Associativismo Operário e Educação

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SEÇÃO: ARTIGOS

Associativismo operário, educação


e autonomia na formação da classe
trabalhadora em São Paulo (1889-1930)
Ana Luiza Jesus da Costa1

Resumo

O presente artigo traz parte de uma pesquisa mais ampla sobre as visões de educação e
as formas pelas quais as classes trabalhadoras de São Paulo promoveram, entre 1889 e
1930, sua própria educação. Debruçamo-nos sobre uma série documental – os estatutos de
associações de trabalhadores presentes no fundo do Primeiro Registro de Imóveis da Comarca
da Capital (1883-1941), guardados pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Cotejados com
documentação diversa, como a imprensa operária e resoluções dos primeiros Congressos
Operários brasileiros, os estatutos constituíram-se, ao mesmo tempo, em fonte e objeto
de pesquisa. A análise das fontes foi feita em diálogo com referenciais da história social
inglesa e da historiografia sobre a formação da classe trabalhadora e o associativismo no
Brasil. Verificamos a presença da educação na arquitetura jurídica dessas entidades. Foi
possível aferir a relevância e as finalidades da educação para essas associações e analisar
tanto os tipos de ações educativas formais por elas desenvolvidas quanto a educação que
acontecia no bojo da cultura associativa. Concluímos que a educação foi parte fundamental
do processo de formação da classe trabalhadora, não exatamente como predominância
de uma educação escolarizada, mas sim de uma experiência educativa relativamente
autônoma e horizontal, quando tomamos como referência o Estado e a forma escolar
hegemônica – o que estamos chamando de educar-se das classes trabalhadoras.

Palavras-chave

Associativismo − Classe trabalhadora − Educação − Experiência.

1- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Contato: [email protected]

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-4634201844179976
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, e179976, 2018. 1


Ana Luiza Jesus da COSTA

Workers’ associativism, education and autonomy


in the making of the working class in São Paulo
(1889-1930)

Abstract

In this article I present a slice of a broader study about the visions and practices of self-
education by the working classes in São Paulo, between 1889 and 1930. I took a deep
look at a series of documents - the bylaws of workers´ associations - found in the First
Real Estate Registry of the Capital´s County (1883-1941), stored by the São Paulo State
Archives. Compared with other documentation such as the workers’ press, and resolutions
of the first Workers Congresses in Brazil, the bylaws were simultaneously source and
object of the research. The analysis of the sources was made in dialogue with references of
the English social history and the historiography on the making of the working class and
associativism in Brazil. I found that education is embedded in the very juridical framework
of the workers associations. It was possible to assess the importance and goals of education
for those associations. I analyzed the types of formal educational actions carried out by the
associations, and the informal educational processes that developed within the associative
culture. I concluded that education was a fundamental component in the making of the
working class. However, the predominant form of education was not a schooled one. It
was a relatively autonomous and non-hierarchical educational experience, if compared to
the State and the hegemonic schooling forms. I have chosen to call this autonomous and
horizontal experience as “the self-education of the working classes”.

Keywords

Associativism – Working class – Education – Experience.

O que faz da classe operária exatamente o que ela é em cada espaço e tempo
histórico e como se tecem os fios de continuidade entre experiências, culturas e modos de
ser da classe de trabalhadores ao longo do tempo e do espaço? A questão está longe de ser
inédita, ainda que devamos sempre recolocá-la em sua historicidade. Bastaria revisitarmos
a formulação feita por E. P. Thompson, cuja Formação da classe operária inglesa é uma
resposta em três volumes a indicar que classe operária não é uma estrutura, ou uma
categoria, mas algo que ocorre efetivamente nas relações humanas e cuja ocorrência pode
ser demonstrada (THOMPSON, 2004, p. 10). Cornelius Castoriadis recolocou o problema
em A experiência do movimento operário (1985). O que é a classe operária, o movimento
operário e sua história? O que há séculos se faz como classe operária e movimento operário?
Em suas palavras: “Qual é a relação entre os ludditas, os canutos, os operários de Poznan

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Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

em 1956, a forma da greve geral, a instituição sindical, a Federação Anarquista Ibérica, os


wobblies, Marx, Bakunin, as greves selvagens?” (CASTORIADIS, 1985, p. 46-47).
Retomamos essas perguntas como fundamentos de nosso problema de pesquisa
no campo educacional. Qual o lugar da educação na formação da classe trabalhadora?
Defendemos que os trabalhadores se educam como classe e que a educação é um elemento
importante da referida continuidade. O presente artigo tem como objetivo trazer a público
parte dos primeiros resultados de uma pesquisa de escopo mais amplo, na qual procuramos
conhecer e compreender as formas pelas quais as classes trabalhadoras paulistas
promoveram, entre 1889 e 1930, sua própria educação e construíram visões/concepções
próprias sobre educação, ainda que essas não tenham conquistado hegemonia, ou sequer
tenham sido sistematizadas, registradas e divulgadas pelos meios convencionais.
Quando Hall e Pinheiro (1979, 1981) afirmam que fazer a história da classe operária
e trabalhadora não é fazer apenas uma história sindical, ou das ideologias operárias, ou
das lideranças do operariado, podemos adotar o mesmo princípio para a produção da
história da educação da classe trabalhadora. Esta não seria, então, exclusivamente uma
história das ideias pedagógicas anarquistas, ou de outras pedagogias socialistas; nem
mesmo apenas uma história das escolas criadas pelos trabalhadores. Nossa atenção volta-
se para a história de como os trabalhadores fizeram sua educação e de como se fizeram
por meio dela.
A pesquisa abarca o período entre 1889 e 1930, justificado tanto do ponto de vista
da revisão bibliográfica sobre a temática da formação da classe trabalhadora em São Paulo
quanto do ponto de vista das principais séries documentais com que trabalhamos. Naquele
momento, disseminaram-se as entidades das classes trabalhadoras paulistas, bem como a
imprensa dos trabalhadores na cidade. Os estatutos de associações de trabalhadores por
nós localizados têm suas datas mais recuadas na última década do século XIX. Tempo
de desencadeamento do maior dinamismo da capital paulista em função da mudança do
eixo econômico do café para o oeste paulista e do eixo político com a proclamação da
República, momento marcado pelo avanço da urbanização, industrialização e pelo forte
impacto da imigração para a cidade. Paramos na entrada dos anos 1930 em função da
delimitação cronológica da história da formação da classe trabalhadora no Brasil, tomada
de empréstimo de Ângela Castro Gomes (2005). Situamo-nos no primeiro momento dessa
formação, em que “a fala estava com os trabalhadores” e estes tinham relativa autonomia
diante do Estado. Para Gomes (2005), o segundo momento na história do direito do
trabalho tem o Estado, a partir do Ministério do Trabalho, como lugar de fala dominante.

Os estatutos de associações de trabalhadores como


fontes para a história da educação

Partimos dos sujeitos; não partimos das ideias pedagógicas anarquistas ou


socialistas, nem das escolas em si promovidas por trabalhadores, militantes do movimento
operário. Desejamos pensar como esses sujeitos chegaram a formular tais ideias, propor e
implementar tais escolas.

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Procuramos os sujeitos em seus espaços de vivência coletiva. As associações de


trabalhadores têm se mostrado terreno fértil para observação das ações educacionais da
classe em formação. Ao lado da imprensa operária, o associativismo tem sido o objeto
central de nossas pesquisas.
Mac Cord e Batalha (2014) remetem a história do associativismo ao Iluminismo
europeu, momento de defesa da vida pública, luta por participação social mais ampla,
desejo de ampliação da vida política. As diversas associações que então passaram a existir
“foram idealizadas para reunir pessoas atuantes e com interesses comuns, focadas na
busca de uma ideia de civilização e progresso [e fortaleceram a emergente sociedade civil]”
(MAC CORD; BATALHA, 2014, p. 11). Esse processo tocará tanto as elites proprietárias e
letradas como as classes trabalhadoras, que perceberam o associativismo como meio para
articular suas demandas e fortalecer suas estratégias de proteção e organização.
Partindo dessas raízes, os autores realizam um breve balanço do estado atual em que
se encontram os estudos sobre o associativismo. Marco da renovação em sua abordagem, a
historiografia que tratava o mutualismo como infância ou pré-história da classe trabalhadora,
vigente até a década de 1980, cedeu espaço à concepção processual de formação da classe
na qual as associações mutualistas participam. O trabalho de Tânia Regina de Luca,
publicado em 1990, acompanhado, anos mais tarde, pelo projeto editorial de Carlos Batalha
nos Cadernos AEL, sobre “Sociedades operárias e mutualismo” foram pioneiros nesse
sentido. Recentemente, vários estudos sobre o associativismo entre diferentes categorias
de trabalhadores têm sido trazidos à luz, por vezes congregados em publicações como o
dossiê de Mundos do trabalho, em 2010, ou no próprio Organizar e proteger trabalhadores,
associações e Mutualismo no Brasil, organizados por Mac Cord e Batalha (2014).
Ao nos inserirmos no debate, nosso objetivo foi analisar, do ponto de vista
educacional, tanto as associações de auxílio mútuo como as associações de resistência
que conviveram no período delimitado. Uma das polêmicas centrais na história do
associativismo entre trabalhadores, motivadora de debates que orientaram a renovação
da historiografia sobre o tema nos anos 1980 e 1990, com repercussão até os dias de hoje,
diz respeito à relação existente entre mutualismo e sindicalismo. O primeiro congregava
sociedades que, mediante contribuições mensais, prestavam serviços previdenciários
como tratamento médico, auxílio aos doentes, inválidos e viúvas, ou seja, resguardavam
os sócios quando se encontrassem sem condições de trabalhar. O segundo caracteriza as
sociedades que se organizavam com intuito de defender os interesses das categorias de
trabalhadores e unir a classe operária em oposição aos patrões.
Apoiamo-nos na tese proposta por De Luca, hoje amplamente aceita, de que o
mutualismo não deu origem ao sindicalismo nem se confunde com ele. Segundo a autora,
as associações de socorro mútuo não eram exclusivamente operárias:

Nelas poderiam ser encontrados membros de diversas camadas sociais, assim como os mais
diversos tipos de profissionais [...]. Muitas não se organizavam em torno de setores de produção,
e sim por etnias, credos religiosos ou bairros. Algumas impunham restrições de ordem
política, moral e religiosa ao ingresso do associado. Diversas entre elas, apesar de servirem aos
trabalhadores, eram entidades dirigidas pelos patrões, que exigiam participação compulsória de
todos os empregados. (DE LUCA, 1990, p. 10).

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Entretanto, se mutualismo e sindicalismo não se confundem como fenômenos, no


âmbito pontual da existência das associações, podemos encontrar aquelas que se situam
em uma tênue fronteira entre auxílio mútuo e resistência. Ainda que, de acordo com as
deliberações dos Congressos Operários de 1906, 1913 e 1918, as associações de resistência
não devessem manter atividades beneficentes, os estatutos das entidades defendiam a
solidariedade e ajuda mútua aos sócios necessitados. Por outro lado, um conjunto de
entidades de auxílio mútuo anuncia como objetivo intervir pelos direitos dos sócios diante
de autoridades e já desenha um caráter classista ao circunscrever o voto ou reservar
cargos na diretoria para trabalhadores. A Associação Beneficente Operária 1º de Maio Vila
Galvão afirma em seus estatutos que tinha como fim principal o socorro mútuo. Enquanto
seu 19° artigo determina que “Da diretoria deverão fazer parte, pelo menos metade e mais
um dos sócios, cujos esses sócios [sic] sejam tirados do meio operário” (ABOPMVG, 1917,
p. 8). Esse é o mesmo caso da Associação Mútua dos Carteiros de São Paulo (AMCSP), em
que “só poderão ser eleitos e votar os carteiros, serventes e estafetas” (AMCSP, 1920, p. 2).
Ambas as formas de associativismo obreiro davam relevância à educação, e nos
interessa perceber os pontos de contato e as diferenças entre suas visões de educação
e ações educativas. De Luca (1990) destaca os aspectos educacionais das associações
mutualistas, quantificando, no universo de 318 associações identificadas por sua pesquisa,
os percentuais: daquelas que se propunham a ministrar aulas, conferências e palestras aos
sócios e seus filhos (26%); das que organizavam bibliotecas e gabinetes de leitura (18,3%);
das que proporcionavam festas, bailes, jogos, piqueniques e demais “divertimentos
honestos” (16, 3%); e, por fim, das que pretendiam editar jornais e revistas (3,7%).
Para acessar o universo das mutuais, a autora utilizou como fontes principais
os Anuários Estatísticos de São Paulo e os Diários Oficiais do Estado de São Paulo. E
acessoriamente contou com o Boletim do Departamento de Estatística do Estado de São
Paulo e o Boletim do Departamento Estadual do Trabalho. Grande parte da documentação
sobre essas entidades foi constituída por força de determinações legislativas. É o caso,
particularmente, de seus estatutos, principal série documental do presente artigo.
A legislação que regulava as associações mutualistas surgiu em 1860: Lei 1.083 de
22/08/1860, regulamentada pelo Decreto 2.711, de 19/12/1860. Inaugurava-se a prática de
controle do Estado sobre essa forma de associativismo. Pelas regras de 1860, as associações
dependiam da permissão do Imperador e dos Presidentes de Província para funcionar:

Os estatutos deveriam ser enviados à autoridade competente, especificando o nome da entidade,


sua sede, seus fins, a duração prevista, o valor da contribuição mensal, a forma como se pretendia
empregar os fundos sociais, os serviços prestados, as atribuições dos administradores e da
assembleia geral, o modo de administração, as condições para nomeação e elegibilidade dos
membros e, finalmente, os critérios para admissão e eliminação de sócios, bem como o número
destes. (DE LUCA, 1990, p. 14).

Essa legislação foi revista em 1882, com a abolição da necessidade de aprovação


do governo para constituição de entidades literárias, científicas, políticas ou de socorros
mútuos. Anos depois, surge novo decreto, segundo De Luca, possivelmente vinculado ao

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crescimento e importância do associativismo, função da expansão urbana, da ampliação


do mercado de trabalho e do recrudescimento da exploração dos trabalhadores com
baixos salários e alto custo de vida. Trata-se do Decreto n. 173 de 10/09/1893, ao qual
fazem referência os estatutos por nós analisados. Esse Decreto “abriu a possibilidade
das sociedades de auxílio adquirirem personalidade jurídica mediante o registro de seus
estatutos e a publicação de, pelo menos, parte deles no Diário Oficial do Estado” (DE
LUCA, 1990, p. 16).
O fundo do Primeiro Registro de Imóveis da Comarca da Capital (1883-1941), presente
no Arquivo do Estado de São Paulo, guarda os estatutos de uma série de associações, cujo
registro foi motivado pelo decreto 173 de 1893. Elas vão desde empresariais até associações
diversas da sociedade civil, entre as quais as sociedades beneficentes, de auxílios mútuos,
centros, ligas, grêmios, uniões e sindicatos. Trabalhamos com um total de 48 entidades. A
mais antiga, criada em 1859, Sociedade Artística Beneficente, teve seus estatutos publicados
em Diário Oficial no ano de 1901. A mais recente é o Centro dos Empregados no Comércio
e na Indústria, inaugurado em 1920. A maior parte das associações de resistência presentes
na série foi fundada entre 1917 e 1919. Distinguimos, nesse universo, 28 associações
mutualistas e vinte associações de resistência. A seguir, podemos observar um panorama
geral das entidades que aparecem referidas ao longo do texto.

Tabela 1 – Conjunto das associações de trabalhadores pesquisadas, referidas no texto


Ano Publicação dos Tipo (admissão de Caráter (mutual/
Nome Ano Fundação
Estatutos sócios) sindical)

Associação Auxiliadora dos Carpinteiros, Pedreiros


1903/Junho Profissional Mutualista
e mais Classes
Associação Beneficente Operária 1º de Maio da
1917 1917 Bairro Mutualista
Vila Galvão
Associação Mútua dos Carteiros de São Paulo 1910 1920 Profissional Mutualista
Associação dos Operários em Fábricas de Tecidos
1918 1918 Profissional/Bairro Resistência
da Mooca
Centro dos Empregados no Comércio e na Indústria 1920 1920 Profissional Mutualista
Centro Operário de São Bernardo 1919 1919 Bairro Resistência
Grêmio dos Alfaiates 1904 1904 Profissional Mutualista
Liga dos Trabalhadores da Light 1919 1919 Profissional Resistência
Liga Operária do Ypiranga 1919 1919 Bairro Mutualista
Sociedade Artística Beneficente 1859 1901 Aberta Mutualista
Sociedade União Beneficente dos Ensacadores de
1912 1912 Profissional Resistência
Café e Cereais
União dos Chapeleiros 1913 1917 Profissional Resistência
União dos Trabalhadores Gráficos - 1919 Profissional Resistência

Fonte: Estatutos de associações de trabalhadores constantes no fundo do Primeiro Registro de Imóveis da Comarca da Capital (1883-1941) – APESP.

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Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

Adotamos, para composição da tabela, a classificação proposta por De Luca


(1990) dos tipos de associação a partir de sua base de admissão dos sócios:2 abertas,
profissionais, por bairro, de empresas. Destacamos também o caráter mutualista ou de
resistência predominante em cada entidade, diferença marcante para pensarmos seus
projetos educacionais. Cabe notar, finalmente, que, embora suas datas de fundação
variem entre 1859 e 1920, os anos de publicação de seus estatutos, sem prejuízo de
reformas subsequentes, são todos posteriores a 1893, ano do decreto já citado que regula
as associações da sociedade civil.
Como já foi afirmado anteriormente, este artigo se debruça sobre uma série
documental específica – os estatutos das associações de trabalhadores. Procuramos
demonstrar e discutir suas potencialidades e limites como fonte de pesquisa para a história
da educação das classes trabalhadoras. Um olhar sobre a historiografia do movimento
operário, ou mesmo da educação da classe trabalhadora no período aqui estudado, identifica
a tradição que privilegia, sobretudo os trabalhadores anarquistas com ênfase nas questões
doutrinárias e de projetos, bem como as ações das lideranças. Nessa historiografia, a
imprensa operária é fonte privilegiada. Defendemos que a observação das experiências
dos trabalhadores em formas organizativas diversas, tais como associações mutualistas
e de resistência, tem a contribuir para a história da educação e da formação da classe
trabalhadora, o que matiza a versão ainda corrente segundo a qual imigrantes politizados
aportaram no Brasil, no início do século XX, trazendo para cá as ideologias operárias que
educaram e organizaram a classe. Essa seria uma história, mas não a única história da
formação da classe trabalhadora em São Paulo.
Certamente o mito do imigrante, sobretudo o italiano, como construtor de São Paulo
não foi uma invenção apenas da imprensa operária, a qual segue sendo fonte da qual
não se pode prescindir para discutir os mundos do trabalho, seja na esfera da produção
ou de sua reprodução. Santos (2008), em tese de título sugestivo, defende que Nem tudo
era italiano. Apresenta a participação de trabalhadores e populações pobres nacionais do
início do século XX na construção da cidade. Apreende-os, porém, marginalmente, em
fotografias que, ao pretenderem retratar o progresso da cidade, captaram no fundo da
cena, fora do foco, esses sujeitos. Por outro lado, o autor demonstra o discurso veiculado
na grande imprensa e em publicações oficiais como Anuários Estatísticos da cidade, que
exaltavam a modernização de São Paulo e a contribuição da massa de trabalhadores
imigrantes neste empreendimento. Segundo o Anuário Estatístico da Seção Demográfica
de 1911, “Mesmo o progresso de São Paulo é evidente devido à influência do elemento
estrangeiro, que concorre com seu espírito adiantado para a multiplicação de nossa
população” (apud SANTOS, 2008, p. 31).
Apesar do longo silenciamento a que foram submetidos o negro e o trabalhador
pobre nacional no pós-abolição, as questões étnico-raciais e de nacionalidades eram então
motivo de tensão no seio da classe trabalhadora. Não à toa, vários estatutos das associações
obreiras, particularmente as de resistência, cuja pretensão era promover a unidade
da classe, enfatizavam que a organização não fazia distinção de raça, nacionalidade,
2- De Luca ainda traz à cena as associações de tipo étnico-racial. Não as incluímos aqui, pois elas têm lugar de reflexão específico no escopo
mais amplo de nossa pesquisa.

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crenças; e, em menos casos, afirmava-se que não havia distinção de sexo na admissão dos
sócios. Por outro lado, encontramos o determinismo presente em algumas publicações da
imprensa operária que atribuíam à diversidade racial dificuldades e até mesmo fracassos
na organização da classe. Giovanni Scala, militante socialista, em artigo para o jornal
Avanti!, em 1914, assim lamentava:

O que mais impressiona os socialistas que chegam aqui em São Paulo, provenientes do exterior, é
a falta de organização operária. [...] Em São Paulo tentou-se várias vezes atrair a massa operária
para órbita da organização de classe, mas só perdeu-se tempo e palavras. O proletariado não
dava sinais de vida. [...] Aqui faltando uma classe proletária nacional, característica do ambiente
e do período histórico da produção, foi-se formando, ao invés dessa, uma classe acolhedora de
elementos disparatados, de raça e de condição social, que vão do japonês ao homem de cor...
(apud HALL; PINHEIRO, 1979, p. 224).

Da mesma forma, Astrogildo Pereira, militante anarquista que se tornou, mais tarde,
fundador do Partido Comunista, no artigo “Nada de Precipitação”, publicado em A Plebe,
1921, faz seu “exame rigoroso das causas determinantes das sucessivas crises por que tem
passado a organização” (PEREIRA, 1921, p. 1). Para tanto, toma como parâmetro o movimento
operário europeu, considerado mais adiantado, inclusive porque parte da história de povos
“mais civilizados”. Não se trata de cobrarmos anacronicamente que os trabalhadores vissem
a história e a sociedade sem as lentes do etnocentrismo e do racismo hegemônicos nas
primeiras décadas do século XX. Trata-se de pensar os conflitos existentes entre a classe
trabalhadora no processo de sua formação e quanto o pensamento racista/etnocêntrico − e
não a diversidade étnico-racial − pode ter representado uma limitação nesse processo. Para
Astrogildo, um dos principais fatores das “sucessivas crises” era o ambiente:

Já se vê que é esta uma causa geral e inevitável – mas que pode e deve ser atenuada e superada.
E, desde logo, o “ambiente” brasileiro aparece aos olhos do menos perspicaz observador como um
ambiente mais desfavorável que favorável ao desenvolvimento da organização obreira. Somos
um país sem tradições de luta proletariana [sic]. Nossa população operária é essa mescla de raças
que se sabe. O analfabetismo, a ignorância integral das massas, mantém-nas longe do contato
das correntes contemporâneas de reivindicação social. [...] Os operários do Brasil não formam um
bloco homogêneo do ponto de vista racial: país de imigração, de raças e sub-raças diversas aqui
se mesclam, desordenadamente (apud HALL; PINHEIRO, 1979, p. 251).

É importante observar que, ao lado do problema da heterogeneidade e das “mesclas


desordenadas” entre “raças e sub-raças”, estava posto quase como consequência “o
analfabetismo e a ignorância integral das massas”. Três condições independentes –
heterogeneidade étnico-racial, analfabetismo e ignorância – constituem um amálgama
pelo qual o intelectual compreende “as massas” trabalhadoras. Estava aí a insolúvel
contradição das lideranças operárias apontada por Castoriadis (1985): esperava-se que
a classe trabalhadora cumprisse sua missão revolucionária, porém desconfiava-se de
sua capacidade para tanto devido ao seu analfabetismo, sua ignorância e, para alguns

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Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

analistas, também à sua composição étnico-racial. As lideranças e seus órgãos atribuíam


a si mesmos um “árduo trabalho” e uma “difícil missão”: educar a classe que deveria fazer
a revolução.
Pondo em questão os discursos citados, buscamos, nos estatutos das organizações de
trabalhadores, dados que possibilitassem nos aproximarmos de sua educação, não como
iluminação de consciências, mas como parte significativa de seu processo de formação.
Encontramos nessa fonte potencialidades e limites. O formato dos estatutos é padronizado
pela já citada lei, que lhes garantiria aprovação e a existência regular da entidade com
direitos de pessoa jurídica. Isso faz deles um discurso relativamente repetitivo e árido. No
caso das associações de resistência, é notória a influência dos Congressos Operários (1906,
1913 e 1918) em seus estatutos. Ao lermos os documentos das Ligas e Uniões, constatamos
a existência de termos ou mesmo trechos inteiros que se repetem.
O tema sete do Segundo Congresso Operário (1913) tratava da “necessidade ou
desnecessidade dos estatutos ou regulamentos para sindicatos” (HALL; PINHEIRO, 1979,
p. 190) e, caso fossem necessários, se deveriam ou não ser uniformes. Os operários
então reunidos consideraram que, tendo em vista a maior liberdade de ação possível
para conseguir seus fins, os estatutos deveriam oferecer bases livres de acordo. Assim
aconselhavam às sociedades de resistência abolir “regulamentos calcados em fórmulas
burocráticas e coercitivas e restringi-los a simples normas administrativas despidas de
qualquer determinação que fira a autonomia individual dos associados ou que conceda
atribuições de mando a qualquer deles” (HALL; PINHEIRO, 1979, p. 190). De fato, os
estatutos das Ligas e Uniões afinados às resoluções congressuais são mais enxutos, mais
breves, vedam posições de mando a um ou outro sócio ou categorias de sócios, porém não
se pode dizer que se restrinjam a simples normas administrativas. Pelo contrário, como
os demais regulamentos estudados, estão repletos de afirmações de princípios e valores e,
exatamente por isso, é possível detectar as particularidades de cada organização em seus
textos. Ao ler suas regularidades, mas também suas peculiaridades e desvios, pretendemos
dar a ver a maneira como diferentes categorias de trabalhadores inscreviam a educação
em sua arquitetura associativa. Buscamos, além disso, apresentar as formas desses
trabalhadores se educarem por meio da própria cultura associativa e, nesse sentido, os
estatutos das associações são também para nós objetos de estudo, quando os entendemos
em sua materialidade histórica, como prescrições que poderiam gerar práticas efetivas.

A presença da educação na arquitetura jurídica e


organizativa das entidades da classe trabalhadora

As palavras de John Thelwall, líder radical britânico, na passagem do século XVIII


para o século XIX, nos ajudam a dimensionar os vínculos entre associativismo e educação
da classe trabalhadora: “O que quer que leve os homens a se unirem, embora isso possa
gerar alguns vícios, é favorável à difusão do conhecimento e, em última instância,
promove a liberdade humana” (THOMPSON, 2004, p. 204). As associações mutualistas e
as de resistência não se organizaram com o objetivo específico de promover educação.
A finalidade principal das primeiras era auxiliar os sócios contribuintes quando se

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encontrassem sem condições de trabalho (com remédio, atendimento médico, pequenas


quantias mensais, advogado etc.). As segundas surgiram para intermediar as relações
entre trabalhadores e patrões, buscando conquistar direitos e a própria emancipação dos
trabalhadores. Entretanto, ambas consideravam a educação como importante ferramenta
para a conquista de seus objetivos; fosse ela proporcionada como benefício individual aos
sócios, no caso das mutuais; fosse uma que encarnasse os interesses da classe, característica
das associações de resistência.
A leitura sistemática dos estatutos das já referidas associações nos permitiu
delimitar quatro eixos de análise para um panorama sobre a condição da educação na
arquitetura jurídica e organizativa das entidades obreiras. São eles: a relevância atribuída,
as finalidades, as ações formais e a educação pela cultura associativa. Nosso principal
argumento começa pela defesa e demonstração da relevância que os trabalhadores
conferiam à educação, expressa pelo lugar das diferentes ações educativas em suas
associações. Apesar de a jovem república ter a educação como sua principal bandeira,
meio para formação do cidadão e fundamento das próprias bases do regime, tal discurso
não se reverteu na promoção do direito (SOUZA, 1998; VIDAL; SÁ; SILVA, 2013). A
própria ideia de direitos sociais, tais como a previdência e os direitos trabalhistas, não
existia no momento. A luta de classes terá papel fundamental em sua construção. As
associações mutualistas, suas demandas e práticas terão influência sobre a constituição da
previdência (DE LUCA, 1990); o movimento operário, com suas pautas de reivindicação e
lutas ferrenhas contra a exploração pelo empresariado e a repressão policial, será artífice
do que se consolidou nas leis trabalhistas (GOMES, 2005). A educação, condição para as
lutas anteriormente afirmadas e objetivo em si das mesmas, trilha longo caminho até se
consolidar como direito social;3 nesse processo, vemos seu desenvolvimento relativamente
autônomo pela classe trabalhadora.

Relevância, finalidades e ações educativas nas associações obreiras

A grande maioria das entidades pesquisadas, tanto mutualistas quanto de resistência,


pretendiam manter ao menos uma biblioteca e sala de leitura para uso dos sócios. Nelas
deveria haver livros instrutivos, especialmente no caso das mutualistas, voltados para
os ofícios dos sócios, jornais, revistas, mapas etc. Contavam com doações e era comum
a designação de um sócio para o papel de bibliotecário, que cuidaria do acervo, dos
utensílios, da regularidade e controle dos empréstimos. Havia, porém, entre as associações
de auxílio mútuo, aquelas que destacavam a educação desde seus fins. Nesses casos,
observa-se que a própria entidade chama para si a responsabilidade quanto à definição
de que tipo de educação desenvolveria, criando regulamentos para suas aulas, formas de
controle do trabalho docente, enfim, colocando-se ativamente sem delegar a prerrogativa
pedagógica diretamente a especialistas.
Tomemos o Centro dos Empregados do Comércio e Indústria (CECI), que pretendia:

3- Apenas em 1988 a educação fundamental será considerada direito subjetivo do cidadão. (BAHIA HORTA, 2013).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, e179976, 2018. 10


Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

Criar cursos gratuitos de escrituração mercantil, contabilidade, taquigrafia, datilografia, português,


inglês, francês e outras matérias que sejam úteis à vida comercial e industrial; fundar e manter
gratuitamente, logo que a sociedade conte com dois mil sócios, um curso primário diurno para os
filhos e irmãos menores dos associados; [...] A parte instrutiva tem por fim: criar cursos regulares;
organizar uma biblioteca escolhida em todos os ramos dos conhecimentos úteis e uma sala de
leitura; realizar conferências sobre assuntos literários, científicos e comerciais, para as quais
serão convidadas pessoas de reconhecida competência; criar um jornal para defesa dos interesses
das classes. [...] A parte recreativa tem por fim: promover reuniões familiares, concertos musicais,
festas esportivas e outros divertimentos, a critério da diretoria. (CECI, 1920, p. 2).

Para tanto, deveria ser constituída uma Comissão de Instrução, a quem competia:
“a) propor a nomeação de professores; b) organizar o programa de ensino e o regulamento
interno das aulas, de comum acordo com os professores” (CECI, 1920, p. 10). Já o Grêmio
dos Alfaiates (GA) punha a instrução e o recreio ao lado dos principais interesses da
classe, entre os quais figuravam a regulação do mercado de trabalho e o “apoio material e
moral” sem a “quebra de dignidade individual e coletiva” (GA, 1904, p. 1). A instrução era
voltada para a prática profissional e deveria obedecer ao regulamento interno produzido
pelos alfaiates do Grêmio. Para além do ensino técnico, deveria haver o ensino de línguas
e o lazer lícito, como a “leitura, jogos lícitos e festas de caráter puramente familiar”. Seu
segundo artigo determina:

A associação tem como principais objetivos: 1º o ensino da parte teórica da profissão de alfaiate
aos filhos menores dos associados que queiram dedicar-se a essa profissão e isso por meio
de aulas mantidas a expensas dos cofres associativos e sob regulamento que para tal fim, em
especial, será formulado; 2º a lecionação do ensino das línguas portuguesa, francesa, desenho e
música gratuitamente ministrada aos sócios e seus filhos menores nas aulas que para esse fim e
também na sede social deverão ser instituídas e regulamentadas. (GA, 1904, p. 1).

No universo das associações de resistência, não era menor a relevância atribuída à


educação, embora ela aí assumisse diferentes finalidades. Havia um lugar relativamente
marcado, consoante com as deliberações dos Congressos Operários de 1906, 1913 e 1918
sobre educação. Vemos as formulações mais frequentes como expressas, por exemplo,
nos estatutos da Associação dos Operários em Fábricas de Tecido da Mooca, que tinha
entre seus fins “Promover a instrução e educação moral dos associados” (AOFTM, 1918,
p. 1). Ou ainda do Centro Operário de São Bernardo, que pretendia “elevar o nível moral e
intelectual dos trabalhadores” (COSB, 1919, p. 1). Os meios utilizados seriam, em geral, as
escolas, bibliotecas, palestras e conferências, às vezes acrescidas por panfletos, excursões,
apresentações teatrais e, frequentemente, a criação de um jornal da classe. Cabe apontar, no
entanto, que jornais e panfletos tinham finalidade expressa de propaganda. Consideramos
a impossibilidade de separação entre a educação dos trabalhadores e propaganda do
movimento operário; por isso encaramos jornais e panfletos como meios educativos, o
que não significa que os sujeitos por nós estudados os vissem dessa maneira. É possível
imaginar, ainda, a própria sede da associação como espaço instrutivo, onde os trabalhadores

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, e179976, 2018. 11


Ana Luiza Jesus da COSTA

se educavam de forma relativamente autônoma. A Sociedade União Beneficente dos


Ensacadores de Café e Cereais incluía entre os direitos dos sócios “frequentar a sede
para leitura dos jornais e palestras nos dias determinados pelo regulamento interno da
sociedade” (SUBECC, 1912, p. 3).
Percebemos, portanto, uma perspectiva ampla de educação dinamizada pelos
trabalhadores que vai além do formato escolar. A Liga dos Trabalhadores da Light, por
exemplo, situa a educação no conjunto da cultura da classe. As escolas são as últimas
formas de educação citadas e qualificadas. No terceiro tópico de seus fins, a Liga se
propõe a “esforçar-se pela cultura dos trabalhadores criando bibliotecas, promovendo
conferências, palestras e excursões; difundindo seus jornais de propaganda reivindicadora,
editando livros, folhetos e avulsos, criando e patrocinando as escolas baseadas no método
racionalista e científico” (LTL, 1919, p. 1). A cultura dos trabalhadores e sua educação
seriam um dos pontos de um vasto programa que nos permitiremos citar extensivamente,
pois possibilita ao(à) leitor(a) acercar-se da materialidade das condições de vida e luta
daqueles sujeitos:

A L. T. L. tendo por objetivo máximo a completa emancipação do proletariado desenvolverá sua


ação imediata no sentido de: a) zelar pelos direitos de associação, de reunião e de livre propaganda
– dos princípios da emancipação social; b) promover a defesa dos trabalhadores e propagandistas
em caso de prisão, perseguição, abuso, injustiça de que sejam vítimas [...]; c) esforçar-se pela
cultura dos trabalhadores criando bibliotecas, promovendo conferências, palestras e excursões;
difundindo seus jornais de propaganda reivindicadora, editando livros, folhetos e avulsos e criando
e patrocinando as escolas baseadas no método racionalista e científico; d) mover ativa campanha
contra o alcoolismo, que é um dos vícios mais arraigados no seio da classe trabalhadora e que tem
sido um obstáculo para sua organização e luta contra os exploradores [...]; e) participar de toda
ação proletária contra [...] criminosos manejos comerciais que fazem elevar os preços dos gêneros
alimentícios [...]; f) agir com todos os trabalhadores contra os aumentos de impostos de toda sorte
que contribuem para tornar mais penosas as condições do povo; g) prestar o seu concurso às
campanhas obreiras tendentes a conseguir o barateamento dos aluguéis de casas, bem como para
que ofereçam conforto e higiene; h) fazer com que os trabalhadores não sejam forçados a executar
serviços excessivos e brutais, expondo-se a inclemências do tempo, e que os lugares de trabalho
ofereçam todas as condições necessárias de segurança, de higiene e de comodidade para evitar os
acidentes e as moléstias hoje tão habituais [...]; i) exigir da parte de todos os encarregados de serviço
de todas categorias a mais completa urbanidade e absoluto respeito para com os trabalhadores; j)
impedir que sejam ocupados no trabalho menores de 14 anos ou de físico deficiente; k) conseguir
que os operários, em caso de desastre, sejam indenizados [...]; l) firmar de maneira geral a jornada de
8 horas [...]; p) fazer com que o trabalho noturno só seja admitido nos casos de benefício público, ou
de imprescindível necessidade, devendo, entretanto, em tais casos, serem executados em condições
de permitirem o repouso devido aos operários [...]; q) conseguir aumento de salário na proporção
do custo da vida [...]; s) conseguir a abolição de todas as multas, descontos e mensalidades para
caixas de associações organizadas no seio da companhia por seus diretores; t) fazer com que todos
os trabalhadores tenham indistintamente um dia de descanso na semana e gozem de uma féria
anual com todos os vencimentos”. (LTL, 1919, p. 1-3, grifos da autora).

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Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

Trata-se de um processo em que a classe trabalhadora se educa no momento mesmo


de constituir-se como classe e, em sua formação, educa a própria sociedade por meio
de conflitos e negociações travadas com patrões, com o Estado e com outros grupos
sociais. Podemos perceber tal papel educativo da classe operária “para fora” ao tomarmos
as exigências aos patões, mestres e gerentes para que mantivessem “a mais completa
urbanidade e absoluto respeito com os trabalhadores” (LTL, 1919, p. 2). Aqui a urbanidade
não era prerrogativa das elites a ser incutida nos operários. Realiza-se a inversão do
discurso dominante, para o qual seriam os operários a classe rústica, desordeira, a quem
deveria ser ensinada a civilidade e a boa conduta.
Em síntese, se, para as mutuais, a educação tinha por finalidade precípua qualificar
o trabalho dos sócios, formar seus filhos para o trabalho, oferecendo-lhes um serviço que
o Estado não se mostrava capaz de prover, para as associações de resistência, a educação
deveria concorrer para a emancipação do proletariado, por meio de projetos pedagógicos
próprios e confrontantes à ordem vigente. Alinhados às ideologias do movimento operário
internacional, tendo por pressuposto que a libertação dos trabalhadores seria obra dos
próprios trabalhadores, a União dos Chapeleiros estabelecia, como objetivo da instrução
dos operários,4 “habilitá-los para resolver por si mesmos a questão social” (UC, 1917, p. 2).
Por seu turno, a União dos Trabalhadores Gráficos também expressa o papel da educação
na consecução dos objetivos de emancipação pela luta de classes:

A U.T.G. tendo por objetivo promover o melhoramento econômico, intelectual e moral da classe,
capacitando-a para realização de uma luta inteligente e ampla em favor de sua emancipação
integral aceita, como princípio basilar da sua existência, a luta de classes e declara que intervirá
nela utilizando os meios de ação próprios e especiais da organização operária. (UTG, 1919, p. 1).

Para tanto, os gráficos fariam uso da educação racionalista e da instrução profissional.

Educação pela cultura associativa

Além das ações educativas claramente delineadas e dirigidas, abordadas na seção


anterior, os estatutos nos dão a ver formas mais difusas, porém mais abrangentes de
aprendizado. Delimitamos, neste momento, três características marcantes do que estamos
chamando educação pela cultura associativa: 1) ensejo ao envolvimento dos trabalhadores
com o universo letrado; 2) normalização do comportamento moral, civil e associativo; 3)
aprendizado das regras da vida política e dos direitos.
Comecemos pelo fato de que as bases de acordo da vida associativa se apresentavam
como peças escritas. Junte-se a isso, no caso das mutuais, porém não das associações de
resistência, a própria proposta de incorporação do novo sócio, que devia ser feita por
escrito apresentando: nome, estado, profissão, idade, nacionalidade, endereço do proposto.
Constatamos que a maior parte das associações mutualistas estudadas cobravam, no

4- A União dos Chapeleiros tinha em seu programa o estreitamento de laços entre os chapeleiros e os trabalhadores de todo o mundo. Era
aderente à Federação Internacional dos Operários Chapeleiros e à Confederação Operária Brasileira.

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Ana Luiza Jesus da COSTA

momento do ingresso do sócio, uma taxa de 1$000 (mil réis) pelos estatutos, o que nos leva
a pensar que o sócio tinha em suas mãos um exemplar da lei social. Algumas associações
também distribuíam seus relatórios e balanços financeiros ao conjunto dos associados. Da
mesma forma, algumas associações de resistência tornavam públicos seus relatórios pela
imprensa operária. Sobre esse material deviam ser realizadas práticas de leitura coletiva
que informariam tomadas de decisões. A leitura em voz alta, durante a assembleia, daria
aos sócios analfabetos o acesso às informações contidas no texto escrito. É o caso da
Associação Auxiliadora dos Carpinteiros e Pedreiros, que determina como deveres da
diretoria “mandar imprimir anualmente o balancete da receita e da despesa e distribuí-lo
aos sócios, acompanhado do respectivo relatório que deve ser lido em Assembleia Geral
e submetido à sua aprovação, dando sobre as contas todos os esclarecimentos exigidos”
(AACPMC, 1903, p. 1119).
Entre as principais preocupações educativas das entidades estudadas estava o
condicionamento do comportamento moral, civil e associativo, variando os valores que
pautavam tais comportamentos. A boa conduta moral era condição para admissão às
associações mutualistas. Da mesma forma, eram punidos aqueles que

Promovessem desordem ou desacato aos funcionários da associação no exercício de seus cargos,


[ou] [...] o que por seu comportamento irregular possa comprometer o crédito da associação,
escrevendo nos jornais contra membros da diretoria, sem primeiro recorrer à Assembleia Geral.
(AACPMC, 1903, p. 1119).

Cabe notar que as exigências de conduta moral implicavam o acesso aos benefícios,
como pensões às viúvas. As mulheres eram particularmente vigiadas sob os parâmetros da
“honestidade”, aparentemente vinculada à moral sexual dominante. No caso da Associação
Beneficente Operária 1º de Maio de Vila Galvão, eram restringidos os direitos a auxílios
médicos e pecuniários quando os sócios estivessem acometidos de doenças “venéreas,
ou causadas por embriaguez”. É possível observar, nessa documentação, estratégias de
controle aos impulsos, aos conflitos e mesmo de controle ideológico.
Ao lado das citadas regras da vida civil, que podiam internamente reforçar ou
relativizar as leis e valores sociais vigentes, estavam regras da vida política. Defendemos
que os meios associativos possibilitaram relevante aprendizado do exercício da política,
do debate público, além dos valores e técnicas de organização e participação nas
causas de interesse coletivo. Estes, não sendo dados naturais, precisavam ser pensados,
previstos, instituídos e aprendidos. É o que revelam as constantes determinações de que
os sócios deveriam exercer com zelo os cargos para que fossem eleitos, comparecer às
assembleias, com esclarecimento de que o não comparecimento implicava a delegação de
seu voto aos sócios presentes, não podendo reclamar quanto às deliberações tomadas. As
próprias técnicas, hoje consideradas básicas por nós, para a realização do debate público
precisavam ser explicitadas e começavam a ser interiorizadas. Em muitas mutuais, como
a Associação Auxiliadora dos Carpinteiros, Pedreiros e Mais Classes, o presidente tinha
um papel importante nesse processo. Cabia a ele dirigir as discussões, devendo “Chamar à

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Associativismo operário, educação e autonomia na formação da classe trabalhadora em São Paulo (1889-1930)

ordem os que dela se afastarem e impedir que o sócio orador seja interrompido e que este
empregue palavras ou gestos inconvenientes” (AACPMC, 1903, p. 5). E, ainda,

Nenhum sócio poderá falar sem ter pedido a palavra ao presidente e esse concedido. O sócio
orador tem o direito de ser escutado com atenção e ninguém poderá alterar a ordem e sossego com
manifestações desordenadas, competindo ao presidente exclusivamente o direito de admoestar,
ou retirar a palavra do sócio quando este esteja fora da ordem. (AACPMC, 1903, p. 5).

No mesmo espírito, são expostas as regras e técnicas básicas dos processos


eleitorais. Os estatutos da União dos Chapeleiros explicam que “As votações serão feitas
por levantada de braço, em pé, sentados, nominais ou por escrutínio secreto. A minoria
deverá conformar-se em atender as deliberações da maioria” (UC, 1917, p. 14).
Nas associações de resistência, o aprendizado de direitos fez-se de forma mais
extensa e intensa, especialmente no que diz respeito aos direitos da classe trabalhadora,
sendo o próprio termo direito mais constante em seus estatutos. Apareciam nos fins da
Associação dos Operários em Fábricas de Tecido da Mooca “intervir, como legítimo órgão
dos associados, em todas as questões que se suscitem entre esses e os patrões, defendendo
e zelando pelos direitos e interesses dos primeiros” (AOFTM, 1918, p. 1, grifos da autora).
No tocante aos direitos internos das entidades, observa-se uma ampliação da
tendência democrática nas sociedades de resistência quando comparadas às mutuais. Nas
primeiras, eram raras as restrições ao voto; nas segundas, frequentemente impediam-
se mulheres e analfabetos. A participação política, principalmente nas associações de
resistência, ocupava um lugar duplo – um direito dos indivíduos e um dever para com a
classe. É paradigmático o caso da Liga Operária do Ypiranga, associação que congregava
principalmente os trabalhadores das fábricas de tecidos do bairro, cujos sócios que não
comparecessem às assembleias podiam ser multados. Eram seus deveres:

Ser solidários moral e materialmente em todas as questões de interesse comum pleiteadas oficialmente
pela Liga, observar rigorosamente as disposições desses estatutos e suas futuras modificações
regularmente introduzidas e comparecer nas assembleias sob pena de multa... (LOY, 1919, p. 2).

A mesma Liga nos surpreende ao tratar a decisão dos indivíduos de se alfabetizarem


como problema coletivo ao determinar que “Todo sócio tem o dever de aprender a ler
e escrever” (LOY, 1919, p. 2). Entretanto, ao contrário de uma série de associações, a
Liga Operária do Ypiranga não excluía o analfabeto do direito de votar e ser votado. É
interessante notar, ainda, como seus estatutos enfatizam mais de uma vez que ambos os
sexos gozam de direitos e deveres absolutamente iguais.

Considerações finais

Esta investigação busca compreender como os trabalhadores fizeram sua educação


e se fizeram por meio dela. Ou, ainda, a participação da educação na formação da classe

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Ana Luiza Jesus da COSTA

trabalhadora e a importância histórica da atuação da classe trabalhadora na constituição


do direito à educação.
Ao nos debruçarmos sobre os estatutos das associações de auxílio mútuo
e de resistência promovidas por trabalhadores, encontramos dados alternativos e
complementares à imprensa operária, fonte majoritariamente utilizada na produção da
história da classe trabalhadora. A leitura de suas regularidades, mas também de suas
peculiaridades e desvios nos possibilitou observar a maneira como diferentes categorias
de trabalhadores inscreviam a educação em sua arquitetura associativa. Além disso,
encontramos aí a própria cultura associativa como meio pelo qual os trabalhadores se
educavam.
É importante demarcar que, para as associações mutualistas, a educação tinha por
finalidade precípua qualificar o trabalho dos sócios, formar seus filhos para o trabalho,
oferecendo-lhes um serviço que o Estado não se mostrava capaz de prover, enquanto que,
para as associações de resistência, a educação deveria concorrer para a emancipação do
proletariado, por meio de projetos pedagógicos próprios e confrontantes à ordem vigente.
Guardadas essas significativas diferenças, defendemos que, de modo geral, o
aprendizado de direitos, da participação política, de valores morais e do valor da
leitura, escrita e mais conhecimentos formais até aqui demonstrados ocorriam entre os
trabalhadores indissociáveis da própria luta por sobrevivência e emancipação. A Liga
dos Trabalhadores da Light expressou a dinâmica dessa educação mútua relativamente
autônoma:

A L.T.L servir-se-á unicamente para o trabalho de propaganda e educação dos trabalhadores e sua
luta contra a desigualdade econômico-social da ação consciente e solidária de seus associados e
dos meios próprios da ação direta, variáveis segundo as circunstâncias de lugar e do momento.
(LTL, 1919, p. 3).

No momento em que vivemos perdas de direitos históricos como a previdência, a


legislação trabalhista e a própria educação pública, em função do aprofundamento das
reformas neoliberais do Estado brasileiro, tematizar as práticas associativas por meio das
quais trabalhadores e trabalhadoras, há cem anos, educaram-se, formaram-se e, nesse
processo, foram partícipes centrais na invenção desses mesmos direitos para os quais
procuraram educar a sociedade, pode nos apontar caminhos para refletir sobre os desafios
do presente.

Referências

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Recebido em: 15.05.2017


Revisões em: 04.07.2017
Aprovado em: 08.08.2017

Ana Luiza Jesus da Costa é doutora em educação pela Universidade de São Paulo,
professora no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. Atua na área de História da Educação.

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