A Subversão de Chico Buarque
A Subversão de Chico Buarque
A Subversão de Chico Buarque
Resumo l Muito se fala sobre a ditadura militar brasileira, mas pouca certeza se tem do que realmente
acontece nesse período. Partindo do princípio da arte como reflexo da sociedade, a presente pesquisa busca
identificar como é a sociedade nesse período (1964-1984), bem como perceber o processo de crítica da classe
artística, por meio da análise de mensagens subliminares embutidas nas canções de protesto de um com-
positor específico, ícone na luta contra a ditadura, Francisco Buarque de Holanda: o Chico Buarque.
Palavras-chave l Chico Buarque de Holanda, ditadura militar brasileira, mensagens subliminares.
1. chico buarque de holanda e o pois, quando desperta, aos 20 anos, para uma vida
golpe militar intelectual e artística conscientes, tem-se em 1964
o golpe militar, que dá início a uma ditadura que
No término da Segunda Guerra Mundial, o gover- dura mais de 20 anos.
no getulista chega ao fim no Brasil. A tradição A década de 60 é marcada por efervescência no
autoritarista trazida por Vargas dá espaço a um campo político-social do país. Uma vontade de
período curto de liberalismo. É nesse momento participar ativamente da política interna é desper-
que nasce Chico Buarque de Holanda1. tada em diversas camadas da sociedade. Os movi-
Posteriormente, o governo de Juscelino Kubits- mentos estudantis são intensificados e passam a
chek traz uma política “desenvolvimentista”. A agir junto ao povo. Podemos tomar como exemplo
inauguração de Brasília, em 1960, marco desse os Centros Populares de Cultura (CPCs), da União
governo, traz à tona essa ideologia, que dá origem Nacional dos Estudantes (UNE). Destacamos ain-
à produção de novas condições para a criação ar- da a mobilização do operariado e dos agricultores,
tística no país. Vemos surgir diversos artistas van- que constituem o movimento sindical em torno
guardistas, como, por exemplo, os cineastas da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT)
Glauber Rocha e Ruy Guerra, a bossa nova de João e as Ligas Camponesas. “Tudo isso expressava
Gilberto e a arquitetura inovadora de Oscar Nie- grande inquietação social, em parte explicada pela
meyer e Lúcio Costa, idealizadores da nova capital situação crítica da economia do país, e que, na
brasileira. esfera política, se refletia em episódios tensos”
Apesar do espaço aberto pelo fim do regime de (bolle, 1980, p. 93).
Getúlio, porém, Chico pouco aproveita esse período, Dois momentos marcantes dessa época são,
respectivamente, a renúncia de Jânio Quadros, em
1961, e a posse de seu vice-presidente João Goulart,
com idéias de reformas sociais e econômicas que
deram origem ao golpe de 1964.
O governo de Goulart é marcado pelo agrava-
* Aluna de graduação em Educação Artística e Regime de Iniciação
Científica (RIC) na USJT.
mento da crise econômica e pela intensa vida
E-mail: [email protected] política, bem como pelos conflitos sociais e polí-
** Professor da USJT, Pós-Doutorado em Comunicação e orienta-
dor da pesquisa.
ticos no país. Diante disso, alegando combater a
E-mail: [email protected] subversão e assegurar a ordem democrática, os
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militares tomam o poder na noite de 1º de abril de em Che Guevara e na “guerrilha urbana”, usando
1964. O que tem tudo para ser mentira, torna-se como símbolo uma frase contestatória à primeira,
uma verdade que modificaria radicalmente as es- dizendo que “o povo armado derruba a ditadura”.
truturas do país durante os anos seguintes. Constantemente essas frases vêm juntas em mani-
Os efeitos em termos de censura cultural não festações. A verdade é que, mesmo seguindo cami-
se fizeram sentir imediatamente. Os estudantes e nhos diferentes, ambas as vertentes são contestadoras
artistas não são reprimidos imediatamente, e é, do regime, portanto consideradas “subversivas”.
aliás, após 1964 que as atividades artísticas, prin- Isso faz com que tanto um grupo quanto o outro
cipalmente no teatro, intensificam-se. Surgem sofram com as medidas tomadas pelos militares.
grupos como o Teatro de Arena e o Oficina, acen- Uns são mortos, outros exilados, presos, torturados
tuando um caráter nacionalista na arte. ou, simplesmente, desaparecem.
interpretada por Jair Rodrigues, Tri Maraiá e Trio gente marca/Tange, ferra, engorda e mata, mas com
Novo. Para desgosto do público, que não vê “A gente é diferente/Se você não concordar não posso
banda” como uma canção de protesto, os cantores me desculpar/Não canto pra enganar, vou pegar
dividem o primeiro lugar do Festival. minha viola/Vou deixar você de lado, vou cantar
A segunda batalha ocorre no II Festival Inter- noutro lugar”. Na última frase de sua canção po-
nacional da Canção, realizado pela TV Globo, no demos notar uma crítica clara ao governo e a po-
ano de 1968. Chico ganha o primeiro lugar com a lítica militarista: “Laço firme e braço forte num
canção “Sabiá”. Vandré concorre com a canção “Pra reino que não tem rei”.
não dizer que não falei das flores” ou “Caminhan- Em “Sabiá”, Chico fala do exílio e da vontade
do”, que se torna o hino da resistência à ditadura. de voltar para a terra. Ao mesmo tempo em que
Há contestação do público, que, apesar do protes- mostra um saudosismo, faz uma crítica à socieda-
to contido em “Sabiá”, vê a música de Chico como de, mostrando que tudo de que ele sente saudade
algo alienante. nesta terra não existe mais. Podemos notar isso na
Se analisarmos as quatro músicas citadas acima, seguinte estrofe: “vou voltar, sei que ainda vou
vemos que todas possuem uma forma de protesto, voltar/vou deitar à sombra de uma palmeira que
porém com muita diferença entre Chico e Vandré. já não há/colher a flor que já não dá”. Já em “Ca-
Em “A banda”, é possível notar o recorte de uma minhando”, Vandré fala de forma explícita do
cena da vida urbana. Nessa música, Chico nos governo. Cita ainda a luta armada e a imobilidade
mostra a dureza da vida da “gente sofrida” que das pessoas que defendem a diplomacia, podemos
“despediu-se da dor”. Ao mesmo tempo, Chico nos notar ainda uma crítica aos movimentos que pre-
mostra a desesperança presente na sociedade da gavam “a paz e o amor”, mostrando que de nada
época, fala-nos de pessoas tristes, amedrontadas e adianta “falar de flores” àqueles que atacam com
solitárias e da clausura de cada pessoa por causa armas. Sua canção é um protesto escancarado, ao
do regime militar. A canção é uma sobreposição contrário do de Chico, e torna-se o hino da resis-
de esperança e desesperança. A primeira, presente tência. Podemos notar esse protesto nos seguintes
nos trechos iniciais da música e, a segunda, pre- trechos: “Há soldados armados, amados ou não,/
sente durante toda a canção e mais explicitada na quase todos perdidos de armas na mão,/nos quar-
última estrofe: “Mas para meu desencanto o que téis lhes ensinam uma antiga lição: de morrer pela
era doce acabou/tudo tomou seu lugar depois que pátria e viver sem razão./vem, vamos embora, que
a banda passou/e cada qual no seu canto, em cada esperar não é saber,/quem sabe faz a hora, não
canto uma dor/depois da banda passar cantando espera acontecer”, ou ainda no próprio título da
coisas de amor”. canção “Pra não dizer que não falei das flores/
Em “Disparada”, Vandré nos mostra alguns Caminhando”.
trechos muito mais agressivos, apesar do uso da Vemos então as diferenças entre Chico e Vandré.
linguagem poética. Suas mensagens são bem mais Apesar de ambos utilizarem a linguagem popular
claras do que as de Chico em “A banda”. Podemos de forma poética, o protesto de Chico, inicialmen-
dizer que a canção de Vandré é uma afronta direta te, é mais sutil que o de Vandré. As canções de
ao governo e às torturas a que alguns eram sub- Vandré são claras e objetivas e mais simplificadas
metidos pelos militares. Fala também da consci- que as de Chico, tanto na linguagem quanto no
ência política, de um despertar para o que ocorre arranjo musical.
na sociedade e da censura sofrida. Essas visões fi- Por causa de seu protesto sutil, Chico é forte-
cam claras, principalmente, nos seguintes versos: mente criticado, acusado de ser lírico e ter letras
“Mas o mundo foi rodando nas patas do meu alienantes. Essas críticas levam o compositor, mais
cavalo/E nos sonhos que fui sonhando, as visões tarde, a dar “um chute no lirismo” e “um tiro no
se clareando/As visões se clareando, até que um dia sabiá”, compondo canções mais diretas. Tal atitude
acordei/Então não pude seguir valente em lugar lhe rende a proibição de algumas de suas músicas,
tenente/E dono de gado e gente, porque gado a uma vasta ficha na Delegacia de Ordem Política e
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Social (Dops), por ser subversivo, e, mais tarde, “O artista, com o trabalho da censura, corre o
com o pseudônimo de Julinho de Adelaide também risco de ter um álibi até para se esforçar menos.
teria outras músicas proibidas pela censura. O fato Ou o artista é até obrigado a fazer ginásticas
de Chico ter um espantoso domínio da palavra incríveis, usar de metáforas às vezes que, com o
pode ser um dos fatores que influenciem nessa passar do tempo, parecem ridículas. A gente olha
sofisticação e na sua sutileza. O próprio composi- para trás e vê coisas que estão escritas de certa
tor declara: “Tudo o que é ligado à palavra me maneira e foram porque na época a gente teve di-
interessa” (bolle, 1980, p. 97). ficuldade de conseguir realizar. Era a pressão que
Às críticas feitas por ser de uma classe mais alta, atuava sobre a criação, no ato mesmo da cria-
Chico responde dizendo que: ção. Depois passa o tempo, e o texto fica vazio, a
forma mesma é alterada na medida em que você
“O artista popular revolucionário poderia ser procura mil artimanhas para tentar passar uma
o indivíduo que mora na Zona Sul, trabalha e idéia. No final das contas, não passa, só passa
ganha dinheiro, tem mãe, mas vê que a favela para os iniciados” (khéds, 1981, p. 178).
é logo ali e que na porta de seu edifício dorme
um mendigo adulto. Sente-se, então, compelido Assim, chegamos ao fim da década de 70 com
a renegar sua existência de ‘burguês de doirada um imenso empobrecimento cultural. Percebe-se
tez’ para juntar-se ao povo. Sua opção é moral. que os valores ainda são os mesmos dos anos 60.
Sua ação política é uma questão de honra e de Os artistas não podem expressar-se. Durante a
doutrina” (holanda, 1981, p. 25). ditadura, porém, os músicos encontram nas can-
ções de protesto o meio para defender seus direitos
Apesar de todas as críticas recebidas, Chico é e denunciar as mazelas de uma população que vive
um dos poucos compositores que resgatam gêneros “confinada” por leis que a impedem de defender
tradicionais, utilizando-os em suas canções. Apesar seus ideais. Isso faz com que a produção musical
de muito criticado pelo público “militante”, até seja muito intensa, ao contrário do que ocorre em
mesmo algumas músicas consideradas líricas tra- outros setores, como, por exemplo, no teatro, que
zem algum tipo de protesto embutido em suas le- se vê obrigado a reproduzir peças antigas para não
tras. Afinal, como é possível falar de “uma gente ser censurado, usando as metáforas como principal
sofrida” que “despede-se da dor pra ver a banda arma, mesmo assim ainda sofrendo grandes repre-
passar tocando coisas de amor” sem falar do povo? sálias. No cinema, alguns filmes são proibidos de
serem exibidos e só voltam a ser apresentados após
4. o reflexo da ditadura na arte e a “redemocratização” do Brasil. Literalmente, os
na sociedade artistas ficam fadados ao silêncio.
Economicamente, temos uma inflação galopan-
O fato de os compositores, por sua produção mu- te, arrocho salarial, proletarização de classe média,
sical, buscarem um novo meio de demonstrar os pauperização da renda em níveis assustadores, vio-
seus sentimentos e revolta em relação ao momento lência. Se no início da década vê-se a violência po-
pelo qual passa o Brasil, trazendo seus protestos lítica, agora deparamos com a violência econômica,
não apenas em letras, mas também na busca de que acaba por desencadear a violência social, à qual
autenticidade, resgatando nossas raízes, presentes nos “acostumamos” a assistir, refletida na sociedade
nas melodias que apresentam, faz com que a cen- atual, como, por exemplo, desemprego, assaltos,
sura endureça ainda mais. Aqueles que criam letras roubos, crimes e marginalização do menor.
mais ousadas e “provocativas” ao governo tornam-
se símbolos de subversão para os censores. Esse 5. conclusões pessoais
trabalho dos censores influencia ainda mais o modo
de os músicos comporem suas letras e melodias. Ao analisar as obras de Chico, é inegável que vemos
Disso nos fala Chico Buarque, relatando que: em suas composições certo requinte na linguagem
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e na melodia, dado pelo modo com que utiliza as a época, fica evidente que de um modo ou de ou-
palavras e diversas expressões populares e o modo tro atingem a todos os segmentos de público.
pelo qual combina com maestria os acordes da Seja como forma de protesto, canção de ninar,
canção. Até que ponto, porém, esses recursos lin- reflexo da sociedade, canção popular, usada para
güísticos são entendidos pela grande massa e qual análise, peças de teatro ou como “música para se
o tipo de público que Chico busca atingir? ouvir em momentos especiais”, as obras de Chico
Partindo da análise dessas canções, bem como estão presentes na história e no imaginário do povo
do próprio autor na história, é possível questio- brasileiro, que “canta, samba, dança e sorri”.
narmos o entendimento de suas canções. Se o
compositor buscou fazer com que a grande massa, Referências bibliográficas
e não apenas os letrados, se mobilizassem com suas
ALBIN, R. C. O Livro de Ouro da MPB:Aa história de nossa
canções de protesto, podemos levantar a hipótese
música popular de sua origem até hoje. Rio de Janeiro:
de que essa tentativa não foi bem-sucedida; afinal, Ediouro, 2003.
as mensagens são formuladas de forma tão subli- ALMEIDA, C. A. Cultura e sociedade no Brasil: 1990-1968.
minar, que, muitas vezes, nem os próprios letrados Col. Discutindo a História. São Paulo: Cultural, 1996.
a compreendem (visto, por exemplo, o compositor BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB nos anos 70.
Col. Retrato do Brasil, Vol. 141. Rio de Janeiro:
ter sido criticado e acusado de ser “alienante”). No
Civilização Brasileira, 1980.
podemos negar, porém, o fato de que suas canções BOLLE, A. B. de M. Chico Buarque de Holanda – Seleção de
agradam ao público menos abastado, de outra textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico. São
forma diferente do protesto, pelos ditos populares, Paulo: Abril Educação, 1980, pp. 93-102.
que constantemente usava, e da identificação com DANTAS, J. M. de S. MPB: O canto e a canção. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1988.
a letra. Podemos dizer que essa identificação, ocor-
GABEIRA, F. O que é isso, companheiro? São Paulo: Abril
rida talvez pelo fato de as pessoas se enxergarem Cultural, 1984.
nas letras de Chico, torna-se uma das principais GASPARI, E.. A ditadura envergonhada. São Paulo:
causas de seu sucesso. Companhia das Letras, 2002.
Partindo desse ponto de vista, podemos afirmar GUERRA, M. A. Carlos Queiroz Telles: História e
dramaturgia em cena (década de 70), 2ª ed. São Paulo:
que as canções de Chico ganham mais importân-
Annablume, 2004.
cia no período da ditadura a partir do momento HOLANDA, H. B. de. Impressões de viagem – CPC,
em que o compositor torna mais explícita em suas vanguarda e desbunde: 1960-70, 2ª ed. São Paulo:
obras as mensagens subliminares. Em algumas das Brasiliense, 1981, p. 25.
músicas proibidas a mensagem ainda está presen- KUCINSKI, B.. O fim da ditadura militar. Col. Repensando
a História. São Paulo: Contexto, 2001.
te, mas torna-se mais inteligível do que em suas
MACHADO, A. Os anos de chumbo - Mídia poética e
canções supostamente “líricas”. Um exemplo disso ideologia no período de resistência ao autoritarismo
é a música “Cálice”, na qual o uso de palavras ho- militar (1968-1985). Porto Alegre: Sulina, 2006.
mônimas2 e de rimas leva-nos a ter outra interpre- PILAGALLO, O. A história do Brasil no século XX (1940-
tação da letra. Há de se lembrar ainda de suas 1960). Col. Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2003,
pp. 63-86.
peças teatrais e das canções feitas para essa mesma
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia. Porto Alegre: L &
área artística, que se tornam mais apreciadas. PM, 1983.
Ainda, não podemos esquecer o fato de que o TINHORÃO, J. R. Pequena história da música popular: Da
compositor é famoso até a atualidade, apesar de modinha a canção de protesto. 2ª ed. Rio de Janeiro:
ser visto por alguns como um cantor de elite, não Vozes, 1975.
__________. História social da música popular brasileira.
há uma camada social que nem ao menos tenha
Lisboa: Caminho, 1990.
escutado falar de Chico.
Chegamos então à conclusão de que as canções
de Chico não têm um público especificamente Notas
definido, mas são feitas para quem quiser ouvir
1 Francisco Buarque de Holanda nasce em 19 de julho de
(não apenas para quem puder), e, não importando 1944. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e da
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pianista amadora Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda. 2 As palavras postas na música “Cálice” podem ser
Desde criança, por intermédio de sua irmã Heloísa Buarque consideradas gramaticalmente como homônimos
de Holanda, mantém contato com diversas celebridades do homófonos, ou seja, palavras que possuem o mesmo som,
meio musical, como, por exemplo, Vinicius de Morais, mas grafia e significados diferentes.
Baden Powell e Oscar Castro Neves.