Texto - JOÃOZINHO DA MARÉ
Texto - JOÃOZINHO DA MARÉ
Texto - JOÃOZINHO DA MARÉ
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A sombra ainda estava grande. Também, ainda não Ela então se dispunha a falar sobre coisas como o Sol, a Terra,
era meio-dia. Era preciso esperar a sombra encurtar. Chega seus movimentos e as Estações.
meio-dia. Os guris conferem com os relógios das pessoas que A aula começa com as definições ditadas para
passam. Já era meio-dia. A sombra ainda estava grande. A "ponto".
turma percebe que, em lugar de encurtar, a sombra começa
–– o VERÃO é o tempo do? ... Calor.
a aumentar de comprimento e mudar de direção...
No dia seguinte, Joãozinho e seus amigos resolvem –– o INVERNO é o tempo do? ... Frio.
acompanhar a sombra desde cedo para não perder o –– a PRIMAVERA é o tempo das? ... Flores.
momento em que ela deveria passar por baixo de seus pés.
Era preciso faltar à aula. Sempre um dos amigos ficaria de –– o OUTONO é o tempo das? ... Frutas.
plantão para não perder o momento do sol a pino. Eles
haviam combinado observar também a sombra de um gran- Em sua favela, no Rio de Janeiro, Joãozinho conhece
de poste próximo à favela. duas estações: época de calor e época de mais calor ainda;
...as sombras não deixaram de existir...??? um verdadeiro sufoco de calor, às vezes. Graças a isso o
...então o sol não passou a pino...??? moleque sobrevivia com uns trapos que um dia devem ter
(... e isso ... ??? ... em pleno Rio de Janeiro ... ???) sido de algum garoto da zona Sul. Flores, Joãozinho via
Depois de vários dias de tentativas frustradas de ver durante todo o ano em cortejos fúnebres e casamentos. E
o sol a pino ou, o que é a mesma coisa, ver as sombras não havia mais enterros em determinada época do ano.
desaparecerem sob os próprios pés, os guris desistem. Casamentos havia mais em maio, mês das rosas (?), mês das
Alguns dias depois, Joãozinho e seus amigos voltam noivas (?).
à escola. Desta vez não era por causa da merenda. Eles Joãozinho também ajudava no mísero orçamento de
haviam ficado intrigados com o caso do sol a pino ou sem sua família de mais seis irmãos e a mãe. Ele ajudava seu irmão
pino. mais velho a vender frutas na zona Sul da cidade: figos de
Valinhos, uvas de Jundiaí, mangas do Rio, cajus e abacaxis do
–– Fessora. Nordeste. Felizmente esse negócio era maior depois do fim
–– Que é, Joãozinho? de suas aulas até o Carnaval.
... Então outono deve ser nessa época? ...
–– A gente não conseguimos ver o sol a pino não. Joãozinho, observador e curioso, queria saber
–– Vai ver que vocês não olharam bem. porque acontecem essas coisas. Por que existem VERÃO,
INVERNO, etc?
–– Fessora, mostra pra gente esse negócio. A gente queria vê.
–– Eu já disse a vocês, numa aula anterior, que a Terra é uma
–– Eu não tenho tempo pra isso, meninos. Tenho que sair
grande bola solta no espaço e que essa bola está rodando
correndo pra dar outra aula na escola de Irajá. E tem outra
sobre si mesma.
coisa. Faz 15 anos que eu dou essa aula e nunca ninguém
me amolou tanto quanto você e seus amigos, Joãozinho.
É sua rotação que provoca os dias e as noites.
–– Num tem nada não, Fessora, a gente só' queríamos intendê. Acontece que, enquanto a Terra está girando, ela também
está fazendo uma grande volta ao redor do Sol. Essa volta se
Alguns meses depois. Já se aproximava o fim do ano. faz em um ano. O caminho é uma órbita alonga da chamada
Eram as últimas aulas. Joãozinho e seus amigos já haviam elipse. Além dessa curva ser assim achatada ou alongada, o
esquecido o episódio do sol a pino. A aula terminara. Faltava Sol não está no centro. Isso quer dizer que em seu
pouco para o meio-dia. Os garotos saem e de repente, movimento a Terra às vezes passa perto, às vezes passa longe
Joãozinho, que dera uma topada, numa pedra, olha para seus do Sol.
pés...
–– Quando passa mais perto do Sol é mais quente: É VERÃO.
–– Ei, turma, vem vê! –– A sombra tá quase sumindo embaixo
–– Quando passa mais longe do Sol recebe menos calor: É
da gente! –– O sol tá quase a pino! – Vamo esperá mais um
INVERNO.
pouco! –– Vamo vê o sol a pino!
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–– Então é mesmo verão em todo lugar e inverno em todo –– Sabe, Fessora, eu achei que tem. A gente sabe que um avião
lugar, ao mesmo tempo, Fessora? tá chegando perto quando ele vai ficando maior. Quando ele
vai ficando pequeno é porque ele tá ficando mais longe.
––– Acho que é, Joãozinho, mas vamos mudar de assunto.
–– E o que isso tem a ver com a órbita da Terra, Joãozinho? E
A essa altura a professora já não se sentia tão segura
que eu achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a
do que havia dito. A insistência, natural para o Joãozinho, já
gente devia ver ele maior. Quando a Terra tivesse mais
começava a provocar uma certa insegurança na professora. longe do Sol, ele devia aparecê menor. Não é, Fessora?
–– Mas, Fessora, insiste o garoto, enquanto a gente está –– E daí, menino?
ensaiando a escola de samba, na época do Natal, a gente
sente o maior calor, não é mesmo? –– A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer
dizer que ele tá sempre na mesma distância? Então verão e
–– É mesmo, Joãozinho. inverno não pode sê por causa da distância.
–– Então nesse tempo é verão aqui, Fessora. É, Joãozinho. –– Como você se atreve a contradizer sua professora? Quem
–– E o Papai Noel no meio da neve com roupa de frio e botas. anda pondo essas "minhocas" na sua cabeça? Faz 15 anos
que eu sou professora. É a primeira vez que alguém quer
–– A gente vê nas vitrinas até as árvores de Natal com algodão. mostrar que a professora está errada.
Não é para imitar neve (a 40° C no Rio), Fessora?
–– É, Joãozinho, na terra do Papai Noel faz frio. A essa altura, já a classe se havia tumultuado. Um
grupo de outros garotos já havia percebido a lógica
–– Então na terra do Papai Noel, no Natal, faz frio, Fessora?
arrasadora do que o Joãozinho dissera. Alguns continuaram
Faz, Joãozinho.
indiferentes. A maioria achou mais prudente ficar do lado da
–– Mas então tem frio e calor ao mesmo tempo? Quer dizer "autoridade". Outros aproveitaram a confusão para
que existe verão e inverno ao mesmo tempo? aumentá-la. A professora havia perdido o controle da classe
–– E, Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. Você já está e já não conseguia reprimir a bagunça nem com ameaças de
atrapalhando a aula e eu tenho um programa a cumprir. castigo e de dar "zero" para os mais rebeldes.
Em meio àquela confusão tocou o sinal para o fim da
Mas Joãozinho ainda não havia sido “domado” pela aula, "salvando" a professora de um caos maior. Não houve
escola. Ele ainda não havia perdido o hábito e a iniciativa de aparentemente nenhuma definição de vencedores e
fazer perguntas, e querer entender as coisas. Por isso, apesar vencidos nesse confronto.
do jeito visivelmente contrariado da professora, ele insiste. Indo para casa, a professora ainda agitada e
contrariada se lembrava do Joãozinho que lhe estragara a
–– Fessora, como é que pode ser verão e inverno ao mesmo
aula e também o dia. Além de pôr em dúvida o que ela
tempo em lugares diferentes, se a Terra, que é uma bola,
afirmara, ele dera um "mau exemplo". Joãozinho, com seus
deve estar perto ou longe do Sol? Uma das duas coisas não
argumentos ingênuos, mas lógicos, despertara muitos para o
tá errada?
seu lado.
–– Como você se atreve, Joãozinho, a dizer que a professora
está errada? Quem andou pondo essas idéias em sua –– Imagine se a moda pega, pensa a professora. O pior é que
cabeça? não me ocorreu qualquer argumento que pudesse
'enfrentar' o questionamento do garoto. Mas foi assim que
–– Ninguém não, Fessora. Eu só tava pensando. Se tem verão e me ensinaram. É assim mesmo que eu também ensino,
inverno ao mesmo tempo, então isso não pode acontecer pensa a professora. Faz tantos anos que dou essa aula,
porque a Terra tá perto ou tá longe do Sol. Não é mesmo, sobre esse mesmo assunto...
Fessora?
À noite, já mais calma, ela pensa com seus botões:
A professora, já irritada com a insistência atrevida do
–– Os argumentos do Joãozinho foram tão claros e ingênuos. Se
menino, assume uma postura de autoridade científica e
o inverno e o verão fossem provocados pelo maior ou menor
pontifica:
afastamento da Terra em relação ao Sol, deveria ser inverno
–– Está nos livros que a Terra descreve uma curva que se chama ou verão em toda a Terra. Eu sempre soube que enquanto é
elipse ao redor do Sol, que este ocupa um dos focos e inverno em um hemisfério, é verão no outro. Então tem
portanto ela se aproxima e se afasta do Sol. Logo, deve ser mesmo razão o Joãozinho. Não pode ser essa a causa de
por isso que existe verão e inverno. calor ou frio na Terra. Também é absolutamente claro e
Sem se dar conta da irritação da professora, nosso lógico que se a Terra se aproxima e se afasta do Sol, este
Joãozinho lembra-se da sua experiência diária e acrescenta: deveria mudar de tamanho aparente. Deveria ser maior
quando mais próximo e menor quando mais distante.
–– Fessora, a melhor coisa que a gente tem aqui na favela é
poder ver avião o dia inteiro. –– Como eu não havia pensado nisso antes? Como posso eu
estar durante tantos anos 'ensinando' uma coisa e nunca me
–– E daí, Joãozinho? O que isso tem a ver com o verão e o
ocorreu, sequer, alguma dúvida sobre isso? Como posso eu
inverno?
estar durante tantos anos 'ensinando' uma coisa que eu
julgava Ciência, e que, de repente, pôde ser totalmente
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demolida pelo raciocínio ingênuo de um garoto, sem poderiam sofrer com uma posição de contestação ao que a
nenhum outro conhecimento científico? professora havia dito.
–– E eu que ia me ofendendo com a atitude lógica e ingenua-
Remoendo essas idéias, a professora se põe a pensar
mente destemida do Joãozinho, pensa a professora.
em outras muitas coisas que poderiam ser tão falsas e
inconsistentes como as “causas” para o verão e o inverno. Talvez a maioria dos alunos já esteja "domada" pela
Por que tantas outras crianças aceitaram sem escola.
resistência o que eu disse? Sem perceber, a professora pode estar fazendo
Por que apenas o Joãozinho resistiu e não ‘engoliu’ exatamente o contrário do que ela pensa ou deseja fazer.
o que eu disse? No caso do verão e do inverno a Talvez o papel da escola tenha muito a ver com a nossa
inconsistência foi facilmente verificada. Era só pensar. passividade e com os problemas do mundo que nos rodeia.
Se ‘engolimos’ coisas tão evidentemente erradas, Não terá isso a ver também com outros problemas do nosso
como devemos estar ‘engolindo’ outras mais erradas, mais dia-a-dia?
sérias e menos evidentes! Podemos estar tão habituados a
–– Todas as crianças têm uma natural curiosidade para saber
repetir as mesmas coisas que já nem nos damos conta de que os “comos” e os “porquês” das coisas, especialmente da
muitas delas podem ter sido simplesmente acreditadas. natureza.
Muitas dessas coisas podem ser simples “atos de fé” ou
crendices que nós passamos adiante como verdades À medida que a escola vai "ensinando", o gosto e a
científicas ou históricas: curiosidade vão se extinguindo, chegando freqüentemente à
aversão.
"ATOS DE FÉ EM NOME DA CIÊNCIA" Quantas vezes nossas escolas, não só a do Joãozinho,
pensam estar tratando da Ciência por falar em coisas como
É evidente que não pretendemos nem podemos átomos, órbitas, núcleos, elétrons, etc... Não são palavras
provar tudo que dizemos ou tudo que nos dizem. No entanto, difíceis que conferem à nossa fala o caráter ou o "status" de
o episódio do Joãozinho levantara um problema sério para a coisa científica. Podemos falar das coisas mais rebuscadas e
professora. complicadas e, sem querer, estamos impingindo a nossos
Que bom que houve um Joãozinho. alunos grosseiros "atos de fé", que não são mais que uma
Haverá sempre um Joãozinho para levantar dúvidas? crendice, como tantas outras. Não é à toa que se diz da escola
Talvez alguns outros também tenham percebido e (ou "ex-cola"?): um lugar onde as cabecinhas entram
tenham calado sabendo da reprovação ou da repressão que "redondinhas", e saem quase todas "quadradinhas".
Extraído do livro: Com Ciência na Educação – Ideário e Prática de uma alternativa brasileira para o Ensino de Ciências, páginas 27-36.
Escrito por Rodolpho Caniato
Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira, ano 6, número 2, 31-37, 1983
Disponível em: http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares