Veja Entrevista Ana Beatriz Barbosa Silva

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Matéria publicada na Revista Veja, Ed.

2132 / 30 de setembro
de 2009. Entrevista Ana Beatriz Barbosa Silva.

"Eu me achava uma burra"


A psiquiatra conta como sofreu com o déficit de
atenção na infância e como aprendeu a conviver com o
transtorno que atinge 6% da população em idade
escolar
A psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva, 43 anos, especializou-se em
traduzir para uma linguagem acessível o universo misterioso dos transtornos mentais.
Seu último livro, Mentes Perigosas, apresentou as muitas faces dos psicopatas e há 44
semanas faz parte da lista dos mais vendidos de VEJA. Ela já havia feito uma primeira
incursão vitoriosa. Seu Mentes Inquietas, sobre o transtorno do déficit de atenção
(TDA), vendeu 200 000 cópias e está sendo relançado. Nesta entrevista, Ana Beatriz
fala de sua experiência, da importância do diagnóstico precoce e afirma que, embora
não tenha cura, o transtorno permite uma vida normal e criativa.

Como a senhora descobriu que tem o transtorno do déficit de atenção?

Eu já estava no 3º ano da faculdade de medicina. Tinha 19 anos. Fui a um


seminário em Chicago sobre depressão. Consegui errar tudo: cheguei um dia e uma hora
atrasada para a primeira aula. Como não apareci, minha inscrição foi cancelada. A
atendente da faculdade viu meu desespero e disse que eu poderia me transferir para
outro curso, com início naquele dia. O professor era John Ratey, papa do déficit de
atenção. Ele começou a detalhar o transtorno e pensei que estivesse falando sobre mim.
Chegou a ser incômodo. Quando a aula acabou, fui atrás dele conversar sobre meu
comportamento desde a infância. No dia seguinte fiz um teste que revelou que eu tinha
TDA em grau grave. Ele então me disse: "Sobreviver, você já sobreviveu. Sabe se virar,
frequenta uma boa faculdade. Mas você mata um leão por dia". Comecei então o
tratamento.
Foi um divisor de águas. Senti-me como um míope que põe o primeiro par de óculos e
percebe que o mundo é cheio de detalhes. Usei a medicação por cinco anos
consecutivos. Hoje, quando escrevo um livro, volto a tomá-la no último mês. É a hora
em que junto todas as informações e preciso ter mais senso crítico.

O que provoca o TDA?

A pessoa que tem o transtorno nasce com uma alteração no funcionamento do


lobo frontal. Essa seção do cérebro é um maestro do comportamento humano, uma área
em que se cruzam sistemas neurais ligados à razão. Entre outras ações, regula a
velocidade e a quantidade de pensamentos. No TDA, esse filtro funciona com eficiência
menor. O resultado é a hiperatividade mental e, consequentemente, a perda de foco, de
objetividade. Quem nasce com TDA não tem problema de inteligência, mas de
administrar o tempo, fixar a atenção, dar continuidade ao que inicia. O transtorno é
muito mais comum do que se imaginava. Segundo a Associação de Psiquiatria

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Americana, 6% da população em idade escolar tem esse padrão de funcionamento
mental nos Estados Unidos. No Brasil, as pesquisas apontam uma média próxima a essa.

O que provoca essa alteração do funcionamento do cérebro?

É um transtorno químico, causado pela baixa de dois neurotrasmissores: a


dopamina e a noradrenalina. Essa alteração diminui a ação filtrante do lobo frontal. A
genética já mostrou ter papel importante, mas
fatores externos acabam interferindo na
evolução do transtorno. Se não é cercada por
"Quem tem TDA presta muita atenção
uma organização mínima, a pessoa pode ter
naquilo que desperta seu real interesse.
sérios prejuízos em sua qualidade de vida.
Por isso, é injusto falar de déficit de
atenção. O que existe é uma atenção
Como o transtorno interferiu em sua
instável"
trajetória pessoal?

Sempre achei que havia algo errado comigo. Na escola, tinha horror a ditado.
Meu coração disparava: sabia que precisava prestar atenção ao que a professora dizia e,
simultaneamente, observar se não estava cometendo erros ao escrever. Nessas horas, eu
me sentia a criança mais burra da sala. Fora do colégio, também sofria. Uma vez meu
pai, que é professor, corrigiu tanto meu diário que botei fogo nas páginas depois. Vivia
com as pernas roxas de tanto cair e bater nos móveis. Meu armário era uma bagunça
absurda. Tenho uma irmã cinco anos mais velha, centrada, organizada. Durante muito
tempo, dei a ela parte da minha mesada para que arrumasse meu armário. Todas as
vezes que minha mãe reclamava comigo, eu concordava, entendia que ela tinha razão.
Mas eu não sabia como tudo isso acontecia. No início da adolescência, bateu uma
vontade enorme de mudar. Eu era uma criança falante e me fechei. Fiquei retraída,
quietinha, para não errar. Vivia no meu quarto, lendo. Isso foi dos 12 aos 16 anos. Na
infância me chamavam de pinga-fogo, porque eu não parava. Na adolescência, quando
me tranquei, virei Bia Sid (de sideral). Às vezes, achava que era burra. Por outro lado,
sabia que tinha conhecimento e imaginação. Acabava o dia com dor de cabeça de tanto
pensar. Era uma angústia.

Mas a senhora hoje é uma psiquiatra bem-sucedida. Como conseguiu isso?


O diagnóstico foi libertador. Passei a me observar. Com a medicação, comecei a
fazer mais rápido o que antes demandava muito esforço. Foquei na psiquiatria. No meu
trabalho, nada me escapa hoje. Tenho um filme na cabeça sobre cada paciente. Quem
tem TDA presta uma atenção acima da média naquilo que desperta seu interesse
verdadeiro. É o que a gente chama de hiperfoco. Por isso, acho injusto falar de déficit de
atenção. O que existe é uma atenção instável.

O menino com TDA pode sofrer na escola, mas desenhar muito bem ou tocar
piano de ouvido, se essa for a sua paixão. Por isso, é fundamental que os pais
descubram os talentos do filho e o estimulem a fazer aquilo de que realmente gosta.
Para quem tem TDA, isso funciona como remédio.

Como sua família enfrentou o problema?

Minha mãe creditava meu comportamento a falhas do método pelo qual fui
alfabetizada. Meu pai achava que era preguiça. Mas eles eram compreensivos, porque

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sabiam que eu não fazia nada de propósito e era honesta, sincera, assumia os erros. Voei
de bicicleta no carro do vizinho e meu pai pagou o conserto sem reclamar. Quando eles
buscaram um diagnóstico para meu comportamento, os médicos disseram que eu tinha
uma disritmia e me passaram um remédio. Devido à sonolência que causou, parei logo
de tomar essa medicação. Ainda bem.

Por natureza, as crianças costumam ser agitadas e inquietas. Quando os pais


devem desconfiar que o filho sofre do transtorno?

Na infância, desatenção e impulsividade são normais. Mas, em geral, estão


relacionadas a algum motivo específico: porque a criança dormiu mal, está preocupada
com alguma coisa, apaixonou-se pela primeira vez. O que acontece é que uma criança
com TDA tem esse comportamento de maneira constante e mais intensa. Ela já nasce
com o cérebro funcionando dessa maneira e, antes dos 7 anos, é possível perceber isso.
Na infância, existe uma profusão de sintomas – e não são notas baixas. O lençol não
para na cama porque a criança se mexe demais durante a noite. Também pode falar
dormindo. Os professores mandam recados dizendo que aquele aluno é extremamente
inteligente, mas isso não se traduz nas avaliações. A criança também é excluída das
brincadeiras na escola, porque tem dificuldade de esperar a vez nos jogos em grupo e
manter a atenção nas tarefas. Olhar a agenda e os cadernos também ajuda muito: eles
refletem a organização do pensamento e como a criança anota as observações que
professores fazem durante as aulas. A condição fundamental para o diagnóstico de TDA
é a hiperatividade mental. Ninguém adquire
TDA ao longo da vida. Quem tem o transtorno
já nasceu com esse tipo de funcionamento
"Quando tive o diagnóstico e comecei
cerebral. É o histórico que leva ao diagnóstico
o tratamento, eu me senti como um
preciso.
míope que põe o primeiro par de
óculos e percebe que o mundo é cheio
Como foi sua vida escolar?
de detalhes"
Nunca repeti ano. Conseguia passar nas
provas finais ou na recuperação. Nessa hora, meus pais assumiam uma função, digamos,
mais executiva. Eles me ajudavam a me organizar, e aí eu estudava como louca. Quando
existe planejamento, vai tudo bem com a pessoa que tem TDA.

O que a senhora aconselha a quem descobre que o filho tem TDA?

A primeira coisa é ver o grau de sofrimento dessa criança, o nível de


desconforto. É preciso ir à escola conversar com professores, ouvir a babá. A partir daí,
dar oportunidade à própria criança para que ajude no tratamento, participe. Tenho um
paciente que enlouquecia a família. Depois de usar medicação por dois anos e ter uma
melhora estupenda, ele disse: "Já tenho noção de como é meu cérebro funcionando da
maneira que tem de ser e queria parar de tomar o remédio, tentar do meu jeitinho". Ele
ganhou uma percepção de seu comportamento. Outra coisa que os pais devem entender
é que ser justo em questão educacional não é tratar os filhos todos da mesma maneira.
Eles têm de ver o que cada um precisa. No caso do TDA, é fundamental dar ênfase à
disciplina. Inclusive com a mesada. Como ele tende a gastar tudo de uma vez, o
dinheiro tem de ser liberado aos poucos, para criar um limite e cumpri-lo. Com meus
pacientes, por exemplo, costumo assinar um contrato toda vez que quero alguma coisa.
Sempre funciona.

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A senhora conta a seus pacientes no consultório que tem TDA?

Sim, e principalmente as crianças ficam muito aliviadas. Outro dia atendi um


paciente que batia a cabeça na parede. A mãe pensou que o filho estivesse louco. E eu
disse a ele: "É para tentar parar o excesso de pensamento, né? A cabeça pesa mesmo,
mas não é assim que vai melhorar". Ele ficou impressionado porque eu entendia
exatamente o que ele estava sentindo. No livro, publiquei experiências minhas com
nomes trocados. Como as da estudante de fonoaudiologia que achava que tinha alguma
falha de caráter porque se distraía nas aulas, pegava cadernos emprestados com amigas,
tirava notas boas e se achava uma fraude.

Quais são as tendências mais modernas no tratamento do transtorno?

Antes, só existia o metilfenidato (a Ritalina). Mas 15% dos pacientes não


respondem bem a ele. É uma substância que surte efeito quando a desorganização e a
falta de foco são os fatores que mais atrapalham a vida. Ao longo desta década, a
bupropiona, substância usada no tratamento para parar de fumar, mostrou-se muito
eficiente também para TDA. A atomoxetina, um tipo de antidepressivo, também passou
a ser usada – principalmente nos casos em que depressão e ansiedade se manifestam
junto. Costumo dizer que a melhor medicação é a eficaz com a menor dose. Mesmo no
tratamento de adultos, começo com dose de criança. E avalio o tratamento
complementar necessário. A terapia cognitivo-comportamental tem-se mostrado muito
eficaz.

Existe prescrição exagerada de medicamentos hoje?

Sim. Não se deve prescrever remédio de TDA em um momento de desatenção


ou para aumentar a concentração no ano de vestibular, por exemplo. O excesso de
informação pode levar o cérebro à exaustão, e a pessoa fica sujeita a distrações, falhas
de memória. Mas isso é fruto de uma sobrecarga circunstancial. Quando acaba, os
sintomas desaparecem. O que acontece é que, por desinformação, alguns pais solicitam
a medicação antes de uma investigação cuidadosa sobre o funcionamento mental do
filho. Em quem não tem TDA, o remédio cria um efeito falso, dá apenas vigor numa
situação de cansaço extremo.

TDA tem cura?

Não tem cura, mas há grandes chances de um final feliz. No momento em que você
entende sua engrenagem, passa a dominá-la em vez de ser dominado por ela. Aí pode
até levar vantagens. O excesso de pensamento – que causa exaustão, desorganização e
esquecimento – também traz ideias. Existem ideias boas e más. O grande aliado de
quem sofre de TDA é um caderninho. Em qualquer lugar, eu anoto pensamentos que já
deram origem a capítulos de livros. Mesmo para ideias sem sentido, é vital ter
organização. Dali pode sair algo realmente inovador.

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