)
Passeando com a parceira Adriana em Paris. (coleção particular de Maria Adriana Cruz)
Celebrando seu casamento com Kátia, sua última esposa. (coleção particular de Kátia Bagnarelli)
Agradecimentos
Não sei se Sócrates conheceu Garrincha, mas sei que, ao
menos para mim, não haveria um sem o outro.
Em 2004, cinco anos depois de fazer a mudança dos meus
sonhos para o Brasil, convenci um editor britânico a me
deixar traduzir a biografia de Garrincha, escrita por Ruy
Castro. O livro foi um sucesso, e eles me perguntaram se eu
queria traduzir outro. Perguntei do que se tratava e, quando
a resposta foi “é um livro de memórias escrito por
Sócrates”, quase dei um pulo de alegria. Quem não ama e
admira Sócrates?
O livro de Sócrates era uma incomum mistura de
memórias futebolísticas, história, filosofia e comentários
culturais, mas nunca tinha sido publicado, principalmente
por causa de complicados temas relacionados a direitos.
Eu conversei com Sócrates diversas vezes sobre reativar o
projeto ou até mesmo sobre escrevermos um livro juntos, e
ele sempre se mostrou entusiasmado. Mas nunca
conseguimos fazer isso, e só depois da Copa do Mundo de
2014, três anos após sua morte, eu finalmente encontrei
tempo para pensar em escrever a biografia que ele tanto
merece.
Quando decidi dar sequência ao projeto, a primeira
pessoa com quem conversei foi Juca Kfouri, diretor da
revista Placar na época da Democracia Corinthiana e amigo
íntimo de Sócrates por trinta anos.
Juca e Sócrates planejavam escrever um livro juntos
desde os anos 1990 e já tinham gravado horas de
entrevistas em 1999. Ter o apoio de Juca foi importante para
mim e ele foi uma valiosa fonte de histórias, contatos e
suporte. Ter recebido uma cópia transcrita das conversas
entre eles foi igualmente fundamental no momento da
finalização do projeto. Sem Juca, tudo isso teria sido
infinitamente mais difícil e, além de admirá-lo, eu tenho
com ele uma imensa dívida de gratidão.
Não é necessário dizer que agradeço a todos os que
aceitaram ser entrevistados. Conversei com mais de cem
pessoas e estive em catorze cidades; e o número de
pessoas que se recusaram a falar, felizmente, foi pequeno.
A maioria concordava que uma biografia sobre Sócrates
seria uma obra de grande importância e, assim, se dispôs a
ajudar. Os membros do lendário time de 1982 foram
particularmente acolhedores — todos os titulares, exceto
um, aceitaram ser entrevistados.
Minhas primeiras pesquisas se concentraram na cidade de
Ribeirão Preto, casa de Sócrates. Visitei Ribeirão dez vezes
e lá conheci muitas pessoas, incluindo alguns dos amigos
mais íntimos de Sócrates. Os doutores Said Miguel e Aloisio
Abud falaram sobre os anos na universidade; Artur e
Rodrigo me ajudaram a encontrar jornais antigos no arquivo
público municipal; e Rogério Moroti, no Botafogo, foi
generoso ao me passar os telefones dos antigos
companheiros de Sócrates. João Moreira e Dario
colaboraram com minhas andanças e me orientaram na
cidade.
Devo um obrigado especial a Zé Bernardes, não só um
grande contador de histórias, mas também um médico
respeitado, que ajudou a abrir muitas portas, e a Luiz
Eduardo Rebouças, muito generoso com seu tempo e seus
contatos. Acima de tudo, meu obrigado vai a Maurinho e
Regina Saquy, duas das pessoas mais generosas que
conheci. A memória incrível de Marinho deu cores e
detalhes a histórias não contadas, e Maritaca foi uma
maravilhosa e bem-vinda fonte sobre os primeiros anos de
Sócrates no Botafogo.
O Rio de Janeiro, onde Sócrates passou alguns anos
frustrantes, é onde vivem muitos dos seus companheiros
dos tempos de seleção. Leandro foi uma das primeiras
pessoas a abraçar a ideia de uma biografia. Ele, Júnior e
Zico me ajudaram bastante.
Zé da Silva me deixou pesquisar seus arquivos, Armando
de Paulo foi generoso e despreocupado, e Márvio dos Anjos
me auxiliou com contatos. Leila Sterenberg e Fernanda
Cardoso, na TV Globo, deram-me acesso a importantes
imagens de arquivo, e Marcio Mac Culloch, no Flamengo,
passou números de telefone que seriam difíceis de
encontrar.
Rocco Cotroneo; Gareth Chetwynd e Claudia Rodrigues;
Brad Brooks, Flavia Lins e Silva e Nando Perdigão; e Lulu
Garcia-Navarro e James Hider: todos me ofereceram uma
cama ou um sofá onde pude descansar.
Passei uma semana na Itália pesquisando sobre o ano de
Sócrates na Fiorentina e não teria conseguido sem Lorenzo
Marucci, cujos contatos, traduções e conhecimento
enciclopédico do clube toscano foram inestimáveis.
A maior parte do meu trabalho se deu, inevitavelmente,
em São Paulo. João Roberto Basílio e Fernando Wanner, no
Corinthians, e Felipe Espindola e Renata Lutfi, no São Paulo,
colaboraram com nomes e telefones de amigos e ex-
companheiros de Sócrates. No Santos, o historiador do
clube Guilherme Guarche foi útil com contatos e
estatísticas, assim como Kennedy e Milton Neves, do
Terceiro Tempo. Durante os meses que passei examinando
revistas e jornais antigos na biblioteca pública Mario de
Andrade, em São Paulo, Irinete e Emanuel receberam com
serenidade meus repetidos pedidos; e Cesar Camasão
pesquisou pacientemente as colunas de Sócrates no jornal
Agora.
Victor Rocha também fez um trabalho valioso de pesquisa
de arquivos de jornais e Celso Unzelte, expert em
Corinthians, foi brilhante e gentil ao me ajudar a desvendar
as complexidades do futebol brasileiro nos anos 1970 e
1980 (e o seu aplicativo Almanaque do Timão foi uma fonte
imbatível de detalhes históricos). Sérgio Scarpelli, ex-diretor
do Corinthians, entrou em contato com colegas difíceis de
encontrar, e tanto Ney quanto Alberto Helena Júnior foram
importantes ao falar sobre o início da carreira de Sócrates.
Daniel Navas respondeu questões médicas, Mario Naranjo
proporcionou pesquisas sobre o período de Sócrates no
Equador e os autores Jorge Vasconcellos e Solange
Cavalcanti-Ferri também estiveram sempre disponíveis. Para
antigas estatísticas, a Rec.Sport.Soccer Statistics
Foundation (RSSSF) é absolutamente imbatível.
Tenho outro grande débito com os irmãos de Sócrates:
Sóstenes, Raimundo e Raí foram generosos com seu tempo
e suas memórias. Silvana, Simone e Maria Adriana, ex-
mulheres e parceiras de Sócrates, ofereceram-me tempo
para conversar, foram abertas e igualmente generosas. Sua
viúva, Kátia Bagnarelli, foi especialmente solícita. Rosemary
concordou em falar depois de décadas de silêncio e foi vital
para me ajudar a solucionar alguns mistérios cronológicos.
Agradeço também a Igor Ramos, Marcio Javaroni, André
Dutra, Vinícius Alves de Souza, Gustavo Longhi de Carvalho
e Sergio Paz no Memofut, Karla Soares em Belém, Tony
Danby, Ana Marcia Lopes, Fernando Beer e Carl Worswick na
Colômbia.
A expertise de Tom Hennigan foi importante quando o
projeto seguiu em frente, e Dan Horch foi sempre
encorajador quando meu espírito se cansava. James Young
fez algumas entrevistas para mim em Belo Horizonte e uma
leitura crucial de vários capítulos iniciais. Obrigado também
a Richard Lapper, Claire Rigby — que tanta falta faz — e
Mauricio Savarese pelas conversas a respeito de pontos
importantes. Tim Vickery, Matthew Shirts e Alex Cuadros
ofereceram horas valiosas de leitura do texto final.
Obrigado também a Fernando Martinho por seu apoio e
encorajamento — sua revista Corner é uma das melhores e
mais importantes publicações sobre futebol no Brasil.
Igualmente, agradeço a toda a equipe da Editora Grande
Área, em especial a Gabriel Gobeth. Também agradeço a
André Kfouri, que fez um trabalho excelente de tradução da
obra para o português.
Meu maior débito é com o Brasil e com os brasileiros, que
me receberam de braços abertos há quase vinte anos e me
deram um lar feliz desde então. O Brasil é uma parte
enorme da minha vida e o drama, a cor, o calor e a emoção
superam, com distância, as frustrações vividas. Muito
obrigado, mesmo. Não sabem como sinto a falta de vocês!
Mais do que tudo, meus sinceros agradecimentos vão a
Mariane Kido. Ela estava comigo quando a ideia de escrever
este livro me ocorreu, enquanto deixávamos uma estação
de trem em Duisburgo, em outubro de 2014 — e, desde
então, nunca saiu do meu lado. Ela transcreveu entrevistas,
ofereceu um vital contexto brasileiro a respeito de áreas
que eu desconhecia e sempre esteve disposta a debater
ideias e assuntos. Suas percepções foram fundamentais,
seu apoio e amor foram imbatíveis. Te adoro! (Falei isso
hoje?)
Bibliografia
A história de um campeão, Rafael Cammarota
Além do divã, Flávio Gikovate
Botafogo: Uma história de amor e glórias, Igor Ramos
Casagrande e seus demônios, Casagrande e Gilvan Ribeiro
Como gostar de esporte, Rai
Compagni di Stadio, Solange Cavalcante
Corinthians é preto no branco, Washington Olivetto e Nirlando Beirão
Corintiano, Graças a Deus!, Dom Paulo Evaristo Arns
De Sócrates a Sócrates, Wilson Roveri
Democracia Corintiana, Sócrates e Ricardo Gozzi
Diretas Já, Alberto Tosi Rodrigues
Donos da bola, Coletânea
Doutor Futebol, Adriana Brito e Patrícia Favalle
Fio de Esperança: Biografia de Telê Santana, André Ribeiro
Futebol Nation: The Story of Brazil Through Soccer, David Goldblatt
Futebol: The Brazilian Way of Life, Alex Bellos
História concisa do Brasil, Boris Fausto
Histórias da bola, Paulo Roberto Falcão
Mário Travaglini: Da Academia à Democracia, Márcio Trevisan e Helvio Borelli
Matheus, o Senhor Corinthians, Marlene Matheus
Memória de Igarapé-Açu, Aluizio Moraes de Freitas
O país da bola, Betty Milan
Recados da bola, Jorge Vasconcellos
Sarrià 82: O que faltou ao futebol-arte?, Gustavo Roman e Renato Zanata
Sócrates, Tom Cardoso
Sócrates & Casagrande: Uma história de amor, Casagrande e Gilvan Ribeiro
Sócrates Brasileiro, Kátia Bagnarelli com Regina Echeverria
Sócrates, Brasileiro: As crônicas do Doutor em Carta Capital, Sócrates Brasileiro
Sócrates eterno, Kátia Bagnarelli
Sócrates: O filosofo da bola, Aluizio Moraes de Freitas
Um escolhido, João Roberto Basílio
Vicente Matheus: Quem sai na chuva é para se queimar, Luiz Carlos Ramos
Zico conta sua história, Zico
Zico: Uma lição de vida, Marcus Vinícius Bucar Nunes
E os seguintes documentários:
Democracia em preto e branco
Football Rebels: Sócrates and the Corinthians’ Democracy
Ser Campeão é detalhe
Sócrates, o doutor da bola
Sócrates, o gênio da bola
Notas sobre as fontes
CAPÍTULO 1 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM SÓSTENES
1 Entrevista do autor com Oscar.
2 Entrevista do autor com Juca Kfouri.
3 Sócrates & Casagrande: Uma História de Amor.
4 Folha de S.Paulo, 3 de julho de 1982.
5 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
6 Entrevista do autor com Nené.
7 Entrevista do autor com Marinho.
8 Placar, edição especial com Sócrates, 1979. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QP4R8JkosEk>.
9 Jornal da Tarde, 2 de julho de 1979.
10 Entrevista do autor com Sóstenes e Raimundo.
11 Carta Capital, 24 de outubro de 2001.
12 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
13 Entrevista do autor com Raí.
14 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
15 Ibid.
16 Entrevista do autor com dr. Helio Rubens Machado.
17 Caros Amigos, n. 45, 2000.
18 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
19 Jornal da Tarde, 2 de julho de 1979.
20 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
CAPÍTULO 2 — FRASE DE ABERTURA: SÓCRATES, O
GÊNIO DA BOLA
21 Entrevista de Sócrates para o programa Grandes Momentos do Esporte, de
13 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=I9lki3ZxNWw&t=642s&ab_channel=domingossccp>.
22 Carta Capital, 30 de abril de 2008.
23 Diário da Manhã, 7 de fevereiro de 1974.
24 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
25 Folha de S.Paulo, 14 de outubro de 1975.
26 Entrevista do autor com Alberto Helena Júnior.
27 Entrevista do autor com dr. Said Miguel.
28 Entrevista do autor com Ney.
29 Placar, edição especial, setembro de 1979.
30 Entrevista do autor com João Sebinho.
31 Carta Capital, 2 de junho de 2010.
32 Recados da bola.
33 Entrevista do autor com Geraldão.
34 Sócrates & Casagrande: Uma História de Amor.
35 Entrevista do autor com Sóstenes.
36 Entrevista do autor com Raí.
37 Entrevista do autor com Raimundo.
CAPÍTULO 3 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM RAIMUNDO
38 Entrevista do autor com João Sebinho.
39 Entrevista do autor com Maritaca.
40 Entrevista do autor com Ney.
41 Entrevista do autor com Zé Bernardes.
42 Entrevista do autor com João Sebinho.
43 Jornal da Tarde, 22 de junho de 1976.
44 Entrevista do autor com Zé Bernardes.
45 História Concisa do Brasil.
46 Compagni di Stadio.
47 Entrevista do autor com dr. Said Miguel.
48 Diário da Manhã, 18 de julho de 1976.
49 Censo de 1980, IBGE.
50 Diário da Manhã, de julho de 1976.
51 Botafogo: Uma história de amor e glórias.
52 Ibid.
53 Entrevista do autor com Atílio Benedini.
54 Entrevista do autor com dr. Said Miguel.
55 Reportagem da tv Botafogo, 29 de outubro de 2013.
56 Entrevista com Juca Kfouri em 1999.
57 Botafogo: Uma história de amor e glórias.
CAPÍTULO 4 — FRASE DE ABERTURA: CARTA CAPITAL,
16 DE FEVEREIRO 2011
58 Entrevista do autor com Alberto Helena Júnior.
59 Entrevista do autor com Zé Bernardes.
60 Entrevista de Hamilton Mortari à Rádio Jovem Pan, fevereiro de 2012.
61 Entrevista do autor com José Teixeira.
62 Entrevista de Hamilton Mortari à Radio Jovem Pan, fevereiro de 2012.
63 Placar, 11 de agosto de 1978.
64 Jornal da Tarde, 5 de agosto de 1978.
65 Placar, 11 de agosto de 1978.
66 Entrevista do autor com Zé Maria.
67 Entrevista do autor com Palhinha.
68 Entrevista do autor com Jairo.
69 Entrevista à Playboy, setembro de 1979.
70 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
71 Entrevista do autor com Alberto Helena Júnior.
72 Entrevista do autor com Arlindo.
73 Placar, 26 de março de 1982.
74 Placar, 20 de abril de 1979.
CAPÍTULO 5 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA
COM JUCA KFOURI EM 1999
75 Placar, 30 de março de 1979.
76 Placar, 20 de abril de 1979.
77 Jornal da Tarde, 22 de junho de 1979.
78 Zico conta sua história.
79 Placar, 31 de agosto de 1979.
80 Ibid.
81 Entrevista do autor com Vaguinho.
82 Carta Capital, 28 de julho de 2004.
83 Folha de S.Paulo, 29 de setembro de 1979.
84 Placar, edição especial com Sócrates, setembro de 1979.
85 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
86 Ibid.
87 Compagni di Stadio.
88 Playboy, setembro de 1979.
89 Documentário Passe Livre.
90 Compagni di Stadio.
91 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
92 Placar, 14 de setembro de 1979.
93 Ibid.
94 Placar, 21 de setembro de 1979.
95 Folha de S.Paulo, 7 de novembro de 1979.
96 Entrevista do autor com Palhinha.
97 Democracia Corintiana.
98 Entrevista do autor com Amaral.
99 Jornal da Tarde, 11 de fevereiro de 1980.
CAPÍTULO 6 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM WLADIMIR
100 Revista III Berro.
101 Entrevista do autor com Osmar Zan.
102 Placar, 26 de outubro de 1987.
103 Entrevista do autor com Jairo.
104 Entrevista do autor com Amaral.
105 Folha de S.Paulo, 27 de maio de 1980.
106 Recados da bola.
107 Placar, 27 de junho de 1980.
108 O gênio da bola.
109 Folha de S.Paulo, 20 de agosto de 1980.
110 Folha de S.Paulo, 21 de agosto de 1980.
111 Placar, 1 de agosto de 1980.
112 Folha de S.Paulo, 19 de outubro de 1980.
113 Jornal da Tarde, 22 de agosto de 1980.
CAPÍTULO 7 — FRASE DE ABERTURA: PLACAR, 31 DE
DEZEMBRO DE 1981
114 Carta Capital, 5 de abril de 2006.
115 Ibid.
116 Fio de Esperança.
117 Ibid.
118 Roda Viva, 22 de junho de 1992.
119 Entrevista à Isto É Gente, 2001.
120 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
121 Placar, 29 de maio de 1981.
122 Ibid.
123 Placar, 17 de abril de 1981.
124 Compagni di Stadio.
125 Entrevista do autor com Sergio Scarpelli.
126 Entrevista do autor com Leandro.
127 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
128 Entrevista do autor com Mauro Beting.
129 Carta Capital, 11 de dezembro de 2002.
130 Placar, 17 de abril de 1981.
131 Placar, 17 de julho de 1981.
132 Placar, 13 de fevereiro de 1981.
CAPÍTULO 8 — FRASE DE ABERTURA: SER CAMPEÃO É
DETALHE
133 Entrevista do autor com Marinho.
134 Entrevista do autor com Jairo.
135 Ibid.
136 Placar, 13 de fevereiro de 1981.
137 Almanaque do Corinthians.
138 Sócrates Brasileiro, de Kátia Bagnarelli com Regina Echeverria.
139 Ibid.
140 Placar, 5 de fevereiro de 1982.
141 Democracia Corinthiana, de Sócrates e Ricardo Gozzi.
142 Placar, 16 de abril de 1982.
143 Placar, 27 de novembro de 1981.
144 Ibid.
145 Recados da bola.
146 Placar, 27 novembro de 1981.
147 Mário Travaglini: Da academia à democracia.
148 Entrevista do autor com César.
149 Entrevista do autor com Raimundo.
150 Entrevista do autor com Waldemar Pires.
151 Democracia Corinthiana.
152 Entrevista do autor com Hélio Maffia.
153 O gênio da bola.
154 Entrevista do autor com Juca Kfouri.
CAPÍTULO 9 — FRASE DE ABERTURA: PLACAR, 17 DE
ABRIL DE 1981
155 Placar, 27 de junho de 1980.
156 Placar, 11 de janeiro de 1985.
157 Placar, 25 de março de 1983.
158 Placar, 2 de abril de 1982.
159 Placar, 31 de dezembro de 1982.
160 Entrevista do autor com Zico.
161 Ibid.
162 Folha de S.Paulo, 26 de junho de 1982.
163 Carta Capital, 12 de junho de 2002.
164 Folha de S.Paulo, 18 de junho de 1982.
165 Entrevista do autor com Zico.
166 Placar, 25 de junho de 1982.
167 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
168 Folha de S.Paulo, 25 de junho de 1982.
169 Placar, 2 de julho de 1982.
170 Folha de S.Paulo, 23 de julho de 1982.
171 ”Frase lapidar”, Blog do Juca Kfouri, uol, 10 de setembro de 2009.
172 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
173 Placar, 9 de julho de 1982.
174 Folha de S.Paulo, 2 de julho de 1982.
175 Folha de S.Paulo, 1 de julho de 1982.
176 Placar, 9 de julho de 1982.
177 Ibid.
CAPÍTULO 10 — FRASE DE ABERTURA: JORNAL DA
TARDE, 22 DE JUNHO DE 1982
178 Entrevista de Juninho interview à Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/museudofutebol/juninho_fonseca>.
179 Folha de S.Paulo, 30 de junho de 1982.
180 Entrevista de Oscar à Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/museu_do_futebol/oscar_bernardi/Trans
cricaoOscarBernardi.pdf>.
181 Sócrates eterno e entrevista com Juca Kfouri, 1999.
182 Entrevista com Luizinho.
183 Entrevista de Edinho à Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/museu_do_futebol/edino_filho/Transcric
aoEdinho.pdf>.
184 Placar, 7 de abril de 1986.
185 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
186 Entrevista do autor com Raí.
187 Entrevista com Luizinho.
188 Placar, 7 de abril de 1986.
189 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
190 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
191 Ibid.
192 Folha de S.Paulo, 7 julho de 1982.
CAPÍTULO 11 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
193 Democracia Corintiana.
194 Placar, 17 de setembro de 1982.
195 Entrevista do autor com Sergio Scarpelli.
196 Entrevista do autor com Milton Neves.
197 Placar, 15 de outubro de 1982.
198 Placar, 8 de outubro de 1982.
199 Entrevista do autor com Rosemary.
200 Sócrates eterno e Sócrates & Casagrande: Uma história de amor.
201 Entrevista do autor com Washington Olivetto.
202 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
203 Entrevista do autor com Ataliba.
204 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
205 Ibid.
206 Entrevista do autor com Biro-Biro.
207 Doutor Futebol.
208 Entrevista do autor com Biro-Biro.
209 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
210 Entrevista do autor com Biro-Biro.
211 Entrevista do autor com Washington Olivetto.
212 Entrevista do autor com Waldemar Pires.
213 Democracia Corintiana.
214 Entrevista do autor com Washington Olivetto.
CAPÍTULO 12 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM CASAGRANDE
215 Entrevista do autor com Casagrande.
216 Entrevista do autor com Zenon.
217 Casagrande & Sócrates: Uma história de amor.
218 Folha de S.Paulo, 23 de fevereiro de 1983.
219 Democracia Corintiana.
220 Isto É Gente, número 1622.
221 Folha de S.Paulo, 30 de março de 1983.
222 Folha de S.Paulo, 4 de maio de 1983.
223 Folha de S.Paulo, 30 de março de 1983.
224 Entrevista do autor com Zenon.
225 Placar, 9 de setembro de 1983.
226 Jornal da Tarde, 26 de fevereiro de 1983.
227 Entrevista do autor com Casagrande.
228 Folha de S.Paulo, 13 de outubro de 1974.
229 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
230 Placar, maio de 1992.
231 Entrevista do autor com Luís Fernando.
232 Folha de S.Paulo, 15 de dezembro de 1983.
233 Entrevista do autor com Casagrande.
234 Ibid.
235 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
CAPÍTULO 13 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM FLÁVIO GIKOVATE
236 Diretas Já.
237 Entrevista à Playboy, setembro de 1979.
238 Entrevista do autor com Luís Fernando.
239 Folha de S.Paulo, 17 de abril de 1984.
240 Democracia em preto e branco.
241 Folha de S.Paulo, 25 de abril de 1984.
242 Entrevista do autor com Marinho.
243 Ibid.
244 Entrevista do autor com Raí.
245 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
246 Placar, 9 de setembro de 1983.
247 Placar, 4 de maio de 1984.
248 Folha de S.Paulo, 26 de abril de 1984.
249 Democracia em Preto e Branco.
250 Democracia Corintiana.
251 Recados da bola.
CAPÍTULO 14 — FRASE DE ABERTURA: O GÊNIO DA
BOLA
252 Jornal da Tarde, 24 de maio de 1984.
253 Ibid.
254 Ibid.
255 Entrevista do autor com Stefano Carobbi.
256 Entrevista do autor com Celeste Pin.
257 Entrevista do autor com Giovanni Galli.
258 Disponível em:
<http://www.worldfootball.net/player_summary/socrates/2/>.
259 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
260 Entrevista do autor com Giovanni Galli.
261 Entrevista do autor com Celeste Pin.
262 Placar, 28 de junho de 1984.
263 Entrevista do autor com José Trajano.
264 Entrevista do autor com Stefano Carobbi.
265 Entrevista com Eraldo Pecci.
266 Recados da bola.
267 Ibid.
268 Ibid.
269 Entrevista do autor com Niccolò Pontello.
270 Entrevista do autor com Tito Corsi.
271 Placar, 1 de março de 1985.
272 Entrevista do autor com José Trajano.
273 Entrevista do autor com Júnior.
274 Sócrates, em seu próprio programa de televisão, Brasil + Brasileiro.
275 Placar, 1 de março de 1985.
276 Entrevista do autor com Rosemary.
277 Entrevista do autor com Flávio Gikovate.
278 Entrevistas do autor com Giovanni Galli e Stefano Carobbi; entrevista com
Juca Kfouri, 1999.
279 Entrevista do autor com Stefano Carobbi.
280 Entrevista do autor com Celeste Pin.
281 Entrevista do autor com Stefano Carobbi.
CAPÍTULO 15 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM JUCA KFOURI
282 Recados da bola.
283 Jornal do Brasil.
284 Jornal do Brasil, 12 de agosto de 1985.
285 Placar, 16 de agosto de 1985.
286 Placar, 23 de agosto de 1985.
287 Entrevista do autor com Alberto Polverosi.
288 Placar, 30 de agosto de 1985.
289 Ibid.
290 Entrevista do autor com Paulo Sérgio.
291 Placar, 20 de setembro de 1985.
292 Jornal do Brasil, 14 de setembro de 1985.
293 O Globo, 28 de janeiro de 1986.
294 Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 1986.
295 O Globo, 3 de fevereiro de 1986.
296 Ibid.
297 Flapédia.
298 Folha de S.Paulo, 19 de fevereiro de 1986.
299 Doutor Futebol.
300 O Globo, 12 de fevereiro de 1986.
301 Placar, 3 de março de 1986.
302 Ibid.
303 Sócrates eterno, de Kátia Bagnarelli.
304 Placar, 10 de março de 1986.
305 Folha de S.Paulo, 8 de março de 1986.
306 Placar, 24 de março de 1986.
307 Folha de S.Paulo, 8 de março de 1986.
308 Ibid.
309 Folha de S.Paulo, 6 e 9 de abril de 1986.
310 Folha de S.Paulo, 24 de abril de 1986.
311 Placar, 19 de maio de 1986.
312 Folha de S.Paulo, 13 de maio de 1986.
313 Folha de S.Paulo, 18 de maio de 1986.
CAPÍTULO 16 — FRASE DE ABERTURA: JORNAL DA
TARDE, 29 DE MAIO DE 1986
314 Sócrates & Casagrande: Uma história de amor.
315 Entrevista do autor com Casagrande.
316 Ibid.
317 Entrevista do autor com Édson Boaro.
318 Folha de S.Paulo, 6 de junho de 1986.
319 Folha de S.Paulo, 6 de setembro de 1986.
320 Entrevista do autor com Oscar.
321 Placar, 14 de julho de 1986.
322 Entrevista do autor com Elzo.
323 Placar, 7 de julho de 1986.
324 Entrevista do autor com Zico.
325 Jornal da Tarde, 2 de julho de 1979.
326 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
327 Ibid.
328 Recados da bola.
329 Folha de S.Paulo, 23 de junho de 1986.
330 Recados da bola.
331 O Globo, 22 de junho de 1986.
332 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
333 Entrevista do autor com Júnior.
CAPÍTULO 17 — FRASE DE ABERTURA: PLACAR, 21 DE
OUTUBRO DE 1988
334 Entrevista do autor com Sebastião Lazaroni.
335 Carta Capital, 1 de fevereiro de 2006.
336 Entrevista do autor com Leandro.
337 Ibid.
338 Entrevista do autor com Sebastião Lazaroni.
339 Flapédia.
340 O Globo, 17 de março de 1987.
341 Jornal do Brasil, 17 de março de 1987.
342 Placar, 23 de março de 1987.
343 O Globo, 3 de novembro de 1986.
344 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
345 Entrevista do autor com Silvana Campos.
346 Ibid.
347 Entrevista do autor com Maurinho Saquy.
348 Entrevista do autor com Silvana Campos.
349 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
350 Ibid.
351 Entrevista do autor com Silvana Campos.
352 Placar, 21 de outubro de 1988.
353 Ibid.
354 Entrevista do autor com Marinho Peres.
355 Entrevista do autor com César Sampaio.
356 A Tribuna, 5 de agosto de 1989.
357 Entrevista do autor com Juary.
358 A Tribuna, 2 de setembro de 1989.
359 A Tribuna, 2 e 3 de setembro de 1989.
360 Entrevista com.Juca Kfouri, 1999.
361 O Diário, 17 de setembro de 1989.
362 Botafogo: Uma história de amor e glórias.
CAPÍTULO 18 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM SÓSTENES
363 Entrevista do autor com Aloisio Abud.
364 Entrevista à Playboy, setembro de 1979.
365 Entrevista do autor com Antonio Palocci.
366 Ibid.
367 Ibid.
368 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
369 Ibid.
370 Carta Capital, 11 de maio de 2005.
371 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
372 Entrevista do autor com Édson Boaro.
373 Botafogo: Uma história de amor e glórias.
374 Entrevista do autor com Serginho.
375 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
376 Ibid.
377 Entrevista do autor com Silvana Campos.
378 Entrevista com Juca Kfouri, 1999.
379 Entrevista do autor com Mauro Beting.
380 Entrevista com Mario Naranjo.
381 Ibid.
382 Ibid.
383 Caros Amigos, n. 45, 2000.
384 Sócrates Brasileiro.
385 Entrevista do autor com Leandro.
386 Ibid.
387 Entrevista com Marília Gabriela, 27 de outubro de 2011.
388 Entrevista do autor com Leandro.
389 Entrevista com Marília Gabriela, 27 de outubro de 2011.
CAPÍTULO 19 — FRASE DE ABERTURA: ENTREVISTA DO
AUTOR COM MINO CARTA
390 Placar, 26 de dezembro de 1980.
391 Entrevista do autor com Sóstenes.
392 Sócrates e Casagrande, p. 82.
393 Entrevista do autor com Simon Clifford.
394 O Globo, 27 de novembro de 2004.
395 Entrevista do autor com Sóstenes.
396 Entrevista à Rádio Jovem Pan, apresentada em 26 de dezembro de 2012.
397 Entrevista do autor com Fernando Kaxassa.
398 Entrevista do autor com Fernando Beer.
399 Entrevista ao SporTV, setembro de 2011, apresentada após sua morte.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JF37oweELRY>.
400 Entrevista do autor com Silvana Campos.
401 Entrevista do autor com Maurinho Saquy.
402 Entrevista do autor com Maria Adriana Cruz.
403 Sócrates Brasileiro.
404 Entrevista do autor com Simone Corrêa.
405 Entrevista do autor com Maria Adriana Cruz.
406 Entrevista do autor com Regina Saquy.
407 Entrevista do autor com Kátia Bagnarelli.
408 Entrevista do autor com Bueno.
409 Sócrates Brasileiro.
410 Entrevista do autor com dr. Breno Boueri.
411 Sócrates Brasileiro.
412 Entrevista do autor com Juca Kfouri.
413 Entrevista do autor com Rosemary.
414 Entrevista ao SporTV, setembro de 2011 (apresentada após sua morte).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JF37oweELRY>.
415 Sócrates Brasileiro.
416 Entrevista do autor com Zé Bernardes.
417 Sócrates Brasileiro.
Sobre o autor
Andrew Downie nasceu em Edimburgo, na Escócia.
Depois de trabalhar em uma fábrica por sete anos,
economizou o suficiente para viajar pela América Latina.
Na Cidade do México, conseguiu seu primeiro emprego
como jornalista no Mexico City News. Tornou-se
correspondente internacional depois de se mudar para o
Haiti, em 1993, e continuou escrevendo para
publicações britânicas e norte-americanas quando
retornou para a capital mexicana dois anos depois. Em
1999, realizou o sonho de se mudar para o Rio de
Janeiro — vivendo vinte anos na cidade e em São Paulo.
Em 2019, mudou-se para Londres e, desde então, divide
seu tempo entre o Reino Unido e o Brasil. Atualmente,
escreve principalmente sobre esportes; mas seu
trabalho, que fala sobre as mais diversas áreas, já foi
publicado em grandes veículos, entre os quais: The New
York Times, The Wall Street Journal, The Washington
Post, The Economist, The Financial Times, Time
Magazine, The Guardian, Esquire e GQ. Em 2004, ele
traduziu para o inglês a biografia de Garrincha escrita
por Ruy Castro. Sócrates, a biografia é o primeiro livro
de sua autoria. O segundo, The Greatest Show on Earth,
é uma história oral da Copa do Mundo de 1970.
Contents
 
1. Prefácio
2. Notas sobre o texto
3. Capítulo 1
4. Capítulo 2
5. Capítulo 3
6. Capítulo 4
7. Capítulo 5
8. Capítulo 6
9. Capítulo 7
10. Capítulo 8
11. Capítulo 9
12. Capítulo 10
13. Capítulo 11
14. Capítulo 12
15. Capítulo 13
16. Capítulo 14
17. Capítulo 15
18. Capítulo 16
19. Capítulo 17
20. Capítulo 18
21. Capítulo 19
22. Epílogo
23. A vida de Sócrates em imagens
24. Agradecimentos
25. Bibliografia
26. Notas sobre as fontes
27. Sobre o autor
Landmarks
 
1. Cover
2. Table of Contents
Table of Contents
Prefácio
Notas sobre o texto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Epílogo
A vida de Sócrates em imagens
Agradecimentos
Bibliografia
Notas sobre as fontes
Sobre o autor

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