Fuga Da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro

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O dia em que a Família Real fugiu para o Brasil

Uma decisão covarde ou um ato brilhante com vistas ao futuro?


Seja como for, a fuga da Família Real de Portugal deu ao Brasil um
status único no continente americano e fez do Rio de Janeiro a
capital de um reino europeu.

Quinze mil fidalgos, comerciantes e militares


acompanharam a fuga da Família Real.
Em 1807 a Europa vivia um pandemônio. A França de
Napoleão Bonaparte e a Inglaterra já em vias de
industrialização lutavam pela hegemonia do continente
europeu.

Para sufocar a Inglaterra e impedir que exportasse seus


produtos, Napoleão decreta o Bloqueio Continental, ou seja,
a proibição do desembarque de mercadorias inglesas em
todos os portos europeus.
Portugal, aprisionado por diversos tratados econômicos à
Inglaterra, dentre os quais o famoso tratado de Methuen, fica
entre dois fogos: se desobedece à ordem francesa, D. João
VI corre o risco de invasão (e o exército francês já estava na
Espanha, bem perto da fronteira); se fecha as portas para a
Inglaterra, estaria desagradando a maior potência naval de
então, que certamente pensaria em represálias contra
Portugal.

A corte se divide: uma parte quer a adesão à França, outra


sustenta a preservação da aliança com os ingleses.
Predomina a segunda posição, não deixando ao Príncipe
Regente D. João VI outra opção que não fosse colocar-se
em segurança no Brasil, fugindo do risco de um confronto
direto com o poderoso exército francês.

Uma fuga planejada, mas com os franceses nos calcanhares

O general Junot, comandante das tropas francesas.


A fuga não foi tão súbita e atabalhoada quanto se costuma
pensar. Um único fato é suficiente para demonstrá-lo: ao
chegar ao Brasil, a corte portuguesa desembarca com todo
o acervo da Biblioteca Real – origem da atual Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro – devidamente embalado e
catalogado, o mesmo acontecendo com obras de arte e
documentos do arquivo real.

Numa fuga decidida às pressas, ninguém pensaria em


cuidar do acervo cultural e artístico com tanto esmero e
tantas atenções técnicas. Não foi, portanto, um “salve-se
quem puder”, mas uma alternativa longamente planificada e
preparada.

Mesmo assim, os fatos parecem ter-se precipitado, criando,


nos últimos dias da permanência da corte em Lisboa, um
clima de forte agitação e correria.

O embarque da família real é ordenado por D. João VI para


o dia 27 de novembro de 1807, pela manhã. Naquele dia,
sob os olhares apreensivos da gente comum, nobres
desembarcam de suas carruagens o dia inteiro no cais de
Lisboa e embarcam nos escaleres que os levariam aos
navios.

A frota deveria partir na manhã do dia 28, mas o mau tempo


retém os navios no porto por mais 24 horas, enquanto as
tropas francesas se aproximam perigosamente da cidade.

Na manhã do dia 29, enfim, “ao nascer do dia”, põem-se em


movimento as oito naus de linha, as quatro fragatas e quatro
embarcações menores, que levavam a corte, e mais uns
quarenta navios mercantes, onde viajava a elite econômica
e social de Portugal.

No total, mais de 15 mil pessoas, numa das maiores fugas


oceânicas de que se tem notícia. Com a corte, vão todos os
tesouros do reino, deixando-se nos cofres públicos apenas
os títulos de dívidas que nunca seriam pagas.

A fuga muda a história do Brasil e de Portugal. A colônia,


promovida de um momento para outro na capital de um
império ultramarino, jamais seria a mesma.
A única saída para Portugal estava no mar aberto, rumo ao
Rio de Janeiro, destinada a ser a capital do império
português.

É como se fosse a expressão fatalista dos versos da canção


de Chico Buarque de Hollanda:

Ah, essa terra ainda vai cumprir seu ideal


Ainda vai tornar-se um grande Portugal.

Naturalmente, todas estas possibilidades não estavam na


mente dos que partiam. O que se via nas ruas de Lisboa era
a correria de fidalgos e burgueses ricos, em busca de um
lugar nos navios abarrotados. Chovera tanto que o cais se
transformara num lamaçal sobre o qual soldados lançavam
tábuas para que a família real passasse. O povo,
apreensivo, lamentava o afastamento dos membros
queridos da corte, como o jovem Pedro I, e hostilizava de
longe nobres e políticos que não contavam com a simpatia
popular.

Ao longe, as tropas de Junot, general do exército de


Napoleão Bonaparte, chegavam…

Fidalgos amontoados no cais de Lisboa: os franceses estão


chegando.
O príncipe regente D. João VI teve também, segundo
Monterroso Teixeira, "o cuidado de proceder à remessa e
embalagem muito cautelosa de uma pepita de ouro nativo,
que faz hoje parte dos nossos tesouros nacionais, e que ele
terá levado no seu camarote". As tropas francesas terão
depois procurado esta pepita por todo o lado, no Palácio da
Ajuda, porque vinha citada "numa lista bastante exaustiva de
bens a saquear".

Onde estava a coroa?

Mais misterioso é o destino do tesouro da Real Capela de


Vila Viçosa, em relação ao qual os historiadores se dividem,
explica Monterroso. Há, por um lado, a tese de que D. João
tinha dado ordem para que fosse acondicionado e levado
para Lisboa, mas há também quem defenda que foi
saqueado pelos franceses.

Certo é apenas que o tesouro desapareceu. Misterioso


também parece ser o destino da coroa, que D. João IV,
primeiro rei da dinastia de Bragança, oferecera
simbolicamente a Nossa Senhora da Conceição de Vila
Viçosa pela proteção concedida na altura da Restauração de
1640, e que, por isso, não era usada pelos monarcas.

Só se ouve falar de coroa novamente quando D. João VI


manda fazer em 1817 uma nova, já no Brasil, e que hoje está
guardada no Palácio da Ajuda.

Mas, apesar de todas as precauções, conta Lilia Schwarcz,


"nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se
pacotes, caixas e baús abandonados na última hora. No
meio da bagunça, e por descuido, toda a prataria da Igreja
Patriarcal, trazida por catorze carros, foi esquecida na beira
do rio e só alguns dias depois voltou para a igreja. Carros de
luxo foram abandonados, muitos sem terem sido
descarregados. Houve quem largasse a mala, embarcando
de mãos vazias, apenas com a roupa do corpo".

Para trás, "abandonados no porto [...] debaixo de sol e


chuva", ficou também um dos grandes tesouros nacionais -
os sessenta mil volumes, encaixotados, da Biblioteca Real
da Ajuda (é a história desta biblioteca que Schwarcz
reconstitui no seu livro) - que acabariam por seguir mais
tarde e por ficar no Brasil.

Entretanto, a tensão crescia, ouviam-se insultos do povo -


"os que estavam prestes a ser abandonados ao invasor
francês" (Wilcken) -, cada vez mais numeroso junto ao cais.
Já dentro das embarcações, a família real e os nobres ainda
tiveram que esperar mais um dia, porque a chuva e o vento
impediam a partida.

Só a 29 de manhã as condições melhoraram e a frota régia


deixou, finalmente, o porto iniciando uma longa e difícil
viagem até ao Brasil, testemunhas relatam que, quando as
tropas de Junot chegaram à cidade, ainda se podia ver a
frota no horizonte, carregada com metade do dinheiro
circulante em Portugal.

No dia seguinte o General Junot chegava ao porto de Lisboa.

Enquanto isso, do outro lado do Oceano Atlântico, no Rio de


Janeiro ninguém poderia fazer ideia da grande mudança que
estava por acontecer. O aglomerado de 60 mil habitantes,
de vielas sujas e casas de taipa sem janelas de vidro, ainda
vivia no modorrento atraso de sua condição de sede de uma
colônia distante. A chegada da corte viria trazer
transformações radicais, uma onda de renovação
urbanística e um choque cultural de efeitos permanentes.

Tudo isso iria agudizar-se ainda mais após o desembarque


da família real e a chegada de novos tempos de sofisticação
cultural e o alívio temporário das pressões que
atormentavam o governo de D. João VI.

Aqui, o Príncipe Regente seria rei de um império espalhado


por quatro continentes e faria do Rio de Janeiro a única
cidade das Américas a ser capital de um Estado Nacional
europeu.

Quando a família real desembarca no Rio, depois de alguns


dias em Salvador, já será o dia 7 de março de 1808. Para
sermos mais exatos, a corte desembarca na cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, e é como se a cidade fundada
em 1565 tivesse de esperar esses 243 anos para enfim
começar a florescer.

É um momento importante na vida desta cidade destinada a


um grande papel na história, e ao mesmo tempo, palco de
contradições insolúveis, onde os extremos se tocam e se
confundem.

Do confronto entre os veludos e tafetás da corte e os panos


rústicos dos escravos surgiu um modelo de convivência
onde a dualidade, apesar de real, sempre foi de contornos
difusos e enganosos.

Esta é a cidade que a corte de D. João revelou. Para Dona


Carlota Joaquina, era o quinto dos infernos. Para o olhar
daqueles que viriam, é o lugar onde as culturas se misturam
de uma forma que nenhum escritor ou estudioso jamais
ousaria imaginar…

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