Poisoned - A Historia Da Branca - Jennifer Donnelly

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Poisoned
Copyright © 2020 by Jennifer Donnelly

© 2021 by Universo dos Livros

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de


19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por
escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam
quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


incidentes são fruto da imaginação da autora ou usados de modo
ficcional, e qualquer semelhança com pessoas reais, estejam elas
vivas ou mortas, assim como estabelecimentos comerciais, eventos
ou locais é pura coincidência.

Diretor editorial: Luis Matos


Gerente editorial: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches
Tradução: Cynthia Costa
Preparação: Juliana Gregolin
Revisão: Nathalia Ferrarezi e Guilherme Summa
Diagramação: Vanúcia Santos
Arte e adaptação de capa: Renato Klisman

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

D739p
Donnelly, Jennifer
Poisoned : a história da Branca de Neve / Jennifer
Donnelly ; tradução de Cynthia Costa. – – São Paulo :
Universo dos Livros, 2021.
384 p.
e-ISBN: 978-65-5609-128-0
Título original: Poisoned
1. Literatura infantojuvenil 2. Ficção americana 3.
Conto de fadas I. Título II. Costa, Cynthia

21-2620 CDD 813

Universo dos Livros Editora Ltda.


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Para Mallory Kass, minha maravilhosa editora, com gratidão e
admiração.
PRÓLOGO

E , tempo, sempre e para sempre, uma garota


que estava cavalgando em direção à Floresta Sombria.
Seus lábios eram da cor de cerejas maduras, sua pele tão macia
quanto a neve recém-caída, seu cabelo escuro como a meia-noite.
Os pinheiros altos sussurravam e suspiravam quando ela passava
sob eles, com o caçador da rainha cavalgando ao seu lado. Corvos,
empoleirados no alto dos galhos, piscavam seus olhos negros e
brilhantes.
Quando o céu começou a clarear, o caçador apontou para um
lago à frente e disse à garota que eles deveriam descer de seus
cavalos para que estes pudessem beber água. Ela obedeceu e pôs-
se a caminhar lado a lado com ele. Perdida em seus pensamentos,
não ouviu o suave sibilar de uma adaga saindo de sua bainha. Ela
não viu o caçador erguer o rosto para a luz da manhã nem
vislumbrou a angústia nos olhos dele.
Uma arfada de choque escapou dos lábios da garota quando o
caçador a puxou para perto, sua mão larga cobrindo suas costas
estreitas. Seus olhos, arregalados e questionadores, procurando os
seus. Ela não estava com medo — ainda não. E não sentiu quase
nada quando ele deslizou a lâmina entre suas costelas, apenas uma
pressão suave e, em seguida, uma onda de calor, como se tivesse
derramado chá em seu vestido.
Mas, então, veio a dor, com seu urro e suas garras vermelhas.
A garota jogou a cabeça para trás e berrou. Com o susto, um
veado saiu correndo dos arbustos. Os corvos saltaram de seus
poleiros, batendo as asas freneticamente.
O caçador foi habilidoso. E rápido. Ele já tinha estripado mil
veados. Alguns cortes certeiros com uma faca tão afiada que
poderia rasgar o azul do céu. As delicadas costelas foram
transpassadas, e a carne e as veias, partidas.
A cabeça da garota tombou para trás. Suas pernas cederam.
Gentilmente, o caçador acomodou-a no chão e ajoelhou-se ao lado
dela.
— Perdoe-me, querida princesa. Perdoe-me — ele suplicou. —
Este ato infame não era meu desejo, mas uma ordem da rainha.
— Por quê? — gritou a menina com seu derradeiro suspiro.
Mas o caçador, com lágrimas nos olhos, não conseguiu
responder. Ele terminou sua tarefa sombria e se levantou. Ao fazer
isso, a garota obteve sua resposta. Porque a última coisa que ela
viu antes de fechar os olhos foi seu coração, pequeno e perfeito,
nas mãos trêmulas do caçador.

Na floresta, os pássaros silenciaram-se. Todas as criaturas estão


paralisadas. A melancolia paira sob as árvores. E, no chão frio, uma
garota está morrendo, um buraco vermelho aberto onde antes
estava seu coração.
— Mandem enforcar o caçador! — você grita. — Mandem
queimar a rainha malvada!
E quem não concordaria com você?
Mas você não sabe quem é o verdadeiro vilão.
E é normal não saber. Ele é furtivo e astuto, e só aparece quando
você está sozinha. Fica nas sombras, sussurrando seu veneno.
Suas palavras vão pingando, pingando, pingando nas pequenas
câmaras secretas do seu coração.
Você acha que conhece esta história, mas só sabe o que lhe foi
contado.
— Quem é você? Como sabe dessas coisas? — você pergunta.
Perguntas muito justas.
Sou o caçador. E já estou morto, mas isso não importa. Os mortos
falam. Com as línguas enegrecidas pelo tempo e pelo
arrependimento. Se prestar bem atenção, você conseguirá nos
ouvir.
Você pode achar que estou contando lorotas. Historinhas de
fadas. Que é tudo faz de conta. Mas há mais coisas acontecendo na
Floresta Sombria do que você pode imaginar, e apenas um tolo as
chamaria de faz de conta.
Não desvie do caminho, dizem as velhas senhoras. Fique longe
da floresta.
Mas, um dia, você terá de entrar nas profundezas da Floresta
Sombria e encontrar o que a espera lá.
Pois, se não fizer isso, aquilo que a espera virá atrás de você.
UM

No dia anterior…

—À !— , incitando seu feroz corcel.


Os cães dispararam atrás de sua presa. Um lobo cinzento saiu do
canteiro de arbustos e correu em direção à floresta profunda. A
matilha foi atrás dele, sedenta por sangue.
Os membros mais corajosos do grupo de caça seguiram a rainha,
galopando com toda força para acompanhá-la, mas a princesa, em
seu elegante cavalo ágil, conseguiu passar por ela com ousadia. Ela
perseguiu o lobo em uma velocidade vertiginosa, ziguezagueando
entre as árvores, suas saias ondulando no ar atrás dela. Saltou por
cima de uma mureta de pedra, um riacho, um emaranhado de
arbustos tão alto que não tinha como saber o que havia do outro
lado. Seu chapéu caiu; seu cabelo preto soltou-se como fios de
noite.
A rainha não conseguiu alcançá-la. Nem os príncipes Haakon e
Rodrigo. Eu os vi passando pela floresta, a rainha de branco, seus
nobres em ricos tons de castanho-avermelhado, musgo e ocre.
Avistei um barão inclinado sobre o pescoço de seu cavalo, com as
mãos no alto da crina do animal. Ele conseguiu aproximar-se da
rainha, mas, quando estava prestes a ultrapassá-la, seu cavalo
tropeçou. O barão perdeu o equilíbrio. Houve um grito, depois um
estrondo quando ele atingiu o chão.
— Deixe-o para trás, caçador! — a rainha gritou. — Deixe para
trás os que caírem!
O homem estava caído sob uma árvore, de olhos fechados, com a
cabeça ensanguentada. Passei por ele trovejando; o restante dos
cavaleiros também. Apenas a princesa olhou para trás.
Seguimos os cães, guiados por seus latidos, atravessando a
floresta conforme eles mudavam de direção. Perdi a rainha de vista
quando ela penetrou uma camada de névoa e a encontrei
novamente, alguns momentos depois, com a matilha. E a princesa.
Os cães cercaram o lobo. A criatura era enorme e assustadora. Já
havia matado dois cães. Seus corpos estavam estraçalhados no
chão.
E ele? Ah, sim. Ele também estava lá.
Ele estava sempre por perto. Assistindo. Esperando.
Ouvi-o no rosnado baixo do lobo. Senti-o na batida nervosa dos
cascos dos cavalos. Testemunhei enquanto se elevava das
profundezas dos olhos da princesa, como um cadáver emergindo
em um rio.
E, então, sem aviso, o lobo atacou os cavalos, rosnando. O
elegante cavalo da princesa relinchou e empinou, mas sem derrubá-
la. As narinas do corcel dilataram-se, suas orelhas achataram-se,
mas ele se manteve firme quando a rainha saltou da sela.
Caminhando ao redor da briga, ela gritou para os cães,
incentivando-os a atacar. Eles o fizeram, latindo e babando,
mordendo as ancas de sua presa. O lobo os atacou de volta, mas
era um contra muitos. Os cães sabiam disso e ficaram mais
ousados, mas um, pequeno e franzino, ficou para trás.
A rainha viu; seus olhos se escureceram.
— Lute, seu covarde! — ela gritou.
O cão colocou o rabo entre as pernas e recuou. Furiosa, a rainha
arrancou um chicote das mãos de um cavalariço e saiu atrás do
cachorro.
— Sua Graça! O lobo está fugindo!
Era o Príncipe Haakon. Ele tinha acabado de alcançar o grupo. A
rainha jogou o chicote no chão e correu para seu cavalo, mas,
quando ela voltou para a sela, a matilha e a princesa já haviam
partido, em mais uma perseguição feroz.
Por uma longa e traiçoeira distância, a princesa perseguiu o lobo,
até que uma ravina os deteve. Ela parou seu cavalo a poucos
metros da borda, mas o lobo correu em frente. Quando viu que iria
cair, tentou recuar, mas os cães se aproximaram pela esquerda. Um
espinheiro de uns bons três metros de altura cortava da floresta até
a beira do precipício, criando uma parede à direita. O animal
frenético andou de um lado para o outro, preparando-se para saltar
o abismo, mas viu que era inútil. Ombros altos, cabeça baixa, ele se
virou e se preparou para sua última luta.
A princesa aproximou-se. Agora podia ver a mancha branca na
garganta do animal, a ponta irregular de uma orelha. O lobo olhou
para ela, e ela viu o medo em seus olhos prateados. Em um piscar
de olhos, ela desceu de sua sela. Caminhando entre os cães
ferozes, ordenou que se afastassem, batendo o pé no chão, até
criar uma abertura para que o lobo passasse.
— Vai! Saia daqui! — ela gritou para a criatura.
O lobo avistou uma pequena abertura no fundo de uma roseira
espinhosa. Os espinhos eram curvos e cruéis; eles arranharam o
focinho da criatura desesperada e rasgaram suas orelhas, mas o
lobo conseguiu passar sob as vinhas densas e desaparecer. Os
cães correram atrás dele, mas seus focinhos eram sensíveis, e suas
peles, finas; eles não podiam atravessar o espinheiro.
A princesa pensou que estava sozinha; pensou que não havia
testemunhas, mas eu presenciei tudo. Eu me aproximei, mas fiquei
escondido. Cacei muitas coisas para a rainha, nem todas elas
selvagens como lobos.
Assisti enquanto a princesa encostava a cabeça no pescoço
suado de seu cavalo. Percebi o cansaço profundo que se instalou
em seus ombros, como uma mortalha. Eu a vi pressionar a mão no
peito, como se para aliviar uma dor intensa sob as costelas.
Como lhe custava viver aquela farsa. Como, aliás, isso custaria a
todos nós.
Os galopes soaram à distância. Gritos ecoaram. No momento em
que a rainha surgiu, com Haakon e alguns outros cavaleiros, as
costas da princesa ficaram imediatamente retas novamente, e seu
cansaço foi engolido.
— Receio que nossa prática esportiva tenha acabado, madrasta
— declarou ela com pesar fingido, acenando com a cabeça para a
ravina. — O lobo escolheu uma morte mais rápida.
A rainha cavalgou até a borda e espiou, franzindo a testa.
— Que pena — comentou a mulher — que tenha nos roubado da
nossa matança.
Seus olhos voltaram-se para os cães, depois para o espinheiro.
Seu olhar aguçou-se. A princesa não viu o que chamou a atenção
da rainha, pois estava montando seu cavalo novamente — mas eu,
sim. Preso nos espinhos havia um tufo. De pelo cinzento. De lobo.
A carranca da rainha endureceu.
— Volte para casa, caçador! — ela comandou.
Toquei minha trombeta e os cães partiram, com os focinhos
roçando o solo. O pequenino e assustado, ainda com o rabo entre
as pernas, seguiu-os um pouco atrás. Os cavaleiros vieram junto,
rindo e tagarelando.
À medida que as batidas dos cascos foram diminuindo na clareira,
ouviu-se um som seco e farfalhante, como o chacoalhar de saias de
seda. Olhei para cima e avistei um corvo, preto-azulado e astuto,
cair do galho alto onde estava empoleirado. Ele soltou um grasnido
estridente e voou para a Floresta Sombria.
Ainda ouço seu chamado, ecoando ao longo dos séculos.
Soou como um aviso.
Como uma sentença de morte.
Acima de tudo, como uma risada.
DOIS

H .
Sophie notou quando as entregou a um cavalariço. Ela ergueu as
palmas das mãos: quatro cortes em cada uma, feitos pelas próprias
unhas. O terror a inundara enquanto galopava pela floresta. Seu
cavalo era tão rápido, tão robusto, que precisou de toda a sua força
para controlá-lo. A cada batida de cascos, Sophie tinha certeza de
que cairia e quebraria o pescoço. Também ficou assustada ao
enfrentar o lobo. A criatura era enorme; poderia tê-la dilacerado em
mil pedacinhos.
Mas seu cavalo, o lobo — nenhum era o motivo dos cortes nas
palmas de suas mãos, e ela sabia disso. Suas pernas ainda
tremiam, embora a caça tivesse acabado havia muito tempo.
— Menina burra — ela murmurou para si mesma.
E se a rainha a tivesse visto libertando o lobo? E se outra pessoa
tivesse visto? Sua madrasta tinha olhos e ouvidos por toda parte.
Com agilidade, tirou as luvas do bolso do casaco e as calçou. A
garota ousada e destemida que podia ultrapassar os príncipes, o
caçador e até a própria rainha; a garota sem coração que estava
ansiosa para perseguir um animal apenas pelo prazer de assistir a
uma matança, aquela garota era uma mentira. Os cortes eram
verdadeiros, escritos com sangue, e ninguém devia vê-los.
Governantes devem ser implacáveis. Não demonstram fraqueza ou
medo. Não choram. Fazem os outros chorarem. Sua madrasta não
lhe havia dito isso mil vezes?
Sophie estava no grande pátio de paralelepípedos compartilhado
pelos estábulos e canis. Olhou ao redor em busca da rainha e sua
comitiva, mas ainda não haviam retornado. Que bom, ela pensou. A
caça em si, a conversa fiada durante a viagem de volta, a pressão
constante para ser cativante e espirituosa — tudo isso a tinha
exaurido. Ela não queria nada mais do que escapar para seus
aposentos, tirar suas roupas suadas e mergulhar em um banho
quente.
Os criados haviam arrumado uma longa mesa forrada de linho no
pátio. Estava carregada de tortas de carne, aves de caça assadas,
presuntos defumados, queijos, nozes e frutas. Sophie a contornou
de cabeça baixa, esperando passar despercebida.
— Salve, corajosa Ártemis, deusa da caça! — uma voz berrou do
outro lado do pátio.
Sophie ficou desanimada. Não vou conseguir escapar, ela
pensou.
Ao erguer os olhos, deparou-se com Haakon caminhando em sua
direção. O belo Haakon, de cabelos dourados e bronzeado, seu
rosto tão perfeito quanto o de um deus de mármore. Rodrigo estava
bem atrás dele, seus lábios carnudos curvados em um sorriso
sedutor, seus olhos escuros cheios de promessas. Sophie sorriu
abertamente para eles; ela não tinha escolha. Um daqueles homens
podia muito bem se tornar seu marido.
A caçada matinal era o primeiro de uma série de eventos para
comemorar seu aniversário. Haveria um baile naquela noite, ali em
Königsburg, no palácio. Seria uma grande festa, com membros da
corte de sua madrasta e governantes de reinos estrangeiros. Ela
faria dezessete anos no dia seguinte e herdaria a coroa de seu pai.
Depois de se tornar rainha, Sophie poderia se casar, e sua madrasta
estava determinada a arranjar para ela um casamento vantajoso
com um nobre aristocrata.
— O jovem príncipe de Escandinai, talvez — disse a rainha
quando tocou no assunto pela primeira vez. — Sobrinho do
imperador. Ou o filho do sultão.
— Mas, madrasta, nem conheço esses homens. E se não me
apaixonar por nenhum deles? — Sophie questionou.
— Apaixonar? — a rainha repetiu, o desprezo gotejava de sua
voz. — O amor nada mais é do que uma fábula, e das perigosas.
Seus pretendentes devem recitar o tamanho de seus exércitos e a
força de suas fortalezas, não poemas bobos sobre flores e pombas.
Havia uma razão pela qual sua madrasta queria um marido
poderoso para ela, uma razão vergonhosa, e Sophie sabia disso —
a rainha pensava que ela era fraca. A corte inteira pensava isso.
Sophie crescera ouvindo cochichos zombando dela por ser uma
criança tímida e de coração mole. Haviam começado assim que a
rainha se casou com o pai de Sophie e só foram ficando mais
nítidos com o passar dos anos. As palavras venenosas alojaram-se
em seu coração como espinhos. Ainda ecoavam lá dentro… A
princesa nunca será uma boa rainha… Ela não é inteligente o
bastante… Não é forte o bastante…
Haakon foi até Sophie. Ele era o filho mais velho do Rei de
Escandinai e a primeira escolha de sua madrasta para ela. Ergueu a
caneca de cerveja que estava segurando para ela.
— A bela Ártemis conquistou meu coração, mas, oh, divindade
cruel e egoísta! Ela não vai me dar o dela!
Rodrigo bufou.
— Errada ela não está.
— Eu sofro. Definho. Tenho fome de amor — disse Haakon,
pressionando a mão sobre seu coração.
Depois, ele se inclinou sobre a mesa e arrancou uma coxa de
frango.
— Suporto um tormento sem fim. Dê-me seu coração, gélida
deusa, e acabe com meu tormento!
— Impossível, senhor — respondeu Sophie, seus olhos provo-
cativos, sua voz tão alegre e confusa que ninguém teria adivinhado
quão desesperadamente ela ansiava pelo silêncio de seus
aposentos.
— Por que diabos não? — Haakon perguntou, roendo a coxa de
frango. — Um rapaz boa-pinta como eu… Ora, também devo ser um
deus. Só posso ser. — Ele franziu a testa, depois assentiu. — Na
verdade, tenho certeza disso. Sou o deus… Hmm, Apolo! Sim, esse
é o sujeito! — Ele apontou para Sophie com a coxa de frango. —
Que casal nós seríamos, hein!
— Caso se lembre mesmo dos clássicos, e tenho certeza de que
sim… — Sophie começou.
— Acadêmico que ele é… — Rodrigo interrompeu.
— … então você sabe que Ártemis jurou que nunca se casaria. E,
se quebrasse esse voto, duvido que seria por Apolo, já que ele é
irmão dela.
Haakon torceu o nariz.
— Credo.
— Pois é — concordou Rodrigo.
Mesmo sem querer, Sophie caiu na risada. Era impossível não rir.
Haakon era um sol brilhante e dourado que atraía todos para sua
órbita. Ele era arrogante e irritante, mas incrivelmente bonito, e
pessoas bonitas são facilmente perdoadas. Todas as mulheres do
palácio estavam apaixonadas por ele. Sophie também tinha uma
quedinha, embora odiasse admitir.
Mais membros do grupo de caça trotaram pátio adentro.
Cavalariços e cães de caça os seguiam. Sophie pensou ter ouvido o
senhor Comandante da rainha entre eles, cuspindo ordens. Haakon
e Rodrigo viraram-se para o grupo e acenaram para alguns dos
cavaleiros. Enquanto isso, Sophie ouviu um som menor e mais
suave do que cascos ou a voz estrondosa de Haakon. Depois ouviu
passos. Eram rápidos, mas cambaleantes.
— Tom? — ela chamou, virando-se.
Um menino estava correndo em sua direção. Era pequeno para
sua idade, estranho e tímido.
— Tenha cuidado, Tom. Diminua a velocidade antes que… —
Sophie começou a falar. Mas era tarde demais. Tom prendeu a
ponta da bota em um paralelepípedo, tropeçou e caiu. Sophie
abaixou-se para ajudá-lo a se levantar.
— Asno desajeitado — disse uma voz. — Deveria tê-lo afogado
no nascimento. Não é isso que se faz com anões? — Tom
estremeceu com essas palavras cruéis.
Sophie percebeu que elas o machucaram mais do que a queda.
As mulheres que as pronunciaram, duas das damas de companhia
da rainha, riram enquanto passavam apressadas.
— Não lhes dê ouvidos — compadeceu-se Sophie, na tentativa de
fazer o menino se sentir melhor. — Se quiser ver uma pessoa
desajeitada, preste atenção na baronesa Von Arnim. — Apontou
para a mais baixa das duas mulheres. — Dançando a sarabanda.
Ela parece um burro patinando!
Tom gargalhou e Sophie lhe deu um sorriso, que logo
desapareceu quando vislumbrou os joelhos esfolados do menino.
— Você não deve correr — ela o repreendeu. — Já não te disse
isso?
Ele era como os cachorrinhos dos quais cuidava, com os
membros desajeitados e as patas grandes.
Tom afastou a franja dos olhos.
— Mas não pude evitar, Sua Graça! Eu tinha que lhe contar!
— O quê? — perguntou Sophie.
— A Duquesa teve filhotes! — Duquesa era a spaniel favorita de
Sophie.
— Jura? — Sophie falou, seus olhos arregalados com a
empolgação.
— Sim! Sete cachorrinhos saudáveis! Gordinhos como salsichas,
de focinhos arrebitados e patinhas cor-de-rosa! Venha vê-los! —
Tom ficou tão animado que cometeu a gafe de estender a mão para
Sophie. Sophie também se distraiu e pegou a mão dele.
— O que está fazendo? Ficou louco, garoto? — trovejou uma voz.
— Como ousa colocar as mãos na princesa!
Era o senhor Comandante, o homem encarregado dos militares
da rainha. Ele caminhou até Tom, agarrou seu ombro e o
chacoalhou. Quando fez isso, Sophie puxou bruscamente sua mão.
Como se fosse tudo culpa de Tom.
Foi um movimento covarde, e a vergonha tomou conta de Sophie
por dentro. Ela sabia que devia ter saído em defesa de Tom. Devia
ter explicado ao senhor Comandante que os dois haviam se deixado
levar pelo momento. Mas não o fez. De mãos dadas com meninos
do canil, brincando com cachorrinhos — não era assim que uma
governante devia se comportar.
Governantes fortes eram distantes e indiferentes. Se a rainha
soubesse de seu lapso, ficaria furiosa. Esta não era como a caça ao
lobo, quando não havia ninguém na ravina para testemunhar sua
fraqueza. Ali, no palácio, eram os lobos os que caçavam.
— Isso não vai se repetir, Sua Graça — disse o senhor
Comandante a Sophie. Depois, virou-se para Tom e rosnou: —
Lembre-se do seu lugar.
E sacudiu o menino de novo antes de se afastar.
Tom ergueu os olhos para Sophie. A dor e a confusão que ela viu
retorceram seu coração.
— E-eu sinto muito, Sua Graça. Não fiz… Eu não queria…
As palavras de Tom foram interrompidas de maneira abrupta por
um som de gelar o sangue. Um lamento agudo que se espalhou
pelo pátio.
TRÊS

A .
Era um cão de caça, chorando e encolhendo-se, tentando se
fazer o menor possível. Sophie o reconheceu. Era o cachorro
pequeno e arisco que se recusou a atacar o lobo.
A rainha havia acertado a criatura com seu chicote e agora estava
apontando para ele.
— Esse animal não vale nada — ela cuspiu. — Quero matá-lo.
Sophie congelou, horrorizada. Foi Tom quem tentou deter a
rainha.
— Não! — ele gritou, cambaleando em direção ao cão. — Por
favor, não, Sua Graça! É uma boa cadela!
A rainha virou-se, furiosa. Seus olhos buscaram aquele que ousou
censurá-la.
— Devo ser repreendida pelo moleque do canil? — ela perguntou,
sua mão apertando o chicote.
Alistair, o dono do canil e pai de Tom, veio correndo dos currais,
alarmado com os gritos. Percebeu o que estava para acontecer e
seus olhos se arregalaram de terror. Ele agarrou Tom pelas costas
da camisa e puxou o menino para si no momento em que o chicote
veio assobiando no ar. O golpe não acertou a criança, mas atingiu
Alistair e abriu um corte em seu rosto. Indiferente à sua dor e ao
sangue escorrendo de sua mandíbula, Alistair implorou por seu filho.
— Ele sente muito, Sua Graça. Nunca mais fará isso. Por favor,
perdoe-o. Peça desculpas, Tom.
— Mas papai…
— Peça desculpas! — Alistair gritou. — Agora!
Não fora a raiva que o fizera gritar com o filho. Sophie sabia disso.
Fora o medo. A rainha havia cavado um corte no rosto de Alistair, e
ele era um homem adulto. O que um golpe como aquele teria feito
no pequeno corpo de Tom?
— E-eu sinto muito, Sua Graça — Tom gaguejou, olhando para o
chão.
— Cuidem do restante dos cães, vocês dois — a rainha ordenou.
Alistair largou Tom. Ele tirou um pano do bolso, pressionou-o
contra a face e chamou a matilha. A cachorrinha ficou no canto,
desesperada, indefesa. Como se soubesse que havia sido
condenada.
— Venha ver a minha nova égua! — a rainha convidou um grupo
de nobres.
Enquanto eles se dirigiam aos estábulos, Tom voltou para perto
de Sophie.
— Não a deixe ser morta. Por favor, minha senhora — ele
implorou, sua voz falhando. — O nome dela é Zara. Era a menor de
sua ninhada. Como enfrentar um lobo quando se é tão pequena?
— Não dá mesmo para enfrentar, Tom — disse Sophie,
observando a rainha entrar nos estábulos.
Sophie permaneceu parada no lugar, chocada com a crueldade
de sua madrasta. A tristeza apertou seu peito com tanta força que
ela mal conseguia respirar, mas outra emoção fervilhava por baixo
dessa — raiva. Raiva com a injustiça das ações de sua madrasta.
Raiva de ninguém se importar, de ver que todos no pátio
continuavam comendo e bebendo, rindo e tagarelando, como se
nada tivesse acontecido.
Não, não se tem como enfrentar o lobo, ela pensou enquanto a
rainha desaparecia pelas portas do estábulo. Mas talvez você possa
driblá-lo.
Tom não se moveu. Ele ainda estava de pé ao lado de Sophie,
com os punhos cerrados.
— Vá ajudar seu pai — Sophie disse a ele.
Os ombros de Tom caíram. A esperança sumiu de seu pequeno
rosto.
— Mas, minha senhora…
— Vá.
O medo tornou sua voz áspera. Permitir que um lobo escapasse
era tolice; o que ela estava prestes a fazer agora era insanidade.
Enquanto Tom se afastava, Sophie olhou ao redor. Ninguém
estava prestando atenção nela. O senhor Comandante estava
cortando uma torta de carne de veado. Haakon, pegando uma fatia
de presunto com os dedos. Rodrigo, mordendo um pêssego. Ela
caminhou até o fundo do pátio, onde a cadela, com os olhos
fechados, estava caída no chão.
Sophie respirou fundo para recuperar os nervos. Ela tremia por
dentro, mas então pensou em Tom, gritando com a rainha para
poupar a cadela. Ele não usava sua coragem como ela, como uma
máscara a ser colocada e retirada. Se um garotinho podia ser
corajoso, ela também podia.
— É Zara, não é? Você é uma belezinha — comentou ela com
suavidade, aproximando-se da cadelinha.
Ante o som de seu nome, a cadela ficou de pé. Seus olhos
estavam enormes e suplicantes.
— Calma, menina — disse Sophie. — Não vou machucar você.
Ninguém vai. Não se formos rápidas, você e eu. — Enganchou dois
dedos na coleira de Zara e a afastou dali. Suas saias a protegiam da
vista de todos. — Vamos, garota, só um pouco mais adiante…
Apresse-se agora…
Um portão de madeira estava a apenas alguns metros de
distância. Sophie levou Zara até lá e rapidamente o destrancou.
— Vá! — ela sussurrou enquanto o abria. — Fuja daqui e não
volte nunca mais!
A cadelinha saiu em um piscar de olhos. O coração de Sophie se
aqueceu ao ver aquele borrão cor de creme cruzar os campos e
desaparecer na floresta. Ela trancou o portão, depois se virou e
observou ao redor outra vez. Todos os membros do grupo de caça
ainda estavam ocupados com o café da manhã; os servos estavam
ocupados com seus deveres. Ninguém a vira. Sophie se permitiu
exalar. Enquanto caminhava de volta pelo pátio, ela passou por
Tom. Ele estava lá no meio, olhando ao redor.
— Meu pai diz que devo encontrar Zara e trazê-la para ele —
falou ele, meio atordoado. — Você viu para onde ela foi, Sua Graça?
Sophie fingiu uma expressão pesarosa.
— A cadelinha? — Sophie disse. — Acho que ela fugiu, Tom. Abri
o portão, mas não deveria. Estava meio distraída.
Tom sorriu. Com a boca, o rosto, o corpo inteiro. Sophie piscou
para ele e continuou andando, ansiosa para finalmente chegar a
seus aposentos. Foi então que ela avistou sua madrasta. A rainha
estava parada na porta aberta dos estábulos, observando-a. Os
dedos finos e gelados do Terror fecharam-se em torno de Sophie.
Há quanto tempo ela está parada aí?, Sophie se perguntou,
desesperada. Quanto ela tinha visto?
O silêncio da rainha, frio e proibitivo, acalmou a tagarelice dos
convivas. Depois de um momento, ela falou, sua voz ecoando pelo
pátio.
— A covardia é como uma praga; ela se espalha. Um indivíduo
doente pode infectar uma população inteira. O cão, aquele que
ordenei que fosse abatido, aquele que parece ter escapado, aquele
cão deveria ter atacado quando foi ordenado. O que acontecerá da
próxima vez, se outros cães decidirem fazer o que desejam, e não o
que mandamos? Vou lhes dizer: o lobo atacará, e sua rainha vai
morrer.
O terror de Sophie transformou-se em medo. Mas não por si.
— Foi culpa minha que o cão tenha escapado, Sua Graça. Eu abri
o portão — ela confessou, suas palavras saindo com pressa.
— Você é uma princesa, não uma ajudante de canil — a rainha
respondeu. — O menino foi negligente. Ele deveria ter amarrado o
cão no mesmo instante. — Fez uma pausa, permitindo a fixação de
seu olhar em Tom. — Ordeno que todos os cães do canil sejam
abatidos, para que nenhum deles contraia a doença da covardia. E
ordeno que este menino aqui, que mima os covardes, que dá mais
valor à vida de um cachorro do que à de sua rainha… Ordeno que
seja levado para o quartel dos guardas, onde receberá dez
chibatadas.
— Não — sussurrou Tom, balançando a cabeça. — Não. Por
favor. Sinto muito… Sinto muito!
Sophie prendeu a respiração. Ela queria gritar com a madrasta,
implorar a ela que não fizesse isso, mas sabia que não podia. Então
observou, impotente e muda, enquanto Tom recuava, tropeçava e
caía de novo.
Dois guardas o pegaram e depois saíram marchando, arrastando-
o para fora do pátio.
— Papai! Papai! — ele gritou, estendendo a mão para seu pai.
Alistair deu um passo em sua direção, mas o capitão dos guardas
bloqueou seu caminho. O homem se virou para a rainha, implorando
que poupasse seu filho, mas a monarca já havia partido.
Sophie sabia o que a rainha estava fazendo. Queria dar o
exemplo. Não para o menino. Aquele foi apenas um estratagema.
Ela desejava ensinar aos poderosos nobres que a acompanharam
na caça que a covardia era perigosa e a desobediência, ainda mais.
E queria dar uma lição a Sophie também.
A lição era perfeitamente clara: não há nada mais perigoso do que
a bondade.
QUATRO

E , mirava um espelho. O vidro


prateado mostrava uma mulher alta, de costas eretas, olhos cor de
índigo, cabelo loiro e maçãs do rosto salientes. Seu nome era
Adelaide.
Ela já tinha sido mais bela do que o amanhecer, mas os anos não
foram gentis com ela: é assim que os contadores de histórias
começam a falar dela. Ou: o tempo havia gravado linhas profundas
nos cantos de seus olhos e sulcos em sua testa.
Diga-me, que histórias de reis começam com suas rugas?
Por que ninguém fala de sua perspicaz inteligência? Sua bravura?
Sua força?
O chão de pedra estava gelado sob os pés descalços da rainha, o
ar frio em sua pele. Um arrepio percorreu seu corpo, pois acabara
de se banhar. Sua pele ainda estava úmida, e a camisola de linho
fina que usava fornecia pouco calor, mas ela mal percebia. Seus
olhos, brilhantes de febre, estavam fixos no vidro prateado, como se
vasculhassem suas profundezas. Por quê, ninguém poderia dizer.
Embora muitos tenham tentado fazer isso. Uma dama de companhia
apareceu com um vestido de cetim branco e o colocou sobre a
cabeça da rainha. Outra atou um corpete rígido e puxou as fitas com
força. Mais duas trouxeram uma túnica dourada adornada com
dezenas de diamantes perfeitos.
— É pesada como uma armadura — comentou lady Beatrice, a
mais velha das assistentes da rainha, enquanto colocava a
vestimenta cara nos ombros de sua senhora.
— É uma armadura — disse a rainha. — Vou me encontrar com o
embaixador do Interior daqui a uma hora, para discutir territórios
disputados no Norte. Ele é uma cobra velha e traiçoeira, assim
como seu mestre.
Quando Beatrice saiu da sala para buscar os sapatos da rainha,
uma das damas mais jovens, Elizabetta, timidamente deu um passo
à frente.
— A senhora está lindíssima, Sua Graça — ela elogiou.
Suas palavras foram completamente equivocadas. A infeliz
mulher percebeu isso de imediato.
A raiva empalideceu o rosto da rainha. Sabia o que seus inimigos
diziam sobre ela. Que era ciumenta e vaidosa. Que se importava
apenas com o próprio reflexo. Ela fez um gesto para Elizabetta.
— Acha que me cubro de pedras preciosas por vaidade? — ela
perguntou. — Acha que me importo com a minha aparência, quando
os inimigos de meu reino estão rondando minhas fronteiras?
Elizabetta engoliu em seco. Olhou para a esquerda e para a
direita, à espera de um pouquinho de apoio, mas todas as mulheres
na sala, das senhoras nobres às empregadas humildes, evitaram
seu olhar.
— Eu, eu acho… Bem, não — ela começou a gaguejar. — Na
verdade, não acho…
— Isso é óbvio — cortou a rainha.
Ela foi até a janela e ergueu os braços. Raios de sol, passando
através das vidraças, transformaram as joias de sua túnica em
prismas, envolvendo-a em uma luz brilhante.
— Uso esses diamantes para impedir a guerra — explicou ela. —
Quando o embaixador me vir, concluirá que, se posso espalhar
pedras preciosas como confetes, também posso espalhar navios de
guerra ao longo da minha costa. A melhor maneira de vencer uma
guerra é não começá-la.
Elizabetta, com os olhos baixos, assentiu em silêncio.
A rainha baixou os braços e consultou um relógio de ouro.
— Onde está ela? Por que não está aqui? — perguntou,
impaciente. — Eu a convoquei meia hora atrás.
— Ela está aqui, Sua Graça — respondeu Beatrice, voltando com
um par de sapatos forrados de seda. — Está à sua espera na
antecâmara.
Beatrice colocou os sapatos no chão e a rainha os calçou. Depois,
pegou um tufo de pelo cinzento de cima da mesa e marchou para
fora de sua sala de vestir, os saltos batendo contra o chão de pedra.
A silhueta da princesa estava ao lado da janela na antecâmara da
rainha, girando um anel em sua mão esquerda. Era o Anel do
Governante — um aro oval de ouro com um unicórnio no centro,
emoldurado por diamantes —, que era transmitido ao longo dos
séculos entre os monarcas das Terras Verdes e seus herdeiros. A
rainha não conseguia pensar em ninguém menos adequado para
usá-lo. Caminhou até a princesa, pegou sua mão, alisou-a e colocou
a penugem nela.
— Um tufo de pelos — disse ela. — Tirado do espinheiro. O lobo
não saltou para a morte, não é?
Sophie olhou para o tufo. Não respondeu.
A rainha segurou seu queixo e o ergueu.
— Você o deixou escapar.
— Sim.
— Por quê?
Os olhos de Sophie, reluzindo de emoção, procuraram os de sua
madrasta.
— S-senti pena dele. Estava tão assustado.
Com um bufo de desgosto, a rainha a soltou.
— A caça era uma chance para você mostrar força, Sophia, não
fraqueza.
Sophie baixou os olhos.
— Você é mole quando deveria ser astuta, boazinha quando
deveria ser feroz — a rainha continuou. — Você permite a fuga dos
lobos. Defende covardes e moleques de canil.
— Dez chibatadas vão matá-lo — falou Sophie, com calma.
— Dez chibatadas nunca mataram ninguém. E, mesmo que
matassem, e daí? — a rainha vociferou. — O menino, o pai dele…
Que importância têm? Monarcas é que são importantes. Você não
vê isso?
Ela estendeu as duas mãos, com as palmas para cima:
— Na minha mão esquerda, um menino. Um fraco que
provavelmente não viverá o suficiente para virar homem. Na minha
mão direita, uma rainha… Uma governante que deve proteger não
um súdito, mas um reino inteiro.
Sua mão esquerda baixou. Sua mão direita se ergueu.
— O que é a vida de um menino em comparação com a de uma
rainha?
Enquanto a pergunta pairava no ar, a rainha baixou as mãos e fez
outra:
— Que tipo de exemplo é dado ao permitir que criaturas
desobedientes fiquem impunes?
Foi necessária toda a coragem de Sophie para encarar
novamente o olhar fulminante de sua madrasta.
— A cadela estava com medo. É tão terrível demonstrar
misericórdia por uma criatura assustada? — ela perguntou.
A rainha riu. Era um som seco e empoeirado.
— Misericórdia é apenas outra palavra para fraqueza. Deixe um
lobo viver, e ele retribuirá sua bondade rasgando sua garganta. O
medo é a única coisa que mantém uma rainha segura. As pessoas
me obedecem porque têm medo de mim.
— As pessoas obedeciam ao meu pai porque o amavam.
As palavras saíram da boca de Sophie antes que ela pudesse
detê-las. Ela se arrependeu imediatamente. Sua madrasta odiava
qualquer menção a seu falecido marido, um homem reverenciado
por seu povo.
— Seu pai podia se dar ao luxo de ser amado. Era homem — a
rainha cuspiu. — Ninguém questionava seu direito de ocupar o
trono, nem mesmo seus inimigos. Não posso me dar a esse luxo.
Nem você, sua idiota. O povo precisa de uma mão firme para
mantê-lo no lugar. Fui rainha regente nestes últimos seis anos,
desde a morte de seu pai. Amanhã é o dia da sua coroação.
Amanhã você se tornará rainha. Como conseguiria governar um
país, Sophia, se não consegue governar a si mesma?
Antes que Sophie pudesse tentar gaguejar uma resposta, o som
de tambores, batendo como uma canção fúnebre, foi ouvido.
— Ah, acho que o capitão da guarda está prestes a cumprir minha
ordem — informou a rainha. A seguir, abriu a janela e contemplou o
pátio abaixo.
Depois de um momento, voltou-se para Sophie.
— Gostaria de assistir?
Sophie balançou a cabeça, seus olhos brilhando com lágrimas.
— Não? Imagino que não. É difícil demais, doloroso demais, não
é? Mas assim é governar: difícil e doloroso. Tomar decisões difíceis
e proferir sentenças duras para manter seus súditos na linha e seus
inimigos à distância. — A rainha apontou para ela. — É culpa sua
que o menino esteja sendo chicoteado, e é por sua culpa que os
cães serão sacrificados. Se você não tivesse libertado aquela
cadela covarde, nada disso estaria acontecendo. Você vê agora a
destruição que a bondade causa?
Sophie não conseguia falar. Lágrimas escorriam por sua face. Ela
as limpou com a palma da mão.
A rainha estalou a língua.
— Você tem sorte de ter a mim aqui para ajudá-la a governar até
se casar. — Espetou uma unha pontuda nas costelas de Sophie. —
Essa coisa aí… Esse seu coração mole e estúpido? Isso ainda vai
te matar. Coloque-o em uma caixa e guarde-a em uma prateleira
alta. Nunca o tire de lá.
— Estou dispensada? — Sophie indagou em uma voz baixa e
engasgada, desesperada para escapar do terrível som dos
tambores.
— Ainda não. Há um baile esta noite, como você bem sabe. Não
deve haver olhos vermelhos nem bochechas manchadas. Você tem
um vestido deslumbrante para usar e uma seleção de joias do cofre
da coroa será trazida para os seus aposentos. Você tem sua beleza
e sua juventude. Use essas coisas para garantir um governante
forte para este reino. Hoje você me mostrou, mais uma vez, que vai
precisar de um.
Sophie, desmoronando, assentiu e saiu correndo da sala.
Adelaide a observou sair. Lá fora, as batidas dos tambores pararam.
O capitão da guarda gritou suas ordens. A rainha sabia o que viria a
seguir. Ela poderia ter fechado a janela, mas não o fez. Em vez
disso, ficou imóvel, ouvindo em silêncio enquanto o chicote estalava.
Ela não piscou. Não vacilou.
E, se algo cintilou em seus olhos, algo como tristeza… Bem, que
importa?
Não havia ninguém lá para ver.
CINCO

H na Floresta Sombria. Dê
um passo em falso, e engolirão você inteiro.
A maioria das pessoas passa bem longe deles, mas, anos atrás,
quando fui em busca de um nas profundezas da floresta, tive de
voltar para casa no escuro e vi uma tocha balançando na escuridão
espessa, que parecia engolir a pessoa. E, então, dias depois,
vieram as notícias de gente desaparecida — um marido
esquentadinho, uma amante que se tornara exigente, um avarento
com um saco de ouro escondido sob o piso.
Os corpos nunca foram encontrados. Os julgamentos nunca
aconteceram. Culpados nunca foram punidos antes de seu
descanso eterno nas covas confortáveis do cemitério da igreja. O
tempo passou. As pessoas esqueceram.
Mas os pântanos nunca esqueceram.
Anos, décadas, às vezes séculos depois, eles desistiram de seus
mortos inquietos, empurrando os velhos ossos da escuridão de suas
profundezas para a superfície.
A verdade é assim também.
Enterre-a bem fundo. Espere que apodreça.
Mas, um dia, ela volta.
Esfarrapada, arrastando-se e fedendo a morte, ela bate à sua
porta.
Adelaide cometeu muitos crimes. Governantes costumam cometê-
los. Um rei decapita uma esposa por lhe dar apenas filhas. Um
príncipe envenena um nobre rebelde. Um bispo queima um homem
na fogueira porque seu deus fala inglês, não latim. Não é
assassinato, dizem os livros de História, mas execução. Feita para
preservar a paz. É desagradável, sim, porém necessário.
Mas, no tempo de Adelaide, e talvez ainda no seu, havia um crime
que não podia ser tolerado. Havia uma abominação que nenhum rei,
nenhum príncipe ou papa podia perdoar…
Uma mulher que usa uma coroa.
Espelho, espelho meu… existe alguém mais bela do que eu?
Já identificou quem é o vilão? Vê seu rosto?
Ora, não importa. Logo você verá. Ele está cada vez mais perto.
SEIS

— L ! L ! — uma voz exclamou quando soaram as


últimas notas da galharda.
Suspiros escaparam de alguns dos foliões mais velhos. Foram
seguidos por risos, assobios e até mesmo algumas vaias estridentes
dos mais jovens.
Se a galharda já era uma dança picante, la volta era
completamente escandalosa. Tratava-se de um belo jogo de
sedução coreografado. Um parceiro avançava, o outro recuava. Um
rodopiava para perto, o outro desviava. Cada olhar era uma
provocação; cada sorriso, um desafio.
A música incentivou os dançarinos. Parceiros foram procurados.
A luz bruxuleante de mil velas iluminava o rosto dos convidados e
fazia seus casacos de cetim e vestidos de seda cintilarem. As joias
caíam em cascata sobre os peitos empoados. Pérolas do tamanho
de cerejas pendiam dos lóbulos das orelhas. Anéis cravejados de
pedras preciosas envolviam cada mão.
A princesa estava parada de um lado do Salão Principal, tentando
não virar um copo de ponche. Ela estava corada e sem fôlego, pois
havia dançado com paixão e graça a noite toda, ganhando olhares
de aprovação de sua madrasta. O vestido que usava, da mais
profunda cor de ameixa, realçava seus cabelos negros e olhos
verdes. Sua face estava bem corada.
Ela ria. De modo cativante. Musical. Extravagante. Sua cabeça
pendia para trás, uma mão cheia de joias em seu lindo pescoço. E
falava. Sem cessar. Sobre qualquer coisa. Ou absolutamente nada.
Rapazes, sapatos, bolos, vestidos… Não importava. Fale muito, ria
muito, e você conseguirá abafar o barulho feito pelos pedaços
quebrados e estridentes de seu coração partido.
Um jovem menino brutalizado. Cães inocentes, mortos. Quando
ela pensava em Tom e nos cachorros que ele amava, era como se
cada um daqueles cacos tentasse escapar de seu peito, perfurando
sua carne e jorrando sangue.
Então, ela não pensou nele. Afastou-o de sua mente, pousou o
copo e estalou os dedos para um garçom enchê-lo, exatamente
como sua madrasta teria feito. Não importava que ela não estivesse
se divertindo; o importante é que ela parecia estar.
Rodrigo aproximou-se dela e zombou de Haakon; ela riu e se
juntou a ele na zombaria. Hussein, o filho do sultão de Asir,
entregou-lhe uma rosa e a convidou para dançar. Ela recusou e de
maneira provocativa lhe pediu que retornasse com duas dúzias.
Alexander, um duque do Interior, ofereceu-lhe um doce; ela o deu
para um spaniel.
O garçom voltou com sua bebida, mas, antes que ela pudesse
pegá-la, uma voz atrás dela soou:
— Princesa Charlotta-Sidonia Wilhelmina Sophia, das Terras
Verdes, ponche é para crianças.
Sophie virou-se. Haakon estava ali, sorrindo. Estava vestido de
veludo verde-musgo, com seu cabelo loiro e longo que pairava solto
sobre os ombros. Era tão bonito que só de vê-lo Sophie perdia o
fôlego.
— Experimente isto — sugeriu ele, depositando uma taça de
champanhe nas mãos dela.
— Obrigada, meu senhor, mas não posso — recusou Sophie,
tentando devolvê-lo. — Champanhe faz minha cabeça girar. Será a
minha ruína.
Mas Haakon não quis pegar a taça de volta.
— Sendo assim, também estou proibido para você — inferiu ele.
Bem alto. — Pois, se me experimentar, vou fazer seu coração girar.
Ele puxou o laço prateado da barra lateral do corpete dela. — E isso
será a sua ruína.
Suspiros de surpresa foram ouvidos. Sophie piscou, um pouco
surpresa consigo mesma. Isso é muito atrevido, ela pensou. Mesmo
para Haakon. Bem, entraria no jogo. Ela tinha de fazê-lo, pois todos
os olhos estavam nela. Sua madrasta, a corte… esperavam uma
performance. Uma ceninha. E ela lhes daria uma. Ela sabia que, se
cedesse à timidez, se enrubescesse, seria chamada, mais uma vez,
aos aposentos da madrasta.
— Mas será que eu não deveria querer experimentar o senhor
antes de dar o primeiro gole? — ela respondeu com coragem.
Oohs e aahs escandalizados ergueram-se da multidão.
Haakon fingiu mágoa e bateu sua taça na mesa.
— Princesa orgulhosa, não despreze minha declaração de amor!
Suas palavras são uma adaga em meu coração!
Sophie arqueou uma sobrancelha.
— Ah! Então você tem um? Já ouvi rumores do contrário.
— De quem? Mostre-me o patife e… e… — Haakon olhou em
volta, pegou algo de cima da mesa. — Vou esmagá-lo!
Sophie riu. Não conseguiu evitar.
— Com um pepino em conserva?
Ele brandiu para ela:
— Conte-me! Quem disse que não tenho coração?
— Todas as garotas da corte, Sua Alteza. Pois o senhor já
cortejou todas. Cortejou, venceu e considerou o trabalho feito.
— Isso é um golpe mortal, senhora sem coração!
Haakon cambaleou para trás de maneira teatral, depois caiu no
chão, membros separados, olhos fechados.
Sophie revirou os olhos. Bastava. Já estava virando um teatrinho,
e seu esforço para mantê-lo estava se esgotando. Ela se inclinou
sobre ele, com cuidado para não derramar o champanhe que ainda
segurava, e disse, com uma voz tensa:
— Haakon, levante-se. Você está fazendo uma cena.
Haakon abriu os olhos.
— Dance comigo. Ou farei uma cena ainda maior.
— Não.
Haakon soltou um uivo longo e lento.
— A crueldade descuidada de uma linda donzela me feriu
mortalmente! — ele gritou.
— Pare com isso agora! — Sophie sussurrou.
Ele estendeu a mão e disse:
— E apenas sua bondade pode me restaurar.
Sophie comoveu-se um pouco com a cena. Bebeu o champanhe
de um só gole, pousou a taça e lhe estendeu a mão. Uma dança,
ela pensou, e depois encontrarei um canto escuro e silencioso.
Haakon livrou-se do pepino, agarrou a mão dela e ficou de pé.
Houve risos e aplausos. Em meio a olhares atentos, ele
acompanhou Sophie até a pista de dança. La volta começou. Os
rufares, altos e insistentes, embalavam o desafio. Os dançarinos
giravam rapidamente no sentido horário, depois no sentido anti-
horário, e, então, com um estrondo de pandeiros, as mulheres
pulavam alto e os homens as levantavam, girando-as no ar. Houve
gritinhos e gargalhadas. As saias esvoaçavam-se. Os cabelos se
soltavam. A pista de dança era pisoteada pelos movimentos.
Haakon arrastou Sophie para o meio disso. O ritmo acelerou. Os
dois giraram sem parar em torno um do outro, cada vez mais rápido.
Sophie sentiu-se um pouco tonta; o champanhe subira à sua
cabeça. Foi tudo que ela pôde fazer para não pisar nos pés de
Haakon. Ou nos próprios.
Então, ele a puxou tão para perto que a fez recuperar o fôlego.
Giraram em um círculo; Sophie saltou e, ao fazê-lo, Haakon a
ergueu no ar. Ela se sentia como se estivesse voando. O giro, o
bater de pés, o ritmo acelerado — tudo tirava o seu fôlego. A
proximidade de Haakon, o cheiro dele, o calor de seu hálito na face
dela… deixavam-na zonza. As mãos dele pareciam uma faixa de
fogo ao redor de sua cintura.
E, então, a dança terminou. A música parou, e os dançarinos,
corados e rindo, bateram palmas ruidosamente e se separaram.
Haakon inclinou-se para frente, com as mãos nos joelhos, para
recuperar o fôlego. Então, fitou Sophie e propôs:
— Fuja comigo.
Sophie enrubesceu com sua ousadia, mas tentou disfarçar o
rubor.
— Não seja ridículo — comentou ela alegremente, como se
moços bonitos a convidassem para fugir consigo todos os dias da
semana.
— Nunca falei tão sério. Ou saímos correndo, neste segundo, ou
seu próximo parceiro de dança será Barse.
— Barse? — Sophie ecoou, horrorizada.
Barse era um jovem taciturno, filho de um conde da província. Ele
cutucava o nariz e ensinava palavrões a crianças pequenas.
— Barse não dança.
— Parece que dança, sim. Não olhe agora, mas…
Sophie esticou o pescoço e viu que o rapaz estava realmente
caminhando em sua direção. Com uma careta no rosto. Era o mais
próximo que ele conseguia chegar de um sorriso.
— Oh, não — ela sussurrou, horrorizada.
— Avisei para não olhar.
— O que é que vou fazer?
— Ainda podemos fugir.
— Como? — perguntou Sophie.
Estavam cercados por uma multidão. O Salão Principal tinha duas
portas. Barse, abrindo caminho através da multidão, bloqueava uma
via. E a enorme mesa do banquete, disposta em forma de ferradura,
estava entre eles e os outros. Haakon abaixou a cabeça perto dela.
— Vou salvar você, se me deixar — ele sussurrou em seu ouvido.
— Sou um príncipe. É o que fazemos.
Sophie arriscou outro olhar para trás.
— É tarde demais. O dragão se aproxima.
— Confie em mim, Sophie. Você confia? — Haakon perguntou,
segurando a mão dela.
Os olhos de Sophie encontraram os dele.
— Nem um pouco — disse ela.
Haakon apertou sua mão.
E sorriu.
E correu.
SETE

S H para um grupo de
amigos. Ou que a levasse de volta para a enorme tigela de ponche
de prata, onde ela poderia tomar uma bebida gelada e alegar
exaustão quando Barse se aproximasse dela.
Não imaginou que se rastejaria sob a mesa do banquete.
— Venha comigo! — Haakon ordenou, movendo uma cadeira
para o lado.
Em seguida, abaixou-se sob a toalha de mesa adamascada.
Quando Sophie hesitou, ele a puxou.
— Está louco? O que está fazendo? — ela balbuciou.
— Salvando a princesa da caverna do dragão. Apresse-se!
Ele se pôs, então, a rastejar pelo chão. Sophie o seguiu. Foi mais
difícil para ela, pois estava de vestido e anáguas, mas conseguiu,
juntando atrás o volume de tecido. Felizmente, poucos convidados
ainda estavam sentados à mesa. A maioria dançava.
Quando alcançou o outro lado, Haakon levantou a toalha de
mesa.
— Aí está — ele disse, apontando para uma porta de pedra
arqueada. — Nossa rota de fuga.
Ele saiu correndo de debaixo da mesa, puxando Sophie consigo.
Eles assustaram uma criada carregando uma bandeja de bolinhos.
Haakon roubou dois, e ele e Sophie desapareceram pela porta e se
encontraram em um longo corredor. Haakon a puxou para perto da
parede e ergueu um dos doces que havia roubado.
— Bolinho mágico — ele sussurrou. — Torna você invisível aos
olhos dos dragões.
— Você é louco — disse Sophie, sorrindo.
Haakon levou o bolinho à boca.
— Que delícia! — Ele ergueu o segundo bolinho, e Sophie
percebeu sua intenção de colocá-lo na boca dela.
Provocou-a, segurando o bolinho perto de seus lábios e, em
seguida, puxando-o para trás, e fingindo que iria comê-lo.
— Ah. Agora estou entendendo, meu valente salvador — disse
Sophie asperamente. — Você come o bolinho enquanto o dragão
me devora.
— É uma escolha difícil — replicou Haakon. — Você é muito legal
e tudo mais, Sophie, mas este bolinho…
— Haakon.
Finalmente, ele lhe deu um pedaço. E depois outro. Sophie se
sentiu um pouco quente, um pouco sem fôlego. Depois, ele
desajeitadamente deixou pingar um pouco de glacê doce e pegajoso
no queixo dela.
— Desculpe — ele disse, limpando com o dedão.
Depois lambeu o dedo, com seus lindos olhos azul-celeste
mirando os dela, e Sophie sentiu um calor percorrer seu peito, que
se espalhou por seu corpo. Seus olhos se voltaram para o bolinho, a
parede, o chão, para qualquer lugar, menos para Haakon.
Ele agarrou a mão dela mais uma vez.
— Vamos — disse. — O dragão ainda pode estar à espreita.
Eles correram por um corredor, depois por outro e finalmente se
encontraram em uma varanda com vista para os jardins da rainha.
As roseiras, carregadas de flores brancas esvoaçantes, escalavam
por um dos lados do parapeito.
Haakon inclinou-se, colocou as mãos na grade e disse:
— Pronto. Escapamos. Barse não vai nos encontrar aqui. Fica
muito longe da tigela de ponche.
Sophie aproximou-se dele.
— Você é muito corajoso, bom senhor. Obrigada por me salvar.
Haakon sorriu, mas não era seu sorriso largo e atrevido de
costume. Era pequeno e melancólico. Por um longo momento, ele
não falou; apenas olhou para o jardim. Então, com pressa, ele disse:
— Eu poderia, sabe. Eu gostaria. Eu quero.
— Quer o quê? — Sophie perguntou, intrigada.
— Salvar você. De Barse. Da rainha. Pelo que aconteceu hoje. —
Houve uma pausa, seus olhos procuravam os dela. — De si mesma.
Sophie inclinou a cabeça.
— O que você quer dizer com de si mesma?
Haakon desviou o olhar de novo. Endireitou-se, então colheu uma
rosa perfumada e torceu seu caule para dar um nó. A flor se desfez.
As pétalas caíram como confete. Suspirando, ele a jogou por cima
da grade e a observou cair.
Por que ele está de repente tão estranho?, Sophie perguntou-se.
E, então, ela percebeu que ele não estava sendo estranho; ele
estava nervoso.
O confiante Haakon, um verdadeiro pavão que vivia rindo e
provocando, que chamava a atenção de todos no ambiente, estava
nervoso.
— Haakon… — Sophie insistiu. — O que quer dizer?
Em vez de responder, ele agarrou as mãos dela e as virou. Os
finos cortes vermelhos que ela abrira nas palmas das mãos haviam
parado de sangrar horas atrás, mas ainda estavam lá. Haakon
balançou a cabeça ao vê-los.
— Você poderia ser atriz — ele disse. — Porque fez um papel a
noite toda. O dia todo também. — Seus olhos reencontraram os
dela. — Você tenta esconder seu coração mole, mas não consegue.
Você não é uma governante, Sophie. Não está na sua natureza.
Sophie puxou as mãos para trás. A raiva brilhou em seus olhos.
— O que está dizendo? As Terras Verdes são a minha casa.
Quero governar o meu reino. Claro que quero!
— Será que quer mesmo? Saberá fazer o que é necessário?
Conseguirá fazer o que Adelaide faz? Comandar exércitos? Pegar
espiões? Condenar traidores?
— Matar cachorros? Chicotear crianças? — Sophie acrescentou
com amargor.
O champanhe ainda borbulhava em sua cabeça, tornando-a
ousada.
Haakon hesitou. Seus olhos, sempre brilhantes e divertidos,
estavam escuros e parados como as águas de um lago de inverno.
— O menino… — ele começou a dizer.
— Tom.
— Fui à casa de sua família esta noite. Antes do baile. Trouxe
remédios. Uma infusão para a dor. Um bálsamo para as feridas.
Linho limpo para fazer curativos.
— Você fez isso? — Sophie perguntou, surpresa.
Ela não teria esperado isso dele.
— Ele está sofrendo esta noite. Apenas respirar é uma agonia
para ele. Está até delirando, não reconhece a própria mãe.
As palavras de Haakon magoaram Sophie profundamente. Não
suportava pensar no pequeno e gentil Tom com tanta dor.
— Pare. Por favor, Haakon. Chega — ela implorou.
— Ele nunca mais cometerá esse erro. Nunca mais vai gritar com
a rainha ou contrariar seus desejos. Apenas seguirá suas ordens,
com rapidez e sem protestar. Como deve ser feito. E o mesmo vale
para os nobres da corte de Adelaide, seus generais e seu senhor
Comandante. É assim também que devem agir.
Sophie deu uma risada triste.
— Tom nunca mais fará a coisa certa de novo. Nunca mais
tentará salvar uma vida inocente.
Haakon arrancou outra rosa e torceu seu caule.
— Você governaria de forma diferente. Com bondade, com
misericórdia…
— Sim, é o que eu faria.
— Um reinado assim não passa de um sonho, Sophie. Uma linda
história contada para crianças. Você também pode desejar que uma
rainha das fadas apareça ou sete homenzinhos saiam da floresta.
Haakon parou de mexer no caule da rosa. Ele tinha feito um laço.
Pegou, então, a mão esquerda de Sophie na sua e empurrou a volta
do laço em seu dedo anelar, posicionando-a ao lado de seu anel de
unicórnio.
— Case-se comigo, Sophie — pediu ele. — Deixe-me ser seu rei.
Sophie olhou para ele. Foi um passo longe demais. Quase cruel.
— Há algumas coisas com as quais não se brinca, Haakon — ela
se apressou em falar, movendo-se para tirar o anel.
Mas Haakon a impediu. Ele pegou a mão dela, levou-a aos lábios
e beijou-a.
— Nunca falei tão sério — insistiu ele. — Farei o trabalho duro e
sujo. Vou mantê-la segura. Manter nosso povo seguro. Você ainda
poderá fazer suas bondades. Como dar esmolas aos pobres. Visitar
orfanatos. Criar nossos lindos filhos. Governar é um negócio brutal,
e você não foi feita para isso.
O coração de Sophie vibrou como as asas de um pássaro. Ela
sabia que a política conduzia a casamentos arranjados, não ao
amor. Ainda assim, ela amava Haakon. À maneira como amamos
garanhões e tempestades, a meia-noite e as montanhas e todas as
outras coisas belas, obstinadas e perigosas. Bem no fundo de seu
coração mole e tolo, Sophie esperava que ele se sentisse da
mesma maneira. Ela ergueu os olhos para ele.
— Você… Você me ama? — ela perguntou.
Haakon respondeu com um beijo. Pegou nas mãos o rosto da
princesa e pressionou sua bela boca na dela. Seus lábios tinham um
gosto agridoce, de chocolate e champanhe. Ele cheirava a itens
caros — couro e seda, âmbar cinza e ambição.
O coração de Sophie agora batia forte contra suas costelas. Ela
se esqueceu de respirar. Pensar. Ser. Havia apenas Haakon, seu
toque, seu calor. Havia apenas aquele rapaz glorioso e brilhante e,
como o gelo no sol, ela derreteu nele.
Após um longo momento, ele interrompeu o beijo, depois
encostou sua testa na dela.
Agitada e sem fôlego, Sophie balbuciou:
— Minha madrasta alega que o amor não passa de uma fábula.
Diz que devo guardar meu coração numa caixa e colocá-la sobre
uma prateleira lá no alto. Ela diz…
Haakon a beijou mais uma vez. Devagar. Profundamente.
— Menina boba — ele disse. — Eu me apaixonei por você no
momento em que a vi. Coloque o seu coração numa caixa e a
entregue para mim. Vou protegê-lo. Sempre. Diga que irá se casar
comigo, Sophie.
Os pensamentos de Sophie dispararam. O que é que eu faço?,
ela se perguntou, aflita. Não havia razão para dizer não. Sua
madrasta ficaria feliz; ela aprovava Haakon de todo o coração. E, o
que era mais importante que isso, Haakon a amava. Foi o que ele
disse. E ela o amava. Ela devia amá-lo, porque tudo que queria
fazer era beijar de novo aquela boca perfeita. E ele estava certo
sobre ela. Sua madrasta estava certa. Todos os cortesãos e nobres
e ministros que já haviam zombado dela, dizendo que era fraca
demais para ser uma boa rainha, que ela seguia seu coração em
vez de sua cabeça — todos eles estavam certos. Era melhor deixar
Haakon encarregar-se de governar por ela. Era melhor lhe entregar
seu coração — a um homem forte e capaz. Ele prometeu guardá-lo
com cuidado. Afirmou que se certificaria de que ela nunca sentisse
uma dor tão terrível — por Tom, pela cadelinha, pelo lobo —
novamente.
— Sophie, que agonia — disse Haakon. — Estar tão perto de
você, mas sem saber se é minha. Diga não se for preciso, mas…
— Sim — interrompeu-o Sophie. — Sim, Haakon, eu me casarei
com você.
Haakon sorriu. Seus lábios encontraram os dela mais uma vez.
Seu beijo foi doce como o mel.
— Amanhã — ele sussurrou. — Vamos contar para a rainha
amanhã.
Sophie assentiu com a cabeça flutuando. Graças ao champanhe.
Aos beijos. À sensação quente e maravilhosa dos braços de Haakon
envolvendo-a.
Permaneceram na varanda por um bom tempo, até que ouviram o
relógio bater dez horas, e Haakon disse que seria melhor eles
voltarem à festa antes que a rainha mandasse seus guardas atrás
deles.
Sophie dançou a noite toda, seus olhos faiscando, seus passos
leves, seu coração flutuando e feliz com o segredo guardado dentro
dele.
Só muito mais tarde, quando a festa acabou e suas criadas a
despiram, pentearam seus cabelos, vestiram-na com sua camisola
de linho, que Sophie percebeu algo.
Haakon não havia perguntado, nem uma vez, se ela o amava.
OITO

E - , — horas que
pesam muito na alma.
O baile cintilante tinha acabado. O palácio estava escuro e
silencioso. Todos os convidados estavam na cama.
Exceto a rainha.
Ela estava em frente ao espelho, sozinha em seu quarto, envolta
em um manto forrado de pele, o cabelo dourado caindo pelas
costas. Enquanto olhava fixamente para o vidro, a prata parecia
estremecer e derreter e então se formar novamente, mostrando-lhe
não seu próprio reflexo, mas imagens de outras pessoas.
Ela viu suas damas de companhia — Beatrice, Elizabetta e Anna.
Estavam deixando seus aposentos, correndo pelos corredores. Uma
levava um vestido rasgado para a costureira; outra, um colar
quebrado para o ourives. Uma terceira ia aos jardins com uma cesta
no braço para colher rosas para os aposentos da rainha.
Adelaide sabia que as três carregavam mais do que seus
pertences. Ela sabia que haveria um bilhete dobrado no bolso do
vestido, outro na caixa de joias, mais um na cesta. Cada palavra do
que havia acontecido durante seu encontro com a princesa seria
trocada com um embaixador estrangeiro por um lindo anel ou um
pedaço de renda fina. A coroa seria passada a Sophia no dia
seguinte, mas os assuntos de Estado, não.
Adelaide continuaria a carregá-los, pois a princesa nem mesmo
era capaz de abater um cachorro, muito menos um traidor.
— Fui caçar essa manhã — contou ela ao espelho. — E peguei
um lobo. Do tipo que anda sobre duas pernas…
A superfície envidraçada estremeceu novamente. Agora,
mostrava uma mulher elegante, lindamente vestida e cavalgando
uma égua branca.
— A Duquesa de Niederheim, sim — a rainha disse. — É tão
escorregadia quanto um peixe e esperta como uma raposa. Muda
de alianças como quem troca de roupa. Vê aquele novo broche de
rubi que ela está usando? Uma pedra tão fina custa uma fortuna, e o
duque está falido há anos. Então, como ela pagou por isso? — Seu
olhar, fixo no vidro prateado, endureceu. — Espionando, é claro…
Mas, para quem?
A imagem mudou de novo, desta vez mostrando um homem
repleto de joias sobre mantos brancos esvoaçantes. E depois outro,
sentado em um trono de jade esculpido; e um terceiro, caminhando
ao longo das muralhas de uma fortaleza. Os olhos da rainha
soltaram faíscas, quase maníacos em sua intensidade.
— Dizem que vieram ao baile para homenagear a princesa. Para
me honrar — disse ela. — Mas sei a verdade. Vieram me enterrar.
O astuto sultão de Asir, que paga piratas para saquear meus navios.
O Imperador do Catai, cujos assassinos se movem como sombras
por Königsburg. E o Rei do Interior, que despeja veneno em meus
rios e põe ratos em meus depósitos.
A rainha aproximou-se do espelho. Pressionou a palma da mão
contra ele. Sua respiração o embaçou quando ela sussurrou:
— Espelho, espelho meu…
Antes que pudesse terminar a frase, ela ouviu o farfalhar sedoso
das asas de um pássaro. A seguir, um homem apareceu no espelho.
Seus olhos eram negros como os de um corvo, sua respiração tão
fria quanto a sepultura. Ele estava parado bem atrás dela.
NOVE

A . Com as mãos cerradas, forçou-se a


encontrar o olhar do homem. Ele ia até a rainha todas as noites,
quer ela o chamasse ou não. Nada tinha como detê-lo. Não importa
quão vastos fossem seus exércitos, não importa quantos navios de
guerra comandasse ou fortalezas que construísse, não podia se
livrar dele.
Ele era alto e magro. Sua pele, tão pálida que finas veias azuis
brotavam de suas têmporas. Uma coroa de obsidiana esculpida,
cravejada com joias vermelho-sangue, enfeitava sua cabeça. Um
casaco da cor das sombras, abotoado no alto do pescoço, pendia
de seus ombros estreitos.
O homem abaixou a cabeça. A rainha também fez uma mesura,
pois ele próprio era um rei, descendente de uma antiga linhagem.
— Seus inimigos zombam de você, Adelaide — anunciou o
homem, seu reflexo falando para a rainha. — Aqui, sob seu próprio
teto, o sultão, o imperador e o rei dizem que você é uma mulher
vaidosa e superficial, apaixonada pelo próprio reflexo, com ciúmes
de qualquer outra mulher bonita.
A rainha refletiu no espelho um sorriso amargo.
— Não lhes dou nenhum motivo real para me diminuírem assim,
então precisam inventar motivos. Nada assusta mais um homem
fraco do que uma mulher forte.
O homem colocou a mão no ombro da rainha. Seus dedos finos e
brancos tinham nas pontas longas garras pretas. Inclinando-se mais
perto, ele sussurrou para ela:
— Dizem que possui um espelho mágico e que lhe faz uma
pergunta todas as noites: Espelho, espelho meu… existe alguém
mais bela do que eu?
— Os bobocas até que acertaram parte da verdade — disse a
rainha. — Bem… Coisas piores já foram ditas sobre mim. Muito
piores. E, no entanto, essa mentira é perigosa. Calunie um rei e o
caluniador perderá a cabeça. Calunie uma rainha, e a rainha
perderá a dela.
A raiva endureceu sua voz, mas, por baixo dela, havia
preocupação. O homem ouviu e sorriu.
— Estão conspirando contra as Terras Verdes, todos eles. Sei
disso — afirmou a rainha. — O Rei do Interior…
— Não é a sua maior ameaça — o homem a interrompeu. — Nem
o sultão, nem o imperador. Existe uma ameaça maior do que todos
eles…
— Quem? — perguntou a rainha, seus olhos arregalando-se,
alarmados.
O homem a apertou com mais força. Suas garras perfuraram o
tecido macio do manto da rainha e cravaram em sua carne.
— Espelho, espelho meu… — ele começou a falar, seus olhos
escuros encontrando os dela no espelho.
— … quem quer que meu trono seja seu? — a rainha completou.
Uma imagem embaralhou-se no espelho prateado. Após um
momento, foi ficando mais nítida.
Os lábios da rainha se separaram, mas ela não conseguia falar. A
cor sumiu de seu rosto.
— Não — ela por fim falou, sua voz tremendo. — Não, não pode
ser.
O rosto que a encarava de volta estava abatido e tristonho.
Molhado de lágrimas. Receoso.
O rosto no espelho era de Sophie.
DEZ

A - . Atravessou a sala
e agarrou-se às costas de uma cadeira para se equilibrar. Depois de
um momento, falou:
— Você está errado — disse ela com firmeza. — Na verdade —
ela acrescentou com um sorriso desdenhoso —, você está louco. A
princesa nada mais é que uma garotinha tola de coração mole. Ela
não tem exércitos. Nem navios de guerra. Nem consegue encontrar
coragem para abater uma cadela inútil, quanto mais para ameaçar
uma rainha poderosa.
— Eu não estou errado nem louco. Vi o que acontecerá — disse o
homem.
O sorriso da rainha partiu-se. Ela se aproximou do homem.
— O que você quer que eu faça? — ela perguntou.
O homem estava segurando uma caixa de vidro vazia. Seu fecho
e suas dobradiças eram fundidos em ouro. Ele a colocou sobre uma
mesa.
— Traga-me o coração dela.
Um turbilhão de emoções varreu o rosto da rainha — descrença,
choque, horror. Ela deu um passo vacilante para trás, os olhos fixos
na caixa de vidro, e balançou a cabeça.
— Por muitos anos eu a aconselhei — disse o homem. — Desde
que encontrei você encolhida diante deste mesmo espelho no
palácio do seu pai. Ainda posso ouvir os passos dos soldados
ecoando nos corredores. Posso ver a luz das tochas refletindo em
suas espadas. Esqueceu-se?
A rainha ergueu o olhar para o homem. Olhar nos olhos dele era
como olhar para um abismo. Suas profundezas escuras subiram
para encontrá-la, então giraram em torno dela, puxando-a para cada
vez mais perto da borda.
— Eu não posso fazer o que você pede — ela sussurrou.
O homem estalou a língua.
— Você ordena que milhares de homens morram em batalha. Fica
parada observando, impassível, espiões serem executados. Sorri
quando o machado desce sobre o pescoço dos traidores. E agora
não pode se livrar de uma mera garotinha?
— Ela é inocente.
— Ela é uma ameaça — insistiu o homem. — É tola e fraca. Você
mesma não disse isso? Ela não conseguiria governar as Terras
Verdes melhor do que uma criança. Você sabe disso, e seus
inimigos também. Não os viu no espelho? Eles já estão circulando,
planejando sua morte.
A rainha fechou os olhos. O homem aproximou-se dela. Ele
chegou tão perto que ela podia sentir seu cheiro — meia-noite, ferro
e cinzas.
— O espelho alguma vez falhou com você? Eu alguma vez falhei
com você? — ele questionou.
A rainha não respondeu.
— Você tem uma escolha a fazer — disse ele.
Assim, ele se foi.
A rainha cobriu o rosto com as mãos.
— Não posso fazer isso. Não posso… — falou com angústia em
sua voz.
Depois de um longo momento, ela abaixou as mãos novamente e
avistou seu reflexo no vidro prateado. Só que não era uma mulher
adulta que via agora; era uma jovem. Ela estava de joelhos.
Chorando. Seu vestido estava coberto de sangue.
As palavras do homem pálido ecoaram em sua cabeça. O espelho
alguma vez falhou com você?
— Nunca — ela sussurrou.
O homem está longe agora, mas ouve a resposta da rainha; ele
conhece o coração dela. Ele sorri. Ela acredita que é ela quem o
invoca. Acredita que o controla. Mas aquela é uma guerra, e ela não
tem como derrotá-lo. Nem saberia como.
Ah, como aquele homem pálido manda nela e tem feito isso por
toda a sua vida. De quando era menina até virar mulher. Mesmo
quando não parece estar, ele sempre está lá. Sussurrando em seu
ouvido, passando uma garra por sua nuca, enviando um arrepio por
seu sangue.
O céu começa a clarear. As estrelas desaparecem.
A rainha decidiu.
Ela pega a caixa de vidro.
E chama seu caçador.
ONZE

Na Floresta Sombria

Q , sete irmãos, todos


pouco mais altos do que um barril, caminhavam em fila indiana por
uma trilha estreita. Usavam roupas de trabalho e gorros, e
carregavam picaretas sobre os ombros. Uma aranha macho,
castanha com a parte inferior cor de creme e trinta centímetros mais
alta que os homens, vinha na retaguarda. A alça de uma cesta
estava enrolada em uma de suas muitas pernas.
Enquanto caminhava, ele atirou um novelo de seda no ar e
prendeu uma linda mariposa branca que estava voando de volta
para casa, cansada e descuidada após uma noite perseguindo os
raios de lua. Enrolou a seda e engoliu a criatura inteira. As asas da
mariposa, ainda tremulando, fizeram cócegas ao passar por sua
garganta.
— Estou com fome — anunciou o irmão mais novo, em frente à
fila. — O que será que Weber preparou para o almoço?
— Acabamos de tomar café da manhã e já está pensando no
almoço? — perguntou o homem atrás dele.
O mais novo parou. Olhou por cima do ombro, preocupado.
— E se tivermos apenas sauerbraten e pumpernickel, mas
nenhuma salsicha?
— Schatzi, siga em frente, sim? — disse o homem atrás dele,
dando-lhe um empurrão.
— Não empurre, Julius! — Schatzi reclamou, empurrando-o de
volta.
— Parem com isso, vocês dois! — outro dos irmãos repreendeu.
— Weber embalou bratwurst. Eu vi. Ele também embalou…
Um grito, alto e agudo, rasgou a floresta. Todos congelaram.
O homem que estava repreendendo apertou o cabo de sua
picareta. Tirou a ferramenta do ombro.
— Vocês ouviram isso? — perguntou.
— Que pergunta estúpida, Jakob.
— Claro que ouvimos.
— Como não ouviríamos?
As respostas foram dadas em tom de zombaria, mas quem
prestasse atenção perceberia nelas uma inquietação.
Jakob falou de novo.
— É ele — disse de modo severo. — Está pegando outra vítima.
— Hmm, não. Acho que não — respondeu Schatzi, com uma
leveza forçada. — Acho que é apenas um pássaro. Ou um esquilo.
— Um esquilo? Esquilos não gritam, seu idiota — disse Julius.
— A menos que alguém roube suas nozes.
— Achou engraçado, Jeremias? Porque não é — retrucou
Schatzi, irritado. — Como você pode fazer piadas estúpidas depois
do que aconteceu com…
— Ignore-o, Schatzi — interrompeu Joosts, outro irmão. — É um
mecanismo de defesa. Jeremias usa o humor para mascarar
emoções difíceis.
— Oh, por favor — disse Julius. Joosts olhou carrancudo para ele.
— Talvez ele não consiga enfrentar a dor. Já pensaram nisso?
— Talvez ele seja um idiota.
— Vocês não vão ficar quietos? — Jakob rebateu.
Todos ficaram em silêncio, tensos, esperando de ouvidos abertos.
— Viram? Não foi nada. Eu disse! — exclamou Schatzi, batendo
palmas como se tentasse afastar o medo. — Podemos ir agora?
Outro grito perfurou a manhã. Jakob se pôs a correr.
— Aonde você vai? — Schatzi gritou atrás dele.
— Temos que impedi-lo! — Jakob berrou de volta.
— Não vamos conseguir… Nós já tentamos!
— Então vamos tentar de novo!
Schatzi fechou os olhos e apertou as mãos.
— Não vou fazer isso. Quem quer que seja, já está morto, e dói
muito ver alguém assim. Como aconteceu com Jasper. Não posso
ir… Eu não vou.
Um farfalhar nas árvores o assustou. Ele abriu os olhos. Todos os
outros haviam seguido Jakob. Ele estava sozinho, exceto por um
corvo sentado em um galho acima dele. Então soltou um grasnido
áspero. Um segundo pássaro juntou-se ao primeiro, depois um
terceiro. Eles inclinaram a cabeça, encarando-o como um inseto
suculento, com seus olhos negros brilhantes.
Schatzi estremeceu. Eles estavam se reunindo. O que significava
que seu mestre não podia estar longe.
— Esperem por mim! — ele gritou.
E correu para alcançar seus irmãos.
DOZE

J o mato, sua picareta erguida,


pronto para golpear. Ao avistar a pobre criatura, porém, ele tropeçou
e deixou a ferramenta cair. Ela estava deitada sobre uma poça de
sangue à beira do lago. Seu peito estava parado; seus olhos,
abertos para o céu.
Dois de seus irmãos, Josef e Johann, passaram correndo por ele
e se ajoelharam ao lado dela. Os outros se reuniram ao redor.
— É tarde demais — disse Schatzi, perturbado. — Ela se foi.
— Não. Ela está quente — disse Johann, pressionando as costas
da mão no rosto da menina. — Ainda há uma chance…
— Uma chance? — Schatzi respondeu. — Caso você não tenha
percebido, ela está sem coração!
— Onde está Weber?
A aranha largou a cesta e correu em direção à garota.
— O que ele pode fazer? Não está mais aqui — disse Schatzi,
torcendo as mãos.
— Está, sim. Não está vendo?
A aranha abriu caminho entre os homens e se agachou perto da
cabeça da garota. Ele ficou tenso, todos os seus oito olhos focados
nela quando algo — tão suave quanto o amanhecer e tão bonito
quanto o sol — saiu dos lábios dela. Ficou ali, cintilando como uma
pérola, depois ascendeu aos ares.
A aranha começou a girar, tão rápido quanto podia.
— Depressa, Weber — Johann pediu. — Logo teremos
companhia.
Ele apontou para o céu. Estava escurecendo, não com nuvens…
Mas com corvos. Os pássaros, milhares deles, estavam se reunindo
em todas as direções, girando juntos no ar como se fossem um só.
Era como se uma mão invisível estivesse puxando uma cortina
noturna sobre a Floresta Sombria.
— É ele. Ele está vindo — disse Schatzi, o pânico crescendo em
sua voz.
— Por quê? — perguntou Josef. — Pelo que parece, ele já tem o
coração da garota.
— Quem sabe? Precisamos sair daqui.
— Não há tempo. Ele vai nos ver.
— Teremos de nos esconder, então. Vamos, Weber. Você não
pode ir mais rápido?
A aranha havia tecido sua seda pegajosa, formando uma enorme
e forte teia. Ele então se levantou e, como um pescador lançando
uma rede, jogou a teia no ar e prendeu o objeto brilhante.
Rapidamente, puxou de volta para baixo. Juntou as pontas da teia e
as apertou, selando o objeto dentro.
— Muito bem! — Johann sussurrou. — Espalhem-se, todos!
Rápido!
Julius agarrou a cesta de Weber e escondeu-se atrás de uma
pedra. Jeremias juntou-se a ele. Os outros escalaram árvores ou se
agacharam atrás de arbustos. A aranha encontrou um tronco podre
e se enfiou apressadamente sob ele. Ele ficou lá, sua barriga pálida
achatada contra a terra argilosa, seus olhos piscando, seus braços
envoltos protetoramente em seu pacote de teia. Manteve-se imóvel
como a morte. Sabia que não devia ser descoberto. Pois ele tinha
algo precioso. Algo radiante. Algo que vibrou dentro das meadas de
seda, assim como a linda e condenada mariposa. Ele estava
protegendo a alma da menina.
TREZE

U esfarrapado olhou para a


garota morta e estremeceu.
— Às vezes eu os destruo, Irmão — disse ela ansiosamente,
puxando uma mecha de seu cabelo selvagem e emaranhado.
— Não foi você quem matou a garota, Irmã. Foi um caçador —
disse o homem parado ao lado dela. — Ele tinha uma faca afiada.
A mulher acenou com a cabeça, mas não parecia convencida.
Puxou a mecha de cabelo novamente, desta vez com mais força.
Ela se soltou de seu couro cabeludo com um rasgo nauseante. Ela
olhou para as raízes ensanguentadas e jogou a mecha fora.
— Às vezes eu os ensino. Às vezes, deixo presentes para eles —
disse ela.
— Às vezes — o homem a acalmou.
A mulher se ajoelhou. Tocou o sangue no casaco da garota. O
sangue endureceu sob seus dedos e se transformou em rubis.
— Onde está o coração dela? — ela perguntou, olhando para a
ferida aberta.
— Está numa caixa de vidro. Esperando por mim.
A mulher inclinou o rosto em direção ao do homem.
— De quantos corações você precisa, Irmão?
— De todos eles. Até o último.
— Então não devemos nos demorar. O palácio fica a quilômetros
da Floresta Sombria.
O homem ofereceu-lhe o braço. A mulher se levantou e o pegou.
Eles eram parecidos, altos e pálidos, com cabelos bem pretos.
Apenas seus olhos eram diferentes. Os dele estavam cheios de
escuridão. Os dela eram avermelhados, como que injetados de
sangue, ardendo em loucura. Mal eles deram dez passos, o homem
parou. Ele olhou em volta, repentinamente alerta, como um lobo
farejando o vento.
— O que é isso?
— É quase como se ela ainda estivesse aqui. Seu espírito, quero
dizer. Ainda presente. Eu a estou sentindo, você não?
Ele soltou o braço da mulher e girou em um círculo lento e incerto.
Seu olhar se aguçou; penetrava na escuridão, captando rochas e
árvores e — na beira da lagoa — um tronco podre. Ele começou a ir
nessa direção.
A mulher o observou.
— Ora, Irmão — disse ela, com um sorriso curvando seus lábios
exangues —, se eu não o conhecesse, diria que você está com
medo.
O homem parou. Virou-se para ela e riu como se ela tivesse
acabado de contar a piada mais engraçada que ele já ouvira. A
mulher se juntou a ele, sua risada não fria como a dele, mas
histérica e estridente. Puseram-se a caminhar em direção ao
palácio, suas vozes ecoando na Floresta Sombria. Acima deles, os
corvos lançaram-se dos galhos onde haviam se empoleirado,
grasnando alto.
Uma raposa, parada perto de algum arbusto, mostrou os dentes
ao ouvir um barulho angustiante, depois enfiou o focinho em sua
toca. Um coelho também correu para sua toca. Uma rã-touro
estremeceu e se escondeu sob um lírio.
E, nas proximidades, sete homens pequenos e uma grande
aranha respiraram, aliviados.
CATORZE

— W ! — J . — P … Weber! Eles se
foram? — a voz veio do alto de uma árvore.
A aranha colocou a cabeça para fora do tronco. Uma perninha
apareceu, depois a outra. Colocou a parte superior do corpo para
fora, olhou através da escuridão e acenou com a cabeça.
Johann saltou. Seus irmãos se juntaram a ele, saindo de seus
esconderijos.
Josef espiou o caminho por onde o homem e a mulher haviam
passado.
— Ele não matou a garota — disse ele.
— Ele nunca mata. Ele sempre manda outra pessoa fazer o
trabalho sujo pra ele, esse desalmado — Jeremias retrucou.
Schatzi, o rosto branco como um fantasma, disse:
— Johann, você consegue salvá-la?
— Vou tentar — Johann respondeu, curvando-se sobre a garota.
— Não temos muito tempo — Schatzi alertou, apontando para a
rede de teia de aranha. A alma dentro dela estava lutando contra a
seda da aranha, tentando escapar.
— Eu sei, Schatzi, eu sei. Mas, enquanto pudermos — ele acenou
com a cabeça para a rede —, a garota ainda tem uma chance.
Julius sacudiu a cabeça.
— Por que estamos nos envolvendo nisso? — perguntou ele.
— O que devo fazer? Deixá-la aqui para morrer? — rebateu
Johann.
Julius fez uma careta. Ele desviou o olhar.
— Isso vai nos trazer dor de cabeça, escreva o que estou falando
— ele murmurou.
Mas Johann mal o ouviu. Ergueu o corpo do chão e saiu correndo
pela floresta em direção à Toca, para a casa de seus irmãos.
Johann era forte e valente, mas seu coração batia forte sob o
peso da garota humana. Seus pulmões trabalhavam enquanto ele
corria. Suas pernas tremiam. Uma ou duas vezes, ele achou que
não conseguiria, mas seguiu em frente e, enquanto corria, uma brisa
farfalhou os galhos acima dele. As folhas vibraram ao seu redor.
Anos depois, contando a história à beira da fogueira em uma noite
de inverno, ele diria que as próprias árvores o haviam incentivado a
continuar correndo. Que tinham sussurrado para ele com uma voz
de criança, inocente, forte e cheia de esperança.
O Rei dos Corvos ganhou outro coração, diziam. Depressa,
Johann. Não o deixe vencer. Não deixe a menina morrer.
QUINZE

S em um mar de dor. As
águas vermelhas e ardentes rodopiavam sobre sua pele, queimando
seu sangue, ardendo em seus ossos.
— Faça isso parar… Por favor — ela implorou. — Me deixe ir…
Me deixe morrer.
Uma aranha a envolveu em uma rede feita de suas teias e
gentilmente a puxou para a margem.
Ela desfaleceu sobre a areia. Sua cabeça tombou para o lado.
Através da névoa vermelha, ela viu que estava deitada sobre uma
mesa de madeira. Havia ferramentas espalhadas por toda parte —
tornos, alicates, cortadores de estanho, martelos. Ela viu
engrenagens, rodas, talhadeiras e molas. Ouviu o som de um
relógio batendo forte. Ouviu também xingamentos e ordens
sussurradas.
Isso é loucura.
Tem alguma ideia melhor?
Ela está morrendo!
Um homem pálido e magro, com olhar de ave de rapina, virou-se
para ela. Uma mulher se juntou a ele. Ela sorriu, mostrando a boca
cheia de dentes podres.
E então Sophie sentiu mãos em sua cabeça; alguém agarrou sua
mandíbula cerrada e a forçou a abrir. Um gosto amargo encheu sua
boca. Sua visão ficou embaralhada; seus olhos se fecharam.
Ela adormeceu. E sonhou novamente.
Com um céu sombrio cheio de corvos.
DEZESSEIS

E agarrar ao frágil lampejo de


vida que ainda existia dentro dela, a rainha estava sentada em seu
trono, com as mãos agarradas nos apoios laterais, os dedos
cravados com tanta força que suas unhas se quebraram.
Ela estava esperando por mim, seu caçador.
Não tinha dúvidas de que eu cumpriria minha tarefa. Sabia que,
assim como ela, eu via o mundo como ele é, não como eu gostaria
que fosse.
Eu já tinha presenciado um cervo recém-nascido ficar de pé com
as perninhas trêmulas e um lobo rasgar sua garganta antes mesmo
que ele pudesse dar seus primeiros passos.
Um filhote de passarinho cair de seu ninho e a raposa agarrá-lo
no ar. A coruja levar embora um coelhinho gritando.
Eu me considerava um realista. Dizia a mim mesmo que as coisas
sempre haviam sido assim e que assim sempre seriam. Acreditava
nisso. Mas essa crença não me ajudava. Nada podia me ajudar, não
naquele momento.
Toda a corte estava reunida no Salão Principal para a coroação
da princesa. Mas a hora havia chegado e passado, e nem sinal da
princesa. Suas damas de companhia foram chamadas. Sabia-se
que ela tinha saído para caçar muito cedo e ainda não havia
retornado. Nem eu.
O senhor Comandante ordenou que um grupo de busca fosse
enviado para a Floresta Sombria para nos encontrar, mas, assim
que as palavras saíram de sua boca, um grito ergueu-se em meio à
multidão.
Eu estava na soleira da grandiosa porta do Salão Principal, meu
peito arfando, meus olhos brilhando. Segurava uma caixa de vidro
suja de sangue.
A rainha tinha noção da gravidade do que tinha feito? Imaginava
que sua atitude não a colocaria em risco?
Com passos cambaleantes, dirigi-me até o trono. Os cortesãos
foram abrindo caminho diante de mim, alguns gritando de horror,
pois minhas roupas estavam encharcadas de sangue. Guardas, com
as mãos nos cabos das espadas, avançaram em minha direção,
mas a rainha ergueu a mão trêmula, impedindo-os.
Quando estava a poucos metros do trono, caí de joelhos.
— A princesa está morta! — gritei.
Gritos foram ouvidos. Os cortesãos empalidecidos foram
cambaleando até suas cadeiras. Alguns desmaiaram. O jovem
Príncipe Haakon ficou paralisado, em estado de choque.
Em um segundo, o senhor Comandante postou-se ao meu lado.
Ele desembainhou a espada e a apontou para o meu peito.
— Vai responder por isso, vilão! — trovejou ele.
Pois respondi. Contei a minha história. Para que a corte
soubesse. A rainha sabia de cor, palavra por palavra, pois ela é que
me havia treinado na noite anterior, depois de me chamar aos seus
aposentos.
— Fomos atacados por uma alcateia — contei. — Lutei o máximo
que pude, mas eram muitos lobos. Um matou a princesa e depois o
bando… dilacerou seu corpo.
Minha voz falhou nas últimas palavras. Meus olhos devastados
cruzaram com os da rainha.
Estendi a caixa de vidro.
A rainha encarou o objeto e seu conteúdo. Estaria ela se
lembrando de como chorei quando ela me entregara a caixa? De
como implorei para ela não me pedir aquilo? Ela dissera que não
tinha escolha. Nem eu.
— Matei alguns dos animais e afugentei outros — menti. —
Consegui recuperar o coração da princesa.
Devagar, com cuidado, com a ponta da espada do senhor
Comandante ainda pairando sobre meu peito, coloquei a caixa de
vidro no chão.
— Sinto muito — sussurrei. Pela princesa. Pela rainha. Por mim
mesmo. Então, antes que alguém se desse conta do que estava
acontecendo, agarrei a espada com as mãos e enfiei a lâmina em
meu próprio coração.
O senhor Comandante berrou. E praguejou. Puxou a lâmina, mas
era tarde demais. Tombei para frente, sobre o chão de mármore.
A poça de sangue espalhou-se ao meu redor.
As damas da rainha correram para ampará-la. Ela estava branca
como uma caveira. Lady Beatrice tentou conduzi-la para fora do
Salão Principal, mas a rainha a afastou. Ela se levantou do trono,
desceu os degraus e dirigiu-se até o meu corpo estatelado no chão.
Abaixando-se, pegou a caixa de vidro e retirou-se para os seus
aposentos.
Dispensou suas damas, criadas e guardas, e fechou as portas.
O estrondo ecoou pelo palácio.
Agourento. Definitivo. Eterno.
Como se ela estivesse batendo as portas de uma tumba.
DEZESSETE

Q ,S enquanto bocejava em sua


cama. De grandes aranhas e pequenos homens. Corvos e lagoas
e… rostos.
Dois deles. Pálidos e estranhos, emoldurados por cabelos pretos.
Ao lembrar, sentiu um arrepio. Puxou a coberta até o pescoço.
Quem são eles?, perguntou-se. Mas, quanto mais ela tentava se
lembrar dos rostos, mais enlouquecedoramente vagos eles se
tornavam. Ela acabou desistindo; espreguiçou-se, porém, ao fazer
isso, uma dor aguda cortou seu peito.
— Ai. Ai! — gritou ela, estremecendo. — Devo ter estirado algum
músculo andando a cavalo ou dançando. Ou beijando.
Sophie sorriu, animada pelas lembranças dos lábios de Haakon
nos dela, de seu toque. Hoje é meu aniversário, ela pensou, a
empolgação borbulhando dentro dela como o champanhe que
bebera na noite anterior. Haveria um rápido café da manhã em seu
quarto, depois a cerimônia de coroação e, mais tarde, festejos e
música. Quando a festa finalmente acabasse, ela e Haakon iriam
até a rainha e lhe diriam sobre seu desejo de se casar. Pela primeira
vez, minha madrasta ficará satisfeita comigo, Sophie pensou. Ela
esperava muito por tudo isso.
Ainda deitada na cama, a dor em seu peito persistia. Em vez de
diminuir, estava piorando. Sophie decidiu que um banho quente
seria necessário para acalmar seus músculos tensos. Ela chamaria
suas damas de companhia para preparar um banho para ela. Era
hora de se levantar. Precisava comer, depois se vestir. Havia tanto a
fazer.
Devagar, com sono, ela abriu os olhos pela metade, esperando
ver o teto alto e decorado de seu quarto, com suas pinturas de flores
e querubins.
Em vez disso, viu tábuas de pinho. Seus olhos imediatamente se
abriram. Aquele não era seu quarto.
O pânico tomou conta dela. No mesmo momento, sentou-se. Um
raio de dor atravessou seu torso, escurecendo sua vista. Ela
agarrou a coberta. Não conseguia respirar ou falar. Não conseguia
se mover.
Pouco a pouco, a dor cedeu. O ar inundou seus pulmões. Sua
visão clareou. Ao olhar ao redor, suando e tremendo, ela viu que o
quarto em que estava era minúsculo, com cortinas de renda, um
espelho de corpo inteiro e um tapete colorido. Inclinou a cabeça
para trás e viu uma cabeceira alta de madeira atrás dela, entalhada
com folhas de carvalho e bolotas.
Onde estou?, perguntou-se ela.
Imagens passaram por sua mente novamente — a lâmina
prateada de uma faca, pássaros voando, lágrimas rolando pelas
bochechas do caçador.
Ela pressionou as palmas das mãos nos olhos. Um pavor tão frio
e pesado como a névoa do mar a envolveu. Tentou lutar contra o
sentimento. Tentou pensar.
Ainda era muito cedo… Eu estava cavalgando na Floresta
Sombria. O que aconteceu? Será que caí?
— Sim, é isso — disse ela em voz alta, parecendo mais segura do
que na verdade se sentia.
Caí, bati a cabeça e perdi a consciência. O caçador me levou à
primeira cabana que encontrou. Para pedir ajuda. Para descansar.
— Mas onde ele está agora? — ela sussurrou.
Mais lembranças foram surgindo, galopando por seu cérebro
como cavalos selvagens. Lembranças de uma dor indizível. Do
caçador de joelhos. De algo em suas mãos. Algo vermelho e
pequeno.
— M-meu coração foi arrancado. Meu coração foi arrancado —
Sophie gaguejou com medo. — Mas c-como? Por quê? Por que é
que isso me aconteceu? Como ainda estou viva?
Existia uma razão… O caçador havia lhe dito algo… Mas seu urro
vermelho de dor apagou suas palavras.
Sophie olhou para si mesma. Estava vestindo uma velha camisa
de linho.
— De onde veio isso…? — ela começou a dizer, mas suas
palavras foram sumindo.
Havia algo sob o tecido. Algo escuro. Com dedos trêmulos, ela
desabotoou a blusa e olhou para o peito. Uma incisão longa, com
pontos pretos costurados em ziguezague, cortava o centro de seu
tórax.
Uma sensação vertiginosa de irrealidade tomou conta de Sophie.
Ela fechou os olhos com força.
— Ainda estou dormindo — sussurrou ela. — Isso é só um
sonho… Um pesadelo.
Mas, quando abriu os olhos novamente, a cama, o quarto, a
camisa, os pontos — tudo ainda estava lá.
Cuidadosamente, tocou o corte e, ao fazê-lo, sentiu algo balançar
sob sua caixa torácica. Depois, ouviu tinidos e rangidos. Parecia o
barulho que o enorme relógio de ouro no quarto de sua madrasta
fazia antes de bater a hora. Ela olhou para cima, imaginando se, de
alguma forma, não havia visto um relógio em uma prateleira ou em
algum canto.
Mas não. Os sons, ela percebeu, com horror, vinham de dentro
dela. De dentro de seu peito. O medo de Sophie se transformou em
terror. Um grito escapou de sua garganta.
Um instante depois, a porta do quarto foi escancarada e por ela
entrou uma joaninha, de um metro e vinte de altura, usando um
boné, um avental e uma expressão de profunda preocupação.
Os olhos de Sophie arregalaram-se. Ela respirou profundamente.
E gritou.
DEZOITO

A rosto preocupado, depois


se virou e fez uma série de estalos por cima do ombro.
Quase no mesmo instante, mais sete rostos apareceram na porta.
Sophie, com a respiração saindo em pequenas rajadas, encolheu-se
contra a cabeceira da cama. O barulho dentro de seu peito ficou
mais alto.
— Está ouvindo esta barulheira, Johann? — perguntou um
homem baixinho e barbudo. — Isso é um desastre. Ela não vai durar
a noite toda.
Johann, franzindo a testa pensativamente, disse:
— É só porque a engrenagem ainda está dura. Logo vai se
adaptar. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Pelo menos,
acho que vai.
— Você pensa que vai — disse um terceiro categoricamente.
Johann ergueu as mãos.
— Tive que trabalhar rápido! Não houve tempo para ajustes, para
calibrações!
Os olhos de Sophie desviaram-se dos estranhos e viraram-se
rapidamente para a janela. Ficava a apenas alguns metros de
distância, mas, mesmo que ela conseguisse alcançá-la antes de
eles a agarrarem, ficava muito no alto e era pequena demais para
ela passar.
Um dos homens carregava uma bandeja. Ele abriu caminho entre
os outros, em direção a ela. Com um grito assustado, Sophie pulou
da cama e se encolheu no canto mais distante, com a cama entre
ela e os estranhos. Um pesado castiçal de latão estava na mesinha
de cabeceira. Ela o agarrou com as mãos trêmulas e o segurou
diante de si como se fosse uma espada. O tilintar em seu peito se
transformou em um estalido estridente — o som do metal raspando.
— Olha o que você fez, Joosts. Você a assustou. Abaixe essa
bandeja.
— O que há de tão assustador em uma tigela de canja de galinha,
Julius?
O homem que falara de engrenagens e calibrações deu alguns
passos em direção a Sophie, com as mãos levantadas para mostrar
que não tinha intenção de lhe fazer mal. Ele abriu a boca para falar,
mas não teve chance.
— Sou a princesa Charlotta-Sidonia Wilhelmina Sophia das Terras
Verdes! — Sophie gritou, apontando o castiçal para ele. — Toquem
um fio de cabelo da minha cabeça e vão responder por isso!
Julius fechou os olhos e beliscou a ponta do nariz.
— Uma princesa. Uma princesa! Eu não disse que essa garota
nos traria problemas? A cavalaria da rainha virá aqui a qualquer
minuto procurar por ela.
Sophie empalideceu com a menção de sua madrasta. No peito
dela, soou um ruído profundo de trituração. Toda a força de seu
corpo foi drenada. Seus joelhos cederam. O castiçal caiu no chão
com um baque pesado.
Agora ela estava se lembrando. As palavras do caçador vieram à
tona. Perdoe-me, querida princesa… Este ato infame não foi meu
desejo, mas uma ordem da rainha.
Sophie sentiu mãos sobre ela, erguendo-a. Era Johann. Ela
tentou se desvencilhar dele, mas estava fraca demais. Ele a sentou
na cama, levantou suas pernas e a cobriu novamente. Tudo o que
ela podia fazer era se afundar de novo nos travesseiros.
— Todo mundo fora daqui! — ordenou ele.
Houve protestos e resmungos. Joosts colocou a tigela de sopa,
junto a uma colher e um guardanapo, sobre a mesa de cabeceira;
depois, ele e os outros saíram da sala. Quando saíram, Johann
sentou-se na ponta da cama. O quarto estava muito mais silencioso
agora, e os ruídos no peito de Sophie pararam.
— Princesa Charlotta-Sidonia — ele começou.
— Pode ser só Sophie.
Johann assentiu.
— Nós assustamos você, Sophie. Pedimos desculpas. Não foi a
nossa intenção. Meu nome é Johann — ele acenou com a cabeça
para o corredor vazio. — Aqueles são meus irmãos. Nós moramos
aqui. Tupfen, a joaninha, é a nossa governanta. Ela tem cuidado de
você nos últimos dias.
— Dias? — Sophie repetiu, sentando-se. — Há quantos… Há
quanto tempo…
— Nós a encontramos na floresta doze dias atrás.
Não fazia sentido. Era impossível. Sophie sacudiu a cabeça.
— Como não estou morta? — questionou ela.
Johann hesitou, depois disse com delicadeza:
— Você se lembra de alguma coisa?
Sophie se recostou nos travesseiros como uma boneca quebrada.
— Um caçador… Um homem que eu conhecia, em quem
confiava… Arrancou meu coração. Porque minha madrasta — a
rainha — o ordenou a fazer isso.
Johann prendeu a respiração.
— Por que ela faria uma coisa dessas? — perguntou ele.
A vergonha se apoderou de Sophie. As palavras de sua madrasta
ecoaram em sua cabeça. Você é mole quando deveria ser astuta,
boazinha quando deveria ser feroz… Como você conseguiria
governar um país, Sophia, se não consegue governar a si mesma?
— Sophie, por quê? — insistiu Johann.
— Porque eu sou tão fraca, tão incompetente, tão perdida —
Sophie respondeu, sua voz rouca de desespero —, que ela prefere
me ver morta a me ver sentada no trono das Terras Verdes. —
Então se virou para Johann, esperando ver uma expressão de
desprezo em seu rosto, a mesma expressão que ela tantas vezes
vira no rosto de sua madrasta.
Mas ele não estava olhando para ela. Estava olhando pela janela.
Seus olhos brilhavam. Sua mandíbula tremulava.
— Como estou viva, Johann? Como? — ela perguntou. — Eu
estou sem coração.
Johann esfregou os olhos. Virou-se para ela e disse:
— Sim, Sophie. Confeccionei um novo coração para você.
DEZENOVE

S J longo momento, incapaz de


entender o que ele estava dizendo; depois, olhou para o próprio
peito. Lentamente, com medo, ela pressionou a palma da mão
contra sua caixa torácica, sobre os pontos feios, no lugar onde seu
coração pequeno e perfeito costumava estar.
Aquela coisa sob suas costelas parecia grande. Desajeitada. Fora
de controle. Parecia que estava batendo como um relógio em vez de
pulsar. Acelerava, depois diminuía a velocidade. Chacoalhava e
gaguejava, chiava e depois batia.
— É uma espécie de máquina — Johann explicou. — Bombeia
sangue pelo seu corpo, assim como fazia seu antigo coração.
Sophie sabia o que era uma máquina. Cientistas e engenheiros
de todas as partes do mundo compareciam à corte de sua madrasta
para demonstrar suas invenções. Ela tinha visto bombas e turbinas
— monstruosidades feias e barulhentas que expeliam fumaça e
cuspiam óleo. Agora uma coisa daquelas estava dentro dela, sob
sua carne e seus ossos. Por alguns longos segundos, ela teve de
lutar contra o desejo irresistível de rasgar os pontos e puxar a coisa
para fora.
— Do que é feita? — perguntou ela, com um tremor na voz.
Johann respirou fundo, como se preparasse uma resposta, mas,
antes que pudesse falar, a resposta veio da porta.
— De lata. Engrenagens e rodas. Fios.
Sophie ergueu os olhos. Um dos irmãos — Julius — havia
retornado. Ele estava encostado no batente da porta. Seus braços
estavam cruzados; seu olhar, focado em Johann. Ela não tinha ideia
de quanto tempo fazia que ele estava lá.
— Johann é muito habilidoso. Não é, irmão? — perguntou Julius.
Havia uma acidez em sua voz.
Johann não respondeu; apenas dirigiu um sorriso amarelo a
Julius, que se virou para Sophie. Ele estava prestes a se dirigir a
ela, quando outro de seus irmãos voltou para a sala com um prato
nas mãos.
— Weber mandou pão fresquinho com manteiga — disse ele.
— Weber é o nosso cozinheiro — Johann explicou. — E este é
Schatzi, nosso sétimo irmão.
— Sétimo irmão… — Sophie repetiu. Antes ela tinha ficado
apavorada, assustada demais para pensar direito, para raciocinar,
mas agora estava melhor. — Vocês são os sete homens da floresta?
— ela perguntou, maravilhada.
— Somos — disse Schatzi, colocando o prato de pão na mesinha
de cabeceira.
— Lembro-me das histórias que minha babá me contava sobre
vocês. Achei que só existissem nos contos de fadas — disse ela,
ainda impressionada.
Seu medo diminuiu um pouco.
— Vocês cavam ouro e pedras preciosas em minas secretas —
ela acrescentou. — E cada um de vocês possui um talento especial.
Um é carpinteiro…
— Joosts — disse Schatzi.
— Outro é caçador.
— Jeremias.
— Tem um que é alfaiate…
— Sou eu.
— E um herbanário, um fazendeiro e um ferreiro.
— Julius. Josef. Jakob.
— E um relojoeiro.
— Johann.
Schatzi puxou a única cadeira do quarto para perto da cama de
Sophie, pegou a tigela de sopa e colocou-a nas mãos dela.
— Você está pálida e magra — constatou ele, oferecendo-lhe uma
colherada de sopa. — Tem de comer. É a única maneira de se
recuperar.
O medo de Sophie voltou. Ela olhou para a tigela com cautela.
Sua própria madrasta tentara matá-la. Por que ela deveria confiar
em sete perfeitos estranhos?
Julius percebeu sua suspeita.
— Será que realmente a teríamos mantido viva só para depois
envenená-la? Acredite, você deu muito trabalho!
— Julius, por que sempre tem de ser tão rude? — Schatzi o
repreendeu.
— Por que fizeram isso? — Sophie perguntou, tentando imaginar
seus motivos. — Por que salvaram a minha vida?
O olhar de Julius desviou para a janela. Deu de ombros.
— Por que não?
Sophie insistiu:
— Vocês construíram um novo coração para mim. Cuidaram de
mim durante uma longa recuperação. Ninguém demonstra tanta
bondade para com uma estranha…
— Talvez não no lugar de onde você vem — disse Julius. — Aqui
na Toca, não permitimos que el… — E parou abruptamente, como
se tivesse falado demais. — Ajudamos as pessoas. — Ele acenou
para a tigela. — Tome a sua sopa.
Depois, saiu. Sophie ouviu seus pés descendo um lance de
escadas.
— Ignore-o. Ele está rabugento hoje. Seu arbusto de artemísia
morreu — contou Johann. — Mas você deve mesmo tomar a sopa.
Sophie olhou para a tigela cheia de macarrão com cenoura,
pedaços de frango e um caldo dourado. Seu estômago se revirou
dolorosamente. Ela engoliu uma colher e depois outra. O calor
nutritivo se espalhou por seu peito e por todo o corpo. A coisa
dentro dela clicou e zumbiu. Ela tentou não dar ouvidos e continuou
comendo. Em pouco tempo, metade da tigela já havia sumido.
— Mais devagar — Schatzi aconselhou. — Você não come nada
sólido há mais de uma semana.
Sophie não deu ouvidos. Ela terminou a sopa e devorou o pão.
— Estava tão delicioso. Obrigada — disse ela, limpando a boca
com o guardanapo que Schatzi lhe entregou.
Ela sentiu um pouco de força de volta ao seu corpo. Sentiu-se
mais lúcida, capaz de pensar com clareza. Uma ideia surgiu em sua
cabeça, uma ideia que acendeu uma centelha de esperança em
meio ao seu desespero.
— Vocês têm um vestido que eu possa pegar emprestado? E
minhas botas estão por aí em algum lugar? — ela perguntou,
lutando para se sentar direito. — Preciso voltar.
Johann parecia alarmado.
— De volta para onde? — ele perguntou. — O palácio? Não é
uma boa ideia…
— Você não está forte o suficiente para atravessar este quarto,
quanto mais para viajar! — exclamou Schatzi.
— Voltar para onde isso aconteceu — disse Sophie. — A rainha
dificilmente contará à corte que tentou me matar. Inventará alguma
história. Dirá a eles que me perdi ou que fui ferida, e que o caçador
foi buscar ajuda. Alguém pode estar procurando por mim. Viram
alguma equipe de busca?
— Não, não vimos, graças aos céus — disse Schatzi.
— O que você quer dizer com graças aos céus? — Sophie
perguntou, perplexa.
— Nenhum sinal de equipe de busca significa que ninguém está
procurando por você. Se o caçador da rainha levou seu coração
para ela…
— Ele levou? — interrompeu Sophie, confusa. Como Schatzi
sabia disso?, ela se perguntou.
Johann lançou um olhar mortal para Schatzi, mas Sophie não
percebeu.
— Eu… Bem… Você…Você disse que foi isso que ele fez, não
foi? — Schatzi perguntou, atrapalhado.
— Não, não disse — protestou Sophie, perguntando-se se ele
estaria escondendo algo dela.
— E-eu acho que só estava supondo que ele possa ter feito isso
— Schatzi justificou-se. — Por que outro motivo ele o levaria
embora? E ele deve ter levado… Não está mais aí, está?
Sophie assentiu. A explicação de Schatzi fazia sentido, mas ela
não conseguia afastar a sensação de que havia algo que ele não
queria que ela soubesse.
— E, de qualquer maneira — continuou Schatzi —, a rainha
nunca vai suspeitar, nem por um segundo, que você tenha
sobrevivido. E, enquanto ela acreditar que você está morta, você
estará segura. Fique quieta, fique escondida, e continuará viva,
Sophie. Você não deve deixar a Toca.
Sophie não queria ficar na Toca. Os irmãos pareciam muito
amáveis, mas era a casa deles, não a dela. Seu coração fez um
ruído baixo e dolorido, ecoando seus sentimentos. Ela estremeceu,
horrorizada novamente com aquela coisa em seu peito. Quando o
barulho finalmente parou, ela disse:
— E se houvesse alguém que eu quisesse que me encontrasse?
Alguém que poderia me ajudar?
— Quem? — perguntou Johann.
— Lord Haakon, o Príncipe de Escandinai. Temos a intenção de
nos casar. Ele deve estar procurando por mim… Eu sei que deve
estar… — O lampejo de esperança que ela sentira antes ficou ainda
mais brilhante. — Vocês o viram? — ela perguntou, ansiosa.
Johann sacudiu a cabeça.
— Alto, loiro, olhos azuis? Têm certeza? — insistiu Sophie,
voltando-se para Schatzi.
Mas ele também balançou a cabeça.
— Eu… Eu não entendo — disse ela, desanimada. Haakon havia
prometido mantê-la em segurança, sempre protegê-la. — Talvez
vocês não o tenham visto, por algum motivo — ela arriscou. — Ou
talvez ele esteja procurando no lugar errado.
— Se a rainha se esforçou tanto para planejar sua morte, aposto
que também inventou uma história para contar à corte — disse
Johann. — Tenho certeza de que o pobre moço acredita que você
está morta.
Sophie assentiu com tristeza. Ela agitou a ponta da colcha, com
as esperanças destruídas. O que Johann disse fazia sentido.
Provavelmente toda a corte, incluindo Haakon, havia sido informada
de que ela fora morta por ladrões, levada por um urso ou alguma
outra mentira. Haakon não estava procurando por ela. Ninguém
estava. Ao dar-se conta disso, Sophie entrou em verdadeiro
desespero. Como se alguém a tivesse selado em um caixão e tudo
o que ela pudesse fazer era gritar, impotente diante das pás cheias
de terra jogadas sobre a tampa. Seu futuro não existia mais. Seu
casamento com um príncipe. Sua coroa. Sua madrasta não
conseguira matá-la, mas, ainda assim, roubara sua vida.
Schatzi viu sua angústia.
— Você está aqui, Sophie. Está viva. É isso que importa — disse
ele, dando um tapinha amigável na mão dela.
— Sim — disse ela. — Eu estou viva. E agradeço a vocês por
isso. — Ela fechou os olhos novamente. A força que ganhara com a
sopa estava diminuindo agora.
— Você está exausta. Precisa descansar — disse Schatzi. Ele se
levantou, colocou a cadeira de volta no lugar e fechou as cortinas.
— Durma um pouco.
Pegou a bandeja e saiu do quarto. Johann o seguiu. Ele estava
prestes a fechar a porta quando parou e se voltou para Sophie.
— Quase esqueci — disse ele, tirando uma bolsinha de pano do
bolso da jaqueta. — Encontramos isto caído na grama, perto de
você. Jeremias foi quem pegou.
Sophie forçou os olhos a se abrirem. Ela pegou a bolsinha e
despejou o conteúdo em sua mão. Seis rubis perfeitos, da cor do
sangue, cintilaram diante dos seus olhos.
— Não são meus — disse ela.
— Não são de um colar? De uma pulseira? Que talvez tenha se
quebrado durante a luta?
Sophie sacudiu a cabeça. Ela tentou devolvê-los, mas Johann não
aceitou.
— Talvez você não se lembre — disse ele. — Certamente não são
nossos. Fique com eles.
Quando ele fechou a porta atrás de si, Sophie colocou os rubis de
volta na bolsinha e a pôs sobre a mesa de cabeceira. O sono a
estava derrubando.
Fique quieta, fique escondida, e continuará viva, Sophie, Schatzi
havia dito. Mas por quanto tempo? Ela não poderia permanecer na
Toca para sempre.
Seus pensamentos se voltaram para Haakon. Ela imaginou seu
belo rosto, seu sorriso caloroso. Johann disse que ninguém viera
procurá-la. Mas Haakon não era um “ninguém”. Ele era um príncipe.
Seu príncipe. Certamente, não aceitaria a mentira da rainha. Ele iria
querer uma prova. Sentiria que ela ainda estava viva. Sentiria isso
em seu coração porque a amava, e ele continuaria procurando por
ela até que a encontrasse.
Eu sou um príncipe. É isso que fazemos.
Sophie fechou os olhos. O coração em seu peito estava quieto
agora. Emitia apenas ruídos suaves e rítmicos, como pesos de
relógio descendo lentamente em suas correntes.
O sono espalhou seu manto escuro sobre ela. Aquela última hora,
com todos os seus choques e sustos, estava se acalmando agora.
Esvaindo-se.
Relaxando.
VINTE

— P C -S W S — disse
Sophie, olhando seu reflexo no espelho. — Você está parecendo um
palhaço de circo.
Sua camisa era uma velha camisola listrada. Sua saia, que ficava
bem acima dos tornozelos, era, na verdade, uma toalha de mesa
costurada, toda quadriculada vermelha e branca. E seu corpete fora
feito com um saco de grãos, amarrado na frente com cadarços
vermelhos.
Sophie estava com uma aparência absurda, ela sabia disso, mas
não queria reclamar. Schatzi havia feito a saia e o corpete. Ele os
deixara aos pés de sua cama momentos atrás.
— Espero que goste — dissera ele timidamente. — Eu nunca
tinha feito uma saia. Tupfen me ajudou com as medições.
Sophie agradeceu, e ele saiu do quarto, fechando a porta atrás de
si para que ela pudesse se vestir.
Ela ajustou a saia e o corpete. Suas roupas novas eram as únicas
que tinha. Jeremias havia queimado sua roupa de montaria
manchada de sangue. Pelo menos minhas botas sobreviveram,
pensou, olhando para elas. Joosts as polira até ficarem brilhando.
Haakon já teria vasculhado grande parte da floresta nas
proximidades do Vale, ela raciocinou, e, em alguns dias, talvez três
ou quatro no máximo, chegaria ali. Ela tinha de se aprontar para
aquele momento.
Hoje, duas semanas depois de ter acordado na casa dos sete
irmãos e quase um mês desde que saíra do palácio para cavalgar
com o caçador, era o primeiro dia em que Sophie se sentia forte o
suficiente para deixar seu quarto. Ela engordara um pouco, seus
pontos já haviam sido tirados e suas bochechas ganharam um
pouco de cor. Mas o que seu novo coração estranho e barulhento
faria quando ela começasse a se mover? Ele a mantivera viva até
agora, mas ela o tinha forçado muito pouco a trabalhar. Apenas
dormia, comia e depois dormia um pouco mais. O que aconteceria
quando andasse? Subisse e descesse escadas?
Sophie queria sair para o quintal para poder ver Haakon quando
viesse cavalgando pela floresta até ela. Ele viria; estava certa disso.
Eu a amei desde o momento em que a vi, ele lhe dissera. E não
apenas a encontraria, como a levaria para Escandinai, para a
segurança do castelo de sua família. A partir daí, ele e os
comandantes de seu reino tramariam a melhor maneira de tirar do
trono sua cruel madrasta.
Sophie respirou fundo para se acalmar, depois prendeu a
respiração. Ela percorreu todo o quarto, esperando um desastre a
cada passo, mas nada aconteceu. Não houve dor, nenhum ruído de
seu novo coração. Não se sentiu tonta nem fraca. Não desmaiou.
Deu mais alguns passos, depois girou em um círculo lento e
cauteloso. Nada estalou, nada rangeu. Tudo estava perfeitamente
bem. Ela soltou a respiração com uma longa lufada de alívio. Então,
abriu a porta do quarto e atravessou até o patamar da escada.
Os irmãos e Tupfen estavam esperando por ela na parte inferior
da escada, com expressões ansiosas em seus rostos.
— Sophie! Você está de pé e andando! — Schatzi exclamou ao
vê-la.
— Você parece ótima! — disse Josef.
— Obrigada. Estou me sentindo bem — disse Sophie, descendo
as escadas com cuidado. Quando chegou lá embaixo, olhou ao
redor. — Que chalé mais fofo! — ela exclamou alegremente.
Construída em madeira de pinho, a Toca era rústica e
aconchegante. Havia vários quartos separados no andar de cima,
mas o andar de baixo era um só cômodo todo aberto. Sophie
passeou por ele com um largo sorriso no rosto. O chalé era um
mimo. Isso a encheu de um deleite súbito e profundo.
— Que cortinas lindas! — disse ela, passando os dedos pelos
véus de renda pendurados em uma janela. — E esta cadeira! — Ela
se sentou em uma poltrona estofada, suspirou feliz e depois se
levantou de novo.
Ao fazer isso, seu coração, que estava perfeitamente quieto,
começou a fazer um ruído baixo, ronronado. Tomada pela
curiosidade, Sophie não pareceu notar, mas os irmãos, sim. Eles
trocaram olhares preocupados.
— Ah, e esta pintura! — ela exclamou, apontando para uma bela
cena de floresta pendurada na parede. — Um filhotinho de veado! E
os pequenos texugos! Tããão fofinhos! — Ela se voltou para os
irmãos e para Tupfen, colocou as mãos na cintura e anunciou: —
Esta casa é - - - !
Josef ergueu um dedo.
— Hum, Sophie, acho que talvez… — ele começou a falar, mas
Sophie o interrompeu.
Ela avistou algo sobre uma mesa lateral.
— O que é isto? — perguntou ela, pegando uma coleira de couro.
Uma etiqueta prateada caiu dela. Henrik, estava escrito.
— É uma coleira de cachorro — respondeu Joosts. — Pertencia
ao nosso pequeno schnauzer, que morreu há alguns meses.
Os olhos de Sophie se arregalaram. Seu lábio inferior
estremeceu.
— Ah, não — ela disse. — Oh, meu Deus, não. — Ela apertou a
coleira contra o peito. — Seu… cachorrinho… morreu? El-le
morreu? Seu pequeno Henrik morreu?
A última palavra foi pronunciada de modo dolorido. Sophie baixou
a cabeça, ainda pressionando a coleira contra o peito, e pôs-se a
chorar. Seu coração retumbou e estalou.
— Pobre Henrik! Ah, que tragédia! Ele se foi muito cedo. Cedo
demais!
— Hmm, Sophie? Henrik tinha vinte e dois anos — disse
Jeremias. — Estava na hora dele.
— Ele estava soltando puns muito fedidos — ajuntou Julius.
— E roncava a noite toda — Josef acrescentou. —
Honestamente? Eu nem sinto falta dele.
Sophie levantou uma mão. Aos poucos, foi se acalmando e disse:
— Não devemos falar mal dos mortos. Henrik viverá para sempre
em seus corações e… — Seus olhos desviaram para a mesa da
cozinha. — Ai, minha nossa! O que é tudo isso?
Ela cruzou a sala em duas passadas, o coração martelando
contra o peito. A mesa estava preparada para o almoço. Pratos
azuis e brancos colocados sobre uma bela toalha amarela. Mas
foram as travessas no centro que atraíram o interesse de Sophie.
Uma estava cheia de chucrute e coberta com salsichas gordas.
Na outra, havia um strudel de cogumelo. Havia, ainda, schnitzel bem
dourado. Panquecas crocantes de batata com creme de leite e
molho de maçã. Um pão de centeio, um prato de manteiga
amarelinha e uma jarra de leite fresco. E, de sobremesa, bolinhos
de maçã com creme.
Sophie pegou uma panqueca de batata e a engoliu em três
mordidas.
— Humm! — fez ela, limpando os lábios com as costas da mão.
Pegou um schnitzel e o devorou em seis mordidas. — Estava tão
bom! — disse ela com a boca cheia de comida. Em seguida, pegou
uma salsicha.
— Quer um prato? Um garfo? — perguntou Johann.
Sophie fez que não. Ela nunca tinha provado uma comida tão
deliciosa.
Não estava conseguindo comer rápido o suficiente.
— O cozinheiro ficará feliz — observou Julius. — Isso é um
grande elogio ao trabalho dele. Um elogio um pouco afobado, mas,
ainda assim, um elogio…
Sophie entendeu o recado. E lembrou-se de sua etiqueta. Mais ou
menos.
— Onde está o cozinheiro? Devo agradecer-lhe! — disse ela,
segurando uma salsicha meio comida na mão. Ela estava na Toca
havia semanas, sempre comendo uma comida deliciosa, mas não
tivera a oportunidade de conhecer quem a fazia.
— Weber? Ele está bem ali — disse Josef, gesticulando para uma
figura parada na outra extremidade da cozinha, mexendo uma
panela no grande fogão de ferro.
Sophie olhou para o cozinheiro, respirou fundo e gritou. Com
ainda mais força do que quando vira Tupfen pela primeira vez. Seu
coração disparou como um alarme. Ela correu para o outro lado da
mesa e gritou novamente. E atirou a salsicha que estava segurando,
que atingiu Weber bem na cabeça.
— Sophie, pare com isso! — Josef a repreendeu. — Weber é
bonzinho. Ele não faria mal a uma mosca!
— Na verdade, ele faria, sim — falou Julius. — Ele fez mal a uma
dezena de moscas só no café da manhã…
— Querem ficar em silêncio, por favor! — Josef irritou-se.
Weber esfregou o local onde a salsicha o atingiu. Piscou seus oito
olhos, depois começou a chorar.
Sophie levou as mãos ao rosto, com vergonha de si mesma.
— O que foi que eu fiz? — ela sussurrou. — Me perdoe. Eu sinto
muito, muito mesmo. Tenho medo de aranhas. Mas posso ver que
você é uma aranha muito meiga. Pode me perdoar? — Ela correu
até a criatura e segurou duas de suas muitas pernas. — Por favor,
por favor, diga que me perdoa!
Weber fungou; ele fez que sim com a cabeça de forma hesitante.
Sophie bateu palmas alegremente, depois jogou os braços em torno
dele e não o largou mais. Weber ergueu quatro das pernas no ar e
dirigiu um olhar desamparado aos irmãos. Julius puxou uma cadeira
para perto de Sophie, subiu nela e gentilmente tirou seus braços do
cozinheiro.
Sophie deu alguns passos para trás. Ela pressionou a mão na
testa, desorientada e confusa.
— Eu… Eu não sei o que deu em mim. Normalmente, sou um
pouco mais… Controlada.
Johann se aproximou deles. Tirou um estetoscópio do bolso. Era
feito de pedaços de uma velha corneta e um tubo de cobre dobrado.
— Posso? — perguntou ele.
Sophie assentiu. Ela se sentou, repentinamente cansada. Johann
se curvou sobre ela. Pressionou o estetoscópio contra o peito dela e
ouviu. Fez, então, uma careta, sacudiu a cabeça e se endireitou
novamente.
— E então? — perguntou Julius, a voz aguda de preocupação.
— Está funcionando… Quero dizer, batendo lindamente —
Johann começou. E cruzou um olhar com Julius, um olhar de
profunda preocupação. Sophie, de olhos fechados, não percebeu.
— E? — insistiu Julius.
— O ritmo está perfeito no momento — falou Johann. — Tudo
está indo bem. Não consigo ouvir chiados, gotejamentos ou
qualquer outro sinal de vazamento. Os reguladores que coloquei
para controlar o fluxo sanguíneo e o tempo parecem estar
funcionando muito bem…
— Mas? — perguntou Julius.
Johann encolheu os ombros timidamente.
— Mas eu, hmm… Bem, acho que me esqueci de colocar um
regulador de emoções.
VINTE E UM

O S . Um coração fora de
controle era seu pior pesadelo. Fora um desses que quase a
matara.
— O que é regulador, Johann? — perguntou ela, ansiosa. — O
que faz?
— Mantém as coisas equilibradas e suaves. Como o fluxo de
água em um moinho, por exemplo. Ou, neste caso, o fluxo de
sentimentos. O seu parece estar um pouco fora de sintonia.
— O que é que eu vou fazer? — Sophie perguntou-se ao ouvir as
palavras de Johann. — Estou me comportando como uma lunática.
Falando tudo que vem à minha mente. Chorando. Rindo. Atirando
salsichas pelos ares. Não posso continuar assim. É… exaustivo.
Mas o que ela realmente quis dizer é que era perigoso. Ser
guiada por seu coração havia despertado a ira de sua madrasta.
Causara dor e sofrimento para uma criança inocente, para animais
inocentes. Até Haakon, que gostava dela, achava-a gentil demais,
mole demais, emotiva demais. Ele prometera vigiar o coração dela.
O que ele pensaria se a visse agora, completamente incapaz de se
controlar? Ainda a desejaria? Ainda a amaria?
Sophie pegou a mão de Johann.
— Me diga o que fazer — ela implorou. — Me diga como regular
esse coração.
Johann franziu a testa, pensativo. Então ele disse:
— Talvez um pouco de ar fresco lhe faça bem. Um pouco de
exercício. Pode ser que acalme as coisas. Você não sai há um mês.
— Parece uma excelente ideia — disse Julius.
Sophie concordou e Josef sugeriu que fossem até o jardim colher
morangos. Ele pegou uma tigela de uma prateleira e eles saíram da
cabana. Enquanto isso, o restante dos irmãos sentou-se para
almoçar.
As coisas não foram muito bem lá fora, porém. No instante em
que passou pela porta, Sophie deu gritinhos ao ver as janelinhas
vermelhas e as lindas floreiras do chalé. Apenas a visão do rosto de
Josef, com sua expressão consternada, a fez se acalmar.
— Pare — disse ela a si mesma, segurando a cabeça com as
mãos. — Pare.
Josef a conduziu até um caminho de pedra que levava do chalé
até o jardim. No início, Sophie seguiu um ritmo imponente, mas,
depois de apenas alguns segundos, pôs-se a saltitar pelo caminho,
com o coração batendo forte de alegria. Ela enterrou o rosto em
uma roseira cheirosa e arranhou as bochechas. Colheu uma
margarida e a colocou atrás da orelha. Acariciou uma lesma. Tudo
antes mesmo de colocar os pés no jardim.
Sophie ficou desanimada quando Josef a alcançou no portão do
jardim.
— Não adianta — disse ela. — Este coração faz o que bem
entende.
— Tente conter seus sentimentos — Josef sugeriu. — Como se
você estivesse prendendo a respiração.
Sophie assentiu. Ela endireitou a coluna, empurrou o portão e
saiu para o jardim. Sua resolução durou exatamente um segundo.
— Oh, Josef, olhe! — ela exclamou. — Você já viu um repolho tão
lindo?
Ela trotou para cima e para baixo pelos canteiros bem
organizados do jardim, maravilhada com berinjelas, feijões e
couves-de-bruxelas. Como nunca havia notado a beleza de uma
vagem antes? A elegância das folhinhas de endro? Tudo lhe parecia
um milagre. Ela ajudou Josef a colher frutas vermelhas por alguns
minutos, depois saiu valsando, incapaz de ficar parada, ansiosa
para explorar o terreno. Enquanto isso, Johann, ansioso para
descobrir como Sophie estava, engoliu rapidamente o almoço e
juntou-se a Josef no portão do jardim.
— Como ela está? — ele perguntou ao irmão.
Josef encolheu os ombros.
— Houve gritinhos de alegria e risadas histéricas, mas, até agora,
sem berros nem lágrimas. Acho que já é um avanço… Espere um
minuto… O que ela está fazendo agora?!
Sophie tinha acabado de admirar os nabos quando avistou algo
que não era tão adorável — um grande monte marrom irregular no
fundo do jardim. Era um amontoado de cascas de ovo, folhas de chá
gastas, serragem, cocô de galinha, cascas e caroços de frutas,
aparas de grama e folhas mortas. Caminhou até a pilha e franziu o
nariz.
— Josef, o que é isso? — ela gritou por cima do ombro.
— Essa é a nossa pilha de compostagem — Josef respondeu. —
Colocamos lixo do jardim e restos de comida nela. Eles se
decompõem e se tornam fertilizantes para as plantas. É um pouco
fedorento, Sophie, e cheio de insetos e vermes. Venha para cá.
Sophie estava prestes a ouvir o aviso de Josef, quando um
movimento na pilha de compostagem chamou sua atenção. Mas
como pode ser isso? Não era nada além de lixo. Ela deu um passo
à frente. Será que tinha imaginado? Mas não! Lá estava ele de
novo! A pilha parecia estar caindo para o lado.
A protuberância desapareceu e reapareceu. Elevou-se cada vez
mais até atingir o ponto mais alto da pilha e, então, como um vulcão
em erupção, o topo explodiu. Um nariz rosa e sujo apareceu.
Bigodes. Olhos pretos redondos. Eles pertenciam ao maior e mais
sujo rato que Sophie já vira na vida. Ela se engasgou ao vê-lo. Seu
coração estremeceu e chiou.
Sophie esperou pelas emoções que sabia que estavam prestes a
tomar conta dela: medo, nojo, horror. Mas a emoção que se
apoderou dela foi algo que nunca esperou: amor.
Ela colheu uma vagem e a estendeu para a criatura.
— Sophie, não! É um rato enorme! — Josef avisou.
Sophie não deu ouvidos a ele.
— Ratinho! Venha aqui, coisinha fofa! — ela incentivou,
balançando a vagem no ar. — Você é o animal mais maravilhoso
que já conheci. Vou fazer de você meu animalzinho de estimação.
O rato farejou a vagem e se aventurou mais perto. Sophie deu
para ele comer. Depois, ela o agarrou e o abraçou contra o peito.
— Sophie! — Josef gritou enquanto o rato se contorcia e gritava.
— Coloque essa criatura vil no chão agora!
— Mas, Josef, eu o amo! — Sophie gritou de volta.
— Lá vamos nós de novo — disse Johann com um suspiro.
O rato saltou dos braços de Sophie e rapidamente desceu para a
pilha de compostagem. Sophie implorou para ele sair. Como ele não
quis, ela começou a chorar.
— É só porque a engrenagem ainda está dura. Logo vai se
adaptar, foi o que você disse. Este coração é uma catástrofe,
Johann! Ela ama salsichas! Ela ama lesmas! Ela ama um rato
nojento! — Josef sussurrou meio que gritando.
Johann, observando Sophie cavar a compostagem, franziu a testa
profundamente.
— O coração é defeituoso, sim — disse. — Mas está funcionando,
Josef. Não é como…
— Nem fale nisso — disse Josef. — Já gosto dela. É como se
fosse uma filha. Eu não suportaria perdê-la.
Johann voltou-se para o irmão e deu um tapinha em suas costas.
— Eu sei. Eu me sinto da mesma forma. Mas o que podemos
fazer? Fiz o coração dela como o que fiz para Jasper.
Josef pareceu chocado com a menção do nome.
— Mas com aperfeiçoamentos. Foi o que você disse.
— Alguns. Mas nós dois sabemos o que vai acontecer. É só uma
questão de tempo.
Josef voltou a olhar para Sophie.
— O que podemos fazer? — ele perguntou, ecoando a pergunta
de seu irmão.
— Podemos esconder a verdade dela. Como já estamos
escondendo…
— Isto é justo?
— Estamos escondendo outras coisas dela, não é? Como o nome
de quem realmente está com o seu coração. Temos de fazer isso.
De que outra forma podemos mantê-la segura?
— Por quanto tempo esconderemos a verdade, Josef?
Josef observou a garota em seu jardim enquanto ela sorria para
uma borboleta, pegava um gafanhoto e ria de um esquilo tagarela. A
tristeza espalhou-se por seu rosto como tinta derramada em um
pergaminho.
— O máximo que pudermos.
VINTE E DOIS

A - o lenhador ensanguentado.
Ele estava deitado no chão, gritando. Segundos atrás, perdera o
controle da tora que estava cortando e acabara enterrando a lâmina
do machado profundamente em seu pé direito. Ela havia se cravado
em sua bota de couro, atravessando sua pesada meia de lã e seus
ossos. Ele puxou a lâmina e depois desabou. O sangue jorrava do
corte.
Os olhos da mulher viajaram do pé do lenhador para seu rosto.
Estava cinza de choque. Ele ainda gritava, embora não tão alto.
Seus olhos rolaram para trás. Estalando a língua, a mulher
endireitou-se, então continuou sua caminhada pela Floresta
Sombria.
Ela estava ocupada naquela manhã. Visitara uma mulher em
trabalho de parto e, juntas, inventaram alguns palavrões bem
expressivos. Depois, fora a vez de um aprendiz de dentista — um
rapaz com dedos grossos e visão deficiente — remover um dente do
siso. E, após, ela ainda comparecera a um enforcamento. Bom nó,
pescoço fino — um caso rápido. A mulher caminhou por quilômetros
pela floresta, misturando-se às sombras em seu traje escuro. As
plantas murchavam sob seus pés. Os troncos das árvores ficavam
pretos onde ela os tocava. Animais corriam para escapar de seu
olhar louco.
Depois de mais ou menos uma hora, ela passou por uma lagoa
azul límpida e chegou à beira de uma clareira ensolarada. Havia um
chalé arrumadinho bem no meio dela, branco com janelinhas
vermelhas. As floreiras estavam coloridas. Uma nuvem de fumaça
saía da chaminé, espalhando pelo ar o aroma de pão fresco.
A mulher olhou para o chalezinho com tristeza.
— A Toca — ela murmurou.
Seus olhos seguiram a cerca de estacas que o rodeava. Nem ela
nem seu irmão jamais foram capazes de violá-lo.
— É encantado. Só pode ser — ela disse, mordendo a unha do
polegar com os dentes esfarelados.
Os sete irmãos tomavam todos os cuidados para mantê-los
afastados. Tinham defesas fortes, mais fortes do que quaisquer
amuletos. Tinham livros e canções, flores e bolo de ameixa. Tinham
uns aos outros. Quando sentavam juntos ao redor da lareira à noite,
aquecendo os dedos dos pés no fogo, contando histórias e bebendo
schnapps, ninguém conseguia quebrar seu círculo.
A mulher arrancou a unha com os dentes em um acesso de
ressentimento, depois viu o sangue pingar de seu polegar. Isso a
acalmou um pouco, mas a calma não durou muito. Porque, um
momento depois, uma garota saiu da cabana e foi para o quintal
com uma cesta no braço.
Enquanto a mulher observava, a menina cortou rosas de um
arbusto e as colocou cuidadosamente uma a uma em sua cesta.
— Não pode ser — os olhos da mulher se estreitaram.
Ela se aproximou da cerca, com cuidado para permanecer sob as
sombras dos pinheiros.
Mas era ela. A menina… A princesa… Ela estava viva.
— Mas, como? Meu irmão está em posse do coração dela. Eu o vi
na caixa.
A mulher deu mais alguns passos em direção à cerca. Apertou os
olhos. Aquela era uma cicatriz no peito da garota? Acima do
decote?
— O que será que esses infelizes intrometidos fizeram? — ela se
perguntou em voz alta.
A garota virou-se de repente para cortar flores de outro arbusto, e,
então, a mulher voltou para as sombras, mas seu olhar
permaneceu. Ela poderia ensinar algo àquela notável garota.
Mostrar a ela coisas sobre si mesma que ninguém mais poderia.
Poderia fazê-la ver que ela era mais forte e mais corajosa do que
jamais imaginou ser. Parte dela queria muito fazer isso.
— Porque às vezes eu ajudo — ela sussurrou.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, um besouro verde
brilhante pousou em sua saia. A mulher abaixou e colocou a criatura
na palma da mão, sorrindo torto para ela. Depois, levou a mão ao
rosto e soprou no pequeno inseto. Instantaneamente, ele caiu de
costas, pernas minúsculas revoltas em agonia.
— Mas não sempre — ela virou o besouro.
Ele pousou no chão e saiu correndo. A mulher ergueu os olhos
avermelhados novamente para a garota.
Ela arrancou outra unha. A seguir, num redemoinho de saias
pretas e gotas de sangue caindo no chão da floresta, desapareceu
na escuridão.
VINTE E TRÊS

— V , W ! P — Sophie disse
corajosamente.
Nos últimos cinco dias, desde que abraçara o rato no jardim de
Josef, ela vinha tentando treinar seu coração para se comportar
direitinho e estava ansiosa para testar seu novo controle.
Trabalhou duro para manter seus sentimentos ocultos, como
costumava fazer antes, e ficou um pouco melhor nisso, mas só um
pouco. Na maioria das vezes, seu novo coração ainda revelava suas
emoções. Todo mundo sabia como ela se sentia a respeito de tudo,
o tempo todo, e ela odiava isso. Haakon estava vindo atrás dela.
Como ela se comportaria na corte com o coração batendo forte
como uma caipira bêbada, envergonhando-se dez vezes por dia?
Como poderia ser a rainha que Haakon queria que ela fosse?
Os irmãos tinham ido para as minas, com picaretas sobre os
ombros, horas atrás. Jeremias e Joosts não estavam com eles.
Haviam partido em uma viagem de caça no dia anterior e ficariam
fora por alguns dias. Com dois irmãos ausentes, os cinco restantes
estavam trabalhando mais horas. Tupfen tinha ido para a floresta
colher cogumelos. Apenas Weber estava em casa, em frente ao
enorme fogão de ferro, preparando coisas deliciosas para o jantar.
Ele se virou com uma perninha apoiada no quadril.
— Vá em frente — Sophie o incentivou. — Pode me testar!
Lançando um olhar cético para ela, Weber estendeu a mão para
trás, agarrou algo que Sophie não pôde ver e empurrou na frente
dela. Era um pão de centeio bem douradinho, que acabara de sair
do forno. Sophie inclinou-se para frente e inalou o perfume de dar
água na boca. Não houve barulho forte.
— Vê? — ela falou. — Eu disse! Experimente outra coisa.
Qualquer coisa!
Ela pressionou a palma da mão contra o peito:
— Não vai fazer barulho.
Weber entrou na despensa e ressurgiu um momento depois
carregando um grande prato redondo. No instante em que Sophie
viu o que havia nele, seu coração bateu como os sinos de uma
igreja no dia do casamento de um rei.
— Um bolo floresta negra? — Sophie disse, batendo o pé. —
Weber, isso é não é justo!
O bolo, com uns bons vinte e cinco centímetros de altura, era a
sobremesa favorita de Sophie. Eram camadas de massa de
chocolate embebidas em calda de cereja e recheadas com chantili.
Por fim, uma cobertura em redemoinhos enfeitava o topo, com
cerejas doces e escuras por cima.
Impulsivamente, Sophie agarrou uma cereja e a mordeu. O suco
escorreu por seu queixo. Seu coração ronronou. Weber olhou
furioso. Fez ruídos altos e estridentes que pareciam muito com uma
bronca, e Sophie percebeu quão mal-educada tinha sido.
— Desculpe — disse ela timidamente. — Acho que as coisas não
estão tão sob controle como eu pensava… Tem mais cerejas? Eu
resolvo isso. Eu…
Suas palavras foram interrompidas por um barulho alto e
crescente. Uma pressão repentina dentro de seu peito, que foi
aumentando, espremendo o ar para fora dela. Tentou recuperar o
fôlego, mas não conseguiu. Os segundos se passaram e ela ainda
não conseguia respirar. Assustada, agarrou a borda da mesa e
desejou que seus pulmões puxassem o ar, mas eles não
conseguiam. Ela estava vagamente ciente dos gritos de pânico de
Weber. Sophie tropeçou, cambaleou e caiu no chão de madeira duro
sobre as mãos e os joelhos.
O choque a sacudiu e, tão repentinamente quanto começou, a
pressão diminuiu, o barulho parou e seus pulmões se abriram
novamente. Um momento depois, ela sentiu Weber ajudando-a a se
levantar. Ele a sentou em um banco perto da mesa. Ajoelhando-se,
ele empurrou uma mecha solta de cabelo de seu rosto corado e
suado, e guinchou. Ela não entendeu todas as suas palavras, mas
sabia o significado.
— Eu-eu não sei — ela respondeu, com a voz trêmula. — Um
segundo eu conseguia respirar, no outro já não conseguia mais.
Deve ter algo a ver com o coração. Algo travou, eu acho.
Antes, Weber havia feito um bule de chá. Ele serviu uma xícara
para ela agora, levou-a para a mesa e colocou-a na frente de
Sophie. Ele afastou outra mecha de cabelo de seu rosto, com a
preocupação nublando seus muitos olhos. Estava prestes a dizer
algo a ela, quando um sibilo alto e raivoso foi ouvido. Sua sopa de
alho-poró estava fervendo. Tinha espirrado sobre o ferro quente,
onde borbulhou e queimou, exalando um cheiro horrível.
— Sinto muito, Weber! — disse Sophie. — É culpa minha. Eu
distraí você.
Ela se sentiu péssima. Weber tinha muito trabalho a fazer, e ela o
estava impedindo. Sophie se levantou e se ofereceu para ajudá-lo a
limpar a bagunça, mas ele a dispensou. Ela se sentou novamente,
suspirando desconsolada. Ao tomar outro gole de chá, percebeu
que uma de suas mangas estava se abrindo. Olhando mais de
perto, descobriu que estava rasgada do cotovelo ao ombro. Que
beleza. Devo ter prendido no banco quando caí, pensou.
— Weber, preciso remendar minha manga — disse ela. — Onde
posso encontrar outra camisa velha para vestir enquanto conserto
esta?
A aranha, limpando a sopa queimada, sacudindo uma panela de
couve-de-bruxelas, mexendo uma caçarola de lentilhas ferventes e
salgando um frango — tudo ao mesmo tempo — apontou para cima.
— No sótão? — ela perguntou.
Weber assentiu. Sophie terminou seu chá e, em seguida, foi para
o segundo andar da casa, seus passos tão pesados quanto seu
novo coração barulhento.
Uma porta no fim do corredor abria-se para outro lance de
escadas. O sótão ficava no topo deles. Sophie estava familiarizada
com isso. Ela fugia, várias vezes por dia, todos os dias, para esperar
Haakon na janelinha estreita. Um mês se passara desde que o
caçador levou seu verdadeiro coração, e ainda não havia sinal de
Haakon. Todos os dias ela acordava e dizia a si mesma: Hoje é o
dia. E todas as noites ela adormecia profundamente decepcionada.
Às vezes, uma vozinha dentro dela dizia: Ele não está procurando
por você. Se estivesse, já a teria encontrado. Sophie fazia o
possível para abafar a vozinha, mas ela persistia.
Ela foi até a janela do sótão. Era difícil ver muito através das
densas copas das árvores ao redor da casa, mas, esticando o
pescoço para um dos lados, conseguia avistar apenas uma clareira
ensolarada na floresta. E, se ela se virasse na direção oposta, via
um grupo de bétulas prateadas e uma trilha que levava à Toca.
— Onde você está, Haakon? — ela sussurrou.
Ele estava lá fora, procurando por ela. Ele estava. Ele virá.
Apenas dê a ele mais alguns dias, ela disse a si mesma. Ela tinha
de acreditar nisso, pois, sem ele, ela não tinha futuro, nenhuma
esperança.
— E, quando ele chegar, não quero recebê-lo com roupas
rasgadas — disse ela em voz alta, lembrando-se da tarefa em
mãos.
Embora visitasse o sótão diariamente, Sophie nunca tivera
realmente de procurar nada nele e viu agora que encontrar uma
camisa, ou qualquer outra coisa, seria uma tarefa difícil. Os irmãos
não haviam organizado nada. A limpeza não era seu ponto forte.
Tupfen estava sempre atrás deles, guardando peças perdidas de
relógios, cordas de arco e ferramentas.
Sophie sorriu ao pensar nos irmãos durante sua busca. Ela era
muito grata por sua gentileza e seu cuidado, e já gostava muito
deles. Schatzi, ela havia aprendido, era uma alma sensível. Tinha
cabelos ruivos e um rosto redondo que frequentemente estava
vermelho de emoção. Jakob, um homem de ação decidido, era o
mais velho. Tinha cabelos grisalhos e barba, além de rugas no rosto.
Jeremias tinha a língua ácida e era alegre, embora Sophie tivesse a
sensação de que seu bom humor fosse uma defesa, pois captara
vislumbres de uma profunda tristeza em seus olhos. Johann era
quieto e ponderado, sempre perdido em pensamentos. Joosts era o
pacificador. Josef, que sempre tinha feno grudado no corpo, ficava
mais feliz cuidando de suas galinhas, vacas e porcos. Julius era
rabugento, mas inteligente e perspicaz, e gentil também, a seu
modo. Ele era o único que lia para Sophie à noite enquanto ela
convalescia, para manter seu tédio sob controle.
Movendo-se com cuidado, Sophie passou por caixotes
empilhados em mesas, cestos equilibrados em caixas e uma
confusão de móveis quebrados que os irmãos pretendiam consertar
um dia. Ela teve que se espremer entre as cadeiras e a estrutura da
cama, lutar com sapatos para neve e varas de pescar, e empurrar
para o lado uma cabeça de alce empalhada, tudo para chegar a
uma cesta de roupas velhas que balançava em cima de uma pilha
de livros sobre um baú. Quando alcançou a cesta, esbarrou nos
livros e os derrubou no chão. Sophie fechou os olhos. Abanou a
cabeça. Nada estava dando certo. Xingando baixinho, ela abriu os
olhos novamente, colocou a cesta no chão e começou a pegar os
livros. Foi quando viu um nome gravado no baú em letras
maiúsculas, uma única palavra:
J
VINTE E QUATRO

S .C livros que estava segurando no


chão e espanou a poeira da tampa do baú.
— Jasper? — ela sussurrou, franzindo a testa. — Quem é você?
Era um dos irmãos? Os contos de fadas que ela ouvira
mencionavam apenas sete, e os próprios irmãos nunca falaram de
um oitavo. A curiosidade de Sophie foi aguçada; ela tinha que
descobrir. Soltou as tiras de couro, abriu a trava e puxou a tampa
para trás. Prendeu, então, a respiração ao ver o que havia dentro —
pilhas de pequenas pinturas, dezenas delas, uma mais bonita que a
outra.
As cenas eram tão vivas que saltavam da tela. Sophie
reconheceu a Toca e seu jardim. O riacho que corria por entre as
árvores, além da cerca. Um grupo de bétulas prateadas. Ela retirou
as pinturas, uma a uma, tomando muito cuidado. Viu o rosto de
Jakob dando graças. Josef cochilando perto da lareira. Ovos azuis
salpicados em um ninho. Schatzi nariz a nariz com um fulvo. Sophie
demorou-se com as pinturas, maravilhando-se com os detalhes e a
profundidade da emoção em cada uma delas. Eram coisas
pequenas e íntimas e, conforme ela as via, sentia-se como se
estivesse olhando diretamente para o coração do pintor. Seu
coração ronronou calorosamente.
— Eu me pergunto por que os irmãos não emolduram isso e
penduram nas paredes — disse ela. Então, cavou mais fundo no
baú.
Ela viu Julius segurando um raminho de alecrim e franzindo a
testa, como sempre. Um filhote de urso parado em um canteiro de
flores da floresta. Uma raposa espiando de dentro de um espinheiro.
Um bando de corvos em uma árvore…
… e um homem parado embaixo deles.
O sorriso de Sophie sumiu de seu rosto como o gelo de um
telhado. Ela se aproximou da imagem e a examinou.
O rosto do homem era pálido como um osso. Seu longo cabelo
caía sobre os ombros. Ele usava uma coroa de obsidiana cravejada
de joias escuras.
— Eu o vi — Sophie sussurrou, seu coração batendo forte.
Uma lembrança recaiu sobre ela, sombria e vaga. O homem
estava olhando para baixo, para ela, sorrindo cruelmente. Uma
mulher estava com ele. Mas onde isso aconteceu? E quando? Ela
nunca vira aquele homem. Teria se lembrado dele. Como alguém
poderia esquecer as profundezas sem fundo daqueles olhos
negros? Aquele sorriso horrível?
Sophie tentou agarrar-se à lembrança, dar sentido a ela, mas era
como tentar pegar um punhado de fumaça. Os irmãos nunca tinham
mencionado aquele homem, mas aqui estava ele em uma pintura.
Jasper, quem quer que ele fosse, o conhecia? E então um
pensamento assustador tomou conta dela: será que Jasper poderia
ser ele?
Ela colocou a pintura no chão e, em seguida, vasculhou o fundo
do tronco. Pincéis estavam dispostos em uma linha organizada ao
lado da paleta de pintor e potes de vidro contendo pigmentos
moídos. Havia uma boina de lã verde e um par de óculos. Um colete
de tweed. Vários cadernos de desenho. Um canivete.
Tudo, parecia, menos uma resposta.
— Sophie! — uma voz gritou do andar de baixo.
Era Josef. Sophie, ainda curvada sobre o baú, endireitou-se na
cadeira. Os irmãos já estavam em casa? Como poderia ser? Ainda
não era noite. Ela olhou para a janela do sótão e viu que estava
errada. As sombras estavam se alongando. O crepúsculo caindo
sobre a Toca. Ela havia perdido completamente a noção do tempo.
Pés subiram as escadas com pressa.
— Sophie, você está aqui? O jantar está pronto e eu…
As palavras de Josef morreram em sua garganta quando ele a viu
sentada no chão com as pinturas espalhadas ao seu redor. Ele
cruzou o sótão em alguns passos rápidos. Sem palavras, reuniu as
pinturas e as colocou de volta no baú. Sophie percebeu que elas o
aborreceram.
— Eu sinto muito. Eu… Acho que não deveria ter aberto isto —
disse ela, ajudando-o. — Fiquei curiosa sobre Jasper. E então vi
isso — ela ergueu a pintura do homem pálido — e me perguntei se
ele era o Jasper.
Josef olhou para a foto e uma expressão de ódio espalhou-se por
seu rosto, tão pura e profunda que Sophie ficou abalada.
— Este não é Jasper — ele rosnou. — Jasper era nosso irmão. O
mais novo de nós. Ele morreu. Muito tempo atrás.
— Josef, eu sinto muito — disse Sophie, surpresa com a raiva em
sua voz. — Do que ele morreu?
— Síndrome consumptiva.
Sophie percebeu que ele estava mentindo. Seu rosto, sempre
aberto e franco, estava fechado. Ele evitou os olhos dela.
— Vocês nunca falam sobre ele — disse ela. — Nenhum de
vocês.
— É difícil, Sophie. Muito difícil.
Sophie assentiu, não querendo pressioná-lo mais. Ela fez outra
pergunta, no entanto:
— Você sabe quem é o homem pálido? Aquele de pé sob a árvore
cheia de corvos?
Josef balançou a cabeça.
— Não tenho ideia.
Era outra mentira. Ele sabia quem era o homem — ela tinha visto
o reconhecimento em seu rosto um momento atrás —, mas não
queria contar. Por quê?, ela se perguntou. Josef fechou o baú e o
afivelou, tomando cuidado para prender as pontas das alças. Em
seguida, colocou os livros que Sophie derrubara de volta sobre ele.
É como se ele tivesse medo de que as lembranças fossem vazar,
ela pensou.
— O jantar está pronto — disse Josef novamente.
E seguiu em direção às escadas. Sophie o seguiu. Ao chegar ao
topo, ela percebeu que ainda precisava vestir uma camisa. Correu
de volta para a cesta de roupas velhas, vasculhou-a e encontrou
uma. Quando puxou a roupa, ouviu um barulho no telhado e uma
explosão repentina de movimento.
Ela saltou, pressionando a mão no peito, então riu de sua própria
tolice quando a causa do barulho passou voando pela janela.
Era apenas um grande corvo preto.
VINTE E CINCO

O era pequeno e coberto de preto.


A criança dentro dele, um menino, estava usando seu vestido
branco de batizado. Seus olhos estavam fechados, suas pequenas
mãos cruzadas sobre o peito. Ele tinha apenas quatro meses.
O pai do menino, o Rei da Saxônia, estava ajoelhado ao lado do
caixão, com a cabeça baixa.
A mãe do menino, arrasada pela dor, chorava em sua cama.
Adelaide os viu. Seu irmão. Seu pai. Sua mãe. Mortos há muito
tempo, todos eles, mas vivos nas profundezas de seu espelho.
E então ela se viu, uma menina de cinco anos. Seu cabelo estava
trançado. Seus olhos tinham um ar solene. Ela segurava um buquê
de flores nas pequenas mãos. Ela mesma as colhera. Algumas
murcharam, pois demorara muito para ir do jardim da rainha à
capela.
Caminhou até o altar. Seu pai estava chorando. Ela podia ouvir
seus soluços. Seu coração doeu ao vê-lo tão triste.
— Não chore, papai — disse ela ao se aproximar por trás dele,
mas ele não a ouviu.
Sem saber o que fazer, aproximou-se e deu um tapinha em seu
braço. O rei se assustou com o toque dela. Ele ergueu a cabeça.
Adelaide mal o reconheceu. A tristeza devastara seu rosto outrora
bonito.
— Papai, olhe — disse ela, oferecendo o buquê. — Trouxe flores
para o senhor.
O rei olhou para as flores, mas não as pegou. Depois, olhou para
ela.
— Três filhos mortos em três anos. Mas você, Adelaide, você
prospera. Está ficando alta e forte. — Ele ergueu os olhos para o
teto. — Deus do céu, por quê? Por que leva meus filhos e me deixa
com uma menina inútil?
A mão de Adelaide caiu lentamente ao lado de seu corpo.
Lágrimas ardiam em seus olhos. Ela não sabia que era inútil. Seu
tutor dizia que ela era inteligente. Sua babá dizia que era gentil.
O rei se levantou e olhou para o caixão.
— Meu filho, meu menininho… — disse ele, batendo a palma das
mãos contra a cabeça.
Adelaide enxugou os olhos. O movimento chamou a atenção de
seu pai.
— Venha cá, criança, venha… — disse ele, gesticulando para ela.
Mas Adelaide, agora com medo, abanou a cabeça. Ela recuou.
O rei estendeu os braços para ela. Sua mão agarrou-lhe ombro.
As flores caíram no frio chão de pedra.
— Olhe só para ele, Adelaide — disse ele, empurrando-a até o
caixão. — Olhe o seu pobre irmão morto, deitado aí. Você o vê?
Adelaide assentiu, tentando ser corajosa. Ela não gostava mais
do bebê. Seus olhos estavam fundos sob as pálpebras finas como
papel. Seu rosto estava rígido e cinza.
— Por quê, Adelaide? — gritou o rei. — Por que não foi você?
A imagem desvaneceu-se, mas a dor das palavras de seu pai
permaneceu. Ainda hoje.
Depois de todos esses anos.
— Eu me lembro daquele dia — disse uma voz atrás dela. —
Você e eu estávamos apenas começando a nos conhecer.
Adelaide se virou lentamente.
— Poucos anos depois da morte do menino, seus pais morreram
também. Mas não você, Adelaide. Você sobreviveu. Você sempre
sobrevive. — Ele bateu com uma garra negra no próprio queixo. —
Por que será?
— Por sua causa — sussurrou Adelaide.
— Sim. Por minha causa. Eu a ajudo a vencer todas as ameaças.
— Ele estava sorrindo, mas havia um tom de ameaça em sua voz.
— Não posso ajudá-la, entretanto, se não fizer o que estou pedindo.
— O que você quer dizer?
— A menina ainda vive — disse o homem.
— Não — disse Adelaide com veemência. — Isso é impossível. O
caçador me trouxe seu coração. Eu lhe entreguei o coração dela.
— Os sete homens a salvaram. Deram a ela um novo coração —
disse o homem. — Ela está na Floresta Sombria. Num chalé
chamado Toca.
Adelaide enrijeceu de raiva. E medo. A garota era uma ameaça
para ela.
O espelho disse isso a ela.
— Enquanto ela viver, você não estará segura — disse o homem.
— O que eu posso fazer? — ela perguntou ao homem. — Meu
caçador está morto.
O homem enfiou a mão dentro do casaco e retirou lindas fitas,
daquelas para atar o corpete. Feitas de seda preta brilhante, com
fios de ouro. Ele as colocou nas mãos da rainha.
— Você vai encontrar um cavalo novo em seus estábulos, um
garanhão cinza. Ele nasceu de uma tempestade e é mais rápido que
o vento. Disfarce-se e cavalgue até a Toca. Dê isso à garota.
Certifique-se de que ela amarre seu corpete firmemente com as
fitas. Isso é tudo que você precisa fazer — disse o homem.
Ele, então, desapareceu, e a rainha ficou sozinha.
Ela se voltou para o espelho.
— Espelho, espelho meu… — ela começou, hipnotizada mais
uma vez pelas imagens que viu dentro dele. — Quem quer que meu
trono seja seu?
Se alguém mais estivesse na sala com ela, teriam visto que nada
aparecera na superfície prateada.
Nenhum rei, nenhum caixão, nenhuma garota de coração partido.
Havia apenas uma mulher, magra como um sussurro. De olhos
fundos. Assombrada.
VINTE E SEIS

S , , a outra segurando um pequeno


pacote, lançou um último olhar culpado para trás.
Ninguém estava no quintal para vê-la. Os irmãos estavam na
mina.
Weber, na cozinha. Tupfen, limpando as janelas.
Sophie sabia que ela não deveria estar fazendo isso. Os irmãos a
advertiram severamente para nunca deixar a Toca. Mas ela
precisava. Um pouco mais de um mês havia se passado desde que
ela saíra do palácio com o caçador, e ainda não havia sinal de
Haakon.
A Toca ficava bem escondida, e Sophie tinha certeza de que
Haakon simplesmente não a localizara. Na noite anterior, enquanto
ajudava a limpar os pratos do jantar, ela bolou um plano — voltaria
para o lago, para o lugar onde o caçador havia arrancado seu
coração. As equipes reais muitas vezes passavam galopando em
caçadas, e era provável que Haakon também passasse por lá.
Ela passaria algumas horas lá e, com sorte, o veria quando sua
equipe de busca se aproximasse. Ela correria e acenaria para eles.
Contaria a Haakon o que a rainha e seu caçador haviam feito, e,
então, eles cavalgariam, rápido e forte, para a fronteira. Não teriam
escolha. Haakon era o estimado convidado da rainha, mas ele não
seria capaz de retornar ao seu palácio, uma vez que soubesse o
que ela fizera a Sophie.
Doía em Sophie desconsiderar as instruções dos irmãos e fugir. E
ela sabia que, quando ela e Haakon estivessem reunidos
novamente, não haveria tempo para cavalgar de volta para a Toca
para dizer aos irmãos que ela estava indo embora, por isso colocou
um bilhete em seu travesseiro, explicando para onde tinha ido e por
quê, agradecendo a eles tudo o que fizeram por ela, e prometendo
voltar um dia.
Sophie não levara quase nada com ela, apenas uma maçã, um
pedaço de pão e a bolsinha de rubis, amarrada em um guardanapo.
Ela não tinha ideia se seu plano funcionaria, mas tinha que tentar.
Um mês era muito tempo. E se Haakon estivesse perdendo as
esperanças? E se ele parasse de procurá-la e voltasse para o seu
reino? Se isso acontecesse, ela perderia sua única chance de ser
salva. Ela o perderia.
Sophie destrancou o portão e o abriu. Um instante depois, estava
correndo pela trilha de pedra. Ela tinha uma ideia aproximada da
direção em que ficava o lago — às vezes vira Johann ir em direção
a ele à noite, com uma vara de pescar pendurada no ombro e, meia
hora depois, ela o encontrou.
Com dificuldade, contornou a margem pantanosa do lago,
assustando algumas rãs-touro e pisando na lama macia às vezes.
Ela estava suada e sem fôlego quando chegou à margem gramada,
onde os cavaleiros paravam para deixar seus cavalos beberem.
Encostou-se em uma árvore para recuperar o fôlego. Ao fazer isso,
seu coração de repente trotou e gemeu, depois desacelerou
dramaticamente, com segundos decorrendo entre cada batida.
Sophie se sentiu tão tonta que quase desabou ali onde estava,
mas mal conseguiu tropeçar em um tronco e sentar-se. De olhos
fechados, ela respirou fundo, esperando que seu coração se
endireitasse.
É só porque a engrenagem ainda está dura. Logo vai se adaptar,
Johann sempre dizia com um sorriso tranquilizador quando isso
acontecia. Mas, até agora, não pareceu se adaptar. Em vez de
diminuir com o passar dos dias, esses surtos estavam acontecendo
com mais frequência.
Depois de vários minutos, o coração finalmente voltou ao ritmo
normal e Sophie abriu os olhos. Ela se sentou quietinha, prestando
ansiosamente atenção ao som de cascos de cavalo. Talvez Haakon
estivesse a caminho neste exato momento. Ela imaginou a
felicidade em seu rosto quando a visse. Ela o imaginou pulando da
sela e abraçando-a, dizendo que ele nunca acreditara que ela
estivesse morta, que a procurara todos os dias de sua vida.
Sophie prestou atenção aos sons, mas não ouviu nada, apenas a
brisa suspirando por entre os pinheiros. Ela se resignou a uma longa
espera, à possibilidade de retornar no dia seguinte. E no outro dia.
Levantou-se para voltar pela mesma trilha. Em vez disso, porém,
parou de repente. Um arrepio percorreu seu corpo.
Foi aqui, ela pensou, seu olhar varrendo a margem, a borda da
água, os altos juncos que a circundavam. Foi aqui que o caçador
arrancou meu coração.
O cheiro de lama do lago, o sussurro dos pinheiros… Tudo trouxe
o momento de volta à sua memória. Desde o dia em que acordou na
Toca, Sophie havia reprimido as lembranças, mas elas vieram à
tona de novo agora, inundando sua mente com imagens, sons e
sentimentos horríveis. Ela sentiu o choque novamente, de quando o
caçador a puxou para si e a lâmina penetrou em seu peito. E viu os
rostos — dois rostos — inclinados sobre ela, pálidos e cruéis. O
homem, o que usava a coroa de obsidiana, o que Jasper havia
pintado… Ela não o tinha imaginado, mas o visto de verdade. Bem
ali. Ele viera até ela enquanto ela estava morrendo. Quem era ele?
O coração de Sophie enguiçou e gemeu, depois acelerou. Esta
não foi uma boa ideia, ela pensou. Preciso voltar para a Toca.
Agitada, ansiosa, impulsionada por sua emoção, ela correu para
longe do lago. Margeando a água, refez seus passos. Poucos
minutos depois, estava voltando por entre as árvores.
Caminhou por quase uma hora antes de perceber que nada mais
lhe parecia familiar. Ela havia passado por uma grande pedra cinza
em seu caminho da Toca para a lagoa. Um enorme espinheiro. Uma
árvore carbonizada por um raio. Onde eles estavam?
Um barulho agudo e estridente a fez pular. Ela ergueu os olhos.
Um bando de corvos estava reunido nos galhos acima. Seus olhos
voltaram-se para o céu. O sol estava baixo. Os irmãos estariam em
casa em breve. E ficariam muito preocupados se descobrissem que
ela fora embora. Ela apressou o passo para que pudesse voltar
antes deles.
O pânico vibrou dentro de sua cabeça, dizendo-lhe que ela estava
irremediavelmente perdida. O crepúsculo estava chegando e os
lobos logo estariam à espreita.
— Para onde devo ir? — ela murmurou, tentando se orientar.
Sophie tinha a vaga noção de que havia caminhado para o leste
da Toca, então decidiu ir para o oeste agora, na direção do sol
poente. Perturbada, ela olhou para todos os lados, exceto para onde
estava indo, e acabou tropeçando e quase caindo estatelada no
chão. Endireitou-se, então se virou para ver em que tinha tropeçado.
Ela esperava uma rocha protuberante ou uma raiz de árvore
retorcida.
Não um esqueleto.
Gritando de horror, Sophie cambaleou para trás diante dos ossos.
Seus olhos percorreram os restos mortais. Um pequeno sapo
marrom espiou de cima do seu musgo. A mandíbula se abriu em um
gemido silencioso. Pedaços de tecido, apodrecidos pelo tempo,
cobriam os ossos longos. Uma faca de caça estava perto do quadril,
meio enterrada no chão. As trepadeiras serpenteavam pelas
costelas do esqueleto. Algumas das costelas estavam quebradas.
Suas bordas enegrecidas emolduravam um buraco denteado sobre
o lugar onde um coração um dia havia batido.
Enquanto Sophie olhava para o buraco, o medo passou uma unha
afiada pela nuca dela. Ela desviou do esqueleto e correu. Seu
pânico havia se transformado em medo, fazendo-a respirar em
pequenas arfadas curtas. Ela não tinha andado mais de vinte metros
quando viu outro esqueleto no chão, este mais velho e quase
totalmente coberto por musgo.
Sophie tropeçou, primeiro descendo por uma ravina, depois
subindo uma colina. E, então, viu algo pior. Não um esqueleto, não
ainda. Mas um corpo. Estava encostado em uma árvore. A
decomposição ainda não havia tomado o rosto da jovem, mas os
pássaros haviam arrancado seus olhos. Também estava sem
coração.
O coração de Sophie bateu forte dentro do peito. Ela não sabia se
gritava de terror ou chorava. Tremendo muito, girou em um círculo.
Aquela mulher, as outras pessoas… Todos tinham morrido porque
seus corações foram arrancados. Assim como o caçador havia
arrancado o dela. Quem quer que fosse esse alguém, a Floresta
Sombria parecia ser seu terreno de caça. E era ali que ela se
encontrava, sozinha. Não havia ninguém para ajudá-la, nem os
irmãos, nem Haakon.
Um soluço de terror escapou de seu peito. E depois outro. Ela
pressionou as mãos contra a boca para abafá-los, certa de que, se
começasse a chorar, não seria capaz de parar, que acabaria
desolada no chão da floresta. Marchando para frente com as pernas
bambas e fracas, ela cruzou um riacho e lutou contra arbustos
espessos. E, então, ao chegar ao topo de outra colina, viu um grupo
de bétulas prateadas. Ela se lembrava de ter visto bétulas da janela
do sótão do chalé.
— Por favor, que sejam as mesmas árvores. Por favor — ela
implorou. Se fossem, a Toca não poderia estar longe.
Sophie manteve os olhos fixos nas árvores, respirou fundo e
correu.
VINTE E SETE

S - .
Eles estavam chamando seu nome. Repetidas vezes. Com toda a
força de seus pulmões. Ao se aproximar da Toca, ela viu tochas
balançando no lusco-fusco do crepúsculo.
— Estou aqui! — gritou ela, fraca de alívio. — Aqui!
Um momento depois, Josef estava ao seu lado.
— Onde você esteve? — perguntou ele, a voz aguda de
preocupação. Então ele ergueu a tocha e deu uma boa olhada nela.
— O que aconteceu com você?
As botas de Sophie estavam cobertas de lama. Os espinhos
rasgaram sua saia. Seu cabelo, antes preso num coque, estava
solto sobre os ombros. Seu rosto, vermelho.
Jakob juntou-se a eles, sem fôlego e ofegante.
— Estávamos tão preocupados! Chegamos em casa e você não
estava! — Ele se virou, colocou a mão em concha sobre a boca e
berrou: — Nós a a encontramos!
Juntos, os três voltaram para o chalé. Quando chegaram ao
portão, os outros estavam no pátio, esperando por eles. Havia
muitas perguntas para responder.
— Por que você foi embora?
— Aonde foi?
— Graças aos céus você está bem!
— Podemos entrar, por favor? Tupfen não parava de chorar e
Weber estava tão chateado que queimou os bolinhos.
— Sinto muito por ter dado esse susto em vocês — disse Sophie
enquanto se dirigiam para a porta. — Eu fui até o lago.
— O lago — disse Julius, horrorizado. — Por quê?
— Para ver se Haakon estava lá, procurando por mim — Sophie
admitiu.
— Que coisa tola de se fazer — disse Julius.
Sua voz era severa, mas Sophie também sentiu medo em suas
palavras.
— Eu sei — lamentou Sophie. — Eu… Eu os vi. Os ossos. Eu
também vi um corpo.
Olhares preocupados foram trocados entre os irmãos. Sophie os
percebeu.
— O que foi? — ela disse. — O que isso quer dizer? Por que
esses restos mortais estão na floresta?
— Entre, Sophie — disse Julius seriamente. — Tire essas botas
molhadas e troque de roupa.
— Não tenho outra roupa — disse Sophie.
— Você pode pegar uma calça e uma camisa emprestadas.
Tupfen vai pegá-las para você. Depois, vamos jantar. Weber
manteve a comida aquecida.
Enquanto todos eles dirigiam-se ao corredor de entrada do chalé,
Sophie lutou contra o desejo de conversar mais. Ela queria
respostas, e os irmãos as tinham. Podia ver que sim, mas, como
lhes havia causado muitos problemas, ficou de boca fechada e
decidiu fazer suas perguntas mais tarde, quando todos estivessem
sentados à mesa.
Depois de tirar as botas, Sophie entrou na cozinha. Tupfen e
Weber correram até ela. Sophie beijou suas bochechas e pediu
desculpas a eles também, por causar tanta preocupação. Alguns
dos irmãos puseram a mesa; outros acenderam velas ou
alimentaram o fogo.
Sophie estava saindo da cozinha em direção à escada, com a
intenção de subir até seu quarto para se trocar, quando Johann,
pensando que ela já tinha saído do ambiente, inclinou a cabeça para
Josef e cochichou:
— É ele.
Suas palavras foram dirigidas apenas aos ouvidos de seu irmão,
mas Sophie as ouviu. Ela se virou.
— Quem? — questionou ela, olhando para Johann. — Você disse:
É ele. De quem você está falando?
Os olhos de Johann arregalaram-se. Ele percebeu que tinha sido
ouvido. Gaguejou e se enrolou, tentando voltar atrás, mas Sophie
não se deixou enganar.
— Aqueles ossos na floresta… Já pertenceram a pessoas —
disse ela. — Seus corações foram arrancados. Assim como o meu.
Há coisas que vocês não estão me contando.
As imagens voltaram à sua mente — de olhos negros perfurando-
a, de um sorriso cruel. Ela continuou:
— É aquele homem pálido, não é? É dele que você está falando.
Aquele na pintura de Jasper. Quem é ele?
Ela olhou de um irmão para outro, seus olhos implorando pela
verdade. E, finalmente, ela a ouviu.
Julius colocou as mãos nas costas de uma cadeira e se apoiou
nela, de cabeça baixa.
— Ele se chama Corvus. É o Rei dos Corvos.
A raiva explodiu dentro de Sophie. Os irmãos esconderam coisas
dela e não tinham o direito de fazer isso.
— Foi ele quem tirou o coração de todas aquelas pobres pessoas
na floresta, não foi? — disse ela. — Quando eu estava morrendo, eu
o vi. Ele se inclinou sobre mim. Ele está com o meu coração
também? O caçador mentiu para mim? Vocês mentiram?
— Não, Sophie, o caçador não mentiu — Julius disse com pesar
na voz. — Corvus está com o seu coração. A rainha deu a ele.
— Como você sabe disso? — Sophie perguntou, sua raiva
crescendo.
— Quando nós a encontramos, você estava quase morta — Julius
continuou. — Sua alma estava deixando seu corpo. Corvus estava
chegando. Com sua irmã, Crucia. Weber capturou sua alma na hora
certa, mas pegá-la nos deixou sem tempo para correr. Então nos
escondemos. Foi quando ouvimos Corvus dizer a Crucia que estava
indo ao palácio para pegar seu coração com a rainha.
— Mas, por quê? O que ele quer com o meu coração?
— Ele os coleta e os mantém em uma sala em seu castelo, em
caixas de vidro encantadas, vermelhos e vivos.
Sophie se sentou à mesa, agora mais perplexa do que zangada.
Parecia que alguém havia chutado suas pernas.
— O que ele quer com os corações?
— Não sabemos.
A cabeça de Sophie estava girando.
— Por que vocês não me contaram essas coisas semanas atrás?
Pela primeira vez desde que começara a falar, Julius ergueu a
cabeça. Sophie viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Julius, ranzinza e rabugento, chorava. Isso a assustou mais do que
qualquer coisa que ele dissera.
— Julius, quem é esse Rei dos Corvos? — Sophie perguntou. —
De onde ele veio?
— Ninguém sabe — respondeu Julius. — É certo, porém, que se
trata de um homem poderoso e perigoso, e você é uma garota com
um coração defeituoso. As pessoas se perdem na Floresta Sombria,
Sophie, e a maioria delas nunca consegue voltar. É por isso que
escondemos coisas de você. Por isso que tentamos mantê-la aqui,
na Toca, segura e protegida… — a voz de Julius falhou. Ele não
conseguiu terminar.
Então Johann continuou por ele:
— Ele levou Jasper, Sophie — disse suavemente. — Foi ele quem
levou nosso irmãozinho. Não vamos deixá-lo levar você.
VINTE E OITO

V . Todos estavam sentados


agora. Weber serviu o vinho.
Johann estava falando. Seus irmãos, olhando para o fogo. Ou
para suas taças. Um estava com os olhos fechados, uma defesa
contra a dor. Todos eles sabiam a história que estava sendo
contada. Eles a tinham vivido.
Sophie se inclinou para frente em sua cadeira, os cotovelos sobre
a mesa, ouvindo com atenção. Johann já havia dito a ela que Jasper
era o caçula da família, talentoso e sensível.
— Ele era um artista — Johann disse agora. — Pintava o que
amava, uma cesta de maçãs ou um pato em seu ninho. Um dia,
decidiu levar suas pinturas a Königsburg, para ver se conseguiria
vendê-las.
Johann parou aqui para beber um gole de vinho. Seus olhos,
sempre suaves e distantes, adquiriram uma dureza fria.
— Não deu certo. Os mercadores riram ao ver seu trabalho.
Ninguém quer imagens de maçãs e patos, eles disseram. Todos
querem retratos da realeza. Ou, melhor ainda, retratos de si
mesmos. Envoltos em casacos de peles emprestados e diamantes
falsos. Há muito dinheiro a se ganhar fazendo isso, garoto! Jasper
não vendeu uma única pintura. Ele mudou depois daquele dia.
Tornou-se melancólico e quieto. Acreditava que suas pinturas
fossem todas erradas, que ele era todo errado. Guardou suas tintas
e seus pincéis, e começou a fazer longas caminhadas na floresta.
Foi lá que o encontramos. Com um buraco no peito. Sem seu
coração. A uma fração de segundo da morte.
— E vocês o salvaram — disse Sophie.
Johann assentiu.
— Eu fiz um coração para ele. Como fiz para você. Ele também
funcionava mal, mas de uma maneira diferente. Em vez de sentir
tudo, o pobre Jasper não sentia nada. Ele disse que preferiria estar
morto a viver assim. — Enquanto Johann falava, a tristeza pareceu
desmoronar sobre ele. Seus ombros caíram; seu corpo amoleceu.
Sophie percebeu que ele se culpava. Ele completou:
— A ação física do coração funcionou bem, no entanto. Por um
tempo, pelo menos.
— Por um tempo… — Sophie repetiu, um forte pressentimento se
instalando em seu próprio coração. — O que aconteceu, Johann?
Mas Johann não respondeu. Julius, que estava brincando com
uma vela enquanto Johann falava, passando o dedo para frente e
para trás na chama, respondeu por ele.
— Parou.
Como ventos girando antes de uma tempestade, carregando
poeira e folhas mortas com eles, a memória de Sophie soprou
fragmentos de um sonho em sua mente. Ela se lembrava de ter se
afogado em um mar vermelho de dor, depois de ver engrenagens,
rodas, talhadeiras e molas espalhadas ao seu redor. Lembrou-se de
acordar e perguntar aos irmãos de que era feito seu novo coração.
Engrenagens e rodas. Fios.
A verdade atingiu Sophie com uma força brutal.
— Você é relojoeiro, Johann. E esta coisa dentro de mim… A
única coisa que está me mantendo viva… Tem o mecanismo de um
relógio.
— Sim — confirmou Johann. — É.
Os relógios marcavam o tempo, Sophie sabia disso. Alguns eram
lentos, outros rápidos. Alguns eram simples, outros diabolicamente
intrincados. Alguns eram confiáveis, outros não. Mas todos eles
tinham uma coisa em comum: ou você dá corda neles, ou eles
param.
A tontura, os surtos que a deixavam sem fôlego, todos esses
eram sinais — sinais de que seu coração estava desacelerando.
— Por q-quanto tempo Jasper viveu? — ela perguntou em voz
baixa.
— Nem mesmo um mês. Ele morreu no caminho para
Nimmermehr, o castelo do Rei dos Corvos — Johann disse.
Sophie sentiu que estava perdendo o fôlego. Apenas um mês, ela
pensou.
— Jasper não suportava viver sem seus sentimentos — explicou
Julius. — Decidiu que iria encontrar uma maneira de entrar no
castelo para roubar seu coração de volta. Ele tinha ouvido falar que
havia magia, algum tipo de feitiço, que poderia colocar seu coração
de volta em seu corpo. Há bruxas nesta floresta. Algumas são muito
poderosas.
A esperança foi despertada em Sophie:
— Existe mesmo tal feitiço?
— Nunca descobrimos — respondeu Josef. — Fomos com Jasper
para Nimmermehr. Não podíamos deixá-lo ir sozinho. Foi uma
jornada difícil. A uma semana de caminhada daqui. Quando
finalmente chegamos ao castelo, as árvores eram tão altas, os
galhos tão densos que a luz mal os penetrava. Havia criaturas na
floresta…
— Que criaturas? — perguntou Sophie.
Josef balançou a cabeça, como se estivesse perdido.
— Criaturas sombrias. Como de um pesadelo. Com longas
garras. Algumas com olhos vermelhos. E algumas sem olhos. Elas
se escondiam na escuridão. De início, ficavam longe, mas depois
foram se aproximando. Ouvíamos os sussurros. E gemidos. Nós
corremos, tentando fugir delas, mas o esforço era demasiado para
Jasper. Seu pobre coração falhou a apenas um quilômetro do
castelo. Nós o trouxemos de volta para a Toca e o enterramos.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. O único som que se ouvia
era o estalar da lenha na lareira.
— Quanto tempo me resta? — Sophie finalmente perguntou.
— Você já sobreviveu por mais tempo do que Jasper. Aprendi
com os erros que cometi com o coração dele — disse Johann
rapidamente, evitando a pergunta dela. — Aperfeiçoei o mecanismo.
Adicionei pesos e contrapesos. Mais molas. Batidas mais precisas.
Fui capaz de prolongar a quantidade de tempo…
— Johann, quanto tempo?
Johann baixou os olhos para o prato. Ele espanou um pouco de
poeira imaginária.
— Um mês, eu acho. Talvez um pouco mais ou um pouco menos.
Sophie baixou a cabeça entre as mãos, sentindo-se feita do mais
fino vidro, tão frágil que o toque mais suave poderia quebrá-la. Ela
escapou da morte apenas para ficar cara a cara com ela mais uma
vez.
— Toda aquela agonia, todo aquele medo… Para ganhar tão
pouco tempo? — disse ela de forma entrecortada. — Por que você
se deu a esse trabalho, Johann? Você devia ter me deixado morrer.
Johann não respondeu. Ninguém respondeu. Weber, chateado,
insistiu em servir o jantar. Ele colocou uma travessa de sauerbraten
sobre a mesa, a carne tenra derretendo em seu molho de gengibre;
uma tigela de repolho roxo cravejado de passas rechonchudas; e
outra contendo spaetzle amanteigado e salpicado de salsa.
Ninguém tinha vontade de comer, mas não disseram nada. Eles
sabiam que alimentá-los era a maneira de a aranha confortá-los.
Depois de um momento, Josef pigarreou. Os outros pareciam
alarmados.
— Josef, não — Julius começou a dizer.
Mas Josef o interrompeu:
— Eu tenho que dizer. Sem mais mentiras. Ela precisa saber —
disse ele.
Sophie ergueu a cabeça e recostou em sua cadeira.
— Há mais notícias ruins?
— Jeremias e Joosts não foram caçar.
Sophie encolheu os ombros sem compreender.
— O que isso tem a ver com a minha vida cada vez mais curta?
— Foram para Nimmermehr, Sophie. Para roubar seu coração de
volta.
Por um longo momento, Sophie não disse nada, pois as palavras
não saíam de sua boca. Jeremias e Joosts haviam empreendido
uma viagem perigosa, planejavam invadir o castelo de um rei
assassino — por ela. Ela ficou profundamente comovida com sua
abnegação.
— Por quê? — perguntou ela finalmente.
Os irmãos todos se entreolharam, expressões confusas em seus
rostos.
— O que você quer dizer? — perguntou Schatzi.
— Por que eles arriscariam suas vidas por mim? Por que vocês
permitiriam isso?
Johann riu, como se a resposta não pudesse ser mais óbvia.
— Porque eles amam você, Sophie. Todos nós amamos.
Sophie baixou os olhos para o prato. Dentro de seu coração
mecânico, uma engrenagem travou enquanto as emoções
conflitantes lutavam entre si — gratidão, dúvida, admiração,
indignidade.
— É uma grande bondade. Grande demais — disse ela
calmamente.
— Você fala como se a bondade fosse uma coisa ruim — disse
Jakob.
Sophie ergueu os olhos para ele.
— Porque é. Bondade é fraqueza — disse ela, ecoando as
palavras da madrasta. — A bondade é perigosa.
Jakob estalou a língua.
— A bondade é muitas coisas — disse ele. — É gentil. Carinhosa.
Tolerante. Nasce da paciência e da fé. E, às vezes, sim, é perigosa.
Ajudar um animal ferido que pode atacar, defender alguém que está
sendo intimidado por brutamontes, invadir o castelo do Rei dos
Corvos… Todas essas coisas são perigosas. Mas tentar entender
outra criatura, nos colocar no lugar dela, ajudá-la, mesmo quando
isso nos custa caro, mostra força, Sophie, não fraqueza.
Sophie desejou de toda sua alma acreditar nele. E, ainda assim, a
voz de sua madrasta soou alto em sua cabeça, e a de Haakon
também. Disseram a ela que nenhum governante podia se dar ao
luxo de ser gentil, que a brutalidade e o medo eram o que
mantinham os comandantes leais e os súditos obedientes. Ela se
encolheu ao pensar no que diriam sobre seu coração mecânico e
como ele revelava suas emoções.
— Vocês acham que eles vão conseguir? Jeremias e Joosts? —
perguntou ela. — Você acha que eles conseguirão realmente roubar
meu verdadeiro coração de volta?
Julius ergueu as mãos, como que para afastar o excesso de
esperança.
— Não sabemos. Razão pela qual Josef deveria ter mantido sua
boca fechada. Já estivemos em Nimmermehr. Vimos o que se
esconde naquela floresta. Jeremias e Joosts terão que ser muito
astutos e sortudos se quiserem entrar no castelo, roubar seu
coração e escapar ilesos. Até que voltem para a Toca com ele, você
não estará mais segura do que agora.
Sophie entendeu o que ele estava dizendo — Jeremias e Joosts
tinham apenas uma chance mínima de sucesso.
— Mas posso ter esperança — arriscou ela.
Julius fez uma careta.
— Se precisa ter — ele resmungou.
Weber apontou para a comida na mesa. Ele guinchou, irado.
— Sim, sim, você está certo, Weber — Schatzi disse rapidamente,
pegando o prato de sauerbraten. — É um insulto para o cozinheiro
deixar a comida esfriar. — Ele se serviu e passou o prato.
Os outros fizeram o mesmo, e logo todos estavam comendo. As
velas brilhavam. O fogo queimava alto. O ânimo de todos foi
reforçado pela deliciosa comida de Weber.
Bruxas não eram as únicas criaturas mágicas na Floresta
Sombria; a aranha tinha sua magia também.
Enquanto comiam, Sophie perguntou quando Jeremias e Joosts
voltariam.
— Em duas semanas, esperamos — disse Jakob. — Talvez três.
O estômago de Sophie se contraiu de ansiedade. Três semanas
era muito tempo quando só se tem um mês de vida.
— Você não deve se aventurar de novo enquanto esperamos por
eles nem deve deixar ninguém entrar pelo portão. O Rei dos Corvos
pode estar por perto — avisou Julius, lançando um olhar severo
para Sophie. — Eu sempre pensei que Jasper poderia ter vivido
mais se tivesse ficado em casa. Seu coração poderia ter
desacelerado mais devagar se ele não o tivesse sobrecarregado. Se
não tivesse se forçado a atravessar um terreno ruim no mau tempo
para chegar a Nimmermehr. Um mês não é muito, mas pode muito
bem ser tudo de que você precisa. Se conservar sua energia. Se
ficar quieta à espera de Jeremias e Joosts. Se for cuidadosa.
Sophie entendeu o que ele quis dizer.
— Se eu não sair de novo da Toca — disse ela. — Se eu não me
aventurar pela floresta. Se eu não tentar encontrar Haakon.
Julius assentiu. Ele cobriu a mão de Sophie com a sua.
— Se você não exigir de seu coração mais do que ele pode dar.
VINTE E NOVE

E um coração.
E o Rei dos Corvos usa todos os métodos; ele não ignora
nenhum. Fica feliz de arrancá-lo de uma vez, como eu, o caçador,
fiz.
Fica feliz de tirá-lo pedaço por pedaço, ano após ano, como um
avarento acumulando moedas, com silêncios punitivos, olhares
cortantes e falsas gentilezas.
Palavras venenosas também funcionam. São tão afiadas quanto
facas e deixam suas vítimas vazias.
Na Floresta Sombria, uma princesa olha para as estrelas pela
janela de seu quarto. Disseram que estava errada. E agora ela
acredita que está ainda mais errada, com um coração falho, batendo
forte, que é uma responsabilidade maior do que o anterior.
A quilômetros de distância, no palácio, a rainha olha fixamente
para o seu espelho. Ela é tantas coisas: poderosa, corajosa,
inteligente, feroz. Mas o vidro prateado nunca a deixa esquecer o
que ela não é — um menino, um filho, um homem, um rei.
Você se assusta com o que vê quando se olha no espelho? Acha
grande demais? Pequeno demais? Sente que está tudo errado?
Que nunca há nada certo?
Ouça-me, criança. Você deveria se assustar muito mais com o
que está olhando para você.
TRINTA

S , fazendo uma pausa de


alguns momentos em suas tarefas.
Havia olheiras escuras sob seus olhos. Fazia dois dias que
soubera a verdade sobre seu novo coração e o antigo. Desde então,
ela não tinha conseguido dormir muito. Corria para a janela do sótão
com mais frequência do que antes, esperando não apenas por
Haakon, mas também por Jeremias e Joosts. Ela estava
preocupada com os dois irmãos. O Rei dos Corvos era um inimigo
mortal — e se ele os capturasse? Ela também estava preocupada
consigo mesma. O tempo não corria a seu favor. Seu coração
estava desacelerando a cada minuto que passava. Perguntou-se
com um distanciamento estranho e frio como seria ouvir os últimos
segundos de sua vida passando. Doeria? Ela sofreria? Ou tudo
simplesmente pararia? Como os ponteiros de um relógio parando?
Um passarinho piou de um galho alto, dispersando seus
pensamentos mórbidos. Sophie abriu os olhos e ouviu sua música,
determinada a colocar as preocupações de lado, mesmo que
apenas por um tempo, e desfrutar do belo dia. O céu estava de um
azul claro de partir o coração, e uma brisa suave soprava pelo
jardim, espalhando os aromas de lavanda e alecrim. Os raios
quentes do sol se alongavam, no entanto. Os irmãos estariam em
casa em breve, assim como Weber e Tupfen, que tinham ido para a
floresta colher mirtilos.
Sophie sabia que devia terminar a costura para poder ajudar
Weber a preparar o jantar. Ela estava sentada em uma velha colcha
no quintal, remendando sua saia. Os espinhos tinham rasgado a
bainha durante sua corrida frenética pela Floresta Sombria, e, desde
então, ela vinha usando uma velha calça de Jeremias com as barras
soltas, uma de suas camisas de linho e seu corpete. Com linha e
agulha, trabalhou dentro e fora do tecido da saia. Poucos minutos
depois, ao dar o nó no fio, uma voz gritou atrás dela, fazendo-a
pular.
— Boa tarde, linda senhorita! Posso lhe oferecer meus produtos?
Tenho muitas coisinhas adoráveis: anéis e broches, dedais e
tesouras. Ficaria feliz em mostrá-las a você!
Sophie se levantou, assustada, mas depois relaxou um pouco
quando viu que era apenas uma velha mascate parada no portão —
uma senhora com uma capa puída e uma cesta nas costas. Tinha
cabelos grisalhos e olhos bondosos. Parecia muito boazinha, mas,
quando os irmãos partiram para suas minas naquela manhã,
avisaram Sophie, mais uma vez, para não se aventurar além da
cerca.
— Não preciso de nada hoje, obrigada — Sophie disse.
O rosto da mulher ficou triste. Sophie sentiu pena dela. Ela era
magra e parecia muito cansada.
— Posso pedir um copo d’água? Andei muito e estou com muita
sede — disse a mulher, que acenou com a cabeça para o poço no
quintal. — Eu mesma posso me servir. Não vou incomodar você. Se
eu pudesse entrar e sentar por um momento…
Sophie sacudiu a cabeça.
— Não estou autorizada a deixar estranhos entrarem.
— Entendo, minha criança. Obrigada mesmo assim. Que Deus a
proteja. — A mulher esboçou um sorriso ao se virar, mas seu rosto
enrugado, emoldurado pelo capuz da capa, parecia abatido.
Coitadinha, Sophie pensou, caminhando por quilômetros com
aquela cesta pesada. Certamente não há mal nenhum em lhe dar
um copo d’água.
— Espere! — gritou ela. — Não se vá. Vou pegar água para a
senhora.
A velha se virou, sorrindo de alívio. Ela tirou sua cesta e a colocou
no chão.
— Obrigada, criança — disse ela.
— Fique aí — Sophie pediu. — Eu volto já.
A mulher assentiu com gratidão, e Sophie saiu correndo. Poucos
minutos depois, ela voltou, carregando uma xícara de água fria e um
prato com um sanduíche de presunto e queijo que montara às
pressas. Entregou-os por cima do portão e a mulher os pegou
ansiosamente, bebendo a água na mesma hora.
— Você é uma menina gentil — disse ela, sentando-se em um
toco. — Qual é o seu nome? — ela perguntou enquanto mordia o
sanduíche.
Sophie hesitou, depois repreendeu-se por ser tão boba. Uma
velha não poderia machucá-la.
— É Sophie. E o seu?
A mulher engoliu em seco.
— Ada — disse ela, limpando os lábios com as costas da mão.
Ela colocou o prato no chão, inclinou-se sobre a cesta e
vasculhou dentro dela. Quando se endireitou novamente, estava
segurando um lindo par de fitas. Eram feitas de seda preta, com fios
de ouro tecidos nelas.
— Para você. São um presente. Para lhe agradecer por sua
gentileza.
Sophie tentou recusar, mas a velha se levantou e foi até o portão.
Ela estendeu as fitas.
— Vamos, pegue-as — insistiu a mulher. — Elas combinam com
você.
Sophie mordeu o lábio. As fitas eram muito bonitas, certamente
muito mais do que os velhos cadarços vermelhos que estava
usando para amarrar seu corpete.
— Tudo bem, então — disse Sophie, encantada e estendendo a
mão para o portão. — Obrigada.
— Coloque-as — a velha insistiu enquanto Sophie tirava as fitas
de sua mão. — Eu adoraria ver como ficam em você. — Um
sorrisinho secreto curvou os cantos de sua boca.
Seus olhos cor de índigo brilharam sombriamente. Mas Sophie,
desfazendo avidamente o nó das fitas, não percebeu.
Assim que as separou, Sophie pendurou-as no portão. Então ela
desfez os cadarços do corpete. Ao puxá-los, o corpete soltou.
Segurando-o contra o corpo com os cotovelos, Sophie jogou os
velhos cadarços no chão e começou a enfiar as fitas novas pelos
ilhós. Quando seus dedos ágeis terminaram a tarefa, ela olhou para
si mesma e sorriu. Eram uma grande melhoria.
— Como estão lindas, minha querida! — exclamou a velha. —
Mas estão ainda muito soltos. Aqui, deixe-me ajudá-la. — A senhora
alcançou por cima do portão, desfez o nó que Sophie fizera e
apertou os laços.
— Aff! — fez Sophie, rindo. — Eu mal consigo respirar!
E, então, a velha deu um nó tão apertado nas fitas que Sophie
realmente não conseguiu respirar. Parecia que até a última gota de
ar havia sido espremida para fora dela.
— Estão apertadas demais! — ela tentou dizer, mas não
conseguiu pronunciar as palavras.
A mulher se afastou do portão e, ao fazê-lo, seu capuz
escorregou de sua cabeça. Seu cabelo cinza ficou loiro. Seu rosto
enrugado tornou-se liso. Seus olhos amáveis se tornaram cruéis.
O coração de Sophie bateu forte de medo. Ela tentou gritar, mas
tudo que saiu dela foi um gemido áspero.
— Você nunca, nunca aprenderá quão perigosa é a bondade? —
a rainha disse com sua voz gelada de escárnio.
Sophie tropeçou. E caiu contra o portão. Lutando, ergueu-se
sobre ele.
— Por favor… Por favor… — ela implorou, estendendo a mão
para a madrasta. Mas ela já havia partido.
Com o peito apertando, Sophie se virou e cambaleou de volta
para a colcha onde estava sentada. Uma tesoura estava em cima
dela. Se ela conseguisse alcançá-la, poderia cortar os laços. Mas
caiu de joelhos ofegando antes de chegar à metade do caminho.
Olhou para o corpete, pronta para arrancá-lo com as mãos, e soltou
um grito longo e silencioso de horror.
Duas cobras pretas, com escamas de pontas douradas, estavam
enroscadas em seu peito. Mais e mais elas se apertaram,
enrolando-se em seu torso… Abriram a boca, silvaram para ela…
Menina fraca e toliiiiiinha… Não é forte o ssssuficiente, nem
essssperta o ssssuficiente…
As palavras venenosas queimaram os ouvidos de Sophie. A falta
de ar incendiou seus pulmões. Ela arqueou as costas, tentando
respirar. Acima dela, o céu começou a girar.
A última coisa que viu antes de desabar no chão foi a cabeça de
uma cobra erguendo-se acima dela, sua língua ondulando para fora,
seus olhos vermelhos brilhando, gotas de veneno penduradas em
suas presas.
TRINTA E UM

S , fechou os olhos e respirou


fundo. O cheiro da panela de ferro que Weber colocara sobre as
brasas antes de partir para a colheita de frutinhas pairava na brisa
da noite.
— Almôndegas — Schatzi disse sonhadoramente. — Almôndegas
carnudas com molho de creme! Espero que tenha batatas cozidas
também. — Ele abriu os olhos. — Essa é a minha comida favorita —
acrescentou ele, abrindo o portão. — Com a possível exceção de
hasenpfeffer. E espero que tenha um bolo amanteigado de
sobremesa. Com sorvete de baunilha!
— Você sabe falar de outra coisa além de comida? — perguntou
Jakob, abrindo caminho para passar por ele.
Schatzi olhou como se ele fosse louco.
— Por que eu faria isso? — perguntou ele, seguindo o irmão pelo
portão.
Os outros vinham logo atrás, cansados e sujos de um longo dia
de trabalho. Todos estavam ansiosos para tomar banho e depois
jantar. Julius estava indo para o poço quando a viu.
— Sophie! Não! — gritou ele, largando a picareta.
— O que houve, Julius? — Jakob perguntou. — Por que você…
Suas palavras foram engolidas. Seu rosto empalideceu de medo
ao ver Sophie esparramada no chão, com as mãos agarradas à
grama. O rosto dela estava vermelho. Seus lábios, tingidos de azul.
Duas cobras, cada uma da espessura do braço de um homem,
estavam enroscadas em torno dela.
— Pegue um arco, algumas flechas. Depressa! — gritou Julius.
Johann já estava correndo para o chalé. Jakob e Josef agarraram
suas picaretas e atacaram as cobras, mas as criaturas eram rápidas
e se esquivaram dos golpes. As lâminas dos machados passaram
por elas e alojaram-se na terra.
As cobras atacaram os homens. Jakob conseguiu pular para
longe. A manga de Josef foi rasgada por um par de presas.
Sophie estava ofegando ruidosamente, lutando em desespero
para respirar. Feridas de picadas pontilhavam seus braços.
Johann voltou com um arco; ele mirou uma flecha em uma das
víboras, mas ambas deslizaram para perto de Sophie, tornando
impossível atirar nelas sem acertar a garota.
— Continue distraindo-as. Não deixe que elas a mordam de novo!
— gritou Julius, puxando uma adaga do cinto. Ele foi em direção às
cobras. — Precisamos tirá-las dela! Senão ela morrerá!
— Julius, o que você está fazendo? Não vá. Você está muito
perto!
— Eu preciso. Elas vão matá-la.
— Elas vão matar você!
Os olhos de Sophie rolaram para trás. Seu corpo ficou mole.
— Não! — gritou Julius, investindo contra elas.
Uma das cobras empinou bem alto, pronta para atacá-lo, mas,
quando o fez, houve um movimento perto da cerca, distraindo a
criatura. Algo correu pelo portão aberto e passou disparado pelos
irmãos em um borrão. E, então, antes que soubessem o que estava
acontecendo, a cabeça da cobra, com as presas ainda à mostra e
os olhos abertos de surpresa, saiu voando pelo ar. Aterrou nos pés
de Johann com um baque úmido e sanguinolento.
O corpo da cobra morta, enrolado com força em torno do torso de
Sophie, afrouxou e caiu no chão. A segunda cobra girou ao redor, os
olhos se estreitando em fúria ao ver sua companheira morta. Ela
atacou o borrão, mas sua raiva a tornou desajeitada, e ela errou a
mira.
— O que diabos… — Julius começou a dizer.
— É um cão de caça! — exclamou Schatzi.
Um cachorrinho marrom magro rosnava e pulava em volta de
Sophie, antagonizando a cobra. Dançando sobre seus pés leves e
delicados, ele provocou a víbora, afastando-se de Sophie pouco a
pouco, puxando a cobra com ele. Uma volta escapou do corpo de
Sophie, depois outra.
A cobra balançou de um lado para o outro e, então, atacou. Várias
vezes. O cachorro ficou um pouco à frente dela, mas a cobra
repentinamente mudou de direção, escorregou para o lado e passou
por baixo do animal. O cachorro saltou de lado, mas não foi rápido o
suficiente; gritou de dor quando as presas afiadas picaram seu
quadril. Sangrando, choramingando, ele saiu mancando, arrastando
a pata traseira.
A cobra empinou novamente, preparando-se para o golpe mortal.
Sua língua negra tremulou. Com toda a velocidade e fúria de um
chicote estalando, ela se lançou. Suas presas se enterraram.
Afundaram profundamente. Mas no chão, não no cachorro.
O astuto cãozinho apenas fingira que seu ferimento era grave. As
feridas eram sangrentas, mas não profundas, e nenhum veneno
havia entrado em sua carne.
Ele saltou facilmente para o lado quando a cobra o atacou.
Enquanto a víbora lutava para se libertar, o cachorro deu a volta por
trás dela e mordeu a carne macia abaixo do crânio. Houve um som
de rasgo e, em seguida, uma segunda cabeça de cobra voou pelo
ar.
Enquanto os irmãos observavam, surpresos demais para falar, o
cãozinho — ofegante, as patas traseiras tremendo — voltou para
perto de Sophie. Lambeu o rosto da garota, cutucou-a com o nariz.
Então, soltou um uivo longo e triste, e caiu no chão ao lado dela.
TRINTA E DOIS

—A , …P , ! — implorou Jakob.
Ele estava de joelhos ao lado de Sophie, batendo suavemente em
seu rosto.
— Ela morreu de novo? — Schatzi perguntou, chorando.
— Ela não está morta. Está respirando. Olhem — confirmou
Johann. O peito de Sophie subia e descia. Sua respiração era
superficial, mas ela estava viva. A felicidade o inundou, mas, então,
ele viu os furos em seu braço. — O veneno tem que ser retirado —
disse ele friamente.
Weber, que havia entrado no quintal com uma cesta de mirtilos,
juntou-se aos irmãos. Quando viu Sophie e as cobras mortas, ele
empurrou todos de lado. Sabia exatamente o que fazer.
Trabalhando rapidamente, fiou um pedaço de seda, enrolou-o e
pressionou-o contra as feridas de Sophie. Enquanto os irmãos
observavam, a seda branca foi ficando lentamente verde-escura e
oleosa.
Weber fiou mais seda. Ele trocou os curativos várias vezes,
retirando todo o veneno. Quando o veneno deixou seu corpo, as
pálpebras de Sophie se abriram. Ela gritou, batendo as mãos
freneticamente no ar.
— Pare, Sophie. Está tudo bem — Johann a acalmou. — As
cobras estão mortas.
Sophie pressionou a mão trêmula sobre os olhos. Respirou fundo
algumas vezes e baixou a mão.
— O que aconteceu? — Josef perguntou.
Um arrepio percorreu Sophie.
— Foi horrível — disse ela com a voz áspera. Então contou a eles
o que sua madrasta tinha feito.
— A rainha descobriu que você está aqui. Mas, como? Quem
contou a ela? — Josef perguntou.
Johann ergueu os olhos, procurando corvos nos galhos das
árvores, mas não havia nenhum.
— Ele contou. Corvus. De alguma forma, ele descobriu que ela
está aqui.
Quando Johann terminou de falar, Julius se ajoelhou ao lado de
Sophie. Ele correra para a cozinha um momento antes para buscar
uma pequena garrafa de vidro. Pegou um dos maços saturados de
seda de aranha e espremeu o veneno na garrafa. Segurou, então, a
garrafa contra a luz, girando-a. Despejou uma gota no dedo e
provou.
— Grausamsprache — declarou ele. — É um veneno muito
potente. Ele viaja rapidamente através dos vasos sanguíneos e para
o coração.
— Então por que ainda estou viva? — Sophie perguntou, confusa.
— Porque o veneno só paralisa corações de carne e osso; não
tem efeito nos mecanismos do relógio. Na verdade… — Ele pegou a
mão de Sophie e colocou dois dedos em seu pulso para senti-lo. Ele
sorriu. — Esse seu coração está batendo bem. O ritmo é forte.
Sophie percebeu que esta era a segunda vez que o coração de
metal a salvava da morte. Ela ficou surpresa ao sentir uma gratidão
relutante pela coisa defeituosa e barulhenta.
— Estou tão feliz por vocês terem voltado para casa a tempo —
disse ela aos irmãos. — Obrigada por matarem as cobras.
— Não matamos — disse Schatzi.
— Mas Johann disse que estavam mortas.
— Ele as matou — disse Schatzi, apontando para o chão perto de
Sophie.
Sophie se virou para ver o que ele estava apontando. Seu
coração disparou ao ver um cãozinho deitado na grama, exausto.
Seu corpo estava estatelado; seus olhos, fechados.
— É o animalzinho mais valente que já vi — Schatzi disse. — O
mais sujo também. Estava coberto de lama. Tão sujo que pensei
que fosse um cachorro marrom, mas não é. É…
— É uma fêmea, e é cor de creme — Sophie disse com lágrimas
nos olhos.
Schatzi olhou para ela.
— Como você sabe disso?
— Eu salvei a vida desta cadelinha uma vez — Sophie disse,
colocando uma mão gentil na criatura de pele e ossos. Ao fazer
isso, ela abriu os olhinhos.
— Agora você salvou minha vida. Parece que estamos quites,
garota.
Ela se inclinou e beijou o topo da cabeça da cachorrinha.
Zara abanou o rabo.
TRINTA E TRÊS

C , ,S seu quarto para o patamar


da escada, torcendo para que as tábuas do piso não rangessem.
Fechou a porta atrás de si, então se dirigiu para os degraus,
tateando o caminho no escuro.
Estava indo embora.
Ela tomara sua decisão logo depois que as cobras a atacaram,
antes mesmo de voltar para casa.
Nenhum bom plano é feito no escuro, Julius gostava de dizer. Mas
o dela seria realizado no escuro. Ela iria embora antes que os
irmãos acordassem.
Ela estava indo para o norte, para Escandinai. Não tinha escolha.
A rainha descobrira que ela estava na Toca. Alguém lhe contara.
Johann achava que poderia ser o Rei dos Corvos. Ele a tinha visto
enquanto ela caminhava pela floresta? Ou estaria ele ainda mais
perto? Espreitando além da cerca da Toca. Assistindo. Esperando.
Sophie sorriu amargamente, pensando em como, apenas
algumas semanas atrás, ela jurou colocar seu coração em uma
caixa. Agora outra pessoa tinha feito isso por ela.
Sophie estava com medo, mas decidida, enquanto descia as
escadas. A viagem seria difícil e ela estaria sozinha. Nunca havia
cruzado a floresta antes. Nunca havia caminhado por dias, dormido
ao ar livre ou procurado sua própria comida, mas sabia que poderia
suportar todas as dificuldades da jornada, contanto que a levassem
até Haakon.
Enquanto ela estava deitada em sua cama mais cedo, chateada
— como ficava todas as noites — com o fato que outro dia havia
passado e Haakon não tinha vindo buscá-la, ela se dera conta de
algo: sua madrasta, mulher cruel que era, provavelmente o mandara
para casa imediatamente após contar à corte que Sophie estava
morta. Ele não tinha vindo atrás dela porque nem mesmo tivera
permissão para procurá-la. Se ele não podia chegar até ela, então
ela teria de ir até ele.
Sophie sabia que o tempo não parava. Depois do jantar, ela se
esgueirara até o sótão para consultar apressadamente um mapa
que estava armazenado lá e calculou que levaria seis ou sete dias
para chegar à fronteira. Ela tinha pouco menos de um mês antes de
seu novo coração parar de bater. Jeremias e Joosts talvez
conseguissem recuperar seu antigo coração, mas talvez não. Eles
tinham partido já havia muito tempo, o que não era um bom
presságio. E se tivessem sido capturados enquanto tentavam se
esgueirar para Nimmermehr? E se estivessem presos lá? Sophie
não podia suportar a ideia dos dois irmãos definhando em uma cela
escura e úmida. Se eles falhassem, sua última esperança — para
eles e para ela mesma — seria Haakon. Ele teria de reunir uma
força de combate e atacar Nimmermehr antes que fosse tarde
demais.
Seu plano era perigoso. Louco. Se os irmãos soubessem o que
ela estava fazendo, ficariam bravos e tentariam impedi-la. Mas eles
eram o principal motivo de sua partida. Ela não sabia por que o Rei
dos Corvos queria seu coração ou por que sua madrasta a queria
morta. Mas sabia que, se a rainha descobrisse que falhou — uma
segunda vez — em sua missão de matá-la, ela voltaria para tentar
novamente. Sophie não era mais a única em perigo. Ao ficar na
Toca, ela colocava em perigo os irmãos, Weber e Tupfen, e preferia
morrer a causar-lhes qualquer mal.
Sophie desceu a escada toda e foi para a cozinha. Ela estava
carregando uma mochila que encontrara no sótão. Dentro estavam
o mapa, uma velha bússola de latão, um saco de dormir, um cantil
de lata velho, uma adaga, um gorro de lã e a bolsinha de rubis que
Johann lhe dera. Ela encheria o cantil com água do poço ao sair da
Toca. Planejava vender os rubis em Drohendsburg, uma vila em seu
caminho, e usar o dinheiro para comprar comida e um cavalo para
acelerar sua jornada.
Zara, que estava dormindo perto da lareira, ouviu Sophie entrar
na cozinha. Ela abriu um olho.
— Estou indo embora. Eu preciso — Sophie sussurrou, dando
tapinhas em sua cabeça. — Mas você vai ficar aqui. Os irmãos vão
cuidar bem de você. Fique perto de Schatzi. Ele vai colocar
salsichas para você debaixo da mesa.
Sophie pousou a mochila na mesa e embalou um pouco de
comida — um pedaço de presunto frio, um salame, uma fatia de
queijo duro, algumas ameixas e um pedaço grosso de strudel de
maçã —, o suficiente para durar até Drohendsburg. Ela se moveu o
mais silenciosamente possível, pois Weber, que gostava de calor,
estava dormindo na cozinha. Ela mal distinguiu sua silhueta na
escuridão. Ele estava nas vigas, suspenso em uma teia, roncando.
Seu coração bateu suavemente com a visão; ela sentiria falta dele.
Quando terminou de embalar a comida, Sophie afivelou a
mochila. Ao fazer isso, ouviu um guincho curioso acima dela.
Weber, ela pensou, seu coração batendo forte. Eu o acordei.
Olhou para cima para ver oito olhos negros piscando para ela em
uma confusão sonolenta. Quando o olhar da aranha se moveu para
sua mochila, sua expressão mudou de confusão para alarme. Ele
balançou a cabeça e começou a falar com ela em sua língua.
Sophie a entendia mais agora.
— Não, não os acorde. Eles vão tentar me impedir de ir, mas não
adiantará. Eu tenho de ir — disse ela. — O Rei dos Corvos está com
o meu coração, Weber. Meu coração. Eu o quero de volta.
Weber piscou os olhos. Ele deu um suspiro. Então ergueu uma
garra, sinalizando para que Sophie esperasse um minuto. Ela podia
ouvi-lo remexendo nas vigas. Um momento depois, ele se abaixou
em um novelo de seda de aranha, carregando algo sob um dos
braços. Foi até Sophie, sacudiu-o e entregou a ela.
— O que é? — perguntou ela, pegando-o. — É um cobertor?
Weber assentiu enquanto Sophie se maravilhava com o presente.
Era um quadrado de mais de um metro, branco puro, suave e leve
como uma respiração. Padrões intrincados foram tecidos nele, de
flores e moscas, gramíneas e mariposas, todas as coisas que as
aranhas amavam. Weber o pegou de volta e começou a dobrá-lo até
transformá-lo em um quadradinho. Não ficou maior do que um
guardanapo quando terminou. Ele o enfiou dentro da mochila dela.
— Obrigada — Sophie disse, sua voz repentinamente rouca. —
Diga aos outros para não me seguirem. Diga a eles que voltarei
se… Se eu puder.
Então ela jogou os braços em volta da aranha, dando-lhe um forte
abraço. Ele a abraçou de volta com todos os braços. Quando
finalmente o soltou, Sophie viu que ele estava chorando. Grandes
lágrimas prateadas caíram no chão da cozinha.
— Pare, Weber — ela repreendeu carinhosamente. — Você tem
tantos olhos, vai inundar a casa.
A aranha esboçou um sorriso. Sophie beijou sua bochecha, pediu-
lhe para cuidar bem de Zara e depois vestiu uma velha jaqueta de
couro, remendada nos cotovelos, gasta nos punhos, pendurada na
entrada do chalé. Como a vassoura que estava ao lado dela, a
jaqueta pertencia a ninguém e a todos, e ela sabia que, por mais
zangados que os irmãos ficassem com ela quando descobrissem
que ela havia partido, iriam querer que ela a tivesse levado. Iriam
querer que ficasse aquecida.
Por fim, ela pegou sua mochila, saiu da casa e iniciou sua
jornada. Não havia lua naquela noite, apenas estrelas. O amanhecer
estava a horas de distância.
Outras coisas iluminariam o caminho de Sophie pela floresta,
embora ela não soubesse disso. Não naquele momento.
A jaqueta velha e gasta, que cheirava a pinheiro e fumaça de
madeira, bacon e noz-moscada. O cobertor macio, tecido com tanta
paciência e oferecido com tamanha generosidade. A fatia de strudel,
ligeiramente amassada, que ela comeria com os dedos uma noite,
enquanto se protegia da chuva fria em uma caverna escura e úmida.
O amor é uma coisa suave. Tem cheiro de fumaça de lenha e
barulho de chuva. Tem gosto de maçã com açúcar. Não custa nada
dar, mas é mais precioso do que um mar de diamantes.
Como eu gostaria de ter aprendido isso antes que fosse tarde
demais.
Como eu gostaria que Adelaide tivesse aprendido também.
Como eu espero que essa garota perdida e assustada aprenda.
TRINTA E QUATRO

P , Sophie estava fazendo mais


barulho do que seu coração. Rosnava e uivava, torcendo-se de
fome.
Ela estava caminhando pela Floresta Sombria por dois dias e
ficara sem comida na noite anterior. Seu café da manhã não
passara de um gole da água de um riacho e alguns punhados de
frutas. Felizmente, Drohendsburg acabara de aparecer.
Zara caçara um esquilo para o café da manhã. Embora Sophie
tivesse lhe dito para ficar em casa, a cadelinha não lhe dera
ouvidos. Inteligente e quietinha, ela se espremeu por uma janela
aberta e seguiu Sophie por quilômetros, apenas tornando sua
presença conhecida quando Sophie caminhou longe demais para se
virar e mandá-la de volta para a Toca.
As duas estavam entrando na aldeia agora, onde Sophie
planejava vender um ou dois de seus rubis. Ela usaria um pouco do
dinheiro para pagar um quarto em uma pousada. Precisava de um
banho e de uma refeição quente e farta, e ansiava por dormir em um
colchão por uma noite, em vez de no chão duro e frio. Uma estreita
rua principal atravessava o centro da aldeia. Havia casas de pedra
alinhadas em ambos os lados. Algumas tinham floreiras em suas
janelas, mas as flores estavam murchas. Sophie ficou inquieta ao
ver que as portas da frente de duas ou três casas estavam
quebradas ou fora de suas dobradiças, como se tivessem sido
chutadas.
Enquanto continuava descendo a rua, as casas deram lugar a
lojas. Placas do açougueiro, de dois queijeiros, uma peixaria e um
verdureiro pairavam sobre elas. Multidões de pessoas
aglomeravam-se na via pública. Sophie teve trabalho para passar
por elas. Deve ser um dia de feira, ela pensou.
Imagens das coisas deliciosas que ela compraria para o café da
manhã — uma fatia de queijo amarelo amanteigado, fatias de
fiambre sedoso, pão fresco, figos — nadavam diante de seus olhos.
Seu estômago se revirou dolorosamente. Ela estava com tanta fome
que se sentia fraca.
Mas Sophie logo percebeu que as pessoas não estavam a
caminho do mercado. Ninguém estava carregando uma cesta ou
voltando para casa com uma bela galinha gorda debaixo do braço.
Em vez disso, estavam todos agrupados em um semicírculo ao
redor de uma casa, carrancudos, falando em voz baixa e abafada.
Uma carroça parou na frente da casa também. Vários soldados a
cercavam.
Curiosa, Sophie se aproximou. Ao fazer isso, viu uma panela sair
voando pela porta e aterrissar com um estrondo nos
paralelepípedos. Um soldado a pegou e a colocou na carroça. Em
seguida, vieram vários travesseiros de penas. Dois soldados
carregavam uma cama. Outro carregava tigelas de barro. Uma caiu
de suas mãos e se espatifou na rua. Zara não gostou do barulho.
Ficou grudada em Sophie.
Uma mulher estava parada no meio da multidão. Ela era magra.
Seus olhos estavam fundos. Suas roupas pendiam de seu corpo
como teias de aranha. Ela observava os soldados com uma
expressão amarga.
— O que está acontecendo? — Sophie perguntou a ela.
— A mesma coisa que aconteceu com os Mueller e os Lind —
respondeu a mulher, acenando com a cabeça para uma casa com a
porta da frente danificada. — Agora os Becker estão sendo expulsos
de casa porque não podem pagar seus impostos. Seus bens serão
confiscados e vendidos.
— Por que eles não podem pagar seus impostos?
— Porque não têm dinheiro para isso — disse a mulher, olhando
para Sophie como se ela fosse burra. — Os impostos foram
dobrados.
— Quem os criou?
— A rainha, claro. Os navios de guerra custam dinheiro. Alguém
tem de pagar por eles.
Outra coisa quebrou na rua. Ouviu-se o som de uma criança
chorando. Uma velha saiu pela porta. Ela carregava uma trouxa de
roupas nos braços. Suas costas estavam curvadas; seus
movimentos eram lentos. Usava uma corrente fina em volta do
pescoço. Um pequeno anjo de prata pendurado nela.
Enquanto Sophie e os habitantes da cidade assistiam, um soldado
caminhou até a velha e arrancou a correntinha de seu pescoço. A
mulher gritou, implorando por ela, mas o soldado a ignorou e levou o
colar para seu capitão.
— Dê ao oficial de justiça — disse o capitão.
O sangue de Sophie gelou. O oficial de justiça era o Barão von
Arnim. Ela o conhecia desde que era pequena. Era membro do
círculo íntimo de sua madrasta, um conselheiro de confiança. Onde
ele está?, ela se perguntou, preocupada. Ele não devia vê-la.
— Aquele porco nojento — murmurou a mulher perto de Sophie,
olhando furiosa para uma carruagem alta e cara.
Sophie seguiu seu olhar. O barão estava visível pela janela aberta
da carruagem. Estava mordendo um bolo. Ele lambia as migalhas
dos lábios quando o soldado se aproximou; olhou para o anjo
pendurado na corrente e, em seguida, acenou para longe com uma
mão cheia de joias. Um lacaio, parado do lado de fora da
carruagem, segurava uma sacola de pano. O soldado deixou cair o
colar nele.
A velha, desolada com a perda de seu colar, arrastou-se em
direção à carruagem, implorando por ele. Sem saber por onde
estava caminhando, ela pisou em um pedaço da tigela de barro que
se espatifara na rua. Derrapou nas pedras e caiu no chão. Pousou
sobre as pedras duras com um grito de dor.
Os soldados caíram na gargalhada. Nenhum deles se moveu para
ajudá-la enquanto ela lutava para se levantar, suas mãos nodosas
arranhando as pedras. Enquanto continuavam a rir e a fazer piadas
cruéis, uma mulher grávida saiu de casa, com três crianças
pequenas grudadas a ela. Um homem de rosto encovado e cabeça
baixa os seguiu. Ele ergueu a cabeça bem a tempo de ver um
soldado plantar sua bota nas costas da velha. Ela caiu de novo e,
desta vez, não conseguiu se levantar. Ficou deitada sobre os
paralelepípedos, gemendo.
Em um piscar de olhos, o homem foi para cima do soldado. Ele o
jogou no chão e puxou o braço para trás para esmurrá-lo, mas um
vizinho o impediu.
— Você está louco? — gritou ele. — Eles vão matar você!
— Você aí! — Era o capitão. — Você acabou de atacar um
membro da guarda da rainha! — Ele gesticulou para dois de seus
homens. — Prendam-no!
Os soldados agarraram o homem. Um torceu seu braço atrás das
costas. A esposa do homem correu para ele, mas foi pega por mais
dois soldados. Seus filhos, vendo o pai sendo ferido, começaram a
chorar. Outro soldado deu um tapa no mais velho, fazendo sangrar
seu nariz.
— Os outros pirralhos querem uns tabefes também? — gritou ele.
O capitão, enquanto isso, sacou sua adaga. Caminhou até o
homem.
— Ajoelhe-se! — ele latiu para o homem.
Os soldados que o estavam segurando chutaram a parte de trás
de suas pernas. Ele caiu na rua.
O capitão voltou-se para as pessoas reunidas.
— A casa desse homem é da rainha! — gritou ele. — Seus bens
pertencem à rainha. Ele pertence à rainha. Vou garantir que ele
nunca se esqueça, que nenhum de vocês se esqueça disso!
E, então, pegou sua adaga e talhou um R na bochecha do
homem.
O coração de Sophie torceu dentro dela, metal raspando metal. O
som que fez foi como um grito. Mas ninguém ouviu, não por causa
do homem gritando, e sua esposa e filhos chorando, e a velha
gemendo sobre os paralelepípedos sujos. Sem pensar, esquecendo
o Barão von Arnim, esquecendo-se dos soldados com cara de lobo,
impulsionada por seu coração mecânico, Sophie empurrou a
multidão e correu até o capitão.
— Pare, por favor. Vou pagar os impostos. Vou pagar tudo o que
eles devem.
O capitão sacudiu sua adaga. Gotas de sangue espalharam-se
pelas pedras.
— Quem diabos é você? — disse ele.
Sophie percebeu de repente que todos os aldeões estavam
olhando para ela. Todos os soldados. E seu capitão. Ela percebeu
que o conhecia. Seu nome era Capitão Krause. Ele a reconhecera?
E von Arnim? Ela olhou em pânico para a carruagem do barão. Ele
estava mordendo um bolo. Para seu alívio, Krause pareceu não
reconhecê-la. Ela de fato não se parecia muito com o que era;
estava suja e enfraquecida. Seu cabelo, preso sob uma boina.
— Eu sou… Sou uma parente — gaguejou Sophie, afastando-se
da carruagem.
— Você tem cinco moedas de prata, parente?
— Não.
Krause a empurrou para longe.
— Então não perca meu tempo.
Sophie tropeçou, mas conseguiu se controlar.
— Capitão, espere. Por favor. Eu tenho algo mais valioso do que
moedas de prata.
O capitão arqueou uma sobrancelha. Ele acenou de volta para
ela. Sophie correu para o lado dele e puxou a bolsinha de rubis de
sua mochila, abriu-a e virou uma das pedras preciosas em sua mão.
O capitão pegou o rubi entre o polegar e o indicador. Ele o
segurou contra a luz.
A ganância acendeu em seus olhos.
— Isso é tudo que você tem? — perguntou ele.
Seu olhar caiu sobre o anel que ela estava usando.
Sophie começou a virar outra pedra na palma da mão dele, mas,
antes que pudesse, ele agarrou a bolsa e virou todos os rubis de
uma vez. Seis pedras grandes e perfeitas brilhavam ao sol. O
capitão sorriu. Ele as colocou de volta na bolsa.
— Leve isso ao oficial de justiça — disse ele a um de seus
homens.
— O quê? — disse Sophie, indignada. — Todos eles? Um é o
suficiente para cobrir…
Suas palavras foram interrompidas por um estalo agudo e alto.
Sua cabeça tombou para o lado. Luzes explodiram atrás de seus
olhos. Um gosto amargo encheu sua boca. Sangue.
O capitão a tinha golpeado com tanta força que lhe partiu o lábio.
— Vou pegar isto também — disse ele, puxando rudemente o anel
de seu dedo.
— Não! — Sophie gritou.
Zara rosnou, pronta para atacar o homem, mas Sophie a deteve.
Ela não tinha dúvidas de que Krause mataria a cachorra. Observou
enquanto o capitão entregava o anel a um soldado e este avançava
em direção à carruagem, com o coração batendo forte no peito. Era
o Anel do Governante. O Barão von Arnim o reconheceria
instantaneamente. Ele exigiria saber de onde tinha vindo.
— Não é justo! — Sophie protestou, esperando mudar a opinião
do capitão. — Os rubis cobriram a conta!
— Você também gostaria de uma lembrança do dia? Para
combinar com a dele? — perguntou o capitão, apontando para o
homem cujo rosto havia arruinado.
O homem ainda estava sentado no chão, uma mão pressionada
em sua bochecha, sangue escorrendo por seus dedos.
— N-não, senhor — Sophie gaguejou.
— Pare de choramingar. Os impostos da sua família estão pagos.
Eles podem ficar. Considerem-se sortudos.
O capitão virou-se para dar uma ordem aos seus homens. O
homem com o rosto ferido se levantou. E Sophie lançou outro olhar
assustado e furtivo para a carruagem. O soldado mostrou o anel ao
barão, que fez menção de jogá-lo na sacola com os outros
confiscados, mas, então, o aro de diamantes que emoldurava o
unicórnio cintilou ao sol, chamando sua atenção. O barão acenou
para ele.
O coração de Sophie deu um salto. Ela tinha de sair dali.
Imediatamente. Mas, como? Ela não podia voltar atrás; a rua estava
lotada. Também não conseguia andar para frente. Isso a faria
passar direto pela carruagem do barão. Enquanto ela procurava
freneticamente por uma saída, viu a porta aberta da casa dos
Becker. Pegando uma panela da carroça, dirigiu-se a ela, com Zara
aos seus calcanhares.
— O que você está fazendo? Aonde você está indo com isso? —
uma voz perguntou.
Era a esposa.
— Estou levando para sua casa.
— Mas…
— Vocês podem ficar. Paguei sua dívida — disse Sophie.
A mulher piscou para ela, estupefata.
— Você fez o quê? — ela disse. — Por quê? Quem é você?
Sophie olhou para a carruagem. O barão havia parado de comer
bolos.
Ele estava acenando para o capitão. Seu estômago afundou.
— Eu não sou ninguém. Posso levar esta panela para dentro?
— Eu conheço você!
Sophie sacudiu a cabeça:
— Não conhece, não.
— Conheço, sim! Você é a princesa! Eles nos disseram que você
estava morta! Obrigada, Sua Alteza — disse a mulher, segurando o
braço de Sophie. — Você nos salvou. Todos nós. Não tínhamos
para onde ir. Nós…
— Shh! — Sophie sibilou. — Não diga mais nada… Por favor.
A mulher parou de falar. Assentiu com hesitação, confusão em
seus olhos.
O barão agora gesticulava para que o capitão abrisse a porta da
carruagem. A respiração de Sophie ficou presa na garganta.
— Tem uma porta nos fundos da sua casa? — ela sussurrou.
A mulher assentiu.
— Você está encrencada?
— Muito.
A mulher conduziu Sophie para sua casa.
— A porta dos fundos dá para um quintal — ela disse. — Pule o
muro. Você vai pousar em um pomar de maçãs. Corra até o fim
dele. Você vai sair na orla da floresta. — Ela apertou o braço de
Sophie. — Depressa!
Sophie entregou-lhe a panela e correu para a porta dos fundos,
com Zara logo atrás dela.
— Obrigada, Sua Graça — sussurrou a mulher enquanto a
observava partir. — E boa sorte!
TRINTA E CINCO

U negro como azeviche


cavalgava pela floresta.
O sol estava se pondo no céu. Um crepúsculo cinza-azulado
pairava entre as árvores. Insetos noturnos zuniam; morcegos
voavam.
O homem chegou a um lago e desmontou de seu cavalo.
Enquanto este raspava o chão com o casco, o homem caminhou até
a beira da água. Uma brisa passou pelas árvores, ondulando a
superfície do lago.
Corvus, o Rei dos Corvos, mal percebeu. Ele estava olhando do
outro lado da água para duas criaturas, uma menina e um cachorro.
A garota estava encostada no tronco de um carvalho antigo. Ela
estava cansada de correr; seus ombros caídos. Gotas de suor
cortavam a sujeira de seu rosto.
Ela parara para colher frutinhas, colocando-as em sua boina.
Comeu algumas, compartilhando com o cachorro. Depois,
desatarraxou a tampa do cantil e deu um gole profundo.
Ela está faminta e magra. Assustada e sozinha. No entanto,
resiste, o homem pensou. O caçador não a matou. Nem as cobras.
Como pode ser? Minha irmã acha que os sete homens podem ter
criado um novo coração para ela. Será que está certa?
Os olhos de Corvus brilharam malevolamente na escuridão. Ele
raramente falhava. E o fracasso era perturbador. Deixava-o inquieto.
— E isso é difícil acontecer — disse ele.
A garota era mais forte do que ele imaginava. Mais forte do que
ela mesma imaginava. Ele a tinha visto hoje em Drohendsburg.
— Ah, sim. Ela estava lá. Movendo-se no meio da multidão.
Sussurrando nos ouvidos dos moradores. Plantando sementes no
rico solo vermelho de seus corações maltratados.
Corvus viu a garota dar tudo o que tinha para salvar uma família
pobre. Ele a viu enfrentar o capitão e superar o barão.
Ela está ficando inteligente e durona, ele pensou, e isso não é
bom.
Ele convencera Adelaide de que a garota era uma ameaça para
ela. Havia persuadido a rainha a se livrar dela.
Mas ele mentira.
A garota era uma ameaça. Mas não para Adelaide. Para ele.
Ela era fraca, bondosa, estupidamente gentil. Uma tonta, uma
trapalhona. E, no entanto, podia muito bem interferir em todos os
seus planos bem traçados.
Enquanto Corvus continuava a observar, escondido sob os galhos
baixos de um pinheiro, a garota se deitou sobre um saco de dormir
emprestado, cobrindo-se com um cobertor branco. O cachorro
enfiou o nariz sob o cobertor e se aninhou ao lado dela.
— Seda de aranha — cuspiu Corvus.
Manteria a garota aquecida, protegendo-a do vento e da chuva.
Exatamente por isso aquele aracnídeo miserável o dera a ela.
Corvus iria ao palácio visitar a rainha. Mas, primeiro, ele
terminaria a cavalgada por seu reino.
Levaria flores para o povo. Cultivadas em seu próprio jardim.
Suas pétalas são da cor do sangue e da meia-noite. Seus nomes
são ódio, caos, tristeza, desespero.
Ah, Adelaide, cuidado.
As sementes do medo geram flores tão escuras.
TRINTA E SEIS

S floresta e olhou para um punhado


de cogumelos. Sua boca encheu-se de água.
— O que foi que Josef disse mesmo? — ela se perguntou em voz
alta. — Que os que têm chapeuzinhos marrons e manchas brancas
são seguros para comer? Ou eram os de chapeuzinhos brancos e
manchas marrons?
Ela se repreendeu por não ter prestado mais atenção quando
Josef separara as cestas de cogumelos que Tupfen trouxera. Estava
morrendo de fome. Parecia que seu estômago tinha se contraído até
ficar do tamanho de uma noz, mas ela não ousava comer
cogumelos que não conseguia identificar.
Sophie conseguiu driblar o Capitão Krause e seus homens, mas
não superar a fome e a exaustão. Elas a seguiam como abutres.
Suja e suada, com galhos e folhas no cabelo, o lábio partido —
pelo golpe rápido do capitão — ainda latejando um dia inteiro
depois, Sophie sentou-se, abriu o cantil e tomou um gole d’água. Ela
esperava que isso diminuísse a dor que corroía suas entranhas,
mas sabia que não teria efeito para o pânico em seu coração. Logo
ela se tornaria outro esqueleto na Floresta Sombria, caso não
encontrasse algo para comer. Mas não tinha ideia de como fazer
isso. Tudo que ela tinha de valor — seus rubis e seu anel — fora
levado. E, mesmo que ainda tivesse como comprar comida, o
próximo vilarejo — Grauseldorf — ficava a quilômetros de distância.
Seu coração bateu contra suas costelas com ansiedade.
— Fique quieto — disse ela. — Isso é tudo culpa sua.
Se não tivesse dado ouvidos a ele, se não tivesse ajudado os
Becker, não estaria ali agora, sem um tostão e faminta.
Sophie fugira para salvar sua vida depois que o Capitão Krause
roubara suas coisas. Pela casa dos Becker, passando por seu
quintal. Depois de levantar Zara sobre o muro, Sophie o escalou.
Depois, elas correram pelo pomar até a segurança da floresta. Uma
vez lá, Sophie parou brevemente para recuperar o fôlego, mas o
som de comandos gritados, elevando-se sobre as casas, a fez
mover-se novamente.
O Barão von Arnim e o Capitão Krause sabiam que era a princesa
cujo anel e cujos rubis pagaram a dívida dos Becker, e Sophie tinha
certeza de que, quando o sol se pusera na noite anterior, a rainha
também já estaria sabendo. Ela podia imaginar a reação furiosa de
sua madrasta à notícia de que ainda estava viva e não tinha dúvidas
de que um novo grupo de soldados já havia sido enviado para caçá-
la. Ela se sentia como uma raposa que podia ouvir os uivos dos
cães da rainha se aproximando cada vez mais.
Mas não era ela mesma, ou o perigo que corria, que pesava no
coração de Sophie enquanto corria pela floresta. Eram os Becker.
Em sua mente, ela viu a velha, desprezada e chutada. Ouviu os
gritos do homem quando a lâmina do capitão cortou seu rosto e o
choro de seus filhos. Sophie nunca havia testemunhado tanto
sofrimento, e isso a deixara cicatrizada. Terror, dor, tristeza — essas
eram as consequências do duro governo da rainha, e o povo de
Drohendsburg não merecia aquilo.
Sophie desejou desesperadamente ter mais para oferecer aos
aldeões. Desejava ajudá-los. Mas o que ela poderia fazer? Nada.
Não podia salvá-los. Ela precisava continuar até Escandinai. Levaria
mais tempo sem o cavalo que planejava comprar, mas o faria de
qualquer maneira; não tinha escolha. Precisava da força de Haakon
mais do que nunca. Casar-se com ele, torná-lo rei das Terras Verdes
— isso não apenas a salvaria, ela percebia agora; isso salvaria seu
povo de uma tirana. Haakon seria um governante justo. Ele não
expulsaria os aldeões de suas casas. Sophie tinha certeza disso.
Um rosnado alto e profundo em sua barriga dispersou os
pensamentos torturados de Sophie. Ela tinha de encontrar algo —
qualquer coisa — para comer.
Levantou-se e olhou ao redor. Ao fazer isso, um movimento no
chão chamou sua atenção. Era um coelho. A criatura estava
mordiscando plantas. Seu olhar travou em Sophie, depois ele
disparou pela abertura de uma roseira espinhosa. Sophie tinha visto
alguns coelhos enquanto caminhava pela floresta. Zara fora atrás
deles minutos antes.
Talvez eu consiga pegar um também, ela pensou.
Jeremias era caçador. Antes de partir para Nimmermehr, ele a
deixara atirar com seu arco e mostrara a ela como capturar coelhos,
construindo cuidadosamente armadilhas com tiras finas de couro.
Sophie não tinha tiras, mas tinha um cinto.
Animada com a ideia de um jantar farto, ela rapidamente
desafivelou o cinto e o puxou. Em seguida, enrolou a ponta na fivela
para fazer um laço. Encontrou um galho caído e o apoiou na roseira
espinhosa. Depois de amarrar a ponta longa do cinto ao redor do
galho, arrumou o laço de forma que ficasse pendurado no chão em
frente ao buraco pelo qual o coelho havia se atirado.
— Um coelho, só um coelhinho gorducho e bonito… É tudo de
que preciso — disse ela, recuando.
Um segundo depois, a fivela de latão deslizou sobre o couro,
fechando o laço. Sophie franziu a testa. Ela o empurrou de volta no
lugar, rezando para que ficasse, mas, ao fazê-lo, o galho caiu.
Gemendo de frustração, apoiou o galho novamente. A roseira
segurou a mão dela; seus espinhos afiados rasgaram linhas
vermelhas em sua pele; Sophie praguejou; depois, respirou fundo e
tentou novamente. Montar uma armadilha exigia foco e precisão, e
ela estava com tanta fome que mal conseguia pensar direito. Suas
mãos tremiam. Seu corpo inteiro estava tremendo.
Após alguns minutos, reequilibrou-se e refez a armadilha.
Cruzando os dedos, Sophie correu para longe, deitou-se no chão e
esperou.
Por favor, ela implorou. Por favor. Por favor. Por favor. Eu não
quero morrer nesta floresta.
Ela ergueu um pouco a cabeça para ver melhor a armadilha. Mas
não havia sinal de coelho. Quanto tempo levaria antes que a criatura
se aventurasse? Minutos? Horas? Dias… Seu estômago apertou
novamente. A fome era impiedosa. Lágrimas de frustração arderam
em seus olhos; ela piscou. E, então, um nariz rosa apareceu na
roseira.
Sophie prendeu a respiração. Era a cabeça do coelho.
— Vamos… Só mais um pouco… — ela insistiu.
O coelho esticou-se em direção ao laço e o cheirou. O coração de
Sophie deu um salto. Ela percebeu que era um coelhinho muito fofo,
com um rosto doce e grandes olhos castanhos.
— Talvez você tenha irmãos e irmãs — ela sussurrou. — Talvez
tenha uma família grande. — O pensamento a deixou triste. — Sinto
muito… Eu gostaria de não ter de capturar você. É que estou com
tanta, tanta fome.
As orelhas do coelho se ergueram. Será que ele a ouviu? Ele
recuou do laço.
O coração de Sophie deu um salto.
— Não! — ela implorou. — Vá em frente!
O nariz do coelho se contraiu. Ele inclinou a cabeça, olhando para
ela. E então, de repente, inexplicavelmente, lá estava ele deitado no
chão, perfeitamente imóvel, com uma flecha na cabeça.
Sophie deu um grito assustado, mas então percebeu o que tinha
acontecido — um caçador atirara em seu coelho.
— Não! Ele é meu! — gritou ela, cambaleando em direção ao
animal.
Ela tinha de pegá-lo antes do caçador. Era a caça dele, quem
quer que fosse, mas era uma questão de vida ou morte para ela.
Sophie agarrou o coelho, puxou a flecha e girou, pronta para
defender sua comida.
Um rapazinho estava parado adiante. Ele era alto e magro, tinha
dezoito ou dezenove anos de idade, cabelos castanhos compridos e
olhos cinzentos. Estava segurando um arco em uma das mãos.
— Está pingando sangue em você — disse ele, acenando para o
coelho. — Por que você não o dá para mim? Posso limpá-lo e…
— É meu — Sophie disse ferozmente, segurando o animal morto
contra o peito.
O garoto arqueou uma sobrancelha com o tom dela.
— Na verdade, é meu — ele disse. — Já que fui eu quem atirou.
— Eu fiz aquela armadilha. Ele estava prestes a entrar nela. Teria
entrado se você o tivesse deixado em paz.
— Não, não teria. Estava assustado. Ele ouviu você falando.
Todos os animais na floresta ouviram. — Ele sorriu. — Por que você
simplesmente não pediu para ele pular na panela?
Sophie agarrou o coelho com mais força.
— Você sabe como esfolar e limpar um coelho? E cozinhar? Ou
você planeja comê-lo cru?
— Vou assá-lo. Numa fogueira.
O garoto olhou em volta.
— Onde está o fogo? — perguntou ele, medindo Sophie de cima
a baixo. — Você ao menos sabe como fazer fogo?
O coração de Sophie deu um salto e fez um barulho áspero de
trituração. O tom do garoto era zombeteiro. Seu olhar, desdenhoso.
Ele a fez se sentir pequena e diminuída. Como se ela estivesse de
volta à corte. Como se ela fosse tudo o que as pessoas de lá diziam
que era — tola, fraca, incompetente.
Ele inclinou a cabeça para o barulho de trituração.
— O que foi…
Sophie o interrompeu.
— Não preciso que você me salve! — rebateu ela.
O garoto recuou. E ergueu as mãos.
— Eu não disse que você precisava. Que tal um pouco de ajuda?
Precisa de ajuda? Ou você consegue se virar?
— Consigo, claro. Estou ótima.
O garoto bufou.
— Você não parece bem. Parece com fome. E cansada. E quem
quer que tenha rachado seu lábio, fez um bom trabalho. O corte
está aberto. Ainda está sangrando.
Sophie tocou o lábio com os dedos. Eles voltaram vermelhos. Ela
se levantou, ansiosa para pegar sua mochila, chamar Zara e ir
embora. Mas sua visão turvou, fazendo-a se sentir zonza. Ela bateu
com o dedão do pé na raiz de uma árvore e tropeçou, mas
conseguiu se segurar.
O garoto deu um passo em sua direção.
— Por que você está aqui? Aonde você está indo?
Sophie não respondeu. Até onde ela sabia, ele podia muito bem
ser outro monstro disfarçado, enviado por sua madrasta ou pelo Rei
dos Corvos.
— Você pode morrer aqui, sabe — disse ele. — Muitos morrem.
Um riso, histérico e convulsivo, borbulhava de dentro do peito de
Sophie. Saiu de sua boca.
— É mesmo? Jura? — disse ela, ainda rindo. — Não sei. Eu…
Sophie nunca terminou sua frase. Seus olhos tremularam. Suas
pernas cederam.
O arqueiro correu até ela. Ele a pegou um pouco antes de ela
atingir o chão.
TRINTA E SETE

S .
Lentamente, abriu os olhos. Estava deitada no chão, sobre uma
alcatifa de agulhas de pinheiro. Sua cabeça estava protegida pela
mochila. Ela estava babando.
— O coelho está quase pronto. Eu também tenho peras. E queijo
— disse uma voz. — Você gostaria de algumas?
O estômago de Sophie roncou como um tigre.
— Vou entender isso como um sim.
Sophie se sentou com cautela. Enxugou a baba com a manga.
Olhando em volta, ela viu que estava sentada sob uma árvore alta e
protegida. Já estava quase escuro. O garoto estava virando um
coelho em um espeto feito de galhos entalhados sobre um fogo
rodeado de pedras. Sucos pingavam da carne e assobiavam nas
chamas. Zara estava sentada perto dele, olhando sem piscar para o
coelho.
— Onde estou? Como… Como vim parar aqui? — Sophie
perguntou.
— Eu carreguei você — disse o garoto, sem tirar os olhos da
carne.
Sophie não tinha certeza de como se sentir sobre isso. Sua
cautela cresceu.
— Essa cadela apareceu e rosnou para mim — ele acrescentou.
— Achei que era sua.
Sophie assentiu. Ela olhou atentamente para o menino. Quem era
ele? Corvus, o Rei dos Corvos? Importava mesmo se ele fosse? Ela
não podia lutar nem fugir. Estava muito fraca, muito esgotada pela
fome, não conseguia nem mesmo se levantar.
— Você é um monstro? — ela perguntou, com a voz embargada
de cansaço.
— Não.
— Vai me matar?
— Não.
— Porque, se for, mate agora, mate rápido, e não machuque a
minha cachorra. Ela já sofreu o suficiente.
O garoto olhou para ela.
— Vamos esclarecer uma coisa desde o início. Eu nunca, nunca
machucaria um cachorro.
A suspeita de Sophie diminuiu um pouco. Em sua experiência,
pessoas que não machucam cachorros também não machucam
pessoas.
O menino voltou sua atenção para o coelho.
— Meu nome é Will.
— Sophie.
Will tirou o coelho do espeto, colocou-o sobre uma das pedras ao
redor do fogo e cortou-o ao meio com uma faca de caça. Entregou
metade para Sophie. Ela pegou com as mãos trêmulas. Então,
arrancou a perna de sua metade e a jogou para Zara.
— Tenha cuidado — Will avisou. — Está muito…
Mas Sophie não estava ouvindo. Ela rasgou a carne como um
lobo, arrancando um pedaço com os dentes.
— … quente.
A carne estava sem graça, pois não havia tempero. Estava
carbonizada em alguns lugares e dura em outros, mas era a melhor
coisa que Sophie já tinha comido na vida. Lágrimas escorreram de
seus olhos enquanto ela engolia. Ela as limpou do rosto. Will fingiu
não notar. Enquanto ela raspava cada osso com os dentes, Will
entregou-lhe uma pera. E, depois, um pedaço de queijo duro e
salgado. Sophie devorou tudo. A comida a aqueceu. Deu-lhe força.
O suficiente para correr, se ela precisasse.
— Obrigada — disse ela ao terminar tudo, enxugando a boca com
a palma da mão.
Will assentiu. O decote da blusa dela estava desabotoado,
revelando vários centímetros de sua cicatriz. Seus olhos voltaram-se
para baixo. Sophie o viu olhando e abotoou a blusa.
Seu olhar vagou, então, pelos braços dela e pelas feridas das
presas das cobras — curadas, mas ainda arroxeadas — que os
pontilhavam.
— Para onde você vai? — perguntou ele.
Sophie hesitou, ainda desconfiada, então decidiu que, se ele
fosse machucá-la, não a teria alimentado primeiro.
— Escandinai.
Will soltou um assobio baixo.
— É muito longe daqui. Cerca de cinco ou seis dias a pé, e isso
se você for rápida.
O ânimo de Sophie afundou com a lembrança de quão longe ela
ainda estava de Haakon e da segurança.
— Estou indo para Grauseldorf — o garoto acrescentou. — É na
mesma direção. Vou levá-la até lá, se quiser, e mostrarei a estrada
ao norte.
Sophie ficou rígida.
— Por quê? Por que você me ajudaria? Por que você
compartilhou sua comida comigo?
Will olhou para ela.
— Bem… Porque é isso que as pessoas fazem?
— É mesmo? — perguntou Sophie.
Ela não conhecia muitas pessoas que ajudariam um estranho. A
maioria das pessoas que ela conhecia nem mesmo ajudaria um
amigo.
— Você deve querer dormir um pouco — disse Will, balançando a
cabeça. — Eu parto ao amanhecer.
Sophie se perguntou se dormir a apenas alguns metros de
distância de um estranho era sensato. Ela se sentia um pouco mais
forte agora; poderia simplesmente pegar sua mochila e ir embora.
E fazer o quê?, ela se perguntou. Andar pela Floresta Sombria à
noite?
Decidiu que ficaria, mas dormiria com a adaga enfiada dentro da
blusa. Só por garantia.
— Tudo bem — ela finalmente concordou, ainda inquieta.
Mas Will mal a ouviu. Ele estava ocupado recolhendo galhos para
alimentar a fogueira. Enquanto fazia isso, Sophie procurou em sua
mochila o cantil. Ela bebeu um pouco de água, depois usou o
restante para lavar o rosto e as mãos. Junto a Zara, embrenhou-se
um pouco na floresta. Quando voltou, Will já estava deitado perto do
fogo. Sophie colocou seu saco de dormir do outro lado do fogo e
tirou o cobertor de Weber da mochila.
— Obrigada — disse ela de novo baixinho enquanto se
acomodava, Zara se encolhendo na dobra dos joelhos.
Ela ficou surpresa por Will ter persistido em sua bondade para
com ela, embora ela não tivesse merecido. Não estava acostumada
com isso. No palácio, o mau comportamento apenas inspirava um
comportamento pior, e quaisquer ferimentos resultantes eram
esfregados com sal, não mel.
Sem aviso, a engrenagem no coração de Sophie enguiçou
novamente. O ruído de trituração estava ainda mais alto do que
antes, pouco antes de ela se deitar.
Will olhou para ela com o que eram (e agora ela os percebeu)
cílios muito longos e escuros, além de uma expressão perplexa no
rosto.
— É… Bem… É um relógio — Sophie disse levemente.
— Onde está? — perguntou ele. — No seu bolso?
— Ah! Perto — disse Sophie.
Will ergueu uma sobrancelha, mas não insistiu.
— Bem, boa noite, Sophie. Durma bem.
— Muito gentil, Will. Gentil Will, Will gentil. Ah!
Sophie lançou-lhe um sorriso tímido.
— Você provavelmente já ouviu isso antes.
— Não. Primeira vez.
— Sério?
Will sorriu.
— Ai. Não, né? — disse Sophie, sentindo-se um pouco tola.
Will fechou os olhos e puxou o cobertor sobre os ombros.
Sophie o observou adormecer. Até que o fogo queimou, até
apagar. Até que a escuridão os envolveu. Então, fechou os olhos.
Seu coração zumbiu alto.
Não importava. Ele não conseguia ouvir agora.
Sophie sentiu algo. Deitada ali na floresta. A apenas alguns
metros de distância do garoto.
Ela não conseguiu identificar o sentimento imediatamente, pois
não o reconheceu. Fazia muito tempo que não sentia isso.
Não desde que sua mãe cantara para ela dormir. Não desde que
seu pai a segurara em seus braços fortes, apontando as estrelas,
dizendo-lhe seus nomes.
Mas, quando o sono a embalou, ela lembrou.
Pela primeira vez em muito tempo, Sophie se sentiu segura.
TRINTA E OITO

O . Seus pálidos raios dourados passavam


pelos galhos das árvores e refletiam no chão da floresta. Sophie e
Will haviam levantado acampamento uma hora atrás, depois de um
rápido café da manhã com pão e queijo. Estavam andando desde
então.
Will parou repentinamente. Ele costumava fazer isso quando
ouvia ou via algo diferente. Sophie já tinha entendido isso. Nas
primeiras vezes, ela se chocou contra ele no caminho estreito da
floresta.
— Você ouviu isso? — perguntou ele. — É um falcão. Está lá em
cima. — Will olhou para o alto. Seus olhos seguiram o pássaro
enquanto ele disparava pelo ar. — Provavelmente procurando uma
saborosa carriça para o café da manhã.
Sophie não olhava para o pássaro; ela olhava para Will. Ele
amava a floresta e suas criaturas, ela percebeu, e por isso ele
tornava interessante uma caminhada longa e tediosa, apontando
rastros de animais e flores da floresta. Will era um enigma, uma
criatura muito diferente dos meninos da corte, que constantemente
flertavam e se gabavam, além de serem absolutamente alérgicos ao
silêncio. Ele era um garoto muito gentil, que falava apenas quando
tinha algo a dizer. Sophie percebeu isso quase imediatamente.
— Onde você mora? — ela perguntou pouco depois de partirem.
— Na floresta.
— Você tem família?
— Sim.
— Por que está indo para Grauseldorf?
— Preciso de algumas coisas.
Depois de um tempo, ela desistiu e simplesmente caminhou atrás
dele silenciosamente. Ela tinha coisas melhores para fazer do que
conversar, de qualquer maneira. Por exemplo, descobrir como
venceria todo o caminho até Escandinai a pé e sem dinheiro.
Cinco dias preciosos se passaram desde que ela deixara a Toca,
o que lhe dava um pouco mais de três semanas até que o
mecanismo do relógio parasse. Sophie se sentia como se estivesse
dentro de uma ampulheta gigante, tentando desesperadamente
impedir que a areia caísse sobre ela. Ela precisava de ajuda se
quisesse completar sua jornada; isso com certeza. Precisava de
comida e tinha de pegar o caminho mais rápido até a fronteira. Will
era um bom caçador. Parecia conhecer cada centímetro da floresta.
Enquanto Sophie caminhava, olhando para as costas dele, ela se
perguntou se ele a levaria ao palácio de Haakon. Ela não tinha
dúvidas de que Haakon recompensaria Will ricamente por devolver
sua noiva a ele. Mas não tinha certeza se Will concordaria em fazer
isso. Então decidiu esperar, para conhecê-lo um pouco melhor,
antes de pedir a ele.
Depois que Will avistara o falcão, eles continuaram caminhando
pela floresta densa, subindo e descendo colinas por horas. Tinham
acabado de entrar em um vale, e Will sugeriu que fizessem uma
pausa para descansar e comer, quando, do nada, uma voz disse:
— Parem aí! Mãos ao alto.
Will ergueu os braços. Sophie, procurando desesperadamente
aquele que falara, seguiu seu exemplo.
Um homem saiu das árvores. Ele estava segurando uma faca.
Sophie engoliu em seco com medo. Olhou ao redor. Mais homens
emergiram da floresta; eles se reuniram em torno de Sophie e Will.
Atrás deles, escondida nas árvores, havia meia dúzia de barracas
de lona, as laterais cobertas com arbustos. Uma fogueira queimava
na frente de uma delas. Nem ela nem Will haviam sentido o cheiro,
porque o vento estava levando a fumaça para o outro lado.
Sophie percebeu que ela e Will haviam esbarrado em um
acampamento. Ela apertou os olhos na escuridão e viu que um
grupo de homens, alguns jovens, outros mais velhos, estava
sentado em toras que puxaram para o fogo. Todos usavam jaquetas
azuis-escuras desbotadas, mas bem-cuidadas, e pareciam feridos.
O braço de um homem estava em uma tipoia. Um menino de não
mais de quinze ou dezesseis anos tinha perdido os olhos. Havia um
tambor a seus pés. Outro homem, magro como um fantasma, tremia
convulsivamente perto do fogo. Outro, ainda, estava sentado um
pouco afastado dele, em uma cadeira com um assento alongado
que alguém havia moldado com galhos de árvore. O assento
sustentava o que restava de suas pernas.
Will, que caminhava com o arco no braço, sempre pronto, deixou
uma das mãos mergulhar na direção da aljava para puxar uma
flecha.
— Eu não faria isso, garoto — avisou o homem da faca. — Não a
menos que você tenha certeza de que a flecha pode chegar a mim
antes que esta faca chegue até você.
Will deixou a flecha deslizar por entre seus dedos e cair de volta
na aljava. Ergueu as mãos novamente.
— Estamos só de passagem — disse ele. — Não queremos
problemas.
— Não dê problemas e não receberá problemas — disse o
homem, que apontou para o caminho à frente com a ponta da
adaga. — Sigam.
Will assentiu. Ele e Sophie baixaram as mãos. Will agarrou a
manga de sua jaqueta e tentou apressá-la. Mas os passos de
Sophie eram lentos e cambaleantes, porque ela não conseguia tirar
os olhos dos homens.
Essas jaquetas… As tendas… O acampamento organizado… Ela
pensou. Por que estão aqui?
Ela tinha visto essas coisas antes, cavalgando com sua madrasta
enquanto ela treinava suas tropas. Seu olhar pousou no homem,
magro e pálido, que tremia perto do fogo. Impulsivamente, libertou-
se da mão de Will.
— O que você está fazendo? Ele nos disse para irmos.
— Mas aquele homem perto do fogo. Ele está doente. Devemos
ajudá-lo.
Will bufou.
— Faça como quiser. Eu estou indo embora. Não quero ter nada a
ver com esses homens.
Sophie olhou para ele, surpresa com a emoção em sua voz.
— Por que você diria isso? — ela perguntou.
— Eles vestem o uniforme da rainha. Eu desprezo a rainha. E a
princesa. As tais nobres. E todos os ladrões e assassinos que
compõem o maldito exército das Terras Verdes.
Sophie sentiu como se ele a tivesse esbofeteado.
Will — o gentil Will — a odiava, a verdadeira ela, e ela não tinha
ideia do porquê.
Will não percebeu a reação dela; ele ainda estava olhando para
os soldados.
— Se você fosse inteligente, também iria embora — disse ele. —
Enquanto ainda tem a chance.
À medida que Will falava, o homem perto do fogo teve um acesso
de tosse. O coração de Sophie doeu ao vê-lo curvado, lutando para
respirar. Ela largou Will e caminhou até o homem com a adaga.
— Ele está doente — disse ela, acenando com a cabeça para o
que estava perto do fogo.
— Sim. Escarlatina.
— Vocês são soldados — disse Sophie. — Do exército da rainha.
O homem lhe dirigiu um olhar gélido.
— Não somos desertores, senhorita, se é o que você quer dizer.
Éramos bons soldados, todos nós. Ainda seríamos, se nos
permitissem.
— Por que estão aqui? — perguntou Sophie.
— Tenho muita vergonha de estar em qualquer outro lugar —
disse o homem na cadeira improvisada. — Lutar era minha vida. —
Ele olhou para suas pernas arruinadas. — Quem quer um soldado
que não pode marchar?
O homem sentado perto do fogo falou. Sua cabeça estava
abaixada. Ele não se preocupou em erguer os olhos.
— Eles nos jogaram fora quando fomos feridos. Como lixo. Não
foi, Hans?
O homem com a adaga — Hans — assentiu.
— Mas há um hospital para veteranos feridos — disse Sophie. —
Em Königsburg.
— Agora virou um quartel. Disseram que custávamos muito
dinheiro à coroa. Que precisávamos dar lugar a soldados que
estivessem em forma e pudessem lutar — explicou Hans.
— A rainha disse isso? — Sophie perguntou, chocada, mas não
surpresa.
— O senhor Comandante berrou. Disse que era por ordem da
rainha.
O Rei Frederico, pai de Sophie, havia sido um soldado. Morrera
em batalha, lutando contra o Rei do Interior. O hospital para feridos
de guerra levava seu nome. Ele acreditava que os veteranos eram
heróis e que mereciam a maior honra que seu país poderia lhes dar.
Ele nunca teria permitido que aqueles homens fossem tão
maltratados.
Nem a filha do rei, Sophie disse para si mesma.
O coração de Sophie, quieto durante toda a manhã, batia
ruidosamente agora.
Todos os homens olharam para ela, alarmados com o barulho,
depois para Will…
— É um relógio — Sophie disse discretamente.
Hans pareceu perplexo com a explicação, mas Sophie não
percebeu. Ela não estava ciente de nada, exceto da onda de
compaixão em seu coração pelos homens feridos. Tudo o que
queriam era ser soldados, lutar pela rainha e pelo país. Em vez
disso, tinham sido despojados de sua dignidade, roubados de seu
orgulho e forçados a se esconder na Floresta Sombria.
Sophie tirou o casaco e o pendurou nos ombros do homem
trêmulo. O homem olhou com surpresa para a roupa quente que de
repente apareceu. Depois, olhou para ela.
— Eu não posso ficar com isto, senhorita.
— Sim, pode.
Ela puxou o cobertor de Weber da mochila e o estendeu sobre as
pernas devastadas do homem na cadeira. Isso aliviou um pouco seu
sofrimento. Zara cutucou a cabeça sob a mão do homem e ele
sorriu. Em seguida, Sophie tirou o gorro de lã e colocou-o com
cuidado na cabeça do menino que perdera os olhos. Ao fazer isso,
seu longo cabelo preto soltou.
— Mas que diabos! — Hans exclamou, sua voz extasiada. —
Você? Eu te vi em treinos e marchas, desde que você era uma
garotinha!
Sophie olhou para ele, depois, nervosamente, desviou o olhar.
Não deveria ter tirado o gorro; deveria ter considerado as
consequências. Não era sábio revelar sua identidade — não em
Drohendsburg, não para aqueles estranhos nem para Will, mas seu
coração não lhe deu escolha, e era tarde demais para desfazer suas
ações agora.
— Eu sabia que você não estava morta! Nunca acreditei no que a
rainha disse. Nem por um minuto! — disse Hans. — Eu sabia que
era mentira. — Ele olhou para Will e franziu a testa. — Tire esse
gorro, rapaz. Mostre algum respeito. Você não sabe quem é esta?
Foi a vez de Will parecer perplexo.
— Sim… É uma garota… Sophie.
— Princesa Sophia para gente como você — fungou o velho
soldado.
Ele pegou a mão de Sophie e beijou-a.
Os olhos de Will arregalaram-se. Ele deu um passo para trás. Não
alegremente surpreso, porém, como os outros. Não com deferência.
— Você está fugindo, não está? — Hans perguntou.
Sophie não respondeu. Ela achou melhor não dizer o que estava
fazendo ou para onde estava indo. Os espiões de sua madrasta
estavam por toda parte.
— Claro que está. Por que mais estaria vestida assim? — Hans
continuou. — Não se preocupe, seu segredo está seguro com a
gente.
Sophie apertou a mão do soldado. Depois, ela endireitou-se e
dirigiu a todos os homens uma fala que, ela esperava, fosse em tom
magistral.
— Vou voltar para resgatar vocês. Todos vocês. Assim que eu
puder. Serão levados de volta a Königsburg e bem-cuidados. Eu
prometo.
Os homens baixaram as cabeças para ela. E sorriram. Os sorrisos
eram educados, mas céticos. Sophie percebeu que eles não
acreditavam nela. Por que acreditariam? Sem dúvida, eles ouviram
o que fora dito sobre ela na corte. Como uma jovem fraca poderia
defender sua causa contra os decretos de uma rainha poderosa?
Sophie gostaria de poder contar a eles sobre seu plano, que ela
voltaria com o poder do exército de Escandinai ao seu lado, mas
eles logo descobririam. Ela não os esqueceria.
Sophie despediu-se. Os soldados desejaram que ela viajasse em
segurança.
Ela e Will começaram a andar novamente. Houve silêncio entre
eles por algum tempo; então Will disse:
— Você vai sentir frio esta noite.
— Vou pegar outro casaco — Sophie disse secamente.
O silêncio desceu novamente sobre eles.
— Por que você não me disse quem era? — Will perguntou.
— Quanto falta para a aldeia? — Sophie perguntou bruscamente.
— Então, não é da minha conta? Estou levando uma princesa
morta para Grauseldorf, mas não preciso saber por quê?
— Não.
Ele olhou para a lateral do rosto dela.
— Você está com problemas, Sophie?
— Sim. Isso o deixa feliz, Will?
Will se encolheu.
— Não. Por que deixaria?
— Porque você me despreza. Você disse isso.
— Sim, disse.
Sophie ficou surpresa com sua admissão honesta. Não era com
isso que ela estava acostumada. Não houve negações, desculpas
nem palavras floreadas para perfumar suas desagradáveis
declarações anteriores. Sophie esperou em silêncio, para lhe dar
tempo de se desculpar, mas ele não o fez. Finalmente, sua
paciência acabou.
— Você não se arrepende do que disse? — ela perguntou,
ofegante.
Will franziu a testa, pensativo.
— Talvez. Talvez não. Ainda não sei.
— Você deveria se arrepender. Suas palavras foram cruéis. Você
nem me conhece.
— Você está certa. Eu não a conheço.
Depois, ele falou:
— Por que você está indo para Escandinai?
— Preciso falar com o Príncipe Haakon — Sophie respondeu. —
Preciso da ajuda dele para lutar contra alguns adversários
poderosos.
Ela estava prestes a perguntar se ele a ajudaria, se a levaria para
o palácio de Haakon — ela não queria, não depois do que ele
dissera —, mas estava desesperada. Antes que pudesse falar,
porém, foi ele quem falou.
— Contra quem você está lutando? Contra a rainha? Não dá para
fazer isso sozinha?
Sophie lançou um olhar furioso.
— Lutar contra a rainha das Terras Verdes? Sozinha? Sabe que
isso não me passou pela cabeça?
Will sorriu.
— Belos príncipes certamente são úteis, não? Gostaria de ter um.
Houve o tom de zombaria novamente. Isso fez Sophie se arrepiar.
— Haakon é meu protetor. Estamos noivos, o príncipe e eu.
— Hmm.
— Hmm? O que isso quer dizer? O que hmm significa?
— Ouvi dizer que você foi morta por lobos… Que eles a
dilaceraram.
— Pois ouviu errado.
— Então estou aqui me perguntando…
— O quê? — Sophie retrucou.
— Por que o Príncipe Encantado não está procurando por você?
A pergunta picou Sophie como um espinho. Ela disse a Will o que
dizia a si mesma.
— Porque ele acredita que eu esteja morta. Assim como você
acreditava.
— Ainda assim, seria de se imaginar que ele fosse atrás do seu
corpo, pelo menos. Para garantir ao seu amor perdido um enterro
adequado. Talvez até guardar um osso do dedo de lembrança. Ou
um dente. Uns dedos do pé.
Sophie parou de repente. Will também.
— Você tem mesmo que ser tão horrível? — perguntou ela com
raiva.
— Ele não procurou você — disse Will.
— Procurou, sim.
— E por que não encontrou? Um cara inteligente como ele?
— Ele ficou sem tempo. A rainha o mandou de volta para o seu
reino.
— Então por que ele não volta? Ele poderia procurá-la disfarçado
de lenhador ou comerciante.
Sophie caminhou na frente dele, irada. Ela não podia acreditar
que tinha considerado pedir ajuda àquele troll disfarçado de garoto.
— Haakon tem responsabilidades! Ele tem assuntos de Estado
para tratar! Você simplesmente não entende! — gritou ela por cima
do ombro.
Will a observou enquanto ela descia o caminho.
E, então, baixinho, para que ela não pudesse ouvi-lo, ele disse:
— Nem você.
TRINTA E NOVE

S .B .C .
Will, alguns metros adiante na estrada, não prestou atenção nela.
Eles caminharam pela floresta por seis horas no dia anterior,
depois de passarem pelos soldados, e quase doze horas no dia
seguinte. Caminhavam, montavam e desmontavam acampamento,
fazendo quase tudo em silêncio. Nenhum deles tinha falado muito
desde a briga.
Sophie estava cansada. Seus pés doíam. Ela pensava
constantemente, com saudade, em sua cama macia na Toca.
A estrada era íngreme agora; ela subia em torno da base de uma
colina. Uma velha igreja no topo da colina, cinzenta e decrépita, com
a torre do sino caindo aos pedaços, apareceu à vista.
— Aquela é São Sebastião. A vila fica do outro lado — Will gritou
para ela. — Podemos economizar um pouco de tempo se cortarmos
pelo cemitério. Vamos.
Ele subiu a colina. Sophie o seguiu, mas caminhando devagar.
— Você está vindo? Depressa! — gritou Will.
Ele já estava na metade do caminho para a igreja.
Sophie fechou os olhos.
Ela ainda estava ferida pela declaração dura de Will. Ainda não
sabia por que ele dissera que a desprezava, e não era provável que
ela descobrisse, pois se recusava a dar-lhe a satisfação de
perguntar.
Sophie decidira que também não gostava muito de Will, embora
fosse — a contragosto — grata a ele. Para alguém que não a
suportava, ele se esforçou para ajudá-la. Ele a ensinava o que podia
e não podia colher na floresta. Em menos de dois dias, ela
aprendera quais cogumelos eram venenosos, como armar uma
armadilha adequada e quais plantas eram seguras.
— Preste atenção — ele insistiu enquanto mostrava a ela a
diferença entre dois tipos de repolho do pântano. — Folha verde
alimenta você. Folha vermelha mata. Você precisa saber dessas
coisas se quiser chegar a Escandinai.
Um arrepio percorreu Sophie enquanto ela seguia Will colina
acima. Ela não gostava da aparência da velha igreja assustadora ou
da ideia de pegar um atalho em um cemitério, mas o dia estava se
alongando, e ela sabia que Will queria chegar ao vilarejo antes que
as lojas fechassem. Ele pretendia fazer suas compras e voltar para
casa antes do anoitecer.
Quando ela alcançou o topo da colina, viu-o caminhando pelo
gramado do cemitério, passando por criptas e por fileiras de lápides.
— Quanto falta? — perguntou ela sem fôlego, ao alcançá-lo.
— Cuidado, sua idiota! Você pisou em mim!
Sophie parou de repente. Aquela era a gota d’água.
— Do que você me chamou? — perguntou ela.
— Não chamei de nada — disse Will.
Sophie lançou um olhar furioso.
— Sério? Então quem foi? — Will parou também e girou, os olhos
na grama.
— O que está olhando? Não vejo nada além de cogumelos —
disse Sophie, apontando para alguns com chapeuzinhos vermelhos
com bolinhas brancas.
— Isso porque cogumelos são o que elas querem que você veja.
— Quem são elas?
— Pixies. Já se perguntou por que os cogumelos parecem brotar
do chão durante a noite? — perguntou ele. — São as fadinhas
pixies se movendo. Elas usam chapéus vermelhos que parecem
chapéus de cogumelos como camuflagem.
Sophie se abaixou e estendeu a mão em direção a uma.
— Seja cuidadosa. Elas podem ser bravas — Will avisou.
Quando estava prestes a tocar num chapeuzinho, ficou fora do
seu alcance. A aba inclinou-se para trás. Um rosto minúsculo, com
nariz afilado e olhos astutos, apareceu embaixo dela.
— Sai pra lá, cérebro de strudel — disse a fadinha.
Sophie se engasgou. Na verdade, era um homenzinho que estava
parado diante dela, vestindo uma túnica branca e tamanquinhos
verdes. Tinha orelhas pontudas e dentes afiados.
— Você não deve xingar as pessoas — repreendeu Will.
— Segundo quem, cabeça de repolho?
— Você é uma coisinha muito mal-educada! — Sophie gaguejou,
endireitando-se. — Eu devia cozinhar você para o jantar.
O homenzinho-fada fez um gesto rude.
— Coma isto aqui, saco de pum!
Will caiu na gargalhada. Sophie, não. Ela bateu o pé no chão para
assustar a criaturinha. Mas, em vez de fugir, ele e mais dez de sua
espécie avançaram contra ela, estalando os dentes. Ela deu um
grito estridente e correu atrás de Will.
— Acha que o batatão aí vai proteger você? — o pixie zombou. —
Por favorzinho! — Ele contraiu o maxilar inferior para exibir dentes
salientes, esticou o pescoço e imitou o andar galopante de Will.
— Ei! — disse Will, carrancudo. — Isso não é engraçado!
Mas Sophie achou hilário; ela não conseguia parar de rir. Zara,
entretanto, foi até as fadinhas e as cutucou com o focinho. Isso
enfureceu o homenzinho-fada, que chutou terra no rosto dela.
— Não solte seu hálito fedorento de cachorro em cima de mim,
seu pulgueiro ossudo de pernas finas e olhos esbugalhados!
Zara deu um passo para trás. Ela latiu, incerta. Depois, lançou-se
sobre ele e o agarrou pelo chapéu, depois o sacudiu violentamente.
A alça que prendia o chapéu em sua cabeça estalou. O
homenzinho-fada saiu voando pelo ar, deixando um rastro de
xingamentos. Zara rasgou o chapéu inteirinho.
Aquilo foi um erro. Cerca de cinquenta criaturas saíram correndo
da grama alta, gritando a plenos pulmões.
— Hmm, Will? Acho que estão bravas — disse Sophie, recuando.
— Tenho certeza. Hora de irmos — disse Will.
Eles se viraram e começaram a se afastar. Sophie olhou por cima
do ombro. Os pixies continuavam vindo atrás deles. Seus dentes
pareciam muito afiados. Ela puxou a manga de Will.
Will olhou para trás.
— Estamos encrencados — disse ele. — Onde está um belo
príncipe quando precisamos dele?
— Acho que vai ter que se contentar com uma linda princesa —
Sophie disse, impulsivamente segurando sua mão.
A mão de Will se fechou na dela e Sophie a puxou. Eles correram,
rindo um com o outro desta vez. Zara, com as orelhas agitadas,
galopou atrás deles.
Sophie não largou sua mão. Não até que estivessem fora do
cemitério, descendo a colina e bem na estrada para Grauseldorf.
Nem Will.
QUARENTA

G quanto as lápides pelas


quais Sophie havia passado no cemitério da igreja, e ela mal podia
esperar para ir embora.
Tinha de ser paciente, porém. Will estava na loja do boticário. Ele
tinha encontrado o dono quando este fechava o estabelecimento e o
persuadiu a abrir novamente por mais alguns minutos. Não podia
esperar até de manhã, explicou ao homem. Tinha de voltar para a
estrada. Alguém estava esperando por ele, alguém que precisava
do que ele tinha ido comprar.
Os ouvidos de Sophie ficaram em pé com isso. Ele não falava de
sua família nem de sua vida, que ela tinha certeza de que ele não
queria que ela ouvisse, mas, ainda assim, ela ouviu. Quem é esse
alguém?, ela imaginou. Será que ele tem uma esposa? Seu coração
fez um barulho com a ideia de Will ser casado.
— Relógio? — disse Will enquanto o lojista destrancava a porta.
— Relógio — Sophie respondeu, sorrindo brilhantemente.
Will seguiu o homem para dentro, e Sophie ficou na rua,
esperando o barulho parar, mas, para sua vergonha, ele continuou,
mudando para um sibilo baixo e feio. Ela não soube por que e,
então, olhando através das janelas para Will, entendeu: seu coração
estava com ciúmes.
Isso a chocou. Não fazia sentido. Por que ela se importaria se Will
fosse casado? Ela logo se reuniria com seu amado. Essa era a
única coisa que importava. Não podia estar com ciúmes. Como
poderia estar? Ela nem gostava de Will. E ele certamente não
gostava dela. Era apenas seu coração estranho e incompreensível
funcionando mal mais uma vez.
Um momento depois, o barulho parou, e Sophie e Zara se
juntaram a Will dentro da loja. Sophie não queria ficar ali. Ela estava
tão impaciente para sair de Grauseldorf quanto Will. Sentia-se
exposta na aldeia. E se Krause a estivesse procurando por aquelas
bandas? Mas Will a fez esperar. Havia uma taverna na periferia da
aldeia, disse ele, que era barra pesada, e ele não queria que ela
passasse por lá sozinha.
Enquanto Sophie vagava pela loja, ela olhou para os frascos
alinhados nas paredes. Alguns continham coisas maravilhosamente
perfumadas, como canela, cravo e noz-moscada. Outros continham
substâncias que a faziam enrugar o nariz, como besouro preto seco
e sapo em conserva.
— Duas porções de casca de árvore de sabugueiro, duas de
urtiga-de-raposa e uma de bérberis moída… — ela ouviu Will dizer.
Sophie sabia para que serviam essas coisas. O que ela não sabia
era por que ele as estava comprando.
O boticário terminou de medir o pedido de Will, dobrou as
substâncias em quadrados de papel pardo e empurrou-as sobre o
balcão. Will pagou ao homem e cuidadosamente enfiou as compras
na mochila. Eles chegaram a mais algumas lojas antes de fecharem.
Will comprou algumas coisas em cada uma e colocou quatro
ameixas, um pouco de pão e um pedaço de queijo na mochila de
Sophie. Ela tentou agradecê-lo, mas ele não deixou. Em vez disso,
fez um sermão, mais uma vez, sobre as diferenças entre folha-de-
veado, que era deliciosa, e talo-de-veado, que deixaria sua língua
azul.
Sophie ouviu atentamente enquanto eles passavam pelas lojas
fechadas, mas, quando Will parou para respirar, ela disse:
— Por que todos os analgésicos?
Ela não obteve resposta, então o olhou de canto de olho. Sua
mandíbula estava rígida.
— Acho que não é da minha conta — disse ela.
— Acho que não.
Eles continuaram sua caminhada em silêncio até que não havia
mais construções. Sophie podia ver uma bifurcação na estrada à
frente e, à esquerda dela, assim como Will dissera, uma taverna de
aparência nada agradável. Sophie teve que escolher
cuidadosamente onde pisar em alguns lugares. Pelos montinhos
espalhados na estrada, um fazendeiro com certeza tinha acabado
de passar com suas vacas.
Alguns homens estavam em um punhado de mesas de madeira
frágeis na parte de fora da taverna. Mais pessoas juntaram-se a
eles, canecas nas mãos. Rajadas de gargalhadas explodiram pelas
portas abertas atrás deles.
Will, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça, olhou para eles.
Sophie, não. Se ela tivesse olhado, teria notado que estavam
usando uniformes azul-marinho. Mas ela olhava fixamente para a
estrada, tentando manter seu coração rebelde sob controle. Podia
sentir que estava começando a bater forte. Esperava não passar
vergonha novamente.
Um momento depois, eles chegaram à bifurcação. Will inalou
profundamente, depois soltou um suspiro pesado. Ele mudou seu
peso de um pé para o outro, então disse rapidamente:
— Eu não queria que você fosse sozinha. Eu iria com você,
Sophie. Eu gostaria… Mas não posso. Tem alguém em casa que
precisa de mim e… Eu tenho de voltar.
Mais uma vez, o coração de Sophie começou a bater com força.
Ela começou a falar, um pouco mais alto do que o normal, para
encobrir o som.
— Não precisa se desculpar, Will. Eu não estaria aqui agora se
não fosse por você. Nunca poderei agradecer o suficiente por toda a
ajuda que me deu. Vou ficar bem.
— Bem, acho que é isso.
— Acho que sim…
Sem jeito, Sophie estendeu a mão, pensando que Will iria pegá-
la, apertá-la, beijá-la… Alguma coisa. Mesmo que ele não gostasse
dela, apenas por uma questão de cortesia. Em vez disso, ele a
abraçou. Foi um abraço duro e estranho. Ele deu um tapinha nas
costas dela com muita força, como se ela fosse um cavalo ou um
cachorro grande. E a abraçou por muito tempo, o que fez os
homens na taverna assobiarem. Houve um comentário grosseiro
também.
Sophie interrompeu o abraço. Ela lançou um olhar para o homem
que fez o comentário grosseiro. E prendeu a respiração.
O homem rude acabava de levar sua caneca de cerveja aos
lábios. Ele a abaixou. Seus olhos se fixaram nos de Sophie.
Ele a conhecia. E ela o conhecia.
Era o capitão da guarda da rainha.
QUARENTA E UM

O S .
Will deu a ela um sorriso incerto.
— Hmm. Não é um relógio velho qualquer no seu bolso, é?
Parece um despertador — brincou ele.
Sophie fez que não.
— Volte para a aldeia — sibilou ela, e então subiu a estrada o
mais rápido que pôde.
Will a alcançou.
— Sophie? Algo está errado?
— Finja que não me conhece! — disse Sophie, começando a
correr.
— É um pouco tarde para isso. Acabei de abraçar você — disse
Will, correndo para acompanhá-la.
Sophie lançou um olhar por cima do ombro, na direção da
taverna.
— Vá embora, Will! Por favor. Antes que eles machuquem você.
Will seguiu a direção de seu olhar. Os dois viram o capitão pousar
a caneca. Ele acenou para dois de seus homens.
— É nessa encrenca que você está? — perguntou Will.
— É uma delas.
— Tem uma fazenda logo à frente. Logo depois da estrada — Will
disse, apressado. — Se cortarmos pelos campos, podemos chegar
à colina de São Sebastião, por onde entramos. A Floresta Sombria
está do outro lado. Se conseguirmos, eles nos perderão de vista.
Os olhos de Sophie, ainda no capitão, estavam enormes em seu
rosto.
— Sophie! — Will gritou para ela. — Olhe para mim. Para mim,
não para ele.
Sophie obedeceu. Seus olhos cinza pareciam duros como aço.
— Você aí! Menina! — gritou o capitão.
— Você está pronta? — disse Will.
Ele segurou a mão dela. Sophie assentiu.
Will apertou com força. Um instante depois, eles estavam
correndo como o vento.
QUARENTA E DOIS

C ,S , .
Ela e Will estavam descendo a estrada de terra. Eles haviam
corrido cerca de cem metros quando ela ouviu o barulho dos
cascos.
Por que não pensaram em cavalos? Claro que Krause e seus
homens viriam cavalgando. Sua madrasta se certificava de que a
guarda tivesse as montarias mais rápidas e fortes de todo o reino.
Ela e Will não tinham esperança de escapar. Krause a capturaria e a
levaria de volta para sua madrasta ou simplesmente a mataria na
Floresta Sombria. Seus ossos se juntariam aos de todos os outros,
cobertos de musgo e esquecidos.
Acabou, ela disse a si mesma, o medo dando lugar ao desespero.
A rainha, o Rei dos Corvos. Eles venceram. Nunca vou chegar a
Escandinai. Nunca mais verei Haakon.
Os pulmões de Sophie estavam explodindo; seus músculos
gritavam com o esforço de correr a toda velocidade. Ela olhou para
trás com terror. Krause, um pouco à frente de seus homens,
cavalgava a todo galope. Ele iria cruzar o caminho deles em poucos
segundos.
— Isso é inútil, Will. Não consigo mais correr — gritou Sophie,
começando a desacelerar.
— Sim, você consegue! — Will gritou de volta. — Só mais alguns
metros e vamos despistá-los! Vamos! — Seu aperto era forte; ela
não tinha escolha a não ser acompanhá-lo.
Não temos como despistá-los. Ele é louco, Sophie pensou.
E então eles dobraram uma curva na estrada e Sophie as viu —
vacas, pelo menos cinquenta delas.
O fazendeiro e seu filho estavam conduzindo seu rebanho de um
pasto para a ordenha. Os animais caminhavam vagarosamente,
balançando as caudas, os sinos de lata tocando em seu pescoço.
Estavam espalhadas por toda a largura da estrada de terra.
Sem diminuir a velocidade, Will puxou Sophie direto para o
rebanho. Zara estava atrás deles. Eles se moviam entre as vacas
como peixes nos juncos. Sophie lembrou-se de ter pulado o esterco
de vaca, lá atrás. Will sabia que elas estariam aqui, ela pensou. Ela
correu mais rápido, energizada por uma nova esperança.
As vacas deram pouca atenção aos dois humanos a pé com um
cachorro, mas os cavaleiros eram uma história diferente. O trovão
dos cascos dos cavalos, seus relinchos estridentes, os gritos dos
homens — todo o barulho e a comoção perturbaram as criaturas
amantes da paz. Algumas dispararam, o que irritou o fazendeiro e o
fez gritar. Algumas empacaram, mugindo alto. Outras se viraram e
atacaram os cavalos. Os soldados não conseguiam passar pelo
rebanho nem contorná-lo, pois a estrada era cercada de ambos os
lados por sebes altas.
— Voltem para a aldeia! — gritou o Capitão Krause. — Eles estão
indo para a Floresta Sombria! Vamos pegá-los do outro lado da
igreja!
Enquanto isso, Sophie e Will haviam corrido pela porteira aberta
da fazenda, passando por um bando de galinhas que cacarejava,
por celeiros e currais. Eles pularam uma cerca de madeira e foram
para a campina aberta. Quando chegaram ao pé da colina que
levava à igreja de São Sebastião, Sophie sentiu como se seus
pulmões estivessem em chamas. Ela queria parar, para recuperar o
fôlego, mas Will não deixou.
— Se não chegarmos à floresta, estamos perdidos — disse ele.
Um momento depois, eles alcançaram a bifurcação. Olhando para
o lado oposto, podiam ver a Floresta Sombria e a estrada que fazia
uma curva ao lado dela.
— Eles ainda não chegaram — disse Sophie, lançando um olhar
ansioso para a estrada em direção à aldeia.
— Eles vão chegar — disse Will.
Ele e Sophie passaram pelo cemitério. Estavam na metade da
colina, e Sophie tinha acabado de começar a acreditar que eles
conseguiriam chegar à floresta, quando ouviram cascos novamente.
Will xingou e mudou de direção.
— Corra para a igreja! — gritou ele.
O coração de Sophie batia forte contra as costelas enquanto o
seguia morro acima. Eles chegaram à porta da igreja assim que os
cavaleiros contornaram a estrada. Quando Will a abriu, eles
puderam ouvir a voz do capitão.
— Vocês quatro… procurem na floresta! — berrou ele. — O
restante de vocês vasculham o cemitério!
Will empurrou Sophie para dentro e fechou a porta atrás dela. A
igreja centenária era enorme e vazia. Sophie e Will correram pelo
corredor central, procurando um lugar para se esconder. Havia
bancos de madeira, um altar. Havia capelas escuras dedicadas a
santos e mártires, com velas acesas, mas os soldados certamente
vasculhariam todos aqueles lugares.
— Olhe! — disse Sophie, apontando à frente deles. Inscritas
sobre um arco de pedra à direita do altar estava a palavra: Criptas.
Will assentiu. Eles correram pela arcada, depois desceram um
lance em espiral de degraus de pedra até chegarem às entranhas
da velha igreja. Lamparinas a óleo colocadas em nichos nas
paredes iluminavam seu caminho.
Quando chegaram ao pé da escada, encontraram-se em uma sala
comprida e de teto baixo, úmida e fria. Criptas abobadadas, cada
uma cercada por um portão de ferro, alinhavam-se em ambos os
lados. Um anjo vingador esculpido em mármore montava guarda à
esquerda da escada.
Sophie podia ver os caixões através das barras de ferro. Alguns
eram feitos de madeira; outros eram esculpidos em pedra. Todos
estavam densamente cobertos de poeira.
— Will, não há onde se esconder aqui! — disse ela, em
desespero.
Will experimentou a maçaneta do portão da cripta mais próxima.
Estava trancado. Tentou o próximo, e o próximo, ao longo da
parede. Sophie começou a tentar do outro lado, mas todos os
portões que ela tentou também estavam trancados. Zara ficou perto
dela.
Um estrondo profundo foi ouvido acima deles. Sophie e Will se
entreolharam.
— Eles estão destruindo tudo… — Will começou a dizer, com os
olhos no teto.
— … procurando por nós — Sophie finalizou.
Eles redobraram seus esforços. Sophie moveu-se como um
relâmpago em sua fileira, tentando desesperadamente um portão
após o outro, o medo agitando em seu estômago, mas não teve
sorte.
Até que teve.
Quando alcançou a última cripta, a maçaneta girou, a trava foi
liberada e o portão se abriu com dobradiças rangentes.
— Will! — ela sussurrou. — Aqui!
Ela entrou na antiga cripta. Zara correu atrás dela. Os caixões
estavam enfileirados, alguns empilhados uns sobre os outros.
Ratos, umidade e tempo haviam destruído muitos deles. Seus topos
estavam rachados; suas laterais haviam cedido. Sophie recuou de
horror ao ver ossos saindo de um deles. Outro estrondo foi ouvido
acima deles, seguido pelo som de vidro tilintando. O barulho fez
Sophie se mexer novamente. Ela passou pelas pilhas de caixões,
procurando um bom esconderijo.
Ao fazer isso, ouviu outro ruído, pequeno, suave e próximo. Tarde
demais, ela percebeu que algo estava na cripta com ela.
Sophie abafou um grito quando algo surgiu das sombras e a
agarrou.
Era um homem. Ele segurava uma faca. E a apontava para a
garganta dela.
QUARENTA E TRÊS

—N .P .
Will estava na cripta agora também, com as mãos levantadas
para mostrar que não era uma ameaça.
A respiração de Sophie acelerou. Os dedos do homem se
curvaram cruelmente em seu braço, mas ela mal os sentiu. Toda
sua atenção estava voltada para a ponta da faca.
— Quem são vocês? — rosnou o homem.
Seu rosto estava marcado. Ele tinha o cabelo desgrenhado e sujo.
— Ela é a princesa das Terras Verdes — Will falou. — Os guardas
da rainha estão lá em cima. Estão atrás dela.
Houve outro estrondo acima deles, que reverberou pelas paredes.
— A rainha me quer morta — disse Sophie. — Se me pegarem,
vão me matar.
— E ele? — o homem gesticulou para Will.
— Ele é meu… amigo — explicou Sophie. — Você pode nos
esconder aqui?
O homem suspirou de forma infeliz, mas baixou a faca.
— Fazer o quê?! Parece que vou ter de me esconder também. O
Capitão Krause e eu não somos melhores amigos.
— Você o conhece? — Sophie perguntou enquanto Will fechava o
portão.
— Ele me fez isso. — O homem apontou para o seu rosto.
Os cabelos da nuca de Sophie se arrepiaram. A cicatriz que ela
viu na face do homem tinha sido marcada em sua pele. Era um L.
De Ladrão. Ela se encolheu diante da ideia de ficar presa em uma
cripta com um criminoso.
— Capitão! Aqui embaixo! — uma voz gritou do topo da escada.
Sophie congelou.
— Vocês vão ficar aí parados como um par de nabos? Escondam-
se! — sussurrou o homem.
Um grande sarcófago de pedra estava na parte de trás da cripta.
Will e Sophie se agacharam atrás dele e puxaram Zara para perto.
Ao fazê-lo, o homem tirou uma chave-mestra de ferro do bolso.
Serpenteou sua mão pelas barras e trancou o portão por fora.
Assim que o primeiro soldado alcançou o fim da escada, o homem
desapareceu atrás de uma pilha de caixões de madeira. Sophie
encostou a cabeça na pedra fria, desejando que seu coração se
calasse. Ela não podia ver o soldado de onde estava, mas podia ver
a luz de uma lamparina iluminando as paredes.
Mais soldados juntaram-se ao primeiro. Sophie podia ouvi-los.
Eles se espalharam pela sala, sacudindo as barras dos portões,
segurando tochas e olhando para as criptas.
Saiam daqui, ela implorou silenciosamente. Vão embora.
A luz de repente iluminou a cripta onde ela estava escondida,
varrendo o chão e o teto. Sophie não se mexeu. Não respirou. E,
finalmente, a escuridão voltou.
— Eles não estão aqui, capitão! — gritou uma voz. — Todas as
criptas estão bem trancadas.
— Aonde diabos eles foram, então? — disse o Capitão Krause,
batendo no anjo de mármore com seu chicote.
Enquanto o capitão e seus homens conversavam, outra pessoa
desceu. Sophie podia ouvir seus passos, lentos e medidos. Então,
parou.
— Sophie? Você está aqui?
O coração de Sophie deu um pulo. Não podia ser. Podia?
— Não tenha medo, Sophie. Estive procurando você em todos os
lugares.
Sophie inclinou o corpo para que pudesse espiar pela lateral do
sarcófago. Ela não viu Will balançar a cabeça. Não viu o ladrão levar
um dedo aos lábios.
Tudo que ela viu foi um homem alto de ombros largos com uma
cabeleira loura de leão, em pé no centro do corredor. Ele estava
segurando uma tocha, iluminando uma das criptas.
— Minha querida menina, você não reconhece a minha voz? Sou
eu…
Sophie sentiu-se desmoronar, sentiu todo o seu corpo ficar mole
de alívio.
Ela sussurrou o nome do homem enquanto ele próprio o falava.
Haakon.
QUARENTA E QUATRO

C ,S de seu esconderijo e correu para o


portão.
Ela colocou as mãos ao redor das barras, lágrimas brotando em
seus olhos. Estivera errada, tão errada. O Capitão Krause e seus
homens não a estavam perseguindo para machucá-la; eles estavam
tentando resgatá-la, por ordem de Haakon. Ele devia estar dentro da
taverna quando ela e Will passaram por lá.
— Sim — disse ela. — Você veio atrás de mim. Você veio…
Haakon sorriu, seus impressionantes olhos azuis enrugando nos
cantos, e Sophie sentiu como se o sol tivesse acabado de nascer.
Todas as suas dificuldades ficariam para trás. Ele estava aqui com
ela. Por fim, ela estava segura. Nunca mais precisaria se esconder,
correr ou ter medo novamente. Ele cruzou o corredor em duas
passadas rápidas, desgrenhado pelo vento e exausto de cavalgar,
mas tão incrivelmente bonito.
— Minha querida, querida menina — disse ele. — Achei que
nunca iria encontrá-la… Eu sabia que você não estava morta. Meu
coração sabia.
Sophie estendeu a mão através das grades para ele. Ele pegou a
mão dela com a sua mão enluvada, levou-a aos lábios e beijou-a.
Sophie apertou sua mão com força, como se nunca fosse soltar.
— Este era mais um de seus jogos cruéis? — perguntou ele
provocadoramente. — Feito para desafiar um pobre amante, para
conduzi-lo em uma perseguição selvagem?
O coração de Sophie zumbiu de felicidade com seu beijo, suas
palavras. Haakon ouviu. E piscou surpreso.
— O que diabos é esse barulho? — perguntou ele.
O peito de Sophie se apertou de pavor. Ela não queria responder
a essa pergunta, não aqui na frente de tantos estranhos. Queria ter
um tempo sozinha com Haakon para explicar como sobrevivera e
dizer quem estava em posse de seu verdadeiro coração.
— Tenho tanto para contar, meu amor — disse ela. — E eu vou
contar. Mas não aqui. Não agora.
Haakon concordou. Ele ergueu a tocha bem alto, iluminando a
cripta; então, disse:
— Como você conseguiu se trancar aí?
— Não fui eu que tranquei. Um homem trancou. Ele nos escondeu
quando pensamos que vocês queriam nos fazer mal — disse
Sophie, gesticulando para que o homem se aproximasse. — Não sei
o nome dele — acrescentou ela com uma risada. — Não deu tempo
de descobrir. Mas ele tem a chave.
— Tenho certeza de que ele roubou a chave — disse Krause, com
desprezo na voz. — Da sacristia.
Ele caminhou até o portão e bateu nele com a lateral do punho.
— Você está aí, Schmitt? — gritou ele, espiando por entre as
grades.
Sophie encolheu-se quando Krause se aproximou, mas então se
lembrou de que ele estava lá para ajudá-la.
— Arno Schmitt! Apareça! — Krause berrou.
O ladrão saiu de trás do caixão.
— Entregue a chave. Agora — Krause ordenou.
Praguejando baixinho, o ladrão se aproximou do portão. Enfiou a
mão no interior do casaco, tirou a chave e passou-a através das
grades. Krause pegou e estalou os dedos. Um soldado correu para
o lado dele. Krause sussurrou algo para ele e o homem
desapareceu escada acima.
— Capitão Krause, o que está fazendo? — Sophie perguntou,
confusa com o comportamento dele e irritada por ter seu comando
ignorado.
— Destranque o portão. O Príncipe Haakon e eu devemos
cavalgar para Escandinai. Imediatamente.
Mas, em vez de responder a Sophie, o capitão inclinou a cabeça
na direção de Haakon. Em voz tão baixa que Sophie mal conseguiu
ouvi-lo, ele disse:
— A estrada para a aldeia está movimentada a esta hora da noite,
meu senhor. Pode haver muitas testemunhas.
A compreensão desabou sobre Sophie. Ela percebeu que ainda
não era seguro ser vista nas Terras Verdes. Poderia haver agentes
da rainha na área. O capitão estava apenas a protegendo.
— Teremos que recorrer a outros métodos, então — disse
Haakon.
Ele puxou a mão, mas Sophie não queria deixá-lo ir. Seus dedos
arranharam sua luva. Ele puxou, e a luva caiu no chão. Ao fazê-lo,
algo brilhou intensamente à luz da tocha.
Sophie olhou para o objeto cintilante, perplexa.
— Você está… Você está usando meu anel — disse ela,
erguendo os olhos para ele. — Por quê?
Uma pontada afiada perfurou seu coração. Seu pai lhe dera
aquele anel. Era para ela, a herdeira de sangue, usar. Somente ela.
— Baron von Arnim o trouxe de volta para o palácio — Haakon
disse, pegando sua luva.
— Para a rainha… — disse Sophie, o medo se acumulando em
sua barriga. — Ela viu o anel? Ela sabe que estou viva?
Haakon não respondeu. Em vez disso, fez uma pergunta.
— O rapaz que estava com você. Ele também está aqui?
— Sim, está. Will, venha! — disse Sophie, mortalmente
preocupada com o que sua madrasta poderia ou não saber e
confusa pela mudança abrupta de assunto.
Will ainda estava agachado atrás do sarcófago. Sophie não o viu
balançar a cabeça e depois bater com a palma da mão na tumba de
pedra. Ele se levantou e caminhou lentamente até o portão.
— Haakon, este é o Will. Ele salvou minha vida. Devemos
recompensá-lo. Eu gostaria de dar a ele um bom cavalo para voltar
para casa e um pouco de ouro.
Will fez uma reverência para Haakon. Haakon olhou para ele.
— Tem outros? — perguntou ele.
— Não — disse Sophie, ficando impaciente com suas perguntas.
Quanto antes ela e Haakon cruzassem a fronteira, melhor. — Abra o
portão e nos deixe sair. Eu quero partir deste lugar horrível.
— Não posso fazer isso, infelizmente — Haakon disse com um
sorriso de pesar.
O medo percorreu a nuca de Sophie como uma aranha. Algo não
estava certo.
— Haakon, o que você está fazendo? Deixe-nos sair.
Passos foram ouvidos. O soldado que subira correndo a escada
voltou carregando dois jarros de pedra com tampa.
— Você não pode fazer isso — Will disse, olhando para o
príncipe.
— Fazer o quê? — Sophie perguntou, seus olhos disparando de
Haakon para Will e vice-versa. — Alguém pode me dizer o que está
acontecendo? Haakon, responda.
O Capitão Krause ainda estava segurando a chave. Ele a
entregou a Haakon. Quando o belo príncipe a colocou no bolso,
Sophie teve sua resposta.
QUARENTA E CINCO

— H , — S , pela traição. —
Não.
Haakon estendeu a mão e admirou o Anel do Governante.
— Depois que os lobos mataram você…
— Lobos não me mataram — rebateu Sophie. — Foi isso que a
rainha disse? Não é verdade. Ela mandou…
— Os detalhes realmente não importam, não é mesmo? —
Haakon perguntou, impaciente. — Depois que você morreu,
convenci a rainha a me nomear seu herdeiro.
— Como? — perguntou Sophie, tensa de choque.
— Ela acredita que o Rei do Interior vai atacá-la. Seu medo é tão
grande que ela não fala de outra coisa. Prometi defender as Terras
Verdes com todo o poder do exército de Escandinai. Caso ela me
prometesse que eu herdaria sua coroa. Mas, agora, eu tenho um
problema: você não está morta, no fim das contas. Como posso ser
herdeiro do trono das Terras Verdes se você ainda está viva?
O medo de Sophie transformou-se em terror total. Ela colocou as
mãos nas barras de ferro.
— Abra este portão, Haakon.
— Está na hora de um homem governar as Terras Verdes
novamente. Pretendo anexar o reino a Escandinai assim que eu
assumir o trono.
Sophie sabia que precisava dissuadi-lo de seu plano. Era sua
única chance de se libertar e de libertar Will e Arno Schmitt.
— Mas você não vai assumir o trono, não vê? Não por anos.
Décadas, até. A rainha ainda é jovem. Ela não vai renunciar à sua
coroa.
Haakon sorriu.
— Adelaide é uma amazona ousada. É incrível que algo não
tenha acontecido com ela em seus galopes pela floresta,
perseguindo lobos sem medo. Ela pode cair. Quebrar o pescoço…
tão facilmente.
Sophie se afastou do portão, cambaleando.
— Quem é você?
— Eu sou um governante, Sophie. Aquele que não tem medo de
aproveitar as oportunidades que se apresentam.
— Você me pediu em casamento — disse Sophie. — Mas era
tudo mentira.
— Em me casaria com você. Você seria um meio fácil de adquirir
outro reino. — Ele deu de ombros. — Mas, agora, encontrei um jeito
de adquirir dois. Pretendo me casar com a princesa do Catai logo
depois de assumir o controle das Terras Verdes. O imperador está
velho e doente. Ele logo não estará mais aqui.
— Você disse que me amava — Sophie falou, em lágrimas.
Haakon riu. Piedade encheu seus lindos olhos.
— Pobre Sophie tolinha e de coração mole. Ainda falando sobre
amor, mesmo depois de tudo pelo que você passou. O amor não
importa. Tudo que importa é que a noiva possa me dar um herdeiro.
Preciso de filhos para me ajudar a governar meus reinos.
— Eu acreditei em você… Eu acreditei em você — disse Sophie,
com a voz embargada.
Mas Haakon não a ouvia mais. Estava olhando para as escadas.
Sophie viu que tinha pouco tempo para convencê-lo a libertar Will e
Arno.
— Haakon, poupe esses dois homens — ela implorou. — Deixe-
os sair. Eles não têm nada a ver com isso.
— É muito arriscado. Eles contariam o que viram.
— Você não pode ser tão cruel. Você não pode simplesmente ir
embora e nos deixar morrer de fome!
— Sophie, Sophie… — Haakon disse, estalando a língua. — Não
deixarei você morrer de fome. Isso seria cruel. Eu preciso fazer o
trabalho rapidamente. Sem testemunhas. Sem corpos. Nada para
aborrecer os camponeses.
Com um sorriso pesaroso, deu mais alguns passos para trás do
portão.
— Aonde você vai? O que você está fazendo? — perguntou
Sophie.
— Capitão Krause — disse Haakon.
Krause deu um passo à frente.
— Sim, Sua Graça?
Haakon entregou a Krause sua tocha.
— Queime este lugar.
QUARENTA E SEIS

C , H se virou e foi embora,


desaparecendo escada acima.
— Não! — Sophie gritou às costas dele. — Haakon, não faça isso!
O Capitão Krause e seus homens começaram a trabalhar. Eles
destamparam os dois jarros que um dos soldados havia carregado
para baixo e espalharam seu conteúdo pelo chão e pelas grades
das criptas, incluindo aquela em que Sophie e seus amigos
estavam. Vapores ardentes de óleo de lamparina subiram,
queimando o nariz de Sophie.
— Por favor, nos deixe sair — implorou ela a Krause, chorando.
— Você não pode nos deixar morrer!
Se Krause a ouviu, não deu nenhuma indicação. Seus homens
seguiram suas ordens e, quando os jarros foram esvaziados, eles se
dirigiram para a escada.
Krause fez uma pausa, esperando que eles saíssem. Assim que
se foram, ele se virou e encostou a tocha no óleo e, em seguida,
subiu as escadas correndo. Houve um barulho alto de sucção
quando o óleo acendeu. Will agarrou Sophie e puxou-a para longe
do portão. Chamas azuis viajaram pelo chão. Dispararam pelas
criptas fechadas, alimentando-se da madeira dos velhos caixões e
crescendo rapidamente.
Assim como o terror de Sophie. Com seus topos de pedra
arqueados e interiores flamejantes, as criptas pareciam-se com
fornos gigantes.
Enquanto Will tentava apagar as chamas que rastejavam em
direção a eles através das barras, Sophie deu-se conta de que iria
morrer. Devagar e dolorosamente. E Will e Arno Schmitt iriam
morrer com ela. Ela começou a gritar e não conseguiu parar. Zara,
choramingando, andava de um lado para o outro.
Will estava se jogando contra o portão agora, tentando quebrar as
barras ou entortá-las, mas elas eram feitas de ferro e não cediam.
Ele encontrou um pedaço de pedra, que havia caído de uma tumba
antiga, e a usou para golpear, mas a pedra se desfez em suas
mãos.
Arno não gritou nem se atirou ao portão. Em vez disso, estava
ocupado no fundo da cripta. Juntando seus pertences. Colocando
coisas em uma mochila. Terminando uma garrafa de vinho.
— Pare, Sophie, por favor — disse Will. — Pare de gritar. Não
consigo pensar. Eu preciso pensar.
— Não, continue assim, Sophie. Se você puder, grite ainda mais
alto — disse Arno.
Ele voltou ao trabalho, assobiando.
Will olhou para ele sem acreditar.
— Estamos prestes a morrer queimados e você está assobiando
músicas folclóricas?
Arno lançou a Will um olhar de desprezo.
— Bobo é o homem que constrói uma casa com uma porta só.
Ele agarrou a tampa de um caixão de madeira e, com esforço,
empurrou-a para o lado.
Will viu uma caveira e, logo abaixo dela, a gola de renda
apodrecida de um vestido outrora fino.
— Me desculpe, querida — disse Arno. Ele enfiou o braço no
caixão e procurou lá dentro, franzindo a testa. — Ah! Aqui estamos
nós! — exclamou, puxando um saco de couro estufado. Ele o deixou
cair no chão. Fez um som tilintante. — Vou sentir falta deste lugar
antigo — disse ele, olhando em volta melancolicamente. — Vizinhos
quietos. Boas lembranças.
Seus olhos caíram sobre Will novamente:
— Você pode querer começar a gritar também, filho —
aconselhou ele, empurrando a tampa de outro caixão para o lado. —
Precisamos ser o mais barulhentos possível. Caso contrário,
parecerá suspeito.
— Você é louco — disse Sophie.
O fogo estava mais quente agora. Suas labaredas alaranjadas
dispararam através das barras. Uma espessa fumaça cinza subiu
para a cripta. Enquanto Will recuava para se lançar ao portão
novamente, ele sentiu um toque em seu ombro.
— Com licença, rapaz. Você acha que poderia me ajudar a tirar a
tampa desta tumba? — Arno perguntou. — É muito pesada. E
minhas costas não são o que costumavam ser.
— Vamos morrer! — Will gritou para ele. — Você não entende
isso?
Arno sorriu maliciosamente.
— Não se você me ajudar. Pegue o lado menor — ele instruiu. —
Em três, dê um bom empurrão. Pronto? Um, dois, três!
Will e Arno empurraram a tampa com toda força. Ela escorregou,
caiu no chão e se espatifou. Will olhou para dentro. Não havia ossos
lá. Em vez disso, havia uma escada de madeira frágil encostada em
uma de suas paredes internas. Levava a um buraco negro.
O fogo estava empurrando o portão agora e lambendo um caixão
lá dentro. A fumaça sufocante girava em torno de Sophie, cegando-
a e fazendo-a tossir.
— Hora de irmos — disse Arno.
Ele acenou com a cabeça para Sophie.
— Pegue a moça, está bem?
— Sophie, vamos! — gritou Will, estendendo a mão para ela.
Ela estava tossindo incontrolavelmente. As lágrimas haviam
lavado rastros da fuligem em suas bochechas.
— Sinto muito, Will! — ela chorou. — Me perdoe!
— Está tudo bem! Tem uma saída! — disse Will, puxando-a para
dentro do túmulo. Sophie não acreditou nele, não até que olhou para
o buraco.
— Para onde vai? — gritou ela por cima do barulho das chamas.
— Para fora! — respondeu Arno. — Ajudem-me com minhas
malas!
Meia dúzia de sacos de couro bem fechados espalhavam-se pelo
chão ao redor da tumba. Arno pegou um e jogou no buraco. Will fez
o mesmo. Sophie, assustada e atordoada, agarrou um, mas suas
mãos tremiam tanto que ela perdeu o controle sobre ele. Sua lateral
se abriu quando atingiu o chão. As joias caíram. Pulseiras. Colares.
E um brinco — ainda preso a uma orelha preta enrugada. Ela deu
um grito agudo ao vê-lo.
Arno sorriu, malandro.
— Estava escuro. Eu estava com pressa. Não deu para arrancar
direitinho — explicou ele.
Ele pegou as joias e as enfiou, junto ao saco rasgado, na mochila.
Sophie ergueu os olhos das joias para Arno. O L em sua face
destacava-se na luz laranja.
— Você é um ladrão de túmulos — disse ela.
— Todos nós temos nossos defeitos — disse Arno. — Peguem
esses sacos, sim? Está ficando um pouco quente aqui.
O fogo devorou o caixão perto do portão e saltou para vários
outros. As chamas crepitavam a apenas trinta centímetros de onde
os três estavam agora.
Enquanto Sophie e Will jogavam apressadamente o restante dos
sacos no buraco e, em seguida, suas próprias mochilas, Arno fez
uma tocha com uma ripa de caixão e um pedaço da mortalha de
alguém. Ele largou a mochila na tumba e jogou uma perna por cima
dela. Encontrou a escada com o pé e rapidamente trouxe a outra
perna.
— Sigam-me — disse ele.
Em um instante, chegou ao pé da escada. Will pegou Zara e disse
a Sophie para descer. No momento em que Will estava na escada,
as chamas lamberam o último túmulo. Ele rapidamente se juntou
aos outros e se viu em uma passagem baixa e estreita, escavada na
terra.
— Que lugar é este? — perguntou Sophie.
— Um túnel de fuga. Provavelmente feito por padres durante uma
guerra religiosa ou outra — disse Arno, enfiando os ombros nas
alças da mochila. — Estava péssimo quando o descobri. Eu
consertei isso.
— É seguro? — Sophie perguntou, olhando ao redor com
incerteza. Arno bufou.
— Mais seguro que a morte? Sim. — Ele pegou dois sacos e fez
sinal para que Sophie e Will fizessem o mesmo. — Fiquem perto.
Vamos lá.
Os três caminharam pelo túnel, agachados.
Estava escuro. Água fria pingava do teto. Depois de caminhar por
cerca de cinco minutos, eles chegaram a outra escada. Arno subiu
os degraus primeiro, depois Sophie, então Will entregou os sacos de
Arno, Zara e as próprias coisas, antes de subir ele mesmo. Eles se
viram em um mausoléu grande, a cerca de cinquenta metros da
igreja descendo a colina. Ouviram gritos e o chiado e crepitar de um
incêndio violento. Todos tinham ido até lá. Com o cuidado de
permanecerem nas sombras, espiaram através da filigrana de ferro
o incêndio acima deles.
Os moradores de Grauseldorf cercaram sua antiga igreja, alguns
pressionando as mãos no rosto, outros chorando. Krause e seus
homens, fingindo preocupação, mantiveram as pessoas longe do
fogo, gritando que era perigoso demais chegar perto.
— Vou passar a noite aqui — disse Arno. — Há muitos soldados
por aí para o meu gosto.
Ele fez uma cama em um canto escuro da tumba e logo
adormeceu. Will fez o mesmo.
Sophie sentou-se ao lado deles, mas não conseguiu dormir. Ficou
acordada a noite toda, observando Haakon partir com Krause e
seus soldados. Assistindo aos velhos chorarem enquanto a torre do
sino desabava. Enquanto as paredes desmoronavam. Ela ainda
estava acordada ao amanhecer, olhando para as ruínas.
QUARENTA E SETE

U S .
Ela acordou de repente. Abriu os olhos. A luz estava fluindo pelo
mausoléu, entrando pelas janelas e pela porta.
Ela fechou os olhos novamente, prendendo vívidos redemoinhos
de laranja e ouro atrás de suas pálpebras. Por alguns segundos
horríveis, estava de volta dentro da cripta enquanto os soldados
incendiavam o local. Ela podia ver o fogo subindo, sentir o cheiro da
fumaça, ouvir-se gritando.
São Sebastião agora era um monte fumegante de cinzas e
destroços, assim como suas esperanças, seu futuro. A vergonha
queimou dentro dela, tão quente quanto as chamas que devoraram
a igreja, quando percebeu que sua madrasta e as pessoas na corte
estavam certas. Ela era tola e fraca. Confiava em Haakon porque
ele era lindo e deslumbrante, porque havia falado palavras
românticas e a feito acreditar que a amava. Seu coração tinha sido
sua ruína. Outra vez.
Algo se moveu embaixo de Sophie, empurrando-a. Ela percebeu
que sua cabeça estava apoiada em uma criatura quente e
respirando; seu braço estava pendurado nela. Zara, pensou,
abraçando a cadela para se confortar.
Não parecia ser Zara. Não cheirava como ela. Cheirava a fumaça,
mas, por baixo disso, havia os aromas de pinho, couro, lavanda,
suor.
Sophie ergueu a cabeça. Não era Zara que ela estava abraçando,
era Will. Mortificada, ergueu-se sobre os braços. Ela se lembrava de
se sentar ao lado dele no escuro enquanto ele dormia. Devo ter
adormecido e depois tombado como um saco de cebolas, pensou.
O barulho veio novamente. Sophie olhou ao redor com a visão
turva. Era Arno. Ele estava andando pelo mausoléu, empurrando as
tampas dos caixões, procurando outras soltas.
— Bom dia! — gritou ele ao vê-la. — Seu namoradinho está
acordado?
Sophie piscou para ele.
— Meu o quê? Quem… Ele? Ele não é… Will não é meu…
Arno olhou para ela, ainda meio curvado sobre Will. Ele ergueu
uma sobrancelha.
— Não se preocupe. Nunca direi nada.
Sophie rapidamente se levantou. Limpou um pouco de poeira
imaginária de sua calça. Zara, que estava enrolada perto,
imediatamente se acomodou no lugar quente que Sophie havia
deixado. Will resmungou em seu sono, rolou de lado e colocou o
braço em volta da cachorrinha.
— Estranho arranjo que vocês três têm — disse Arno. — Mas
quem sou eu para julgar?
Ele sacudiu outro caixão.
— Os aldeões se foram. Assim como os soldados. Podemos
querer ir embora também. O Capitão Dose e o Príncipe Bombom
pensam que estamos mortos. O que significa que não procurarão
por nós. Isso nos dá uma vantagem.
Sophie assentiu. Seu cabelo estava solto. Fedia a fumaça. Ela se
abaixou até a mochila e remexeu nela para encontrar uma fita para
prendê-lo. Ao fazer isso, algo piscou intensamente do outro lado da
tumba. Arno tirou de sua mochila a sacola de joias que se abriu e
colocou-a sobre um caixão. Os raios pálidos do sol matinal reluziam
sobre anéis, broches e colares que caíam de dentro.
Sophie olhou para os itens roubados com desgosto, lembrando-se
da orelha enrugada. Arno percebeu que ela estava olhando.
— Quer um anel de rubi? — perguntou ele.
— Não quero nada — disse Sophie com desgosto. — Você tirou
isso de um cadáver. Você é um ladrão de túmulos. Rouba dos
mortos. Como você pode fazer isso?
Arno bufou e lhe dirigiu um olhar faiscante:
— E você é realeza. Rouba dos vivos. Como pode fazer isso?
— Eu nunca roubei nada na minha vida! — Sophie disse,
ofendida.
— Você parece mais uma lavradora do que uma princesa agora
— disse Arno, aproximando-se dela. — Mas aposto que, antes de
os lobos a dilacerarem, ou seja lá o que tiver acontecido, você
usava vestidos de seda, anéis de diamante e uma coroa de ouro
também.
— Sim. O que é que tem isso?
— De onde vinham essas joias? Você trabalhava por elas?
— Bem, eu…. Não é como se…. Nós não…
— E os castelos, palácios e carruagens? Vocês merecem tudo
isso? — Ele se abaixou e desenhou um L em sua bochecha com um
dedo sujo. — Ladra — disse ele, rindo.
Sophie deu um tapa na mão dele, mal-humorada. Esfregou o L e
retomou a busca por uma fita. E Arno retomou sua busca por um
esconderijo.
Will acordou quando Sophie estava terminando sua trança. Seus
olhos se encontraram.
— Nem uma palavra sobre belos príncipes — ela o avisou, muito
ranzinza para qualquer tipo de zombaria. — Nenhuma.
Will estremeceu com isso, como se a suposição dela doesse.
Houve um momento de silêncio e então ele disse:
— O que você vai fazer? Não pode ir para Escandinai agora.
— Não, eu não posso.
Sua esperança de Haakon recuperar seu coração desaparecera.
Não haveria exército para marchar sobre o castelo do Rei dos
Corvos. Seu coração de relógio iria desacelerar. Em breve.
Provavelmente em alguma parte solitária e esquecida da Floresta
Sombria.
— Aonde você vai?
— Para o Duque de Niederheim… Para o castelo dele — disse
Sophie levemente. — Não é longe.
— Você sabia que seu nariz se enruga quando você mente?
Sophie fez uma careta.
— Você não tem para onde ir, tem?
— Não — admitiu Sophie, com vergonha de precisar mentir.
Mas a verdade era que ela não tinha ninguém, e isso era
doloroso. Durante toda a sua vida, estivera cercada por pessoas. De
babás e damas de companhia a poderosos duques e ministros. Mas
não podia confiar em nenhum deles. Sempre serviam à sua
madrasta ou, agora, a Haakon. Não havia nenhuma pessoa de sua
antiga vida a quem ela pudesse recorrer.
— Você poderia vir para casa comigo. Descansar um pouco.
Comer um pouco da comida caseira.
— Vou para casa com você — disse Arno. — Eu gostaria de um
pouco dessa comida caseira.
Sophie e Will o ignoraram.
— Não posso fazer isso, Will. Quase matei você ontem à noite.
— Não tenho medo de Haakon.
— Deveria ter — disse Sophie. — Você deveria ter medo de
qualquer pessoa que queira tanto o poder quanto ele.
— Sophie…
— Will, obrigada. De verdade. Mas tenho problemas maiores do
que Haakon. E eu… Não tenho tempo… Eu…
— Eu isso e aquilo — interrompeu Arno. — Talvez você não seja
o centro do mundo, Princesa Preciosa. Já pensou nisso? Você vai
simplesmente deixar aquele traste cruel do Haakon comandar este
país? Se ele ficou feliz em nos queimar vivos, o que fará com os
outros que ficarem em seu caminho?
Sophie estava farta daquele homem rude.
— O que você quer que eu faça, Arno? — perguntou ela, pondo-
se de pé.
— Tome de volta sua maldita coroa.
Sophie olhou como se ele estivesse louco.
— Eu sozinha? — perguntou ela. — Apenas eu. Sem exército. Ou
armas. Ou uma fortaleza. Só eu e minha cadelinha magra. Não
tenho nem dois centavos para comprar o café da manhã!
— Só porque você não tem dois centavos — ou um exército —
hoje não significa que não os terá amanhã.
Mas eu não tenho um amanhã!, Sophie queria gritar com ele. Em
vez disso, ela disse:
— Arno, você não sabe do que está falando.
— Nem você, sua tonta.
Sophie balançou a cabeça com espanto por sua ousadia.
— Sabe, talvez eu vá tomar minha coroa de volta. Só para poder
decapitar você!
— Você já se hospedou na casa de um caçador? Sabe de que
tamanho é? O que comem no jantar? Você pode aprender algo.
Sobre seu próprio povo. Sobre suas vidas. Vá para a casa do
garoto, pelo amor dos céus. Não vê que ele quer que você vá? —
Arno piscou. Ele ergueu a mão ao lado da boca. — Acho que ele
gosta de você!
Sophie ficou vermelha.
— Oh, meu Deus. Arno, isso é tão inconveniente. Will é casado!
Will, bebendo água de seu cantil, cuspiu.
— Sou o quê? Não, não sou!
— Mas você… Você disse…
— Eu disse o quê?
— Você disse que tinha alguém em casa. Que precisava de você.
— Minha irmã.
— Ah. — O rubor de Sophie se intensificou. Ela queria sair
correndo.
Arno bateu palmas.
— Viu? Eu tinha razão! Você já aprendeu algo!
Ele colocou a mochila sobre os ombros e pegou uma espada que
havia escondido na tumba e o molho de chaves. Guardou suas joias
num saco e ficou pronto para partir. Um minuto depois, abriu a porta
do mausoléu.
— Vamos, garota. Vamos comer lombo de veado. Polvilhado com
pimenta-do-reino e coentro. Servido com molho de groselha. Talvez
algumas batatas fritas e repolho refogado de acompanhamento.
— Que tal ensopado de coelho? — perguntou Will. — Se eu tiver
sorte o suficiente para pegar alguns no caminho?
— Aceito também.
Os três saíram da cripta para a luminosidade. Arno ergueu o rosto
para o sol; ele sorriu. Esticou bem os braços carnudos.
— Ahh! — disse ele. — É bom estar morto.
QUARENTA E OITO

S a cerca de um quilômetro da
cabana de Will. O tique-taque em seu peito estava lento e pesado
depois de quase dois dias de caminhada. Enguiçava, parava e
começava novamente. Não era alto — Sophie podia apenas sentir,
não ouvir —, mas, de alguma forma, isso a assustava ainda mais.
Ela estava fraca. Seus membros pareciam estar cheios de areia.
Parava de vez em quando para jogar gravetos para Zara pegar
enquanto ela, Will e Arno caminhavam pela floresta, mas as pausas
brincalhonas eram um estratagema — ela precisava delas para
recuperar o fôlego e reunir forças. Chegou à cabana por pura força
de vontade.
Ao chegarem ao pequeno e organizado jardim que cercava a
humilde casa, Sophie viu uma senhora sentada ao sol, tricotando
uma cesta de lã. Uma menina estava sentada ao lado dela. Seus
olhos estavam fechados; seu rosto, inclinado para o sol poente. Ela
estava enrolada até o pescoço em cobertores como se fosse
inverno, não verão.
— Oma? — gritou Will. — Eu trouxe amigos.
A senhora se virou. Suas sobrancelhas se ergueram de surpresa.
Seus olhos penetrantes, do mesmo cinza que os do neto, mediram
Sophie e Arno. Observaram a cicatriz de Sophie, que estava
aparecendo pelo decote da blusa e o L na bochecha de Arno.
A menina fez uma careta.
— Esta é minha avó — disse Will. — E Gretta, minha irmã. Oma,
Gretta, estes são Sophie, Arno e Zara.
— Como vocês… — Sophie começou a dizer.
Mas ela nunca terminou a frase, porque sua visão ficou turva, ela
tropeçou e caiu no chão. Will e Arno a ajudaram a se levantar.
— Céus! O que há de errado com ela? — perguntou a velha,
pondo-se de pé. — Ela estava branca como um fantasma.
— Eu não sei — admitiu Will.
— Rápido, garoto. Sente-a.
Enquanto Will e Arno acomodavam Sophie na cadeira de Oma,
esta correu para a cabana. Ela voltou alguns segundos depois com
uma garrafa de vinagre e a posicionou sob o nariz de Sophie.
O cheiro forte engrenou o coração de Sophie de volta a um ritmo
constante.
— Obrigada — disse ela, agradecida.
Sentiu um pouco de força retornar ao seu corpo.
— O que houve? — perguntou Will.
— Nada. Foi só… uma fraqueza — Sophie mentiu. — Tenho me
sentido zonza desde o incêndio. Provavelmente é por causa da
fumaça.
Ela não queria contar a verdade — que seu coração estava
falhando. Mal conseguia enfrentar isso sozinha.
— Incêndio? — disse Oma. — Fumaça?
— É uma longa história — falou Will.
Oma olhou para ele.
— Gatos de rua. Vira-latas. Agora uma garota e um ladrão
perdidos — disse Oma. — É você que os encontra, Will? Ou eles é
que encontram você?
Will riu. Sophie ergueu os olhos e viu que ele estava abraçando a
irmã com ternura. Os membros da garota eram finos como palitos
de fósforo. Sophie pensou que ela era muito jovem quando a viu
pela primeira vez, talvez cinco ou seis anos, mas agora percebeu
que a menina devia ter dez ou onze anos. Seu corpo era debilitado.
Sophie percebeu que ela não era forte o suficiente para andar
sozinha.
A garota, com os olhos arregalados em seu rosto tenso, observou
Sophie de perto.
— Olá — disse Sophie, sorrindo para ela.
— Você está fedendo — disse a garota.
— Gretta! — Oma repreendeu.
— Bem, ela está.
Sophie sabia que cheirava a fumaça. E provavelmente coisa pior.
Já fazia muito tempo que não se lavava.
— Posso usar sua banheira? — ela perguntou.
Oma riu. Ela enganchou o polegar sobre o seu ombro.
— Você não precisa pedir minha permissão. Nossa banheira é lá
fora.
Sophie esticou o pescoço. Ela viu um fluxo prateado de água
borbulhando atrás da casa. — Mas aquilo… é um riacho.
— Pois é. Pegue um sabonete e uma toalha, por favor, Will. E
para você e Arno também.
Arno parecia que ia recusar o banho, mas depois farejou
disfarçadamente as axilas e fez uma careta. Will colocou Gretta no
chão e desapareceu na cabana.
— Mas não há privacidade — Sophie protestou, ainda olhando
para o riacho.
— Caminhe rio abaixo se estiver incomodada com isso. Ninguém
verá você lá, exceto os veados. Os homens podem se banhar rio
acima. Certifique-se de lavar o corte em seu lábio. Está inchado.
Use bastante sabonete. E lave suas roupas enquanto estiver lá.
Você pode pendurá-las no varal.
— Mas só tenho estas roupas. O que devo vestir enquanto
secam?
— Você pode pegar algo emprestado. Não posso deixar você
trazer pulgas para dentro de casa.
— Pulgas! — Sophie exclamou, mortificada. — Não tenho pulgas!
— Aposto que sim — disse Gretta, estreitando os olhos. —
Parece ter.
— Will! — Oma berrou. — Traga algumas roupas velhas!
Will voltou da cabana alguns minutos depois com tudo o que sua
avó pedira que ele pegasse. Entregou algumas coisas para Sophie,
outras para Arno.
— Will, você caçou um coelho? Podemos ter… — Gretta gritou.
Um acesso de tosse interrompeu sua pergunta.
Will se ajoelhou ao lado da irmã e esfregou suas costas. A tosse
piorou. Sophie já estava indo para o riacho. Ela parou e se virou,
preocupada. Gretta não conseguiu recuperar o fôlego. Seu rosto
estava começando a ficar azul; suas pequenas mãos, atadas na
camisa de Will. Sophie começou a voltar até eles, seu coração
batendo forte, mas, quando o fez, Gretta conseguiu limpar o que
quer que estivesse em sua garganta. Respirou fundo, depois caiu
nos braços de Will. Ele a carregou para a cabana.
Oma estava bem atrás dele, com o rosto sombrio. Sophie deu
alguns passos incertos em direção a eles, mas depois parou,
sentindo que não era necessária. Ou desejada. Então continuou
para o riacho. Quando chegou lá, viu que alguém o havia represado
com pedras para criar uma piscina profunda. Depois de pendurar
sua toalha e as roupas limpas em um galho de árvore para mantê-
las secas, ela rapidamente se despiu e largou as roupas sujas na
margem. Em seguida, entrou na água com o sabonete na mão. Zara
a seguiu.
A água estava tão gelada que a fez recuperar o fôlego, mas
estava gostosa também. Especialmente quando ela abaixou a
cabeça e a água fluiu sobre seu lábio inchado, entorpecendo-o.
Nada poderia entorpecer a dor que sentia pela traição de Haakon,
no entanto. Ela acreditara nele. Confiara nele. Amara, até. Pelo
menos, pensava que sim. Imaginou a satisfação presunçosa de sua
madrasta quando Haakon dissesse a ela que Sophie estava
realmente morta. Adelaide sorriria e diria que a garota não passava
de uma idiota perdida, tão compassiva, tão sem noção, tão fácil de
manipular.
Os dedos frios e finos da vergonha agarraram Sophie como se
fossem envolver suas pernas, segurá-la e afogá-la. Por um breve e
sombrio momento, ela se perguntou se deveria simplesmente se
deixar levar. Para quem ela era importante? Para si mesma? Para
ninguém?
Mas, então, percebeu algo: ela havia escapado, e nem Adelaide
nem Haakon sabiam disso. Em parte, por sorte, sim — ela não teria
sobrevivido à traição de Haakon se não fosse por Arno —, mas
também por ter bom senso o suficiente para confiar em uma pessoa
boa — Will — e ter coragem de fugir, esconder-se e lutar por sua
vida.
Que Adelaide e Haakon dissessem o que quisessem. Ela não era
tão perdida assim.
Ela escapara. Estava viva. E nenhum deles sabia disso.
Encorajada por essa constatação, Sophie chutou os dedos finos
da vergonha para longe. Com um respingo barulhento, emergiu e
respirou fundo.
— Quem é a idiota agora? — ela sussurrou.
E, assim, pôs-se a se esfregar. O último banho de Sophie fora
tomado na Toca, e ela não percebeu quão suja havia se tornado.
Atacou o corpo com a barra de sabonete, esfregando cada
centímetro dele e depois espalhando uma nuvem de espuma pelo
cabelo. Quando terminou, puxou a roupa suja para a água e a
esfregou também. Depois lavou Zara. A cadela submeteu-se ao
banho, mas saiu correndo da água assim que pôde e sacudiu-se.
Sophie a seguiu, enxugou-se e vestiu-se. O banho, as roupas
limpas — eles a faziam se sentir como se tivesse renascido.
Ela carregou suas coisas molhadas de volta para a cabana e as
prendeu no varal. O cheiro de comida saiu pela janela. Cebola
fritando na manteiga. Tomilho picado. Seu estômago roncou alto.
Não havia ninguém no quintal e a porta da cabana estava aberta,
então ela entrou. Zara ficou do lado de fora para se secar ao sol.
Will estava parado perto de um grande fogão preto, de costas
para ela, tostando pedaços de coelho em uma grande panela de
ferro. Seu cabelo estava molhado. Ele vestia roupas limpas também.
— Gretta? Ela…
— Ela está deitada — disse ele secamente.
— Ela está…
— Ela está bem.
— A casa dos seus pais é muito bonita.
— Não é dos meus pais; é da minha avó.
— Ah. Mas seus pais estão aqui? Onde eles estão?
— Mortos.
— Me perdoe. O que aconteceu com eles?
— Morte.
— Sim. Bem. Quer saber? O cheiro do coelho está uma delícia —
disse Sophie com um suspiro, desistindo de tentar puxar conversa.
Depois de passar dias caminhando pela floresta com ele, ela
sabia que não devia tentar fazê-lo falar quando não queria.
Will pegou uma jarra de cerveja. A cozinha estava silenciosa,
exceto por um chiado alto e fumegante, quando ele despejou o
líquido na panela quente. Sophie, de pé, constrangida, sem nada
para fazer, encostou-se em um armário e o observou.
O rosto de Will estava vermelho com o calor do fogão. Ela notou
que uma mecha de cabelo descia ao lado de seu rosto, enrolando
como um ponto de interrogação contra sua pele. Seus movimentos
eram deliberados e contidos. Como todos os caçadores, Sophie
pensou. Ele estava vestindo o avental da avó sobre uma túnica de
linho gasta e calças remendadas. Ela gostou da maneira como
ficava nele, de como se acomodava em seus quadris estreitos, da
forma como os laços estavam frouxamente amarrados em seu
traseiro.
É um traseiro bastante adorável, ela pensou, inclinando a cabeça
para ver melhor. Ao fazer isso, seu coração fez um ronronar
profundo e quente.
Ela se endireitou, com vergonha.
Will virou a cabeça. Ergueu uma sobrancelha.
— Relógio — Sophie sorriu.
— Relógio. Você poderia pôr a mesa.
— Sim — Sophie respondeu ansiosamente. — Eu posso. Posso
fazer isso.
O que há de errado comigo?, ela se perguntou ansiosamente.
Seu coração mecânico estava se tornando cada vez menos
confiável, comportando-se de maneiras totalmente contrárias aos
seus sentimentos. Ela não se importava com Will ou seu traseiro.
Isso e o desmaio que sofrera eram sinais de que o coração estava
desacelerando mais rápido do que os irmãos previram?
A ideia preocupou Sophie, mas ela não teve muito tempo para
pensar nisso. Will apontou para um armário. Ela o abriu, encontrou
um pano limpo e o espalhou sobre a mesa redonda de madeira. Em
seguida, colocou guardanapos e talheres e decidiu que algumas
flores eram necessárias. Tirando uma tesoura de uma gaveta, ela
cortou algumas flores do jardim de Oma e as arrumou em um vaso.
Oma, que estava com Gretta, fazendo-a beber um chá que ela
preparara com o conteúdo dos pacotes que Will trouxera do
boticário, agora fora atropelada por Sophie com um pão e um prato
de manteiga para a mesa.
— Que noite você teve em Grauseldorf — disse ela secamente.
— Will me contou tudo. E um pouco mais.
— Sim, foi uma noite e tanto — disse Sophie, desconfortável sob
o olhar de desaprovação da senhora. — Devemos agradecer a Arno
por nos tirar da cripta.
— Hmm. E eu acho que temos que agradecer a você por envolver
meu neto nisso — disse Oma. Depois, ela franziu a testa: — Seu
lábio está sangrando de novo.
Sophie tocou o lábio com os dedos. Eles voltaram vermelhos.
— Não vai sarar sozinho — disse Oma.
— Vai ficar bom, tenho certeza.
— Eu, não — disse Oma, pegando uma garrafa da prateleira e um
pedaço de linho. — Sente-se aí — ela instruiu Sophie, apontando
para um banquinho embaixo de uma janela. — A luz está melhor.
Preciso ver o que estou fazendo.
Oma conduziu uma relutante Sophie até o banquinho e a
acomodou nele. Ela abriu a garrafa e derramou um pouco do líquido
fedorento no pano.
— Feche os olhos — disse ela para Sophie.
— Dói?
— Sim.
A mistura de Oma queimava como fogo líquido.
— Ai! Aaaaauuu! — Sophie uivou.
— Aguente firme. Não aja como um bebê — Oma repreendeu.
— Ão ou um eê! — protestou Sophie o melhor que pôde sem usar
o lábio superior.
Lágrimas arderam em seus olhos. Quando ela pensou que iriam
transbordar, ela sentiu uma mão escorregar na sua, áspera, quente
e forte.
— Aperte com força — disse Will. — Essa coisa aí é horrível.
Sophie o fez e Will apertou de volta. E, finalmente, depois do que
pareceu uma eternidade, Oma terminou.
— Pronto. Terminei. Agora vai se curar rapidinho — disse ela,
pressionando o linho contra a ferida para limpar o sangue fresco. —
Pegue isto. Mantenha um pouco a pressão.
— Obrigada, eu acho — Sophie disse, abrindo os olhos e
pegando o pano. Seu lábio estava latejando.
Oma guardou a garrafa. Quando ela se virou, seus olhos foram
para a mão de Sophie. E do neto dela. Eles ainda estavam
segurando.
— Pronto — disse ela novamente.
Will voltou ao seu ensopado. Sophie pressionou o pano contra o
lábio com as duas mãos.
E Oma saiu para ver onde estava Arno. Ao fazer isso, ela olhou
por cima do ombro para o neto, que estava cantarolando agora
enquanto cuidava do ensopado. Ele nunca cantarolava. Em seguida,
ela olhou para a garota, inclinando depois a cabeça para melhor
observar o garoto.
Com a testa franzida, ela murmurou para si mesma:
— Encontros na Floresta Sombria, ladrões, garotas de calças…
Nada de bom pode vir disso.
QUARENTA E NOVE

S delicioso quanto o
ensopado de coelho de Will.
Ele o trouxe para a mesa na panela. Todos estavam sentados,
guardanapos no colo. Zara se arrastou para debaixo da mesa,
apenas no caso de alguém deixar cair alguma coisa.
Depois de colocar a panela na mesa, Will se sentou também.
Arno estava prestes a pegar uma fatia de pão quando viu Oma
baixar a cabeça. Will e Gretta fizeram o mesmo. Sophie fez o
mesmo, e Oma fez uma prece para agradecer a refeição.
Assim que ela terminou, Will tirou a tampa da panela e o vapor
saiu. O coração de Sophie deu um salto. Oma ergueu uma
sobrancelha. Gretta, que se levantou da cadeira e se apoiou na
mesa com as mãos, e Arno, que fez a mesma coisa, estavam muito
ocupados olhando para a panela para perceber.
— É um relógio — Will explicou para Oma.
— Um reloginho — disse Sophie. — Que eu levo comigo no
bolso.
Will entregou a concha a Sophie, que, levada pelo aroma de dar
água na boca, avidamente pegou legumes, molho e um pedaço de
carne. E depois outro. E mais um. Tudo cheirava tão bem.
Oma olhou para o prato de Sophie, que percebeu que tinha
servido mais do que sua parte no ensopado.
— Sinto muito — ela falou, enrubescendo.
E devolveu a maior parte de volta com pressa.
— A comida deve ser muito abundante no lugar de onde você
vem — Oma disse maliciosamente.
— É, sim — Sophie respondeu com timidez.
Ela estava acostumada com a comida aparecendo do nada à sua
frente. Normalmente, em bandejas de prata. Ela nunca considerou
por um instante de onde tinha vindo ou como era não ter o
suficiente.
Oma serviu Arno, depois a ela e aos netos, e então todos
comeram com avidez. Sophie estava faminta. Ela fez tudo o que
pôde para não enfiar o guisado na boca.
— Will disse a mim e a Oma que você é a princesa. Mas ouvi que
a princesa morreu. Então você é um fantasma? — perguntou Gretta.
Oma bufou.
— Com um apetite desses? Acho difícil!
O rosto de Gretta entristeceu.
— Então você não é um fantasma?
— Não exatamente. Lamento — disse Sophie, com um sorriso
triste.
Gretta ia dizer mais alguma coisa, mas, antes que pudesse,
começou a tossir de novo. E, assim como antes, ela tossiu tanto que
não conseguiu recuperar o fôlego.
— O que há de errado? — Sophie perguntou.
Mas a atenção de Will e Oma estava em Gretta, e eles não
responderam.
Felizmente, o ataque não durou tanto quanto o anterior.
— Síndrome consumptiva — Gretta disse quando conseguiu falar
de novo.
— Calma, Gretta! — Oma repreendeu, magoada com as palavras
da garota. — Não é. É um forte resfriado que não passa. Você está
doente, só isso. Um pouco fraca. Você…
Gretta interrompeu a avó.
— Esta cabana não é muito grande, Oma. Eu ouço você e Will
conversando à noite, sabe.
Will não disse nada, mas apertou a mandíbula com tanta força
que um músculo saltou em sua bochecha.
O coração de Sophie contorceu-se dolorosamente. Ela sabia que
era uma doença cruel que minava a força e a vitalidade de suas
vítimas, mas demorava muito para matá-las.
— Como você pegou? — ela perguntou.
— Minha mãe. Ela tinha. Estava melhorando, mas então a rainha
tomou nossa fazenda e ela piorou.
— Por que a rainha tomou sua fazenda?
— Ela queria a colheita para alimentar seus soldados. Tínhamos
hectares e hectares, e cultivávamos todos os tipos de coisa. Minha
mãe estava doente antes da chegada dos soldados. Ela não durou
muito depois. E então meu pai também adoeceu. Embora Oma diga
que ele morreu de um coração partido.
O coração de Sophie parecia estar se partindo. Fez um barulho
lento e retumbante, como o som de um tambor batendo um canto
fúnebre. Agora ela sabia por que Will havia dito que desprezava a
rainha, a princesa, o palácio e todos nele — porque sua madrasta
havia destruído sua família. Sophie condoeu-se por ele, por Gretta e
Oma, mas sua tristeza estava misturada com raiva também.
Adelaide não via o que estava fazendo? Não entendia que suas
ações brutais tinham consequências terríveis para seu povo? Ela
estava tão vigilante, tão preocupada com as ameaças de seus
inimigos. Levantava exércitos, construía navios de guerra — tudo
para manter seu povo seguro. Mas, ao fazer isso, ela mesma se
tornara inimiga deles. E o que aconteceria se Haakon ganhasse e
assumisse o controle das Terras Verdes? Sophie sabia — as coisas
ficariam ainda piores.
— Sinto muito, Gretta — disse ela.
— Odeio a rainha — disse Gretta, cerrando os punhos. — Odeio o
palácio e todos que existem nele. Eles levam tudo, enquanto nós
mal temos o que comer. Eu também odeio você, Sophie!
— Gretta, pare. Isso é mal-educado — disse Will.
Os olhos de Oma faiscaram para Sophie.
— E perigoso.
— Sophie não é como a rainha — disse Arno, roendo um osso. —
Ela vai pegar a coroa de volta. Mudar as coisas.
— Você vai? — perguntou Gretta, com um misto de esperança e
descrença na voz.
Sophie baixou o olhar para o prato. Ela não conseguiu responder
a Gretta. Fazer isso significava extinguir a esperança nos olhos da
doente. Houve um silêncio desconfortável, e um novo tipo de fome
tomou conta de Sophie — esta não estava em sua barriga, mas no
fundo de seu coração defeituoso.
Pela primeira vez, Sophie teve fome por seu trono, e essa fome
era tão grande que era uma dor física. Ela ansiava por sentar-se de
costas eretas e majestosas na cadeira dourada e sentir o peso doce
e sombrio da coroa das Terras Verdes sobre sua cabeça. Não para
que ela pudesse assustar embaixadores coberta por um manto
cravejado de joias. Não para construir a maior armada do mundo.
Mas para que ela pudesse ter certeza de que uma mulher grávida
nunca fosse expulsa de sua casa. De que um adolescente que
perdera a visão lutando por seu país não fosse descartado como um
brinquedo quebrado. De que uma jovem teria algo melhor para fazer
do que tossir até a morte.
Mas Sophie sabia que era uma fome que nunca poderia ser
satisfeita e que doía mais do que qualquer coisa que sentira antes.
Seu coração não estava apenas defeituoso, mas também falho;
cada segundo o aproximava de seu tique-taque final. E, à medida
que ela ficava mais fraca, seus inimigos ficavam mais fortes. O
pensamento de seu povo suportando a crueldade de Adelaide, e
logo também a de Haakon, encheu-a de uma desesperança
profunda e dolorida.
Oma, olhando para Sophie, ficou em silêncio, como uma leiteira
borbulhando antes de ferver. Ela olhou para Will e disse:
— O que foi que você trouxe para dentro de casa? —
Gesticulando para Arno, ela disse: — Você é um ladrão, mas isso
não me preocupa, porque não temos nada para roubar. E depois
olhou para Sophie: — Mas você é uma princesa morta que não
morreu, e isso me preocupa muito. Eu ouvi sobre você dias atrás. A
notícia corre rápido pela Floresta Sombria. Você deixou uma boa
impressão em Drohendsburg, salvando aquela família do despejo. E
esses veteranos? Eles marchariam até o fim da terra por você. —
Ela passou manteiga em uma fatia de pão e apontou a faca em
Sophie. — Você deu esperança a essas pessoas, menina, e isso é
perigoso. Não há arma maior em todo o mundo do que a esperança.
É perigosa porque é poderosa. E não pense por um segundo que
esse príncipe — Haakon — não sabe disso. Se ele perceber que
você escapou, derrubará portas tentando encontrá-la. Você vai
trazer um mundo de problemas para nós.
— Oma — disse Will rispidamente. — Sophie está aqui porque eu
quero que ela esteja. As coisas que aconteceram… Não são culpa
dela.
Sophie ergueu os olhos.
— Não, Will. Sua avó tem o direito de ficar preocupada. Eu não
deveria ter vindo aqui. É que… Eu estava com medo. Queria um
lugar seguro. Apenas por alguns dias. Um lugar quieto. Um lugar
para… — suas palavras sumiram.
— Um lugar para quê? — perguntou Will.
Sophie olhou para ele. Seu olhar, claro e honesto, deu-lhe forças
para dizer.
— Um lugar para morrer.
CINQUENTA

— O , com um lugar para morrer? —


perguntou Will.
Oma balançou a mão para Sophie.
— Deixe para lá, garoto. Você não vai conseguir uma história
honesta dela.
Mas os olhos de Will, tão cinza-escuros quanto uma tempestade
agora, estavam fixos em Sophie.
— O que você quer dizer? — ele perguntou novamente para ela.
Sophie não queria fazer isso. Não queria se revelar, revelar seu
coração. Não para Will. Ele a odiava e odiava o que ela
representava. Toda a sua família a odiava. E, no entanto, era isso
que seus olhos cinzentos estavam pedindo que ela fizesse. Eles a
estavam desafiando. Para ser sincera. Para confiar nele. E ela sabia
que, se mentisse para ele, aqueles olhos se fechariam contra ela e,
por algum motivo, conhecido apenas por seu coração defeituoso,
ela não poderia suportar isso.
Respirando fundo para se acalmar, ela desamarrou a gola de sua
túnica emprestada e a abriu de modo que ele, Oma, Gretta e Arno
pudessem ver a cicatriz vermelha que cortava sua pele.
O olhar de Will viajou da clavícula de Sophie até o topo de seu
seio.
Ele estremeceu, mas não desviou o olhar. Arno soltou um assobio
baixo.
— É feio, não é? — disse Sophie. — A história por trás disso é
mais feia ainda. Tem certeza de que deseja ouvir?
— Sim — disse Will.
Sophie olhou para Gretta, preocupada que o que ela iria dizer
fosse duro demais para os ouvidos jovens da garota.
Gretta ergueu a colher, agitando-a para Sophie como uma
espada.
— Nem pense em não me contar — ela avisou. Virando-se para o
irmão, ela disse: — Se você me colocar no meu quarto, vou escutar
pela parede.
Will suspirou, resignado.
— Vá em frente — disse ele para Sophie.
E Sophie foi. Contou a eles o que havia acontecido com ela,
começando com sua cavalgada matinal com o caçador de sua
madrasta e terminando com sua fuga de Haakon.
— Eu acreditei em Haakon. Até que ele tentou me matar. Eu
acreditava que ele me ajudaria a recuperar meu coração. Agora
nunca mais vou recuperá-lo, e o que está dentro de mim logo vai
parar.
Tudo estava quieto quando Sophie terminou de falar. Ninguém
disse uma palavra por algum tempo. Ninguém se levantou para
limpar os pratos sujos ou a panela vazia. O crepúsculo batia nas
janelas.
Arno falou primeiro.
— Mesmo se Haakon estivesse do seu lado, Sophie, não tenho
certeza se ele conseguiria invadir Nimmermehr ou vencer o Rei dos
Corvos.
— Por que não? — perguntou Sophie. — Ele teria um exército
com ele.
— Não importa. Muitos já tentaram. Reis. Imperadores.
Comandantes de guerra. Todos nem mesmo passaram pelo fosso.
As coisas na floresta… — Arno abanou a cabeça, sem saber como
descrever. — Monstros, ghouls, coisas aterrorizantes… Matam
quem passa por ali, e apenas uma espiada nelas faz até os
soldados mais duros correrem para salvar suas vidas.
Sophie se lembrou dos irmãos contando a ela sobre as criaturas
aterrorizantes que rondavam os jardins de Nimmermehr e como elas
tinham sido demais para Jasper. Seu coração desistira com a
simples visão delas. Ela temeu muito por Jeremias e Joosts. Uma
parte dela esperava que eles tivessem desistido e voltado para a
Toca. Se reis e comandantes de guerra não conseguiram vencer o
Rei dos Corvos, como eles poderiam?
— Como você sabe de todas essas coisas? — Sophie perguntou
a Arno.
— Eu estive lá — disse Arno. — Não dentro do castelo, mas perto
dele. Rumores dizem que existe um túnel — uma rota de fuga
escondida no caso de Nimmermehr cair sob cerco. Muitos castelos
têm túneis. Eu queria encontrar.
— Por quê? — perguntou Gretta.
Arno encolheu os ombros.
— Corvus é um rei, certo? Os reis têm coisas legais.
— E você é um ladrão — disse Gretta.
— Exatamente, minha menina esperta — disse Arno, dando um
tapinha em sua cabeça.
— Arno, quem é ele… O Rei dos Corvos? — Sophie perguntou.
— O que ele faz com os corações que rouba?
— Não sei. Mas já ouvi falar. As pessoas dizem que o Rei dos
Corvos é de uma terra estrangeira. Que ele próprio é um monstro.
Um fantasma. Um vampiro. Dizem que existem feitiços para repelir
suas criaturas e mantê-lo afastado, mas, pelo que eu posso dizer, é
tudo um absurdo. Estive em quase todos os vilarejos, vilas e
cidades das Terras Verdes, e nunca conheci uma pessoa, nenhuma,
que tenha chegado a Nimmermehr e sobrevivido para contar a
história.
O medo de Sophie por Jeremias e Joosts aumentou. Seu medo
pela própria vida também cresceu. Levou um momento para reunir
coragem e fazer a pergunta que mais tinha medo de fazer:
— Você sabe se existem feitiços que podem devolver um
coração?
Arno hesitou um pouco e depois disse:
— Nunca ouvi falar de nenhum. — E apressou-se em acrescentar:
— Mas isso não significa que não existam.
Outro silêncio caiu sobre eles. Sophie percebeu que estivera se
enganando o tempo todo. Mesmo com o poder do exército de
Haakon, ela não teria sido capaz de recuperar seu coração. Não
havia esperança, e nunca houve. Isso era tão inevitável e
esmagador como uma avalanche.
Desta vez, Gretta quebrou o silêncio.
— Lamento por ter dito que odiava você, Sophie.
— Não se preocupe com isso, Gretta. Eu me sentiria assim
também, se eu fosse você — disse Sophie.
— Por quê, Sophie? Por que tudo isso aconteceu com você? —
perguntou Gretta. — Por que o Rei dos Corvos levou seu coração?
Sophie olhou para as próprias mãos.
— Ah, Gretta — disse ela, com a voz pesada. — Eu também
gostaria de saber.
— Não parece justo — disse Gretta.
Sophie sorriu tristemente.
— Não, não parece.
— Quanto tempo você tem antes… Antes de seu coração…? —
Will não terminou sua pergunta.
Sophie respirou fundo e disse:
— Menos de três semanas agora, acho. Talvez um pouco mais ou
um pouco menos.
Uma nuvem pairou sobre a sala. A tristeza era palpável. Zara,
sentindo a angústia de Sophie, colocou a cabeça em seu colo.
Enquanto Sophie coçava atrás das orelhas de cadela, uma rajada
de tosse explodiu de Gretta. Will foi imediatamente para o lado dela.
— Eu não vou dormir! — ela protestou assim que recuperou o
fôlego. — Se você tentar me levantar, vou ficar mole como um
macarrão, eu juro!
— Calma. Ninguém está tentando colocá-la na cama. Suas mãos
estão azuis. Você precisa se sentar perto do fogo — disse Will.
Gretta deixou que ele a carregasse até uma cadeira perto da
lareira. Oma disse que prepararia um chá de menta para aquecer a
todos. Enquanto Will acomodava sua irmã e colocava um cobertor
em volta dela, Sophie e Arno tiraram os pratos e os lavaram, depois
se juntaram a Will e Gretta.
Will atiçou as brasas e colocou uma nova tora em cima delas.
Sophie olhou para as chamas.
— Você está muito triste, Sophie — Gretta disse.
Arno bufou.
— Isso é um eufemismo.
— Eu gostaria que você não estivesse.
Sophie forçou um sorriso. E estava prestes a mentir para Gretta, a
dizer que estava bem, quando Oma apareceu com o chá. Ela
pousou as xícaras, acomodou-se na cadeira de balanço e disse:
— Não queira que a infelicidade de Sophie vá embora, criança.
Ela precisa disso. No momento, é a coisa mais valiosa que ela tem.
— Ela precisa? — disse Gretta.
— É? — perguntou Sophie.
Oma gesticulou:
— Mas é claro. São as pessoas infelizes que fazem as coisas.
Você já notou isso? Elas constroem coisas. Descobrem coisas.
Inventam coisas. Como cálculos: só uma pessoa muito infeliz
poderia tê-los inventado. As felizes apenas ficam sentadas comendo
strudel. Elas raramente têm um impacto.
Sophie olhou de lado para ela.
— Não acredita em mim — disse Oma —, mas sei do que estou
falando. Você já ouviu a história “Os Dois Irmãos e o Ogro”?
Gretta bateu palmas.
— Adoro histórias! — gritou ela.
Oma enfiou a mão em uma cesta, pegou seu tricô e começou a
contar.
CINQUENTA E UM

—E — O —, um rico comerciante que vivia


numa cidade próspera. Ele tinha uma filha linda e dois irmãos
estavam apaixonados por ela. Mas um ogro também a amava e
disse que se casaria com ela no solstício de verão. Se ela o
recusasse, ele iria matá-la, assim como a todos os outros na cidade.
O comerciante estava com o coração partido. Disse aos irmãos que
qualquer um deles que pudesse matar o ogro poderia se casar com
sua filha. Ambos os irmãos pediram ajuda a Tanaquill, a rainha das
fadas. O mais velho, que era bonito, charmoso e sempre sorridente,
pediu uma bolsa de ouro e uma jaqueta de seda amarela. Ele não
precisava da jaqueta, não tinha nada a ver com seus planos de
matar o ogro; apenas achava que o amarelo ficava bem nele.
Tanaquill atendeu ao seu pedido. O irmão mais novo era simples.
Também era culto e inteligente, mas tão tímido e quieto que
ninguém sabia. Ele pediu uma sacola de ouro também, mas não
uma jaqueta amarela. Pensou que fosse coisa demais. Mas tudo o
que a rainha das fadas deu a ele foi uma bola de barbante.
Como o povo da cidade ria dele, parado na praça com uma bola
de barbante nas mãos! Seu próprio irmão riu dele. O irmão mais
novo se sentiu magoado e humilhado. Durante toda a sua vida, seu
irmão mais velho havia sido o preferido. Durante toda a sua vida, o
mundo o subestimara. Por que agora deveria ser diferente? Seu
irmão deslumbrante conquistaria a filha do comerciante; claro que
ele conquistaria.
— Este é o pior e mais deprimente conto de fadas que já ouvi —
Will disse.
— Ainda não terminei — retrucou Oma. — Quando o irmão mais
novo olhava para a bola de barbante, ela parecia zombar dele — ela
continuou. — Parecia ser como ele, simples e rude, sem charme e
nada engraçado a dizer. Furioso e com o coração partido, ele
caminhou até o rio e jogou a bola na água. Mas, assim que se virou
para ir embora, a bola de barbante saltou da água e rolou até parar
a seus pés.
O irmão mais novo ficou muito perturbado com isso, então fugiu,
mas a bola de barbante rolou atrás dele, ficando cada vez maior.
Rolou na frente dele, bloqueando-o, não importava para onde ele
tentasse ir. Assustado agora, o irmão mais novo chutou a bola de
barbante para longe, sem parar, mas ela rolava para trás todas as
vezes. Crescendo mais. Ficando mais e mais feia. Até que se tornou
um monstro. O menino deu um soco repetidamente, lutando contra
ele, tentando escapar dele, mas só conseguiu se enredar ainda
mais.
Exausto e sem esperança de se libertar, o jovem chorou, prestes
a desistir de ganhar a filha do comerciante. De fazer algo de si
mesmo. De tudo. Seu coração doía tanto. Foi quando a bola de
barbante começou a falar com ele. Isto é o que disse:

Fuja de mim e você verá que nunca escapará.


Eu apenas cresço: vire as costas, e eu apareço.
Derrubo você, arrasto você.
Mas fique de pé e me enfrente
e eu revelarei o que terá de presente.
Seu caminho, seu destino,
Não mais de onde, só para onde.
A tarefa é exigente, mas você é inteligente.
Ousado, corajoso e forte de coração.
Correr faz o monstro crescer:
nunca se esqueça da lição.

— Enquanto o barbante falava, cada meada emaranhada que


segurava o menino se soltou lentamente, até que ele se libertou. E,
então, encolheu, tornando-se apenas uma pequena bola
novamente, imóvel e silenciosa em sua mão.
Enquanto o irmão mais novo lutava com o barbante, o mais velho
usava seu ouro para comprar canhões. Ele os arrumou ao redor das
muralhas da cidade para poder atirar no ogro no instante em que a
horrível criatura fosse avistada. Mas vários dias se passaram e
nenhum ogro apareceu. O irmão mais velho, que era mimado e não
estava acostumado a coisas que não saíssem exatamente como ele
queria, quando queria, ficou entediado, então comprou dez barris de
vinho com o ouro que sobrou. Deu uma festa, ficou bêbado e
desfilou pelas muralhas com sua jaqueta amarela.
O irmão mais novo, entretanto, estava com fome, mas não tinha
dinheiro para comprar comida. Porém, havia uma floresta fora da
cidade, então usou sua bola de barbante para fazer uma armadilha,
pegou uma lebre e a assou. A carne encheu sua barriga e deu-lhe
forças. Quando terminou, ele ajustou a armadilha para que pudesse
comer novamente no dia seguinte e, ao fazer isso, teve uma ideia.
Naquela mesma noite, o ogro apareceu. O irmão mais velho
estava tão bêbado que nem o viu se aproximar. Mas o ogro o viu.
Como ele poderia não ver? O idiota se destacava como um limão
em sua jaqueta amarela. O ogro o agarrou e arrancou sua cabeça
com uma mordida. Então, apertou seu corpo como um odre de vinho
e bebeu todo o seu sangue. Mas, enquanto o ogro drenava a última
gota, uma pedra o atingiu na nuca. Furioso, ele jogou o corpo do
irmão mais velho no chão e se virou.
O irmão mais novo jogou a pedra e, quando o ogro avançou em
sua direção, jogou outra. Atingiu o ogro bem no meio do rosto e
quebrou seu nariz. Rugindo de fúria, ele perseguiu o rapaz. O que
era exatamente o que o irmão mais novo queria. Ele conduziu o
ogro — que estava gritando, xingando e segurando o nariz, que
jorrava — através da floresta até uma ravina. Quando chegou ao
limite, ele se virou e fingiu estar com medo. O ogro sorriu. Passo a
passo, ele se aproximou do menino, o tempo todo dizendo como iria
arrancar seu braço direito e comê-lo e, depois, arrancar seu braço
esquerdo e comê-lo, e, depois… CABUM!
O ogro, cego pela raiva, meteu-se em uma armadilha que o irmão
mais novo havia feito para ele. Um laço o agarrou pelo tornozelo, e
a próxima coisa que ele percebeu foi que estava pendurado de
cabeça para baixo. O menino agarrou-o pelos cabelos oleosos,
cortou-lhe a cabeça e levou-a ao comerciante, que prontamente
presenteou o menino com sua filha e chamou um ministro para
casá-los na hora, mas o rapaz recusou educadamente. Disse que só
cortejaria a filha do comerciante se ela assim o desejasse, pois ele
sabia muito bem o que era ter de receber o que lhe foi dado,
querendo ou não. A garota concordou. Eles namoraram,
apaixonaram-se e casaram-se em um ano. Semanas depois de o
menino matar o ogro, ele voltou ao local onde havia feito a
armadilha para procurar a bola de barbante, mas ela não estava
mais lá. Ele nunca mais a viu. E nunca mais precisou dela.
Oma sorriu; ela pousou as agulhas de tricô no colo.
— Fim — disse ela. — Então, olhou para sua neta com olhos
sonolentos. — E agora, senhorita, é hora de dormir.
Gretta protestou, mas sem entusiasmo.
— Espere, Oma… — Will disse. — Há uma mensagem, qualquer
mensagem, nessa história estranha e horrorosa?
— Sim, garoto, há. — Seus olhos encontraram Sophie. — Não
devemos fugir da nossa infelicidade. Devemos ouvi-la. Ela tem
muito a nos dizer.
Will revirou os olhos. Levantou-se, pegou Gretta e carregou-a
para a cama. Oma disse a Arno que ele podia dormir no chão do
quarto de Will e deu-lhe algumas roupas de cama. Deu um
travesseiro e uma colcha para Sophie também, e disse que ela
poderia dormir no sótão, que ficava logo acima da lareira.
Sophie agradeceu. Ela se virou na direção da escada que levava
ao sótão, mas Oma colocou a mão em seu braço.
— Então você achou que um belo príncipe a salvaria?
Sophie deu um sorriso amargo.
— Acho que sim.
— Por que uma rainha precisaria de um príncipe?
— Você quer dizer minha madrasta? Tornando Haakon seu
herdeiro? Eu não sei por quê…
— Não. Eu quero dizer você.
Sophie inclinou a cabeça, intrigada com as palavras de Oma.
— Mas eu não sou uma rainha.
— Mas poderia ser — Oma disse, fixando Sophie com seu olhar
firme. — Adelaide não é sua maior inimiga. Nem Haakon. Você é.
Eles podem dizer tudo o que você não é, mas não podem fazê-la
acreditar; só você pode fazer isso.
Ela soltou Sophie e completou:
— Você quer seu coração de volta, garota? Vá atrás dele.
E, então, ela saiu da sala para cuidar da neta.
Sophie a observou partir, pensando no que ela disse. Depois,
subiu a escada estreita e se viu entre ramos de alho e de ervas,
vários salames e um grande presunto. Depois de abrir um espaço
no chão, arranjou um lugar confortável para dormir. Lançou um
último olhar para a sala abaixo dela, para se certificar de que Zara
estava bem, mas viu que não precisava se preocupar; a cadelinha
havia se enrolado como uma bola em um tapete macio em frente à
lareira.
Sophie estava exausta, mas não conseguia dormir. Sua cabeça
estava cheia de imagens. De ogros furiosos. De bolas de barbante
falantes. De uma menina triste que não tinha dinheiro, exército ou
armas para derrotar um adversário temível. Que tinha apenas a si
mesma.
Deitada quieta, olhando para o céu noturno pela pequena janela,
Sophie ouviu. Não os sussurros e as risadas zombeteiras da corte.
Não os sermões de sua madrasta, suas terríveis previsões, suas
ameaças. Não o adeus assassino de Haakon. Mas uma voz interior
pequenina e cansada. Cansada de se esconder. De fingir. De
sempre estar errada. Era difícil ouvir a voz. Foi doloroso. Lágrimas
silenciosas rolaram por seu rosto. Mas Oma estava certa; aquela
voz tinha muito a dizer a ela.
Pouco antes da meia-noite, Sophie se decidiu. Então, ela fechou
os olhos e, finalmente, dormiu.
CINQUENTA E DOIS

O , luz fraca iluminou Oma. Ela vestia


uma camisola branca; seus cabelos grisalhos caíam sobre o ombro
em uma trança longa e solta. Estava embalando Gretta perto do
fogo. A criança acordou com muita dor. Oma a carregou do quarto
até a lareira, onde estava quente.
A menina sofria. Seu corpo estava rígido. Seus olhos, fechados
com força. Oma pegou uma xícara numa mesa próxima que
continha remédio e, com alguma dificuldade, fez Gretta beber.
Ajudou. Depois de alguns minutos, o corpo de Gretta relaxou um
pouco e ela conseguiu se deitar em uma cama que Oma havia feito
perto do fogo. Ela continuou segurando a mão da avó, no entanto,
ouvindo Oma cantar uma canção de ninar.
Finalmente, a criança adormeceu. Oma retirou delicadamente a
mão de Gretta e puxou o cobertor da criança sobre os ombros. A
velha voltou a sentar-se na cadeira de balanço, inclinou a cabeça
para trás e fechou os olhos. A preocupação aprofundou as rugas em
sua testa e as cavidades em sua face.
Das sombras, uma figura emergiu — uma mulher vestida de
preto, com cabelos rebeldes e olhos selvagens. Ela olhou para o
rosto da menina com uma expressão de ternura e tristeza, e então
tocou o rosto da criança. Ao fazer isso, as lágrimas prateadas, ainda
grudadas na pele da garota, transformaram-se em pérolas e caíram
no travesseiro.
Gretta gemeu. Ela virou-se em seu sono. Zara a ouviu. A
cachorrinha ainda estava enrolada no tapete perto da lareira. Num
instante, ela ficou de pé, rosnando baixo.
Oma sentou-se e olhou para Zara; ela seguiu o olhar da cadela, e
então ela e a visitante se entreolharam. A mulher de preto recuou,
voltando para as sombras.
— Está se escondendo, não é? — Oma perguntou a ela. — Eu
também faria, se fosse você, dado o dano que você causou a esta
casa.
A mulher mordeu uma unha do polegar, sua expressão tornou-se
sinistra.
— Está seguindo a princesa, não é? Por quê? Que interesse você
tem? Talvez simplesmente goste de atormentá-la, mas acho que há
mais do que isso. Por que seu irmão quer a garota? Ela é uma
ameaça para ele? É possível que ele, o Rei dos Corvos, a tema?
Oma se levantou, pegou um atiçador e cutucou a lenha na lareira.
As chamas enrolaram seus dedos finos em torno dele.
— Ah, quem pode entender você ou seus caminhos?! Duvido que
até você entenda.
Ela apontou para Gretta.
— Um baú cheio de pérolas não poderia compensar o que você
faz a essa criança. As pessoas dizem que o que não mata nos torna
mais fortes. E às vezes é verdade. Mas, às vezes, o que não mata
faz você desejar a morte.
Ela se sentou novamente.
— A princesa terá de enfrentá-la e pode muito bem acabar como
uma pilha de ossos como todas as outras pobres almas que se
perdem nesta floresta. E o mundo vai ficar um pouco mais escuro
quando isso acontecer. Talvez seja isso que você queira, você e seu
irmão.
Zara choramingou. Foi até Oma e colocou a cabeça no colo da
senhora idosa. Oma coçou as orelhas da cadela, os olhos ainda
fixos na visitante.
— Suponho que você não consiga fugir de quem você é. Nenhum
de nós pode. Aquela garota dormindo no sótão também não pode
fugir de quem ela é. Assustada. Perdida. Tão cheia de dúvidas.
Talvez ela seja o que a madrasta diz que é… Mole demais, boazinha
demais. Guiada por seu coração.
Oma olhou para Zara. Seus lábios se curvaram em um pequeno
sorriso desafiador.
— E se for, e daí? — Deu um tapinha no queixo da cadela. —
Pequena demais para matar um lobo, hein? Mas apenas uma
cadelinha se move rápido o suficiente para matar uma cobra. Às
vezes, o que nos torna errados é o que nos torna perfeitos.
Quando ela olhou para cima novamente, a mulher havia sumido.
CINQUENTA E TRÊS

A , olhando em seu espelho.


Seu cabelo caía em cascata pelos ombros. Seus olhos estavam
fundos e opacos. Ela parecia emagrecer a cada dia que passava,
como se estivesse sendo devorada por dentro.
Não havia razão para isso. Ela havia se livrado da princesa.
Fizera de um homem forte e ousado seu herdeiro. Juntos, eles
invadiriam o Interior antes que fossem atacados por ele. Tudo
estava como deveria ser, mas Adelaide tinha mais medo do que
nunca. Parecia que, quanto mais ela tentava diminuir seus medos,
maiores eles ficavam.
Ela não se parecia em nada com a jovem que observava no
espelho. Aquela garota era forte e de costas retas, com porte de
general. A única coisa que compartilhavam era uma tristeza em
seus inteligentes olhos azuis. A garota estava suntuosamente
vestida e ricamente enfeitada com joias. Estava em um altar com
um homem que tinha o dobro de sua idade.
Seu irmão, o rei, sorria de seu assento na capela real. Estava feliz
com o casamento e a aliança que ele lhe proporcionava. Estava
ainda mais feliz por se livrar de Adelaide. Ela salvara sua vida e seu
reino, e, assim que ele completou dezoito anos, ele a agradeceu
casando-a com um homem que não a amava, um homem com uma
esposa morta e uma filha jovem.
— Espelho, espelho meu… — Adelaide sussurrou.
— … existe alguém mais bela do que eu? — uma voz sussurrou
de volta.
Uma voz que parecia passos no escuro, ratos na parede.
O Rei dos Corvos apareceu e se ajoelhou ao lado dela.
— Seu próprio irmão contou essa história, não foi? Ele dizia aos
outros que você era vaidosa. Que constantemente perguntava ao
espelho Existe alguém mais bela do que eu?, em vez de Quem quer
que meu trono seja seu?. Ele fez isso para diminuir você. Porque
estava com ciúme. Você foi dez vezes a governante que ele seria. O
Rei do Interior gosta de repetir essa história. O Imperador do Catai
também. — Ele olhou para o vidro prateado. — Palavras faladas.
Palavras escritas. Nelas, você encontra a história. Mas, nas
sombras dessas palavras, você encontra o contador de histórias.
Com esforço, Adelaide desvencilhou-se das imagens no espelho
e o encarou. Seus olhos cansados encontraram os dele, brilhantes e
ocupados.
— Mas você não me chamou para falar do passado, não é? —
perguntou ele. — Você deseja falar sobre o presente.
Adelaide assentiu.
— Estou inquieta. Perturbada. Não consigo comer nem dormir.
— Há uma razão para isso, você está sentindo. Eu sei o que deve
fazer. A princesa ainda vive. As cobras não a mataram. Ela está na
Floresta Sombria, a caminho de Nimmermehr. Deve ser impedida de
chegar lá.
As palavras do Rei dos Corvos provocaram raiva na rainha.
Chamas negras queimavam atrás de seus olhos.
— Diga-me como — disse ela, levantando-se do chão.
O rei se levantou com ela:
— Pegue isto — disse ele, tirando algo do bolso. — Encontre a
garota e dê a ela.
Era um grande pente de cabelo, primorosamente esculpido em
azeviche, em forma de escorpião. Os olhos da criatura eram rubis.
As pinças e o ferrão afiado na ponta da cauda curva eram
diamantes negros. As joias brilharam à luz do fogo.
— Depressa — disse o Rei dos Corvos, colocando o pente nas
mãos da rainha. — A garota não deve chegar a Nimmermehr. Ela
não deve encontrar seu coração.
Ouviu-se o som de asas batendo quando ele desapareceu. A
rainha estremeceu. Ela não sabia o porquê. Por um momento,
sentiu-se sem fôlego e fraca, como se o rei tivesse tirado dela tudo
que é forte e seguro. Ela se ergueu, lembrando a si mesma que
detinha o poder. Ela é quem invoca aquele rei pálido, e ele é quem
cumpre suas ordens.
Mas quem é o verdadeiro mestre ali? Quem se torna poderoso e
quem se enfraquece?
Adelaide enfia o pente no bolso. Pega sua capa. Chama seu
cavalo.
Enquanto suas damas correm para lá e para cá, ela pressiona a
mão no peito. Sobre seu coração.
Como se estivesse se assegurando de que ainda está lá.
CINQUENTA E QUATRO

W .
Sophie o havia deixado em uma cadeira, em cima das roupas que
pegara emprestado e da roupa de cama que usara, tudo
cuidadosamente dobrado.

Cara Oma,
Eu vou recuperar o meu coração. Depois, vou recuperar a
minha coroa. Não tenho ideia de como vou fazer essas coisas.
Atenciosamente,
Sophie
P.S. — Obrigada pelo jantar e por uma cama agradável e
quentinha. Diga adeus a Gretta e agradeça a Will. Lamento ir
embora sem me despedir pessoalmente, mas temo perder a
coragem se vir seus rostos gentis. Vou sentir saudades de
todos vocês. Até de Arno. Por favor, cuide da Zara para mim.

Oma entrou na cozinha carregando um balde de leite da vaca,


enquanto Will terminava o bilhete.
— O que você disse a ela? — questionou ele.
— Que, se quisesse seu coração de volta, devia ir buscá-lo.
— Não posso acreditar nisso, Oma! Você disse a ela para ir para
Nimmermehr sozinha? Ela não vai chegar a menos de um
quilômetro do local. Ela vai morrer!
Oma encolheu os ombros.
— Ela vai morrer se não for também. Melhor tentar do que
desistir, não acha?
Will balançou a cabeça, murmurando para si mesmo. Ele largou o
bilhete e voltou para o quarto.
— Ai, ai, Oma — disse Gretta de sua cadeira perto do fogo. —
Agora você conseguiu.
Oma gesticulou para ela.
— Ele só está de mau-humor. Vai superar isso.
Gretta balançou a cabeça.
— Não vai, não.
Ela estava certa. Dez minutos depois, Will estava de volta com a
mochila na mão. Arno estava bem atrás dele. Zara dançou em
círculo ao redor dos dois homens, latindo.
Oma ergueu os olhos da frigideira de bacon que estava fritando.
— Não — ela disse. — Você não vai atrás dela.
— Sim — disse Will. — Eu vou.
Oma olhou feio.
— Por que você não procura o seu coração? Me parece que
alguém o roubou também.
— Preciso ir. Ela está sozinha. Alguém precisa impedir que ela se
perca.
Oma riu. Não era um som feliz.
— Você é que se perdeu, garoto. Ela é uma princesa. Você é um
pobre.
— Sério, Oma? Eu não fazia ideia. Obrigado por revelar isso.
— Vamos dizer que, por algum milagre, você recupere o coração
dela. E daí? Eu vou dizer…
— Sei que vai.
— … ela se casará com um rei, e você voltará para cá.
— Isso não é tão ruim assim.
Oma deu um suspiro de resignação.
— Tenha cuidado, garoto. Precisamos de você também.
Will colocou um braço em volta da avó e beijou o topo de sua
cabeça.
— Estarei de volta antes que você perceba.
Oma enfiou a mão no bolso.
— Aqui, pegue isto. Você pode vendê-las por algumas moedas ao
longo do caminho. Pode precisar de algum dinheiro.
Havia três pérolas em sua palma.
— Onde conseguiu isso? — perguntou Will, surpreso.
— Uma velha amiga me deu — respondeu Oma.
— Pronto? — perguntou Arno. — Há um belo cemitério logo
depois das Colinas Negras. Um cemitério bem chique. Com
mausoléus espaçosos. Posso abrir o mausoléu dos Schneider se
ninguém tiver mudado a fechadura. Devemos ir, no entanto, se
quisermos chegar lá ao anoitecer.
— Você também vai? — Oma perguntou a ele.
— Acho que vou. Já faz um tempo que não faço o caminho de
Nimmermehr. Há alguém para quem quero dizer olá.
Oma fez sanduíches de bacon para Will e Arno, depois embrulhou
um para eles levarem para Sophie. Ela também embalou um pedaço
de pão, salame, queijo e frutas para eles. Então, os dois homens
foram embora, e Oma e Gretta ficaram no pátio, observando
enquanto desciam o caminho da cabana para a floresta.
— Sophie está errada, Oma — Gretta disse.
— Sobre o quê, criança?
— Sobre a rainha. Ela não tentou matar Sophie por achá-la fraca.
Ou tola.
— Não? Então por que ela fez isso?
Gretta pensou na garota suja e magra que conheceu. A garota
com uma cicatriz no peito, marcas de mordidas nos braços e fumaça
nos cabelos.
Então, ela disse:
— Porque tem medo dela.
CINQUENTA E CINCO

S , colocou-a no chão e se
ajoelhou ao lado de uma planta verde desajeitada.
— Folha-de-veado é segura de se comer… Talo-de-veado deixa
sua língua azul… — ela murmurou, pegando uma folha verde larga.
Mas, em vez de rasgá-la, tirou a mão, franzindo a testa. — Ou era o
contrário?
Ela mordeu o lábio, desejando ter prestado mais atenção às aulas
de Will na floresta. Lembrava-se de que ele disse que era muito
importante tentar achar comida o tempo todo, em vez de esperar até
ficar com fome. Até agora, ela juntara dois punhados de avelãs e
alguns cogumelos de asa de anjo. Da cozinha de Oma, só pegara
uma fatia grossa de pão com manteiga e duas maçãs, e já tinha
comido o pão.
Decidindo que uma língua azul era melhor do que morrer de fome,
Sophie pegou as folhas. Ela sentiu uma fome terrível depois de fugir
de Drohendsburg e sabia que, se não tomasse cuidado, isso a
mataria antes que o Rei dos Corvos tivesse a chance de matá-la.
Sophie havia saído da cabana de Oma apenas uma hora antes,
pouco antes do nascer do sol, e já sentia falta das quatro paredes
aconchegantes. A cozinha arrumadinha. A lareira acolhedora. O
sótão, com sua coleção de provisões para o inverno que se
aproxima. Foi difícil deixá-la, assim como a Toca. Tudo sobre a
casinha expressava cuidado e amor.
A floresta pela qual Sophie estava caminhando era magnífica,
com suas árvores antigas, seus ricos aromas de sempre — plantas
e terra, e seu silêncio macio e musgoso, mas era ilimitada e
desconhecida, e a fazia se sentir pequena e vulnerável. Cada
animal — do lobo mais feroz ao menor ratinho — tinha uma toca
para se esconder, mas e ela? Ela não tinha nada. Nenhum lugar
para se abrigar, nenhum lugar para se esconder. Nenhum
companheiro lobo ou rato que se importasse com sua fome ou frio.
Quando Sophie quebrou mais algumas folhas — nunca pegue a
planta inteira, Will lhe dissera —, ela se perguntou se algum dia
conheceria a sensação de estar em casa novamente. O que sentiu
na cabana de Oma era mais do que o conforto de uma boa refeição
e uma cama quentinha. Em volta da mesa da velha, com Will, Gretta
e Arno, Sophie se sentiu como se estivesse sendo vista, realmente
vista, por quem ela era, por quem poderia ser. Talvez pela primeira
vez na vida.
Trechos de sua conversa com Oma voltavam agora à sua mente.
Mas eu não sou uma rainha…
Mas você pode ser…
Não importava o que sua madrasta acreditava sobre ela. Ou
Haakon.
Ou, aliás, no que Arno e Oma acreditavam.
Importa o que eu acredito, ela pensou. Nunca vou ter meu
coração de volta e minha coroa, a menos que eu acredite que posso
fazer isso.
Sophie sentou-se sobre os calcanhares, segurando um punhado
de folha-de-veado, e olhou para o vasto céu azul.
— Mas eu acredito? — perguntou ela em voz alta.
O céu não tinha resposta para ela.
Com um suspiro, desafivelou o topo de sua mochila e colocou as
folhas dentro dela. Estava prestes a fechá-la novamente quando
ouviu um som de galho se partindo. Ela congelou.
Uma voz carregada pela floresta, baixinha. E depois outra.
Vozes masculinas.
Sophie se agachou, tentando se fazer pequena, para não ser
vista. As vozes podiam pertencer a Krause e seus soldados. A
Haakon. A ladrões. Ela olhou em volta, aflita. Havia um grupo de
arbustos verdes a cerca de dez metros de distância. Se pudesse
chegar lá a tempo, ficaria segura. Uma vez que ela estivesse dentro
dos galhos densos, ninguém seria capaz de vê-la. Lenta e
silenciosamente, começou a se levantar, determinada a não fazer
nenhum som. Olhos fixos à frente, ela nunca viu o que estava
chegando.
A força do impacto a derrubou no chão. Aconteceu tão
rapidamente que não houve tempo para gritar. Ela caiu de costas
com um baque, batendo com a cabeça. Estrelas explodiram atrás de
seus olhos. Tentou se sentar, mas havia um peso em seu peito. Um
hálito quente, úmido e rançoso soprou em seu rosto. A baba pingou
sobre ela. A visão de Sophie clareou. Ela viu um focinho peludo.
Dentes grandes. Uma língua pendurada. Sua agressora
choramingou e latiu na cara dela.
— Zara! — Sophie exclamou. — Eu disse para você ficar com
Oma! Como você saiu?
Zara latiu novamente. Sophie empurrou a cadelinha e se sentou.
— Você a encontrou!
— Boa menina!
Sophie conhecia essas vozes.
— Will! Arno! — gritou ela quando os dois apareceram. — O que
estão fazendo aqui?
— Achei que pudesse tomar um chá no castelo do Rei dos Corvos
— disse Arno, majestoso. — Ver como vivem os ricos. — Ele
apontou o polegar para Will. — E ele? Ele ama…
Will rapidamente o interrompeu.
— É verdade. Eu amo aventura — disse ele, as bochechas
corando um pouco. — Gente aventureira gosta de aventura. É por
isso que estou aqui. Para viver uma aventura.
Arno lançou-lhe um olhar irritado, mas não disse nada.
Sophie ficou confusa. Aventureiro não era uma palavra que ela
usaria para descrever Will. Ficou emocionada e feliz em ver os dois,
mas também preocupada.
— Vocês não deveriam ter vindo — disse ela. — Oma precisa de
você, Will. Arno, o Capitão Krause acha que você está morto. E se
alguém o vir e contar que está vivo? Posso chegar a Nimmermehr
sozinha.
Arno bufou. Seus olhos caíram para as folhas saindo da mochila
de Sophie. Viram a planta colhida pela metade.
— Ah, é?
— Sim, é isso mesmo — Sophie respondeu indignada, irritada
com o tom dele.
Will olhou para a planta também, o rosto tenso de preocupação.
— Você comeu alguma daquelas folhas que colheu? — perguntou
ele.
— Não.
A expressão de Will se suavizou.
— Ufa.
— Por quê? — Sophie perguntou, franzindo a testa. — Folha-de-
veado não faz mal, foi você quem disse.
— Mas isso não é folha-de-veado. É laxursto.
— Laxursto? — Sophie repetiu. Ela nunca tinha ouvido falar disso.
— Hmm. Serve para soltar… coisas — Will explicou, corando
novamente.
— O que o menino está tentando dizer é que faz bem para
constipação. Coma todas as folhas que colheu e terá diarreia por
uma semana!
Foi a vez de Sophie ficar vermelha. Ela rapidamente tirou as
folhas de sua mochila e as atirou no chão da floresta. Quando
fechou a mochila novamente, Arno já estava de volta ao caminho,
desaparecendo entre duas árvores.
— Apressem-se! — gritou ele. — Ou vamos perder os
sanduichinhos! Espero que o Rei dos Corvos esteja nos esperando
com bolachinhas também!
Will ficou atrás dele. Sophie enfiou os braços nas alças da
mochila e os seguiu.
— Will… — ela chamou enquanto começava a descer o caminho.
Will se virou; ele ergueu uma sobrancelha inquisitiva.
— Obrigada. Eu… Eu sei que você não gosta… da realeza… de
mim… mas sou grata por sua ajuda.
Parecia que as palavras dela o tinham magoado, pois a dor cortou
seu rosto. Sophie não tinha ideia do porquê. Ele deu alguns passos
em direção a ela, como se fosse dizer algo. Por um momento, ela
pensou que ele diria que ela estava errada, que gostava dela, e seu
coração zumbiu suavemente, mas, então, ele parou abruptamente.
Passou a mão pelo cabelo. Desviou o olhar.
Finalmente, disse algo.
— Eu me preocupo com minha irmã e você é a última esperança
dela.
E, então, correu para alcançar Arno.
Sophie ficou lá atrás. Um pouco envergonhada. E com raiva — de
si mesma. O que você esperava?, uma voz interna a repreendeu.
Ela queria algumas coisas impossíveis — seu coração, sua vida,
seu palácio, sua coroa.
Mas, enquanto Sophie observava Will desaparecer na floresta, ela
sabia que qualquer esperança que tivesse de aquele garoto
estranho e silencioso gostar dela do jeito que ela começava a gostar
dele era a coisa mais impossível de todas.
CINQUENTA E SEIS

E - S ,W .
Eles estiveram juntos nas últimas cinco horas, desde que a
haviam alcançado. Enquanto caminhavam, Arno disse-lhes que
pensava que levariam quatro ou cinco dias para chegarem a
Nimmermehr e que o castelo do Rei dos Corvos era difícil de
encontrar. O caminho era difícil de seguir e desaparecia
completamente em alguns lugares. Ele também os avisou
novamente sobre os monstros.
— Há todo tipo de trolls naquelas bandas. Tem trolls da lama, é
claro — disse ele, com conhecimento de causa. — Trolls de fungo.
Trolls de pedra. Mas, se me perguntarem… o pior de todos é o seu
troll do poço. Eles vivem no fundo de poços abandonados. E, eu
juro, só o cheiro já mata você.
— O que mais? — perguntou Will.
— Veremos alguns makabers quando chegarmos perto. Eles
procuram mortos não enterrados. Gostam de tirar coisas dos
corpos. Dedos das mãos e dos pés. Narizes também. Eles são mais
nojentos do que perigosos, mas correm atrás de nós se chegarmos
perto de um cadáver atacado por eles. Não querem que você o
roube.
— Como se fôssemos querer — Will murmurou.
— Também poderemos encontrar alguns wunschfetzens.
— O que são? — perguntou Sophie.
— Wunschfetzens? São criaturas cinzentas, gotejantes e
melancólicas, com grandes olhos tristes. Eles gostam de lugares
úmidos. Agarram-se ao teto em cavernas e porões com seus longos
dedos, depois se jogam no seu ombro e enfiam os longos dedos em
seus ouvidos. Tiram lembranças de sua cabeça e as fazem parecer
reais. Você vê alguém que amou. Um pai, morto há muito tempo.
Uma garota que se casou com outra pessoa. Um irmão com quem
você não fala há anos. Você fica tão feliz em vê-los que nem mesmo
questiona por que estão ali. Apenas os segue cegamente enquanto
eles o levam para um pântano ou um penhasco. Se encontrar um
wunschfetzen sozinho, você pode se considerar um caso perdido,
mas, se houver alguém com você, pode ser possível distraí-lo com
doces. Os monstrinhos adoram.
Sophie estremeceu com as descrições de Arno. Ela pensou em
Jeremias e Joosts. E se uma dessas criaturas horríveis os tivesse
pegado? Eles ficariam perdidos na Floresta Sombria para sempre.
Depois de mais uma hora de caminhada, os três chegaram a uma
estrada estreita que cortava a floresta. Ficaram surpresos ao ver
uma caravana de pessoas — pelo menos duzentas delas —
passando. A princípio, Sophie pensou que eles fossem apenas
aldeões voltando de um dia de feira, mas, à medida que se
aproximavam, viu que pareciam mais refugiados do que habitantes
da cidade.
Alguns caminhavam. Outros viajavam em carroças com pilhas
altas de utensílios domésticos, puxadas por cavalos cansados.
Estavam magros e sujos. Alguns estavam tossindo. As crianças se
dispersavam nas bordas do grupo. Um homem empurrava uma
senhora idosa, frágil demais para andar, em um carrinho de mão.
Sophie o parou, perguntou o nome dele e o que havia acontecido.
O homem cansado mal levantou a cabeça enquanto falava.
— Max. Um de nossos habitantes descobriu ouro em nosso rio. O
príncipe — Haakon — ouviu sobre isso e expulsou todos nós. Seus
soldados assumiram o controle da aldeia. Agora todo o nosso ouro
vai para os cofres da rainha e caminhamos pelas estradas pedindo
esmolas. Você tem alguma coisa que possa nos dar? Um pouco de
comida?
Sua expressão derrotada dizia a Sophie que ele havia sido
rejeitado muitas vezes e não esperava a ajuda dela. Mas, quando
Sophie colocou um pedaço de pão em sua mão, o espanto
substituiu a desesperança em seus olhos.
— É você! É a princesa! — ele exclamou.
Ele agarrou a mulher ao lado dele.
— Veja! É ela! É a Princesa Sophia.
Suspiros assustados e murmúrios aumentaram.
— É ela! Ela está viva! — disse uma mulher.
— As histórias são verdadeiras! — gritou um homem.
Uma por uma, as pessoas caíram de joelhos. E curvaram suas
cabeças.
— Viva a princesa!
— Viva!
— Viva a princesa!
Sophie sentiu-se arder de vergonha. Ela não merecia a honra que
estavam mostrando a ela. Não havia nada que ela pudesse fazer
por eles, nenhuma ajuda que pudesse lhes dar. Seu coração
mecânico contorceu-se dolorosamente em seu peito.
Arno aproximou-se dela. Ela o sentiu colocar algo em sua mão.
— Dê para eles — disse ele. — Vamos, dê.
Sophie olhou para o que estava segurando. Era um saco de
couro. Ela sabia o que continha — joias roubadas. Parte dela queria
devolver, mas sabia que as joias pagariam pelo uso do celeiro de
um fazendeiro para abrigar aquelas pessoas. Poderiam ser usadas
para comprar comida, remédios e roupas.
Ela pegou a mão de Max e pediu-lhe que se levantasse. Então,
ela deu a ele o saco de joias do cemitério.
— Para você e seu povo — disse ela. — Para alimentá-los e
encontrarem um abrigo.
O homem olhou para ela interrogativamente, depois abriu o saco.
Seus olhos se arregalaram quando viu o que havia na bolsa. Um
grito escapou dele.
— Obrigado, Sua Graça. Obrigado! — Ele entregou a sacola para
o homem ao lado dele, pegou a mão de Sophie e a beijou.
Alguns outros se reuniram ao redor. Eles viram as joias. A notícia
rapidamente se espalhou pela multidão.
— Deus a salve, Sua Graça!
— Deus salve a princesa!
Uma mulher com quatro filhos começou a chorar. Um homem
sorriu para o pai idoso. Um menino com seis irmãos pequenos
agrupados em torno dele fechou os olhos e respirou, aliviado. E Will
olhou nervosamente para a estrada.
— Já estamos parados aqui há algum tempo, Sophie — disse ele
baixinho. — Krause e sua gangue de assassinos podem estar em
qualquer lugar. É hora de irmos.
— Nunca vamos esquecer isso, Sua Graça — disse Max,
soltando a mão de Sophie. — Um dia, nós a ajudaremos.
Sophie sorriu, comovida por suas palavras. Ele estava falando
sério, ela sabia que sim, mas que ajuda aquelas pobres pessoas
poderiam lhe oferecer? Algumas mal conseguiam ficar de pé. Outras
não durariam uma semana.
— Cuide bem de todos, Max — ela sussurrou enquanto
observava as pessoas retomarem sua caminhada.
Então ela, Will e Arno desapareceram de volta na Floresta
Sombria.
CINQUENTA E SETE

—P ? — Sophie
perguntou, marchando atrás de Will.
Ela estava com sede e encharcada de suor. Seus pés doíam. Seu
batimento cardíaco estava irregular. Ela começou a se sentir fraca e
tonta novamente. Dois dias haviam se passado desde que ela, Will
e Arno conheceram Max e seus companheiros refugiados, e eles
estavam caminhando desde então, apenas parando para dormir
quando ficava escuro demais para ver o caminho.
— Will? Podemos parar… Por favor.
De cabeça baixa, com a atenção fixada nos pés, ela não viu que
Will havia parado e estava olhando para algo fora do caminho. E,
então, ela se chocou contra ele. De cabeça e com força.
— Oh! Ai! — gritou ela, cambaleando para trás. — Por que você
fez isso? — ela perguntou zangada, esfregando a testa.
— Fiz o quê? Parar? Talvez porque você me pediu? — respondeu
Will. — Veja…
— O quê?
Ele apontou para flores roxas escuras crescendo perto de um
tronco apodrecido.
— Flores-de-raposa.
Sophie fez uma careta.
— Você quase fraturou meu crânio por causa disso?
— São muito bonitas. E úteis. Se você pressionar as pétalas em
picadas de insetos, elas tiram a coceira. — Ele dirigiu a ela um olhar
interrogativo. — Você não sabe dessas coisas? O que eles ensinam
na escola de princesas?
— Nada útil — Sophie murmurou.
Naquele momento, algo em seu coração — uma engrenagem ou
roda — ficou preso em alguma outra peça e fez um barulho alto de
raspagem. O peito de Sophie se apertou; ela lutou para respirar.
Seu corpo ficou rígido.
— O que isso quer dizer? O que há de errado? — Will perguntou,
estendendo a mão para segurá-la em pé.
Poucos segundos depois, o que quer que fosse estremeceu e
Sophie caiu contra ele, engolindo ar.
— A mesma coisa que sempre está errada — disse ela quando
conseguiu falar novamente. — Tenho um relógio defeituoso como
coração, e ele está perdendo a velocidade.
A preocupação nublou o rosto de Will. Ele semicerrou os olhos
para o sol. Seus raios, oblíquos através dos galhos frondosos,
lançavam sombras no solo.
— O dia está ficando longo. Vamos ter que aumentar o ritmo se
quisermos chegar ao próximo cemitério ao anoitecer — disse Arno,
aproximando-se deles. — Caso contrário, vamos dormir sob as
estrelas de novo.
— Sophie precisa de um descanso — disse Will. — Vamos deixá-
la descansar alguns minutos. Vou caçar nosso jantar. Isso nos
poupará tempo quando chegarmos ao cemitério. Tenho visto muitos
coelhos.
— Coelho de novo? — disse Arno, fazendo uma careta.
— O que foi, Arno? Você está cansado de coelho? Tudo bem,
então. Em vez disso, vou encontrar para nós uma costela assada.
Mal passada. O que acha disso?
— Se ao menos fosse possível… — disse Arno com saudade. —
Irei com você. Talvez eu possa encontrar algumas bagas de zimbro
para dar sabor à carne. Cogumelos. Um pouco de tomilho
selvagem. Uma bela mortadela.
Will olhou para ele e se voltou para Sophie.
— Você vai ficar bem sozinha? — perguntou ele, soltando-a.
Sophie disse que sim, depois se sentou na base de uma bétula,
desatarraxou a tampa do cantil e tomou um longo gole de água.
Will largou a mochila no chão e saiu para a floresta com Zara em
seus calcanhares. Sophie baixou o cantil e tentou desacelerar a
respiração, que ainda estava muito rápida e superficial. O defeito
assustador que acabara de experimentar a fez se lembrar de algo
que preferia esquecer: que ela tinha pouco mais de duas semanas
para roubar seu antigo coração, retornar à Toca e, com sorte,
encontrar alguém com magia forte e suficiente para colocar o
coração de volta no lugar.
Pensar em quão rápido seu tempo estava se esgotando não
ajudou Sophie a respirar, então ela tirou os pensamentos sombrios
de sua cabeça. Will e Zara ainda não haviam desaparecido de vista.
Ela gostava da caminhada fácil e rápida de Will. Ele se movia por
entre as árvores tão facilmente quanto o vento. Ela sabia que ele só
iria caçar coelhos. Eles tinham visto todos os tipos de pássaros da
floresta enquanto caminhavam — faisões, perdizes, codornizes —,
mas Will não atirava neles. Ele amava pássaros, dissera a ela, e
não suportaria matá-los.
Sophie pensou, mais uma vez, como estava muito grata a Arno e
Will por estarem indo com ela para Nimmermehr. Arno não exagerou
quando disse que a trilha era difícil de seguir. Ela teria ficado
irremediavelmente perdida sozinha. Quando sua respiração
finalmente começou a diminuir e Will saiu de vista, Sophie olhou ao
redor. Eles haviam percorrido uma longa distância desde que
deixaram a cabana de Oma e, a cada passo que davam, a Floresta
Sombria parecia ficar cada vez mais escura.
Os pinheiros eram mais folhosos e impossivelmente altos. Musgo
espesso, tão verde-escuro que era quase preto, pedras e tocos
atapetados. Durante o dia, os corvos gritavam nas copas das
árvores, as folhas das samambaias acenavam com a brisa e
grandes sapos com verrugas piscavam sob troncos podres. À noite,
mariposas com antenas emplumadas desciam até a fogueira,
batendo suas asas translúcidas, nuvens de morcegos emergiam de
cavernas escondidas e olhos de animais cintilavam
assustadoramente verdes na escuridão. Sophie e seus amigos
tinham dormido do lado de fora na noite anterior e se revezado para
vigiar, pois Will vira rastros de lobos. Seria bom encontrar abrigo
naquela noite, mesmo que o abrigo fosse uma tumba.
Sophie encostou a cabeça na bétula. Fechou os olhos. A pausa
na caminhada estava fazendo bem a ela. Depois de alguns minutos,
ouviu um galho estalar e depois outro. Passos rangeram nas
camadas de folhas mortas no chão da floresta. Will e Arno devem
ter tido sorte, ela pensou. Já estão de volta.
— Por que demorou tanto? — ela zombou de Will. — Você se
perdeu?
— Sim, temo que sim.
Essa não era a voz de Will. Nem de Arno. Os olhos de Sophie se
abriram.
Um homem estranho estava parado a alguns metros de distância.
CINQUENTA E OITO

S .
Agarrou sua mochila, pronta para correr com ela. O homem deu
um passo para trás.
— Sinto muito — gaguejou ele, erguendo as mãos. — Não
pretendia assustá-la. Eu ouvi vozes. Perdi o caminho de vista e
esperava que você pudesse me dizer como encontrá-lo novamente.
Sophie relaxou ligeiramente.
— Aonde você está tentando ir?
— Grauseldorf. Espero chegar lá amanhã à noite.
— Não é exatamente perto daqui — disse Sophie. — Vai levar
alguns dias.
O homem pareceu tão desanimado com suas palavras que
Sophie sentiu que precisava dizer algo para animá-lo.
— Você está no caminho certo. É difícil ver daqui — ela apontou
para o caminho por onde acabara de chegar, para um grupo de
choupos. — Fica mais fácil seguir do outro lado daquelas árvores.
O homem acenou com a cabeça.
— Obrigado — disse ele enquanto ajeitava a mochila pesada nas
costas.
Sophie viu que ele era magro. E parecia tão cansado quanto ela.
— Está com fome? — ela perguntou.
O homem balançou a cabeça com a oferta de Sophie, mas sua
recusa vacilou quando ela pegou um saco de ameixas.
Sentando-se novamente, ela gesticulou para que ele se juntasse
a ela.
— Eu sou Sophie — disse ela, entregando-lhe uma ameixa.
— Rafe — respondeu o homem com um sorriso.
— Você veio de longe? — perguntou ela, colocando a fruta no
chão.
— Uma boa distância — ele disse e apontou o polegar atrás de si.
— Eu vivo dessa maneira. Nas profundezas da floresta. Com minha
esposa.
— Por que está indo para Grauseldorf?
— Para vender minhas mercadorias. Sou lenhador de profissão,
mas também esculpo para ganhar um dinheiro extra. Tenho
estatuetas para vender. Castiçais. Caixas. Bijuterias para mulheres.
Vou mostrar.
Ele enfiou a mão na mochila, franzindo a testa, apertando os
olhos, afastando as coisas.
— Ah, aqui estamos. Este é muito impressionante — disse ele,
puxando algo pequeno e embrulhado em musselina.
Desdobrou o pano e colocou o que estava dentro nas mãos de
Sophie. Ela ficou mesmo impressionada. Era um pente de cabelo,
esculpido em azeviche, em forma de escorpião. Nunca tinha visto
uma peça tão bem-feita. Os dentes do pente eram longos e
impossivelmente finos; o pente era projetado para ficar em cima de
uma trança enrolada ou de um coque. O escorpião estava
empoleirado acima dos dentes, tão lustroso e natural que Sophie
sentiu que fosse se mover. Suas poderosas pinças estavam
levantadas, a cauda arqueada bem acima da cabeça.
— É incrível — ela se maravilhou. — O senhor é muito talentoso.
Rafe sorriu, satisfeito com o elogio dela.
— Espero que valha uma boa quantia, embora eu odeie vender.
Gostaria de poder ficar com ele. Minha esposa o adora.
— Consigo entender por quê — disse Sophie melancolicamente,
lembrando-se de todos os pentes requintados que possuía quando
morava no palácio. Parecia que muito tempo havia se passado
desde então.
Rafe colocou o pano de musselina no chão entre eles. Sophie
pousou cuidadosamente o pente sobre ele. Enquanto ela o fazia, ele
mordeu a ameixa que ela lhe dera.
— Deliciosa — disse ele. — Obrigado.
Ele perguntou aonde ela estava indo.
— Schadenburg — disse Sophie evasivamente, referindo-se ao
vilarejo mais próximo ao castelo do Rei dos Corvos. Ela não queria
compartilhar seu verdadeiro destino com um estranho.
Rafe fez uma careta.
— Por quê? É um lugar horrível.
— Tenho negócios lá — disse Sophie.
— Eu a aconselho resolvê-los o mais rápido possível.
Houve um ruído repentino e deslizante atrás deles, como ratos se
movendo por folhas mortas. Sophie se assustou um pouco. Ela
olhou por cima do ombro, mas não viu nada.
— Esquilos, imagino — Rafe disse. — Estão juntando nozes para
o inverno. O verão está acabando.
Uma brisa soprou entre as árvores, fazendo cócegas no pescoço
de Sophie. Um arrepio percorreu sua espinha.
Ela pegou uma ameixa. Ao fazer isso, seu olhar pousou no pano
de musselina. O escorpião esculpido havia sumido. Ela tinha certeza
de que havia colocado sua bela escultura ali. Esperava que nada
tivesse acontecido com ele.
— Onde foi parar seu pente? — perguntou ela, procurando
ansiosamente por ele.
Rafe abriu um sorriso lento e penetrante.
— Bem onde ele deveria estar — ele disse.
Quando as palavras deixaram sua boca, Sophie sentiu algo subir
em seu pescoço. Ela deu um grito e tentou puxar o que quer que
estivesse rastejando sobre ela, mas grandes pinças de pedras
preciosas paralisaram suas mãos. Uma penetrou em seu dedo.
Sophie gritou.
O escorpião esculpido ganhou vida. Estava subindo pela nuca
dela, a cauda arqueada, uma gota verde e brilhante de veneno
pendurada na ponta. Ele ergueu a cauda para o alto e, então,
atacou.
Instantaneamente, o veneno se espalhou pelo corpo de Sophie,
queimando como ácido. Ela gritou e se contorceu, tentando arrancar
de si o escorpião, mas a criatura havia crescido. Era do tamanho de
uma doninha agora e tinha as pernas emaranhadas em seu cabelo.
Menina tola… Mole demais, fraca demais… sibilou.
As palavras venenosas do escorpião perfuraram o coração de
Sophie. Enquanto ela lutava, a criatura picou-a repetidamente. Seu
veneno começou a fazer efeito, desacelerando seus movimentos.
Ela rolou de costas, sua respiração difícil, seu batimento cardíaco
pesado e lento. Ela podia ver Rafe. Ele estava de pé sobre ela,
olhando para baixo. Podia ver algo que não tinha visto antes — que
os olhos dele eram de um azul-índigo. Que seu cabelo era longo e
solto. Que ele não era um homem, mas uma mulher.
O escorpião rastejou pela lateral de seu rosto, através de sua
clavícula, e se empoleirou em seu peito, parando em seu ataque
como se estivesse ouvindo, esperando.
Sophie observou, incapaz de se mover. Seus lábios abriram-se,
mas nenhum som saiu.
A rainha a observava de cima. Seus olhos brilharam quando ela
falou:
— Aponte para o coração. Certifique-se de que a garota morra
para sempre — instruiu a criatura. — Ela não deve chegar a
Nimmermehr.
O escorpião ergueu a cauda. E a atingiu profundamente.
CINQUENTA E NOVE

—S , ! Com dois coelhos. Sophie? — gritou


Will.
Sua voz soava como se viesse de dentro d’água. Sophie forçou-
se a abrir os olhos. Sua visão estava turva, mas ela podia distinguir
a silhueta de Will.
Ela ouviu palavrões, gritos. Will jogou os coelhos no chão. Em um
piscar de olhos, ele tinha uma flecha encaixada e apontada. Mas
não havia esperança; não poderia acertar o escorpião sem acertá-
la.
Ele puxou a adaga da bainha e golpeou a criatura, mas esta foi
mais rápida do que ele e picou sua mão. Will praguejou. Ele chupou
o veneno da ferida e cuspiu.
— Sophie! — gritou Arno, apontando a faca para o escorpião. —
Lute contra o veneno! Fique acordada!
— Não consigo… — Sophie murmurou. — É muito difícil…
Seus olhos estavam se fechando novamente. Seus membros
pareciam tão pesados.
Zara tentou matar o escorpião também. A cachorrinha de pés
velozes atacou. Fintou à esquerda e atacou à direita, mas não era
páreo para a criatura feroz, que era duas vezes mais rápida do que
ela, e mais de uma vez seu ferrão roçou seu pelo, abrindo linhas de
sangue em seu flanco.
— Atraia para você, garota! — Will gritou para ela. — Distraia o
bicho!
Zara tentou, investindo e agarrando a criatura, forçando-a a
encará-la e a virar as costas para Will. Ao fazer isso, Will agarrou a
ponta da longa trança de Sophie e passou a adaga por ela, perto de
sua cabeça. Quando ele puxou a trança decepada, o escorpião veio
com ela.
Arno tentou pisar nele, mas ele correu de volta para Sophie.
— Não! — gritou Will, tentando bravamente bloqueá-lo.
O escorpião enfiou o ferrão na panturrilha dele. Will gritou de dor.
Sua perna se dobrou. Ao cair no chão, viu a coisa rastejar pelo
ombro de Sophie.
— Rápido, Zara, tente de novo — disse ele para a cachorrinha. —
Vai matá-la…
O restante de suas palavras foi interrompido como por um raio
que rosnava.
O ataque veio tão rápido que o escorpião não teve tempo de se
defender. O lobo grande e musculoso se lançou sobre a criatura,
mordeu uma de suas pernas e a arrancou. O escorpião gritou de
dor. Ele se virou para atacar, mas o lobo já havia pulado para trás.
Balançando a cabeça, fez a perna voar. Em seguida, avançou
novamente.
O escorpião empurrou suas pinças contra o inimigo. Ao fazer isso,
um segundo lobo, este preto, agarrou outra das pernas da criatura e
a arrancou. O escorpião foi puxado para o lado. Perdeu o equilíbrio
e quase caiu de Sophie. Então um terceiro lobo, este com um pelo
fulvo, entrou na briga.
Cambaleando nas pernas restantes, gritando, golpeando
cegamente, o escorpião não viu o quarto lobo circulando, o quinto
ou o sexto. Pedaço por pedaço, eles o rasgaram até que apenas
sua cauda, contorcendo-se impotentemente no chão,
permanecesse.
Will cambaleou até Sophie, sentou-a e encostou-a no tronco de
uma árvore.
— Acorde, Sophie — disse ele, batendo com suavidade em seu
rosto. — Vamos… Acorde!
Mas Sophie, pesada como um saco de grãos, caiu para frente, em
seus braços. Em seguida, um sétimo lobo, na verdade uma loba,
com pelagem cinza, olhos prateados e uma orelha irregular, saiu da
floresta. Ela trazia um galho em sua boca. Devagar, com cautela,
aproximou-se de Will, mas ele ainda tentava desesperadamente
acordar Sophie e não a viu. Deu uma patada no chão, mas ainda
assim Will não olhou para cima. Então, ela largou o galho e latiu
para ele.
Isso chamou sua atenção. Ele se virou de Sophie para ver o
animal parado a apenas alguns metros de distância. Ela abaixou a
cabeça e cutucou o galho em sua direção.
— Folha-de-vespa — Will disse, olhando para o galho. Ele ergueu
os olhos para os do lobo. — Funcionará em picadas de escorpião?
A loba inclinou a cabeça.
— Claro que vai — ele acrescentou apressadamente. — Por que
outro motivo você traria para mim?
Ele colocou Sophie gentilmente no chão.
— Pense, Will, pense… — ele falou para si próprio. — Amasse as
folhas… Não, espere! Faça uma pasta de lama primeiro.
Ele correu para sua mochila e puxou um prato de lata de dentro
dela. Limpou a terra do chão da floresta e a jogou no prato.
Derramou, daí, um pouco de água na terra e mexeu com o dedo.
Sob os olhos vigilantes dos lobos, arrancou as folhas-de-vespa do
galho, esmagou-as com os dedos e adicionou-as à lama. As folhas
rasgadas exalavam um líquido branco que cheirava a ovos podres.
Juntos, ele e Arno esfregaram a mistura viscosa em cada vergão
que podiam ver. Em pouco tempo, o rosto, a cabeça e o pescoço de
Sophie foram cobertos com ele. Will esfregou um pouco na picada
da própria perna também e em Zara.
A folha-de-vespa funcionou como mágica. A pasta mudou de
marrom para verde à medida que retirava o veneno. Lentamente, os
olhos de Sophie se abriram, mas estavam desfocados. Ela respirou
fundo.
— Tire isso de mim! Tire isso! — ela gritou, as mãos arranhando a
cabeça.
— Está tudo bem. O escorpião está morto — Will acalmou. —
Sophie, está tudo bem.
Sophie piscou para ele. Seus olhos mais focados.
— Will? — ela sussurrou, agarrando-se a ele.
— Estou aqui.
Sophie se sentou e olhou ao redor, com o coração acelerado. Viu
os lobos, todos os sete, sentados em um semicírculo. Sua líder
estava sentada no centro.
— O que eles estão fazendo aqui? — perguntou ela.
— Eles mataram o escorpião. E salvaram sua vida.
— Mas, como…? Por quê…? — Sophie começou a dizer.
Então, a líder deu um passo à frente e Sophie viu os olhos
prateados, a orelha áspera, a mancha branca em sua garganta.
— Era você — ela sussurrou, lembrando-se da caçada,
rememorando como a pobre criatura havia sido encurralada.
A loba ergueu a cabeça. Soltou uma série de uivos longos e altos.
Os outros se juntaram, e então todos eles deram meia-volta e
desapareceram na Floresta Sombria.
— Eu salvei a vida dela uma vez — disse Sophie.
— Ela acabou de devolver o favor — disse Arno.
Sophie baixou o rosto nas mãos.
— Foi horrível — ela disse.
— O que aconteceu? — Will perguntou.
Lentamente, Sophie o soltou. Em seguida, ela contou como
Adelaide apareceu, disfarçada de lenhador. Enquanto Will e Arno
ouviam, suas expressões, já sombrias, fecharam-se ainda mais.
Arno sentou-se de cócoras.
— Ela sabe que você está indo para Nimmermehr — disse ele. —
Aposto que ele sabe também, o Rei dos Corvos. Aposto que teve
um dedo nisso.
Ele apontou para os restos do escorpião. E continuou:
— Ele estará esperando por nós. Com todos os seus monstros.
Franzindo a testa, Arno olhou para o céu. O crepúsculo estava
começando a acabar com o dia.
— Precisamos ir andando, pessoal — disse ele. — Não quero que
passemos esta noite na floresta. Quando escurecer, precisamos
estar dentro de uma cripta segura e aconchegante.
Will e Arno se levantaram. Eles colocaram Sophie de pé também.
Arno franziu o cenho para ela.
— Se você quiser chegar a Nimmermehr, precisa fazer uma coisa.
— O quê? — Sophie perguntou.
— Deixar de ser burra.
Sophie piscou para ele, ofendida.
— O quê?
— As pessoas aparecem no meio do mato e fingem ser suas
amigas. Elas lhe oferecem algo — fitas, um pente — e você aceita.
Pare com isso. Pare de tomar veneno de amigos falsos. Isso vai
acabar matando você.
Sophie sentiu um nó na garganta. Ela tentou engolir.
— Amigos falsos são os únicos que já tive. Nunca tive um amigo
verdadeiro. Nenhum.
Will, esfregando outra gota de folha-de-vespa no queixo de
Sophie, disse:
— Bem, você tem um pouco agora. Mesmo que tenha toneladas
de manchas vermelhas feias espalhadas por toda parte.
— Toneladas de manchas? Sério, Will?
Ele assentiu.
Arno entrou na conversa.
— E mesmo que você não tenha cabelo.
— O quê? — Sophie disse. Suas mãos voaram para sua cabeça.
Ela viu que o que Arno dissera era verdade.
— M-meu cabelo — gaguejou ela, horrorizada. — O que
aconteceu…?
— Eu cortei. Tive que cortar… — Will disse. — O escorpião
estava emaranhado nele, e eu estava tentando tirá-lo de você. Mas,
mesmo sem cabelo… Mesmo que você esteja coberta de lama
viscosa…
— Estou sem cabelo — Sophie repetiu em choque.
— E mesmo fedendo…
— Espere… Esse cheiro sou eu?
— Mesmo com todas essas coisas, Sophie… Estou aqui — disse
Will. — E Arno também.
Will terminou de limpar a lama de seu queixo. Depois olhou nos
olhos dela.
— Acho que isso significa que somos seus amigos.
SESSENTA

S . O mausoléu dos von


Stauffenzee erguia-se à distância, seu mármore branco brilhando
tão intensamente ao luar que seria fácil encontrar o caminho de
volta até ele. Arno estava certo; a floresta não era lugar para eles
aquela noite, e ela não queria se perder.
Com Zara ao seu lado, Sophie caminhou entre as árvores para se
aliviar. Seu andar era lento. Tudo doía. As picadas do escorpião
latejavam. Seus músculos reclamavam, por toda a caminhada que
fizera. Mas era seu coração que mais doía. O encontro com a
madrasta a deixara desanimada e assustada.
O mecanismo dentro dela estava enfraquecendo, sua madrasta e
o Rei dos Corvos a queriam morta, e sua única esperança de
sobrevivência — um castelo chamado Nimmermehr — estava
cercada por criaturas assassinas que nunca a deixariam passar. Ela
era a única esperança de seu povo e não tinha ideia se seu coração
doente a deixaria sobreviver àquela noite.
Parecia a Sophie que, quanto mais fundo entrava na Floresta
Sombria, com mais medo ela ficava — medo de que sua busca
fosse impossível, medo de morrer na floresta como Jasper.
E depois? Sua mente respondeu à pergunta por ela, torturando-a
com imagens do Capitão Krause brutalizando os aldeões de
Drohendsburg. Dos soldados feridos sucumbindo à fome e ao frio no
inverno que se aproximava. De Will e Oma junto ao túmulo de
Gretta.
As imagens ainda giravam em sua cabeça quando ela saiu das
árvores, e estava tão preocupada que quase não viu uma mulher
vestida de preto, de pé na beira do cemitério.
Com um choque de reconhecimento, Sophie parou bruscamente.
Ela a tinha visto antes; estava certa disso. De onde elas se
conheciam? Por que não conseguia lembrar seu nome? O aviso de
Arno ecoou em sua cabeça. Deixe de ser burra. A mulher podia ter
sido enviada pelo Rei dos Corvos. Podia ser sua madrasta
disfarçada novamente.
— Eu a conheço? — Sophie perguntou, dando um passo
cauteloso para trás.
— Todo mundo me conhece — disse a mulher.
E inclinou a cabeça, seus olhos vermelhos observando os
vergões no rosto e no pescoço de Sophie.
— Ainda estão doendo?
Sophie assentiu, perplexa com aquela mulher estranha. Onde ela
a tinha visto?
— As picadas vão sarar. Em um ou dois dias, a dor vai embora.
Mas a dor em seu coração? Essa dor nunca vai embora.
Sophie sentiu seu corpo esfriar.
— Como você sabe…
A mulher não a deixou terminar.
— A dor a seguirá enquanto houver uma criança faminta no reino.
Uma família sem casa. Um homem doente tremendo ao pé da
fogueira. Essa dor é o fardo de uma rainha, que deve ser suportado
até o dia de sua morte. Tem certeza de que deseja este fardo,
criança?
— Por que está me perguntando isso? — Sophie questionou,
assustada com a capacidade da mulher de enxergar dentro dela.
— Porque às vezes eu ajudo — respondeu a mulher. — Você tem
uma arma poderosa em sua posse. Mas é preciso coragem para
empunhá-la. Muita coragem. Você é tão corajosa assim?
O coração de Sophie disparou.
— Que arma? — perguntou ela, olhando em volta. — Cadê?
A mulher riu sem alegria.
— Você ainda não sabe?
— Não, eu não sei. O que é essa arma? Diga-me, por favor.
A empolgação de Sophie cresceu com a ideia de ter algo,
qualquer coisa, para usar contra o Rei dos Corvos.
A mulher deu um passo para trás, balançando a cabeça.
— Você deve descobrir por si mesma.
— Não, espere! Diga-me! Você disse que ajudava! — Sophie
gritou, em aflição.
A mulher sorriu tristemente. Sophie viu que seus dentes eram
pretos.
— Às vezes, mas nem sempre.
Então a mulher se virou e pôs-se a caminhar para dentro da
Floresta Sombria. Deu só alguns passos e já estava desaparecendo
na escuridão.
— Não! — gritou Sophie, desesperada para mantê-la ali, para
descobrir sobre a arma.
Sophie correu atrás dela, estendeu a mão. Quando sua mão
tocou no braço da mulher, ela sentiu um choque de dor percorrer
todo o seu corpo. Cambaleou para trás, olhos fechados, ofegante.
Quando abriu os olhos, a mulher havia sumido e ela estava
sozinha. Zara saiu correndo da floresta e ficou ao lado dela,
abanando o rabo.
Sophie pressionou uma mão na testa.
— Não tem ninguém aqui — disse ela, com um tremor na voz.
Ela se perguntou se seu coração defeituoso a estava fazendo
alucinar.
— Sophie! — gritou uma voz abafada. — Sophie, cadê você?
Era Will. Ele estava caminhando em direção à floresta, tentando
ficar o mais quieto que podia, para não alertar ninguém que por
acaso estivesse passando pelo cemitério.
— Estou indo! — Sophie gritou de volta, levantando-se e olhando
ao redor mais uma vez. — Eu a imaginei? — ela sussurrou. — Só
posso ter imaginado.
Mas, enquanto se apressava para encontrar Will, sentiu algo
úmido em sua mão direita, aquela que ela usou para tocar a mulher.
Ela a virou e mordeu o lábio.
Sua palma estava manchada de sangue.
SESSENTA E UM

E . As corujas estavam à espreita,


piando baixinho enquanto voavam sobre o mausoléu. Os ratos
corriam em seus cantos escuros.
O lugar parecia mais uma mansão do que uma tumba. Tinha tetos
altíssimos, bancos de pedra e até uma lareira para funerais de
inverno.
Arno acendeu uma pequena fogueira e as chamas afastaram o
frio. Sophie estava aquecida e segura; o estômago cheio. Will tinha
feito um delicioso jantar de coelho com azedinha selvagem. Ela
deveria ter dormido há muito tempo, mas não conseguiu. Estava
sentada em seu saco de dormir, com os braços em volta das
pernas, o queixo sobre os joelhos, olhando para o fogo, pensativa.
Ela limpara o sangue de sua mão antes que Will percebesse e
cuidou do corte longo e fino em sua palma assim que voltou para
dentro do mausoléu, mas a imagem da mulher e as coisas que ela
dissera a estavam assombrando.
Arno estava talhando a figura de uma raposa com sua faca. Will,
estendido em seu saco de dormir, olhava para o teto de mármore
esculpido com figuras de anjos e santos.
— Devemos chegar a Nimmermehr em dois dias, se
estabelecermos um bom ritmo — disse Arno, tomando um gole de
conhaque de um frasco.
Nem Sophie nem Will responderam.
— O que há de errado? Alguém morreu? Hehe — disse Arno,
olhando em volta para todos os von Stauffenzee, cujos bustos
ficavam em pedestais e cujos nomes estavam gravados nas
paredes.
Ninguém respondeu a isso também, mas Will virou a cabeça para
Sophie.
— Por que você não está dormindo? A picada de escorpião está
doendo? — perguntou ele.
Sophie, ainda olhando para o fogo, disse:
— Não. É porque eles estão com dor. Porque estão sofrendo. E
famintos. E com frio. Porque não têm para onde ir — respondeu ela.
— Quem?
— Os soldados. Max. Os Becker.
— Você deveria dormir um pouco. Não pode fazer nada por eles
esta noite — disse Will.
Ela olhou para ele.
— Algum dia vou poder fazer alguma coisa por eles? —
perguntou Sophie, com dúvida na voz. — E se eu não conseguir?
Provavelmente não vou. E eu arrastei vocês dois para essa busca
inglória também. E, se algo acontecer com você, Will? O que será
de Oma e Gretta?
— E se algo acontecer a mim? — interrompeu Arno.
— Estou com medo — continuou Sophie. — Não por mim. Por
eles. Eu sou tudo o que eles têm. Eu — ela deu uma risada amarga.
— E não estou à altura da tarefa.
Fez-se silêncio. A maioria das pessoas o teria preenchido com
banalidades e promessas vazias de sucesso, mas Will e Arno não
eram a maioria.
— Se você não pode falhar, então não falhe — disse Will.
Sophie fechou bem os olhos.
— Não está ajudando, Will — disse ela.
— Ei, querem ouvir uma história? — perguntou Arno, tentando
amenizar o clima. — Ótimo! — disse ele, quando ninguém
respondeu. — Esta se chama “A Donzela na Torre”. — Ele respirou
fundo. — Era uma vez, uma garota que ouvia — começou ele. —
Ela ouvia todas as pessoas ao seu redor — pais, parentes, amigos
— quando falavam a ela sobre todos os perigos deste mundo e os
muitos males que poderiam acontecer a ela. Ora, só por se
aventurar na cidade ela poderia ser pisoteada por uma carruagem
descontrolada, carregada por um exército invasor ou cair no rio e se
afogar. Por outro lado, se ficasse em casa, um raio poderia atingi-la
e incendiá-la. Uma árvore poderia cair e desabar o telhado. A garota
tinha muito medo, medo de se aventurar, medo de ficar, medo de
fazer qualquer coisa. “Não se preocupe”, disseram as pessoas.
“Vamos mantê-la segura.” Todos carregavam tijolos pesados.
Disseram a ela para construir quatro paredes fortes ao seu redor.
Em seguida, entraram na fila e entregaram a ela seus tijolos, um
após o outro. “Bonecos”, disse o primeiro ao entregar o tijolo a ela.
“Sanguessugas”, disse um segundo. Esses tijolos foram seguidos
por outros: queijos azuis, dentaduras, piratas, pães mofados, a
peste. Um por um, a garota pegou os tijolos e os colocou em volta
de si mesma em um quadrado bem calculado. Ela acrescentou outra
camada e depois outra. Os tijolos pesados se trancaram uns nos
outros. Mais e mais alto ela construiu as paredes, ficando na ponta
dos pés, até que finalmente não conseguiu ir mais longe. A garota
sorriu quando terminou. Nada poderia entrar. Não através daquelas
paredes de tijolos resistentes. Mas a garota também não conseguia
sair. Ela construiu as paredes tão rapidamente que se esqueceu de
fazer uma porta. Estava a salvo de todas as coisas assustadoras do
mundo, sim. Mas também estava a salvo de outras coisas. Rosas.
Música. Pôr do sol. Pêssegos. Livros. Panquecas. E beijos. Ela
gritou para as pessoas que lhe entregaram os tijolos, mas elas
sumiram. Estava sozinha. Ninguém podia ouvi-la. Desesperada para
se libertar, a garota tentou escalar as paredes, mas só conseguiu
fazer suas mãos sangrarem.
— O que aconteceu com ela? — perguntou Sophie.
— Morreu de fome, lenta e dolorosamente, olhando para o céu
através do topo aberto da prisão feita por ela mesma.
Will disse, sonolento:
— Esse é o segundo pior conto de fadas que já ouvi.
— Que fim terrível — disse Sophie, jogando-se para trás no saco
de dormir.
— Não é? — Arno falou alegremente. — Adoro contos de fadas.
Eles não são de meias-palavras. Nada que a donzela temesse a
matou; o próprio medo, sim. Há uma lição nessa história.
— Sim, há: o medo é um péssimo arquiteto — Will murmurou.
— Não — disse Arno. — Não é isso. Vocês não veem? As
pessoas carregam os tijolos pesados com elas por toda a vida. Elas
se sobrecarregam. Entregam tijolos e sobrecarregam os outros.
Quando tudo o que elas precisam fazer é colocar os tijolos no chão.
— Então, o que fazemos? Não construímos nada? Vivemos numa
árvore? — Will perguntou.
— Como nos protegemos? — perguntou Sophie.
— Proteger-se? De quê? Dor? Sofrimento? Miséria? Perda? —
perguntou Arno.
— Sim — disse Sophie. — De todas essas coisas.
— Além disso, de chuva, neve e esquilos — Will acrescentou.
Então, ele puxou o gorro sobre as orelhas e se virou de lado.
Sophie se virou de lado também, de costas para Will. Havia meio
pé de espaço entre eles.
— Boa noite, Arno — disse ela. — Obrigada por uma história
verdadeiramente horrível.
— É um prazer — disse Arno, tomando mais um gole de
conhaque.
Logo a respiração de Will se equilibrou e se aprofundou. A de
Sophie também. Arno atiçou o fogo moribundo e continuou a talhar.
Enquanto a pequena raposa tomava forma em suas mãos, Sophie
se contraiu em seu sono. Estava sonhando. Com a garota isolada.
Em seu sonho, era ela quem estava dentro da torre. Mas os gritos
que ouvia não eram dela. Pertenciam ao seu povo.
Desesperada para ajudá-los, procurou uma arma em sua
pequena prisão — uma faca, uma espada, um arco e flecha,
qualquer coisa. Ela tinha uma arma. A mulher estranha e pálida
disse que sim. Então, qual era? Desesperada, ela cavou na terra e
agarrou os tijolos até que suas mãos ficassem rasgadas e
ensanguentadas, e, enquanto fazia isso, debatia-se em seu sono,
choramingando e gemendo.
Arno inclinou-se em sua direção para acordá-la. Mas não
precisou, pois Will, resmungando em seu sono, rolou de costas.
Sophie choramingou novamente.
— Shh — fez Will.
Ele se virou e jogou um braço sobre ela.
— Shh — fez ele de novo, sem acordar.
Sophie parou de se mexer. O corpo dela relaxou no dele, as
costas dela contra o peito dele. Zara se levantou de seu lugar perto
do fogo e caminhou até Sophie. Deu várias voltas e, em seguida,
cheirou os braços de Sophie, que estavam dobrados à sua frente.
Quando a cutucada não conseguiu fazer Sophie movê-los, Zara deu
uma patada neles. Sophie então ergueu um braço para afastá-la,
mas Zara rastejou embaixo dele e se acomodou contra o peito da
garota, que resmungou algo incompreensível e envolveu a
cadelinha com os braços. Um momento depois, todas as três
criaturas estavam dormindo profundamente.
Arno deu uma risadinha.
— Como nos protegemos? — sussurrou ele à luz das brasas
acesas. — Ah, Sophie. A resposta está bem na sua frente.
SESSENTA E DOIS

S .
O rosto de Will estava a apenas alguns centímetros do dela. Seus
braços estavam ao redor dela. Os da garota, pressionados contra
seu peito. Ela podia sentir que subia e descia, podia sentir seu
coração batendo.
Como isso aconteceu?, ela se perguntou, mas não se afastou. O
chão abaixo dela estava frio, e ele estava tão quente. O som de sua
respiração a acalmava. E o peso do braço dele em seu corpo era
doce.
A luz prateada do amanhecer banhou-se sobre ele, destacando
seus traços — suas maçãs do rosto salientes, a linha de sua
mandíbula, seu nariz com uma leve saliência na ponta. Seus olhos
fechados estavam na sombra, mas ela podia ver seus cílios
escuros, volumosos contra sua pele. A barba por fazer no queixo.
Seus lábios.
Seu coração ronronou suavemente. Ele é lindo, ela pensou. Tão
lindo.
Sophie sabia que precisava acordar. E sentar-se. Precisava se
lembrar de quem era, onde estava e o que precisava fazer. Mas
ainda não. Ainda não.
Só mais um minuto, ela pensou, aninhando-se mais perto dele.
Ela se permitiu imaginar como seria se sempre fosse assim com ele.
Como seria abraçá-lo do jeito que ele a estava abraçando. Correr os
dedos pelo cabelo dele, segurar seu rosto com as mãos, beijar seus
lábios.
Isso nunca aconteceria. A coroa lhe tomara a fazenda, matara
seus pais, deixara sua irmã doente. Como ele poderia perdoar tudo
isso? Perdoá-la? Ele odiava tudo o que ela representava, e ela
estava se apaixonando por ele.
Sophie suspirou. Seus olhos se fecharam.
E então Will a lambeu.
Do queixo, passando pela boca e pelo nariz até a testa, deixando
um rastro de baba em sua pele.
Sophie se engasgou. Ela se sentou, ereta.
— Will! Isso é nojento. Como… Como você pôde?
— O quê? — Will murmurou, abrindo os olhos.
— Você me lambeu!
Will piscou.
— Está louca?
E, então, aconteceu de novo. Uma longa língua rosa percorreu o
rosto de Sophie, da bochecha até a orelha. A lambida foi seguida
por um gemido. E, então, um latido. Era Zara que precisava sair.
— Me chame quando tiver café — disse Will, bocejando. — E
beba um pouco. Aí talvez você note a diferença entre mim e um
cachorro.
Ele se virou e fechou os olhos.
Sophie corou, envergonhada. Seu coração fez um barulho que
parecia uma roda soltando de um carrinho. Will puxou o cobertor
sobre a cabeça. Zara choramingou novamente. Ela caminhou até a
porta e voltou.
— Espere aí, garota. Estou indo — disse Sophie, pondo-se de pé.
Ela levaria Zara para a floresta.
O fogo estava queimando forte, alimentado com os galhos
recolhidos na floresta. Arno não estava à vista. Sophie foi até a
porta de ferro e viu que estava entreaberta. Cautelosamente, ela a
abriu. Rangeu alto.
— Você pode sair — disse Arno. — Não tem mais ninguém aqui.
Este é um cemitério solitário.
Ele estava a poucos metros de distância, de costas para ela,
observando um grupo de andorinhas voar. Sophie desejou-lhe bom-
dia e, então, ela e Zara correram para as árvores. Quando voltaram,
Arno estava falando com as andorinhas. Várias delas desceram
sobre lápides próximas. Inclinavam a cabeça para um lado e para o
outro, olhando para ele com seus olhos rápidos e curiosos.
— Você fala com elas tão gentilmente, tão calorosamente — disse
Sophie, juntando-se a ele. — Como se fossem crianças.
— São crianças. As andorinhas carregam as almas das crianças
mortas. Você não sabe disso? — perguntou ele. — Nunca as viu
voando? Tão diferentes de outros pássaros, voando de pura
felicidade. Exatamente como as crianças fazem. Você nunca se
perguntou sobre isso?
Sophie não respondeu. Porque, daí, todos os pássaros voaram de
seus poleiros de lápide ao mesmo tempo, cantando e chamando,
voando baixo, como crianças correndo juntas no campo. Seu
coração batia tão forte que ela pensou que fosse se despedaçar.
Nunca tinha visto nada tão bonito.
Uma andorinha pousou novamente. No topo de uma pequena
lápide. Sophie leu o nome gravado nela. Mattias Schmitt.
Ela se virou para Arno, chocada.
— Seu filho — disse ela.
Arno acenou com a cabeça.
— Vim saudá-lo. Ele tinha três anos quando morreu. Febre. Eu
era carpinteiro, mas não tinha trabalho. Todas as árvores em
quilômetros ao redor foram levadas pela coroa para construir
quartéis. Por isso, roubei um comerciante rico para pagar um
médico, mas era tarde demais.
Ele tocou a marca horrível na bochecha e disse:
— Matti morreu. Eu fui pego. A justiça da rainha foi cumprida.
O coração de Sophie deu um salto, enguiçou e depois voltou ao
ritmo.
— Ser pego, ser marcado… Nada disso me destruiu — continuou
Arno. — Só me deixou mais inteligente. Uma velha foi enterrada no
mesmo dia que Matti. Uma viúva rica. Foi colocada no chão com
uma libra de ouro sobre ela. Nunca ajudou ninguém quando estava
viva — ele sorriu. — Mas ajudou quando estava morta. Ajudou uma
criança que adoeceu após a morte de Matti. Assim como muitos
outros que estão aqui. A vida pode ser tão fria, tão insensível. Mas
os mortos? Ah, os mortos ficam felizes em ajudar.
Sophie lembrou-se de como Arno colocou a bolsa de joias em sua
mão para entregá-la aos refugiados.
— Você dá o dinheiro, não é? — disse ela. — Você o usa para
ajudar as pessoas.
Arno ficou em silêncio por um momento. Ele e Sophie observaram
os pássaros voando alto acima deles. Ela se lembrou de suas
palavras duras nas criptas de São Sebastião, quando viu o que
havia nas sacolas e percebeu como Arno conseguira aquelas
coisas. Ela sabia o que era ser julgada.
— Eu sinto muito, Arno — Sophie disse.
Arno virou-se para ela.
— Você quer encontrar seu coração, garota? — ele perguntou
baixinho. — Veja uma criança morrer por falta de algumas moedas.
Faça isso e você poderá começar a entender algumas coisas, como
a diferença entre um roubo e um crime.
Ele foi embora, passando pelas lápides, de volta para dentro do
túmulo. A andorinha voou da lápide e pousou no ombro de Sophie,
gorjeando para ela, então decolou novamente.
Enquanto observava o pássaro ir embora, Sophie pensou em
muitas coisas. Sete irmãos, antes estranhos para ela, salvaram sua
vida. O pequeno Mattias, morto sob seus pés, e a doente Gretta,
que logo se juntaria a ele. Um ladrão de túmulos com um saco de
joias empoeiradas e um coração de ouro puro. Um garoto bonito
que lhe contava coisas bonitas e a fazia acreditar nelas. Outro
garoto, que estava calado e estranho, mas aqui. Com ela. Quando
tinha todos os motivos para não estar.
O amor dá medo.
É mais corajoso do que generais, mais forte do que fortalezas.
Abre sepulturas e puxa anéis de cadáveres. Senta-se durante a
longa e solitária noite com uma criança doente. Fabrica corações
com pecinhas enferrujadas e os faz bater, não importa quantas
vezes seja partido.
— O café está pronto! — berrou Arno da porta da tumba. —
Venha tomar o café da manhã, Sophie. Precisamos pegar a estrada.
Ainda falta muito para Nimmermehr.
Os três comeram e depois empacotaram suas coisas. Arno
trancou a cripta, e eles partiram. Zara correu à frente deles,
desviando-se da grama para perseguir esquilos.
Enquanto Sophie caminhava, fechando a retaguarda, ela
observava Will. Um rei poderoso tomou meu coração, ela pensou.
Mas um garoto sem dinheiro o roubou de volta.
Will não sabia. Ele não sabia que tinha dormido com o braço em
volta dela. Que eles respiraram a respiração um do outro a noite
toda. Que ela desejou dele mil coisas impossíveis.
Ele não sabia.
E nunca saberia.
Pois o amor é terrível, e Sophie está assustada.
Quando os três deixaram o cemitério e entraram na Floresta
Sombria mais uma vez, um corvo pousou em um galho alto.
Ele inclinou a cabeça de um lado para o outro, observando
Sophie. Viu tristeza em seus ombros. Incerteza na maneira com que
juntava as mãos. Viu desejo em seus olhos.
Sacudiu a cabeça. Como se conhecesse seus pensamentos.
Como se conhecesse seus medos.
E, então, silenciosamente, ele voou para longe. Rumo ao oeste,
na luz cinzenta do amanhecer.
Em direção a Nimmermehr.
SESSENTA E TRÊS

OR C .
Seu casaco esvoaçava atrás dele como fumaça enquanto ele
caminhava pelos aposentos da rainha.
— A princesa está se tornando uma heroína para seu povo —
disse ele.
— Meu povo — disse Adelaide.
— Não por muito tempo. Em cada praça do mercado, em cada
taverna e prefeitura, as pessoas falam sobre uma princesa rebelde,
um anjo vingador que voltou dos mortos para ajudá-los. E você? —
Ele apontou um dedo em garra para ela. — Você não faz nada!
— Isso não é verdade! Eu tenho um príncipe e um capitão da
guarda procurando por ela. Tentei matá-la. Duas vezes!
— E falhou nas duas vezes — disse Corvus.
Ele enfiou a mão no casaco, tirou alguma coisa dos bolsos e
colocou sobre a mesa.
Adelaide ergueu uma sobrancelha.
— Uma maçã? — disse ela.
— Uma maçã envenenada — disse o rei. — Ela está se
aproximando de Schadenburg. Vá até lá. Coloque-a ao seu alcance.
— Como? Ela vai tomar cuidado com estranhos agora. Não vou
conseguir convencê-la a pegar nada de mim de novo.
— Você não precisa. Ela vai pegar por si mesma.
Adelaide hesitou, tomada pela dúvida.
— Ela está ficando forte, Corvus — disse ela por fim. — Talvez
mais forte do que qualquer um de nós.
Uma raiva letal flamejou nas profundezas dos olhos escuros do
rei. Ele acenou com a mão na frente do espelho. Uma imagem girou
e tremeluziu na superfície. Ele ficou mais irritado.
— Olhe, Adelaide — ordenou. — Você é forte. Esqueceu?
Adelaide olhou para o espelho e viu uma menina de doze anos.
Ela corria por um longo corredor. Seu cabelo estava solto. Seus
olhos, cheios de medo. O sangue cobria seu rosto. Escorria pela
frente de seu vestido.
Com um grito, Adelaide afastou-se do espelho, incapaz de
suportar a imagem e as lembranças que ela trazia.
— Você sobreviveu naquele dia — disse Corvus. — Eu a ajudei.
Nunca abandonei você. Nem uma vez em todos esses anos. E
agora estou avisando… Esta é sua última chance.
Adelaide irritou-se com suas palavras.
— Eu invoco você. Você serve a mim — ela rebateu com
veemência. — É bom se lembrar disso.
O Rei dos Corvos sorriu friamente.
— Tem certeza disso? — zombou ele.
E, então, ele se foi.
Adelaide foi até o espelho. Tocou sua borda dourada. Era antiga.
Estivera no palácio de seu pai por séculos. Enquanto ela olhava em
suas profundezas, a garota apareceu novamente. Era apenas uma
criança. Sozinha. Medrosa. Girando em um círculo frenético.
Adelaide observou a garota se olhando no vidro prateado. Ouviu o
nó em sua garganta, os soluços torturantes. Eu não sei o que
fazer… Me ajudem… Alguém, por favor, me ajude…
O Rei dos Corvos ouviu suas súplicas. E respondeu. Ele foi o
único que o fez.
A garota pressionou a palma da mão no vidro. Adelaide fez o
mesmo. Então, ela se virou e pegou a maçã.
SESSENTA E QUATRO

H cadáver num poste de


madeira.
Sua cabeça caiu para frente. Um braço oscilou frouxamente ao
lado do corpo. O outro, ainda preso ao mastro, apontava para o
leste — o caminho de onde Sophie, Will e Arno tinham vindo.
Como se estivesse nos dizendo para voltar, Sophie pensou,
inquieta.
Eles passaram pelo espantalho, por uma igreja em ruínas e um
grupo de casas precárias. Cortinas sujas tremiam nas janelas;
rostos preocupados surgiram atrás delas. Cães magros latiam nos
portões. Crianças magras, com cabelos escorridos e olheiras,
ficavam paradas nas portas. Pareciam ter perdido a cor, como
roupas lavadas com muita frequência.
Sophie e seus amigos estavam nos arredores de Schadenburg,
uma velha cidade murada, a última na estrada para Nimmermehr.
Teriam de acampar na floresta por mais uma noite, e Arno queria
comprar os ingredientes para uma boa ceia.
— Não consigo mais comer coelho — disse ele. E, então, contou
todas as coisas que iriam comprar: — Uma garrafa de um bom
vinho, três bifes, pão fresco, manteiga, batatas para assar na brasa,
queijo e frutas.
— Você faz soar como a Última Ceia — Will resmungou.
Foi a primeira coisa que dissera em horas. Ele estava mais quieto
do que o normal desde que deixaram a tumba dos von Stauffenzee.
— Pode ser — disse Arno filosoficamente. — Então vamos pegar
um bolo de chocolate também. Eu conheço uma casa de penhores
na aldeia. Vou vender ao dono um ou dois anéis.
Will se ofereceu para penhorar as pérolas que Oma lhe dera, mas
Arno não quis nem ouvir falar disso. Eles continuaram caminhando
e, alguns minutos depois, estavam se aproximando do portão leste
da cidade. Uns cinco metros antes disso, porém, Will parou.
— Eu preciso contar uma coisa… — disse ele a Sophie.
Sophie olhou para ele interrogativamente. Will abriu a boca,
depois fechou de novo, fazendo uma careta. Sophie sabia que ele
não era muito falador. Podia ver que ele estava lutando para
pronunciar as palavras.
— Eu não devia ter dito o que disse. Lá no acampamento dos
soldados — ele finalmente deixou escapar.
Arno olhou para os dois, sua curiosidade aguçada.
— O que você disse? — perguntou ele, aproveitando o intervalo
para tomar um gole no cantil.
— Ele disse que me odiava — respondeu Sophie, estremecendo
um pouco com a lembrança.
Arno cuspiu sua água.
— Você disse o quê?
Will balançou a cabeça, claramente chateado.
— Não, não! Desprezava. Eu disse que a desprezava.
— Ah, claro, então está tudo bem — disse Arno, bufando.
— Sinto muito, Sophie. Eu a confundi com todas as outras
pessoas do palácio. Você não é nada parecida com a rainha — Will
disse seriamente.
— Exatamente o que toda garota quer ouvir, que ela não é nada
parecida com uma tirana maluca — disse Arno.
Will olhou profundamente para Sophie. Ela poderia dizer que
esperava que suas palavras tornassem as coisas melhores. Mas,
não. Na verdade, elas a machucaram mais.
Ele viu sua expressão infeliz e empalideceu.
— Eu disse alguma coisa errada? — perguntou, ansioso.
Sophie sorriu tristemente para ele.
— Você está tentando se sentir melhor, Will, porque acha que eu
vou morrer logo. É por isso que você está me dizendo essas coisas.
Porque você pode não ter outra chance e quer limpar sua
consciência enquanto pode.
Will pareceu magoado.
— Não, não é essa a razão — disse ele com agilidade. — Não
mesmo. Veja, é como Oma disse… Você, você é uma princesa…
Arno fez um gesto para que ele se apressasse.
— E eu? Eu, eu… Bem, eu não sou…
— Não é o quê? Uma princesa? — indagou Arno.
— Sim — disse Will, olhando de Arno para Sophie, impotente. —
Não sou da realeza…
Suas palavras foram sumindo. Ele desviou o olhar, com as
bochechas vermelhas, sentindo-se derrotado.
Sophie quase teve dó dele.
Arno, não.
— Sophie, vamos continuar até a cidade — sugeriu ele, pegando-
lhe o braço. — E você, Will, cale a boca.
Os três atravessaram o portal em arco num silêncio
constrangedor e logo se encontraram na sinuosa rua principal. Era
dia de feira, e camponeses vinham vender seus produtos.
Sophie nunca tinha visto um lugar tão sombrio. Os edifícios que
ladeavam a rua principal eram feitos de pedra cinzenta. Eram altos e
tortos, e pareciam inclinar-se uns sobre os outros na estreita rua
principal, como se estivessem cansados. O povo vestia roupas de
tecido cinza e xales de lã cinza. Até seus rostos eram cinzentos.
Parecia que a aldeia e todos nela eram feitos de cinzas. Sophie
meio que esperava que um vento forte viesse e os levasse embora.
Agricultores muito rústicos e rudes trocavam repolhos e batatas,
galinhas cansadas e pequenas maçãs pontilhadas por moedas de
prata sujas. Homens esguios, de braços cruzados sobre o peito,
ficavam ali parados, carrancudos, nas portas de lojas e tavernas,
observando as pessoas passarem, às vezes balançando a cabeça,
às vezes cuspindo.
Corvos, empoleirados entre as chaminés, grasnavam
asperamente nos telhados. Alguns ficavam nos picos ou nas
cornijas olhando as pessoas na rua. Seus olhos recaíram sobre
Sophie.
— Odeio este lugar — disse Arno, puxando a gola do paletó em
volta do pescoço, embora não estivesse frio.
Ele encontrou a casa de penhores e conseguiu um bom preço por
um anel de esmeralda. Depois de dividir as moedas — e itens de
sua lista de compras — entre ele, Sophie e Will, Arno disse:
— Vamos nos separar, comprar nossos suprimentos e nos
encontrar no portão oeste em meia hora. Sairemos daqui mais
rápido assim.
Will e Sophie concordaram e os três seguiram caminhos
separados, com Zara trotando atrás de Sophie. Poucos minutos
depois, Sophie encontrou uma barraca de padeiro e comprou um
pão. Em seguida, encontrou uma confeitaria e comprou um pequeno
bolo de chocolate. A última coisa em sua lista eram frutas.
Conforme ela descia a rua sinuosa, parecia ficar ainda mais
estreita. Vitrines e compradores, carroças e carrinhos, tudo
aglomerado. Ela olhou para as montanhas de frutas e vegetais.
Eram a única coisa colorida na cidade sombria, mas até eles
pareciam desbotados. Ela queria comprar algumas maçãs, mas
pareciam estragadas e de aparência azeda.
Poucos minutos depois, Sophie se viu no fim da rua, no portão
oeste, e ainda não havia encontrado nada que valesse a pena
comprar. Enquanto se virava lentamente, procurando ver se Will ou
Arno já haviam chegado ao portão, de repente avistou uma mancha
vermelha brilhante contra o pano de fundo irrealmente cinzento.
Uma camponesa solitária, de bochechas vermelhas e sorriso nos
lábios, o cabelo enfiado sob um chapéu de palha, montara sua
barraca em uma rua lateral estreita. Estava vendendo as mais
perfeitas maçãs vermelhas e maduras. Sophie decidiu que
compraria da mulher. Ela ainda tinha tempo. Nem Will nem Arno
estavam à vista.
— Vamos, garota — disse ela para Zara.
As duas abriram caminho através do fluxo de pessoas até a
barraca.
— Três maçãs, por favor — disse Sophie, tirando uma moeda do
bolso.
— Só três? — perguntou a camponesa alegremente, enquanto
pegava o dinheiro de Sophie. — Claro, você nunca comeu as
minhas maçãs. Se tivesse comido, compraria uma dúzia. São tão
deliciosas. — Ela acenou com a cabeça para a pilha de frutas. —
Experimente uma. Por minha conta. Então me diga se você ainda
quer apenas três.
Sophie sorriu.
— Se a senhora insiste — ela disse.
As maçãs pareciam tão saborosas, e ela estava com um pouco de
fome. A dona da fazenda arrumou as frutas em uma pirâmide.
Sophie pegou a de cima, esfregou na camisa e depois a mordeu.
Estava crocante e ácida. O suco escorreu por seu queixo. Ela o
enxugou com as costas da mão.
— O que você acha? — perguntou a camponesa.
— É deliciosa — disse Sophie, dando outra mordida.
Mas não era. Não mais. De repente, ficou exageradamente doce.
— O que você acha? — perguntou novamente a camponesa.
Sophie tossiu. Ela não queria ferir os sentimentos da mulher.
— E-eu disse… É deliciosa… É…
Ela ofegou, depois tossiu de novo, tentando limpar a garganta.
— Não, sua idiota patética. O que você acha que está fazendo?
Viajando para Nimmermehr, para o castelo do Rei dos Corvos?
Você realmente pensou que poderia vencer um adversário como
ele?
Sophie virou a cabeça. Abriu os olhos. A camponesa ergueu a
cabeça. Sophie podia ver seus olhos azuis, seu sorriso cruel.
Adelaide. Um movimento chamou a atenção de Sophie. A maçã em
sua mão estava cheia de vermes. Com um grito de nojo, ela a jogou
no chão.
Vozes começaram a tagarelar com ela. Dezenas delas. Fraca…
Insensata… Não é forte o suficiente… Não é inteligente o
suficiente…
Foram as maçãs. Elas estavam todas sussurrando e sibilando,
murchando e desmoronando. A podridão escureceu suas cascas
antes vermelhas.
Sophie ofegou por ar, mas não conseguiu. O pedaço de maçã
estava preso em sua garganta. O pânico tomou conta dela. Ela
estava vagamente ciente de ouvir Zara choramingando.
Por favor, Sophie murmurou, o pânico transformando-se em
terror. Ela se virou, esperando acenar por ajuda para um comprador
que passasse. Mas não havia nenhum por perto. Estavam todos na
rua principal. Ninguém lançou um olhar em sua direção.
Sophie agarrou sua garganta. Sua visão estava escurecendo.
Zara latia loucamente.
— Não deve demorar muito. Só mais um minuto ou dois e tudo
estará acabado — disse Adelaide.
Sophie afundou na dura rua de paralelepípedos.
Outro rosto olhou para ela agora, o rosto de um homem — pálido,
com olhos frios e uma boca cruel.
— Você me reconhece, princesa? — perguntou ele. — Não? Bem,
não importa. Eu conheço você e acabei com você. Para sempre
desta vez. Tenho o seu coração. Em breve, terei todos os corações.
No instante em que a escuridão desceu sobre ela, varrendo seus
olhos como uma asa negra, Sophie percebeu que o conhecia. Era
Corvus, o Rei dos Corvos.
Ele é o vilão desta história. E muitas mais.
SESSENTA E CINCO

A numa cidade cinzenta e sem


coração, uma cachorrinha magra late freneticamente.
As pessoas se reúnem ao redor. Tentam acalmá-la, afastá-la do
corpo da menina, mas a cachorrinha se mantém firme.
Um homem e um rapazinho vêm correndo. Eles conhecem o som
do seu latido.
O garoto grita. Cai de joelhos. Chama pela garota. Bate em seu
rosto. Implora a ela.
Ele sabe o que aconteceu. Lembra-se do escorpião. Mas, desta
vez, a garota não está respirando. Desta vez, não há nada contra o
que lutar. Ele não vê a maçã comida pela metade, pois ela fora
chutada para baixo do carrinho por um pé descuidado.
O homem gira e gira em um círculo selvagem e furioso, com a
adaga na mão, procurando o assassino. Mas não havia nem sinal
dele. Apenas um carrinho de mão gasto, castigado pelo tempo e
enferrujado, com uma pilha de maçãs podres.
O garoto segura o corpo inerte e sem vida da garota em seus
braços e chora em seu pescoço.
E a cachorrinha magra levanta a cabeça e uiva.
Não são os objetos envenenados que nos matam.
Não são os envenenadores que são os assassinos. Somos nós.
Nós mesmos.
Ouvimos as cobras. Deixamos os escorpiões se aproximarem.
Acreditamos nos assobios, nos sussurros, nas palavras que nos
dizem tudo o que não somos e nunca seremos.
Pegamos a maçã vermelha brilhante que a rainha do mal oferece
e a mordemos.
O veneno pode ser extraído da carne, mas palavras envenenadas
se alojam no fundo dos nossos corações, onde nenhum antídoto
pode chegar.
Acima da triste cidade cinzenta, um bando de corvos subiu alto no
céu, gritando em tom de triunfo.
Seu mestre venceu. A princesa está morta.
SESSENTA E SEIS

U Will e Arno chegaram à


Toca.
Josef, que estava consertando uma ripa quebrada na cerca, viu-
os chegar. Ele não conhecia os dois homens, mas ergueu a mão em
saudação. Eles lhe deram seus nomes, e Josef se apresentou
também. Ele estava prestes a perguntar se estavam com sede, se
poderia pegar um pouco d’água para eles, quando seus olhos se
moveram para o cavalo que estavam conduzindo e para o embrulho,
cuidadosamente enrolado em um cobertor, que estava sobre a sela.
O martelo de Josef atingiu o chão com um baque surdo.
— Não — disse ele, como se pudesse recusar o que sabia que
estava por vir. — Não.
— Sinto muito — disse Will. — Sinto muito mesmo. Aconteceu em
Schadenburg. A caminho do castelo do Rei dos Corvos. Achamos
que ela gostaria de voltar aqui para a Toca. Ela nos contou sobre
vocês. Ela amava este lugar. Amava vocês.
Os outros irmãos se juntaram a Josef. Eles estavam com os olhos
arregalados, preocupados. Julius segurava sua tesoura de
jardinagem. Johann afiava um machado. Schatzi carregava uma
cesta de cenouras. Jakob tinha uma enxada nas mãos, que acabara
de consertar. Weber e Tupfen apareceram. Eles se perguntaram por
que Josef não tinha trazido uma bebida para os estranhos. Eles não
entendiam por que ele estava parado ali, com as mãos cobrindo os
olhos.
Mas, quando se aproximaram, viram que Will tinha se virado, sua
cabeça baixa, suas mãos juntas. Viram Arno tirando suavemente a
trouxa do cavalo. Ele a carregou pelo portão e entrou no quintal. Ao
fazer isso, o cobertor se abriu e eles viram que carregava o corpo de
uma garota. Da garota deles.
As pernas de Julius cederam. Ele se sentou com tudo num velho
toco. Johann lançou seu machado contra o tronco de uma árvore
com um grito angustiado. Josef e Jakob choraram.
Schatzi largou o cesto, tirou o corpo dos braços de Arno e deitou-
o no chão, sob os galhos de um carvalho. Ele beijou as mãos frias
de Sophie, acariciou sua face de alabastro.
— Por que você nos deixou, Sophie? Você estava segura aqui.
Jeremias e Joosts estão voltando com o seu coração. Eles estarão
aqui a qualquer momento. Eu sei que eles voltarão. Se você tivesse
esperado por eles…
— Vocês viram nossos dois irmãos? — Johann perguntou
esperançoso. — Voltando de Nimmermehr?
Arno abanou a cabeça. E Will contou a todos o que havia
acontecido, sua voz embargada de tristeza. Mais lágrimas vieram
enquanto ele falava. Os corações dos irmãos estavam partidos.
— Mas ela não parece morta — Schatzi disse quando Will
terminou. — Ainda tem um rosado na face pálida dela, está vendo?
Seus lábios ainda estão vermelhos.
— Não há respiração — Arno disse suavemente. — Não há vida.
— O coração dela está quieto — disse Will. — Eu o ouvi. Por
muito tempo. Até que o céu escureceu. Até que seu corpo esfriou.
Esperando que o coração de repente batesse, tique-taque… Trrr.
Clack. Qualquer coisa. Esperando que a luz em seus olhos
voltasse… Esperando poder ouvir sua voz novamente, ver seu
sorriso…
Sua voz falhou; ele não podia continuar.
Weber, com lágrimas prateadas caindo de seus muitos olhos, fez
uma pergunta em sua língua.
— Não, Weber, agora é tarde demais — Josef respondeu. —
Almas não ficam aqui por muito tempo depois de o coração parar.
Você tem de estar lá para capturar a alma rapidamente.
Depois, ele balançou a cabeça e disse:
— Ela deve ter um funeral, um enterro adequado.
— Não! Ela não pode ficar enterrada no chão! — gritou Schatzi.
— É frio e escuro e solitário, e ela… Ela amava as flores e a luz do
sol. Amava o canto da cotovia e o grito dos grilos. Ela não será
enterrada. Eu não vou permitir!
— Tudo bem, Schatzi, tudo bem — Julius acalmou o irmão, dando
tapinhas em suas costas.
— Ela não será enterrada — Schatzi insistiu em prantos.
— O que vamos fazer, então? — Johann perguntou.
Todos eles ficaram em silêncio por um momento; então Julius
disse:
— Faremos para ela um caixão de quartzo das minas e o
poliremos até ficar transparente como vidro. Com alças de ouro.
Vamos colocá-lo sob as bétulas prateadas que ela tanto amava. As
chuvas da primavera vão passar por cima dela. O sol de verão vai
brilhar sobre ela. As folhas de outono vão beijá-la. A neve vai girar
em seu abraço.
Schatzi assentiu com a cabeça. Arno disse que os ajudaria. E Will
olhou para o céu, os punhos cerrados.
Johann percebeu e caminhou até ele.
— Você a amava — disse ele. — Ainda ama. E ela amava você?
— Ela era uma princesa. Eu sou um arqueiro.
— Isso não responde à minha pergunta.
— Eu tenho de ir — Will disse bruscamente.
— Ir aonde? Fique conosco. Por esta noite, pelo menos. Você
deve estar muito cansado.
Will sacudiu a cabeça. Suavemente, ele disse:
— Tenho pássaros para caçar.
Ficou olhando para a princesa morta, as franjas de seu cabelo
mal cortado descansando sobre seu rosto, suas mãos graciosas
sobre o peito, seus lindos lábios tão carnudos e vermelhos. Ainda
intocados pela morte. Então, ele abaixou a cabeça para os irmãos e
para Arno, e se foi, misturando-se às sombras da floresta tão rápida
e silenciosamente quanto as criaturas que viviam lá.
Uma brisa passou pelos galhos dos pinheiros, fazendo-os
suspirar.
E a chuva caiu mais forte, como se a própria Floresta Sombria
estivesse chorando.
SESSENTA E SETE

O dois dias sem pausa para


fazer o caixão de Sophie.
Eles cortaram enormes placas de quartzo das profundezas de
suas minas, poliram-nas até ficarem transparentes como água,
enfeitaram-nas com ouro e forraram o caixão com a mais macia
seda de aranha. Em seguida, colocaram-no entre as bétulas de
prata em um esquife de madeira entalhada.
Apenas alguns momentos antes eles tinham colocado Sophie
para descansar nele eternamente.
Tupfen a vestira com calças macias de pele de cervo e uma túnica
de linho branco, ambas feitas por Schatzi. Todos se revezaram
bordando a túnica com imagens das coisas que Sophie amava —
rosas, Zara, ameixas e bolo floresta negra. O cabelo de Sophie
estava bem penteado. A franja preta penteada sobre sua testa.
Havia ainda um tom rosado em sua face.
— Como ela pode estar morta? — Schatzi perguntou-se, olhando
para ela.
— Schatzi, ela está. Você tem de aceitar isso.
— Mas olhem para ela. Que morto fica assim? Pessoas mortas
ficam duras. E quebradiças.
— Você acha que são como pães amanhecidos? — disse Julius.
— É alguma magia sombria do Rei dos Corvos, eu acho. Ele não
queria que ela fosse enterrada. Queria que fosse vista, para servir
de aviso — disse Arno, que havia ficado com os irmãos e ajudado a
construir o caixão.
— Por que ela fez isso? Por que ela foi atrás do coração? —
perguntou Josef, com a voz embargada.
Jakob sacudiu a cabeça.
— As pessoas precisam seguir seus corações, ou morrem muito
antes de eles pararem de bater.
Os irmãos, todos parados ao redor do caixão em semicírculo, com
os corações pesados de tristeza e os olhos marejados de lágrimas,
não viram o menino vindo atrás deles. Não estavam cientes de sua
presença até que ele falou.
— Por favor, senhores… Vocês poderiam me dar um pouco de
comida?
Todos se voltaram para ele. Ele era um menino pequeno, não
mais do que dez anos.
— Quem é você, criança? — Jacob perguntou. — De onde você
veio? — Ele se virou para Weber e Tupfen: — Peguem um prato de
comida para ele, por favor. E um copo de leite.
Enquanto os dois saíam apressados, o menino disse:
— Meu nome é Tom. Eu moro na floresta.
— A Floresta Sombria não é lugar para crianças. Onde fica sua
casa?
— Eu fugi da minha casa. É um lugar cruel. A floresta é mais
segura. Ouvi dizer que pessoas gentis moravam aqui e esperava
que vocês pudessem me dar um pouco de pão. Não preciso de
muito e não estou querendo esmola. Vou trabalhar para ganhar o
meu jantar.
Tom falou virilmente, erguendo-se em toda a sua pequena altura.
Josef estremeceu ao olhar para a criança. Ele era pouco mais do
que pele e osso. Seu rosto e suas mãos estavam limpos — ele
obviamente os lavara em um riacho ou lagoa —, mas sua roupa
estava imunda. Seu cabelo, todo emaranhado.
— Trabalhar para o seu jantar? — Josef disse, balançando a
cabeça. — Criança, você tem sorte de não virar o jantar! Há ursos
na floresta. E lobos.
— Nada pior do que tem no lugar de onde eu venho, senhor.
Tom olhou para além de Josef, para o caixão de quartzo. O sol,
bem alto no céu, refletia sobre a transparência, tornando impossível
ver o corpo dentro dele.
— O senhor perdeu alguém — disse ele. — Eu sinto muito.
Também perdi uma pessoa há alguns meses. Os adultos sempre
dizem que o tempo cura todas as feridas. Talvez as de fora. As de
dentro só ficam maiores.
O olhar de Tom vagou sobre o esquife e o chão ao redor dele,
coberto de pétalas de rosa. Ele deu alguns passos desajeitados e
hesitantes para frente, apertando os olhos para ver o caixão. Ainda
não conseguia distinguir quem estava deitado nele, aninhado
profundamente na seda da aranha, mas viu o que estava embaixo.
A cadelinha se recusava a sair de perto do corpo de Sophie. Ela
estava deitada sob o esquife, a cabeça apoiada nas patas
dianteiras, os olhos fechados, sofrendo.
— Zara? — disse Tom, espantado. — É você, menina?
Ao som da voz do menino, a cadelinha abriu os olhos e ergueu a
cabeça.
— É você! Você está viva — Tom exclamou. — Você se lembra de
mim?
Zara bateu o rabo no chão.
— Você se lembra, sim. — Enquanto ele falava, o sol se
escondeu atrás de uma nuvem, e ele viu quem estava no caixão.
— É… É a minha amiga. Essa é a princesa! — disse Tom. — É
ela com certeza, mas como veio parar aqui? Ela foi dilacerada por
lobos. Foi isso que o caçador disse. — Ele pressionou a palma da
mão na cabeça, confuso. Então as lágrimas brotaram de seus olhos.
— Ela parece viva. Como se nunca tivesse me deixado. — Ele
enxugou os olhos na manga imunda. — Eu gostaria que não
tivesse. Ela era minha única amiga. Tenha cuidado, Tom.
Desacelere, ela me diria. E sempre fazia eu me sentir melhor
quando outras pessoas zombavam de mim…
Tom deu mais alguns passos em direção ao caixão de Sophie. Ele
estava cansado e com fome, sentindo dores nas terríveis cicatrizes
nas costas, e tropeçou, como sempre acontecia. Seu pé ficou preso
em um pedaço de grama. Ele perdeu o equilíbrio e caiu de cabeça.
Bem no caixão de quartzo.
SESSENTA E OITO

T . O caixão pesado estremeceu,


balançando ligeiramente. Zara saiu correndo de baixo dele, o rabo
para baixo. O esquife de madeira rangeu. Jakob agarrou Tom e
puxou-o para longe do perigo no momento em que uma rachadura
se abriu na madeira. Um instante depois, todo o esquife desabou, e
o caixão caiu no chão e se espatifou.
O corpo de Sophie estava virado para baixo nos escombros.
Toda a cor sumiu das bochechas de Tom.
— Me desculpem — gritou ele, encolhendo-se. — Me desculpem!
Sou tão desajeitado. Todo mundo diz isso. Mas eu não quis… Eu
não…
Josef viu que a pobre criança estava apavorada e colocou a mão
gentilmente em seu ombro.
— Calma, Tom; está tudo bem. Não se desespere. Vamos
consertar. Por favor, não…
— Josef. Minha nossa, Josef, veja!
Foi Schatzi quem falou. Ele estava parado como uma árvore,
apontando para o caixão despedaçado.
O cadáver que estava deitado imóvel segundos atrás agora tossia
e arfava. Rolou para o lado e cuspiu o que parecia ser um pedaço
de maçã.
Em seguida, sentou-se, olhou atordoadamente ao redor e disse:
— Por que todo mundo está chorando?
SESSENTA E NOVE

S - .
Schatzi colocou a mão sobre a boca.
— Sophie, minha querida menina… Você está viva.
— Como foi que cheguei aqui? — Sophie perguntou, com a voz
fraca. — Como…
Uma onda de tontura, pegajosa e nauseante, tomou conta dela.
Ela cambaleou e fechou os olhos com força. Arno a pegou pelo
braço e a conduziu até um banco de madeira que os irmãos tinham
colocado perto do caixão. Depois de um momento, a tontura
passou. Sophie abriu os olhos.
Essa foi a deixa dos irmãos. Todos correram até ela, beijando seu
rosto ou o topo de sua cabeça, segurando suas mãos. Tupfen e
Weber juntaram-se a eles.
— Seus amigos, Arno e Will, trouxeram você aqui — Julius disse
a ela. — Você se lembra de alguma coisa?
Sophie contou a eles sobre a dona da fazenda e a maçã. E um
homem com olhos negros e frios.
— Era ele, o Rei dos Corvos — disse ela, gelada pela lembrança.
— Ele disse que tinha acabado comigo.
Ela parou de falar por um momento, tentando se lembrar de seus
últimos momentos no mercado.
— Mas, não… A maçã deve ter ficado presa na minha garganta.
Eu não engoli.
— Acho que foi isso que salvou você — disse Arno. — Só tinha
veneno suficiente no seu corpo para desacelerar seu coração e
fazê-la dormir, não o suficiente para matá-la.
— Quanto tempo se passou desde que estive em Schadenburg?
— perguntou ela.
— Uma semana… eu acho… — Johann disse.
— Não, oito dias — rebateu Arno.
— O quê? — Sophie disse, alarmada. Ela ficou de pé e
perguntou: — Onde estão as minhas coisas? Minha mochila… Meu
cantil…
— Em casa — disse Johann. — Sophie, sente-se. Você ainda
está muito pálida.
Sophie balançou a cabeça.
— Eu preciso delas — ela falou. — E de um pouco de comida
também, se puderem me dar.
— Por quê? O que pretende fazer? — Jakob perguntou.
— Vou ao castelo do Rei dos Corvos.
— Depois do que aconteceu? Está louca? — Jakob gaguejou.
— Eu tenho que fazer isso. Estou ficando sem tempo — disse
Sophie, sua voz muito firme. — Só me resta uma semana, talvez
nem mesmo isso, antes que meu coração pare de bater. E leva
muito tempo apenas para chegar a Nimmermehr.
— Dá para chegar em seis dias, se nos apressarmos — disse
Arno.
— Mas, Sophie, você não precisa ir — disse Schatzi. — Jeremias
e Joosts voltarão com o seu coração a qualquer momento.
— Já se passaram semanas, Schatzi — disse Sophie, o mais
gentilmente que pôde. — Semanas. Algo deve ter acontecido com
eles, caso contrário, já estariam de volta. Se eu puder encontrá-los
no meu caminho e ajudá-los, farei isso.
Schatzi baixou a cabeça e engoliu em seco.
— Onde está Will? — Sophie perguntou, procurando por ele.
— Foi embora — disse Arno. — Acho que percebeu que não
adiantava ficar por aqui, com você morta.
O coração de Sophie afundou com um som suave e triste, quase
como um suspiro.
— Aonde ele foi? — perguntou ela. — Para casa, encontrar Oma
e Gretta?
— Não tenho certeza — respondeu Arno. — Ele disse algo sobre
caçar pássaros.
Sophie não entendeu.
— Isso não faz sentido, Arno. Ele nunca caça pássaros. Ele adora
pássaros.
Arno deu de ombros.
Eu voltarei para a cabana de Oma um dia, Sophie disse a si
mesma. Assim que eu tiver recuperado meu coração e minha coroa.
Para dizer obrigada. E adeus. Não mudaria nada entre eles. Ela
sabia disso. Não o faria gostar dela do jeito que ela gostava dele.
Mas ela lhe devia seus agradecimentos e devia a si mesma vê-lo
uma última vez.
— Sophie — disse Johann. — Se Jeremias e Joosts estão… Se
estão realmente perdidos… Se não conseguiram enfrentar o Rei dos
Corvos… O que faz você pensar que conseguirá?
— Uma menina doente. Um menino cego. Uma velha em um
carrinho de mão. Crianças órfãs. Um homem com um R gravado em
seu rosto. Eles me fazem pensar que vou conseguir — respondeu
Sophie, olhando Johann, seus irmãos e Arno. — Eu sei o que o Rei
dos Corvos pretende fazer agora: conquistar o coração do meu
povo, de todos eles. Ele mesmo me disse. Pouco antes de o veneno
fazer efeito. Mas não vou deixar. Juro que não vou.
Havia uma urgência na voz de Sophie e uma nova determinação.
Todos os irmãos ouviram. Arno também.
Weber, que havia saído por um momento, agora voltava com dois
sanduíches de schnitzel, uma jarra de água e dois copos. Sophie
bebeu até se fartar e pegou um sanduíche. Ao mordê-lo, viu a
aranha levar o outro sanduíche embora e entregá-lo a um garotinho
que estava se afastando do grupo.
— Tom, é você? — disse ela, abrindo um sorriso de espanto.
Ela largou o sanduíche, correu até ele e o abraçou. Parecia estar
abraçando um feixe de gravetos.
— O que você está fazendo aqui? — ela perguntou ao soltá-lo.
— Eu fugi. Semanas atrás. Depois que… Depois que a rainha me
chicoteou.
— Sinto muito. Foi tudo culpa minha.
— Você salvou uma vida, Princesa Sophie. Não há culpa nisso.
— Você está aqui sozinho desde então?
Tom assentiu. Sophie, percebendo que o menino magro e faminto
segurava seu sanduíche por educação, em vez de devorá-lo logo,
levou-o até o banco e disse-lhe para comer. Eles comeram seus
sanduíches juntos.
Quando terminaram, Sophie foi até o chalé e rapidamente juntou
suas coisas. Arno também juntou as suas. De jeito nenhum ele a
deixaria ir sozinha. Ele ainda tinha algumas joias e as usaria para
comprar cavalos da primeira fazenda por que passassem.
Cavalgando, a viagem levaria menos dias. Weber embalou comida
para eles e, então, Sophie deu um beijo de despedida nos irmãos.
Eles queriam ir também, mas ela não quis nem pensar nessa
possibilidade.
— Vocês são a minha família agora — ela disse. — Preciso que
estejam aqui quando eu voltar.
Depois, virou-se para Tom.
— Estou deixando Zara aqui. Você vai cuidar bem dela por mim?
— Vou, sim. Eu prometo — Tom disse.
E, então, Sophie e Arno correram para a trilha. Os irmãos a
observaram partir, com preocupação estampada em seus rostos.
— Adeus, princesa! — Tom gritou atrás dela.
— Eu sabia que ela não estava morta — disse Schatzi,
enxugando os olhos. — Eu sabia que ela não tinha morrido.
— Acho que morreu, sim — Johann disse.
— O quê? Como assim, morreu? — Julius perguntou.
Johann balançou a cabeça.
— Do que você está falando? — Josef disse. — Ela acabou de se
levantar, comer um sanduíche de schnitzel e ir embora para a
floresta!
Johann não respondeu por um momento. Ele ficou no portão,
observando enquanto Sophie ficava menor e menor até desaparecer
de vista na Floresta Sombria. Ela parecia mais alta para ele. Mais
ousada. Mais temível.
— A princesa morreu em Schadenburg — disse ele com um
pequeno sorrisinho de orgulho. — E uma rainha nasceu.
SETENTA

S . Ele era um garanhão, jovem e forte.


O melhor cavalo que o ouro do cemitério conseguiu comprar.
Arno estava bem atrás dela em uma égua de olhos selvagens. Os
cavalos eram rápidos e chegaram a Nimmermehr em quatro dias.
Com os cascos batendo, galoparam entre as árvores densas agora,
atirando torrões de terra para trás. O sol já estava se pondo. Sophie
sabia que ela e Arno precisavam chegar ao castelo, para então
encontrar a entrada do túnel, tudo rapidamente. Eles nunca o
localizariam no escuro e não podiam se dar ao luxo de esperar até
de manhã. Se o cálculo de Johann — feito quando ele disse a
Sophie pela primeira vez que seu coração era um relógio — estava
correto, ela tinha dois dias antes que parasse. Apenas dois dias
para recuperar seu coração, e, de alguma forma, encontrar alguém
com uma magia forte o suficiente para colocá-lo de volta em seu
corpo.
Mais ou menos alguns dias, Johann acrescentou à sua estimativa.
Sophie rezou muito para que o coração dentro dela lhe desse
aqueles dias a mais.
O caminho da floresta serpenteava por um vale, achatava-se e
depois subia novamente, estreitando-se até pouco mais que uma
trilha de cervos. Sophie e Arno tiveram que diminuir a velocidade à
medida que o terreno ficava mais íngreme e traiçoeiro. Finalmente,
eles chegaram ao topo da colina. Sophie parou seu cavalo no topo.
Seu coração bateu forte quando avistou o horizonte.
À distância, ao norte, um castelo erguia-se em uma clareira,
cercado por um fosso profundo. As pedras de suas paredes altas
haviam sido escavadas em granito preto. Tochas ardiam ao longo de
suas muralhas. Acima delas, as torres se erguiam tão afiadas e
pontiagudas que parecia que iam furar o céu e fazê-lo sangrar.
O olhar de Arno varreu o castelo, o terreno ao redor e depois o rio
que corria a oeste dele.
— A entrada do túnel deve ser perto do rio e sob a cobertura da
Floresta Sombria, o que é uma coisa boa. Podemos descer esta
colina, virar a oeste e ficar dentro da floresta. Não queremos pôr os
pés na clareira. — Ele acenou com a cabeça para o castelo. —
Quem sabe o que está nos observando?!
Sophie estalou a língua para seu cavalo, incentivando-o a
continuar. Arno foi atrás. Eles mal deram dez passos quando
ouviram um estrondo violento de estilhaços, como o som que uma
árvore faz quando tomba durante uma tempestade. E, então, uma
batida, profunda e estrondosa, que fez o chão tremer.
Sophie virou-se. Seu estômago deu um nó de medo. Uma criatura
vinha subindo o caminho atrás deles — um pesadelo vivo. Embora
fosse grande e desajeitada, corria rápido, usando os pés e as mãos.
O nó se apertou quando Sophie viu que era feita inteiramente de
galhos, com galhos quebrados como dentes e covas escuras como
olhos. Parou no meio do caminho, farejou o ar e rugiu. Um coro de
rugidos respondeu de volta.
— Arno, o que é isso? — Sophie sussurrou, as mãos apertando
as rédeas.
Seu cavalo tinha ouvido os rugidos também e estava dançando
nervosamente embaixo dela.
— Um waldwicht — disse Arno, simplesmente. — E ele está
trazendo os amigos dele. Não podem deixar a floresta. Vá para a
clareira, Sophie.
— Mas os guardas do castelo… Eles vão nos ver.
— Não temos escolha. Vá!
Sophie pressionou os calcanhares nos flancos do cavalo e o
animal disparou, galopando colina abaixo com as orelhas para trás.
Arno, com a espada desembainhada, estava tão perto dela que
Sophie podia ouvir a respiração do cavalo.
— Mais rápido! — gritou ele.
Sophie chutou seu cavalo. A criatura estava voando agora, mas
ainda não era rápida o suficiente. Sophie ouviu outro estrondo. O
waldwicht estava se aproximando deles. E, então, sem qualquer
aviso, ele estava lá, bem atrás de Arno, batendo suas garras letais
nas ancas de seu cavalo, tentando derrubar o animal. Arno puxou
as rédeas do cavalo, detendo-o. O cavalo empinou, girando sobre
as patas traseiras no momento em que o waldwicht atacou.
O movimento salvou o animal. E Arno também. As garras afiadas
e galhosas do waldwicht não acertaram o cavalo e avançaram
inofensivamente pelo ar. Arno ergueu a espada e atingiu o pescoço
do waldwicht com a lâmina, cortando sua horrível cabeça. Ele,
então, virou seu cavalo e o fez galopar, pois mais monstros estavam
logo atrás do morto.
Ainda brandindo sua espada, Arno avançou pelo caminho atrás
de Sophie. Segundos depois, eles romperam a linha das árvores e
dispararam para a clareira. Rugidos de raiva ecoaram atrás deles.
Sophie olhou para trás e viu uma dúzia de coisas furiosas na borda
da floresta, arrancando galhos de árvores, batendo os pés e
martelando o chão com os punhos.
— Foi por pouco — disse Arno enquanto eles diminuíam a
velocidade dos cavalos para um galope.
— Obrigada — disse Sophie, conseguindo falar entre arfadas. —
Você salvou nós dois.
Ela estremeceu ao pensar quão perto as criaturas haviam
chegado e o que aquelas terríveis garras teriam feito com eles.
— Por enquanto. Vamos… Estamos nos tornando alvos fáceis.
Vamos cortar até a borda da floresta. Acho que despistamos os
waldwichts.
Sophie lançou um último olhar para trás. Ao fazer isso, pensou em
Jeremias e Joosts. Será que eles tinham encontrado os monstros?
E sido capazes de escapar deles? Ou aqueles olhos terríveis e
vazios foram as últimas coisas que viram?
Arno virou o cavalo para a direita. Sophie o seguiu, e eles se
abaixaram sob a copa das árvores. Assim que ficaram escondidos,
diminuíram a velocidade dos cavalos e começaram a andar. Os
animais estavam sedentos. Espuma salpicava seus lábios.
— Temos de levá-los até o rio — disse Arno.
— É longe? — perguntou Sophie.
Ela perdera o senso de localização durante a fuga aterrorizante.
— Não deveria ser, se não me falha a memória.
Sophie se permitiu um pequeno suspiro de alívio.
— Que bom. Talvez o pior já tenha passado.
— Passado? — Arno ecoou com uma risada vazia. — Menina,
está apenas começando.
SETENTA E UM

S , afastando os galhos
com uma das mãos e conduzindo o cavalo com a outra.
A terrível previsão de Arno a enervou. A cada passo que dava,
esperava ouvir um rugido de gelar o sangue ou ver alguma criatura
horrível caindo sobre ela, mas não voltaria atrás, por mais medo que
sentisse. Ela tinha chegado muito longe e estava decidida a fazer o
que fosse necessário para reconquistar seu coração.
Arno tinha certeza de que o túnel e o rio estavam próximos, mas
não conseguiu encontrar nenhum deles, então eles decidiram se
separar e procurar. Se um deles encontrasse algo, chamaria o outro
imitando um corvo. Se ninguém o fizesse, eles se encontrariam de
volta perto de uma pedra cinza dali a meia hora. O crepúsculo
estava se aprofundando; logo eles perderiam completamente a luz
do dia.
Frustrada por se agarrar a vinhas e galhos que a arranhavam e a
esbofeteavam, Sophie parou de andar no mato por um momento e
ficou imóvel, tentando se reorientar. Ela estava indo para oeste ou
norte agora? Onde estava o sol poente? E o que era aquele som?
Como de borbulhas de água correndo sobre pedras, o que
significava que ela estava se aproximando do rio… Ou era outra
coisa?
Quando olhou em volta, o som ficou mais alto. Não estava
borbulhando; estava farfalhando, como algo deslizando por folhas
secas. Ela parou. E o farfalhar também. Então tudo começou de
novo, desta vez mais perto.
Sophie lembrou-se das cobras que enfiaram suas presas nela e
do escorpião que a picara impiedosamente, e puxou sua adaga.
Segurando-a na frente do corpo, ela chutou as folhas, pronta para
atacar o que quer que estivesse escondido nelas antes que a
atingisse. Ela riu, um pouco envergonhada, ao ver que não havia
nada ali, apenas uma trepadeira, com espinhos longos e curvos, e
uma ponta enrolada.
Rosa preta espinhosa, ela pensou. E aquele som que ela ouvira?
Provavelmente apenas um camundongo. Mas ainda se sentia
inquieta.
— Arno? Arno, você está aí? — chamou baixinho, olhando em
volta.
Não houve resposta.
Sophie respirou fundo e lentamente, tentando acalmar seus
nervos.
— Anda, garoto — disse ela, virando-se para conduzir o cavalo
mais uma vez, determinada a encontrar o rio. Mas, ao tentar andar,
descobriu que seu pé esquerdo estava preso com força.
Olhando para baixo, viu que a trepadeira preta tinha se enrolado
em seu tornozelo. Tentou se livrar dela, mas, ao fazer isso, ela a
apertou mais. Seus espinhos afiados perfuraram o couro de sua
bota e cravaram dolorosamente em sua pele.
Estremecendo, Sophie rapidamente amarrou as rédeas do cavalo
em seu braço livre, então se abaixou e cortou a vinha com sua
adaga. A planta em volta de seu tornozelo caiu no chão,
contorcendo-se como um tentáculo. Um arrepio percorreu sua
espinha. Quando ela se endireitou, ouviu o farfalhar novamente.
Puxou as rédeas do cavalo, tentando afastá-lo das vinhas, mas era
impossível. Elas estavam se movendo em direção a eles de todas
as direções, serpenteando pelo chão ou escorregando pelos troncos
de árvores e saindo ao longo de galhos. Seus espinhos brilhavam
como obsidiana. Rosas escuras floresciam ao longo dos galhos.
Quando as flores se abriam, exalavam aromas picantes de mirra e
cássia. Sophie estava com medo e seu coração batia forte, mas o
aroma pesado tinha um efeito estranho e calmante sobre ela. Em
vez de tentar escapar, ela ficou perfeitamente imóvel.
As flores escuras eram incrivelmente belas, mas eram suas vozes
que deixaram Sophie paralisada. As rosas estavam sussurrando.
Seus tons eram baixos, sedosos e estranhos, mas suas palavras
eram tão familiares.
Você é apenas uma garotinha… Você não pode vencer o Rei dos
Corvos…
Por que tentar? Você só vai falhar…
Há ossos ao seu redor… Eles pertencem a guerreiros e reis…
Que chance você tem?
Sophie balançou a cabeça, lutando contra o aroma sedativo, as
palavras enervantes.
Vamos. Agora, ela disse a si mesma. Vamos.
Mas não conseguiu. As palavras minaram sua vontade;
diminuíram o impulso e a batida de seu coração. Ela estava como
um rato hipnotizado por uma cobra. Deixe as vinhas me
envolverem… Que me cubram, que me estrangulem. Não adiantava
brigar, não adiantava negar a verdade.
O relincho estridente e assustado do cavalo tirou Sophie de seu
transe e, então, um tranco em seu traseiro a fez cair no chão. O
animal estava batendo os pés e dançando, tentando se livrar das
trepadeiras que agarravam suas pernas.
Sophie se levantou e sacudiu as vinhas que estavam enroladas
em seu pulso. Ela soltou várias que tinham se enroscado em torno
de suas panturrilhas e arrancou as que estavam em suas costas. O
cheiro que a tinha seduzido apenas alguns momentos atrás agora a
enojava. Com um grito de raiva, ela bateu as flores no chão e se
virou para o cavalo. O garanhão estava com os olhos arregalados,
relinchando, resistindo e chutando. Sophie sabia que um casco
batendo em seu crânio poderia matá-la.
— Shh, garoto… Calma… Calma… — ela sussurrou para ele.
Mantendo distância, ela cortou as vinhas que estavam se
retorcendo em torno de uma das patas dianteiras do cavalo. Agarrou
outra que estava lambendo uma pata de trás e a atirou longe. Assim
que ele ficou livre, o cavalo girou em um amplo círculo, procurando
uma maneira de se livrar da planta. O animal arrastou Sophie com
ele. Ela tropeçou e caiu, depois foi arrastada pelo chão, segurando
as rédeas.
Uma vinha deslizou atrás dela, suas rosas sussurrando. Arno está
morto… Seus olhos foram bicados por corvos… É tudo culpa sua,
garota inútil…
Finalmente, Sophie foi capaz de se levantar, puxar a cabeça do
cavalo em sua direção e conduzi-lo para frente.
Foi quando ela viu os dois homens.
A roseira espinhosa os amarrara com força ao tronco de uma
árvore, imobilizando-os. Mais rosas pretas e esvoaçantes
desabrochavam nas vinhas. Desista. Desista… Você falhou… elas
sussurravam.
Sophie podia apenas distinguir as formas de seus corpos
emaranhados nas vinhas, à luz do crepúsculo. Ela viu um lampejo
de linho azul, um gorro vermelho. Os espinhos rasgaram as roupas
dos homens e perfuraram sua pele. Seus olhos estavam fechados.
Seus rostos, abatidos e cinzentos.
Mas ela os reconheceu.
— Jeremias! — gritou ela. — Joosts!
SETENTA E DOIS

S .
Ela cortou os espinhos como se estivesse possuída. Arrancou as
flores das vinhas e pisou nelas, sem se importar com seus gritos
horríveis.
— Joosts! Jeremias! Vocês estão bem? — ela gritou enquanto
lutava para chegar até eles. Mas os irmãos não respondiam. — Por
favor, não estejam mortos — ela implorou. — Por favor, por favor,
por favor…
Sophie continuou lutando, arrancando pedaços grossos de vinhas
cortadas e retorcidas ao redor dos irmãos com as próprias mãos.
Ela ouviu Jeremias inspirar profundamente enquanto desenrolava
o espinheiro de seu peito. Seus olhos se abriram; seu olhar estava
desfocado. Por um momento, ele não a reconheceu.
— Jeremias, sou eu… Sophie!
Seus olhos encontraram os dela.
— Sophie? — ele disse, sua voz como uma dobradiça
enferrujada.
— Sim, sim! — disse Sophie com algo entre uma risada e um
soluço. — Vou tirar vocês daqui.
— Água… — Jeremias murmurou.
Sophie procurou freneticamente por seu cavalo — seu cantil
estava em um alforje —, mas o animal tinha fugido.
— Tem um rio perto daqui — disse ela. — E-eu não sei bem
onde…
— Eu sei…
— Você consegue sair daí? — perguntou ela.
Ele sacudiu a cabeça, dizendo que sim.
— Joosts…
— Ele está bem aqui — disse Sophie.
Jeremias recuperou o equilíbrio. Deu alguns passos vacilantes
para longe da planta. Joosts estava em pior estado. Seus olhos
tremulavam, mas não se abriram. Seu corpo caiu no chão enquanto
Sophie arrancava o restante das vinhas espinhosas. Juntos, ela e
Jeremias o arrancaram, depois o puxaram meio o carregando, meio
o arrastando pela floresta.
— O que aconteceu? — Sophie disse exatamente ao mesmo
tempo em que Jeremias falou:
— O que você está fazendo aqui?
Antes que qualquer um pudesse responder, outra voz foi ouvida.
— Sophie? — sibilou. — Sophie, você está aí?
— Arno? — Sophie gritou de volta o mais alto que ousou. — Onde
você está?
Ela ficou tão aliviada ao ouvir a voz dele. Estava com medo de
que as rosas sussurrantes o tivessem abduzido também.
— Aqui! Por aqui!
Sophie explicou a Jeremias que Arno era seu amigo. Eles
seguiram o som de sua voz. À medida que se aproximavam,
ouviram água correndo. Com mais uma curta caminhada pela
floresta, saíram à beira de um riacho. Arno estava parado a poucos
metros de uma árvore. Ele estava amarrando o cavalo de Sophie a
um galho baixo, tentando acalmar o animal.
— Encontrei-o parado na água, bebendo até se fartar — disse
Arno ao terminar de amarrar o cavalo.
Então ele se virou e viu os dois homens com Sophie. Joosts ainda
não estava totalmente consciente. Sua cabeça estava pendurada.
Sophie e Jeremias o ajudaram a chegar à beira do rio. Eles o
sentaram, e Jeremias pegou água em suas mãos em concha e a
jogou na boca do irmão.
Os olhos de Joosts abriram. Ele engoliu em seco, tossiu e se
jogou para frente. Apoiando-se com uma das mãos, usou a outra
para colocar mais água na boca.
— Vá devagar — Jeremias o advertiu, pegando água para si
agora.
— O que aconteceu? — perguntou Arno ao se juntar a eles.
Quando Sophie começou a explicar, Joosts mergulhou toda a
cabeça no rio, tirou-a e sacudiu a água. Ele arregalou os olhos e
pediu comida.
Sophie e Arno rapidamente enfiaram as mãos nos alforjes e
deram aos irmãos tudo o que tinham. Enquanto devoravam a
comida, Sophie contou a Arno que mal escapara do espinheiro e
que encontrara Jeremias e Joosts. Ela lavou as mãos no rio
enquanto falava, enxaguando o sangue que os espinhos haviam
arrancado.
— Aquelas não eram vinhas de sarça preta — disse Arno. —
Eram rosas de Herzmord. Tentaram me pegar também.
— Mas você não tem nenhum corte — disse Sophie, olhando para
os braços dele.
— Eu assobiei polca. É como um veneno para elas. Da próxima
vez que vierem atrás de você, faça o mesmo. Odeiam esse tipo de
música.
— Gostaria que soubéssemos disso — disse Jeremias. — Elas
caíram sobre nós antes de nos darmos conta do que estava
acontecendo. Tentamos nos livrar delas, mas eram muitas.
— Há quanto tempo vocês estão assim? — perguntou Sophie,
levantando-se.
— Eu perdi a noção do tempo. Uma semana? Mais?
O coração de Sophie bateu ruidosamente, doendo ao pensar nos
dois irmãos cruelmente amarrados e sofrendo por um longo período.
— Como vocês ainda estão vivos? — ela perguntou.
— Felizmente choveu algumas vezes e conseguimos um pouco
de água abrindo a boca. Do contrário, não teríamos sobrevivido. —
Ele engoliu outro pedaço de comida, depois fez algumas perguntas.
— O que você está fazendo aqui, Sophie? Por que não está em
casa, na Toca? — E acenou com a cabeça para Arno. — Quem é
esse?
— Arno é meu amigo. Estamos tentando encontrar o túnel para
Nimmermehr. Para que eu possa pegar meu coração de volta.
Jeremias abanou a cabeça.
— Você não pode fazer isso. É muito perigoso. Nós iremos —
disse ele, com desdém.
Jeremias começou a se levantar, mas suas pernas tremiam tanto
que ele teve de se sentar novamente.
— Eu posso fazer isso. E eu vou — disse Sophie. — As coisas
mudaram desde que vocês dois saíram da Toca. Eu mudei.
Os olhos de Jeremias percorreram seu corpo, observando sua
túnica e calça, seu cabelo cortado, as cicatrizes de cobras e
escorpião. Caminhar por dias havia deixado seus membros magros
e duros. A luz do sol bronzeara sua pele. Mas as maiores mudanças
foram a determinação em sua expressão e a luz confiante em seus
olhos.
— Sim — disse ele, por fim. — Estou vendo.
— Nós encontramos o túnel — disse Joosts.
A comida e a água trouxeram um pouco de vida para ele.
— Já íamos entrar, quando as vinhas vieram atrás de nós. Não
fica longe. Cerca de vinte passos ao sul da árvore onde você nos
encontrou. Vão. Depressa. É quase noite.
Sophie e Arno partiram. A princesa liderou o caminho de volta
para onde ela havia encontrado os irmãos. Assim que localizaram a
árvore, Arno virou-se para o sul, contou vinte passos e se viu
olhando para a entrada do túnel.
Não era nada mais do que uma abertura entre duas pedras, talvez
com quarenta e cinco centímetros de largura, velada por teias de
aranha. Um poço de medo se abriu no peito de Sophie enquanto ela
o olhava.
Quem sabia o que os esperava naquela escuridão?
Arno rapidamente fez duas tochas com galhos verdes que
arrancara de uma árvore, galhos secos e pinhas pegajosas de
piche. Ele acendeu as tochas usando uma pederneira, um metal e
um pedaço de pano carbonizado, que mantinha em uma pequena
lata no bolso do paletó.
Sophie puxou as teias de aranha para baixo e aventurou-se a
entrar. A umidade pairava no ar viciado. Dedos finos de musgo
pendiam do teto. A água escorria pelas paredes e acumulava-se no
chão do túnel. Centopeias pretas, reluzentes e gordas, besouros
verdes brilhantes e aranhas brancas esguias fugiram da luz das
tochas. Antes que Sophie e Arno avançassem cinquenta metros,
eles tiveram de passar por cima dos ossos de um esqueleto que
estava caído contra a parede. Sophie agarrou sua tocha com força.
Quando seus olhos se ajustaram à escuridão, ela viu que túneis
menores se ramificavam a partir do principal. O chão afundava sob
seus pés. Água fria e turva subia por seus tornozelos.
— Está tranquilo aqui — disse ela enquanto o túnel subia
novamente e a água escoava.
— Até agora — disse Arno. — Ficarei surpreso se conseguirmos
passar sem encontrar um ou dois makabers. Talvez um ou outro troll
também.
O túnel serpenteava bruscamente para a esquerda e, quando
fizeram a curva, viram que parte de uma das paredes havia
desabado. Pedras e terra estavam empilhadas no chão. Felizmente,
os escombros não bloquearam totalmente o caminho; havia uma
abertura de cerca de sessenta centímetros de largura, no topo dela.
Arno parou e olhou, com uma mão na cintura.
— Podemos nos espremer por isso — disse ele.
Sophie foi a primeira. Ela subiu com cuidado, atenta à tocha,
esperando que as pedras escorregassem sob seus pés a qualquer
segundo, mas permaneceram no lugar. Quando estava prestes a
rastejar pela abertura, ouviu Arno se engasgar.
— O que há de errado? — ela perguntou, virando-se.
Arno estava olhando para o túnel, de volta pelo caminho por onde
tinham vindo. Ele não parecia assustado. Na verdade, estava
sorrindo.
— Arno? O que foi?
O sorriso de Arno se alargou. Ele deu alguns passos para longe
dela.
— Matti? — disse ele com voz suave de admiração. — Matti, é
você?
Um arrepio subiu pela nuca de Sophie. Matti era o nome do filho
morto de Arno.
— Meu filho… Meu querido menininho — disse Arno. — Senti
tanto a sua falta.
— Arno? — Sophie disse incerta, descendo pelos escombros.
Ela olhou para além dele na escuridão, esperando ver o que ele
estava vendo. Mas não havia nada.
Arno se ajoelhou. Ele estendeu os braços diante de si.
— Ande, Matti — disse ele com a voz embargada. — Venha dar
um abraço no papai…
— Pare com isso, Arno! — exigiu Sophie. — Você está me
assustando.
— Matti? Matti, não! Não fuja! Você vai se perder aqui! — gritou
Arno.
A felicidade sumiu de sua voz. O medo tomara seu lugar.
Sophie estendeu a mão para sacudi-lo e tirá-lo do estranho transe
em que ele havia caído. Ao fazer isso, ela sentiu algo pousar em
seu ombro, algo úmido e frio. Com um grito, debateu-se. Caiu no
chão úmido. De onde saiu isso?, ela se perguntou. Erguendo a
tocha bem alto, ela olhou para cima.
Agarradas ao teto como uma colônia de morcegos, havia
centenas de criaturas pequenas e trêmulas, com não mais do que
vinte centímetros de altura. Seus corpos magros e gelatinosos eram
translúcidos; Sophie podia ver veias pretas em sua pele cinza e
corações amarelos pulsantes. Seus olhos eram grandes e pálidos e
suas bocas, franzidas. Mãos como ventosas, com longos dedos nas
mãos e nos pés presos aos poleiros.
O estômago de Sophie apertou. Ela sabia o que as criaturas
eram.
— Wunschfetzens — sussurrou.
Arno havia contado a ela sobre eles. Enfiavam os dedos longos
em seus ouvidos, arrancavam suas lembranças e faziam você
pensar que estava vendo alguém que não estava lá, alguém que
você amava e por quem ansiava. Várias das criaturas enrijeceram
seus corpos, prontas para pular, mas Sophie empurrou sua tocha
nelas, e elas se espalharam pelo teto, gritando.
— Arno, é uma ilusão! — gritou ela, estendendo a mão
novamente. — Matti não está aí!
Mas sua mão agarrou o ar.
Arno também não estava mais lá.
SETENTA E TRÊS

S .
— Arno! Arno, espere! — gritou ela, seguindo-o de volta por onde
tinham vindo.
Mas Arno, desesperado para alcançar o filho, estava correndo
depressa, e Sophie não conseguia acompanhá-lo. Ele desceu um
túnel lateral tortuoso e depois mais dois.
— Esquerda, esquerda, direita… — ela disse em voz alta como
um canto, uma oração, enquanto o perseguia, adicionando uma
direção a cada vez que ela virava, para que pudesse se lembrar do
caminho de volta.
Havia mais água parada nos túneis estreitos. Coisas que
agarravam seus tornozelos enquanto ela se movia. Sophie as
chutava para longe sem olhar. Ela manteve os olhos na luz da tocha
de Arno, mas ele estava se movendo tão rapidamente que escurecia
a cada segundo.
Arno fez uma curva fechada e depois outra. Sophie prendeu o
dedão do pé em algo enquanto tentava acompanhá-lo e tropeçou.
Desesperada para evitar que sua tocha despencasse no chão úmido
e se apagasse, ela caiu com força sobre um joelho, impedindo a
queda. A dor percorreu sua perna, retardando-a.
— Arno, pare… Por favor… — ela gritou, lutando para ficar de pé.
Os passos de Arno desapareceram na escuridão. A luz de sua
tocha se apagou.
Ele se foi, e Sophie estava sozinha. Seu peito estava pesado. Ela
podia ouvir a própria respiração, rápida e superficial, ecoando nas
paredes do túnel. Seu coração a incentivava a continuar, a salvar
seu amigo. Sophie olhou para sua tocha. As chamas não estavam
tão altas como antes. Apagariam em breve. Ela sabia que não podia
ficar ali, ou se tornaria outro esqueleto caído contra a parede. Quem
lutaria por seu povo, então?
— Eu sinto muito, Arno. Por favor, por favor, me perdoe —
sussurrou ela para a escuridão.
E então virou-se, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
SETENTA E QUATRO

— E , , … — Sophie foi recitando suas


instruções ao contrário, tentando fazer seu caminho de volta para o
túnel principal.
A cada curva, ela parava para arranhar uma flecha no chão,
apontando o caminho para fora, caso Arno voltasse a si e tentasse
refazer seus passos.
Ela queria parar, sentar-se no chão e chorar pelo amigo perdido,
mas se obrigou a continuar. Lamentaria por Arno mais tarde; a dor
era um luxo ao qual ela não podia se permitir agora.
— Esquerda, esquerda, direita… — disse Sophie, rezando para
se lembrar das curvas na ordem correta.
Quando se aproximou de outra encruzilhada, porém, sua memória
de repente falhou. Não conseguia se lembrar de qual caminho
seguir. Tentando não entrar em pânico, parou e segurou a tocha à
sua esquerda. Seu brilho enfraquecido iluminou mais um túnel sem
fim, serpenteando na escuridão. Então moveu a tocha para a direita.
O que aconteceu a seguir a fez gritar.
Um rosto, pálido e sem olhos, emoldurado por uma mecha de
cabelo branco, surgiu na escuridão, rosnando alto. Rasgou as
garras sujas no ar, mirando em Sophie, mas errou, então voltou para
o túnel e se agachou sobre algo.
Sophie viu que o algo era um cadáver e que a criatura estava
roubando seus dedos e os colocando no bolso.
— Um makaber — ela sussurrou.
Arno dissera a ela que os makabers eram possessivos com os
corpos que encontravam e lutariam contra qualquer um que
tentasse tomá-los. A criatura era horrível de se olhar, com roupas e
carne esfarrapadas, mas parecia estar obcecada demais com seu
prêmio para querer persegui-la.
— Argh — fez Sophie, com repulsa.
Mas, pelo menos, ela agora sabia por qual túnel seguir. Enquanto
seguia Arno, não tinha passado pelo makaber nem pelo corpo que
ele estava roubando, o que significava que ela descera o túnel à sua
esquerda. Rapidamente ela subiu e, depois de apenas mais duas
voltas, encontrou-se na passagem principal. Poucos minutos depois,
estava de volta ao lugar onde a parede havia desabado. Ela rastejou
pela abertura para o outro lado, tomando cuidado com a tocha.
Quando Sophie começou a andar novamente, percebeu que o
túnel estava subindo. Esperava muito que isso significasse que ela
estava chegando ao fim, pois sua tocha havia começado a crepitar.
Poucos minutos depois, suas esperanças foram recompensadas
quando a passagem deu lugar a um lance de degraus cobertos de
musgo, talhados na rocha. Sophie escolheu cuidadosamente o
caminho até eles e descobriu que eles a levaram até uma porta de
madeira. Era velha, cheia de buracos de minhoca e tão musgosa
quanto os degraus. A grande alça de ferro e as dobradiças estavam
enferrujadas.
— Isso leva ao castelo; deve levar — Sophie raciocinou. — Por
favor, não esteja bloqueada. Por favor — acrescentou ela, tentando
a manivela. — Não — ela sussurrou, perturbada. Encostou a cabeça
na porta. Ela chegara tão longe apenas para ter que voltar? — Não
— disse novamente, mais alto desta vez, batendo a cabeça contra a
madeira macia e esponjosa. Pensou no rei pálido e poderoso,
intocável em seu castelo. Pensou em sua madrasta condenando
Tom a dez chibatadas. Em Capitão Krause e seus homens
incendiando São Sebastião. E, ao fazer isso, seu desespero se
tornou algo sombrio e letal. — Não — ela rosnou com raiva. — Não,
não, não, !
Tremendo de raiva, Sophie chutou a porta. Repetidamente, cada
vez com mais força. Gritando. Gritando. Gritando. Para o Rei dos
Corvos. Sua madrasta. Haakon e Krause. E, então, abruptamente,
ela parou. Porque seu pé havia atravessado a madeira podre.
Os olhos de Sophie arregalaram-se. Ela chutou a porta
novamente, e a metade inferior desmoronou. Caiu de joelhos,
rastejou pelo buraco que fez, ainda protegendo sua tocha, e se
levantou em um porão abobadado cavernoso.
Enormes barris de carvalho de vinho estavam empilhados em
fileiras no centro do ambiente. Barris de conhaque cobriam as
paredes. A tocha de Sophie lançava luz suficiente para iluminar
outro lance de escadas na outra extremidade. Ela não tardou em
subi-lo. Pouco antes de chegar ao topo, as chamas finalmente se
extinguiram. Ela jogou a tocha no chão e deixou que suas mãos a
guiassem pelo restante do caminho. Seus dedos encontraram a
porta; tocaram na maçaneta. Também estaria trancada? Ela a girou
e a porta se abriu, as dobradiças rangendo.
O coração de Sophie estava batendo em um ritmo staccato. Ela
reuniu sua coragem e entrou em Nimmermehr.
SETENTA E CINCO

C em ganchos de prata. Uma


cesta de enguias pretas brilhantes estava no chão. Um veado morto
estendido sobre uma mesa de madeira.
Sophie saiu do porão e passou para uma despensa.
Cautelosamente, atravessou a sala, então inclinou a cabeça para
fora da porta, olhando ao redor em busca de cozinheiros ou criados,
mas não viu nenhum. Não tinha ideia de onde o Rei dos Corvos
guardava os corações que havia roubado, mas duvidava que
estivessem na despensa. Movendo-se lentamente, ela saiu do
cômodo como um gato silencioso. Os olhos mortos do cervo a
seguiram.
Um corredor mal iluminado a levou a uma enorme cozinha. Com o
cuidado de ficar nas sombras, Sophie espiou pela porta, mas o
cômodo também estava estranhamente vazio.
Com cuidado, ela se aventurou pela cozinha, pronta para fugir
novamente se alguém aparecesse. Panelas ferviam em um grande
fogão de ferro. O corpo de um javali assava sobre brasas em um
espeto giratório. Sua cabeça com presas ferozes estava sobre uma
bandeja em uma mesa de trabalho de madeira, que ocupava
metade do cômodo.
Parecia que alguém estava preparando o jantar. Queijos haviam
sido colocados em tábuas; alguns tinham cascas pretas como tinta,
outros exibiam mofo verde. As cestas continham cogumelos roxo-
escuros, verde-claros e amarelos com pintinhas. Uma bela charlotte
russe erguia-se sobre um tabuleiro. Sophie demorou um pouco para
perceber que as bolachas tipo champanhe da sobremesa eram, na
verdade, dedos reais, com unhas vermelhas, ainda usando anéis.
Com um arrepio, Sophie caminhou até a outra porta, do lado
oposto da cozinha. Quando desapareceu por ela, a cabeça do javali
soltou um bufo alto e raivoso. E, por trás das caixas de carvão, sob
a mesa de trabalho e as enormes pias de pedra, uma dúzia de
criaturas assustadoras emergiu.
Todas tinham cerca de um metro e oitenta de altura, barrigudas e
com ombros redondos, com braços e pernas desajeitados, e peles
enrugadas e com verrugas, como a de um sapo. Usavam túnicas
pretas até os joelhos.
Se estivesse lá, Arno as teria reconhecido. Eram kobolds, uma
linhagem particularmente cruel de goblin. Sorriram quando Sophie
saiu da cozinha, mostrando dentes pontudos como agulhas e olhos
escuros brilhantes.
Sophie viu uma escada-caracol quando saiu da cozinha e
rapidamente a subiu. Ela estava no domínio de um homem perigoso
e não sabia para onde a escada a levaria. Não tinha ideia de por
onde começar a procurar seu coração. Tudo o que sabia era que
tinha uma tarefa impossível pela frente e que a única maneira de
terminá-la era começando. A escada acabava no fim de um longo
corredor forrado com painéis de ébano.
Tentando ficar quieta como um rato, ela atravessou o corredor e
chegou à sala de troféus do castelo. Suas altas portas de madeira
estavam abertas. Lentamente, com cautela, entrou e olhou em volta.
As paredes da sala eram cravejadas com cabeças de cervos e alces
de olhos vítreos. Aves de rapina tinham seus corpos preservados,
agachados ou atacando, olhando para baixo dos galhos de árvores
ou sobre troncos.
Sophie abriu as portas de um armário e vasculhou as prateleiras.
Levantou a tampa de uma mesa para verificar dentro dela. Assim
que estava baixando a tampa novamente, ela escorregou de suas
mãos e bateu com força. Uma raposa morta estava sobre ela,
rosnando.
Ofegante, Sophie tropeçou para trás. Um grunhido profundo
retumbou atrás dela. Ela se virou e viu um lobo preto caminhando
em sua direção, com a cabeça baixa e os dentes à mostra. Um grito
soou do outro lado da sala. Uma pantera saltou sobre a lareira, em
posição de ataque.
O terror impulsionou Sophie como a flecha de um arco. Ela
disparou pela sala em direção às portas. Uma fração de segundo
depois, a pantera pousou exatamente onde ela estava. Lutando
contra o chão de madeira lisa, o grande felino tentou ganhar apoio,
mas escorregou e bateu na mesa. O lobo passou correndo,
alcançando Sophie. Ela irrompeu pela passagem, agarrou as duas
portas e fechou-as atrás de si.
Ofegando de medo, deu um passo para trás e depois outro. Um
baque forte contra as portas a fez pular. Algo as arranhava
furiosamente. Ela ouviu mais rosnados.
Será que as portas os deterão?, ela se perguntou em desespero,
então decidiu não esperar para descobrir. Correndo pelo corredor
escuro, ela chegou a outra porta. Derrapou até parar bem em frente
a ela e olhou para dentro.
A sala era um verdadeiro arsenal de guerra. Bandeiras
penduradas no teto. Lanças e alabardas cruzadas nas paredes.
Armaduras enfileiradas no centro, como sentinelas silenciosas.
Sophie correu para dentro, fechou as portas com força e se apoiou
nelas, de olhos fechados, lutando para recuperar o fôlego.
Ela tinha feito muito barulho.
Alguém — o Rei dos Corvos, seus servos — devia tê-la ouvido.
Ela ficou perfeitamente imóvel, ouvindo, com os nervos tensos, por
vários longos momentos. Mas tudo o que escutou foram as batidas
do próprio coração — sem vozes, sem passos.
— Continue andando — ela disse a si mesma.
No fundo da sala, havia dezenas de baús de madeira. Sophie
decidiu revistá-los. O primeiro continha luvas de couro. O próximo,
capuzes de cota de malha. Aljavas enchiam o terceiro. Nada de
coração em uma caixa de vidro.
— Onde está? — perguntou ela em voz alta, seu desespero
crescendo.
Quando as palavras deixaram seus lábios, ela ouviu um ruído alto
e metálico. Um por um, os capacetes sobre as armaduras viraram-
se bruscamente em sua direção. A escuridão por trás das viseiras
cegas parecia senti-la. Dedos de metal cerraram-se em punhos
ameaçadores. Pernas também de metal se soltaram do chão e
começaram a se mover.
As armaduras estavam lentamente ganhando vida. Com um grito
estrangulado, Sophie forçou seu caminho de volta, passando por
elas. Uma mão de metal varreu o ar e acertou suas costas, fazendo-
a cair no chão. Ela rolou para longe quando um pé blindado bateu a
centímetros de sua cabeça. Rastejando em quatro apoios, Sophie
esquivou-se de mais golpes e conseguiu chegar às portas. Lutou
para ficar de pé assim que a lâmina de uma alabarda desceu. Ela a
roçou, cortando cuidadosamente sua túnica, quase atingindo sua
pele. Sophie correu para a soleira, agarrou as portas e as fechou.
Houve estrondos atrás das portas. Sophie encostou na parede do
outro lado do corredor. Ela imaginou um conjunto de armaduras
caindo, uma sobre a outra, até que todas estivessem empilhadas.
Pelo menos, esperava que fosse o que estivesse acontecendo; isso
as impediria de sair.
Tremendo, ela continuou pelo corredor. Sua busca a levou a um
pequeno teatro, onde marionetes com olhos pintados giravam a
cabeça e a perseguiram aos trancos e barrancos, arrastando seus
cordões. Ela tropeçou em uma sala de estar forrada de papel de
parede com móveis escuros e cortinas de veludo, uma sala de
música e uma biblioteca com milhares de livros com capa de couro.
Nada a perseguira naqueles cômodos, mas ela também não
localizou o que estava procurando.
Exausta, sentou-se em um banco de couro estofado na biblioteca
e baixou a cabeça entre as mãos.
— Cadê? Onde está meu coração? — ela sussurrou.
Vieram à sua cabeça imagens dos corpos que ela vira na Floresta
Sombria na primeira vez que deixou a Toca.
— Onde estão todos os corações? — perguntou ela.
Do fundo, uma voz respondeu:
— Eles estão aqui. Você deve continuar procurando. Ele quer que
você desista. Não faça isso.
Sophie ouviu a voz. Levantou-se e continuou. Subindo escadas.
Seguindo corredores. Dentro e fora de um salão de baile, de uma
sala de bilhar. Até que, horas depois de entrar no castelo do Rei dos
Corvos, ela finalmente chegou a um par de portas pretas altas, com
painéis pintados de cobras, escorpiões e maçãs.
Sophie sentiu — soube —, assim que tocou aquelas portas, que
aquele era o quarto que ela estava procurando. Agarrou as alças,
com as mãos trêmulas, e as girou. As portas se abriram com
dobradiças silenciosas.
SETENTA E SEIS

O .
Seu teto, dividido em caixotões, tinha dois andares. O luar que
entrava pelas janelas arqueadas caía sobre uma mesa de jantar de
ébano e refletia em taças de cristal e pratos com borda dourada.
Velas queimavam em candelabros de prata nas duas pontas da
mesa; cadeiras de espaldar alto a rodeavam. Pesadas esculturas de
gárgulas adornavam suas pernas grossas. Do outro lado da sala, as
chamas faiscavam em uma lareira de mármore preto.
Mas Sophie não prestou atenção a nada disso. Seus olhos
estavam grudados nas prateleiras que iam do chão ao teto. Caixas
de vidro estavam organizadas sobre elas. Muitas caixas de vidro.
Mais do que se poderia contar. E, dentro de cada um delas, havia
um coração humano, tão vermelho e vivo quanto no dia em que fora
tirado.
Alguns eram grandes e outros bem pequenos. Olhando para
todos eles, Sophie sentiu seu coração-relógio enguiçar e chiar,
enchendo-se de tristeza.
— Todos roubados — ela murmurou. — Corações de homens…
Mulheres… Crianças.
Ela caminhou até uma prateleira e correu os dedos ao longo das
caixas. Cada uma tinha uma etiqueta de papel afixada na frente com
um nome escrito. Algumas das etiquetas eram brilhantes e novas;
outras eram tão velhas que sua tinta estava desbotada e suas
bordas, desbeiçadas.
— O meu está aqui também. Em algum lugar — disse ela,
sentindo-se oprimida. — Mas como irei encontrá-lo?
— Não será muito difícil — disse uma voz atrás dela, uma voz tão
fria quanto o vento do inverno. — Está aqui comigo.
SETENTA E SETE

S .
O Rei dos Corvos estava de pé perto da lareira, nas sombras,
mas agora o luar o iluminava. Ele carregava uma caixa de vidro.
Seu rosto era pálido como uma lápide, seus olhos tão escuros
quanto o coração de um assassino. Seu longo cabelo preto fluía por
suas costas. Uma jaqueta justa, bordada com corvos, cobria seus
ombros estreitos.
Uma parte de Sophie sabia que aquele encontro não era
acidental. Ele estivera ali o tempo todo, esperando, sabendo que ela
iria até ele. Enquanto ela observava, ele colocou a caixa de vidro
sobre a mesa.
— Meu coração — ela sussurrou, hipnotizada.
— Sim.
Sophie se aproximou dele.
— É menor do que você pensava, não?
Ela assentiu.
— Isso é o que todo humano diz. Aqueles que chegam até aqui,
claro. Os corações pequenos, bonitos e perfeitos são os mais fáceis
de arrancar. Os maiores, cheios de rachaduras, cicatrizados são
mais desafiadores.
— Por que você arrancou meu coração? — Sophie questionou. —
O que você vai fazer com ele?
O olhar de Corvus desviou-se para a mesa, para os pratos de
porcelana, o linho e a prata. Franzindo a testa, cutucou uma faca no
lugar, suas garras tilintando suavemente contra a prata. Então seus
olhos encontraram os de Sophie novamente. Com um sorriso, ele
disse:
— Vou devorá-lo.
SETENTA E OITO

O pareciam girar juntos como


um pião de brinquedo e, em seguida, explodir em formas e cores
fragmentadas.
Sophie sentia-se extremamente tonta. Não conseguia manter o
equilíbrio. Dentro de seu peito, o coração mecânico desacelerou
ruidosamente.
— Parece que você não tem muito mais tempo — disse Corvus.
— Por que aqueles irmãos intrometidos se deram ao trabalho de
salvá-la? Nunca vou entender.
Sophie puxou uma cadeira da mesa e acomodou-se nela. Lutou
contra a tontura, a fraqueza. Não podia ceder a elas. Não desista de
mim. Agora não. Não ouse, ela alertou seu coração batendo,
batendo forte. Pouco a pouco, o tique-taque em seu peito acelerou,
e sua cabeça foi clareando.
— Você… Você devora corações… — disse ela a Corvus, quando
conseguiu recuperar a voz.
— Sim, não há nada mais delicioso do que um coração humano
— respondeu ele, saindo de trás da mesa. — E tenho o seu
guardado para um momento especial. Parece que será
excepcionalmente doce e macio.
Ela se forçou a encontrar seu olhar. Seus olhos a assustavam.
Eles a puxavam, como um abismo sem fundo puxa uma pessoa que
está em sua borda.
— Vou morrer se não recuperar meu coração — disse ela.
Corvus inclinou a cabeça como um corvo.
— Mas não era assim que você queria? Não queria colocar seu
coração em uma caixa?
Sophie lembrou-se da conversa nos aposentos da madrasta,
ouvindo Adelaide dizer que a bondade era perigosa, que um
coração mole só lhe traria problemas. Ela se lembrava de ter
pensado que seria melhor não sentir nada do que sentir tanta dor.
Em sua mente, viu Haakon parado com ela na varanda, pedindo-lhe
que o deixasse ficar com seu coração.
— Um dia, eu quis isso, sim — Sophie admitiu. — Mas não quero
mais.
Juntando forças, ela desviou o olhar e se levantou, determinada a
obter seu coração de volta. Meu povo precisa de mim, lembrou a si
mesma. Eles não têm mais ninguém.
Mas, quando Sophie estendeu a mão para pegá-lo, rostinhos feios
com dentes afiados e olhos esbugalhados surgiram de debaixo da
mesa e foram para cima dela. O que Sophie pensava serem apenas
gárgulas esculpidas eram, na verdade, criaturas vivas. Balbuciavam,
sibilavam e a golpeavam com suas garras afiadas, bloqueando seu
caminho até a caixa de vidro.
O Rei dos Corvos apontou um longo dedo para ela.
— Meus bichinhos sabem que você deseja roubar meu prêmio —
disse ele.
Sophie tentou novamente chegar à caixa, mas uma das criaturas
bateu suas asas de couro e voou até ela, gritando. Suas garras
afiadas arranharam sua cabeça, fazendo-a recuar.
— Eu não tocaria naquela caixa se fosse você — Corvus avisou,
chamando as criaturas. — O coração ainda está vivo, intocado pelo
tempo e pela decomposição. Mas, se você abrir a caixa, o encanto
será quebrado, e o coração murchará e apodrecerá.
A testa de Sophie estava molhada onde a gárgula a arranhara.
Ela enxugou o sangue que escorria e disse:
— Existe uma magia. Para restaurar meu coração. Eu sei que
existe. Os irmãos disseram isso.
Corvus riu. Seus olhos a puxaram novamente.
— E as pessoas dizem que eu é que sou cruel. Nada é mais cruel
do que a esperança. Não há mágica para restaurar um coração,
uma vez que estiver em meu poder.
— Isso é mentira — Sophie insistiu, mas o pavor tomou conta
dela.
E se ele estivesse falando a verdade? Como ela poderia saber, se
nem mesmo o conhecia? Reunindo toda a sua coragem, Sophie
caminhou até ele.
— Corvus… Rei dos Corvos… Estes são apenas títulos — disse
ela. — Quem é você? Quem você é de verdade?
E, então, ela olhou profundamente naqueles olhos terríveis e
descobriu.
Ele era o rangido na escada. Uma respiração fria em seu
pescoço. Passos no escuro.
Era a figura que ficava no canto do seu quarto à noite,
sussurrando todas as coisas que ela não era e nunca seria.
Era o devorador de corações.
Era o próprio Medo.
SETENTA E NOVE

M o queixo de Sophie e o
ergueu.
— Você finalmente descobriu — disse ele. — E agora também
sabe que sua busca para recuperar seu coração é inútil. Nenhum
mero humano pode me derrotar. Veja o que acontece quando você
tenta. — Seus olhos moveram-se de cima a baixo, medindo Sophie,
demorando-se em suas calças surradas, em sua camisa suja e
rasgada, na cicatriz sob sua clavícula, em seu cabelo espetado. Ele
tirou a mão, rindo. — Olhe para você, antes princesa, agora
reduzida a uma maltrapilha. Olhe para o seu amigo, vagando em
direção à morte pelos meus túneis, chamando por uma criança que
não está lá. E o outro… ainda mais patético…
— Que outro? — perguntou Sophie.
E, então, o sangue em suas veias congelou. Will, ela pensou.
Depois de Tom derrubar o caixão e ela acordar, Sophie
perguntara a Arno sobre ele. Suas palavras voltaram à sua
memória… Ele disse algo sobre caçar pássaros…
Com um choque de terror, Sophie percebeu que Will quis dizer
corvos. Ele tinha ido até lá, para Nimmermehr, para procurar o
coração dela. E provavelmente esperava que, se conseguisse,
poderia trazê-la de volta à vida.
— Meus servos kobolds ensinaram o menino tolo a pensar duas
vezes antes de invadir a propriedade — disse Medo. — Minhas
gárgulas estavam acabando com ele quando você chegou.
— Onde ele está? Onde? — gritou Sophie.
Medo apontou para a lareira.
Sophie deu a volta atrás dele. Um grito escapou de seu peito
quando a lareira ficou totalmente visível. Jogado no chão à sua
frente, estava o corpo de um garoto.
Totalmente imóvel.
Machucado e ensanguentado.
Era Will.
OITENTA

N !— S .—W !W !
Ela caiu de joelhos ao lado dele e aninhou a cabeça em seu colo.
— Por favor, não esteja morto — ela sussurrou. — Por favor,
Will… Acorde. Acorde…
Os cílios dele estavam tremendo. Um pequeno gemido escapou.
— Você está vivo! — disse ela, apertando a mão dele.
— É mesmo? — perguntou Medo, com uma careta de decepção.
— Bem, não por muito mais tempo.
Uma mulher entrou na sala em um redemoinho preto. O sangue
escorria do canto de sua boca. Ela tinha um dente, com as raízes
ainda vermelhas, preso entre o polegar e o indicador. Sophie ergueu
os olhos. Reconheceu a mulher. Conversara com ela no cemitério.
Já a tinha visto em um sonho febril.
— Minha irmã, Crucia. Dor, para os íntimos — disse Medo para
Sophie. — Creio que já se conhecem.
Sophie não respondeu. Aterrorizada pelo estado de Will, ela
acariciou seu rosto, sacudiu-o e puxou seus pulsos, tentando de
tudo para fazê-lo acordar.
Dor colocou o dente no bolso da saia; em seguida, olhou para
Sophie, que tinha o rosto coberto de lágrimas, e para Will, já meio
morto. Estremecendo, ela se virou para Medo:
— Tudo isso começou com um espelho — disse ela com um
suspiro. — Um pedaço de vidro prateado.
— Limpe o queixo.
Sophie entendeu o recado. Ela ergueu os olhos novamente.
— Que espelho? O que isso tem a ver comigo? Com meu
coração?
Dor limpou o sangue escorrendo do canto da boca.
— A Rainha Adelaide tem um espelho mágico. Ela fala com ele.
Ao menos, é o que meu irmão diz. Não se pode confiar nele, porém.
Ele é mentiroso.
Sophie encarou Medo.
— É verdade isso? Minha madrasta realmente tem um espelho
mágico? E fala com ele?
Um sorriso presunçoso curvou os lábios de Medo.
— Não é mágico. De forma alguma. Mas é isso que Adelaide diz.
Ela pergunta a ele quem causará sua queda. Mas o espelho só
mostra o que ela já sabe — explicou ele. — Ela é esperta, ousada,
astuta. A vida a ensinou a ser assim. Ela mesma montou sua rede
de espiões. Coloca informantes infiltrados nas cortes, nos
corredores e nos quartos de seus companheiros governantes.
Conhece cada conspiração contra ela enquanto ainda está sendo
planejada e acaba com elas e com todos os envolvidos nelas muito
antes serem colocadas em prática. Adelaide foi, por um tempo, uma
das melhores governantes que o mundo já viu.
— Mas você a ajudou, irmão — Dor falou acusadoramente. —
Sussurrando para ela. Aconselhando-a.
— Ah, sim. Eu a ajudei — Medo admitiu. — Eu a ajudei quando
ninguém mais ajudaria. — E sua expressão ficou sombria. — E,
então, uma vez, só uma vez, pedi a ela que me ajudasse. Mas ela
falhou.
— Foi você, não foi? Você pediu à minha madrasta que me
matasse — disse Sophie. — Foi essa ajuda que você pediu a ela.
Medo assentiu.
— Por que precisou da ajuda da rainha? — Sophie perguntou. —
Por que você mesmo não me matou?
— É muito difícil matar uma princesa — Medo respondeu, com um
leve aceno de mão. — Os súditos têm um hábito irritante de
protegê-las.
Sua resposta foi muito descuidada, muito petulante, e Sophie viu
através dela.
— Não, não é isso. Você não pode matar, não é mesmo? Você
precisa de outra pessoa para fazer isso por você.
Saber disso a fortaleceu; de repente, ganhou coragem. Mais
perguntas surgiram em seus lábios, as mesmas que fazia a si desde
que o caçador arrancara seu coração.
— Por que você me quer morta? Por que sou sua inimiga?
Medo arqueou uma sobrancelha.
— Você me surpreende. Veio até aqui me enfrentar. A maioria dos
humanos nunca faz isso.
— Responda às minhas perguntas — exigiu Sophie.
Mas Medo ficou em silêncio. Com uma unha suja, Dor bateu na
caixa de vidro onde estava o coração de Sophie.
— Você sabe como seu pai morreu?
— O rei morreu em batalha — respondeu Sophie, voltando-se
para Medo. — Responda às minhas perguntas.
Mas Medo, ajustando os talheres novamente, ainda asssim não
falou. Foi sua irmã que explicou:
— Seu pai não morreu simplesmente na batalha. Ele se sacrificou
— disse ela. — Dois de seus generais foram raptados de seus
batalhões. Eles, bem como um punhado de seus homens, estavam
sob ataque e em número muito menor do que o inimigo. Seu pai
observava de um lugar seguro, do alto de uma colina. Sem hesitar,
ele cavalgou para o campo aberto, sabendo que os soldados
inimigos iriam largar os generais para trás para persegui-lo, pois ele
era o rei, o maior prêmio. Sua ação permitiu a seus generais que se
libertassem e retornassem às suas tropas. Por causa de seu pai, os
exércitos das Terras Verdes venceram. Ele deu sua vida por seu
povo.
A raiva de Sophie aumentou. Ela não precisava que Dor lhe
contasse essas coisas; ela já sabia.
— Por que você não me responde? — ela gritou para Medo.
Enquanto Corvus mantinha silêncio, outra voz foi ouvida. Uma voz
profunda e estrondosa; parecia um túmulo de pedra se abrindo.
— Seu pai foi um dos homens mais corajosos que já existiram.
Ele tinha um coração de leão. Mas bravura não é destemor. Só um
tolo não sente medo. Bravura é ter medo, mas fazer o que se deve
fazer mesmo assim. E só há uma coisa que permite aos mortais
fazer isso. Seu pai tinha muito disso, e você também tem. É por isso
que você é a maior inimiga do meu filho. É por isso que ele quer
você morta.
OITENTA E UM

S - .
Pertencia a um homem. Ele estava parado na frente das janelas
altas, do outro lado da mesa, de costas para ela.
Assim como Medo e Dor, ele era alto e se vestia de preto. Seus
ombros eram largos, seus braços e pernas, robustos. Usava calças
de couro, botas de cano alto e uma túnica de cota de malha. Uma
juba ondulante de cabelo cinzento como aço cascateava por suas
costas. Havia uma espada pendurada em seu quadril.
— Medo pressentiu corretamente que você seria igual ao seu pai
e governaria seu reino com sabedoria e bondade, com misericórdia
e justiça. Ele sabia que havia algo poderoso dentro de você, algo
que poderia vencê-lo, e que, uma vez que estivesse no trono, você
o expulsaria da terra. Ele não poderia aceitar isso. Não posso
aceitar isso. Se uma mera garota derrotar o Medo, o mais forte dos
meus filhos, que mensagem será transmitida ao mundo?
O homem então se virou, e Sophie respirou fundo. Seu rosto era
uma caveira. Suas mãos, ossos brancos.
— Posso lhe apresentar meu pai? — disse Medo. — Seu nome é
Morte.
OITENTA E DOIS

A S giravam
descontroladamente. Paravam, disparavam, equilibravam-se
novamente.
Morte avançou em direção a ela, seus passos ecoando na sala.
Sophie ficou paralisada ao ver seu rosto horrível.
— Meu filho tentou matar você e falhou várias vezes — disse
Morte. — É a minha vez agora, e eu nunca falho.
Ele se aproximou cada vez mais e, ao fazê-lo, desembainhou a
espada. A lâmina brilhou à luz das velas. Sophie viu uma palavra
gravada em toda a extensão: Aeternitas. Tudo dentro dela, carne,
osso e sangue, gritava para ela se levantar e correr, mas seu
coração defeituoso lhe dizia para ficar, para proteger Will.
As palavras da Morte ecoavam em sua mente. Ele sabia que
havia algo poderoso dentro de você, algo que poderia vencê-lo…
O que é que ela tinha?, ela se perguntou desesperadamente. O
que pode ser melhor do que o medo? Ela precisava da resposta
agora.
— Despache o menino primeiro, papai — Dor disse com um
suspiro. — Acabe com o sofrimento dele. E com o meu.
— Você sempre foi uma garota de coração mole — disse Morte,
parando na frente de Sophie e Will.
Dor sorriu, mostrando seus dentes podres. Medo ajustou uma
taça de cristal.
Morte ficou mais imponente, segurando o cabo de sua terrível
espada com força.
Não! — Sophie gritou, cruzando os braços sobre o peito de Will.
— Por favor.
O tempo pareceu desacelerar, mas tudo que houve em seguida
aconteceu no espaço de uma batida do coração. Morte ergueu sua
espada e mirou a lâmina direto no coração de Will.
Sophie gritou.
E se jogou na frente dele.
OITENTA E TRÊS

A M , uma lâmina tão afiada que poderia


cortar estrelas do céu, perfurou a pele de Sophie e os músculos
abaixo dela. Deslizou entre duas de suas costelas, cortando a
cartilagem.
Se tivesse atingido a criatura vermelha e macia que costumava
ficar sob as costelas de Sophie, que agora estava em uma caixa de
vidro na prateleira do Medo, ela teria sido morta.
Mas isso não aconteceu.
Atingiu um coração construído com restos de metal, engrenagens
tortas e molas velhas, um coração defeituoso, barulhento e
problemático.
A espada da Morte atingiu o coração mecânico de Sophie. E se
quebrou em um milhão de pedaços.
OITENTA E QUATRO

M , em pedaços no
chão.
Dor arrancou uma mecha de cabelo de seu couro cabeludo. Medo
rosnou.
Sophie baixou os olhos para o peito. O sangue escorria da ferida
sobre seu coração e empapava sua túnica. Mas não foi muito. Não a
mataria. Ela já passara por coisa muito pior.
Agarrando um atiçador de ferro de um suporte perto da lareira,
Sophie se levantou, colocando-se entre Will e Morte. Ela não daria
uma segunda chance ao assassino de cabelos grisalhos.
Segurando o atiçador diante de si como uma espada, ela disse:
— Você não o terá.
Sophie olhou diretamente para Morte enquanto falava. Olhou no
fundo dos seus olhos, na escuridão eterna dentro deles e, embora
estivesse com mais medo do que nunca em sua vida, pensou em
Will e se manteve firme.
Morte olhou para Sophie, para aquela garota magra, suja e cheia
de lágrimas. Sua mão tremia tanto que ela mal conseguia segurar o
atiçador.
Ele riu e deu um passo em sua direção, sua cota de malha
retinindo.
— Eu sou Morte, sua garotinha tola — disse ele. —Tenho o
abismo e todos os seus terrores sob meu comando.
Sophie deu um passo em direção a ele, seu coração batendo
forte.
— Sim, você é. Mas eu sou a Rainha Charlotta-Sidonia
Wilhelmina Sophia das Terras Verdes e estou segurando este
atiçador. Não me faça usá-lo.
Sophie parecia patética, tentando afastar a Morte com o que era
pouco mais do que um pedaço de pau, mas havia algo em sua
postura, algo em seu olhar, que dizia que, se Morte quisesse Will,
teria de derrubá-la primeiro. E não seria fácil.
Morte encarou Sophie.
Olhou para baixo novamente, para os cacos de aço cintilantes no
chão. E então Morte curvou sua temível cabeça.
OITENTA E CINCO

R .
Não tenho peito para isso, dizem algumas pessoas.
A verdade é que a coragem vem mesmo do coração.
A palavra coragem nasceu de cor, expressão latina para coração.
Coragem exige amor, e amor exige grande coragem — a coragem
que um menino frágil demonstra ao defender uma cadelinha, a
coragem que um rei encarna ao cavalgar voluntariamente para a
morte, a coragem que uma menina assustada mostra quando se
joga na frente da espada da Morte.
Embora Sophie esteja ferida, presa no castelo do Medo, ela se
mantém altiva e forte. Porque finalmente entende. O Medo mantinha
seu coração em uma caixa, mas não mais, nunca mais. Ela sabe o
que é que derrota o Medo. E a Dor. E até a própria Morte.
Essa coisa é chamada amor.
OITENTA E SEIS

M .
Medo e Dor vieram em seguida.
E, por um momento, Sophie sentiu como se o mundo tivesse
parado de girar. O chão tremeu sob seus pés. E então um som
como o de um canhão rasgou o ar. Ela se encolheu, agachando-se
protetoramente sobre Will. Uma longa e trêmula rachadura abriu-se
por toda a extensão da parede. O gesso caiu. Todas as prateleiras
começaram a tremer; as caixas de vidro deslizaram sobre eles,
batendo umas nas outras, tilintando, quebrando. Algumas
espatifaram-se no chão.
Nimmermehr estava desmoronando. Sophie sabia que ela tinha
de pegar seu coração, ajudar Will e sair do castelo. Ela largou o
atiçador. Outra rachadura rasgou uma parede. As janelas
explodiram. Choveram cacos de vidro. O chão balançou
violentamente. Ela perdeu o equilíbrio, caiu e bateu a cabeça contra
uma cadeira. Sacudindo a dor, levantou-se e cambaleou em direção
à mesa.
Ela estava a apenas alguns metros de distância, estendendo a
mão para a caixa de vidro, quando um grande pedaço de gesso caiu
do teto. Sophie viu, mas não conseguiu impedir.
Atingiu a caixa de vidro que continha seu coração e a quebrou em
pedaços.
OITENTA E SETE

—N !—S .
Ela agarrou o pedaço de gesso e o jogou no chão. Suas mãos
procuraram seu coração. Mas era tarde demais. Ela o pegou, mas
só conseguiu ficar ali olhando em desespero enquanto ele murchava
e rachava, para depois se desfazer em um pó vermelho-rubi
brilhante, que se espalhou por entre seus dedos.
Sophie caiu contra a mesa. Um gemido saiu de dentro dela. Tudo
tinha sido em vão. Seu sofrimento nas mãos do caçador. O coração
mecânico que os irmãos haviam feito para ela. Sua jornada pela
Floresta Sombria. Ela nunca conquistaria sua coroa de volta. Seu
povo seria governado por tiranos. Arno morrera ali. Agora ela e Will
também morreriam.
Dor, rodeando a mesa, aproximou-se dela. Sophie não recuou.
O que mais a mulher poderia fazer com ela? Ela apontou para o
peito de Sophie.
— Esse coração remendado foi atingido diretamente pela espada
do meu pai. A espada está quebrada, mas você ainda está aqui.
Talvez não deva desejar outro coração.
— Mas o mecanismo vai parar. A qualquer momento agora.
Johann me disse isso. Ele disse que eu tinha apenas um mês de
vida.
Olhando Sophie com um sorriso pesaroso, Dor disse:
— Talvez Johann seja um relojoeiro melhor do que pensa. Todo
coração humano é defeituoso, cheio de rachaduras e cicatrizes. E
todo coração desacelera um dia. O seu também. Mas hoje não é
esse dia. E o hoje é tudo que os humanos têm.
Ela tocou a túnica de Sophie ensopada de sangue. Uma chuva de
pétalas de rosas vermelhas espalhou-se no chão.
— Adeus, Sophia. Por enquanto.
Dor sumiu em um redemoinho preto, e, então, um corvo, com
suas penas preto-azuladas e brilhantes, ergueu-se no ar. Mais dois
se juntaram a ele, grasnando e batendo as asas, e os três voaram
por uma janela em ruínas, saindo em direção à noite enluarada.
OITENTA E OITO

O .
As janelas de todos os cômodos estilhaçavam-se. Os espelhos
espatifavam-se. As pinturas caíam no chão. A estrutura tombou. Lá
fora, as torres e muralhas do castelo estavam despencando.
Sophie precisava sair de Nimmermehr imediatamente. Precisava
salvar Will, mas ela não podia; ele estava se esvaindo. Ajoelhando-
se sobre ele, com as mãos em seu peito, ela não conseguia sentir
nenhuma respiração, nenhum batimento cardíaco. Desesperada,
gritou com ele. Pressionou seu peito. Agarrou seus ombros e o
sacudiu.
— Não morra, Will. Por favor, não morra — disse ela, com a voz
embargada. — Eu amo você.
Ela se inclinou sobre ele, beijou seus lábios demoradamente.
Fazendo o beijo longo o suficiente para durar para sempre.
Fechando os olhos, encostou a testa na dele.
— Amo você — disse ela novamente. — Eu devia ter falado isso
há muito tempo. Agora é tarde demais. Nunca mais terei a chance.
— Você aproveitaria essa chance se a tivesse?
Sophie se engasgou. Balançou a cabeça. Will estava acordado.
Seus lindos olhos machucados estavam abertos.
— Will! — ela sussurrou.
— Aproveitaria?
— Sim — disse Sophie. — Sim.
Ela o beijou repetidas vezes e poderia ter continuado a beijá-lo
mais e mais vezes se outro pedaço do teto não tivesse caído a
poucos metros deles.
— O que está acontecendo, Sophie? Onde está o Corvus?
— Ele se foi. Nimmermehr está desmoronando. Temos de ir
também, antes que sejamos esmagados.
Ela ajudou Will a ficar em pé. Ele estava machucado e mancando,
mas podia andar com a ajuda de Sophie. Ela colocou o braço em
volta de seu pescoço e, juntos, saíram da sala.
— Arno… Ele veio com você? — perguntou Will. — Ele está aqui?
— Um wunschfetzen o pegou. Mas há uma chance de que ele
ainda esteja vivo, eu acho.
— Como?
— Corvus falou sobre ele. Não disse que estava morto, mas que
estava vagando nos túneis. Não podemos deixá-lo aqui, Will.
— Não podemos, mas temos de nos apressar. Quando este lugar
desmoronar, vai destruir os túneis e qualquer pessoa que estiver
neles.
Sophie conduziu Will de volta pelo caminho pelo qual viera,
passando pelo salão de baile e pela sala de música, pela sala de
armas e pela sala de troféus. Eles se esquivaram de livros e lustres
que caíam. Os caixilhos das portas racharam acima de suas
cabeças; tábuas do assoalho separaram-se sob seus pés. Os
servos goblins estavam correndo para salvar suas vidas também e
não prestaram atenção aos dois humanos em fuga entre eles.
Quando Sophie e Will finalmente chegaram à cozinha, uma
espessa fumaça preta saía dos fornos, tornando difícil enxergar. O
chão estava escorregadio por causa da água que fluía de canos
estourados. Sophie escorregou e caiu, quase derrubando Will com
ela, mas se segurou, continuou andando e encontrou o caminho
para a despensa.
Will pegou um punhado de bolinhos de cima de uma mesa.
— Se encontrarmos Arno, podemos usar isso para atrair os
wunschfetzens — disse ele, enfiando-os nos bolsos. Sophie pegou
uma tocha acesa que alguém havia deixado em uma prateleira.
Eles conseguiram correr da despensa para baixo através dos
porões, mas seu progresso para o túnel — pelos degraus de pedra
escorregadios — foi dolorosamente lento, e o tempo todo o antigo
castelo acima deles estremecia e gemia.
Enquanto desciam, Will contou a Sophie como ele também tentou
encontrar o túnel, mas não conseguiu. Ele tentara então passar pela
ponte, sob a escuridão, mas um guarda goblin o agarrara antes
mesmo que ele conseguisse atravessar metade do fosso. Seguiram-
se lutas e vários longos dias em uma cela da masmorra. Ele nunca
esperou sair do castelo vivo.
Quando Sophie finalmente ajudou Will a descer os degraus e
entrar no túnel, eles conseguiram fugir mais rápido. Seu único
obstáculo era a parede desabada. Mais escombros foram soltos
pelo tremor acima deles, mas a abertura ainda estava lá. Sophie foi
a primeira, enquanto Will esperava do outro lado. Após passar, ela
se virou para que ele pudesse lhe dar a tocha. Manipulando-a com
cuidado, pois era a única luz que eles tinham, ela a colocou no chão
e, em seguida, estendeu a mão pela abertura para pegar a mão
dele.
Mas, antes que pudesse tocá-lo, um braço carnudo se enroscou
em seu pescoço e a puxou para trás. Sophie não teve tempo de
gritar.
Seu agressor apertou, estrangulando-a. Fogos de artifício
explodiram dentro de sua cabeça. Ela lutou, agarrando-se a ele, os
pés chutando loucamente, mas não conseguia se libertar.
— Onde ele está? — gritou uma voz. — Onde está o Matti? Onde
está meu filho?
Era Arno, e ele a estava estrangulando.
Sophie tentou chamar seu nome, implorar para que parasse, mas
nenhum som saiu. Seus pulmões estavam travados. Os fogos de
artifício, sumindo. Ela sentiu o corpo ficar mole, sentiu a força se
esvaindo dela.
E então Arno a jogou no chão como um saco de lixo. Enquanto
segurava sua garganta, Sophie olhou para ele. Ele estava um
verdadeiro desastre cambaleante. Seu rosto, molhado de lágrimas;
seus olhos, desfocados. Meia dúzia de wunschfetzens estava
agrupada em seus ombros. Dois tinham os dedos em seus ouvidos.
Os outros empurravam e brigavam entre si, tentando afastar os
demais, para que pudessem atormentá-lo.
— Ei! Vejam! Olhem aqui, seus idiotas! — gritou Will.
De alguma forma, ele conseguiu rastejar pelos escombros. Uma
das mãos estava apoiada na parede; a outra foi abrindo caminho à
sua frente.
— Vamos, venham cá. Estão vendo o que tenho para vocês?
Em sua mão estavam os bolos que ele pegara. Estavam
esmagados; a cobertura, rachada, mas não importava; os
wunschfetzens gritaram, vorazes, ao vê-los. Esticaram os braços
magros na direção de Will; os dedos longos e pegajosos agarraram
os doces.
— Venham cá — Will persuadiu. — Isso…
Os wunschfetzens pularam dos ombros de Arno para o chão do
túnel. Ao fazê-lo, seus olhos clarearam. Suas costas se
endireitaram. Ele parecia ter saído de uma névoa.
As criaturas pularam e dançaram em volta das pernas de Will,
clamando pelos bolos. Will baixou a mão, mas ainda segurava os
quitutes fora do alcance deles. Os wunschfetzens babaram; seus
olhos enormes ficaram ainda maiores.
— Aqui está, seus nojentos — disse Will, jogando os bolos pela
abertura nos escombros.
Os wunschfetzens gritaram de raiva. Escalaram os escombros,
puxando as pernas e os braços uns dos outros, cada um tentando
evitar que os outros chegassem aos bolos.
— Isso vai mantê-los um pouco ocupados — disse Will.
— Will, é você? Como chegou aqui? — perguntou Arno,
atordoado. — Sophie, por que estamos parados? Temos de ir.
Temos de entrar no castelo.
— Fui sem você, Arno. Tive de ir — Sophie começou a explicar,
mas um dos wunschfetzens gritou, interrompendo-a.
Arno olhou para as criaturas barulhentas, ainda brigando nos
escombros.
— Acho que eles estavam envolvidos — disse ele.
— Vou contar tudo assim que sairmos daqui — Sophie prometeu.
— Ajude Will. Precisamos seguir em frente. Nimmermehr está
desmoronando.
Assim que as palavras deixaram seus lábios, um estrondo foi
ouvido acima deles. O túnel tremeu. Sujeira e pedras caíram do teto.
Sophie pegou a tocha. Arno agarrou o braço de Will e o apoiou
em seu pescoço. Os três se esquivaram de mais escombros e
escalaram outro desabamento. Meia hora depois, conseguiram sair
do túnel.
Arno caiu contra uma rocha, fraco de alívio. Will se juntou a ele.
Mas Sophie não os deixou descansar.
— Precisamos encontrar Jeremias e Joosts. E os cavalos — disse
ela. — Caso algo não os tenha encontrado antes — ela
acrescentou, com pesar.
Eles passaram por árvores e arbustos, guiados pelo som da água
corrente. Os dois irmãos, parecendo abatidos e preocupados,
estavam parados na margem do rio, olhando para o castelo à
distância. As chamas o devoravam agora, queimando tão quente e
alto que lançavam um brilho alaranjado sobre toda a paisagem.
— Jeremias! Joosts! — Sophie chamou, correndo para eles.
— Sophie! — gritaram os dois irmãos.
Eles correram até ela e os três ficaram juntos, abraçados, por um
longo minuto de lágrimas.
— Pensamos que você estivesse lá — disse Joosts, acenando
com a cabeça para o incêndio.
— Achamos que tínhamos perdido você — disse Jeremias, com
um tremor na voz. — Você…
Suas palavras foram interrompidas pelo estrondo de uma torre
caindo. Will e Arno se juntaram aos outros. Todos eles assistiram
em silêncio enquanto outra torre desabava. Um momento depois, as
muralhas caíram e, com um estremecimento, o próprio castelo se
desfez, implodindo com a força de um terremoto. Choveram blocos
de pedra, levantando gêiseres de água do fosso, abrindo buracos no
chão, quebrando a ponte levadiça. O barulho continuou pelo que
pareceu uma eternidade, e então tudo ficou assustadoramente
quieto. O castelo do Rei dos Corvos sumiu. Havia apenas uma
nuvem de poeira subindo da cratera onde ele costumava ficar.
Enquanto os cinco amigos ficavam parados, observando e
ouvindo, os gritos e choros dos goblins ergueram-se na noite. Eles
foram respondidos pelos rugidos dos trolls, pelos gritos dos
waldwichts e por outros sons — sons que Sophie não conseguia
nem queria identificar.
Arno estremeceu quando um uivo particularmente horripilante se
elevou.
— Medo foi embora, mas suas criaturas ainda estão à espreita —
disse ele. — Precisamos ir. Não estamos seguros aqui, nem de
longe.
Ele e Joosts desamarraram os cavalos. Will se abaixou até a
água, colocou as mãos em concha e bebeu.
E Jeremias pôs a mão no braço de Sophie.
— Tentei lhe perguntar uma coisa, mas o castelo desabou antes
que eu pudesse. Você encontrou seu coração, Sophie?
Sophie não sabia o que dizer. Ela o encontrou em Nimmermehr,
apenas para perdê-lo novamente. Para sempre. Mas, então, pensou
em Jeremias e Joosts, e nos outros irmãos na Toca. Em Weber e
Tupfen. Tom. Nos Becker. Em todos os soldados. Oma e Gretta.
Will.
Sophie sorriu.
— Sim, Jeremias — ela disse, finalmente. — Encontrei.
OITENTA E NOVE

A , mas a lua prateada, alta e


brilhante, fornecia luz suficiente para Sophie e seus amigos
enxergarem o caminho pela Floresta Sombria.
Will e Joosts tinham dificuldade para andar, então estavam a
cavalo. Sophie e Jeremias conduziam os animais, e Arno os guiava,
pois conhecia melhor a floresta.
Todos tentavam ficar o mais silenciosos possível para não chamar
a atenção de criaturas hostis. Também tentavam planejar o próximo
passo.
— Vamos levar Will para casa primeiro — disse Arno em voz
baixa. — Ele precisa de cuidados. Depois, iremos para a Toca…
Sophie o interrompeu.
— Faça o que você precisa fazer. Estou voltando para
Königsburg, para o palácio — disse ela.
Ela tinha vencido o Medo, superado a Morte.
Seu coração estava forte, mais forte do que ela ou os irmãos
haviam percebido.
Agora era hora de enfrentar a rainha.
— Como? — perguntou Will. — Adelaide… Haakon… Eles irão
matá-la.
— Você não pode ir lá, Sophie. É uma loucura — disse Arno.
Seu tom de desprezo irritou Sophie. Ela alongou as rédeas de seu
cavalo e o alcançou.
— Foi você quem me disse para pegar minha coroa de volta, não
foi?
Arno não respondeu.
Então, ela levantou a voz.
— Foi você quem disse: Só porque você não tem dois centavos
ou um exército hoje não significa que você não os terá amanhã.
Arno ergueu o queixo.
— Eu não a conhecia. Não me importava com você. Perdi minha
família uma vez. Meu garotinho. Você é minha família agora,
Sophie. Eu não posso perdê-la.
— Sophie, é suicídio — argumentou Jeremias. — Você precisa de
ajuda. Aliados. Precisa de soldados e armas. Você terá que pedir
ajuda ao Imperador do Catai. Ou…
— Shhh! — Will fez de repente, erguendo a mão.
Todos pararam. Ficaram em silêncio. Um farfalhar foi ouvido. Veio
de trás deles. E da frente. O que quer que estivesse ali, já os tinha
cercado.
— Alguém está aí — disse Sophie calmamente.
— Muitos alguéns — acrescentou Will.
Ele ergueu a tocha que ainda carregava. Sua luz refletiu em
muitos olhos que brilharam em tons de verde na escuridão.
— Quem são eles? O que querem? — perguntou Joosts.
— Medo enviou seu exército para terminar o trabalho — disse
Arno.
Assim que ele terminou de falar, o ataque foi lançado. Houve uma
série de estrondos altos e fortes, e então uma árvore, a apenas
alguns passos de onde Sophie estava parada, explodiu em mil
pedaços. Os cavalos empinaram, relinchando estridentemente. Will
e Joosts mal conseguiram ficar em seus lugares.
Um troll de pedra, com quase dois metros e meio de altura e feito
de rochas e escombros, surgiu na clareira, com as mãos enormes
cerradas em punhos. Dezenas de goblins o seguiram, seus olhos
escuros — e dentes afiados — brilhando à luz das tochas. Eles
estavam armados com porretes e lanças.
As mãos foram para as armas, mas Sophie e seus amigos
estavam em grande desvantagem numérica e sabiam disso. Um
goblin deu um passo à frente. Sophie ficou tensa, segurando sua
adaga, pronta para lutar por sua vida. Mas, então, para seu espanto,
em vez de atacá-la, o goblin fez uma mesura para ela.
— Perdoe-nos. Não queríamos assustá-la — disse ele, olhando
para o troll com severidade. — Alguns de nós não conhecem a
própria força.
O troll remexeu-se de um pé para outro, envergonhado. Bateu
com o punho na cabeça. O goblin levantou-se. Seus olhos
encontraram os de Sophie.
— Medo nos escravizou — disse ele. — Nos tornou malvados.
Você nos libertou. Estamos aqui para agradecê-la por isso e para
declarar nossa lealdade a você. Nosso código de honra exige isso.
Você será a nossa governante a partir de agora. Estamos sob seu
comando, somos seus servos leais.
Enquanto Sophie observava com espanto, mil tochas se
acenderam dentro da floresta. Ela viu centenas de goblins. Trolls de
pedra, trolls de musgo, trolls de rio, trolls de lama. Havia waldwichts
e makabers. Fadinhas pixies com gorros de cogumelo e chapéus de
bolota — algumas montadas em esquilos ou ratos, outras sentadas
em carroças de madeira puxadas por doninhas.
Seus olhos — esperançosos, cheios de expectativa, determinados
— estavam todos voltados para ela. E ela não sabia o que fazer.
Eles queriam que ela fosse sua líder, mas ela nunca havia liderado
ninguém antes, muito menos criaturas tão ferozes. Outro goblin deu
um passo à frente, carregando uma coroa. Era feita de rosas de
Herzmord entrelaçadas. As flores que a decoravam não
sussurravam mais palavras venenosas, mas brilhavam como joias
escuras ao luar.
As palavras do líder goblin soaram em sua cabeça. Ele nos tornou
malvados… Você nos libertou…
Sophie sabia que foi o amor que os libertara. O amor deu-lhe
coragem para enfrentar o medo. O amor a tornou forte. Ela pensou
em outra criatura movida pelo medo — Adelaide.
Talvez pudesse ser libertada também. Talvez todo aquele reino
devastado pudesse ser libertado.
Sophie respirou fundo. Ela se ajoelhou. O goblin deu um passo à
frente e colocou a coroa em sua cabeça. Quando Sophie se
levantou, ele — e todas as outras criaturas — levantaram seus
punhos, suas armas, suas vozes.
— Salve a rainha! Salve a rainha! Salve a rainha! — O som ecoou
pela floresta como o rugido de um furacão.
O troll de pedra, aquele que surgira na clareira, aproximou-se de
Sophie. Ele abaixou-se e colocou sua mão enorme no chão, palma
para cima, e bateu em seu ombro com a outra mão.
Sophie entendeu. Ela pisou em sua palma, depois subiu em seu
braço e sentou-se em seu ombro. Ele inclinou seu rosto feroz para o
dela. Em seus olhos, havia uma pergunta. Sophie sussurrou a
resposta. O troll assentiu. Ele se endireitou, virou para o leste e
começou a andar, o chão tremendo a cada passo.
Will a chamou, sua voz tensa de medo.
— Sophie, o que está fazendo? Aonde você vai?
Sophie se virou para ele sorrindo e disse:
— Para o meu palácio. Com o meu exército.
NOVENTA

E .
Em pares e trios. Ou um por um. De Schadenburg. Grauseldorf.
Drohendsburg. E mil outros lugares.
Em carroças. A pé. Carregando mochilas e pacotes. Carregados
de comida e provisões ou apenas com as roupas do corpo. A notícia
sobre a jovem rainha em sua marcha ao palácio para reclamar seu
trono se espalhou por toda parte.
Nas cidades e vilas, as pessoas abriram suas janelas. Correram
para as ruas. No campo, pararam de arar o solo ou ordenhar suas
vacas e correram para a estrada para dar uma olhada nela. Max
avistou a procissão da janela superior do celeiro que comprou com
as joias do cemitério de Arno para abrigar seus companheiros
refugiados.
Ele e uma centena de outras pessoas fizeram as malas às
pressas e estavam esperando na beira da estrada quando ela
passou. Os veteranos feridos, todos eles, encontraram-se com ela
perto das ruínas queimadas de São Sebastião. Um troll de pedra
carregou o soldado sem pernas.
Um goblin pegou a mão do músico cego e, juntos, caminharam
com os outros.
Os Becker aderiram à procissão — o marido com o rosto marcado
por cicatrizes, a esposa grávida, a avó, os filhos —, assim como a
maioria das pessoas de sua aldeia.
Os idosos e os jovens foram. Os fortes e os fracos. Os ricos e os
pobres. Jovens mães com crianças pequenas nos braços. Mães
idosas nos braços de seus filhos adultos. Todos eles se juntaram a
Sophie. Prometeram lutar por ela. Morrer por ela.
Os trolls colocaram os enfermos nos ombros. Os waldwichts
fizeram cestos com os braços e carregaram os bebês. À noite, nos
acampamentos, as crianças trançavam os cabelos longos e finos
dos trolls do rio, para deixar seus rostos livres, e levavam ossinhos
para os makabers. Os pequeninos se aninhavam nos braços macios
dos trolls de musgo. Os mais velhos contavam histórias.
O número de pessoas aumentou de centenas para milhares para
dezenas de milhares. Durante dias, eles caminharam pela Floresta
Sombria, sob sol e chuva, subindo colinas e vales, até que
finalmente chegaram aos arredores de Königsburg ao anoitecer e
ergueram acampamento pela última vez. A jovem rainha sentou-se
durante a noite, com os olhos no palácio, observando suas grossas
paredes de pedra, sua ponte levadiça. Seus canhões, espadachins
e arqueiros.
Ela sabia o que deveria fazer na manhã seguinte.
NOVENTA E UM

U , turvos e cansados depois de uma


longa noite, parou no topo das muralhas.
— Estou sonhando. Devo estar — disse ele, incapaz de acreditar
no que seus olhos lhe mostravam.
Esfregou o rosto cansado, mas não estava dormindo. Enquanto
continuava a olhar para o lado, viu algo que ficaria com ele pelo
resto de seus dias.
Uma garota, seu cabelo preto cortado curto, atravessava a
Floresta Sombria por uma clareira, em direção ao palácio.
Ela estava machucada, suja e com cicatrizes. E sozinha.
Uma enorme multidão cercou a clareira, mas não se aproximou
do palácio. A garota parecia ter pedido a todos que ficassem para
trás, que ficassem seguros. Por um momento, o sentinela pensou
que ela parecia a princesa que voltou dos mortos. Mas descartou a
ideia, imaginando ser uma miragem de seus olhos turvos. Essa
garota magra e esfarrapada não podia ser a princesa. Nenhum
cavalo de guerra a carregava. Nenhum manto de cetim e seda
esvoaçava ao redor dela. Ela usava calças rasgadas e uma camisa
andrajosa. Uma coroa simples de rosas negras adornava sua
cabeça.
Ela caminhou até estar a apenas alguns metros da parede do
palácio. — Sentinela! — ela gritou. — Abaixe a ponte levadiça!
Deixe-me entrar!
— Quem é você? Com que direito exige a entrada no palácio? —
o sentinela gritou de volta.
— Sou a Rainha Charlotta-Sidonia Wilhelmina Sophia, legítima
governante das Terras Verdes! Vim resgatar minha coroa das mãos
de uma rainha cruel e de seu herdeiro assassino!
O sentinela não sabia o que fazer. Disseram-lhe que a princesa
estava morta. No entanto, aqui estava uma garota que se parecia
com ela, exigindo a entrada no palácio. Enquanto ele estava parado,
pensando, vários outros soldados se juntaram a ele. Um gritou pelo
sargento.
— Soldados! — a garota berrou. — Vim reclamar a minha coroa!
Abaixem a ponte levadiça!
Gritos foram ouvidos entre eles. As palavras da garota equivaliam
a traição. Exigiam a coroa; ameaçavam a rainha. Um alarme soou.
Soldados correram de seus quartéis aos gritos. Os arqueiros
tomaram suas posições. O senhor Comandante apareceu, sua
longa capa ondulando atrás dele. Veio seguido pelo Príncipe
Haakon.
— O que está acontecendo aqui? Onde está a rainha? — Haakon
perguntou.
— A Rainha Adelaide está segura em seus aposentos, meu
senhor. Cercado por guardas — o senhor Comandante respondeu.
— Essa garota — disse o sentinela, apontando para Sophie — diz
que ela é a rainha.
Haakon virou-se e olhou para as muralhas da clareira. Seu rosto
ficou vermelho de raiva.
— Como ela não está morta? — ele disse as palavras baixinho,
mas o senhor Comandante as ouviu, e seus olhos astutos se
aguçaram.
Haakon respirou fundo, pronto para gritar ordens, mas, antes que
pudesse fazer isso, Sophie falou.
— Senhor Comandante! Soldados! — ela gritou. — Vejam! Olhem
essas pessoas comigo! Seu povo! Seus amigos e vizinhos! Suas
famílias! Vocês sabem o que está acontecendo com eles? Estão
sendo expulsos de suas casas. Suas safras e posses estão sendo
levadas para construir fortalezas e comprar navios de guerra para
que uma rainha sem coração e um falso príncipe possam atacar
reinos que não nos atacaram. O mesmo vai acontecer com vocês.
Quando forem feridos, serão descartados. Quando a fazenda de seu
pai for valiosa para a rainha, ela a tomará. Quando o príncipe
precisar de seus cavalos para seus generais, seu gado para
alimentar seus soldados, ele os levará.
— Ela é uma traidora! Atirem nela! — Haakon berrou.
— Mas, meu senhor — um dos soldados disse. — Ela diz que é a
princesa. Não podemos atirar na princesa!
A fúria contorceu as belas feições de Haakon.
— Ela não é a princesa! A princesa está morta! Ela é uma
impostora, uma encrenqueira! Atirem nela, eu falei! Não estão me
ouvindo? — ele gritou. — Já!
Os arqueiros, todos os cem, encaixaram as pontas das flechas
nas cordas dos arcos e se prepararam para mirar. Cem flechas
destruiriam Sophie, com ou sem um coração forte.
Mas Sophie não se encolheu. Ela não correu. Em vez disso,
avançou e rasgou a gola de sua camisa, expondo a pele com
cicatrizes sob sua clavícula.
— Aqui está seu alvo, arqueiros! — ela gritou. — Atirem se
quiserem! Vocês têm armas letais. Eu tenho apenas meu coração.
— Preparar! — Haakon gritou.
Os arqueiros ergueram os arcos, puxaram as cordas e miraram,
esperando que ele gritasse a final: “Atirar!”.
Mas, antes que ele pudesse dizer isso, uma jovem mãe, com seu
bebê nos braços, saiu da fila de pessoas que cercavam a clareira e
correu para Sophie. Ela já estava ofegante quando a alcançou.
— Não! — Sophie gritou, apavorada pela mulher e por seu bebê.
E fez um gesto para que ela voltasse.
Mas a mulher não quis voltar. Ficou ao lado de Sophie, de frente
para o palácio e todos os seus soldados. Segurando seu bebê com
força contra o peito, de cabeça erguida.
— Se atirarem em nossa rainha, terão de atirar em nós também!
— ela gritou.
O coração de Sophie apertou. Ela nunca tinha visto tamanha
bravura.
— Não faça isso. Volte. Por favor — ela disse.
— Para quê? Para vagar pelas estradas? Para mendigar? Essas
são mortes lentas. Prefiro uma morte rápida para mim e meu bebê.
Meu marido está morto. Minha casa se foi. Não temos nada. Você
nos deu algo. Você nos deu coragem. Esperança. Amor.
Lágrimas formaram-se em seus olhos, mas Sophie as engoliu. Ela
sentiu a mão da mulher. Estava tremendo. Sophie apertou com
força.
As duas mulheres se viraram e, mais uma vez, encararam os
arqueiros. Sophie rezou para que, se o fim estivesse chegando,
fosse rápido. Mas os deuses tinham outras ideias, pois, um a um, os
arqueiros baixaram seus arcos.
— Atirem, diabos! — Haakon trovejou. — Ou vou enforcar todos
vocês!
Mas os homens não atirariam em uma criança.
Sophie e a jovem mãe não ficaram sozinhas por muito tempo. O
músico cego foi o próximo a atravessar a clareira, ajudado por seu
novo amigo goblin. Depois vieram a Sra. Becker, em avançado
estágio de gravidez, e sua família. Max. Uma mulher em um
carrinho de mão, empurrada por dois meninos.
Velhos. Crianças. Trolls e pixies. Todos deram-se as mãos,
formando um círculo ao redor de Sophie. O círculo foi crescendo
cada vez mais, espiralando para fora, até encher toda a clareira. O
senhor Comandante olhou para o mar de pessoas. Seu povo.
Cansado, com fome, magro. Alguns até feridos. Sem casa.
Sofrendo.
Descartados.
Mas valentes, muito valentes. Tão cheios de esperança.
— Vocês se atrevem a desobedecer ao seu príncipe? — Haakon
gritou. — Atirem!
— Ele não é o príncipe de vocês! — Sophie gritou. — Ele não se
importa com vocês e os usará como bucha de canhão para
satisfazer a própria ambição. Morrerão por ele, porque esse é o tipo
de governante que ele é. Eu morrerei por vocês, porque esse é o
tipo de governante que eu sou. Prenda-o, senhor Comandante!
Enfurecido agora, Haakon arrancou um arco e uma flecha das
mãos de um arqueiro. Em um movimento rápido e fluido, atirou.
Mas o senhor Comandante foi mais rápido. Agarrou o arco e
puxou-o para baixo. O tiro foi baixo; a flecha caiu inofensivamente
no fosso.
— Prendam este homem — ele ordenou.
— Me prender? — Haakon disse, incrédulo. — Sob ordens de
quem?
O senhor Comandante virou-se para Sophie. E curvou-se diante
dela.
— Da rainha — disse ele ao se levantar.
NOVENTA E DOIS

S no ombro de um troll de
pedra.
Os soldados ajoelharam-se quando ela entrou na Corte da
Rainha. O troll também se ajoelhou e estendeu a palma da mão.
Sophie pisou sobre ela para descer. O troll soltou um rosnado
ameaçador como um lembrete do que aconteceria se alguém a
machucasse. O senhor Comandante estava esperando por ela.
Sophie olhou em volta, surpresa por estar novamente na corte.
Houve dias em que ela pensou que nunca veria o palácio
novamente.
Agora que estava ali, logo teria de assumir responsabilidades,
mas tinha outra tarefa a cumprir primeiro. Haakon havia sido preso,
mas a maior inimiga de Sophie ainda estava à solta, e ela não
estaria segura, nem seu povo, até que Adelaide estivesse em uma
cela de prisão.
— Bem-vinda ao lar, Sua Majestade — saudou o senhor
Comandante.
Sophie fez para ele um breve aceno de cabeça.
— Minha madrasta… Onde está? — perguntou ela.
— Nos aposentos dela — respondeu ele.
— Vou precisar que você me acompanhe, junto a duas dúzias de
soldados leais — disse Sophie enquanto se preparava para o
confronto. — Os homens que a protegem podem não querer recuar.
O senhor Comandante ordenou a seus soldados que ficassem ao
lado de Sophie e disse que os acompanharia. Quando eles estavam
prestes a entrar no palácio, Haakon — sendo empurrado pelas
muralhas — apareceu na corte da rainha ao ser levado para as
masmorras.
Suas mãos estavam algemadas. Ele tinha um corte acima de um
olho, uma contusão na bochecha. Obviamente tentara lutar ao ser
capturado.
Ele e Sophie se entreolharam.
— Pare — ela ordenou enquanto ele e seus guardas se
aproximavam dela.
— Hum, Sophie, eu… — ele começou a falar, mas ela o
interrompeu.
— Meu anel, por favor — disse ela, apontando para o anel de
unicórnio de ouro na mão esquerda de Haakon, o Anel do
Governante.
Um dos soldados o removeu e o entregou a Sophie. Ela o colocou
em seu dedo anelar esquerdo, que era o seu lugar.
— Me perdoe, Sophie… Sinto muito. Por tudo. O que fui fazer?
Deveria ter sido eu colocando um anel em seu dedo — Haakon
disse, sua voz carregada de remorso.
— Isso quase aconteceu — disse Sophie, com os olhos fixos nele,
em seus cabelos dourados, seu rosto bonito, seus olhos de um azul-
celeste.
Ela se lembrou do anel de flor que ele lhe dera, ali no palácio,
havia não muito tempo. Das promessas. Dos beijos.
Haakon a olhou nos olhos.
— Você não vai acreditar em mim… mas é com você que estou
preocupado agora — disse ele.
Sophie deu uma risada melancólica.
— Você tem razão, Haakon. Eu não acredito em você.
— Me mande para a prisão. Me tranque em uma cela, mas
permita que eu a ajude — Haakon disse seriamente. — Deixe-me
passar o resto da minha vida consertando o que fiz. Ou, pelo
menos, tentando.
— Por que eu faria isso?
— Porque você não conseguirá sem ajuda, Sophie — disse ele, a
voz urgente e baixa. — Você não conseguirá governar. Você sabe
que não. Você tem o coração mole demais. Seus inimigos a
comerão viva. Como você lidará com eles? Vai amá-los até a morte?
Sophie inclinou a cabeça, seu olhar firme.
— Como você quer que eu lide com meus inimigos?
Haakon endireitou-se, encorajado por sua pergunta.
— O Rei do Interior vai invadir assim que souber que você
assumiu o trono. O Imperador do Catai certamente fará o mesmo.
Deixe-os cruzarem as fronteiras, queimarem algumas cidades,
matarem alguns aldeões…
— Você é tão inteligente, Haakon. Tão seguro — disse Sophie,
interrompendo-o. — Você sempre sabe o que precisa ser feito.
Haakon fez que sim com a cabeça, em perfeito acordo com ela.
As mulheres sempre sucumbiram ao seu charme, à sua inteligência,
à sua confiança. Como não?
— Posso ajudá-la, Sophie. De verdade. Contanto que você me
deixe.
Sophie arqueou uma sobrancelha.
— Assim como você me ajudou em São Sebastião?
— Aquilo foi um mal-entendido…
— Ah. Foi isso que aconteceu?
Haakon arriscou um sorriso. Do tipo que derrete o mais gelado
dos corações.
— Tudo é justo no amor e na guerra, minha querida menina. Mas
estamos do mesmo lado agora. Pelo menos, nós podemos estar…
— Continue.
— Você deve lidar com seus inimigos de forma rápida e decisiva
— ele instruiu. — Capture seus capitães e generais. Capture os reis,
se puder. E dê o exemplo. Não demonstre misericórdia. Leve os
prisioneiros direto para o carrasco, antes que seus comandantes
enviem reforços, e mande cortar suas cabeças.
— Cortar as cabeças dos meus inimigos… Que ideia excelente,
Haakon — disse Sophie.
Ela se virou para os dois soldados que seguravam o belo príncipe
e disse:
— Comecem com a cabeça dele.
NOVENTA E TRÊS

S , S no palácio e foi até a


escada principal. Subiu os degraus de dois em dois. O senhor
Comandante e seus soldados a seguiram.
O corredor que conduzia aos aposentos de Adelaide foi
bloqueado em ambas as extremidades por membros da guarda da
rainha. O senhor Comandante explicou ao capitão o que havia
acontecido e ordenou que se retirassem.
Os olhos de Krause piscaram diante de Sophie. Um sorriso de
escárnio curvou seu lábio. Ele hesitou, apenas por um instante,
então obedeceu ao senhor Comandante. Sophie lembrou-se de
quando ele incendiara São Sebastião e expulsara os Becker de sua
casa.
Adelaide um dia dissera a ela que a covardia podia infectar uma
população inteira. Olhando para Krause, Sophie sabia que a
maldade também podia. Ela iria substituir o capitão da guarda.
Imediatamente.
Sophie tentou abrir as portas dos aposentos de sua madrasta,
mas estavam trancadas. Ela a chamou, pedindo-lhe que as abrisse.
Como não obteve resposta, gesticulou para que seus soldados as
derrubassem — uma tarefa cumprida na mesma hora.
Ela percorreu os aposentos da madrasta — antecâmara,
escritório, sala de vestir — com cautela, plenamente consciente de
que a mulher havia tentado matá-la várias vezes. Ao fazer isso, viu
a mobília conhecida, as joias e os vestidos, o espelho dourado.
Quantas vezes ela tinha sido convocada para ir ali e suportar as
palavras duras da rainha, seus olhares de reprovação? Quantas
vezes não havia sido forçada a ouvir sobre suas deficiências, suas
falhas? Ouvir tudo aquilo que ela não era?
Muitos teriam perdoado Sophie, caso se sentisse triunfante ao
atravessar os cômodos, mas tudo que ela sentia era uma profunda e
dolorosa tristeza pelas horas, pelos dias, pela vida desperdiçada ali.
Sophie encontrou Adelaide no último cômodo — seu quarto. Ela
estava parada ao lado das portas francesas que davam para o
terraço.
— É você mesma — disse Adelaide ao se virar para olhar para
Sophie. — Você morreu com a maçã envenenada. Eu vi. E, ainda
assim, aqui está você. Você é impossível de matar. — Ela rodeou
Sophie. — Olhe para você. Muito diferente. Cicatrizada e suja,
magra como uma vassoura, mas marchando por palácios e
derrubando inimigos. — Ela parecia maravilhada. — Fui eu que a
transformei nisso. Eu é que lhe dei força. Tornei você astuta. Fiz de
você quem é hoje.
Sophie lentamente abanou a cabeça.
— Não, Adelaide. Eu me fiz ser quem sou hoje. Com a ajuda de
meus amigos e de meu povo.
— Você deve vir conosco agora, senhora — o senhor
Comandante disse a Adelaide enquanto dois de seus soldados
avançavam em sua direção.
Mas a rainha foi mais rápida do que eles. Abriu as portas para o
terraço e disparou através delas. Sua intenção era clara.
Sophie ergueu a mão, fazendo os homens pararem.
— Saia daí, Adelaide — ela disse.
Porém, a madrasta não obedeceu. Ela estava virada de frente
para Sophie, mas continuou andando para trás, dando um passo
lento após outro, até chegar ao parapeito.
— Pare, Adelaide.
— Por quê? Não é para isso que você veio? Para se vingar? Vou
tornar a coisa mais fácil para você.
— Não foi por vingança que vim.
— O que você quer, então?
— Conheci o Rei dos Corvos. Ele me disse que a ajudou quando
ninguém mais a ajudaria. Conte para mim, Adelaide. Me diga o que
aconteceu. Eu quero entender.
— Por que eu deveria? Não vai me adiantar de nada.
— Vai fazer bem a nós duas — retrucou Sophie. Ela acenou para
os homens de volta.
Eles se retiraram para a sala ao lado.
Adelaide observou Sophie por um longo momento, refletindo;
então, voltou para o quarto. Parou em frente ao seu espelho e o
encarou. Seus olhos não estavam focados em si mesma; estavam
longe. Como se fosse transportada para outro lugar e outra época,
que Sophie não conseguia acessar.
— Quando eu tinha doze anos, Edward, o traiçoeiro duque da
Saxônia, atacou o palácio de meu pai. Ele queria a coroa. Não
houve nenhum aviso, nenhum tempo para que meu pai pudesse
reunir seu exército. A guarda do rei lutou com bravura, mas foi
rapidamente dominada. Os homens de Edward não pouparam
ninguém no palácio, nem mesmo os ajudantes de cozinha. Mataram
meus pais na minha frente. Minha mãe tentou me proteger. Ela
pressionou uma adaga em minhas mãos. Ao morrer, meu pai me
implorou para salvar seu filho. Prometa-me, Adelaide, ele disse.
Prometa que o salvará, não importa o que aconteça. Mesmo que
isso custe sua própria vida…
Sophie ouvia a madrasta com atenção. Ela tinha ouvido a história
do assassinato dos pais de Adelaide, mas nunca de sua própria
boca.
— Eu era pequena e ligeira. Consegui escapar dos soldados e
chegar ao quarto do bebê por uma passagem secreta. Meu irmão
estava lá, vivo. A babá estava com ele. Ela trancou a porta, mas os
soldados de Edward a estavam esmurrando. O bebê gritava de
medo…
As palavras de Adelaide foram sumindo conforme a emoção
tomava conta dela. Ela precisou de um momento para se recompor.
Sophie esperou, observando-a no espelho. Depois de um longo
momento, Adelaide falou novamente.
— Havia um espelho no quarto do bebê. Este mesmo —
continuou ela, tocando o espelho. — Eu me vi nele. Eu estava
encharcada de sangue. Minhas pernas se dobraram e caí de joelhos
diante da minha imagem. A babá implorou para que eu me
levantasse. Para salvar meu irmão. Mas eu mal a ouvi. Estava tão
apavorada que não conseguia me mover. Tudo que conseguia fazer
era olhar para o espelho. E foi então que o vi… Atrás de mim, no
espelho… O Rei dos Corvos. Ele prometeu me ajudar. Me disse
para levantar e pegar meu irmão. Os soldados estão quase
passando por aquela porta, ele disse. Depressa. Só então a porta se
abriu. Os homens de Edward entraram no quarto, mas, quando o
fizeram, foram atacados por alguns sobreviventes da guarda de meu
pai. Um dos soldados inimigos se libertou e matou a babá. Ele foi
para cima do meu irmão…
— O que você fez? — perguntou Sophie.
Adelaide sacudiu a cabeça.
— Adelaide, o que você fez?
— Eu o matei, a pedido de Corvus. Usei a adaga da minha mãe.
Sophie respirou fundo. Adelaide continuou falando. As palavras
jorraram de sua boca, como se tivessem ficado presas por muito
tempo e a represa tivesse finalmente estourado.
— Eu tive sorte. O primeiro corte foi profundo. Ele largou a arma.
Eu o esfaqueei sem parar, embora ele implorasse por sua vida.
Aquele soldado me visita com frequência. Em meus pesadelos. Não
custou minha vida salvar o filho do meu pai. Custou-me muito mais
que isso…
Sophie se aproximou. Ela podia ver a angústia nos olhos da
madrasta e sabia que, em sua mente, Adelaide era como uma
menina de novo, naquela sala, com o homem moribundo e a criança
chorando. Ela sofria por aquela menina.
— Consegui pegar meu irmão e fugir. Dois dos guardas de meu
pai nos levaram ao castelo do Conde de Coburg. Como filha mais
velha, de repente me tornei rainha regente, a governante de meu
reino. E, com a ajuda do conde, montei um exército naquela mesma
noite. Tomamos o palácio na manhã seguinte e derrotamos os
soldados de Edward. Governei por dezessete anos. Até meu irmão
atingir a maioridade e me obrigar a me casar com o seu pai, como
um cavalo colocado no pasto.
Adelaide ficou em silêncio, ainda parada em frente ao espelho.
Seus olhos estavam vermelhos de lágrimas não derramadas; seu
rosto, devastado pelo remorso. Enquanto Sophie observava, sua
madrasta se virou e pegou um pesado tinteiro de cristal de sua
escrivaninha. Com um grito violento, ela o atirou contra o espelho. O
vidro prateado se estilhaçou, e um milhão de cacos brilhantes
caíram no chão.
O senhor Comandante, observando da porta, correu para dentro,
com a mão na espada, mas Sophie o deteve.
Adelaide olhou para os cacos.
— Eu deixei Corvus entrar no meu coração no dia em que os
soldados de Edward chegaram, e ele mora aqui desde então.
Devorando-o pouco a pouco. Cada decisão que tomei foi induzida
por Corvus. Cada crueldade que infligi. Cada vida que tirei. Ele me
convenceu de que misericórdia era fraqueza. De que gentileza
deveria ser retribuída com traição. E eu acreditei nele. E agora?
Agora não há mais nada em meu coração. — Lágrimas escorreram
por seu rosto. Ela foi para o terraço mais uma vez.
— Não, não — disse Sophie, indo em sua direção.
Adelaide pegou um grande caco de vidro prateado do chão. Ela o
segurou como uma adaga contra o peito, como que ameaçando.
— Não estou disposta a passar pelo que me espera — disse ela.
— Já enviei muita gente para as masmorras do palácio. E para as
mãos do carrasco. Não vou passar o tempo que me resta em uma
cela infestada de ratos, esperando sua vingança.
— Eu busco justiça, Adelaide, não vingança. Por crimes
cometidos contra o meu povo.
Adelaide abriu a mão. Ela observou o pedaço de espelho cair.
— Ele vai me encontrar nas masmorras — disse ela baixinho,
mais para si mesma do que para Sophie. — Vai me esperar no
cadafalso. — Ela ergueu os olhos para Sophie mais uma vez, e
neles Sophie viu um cansaço profundo e dolorido. — Fui uma
grande rainha, mas não uma boa rainha — disse Adelaide. — E
você deve ser as duas coisas, Sophia.
Ela baixou a cabeça e, antes que Sophie pudesse detê-la,
disparou em direção à borda do terraço.
Sophie gritou. Correu para o parapeito e se inclinou sobre ele,
tentando agarrar-se inutilmente ao braço da madrasta, às saias, a
qualquer coisa. Mas era tarde demais. O corpo da rainha
arrebentou-se nas pedras lá embaixo. O sangue formou uma linha
ao redor de sua cabeça, como uma coroa escarlate definitiva.
NOVENTA E QUATRO

S , , coroa de ouro na cabeça,


saiu no terraço do palácio e acenou para a multidão.
Uma onda de aplausos, como um maremoto, ergueu-se da
aglomeração abaixo dela. Era o dia de sua coroação. Ela foi
coroada rainha das Terras Verdes ao amanhecer. Os sinos da
catedral ainda soavam enquanto milhões de pétalas de rosa
tremulavam pelo ar.
Sophie acenou para seu povo, seu coração batendo forte de
alegria.
Em seguida, ela convidou seus companheiros monarcas, que
estavam todos dentro do Salão Principal, esperando para o
banquete de celebração, a se juntarem a ela no terraço.
Reuniram-se, um ao lado do outro, os governantes de todos os
reinos do mundo, e então Sophie falou, sua voz ressoando forte e
clara. Ela contou ao seu povo sobre sua experiência com Medo e
como ele havia tomado seu coração, como ele desejava roubar
todos os corações humanos. E, então, pediu a eles que nunca
cedessem ao Medo e protegessem os corações uns dos outros tão
cuidadosamente como os seus próprios.
— Enquanto nos tratarmos com bondade, manteremos nossos
corações íntegros. Vamos todos viver, de hoje em diante, com paz
em nossos corações e também com amor.
Os governantes a aplaudiram e, um a um, todos se viraram e
voltaram para o salão, deixando Sophie aproveitar seu momento.
Desfrutando do amor de seu povo, Sophie sorriu. Will estava no
Salão Principal, para comemorar com ela. Oma e Gretta também. A
menininha estava ficando mais forte. Sophie a trouxera para o
palácio, onde recebia os melhores cuidados. Os irmãos estavam ali.
Weber e Tupfen também. Arno. Tom. E Zara.
Sophie ergueu o rosto para o céu. Um corvo voava acima dela,
fazendo círculos contra a imensidão azul.
A guarda da rainha sabia sobre o Rei dos Corvos e sobre como
ele havia tentado, muitas vezes, fazer Sophie ser morta. Estavam
constantemente à procura dele.
Dois membros da guarda haviam sido posicionados em cada
extremidade do terraço, ambos arqueiros. Eles avistaram o pássaro
e miraram nele. Mas, antes que pudessem atirar, Sophie os deteve.
— Os corvos sempre estarão aqui. Comigo. Com todos nós — ela
disse. — As flechas podem matar um ou outro, mas não vão manter
Medo sob controle.
Sophie ergueu o antebraço. O corvo lentamente desceu em
espiral e pousou nele. Ele inclinou a cabeça, olhando para ela. Em
seguida, estalou o bico. Sophie pressionou a mão contra o coração.
— Só eles podem manter seu mestre sob controle — disse ela,
acenando com a cabeça para as pessoas alegres que lotavam as
ruas, para os trolls e goblins e pixies que celebravam. — São meus
amigos, sabe. Eu tenho meus amigos. Tenho um casaco quente. E
strudel. E Will. Eles enchem meu coração. Eles são meu coração.
O corvo curvou-se para Sophie e deu um grasnido único e
estridente. Então, bateu as asas e voou para longe.
A manhã raiou sobre o palácio naquele dia da mesma forma como
meses antes, quando uma garota cavalgou para além das muralhas
em direção à floresta, seguindo-me; eu, o caçador, a conduzi.
Aquela garota estava com medo.
Aquela garota tentou proteger seu coração ao guardá-lo fora dela.
Aquela garota morreu na Floresta Sombria.
E outra garota havia nascido em seu lugar. Uma garota com um
coração que se recusava a ser escondido. Um coração obstinado,
barulhento e fora de controle. Um coração rachado e remendado,
que vazava emoção como um balde transborda de água.
Uma garota que entendeu que o coração de uma rainha foi feito
para ser partido. Incontáveis vezes. E Sophie sabia que o dela era
assim. Quando as colheitas falhavam e as pessoas morriam de
fome. Quando a praga se espalhava. Quando a guerra estendia seu
manto vermelho sobre a terra.
Assim como o sangue que se transformava em rubis e as
lágrimas que se transformavam em pérolas, a aflição que
atormentaria seu coração era apenas mais um dos estranhos
presentes de Dor. Da tristeza veio a empatia. Do luto veio a
compaixão. Da raiva veio a resolução. Da perda veio o amor.
Essas são as coisas que nos fazem levantar quando caímos.
Tentar novamente quando fracassamos. Essas são as joias mais
valiosas.
Era uma vez, há muito tempo, sempre e para sempre, uma garota
cavalgando numa floresta. Partindo para a casa de sua avó.
Que conheceu uma bruxa na floresta.
E, então, aquela garota voltou. Não mais na retaguarda, mas na
liderança.
Com o cheiro de bruxa queimada em suas roupas.
Com a cabeça do lobo em sua cesta.
Com um exército atrás dela.
Ela não precisa de espelho para dizer o que sempre soube.
Que ela é tudo de que precisa, que tem tudo de que precisa para
cruzar a Floresta Sombria.
E encontrar o caminho de casa.
EPÍLOGO

—A E — disse Medo, com um


sorriso brilhante.
— Um piquenique? — disse Morte, incrédulo. — Por isso você
nos convidou para vir aqui?
— Sim. E pensei que poderíamos dar um belo passeio primeiro.
Para abrir o apetite.
Guerra virou para Pestilência:
— Nosso irmãozinho perdeu o juízo — disse ele.
— Me façam esse favor, sim? — disse Medo. — Há algo que eu
quero mostrar a vocês.
— Isto é que é uma noite agradável. Não é sempre que vejo
tantos dos meus filhos no mesmo lugar — disse Morte,
melancolicamente. — Todo mundo anda tão ocupado ultimamente.
— Ótimo! Subam todos — disse Medo, abrindo a porta de sua
carruagem preta e brilhante.
Eles estavam no sopé de uma montanha íngreme. Uma estrada
estreita ziguezagueava até o topo.
Morte embarcou primeiro. Foi seguido por sua filha Pestilência.
Ela usava uma camisola de linho manchada de suor. Seu cabelo era
curto e arrepiado; seus lábios, rachados. Sua pele era coberta de
feridas com secreção, pústulas e bolhas.
Já Fome, que tinha olhos fundos, cabelo caindo às mechas,
roupas penduradas num corpo ossudo, arrastou-se atrás de sua
irmã, choramingando o tempo todo.
— Ah, não, Pesti. Não pingue no assento. Outras pessoas vão
sentar-se aí também.
Dor, com seus olhos avermelhados, subiu em seguida, e depois
veio Guerra, bronzeado e musculoso. As molas dos bancos
rangeram quando ele se sentou. Cicatrizes reluzentes cortavam seu
rosto e sua cabeça lisa. Ele deixou as marcas de suas mãos
ensanguentadas na porta, nos bancos, em tudo que tocou.
Assim que todos entraram, Medo juntou-se a eles, fechou a porta
e deu uma batidinha nela. O cocheiro, um homem de aparência
cadavérica usando um chapéu-coco, estalou o chicote. Quatro
garanhões pretos e brilhantes puseram-se a trotar.
— A garota… Sophia… Ouvi dizer que ela venceu. Ouvi dizer que
derrotou você — disse Guerra a Medo.
Medo arqueou uma sobrancelha.
— Suponho que você nunca tenha perdido uma batalha.
Guerra abriu um sorriso largo, esticando as cicatrizes em seu
rosto. Alguns pontos rasgaram. O sangue escorreu por sua
bochecha.
— Eu sou a batalha, maninho — disse ele.
Os irmãos e o pai passaram a viagem colocando a conversa em
dia. Todos ficaram felizes ao saber dos sucessos de Guerra nas
Terras Baixas, e Pestilência sorriu timidamente quando a
parabenizaram pelo seu último surto de peste.
Depois de mais ou menos uma hora, a carruagem parou e a
família saltou. Haviam chegado ao topo da montanha. A maior parte
dela era íngreme e rochosa, mas havia uma porção plana. Enquanto
o cocheiro estendia uma toalha de piquenique em um pedaço liso da
rocha, Medo conduzia sua família até o topo da montanha. Todos
olharam para a rocha inclinada abaixo deles.
Medo respirou fundo e bateu em seu peito.
— Gosto daqui — disse ele. — O ar é limpo. Gosto dos vizinhos
também. Olhem ali…
Ele apontou para um fio de fumaça subindo pelas copas das
árvores.
— Uma velha mora naquele bosque. Na mais doce —
literalmente! — casa de pão de mel já vista.
Em seguida, ele apontou para uma aldeia, as torres de suas
igrejas e a prefeitura visíveis à distância.
— Naquela charmosa cidadezinha, tem uma viúva com uma filha.
A menina usa uma linda capa com um capuz. De um vermelho-
sangue profundo. E ela adora visitar a avó.
Ele girou em semicírculo em direção ao mar, apontando com a
cabeça para uma torre, alta e cinzenta, erguendo-se em meio à
costa escarpada.
— Só uma pessoa mora lá. Totalmente sozinha. Eu a vejo às
vezes à noite, olhando pela janela e penteando seus longos
cabelos. Sabem… eu posso facilmente me imaginar ali. Fincando
raízes.
— E por que você está nos contando isso? — perguntou Fome.
— Estou pensando em construir…
Morte sorriu com orgulho. Deu um tapinha nas costas de Medo.
— É isso aí. Vamos lá, meu rapaz!
— Construir… — Pestilência começou a dizer, mas, então, um
acesso de tosse se apoderou dela. Ela cuspiu um catarro de sangue
no chão. — Construir o quê?
Medo colocou as mãos na cintura. Sacudiu a cabeça. Depois,
sorriu e disse:
— Um grande e lindo castelo novinho em folha.
AGRADECIMENTOS

A I G - .
Em sua versão de Branca de Neve, a rainha ordena a seu
caçador que arranque o coração de Branca de Neve e o leve para
ela — não apenas para que ela tenha uma prova de que a jovem
princesa está, de fato, morta —, a fim de que ela o comesse. Sim,
você leu certo: para comê-lo.
Quando li a história pela primeira vez, aos nove anos mais ou
menos, achei tudo isso bem nojento. Hoje, como uma criança um
pouco mais velha, acho isso brilhante. Que metáfora incrível para o
que o medo faz com a gente — devora nossos corações. Deixa a
gente oca e vazia.
Enquanto eu escrevia a história de Sophie, vi que muitas vezes
acreditamos no que os outros nos dizem que somos. Ouvimos os
lobos em pele de cordeiro e as cobras traiçoeiras, e permitimos que
suas palavras nos definam e nos direcionem. Mordemos a maçã
venenosa dada pela rainha do mal sem pensar duas vezes.
Sophie me mostrou que é possível driblar lobos e cobras, cuspir a
maçã envenenada e olhar o medo nos olhos. Basta ouvirmos
nossos corações — não importa quão machucados e partidos eles
possam estar.
Mais uma vez, gostaria de agradecer à minha incrível editora,
Mallory Kass, por me apoiar enquanto Sophie e eu cruzávamos a
Floresta Sombria, e por estar sempre pronta para dar conselhos e
palavras de encorajamento. Obrigada a Maya Marlette, por me
ajudar a construir o meu caminho por túneis escuros, passando por
rosas sussurrantes, trolls e makabers. Agradeço a Dick Robinson,
Ellie Berger, David Levithan, Lori Benton, Erin Berger, Rachel Feld,
Shannon Pender, Lizette Serrano, Emily Heddleson, Lauren
Donovan, Alan Smagler e sua equipe, Melissa Schirmer, Jody
Corbett, Maeve Norton, Elizabeth Parisi, e ao restante da minha
família na editora Scholastic, por seu entusiasmo por Poisoned.
Vocês acreditam verdadeiramente no poder das histórias de inspirar
e empoderar jovens leitores, e eu me sinto muito feliz por poder
trabalhar com todos vocês.
Como sempre, um grande agradecimento aos meus agentes,
Steve Malk e Cecilia de la Campa, e à minha família — Doug, Daisy
e Omi. Eu estaria perdida sem vocês.
E, por último, mas nunca menos importante, obrigada a vocês,
caros leitores. Vocês são a razão de eu fazer o que faço.
SOBRE A AUTORA

J D é autora do best-seller A Northern Light, que


recebeu uma medalha Carnegie, o LA Times Book Prize e uma
honraria Printz, além de ter aparecido na lista dos cem melhores
romances juvenis da revista Time; de Revolution, que foi eleito
Melhor Livro pela Amazon, Kirkus Reviews, School Library Journal e
Biblioteca Pública de Chicago e indicado para a medalha Carnegie;
de Stepsister, um best-seller instantâneo do New York Times, citado
nas listas de melhor ficção juvenil YALSA e RISE, bem como
indicado para a medalha Carnegie; de A Bela e a Fera: Perdida em
um Livro, que passou mais de vinte semanas na lista dos mais
vendidos do New York Times; da saga Waterfire; e de outros
romances para jovens. Mora em Hudson Valley, em Nova York.
Visite-a on-line em <jenniferdonnelly.com> e no Twitter e Instagram,
em @jenwritesbooks.

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