Poisoned - A Historia Da Branca - Jennifer Donnelly
Poisoned - A Historia Da Branca - Jennifer Donnelly
Poisoned - A Historia Da Branca - Jennifer Donnelly
J D
P
Poisoned
Copyright © 2020 by Jennifer Donnelly
D739p
Donnelly, Jennifer
Poisoned : a história da Branca de Neve / Jennifer
Donnelly ; tradução de Cynthia Costa. – – São Paulo :
Universo dos Livros, 2021.
384 p.
e-ISBN: 978-65-5609-128-0
Título original: Poisoned
1. Literatura infantojuvenil 2. Ficção americana 3.
Conto de fadas I. Título II. Costa, Cynthia
No dia anterior…
H .
Sophie notou quando as entregou a um cavalariço. Ela ergueu as
palmas das mãos: quatro cortes em cada uma, feitos pelas próprias
unhas. O terror a inundara enquanto galopava pela floresta. Seu
cavalo era tão rápido, tão robusto, que precisou de toda a sua força
para controlá-lo. A cada batida de cascos, Sophie tinha certeza de
que cairia e quebraria o pescoço. Também ficou assustada ao
enfrentar o lobo. A criatura era enorme; poderia tê-la dilacerado em
mil pedacinhos.
Mas seu cavalo, o lobo — nenhum era o motivo dos cortes nas
palmas de suas mãos, e ela sabia disso. Suas pernas ainda
tremiam, embora a caça tivesse acabado havia muito tempo.
— Menina burra — ela murmurou para si mesma.
E se a rainha a tivesse visto libertando o lobo? E se outra pessoa
tivesse visto? Sua madrasta tinha olhos e ouvidos por toda parte.
Com agilidade, tirou as luvas do bolso do casaco e as calçou. A
garota ousada e destemida que podia ultrapassar os príncipes, o
caçador e até a própria rainha; a garota sem coração que estava
ansiosa para perseguir um animal apenas pelo prazer de assistir a
uma matança, aquela garota era uma mentira. Os cortes eram
verdadeiros, escritos com sangue, e ninguém devia vê-los.
Governantes devem ser implacáveis. Não demonstram fraqueza ou
medo. Não choram. Fazem os outros chorarem. Sua madrasta não
lhe havia dito isso mil vezes?
Sophie estava no grande pátio de paralelepípedos compartilhado
pelos estábulos e canis. Olhou ao redor em busca da rainha e sua
comitiva, mas ainda não haviam retornado. Que bom, ela pensou. A
caça em si, a conversa fiada durante a viagem de volta, a pressão
constante para ser cativante e espirituosa — tudo isso a tinha
exaurido. Ela não queria nada mais do que escapar para seus
aposentos, tirar suas roupas suadas e mergulhar em um banho
quente.
Os criados haviam arrumado uma longa mesa forrada de linho no
pátio. Estava carregada de tortas de carne, aves de caça assadas,
presuntos defumados, queijos, nozes e frutas. Sophie a contornou
de cabeça baixa, esperando passar despercebida.
— Salve, corajosa Ártemis, deusa da caça! — uma voz berrou do
outro lado do pátio.
Sophie ficou desanimada. Não vou conseguir escapar, ela
pensou.
Ao erguer os olhos, deparou-se com Haakon caminhando em sua
direção. O belo Haakon, de cabelos dourados e bronzeado, seu
rosto tão perfeito quanto o de um deus de mármore. Rodrigo estava
bem atrás dele, seus lábios carnudos curvados em um sorriso
sedutor, seus olhos escuros cheios de promessas. Sophie sorriu
abertamente para eles; ela não tinha escolha. Um daqueles homens
podia muito bem se tornar seu marido.
A caçada matinal era o primeiro de uma série de eventos para
comemorar seu aniversário. Haveria um baile naquela noite, ali em
Königsburg, no palácio. Seria uma grande festa, com membros da
corte de sua madrasta e governantes de reinos estrangeiros. Ela
faria dezessete anos no dia seguinte e herdaria a coroa de seu pai.
Depois de se tornar rainha, Sophie poderia se casar, e sua madrasta
estava determinada a arranjar para ela um casamento vantajoso
com um nobre aristocrata.
— O jovem príncipe de Escandinai, talvez — disse a rainha
quando tocou no assunto pela primeira vez. — Sobrinho do
imperador. Ou o filho do sultão.
— Mas, madrasta, nem conheço esses homens. E se não me
apaixonar por nenhum deles? — Sophie questionou.
— Apaixonar? — a rainha repetiu, o desprezo gotejava de sua
voz. — O amor nada mais é do que uma fábula, e das perigosas.
Seus pretendentes devem recitar o tamanho de seus exércitos e a
força de suas fortalezas, não poemas bobos sobre flores e pombas.
Havia uma razão pela qual sua madrasta queria um marido
poderoso para ela, uma razão vergonhosa, e Sophie sabia disso —
a rainha pensava que ela era fraca. A corte inteira pensava isso.
Sophie crescera ouvindo cochichos zombando dela por ser uma
criança tímida e de coração mole. Haviam começado assim que a
rainha se casou com o pai de Sophie e só foram ficando mais
nítidos com o passar dos anos. As palavras venenosas alojaram-se
em seu coração como espinhos. Ainda ecoavam lá dentro… A
princesa nunca será uma boa rainha… Ela não é inteligente o
bastante… Não é forte o bastante…
Haakon foi até Sophie. Ele era o filho mais velho do Rei de
Escandinai e a primeira escolha de sua madrasta para ela. Ergueu a
caneca de cerveja que estava segurando para ela.
— A bela Ártemis conquistou meu coração, mas, oh, divindade
cruel e egoísta! Ela não vai me dar o dela!
Rodrigo bufou.
— Errada ela não está.
— Eu sofro. Definho. Tenho fome de amor — disse Haakon,
pressionando a mão sobre seu coração.
Depois, ele se inclinou sobre a mesa e arrancou uma coxa de
frango.
— Suporto um tormento sem fim. Dê-me seu coração, gélida
deusa, e acabe com meu tormento!
— Impossível, senhor — respondeu Sophie, seus olhos provo-
cativos, sua voz tão alegre e confusa que ninguém teria adivinhado
quão desesperadamente ela ansiava pelo silêncio de seus
aposentos.
— Por que diabos não? — Haakon perguntou, roendo a coxa de
frango. — Um rapaz boa-pinta como eu… Ora, também devo ser um
deus. Só posso ser. — Ele franziu a testa, depois assentiu. — Na
verdade, tenho certeza disso. Sou o deus… Hmm, Apolo! Sim, esse
é o sujeito! — Ele apontou para Sophie com a coxa de frango. —
Que casal nós seríamos, hein!
— Caso se lembre mesmo dos clássicos, e tenho certeza de que
sim… — Sophie começou.
— Acadêmico que ele é… — Rodrigo interrompeu.
— … então você sabe que Ártemis jurou que nunca se casaria. E,
se quebrasse esse voto, duvido que seria por Apolo, já que ele é
irmão dela.
Haakon torceu o nariz.
— Credo.
— Pois é — concordou Rodrigo.
Mesmo sem querer, Sophie caiu na risada. Era impossível não rir.
Haakon era um sol brilhante e dourado que atraía todos para sua
órbita. Ele era arrogante e irritante, mas incrivelmente bonito, e
pessoas bonitas são facilmente perdoadas. Todas as mulheres do
palácio estavam apaixonadas por ele. Sophie também tinha uma
quedinha, embora odiasse admitir.
Mais membros do grupo de caça trotaram pátio adentro.
Cavalariços e cães de caça os seguiam. Sophie pensou ter ouvido o
senhor Comandante da rainha entre eles, cuspindo ordens. Haakon
e Rodrigo viraram-se para o grupo e acenaram para alguns dos
cavaleiros. Enquanto isso, Sophie ouviu um som menor e mais
suave do que cascos ou a voz estrondosa de Haakon. Depois ouviu
passos. Eram rápidos, mas cambaleantes.
— Tom? — ela chamou, virando-se.
Um menino estava correndo em sua direção. Era pequeno para
sua idade, estranho e tímido.
— Tenha cuidado, Tom. Diminua a velocidade antes que… —
Sophie começou a falar. Mas era tarde demais. Tom prendeu a
ponta da bota em um paralelepípedo, tropeçou e caiu. Sophie
abaixou-se para ajudá-lo a se levantar.
— Asno desajeitado — disse uma voz. — Deveria tê-lo afogado
no nascimento. Não é isso que se faz com anões? — Tom
estremeceu com essas palavras cruéis.
Sophie percebeu que elas o machucaram mais do que a queda.
As mulheres que as pronunciaram, duas das damas de companhia
da rainha, riram enquanto passavam apressadas.
— Não lhes dê ouvidos — compadeceu-se Sophie, na tentativa de
fazer o menino se sentir melhor. — Se quiser ver uma pessoa
desajeitada, preste atenção na baronesa Von Arnim. — Apontou
para a mais baixa das duas mulheres. — Dançando a sarabanda.
Ela parece um burro patinando!
Tom gargalhou e Sophie lhe deu um sorriso, que logo
desapareceu quando vislumbrou os joelhos esfolados do menino.
— Você não deve correr — ela o repreendeu. — Já não te disse
isso?
Ele era como os cachorrinhos dos quais cuidava, com os
membros desajeitados e as patas grandes.
Tom afastou a franja dos olhos.
— Mas não pude evitar, Sua Graça! Eu tinha que lhe contar!
— O quê? — perguntou Sophie.
— A Duquesa teve filhotes! — Duquesa era a spaniel favorita de
Sophie.
— Jura? — Sophie falou, seus olhos arregalados com a
empolgação.
— Sim! Sete cachorrinhos saudáveis! Gordinhos como salsichas,
de focinhos arrebitados e patinhas cor-de-rosa! Venha vê-los! —
Tom ficou tão animado que cometeu a gafe de estender a mão para
Sophie. Sophie também se distraiu e pegou a mão dele.
— O que está fazendo? Ficou louco, garoto? — trovejou uma voz.
— Como ousa colocar as mãos na princesa!
Era o senhor Comandante, o homem encarregado dos militares
da rainha. Ele caminhou até Tom, agarrou seu ombro e o
chacoalhou. Quando fez isso, Sophie puxou bruscamente sua mão.
Como se fosse tudo culpa de Tom.
Foi um movimento covarde, e a vergonha tomou conta de Sophie
por dentro. Ela sabia que devia ter saído em defesa de Tom. Devia
ter explicado ao senhor Comandante que os dois haviam se deixado
levar pelo momento. Mas não o fez. De mãos dadas com meninos
do canil, brincando com cachorrinhos — não era assim que uma
governante devia se comportar.
Governantes fortes eram distantes e indiferentes. Se a rainha
soubesse de seu lapso, ficaria furiosa. Esta não era como a caça ao
lobo, quando não havia ninguém na ravina para testemunhar sua
fraqueza. Ali, no palácio, eram os lobos os que caçavam.
— Isso não vai se repetir, Sua Graça — disse o senhor
Comandante a Sophie. Depois, virou-se para Tom e rosnou: —
Lembre-se do seu lugar.
E sacudiu o menino de novo antes de se afastar.
Tom ergueu os olhos para Sophie. A dor e a confusão que ela viu
retorceram seu coração.
— E-eu sinto muito, Sua Graça. Não fiz… Eu não queria…
As palavras de Tom foram interrompidas de maneira abrupta por
um som de gelar o sangue. Um lamento agudo que se espalhou
pelo pátio.
TRÊS
A .
Era um cão de caça, chorando e encolhendo-se, tentando se
fazer o menor possível. Sophie o reconheceu. Era o cachorro
pequeno e arisco que se recusou a atacar o lobo.
A rainha havia acertado a criatura com seu chicote e agora estava
apontando para ele.
— Esse animal não vale nada — ela cuspiu. — Quero matá-lo.
Sophie congelou, horrorizada. Foi Tom quem tentou deter a
rainha.
— Não! — ele gritou, cambaleando em direção ao cão. — Por
favor, não, Sua Graça! É uma boa cadela!
A rainha virou-se, furiosa. Seus olhos buscaram aquele que ousou
censurá-la.
— Devo ser repreendida pelo moleque do canil? — ela perguntou,
sua mão apertando o chicote.
Alistair, o dono do canil e pai de Tom, veio correndo dos currais,
alarmado com os gritos. Percebeu o que estava para acontecer e
seus olhos se arregalaram de terror. Ele agarrou Tom pelas costas
da camisa e puxou o menino para si no momento em que o chicote
veio assobiando no ar. O golpe não acertou a criança, mas atingiu
Alistair e abriu um corte em seu rosto. Indiferente à sua dor e ao
sangue escorrendo de sua mandíbula, Alistair implorou por seu filho.
— Ele sente muito, Sua Graça. Nunca mais fará isso. Por favor,
perdoe-o. Peça desculpas, Tom.
— Mas papai…
— Peça desculpas! — Alistair gritou. — Agora!
Não fora a raiva que o fizera gritar com o filho. Sophie sabia disso.
Fora o medo. A rainha havia cavado um corte no rosto de Alistair, e
ele era um homem adulto. O que um golpe como aquele teria feito
no pequeno corpo de Tom?
— E-eu sinto muito, Sua Graça — Tom gaguejou, olhando para o
chão.
— Cuidem do restante dos cães, vocês dois — a rainha ordenou.
Alistair largou Tom. Ele tirou um pano do bolso, pressionou-o
contra a face e chamou a matilha. A cachorrinha ficou no canto,
desesperada, indefesa. Como se soubesse que havia sido
condenada.
— Venha ver a minha nova égua! — a rainha convidou um grupo
de nobres.
Enquanto eles se dirigiam aos estábulos, Tom voltou para perto
de Sophie.
— Não a deixe ser morta. Por favor, minha senhora — ele
implorou, sua voz falhando. — O nome dela é Zara. Era a menor de
sua ninhada. Como enfrentar um lobo quando se é tão pequena?
— Não dá mesmo para enfrentar, Tom — disse Sophie,
observando a rainha entrar nos estábulos.
Sophie permaneceu parada no lugar, chocada com a crueldade
de sua madrasta. A tristeza apertou seu peito com tanta força que
ela mal conseguia respirar, mas outra emoção fervilhava por baixo
dessa — raiva. Raiva com a injustiça das ações de sua madrasta.
Raiva de ninguém se importar, de ver que todos no pátio
continuavam comendo e bebendo, rindo e tagarelando, como se
nada tivesse acontecido.
Não, não se tem como enfrentar o lobo, ela pensou enquanto a
rainha desaparecia pelas portas do estábulo. Mas talvez você possa
driblá-lo.
Tom não se moveu. Ele ainda estava de pé ao lado de Sophie,
com os punhos cerrados.
— Vá ajudar seu pai — Sophie disse a ele.
Os ombros de Tom caíram. A esperança sumiu de seu pequeno
rosto.
— Mas, minha senhora…
— Vá.
O medo tornou sua voz áspera. Permitir que um lobo escapasse
era tolice; o que ela estava prestes a fazer agora era insanidade.
Enquanto Tom se afastava, Sophie olhou ao redor. Ninguém
estava prestando atenção nela. O senhor Comandante estava
cortando uma torta de carne de veado. Haakon, pegando uma fatia
de presunto com os dedos. Rodrigo, mordendo um pêssego. Ela
caminhou até o fundo do pátio, onde a cadela, com os olhos
fechados, estava caída no chão.
Sophie respirou fundo para recuperar os nervos. Ela tremia por
dentro, mas então pensou em Tom, gritando com a rainha para
poupar a cadela. Ele não usava sua coragem como ela, como uma
máscara a ser colocada e retirada. Se um garotinho podia ser
corajoso, ela também podia.
— É Zara, não é? Você é uma belezinha — comentou ela com
suavidade, aproximando-se da cadelinha.
Ante o som de seu nome, a cadela ficou de pé. Seus olhos
estavam enormes e suplicantes.
— Calma, menina — disse Sophie. — Não vou machucar você.
Ninguém vai. Não se formos rápidas, você e eu. — Enganchou dois
dedos na coleira de Zara e a afastou dali. Suas saias a protegiam da
vista de todos. — Vamos, garota, só um pouco mais adiante…
Apresse-se agora…
Um portão de madeira estava a apenas alguns metros de
distância. Sophie levou Zara até lá e rapidamente o destrancou.
— Vá! — ela sussurrou enquanto o abria. — Fuja daqui e não
volte nunca mais!
A cadelinha saiu em um piscar de olhos. O coração de Sophie se
aqueceu ao ver aquele borrão cor de creme cruzar os campos e
desaparecer na floresta. Ela trancou o portão, depois se virou e
observou ao redor outra vez. Todos os membros do grupo de caça
ainda estavam ocupados com o café da manhã; os servos estavam
ocupados com seus deveres. Ninguém a vira. Sophie se permitiu
exalar. Enquanto caminhava de volta pelo pátio, ela passou por
Tom. Ele estava lá no meio, olhando ao redor.
— Meu pai diz que devo encontrar Zara e trazê-la para ele —
falou ele, meio atordoado. — Você viu para onde ela foi, Sua Graça?
Sophie fingiu uma expressão pesarosa.
— A cadelinha? — Sophie disse. — Acho que ela fugiu, Tom. Abri
o portão, mas não deveria. Estava meio distraída.
Tom sorriu. Com a boca, o rosto, o corpo inteiro. Sophie piscou
para ele e continuou andando, ansiosa para finalmente chegar a
seus aposentos. Foi então que ela avistou sua madrasta. A rainha
estava parada na porta aberta dos estábulos, observando-a. Os
dedos finos e gelados do Terror fecharam-se em torno de Sophie.
Há quanto tempo ela está parada aí?, Sophie se perguntou,
desesperada. Quanto ela tinha visto?
O silêncio da rainha, frio e proibitivo, acalmou a tagarelice dos
convivas. Depois de um momento, ela falou, sua voz ecoando pelo
pátio.
— A covardia é como uma praga; ela se espalha. Um indivíduo
doente pode infectar uma população inteira. O cão, aquele que
ordenei que fosse abatido, aquele que parece ter escapado, aquele
cão deveria ter atacado quando foi ordenado. O que acontecerá da
próxima vez, se outros cães decidirem fazer o que desejam, e não o
que mandamos? Vou lhes dizer: o lobo atacará, e sua rainha vai
morrer.
O terror de Sophie transformou-se em medo. Mas não por si.
— Foi culpa minha que o cão tenha escapado, Sua Graça. Eu abri
o portão — ela confessou, suas palavras saindo com pressa.
— Você é uma princesa, não uma ajudante de canil — a rainha
respondeu. — O menino foi negligente. Ele deveria ter amarrado o
cão no mesmo instante. — Fez uma pausa, permitindo a fixação de
seu olhar em Tom. — Ordeno que todos os cães do canil sejam
abatidos, para que nenhum deles contraia a doença da covardia. E
ordeno que este menino aqui, que mima os covardes, que dá mais
valor à vida de um cachorro do que à de sua rainha… Ordeno que
seja levado para o quartel dos guardas, onde receberá dez
chibatadas.
— Não — sussurrou Tom, balançando a cabeça. — Não. Por
favor. Sinto muito… Sinto muito!
Sophie prendeu a respiração. Ela queria gritar com a madrasta,
implorar a ela que não fizesse isso, mas sabia que não podia. Então
observou, impotente e muda, enquanto Tom recuava, tropeçava e
caía de novo.
Dois guardas o pegaram e depois saíram marchando, arrastando-
o para fora do pátio.
— Papai! Papai! — ele gritou, estendendo a mão para seu pai.
Alistair deu um passo em sua direção, mas o capitão dos guardas
bloqueou seu caminho. O homem se virou para a rainha, implorando
que poupasse seu filho, mas a monarca já havia partido.
Sophie sabia o que a rainha estava fazendo. Queria dar o
exemplo. Não para o menino. Aquele foi apenas um estratagema.
Ela desejava ensinar aos poderosos nobres que a acompanharam
na caça que a covardia era perigosa e a desobediência, ainda mais.
E queria dar uma lição a Sophie também.
A lição era perfeitamente clara: não há nada mais perigoso do que
a bondade.
QUATRO
H na Floresta Sombria. Dê
um passo em falso, e engolirão você inteiro.
A maioria das pessoas passa bem longe deles, mas, anos atrás,
quando fui em busca de um nas profundezas da floresta, tive de
voltar para casa no escuro e vi uma tocha balançando na escuridão
espessa, que parecia engolir a pessoa. E, então, dias depois,
vieram as notícias de gente desaparecida — um marido
esquentadinho, uma amante que se tornara exigente, um avarento
com um saco de ouro escondido sob o piso.
Os corpos nunca foram encontrados. Os julgamentos nunca
aconteceram. Culpados nunca foram punidos antes de seu
descanso eterno nas covas confortáveis do cemitério da igreja. O
tempo passou. As pessoas esqueceram.
Mas os pântanos nunca esqueceram.
Anos, décadas, às vezes séculos depois, eles desistiram de seus
mortos inquietos, empurrando os velhos ossos da escuridão de suas
profundezas para a superfície.
A verdade é assim também.
Enterre-a bem fundo. Espere que apodreça.
Mas, um dia, ela volta.
Esfarrapada, arrastando-se e fedendo a morte, ela bate à sua
porta.
Adelaide cometeu muitos crimes. Governantes costumam cometê-
los. Um rei decapita uma esposa por lhe dar apenas filhas. Um
príncipe envenena um nobre rebelde. Um bispo queima um homem
na fogueira porque seu deus fala inglês, não latim. Não é
assassinato, dizem os livros de História, mas execução. Feita para
preservar a paz. É desagradável, sim, porém necessário.
Mas, no tempo de Adelaide, e talvez ainda no seu, havia um crime
que não podia ser tolerado. Havia uma abominação que nenhum rei,
nenhum príncipe ou papa podia perdoar…
Uma mulher que usa uma coroa.
Espelho, espelho meu… existe alguém mais bela do que eu?
Já identificou quem é o vilão? Vê seu rosto?
Ora, não importa. Logo você verá. Ele está cada vez mais perto.
SEIS
S H para um grupo de
amigos. Ou que a levasse de volta para a enorme tigela de ponche
de prata, onde ela poderia tomar uma bebida gelada e alegar
exaustão quando Barse se aproximasse dela.
Não imaginou que se rastejaria sob a mesa do banquete.
— Venha comigo! — Haakon ordenou, movendo uma cadeira
para o lado.
Em seguida, abaixou-se sob a toalha de mesa adamascada.
Quando Sophie hesitou, ele a puxou.
— Está louco? O que está fazendo? — ela balbuciou.
— Salvando a princesa da caverna do dragão. Apresse-se!
Ele se pôs, então, a rastejar pelo chão. Sophie o seguiu. Foi mais
difícil para ela, pois estava de vestido e anáguas, mas conseguiu,
juntando atrás o volume de tecido. Felizmente, poucos convidados
ainda estavam sentados à mesa. A maioria dançava.
Quando alcançou o outro lado, Haakon levantou a toalha de
mesa.
— Aí está — ele disse, apontando para uma porta de pedra
arqueada. — Nossa rota de fuga.
Ele saiu correndo de debaixo da mesa, puxando Sophie consigo.
Eles assustaram uma criada carregando uma bandeja de bolinhos.
Haakon roubou dois, e ele e Sophie desapareceram pela porta e se
encontraram em um longo corredor. Haakon a puxou para perto da
parede e ergueu um dos doces que havia roubado.
— Bolinho mágico — ele sussurrou. — Torna você invisível aos
olhos dos dragões.
— Você é louco — disse Sophie, sorrindo.
Haakon levou o bolinho à boca.
— Que delícia! — Ele ergueu o segundo bolinho, e Sophie
percebeu sua intenção de colocá-lo na boca dela.
Provocou-a, segurando o bolinho perto de seus lábios e, em
seguida, puxando-o para trás, e fingindo que iria comê-lo.
— Ah. Agora estou entendendo, meu valente salvador — disse
Sophie asperamente. — Você come o bolinho enquanto o dragão
me devora.
— É uma escolha difícil — replicou Haakon. — Você é muito legal
e tudo mais, Sophie, mas este bolinho…
— Haakon.
Finalmente, ele lhe deu um pedaço. E depois outro. Sophie se
sentiu um pouco quente, um pouco sem fôlego. Depois, ele
desajeitadamente deixou pingar um pouco de glacê doce e pegajoso
no queixo dela.
— Desculpe — ele disse, limpando com o dedão.
Depois lambeu o dedo, com seus lindos olhos azul-celeste
mirando os dela, e Sophie sentiu um calor percorrer seu peito, que
se espalhou por seu corpo. Seus olhos se voltaram para o bolinho, a
parede, o chão, para qualquer lugar, menos para Haakon.
Ele agarrou a mão dela mais uma vez.
— Vamos — disse. — O dragão ainda pode estar à espreita.
Eles correram por um corredor, depois por outro e finalmente se
encontraram em uma varanda com vista para os jardins da rainha.
As roseiras, carregadas de flores brancas esvoaçantes, escalavam
por um dos lados do parapeito.
Haakon inclinou-se, colocou as mãos na grade e disse:
— Pronto. Escapamos. Barse não vai nos encontrar aqui. Fica
muito longe da tigela de ponche.
Sophie aproximou-se dele.
— Você é muito corajoso, bom senhor. Obrigada por me salvar.
Haakon sorriu, mas não era seu sorriso largo e atrevido de
costume. Era pequeno e melancólico. Por um longo momento, ele
não falou; apenas olhou para o jardim. Então, com pressa, ele disse:
— Eu poderia, sabe. Eu gostaria. Eu quero.
— Quer o quê? — Sophie perguntou, intrigada.
— Salvar você. De Barse. Da rainha. Pelo que aconteceu hoje. —
Houve uma pausa, seus olhos procuravam os dela. — De si mesma.
Sophie inclinou a cabeça.
— O que você quer dizer com de si mesma?
Haakon desviou o olhar de novo. Endireitou-se, então colheu uma
rosa perfumada e torceu seu caule para dar um nó. A flor se desfez.
As pétalas caíram como confete. Suspirando, ele a jogou por cima
da grade e a observou cair.
Por que ele está de repente tão estranho?, Sophie perguntou-se.
E, então, ela percebeu que ele não estava sendo estranho; ele
estava nervoso.
O confiante Haakon, um verdadeiro pavão que vivia rindo e
provocando, que chamava a atenção de todos no ambiente, estava
nervoso.
— Haakon… — Sophie insistiu. — O que quer dizer?
Em vez de responder, ele agarrou as mãos dela e as virou. Os
finos cortes vermelhos que ela abrira nas palmas das mãos haviam
parado de sangrar horas atrás, mas ainda estavam lá. Haakon
balançou a cabeça ao vê-los.
— Você poderia ser atriz — ele disse. — Porque fez um papel a
noite toda. O dia todo também. — Seus olhos reencontraram os
dela. — Você tenta esconder seu coração mole, mas não consegue.
Você não é uma governante, Sophie. Não está na sua natureza.
Sophie puxou as mãos para trás. A raiva brilhou em seus olhos.
— O que está dizendo? As Terras Verdes são a minha casa.
Quero governar o meu reino. Claro que quero!
— Será que quer mesmo? Saberá fazer o que é necessário?
Conseguirá fazer o que Adelaide faz? Comandar exércitos? Pegar
espiões? Condenar traidores?
— Matar cachorros? Chicotear crianças? — Sophie acrescentou
com amargor.
O champanhe ainda borbulhava em sua cabeça, tornando-a
ousada.
Haakon hesitou. Seus olhos, sempre brilhantes e divertidos,
estavam escuros e parados como as águas de um lago de inverno.
— O menino… — ele começou a dizer.
— Tom.
— Fui à casa de sua família esta noite. Antes do baile. Trouxe
remédios. Uma infusão para a dor. Um bálsamo para as feridas.
Linho limpo para fazer curativos.
— Você fez isso? — Sophie perguntou, surpresa.
Ela não teria esperado isso dele.
— Ele está sofrendo esta noite. Apenas respirar é uma agonia
para ele. Está até delirando, não reconhece a própria mãe.
As palavras de Haakon magoaram Sophie profundamente. Não
suportava pensar no pequeno e gentil Tom com tanta dor.
— Pare. Por favor, Haakon. Chega — ela implorou.
— Ele nunca mais cometerá esse erro. Nunca mais vai gritar com
a rainha ou contrariar seus desejos. Apenas seguirá suas ordens,
com rapidez e sem protestar. Como deve ser feito. E o mesmo vale
para os nobres da corte de Adelaide, seus generais e seu senhor
Comandante. É assim também que devem agir.
Sophie deu uma risada triste.
— Tom nunca mais fará a coisa certa de novo. Nunca mais
tentará salvar uma vida inocente.
Haakon arrancou outra rosa e torceu seu caule.
— Você governaria de forma diferente. Com bondade, com
misericórdia…
— Sim, é o que eu faria.
— Um reinado assim não passa de um sonho, Sophie. Uma linda
história contada para crianças. Você também pode desejar que uma
rainha das fadas apareça ou sete homenzinhos saiam da floresta.
Haakon parou de mexer no caule da rosa. Ele tinha feito um laço.
Pegou, então, a mão esquerda de Sophie na sua e empurrou a volta
do laço em seu dedo anelar, posicionando-a ao lado de seu anel de
unicórnio.
— Case-se comigo, Sophie — pediu ele. — Deixe-me ser seu rei.
Sophie olhou para ele. Foi um passo longe demais. Quase cruel.
— Há algumas coisas com as quais não se brinca, Haakon — ela
se apressou em falar, movendo-se para tirar o anel.
Mas Haakon a impediu. Ele pegou a mão dela, levou-a aos lábios
e beijou-a.
— Nunca falei tão sério — insistiu ele. — Farei o trabalho duro e
sujo. Vou mantê-la segura. Manter nosso povo seguro. Você ainda
poderá fazer suas bondades. Como dar esmolas aos pobres. Visitar
orfanatos. Criar nossos lindos filhos. Governar é um negócio brutal,
e você não foi feita para isso.
O coração de Sophie vibrou como as asas de um pássaro. Ela
sabia que a política conduzia a casamentos arranjados, não ao
amor. Ainda assim, ela amava Haakon. À maneira como amamos
garanhões e tempestades, a meia-noite e as montanhas e todas as
outras coisas belas, obstinadas e perigosas. Bem no fundo de seu
coração mole e tolo, Sophie esperava que ele se sentisse da
mesma maneira. Ela ergueu os olhos para ele.
— Você… Você me ama? — ela perguntou.
Haakon respondeu com um beijo. Pegou nas mãos o rosto da
princesa e pressionou sua bela boca na dela. Seus lábios tinham um
gosto agridoce, de chocolate e champanhe. Ele cheirava a itens
caros — couro e seda, âmbar cinza e ambição.
O coração de Sophie agora batia forte contra suas costelas. Ela
se esqueceu de respirar. Pensar. Ser. Havia apenas Haakon, seu
toque, seu calor. Havia apenas aquele rapaz glorioso e brilhante e,
como o gelo no sol, ela derreteu nele.
Após um longo momento, ele interrompeu o beijo, depois
encostou sua testa na dela.
Agitada e sem fôlego, Sophie balbuciou:
— Minha madrasta alega que o amor não passa de uma fábula.
Diz que devo guardar meu coração numa caixa e colocá-la sobre
uma prateleira lá no alto. Ela diz…
Haakon a beijou mais uma vez. Devagar. Profundamente.
— Menina boba — ele disse. — Eu me apaixonei por você no
momento em que a vi. Coloque o seu coração numa caixa e a
entregue para mim. Vou protegê-lo. Sempre. Diga que irá se casar
comigo, Sophie.
Os pensamentos de Sophie dispararam. O que é que eu faço?,
ela se perguntou, aflita. Não havia razão para dizer não. Sua
madrasta ficaria feliz; ela aprovava Haakon de todo o coração. E, o
que era mais importante que isso, Haakon a amava. Foi o que ele
disse. E ela o amava. Ela devia amá-lo, porque tudo que queria
fazer era beijar de novo aquela boca perfeita. E ele estava certo
sobre ela. Sua madrasta estava certa. Todos os cortesãos e nobres
e ministros que já haviam zombado dela, dizendo que era fraca
demais para ser uma boa rainha, que ela seguia seu coração em
vez de sua cabeça — todos eles estavam certos. Era melhor deixar
Haakon encarregar-se de governar por ela. Era melhor lhe entregar
seu coração — a um homem forte e capaz. Ele prometeu guardá-lo
com cuidado. Afirmou que se certificaria de que ela nunca sentisse
uma dor tão terrível — por Tom, pela cadelinha, pelo lobo —
novamente.
— Sophie, que agonia — disse Haakon. — Estar tão perto de
você, mas sem saber se é minha. Diga não se for preciso, mas…
— Sim — interrompeu-o Sophie. — Sim, Haakon, eu me casarei
com você.
Haakon sorriu. Seus lábios encontraram os dela mais uma vez.
Seu beijo foi doce como o mel.
— Amanhã — ele sussurrou. — Vamos contar para a rainha
amanhã.
Sophie assentiu com a cabeça flutuando. Graças ao champanhe.
Aos beijos. À sensação quente e maravilhosa dos braços de Haakon
envolvendo-a.
Permaneceram na varanda por um bom tempo, até que ouviram o
relógio bater dez horas, e Haakon disse que seria melhor eles
voltarem à festa antes que a rainha mandasse seus guardas atrás
deles.
Sophie dançou a noite toda, seus olhos faiscando, seus passos
leves, seu coração flutuando e feliz com o segredo guardado dentro
dele.
Só muito mais tarde, quando a festa acabou e suas criadas a
despiram, pentearam seus cabelos, vestiram-na com sua camisola
de linho, que Sophie percebeu algo.
Haakon não havia perguntado, nem uma vez, se ela o amava.
OITO
E - , — horas que
pesam muito na alma.
O baile cintilante tinha acabado. O palácio estava escuro e
silencioso. Todos os convidados estavam na cama.
Exceto a rainha.
Ela estava em frente ao espelho, sozinha em seu quarto, envolta
em um manto forrado de pele, o cabelo dourado caindo pelas
costas. Enquanto olhava fixamente para o vidro, a prata parecia
estremecer e derreter e então se formar novamente, mostrando-lhe
não seu próprio reflexo, mas imagens de outras pessoas.
Ela viu suas damas de companhia — Beatrice, Elizabetta e Anna.
Estavam deixando seus aposentos, correndo pelos corredores. Uma
levava um vestido rasgado para a costureira; outra, um colar
quebrado para o ourives. Uma terceira ia aos jardins com uma cesta
no braço para colher rosas para os aposentos da rainha.
Adelaide sabia que as três carregavam mais do que seus
pertences. Ela sabia que haveria um bilhete dobrado no bolso do
vestido, outro na caixa de joias, mais um na cesta. Cada palavra do
que havia acontecido durante seu encontro com a princesa seria
trocada com um embaixador estrangeiro por um lindo anel ou um
pedaço de renda fina. A coroa seria passada a Sophia no dia
seguinte, mas os assuntos de Estado, não.
Adelaide continuaria a carregá-los, pois a princesa nem mesmo
era capaz de abater um cachorro, muito menos um traidor.
— Fui caçar essa manhã — contou ela ao espelho. — E peguei
um lobo. Do tipo que anda sobre duas pernas…
A superfície envidraçada estremeceu novamente. Agora,
mostrava uma mulher elegante, lindamente vestida e cavalgando
uma égua branca.
— A Duquesa de Niederheim, sim — a rainha disse. — É tão
escorregadia quanto um peixe e esperta como uma raposa. Muda
de alianças como quem troca de roupa. Vê aquele novo broche de
rubi que ela está usando? Uma pedra tão fina custa uma fortuna, e o
duque está falido há anos. Então, como ela pagou por isso? — Seu
olhar, fixo no vidro prateado, endureceu. — Espionando, é claro…
Mas, para quem?
A imagem mudou de novo, desta vez mostrando um homem
repleto de joias sobre mantos brancos esvoaçantes. E depois outro,
sentado em um trono de jade esculpido; e um terceiro, caminhando
ao longo das muralhas de uma fortaleza. Os olhos da rainha
soltaram faíscas, quase maníacos em sua intensidade.
— Dizem que vieram ao baile para homenagear a princesa. Para
me honrar — disse ela. — Mas sei a verdade. Vieram me enterrar.
O astuto sultão de Asir, que paga piratas para saquear meus navios.
O Imperador do Catai, cujos assassinos se movem como sombras
por Königsburg. E o Rei do Interior, que despeja veneno em meus
rios e põe ratos em meus depósitos.
A rainha aproximou-se do espelho. Pressionou a palma da mão
contra ele. Sua respiração o embaçou quando ela sussurrou:
— Espelho, espelho meu…
Antes que pudesse terminar a frase, ela ouviu o farfalhar sedoso
das asas de um pássaro. A seguir, um homem apareceu no espelho.
Seus olhos eram negros como os de um corvo, sua respiração tão
fria quanto a sepultura. Ele estava parado bem atrás dela.
NOVE
A - . Atravessou a sala
e agarrou-se às costas de uma cadeira para se equilibrar. Depois de
um momento, falou:
— Você está errado — disse ela com firmeza. — Na verdade —
ela acrescentou com um sorriso desdenhoso —, você está louco. A
princesa nada mais é que uma garotinha tola de coração mole. Ela
não tem exércitos. Nem navios de guerra. Nem consegue encontrar
coragem para abater uma cadela inútil, quanto mais para ameaçar
uma rainha poderosa.
— Eu não estou errado nem louco. Vi o que acontecerá — disse o
homem.
O sorriso da rainha partiu-se. Ela se aproximou do homem.
— O que você quer que eu faça? — ela perguntou.
O homem estava segurando uma caixa de vidro vazia. Seu fecho
e suas dobradiças eram fundidos em ouro. Ele a colocou sobre uma
mesa.
— Traga-me o coração dela.
Um turbilhão de emoções varreu o rosto da rainha — descrença,
choque, horror. Ela deu um passo vacilante para trás, os olhos fixos
na caixa de vidro, e balançou a cabeça.
— Por muitos anos eu a aconselhei — disse o homem. — Desde
que encontrei você encolhida diante deste mesmo espelho no
palácio do seu pai. Ainda posso ouvir os passos dos soldados
ecoando nos corredores. Posso ver a luz das tochas refletindo em
suas espadas. Esqueceu-se?
A rainha ergueu o olhar para o homem. Olhar nos olhos dele era
como olhar para um abismo. Suas profundezas escuras subiram
para encontrá-la, então giraram em torno dela, puxando-a para cada
vez mais perto da borda.
— Eu não posso fazer o que você pede — ela sussurrou.
O homem estalou a língua.
— Você ordena que milhares de homens morram em batalha. Fica
parada observando, impassível, espiões serem executados. Sorri
quando o machado desce sobre o pescoço dos traidores. E agora
não pode se livrar de uma mera garotinha?
— Ela é inocente.
— Ela é uma ameaça — insistiu o homem. — É tola e fraca. Você
mesma não disse isso? Ela não conseguiria governar as Terras
Verdes melhor do que uma criança. Você sabe disso, e seus
inimigos também. Não os viu no espelho? Eles já estão circulando,
planejando sua morte.
A rainha fechou os olhos. O homem aproximou-se dela. Ele
chegou tão perto que ela podia sentir seu cheiro — meia-noite, ferro
e cinzas.
— O espelho alguma vez falhou com você? Eu alguma vez falhei
com você? — ele questionou.
A rainha não respondeu.
— Você tem uma escolha a fazer — disse ele.
Assim, ele se foi.
A rainha cobriu o rosto com as mãos.
— Não posso fazer isso. Não posso… — falou com angústia em
sua voz.
Depois de um longo momento, ela abaixou as mãos novamente e
avistou seu reflexo no vidro prateado. Só que não era uma mulher
adulta que via agora; era uma jovem. Ela estava de joelhos.
Chorando. Seu vestido estava coberto de sangue.
As palavras do homem pálido ecoaram em sua cabeça. O espelho
alguma vez falhou com você?
— Nunca — ela sussurrou.
O homem está longe agora, mas ouve a resposta da rainha; ele
conhece o coração dela. Ele sorri. Ela acredita que é ela quem o
invoca. Acredita que o controla. Mas aquela é uma guerra, e ela não
tem como derrotá-lo. Nem saberia como.
Ah, como aquele homem pálido manda nela e tem feito isso por
toda a sua vida. De quando era menina até virar mulher. Mesmo
quando não parece estar, ele sempre está lá. Sussurrando em seu
ouvido, passando uma garra por sua nuca, enviando um arrepio por
seu sangue.
O céu começa a clarear. As estrelas desaparecem.
A rainha decidiu.
Ela pega a caixa de vidro.
E chama seu caçador.
ONZE
Na Floresta Sombria
— W ! — J . — P … Weber! Eles se
foram? — a voz veio do alto de uma árvore.
A aranha colocou a cabeça para fora do tronco. Uma perninha
apareceu, depois a outra. Colocou a parte superior do corpo para
fora, olhou através da escuridão e acenou com a cabeça.
Johann saltou. Seus irmãos se juntaram a ele, saindo de seus
esconderijos.
Josef espiou o caminho por onde o homem e a mulher haviam
passado.
— Ele não matou a garota — disse ele.
— Ele nunca mata. Ele sempre manda outra pessoa fazer o
trabalho sujo pra ele, esse desalmado — Jeremias retrucou.
Schatzi, o rosto branco como um fantasma, disse:
— Johann, você consegue salvá-la?
— Vou tentar — Johann respondeu, curvando-se sobre a garota.
— Não temos muito tempo — Schatzi alertou, apontando para a
rede de teia de aranha. A alma dentro dela estava lutando contra a
seda da aranha, tentando escapar.
— Eu sei, Schatzi, eu sei. Mas, enquanto pudermos — ele acenou
com a cabeça para a rede —, a garota ainda tem uma chance.
Julius sacudiu a cabeça.
— Por que estamos nos envolvendo nisso? — perguntou ele.
— O que devo fazer? Deixá-la aqui para morrer? — rebateu
Johann.
Julius fez uma careta. Ele desviou o olhar.
— Isso vai nos trazer dor de cabeça, escreva o que estou falando
— ele murmurou.
Mas Johann mal o ouviu. Ergueu o corpo do chão e saiu correndo
pela floresta em direção à Toca, para a casa de seus irmãos.
Johann era forte e valente, mas seu coração batia forte sob o
peso da garota humana. Seus pulmões trabalhavam enquanto ele
corria. Suas pernas tremiam. Uma ou duas vezes, ele achou que
não conseguiria, mas seguiu em frente e, enquanto corria, uma brisa
farfalhou os galhos acima dele. As folhas vibraram ao seu redor.
Anos depois, contando a história à beira da fogueira em uma noite
de inverno, ele diria que as próprias árvores o haviam incentivado a
continuar correndo. Que tinham sussurrado para ele com uma voz
de criança, inocente, forte e cheia de esperança.
O Rei dos Corvos ganhou outro coração, diziam. Depressa,
Johann. Não o deixe vencer. Não deixe a menina morrer.
QUINZE
S em um mar de dor. As
águas vermelhas e ardentes rodopiavam sobre sua pele, queimando
seu sangue, ardendo em seus ossos.
— Faça isso parar… Por favor — ela implorou. — Me deixe ir…
Me deixe morrer.
Uma aranha a envolveu em uma rede feita de suas teias e
gentilmente a puxou para a margem.
Ela desfaleceu sobre a areia. Sua cabeça tombou para o lado.
Através da névoa vermelha, ela viu que estava deitada sobre uma
mesa de madeira. Havia ferramentas espalhadas por toda parte —
tornos, alicates, cortadores de estanho, martelos. Ela viu
engrenagens, rodas, talhadeiras e molas. Ouviu o som de um
relógio batendo forte. Ouviu também xingamentos e ordens
sussurradas.
Isso é loucura.
Tem alguma ideia melhor?
Ela está morrendo!
Um homem pálido e magro, com olhar de ave de rapina, virou-se
para ela. Uma mulher se juntou a ele. Ela sorriu, mostrando a boca
cheia de dentes podres.
E então Sophie sentiu mãos em sua cabeça; alguém agarrou sua
mandíbula cerrada e a forçou a abrir. Um gosto amargo encheu sua
boca. Sua visão ficou embaralhada; seus olhos se fecharam.
Ela adormeceu. E sonhou novamente.
Com um céu sombrio cheio de corvos.
DEZESSEIS
— P C -S W S — disse
Sophie, olhando seu reflexo no espelho. — Você está parecendo um
palhaço de circo.
Sua camisa era uma velha camisola listrada. Sua saia, que ficava
bem acima dos tornozelos, era, na verdade, uma toalha de mesa
costurada, toda quadriculada vermelha e branca. E seu corpete fora
feito com um saco de grãos, amarrado na frente com cadarços
vermelhos.
Sophie estava com uma aparência absurda, ela sabia disso, mas
não queria reclamar. Schatzi havia feito a saia e o corpete. Ele os
deixara aos pés de sua cama momentos atrás.
— Espero que goste — dissera ele timidamente. — Eu nunca
tinha feito uma saia. Tupfen me ajudou com as medições.
Sophie agradeceu, e ele saiu do quarto, fechando a porta atrás de
si para que ela pudesse se vestir.
Ela ajustou a saia e o corpete. Suas roupas novas eram as únicas
que tinha. Jeremias havia queimado sua roupa de montaria
manchada de sangue. Pelo menos minhas botas sobreviveram,
pensou, olhando para elas. Joosts as polira até ficarem brilhando.
Haakon já teria vasculhado grande parte da floresta nas
proximidades do Vale, ela raciocinou, e, em alguns dias, talvez três
ou quatro no máximo, chegaria ali. Ela tinha de se aprontar para
aquele momento.
Hoje, duas semanas depois de ter acordado na casa dos sete
irmãos e quase um mês desde que saíra do palácio para cavalgar
com o caçador, era o primeiro dia em que Sophie se sentia forte o
suficiente para deixar seu quarto. Ela engordara um pouco, seus
pontos já haviam sido tirados e suas bochechas ganharam um
pouco de cor. Mas o que seu novo coração estranho e barulhento
faria quando ela começasse a se mover? Ele a mantivera viva até
agora, mas ela o tinha forçado muito pouco a trabalhar. Apenas
dormia, comia e depois dormia um pouco mais. O que aconteceria
quando andasse? Subisse e descesse escadas?
Sophie queria sair para o quintal para poder ver Haakon quando
viesse cavalgando pela floresta até ela. Ele viria; estava certa disso.
Eu a amei desde o momento em que a vi, ele lhe dissera. E não
apenas a encontraria, como a levaria para Escandinai, para a
segurança do castelo de sua família. A partir daí, ele e os
comandantes de seu reino tramariam a melhor maneira de tirar do
trono sua cruel madrasta.
Sophie respirou fundo para se acalmar, depois prendeu a
respiração. Ela percorreu todo o quarto, esperando um desastre a
cada passo, mas nada aconteceu. Não houve dor, nenhum ruído de
seu novo coração. Não se sentiu tonta nem fraca. Não desmaiou.
Deu mais alguns passos, depois girou em um círculo lento e
cauteloso. Nada estalou, nada rangeu. Tudo estava perfeitamente
bem. Ela soltou a respiração com uma longa lufada de alívio. Então,
abriu a porta do quarto e atravessou até o patamar da escada.
Os irmãos e Tupfen estavam esperando por ela na parte inferior
da escada, com expressões ansiosas em seus rostos.
— Sophie! Você está de pé e andando! — Schatzi exclamou ao
vê-la.
— Você parece ótima! — disse Josef.
— Obrigada. Estou me sentindo bem — disse Sophie, descendo
as escadas com cuidado. Quando chegou lá embaixo, olhou ao
redor. — Que chalé mais fofo! — ela exclamou alegremente.
Construída em madeira de pinho, a Toca era rústica e
aconchegante. Havia vários quartos separados no andar de cima,
mas o andar de baixo era um só cômodo todo aberto. Sophie
passeou por ele com um largo sorriso no rosto. O chalé era um
mimo. Isso a encheu de um deleite súbito e profundo.
— Que cortinas lindas! — disse ela, passando os dedos pelos
véus de renda pendurados em uma janela. — E esta cadeira! — Ela
se sentou em uma poltrona estofada, suspirou feliz e depois se
levantou de novo.
Ao fazer isso, seu coração, que estava perfeitamente quieto,
começou a fazer um ruído baixo, ronronado. Tomada pela
curiosidade, Sophie não pareceu notar, mas os irmãos, sim. Eles
trocaram olhares preocupados.
— Ah, e esta pintura! — ela exclamou, apontando para uma bela
cena de floresta pendurada na parede. — Um filhotinho de veado! E
os pequenos texugos! Tããão fofinhos! — Ela se voltou para os
irmãos e para Tupfen, colocou as mãos na cintura e anunciou: —
Esta casa é - - - !
Josef ergueu um dedo.
— Hum, Sophie, acho que talvez… — ele começou a falar, mas
Sophie o interrompeu.
Ela avistou algo sobre uma mesa lateral.
— O que é isto? — perguntou ela, pegando uma coleira de couro.
Uma etiqueta prateada caiu dela. Henrik, estava escrito.
— É uma coleira de cachorro — respondeu Joosts. — Pertencia
ao nosso pequeno schnauzer, que morreu há alguns meses.
Os olhos de Sophie se arregalaram. Seu lábio inferior
estremeceu.
— Ah, não — ela disse. — Oh, meu Deus, não. — Ela apertou a
coleira contra o peito. — Seu… cachorrinho… morreu? El-le
morreu? Seu pequeno Henrik morreu?
A última palavra foi pronunciada de modo dolorido. Sophie baixou
a cabeça, ainda pressionando a coleira contra o peito, e pôs-se a
chorar. Seu coração retumbou e estalou.
— Pobre Henrik! Ah, que tragédia! Ele se foi muito cedo. Cedo
demais!
— Hmm, Sophie? Henrik tinha vinte e dois anos — disse
Jeremias. — Estava na hora dele.
— Ele estava soltando puns muito fedidos — ajuntou Julius.
— E roncava a noite toda — Josef acrescentou. —
Honestamente? Eu nem sinto falta dele.
Sophie levantou uma mão. Aos poucos, foi se acalmando e disse:
— Não devemos falar mal dos mortos. Henrik viverá para sempre
em seus corações e… — Seus olhos desviaram para a mesa da
cozinha. — Ai, minha nossa! O que é tudo isso?
Ela cruzou a sala em duas passadas, o coração martelando
contra o peito. A mesa estava preparada para o almoço. Pratos
azuis e brancos colocados sobre uma bela toalha amarela. Mas
foram as travessas no centro que atraíram o interesse de Sophie.
Uma estava cheia de chucrute e coberta com salsichas gordas.
Na outra, havia um strudel de cogumelo. Havia, ainda, schnitzel bem
dourado. Panquecas crocantes de batata com creme de leite e
molho de maçã. Um pão de centeio, um prato de manteiga
amarelinha e uma jarra de leite fresco. E, de sobremesa, bolinhos
de maçã com creme.
Sophie pegou uma panqueca de batata e a engoliu em três
mordidas.
— Humm! — fez ela, limpando os lábios com as costas da mão.
Pegou um schnitzel e o devorou em seis mordidas. — Estava tão
bom! — disse ela com a boca cheia de comida. Em seguida, pegou
uma salsicha.
— Quer um prato? Um garfo? — perguntou Johann.
Sophie fez que não. Ela nunca tinha provado uma comida tão
deliciosa.
Não estava conseguindo comer rápido o suficiente.
— O cozinheiro ficará feliz — observou Julius. — Isso é um
grande elogio ao trabalho dele. Um elogio um pouco afobado, mas,
ainda assim, um elogio…
Sophie entendeu o recado. E lembrou-se de sua etiqueta. Mais ou
menos.
— Onde está o cozinheiro? Devo agradecer-lhe! — disse ela,
segurando uma salsicha meio comida na mão. Ela estava na Toca
havia semanas, sempre comendo uma comida deliciosa, mas não
tivera a oportunidade de conhecer quem a fazia.
— Weber? Ele está bem ali — disse Josef, gesticulando para uma
figura parada na outra extremidade da cozinha, mexendo uma
panela no grande fogão de ferro.
Sophie olhou para o cozinheiro, respirou fundo e gritou. Com
ainda mais força do que quando vira Tupfen pela primeira vez. Seu
coração disparou como um alarme. Ela correu para o outro lado da
mesa e gritou novamente. E atirou a salsicha que estava segurando,
que atingiu Weber bem na cabeça.
— Sophie, pare com isso! — Josef a repreendeu. — Weber é
bonzinho. Ele não faria mal a uma mosca!
— Na verdade, ele faria, sim — falou Julius. — Ele fez mal a uma
dezena de moscas só no café da manhã…
— Querem ficar em silêncio, por favor! — Josef irritou-se.
Weber esfregou o local onde a salsicha o atingiu. Piscou seus oito
olhos, depois começou a chorar.
Sophie levou as mãos ao rosto, com vergonha de si mesma.
— O que foi que eu fiz? — ela sussurrou. — Me perdoe. Eu sinto
muito, muito mesmo. Tenho medo de aranhas. Mas posso ver que
você é uma aranha muito meiga. Pode me perdoar? — Ela correu
até a criatura e segurou duas de suas muitas pernas. — Por favor,
por favor, diga que me perdoa!
Weber fungou; ele fez que sim com a cabeça de forma hesitante.
Sophie bateu palmas alegremente, depois jogou os braços em torno
dele e não o largou mais. Weber ergueu quatro das pernas no ar e
dirigiu um olhar desamparado aos irmãos. Julius puxou uma cadeira
para perto de Sophie, subiu nela e gentilmente tirou seus braços do
cozinheiro.
Sophie deu alguns passos para trás. Ela pressionou a mão na
testa, desorientada e confusa.
— Eu… Eu não sei o que deu em mim. Normalmente, sou um
pouco mais… Controlada.
Johann se aproximou deles. Tirou um estetoscópio do bolso. Era
feito de pedaços de uma velha corneta e um tubo de cobre dobrado.
— Posso? — perguntou ele.
Sophie assentiu. Ela se sentou, repentinamente cansada. Johann
se curvou sobre ela. Pressionou o estetoscópio contra o peito dela e
ouviu. Fez, então, uma careta, sacudiu a cabeça e se endireitou
novamente.
— E então? — perguntou Julius, a voz aguda de preocupação.
— Está funcionando… Quero dizer, batendo lindamente —
Johann começou. E cruzou um olhar com Julius, um olhar de
profunda preocupação. Sophie, de olhos fechados, não percebeu.
— E? — insistiu Julius.
— O ritmo está perfeito no momento — falou Johann. — Tudo
está indo bem. Não consigo ouvir chiados, gotejamentos ou
qualquer outro sinal de vazamento. Os reguladores que coloquei
para controlar o fluxo sanguíneo e o tempo parecem estar
funcionando muito bem…
— Mas? — perguntou Julius.
Johann encolheu os ombros timidamente.
— Mas eu, hmm… Bem, acho que me esqueci de colocar um
regulador de emoções.
VINTE E UM
O S . Um coração fora de
controle era seu pior pesadelo. Fora um desses que quase a
matara.
— O que é regulador, Johann? — perguntou ela, ansiosa. — O
que faz?
— Mantém as coisas equilibradas e suaves. Como o fluxo de
água em um moinho, por exemplo. Ou, neste caso, o fluxo de
sentimentos. O seu parece estar um pouco fora de sintonia.
— O que é que eu vou fazer? — Sophie perguntou-se ao ouvir as
palavras de Johann. — Estou me comportando como uma lunática.
Falando tudo que vem à minha mente. Chorando. Rindo. Atirando
salsichas pelos ares. Não posso continuar assim. É… exaustivo.
Mas o que ela realmente quis dizer é que era perigoso. Ser
guiada por seu coração havia despertado a ira de sua madrasta.
Causara dor e sofrimento para uma criança inocente, para animais
inocentes. Até Haakon, que gostava dela, achava-a gentil demais,
mole demais, emotiva demais. Ele prometera vigiar o coração dela.
O que ele pensaria se a visse agora, completamente incapaz de se
controlar? Ainda a desejaria? Ainda a amaria?
Sophie pegou a mão de Johann.
— Me diga o que fazer — ela implorou. — Me diga como regular
esse coração.
Johann franziu a testa, pensativo. Então ele disse:
— Talvez um pouco de ar fresco lhe faça bem. Um pouco de
exercício. Pode ser que acalme as coisas. Você não sai há um mês.
— Parece uma excelente ideia — disse Julius.
Sophie concordou e Josef sugeriu que fossem até o jardim colher
morangos. Ele pegou uma tigela de uma prateleira e eles saíram da
cabana. Enquanto isso, o restante dos irmãos sentou-se para
almoçar.
As coisas não foram muito bem lá fora, porém. No instante em
que passou pela porta, Sophie deu gritinhos ao ver as janelinhas
vermelhas e as lindas floreiras do chalé. Apenas a visão do rosto de
Josef, com sua expressão consternada, a fez se acalmar.
— Pare — disse ela a si mesma, segurando a cabeça com as
mãos. — Pare.
Josef a conduziu até um caminho de pedra que levava do chalé
até o jardim. No início, Sophie seguiu um ritmo imponente, mas,
depois de apenas alguns segundos, pôs-se a saltitar pelo caminho,
com o coração batendo forte de alegria. Ela enterrou o rosto em
uma roseira cheirosa e arranhou as bochechas. Colheu uma
margarida e a colocou atrás da orelha. Acariciou uma lesma. Tudo
antes mesmo de colocar os pés no jardim.
Sophie ficou desanimada quando Josef a alcançou no portão do
jardim.
— Não adianta — disse ela. — Este coração faz o que bem
entende.
— Tente conter seus sentimentos — Josef sugeriu. — Como se
você estivesse prendendo a respiração.
Sophie assentiu. Ela endireitou a coluna, empurrou o portão e
saiu para o jardim. Sua resolução durou exatamente um segundo.
— Oh, Josef, olhe! — ela exclamou. — Você já viu um repolho tão
lindo?
Ela trotou para cima e para baixo pelos canteiros bem
organizados do jardim, maravilhada com berinjelas, feijões e
couves-de-bruxelas. Como nunca havia notado a beleza de uma
vagem antes? A elegância das folhinhas de endro? Tudo lhe parecia
um milagre. Ela ajudou Josef a colher frutas vermelhas por alguns
minutos, depois saiu valsando, incapaz de ficar parada, ansiosa
para explorar o terreno. Enquanto isso, Johann, ansioso para
descobrir como Sophie estava, engoliu rapidamente o almoço e
juntou-se a Josef no portão do jardim.
— Como ela está? — ele perguntou ao irmão.
Josef encolheu os ombros.
— Houve gritinhos de alegria e risadas histéricas, mas, até agora,
sem berros nem lágrimas. Acho que já é um avanço… Espere um
minuto… O que ela está fazendo agora?!
Sophie tinha acabado de admirar os nabos quando avistou algo
que não era tão adorável — um grande monte marrom irregular no
fundo do jardim. Era um amontoado de cascas de ovo, folhas de chá
gastas, serragem, cocô de galinha, cascas e caroços de frutas,
aparas de grama e folhas mortas. Caminhou até a pilha e franziu o
nariz.
— Josef, o que é isso? — ela gritou por cima do ombro.
— Essa é a nossa pilha de compostagem — Josef respondeu. —
Colocamos lixo do jardim e restos de comida nela. Eles se
decompõem e se tornam fertilizantes para as plantas. É um pouco
fedorento, Sophie, e cheio de insetos e vermes. Venha para cá.
Sophie estava prestes a ouvir o aviso de Josef, quando um
movimento na pilha de compostagem chamou sua atenção. Mas
como pode ser isso? Não era nada além de lixo. Ela deu um passo
à frente. Será que tinha imaginado? Mas não! Lá estava ele de
novo! A pilha parecia estar caindo para o lado.
A protuberância desapareceu e reapareceu. Elevou-se cada vez
mais até atingir o ponto mais alto da pilha e, então, como um vulcão
em erupção, o topo explodiu. Um nariz rosa e sujo apareceu.
Bigodes. Olhos pretos redondos. Eles pertenciam ao maior e mais
sujo rato que Sophie já vira na vida. Ela se engasgou ao vê-lo. Seu
coração estremeceu e chiou.
Sophie esperou pelas emoções que sabia que estavam prestes a
tomar conta dela: medo, nojo, horror. Mas a emoção que se
apoderou dela foi algo que nunca esperou: amor.
Ela colheu uma vagem e a estendeu para a criatura.
— Sophie, não! É um rato enorme! — Josef avisou.
Sophie não deu ouvidos a ele.
— Ratinho! Venha aqui, coisinha fofa! — ela incentivou,
balançando a vagem no ar. — Você é o animal mais maravilhoso
que já conheci. Vou fazer de você meu animalzinho de estimação.
O rato farejou a vagem e se aventurou mais perto. Sophie deu
para ele comer. Depois, ela o agarrou e o abraçou contra o peito.
— Sophie! — Josef gritou enquanto o rato se contorcia e gritava.
— Coloque essa criatura vil no chão agora!
— Mas, Josef, eu o amo! — Sophie gritou de volta.
— Lá vamos nós de novo — disse Johann com um suspiro.
O rato saltou dos braços de Sophie e rapidamente desceu para a
pilha de compostagem. Sophie implorou para ele sair. Como ele não
quis, ela começou a chorar.
— É só porque a engrenagem ainda está dura. Logo vai se
adaptar, foi o que você disse. Este coração é uma catástrofe,
Johann! Ela ama salsichas! Ela ama lesmas! Ela ama um rato
nojento! — Josef sussurrou meio que gritando.
Johann, observando Sophie cavar a compostagem, franziu a testa
profundamente.
— O coração é defeituoso, sim — disse. — Mas está funcionando,
Josef. Não é como…
— Nem fale nisso — disse Josef. — Já gosto dela. É como se
fosse uma filha. Eu não suportaria perdê-la.
Johann voltou-se para o irmão e deu um tapinha em suas costas.
— Eu sei. Eu me sinto da mesma forma. Mas o que podemos
fazer? Fiz o coração dela como o que fiz para Jasper.
Josef pareceu chocado com a menção do nome.
— Mas com aperfeiçoamentos. Foi o que você disse.
— Alguns. Mas nós dois sabemos o que vai acontecer. É só uma
questão de tempo.
Josef voltou a olhar para Sophie.
— O que podemos fazer? — ele perguntou, ecoando a pergunta
de seu irmão.
— Podemos esconder a verdade dela. Como já estamos
escondendo…
— Isto é justo?
— Estamos escondendo outras coisas dela, não é? Como o nome
de quem realmente está com o seu coração. Temos de fazer isso.
De que outra forma podemos mantê-la segura?
— Por quanto tempo esconderemos a verdade, Josef?
Josef observou a garota em seu jardim enquanto ela sorria para
uma borboleta, pegava um gafanhoto e ria de um esquilo tagarela. A
tristeza espalhou-se por seu rosto como tinta derramada em um
pergaminho.
— O máximo que pudermos.
VINTE E DOIS
A - o lenhador ensanguentado.
Ele estava deitado no chão, gritando. Segundos atrás, perdera o
controle da tora que estava cortando e acabara enterrando a lâmina
do machado profundamente em seu pé direito. Ela havia se cravado
em sua bota de couro, atravessando sua pesada meia de lã e seus
ossos. Ele puxou a lâmina e depois desabou. O sangue jorrava do
corte.
Os olhos da mulher viajaram do pé do lenhador para seu rosto.
Estava cinza de choque. Ele ainda gritava, embora não tão alto.
Seus olhos rolaram para trás. Estalando a língua, a mulher
endireitou-se, então continuou sua caminhada pela Floresta
Sombria.
Ela estava ocupada naquela manhã. Visitara uma mulher em
trabalho de parto e, juntas, inventaram alguns palavrões bem
expressivos. Depois, fora a vez de um aprendiz de dentista — um
rapaz com dedos grossos e visão deficiente — remover um dente do
siso. E, após, ela ainda comparecera a um enforcamento. Bom nó,
pescoço fino — um caso rápido. A mulher caminhou por quilômetros
pela floresta, misturando-se às sombras em seu traje escuro. As
plantas murchavam sob seus pés. Os troncos das árvores ficavam
pretos onde ela os tocava. Animais corriam para escapar de seu
olhar louco.
Depois de mais ou menos uma hora, ela passou por uma lagoa
azul límpida e chegou à beira de uma clareira ensolarada. Havia um
chalé arrumadinho bem no meio dela, branco com janelinhas
vermelhas. As floreiras estavam coloridas. Uma nuvem de fumaça
saía da chaminé, espalhando pelo ar o aroma de pão fresco.
A mulher olhou para o chalezinho com tristeza.
— A Toca — ela murmurou.
Seus olhos seguiram a cerca de estacas que o rodeava. Nem ela
nem seu irmão jamais foram capazes de violá-lo.
— É encantado. Só pode ser — ela disse, mordendo a unha do
polegar com os dentes esfarelados.
Os sete irmãos tomavam todos os cuidados para mantê-los
afastados. Tinham defesas fortes, mais fortes do que quaisquer
amuletos. Tinham livros e canções, flores e bolo de ameixa. Tinham
uns aos outros. Quando sentavam juntos ao redor da lareira à noite,
aquecendo os dedos dos pés no fogo, contando histórias e bebendo
schnapps, ninguém conseguia quebrar seu círculo.
A mulher arrancou a unha com os dentes em um acesso de
ressentimento, depois viu o sangue pingar de seu polegar. Isso a
acalmou um pouco, mas a calma não durou muito. Porque, um
momento depois, uma garota saiu da cabana e foi para o quintal
com uma cesta no braço.
Enquanto a mulher observava, a menina cortou rosas de um
arbusto e as colocou cuidadosamente uma a uma em sua cesta.
— Não pode ser — os olhos da mulher se estreitaram.
Ela se aproximou da cerca, com cuidado para permanecer sob as
sombras dos pinheiros.
Mas era ela. A menina… A princesa… Ela estava viva.
— Mas, como? Meu irmão está em posse do coração dela. Eu o vi
na caixa.
A mulher deu mais alguns passos em direção à cerca. Apertou os
olhos. Aquela era uma cicatriz no peito da garota? Acima do
decote?
— O que será que esses infelizes intrometidos fizeram? — ela se
perguntou em voz alta.
A garota virou-se de repente para cortar flores de outro arbusto, e,
então, a mulher voltou para as sombras, mas seu olhar
permaneceu. Ela poderia ensinar algo àquela notável garota.
Mostrar a ela coisas sobre si mesma que ninguém mais poderia.
Poderia fazê-la ver que ela era mais forte e mais corajosa do que
jamais imaginou ser. Parte dela queria muito fazer isso.
— Porque às vezes eu ajudo — ela sussurrou.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, um besouro verde
brilhante pousou em sua saia. A mulher abaixou e colocou a criatura
na palma da mão, sorrindo torto para ela. Depois, levou a mão ao
rosto e soprou no pequeno inseto. Instantaneamente, ele caiu de
costas, pernas minúsculas revoltas em agonia.
— Mas não sempre — ela virou o besouro.
Ele pousou no chão e saiu correndo. A mulher ergueu os olhos
avermelhados novamente para a garota.
Ela arrancou outra unha. A seguir, num redemoinho de saias
pretas e gotas de sangue caindo no chão da floresta, desapareceu
na escuridão.
VINTE E TRÊS
— V , W ! P — Sophie disse
corajosamente.
Nos últimos cinco dias, desde que abraçara o rato no jardim de
Josef, ela vinha tentando treinar seu coração para se comportar
direitinho e estava ansiosa para testar seu novo controle.
Trabalhou duro para manter seus sentimentos ocultos, como
costumava fazer antes, e ficou um pouco melhor nisso, mas só um
pouco. Na maioria das vezes, seu novo coração ainda revelava suas
emoções. Todo mundo sabia como ela se sentia a respeito de tudo,
o tempo todo, e ela odiava isso. Haakon estava vindo atrás dela.
Como ela se comportaria na corte com o coração batendo forte
como uma caipira bêbada, envergonhando-se dez vezes por dia?
Como poderia ser a rainha que Haakon queria que ela fosse?
Os irmãos tinham ido para as minas, com picaretas sobre os
ombros, horas atrás. Jeremias e Joosts não estavam com eles.
Haviam partido em uma viagem de caça no dia anterior e ficariam
fora por alguns dias. Com dois irmãos ausentes, os cinco restantes
estavam trabalhando mais horas. Tupfen tinha ido para a floresta
colher cogumelos. Apenas Weber estava em casa, em frente ao
enorme fogão de ferro, preparando coisas deliciosas para o jantar.
Ele se virou com uma perninha apoiada no quadril.
— Vá em frente — Sophie o incentivou. — Pode me testar!
Lançando um olhar cético para ela, Weber estendeu a mão para
trás, agarrou algo que Sophie não pôde ver e empurrou na frente
dela. Era um pão de centeio bem douradinho, que acabara de sair
do forno. Sophie inclinou-se para frente e inalou o perfume de dar
água na boca. Não houve barulho forte.
— Vê? — ela falou. — Eu disse! Experimente outra coisa.
Qualquer coisa!
Ela pressionou a palma da mão contra o peito:
— Não vai fazer barulho.
Weber entrou na despensa e ressurgiu um momento depois
carregando um grande prato redondo. No instante em que Sophie
viu o que havia nele, seu coração bateu como os sinos de uma
igreja no dia do casamento de um rei.
— Um bolo floresta negra? — Sophie disse, batendo o pé. —
Weber, isso é não é justo!
O bolo, com uns bons vinte e cinco centímetros de altura, era a
sobremesa favorita de Sophie. Eram camadas de massa de
chocolate embebidas em calda de cereja e recheadas com chantili.
Por fim, uma cobertura em redemoinhos enfeitava o topo, com
cerejas doces e escuras por cima.
Impulsivamente, Sophie agarrou uma cereja e a mordeu. O suco
escorreu por seu queixo. Seu coração ronronou. Weber olhou
furioso. Fez ruídos altos e estridentes que pareciam muito com uma
bronca, e Sophie percebeu quão mal-educada tinha sido.
— Desculpe — disse ela timidamente. — Acho que as coisas não
estão tão sob controle como eu pensava… Tem mais cerejas? Eu
resolvo isso. Eu…
Suas palavras foram interrompidas por um barulho alto e
crescente. Uma pressão repentina dentro de seu peito, que foi
aumentando, espremendo o ar para fora dela. Tentou recuperar o
fôlego, mas não conseguiu. Os segundos se passaram e ela ainda
não conseguia respirar. Assustada, agarrou a borda da mesa e
desejou que seus pulmões puxassem o ar, mas eles não
conseguiam. Ela estava vagamente ciente dos gritos de pânico de
Weber. Sophie tropeçou, cambaleou e caiu no chão de madeira duro
sobre as mãos e os joelhos.
O choque a sacudiu e, tão repentinamente quanto começou, a
pressão diminuiu, o barulho parou e seus pulmões se abriram
novamente. Um momento depois, ela sentiu Weber ajudando-a a se
levantar. Ele a sentou em um banco perto da mesa. Ajoelhando-se,
ele empurrou uma mecha solta de cabelo de seu rosto corado e
suado, e guinchou. Ela não entendeu todas as suas palavras, mas
sabia o significado.
— Eu-eu não sei — ela respondeu, com a voz trêmula. — Um
segundo eu conseguia respirar, no outro já não conseguia mais.
Deve ter algo a ver com o coração. Algo travou, eu acho.
Antes, Weber havia feito um bule de chá. Ele serviu uma xícara
para ela agora, levou-a para a mesa e colocou-a na frente de
Sophie. Ele afastou outra mecha de cabelo de seu rosto, com a
preocupação nublando seus muitos olhos. Estava prestes a dizer
algo a ela, quando um sibilo alto e raivoso foi ouvido. Sua sopa de
alho-poró estava fervendo. Tinha espirrado sobre o ferro quente,
onde borbulhou e queimou, exalando um cheiro horrível.
— Sinto muito, Weber! — disse Sophie. — É culpa minha. Eu
distraí você.
Ela se sentiu péssima. Weber tinha muito trabalho a fazer, e ela o
estava impedindo. Sophie se levantou e se ofereceu para ajudá-lo a
limpar a bagunça, mas ele a dispensou. Ela se sentou novamente,
suspirando desconsolada. Ao tomar outro gole de chá, percebeu
que uma de suas mangas estava se abrindo. Olhando mais de
perto, descobriu que estava rasgada do cotovelo ao ombro. Que
beleza. Devo ter prendido no banco quando caí, pensou.
— Weber, preciso remendar minha manga — disse ela. — Onde
posso encontrar outra camisa velha para vestir enquanto conserto
esta?
A aranha, limpando a sopa queimada, sacudindo uma panela de
couve-de-bruxelas, mexendo uma caçarola de lentilhas ferventes e
salgando um frango — tudo ao mesmo tempo — apontou para cima.
— No sótão? — ela perguntou.
Weber assentiu. Sophie terminou seu chá e, em seguida, foi para
o segundo andar da casa, seus passos tão pesados quanto seu
novo coração barulhento.
Uma porta no fim do corredor abria-se para outro lance de
escadas. O sótão ficava no topo deles. Sophie estava familiarizada
com isso. Ela fugia, várias vezes por dia, todos os dias, para esperar
Haakon na janelinha estreita. Um mês se passara desde que o
caçador levou seu verdadeiro coração, e ainda não havia sinal de
Haakon. Todos os dias ela acordava e dizia a si mesma: Hoje é o
dia. E todas as noites ela adormecia profundamente decepcionada.
Às vezes, uma vozinha dentro dela dizia: Ele não está procurando
por você. Se estivesse, já a teria encontrado. Sophie fazia o
possível para abafar a vozinha, mas ela persistia.
Ela foi até a janela do sótão. Era difícil ver muito através das
densas copas das árvores ao redor da casa, mas, esticando o
pescoço para um dos lados, conseguia avistar apenas uma clareira
ensolarada na floresta. E, se ela se virasse na direção oposta, via
um grupo de bétulas prateadas e uma trilha que levava à Toca.
— Onde você está, Haakon? — ela sussurrou.
Ele estava lá fora, procurando por ela. Ele estava. Ele virá.
Apenas dê a ele mais alguns dias, ela disse a si mesma. Ela tinha
de acreditar nisso, pois, sem ele, ela não tinha futuro, nenhuma
esperança.
— E, quando ele chegar, não quero recebê-lo com roupas
rasgadas — disse ela em voz alta, lembrando-se da tarefa em
mãos.
Embora visitasse o sótão diariamente, Sophie nunca tivera
realmente de procurar nada nele e viu agora que encontrar uma
camisa, ou qualquer outra coisa, seria uma tarefa difícil. Os irmãos
não haviam organizado nada. A limpeza não era seu ponto forte.
Tupfen estava sempre atrás deles, guardando peças perdidas de
relógios, cordas de arco e ferramentas.
Sophie sorriu ao pensar nos irmãos durante sua busca. Ela era
muito grata por sua gentileza e seu cuidado, e já gostava muito
deles. Schatzi, ela havia aprendido, era uma alma sensível. Tinha
cabelos ruivos e um rosto redondo que frequentemente estava
vermelho de emoção. Jakob, um homem de ação decidido, era o
mais velho. Tinha cabelos grisalhos e barba, além de rugas no rosto.
Jeremias tinha a língua ácida e era alegre, embora Sophie tivesse a
sensação de que seu bom humor fosse uma defesa, pois captara
vislumbres de uma profunda tristeza em seus olhos. Johann era
quieto e ponderado, sempre perdido em pensamentos. Joosts era o
pacificador. Josef, que sempre tinha feno grudado no corpo, ficava
mais feliz cuidando de suas galinhas, vacas e porcos. Julius era
rabugento, mas inteligente e perspicaz, e gentil também, a seu
modo. Ele era o único que lia para Sophie à noite enquanto ela
convalescia, para manter seu tédio sob controle.
Movendo-se com cuidado, Sophie passou por caixotes
empilhados em mesas, cestos equilibrados em caixas e uma
confusão de móveis quebrados que os irmãos pretendiam consertar
um dia. Ela teve que se espremer entre as cadeiras e a estrutura da
cama, lutar com sapatos para neve e varas de pescar, e empurrar
para o lado uma cabeça de alce empalhada, tudo para chegar a
uma cesta de roupas velhas que balançava em cima de uma pilha
de livros sobre um baú. Quando alcançou a cesta, esbarrou nos
livros e os derrubou no chão. Sophie fechou os olhos. Abanou a
cabeça. Nada estava dando certo. Xingando baixinho, ela abriu os
olhos novamente, colocou a cesta no chão e começou a pegar os
livros. Foi quando viu um nome gravado no baú em letras
maiúsculas, uma única palavra:
J
VINTE E QUATRO
S - .
Eles estavam chamando seu nome. Repetidas vezes. Com toda a
força de seus pulmões. Ao se aproximar da Toca, ela viu tochas
balançando no lusco-fusco do crepúsculo.
— Estou aqui! — gritou ela, fraca de alívio. — Aqui!
Um momento depois, Josef estava ao seu lado.
— Onde você esteve? — perguntou ele, a voz aguda de
preocupação. Então ele ergueu a tocha e deu uma boa olhada nela.
— O que aconteceu com você?
As botas de Sophie estavam cobertas de lama. Os espinhos
rasgaram sua saia. Seu cabelo, antes preso num coque, estava
solto sobre os ombros. Seu rosto, vermelho.
Jakob juntou-se a eles, sem fôlego e ofegante.
— Estávamos tão preocupados! Chegamos em casa e você não
estava! — Ele se virou, colocou a mão em concha sobre a boca e
berrou: — Nós a a encontramos!
Juntos, os três voltaram para o chalé. Quando chegaram ao
portão, os outros estavam no pátio, esperando por eles. Havia
muitas perguntas para responder.
— Por que você foi embora?
— Aonde foi?
— Graças aos céus você está bem!
— Podemos entrar, por favor? Tupfen não parava de chorar e
Weber estava tão chateado que queimou os bolinhos.
— Sinto muito por ter dado esse susto em vocês — disse Sophie
enquanto se dirigiam para a porta. — Eu fui até o lago.
— O lago — disse Julius, horrorizado. — Por quê?
— Para ver se Haakon estava lá, procurando por mim — Sophie
admitiu.
— Que coisa tola de se fazer — disse Julius.
Sua voz era severa, mas Sophie também sentiu medo em suas
palavras.
— Eu sei — lamentou Sophie. — Eu… Eu os vi. Os ossos. Eu
também vi um corpo.
Olhares preocupados foram trocados entre os irmãos. Sophie os
percebeu.
— O que foi? — ela disse. — O que isso quer dizer? Por que
esses restos mortais estão na floresta?
— Entre, Sophie — disse Julius seriamente. — Tire essas botas
molhadas e troque de roupa.
— Não tenho outra roupa — disse Sophie.
— Você pode pegar uma calça e uma camisa emprestadas.
Tupfen vai pegá-las para você. Depois, vamos jantar. Weber
manteve a comida aquecida.
Enquanto todos eles dirigiam-se ao corredor de entrada do chalé,
Sophie lutou contra o desejo de conversar mais. Ela queria
respostas, e os irmãos as tinham. Podia ver que sim, mas, como
lhes havia causado muitos problemas, ficou de boca fechada e
decidiu fazer suas perguntas mais tarde, quando todos estivessem
sentados à mesa.
Depois de tirar as botas, Sophie entrou na cozinha. Tupfen e
Weber correram até ela. Sophie beijou suas bochechas e pediu
desculpas a eles também, por causar tanta preocupação. Alguns
dos irmãos puseram a mesa; outros acenderam velas ou
alimentaram o fogo.
Sophie estava saindo da cozinha em direção à escada, com a
intenção de subir até seu quarto para se trocar, quando Johann,
pensando que ela já tinha saído do ambiente, inclinou a cabeça para
Josef e cochichou:
— É ele.
Suas palavras foram dirigidas apenas aos ouvidos de seu irmão,
mas Sophie as ouviu. Ela se virou.
— Quem? — questionou ela, olhando para Johann. — Você disse:
É ele. De quem você está falando?
Os olhos de Johann arregalaram-se. Ele percebeu que tinha sido
ouvido. Gaguejou e se enrolou, tentando voltar atrás, mas Sophie
não se deixou enganar.
— Aqueles ossos na floresta… Já pertenceram a pessoas —
disse ela. — Seus corações foram arrancados. Assim como o meu.
Há coisas que vocês não estão me contando.
As imagens voltaram à sua mente — de olhos negros perfurando-
a, de um sorriso cruel. Ela continuou:
— É aquele homem pálido, não é? É dele que você está falando.
Aquele na pintura de Jasper. Quem é ele?
Ela olhou de um irmão para outro, seus olhos implorando pela
verdade. E, finalmente, ela a ouviu.
Julius colocou as mãos nas costas de uma cadeira e se apoiou
nela, de cabeça baixa.
— Ele se chama Corvus. É o Rei dos Corvos.
A raiva explodiu dentro de Sophie. Os irmãos esconderam coisas
dela e não tinham o direito de fazer isso.
— Foi ele quem tirou o coração de todas aquelas pobres pessoas
na floresta, não foi? — disse ela. — Quando eu estava morrendo, eu
o vi. Ele se inclinou sobre mim. Ele está com o meu coração
também? O caçador mentiu para mim? Vocês mentiram?
— Não, Sophie, o caçador não mentiu — Julius disse com pesar
na voz. — Corvus está com o seu coração. A rainha deu a ele.
— Como você sabe disso? — Sophie perguntou, sua raiva
crescendo.
— Quando nós a encontramos, você estava quase morta — Julius
continuou. — Sua alma estava deixando seu corpo. Corvus estava
chegando. Com sua irmã, Crucia. Weber capturou sua alma na hora
certa, mas pegá-la nos deixou sem tempo para correr. Então nos
escondemos. Foi quando ouvimos Corvus dizer a Crucia que estava
indo ao palácio para pegar seu coração com a rainha.
— Mas, por quê? O que ele quer com o meu coração?
— Ele os coleta e os mantém em uma sala em seu castelo, em
caixas de vidro encantadas, vermelhos e vivos.
Sophie se sentou à mesa, agora mais perplexa do que zangada.
Parecia que alguém havia chutado suas pernas.
— O que ele quer com os corações?
— Não sabemos.
A cabeça de Sophie estava girando.
— Por que vocês não me contaram essas coisas semanas atrás?
Pela primeira vez desde que começara a falar, Julius ergueu a
cabeça. Sophie viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Julius, ranzinza e rabugento, chorava. Isso a assustou mais do que
qualquer coisa que ele dissera.
— Julius, quem é esse Rei dos Corvos? — Sophie perguntou. —
De onde ele veio?
— Ninguém sabe — respondeu Julius. — É certo, porém, que se
trata de um homem poderoso e perigoso, e você é uma garota com
um coração defeituoso. As pessoas se perdem na Floresta Sombria,
Sophie, e a maioria delas nunca consegue voltar. É por isso que
escondemos coisas de você. Por isso que tentamos mantê-la aqui,
na Toca, segura e protegida… — a voz de Julius falhou. Ele não
conseguiu terminar.
Então Johann continuou por ele:
— Ele levou Jasper, Sophie — disse suavemente. — Foi ele quem
levou nosso irmãozinho. Não vamos deixá-lo levar você.
VINTE E OITO
E um coração.
E o Rei dos Corvos usa todos os métodos; ele não ignora
nenhum. Fica feliz de arrancá-lo de uma vez, como eu, o caçador,
fiz.
Fica feliz de tirá-lo pedaço por pedaço, ano após ano, como um
avarento acumulando moedas, com silêncios punitivos, olhares
cortantes e falsas gentilezas.
Palavras venenosas também funcionam. São tão afiadas quanto
facas e deixam suas vítimas vazias.
Na Floresta Sombria, uma princesa olha para as estrelas pela
janela de seu quarto. Disseram que estava errada. E agora ela
acredita que está ainda mais errada, com um coração falho, batendo
forte, que é uma responsabilidade maior do que o anterior.
A quilômetros de distância, no palácio, a rainha olha fixamente
para o seu espelho. Ela é tantas coisas: poderosa, corajosa,
inteligente, feroz. Mas o vidro prateado nunca a deixa esquecer o
que ela não é — um menino, um filho, um homem, um rei.
Você se assusta com o que vê quando se olha no espelho? Acha
grande demais? Pequeno demais? Sente que está tudo errado?
Que nunca há nada certo?
Ouça-me, criança. Você deveria se assustar muito mais com o
que está olhando para você.
TRINTA
—A , …P , ! — implorou Jakob.
Ele estava de joelhos ao lado de Sophie, batendo suavemente em
seu rosto.
— Ela morreu de novo? — Schatzi perguntou, chorando.
— Ela não está morta. Está respirando. Olhem — confirmou
Johann. O peito de Sophie subia e descia. Sua respiração era
superficial, mas ela estava viva. A felicidade o inundou, mas, então,
ele viu os furos em seu braço. — O veneno tem que ser retirado —
disse ele friamente.
Weber, que havia entrado no quintal com uma cesta de mirtilos,
juntou-se aos irmãos. Quando viu Sophie e as cobras mortas, ele
empurrou todos de lado. Sabia exatamente o que fazer.
Trabalhando rapidamente, fiou um pedaço de seda, enrolou-o e
pressionou-o contra as feridas de Sophie. Enquanto os irmãos
observavam, a seda branca foi ficando lentamente verde-escura e
oleosa.
Weber fiou mais seda. Ele trocou os curativos várias vezes,
retirando todo o veneno. Quando o veneno deixou seu corpo, as
pálpebras de Sophie se abriram. Ela gritou, batendo as mãos
freneticamente no ar.
— Pare, Sophie. Está tudo bem — Johann a acalmou. — As
cobras estão mortas.
Sophie pressionou a mão trêmula sobre os olhos. Respirou fundo
algumas vezes e baixou a mão.
— O que aconteceu? — Josef perguntou.
Um arrepio percorreu Sophie.
— Foi horrível — disse ela com a voz áspera. Então contou a eles
o que sua madrasta tinha feito.
— A rainha descobriu que você está aqui. Mas, como? Quem
contou a ela? — Josef perguntou.
Johann ergueu os olhos, procurando corvos nos galhos das
árvores, mas não havia nenhum.
— Ele contou. Corvus. De alguma forma, ele descobriu que ela
está aqui.
Quando Johann terminou de falar, Julius se ajoelhou ao lado de
Sophie. Ele correra para a cozinha um momento antes para buscar
uma pequena garrafa de vidro. Pegou um dos maços saturados de
seda de aranha e espremeu o veneno na garrafa. Segurou, então, a
garrafa contra a luz, girando-a. Despejou uma gota no dedo e
provou.
— Grausamsprache — declarou ele. — É um veneno muito
potente. Ele viaja rapidamente através dos vasos sanguíneos e para
o coração.
— Então por que ainda estou viva? — Sophie perguntou, confusa.
— Porque o veneno só paralisa corações de carne e osso; não
tem efeito nos mecanismos do relógio. Na verdade… — Ele pegou a
mão de Sophie e colocou dois dedos em seu pulso para senti-lo. Ele
sorriu. — Esse seu coração está batendo bem. O ritmo é forte.
Sophie percebeu que esta era a segunda vez que o coração de
metal a salvava da morte. Ela ficou surpresa ao sentir uma gratidão
relutante pela coisa defeituosa e barulhenta.
— Estou tão feliz por vocês terem voltado para casa a tempo —
disse ela aos irmãos. — Obrigada por matarem as cobras.
— Não matamos — disse Schatzi.
— Mas Johann disse que estavam mortas.
— Ele as matou — disse Schatzi, apontando para o chão perto de
Sophie.
Sophie se virou para ver o que ele estava apontando. Seu
coração disparou ao ver um cãozinho deitado na grama, exausto.
Seu corpo estava estatelado; seus olhos, fechados.
— É o animalzinho mais valente que já vi — Schatzi disse. — O
mais sujo também. Estava coberto de lama. Tão sujo que pensei
que fosse um cachorro marrom, mas não é. É…
— É uma fêmea, e é cor de creme — Sophie disse com lágrimas
nos olhos.
Schatzi olhou para ela.
— Como você sabe disso?
— Eu salvei a vida desta cadelinha uma vez — Sophie disse,
colocando uma mão gentil na criatura de pele e ossos. Ao fazer
isso, ela abriu os olhinhos.
— Agora você salvou minha vida. Parece que estamos quites,
garota.
Ela se inclinou e beijou o topo da cabeça da cachorrinha.
Zara abanou o rabo.
TRINTA E TRÊS
S .
Lentamente, abriu os olhos. Estava deitada no chão, sobre uma
alcatifa de agulhas de pinheiro. Sua cabeça estava protegida pela
mochila. Ela estava babando.
— O coelho está quase pronto. Eu também tenho peras. E queijo
— disse uma voz. — Você gostaria de algumas?
O estômago de Sophie roncou como um tigre.
— Vou entender isso como um sim.
Sophie se sentou com cautela. Enxugou a baba com a manga.
Olhando em volta, ela viu que estava sentada sob uma árvore alta e
protegida. Já estava quase escuro. O garoto estava virando um
coelho em um espeto feito de galhos entalhados sobre um fogo
rodeado de pedras. Sucos pingavam da carne e assobiavam nas
chamas. Zara estava sentada perto dele, olhando sem piscar para o
coelho.
— Onde estou? Como… Como vim parar aqui? — Sophie
perguntou.
— Eu carreguei você — disse o garoto, sem tirar os olhos da
carne.
Sophie não tinha certeza de como se sentir sobre isso. Sua
cautela cresceu.
— Essa cadela apareceu e rosnou para mim — ele acrescentou.
— Achei que era sua.
Sophie assentiu. Ela olhou atentamente para o menino. Quem era
ele? Corvus, o Rei dos Corvos? Importava mesmo se ele fosse? Ela
não podia lutar nem fugir. Estava muito fraca, muito esgotada pela
fome, não conseguia nem mesmo se levantar.
— Você é um monstro? — ela perguntou, com a voz embargada
de cansaço.
— Não.
— Vai me matar?
— Não.
— Porque, se for, mate agora, mate rápido, e não machuque a
minha cachorra. Ela já sofreu o suficiente.
O garoto olhou para ela.
— Vamos esclarecer uma coisa desde o início. Eu nunca, nunca
machucaria um cachorro.
A suspeita de Sophie diminuiu um pouco. Em sua experiência,
pessoas que não machucam cachorros também não machucam
pessoas.
O menino voltou sua atenção para o coelho.
— Meu nome é Will.
— Sophie.
Will tirou o coelho do espeto, colocou-o sobre uma das pedras ao
redor do fogo e cortou-o ao meio com uma faca de caça. Entregou
metade para Sophie. Ela pegou com as mãos trêmulas. Então,
arrancou a perna de sua metade e a jogou para Zara.
— Tenha cuidado — Will avisou. — Está muito…
Mas Sophie não estava ouvindo. Ela rasgou a carne como um
lobo, arrancando um pedaço com os dentes.
— … quente.
A carne estava sem graça, pois não havia tempero. Estava
carbonizada em alguns lugares e dura em outros, mas era a melhor
coisa que Sophie já tinha comido na vida. Lágrimas escorreram de
seus olhos enquanto ela engolia. Ela as limpou do rosto. Will fingiu
não notar. Enquanto ela raspava cada osso com os dentes, Will
entregou-lhe uma pera. E, depois, um pedaço de queijo duro e
salgado. Sophie devorou tudo. A comida a aqueceu. Deu-lhe força.
O suficiente para correr, se ela precisasse.
— Obrigada — disse ela ao terminar tudo, enxugando a boca com
a palma da mão.
Will assentiu. O decote da blusa dela estava desabotoado,
revelando vários centímetros de sua cicatriz. Seus olhos voltaram-se
para baixo. Sophie o viu olhando e abotoou a blusa.
Seu olhar vagou, então, pelos braços dela e pelas feridas das
presas das cobras — curadas, mas ainda arroxeadas — que os
pontilhavam.
— Para onde você vai? — perguntou ele.
Sophie hesitou, ainda desconfiada, então decidiu que, se ele
fosse machucá-la, não a teria alimentado primeiro.
— Escandinai.
Will soltou um assobio baixo.
— É muito longe daqui. Cerca de cinco ou seis dias a pé, e isso
se você for rápida.
O ânimo de Sophie afundou com a lembrança de quão longe ela
ainda estava de Haakon e da segurança.
— Estou indo para Grauseldorf — o garoto acrescentou. — É na
mesma direção. Vou levá-la até lá, se quiser, e mostrarei a estrada
ao norte.
Sophie ficou rígida.
— Por quê? Por que você me ajudaria? Por que você
compartilhou sua comida comigo?
Will olhou para ela.
— Bem… Porque é isso que as pessoas fazem?
— É mesmo? — perguntou Sophie.
Ela não conhecia muitas pessoas que ajudariam um estranho. A
maioria das pessoas que ela conhecia nem mesmo ajudaria um
amigo.
— Você deve querer dormir um pouco — disse Will, balançando a
cabeça. — Eu parto ao amanhecer.
Sophie se perguntou se dormir a apenas alguns metros de
distância de um estranho era sensato. Ela se sentia um pouco mais
forte agora; poderia simplesmente pegar sua mochila e ir embora.
E fazer o quê?, ela se perguntou. Andar pela Floresta Sombria à
noite?
Decidiu que ficaria, mas dormiria com a adaga enfiada dentro da
blusa. Só por garantia.
— Tudo bem — ela finalmente concordou, ainda inquieta.
Mas Will mal a ouviu. Ele estava ocupado recolhendo galhos para
alimentar a fogueira. Enquanto fazia isso, Sophie procurou em sua
mochila o cantil. Ela bebeu um pouco de água, depois usou o
restante para lavar o rosto e as mãos. Junto a Zara, embrenhou-se
um pouco na floresta. Quando voltou, Will já estava deitado perto do
fogo. Sophie colocou seu saco de dormir do outro lado do fogo e
tirou o cobertor de Weber da mochila.
— Obrigada — disse ela de novo baixinho enquanto se
acomodava, Zara se encolhendo na dobra dos joelhos.
Ela ficou surpresa por Will ter persistido em sua bondade para
com ela, embora ela não tivesse merecido. Não estava acostumada
com isso. No palácio, o mau comportamento apenas inspirava um
comportamento pior, e quaisquer ferimentos resultantes eram
esfregados com sal, não mel.
Sem aviso, a engrenagem no coração de Sophie enguiçou
novamente. O ruído de trituração estava ainda mais alto do que
antes, pouco antes de ela se deitar.
Will olhou para ela com o que eram (e agora ela os percebeu)
cílios muito longos e escuros, além de uma expressão perplexa no
rosto.
— É… Bem… É um relógio — Sophie disse levemente.
— Onde está? — perguntou ele. — No seu bolso?
— Ah! Perto — disse Sophie.
Will ergueu uma sobrancelha, mas não insistiu.
— Bem, boa noite, Sophie. Durma bem.
— Muito gentil, Will. Gentil Will, Will gentil. Ah!
Sophie lançou-lhe um sorriso tímido.
— Você provavelmente já ouviu isso antes.
— Não. Primeira vez.
— Sério?
Will sorriu.
— Ai. Não, né? — disse Sophie, sentindo-se um pouco tola.
Will fechou os olhos e puxou o cobertor sobre os ombros.
Sophie o observou adormecer. Até que o fogo queimou, até
apagar. Até que a escuridão os envolveu. Então, fechou os olhos.
Seu coração zumbiu alto.
Não importava. Ele não conseguia ouvir agora.
Sophie sentiu algo. Deitada ali na floresta. A apenas alguns
metros de distância do garoto.
Ela não conseguiu identificar o sentimento imediatamente, pois
não o reconheceu. Fazia muito tempo que não sentia isso.
Não desde que sua mãe cantara para ela dormir. Não desde que
seu pai a segurara em seus braços fortes, apontando as estrelas,
dizendo-lhe seus nomes.
Mas, quando o sono a embalou, ela lembrou.
Pela primeira vez em muito tempo, Sophie se sentiu segura.
TRINTA E OITO
S .B .C .
Will, alguns metros adiante na estrada, não prestou atenção nela.
Eles caminharam pela floresta por seis horas no dia anterior,
depois de passarem pelos soldados, e quase doze horas no dia
seguinte. Caminhavam, montavam e desmontavam acampamento,
fazendo quase tudo em silêncio. Nenhum deles tinha falado muito
desde a briga.
Sophie estava cansada. Seus pés doíam. Ela pensava
constantemente, com saudade, em sua cama macia na Toca.
A estrada era íngreme agora; ela subia em torno da base de uma
colina. Uma velha igreja no topo da colina, cinzenta e decrépita, com
a torre do sino caindo aos pedaços, apareceu à vista.
— Aquela é São Sebastião. A vila fica do outro lado — Will gritou
para ela. — Podemos economizar um pouco de tempo se cortarmos
pelo cemitério. Vamos.
Ele subiu a colina. Sophie o seguiu, mas caminhando devagar.
— Você está vindo? Depressa! — gritou Will.
Ele já estava na metade do caminho para a igreja.
Sophie fechou os olhos.
Ela ainda estava ferida pela declaração dura de Will. Ainda não
sabia por que ele dissera que a desprezava, e não era provável que
ela descobrisse, pois se recusava a dar-lhe a satisfação de
perguntar.
Sophie decidira que também não gostava muito de Will, embora
fosse — a contragosto — grata a ele. Para alguém que não a
suportava, ele se esforçou para ajudá-la. Ele a ensinava o que podia
e não podia colher na floresta. Em menos de dois dias, ela
aprendera quais cogumelos eram venenosos, como armar uma
armadilha adequada e quais plantas eram seguras.
— Preste atenção — ele insistiu enquanto mostrava a ela a
diferença entre dois tipos de repolho do pântano. — Folha verde
alimenta você. Folha vermelha mata. Você precisa saber dessas
coisas se quiser chegar a Escandinai.
Um arrepio percorreu Sophie enquanto ela seguia Will colina
acima. Ela não gostava da aparência da velha igreja assustadora ou
da ideia de pegar um atalho em um cemitério, mas o dia estava se
alongando, e ela sabia que Will queria chegar ao vilarejo antes que
as lojas fechassem. Ele pretendia fazer suas compras e voltar para
casa antes do anoitecer.
Quando ela alcançou o topo da colina, viu-o caminhando pelo
gramado do cemitério, passando por criptas e por fileiras de lápides.
— Quanto falta? — perguntou ela sem fôlego, ao alcançá-lo.
— Cuidado, sua idiota! Você pisou em mim!
Sophie parou de repente. Aquela era a gota d’água.
— Do que você me chamou? — perguntou ela.
— Não chamei de nada — disse Will.
Sophie lançou um olhar furioso.
— Sério? Então quem foi? — Will parou também e girou, os olhos
na grama.
— O que está olhando? Não vejo nada além de cogumelos —
disse Sophie, apontando para alguns com chapeuzinhos vermelhos
com bolinhas brancas.
— Isso porque cogumelos são o que elas querem que você veja.
— Quem são elas?
— Pixies. Já se perguntou por que os cogumelos parecem brotar
do chão durante a noite? — perguntou ele. — São as fadinhas
pixies se movendo. Elas usam chapéus vermelhos que parecem
chapéus de cogumelos como camuflagem.
Sophie se abaixou e estendeu a mão em direção a uma.
— Seja cuidadosa. Elas podem ser bravas — Will avisou.
Quando estava prestes a tocar num chapeuzinho, ficou fora do
seu alcance. A aba inclinou-se para trás. Um rosto minúsculo, com
nariz afilado e olhos astutos, apareceu embaixo dela.
— Sai pra lá, cérebro de strudel — disse a fadinha.
Sophie se engasgou. Na verdade, era um homenzinho que estava
parado diante dela, vestindo uma túnica branca e tamanquinhos
verdes. Tinha orelhas pontudas e dentes afiados.
— Você não deve xingar as pessoas — repreendeu Will.
— Segundo quem, cabeça de repolho?
— Você é uma coisinha muito mal-educada! — Sophie gaguejou,
endireitando-se. — Eu devia cozinhar você para o jantar.
O homenzinho-fada fez um gesto rude.
— Coma isto aqui, saco de pum!
Will caiu na gargalhada. Sophie, não. Ela bateu o pé no chão para
assustar a criaturinha. Mas, em vez de fugir, ele e mais dez de sua
espécie avançaram contra ela, estalando os dentes. Ela deu um
grito estridente e correu atrás de Will.
— Acha que o batatão aí vai proteger você? — o pixie zombou. —
Por favorzinho! — Ele contraiu o maxilar inferior para exibir dentes
salientes, esticou o pescoço e imitou o andar galopante de Will.
— Ei! — disse Will, carrancudo. — Isso não é engraçado!
Mas Sophie achou hilário; ela não conseguia parar de rir. Zara,
entretanto, foi até as fadinhas e as cutucou com o focinho. Isso
enfureceu o homenzinho-fada, que chutou terra no rosto dela.
— Não solte seu hálito fedorento de cachorro em cima de mim,
seu pulgueiro ossudo de pernas finas e olhos esbugalhados!
Zara deu um passo para trás. Ela latiu, incerta. Depois, lançou-se
sobre ele e o agarrou pelo chapéu, depois o sacudiu violentamente.
A alça que prendia o chapéu em sua cabeça estalou. O
homenzinho-fada saiu voando pelo ar, deixando um rastro de
xingamentos. Zara rasgou o chapéu inteirinho.
Aquilo foi um erro. Cerca de cinquenta criaturas saíram correndo
da grama alta, gritando a plenos pulmões.
— Hmm, Will? Acho que estão bravas — disse Sophie, recuando.
— Tenho certeza. Hora de irmos — disse Will.
Eles se viraram e começaram a se afastar. Sophie olhou por cima
do ombro. Os pixies continuavam vindo atrás deles. Seus dentes
pareciam muito afiados. Ela puxou a manga de Will.
Will olhou para trás.
— Estamos encrencados — disse ele. — Onde está um belo
príncipe quando precisamos dele?
— Acho que vai ter que se contentar com uma linda princesa —
Sophie disse, impulsivamente segurando sua mão.
A mão de Will se fechou na dela e Sophie a puxou. Eles correram,
rindo um com o outro desta vez. Zara, com as orelhas agitadas,
galopou atrás deles.
Sophie não largou sua mão. Não até que estivessem fora do
cemitério, descendo a colina e bem na estrada para Grauseldorf.
Nem Will.
QUARENTA
O S .
Will deu a ela um sorriso incerto.
— Hmm. Não é um relógio velho qualquer no seu bolso, é?
Parece um despertador — brincou ele.
Sophie fez que não.
— Volte para a aldeia — sibilou ela, e então subiu a estrada o
mais rápido que pôde.
Will a alcançou.
— Sophie? Algo está errado?
— Finja que não me conhece! — disse Sophie, começando a
correr.
— É um pouco tarde para isso. Acabei de abraçar você — disse
Will, correndo para acompanhá-la.
Sophie lançou um olhar por cima do ombro, na direção da
taverna.
— Vá embora, Will! Por favor. Antes que eles machuquem você.
Will seguiu a direção de seu olhar. Os dois viram o capitão pousar
a caneca. Ele acenou para dois de seus homens.
— É nessa encrenca que você está? — perguntou Will.
— É uma delas.
— Tem uma fazenda logo à frente. Logo depois da estrada — Will
disse, apressado. — Se cortarmos pelos campos, podemos chegar
à colina de São Sebastião, por onde entramos. A Floresta Sombria
está do outro lado. Se conseguirmos, eles nos perderão de vista.
Os olhos de Sophie, ainda no capitão, estavam enormes em seu
rosto.
— Sophie! — Will gritou para ela. — Olhe para mim. Para mim,
não para ele.
Sophie obedeceu. Seus olhos cinza pareciam duros como aço.
— Você aí! Menina! — gritou o capitão.
— Você está pronta? — disse Will.
Ele segurou a mão dela. Sophie assentiu.
Will apertou com força. Um instante depois, eles estavam
correndo como o vento.
QUARENTA E DOIS
C ,S , .
Ela e Will estavam descendo a estrada de terra. Eles haviam
corrido cerca de cem metros quando ela ouviu o barulho dos
cascos.
Por que não pensaram em cavalos? Claro que Krause e seus
homens viriam cavalgando. Sua madrasta se certificava de que a
guarda tivesse as montarias mais rápidas e fortes de todo o reino.
Ela e Will não tinham esperança de escapar. Krause a capturaria e a
levaria de volta para sua madrasta ou simplesmente a mataria na
Floresta Sombria. Seus ossos se juntariam aos de todos os outros,
cobertos de musgo e esquecidos.
Acabou, ela disse a si mesma, o medo dando lugar ao desespero.
A rainha, o Rei dos Corvos. Eles venceram. Nunca vou chegar a
Escandinai. Nunca mais verei Haakon.
Os pulmões de Sophie estavam explodindo; seus músculos
gritavam com o esforço de correr a toda velocidade. Ela olhou para
trás com terror. Krause, um pouco à frente de seus homens,
cavalgava a todo galope. Ele iria cruzar o caminho deles em poucos
segundos.
— Isso é inútil, Will. Não consigo mais correr — gritou Sophie,
começando a desacelerar.
— Sim, você consegue! — Will gritou de volta. — Só mais alguns
metros e vamos despistá-los! Vamos! — Seu aperto era forte; ela
não tinha escolha a não ser acompanhá-lo.
Não temos como despistá-los. Ele é louco, Sophie pensou.
E então eles dobraram uma curva na estrada e Sophie as viu —
vacas, pelo menos cinquenta delas.
O fazendeiro e seu filho estavam conduzindo seu rebanho de um
pasto para a ordenha. Os animais caminhavam vagarosamente,
balançando as caudas, os sinos de lata tocando em seu pescoço.
Estavam espalhadas por toda a largura da estrada de terra.
Sem diminuir a velocidade, Will puxou Sophie direto para o
rebanho. Zara estava atrás deles. Eles se moviam entre as vacas
como peixes nos juncos. Sophie lembrou-se de ter pulado o esterco
de vaca, lá atrás. Will sabia que elas estariam aqui, ela pensou. Ela
correu mais rápido, energizada por uma nova esperança.
As vacas deram pouca atenção aos dois humanos a pé com um
cachorro, mas os cavaleiros eram uma história diferente. O trovão
dos cascos dos cavalos, seus relinchos estridentes, os gritos dos
homens — todo o barulho e a comoção perturbaram as criaturas
amantes da paz. Algumas dispararam, o que irritou o fazendeiro e o
fez gritar. Algumas empacaram, mugindo alto. Outras se viraram e
atacaram os cavalos. Os soldados não conseguiam passar pelo
rebanho nem contorná-lo, pois a estrada era cercada de ambos os
lados por sebes altas.
— Voltem para a aldeia! — gritou o Capitão Krause. — Eles estão
indo para a Floresta Sombria! Vamos pegá-los do outro lado da
igreja!
Enquanto isso, Sophie e Will haviam corrido pela porteira aberta
da fazenda, passando por um bando de galinhas que cacarejava,
por celeiros e currais. Eles pularam uma cerca de madeira e foram
para a campina aberta. Quando chegaram ao pé da colina que
levava à igreja de São Sebastião, Sophie sentiu como se seus
pulmões estivessem em chamas. Ela queria parar, para recuperar o
fôlego, mas Will não deixou.
— Se não chegarmos à floresta, estamos perdidos — disse ele.
Um momento depois, eles alcançaram a bifurcação. Olhando para
o lado oposto, podiam ver a Floresta Sombria e a estrada que fazia
uma curva ao lado dela.
— Eles ainda não chegaram — disse Sophie, lançando um olhar
ansioso para a estrada em direção à aldeia.
— Eles vão chegar — disse Will.
Ele e Sophie passaram pelo cemitério. Estavam na metade da
colina, e Sophie tinha acabado de começar a acreditar que eles
conseguiriam chegar à floresta, quando ouviram cascos novamente.
Will xingou e mudou de direção.
— Corra para a igreja! — gritou ele.
O coração de Sophie batia forte contra as costelas enquanto o
seguia morro acima. Eles chegaram à porta da igreja assim que os
cavaleiros contornaram a estrada. Quando Will a abriu, eles
puderam ouvir a voz do capitão.
— Vocês quatro… procurem na floresta! — berrou ele. — O
restante de vocês vasculham o cemitério!
Will empurrou Sophie para dentro e fechou a porta atrás dela. A
igreja centenária era enorme e vazia. Sophie e Will correram pelo
corredor central, procurando um lugar para se esconder. Havia
bancos de madeira, um altar. Havia capelas escuras dedicadas a
santos e mártires, com velas acesas, mas os soldados certamente
vasculhariam todos aqueles lugares.
— Olhe! — disse Sophie, apontando à frente deles. Inscritas
sobre um arco de pedra à direita do altar estava a palavra: Criptas.
Will assentiu. Eles correram pela arcada, depois desceram um
lance em espiral de degraus de pedra até chegarem às entranhas
da velha igreja. Lamparinas a óleo colocadas em nichos nas
paredes iluminavam seu caminho.
Quando chegaram ao pé da escada, encontraram-se em uma sala
comprida e de teto baixo, úmida e fria. Criptas abobadadas, cada
uma cercada por um portão de ferro, alinhavam-se em ambos os
lados. Um anjo vingador esculpido em mármore montava guarda à
esquerda da escada.
Sophie podia ver os caixões através das barras de ferro. Alguns
eram feitos de madeira; outros eram esculpidos em pedra. Todos
estavam densamente cobertos de poeira.
— Will, não há onde se esconder aqui! — disse ela, em
desespero.
Will experimentou a maçaneta do portão da cripta mais próxima.
Estava trancado. Tentou o próximo, e o próximo, ao longo da
parede. Sophie começou a tentar do outro lado, mas todos os
portões que ela tentou também estavam trancados. Zara ficou perto
dela.
Um estrondo profundo foi ouvido acima deles. Sophie e Will se
entreolharam.
— Eles estão destruindo tudo… — Will começou a dizer, com os
olhos no teto.
— … procurando por nós — Sophie finalizou.
Eles redobraram seus esforços. Sophie moveu-se como um
relâmpago em sua fileira, tentando desesperadamente um portão
após o outro, o medo agitando em seu estômago, mas não teve
sorte.
Até que teve.
Quando alcançou a última cripta, a maçaneta girou, a trava foi
liberada e o portão se abriu com dobradiças rangentes.
— Will! — ela sussurrou. — Aqui!
Ela entrou na antiga cripta. Zara correu atrás dela. Os caixões
estavam enfileirados, alguns empilhados uns sobre os outros.
Ratos, umidade e tempo haviam destruído muitos deles. Seus topos
estavam rachados; suas laterais haviam cedido. Sophie recuou de
horror ao ver ossos saindo de um deles. Outro estrondo foi ouvido
acima deles, seguido pelo som de vidro tilintando. O barulho fez
Sophie se mexer novamente. Ela passou pelas pilhas de caixões,
procurando um bom esconderijo.
Ao fazer isso, ouviu outro ruído, pequeno, suave e próximo. Tarde
demais, ela percebeu que algo estava na cripta com ela.
Sophie abafou um grito quando algo surgiu das sombras e a
agarrou.
Era um homem. Ele segurava uma faca. E a apontava para a
garganta dela.
QUARENTA E TRÊS
—N .P .
Will estava na cripta agora também, com as mãos levantadas
para mostrar que não era uma ameaça.
A respiração de Sophie acelerou. Os dedos do homem se
curvaram cruelmente em seu braço, mas ela mal os sentiu. Toda
sua atenção estava voltada para a ponta da faca.
— Quem são vocês? — rosnou o homem.
Seu rosto estava marcado. Ele tinha o cabelo desgrenhado e sujo.
— Ela é a princesa das Terras Verdes — Will falou. — Os guardas
da rainha estão lá em cima. Estão atrás dela.
Houve outro estrondo acima deles, que reverberou pelas paredes.
— A rainha me quer morta — disse Sophie. — Se me pegarem,
vão me matar.
— E ele? — o homem gesticulou para Will.
— Ele é meu… amigo — explicou Sophie. — Você pode nos
esconder aqui?
O homem suspirou de forma infeliz, mas baixou a faca.
— Fazer o quê?! Parece que vou ter de me esconder também. O
Capitão Krause e eu não somos melhores amigos.
— Você o conhece? — Sophie perguntou enquanto Will fechava o
portão.
— Ele me fez isso. — O homem apontou para o seu rosto.
Os cabelos da nuca de Sophie se arrepiaram. A cicatriz que ela
viu na face do homem tinha sido marcada em sua pele. Era um L.
De Ladrão. Ela se encolheu diante da ideia de ficar presa em uma
cripta com um criminoso.
— Capitão! Aqui embaixo! — uma voz gritou do topo da escada.
Sophie congelou.
— Vocês vão ficar aí parados como um par de nabos? Escondam-
se! — sussurrou o homem.
Um grande sarcófago de pedra estava na parte de trás da cripta.
Will e Sophie se agacharam atrás dele e puxaram Zara para perto.
Ao fazê-lo, o homem tirou uma chave-mestra de ferro do bolso.
Serpenteou sua mão pelas barras e trancou o portão por fora.
Assim que o primeiro soldado alcançou o fim da escada, o homem
desapareceu atrás de uma pilha de caixões de madeira. Sophie
encostou a cabeça na pedra fria, desejando que seu coração se
calasse. Ela não podia ver o soldado de onde estava, mas podia ver
a luz de uma lamparina iluminando as paredes.
Mais soldados juntaram-se ao primeiro. Sophie podia ouvi-los.
Eles se espalharam pela sala, sacudindo as barras dos portões,
segurando tochas e olhando para as criptas.
Saiam daqui, ela implorou silenciosamente. Vão embora.
A luz de repente iluminou a cripta onde ela estava escondida,
varrendo o chão e o teto. Sophie não se mexeu. Não respirou. E,
finalmente, a escuridão voltou.
— Eles não estão aqui, capitão! — gritou uma voz. — Todas as
criptas estão bem trancadas.
— Aonde diabos eles foram, então? — disse o Capitão Krause,
batendo no anjo de mármore com seu chicote.
Enquanto o capitão e seus homens conversavam, outra pessoa
desceu. Sophie podia ouvir seus passos, lentos e medidos. Então,
parou.
— Sophie? Você está aqui?
O coração de Sophie deu um pulo. Não podia ser. Podia?
— Não tenha medo, Sophie. Estive procurando você em todos os
lugares.
Sophie inclinou o corpo para que pudesse espiar pela lateral do
sarcófago. Ela não viu Will balançar a cabeça. Não viu o ladrão levar
um dedo aos lábios.
Tudo que ela viu foi um homem alto de ombros largos com uma
cabeleira loura de leão, em pé no centro do corredor. Ele estava
segurando uma tocha, iluminando uma das criptas.
— Minha querida menina, você não reconhece a minha voz? Sou
eu…
Sophie sentiu-se desmoronar, sentiu todo o seu corpo ficar mole
de alívio.
Ela sussurrou o nome do homem enquanto ele próprio o falava.
Haakon.
QUARENTA E QUATRO
— H , — S , pela traição. —
Não.
Haakon estendeu a mão e admirou o Anel do Governante.
— Depois que os lobos mataram você…
— Lobos não me mataram — rebateu Sophie. — Foi isso que a
rainha disse? Não é verdade. Ela mandou…
— Os detalhes realmente não importam, não é mesmo? —
Haakon perguntou, impaciente. — Depois que você morreu,
convenci a rainha a me nomear seu herdeiro.
— Como? — perguntou Sophie, tensa de choque.
— Ela acredita que o Rei do Interior vai atacá-la. Seu medo é tão
grande que ela não fala de outra coisa. Prometi defender as Terras
Verdes com todo o poder do exército de Escandinai. Caso ela me
prometesse que eu herdaria sua coroa. Mas, agora, eu tenho um
problema: você não está morta, no fim das contas. Como posso ser
herdeiro do trono das Terras Verdes se você ainda está viva?
O medo de Sophie transformou-se em terror total. Ela colocou as
mãos nas barras de ferro.
— Abra este portão, Haakon.
— Está na hora de um homem governar as Terras Verdes
novamente. Pretendo anexar o reino a Escandinai assim que eu
assumir o trono.
Sophie sabia que precisava dissuadi-lo de seu plano. Era sua
única chance de se libertar e de libertar Will e Arno Schmitt.
— Mas você não vai assumir o trono, não vê? Não por anos.
Décadas, até. A rainha ainda é jovem. Ela não vai renunciar à sua
coroa.
Haakon sorriu.
— Adelaide é uma amazona ousada. É incrível que algo não
tenha acontecido com ela em seus galopes pela floresta,
perseguindo lobos sem medo. Ela pode cair. Quebrar o pescoço…
tão facilmente.
Sophie se afastou do portão, cambaleando.
— Quem é você?
— Eu sou um governante, Sophie. Aquele que não tem medo de
aproveitar as oportunidades que se apresentam.
— Você me pediu em casamento — disse Sophie. — Mas era
tudo mentira.
— Em me casaria com você. Você seria um meio fácil de adquirir
outro reino. — Ele deu de ombros. — Mas, agora, encontrei um jeito
de adquirir dois. Pretendo me casar com a princesa do Catai logo
depois de assumir o controle das Terras Verdes. O imperador está
velho e doente. Ele logo não estará mais aqui.
— Você disse que me amava — Sophie falou, em lágrimas.
Haakon riu. Piedade encheu seus lindos olhos.
— Pobre Sophie tolinha e de coração mole. Ainda falando sobre
amor, mesmo depois de tudo pelo que você passou. O amor não
importa. Tudo que importa é que a noiva possa me dar um herdeiro.
Preciso de filhos para me ajudar a governar meus reinos.
— Eu acreditei em você… Eu acreditei em você — disse Sophie,
com a voz embargada.
Mas Haakon não a ouvia mais. Estava olhando para as escadas.
Sophie viu que tinha pouco tempo para convencê-lo a libertar Will e
Arno.
— Haakon, poupe esses dois homens — ela implorou. — Deixe-
os sair. Eles não têm nada a ver com isso.
— É muito arriscado. Eles contariam o que viram.
— Você não pode ser tão cruel. Você não pode simplesmente ir
embora e nos deixar morrer de fome!
— Sophie, Sophie… — Haakon disse, estalando a língua. — Não
deixarei você morrer de fome. Isso seria cruel. Eu preciso fazer o
trabalho rapidamente. Sem testemunhas. Sem corpos. Nada para
aborrecer os camponeses.
Com um sorriso pesaroso, deu mais alguns passos para trás do
portão.
— Aonde você vai? O que você está fazendo? — perguntou
Sophie.
— Capitão Krause — disse Haakon.
Krause deu um passo à frente.
— Sim, Sua Graça?
Haakon entregou a Krause sua tocha.
— Queime este lugar.
QUARENTA E SEIS
U S .
Ela acordou de repente. Abriu os olhos. A luz estava fluindo pelo
mausoléu, entrando pelas janelas e pela porta.
Ela fechou os olhos novamente, prendendo vívidos redemoinhos
de laranja e ouro atrás de suas pálpebras. Por alguns segundos
horríveis, estava de volta dentro da cripta enquanto os soldados
incendiavam o local. Ela podia ver o fogo subindo, sentir o cheiro da
fumaça, ouvir-se gritando.
São Sebastião agora era um monte fumegante de cinzas e
destroços, assim como suas esperanças, seu futuro. A vergonha
queimou dentro dela, tão quente quanto as chamas que devoraram
a igreja, quando percebeu que sua madrasta e as pessoas na corte
estavam certas. Ela era tola e fraca. Confiava em Haakon porque
ele era lindo e deslumbrante, porque havia falado palavras
românticas e a feito acreditar que a amava. Seu coração tinha sido
sua ruína. Outra vez.
Algo se moveu embaixo de Sophie, empurrando-a. Ela percebeu
que sua cabeça estava apoiada em uma criatura quente e
respirando; seu braço estava pendurado nela. Zara, pensou,
abraçando a cadela para se confortar.
Não parecia ser Zara. Não cheirava como ela. Cheirava a fumaça,
mas, por baixo disso, havia os aromas de pinho, couro, lavanda,
suor.
Sophie ergueu a cabeça. Não era Zara que ela estava abraçando,
era Will. Mortificada, ergueu-se sobre os braços. Ela se lembrava de
se sentar ao lado dele no escuro enquanto ele dormia. Devo ter
adormecido e depois tombado como um saco de cebolas, pensou.
O barulho veio novamente. Sophie olhou ao redor com a visão
turva. Era Arno. Ele estava andando pelo mausoléu, empurrando as
tampas dos caixões, procurando outras soltas.
— Bom dia! — gritou ele ao vê-la. — Seu namoradinho está
acordado?
Sophie piscou para ele.
— Meu o quê? Quem… Ele? Ele não é… Will não é meu…
Arno olhou para ela, ainda meio curvado sobre Will. Ele ergueu
uma sobrancelha.
— Não se preocupe. Nunca direi nada.
Sophie rapidamente se levantou. Limpou um pouco de poeira
imaginária de sua calça. Zara, que estava enrolada perto,
imediatamente se acomodou no lugar quente que Sophie havia
deixado. Will resmungou em seu sono, rolou de lado e colocou o
braço em volta da cachorrinha.
— Estranho arranjo que vocês três têm — disse Arno. — Mas
quem sou eu para julgar?
Ele sacudiu outro caixão.
— Os aldeões se foram. Assim como os soldados. Podemos
querer ir embora também. O Capitão Dose e o Príncipe Bombom
pensam que estamos mortos. O que significa que não procurarão
por nós. Isso nos dá uma vantagem.
Sophie assentiu. Seu cabelo estava solto. Fedia a fumaça. Ela se
abaixou até a mochila e remexeu nela para encontrar uma fita para
prendê-lo. Ao fazer isso, algo piscou intensamente do outro lado da
tumba. Arno tirou de sua mochila a sacola de joias que se abriu e
colocou-a sobre um caixão. Os raios pálidos do sol matinal reluziam
sobre anéis, broches e colares que caíam de dentro.
Sophie olhou para os itens roubados com desgosto, lembrando-se
da orelha enrugada. Arno percebeu que ela estava olhando.
— Quer um anel de rubi? — perguntou ele.
— Não quero nada — disse Sophie com desgosto. — Você tirou
isso de um cadáver. Você é um ladrão de túmulos. Rouba dos
mortos. Como você pode fazer isso?
Arno bufou e lhe dirigiu um olhar faiscante:
— E você é realeza. Rouba dos vivos. Como pode fazer isso?
— Eu nunca roubei nada na minha vida! — Sophie disse,
ofendida.
— Você parece mais uma lavradora do que uma princesa agora
— disse Arno, aproximando-se dela. — Mas aposto que, antes de
os lobos a dilacerarem, ou seja lá o que tiver acontecido, você
usava vestidos de seda, anéis de diamante e uma coroa de ouro
também.
— Sim. O que é que tem isso?
— De onde vinham essas joias? Você trabalhava por elas?
— Bem, eu…. Não é como se…. Nós não…
— E os castelos, palácios e carruagens? Vocês merecem tudo
isso? — Ele se abaixou e desenhou um L em sua bochecha com um
dedo sujo. — Ladra — disse ele, rindo.
Sophie deu um tapa na mão dele, mal-humorada. Esfregou o L e
retomou a busca por uma fita. E Arno retomou sua busca por um
esconderijo.
Will acordou quando Sophie estava terminando sua trança. Seus
olhos se encontraram.
— Nem uma palavra sobre belos príncipes — ela o avisou, muito
ranzinza para qualquer tipo de zombaria. — Nenhuma.
Will estremeceu com isso, como se a suposição dela doesse.
Houve um momento de silêncio e então ele disse:
— O que você vai fazer? Não pode ir para Escandinai agora.
— Não, eu não posso.
Sua esperança de Haakon recuperar seu coração desaparecera.
Não haveria exército para marchar sobre o castelo do Rei dos
Corvos. Seu coração de relógio iria desacelerar. Em breve.
Provavelmente em alguma parte solitária e esquecida da Floresta
Sombria.
— Aonde você vai?
— Para o Duque de Niederheim… Para o castelo dele — disse
Sophie levemente. — Não é longe.
— Você sabia que seu nariz se enruga quando você mente?
Sophie fez uma careta.
— Você não tem para onde ir, tem?
— Não — admitiu Sophie, com vergonha de precisar mentir.
Mas a verdade era que ela não tinha ninguém, e isso era
doloroso. Durante toda a sua vida, estivera cercada por pessoas. De
babás e damas de companhia a poderosos duques e ministros. Mas
não podia confiar em nenhum deles. Sempre serviam à sua
madrasta ou, agora, a Haakon. Não havia nenhuma pessoa de sua
antiga vida a quem ela pudesse recorrer.
— Você poderia vir para casa comigo. Descansar um pouco.
Comer um pouco da comida caseira.
— Vou para casa com você — disse Arno. — Eu gostaria de um
pouco dessa comida caseira.
Sophie e Will o ignoraram.
— Não posso fazer isso, Will. Quase matei você ontem à noite.
— Não tenho medo de Haakon.
— Deveria ter — disse Sophie. — Você deveria ter medo de
qualquer pessoa que queira tanto o poder quanto ele.
— Sophie…
— Will, obrigada. De verdade. Mas tenho problemas maiores do
que Haakon. E eu… Não tenho tempo… Eu…
— Eu isso e aquilo — interrompeu Arno. — Talvez você não seja
o centro do mundo, Princesa Preciosa. Já pensou nisso? Você vai
simplesmente deixar aquele traste cruel do Haakon comandar este
país? Se ele ficou feliz em nos queimar vivos, o que fará com os
outros que ficarem em seu caminho?
Sophie estava farta daquele homem rude.
— O que você quer que eu faça, Arno? — perguntou ela, pondo-
se de pé.
— Tome de volta sua maldita coroa.
Sophie olhou como se ele estivesse louco.
— Eu sozinha? — perguntou ela. — Apenas eu. Sem exército. Ou
armas. Ou uma fortaleza. Só eu e minha cadelinha magra. Não
tenho nem dois centavos para comprar o café da manhã!
— Só porque você não tem dois centavos — ou um exército —
hoje não significa que não os terá amanhã.
Mas eu não tenho um amanhã!, Sophie queria gritar com ele. Em
vez disso, ela disse:
— Arno, você não sabe do que está falando.
— Nem você, sua tonta.
Sophie balançou a cabeça com espanto por sua ousadia.
— Sabe, talvez eu vá tomar minha coroa de volta. Só para poder
decapitar você!
— Você já se hospedou na casa de um caçador? Sabe de que
tamanho é? O que comem no jantar? Você pode aprender algo.
Sobre seu próprio povo. Sobre suas vidas. Vá para a casa do
garoto, pelo amor dos céus. Não vê que ele quer que você vá? —
Arno piscou. Ele ergueu a mão ao lado da boca. — Acho que ele
gosta de você!
Sophie ficou vermelha.
— Oh, meu Deus. Arno, isso é tão inconveniente. Will é casado!
Will, bebendo água de seu cantil, cuspiu.
— Sou o quê? Não, não sou!
— Mas você… Você disse…
— Eu disse o quê?
— Você disse que tinha alguém em casa. Que precisava de você.
— Minha irmã.
— Ah. — O rubor de Sophie se intensificou. Ela queria sair
correndo.
Arno bateu palmas.
— Viu? Eu tinha razão! Você já aprendeu algo!
Ele colocou a mochila sobre os ombros e pegou uma espada que
havia escondido na tumba e o molho de chaves. Guardou suas joias
num saco e ficou pronto para partir. Um minuto depois, abriu a porta
do mausoléu.
— Vamos, garota. Vamos comer lombo de veado. Polvilhado com
pimenta-do-reino e coentro. Servido com molho de groselha. Talvez
algumas batatas fritas e repolho refogado de acompanhamento.
— Que tal ensopado de coelho? — perguntou Will. — Se eu tiver
sorte o suficiente para pegar alguns no caminho?
— Aceito também.
Os três saíram da cripta para a luminosidade. Arno ergueu o rosto
para o sol; ele sorriu. Esticou bem os braços carnudos.
— Ahh! — disse ele. — É bom estar morto.
QUARENTA E OITO
S a cerca de um quilômetro da
cabana de Will. O tique-taque em seu peito estava lento e pesado
depois de quase dois dias de caminhada. Enguiçava, parava e
começava novamente. Não era alto — Sophie podia apenas sentir,
não ouvir —, mas, de alguma forma, isso a assustava ainda mais.
Ela estava fraca. Seus membros pareciam estar cheios de areia.
Parava de vez em quando para jogar gravetos para Zara pegar
enquanto ela, Will e Arno caminhavam pela floresta, mas as pausas
brincalhonas eram um estratagema — ela precisava delas para
recuperar o fôlego e reunir forças. Chegou à cabana por pura força
de vontade.
Ao chegarem ao pequeno e organizado jardim que cercava a
humilde casa, Sophie viu uma senhora sentada ao sol, tricotando
uma cesta de lã. Uma menina estava sentada ao lado dela. Seus
olhos estavam fechados; seu rosto, inclinado para o sol poente. Ela
estava enrolada até o pescoço em cobertores como se fosse
inverno, não verão.
— Oma? — gritou Will. — Eu trouxe amigos.
A senhora se virou. Suas sobrancelhas se ergueram de surpresa.
Seus olhos penetrantes, do mesmo cinza que os do neto, mediram
Sophie e Arno. Observaram a cicatriz de Sophie, que estava
aparecendo pelo decote da blusa e o L na bochecha de Arno.
A menina fez uma careta.
— Esta é minha avó — disse Will. — E Gretta, minha irmã. Oma,
Gretta, estes são Sophie, Arno e Zara.
— Como vocês… — Sophie começou a dizer.
Mas ela nunca terminou a frase, porque sua visão ficou turva, ela
tropeçou e caiu no chão. Will e Arno a ajudaram a se levantar.
— Céus! O que há de errado com ela? — perguntou a velha,
pondo-se de pé. — Ela estava branca como um fantasma.
— Eu não sei — admitiu Will.
— Rápido, garoto. Sente-a.
Enquanto Will e Arno acomodavam Sophie na cadeira de Oma,
esta correu para a cabana. Ela voltou alguns segundos depois com
uma garrafa de vinagre e a posicionou sob o nariz de Sophie.
O cheiro forte engrenou o coração de Sophie de volta a um ritmo
constante.
— Obrigada — disse ela, agradecida.
Sentiu um pouco de força retornar ao seu corpo.
— O que houve? — perguntou Will.
— Nada. Foi só… uma fraqueza — Sophie mentiu. — Tenho me
sentido zonza desde o incêndio. Provavelmente é por causa da
fumaça.
Ela não queria contar a verdade — que seu coração estava
falhando. Mal conseguia enfrentar isso sozinha.
— Incêndio? — disse Oma. — Fumaça?
— É uma longa história — falou Will.
Oma olhou para ele.
— Gatos de rua. Vira-latas. Agora uma garota e um ladrão
perdidos — disse Oma. — É você que os encontra, Will? Ou eles é
que encontram você?
Will riu. Sophie ergueu os olhos e viu que ele estava abraçando a
irmã com ternura. Os membros da garota eram finos como palitos
de fósforo. Sophie pensou que ela era muito jovem quando a viu
pela primeira vez, talvez cinco ou seis anos, mas agora percebeu
que a menina devia ter dez ou onze anos. Seu corpo era debilitado.
Sophie percebeu que ela não era forte o suficiente para andar
sozinha.
A garota, com os olhos arregalados em seu rosto tenso, observou
Sophie de perto.
— Olá — disse Sophie, sorrindo para ela.
— Você está fedendo — disse a garota.
— Gretta! — Oma repreendeu.
— Bem, ela está.
Sophie sabia que cheirava a fumaça. E provavelmente coisa pior.
Já fazia muito tempo que não se lavava.
— Posso usar sua banheira? — ela perguntou.
Oma riu. Ela enganchou o polegar sobre o seu ombro.
— Você não precisa pedir minha permissão. Nossa banheira é lá
fora.
Sophie esticou o pescoço. Ela viu um fluxo prateado de água
borbulhando atrás da casa. — Mas aquilo… é um riacho.
— Pois é. Pegue um sabonete e uma toalha, por favor, Will. E
para você e Arno também.
Arno parecia que ia recusar o banho, mas depois farejou
disfarçadamente as axilas e fez uma careta. Will colocou Gretta no
chão e desapareceu na cabana.
— Mas não há privacidade — Sophie protestou, ainda olhando
para o riacho.
— Caminhe rio abaixo se estiver incomodada com isso. Ninguém
verá você lá, exceto os veados. Os homens podem se banhar rio
acima. Certifique-se de lavar o corte em seu lábio. Está inchado.
Use bastante sabonete. E lave suas roupas enquanto estiver lá.
Você pode pendurá-las no varal.
— Mas só tenho estas roupas. O que devo vestir enquanto
secam?
— Você pode pegar algo emprestado. Não posso deixar você
trazer pulgas para dentro de casa.
— Pulgas! — Sophie exclamou, mortificada. — Não tenho pulgas!
— Aposto que sim — disse Gretta, estreitando os olhos. —
Parece ter.
— Will! — Oma berrou. — Traga algumas roupas velhas!
Will voltou da cabana alguns minutos depois com tudo o que sua
avó pedira que ele pegasse. Entregou algumas coisas para Sophie,
outras para Arno.
— Will, você caçou um coelho? Podemos ter… — Gretta gritou.
Um acesso de tosse interrompeu sua pergunta.
Will se ajoelhou ao lado da irmã e esfregou suas costas. A tosse
piorou. Sophie já estava indo para o riacho. Ela parou e se virou,
preocupada. Gretta não conseguiu recuperar o fôlego. Seu rosto
estava começando a ficar azul; suas pequenas mãos, atadas na
camisa de Will. Sophie começou a voltar até eles, seu coração
batendo forte, mas, quando o fez, Gretta conseguiu limpar o que
quer que estivesse em sua garganta. Respirou fundo, depois caiu
nos braços de Will. Ele a carregou para a cabana.
Oma estava bem atrás dele, com o rosto sombrio. Sophie deu
alguns passos incertos em direção a eles, mas depois parou,
sentindo que não era necessária. Ou desejada. Então continuou
para o riacho. Quando chegou lá, viu que alguém o havia represado
com pedras para criar uma piscina profunda. Depois de pendurar
sua toalha e as roupas limpas em um galho de árvore para mantê-
las secas, ela rapidamente se despiu e largou as roupas sujas na
margem. Em seguida, entrou na água com o sabonete na mão. Zara
a seguiu.
A água estava tão gelada que a fez recuperar o fôlego, mas
estava gostosa também. Especialmente quando ela abaixou a
cabeça e a água fluiu sobre seu lábio inchado, entorpecendo-o.
Nada poderia entorpecer a dor que sentia pela traição de Haakon,
no entanto. Ela acreditara nele. Confiara nele. Amara, até. Pelo
menos, pensava que sim. Imaginou a satisfação presunçosa de sua
madrasta quando Haakon dissesse a ela que Sophie estava
realmente morta. Adelaide sorriria e diria que a garota não passava
de uma idiota perdida, tão compassiva, tão sem noção, tão fácil de
manipular.
Os dedos frios e finos da vergonha agarraram Sophie como se
fossem envolver suas pernas, segurá-la e afogá-la. Por um breve e
sombrio momento, ela se perguntou se deveria simplesmente se
deixar levar. Para quem ela era importante? Para si mesma? Para
ninguém?
Mas, então, percebeu algo: ela havia escapado, e nem Adelaide
nem Haakon sabiam disso. Em parte, por sorte, sim — ela não teria
sobrevivido à traição de Haakon se não fosse por Arno —, mas
também por ter bom senso o suficiente para confiar em uma pessoa
boa — Will — e ter coragem de fugir, esconder-se e lutar por sua
vida.
Que Adelaide e Haakon dissessem o que quisessem. Ela não era
tão perdida assim.
Ela escapara. Estava viva. E nenhum deles sabia disso.
Encorajada por essa constatação, Sophie chutou os dedos finos
da vergonha para longe. Com um respingo barulhento, emergiu e
respirou fundo.
— Quem é a idiota agora? — ela sussurrou.
E, assim, pôs-se a se esfregar. O último banho de Sophie fora
tomado na Toca, e ela não percebeu quão suja havia se tornado.
Atacou o corpo com a barra de sabonete, esfregando cada
centímetro dele e depois espalhando uma nuvem de espuma pelo
cabelo. Quando terminou, puxou a roupa suja para a água e a
esfregou também. Depois lavou Zara. A cadela submeteu-se ao
banho, mas saiu correndo da água assim que pôde e sacudiu-se.
Sophie a seguiu, enxugou-se e vestiu-se. O banho, as roupas
limpas — eles a faziam se sentir como se tivesse renascido.
Ela carregou suas coisas molhadas de volta para a cabana e as
prendeu no varal. O cheiro de comida saiu pela janela. Cebola
fritando na manteiga. Tomilho picado. Seu estômago roncou alto.
Não havia ninguém no quintal e a porta da cabana estava aberta,
então ela entrou. Zara ficou do lado de fora para se secar ao sol.
Will estava parado perto de um grande fogão preto, de costas
para ela, tostando pedaços de coelho em uma grande panela de
ferro. Seu cabelo estava molhado. Ele vestia roupas limpas também.
— Gretta? Ela…
— Ela está deitada — disse ele secamente.
— Ela está…
— Ela está bem.
— A casa dos seus pais é muito bonita.
— Não é dos meus pais; é da minha avó.
— Ah. Mas seus pais estão aqui? Onde eles estão?
— Mortos.
— Me perdoe. O que aconteceu com eles?
— Morte.
— Sim. Bem. Quer saber? O cheiro do coelho está uma delícia —
disse Sophie com um suspiro, desistindo de tentar puxar conversa.
Depois de passar dias caminhando pela floresta com ele, ela
sabia que não devia tentar fazê-lo falar quando não queria.
Will pegou uma jarra de cerveja. A cozinha estava silenciosa,
exceto por um chiado alto e fumegante, quando ele despejou o
líquido na panela quente. Sophie, de pé, constrangida, sem nada
para fazer, encostou-se em um armário e o observou.
O rosto de Will estava vermelho com o calor do fogão. Ela notou
que uma mecha de cabelo descia ao lado de seu rosto, enrolando
como um ponto de interrogação contra sua pele. Seus movimentos
eram deliberados e contidos. Como todos os caçadores, Sophie
pensou. Ele estava vestindo o avental da avó sobre uma túnica de
linho gasta e calças remendadas. Ela gostou da maneira como
ficava nele, de como se acomodava em seus quadris estreitos, da
forma como os laços estavam frouxamente amarrados em seu
traseiro.
É um traseiro bastante adorável, ela pensou, inclinando a cabeça
para ver melhor. Ao fazer isso, seu coração fez um ronronar
profundo e quente.
Ela se endireitou, com vergonha.
Will virou a cabeça. Ergueu uma sobrancelha.
— Relógio — Sophie sorriu.
— Relógio. Você poderia pôr a mesa.
— Sim — Sophie respondeu ansiosamente. — Eu posso. Posso
fazer isso.
O que há de errado comigo?, ela se perguntou ansiosamente.
Seu coração mecânico estava se tornando cada vez menos
confiável, comportando-se de maneiras totalmente contrárias aos
seus sentimentos. Ela não se importava com Will ou seu traseiro.
Isso e o desmaio que sofrera eram sinais de que o coração estava
desacelerando mais rápido do que os irmãos previram?
A ideia preocupou Sophie, mas ela não teve muito tempo para
pensar nisso. Will apontou para um armário. Ela o abriu, encontrou
um pano limpo e o espalhou sobre a mesa redonda de madeira. Em
seguida, colocou guardanapos e talheres e decidiu que algumas
flores eram necessárias. Tirando uma tesoura de uma gaveta, ela
cortou algumas flores do jardim de Oma e as arrumou em um vaso.
Oma, que estava com Gretta, fazendo-a beber um chá que ela
preparara com o conteúdo dos pacotes que Will trouxera do
boticário, agora fora atropelada por Sophie com um pão e um prato
de manteiga para a mesa.
— Que noite você teve em Grauseldorf — disse ela secamente.
— Will me contou tudo. E um pouco mais.
— Sim, foi uma noite e tanto — disse Sophie, desconfortável sob
o olhar de desaprovação da senhora. — Devemos agradecer a Arno
por nos tirar da cripta.
— Hmm. E eu acho que temos que agradecer a você por envolver
meu neto nisso — disse Oma. Depois, ela franziu a testa: — Seu
lábio está sangrando de novo.
Sophie tocou o lábio com os dedos. Eles voltaram vermelhos.
— Não vai sarar sozinho — disse Oma.
— Vai ficar bom, tenho certeza.
— Eu, não — disse Oma, pegando uma garrafa da prateleira e um
pedaço de linho. — Sente-se aí — ela instruiu Sophie, apontando
para um banquinho embaixo de uma janela. — A luz está melhor.
Preciso ver o que estou fazendo.
Oma conduziu uma relutante Sophie até o banquinho e a
acomodou nele. Ela abriu a garrafa e derramou um pouco do líquido
fedorento no pano.
— Feche os olhos — disse ela para Sophie.
— Dói?
— Sim.
A mistura de Oma queimava como fogo líquido.
— Ai! Aaaaauuu! — Sophie uivou.
— Aguente firme. Não aja como um bebê — Oma repreendeu.
— Ão ou um eê! — protestou Sophie o melhor que pôde sem usar
o lábio superior.
Lágrimas arderam em seus olhos. Quando ela pensou que iriam
transbordar, ela sentiu uma mão escorregar na sua, áspera, quente
e forte.
— Aperte com força — disse Will. — Essa coisa aí é horrível.
Sophie o fez e Will apertou de volta. E, finalmente, depois do que
pareceu uma eternidade, Oma terminou.
— Pronto. Terminei. Agora vai se curar rapidinho — disse ela,
pressionando o linho contra a ferida para limpar o sangue fresco. —
Pegue isto. Mantenha um pouco a pressão.
— Obrigada, eu acho — Sophie disse, abrindo os olhos e
pegando o pano. Seu lábio estava latejando.
Oma guardou a garrafa. Quando ela se virou, seus olhos foram
para a mão de Sophie. E do neto dela. Eles ainda estavam
segurando.
— Pronto — disse ela novamente.
Will voltou ao seu ensopado. Sophie pressionou o pano contra o
lábio com as duas mãos.
E Oma saiu para ver onde estava Arno. Ao fazer isso, ela olhou
por cima do ombro para o neto, que estava cantarolando agora
enquanto cuidava do ensopado. Ele nunca cantarolava. Em seguida,
ela olhou para a garota, inclinando depois a cabeça para melhor
observar o garoto.
Com a testa franzida, ela murmurou para si mesma:
— Encontros na Floresta Sombria, ladrões, garotas de calças…
Nada de bom pode vir disso.
QUARENTA E NOVE
S delicioso quanto o
ensopado de coelho de Will.
Ele o trouxe para a mesa na panela. Todos estavam sentados,
guardanapos no colo. Zara se arrastou para debaixo da mesa,
apenas no caso de alguém deixar cair alguma coisa.
Depois de colocar a panela na mesa, Will se sentou também.
Arno estava prestes a pegar uma fatia de pão quando viu Oma
baixar a cabeça. Will e Gretta fizeram o mesmo. Sophie fez o
mesmo, e Oma fez uma prece para agradecer a refeição.
Assim que ela terminou, Will tirou a tampa da panela e o vapor
saiu. O coração de Sophie deu um salto. Oma ergueu uma
sobrancelha. Gretta, que se levantou da cadeira e se apoiou na
mesa com as mãos, e Arno, que fez a mesma coisa, estavam muito
ocupados olhando para a panela para perceber.
— É um relógio — Will explicou para Oma.
— Um reloginho — disse Sophie. — Que eu levo comigo no
bolso.
Will entregou a concha a Sophie, que, levada pelo aroma de dar
água na boca, avidamente pegou legumes, molho e um pedaço de
carne. E depois outro. E mais um. Tudo cheirava tão bem.
Oma olhou para o prato de Sophie, que percebeu que tinha
servido mais do que sua parte no ensopado.
— Sinto muito — ela falou, enrubescendo.
E devolveu a maior parte de volta com pressa.
— A comida deve ser muito abundante no lugar de onde você
vem — Oma disse maliciosamente.
— É, sim — Sophie respondeu com timidez.
Ela estava acostumada com a comida aparecendo do nada à sua
frente. Normalmente, em bandejas de prata. Ela nunca considerou
por um instante de onde tinha vindo ou como era não ter o
suficiente.
Oma serviu Arno, depois a ela e aos netos, e então todos
comeram com avidez. Sophie estava faminta. Ela fez tudo o que
pôde para não enfiar o guisado na boca.
— Will disse a mim e a Oma que você é a princesa. Mas ouvi que
a princesa morreu. Então você é um fantasma? — perguntou Gretta.
Oma bufou.
— Com um apetite desses? Acho difícil!
O rosto de Gretta entristeceu.
— Então você não é um fantasma?
— Não exatamente. Lamento — disse Sophie, com um sorriso
triste.
Gretta ia dizer mais alguma coisa, mas, antes que pudesse,
começou a tossir de novo. E, assim como antes, ela tossiu tanto que
não conseguiu recuperar o fôlego.
— O que há de errado? — Sophie perguntou.
Mas a atenção de Will e Oma estava em Gretta, e eles não
responderam.
Felizmente, o ataque não durou tanto quanto o anterior.
— Síndrome consumptiva — Gretta disse quando conseguiu falar
de novo.
— Calma, Gretta! — Oma repreendeu, magoada com as palavras
da garota. — Não é. É um forte resfriado que não passa. Você está
doente, só isso. Um pouco fraca. Você…
Gretta interrompeu a avó.
— Esta cabana não é muito grande, Oma. Eu ouço você e Will
conversando à noite, sabe.
Will não disse nada, mas apertou a mandíbula com tanta força
que um músculo saltou em sua bochecha.
O coração de Sophie contorceu-se dolorosamente. Ela sabia que
era uma doença cruel que minava a força e a vitalidade de suas
vítimas, mas demorava muito para matá-las.
— Como você pegou? — ela perguntou.
— Minha mãe. Ela tinha. Estava melhorando, mas então a rainha
tomou nossa fazenda e ela piorou.
— Por que a rainha tomou sua fazenda?
— Ela queria a colheita para alimentar seus soldados. Tínhamos
hectares e hectares, e cultivávamos todos os tipos de coisa. Minha
mãe estava doente antes da chegada dos soldados. Ela não durou
muito depois. E então meu pai também adoeceu. Embora Oma diga
que ele morreu de um coração partido.
O coração de Sophie parecia estar se partindo. Fez um barulho
lento e retumbante, como o som de um tambor batendo um canto
fúnebre. Agora ela sabia por que Will havia dito que desprezava a
rainha, a princesa, o palácio e todos nele — porque sua madrasta
havia destruído sua família. Sophie condoeu-se por ele, por Gretta e
Oma, mas sua tristeza estava misturada com raiva também.
Adelaide não via o que estava fazendo? Não entendia que suas
ações brutais tinham consequências terríveis para seu povo? Ela
estava tão vigilante, tão preocupada com as ameaças de seus
inimigos. Levantava exércitos, construía navios de guerra — tudo
para manter seu povo seguro. Mas, ao fazer isso, ela mesma se
tornara inimiga deles. E o que aconteceria se Haakon ganhasse e
assumisse o controle das Terras Verdes? Sophie sabia — as coisas
ficariam ainda piores.
— Sinto muito, Gretta — disse ela.
— Odeio a rainha — disse Gretta, cerrando os punhos. — Odeio o
palácio e todos que existem nele. Eles levam tudo, enquanto nós
mal temos o que comer. Eu também odeio você, Sophie!
— Gretta, pare. Isso é mal-educado — disse Will.
Os olhos de Oma faiscaram para Sophie.
— E perigoso.
— Sophie não é como a rainha — disse Arno, roendo um osso. —
Ela vai pegar a coroa de volta. Mudar as coisas.
— Você vai? — perguntou Gretta, com um misto de esperança e
descrença na voz.
Sophie baixou o olhar para o prato. Ela não conseguiu responder
a Gretta. Fazer isso significava extinguir a esperança nos olhos da
doente. Houve um silêncio desconfortável, e um novo tipo de fome
tomou conta de Sophie — esta não estava em sua barriga, mas no
fundo de seu coração defeituoso.
Pela primeira vez, Sophie teve fome por seu trono, e essa fome
era tão grande que era uma dor física. Ela ansiava por sentar-se de
costas eretas e majestosas na cadeira dourada e sentir o peso doce
e sombrio da coroa das Terras Verdes sobre sua cabeça. Não para
que ela pudesse assustar embaixadores coberta por um manto
cravejado de joias. Não para construir a maior armada do mundo.
Mas para que ela pudesse ter certeza de que uma mulher grávida
nunca fosse expulsa de sua casa. De que um adolescente que
perdera a visão lutando por seu país não fosse descartado como um
brinquedo quebrado. De que uma jovem teria algo melhor para fazer
do que tossir até a morte.
Mas Sophie sabia que era uma fome que nunca poderia ser
satisfeita e que doía mais do que qualquer coisa que sentira antes.
Seu coração não estava apenas defeituoso, mas também falho;
cada segundo o aproximava de seu tique-taque final. E, à medida
que ela ficava mais fraca, seus inimigos ficavam mais fortes. O
pensamento de seu povo suportando a crueldade de Adelaide, e
logo também a de Haakon, encheu-a de uma desesperança
profunda e dolorida.
Oma, olhando para Sophie, ficou em silêncio, como uma leiteira
borbulhando antes de ferver. Ela olhou para Will e disse:
— O que foi que você trouxe para dentro de casa? —
Gesticulando para Arno, ela disse: — Você é um ladrão, mas isso
não me preocupa, porque não temos nada para roubar. E depois
olhou para Sophie: — Mas você é uma princesa morta que não
morreu, e isso me preocupa muito. Eu ouvi sobre você dias atrás. A
notícia corre rápido pela Floresta Sombria. Você deixou uma boa
impressão em Drohendsburg, salvando aquela família do despejo. E
esses veteranos? Eles marchariam até o fim da terra por você. —
Ela passou manteiga em uma fatia de pão e apontou a faca em
Sophie. — Você deu esperança a essas pessoas, menina, e isso é
perigoso. Não há arma maior em todo o mundo do que a esperança.
É perigosa porque é poderosa. E não pense por um segundo que
esse príncipe — Haakon — não sabe disso. Se ele perceber que
você escapou, derrubará portas tentando encontrá-la. Você vai
trazer um mundo de problemas para nós.
— Oma — disse Will rispidamente. — Sophie está aqui porque eu
quero que ela esteja. As coisas que aconteceram… Não são culpa
dela.
Sophie ergueu os olhos.
— Não, Will. Sua avó tem o direito de ficar preocupada. Eu não
deveria ter vindo aqui. É que… Eu estava com medo. Queria um
lugar seguro. Apenas por alguns dias. Um lugar quieto. Um lugar
para… — suas palavras sumiram.
— Um lugar para quê? — perguntou Will.
Sophie olhou para ele. Seu olhar, claro e honesto, deu-lhe forças
para dizer.
— Um lugar para morrer.
CINQUENTA
W .
Sophie o havia deixado em uma cadeira, em cima das roupas que
pegara emprestado e da roupa de cama que usara, tudo
cuidadosamente dobrado.
Cara Oma,
Eu vou recuperar o meu coração. Depois, vou recuperar a
minha coroa. Não tenho ideia de como vou fazer essas coisas.
Atenciosamente,
Sophie
P.S. — Obrigada pelo jantar e por uma cama agradável e
quentinha. Diga adeus a Gretta e agradeça a Will. Lamento ir
embora sem me despedir pessoalmente, mas temo perder a
coragem se vir seus rostos gentis. Vou sentir saudades de
todos vocês. Até de Arno. Por favor, cuide da Zara para mim.
S , colocou-a no chão e se
ajoelhou ao lado de uma planta verde desajeitada.
— Folha-de-veado é segura de se comer… Talo-de-veado deixa
sua língua azul… — ela murmurou, pegando uma folha verde larga.
Mas, em vez de rasgá-la, tirou a mão, franzindo a testa. — Ou era o
contrário?
Ela mordeu o lábio, desejando ter prestado mais atenção às aulas
de Will na floresta. Lembrava-se de que ele disse que era muito
importante tentar achar comida o tempo todo, em vez de esperar até
ficar com fome. Até agora, ela juntara dois punhados de avelãs e
alguns cogumelos de asa de anjo. Da cozinha de Oma, só pegara
uma fatia grossa de pão com manteiga e duas maçãs, e já tinha
comido o pão.
Decidindo que uma língua azul era melhor do que morrer de fome,
Sophie pegou as folhas. Ela sentiu uma fome terrível depois de fugir
de Drohendsburg e sabia que, se não tomasse cuidado, isso a
mataria antes que o Rei dos Corvos tivesse a chance de matá-la.
Sophie havia saído da cabana de Oma apenas uma hora antes,
pouco antes do nascer do sol, e já sentia falta das quatro paredes
aconchegantes. A cozinha arrumadinha. A lareira acolhedora. O
sótão, com sua coleção de provisões para o inverno que se
aproxima. Foi difícil deixá-la, assim como a Toca. Tudo sobre a
casinha expressava cuidado e amor.
A floresta pela qual Sophie estava caminhando era magnífica,
com suas árvores antigas, seus ricos aromas de sempre — plantas
e terra, e seu silêncio macio e musgoso, mas era ilimitada e
desconhecida, e a fazia se sentir pequena e vulnerável. Cada
animal — do lobo mais feroz ao menor ratinho — tinha uma toca
para se esconder, mas e ela? Ela não tinha nada. Nenhum lugar
para se abrigar, nenhum lugar para se esconder. Nenhum
companheiro lobo ou rato que se importasse com sua fome ou frio.
Quando Sophie quebrou mais algumas folhas — nunca pegue a
planta inteira, Will lhe dissera —, ela se perguntou se algum dia
conheceria a sensação de estar em casa novamente. O que sentiu
na cabana de Oma era mais do que o conforto de uma boa refeição
e uma cama quentinha. Em volta da mesa da velha, com Will, Gretta
e Arno, Sophie se sentiu como se estivesse sendo vista, realmente
vista, por quem ela era, por quem poderia ser. Talvez pela primeira
vez na vida.
Trechos de sua conversa com Oma voltavam agora à sua mente.
Mas eu não sou uma rainha…
Mas você pode ser…
Não importava o que sua madrasta acreditava sobre ela. Ou
Haakon.
Ou, aliás, no que Arno e Oma acreditavam.
Importa o que eu acredito, ela pensou. Nunca vou ter meu
coração de volta e minha coroa, a menos que eu acredite que posso
fazer isso.
Sophie sentou-se sobre os calcanhares, segurando um punhado
de folha-de-veado, e olhou para o vasto céu azul.
— Mas eu acredito? — perguntou ela em voz alta.
O céu não tinha resposta para ela.
Com um suspiro, desafivelou o topo de sua mochila e colocou as
folhas dentro dela. Estava prestes a fechá-la novamente quando
ouviu um som de galho se partindo. Ela congelou.
Uma voz carregada pela floresta, baixinha. E depois outra.
Vozes masculinas.
Sophie se agachou, tentando se fazer pequena, para não ser
vista. As vozes podiam pertencer a Krause e seus soldados. A
Haakon. A ladrões. Ela olhou em volta, aflita. Havia um grupo de
arbustos verdes a cerca de dez metros de distância. Se pudesse
chegar lá a tempo, ficaria segura. Uma vez que ela estivesse dentro
dos galhos densos, ninguém seria capaz de vê-la. Lenta e
silenciosamente, começou a se levantar, determinada a não fazer
nenhum som. Olhos fixos à frente, ela nunca viu o que estava
chegando.
A força do impacto a derrubou no chão. Aconteceu tão
rapidamente que não houve tempo para gritar. Ela caiu de costas
com um baque, batendo com a cabeça. Estrelas explodiram atrás de
seus olhos. Tentou se sentar, mas havia um peso em seu peito. Um
hálito quente, úmido e rançoso soprou em seu rosto. A baba pingou
sobre ela. A visão de Sophie clareou. Ela viu um focinho peludo.
Dentes grandes. Uma língua pendurada. Sua agressora
choramingou e latiu na cara dela.
— Zara! — Sophie exclamou. — Eu disse para você ficar com
Oma! Como você saiu?
Zara latiu novamente. Sophie empurrou a cadelinha e se sentou.
— Você a encontrou!
— Boa menina!
Sophie conhecia essas vozes.
— Will! Arno! — gritou ela quando os dois apareceram. — O que
estão fazendo aqui?
— Achei que pudesse tomar um chá no castelo do Rei dos Corvos
— disse Arno, majestoso. — Ver como vivem os ricos. — Ele
apontou o polegar para Will. — E ele? Ele ama…
Will rapidamente o interrompeu.
— É verdade. Eu amo aventura — disse ele, as bochechas
corando um pouco. — Gente aventureira gosta de aventura. É por
isso que estou aqui. Para viver uma aventura.
Arno lançou-lhe um olhar irritado, mas não disse nada.
Sophie ficou confusa. Aventureiro não era uma palavra que ela
usaria para descrever Will. Ficou emocionada e feliz em ver os dois,
mas também preocupada.
— Vocês não deveriam ter vindo — disse ela. — Oma precisa de
você, Will. Arno, o Capitão Krause acha que você está morto. E se
alguém o vir e contar que está vivo? Posso chegar a Nimmermehr
sozinha.
Arno bufou. Seus olhos caíram para as folhas saindo da mochila
de Sophie. Viram a planta colhida pela metade.
— Ah, é?
— Sim, é isso mesmo — Sophie respondeu indignada, irritada
com o tom dele.
Will olhou para a planta também, o rosto tenso de preocupação.
— Você comeu alguma daquelas folhas que colheu? — perguntou
ele.
— Não.
A expressão de Will se suavizou.
— Ufa.
— Por quê? — Sophie perguntou, franzindo a testa. — Folha-de-
veado não faz mal, foi você quem disse.
— Mas isso não é folha-de-veado. É laxursto.
— Laxursto? — Sophie repetiu. Ela nunca tinha ouvido falar disso.
— Hmm. Serve para soltar… coisas — Will explicou, corando
novamente.
— O que o menino está tentando dizer é que faz bem para
constipação. Coma todas as folhas que colheu e terá diarreia por
uma semana!
Foi a vez de Sophie ficar vermelha. Ela rapidamente tirou as
folhas de sua mochila e as atirou no chão da floresta. Quando
fechou a mochila novamente, Arno já estava de volta ao caminho,
desaparecendo entre duas árvores.
— Apressem-se! — gritou ele. — Ou vamos perder os
sanduichinhos! Espero que o Rei dos Corvos esteja nos esperando
com bolachinhas também!
Will ficou atrás dele. Sophie enfiou os braços nas alças da
mochila e os seguiu.
— Will… — ela chamou enquanto começava a descer o caminho.
Will se virou; ele ergueu uma sobrancelha inquisitiva.
— Obrigada. Eu… Eu sei que você não gosta… da realeza… de
mim… mas sou grata por sua ajuda.
Parecia que as palavras dela o tinham magoado, pois a dor cortou
seu rosto. Sophie não tinha ideia do porquê. Ele deu alguns passos
em direção a ela, como se fosse dizer algo. Por um momento, ela
pensou que ele diria que ela estava errada, que gostava dela, e seu
coração zumbiu suavemente, mas, então, ele parou abruptamente.
Passou a mão pelo cabelo. Desviou o olhar.
Finalmente, disse algo.
— Eu me preocupo com minha irmã e você é a última esperança
dela.
E, então, correu para alcançar Arno.
Sophie ficou lá atrás. Um pouco envergonhada. E com raiva — de
si mesma. O que você esperava?, uma voz interna a repreendeu.
Ela queria algumas coisas impossíveis — seu coração, sua vida,
seu palácio, sua coroa.
Mas, enquanto Sophie observava Will desaparecer na floresta, ela
sabia que qualquer esperança que tivesse de aquele garoto
estranho e silencioso gostar dela do jeito que ela começava a gostar
dele era a coisa mais impossível de todas.
CINQUENTA E SEIS
E - S ,W .
Eles estiveram juntos nas últimas cinco horas, desde que a
haviam alcançado. Enquanto caminhavam, Arno disse-lhes que
pensava que levariam quatro ou cinco dias para chegarem a
Nimmermehr e que o castelo do Rei dos Corvos era difícil de
encontrar. O caminho era difícil de seguir e desaparecia
completamente em alguns lugares. Ele também os avisou
novamente sobre os monstros.
— Há todo tipo de trolls naquelas bandas. Tem trolls da lama, é
claro — disse ele, com conhecimento de causa. — Trolls de fungo.
Trolls de pedra. Mas, se me perguntarem… o pior de todos é o seu
troll do poço. Eles vivem no fundo de poços abandonados. E, eu
juro, só o cheiro já mata você.
— O que mais? — perguntou Will.
— Veremos alguns makabers quando chegarmos perto. Eles
procuram mortos não enterrados. Gostam de tirar coisas dos
corpos. Dedos das mãos e dos pés. Narizes também. Eles são mais
nojentos do que perigosos, mas correm atrás de nós se chegarmos
perto de um cadáver atacado por eles. Não querem que você o
roube.
— Como se fôssemos querer — Will murmurou.
— Também poderemos encontrar alguns wunschfetzens.
— O que são? — perguntou Sophie.
— Wunschfetzens? São criaturas cinzentas, gotejantes e
melancólicas, com grandes olhos tristes. Eles gostam de lugares
úmidos. Agarram-se ao teto em cavernas e porões com seus longos
dedos, depois se jogam no seu ombro e enfiam os longos dedos em
seus ouvidos. Tiram lembranças de sua cabeça e as fazem parecer
reais. Você vê alguém que amou. Um pai, morto há muito tempo.
Uma garota que se casou com outra pessoa. Um irmão com quem
você não fala há anos. Você fica tão feliz em vê-los que nem mesmo
questiona por que estão ali. Apenas os segue cegamente enquanto
eles o levam para um pântano ou um penhasco. Se encontrar um
wunschfetzen sozinho, você pode se considerar um caso perdido,
mas, se houver alguém com você, pode ser possível distraí-lo com
doces. Os monstrinhos adoram.
Sophie estremeceu com as descrições de Arno. Ela pensou em
Jeremias e Joosts. E se uma dessas criaturas horríveis os tivesse
pegado? Eles ficariam perdidos na Floresta Sombria para sempre.
Depois de mais uma hora de caminhada, os três chegaram a uma
estrada estreita que cortava a floresta. Ficaram surpresos ao ver
uma caravana de pessoas — pelo menos duzentas delas —
passando. A princípio, Sophie pensou que eles fossem apenas
aldeões voltando de um dia de feira, mas, à medida que se
aproximavam, viu que pareciam mais refugiados do que habitantes
da cidade.
Alguns caminhavam. Outros viajavam em carroças com pilhas
altas de utensílios domésticos, puxadas por cavalos cansados.
Estavam magros e sujos. Alguns estavam tossindo. As crianças se
dispersavam nas bordas do grupo. Um homem empurrava uma
senhora idosa, frágil demais para andar, em um carrinho de mão.
Sophie o parou, perguntou o nome dele e o que havia acontecido.
O homem cansado mal levantou a cabeça enquanto falava.
— Max. Um de nossos habitantes descobriu ouro em nosso rio. O
príncipe — Haakon — ouviu sobre isso e expulsou todos nós. Seus
soldados assumiram o controle da aldeia. Agora todo o nosso ouro
vai para os cofres da rainha e caminhamos pelas estradas pedindo
esmolas. Você tem alguma coisa que possa nos dar? Um pouco de
comida?
Sua expressão derrotada dizia a Sophie que ele havia sido
rejeitado muitas vezes e não esperava a ajuda dela. Mas, quando
Sophie colocou um pedaço de pão em sua mão, o espanto
substituiu a desesperança em seus olhos.
— É você! É a princesa! — ele exclamou.
Ele agarrou a mulher ao lado dele.
— Veja! É ela! É a Princesa Sophia.
Suspiros assustados e murmúrios aumentaram.
— É ela! Ela está viva! — disse uma mulher.
— As histórias são verdadeiras! — gritou um homem.
Uma por uma, as pessoas caíram de joelhos. E curvaram suas
cabeças.
— Viva a princesa!
— Viva!
— Viva a princesa!
Sophie sentiu-se arder de vergonha. Ela não merecia a honra que
estavam mostrando a ela. Não havia nada que ela pudesse fazer
por eles, nenhuma ajuda que pudesse lhes dar. Seu coração
mecânico contorceu-se dolorosamente em seu peito.
Arno aproximou-se dela. Ela o sentiu colocar algo em sua mão.
— Dê para eles — disse ele. — Vamos, dê.
Sophie olhou para o que estava segurando. Era um saco de
couro. Ela sabia o que continha — joias roubadas. Parte dela queria
devolver, mas sabia que as joias pagariam pelo uso do celeiro de
um fazendeiro para abrigar aquelas pessoas. Poderiam ser usadas
para comprar comida, remédios e roupas.
Ela pegou a mão de Max e pediu-lhe que se levantasse. Então,
ela deu a ele o saco de joias do cemitério.
— Para você e seu povo — disse ela. — Para alimentá-los e
encontrarem um abrigo.
O homem olhou para ela interrogativamente, depois abriu o saco.
Seus olhos se arregalaram quando viu o que havia na bolsa. Um
grito escapou dele.
— Obrigado, Sua Graça. Obrigado! — Ele entregou a sacola para
o homem ao lado dele, pegou a mão de Sophie e a beijou.
Alguns outros se reuniram ao redor. Eles viram as joias. A notícia
rapidamente se espalhou pela multidão.
— Deus a salve, Sua Graça!
— Deus salve a princesa!
Uma mulher com quatro filhos começou a chorar. Um homem
sorriu para o pai idoso. Um menino com seis irmãos pequenos
agrupados em torno dele fechou os olhos e respirou, aliviado. E Will
olhou nervosamente para a estrada.
— Já estamos parados aqui há algum tempo, Sophie — disse ele
baixinho. — Krause e sua gangue de assassinos podem estar em
qualquer lugar. É hora de irmos.
— Nunca vamos esquecer isso, Sua Graça — disse Max,
soltando a mão de Sophie. — Um dia, nós a ajudaremos.
Sophie sorriu, comovida por suas palavras. Ele estava falando
sério, ela sabia que sim, mas que ajuda aquelas pobres pessoas
poderiam lhe oferecer? Algumas mal conseguiam ficar de pé. Outras
não durariam uma semana.
— Cuide bem de todos, Max — ela sussurrou enquanto
observava as pessoas retomarem sua caminhada.
Então ela, Will e Arno desapareceram de volta na Floresta
Sombria.
CINQUENTA E SETE
—P ? — Sophie
perguntou, marchando atrás de Will.
Ela estava com sede e encharcada de suor. Seus pés doíam. Seu
batimento cardíaco estava irregular. Ela começou a se sentir fraca e
tonta novamente. Dois dias haviam se passado desde que ela, Will
e Arno conheceram Max e seus companheiros refugiados, e eles
estavam caminhando desde então, apenas parando para dormir
quando ficava escuro demais para ver o caminho.
— Will? Podemos parar… Por favor.
De cabeça baixa, com a atenção fixada nos pés, ela não viu que
Will havia parado e estava olhando para algo fora do caminho. E,
então, ela se chocou contra ele. De cabeça e com força.
— Oh! Ai! — gritou ela, cambaleando para trás. — Por que você
fez isso? — ela perguntou zangada, esfregando a testa.
— Fiz o quê? Parar? Talvez porque você me pediu? — respondeu
Will. — Veja…
— O quê?
Ele apontou para flores roxas escuras crescendo perto de um
tronco apodrecido.
— Flores-de-raposa.
Sophie fez uma careta.
— Você quase fraturou meu crânio por causa disso?
— São muito bonitas. E úteis. Se você pressionar as pétalas em
picadas de insetos, elas tiram a coceira. — Ele dirigiu a ela um olhar
interrogativo. — Você não sabe dessas coisas? O que eles ensinam
na escola de princesas?
— Nada útil — Sophie murmurou.
Naquele momento, algo em seu coração — uma engrenagem ou
roda — ficou preso em alguma outra peça e fez um barulho alto de
raspagem. O peito de Sophie se apertou; ela lutou para respirar.
Seu corpo ficou rígido.
— O que isso quer dizer? O que há de errado? — Will perguntou,
estendendo a mão para segurá-la em pé.
Poucos segundos depois, o que quer que fosse estremeceu e
Sophie caiu contra ele, engolindo ar.
— A mesma coisa que sempre está errada — disse ela quando
conseguiu falar novamente. — Tenho um relógio defeituoso como
coração, e ele está perdendo a velocidade.
A preocupação nublou o rosto de Will. Ele semicerrou os olhos
para o sol. Seus raios, oblíquos através dos galhos frondosos,
lançavam sombras no solo.
— O dia está ficando longo. Vamos ter que aumentar o ritmo se
quisermos chegar ao próximo cemitério ao anoitecer — disse Arno,
aproximando-se deles. — Caso contrário, vamos dormir sob as
estrelas de novo.
— Sophie precisa de um descanso — disse Will. — Vamos deixá-
la descansar alguns minutos. Vou caçar nosso jantar. Isso nos
poupará tempo quando chegarmos ao cemitério. Tenho visto muitos
coelhos.
— Coelho de novo? — disse Arno, fazendo uma careta.
— O que foi, Arno? Você está cansado de coelho? Tudo bem,
então. Em vez disso, vou encontrar para nós uma costela assada.
Mal passada. O que acha disso?
— Se ao menos fosse possível… — disse Arno com saudade. —
Irei com você. Talvez eu possa encontrar algumas bagas de zimbro
para dar sabor à carne. Cogumelos. Um pouco de tomilho
selvagem. Uma bela mortadela.
Will olhou para ele e se voltou para Sophie.
— Você vai ficar bem sozinha? — perguntou ele, soltando-a.
Sophie disse que sim, depois se sentou na base de uma bétula,
desatarraxou a tampa do cantil e tomou um longo gole de água.
Will largou a mochila no chão e saiu para a floresta com Zara em
seus calcanhares. Sophie baixou o cantil e tentou desacelerar a
respiração, que ainda estava muito rápida e superficial. O defeito
assustador que acabara de experimentar a fez se lembrar de algo
que preferia esquecer: que ela tinha pouco mais de duas semanas
para roubar seu antigo coração, retornar à Toca e, com sorte,
encontrar alguém com magia forte e suficiente para colocar o
coração de volta no lugar.
Pensar em quão rápido seu tempo estava se esgotando não
ajudou Sophie a respirar, então ela tirou os pensamentos sombrios
de sua cabeça. Will e Zara ainda não haviam desaparecido de vista.
Ela gostava da caminhada fácil e rápida de Will. Ele se movia por
entre as árvores tão facilmente quanto o vento. Ela sabia que ele só
iria caçar coelhos. Eles tinham visto todos os tipos de pássaros da
floresta enquanto caminhavam — faisões, perdizes, codornizes —,
mas Will não atirava neles. Ele amava pássaros, dissera a ela, e
não suportaria matá-los.
Sophie pensou, mais uma vez, como estava muito grata a Arno e
Will por estarem indo com ela para Nimmermehr. Arno não exagerou
quando disse que a trilha era difícil de seguir. Ela teria ficado
irremediavelmente perdida sozinha. Quando sua respiração
finalmente começou a diminuir e Will saiu de vista, Sophie olhou ao
redor. Eles haviam percorrido uma longa distância desde que
deixaram a cabana de Oma e, a cada passo que davam, a Floresta
Sombria parecia ficar cada vez mais escura.
Os pinheiros eram mais folhosos e impossivelmente altos. Musgo
espesso, tão verde-escuro que era quase preto, pedras e tocos
atapetados. Durante o dia, os corvos gritavam nas copas das
árvores, as folhas das samambaias acenavam com a brisa e
grandes sapos com verrugas piscavam sob troncos podres. À noite,
mariposas com antenas emplumadas desciam até a fogueira,
batendo suas asas translúcidas, nuvens de morcegos emergiam de
cavernas escondidas e olhos de animais cintilavam
assustadoramente verdes na escuridão. Sophie e seus amigos
tinham dormido do lado de fora na noite anterior e se revezado para
vigiar, pois Will vira rastros de lobos. Seria bom encontrar abrigo
naquela noite, mesmo que o abrigo fosse uma tumba.
Sophie encostou a cabeça na bétula. Fechou os olhos. A pausa
na caminhada estava fazendo bem a ela. Depois de alguns minutos,
ouviu um galho estalar e depois outro. Passos rangeram nas
camadas de folhas mortas no chão da floresta. Will e Arno devem
ter tido sorte, ela pensou. Já estão de volta.
— Por que demorou tanto? — ela zombou de Will. — Você se
perdeu?
— Sim, temo que sim.
Essa não era a voz de Will. Nem de Arno. Os olhos de Sophie se
abriram.
Um homem estranho estava parado a alguns metros de distância.
CINQUENTA E OITO
S .
Agarrou sua mochila, pronta para correr com ela. O homem deu
um passo para trás.
— Sinto muito — gaguejou ele, erguendo as mãos. — Não
pretendia assustá-la. Eu ouvi vozes. Perdi o caminho de vista e
esperava que você pudesse me dizer como encontrá-lo novamente.
Sophie relaxou ligeiramente.
— Aonde você está tentando ir?
— Grauseldorf. Espero chegar lá amanhã à noite.
— Não é exatamente perto daqui — disse Sophie. — Vai levar
alguns dias.
O homem pareceu tão desanimado com suas palavras que
Sophie sentiu que precisava dizer algo para animá-lo.
— Você está no caminho certo. É difícil ver daqui — ela apontou
para o caminho por onde acabara de chegar, para um grupo de
choupos. — Fica mais fácil seguir do outro lado daquelas árvores.
O homem acenou com a cabeça.
— Obrigado — disse ele enquanto ajeitava a mochila pesada nas
costas.
Sophie viu que ele era magro. E parecia tão cansado quanto ela.
— Está com fome? — ela perguntou.
O homem balançou a cabeça com a oferta de Sophie, mas sua
recusa vacilou quando ela pegou um saco de ameixas.
Sentando-se novamente, ela gesticulou para que ele se juntasse
a ela.
— Eu sou Sophie — disse ela, entregando-lhe uma ameixa.
— Rafe — respondeu o homem com um sorriso.
— Você veio de longe? — perguntou ela, colocando a fruta no
chão.
— Uma boa distância — ele disse e apontou o polegar atrás de si.
— Eu vivo dessa maneira. Nas profundezas da floresta. Com minha
esposa.
— Por que está indo para Grauseldorf?
— Para vender minhas mercadorias. Sou lenhador de profissão,
mas também esculpo para ganhar um dinheiro extra. Tenho
estatuetas para vender. Castiçais. Caixas. Bijuterias para mulheres.
Vou mostrar.
Ele enfiou a mão na mochila, franzindo a testa, apertando os
olhos, afastando as coisas.
— Ah, aqui estamos. Este é muito impressionante — disse ele,
puxando algo pequeno e embrulhado em musselina.
Desdobrou o pano e colocou o que estava dentro nas mãos de
Sophie. Ela ficou mesmo impressionada. Era um pente de cabelo,
esculpido em azeviche, em forma de escorpião. Nunca tinha visto
uma peça tão bem-feita. Os dentes do pente eram longos e
impossivelmente finos; o pente era projetado para ficar em cima de
uma trança enrolada ou de um coque. O escorpião estava
empoleirado acima dos dentes, tão lustroso e natural que Sophie
sentiu que fosse se mover. Suas poderosas pinças estavam
levantadas, a cauda arqueada bem acima da cabeça.
— É incrível — ela se maravilhou. — O senhor é muito talentoso.
Rafe sorriu, satisfeito com o elogio dela.
— Espero que valha uma boa quantia, embora eu odeie vender.
Gostaria de poder ficar com ele. Minha esposa o adora.
— Consigo entender por quê — disse Sophie melancolicamente,
lembrando-se de todos os pentes requintados que possuía quando
morava no palácio. Parecia que muito tempo havia se passado
desde então.
Rafe colocou o pano de musselina no chão entre eles. Sophie
pousou cuidadosamente o pente sobre ele. Enquanto ela o fazia, ele
mordeu a ameixa que ela lhe dera.
— Deliciosa — disse ele. — Obrigado.
Ele perguntou aonde ela estava indo.
— Schadenburg — disse Sophie evasivamente, referindo-se ao
vilarejo mais próximo ao castelo do Rei dos Corvos. Ela não queria
compartilhar seu verdadeiro destino com um estranho.
Rafe fez uma careta.
— Por quê? É um lugar horrível.
— Tenho negócios lá — disse Sophie.
— Eu a aconselho resolvê-los o mais rápido possível.
Houve um ruído repentino e deslizante atrás deles, como ratos se
movendo por folhas mortas. Sophie se assustou um pouco. Ela
olhou por cima do ombro, mas não viu nada.
— Esquilos, imagino — Rafe disse. — Estão juntando nozes para
o inverno. O verão está acabando.
Uma brisa soprou entre as árvores, fazendo cócegas no pescoço
de Sophie. Um arrepio percorreu sua espinha.
Ela pegou uma ameixa. Ao fazer isso, seu olhar pousou no pano
de musselina. O escorpião esculpido havia sumido. Ela tinha certeza
de que havia colocado sua bela escultura ali. Esperava que nada
tivesse acontecido com ele.
— Onde foi parar seu pente? — perguntou ela, procurando
ansiosamente por ele.
Rafe abriu um sorriso lento e penetrante.
— Bem onde ele deveria estar — ele disse.
Quando as palavras deixaram sua boca, Sophie sentiu algo subir
em seu pescoço. Ela deu um grito e tentou puxar o que quer que
estivesse rastejando sobre ela, mas grandes pinças de pedras
preciosas paralisaram suas mãos. Uma penetrou em seu dedo.
Sophie gritou.
O escorpião esculpido ganhou vida. Estava subindo pela nuca
dela, a cauda arqueada, uma gota verde e brilhante de veneno
pendurada na ponta. Ele ergueu a cauda para o alto e, então,
atacou.
Instantaneamente, o veneno se espalhou pelo corpo de Sophie,
queimando como ácido. Ela gritou e se contorceu, tentando arrancar
de si o escorpião, mas a criatura havia crescido. Era do tamanho de
uma doninha agora e tinha as pernas emaranhadas em seu cabelo.
Menina tola… Mole demais, fraca demais… sibilou.
As palavras venenosas do escorpião perfuraram o coração de
Sophie. Enquanto ela lutava, a criatura picou-a repetidamente. Seu
veneno começou a fazer efeito, desacelerando seus movimentos.
Ela rolou de costas, sua respiração difícil, seu batimento cardíaco
pesado e lento. Ela podia ver Rafe. Ele estava de pé sobre ela,
olhando para baixo. Podia ver algo que não tinha visto antes — que
os olhos dele eram de um azul-índigo. Que seu cabelo era longo e
solto. Que ele não era um homem, mas uma mulher.
O escorpião rastejou pela lateral de seu rosto, através de sua
clavícula, e se empoleirou em seu peito, parando em seu ataque
como se estivesse ouvindo, esperando.
Sophie observou, incapaz de se mover. Seus lábios abriram-se,
mas nenhum som saiu.
A rainha a observava de cima. Seus olhos brilharam quando ela
falou:
— Aponte para o coração. Certifique-se de que a garota morra
para sempre — instruiu a criatura. — Ela não deve chegar a
Nimmermehr.
O escorpião ergueu a cauda. E a atingiu profundamente.
CINQUENTA E NOVE
S .
O rosto de Will estava a apenas alguns centímetros do dela. Seus
braços estavam ao redor dela. Os da garota, pressionados contra
seu peito. Ela podia sentir que subia e descia, podia sentir seu
coração batendo.
Como isso aconteceu?, ela se perguntou, mas não se afastou. O
chão abaixo dela estava frio, e ele estava tão quente. O som de sua
respiração a acalmava. E o peso do braço dele em seu corpo era
doce.
A luz prateada do amanhecer banhou-se sobre ele, destacando
seus traços — suas maçãs do rosto salientes, a linha de sua
mandíbula, seu nariz com uma leve saliência na ponta. Seus olhos
fechados estavam na sombra, mas ela podia ver seus cílios
escuros, volumosos contra sua pele. A barba por fazer no queixo.
Seus lábios.
Seu coração ronronou suavemente. Ele é lindo, ela pensou. Tão
lindo.
Sophie sabia que precisava acordar. E sentar-se. Precisava se
lembrar de quem era, onde estava e o que precisava fazer. Mas
ainda não. Ainda não.
Só mais um minuto, ela pensou, aninhando-se mais perto dele.
Ela se permitiu imaginar como seria se sempre fosse assim com ele.
Como seria abraçá-lo do jeito que ele a estava abraçando. Correr os
dedos pelo cabelo dele, segurar seu rosto com as mãos, beijar seus
lábios.
Isso nunca aconteceria. A coroa lhe tomara a fazenda, matara
seus pais, deixara sua irmã doente. Como ele poderia perdoar tudo
isso? Perdoá-la? Ele odiava tudo o que ela representava, e ela
estava se apaixonando por ele.
Sophie suspirou. Seus olhos se fecharam.
E então Will a lambeu.
Do queixo, passando pela boca e pelo nariz até a testa, deixando
um rastro de baba em sua pele.
Sophie se engasgou. Ela se sentou, ereta.
— Will! Isso é nojento. Como… Como você pôde?
— O quê? — Will murmurou, abrindo os olhos.
— Você me lambeu!
Will piscou.
— Está louca?
E, então, aconteceu de novo. Uma longa língua rosa percorreu o
rosto de Sophie, da bochecha até a orelha. A lambida foi seguida
por um gemido. E, então, um latido. Era Zara que precisava sair.
— Me chame quando tiver café — disse Will, bocejando. — E
beba um pouco. Aí talvez você note a diferença entre mim e um
cachorro.
Ele se virou e fechou os olhos.
Sophie corou, envergonhada. Seu coração fez um barulho que
parecia uma roda soltando de um carrinho. Will puxou o cobertor
sobre a cabeça. Zara choramingou novamente. Ela caminhou até a
porta e voltou.
— Espere aí, garota. Estou indo — disse Sophie, pondo-se de pé.
Ela levaria Zara para a floresta.
O fogo estava queimando forte, alimentado com os galhos
recolhidos na floresta. Arno não estava à vista. Sophie foi até a
porta de ferro e viu que estava entreaberta. Cautelosamente, ela a
abriu. Rangeu alto.
— Você pode sair — disse Arno. — Não tem mais ninguém aqui.
Este é um cemitério solitário.
Ele estava a poucos metros de distância, de costas para ela,
observando um grupo de andorinhas voar. Sophie desejou-lhe bom-
dia e, então, ela e Zara correram para as árvores. Quando voltaram,
Arno estava falando com as andorinhas. Várias delas desceram
sobre lápides próximas. Inclinavam a cabeça para um lado e para o
outro, olhando para ele com seus olhos rápidos e curiosos.
— Você fala com elas tão gentilmente, tão calorosamente — disse
Sophie, juntando-se a ele. — Como se fossem crianças.
— São crianças. As andorinhas carregam as almas das crianças
mortas. Você não sabe disso? — perguntou ele. — Nunca as viu
voando? Tão diferentes de outros pássaros, voando de pura
felicidade. Exatamente como as crianças fazem. Você nunca se
perguntou sobre isso?
Sophie não respondeu. Porque, daí, todos os pássaros voaram de
seus poleiros de lápide ao mesmo tempo, cantando e chamando,
voando baixo, como crianças correndo juntas no campo. Seu
coração batia tão forte que ela pensou que fosse se despedaçar.
Nunca tinha visto nada tão bonito.
Uma andorinha pousou novamente. No topo de uma pequena
lápide. Sophie leu o nome gravado nela. Mattias Schmitt.
Ela se virou para Arno, chocada.
— Seu filho — disse ela.
Arno acenou com a cabeça.
— Vim saudá-lo. Ele tinha três anos quando morreu. Febre. Eu
era carpinteiro, mas não tinha trabalho. Todas as árvores em
quilômetros ao redor foram levadas pela coroa para construir
quartéis. Por isso, roubei um comerciante rico para pagar um
médico, mas era tarde demais.
Ele tocou a marca horrível na bochecha e disse:
— Matti morreu. Eu fui pego. A justiça da rainha foi cumprida.
O coração de Sophie deu um salto, enguiçou e depois voltou ao
ritmo.
— Ser pego, ser marcado… Nada disso me destruiu — continuou
Arno. — Só me deixou mais inteligente. Uma velha foi enterrada no
mesmo dia que Matti. Uma viúva rica. Foi colocada no chão com
uma libra de ouro sobre ela. Nunca ajudou ninguém quando estava
viva — ele sorriu. — Mas ajudou quando estava morta. Ajudou uma
criança que adoeceu após a morte de Matti. Assim como muitos
outros que estão aqui. A vida pode ser tão fria, tão insensível. Mas
os mortos? Ah, os mortos ficam felizes em ajudar.
Sophie lembrou-se de como Arno colocou a bolsa de joias em sua
mão para entregá-la aos refugiados.
— Você dá o dinheiro, não é? — disse ela. — Você o usa para
ajudar as pessoas.
Arno ficou em silêncio por um momento. Ele e Sophie observaram
os pássaros voando alto acima deles. Ela se lembrou de suas
palavras duras nas criptas de São Sebastião, quando viu o que
havia nas sacolas e percebeu como Arno conseguira aquelas
coisas. Ela sabia o que era ser julgada.
— Eu sinto muito, Arno — Sophie disse.
Arno virou-se para ela.
— Você quer encontrar seu coração, garota? — ele perguntou
baixinho. — Veja uma criança morrer por falta de algumas moedas.
Faça isso e você poderá começar a entender algumas coisas, como
a diferença entre um roubo e um crime.
Ele foi embora, passando pelas lápides, de volta para dentro do
túmulo. A andorinha voou da lápide e pousou no ombro de Sophie,
gorjeando para ela, então decolou novamente.
Enquanto observava o pássaro ir embora, Sophie pensou em
muitas coisas. Sete irmãos, antes estranhos para ela, salvaram sua
vida. O pequeno Mattias, morto sob seus pés, e a doente Gretta,
que logo se juntaria a ele. Um ladrão de túmulos com um saco de
joias empoeiradas e um coração de ouro puro. Um garoto bonito
que lhe contava coisas bonitas e a fazia acreditar nelas. Outro
garoto, que estava calado e estranho, mas aqui. Com ela. Quando
tinha todos os motivos para não estar.
O amor dá medo.
É mais corajoso do que generais, mais forte do que fortalezas.
Abre sepulturas e puxa anéis de cadáveres. Senta-se durante a
longa e solitária noite com uma criança doente. Fabrica corações
com pecinhas enferrujadas e os faz bater, não importa quantas
vezes seja partido.
— O café está pronto! — berrou Arno da porta da tumba. —
Venha tomar o café da manhã, Sophie. Precisamos pegar a estrada.
Ainda falta muito para Nimmermehr.
Os três comeram e depois empacotaram suas coisas. Arno
trancou a cripta, e eles partiram. Zara correu à frente deles,
desviando-se da grama para perseguir esquilos.
Enquanto Sophie caminhava, fechando a retaguarda, ela
observava Will. Um rei poderoso tomou meu coração, ela pensou.
Mas um garoto sem dinheiro o roubou de volta.
Will não sabia. Ele não sabia que tinha dormido com o braço em
volta dela. Que eles respiraram a respiração um do outro a noite
toda. Que ela desejou dele mil coisas impossíveis.
Ele não sabia.
E nunca saberia.
Pois o amor é terrível, e Sophie está assustada.
Quando os três deixaram o cemitério e entraram na Floresta
Sombria mais uma vez, um corvo pousou em um galho alto.
Ele inclinou a cabeça de um lado para o outro, observando
Sophie. Viu tristeza em seus ombros. Incerteza na maneira com que
juntava as mãos. Viu desejo em seus olhos.
Sacudiu a cabeça. Como se conhecesse seus pensamentos.
Como se conhecesse seus medos.
E, então, silenciosamente, ele voou para longe. Rumo ao oeste,
na luz cinzenta do amanhecer.
Em direção a Nimmermehr.
SESSENTA E TRÊS
OR C .
Seu casaco esvoaçava atrás dele como fumaça enquanto ele
caminhava pelos aposentos da rainha.
— A princesa está se tornando uma heroína para seu povo —
disse ele.
— Meu povo — disse Adelaide.
— Não por muito tempo. Em cada praça do mercado, em cada
taverna e prefeitura, as pessoas falam sobre uma princesa rebelde,
um anjo vingador que voltou dos mortos para ajudá-los. E você? —
Ele apontou um dedo em garra para ela. — Você não faz nada!
— Isso não é verdade! Eu tenho um príncipe e um capitão da
guarda procurando por ela. Tentei matá-la. Duas vezes!
— E falhou nas duas vezes — disse Corvus.
Ele enfiou a mão no casaco, tirou alguma coisa dos bolsos e
colocou sobre a mesa.
Adelaide ergueu uma sobrancelha.
— Uma maçã? — disse ela.
— Uma maçã envenenada — disse o rei. — Ela está se
aproximando de Schadenburg. Vá até lá. Coloque-a ao seu alcance.
— Como? Ela vai tomar cuidado com estranhos agora. Não vou
conseguir convencê-la a pegar nada de mim de novo.
— Você não precisa. Ela vai pegar por si mesma.
Adelaide hesitou, tomada pela dúvida.
— Ela está ficando forte, Corvus — disse ela por fim. — Talvez
mais forte do que qualquer um de nós.
Uma raiva letal flamejou nas profundezas dos olhos escuros do
rei. Ele acenou com a mão na frente do espelho. Uma imagem girou
e tremeluziu na superfície. Ele ficou mais irritado.
— Olhe, Adelaide — ordenou. — Você é forte. Esqueceu?
Adelaide olhou para o espelho e viu uma menina de doze anos.
Ela corria por um longo corredor. Seu cabelo estava solto. Seus
olhos, cheios de medo. O sangue cobria seu rosto. Escorria pela
frente de seu vestido.
Com um grito, Adelaide afastou-se do espelho, incapaz de
suportar a imagem e as lembranças que ela trazia.
— Você sobreviveu naquele dia — disse Corvus. — Eu a ajudei.
Nunca abandonei você. Nem uma vez em todos esses anos. E
agora estou avisando… Esta é sua última chance.
Adelaide irritou-se com suas palavras.
— Eu invoco você. Você serve a mim — ela rebateu com
veemência. — É bom se lembrar disso.
O Rei dos Corvos sorriu friamente.
— Tem certeza disso? — zombou ele.
E, então, ele se foi.
Adelaide foi até o espelho. Tocou sua borda dourada. Era antiga.
Estivera no palácio de seu pai por séculos. Enquanto ela olhava em
suas profundezas, a garota apareceu novamente. Era apenas uma
criança. Sozinha. Medrosa. Girando em um círculo frenético.
Adelaide observou a garota se olhando no vidro prateado. Ouviu o
nó em sua garganta, os soluços torturantes. Eu não sei o que
fazer… Me ajudem… Alguém, por favor, me ajude…
O Rei dos Corvos ouviu suas súplicas. E respondeu. Ele foi o
único que o fez.
A garota pressionou a palma da mão no vidro. Adelaide fez o
mesmo. Então, ela se virou e pegou a maçã.
SESSENTA E QUATRO
S - .
Schatzi colocou a mão sobre a boca.
— Sophie, minha querida menina… Você está viva.
— Como foi que cheguei aqui? — Sophie perguntou, com a voz
fraca. — Como…
Uma onda de tontura, pegajosa e nauseante, tomou conta dela.
Ela cambaleou e fechou os olhos com força. Arno a pegou pelo
braço e a conduziu até um banco de madeira que os irmãos tinham
colocado perto do caixão. Depois de um momento, a tontura
passou. Sophie abriu os olhos.
Essa foi a deixa dos irmãos. Todos correram até ela, beijando seu
rosto ou o topo de sua cabeça, segurando suas mãos. Tupfen e
Weber juntaram-se a eles.
— Seus amigos, Arno e Will, trouxeram você aqui — Julius disse
a ela. — Você se lembra de alguma coisa?
Sophie contou a eles sobre a dona da fazenda e a maçã. E um
homem com olhos negros e frios.
— Era ele, o Rei dos Corvos — disse ela, gelada pela lembrança.
— Ele disse que tinha acabado comigo.
Ela parou de falar por um momento, tentando se lembrar de seus
últimos momentos no mercado.
— Mas, não… A maçã deve ter ficado presa na minha garganta.
Eu não engoli.
— Acho que foi isso que salvou você — disse Arno. — Só tinha
veneno suficiente no seu corpo para desacelerar seu coração e
fazê-la dormir, não o suficiente para matá-la.
— Quanto tempo se passou desde que estive em Schadenburg?
— perguntou ela.
— Uma semana… eu acho… — Johann disse.
— Não, oito dias — rebateu Arno.
— O quê? — Sophie disse, alarmada. Ela ficou de pé e
perguntou: — Onde estão as minhas coisas? Minha mochila… Meu
cantil…
— Em casa — disse Johann. — Sophie, sente-se. Você ainda
está muito pálida.
Sophie balançou a cabeça.
— Eu preciso delas — ela falou. — E de um pouco de comida
também, se puderem me dar.
— Por quê? O que pretende fazer? — Jakob perguntou.
— Vou ao castelo do Rei dos Corvos.
— Depois do que aconteceu? Está louca? — Jakob gaguejou.
— Eu tenho que fazer isso. Estou ficando sem tempo — disse
Sophie, sua voz muito firme. — Só me resta uma semana, talvez
nem mesmo isso, antes que meu coração pare de bater. E leva
muito tempo apenas para chegar a Nimmermehr.
— Dá para chegar em seis dias, se nos apressarmos — disse
Arno.
— Mas, Sophie, você não precisa ir — disse Schatzi. — Jeremias
e Joosts voltarão com o seu coração a qualquer momento.
— Já se passaram semanas, Schatzi — disse Sophie, o mais
gentilmente que pôde. — Semanas. Algo deve ter acontecido com
eles, caso contrário, já estariam de volta. Se eu puder encontrá-los
no meu caminho e ajudá-los, farei isso.
Schatzi baixou a cabeça e engoliu em seco.
— Onde está Will? — Sophie perguntou, procurando por ele.
— Foi embora — disse Arno. — Acho que percebeu que não
adiantava ficar por aqui, com você morta.
O coração de Sophie afundou com um som suave e triste, quase
como um suspiro.
— Aonde ele foi? — perguntou ela. — Para casa, encontrar Oma
e Gretta?
— Não tenho certeza — respondeu Arno. — Ele disse algo sobre
caçar pássaros.
Sophie não entendeu.
— Isso não faz sentido, Arno. Ele nunca caça pássaros. Ele adora
pássaros.
Arno deu de ombros.
Eu voltarei para a cabana de Oma um dia, Sophie disse a si
mesma. Assim que eu tiver recuperado meu coração e minha coroa.
Para dizer obrigada. E adeus. Não mudaria nada entre eles. Ela
sabia disso. Não o faria gostar dela do jeito que ela gostava dele.
Mas ela lhe devia seus agradecimentos e devia a si mesma vê-lo
uma última vez.
— Sophie — disse Johann. — Se Jeremias e Joosts estão… Se
estão realmente perdidos… Se não conseguiram enfrentar o Rei dos
Corvos… O que faz você pensar que conseguirá?
— Uma menina doente. Um menino cego. Uma velha em um
carrinho de mão. Crianças órfãs. Um homem com um R gravado em
seu rosto. Eles me fazem pensar que vou conseguir — respondeu
Sophie, olhando Johann, seus irmãos e Arno. — Eu sei o que o Rei
dos Corvos pretende fazer agora: conquistar o coração do meu
povo, de todos eles. Ele mesmo me disse. Pouco antes de o veneno
fazer efeito. Mas não vou deixar. Juro que não vou.
Havia uma urgência na voz de Sophie e uma nova determinação.
Todos os irmãos ouviram. Arno também.
Weber, que havia saído por um momento, agora voltava com dois
sanduíches de schnitzel, uma jarra de água e dois copos. Sophie
bebeu até se fartar e pegou um sanduíche. Ao mordê-lo, viu a
aranha levar o outro sanduíche embora e entregá-lo a um garotinho
que estava se afastando do grupo.
— Tom, é você? — disse ela, abrindo um sorriso de espanto.
Ela largou o sanduíche, correu até ele e o abraçou. Parecia estar
abraçando um feixe de gravetos.
— O que você está fazendo aqui? — ela perguntou ao soltá-lo.
— Eu fugi. Semanas atrás. Depois que… Depois que a rainha me
chicoteou.
— Sinto muito. Foi tudo culpa minha.
— Você salvou uma vida, Princesa Sophie. Não há culpa nisso.
— Você está aqui sozinho desde então?
Tom assentiu. Sophie, percebendo que o menino magro e faminto
segurava seu sanduíche por educação, em vez de devorá-lo logo,
levou-o até o banco e disse-lhe para comer. Eles comeram seus
sanduíches juntos.
Quando terminaram, Sophie foi até o chalé e rapidamente juntou
suas coisas. Arno também juntou as suas. De jeito nenhum ele a
deixaria ir sozinha. Ele ainda tinha algumas joias e as usaria para
comprar cavalos da primeira fazenda por que passassem.
Cavalgando, a viagem levaria menos dias. Weber embalou comida
para eles e, então, Sophie deu um beijo de despedida nos irmãos.
Eles queriam ir também, mas ela não quis nem pensar nessa
possibilidade.
— Vocês são a minha família agora — ela disse. — Preciso que
estejam aqui quando eu voltar.
Depois, virou-se para Tom.
— Estou deixando Zara aqui. Você vai cuidar bem dela por mim?
— Vou, sim. Eu prometo — Tom disse.
E, então, Sophie e Arno correram para a trilha. Os irmãos a
observaram partir, com preocupação estampada em seus rostos.
— Adeus, princesa! — Tom gritou atrás dela.
— Eu sabia que ela não estava morta — disse Schatzi,
enxugando os olhos. — Eu sabia que ela não tinha morrido.
— Acho que morreu, sim — Johann disse.
— O quê? Como assim, morreu? — Julius perguntou.
Johann balançou a cabeça.
— Do que você está falando? — Josef disse. — Ela acabou de se
levantar, comer um sanduíche de schnitzel e ir embora para a
floresta!
Johann não respondeu por um momento. Ele ficou no portão,
observando enquanto Sophie ficava menor e menor até desaparecer
de vista na Floresta Sombria. Ela parecia mais alta para ele. Mais
ousada. Mais temível.
— A princesa morreu em Schadenburg — disse ele com um
pequeno sorrisinho de orgulho. — E uma rainha nasceu.
SETENTA
S , afastando os galhos
com uma das mãos e conduzindo o cavalo com a outra.
A terrível previsão de Arno a enervou. A cada passo que dava,
esperava ouvir um rugido de gelar o sangue ou ver alguma criatura
horrível caindo sobre ela, mas não voltaria atrás, por mais medo que
sentisse. Ela tinha chegado muito longe e estava decidida a fazer o
que fosse necessário para reconquistar seu coração.
Arno tinha certeza de que o túnel e o rio estavam próximos, mas
não conseguiu encontrar nenhum deles, então eles decidiram se
separar e procurar. Se um deles encontrasse algo, chamaria o outro
imitando um corvo. Se ninguém o fizesse, eles se encontrariam de
volta perto de uma pedra cinza dali a meia hora. O crepúsculo
estava se aprofundando; logo eles perderiam completamente a luz
do dia.
Frustrada por se agarrar a vinhas e galhos que a arranhavam e a
esbofeteavam, Sophie parou de andar no mato por um momento e
ficou imóvel, tentando se reorientar. Ela estava indo para oeste ou
norte agora? Onde estava o sol poente? E o que era aquele som?
Como de borbulhas de água correndo sobre pedras, o que
significava que ela estava se aproximando do rio… Ou era outra
coisa?
Quando olhou em volta, o som ficou mais alto. Não estava
borbulhando; estava farfalhando, como algo deslizando por folhas
secas. Ela parou. E o farfalhar também. Então tudo começou de
novo, desta vez mais perto.
Sophie lembrou-se das cobras que enfiaram suas presas nela e
do escorpião que a picara impiedosamente, e puxou sua adaga.
Segurando-a na frente do corpo, ela chutou as folhas, pronta para
atacar o que quer que estivesse escondido nelas antes que a
atingisse. Ela riu, um pouco envergonhada, ao ver que não havia
nada ali, apenas uma trepadeira, com espinhos longos e curvos, e
uma ponta enrolada.
Rosa preta espinhosa, ela pensou. E aquele som que ela ouvira?
Provavelmente apenas um camundongo. Mas ainda se sentia
inquieta.
— Arno? Arno, você está aí? — chamou baixinho, olhando em
volta.
Não houve resposta.
Sophie respirou fundo e lentamente, tentando acalmar seus
nervos.
— Anda, garoto — disse ela, virando-se para conduzir o cavalo
mais uma vez, determinada a encontrar o rio. Mas, ao tentar andar,
descobriu que seu pé esquerdo estava preso com força.
Olhando para baixo, viu que a trepadeira preta tinha se enrolado
em seu tornozelo. Tentou se livrar dela, mas, ao fazer isso, ela a
apertou mais. Seus espinhos afiados perfuraram o couro de sua
bota e cravaram dolorosamente em sua pele.
Estremecendo, Sophie rapidamente amarrou as rédeas do cavalo
em seu braço livre, então se abaixou e cortou a vinha com sua
adaga. A planta em volta de seu tornozelo caiu no chão,
contorcendo-se como um tentáculo. Um arrepio percorreu sua
espinha. Quando ela se endireitou, ouviu o farfalhar novamente.
Puxou as rédeas do cavalo, tentando afastá-lo das vinhas, mas era
impossível. Elas estavam se movendo em direção a eles de todas
as direções, serpenteando pelo chão ou escorregando pelos troncos
de árvores e saindo ao longo de galhos. Seus espinhos brilhavam
como obsidiana. Rosas escuras floresciam ao longo dos galhos.
Quando as flores se abriam, exalavam aromas picantes de mirra e
cássia. Sophie estava com medo e seu coração batia forte, mas o
aroma pesado tinha um efeito estranho e calmante sobre ela. Em
vez de tentar escapar, ela ficou perfeitamente imóvel.
As flores escuras eram incrivelmente belas, mas eram suas vozes
que deixaram Sophie paralisada. As rosas estavam sussurrando.
Seus tons eram baixos, sedosos e estranhos, mas suas palavras
eram tão familiares.
Você é apenas uma garotinha… Você não pode vencer o Rei dos
Corvos…
Por que tentar? Você só vai falhar…
Há ossos ao seu redor… Eles pertencem a guerreiros e reis…
Que chance você tem?
Sophie balançou a cabeça, lutando contra o aroma sedativo, as
palavras enervantes.
Vamos. Agora, ela disse a si mesma. Vamos.
Mas não conseguiu. As palavras minaram sua vontade;
diminuíram o impulso e a batida de seu coração. Ela estava como
um rato hipnotizado por uma cobra. Deixe as vinhas me
envolverem… Que me cubram, que me estrangulem. Não adiantava
brigar, não adiantava negar a verdade.
O relincho estridente e assustado do cavalo tirou Sophie de seu
transe e, então, um tranco em seu traseiro a fez cair no chão. O
animal estava batendo os pés e dançando, tentando se livrar das
trepadeiras que agarravam suas pernas.
Sophie se levantou e sacudiu as vinhas que estavam enroladas
em seu pulso. Ela soltou várias que tinham se enroscado em torno
de suas panturrilhas e arrancou as que estavam em suas costas. O
cheiro que a tinha seduzido apenas alguns momentos atrás agora a
enojava. Com um grito de raiva, ela bateu as flores no chão e se
virou para o cavalo. O garanhão estava com os olhos arregalados,
relinchando, resistindo e chutando. Sophie sabia que um casco
batendo em seu crânio poderia matá-la.
— Shh, garoto… Calma… Calma… — ela sussurrou para ele.
Mantendo distância, ela cortou as vinhas que estavam se
retorcendo em torno de uma das patas dianteiras do cavalo. Agarrou
outra que estava lambendo uma pata de trás e a atirou longe. Assim
que ele ficou livre, o cavalo girou em um amplo círculo, procurando
uma maneira de se livrar da planta. O animal arrastou Sophie com
ele. Ela tropeçou e caiu, depois foi arrastada pelo chão, segurando
as rédeas.
Uma vinha deslizou atrás dela, suas rosas sussurrando. Arno está
morto… Seus olhos foram bicados por corvos… É tudo culpa sua,
garota inútil…
Finalmente, Sophie foi capaz de se levantar, puxar a cabeça do
cavalo em sua direção e conduzi-lo para frente.
Foi quando ela viu os dois homens.
A roseira espinhosa os amarrara com força ao tronco de uma
árvore, imobilizando-os. Mais rosas pretas e esvoaçantes
desabrochavam nas vinhas. Desista. Desista… Você falhou… elas
sussurravam.
Sophie podia apenas distinguir as formas de seus corpos
emaranhados nas vinhas, à luz do crepúsculo. Ela viu um lampejo
de linho azul, um gorro vermelho. Os espinhos rasgaram as roupas
dos homens e perfuraram sua pele. Seus olhos estavam fechados.
Seus rostos, abatidos e cinzentos.
Mas ela os reconheceu.
— Jeremias! — gritou ela. — Joosts!
SETENTA E DOIS
S .
Ela cortou os espinhos como se estivesse possuída. Arrancou as
flores das vinhas e pisou nelas, sem se importar com seus gritos
horríveis.
— Joosts! Jeremias! Vocês estão bem? — ela gritou enquanto
lutava para chegar até eles. Mas os irmãos não respondiam. — Por
favor, não estejam mortos — ela implorou. — Por favor, por favor,
por favor…
Sophie continuou lutando, arrancando pedaços grossos de vinhas
cortadas e retorcidas ao redor dos irmãos com as próprias mãos.
Ela ouviu Jeremias inspirar profundamente enquanto desenrolava
o espinheiro de seu peito. Seus olhos se abriram; seu olhar estava
desfocado. Por um momento, ele não a reconheceu.
— Jeremias, sou eu… Sophie!
Seus olhos encontraram os dela.
— Sophie? — ele disse, sua voz como uma dobradiça
enferrujada.
— Sim, sim! — disse Sophie com algo entre uma risada e um
soluço. — Vou tirar vocês daqui.
— Água… — Jeremias murmurou.
Sophie procurou freneticamente por seu cavalo — seu cantil
estava em um alforje —, mas o animal tinha fugido.
— Tem um rio perto daqui — disse ela. — E-eu não sei bem
onde…
— Eu sei…
— Você consegue sair daí? — perguntou ela.
Ele sacudiu a cabeça, dizendo que sim.
— Joosts…
— Ele está bem aqui — disse Sophie.
Jeremias recuperou o equilíbrio. Deu alguns passos vacilantes
para longe da planta. Joosts estava em pior estado. Seus olhos
tremulavam, mas não se abriram. Seu corpo caiu no chão enquanto
Sophie arrancava o restante das vinhas espinhosas. Juntos, ela e
Jeremias o arrancaram, depois o puxaram meio o carregando, meio
o arrastando pela floresta.
— O que aconteceu? — Sophie disse exatamente ao mesmo
tempo em que Jeremias falou:
— O que você está fazendo aqui?
Antes que qualquer um pudesse responder, outra voz foi ouvida.
— Sophie? — sibilou. — Sophie, você está aí?
— Arno? — Sophie gritou de volta o mais alto que ousou. — Onde
você está?
Ela ficou tão aliviada ao ouvir a voz dele. Estava com medo de
que as rosas sussurrantes o tivessem abduzido também.
— Aqui! Por aqui!
Sophie explicou a Jeremias que Arno era seu amigo. Eles
seguiram o som de sua voz. À medida que se aproximavam,
ouviram água correndo. Com mais uma curta caminhada pela
floresta, saíram à beira de um riacho. Arno estava parado a poucos
metros de uma árvore. Ele estava amarrando o cavalo de Sophie a
um galho baixo, tentando acalmar o animal.
— Encontrei-o parado na água, bebendo até se fartar — disse
Arno ao terminar de amarrar o cavalo.
Então ele se virou e viu os dois homens com Sophie. Joosts ainda
não estava totalmente consciente. Sua cabeça estava pendurada.
Sophie e Jeremias o ajudaram a chegar à beira do rio. Eles o
sentaram, e Jeremias pegou água em suas mãos em concha e a
jogou na boca do irmão.
Os olhos de Joosts abriram. Ele engoliu em seco, tossiu e se
jogou para frente. Apoiando-se com uma das mãos, usou a outra
para colocar mais água na boca.
— Vá devagar — Jeremias o advertiu, pegando água para si
agora.
— O que aconteceu? — perguntou Arno ao se juntar a eles.
Quando Sophie começou a explicar, Joosts mergulhou toda a
cabeça no rio, tirou-a e sacudiu a água. Ele arregalou os olhos e
pediu comida.
Sophie e Arno rapidamente enfiaram as mãos nos alforjes e
deram aos irmãos tudo o que tinham. Enquanto devoravam a
comida, Sophie contou a Arno que mal escapara do espinheiro e
que encontrara Jeremias e Joosts. Ela lavou as mãos no rio
enquanto falava, enxaguando o sangue que os espinhos haviam
arrancado.
— Aquelas não eram vinhas de sarça preta — disse Arno. —
Eram rosas de Herzmord. Tentaram me pegar também.
— Mas você não tem nenhum corte — disse Sophie, olhando para
os braços dele.
— Eu assobiei polca. É como um veneno para elas. Da próxima
vez que vierem atrás de você, faça o mesmo. Odeiam esse tipo de
música.
— Gostaria que soubéssemos disso — disse Jeremias. — Elas
caíram sobre nós antes de nos darmos conta do que estava
acontecendo. Tentamos nos livrar delas, mas eram muitas.
— Há quanto tempo vocês estão assim? — perguntou Sophie,
levantando-se.
— Eu perdi a noção do tempo. Uma semana? Mais?
O coração de Sophie bateu ruidosamente, doendo ao pensar nos
dois irmãos cruelmente amarrados e sofrendo por um longo período.
— Como vocês ainda estão vivos? — ela perguntou.
— Felizmente choveu algumas vezes e conseguimos um pouco
de água abrindo a boca. Do contrário, não teríamos sobrevivido. —
Ele engoliu outro pedaço de comida, depois fez algumas perguntas.
— O que você está fazendo aqui, Sophie? Por que não está em
casa, na Toca? — E acenou com a cabeça para Arno. — Quem é
esse?
— Arno é meu amigo. Estamos tentando encontrar o túnel para
Nimmermehr. Para que eu possa pegar meu coração de volta.
Jeremias abanou a cabeça.
— Você não pode fazer isso. É muito perigoso. Nós iremos —
disse ele, com desdém.
Jeremias começou a se levantar, mas suas pernas tremiam tanto
que ele teve de se sentar novamente.
— Eu posso fazer isso. E eu vou — disse Sophie. — As coisas
mudaram desde que vocês dois saíram da Toca. Eu mudei.
Os olhos de Jeremias percorreram seu corpo, observando sua
túnica e calça, seu cabelo cortado, as cicatrizes de cobras e
escorpião. Caminhar por dias havia deixado seus membros magros
e duros. A luz do sol bronzeara sua pele. Mas as maiores mudanças
foram a determinação em sua expressão e a luz confiante em seus
olhos.
— Sim — disse ele, por fim. — Estou vendo.
— Nós encontramos o túnel — disse Joosts.
A comida e a água trouxeram um pouco de vida para ele.
— Já íamos entrar, quando as vinhas vieram atrás de nós. Não
fica longe. Cerca de vinte passos ao sul da árvore onde você nos
encontrou. Vão. Depressa. É quase noite.
Sophie e Arno partiram. A princesa liderou o caminho de volta
para onde ela havia encontrado os irmãos. Assim que localizaram a
árvore, Arno virou-se para o sul, contou vinte passos e se viu
olhando para a entrada do túnel.
Não era nada mais do que uma abertura entre duas pedras, talvez
com quarenta e cinco centímetros de largura, velada por teias de
aranha. Um poço de medo se abriu no peito de Sophie enquanto ela
o olhava.
Quem sabia o que os esperava naquela escuridão?
Arno rapidamente fez duas tochas com galhos verdes que
arrancara de uma árvore, galhos secos e pinhas pegajosas de
piche. Ele acendeu as tochas usando uma pederneira, um metal e
um pedaço de pano carbonizado, que mantinha em uma pequena
lata no bolso do paletó.
Sophie puxou as teias de aranha para baixo e aventurou-se a
entrar. A umidade pairava no ar viciado. Dedos finos de musgo
pendiam do teto. A água escorria pelas paredes e acumulava-se no
chão do túnel. Centopeias pretas, reluzentes e gordas, besouros
verdes brilhantes e aranhas brancas esguias fugiram da luz das
tochas. Antes que Sophie e Arno avançassem cinquenta metros,
eles tiveram de passar por cima dos ossos de um esqueleto que
estava caído contra a parede. Sophie agarrou sua tocha com força.
Quando seus olhos se ajustaram à escuridão, ela viu que túneis
menores se ramificavam a partir do principal. O chão afundava sob
seus pés. Água fria e turva subia por seus tornozelos.
— Está tranquilo aqui — disse ela enquanto o túnel subia
novamente e a água escoava.
— Até agora — disse Arno. — Ficarei surpreso se conseguirmos
passar sem encontrar um ou dois makabers. Talvez um ou outro troll
também.
O túnel serpenteava bruscamente para a esquerda e, quando
fizeram a curva, viram que parte de uma das paredes havia
desabado. Pedras e terra estavam empilhadas no chão. Felizmente,
os escombros não bloquearam totalmente o caminho; havia uma
abertura de cerca de sessenta centímetros de largura, no topo dela.
Arno parou e olhou, com uma mão na cintura.
— Podemos nos espremer por isso — disse ele.
Sophie foi a primeira. Ela subiu com cuidado, atenta à tocha,
esperando que as pedras escorregassem sob seus pés a qualquer
segundo, mas permaneceram no lugar. Quando estava prestes a
rastejar pela abertura, ouviu Arno se engasgar.
— O que há de errado? — ela perguntou, virando-se.
Arno estava olhando para o túnel, de volta pelo caminho por onde
tinham vindo. Ele não parecia assustado. Na verdade, estava
sorrindo.
— Arno? O que foi?
O sorriso de Arno se alargou. Ele deu alguns passos para longe
dela.
— Matti? — disse ele com voz suave de admiração. — Matti, é
você?
Um arrepio subiu pela nuca de Sophie. Matti era o nome do filho
morto de Arno.
— Meu filho… Meu querido menininho — disse Arno. — Senti
tanto a sua falta.
— Arno? — Sophie disse incerta, descendo pelos escombros.
Ela olhou para além dele na escuridão, esperando ver o que ele
estava vendo. Mas não havia nada.
Arno se ajoelhou. Ele estendeu os braços diante de si.
— Ande, Matti — disse ele com a voz embargada. — Venha dar
um abraço no papai…
— Pare com isso, Arno! — exigiu Sophie. — Você está me
assustando.
— Matti? Matti, não! Não fuja! Você vai se perder aqui! — gritou
Arno.
A felicidade sumiu de sua voz. O medo tomara seu lugar.
Sophie estendeu a mão para sacudi-lo e tirá-lo do estranho transe
em que ele havia caído. Ao fazer isso, ela sentiu algo pousar em
seu ombro, algo úmido e frio. Com um grito, debateu-se. Caiu no
chão úmido. De onde saiu isso?, ela se perguntou. Erguendo a
tocha bem alto, ela olhou para cima.
Agarradas ao teto como uma colônia de morcegos, havia
centenas de criaturas pequenas e trêmulas, com não mais do que
vinte centímetros de altura. Seus corpos magros e gelatinosos eram
translúcidos; Sophie podia ver veias pretas em sua pele cinza e
corações amarelos pulsantes. Seus olhos eram grandes e pálidos e
suas bocas, franzidas. Mãos como ventosas, com longos dedos nas
mãos e nos pés presos aos poleiros.
O estômago de Sophie apertou. Ela sabia o que as criaturas
eram.
— Wunschfetzens — sussurrou.
Arno havia contado a ela sobre eles. Enfiavam os dedos longos
em seus ouvidos, arrancavam suas lembranças e faziam você
pensar que estava vendo alguém que não estava lá, alguém que
você amava e por quem ansiava. Várias das criaturas enrijeceram
seus corpos, prontas para pular, mas Sophie empurrou sua tocha
nelas, e elas se espalharam pelo teto, gritando.
— Arno, é uma ilusão! — gritou ela, estendendo a mão
novamente. — Matti não está aí!
Mas sua mão agarrou o ar.
Arno também não estava mais lá.
SETENTA E TRÊS
S .
— Arno! Arno, espere! — gritou ela, seguindo-o de volta por onde
tinham vindo.
Mas Arno, desesperado para alcançar o filho, estava correndo
depressa, e Sophie não conseguia acompanhá-lo. Ele desceu um
túnel lateral tortuoso e depois mais dois.
— Esquerda, esquerda, direita… — ela disse em voz alta como
um canto, uma oração, enquanto o perseguia, adicionando uma
direção a cada vez que ela virava, para que pudesse se lembrar do
caminho de volta.
Havia mais água parada nos túneis estreitos. Coisas que
agarravam seus tornozelos enquanto ela se movia. Sophie as
chutava para longe sem olhar. Ela manteve os olhos na luz da tocha
de Arno, mas ele estava se movendo tão rapidamente que escurecia
a cada segundo.
Arno fez uma curva fechada e depois outra. Sophie prendeu o
dedão do pé em algo enquanto tentava acompanhá-lo e tropeçou.
Desesperada para evitar que sua tocha despencasse no chão úmido
e se apagasse, ela caiu com força sobre um joelho, impedindo a
queda. A dor percorreu sua perna, retardando-a.
— Arno, pare… Por favor… — ela gritou, lutando para ficar de pé.
Os passos de Arno desapareceram na escuridão. A luz de sua
tocha se apagou.
Ele se foi, e Sophie estava sozinha. Seu peito estava pesado. Ela
podia ouvir a própria respiração, rápida e superficial, ecoando nas
paredes do túnel. Seu coração a incentivava a continuar, a salvar
seu amigo. Sophie olhou para sua tocha. As chamas não estavam
tão altas como antes. Apagariam em breve. Ela sabia que não podia
ficar ali, ou se tornaria outro esqueleto caído contra a parede. Quem
lutaria por seu povo, então?
— Eu sinto muito, Arno. Por favor, por favor, me perdoe —
sussurrou ela para a escuridão.
E então virou-se, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
SETENTA E QUATRO
O .
Seu teto, dividido em caixotões, tinha dois andares. O luar que
entrava pelas janelas arqueadas caía sobre uma mesa de jantar de
ébano e refletia em taças de cristal e pratos com borda dourada.
Velas queimavam em candelabros de prata nas duas pontas da
mesa; cadeiras de espaldar alto a rodeavam. Pesadas esculturas de
gárgulas adornavam suas pernas grossas. Do outro lado da sala, as
chamas faiscavam em uma lareira de mármore preto.
Mas Sophie não prestou atenção a nada disso. Seus olhos
estavam grudados nas prateleiras que iam do chão ao teto. Caixas
de vidro estavam organizadas sobre elas. Muitas caixas de vidro.
Mais do que se poderia contar. E, dentro de cada um delas, havia
um coração humano, tão vermelho e vivo quanto no dia em que fora
tirado.
Alguns eram grandes e outros bem pequenos. Olhando para
todos eles, Sophie sentiu seu coração-relógio enguiçar e chiar,
enchendo-se de tristeza.
— Todos roubados — ela murmurou. — Corações de homens…
Mulheres… Crianças.
Ela caminhou até uma prateleira e correu os dedos ao longo das
caixas. Cada uma tinha uma etiqueta de papel afixada na frente com
um nome escrito. Algumas das etiquetas eram brilhantes e novas;
outras eram tão velhas que sua tinta estava desbotada e suas
bordas, desbeiçadas.
— O meu está aqui também. Em algum lugar — disse ela,
sentindo-se oprimida. — Mas como irei encontrá-lo?
— Não será muito difícil — disse uma voz atrás dela, uma voz tão
fria quanto o vento do inverno. — Está aqui comigo.
SETENTA E SETE
S .
O Rei dos Corvos estava de pé perto da lareira, nas sombras,
mas agora o luar o iluminava. Ele carregava uma caixa de vidro.
Seu rosto era pálido como uma lápide, seus olhos tão escuros
quanto o coração de um assassino. Seu longo cabelo preto fluía por
suas costas. Uma jaqueta justa, bordada com corvos, cobria seus
ombros estreitos.
Uma parte de Sophie sabia que aquele encontro não era
acidental. Ele estivera ali o tempo todo, esperando, sabendo que ela
iria até ele. Enquanto ela observava, ele colocou a caixa de vidro
sobre a mesa.
— Meu coração — ela sussurrou, hipnotizada.
— Sim.
Sophie se aproximou dele.
— É menor do que você pensava, não?
Ela assentiu.
— Isso é o que todo humano diz. Aqueles que chegam até aqui,
claro. Os corações pequenos, bonitos e perfeitos são os mais fáceis
de arrancar. Os maiores, cheios de rachaduras, cicatrizados são
mais desafiadores.
— Por que você arrancou meu coração? — Sophie questionou. —
O que você vai fazer com ele?
O olhar de Corvus desviou-se para a mesa, para os pratos de
porcelana, o linho e a prata. Franzindo a testa, cutucou uma faca no
lugar, suas garras tilintando suavemente contra a prata. Então seus
olhos encontraram os de Sophie novamente. Com um sorriso, ele
disse:
— Vou devorá-lo.
SETENTA E OITO
M o queixo de Sophie e o
ergueu.
— Você finalmente descobriu — disse ele. — E agora também
sabe que sua busca para recuperar seu coração é inútil. Nenhum
mero humano pode me derrotar. Veja o que acontece quando você
tenta. — Seus olhos moveram-se de cima a baixo, medindo Sophie,
demorando-se em suas calças surradas, em sua camisa suja e
rasgada, na cicatriz sob sua clavícula, em seu cabelo espetado. Ele
tirou a mão, rindo. — Olhe para você, antes princesa, agora
reduzida a uma maltrapilha. Olhe para o seu amigo, vagando em
direção à morte pelos meus túneis, chamando por uma criança que
não está lá. E o outro… ainda mais patético…
— Que outro? — perguntou Sophie.
E, então, o sangue em suas veias congelou. Will, ela pensou.
Depois de Tom derrubar o caixão e ela acordar, Sophie
perguntara a Arno sobre ele. Suas palavras voltaram à sua
memória… Ele disse algo sobre caçar pássaros…
Com um choque de terror, Sophie percebeu que Will quis dizer
corvos. Ele tinha ido até lá, para Nimmermehr, para procurar o
coração dela. E provavelmente esperava que, se conseguisse,
poderia trazê-la de volta à vida.
— Meus servos kobolds ensinaram o menino tolo a pensar duas
vezes antes de invadir a propriedade — disse Medo. — Minhas
gárgulas estavam acabando com ele quando você chegou.
— Onde ele está? Onde? — gritou Sophie.
Medo apontou para a lareira.
Sophie deu a volta atrás dele. Um grito escapou de seu peito
quando a lareira ficou totalmente visível. Jogado no chão à sua
frente, estava o corpo de um garoto.
Totalmente imóvel.
Machucado e ensanguentado.
Era Will.
OITENTA
N !— S .—W !W !
Ela caiu de joelhos ao lado dele e aninhou a cabeça em seu colo.
— Por favor, não esteja morto — ela sussurrou. — Por favor,
Will… Acorde. Acorde…
Os cílios dele estavam tremendo. Um pequeno gemido escapou.
— Você está vivo! — disse ela, apertando a mão dele.
— É mesmo? — perguntou Medo, com uma careta de decepção.
— Bem, não por muito mais tempo.
Uma mulher entrou na sala em um redemoinho preto. O sangue
escorria do canto de sua boca. Ela tinha um dente, com as raízes
ainda vermelhas, preso entre o polegar e o indicador. Sophie ergueu
os olhos. Reconheceu a mulher. Conversara com ela no cemitério.
Já a tinha visto em um sonho febril.
— Minha irmã, Crucia. Dor, para os íntimos — disse Medo para
Sophie. — Creio que já se conhecem.
Sophie não respondeu. Aterrorizada pelo estado de Will, ela
acariciou seu rosto, sacudiu-o e puxou seus pulsos, tentando de
tudo para fazê-lo acordar.
Dor colocou o dente no bolso da saia; em seguida, olhou para
Sophie, que tinha o rosto coberto de lágrimas, e para Will, já meio
morto. Estremecendo, ela se virou para Medo:
— Tudo isso começou com um espelho — disse ela com um
suspiro. — Um pedaço de vidro prateado.
— Limpe o queixo.
Sophie entendeu o recado. Ela ergueu os olhos novamente.
— Que espelho? O que isso tem a ver comigo? Com meu
coração?
Dor limpou o sangue escorrendo do canto da boca.
— A Rainha Adelaide tem um espelho mágico. Ela fala com ele.
Ao menos, é o que meu irmão diz. Não se pode confiar nele, porém.
Ele é mentiroso.
Sophie encarou Medo.
— É verdade isso? Minha madrasta realmente tem um espelho
mágico? E fala com ele?
Um sorriso presunçoso curvou os lábios de Medo.
— Não é mágico. De forma alguma. Mas é isso que Adelaide diz.
Ela pergunta a ele quem causará sua queda. Mas o espelho só
mostra o que ela já sabe — explicou ele. — Ela é esperta, ousada,
astuta. A vida a ensinou a ser assim. Ela mesma montou sua rede
de espiões. Coloca informantes infiltrados nas cortes, nos
corredores e nos quartos de seus companheiros governantes.
Conhece cada conspiração contra ela enquanto ainda está sendo
planejada e acaba com elas e com todos os envolvidos nelas muito
antes serem colocadas em prática. Adelaide foi, por um tempo, uma
das melhores governantes que o mundo já viu.
— Mas você a ajudou, irmão — Dor falou acusadoramente. —
Sussurrando para ela. Aconselhando-a.
— Ah, sim. Eu a ajudei — Medo admitiu. — Eu a ajudei quando
ninguém mais ajudaria. — E sua expressão ficou sombria. — E,
então, uma vez, só uma vez, pedi a ela que me ajudasse. Mas ela
falhou.
— Foi você, não foi? Você pediu à minha madrasta que me
matasse — disse Sophie. — Foi essa ajuda que você pediu a ela.
Medo assentiu.
— Por que precisou da ajuda da rainha? — Sophie perguntou. —
Por que você mesmo não me matou?
— É muito difícil matar uma princesa — Medo respondeu, com um
leve aceno de mão. — Os súditos têm um hábito irritante de
protegê-las.
Sua resposta foi muito descuidada, muito petulante, e Sophie viu
através dela.
— Não, não é isso. Você não pode matar, não é mesmo? Você
precisa de outra pessoa para fazer isso por você.
Saber disso a fortaleceu; de repente, ganhou coragem. Mais
perguntas surgiram em seus lábios, as mesmas que fazia a si desde
que o caçador arrancara seu coração.
— Por que você me quer morta? Por que sou sua inimiga?
Medo arqueou uma sobrancelha.
— Você me surpreende. Veio até aqui me enfrentar. A maioria dos
humanos nunca faz isso.
— Responda às minhas perguntas — exigiu Sophie.
Mas Medo ficou em silêncio. Com uma unha suja, Dor bateu na
caixa de vidro onde estava o coração de Sophie.
— Você sabe como seu pai morreu?
— O rei morreu em batalha — respondeu Sophie, voltando-se
para Medo. — Responda às minhas perguntas.
Mas Medo, ajustando os talheres novamente, ainda asssim não
falou. Foi sua irmã que explicou:
— Seu pai não morreu simplesmente na batalha. Ele se sacrificou
— disse ela. — Dois de seus generais foram raptados de seus
batalhões. Eles, bem como um punhado de seus homens, estavam
sob ataque e em número muito menor do que o inimigo. Seu pai
observava de um lugar seguro, do alto de uma colina. Sem hesitar,
ele cavalgou para o campo aberto, sabendo que os soldados
inimigos iriam largar os generais para trás para persegui-lo, pois ele
era o rei, o maior prêmio. Sua ação permitiu a seus generais que se
libertassem e retornassem às suas tropas. Por causa de seu pai, os
exércitos das Terras Verdes venceram. Ele deu sua vida por seu
povo.
A raiva de Sophie aumentou. Ela não precisava que Dor lhe
contasse essas coisas; ela já sabia.
— Por que você não me responde? — ela gritou para Medo.
Enquanto Corvus mantinha silêncio, outra voz foi ouvida. Uma voz
profunda e estrondosa; parecia um túmulo de pedra se abrindo.
— Seu pai foi um dos homens mais corajosos que já existiram.
Ele tinha um coração de leão. Mas bravura não é destemor. Só um
tolo não sente medo. Bravura é ter medo, mas fazer o que se deve
fazer mesmo assim. E só há uma coisa que permite aos mortais
fazer isso. Seu pai tinha muito disso, e você também tem. É por isso
que você é a maior inimiga do meu filho. É por isso que ele quer
você morta.
OITENTA E UM
S - .
Pertencia a um homem. Ele estava parado na frente das janelas
altas, do outro lado da mesa, de costas para ela.
Assim como Medo e Dor, ele era alto e se vestia de preto. Seus
ombros eram largos, seus braços e pernas, robustos. Usava calças
de couro, botas de cano alto e uma túnica de cota de malha. Uma
juba ondulante de cabelo cinzento como aço cascateava por suas
costas. Havia uma espada pendurada em seu quadril.
— Medo pressentiu corretamente que você seria igual ao seu pai
e governaria seu reino com sabedoria e bondade, com misericórdia
e justiça. Ele sabia que havia algo poderoso dentro de você, algo
que poderia vencê-lo, e que, uma vez que estivesse no trono, você
o expulsaria da terra. Ele não poderia aceitar isso. Não posso
aceitar isso. Se uma mera garota derrotar o Medo, o mais forte dos
meus filhos, que mensagem será transmitida ao mundo?
O homem então se virou, e Sophie respirou fundo. Seu rosto era
uma caveira. Suas mãos, ossos brancos.
— Posso lhe apresentar meu pai? — disse Medo. — Seu nome é
Morte.
OITENTA E DOIS
A S giravam
descontroladamente. Paravam, disparavam, equilibravam-se
novamente.
Morte avançou em direção a ela, seus passos ecoando na sala.
Sophie ficou paralisada ao ver seu rosto horrível.
— Meu filho tentou matar você e falhou várias vezes — disse
Morte. — É a minha vez agora, e eu nunca falho.
Ele se aproximou cada vez mais e, ao fazê-lo, desembainhou a
espada. A lâmina brilhou à luz das velas. Sophie viu uma palavra
gravada em toda a extensão: Aeternitas. Tudo dentro dela, carne,
osso e sangue, gritava para ela se levantar e correr, mas seu
coração defeituoso lhe dizia para ficar, para proteger Will.
As palavras da Morte ecoavam em sua mente. Ele sabia que
havia algo poderoso dentro de você, algo que poderia vencê-lo…
O que é que ela tinha?, ela se perguntou desesperadamente. O
que pode ser melhor do que o medo? Ela precisava da resposta
agora.
— Despache o menino primeiro, papai — Dor disse com um
suspiro. — Acabe com o sofrimento dele. E com o meu.
— Você sempre foi uma garota de coração mole — disse Morte,
parando na frente de Sophie e Will.
Dor sorriu, mostrando seus dentes podres. Medo ajustou uma
taça de cristal.
Morte ficou mais imponente, segurando o cabo de sua terrível
espada com força.
Não! — Sophie gritou, cruzando os braços sobre o peito de Will.
— Por favor.
O tempo pareceu desacelerar, mas tudo que houve em seguida
aconteceu no espaço de uma batida do coração. Morte ergueu sua
espada e mirou a lâmina direto no coração de Will.
Sophie gritou.
E se jogou na frente dele.
OITENTA E TRÊS
M , em pedaços no
chão.
Dor arrancou uma mecha de cabelo de seu couro cabeludo. Medo
rosnou.
Sophie baixou os olhos para o peito. O sangue escorria da ferida
sobre seu coração e empapava sua túnica. Mas não foi muito. Não a
mataria. Ela já passara por coisa muito pior.
Agarrando um atiçador de ferro de um suporte perto da lareira,
Sophie se levantou, colocando-se entre Will e Morte. Ela não daria
uma segunda chance ao assassino de cabelos grisalhos.
Segurando o atiçador diante de si como uma espada, ela disse:
— Você não o terá.
Sophie olhou diretamente para Morte enquanto falava. Olhou no
fundo dos seus olhos, na escuridão eterna dentro deles e, embora
estivesse com mais medo do que nunca em sua vida, pensou em
Will e se manteve firme.
Morte olhou para Sophie, para aquela garota magra, suja e cheia
de lágrimas. Sua mão tremia tanto que ela mal conseguia segurar o
atiçador.
Ele riu e deu um passo em sua direção, sua cota de malha
retinindo.
— Eu sou Morte, sua garotinha tola — disse ele. —Tenho o
abismo e todos os seus terrores sob meu comando.
Sophie deu um passo em direção a ele, seu coração batendo
forte.
— Sim, você é. Mas eu sou a Rainha Charlotta-Sidonia
Wilhelmina Sophia das Terras Verdes e estou segurando este
atiçador. Não me faça usá-lo.
Sophie parecia patética, tentando afastar a Morte com o que era
pouco mais do que um pedaço de pau, mas havia algo em sua
postura, algo em seu olhar, que dizia que, se Morte quisesse Will,
teria de derrubá-la primeiro. E não seria fácil.
Morte encarou Sophie.
Olhou para baixo novamente, para os cacos de aço cintilantes no
chão. E então Morte curvou sua temível cabeça.
OITENTA E CINCO
R .
Não tenho peito para isso, dizem algumas pessoas.
A verdade é que a coragem vem mesmo do coração.
A palavra coragem nasceu de cor, expressão latina para coração.
Coragem exige amor, e amor exige grande coragem — a coragem
que um menino frágil demonstra ao defender uma cadelinha, a
coragem que um rei encarna ao cavalgar voluntariamente para a
morte, a coragem que uma menina assustada mostra quando se
joga na frente da espada da Morte.
Embora Sophie esteja ferida, presa no castelo do Medo, ela se
mantém altiva e forte. Porque finalmente entende. O Medo mantinha
seu coração em uma caixa, mas não mais, nunca mais. Ela sabe o
que é que derrota o Medo. E a Dor. E até a própria Morte.
Essa coisa é chamada amor.
OITENTA E SEIS
M .
Medo e Dor vieram em seguida.
E, por um momento, Sophie sentiu como se o mundo tivesse
parado de girar. O chão tremeu sob seus pés. E então um som
como o de um canhão rasgou o ar. Ela se encolheu, agachando-se
protetoramente sobre Will. Uma longa e trêmula rachadura abriu-se
por toda a extensão da parede. O gesso caiu. Todas as prateleiras
começaram a tremer; as caixas de vidro deslizaram sobre eles,
batendo umas nas outras, tilintando, quebrando. Algumas
espatifaram-se no chão.
Nimmermehr estava desmoronando. Sophie sabia que ela tinha
de pegar seu coração, ajudar Will e sair do castelo. Ela largou o
atiçador. Outra rachadura rasgou uma parede. As janelas
explodiram. Choveram cacos de vidro. O chão balançou
violentamente. Ela perdeu o equilíbrio, caiu e bateu a cabeça contra
uma cadeira. Sacudindo a dor, levantou-se e cambaleou em direção
à mesa.
Ela estava a apenas alguns metros de distância, estendendo a
mão para a caixa de vidro, quando um grande pedaço de gesso caiu
do teto. Sophie viu, mas não conseguiu impedir.
Atingiu a caixa de vidro que continha seu coração e a quebrou em
pedaços.
OITENTA E SETE
—N !—S .
Ela agarrou o pedaço de gesso e o jogou no chão. Suas mãos
procuraram seu coração. Mas era tarde demais. Ela o pegou, mas
só conseguiu ficar ali olhando em desespero enquanto ele murchava
e rachava, para depois se desfazer em um pó vermelho-rubi
brilhante, que se espalhou por entre seus dedos.
Sophie caiu contra a mesa. Um gemido saiu de dentro dela. Tudo
tinha sido em vão. Seu sofrimento nas mãos do caçador. O coração
mecânico que os irmãos haviam feito para ela. Sua jornada pela
Floresta Sombria. Ela nunca conquistaria sua coroa de volta. Seu
povo seria governado por tiranos. Arno morrera ali. Agora ela e Will
também morreriam.
Dor, rodeando a mesa, aproximou-se dela. Sophie não recuou.
O que mais a mulher poderia fazer com ela? Ela apontou para o
peito de Sophie.
— Esse coração remendado foi atingido diretamente pela espada
do meu pai. A espada está quebrada, mas você ainda está aqui.
Talvez não deva desejar outro coração.
— Mas o mecanismo vai parar. A qualquer momento agora.
Johann me disse isso. Ele disse que eu tinha apenas um mês de
vida.
Olhando Sophie com um sorriso pesaroso, Dor disse:
— Talvez Johann seja um relojoeiro melhor do que pensa. Todo
coração humano é defeituoso, cheio de rachaduras e cicatrizes. E
todo coração desacelera um dia. O seu também. Mas hoje não é
esse dia. E o hoje é tudo que os humanos têm.
Ela tocou a túnica de Sophie ensopada de sangue. Uma chuva de
pétalas de rosas vermelhas espalhou-se no chão.
— Adeus, Sophia. Por enquanto.
Dor sumiu em um redemoinho preto, e, então, um corvo, com
suas penas preto-azuladas e brilhantes, ergueu-se no ar. Mais dois
se juntaram a ele, grasnando e batendo as asas, e os três voaram
por uma janela em ruínas, saindo em direção à noite enluarada.
OITENTA E OITO
O .
As janelas de todos os cômodos estilhaçavam-se. Os espelhos
espatifavam-se. As pinturas caíam no chão. A estrutura tombou. Lá
fora, as torres e muralhas do castelo estavam despencando.
Sophie precisava sair de Nimmermehr imediatamente. Precisava
salvar Will, mas ela não podia; ele estava se esvaindo. Ajoelhando-
se sobre ele, com as mãos em seu peito, ela não conseguia sentir
nenhuma respiração, nenhum batimento cardíaco. Desesperada,
gritou com ele. Pressionou seu peito. Agarrou seus ombros e o
sacudiu.
— Não morra, Will. Por favor, não morra — disse ela, com a voz
embargada. — Eu amo você.
Ela se inclinou sobre ele, beijou seus lábios demoradamente.
Fazendo o beijo longo o suficiente para durar para sempre.
Fechando os olhos, encostou a testa na dele.
— Amo você — disse ela novamente. — Eu devia ter falado isso
há muito tempo. Agora é tarde demais. Nunca mais terei a chance.
— Você aproveitaria essa chance se a tivesse?
Sophie se engasgou. Balançou a cabeça. Will estava acordado.
Seus lindos olhos machucados estavam abertos.
— Will! — ela sussurrou.
— Aproveitaria?
— Sim — disse Sophie. — Sim.
Ela o beijou repetidas vezes e poderia ter continuado a beijá-lo
mais e mais vezes se outro pedaço do teto não tivesse caído a
poucos metros deles.
— O que está acontecendo, Sophie? Onde está o Corvus?
— Ele se foi. Nimmermehr está desmoronando. Temos de ir
também, antes que sejamos esmagados.
Ela ajudou Will a ficar em pé. Ele estava machucado e mancando,
mas podia andar com a ajuda de Sophie. Ela colocou o braço em
volta de seu pescoço e, juntos, saíram da sala.
— Arno… Ele veio com você? — perguntou Will. — Ele está aqui?
— Um wunschfetzen o pegou. Mas há uma chance de que ele
ainda esteja vivo, eu acho.
— Como?
— Corvus falou sobre ele. Não disse que estava morto, mas que
estava vagando nos túneis. Não podemos deixá-lo aqui, Will.
— Não podemos, mas temos de nos apressar. Quando este lugar
desmoronar, vai destruir os túneis e qualquer pessoa que estiver
neles.
Sophie conduziu Will de volta pelo caminho pelo qual viera,
passando pelo salão de baile e pela sala de música, pela sala de
armas e pela sala de troféus. Eles se esquivaram de livros e lustres
que caíam. Os caixilhos das portas racharam acima de suas
cabeças; tábuas do assoalho separaram-se sob seus pés. Os
servos goblins estavam correndo para salvar suas vidas também e
não prestaram atenção aos dois humanos em fuga entre eles.
Quando Sophie e Will finalmente chegaram à cozinha, uma
espessa fumaça preta saía dos fornos, tornando difícil enxergar. O
chão estava escorregadio por causa da água que fluía de canos
estourados. Sophie escorregou e caiu, quase derrubando Will com
ela, mas se segurou, continuou andando e encontrou o caminho
para a despensa.
Will pegou um punhado de bolinhos de cima de uma mesa.
— Se encontrarmos Arno, podemos usar isso para atrair os
wunschfetzens — disse ele, enfiando-os nos bolsos. Sophie pegou
uma tocha acesa que alguém havia deixado em uma prateleira.
Eles conseguiram correr da despensa para baixo através dos
porões, mas seu progresso para o túnel — pelos degraus de pedra
escorregadios — foi dolorosamente lento, e o tempo todo o antigo
castelo acima deles estremecia e gemia.
Enquanto desciam, Will contou a Sophie como ele também tentou
encontrar o túnel, mas não conseguiu. Ele tentara então passar pela
ponte, sob a escuridão, mas um guarda goblin o agarrara antes
mesmo que ele conseguisse atravessar metade do fosso. Seguiram-
se lutas e vários longos dias em uma cela da masmorra. Ele nunca
esperou sair do castelo vivo.
Quando Sophie finalmente ajudou Will a descer os degraus e
entrar no túnel, eles conseguiram fugir mais rápido. Seu único
obstáculo era a parede desabada. Mais escombros foram soltos
pelo tremor acima deles, mas a abertura ainda estava lá. Sophie foi
a primeira, enquanto Will esperava do outro lado. Após passar, ela
se virou para que ele pudesse lhe dar a tocha. Manipulando-a com
cuidado, pois era a única luz que eles tinham, ela a colocou no chão
e, em seguida, estendeu a mão pela abertura para pegar a mão
dele.
Mas, antes que pudesse tocá-lo, um braço carnudo se enroscou
em seu pescoço e a puxou para trás. Sophie não teve tempo de
gritar.
Seu agressor apertou, estrangulando-a. Fogos de artifício
explodiram dentro de sua cabeça. Ela lutou, agarrando-se a ele, os
pés chutando loucamente, mas não conseguia se libertar.
— Onde ele está? — gritou uma voz. — Onde está o Matti? Onde
está meu filho?
Era Arno, e ele a estava estrangulando.
Sophie tentou chamar seu nome, implorar para que parasse, mas
nenhum som saiu. Seus pulmões estavam travados. Os fogos de
artifício, sumindo. Ela sentiu o corpo ficar mole, sentiu a força se
esvaindo dela.
E então Arno a jogou no chão como um saco de lixo. Enquanto
segurava sua garganta, Sophie olhou para ele. Ele estava um
verdadeiro desastre cambaleante. Seu rosto, molhado de lágrimas;
seus olhos, desfocados. Meia dúzia de wunschfetzens estava
agrupada em seus ombros. Dois tinham os dedos em seus ouvidos.
Os outros empurravam e brigavam entre si, tentando afastar os
demais, para que pudessem atormentá-lo.
— Ei! Vejam! Olhem aqui, seus idiotas! — gritou Will.
De alguma forma, ele conseguiu rastejar pelos escombros. Uma
das mãos estava apoiada na parede; a outra foi abrindo caminho à
sua frente.
— Vamos, venham cá. Estão vendo o que tenho para vocês?
Em sua mão estavam os bolos que ele pegara. Estavam
esmagados; a cobertura, rachada, mas não importava; os
wunschfetzens gritaram, vorazes, ao vê-los. Esticaram os braços
magros na direção de Will; os dedos longos e pegajosos agarraram
os doces.
— Venham cá — Will persuadiu. — Isso…
Os wunschfetzens pularam dos ombros de Arno para o chão do
túnel. Ao fazê-lo, seus olhos clarearam. Suas costas se
endireitaram. Ele parecia ter saído de uma névoa.
As criaturas pularam e dançaram em volta das pernas de Will,
clamando pelos bolos. Will baixou a mão, mas ainda segurava os
quitutes fora do alcance deles. Os wunschfetzens babaram; seus
olhos enormes ficaram ainda maiores.
— Aqui está, seus nojentos — disse Will, jogando os bolos pela
abertura nos escombros.
Os wunschfetzens gritaram de raiva. Escalaram os escombros,
puxando as pernas e os braços uns dos outros, cada um tentando
evitar que os outros chegassem aos bolos.
— Isso vai mantê-los um pouco ocupados — disse Will.
— Will, é você? Como chegou aqui? — perguntou Arno,
atordoado. — Sophie, por que estamos parados? Temos de ir.
Temos de entrar no castelo.
— Fui sem você, Arno. Tive de ir — Sophie começou a explicar,
mas um dos wunschfetzens gritou, interrompendo-a.
Arno olhou para as criaturas barulhentas, ainda brigando nos
escombros.
— Acho que eles estavam envolvidos — disse ele.
— Vou contar tudo assim que sairmos daqui — Sophie prometeu.
— Ajude Will. Precisamos seguir em frente. Nimmermehr está
desmoronando.
Assim que as palavras deixaram seus lábios, um estrondo foi
ouvido acima deles. O túnel tremeu. Sujeira e pedras caíram do teto.
Sophie pegou a tocha. Arno agarrou o braço de Will e o apoiou
em seu pescoço. Os três se esquivaram de mais escombros e
escalaram outro desabamento. Meia hora depois, conseguiram sair
do túnel.
Arno caiu contra uma rocha, fraco de alívio. Will se juntou a ele.
Mas Sophie não os deixou descansar.
— Precisamos encontrar Jeremias e Joosts. E os cavalos — disse
ela. — Caso algo não os tenha encontrado antes — ela
acrescentou, com pesar.
Eles passaram por árvores e arbustos, guiados pelo som da água
corrente. Os dois irmãos, parecendo abatidos e preocupados,
estavam parados na margem do rio, olhando para o castelo à
distância. As chamas o devoravam agora, queimando tão quente e
alto que lançavam um brilho alaranjado sobre toda a paisagem.
— Jeremias! Joosts! — Sophie chamou, correndo para eles.
— Sophie! — gritaram os dois irmãos.
Eles correram até ela e os três ficaram juntos, abraçados, por um
longo minuto de lágrimas.
— Pensamos que você estivesse lá — disse Joosts, acenando
com a cabeça para o incêndio.
— Achamos que tínhamos perdido você — disse Jeremias, com
um tremor na voz. — Você…
Suas palavras foram interrompidas pelo estrondo de uma torre
caindo. Will e Arno se juntaram aos outros. Todos eles assistiram
em silêncio enquanto outra torre desabava. Um momento depois, as
muralhas caíram e, com um estremecimento, o próprio castelo se
desfez, implodindo com a força de um terremoto. Choveram blocos
de pedra, levantando gêiseres de água do fosso, abrindo buracos no
chão, quebrando a ponte levadiça. O barulho continuou pelo que
pareceu uma eternidade, e então tudo ficou assustadoramente
quieto. O castelo do Rei dos Corvos sumiu. Havia apenas uma
nuvem de poeira subindo da cratera onde ele costumava ficar.
Enquanto os cinco amigos ficavam parados, observando e
ouvindo, os gritos e choros dos goblins ergueram-se na noite. Eles
foram respondidos pelos rugidos dos trolls, pelos gritos dos
waldwichts e por outros sons — sons que Sophie não conseguia
nem queria identificar.
Arno estremeceu quando um uivo particularmente horripilante se
elevou.
— Medo foi embora, mas suas criaturas ainda estão à espreita —
disse ele. — Precisamos ir. Não estamos seguros aqui, nem de
longe.
Ele e Joosts desamarraram os cavalos. Will se abaixou até a
água, colocou as mãos em concha e bebeu.
E Jeremias pôs a mão no braço de Sophie.
— Tentei lhe perguntar uma coisa, mas o castelo desabou antes
que eu pudesse. Você encontrou seu coração, Sophie?
Sophie não sabia o que dizer. Ela o encontrou em Nimmermehr,
apenas para perdê-lo novamente. Para sempre. Mas, então, pensou
em Jeremias e Joosts, e nos outros irmãos na Toca. Em Weber e
Tupfen. Tom. Nos Becker. Em todos os soldados. Oma e Gretta.
Will.
Sophie sorriu.
— Sim, Jeremias — ela disse, finalmente. — Encontrei.
OITENTA E NOVE
E .
Em pares e trios. Ou um por um. De Schadenburg. Grauseldorf.
Drohendsburg. E mil outros lugares.
Em carroças. A pé. Carregando mochilas e pacotes. Carregados
de comida e provisões ou apenas com as roupas do corpo. A notícia
sobre a jovem rainha em sua marcha ao palácio para reclamar seu
trono se espalhou por toda parte.
Nas cidades e vilas, as pessoas abriram suas janelas. Correram
para as ruas. No campo, pararam de arar o solo ou ordenhar suas
vacas e correram para a estrada para dar uma olhada nela. Max
avistou a procissão da janela superior do celeiro que comprou com
as joias do cemitério de Arno para abrigar seus companheiros
refugiados.
Ele e uma centena de outras pessoas fizeram as malas às
pressas e estavam esperando na beira da estrada quando ela
passou. Os veteranos feridos, todos eles, encontraram-se com ela
perto das ruínas queimadas de São Sebastião. Um troll de pedra
carregou o soldado sem pernas.
Um goblin pegou a mão do músico cego e, juntos, caminharam
com os outros.
Os Becker aderiram à procissão — o marido com o rosto marcado
por cicatrizes, a esposa grávida, a avó, os filhos —, assim como a
maioria das pessoas de sua aldeia.
Os idosos e os jovens foram. Os fortes e os fracos. Os ricos e os
pobres. Jovens mães com crianças pequenas nos braços. Mães
idosas nos braços de seus filhos adultos. Todos eles se juntaram a
Sophie. Prometeram lutar por ela. Morrer por ela.
Os trolls colocaram os enfermos nos ombros. Os waldwichts
fizeram cestos com os braços e carregaram os bebês. À noite, nos
acampamentos, as crianças trançavam os cabelos longos e finos
dos trolls do rio, para deixar seus rostos livres, e levavam ossinhos
para os makabers. Os pequeninos se aninhavam nos braços macios
dos trolls de musgo. Os mais velhos contavam histórias.
O número de pessoas aumentou de centenas para milhares para
dezenas de milhares. Durante dias, eles caminharam pela Floresta
Sombria, sob sol e chuva, subindo colinas e vales, até que
finalmente chegaram aos arredores de Königsburg ao anoitecer e
ergueram acampamento pela última vez. A jovem rainha sentou-se
durante a noite, com os olhos no palácio, observando suas grossas
paredes de pedra, sua ponte levadiça. Seus canhões, espadachins
e arqueiros.
Ela sabia o que deveria fazer na manhã seguinte.
NOVENTA E UM
S no ombro de um troll de
pedra.
Os soldados ajoelharam-se quando ela entrou na Corte da
Rainha. O troll também se ajoelhou e estendeu a palma da mão.
Sophie pisou sobre ela para descer. O troll soltou um rosnado
ameaçador como um lembrete do que aconteceria se alguém a
machucasse. O senhor Comandante estava esperando por ela.
Sophie olhou em volta, surpresa por estar novamente na corte.
Houve dias em que ela pensou que nunca veria o palácio
novamente.
Agora que estava ali, logo teria de assumir responsabilidades,
mas tinha outra tarefa a cumprir primeiro. Haakon havia sido preso,
mas a maior inimiga de Sophie ainda estava à solta, e ela não
estaria segura, nem seu povo, até que Adelaide estivesse em uma
cela de prisão.
— Bem-vinda ao lar, Sua Majestade — saudou o senhor
Comandante.
Sophie fez para ele um breve aceno de cabeça.
— Minha madrasta… Onde está? — perguntou ela.
— Nos aposentos dela — respondeu ele.
— Vou precisar que você me acompanhe, junto a duas dúzias de
soldados leais — disse Sophie enquanto se preparava para o
confronto. — Os homens que a protegem podem não querer recuar.
O senhor Comandante ordenou a seus soldados que ficassem ao
lado de Sophie e disse que os acompanharia. Quando eles estavam
prestes a entrar no palácio, Haakon — sendo empurrado pelas
muralhas — apareceu na corte da rainha ao ser levado para as
masmorras.
Suas mãos estavam algemadas. Ele tinha um corte acima de um
olho, uma contusão na bochecha. Obviamente tentara lutar ao ser
capturado.
Ele e Sophie se entreolharam.
— Pare — ela ordenou enquanto ele e seus guardas se
aproximavam dela.
— Hum, Sophie, eu… — ele começou a falar, mas ela o
interrompeu.
— Meu anel, por favor — disse ela, apontando para o anel de
unicórnio de ouro na mão esquerda de Haakon, o Anel do
Governante.
Um dos soldados o removeu e o entregou a Sophie. Ela o colocou
em seu dedo anelar esquerdo, que era o seu lugar.
— Me perdoe, Sophie… Sinto muito. Por tudo. O que fui fazer?
Deveria ter sido eu colocando um anel em seu dedo — Haakon
disse, sua voz carregada de remorso.
— Isso quase aconteceu — disse Sophie, com os olhos fixos nele,
em seus cabelos dourados, seu rosto bonito, seus olhos de um azul-
celeste.
Ela se lembrou do anel de flor que ele lhe dera, ali no palácio,
havia não muito tempo. Das promessas. Dos beijos.
Haakon a olhou nos olhos.
— Você não vai acreditar em mim… mas é com você que estou
preocupado agora — disse ele.
Sophie deu uma risada melancólica.
— Você tem razão, Haakon. Eu não acredito em você.
— Me mande para a prisão. Me tranque em uma cela, mas
permita que eu a ajude — Haakon disse seriamente. — Deixe-me
passar o resto da minha vida consertando o que fiz. Ou, pelo
menos, tentando.
— Por que eu faria isso?
— Porque você não conseguirá sem ajuda, Sophie — disse ele, a
voz urgente e baixa. — Você não conseguirá governar. Você sabe
que não. Você tem o coração mole demais. Seus inimigos a
comerão viva. Como você lidará com eles? Vai amá-los até a morte?
Sophie inclinou a cabeça, seu olhar firme.
— Como você quer que eu lide com meus inimigos?
Haakon endireitou-se, encorajado por sua pergunta.
— O Rei do Interior vai invadir assim que souber que você
assumiu o trono. O Imperador do Catai certamente fará o mesmo.
Deixe-os cruzarem as fronteiras, queimarem algumas cidades,
matarem alguns aldeões…
— Você é tão inteligente, Haakon. Tão seguro — disse Sophie,
interrompendo-o. — Você sempre sabe o que precisa ser feito.
Haakon fez que sim com a cabeça, em perfeito acordo com ela.
As mulheres sempre sucumbiram ao seu charme, à sua inteligência,
à sua confiança. Como não?
— Posso ajudá-la, Sophie. De verdade. Contanto que você me
deixe.
Sophie arqueou uma sobrancelha.
— Assim como você me ajudou em São Sebastião?
— Aquilo foi um mal-entendido…
— Ah. Foi isso que aconteceu?
Haakon arriscou um sorriso. Do tipo que derrete o mais gelado
dos corações.
— Tudo é justo no amor e na guerra, minha querida menina. Mas
estamos do mesmo lado agora. Pelo menos, nós podemos estar…
— Continue.
— Você deve lidar com seus inimigos de forma rápida e decisiva
— ele instruiu. — Capture seus capitães e generais. Capture os reis,
se puder. E dê o exemplo. Não demonstre misericórdia. Leve os
prisioneiros direto para o carrasco, antes que seus comandantes
enviem reforços, e mande cortar suas cabeças.
— Cortar as cabeças dos meus inimigos… Que ideia excelente,
Haakon — disse Sophie.
Ela se virou para os dois soldados que seguravam o belo príncipe
e disse:
— Comecem com a cabeça dele.
NOVENTA E TRÊS
A I G - .
Em sua versão de Branca de Neve, a rainha ordena a seu
caçador que arranque o coração de Branca de Neve e o leve para
ela — não apenas para que ela tenha uma prova de que a jovem
princesa está, de fato, morta —, a fim de que ela o comesse. Sim,
você leu certo: para comê-lo.
Quando li a história pela primeira vez, aos nove anos mais ou
menos, achei tudo isso bem nojento. Hoje, como uma criança um
pouco mais velha, acho isso brilhante. Que metáfora incrível para o
que o medo faz com a gente — devora nossos corações. Deixa a
gente oca e vazia.
Enquanto eu escrevia a história de Sophie, vi que muitas vezes
acreditamos no que os outros nos dizem que somos. Ouvimos os
lobos em pele de cordeiro e as cobras traiçoeiras, e permitimos que
suas palavras nos definam e nos direcionem. Mordemos a maçã
venenosa dada pela rainha do mal sem pensar duas vezes.
Sophie me mostrou que é possível driblar lobos e cobras, cuspir a
maçã envenenada e olhar o medo nos olhos. Basta ouvirmos
nossos corações — não importa quão machucados e partidos eles
possam estar.
Mais uma vez, gostaria de agradecer à minha incrível editora,
Mallory Kass, por me apoiar enquanto Sophie e eu cruzávamos a
Floresta Sombria, e por estar sempre pronta para dar conselhos e
palavras de encorajamento. Obrigada a Maya Marlette, por me
ajudar a construir o meu caminho por túneis escuros, passando por
rosas sussurrantes, trolls e makabers. Agradeço a Dick Robinson,
Ellie Berger, David Levithan, Lori Benton, Erin Berger, Rachel Feld,
Shannon Pender, Lizette Serrano, Emily Heddleson, Lauren
Donovan, Alan Smagler e sua equipe, Melissa Schirmer, Jody
Corbett, Maeve Norton, Elizabeth Parisi, e ao restante da minha
família na editora Scholastic, por seu entusiasmo por Poisoned.
Vocês acreditam verdadeiramente no poder das histórias de inspirar
e empoderar jovens leitores, e eu me sinto muito feliz por poder
trabalhar com todos vocês.
Como sempre, um grande agradecimento aos meus agentes,
Steve Malk e Cecilia de la Campa, e à minha família — Doug, Daisy
e Omi. Eu estaria perdida sem vocês.
E, por último, mas nunca menos importante, obrigada a vocês,
caros leitores. Vocês são a razão de eu fazer o que faço.
SOBRE A AUTORA