Um Passeio Diáfano Pelas Linhas Do Conto "Passeio Noturno - Parte 1", de Rubem Fonseca: A Leitura Literária Na Escola
Um Passeio Diáfano Pelas Linhas Do Conto "Passeio Noturno - Parte 1", de Rubem Fonseca: A Leitura Literária Na Escola
Um Passeio Diáfano Pelas Linhas Do Conto "Passeio Noturno - Parte 1", de Rubem Fonseca: A Leitura Literária Na Escola
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Resumo: Este artigo propõe procedimentos de leitura voltados para o conto “Passeio Noturno –
Parte 1” de Rubem Fonseca, a ser utilizado, fundamentalmente, na educação básica. Assentado em
discussões acerca do ensino-aprendizagem sob a perspectiva dialógico-colaborativa, toma-se como
objetivo, pela exposição de uma sequência didática, apresentar aos professores uma possibilidade
de flexibilização no trabalho com o LDP em sala de aula, considerando a leitura literária — no
caso, o gênero conto. Reúnem-se, como fundamentação teórica, autores que se aproximam quando
tratam dos elementos envolvidos em sala de aula: professor, estudante e livro didático, assim como
os que abordam de metodologias para as práticas de escrita e leitura, como: sequência didática,
multiletramentos.
Abstract: This article proposes proceedings of reading for the tale “Passeio Noturno – Parte 1”
by Rubem Fonseca, to be use, principally, at basic education. Assets in discussion about the
teaching-learning from the perspective dialogic-collaborative, takes as objective, by exposition of a
didactic sequence, to present at teachers a possibility of flexibilization at work with the LDP in
classroom, considering the literary reading — in this case, the tale literary. Rejoins, as theory basis,
authors that approach when deals of the elements involved in classroom: teacher, student and
textbook, thus like those that considerer the methodologies of practices of written and reading, as:
didactic sequence, multiliteracies.
Considerações iniciais
1 Cabe deixar claro, devido ao objetivo que se pretende alcançar, que as linhas abaixo não expõem um relato de
atividade em sala de aula, mas somente a exposição de uma sequência didática a ser utilizada nesse ambiente.
2
Mestrando do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Humanas, Sociais e da Natureza na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Endereço eletrônico: [email protected].
divididas em: um livro voltado à gramática e ao texto; outro ao ensino da literatura; e um aos
exercícios de revisão (gramatical, ou literária).
A crítica que se incide a coleções que fragmentam os conteúdos, se dá pelo tratamento
discriminatório à literatura em relação à sobrevalorização da análise linguística3 e que considera
aquela como um texto no qual não são abrangidos os diversos gêneros existentes. A fim de
exemplificar tal crítica, bastaria uma análise da crônica de Caio Fernando Abreu (1993) “Se um
brasileiro num dia de dezembro...” para percebermos o seu caráter instrutivo4; enquanto que no
conto de Rubem Fonseca “Intestino Grosso”, do livro Feliz Ano Novo (1999) observa-se o roteiro
de uma entrevista escrita.
Retomando a composição das obras didáticas, os aspectos que determinam a produção dos
LDP — livros didáticos de língua portuguesa — corroboram, ainda, para que não sejam
considerados romances completos, e longos, publicados em suas páginas. Por outro lado, a
fragmentação de uma porção de obras literárias5 — comum nesse tipo de livro —, apresenta ao
alunado uma quantidade de obras e autores de valor imensurável, uma vez que em muitos casos
não são observados outros momentos nos quais grande parte desses estudantes entrará em contato
com tal diversidade6.
Partimos, no entanto, rumo a considerar a leitura literária realizada na completude da obra,
assim como o contato do alunado de educação básica com obras não-canônicas. Para tratar de tal
completude, é viável idealizarmos um amadurecimento do estudante e das propostas de
procedimentos de leitura bem mais amplo e significativo, uma ampliação de horizontes de
expectativas mais abrangente do que a idealizada com os procedimentos de leitura sugeridos por
algumas das obras didáticas.
Para tanto, apresentam-se neste artigo corredores que se resolvem numa sequência didática,
que tem por objetivo propor aos professores uma possibilidade de flexibilização no trabalho com
o LDP em sala de aula considerando a leitura literária. Tais corredores são considerações gerais a
respeito das obras de Rubem Fonseca, perspectivas sobre o gênero conto, a necessidade de
considerar uma sequência de atividades organizada, guiando-nos a uma nova proposta didática —
uma das portas desses corredores — que toma como base, inclusive, uma interpretação dos autores
destes escritos da obra em discussão.
também em fragmentos.
6 A fragmentação e a inserção de algumas obras literárias nos LDP garantem a apresentação de uma quantidade de
autores e trechos de romances que, sem a exposição pela da ferramenta didática, muitos alunos não teriam contato.
Cabe esclarecer, antes de tudo, como se pretende contornar a possível problemática entre
a SD e a prática de letramento literário. Enquanto entende-se a prática de letramento como “sendo
um dos usos sociais da escrita” e a literatura capaz de “[...] tornar o mundo compreensível [...].”,
proporcionando um “[...] modo privilegiado de inserção no mundo da escrita [...].” (COSSON,
2017 apud COSSON, 2006, p.102), os momentos de “Produção inicial” e “Produção final”, assim
como algumas indicações contidas nos “Módulos (I, II, III)” tornam reais as práticas de letramento
na perspectiva de Rildo Cosson; ainda, tais procedimentos de leitura aqui inscritos contribuem para
o ensino-aprendizagem, uma vez sendo “um processo educativo específico” que se distancia de
uma “[...] mera prática de leitura de textos literários [...].” (COSSON, 2017, p.102).
A guisa de didatização de nossa proposta, utilizaremos de forma experimental o “Esquema
da sequência didática” (DOLZ et al., 2004, p. 98). Tal “Esquema” é explicitado e analisado por
diversos autores, portanto, para efeitos desta discussão, tais autores devem ser consultados para
uma possível imersão no que tange à proposta7. Essa, seguindo a configuração dada pelos
integrantes da Escola de Genebra, é composta da seguinte maneira: “Apresentação da Situação”;
“Produção Inicial”; “Módulos (I, II e III)” e “Produção Final”.
A sequência didática tem como função sistematizar o ensino-aprendizagem dos gêneros
textuais/discursivos, a fim de assegurar ao professor e ao estudante a apropriação da linguagem de
maneira progressiva. Como se pretende neste trabalho, o caráter progressivo se dá por meio do
ensino-aprendizagem efetivado pela leitura literária e pelos procedimentos de leitura que a seguem,
tanto na sala de aula — ambiente micro — quanto em ambientes externos à escola — espaços
macros.
De acordo com Bunzen e Mendonça (2006), ao adotar o “Esquema da Sequência Didática”
da Escola de Genebra, nos posicionamos contrariamente a uma língua vista enquanto código, em
sua unicidade; que corrobora para que os procedimentos de leitura do texto abarquem questões de
mera classificação e de caráter copista. Sabe-se, dada a literatura do tema, que a formação de um
sujeito, seja para o convívio social, seja para área acadêmica e/ou para o mercado profissional,
como se observa em Ferreti (2012), deve considerar a aquisição de conhecimentos os mais diversos,
objetivando o saber-ser; bem como o desenvolvimento de um indivíduo solidário e reflexivo.
Toma-se como propósito da aplicação da SD, pois, possibilitar aos estudantes uma
ampliação de horizontes que não vise somente a novas descobertas, mas que, ao realizarem-nas, as
façam de maneira reflexiva, tomando, pois, a leitura como um objeto significativo para o convívio
7 Consultas podem ser feitas em: Rojo e Sales (2004), Rojo e Moura (2012).
social, como um elemento social que é. Em síntese, os novos letramentos são adquiridos para novas
práticas Rojo (2012), de modo a alterar paradigmas específicos, com as dificuldades e capacidades
dos alunos a guiar o docente.
8 Para utilizar uma palavra que está em voga e que em outros contextos indica ações próximas a que aqui se adota.
Ao considerar o trabalho com a literatura em sala de aula, acredita-se ser fundamental que
o docente, bem como os estudantes, entre em contato, ainda que de maneira não aprofundada,
com outras obras literárias do autor em discussão. Incluir tal etapa de contextualização de obras do
mesmo autor propicia, a nosso ver, respostas intertextuais; discussões/respostas externalizadas;
bem como a possibilidade de leituras futuras de outros escritos do mesmo autor.
Tidas como contemporâneas, observamos o grau de atualidade que há entre o que apresenta
Fonseca e os diversos contextos sociais, sobretudo, os dos estudantes dos dias de hoje. O conto
“Feliz Ano Novo”, inserido no livro homônimo (1999), por exemplo, nos permite observar a
violência social enrustida nos discursos das personagens. Entretanto, enganam-se aqueles que a
enxergam tão-somente nas agressões físicas cometidas pela quadrilha fluminense e,
automaticamente, sofridas pela parcela burguesa da sociedade.
Formas de violência poderiam ser observadas na fartura (de comidas, joias etc.) dos
burgueses e propagadas pela televisão; no tratamento nominal que é dado aos integrantes da
quadrilha por eles mesmos; pela maneira como expressam (tais sujeitos) seu rancor, seu ódio,
verbalmente e fisicamente às mulheres e aos homens burgos, bem como pelo linguajar desferido,
no decorrer da invasão criminosa e vilipendiadora, pelo bando de “Zequinha” quando na casa das
“branquelas”.
Já no conto “Passeio Noturno – Parte 1”, inserido em livro 64 contos de Rubem Fonseca, desde
o relacionamento com o eu-interior, o apego à atividade profissional, passando pela composição
familiar e chegando à violência banalizada, o autor suscita nos mais diferentes e experientes leitores
uma aproximação humana, bem como um distanciamento pela ojeriza, visto o emprego de uma
violência que, para determinados leitores, pode ser considerada banal.
Os deleites possíveis de uma literatura fonsequiana tornam-se mais necessários conforme
nos aprimoramos — erroneamente — na convivência social de modo solitário e esquecemos de
que essa toma, primordialmente, os contributos de relações as quais necessitam ser solidárias. Ou
seja, esquece-se, fundamentalmente, de que é na e sobre a vida social que os discursos são
construídos, como afirma Moita-Lopes (2009).
Desse modo, identifica-se nas leituras, por exemplo, em outras obras do autor, seja em: O
Cobrador (2010); nos contos “Feliz Ano Novo” (1999) e “Passeio Noturno” (2004) — qualquer de
suas partes — a colaboração de uma literatura que pode ser acessada facilmente pelos estudantes
do ensino básico e que contribui ao desenvolvimento de uma participação social solidário-
colaborativa, assim como significativa em distintos contextos.
9 Acredita-se ser o tempo escolar a explicação para uma sequência didática que, em certos momentos, apenas tangencia
determinados assuntos e, em outros, indica um aprofundamento na discussão. Contudo, cabe ao docente determinar
quais assuntos necessitam de uma discussão mais ou menos aprofundada.
10 Para um maior aprofundamento sobre a solidariedade, pesquisar os escritos de Nascimento (2016), Swanson (2007),
Apresentação da situação
Produção inicial
12 Espera-se, ainda, que ao trabalhar com cada etapa, o docente tenha um comportamento que não aquele adotado
perante o livro didático: de passividade e de desconhecimento do progresso possível.
13 Utilizar, para este momento, de consultas realizadas em referenciais teóricos, como: Silverman (1995), Bosi (2006),
Cortázar (1993).
O encaminhamento que apresentamos neste momento é uma atividade na qual cada grupo
de estudantes tratará de uma temática observada na sociedade contemporânea e, posteriormente,
vista no conto por meio de textos escritos. A produção inicial consiste na elaboração — a
considerar o conhecimento tácito dos estudantes, já que não foi abordada a obra — de um texto
escrito no qual, diante do tema escolhido, os estudantes postularão reflexões e críticas a serem
compartilhadas com a comunidade escolar e com as comunidades virtuais/online.
O compartilhamento das produções em redes sociais torna-se relevante para apresentarmos
aos alunos que:
i) as produções não devem servir como pretexto para serem inferidas notas escolares;
ii) possibilita/valoriza a comunicação dos estudantes com ambientes exteriores à
escola em situações reais de uso.
Como nos levam a entender os títulos das primeiras etapas desta sequência didática, esses
dois momentos citados não devem ser encarados como atividades de aprofundamento na discussão
dos temas e na apropriação das habilidades de multiletramentos, já que não são precedidos por
leituras nem por discussões aprofundadas. Indica-se, como instrução para a elaboração das
atividades da “Produção Inicial”, que o docente instigue os estudantes a realizarem pesquisas
simples ou mesmo a utilizar de seus conhecimentos prévios para suas produções.
A história se inicia no momento em que o homem chega a sua casa após o serviço e é
descrita a imagem de sua companheira jogando cartas — mais especificamente "Paciência" — com
os olhos vidrados nelas; ela fala para ele beber, relaxar, pois anda trabalhando demais. Ambos
possuem conta bancária conjunta, por isso a mulher não pede o dinheiro dele; já seus filhos, seja
na hora do café ou do licor, estão sempre pedindo. Como o próprio homem nos conta, ele precisa
relaxar: vai, pois, até a biblioteca, mas não o consegue; sua produtividade, como sempre, encontra-
se afetada.
A manter sua rotina, o pai da família prefere sair e passear pela cidade com o seu carro que
faz de 0 a 100 km/h em 9 segundos, velocidade digna de um esportivo. Antes, porém, convida a
mulher para ir passear com ele, que, vidrada na novela (assim como em outros dias) deixa para que
o homem responda a si – ficando, neste momento, implícita uma negativa. Durante o seu passeio,
observa que está difícil encontrar uma vítima, apesar de a cidade possuir “mais pessoas do que
moscas” (p. 243). Após algumas andanças, encontra em um lugar, que nos é descrito como sendo
suburbano, pouco iluminado, com casas típicas de periferia, a mulher que será sua vítima. O fato
de considerar mulher uma vítima mais fácil, não o impede de cometer o ato.
A vítima é então atropelada. No que parece ser uma imagem de “ação-orgulho”, o sujeito
canta pneus e sai em disparada, observando pelo retrovisor o corpo da mulher estirado no chão
ensanguentado. Já em sua casa, após o crime cometido, a mulher — sua companheira — o
questiona se já havia relaxado; a resposta novamente fica implícita, a nos parecer, agora, positiva.
Em seguida, o homem fala para ela que necessita descansar, pois o dia que virá será cansativo.
Linguagem
A começar pela leitura do trecho em que o homem se prepara para sair com seu carro,
observa-se uma relação da forma, elaboração do trecho da obra, com o cansaço apresentado pelo
sujeito:
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse
o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu e botei na rua,
coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras
todas me deixaram levemente irritado [...]. (FONSECA, 2004, p.243)
Tal trecho é constituído de modo que a descrição do deslocamento dos carros por
vocábulos semanticamente relacionados enfatizam a repetição, o caráter maçante, técnica que até
aquela altura do texto não é aplicada. O cansaço apresentado pela personagem é construído pelo
autor de maneira que significa o mesmo sentido nos leitores.
14Tais fundamentos servem ao docente por duas vias: prepará-lo para a aplicação das atividades da nova proposta;
assim como propor temas possíveis de serem aprofundados, desconsiderados.
Pela construção textual, ainda verificamos como Rubem Fonseca nos apresenta o deleite,
o apego, a objetos triviais por parte tanto da mulher quanto do homem. Quanto à mulher, num
primeiro momento é descrito como ela se encontra vidrada no jogo de cartas ao mesmo tempo em
que conversa com o marido “sem tirar os olhos das cartas” (p. 242). Ainda é revelado o copo de
uísque à cabeceira da cama, próximo dela, o qual é retirado e a acompanha até a biblioteca — onde
está o homem. Num outro momento, na janta, observamos novamente a descrição da cena da
mulher com a bebida; agora, no entanto, com o deleite sendo-nos apresentado por meio do estalar
da língua, “com prazer” (p. 242).
O apego dela, como o marido narra reproduzindo a fala dela: “eu é que cada vez me apego
menos aos bens materiais” (p. 242), não pode ser relacionado especificamente a bens materiais;
contudo, percebe-se essa atitude ligada a outros objetos e em outras ações. Poderíamos
exemplificar tal postura diante dos vários convites realizados pelo homem a ela para um passeio
noturno, aos quais as respostas foram sempre uma negativa, já que ela se encontrava sempre em
frente à novela.
Em suma, as descrições dos “olhos vidrados”, do “copo à cabeceira da cama” (p. 242), a
repetição de termos como “trabalha demais”, “relaxar” (p.242), nos leva a crer, possivelmente, que
o mesmo apego (lê-se: vício) ao jogo de cartas, às bebidas, a mulher possui com relação à novela.
Pela linguagem, ainda nos é possível identificar como o autor apresenta os parâmetros de
cada personagem sempre com o foco voltado ao sujeito-homem. Uma narração onde as descrições
dos diálogos, sentimentos e atitudes são monopolizadas por um sujeito apenas, corroborando para
o aprofundamento de uma leitura que se faz apenas pela visão que o homem tem da sociedade.
Essa monopolização da voz faz com que o leitor desatento desconsidere os aspectos psicológicos
das outras personagens, coadunando, portanto, em muitos casos, com as opiniões do sujeito da
voz.
Prosseguindo com a leitura, no desfecho do conto, temos a cena do possível homicídio da
mulher-suburbana. Os supostos homicídios cometidos pelo homem não são explicitados em
nenhum momento nem nos apresentados como rotineiros; entretanto, por meio dos diálogos e do
que seriam representações subjetivas do próprio homem, é possível inferir que haja uma rotina de
atropelamentos.
A insistência da mulher por uma quebra na rotina do marido corrobora para uma visão dela
enquanto um sujeito-culpado. Culpado no sentido de que, ao mesmo tempo em que esse se entrega
a um suposto capitalismo, com sua maneira inóspita de “levar a vida”, ela contribui por meio de
comentários para que o homem realize ações indevidas — rotinas incessantes — a fim de que
resolva sua inquietação em atropelamentos e no trabalho profissional, por exemplo.
Observando os trechos da obra que nos apresentam a insistência da mulher pelo descanso
do homem, cabe questionarmos aos leitores-estudantes, ainda no momento da leitura
interpretativa: Seria a mulher tão desocupada que estava “cansada de ver” o companheiro
trabalhando tanto? Seria mesmo o homem tão preocupado com a sua situação financeira que não
encontra outra maneira de viver senão trabalhar insistentemente? Qual é a relação que podemos
estabelecer entre a sociedade patriarcal e o posicionamento do homem?
Principalmente quando nos remetemos à mulher, cabe relatar que o posicionamento dela
diante das turbulências psicológicas pelas quais passa o seu companheiro é de total desprezo ou, o
que é mais perigoso numa relação desse tipo, de até mesmo um desconhecimento da situação dele.
Tal desprezo, a não-consideração dos possíveis problemas pelos quais passa o homem, são
observados por uma linguagem que transmite a serenidade de uma mulher. Serenidade essa que se
contrapõe ao comportamento intenso do homem.
O homem
atropelamentos, por exemplo — podem ser considerados possíveis reflexos daquela primeira
tentativa — o isolar-se no trabalho, atitude essa que nos remete a um possível vício — de busca
pela tranquilidade. Em outras palavras, nos parece que o estresse causado pelo vício no trabalho
desencadeia uma rotina de atropelamentos15.
Ao compararmos as atitudes das duas principais personagens, temos traços psicológicos
contrastantes e claros aos que leem a obra. Ao conferir o comportamento da mulher e comparar
brevemente a serenidade dela com a intensidade do homem, não destacamos os porquês de tal
intensidade. Primeiramente, cabe deixar claro que tal intensidade à qual nos referimos condiz com
os aspectos psicológicos, bem como à rotina de atividades.
Quanto a essa, ao não encontrar na biblioteca — que serviria para seu descanso — busca,
então, numa de suas saídas de carro, uma maneira de encontrar-se com a tranquilidade: atropelando
pessoas.
Tais práticas constantes, em nossa visão, influem para que haja um sobrecarregamento
psicológico, uma cansativa atividade mental que corrobora para o desferimento de discursos de
ódio frente à quantidade de pessoas na cidade; os atropelamentos; a fuga de um convívio familiar;
uma dedicação extrema ao serviço; a não consideração por possíveis problemas pelos quais passam
todos os outros sujeitos de sua família, refletidos numa postura egocêntrica.
“Nesta cidade que tem mais gente do que moscas.” (p. 243). Acredita-se, pela fixação das
personagens do conto, bem como da sociedade, que o fato de relacionar pela maneira mais
esdrúxula possível sujeitos com moscas, pode implicar numa imersão em tal discurso a fim de
encontrar uma crítica discriminatória implícita aos movimentos migratórios para a região sudeste
do Brasil que ocorreram, principalmente, entre os anos de 1950 e 1980. Cabe lembrar que, para
esse momento, o professor não deve tão-somente focar na contextualização, mas levar o estudante
a observar como é construída essa suposta crítica e quais os reflexos, os efeitos, produzidos na
obra.
Faz-se necessário, portanto, ressaltar o modo como é amplificado negativamente esse
movimento migratório por meio da comparação estabelecida entre humanos e moscas. Moscas
que, assim como muitos sujeitos, percorrem caminhos os mais horrendos em busca de alimentos
em todo e qualquer lugar, principalmente os inóspitos; moscas que habitam os lugares mais ermos
e inumanos.
15 O que nos levaria a considerar ainda, a ideia de que os atropelamentos dão sentido à vida do narrador.
São paralelos possíveis se relacionados com as situações dos que participaram das grandes
migrações propiciadas pela industrialização do Brasil e que a história nos conta, uma vez que esses
se alimentaram e ainda se alimentam com as sobras de comidas encontradas; residiam e, em muitos
casos, ainda residem em cortiços e favelas com o mínimo de saneamento básico, compartilham
seus aposentos e quintais com moscas.
A discussão, portanto, para esse momento, poderia girar em torno da banalização da
violência. Se por esse caminho optar, a leitura interpretativa seria pautada em argumentos de crimes
de ódio cometidos contra uma população mais pobre que migrou do campo para a cidade e, por
encontrar-se incomodado com a superpopulação, a personagem do homem buscou numa solução
radical a diminuição da população. O desferimento da violência ainda pode ser tido como resultado
de alguma doença psicológica, a qual demandaria uma pesquisa direcionada e aprofundada dentro
e fora da sala de aula.
Vale o professor salientar aos estudantes que a novela que é reproduzida na televisão, assim
como no conto “Feliz Ano Novo” — aqui a possibilidade de ser estabelecida uma ligação com
outra obra do mesmo autor — é capaz de transformar os hábitos sociais das mais distintas
maneiras, devido à apropriação da linguagem dos que produzem os programas televisivos. Ou seja,
cabe neste momento exigir dos estudantes uma possível interpretação sobre a exclusão social
corroborada pela televisão em tempos anteriores e nos atuais, objetivando uma mudança na
perspectiva inocente dos estudantes quanto à televisão.
Módulos
A divisão dos três módulos que se seguem foi pensada de maneira relacionada aos
fundamentos para a leitura do conto de Fonseca. Pensa-se, contudo, que tais módulos não
encerram a discussão em torno dessa leitura literária, uma vez que todas as atividades aqui
propostas servem como links para outras leituras. Um dos propósitos desta SD é primar pela
continuidade progressiva e o engajamento social que a leitura literária pode vir a desencadear.
Espera-se, anteriormente à introdução das atividades dos módulos, que três leituras
completas da obra sejam realizadas, cada qual realizada de maneira distinta: primeiramente,
teríamos uma leitura individual, silenciosa; a seguir, uma leitura oral — intercalada, com cada
estudante lendo um trecho da obra. A última leitura seria de cunho interpretativo-colaborativo,
sobre a qual estudantes e professor discutiriam os trechos importantes da interpretação realizada
em “Fundamentos para a Leitura do Conto ‘Passeio Noturno – Parte 1’”.
Como sequência, são propostos três módulos para o aprofundamento na obra. Buscou-se
nomear cada um dos módulos acreditando ser interessante a proposta apresentada pelos livros
didáticos, nos quais cada tópico dos procedimentos de leitura leva um título. Tais nomes foram
escolhidos de maneira a indicar ao professor e estudantes o direcionamento que cada módulo
propõe. Em outras palavras, ao observar o título, já se espera saber de qual contexto tais propostas
tratarão.
O primeiro módulo, “Olhando Para o Conto”, contém indicações que permearão um olhar
voltado ao texto: aos ditos e aos não-ditos das personagens. Tais instruções abrangem a maneira
como é construído o conto, focando em sua linguagem, bem como nos efeitos causados por essa.
Em síntese, será tratada da análise linguística sob uma proposta reflexiva quanto ao seu uso. No
módulo dois, intitulado “O conto e nossas vidas”, propõe-se que sejam relacionados os contextos
extratexto que venham a somar com os processos de compreensão acerca do que foi lido.
O terceiro módulo, “Práticas Sociais”, deve ganhar uma atenção especial, já que será nesse
que os estudantes entrarão em contato com o texto em funcionamento, bem como com pesquisas
que primam uma aproximação de contextos que anteriormente às atividades não eram refletidos
nem tampouco criticados. Ao denominá-lo como tal, pretende-se priorizar o aprimoramento da
humanização do aluno por meio de contatos com fatos distintos aos que está acostumado a lidar;
principalmente colocá-lo em contato com pessoas que outras experiências significativas
vivenciaram.
Traçar paralelos entre a fluidez ágil do conto com as rotinas do sujeito contemporâneo;
Discutir o preconceito dos habitantes nativos para com os (i)migrantes16;
16Para esse momento, sugere-se a contextualização. Ou seja, discutir dois movimentos de diásporas: o caso dos
haitianos para o Brasil, mais saliente no ano de 2011; bem como dos sujeitos que utilizam como rota de fuga o mar
Mediterrâneo para chegarem à Europa.
Produção final
Para este momento, espera-se que o professor instrua aos estudantes que essa nova
produção se trata de dar uma nova roupagem, outra visão, relacionada ao que foi produzido na
etapa da “Produção Inicial”. Para essa nova realização, devem ser indicadas novas possibilidades,
informações e conhecimentos que foram adquiridas ao longo das etapas anteriores. Considera-se,
ainda, que tal atividade indique ao professor prévios resultados do aprimoramento pelo qual passou
o alunado.
Espera-se que o docente acompanhe como a escrita, o tratamento dado à discussão inicial,
foram alterados, percebendo a capacidade do estudante de apropriar-se da linguagem com a
proposição da sequência. Ou seja, perceba como as leituras, as discussões em torno da obra,
acarretaram num desenvolvimento observado entre a produção inicial e a final. Ao mesmo tempo,
deve implicar na avaliação que faz da atividade, compreendê-la enquanto processo considerando
os caminhos pelos quais os estudantes prosseguiram.
Supondo que o docente possua seus métodos de reflexão acerca do seu trabalho e de suas
propostas didático-pedagógicas, indicaríamos apenas algumas reflexões sobre: a possível influência
dessa leitura na inclusão de outras propostas de leituras literárias; os horizontes alcançados,
Considerações finais
Discutiu-se neste artigo a flexibilização dos planejamentos de aula, bem como do livro
didático de Língua Portuguesa, enquanto um possível encaminhamento para a inclusão da leitura
literária na educação básica. Uma inclusão que visa não tão-somente a interpretações como
produtos para testes admissíveis; mas, sobretudo, descortinadora de efeitos vilipendiados pelo
tratamento soturno dado à literatura no ensino-aprendizagem contemporâneo.
Buscou-se apresentar acima uma sequência didática relacionada ao conto “Passeio Noturno
- Parte 1” de Rubem Fonseca de caráter progressivo: que propicia produções textuais do tipo
opinião; a participação em fóruns de discussões cujos temas tratam do estresse causado pela
violência social, pela intensa dedicação às atividades remuneradas, os vícios; a produção —
multiletramento — e o contato com outros sujeitos por meio dos minidocumentários e entrevistas
utilizando-se de tecnologias as mais variadas.
A proposta foi privilegiar o envolvimento dos estudantes com os variados gêneros
textuais/discursivos que se encontram ou não no cotidiano de estudantes e professores. Assim,
com atividades que não se restringem somente à leitura, à produção escrita, enquanto produtos,
acredita-se na possibilidade não apenas da leitura literária cair no gosto dos estudantes, uma vez
que eles possam entendê-la ligada aos seus aspectos sociais, mas, inclusive, como modo de
incentivá-los a enxergá-la enquanto fonte de conhecimento em e para diversos contextos.
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