Agripina e As Outras Redes Femininas de
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RESUMO
Uma das características da corte imperial romana no século I d.C. parece ter sido o facto de as mulheres terem
exercido formas de pressão política, ainda que esse não fosse de todo um dos seus campos de acção. Ou, pelo
menos, oficialmente não o seria. Para o Homem clássico, efectivamente, a intervenção feminina no domínio
da política era considerada uma atitude contra-natura. Mas o facto é que as fontes antigas nos deixam perce-
ber que houve várias figuras que não se deixaram intimidar pela interdição e assumiram papéis mais ou
menos activos, de uma forma mais ou menos evidente. Agripina Menor é um desses casos, senão o mais para-
digmático do século I d.C. Mas ao lado dela, ou contra ela, estiveram outras mulheres, como as aristocratas
Júlia Drusila, Júlia Livila, Valéria Messalina, Lólia Paulina, Domícia Lépida, Cláudia Octávia e Popeia
Sabina, as cortesãs Calpúrnia e Cleópatra, a liberta Acte ou ainda Locusta. Aparentemente, a História do pri-
meiro século da nossa era também se faz com estes nomes. Este artigo pretende assim apresentar um resumo
das conclusões do estudo que temos vindo a desenvolver no âmbito da participação das mulheres no univer-
so político de Roma no século I d.C.
Palavras-chaves: História das Mulheres na Antiguidade - Política romana sec. I - Agripina Menor - Júlio-
Cláudios.
Key words: Ancient History and Women`s History - Roman politics I century - Agrippina the Younger-
Julio-Claudios
Note-se que, ao interpelar-nos, o epitáfio de Cláudia não afirma que ela lutou
pelos interesses do marido, dos filhos e seus ou que interveio em favor de um
funcionário da administração estatal ou que fez tudo para afastar os seus inimigos e
rivais. Não o faz porque Cláudia é supostamente uma mulher virtuosa e essas não
são as virtudes de uma romana, que se orgulha de tal origem.
Ao analisarmos, porém, as fontes de que dispomos para estudar a História do
século I d.C., rapidamente verificamos que as mulheres estiveram longe de ser a
realidade secundária e tantas vezes anónima, que a historiografia oficial
continuamente reclamou para o seu género. Efectivamente, é nessa mesma
historiografia que recolhemos a maioria das informações que hoje nos permitem
afirmar que a mulher romana nem sempre se limitou a ser uma simples observadora
de acontecimentos que lhe passariam à margem. Longe disso, textos como os de
Flávio Josefo, Plutarco, Tácito, Suetónio e Díon Cássio contêm vários exemplos,
nem sempre elogiados pelos seus autores, de figuras femininas de intervenção na
política e sociedade romanas. Talvez se deva mesmo a essa intervenção efectiva o
facto de as representações de tais personalidades serem muitas vezes denegridas e
pouco elogiadas. Cremos poder afirmar, aliás, que a maioria das personagens
historiográficas femininas da Antiguidade Clássica é famosa pelo negativo e não
pelo positivo.
No âmbito da sociedade romana, o Principado conheceu, desde o seu início, a
actividade política interventora das mulheres que o construíram. A historiografia
oficial, que reconhecemos na obra Tito Lívio, não se excusava a salientar
personagens femininas que, por bons ou maus motivos, deixaram a sua marca na
formação do povo romano. Hersília, Tanaquil, as duas Túlias, Clélia, Valéria,
Tarpeia, Virgínia, Lucrécia, Volúmnia são apenas alguns exemplos dessa presença2.
Essas mulheres emergiam, porém, de uma amálgama narrativa que se confundia
entre a lenda e a realidade histórica. Terão Tanaquil ou Lucrécia, a título de exemplo,
efectivamente agido e estado envolvidas nos episódios que Lívio e os outros
historiadores do seu tempo para elas reclamam? E o que dizer de Clélia e de
Virgínia? Muitas são a dúvidas legítimas que colocamos hoje acerca dessa
problemática, mas muito menos são as respostas plenamente satisfatórias que lhes
podemos dar. Já relativamente a outras personalidades, como a Semprónia que se
1 ILS 8043.
2 LIV. 1, 8-9; 11; 34-60; 2, 13, 33-40; 3, 44-49. Sobre estas mulheres, ver K. MUSTAKALLIO, «Legendary
Women and Female Groups in Livy» in P. Setälä and L. Savunen, eds., Female Networks and the Public
Sphere in Roman Society, Rome, 1999, 53-64.
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encontrado apoiantes importantes entre alguns dos homens mais poderosos do seu
tempo15. É inesquecível o retrato que Tácito nos dá dessa mulher, grávida, num
acampamento militar ao lado do marido, e intervindo na refrega como qualquer
soldado, auxiliando os feridos e todos os que caíam em combate por Roma16. A
mulher no auge da sua feminilidade, como sugere o estado de gravidez, reveste-se
com uma máscara viril. O paradoxo tem um objectivo retórico. No caso de Agripina
Maior, em que a imagem se pretende claramente positiva, a intervenção pública e
política, que vai muito além das conspirações de alcova, resvala mesmo a ideia de
uma nova Clélia ou senão mesmo a de uma Joana d’Arc avant la lettre. E o mais
curioso é que o historiador parece não a culpabilizar por isso. Porque Agripina Maior
está, para Tácito, do lado certo…
A cerviz política das Júlias parece ter passado pelo crisol da hereditariedade.
Efectivamente, se Agripina Maior se revelou uma personagem de intervenção
política significativa, a sua filha Agripina Menor não o foi menos. Depois de
assumido o Principado como uma inevitabilidade política, as descendentes de
Agripina e Germânico parecem ter adoptado uma postura de aliança com o princeps,
em vez de combatê-lo. Há que dizer, porém, que o Príncipe em causa era o seu
próprio irmão Gaio. Não deixa ainda de ser pertinente que se, no lado oposto desta
filosofia, Germânico se bateu contra o absolutismo político centrado na figura de um
princeps imperator, ainda que pretensamente coadjuvado pelo colégio senatorial, o
seu filho Gaio não poderia ter adoptado posturas políticas mais diferentes das do seu
pai, ao se comportar como um verdadeiro soberano oriental. Assim o sugere a
prepotência que as fontes acerca dele testemunham e que se espelha em rumores
como os do incesto cometido com as irmãs, em particular com Júlia Drusila17. As
posições pró-senatoriais de alguns dos historiadores antigos, que acerca de Gaio
Calígula escreveram, poderão ter acentuado o retrato negativo do Príncipe. Mas os
principais indicadores estão lá: a prática do culto do imperador e da família imperial
de forma acentuada, a acção sobre as famílias senatoriais, o poder centralizado na
figura do Príncipe.
Neste quadro, as filhas de Agripina Maior e irmãs de Calígula parecem ter
desempenhado um papel central18. As três estiveram sujeitas às vicissitudes
associadas ao percurso político dos pais, que culminou na morte mal explicada do
pai e no exílio e consequente suicídio/homicídio da mãe e dos dois irmãos mais
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velhos. Após a morte de Tibério, com a acessão de Gaio ao poder, Júlia Agripina,
igualmente conhecida como Agripina Menor, Júlia Livila e Júlia Drusila atingiram
um estatuto até então delas desconhecido, apesar da sua origem aristocrática. As três
casaram-se com homens de posição sócio-política elevada e com funções públicas
de destaque, e todas vieram a desempenhar papéis relevantes na vida pública do seu
tempo19.
Depois de se ter casado com Lúcio Cássio Longino, que fora cônsul sufecto em
30 d.C., Júlia Drusila separou-se, por intervenção do irmão, para se voltar a casar,
dessa vez com Marco Emílio Lépido, o filho de um cônsul com o mesmo nome. A
união de Drusila a Emílio Lépido poderá ter tido diversas motivações, das quais não
podemos excluir a política. Mas a tradição historiográfica, decerto eco do que então
se comentou em Roma, salientava uma relação de natureza homossexual entre
Calígula e o novo cunhado. Tal relação teria assim motivado o casamento do filho
do cônsul com a irmã do príncipe. Não esqueçamos, porém, que a esta acusação se
juntava a de incesto, entre o imperador e a irmã, pelo que não podemos deixar de
levantar várias hipóteses interpretativas relativamente a tais rumores, que vão da
leitura literal do que se afirma, à possibilidade de se tratar de uma percepção popular
e distante de um comportamento com implicações político-filosóficas,
designadamente de raiz oriental, bem mais complexas do que a mera carnalidade.
Seja como for, Drusila aparece neste contexto com um papel de destaque na
formulação e afirmação da imagem política do irmão.
Tal como a irmã, Júlia Livila teve uma vivência política acentuada, desde a mais
tenra infância. Casou-se com Marco Vinício, um homem de origem equestre, que
veio a ser cônsul em 30 e em 45 d.C. Como Drusila, porém, foi implicada numa
acusação de incesto com Calígula, o que confirma as hipóteses formuladas para o
caso anterior. Mas, em 39 d.C., acabou por ser envolvida na acusação de conspiração
contra o imperador, formulada quando o núcleo da família se encontrava na
Germânia. Com ela, foram implicados a sua irmã Agripina e também o cunhado
Marco Emílio Lépido e Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico. Enquanto os homens
acabaram por ser executados, as duas irmãs foram exiladas em Pôncia20. Não é de
todo inverosímil que a acusação que caiu sobre o grupo não fosse desprovida de
facticidade. A prepotência orientalizante de Calígula e as afinidades de parentesco
dos envolvidos com as figuras imperiais confere lhe todo o sentido, pelo que talvez
não devamos entender o episódio como apenas mais um na lista de crueldades
arbitrárias do filho de Germânico, como, aliás, Tácito tantas vezes faz crer. Júlia
Livila regressou do exílio em 41 d.C., já depois da morte do irmão e por apelo do
seu tio Cláudio, o novo imperador. Mas acabou por se transformar numa vítima da
nova imperatriz, Valéria Messalina, uma bisneta de Marco António e Octávia. As
fontes deixam-nos acreditar que Messalina teria temido a influência de Júlia Livila
sobre o tio. Influência essa que poderia ter chegado ao repúdio da consorte imperial
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por uma nova aliança matrimonial, dessa vez com a sobrinha. As fontes mostram
que, após a morte de Messalina, Cláudio foi literalmente rodeado por três dos seus
libertos, cada qual defendendo uma dama da aristocracia romana como possibilidade
de novo contrato nupcial. A imagem dos três libertos, que eram homens de poder na
corte claudiana, há que dizê-lo, defendendo os interesses de três mulheres, e seus,
ganha um maior sentido se tivermos em conta que se trataria de redes de interesse
político que estavam em causa. A que vencesse e conseguisse o apoio do princeps
seria a rede dominante, como é evidente. Do mesmo modo, talvez tenha sido o
mesmo tipo de proximidade política e pessoal desse tipo de solidariedades, a
conseguir o regresso de Júlia Livila e de Agripina Menor à corte, em 41 d.C. A figura
de Palas, o liberto a rationibus do imperador, espécie de secretário das finanças do
Estado, que defendeu Agripina na disputa de 48 d.C., parece ser a que melhor se
adequa a esse perfil21. O mesmo que, aliás, veio depois a defender a futura
imperatriz Agripina, na disputa pelo casamento com Cláudio.
Na sequência destas movimentações políticas, Júlia Livila acabou por ser
acusada de adultério com Séneca e de novo exilada, desta vez em Pandatária, onde
acabou por ser executada22. A acção da princesa parece traduzir um conflito mais ou
menos latente entre os vários ramos gentílicos dos descendentes de Augusto. A filha
de Agripina Maior representa a casa dos Júlios, tentando aproximar-se do poder,
então nas mãos dos Cláudios, mas em confronto directo com os Domícios, a quem
também pertencia Messalina. Júlia Livila, porém, parece não ter estado só nesta
defesa de interesses próprios e familiares. Também a sua irmã Júlia Agripina terá
participado activamente neste tipo de movimentação política. A prova desta suspeita
reside no facto de esta irmã de Calígula ter acabado por ascender ao trono imperial,
casando-se com o tio, o imperador Cláudio. Além disso, a aliança matrimonial entre
tio e sobrinha confirma também que as suspeitas de Valéria Messalina não eram
fúteis, tendo a ameaça que a imperatriz temia acabado por concretizar-se, ainda que
na pessoa errada. Apesar de ter falhado o programa político que cogitara, Valéria
Messalina protagonizou igualmente momentos de agitação política na corte de
Cláudio, que, na óptica de alguns autores, pretenderam assegurar o seu lugar bem
como a sucessão do filho, Britânico. Messalina teria assim reagido contra as duas
sobrinhas ainda vivas do marido, como também contra Marco Vinício, Júlia, Rubélio
Plauto e os Silanos23.
Como notámos, Agripina Maior beneficiou de uma rede institucional que girava
em torno do imperador e que assentava nas figuras dos libertos que ele próprio
colocara em lugares estrategicamente definidos. Narciso, Palas e Calisto perfaziam
uma tríade de ex-escravos, que angariara a confiança do imperador, por oposição aos
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Vários são os episódios que testemunham a luta desta princesa, como assinala o
esforço desenvolvido para concretizar o casamento do seu filho com Octávia, filha
de Cláudio e Messalina. Nenhum será tão elucidativo, contudo, como o que aponta
para a imperatriz como a causa da morte do próprio marido e a consequente acessão
de Nero ao poder, em detrimento de Britânico. É já sob o principado do próprio filho
que Agripina deixa revelar com maior precisão a existência de interesses políticos
manobrados e controlados por mulheres na corte imperial. Uma das suas
intervenções políticas mais incisivas revelou-se contra a pessoa de Lólia Paulina, a
filha de um antigo cônsul, que fora casada com Gaio Calígula e, portanto, sua
cunhada. Lólia Paulina era efectivamente uma mulher de alta estirpe aristocrática.
Havia herdado a fortuna do avô, Marco Lólio, também ele cônsul em 21 a.C. Dois
anos depois, Lólia Paulina desposou Mémio Régulo, que veio a ser governador da
Mésia. Mas em 38 divorciou-se dele para contrair matrimónio com Calígula. As
razões para este enlace poderão ter estado na imensa fortuna de que Lólia dispunha.
Mas o divórcio que se seguiu leva-nos a desvalorizar essa hipótese, visto que a
esvazia de sentido. Talvez Lólia tivesse sido apenas uma dama da aristocracia a
quem Calígula se uniu, por razões de carisma social ou simplesmente por causas
emotivas. Por outro lado, o facto de Gaio ter proibido Lólia Paulina de voltar a casar-
se depois do divórcio de ambos, aponta para a tentativa de evitar uma aliança com
algum homem que viesse a encontrar na fortuna da dama uma fonte de rendimento
para constituir oposição ao princeps.
Em 48 d.C., já depois da morte de Calígula, Lólia Paulina voltou a aparecer na
cena política, desta vez como pretendente ao casamento com o então imperador,
Cláudio. O reaparecimento de Lólia Paulina, que surgia como a escolha defendida
por Calisto, um dos libertos do imperador, confirma a importância que a sua fortuna
continuava a ter. O liberto argumentava que a dama seria uma excelente madrasta
para os filhos de Cláudio, dado que ela própria não tinha filhos de quem cuidar, pelo
que se dedicaria inteiramente aos da desaparecida Messalina. Foi Agripina, porém,
como vimos, quem acabou por vencer a disputa e o destino de Lólia Paulina ficou
então definitivamente traçado. Vendo nela uma ameaça que poderia ressuscitar a
qualquer momento, a filha de Germânico não desistiu enquanto não afastou Lólia
Paulina da sua ambição/pretensão imperial. A filha de Germânico conseguiu que a
cunhada fosse acusada de recurso a astrólogos e Lólia foi exilada, em 49 d.C. Não
satisfeita com esse desfecho, Agripina forçou Lólia Paulina ao suicídio29.
A fortuna de Lólia Paulina terá constituído de novo um móbil para a instauração
do processo contra a aristocrata. Fora esse mesmo dinheiro que sustentara a
«candidatura» dela a consorte imperial, por duas vezes seguidas. O provável é que
a iniciativa partisse não apenas de Calisto, mas também de Lólia e de alguma
«corte» formada à sua volta, constituída por interessados no eventual poder que com
ela poderiam granjear. O interesse no poder, todavia, seria, em primeiro lugar, seu.
Muito possivelmente, Lólia alimentaria uma rede de solidariedades políticas que a
29 TAC., Ann. 14, 12. Neste parágrafo referem-se igualmente Júnia e Calpúrnia, regressadas do exílio e,
portanto, envolvidas em questões políticas.
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mantinha na primeira linha das relações com o poder. A mesma rede que teria
assustado Agripina e feito com que agisse no sentido em que agiu.
Mas as redes femininas de poder e de intervenção política no tempo de Agripina
não se restringiam à própria imperatriz e à sua rival Lólia Paulina. Pela actuação das
duas cunhadas de Agripina podemos concluir que também as Domícias intervieram
de forma concertada, com um objectivo político definido. Depois da morte de
Cláudio, a acessão de Nero ao poder não pode ser dissociada da actuação da sua
mãe. Agripina conseguira reforçar a posição do filho perante o marido-tio, ao casar
o jovem Nero com Octávia. Mas a proximidade tornara-se ainda mais efectiva ao
conseguir a adoptio de Nero por parte de Cláudio. Este conjunto de circunstâncias,
associado à aliança estratégica com elementos da guarda pretoriana, levou a que
Nero ocupasse o trono, em vez de Britânico. Mas Nero desenvolvera uma relação
forte com as tias paternas. Efectivamente, quando Agripina foi exilada por ordem do
irmão, foi Domícia Lépida, uma das irmãs de Gneu Domício Aenobarbo e cunhada
de Agripina Menor, quem cuidou do jovem filho do casal. Além de tia de Nero e
descendente indirecta de Augusto (era sua sobrinha-neta), Domícia Lépida era filha
de Antónia Maior e portanto neta de Octávia e de Marco António, e também mãe de
Valéria Messalina e, por consequência, sogra de Cláudio e avó de Britânico e de
Octávia Menor. Isto é, Domícia Lépida reunia todas as condições para se tornar uma
importante adversária, senão mesmo inimiga, de Agripina Menor. Esta era sem
dúvida uma rede familiar e gentílica que motivava e facilitava a intervenção da
interessada. Terá sido essa condição a principal causa da sua acusação de
envolvimento em actos mágicos, associada a uma suposta incapacidade para
controlar os servos que mantinha nas suas propriedades da Calábria. Apesar de se ter
mantido durante algum tempo numa posição politicamente privilegiada, como aliás
também denunciam os seus três casamentos30, Domícia Lépida acabou por ser
eliminada em 54 d.C.
A origem e condição sócio-política desta tia de Nero terão sido as mesmas da sua
irmã, conhecida apenas por Domícia. Também esta se viu envolvida na política e nos
acontecimentos que marcaram o seu tempo. Também Domícia se casou por três
vezes, tendo todos os seus maridos exercido o cargo de cônsul31. O último deles,
Passieno Crispo, veio depois a ser também marido de Agripina, da própria cunhada,
portanto, o que terá motivado uma particular rivalidade entre as duas mulheres. Após
a morte da irmã, Domícia ter-se-á unido a uma outra dama de origem aristocrática,
Júnia Silana, com o objectivo de eliminar Agripina Menor. Júnia Silana não era uma
escolha aleatória. Era filha de um ex-cônsul sufecto, mulher de Gaio Sílio e era irmã
de uma das mulheres de Calígula, Júnia Claudila32. Além disso, mantivera relações
próximas com a própria Agripina, até eclodir uma altercação entre ambas as
30 Domícia Lépida foi sucessivamente casada com Marco Valério Messala Barbato, Fausto Cornélio
Sula e Gaio Ápio Júnio Silano, o qual acabou por ser envolvido na conspiração com Messalina e por isso
acusado, condenado e executado.
31 Domícia casou-se com Décimo Hatério Agripa, cônsul em 22 d.C.; com Quinto Júnio Bleso, cônsul
sufecto em 26 d.C.; e com Gneu Passieno Crispo, cônsul em 44 d.C.
32 SUET., Cal. 12. Júnia Claudila morreu de parto em 31 d.C.
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33 Era filha de Popeia Sabina e de Tito Ólio e neta de Popeu Sabino, cônsul em 9 d.C. A mãe de Popeia
Sabina foi uma das rivais de Valéria Messalina e acabando por ser acusada de adultério, em 47 d.C., suicidou-
se por pressões políticas. Sobre Popeia Sabina, ver F. HOLZTRATTNER, Poppaea Neronis Potens: Studien zu
Poppaea Sabina, Graz-Horn, 1995.
34 Entre 59 e 62 d.C., Nero eliminou uma série de potenciais rivais que poderiam ter sido os
representantes de um partido pró-Octávia. Entre eles encontrava-se Sexto Afrânio Burro.
35 TAC., Ann. 15, 61, 4.
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41 SUET., Nero 50. O tema recorda a figura de Jesus de Nazaré e as três mulheres que o acompanham no
momento da morte.
42 Aneu Sereno foi também seu amante, quando era prefeito dos vigias; ver E. CIZEK, Néron, Paris,
1982, 40.
43 Acte reclamava-se, ou Nero atribuiu-lhe essa categoria, descendente dos Atálidas, fora escrava de
Cláudio e deste ganhou provavelmente a emancipação. Alguns aspectos da sua história, porém, sugerem
alguma influência da ficção novelesca. TAC., Ann. 13, 12, 46; 14, 2; SUET., Nero 28. Sobre a fortuna de Acte,
ver CIL X, 8046; 8049; XI, 1414; XV, 7835; VI, 8693; 8767; 8791; 8801; 9002; ILS 1742; 7386; 7396; 7409;
E. CIZEK, Néron, Paris, 1982, 40.
44 Tratou-se da conspiração de 65 d.C. Ver TAC., Ann. 15, 51.
45 Apesar de Tanaquil ser uma figura ambígua e outras, como Hersília, Clélia, Valéria e Vetúria, serem
figuras positivas, as intervenções políticas femininas são, na maioria das vezes, tidas como modelos a evitar.
Na cultura romana, as mulheres politicamente aceites são a excepção e não a regra. E quando o são, é por
relação a uma ordenação masculina. Ver a este propósito o nosso estudo «A heroína romana como matriz de
identidade feminina» in D.F. Leão, M.C. Fialho, M.F. Silva, coords., Mito clássico no Imaginário Ocidental,
Coimbra, 2005, 67-85; e K. MUSTAKALLIO, «Legendary Women and Female Groups in Livy» in P. Setälä and
L. Savunen, eds., Female Networks and the Public Sphere in Roman Society, Rome, 1999, 53-64.
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dignidade. Estas são com frequência mulheres que pertencem à classe senatorial,
sendo as mais politicamente activas, por norma, princesas da casa imperial ou
íntimas destas. Isso poderá advir também do facto de os autores que delas dão
testemunho estarem ligados a essa mesma classe. Assim, as vítimas que lutam pela
resistência, ou que apenas a simbolizam, sofrem às mãos de imperadores
autoritários, que exercem o poder de forma arbitrária e até devassa. Aquelas
acentuam assim o carácter inerente à sua condição, ao mesmo tempo que permitem
que se destaque o autoritarismo imperial. Isto é, há, por certo, uma mensagem
ideológica nesta forma de contar os factos. Outras excepções a essa regra são os
casos de Antónia Menor e Agripina Maior, que, apesar de princesas da casa imperial
e de uma intervenção política reconhecida, parecem ter defendido interesses que se
coadunam com os valores senatoriais ou, em parte até, republicanos mesmo. Trata-
se, portanto, de formas de resistência à política vigente, no seio do seu próprio
grupo. De resto, outras mulheres, em quem percebemos uma forte influência nos
acontecimentos da vida pública e até mesmo nos destinos do Império não são, regra
geral, figuras de culto por parte dos seus historiadores ou sequer de admiração: as
Júlias, as Domícias, as Cláudias, ou as que chegaram à casa imperial por aliança
matrimonial, como Popeia Sabina. Associada à sua natureza imperial, essa realidade
parece dever-se também a que, na mentalidade romana, a mulher não fosse talhada
para a vida pública, para a intervenção política. Assim se compreenderá a expressão
de Gaio sobre a sua bisavó, quando a chamava de «Ulisses de saias». Por que outra
razão se haveria de comparar uma mulher do calibre de Lívia a um homem? Mas o
facto é que, bem ou mal vista, essa actividade existia na sociedade romana e, mais
do que isso, mantinha mesmo redes de interesses políticos e de poder e
solidariedades, não exclusivamente femininas, mas protagonizadas no feminino, que
actuavam quando era necessário, sendo, em muitos casos, eficaz. A prova disso
consiste precisamente nas histórias de mulheres perversas, desvirtuosas e devassas
que os historiadores antigos nos legaram. Ou não foi uma mulher, Dido, que, logo
no início, se revelou como obstáculo à fundação de Roma? Em alguns casos, essas
solidariedades aparentam traduzir interesses gentílicos e de grupos, sendo que, em
alguns casos, a rede se confunde mesmo com a própria família. Esta é tanto mais
pertinente quanto se revela no feminino46.
Se a política não é para mulheres, é ainda sintomático que seja exercida, apesar
de oficiosamente, não só por damas da nobreza, mas também por libertas e servas.
Estas constituem figuras ambíguas, caracterizadas entre o positivo e o negativo,
derivado talvez da intencionalidade pejorativa com que se carrega na definição das
aristocratas, ou até mesmo da sua condição social. Libertas, cortesãs e párias não
eram de todo ideais sociais. Essas mulheres funcionam como tentáculos e pontos de
apoio logístico dos comandos das redes de poder feminino que, como é evidente e
compreensível, se localizam nos círculos sociais mais elevados.
Na verdade, não podemos negar, que muito do interesse que a história política e
social da Roma do século I d.C. nos suscita advém precisamente destas figuras
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