Marina Fares Ferreira
Marina Fares Ferreira
Marina Fares Ferreira
Belo Horizonte
2021
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Belo Horizonte
2021
Ferreira, Marina Fares
Dança, Caboclo, cada qual em seu lugar! Estudo sobre os movimentos corporais e
a patrimonialização da Dança dos Caboclinhos – Peçanha/MG/Marina Fares
Ferreira -Belo Horizonte, 2021. 170 f.
The fundamentals and practices of heritage of immaterial cultural assets constantly deal with
descriptions of the essential conditions for the perpetuation of celebrations, form of expressions,
knowledge and places. Even though a considerable part of these cultural assets involve human
movement, dance and music, the assumptions and methods for describing body movement and
its interrelations are not well established in the cultural heritage literature. Therefore, this work
aims to discuss the method of patrimonialization of Caboclinhos Dance in the city of Peçanha,
Minas Gerais, with a focus on descriptive approaches to human movements. This discussion
addresses not only the representation of body movements in the process of preserving
traditional and popular cultures, but also the techniques and concepts of the current models of
safeguard. For this purpose, bibliographic review resources focused on heritage documents,
descriptive and observational research based on the ethnographic method, field research and
interview were used, as well as available tools to represent the different approaches to human
movement from the perspective of intangible heritage. From these elements, an expanded
panorama of the conceptual discussion of intangible heritage was presented, deepened from the
corpus of Iphan's national dossiers, the development of heritage legislation, the relationship
between the human movement and the manifestation, its dance, music, context , and the process
of recognition as intangible heritage of Caboclinhos Dance.
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 12
CAPÍTULO 1 - A TRAJETÓRIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL........... 24
1.1 Consolidação internacional do campo do patrimônio cultural e
patrimônio imaterial............................................................................... 24
1.2 A concepção de patrimônio brasileiro................................................... 33
1.3 A performance como patrimônio imaterial.......................................... 40
1.3.1 Patrimônio imaterial, performance e conhecimento incorporado............ 40
CAPÍTULO 2 - DIRETRIZES NORMATIVAS DE PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL........................................................................... 44
2.1 Texto da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial.................................................................................................. 45
2.2 Implementação da Convenção pelos Estados membros....................... 49
2.3 Instrumentos de preservação................................................................. 52
2.3.1 O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), o caso
brasileiro.................................................................................................. 52
2.3.2 Métodos e características do registro do Iphan........................................ 54
2.4 A representação do conhecimento incorporado nos dossiês de
registro..................................................................................................... 55
2.4.1 Análise textual dos dossiês de registro do Iphan....................................... 56
2.4.2 Resultados................................................................................................ 58
2.4.3 Análise computacional com base em palavras-chave............................... 60
2.5 Análise detalhada sobre a classificação de dança, música e
movimentos corporais em certos dossiês de registros........................... 66
CAPÍTULO 3 – O CONTEXTO DA DANÇA DOS CABOCLINHOS DO
MUNICÍPIO DE PEÇANHA/MG.................................................................... 74
3.1 Contexto da Dança dos Caboclinhos..................................................... 75
3.1.1 Breve histórico do município de Peçanha................................................. 75
3.1.2 Chegada ao município de Peçanha........................................................... 78
3.1.3 Os ensaios do grupo de caboclinhos......................................................... 80
3.1.4 Surgimento da Dança dos Caboclinhos do município de Peçanha........... 84
3.1.5 Atores principais e a formação do atual grupo de caboclos...................... 87
3.1.6 Interações entre os mestres....................................................................... 90
3.1.7 Caboclinhos.............................................................................................. 91
3.2 Formação do grupo musical da Dança dos Caboclinhos...................... 93
3.2.1 Tocadores................................................................................................. 93
3.2.2 Poesia cantada e falada........................................................................... 96
3.2.3 Indumentária............................................................................................ 97
3.3 A Trezena de Santo Antônio do município de Peçanha........................ 100
3.3.1 Festividade de Santo Antônio.................................................................... 100
3.3.2 Os dias que antecederam a Dança dos Caboclinhos................................. 102
3.3.3 Dia 12 de junho – Dança dos caboclinhos na Igreja Matriz de Santo
Antônio..................................................................................................... 103
3.3.4 Dia 13 de junho – Caboclinhos no Espaço Comunitário da Paróquia de
Santo Antônio............................................................................................ 106
CAPÍTULO 4 - A DANÇA DOS CABOCLINHOS.......................................... 109
4.1 Dança das Flechas................................................................................... 113
4.1.1 Estruturas musicais.................................................................................. 116
4.1.2 Movimentos corporais.............................................................................. 119
4.1.3 Poesia cantada e falada............................................................................ 124
4.1.4 Manobras.................................................................................................. 130
4.2 Dança das Espadas.................................................................................. 135
4.3 Dança das Fitas....................................................................................... 138
CAPÍTULO 5 - A PRESERVAÇÃO DA DANÇA DOS CABOCLINHOS... 144
5.1 O registro do Dossiê do Grupo de Caboclos de Peçanha...................... 145
5.1.1 Análise do registro dos caboclinhos......................................................... 146
5.2 As interseções.......................................................................................... 151
5.3 A perpetuação......................................................................................... 154
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 159
REFERÊNCIAS................................................................................................. 163
INTRODUÇÃO
12
inserção da Política de Programa de ICMS Patrimônio Cultural1, tendo como órgão
responsável o Iepha/MG2. Com o advento do ICMS Patrimônio Cultural, criou-se em
Minas Gerais um mercado de empresas consultoras especializadas em atender às
demandas dessa política para que, assim, os municípios pudessem receber verbas para
investir em seus bens culturais e em outras áreas afins. Nesse contexto consolidei, com
mais dois sócios, uma empresa para trabalhar frente às necessidades dessa legislação.
Exerci trabalhos burocráticos instruídos por essa política e também em educação
patrimonial. Diante disso, ao final do curso de História, foi natural realizar minha
monografia sobre os projetos de educação patrimonial desenvolvidos em uma escola
pública, na cidade de Florestal, interior de Minas Gerais, no contexto do ICMS
Patrimônio Cultural. A partir daí, o campo do patrimônio tornou-se meu principal objeto
de estudo e trabalho.
A fim de atuar em outras frentes do campo do patrimônio, trabalhei por alguns
anos no centro de memória de uma empresa privada, contratada como historiadora, até o
momento em que decidi realizar um mestrado em Mediação da Cultura e do Patrimônio,
no sul da França, quando desenvolvi uma pesquisa ainda na área da educação patrimonial,
mas no âmbito museal. No final do ano de 2013, regressei a Belo Horizonte, insatisfeita
com minha pesquisa no estrangeiro, por não ser o objeto de estudo que gostaria de
pesquisar. Nesse momento, já atenta para as manifestações culturais que envolvem
principalmente aspectos da música, reinicio meus trabalhos com ICMS Patrimônio
Cultural, agora como prestadora de serviço e direcionada exclusivamente para as
exigências do campo do patrimônio imaterial. Ressalto ainda que projetos patrimoniais
imateriais relacionados à área socioambiental e projetos culturais também fazem parte da
minha área de atuação profissional.
A partir do meu gosto pela música, a influência de amigos músicos e querendo
entender algum ponto desse campo, de volta a Belo Horizonte, participei de um projeto
social oferecido pela prefeitura de Belo Horizonte, onde realizei oficinas de percussão
1
“Em Minas Gerais, as ações de proteção do patrimônio desenvolvidas pelos municípios são, em muitos
casos, norteadas pela possibilidade de ganho financeiro pautada pela política estadual de repasse do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), ganho esse condicionado, entre outros fatores, pela
adoção, por parte do município, de determinadas posturas relativas ao seu patrimônio cultural. O chamado
ICMS Patrimônio Cultural, coordenado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais (IEPHA-MG), foi implementado após a promulgação da Lei Estadual nº 12.040, de 1995,
conhecida como Lei Robin Hood, em função do seu potencial redistributivo” (JÚNIOR; FARIA, 2014,
p.48).
2
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.
13
durante dois anos. O prazer pela música aumentava, assim como também minha
curiosidade em compreender o desenvolvimento da música na minha área de atuação, o
patrimônio imaterial. A partir desse momento, percebi que o trabalho que exerço,
elaborando dossiês e relatórios de patrimônio imaterial para a política estadual
mencionada, mostrava-se insuficiente sobre a abordagem dos aspectos relativos à música,
mesmo que essa política não exija uma atenção específica para a área musical. De
qualquer forma, compreender a música no contexto das manifestações culturais passou a
ser a minha implicância.
Em conversa com um colega de oficina de percussão, escutei pela primeira vez a
palavra etnomusicologia. Desconhecendo o que seria, ele me apresenta esse novo campo,
afirmando que o que eu procurava, tentar entender a música em expressões culturais,
poderia ser encontrado nos estudos etnomusicológicos. Assim, cursei essa disciplina na
UFMG, Etnomusicologia, aguçando mais ainda minha curiosidade por respostas para
perguntas que me rondavam, por exemplo, como compreender uma manifestação artística
através da música no campo do patrimônio imaterial?
No semestre seguinte, segundo semestre de 2017, participei de outra disciplina,
Estéticas Ameríndias. Nela entendi que a música e a dança podem não ser elementos
dissociáveis e que as descrições de movimentos corporais contribuem para um melhor
entendimento da expressão cultural e dos efeitos no seu contexto. Como trabalho final ao
término dessa disciplina, era preciso elaborar um texto descrevendo sobre movimentos
corporais relacionados com aspectos da música e da dança. Resolvi, então, associar o
enunciado com o meu trabalho em patrimônio imaterial.
Para isso precisava saber quais eram os bens culturais imateriais que eram
reconhecidos pelo Iepha/MG, como patrimônios municipais. Iniciei minha pesquisa
documental realizando uma busca na lista de bens protegidos pela Política de ICMS
Patrimônio Cultural, disponibilizada no site da instituição. Essa lista possui 4557 bens
culturais de 844 municípios participantes. Nesse momento, pude notar que os bens de
natureza imaterial são minoria em comparação com os bens materiais, e que grande parte
deles está relacionada aos aspectos religiosos, mais especificamente aos grupos de
congados, Festas de Reinado ou Festa de Nossa Senhora do Rosário. Além disso, observei
que outra parte desses bens imateriais está vinculada às tradicionais bandas de música.
Estabelecida a devida importância desses bens, congado e banda na história do Estado,
eu ainda estava em busca de mais sobre os bens culturais que estavam associados à
música.
14
O primeiro contato
15
etárias. O comando da dança é conduzido pelas duas pessoas mais velhas do grupo, que
reúnem, organizam e puxam a dança, Senhor Tunico e Senhor Chico. Os caboclinhos são
jovens entre 7 a 15 anos. Os instrumentos utilizados são reco-reco, sanfona e duas caixas
e são praticados por quatro tocadores que acompanham o grupo. O arco e flecha também
é utilizado como instrumento percussivo pelos caboclinhos em um dado momento da
dança. A Dança dos Caboclinhos ocorre somente nos dias 12 e 13 de junho no contexto
da Trezena da Festa de Santo Antônio, padroeiro da cidade.
Retomando minha estadia de três dias em Peçanha, no primeiro dia, pude
conversar com a responsável pelo Setor de Patrimônio Cultural da Prefeitura de Peçanha,
Marina Leão Braga, que me perguntou o porquê de eu estar ali. Minhas explicações foram
suficientes e depois disso, ela foi me relatando quem eram os integrantes do grupo, onde
moravam e o motivo que levou o departamento de cultura a patrimonializar o grupo. Nisso
eu pude também esclarecer algumas dúvidas baseadas na leitura do dossiê de registro e
percebi a primeira lacuna do documento escrito, ele foi elaborado pelas funcionárias da
cultura. Outras questões foram levantadas, mas serão abordadas a partir do terceiro
capítulo desta pesquisa, assim como a contextualização desse bem. Por agora, dou
continuidade ao relato do meu primeiro contato com os caboclinhos.
Na Casa de Cultura, a funcionária da prefeitura me afirmou que um dos puxadores
dos caboclinhos passaria no local a qualquer hora, como um costume cotidiano. Senhor
Tunico, um senhor que me disse ter 84 anos, foi chegando à Casa de Cultura apoiado em
uma bengala, perguntando quem é que queria ver os caboclinhos dançarem. Logo fomos
apresentados e, numa conversa descompromissada, bastou eu fazer uma pergunta para
que ele falasse por um bom tempo: Onde o Senhor aprendeu a dançar? Sua resposta a essa
pergunta nunca mudou. Mesmo em outras conversas, seu relato sobre a Dança dos
Caboclinhos sempre foi o mesmo. No seu momento, Senhor Tunico partiu, sempre a pé,
para sua casa, com a certeza que nos encontraríamos mais tarde.
Ao final da tarde, houve a apresentação do grupo na praça. Ficou marcado na
minha lembrança, o relato da funcionária da prefeitura me contando que a apresentação
aconteceu em função da minha presença ali. Não havia um evento específico na cidade,
não era uma data festiva que exigisse a referida participação do grupo. Percebei algumas
pessoas confirmando que eu era a Marina que veio ver os caboclinhos; minha presença
tornou-se um assunto naquele momento na praça. Meu interesse em conhecer o grupo e
a dança, foi responsável pela citada apresentação dos caboclinhos. A funcionária afirmou
algumas vezes: “[...] isso é importante para eles, porque as pessoas daqui não valorizam
16
e aí tem gente de fora que vem pra cá pra ver eles. Eles se sentem motivados, valorizados.
Isso é bom, eles gostam!”. Na ocasião, agradecida, notei que poderia haver uma
hierarquia ou uma tensão nesse jogo cultural, como obediência do grupo nas solicitações
da prefeitura. Sobre isso pude observar mais de perto, quando ingressei no mestrado e
parti para realizar trabalhos de campo. Sobre esse primeiro contato e os outros trabalhos
de campo realizados na cidade de Peçanha, será tratado com mais detalhes no terceiro
capítulo desta pesquisa, por agora, citarei algumas impressões mais significativas desse
primeiro contato, que me motivou a realizar essa pesquisa.
Pareceu-me estar diante de danças diferentes ao presenciar a Dança dos
Caboclinhos ao vivo e ao ler o dossiê de registro da mesma dança. Ao vivo, minhas
primeiras impressões foram de que a dança se mostrava complexa, dividida em duas
partes, a dança das flechas e a dança das fitas, e apresentava falas recitadas, à primeira
vista, com elementos significativos que me fugiam da compreensão. Era uma dança
organizada, mas ao mesmo tempo desordenada, com meninos que dançavam observando
ao seu redor e preocupados em receber o lanche ao final da apresentação. Em um dado
momento na primeira parte, os dois senhores que conduziam a dança trocavam de lugares
segurando espadas de madeira nas mãos. Cada um dançava à sua maneira. Na primeira
parte da dança, os passos dos caboclinhos eram iguais e repetidos, acompanhando o bater
do arco e da flecha, ao som de uma mesma música ao longo da apresentação, tocada pelos
quatro instrumentistas. Já na segunda parte, havia um agito maior para a realização do
trançar das fitas em volta de um bastão de madeira, onde os mais velhos selecionavam as
crianças que iriam participar. Os outros caboclinhos e os mais velhos ficavam em volta
olhando, atentos ao trançar para verificar se estava tudo indo corretamente. Se algum
trançado descia errado, logo se escutavam gritos de que alguém errou e de que era preciso
voltar.
A Dança dos Caboclinhos ao vivo era uma, no papel era outra. Esse bem cultural
foi reconhecido como patrimônio imaterial da cidade de Peçanha em 2014 e seu dossiê
foi elaborado por funcionários do setor de Patrimônio Cultural da Prefeitura de Peçanha.
Limito a minha problematização referente ao dossiê, pois irei tratar disso mais adiante.
No momento, quero registrar, de forma ampla, algumas considerações sobre o visto, o
escrito e o conversado com Senhor Tunico.
No dossiê, a parte histórica, contendo a origem, o desenvolvimento e o contexto
do bem cultural associada à história do município, foi mostrada de forma simplória, em
relação ao relato da história da dança por Senhor Tunico, sem conter fontes e referências
17
bibliográficas. No dossiê é afirmado que a dança procura manter viva a tradição indígena
originária de índios botocudos que lá habitavam, sendo que a cidade ainda possui
descendentes da tribo em questão (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA, 2014,
p.15). Segundo o registro, os atos existentes descritos na dança são divididos em 3, “dança
das flechas”, “dança das fitas” e “dança das espadas”, que retratam três momentos
importantes da vida das tribos: a caça – “dança das flechas”; a entronização dos jovens
na vida adulta – “dança das fitas; a guerra – “dança do porrete” (PREFEITURA
MUNICIPAL DE PEÇANHA, 2014, p.16). Ainda no documento, os significados desses
atos foram relacionados de forma superficial, como citado anteriormente, e não condizem
com o relato do mestre Senhor Tunico. Os movimentos dos corpos em momento algum
foram mencionados no dossiê.
Numa conversa de almoço, o dançante, o Senhor Tunico, contou de outras
referências e significados para essa dança, diferentes dos que aparecem no dossiê. Ele
afirmou que a parte referente à “dança do porrete” se chama, na verdade, dança das
espadas, e é executada em algum momento no desenvolvimento da “dança das flechas”,
quando ele decide. Disse que a dança é para lembrar os índios que ali passaram e que os
movimentos do arco e flecha, ora tocando para o lado esquerdo do corpo, ora para o lado
direito, são para chamar o caboclo vizinho para dançar. A “dança das fitas”, segundo ele,
é para lembrar a maneira como era trançado um balaio pelos índios. Já a “dança das
espadas”, esta sim simbolizava uma guerra, quando ele levantava a espada para cima
como sinal de paz e o outro dançante dispunha sua espada para baixo chamando para a
guerra. Depois, agora em um diálogo com a responsável pelo departamento de cultura,
pontuei algumas dessas considerações em relação ao dossiê e à fala do Senhor Tunico. A
resposta da funcionária foi: “ah, eles não conhecem a história não. Eles não têm esse
conhecimento não”. Esses foram alguns elementos contraditórios observados no primeiro
contato com o grupo dos caboclinhos.
De volta ao trabalho final da disciplina da UFMG, preparei um texto descritivo
sobre os movimentos corporais executados nesses atos da Dança dos Caboclinhos e
adicionei um pouco da conversa que tive com o Senhor Tunico. Ao finalizar esse trabalho,
refleti mais e fiz questionamentos sobre o campo do patrimônio imaterial e da música.
Como elaboradora de dossiês de registro, me vi às voltas com certas indagações: por que
os movimentos corporais e suas representações não são explorados no processo de
patrimonialização de um bem cultural imaterial e de que forma o entendimento desses
18
movimentos pode contribuir para a preservação dos bens no campo do patrimônio
imaterial?
A partir disso, iniciei leituras a respeito de patrimônio e de música, e percebi
também que os estudos da dança podiam fornecer importantes subsídios para tentar
esclarecer minhas dúvidas. Pela insegurança de começar a pisar em um terreno que não é
do meu campo de estudo, resolvi ingressar em um segundo mestrado, agora na área de
artes, explorando os temas de patrimônio imaterial, música, dança e movimentos
corporais, como processos culturais que interagem com o conhecimento incorporado.
Esse processo define o trajeto que me trouxe ao tópico desta dissertação, que tem como
foco a Dança dos Caboclinhos de Peçanha.
O segundo contato
19
Sobre as terminologias usadas pelos integrantes, enfatizamos que foram utilizados
expressões e trechos das entrevistas dos mestres, para tentar mostrar o ponto de vista dos
detentores. Foi nas conversas realizadas que percebi que a manifestação não é
referenciada pelos mestres como "apresentação" e nem como "performance". Esses
termos não são entendidos pelos caboclinhos em relação à designação de sua dança.
Apesar disso, nessa dissertação recorremos ao estudo da antropologia da performance
para contribuir para a compreensão deste estudo de caso.
Em relação ao tempo, destacamos que o curto tempo que passei em contato com
os participantes da dança foi um limitador desta pesquisa. O planejamento para depois
desse campo foi de sistematizar, analisar e selecionar os vídeos mais representativos do
bem cultural em questão. Em seguida, o próximo passo estaria direcionado para ocorrer
mais uma ida ao município para mostrar as gravações feitas e juntamente com eles,
descrever o desenvolvimento da manifestação, centralizando nos movimentos corporais
das três etapas. Além disso, previa conversar mais com os mestres e também com os
músicos e os caboclinhos. Contudo, devido à pandemia do coronavírus que assola o
mundo e o Brasil desde março daquele ano, não me permitiu realizar esse último campo.
As fronteiras municipais foram fechadas, além de ser essencial seguir as medidas
protetivas para conter a propagação da COVID-19, como praticar o isolamento social e
evitar aglomerações. Assim a dança que é praticada apenas uma vez ao ano, não foi
realizada no ano de 2020, sendo a parte religiosa transmitida pelas redes sociais da Igreja
Matriz de Santo Antônio, principal local de ocorrência da festividade.
Diante desse contexto, ao longo da escrita desta dissertação, dúvidas foram
sanadas por meio de ligação telefônica para o Senhor Chico (o celular do Senhor Tunico
está estragado). Em muitas dessas conversas, não se fez claro o entendimento do meu
questionamento ao contramestre, assim como a resposta oferecida por ele. Expressões
verbais utilizadas pelos mestres também fugiram do meu alcance. O curto tempo que
passei com eles foi insuficiente para compreender termos e jeitos de falar. Contudo, uma
expressão foi utilizada frequentemente por Senhor Chico para ressaltar que a dança
passava por um momento importante: "o pau come". Essa foi a resposta para muitas de
minhas perguntas relativas ao começo da dança, às manobras e ao percurso.
Objetivo e capítulos
20
Diante do contexto exposto, este trabalho tem como objeto principal discutir o
método de patrimonialização da Dança dos Caboclinhos da cidade de Peçanha, Minas
Gerais, com o foco nas abordagens descritivas de movimentos humanos. Essa discussão
aborda não somente a representação dos movimentos corporais no processo de
preservação das culturas tradicionais e populares, mas também as técnicas e os conceitos
dos modelos de salvaguarda vigentes. Para isso, utilizaremos recursos de revisão
bibliográfica, pesquisa descritiva e observacional baseados no método etnográfico, além
de ferramentas disponíveis para a representação das diferentes abordagens do movimento
humano dentro da perspectiva do patrimônio imaterial, trabalho de campo e entrevistas.
O primeiro capítulo desta dissertação discute a consolidação do patrimônio
cultural no cenário mundial inserido no contexto geral do campo da arte, o que inclui uma
discussão sobre sua trajetória em privilegiar bens materiais, até a inclusão da discussão
sobre a preservação de bens que não se inseriam nessa categoria. Assim, a partir dos anos
1970, surgem questionamentos sobre como preservar a propriedade cultural de
comunidades tradicionais e se iniciam apontamentos sobre o que hoje conhecemos pelo
conceito de patrimônio imaterial. Nessa parte também se tratou da consolidação desse
novo campo de crítica e estudo, sua aproximação com a área das Ciências Sociais para a
criação de métodos de preservação e os principais documentos produzidos
internacionalmente para que países adotassem diretrizes patrimoniais imateriais. A
construção desse campo também foi abordada de forma breve, no caso do Brasil, com
menção de alguns elementos históricos significativos na afirmação da política de
patrimônio. Por último, discutimos o campo da performance nesse contexto a partir de
categorias de patrimônio imaterial brasileiro e de alguns conceitos que são importantes
para a compreensão desta pesquisa.
No segundo capítulo foi abordada a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial, promovida pela UNESCO, em 2003, principal documento referente a esse
campo, o qual orienta sobre as diretrizes internacionais para a implementação de uma
política de patrimônio imaterial. Foram citados os objetivos e os critérios que os países
necessitam contemplar para que um bem seja considerado Patrimônio da Humanidade,
assim como as categorias sugeridas por esse órgão internacional. Ainda, foi mencionado
como alguns países desenvolveram suas políticas patrimoniais denominando categorias
referentes ao seu contexto cultural. Para elucidar melhor os instrumentos de preservação
desse campo e os métodos adotados, o caso brasileiro foi tratado com ênfase. Em solo
brasileiro, o inventário e o registro são os instrumentos aplicados aos bens culturais
21
imateriais no intuito de preservar, principalmente, o processo desses bens, em detrimento
do produto. Além disso, foram analisados os 48 dossiês de registro do Iphan3, o que serviu
de base para compreender como são tratadas as descrições específicas sobre dança,
música e movimentos corporais nesses documentos. Para isso, foram criadas uma série
de classificações aplicadas ao universo dos dossiês, que visaram entender a caracterização
dos registros, suas expressões predominantes e suas possíveis associações com o tema de
movimentos corporais. Essa análise foi aprofundada para doze dossiês de registro que
estão associados diretamente com patrimônio imaterial envolvendo movimento corporal,
dança e música. Nesse estudo mais específico, foi mostrado como cada um dos doze
documentos mencionam os movimentos corporais em suas descrições, entendidos como
movimentos das mãos, braços, troncos, cabeças, passos e deslocamento do corpo. E ainda
quais foram os métodos que os dossiês utilizaram para ilustrar e explicar a abordagem
desses movimentos.
No terceiro capítulo foi introduzido o estudo de caso da Dança dos Caboclinhos
da cidade de Peçanha, Minas Gerais. Esse município está situado na região da Zona do
Vale do Rio Doce, a 310 km da capital mineira e conta com aproximadamente 17 mil
habitantes. Para iniciarmos o entendimento da Dança dos Caboclinhos nesse município,
abordamos o contexto da dança que contempla um breve histórico da cidade de Peçanha,
as primeiras impressões na cidade em questão, influenciadas pela realização do campo
em junho de 2019, além de abordar os atores sociais, a formação do grupo e o
desenvolvimento dos ensaios. Para situar esses elementos no espaço geográfico, político
e de significados, as descrições foram acompanhadas por um mapa do município da
cidade que situa os principais pontos citados no decorrer do texto. Além disso, foram
descritos os aspectos musicais em que a coreografia está envolvida, como a performance
dos tocadores, os instrumentos, a poesia cantada e falada, e também suas indumentárias.
Já na última parte, enfatizamos o cenário no qual a Dança dos Caboclinhos ocorre, a
Trezena de Santo Antônio. Nela, tratou-se da preparação dos caboclinhos para a
festividade, além da descrição contextual dos dois dias em que o grupo realiza sua
coreografia, 12 e 13 de junho.
No penúltimo capítulo, o foco foi no desenvolvimento das três etapas que
constituem a Dança dos Caboclinhos: dança das flechas, dança das espadas e dança das
fitas. Nessa seção foram descritos os movimentos corporais executados pelos caboclinhos
3
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
22
em cada uma das três etapas, detalhadas de acordo com cada manobra realizada. Além da
descrição textual, recursos ilustrativos também foram utilizados, como diagramas, fotos
e tabelas para melhor compreensão das sequências, dos percursos e dos movimentos
corporais praticados. A estrutura musical e a poesia cantada e falada, termo usado pelo
mestre Senhor Tunico, referente aos versos e cantos entoados através de um conjunto de
perguntas e respostas, realizado respectivamente por Senhor Tunico e pelos caboclinhos,
também foi tratada nesse capítulo. As descrições presentes nessa seção foram feitas a
partir de análises de vídeos em resolução Full HD, gravados por câmera digital, vídeos
capturados de celulares dedicados à gravação de vídeo, vídeos em formato 360 graus
(2.7k) e fotos da prática da Dança dos Caboclinhos. Os vídeos da câmera digital foram
estudados por meio de anotação em vídeo utilizando o software ELAN (Eudico Language
Annotator).
No último capítulo, foram resgatados alguns pontos relevantes já citados ao longo
dos capítulos anteriores, referentes às diretrizes específicas patrimoniais, ao contexto da
manifestação artística e à abordagem dos movimentos corporais da coreografia, para
serem associados com o processo de patrimonialização da Dança dos Caboclinhos. Para
isso foi analisado o Dossiê de Registro do Grupo de Caboclos de Peçanha e pontuados
alguns elementos problemáticos mencionados na ficha de análise do dossiê. Ainda, a
partir de quatro referências dos documentos de instruções operacionais de
patrimonialização, foram criadas interseções entre o relato de campo, enfatizando a
descrição das três etapas da Dança dos Caboclinhos, e o Dossiê de Registro do Grupo de
Caboclos de Peçanha. O que se pretendeu com essas conexões é contribuir para a reflexão
de possíveis abordagens metodológicas para o processo de registro. E por fim, o capítulo
buscou refletir sobre a noção de patrimônio cultural, a partir de um ponto de vista dos
mestres integrantes da Dança dos Caboclinhos.
23
CAPÍTULO 1 – A TRAJETÓRIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL
4
Dicionário IPHAN do Patrimônio Cultural <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhe/1026>. Acesso em: 11 fev.
2020.
24
Para isso foi preciso institucionalizar essa estratégia para a qual foi criada, em 1793, a Comissão
das Artes e, em 1837, a Comissão dos Monumentos Históricos. Essas comissões
regulamentadoras foram um importante ponto de partida para a construção dos primórdios das
bases da noção de patrimônio nacional. Segundo Sapiezinkas (2008), bens imóveis, estátuas,
monumentos pertencentes à igreja foram “transmitidos da igreja para o povo como forma de
herança” (p.68), na condição de que representavam a propriedade pública e coletiva. Os bens
passaram a ter um valor simbólico comum, associado ao que representavam, e desta forma “[...]
ensejavam um uso político de seus significados, como forma de mobilização e concentração
das atenções do povo para objetivos definidos” (p.68).
Choay (2006) afirma que a noção de patrimônio ligado à conservação de monumentos
teve origem no período da Romano, “por volta de 1420, quando Martinho V restabelece a sede
do papado na cidade desmantelada à qual deseja restituir o seu poder e seu prestígio” (p.29). A
autora afirma que a apropriação dos monumentos gregos pelos romanos foi realizada para
enaltecer a vitória de Roma. Sapiezinkas assegura que no período da Antiguidade já havia a
noção de monumentos, mas que seu valor estava na “arte de viver que era própria dos Gregos”
(2008, p.67), associados à arquitetura e a objetos de artesanato. Segundo a autora, nesse
momento, não havia ainda projeto para conservação, mas sim, “a tomada de consciência do
valor histórico e artístico dos monumentos da Antiguidade” (p.68). Contudo, a partir de 1430,
o pontificado fica encarregado da preservação dos monumentos, com técnicas de restauro e
proteção dos edifícios, atendendo a reclamações dos humanistas.
A noção de patrimônio, então, esteve por muitos períodos correspondendo a “bens
imóveis, prédios, monumentos públicos, e aos valores simbólicos que eles representavam
emblematicamente para o império, no caso de Roma, e posteriormente para a nação moderna”
(SAPIEZINKAS, 2008, p.69). O patrimônio passa a ser projetado simbolicamente como
propriedade coletiva, sendo os valores e características culturais de um povo compartilhados
socialmente. É na França, no período de sua revolução, que se estabelece que a noção sobre
seus monumentos históricos pode contribuir para construção da história e da memória de um
país mobilizando “os sentimentos de pertencimento dos cidadãos em relação ao seu país, com
uma função afetiva que relaciona patrimônio histórico e valores nacionais” (p.69). É nesse país
ainda que se inaugura o modelo de política de gestão e conservação do patrimônio histórico
como uma estratégia do Estado. É assim que se dá a consolidação do termo do patrimônio
associada à nação, como conhecemos atualmente.
Fonseca (2005) ressalta que essa noção de patrimônio está entrelaçada às ideias de
história e arte e, por isso, os valores de um bem patrimonializado são associados ao que
25
chamamos de histórico e artístico. Choay (2006) chama atenção para o século XIX, onde as
análises dos antiquários eram feitas pelos historiadores da arte. Para eles, as
[...] criações da arquitetura antiga doravante serão objetos de uma pesquisa sistemática
relativa à sua cronologia, técnica, morfologia, gênese e fonte, sua decoração
construída de afrescos, esculturas e vitrais, assim como sua iconografia. (p. 129)
A autora ainda cita a discussão feita por K. Field, por volta de 1870, entre valores de
conhecimento e valores artísticos, onde o pesquisador menciona o desenvolvimento crescente
de uma apreciação intelectual dos monumentos de arte. Fonseca afirma que as dimensões
modernas de monumento histórico, de patrimônio e de preservação, passam a ser refletidas
quando se começa a pensar sobre estudar e conservar um edifício devido ao testemunho
histórico ou artístico que ele possui.
Notamos que a homogeneização, citada pela autora, passa por valorização de bens ditos
históricos e artísticos que relatam de um testemunho nacional, sem se preocupar com conexão
social da população. Gomes (2015) afirma que na pesquisa do escritor Prosper Mérimée sobre
identificação dos bens e a relação da população com os mesmos, foram observados vínculos
dos bens apenas com alguns intelectuais, sendo que o povo se apresentava indiferente ou se
atrelava a outros tipos de bens. Gomes ainda aponta que as “culturas ditas populares
mantiveram a heterogeneidade e composição” (p.38).
Em seus estudos Gomes (2015) cita que, no século XIX, a cultura erudita se distancia
significativamente do que então chamamos de cultura popular. Nessa última se encontravam as
fábulas, costumes, antiguidades populares, e na erudição estava a “verdadeira história”, a
história das nações, a história tradicional, que era entendida como progresso. O autor também
relata através de citação do historiador Peter Burker, que é nesse momento que a cultura
popular, que tende a desaparecer com o impacto da Revolução Industrial, ganha notoriedade
26
pelos estudiosos da época. Nesse momento também surge a expressão “cultura popular” em
oposição à “cultura erudita” (p.39).
É importante pensarmos em denominações conceituais existentes antes da noção de
cultura popular. Segato (1991) afirma que na Era Moderna na Europa as sociedades eram
retratadas como homogêneas, regidas por normas universais e unificadoras, base para a
formação do homem moderno. Entretanto, surge simultaneamente a esse processo
homogeneizador, “uma percepção de que fragmentos de um estrato anterior permanecem sem
ser dissolvidos neste processo de constituição de estado-nações que caracterizou a
modernidade” (p.82). Em contraposta ao processo dominante, aparece a noção de diferenciação,
de heterogeneidade. “Marcando este contraste, esta relação de oposição entre os costumes
populares e os padrões de comportamento institucionalizados, surgiram, a partir do século
XVII, várias denominações já significativas: superstições, antiguidades vulgares, antiguidades
populares” (p.82), até surgir o termo “folklore”.
O termo “folklore” foi criado pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms, mencionado
somente no século XIX, no jornal britânico Athenuem, em 22 de agosto 1846. A expressão foi
elaborada a partir da junção dos termos saxônicos folk, que significa pessoas, pessoas comuns
e lore, representando saber. O termo folclore era designado para os estudos das chamadas
“antiguidades populares”, que significava coleta de informações de performance e práticas
tradicionais do passado de grupos populares. “Desde então, o folclore tornou-se sinônimo de
cultura popular, embora nem toda cultura popular seja folclórica” (ROCHA, 2009, p.219). No
âmbito do patrimônio, o folclore levou tempo para ser incorporado aos bens patrimoniais
nacionais, constituindo um campo paralelo (GOMES, 2015, p.43).
Kuutma (2015) afirma que a face inicial dos estudos do folclore ocorreu com a tendência
ao processo de modernização dos estados europeu e a transição sociocultural para populações
rurais que consideravam obsoletos seus modos e estilos de vida. Isso fez com que as pesquisas
folcloristas e intelectuais estudiosos do folclore, direcionassem um olhar diferenciado para os
trabalhadores rurais na procura de uma essência nacional. Os folcloristas valorizavam as
continuidades, as sobrevivências e as tradições que pareciam permanecer em áreas rurais
(ABREU, 2003, p.4). Foram através das obras desses pesquisadores que construiriam a ideia
de um “‘povo’ portador de práticas e objetos culturais distantes do estrangeirismo das classes
ditas superiores, e, por isso, depositário do que era o mais autêntico e essencialmente nacional”
(ABREU, 2003, p.4).
Na perspectiva da constituição da nacionalidade, os folcloristas definiam seu objeto de
interesse no intuito de preservar e registrar suas diversas formas de manifestar. Assim, foi
27
utilizado por esses estudiosos o método baseado principalmente no trabalho de campo e coleta,
a fim de identificar as manifestações. Essa metodologia consequentemente envolveu o desejo
de mapear as tradições populares rurais. A coleta do folclore visava representar o conjunto de
costumes e práticas sociais passadas, enfatizando prinicipalmente estilos de vida dos
camponeses, pois estavam situados no período pré-industrial. “A filosofia cultural do
iluminismo europeu designou os camponeses rurais como geradores do espírito nacional que
precisavam ser descobertos para encontrar seu núcleo simbólico na profunda reformulação do
Estado-nação” (KUUTMA, 2015, p.43 – tradução nossa).
Na Europa, no século XX, o campo de estudo do folclore se consolidou e se
institucionalizou academicamente, sobretudo na primeira metade desse período, mas suas
epistemologias predominantes relacionaram-se com o “sobrevivencialismo e o evolucionismo”
(KUUTMA, 2015, p.45 – tradução nossa). Inserido no contexto acadêmico, os folcloristas
foram duramente criticados sobre seus métodos e afirmações. A falta de rigor científico, assim
como o caráter mais descritivo do que interpretativo, mostraram que os estudos eram baseados
em “taxinomias e na sistematização de mitologias fundacionais que tacitamente sustentavam
imaginários cronológicos e territoriais” (KUUTMA, 2015, p.45 – tradução nossa). Além disso,
os esforços dos mapeamentos dos folclores desencadearam em um procedimento de inventário
e seu método desenvolveu uma classificação comparativa das manifestações tradicionais. O
Estado, como patrocinador desses estudos, promoveu uma arcaicização e exotização das
tradicões difundindo uma imagem de pureza nacional.
Depois da II Guerra Mundial, muitos bens patrimoniais, edifícios, monumentos e obras
de artes, haviam sido destruídos e com isso surge uma preocupação em recuperar o que ainda
fosse possível. Após 1945, houve a fundação da ONU – Organização das Nações Unidas, que
assumiu como uma de suas responsabilidades criar instrumentos de proteção aos bens culturais
existentes. Para isso, no final daquele ano, houve a criação da UNESCO – Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que tem como objetivo intervir
mundialmente nos campos relativos à ciência, educação e cultura. No que tange aos aspectos
culturais, a UNESCO “passou a capitanear as discussões realizadas em âmbito mundial no que
diz respeito a um conjunto de ações e propostas de regulamentação, definição e normatização
da categoria de cultura em face das profundas transformações ocorridas no final do século XX”
(ALVES, 2010, p.540).
Dentre os importantes documentos patrimoniais produzidos pela UNESCO, destacamos
a Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972. Nesse
documento, o órgão definiu como patrimônio cultural: os monumentos (obras arquitetônicas,
28
de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estrutura de caráter arqueológicos,
inscrição, grutas e grupos de elementos); os conjuntos (grupos de construção isolada ou
reunidos em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem); e locais de
interesse (obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo
os locais de interesse arqueológico) (UNESCO, 1972). Essa convenção representa um avanço
conceitual na substituição do que antes era denominado “patrimônio histórico e artístico” pelo
conceito de “patrimônio cultural”, mesmo que ainda tratasse predominantemente de bens
materiais, já notamos uma ampliação conceitual. Destacamos que o patrimônio natural também
assumia importância na cautela dos bens protegidos.
A Convenção relativa ao patrimônio cultural e natural mundial ganhou notoriedade,
devido aos bens culturais passarem a pertencer a uma lista de patrimônio mundial. Essa política
patrimonial de bens mundiais foi um “importante instrumento de desenvolvimento territorial,
particularmente turístico, as inscrições sobre a Lista de Patrimônio Mundial mobilizam recursos
econômicos e interesses políticos” (BORTOLOTTO, 2011, p.8). Bortolotto nos lança um olhar
crítico sobre o impacto do reconhecimento internacional dos bens. Através de uma pesquisa
antropológica sobre seu impacto, o autor afirma que em alguns lugares os valores culturais ou
formas de entendimento sobre conservação ou transmissão dos saberes fundados na política
internacional diferem das formas locais. O autor ainda nota que tornar um bem mundial não
gera necessariamente oportunidades de desenvolvimento, mas pode produzir conflitos entre os
detentores do bem (2011, p.8).
Mesmo com o avanço no campo do patrimônio com a promulgação dessa convenção,
os valores determinantes para a escolha de um bem ainda pairavam sobre orientações
etnocêntricas (BORTOLOTTO, 2011, p.8). Duarte (2010) aponta que a concepção do termo de
patrimônio cultural citada na Convenção de 1972, mostrava-se ainda restrita e por isso outras
medidas de proteção foram discutidas surgindo novas recomendações e convenções. Nesse
momento, a Bolívia já mostrava preocupação com a preservação das tradições populares e
liderou a solicitação de um “estudo da proteção jurídica das expressões tradicionais populares
que haviam ficado de fora do documento de 1972” (GOMES, 2015, p.59). Nesse sentido,
destacamos também a atuação do Japão, que desde 1950 possui uma Lei de Proteção às
Propriedades Culturais.
A partir do final dos anos de 1990, os critérios para patrimonialização foram pensados
através de uma perspectiva relativista, que levasse em conta também as categorias que não
fossem baseadas somente em experiências ocidentais. Essa perspectiva, somada às novas
discussões trazidas, sobretudo, por países da América Latina e países orientais, contribuiu para
29
a mudança do paradigma patrimonial, que culminou, em 1989, na Recomendação para Proteção
da Cultura Popular e Tradicional. Nesse documento, não é mencionado o termo de patrimônio
imaterial e sim “expressões tradicionais e populares”. O documento tem como objetivo
recomendar aos países membros e incentivar produções de conhecimento e mecanismos de
proteção e salvaguarda. É apontado nesse documento o confronto existente entre os termos
“preservação” e “conservação” (GOMES, 2015, p. 65). No documento, a cultura tradicional e
popular é
30
2003, que entra em vigor em 20 de abril de 2006. A inclusão desse conceito no campo do
patrimônio cultural afirma um alargamento na abrangência de sua aplicabilidade. O patrimônio
cultural imaterial foi elaborado como sendo o conjunto de
Essa Convenção foi um importante avanço para os estudos, políticas sobre patrimônio
imaterial e programas para salvaguarda dos países signatários do documento. A Convenção de
2003 tem como objetivo salvaguardar, respeitar e conscientizar sobre os diversos patrimônios
existentes, além de contribuir com assistência e cooperação internacional (VOGT, 2008, p.21).
O documento lança diretrizes para os países membros, países que integram a UNESCO,
adotarem políticas patrimoniais em suas localidades, conforme com seus contextos e
especificidades. As diretrizes operacionais desse documento serão abordadas no capítulo
seguinte, onde serão também tratados os reflexos dessas orientações em alguns países, em
especial o caso brasileiro.
Apesar da sua importância, Duarte (2010) aponta críticas em relação à constituição da
Convenção, afirmando que sua elaboração foi anunciada para tentar responder as lacunas
detectadas em relação ao Convenção de 1972, onde ficaram à margem manifestações culturais,
como música, artes tradicionais e a participação das comunidades locais para preservação do
bem (p.46). A Convenção de 2003 não apenas consolidou o conceito de patrimônio imaterial
tentando abranger as artes culturais como um todo, mas ratificou a importância das
31
comunidades locais nas ações de salvaguarda do bem. O texto ainda cita que a noção de
patrimônio imaterial foi reconhecida na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais no
México, em 1982, quando foi criada uma seção para o patrimônio não material.
A preservação do campo do patrimônio imaterial recai sobre o desenvolvimento em que
ocorre a expressão cultural, em detrimento do seu produto final. O patrimônio cultural imaterial
“remete para uma espécie de conhecimento distribuído e fluído que não precisa se manifestar
em formas ostentosas ou espetaculares, mas que é expressão valiosa de criatividade das pessoas
e do caráter vivo das dimensões culturais” (DUARTE, 2010, p.47). Nesse sentido, os termos
“proteção” e “conservação” tão utilizados na trajetória do patrimônio, não se enquadram nesse
novo campo, sendo determinadas as palavras “preservação” e a “salvaguarda”, no sentido da
perpetuação de um bem. Duarte alerta que apesar do olhar mais criterioso para o processo do
produto, suas bases foram elaboradas ainda sob o discurso de perda e da ameaça de
desaparecimento do bem, tal como sucedeu com o patrimônio material. E que essa ameaça à
narrativa do patrimônio imaterial ainda tem como responsáveis a globalização, a mudança
social e falta de recursos financeiros. A autora ainda cita trecho da Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial 2003, onde fica evidente essa discussão:
32
Estado Parte deverá elaborar, em moldes que se adaptem à sua situação, um ou vários
inventários do patrimônio cultural imaterial presente no seu território” (UNESCO, 2014, p.10).
“Os inventários de identificação do patrimônio cultural são instrumentos técnicos
tradicionalmente utilizados pelas agências de preservação, nacionais e internacionais, e têm
como principal objetivo produzir conhecimento sobre determinado bem cultural” (SIMÃO,
2005, p.2). O inventário é o único instrumento de preservação exigido pela Convenção, a qual
afirma que cada país possui autonomia na elaboração de suas políticas patrimoniais, desde que
leve em consideração as diretrizes operacionais do documento. Sobre os métodos estabelecidos
pelos país, iremos tratar disso no capítulo seguinte, tomando como exemplo o caso do Brasil e
seus instrumentos metodológicos de preservação. Mas antes disso, faremos um breve resumo
da “materialização” do campo do patrimônio imaterial no Brasil.
33
com Chagas (2009), o pesquisador Falcão realizou um estudo sobre os bens tombados a nível
federal nesse marco temporal, concluindo que esses bens culturais se resumiriam a:
5
Órgão nacional responsável pela preservação dos bens nacionais que tem como objetivo preservar, divulgar e
fiscalizar os bens culturais brasileiros.
34
constituída pela mais ampla diversidade de práticas possíveis. Os pesquisadores da cultura
popular, chamados de modernistas e folcloristas, foram criticados, anos depois, por centrarem
suas pesquisas em manifestações culturais que estavam em risco de extinção, e por tratarem
essas manifestações como tradicionais, isoladas e puras (AYALA e AYALA, p.8, apud
GOLOVATY, 2005, p.21). Os estudiosos acreditavam que as manifestações culturais, dentro
de uma visão evolucionista e eurocêntrica, presente nas primeiras décadas dos anos 1900,
“desapareceriam com o inexorável processo de evolução e com a urbanização e industrialização
que o seguiriam” (CORREA, 2007, p.2).
Para proteger os diferentes acervos considerados de valor excepcional, eram utilizados
registros em três livros físicos para registro de bens protegidos: Tombo Histórico; Belas Artes;
e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Amaral (2015) aponta que a arte sacra de matriz
Europeia era inserida nos dois primeiros livros, Tombo Histórico e Belas Artes. Já os bens e
acervos das religiões afrodescendentes e ameríndias eram inseridos no livro de Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. “Os primeiros nos inseririam no concerto das nações
civilizadas, enquanto os demais marcariam a peculiaridade, os resíduos e o pitoresco de nossa
‘raça’” (p.36). Ele ainda afirma que mesmo que os bens fossem registrados, classificados e
catalogados, os bens etnográficos, entendendo como não eurodescendentes, estariam
“hierarquicamente inferiorizados no sistema de classificação patrimonial que se instaurava”
(p.36).
Amaral (2015), em sua pesquisa dissertativa, cita em um longo trecho, mas bem
ilustrativo, o pensamento da época. Segundo ele, a citação foi retirada da carta datada de 1935,
escrita por Mário de Andrade a Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde.
Há, porém certas disciplinas que abrangem imediatamente todas as artes. A Estética
(na sua concepção filosófica), a História das Artes e a Etnografia. [...] Quanto à ordem
das três cadeiras, a de História das Artes deverá logicamente preceder a de Estética.
A de Etnografia talvez convenha que vá conjuntamente com a de História das Artes,
que lhe poderá servir de elemento comparativo. Essas três cadeiras me parecem
imprescindíveis para um indivíduo ser artista brasileiro. Talvez nem cinco por cento
dos nossos artistas tenham uma noção filosófica do que seja arte. Ninguém sabe o que
seja o Belo, o que é a Arte, quais as relações dum com outro, quais as funções da arte
no indivíduo e na sociedade, quais os seus caracteres essenciais etc. Uma cadeira de
Estética, tenha a orientação que der, seja materialista, seja espiritualista, siga Croce
ou siga quem quiser: o essencialmente importante no momento é munir os nossos
artistas duma orientação doutrinária (qualquer) – o que é o mesmo que lhes
proporcionar uma finalidade social. Esta finalidade social será completada pela
cadeira de Etnografia Brasileira, na qual estudando os nossos costumes, as nossas
tradições, as suas origens, os seus processos, as tendências populares, as constâncias
populares, o artista adquira uma base nacional, e não mais regional e meramente
ocasional, de criação, por onde se tradicionalizar dentro da sociedade brasileira, e se
justificar dentro da nacionalidade. [...] Não existem artes, propriamente falando: existe
a Arte. E são justamente as cadeiras de Estética e de História da Arte, se bem
35
conjugadas e articuladas uma na outra, que darão ao nosso artista essa compreensão
simples e perfeita, a meu ver, da sua finalidade de artista. Enquanto a cadeira de
Etnografia Brasileira, esta lhe dará a finalidade de artista, mas brasileiro. (Mário de
Andrade em carta de 30.4.1935 a Gustavo Capanema, apud AMARAL, 2015, p. 36).
Nesse trecho há diversos elementos a serem discutidos, mas nos limitaremos apenas a
tratar do pensamento sobre arte, colocada no singular e que escondia os regionalismos. A arte
era enfatizada somente em nome do que representava a arte nacional. Essa arte era tratada como
globalizante e fazia silenciar os grupos menores, em detrimento de uma unidade cultural
amalgamada pela diferença que escapava, nessa perspectiva, a qualquer tipo de regionalismo
(AMARAL, 2015, p.154).
Os folcloristas acreditavam que, na tentativa de entender o regionalismo, a cultura
popular, promoveriam a identidade nacional. Rocha (2009) aponta que o conceito de cultura
popular no Brasil possui três fases. A primeira assinalada por disputa metodológica entre os
folcloristas e os estudiosos da sociologia paulistana, no que diz respeito à autoridade e à
legitimidade do trabalho de campo. Esse primeiro período compreende as décadas de 1920 a
1960. Já a segunda fase, período de 1960 a 1980, o conceito de cultura popular é associado com
acentuado caráter político e ideológico. A terceira fase, a partir dos anos 1990, “coincide com
a revitalização do conceito de patrimônio cultural, principalmente no sentido do patrimônio
imaterial, quando então, efetivamente, a cultura popular parece adquirir significado etnográfico
tout court” (p.221).
Essa mudança conceitual do patrimônio cultural possuía novos pontos de vistas,
principalmente depois da Constituição de 1988. No seu artigo 216, patrimônio cultural abrange:
Nesse momento, ressaltou-se a importância dos bens imateriais pelos legisladores para
a ampliação do que seria patrimônio cultural brasileiro, assim como a continuação voltada para
36
a valorização dos bens materiais. Nota-se que a própria nomenclatura de patrimônio sofre
mudança: o que se chamava patrimônio artístico e histórico passa a ser denominado de
patrimônio cultural.
Essa nova denominação do conceito de patrimônio cultural era o reflexo da aproximação
desse campo com as Ciências Sociais, a partir da década de 1970. Foi nesse período que o
“problematizar os critérios do belo, do monumental e da excepcionalidade, influenciadas pela
efervescência do período de transição para a democratização” teve início (CHAUÍ, 1992, apud
TOJI, 2011, p.58).
As mudanças internacionais direcionadas para a cultura tradicional e popular
contribuíram para a consolidação do conceito de patrimônio imaterial no Brasil. O Iphan, no
intuito de promover discussões acerca do conceito de patrimônio imaterial e sua forma de
proteção, elaborou documentos que dizem respeito a esse campo. A Carta de Fortaleza foi
resultado do Seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção”, em 1997, na
cidade de Fortaleza, quando se preocuparam em discutir o conceito do patrimônio imaterial e a
criação legal de um instrumento de proteção e reconhecimento dos bens dessa natureza. De
acordo com Iphan, patrimônio imaterial são “criações culturais de caráter dinâmico e
processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como
expressão de sua identidade cultural e social” e ainda “toma-se tradição no seu sentido
etimológico de ‘dizer através do tempo’, significando práticas produtivas, rituais e simbólicas
que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um
vínculo do presente com o seu passado” (CAVALCANTI, FONSECA, 2008, p.12).
No ano seguinte à promulgação da Carta de Fortaleza, é criado o Grupo de Trabalho de
Patrimônio Imaterial, que reuniu técnicos do Iphan, Ministério da Cultura e da FUNARTE6.
Após esse encontro, em agosto de 2000, é anunciado o Decreto 3.551, que instituía o Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial como instrumento de preservação, além de criar o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) que buscava fomentar editais públicos para
identificação e mapeamento dos bens.
O registro é uma forma sistemática de produção de conhecimento relativo ao patrimônio
imaterial, através de um dossiê. Sua metodologia é baseada em estudos históricos e etnográficos
e tem como foco documentar o caráter dinâmico dos bens culturais de natureza imaterial.
Assim, o modelo de preservação adotado pelo Iphan procura, na metodologia etnográfica, uma
6
Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), criada em 1975 com a atribuição de formular, coordenar e executar
projetos e programas no âmbito da produção cultural.
37
tentativa de abarcar o máximo possível de características para compreender a manifestação
como um todo. Para isso, o foco é principalmente no conhecimento preciso para desenvolver
um bem imaterial, que desencadeia no seu produto final. Cunha (2006) enfatiza que o
patrimônio imaterial está focado no “processo do produto”, sendo uma construção cultural e
social, que se desenvolve de forma dinâmica e renovadora.
O método utilizado para o desenvolvimento de um dossiê de registro será abordado no
capítulo seguinte. Por agora, é importante compreender que a consolidação do processo de
registro foi elaborada sob uma tentativa avessa aos métodos já executados pelo campo do
patrimônio material, que possui o tombamento como forma de proteção.
No texto de Londres, na publicação "O registro do patrimônio imaterial" (IPHAN,
2006), é afirmado que esse instrumento de proteção, o tombamento, não era válido quando se
pensava em manifestações culturais vivas e dinâmicas, por isso, foi instituído o registro.
Entretanto, na análise histórica metodológica do patrimônio material, identificamos
semelhanças colhidas para elaboração da preservação de bens culturais imateriais. Apesar de
serem expressões culturais ativas, para serem reconhecidas como patrimônio imaterial, é
preciso que seja produzido um dossiê de registro, essencialmente escrito, que consiste em
detalhamento do bem e sua documentação. Além disso, é preciso que o bem seja enquadrado
em alguma categoria estabelecida por livros de registro. Tanto a documentação escrita quanto
a classificação em livros, foram influenciadas a partir de práticas executadas pelo percurso do
patrimônio material. Em diálogo com os livros de tombo, os livros de registro de bens de
natureza imaterial são:
A inscrição do bem em um dos quatro Livros estabelecidos na proposta de instrumento
legal, com base nas categorias identificadas na fase de pesquisa, será o ato culminante
do processo de registro. Estes foram denominados, respectivamente: Livro dos
Saberes - para o registro de conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano
das comunidades; Livro das Celebrações – para as festas, rituais e folguedos que
marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e outras
práticas da vida social; Livro das Formas de Expressão – para a inscrição de
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e o Livro dos Lugares
– destinado à inscrição de espaços como mercados, feiras, praças e santuários onde se
concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (IPHAN, 2006, p.20).
38
Gráfica Wajãpi, Amapá. Ambos os registros trataram de saberes de grupos considerados
minorias: o primeiro, realizado apenas por mulheres e o segundo, por uma comunidade
indígena. Até 2020, a instituição contava com 48 bens registrados a nível federal. É importante
notar que algumas discussões sobre patrimônio imaterial no Brasil antecedem as diretrizes
internacionais, citando a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003.
É fundamental nos registros que o bem cultural seja relacionado com aspectos do seu
contexto sociocultural. O registro de informações que denotem a compreensão e significação
do bem cultural para os detentores, devem ser elementos norteadores para a busca de sua
preservação e valorização. Para sua perpetuação é exigido um plano de salvaguarda, contendo
ações que nortearam o bem cultural para que mantenha vivo e dinâmico. É importante que, no
plano de salvaguarda, os protagonistas sejam os sujeitos detentores do bem e que eles estejam
presentes no processo de estruturação e elaboração das ações de preservação. A participação
social que está mais próxima do bem cultural é a maior capacitada para conduzir e executar as
atividades relacionadas à perpetuação do bem.
O registro, como forma de instrumento no campo do patrimônio imaterial, não é
constituído de um padrão universal. No contexto brasileiro, esse padrão é normalmente
orientado pelo Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC), que busca investigar,
identificar e documentar as referências culturais de qualquer natureza. “O INRC visa a produção
e sistematização de conhecimento sobre práticas culturais referenciais e a mobilização dos
grupos sociais envolvidos para subsídio de políticas públicas na perspectiva patrimonial”
(IPHAN, 2000). O INRC é composto por fichas, relatórios e documentos audiovisuais. Suas
etapas são de aprofundamento, descrições analíticas e interpretativas. Como referência cultural,
o inventário pode possuir uma perspectiva territorial ou temática, e ainda possuir as seguintes
categorias para sistematização das informações: sítio e localidade; celebrações, formas de
expressão, ofícios e modos de fazer, edificações e lugares (IPHAN, 2000).
De acordo com o manual para aplicação do inventário, o INRC busca identificar e
documentar bens culturais, “para atender à demanda pelo reconhecimento de bens
representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade” e
“apreender os sentidos e significados atribuídos pelos moradores de sítios tombados, tratando-
os como intérpretes legítimos da cultura local e como parceiros preferenciais de sua
preservação” (IPHAN, 2000, p.8). A metodologia do inventário serve como subsídio para a
produção de um dossiê de registro.
A metodologia empregada no processo de inventariar será tratada mais especificamente
no capítulo seguinte, onde também será discutido como os dossiês de registros abordam os
39
temas de música, dança e movimentos corporais, que são os assuntos chave da presente pesquisa
investigativa. A maioria das categorias definidas pelo campo do patrimônio imaterial abordam
aspectos da música, dança e movimentos corporais, mas é importante pontuar algumas questões
conceituais referentes a essas áreas juntamente com os bens imateriais. Então, a seguir, serão
tratadas algumas considerações que visam elucidar essa pesquisa.
40
ao processo de colonização, no qual tomava posse de um espaço e de um corpo, através de
símbolos, e legitimava por formas documentais. Na América, os povos estavam conectados
com os gestos da incorporação, formas não escritas de comunicação, sendo sua expressão
transmitida através do corpo.
A autora trata a performance como um “sistema de aprendizagem, armazenamento e
transmissão de conhecimento” onde “os estudos da performance nos permitem ampliar o que
entendemos por ‘conhecimento’” (2013, p.45). Ela cita a performance como uma expressão
incorporada que está presente em práticas sociais e eventos – ritual, dança, música, comícios
políticos, funerais, dentre outros. Para ela, a performance incorporada possui um papel
importante na preservação da memória e na consolidação de identidades culturais. No entanto,
a performance parece sofrer ameaça de desaparecimento com a função da escrita. “É difícil
pensar sobre a prática incorporada no interior dos sistemas epistêmicos desenvolvidos no
pensamento ocidental, em que a escrita se tornou avalista da própria existência” (2013, p.21).
A partir de uma proposta de questionar como a performance transmite a memória e a
identidade cultural e quais tensões poderiam ser mostradas pelos comportamentos em
performance que não seriam reconhecidas nos textos e documentos, Taylor propõe que
aprendemos e transmitimos o conhecimento por meio de ações incorporadas. É justamente nas
performances que encontramos as expressões incorporadas, ou seja, é através delas que a
memória e a identidade cultural de um grupo ou indivíduo são transmitidas. Para a autora, a
performance não é apenas um objeto de análise, mas sim funciona como uma episteme, um
modo de conhecer. E ainda afirma que se a performance não transmitisse conhecimento,
“apenas os letrados e poderosos poderiam reivindicar memória e identidades sociais” (2013,
p.19). É na performance incorporada que devemos pensar a preservação para, assim, dar
continuidade ao bem cultural para as gerações futuras.
Em seu livro, a autora afirma que a preservação de práticas culturais vai além de
discussões entre as palavras escrita e falada. Para ela, o problema está entre arquivo e repertório:
o arquivo é considerado uma forma de documentos, como mapas, textos literários, cartas, restos
arqueológicos, filmes, vídeos, ossos, etc.; o repertório é definido como o conjunto de línguas,
danças, esporte, ritual, canto, comícios, funerais, etc. Para a autora, o arquivo é visto como
durável, como resistente à mudança e que sustenta o poder. Enquanto o repertório encena a
memória incorporada – performance, gestos, oralidade, movimento, dança, teatro – todos
aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. Finalmente,
Taylor afirma que a “performance ‘ao vivo’ nunca pode ser captada ou transmitida por meio de
arquivo” (2013, p.50). No entanto, esta afirmação é discutível, uma vez que a definição sobre
41
a capacidade do arquivo representar uma performance ou modelo de performance na
manifestação parece estar ultimamente com detentores, podendo ela ser transmitida por meio
de vídeo ou pela oralidade, por exemplo (ou outra modalidade de representação, como a
oralidade, imagem, desenho, vídeo).
É nesse contexto que a noção de conhecimento incorporado se torna invertida nos
estudos culturais, onde textos, objetos e representações do corpo são frequentemente mais
valorizados que a ação do corpo em movimento como um texto em si (DESMOND, 1994). No
campo do patrimônio imaterial, é importante estabelecer não somente ligação com descrições
textuais relacionadas a produtos culturais, mas também pensar as manifestações culturais como
estratégias cognitivas, como capacidades de realização incorporadas no corpo vivo dos sujeitos
na cultura. A identificação dessa capacidade cognitiva para abordar os bens culturais pode ser
um importante mecanismo no delineamento da política de patrimônio cultural (CAMPOS
NAVEDA, 2016, p.374) porque reorienta a noção de salvaguarda para a capacidade de um
corpo retomar a performance na cultura, e não somente o registro da performance nos modelos
tradicionais de representação do conhecimento (como o texto, a imagem ou o vídeo). Nessa
perspectiva, lançamos utilização da ideia de embodiment ou mente incorporada para
compreensão da prática incorporada no âmbito dos bens imateriais. Embodiment, sem uma
tradução específica para o português, é empregado nessa pesquisa como corporificar, como
corporalidade. Essa nomenclatura é entendida aqui como uma “relação imbricada entre pessoa,
corpo e mundo sócio-histórico-cultural” (MERLEAU-PONTY, 2005 apud ALMEIDA,
PEREIRA, 2013, p.722). E ainda em uma perspectiva na qual a pessoa não é apenas uma mente,
uma razão, uma subjetividade, pois ela (a pessoa) é o próprio corpo (ALMEIDA, PEREIRA,
2013, p.722).
A consolidação do campo do patrimônio imaterial, discutida anteriormente, mostra a
preocupação da UNESCO em preservar as manifestações culturais que o campo abrange.
Taylor aponta que essa preocupação fez com que o órgão patrimonial internacional prolongasse
a lógica e a linguagem do que a autora chama de arquivo, já conceituado, para o domínio do
vivo – os atos que são o repertório (TAYLOR, 2008, p.94). A autora ainda afirma que, na
tentativa de “proteger a transmissão incorporada, foi necessário transformar a herança
intangível em materialidades. A forma de proteger as práticas, aparentemente, foi transformá-
las em algo que elas não são” (TAYLOR, 2008, p.94). No entanto, ressaltamos que bens
materiais, como o corpo e os artefatos, contribuem para constituir uma tradição imaterial. Nela,
as materialidades também fazem parte dos contextos das práticas culturais.
42
Taylor acredita que as metodologias aplicadas ao patrimônio imaterial ainda pertencem
ao trabalho arquivístico, como identificação e documentação, e “até mesmo os atos de
revitalização e transmissão, que poderiam ter permitido pensar sobre o ‘vivo’, podiam apenas
aproximar-se da prática por meio de lente do objeto arquivístico” (2008, p.95). A autora ressalta
que as metodologias que associamos aos estudos da performance e incluímos no âmbito do
patrimônio imaterial podem e devem ser revisadas constantemente através de diálogo com
outras realidades, como regionais e políticas. É sobre as diretrizes da UNESCO, através da
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, além de política e métodos
patrimoniais, que trataremos no capítulo seguinte.
43
CAPÍTULO 2 – DIRETRIZES NORMATIVAS DE PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL
45
textuais relacionados às instruções operacionais estão voltados para implementação da política,
assistência internacional e salvaguarda. Nessas instruções, duas categorias de patrimônio
imaterial são denominadas pela UNESCO como “Patrimônio Cultural e Imaterial em
Necessidade Urgente de Salvaguarda” e “Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade”.
Vamos considerar apenas os critérios definidos na segunda categoria, uma vez que nos
permitem compreender os requisitos básicos para que um bem imaterial possa pleitear uma
candidatura para tornar-se patrimônio da humanidade. A escolha dessa categoria é devida a uma
maior procura para bens imateriais pleitearem uma candidatura e também porque a primeira
categoria requer um tratamento especial mediante o caráter de urgência de salvaguardar um
bem.
Receber o título de Patrimônio da Humanidade implica em agregar valores em
diferentes aspectos, tais como sociais, culturais e econômicos. Esse reconhecimento estima
aplicação de recursos na preservação do bem, além da valorização e visibilidade mundial de
tradições populares e culturais, incluindo a participação da comunidade. Isso acarreta em um
desenvolvimento econômico do patrimônio, direcionando para o turismo e geração de renda.
De acordo com a Convenção, em seu artigo 2, os critérios que devem ser observados
para uma candidatura a patrimônio mundial devem atender ao seguinte texto:
46
2005, p.2). Os Artigos 11 e 12 da Convenção tratam do papel dos estados membros e a
identificação dos bens culturais através do método de inventários, que iremos abordar mais
adiante. A citação acima indica que os critérios definidos pela Convenção funcionam como um
pressuposto para uma seleção dos bens que podem se candidatar para receber o título, mas
também como elemento de exclusão: somente bens que pertencem à um domínio da definição
de patrimônio imaterial pode se candidatar. Além disso, a legislação especifica que o bem deve
ter visibilidade, possuir ações de salvaguarda, incluir uma ampla participação popular e estar
inserido em algum método de inventário.
A comprovação de critérios como o de “visibilidade”, “participação popular” e
“definição de patrimônio imaterial” segue um escopo amplo e por vezes vago destas mesmas
definições, pois, originariamente, a noção de patrimônio imaterial tende a se expandir para
abarcar a diversidade cultural esperada neste contexto (ALVES, 2010; ABREU, 2014). Ou seja,
não existe um padrão universal, objetivo e disseminado de definições sobre os critérios, o que
abre a possibilidade de interpretação, adaptação e variação das ações e documentos. Essa
aparente flexibilidade proposital nas definições das diretrizes da UNESCO como um ente
transnacional produz uma autonomia local que permite aos estados membros adotarem uma
política patrimonial regional. Esta política regionalizada permite que se identifiquem e
valorizem bens culturais imateriais a partir de definições definidas em arranjos locais,
enfatizando projetos e conceitos nacionais de salvaguarda dos mesmos. Para assegurar a
salvaguarda, o desenvolvimento e a valorização do bem, cada estado membro deve: “adotar
uma política geral orientada para a valorização da função do patrimônio cultural imaterial na
sociedade e para a integração da salvaguarda desse patrimônio em programas de planejamento”
(UNESCO, 2014, p.10).
Além dos critérios para inscrição na lista de patrimônio cultural imaterial, já citados, a
formalização do processo de candidatura é outro processo importante e necessário, o que é
programado pela UNESCO por meio do preenchimento de um “formulário” específico. Esse
formulário é escolhido de acordo com a categoria desejada, indicado e disponível no site da
instituição internacional.
O formulário para candidaturas está apresentado como um instrumento de coleta de
dados padrão, com conteúdo essencialmente textual, embora seja obrigatória a apresentação de
fotos e documentos audiovisuais de curta duração. As respostas deste formulário são
delimitadas por um número máximo de caracteres e sua estrutura está desenhada para que
somente as questões necessárias à caracterização (discursiva) do bem cultural sejam abordadas
47
em inglês ou francês, que são os idiomas oficiais do Comitê Intergovernamental7. O formulário
é divido em seis partes:
1) Identificação e definição do elemento;
2) Contribuição a visibilidade e a tomada de consciência e encorajamento ao diálogo;
3) Medidas de salvaguarda;
4) Participação e consentimento da comunidade no processo de candidatura;
5) Inclusão do bem cultural no inventário; e
6) Documentação.
48
representado pela epistemologia e narrativa científica ocidental e submetido ao direito
internacional. Em outro extremo, as categorias regionais ou locais, ondem circulam outras
epistemologias invisíveis que podem ser interpretadas o visibilizadas como patrimônio
imaterial, e devem estar pensadas como objeto de patrimonialização. Nesta negociação,
explicitada pelos procedimentos de registro do bem, vemos um processo de manutenção da
ambiguidade ou flexibilidade das definições, que tem um foco nas narrativas textuais e visuais,
e uma prioridade das dimensões clássicas de representação: tempo, espaço, sociedade, as
funções dos agentes e sua autoria.
A flexibilidade apresentada no texto tem dois impactos. Por um lado, ela permite a
adaptação local dos processos de patrimonialização, o que abrange uma gama da diversidade
cultural e faz com que os estados pensem e executem ações a partir de suas concepções
específicas de patrimônio. Por outro lado, esta flexibilidade omite a definição do locus de
observação ao não exemplificar os métodos e instrumentos de representação do patrimônio do
imaterial. O risco de processos ambíguos, vagos ou não exemplificados é que as escolhas por
negociações governamentais tendem a ser conservadoras e vão majoritariamente se configurar
como manutenções das visões de mundo hegemônicas. Ou seja, independentemente de como o
bem e os atores sociais representem o bem em sua comunidade, os processos de
patrimonialização vão reproduzir processos anteriores, hegemônicos, majoritariamente
orientados por bens materiais. Isto é reforçado pelo foco fundamentalista nas narrativas visuais,
denunciadas pelo indicativo de “[...] apresentar aos leitores que nunca viram ou que não
passaram [...]” (UNESCO, 2020, p.3 - tradução nossa). O privilégio das narrativas textuais,
visuais e orientadas no domínio do tempo pode ser interpretado como uma solução naïve ou
disponível para a representação do patrimônio, embora possa carregar perspectivas
antropocêntricas. Representações do conhecimento por meios e narrativas hegemônicas podem
perder capacidades essenciais de representação do conhecimento e patrimônio em um ambiente
de contato com outras epistemologias, como discutido em Santos (2001), ou por vicissitudes
amplamente conhecidas da linguagem científica (BAZERMAN, 1988). Parte deste problema
pode ser resolvido pela autonomia regional na definição de categorias locais e mesmo de seus
modelos de inventário.
49
Mas como essas diretrizes internacionais são operacionalizadas nos processos subsequentes de
transformação em legislações nacionais, regionais, locais e ações pontuais? A Convenção
delega aos estados membros a elaboração das políticas e regimes patrimoniais conforme o
contexto e a situação de cada lugar (UNESCO, 2014, p.10). Para entendermos como outros
países aplicaram as diretrizes sob a forma de normas de patrimônio imaterial, analisaremos a
seguir casos específicos e, em especial, o Brasil relativo à legislação e metodologia brasileira.
Procuramos compreender como se desenvolve a metodologia de inventário em uma
seleção de países ratificadores da Convenção, com o objetivo de comparar e observar como a
Convenção se organiza como métodos e como estes permitem representações do conhecimento
coreográfico e musical. Entretanto, a diversidade de interpretações da Convenção é também
acompanhada pela falta de disseminação pública das normas dessas instâncias nos países, o que
representa um desafio para a localização de fontes. Apesar disso, identificamos uma seleção de
procedimentos com diferentes categorias para inserção dos bens culturais imateriais, discutidas
a seguir.
A flexibilidade do texto da Convenção tem um impacto muito diverso em cada processo
de “tradução” local de seus pressupostos. No Colóquio Internacional “Políticas Públicas para o
Patrimônio Imaterial na Europa do Sul”, realizado na ocasião dos 10 anos da implementação
da Convenção, em novembro de 2012, Abreu (2014) descreve a discussão sobre a diversidade
das políticas públicas patrimoniais. Segundo o texto, as discussões mostraram que o inventário,
instrumento de identificação, valorização e proteção do patrimônio cultural imaterial
demandado pela UNESCO, tem sido uma preocupação recorrente nos países da Europa do Sul
(França, Espanha, Itália e Portugal). O texto cita como diferentes procedimentos, profissionais
envolvidos e participação da comunidade variam de acordo com seus contextos. O texto
demonstra ainda que a política de patrimônio imaterial pode ter seu foco de ação centralizado
na esfera estatal, como pode também se descentralizar ao ser gerenciado por uma esfera
interministerial, estâncias locais ou organismos não governamentais (ABREU, 2014, p.28). A
autora ainda cita a falta de recursos e a mobilização da participação das comunidades nos
inventários participativos, como discussões postas no Encontro. Em alguns casos a participação
pode ser intensa, mas em outros ela é quase nula, sendo elaborada por técnicos da área. Apesar
disso, a autora afirma que o “discurso fundador” da Convenção da UNESCO de 2003, onde sua
principal importância está na consolidação do conceito de patrimônio imaterial, trouxe
experiências ricas para as políticas patrimoniais produzidas.
As categorias de patrimônio cultural de natureza imaterial foram criadas para melhor
compreensão desse campo que tenta abarcar os diferentes domínios que compõem a definição
50
de patrimônio imaterial. Para isso, a existência de diferentes categorias em diversos países foi
pensada sob a inspiração das categorias proposta pela UNESCO: tradições e expressões orais;
expressões artísticas; práticas rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas relacionadas à
natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais (UNESCO, 2014, p.5). O corpo de
categorias referência da UNESCO não impediu a proposição de outros conjuntos de
classificação em cada estado membro, o que supostamente indica orientações específicas
necessárias às idiossincrasias e diversidade cultural de cada país. A tabela 1 ilustra com
exemplos as classificações dos países França, China, Japão e Brasil, o que demonstra como
cada negociação entre cultura, política e aspectos locais legais produzem visões específicas do
patrimônio imaterial:
Tabela 1: Categorias aplicadas ao patrimônio imaterial para França, China, Japão e Brasil. As categorias
relacionadas mais especificamente à dança e música estão sublinhadas.
PAÍS CATEGORIAS DO PATRIMÔNIO IMATERIAL
1. Modo de fazer
2. Práticas rituais
França 3. Música e dança
4. Práticas esportivas
5. Jogos
6. Arte do conto
1. Literatura popular
2. Música tradicional
3. Dança tradicional
4. Ópera tradicional
5. Artes de cena
China 6. Esportes tradicionais
7. Espetáculos e acrobacias
8. Belas artes tradicionais
9. Artesanato tradicional
10. Medicina tradicional
11. Costumes populares
1. Propriedades culturais intangíveis: teatro, música, dança, arte aplicada e outros
produtos culturais intangíveis;
2. Propriedades culturais populares intangíveis: costumes (relacionados a alimentos,
Japão roupas e moradia, ocupações, crenças religiosas, festivais anuais etc.) e artes
cênicas e habilidades folclóricas;
3. Técnicas de Conservação Selecionadas e aos Grupos ou Titulares de Exploração
(organizados de acordo com os domínios das técnicas)
1. Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das
comunidades;
2. Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e
Brasil lúdicas;
3. Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da
religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
4. Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram
e se reproduzem práticas culturais coletivas.
Fonte: Marina Fares, janeiro/2020
51
2.3 Instrumentos de preservação
52
O primeiro método, Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), foi
consolidado em 1999, a partir de uma encomenda ao antropólogo Antônio Augusto Arantes.
Sobre o contexto do INCR, o pesquisador afirma que este foi criado:
[...] no sentido de tentar superar antigos impasses – como a (falsa) dicotomia entre os
bens de pedra e cal e as demais manifestações culturais inseridas na dinâmica do
cotidiano – e evoluir para a construção de novos instrumentos, capazes de levantar e
identificar bens culturais de natureza diversificada, apreender os sentidos e
significados a eles atribuídos pelos grupos sociais e encontrar formas adequadas à sua
preservação (CAVALCANTI, FONSECA, 2008, p.7).
53
bem que representa a parte mais importante. A descrição não possui critérios específicos, e
podem ser elencados e definidos da forma em que os elaboradores do trabalho considerarem
pertinente, centralizando numa melhor descrição de acordo com a demanda do bem cultural.
Para melhor entendermos como se desenvolve esse procedimento que engloba diretrizes gerais
para especificidades culturais, mais adiante iremos tratar dos dossiês de registros do Iphan e,
mais especificamente, sobre a representação do conhecimento incorporado na música e dança
no texto dos documentos de patrimonialização.
54
produção, circulação e consumo; contexto cultural específico e outras informações
pertinentes;
II - referências à formação e continuidade histórica do bem, assim como às
transformações ocorridas ao longo do tempo;
III - referências bibliográficas e documentais pertinentes;
IV - produção de registros audiovisuais de caráter etnográfico que contemplem os
aspectos culturalmente relevantes do bem, a exemplo dos mencionados nos itens I e
II deste artigo;
V - reunião de publicações, registros audiovisuais existentes, materiais informativos
em diferentes mídias e outros produtos que complementem a instrução e ampliem o
conhecimento sobre o bem;
VI - avaliação das condições em que o bem se encontra, com descrição e análise de
riscos potenciais e efetivos à sua continuidade;
VII - proposição de ações para a salvaguarda do bem.
(IPHAN, Resolução 03 de agosto de 2006)
55
comunicação com características não verbais, mas fundamentais para a cognição humana e para
a formação do que chamamos de “mente”. Neste conceito atualizado de mente, já amplamente
consolidado na literatura, a mente está muito além das operações do cérebro, porque inclui todo
o corpo e mesmo a interação do corpo com o meio-ambiente na composição do pensamento
humano (CLARK; CHALMERS, 1998; GALLAGHER, 2005).
É esperado que os dossiês de registro apresentem, discutam e dialoguem com o
conhecimento incorporado como forma de conhecimento (ex.: movimentos de um artesão) ou
como formas de comunicação (ex.: dança e música) mesmo que as narrativas e natureza
perceptível dos bens inventariados não sejam facilmente compatíveis, traduzíveis ou adaptáveis
ao contexto epistemológico, textual e legislacional dos dossiês e processos governamentais.
Como esses dossiês realizam a transformação entre a natureza dos bens registrados e os textos
científicos e legais necessários aos processos de registros? Mais especificamente, como as
manifestações dependentes de ações corporais caracterizadas como movimentos de dança e de
música são descritas, representadas e discutidas nos textos dos dossiês?
Para uma melhor compreensão sobre a abordagem dos temas de movimentos corporais,
dança e música, que são os principais campos dessa pesquisa, tratamos de analisar analisamos
os elementos presentes em um corpus de textos dos 48 dossiês de registro disponibilizados no
site do Iphan. Quase todos os textos dos dossiês estavam disponíveis no website do Iphan.
Somente a documentação do bem imaterial Carimbó, que ocorre no Pará (reconhecido como
patrimônio nacional em 2014), não está disponível no site do Iphan ou em qualquer repositório.
O dossiê Ofício dos Mestres de Capoeira e Roda de Capoeira estão em um único documento e,
por isso, foram analisados em conjunto.
Os textos dos dossiês de registro formam um universo de pesquisa de milhões de
caracteres e milhares de conceitos e relações que não são facilmente analisáveis por meio de
métodos tradicionais, manuais, baseados em uma leitura crítica do pesquisador ou mesmo
catálogo de citações textuais. A aplicação de procedimentos manuais para análise e tabulação
de resultados demandaria uma quantidade de tempo e recursos não disponíveis e fora do escopo
central deste trabalho. Desta forma utilizamos metodologias de análise qualitativa do conteúdo
dos dossiês combinadas com análise textual apoiada por computador, o que possibilitou obter
um mapa estruturado das características dos dossiês de registro no Brasil e sua relação com as
descrições das manifestações de dança e música.
56
A metodologia para a análise dos dossiês envolve duas partes: 1) análise qualitativa
baseada em categorias, características e elementos dos documentos, 2) análise computacional
com base em palavras-chave e 3) análise detalhada sobre a classificação de dança, música e
movimentos corporais em certos dossiês de registro.
Na primeira parte, foi realizada uma análise dos dossiês com o objetivo de catalogar,
sistematizar e organizar dados qualitativos e quantitativos que avaliamos e foram coletamos
nos textos dos dossiês. Para cada dossiê foram registradas características específicas
disponíveis em documentação oficial encontrada no website do Iphan, além das categorias e
elementos de análise desenvolvidos para o próprio trabalho. Estes dados foram tabulados
registrados em uma planilha e tabulados para uma melhor visualização dos elementos
qualitativos dentro do corpus de dossiês.
A tabela foi elaborada com os seguintes campos de análise (muitos deles não serão
discutidos nesse capítulo): Título do Dossiê, Região, Estado, Ano do documento, Importância
do movimento humano, Categoria classificada, Expressão Predominante, Ocupação de área,
Coletivo ou individual, Gênero do protagonista, Crenças associadas, Período de ocorrência,
Formato das Performances, Artefatos e materialidades envolvidos, Tipologia de práticas
corporais, Locus do movimento corporal (ex: corpo, coletivo, mãos), Link do documento, e
Importância Movimento corporal para a prática. Para esclarecimento dessa análise é importante
ressaltar que, segundo os critérios do Iphan para a definição do patrimônio imaterial brasileiro,
o termo "categoria" se refere a: saberes, celebrações, formas de expressões e lugares. E o termo
"classificação" diz respeito às expressões predominantes criadas para compreensão dessa
análise, a saber: música, dança, poesia, gastronomia, artesanato, teatro e modo de fazer.
Estes campos nos permitiram desenvolver formas de classificação dos dossiês a partir
da leitura geral dos textos e descrições como a presença ou não de movimento humano, a
importância de modalidades de dança, a natureza coletiva ou individual da manifestação, entre
outros. Além dos metadados que são copiados de informações presentes na apresentação online
ou documentação em formato pdf dos dossiês, avaliamos uma série de características dos
documentos através da leitura e interpretação qualitativa do seu conteúdo, que serão
apresentadas a seguir.
57
Na segunda parte da análise, utilizamos procedimentos automáticos de mineração de
dados8 e aplicamos uma série de processamentos auxiliados por computador para a análise dos
dados nos textos dos dossiês. Estes procedimentos proporcionaram a busca e tabulação
automática da presença de palavras-chaves, seu contexto semântico nos textos e na estrutura
dos documentos.
Durante a descrição dos resultados serão apresentados os critérios utilizados na análise
textual realizada por computador e a descrição da visualização dos resultados. Embora a análise
tenha se dedicado a uma série de ressalvas e classificações que resultaram em dezenas de
visualizações, os resultados a seguir representam as observações de relevância para o objetivo
deste trabalho de pesquisa.
2.4.2 Resultados
58
Figura 01: Distribuição do locus do movimento corporal pelos dossiês analisados.
59
Diante disso, a seguir será analisado como se desenvolvem os aspectos de música, da
dança e dos movimentos corporais nos dossiês de registros. Para isso, serão analisadas nesses
documentos as expressões dominantes de classificação, a presença dos radicais de certas
palavras relativos à música, dança e movimento, e por último, como se desenvolvem
textualmente esses aspectos nos dossiês relacionados diretamente com os mesmos.
60
utilizamos a mineração automática de dados como um mapa inicial de um processo detalhado
de análise dos dossiês.
A figura 02a e 02b apresenta uma visualização da presença desses quatro radicais no
decorrer dos textos dos 48 dossiês analisados. A presença dos radicais está representada por
quatro linhas por dossiê apresentando os radicais por cores (indicados pela legenda ao lado) e
a recorrência do radical na parte do texto pelo tamanho dos círculos.
61
Figura 02a: Concentração de radicais por bem cultural registrado. As cores, descritas na legenda, indicam a
presença de palavras com o radical. O tamanho dos círculos indica a recorrência do radical na parte do texto. Os
números ao lado direito indicam a quantidade de palavras encontradas no texto para o referido radical.
62
Fonte: Luiz Naveda, janeiro/2020
63
Reservados os possíveis desvios e erros de interpretação e imprecisão da análise, os dados
indicam uma diversidade relevante de relações entre o texto e os bens culturais. É possível
verificar, por exemplo, que alguns dossiês quase não apresentam palavras-chave relacionadas
ao grupo de radicais, como o caso do registro Ofício das Baianas do Acarajé (BA) e a Feira de
Campina Grande (PB). Como esperado, é provável que nesses dossiês encontramos poucas
concentrações do grupo de palavras-chave porque estão vinculados às categorias de lugares e
saberes. Por outro lado, como também esperado, o grupo de palavras-chave é muito recorrente
nas categorias de forma de expressão e celebrações uma vez que é nestas categorias que
expressões relacionadas com o movimento humano estão mais presentes.
Selecionamos três dossiês com maior agrupamento de palavras-chave para uma leitura
e análise mais aprofundada. O dossiê do Samba do Recôncavo Baiano (BA) possui uma
concentração menor sobre o radical “corpo” enquanto os demais radicais estão fortemente
representados no texto. Nesse dossiê, o radical “danc” aparece 116 vezes e “music” 79 vezes.
Verificações similares estão presentes no dossiê Matrizes do Samba do Rio de Janeiro (RJ),
onde os radicais “music” e “danc” aparecem 102 e 106 vezes, respectivamente. Já no dossiê
Cavalo Marinho (PE), “danc”, repete 122 vezes e os outros radicais aparecem de forma
equilibrada, como o radical “mov” 62 vezes, “corpo” 61 vezes e “music” 54 vezes.
Uma visão distanciada sobre todo o corpus de textos dos dossiês permite verificações
ainda mais aprofundadas para este estudo. Palavras-chave derivadas do radical “danc”
aparecem 1667 vezes em todo o corpus de textos dos dossiês, o que representa quase 60% de
referências a mais que palavras com o radical “music”, encontrado 1056 vezes. Palavras-chave
com o radical “mov” e “corpo” representam 883 e 771 citações, respectivamente. Dados de
análise presentes na ferramenta Voyant tools também permitem a investigação do contexto das
citações dos radicais, como por exemplo, o conjunto de palavras que antecedem ou sucedem a
palavra-chave (denominado contexto), ou o arranjo de palavras na proximidade da palavra-
chave, denominado de colocação (collocation). Os dados de colocação com o radical “danc”,
ou seja, as palavras mais frequentes próximas ao radical “danc” são dança, aparecendo 81 vezes,
música 79, roda 47, e samba 46. Analisando os outros radicais pelo mesmo procedimento,
observamos que no radical “music”, as palavras mais frequentes são samba, aparecendo 30
vezes, arte 29, amor 28 e música 27 vezes. Nesse caso, a palavra dança aparece poucas vezes
associada ao radical “music”. O radical “mov” está relacionado com as palavras capoeira,
aparecendo 22 vezes, corpo 19, dança 18 e pessoas 16. Já o radical “corpo” está relacionado
com as palavras partes, aparecendo 29 vezes, dança 26, corpo 23 e samba 22, sendo suas
principais ligações.
64
Os dados sugerem que nos dossiês de registro do Iphan, a palavra dança está associada
com mais frequência às palavras-chave relacionadas ao corpo, movimento e em menor
frequência às palavras relacionadas com a música. Uma vez que as palavras relacionadas com
música estão frequentemente associadas às palavras-chave da dança, é possível que o texto dos
dossiês não expresse claramente associações entre música e dança, mesmo que a literatura
reporte frequentemente as relações entre dança e música nas culturas (ACSELRAD, 2019;
BEAUDET, 2017; CAMARGO, 2011). Essa contradição entre evidências no campo da
etnografia (relações entre manifestações culturais da dança e música) e o modelo descritivo ou
representacional aplicado ao bem (relações entre as descrições das manifestações) é relevante,
pois anuncia uma dissociação entre os pressupostos na literatura e o modelo de representação
da manifestação. Este problema pode ser também um resultado de problemas da comunicação
textual formal, que tende a fragmentar elementos complexos, interlineares, intertextuais e
paralelismos em seus formatos de discurso linear.
Com relação aos radicais relacionados ao movimento humano, a colocação das
referências ao corpo e dança é recorrente no texto, mas as referências ao corpo nem sempre
estão associadas aos movimentos. Isto pode indicar outra dissociação entre o discurso dos
estudos culturais sobre o corpo, natureza do conhecimento e patrimônio realizado pela ação do
corpo, como discutido em Desmond (1994), por exemplo. Em outras palavras, embora as teorias
que embasam os dossiês reconheçam e construa narrativas sobre o corpo, os discursos não
contemplam uma noção de conhecimento incorporado nas ações do corpo (porque não as
descrevem) como conhecimento em si próprio. Embora essa constatação seja uma exploração
hipotética, ela reforça uma hipótese importante: os discursos sobre a imaterialidade do
patrimônio do corpo que dança e faz música estão presentes nos dossiês, mas podem não ter
capacidade representacional ou não considerar as relações entre o movimento do corpo e a
manifestação em si.
Mesmo diante da crítica orientada pelos objetivos deste estudo, é necessário
compreender que há um contexto político, conceitual, tecnológico e metodológico que impõe
vários desafios para uma abordagem aprofundada sobre relações entre música e dança. Ainda
temos que considerar as prioridades presentes na diversidade dos dossiês e contextos culturais,
pois eles abarcam outras categorias que podem estar distantes das relações entre música, como
o caso dos dossiês dentro das categorias de lugares e modo de fazer. Entretanto, esses desafios
representam problemas metodológicos importantes, que afetam de forma geral todos os
documentos que se referem ao patrimônio imaterial, pois trata de bens, independente da
categoria em que o corpo e movimentos estão presentes de maneira generalizada, e para os
65
quais o corpo é um elemento fundamental para sua existência e perpetuação (o que define,
simplificadamente, as condições de salvaguarda).
66
abordagem da experiência humana, um exercício lúdico, esporte, estética, entretenimento
popular, teatro experimental e muito mais” (1974 apud Dossiê do Caboclinho, 2016, p.101).
A metodologia utilizada para a elaboração de um dossiê, como já citado, deve ser
baseada no método etnográfico e fundamentada em uma abordagem descritiva do bem. Assim,
na análise dos dossiês sobre o item "coreografia" ou "performance" é notado que esse elemento
se apresenta de forma descritiva e breve. Isso é identificado não apenas nas poucas páginas dos
dossiês dedicados a esse assunto, mas também nas poucas vezes em que os gestos corporais,
aqui pensado em movimentação das mãos, braços, troncos, cabeça, passos e deslocamento, são
citados.
É relevante notar que a narração relacionada aos movimentos do corpo é frequentemente
pontual e se orienta para a descrição de uma mudança de um passo de dança para outro, ou
descrever um movimento dos braços, mãos ou cabeça. Não raramente, essas descrições estão
acompanhadas de juízos de valor que enaltecem características do movimento na manifestação.
Por exemplo, os dossiês Fandango Caiçara e Jongo do Sudeste apresentam os seguintes trechos,
respectivamente: “as mulheres dançam graciosamente acompanhando o ritmo das marcas”
(2012, p.62) e “Fazem-no até que outro integrante da roda substitua uma das pessoas do par
solista, aproximando-se com movimentos graciosos” (2005, p.34). Mesmo que possamos
flexibilizar a impessoalidade da linguagem formal no documento etnográfico ainda sim é
necessário estabelecer elementos que permitam avaliar como são desenvolvidos e porque os
gestos são graciosos. Tacitamente, subentende-se que o dançarino pode estar exercendo um
movimento com leveza e elegância, que são qualidades específicas de movimentos apreciadas
em determinados contextos coreográficos, muitas vezes orientados por matrizes estéticas
externas, mas dificilmente dotados de capacidade descritiva ampla. Isso significa que a
utilização de juízo de valor para descrição de gestos e movimentos é frequentemente centrada
em uma visão cultural ou epistemológica e, por isso, excludente e não adaptada a um documento
oficial. Muito provavelmente, essa visão carrega orientações estéticas escondidas na forma de
juízos de valor, o que pode invisibilizar a matriz e orientações estéticas do próprio contexto do
dossiê.
Ainda sobre os gestos, notamos que as citações referentes ao braço estão associadas à
posição que ele ocupa em relação ao corpo ou adereço que possui. Por exemplo, o trecho “Os
braços normalmente se encontram pendidos junto ao tronco, com leve flexão dos cotovelos”
(Dossiê Cavalo Marinho, 2014, p.84), descreve um posicionamento dos braços em relação ao
tronco. O braço ainda pode estar associado a adereço: “Atadas - adereço confeccionado em lona
67
ou tecido equivalente, bordado com lantejoulas e miçangas, usado nos braços e tornozelos, tanto
dos homens quanto das mulheres” (Dossiê Caboclinho, 2016, p.79).
Sobre o movimento da cabeça, notamos que nos dossiês, quando a palavra é usada no
sentido de uma parte do corpo, ela é tomada como referência, “os homens seguram a mão direita
das mulheres no alto de suas cabeças, permitindo que elas possam girar” (Dossiê Fandango
Caiçara, 2012, p.63), ou quando está com algum adereço, “na cabeça um chapéu recoberto de
tiras multicores de papel brilhoso ou celofante” (Dossiê Maracatu de Baque Solto, 2014, p.149).
Já os movimentos das mãos são citados principalmente relacionados a suporte de
instrumentos musicais, como em “tocados com as mãos, os tambores compõem uma
combinação rítmica envolvente” (Dossiê Tambor de Crioula do Maranhão, 2007, p.34) ou a
mão carregando algum artefato, como “este nunca deixou de ter alguma coisa à mão (cacete,
bengala, punhal)” (Dossiê Frevo, 2007, p. 46). As posições das mãos também são mencionadas
como suporte, “as mãos a todo o momento seguram as longas saias floridas erigindo-as” (Dossiê
Marabaixo, 2018, p.34).
Em relação ao movimento do tronco do corpo, é citado em menor escala. Essa parte do
corpo é mencionada apenas no Dossiê do Caboclinho: “no ‘balão’, são dois toques de flecha,
um à frente e outro atrás do tronco, girando o corpo” (p.102).
Já no que tange a movimentação dos passos dos dançantes, essa aparece de uma forma
mais específica em comparação com os gestos apresentados acima. Eles são tratados quase
sempre relacionados com os passos da dança, como é no caso do Dossiê do Ofício dos Mestres
de Capoeira e Roda de Capoeira: “como por exemplo quando o capoeirista quer armar uma
cilada para o outro, podendo inclusive não fazer nada, apenas dar três passos para um lado e
três para o outro” (2008, p.96); ou do Dossiê do Caboclinho: “Os passos de dança executados
durante o balão envolvem sequências de pequenos saltos, girando pernas e braços na mesma
direção, formando um círculo na frente do corpo” (2016, p. 109).
A abordagem do deslocamento do corpo não é frequente nos dossiês de registros.
Quando ele é associado ao corpo, trata-se principalmente do deslocamento de um indivíduo no
momento da dança: “O movimento de deslocamento no círculo é repetitivo e se dá através de
um passo que vai para um lado e para o outro, balançando o corpo todo, num movimento de
pêndulo” (Dossiê Samba de Roda do Recôncavo Baiano, 2004, p.58); ou: “Essa passagem do
cipó pelo corpo segue a pulsação da música, sendo realizada sempre em deslocamento, no
centro do espaço, entre os dois cordões” (Dossiê do Caboclinho, 2016, p.110).
68
É importante enfatizar que a coreografia ou performance, não é tratada somente nos
itens relacionados a descrição. Esse elemento também é abordado no item de Ações
de Salvaguarda presente em todos os dossiês. A coreografia aparece como método de
aprendizagem, principalmente através da observação e imitação, como o exemplo a
seguir, extraído do Dossiê do Ofício dos Mestres de Capoeiras e Roda de Capoeira.
Nesse sentido, é explicado como se desenvolve alguns passos da dança para o
aprendizado, sobretudo aos mais jovens: Ele só ensinava se o aprendiz se mantivesse
atento, observando e arriscando-se a realizar os principais movimentos. O
aprendizado ficava a cargo do aprendiz, que, engajado na capoeira, inserias e a partir
da observação e da vivência de suas rotinas (Dossiê do Ofício dos Mestres de
Capoeiras e Roda de Capoeira, 2007, p.68).
Nesses dossiês também foi observada a presença da imagem estática como estratégia
descritiva, que funciona não somente a título de ilustração, mas como um esquema necessário
para explicar passos da dança, como nos dossiês do Ofício dos Mestres de Capoeira e Roda de
Capoeira, e do Fandango Caiçara. No primeiro dossiê citado foram utilizadas fotografias para
ilustrar os movimentos e golpes dessa dança (figura 3), o que demonstra uma estratégia comum
de representação de posturas sob uma perspectiva em terceira pessoa (“eles dançam”). Neste
caso, há uma escolha por um momento específico da apresentação do corpo que não está
necessariamente parado (como na imagem estática). A concatenação de imagens em uma
sequência (neste caso, vertical) produz uma proto-representação de temporalidade
(sequencialidade) que estabelece a noção de movimento: o percurso do movimento das partes
de um corpo entre uma postura e outra. Observe que mesmo assim, as fotos não estão preparadas
para oferecer esta noção de sequencialidade, com a terceira foto claramente fora do contexto
temporal das duas primeiras.
Já no segundo dossiê – Fandango Caiçara – foram produzidos desenhos ilustrativos dos
deslocamentos de uma dupla de dançarinos em algum passo básico da dança (figura 4). Nesse
exemplo bem mais elaborado que o da figura 3, toma uma perspectiva de birds-eye9 que oferece
uma visão quase impossível do movimento, sugerindo a imaginação em primeira pessoa (“eu
danço”). A noção de performance cíclica deste passo é reforçada pela disposição dos diagramas
em círculo, embora aqui pareça representar a coreografia em grupo (porque os diagramas são
os mesmos). Estes diagramas são acompanhados de setas que indicam a orientação do
movimento, ainda em uma proto-temporalidade oferecida pela sugestão de sequência.
Entretanto, não há um aproveitamento desta informação visual, pois o detalhe da legenda da
figura contém mais informações não propriamente representadas. As ilustrações e suas
descrições são abordadas de forma explicativa e não técnica.
69
Lembramos que em alguns casos, como o Dossiê Tambor de Crioula do Maranhão, as
fotos ilustrativas servem para visualização dos movimentos corporais, mesmo não possuindo
explicação específica sobre isso (figura 5). A foto da figura 5 exemplifica a possibilidade de
denotação do vetor e localização do movimento através da captura de imagens em baixa
velocidade de obturador. Como um gráfico informacional, mancha na foto indica a direção e
localização do movimento.
De todo modo, há um atrito latente entre a capacidade de descrição textual no tempo e
na sequência, e sua limitação como representação visual. Por outro lado, a imagem estática
apresenta múltiplos potenciais de representação visual e espacial, mas se torna complexa ou
extensa na descrição da evolução do movimento no tempo. O texto, de certo modo, mantém
uma evolução temporal linear, compartilhada entre leitura e performance coreográfica ou
musical. A imagem por outro lado, perde esse vetor temporal linear, mas é precisa na
representação espacial, sobretudo a partir de fotos ou diagramas informacionais ricos
(infográficos).
70
Figura 03: Sequência de fotos presentes no Dossiê Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres de Capoeira
71
Figura 04: Diagrama e legenda do diagrama do passo básico do Fandango Caiçara, como apresentado no Dossiê
Fandango Caiçara.
72
No que diz respeito à música, percebemos mais aprofundamento nesse assunto em
comparação com dança e movimentos. Descrições de bens relacionados com práticas musicais
tratam dos cantos, das letras e dos instrumentos, com tópicos específicos para abordar esse
assunto, seja pelos cantos, instrumentos, ritmos, melodia, harmonia e partituras. Em alguns,
como o registro do Samba do Recôncavo Baiano, Jongo do Sudeste, Caboclinho, Matrizes do
Samba do Rio de Janeiro, no desenvolvimento da pesquisa ou ao final do dossiê, estão
localizados partituras com as principais músicas. É importante notar que há subtítulos separados
para as categorias de música e dança em todos os dossiês analisados.
É necessário discutir e abordar a dificuldade de compreensão das manifestações
culturais diante da ampla diversidade cultural que abarca o patrimônio imaterial. Assim,
estabelecer uma metodologia que atenda de maneira satisfatória à diversidade de demandas
epistemológicas locais e científicas para fins de preservação e salvaguarda é uma tarefa
complexa. Contudo, estamos contestando que os direcionamentos apontados pelo INCR e o
Registro exposto neste capítulo, possam induzir a equipe elaboradora a omitir pontos cruciais
para a identificação e um entendimento aprofundado das manifestações populares. E
entendemos aqui que esses elementos fundamentais de compreensão são diversos e que podem
ser direcionados através de diferentes abordagens. Todavia acreditamos que os entendimentos
dos movimentos corporais são essenciais para um estudo da totalidade e perpetuação de um
patrimônio imaterial.
Este capítulo procurou mostrar que as referências da criação do campo imaterial foram
influenciadas por experiências já existentes no campo do patrimônio material. A partir disso,
refletimos que apesar dos esforços metodológicos no entendimento de uma manifestação
cultural, eles não parecem ser satisfatórios quando pensamos em movimentos corporais e sua
representação dentro do contexto do bem imaterial. Diante disso, no próximo capítulo iremos
introduzir contextualmente o estudo de caso desta pesquisa, a Dança dos Caboclinhos da cidade
de Peçanha, Minas Gerais.
73
CAPÍTULO 3 – O CONTEXTO DA DANÇA DOS CABOCLINHOS DO MUNICÍPIO
DE PEÇANHA/MG
Nos próximos dois capítulos, realizamos uma abordagem orientada por uma perspectiva
etnográfica. A escolha do método descritivo inerente a esta perspectiva é uma tentativa de
compreender a tradição cultural da Dança dos Caboclinhos e como seu sistema de significados
culturais e cognitivos são organizados através da proximidade possível durante o
acompanhamento da manifestação. Para isso, o presente capítulo foi pensado em três partes: o
contexto da Dança dos Caboclinhos, os aspectos musicais e a presença do grupo de caboclos na
Trezena de Santo Antônio ou Festa de Santo Antônio. Estas estruturas de dimensões social,
temporal e performática formam um quadro geral do que seria o contexto e estrutura da Dança
dos Caboclinhos, em seu aspecto mais geral. Uma descrição mais aprofundada sobre as etapas
dos elementos coreográficos será realizada no próximo capítulo.
A primeira parte relativa ao contexto da Dança dos Caboclinhos contempla um breve
histórico do município de Peçanha, as primeiras impressões na cidade em questão, influenciadas
pela realização do campo em junho de 2019, além de abordar os atores sociais, a formação do
grupo e o desenvolvimento dos ensaios. Para situar estes elementos no espaço geográfico,
político e de significados, as descrições serão acompanhadas por um mapa do município de
Peçanha que situa os principais pontos citados no decorrer do texto. Na segunda parte, serão
descritos os aspectos musicais em que a coreografia está envolvida, como a performance dos
tocadores, os instrumentos, a poesia cantada e falada, e também suas indumentárias. Já na
última parte, enfatizamos o cenário no qual a Dança dos Caboclinhos ocorre, a Trezena de Santo
Antônio. Nela, trata-se da preparação dos caboclinhos para a festividade, além da descrição
contextual dos dois dias em que o grupo realiza sua coreografia, 12 e 13 de junho.
A estrutura da manifestação no tempo está distribuída da seguinte forma:
▪ dia 12: preparação dos caboclinhos no bairro Alvorada; saída da Casa de Cultura para a
residência da festeira Dona Tereza para iniciar o cortejo; chegada do grupo na Igreja Matriz
de Santo Antônio; e execução da Dança dos Caboclinhos;
▪ dia 13: preparação dos caboclinhos no bairro Alvorada; saída da Igreja Matriz de Santo
Antônio para a procissão com a imagem do santo; e Dança dos Caboclinhos na Espaço
Paroquial.
75
Figura 06: Mapa de uma parte central do município de Peçanha e do bairro Alvorada com marcação dos pontos
mais significativos. Os pontos assinalados no mapa correspondem a marcos descritos no texto.
77
Grupo de Marujos e o Grupo de Caboclos também são considerados importantes bens que
reforçam a identidade dos peçanheses.
A seguir descreveremos o trabalho de campo que teve como foco a Trezena de Santo
Antônio, evento religioso e cultural mais importante da cidade, que ocorreu entre os dias 31 de
maio a 13 de junho, dia de Santo Antônio, padroeiro da cidade. Durante os dias 9 a 14 de junho
acompanhamos as atividades do grupo de caboclinhos, que serão descritas a seguir.
78
Na residência do Senhor Antônio, sou recebida por uma de suas filhas e seu namorado.
Chego discretamente com o tripé da câmera, na dúvida se seria reconhecida, quando da minha
ida a Peçanha em 2017. Essa preocupação se mostrou desnecessária, pois a responsável pelo
Setor de Patrimônio Cultural da Prefeitura de Peçanha, Marina Braga Leão, já havia avisado da
minha vinda e eles estavam me aguardando. Na varanda fechada da casa verde do Senhor
Antônio, que também serve de sala de estar, aguardei a chegada de todos os participantes para
caminharmos para o local do ensaio.
Nesse momento de espera, refleti sobre a história daquela família que tinha muitos
membros dedicados ao grupo dos caboclinhos. Isso me levou também a pensar sobre a história
do bairro e, consequentemente, do município que eu conhecia de forma tão superficial. Até 2
anos antes, a cidade era desconhecida por mim. Estas questões me levaram até a Casa da Cultura
(ver ponto 5 na figura 06) a fim de ampliar as informações que coletei sobre a história de
Peçanha. Realizei uma pesquisa secundária em fontes documentais relativas aos dossiês de
registros produzidos para o Programa de ICMS Patrimônio Cultural, livros sobre a formação da
cidade, como “Peçanha: breve notícia histórica da fundação da aldeia de Santo Antônio do Bom
Sucesso do Descoberto de Peçanha” do autor Oscar Vieira, e muito diálogo com a Marina Braga
Leão. Mais tarde, percebi que esse conhecimento histórico e cultural dos livros e das conversas
facilitaram a compreensão de termos usados pelo Senhor Tunico e Chico em nossas conversas,
mestre e contramestre, respectivamente, do grupo.
Retomando à casa do Senhor Antônio, esperei alguns minutos até a chegada do Senhor
Chico. Os integrantes do grupo foram gradativamente chegando e se somando aos familiares
do dono da casa. Alguns integrantes me reconheceram e me perguntaram se a câmera
fotográfica e o gravador eram meus. Percebi que meus instrumentos de trabalho poderiam ser
uma forma de me aproximar dos jovens e de suas práticas na manifestação, além de normalizar
minha presença como observadora nos próximos dias. Para alguns caboclinhos, expliquei o
funcionamento básico do manuseamento da câmera fotográfica. Os meninos se distraíram
tirando fotos de seus colegas.
Senhor Chico chegou. Constantemente usando boné, desce as estreitas escadas vestindo
calça e camisa sociais, sempre com os quatros primeiros botões da camisa abertos. Logo me
viu, abriu um sorriso e nos cumprimentamos. Perguntei se ele se lembrava de mim e, ainda
acanhado, afirmou que sim e indagou pelo seu amigo e parceiro de dança, Senhor Tunico, que
ainda não havia chegado. Sentados no sofá e comendo o doce de batata doce oferecido pela
dona da casa, comuniquei a razão da minha visita e ele pediu que esperássemos pelo seu
companheiro para continuarmos. Senhor Tunico chegou algum tempo depois e diante de sua
79
desenvoltura, o Senhor Chico deixou a timidez de lado e ambos iniciaram diversas brincadeiras,
comum entre eles.
Enquanto aguardávamos o agrupamento de todos os meninos para caminharem em
direção ao local onde ocorre o ensaio, ficamos eu, Senhor Tunico e Senhor Chico a conversar.
Sem esquecer da minha condição de pesquisadora nessa conversa, liguei o gravador,
acreditando ter feito isso de forma discreta. Mas não. Logo no início da conversa, Senhor
Tunico me interroga, “A Senhora tá gravando com isso aí, né?” Eu devolvo a pergunta, “Pode?
Tem problema, Senhor Tunico?” Era uma pergunta básica que eu deveria já ter feito. Senhor
Tunico, sempre muito atencioso e esperto, respondeu com um sorriso no rosto e me disse
repetidas vezes: “o que tiver no nosso alcance, a gente ajuda”. Aproveitei a ocasião para
explicar, agora para o Senhor Tunico, o motivo da minha ida à Peçanha. Escutando sobre o meu
tema de pesquisa, ele parecia estar ciente do porquê da minha presença. Depois de alguns dias
em Peçanha, convivendo com os mestres e com os caboclinhos, percebi que meus interesses
acadêmicos ali não importavam, pois para eles, assim como para seus familiares, eu estava ali
para filmar a Dança dos Caboclinhos simplesmente.
Depois de muitos minutos de conversa, o sanfoneiro, Senhor Neném Teeiro, chegou
com seu instrumento. Assim que me apresentei e iniciei novamente as explicações da minha
pesquisa, Senhor Neném interrompeu-me, contou brevemente sua relação com a música e tocou
sem parar sua sanfona até o momento de nossa saída para o ensaio.
Os últimos a chegar foram os músicos caixeiros e, por voltas das 17 horas daquele
domingo, os caboclinhos chegaram todos na casa do Senhor Tunico. A varanda/sala ficou
repleta de meninos que entravam e saíam constantemente. Eles estavam agitados e sorridentes,
pareciam estar felizes por encontrar com outros amigos, mas não citavam muito o ensaio, a
finalidade do encontro. Os mestres, Senhor Tunico e Senhor Chico, e os músicos subiram as
estreitas escadas da casa do Senhor Antônio e foram todos caminhando em direção a uma das
poucas ruas planas do bairro Alvorada para, enfim, realizarem o ensaio. Ressalto que, nessa
caminhada, a minha presença atraía os olhares dos integrantes do grupo e a suspeita de que eu
estava ali para filmá-los ficou confirmada para eles.
O grupo dos caboclinhos possui uma divisão entre músicos e caboclinhos. Nos
caboclinhos ainda podemos distinguir uma hierarquização entre os dois mestres e os dezessete
jovens caboclinhos. A denominação de mestre é utilizada pelas pessoas externas que se
80
referenciam aos dois integrantes mais antigos, Senhor Tunico e Senhor Chico, mestre e
contramestre, respectivamente, a quem os caboclinhos devem obediência. Contudo, entres os
integrantes, a palavra mestre não é usada. Neste estudo, foi escolhido recorrer à denominação
de mestre para referir a esses dois integrantes antigos e diferenciá-los dos jovens.
Acompanhei o último ensaio dos quatro encontros programados. Estes encontros
ocorreram durante o mês de junho apenas aos domingos, no fim da tarde, na rua da “Copasa”
(ver ponto 6 na figura 06). Essa companhia de água é uma referência geográfica reconhecida
pela população e comunidade e é como eles se referem ao local de ensaio. Como dito, essa rua
do bairro Alvorada é plana e sem saída, o que me lembrou a história de formação da própria
cidade de Peçanha, formada a partir de um morro (PREFEITURA MUNICIPAL DE
PEÇANHA, 2016). Para realizar o ensaio (Figura 07), os caboclinhos utilizaram apenas suas
flechas e não vestiram suas fardas.
Figura 07: Ensaio do Grupo de Caboclos de Peçanha na rua da “Copasa”, no dia 09 de junho de 2019. A frente,
no lado esquerdo está Senhor Chico e, no lado direito, o caboclinho Pedrinho. No meio está Senhor Tunico entre
duas filas de caboclinhos.
No começo dessa rua, os integrantes posicionaram-se para começar a dançar com suas
“flechas”, termo utilizado por eles. Enquanto isso, preparei o tripé e a câmera com a intenção
de uma filmagem da dança em um plano geral. Acreditava que, dessa forma, a função seria
gravada ao mesmo tempo em que eu observaria sua dinâmica e, principalmente, os movimentos
corporais dos caboclinhos.
81
Inicialmente, Senhor Tunico e Senhor Chico anunciaram informações sobre a
apresentação que antecederia à Trezena de Santo Antônio. Falaram principalmente sobre a
seriedade com o último ensaio e a coreografia final, assim como a obediência aos mestres.
Senhor Tunico ressaltou sua idade avançada e seu cansaço, afirmando que só não parou suas
atividades com o grupo devido ao comprometimento que tem com o Senhor Chico e, por isso,
faz questão de levar adiante a tradição de dançar. Após esse momento, Senhor Tunico soprou
o "pio", maneira dele referir-se ao apito prateado que fica preso ao seu pescoço por um colar.
Depois, a sanfona começou a tocar, seguida do reco-reco e das caixas, seguidas pelos
caboclinhos que se colocaram a dançar batendo suas flechas. Na execução da dança, Senhor
Tunico canta e recita sua poesia, como é afirmado por ele. No entanto, nos ensaios sua poesia
não é praticada.
O grupo caminhou dançando até o final dessa mesma rua, no momento do pôr do sol,
onde se posicionaram e continuaram dançando, realizando mudanças nos passos e percursos,
que são chamadas de manobras e comandadas pelo Senhor Tunico. Descreveremos as
características do movimento de cada uma dessas manobras no próximo capítulo. Após o ensaio
das manobras, o grupo retorna pelo mesmo caminho, dançando e batendo as flechas. Senhor
Chico disse que é comum que algum morador do bairro, entusiasta da dança, entregue
guloseimas aos caboclinhos logo após o referido ensaio.
Nas minhas observações percebi que os ensaios têm como objetivo principal relembrar
algumas manobras e ajustar o comportamento dos meninos no momento da execução. Os jovens
demostraram conhecimento e desenvoltura nos passos. Notei que alguns caboclinhos que
participaram dessa preparação não estavam presentes na Trezena de Santo Antônio. Ao
presenciar o ensaio, refleti o porquê desses movimentos, se existe algum significado e a forma
de aprendizado transmitido aos caboclinhos. Os meninos não tiveram dificuldades em praticar
dança e nem dúvidas sobre o que fazer e seguir.
Em um outro dia, em uma conversa com Senhor Tunico e Senhor Chico, indaguei sobre
o ensino da prática cultural aos caboclinhos. A resposta de ambos foi fundamentada no
aprendizado observacional, onde os novos integrantes aprendem com os mais meninos que
estão há mais tempo na dança. Basta entrar na dança, com o instrumento da flecha, observar,
imitar e acompanhar os outros caboclos.
Senhor Tunico: Pelo ritmo da dança, dos primeiros, dos que vai entrando lá vai
aprendendo. Eles aprendem com eles mesmos, com o outro.
Senhor Chico: É porque ali, eles vai no ensaio e vê como é que o outro tá fazendo,
dançando, batendo sua flecha, comunicando ali. Ali ele pega o no ritmo dele e entra
no meio e acompanha.
82
Senhor Tunico: O que está de fora, aprende mais do que os que está ali dentro. É
porque está vendo tudo que faz ali. Eles aprendem observando. Isso mesmo. A
Senhora não vê nos brincar? A Senhora pega na espada e na flecha, a Senhora faz a
mesma coisa que nós faz. Sabe mais que nós ainda (Trecho da entrevista com Senhor
Tunico e Senhor Chico, realizada em 11/06/2019).
Nesse momento também confirmei minhas impressões quando da minha primeira visita
aos caboclinhos: a execução das formas de movimento corporal da dança e das evoluções
coreográficas não são estáticas e não obedecem a um único padrão de movimento corporal
preciso. A dança possui orientações a serem seguidas em uma hierarquia desenvolvida pelo
grupo, mas isso não significa que essas ordens interfiram ou normalizem completamente os
padrões dos movimentos de cada indivíduo na dança. Cada dançante executa as orientações à
sua maneira e de acordo com suas percepções e em relação aos movimentos das flechas e dos
pés. Nota-se que essa flexibilidade na dança permite lidar com as interferências presentes no
contexto como obstáculos cognitivos (e.g.: sons ou eventos que distraem os caboclinhos) ou
mesmo obstáculos físicos (e.g.: carros na rua) que podem alterar a organização coreográfica do
grupo.
Apesar dessa flexibilidade nos movimentos corporais da dança, o mesmo não acontece
com a dinâmica sequencial coreográfica. Os movimentos corporais já são estabelecidos, assim
como sua repetição sistemática, fazendo parte da coreografia, e necessitando ser executados. A
sequência das manobras, consequentemente, também as etapas da dança, obedecem a uma
mesma lógica de sucessão de partes, que não sofrem alterações, compondo a coreografia.
Contudo, ressalto que mesmo que essas partes respeitem uma cronologia, a duração de cada
uma delas não é precisa. Senhor Tunico que comanda e orienta o tempo de cada parte, a sua
maneira, conforme ache necessário. A Dança dos Caboclinhos não é uma manifestação cultural
que precisa ser praticada em um espaço específico. Entretanto sua execução é realizada
majoritariamente na rua.
Reconheço que não consegui observar a Dança dos Caboclinhos de forma detalhada e
tomar notas ao mesmo tempo, pois minha atenção estava dividida entre filmar e observar. Nessa
ocasião optei por filmar e explorar o contexto do ensaio. À medida que os caboclinhos
caminhavam dançando, tentava me posicionar de forma a colocar todos no enquadramento. Esta
situação não se mostrou nada confortável para mim porque eu estava preocupada em manter a
câmera o mais estável possível. A pouca luminosidade do fim do dia também foi um fator
inquietante para que as imagens não ficassem tão escuras.
Durante o ensaio, percebi a presença de um público que saía de suas casas por onde os
dançarinos passavam. A música é um elemento que chama a atenção. Algumas pessoas se
83
aproximavam do grupo, outras permaneciam nas janelas ou nas portas de suas casas. Muitos
estavam com celulares gravando e tirando fotos. Alguns espectadores também acompanharam
a música dos caboclinhos, balançando seus corpos. Tive a oportunidade de conversar com uma
moradora que assistia os caboclinhos com entusiasmo. Esta pessoa declarou que acompanhava
o grupo todo ano, que achava lindo ver a dança e os meninos vestidos de índios. A Dança dos
Caboclinhos é considerada tradição pela população, por estar presente há muitos anos na Festa
de Santo Antônio, mas como se desenvolveu a formação desse grupo?
84
Figura 08: Guarda do Caboclo do Divino Espírito Figura 09: Caboclos do Serro no Reinado de Nossa
Santo no Reinado de Nossa Senhora do município Senhora do Rosário do município do Serro, 2017.
de Vespasiano, 2013.
85
caboclinhos. Deste grupo, restaram somente o Senhor Tunico, que está vivo para contar essa
história, como ele mesmo afirma repetidas vezes.
Senhor Tunico e Senhor Chico recordam que, depois de Marco Caetano, houve a
formação de três grupos que dançavam a Dança dos Caboclinhos. Ao longo dos anos, à medida
em que um grupo ia abandonando suas atividades, outro ia se formando com o passar do tempo.
Segundo eles, os grupos obedeciam às mesmas características da formação original, como vestir
roupas que fazem menção ao imaginário indígena, usar flechas e fitas, e ser praticada somente
por homens, condição da tradição. No entanto, na análise do Dossiê de Registro do Grupo de
Caboclos, há citação de um grupo composto por meninas, no início da década de 1980, chamado
de Caboclinhas da Tia Neva (Figura 10). Não há informação desse grupo no dossiê, mas nota-
se, em duas fotos, que as meninas vestiam roupas que faziam alusão à cultura indígena, além
de algumas utilizarem flechas e espadas nas mãos.
.
Figura 10: Grupo de Caboclinhas da Tia Neiva na década de 1980 no município de Peçanha
É importante ressaltar na fala dos mestres que a Dança dos Caboclinhos de Peçanha
sofreu transformações no decorrer dos anos. Talvez a principal, enfatizada, foi a ausência de
personagens e de encenação no ato da dança. Segundo Senhor Tunico, na dança que eles
praticavam, ainda com Marco Caetano, havia caciquinhos, papai vovô e mamãe vovó. No
Dossiê de Registro lê-se: “ao lado do comandante ficavam os “caciquinhos”, um de cada lado.
São eles mestre e contramestre, o caixeiro e o sanfoneiro. (...). O vovô carrega o mastro e a
vovó leva o banquinho onde ele sobe” (2014, p.19). Nessa época, os caciquinhos eram os
86
meninos mais jovens do grupo que permaneciam ao lado do comandante, o líder; e a mamãe
vovó e o papai vovô eram homens fantasiados desses personagens que faziam uma encenação
divertida para o público, já que a função da vovó era carregar o banco para o vovô sentar, pois
ele era quem segurava o mastro no momento da dança das fitas. Senhor Tunico e Senhor Chico
recordam:
Senhor Tunico: Nossa dança ainda falta, ainda falta o vovô, a vovó...
Marina Fares: Mas essa época que vocês faziam lá com Seu Neném tinha?
Senhor Chico: Tinha, mas foi morrendo.
Senhor Tunico: Foi saindo, foi saindo também e não voltou mais. E nós também não
preocupou em arrumar mais dois de novo, a vovó e o vovô. Tem a turma, mas está
sem pai, sem avô e sem avó. E é de regra é ter a vovó e o vovô pra tomar conta né
(Trecho da entrevista com Senhor Tunico e Senhor Chico, realizada em 11/06/2019).
Esses são alguns dos elementos de mudança notados na Dança dos Caboclinhos. Na
conversa mantida com o Senhor Tunico e com o Senhor Chico, essas diferenças do tempo são
constantemente rememoradas em um processo natural de comparação entre a dança que ocorria
antigamente e a atual. Isso indica que muitas foram as transformações que a dança passou e
passa para se recriar e se perpetuar para as gerações futuras. Afinal, atualmente, quem são os
caboclinhos e como se constituiu o grupo de caboclos?
▪ Senhor Tunico
Tunico e Chico (Figura 11) ficaram amigos quando se aproximaram, há mais de 10 anos,
na formação do grupo de caboclos. Antônio Domingos de Brito, conhecido como Senhor
Tunico, 85 anos, tem orgulho de citar as pessoas que conhece não só da família de Chico, mas
de toda a cidade. Ele gosta muito de contar sua história, como fez repetidas vezes em nossas
longas conversas. Com uma lucidez e memória afinada, disse que nasceu na comunidade
Tronqueiras, perto do município de Divinolândia. Nos seus 15 anos, foi morar com um tio em
sua fazenda situada próxima à Mata (Mata do Peçanha, como é conhecida a cidade). Lá
87
trabalhou como peão, vaqueiro e carreiro. Casou com 37 anos e sua esposa com 18, tiveram 9
filhos e há 25 anos é viúvo. Hoje mora com a filha caçula no bairro Alvorada.
Figura 11: À esquerda, Senhor Tunico, à direita Senhor Chico com suas fardas e espadas na casa do Senhor
Antônio Teodoro no dia 12 de junho de 2019. Detalhe para o “pio” do Senhor Tunico em um colar passado em
seu pescoço.
▪ Senhor Chico
Francisco Rosa dos Reis, conhecido por Senhor Chico, 63 anos, é morador do bairro
Alvorada e sua profissão é vigia noturno do Parque de Exposição de Peçanha. Sua relação com
a dança iniciou quando foi convidado pelo Senhor Neném Teeiro, o sanfoneiro do grupo, a
compor a Dança dos Caboclinhos. Chico já possuía experiência desde pequeno no grupo de
marujada, pois seu avô era assistente do responsável pela marujada, Manel Hortenço. Chico
afirma que já possuía desejo de dançar os caboclinhos desde jovem:
Mas, quando ele [Senhor Tunico] tava na dança, meus irmãos foi pra dançar lá, mas
não me chamou, não me convidou nem nada, eu já era um molequinho. Aí eu vi os
meninos fazendo uma flecha lá e disse que ia dançar. Lá no Gonzaga. Inclusive o
tocador de sanfona era o André [também sanfoneiro do Grupo de Caboclinhos na
Festa de Santo Antônio]. Aí depois que eles foram lá e dançaram e tudo e eu doido
pra entrar na dança. Mas não sabia o que que era e tal, não sabia o ritmo nem nada,
como era que era a coisa. Aí Manel Hortenço arruma uma marujada e meu avô era
assistente do Manel Hortenço, aí nos foi. Foi aí que entramos nessa marujada. A
última festa foi aqui no Peçanha que nós dançamos três dias, com o Manel Hortenço
foi a última vez (Trecho da entrevista com Senhor Chico, realizada em 11/06/2019).
88
Senhor Tunico, o integrante mais velho, tem sua narrativa de vida integrada à história
da Dança dos Caboclinhos de Peçanha. Conforme já citado, sua participação teve início aos 8
anos, quando era ainda caciquinho da formação original do grupo de Marco Caetano, na zona
rural da comunidade de Tronqueiras, na década de 1940. Segundo Senhor Tunico, esse grupo
permaneceu ativo por muito tempo. Depois houve mais dois grupos, dos quais não se tem
informações precisas, a não ser que o Senhor Tunico também participou de um deles, no período
em que morou na comunidade Aldeia da Pedra, antes da formação do terceiro e atual, os
caboclos de Peçanha (Figura 12).
89
Figura 12: Grupo de Caboclos de Peçanha na rua da casa do Senhor Antônio Teodoro no dia 12 de junho de
2019. Ao fundo está Neném Teeiro, o sanfonista; com a espada coberta por penas está Senhor Chico; seguido do
Senhor Antônio Teodoro; e ao seu lado Senhor Tunico, que carrega outra espada. O mastro da dança das fitas é
segurado por Jorginho, filho especial do Senhor Antônio Teodoro e encostado no muro está o segundo
sanfoneiro, o Negrim.
Aí eles comunica comigo, falou: Vamo reuni uma turma? Quem era que nós reunimos
primeiro, até já foi embora, acabou, a minha turma. Aí eu vim aqui, junto com Neném
Teeiro. E vem o Chico de novo, lá vai eu formando outra de novo. Tinha outra, mas
acabou tudo. Aí formei outra onde eu morava, na Aldeia da Pedra, lá nós dançamos
e tudo, até meu outro ajudante, não mora aqui não, mora no Recreio, foi embora pra
lá. E a dança acabou. Aí no Neném Teeiro me achar: Senhor Tunico você topa? Eu
sei que você dança e tudo. Se puder controlar tudo, eu consigo entrar mais você. Aí
ele pegou e me jogou de frente de novo e me consta como mestre. Mas eu não sei nada
não. Eu faço pra viver (Trecho da entrevista com Senhor Tunico, realizada em
11/06/2019).
90
mudança das manobras, pela troca das etapas, pelo tempo de duração, por chamar atenção dos
caboclinhos no momento da dança e, principalmente, por lançar a poesia cantada, maneira como
ele mesmo se refere aos versos citados. Já a tarefa do Senhor Chico é controlar o número de
jovens participantes do grupo, confirmar a presença de cada um, reunir o grupo e orientar no
comportamento dos meninos:
É eu que reúno os meninos, mando recado, ligo pra um. Uma época de festa dessa,
eu já queimei muito telefone. Já queimei muito telefone de tanto ligar. Levei ele ali e
não teve nem concerto teve. É ligar, vou atrás, peço menino pra ligar pro outro e o
pau come. E ai se não vir! (Trecho da entrevista com Senhor Chico, realizada em
11/06/2019).
Além disso, Senhor Chico tem a função de dividir o dinheiro que recebem da Prefeitura
de Peçanha, quando dançam na Festa de Santo Antônio. Segundo relata, sua honestidade no
compartilhamento do dinheiro fez com que aumentasse o respeito dos meninos por ele. Senhor
Tunico diz que só aceitou entrar no grupo com a condição de Chico ficar responsável por essas
tarefas, pois a idade e a vontade já não permitem grandes esforços. Para ele, um não funciona
sem o outro.
(...) se ele não tiver também, não tem nada feito não! Sabe por que? A turma é mais
dele do que minha. Porque eu pela minha idade, por que eu to lá com meus 84 anos,
graças a Deus, eu falei com ele: Chico eu vou parar de dançar, não vou ficar
carregando, buscando caboclinho ali, caboclinho aqui, aqui, lá, não eu vou desistir.
(...) Eu falei com ele: Se você me garantir de reunir a turma eu te ajudo, porque eu
não vou ficar caçando ninguém não. Agora se você falar que não, não tem nada pra
fazer, eu vou desistir. Ele falou: não, deixe por minha conta. Se você reunir a tropa,
o ataque eu bato. Pode reunir a tudo toda aí, agora tá por sua conta, agora eu faço
o que eu quero (Trecho da entrevista com Senhor Tunico, realizada em 11/06/2019).
A atenção especial que dedico aqui a esses dois protagonistas se deve à função de
mantenedores do grupo e de sua atitude de “guardas” da tradição, mas o destaque a esses
mestres não diminui a importância tanto dos caboclinhos quanto dos músicos. O relato, a partir
do ponto de vista da história dos mestres, me parece ser o mais adequado para observar a
consolidação e continuidade do grupo em razão da sua centralidade nessas duas figuras, uma
vez que os caboclinhos são constituídos por dezessete crianças, dois mestres, além dos cinco
músicos. De qualquer forma, menciono também tanto a participação dos caboclinhos, quanto
dos músicos no desenvolvimento da coreografia.
3.1.7 Caboclinhos
91
Os caboclinhos são formados por um grupo de crianças e adolescentes na idade entre 7
a 15 anos, quase todos moradores do bairro Alvorada. Alguns são parentes, como já citado do
Senhor Antônio Teodoro: três netos e um filho, que são os jovens mais antigos, outros primos
ou amigos. Senhor Chico e Tunico afirmam que não precisam convidar jovens para integrar o
grupo, pois eles mesmos pedem para participar. Este foi o caso de dois meninos, moradores da
zona rural de Jandrero. Segundo Senhor Chico, um dia antes da primeira apresentação do ano,
a mãe solicitou que os filhos fizessem parte da dança. Não havia como negar, ele conta, pois
vieram de longe e, assim, os dois filhos estrearam com uma fantasia de cavalinho. Os cavalinhos
ficam próximos aos músicos. Essa fantasia tem a forma do corpo de um cavalo, onde os meninos
entram por baixo e seguram a vestimenta por uma corda. Atado ao pescoço do cavalo está um
sino de vaca, que faz barulho quando balançado. Ressalto que a presença dos cavalinhos
aconteceu somente no ano de 2019 (Figura 13).
Figura 13: Fantasia de cavalinhos vestida por dois meninos que se encontram posicionados nas laterais entre os
músicos.
Tira eles de ficar mexendo com coisas dos outros, porque está divertindo ali, aquilo
ali ele tá com a cabeça naquilo ali né. Tira eles da droga né. É aí porque hoje o que
está vendo é isso. Então você tá divertindo com eles, você marcando com eles, então
tando divertindo com ele, tá livrando eles fazerem coisas que não deve. O que não
deve aprender. Converso com eles direitinho e tudo, ali e vou levando, por isso, que
eles gostam de mim demais, é por conta disso. Eu converso muito com eles (Trecho
da entrevista com Senhor Chico, realizada em 11/06/2019).
3.2.1 Tocadores
93
A Dança dos Caboclinhos não acontece sem a música. Os tocadores, ou músicos
exercem um papel fundamental no desenvolvimento da manifestação artística em questão e na
condução das formas e coreografias, relações internas e relações com o público. Estes tocadores
fazem parte do grupo, mas desempenham um papel distinto dos mestres e caboclinhos. A seguir,
será apresentado um perfil desses atores e sua relação com a manifestação cultural e a formação
instrumental. Uma análise aprofundada das formas e estruturas musicais será apresentada no
próximo capítulo.
Neném Teeiro, 69 anos, é o dono da sanfona na dança, como diz Senhor Tunico.
Morador do bairro Alvorada, ele é um experiente tocador de sanfona, instrumento que aprendeu
aos 6 anos, ouvindo seu pai tocar. Com sua própria sanfona, já tocou com vários artistas locais
o ritmo de forró, fazendo parte de bandas e com cd gravado. A música executada na Dança dos
Caboclinhos, Teeiro aprendeu com um antigo participante já falecido.
Há um segundo sanfoneiro conhecido como Negrim, que também acompanha o grupo
por muitos anos. De acordo com Senhor Tunico e Senhor Chico, a dança perdura por muitas
horas e, devido ao cansaço, e sendo a sanfona essencial, faz-se necessário a presença de um
segundo sanfoneiro. Neném afirma que o segundo não permanece muito tempo tocando
sozinho, por não possuir tanta experiência no tocar. Senhor Tunico ressalta que cada sanfoneiro
tem seu jeito de tocar:
Quando muda os sanfoneiros, muda a música. O Seu Neném multiplica a música, ele
usa três acordes e multiplica com o mesmo som na dança, o segundo não multiplica,
fica na mesma coisa. Ele toca só uma posição. Quando um cansa, troca o sanfoneiro.
A tradição do lado do Neném é uma, e do outro é outra (Trecho da entrevista com
Senhor Tunico, realizada em 11/06/2019).
94
Figura 14: Os músicos do grupo na casa do Senhor Antônio Teodoro: Neném Teeiro está na sanfona, Luiz e
Pedro na caixa, e Antônio Teodoro no reco-reco.
O reco-reco e as duas caixas foram produzidos pelos seus tocadores. Segundo Senhor
Antônio Teodoro, a maioria das flechas usadas pelos caboclinhos foram confeccionadas por
ele, com madeira e elástico. Questionado se o modelo produzido das flechas foi baseado em
outras danças de caboclo, Senhor Antônio afirma que "tudo foi tirado da minha cabeça". Na
medida em que sai algum caboclinho, a flecha é transferida para o próximo integrante. As
flechas ficam guardadas na casa do Senhor Antônio, assim como as vestimentas dos integrantes.
Na Dança dos Caboclinhos, as flechas tornam-se instrumentos percussivos
fundamentais para a execução da prática cultural. São as flechas que produzem um som agudo
e percussivo característico de uma madeira densa, utilizado para fazer parte da marcação da
música (2 em 2 tempos). No próximo capítulo descreverei como as flechas são tocadas e como
elas acompanham os movimentos corporais praticados pelos caboclos no ato de dançar.
Ao tentar explorar um pouco mais sobre o papel da música na Dança dos Caboclinhos,
o Senhor Tunico mencionou que a música não permanece a mesma durante a etapa da dança
das flechas e das fitas, como eu havia pensado. Em cada ato, a música é tocada de maneira
diferente, embora essas mudanças não sejam diretamente perceptíveis para pessoas que não
possuem conhecimentos técnicos musicais. Senhor Chico afirma: “O toque de dançar é um, o
de trançar a fita é outro”. Senhor Tunico complementa: “A marcha pra dançar é um, pra
trançar é outro. Sabe até o modo de trançar a fita. O de trançar o toque é um e a marcha pra
95
cantar e falar é outro”. No caso da fala do Senhor Tunico, o marchar é a referência para a dança
das flechas e o trançar é a dança das fitas.
A cumplicidade dos tocadores com o Senhor Tunico é visivelmente perceptível, sendo
que cada músico sabe o que deve fazer e quando deve executar o comando de Tunico. Segundo
o mestre, a parceria entre ambos é consolidada já por muitos anos, especialmente com o
sanfoneiro. Quando Senhor Tunico lança o comando para o sanfoneiro, primeiro com o olhar e
depois soprando seu apito, significa que a música pode ser iniciada. A sanfona é a primeira a
ser tocada, seguida das duas caixas e do reco-reco, e, por último, as flechas. "A sanfona sai
primeiro, depois a caixa e o reco-reco, e os meninos escutam o batido da caixa e o toque da
sanfona, aí eles começam", afirma Senhor Tunico.
O apito é utilizado somente por Senhor Tunico e possui diferentes funções. Ele serve
para comandar os caboclinhos, assim como para chamar a atenção deles. Também é soado para
começar e finalizar uma música, e para acompanhar a melodia em alguns momentos durante a
dança das flechas. Na dança das fitas, ele é usado para iniciar e terminar a dança. O "pio", como
Senhor Tunico diz, é símbolo de autoridade no contexto da dança. "Ali o Tunico bate o pio e
cada qual no seu lugar. Aí cada qual caça o seu lugar. Já sabe o que tem que fazer", afirma
Senhor Chico.
Na dança das espadas, não há a presença do "pio" do Senhor Tunico, pois é praticado
apenas pelo Senhor Tunico e Chico. Essa etapa começa no momento em que Senhor Tunico
achar mais adequado e, assim, lança um olhar para o Senhor Chico para começarem o ato da
guerra. A espada é carregada pelo Senhor Tunico, Senhor Chico, que é o primeiro de uma das
filas, e pelo caboclinho Cleiveison Santos, que ocupa a primeira posição na outra fila. No
entanto, a dança das espadas é executada apenas pelos dois mestres. Nessa encenação, as
espadas são batidas no alto junto ao som produzido pelas flechas dos caboclinhos. Ressalto que
a dança das espadas ocorre no momento que acontece a dança das flechas. No próximo capítulo,
a dança das espadas será mais detalhada, assim como a dança das flechas e das fitas.
A Dança dos Caboclinhos pode ser praticada por horas. Entretanto, o Senhor Tunico
relatou que as crianças não conseguem permanecer durante muito tempo dançando, assim como
é também cansativo para os músicos. Por isso, a apresentação é realizada em períodos curtos,
com pausa e recomeço, sendo difícil totalizar uma duração da dança. Na apresentação do dia
12 de junho de 2019, o grupo faz pausas enquanto ocorria a missa na Igreja Matriz Santo
96
Antônio, além de pausas durante a mudança de etapa, da dança das flechas para a dança das
fitas.
Os versos são recitados somente por Senhor Tunico, assim como os cantos, que são
chamados por ele de poesia. Ele afirma que aprendeu sua poesia com o chefe Marco Caetano
enquanto era caboclinho, prestando atenção nos versos e nos cantos.
Era o chefe que me ensinou, eu era desse tamaninho e dessa turma de 34, só eu que
fiquei, mais ninguém. Eu dançando, fazendo pro meu lado, fazendo pra eles ver e
prestando atenção, por isso, essa pouco poesia que falo é tirado por ele. Eu dançando
e meu companheiro não aprendeu nada. E eu dançando e prestando atenção na
poesia dele, nas palavras, como que ele comunicava e tudo né. E eu dançando e pondo
aquilo na cabeça (Trecho da entrevista com Senhor Tunico, realizada em
11/06/2019).
Segundo Senhor Tunico e Senhor Chico, a letra ora cantada, ora recitada, é o que eles
chamam de poesia da Dança dos Caboclinhos. Nesse momento da conversa, Senhor Tunico
logo começava a recitar os versos e/ou a cantar, explicando em que ocasião cada segmento de
sua poesia é utilizado. Na execução da dança não ficava claro, para mim, a distinção entre
ambas, recitar os versos e cantar. Fui compreender essa diferença quando, nas explicações do
Senhor Tunico, ele relacionou sua poesia com os músicos e afirmou: "O falar é um e o cantar é
outro. No cantar, ele toca tudo, o falar, eu falo com os instrumentos calados. Agora o cantar
não, o cantar eles tocam tudo na sanfona". Sobre quais são os versos tanto do cantar quanto do
falar e o momento em que são utilizados serão explicados no próximo capítulo.
3.2.3 Indumentária
97
Já na cabeça é utilizada uma espécie de cocar alto e fechado, no formato de um triângulo, com
detalhe preto na borda, chamado de capacete. O capacete com penas possui um elástico que
facilita sua adesão embaixo da cabeça dos caboclinhos. Os caboclinhos calçam sandálias
abertas, modelo franciscana, que foram fornecidas pela Prefeitura de Peçanha também como
uma ação de salvaguarda do ano de 2019.
Figura 15: Indumentária dos integrantes: colete, saiote e capacete de penas com cores variadas. Por baixo, blusa
bege sem manga, short ou calça jeans, e nos pés sandália de plástico.
Segundo Marina Braga Leão, foram as mães dos próprios integrantes que
confeccionaram as roupas. Uma das mães relatou-me que precisou matar galinhas para montar
a farda e o capacete do filho, além do trabalho difícil de colar as penas. "Eu tive que matar 3
galinhas! Dá muito trabalho colocar pena por pena nessa fantasia" (Trecho da fala com Flávia
Teodoro, em 11/06/2019). Devido a essa mobilização das mães, a Casa da Cultura Minervina
Vieira vem provendo encontros anuais, semanas antes da Festa de Santo Antônio, com o intuito
de deixar as fardas e os capacetes prontos para serem usados, já que as penas se soltam
naturalmente ao longo do ano.
Na minha estadia em Peçanha, participei de algumas tardes na Casa da Cultura ajudando
as funcionárias a colar as penas. Segundo elas, no começo dos encontros, as mães participam
98
mais do trabalho manual, mas, quando vai aproximando o dia da festa, são as próprias
funcionárias que cessam suas atividades habituais para finalizarem as fardas e os capacetes.
Elas me explicaram que as penas são oriundas de doações de conhecidos que possuem
galinheiros, mas também já aconteceu de pais de caboclinhos comprarem as penas em lojas. E
é por ser doação que as penas são de diferentes variedades de cores e tamanhos que vão de
brancas a penas coloridas.
Nos dias em que estive colaborando na Casa de Cultura, notei que os capacetes são
feitos de papelão grosso. Aprendi com as três funcionárias que exerciam a atividade minuciosa
de colar as penas, utilizando cola escolar, que as menores eram escolhidas para o topo e as
maiores para a base. Dessa forma, o capacete ficaria mais uniforme e esteticamente mais bonito
com as penas caindo, já que se colava apenas a base final da pena, deixando o começo solto.
As penas balançavam enquanto os caboclinhos dançavam.
A escolha das penas também obedece a uma combinação estética de cores, de acordo
com as tonalidades das penas. Por exemplo, há capacetes somente brancos, outros marrons. As
mesmas funcionárias citadas tiveram a ideia de fazer uma barra preta de camurça para ser
colocada na base do capacete, o que foi aprovado pelos mestres. Sobre a barra preta, foi feito
um detalhe com um barbante traçando um zig zag. O envolvimento dessas trabalhadoras foi
fundamental para a finalização das indumentárias.
Incluo ainda nos trajes usados o artefato da espada dos mestres e do caboclinho, presente
na primeira posição de uma fila. Conforme mencionado, apenas os três utilizam as espadas.
Elas são de madeiras sendo que a do Senhor Tunico é trançada por uma fita de cetim e as outras
duas são cobertas por penas.
Os capacetes e as fardas são usados por todos os caboclinhos, mas não por todos os
músicos. Ainda sobre as vestimentas, Senhor Tunico relata que as roupas dos mestres, dele e
do Senhor Chico, são especiais. Nesse sentido, incluo também a roupa do Senhor Antônio
Teodoro, onde se percebe diferença nas cores das penas. Minha conclusão é de que são fardas
e capacetes mais antigos, pois Tunico afirma que sua roupa é composta por penas de ema, do
período em que ele começou a dançar. A farda desse mestre é a única que tem um modelo
diferente, ele usa uma jardineira e não um colete.
A preparação dos caboclinhos para vestirem suas fardas, seus capacetes e pegarem suas
flechas acontece somente na coreografia executada na Trezena de Santo Antônio. Essa
festividade é considerada o principal evento religioso e cultural de Peçanha, sendo reconhecida
como patrimônio municipal imaterial pelo Programa de ICMS Patrimônio Cultural, em 2009,
e é o contexto dessa festividade que será tratado a seguir.
99
3.3 A Trezena de Santo Antônio do município de Peçanha
Figura 16: Festividade da Trezena de Santo Antônio no município de Peçanha, localizada na Praça Getúlio
Vargas, no dia 08 de junho de 2019.
100
Braga, ela afirma que a festa nesse período ocorreu sim, mas em um formato simplificado, como
demandou o padre da época. A Trezena foi retomada como é atualmente no ano seguinte, época
em que foi enviada a documentação para o Iepha/MG para ser reconhecida como patrimônio
municipal. Desde então, a Trezena de Santo Antônio é celebrada até o presente ano10 .
A Festa de Santo Antônio obedece a treze dias de festividade. Sua comemoração é
sempre nos doze dias que antecedem o dia do padroeiro, 13 de junho. Todo ano o evento aborda
os ensinamentos do santo e outro tema de interesse diverso, sendo que no ano de 2019, o assunto
tratado durante as missas foram as políticas públicas. Durante 11 dias a programação é a mesma:
à noite ocorre a missa e trezena na Igreja Matriz de Santo Antônio, seguida de leilão e
barraquinha na Praça Getúlio Vargas, onde está situada a matriz. Nos dias 12 e 13 a
programação ganha destaque, com o carregamento da bandeira do santo em uma procissão com
o grupo de caboclos, marujada e os bonecos gigantes no dia 12; e no dia 13, a celebração da
missa festiva e leilão de gado.
Na programação do evento religioso, o grupo de caboclos esteve presente no dia 12, às
19h, e também no dia 13, na parte da manhã, sendo que o segundo dia não é citado na
programação festiva. Adiante, descreverei com mais detalhes a comemoração destes dois dias,
quando o grupo de caboclos executou sua coreografia.
Nas conversas com Senhor Tunico, ele afirmou que, desde a formação do atual grupo
dos caboclos, eles não deixaram de comparecer a nenhuma Trezena. Já o grupo de marujada
ficou muitos anos desativado e, no ano de 2019, o grupo retomou sua participação depois do
incentivo do Setor de Patrimônio Cultural. Contudo, não se pode afirmar que o grupo de
marujos, oriundo da zona rural, terá continuidade nos anos seguintes. Os bonecos gigantes são
referidos como bonecos do Sávio, Sávio Gandra, morador que os confecciona há anos. Esses
bonecos eram tradicionais antigamente, em grande quantidade e conhecidos regionalmente,
mas hoje permanecem apenas os dois, Joana e Rogério.
A manutenção desses grupos tradicionais, segundo o Dossiê de Registro da Trezena de
Santo Antônio elaborado por uma empresa especializada em ICMS Patrimônio Cultural, consta
que “no âmbito das dificuldades, a manutenção das manifestações folclóricas como marujos,
caboclinhos e bonecos, tornaram-se cada vez mais raras, uma vez que os grupos não mais
disponibilizam apresentações voluntárias” (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA,
2010, p.16).
10
Segundo informações da responsável pelo Setor de Patrimônio, Marina Braga Leão, no presente ano de 2020,
devido ao contexto de pandemia da Covid-19, a Trezena de Santo Antônio aconteceu através da rede social da
Paróquia de Santo Antônio, ocorrendo somente a parte propriamente litúrgica, que é a novena e as missas.
101
Sem adentrar no mérito da Política de Patrimônio Estadual, relato uma conversa com
Marina Braga sobre esse assunto. Na minha primeira visita aos caboclinhos, em 2017, Marina
Braga disse que o grupo de caboclos, depois de ter sido reconhecido como patrimônio municipal
de natureza imaterial, em 2014, passou a cobrar pelas apresentações, quando convidados.
Segundo Braga, isso dificultou a possibilidade de apresentações do grupo em outros eventos da
cidade e região, quando chamados. Nessa mesma época, o Senhor Tunico afirmou que eles
cobram pela presença do grupo, e que o valor varia conforme o evento, sendo a quantia que o
contratante está disposto a pagar.
Já na minha segunda estadia em Peçanha, em 2019, Senhor Tunico e Senhor Chico
foram enfáticos dizendo que não cobram pelas apresentações, mas que na Festa de Santo
Antônio, eles recebem uma ajuda que é dividida igualmente para todos os integrantes. No
passado, esse valor foi de R$1.800. Senhor Chico é o responsável por receber e dividir a quantia
para todos. Além disso, os mestres ressaltam que o grupo participa apenas da Festa de Santo
Antônio, e que, raramente, eles participam de outras celebrações. Sem me aprofundar nesse
ponto, cito essa questão como uma reflexão para entender a relação entre o poder público, os
detentores do patrimônio e a manutenção de uma prática cultural.
Para compreendermos melhor o desenvolvimento da Dança dos Caboclinhos, a seguir
será descrito os dois dias de apresentação do grupo em seu contexto festivo. Não concentrarei
nas etapas e nos movimentos da dança, mas como ocorre a preparação, a execução e a
finalização da dança dos dias 12 e 13 de junho de 2019, através da minha percepção como
observadora. Uma descrição mais detalhada da dança será realizada no próximo capítulo.
102
permanecer duas semanas seguidas, exatamente aquelas que correspondiam às duas semanas
antes da Trezena de Santo Antônio. O que eu visava com esse período de campo, para além de
tentar compreender o desenvolvimento da dança, era conseguir um contato mais informal e
rotineiro com os integrantes do grupo, principalmente os Senhores Tunico e Chico. Mas isso
não foi possível.
Entre os e-mails trocados, informei à Marina Braga sobre a previsão da minha ida para
Peçanha. Pela manhã no dia da minha partida, Braga me telefonou e disse para eu adiar minha
partida, pois, segundo ela, não era necessário permanecer duas semanas no município por não
ter o que fazer em relação aos caboclinhos. Esclareci meus motivos, meu interesse em
acompanhar os ensaios e ter um contato rotineiro com os detentores. Entretanto, fui autorizada
a acompanhar apenas o último ensaio do grupo. Ela era a mediadora entre os caboclinhos e eu,
logo, segui suas orientações.
No dia 8 de junho cheguei a Peçanha e, no dia seguinte, presenciei e registrei o último
ensaio do grupo, conforme relatado acima. Acompanhei o processo desde a concentração dos
jovens na casa do Senhor Antônio Teodoro, no bairro Alvorada, até o final do ensaio. Nos dias
posteriores até o dia da apresentação dos caboclinhos, conversei bastante com as funcionárias
da Casa da Cultura que colavam as penas nos capacetes dos caboclinhos que ainda faltavam,
conforme já mencionei.
Essas funcionárias não compreendiam o motivo do meu interesse no grupo de caboclos
e acreditavam que eu estava ali somente para filmar. Essa era a mesma ideia dos integrantes do
grupo em relação à minha presença. Também a maior parte do tempo eu estava com a câmera
na mão. Até no espaço da barraquinha e do leilão, na Praça Getúlio Vargas, algumas pessoas
vieram até a mim para saber se eu estava produzindo um vídeo sobre a festividade para a
Prefeitura de Peçanha. Nos dias 12 e 13 de junho, junto com meu orientador e seu bolsista,
essas suspeitas pareciam ter sido confirmadas, devido à presença deles e os equipamentos de
gravação.
3.3.3 Dia 12 de junho – Dança dos caboclinhos na Igreja Matriz de Santo Antônio
Nas conversas com os mestres, nos dias anteriores à primeira coreografia do grupo, notei
que estavam animados, e claro, eu também. Marina Braga me delegou a função de acompanhar
e levar as blusas e as novas sandálias que ainda estavam faltando para alguns caboclinhos,
quando soube que iria para o bairro Alvorada. Nesse instante, sentia-me mais à vontade com as
funcionárias da Casa da Cultura e com os próprios caboclinhos.
103
Chegando à casa do Senhor Antônio Teodoro, os meninos já reunidos, assim como os
outros integrantes, eu entreguei a encomenda de Marina para o Senhor Chico. Alguns
caboclinhos estavam acabando de vestir a farda, enquanto outros entravam e saiam da casa a
todo o momento, brincando. Enquanto isso, o Senhor Tunico observava mais os meninos,
enquanto o Senhor Chico tentava reunir a tropa, como eles mesmos dizem, e o sanfoneiro
afinava seu instrumento. Era notável a euforia de todos.
Depois da concentração, os participantes e alguns de seus familiares, principalmente
algumas mães, começaram a caminhada em direção à parte central da cidade, onde está
localizada a Casa da Cultura. Eles caminhavam com certa pressa, pois estava marcado um
lanche para os meninos às 17h e, depois às 19h, a saída em procissão da casa da festeira em
direção à Igreja Matriz. O bairro Alvorada está situado em um morro e é preciso descer uma
ladeira, chamada de bancada. Nessa bancada encontra-se também uma estátua grande de Santo
Antônio, disposta de frente para a cidade.
Nessa descida significativa, Senhor Chico dá o braço de apoio para o Senhor Tunico, e
ambos descem devagar e alertando os caboclinhos para tomarem cuidado. Chegando ao
Cruzeiro, na Av. Deputado Simão Cunha, Senhor Tunico bate o "pio" para juntar a tropa,
formando duas filas, e continuaram a caminhada até a Casa de Cultura. Lá os caboclinhos se
reuniram no portão da garagem e Senhor Chico e Tunico proclamaram as últimas instruções,
falaram da importância da data e para fazerem bem feita a apresentação. Com seu "pio" e olhar
para o sanfoneiro, Senhor Tunico balançou a cabeça para a música tocar. Formaram duas filas
com o Senhor Tunico no meio, entraram pela garagem da casa, dançando devagar até a varanda
onde estava o lanche.
Na área aberta, que serviria como refeitório, os caboclos não cessaram de dançar, pois
o grupo de marujada estava lanchando. Para esperar a marujada e para agradecer, Senhor Tunico
continuou seu comando, realizando algumas manobras da dança das flechas e, em um dado
momento, puxou um agradecimento pelo lanche, pelo padroeiro da cidade e pela caboclada,
como ele costuma dizer.
Nesse momento, Marina Braga estava colocando o pão e o refrigerante na mesa, quando
me pediu ajuda para servir a todos. O lanche é importante para os participantes, tanto da
marujada quanto dos caboclinhos, pois a apresentação toma tempo e os mestres se preocupam
com a alimentação dos meninos. Ajudar na organização me aproximava cada vez mais dos
caboclinhos e me retirava ainda mais da minha situação de apenas observadora.
Ao final, os mestres agradeceram pelo lanche novamente, reuniram a tropa e dançaram
até a saída da Casa de Cultura. Depois caminharam, sem dançar, em direção à casa da festeira
104
do ano de 2019, Dona Tereza, situada na rua Prof. José Corrêa Braga (ver ponto 7 na figura
06). Lá a garoa começou. Na porta da casa de Dona Tereza, os caboclinhos aguardavam a saída
dessa senhora para formar o cortejo. Também à espera estavam os tradicionais bonecos
gigantes, Joana e Rogério. Para completar, chegou o grupo de marujada tocando e dançando.
Nesse momento, Senhor Tunico bate o “pio” para começarem a dançar, como se convidasse a
festeira para sair em cortejo com os caboclinhos. Nesse cortejo, Dona Tereza carregava a
bandeira de Santo Antônio, que pertence à Paróquia, e era amparada pelos seus filhos que
estavam ao seu lado. O cortejo obedecia à seguinte sequência: Dona Tereza com a bandeira à
frente, os bonecos gigantes atrás dela, seguidos pelos caboclinhos e, por último, a marujada.
No trajeto do cortejo, notei que o evento era mais importante do que imaginava. Muitas
foram as pessoas que saíram de suas casas para apreciar a comitiva da janela, tirando inúmeras
fotos e filmando pelos celulares ou acompanhando pela rua. O caminho percorrido foi: saída da
rua Dr. José Corrêa Braga, rua da Praça do Coreto (ver ponto 8 na figura 06) e a rua Senador
Simão da Cunha até chegar na Praça Getúlio Vargas, onde está localizada a Igreja Matriz de
Santo Antônio. Os grupos tocaram e dançaram durante todo o trajeto em meio à chuva até
chegarem na porta da Igreja Matriz de Santo Antônio. Acompanhando o cortejo, percebi que
os caboclinhos estavam distraídos e batiam a flecha sem muita sincronia. Contudo, Senhor
Chico e Senhor Tunico seguiam atentos aos meninos que escutavam o "pio" do mestre.
Na porta da igreja, o cortejo não parou. Dona Tereza entrou primeiro com a bandeira,
depois os bonecos gigantes, que passaram com dificuldade pela porta, seguidos do grupo dos
caboclinhos e da marujada. O padre José Aparecido dos Santos estava no altar à espera do
cortejo, assim como os fiéis que foram chegando com o passar da missa. Os grupos folclóricos,
como eles mesmos se intitulam, não permanecem dentro da igreja. Eles entram dançando e
saem pela porta lateral do lado direito. O cortejo abre a missa das 19 horas na Igreja Matriz.
Enquanto a missa ocorre, os grupos esperam em um pequeno estacionamento do lado
esquerdo da igreja. Ali os mestres de ambos os grupos conversam, os caboclinhos e os marujos
descansam em uma arquibancada localizada ao fundo do estacionamento e bebem água
disponível na igreja. Os jovens integrantes dos caboclinhos e dos marujos não conversam entre
si. Talvez pelos marujos serem mais velhos e moradores da zona rural do município.
Com mais de uma hora de espera, a missa terminou. Senhor Tunico bateu o "pio", reuniu
a tropa e começaram a dançar em meio a muitas pessoas que assistiam no pequeno
estacionamento. A garoa voltou a cair e, mesmo que não tenha atrapalhado a dança,
provavelmente inibiu a presença do público. Acredito que, nos anos anteriores o número de
devotos foi maior, de acordo com conversa com os mestres e com Marina Braga.
105
O grupo de caboclos vai aos poucos tomando grande parte do espaço do estacionamento,
na medida em que vai realizando suas manobras, de acordo com o comando do Senhor Tunico.
Ao mesmo tempo, a marujada também está dançando, mas na minha impressão, de forma
menos confortável do que os caboclinhos. Nesse momento, a plateia já era maior e formaram
um círculo em volta dos jovens, sobrando apenas o espaço necessário para dançarem.
Por ali, os caboclos dançaram, executaram as etapas, as manobras, Senhor Tunico
recitou as poesias cantadas e lentamente ocuparam a frente da igreja, sendo que a marujada
continuava ao lado esquerdo do estacionamento. Ambos os grupos se apresentaram ao mesmo
tempo e os bonecos gigantes andavam para todos os lados. Essa apresentação durou cerca de
40 minutos. Após os caboclinhos executarem a parte final, a dança das fitas, o grupo encerra
sua apresentação e, enfim, é aplaudido. Os caboclinhos, seus familiares, assim como os mestres,
não ficam para presenciar o leilão, momento muito esperado na Trezena de Santo Antônio. Eles
se juntaram e subiram a pé pela bancada para voltar ao bairro Alvorada, afinal, no dia seguinte
pela manhã ocorreria outra apresentação.
106
O cortejo iniciou na Praça Getúlio Vargas, seguindo pela rua Julieta Carlinda, entrando
na rua José Bonifácio, depois na rua Clarismundo R. Oliveira até chegar na Praça Getúlio
Vargas, onde está a Igreja Matriz. Ao final, quase aproximando da porta da Igreja Matriz, os
caboclinhos passam para a frente da imagem e iniciam a dança. Eles foram os primeiros a
entrarem na igreja, seguidos pela imagem, dirigentes religiosos e devotos.
Os caboclinhos entraram na matriz, percorreram o corredor dançando, batendo suas
flechas, e saíram pela porta lateral, como no dia anterior. O grupo esperou por algum tempo do
lado de fora da igreja, até que a imagem fosse adorada pelos fiéis e ocorresse a benção final.
Ao término, os caboclinhos saíram dançando com suas flechas, contornaram a Praça Getúlio
Vargas até chegar ao espaço comunitário da Paróquia de Santo Antônio, localizado também na
Praça Getúlio Vargas. Esse local possui uma cozinha onde são produzidas as refeições que são
doadas no horário do almoço, no dia de Santo Antônio.
Para efetivar essa tradição, todos os anos alimentos são arrecadados através de doações
e as refeições são realizadas por voluntários. Uma enorme fila é formada na entrada do espaço,
quando foram servidas as marmitas prontas para os interessados. Dentre esses interessados,
estavam todos os caboclinhos e seus familiares, que não precisavam entrar na fila, pois
possuíam lugar privilegiado dentro da área da Paróquia. Uma longa mesa estava montada para
eles. Mas antes de ser fornecido o almoço para os participantes da dança e seus familiares, o
grupo dançou e executou as etapas. Isso não havia acontecido na apresentação do dia 12.
Na dança executada pelo grupo no espaço da Paróquia, pude evidenciar melhor as
manobras, enquanto permanecia um pouco afastada do grupo, observando e filmando. Na
minha percepção, pude compreender mais claramente as etapas que me foram descritas, tanto
os passos quanto as falas citadas pelo mestre. No dia anterior, diante do número expressivo do
público, do barulho e do meu envolvimento com os integrantes, não notei nitidamente os passos
e nem pude escutar a poesia do Senhor Tunico.
Refletindo sobre minhas conversas com o Senhor Tunico e Chico e com o que presenciei
como dança executada na Festa de Santo Antônio, considerei a memória afetiva dos mestres.
Ao observar a dança, compreendi que algumas coisas que me foram contadas estão atreladas a
fatos que já ocorreram, como a descrição que o Senhor Tunico fez sobre uma conversa que teve
com o padre, onde esse perguntava sobre como o mestre guardava ainda os versos. O grupo não
tem contato direto com o padre quando entram na igreja dançando, eles passam direto em
direção à saída pela porta lateral. No relato do Senhor Tunico, pareceu-me que a memória do
passado e do presente se confundem.
107
Para encerrar, no dia 13 de junho, após o almoço, os caboclinhos dançaram as três etapas
(flechas, espadas e fitas), mais um pouco, Senhor Tunico agradeceu a refeição em seus últimos
versos, e assim o grupo andou para a saída. Depois, juntos subiram a bancada até suas casas no
bairro Alvorada. Eu caminhei com o grupo até o começo da bancada, depois me despedi e
combinei de encontrá-los no dia seguinte. Minha sensação, ao vê-los subirem a íngreme ladeira,
foi de dever cumprido, mas também de vazio. Ainda queria permanecer com eles, conversar,
perguntar e tentar entender mais sobre o desenvolvimento da dança.
A partir da análise dos vídeos gravados, principalmente os filmados nesses dois dias, e
escutando nossas diversas conversas, no próximo capítulo tentarei descrever, de forma geral, o
desenvolvimento das três etapas da dança: a dança das flechas, a dança das espadas e a dança
das fitas. Para isso, abordarei os movimentos corporais, as manobras realizadas e a poesia citada
pelo Senhor Tunico.
108
CAPÍTULO 4 – A DANÇA DOS CABOCLINHOS
No capítulo anterior foi relatado o contexto em que a Dança dos Caboclinhos está
inserida: a história da formação do grupo, os protagonistas, os instrumentos musicais, a
indumentária e a presença do grupo na Trezena de Santo Antônio. A partir desse cenário, no
presente capítulo o foco é no desenvolvimento das três etapas que constituem a Dança dos
Caboclinhos: dança das flechas, dança das espadas e dança das fitas. Os dias de execução dessas
etapas ocorrem somente nos dias 12 e 13 de junho, na Trezena de Santo Antônio, conforme
mostra a figura abaixo:
Figura 17: Esquema das etapas da Dança dos Caboclinhos na Trezena de Santo Antônio
Dentre essas etapas, destaque-se que a dança das espadas é executada enquanto ocorre
a dança das flechas. A primeira citada é praticada apenas com o Senhor Tunico e o Senhor
Chico, mestre e contramestre, respectivamente, da manifestação artística, enquanto os
caboclinhos continuam a coreografia das flechas. A dança das flechas e dança das fitas são
compostas por manobras, que são diferentes passos e percursos. Ressalta-se que as duas danças
em questão possuem sete manobras no total, conforme mostra a figura 18. A dança das espadas
não é definida a partir do que os mestres chamam de manobras, mas será descrita a partir das
partes mais importantes. Vale ainda ressaltar que após executadas as três etapas da dança das
espadas, os mestres podem demandar o retorno à dança das flechas, como ocorre com a
finalização da dança. O mestre solicita retomar a dança das flechas para que a poesia dos versos
seja cantada e a Dança dos Caboclinhos finalizada.
109
Figura 18: Esquema sequencial das manobras de cada etapa da Dança dos Caboclinhos
Os movimentos corporais executados pelos caboclinhos em cada uma das três das etapas
serão descritos com detalhes de acordo com cada manobra realizada. Além da descrição textual,
recursos ilustrativos também serão utilizados, como diagramas, fotos e tabelas para melhor
compreensão das sequências, dos percursos e dos movimentos corporais praticados. A poesia
cantada, termo usado por Senhor Tunico, referente aos versos e cantos entoados através de um
conjunto de perguntas e respostas, realizado respectivamente por Senhor Tunico e pelos
caboclinhos, também será tratado nesse capítulo.
As descrições presentes nessa seção foram feitas a partir de análises de vídeos em
resolução Full HD, gravados por câmera digital, vídeos capturados de celulares dedicados à
gravação de vídeo, vídeos em formato 360 graus (2.7k) e fotos da prática da Dança dos
Caboclinhos. Os vídeos da câmera digital foram estudados por meio de anotação em vídeo
utilizando o software ELAN (Eudico Language Annotator) (SEELANDER, 2014), versão
4.1.1, desenvolvido pelo Instituo Max Planck de Psicolinguística, na Holanda. Esse programa
é utilizado na transcrição de dados linguísticos, possibilitando até detalhes de línguas de sinais
(ex. SEELANDER, 2014; FELÍCIO, 2014; OUSHIRO, 2014). Ele permite a anotação de gestos
de modo bastante detalhado, em linhas denominadas de trilhas, que podem ser criadas para a
transcrição de cada elemento gestual em separado. Durante a etapa de entrevistas também
gravamos os movimentos de um caboclinho utilizando um sistema de captura de movimento
inercial (com base em sensores), mais especificamente um sistema Perception Neuron 2.0
(PERCEPTION NEURON MOTION CAPTURE, 2020) com dezoito marcas/sensores, que
propiciou uma representação em três dimensões dos movimentos principais das danças. Nesta
dissertação, os dados de movimento serão utilizados para uma análise qualitativa e superficial
110
das trajetórias dos movimentos observados em vídeo, que são o corpus de dados central do
estudo.
Para este trabalho, foram selecionados três vídeos referentes a cada etapa da Dança dos
Caboclinhos, onde foram analisados os movimentos e interações gestuais, musicais, verbais e
visuais. Ressalto que foram examinados os movimentos citados de forma geral, pensados na
totalidade coreográfica, não havendo estudo específico para apenas um gesto. Ainda seguindo
essa perspectiva, ressaltamos que foi dada atenção especial nas análises em relação ao mestre,
Senhor Tunico, e ao contramestre, Senhor Chico. A escolha feita por esses integrantes é em
função de uma maior diversidade de movimentos em comparação com movimentos dos jovens
caboclinhos, além de permitir uma observação para duas pessoas que incorporam o modelo da
dança, ao invés de analisar os caboclinhos, que são mais numerosos.
Em cada etapa da dança das flechas, espadas e fitas, foram definidas trilhas de anotação onde
foram registrados o tempo e os níveis em relação ao que se definiu como macroestrutura,
estrutura e microestrutura. Neste trabalho, definimos a macroestrutura como as estruturas
totalizantes da coreografia, com durações maiores e que envolvem performances completas
com início, meio e fim. A estrutura é definida como seções de duração menor com
características homogêneas, como caminhadas, manobras ou pausas. A microestrutura nos
permite anotar detalhadamente cada passo, composições de gestos corporais, sonoros ou
visuais. Estas anotações permitem situar no tempo do vídeo as posições, chamadas verbais, e
sinalizações corporais expressadas pelos mestres. A divisão entre os três níveis de estruturas
citadas permite observar a manifestação em planos de ação temporal diferentes. Depois de
detalhadas as anotações, os dados foram organizados em uma tabela para uma análise das
categorias anotadas. Após um estudo detalhado das anotações, foram criadas três categorias
para distribuir as interações verificadas na anotação - fase de execução, executor e sinalizações
- no intuito de uma visualização mais ampla da coreografia para investigação do processo de
desenvolvimento dos movimentos da Dança dos Caboclinhos. Abaixo, exemplificamos a
anotação produzida no ELAN e a respectiva tabela de dados utilizada para a análise
111
Figura 19: Anotação dos movimentos dos três níveis pelo software ELAN
Figura 20: Tabela de dados utilizada para a análise das três categoriais
A dança das flechas é o início da Dança dos Caboclinhos. Essa dança é a que permanece
por mais tempo sendo executada pelos integrantes. Ela começa quando Senhor Tunico bate o
"pio", termo utilizado por ele referente ao apito, uma vez e diz: “Firma caboclo, cada qual em
seu lugar!”. E os meninos respondem em voz alta: “Eu tô no meu!”. Senhor Tunico novamente
bate o "pio", olha para os músicos, a sanfona começa a tocar, seguida das caixas e reco-reco, e,
por último, as flechas.
Na dança das flechas os caboclinhos estão organizados em duas fileiras, uma de frente
à outra, um caboclo ao lado do outro, e o Senhor Tunico sempre posicionado no meio das filas,
sendo a referência espacial necessária, pois ele é o condutor da dança. Um lado é composto
pelos meninos mais altos e o outro pelos menores, conforme informação do Senhor Chico. Notei
que essa formação inicial não se manteve a mesma durante o percurso da dança. A fila não é
estática, possui grande flexibilidade. Os dois primeiros caboclinhos de cada lado são
considerados os caboclos com espadas, por carregarem o artefato: o Senhor Chico e Cleiveison
Santos, de 15 anos, neto do Senhor Antônio Teodoro. Além deles, o mestre Senhor Tunico
também carrega uma espada.
No final das filas estão os músicos mais antigos do grupo, juntamente com o Senhor
Tunico e o Senhor Chico, com seus instrumentos: reco-reco, duas caixas e duas sanfonas. A
posição dos tocadores é menos rígida, possuindo a sanfona do Senhor Neném como referência,
que fica no centro dos músicos, sendo a segunda sanfona um pouco atrás da primeira. O reco-
reco fica posicionado ao lado esquerdo da sanfona principal, enquanto as caixas são
posicionadas nas extremidades do grupo, deslocadas para atrás do sanfoneiro principal,
conforme o esquema disposto na figura 21. Ao longo da dança, essa configuração inicial dos
músicos pode sofrer mudança, de acordo com as manobras executadas pelos caboclinhos, o que
será tratado adiante.
Ainda em relação aos instrumentos musicais, destaco o arco e flecha, que perdem a
função de arma utilizada pelos indígenas, e passam a ser empregados pelos caboclinhos como
113
um instrumento percussivo. Para os destros, a mão direita segura a flecha e a esquerda o arco,
o contrário ocorre para os canhotos.
Figura 21: Dispositivo inicial da Dança dos Caboclinhos. Cada círculo com um triângulo representa um
indivíduo participante. O triângulo representa a orientação geral da face do indivíduo (nariz). As cores e traços
diferentes representam categorias diferentes de participantes, indicados no gráfico.
115
Fonte: Marina Fares, novembro/2017
Esse movimento de puxar a flecha e produzir o som é chamado pelos mestres de “bater
as flechas”. Ele é realizado por todos os caboclinhos ao tocarem as flechas em uníssono. As
flechas são flexionadas, mas o disparo não é totalmente sincronizado, sendo possível algum
caboclo antecipar ou atrasar o tocar das flechas, o que não tem influência na dança, nem é
rigorosamente controlado pelos mestres ou outros caboclos. O toque das flechas pode ser
praticado quando os caboclinhos estão caminhando ou quando param em um local para se
apresentarem. Elas estão sempre direcionadas para baixo. Quando estão caminhando, a
movimentação das flechas é direcionada para o lado esquerdo e depois para o lado direito do
corpo, voltadas para baixo, posicionadas na altura da cintura. Quando estão dançando em um
local, os dançarinos levam as flechas ora para frente, ora para um lado do corpo, podendo
escolher o direito ou o esquerdo. Nesse momento, o tronco do corpo balança suavemente.
As flechas parecem desassociadas da função utilitária original (como instrumentos para
caça ou arma) uma vez que ficam presas nas estruturas do arco e mesmo o arco foi simplificado
para um filete de madeira. Desta função, restaram somente um perfil figurativo de representação
da flecha e uma função de percussão que é primária ao largo da função da flecha. É importante
ressaltar que sons percussivos não são característicos da interação entre arco e flecha, embora
o disparo possa apresentar uma sensação ou impressão de percussão. Isto parece demonstrar a
importância da função da percussividade do objeto acima das questões figurativas ou
funcionais, uma vez que estas foram transformadas em favor da primeira. Como esta função
musical se organiza na manifestação com o todo?
O grupo de músicos é formado por duas caixas, um reco-reco, duas sanfonas, que
formam a textura musical principal, embora as flechas, passos, palmas, apitos, falas e cantos
façam parte da composição da paisagem sonora da manifestação como um todo. A partir de um
ponto de vista de uma análise musical tradicional, a textura sonora realizada pelo grupo de
instrumentistas durante a manifestação é homogênea, homofônica, com poucas variações
harmônicas e rítmicas.
As caixas reforçam as mesmas figuras rítmicas ou ritmos em todas as danças, enquanto
as sanfonas desenvolvem praticamente as mesmas progressões harmônicas (ou as mesmas
relações entre acordes). A métrica musical, ou os ciclos principais da música tocada na
116
manifestação, parece estar estruturada em ciclos de quatro tempos (quaternário) ou dois tempos
(binário), embora o ciclo quaternário seja reforçado pelos ciclos de harmonia e pelos ciclos de
movimento nas danças. Essa estrutura musical é repetida em todas as danças e durante toda a
manifestação.
A figura 23 apresenta a anotação do vídeo do que seria um excerto que demostra o
modelo desenvolvido pelo grupo instrumental e ciclos de movimentos corporais. Cada linha
vertical nas trilhas representa um ataque ou evento no decorrer do tempo (horizontal). Por
exemplo, na trilha da caixa, podemos ver que o toque numerado como 1 dura mais que o toque
numerado como 2. São estes ciclos e combinações de durações que estruturam o ritmo,
representado na música tradicional com figuras musicais. A figura 24 apresenta a transcrição
deste modelo em notação musical, embora a anotação musical invisibilize as diferenças.
Figura 23: Exemplo de excerto de anotação dos instrumentos e movimentos corporais presentes na
dança das flechas. Este trecho demonstra um modelo musical que é reproduzido durante todas as danças,
representado em notação tradicional. Os traços verticais nas trilhas (linhas horizontais) representam eventos
anotados no tempo (que corre da esquerda para a direita). As relações do período entre um evento e outro
(duração) permitem identificar padrões temporais, padrões rítmicos, ou ciclos.
117
Figura 24: Modelo generalizado dos eventos anotados na anotação em vídeos transcritos em notação musical
tradicional na figura anterior. E indica esquerda, D indica direita. Na sanfona D indica o acorde de Ré Maior
enquanto G indica o acorde de Sol Maior. Os números indicados na Caixa Ataques são os mesmos indicados na
anotação em vídeo na figura anterior.
Fonte: Transcrito por Luiz Naveda a partir da anotação em vídeo.
Figura 25: Excerto extraído de frames de vídeo que simplificam a assincronia entre passos dos caboclinhos.
119
Figura 26: Esquema sequencial do principal passo da dança das flechas
Esse movimento corporal descrito acima sobre o bater das flechas é a base da dança das
flechas e é produzido repetidamente até essa dança cessar. Destaco que a dança das espadas,
que ocorre somente entre o Senhor Tunico e Senhor Chico, acontece no momento da dança das
flechas. Enquanto os mestres encenam a guerra, os caboclinhos continuam executando esse
passo principal de bater as flechas.
Questionei ao Senhor Tunico se existia significado do uso das flechas na dança e o
porquê de elas estarem posicionadas para baixo. Fiz essa pergunta pelo fato de que, nas minhas
pesquisas bibliográficas e no Dossiê de Registro do Grupo de Caboclos de Peçanha (2014),
encontrei a informação de que esse momento simbolizava a caça aos peixes pelos índios. "As
flechas dos caboclos num quer dizer caça, elas comunica pra dançar um com outro e tem que
ser certo". De acordo com o Senhor Tunico, as flechas “comunicam” umas com as outras na
intenção de chamar os caboclos para participarem da dança. Para ele, essa passagem da dança
é realizada com o intuito de evocar a encenação da guerra.
Os movimentos gestuais e dos passos do bater das flechas seguem uma lógica conhecida
pelas crianças, mas não são efetuados com rigor. Já os toques das flechas "têm que bater tudo
por igual, não bate truncado não", diz Senhor Tunico, fazendo sons com a boca para
exemplificar sua fala, afirmando que o som deve ser sincronizado. Contudo, em sua execução
os toques das flechas estão fora de sincronia e não são controladas pelos mestres.
120
Ainda sobre os movimentos gestuais, destaco os movimentos do Senhor Tunico e Chico.
O Senhor Tunico assume uma postura de chefe do grupo, posicionado no meio das filas com
sua espada na mão e o "pio" de cor prata dependurado no pescoço, observando a dança de todos
os caboclinhos. Quando observa alguma “distração” por parte dos integrantes, logo grita:
"Firma caboclo! Dança caboclo! Presta atenção no que vocês estão fazendo!". Sua espada feita
de madeira, com penas sobre ela, permanece na mão direita direcionada constantemente para o
alto. Às vezes a espada no braço direito é direcionada para algum caboclinho arrumar sua
posição, assim como também pode acontecer com o braço esquerdo, que é apontado para algum
integrante "fora da linha". Se os braços não estão cumprindo a função de comando, eles estão
flexionados realizando um leve balanço juntos, ora para um lado, ora para o outro no ritmo da
música. Senhor Tunico dança sem ousar grandes movimentos e sem grandes deslocamentos,
mas o mestre está atento desempenhando a função de observar e comandar os caboclinhos.
O Senhor Chico é o primeiro de uma das filas e carrega a espada como o Senhor Tunico
(Figura 27), embora dance com ela voltada para baixo. Ele segura a espada com as duas mãos
e não com uma, como o Senhor Tunico. Às vezes ele solta uma das mãos e raspa sua espada no
chão. Ele dança diferente dos caboclinhos. Seus passos estão acompanhando as marcações
realizadas pelas flechas, mas não seguem o mesmo formato dos caboclos. Seu tronco é
encurvado para frente. É bonito vê-lo dançando, assim como os caixeiros que dão leves saltos
enquanto tocam. Questionado sobre o motivo que o leva a se expressar dessa forma, o Senhor
Chico me contou que viu em outra cidade:
Vou te contar pra ocê onde que aprendi isso. Eu aprendi esse negócio foi lá no São
João. É um povoado que tem aqui perto. É São João Evangelista indo pra Belo
Horizonte. Aí eles arrumaram uma caboclada lá em São João, aí me perguntou se eu
sabia. Aí eu falei: uai, se ocês arrumarem a caboclada eu danço. Aí tinha um Gei, um
senhor que dançava caboclada, ele dançava e ele dançava na frente e ele só dançava
desse tipo e eu aprendi com ele. Ele dançava caboclinho mesmo e eu aprendi com ele
que eu dançava também. Eu ficava observando ele dançar e aprendi com ele e danço
mesmo. E tanto que ele falou que nunca viu ninguém dançar igual a eu não (Trecho
da entrevista com Senhor Chico, realizada em 11/06/2019).
121
Figura 27: Integrantes executando a Dança dos Caboclinhos: O Senhor Tunico está entre as duas fileiras de
caboclos; o Senhor Chico está à frente, do lado esquerdo da imagem, com o tronco encurvado, segurando cada
ponta de seu bastão com as mãos; o reco-reco está ao fim das fileiras ao lado do Senhor Pedro que toca caixa.
As expressões dos rostos, tanto do Senhor Tunico, quanto do Senhor Chico, são de
seriedade e de concentração, não havendo grandes mudanças faciais. A todo momento eles
monitoram o estado da performance (e.g. enrolar das fitas no mastro, passos, manobras) mesmo
que não interfiram diretamente sobre a performance na forma de verbalizações. Já as crianças
apresentam variadas expressões, que perpassam pela agitação, pelo ruído, pela presença de
pessoas estranhas em volta do grupo. Seus olhares observam o movimento ao redor. A atenção
das crianças não é apenas direcionada para a dança que está sendo efetuada, mas também é
dividida com o mundo exterior.
No trabalho de campo, ainda tivemos oportunidade de gravar um caboclinho dançando
alguns passos com um sistema de captura de movimento. Esse sistema permite extrair a
trajetória dos movimentos em três dimensões e estimar elementos da biomecânica da dança,
como a forma e a dinâmica da energia dos movimentos. Esses elementos podem nos ajudar a
visualizar os padrões de movimento e como eles reverberam rítmicas, tempos e métricas
subjacentes à estrutura da música e da dança. Abaixo, na figura 28, podemos verificar a
amplitude dos movimentos dos pés, mãos, tronco e cabeça. Os movimentos foram processados
como se só houvesse o deslocamento das partes do corpo (e não do corpo inteiro). Neste trecho
de quatro ciclos do passo principal da dança das flechas notamos que o movimento amplo está
concentrado no pé esquerdo e direito, que são os responsáveis pelo movimento do tronco. As
122
mãos e braços parecem fixos, indicando uma preparação necessária para carregamento e disparo
preciso da flecha.
Figura 28: Visões de frente e lado dos movimentos dos pés, mãos, tronco e cabeça visualizadas sobre um boneco
representando o corpo do caboclinho. 4 ciclos do passo da dança das flechas. Gravado com um sistema de
captura Neuron Mocap.
Figura 29: Padrão de energia cinética calculado genericamente sobre os dados do corpo do caboclinho utilizando
rotinas de análise de movimento por computador. Os padrões indicam, para 4 ciclos de movimento das flechas, a
energia cinética estimada para as extremidades (braços, cabeça e pernas) e tronco. De maneira aproximada estes
padrões apontam para os padrões do esforço (qualitativo) no movimento do corpo.
É possível inferir que a perna esquerda e a cabeça mantêm padrões rítmicos mais
repetitivos sinalizando a localização da rítmica como expressada pelo corpo (neste trecho).
Embora a coreografia não apresente muita elaboração é relevante notar como podem existir
diferenciações entre estruturas corporais que sustentam de maneira mais continuada com as
relações com o tempo e métrica musical. Neste caso, as pernas e a cabeça.
Ainda na dança das flechas, acontece a poesia cantada e falada por Senhor Tunico e as
manobras. Nas próximas secções abordarei esses dois temas, respectivamente.
124
Na dança das flechas, o canto é chamado pelo Senhor Tunico como “poesia”. Quando
ele relata essa poesia, ele faz menção aos versos citados ao longo da apresentação na etapa da
dança das flechas. Em suas explicações, ele afirma haver uma diferença entre o cantar e o falar
em sua poesia. Em sua definição, cantar é quando ele cita os versos durante a música tocada. Já
o falar é quando ele recita os versos com os instrumentos calados, como ele mesmo afirma: "O
falar é um, o cantar é outro. O que eu cantar e falar. O falar é um e o cantar é outro. No cantar,
ele toca tudo, o falar, eu falo com os instrumentos calados. Agora o cantar não, o cantar eles
tocam tudo na sanfona".
O conhecimento do Senhor Tunico sobre o cantar e o falar é proveniente da sua inserção
ainda criança na dança, quando ouvia os mais antigos recitarem os versos. Segundo o mestre,
as palavras foram guardadas em sua memória e hoje são reproduzidas somente por ele no ato
da dança. Em conversa questionei se a música tocada também é derivada de suas lembranças.
Em sua resposta pude constatar que os tocadores criaram uma música a partir do cantar do
Senhor Tunico, como ele relata:
Aí nasceu por eles mesmos. No meu falar e cantar, eles pegou e pôs na ideia e toca.
Igual o Neném que toca, o caixeiro bate a caixa consoante, o reco-reco a mesma
coisa, mas é tirada por mim. Eu falando, cantando e eles tocando. Já é tirada por
mim. Os versos, o cantar é tirado pela minha ideia (Trecho da entrevista com Senhor
Tunico, realizada em 11/06/2019).
Senhor Tunico explica que alguns versos têm o momento certo de serem citados, já
outros não. Esses últimos, Senhor Tunico declama ou canta, quando achar pertinente, de acordo
com o momento que acredita ser o melhor. Os versos podem ser repetidos ao longo da prática
em momentos diferentes. Durante a apresentação que assisti da Dança dos Caboclinhos, devido
à alta intensidade da música, não me foi possível compreender perfeitamente os dizeres dos
versos. Numa outra ocasião, depois da apresentação, tive a oportunidade de pedir que me
contasse o momento em que os versos são citados e quais seriam eles. A descrição relatada foi
de acordo com a trajetória regularmente executada todos os anos, mas não foi o que ocorreu em
2019.
O que foi narrado é que a trajetória percorrida pelos caboclinhos tem início na casa do
Senhor Antônio Teodoro e os integrantes seguem caminhando até o cruzeiro de madeira do
bairro Alvorada, localizado no começo da bancada (bancada é uma calçada somente para
pedestres, que liga o bairro Alvorada ao Centro). Ali, Senhor Tunico recita os primeiros versos
seguido pelo dançar dos caboclinhos. Depois o grupo caminha em direção à igreja e, dentro
desse local, outros versos de exaltação a Nossa Senhora do Rosário, Santo Antônio e Deus são
125
recitados para recomeçar a dança e, por último, os versos que mencionam a finalização da
coreografia.
Contudo, essa narrativa não estava de acordo com a manifestação que foi acompanhada.
No dia 12 de junho de 2019, o primeiro local em que ocorreu a dança foi em frente à Casa da
Cultura, onde o Senhor Tunico gritou diversas vezes para iniciar a dança: "Sentindo caboclo!
Cada um no seu lugar! Sentido Caboclo! Cada qual no seu lugar!". E aí os caboclinhos
respondem: "Eu tô no meu!". Seguindo, Senhor Tunico lançou a permissão para os músicos
começarem a tocar: "Dança Caboclo! Toca os instrumentos!" Senhor Tunico bateu seu "pio" e
a sanfona, seguida dos outros instrumentos, puseram-se a tocar. Depois, já dentro da área de
lazer da Casa da Cultura, a atenção dos meninos é outra vez marcada: "Sentido Caboclo! Presta
atenção no que ocês estão fazendo!". Essas frases de chamar atenção dos jovens são entoadas
pelo Senhor Tunico durante todo o processo da dança. As frases "Sentido Caboclo!" e "Dança
Caboclo!" são ditas diversas vezes ao longo da execução da dança das flechas.
Nesse dia percebi que os versos recitados não foram todos os que haviam sido relatados
para mim. Acredito que devido ao ruído e multidão reunida no entorno do grupo e devido à
presença da marujada, o Senhor Tunico tenha poupado as frases. Entretanto, o jogo de perguntas
e respostas ocorreu como esperado: o Senhor Tunico saudou a festa, Nossa Senhora do Rosário,
Santo Antônio, Deus e a caboclada; e os caboclinhos respondem com um "viva" após cada fala
do mestre. Nesse dia também aconteceu o deitar e levantar dos caboclinhos, termos utilizados
por Senhor Tunico, embora não tenha sido possível compreender os versos que o mestre citou
para os jovens nesse momento.
No entanto, no dia 13 de junho, consegui compreender o cantar e o falar que Senhor
Tunico havia me explicado. Durante a coreografia desse dia, ele citou os versos falando para
deitar e levantar os caboclinhos. Segundo o mestre, antigamente ele fazia os jovens deitarem e
o contramestre os fazia levantar, mas atualmente, no momento da poesia falada, ele cumpre
essas duas tarefas. Esse momento de subir e descer dos caboclinhos acontece quando integrantes
estão iniciando a dança após uma pausa.
Assim, com os caboclinhos de pé, Senhor Tunico cita os versos rapidamente e ritmados,
e os meninos e os músicos, exceto o sanfoneiro principal, agacham. Nesse instante, os
caboclinhos encostam a ponta da lança da flecha no chão, equilibrando-se para não cair. Já o
Senhor Chico e Cleveison ajoelham-se, tocando um joelho no chão e seguram suas espadas com
a mão direita, apoiando suas pontas no chão voltadas para o solo. Depois, o mestre declama os
126
versos para fazer os caboclinhos e os músicos ficarem em pé, e logo em seguida os tocadores
começam a tocar seus instrumentos e os jovens postos a dançar.
Para deitar
Ao pé de grão, pé de grão trigo
Que em Roma fui nascido
Em Galileia fui batizado
Em Justafá eu fui criado
Eu juro pela fé de santo Deus
Ave de santo Cristo Espírito
Que nenhum de vocês ficará espantado
Leva o setor, leva abaixo caboclo
Para levantar
Seu lolito na terceira
Para aventura de Vito Tomé
Seu pé de companhia de campo policial
É seu setor, leva acima meu caboclo
Oh os instrumentos!
127
ST: Senta meu caboclo que nós viemos dançar e trabalhar e caprichar com gosto e prazer das
alegrias para ver se nós vamos até Rosário de Maria.
Viva o Rosário de Maria ou não viva?
CB: Viva!
ST: Viva nossa caboclada ou não viva?
ST: Viva!
CB: Viva o festeiro ou não viva?
ST: Viva!
ST: Viva todos que aqui se acham, não viva?
CB: Viva!
ST: Viva nossa caboclada ou não viva?
CB: Viva!
ST: Viva Seu Antônio
CB: Viva!
ST: Siga meu caboclo a vida serei falada, a morte serei estimada
Abalei o pé de rosa que nunca foi abalado
Quem não tem bem, de glória não posso deixar
Toca os instrumentos caboclos
128
ST: Onde mora o Cálix Bento
CB: E a e a
ST: E a hóstia consagrada
CB: E a e a
ST: E a hóstia consagrada
CB: E a e a
ST: E todo mundo eu dou adeus
CB: E a e a
ST: E a adeus que lá vou-me embora
CB: E a e a
ST: E a adeus que eu lá vou-me embora
CB: E a e a
ST: E minha falta ninguém sente
CB: E a e a
ST: E o lenço que ninguém chora
CB: E a e a
ST: E o lenço que ninguém chora
CB: E a e a
ST: Me despeço de todo mundo
CB: E a e a
ST: Assim é era primeira
CB: E a e a
ST: Assim é era primeira
CB: E a e a
ST: Os caboclos vai embora
CB: E a e a
ST: É pro sertão lá da aldeia
CB: E a e a
ST: É pro sertão da aldeia
CB: E a e a
Enquanto os caboclinhos batem suas flechas, Senhor Tunico e Senhor Chico vão
balançando seus corpos, em pequenos movimentos indo para a direita e para esquerda, ao
129
mesmo tempo em que vão girando no centro das duas filas paralelas. Senhor Tunico ainda
demanda para os caboclinhos realizarem as manobras Meia Sol e Meia Lua no Centro. Depois,
novamente eles cantam fazendo um jogo de perguntas e respostas do canto citado acima. Nesse
momento, apenas Senhor Tunico está situado no centro das filas. Em um determinado momento,
o mestre bate seu "pio", anunciando a chegada do fim da dança. Os caboclinhos e os músicos
param suas atividades, Senhor Tunico fala os últimos versos, como mostra abaixo, com os
instrumentos calados e encerra a Dança dos Caboclinhos.
4.1.4 Manobras
130
Abaixo irei descrever as manobras, conforme vídeo gravado e analisado, referente ao
segundo dia de execução da dança. A escolha desse dia se justifica pelo fato de a dança ocorrer
no espaço paroquial, onde havia um público menor e os caboclinhos realizaram todo o processo
coreográfico mencionado pelos mestres na conversa que tivemos.
A partir da formação das duas filas paralelas dos caboclinhos e batendo as flechas
durante um certo tempo, Senhor Tunico, que está localizado ao meio das duas filas, lança o
comando da primeira manobra: Meio Sol! (Figura 30). Ressalto que as orientações das
manobras seguem as decisões do mestre durante a performance.
Figura 30: Cada círculo com um triângulo representa um indivíduo participante. O triângulo representa a
orientação geral da face do indivíduo (nariz). As cores e traços diferentes representam categorias diferentes de
participantes, indicados no gráfico. Formação da manobra Meio Sol: cada fila sai para o lado externo formando
um círculo independente onde os caboclinhos continuam praticando a dança.
Os caboclinhos que dançam em filas paralelas, de frente para o Senhor Tunico, viram o
corpo para frente. Cada fila realiza sua meia roda: a fila da direita vira para o lado direito do
caboclinho, dançando e tocando, assim como a fileira esquerda segue para o lado esquerdo.
Enquanto se deslocam e dançam, alguns caboclinhos giram o corpo, completando uma volta,
uma pirueta. Os primeiros de cada fila seguem até que todos os integrantes passem pelos
músicos. Esses não acompanham as manobras, permanecem em suas posições, apenas girando
seus corpos de acordo com a passagem dos caboclinhos. Os músicos não param de tocar. O
Senhor Tunico também acompanha os caboclinhos, passando por dentro das filas. Depois de
cada caboclinho passar pelos músicos, novamente eles formam duas filas paralelas. Logo em
seguida dessa formação inicial, Senhor Tunico fala alto: desfazer Meio Sol! E os primeiros
131
caboclinhos caminham para o lado direito de novo, passando pelos músicos e quando estão
prestes a fazer duas filas paralelas, Senhor Tunico comunica a próxima manobra Caramujô!
(Figura 31)
Figura 31: Cada círculo com um triângulo representa um indivíduo participante. O triângulo representa a
orientação geral da face do indivíduo (nariz). As cores e traços diferentes representam categorias diferentes de
participantes, indicados no gráfico. Formação da manobra Caramujô: pressupõe o formato de um caramujo, uma
fila por dentro e a outra por fora, formando uma quase roda, onde os caboclinhos permanecem dançando. Senhor
Tunico e os músicos posicionados ao centro não alteram suas posições.
Para realizar essa manobra, os caboclinhos da fila da esquerda, que estão voltados para
a frente da fila, vão em direção à outra fila passando por dentro dela. Já os caboclinhos da fila
da direita vão para o lado esquerdo, passando por fora da fila da esquerda. Nessa manobra, as
duas filas cruzam-se uma com a outra, sendo que uma passa por dentro e outra por fora, fazendo
menção a um espiral, como a casca de um caramujo, e quatro voltas completas são realizadas.
Assim como no Meio Sol, alguns caboclinhos realizam piruetas enquanto dançam e caminham.
Nessa fase, os músicos e o Senhor Tunico ficam no centro do círculo. Senhor Tunico gira seu
corpo acompanhando e observando os caboclinhos, já os músicos fazem uma roda entre eles
dento do círculo. Após concluir as voltas, Senhor Tunico troca o comando: Desfazer o
caramujô! Nesse instante, as frentes novamente preparam-se para formar as duas filas paralelas,
voltando para a disposição inicial. Quando está completa a formação das duas filas paralelas,
Senhor Tunico anuncia a manobra: Meia Lua no Centro! (Figura 32).
132
Figura 32: Cada círculo com um triângulo representa um indivíduo participante. O triângulo representa a
orientação geral da face do indivíduo (nariz). As cores e traços diferentes representam categorias diferentes de
participantes, indicados no gráfico. Formação da manobra Meia Lua no Centro: cada fila sai para o lado interno
formando um círculo onde os caboclinhos continuam praticando a dança. Senhor Tunico e os músicos se
posicionam ao centro das rodas.
A formação Meia Lua no Centro é realizada da mesma forma que o percurso Meio Sol.
A única diferença é que as duas filas da Meia Lua no Centro caminham dançando e batendo as
flechas para dentro da roda. Assim, a fila da direita caminha para o lado esquerdo e a fila
esquerda vai para o lado direito dos caboclinhos, conforme mostra o desenho acima. As filas
passam pelos músicos, que giram seus corpos acompanhando os caboclinhos, formando duas
filas paralelas.
Logo em seguida a essa formação inicial, os caboclinhos preparam para repetir as
últimas manobras, Meio Sol e Meia Lua no Centro. Nesse momento, é o Senhor Chico que
direciona esse final. Assim que as filas ficam paralelas, Senhor Chico já vira para o lado
esquerdo e sua fila o segue. Da mesma forma, Cleveison, o primeiro caboclinho da fila direita,
caminha para o lado direito, realizando a manobra Meio Sol. Quando os caboclinhos passam
pelos músicos, Senhor Chico se dirige para o lado direito, entrando dentro das duas filas,
enquanto Cleveison realiza o mesmo. Finalizado essas manobras, as duas paralelas se formam,
os caboclinhos permanecem dançando e os músicos situados na parte inferior, como foi
mostrado na figura 21, sobre o dispositivo inicial.
Embora o grupo tenha participado de ensaios, o contexto da manifestação exige uma
flexibilidade inerente às manifestações de rua cujas interações contextuais não são
133
propriamente previsíveis (em contraste, por exemplo, com performances de palco). É provável
que esta característica, tenha gerado um repertório de comunicação não verbal e não procedural
(e.g., que não está registrada em manuais) que foi observada durante a manifestação.
Por exemplo, aparentemente, cada manobra orientada por Senhor Tunico não acontecia
sem antes ele trocar olhares com o contramestre, Senhor Chico. O mestre não precisa verbalizar
com seu companheiro, mas simplesmente indicar com o olhar para que o Senhor Chico
direcione a fila para a manobra desejada. Segundo eles, é Senhor Chico quem guia essas
passagens, pois os caboclinhos podem não prestar atenção aos comandos.
Eu puxo a fila. Eu fico na frente pra puxar a fila, se eu não puxar, eles não puxam
não. Eu fico lá na frente, eu prendi lá na frente, é por conta disso, porque na hora
que o Tunico grita lá, se o outro dar bobeira, principalmente véspera de festa, é eu
que tenho que ficar atento, porque na hora que o Tunico grita, eu entro por um canto,
ele entra por outro (Trecho da entrevista com Senhor Chico, realizada em
11/06/2019).
A existência desses sinais não verbais é especulativa porque parte de minha observação
no vídeo, que pode ser resultado de outros sinais compartilhados entre os participantes e não
perceptíveis pelos pesquisadores fora do contexto. Entretanto, tentamos categorizar estes sinais
na tentativa de desenhar o conteúdo não-verbal latente que suporta a manifestação. Abaixo
segue uma tabela explicativa das sequencias e os pontos significativos da etapa da dança das
flechas.
134
Tabela 2: Sequência da etapa, descrição e categoria de sinal utilizado na dança das flechas
135
É só nós. Os outros não podem ter [espada]. Porque praticamente ele [Senhor
Tunico] é o mandante, eu danço na frente, eu tenho que ter ela e o que dança na frente
também tem que ter ela. É 3 espadas. E quem topa mesmo na espada, é eu e ele porque
o menino lá não sabe. É eu e ele [Senhor Tunico]. (...) Aquele menino tem o corpo
duro (Trecho da entrevista com Senhor Chico, realizada em 11/06/2010).
A Dança das Espadas não possui momento certo para ocorrer, acontece quando Senhor
Tunico deseja. A explicação do mestre sobre essa dança foi de difícil entendimento, pois seu
desenvolvimento foi demonstrado a partir de articulação de gestos e movimentos corporais.
Mas, quando tive oportunidade de presenciar, tentei compreender os esclarecimentos
anteriormente narrados.
A dança começa com a (a) troca dos olhares entre os mestres: Senhor Tunico chama
Senhor Chico para a dança. Quando isso ocorre, (b) os dois ficam de frente um para o outro
dançando cada um em sua posição, com Senhor Chico com a espada voltada para baixo e Senhor
Tunico com ela levantada. (c) Senhor Tunico movimenta sua espada para o lado direito,
direcionando o Senhor Chico para trocar de posição com o mestre. Nessa troca, Senhor Chico
continua com a espada em direção ao chão e Senhor Tunico com a sua para cima, e ambos
passam com o tronco inclinado para frente e de lado, dançando no tempo da música. Essa troca
de posição ocorre três vezes até que as espadas de ambos se cruzam. As (d) espadas se batem,
sendo que a do Senhor Chico fica por baixo da espada do Senhor Tunico. A (e) cada dois
cruzamentos entre as espadas, os mestres trocam de posição. O toque entre as espadas acontece
obedecendo ao ritmo da música. Essa ação de troca de posições e cruzamento das espadas
acontece de três a quatro vezes durante a encenação (Figura 33). A troca de olhares entre eles é
fundamental para saber o momento de mudar as posições. Mesmo atentos a essa ocasião, Senhor
Tunico não deixa de prestar atenção no comportamento dos caboclinhos e, às vezes, grita:
"Sentido, Caboclo!".
136
Figura 33: Esquema sequencial da dança das espadas: troca de olhares, posição inicial, troca de posições e
cruzamento das espadas entre Senhor Tunico e Senhor Chico
De acordo com a explicação do Senhor Tunico, esse movimento dos mestres representa
a guerra e a contra guerra. Quando as espadas se cruzam, elas não permanecem muito tempo
próximas e sim mais tempo distantes, pelo fato da contra guerra ser o vencedor, como explica
Senhor Tunico, "a gente bate pedindo paz e tirando fora". Os mestres dançam dentro das duas
filas, enquanto os caboclos continuam batendo suas flechas. A expressão do rosto dos mestres
é de seriedade e concentração. A duração dessa encenação é curta, em torno de 7 minutos e
pode acontecer mais de uma vez durante a dança das flechas. Ela é encerrada quando os mestres
decidem cessar e voltar a praticar a dança das flechas. Abaixo segue um esquema das sequências
mais significativas para que a dança das espadas ocorra:
Tabela 3: Sequência da etapa, descrição e categoria de sinal utilizado na dança das espadas
137
4.3 Dança das Fitas
Depois da dança das flechas e da dança das espadas, temos a dança das fitas. Entre essas
duas etapas, a dança das flechas e das fitas, ocorre uma pausa para descanso dos caboclinhos.
Como Senhor Tunico afirma, os intervalos são necessários, pois os caboclinhos ficam cansados
de dançarem por longo tempo sem cessar. E ainda incluo que a dança das fitas se desenvolve
de formadiferente das outras duas. Para realizá-la é preciso um mastro com fitas e os caboclos
a sua volta.
Tem que comunicar com eles ali, como é que trança e como é que não trança. Porque
é um contra passo complicado. Por aquilo ali é a mesma coisa de tecer um balaio.
Aqui passa por dentro e sai por fora, passa por fora e sai por dentro até chegar ao
final. Se passar um errando daquele atrapalha (Trecho da entrevista com Senhor
Tunico, realizada em 11/06/2019).
A dança das fitas acontece da seguinte forma: um mastro é segurado por um dos filhos
do Senhor Antônio Teodoro, o Fabinho, que permanece sentado em um banco, enquanto os
caboclinhos trançam as fitas em volta do mastro. É sempre ele que segura o mastro que fica
guardado na casa do Senhor Antônio Teodoro. O alinhamento dos caboclinhos dessa etapa pode
sofrer alteração de acordo com a altura dos participantes disponíveis. Destaco que Senhor Chico
também efetua a dança das fitas junto aos caboclinhos e presta muita atenção no trançamento
dos caboclinhos, para que não haja erros.
O Senhor Chico relatou que os caboclinhos são escolhidos segundo o tamanho, os
maiores de um lado da roda e os menores do outro. Somente oito jovens podem participar, pois
existem oito fitas coloridas de cetim fixadas ao mastro. Senhor Chico também participa do
trançamento. Antes de iniciarem essa dança, os participantes colocam para trás o capacete, que
fica dependurado no pescoço, para não atrapalhar o trançar das fitas.
O início da dança das fitas também começa quando Senhor Tunico bate o "pio" e ordena
aos músicos a tocarem. Nessa ocasião, os caboclinhos já estão posicionados corretamente.
Conforme já mencionado no capítulo anterior, a música que é praticada nessa dança não é a
mesma da dança das flechas. Os músicos ficam do lado de fora do círculo dos caboclinhos e o
Senhor Tunico, situado próximo aos jovens, caminha em torno da roda, lançando os comandos
e observando o modo correto dos movimentos que estão sendo praticados.
O mastro não é movido, sempre parado, segurado por Fabinho. A posição inicial é: cada
caboclinho segura a ponta de uma fita de cor aleatória com a mão direita e se posiciona em
frente à sua fita, formando um círculo ao redor do mastro. Quando estão todos prontos, Senhor
Tunico diz "Flor do dia" (Figura 34) e os caboclinhos, dançando e segurando as fitas, realizam,
138
repetidas vezes, um passo para trás e depois outro para frente, na simbologia de uma flor que
abre e fecha. Após uma curta duração assim, o mestre diz "Roda Grande" (Figura 35) e os
caboclinhos começam a girar para o lado direito, em círculo. Depois, Senhor Tunico diz "É vem
chuva" (Figura 36), e os caboclinhos trocam de lado do giro, ou seja, giram para o lado
esquerdo, também no formato de círculo (Figura 37), como mostram as figuras abaixo.
Figura 34: Caboclinhos executando a manobra Flor do Dia: movimentam os corpos para frente e para trás,
fazendo menção a uma flor aberta e fechada
139
Figura 35: Caboclinhos executando a manobra Roda Grande, preparação para trançar as fitas: formam uma roda
e giram para o lado anti-horário
Figura 36: Caboclinhos executando a manobra "É vem chuva": eles girando para o lado esquerdo, preparando
para trançar das fitas
140
Figura 37: Plano geral visto por cima na dança das fitas: ao centro o mastro, os caboclinhos ao redor do mastro e
a plateia em volta.
Após completar três giros para o lado esquerdo, Senhor Tunico diz: "Preparar para
trançar". Nesse momento, os caboclinhos ficam de frente para sua fita e consequentemente
para o mastro, movendo seus passos para frente e para trás, dançando sem sair do lugar,
enquanto o Senhor Tunico verifica se tudo está correto para, assim, dar o comando para o
trançamento. O momento exato de começar a trançar é ordenado por Senhor Tunico quando ele
grita "Treversei Balanciê" e os caboclinhos começam a trançar (Figura 38).
141
Figura 38: Caboclinhos trançando as fitas: um caboclo passa por baixo e outro passa por cima até o trançado
chegar ao final do mastro
Quando o trançado retorna para a fase inicial, ou seja, as fitas estão soltas, Senhor
Tunico novamente solicita para realizarem o trançado para finalizar a última etapa. O mastro
deve ser guardado com as fitas trançadas e, por isso, o trançar de novo é necessário. Para
encerrar, depois que o mastro está coberto pelas tranças coloridas, Senhor Tunico bate o seu
"pio" anunciando o término da etapa da dança das fitas. Abaixo apresento um esquema
sequência da dança das fitas para melhor entendimento do seu desenvolvimento:
Tabela 4: Sequência da etapa, descrição e categoria de sinal utilizado na dança das fitas
143
CAPÍTULO 5 – A PRESERVAÇÃO DA DANÇA DOS CABOCLINHOS
No capítulo anterior, abordamos a descrição dos movimentos corporais das três etapas
do processo de desenvolvimento da Dança dos Caboclinhos: flechas, espadas e fitas. Em cada
uma das três seções foram tratadas sobre suas manobras, demonstradas através de imagens,
diagramas e tabelas, em uma tentativa de melhor compreensão de sua totalidade coreográfica.
Além disso, na dança das flechas foram ressaltados alguns aspectos das estruturas musicais,
bem como da poesia cantada e falada. No presente texto, resgataremos alguns pontos relevantes
já citados ao longo dos capítulos anteriores, referentes às diretrizes específicas patrimoniais, ao
contexto da manifestação artística e à abordagem dos movimentos corporais da coreografia,
para serem associados com o processo de patrimonialização da Dança dos Caboclinhos.
Esses pontos terão interseções com os principais elementos das diretrizes patrimoniais
mencionadas no capítulo dois. Lembramos que a principal fonte documental é a Convenção
para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003) mas também há o
inventário e registro, que abordam requisitos necessários para que um bem seja reconhecido
como patrimônio imaterial brasileiro. Os elementos que serão tratados, a partir dessas fontes,
serão elencados abaixo para que sejam retomados no decorrer das análises que serão refletidas
neste capítulo.
Nos documentos de instruções operacionais de patrimonialização é citado que (1) no
processo de registro é importante partir de um ponto de vista antropológico, possuindo a
perspectiva etnográfica como metodologia principal, para analisar um bem. Isso implica ser
fundamental a (2) participação e inserção dos detentores da prática cultural no processo de
registro e, para isso, sublinhamos o item depoimentos, que reforça essa questão. Ainda seguindo
essa linha, a maior parte das manifestações culturais possui a oralidade e corporalidade como
fonte histórica, sendo que sua transmissão sob a ótica do olhar êmico é imprescindível para
elaboração de um registro. Outro elemento a ser tratado é o item de (3) descrição detalhada do
bem. Esta diretiva indica que é necessário documentar detalhadamente sobre cada etapa da
prática cultural, incluindo os atores sociais, contexto, sistema de organização e artefatos
necessários para que o bem se desenvolva. E, por último, citamos a (4) elaboração de um plano
de salvaguarda que consiste em diagnosticar a situação atual do bem, riscos de desaparecimento
ou não, e apontar ações de valorização e transmissão da prática às gerações futuras.
A partir desses quatro pontos destacados, iremos tecer relações entre eles, o relato de
campo, enfatizando a descrição das três etapas da Dança dos Caboclinhos, e o Dossiê de
144
Registro do Grupo de Caboclos de Peçanha. O que se pretende com essas conexões é contribuir
para a reflexão de possíveis metodologias para o processo de registro. Assim, é preciso antes
debater alguns pontos importantes no dossiê de registro da expressão cultural em questão, que
trarão subsídios para discussão entre a elaboração de um documento de salvaguarda e o
desenvolvimento da prática cultural.
145
Sobre o Dossiê de Registro do Grupo de Caboclos de Peçanha, destacamos que, no ano
seguinte em que sua documentação foi enviada ao Iepha/MG, sua ficha de análise veio com
solicitação de complementação de informações. Essas complementações são direcionadas para
esclarecer dúvidas que o revisor técnico encontrou ao analisar o dossiê. Os questionamentos
vão de encontro com a superficialidade de informações do dossiê de registro constatada
segundo escrito pelo profissional avaliador. Enfatizamos que essas ressalvas não foram
empecilhos para que o dossiê não fosse aprovado no ano enviado. As complementações foram
enviadas à instituição requerente e aceitas no ano seguinte. Dentre as observações feitas na ficha
de análise, descartaremos algumas pertinentes para o entendimento do processo de
patrimonialização da Dança dos Caboclinhos.
146
No contato com os mestres Senhor Tunico e Senhor Chico, as três partes da dança não
foram citadas, conforme relatado nos capítulos anteriores. Os detentores foram enfáticos quanto
às divisões da dança: dança das flechas, espadas e fitas. Ainda em diálogo com os mesmos,
conforme mencionado no capítulo 4, Sr. Tunico enfatiza que a dança das flechas representa o
chamar do outro para a dança, serve para comunicar com os caboclinhos; a dança das fitas diz
sobre um trançado que se refere ao modo artesanal de fazer balaios, que remete ao imaginário
indígena; e a dança das espadas é uma encenação de guerra, que representa o bem e o mal, onde
o bem sempre vence.
Cabe salientar ainda que o desenvolvimento de cada etapa da Dança dos Caboclinhos
não foi descrito no dossiê de registro, apenas mencionado, conforme mostra o parágrafo
anterior. Diante disso, tampouco foram abordados ou citados os movimentos corporais, visuais
ou gestuais que mantêm a prática cultural viva e permanente.
Além desses pontos citados na ficha de análise do dossiê de registro, reforçamos outros
que deixam de lado a complexidade da prática vista em pesquisa de campo e relatada nos
capítulos anteriores. Para refletir sobre esses pontos, destacamos a explanação feita sobre os
instrumentos musicais, a indumentária utilizada, os atores sociais, e por último, o ofício do
pedido de registro.
A abordagem apresentada no dossiê em relação aos instrumentos musicais e às
vestimentas utilizadas mostra-se incompleta, quando comparada com as explicações que os
mestres dão quanto ao enredo desses dois elementos. A respeito dos instrumentos musicais, é
citado no documento quais são eles, além de dizer que "a dança obedece ao passo marcado pela
caixa, que dita o andamento da canção entoada por eles". (PREFEITURA MUNICIPAL DE
PEÇANHA, 2014, p.18). Porém, foram solicitadas informações mais detalhadas sobre as etapas
da dança na complementação e os instrumentos foram mais definidos:
O reco-reco é feito de bambu amarelo, recortado por eles mesmos. Também os paus,
são preparados por eles, cortados ou reaproveitados de madeira de descarte, preparos,
lixados e enfeitados, utilizando penas. (...). Flechas e lanças são produzidas pelo
grupo, com madeira de aproveitamento; madeira macia que facilite o trabalho. Os
reparos nas caixas são feitos pelos caixeiros, utilizando de papelão, cordas e couro
sintético. (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA, 2014, p.73).
De acordo com os relatos de campo colhidos dos detentores, mesmo com a descrição
mais trabalhada do modo de fazer os instrumentos, as flechas, peças fundamentais da dança,
ainda há uma lacuna no documento. Também percebemos na entrevista com os mestres a
147
elevação da importância da sanfona, instrumento de destaque da prática cultural. Como dito por
Senhor Tunico, o desdobramento da dança está em consoante com a sanfona.
No dossiê, as vestimentas são citadas apenas enquanto participação das mães na
preparação das roupas, não expondo a maneira como são feitas. O capacete na cabeça dos
integrantes é chamado de chapéu de penas (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA,
2014, p.22). Já na complementação, algumas linhas a mais foram escritas: "Para confecção das
fardas são utilizadas penas de galinha, pato ou angola, que são colocadas ou costuradas sobre
tecido, normalmente algodão cru" (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA, 2014, p.72).
Resgatando a conversa com os mestres, tomamos conhecimento de que, antigamente, outros
tipos de pena eram usados para a produção das vestimentas, mas apenas penas de galinha,
doadas ou compradas, são utilizadas atualmente.
Outro ponto destacado nessa análise é a identificação dos atores sociais, conforme
relatado no capítulo três. No dossiê, o responsável pelo grupo de caboclos é Senhor Chico,
sendo Senhor Tunico colocado em um patamar secundário, em comparação ao contramestre. A
justificativa para tal feito é a idade já avançada do comandante. No depoimento enviado junto
à documentação, assim como a assinatura feita no oficio do pedido de registro, somente consta
Senhor Chico. Acompanhando de perto a prática cultural, é evidente que entre ambos existe
uma divisão definida sobre a função de cada um. Senhor Chico fica a cargo de “juntar a tropa”
e Senhor Tunico, “bater o ataque”, como eles mesmos relatam. No entanto, os dois são peças
fundamentais para a manutenção do grupo, havendo hierarquização na execução da dança.
Ao final do dossiê, encontra-se o pedido de registro do detentor, direcionado para a
responsável pelo Setor de Patrimônio Cultural do município de Peçanha. O texto é formal,
assinado pelo então responsável do grupo, Francisco Rosa dos Reis, o Senhor Chico. O motivo
do registro é exposto em dois parágrafos, alegando que a forma de expressão é “uma herança
indígena que mantem viva a lembrança daqueles que foram os primeiros habitantes desta Terra
e dá importante contribuição para a cultura peçanhense, em vários aspectos.” E também, o
registro “é de grande importância para a preservação dessa tradição como um incentivo para
sua permanência (...)” (PREFEITURA MUNICIPAL DE PEÇANHA, 2014, p.58). Lembramos
que os documentos de diretrizes patrimoniais afirmam que, para um bem ser reconhecido como
patrimônio imaterial, ele deve representar uma identidade cultural histórica e pertencer a um
grupo ou indivíduo.
Sem identificar de que forma a Dança dos Caboclinhos contribui para a cultura do
município e em quais os aspectos ela influencia, o ofício parece ser um pedido encaminhado
148
pela vontade dos órgãos superiores, mais do que pelo desejo dos caboclinhos. Tal fato pode ser
confirmado na fala dos mestres, quando questionados sobre as consequências do
reconhecimento como patrimônio imaterial da cidade. A resposta sobre possíveis mudanças
com o recebimento do título foi “nada, tudo continua do mesmo jeito” (Trecho da entrevista
realizada com Senhor Tunico, em 17/11/2017).
Explicitamos mais um questionamento do analista do Dossiê de Registro do Grupo de
Caboclos de Peçanha, vinculado à carta de solicitação de registro do bem cultural. Na ficha de
análise, ressaltou-se a falta de clareza em relação à justificativa para o reconhecimento do bem
como patrimônio, e também na importância da prática cultural para o município, assim como
para os seus detentores. A resposta foi replicada no dossiê de complementações, enfáticos de
que a dança modificou-se ao longo do tempo e procura perpetuar hábitos dos indígenas que
habitavam a região:
149
▪ estabelecer a busca pela descentralização da organização da manifestação que hoje em dia
se concentra no Senhor Francisco Rosa (Senhor Chico).
150
5.2 As interseções
No trabalho de campo realizado para esta pesquisa, verificou-se uma Dança dos
Caboclinhos complexa e rica de detalhes, o que não foi demonstrado em seu dossiê de registro.
Vários foram os fatores não tratados no documento da dança, de modo que transmitissem uma
prática cultural que busca ser uma brincadeira para os participantes e uma diversão para o
público local.
É importante ressaltar que esta pesquisa não tem como foco a discussão do Programa
de ICMS Patrimônio Cultural, por se tratar de uma política complexa, vinculada a fundamentos
teóricos próprios de avalição, associados a instruções de pontuação para obter recursos para o
município investir em seu patrimônio cultural. Também não cabe aqui discutir sobre a formação
do profissional que elaborou o dossiê, assim como os critérios usados pelo técnico avalista. Tais
fatores não impediram que o dossiê de registro fosse aprovado, como o foi em 2014.
De volta aos quatro itens citados no início deste texto, norteadores para a produção de
um dossiê de registro, destacamos os itens 1 e 2 que tratam da perspectiva etnográfica e da
participação dos protagonistas, respectivamente, na concepção do dossiê dos caboclinhos.
Ressaltamos que mesmo que o elaborador do documento não possua conhecimento sobre os
métodos envolvidos no trabalho etnográfico, as deliberações normativas do CONEP/MG –
Conselho Estadual de Patrimônio Cultural de Minas Gerais, trazem instruções claras e
necessárias que devem estar contidas em um dossiê. Apesar dessas orientações estarem
detalhadas na deliberação, nem sempre informações suficientes são fornecidas na prática.
No caso do Dossiê de Registro do Grupo de Caboclos de Peçanha, podemos dizer que
existem lacunas referentes à pesquisa que é produzida, além da descrição da dança propriamente
dita. Percebemos que, de um lado, mesmo que o discurso seja de preservação, estão os
responsáveis técnicos pela elaboração do dossiê de registro que visam padronizar a
manifestação para ser inserida dentro de uma formatação documental para corresponder a uma
política cultural e arrecadar recursos. De outro, está a narrativa dos integrantes da Dança dos
Caboclinhos, sendo que os atores sociais tiveram pouca participação no processo de registro.
Isso é exemplificado no item 5.1 referente ao dossiê em questão. O texto não apresenta uma
perspectiva dos detentores, não faz menção aos termos utilizados pelos integrantes, os
significados e a descrição das etapas não são citados e, para a elaboração do plano de
salvaguarda, não houve participação dos mestres. Isso leva a indagação se os caboclinhos
151
tiveram o conhecimento prévio de que a prática cultural seria reconhecida como patrimônio
municipal.
A participação dos atores sociais no processo de registro é fundamental. Mesmo que a
dança se fundamente através da oralidade ou corporalidade, as expressões orais ou não verbais
dos protagonistas são importantes fontes de análises. De acordo com Silveira (2007) “o trabalho
com fontes orais possibilitou trazer à História, como sujeitos e/ou testemunhos, aqueles que, de
certa forma, foram excluídos e colocados no anonimato, sem direito à memória” (p.39). O
dossiê dos caboclinhos não possui citações das narrativas dos protagonistas, nem tampouco das
expressões não verbais. Ressaltamos que seja como for o registro, escrito ou gravado, são as
expressões executadas pelos detentores que definirão o bem.
Os depoimentos orais dos caboclinhos são uma das peças fundamentais para
compreender a representação conjunta da dança e da música e para demonstrar como este
entendimento também está compartilhado entre os detentores. A dança não acontece sem a
música. Na Dança dos Caboclinhos, os passos seguem as marcações executadas pela música.
De acordo com o Senhor Tunico, os instrumentos acompanham a sanfona. Além disso, as
conversas são importantes para a compreensão do contexto da dança, das manobras, da poesia
cantada e falada, dos momentos certos de comando, do significado e da representação dessa
brincadeira.
Os movimentos corporais tanto da dança quanto da música contribuem para comprovar
a riqueza de detalhes que é a Dança dos Caboclinhos. Beaudet (2017) ressalta a importância de
compreender as expressões dos recursos corporais, como os movimentos do corpo e os gestos
musicais, para tentar entender, de forma mais clara e completa, o funcionamento e a
significação de uma manifestação artística. Além disso, nos estudos sobre antropologia da
dança, Beaudet enfatiza também a relevância da disposição do grupo, do percurso, da direção
e do lugar, trabalhados em um contexto amplo, aumentando a noção de totalidade da dança.
Conforme já mencionado, os recursos corporais, entendidos como os movimentos
gestuais, visuais e sonoros executados nas etapas da Dança dos Caboclinhos, não são citados
no dossiê de registro. Esse fato nos faz refletir sobre como é problemática a ação de registrar
um patrimônio imaterial baseada somente na oralidade. Nesse desafio, Brettas (2013) sublinha
a importância dos estudos da performance: “a análise de performance pode ser eficaz para
capturar e codificar a dimensão imaterial da informação, o que é fundamental para preservar o
bem cultural” (p.273). Mais uma vez reforçamos a importância da participação dos detentores
no processo de registro.
152
Apesar do termo performance não ter sido aprofundado ao longo desta pesquisa, por
opção e entendimento do que a prática cultural representa para os caboclinhos, conforme
explicado na introdução, compreendemos que refletir sobre ela é de importante valia para os
campos da música e dança.
Nos estudos da performance, dentro da perspectiva das Ciências Sociais, Taylor (2013)
desenvolveu sua pesquisa relacionando performance cultural e escrita. Destacamos que, de
acordo com Fonseca (2003), o campo do patrimônio sofreu mudanças quando se estabeleceu
relação, “iniciada nos anos setenta, no Brasil, entre a antropologia e as políticas culturais”
(p.20). Como já mencionado no capítulo um, na importante Constituição de 1988, a noção de
patrimônio é ampliada: o que antes era patrimônio histórico e artístico passa a ser chamado
patrimônio cultural brasileiro.
Para uma melhor compreensão do tema sobre a performance cultural e a escrita,
mencionaremos a Dança dos Caboclinhos como uma performance, no sentido colocado por
Taylor (2013), quando afirma que a performance “constitui a lente metodológica que permite
que pesquisadores analisem eventos como performances” (p.27). E ainda que “a performance
(...), funciona como uma episteme, um modo de conhecer, e não simplesmente como um objeto
de análise” (2013, p.17).
Segundo a autora, em uma abordagem entre a palavra escrita e a falada, a
problematização entre essa dualidade vai além das consideradas formas válidas do
conhecimento. De acordo com Taylor:
A fratura, ao meu ver, não é entre a palavra escrita e a falada, mas entre o arquivo de
materiais supostamente duradouros (isto é, textos, documentos, edifícios, ossos) e o
repertório, visto como efêmero, de práticas/conhecimentos incorporados (isto é,
língua falada, dança, esportes, ritual) (2013, p.48).
153
pelo Conselho Estadual, de certo modo, são “impostas” aos municípios sem considerar
especificidades locais” (2014, p.58). Além disso, elas não dão margem para os pequenos
detalhes que são perceptíveis quando estamos participando do momento da performance, nem
nos níveis espirituais. “Quando eu danço, me dá um negócio assim, vem de dentro. É só me
chamar pra dançar que minhas pernas começam a bambear” (Trecho da entrevista realizada
com Senhor Chico em 17/11/2017).
Entretanto, percebemos mais uma fratura que se aprofunda do arquivo ao repertório, e
do repertório à sua representação. Ao analisar profundamente as práticas de movimento
individual e de movimento em grupo dos caboclinhos, verificamos que as execuções da dança
não são necessariamente rígidas e nem são objetos e focos da ação dos mestres. “Chamar pra
dançar” pode parecer ser a prioridade fundamental, que se coloca à frente da precisão de passos
ou da execução perfeita das manobras. Neste sentido. Nesta mudança de prioridades, estar
participando, ser chamado para atuar (dançar, tocar), ou sentir-se convidado a dançar (como no
caso do Senhor Chico) parecem ser primazias culturais mais importantes do que seguir um
modelo coreográfico em sua precisão nos moldes tradicionais da cultura ocidental. Por fim,
ressaltamos que, no dossiê de registro da Dança dos Caboclinhos, são exigidos, e foram
anexados, vídeos com depoimentos de alguns protagonistas e uma mostra da dança na sua
principal apresentação, que é a festa do padroeiro de Peçanha. Esses suportes auxiliam na
análise do registro, mas não conseguem decodificar as ações minuciosas, por exemplo, os
movimentos gestuais e a descrição do ato visual. Esses auxílios contribuem para a tentativa de
um não engessamento da manifestação artística, causada pela fonte documental, “que podem
comprometer a espontaneidade dos bens que se tornam patrimônio imaterial” (BRETTAS,
2013, p.276). Os depoimentos e vídeos sobre os caboclinhos não são disponibilizados para o
público e estão armazenados no arquivo interno da instituição.
5.3 A perpetuação
O objetivo do registro, em sua forma documental, sem dúvida é a preservação dos bens
culturais. E ele cumpre sua função. Além de ser uma forma de proteção e valorização, o registro
garante recursos para que o bem cultural se mantenha em atividade.
Entretanto, de acordo com Taylor (2013), o arquivo documental não é garantia da
continuidade de uma tradição intangível. Para ela o que assegura a perpetuação da forma de
expressão são as ações incorporadas pelo processo de aprendizagem, quando executadas pelo
154
grupo. Essas práticas vivas possuem resistência, continuidade, se adaptando ao contexto e
contrapõem-se à ideia de efemeridade. Taylor defende o que ela chama de Atos de
Transferência.
155
repetitivos" (BRETTAS, 2013, p.262). Para Taylor e Brettas, são essas recorrências, a memória
corporal, que serão transmitidas para as próximas gerações, e para Cunha, preservar a memória
e o “sentimento de continuidade para as gerações anteriores” (2006, p.96).
Taylor é uma questionadora do processo de patrimonialização de práticas culturais por
parte do Estado, com atuação no campo do patrimônio imaterial na UNESCO. Em seus estudos,
ela propõe que a preservação de bens imateriais pode ser realizada através de uma estruturação
de cenários. Taylor afirma que a perspectiva de cenários pode ser entendida como narrativa e
enredo, mas exige atenção ao meio social e aos comportamentos corporais, como gestos,
atitudes e sinais de linguagem ou não. Esses cenários permitem um conjunto de possibilidades,
incluindo elementos decorrentes de estruturas econômicas, políticas, sociais, relações de poder,
conflitos, valores, etc. Para ela, o cenário permite tecer relações com diversos campos para
tentar compreender uma prática cultural.
Seguindo nessa perspectiva, no texto de Campos e Naveda (2016), ambos buscam
compreender a representação do patrimônio imaterial através das descrições das estratégias
cognitivas. Para eles, o conhecimento incorporado é negligenciado nos estudos culturais, “onde
textos, objetos e representações do corpo são mais valorizados que a ação do corpo em
movimento como um texto em si mesmo” (p.373). Para os autores,
a ideia de um patrimônio na forma de uma estratégia cognitiva amplia a guarda do
patrimônio para uma diversidade de indivíduos aculturados. Estes indivíduos, mesmo
que desprovidos de capacidade de produção elaborada de formas de música e dança,
salvaguardariam modelos de participação próprios da cultura. (CAMPOS, NAVEDA,
2016, p.378).
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As descrições das etapas – flechas, espadas e fitas, que compõem a Dança dos
Caboclinhos, foram exploradas detalhadamente para uma melhor compreensão dos usos dos
movimentos corporais para a prática da dança. Para isso, foram realizadas anotações dos
159
movimentos gestuais, verbais e visuais de cada manobra realizada em cada uma das três etapas.
Expressões e terminologias utilizadas pelos atores sociais foram transcritas em uma tentativa
de citar o ponto de vista dos detentores. Nessa abordagem foram utilizados recursos digitais,
como fotos, vídeos, câmera 360°, captura de movimento e anotação em vídeo para aprimorar
as características dos movimentos. Tentativas de representar as especificidades da estrutura
musical em uma linguagem acessível também foram trabalhadas em conjunto com os gestos
praticados na dança.
Levando em consideração discussões importantes trabalhadas ao longo desta
dissertação, a última seção retoma pontos que são analisados no Dossiê de Registro do Grupo
de Caboclos de Peçanha. A ficha de análise fornecida pelo técnico avaliador do Iepha/MG foi
o ponto de partida para verificar os seguintes elementos faltantes nesse documento: perspectiva
etnográfica para elaboração de um dossiê; a participação dos detentores no processo de registro;
descrição detalhada de cada etapa que constitui o bem cultural; e a importância do bem para os
detentores e a comunidade. Ainda incluímos outros pontos importantes que foram tratados
referentes à abordagem do dossiê, como as ações que compõem o plano de salvaguarda, o
motivo do pedido de registro e as diferentes entre o escrito no dossiê e o relato dos caboclinhos.
Os resultados encontrados nesta pesquisa estão direcionados a avaliar a relevância de
tratar as ações incorporadas nos processos de registros, pois é através da memória corporal que
se perpetua a prática cultural. Esses atos de transferências se propagam principalmente por meio
de observação e imitação. A oralidade e a corporalidade dos detentores são peças fundamentais
para compreender a preservação de um bem imaterial, por isso, elas merecem mais atenção
nesse campo.
Ressaltamos que, para a realização desta pesquisa, alguns pontos foram limitantes,
devido ao pouco tempo de contato com os integrantes da dança. Mais tempo junto aos
participantes, assim como o registro de conversas com os jovens caboclinhos, contribuiria para
um maior embasamento na busca de uma perspectiva êmica, melhor compreensão no processo
de elaboração do documento de patrimonialização da manifestação, assim como melhor
entendimento da Dança dos Caboclinhos. A proposta inicial de análise dos vídeos gravados em
conjunto com os integrantes seria um importante reforço para essa perspectiva, o que não foi
possível de ser concretizado. Escutar o lado do setor público que elaborou o Dossiê de Registro
do Grupo de Caboclos de Peçanha também foi um elemento faltante. Acreditamos que uma
maior estadia em Peçanha traria mais oportunidades de explorar elementos que foram discutidos
na pesquisa, assim como abordar outros novos.
160
Na área do patrimônio cultural são escassas as referências bibliográficas que tratam de
performance. Os materiais encontrados sobre essa temática não discorrem sobre a possibilidade
do corpo como fonte de análise. Para contribuir com esse estudo é preciso buscar subsídios em
outros domínios acadêmicos, como na dança, na antropologia da performance e na
etnomusicologia. Através de uma visão multidisciplinar, é possível tecer interseções que
colaboram para uma visão mais ampla de uma prática cultural e seu processo de
patrimonialização. Destacamos que, por si só, o patrimônio cultural é uma esfera complexa que
se ramifica em diversos territórios.
Em vinte anos de política de patrimônio imaterial brasileira, muito se percorreu com
contribuições avançadas nesse ramo, como a implementação do próprio instrumento de
preservação, o registro. Transformações significativas ocorreram ao longo do tempo, citamos a
inserção da participação dos detentores e a exigência de vídeos no processo de registro.
Contudo, ainda há muito caminho a ser percorrido, como a discussão que esta dissertação trata,
do corpo ser um elemento importante de preservação, consequentemente, de perpetuação.
Nessa trajetória do patrimônio cultural, espera-se que este trabalho contribua para
ampliar a discussão sobre os modelos vigentes de preservação de bens culturais imateriais nas
políticas públicas. Para isso, refletir sobre o método pode ser o primeiro passo a ser levado em
consideração na abordagem sobre esse tema. Contudo, esta pesquisa não explorou elementos
que poderiam propor uma metodologia, pois isso demandaria mais tempo e dedicação. Mas
acredita-se que a inserção de estudos sobre o corpo no processo de registro pode auxiliar de
forma efetiva na perpetuação de práticas culturais. Esperamos que essa pesquisa, com seus
acertos e falhas, possa servir como um pequeno pontapé inicial.
Para finalizar, sublinhamos que esta pesquisa não atingiria seu objetivo sem a
participação dos atores sociais para o entendimento da Dança dos Caboclinhos. São eles que
definem e produzem sentido a sua prática cultural. Apesar da presente análise estar desenhada
como um documento acadêmico formal, é importante pontuar duas falas que foram
mencionadas em relação ao motivo que levou os jovens caboclinhos a dançar e dar continuidade
a esse bem.
Na primeira fala, os jovens caboclinhos foram enfáticos quando responderam porque
dançam. Eles dançam simplesmente pelo prazer, pelo gostar de dançar. Na segunda, foi
questionada ao Senhor Tunico quem seria seu sucessor e ele disse: "quando Deus me chamar,
a dança acaba". Seus esclarecimentos discorrem sobre a falta de uma pessoa firme no grupo:
"Chico não tem lábia, tem que pegar com Deus enquanto eu tiver vivo, porque depois que eu
161
for, só fica no retrato e guardado na televisão pra ver Tunico dançar. Eu tô lá no Reino da
Glória e eles me vendo dançar cá".
Se o patrimônio cultural é pautado no risco de desaparecimento de bens culturais, e,
para isso, a preservação e a perpetuação são tão discutidas, assim como foi nesta dissertação,
como se estabelece a perda dessa prática cultural diante da fala do Senhor Tunico? Isso é
material para uma terceira dissertação.
162
REFERÊNCIAS
ABREU, Marta. Cultura Popular, Um conceito e Várias Histórias. In: ABREU, Martha;
SOIHET, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2003.
ACSELRAD, Maria. Dançando contra o Estado: a relação dança e guerra nas manobras dos
caboclinhos de Goiana/Pernambuco. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, 2019.
ALVES, Eder Patrick Maia. Diversidade Cultural, Patrimônio Cultural Material e Cultura
Popular: a UNESCO e a Construção de um Universalismo Global. In: Revista Sociedade e
Estado, v. 25, n. 3, 2010.
BAZERMAN, Charles. Shaping written knowledge: The genre and activity of the
experimental article in science. Madison: University of Wisconsin Press Madison, 1988.
BROWNING, Barbara. Samba: resistance in motion. [s.l.] Indiana University Press, 1995.
CLARK, Andy.; CHALMERS, David. The extended mind. Analysis, p. 7-19, 1998.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Os efeitos perversos do regime de Propriedade Intelectual. In:
RICARDO, C.A.; RICARDO, F. (OrgS.). Povos Indígenas no Brasil. 1.ed. São Paulo: ISA,
2006, p.96-99.
164
DELGADO, Lucília A. N. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In: História
oral, Associação Brasileira de História Oral, n. 6, 2003, p.9-25.
DESMOND, Jane. Embodying Difference: Issues in Dance and Cultural Studies. Cultural
Critique, v. 26, 1994, p. 33-63.
_________. Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance. [s.l.] Duke University
Press, 1997.
DUARTE, Alice. O desafio de não ficarmos pela preservação do patrimônio cultural imaterial.
In: I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e
Espanhola, v.1, 2010, p.41-61.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal. In: ABREU, Regina & CHAGAS,
Mário (Orgs.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. 2.ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2003, p. 59-79.
______. Patrimônio e performance: uma relação interessante. In: TEIXEIRA, João Gabriel L.
C; GARCIA, Marcus Vinícius Carvalho; GUSMÃO, Rita. Patrimônio imaterial,
performance cultural e (re)tradicionalização. Brasilia, DF: TRANSE/CEAM: UnB, 2004.
______. Referências Culturais: Base para novas políticas de patrimônio. In: IPHAN, O registro
do patrimônio imaterial. Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
Patrimônio Imaterial, IPHAN, 2006.
GALLAGHER, Shaun. How the Body Shapes the Mind. [s.l.] Oxford University Press, 2005.
GOLOVATY, Ricardo Vidal. Cultura Popular: saberes e práticas de intelectuais, imprensa e
devotos de santos reis, 1945 - 2002. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de
História / Universidade Federal de Uberlândia, 2005.
165
INADA, Takashi. L’évolution de la protection du patrimoine au Japon depuis 1950: sa place
dans la construction des identités régionales. In: Ebisu Études japonaises Patrimonialistion
et Identités en Asie Orientale. Nº Thématique I. 2015.
JÚNIOR, Adebal de Andrade; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. O ICMS Patrimônio
Cultural e indução da política municipal de proteção patrimonial em Minas Gerais: o caso de
Contagem. In: Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte, v. 16, n. 25, jan/jul, 2014.
KUUTMA, Kristin. From folklore to intangible heritage. Book editor: William Logan, 2015.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e Escrita. In: Signótica, v.9, 1997, p.119-145.
MORAIS, Sara. Modos de fazer e usar o INCR: reflexões sobre sua dimensão prática. In: 30ª
Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João
Pessoa/PB.
166
NETO, Antônio Augusto Arantes; MORAIS, Sara; RAMASSOTTE, Rodrigo. Trajetória e
desafios do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC): entrevista com Antônio
Arantes. In: Revista CPC, São Paulo, v.20, 2015, p. 221-260.
______. Nossa Terra, Nosso Orgulho. Peçanha em Prosa e Verso. Setor Municipal de
Cultura de Peçanha, Peçanha, 2016.
ROCHA, Gilmar. Cultura Popular: Do folclore ao Patrimônio. In: Mediações. v. 14. n.1,
jan/jun. 2009, p. 218-236.
SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. Revista crítica de ciências sociais, n. 78, 2007, p.3-46.
SEGATO, Rita Laura. A Antropologia e a Crise Taxonômica da Cultura Popular. In: Anuário
Antropológico/ 88. Ed Universidade de Brasília, 1991.
167
SEELANDER, Ana Luisa. O gesto em dança: descrição da gestualidade em uma narrativa
dançada. Dissertação de mestrado apresentado para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, USP, São Paulo, 2013.
SILVA, Ariel. Cultura, festa e cidade: a Festa do Rosário do Serro (MG) – contextualizações
e inflexões. Dissertação submetida no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura
e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, UFBA, 2014.
SILVA, Jacqueline de Oliveira. Guerra, Perré e outras manobras: uma etnografia da Dança do
Caboclinho Pernambucano. In: Dança: Revista do Programa de Pós-Graduação em Dança,
Salvador, v. 3, n. 1, p. 75-87, jan./jul. 2014.
TAYLOR, Diana. Performance e Patrimônio Cultural Intangível. In: Pós: Belo Horizonte, v.1,
n.1, 2008, p.91-103.
VIEIRA, Oscar. Peçanha, breve notícia histórica da fundação da Aldeia de Santo Antônio
do Bom Sucesso do Descoberto do Peçanha. Editora Traquitana, Belo Horizonte, 2001.
VOGT, Olgário Paulo. Patrimônio Cultural: um conceito em construção. In: Métis: história &
cultura, v.7, 2008. p.13-31.
Fontes orais
Entrevista concedida a Marina Fares Ferreira, por Flávia Teodora, filha de Antônio Teodoro,
em 17/11/2017.
Entrevista concedida a Marina Fares Ferreira, por Senhor Chico, Francisco Rosa, contramestre
da Dança dos Caboclinhos, 17/11/2017 e 11/06/2019.
Entrevista concedida a Marina Fares Ferreira, por Senhor Tunico, Antônio Domingos de Brito,
mestre da Dança dos Caboclinhos, em 17/11/2017 e 11/06/2019.
Entrevista concedida a Marina Fares Ferreira, por Neném Teeiro, tocador da sanfona principal,
em 09/06/2019.
Entrevista concedida a Marina Fares Ferreira, por Marina Braga Leão, responsável pelo Setor
de Patrimônio Cultural de Peçanha, em 9 a 14/06/2019.
170