Ancestralidade Africana No Brasil - Memória Dos Pontos de Leitura
Ancestralidade Africana No Brasil - Memória Dos Pontos de Leitura
Ancestralidade Africana No Brasil - Memória Dos Pontos de Leitura
REALIZAÇÃO:
Por meio de políticas culturais, programas e diversos tipos de ações, o Ministério da Cultura busca for-
talecer e dar voz às culturas que estão em nossas raízes e precisam ser mais conhecidas por todos nós.
Este livro é o resultado de uma dessas ações. Sua leitura é uma experiência de vida. Ele recolhe de-
poimentos de pessoas ligadas, de diferentes modos, ao programa Pontos de Leitura da Ancestralidade
Africana. Nos relatos, fazemos uma instigante viagem pela história e cultura de afrodescendentes
brasileiros localizados em dez comunidades tradicionais, como quilombos e povos de terreiro.
Acompanhamos os modos de vida, a gastronomia, suas relações com a natureza e visão de mundo.
Temos um termômetro da importância de políticas públicas para as comunidades. Testemunhamos
o impacto da leitura e da valorização da cultura no fortalecimento da autoestima, organização social
e formação de individualidades que, ao se somarem, mostram o que há de comum e de diferente
entre eles. Tudo isso contado do ponto de vista dos próprios herdeiros dessa tradição, o que é ainda
mais rico.
Como diz Mãe Lúcia de Oliveira, Ilê Axé Omidewá da Paraíba, em seu depoimento: “Nós não podemos
esquecer. Se esquecer a nossa história, vamos deixar que legado?”. É essa uma das grandes contribui-
ções deste livro.
Ao lado das medidas criadas pelo MinC de democratização do acesso à cultura, o livro vai contribuir
para o sucesso que esperamos para a Lei 10.639/03, que altera o artigo 26 da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB). As escolas devem incluir a história da cultura africana e afro-
-brasileira nos currículos. Ele também será um material de apoio importante na composição do acervo
do Museu Afro, que será construído em Brasília e será um marco no resgate da contribuição dos
afrodescendentes ao Brasil.
Marta Suplicy
Ministra da Cultura
O Programa Pontos de Leitura da Ancestralidade Africana no Brasil é uma ação transversal dentro do
Ministério da Cultura, liderada pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), por meio do Sistema Nacional
de Bibliotecas Públicas, em parceria com a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural, e integra
acordo de cooperação firmado entre a FBN/MinC e a Seppir/PR, no âmbito da campanha “Igualdade
Racial é pra Valer”.
O Programa tem como objetivo realizar o registro, divulgação e compartilhamento das histórias locais
da cultura africana e afro-brasileira nos Pontos de Leitura temáticos já criados em diversas regiões do
Brasil. Esses Pontos de Leitura estão localizados em comunidades tradicionais afro-brasileiras – qui-
lombos e povos de terreiro, por exemplo –, que funcionam como espaços de referência para estudos e
pesquisas, bem como espaços de democratização do acesso aos livros, estímulo às práticas leitoras, e
promoção da identidade e da autoestima dos afro-brasileiros.
O apoio da SCDC/MinC estabelece uma conexão com o Programa Cultura Viva, que já reconheceu e
fomentou mais de 3.000 organizações como Pontos de Cultura, e que se constitui como a principal
ação desenvolvida pelo Ministério da Cultura na implementação de uma política de base comunitária.
Nesse âmbito, os povos e comunidades tradicionais de matriz africana, como quilombos e povos de
terreiro, integram o público do Programa, juntamente com os povos indígenas, povos ciganos, mestres
e mestras das culturas populares, e outros segmentos sociais com dificuldades de acesso às políticas
públicas, por motivos históricos e sociais.
Estamos certos, portanto, de que os Pontos de Leitura da Ancestralidade Africana no Brasil trazem
uma grande contribuição para a promoção e preservação das características culturais desse segmento,
inclusive por meio da inclusão nas escolas de novos e mais adequados conteúdos bibliográficos sobre
a história das culturas africana e afro-brasileira, como determina a Lei nº 10.639, de 2013.
Esperamos que a avaliação positiva dos objetivos alcançados pelo trabalho-piloto desenvolvido nos
primeiros 10 Pontos de Leitura da Ancestralidade Africana no Brasil, possibilite a ampliação desse
número, com a inclusão de outras comunidades, em todas as regiões do País.
Márcia Rollemberg
Secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural
APRESENTAÇÃO
uma rede de pontos de leitura de cultura negra.
ELISA MACHADO Partindo do princípio de que a socialização dos saberes é vital para a construção do conheci-
COORDENADORA GERAL DO SISTEMA NACIONAL mento individual e social, demos início ao delineamento do projeto-piloto Pontos de Leitura Te-
DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS máticos. A partir desse projeto foi possível estabelecer conceitos e metodologias de estímulo
DANIELA GREEB E VANESSA LABIGALINI às práticas leitoras, de registro da memória de comunidades tradicionais afro-brasileiras e de
DIRETORAS DO INSTITUTO DE POLÍTICAS RELACIONAIS criação e fomento à constituição de um trabalho em rede. Os resultados, depois de avaliados
e adequados, estarão prontos para serem replicados em outros grupos e espaços.
Em abril de 2012, com a parceria do Instituto de Políticas Relacionais (IPR)1, demos início
aos trabalhos com a realização de um encontro presencial de aproximação e formação,
do qual participaram representantes das 10 comunidades de povos tradicionais de matriz
africana e quilombos selecionadas, integrantes do SNBP, da SEPPIR e do IPR. Foram dois
dias de intensas atividades, palestras e debates, culminando com o lançamento oficial do
projeto no auditório Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.
O projeto contou com duas equipes, sendo uma de campo e uma de infraestrutura e logística.
Enquanto a equipe de infraestrutura e logística, formada por cinco profissionais, organizava
os contatos com os responsáveis em cada lugar que seria visitado, traçava o roteiro de
viagem e cuidava do transporte e acomodação, a equipe de campo, composta por dois
especialistas em pesquisas com comunidades e um videomaker, realizava o levantamento
de dados sobre o território, sobre a comunidade e formatava os roteiros de entrevistas e, a
distância, dava início à aproximação com a comunidade que receberia o ponto de leitura.
Durante sete meses, a equipe de campo foi de comunidade para comunidade saber dos
causos, das histórias, das gêneses e transformações da terra, da vida, do axé de cada
morador, de cada pessoa que faz parte da construção da história da ancestralidade
africana. Essa experiência ficará para sempre na memória de todos.
Entre um ponto de leitura e outro, muitas vezes não dava para a equipe de campo se
despedir emocionalmente das pessoas e das inúmeras histórias que compartilharam.
Por outro lado, a equipe de infraestrutura e logística, ao receber o material registrado, se
imbuía da história de cada morador, de cada integrante do ponto de leitura visitado. Os
pesquisadores de campo chegavam com uma peça de artesanato e uma geleia do local,
para que a equipe de infraestrutura pudesse se nutrir e sentir um pouco do que havia
sido vivenciado com aquelas comunidades. E assim foi até chegar à décima e última
viagem, com um misto de missão cumprida, com gosto de “quero mais”.
Entendemos que o projeto Pontos de Leitura da Ancestralidade Africana no Brasil pode ser
multiplicado em todo o território nacional e pode ser considerado o ponto de partida para
trabalhar outros grupos que englobam a grande diversidade cultural brasileira. Esperamos
com isso ter contribuído para a implementação da Lei 10.639/03, que determina a inclusão
desses conteúdos nos currículos escolares, bem como para o combate aos preconceitos e
para a promoção de um pluralismo cultural compatível com a diversidade etnorracial do País.
Esses mesmos resultados estão aqui registrados e podem ser vivenciados na leitura de
cada uma das falas que compõem este livro. Para nós, essas falas se configuram como
uma grande contribuição para a construção de políticas públicas voltadas aos interesses
reais da população negra de nosso País.
Para orientar a leitura, as falas estão organizadas por temas, como políticas públicas,
racismo, religiosidade etc. Essas falas fazem parte do dia a dia da luta, dos sonhos e
objetivos dos moradores e integrantes das comunidades pesquisadas, e estão aí para
serem vivenciadas pelo leitor deste livro, como se estivéssemos todos em uma grande
roda de conversa. Basta escutá-las.
1 Entidade privada sem fins lucrativos, selecionada por meio de
Boa leitura! Edital de Chamada Pública da Fundação Biblioteca Nacional (FBN).
O
Brasil recebeu mais de 5 milhões de pessoas, na condição de escravizadas, entre
os séculos XVI e XIX, originárias de diversas regiões e povos do continente afri-
cano. A despeito da violência do sistema escravista e, no pós-1888, do racismo,
a descendência africana marcou de maneira indelével a cultura nacional. Atualmente, o
País é considerado o segundo maior em população negra no mundo, constituindo 50,7%
dos brasileiros e das brasileiras, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (2010). Entretanto, quando analisamos as instituições
nacionais, políticas, administrativas e socioculturais, é perceptível que o racismo é uma
das suas variáveis estruturantes, constituindo espaços totalmente hegemonizados pela
ANCESTRALIDADE
cultura eurocentrada.
Foi assim que a exclusão racial e a exclusão social se misturaram. Uma virou a
outra, e essa é uma chaga que nós temos, e esse país tem, e tem lutado por isso,
para estreitar, muitos lutaram para derrotar e para acabar com essa chaga que é
essa mistura de exclusão social com exclusão racial, que leva a uma série de pre-
conceitos (...)
Inicialmente, foram contemplados com o Projeto seis casas tradicionais de matriz africa-
na e quatro quilombolas em dez estados da federação. A escolha das casas tradicionais
de matriz africana e das comunidades quilombolas como os primeiros beneficiários do
Projeto é estratégica e emblemática. Esses territórios tradicionais são, por excelência,
mantenedores e produtores da cultura africana e afro-brasileira. Contemplar esses terri-
tórios é reconhecer sua existência, sua importância histórica e cultural e potencializar o
trabalho dos multiplicadores e produtores de conhecimento.
A proposta de bibliotecas temáticas, como qualquer ação afirmativa, tem como objeti-
vo principal reverter um prejuízo histórico provocado pelo racismo, e contribuir para a
consolidação da democracia nacional. Haverá um tempo, e lutamos por isso, em que
a diversidade etnorracial estará de tal forma incorporada às instituições nacionais e na
própria sociedade brasileira que bibliotecas temáticas serão algo obsoleto.
Esta ação está voltada para o registro, divulgação e compartilhamento das histórias
locais da cultura africana e afro-brasileira, com o interesse de colaborar para a pre-
servação e maior visibilidade desses saberes, patrimônio cultural vivido e vivo, que
transitam nas narrativas pelas gerações, na maior parte das vezes ignoradas pelos
registros históricos.
“A história de nossos povos nos tem sido contada a partir do olhar colonizador. Todo o res-
MEMÓRIA DOS
tante tem sido invisibilizado, escondido atrás das paredes da desqualificação e da interdição,
como ignorância, atraso, vulgaridade, ou das muralhas do preconceito.” (Ganduglia: 2010)1.
Como diz nosso amigo uruguaio, Néstor Ganduglia, “quando a experiência vivida é con-
tada ela se articula e se reelabora com o presente, ao qual inclusive lhe dá sentido. E mais,
se chega ao ouvido do receptor é porque tem a ver com o presente e com a vida também
Evidentemente cada narrador ou comunidade nos levava para outros horizontes, dis-
tintos dos nossos roteiros. E, embora tenhamos feito os registros em áudio e vídeos,
muitas vezes, quando lembravam fatos ou faziam elaborações impressionantes e mag-
níficas, não havia uma tecnologia à mão.
Reunimos muitas histórias contadas, das quais uma pequena parte toma forma neste 1 GANDUGLIA, Néstor. País de magias escondidas: Montevideo:
Ed. Planeta, 2010.
livro. Nossa gratidão a todas as comunidades e pessoas, pela permissão do registro de 2 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, São Paulo: Ed. Brasiliense,
suas memórias e pela generosidade com que nos receberam e o tanto que nos ensinaram. 1993.
COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Quilombo é uma palavra africana originada do quimbundo (ki lombo), ou do umbundo
(ochilombo), línguas faladas por povos bantos da região de Angola e designava lugar de
pouso ou acampamento.
Estima-se que existem mais de três mil comunidades quilombolas no país.1 Cada qui-
lombo se organiza, em geral com os terrenos familiares, e tem uma Associação, entidade
civil representante do conjunto e reconhecida juridicamente, que formalmente negocia
e acompanha o processo de regulação e pode acessar programas governamentais ou
projetos de financiamentos junto a outras instituições. Atualmente existe uma articula-
ção nacional, a CONAQ – Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas, com
representações em alguns estados, que se empenham na disseminação de informações,
na organização dos quilombolas e dos debates e intervenções para o acesso aos direitos.
É um longo processo para obter esse reconhecimento legal como quilombo e mais
Além disso, apesar de diversas políticas públicas destinadas a essas comunidades, as in-
formações são fragmentárias, dispersas, e raramente chegam aos principais interessados.
“Os espaços de práticas das religiões de matriz africana são, no Brasil, não apenas locais
de culto religioso, mas também instrumentos de preservação das tradições ancestrais
africanas e de luta contra o preconceito e de combate à desigualdade social. (...) em sua
maioria, estão localizados em área de vulnerabilidade social e caracterizam-se como es-
paços de solidariedade, acolhimento e promoção de ações sociais para toda a população
que vive em seu entorno.” (MDS:2011, p.15)2
Enquanto organização interna da parte religiosa há uma hierarquia que se estabelece confor-
me a responsabilidade e função, sendo a autoridade espiritual e moral concentrada nos cha-
mados “Babalorixás” ou “Ialorixás” (a palavra Iyà do ioruba significa mãe, Bàbá significa pai).
QUILOMBO CURIAÚ – ASSOCIAÇÃO DOS EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO
MORADORES DO QUILOMBO DO CURIAÚ Responsável: Márcia Dória Pereira
Responsável: Jozineide Araújo (Mãe Márcia de Oxum)
Rodovia do Curiaú, 3561 – Curiaú Rua Dalmir da Silva, Lote 8
CEP: 68909-023 – Macapá / AP Sacramento – CEP: 24735-010
T: (96) 9111-4435 / 3251-6588 São Gonçalo / RJ
[email protected] T. (21) 3605-1541 / 2724-5612 (Marilia)
ASPAJA – ASSOCIAÇÃO
SANTUÁRIO SAGRADO PAI
JOÃO DE ARUANDA / PI
ILÊ AXÉ
OMIDEWÁ / PB
ASSOCIAÇÃO
DOS MORADORES E
PRODUTORES RURAIS
DAS COMUNIDADES DE
MACUCO, MATA DOIS,
COMUNIDADE QUILOMBOLA PINHEIRO E GRAVATÁ –
MESQUITA – ASSOCIAÇÃO APRONPIG / MG
RENOVADORA DO
QUILOMBO MESQUITA / GO
COMUNIDADES
NEGRAS
RURAIS DE
CASTRO / PR
CENTRO
MEMORIAL DE
MATRIZ AFRICANA
13 DE AGOSTO / RS
20 REGISTRO DA MEMÓRIA
22 SER NEGRO, TORNAR-SE NEGRO
26 SER QUILOMBOLA
32 ESPIRITUALIDADE
38 MEMÓRIA E IDENTIDADE
54 CULTURA E TRADIÇÃO
60 TAMBORZEIRO
76 POLÍTICAS PÚBLICAS
84 PARTICIPAÇÃO POPULAR
90 CULTURA
94 DIREITO DA TERRA
100 ATIVIDADES
DAS
COMUNIDADES
108 RACISMO
“O TEMPO PEDIU
PRA FOLHA DANÇAR
PRA FOLHA DANÇAR
E NUNCA PARAR
E SEMPRE CURAR O DIA”
DEMBWA,
MÚSICA DE
TIGANÁ SANTANA
Quilombo Curiaú / AP
SER NEGRO,
TORNAR-SE NEGRO
A GENTE JÁ PENSA, “NÃO, O NEGRO NÃO CHEGA LÁ, não chega lá, não chega
lá”, mas eu acho que tem que cair a ficha, igual muitas pessoas já sabem que o negro tam-
bém pode chegar no mesmo lugar que o branco chega, não tem assim diferença. É mais
sofrido? É, com certeza, mas que ele chega, chega. Quando o ministro (Edson Santos)
apontou lá, tipo assim, quando eu vi ele, para mim era como se eu estivesse vendo tipo um
irmão, uma coisa assim da família. Agora se fosse uma pessoa branca, toda assim, coisa
assim, então, a gente tinha receio de chegar até ele. Mas, para mim, igual para muitas
pessoas foi assim, mas para mim eu senti como se ele estivesse chegando em casa.
JUCILENE SOIER, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRAVATÁ) / MG
a
”VOCÊS JÁ VIRAM
A GENTE É EDUCADO PARA NÃO SER NEGRO. No meu caso, eu fui educado para não
ser uma pessoa negra. O que aparece na mídia? No livro didático? Vocês já viram algum livro
ALGUM LIVRO
didático que tivesse uma boneca negra? Aparece a figura branca, quando aparece uma figura DIDÁTICO QUE
negra é de porte subalterno e estão apanhando, estão sofrendo. É uma estratégia. Com esse
processo da lei de (1888) começou a convencer eles e elas a dizer que é quilombola, então TIVESSE UMA
“eu sou quilombola, eu sou negro”, mas o que acontece conosco, negros e negras urbanos? BONECA NEGRA?”
RUIMAR BATISTA, ESCRITOR E PESQUISADOR, ASPAJA – ASSOCIAÇÃO SANTUÁRIO SAGRADO PAI
RUIMAR BATISTA, ESCRITOR
JOÃO DE ARUANDA / PI
E PESQUISADOR, ASPAJA –
ASSOCIAÇÃO SANTUÁRIO
a SAGRADO PAI JOÃO DE ARUANDA / PI
UM PONTO CURIOSO É QUE ASSIM, nem na minha família tinha tanta vivência
negra como tem hoje, hoje eu consegui incrementar mais, porque as pessoas se
assumem negro, antigamente “ah, eu sou moreninho”, sou “meio branquinho”, hoje
não, as pessoas da minha família não, falam: ” – Oh! Eu sou negro”.
MAICON, RÁDIO ORÙNMILÁ, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
ELES NÃO CONHECEM A HISTÓRIA DELES e isso me chamou muito a atenção, eles
não sabem nada da origem deles, é tudo muito solto. Então eu tenho um grupo aqui em
cima que digo assim: – Não! Mas é tua família, tá lá na Serra do Apon. – “Não, mas eu
não conheço, eu nasci aqui em Castro”. Eles acham que nasceram aqui em Castro, mas
eles não ligam as famílias, têm os mesmos nomes, os mesmos sobrenomes, mas eles
não acham que são parentes e eu encontro a mesma parentela aqui do lado e do outro e
na Serra do Apon e no Limitão, e, então pra gente fica até meio difícil porque eles não se
reconhecem. Então, eles não têm uma coisa assim, eles não conhecem a história, eles
não sabem, estão aprendendo a ser negro porque a gente tá dizendo: você é quilombola,
você é negro, você é isso, e os negros faz isso, faz aquilo, mas eles cresceram é no meio
dos holandeses, trabalhando pros holandeses. Estão naquela consciência de que você
não pode nada e vocês só podem até aqui, e você tem, come o que tem ali, eles não têm
uma comida própria, eles não sabem. A Dona Vani que conta do avô dela, mas nem ela
lembra do que realmente eles comiam, do que eles viviam, do que eles... então é a gente
que fica criando a história pra eles.
PROFA. RIZALVA DE BARROS E SILVA, COLABORA COM AS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE
CASTRO / PR
Quilombo Curiaú / AP
EU TENHO CERTEZA QUE AQUI O AXÉ SÓ VEIO CONFIRMAR o que eu já nasci,
porque minha mãe é negra e meu pai é branco, filho de italiano, bem branco mesmo.
Sou crescido num ambiente que meu tio tocava, queria tocar samba. E teve uma épo-
ca que eu era muito “fissurado” em carnaval e este meu tio desfilava, quando morava
em São Paulo e meu avô e eu fui saber há pouco tempo atrás que a mãe dele era mãe
de santo e que este meu avô era ogã. ... só vem confirmar o que já nasceu comigo, en-
tão eu nunca tive problema de aceitação, nunca tive problema nenhum, pelo contrário.
RAFAEL, MEMBRO DO EGBÉ AHÔ AŞÈ YÁ MESAN ORUN, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
X
a
SER QUILOMBOLA
MEU NOME É JUCILENE ALVES COSTA SOIER, eu tenho vinte e oito anos, eu sou ca-
sada, eu tenho três filhos e eu moro aqui na comunidade do Macuco desde que eu nasci.
Eu nasci aqui e moro aqui. Ser quilombola é assim, pode ser tanta coisa, poder a gente
ter orgulho da cultura da gente, saber que a gente mora num território que foi o lugar, que
foi onde começou a família, começou a era escrava (...) ser conhecido como quilombola, ”NÃO VAMOS DIZER
a gente não sabia esse termo ainda, “quilombola”, essas coisas. Mas já sabia que de uma
forma ou de outra, vamos dizer assim, não vamos dizer que a gente é diferente, mas a QUE A GENTE
gente já sabia que era de uma raça diferente do que a outra. Então, já sabia que a gente era
quilombola, mas não tinha assim esse conhecimento e com esse reconhecimento mudou
É DIFERENTE, MAS
muita coisa porque, igual mesmo hoje, quando você vai fazer uma faculdade. Antigamente A GENTE JÁ SABIA QUE
não tinha isso, agora hoje você já pode entrar nas cotas raciais, você já tem chance de
conseguir vaga. Igual, vamos supor, se tem cem alunos, antigamente tem dois, três negros, ERA DE UMA RAÇA
com certeza aqueles negros não iam conseguir, e hoje não, hoje já têm aquelas vagas ali DIFERENTE DO QUE
que já são reservadas para os negros. Mas assim, eu acho que essas cotas raciais, também
é de uma forma ou de outra ainda está mostrando aquela diferença porque se dividiu – ali A OUTRA. ENTÃO,
quer dizer que os negros não têm capacidade de, vamos supor, de disputar aquelas vagas JÁ SABIA QUE A GENTE
lá, que são para todo mundo. As cotas raciais – é bom porque a gente tem aquele caminho
ali que consegue, de uma forma ou de outra a gente acaba, ... mas, vamos dizer que ali a ERA QUILOMBOLA”
gente é menor, a gente tem menos capacidade. JUCILENE SOIER,
JUCILENE SOIER, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRAVATÁ) / MG ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO,
MATA DOIS, PINHEIRO E GRAVATÁ) / MG
B
COMO VIVEM
AS COMUNIDADES
ASPAJA – Associação
Santuário Sagrado Pai
João de Aruanda / PI
O CURIAÚ, QUE ERA A MATA DA PICADA, por causa da história de como surgiu, que
quando os antigos escravos vieram pra cá, quando Francisco Inácio... vieram perambu-
lando a cavalo e se embrenhou nesta mata e fez um pique pra varar do campo, que é o
que a gente chama aqui pro lago de Marabaixo. Então era uma mata muito grande e ele
fez o pique e a gente cresceu escutando a história que dobrava de picada. Isso era uma
divisão natural porque existia uma mata que dividia o Curiaú de baixo e o Curiaú de fora.
SR. SEBASTIÃO SILVA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
ESPIRITUALIDADE
NÃO ENTENDO QUE CANDOMBLÉ SEJA UMA RELIGIÃO. É uma visão de mundo,
uma forma de ser colocada, de resistência, (...) um modo civilizatório.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
OLHA, TEM MUITAS IGREJAS... as igrejas evangélicas nas comunidades estão influen-
ciando bastante, são poucas as pessoas que falam assim: – “Ah! Eu sou macumbeiro!”
Ninguém fala muito, nossa família é que fala mesmo e eu não estou nem aí para o que eles
falem. A minha família ela é, ela tem uma árvore toda dentro da Umbanda, antigamente
chamava de feiticeiro “Brache”, os antigos chamavam de feiticeiro, porque não sabia o que
era Umbanda, se aquilo era ou não da religião da Guiana Francesa. Tem os “Tamaracas”,
a Umbanda, os Curadores, que têm uma influência muito grande e mais o Preto Velho. O
povo das comunidades discrimina muito, pois recebeu influência muito grande da igreja
evangélica, dos católicos, transformando os Quilombos. Só tem uma comunidade que é de
cabo a rabo, do menor ao maior, que é afrorreligioso, que é da Umbanda, o Tambor de Mina.
NÚBIA DE SOUZA, CONAQ, SOBRE QUILOMBO CURIAÚ / AP
Mãe Vera Soares, Centro Memorial
de Matriz Africana 13 de Agosto / RS
N
HOJE EU ATENDO COMO MÃE DE SANTO, tenho meus clientes, eu faço algumas
Bagé, Oyá, mas eu só faço interno, eu não faço publicamente. Hoje, o pessoal prestigia
muito e me respeita graças a Olorun. Ultimamente eu cedi e abri o espaço pro Centro
Cultural, então agora ficou tudo junto, a gente não tem outros espaços, então tudo
acontece aqui, é tudo aqui e é permitido. Oyá que é a dona da casa permitiu, então tudo
bem, eles entraram e eu fiquei mais acanhada.
MÃE NEIDE RIBEIRO, EGBÉ AHÔ AŞÈ YÁ MESAN ORUN, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
Centro Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto / RS
N
aqui. E em muitos terreiros como o meu, até anos atrás não sabiam desse papel, não
tinha consciência do que se faz para essa sociedade, quantas vezes nós fizemos papel
de educadores, papel de médicos, psicólogos, psiquiatras, porque a gente lida com todo
e qualquer tipo de pessoa. Mas os tempos e a própria orientação imaterial, ou seja, das
nossas divindades vão nos estimulando e soprando através de fatos, que aquilo tem um
papel, tem uma força e tem um nome, que são “as ações afirmativas”. Hoje se discute isso.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
NOSSA RELIGIÃO, ELA É UMA RELIGIÃO QUE ACOLHE, ela é a que acolhe mais,
porque quem chega na nossa porta, não estamos preocupado com quanto ganha, nem
quem é e nem o que faz, mas vê ali o ser humano que chegou precisando de alguma
coisa, precisando de alguma palavra, especialmente de uma palavra, de se sentir aco-
lhido, que às vezes não tem na família. Chega aqui e às vezes não é nada, é só falta de
atenção, de diálogo, de alguém para escutar aquela pessoa. Às vezes a pessoa está tão
perturbada, só faz conversar e eu fico só escutando, porque está precisando que alguém
a escute e também que alguém fale para ela. Então a gente tem que ter uma responsa-
bilidade muito grande de saber separar quando é espiritual, quando não é.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
O CANDOMBLÉ É “ANTI” TUDO QUE NOS OPRIME. Apesar de ser uma religião hierár-
quica, essa hierarquia não faz com que se menospreze o outro. Então, o valor do abiã é o
mesmo do ebomi, porque o abiã, ele se tornará um ebomi. O ebomi respeita o abiã que é a
pessoa que ainda está dando os primeiros passos dentro do terreiro, como o abiã respeita
o iaô e o ebomi e assim sucessivamente, porque a gente respeita o ser humano. Então,
quando diz, “a minha casa é matriarcal”, certo, mas não deixa de respeitar o homem, os
alabês os que tocam para o orixá, o éxogum que faz o sacrifício, a emulação, é um grande
pai, os ogãs, – eles são nossos pais, a gente respeita como filho e como pai. Não existe
a separação, existe o respeito, um respeito mútuo pelo sexo do homem e pelo sexo da
mulher, a questão do gênero é respeitada dentro da nossa casa. Nós respeitamos todos,
todas as pessoas dentro da religiosidade são importantes, não existe uma mais importante
do que a outra. Dentro da hierarquia cada um está dentro do seu grau e sabe como se
conduzir e fora da hierarquia sacerdotal são seres humanos que merecem respeito, mere-
cem cuidados, merecem atenção.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
ele tinha mais tendência à musicalidade, os tambores faziam o efeito nele, e ele fica na
conversa, ele não sai daqui, nós estamos aqui pra te ajudar, nós damos a casa pra ele – e
não é uma casa separada para ele, não é uma casa de menores infratores, vão pra algum
lugar, não. É a nossa casa. Por que que o terreiro não pode ter 3.000 fiéis, 4.000 fiéis?
Porque a gente dá a ele comida, cama, abraço, beijo, a gente chama a ele de filho, ninguém
olha diferente porque ele tava ali na rua. Não dá para fazer isso com todos. Um terreiro
não tem condições de fazer isso com todos, mas com o que nós podemos, nós fazemos.
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
COMEÇOU DESDE QUE EU NASCI, DESDE A MINHA AVÓ. Quando eu nasci minha
mãe e minha avó já trabalhavam; cresci com isso, só que minha avó era aqui de “Pena e
Maracá”, também dançava “Tambor de Mina”. Este terreiro é de Iemanjá e é de herança
8
e não é à toa que o nome é “Casa da Mãe das Águas”, por conta de Iemanjá e de minha
mãe Oxum, que acabou abrindo mesmo foi com o meu Orixá. Quando eu recebi meu
Dekà eu dizia muito pra minha mãe de santo: – “Eu não quero ser mãe de santo, não
quero”. – “Mas, minha filha, foi feita pra tomar conta das coisas da sua mãe, os orixás que
determinaram assim, tá?” Quando aconteceu que não teve jeito, que eu recebi, eu me vi
dentro do Ilê, mãe de santo, Ialorixá mesmo, com toda esta responsabilidade, eu fui no
pé da minha mãe Oxum e conversei com ela, eu chorei muito e disse: – “Minha mãe, a
senhora não quer ver sua filha infeliz... eu não quero, eu não quero ficar, só isso, mãe de
santo. Eu quero fazer parte desta sociedade, contribuir, de alguma forma, – contribuir era
esta a palavra –, eu queria contribuir de alguma forma, eu não queria ficar só...” Assim
eu era tola, uma mãe de santo nova mesmo. E com pouco tempo eu recebi um convite
da Avelina, do Maranhão, se eu queria participar de uma oficina, e esta oficina era uma
capacitação da Rede de Religiões Afro-brasileiras e Saúde. E eu fui e neste tempo ainda
era um projeto, ainda não era a rede e depois cresceu tanto o projeto, que virou rede.
Começamos, era tudo novinho, e daí trouxe pra cá, peguei, gostei e me senti útil e nem
percebi que eu estava trabalhando para o povo de terreiro. Eu demorei muito para en-
tender isso, eu estava fazendo um trabalho e pra povo de terreiro, e eu disse pra minha
Ialorixá: – “Minha mãe, nem sei o que minha mãe Oxum quer comigo!” – Porque eles
brincavam que eu vivia muito nesta vida social. E assim meu trabalho era muito e tem
que ir assim, buscando políticas públicas para o povo de terreiro e eu fui. A minha Ialorixá
tem sabedoria... A velha tem sabedoria, e eu disse: é verdade eu estou também prestando
serviço ao Orixá quando estou prestando serviço à comunidade e ao povo de terreiro.
MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA, ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA
ENTÃO O QUE EU QUERO DIZER, É QUE O TERREIRO TEM UMA PARTE muito
pesada na sociedade, que a sua experiência poderia muito ser replicada e as pessoas
parecem não querer enxergar isso. Aqui em casa deve ter uns 30 a 40 jovens iniciados,
dos 30 a 40 só nos anos que eu tomo conta da casa da minha mãe, ou até mais. Nós
perdemos dois pra mortes, eu acho que é um índice bem baixo, em se tratando de
jovens de comunidade. Um terreiro não consegue abraçar mais do que isso, da gente
botar criança aqui que a mãe não consegue levar pra escola, ele dorme aqui e eu acordo
ele seis horas da manhã, – pra escola – vem, faz a parte religiosa, volta e toma a bênção,
não olha nem pro rosto e descer pra escola; e amanhã você volta depois da escola, ficar
no terreiro. Quando eles chegam aqui eles não querem mais voltar.
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
Ritual Afro
MEMÓRIA
E IDENTIDADE
A GENTE FAZ SEGURANÇA ALIMENTAR desde que essa religião chegou ao Brasil,
desde que os negros chegaram aqui foram criados inclusive pratos. Por exemplo, a
feijoada era tudo aquilo que o senhor de engenho não comia. Então, as carnes de alta
qualidade e a parte do boi toda ia para o senhor de engenho, mas as vísceras, as patas
que a gente faz o mocotó hoje, foi tudo criado pelos africanos que chegaram aqui. Ele fa-
zia do mocotó, não jogava fora nada, enquanto o senhor de engenho jogava no rio para
alimentar os peixes, eles pegavam e tiravam para botar para cozinhar, para se alimentar,
porque a ração que davam era muito pouca para a quantidade de trabalho que eles ti-
nham. Então eles faziam aquele trabalho de matar o boi, entregar a carne para o senhor
e as vísceras e o que o senhor não queria, a cabeça, as patas, eles usavam como fonte
de proteína e de força para aguentar o trabalho do canavial, do cafezal. Nós não tivemos
escravos, nós tivemos pessoas que saíram livres da África e foram escravizados aqui,
na diáspora, foi no Brasil. Mas o Brasil, eu acho que foi onde foi feito a pior condição de
escravatura foi aqui. Eu não sei porque a falta de humanidade aqui, o colonizador, ele foi
muito ruim mesmo, perverso com o povo negro. Eles tratavam meus ancestrais como
mercadorias, mas eles não tinham nem pena de perder aquela mercadoria por maldade
mesmo, por instinto ruim mesmo. Isso me deixa triste. Algumas pessoas do movimento
negro dizem que têm que esquecer isso, – nós não podemos esquecer, se esquecer
a nossa história, vamos deixar que legado? Quer dizer, se não lembrar essas agruras,
desse nosso povo ancestral que deu força a esse país, que fez esse país enriquecer com
sangue, suor e lágrima, que legado vai deixar? Temos que estar lembrando isso sempre,
lembrar com tristeza, mas ao mesmo tempo com orgulho porque foram pessoas fortes,
se eles não fossem fortes não tinha negro no mundo, mas eles resistiram, eles fugiram,
eles não se entregavam à toa. Eu sei de histórias que negros morreram porque não der-
ramaram lágrimas, apanhavam trezentas, quatrocentas, quinhentas chibatadas, chibata-
da até morrer – entregavam o sangue, mas não entregavam a sua lágrima. Sua lágrima
era a sua dignidade, o branco tirava o sangue, mas eles não conseguiam tirar a lágrima.
Podemos até morrer no cativeiro, mas morríamos sem se entregar, morria lutando, mor-
ria fugindo, porque a fuga é uma forma de resistência, não é covardia fugir da agrura,
não. É luta, é dignidade de ser humano. Ela começa a partir da sua resistência, da sua
briga. Mas o povo africano ele é primordial, ele deu a origem da humanidade. A África
não tinha certas coisas, então quando começou o cristão a botar tudo era pecado, tudo
era pecado, para nós não existe pecado, existe a lei do retorno, a lei do universo mesmo,
quem planta colhe. Quem maltrata vai ser maltratado, é assim, a lei da vida é essa, a lei
do retorno. Se você planta amor, você não vai ter ódio, se você planta respeito, você não
vai ter... eu digo que a intolerância gera intolerante, eu estou me tornando intolerante,
eu estou me tornando, eu não era intolerante, mas a gente é tão desrespeitado que se
torna intolerante. Por quê? Porque tem que se defender do intolerante, então também se
torna intolerante para nos defender, é ação gera reação, a gente lê o evangelho, a gente
lê a ação gera reação, é a Lei de Newton, né, então é isso.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
MESMO, POR INSTINTO NO CASO AQUI DO MACUCO, aqui mais recente, só que não é do meu tempo, quem
RUIM MESMO. era dono disso aqui era um padre, o padre Barreiro, esse que era o dono de tudo isso aqui,
agora de que maneira que os outros herdaram, se apossaram dessa terra, se eles entraram
ISSO ME DEIXA TRISTE” e (...) os primeiros (...) dos tataravós do André e de outros é um pouquinho... no meu conhe-
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB cimento é um pouquinho desconhecido isso aí, saber, só que o dono desse Barreiro aqui,
que é a cabeceira do Macuco, era esse tal de um grande fazendeiro e um padre. Fazendeiro,
chamado padre Barreiro, agora o nome dele completo eu não sei, o Barreiro deve ser uma
assinatura, padre Barreiro. Mas isso também foi depois dos portugueses terem chegado até
Minas Novas, Chapada no Norte e depois da saída deles, que ele veio apoderar desse local.
SR. GERALDO BARROSO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRA-
VATÁ) / MG
EU TENHO PENSADO MUITO NISSO desde que vocês (os pesquisadores) chegaram
aqui. Agora eu não sei como foi que veio parar essas pessoas da África aqui, (...) o meu,
da minha família moraram aí e o meu avô como ele comprou o que era do (...) dos filhos
dele e ele comprou esse terreno e que os pais dele adquiriram esse mesmo terreno, que
é aqui, que é do padre Barreiro, que os parentes dele quando eram vivos vendeu ele
aqui e saiu (...) do Mata Dois que era da família dos (...) e uniam essas famílias. Misturou
QUANDO VIVIA SÓ OS SETE IRMÃOS ESCRAVOS, que eles viviam numa casa gran-
”ENTÃO EU PENSO QUE
de aqui, a família vivia tudo ali junto, e começou a se separar e cada um tinha a sua casa
ANCESTRALIDADE ELA É e começou a aumentar o vilarejo aqui como (...) e as casas aqui eram tudo de barro com
as telhas de arame, de cipó, foram aumentando as casas e foram fazendo e até hoje a
TODO ESSE CONJUNTO, gente sabe pela tapera onde o antigo tinha a sua casa, e a vida dele era plantar... Então
QUE NÓS TEMOS DO é outra coisa que eu digo, que aqui tem três versões, aqui tem uma área de quilombo,
aqui tem área rural e aqui tem uma comunidade tradicional, são três coisas diferentes e
ELO FAMILIAR E QUE A eu explico se alguém precisar saber. E tem gente que fica até surpreso por causa disso.
GENTE CONTINUE ELE, A criação de Alemão aqui era extensa de gado, cavalo, porco, enfim... não existia cerca,
animal até hoje é um costume de animal andar perambulando por aí e indo comer as
CONTINUE PERPETUANDO plantas do vizinho. E aí começa a destruir a plantação das pessoas e ninguém consente.
DE VÁRIAS FORMAS, Aí começa a brigar entre as famílias. Quando as coisas não conseguiam se consertar ali,
aí teve a facilidade de se chegar mesmo a pé na cidade e começaram a levar o caso pra
SABERES, DOS COSTUMES” polícia. Naquele tempo era a ditadura e pior, rigorosamente, mas pra saber quem tinha
SANDRA PEREIRA BRAGA, razão e quem não tinha, veio daí a preocupação de procurar o documento das terras,
COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO pra tirar as terras. O documento das terras e você vê neste documento e quem conhece
a razão e o fato, vê uma situação onde tá frisado uma situação, que até você leu e não
percebeu, porque você não tem o conhecido da causa... Por isso to dizendo (...) e não
observa certos pontos. Então a pessoa que foi buscar os documentos, ele não botou que
os outros eram irmãos e que tinham os mesmos direitos, porque eles eram sete irmãos
escravos. Ele sempre botou que eram vizinhos.
SR. SEBASTIÃO SILVA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
QUER DIZER, MEU AVÔ ERA O DONO, MEU PAI ERA A GALHA (galho) e nós era a
pontinha da galha, do tronco. Aí eles vão morrendo e vai passando, ficando de geração. Eu
herdei meu pai, meu filho vai herdar de mim, vai assim até (...) dele ali, vai fazendo assim.
ELISABETE COSTA MACHADO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E
GRAVATÁ) / MG
Manuel Pedro Rodrigues e Noêmia Maria da Silva, Comunidades Negras Rurais de Castro / PR
PELA HISTÓRIA QUE A GENTE CONHECE E VEIO A CONHECER DEPOIS que quan-
do nós fundamos a associação, a gente nem sabia ainda que a gente era remanescente
do quilombo, depois, mediante as histórias, a gente disse “sabe de uma coisa, isso é, o que
nós somos, de onde é que nós viemos? Nós não somos portugueses, tem que ser índio ou
descendente de quilombo, ou dos escravos”. E por aí foi levantando as histórias, de que
maneira? Quando os portugueses trouxeram para o Brasil, então uma grande parte chegou
aqui em Minas Novas e aí quando eles voltaram ficaram aqui e quem ficou? Foram os
descendentes dos escravos que ficaram, os portugueses não ficaram. E aí têm vários locais
que a gente vê, lugares que eles trabalhavam com garimpo, serra, montanha de pedra,
quem fez aquilo? Foram os brancos? Não, o negro, o branco só mandava.
SR. GERALDO BARROSO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E
GRAVATÁ) / MG
”É A HISTÓRIA QUE MUITAS EU FAÇO ESSA FALA DA MATRIZ ÚNICA, e estou me reportando aos três povos, nós
sabemos que na África, são 53 ou 54 países, dentro do continente africano e que é
DAS VEZES, COISAS QUE dividido em regiões e vários dialetos e culturas, por exemplo, o Islamismo, as mulheres
libanesas, tudo dentro do continente africano. A grande massa africana que veio pra cá foi
MUITOS NA MINHA IDADE o povo banto, o povo de queto, o povo Yoruba da região da Nigéria. O povo banto que vêm
ESQUECERAM QUE EXISTIU de Angola, eu aprendi e li um pouco que vieram alguns do Congo, mas foram poucos, e o
povo Jeje. Foram os três povos que são os que se cultuam aqui no Brasil. Nessa coisa dos
ESSAS COISAS, QUE É UMA povos, ficou reduzido às nações. Por exemplo, eu falo de onde eu fui aprontada, da nação
CULTURA, É VIVA, UMA de Oyó, que vem do povo Yoruba; tem a Casa de Cabinda que fala do povo banto, e tem a
Casa de Jeje, que fala do povo Fon, aqui no Rio Grande do Sul. Independente de dizer, essa
CULTURA VIVA, E A GENTE Casa é Cabinda, é Oyó, essa Casa é Jeje, mas todas estas três essências mantêm uma
NÃO PODE DEIXAR DE FALAR matriz, porque todos cantam Yoruba. É uma especificidade de um período da história, mas
foi a forma como foi construída enquanto tradição. Hoje a gente vem com uma vontade
SOBRE ESSA CULTURA, de desconstituir isso, mas vai levar mais 200 anos. Hoje, no séc. XXI, que é o que a gente
coloca. Em vez de resistir enquanto processo do passado, que era se manter vivo e dizer
DESSE PASSADO DE que somos diferente, entendo que até o séc. XX a resistência foi essa. Hoje, nós existimos,
MILHARES DE ANOS” estamos aqui, vamos superar e temos uma visão de mundo diferenciada, nós não acredi-
MESTRE ANTONIO BASTIÃO,
tamos num único “deus”, nós temos as nossas divindades: aquela árvore ali, aquela pedra,
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, aquela água, isso são as nossas divindades. Então nós temos uma matriz.
MATA DOIS, PINHEIRO E GRAVATÁ) / MG MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
MINHA BISAVÓ, ELA ADIVINHOU O DIA QUE ELA IA MORRER, minha bisavó Tereza.
Tem essa outra que é a Florzinha, essa daí (...) coitada, nem em casa ela morreu; foi, saiu
para ir na casa de um compadre dela lá e ela morreu na casa do cara, nem ela sabia
que ela ia morrer. Já minha bisavó não, minha bisavó mandou arrumar tudo, mandou a
outra bisavó comprar fumo e cachaça, e mandou nós irmos buscar lenha para acender
fogo. E como se fosse (...) cinco horas, ela foi, tomou banho, num córrego que tem lá (...)
e voltou e (...). (...) nós estávamos chegando do mato com aqueles fecho de lenha, jogou
lá no terreiro lá e ela falou assim, “a comadre Florzinha está demorando”, eu falei que
é capaz de chegar mais cedo. Daqui a pouco minha avó pontuou do outro lado lá (...) e Egbe Ilê Iya Omidaye Ase Obalayo / RJ (à esquerda)
ela entrou para dentro para trocar de roupa, minha avó foi chegando e ela perguntou Centro Cultural Orùnmilá / SP (à direita)
para a minha avó assim, “oh, comadre, a senhora trouxe a pinga e o fumo? (...) pica para
mim e põe no pito aí”. Pito é aquele feito de barro, um cabo assim. E aí minha avó picou
o fumo e pôs no pito, no cachimbo, uns falam pito e outros falam cachimbo, aqueles
cachimbão de barro, botou fogo e acendeu e ficou fumando. Aí minha avó falou para
ela assim, “oh, comadre Tereza, eu não estou entendendo (...) esses meninos buscar”,
ela disse, “não, eu vou precisar hoje comadre, a senhora não está sabendo não? Para
que essa lenha, vai vir gente aqui hoje?” E trouxe, – minha avó, ela acabou e morreu. E
aí já saiu para chamar o pessoal e a lenha para acender o fogo à noite porque usa (...)
até hoje a lenha ainda usa no (...); quando morre uma pessoa na roça, acende o fogo lá
no terreiro. Esse fogo, ele é uma história, ele é uma cultura, é uma cultura do passado
e da continuação (...), até aqui na cidade mesmo (...), mas é obrigado a acender o fogo.
Em alguns lugares principalmente se esse fogo tiver assim uma pinguinha para tomar à
noite, não manda ninguém beber não, mas tem que ter aquela pinguinha lá. Tudo isso
é cultura do passado, tem que ter uma pinguinha lá. Porque antes, eu vou contar isso,
porque o significado da pinga é porque antes, quando morria uma pessoa lá na comu-
nidade, naquele tempo não tinha estrada, não tinha carro, não tinha nada, eles levavam,
podia dizer, o cadáver para enterrar baseado no gole porque era muito pesado. Então
aquela pinga Mará, aquela Mará que a gente tomava – tomei muito – aquela Mará dava
uma energia, para você aguentar subir os morros, você está compreendendo? Então,
é uma história que vem de um passado. Hoje (...) que acontece aí, “ah, não sei o quê,
não pode beber pinga e não sei o quê”, não pode beber e nem dar de beber, mas tem
que ter aquela pinguinha lá. Se alguém falar assim: “espera aí, põe uma pinguinha aí”.
Porque essa história disso, acontece isso, – eu posso falar? – É um espírito que pede a
pessoa para tomar, principalmente se aquele falecido tomava. Então é isso. É a história
que muitas das vezes, coisas que muitos na minha idade esqueceram que existiu essas
coisas, que é uma cultura, é viva, uma cultura viva, e a gente não pode deixar de falar
sobre essa cultura, desse passado de milhares de anos (...). Então é muito longa a histó-
ria, o cordão é muito comprido, é um laço e ninguém vê a ponta dele, não, você só vê o
pé dele, mas a ponta está muito além.
MESTRE ANTONIO BASTIÃO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E
GRAVATÁ) / MG
Ritual Afro
TUDO O QUE O MEU AVÔ FAZIA É O QUE EU FAÇO HOJE, quer dizer, ele tam-
bém batalhava. Vovô Benedito Antônio foi uma das pessoas que lutou demais nessa
comunidade, que tá aí meu pai que vai contar também pra vocês. É meu avô Aleixo
Pereira Braga, foi o primeiro a trazer a escola pra comunidade, a escola que funciona-
va na casa do meu avô Aleixo. O meu avô Benedito Antônio ele ia buscar o professor a
cavalo, no asfalto que ia de Luziânia a Brasília, que era pra dar aula aqui. A minha avó
Paulina era quem preparava o lanche pras crianças, no salão da casa dela, ela oferecia
a sala para administrar a aula, ela preparava o lanche pra esses adultos e crianças,
tudo feito pelo meu avô, ele que oferecia o lanche, que era feito carinhosamente pela
minha avó; e assim a família toda contribuiu muito pra essa comunidade. A igreja que
se tem hoje na comunidade foi doação do terreiro do meu avô, doou pra construção
da escola, doou pra construção da igreja. É uma família que tem muito contribuído pra
comunidade. Então assim, quando meu avô me pediu para que eu voltasse, continuas-
se, eu não entendi muito, mas hoje eu entendo, porque hoje eu faço tudo o que meus
dois avôs faziam e faziam com o coração, as minhas avós também faziam; daí eu vejo
que é uma responsabilidade que eu carrego hoje muito grande, e intuitivamente eles
estavam me preparando e eu não sabia. E vejo hoje que tem algumas pessoas que
ainda não reconhece o quilombo, que tem muita inveja daquele trabalho; mas eu tive
uma formação muito grande e da ancestralidade espiritual, formação de continuar
esse trabalho e formação hoje de continuar com esses jovens e com essas crianças.
E eu vejo que isso não é por um acaso que somos escolhidos e escolhidos pelo alto,
a gente fala dessa perpetuação da ancestralidade, é isso, você faz algo que está além
de você. E os quilombos todos, eu falo os quilombos todos do Brasil hoje, eles têm
uma ancestralidade muito forte, muito forte, porque essas pessoas lutaram pela terra,
essas pessoas lutaram pelo seu poder, o poder de reconhecimento, porque de fato
é seu de verdade, então quando a gente fala da ancestralidade, é isso. É você estar
lutando pelo que é seu de verdade e com dignidade. Ninguém deve nada pra ninguém,
já é nosso, de fato, de herança, porque o próprio nome já vem da hereditariedade,
herança que nós recebemos deles. Então é um dever nosso de continuar preservan-
do, cuidando, zelando pelas plantas, zelando pelas matas, zelando pela cultura, pela
história, isso é um dever, é uma obrigação nossa de fazer isso.
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
PORQUE QUANDO EU ESTAVA CRESCENDO, antes dos dezoito, dezenove anos para
sair para fora, para a migração, os nossos pais, não só meus pais, mas da maioria tra-
balhavam para os fazendeiros que era... falava fazendeiro na época que hoje não é mais
nada, mas tinha que plantar a roça deles primeiro, cuidar da roça deles para depois ir
e plantar a da gente. E nesse momento, quando ia plantar outro lado já estava grande,
plantava no meio do mato, quando você ia carpir já também tinha que carpir a dos
fazendeiros primeiro, porque não tinha outra saída, chovia muito, produzia muito, mas
o recurso financeiro não tinha. A gente era obrigado a trabalhar para eles para ganhar
um quarto de rapadura, meia rapadura, um pedacinho de toicinho para trazer para a
casa, para a família e voltar para trabalhar, para pagar aquilo e ficava a mulher com os
filhos todos pequenos. Naquela época, o casal que tinha menos filhos eram oito, dez e
a vida era mais apertada do que hoje. Olha, eu falo sem vergonha nenhuma, tinha dia
que não tinha nem o que comer em casa, hoje está todo mundo aí escolhendo, os filhos
escolhem “eu quero comer isso, eu quero aquilo, mas eu não quero aquilo e nem aquilo
outro” e naquele tempo era comer o que viesse, no dia em que tivesse.
SR. GERALDO BARROSO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRA-
VATÁ) / MG
SE EU FALAR QUE FOI BOA, A INFÂNCIA DA GENTE HÁ 41 ANOS atrás não foi de
primeiro mundo, porque naquela época a gente vivia do que plantava, naquela época
Cidade Ocidental tava em planejamento ainda, acho que nem tinha Ocidental. Brasília
era uma cidade, aliás Luziânia era a cidade mais perto que tinha, minha mãe falava ain-
da, quer dizer, não foi bem na minha época, que foi bem mais pra trás; quando a pessoa
adoecia aqui, a pessoa ia pra Luziânia de carroça, os doentes quando adoecia carregava
no “baguê” que era uma coisa que punha o pau na rede, e levava em duas pessoas, a
pessoa deitava dentro da rede e duas pessoas levavam e ia trocando daqui pra lá. Já
pensou, carregava um doente daqui pra Luziânia e (...) uma coisa assim parecida. Então
naquele tempo as coisas era difícil e hoje está bem melhor e, mesmo assim, tem mora-
dor aqui que não aceita ser quilombola.
DIVINO XAVIER DA SILVA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
TINHA O DOUTOR XAVIER, QUE ERA DO CAPÃO ALTO, Dona Evangelista que eu
F
nem conheci, e os escravos vinham de lá, três ou quatro, com dois na frente e a cargun-
da no ombro, um pra cá e outro pra trás e um guarda-chuvão, pra não pegar sol e levava
pra cidade (...) ela contava que ela vinha na cidade, outra cidade do outro lado do rio,
aí eu conheci a cidade ali (...) então a casinha é tudo de boi. Pra passar pra lá daquela
ponte dos lado do hospital, tinha o (...) caiu quando atravessou o rio, ela contava – pas-
sava pra lá um tapiã, tinha muito porco-do-mato –, então ela contava que na fazenda do
Capão Alto tinha um santinho, (...) foi uma da cidade, to contando diz que foi na cidade
e roubaram o santo (Santo Antônio) e ficaram lá as moças, cercaram e ficaram na frente
e daí saíram, assim elas contavam, saíram e perderam o santinho ali e foram embora. E
daí aquele criado (...) santinho, aquele negrinho aqui, esse é o santo, o São Benedito, daí
então, que a Dona, então conhece que entraram aqui na igreja e pegaram e derrubaram
ali, então é uma história que a Dona Maria Luiza (conta). Os escravos trabalhavam pra
ela e tinha que está lá pra ver que era ali que o escravo comia, tinha um poço de cimen-
to, que punha comida e eles comiam ali, tá lá, dá pra ver, eu fui lá. Eles surravam os
escravos, tinha a (...) que fizeram de pedra, que os escravos pegavam.
SR. MANOEL PEDRO RODRIGUES DA SILVA, COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE CASTRO / PR
Ritual Afro
“É TORNAR O TERREIRO UM
ESPAÇO HOSPEDEIRO MESMO,
OS TERREIROS TÊM QUE TER
ESSA NOÇÃO, NÃO DE GRANDEZA,
NÃO DE LUXÚRIA, PORQUE OS
VALORES NÃO PODEM SER
TROCADOS POR VAIDADE. VOCÊ
NÃO PODE INVERTER, O LUXO É
BONITO, MAS ELE NÃO PODE SER
TROCADO PELO VALOR, O VALOR
TEM QUE SER OS VALORES
DA NOSSA RELIGIOSIDADE,
DA NOSSA CULTURA”
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA
(MÃE MÁRICA DE OXUM),
EGBE ILE IYA OMIDAYE / RJ Quilombo Curiaú / AP
d
Centro Cultural Orùnmilá / SP
ACHO QUE DESDE QUE EU TAVA NO VENTRE DA MINHA MÃE eu já ia dançando e
ouvindo música de Marabaixo, e cada vez que mudava, já acabava uma festa no interior
lá, nem vinha pra cá. Já mudava pro outro interior, já tinha outra festa começando lá,
passava algumas vezes duas ou três semanas de festa pra festa, depois que retornava
pra casa. E se tinha festa nos Bois, aí dos Bois já iam pro Ambé, é um quilombo próximo
de Macapá, e do Ambé já ia pra Pedreira, pra Ressaca, Casa Grande, cada município,
cada vila. Eu já fui festeiro duas vezes aqui em Macapá, já. Eu faço parte de um grupo
também de Marabaixo, aqui do Macapá. Marabaixo e o Batuque – não é uma dança
específica do Curiaú, é de todos os pretos... é Mazagão Velho, é Pedreira, é Ressaca,
é Ambé, Casa Grande, Curiaú, é Rosa, Marianu. É todos esses lugares, onde não tem
Marabaixo tem o Batuque, Igarapé do Lago. Hoje em dia, o mais jovem já está estilizado,
já está em outro ritmo, mas aqui tem muita gente que canta o nosso tradicional, que é
o Marabaixo de lamúria, até o toque é mais silencioso, o cântico é mais dolorido, mais
tristonho. Hoje em dia não, já está mais estilizado, com mais alegria, mais euforia. O
Batuque, segundo informações, olhando e também pesquisando, pra poder chegar e
falar isso aqui. O Batuque, quando a colheita do senhor, senhor da razão, das terras,
dava uma “mão de couro”. Era o Batuque, aí pra se divertir naquele Batuque lá, foi boa
a colheita. A safra de café, a cana-de-açúcar, seja lá o que for o que o fazendeiro tinha.
Uma “mão de couro” é o toque do Batuque, o toque do tambor, era só isso mesmo, dava
aquela noite lá, pra gente se divertir. Pras pessoas na Senzala se divertir, só porque foi
boa a colheita. E quando o escravo fazia uma coisa grave lá, colocava no tronco, ele
batia uma caixa de Marabaixo e cantava aquela tradicional lamúria. Quem conhece o
Marabaixo vê que até o dançar, o arrastar dos pés, é o sofrimento. Então, o dançar, o
arrastar dos pés. Segundo eu vi mesmo, analisei, pesquisei e concluí que era sofrimento,
o Marabaixo. O Batuque já era mais alegria, aí quando a safra era boa. Agora já não.
Já rodam igual pião, já salta, já pula. O Marabaixo é o arrastar do pé, a corrente não
deixava que eles mudassem o passo e era na sequência. Tem os agradecimentos dos
santos, tem tudo a ver. Já aos santos eles agradecem, que é o profano. O pessoal faz
uma promessa para o santo envolvido no Batuque e no Marabaixo – para o ano, eu vou
fazer a festa do santo tal! É realmente o que acontece. Aí ele vai, faz a festa e agradece,
obteve a graça, o ápice.
SR. RAIMUNDO, NETO DE D. TERESA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
G
comunidade, pegava o ladrão, o lamento, que música a gente poderia citar, acontecia
alguma coisa triste, aí a gente cantava. Aconteceu uma festa, um tempo alegre, aí eles
faziam o Batuque. O cântico do Marabaixo é o ladrão, e o cântico do Batuque é a folia.
Eu sempre estudei a história do Amapá. Pra ter um pouco mais de conhecimento da
minha história. Falava que os índios eram muito difícil de escravizar, porque os índios
conheciam a mata e os negros, não. O negro entrava numa mata dessa e se perdia; os
índios, não. Aí os negros, logo quando eles chegavam aqui, para eles não fugirem, eles
ficavam acorrentados.
ALEX ALMEIDA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
TAMBORZEIRO
O PRIMEIRO INSTRUMENTO QUE EU FIZ, EU TAVA INDO PRA UMA VIAGEM em “EU NÃO POSSO
Belém, aí furou a caixa, aí eu falei com papai, aí papai pediu para eu levar para o Joa-
quim Sassuarama. Aí eu perguntei ao papai: – “O senhor não fazia instrumentos?” E ele ESTILIZAR O PANDEIRO.
respondeu: – “Fazia o meu instrumento, minha caixa... Então bora fazer nós dois.” E daí
eu comecei, foi meu pai que me ensinou a fazer. Aí que eu comecei a fazer as caixas de
SE EU VOU FAZER A
Marabaixo e tomei gosto. Afina no fogo, vai no fogo (...) faz uma fogueira, entendeu... Eu “RACHA” (PREGAR) AQUI,
não posso estilizar o pandeiro. Se eu vou fazer a “racha” (pregar) aqui, eu já tiro a nossa
origem. Tem que pôr no fogo, não o prego. Quando a gente viaja para o Sul, a gente tem EU JÁ TIRO A NOSSA
que fazer estilizado, porque não tem muito como acender fogo, e às vezes, como existe ORIGEM. TEM QUE
aquele canhão de luz, a gente usa o canhão de luz. Pra fazer, o couro vai no sol, seca, aí
quando vai tocar, acende a fogueira, põe no fogo, esquentou... E assim vai direto, quando PÔR NO FOGO,
nós temos pra rodar de Batuque, a gente passa de 12 a 15 tocadores e vai mudando, NÃO O PREGO”
não é só certo não, cansou aqui, troca e vai tocando. Já Marabaixo, não. Marabaixo,
PEDRO DOS SANTOS, PEDRO BOLÃO,
um ou dois toca. Aqui, o caso da afinação da caixa é aqui, baixou, afinou. Quando essas
QUILOMBO CURIAÚ / AP
cordas ficam bambas, vai folgando, aí tem que afinar.
PEDRO DOS SANTOS, PEDRO BOLÃO, QUILOMBO CURIAÚ / AP
CONHECI E CHEGUEI A IR NA CASA DA MINHA AVÓ, MEU PAI LEVOU NÓS LÁ, cha-
mava ele de Taião, “oh, Taião leva Antônio lá”. Eu inclusive, eu fui lá, o povo ia muito, tinham
as danças dos tambores e nem por isso e nem por outro. Meu avô que já fazia os tambores
e já ficava tudo em casa mesmo. Essa linha minha foi do meu avô, do instrumento, que ele
tinha grupo. Arthur Luiz Pereira (...) Arthur Barreiro, mas é Nogueira... Arthur Luiz Pereira dos
Santos, mas eles chamavam ele de Arthur Barreiro por causa de um arerê que ele fez lá onde
vocês foram aquele dia, que eu estava lá, (...) que meu avô que fez. Ele morou lá um tempo e
de lá que ele veio para cá, onde é que eu moro hoje. Compadre dele que chamava Joaquim
Soares arrumou uma (...) para ele trabalhar e ele veio para cá e cá ele morreu.
MESTRE ANTONIO BASTIÃO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E
GRAVATÁ) / MG
C EU ACHO QUE O POVO HOJE ESTÁ ASSIM MAIS CUIDADOSO, NÃO EXISTE MAIS...
As árvores também têm isso, tinha isso, tem isso, porque mostrando como é que é a his-
tória do ser humano. Por isso que quando eu vou no Cerrado, eu tenho um cuidado muito
para poder estar mexendo com as árvores, porque ela tem que estar oferecida, ela tem que
estar ocada, se ela não estiver ocada por dentro, para mim só acabar de limpar ela, (...) não
posso chegar lá e cortar de tudo quanto é maneira, porque eu estou estragando eu mesmo,
a gente mesmo estragando, a gente precisa pegar o (...) inteiro já bem do jeito que ele é. (...)
É o cupim, o cupim entra dentro e come o miolo, porque o miolo é doce e aí só fica só por
fora. É como a gente, às vezes a gente está assim em pé, mas está com uma enfermidade
por dentro, as árvores não são muito diferentes da gente, ser humano, não, ela é a mesma
coisa, e a árvore está aí bonita, mas ela está doente. E aí, e para você saber, porque se ela
está doente (...) você vai conversar com ela com um sotaque igual o doutor faz com a gente,
chegar batendo nela (...) dela e aí para você poder tirar e aí você fazendo assim e ter cuidado
para não cair nas outras árvores que são os filhotes, os filhos e aí você vai estar fazendo um
instrumento de qualidade e com cuidado com a natureza, isso chama prevenir, prevenção. Eu
chego num barbeiro para cortar minha barba, nesse caso eu vou falar: – “não, eu quero minha
barba cortada assim, capricha aí, porque (...)” As árvores também são assim, elas querem
ser felizes. Porque quando você está preparando um tronco desse para fazer uma arte nela,
quanto mais você caprichar, ela fica feliz. Então, por isso que eu amo (...) eu aproveito tudo,
(...) fazer alguma coisa eu faço, eu completo, exemplo: uma dona vai no salão de beleza, ela
gosta de mudança, ela fica feliz quando melhora. É por isso que eu faço; esse tambor daqui
eu fiz um trabalho, porque ela queria ser isso, então eu fui obrigado a fazer, do jeitinho que ela
queria assim, (...) feminina e é uma ser humana em forma de um instrumento.
MESTRE ANTONIO BASTIÃO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E
GRAVATÁ) / MG
AQUELA ROSQUINHA, FAZIA A NOITE TODA... quando era de manhã nóis levantava,
e aí que ia dar pra todo mundo comer. Rosquinha era feita da carimã (mandioca mole),
torrava ela e de manhã, era o café da manhã, rosquinha com café. Hoje em dia, você
já tem uma maçã, bolo, uva, mamão. Antes não tinha e não era liberado pra todo mun-
do, fazia só onde a gente morava... Era uma coisa quase fechada ali, hoje em dia não.
Os homens da lei e da sociedade, eles agregaram, expande o valor, o folclore. Eles se
movimentam também. Antigamente você ia fazer uma festa, era só você mesmo e sua
família que ajudava. Hoje em dia não, tem repasses do governo, do município, da classe
empresarial, político também apoia, e é aí que sai uma festa mais bonita.
SR. RAIMUNDO, NETO DE D. TERESA, QUILOMBO CURIAÚ / AP Fotos págs. 58 e 59: Associação dos Moradores
(Macuco, Mata Dois, Pinheiro e Gravatá) / MG
3
COMUNIDADES DO TAMBOR
PAULO DIAS, ETNOMUSICÓLOGO
E
ntre os povos bantos da África Central, tambor é ngoma. Não só o instrumento,
porém, metonimicamente, a dança e o canto que o tambor põe em ação e, por
extensão, toda a comunidade que se reúne em torno do instrumento para a celebra-
ção ritual e prazerosa. Ngoma atravessou o Atlântico, junto com seus guardiães tornados
escravos, malungos do Congo-Angola e das terras de Nagô e Jeje.
“Chora ingoma, ê Angola”, canta hoje o velho capitão de moçambique numa festa
do Rosário em Minas, lembrando a dolorosa travessia do Atlântico. E no Brasil
a ingoma, comunidade do tambor, cria elos firmes entre o passado e o presen-
te da gente afro-brasileira, os viventes e os antepassados, a Senhora do Rosá-
rio e Mãe Iemanjá... Ingoma aqui reinventada de corpo, alma, beleza e mistérios.
Desde os tempos da colônia, o som vibrante dos tambores afro-brasileiros ecoa por aqui,
em terreiros de fazendas, pelas ruas das vilas ou nos adros de igrejas, com seu poder
de arrancar os homens à dispersão forçada em que vivem. Noticiados por cronistas e
viajantes a partir do século XVI, as festas e rituais dos africanos são quase sempre ob-
jetos de descrições levianas e preconceituosas. Sons “monótonos”, danças “lascivas”,
ritos “bárbaros” eram alguns dos qualificativos utilizados por esses escritores e mora-
listas, sem dúvida um tanto assustados com as multidões de negros que essas festas
mobilizavam – multidões que sempre podiam rebelar-se contra a minoria branca. Para-
doxalmente, a festa negra também constituía uma atraente opção de lazer para muitos
brancos proprietários de escravos, como acontecia nas fazendas e engenhos isolados.
“As senhoras chegavam muitas vezes para a roda, assim como os homens, e assistiam
com prazer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos negros”, escre-
ve Freire Alemão, em 1859, sobre um batuque que presenciara em Pacatuba, Ceará.
Entre a infinidade de estilos regionais das danças-músicas negras, é possível perceber alguns
núcleos de sentido principais: os Batuques, executados informalmente nos terreiros recôndi-
tos e voltados à celebração da memória das próprias comunidades; as Congadas, conjuntos
rituais de dança e música ligados à tradição das Irmandades Católicas Negras, os Candom-
blés, grupos organizados de culto às divindades afro-brasileiras; e o Samba Urbano, que se
desenvolveu nas primeiras décadas do século XX, a partir de uma confluência de tradições.
Os Batuques de Terreiro hoje dançados por todo o Brasil têm suas raízes nos eventos
com dança e música que promoviam os escravos fixados na zona rural principalmente
– fazendas, engenhos, garimpos – mas também em algumas áreas urbanas, realizadas
nos poucos momentos de lazer de que dispunham. Os batuques marcam a presença
da cultura banto, trazida pelos africanos vindos de Angola, do Congo e de Moçambi-
P
que para diferentes rincões do Brasil. São formas vivas dos Batuques a Capoeira Angola
e Regional, praticada no país inteiro e no exterior; o Carimbó paraense; o Tambor de
Crioula do Maranhão, o Zambê do Rio Grande do Norte e o Samba de Aboio sergipano;
em Minas, celebra-se o Candombe, no Vale do Paraíba paulista, mineiro e fluminense, o
Jongo ou Caxambu; na região de Tietê, em São Paulo, dança-se o Batuque de Umbigada,
entre muitas outras manifestações... Sem falar dos primos estrangeiros, como o Tambor
de Yuca cubano, ou o Bellé da Martinica, em tudo semelhantes aos nossos batuques.
Nas fazendas distantes dos tempos do cativeiro, as festas de terreiro realizadas nas folgas
semanais e dias feriados concentravam a vivência dos escravos enquanto grupo, já que no
dia a dia eles trabalhavam dispersos no eito. Tudo acontecia africanamente por meio do
canto e do corpo em movimento, ao som dos tambores. Era momento de louvar ances-
trais, de atualizar a crônica da comunidade, de travar desafios capazes de amarrar com a
força encantatória da palavra proferida.
H
Os versos metafóricos entoados nessas rodas só ofereciam ao branco um sentido mais li-
teral, inócuo… Fato que deixava perplexos os observadores brancos: tratava-se de diversão
ou devoção? O mistério permanece até hoje, assim como os velhos tambores de tronco es-
cavado, afinados a fogo, e venerados como verdadeiras divindades: Gomá, Dambí, Dambá,
Quinjengue... As danças, individuais ou coletivas, mostram-se ora sensuais, descrevendo
a corte amorosa que culmina no contato da umbigada – como no Batuque de Tietê e no
Tambor de Crioula, por exemplo – ora de caráter sagrado, mimetizando os gestos dos
Pretos Velhos, os antepassados africanos que morreram na escravidão – é o caso do
Candombe dançado nas Irmandades mineiras do Rosário, e do Jongo carioca e paulista.
Desde sempre condenados pela Igreja como permissivos e temidos pelos patrões como
perturbadores da ordem social, a maior parte dos batuques de terreiro mantém-se mar-
ginal, ainda nos dias de hoje, em relação à sociedade dominante, excetuando aqueles que
conseguem uma penetração no mundo do turismo e do espetáculo – é o caso do Tambor
de Crioula e do Carimbó.
Com a vinda das populações negras para as cidades, essas danças ancestrais passa-
ram da roça às periferias urbanas. Conservando seu caráter intracomunitário, ainda
hoje se realizam à noite em terreiros pouco iluminados ou barracões fora das cidades.
As fronteiras tênues entre o sagrado e o profano ainda caracterizam algumas des-
sas rodas, assim como o segredo contido nos versos da cantoria desorientam os que
vêm de fora. Entenda quem puder, quem souber. Lamentavelmente, esse patrimô-
nio cultural brasileiro de alta beleza e profundo refinamento, fonte viva de história, re-
ligião, arte e identidade para muitas comunidades afrodescendentes, vem sendo siste-
maticamente ignorado pela “grande cultura” e pelos meios de comunicação de massa.
Maracatus, Taieiras, Catumbis, Moçambiques, Catopês, Vilões, Marujos são algumas de-
nominações das diferentes formas regionais das congadas de cortejo. Algumas delas ain-
da preservam uma parte dramática, em que se encenam embaixadas e lutas entre reis
africanos; é o caso dos Congos de sainha do Rio Grande do Norte, das Congadas paulis-
tas de Ilhabela e São Sebastião e do Ticumbi de Conceição da Barra, no Espírito Santo.
A religião afro-brasileira conhecida como Candomblé (BA), Xangô (PE), Tambor de Mina (MA)
ou Batuque (RS) – nasceu dos aportes míticos e rituais de diferentes etnias ou nações africa-
nas, com influência preponderante dos sudaneses jejes e nagôs. Trazidos da África Ocidental
(Nigéria e Benin atuais) para as capitais do Nordeste e em menor escala para Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a partir do final do século XVIII, os sudaneses trabalhavam
geralmente como domésticos e negros ao ganho, tendo relativa facilidade para se reunirem
segundo sua etnia. Esses escravos urbanos puderam, desse modo, rearticular no Brasil a
sua religião tradicional, na qual os iaôs, sacerdotes iniciados, são possuídos pelas divinda-
des durante o transe místico. Orixás, inquices ou voduns, nome que recebem as divindades
segundo a nação ou origem étnica do candomblé, representam forças naturais e sociais.
H
panteão e sua mitologia, instrumentos, ritmos e cancioneiro, culinária, objetos de culto.
Mais do que isso, perpetuou-se entre os adeptos dessa religião uma cosmovisão africa-
na, que enxerga o mundo como uma teia de forças vitais em interação, as quais devem
manter-se equilibradas através de ritos específicos.
Nas festas ou toques públicos e privados dos Candomblés, a importância dos tambores e
seus percussionistas rituais, os ogãs, é decisiva para chamar as divindades a se incorpo-
rarem em seus cavalos e bailar o seu mito entre os mortais. Os ogãs conhecem grande
variedade de toques das diversas nações do candomblé – Keto, Angola, Jeje – e podem
dominar um repertório de centenas de cânticos.
Traços musicais peculiares aos candomblés Jeje-Nagô, como as escalas de cindo notas
(pentatônicas) permanecem praticamente restritos às casas de culto, enquanto o som dos
Candomblés Congo-Angola, junto com os batuques e cortejos de origem banto, participam
de um universo melódico e rítmico extrarreligioso conhecido e reconhecível publicamente
por todo o Brasil, entre os quais se coloca o samba. A música religiosa nagô pode ser
ouvida em ambiente público e profano através dos afoxés, como no carnaval de Salvador,
chamados “candomblés de rua”, e algumas de suas referências rítmicas e melódicas trans-
parecem na sonoridade dos blocos afro como Ilê Aiyê e Olodum.
Nos morros e subúrbios do Rio misturaram-se tradições culturais tão diversas, mas ao
mesmo tempo tão unas: expressavam alegria e devoção, continham a força do desafio e a
A
reverência aos ancestrais, significadas por meio do corpo, da voz e do tambor.
Eram coisas de negro, herança forte daqueles que, vindos de longe, compartilhavam de um
mesmo destino subproletário nos bairros periféricos e nas favelas.
O carnaval, data maior da profanidade, veio a ser o calendário disponível para a cele-
bração pública da festa dos negros nas metrópoles. Nos anos 20 do século passado
surgem as Escolas de Samba, fala negra amplificada para muito além do pequeno
terreiro da comunidade, de e para as grandes massas humanas das cidades. Pele-
jando para legitimar sua voz junto à sociedade dos brancos e obter a visibilidade
sonhada. A ópera popular urbana vai para o meio da avenida, com orquestras de
centenas de tambores, instrumentos com pele de náilon produzidos em série por uma
indústria que se especializa. De repente, os desanimados cordões da classe média
branca abrem alas, de uma vez por todas, para as evoluções mágicas do Samba
crioulo. As avenidas viram sambódromos, e o samba, espetáculo de massas e mídias.
*PAULO DIAS, nascido em São Paulo em 1960, é músico e etnomusicólogo. Desde 1988
Este texto foi escrito originalmente para apresentar a exposição mul- dedica-se à pesquisa da música tradicional brasileira, sobretudo à de raízes africanas, tra-
timídia “Comunidades do Tambor”, montada no SESC Vila Mariana, balho que vem sendo divulgado por meio de publicações, videodocumentários, CDs e
em São Paulo, durante o evento “Percussões do Brasil”, em 1999.
Uma versão revista e bastante ampliada encontra-se disponível em exposições. Fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera!, voltada à documentação,
nossa biblioteca virtual: www.ancestralidadeafricana.org.br. estudo e divulgação da cultura popular tradicional brasileira.
AS ERVAS,
AS CURAS, O AXÉ
E A NATUREZA
ANTES EU NÃO SENTIA PRECONCEITO. Ali não era vista como uma mãe de santo,
era vista como uma benzedeira e não se fazia antigamente esta associação de religião,
de religiosidade, era a “benzedeira”. Então, todo mundo, até crente mesmo, acabava
benzendo a criança doente numa casa de mãe de santo. A coisa era assim, cultural, en-
tão era o chá, era puxar a barriga e eu costumo dizer que a minha avó fazia pré-natal de
todo mundo porque existiam muitas parteiras naquela época e a minha avó também era
parteira, puxava a barriga, acompanhava todo o tempo da mulher e depois fazia o parto.
Era uma coisa muito interessante essa coisa de remédios, hoje em dia a gente chama
derrame, naquele tempo tinha um nome popular, que era outra coisa e tinha aquela gar-
rafada, que ela continua fazendo, que leva Cipó Puca, Arruda e Caatinga de Mulata, que
em outros estados conhecem como Macassá, mas pra nós aqui é Caatinga de Mulata.
Então vovó era isso e eu acompanhava desde pequena; ela, dentro de casa, tinha uma
”ERA UMA COISA
coisa de “Pena e o Maracá” que era uma coisa do Pará, dos encantados e de repente o MUITO INTERESSANTE
encantado vinha, então ela tinha as coisinhas dela ali, que a gente chamava de “Congá”,
– era o Maracá, as infusões, o Talari, que é um tipo de cigarro feito por nós mesmos. E
ESSA COISA DE REMÉDIOS,
naquele tempo era respeitado. Minha avó era como uma médica, eu digo assim, ela ia HOJE EM DIA A GENTE CHAMA
nas casas, dizia assim: – “Dona Virgínia, tô com uma dor, o que é?” – É costela montada,
peito aberto, como que é aquilo que bota o copo? Ventosa, suspende a mãe do corpo, DERRAME, NAQUELE TEMPO
que a mãe do corpo está fora do lugar, é perna torcida, não ia para o pronto-socorro, ela TINHA UM NOME POPULAR,
mesmo que arrumava e ajeitava a perna, fazia um emplastro, benzia “Izipra”, até hoje ela
benze com a faca velha, ainda tem esta história. Hoje em dia meu tempo é mais curto e QUE ERA OUTRA COISA
eu deixei de lado, este lado deixei de lado, mas eu ainda benzo criança, porque eu digo
assim: – “Quando é saúde a gente não pode dizer não, tem que atender”.
E TINHA AQUELA GARRAFADA,
MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA, ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA QUE ELA CONTINUA FAZENDO,
P
QUE LEVA CIPÓ PUCA, ARRUDA
E CAATINGA DE MULATA”
ATÉ O PONTO QUE EU CHEGUEI NÃO TEVE NADA A VER, NÃO. Quando eu che-
MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA,
guei mesmo até o ponto que tive conhecimento, só aqui mesmo. Não tinha nada com ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA
o deus da África. O que eles lembram muito e que me passaram e eu também via, é a
cultura, tem muitas plantas medicinais que eles trouxeram. Por prova a gente tem coisa
aí, tem planta, é o amor crescido, que serve para fazer baque, quem tem problema de
algum baque preso, aí coloca em cima. Babosa, que é pra matar vermelha, aí zipla. Tem
o capimare, que é um grande calmante, erva-cidreira é o que a gente cultiva.
SR. RAIMUNDO, NETO DE D. TERESA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
TANTAS ERVAS SAGRADAS QUE NÓS TEMOS AQUI, né, pai, fazem os trabalhos de
cura, através das árvores, das raízes, aqui, tem esse conhecimento na comunidade. Tia
Joana que tem este trabalho de cura através da ervas, isso é o que é reconhecimento da
ancestralidade, é separar que ervas são boas... Eu conheço algumas sim, eu sou curiosa,
algumas eu vou lá saber, mas o conhecimento que eles trazem é da ancestralidade e que as
pessoas não valorizam isso, acham que têm o direito de chegar aqui e destruir tudo e oprimir
e tirar daqui desse costume, de nos tirar deste direito, desse direito, desse direito à terra.
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
Terreiro de Pai Chagas, PI A ESSÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE ESTÁ NA NATUREZA, nós sabemos mais do que
nunca, a natureza é um pouco disso, que são os orixás. A gente tem um projeto, dialogando
com o sítio do pai Adão, que é no Recife, sobre as plantas medicinais e sobre as plantas
do Axé para os terreiros, onde se fala a causa, que plantas são, os efeitos delas e o tipo de
mediação que é feito com essas plantas. E tem uns bioquímicos da Universidade Federal que
propuseram essa ideia de visitar. A nossa intenção é ter algumas mudas pra cá. Lá no outro
espaço, a gente tinha já diversas plantas de Axé, só que pela questão da mudança vamos ter
que comprar outras, buscar outras para plantar nesse novo espaço, porque a ideia é manter
a tradição de trabalhar a medicina alternativa e o conhecimento das folhas. Então a gente já
vem discutindo com o Ministério da Saúde, junto com o DEGEP (Departamento de Gestão e
Estratégica Participativa) que já fez uma oficina com a gente ano passado. Agora esse projeto
vai ter o segundo momento que fixou o papel da Universidade Federal do Estado do Piauí
com a Rede Estadual de Religiões Afro e da ASJAP e CEPI, já que seria um projeto-piloto no
Piauí. E a ideia também é que a gente possa ter essas mudas para compartilhar levando para
os terreiros, mas que os terreiros possam saber o significado dessas plantas, a intenção é que
cada terreiro desse possa fazer multiplicadores.
PAI RONDINELE DOS SANTOS, ASPAJA – ASSOCIAÇÃO SANTUÁRIO SAGRADO PAI JOÃO DE ARUANDA / PI
ENTÃO TEM ESSE DITADO “SEM FOLHA NÃO HÁ ORIXÁ”, e eu acrescento mais,
“sem água não tem orixá”, aliás, sem água não tem nem vida, sem água não tem nem
as plantas, nem os animais, água é a base, eu sou filha de Oxum, água doce, a água é o
elemento. A água é primordial para este planeta, para os seres vivos, plantas, animais,
a partir de um inseto, uma formiga. Todo mundo precisa de Oxum, para lavar a sujeira,
para tomar água, cozinhar seu feijão, ela é a fonte de vida, Oxum é fonte de vida que Ilê Axé Omidewá / PB
nunca se acaba e se acabar, acaba tudo junto. E aí não vai ficar só o candomblé, todos
os seres e todas as religiões. Então é por isso que eu brigo muito para preservar a fonte
de água, para ter cuidado com as nascentes, com os rios, é muito importante. A gente
brigou muito pelo rio Cuiá, porque há vinte anos eu levava água para casa, era melhor
do que a água da Cajepa, da empresa. Mas, hoje já tem uma especulação imobiliária lá
onde a água não está mais, poluiu, mas mesmo poluída a gente brigou para que aquela
nascente não morresse, então virou uma APP (Área de Proteção). Eu comprei esse ter-
reno por causa desta mata, que na época estava toda devastada e depois da construção
do Axé, fizemos vários trabalhos de cura, aqui nessa clareira que já existia e através disto
e a espiritualidade, mandou uma pessoa da Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura
até o Axé. Depois de um trabalho, nós pedimos a ela essa mata e ela, a gestora na
época, descobriu o SOS Mata Atlântica e o prefeito, que hoje é governador, comprou
esta área, a área mais cara da cidade e transformou num grande parque. Com a minha
comunidade eu procuro fazer um trabalho de conscientização para preservar, não tirar
5
folhas a mais do que nós precisamos, não trazer lixo para a mata. Você vê a mata, por
enquanto está cheia de lixo, mas eu pegava nosso povo, nossos filhos de santo, prin-
cipalmente os homens e sempre fazíamos uma limpeza na mata, só que agora depois
do parque, nós vamos esperar o poder público fazer isso. Porque ele vai cercar, mas vai
tirar todos os resíduos, tem coisas que não são biodegradáveis, então tem que tirar, né.
O meu trabalho é esse de conscientização de preservar rios, matas e cachoeiras com
os filhos da casa e a comunidade do entorno. A gente sempre faz eventos para falar do
meio ambiente, se não isto aqui estava muito pior.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
M
chegou muita gente aqui com problema psicológico, gerado pela sífilis, e dizendo que é
macumba e eu tenho que ter muito cuidado. Indico fazer VDRL, que é um exame que
detecta, eu não digo o que é, eu digo – “Vá no PSF (Posto de Saúde da Família) e depois
você vem aqui, enquanto isso toma esses banhos porque está unido, o psicológico”. Eu
não posso dizer: – “Você está com sífilis”, é um choque, então, eu não tenho esse direito
de passar na frente do médico, mas aí eu encaminho. Aí quando ela volta, eu digo: “está
vendo minha filha, isso aqui não foi espiritual, mas você está com o psicológico afetado,
toma a medicação, vamos fazer uns banhos, uma limpeza”. Então, vai unir a medicina
dos homens com a medicina ancestral, que é mais do que a psicológica, de apoio.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
AQUI FICA OS VELHOS QUE NÃO ESTÃO AGUENTANDO MAIS NADA, igual eu, eles
não me aceitam lá mais. Tanto jovem quanto adulto, é ônibus e mais ônibus saindo todo dia.
Aqui já tem um nome: é a terra das viúvas dos maridos vivos. Porque os homens estão lá e as
coitadas das mulheres estão aqui. E hoje muitas mulheres estão migrando também, não só
para o café, mas também para trabalhar de empregada doméstica. Tão indo pra lá em Ribei-
rão Preto, São Paulo e Belo Horizonte. E muitas das vezes deixam os filhos com os avós. Na
minha comunidade tem três famílias que vão todo ano e as crianças pequenas ficam com os
avós, ficam lá durante o ano, quando é no final do ano vêm, ficam ali dois, três meses e volta.
SR. GERALDO BARROSO, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRA-
VATÁ) / MG
HOJE, PARA VOCÊS TEREM UMA IDEIA, NÓS ESTAMOS CARENTES de profis-
sional médico, no município, pessoas sofrendo porque nós não temos o pessoal todo
formado pra trabalhar, é tudo de fora, o básico que a gente forma no município é Assis-
tente Social; algum, os filhos que tiveram herdado alguma coisa de alguém, são dentista
ou alguma coisa assim neste nível, algum ou outro médico, os dois aqui na cidade não
têm. Vão se formar pra fora, nós não temos faculdade aqui nesta área. Agora que tem
o IMEC, que é particular, imagina, não tem faculdade pública, se quiser tem que ir pra
outra cidade vizinha. Então assim, nós não temos formação dentro do município, preci-
samos de pessoas de fora e com mais informação e com mais pessoa se integrando. De
1 As barraginhas resultam de um estudo técnico para construir pe-
repente, aí com mais conhecimento, quem sabe dos nossos futuramente não tenha um quenas barragens no rio, que funcionam como retenção e umede-
bom professor ou um bom médico ou o que a gente pode ser. Então veja a importância cedor do solo ao redor para o plantio. Minas Novas foi o primeiro
município brasileiro a ter as barraginhas e existem seis mil bar-
pra nós é esta informação, não só como quilombolas, mas como cidadão. raginhas no município. Há também, atualmente, o programa das
ROZILDA CARDOSO, COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE CASTRO / PR cisternas de placas.
os olhos assim e vejo que foi tão forte na minha infância e não foi na sua? E eles não
sabem o que é isso. Eles sabem ver o computador – aí o governo abriu uma precedência
que eu achei maravilhosa que todos os pobres podem ter, pessoas mais simples possam
ter computador. Com certeza aquilo tem que ser educado, a criança vai ter a hora, quer
falar no Face, mas ele está ali principalmente pra mexer com uma ferramenta chamada
computador. Que pode levar ele pra um universo, que pode ajudar em pesquisa de
escola. Mas não basta dar o ponto digital, não basta que a direção não deixe se tornar
um espaço de jogo, agressivos, que só passa jogos matando um ao outro e depois quer
perguntar: – “Por que alguém está na escola e mata outro por acesso de loucura?”
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
abrangente, de repente, via rádio. Então, para isso, a gente precisa do apoio do governo.
Então já é com todas, estadual, a Cremilda Santiago que é coordenadora das comunida-
des Quilombolas, ela tem me falado por telefone que a conversa agora desta secretaria
tentando dialogar com todos os prefeitos pra retomar uma nova história.
ROZILDA CARDOSO, COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE CASTRO / PR
PARTICIPAÇÃO
POPULAR
H
“AH, MÃE LÚCIA BRIGA. MÃE LÚCIA NÃO CHAME PARA O EVENTO NÃO, porque
ela é briguenta”, as pessoas falam assim. Eu não tenho medo de brigar, se me chamar
já sabe que eu não vou falar miando não, eu falo é gritando, porque agora mesmo em
Brasília eu disse – chega, aonde eu vou eu digo chega, eu sou descendente da escrava
Anastácia, botaram uma mordaça de ferro na boca dela, na minha não vai botar, por-
que eu não vou envergonhar a minha ancestralidade, mesmo com o microfone eu falo
gritando, eu falo contundentemente, porque tem que gritar. Nós, povo afro-brasileiro,
não temos que baixar a cabeça, temos que gritar, eu não grito hoje com a chibata, se
a chibata estivesse no meu corpo talvez eu não gritaria, – não sei, porque não levei –,
então eu levo chibatada de outra forma, da intolerância religiosa eu levo, mas aí eu não
me calo, eu vou com a lei. Eu tive que me empoderar. Eles dizem “a senhora é advoga-
da?” e eu digo estou terminando meu curso, porque a gente tem que estudar, tem que
ir para o doutor Google e ver as leis que nos ampara e tentar trabalhar essas leis para
que o opressor e até a própria justiça, que fez a lei, faça ela ser cumprida. Quem faz a
lei ser cumprida é o cidadão. Se tem a lei do idoso, eu estou numa fila, uma idosa está
na fila, eu tiro ela e boto na frente, porque ela tem que fazer cumprir a lei, a lei é feita lá
em Brasília e quem tem que fazer cumprir somos nós, cidadãos e cidadãs.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
da civilização que se tem, por toda opressão que se passou. Aquilo começou a aflorar
e eu voltei para Porto Alegre com algumas tarefas, que era implementar o CNPIR aqui;
e quando na I Conferência de Igualdade Racial, traz a demanda da cesta de alimentos
para os estados, e eu, por ser conselheira e morar no Rio Grande do Sul, trouxe a tarefa
e ali então eu disse – cheguei em Porto Alegre com 800 cestas, como eu vou fazer para
entregar, não posso fazer um assistencialismo de dar uma ficha de 1 a 800 e entregar
a cesta. Então pensei: o único espaço de debate democrático e que pode ter uma con-
trapartida dos terreiros é um fórum. Então eu mudei o FEAN para ser o FORMA, que é
o “Fórum de Religiões de Matriz Africana” e que fez oito anos. E então nasce o Fórum e
a partir de 2011, já no governo Dilma, nós fizemos uma Conferência de Comunidades
Tradicionais, em Vitória-ES, e lá nasce a ideia de fazer um “Fórum Nacional de Povo de
Tradições de Matriz Africana”, e ele vem se organizando. Quando chega na Conferência
Nacional de Segurança Alimentar, que foi em Salvador – BA, o então presidente Renato
Maluf, homologa e acata a ideia do fórum nacional, que aí ficou “Fonsanpot”, como
sigla, hoje “Fonsanpotema” por causa das tradições de matriz africana. E então foram
essas as andanças que eu fiz em nível de movimento, dá para perceber que sempre foi
voltada a essa visão de mundo, que é a que eu me identifico e que é minha essência. E
hoje estou na Coordenação de Mulheres do Fórum Fonsanpotema, e nesse meio tempo
também o 13 de Agosto, lá na primeira gestão da ministra Matilde Ribeiro, construiu
Sandra Braga, Comunidade Quilombola Mesquita / GO
o Conselho Nacional de Asès, a cadeira que ocupou no Conselho Nacional de Asès e
Equedes Negras. Hoje eu faço parte do Conselho do CONSEA, titular, do Conselho Na-
cional de Segurança Alimentar e do CODENE, que é Conselho do Negro, no estado do
Rio Grande do Sul. E também agora, em 2011, nesta última gestão do governo Tarso,
nós construímos um comitê organizador, primeiro no Brasil, o comitê institucional, que
vai ter sua sede, para trabalhar a questão dos direitos humanos, as questões desta visão
de mundo, da intolerância, do resgate junto ao governo do estado.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
0
nós ficamos responsáveis pelas inscrições do pessoal. E a gente conseguiu essas duas
mil casas. Depois, nós conseguimos também apresentar na câmara de vereadores a
isenção do IPTU e de tributos para as comunidades de terreiros, foi apresentado e apro-
vado, agora só faltava o prefeito sancionar. A nossa intenção também foi apresentar o
projeto de titularização dos terreiros, que geralmente aqui ficam no fundo do quintal,
fica na mesma casa (...) tinha um projeto de que a água, a luz do terreiro tivesse 50% de
desconto. Mas para isso só se fosse o local do terreiro, que ia apresentar o diagnóstico
do mapeamento. Mas tinha de funcionar só o terreiro. E aí, outra conquista foi quando a
gente apresentou na gestão, a qual eu estive à frente, a questão do projeto de aposen-
tadoria dos sacerdotes. Já existe isso, mas como é que se daria isso para os sacerdotes?
PAI RONDINELE DOS SANTOS, ASPAJA – ASSOCIAÇÃO SANTUÁRIO SAGRADO PAI JOÃO DE ARUANDA / PI
coisa tão mais, naquela época tava uma coisa assim bem distante da nossa realidade,
o computador era uma coisa de luxo e aí não demorou tanto e veio este projeto; quer
dizer, demorou, mas quando a gente se animou e já está aí todo esse tempo com este
projeto e não saiu da gaveta, esta gravidez ainda está na barriga, o Telecentro. E está aí
encapado as mesas, com as cadeiras embaixo, computadores guardados porque falta
a antena, mas a comunidade pediu isso, mas aí a gente acabou trazendo. Depois nós
fomos descobrir que aqui o bairro da “Terra Firme” é um dos maiores focos de tubercu-
lose e da hanseníase, o bairro é o foco maior aqui, pelo menos era... Aí procuramos a
coordenação estadual, que veio e fez um trabalho com a comunidade e nós procuramos
nos aproximar da unidade básica de saúde daqui de “Terra Firme” e eles responderam; e
começamos a fazer um trabalho junto e teve a vacina de hepatite, e outras coisas assim
e o pessoal da SESCO respondeu também pra gente, vindo fazer todos esses testes,
e também nós tentamos fazer a campanha da aids, que é todo ano, palestra e o teste.
MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA, ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA
ÁREA DE ATUAÇÃO FICA DIFÍCIL DIZER, PORQUE SÃO TANTAS E TÃO VARIADAS,
”NÃO IMPORTA NO QUE EU dentro da tradição de matriz africana, e a cultura negra de um modo geral, espaços de
ACREDITO, NÃO IMPORTA SE Conselho de Cultura, vários Conselhos que nós estamos aí presentes, atuando, acho
que é basicamente isso. Começou com aquilo que nós tínhamos que era da tradição,
ELES ACHAM QUE É CERTO que era Dança-Afro que as minhas filhas dão, qualquer uma das minhas filhas dão, qual-
OU ERRADO, SE É BONITO quer uma das três nasceram dentro, então cantam, tocam, faz qualquer coisa dentro
da tradição, percussão, capoeira, que eu sempre tive próximo, sempre teve gente que
OU FEIO, IMPORTA É QUE frequenta aqui, capoeirista, tudo de forma voluntária. E capoeira foi sempre um carro-
ESTA FÉ ME ESTIMULOU A -chefe pra agregar comunidade. Mas começa basicamente com estas, aí já bem mais
pra frente, coisa de uns 15 anos, entra hip-hop, porque era essa rádio antes “Periferia
HOJE ESTAR FAZENDO UMA Norte”. Aí fizemos uma parceria e a rádio veio pra cá e incorporamos uma programação
mais extensa e eles continuaram fazendo programação de hip-hop, mas aí começaram
LUTA POLÍTICA E SOCIAL, A a fazer de mulher negra, de capoeira, fizemos uma programação toda voltada pra cultura
PONTO DE SER CANDIDATA, negra, em geral o dia todo, à noite e o debate. E montamos o projeto, acho que está
no 18º ano, chama “Rapolitizando a Periferia”, não sei se ouviu falar, que é a conexão,
EU FUI CANDIDATA COM eu fiz aqui com Deckster, com o Hamilton, o Alê, que é um ativista lá de Salvador, e o
UMA BANDEIRA QUE ERA Gogui, transmitido pela rádio, ao vivo, junta os manos, e no final eles fazem um show
e vira aquela festa, já trouxemos aquelas meninas do hip-hop mulher, foi uma opção e
DE DIZER QUE O MUNDO discutir: cultura, sexismo, machismo, homofobia, que os manos eram homofóbicos pra
COM TOLERÂNCIA ERA caramba... e aí não tem mano gay, aí? Deve ter... para com isso... Mas a discussão no co-
meço nesta época aí, que o hip-hop era muito mais politizado com enfrentamento, hoje
POSSÍVEL” é mais politizado em outras questões e quase todo hip-hop nacional já passou por aqui.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE PAI PAULO C. DE OLIVEIRA, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
W
que elas já fazem na prática, mas elas se percebendo que isso tudo tem um valor, além
do que a gente faz no terreiro, que isto precisa ser exposto.
MÃE MÁRCIA DÓRIA PEREIRA, EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
minha. Não importa no que eu acredito, não importa se eles acham que é certo ou errado,
se é bonito ou feio, importa é que esta fé me estimulou a hoje estar fazendo uma luta
política e social, a ponto de ser candidata, eu fui candidata com uma bandeira que era de
dizer que o mundo com tolerância era possível. Há 20 anos atrás, era muito difícil porque
as pessoas olhavam, riam, outros pareciam que estavam passando do lado de um “ET”, ou
qualquer coisa horrorosa e isso foi uma luta, mas aos poucos nós fomos ajuntando 1+1,
+1. Construímos um primeiro grupo, eram todas Iás, ou iniciadas, eram mulheres negras
que vinham do morro, então nós nos juntamos e o primeiro lugar a sermos aceitas foi no
carnaval. Então nós fomos primeiro um grupo de baianas independentes – éramos 85
mulheres, negras e todas do Axé. E isso se chamou “Clube de Baianas Independentes”,
quando começou a sair pra rua e dali passou o carnaval, eram três dias e depois do car-
naval a gente fazia o “chazinho” no terreiro de uma, no terreiro da outra e manteve aquele Tata Edson,
grupo ali. E a partir de então começamos a fazer formação, primeiro entre nós, a falar da Centro Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto / RS
própria maneira de fazer os nossos axés, nossos ebós, depois começamos a pensar que
deveríamos usar roupas parecidas na rua e aí fomos fortalecendo aquela identidade, co-
meçamos a ser convidadas a participar de outros debates em nível de Movimento Negro,
fomos amadurecendo a ideia e hoje estamos aí com o Fórum, construímos um “Conselho
Nacional de Asès”. Claro que há muitos anos atrás ainda éramos vistas como as religiosas,
e isso tudo é um avanço, é uma construção, a gente vai se achando enquanto identidade
e abrindo portas, quebrando muralha, quebrando barreira, porque até um tempo atrás a
gente era o bolinho da festa, bota a saia de armação, bem bonito e vem, e era hora de
bater palma, hora de levantar, “papagaio de pirata”, hoje não somos mais. Hoje a gente
já tem uma discussão, uma identidade própria, a gente tem uma perspectiva, a gente faz
uma política propositiva.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
NÃO TEM RELIGIÃO MAIS POLÍTICA QUE A MINHA, desde pequenininho você aprende a
fazer política, você aprende quem é o senhor, quem é o mais velho, quem é o bonzinho, quem
é o mau, quem tem paciência e quem não tem, qual é o que tem mais acesso à mãe de santo,
como é que eu vou chegar nela. Isso é fazer política, não é? Aí você vai falar de política com
o pai de santo, ele vai falar: – “Não quero falar de política”... Como não quer falar de política,
se não tem ninguém que sabe fazer mais de política do que nós? Você só tem que entender
que esta atitude dele é política. Agora tem que ter um grupo de boa vontade como eu, que
vá conversar com eles, alcançar, e quando ele está bem moldado ele vai e replica a ideia
para mais meia dúzia. Só que o tempo tá correndo contra a gente.
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
CULTURA
V
Estatuto da Igualdade Racial, embora não seja Estatuto que nós queríamos, mas eles mes-
mos que aprovaram e forçaram a barra pra ser aprovado, tá aí. A grande demanda hoje vem
exatamente desse segmento da população negra que manteve uma África viva neste país,
que hoje estão reivindicando direitos e políticas públicas que nunca foram contemplados.
PAI PAULO C. DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
NÓS DIZÍAMOS QUE NA ÁFRICA NÃO EXISTE NENHUM PAÍS ou nenhuma estrutura
que chama “terreiro” – essa questão é oriunda do processo da escravidão, ela se deu no
V
Brasil, ela é uma resistência aqui. Então, se eu for lhe dizer, a articulação política ela nasce
em todas estas esferas, a nossa presença – e isso é muito importante para nós – é que
V
você tem que sair de um ponto e sair de dentro do terreiro. Então, hoje o que nós dizemos,
o que é Povos Tradicionais de Matriz Africana, que alguma época as pessoas chamavam
de “Povo de Terreiro”. Agora, esta resistência ela pode ser pensada e organizada a partir
de ser o “embrião da resistência”, e pode ser formada uma nova opinião, como um grande
consulado desses povos – esta é a grande expectativa futura.
TATA EDSON, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
SENTIMOS A FALTA E A B
DÍVIDA QUE ESTE PAÍS, A PARTIR DO MEU TERREIRO, HÁ UM BOM TEMPO ATRÁS, a gente não pensava,
ESTA CIVILIZAÇÃO, ESSE não tinha consciência, vamos dizer assim do real papel que, para além da fé, nós pra-
ticávamos através de ações. Hoje a gente tem um outro olhar e nós temos um papel a
SISTEMA EUROCÊNTRICO cumprir, e foi com este pensamento, com este raciocínio que a gente começou a con-
OCIDENTAL FEZ COM O versar com outras pessoas que também já tinham este pensamento e eu decidi a sair
pra rua, enquanto dirigente de terreiro. Enquanto representante desta visão de mundo,
NOSSO POVO. PORQUE reconhecida como religião de matriz africana e começar a brigar com o olhar discrimi-
nador da sociedade. E entender que nós superamos a questão da religião, a partir do
NÓS TEMOS UMA ORIGEM momento em que nós começamos a botar a cara no mundo e dizer pra este mundo e
ORIENTAL COM OUTROS pra essa sociedade: que nós existimos, o que nós pensamos e que nós temos um valor
civilizatório, que é o único que eu acho que poderá realmente fazer a mudança real que
VALORES CIVILIZATÓRIOS” essa sociedade brasileira precisa. Ali dentro do meu terreiro, e acredito que em todos
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE os terreiros, nós sentimos a falta e a dívida que este país, esta civilização, esse sistema
MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS eurocêntrico ocidental fez com o nosso povo. Porque nós temos uma origem oriental
com outros valores civilizatórios. Então esse período de adaptação que não passou, eu
me sinto no direito e no dever de dizer isso. Eu não acredito que isto tenha passado,
acho que nós avançamos sim com muita luta, com muito suor, com muito estresse entre
nós mesmos, porque uma das coisas é que este modo globalizado hoje, mas também
num passado, este passado aonde foi plantado essa desigualdade tão grande. Eu diria
que começou a discussão mesmo de terreiro, de legitimidade, de identidade, a tirar o
terreiro só do centro, só da religião, que parecia que ele queria competir, era uma religião
excomungada, uma religião que tinha que ser escondida, que não professava o bem, que
tinha o poder de matar, uma religião que tinha o poder de enfeitiçar, uma religião mágica
que tinha todos esses poderes e era vista como danosa. Eu, até em respeito aos meus
antepassados, penso que muitas falácias que tiveram naquelas décadas passadas por
uma questão de proteção, então muitos dogmas que foram criados aqui no Batuque.
MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
DIREITO
DA TERRA
NO INCRA, O QUE NÓS CONSEGUIMOS É QUE NÃO PODE VENDER A TERRA e aí quem
entrar aqui, é pra ficar aqui, não é pra sair, mas o povo saiu porque como é que vai ficar aqui sem
serviço? As mulheres não podem trabalhar que não tem serviço aqui, e precisa trabalhar pra
cuidar dos filhos, o marido trabalha, mas o dinheiro do marido não chega pra tudo. E daí, então,
]
tão saindo o povo, é isso e aí não é pra vender a terra, tá embargado a venda, aí eu saí, não
fui embora, eu fico em outro lugar, não vou abandonar aqui, mas muitos saíram e não voltou.
DONA VANIR RODRIGUES DOS SANTOS, COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE CASTRO / PR
HOJE, POR EXEMPLO, NO CASO NOSSO AÍ TEM A SUA DIFERENÇA, assim muita
gente fica assim, preocupado, por exemplo, ele não entra e não mora, não é do sangue dos
quilombolas. Mas se ele no caso, por exemplo, se ele no caso casou com uma menina que é
quilombola, ele passa a ter o mesmo direito que a minha filha tem aqui, dentro da comunida-
Fotos págs. 90 e 91:
de. Se, por exemplo, a moça de fora casar com rapaz aqui, com filho meu, por exemplo, que Comunidade Quilombola Mesquita / GO
é quilombola e ela não é, ela continua sendo, fazendo parte do quilombo, quilombola porque
ela entrou na origem, entrou na família e não tem discriminação e aí muitos dizem assim:
“Mas eu não sou quilombola, eu vim da Bahia, eu vim de um estado tal”. Não, não tem nada
a ver, eu digo: – “Lá você casou na documentação, já mudou alguma coisa nela, então cuida
dela pra você fazer o casamento. Então no que você mudou, você tem um certificado, um
registro que você more aqui no quilombo, então você já faz parte do quilombo”. Então a gente
tá brigando esse esclarecimento pra mostrar pra muita gente que ainda não conscientizou,
ainda, que tem que ser desta maneira, mas é muito importante. Se ela separou, ela não quis
o convívio com ele porque ela não está mais interessada naquilo ali. E se ela, por exemplo, no
caso a parte da terra ficasse pra ela, vai vir outro lá de fora que não tem nada a ver. Então
isso é que a pessoa tem que ter uma noçãozinha um pouco, tem o conhecimento e uma
explicação por isso, se ela está com ele ou enquanto ela tá com ele o direito existe a ela,
agora, a partir do momento que ela separou, vai ter direito os filhos dele, porque não pode
ser mais vivido, aquilo ali é de geração pra geração, entendeu. Aí, no caso, se ela arrumar um
outro, um outro pé de chinelo e ela ali vai já querer e chegar e mandar e vai mudar a estrutura.
SR. JOÃO ANTONIO PEREIRA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
REGISTRO OFICIAL
DO QUILOMBO
H
com outros quilombos, saberes, trocas de saberes é importante, várias oportunidades,
viagens, como estivemos na Rio+20. O Quilombo Mesquita teve quarenta e duas pesso-
as participando da Rio+20, intercâmbio com Cavalcante, intercâmbio com o Encontro
Afro na cidade de Goiás, que é muito interessante lá o evento todo ano, intercâmbio
com a Fundação Banco do Brasil, que nos trouxe aqui a parceria do viveiro, pra trabalhar
a educação ambiental e o reflorestamento das áreas degradadas do quilombo. Então as-
sim, são muitas conquistas, na agricultura familiar, estamos os produtores já vendendo,
já comercializando e o grande anseio nosso é de conseguir mais, conseguir os tratores,
conseguir as patrulhas mecanizadas pra comunidade, porque todos os quilombolas que-
rem plantar, estão com o gosto da terra novamente. Os quilombolas ajudaram a cons-
truir este país, nós somos estes afrodescendentes que estamos aí até hoje; mas, para a
legislação sim, tinha que ter, tem que ter esse reconhecimento oficial, que é o processo
de reconhecimento, processo e por aí vai. Não adianta eu ficar aqui achando que tá
tudo muito bonito porque aqui não é. O problema está lá na outra ponta. Então, eu fico
muito triste quando eu vejo que as coisas não estão acontecendo, as demarcações de
território não estão acontecendo ou muito devagar, e o processo está lá, aí você vê que
H
as comunidades estão lá, existem teoricamente, ricas em material e põe material que já
não tem mais aonde. Os históricos estão lá pra contar suas histórias, está tudo provado.
E o que falta, que esta demarcação não acontece? Se nós estamos até hoje porque
somos resistentes, então porque estamos garantindo esta resistência, aonde está, falta
realmente a vontade política, a vontade que não está sendo verdadeiramente; nós não
estamos tendo o respeito verdadeiramente com aquilo que nós temos, e a gente está
participando de todo o processo. E aí vem o outro, ameaçaram outras lideranças qui-
lombolas, todos sendo ameaçados, (...) ameaçados por estar ajudando as comunidades
com seu esclarecimento, ajudando porque tem que trazer estas políticas públicas para a
comunidade, aí quando você vai pra esse esclarecimento pra avançar nisso, aí sim, você
é ameaçado porque você está sabendo demais, porque você tá querendo buscar algo
que está incomodando, alguém não quer que estas pessoas realmente venham saber de
seus direitos de fato, e aí fica uma situação, você diz: – “Meu Deus, a quem recorrer?”
quer dizer, eu tenho direito e que não é meu direito?
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
Sr. João Antonio Pereira, Comunidade Quilombola Mesquita / GO
Quilombo Curiaú / AP
W
questão dos conflitos que têm, na questão ambiental.
NÚBIA DE SOUZA, CONAQ, SOBRE QUILOMBO CURIAÚ / AP
A GENTE TEM A ARCA DAS LETRAS QUE TAMBÉM JÁ DEU MUITO CERTO aqui e “ENTÃO A INTENÇÃO AGORA
vamos trabalhar a questão do incentivo maior porque a leitura é um mundo desconhe-
cido, né? Nós já tivemos grandes avanços depois dos intercâmbios, depois da Arca das É TRABALHAR PRA QUE O
Letras, jovens que eram tímidas e não queriam estudar e depois da Arca das Letras nós
PONTO DE LEITURA SEJA
tivemos uma grande melhora. Então a intenção agora é trabalhar pra que o Ponto de
Leitura seja um multiplicador e incentivador pra vários outros processos e até mesmo UM MULTIPLICADOR E
os idosos; nós precisamos e pretendemos também abrir a alfabetização de jovens e
adultos e eu já fiz um contato com a fundação. A Fundação Banco do Brasil tem este
INCENTIVADOR PRA VÁRIOS
programa, então a gente tá buscando agora uma jovem da comunidade pra trabalhar OUTROS PROCESSOS E
também a questão da alfabetização de jovens e adultos e nós já estamos ampliando, lá
aquele espaço que eu mostrei pra vocês, pra que a gente possa tá fazendo estas rodas ATÉ MESMO OS IDOSOS;
de leitura que serão ministradas nos finais de semana. NÓS PRECISAMOS E
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
PRETENDEMOS TAMBÉM
J
ABRIR A ALFABETIZAÇÃO DE
O ORÙNMILÁ TEVE AÍ SEU O SEU TELECENTRO DE INFORMÁTICA, onde eu mi- JOVENS E ADULTOS”
nistrei as oficinas de informática também, assim como as oficinas de DJ´s e me envolvi SANDRA PEREIRA BRAGA,
mais um pouco na rádio, aí a rádio se tornou Rádio Orùnmilá, isso aí em meados de COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
2007, e aí eu já administrava mesmo toda a programação da rádio, já como diretor de
programação da Rádio Orùnmilá.
MAICON, RÁDIO ORÙNMILÁ, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
DDDDDDDDDDDDDDD
“JÁ FIZEMOS AQUI COM AGORA ASSIM, VOLTANDO PRAS ATIVIDADES DO TERREIRO, nós temos umas
pontuais, começando em março, tem o dia estadual da religião africana e sempre tem
O CTA COAS, O TESTE uma atividade alusiva a isso, em março, é o Dia Estadual da Umbanda e de Todos os
RÁPIDO PARA HIV E AS Atos Religiosos. Na Associação tem um terreiro e nós fizemos lá dentro, e tem antes o
Dia da Mulher, dia 8 de março, a gente faz o café da manhã pras mulheres.
HEPATITES, FOI MUITO EKEDI RITA E MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA, ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA
AS CESTAS SÃO DISTRIBUÍDAS AQUI NO AXÉ, agora veio uma orientação da SEP-
PIR que serão dois pontos de entrega, então eu dividi para aqui, para o Planalto da Boa
Esperança e lá na Comunidade de Mãe Penha, no bairro de Mandacaru, que é um bairro
também tido como muito violento – estão até fazendo um trabalho de humanização
e respeito ao bairro, a polícia, o ministério público, a justiça através da prefeitura está
tentando moralizar o bairro, trazer dignidade para o bairro, porque lá moram pessoas,
também, que estão dentro deste contexto; a população não pode responder por erros
de alguns, pela criminalidade. Então eu, através da minha intuição, a partir dos orixás,
porque a gente não faz nada sem perguntar a eles, me foi orientado a passar para a
Comunidade de Mãe Penha, porque é uma comunidade de alto risco também. Então
precisa empoderar essa comunidade até para ganhar o respeito da população e não ser
aviltada também, né? A cesta também faz isso, ela traz um pouco de dignidade, contri-
bui para o respeito com a comunidade, com a comunidade do entorno.
MÃE LÚCIA DE OLIVEIRA, ILÊ AXÉ OMIDEWÁ / PB
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AQUI NÓS TEMOS CAPOEIRA, TEMOS PERCUSSÃO, DANÇA-AFRO, SAMBA-ROCK,
ciranda, têm várias atividades aqui. São todas envolvidas com o pessoal aqui da periferia, com
o pessoal de Ribeirão mesmo, de outros bairros, eles vêm aqui pra participar. Inclusive nós
tivemos aqui uma época, um cursinho pré-vestibular e este cursinho surgiu assim também
e nós conseguimos 15 professores, todos voluntários. E aí este cursinho durou alguns anos
e a gente não teve mais fôlego por quê? Porque os professores no mínimo precisavam ter o
transporte, e nem o transporte têm, entendeu?
RENATA RIBEIRO, COORDENADORA/PRESIDENTE DO CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
ATÉ HOJE, NÃO SEI AGORA OS JOVENS, MAS O NEGRO mesmo, se você chegar aqui
mesmo, no nosso município, no seu estado em Macapá. Você chega lá e você é um negro,
eles vão tirar uma rede que tá no baú guardado, vão lhe dar pra você passar a noite, vão
lhe dar mosquiteiro e vão fazer janta para você. É que até hoje quando a gente chega num
lugar onde dá pra dormir, muito da raça negra, ainda tem aquele acolhimento.
SR. RAIMUNDO, NETO DE D. TERESA, QUILOMBO CURIAÚ / AP
Quilombo Curiaú / AP
colas públicas aqui, pouquíssimos negros dentro das escolas. Tanto como profissionais,
tanto como estudantes, se vê quando pequenininho ainda tá lá, mas chega na oitava
série e já não tem mais... não se mantém, é muito pouco. Pois é, eu agora to observando
mais este lado porque isto que me chamou a atenção, quando chega no ensino médio,
você procura um negro, dá para contar nos dedos – eu digo será? – tem tanto negro nas
comunidades, tanto negro espalhado por aí... e quando você vê está tudo trabalhando,
precisa ir pras roças, eles têm que largar mesmo, não consegue. Então você vai incen-
tivar numa das escolas; por exemplo, eu trabalho em duas escolas aqui, uma fica bem
na periferia ali, perto do hospital e outra que fica bem no centro, o Vespasiano, as duas
escolas atendem os quilombolas, mas nem a escola sabia que atendia, quando eu falei:
[
“Vocês atendem os quilombolas porque o núcleo ligou perguntando, quantos quilombo-
las têm aí?” A diretora disse: “A gente não tem nenhum aqui”. Eu disse: “Como! Vocês
atendem, o ônibus traz aqui, a comunidade do Tronco, tá tudo aqui”. Fui buscar um na
sala e disse: “Vai se apresentar ali pra diretora”. Ele se apresentou: “Eu sou quilombola!”
Se apresente pra ela ali... Aí ele foi... ela disse: “Eu não sabia”.
“Então aprende que a sua escola atende e recebe por isso...“
PROFA. RIZALVA DE BARROS E SILVA, COLABORA COM AS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE
CASTRO / PR
S
desmancharam. Então o que acontecia... se o delegado estivesse de bom humor e
dissesse: – “A senhora pode tocar até tal hora...”, tinha que fazer. Se ele dissesse: “Não
é pra fazer, não tinha”, e se teimasse entrava a polícia a cavalo e destruía tudo. Então
foi sendo desterritorializado com a história da cidade. Tinham alguns casarões, onde é
hoje o Largo Zumbi dos Palmares, que aglutinavam os grandes terreiros ali, de algumas
mães. Mãe de Oxalá de Pocum – ela abrigava a eles dentro dos terreiros, tinha uma
concessão. Não era um direito daquele povo, era uma concessão, porque a mãe dela
lavava roupa pro tal coronel que tava no poder, então, o terreiro dela podia porque o tal
coronel era “bonzinho” e assinava uma autorização, de tal hora a tal hora pode fazer, se
passar, a gente fecha. Em compensação o terreiro que estava do lado não tinha con-
cessão alguma, ele não podia fazer. Então, na história da matriz africana, no Rio Grande
”O TOQUE ATÉ PARA AS do Sul e em Porto Alegre, tem esta história da repressão. Dificilmente irá encontrar um
babalorixá ou uma ialorixá que tenha sido iniciado num único terreiro. Por todo esse pro-
PESSOAS QUE NÃO TÊM
cesso, muitos terreiros que como o meu foram despejados, muitos terreiros se perderam
DOENÇAS PATOLÓGICAS, nisso. Quando foi novembro (2012), eu estava num espaço em Belém Nova, e tinha o
maior interesse de comprar, porque era um terreiro enorme, cheio de árvores, só que
MAS TÊM AS DOENÇAS eles me pediram um valor exorbitante. Porque o proprietário do terreno era evangélico e
PSÍQUICAS, DA SEGREGAÇÃO, ele disse que entre ele vender para que botasse coisas do demônio lá, ele preferia doar
pra qualquer igreja. Se não me engano parece que vai ser construído um templo. Eu não
A HUMILHAÇÃO, O RACISMO, tirei, eles entraram na minha casa e tiraram todos os meus santos, e me chamaram e eu
O RACISMO RELIGIOSO, A trouxe pra cá e quero refazer essa história. Eu agora quero um terreiro, eu quero a minha
natureza, minha essência, meus herdeiros, meus filhos de santo.
INTOLERÂNCIA GERA DOENÇA MÃE VERA SOARES, CENTRO MEMORIAL DE MATRIZ AFRICANA 13 DE AGOSTO / RS
eu digo que não dou nem 10 anos para que a gente tenha que fechar terreiro, digo a nível
de Brasil por tudo que eu ouço, que eu convivo por aí. Por mais incrível que pareça, o que
eu observo hoje em dia, a leitura que eu faço, é que naquele tempo era mais fácil, porque
assim, naquele tempo eu não lembro de ninguém ter sofrido intolerância e como a mãe de
santo e o pai de santo eram os médicos, que a distância da medicina pra esta comunidade,
que era a periferia, é muito grande.
MÃE NALVA VIRGINIA ALMEIDA, ILÊ IYABA OMI ACIYOMI / PA
FACE A FACE, MUITAS VEZES VOCÊ NÃO VÊ A DISCRIMINAÇÃO, mas quando a gen-
te vai na assistência social, você chega lá, talvez tem uma moça lá atendendo, aconteceu
isso mesmo com o pessoal do Macuco. Você chega lá quando era para fazer seu cadastro,
que era para a gente ir lá mudar que era a comunidade quilombola, tinha uma mudança
lá (...). A gente chegou lá, a mulher faltou mandar a gente sair de lá de dentro, xingando,
não sei o que tem, sabe, trata a gente com aquela indiferença, quando eles têm um cargo
ali, mais ou menos. Agora na rua é tipo assim de igual para igual, cada qual passa para
um lado, passa para o outro, você não vê aquela discriminação, mas quando você chega a
procurar ela, que ela está trabalhando num órgão, aí que você sente, mesmo ela sabendo
que ela está ali para atender todo mundo, ela faz aquela distinção do branco e do negro, de
quem mora na cidade, de quem mora na roça, tem essa distinção, tem essa discriminação.
JUCILENE SOIER, ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES (MACUCO, MATA DOIS, PINHEIRO E GRAVATÁ) / MG
NÃO VAI DIZER QUE AS OPORTUNIDADES SÃO AS MESMAS, você vai se inscrever
no trabalho: “Onde você mora?” “Moro no tal lugar”. E se o lugar for de risco eles já te
Ilê Iyaba Omi Aciyomi / PA olham meio assim, já tem ali 80% de chance de não estar empregado, é preto, outra
porcentagem de não estar empregado, puxa sua ficha e se seu tio era traficante, isso ou
aquilo, você também paga o preço disso. Gente, é um preço muito alto a ser pago. Nós
falamos de democracia e ditadura. Da ditadura, todas as viúvas e mães que perderam os
filhos correram atrás de uma indenização que recebem até o dia de hoje, direito delas.
Eu acho que é isso mesmo, tem o direito. Agora, onde estão nossos direitos quando
nossos ancestrais trabalharam anos de graça nesta terra, e nós nunca fomos indeni-
zados por nada e até hoje, muito pelo contrário, pagamos o preço de ter sido escravo.
Quem indenizou eu ou você ou alguém? Ninguém. E os anos que os nossos ancestrais
trabalharam de graça nessa terra?
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
gente, então isso nos faz mais ricos em cultura. O que é a renovação da atual igreja? A
renovação da atual igreja é copiar a gente. Já nos roubaram a identidade, já roubaram
a liberdade, hoje nos roubam até a nossa cultura, que eles se apropriam da cultura e
criam lá, pagode da tal igreja que eu não vou citar aqui denominações, o samba do tal
padre. Mas o samba, isso tudo se bate muito além do racismo, na minha opinião, é na
religiosidade. Sim, porque na religiosidade vai mostrar que o demônio não faz parte da
nossa cultura, o anticristo já está dizendo, é anticristo de Cristo. Então se eles se acham
tão proprietários de Cristo e de Deus, o diabo também é deus porque a nossa filosofia
de vida vê isso tudo como um equilíbrio, o bem, o mal, o dia, a noite, isso é comum,
uma harmonia. Agora o livre-arbítrio, Deus ou Olodumare deu a todos os seres humanos
decidir se vai ser bom, se vai ser honesto, se vai seguir o bem. Isso é do ser humano,
não tem nada a ver com a religiosidade. Mas, admitir que toda essa cultura do terreiro “AGORA, ONDE ESTÃO
foi o grande celeiro que manteve guardada toda essa cultura, até os dias de hoje, pelos NOSSOS DIREITOS QUANDO
nossos ancestrais. Eles no fundo acabavam a festividade – vamos fazer um samba de
roda, as yubamas com os pratos, todo mundo sambava e se divertia pra dizer: “Olha, NOSSOS ANCESTRAIS
comemoramos toda parte religiosa, correu tudo bem, vamos ficar aqui e as tias que
vieram do terreiro, as Ialorixás”. Aí eles querem se apropriar do samba, mas não querem
TRABALHARAM ANOS
admitir que ele foi guardado dentro do terreiro, pela capoeira, o fragmento foi guardado DE GRAÇA NESTA TERRA,
no terreiro. Então hoje vamos reconhecer isso que tá aqui, basta reconhecer que o celei-
ro disso tudo foram os terreiros e toda cultura que pertence a ele. Não tem nada demais
E NÓS NUNCA FOMOS
eu cantar uma música gospel e achar ela bonita, mas eu digo que é gospel, ela vem de INDENIZADOS POR NADA
uma igreja cristã, eu não posso dizer que ela pertence a minha cultura, mas nem por isso
deixa de ser bela. O problema nosso é que nós perdemos sem ter o reconhecimento. E ATÉ HOJE, MUITO PELO
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
CONTRÁRIO, PAGAMOS O
y PREÇO DE TER
PRECISA REPRODUZIR QUE NÓS ESTAMOS LUTANDO É PELOS NOSSOS ESPAÇOS
SIDO ESCRAVO”
e que nós somos tratados diferente, que eles é que nos tratam diferente, nós não tra- MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM),
EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
tamos o branco diferente, mas eles mesmos querem que a gente reproduza isso, que
nós somos diferentes e nós não somos diferentes, às vezes simplesmente pela questão
da pigmentação da pele. A ideia do Projeto do Santuário é realmente trabalhar a for-
mação dos terreiros, é o que a gente tem percebido ao longo desses 10 anos, desde
2004 pra cá que desenvolve um trabalho de conscientização e de valorização da cultura
afro-brasileira e principalmente do resgate e a valorização. E pra mim que sou hoje do
candomblé, que venho de toda uma transição de umbanda para o candomblé, tenho
aprendido ao longo desse tempo dentro do candomblé: nós temos a hierarquia de res-
peito aos mais velhos e da nossa tradição e do respeito aos conhecimentos dos nossos
antepassados. Então a intenção também é fazer com que as pessoas partilhem essa
coisa, que nós temos do candomblé, de um ajudar o outro.
PAI RONDINELE DOS SANTOS, ASPAJA – ASSOCIAÇÃO SANTUÁRIO SAGRADO PAI JOÃO DE ARUANDA / PI
“UMA BIBLIOTECA É
IMPORTANTE DENTRO
DO TERREIRO DEVIDO
À ORALIDADE; É A
ORALIDADE, SEMPRE
A ORALIDADE, TODO
MUNDO FALA E FICA MEIO
PERDIDO. ENTÃO ISSO NOS
INCENTIVA A ESCREVER,
INCENTIVA AS CRIANÇAS
A ESTAREM LENDO”
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA
(MÃE MÁRCIA DE OXUM),
EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE
OBALAYO / RJ
Egbe Ile Iya Omidaye Ase Obalayo / RJ
MEDIAÇÃO E LEITURA:
TECER OS PONTOS
FRANCISCO GREGÓRIO FILHO
M
eu querido avô dizia: peça licença, consentimento, sempre que adentrar em um
espaço sagrado de sabedorias. Peça permissão para o convívio com os sábios e
os seus saberes.
Pois, meus amigos leitores, repito aqui esse aconselhamento de meu avoengo para
iniciar uma conversação de pé de ouvido com vocês.
De partida, trago-lhes uma história que ouvi muito em minha infância, contada por minha
avó. Tempos depois fui ouvi-la, também contada por senhor José Azul, leiteiro, magarefe e
vendedor de mel em Rio Branco, no Acre. Contei com frequência essa narrativa que con-
sidero do gênero dos mitos de origem, encontrados no repertório popular afro-brasileiro e
repetido com certa constância.
Foi então que as mulheres resolveram consultar Ifá, o adivinho que sabe de
tudo, porque na vida se repete. Para Ifá, basta saber entre tantas histórias,
qual é aquela que está sendo revivida. Ifá logo desvendou o segredo, a causa
da tragédia, e recomendou às mulheres: “Levai presentes para Iroco, e tudo
voltará ao normal, como antigamente”.
Perto da aldeia, havia uma árvore enorme. Era uma gameleira branca, onde
habitava Iroco, o orixá. Iroco era muito querido pelo povo daquela aldeia,
que ele protegia e ajudava, mas já fazia um bom tempo que a aldeia se
esquecera de Iroco. Ninguém mais ia visitá-lo com oferendas, ninguém en-
feitava o tronco da gameleira branca com belos laços de tecido colorido,
guirlandas de flores, ricas comidas e bebidas, como era costume antigo.
Iroco estava triste e ressentido. Iroco se vingava nas mulheres, secando
suas barrigas.
“Aceita esta oferenda, meu pai, e me dê filhos!”, dizia uma. “Eis aqui uma
comida de sua predileção, querido orixá. Faz crescer minha barriga”, dizia
outra, suplicando. “Dá um filho ao meu marido”, mais uma implorava.
E assim, uma depois da outra, todas as mulheres foram fazendo seus votos.
Cantavam e dançavam em torno da árvore sagrada, prestando suas home-
nagens e prometendo sempre levar-lhe oferendas.
Então, chegou a vez de uma mulher chamada Olorumbi, que nada trazia de
presente a Iroco, e que disse: “Orixá da árvore, estou de mãos vazias, porque
nada tenho em casa hoje que te possa oferecer. Meu marido é entalhador e há
semanas não vende nada, porque todos nós estamos tristes, tão desespera-
dos, que ninguém quer comprar nenhum adorno desses que meu marido faz.
;
Dá-me um filho, senhor, e te darei depois o que me for mais caro e precioso”.
Iroco aceitou as oferendas de todas as mulheres, inclusive a promessa de
Olorumbi. Nove meses depois, a aldeia alegrou-se com o choro de muitos
recém-nascidos. As mães, felizes e gratas, foram levar a Iroco suas prendas.
Em torno do tronco de Iroco, depositaram suas oferendas.
B
dar meu filhinho querido para Iroco.” E o adivinho retrucou: “Prometeste dar
o que te foste mais caro e precioso, não?” e, ainda, “Não é o filho que tives-
te, o bem mais caro e precioso que tens?” “Não, não darei o meu filhinho,
ele não,” disse Olorumbi e saiu correndo apavorada.
Olorumbi não podia dar o filho adorado a Iroco, seu marido jamais consen-
tiria. Não, nunca!
Assim, Iroco transformou Olorumbi num pássaro, que ficou cativo em sua
copa, para ali viver para sempre.
O entalhador procurava a mulher por toda parte, mas não a encontrava. Triste
e sozinho foi criando o filho querido e cada vez mais amado. Muitas pessoas
que passavam pela gameleira branca escutavam um pássaro cantando:
Esta história logo chegou aos ouvidos do entalhador e ele entendeu tudo
imediatamente. Sim, só podia ser Olorumbi, transformada em pássaro por
Iroco. Ele precisava salvar sua mulher. Mas como, se amava tanto seu pe-
queno filho? Se não entregasse a criança, a mulher continuaria prisioneira.
Libertando a mulher, perderia a criança. Afinal, foi consultar Ifá, que o acon-
selhou: “Meu caro entalhador, há poucos mistérios na vida, amigo. A vida
ensina. Aprende com ela. Usa a tua arte e tudo se resolverá. Nada mais
posso te dizer. Segue teu caminho”.
Iroco olhou para o boneco de pau e se encantou com o presente. Era o meni-
no que ele tanto esperava. Imediatamente, Iroco devolveu à Olorumbi a forma
de mulher. Aliviada e feliz, Olorumbi voltou para o marido e para o filho.
Iroco aceitou a oferenda e teve razões especiais para isso. Achou o menino
muito parecido consigo mesmo, pois era feito do mesmo material de seu
corpo, o pau de gameleira. Além disso, tinha o cheiro de suas folhas, hum,
que delícia! Aceitou-o como filho seu, legítimo. Carne de sua carne. Lenho
do seu lenho. Ficou encantado com o sorriso perene da criança. Iroco ado-
rou o fato de que o menino não chorava nunca. Sempre silencioso, sempre
em paz com a vida! Que pai não deseja ter um filho parecido consigo?
B
Alguns dias depois, Olorumbi, seu marido e seu filho foram até Iroco levar
muitas oferendas para adornar o tronco da árvore. Todas as pessoas da
aldeia ficaram felizes e contentes com o retorno de Olorumbi e também
levaram oferendas para Iroco, porque Iroco dá o que as pessoas pedem e
todos dão para Iroco o prometido.
Seguindo nossa conversa, considero uma boa iniciativa essa de promover os pontos de lei-
tura em diversas comunidades, nas diferentes regiões e territórios do Brasil (aldeias, terrei-
ros, quilombos, colônias, praças e arenas, vilas, arraiais, ilhas e florestas). Pontos de leitura
que desenvolvam um conceito de respeito e valorização dos diversos contextos culturais.
das pessoas e suas histórias de experiências individuais e coletivas. Conexão com seu
contexto cultural em diálogo aberto com os outros contextos.
Passo a exemplificar com uma das vivências que me fazem pensar assim: em um ar-
tigo2, publicado no jornal A Voz da Serra, de Nova Friburgo, divulguei o lançamento do
livro da professora Sônia Rosa, Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta,
que conta uma interessante história. Após a publicação recebi muitas correspondências
com comentários repletos de elogios e/ou críticas, alguns coerentes e muitos outros
contraditórios. O fato é que repercutiu e despertou curiosidade e debate sobre a impor-
tância de apresentar materiais desse tipo, que suscitem boas conversas, mesmo que
divergentes, mas que registrem ocorrências ao longo da história das lutas dos povos e
as suas diversas maneiras de narrá-las.
O livro conta um fato que existiu mesmo. A carta original está em Portugal, compondo
os registros sobre a história colonial brasileira. A descoberta de uma cópia desta carta
pelo historiador Luiz Mott foi tão importante, que o dia 6 de setembro se tornou o Dia
Estadual da Consciência Negra no Piauí, e Esperança Garcia se tornou nome de mater-
nidade e de alguns grupos culturais voltados para a africanidade em Teresina.
Não se sabe onde a escrava Esperança nasceu, nem o ano. No entanto, ela se destacou
A
por sua coragem em escrever a primeira petição para um governador, relatando os
maus-tratos sofridos nas mãos do capitão Antonio Vieira do Couto, inspetor de Nazaré,
hoje município de Nazaré do Piauí. Por ser escrava de fazenda jesuíta, Esperança Garcia
foi certamente alfabetizada e catequizada por eles.
Transcrevo aqui essa carta, adaptada à linguagem atual, e que ficou sem resposta:
caí uma vez do sobrado abaixo apeada; por misericórdia de Deus escapei.
A
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos.
E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.Sa. pelo
amor de Deus e do Seu valimento ponha os olhos em mim ordenando, digo,
mandar o Procurador que mande para a fazenda onde ele me tirou, para eu
viver com meu marido e batizar minha filha.
Dessa experiência posso registrar que foi a que mais causou polêmicas entre os
leitores. Reafirmo então o papel do mediador como um animador de diálogos em
torno das narrativas faladas e escritas nos textos, nas imagens e nas vozes dos que
apresentam em escrituras ou as leem em voz alta.
PEGA UM LIVRO, EU TRAGO, VOCÊS LEIAM – QUEM FOI ZUMBI DOS PALMARES?
Aí eu digo, a coragem daquele negro, então vocês têm que ler, gente, então vê a cora-
gem daquele negro de chegar e comandar... porque você chegar e comandar esse povo
aqui tá fácil, você dá a liberdade, você chama e todo mundo concorda... mas chegar
aqui e comandar o povo pra sair do limite de escravidão, para ir morar no espaço de
alta liberdade, ser livre, é a coisa mais complicada. Mas Zumbi lutou e lutou e criou o
Quilombo dos Palmares .
EDSON GOMES, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
E ELE AQUI É ALGUÉM, PORQUE MUITAS VEZES ELE NÃO SABE NEM QUE É NEGRO,
nunca se deu conta que teve um avô negro, bisavô negro, tataravô negro que apanhou e
foi escravo, que ele não deve ser capturado por outro segmento. Não é por nada não, é por
honra a esses ancestrais que deram a luta, a vida, o sangue nos pelourinhos e hoje nem
tem noção do que era o pelourinho. Por isso é importante uma biblioteca ancestral, pra se
entender qual é a história deles, porque não tem presente sem passado, futuro sem passa-
do. Então será que se os negros conhecessem bem isso nas escolas, eles seriam mesmo
de outros segmentos? Eles veriam o terreiro como um lugar. A minha opinião é que a (lei)
10.639 não se implementa nas escolas, na maioria das vezes, porque vai ter que chegar na
educação à religiosidade. Pois, não tem como você falar da cultura de um povo, sem falar
na religiosidade dele. Como o demônio ficou atribuído a nós, deixa a pessoa pensar nisso;
é muito mais conveniente do que chegar lá e ver que a cultura dele tem uma religiosidade
que contempla a ancestralidade e a natureza.
MÁRCIA DÓRIA PEREIRA (MÃE MÁRCIA DE OXUM), EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
1
Digital com a biblioteca, o viveiro e os cursos que nós vamos promovendo.
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
é um trabalho bem legal, e pro adulto também. Eu não consigo atingir a língua (o
entendimento) de todo mundo com a mesma mensagem, mas o que eu posso fazer
é dizer: – “Olha, você gosta de ler, então vai lá e eu posso indicar um autor, um livro
legal”. Porque até hoje vêm pessoas neste terreiro e diz: “Nossa! Mas é assim? eu
pensava uma outra coisa”. Em pleno século XXI, com tanta informação, com tanta
batalha que a gente tem, ainda sempre tem aquela influência do que eu pensava que
era assim. Então a biblioteca tira muito esta questão, até porque já está se deixando
bem claro que biblioteca não é algo restrito somente para os filhos da casa, é todos
que queiram. Entrar aqui, participar, perguntar, entender um pouco mais da cultura, a
gente pode indicar: “Olha é este livro, aquele livro”, então se dá a chance de você que-
brar um pouco deste preconceito. Eu acho que aprender é a única coisa, porque eu
aprendi com meu avô, que Deus o tenha, que é uma pessoa muito especial, que tudo
demais na vida é ruim, amar demais é ruim, odiar demais é ruim, ter dinheiro demais é
ruim, ser pobre demais é ruim, a única coisa que não é ruim é aprender demais, é uma
coisa que você pode somar constantemente e vai morrer sem saber tudo.
ARETHUZA, FILHA DE MÃE MÁRCIA DÓRIA PEREIRA, EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
ÀS VEZES VOCÊ CHAMA O JOVEM PRA UMA LEITURA, ELE NÃO QUER, mas se
você levar, chama ele numa leitura e ao mesmo tempo você tem um caminhar ao olhar
no viveiro, onde ele vai lá, ele planta suas sementinhas, daqui a pouco ele vai lá regar e
ele vai vendo esta muda crescendo paralelamente e nesta interface você usa a leitura. A
comunidade foi a primeira a receber e nós estávamos trabalhando associar o Ponto de
Leitura com as atividades interativas que a comunidade e os visitantes que também vêm
nos visitar conheça o programa; eu acho que vai ser muito legal pra nós e todas estas
pessoas que também estão construindo junto conosco esse sonho. Nós recebemos
muitas escolas hoje aqui na comunidade, escolas de Brasília vêm visitar o quilombo, e
a ideia é de estar trabalhando mais com a escola, mais com a educação e fazendo esta
interface dos alunos virem conhecer o viveiro, de conhecer a biblioteca... Então assim,
é um trabalho de formiguinha, cada dia você tem lá um desafio, e é um processo cons-
tante, né? E aí eu penso que a gente precisa trabalhar nas comunidades, porque é legal
o conhecimento, sem ele nós não vamos mudar esta realidade; a educação é tudo, o
conhecimento é tudo e nem sempre a escola alcança tudo isso, tá precisando que nós
façamos também a nossa parte, os movimentos, as associações, os movimentos sociais,
você clama tanto por uma educação de qualidade, mas eu vejo que poucas pessoas in-
vestem nisso. Antigamente eu fico vendo assim, mesmo os mais idosos eles não tinham
aquele tempo, não tinha aquela sabedoria, mas os pais sentavam com seus filhos, os
pais tinham diálogo, os pais tinham uma conversa, os avós. Hoje ninguém quer mais
parar pra ouvir ninguém. Hoje são jogos, é a internet, cada dia mais a família ficando
distante, né, ter este olhar então a gente precisa resgatar muita coisa.
SANDRA PEREIRA BRAGA, COMUNIDADE QUILOMBOLA MESQUITA / GO
COM O PONTO DE LEITURA TEM COMO TREINAR mais a sua própria leitura e
aprender mais sobre a nossa história do candomblé.
CAMILA, RODA DE CONVERSA, EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
ACESSO À LEITURA
E
ACERVO TEMÁTICO
QUANDO EU FALO ASSIM: – “ELES NÃO SABEM LER, MUITOS NÃO SABEM LER”,
não importa se os adultos não sabem ler, mas os pequenos estão aprendendo e é pra
esses, esses futuros adultos que a gente tem que dar mais cultura possível. Um fato
interessante: quando eu estava fazendo a seleção pra trabalhar no telecentro, veio um
rapaz pra fazer o teste comigo e daí eu perguntei: “Se você for selecionado pra trabalhar
aqui no telecentro e lidar aqui com os computadores, você vai receber um treinamento,
o governo vai te dar um treinamento específico e tal, mas se você for selecionado, o que
você vai fazer com isso aqui?” Aí ele falou assim: “Eu vou ficar pouco tempo, professo-
ra”. Eu disse: “Mas, por quê?” Ele disse: “Porque eu quero sair daqui, eu quero trabalhar
fora, eu quero ser alguém”. Foi isso que ele me falou, quando ele me falou isso, eu quero
ser alguém... Me veio na cabeça, eles não têm acesso a livro, são poucos que têm dinhei-
ro pra comprar o livro e daí eu falei assim: – “E o que é ser alguém?” Por que pra mim
você é alguém, eu posso te tocar, você é alguém, a partir do momento que eu te toco, eu
sinto você, que você é alguém. Aí ele disse: “Não, professora, mas não é isso, é assim, ter
uma profissão”. Eu disse: “Isso mesmo, você precisa e eu sei que do jeito que está não
consegue”. Mas pra isso ele precisa ter acesso à leitura, a um computador, ter acesso,
porque todos os que eu fiz o teste nunca tinham sentado em frente ao computador, en-
tão é muito fácil você descartar esta turma no mercado de trabalho. Então a gente tem
investido neste Giovani, tem investido numa outra menina lá e eles desistem muito fácil
também, então é uma luta constante e esta luta a gente tem dentro das escolas com
eles. Porque eles desistem muito fácil porque eles precisam comer e se vestir.
PROFA. RIZALVA DE BARROS E SILVA, COLABORA COM AS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE
CASTRO / PR
A GENTE É CARENTE NO MEIO DE UMA CIDADE TÃO GRANDE, TÃO RICA, uma
bacia inteira e nós vivemos numa situação precária, de pobreza, de miséria, de pouca
coisa, enquanto que a gente sabe que é muito mais por falta de conhecimento, de
estudo, de não termos informação, não temos nem curso técnico (...) não só como
quilombola, mas como cidadão. Então pra nós, vir um Ponto de Leitura, quando eu fui
ver o que de fato tinha neste Ponto de Leitura: os livros, a importância da renovação,
os últimos lançamentos que estavam pra gente na biblioteca, é uma coisa muito rica.
Porque você pode perguntar pra mim, têm pessoas que é analfabeto e que não sabe
nem o que significa este livro, é verdade, não sabe mesmo... Só que têm os filhos, têm
os netos, estão vindo aí e tem a população e seus professores, que também precisam
estar informados e saber o que eles estão ensinando; então para nós é uma coisa que
complementa a outra. Quando oferecer, ah tá, nós abrimos de colocar lá na comunidade
para vocês, nós temos estes visitantes de outras escolas, pessoas que vêm buscar infor-
mações com a gente e não é só vir aqui, olhar pra mim e me fotografar e me levar lá no
livro de história... a gente também quer receber. E se têm informações que desconhece,
desconhecemos a própria história, de onde a gente veio, e o sofrimento e tudo mais. Daí
a gente também quer que esses professores possam compartilhar com a gente coisas
boas, de um gibi que a gente não teve, que as crianças nossas do interior não têm,
que possa sentar, ler e conversar e mostrar para as crianças, isso é muito importante.
Vamos poder, não só nós, os quilombolas, os negros, mas sim a comunidade em geral,
os pobres, as pessoas que moram na periferia, e quem sabe um dia algum chegue na
faculdade, mas aqui é limitado.
ROZILDA CARDOSO, COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DE CASTRO / PR
Mãe Lúcia de Oliveira, Ilê Axé Omidewá / PB
poder público, e nem de quem faz gestão pública para a área de biblioteca de
incluir essa temática.
PAI PAULO C. DE OLIVEIRA, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
TRADIÇÃO ORAL
Y
MARÍLIA FERREIRA, MATRIZES QUE FAZEM, EGBE ILE IYA OMIDAYE ASE OBALAYO / RJ
j
A TRADIÇÃO ORAL NO MEIO DO POVO NEGRO não atrapalha a pesquisa de outra for-
ma, o povo negro não tem este preconceito, ao contrário, o povo que domina a escrita é que
tem preconceito com o conhecimento oral, com a oralidade, tem dificuldade de entender.
Os caras não escrevem, têm caras que você conversa a vida inteira com eles e eles não têm
isso publicado. Esse desenvolvimento e acesso, a disseminação do livro contribui, ela é a
solução? Não, não temos as soluções baratas, nem rápidas, mas é uma grande contribuição.
Então o fato é: o Orùnmilá tem uma biblioteca temática. Passa também por esta discussão
as políticas afirmativas e como reforço à história oficial, ao que se aprende nas escolas; têm
escolas que já são um pouco mais avançadas nessa leitura dos Movimentos Sociais, Negra,
“HOJE, O EMBATE SE DÁ
(poucas) aí você tem lá uma leitura. Por exemplo, a respeito dos grupos específicos, dos es- TAMBÉM COM O LIVRO,
critores específicos de uma biblioteca temática, você tem um processo que é extremamente
relevante pro Movimento Negro, Indígena, que é a colocação das contradições, a leitura ELES SE MANTIVERAM COM
histórica da história, como foi construída a desigualdade? Pega um texto de Aílton Krenak, A ORALIDADE E FORMARAM
por exemplo, indígena, cursa história indígena, e ele foi pra universidade, o Krenak, porque,
diferente do povo negro, teve criação das universidades indígenas e de cotas indígenas. OS GRANDES BASTIÕES
Todas as discussões que nós participamos eu faço questão de falar da luta do Movimento DA RESISTÊNCIA NEGRA,
Negro, Movimento Indígena, porque as pessoas vão armadas contra o Movimento Negro. É
o seguinte, até porque fisicamente você não vê índio aqui na região, por exemplo, em São PORQUE PRESERVAMOS
Paulo talvez um pouco mais, tem aldeia lá perto, a miséria, mas é invisível, é invisível como
força política, ao passo que o Movimento Negro, se superasse suas inúmeras divisões tem
UMA CULTURA,
um potencial, uma potencialidade, uma força política, capaz de fazer transformações neste PRESERVAMOS UM
país. Nossa referência maior que são as Casas de Raiz Africana, as Comunidades Tradicio-
nais de Raiz Africana, eles não tinham livros para se manter até hoje. Mas hoje, o embate MODO DE VER O MUNDO,
se dá também com o livro, eles se mantiveram com a oralidade e formaram os grandes PRESERVANDO UMA
bastiões da resistência negra, porque preservamos uma cultura, preservamos um modo de
ver o mundo, preservando uma concepção de mundo diferenciada, mediante aquilo que o CONCEPÇÃO DE MUNDO
Ocidente entende como religião, mas nós dizemos Filosofia, Culturas Negras. Ela faz um DIFERENCIADA”
embate e proporciona identidade pra além da cor da pele, ela proporciona as identidades na
PROF. SILAS NOGUEIRA,
qual as pessoas se colocam, se conhecem, para fazer a luta política. Então são causas ao
CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
mesmo tempo, causas políticas. Por mais que isso seja complicado para o pensamento tra-
dicional, a própria preservação dessas casas é um ato político, eles fazem embates, cada um
com a sua maneira, com as suas armas. Hoje, que se pensa nesta possibilidade de unifica-
ção de uma luta em torno da preservação com uma bandeira muito interessante, que vocês
mais novos vão colocar nos livros, talvez pra chegar às bibliotecas temáticas futuras, que é
a possibilidade desta leitura do mundo, desta concepção de mundo reeducar o Ocidente.
PROF. SILAS NOGUEIRA, CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ / SP
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