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Prevenção em saúde mental

Quirino Cordeiro*
Alexandra Martini de Oliveira**
Débora Melzer***
Rafael Bernardon Ribeiro****
Sérgio Paulo Rigonatti*****

Resumo
O presente trabalho apresentará aspectos técnicos,
políticos e legais da prevenção em saúde mental no
País. Inicialmente, serão apresentadas as bases epide-
miológicas dos diferentes níveis de prevenção em saúde
pública, a saber, primária, secundária e terciária. De-
pois disso, serão apresentados exemplos de como pode
ocorrer a prevenção nesses diferentes níveis em saúde
mental. Por fim, serão discutidas questões relaciona-
das à deficiência de programas públicos de prevenção
em saúde mental em nosso meio, apesar das garantias

* Doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de


São Paulo (FMUSP); professor assistente do Departamento de Psiquiatria
e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de
São Paulo
** Mestre em Psiquiatria pela FMUSP; diretora do Serviço de Terapia Ocupa-
cional do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
*** Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da
FMUSP.
**** Mestrando em Psiquiatria Forense no King’s College, University of
London; Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas
da FMUSP.
***** Mestre e doutor em Psiquiatria pela FMUSP; coordenador do Núcleo de
Psiquiatria Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da
FMUSP. Presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo.
Prevenção em saúde mental

históricas legais a tal tipo de atenção na área de saúde


pública no País.
Palavras-chave: Epidemiologia – Direitos – Psiquiatria
– Saúde pública.

Prevention in mental health

Abstract
The present paper discusses technical, political, and
legal aspects involved in mental health prevention in
Brazil. First, it focuses the epidemiological basis of di-
fferent levels of prevention in public health, namely, the
primary, secondary, and tertiary levels. Then, it brings
examples of how such prevention can occur at these
different levels. Finally, it discusses issues related to
the deficiency of public prevention programs in mental
health in Brazil, despite historical legal guarantees of
such care in the field of public health.
Keywords: Epidemiology – Rights – Psychiatry – Public
health.

1. Epidemiologia como ferramenta da saúde


pública
Em 1854, durante grave epidemia de cólera em Londres,
o médico britânico John Snow, considerado o pai da moderna
epidemiologia, evidenciou a existência de uma associação
causal entre a doença e o consumo de água contaminada
por fezes, rejeitando a hipótese de caráter miasmático da
transmissão, no qual se acreditava à época.
Desde então, a epidemiologia foi aumentando sua ação
e aplicabilidade na medicina no que tange ao estudo e inter-
venção nos modos de transmissão das doenças, bem como
no combate às epidemias.
Em decorrência da diminuição na incidência das doenças
infecciosas, desde as primeiras décadas do século passado,
as doenças não-transmissíveis, como as cardiovasculares,
cancerosas, psiquiátricas, começaram a ser objeto de inves-
tigações epidemiológicas.

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Assim, a epidemiologia possibilita analisar a relação entre


aspectos de saúde e doença na população, contribuindo para
a melhoria da qualidade de vida e o incremento do nível de
saúde das pessoas.
Desse modo, percebe-se que a epidemiologia representa um
ponto central na saúde pública, criando as bases para avalia-
ção das medidas de profilaxia das doenças e investigações das
hipóteses de causalidade. A epidemiologia investiga o papel dos
diferentes fatores que podem estar envolvidos na manifestação
das doenças e nas condições de saúde de uma determinada
população. Tal disciplina fornece dados aos governantes e téc-
nicos da área de saúde para a organização de políticas mais
efetivas de prevenção de doenças e promoção da saúde, sendo
um dos elos fortes entre governo e comunidade.
No entanto, a epidemiologia não se limita ao estudo da
situação sanitária existente ou passada, mas também tem
como objetivo estabelecer critérios e condições para avaliar
tendências futuras na área da saúde pública. Assim, a epide-
miologia pode auxiliar também na tomada de decisões para a
elaboração de planos e ações vislumbrando evitar problemas
futuros no campo de saúde de certa população, por meio do
planejamento, da dotação racional e coerente de recursos
humanos e financeiros, bem como do manejo adequado das
políticas públicas (NAKAJIMA, 1990, p. 1-6).

2. Saúde pública como ferramenta para


prevenção em medicina
De acordo com alguns autores, a saúde pública é a ciên-
cia e a arte de evitar doenças, prolongar a vida e desenvolver
a saúde física e mental e a eficiência, por meio de esforços
organizados da comunidade, para o saneamento do meio
ambiente, o controle de infecções na comunidade, a organi-
zação de serviços médicos e paramédicos para o diagnósti-
co precoce e o tratamento preventivo de doenças (LEAVEL;
CLARK, 1976). Dentro deste contexto, a saúde pública pode
ser considerada uma tecnologia que possibilita a prevenção

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Prevenção em saúde mental

de doenças, prolongando a vida e favorecendo a manutenção


da saúde da população.
Grande parte dos conceitos da saúde pública reflete
aqueles da epidemiologia, pois seus objetivos sociais são
indissociáveis. A epidemiologia é a ciência que estabelece e
avalia métodos e processos usados pela saúde pública para
prevenir doenças. Ela representa o suporte científico da saúde
pública e é considerada um instrumento para orientar sua
atuação, ou seja, os conhecimentos adquiridos em estudos
epidemiológicos assumem utilidade prática quando utilizados
pela saúde pública.
Por outro lado, a saúde pública também pode ser inseri-
da no campo da medicina preventiva. A medicina preventiva é
um campo da medicina cujo objetivo principal é a prevenção
de doenças e o favorecimento da saúde física e mental.
A definição de prevenção é bastante abrangente e inclui
a ação de profissionais da área da saúde, que são respon-
sáveis por colocar em prática ações preventivas: decisão
técnica, ação direta e ação educativa. De um modo geral, a
prevenção visa, principalmente, à promoção e manutenção
da saúde da população.
A prevenção deve anteceder a ação dos especialistas em
saúde, pois deve começar no nível das estruturas políticas
e econômicas. As ações dos especialistas só devem ocorrer
a partir do momento em que órgãos sociopolíticos e econô-
micos tenham iniciado suas ações. O profissional da saúde
deve fazer prevenção a partir do nível de conscientização da
comunidade envolvida e a comunidade deve questionar se
suas instituições sociais e econômicas são favorecedoras de
saúde ou de doença.
Prevenir uma doença é antecipar-se à sua ocorrência ou cui-
dar para que ela não aconteça. O conceito de prevenção em saú-
de pública é determinado por ações antecipadas que têm como
objetivo interceptar ou anular a evolução de uma doença.
Existe uma política de prevenção que pode ser obtida
por via política no status quo socioeconômico, pois muitas

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vezes a saúde da população pode estar associada à pobreza e


esta pode favorecer a ignorância. Neste sentido, cabe à saúde
pública realizar práticas preventivas que tenham por finali-
dade eliminar elos da cadeia patogênica, seja no ambiente
físico ou social ou no meio interno dos seres vivos afetados
ou suscetíveis.
A prevenção pode ser feita nos períodos de pré-patogê-
nese e patogênese. A prevenção primária que se faz com a
intercepção dos fatores pré-patogênicos inclui a promoção da
saúde e a proteção específica contra determinado tipo de do-
ença. A prevenção secundária é realizada no indivíduo, já sob
a ação do agente patogênico, no nível do estado de doença, e
inclui diagnóstico e tratamento precoces, bem como limitação
da invalidez. A prevenção terciária consiste em tentar evitar a
incapacidade por meio de medidas destinadas à reabilitação.
Assim, o processo de reeducação e readaptação de pessoas
com sequelas após acidentes ou doenças são exemplos de
prevenção em nível terciário.

2.1. Prevenção primária


A prevenção primária visa evitar ou remover fatores
de risco ou causais antes que se desenvolva o mecanismo
patológico que levará à doença. Este tipo de prevenção está
voltado para o nível individual, grupal ou à população em
geral. Espera-se a diminuição da incidência da doença pelo
controle de fatores de risco ou de causas associadas, bem
como a diminuição do risco médio das doenças na população.
Nesse nível, encontram-se medidas ou ações destinadas ao
período que antecede a ocorrência da doença. Dentre elas,
destacam-se o saneamento básico, a vacinação e o controle
de vetores, por exemplo. A prevenção primária pode ser re-
alizada por meio de medidas que envolvem o fornecimento
de moradias adequadas, escolas, áreas de lazer, alimentação
saudável e adequada às necessidades da população. Além
disso, neste nível de prevenção podem ser adotadas medidas
de proteção específica, como imunização, saúde ocupacional,

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Prevenção em saúde mental

higiene pessoal e do ambiente domiciliar, proteção contra


acidentes, aconselhamento genético, controle dos vetores
de doenças. Para maior eficiência, as práticas de prevenção
primária devem ser realizadas na comunidade, ou seja, fora
do sistema de assistência à saúde.

2.2. Prevenção secundária


A prevenção secundária corresponde à detecção precoce
de problemas de saúde em indivíduos presumivelmente do-
entes, mas assintomáticos para a situação em estudo. Neste
contexto, são aplicadas medidas apropriadas, visando ao
rápido restabelecimento da saúde, buscando interromper a
evolução da situação, com cura e/ou redução das consequ-
ências mais importantes da doença. Este nível de prevenção
pressupõe o conhecimento da história natural da doença, a
existência de um período de detecção precoce suficientemen-
te longo (período pré-clínico ou assintomático) e facilmente
detectável, e que seja passível de tratamento que interrompa
a evolução da doença para estádios mais avançados. Assim,
espera-se uma diminuição da prevalência da doença, essen-
cialmente pela diminuição de sua duração.
Na prevenção secundária é necessário realizar ações
para a obtenção de um diagnóstico precoce, que pode ser
conseguido por meio de inquéritos, levantamento de casos na
comunidade, exames periódicos individuais que favorecem a
detecção precoce de casos, isolamento para evitar a propaga-
ção de doenças infecto-contagiosas, bem como o tratamento
para evitar a progressão da doença. Além disso, a maior parte
da prevenção secundária é realizada em âmbito clínico.

2.3. Prevenção terciária


A prevenção terciária refere-se às atividades clínicas que
previnem a deterioração adicional ou reduzem as complica-
ções após o estabelecimento da doença. Os domínios da pre-
venção terciária fundem-se com os domínios da medicina. No
entanto, uma prevenção terciária conduzida adequadamente

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vai além de tratar os problemas apresentados pelos pacientes.


Por exemplo, em pacientes diabéticos, a prevenção terciária
exige, além do controle adequado dos níveis glicêmicos, exa-
mes oftalmológicos regulares para detecção de retinopatia dia-
bética, educação para os cuidados usuais com os pés, devido
ao risco de desenvolverem feridas difíceis de serem curadas,
a investigação e tratamento de outros fatores de risco para
doenças cardiovasculares que podem ocasionar complicações,
monitoramento das proteínas urinárias para a introdução de
medidas terapêuticas que previnam a instalação de insufici-
ência renal como complicação do diabetes.
Portanto, este tipo de prevenção tem como objetivos: 1)
limitar a progressão da doença, delimitando-a; 2) prevenir ou
diminuir as consequências das doenças, tais como: insufi-
ciências, incapacidades, sequelas, sofrimento ou ansiedade,
morte precoce; 3) promover a adaptação do indivíduo às
consequências inevitáveis (situações incuráveis); e 4) prevenir
recorrências da doença, ou seja, controlá-la e estabilizá-la.
Para atingir estes objetivos, são necessárias intervenções
tanto da medicina preventiva quanto da medicina curativa.
Muitas vezes a prevenção é exercida fundamentalmente por
meio de terapêutica, controle e reabilitação médicas. Entre-
tanto, há múltiplos exemplos de ações de caráter não médico,
que são fundamentais para a potenciação da capacidade fun-
cional do indivíduo, melhoria significativa de seu bem-estar,
reintegração familiar e social, e até mesmo diminuição dos
custos sociais e econômicos dos “estados de doença”.
As ações visando à prevenção terciária dão-se por meio
da investigação e do tratamento médicos adequados, da rea-
bilitação (impedir a incapacidade total), fisioterapia, terapia
ocupacional, emprego para o reabilitado.

3. Prevenção em saúde mental


A importância da saúde mental é reconhecida pela Orga-
nização Mundial de Saúde (OMS) e está refletida na definição
de saúde como sendo não apenas a ausência de doença ou en-

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Prevenção em saúde mental

fermidade, mas como “um estado de completo bem-estar físico,


mental e social” (OMS, 2006). Nos últimos anos, essa definição
ganhou um foco mais nítido em virtude de muitos e enormes
progressos nas ciências biológicas e comportamentais.
Falar de prevenção em saúde mental é algo bastante
complexo, pois atualmente, mesmo com o avanço das neuroci-
ências, não é possível a prevenção de muitos dos transtornos
psiquiátricos. Entretanto, esforços de pesquisa no campo da
epidemiologia psiquiátrica concentram-se no aperfeiçoamento
de meios de detectar pessoas em risco de desenvolvimento
de transtornos mentais, como a esquizofrenia, em etapas
muito precoces ou mesmo antes de sua manifestação inicial.
Neste sentido, a detecção precoce dos transtornos mentais
aumentaria a probabilidade de intervenção precoce, dimi-
nuindo positivamente o risco de uma evolução crônica ou de
sequelas residuais graves.
De acordo com a OMS (2006), a prevenção e o tratamento
adequados de certos transtornos mentais e comportamentais,
por exemplo, podem reduzir os índices de suicídio, sejam es-
sas intervenções orientadas para indivíduos, famílias, escolas
ou outros setores da comunidade em geral. O reconhecimento
e o tratamento precoce de depressão, dependência do álcool
e esquizofrenia, por exemplo, são estratégias importantes,
principalmente na prevenção do suicídio3.
Muitos estudos epidemiológicos têm identificado grandes
determinantes psicossociais de transtornos mentais e propor-
cionado informações quantitativas sobre o grau e o tipo de
problemas na comunidade. Graças ao progresso do tratamento
médico e psicológico, muitos indivíduos, e seus familiares,
podem receber auxílio e tratamento específicos. Hoje, apesar
de apenas alguns transtornos mentais poderem ter seu início
evitado, a maioria deles pode ser tratada com sucesso.
Atualmente, preconizam-se políticas de saúde mental que
exijam a formação de profissionais e que sejam financeiramen-
te suficientes e sustentáveis, que visem oferecer assistência
apropriada em todos os níveis da atenção de saúde.

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A prevenção primária na saúde mental deve ser estabe-


lecida por meio de uma abordagem educativa e reguladora,
com o objetivo de evitar hábitos que possam favorecer o
aparecimento de alguns transtornos mentais. Neste nível
de prevenção devem ser realizadas campanhas de higiene e
saúde pública, cuidados primários, dando atenção especial a
grupos de alto risco. Um exemplo importante nessa etapa de
prevenção envolve a relação existente entre o uso de canna-
bis e a psicose. Possivelmente haja alguma vulnerabilidade
genética neste contexto. Adolescentes com vulnerabilidade
(um familiar com psicose ou outra doença mental, ou que
já tiveram experiências psicológicas inusitadas após o uso
de cannabis) e que usem cannabis mais do que uma vez por
semana, provavelmente tenham maior risco de apresentar sin-
tomas psicóticos e desenvolver uma psicose (HALL, 2006).
A prevenção secundária deve ser realizada por meio da
detecção precoce dos transtornos mentais e da realização de
diagnóstico diferencial nos pacientes, promovendo abordagens
terapêuticas mais efetivas. Tais abordagens preventivas devem
ser conduzidas no âmbito das unidades básicas de saúde e
dos ambulatórios e hospitais especializados. Um exemplo de
prevenção nessa etapa é a detecção e tratamento precoces
de indivíduos com transtornos psicóticos. Há mais de duas
décadas, diversos estudos têm demonstrado que pessoas que
apresentam sintomas psicóticos podem demorar meses ou
anos para iniciar o tratamento (McGLASHAN, 2006).
Um dos primeiros estudos sobre os efeitos causados pela
demora em iniciar o tratamento medicamentoso foi realizado
por Wyatt (1991). Neste estudo, Wyatt revisou 19 trabalhos
que avaliavam a evolução de pacientes com psicose desde o
início do transtorno, comparando pacientes que realizaram
tratamentos antes do aparecimento do primeiro neuroléptico
(a clorpromazina) com aqueles que receberam tratamentos
com clorpromazina. Wyatt observou que o uso do medica-
mento aumentava a possibilidade de evolução favorável no
longo prazo. Neste contexto, Wyatt postulou a teoria de que

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Prevenção em saúde mental

a “psicose sem tratamento” teria um efeito neurotóxico, que


poderia causar danos irreversíveis ao cérebro. Para o autor, “o
tratamento medicamentoso não só atua nos sintomas psicóti-
cos, mas também poderia atuar na prevenção da deterioração
causada pelo curso natural da esquizofrenia” (JEPPESEN, Pia
et al., 2008, p.1-10).
No nível terciário, a prevenção é realizada com o objetivo
de se evitar a progressão da doença, evitar ou diminuir suas
complicações, incapacidades, sequelas, sofrimento ou ansie-
dade, morte precoce, promover a adaptação do paciente às
situações incuráveis e prevenir recorrências da doença, contro-
lando-a de maneira adequada. Em geral, tais abordagens são
realizadas em centros e hospitais psiquiátricos especializados,
centros de reabilitação, residências temporárias, moradias su-
pervisionadas e/ou instituições asilares não-hospitalares. Um
exemplo importante dentro do contexto da prevenção terciária
é a abordagem utilizada na prevenção do suicídio.
Algumas abordagens elegem as populações de maior risco,
que consequentemente serão alvos de estratégias direcionadas
à prevenção do suicídio. O suicídio, pela frequência com que
ocorre, é considerado um problema de saúde pública e sua
prevenção, em princípio, está relacionada à identificação e o
correto acompanhamento de casos de transtornos mentais cuja
complicação mais grave é o risco de suicídio. Os transtornos
mentais mais comumente associados ao suicídio são depres-
são, transtorno bipolar e abuso de álcool e de outras drogas.
A esquizofrenia e o transtorno de personalidade também são
considerados importantes fatores de risco para o suicídio.
A situação é ainda mais grave quando há co-morbidade
destas condições, por exemplo, depressão e alcoolismo, ou
ainda depressão, ansiedade e agitação psicomotora. Entre-
tanto, apesar do envolvimento de questões socioculturais,
genéticas, psicodinâmicas, filosófico-existenciais e ambientais,
na quase totalidade dos casos de suicídio, um transtorno
mental encontra-se presente, o que denota a possibilidade de
prevenção caso o transtorno em questão seja tratado. Estima-

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se que as tentativas de suicídio superem o número de suicí-


dios em pelo menos dez vezes. Não há, entretanto, registro
de abrangência nacional de casos de tentativa de suicídio.
Em geral, a assistência prestada a pessoas que tentaram o
suicídio pode ser considerada uma estratégia fundamental na
prevenção dessa ocorrência, pois pessoas que tentaram sui-
cídio constituem um grupo de risco (HETEM, 2010, p.17-18).
As ações de prevenção terciária não são apenas boas para os
indivíduos que se beneficiam diretamente delas, mas também
para seu grupo social. Por exemplo, o uso do carbonato de
lítio no tratamento de pacientes com diagnóstico de trans-
torno afetivo bipolar resultou na economia de 145 bilhões de
dólares entre 1970 e 1994, por reduzir suicídios, divórcios,
acidentes de carros, atos violentos e perda de produtividade
(MITCHELL; HADZI-PAVLOVIC, 2000, p.515-517).
Infelizmente, o acesso dos pacientes ao tratamento em
saúde mental é precário em nosso meio, especialmente da-
queles desprovidos de recursos financeiros. De acordo com
Andrade e cols. (2002, p. 316-325), pessoas com baixa renda
têm menor probabilidade de receber tratamento para seus
transtornos mentais.

4. A prevenção em saúde mental como um


direito à saúde
Com a promulgação da Constituição de 1988 e com
a sanção das Leis 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e
8.142/1990, foi criado e regulamentado o Sistema Único de
Saúde (SUS) no Brasil, o que significou grande avanço na as-
sistência à saúde. Suas ações devem obedecer aos seguintes
princípios e diretrizes:

• universalidade: a saúde como um direito de cidadania


de todas as pessoas, cabendo ao Estado assegurá-lo;
• equidade: princípio de justiça social que procura
tratar desigualmente os desiguais e investir onde há
mais necessidade;

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Prevenção em saúde mental

• integralidade: considera a pessoa como um todo.


Pressupõe a promoção da saúde, a prevenção de do-
enças, o tratamento e a reabilitação e a integração
entre as demais políticas públicas;
• descentralização e comando único: descentralização
de poder e de responsabilidades entre as esferas de
governo.
• regionalização e hierarquização: os serviços devem
ser organizados em uma área geográfica por níveis
de complexidade crescente;
• participação popular: por meio dos conselhos e con-
ferências de saúde, com o objetivo de formular es-
tratégias, controlar e avaliar a execução da política
de saúde.

A Lei 10.216/2001, que regulamenta hoje a assistência


à saúde mental no País, atenta para os vários aspectos da
prevenção na área. Entretanto, a prevenção na área da saúde
mental, em seus diferentes níveis, não se restringe às novas
normas e diretrizes do SUS, bem como da Lei 10.216/2001.
A garantia legal à assistência na área de prevenção em saúde
mental já existia antes disso.
A Lei 2.312 de 03 de setembro de 1954, que estabele-
ceu as “Normas Gerais sobre Defesa e Proteção da Saúde”
e o Decreto nº 49.974 A, de 21 de janeiro de 1961, que se
constituiu no “Código Nacional de Saúde”, que regulamen-
tou a referida Lei, davam ênfase ao atendimento psiquiátrico
extra-hospitalar. Nesse âmbito, destacam-se o Artigo 22 da Lei
2.312/1954: “O tratamento, o amparo e a proteção ao doente
nervoso ou mental serão dados em hospitais, em instituições
para-hospitalares ou no meio social, estendendo a assistência
psiquiátrica à família do psicopata”. Pode-se destacar também
os artigos 75, 76 e 85 do Decreto nº 49.974A/1961:
Art. 75. A política sanitária nacional, com referência à saúde
mental, é orientada pelo Ministério da Saúde, no sentido da
prevenção da doença e da redução, ao mínimo possível, dos
internamentos em estabelecimentos nosocomiais”;
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Art. 76. O Ministério da Saúde estimulará o desenvolvimento


de programas de psico-higiene através das organizações sani-
tárias das unidades da Federação, visando à prevenção das
doenças mentais, para o que dará ampla assistência técnica
e material; […]
Art. 85. O Ministério da Saúde organizará e estimulará a cria-
ção de serviços psiquiátrico-sociais de assistência tanto aos
pacientes egressos de nosocômios, como às famílias, no próprio
meio social ou familiar.

No entanto, a despeito de estar historicamente prevista


e garantida em Lei, a prevenção em saúde mental vem sendo
negligenciada no Brasil. A Associação Brasileira de Psiquiatria,
em seu esforço constante de propor alternativas mais ade-
quadas de assistência à população, na área de saúde mental,
publicou recentemente um documento que visa estabelecer
parâmetros e referenciais para o estabelecimento de políticas
públicas na área (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA,
2009). Abaixo, seguem algumas das propostas para prevenção
no contexto da atenção primária à saúde, para serem realiza-
das no âmbito das unidades básicas de saúde:

• campanhas para reduzir o estigma dos portadores de


transtornos mentais, incluindo orientação à população
em relação às doenças mentais e o apoio à criação
e ao fortalecimento de associações de familiares e
portadores de transtornos mentais;
• orientação educacional contínua para os integrantes
de comunidades específicas, tais como escolares,
religiosas, de grupos responsáveis por resgate aten-
dimento pré e pós-hospitalar e outras;
• programas de orientação, esclarecimento e suporte
às famílias de doentes mentais, especialmente de
crianças, adolescentes e idosos, mas também de
pacientes adultos incapacitados, que dependem da
família social, emocional e financeiramente.
• ampla divulgação dos serviços de saúde mental, assim
como orientação da forma como procurá-los e utilizá-

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Prevenção em saúde mental

los, proporcionando a detecção e tratamento precoce


dos acometidos de transtornos mentais;
• treinamento e supervisão contínuos e específicos
para os integrantes das equipes multiprofissionais,
orientando as competências e responsabilidades de
cada um dos profissionais e de como executá-las. Tais
investimentos resultarão em economia na medida em
que a detecção e o tratamento precoces contribuam
para uma menor perda de capacidade do paciente;
• criação de programas de promoção, prevenção e in-
tervenções terapêuticas em saúde mental específicas
para a atenção primária, elaborando diretrizes a
serem implantadas conjuntamente pelas equipes de
atenção primária com equipes matriciais;
• é imperativa a criação de uma rede de atenção in-
tegral em saúde mental que efetivamente atenda as
necessidades dos pacientes em todos os níveis de
assistência, que conte com estabelecimentos e equi-
pes de intervenção capazes de atuar na promoção,
prevenção, atenção e reabilitação.

Pode-se perceber que a prevenção faz parte do elenco


de cuidados em saúde mental que devem ser oferecidos à
população pelo Estado. Sabe-se também que o modelo de
assistência em saúde mental deve obedecer a estes princípios
e diretrizes do SUS. No entanto, observando-se o cenário
atual, mesmo com o advento do SUS, percebe-se que não fo-
ram criados serviços de atenção em saúde mental de acordo
com as necessidades da população. Os serviços hospitalares
existentes deterioram-se progressivamente, em razão da as-
fixia financeira sofrida, e não foi criada uma rede de serviços
extra-hospitalares a contento.
Lamentavelmente, não se atribui à saúde mental a mes-
ma importância dada à saúde física. Ao contrário, indivíduos
portadores de transtornos mentais são frequentemente igno-
rados e negligenciados. Existe um crescimento significativo

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de casos de transtornos mentais em todo o mundo, no en-


tanto a assistência às pessoas não está sendo aprimorada
no mesmo ritmo e na mesma proporção. Atualmente, cerca
de 450 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos
mentais e apenas uma minoria delas recebe tratamento ade-
quado (OMS, 2001).

5. Conclusão
Algumas doenças podem ser prevenidas, havendo, en-
tão, a possibilidade de impedir seu surgimento. Esse tipo de
intervenção é chamado de “prevenção primária”. Muitos dos
transtornos psiquiátricos não podem ter sua instalação pre-
venida. No entanto, existem alguns quadros que podem ser
prevenidos, como os transtornos psicóticos relacionados ao
uso de drogas, como a cannabis e a cocaína. Alguns efeitos
mórbidos das doenças também podem ser prevenidos ao se
conduzirem investigações clínicas em um momento no qual
o tratamento pré-sintomático seja mais efetivo do que o tra-
tamento quando os sintomas já estão ocorrendo. A esse tipo
de prevenção chama-se “secundária”.
Nesse contexto, por exemplo, no caso da esquizofrenia, o
tratamento medicamentoso aumenta a possibilidade de evolu-
ção favorável do paciente ao longo prazo, já que os sintomas
psicóticos sem tratamento teriam um efeito neurotóxico, o
que poderia causar danos irreversíveis ao cérebro já enfermo.
Já a prevenção terciária refere-se às atividades clínicas que
previnem a deterioração adicional ou reduzem as complica-
ções após o estabelecimento da doença. No contexto da saúde
mental, tal etapa pode ocorrer de maneira bastante efetiva na
prevenção da ocorrência de suicídio, por exemplo.
Embora essas possibilidades de prevenção em saúde
mental sejam extremamente importantes para os pacientes
e para a comunidade como um todo, e embora a prevenção
em saúde mental seja historicamente prevista e garantida
em Lei, infelizmente, tal questão vem sendo negligenciada no
Brasil. Atualmente, não há uma política efetiva de prevenção

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Prevenção em saúde mental

de saúde mental em nosso país, sendo que os serviços psi-


quiátricos ainda são insuficientes em número e ineficientes
na qualidade da atenção oferecida.

Referências
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Prevalence of ICD-10 mental disorders in a catchment area in the city of
São Paulo, Brazil. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, v. 37,
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Propostas de diretrizes
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Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito, v. 7, n. 7, 2010 • 53

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