A Estrutura Da Alma C G Jung
A Estrutura Da Alma C G Jung
A Estrutura Da Alma C G Jung
NOTA: Os números em colchet es ref erem-se à numeração original dos parágraf os e servem como ref erência para
cit ação bibliográf ica.
[ 283] Como ref lexo do mundo e do homem, a alma é de t al complexidade que pode ser
observada e analisada a part ir de um sem-número de ângulos. Com a psique acont ece j ust a-
ment e o mesmo que acont ece com o mundo: porque uma sist emát ica do mundo est á f ora do
alcance humano, t emos de nos cont ent ar com simples normas art esanais e aspect os de
int eresse part icular. Cada um elabora para si seu próprio segment o do mundo e com ele
const rói seu sist ema privado para seu próprio mundo, muit as vezes cercado de paredes
est anques, de modo que, algum t empo depois, parece-lhe t er apreendido o sent ido e a
est rut ura do mundo. Ora, o f init o não pode j amais apreender o inf init o. Embora o mundo dos
f enômenos psíquicos sej a apenas uma part e do mundo como um t odo, é j ust ament e por est a
razão que parece mais f ácil apreender uma part e do que o mundo int eiro. Mas dest e modo
est ar-se-ia esquecendo que a alma é o único f enômeno imediat o dest e mundo percebido por
nós e por ist o mesmo a condição indispensável de t oda experiência em relação ao mundo.
[ 284] As únicas coisas do mundo que podemos experiment ar diret ament e são os
cont eúdos da consciência. Não que eu pret enda reduzir o mundo a uma idéia, a uma
represent ação do mundo, mas o que eu quero enf at izar é como se eu dissesse que a vida é
uma f unção do át omo do carbono. Est a analogia most ra-nos clarament e as limit ações da ót ica
do prof issional à qual eu sucumbo, ao procurar dar alguma explicação do mundo ou mesmo
uma part e dele.
[ 285] Meu pont o de vist a é, nat uralment e, o pont o de vist a psicológico, e mais
especif icament e o do psicólogo prát ico cuj a t aref a é encont rar, o mais depressa possível,
uma via de saída da conf usão caót ica dos complicados est ados psíquicos. Meu pont o de vist a
deve, necessariament e, dif erir daquele do psicólogo que pode analisar experiment alment e
um processo psíquico isolado, com t oda calma, no silêncio do laborat ório. A dif erença é mais
ou menos aquela que há ent re o cirurgião e o hist ólogo. Também não sou um met af ísico cuj a
t aref a é dizer o que as coisas são em si e por si, e se elas são absolut as ou algo semelhant e.
Os obj et os de que me ocupo sit uam-se t odos dent ro dos limit es do experiment ável.
[ 286] Minha necessidade consist e sobret udo em apreender condições complexas e ser
capaz de f alar sobre elas. Devo ser capaz de expressar coisas complicadas em linguagem
acessível e dist inguir ent re vários grupos de f at os psíquicos. Est as dist inções não podem ser
arbit rárias, porque devo chegar a um ent endiment o com o obj et o de que me ocupo, ist o é,
com meu pacient e. Por ist o, devo recorrer sempre ao emprego de esquemas simples que, de
um lado, reconst it ui os f at os empíricos e, de out ro lado, se liga àquilo que é universalment e
conhecido e assim encont ra compreensão.
[ 287] Est ando para classif icar em grupos, os cont eúdos da consciência, começamos,
segundo a ant iga norma, com a proposição: "Ni hi l est i n i nt el l ect u, quod non ant ea f uer i t i n
sensu" [ "O int elect o só cont ém o que passou pelos sent idos"] .
[ 288] Parece que o conscient e f lui em t orrent es para dent ro de nós, vindo de f ora sob a
f orma de per cepções sensor i ai s. Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e
assim t emos consciência do mundo. Est as percepções sensoriais nos dizem que algo exi st e
f ora de nós. Mas elas não nos dizem o que ist o sej a em si. Ist o é t aref a, não do pr ocesso de
per cepção, mas do pr ocesso de aper cepção. Est e últ imo t em uma est rut ura alt ament e
complexa. Não que as percepções sensoriais sej am algo simples; mas sua nat ureza complexa é
menos psíquica do que f isiológica. A complexidade da apercepção, pelo cont rário, é psíquica.
Podemos ident if icar nela a cooperação de diversos processos psíquicos. Suponhamos ouvir um
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[ Publicado, em ext rat os, em: Eur opäi sche Revue, IV (1928), e com modif icações em: Mensch und Er de, edit . de Keyserling] .
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ruído cuj a nat ureza nos pareça desconhecida. Depois de algum t empo, percebemos
clarament e que o ruído peculiar deve provir das bolhas de ar que sobem pela t ubulação da
cent ral de aqueciment o. Ist o nos permit e r econhecer o ruído. Est e reconheciment o deriva de
um processo que denominamos de pensament o. É o pensament o que nos diz o que a coisa é
em si.
[ 289] Falei acima em ruído "peculiar". Quando qualif ico qualquer coisa como "peculiar",
eu me ref iro a uma t onal i dade af et i va especial que a coisa t em. A t onalidade af et iva implica
uma aval i ação.
[ 290] Podemos conceber o pr ocesso de r econheci ment o essencialment e como uma
comparação e uma dif erenciação com o auxílio da memória. Quando vej o o f ogo, por ex. , o
est ímulo luminoso me t ransmit e a idéia de f ogo. Como exist em inúmeras imagens
recordat ivas do f ogo em minha memória, est as imagens ent ram em combinação com a
imagem do f ogo que acaba de ser recebida, e a operação de compará-la e dif erenciá-la dessas
imagens de recordação produz o reconheciment o, ist o é, a const at ação def init iva da
peculiaridade da imagem há pouco adquirida. Em linguagem ordinária, est e processo
denomina-se pensament o.
[ 291] O pr ocesso de aval i ação é dif erent e: o f ogo que eu vej o provoca reações
emocionais de nat ureza agradável ou desagradável, e as imagens de recordação assim
est imuladas t razem consigo f enômenos emocionais concomit ant es denominados t onal i dades
af et i vas. Dest e modo um Obj et o nos parece agradável, desej ável, belo ou desagradável, f eio,
repelent e, et c. Em linguagem ordinária est e processo se chama sent i ment o.
[ 292] O pr ocesso i nt ui t i vo não é uma percepção sensorial nem um pensament o, nem
t ambém um sent iment o, embora a linguagem, aqui, apresent e uma lacuna lament ável de
discriminação. Com ef eit o: alguém pode exclamar: "Oh, est ou vendo a casa i nt ei r a
quei mando! " Ou: "E t ão cer t o como doi s e doi s são quat r o que haver á um desast r e, se o f ogo
i r r omper aqui ". Ou: "Eu t enho a sensação de que est e f ogo ai nda poder á l evar a uma
cat ást r of e". De acordo com o respect ivo t emperament o, o primeiro f alará de sua int uição
como sendo um at o de ver bem nít ido, ou sej a, f az dele uma percepção sensorial. O out ro a
designará como pensament o: "Bast a só r ef l et i r , par a ver cl ar ament e quai s ser ão as
conseqüênci as", dirá ele. O t erceiro, af inal, sob a impressão de seu est ado emocional, dirá
que sua int uição é um processo de sent ir, mas a int uição, segundo meu modo de ver, é uma
das f unções básicas da alma, ou sej a, a per cepção das possi bi l i dades i ner ent es a uma dada
si t uação. É bem provável que o f at o de os conceit os de sent iment o, sensação e int uição
serem usados indist int ament e no alemão se deva a um desenvolviment o insat isf at ório da
língua, ao passo que sent i ment e sensat i on, do f rancês, e f eel i ng e sensat i on, do inglês, são
absolut ament e dist int os, embora sent i ment e f eel i ng sej am empregados às vezes como
palavras auxiliares para int uição (i nt ui t i on). Recent ement e, porém, o t ermo i nt ui t i on
começou a ser usado comument e na língua inglesa usual.
[ 293] Out ros cont eúdos da consciência que podemos dist inguir são os pr ocessos
vol i t i vos e os pr ocessos i nst i nt i vos. Os primeiros são def inidos como impulsos dirigidos,
result ant es de processos apercept ivos cuj a nat ureza f ica à disposição do chamado livre-
arbít rio. Os segundos são impulsos que se originam no inconscient e ou diret ament e no corpo e
se caract erizam pela ausênci a de l i ber dade ou pela compul si vi dade.
[ 294] Os processos apercept ivos podem ser di r i gi dos ou não di r i gi dos. No primeiro caso
f alamos de at enção, e no segundo, de f ant asias ou sonhos. Os processos dirigidos são
racionais, os não dirigidos irracionais. Ent re est es últ imos se inclui o sonho como a sét ima
cat egoria dos cont eúdos da consciência. Sob cert os aspect os, os sonhos se assemelham às
f ant asias conscient es, pelo f at o de t erem carát er irracional, não dirigido. Mas os sonhos se
dist inguem das f ant asias na medida em que suas causas, seu curso e seu obj et ivo são
obscuros, à primeira vist a, para a nossa compreensão. Mas eu lhes at ribuo a dignidade de
cat egoria de cont eúdo da consciência, porque são a result ant e mais import ant e e mais
evident e de processos psíquicos inconscient es que ainda est ão penet rando no campo da
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consciência. Acredit o que est as set e classes dão uma idéia dos cont eúdos da consciência,
superf icial embora, mas suf icient e para os nossos obj et ivos.
[ 295] Exist em, como se sabe, cert os pont os de vist a que pret endem rest ringir t odo o
psíquico à consciência, como sendo idênt ico a ela. Não acredit o que ist o sej a suf icient e. Se
admit irmos que há cert as coisas que t ranscendem nossa percepção sensorial, ent ão podemos
f alar t ambém do psíquico cuj a exist ência só nos é acessível por via indiret a. Para quem
conhece a psicologia do hipnot ismo e do sonambulismo, é f at o corriqueiro que, embora uma
consciência art if icialment e ou pat ologicament e rest ringida dest a espécie não cont enha
det erminadas idéias, cont udo ela se comport a exat ament e como se as cont ivesse. Havia, por
ex. , uma pessoa hist ericament e surda que cost umava cant ar. Um dia o médico sent ou-se ao
piano, sem que a pacient e not asse, e se pôs a acompanhar o verso seguint e, em uma nova
t onalidade. Imediat ament e a pacient e cont inuou a cant ar na nova t onalidade. Um out ro
pacient e t inha a singularidade de cair em convulsões "híst ero-epilét icas" à vist a do f ogo.
Tinha um campo de visão not adament e limit ado, ist o é , sof ria de cegueira perif érica (t inha o
que se chama campo de visão "t ubular"). Se alguém colocasse um f oco luminoso na zona cega,
ocorria o at aque exat ament e como se ele t ivesse vist o a chama. Na sint omat ologia desses
est ados pat ológicos há inúmeros casos dest a espécie, nos quais, apesar da melhor boa
vont ade, só se pode dizer que est as pessoas percebem, pensam, sent em, recordam-se,
decidem e agem inconscient ement e , ou sej a, f azem inconscient ement e o que out ros f azem
de maneira conscient e. Est es processos ocorrem independent ement e de saber se a
consciência os percebe ou não.
[ 296] Est es processos psíquicos incluem, port ant o, o t rabalho não desprezível de
composição que est á na origem dos sonhos. Embora o sono sej a um est ado em que a
consciência se acha consideravelment e limit ada, cont udo o element o psíquico não deixa
absolut ament e de exist ir e de agir. A consciência apenas se ret irou dele, e na f alt a de um
obj et o em que se concent rar, caiu em um est ado relat ivo de inconsciência. Mas a vida
psíquica, evident ement e, cont inua da mesma f orma como há vida psíquica inconscient e
durant e o est ado de vigília. Não é dif ícil encont rar as provas nest e sent ido. Est e campo
part icular de experiência equivale ao que Freud descreve como "a psicopat ologia do dia-a-
dia". Ele most rou que nossas int enções e ações conscient es muit as vezes são f rust radas por
processos inconscient es, cuj a exist ência é verdadeira surpresa para nós mesmos. Nós
comet emos lapsos de linguagem, lapsos de escrit a, e inconscient ement e f azemos coisas que
t raem j ust ament e aquilo que gost aríamos de mant er o mais secret ament e possível ou que nos
é at é mesmo t ot alment e desconhecido. "Língua l apsa ver um di ci t ", diz um ant igo provérbio. É
sobre a f reqüência dest es f enômenos que se baseia o experiment o das associações ut ilizado
no diagnóst ico e que pode ser de grande proveit o quando o pacient e não pode ou não quer
dizer nada.
[ 297] É nos est ados pat ológicos que podemos encont rar os exemplos clássicos da
at ividade psíquica inconscient e. Quase t oda a sint omat ologia da hist eria, das neuroses
compulsivas, das f obias e, em grande part e, t ambém da d ement i a pr aecox ou esquizof renia, a
doença ment al mais comum, t em suas raízes na at ividade psíquica inconscient e. Por ist o
est amos aut orizados a f alar da exist ência de uma alma inconscient e. Todavia, est a alma não
é diret ament e acessível à nossa observação — do cont rário não seria inconscient e! — mas só
pode ser deduzi da. E nossa conclusão pode apenas dizer: "é como se. . . ".
[ 298] O inconscient e t ambém f az part e da alma. Podemos agora f alar de cont eúdos do
i nconsci ent e, em analogia com os dif erent es cont eúdos da consciência? Ist o equivaleria a
post ular, por assim dizer, um out ro est ado de consciência dent ro do inconscient e. Não quero
ent rar aqui nest a delicada quest ão que t rat ei em out ro cont ext o, mas quero me limit ar à
quest ão se podemos dif erenciar ou não o que quer que sej a no inconscient e. Est a quest ão só
pode ser respondida empiricament e, ou sej a, com a cont rapergunt a se há element os
plausíveis ou não para uma t al dif erenciação.
[ 299] Para mim não há a menor dúvida de que t odas as at ividades que se ef et uam na
consciência podem processar-se t ambém no inconscient e. Há inúmeros exemplos em que um
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problema int elect ual sem solução no est ado de vigília f oi resolvido durant e em sonhos
Conheço um cont abilist a, por ex. , que durant e vários dias t ent ou, em vão, esclarecer uma
f alência f raudulent a. Cert o dia t rabalhou at é meia-noit e, sem encont rar a solução, e em
seguida f oi dormir. Às t rês horas da madrugada, sua mulher o viu levant ar-se e dirigir-se ao
seu gabinet e de t rabalho. Ela o seguiu e o viu t omando not as af anosament e em sua mesa de
t rabalho. Mais ou menos após um quart o de hora ele volt ou ao leit o. Na manhã seguint e ele
não se lembrava de nada. Pôs-se de novo a t rabalhar e descobriu uma série de not as, escrit as
de próprio punho, que esclareciam t ot al e def init ivament e t odo o emaranhado do caso.
[ 300] Em minha at ividade prát ica t enho me ocupado de sonhos há mais de vint e anos.
Vezes e mais vezes t enho vist o como idéias que não f oram pensadas durant e o dia,
sent iment os que não f oram experiment ados, depois emergiam nos sonhos e dest e modo
at ingiam a consciência. Mas o sonho como t al é um cont eúdo da consciência, pois do cont rário
não poderia ser obj et o da experiência imediat a. Mas vist o que ele t raz à t ona mat eriais que
ant es eram inconscient es, somos f orçados a admit ir que est es cont eúdos j á possuíam uma
exist ência psíquica qualquer em um est ado inconscient e e soment e durant e o sonho é que
apareceram à consciência rest rit a, ao chamado “ remanescent e da consciência” . O sonho
pert ence aos cont eúdos normais da psique e poderia ser considerado como uma result ant e de
processos inconscient es, a irromper na consciência.
[ 301] Se, porém, com base na experiência, somos levados a admit ir que t odas as
cat egorias de cont eúdos da consciência podem, ocasionalment e, ser t ambém inconscient es e
at uar sobre a consciência como processos inconscient es, deparamo-nos com a pergunt a,
t alvez inesperada, se o inconscient e t em sonhos t ambém. Em out ras palavras: há result ant es
de processos ainda mais prof undos e — se possível — ainda mais inconscient es que penet ram
nas regiões obscuras da alma! Eu deveria repelir est a pergunt a paradoxal como demasiado
avent urosa, se não houvesse realment e mot ivos que conduzem semelhant e hipót ese ao
domínio do possível.
[ 302] Devemos primeirament e t er diant e dos olhos os element os necessários para
provar que o inconscient e t em sonhos t ambém Se queremos provar que os sonhos ocorrem
como cont eúdos da consciência, devemos simplesment e demonst rar que há cert os cont eúdos
que, pelo carát er e pelo sent ido, são est ranhos e não podem ser comparados aos out ros
cont eúdos racionalment e explicáveis e compreensíveis. Se pret endemos most rar que o
inconscient e t em sonhos t ambém, devemos f azer a mesma coisa com os seus cont eúdos. O
mais simples t alvez sej a apresent ar um exemplo prát ico:
[ 303] Trat a-se de um of icial, de 27 anos de idade Ele sof ria de violent os at aques de
dores na região do coração, como se dent ro houvesse um bolo, e de dores penet rant es no
calcanhar esquerdo. Organicament e não se descobriu nada. Os at aques haviam começado
cerca de dois meses ant es e o pacient e f ora licenciado do serviço milit ar, em vist a de sua
incapacidade t emporária para andar. Várias est ações de cura de nada adiant aram. Uma
invest igação acurada sobre o passado de sua doença não me proporcionou nenhum pont o de
ref erência, e o próprio pacient e não t inha a mínima idéia do que poderia ser a causa de seu
mal. Ele me dava a impressão de ser um t ipo saudável, um t ant o leviano e t eat ralment e meio
"valent ão", como se quisesse, . dizer: "Nest a ni nguém me apanha". Como a anamnese nada
revelasse, eu lhe f iz pergunt as a respeit o de seus sonhos. Imediat ament e t ornou-se evident e a
causa de seus males. Pouco ant es da neurose se manif est ar, a moça que ele namorava
rompeu com ele e noivara com out ro. Ele me cont ou essa hist ória, considerando-a sem
import ância — "uma mul her est úpi da: se el a não me quer , eu ar r anj o out r a — um homem
como eu não se dei xa abat er por uma coi sa dest as". Est a era a maneira pela qual ele t rat ava
sua decepção e sua verdadeira dor. Mas agora seus af et os vêm à t ona. E a dor do coração
desaparece e o bolo que ele sent ia na gargant a desaparece depois de alguns dias de lágrimas.
A "dor no coração" é uma expressão poét ica que aqui se t ornou realidade, porque o orgulho de
meu pacient e não lhe permit ia que ele sof resse sua dor como sendo uma dor da alma. O bolo
que ele sent ia na gargant a, o chamado gl obus hyst er i cus, provém, como t odos sabemos, de
lágrimas engolidas. Sua consciência simplesment e se ret irou dos cont eúdos que lhe eram
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penosos, e est es, ent regues a si mesmos, só podiam alcançar a consciência indiret ament e sob
a f orma de sint omas. Trat a-se de processos int eirament e compreensíveis por via racional e,
conseqüent ement e, de evidência imediat a, os quais — se não t ivesse sido o seu orgulho —
poderiam igualment e t ranscorrer no plano da consciência.
[ 304] E agora quant o ao t erceiro sint oma: as dores que ele sent ia no calcanhar não
desapareceram. Elas não se enquadram na imagem que acabamos de esboçar. O coração não
est á ligado diret ament e ao calcanhar e ninguém exprime sua dor por meio do calcanhar . Do
pont o de vist a racional não se vê a razão pela qual as duas out ras síndromes não sat isf aziam.
Mesmo t eoricament e , est aríamos int eirament e sat isf eit os, se a t omada de consciência do
sof riment o psíquico result asse em dor normal e, conseqüent ement e, em cura.
[ 305] Como a consciência não podia me of erecer nenhum pont o de ref erência para o
sint oma do calcanhar, recorri mais uma vez ao ant igo mét odo dos sonhos. O pacient e t eve um
sonho em que se vira mordido por uma serpent e e imediat ament e f icara paralít ico. Est e
sonho, evident ement e, t razia a int erpret ação do sint oma do calcanhar. O calcanhar lhe doía
porque f ora mordido por uma serpent e. Trat ava-se de um cont eúdo est ranho, com o qual a
consciência racional nada sabia o que f azer. Pudemos ent ender, de imediat o, a razão pela
qual o coração lhe doía, mas o f at o de o calcanhar t ambém doer, ult rapassava qualquer
expect at iva racional. O pacient e f icou complet ament e perplexo diant e do caso.
[ 306] Aqui, port ant o, t eríamos um cont eúdo que irrompe na zona inconscient e, de
maneira est ranha, e provavelment e provém de uma camada mais prof unda que j á não pode
ser esquadrinhada por via racional. A analogia mais próxima dest e sonho é, evident ement e, a
própria neurose. Ao rej eit á-lo, a moça provocou-lhe uma f erida que o paralisou e o pôs
doent e. Uma análise post erior do sonho revelou um novo pedaço de seu passado que ent ão se
t ornou claro ao nosso pacient e, pela primeira vez: ele f ora o f ilho querido de uma mãe um
t ant o hist érica. Ela t inha pena dele, admirava-o e paparicava-o em excesso, razão pela qual
ele se criou com modos de mocinha. Mais t arde, de repent e assume um port e viril e abraça a
carreira milit ar, onde poderia encobrir sua moleza int erior com suas exibições de "valent ia".
Em cert o sent ido, a mãe t ambém o paralisara.
[ 307] Trat a-se manif est ament e daquela mesma ant iga serpent e que f oi sempre amiga
especial de Eva, "El a t e esmagar á a cabeça, e t u (a ser pent e) l he f er i r ás o cal canhar ", diz o
Gênesi s a respeit o da descendência de Eva, f azendo eco a um hino egípcio muit o mais ant igo,
que se cost umava recit ar ou cant ar para curar mordidas de serpent e: