Associativismo Operário e Educação
Associativismo Operário e Educação
Associativismo Operário e Educação
Resumo
O presente artigo traz parte de uma pesquisa mais ampla sobre as visões de educação e
as formas pelas quais as classes trabalhadoras de São Paulo promoveram, entre 1889 e
1930, sua própria educação. Debruçamo-nos sobre uma série documental – os estatutos de
associações de trabalhadores presentes no fundo do Primeiro Registro de Imóveis da Comarca
da Capital (1883-1941), guardados pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Cotejados com
documentação diversa, como a imprensa operária e resoluções dos primeiros Congressos
Operários brasileiros, os estatutos constituíram-se, ao mesmo tempo, em fonte e objeto
de pesquisa. A análise das fontes foi feita em diálogo com referenciais da história social
inglesa e da historiografia sobre a formação da classe trabalhadora e o associativismo no
Brasil. Verificamos a presença da educação na arquitetura jurídica dessas entidades. Foi
possível aferir a relevância e as finalidades da educação para essas associações e analisar
tanto os tipos de ações educativas formais por elas desenvolvidas quanto a educação que
acontecia no bojo da cultura associativa. Concluímos que a educação foi parte fundamental
do processo de formação da classe trabalhadora, não exatamente como predominância
de uma educação escolarizada, mas sim de uma experiência educativa relativamente
autônoma e horizontal, quando tomamos como referência o Estado e a forma escolar
hegemônica – o que estamos chamando de educar-se das classes trabalhadoras.
Palavras-chave
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-4634201844179976
This content is licensed under a Creative Commons attribution-type BY-NC.
Abstract
In this article I present a slice of a broader study about the visions and practices of self-
education by the working classes in São Paulo, between 1889 and 1930. I took a deep
look at a series of documents - the bylaws of workers´ associations - found in the First
Real Estate Registry of the Capital´s County (1883-1941), stored by the São Paulo State
Archives. Compared with other documentation such as the workers’ press, and resolutions
of the first Workers Congresses in Brazil, the bylaws were simultaneously source and
object of the research. The analysis of the sources was made in dialogue with references of
the English social history and the historiography on the making of the working class and
associativism in Brazil. I found that education is embedded in the very juridical framework
of the workers associations. It was possible to assess the importance and goals of education
for those associations. I analyzed the types of formal educational actions carried out by the
associations, and the informal educational processes that developed within the associative
culture. I concluded that education was a fundamental component in the making of the
working class. However, the predominant form of education was not a schooled one. It
was a relatively autonomous and non-hierarchical educational experience, if compared to
the State and the hegemonic schooling forms. I have chosen to call this autonomous and
horizontal experience as “the self-education of the working classes”.
Keywords
O que faz da classe operária exatamente o que ela é em cada espaço e tempo
histórico e como se tecem os fios de continuidade entre experiências, culturas e modos de
ser da classe de trabalhadores ao longo do tempo e do espaço? A questão está longe de ser
inédita, ainda que devamos sempre recolocá-la em sua historicidade. Bastaria revisitarmos
a formulação feita por E. P. Thompson, cuja Formação da classe operária inglesa é uma
resposta em três volumes a indicar que classe operária não é uma estrutura, ou uma
categoria, mas algo que ocorre efetivamente nas relações humanas e cuja ocorrência pode
ser demonstrada (THOMPSON, 2004, p. 10). Cornelius Castoriadis recolocou o problema
em A experiência do movimento operário (1985). O que é a classe operária, o movimento
operário e sua história? O que há séculos se faz como classe operária e movimento operário?
Em suas palavras: “Qual é a relação entre os ludditas, os canutos, os operários de Poznan
Nelas poderiam ser encontrados membros de diversas camadas sociais, assim como os mais
diversos tipos de profissionais [...]. Muitas não se organizavam em torno de setores de produção,
e sim por etnias, credos religiosos ou bairros. Algumas impunham restrições de ordem
política, moral e religiosa ao ingresso do associado. Diversas entre elas, apesar de servirem aos
trabalhadores, eram entidades dirigidas pelos patrões, que exigiam participação compulsória de
todos os empregados. (DE LUCA, 1990, p. 10).
Fonte: Estatutos de associações de trabalhadores constantes no fundo do Primeiro Registro de Imóveis da Comarca da Capital (1883-1941) – APESP.
crenças; e, em menos casos, afirmava-se que não havia distinção de sexo na admissão dos
sócios. Por outro lado, encontramos o determinismo presente em algumas publicações da
imprensa operária que atribuíam à diversidade racial dificuldades e até mesmo fracassos
na organização da classe. Giovanni Scala, militante socialista, em artigo para o jornal
Avanti!, em 1914, assim lamentava:
O que mais impressiona os socialistas que chegam aqui em São Paulo, provenientes do exterior, é
a falta de organização operária. [...] Em São Paulo tentou-se várias vezes atrair a massa operária
para órbita da organização de classe, mas só perdeu-se tempo e palavras. O proletariado não
dava sinais de vida. [...] Aqui faltando uma classe proletária nacional, característica do ambiente
e do período histórico da produção, foi-se formando, ao invés dessa, uma classe acolhedora de
elementos disparatados, de raça e de condição social, que vão do japonês ao homem de cor...
(apud HALL; PINHEIRO, 1979, p. 224).
Da mesma forma, Astrogildo Pereira, militante anarquista que se tornou, mais tarde,
fundador do Partido Comunista, no artigo “Nada de Precipitação”, publicado em A Plebe,
1921, faz seu “exame rigoroso das causas determinantes das sucessivas crises por que tem
passado a organização” (PEREIRA, 1921, p. 1). Para tanto, toma como parâmetro o movimento
operário europeu, considerado mais adiantado, inclusive porque parte da história de povos
“mais civilizados”. Não se trata de cobrarmos anacronicamente que os trabalhadores vissem
a história e a sociedade sem as lentes do etnocentrismo e do racismo hegemônicos nas
primeiras décadas do século XX. Trata-se de pensar os conflitos existentes entre a classe
trabalhadora no processo de sua formação e quanto o pensamento racista/etnocêntrico − e
não a diversidade étnico-racial − pode ter representado uma limitação nesse processo. Para
Astrogildo, um dos principais fatores das “sucessivas crises” era o ambiente:
Já se vê que é esta uma causa geral e inevitável – mas que pode e deve ser atenuada e superada.
E, desde logo, o “ambiente” brasileiro aparece aos olhos do menos perspicaz observador como um
ambiente mais desfavorável que favorável ao desenvolvimento da organização obreira. Somos
um país sem tradições de luta proletariana [sic]. Nossa população operária é essa mescla de raças
que se sabe. O analfabetismo, a ignorância integral das massas, mantém-nas longe do contato
das correntes contemporâneas de reivindicação social. [...] Os operários do Brasil não formam um
bloco homogêneo do ponto de vista racial: país de imigração, de raças e sub-raças diversas aqui
se mesclam, desordenadamente (apud HALL; PINHEIRO, 1979, p. 251).
3- Apenas em 1988 a educação fundamental será considerada direito subjetivo do cidadão. (BAHIA HORTA, 2013).
Para tanto, deveria ser constituída uma Comissão de Instrução, a quem competia:
“a) propor a nomeação de professores; b) organizar o programa de ensino e o regulamento
interno das aulas, de comum acordo com os professores” (CECI, 1920, p. 10). Já o Grêmio
dos Alfaiates (GA) punha a instrução e o recreio ao lado dos principais interesses da
classe, entre os quais figuravam a regulação do mercado de trabalho e o “apoio material e
moral” sem a “quebra de dignidade individual e coletiva” (GA, 1904, p. 1). A instrução era
voltada para a prática profissional e deveria obedecer ao regulamento interno produzido
pelos alfaiates do Grêmio. Para além do ensino técnico, deveria haver o ensino de línguas
e o lazer lícito, como a “leitura, jogos lícitos e festas de caráter puramente familiar”. Seu
segundo artigo determina:
A associação tem como principais objetivos: 1º o ensino da parte teórica da profissão de alfaiate
aos filhos menores dos associados que queiram dedicar-se a essa profissão e isso por meio
de aulas mantidas a expensas dos cofres associativos e sob regulamento que para tal fim, em
especial, será formulado; 2º a lecionação do ensino das línguas portuguesa, francesa, desenho e
música gratuitamente ministrada aos sócios e seus filhos menores nas aulas que para esse fim e
também na sede social deverão ser instituídas e regulamentadas. (GA, 1904, p. 1).
A U.T.G. tendo por objetivo promover o melhoramento econômico, intelectual e moral da classe,
capacitando-a para realização de uma luta inteligente e ampla em favor de sua emancipação
integral aceita, como princípio basilar da sua existência, a luta de classes e declara que intervirá
nela utilizando os meios de ação próprios e especiais da organização operária. (UTG, 1919, p. 1).
4- A União dos Chapeleiros tinha em seu programa o estreitamento de laços entre os chapeleiros e os trabalhadores de todo o mundo. Era
aderente à Federação Internacional dos Operários Chapeleiros e à Confederação Operária Brasileira.
momento do ingresso do sócio, uma taxa de 1$000 (mil réis) pelos estatutos, o que nos leva
a pensar que o sócio tinha em suas mãos um exemplar da lei social. Algumas associações
também distribuíam seus relatórios e balanços financeiros ao conjunto dos associados. Da
mesma forma, algumas associações de resistência tornavam públicos seus relatórios pela
imprensa operária. Sobre esse material deviam ser realizadas práticas de leitura coletiva
que informariam tomadas de decisões. A leitura em voz alta, durante a assembleia, daria
aos sócios analfabetos o acesso às informações contidas no texto escrito. É o caso da
Associação Auxiliadora dos Carpinteiros e Pedreiros, que determina como deveres da
diretoria “mandar imprimir anualmente o balancete da receita e da despesa e distribuí-lo
aos sócios, acompanhado do respectivo relatório que deve ser lido em Assembleia Geral
e submetido à sua aprovação, dando sobre as contas todos os esclarecimentos exigidos”
(AACPMC, 1903, p. 1119).
Entre as principais preocupações educativas das entidades estudadas estava o
condicionamento do comportamento moral, civil e associativo, variando os valores que
pautavam tais comportamentos. A boa conduta moral era condição para admissão às
associações mutualistas. Da mesma forma, eram punidos aqueles que
Cabe notar que as exigências de conduta moral implicavam o acesso aos benefícios,
como pensões às viúvas. As mulheres eram particularmente vigiadas sob os parâmetros da
“honestidade”, aparentemente vinculada à moral sexual dominante. No caso da Associação
Beneficente Operária 1º de Maio de Vila Galvão, eram restringidos os direitos a auxílios
médicos e pecuniários quando os sócios estivessem acometidos de doenças “venéreas,
ou causadas por embriaguez”. É possível observar, nessa documentação, estratégias de
controle aos impulsos, aos conflitos e mesmo de controle ideológico.
Ao lado das citadas regras da vida civil, que podiam internamente reforçar ou
relativizar as leis e valores sociais vigentes, estavam regras da vida política. Defendemos
que os meios associativos possibilitaram relevante aprendizado do exercício da política,
do debate público, além dos valores e técnicas de organização e participação nas
causas de interesse coletivo. Estes, não sendo dados naturais, precisavam ser pensados,
previstos, instituídos e aprendidos. É o que revelam as constantes determinações de que
os sócios deveriam exercer com zelo os cargos para que fossem eleitos, comparecer às
assembleias, com esclarecimento de que o não comparecimento implicava a delegação de
seu voto aos sócios presentes, não podendo reclamar quanto às deliberações tomadas. As
próprias técnicas, hoje consideradas básicas por nós, para a realização do debate público
precisavam ser explicitadas e começavam a ser interiorizadas. Em muitas mutuais, como
a Associação Auxiliadora dos Carpinteiros, Pedreiros e Mais Classes, o presidente tinha
um papel importante nesse processo. Cabia a ele dirigir as discussões, devendo “Chamar à
ordem os que dela se afastarem e impedir que o sócio orador seja interrompido e que este
empregue palavras ou gestos inconvenientes” (AACPMC, 1903, p. 5). E, ainda,
Nenhum sócio poderá falar sem ter pedido a palavra ao presidente e esse concedido. O sócio
orador tem o direito de ser escutado com atenção e ninguém poderá alterar a ordem e sossego com
manifestações desordenadas, competindo ao presidente exclusivamente o direito de admoestar,
ou retirar a palavra do sócio quando este esteja fora da ordem. (AACPMC, 1903, p. 5).
Ser solidários moral e materialmente em todas as questões de interesse comum pleiteadas oficialmente
pela Liga, observar rigorosamente as disposições desses estatutos e suas futuras modificações
regularmente introduzidas e comparecer nas assembleias sob pena de multa... (LOY, 1919, p. 2).
Considerações finais
A L.T.L servir-se-á unicamente para o trabalho de propaganda e educação dos trabalhadores e sua
luta contra a desigualdade econômico-social da ação consciente e solidária de seus associados e
dos meios próprios da ação direta, variáveis segundo as circunstâncias de lugar e do momento.
(LTL, 1919, p. 3).
Referências
AACPMC. Associação Auxiliadora dos Carpinteiros, Pedreiros e Mais Classes. Estatutos, 1903.
BAHIA HORTA, José Silvério. Direito à educação, obrigatoriedade escolar e extensão da escolaridade. In:
VIDAL, Diana Gonçalves; SÁ, Elisabeth Figueiredo de; SILVA, Vera Lúcia Gaspar da (Org.). Obrigatoriedade
escolar no Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2013. p. 381-398.
BATALHA, Cláudio H. M. Sociedades operárias e mutualismo. Cadernos AEL, Campinas, v. 6, n. 10/11, 1999.
DE LUCA, Tânia R. O sonho do futuro assegurado: o mutualismo em São Paulo. São Paulo: Contexto;
Brasília, DF: CNPq, 1990. (República).
HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
HALL, Michael M.; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil (1889-1930): condições de vida e de
trabalho, relações com os empresários e o Estado. São Paulo: Editora Alfa e Ômega, 1981. (Documentos;
v. 2).
HALL, Michael M.; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil (1889-1930): O movimento operário.
São Paulo: Alfa e Ômega, 1979. (Documentos; v. 1).
MAC CORD, Marcelo; MACIEL, Osvaldo (Org.). Os trabalhadores e o mutualismo. Mundos do Trabalho, v. 2,
n. 4, 2010. Publicação eletrônica semestral do GT “Mundos do Trabalho”- ANPUH.
SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). 3. ed. São Paulo:
Anablume:Fapesp, 2008.
SUBECC. Sociedade União Beneficente dos Ensacadores de Café e Cereais. Estatutos, 1912.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Tradução de
Denise Bottmann. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
VIDAL, Diana Gonçalves; SÁ, Elisabeth Figueiredo de; SILVA, Vera Lúcia Gaspar da (Org.). Obrigatoriedade
escolar no Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2013.
Ana Luiza Jesus da Costa é doutora em educação pela Universidade de São Paulo,
professora no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. Atua na área de História da Educação.