Agripina e As Outras Redes Femininas de

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 15

Agripina e as outras.

Redes femininas de poder


nas cortes de Calígula, Cláudio e Nero
Nuno SIMÕES RODRIGUES
Universidade de Lisboa

RESUMO
Uma das características da corte imperial romana no século I d.C. parece ter sido o facto de as mulheres terem
exercido formas de pressão política, ainda que esse não fosse de todo um dos seus campos de acção. Ou, pelo
menos, oficialmente não o seria. Para o Homem clássico, efectivamente, a intervenção feminina no domínio
da política era considerada uma atitude contra-natura. Mas o facto é que as fontes antigas nos deixam perce-
ber que houve várias figuras que não se deixaram intimidar pela interdição e assumiram papéis mais ou
menos activos, de uma forma mais ou menos evidente. Agripina Menor é um desses casos, senão o mais para-
digmático do século I d.C. Mas ao lado dela, ou contra ela, estiveram outras mulheres, como as aristocratas
Júlia Drusila, Júlia Livila, Valéria Messalina, Lólia Paulina, Domícia Lépida, Cláudia Octávia e Popeia
Sabina, as cortesãs Calpúrnia e Cleópatra, a liberta Acte ou ainda Locusta. Aparentemente, a História do pri-
meiro século da nossa era também se faz com estes nomes. Este artigo pretende assim apresentar um resumo
das conclusões do estudo que temos vindo a desenvolver no âmbito da participação das mulheres no univer-
so político de Roma no século I d.C.

Palavras-chaves: História das Mulheres na Antiguidade - Política romana sec. I - Agripina Menor - Júlio-
Cláudios.

Agrippina and the Others. Female networks of power in the courts of


Caligula, Claudius and Nero
ABSTRACT
In First Century Imperial Rome, apparently, women were politically active, although that wasn't an official
way to act. To the roman Man, feminine politics was an anti-nature issue. But the fact is that ancient sources
show women reacting against that standard way of living, in a more or less evident form. Agrippina the
Younger is one of those examples, maybe the best known. But we know of other cases that prove this per-
ception of the reality, such as the aristocratic Julia Drusilla, Julia Livilla, Valeria Messalina, Lollia Paulina,
Domitia Lepida, Claudia Octavia, Poppaea Sabina, the courtesans Calpurnia and Cleopatra, the freedwoman
Acte or even Locusta. First century History must also to be studied with these women as central characters.
Our paper aims to present a resume of the conclusions we have reached within a research on feminine parti-
cipation in Politics in first century Rome, we have been developing.

Key words: Ancient History and Women`s History - Roman politics I century - Agrippina the Younger-
Julio-Claudios

Gerión 281 ISSN: 0213-0181


2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

Num célebre epitáfio romano, datado do século II a.C., lemos as seguintes


palavras:
«Transeunte amigo, as minhas palavras são poucas. Pára e lê-as. Esta é a feia sepultura de
uma bela mulher. Os pais chamaram-lhe Cláudia. Amou profundamente o marido. Deu à
luz dois filhos; um morreu, o outro sobreviveu. Conversava de uma forma agradável e
movia-se graciosamente. Cuidava da casa e tecia a lã. Acabei. Prossegue o teu caminho.»1

Note-se que, ao interpelar-nos, o epitáfio de Cláudia não afirma que ela lutou
pelos interesses do marido, dos filhos e seus ou que interveio em favor de um
funcionário da administração estatal ou que fez tudo para afastar os seus inimigos e
rivais. Não o faz porque Cláudia é supostamente uma mulher virtuosa e essas não
são as virtudes de uma romana, que se orgulha de tal origem.
Ao analisarmos, porém, as fontes de que dispomos para estudar a História do
século I d.C., rapidamente verificamos que as mulheres estiveram longe de ser a
realidade secundária e tantas vezes anónima, que a historiografia oficial
continuamente reclamou para o seu género. Efectivamente, é nessa mesma
historiografia que recolhemos a maioria das informações que hoje nos permitem
afirmar que a mulher romana nem sempre se limitou a ser uma simples observadora
de acontecimentos que lhe passariam à margem. Longe disso, textos como os de
Flávio Josefo, Plutarco, Tácito, Suetónio e Díon Cássio contêm vários exemplos,
nem sempre elogiados pelos seus autores, de figuras femininas de intervenção na
política e sociedade romanas. Talvez se deva mesmo a essa intervenção efectiva o
facto de as representações de tais personalidades serem muitas vezes denegridas e
pouco elogiadas. Cremos poder afirmar, aliás, que a maioria das personagens
historiográficas femininas da Antiguidade Clássica é famosa pelo negativo e não
pelo positivo.
No âmbito da sociedade romana, o Principado conheceu, desde o seu início, a
actividade política interventora das mulheres que o construíram. A historiografia
oficial, que reconhecemos na obra Tito Lívio, não se excusava a salientar
personagens femininas que, por bons ou maus motivos, deixaram a sua marca na
formação do povo romano. Hersília, Tanaquil, as duas Túlias, Clélia, Valéria,
Tarpeia, Virgínia, Lucrécia, Volúmnia são apenas alguns exemplos dessa presença2.
Essas mulheres emergiam, porém, de uma amálgama narrativa que se confundia
entre a lenda e a realidade histórica. Terão Tanaquil ou Lucrécia, a título de exemplo,
efectivamente agido e estado envolvidas nos episódios que Lívio e os outros
historiadores do seu tempo para elas reclamam? E o que dizer de Clélia e de
Virgínia? Muitas são a dúvidas legítimas que colocamos hoje acerca dessa
problemática, mas muito menos são as respostas plenamente satisfatórias que lhes
podemos dar. Já relativamente a outras personalidades, como a Semprónia que se

1 ILS 8043.
2 LIV. 1, 8-9; 11; 34-60; 2, 13, 33-40; 3, 44-49. Sobre estas mulheres, ver K. MUSTAKALLIO, «Legendary
Women and Female Groups in Livy» in P. Setälä and L. Savunen, eds., Female Networks and the Public
Sphere in Roman Society, Rome, 1999, 53-64.

282 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

envolveu na conspiração de Catilina, parece haver mais certezas, apenas suscitadas


pela verosimilhança das narrativas atribuídas a Salústio3. Mas, como outras, também
essa mulher politicamente activa não mereceu grande respeito pelos que a ela se
referiram.
Por outro lado, mais provável em alguns aspectos, apesar de não menos
duvidável, é a actuação das mulheres romanas do Principado. Júlia Lívia é sem
dúvida a primeira grande figura feminina de destaque nessa galeria. O facto de a
segunda mulher de Augusto sobressair de entre tantas outras dever-se-á a três razões:
pela forma como os historiadores antigos a tratam nos textos que dão conta dos
eventos que levaram à constituição do Principado e que nem sempre a têm como
uma figura positiva; pelo facto de ela ter sido a mulher que mais tempo esteve ao
lado de Augusto e este ter sido o grande fundador do Principado; pelo carácter
verdadeiramente interventor desta mulher, que terá originado o seu retrato negativo
na historiografia antiga e que foi favorecido pelo facto de ser a esposa do princeps4.
De algum modo, estas mesmas razões são as que justificam o protagonismo de
outras mulheres romanas da época, como Agripina Maior, Agripina Menor, Valéria
Messalina e Popeia Sabina, por exemplo.
Que tais personalidades desempenharam papéis relevantes no processo histórico
romano é reconhecido desde, pelo menos, a própria Antiguidade. Na Idade Média,
uma iluminara mostrava já Nero assistindo à dissecação do corpo de Agripina,
evocando assim a tradição que afirmava a crueldade do imperador perante o corpo
de uma mãe demasiado presente. Mas cremos poder afirmar que estas mulheres não
estiveram sós e quando não foram coadjuvadas por outras mulheres tiveram amiúde
de defrontar outras. Uma análise dos principados de Gaio, Cláudio e Nero permite
concluir que existiam redes de poder e de intervenção política, nas quais as mulheres
se destacaram como peças fundamentais e determinantes nos destinos do Império.
O que encontramos no período dominado por aqueles três imperadores apenas
confirma uma tendência que se verificava desde, pelo menos, o tempo de Augusto5.
Já mencionámos a intervenção de Lívia e nela podemos detectar ainda esquissos de
um poder feminino de bastidores que, a acreditar nos historiadores antigos, teve os
seus êxitos. A proximidade a Urgulânia, por exemplo, terá motivado o casamento da
neta desta, Pláucia Urgulanila, com o futuro imperador Cláudio, que era neto da
então imperatriz Lívia6. Como é evidente, o planeamento de um casamento de um
príncipe da casa imperial não era um assunto desprovido de importância política.
Outra amizade feminina fundamental de Lívia parece ter sido a que manteve com

3 SAL., Cat. 25.


4 Sobre a construção da imagem de Lívia, ver C.G. CALHOON, Livia the Poisoner: Genesis of an
Historical Myth, Los Angeles, 1994.
5 O que não exclui protagonismos anteriores. Como exemplos, recordamos Cornélia, Servília e Pórcia.
Note-se que, por vezes, a imagem positiva de uma mulher na historiografia ou literatura em geral romana,
como Cornélia, é já desde logo uma construção política. Muitas dessas mulheres tidas como «matronas
ideais» não deixaram de ser politicamente interventoras. A imagem depende, porém, da posição política e dos
objectivos do autor que a descreve e constrói. O contrário é igualmente válido.
6 TAC., Ann. 4, 22.

Gerión 283
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

Munácia Plancina, a mulher de Pisão, suposta autora de um ataque contra


Germânico, que o teria levado à morte em 19 d.C.7 A prova de que existia uma rede
clientelar de interesses instalada entre estas mulheres está no facto de Lívia ter
intervindo favoravelmente no julgamento de Plancina, que se seguiu à morte de
Germânico, e de esta ter sido alvo de várias acusações a seguir à morte da imperatriz,
em 33 d.C., acabando por se suicidar na sequência das mesmas8. O envolvimento de
Lívia com mulheres mais ou menos bem posicionadas em assuntos políticos da corte
espelha-se na frase proferida por Tibério, na sequência do caso que envolveu Mutília
Prisca e Gaio Fúfio, cujo filho ascendera politicamente graças às intervenções da
mulher de Augusto. Tibério teria criticado Fúfio, referindo-se às suas amicitiae
muliebres9. De igual modo, o conhecido epíteto que Gaio Calígula atribuía a avó,
Vlixes stolatus, denuncia esse carácter interventor, neste passo consciente e
explicitamente associado à masculinidade10. Também as relações da imperatriz com
as Vestais, mulheres de particular poder em Roma, são significativas neste
contexto11.
Também Antónia Menor e Júlia Maior terão mantido redes de solidariedade
política na corte, como indica a importância política destas duas mulheres. Entre os
membros dessa rede estariam decerto mulheres. Antónia, por exemplo, foi senhora
de uma escrava de nome Cénis, que era secretária da filha de Marco António e que
mais tarde veio a ser emancipada e a envolver-se amorosamente com o futuro
imperador Vespasiano. Este, pelo seu lado, sempre a tratou como se fosse sua esposa
legítima12. Parece-nos evidente que uma mulher que atingiu o estatuto de Cénis teve
necessariamente de estar envolvida nas redes políticas do seu tempo13. Também a
filha de Antónia Menor, Cláudia Livila, se terá envolvido em movimentações
políticas, como indica a sua relação com a conspiração de Sejano, em 31 d.C., que
a levou à execução14. Mas talvez tenha sido com Agripina Maior, uma das filhas de
Júlia, que as redes de solidariedade política feminina melhor se terão definido na
corte imperial. Ao contrário de outras mulheres, porém, Agripina Maior parece ter

7 TAC., Ann. 2, 43.


8 TAC., Ann. 6, 26. Note-se que Plancina já tinha sido salva por Lívia. Sobre esta questão, ver o nosso
estudo Iudaei in Vrbe. Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios, Lisboa, 2007, 421-422.
9 TAC., Ann. 5, 2, 2. Outros casos de amizades femininas de Lívia, como as que cultivou com Salomé
da Judeia, Dúnamis dos Cimérios, Pitódoris do Ponto e Múcia, podem ser lidos em A.A. BARRETT, Livia.
First Lady of Imperial Rome, London, 2002, 191-193, e em M. MUDD, I, Livia. The Counterfeit Criminal,
Victoria, 2005, 262-273. De igual modo, Tibério criticava a mãe pela sua demasiada intervenção política.
10 SUET., Cal. 23, 2.
11 Sobre as Vestais, ver R.L. WILDFANG, Rome’s Vestal Virgins. A Study of Rome’s Vestal Priestesses in
the Late Republic and Early Empire, London, 2006; M. LINDNER, The Vestal Virgins and their Imperial
Patrons: Sculptures and Inscriptions from the Atrium Vestae in the Roman Forum, Ann Arbor, 1995, 32.
12 SUET., Ves. 3.
13 Sobre Antónia e Júlia, ver N. KOKKINOS, N., Antonia Augusta. Portrait of a Great Roman Lady,
London/New York, 1992; C. SALLES, L’Art de vivre au temps de Julie, fille d’Auguste, Paris, 2000; E.
FANTHAM, Julia Augusti: the Emperor’s Daughter, London, 2006; E. MEISE, Untersuchungen zur Geschichte
der Julisch-Claudischen Dynastie, München, 1969.
14 TAC., Ann. 4, 39-40, 60.

284 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

encontrado apoiantes importantes entre alguns dos homens mais poderosos do seu
tempo15. É inesquecível o retrato que Tácito nos dá dessa mulher, grávida, num
acampamento militar ao lado do marido, e intervindo na refrega como qualquer
soldado, auxiliando os feridos e todos os que caíam em combate por Roma16. A
mulher no auge da sua feminilidade, como sugere o estado de gravidez, reveste-se
com uma máscara viril. O paradoxo tem um objectivo retórico. No caso de Agripina
Maior, em que a imagem se pretende claramente positiva, a intervenção pública e
política, que vai muito além das conspirações de alcova, resvala mesmo a ideia de
uma nova Clélia ou senão mesmo a de uma Joana d’Arc avant la lettre. E o mais
curioso é que o historiador parece não a culpabilizar por isso. Porque Agripina Maior
está, para Tácito, do lado certo…
A cerviz política das Júlias parece ter passado pelo crisol da hereditariedade.
Efectivamente, se Agripina Maior se revelou uma personagem de intervenção
política significativa, a sua filha Agripina Menor não o foi menos. Depois de
assumido o Principado como uma inevitabilidade política, as descendentes de
Agripina e Germânico parecem ter adoptado uma postura de aliança com o princeps,
em vez de combatê-lo. Há que dizer, porém, que o Príncipe em causa era o seu
próprio irmão Gaio. Não deixa ainda de ser pertinente que se, no lado oposto desta
filosofia, Germânico se bateu contra o absolutismo político centrado na figura de um
princeps imperator, ainda que pretensamente coadjuvado pelo colégio senatorial, o
seu filho Gaio não poderia ter adoptado posturas políticas mais diferentes das do seu
pai, ao se comportar como um verdadeiro soberano oriental. Assim o sugere a
prepotência que as fontes acerca dele testemunham e que se espelha em rumores
como os do incesto cometido com as irmãs, em particular com Júlia Drusila17. As
posições pró-senatoriais de alguns dos historiadores antigos, que acerca de Gaio
Calígula escreveram, poderão ter acentuado o retrato negativo do Príncipe. Mas os
principais indicadores estão lá: a prática do culto do imperador e da família imperial
de forma acentuada, a acção sobre as famílias senatoriais, o poder centralizado na
figura do Príncipe.
Neste quadro, as filhas de Agripina Maior e irmãs de Calígula parecem ter
desempenhado um papel central18. As três estiveram sujeitas às vicissitudes
associadas ao percurso político dos pais, que culminou na morte mal explicada do
pai e no exílio e consequente suicídio/homicídio da mãe e dos dois irmãos mais

15 M. KAPLAN, «Agrippina semper atrox: a study in Tacitus’ characterization of women» in C. Deroux,


Studies in Latin Literature and Roman History I, Bruxelles, Latomus, 1979, 410-417; J. BURNS, Great Women
of Imperial Rome. Mothers and Wives of the Caesars, London, 2006. Sobre esta caracterização de Agripina
Maior, notamos ainda que há algo de semelhante com a construção mítica da figura de Horácio Cocles, o que
parece ser sintomático, neste contexto.
16 TAC., Ann. 1, 44, 69.
17 SUET., Cal. 24.
18 O que também sugere a adopção de um espírito orientalizante, em que o papel político da mulher
tendia a ser mais reconhecido e, por isso mesmo, comum do que no universo greco-romano. Ver, por
exemplo, T. BEDMAN, Reinas de Egipto. El secreto del poder, Madrid, 2003, e Z. BAHRANI, Women of
Babylon: Gender and Representation in Mesopotamia, London, 2001.

Gerión 285
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

velhos. Após a morte de Tibério, com a acessão de Gaio ao poder, Júlia Agripina,
igualmente conhecida como Agripina Menor, Júlia Livila e Júlia Drusila atingiram
um estatuto até então delas desconhecido, apesar da sua origem aristocrática. As três
casaram-se com homens de posição sócio-política elevada e com funções públicas
de destaque, e todas vieram a desempenhar papéis relevantes na vida pública do seu
tempo19.
Depois de se ter casado com Lúcio Cássio Longino, que fora cônsul sufecto em
30 d.C., Júlia Drusila separou-se, por intervenção do irmão, para se voltar a casar,
dessa vez com Marco Emílio Lépido, o filho de um cônsul com o mesmo nome. A
união de Drusila a Emílio Lépido poderá ter tido diversas motivações, das quais não
podemos excluir a política. Mas a tradição historiográfica, decerto eco do que então
se comentou em Roma, salientava uma relação de natureza homossexual entre
Calígula e o novo cunhado. Tal relação teria assim motivado o casamento do filho
do cônsul com a irmã do príncipe. Não esqueçamos, porém, que a esta acusação se
juntava a de incesto, entre o imperador e a irmã, pelo que não podemos deixar de
levantar várias hipóteses interpretativas relativamente a tais rumores, que vão da
leitura literal do que se afirma, à possibilidade de se tratar de uma percepção popular
e distante de um comportamento com implicações político-filosóficas,
designadamente de raiz oriental, bem mais complexas do que a mera carnalidade.
Seja como for, Drusila aparece neste contexto com um papel de destaque na
formulação e afirmação da imagem política do irmão.
Tal como a irmã, Júlia Livila teve uma vivência política acentuada, desde a mais
tenra infância. Casou-se com Marco Vinício, um homem de origem equestre, que
veio a ser cônsul em 30 e em 45 d.C. Como Drusila, porém, foi implicada numa
acusação de incesto com Calígula, o que confirma as hipóteses formuladas para o
caso anterior. Mas, em 39 d.C., acabou por ser envolvida na acusação de conspiração
contra o imperador, formulada quando o núcleo da família se encontrava na
Germânia. Com ela, foram implicados a sua irmã Agripina e também o cunhado
Marco Emílio Lépido e Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico. Enquanto os homens
acabaram por ser executados, as duas irmãs foram exiladas em Pôncia20. Não é de
todo inverosímil que a acusação que caiu sobre o grupo não fosse desprovida de
facticidade. A prepotência orientalizante de Calígula e as afinidades de parentesco
dos envolvidos com as figuras imperiais confere lhe todo o sentido, pelo que talvez
não devamos entender o episódio como apenas mais um na lista de crueldades
arbitrárias do filho de Germânico, como, aliás, Tácito tantas vezes faz crer. Júlia
Livila regressou do exílio em 41 d.C., já depois da morte do irmão e por apelo do
seu tio Cláudio, o novo imperador. Mas acabou por se transformar numa vítima da
nova imperatriz, Valéria Messalina, uma bisneta de Marco António e Octávia. As
fontes deixam-nos acreditar que Messalina teria temido a influência de Júlia Livila
sobre o tio. Influência essa que poderia ter chegado ao repúdio da consorte imperial

19 TAC., Ann. 6, 15; 14, 63.


20 D.C. 60, 69, 4.

286 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

por uma nova aliança matrimonial, dessa vez com a sobrinha. As fontes mostram
que, após a morte de Messalina, Cláudio foi literalmente rodeado por três dos seus
libertos, cada qual defendendo uma dama da aristocracia romana como possibilidade
de novo contrato nupcial. A imagem dos três libertos, que eram homens de poder na
corte claudiana, há que dizê-lo, defendendo os interesses de três mulheres, e seus,
ganha um maior sentido se tivermos em conta que se trataria de redes de interesse
político que estavam em causa. A que vencesse e conseguisse o apoio do princeps
seria a rede dominante, como é evidente. Do mesmo modo, talvez tenha sido o
mesmo tipo de proximidade política e pessoal desse tipo de solidariedades, a
conseguir o regresso de Júlia Livila e de Agripina Menor à corte, em 41 d.C. A figura
de Palas, o liberto a rationibus do imperador, espécie de secretário das finanças do
Estado, que defendeu Agripina na disputa de 48 d.C., parece ser a que melhor se
adequa a esse perfil21. O mesmo que, aliás, veio depois a defender a futura
imperatriz Agripina, na disputa pelo casamento com Cláudio.
Na sequência destas movimentações políticas, Júlia Livila acabou por ser
acusada de adultério com Séneca e de novo exilada, desta vez em Pandatária, onde
acabou por ser executada22. A acção da princesa parece traduzir um conflito mais ou
menos latente entre os vários ramos gentílicos dos descendentes de Augusto. A filha
de Agripina Maior representa a casa dos Júlios, tentando aproximar-se do poder,
então nas mãos dos Cláudios, mas em confronto directo com os Domícios, a quem
também pertencia Messalina. Júlia Livila, porém, parece não ter estado só nesta
defesa de interesses próprios e familiares. Também a sua irmã Júlia Agripina terá
participado activamente neste tipo de movimentação política. A prova desta suspeita
reside no facto de esta irmã de Calígula ter acabado por ascender ao trono imperial,
casando-se com o tio, o imperador Cláudio. Além disso, a aliança matrimonial entre
tio e sobrinha confirma também que as suspeitas de Valéria Messalina não eram
fúteis, tendo a ameaça que a imperatriz temia acabado por concretizar-se, ainda que
na pessoa errada. Apesar de ter falhado o programa político que cogitara, Valéria
Messalina protagonizou igualmente momentos de agitação política na corte de
Cláudio, que, na óptica de alguns autores, pretenderam assegurar o seu lugar bem
como a sucessão do filho, Britânico. Messalina teria assim reagido contra as duas
sobrinhas ainda vivas do marido, como também contra Marco Vinício, Júlia, Rubélio
Plauto e os Silanos23.
Como notámos, Agripina Maior beneficiou de uma rede institucional que girava
em torno do imperador e que assentava nas figuras dos libertos que ele próprio
colocara em lugares estrategicamente definidos. Narciso, Palas e Calisto perfaziam
uma tríade de ex-escravos, que angariara a confiança do imperador, por oposição aos

21 TAC., Ann. 13, 2.


22 TAC., Ann. 14, 63.
23 Sobre a acção política de Messalina, ver o nosso estudo «Messalina ou Aphrodita tragica in Vrbe»
in A. Ventura, org., Presença de Victor Jabouille, Lisboa, 2003, 519-520; e também C. EHRHARDT,
«Messalina and the succession to Claudius», Antichthon 12, 1978, 51-77.

Gerión 287
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

flancos da aristocracia senatorial e da classe equestre que, em parte, haviam


dominado os altos círculos do poder desde os tempos finais da República.
O episódio da escolha da sucessora de Valéria Messalina, tal como Tácito o
apresenta, é sobejamente conhecido. A política da corte dificilmente permitiria que
a decisão por uma nova consorte fosse entregue a critérios aleatórios. Conta Tácito
que emergiram três candidatas, apoiadas por cada um dos três libertos com
influência junto do poder imperial. Essas mulheres eram Élia Petina, apoiada por
Calisto; Lólia Paulina, apresentada por Narciso; e Júlia Agripina, a Menor, sugerida
por Palas. Esta sobrinha do imperador acabará por ser escolhida, muito
provavelmente porque o homem que a apoiava era quem no momento tinha maior
capacidade de influência na corte24. A cena da escolha tem reminiscências no
episódio literário do juízo de Páris, em que o príncipe de Tróia decide por uma de
entre três deusas. Mas, apesar do seu carácter ficcional, é sintomático das redes de
poder que existiam na corte dos césares no século I d.C.25 A vitória de Agripina
Menor confirma o poder de Palas no círculo dos libertos, mas é igualmente relevante
das mutualidades que funcionariam em regime de compensação, na defesa dos
interesses de cada um. O exercício dos direitos granjeados pela posição privilegiada
que a imperatriz de Roma tinha, levou a que Agripina se dedicasse à prática política
efectiva assim que assumiu o cargo. Uma prática aberta e não de bastidores, entenda-
se, porque as actividades encriptadas nunca deixaram a casa das Júlias.
Durante o principado de Cláudio, Agripina lutou para manter o seu domínio na
casa imperial26. A ambição pouco feminina da que viria a ser imperatriz é mesmo
classificada por alguns autores como hybris27. Esse é mesmo um dos elementos
centrais na construção da personagem histórica Agripina Menor, por parte de Tácito.
E. Paratore escreveu que a principal característica da mãe de Nero é a ambiguidade:
romaníssima nos seus ideais, mas totalmente anti-romana na sua violência e meios
de acção, também pelo facto de ser uma mulher a exercê-los28. Em Tácito, este é um
dilema historiográfico, na medida em que coloca o historiador numa posição
dividida entre a crítica negativa e a positiva.

24 TAC., Ann. 12, 1-2; B. LEVICK, Claudius, London, 1990, 69-70.


25 Sobre a validade do episódio, ver nosso o texto «História, Filologia e Problemáticas da Antiguidade
Clássica» in M.F. Reis, coord., Rumos e Escrita da História. Estudos em Homenagem a A.A. Marques de
Almeida, Lisboa, 2007, 643-659; ver ainda E. PARATORE, «La figura de Agrippina minore in Tácito», Maia 5,
1952, 45.
26 Apesar de Tácito retratar Agripina Menor com o «amor de um artista», como nota E. PARATORE, «La
figura de Agrippina minore in Tácito», Maia 5, 1952, 32, ela assume-se como uma figura negativa, pela sua
intervenção política. Uma das evidências do poder de Agripina Menor na corte reflecte-se no afastamento de
Vespasiano, antes da sua acessão imperial, por exemplo. Sobre esta questão, ver B. JONES, «Agrippina and
Vespasian», Latomus 43/3, 1984, 581-583.
27 E. PARATORE, «La figura de Agrippina minore in Tácito», Maia 5, 1952, 77-80. Esta classificação
deriva da ideia segundo a qual a política não era assunto feminino. Intervenções femininas no universo
político são tidas como originárias em mentes viris e portanto pouco adequadas a uma definição modelar de
mulher. É nesse sentido que, segundo Paratore, Tácito aborda a psicologia feminina de figuras como Agripina
Menor.
28 E. PARATORE, «La figura de Agrippina minore in Tácito», Maia 5, 1952, 81.

288 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

Vários são os episódios que testemunham a luta desta princesa, como assinala o
esforço desenvolvido para concretizar o casamento do seu filho com Octávia, filha
de Cláudio e Messalina. Nenhum será tão elucidativo, contudo, como o que aponta
para a imperatriz como a causa da morte do próprio marido e a consequente acessão
de Nero ao poder, em detrimento de Britânico. É já sob o principado do próprio filho
que Agripina deixa revelar com maior precisão a existência de interesses políticos
manobrados e controlados por mulheres na corte imperial. Uma das suas
intervenções políticas mais incisivas revelou-se contra a pessoa de Lólia Paulina, a
filha de um antigo cônsul, que fora casada com Gaio Calígula e, portanto, sua
cunhada. Lólia Paulina era efectivamente uma mulher de alta estirpe aristocrática.
Havia herdado a fortuna do avô, Marco Lólio, também ele cônsul em 21 a.C. Dois
anos depois, Lólia Paulina desposou Mémio Régulo, que veio a ser governador da
Mésia. Mas em 38 divorciou-se dele para contrair matrimónio com Calígula. As
razões para este enlace poderão ter estado na imensa fortuna de que Lólia dispunha.
Mas o divórcio que se seguiu leva-nos a desvalorizar essa hipótese, visto que a
esvazia de sentido. Talvez Lólia tivesse sido apenas uma dama da aristocracia a
quem Calígula se uniu, por razões de carisma social ou simplesmente por causas
emotivas. Por outro lado, o facto de Gaio ter proibido Lólia Paulina de voltar a casar-
se depois do divórcio de ambos, aponta para a tentativa de evitar uma aliança com
algum homem que viesse a encontrar na fortuna da dama uma fonte de rendimento
para constituir oposição ao princeps.
Em 48 d.C., já depois da morte de Calígula, Lólia Paulina voltou a aparecer na
cena política, desta vez como pretendente ao casamento com o então imperador,
Cláudio. O reaparecimento de Lólia Paulina, que surgia como a escolha defendida
por Calisto, um dos libertos do imperador, confirma a importância que a sua fortuna
continuava a ter. O liberto argumentava que a dama seria uma excelente madrasta
para os filhos de Cláudio, dado que ela própria não tinha filhos de quem cuidar, pelo
que se dedicaria inteiramente aos da desaparecida Messalina. Foi Agripina, porém,
como vimos, quem acabou por vencer a disputa e o destino de Lólia Paulina ficou
então definitivamente traçado. Vendo nela uma ameaça que poderia ressuscitar a
qualquer momento, a filha de Germânico não desistiu enquanto não afastou Lólia
Paulina da sua ambição/pretensão imperial. A filha de Germânico conseguiu que a
cunhada fosse acusada de recurso a astrólogos e Lólia foi exilada, em 49 d.C. Não
satisfeita com esse desfecho, Agripina forçou Lólia Paulina ao suicídio29.
A fortuna de Lólia Paulina terá constituído de novo um móbil para a instauração
do processo contra a aristocrata. Fora esse mesmo dinheiro que sustentara a
«candidatura» dela a consorte imperial, por duas vezes seguidas. O provável é que
a iniciativa partisse não apenas de Calisto, mas também de Lólia e de alguma
«corte» formada à sua volta, constituída por interessados no eventual poder que com
ela poderiam granjear. O interesse no poder, todavia, seria, em primeiro lugar, seu.
Muito possivelmente, Lólia alimentaria uma rede de solidariedades políticas que a

29 TAC., Ann. 14, 12. Neste parágrafo referem-se igualmente Júnia e Calpúrnia, regressadas do exílio e,
portanto, envolvidas em questões políticas.

Gerión 289
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

mantinha na primeira linha das relações com o poder. A mesma rede que teria
assustado Agripina e feito com que agisse no sentido em que agiu.
Mas as redes femininas de poder e de intervenção política no tempo de Agripina
não se restringiam à própria imperatriz e à sua rival Lólia Paulina. Pela actuação das
duas cunhadas de Agripina podemos concluir que também as Domícias intervieram
de forma concertada, com um objectivo político definido. Depois da morte de
Cláudio, a acessão de Nero ao poder não pode ser dissociada da actuação da sua
mãe. Agripina conseguira reforçar a posição do filho perante o marido-tio, ao casar
o jovem Nero com Octávia. Mas a proximidade tornara-se ainda mais efectiva ao
conseguir a adoptio de Nero por parte de Cláudio. Este conjunto de circunstâncias,
associado à aliança estratégica com elementos da guarda pretoriana, levou a que
Nero ocupasse o trono, em vez de Britânico. Mas Nero desenvolvera uma relação
forte com as tias paternas. Efectivamente, quando Agripina foi exilada por ordem do
irmão, foi Domícia Lépida, uma das irmãs de Gneu Domício Aenobarbo e cunhada
de Agripina Menor, quem cuidou do jovem filho do casal. Além de tia de Nero e
descendente indirecta de Augusto (era sua sobrinha-neta), Domícia Lépida era filha
de Antónia Maior e portanto neta de Octávia e de Marco António, e também mãe de
Valéria Messalina e, por consequência, sogra de Cláudio e avó de Britânico e de
Octávia Menor. Isto é, Domícia Lépida reunia todas as condições para se tornar uma
importante adversária, senão mesmo inimiga, de Agripina Menor. Esta era sem
dúvida uma rede familiar e gentílica que motivava e facilitava a intervenção da
interessada. Terá sido essa condição a principal causa da sua acusação de
envolvimento em actos mágicos, associada a uma suposta incapacidade para
controlar os servos que mantinha nas suas propriedades da Calábria. Apesar de se ter
mantido durante algum tempo numa posição politicamente privilegiada, como aliás
também denunciam os seus três casamentos30, Domícia Lépida acabou por ser
eliminada em 54 d.C.
A origem e condição sócio-política desta tia de Nero terão sido as mesmas da sua
irmã, conhecida apenas por Domícia. Também esta se viu envolvida na política e nos
acontecimentos que marcaram o seu tempo. Também Domícia se casou por três
vezes, tendo todos os seus maridos exercido o cargo de cônsul31. O último deles,
Passieno Crispo, veio depois a ser também marido de Agripina, da própria cunhada,
portanto, o que terá motivado uma particular rivalidade entre as duas mulheres. Após
a morte da irmã, Domícia ter-se-á unido a uma outra dama de origem aristocrática,
Júnia Silana, com o objectivo de eliminar Agripina Menor. Júnia Silana não era uma
escolha aleatória. Era filha de um ex-cônsul sufecto, mulher de Gaio Sílio e era irmã
de uma das mulheres de Calígula, Júnia Claudila32. Além disso, mantivera relações
próximas com a própria Agripina, até eclodir uma altercação entre ambas as

30 Domícia Lépida foi sucessivamente casada com Marco Valério Messala Barbato, Fausto Cornélio
Sula e Gaio Ápio Júnio Silano, o qual acabou por ser envolvido na conspiração com Messalina e por isso
acusado, condenado e executado.
31 Domícia casou-se com Décimo Hatério Agripa, cônsul em 22 d.C.; com Quinto Júnio Bleso, cônsul
sufecto em 26 d.C.; e com Gneu Passieno Crispo, cônsul em 44 d.C.
32 SUET., Cal. 12. Júnia Claudila morreu de parto em 31 d.C.

290 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

mulheres. Tratava-se, portanto, de uma personalidade estrategicamente colocada na


corte. O caso de Domícia e Júnia Silana é, quanto a nós, um dos melhores exemplos
da existência de redes de solidariedade feminina a intervir politicamente em Roma,
no século I d.C. Em 55 d.C., as duas mulheres acusaram Agripina de estar envolvida
numa conspiração com Rubélio Plauto, com a intenção de derrubar Nero. Para tal,
urdiram uma intriga em que contaram com a colaboração de libertos e servos das
respectivas casas. Mas Agripina conseguiu ilibar-se da acusação. Júnia Silana foi
exilada e acabou por ser perdoada, depois da morte de Agripina, apesar de não ter
voltado mais a Roma. Quanto a Domícia, saiu com vida do processo, mas não
chegou ao fim do principado do sobrinho, acabando por ser envenenada, muito
provavelmente, a mando dele. Os abundantes bens das duas mulheres, cobiçados por
muitos, não terão sido estranhos às respectivas condenações.
Em 59 d.C., também Agripina Menor acabou por se tornar vítima dos interesses
políticos da corte. Apesar de ter conseguido a aliança matrimonial do filho com
Octávia, a descendente directa de Cláudio, Agripina não pôde evitar que emergissem
interesses paralelos, protagonizados por outras figuras na corte. Essa outra facção,
representada por Tigelino, que veio a ser prefeito do pretório de Nero, não tardou em
manobrar de modo a afastar os primeiros conselheiros do princeps, entre os quais se
encontravam Séneca e a própria Agripina. Um dos primeiros movimentos
estratégicos foi o afastamento de Britânico e Octávia. A partir desse momento,
Agripina soube que, mais cedo ou mais tarde, chegaria a sua vez. Por outro lado,
derrubada a imperatriz, nada poderia consolidar melhor a nova facção junto do
centro do poder do que a angariação de uma nova consorte imperial. Coube a Popeia
Sabina, uma dama de origem aristocrata, desempenhar esse papel33.
A forma como Popeia Sabina se move no tabuleiro do xadrez imperial é
sintomática de que não estava só no exercício das suas funções. Aliás, dever-se-ão a
ela algumas medidas particularmente importantes, atestando a existência de uma
rede clientelar, que funcionava com razoável eficácia. Assim o entendemos a partir
das próprias mortes de Agripina e Octávia, a que os interesses da nova imperatriz
não terão sido estranhos (apesar de não existirem provas claras da influência de
Popeia em ambos os processos é inegável que ela beneficiou com eles), mas também
através de uma série de dados que nos permitem concluir que a nova imperatriz
consorte ocupava um lugar de destaque na hierarquia do exercício do poder
imperial34. Eis alguns exemplos que o demonstram: serviu de conselheira na
perseguição e execução de Pisão e Séneca35; terá sido Popeia quem conseguiu a
nomeação de Géssio Floro como procurador da Judeia, em 64 d.C., pois, segundo

33 Era filha de Popeia Sabina e de Tito Ólio e neta de Popeu Sabino, cônsul em 9 d.C. A mãe de Popeia
Sabina foi uma das rivais de Valéria Messalina e acabando por ser acusada de adultério, em 47 d.C., suicidou-
se por pressões políticas. Sobre Popeia Sabina, ver F. HOLZTRATTNER, Poppaea Neronis Potens: Studien zu
Poppaea Sabina, Graz-Horn, 1995.
34 Entre 59 e 62 d.C., Nero eliminou uma série de potenciais rivais que poderiam ter sido os
representantes de um partido pró-Octávia. Entre eles encontrava-se Sexto Afrânio Burro.
35 TAC., Ann. 15, 61, 4.

Gerión 291
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

informa Flávio Josefo, a imperatriz era amiga da mulher dele, Cleópatra36; na


sequência de uma embaixada judaica enviada a Roma, com a missão de conseguir a
resolução de um conflito gerado entre os Judeus e a administração romana na Judeia,
foi a Popeia que os embaixadores procuraram e foi a imperatriz quem intercedeu
pelos judeus junto do imperador de modo resolver o assunto37; foi também Popeia
que acolheu Flávio Josefo em 64 d.C., no âmbito de uma outra embaixada judaica a
Roma, com a missão de apelar ao imperador para que libertasse alguns sacerdotes
judeus, presos por ordem de Félix, na sequência de uma acusação não especificada,
bem como a de pedir a revogação de uma decisão do procurador da Judeia a favor
de Agripa II38; e poderá ter sido Popeia a intervir uma vez mais junto de Nero em
favor do círculo judaico que apoiava, de modo a combater a secessão crescente que
se verificava no seu seio e que a História veio a conhecer como cristianismo39.
Temos estes exemplos como prova suficiente de que Popeia não só gerou redes de
solidariedade política na corte, como interveio de forma fulcral na vida pública.
Até ao momento, enunciámos casos de acção política feminina em Roma,
protagonizados por damas da aristocracia. Mas possuímos elementos que nos
permitem afirmar que tais redes se constituíram não apenas no universo da nobreza,
mas também no da plebe livre, ou até mesmo entre emancipados e servos (tal como
acontecia com os grupos de influência chefiados e protagonizados por homens, de
que os citados libertos de Cláudio são exemplo).
No processo que desencadeou o fim de Valéria Messalina, houve duas libertas
de Cláudio que tiveram um papel essencial: Calpúrnia e Cleópatra40. De igual modo,
as fontes referem uma mulher a quem Agripina terá recorrido com frequência no
sentido de conseguir meios de eliminação para os seus adversários e inimigos.

36 J., AJ 20, 252.


37 J., AJ 20, 195. A relação de Popeia com os Judeus e o judaísmo foi por nós já discutida em Iudei in
Vrbe. Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios, Lisboa, 2007, 636-654.
38 Pelo texto, não percebemos se Josefo ia só ou se inserido em alguma embaixada. O panorama geral
do documento sugere que Josefo se teria deslocado a Roma sem qualquer companhia; mas a descrição do
naufrágio no Adriático alude à presença de outros indivíduos que, no entanto, poderiam não passar de
companheiros de viagem, produto do acaso, não envolvidos na missão de Josefo. Ver J., AJ 20, 189-196.
39 No centro deste problema, há que não esquecer que os primeiros cristãos, incluindo os que
começavam a elaborar doutrina e uma teologia propriamente cristã, eram judeus ou de origem judaica. Simão
Pedro e Paulo de Tarso são o melhor exemplo dessa realidade. Para os «judeus ortodoxos», os primeiros
cristãos não seriam mais do que uma seita desenvolvida no seu seio e com aspirações à secessão. Se os judeus
de Roma tinham na pessoa da imperatriz uma aliada, como sugerem os textos, então não é de desconsiderar
a hipótese de ela ter sido um pilar de apoio no combate contra o cristianismo emergente na cidade de Roma.
Os judeus da Cidade poderão ter contado com ela para que os defendesse junto a Nero e para que se obtivesse
o apoio das instituições e normas do Estado para eliminar a seita que negava grande parte daquilo em que se
baseava toda a doutrina e comportamento sócio-político judaico. No epistolário atribuído a Paulo de Tarso e
a Séneca, tido pela maioria dos investigadores como apócrifo, há algumas referências que pretendem aludir
a Popeia. O autor destas epístolas, cremos, teve em conta as notícias que dão Popeia como filo-judaica,
conferindo assim sentido às afirmações do interlocutor de Paulo, que teria abandonado o judaísmo para se
filiar no cristianismo e o que teria provocado a indignatio da imperatriz. Sobre esta questão, ver o nosso
estudo Iudei in Vrbe. Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios, Lisboa, 2007, 705-711. Note-se como o
retrato de Popeia em Josefo é por isso radicalmente diferente do que encontramos em Tácito, por exemplo.
40 TAC., Ann 11, 30.

292 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

Locusta seria talvez de origem plebeia, vindo a revelar-se um elemento fundamental


nos planos da imperatriz (e mais tarde do próprio filho desta). Já sob Nero, uma
outra mulher, liberta da casa imperial, funcionou como peça estratégica em várias
acções políticas. Chamava se Cláudia Acte e, apesar de reclamar para si uma origem
da nobreza oriental, em Roma não passava de uma serva emancipada, cliente do
imperador. A fidelidade que manteve ao longo da sua vida a Nero evidencia-se na
história que a dá como uma das únicas três mulheres que se manteve ao lado do
princeps até ao momento do seu enterro, quando ele era já anatematizado por
todos41. A relação de Acte com Nero data de 55 d.C. e começou por ser uma fonte
de preocupações para Agripina, muito provavelmente porque via na liberta um
perigo, derivado das influências que poderia exercer sobre o imperador. A liberta
apoiou mesmo Séneca e Burro no conflito que os opôs a Agripina. Tudo aponta para
que estivesse politicamente ligada aos Aneus, que encorajavam a sua ligação com o
imperador42. A riqueza que esta mulher detinha, em propriedades na Sardenha e em
Putéolos e em escravos e libertos, comprova o seu poder43. Também sob Nero,
Epícaris, outra liberta imperial, participou activamente na política do seu tempo,
desta vez do lado da oposição neroniana44. Depois de torturada, em que se
comportou dignamente, sem denunciar os seus conconspiradores, Epícaris pagou
com a própria vida a sua actividade política, suicidando-se. Esta é outro exemplo de
intervenção feminina na política imperial do século I d.C.
São vários os exemplos de mulheres que participaram, sós ou no âmbito de um
interesse de grupo, na vida pública e política de Roma, no tempo da primeira dinastia
imperial. Tácito, Suetónio e Díon Cássio mencionam vários casos. Salientámos e
analisámos alguns deles. Parece-nos pertinente que, na escrita dos historiadores
antigos que se dedicaram às origens de Roma, as mulheres com uma vida política
activa sejam, por norma, tidas como figuras antipáticas, geradas e geradoras de
matrizes negativas, como Tarpeia e Túlia Menor, por exemplo45. Escapam a esse
perfil as vítimas ou excepções que personificam a coragem feminina, conferindo-lhe

41 SUET., Nero 50. O tema recorda a figura de Jesus de Nazaré e as três mulheres que o acompanham no
momento da morte.
42 Aneu Sereno foi também seu amante, quando era prefeito dos vigias; ver E. CIZEK, Néron, Paris,
1982, 40.
43 Acte reclamava-se, ou Nero atribuiu-lhe essa categoria, descendente dos Atálidas, fora escrava de
Cláudio e deste ganhou provavelmente a emancipação. Alguns aspectos da sua história, porém, sugerem
alguma influência da ficção novelesca. TAC., Ann. 13, 12, 46; 14, 2; SUET., Nero 28. Sobre a fortuna de Acte,
ver CIL X, 8046; 8049; XI, 1414; XV, 7835; VI, 8693; 8767; 8791; 8801; 9002; ILS 1742; 7386; 7396; 7409;
E. CIZEK, Néron, Paris, 1982, 40.
44 Tratou-se da conspiração de 65 d.C. Ver TAC., Ann. 15, 51.
45 Apesar de Tanaquil ser uma figura ambígua e outras, como Hersília, Clélia, Valéria e Vetúria, serem
figuras positivas, as intervenções políticas femininas são, na maioria das vezes, tidas como modelos a evitar.
Na cultura romana, as mulheres politicamente aceites são a excepção e não a regra. E quando o são, é por
relação a uma ordenação masculina. Ver a este propósito o nosso estudo «A heroína romana como matriz de
identidade feminina» in D.F. Leão, M.C. Fialho, M.F. Silva, coords., Mito clássico no Imaginário Ocidental,
Coimbra, 2005, 67-85; e K. MUSTAKALLIO, «Legendary Women and Female Groups in Livy» in P. Setälä and
L. Savunen, eds., Female Networks and the Public Sphere in Roman Society, Rome, 1999, 53-64.

Gerión 293
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

dignidade. Estas são com frequência mulheres que pertencem à classe senatorial,
sendo as mais politicamente activas, por norma, princesas da casa imperial ou
íntimas destas. Isso poderá advir também do facto de os autores que delas dão
testemunho estarem ligados a essa mesma classe. Assim, as vítimas que lutam pela
resistência, ou que apenas a simbolizam, sofrem às mãos de imperadores
autoritários, que exercem o poder de forma arbitrária e até devassa. Aquelas
acentuam assim o carácter inerente à sua condição, ao mesmo tempo que permitem
que se destaque o autoritarismo imperial. Isto é, há, por certo, uma mensagem
ideológica nesta forma de contar os factos. Outras excepções a essa regra são os
casos de Antónia Menor e Agripina Maior, que, apesar de princesas da casa imperial
e de uma intervenção política reconhecida, parecem ter defendido interesses que se
coadunam com os valores senatoriais ou, em parte até, republicanos mesmo. Trata-
se, portanto, de formas de resistência à política vigente, no seio do seu próprio
grupo. De resto, outras mulheres, em quem percebemos uma forte influência nos
acontecimentos da vida pública e até mesmo nos destinos do Império não são, regra
geral, figuras de culto por parte dos seus historiadores ou sequer de admiração: as
Júlias, as Domícias, as Cláudias, ou as que chegaram à casa imperial por aliança
matrimonial, como Popeia Sabina. Associada à sua natureza imperial, essa realidade
parece dever-se também a que, na mentalidade romana, a mulher não fosse talhada
para a vida pública, para a intervenção política. Assim se compreenderá a expressão
de Gaio sobre a sua bisavó, quando a chamava de «Ulisses de saias». Por que outra
razão se haveria de comparar uma mulher do calibre de Lívia a um homem? Mas o
facto é que, bem ou mal vista, essa actividade existia na sociedade romana e, mais
do que isso, mantinha mesmo redes de interesses políticos e de poder e
solidariedades, não exclusivamente femininas, mas protagonizadas no feminino, que
actuavam quando era necessário, sendo, em muitos casos, eficaz. A prova disso
consiste precisamente nas histórias de mulheres perversas, desvirtuosas e devassas
que os historiadores antigos nos legaram. Ou não foi uma mulher, Dido, que, logo
no início, se revelou como obstáculo à fundação de Roma? Em alguns casos, essas
solidariedades aparentam traduzir interesses gentílicos e de grupos, sendo que, em
alguns casos, a rede se confunde mesmo com a própria família. Esta é tanto mais
pertinente quanto se revela no feminino46.
Se a política não é para mulheres, é ainda sintomático que seja exercida, apesar
de oficiosamente, não só por damas da nobreza, mas também por libertas e servas.
Estas constituem figuras ambíguas, caracterizadas entre o positivo e o negativo,
derivado talvez da intencionalidade pejorativa com que se carrega na definição das
aristocratas, ou até mesmo da sua condição social. Libertas, cortesãs e párias não
eram de todo ideais sociais. Essas mulheres funcionam como tentáculos e pontos de
apoio logístico dos comandos das redes de poder feminino que, como é evidente e
compreensível, se localizam nos círculos sociais mais elevados.
Na verdade, não podemos negar, que muito do interesse que a história política e
social da Roma do século I d.C. nos suscita advém precisamente destas figuras

46 Ver R. BAUMAN, Women and Politics in Ancient Rome, London, 1912.

294 Gerión
2008, 26, núm 1 281-295
Nuno Simões Rodrigues Agripina e as outras. Redes femininas de poder nas cortes...

controversas, mal definidas e, pensamos poder afirmá-lo, enigmáticas, não em


qualquer eventual sentido esotérico ou romântico, mas dada a quantidade de
questões que permanecem por resolver e responder quanto à verdadeira dimensão
que lhes devemos atribuir para compreendermos melhor o tempo em que viveram.

Gerión 295
2008, 26, núm 1 281-295

Você também pode gostar