A Morte Como Conselheira
A Morte Como Conselheira
A Morte Como Conselheira
Rubem Alves.
A MORTE COMO CONSELHEIRA – Rubem Alves
Lembra-te,
antes que cheguem os maus dias,
e se rompa o fio de prata,
e se despedace o copo de ouro,
e se quebre o cântaro junto à fonte,
e se desfaça a roda junto ao poço…
Eclesiastes 12, 1-8
A vida está cheia de rituais para exorcizar a Morte. Agora, quando escrevo, dia 3 de janeiro de
1991, acabamos de passar por dois deles. É claro que não lhes damos este nome, pois o seu
sucesso depende de que o Nome Terrível não seja ouvido. Para isto se faz uma barulheira
enorme de sinos, fogos de artifício, danças, risos, muita comida, e alegria engarrafada… E tudo
isso só para que a voz Dela não seja ouvida… Natal não é isto? Não existe uma tristeza solta no
ar? O esforço desesperado de repetir um passado, fazer com que ele aconteça de novo?
Encontrei, certa vez, numa loja nos Estados Unidos, um pacotinho de ervas e temperos num
saquinho de plástico com o nome: “perfumes de Natal”. Tem de ser aqueles cheiros antigos, de
infância. As músicas novas não servem, é preciso que as mesmas dos outros tempos sejam
cantadas de novo. E que haja o mesmo rebuliço, os mesmos bolos, as mesmas frutas. Prepara-
se a repetição do passado, para se ter a ilusão de que o tempo não passou. Melhor o incômodo
da correria e da ressaca do que a dor de ouvir o que Ela está silenciosamente dizendo: “É, mas
o tempo passou. Não pode ser recuperado. Você está passando…” Pensar dói muito. O Natal
dói muito…. E saímos da depressão da perda por meio de um outro ritual. Tolice imaginar que o
tempo passou. Que nada. É um novo tempo que vem. Há muito tempo à espera. “Feliz Ano
Novo!” E, no entanto, é tudo mentira. Certo está o poeta:
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
o que só agora vejo que deveria ter feito,
o que só agora claramente vejo que deveria ter sido
isto é que é morto para além de todos os Deuses…
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses, sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-os no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos… (Álvaro
de Campos, Poesias, “Na noite terrível…”)
Não, não, a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa que fala com
voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando à
sabedoria de viver.
O que ela diz? Coisas assim:
“Bonito o crepúsculo, não? Veja as cores, como são lindas e efêmeras… Não se repetirão
jamais. E não há formas de segura-las. Inútil tirar uma foto. A foto será sempre a memória de
algo que deixou de ser… E esta tristeza que a beleza dá? Talvez porque você seja como o
crepúsculo…. É preciso viver o instante. Não é possível colocar a vida numa caderneta de
poupança…”
“Você sabe que horas são? Está ficando frio… E as cores do outono? Parece que o inverno está
chegando…”
“O que é que você está esperando? Como se a vida ainda não tivesse começado… Como se
você estivesse à espera de algum evento que vai marcar o início real da sua vida: formar,
casar, criar os filhos, separar da mulher ou do marido, descobrir o verdadeiro amor, ficar rico,
aposentar… Como se os seus instantes presentes fossem provisórios, preparatórios. Mas eles
são a única coisa que existe…”
“E esta música que você está dançando? É de sua autoria? Ou é um Outro que toca, e você
dança? Quem é este Outro? Lembre-se do que disse o poeta ‘Sou o intervalo entre o meu
desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim’. Mas, se você é isto, o intervalo,
você já morreu… Acorde! Ressuscite!”
A branda fala da morte não nos aterroriza por nos falar da Morte. Ela nos aterroriza por nos
falar da Vida. Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo
que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos
que não tomamos (por medo), os suicídios lentos que perpetramos.
“Lembra-te, antes que se rompa o fio de prata e se despedace o corpo de outro”, e que seja
tarde demais.
Uma das canções mais belas do Chico eu nunca ouvi tocada no rádio. Tenho perguntado, e
pouca gente conhece. Desconfio. É porque ela é a mansa sabedoria da Morte, que ninguém
quer ouvir. Diz assim: “O velho sem conselhos, de joelhos, de partida, carrega com certeza
todo o peso de sua vida. Então eu lhe pergunto sobre o amor… A vida inteira, diz que se
guardou do carnaval, da brincadeira que ele não brincou… E agora, velho, o que é que eu digo
ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Só a caminhada, longa, pra nenhum
lugar… O velho, de partida, deixa a vida sem saudades, sem dívida, sem saldo, sem rival ou
amizade. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me diz que sempre se escondeu, não se
comprometeu, nem nunca se entregou… E agora, velho, que é que eu digo ao povo? O que é
que tem de novo pra deixar? Nada. Eu vejo a triste estrada aonde um dia eu vou parar. O velho
vai-se agora, vai-se embora sem bagagem. Não sabe pra que veio, foi passeio, foi passagem.
Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me é franco. Mostra um verso manco dum caderno em
branco que já se fechou. E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é que tem de
novo pra deixar? Não. Foi tudo escrito em vão… E eu lhe peço perdão mas não vou lastimar”…
Parece até que o Chico e o Jorge Luis Borges entraram de acordo, pois este escreveu coisa
muito parecida: “Instantes: Se eu puder viver novamente a minha vida, na próxima trataria de
cometer mais erros. Não tentaria ser perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que
tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria até menos higiênico. Correria
mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria
mais rios. Iria para lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria mais
problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma desta pessoas que viveu sensata e
produtivamente cada minuto de sua vida. Eu era uma destas pessoas que nunca ia a parte
alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas.
Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço
no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha
rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma
vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo…”
É! Embora a gente não saiba, a Morte fala com a voz do poeta. Porque é nele que as duas, a
Vida e a Morte, encontram-se reconciliadas, conversam uma com a outra, e desta conversa
surge a Beleza. Agora, o que a Beleza não suporta é o falatório, a correria… Ela nos convida a
contemplar a nossa própria verdade. E o que ela nos diz é simplesmente isto: “Veja a vida. Não
há tempo pra perder. É preciso viver agora! Não se pode deixar o amor para depois. CARPE
DIEM!”
Foi esta a primeira lição do professor de literatura do filme A sociedade dos poetas mortos.
CARPE DIEM: agarre o dia! E o efeito de tal revelação poética, nascida da reconciliação da Vida
com a Morte, é uma incontrolável explosão de liberdade. É só isto que nos dá coragem para
arrebentar a mortalha com que os desejos dos outros nos enrolam e mumificam.
Tive um amigo, Hans Hoekendijk, um holandês que esteve prisioneiro num campo de
concentração alemão. Contou-me de sua experiência com a morte. A guerra já chegava ao fim,
e os prisioneiros acompanhavam num rádio clandestino o avanço de tropas aliadas e já faziam
o cálculo dos dias que os separavam da liberdade. Até que o comandante da prisão reuniu a
todos no pátio e informou que, antes da libertação, todos seriam enforcados. “Foi um grito de
lamentação e horror… seguido da mais extraordinária experiência de liberdade que jamais tive
em minha vida”, ele disse. “Se eu morrer dentro de dois dias, então nada mais importa. Não há
sentido em me guardar, não há sentido em ser prudente. Não preciso pretender ser outra coisa
do que sou. Posso viver a minha verdade, pois nada pode me acontecer. Não preciso de
máscaras. Tenho a permissão para a honestidade total. Posso ir ao guarda nazista, que sempre
me aterrorizou, e dizer a ele tudo o que sinto e penso… Que é que ele pode me fazer? Posso ir
até aquela mulher que sempre amei mas de quem nunca me aproximei (afinal, ela estava com
o marido, e naqueles tempos isto era levado em consideração…) e pedir licença ao marido para
confessar os sentimentos… Posso dizer tudo o que sinto mas que nunca me atrevi a dizer, por
medo”. E me contou dessa experiência fantástica de liberdade e verdade que se tem quando se
está pendurado sobre o abismo. A Morte tem o poder de colocar todas as coisas em seus
devidos lugares. Longe do seu olhar , somos prisioneiros do olhar dos outros, e caímos na
armadilha de seus desejos. Deixamos de ser o que somos para sermos o que eles desejam que
sejamos. Diante da Morte, tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar pra mentiras. E a
gente se defronta então, com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso a
nossa verdade, para ouvir de novo a voz do desejo mais profundo, é preciso tornar-se um
discípulo da Morte. Pois ela nos dá lições de vida, se acolhemos como amiga. ” A morte é nossa
eterna companheira” – dizia Don Juan, o bruxo. ” Ela se encontra sempre a nossa esquerda, ao
alcance do braço. Ela nos olha sempre até o dia que nos toca. Como é possível alguém se sentir
importante, sabendo que a Morte o comtempla? O que você deve fazer ao se sentir impaciente
com alguma coisa, é voltar-se para sua esquerda e pedir que a sua Morte o aconselhe. Estamos
cheios de lixo! É a Morte é a única conselheira que temos. Sempre que você sentir, como
acontece sempre, que tudo está indo de mal a pior,e que você se encontra a ponto de
aniquilado, volte-se para sua Morte e lhe pergunte se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que
você está errado, que nada realmente importa, fora do seu toque. Ela lhe dirá “ainda não te
toquei”. Alguém tem que mudar e depressa. Alguém tem que aprender que a Morte é caçadora
e que ela se encontra a nossa esquerda. Alguém tem que pedir o conselho da Morte e
abandonar a maldita mesquinharia que pertence aos homens que vivem as suas vidas como se
a Morte nunca fosse bater no seu ombro.
Houve um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os
homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver.
Hoje, o nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos
possuídos pela fantasia onipotente de que nos livramos de seu toque. Com isso, nós nos
tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de
que, quanto mais poderosos formos diante ela( inutilmente, porque só podemos adiar..)mais
tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, Morte que podia ser conselheira
sábia, transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que para recuperarmos um
pouco a sabedoria de viver seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da
Morte. Mas para isso seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz. Seria
preciso que voltássemos a ouvir os poetas….
Referência
ALVES, Rubem. A morte como conselheira. In: CASSORLA, Roosevelt M. S. (Coord). Da morte.
Campinas: Papirus, 1991.