A Terra Das Coisas Perdidas

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CARLOS AUGUSTO SEGATO

Ilustrações: Marcos Guilherme

12ª edição

A terra das
coisas perdidas
CARLOS AUGUSTO SEGATO
Ilustrações: Marcos Guilherme

A TERRA DAS
COISAS PERDIDAS

Ao Rafael,
meu sobrinho paulista.

E à meninada de Minas,
o Filipe, o Henrique, o Murilo,
a Thaisa e o Rodrigo,
dedico este livro.

12ª· edição
Conforme a nova ortografia

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O muro é
muito alto...

O quintal da casa do seu Cataventi, o inventor, vivia


cheio de correias, engrenagens, peças e ferramentas.
Marcelinho não se conformava. Se não fosse tanta
tranqueira ali, seria um ótimo lugar para a molecada da
rua rodar pião, jogar futebol ou brincar de pique entre as
árvores.
Aquela era a última casa da rua Bem-te-vi, que
terminava de encontro a um muro muito alto. Era onde
começava a curiosidade do mundo. Os mais velhos não
deixavam ninguém subir nele porque era perigoso.
O que existia do outro lado?
Nunca contaram às crianças. Nem o pai de Marcelinho,
nem o pai do Joel, nem seu Alcides ou seu Giuseppe,
ninguém. A rua, com suas dezoito ou vinte casinhas,
vinha terminar no muro. A vida, a paisagem, o mundo, tudo
terminava naquele muro enorme.
— É melhor não se preocupar com isso — os adultos
diziam. — Lá não deve haver nada que nos interesse...

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E as crianças? Que vontade de ver o que existia do
outro lado daquele muro importante e misterioso!
Dava pra saber que lá havia árvores altas porque a sua
copada apontava por cima do muro e alguns galhos
pendiam para o quintal do professor. E pássaros também,
que vinham pousar nesses galhos. O Joel, um moreninho
meio gorducho, amigo inseparável de Marcelinho, jurava
que um dia desses tinha visto uma pipa colorida sendo
empinada do lado de lá.
— Por que será que é proibido...? — pensava alto
Marcelinho, olhando para dentro da oficina.
— Hum... — resmungou o velho inventor, que alguns
vizinhos chamavam de “professor”, batendo nervosamente
na careca.
Sentado sobre a carcaça de uma lavadora de roupas,
Marcelinho partiu uma tangerina e enfiou três gomos de
uma só vez na boca.
Imaginou como seria se cada uma das sucatas do velho
Cataventi de repente virasse um brinquedo. Aquilo ali ia
virar um parque de diversões. E a casa tinha tanta
bugiganga e tanta desordem que até os inventos do
professor qualquer hora também iam acabar parando no
meio do quintal.
Então o menino se lembrou de seus velhos brinquedos
perdidos. Duas raquetes de pingue-pongue quebradas, uma
bola furada, um caminhão-tanque chamuscado por uma
fogueira inventada pelo Joel... Há quanto tempo Marcelinho
não ganhava um brinquedo novo?
Diziam que o “professor”, que morava sozinho, era um
homem muito distraído. Talvez ele nunca tivesse pensado
que atrás daquele muro pudesse existir um mundo de coisas
malucas e interessantes. O menino quase entrou na

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oficina outra vez, mas lembrou-se de que o professor esta-
va jogando xadrez contra si próprio. E ficava fulo de raiva
quando alguém o interrompia. Ainda mais naquele dia,
que tinha perdido um relógio de estimação...
Ele movimentava uma pedra branca, levantava-se,
sentava-se do outro lado da mesa e, então, jogava com
as pretas. Às vezes até xingava o adversário, que era ele
mesmo. Daí voltava para o lado das brancas, mexia outra
pedra, e assim por diante.
Marcelinho não se aguentava e ria com os tapas que
ele dava na própria careca quando errava algum lance. E
o inventor se zangava ainda mais:
— Não fique aí caçoando de mim, rapazinho! Em
vez disso, por que não vai arrumar alguém para jogar
comigo?
Bem que Marcelinho queria entender o que fazia aquele
amontoado de peças nos quadrados do tabuleiro. Peões,
cavalos, torres... Seu Cataventi tinha explicado que era o
exército branco em guerra contra o exército preto.
— Qualquer dia eu ensino você a jogar, menino.
— Uma hora o senhor ainda vai encontrar um grande
adversário, professor...

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O Joel e
alguns relógios

Era o seu grande companheiro. Tirando de lado as


conversas meio estranhas, não tinha melhor parceiro do
que o Joel para o jogo de taco ou de bolinhas de gude e,
além disso, os dois tinham os mesmos 8 anos de idade.
Viviam naquele mundo atrapalhado que era o quintal do
seu Cataventi. E aí histórias malucas rolavam:
— Marcelinho, hoje eu descobri o que tem lá, atrás
daquele muro!
— E o que é que tem?
— Um rio. De um lado, tem um acampamento de
ciganos. E do outro, o esconderijo de uns bandidos...
— Ora, você tá brincando!
— Verdade! Eu juro! Eu ouvi meu pai conversando com
o seu Giuseppe...
— Tá inventando.
— Bom, não quer acreditar, problema seu. Não conto
mais nada.
O Joel era uma parada. Quando queria provocá-lo de
verdade, falava do relógio que ia ganhar de presente do
seu padrinho. Um relógio que nem o que seu Alcides
usava, que tinha até calculadora. Ou como aquele que seu
Nonô puxava do bolsinho da calça pela corrente.
Nesse mesmo instante, a voz do inventor explodiu de
dentro da oficina:
— Meu relógio! Eu perdi o meu relógio!
— Ih, de novo? — riu Joel, escondido atrás de uma
bananeira.
Seu Cataventi também consertava relógios e outras
máquinas, além de inventar geringonças que fritavam

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pastéis, falavam em alemão ou estendiam roupas nos
varais. Só que se esquecia de cuidar do próprio relógio,
um Ômega do tempo do seu avô, que ele vivia perdendo.
Da porta da oficina para fora, reinavam Marcelinho e
Joel. Como naquela tarde de sol, saltando sobre eixos de
automóvel, motores de geladeira ou tubos de televisor
abandonados.
Marcelinho espiou outra vez pela fresta da porta do
porão. Se o professor Cataventi já tivesse acabado seu
jogo de xadrez, então poderia andar à vontade também
pela oficina, folhear revistas antigas e inventar novos
brinquedos com ripas, arames e canos de plástico.
Foi quando alguém bateu palmas ao portão.

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