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Tese de Doutorado

POLÍTICAS GLOBAIS DE SAÚDE:


A CONSTITUIÇÃO DE NOVAS LUTAS SOCIAIS
NO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA

Francis Sodré
Orientador: Ruben Araújo de Mattos

Área de Concentração:
Política, Planejamento e Administração de Serviços e Saúde
2007
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJ
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL - IMS

POLÍTICAS GLOBAIS DE SAÚDE:

A CONSTITUIÇÃO DE NOVAS LUTAS SOCIAIS NO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA

Francis Sodré

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de


Doutor em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação em Saúde
Coletiva – área de concentração em Política, Planejamento e
Administração de Serviços de Saúde; do Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Profº Drº Ruben Araújo de Mattos


Rio de Janeiro
2007

1
Francis Sodré

Políticas Globais de Saúde: a constituição de novas lutas sociais no campo da


Saúde Coletiva

Apresentado em 06 de Julho de 2007.

BANCA EXAMINADORA:

Profº Drº Ruben Araújo de Mattos (Orientador)


Instituto de Medicina Social - UERJ

Profº Drº Kenneth Rochel Camargo Jr.


Instituto de Medicina Social - UERJ

Profª Drª Roseni Pinheiro


Instituto de Medicina Social - UERJ

Profª Drª Alacir Ramos Silva


Programa de Pós-Graduação em Atenção à Saúde Coletiva - UFES

Profº Drº Giuseppe Cocco


Escola de Serviço Social - UFRJ

2
C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
S729 Sodré, Francis.
Políticas globais de saúde: a constituição de novas lutas sociais no
campo de saúde coletiva / Francis Sodré. – 2007.
274f.
Orientador: Ruben Araújo de Mattos.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Medicina Social.
1. Política de saúde – América do Sul – Teses. 2. Acordos internacionais – Teses. 3.
Mercosul – Acordos – Teses. 4. Saúde pública – Teses. I.Mattos, Ruben
Araújo de, 1957- II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Medicina Social. III. Título.

CDU 614:341.24(8)

____________________________________________________________________________

3
A Fábio e Pedro

4
“Nós temos uma necessidade muito grande de 'autoria'.
Mas em política pública não precisamos ter a autoria das
coisas. Quanto mais ela for difusa e dividida, mais ela
será duradoura e conseqüente”.

Marina Silva

5
RESUMO

A Saúde Global é um campo repleto de nuances e muitas vezes entendida como uma
mera preocupação pelos cuidados com imigrantes ou populações fronteiriças. O campo
abarca as relações de poder entre as instituições nacionais e supranacionais no capitalis-
mo pós-industrial. Os movimentos globais de luta pela saúde hoje marcam um impor-
tante referencial de transição dos paradigmas da Saúde Pública. Políticas de Saúde coo-
perativas trazem um perfil de busca pela interdependência das ações na América do Sul,
entre blocos mundiais, como o caso do Subgrupo de Trabalho 11 dentro do acordo Mer-
cosul. Parte deste estudo apresentado busca as pistas deixadas por essas transições de
soberania trazidas pelo capitalismo atual. O objeto desta pesquisa então se delimita pelo
estudo das políticas globais de saúde, tendo como foco de análise as novas lutas sociais
no campo da Saúde Coletiva. Dentro deste objeto inserem-se as discussões sobre a har-
monização de políticas de saúde entre blocos mundiais; o debate sobre a formação dos
novos movimentos sociais globais pela saúde; a discussão atual sobre o trabalho em
saúde e como este trabalho se tornou imaterial e biopolítico em suas ações. Para isso
partimos do referencial teórico produzido pelos autores operaístas e pós-operaístas que
afirmam a constituição de uma forma de soberania imperial que aponta para a crise do
Estado moderno com a condição política de formação do Império. Nesta pesquisa op-
tou-se pela realização de um levantamento documental em fontes oficiais do acordo
Mercosul, Ministérios da Saúde de vários países que compõem o acordo aduaneiro e
também dos movimentos sociais constituídos de forma global para analisar as tentativas
de harmonização das políticas de saúde na América do Sul. Neste levantamento inclu-
em-se os relatórios das comissões temáticas de saúde do Mercosul e as atas das reuniões
ministeriais do pacto aduaneiro. Além disso, foram também analisados os documentos
produzidos pelos movimentos globais da saúde que foram constatados nesta tese. Os da-
dos foram estudados concomitantemente ao debate conceitual, quando então concluí-
mos um deslocamento dos poderes de Estado e das instituições supranacionais sobre a
Saúde em políticas geridas na América do Sul, além da implantação de políticas de in-
terdependência através da Saúde. A chave de resposta foi encontrada no novo ciclo de
lutas que se abriu para o campo da saúde nos movimentos globais dos anos 2000.

Palavras-Chave: Saúde Coletiva, Políticas de Saúde, Mercosul.

6
ABSTRACT

The Global Health is a field with many sides and is understood as a mere concern for
the cares with bordering immigrants or populations. The field accumulates of stocks the
relations of being able between the national and supranational institutions in the
postindustrial capitalism. The global movements for the health today mark an important
referencial of transistion of the paradigms of the Public Health. Cooperative politics of
Health bring a profile of search for the interdependence of the actions in the South
America, between world-wide blocks, as the case of the Sub-group of Work 11 inside of
the Mercosul agreement. Part of this presented study searchs the tracks left for these
transistions of sovereignty brought by the current capitalism. The object of this research
then is delimited for the study of the global politics of health, having as focus of
analysis the new social movements in the field of the Collective Health. Inside of this
object the quarrels are inserted on the harmonization of politics of health between
world-wide blocks; the discussion on the formation of the new global social movements
for the health; the current quarrel on the work in health and as this work if became
incorporeal and biopolitc in its action. For this we leave of the theoretical referencial
produced by the operaism authors that they affirm the constitution of a form of imperial
sovereignty that points with respect to the crisis of the modern State with the condition
politics of formation of the Empire. In this research it was opted to the accomplishment
of a documentary survey in official sources of the Mercosul agreement, social
movement and Health department of some countries that compose the customs
agreement also constituted of global form to analyze the attempts of harmonization of
the politics of health in the South America. In this survey the reports of the thematic
commissions of health of Mercosul and the acts of the ministerial meetings of the
customs pact are included. Moreover, also the documents produced for the global
movements of the health had been analyzed that had been evidenced in this thesis. The
data had been studied concomitantly to the conceptual debate, when then we conclude a
displacement of being able them of State and the supranational institutions on the
Health in politics managed in the South America, beyond the implantation of politics of
interdependence through the Health. The reply key was found in the new cycle of
movements that if opened for the field of the health in the global movements in 2000´s.

Key-Words: Collective health, Politics of Health, Mercosul.

7
SIGLAS E ABREVIATURAS

ALAMES – Associação Latino-Americana de Medicina Social


ANS – Associação Nacional de Saúde
ANVISA – Associação Nacional de Vigilância Sanitária
CCM – Comissão de Comércio do Mercosul
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina
CMC – Conselho do Mercado Comum
CPC – Comissão Parlamentar Conjunta
ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública
FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz
FMI – Fundo Monetário Internacional
FSM – Fórum Social Mundial
FSMS – Fórum Social Mundial da Saúde
GMC – Grupo do Mercado Comum
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MS – Ministério da Saúde (Brasil)
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NAFTA – North American Free Trade Agreement
OMC – Organização Mundial do Comércio
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde
PHM – People´s Health Moviment
RSI – Regulamento Sanitário Internacional
SGT – Sub-grupo de Trabalho (Mercosul)
UE – União Européia
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina

8
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................................................... 11

CAPÍTULO I
O DESLOCAMENTO DO TRABALHO E OS MOVIMENTOS
GLOBAIS DA SAÚDE

1.1 - Globalização e Migrações ................................................................................. 20

1.2 - A livre circulação do trabalho: o caso da União Européia ................................ 29

1.3 - A livre circulação dos profissionais da saúde na União Européia......................32

1.4 – Por um Sistema de Proteção Social Global: dos movimentos de Seattle


ao Fórum Social Mundial............................................................................................42

1.5 - A Saúde como uma agenda global......................................................................... 51


O Movimento Global pela Saúde dos Povos ...................................................... 54
Rumo a Porto Alegre........................................................................................ 66
O Fórum Social Mundial da Saúde.....................................................................72

CAPÍTULO II
POLÍTICAS DE SAÚDE SUPRANACIONAIS E A LIVRE CIRCULAÇÃO
DO TRABALHO: O CASO DA UNIÃO EUROPÉIA E DO MERCOSUL

2.1 - A livre circulação do trabalho e as imigrações...................................................79

2.2 - A Saúde e a Proteção à Livre Circulação do Trabalho na União Européia........86

2.3 – A Saúde no Mercosul: da política de Estado à política dos movimentos.......... 92

Sobre a história do Mercosul............................................................................. 92


A Transição do Acordo Mercosul ....................................................................100
O Pacto da Saúde do Mercosul........................................................................ 103
A Saúde no Mercosul após a Batalha de Seattle................................................ 107
O Regulamento Sanitário Internacional............................................................ 112
O aprofundamento da agenda de Seattle na Política de Saúde do Mercosul......... 119

9
CAPÍTULO III
A DESESTATIZAÇÃO DA POLÍTICA: A MÁQUINA CONCEITUAL
OPERAÍSTA E A ANÁLISE DA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

3.1 – Sobre o método histórico do pensamento operaísta................................... 126

3.2 – Do ciclo de lutas do operário profissional ao new deal................................130


A emergência do new deal: resposta capitalista às lutas operárias.............. 133
O papel do Estado de Bem Estar Social na regulação das lutas...................136

3.3 – Os ciclos de lutas abertos pelo Maio de 68.................................................. 140


A passagem do fordismo ao pós-fordismo: lutas e
contra-reforma capitalista................................................................................ 144

3.4 - O trabalho imaterial, redes e produção de subjetividade.......................... 154


Trabalho e valor..............................................................................................156
A vida como produção do valor e como valor da produção................................ 158
A produção do trabalho vivo e o campo da saúde.............................................. 163

3.5 – A Multidão como novo sujeito antagonista ................................................ 172

3.6 - As novas formas de poder: a soberania imperial.........................................180


Dos Estados-nação ao Império.........................................................................191

INTERVALO

O Estado antes da Democracia:


do Welfare State periférico às relações de interdependência global.......................203

CAPÍTULO IV
SAÚDE COLETIVA: DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO?............. 214

4.1- Matizes teóricas da Saúde Coletiva: a medicina social................................ 215

4.2 - A proteção social à saúde no Brasil: a Saúde Pública................................. 224


A emergência do discurso sanitarista..........................................................231
O público e o privado.................................................................................. 238

4.3 - Um movimento anti-disciplinar: a reforma sanitária................................. 243

4.4 - Democratização da Saúde, produção do Comum........................................250

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................260

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 266

10
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta tese que o leitor agora tem em mãos faz parte de um percurso muito

distinto. Quando ingressei no Doutorado em Saúde Coletiva, no Instituto de Medicina

Social, tinha o objetivo de estudar a política estadual de saúde nos anos 90, no Espírito

Santo, estado onde resido. Contudo, o aprofundamento das leituras, principalmente as

do campo da ciência política, fez-me despertar para uma mudança de objeto da tese. Ao

deparar-me com o processo de escrita e elaboração, me detive aos estudos da política

macro para iniciar à velha maneira “primeiro o macro, depois o micro” e notei que a

literatura levantada apontava para o máximo de descentralização das políticas públicas

de saúde, mesmo que para isso fossem necessárias inúmeras pactuações normativas de

variados acordos. Ao passar por uma disciplina específica dentro deste percurso do

doutorado, estudei as tentativas de harmonização da política de saúde entre Estados em

blocos econômicos mundiais e notei que o debate em questão era o mesmo. Apenas

aplicava-se a uma instância maior.

Verifiquei as lacunas dos estudos produzidos sobre o tema e então optei por

começar com pequenas investigações sobre este ponto: estudar o processo de

harmonização das políticas de saúde entre blocos mundiais. Como unidade de análise, o

Mercosul. Em meio a isto, a discussão que circunda o tema atualmente acusava como

um problema a ser resolvido a equivalência de diplomas entre os profissionais que

necessitam de livre circulação dentro do acordo Mercosul. Em estudos realizados por

pesquisadores da ENSP existe a indicação que esta primeira “harmonização” dos

recursos humanos deva ser pensada concomitantemente à livre circulação de produtos e

mercadorias. Afinal este é o ativo das redes de produção em blocos regionais. Na

procura por documentos nos órgãos oficiais de informação encontramos também

documentos de movimentos organizados em prol da livre circulação de profissionais da

11
saúde europeus. Então entendemos que esta era uma demanda “provocada” por estes

profissionais que exigiam autonomia em seu exercício profissional. Portanto, a arena de

discussão se abriu como objeto de pesquisa.

Algumas questões vieram à tona: porque a harmonização de uma política de

saúde dentro de um acordo econômico? O que representa, politicamente, restringir a

livre circulação de profissionais da saúde? No caso do Mercosul, por que não permitir o

fluxo de pessoas livremente em nome de um acordo pela saúde – tão carregado de

simbolismos em prol da defesa da vida, além de se tratar de um acordo feito por países

considerados pobres? A busca por literatura sobre a “livre circulação” em sites de busca

na internet nos remetia aos movimentos políticos organizados, ditos “movimentos

globais”. Tudo isso se misturou de tal forma que uma discussão não se desprendia da

outra, todas se inter-relacionavam.

No mestrado que concluí em Saúde Pública, várias disciplinas estudavam o

papel do Estado na definição das políticas democráticas de saúde. Na graduação em

serviço social também passei pelas mesmas afirmações dessa história sempre contada

sob o ponto de vista do Estado (responsável pela proteção social). Após deparar-me

com estudos produzidos por Antonio Negri, optei por mostrar este percurso em seu

caminho inverso. Através deste autor consegui argumentos e aportes conceituais para

afirmar que as lutas, no seu formato mais difuso, determinam as políticas democráticas

constituídas. O objeto escolhido para análise refletia perfeitamente esse caminho de

volta. Mesmo em se tratando de uma pactuação entre Estados (uma macro política), era

mais interessante perceber o movimento dos movimentos (a micro política).

Primeiro partí da observação que a saúde ultrapassava as fronteiras de

Estado e vi surgir uma proposta de pactuação entre países na harmonização da Saúde

para o Cone Sul. Ao iniciar o estudo verifiquei que os acordos aduaneiros mais

avançados ainda não tinham uma política de saúde harmonizada, e o Mercosul

12
rascunhava algumas ações. Algo que é no mínimo curioso em se tratando de uma

política social dentro de um acordo econômico. O Brasil, desde a gestão de Fernando

Henrique Cardoso, se inseriu de forma vertical em políticas que demonstravam uma

articulação maior no campo da Saúde. Mas foi no governo Lula que o campo recebeu

mais investimentos através de um número maior de técnicos inseridos, além da

formação de uma pauta que ganhou regularidade para ser debatida, com sistematização

constante de informações produzidas. A descoberta dessas ações como uma brecha para

acordos transversais em outras áreas da política econômica dos países aduaneiros foi o

que me chamou atenção para um processo diferenciado do que aconteceu em outras

partes do mundo que trabalham com acordos para mercados comuns entre blocos

mundiais.

Gerir a Saúde significa ter controle sobre as formas de vida. Aos poucos

fomos percebendo o quanto a América Latina se tornava global dentro de suas formas

de gestão sobre a Saúde. Ao criar o Subgrupo de Trabalho 11 (SGT 11) dentro do

acordo Mercosul o debate tornou-se plural, ao mesmo tempo forte sob o ponto vista das

ações estatais e consequentemente forte na pactuação de propostas. A potência vista nas

discussões não estava nos produtos que poderiam vir a circular, mas no debate político

promovido por profissionais que “gerenciam a vida”.

A América Latina mostrava-se potente em suas articulações pela Saúde,

mesmo dentro da ironia de vê-la sendo discutida a partir do pacto Mercosul. Ainda

assim apostei no objeto para estudá-lo, colocando-me aberta para eventuais surpresas

que esse estudo poderia proporcionar. E cheguei a uma conclusão rasa que o mais

surpreendente disso tudo não foram os resultados dessa política, visto que seus impactos

econômicos são baixíssimos; mas o processo de negociação em si. As agendas surgidas

e o os pontos de discussão postos à mesa por ministros e movimentos sociais. Esse

debate, que se tornou interesse mundial, era pautado por nós: os países do Sul perante a

13
União Européia ou os Estados Unidos, tão observados em nossos passos rumo a uma

política de cooperação.

Aos poucos percebia a necessidade de radicalizar algumas afirmações, por

exemplo, a crise de soberania do Estado-nação como parte de um processo

mundializado. No caso do Brasil e dos demais países do Sul envolvidos, havia a

necessidade de sistematizar estudos sobre a realidade da América Latina a partir de suas

mais recentes relações de interdependência. Toda a bibliografia encontrada no

referencial operaísta e pós-operaísta parte de uma realidade de estudo sobre o Estado

com um olhar europeizado talvez; mas quando observamos as minúcias da corrente de

pensamento conseguimos enxergar esse fenômeno como algo que se alastra por todo o

mundo. E a formação do acordo aduaneiro da América do Sul traz evidências deste

processo.

Por outro lado, notei que as relações políticas da Saúde caminharam para a

submersão em um biopoder que é fruto de séculos das ações de Estado. A entrada do

debate sobre o Regulamento Sanitário Internacional proposto pela ONU/OMS na

agenda do SGT 11 chega de forma paralisante; pois todas as discussões políticas mais

progressistas que envolviam a saúde na tentativa de um pacto de interdependência entre

os países são “congeladas” em prol de uma agenda mundial retrógrada que veio

somente a reforçar antigos ditames que erguem “barreiras sanitárias” como medidas

protetoras. O segundo momento deste estudo, portanto, aborda esse déficit democrático

– antagônico talvez – mesmo porque a agenda mostrava-se avançada em suas discussões

a partir das lutas sociais estabelecidas após a “virada à esquerda” dos governos eleitos

democraticamente em toda a América Latina.

Os momentos mais explicativos deste estudo tentam situar os espaços de

resistência a este poder global. A produção de Antonio Negri sobre a categoria trabalho

imaterial cruza-se com os estudos sobre a categoria teórica trabalho vivo de Marx. Isso

14
foi necessário para que percebêssemos que a chave da questão estava neste trabalho

produzido em ato como espaço de resistência e criação ao mesmo tempo no campo da

saúde. A produção teórica da Saúde Coletiva acentuava a bibliografia que valorizava os

estudos sobre este processo de trabalho que não tinha fórmulas e que se mostrava

variável em cada realidade vivida pelos serviços de saúde. O entendimento que a força

de trabalho tornara-se móvel, nômade através do movimento que a saúde na Europa

denominou por “Free Movement of Health Professionals” nos permitiu compreender

que também o território se tornava algo móvel e flexível.

No que se refere às ferramentas da pesquisa, a leitura documental sobre o

Mercosul estava de fácil acesso, pois os documentos sobre as reuniões ministeriais e

também do SGT 11 foram publicados em um site próprio, na íntegra, pelo acordo

Mercosul como uma estratégia política de publicizar essa pauta mundial que se refere a

uma seqüência de tentativas de harmonização. O SGT 11 do acordo Mercosul tem a

função de planejar, coordenar e gerir as ações propostas nas reuniões entre os ministros

da saúde dos países que compõem o bloco. A leitura de mais de 30 atas extraídas do site

www.mercosulsalud.org e, aproximadamente, 70 documentos (incluindo relatórios e

normatizações) produzidos por este subgrupo de trabalho rendeu um extenso itinerário

de pesquisa documental; abrindo ata por ata, separando fragmento por fragmento para

retirar extratos que compusessem um cenário amplo das discussões que acontecem de

forma semestral. Os documentos gerados pelos ministérios da saúde sobre a

harmonização das ações dos países do cone sul também foram levantados, pois eles

reconstruíam os momentos que antecedem as reuniões da saúde no Mercosul. Todos os

documentos foram tabulados através da separação de extratos textuais que

compusessem o cenário da pactuação da saúde entre os países da América do Sul

através do SGT 11.

15
Após esta fase, continuamos com a pesquisa em base de dados virtuais a

partir de outra ótica: a dos movimentos sociais globais. O prosseguimento dado a

análise dos dados encontrados até então mostrou-me que a agenda Mercosul tinha sua

pauta determinada por estes novos movimentos; então decidi buscar os antecedentes

vindos através das lutas sociais da década de 90. Todos os movimentos continham uma

quantidade de informações que se tornou impossível mensurar: depoimentos,

fotografias, relatórios, traduções de agendas, testemunhos de ativistas, sínteses de mesas

coordenadas, pautas de reuniões etc. Posso afirmar que a riqueza desses movimentos

tem se tornado exatamente o excedente de informações geradas sobre a saúde. Para se

ter idéia, no site do Fórum Social Mundial da Saúde procurei por informações sobre a

reunião de Nairóbi e lá existia mais de 900 (novecentos) tipos de documentos diferentes

produzidos pelos ativistas, além das “comprovações” anexadas através de arquivos de

áudio, imagem fotográfica e vídeos. Era preciso somente escolher, em meio a muitas

alternativas, o que se queria dizer.

O objeto desta pesquisa então se reconfigurou. Tornou-se o estudo sobre a

formação de políticas globais de saúde no Mercosul, tendo como referencial os

movimentos multitudinários das novas lutas sociais globais da saúde. Ao tomar este

objeto como foco de investigação, percebi que a leitura do objeto se completava através

de estudos conceituais desenvolvidos por Antonio Negri, posteriormente, associado à

Michael Hardt – autores que avançaram em construções teóricas consolidadas

academicamente e que servem de aporte para pensar os novos espaços políticos de

discussão sobre a Saúde em âmbito global – desde suas lutas a partir do trabalho à

constituição de políticas, através de categorias teóricas como Império e Multidão.

Para dar um caráter mais explicativo aos argumentos, comecei pela

construção de um capítulo específico que aproximasse os movimentos de resistência

global à luta pela Saúde em âmbito mundial. O conceito de Multidão elaborado por

16
Negri & Hardt (2005) forneceu instrumentos importantes para explorarmos esses

movimentos que se formam e se organizam livremente, como o caso do Fórum Social

Mundial da Saúde e a Assembléia Mundial de Saúde dos Povos. Movimentos que não

aparecem nos noticiários, que não são valorizados pela agenda econômica mundial, mas

que se mostram crescentes e, por vezes, com intuitos libertários, formando o

contraditório campo da Saúde Global. Correntes derivadas dos movimentos globais

(considerados produtos da globalização) e dos movimentos contra as políticas

neoliberais na década de 90, denunciavam a própria crise do neoliberalismo neste

mesmo período. Por isso mostrou-se importante desenvolver um estudo sobre esse

campo através da ótica dos movimentos e tentar explicá-lo como algo novo que surge

também como objeto de estudo para a Saúde Coletiva.

A partir da percepção que os movimentos globais da saúde determinaram

uma década, então por eles comecei. No Capítulo I abordo de forma descritiva a

chegada desses movimentos à década de 90 até os anos 2000. Este era o novo ciclo de

lutas pela saúde que demarcava o campo da Saúde Global.

No segundo capítulo inicia-se um estudo sobre o Mercosul e as relações de

cooperação travadas na América Latina para formar o pacto da Saúde através de um

subgrupo de trabalho e das reuniões ministeriais que aconteciam no cone sul. Após

essas duas constatações realizadas nestes capítulos elaborei um terceiro momento do

estudo que aborda o método do pensamento de Negri através das principais categorias

de análise construídas pelo autor. Uma transição importante para o deslocamento

conceitual e temporal que viria a acontecer em seguida no texto: a inserção de um

“intervalo” sobre a crise do Welfare State e a chegada do neoliberalismo no Brasil.

Portanto, o quarto e último capítulo é a construção de uma análise sobre a

relação “público x privado” vivenciada pelos movimentos de luta pela saúde e pelas

políticas estatais. Essa relação permeou a formação do campo conceitual que vai da

17
Medicina Social à Saúde Coletiva e teve no Brasil o movimento multitudinário da saúde

como um divisor de águas: a reforma sanitária. De tal forma, que a linha de raciocínio

construída nesta tese é cíclica, pois tentamos seguir a análise que um novo ciclo de lutas

sempre se abre após um período de resistência.

18
CAPÍTULO I

O DESLOCAMENTO DO TRABALHO E
OS MOVIMENTOS GLOBAIS DA SAÚDE

19
1.1 - Globalização e Migrações

“A experiência da fuga é como um treinamento


para o desejo de liberdade”.
Hardt & Negri

A globalização é um argumento hoje aceito como parte de um processo

irreversível das relações de produção. Afirmar os preceitos da globalização representa

afirmar a história da ocidentalização do mundo, os processos de desterritorialização e as

formas de dominação assumidas pelas transformações do poder global. “O mundo

mudou muito ao longo do século XX. Não é mais uma coleção de países agrários ou

industrializados, pobres ou ricos, colônias ou metrópoles, dependentes ou dominantes,

arcaicos ou modernos”; afirma Ianni (2005, p.36). Ianni desenvolveu um importante

debate sobre essa lógica binária da modernidade nas ciências sociais ao longo da década

de 90. Seus argumentos nortearam várias correntes de pensamento que apontaram para

uma mudança estrutural ocorrida após a II Guerra Mundial: a mundialização de

relações, processos e estruturas de dominação, antagonismos e integrações. O

capitalismo global visto por Ianni (2005) transbordou as fronteiras das bases nacionais.

“Declinam os Estados-nações, tanto os dependentes como os dominantes” (idem, 2005,

p.38).

Um outro campo de discussões construído durante a década de 90 indica,

para autores como Fiori (1997), que a única globalização que realmente existiu foi a

globalização financeira. Pois se há algo que se tornou realmente global foi a

financeirização das relações de capital, ultrapassando o poder dos Estados. Este

argumento desenvolvido por Fiori (1997) se fundamenta em um debate que, segundo o

autor, é tão antigo que já beira os trezentos anos, “desde que os fisiocratas elegeram que

a perfeição residia no mercado” (idem, p.126). Para Fiori, o estágio atual da

20
globalização se resume a uma espécie de “fascismo do mercado” – uma combinação

entre o movimento do capital e as estruturas e decisões do poder.

Fiori (1997) compõe o grupo de pensadores que balizam o acirramento da

globalização a partir do período histórico marcado pelas evidências da vitória alcançada

pelo mercado, após a vitória de Tatcher, quando os liberais conservadores decretaram a

morte do keynesiansimo1 como se tudo fosse culpa das políticas econômicas

equivocadas do Walfare e não o resultado de uma transformação estrutural do

capitalismo. Para Fiori (1997) é esta transição estrutural que demarca o surgimento dos

processos de desregulamentação do capitalismo, quando a impulsão da acumulação

financeira evolui associada à reação americana de dominação global. É o momento em

que ocorre a adesão ao consumismo, ao abandono dos miseráveis e ao controle previsto

pelas políticas deflacionárias da década de 80. Deste modo, diferentemente de Ianni,

para Fiori a globalização atual se dá pela porta unicamente financeira, ou seja, falamos

de “um mundo financeiramente globalizado” (Fiori, 1997, p.133) onde vários países do

mundo adotaram as mesmas alternativas: abertura, liberalização aos mercados,

privatizações, etc.

Para Ianni (2005), a financeirização global acabou por subordinar os

Estados-nação aos movimentos e às articulações do capital. “Os Estados-nação

tornaram-se agências da economia política mundial” (p.92, 2005). Para o autor, nem o

núcleo econômico mais forte da economia americana precisa de um comando local ou

nacional. A produção obedece a um comando global. Mesmo instituições como o FMI,

1
Sob a ótica keynesiana, uma análise conjuntural deve centrar sua atenção de forma a impedir ou
postergar a crise. “Trata-se de reunir, sempre que necessário e de forma deliberada, informações que
reduzam o grau de incerteza, orientando a ação do Estado, único agente capaz de, em substituição aos
inoperantes mecanismos de mercado, administrar sabiamente o movimento expansivo da economia
capitalista. E é à sombra desta intervenção estatal que a ciência econômica desenvolverá, a partir dos anos
30, de forma cada vez mais sistemática, seu método de análise conjuntural, aperfeiçoando cada vez mais
seus indicadores, medidas e dados, quantificados de forma permanente e confiável. (...) Neste caso,
trabalha-se com um conflito regulado entre múltiplos atores, em igualdade de condições e com objetivos
comuns, ainda que competitivos. (...) Surgiriam, a partir daí, regularidades e constâncias na ação coletiva,
dissolvendo-se o problema posto pela multiplicidade dos atores” (Fiori, 2003, p52/53).

21
BIRD, Banco Mundial ou mesmo a CEPAL, interferem na internacionalização da

economia: reforçando relações de produção já existentes ou mesmo se abrindo para a

colaboração aos países que transitaram da economia planificada para uma economia de

mercado.

São instituições do dinheiro global, traduzindo a todo o tempo as


moedas nacionais em uma espécie de equivalente universal (...)
estas organizações e agências transnacionais dedicadas a sanear,
orientar e dinamizar as economias nacionais e a economia
internacional, nascem da crescente convicção de que os sistemas
econômicos nacionais e internacionais não são auto-reguláveis
(Ianni, 2005, p.93).

A partir de então que Ianni melhor desenvolve o que muitos já denominaram

por desterritorialização. O capitalismo atual forma estruturas de poder econômico e

político sem uma localização nítida. Parece flutuar sobre os Estados, fronteiras, nações,

moedas, grupos ou partidos. A desterritorialização não se aplica somente a corporações

transnacionais ou grupos monetários, mas também a grupos étnicos, movimentos

políticos que atuam crescentemente em moldes que transcendem fronteiras e identidades

territoriais específicas. “Envolve diásporas complexas que debilita os vínculos entre

povos, riquezas e territórios, que por sua vez, tem alterado a base de muitas interações

globais significativas e, simultaneamente, põe em causa a definição tradicional de

Estado” (Ianni, 2005, p.95).

A financeirização e a desterritorialização apontam então para dois eixos

interligados de discussão teórica. Um que denota autonomia da esfera do capital e outro

que demonstra uma transição de soberania dos Estados. A essa fórmula atribui-se a

perspectiva de crise que a globalização na atualidade traz consigo. Porém, a qualidade

da “nova crise” é que ela pode vir a se deflagrar em qualquer lugar 2. A partir do

2
A década de 90 está repleta de exemplos das crises mundiais. Os tigres asiáticos podem bem representar
um desses aspectos. Não se poderia imaginar que esses países utilizariam de isenções fiscais, redução do
custo de sua mão-de-obra e isenção de impostos para atrair a instalação de empresas estrangeiras com o
intuito de se tornarem empresas multinacionais exportadoras em território asiático.

22
momento em que o capital assumiu padrões mais especulativos e o mercado se

internacionalizou, tornou-se impossível coordenar ações que atendam a todos os

interesses nacionais; isto porque “a especulação global se nutre da descoordenação” dos

interesses dos Estados (Fiori, p.135, 1997).

Em última instância, há uma capacidade de, com pequeníssimas


variações na política monetária, gerar descomunais
reconcentrações patrimoniais ou transferências de riquezas de um
lado para o outro (idem, 1997, p.135).

Cocco (2000) acrescenta um outro ponto de vista e nos diz que o novo modo

de ser da riqueza contemporânea baseada em um capital financeirizado, não quer dizer

que seja uma guinada antiprodutiva do capital, mas sim que este é o único meio que lhe

restou para tentar retomar o controle sobre o trabalho. Um trabalho que atualmente

independe do chão de fábrica e não necessita submeter-se ao capital produtivo –

“trabalho que tende, cada vez mais, a tornar-se imaterial: intelectual, afetivo, tecno-

científico” (Negri & Hardt, 2005).

O “novo modo de ser” da riqueza contemporânea não se deve a


uma guinada antiprodutiva do capital, mas é o único meio que lhe
resta para tentar retomar o controle sobre um trabalho cujas
dimensões produtivas independem, cada vez mais, de sua
submissão ao capital produtivo e a seu chão fabril. No pós-
fordismo é a essência do capital que é “fictícia” (parasitária) e,
portanto, não tem mais condições de ser “real” (...) não é apenas
o capital “fictício” que é improdutivo, mas o capital em geral que
é cada vez menos capaz de ser “real”, ou seja, cada vez menos
capaz de se pôr como condição necessária das combinações
produtivas (Cocco, 2000, p.34).

Trabalho e emprego aparecem como noções desvinculadas, principalmente

no pós-fordismo. “Hoje em dia, o desemprego é gerado tanto pela estagnação da

economia quanto pelo seu crescimento” (Cocco, 2000, p.39). Aquilo que o

desenvolvimento industrial produziu através do emprego às massas não funcionou como

23
uma integração cidadã, ou seja, de distribuição de renda e universalização dos direitos.

“A dinâmica está completamente revertida. É a distribuição prévia da renda que pode

permitir a universalização dos direitos, dos padrões de consumo e sobretudo da

integração produtiva” (idem, 2000, p.39).

A partir de uma análise mais subjetiva do trabalho, o que Negri (2004)

denomina no seu método como “história das lutas sociais” a crise do paradigma fabril

taylorista e da integração fordista (pelo salário e pelo Welfare) deve ser explicada pela

mutação na qualidade do trabalho, como “força-invenção” e não mais como “força-

repetição” (algo tão valorizado na hegemonia fordista). O trabalho como “força-

invenção” denota atividades em que o lastro cognitivo ocupa a centralidade nos

processos de valorização da mercadoria. Essa dimensão cognitiva se traduz em duas

operações efetivadas pelos trabalhadores. A primeira é a incorporação da cultura nas

mercadorias que passam a ser compostas de estilos, modas, estéticas e preferências. A

segunda operação é a incorporação da informação. Negri e Hardt (2004) analisam que

cada vez mais o trabalho é feito por “ciborgues”, à medida que o uso das novas

tecnologias de informação atravessa os modos de produção contemporânea, acelerando

os processos de difusão da informação; então digitalizadas e circuladas através das redes

globais de comunicação (como a internet) no interior dessa concepção de trabalho.

Assim, todo bem, todo produto é permeado por uma enorme carga de

subjetividade e conhecimento incorporado na produção e absorvido no âmbito do

consumo. A esfera do consumo, então, não se apresenta mais como a parte final da

cadeia produtiva, mas como a esfera em que a subjetividade também se reproduz (Negri

& Lazzarato, 2001). No lugar das forças de trabalho que se constituíam como uma

medida de produtividade e valor nas teorias econômicas surge a incomensurável

subjetividade do trabalhador posta a produzir.

24
A característica dessa produção que hoje se estrutura em rede “não é mais

aquela de organizar ‘tempos e métodos’ do trabalho de fábrica ou de determinar as

diferenciações de produtividade por meio de inovações produtivas (...) mas de

proporcionar a ‘construção social do mercado’, em tecido produtivo autônomo” (Negri

& Lazzaratto, p.59, 2001). Ou seja, a transição que hoje presenciamos nas formas de

gerir o trabalho leva-nos a verificar na afirmação dos autores que “o capitalismo não é

mais o capitalismo da produção, mas do produto” (idem, p.64). Se o elemento principal

da produção é o saber, logo, torna-se difícil mensurar o conhecimento, e as novas

formas de produção tornam-se nômades, desenraizadas do território fabril. Um sintoma

de economia em fluxo configura-se na produção, agora transformada em “rede de

produção”.

A fábrica industrial definiu circuitos de cooperação no trabalho


por meio da ordenação física dos operários na oficina. Cada
operário se comunicava individualmente com seus vizinhos e a
comunicação era, de modo geral, limitada pela proximidade física
(...) a passagem para a produção informacional e para a estrutura
da rede da organização faz com que a cooperação e a eficiência
produtivas deixem de ser tão dependentes da proximidade e da
centralização. As tecnologias da informação tendem a tornar as
distâncias menos relevantes. (...) De fato, a rede de cooperação no
trabalho não requer território nem centro físico. (Negri &
Lazzarato, 2001, p.316).

O trabalho afirmou-se como força cooperante e dependente de relações de

troca, as quais se tecem relações políticas de inovação. Poderíamos talvez por meio

disto inferir que as migrações, parte deste processo de desenraizamento fabril, são

também formas de resistência? Sobre este debate, Corsini (2004) escreve:

Podemos, além disso, também situar a migração como um


fenômeno que não se restringe apenas à circulação de mão-de-
obra, fluxos de movimentação da força de trabalho disponível
para ser utilizada em outro lugar que não o lugar de origem. É
migração com um sentido político, opção de saída (exit) em busca

25
de novas possibilidades de vida e de inserção produtiva; e a
resistência por via da migração constitui historicamente uma
linha de fuga para pessoas em todos os tempos e lugares, em um
fluxo contínuo, nunca unidirecional, que reflete a
incomensurabilidade, a irredutibilidade e a potência da atividade
humana (Corsini, 2004, p.185).

Hoje, o tempo de trabalho confunde-se com o tempo da vida e isto faz com

que a separação entre as fronteiras de criação, consumo e produção sejam tão próximas

quanto porosas; pois a produção do trabalho também tornou-se produção da vida. Algo

que Virno3 denominou por “virtuosístico”, pois neste trabalho contém a capacidade de

surgir o novo e também fazer surgir diferentes alternativas de criação e resistência.

Se torna muito mais importante o tempo dos processos de


formação do que o tempo de aplicação imediata à produção;
tornar-se-á sempre mais importante o tempo das relações externas
que alimentam o conhecimento e o empurram para atos e
decisões mentais, mais do que acumulação de pequenas
quantidades temporais de trabalho que não constituem, como
ocorria no passado, a condição de decolagem da realização
capitalista do valor (Negri, 2003b, p.93).

Corsini (2004) nos lembra que tradicionalmente o operário mostrava sua

principal forma de resistência através da paralisação do trabalho, greves e boicotes que

supunham uma organização a partir do tempo – tempo de trabalho. Hoje, quando o

trabalho e a vida se confundem e a própria noção de tempo é subvertida, quais seriam as

formas de resistência?

O imigrante que parte para um outro lugar torna-se um estrangeiro, um

estranho em outro território. Sabemos que muitas vezes os trabalhadores que migram

viajam em condição de pobreza, mas não significa que não possuam conhecimento,

habilidades e capacidades criativas. Todo imigrante traz consigo um mundo,

principalmente a riqueza do olhar mais respeitoso ao outro por estar condicionado a

3
Virno, Paolo. “Virtuosismo y revolución: notas sobre el concepto de acción política”. Disponível na
internet: <http://biblioweb.sindominio.net/pensamiento/virno.html>. Acesso em 03/05/2007.

26
trabalhar em situações diversas. As migrações se transferem para as regiões mais ricas

do mundo porque nela existe o desejo de mudança, de acumulação de conhecimento e a

condição de mobilidade que é comum ao trabalhador do pós-fordismo. A riqueza que se

ganha com o trabalho do imigrante é a certeza do desejo de algo mais. Talvez os

movimentos migratórios em massa aconteçam pela fuga da condição de violência, fome

ou pobreza4; mas nisso pode estar contido o desejo de riqueza, de produção, alegria, paz

e liberdade.

Esse duplo ato de recusa e expressão de desejo é de uma força


extraordinária. Fugir de uma vida de constante insegurança e
imobilidade forçada é uma boa maneira de se preparar para
enfrentar e resistir às formas típicas de exploração do trabalho
imaterial. Ironicamente, os grandes centros globais de riqueza
que atraem migrantes para compensar uma carência de suas
economias recebem mais do que queriam, pois os imigrantes
investem toda a sociedade com seus desejos subversivos. A
experiência da fuga é como um treinamento para o desejo de
liberdade (Hardt & Negri, 2005, p.181).

A produção nômade carrega o desejo em forma de potência construtiva, de

um jeito tão forte como a potência que está implantada na pobreza. “A pobreza de fato

não é simples miséria, mas é a possibilidade de muitíssimas coisas, que o desejo indica

e o trabalho produz” (Negri, 2003b, p.47).

O imigrante é sempre aquele que chega para viver em outro lugar e decide

romper com o seu lugar. Assim, “toda migração representa uma ruptura (saída), ruptura

com um território e com uma população, uma ordem social, uma ordem econômica,

uma ordem política, uma ordem cultural e moral” (Corsini, 2004, p.194). Essa dimensão

política é representada na mobilização de fluxos e trocas populacionais, mestiçagem de

4
“As lutas dos pobres contra suas condições de pobreza não constituem apenas uma poderosa forma de
protesto, mas também afirmações do poder biopolítico – a revelação de um “ser” que é mais poderoso que
seu miserável “ter” (Hardt & Negri, p.183, 2005). A luta dos pobres assume um caráter mais geral e
biopolítico e tende a ser global. Projetos como os da renda mínima no Brasil demonstram essa luta para
tentar resguardar minimamente a sobrevivência. Na África do Sul, os movimentos sociais recentemente
lançaram mão do slogan: “Não somos africanos, nós somos os pobres” (idem, 2005).

27
culturas, modos de vida. Está no movimento das populações e aponta para uma maior

capacidade de integração cultural. Daí que Corsini (2004) a aponta como uma forma

também de resistência.

O poder capitalista, que sempre deve ser reterritorializado, deve agora

conviver com o trabalho imaterial, “uma categoria que permite precisamente

compreender a fundo essa plasticidade da nova força de trabalho” (Negri, 2001, p.47).

Ainda que a financeirização da ordem global seja a última cartada dada pelo capitalismo

atual, ela agora se defronta com a possibilidade de ser derrubada por esses novos

movimentos vindos do deslocamento do trabalho.

28
1.2 - A livre circulação do trabalho: o caso da União Européia

A integração regional entre países opera transformações progressivas para

ampliar o leque de relações comerciais. O processo de unificação em blocos mundiais

envolve procedimentos de aproximação, convergências e harmonizações de políticas e

regulamentações que resultam no fim de barreiras tarifárias e institucionais. Isso

significa a possibilidade que, no campo social, os direitos e as garantias de cidadania

ultrapassem os limites geográficos e legais das instituições de cada país e passem a ser

compartilhados por um bloco.

A partir da década de 90, com a transformação do Mercado Comum

Europeu em União Européia,5 formaliza-se uma experiência de integração

supranacional até então nunca vista na história mundial. O marco inicial da unificação

do continente ocorre em 1993, com a entrada em vigor do Tratado de Masstricht,

quando a Europa apresenta suas primeiras reformas institucionais destinadas a facilitar a

formação de um espaço “sem fronteiras”, em que não só a livre circulação de pessoas,

capitais, serviços e mercadorias fossem asseguradas, mas a coesão entre diversas

regiões e grupos fosse fortalecida através de uma moeda unificada para toda a região,

disciplinando as economias dos Estados-membros. A adesão gradual dos países e a


5
“Ao entrar em vigor, em 1 de Novembro de 1993, o Tratado da União Européia, assinado em 7 de
Fevereiro de 1992 em Maastricht, confere uma nova dimensão à construção européia. A Comunidade
Européia (o Tratado de Maastricht substituiu o nome Comunidade Econômica Européia),
fundamentalmente econômica nas suas aspirações e no seu teor, passa a estar integrada na União
Européia baseada, doravante em três pilares. O pilar comunitário (a Comunidade Européia e a
Comunidade Européia da Energia Atômica), regido pelos procedimentos institucionais clássicos, faz
intervir a Comissão, o Parlamento, o Conselho e o Tribunal de Justiça; gere essencialmente o mercado
interno e as políticas comuns. Os outros dois pilares envolvem os Estados-membros em domínios
caracterizados até então como sendo da competência exclusivamente nacional: a política externa e de
segurança, por um lado, e os assuntos internos, tais como a política de imigração e de asilo, a polícia e a
justiça, por outro. Trata-se de um progresso importante, na medida em que os Estados-membros
consideram que é do seu interesse cooperar mais estreitamente nestes domínios, como forma de afirmar a
identidade européia no mundo e de assegurar uma melhor proteção dos seus cidadãos contra a
criminalidade organizada e o tráfico de drogas. Mas o que os cidadãos recordarão do Tratado de
Maastricht será provavelmente a decisão que trouxe maior impacto prático à sua vida quotidiana: a
realização da União Econômica e Monetária. Desde 1 de Janeiro de 1999, a UEM reúne todos os países
que cumpriram um determinado número de critérios econômicos destinados a garantir a sua boa gestão
financeira e a assegurar a estabilidade futura da moeda única: o euro”. Sobre isso, ler o verbete União
Européia, disponível na internet: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_europ%C3%A9ia>.

29
revisão dos Tratados levaram à formulação de políticas públicas para além dos limites

dos Estados-Nação, constituindo uma forma de soberania que migra rumo a um

aparelho transnacional. Segundo Giovanella (2006, p. 04), para promover a coesão

econômica e social européia, a integração impôs a implantação de esquemas

institucionais supranacionais e mecanismos de redução de desigualdades territoriais e

sociais.

A livre circulação de pessoas nesses países da UE provocou uma agenda

que propunha a adoção de medidas de proteção social em cada um dos países onde

ocorriam um forte fluxo de migrações. Somente em 1999, através do Tratado de

Amsterdã, vários aspectos fundamentais que ficaram pendentes após Maastricht se

regularizaram, em particular, as questões ligadas o emprego, a livre circulação de

trabalhadores os direitos sociais daqueles que estavam como imigrantes no território.

A institucionalização do direito à livre circulação do trabalho ocorre após

longos anos de pressão política dos trabalhadores europeus junto ao Estado. Isso

porque, desde a década de 60, a Europa debate o deslocamento do trabalho como

agenda, no entanto, suas preocupações iniciais destinavam-se primeiramente aos

trabalhadores que encontravam-se em zonas fronteiriças. Estes tinham algumas

salvaguardas jurídicas, como por exemplo, o direito à procura por emprego em cidade

fronteiriça de outro país membro; o direito ao exercício do trabalho fora de seu país de

origem; residir e permanecer no território onde trabalha; direito ao tratamento

igualitário no que se refere às condições de empregabilidade e segurança6. Contudo, as

outras categorias profissionais não gozavam desses direitos, exceto os profissionais da

indústria, do comércio e das artes, segundo as diretrizes dos Artigos 49 e 57 do Tratado

da Comunidade Européia. Mas vale à pena ressaltar que, mesmo se essas categorias

6
Retirado do documento produzido pela UE: Free Movement of Workers and the Principle of Equal
Treatment. Disponível em: <http://ec.europa.eu/employment_social/ free_movement/index_en.htm>.
Acesso em 02/03/2007.

30
privilegiadas pelo tratado, se deslocassem de forma constante, indo e voltando ao seu

país de origem, não receberiam a liberação como “trabalhador europeu”. Somente a

partir da década de 90, com a emergência da União Européia, que se abarcou o desejo

de desvinculação do trabalho a uma identidade nacional, quando a condição de

igualdade laboral foi assegurada na legislação supranacional da UE.

Contudo, a livre circulação do trabalho não foi instituída na União Européia

assim de forma livre. A falta de harmonização das qualificações e formações

universitárias, por exemplo, foi uma das dificuldades encontradas para que as migrações

pudessem ocorrer de forma mais intensa no interior do bloco. Isso só foi sendo superado

paulatinamente quando a União Européia determinou aos Estados membros que

adequassem o diploma do imigrante à especificidade do conhecimento local. Isto

aconteceu através da criação de cursos de nivelamento. Todos os países

disponibilizavam conhecimentos que complementavam aqueles outros que os

imigrantes tiveram na graduação de seus países de origem. De forma prática, um

enfermeiro de Portugal só poderia atuar na Inglaterra depois que passasse por um curso

de nivelamento e adequação neste país. Essa adequação do diploma à especificidade dos

países ampliou a possibilidade de circulação da mão de obra pelos Estados da União

Européia. Para incentivar essa circulação, a UE criou em 2002 o “Espaço Europeu de

Aprendizagem Permanente”, localizado em 17 países e cuja função é de uniformizar as

competências dos imigrantes por meio de cursos e treinamentos oferecidos. Além disso,

também em 2002, os ministros da educação de 31 países do bloco (estados membros e

candidatos) aprovaram a Declaração de Copenhague sobre a cooperação uniformizada

de ensino para transparência no reconhecimento de diplomas e qualificação da formação

profissional. Um programa de nome “Leonardo da Vinci” foi criado para apoiar e

31
complementar as iniciativas dos Estados membros para a cooperação transnacional de

formação profissional”7.

A partir do momento que a força de trabalho é posta a circular na Europa,

uma nova questão se impõe na vida do imigrante trabalhador: a permissão para o

exercício profissional também autoriza a vinda de seus familiares? Daria a eles o

mesmo aparato de proteção social?

Nem todos os direitos sociais se aplicam aos familiares, somente a educação

e em alguns casos pode-se conseguir vantagens acrescidas no salário. Apenas duas

garantias estão efetivamente em vigor: o familiar pode habitar junto com o trabalhador

que se deslocou e, pode obter prerrogativas para também trabalhar no território onde

está atualmente acompanhando seu outro familiar. O não acesso a todas as políticas

públicas, como o caso da saúde8, é o que se julga restringir o movimento também de

familiares. Isto porque a consulta a um atendimento mais especializado não é garantido

pelo Estado que o recebe, gerando assim uma barreira concreta para que o imigrante

trabalhador se fixe com a família no lugar para onde migrou.

1.3 - A livre circulação dos profissionais de Saúde na União Européia

Ao aumentar a “livre circulação” da imigração, os países da União Européia

se depararam com a necessidade de ampliar um novo regime de proteção social. No

caso das políticas de saúde, então o objeto dessa tese, esse fluxo imigratório pressionou

a ampliação dos cuidados ao imigrante9 para que os países pudessem suportar a

7
Sobre isso ler o documento produzido pela UE: Reconocimiento y transparencia de las cualificaciones.
Disponível na Internet: <http://ec.europa.eu/education/policies/rec_qual/ rec_qual_es.html>. (Recuperado
em 02/03/2007).
8
O documento Providing safeguards and guarantees limiting the power of Member States to restrict the
fundamental right to free movement within the EU foi produzido pela União Européia e está disponível na
internet em seu site: Recuperado em 02/03/2007:
<http://ec.europa.eu/justice_home/fsj/citizenship/public/fsj_citizenship_public_en.htm>.
9
O cuidado ao imigrante será melhor debatido no Capítulo II.

32
circulação dos trabalhadores. O curioso é que esses cuidados passaram a ser elaborados

e prestados também por trabalhadores imigrantes – profissionais de saúde cuja principal

qualidade residia na capacidade de vivenciar a mesma experiência daqueles que eram

por eles atendidos: o êxodo do território nacional.

O papel desses profissionais da saúde imigrantes é tão importante, que os

marcos legais da União Européia atestam para esse grupo de trabalhadores o status de

“reconhecimento automático”: médicos, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos, parteiras,

arquitetos e veterinários recebem o reconhecimentos imediato para atuar em outro

Estado-membro da UE, deliberado a partir da legislação comum, após um treinamento

mínimo uniformizado.10 O imigrante foi posto oficialmente a produzir. E a

complexidade do sistema supranacional europeu aparece na Saúde através de uma

necessidade emergente de cuidado e vigilância daqueles que circulam em seu território.

É nesse contexto que a validação dos diplomas da área de saúde é tornada

uma urgência, alcançando prioridade entre as profissões que são consideradas na

legislação por “reconhecimento público” de sua necessidade. As primeiras profissões da

saúde que obtiveram esse título foi medicina, odontologia e enfermagem. Mas esse

reconhecimento não significava uma circulação automática pelo território

supranacional. Segundo Gerlinger (2006), para a medicina, por exemplo, a União

Européia exige aos seus Estados-membros que receba o profissional que curse cinco

anos de graduação com 5.500 horas, além de elaborar treinamento e capacitação para

esses profissionais no país que o recebe.

Esse processo de treinamentos exigidos pela União Européia busca criar

uma uniformidade das qualificações, desenvolvendo competências que adequem a

formação original à realidade local. Contudo, se um profissional imigrante tem suas

10
O documento produzido pela União Européia: Recognition of diplomas in the European Union está
disponível em: <http://ec.europa.eu/education/policies/rec_qual/recognition/in_en.html> (Recuperado em
02/03/2007).

33
qualificações profissionais consideradas como insatisfatórias, o país que o recebe tem a

permissão para recusá-lo. Ou seja, a formação profissional do estrangeiro sempre estará

sob avaliação de todos os países, e a prática profissional sempre deverá obedecer a

certas condições que são impostas. Mesmo assim, nem todos os diplomas são avaliados,

pois, até 2004, somente os que pertencem aos países membros da União ou que

obedecem a uma listagem de aproximadamente 50 especializações que o país de origem

necessita recrutar teriam suas solicitações avaliadas. Após o ano de 2005 o Parlamento

Europeu e o Conselho Europeu reconheceram cerca de 150 profissões11 (na área da

Saúde) como necessárias para serem arregimentadas entre os imigrantes que por ventura

vierem a se candidatar (Gerlinger, 2006).

O primeiro impacto dessa liberação atingiu a Universidade desses países,

que passam paulatinamente a assumir uma formação acadêmica mais generalista e

uniformizada, do ponto de vista do conhecimento aplicado em uma atividade

profissional. Logo, um saber comum é projetado para facilitar o deslocamento dos

profissionais.

No campo da saúde, os profissionais passam a pleitear, através de suas

categorias de representação, associados a ONG´s da área da saúde, o reconhecimento

mútuo de diplomas entre os Estados-membros da União Européia. As razões atribuídas

para o surgimento do movimento são variadas. Pelo lado do trabalho, a luta gira em

favor de tornar comum um conhecimento, diminuindo o estigma de “trabalhadores de

baixo valor” que passam muitos imigrantes, como os do Leste Europeu, quase sempre

qualificados por conter uma formação acadêmica inferior. E ter uma qualificação

inferior significa possuir condições inseguras de trabalho, reduzido acúmulo de

11
A medicina teve seu reconhecimento considerado automático no ano de 1983, desde que obedecesse
aos critérios de tempo de graduação e origem européia da diplomação. Outra característica comum entre
os países para os médicos era a validação de um país para o outro: se o imigrante europeu obteve o
reconhecimento de seu diploma em um país europeu, ele deve ser reconhecido por outro país europeu
caso o médico em questão venha a imigrar novamente (Gerlinger, 2006).

34
conhecimentos técnicos e carga horária excessiva com salários baixos. Um enfermeiro

polonês trabalha muito mais horas por um salário inferior ao de um enfermeiro alemão

com uma carga horária de trabalho menor.

Do ponto de vista dos Estados mais ricos da Europa, a harmonização dos

diplomas se justifica pelo temor da perda da qualidade de seus serviços ao ser invadidos

pela mão-de-obra imigrante. Pensar a livre circulação de profissionais da saúde

representa colocar na agenda a harmonização das políticas de recursos humanos em

saúde.

Entre o discurso do Estado e o discurso do trabalho há uma realidade

concreta; como analisa Frommel (2002) a imigração não foi causada apenas pela

pobreza, pelos imperativos de sobrevivência ou, até mesmo pela evolução dos

comportamentos12. Ela resulta, antes de tudo, do sentimento que os países do norte

oferecem aos profissionais qualificados: um modo de vida e um desenvolvimento da

carreira correspondente ao seu saber. A instabilidade da cena política, as prevenções

étnicas, as insatisfações profissionais (o peso da burocracia, remuneração desatualizada,

apadrinhamento, isolamento), a distância entre o aprendido e o que se pode realizar e a

vida familiar representam muitas vezes fatores mais decisivos que a atração por

vantagens materiais.

Frommel (2002) aponta que o que faz um médico exercer suas funções em

outro país (principalmente os desenvolvidos) são condições muito complexas, por

exemplo, a lembrança de uma “medicina triunfante”, curativa e necessariamente eficaz.

Essa visão, freqüentemente ocultada, afeta tanto o norte, quanto o sul do planeta, e

reside na crise persistente do pensamento médico, engendrando frustrações quando os

meios materiais falham. Não diagnosticar com o auxílio de alguns exames laboratoriais,

não poder receitar o medicamento apropriado, não poder seguir as regras indispensáveis
12
Frommel, Dominique. O mercado da saúde e roubo de cérebros. Publicado no Le Monde Diplomatique
Brasil. Disponível na internet: <http://diplo.uol.com.br/2002-04,a275> (Recuperada em 03/05/2007).

35
de higiene é o destino de uma grande parte dos profissionais de saúde que trabalham nos

países em vias de desenvolvimento. Aqueles que podem tentar a imigração confrontam-

se com o dilema de permanecer em seu território ou fiel à sua função de curar. O êxodo

de inúmeros profissionais da saúde da região sul criou o que Frommel (2002)

denominou por apartheid sanitário – verdadeiros desertos de produção sobre a saúde.

Por último, o autor ainda destaca que os profissionais da saúde que estão

fora de seus países de origem ainda assim estão contribuindo para o desenvolvimento de

seus territórios. Daí viria a formação de um “novo pacto”, onde as estratégias e

modalidades de cooperação deverão levar em conta a diversidade de suas realidades e

desafios em curto e longo prazo. Alguns países formam mais profissionais do que

podem empregar (Cuba, Egito, Espanha, Israel, Filipinas...) e outros formam um

número insuficiente para respeitar a proporção profissional/habitante considerada

satisfatória. Por isso, a migração dos profissionais da saúde não reside unicamente na

possibilidade dos países limitarem ou não a mobilidade individual.

Recentemente, a Associação dos Enfermeiros da União Européia se

pronunciou13 alegando não ter nenhum controle sobre o número de profissionais que

abandonam seus países de origem, e também afirmando que não possuem nenhum

registro detalhado e nem confiável sobre as condições de trabalho a que estão

submetidos seus profissionais em vários países. Certamente, sugere a Associação14,

“estão trabalhando em condições de trabalho piores, com baixos salários e com grande

possibilidade de voltarem para casa”. O único controle estabelecido é o número do

registro profissional nos órgãos nacionais de representação da categoria e a informação

para onde migraram. Entretanto, a própria Associação afirma ser a migração necessária,

13
Retirado do documento: Free movement of professionals: opening up opportunities or perpetuating
problems? Disponível em: <http://www.epha.org/a/521?var_recherche=nurse>. Acesso em 03/05/2007.
14
A Associação dos Enfermeiros Europeus representa hoje cerca de 750.000 profissionais da
enfermagem.

36
pois a Europa não tem reproduzido sua força de trabalho de forma suficiente a suprir a

necessidade do profissional responsável pelos cuidados em saúde.

Outra interessante análise da circulação dos profissionais é feita por

Blanchet e Keith15 (2006). Para os autores, o fenômeno acontecido na Europa, Estados

Unidos e Canadá se resume ao envelhecimento de toda sua população. Esses países

optaram por atender a uma demanda crescente vinda do envelhecimento populacional

em massa e não tiveram condições de formarem e capacitarem novos recursos humanos.

Para isso, a alternativa mais rápida e mais barata seria a captura desses profissionais nos

países do Sul, onde os trabalhadores são flexíveis pelas condições adversas que o

formaram e, também, mostram-se dispostos a trabalhar em horários noturnos, recebendo

salários mais baixos e trabalham em um número maior de turnos.

Na interpretação feita pelos autores: “a África forma e a Europa seduz”. Se

um trabalhador do leste europeu possui o seu poder de consumo reduzido, o profissional

africano tem sua rentabilidade mais inferior ainda. Na perspectiva de um bom emprego,

de melhores tecnologias como ferramenta de trabalho e de melhores condições de vida

para suas famílias, o trabalhador se desloca para produzir.

Alguns países do continente africano adotaram punições durante a década

de 90 para aqueles profissionais que abandonassem seus países, como a retenção do

diploma, a proibição para atuar em serviços públicos se retornasse ao país de origem, ou

mesmo altas taxações sobre a emissão de documentos necessários ao exercício

profissional em território estrangeiro. Essas medidas, na contramão do esperado,

acabaram por desencorajar o retorno dos profissionais ao país e recrudesceram os

conflitos sociais (greves, absenteísmo) entre os profissionais de saúde e o governo.

Atualmente essas alternativas são substituídas por “premiações” aos profissionais que

15
Sobre isso ler Karl Blanchet e Regina Keith no Le Monde Diplomatique Brasil. A África enfrenta o
êxodo de médicos. Disponível na internet: <http://diplo.uol.com.br/2006-12,a1454> (Recuperado em
03/05/2007).

37
permanecem, como acréscimos em salário, auxílio moradia, pagamento de despesas

com a educação de seus filhos etc (Blanchet e Keith, 2006).

Nos anos 2000, com a incorporação de países do Leste Europeu à União

Européia havia o receio de que uma forte imigração dos trabalhadores do leste para os

países mais desenvolvidos do continente. No caso da saúde, essa expectativa era ainda

maior porque a União Européia decretou estado de alerta em toda região por causa de

possíveis ataques de bioterrorismo, e solicitava que profissionais de saúde se

deslocassem para os países mais suscetíveis ao bioterrorismo. Contudo, não houve a

imigração em massa desses profissionais. Na Alemanha, em 2003, quando a lei que

estimulava o deslocamento do trabalhador da saúde começou a vigorar, existia cerca de

340 mil médicos atuando em território alemão, e destes, apenas 2.500 eram médicos de

nacionalidade dos países do leste europeu (0,8%). Ou seja, a livre circulação de

profissionais da saúde não gerou uma imigração massiva dos países emergentes

europeus como se previa, mesmo com incentivos da UE (Gerlinger, 2006). Podemos

enumerar, no mínimo, três razões para isso. A primeira é a dificuldade do idioma

enfrentada pelo imigrante. O sucesso de uma intervenção profissional na área da Saúde

está na possibilidade de estabelecer vínculos, confiança na relação profissional através

da comunicação estabelecida. A área da Saúde possui a característica de priorizar o

estabelecimento de vínculo entre usuário e profissional. O idioma comum estabelece um

nivelamento na comunicação e uma situação de horizontalidade na relação. O idioma

diferenciado traduz uma cultura diferenciada e a sensação de insegurança

principalmente para os pacientes.

Mas esse é um discurso ambíguo, pois que o argumento da diferença social,

posição cultural ou barreira linguística não é menos racista do que a teoria biológica que

defende o conceito de raça. Ambos, o discurso da cultura e o discurso biológico, partem

do mesmo princípio, o princípio da segregação social.

38
O argumento que se diz anti-racista aparece escamoteado pela defesa da

igualdade cultural para permitir o exercício profissional de técnicos que trabalham com

a vida – como o caso dos trabalhadores da saúde. A transição para o “racismo pós-

moderno” está exatamente neste paradigma: a mudança do paradigma biológico-racista

dominante para uma teoria baseada na cultura. Sangue e gene aparecem como uma

condição de igualdade para toda a raça humana; agora o que se torna uma barreira da

diferença é a cultura. “Com a passagem para o Império, entretanto, as diferenças

biológicas foram substituídas por significadores culturais como a representação mais

importante do ódio e do medo raciais” (Hardt & Negri, p.211, 2001). Assim, quando

levanta-se a proibição estatal através de barreiras burocráticas para que esses

profissionais da saúde não consigam jamais atuar profissionalmente o discurso que

embasa a decisão não é uma barreira de sangue, mas algo relativista e culturalista. E a

sociedade inteira se defende sob a proteção de um argumento que se apresenta como

anti-racista.

A segunda razão para conter a livre circulação deriva das características das

políticas de trabalho dos Estados. Alguns países, após a absorção da circulação dos

profissionais da saúde pelo Conselho Europeu, restringiram a admissão de trabalhadores

para após cinco anos de pactuação da União Européia. A barreira aos vizinhos foi uma

medida tomada por países como a Áustria. Este período ainda podia ser estendido por

mais dois anos. Pela regulação da União Européia, cabe ao país dizer se aceita ou não a

livre circulação de profissionais em seu sistema de saúde. A Grécia e a Espanha, por

exemplo, optaram por limitar seus números de médicos e enfermeiros, pois alegam

possuir um grande contingente das categorias profissionais com alta qualificação, porém

sem empregos.

Na Inglaterra, a situação era diferente, pois que recebe o maior número de

profissionais da saúde do continente europeu, especialmente enfermeiros e médicos. No

39
passado, os profissionais da saúde na Inglaterra eram recrutados da África do Sul,

Filipinas ou Austrália. Em 2002, cerca de 50% dos profissionais da saúde ingleses eram

estrangeiros, destes, 13% dos enfermeiros vinham de outros países também europeus.

Segundo Gerlinger (2006), a Inglaterra tem uma tradição em “importar” profissionais,

até pela facilidade de usufruir de grande parte dos conhecimentos produzidos

mundialmente em língua inglesa na área da saúde.

As relações de trabalho na Alemanha se distinguiam desses países. Lá paga-

se ao médico por ato médico realizado. Já na Espanha o mesmo médico recebe um

salário fixo para trabalhar com uma carga horária pré determinada. Logo, temia-se a

imigração para a Alemanha, pois além de ser considerado um país central, o médico

recebe melhor pelo seu trabalho em uma medicina baseada em evidências e

tecnologizada como a atual.

Uma terceira razão que dificulta a livre circulação do trabalho se remete às

barreiras burocráticas estabelecidas para que o usuário não se desloque no continente. A

constante possibilidade de cruzar a fronteira com “facilidade” também gera a

possibilidade do usuário utilizar dos serviços de saúde em qualquer território. Pode-se

requisitar tratamento em qualquer país que esteja na União Européia; ou mesmo poderá

escolher realizar o acompanhamento e a terapêutica em um país que o serviço seja mais

barato ou até mesmo gratuito.

Contudo, essa movimentação encontra algumas barreiras burocráticas para

evitar o deslocamento dos profissionais estrangeiros, por exemplo: a criação de um

atestado de permissão emitido pelo país de origem do trabalhador para que ele se

estabeleça em determinada instituição ou mesmo para iniciar trabalhos autônomos na

prestação de serviços de saúde em domicílios ou clínicas particulares de um outro país.

A norma se sustenta no discurso de que é preciso proteger os serviços locais para evitar

a competição com serviços estrangeiros. Porém, essa parece ser uma norma que tende a

40
mudar. A Comissão do Parlamento Europeu providenciou a apresentação de um projeto

de lei para o ano de 2007 que contém uma proposta para a proibição de requerimentos

arbitrários, caso se queira estabelecer a prestação de serviços de saúde em países

estrangeiros. Ou seja, proibir pré-requisitos que contenham excessos de burocracia para

estabelecer barreiras definitivas nos serviços de saúde. O projeto de lei deve prever o

respeito aos acordos entre os países na área da Saúde, dependendo da pactuação (ou

não) por parte do país que receberá o imigrante.

41
1.4 – Por um Sistema de Proteção Social Global: dos movimentos de Seattle
ao Fórum Social Mundial

“O desafio é que não tem uma liderança central ou


estrutura de comando; tem muitas cabeças, e é
impossível decaptar”.
(Relatório militar americano sobre o levante zapatista)

“Os militantes atuais não são tão ingênuos a ponto de


acreditar que a mudança virá de uma urna eleitoral”.
(Naomi Klein)

Durante a década de 90, enquanto a União Européia tentava demonstrar um

concreto sistema de proteção social supranacional, neste mesmo período histórico, abre-

se um novo ciclo de lutas sociais caracterizado pela atuação global de militantes em prol

de um processo de globalização mais inclusivo, o que significava a construção de pactos

voltados à redução da pobreza, à democratização dos conhecimentos e a remodelação

do direito à propriedade intelectual e às patentes, à livre circulação do trabalho, à

conformação de políticas públicas que articulasse os interesses globais e locais de

universalização dos direitos. Estas, entre muitas outras agendas, se articulavam em

torno dos efeitos locais de um processo global de privatização da vida instituído por um

modelo neoliberal16 levado a cabo por corporações globais, Estados e instituições

supranacionais (Grupos dos Oito, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário

Internacional ou ainda pelo Banco Mundial).

16
“A mudança do sistema intervencionista "keynesiano"-"desenvolvimentista", que vigorava
anteriormente na maior parte do mundo capitalista, para esse "novo sistema" neoliberal não era inevitável;
ao contrário, a globalização neoliberal foi um processo escolhido pelas elites político-econômicas
mundiais, especialmente as dos Estados Unidos e Grã-Bretanha, por estas acreditarem que esse processo
melhor atenderia a seus interesses econômicos do momento turbulento que atravessam (Crotty, 2002).
[14] Os defensores da globalização neoliberal usaram em seu discurso "globalista-liberalizante" a teoria
econômica "neoclássica", que reza que, em não havendo intervenção econômica governamental
excessiva, tanto as economias nacionais quanto a economia mundial operará de forma eficiente, conforme
os modelos dos mercados "perfeitamente competitivos" constantes dos livros-texto escolares de
economia”. Sobre a definição básica do neoliberalismo, ler Neoliberalismo. Disponível na internet em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Neoliberalismo>.

42
Essas lutas globais contra o neoliberalismo têm como marco inicial17 a

contestação radical que ocorre nas ruas de Seattle em 30 de novembro de 1999, quando

milhares de militantes bloquearam18 o acesso dos delegados ao encontro da Organização

Mundial do Comércio na cidade, fazendo com que a chamada Rodada do Milênio19

fosse cancelada. Cerca de 50 mil pessoas, de 144 países diferentes, ocuparam a cidade

americana, dando origem aquilo que os militantes denominaram de o movimento dos

movimentos e a Batalha de Seattle.20 Eram sujeitos advindos dos mais distintos

movimentos: ambientalistas, sindicalistas, feministas, pacifistas, representantes do


17
Há aqueles que remetem ao Movimento Zapatista o marco das lutas contra a globalização neoliberal,
por ser ele organizado em uma estrutura de rede e identificado por um forte desejo de liberação da
máquina neoliberal. O Exército Zapatista de Libertação Nacional em Chiapas era composto por pessoas
que aprenderam a evitar líderes carismáticos repletos de panacéias ideológicas. Nele não havia uma
lealdade partidária, ao contrário, são membros de um grupo que se orgulhava por sua autonomia e sua
ausência de hierarquias. Pessoas sem identidade lutando por uma causa comum (Klein, 2003). Chiapas
contou com o apoio de pequenos agricultores, estudantes, militantes que se uniam durante o itinerário de
sua caminhada de revolução camponesa. O Exército Zapatista não tinha um comandante, mas
encontravam-se nas próprias comunidades, através de conselhos clandestinos e assembléias totalmente
abertas.
18
Uma das formas de bloqueio tratava-se de dividir os militantes em pequenos grupos que ficava sentados
nas ruas em torno dos hotéis onde se localizavam os delegados da OMC, impedindo-os de circular. O
então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, a Secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, e a
representante comercial norte-americana, Marlaine Barchevsky – que devia fazer o discurso de abertura –
ficaram presos em seus hotéis.
19
Na época, a “Rodada do Milênio” estava a ser aguardada como o momento de ampliação da
liberalização do comércio internacional, o que interessava principalmente às nações mais ricas. Os países
emergentes estavam realizando uma série de críticas por excluí-los das rodadas de negociações, impondo
um sistema injusto de comércio a esses países. Como uma crítica a Rodada, “uma declaração de
membros da sociedade civil, que se posicionavam contra um “mercado global” circulou, basicamente
pela internet, através da lista de discussões: Stop WTO Round (Pare a Rodada da OMC) e foi
impulsionada por um grande número de organizações sociais, mais de 1500 entidades de cerca de 89
países aderiram à carta (TADDEI, 2001). Os preparativos incluíram, inclusive, treinamentos em técnicas
de “protesto não violento” organizados pelo coletivo Direct Action Network (Rede de Ação Direta).
Encenações e apresentações festivas também deram um tom irreverente ao protesto, que foi antecedido,
a partir de 26 de novembro, por uma série de seminários, reuniões, colóquios e encontros, entre
ativistas, associações e redes em sua maioria da Europa, Austrália, Índia, EUA, Canadá e com
pouquíssima freqüência da África, Ásia e América Latina”. Sobre isso ler, RABELLO, Ana Maria
Prestes. Um olhar sobre o movimento social global. Artigo recuperado em 15/02/2007. Disponível em:
<http://dspace.lcc.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/VCSA-6XYQDP>.
20
O evento logo foi batizado como batalha de Seattle pela imprensa norte-americana: “Milhares de
manifestantes de organizações não-governamentais, sindicatos e ambientalistas saíram às ruas ontem
para protestar contra os efeitos da globalização. Estima-se que cerca de 50 mil críticos do capitalismo
global chegaram à cidade no final de semana, numa manifestação que está sendo chamada de "Batalha
de Seattle". A polícia teve que intervir quando a multidão se dirigiu para o centro de conferência da
OMC, que foi fechado por algumas horas para uma inspeção da polícia. Houve protestos contra o
trabalho infantil, a produção de alimentos transgênicos e a destruição do meio ambiente. O ponto
comum defendido pelos manifestantes é que o livre-comércio apregoado pela OMC não é justo,
especialmente no que diz respeitos aos trabalhadores nos países pobres. Os manifestantes acusaram a
OMC de degradar o meio ambiente do planeta e impedir o desenvolvimento de muitos países”. Sobre
isso ler, Protestos marcam encontro da OMC. BBC Brasil. Disponível na Internet:
<http://www.bbc.co.uk/ portuguese/esp_seattle_rodad_30.11.htm>. Acesso em 15/01/2007

43
campesinato e dos índios, religiosos ou ainda militantes pelos direitos humanos.21 A

ocupação da cidade provocou uma onda de conflitos entre militantes e polícia, fazendo

com que o governo local decretasse estado de emergência e toque de recolher na cidade.

“Quem são essas pessoas?” Foi a pergunta feita por vários americanos que nunca

tinham visto militantes vestidos de tartarugas-marinhas (Klein, 2003).

A Batalha de Seattle inova na forma de organização dos protestos por

utilizar o conceito de afluência e a lógica de rede como estrutura de ataque. “A afluência

(swarming) é um modo estratégico – de aparência amorfa, mas deliberadamente

estruturado e coordenado – de golpear, vindo de todas as direções, um ponto particular

ou vários pontos por meio de uma pulsação sustentável de força ou de fogo mantida a

partir de uma posição de resistência próxima” (Antoun, 2004, p.219).

Arquila e Ronfeldt (2001) decretaram essa nova forma de ação como uma

sofisticada doutrina de guerra em rede (netwar).22 No caso de Seattle, os participantes

eram convidados a se organizarem, a partir de sua própria escolha, em pequenos grupos

de afinidades (5 a 20 pessoas) – equipes auto-suficientes, pequenas e autônomas, de

pessoas que partilham certos princípios, objetivos, interesses, planos ou outras

similaridades que as tornassem capazes de trabalhar bem juntos. Cada grupo decidia por

si quais ações seus membros iriam responsabilizar-se, abrangendo teatro de rua (na

21
La OMC decide supender la inauguración y comenzar precariamente las deliberaciones. La ciudad se ha
vuelto un completo caos. La violencia en las calles se ha descontrolado y los gases lacrimógenos inundan
la ciudad llegando hasta 10 kilómetros del centro. Esa noche las autoridades locales declaran el estado de
emergencia y el toque de queda. El martes 1 de diciembre el Presidente Clinton llega a Seattle y declara
públicamente que está de acuerdo con los manifestantes. El gobierno estatal envía a la Guardia Nacional
y grupos SWAT. Se declara ilegal la posesión, venta o transferencia de máscaras de gas en la ciudad y se
prohíben todos los actos y marchas. El centro es cercado y se establece un área de seguridad al que los
manifestantes no pueden acceder (a partir de entonces la "zona de exclusión" se volverá una práctica
habitual en las reuniones de ciertos organismos internacionales). Las batallas campales durarán tres días
más con una extensión que EEUU no veía desde la década de los 1960 con las acciones contra la Guerra
de Vietnam. (Wikpedia. N-30. Disponível na internet: http://es.wikipedia.org/wiki/
Disturbios_en_Seattle_de_1999).
22
Esse conceito, dos mesmos autores, foi praticado na ocupação do Iraque, quando pequenos grupos de
soldados atacaram de várias posições, sincronizados, o mesmo alvo mas em várias posições no espaço.
Além disso, desenvolveu-se todo um método de como quebrar uma rede (no caso do terrorismo),
concretizada na lógica matemática em que uma rede é eliminada se cerca de 30 a 40% de seus nós forem
desativados e desconectados.

44
época, muitos militantes fantasiavam-se de tartarugas) ao risco de serem presos.

Diferentes pessoas em cada grupo assumiam diferentes funções mas todo o esforço era

feito para acentuar o fato de que nenhum grupo tinha um líder único. Tudo isto era

coordenado em um encontro de um conselho de porta-vozes para onde cada grupo envia

um representante e as decisões são alcançadas através da consulta democrática e do

consenso. A Batalha de Seattle usava aquilo que os teóricos da comunicação chamam de

redes de todos os canais (allchannels), uma organização que permite a comunicação e

interação de cada nó da rede diretamente com qualquer outro nó. É a doutrina da

resistência sem líder23. “Usando este conceito herdado da experiência da sedição na

revolução americana, a rede se organiza através de células fantasmas e da ação

individual de seus membros como homens do momento (minutemen), de modo que os

grupos e indivíduos operam independentemente uns dos outros sem nunca se remeter a

um quartel central ou líder único” (Antoun, 2004, p.219).

Se compararmos com os movimentos de décadas não muito distantes,

conseguimos perceber a novidade que esses movimentos trazem em sua organização.

Antes, os protestos e as revoltas seguiam dois modelos primordiais: o primeiro e mais

tradicional formado pela luta a partir de uma identidade, uma unidade organizada sob

uma liderança central – como a de um partido. A história política das lutas operárias

está repleta de modelos que aconteceram desta forma. O segundo modelo, de forma

oposta ao primeiro, baseia-se no direito de cada grupo expressar sua diferença e

conduzir de maneira autônoma sua própria luta – esse modelo da diferença baseou-se

nas lutas de raça, gênero e sexualidade. Ambos representavam duas alternativas: a luta

unida, debaixo de uma identidade central ou lutas separadas que afirmam nossas

diferenças (Berardi, 2005).

23
Curiosamente elaborada pelo extremista de direita Louis Beam. Sobre isso ler Antoun, 2004, p.219.

45
O modelo em rede atual não nega e nem suprime o antigo, mas lhe confere

uma forma diferente. A Batalha de Seattle foi o berço de uma contestação antes nunca

vista pelos mais radicais ativistas. Em torno da reunião contra a OMC, formou-se ainda

uma espécie de assembléia virtual na Internet24 permanente para discutir e se informar

em tempo real sobre os acontecimentos através de atos contestatórios à cúpula da

Organização Mundial do Comércio (Berardi, 2005). Essa estrutura difusa de

mobilização constitui um modelo de organização absolutamente democrático e também

uma arma poderosa contra a estrutura vigente de poder. Provocam no plano simbólico

um efeito de crise da ideologia global-capitalista. Milhões de pessoas recebem

mensagens, informam-se, visitam sites desses movimentos globais e participam de listas

de discussão25 em frente ao seu computador numa permanente assembléia auto-

organizada em rede. O fato de mostrarem seu descontentamento contra os efeitos

nocivos da globalização com protestos sem nenhuma violência fez com que ganhassem

o rótulo de serem movimentos contra a globalização. Ao contrário, representam hoje os

primeiros movimentos globais auto-organizados (Berardi, 2005). Neste caso, a rede que

os conecta é parte das ferramentas criadas por uma sociedade do conhecimento,

cientificizada e tecnologizada – de tal forma que a rede não é meramente uma peça

tecnológica26, a rede é o movimento.

A Batalha de Seattle foi então a constituição de uma luta contra a

privatização do espaço público, contra a comercialização simbólica operada pelas

24
É fundado o Centro de Mídia Independente (CMI), o Indymedia, cujo propósito era divulgar as
informações das manifestações a partir de relatos dos ativistas e de reportagens de jornalistas
independentes. Durante as manifestações, a sede do CMI foi invadida por policiais, que levaram
servidores que armazenavam fotos de abusos policiais.
25
Após Seattle, todas as prefeituras dos Estados Unidos passaram a assinar as listas de discussão por
email dos movimentos que seguem as reuniões do G-8. Elas possuem a função de alimentar o banco de
dados da polícia americana, tentando prever as estratégias que serão utilizadas nos próximos protestos
(Klein, 2003).
26
No livro O homem sem fundamentos Márcio Tavares D’Amaral escreve: “Toda tecnologia traz em si o
desejo de agir”.

46
multinacionais produtoras de bens de consumo – uma luta contra as corporações,

opondo-se à lógica em que o que é bom para os negócios é bom para todo o mundo.

Um de seus elementos mais surpreendentes em cada manifestação ocorrida

em Seattle é o fato de que grupos que até então tinham atuações tão diferenciadas e às

vezes até contraditórias, agiam com interesses comuns: ambientalistas, sindicalistas,

anarquistas, grupos religiosos, gays e lésbicas protestavam através de uma estrutura em

rede sem qualquer estrutura central e unificadora. Os fóruns sociais e grupos de

afinidade constituíam a base desses movimentos, que conseguiam agir conjuntamente

de acordo com o que têm em comum27. “A plena expressão de autonomia e da diferença

de cada um coincide aqui com a poderosa articulação de todos. A democracia define

tanto a meta dos movimentos quanto sua atividade” (Hardt & Negri, p.125, 2005).

O fato é que esse novo ciclo que funciona no formato de uma rede aberta,

todos expressam-se livremente sem a existência de um centro. “Essas lutas a partir da

globalização desafiam o corpo político global para criar um mundo global ainda mais

livre e democrático” (Negri, 2005, p.282-3).

Depois da Batalha de Seattle, ocorrem novas mobilizações de boicote às

cúpulas das organizações supranacionais, então acusadas de instrumento administrativo

e legislativo do domínio das multinacionais sobre a economia do planeta. “Essas

organizações têm um estatuto sem legitimidade democrática: foram criadas pelas

potências ocidentais para administrar as relações financeiras entre os Estados e entre os

grandes grupos, planejar intervenções econômicas em diversas áreas do planeta”

(Berardi, 2005).

Um dos momentos de maior mobilização do Povo de Seattle aconteceu em

Julho de 2001, em Gênova, quando mais de 1 milhão de militantes uniram-se para


27
“Parece-nos que os dias de Seattle encarnaram aquilo que Foucault anunciava no fim da vida: os
movimentos políticos não devem apenas resistir e se defender, mas afirmar-se como forças criadoras. (...)
esta resistência deve se abrir a um processo de criação, de transformação da situação, de participação
ativa nesse processo. Nisso consiste resistir, segundo Foucault” (Lazzarato, 2006, p.20/21).

47
bloquear o encontro do Grupo dos Oito países mais ricos do mundo, o G8. “O

movimento antiglobalização, armado de escudos de papelão e de espadas de plástico,

partiu para o ataque contra a reunião de cúpula do G-8”, apontou Toni Negri28.

Os níveis de abuso policial29 foram tão grandes que “Carlo Giuliani, um

jovem manifestante, foi morto com um tiro no rosto dado por um policial que tinha a

sua idade. Vinte e quatro horas depois, durante a noite, uma centena de manifestantes

foram barbaramente agredidos, quando dormiam, por grupos de policias exaltados”30.

As manifestações que vão de Seattle a Gênova, passando pelas grandes

mobilizações contra a Ocupação do Iraque até a reunião dos militantes nos Fóruns

Sociais Mundiais, foram marcadas por conseguir arregimentar uma quantidade

significativa de pessoas na América do Norte e Europa apenas. Negri e Hardt (2005,

p.220) afirmam que esses movimentos tiveram sua curva ascendente em Seattle e sua

curva descendente com as mobilizações contra a política dos EUA de ocupação do

Iraque. Isto fez nascer um processo de crise nos movimentos no-global. Mas uma crise

que fez nascer um novo ciclo de lutas, “protagonizadas por lutas sociais de novo tipo,

que se dão ao redor fundamentalmente do trabalho precário e da imigração”.

Não me assusta a crise. A crise envolve um impulso decrescente


da política, ao mesmo tempo em que há um impulso crescente
das lutas sociais. Veja o caso das lutas globais. Se é verdade que
o ciclo de lutas globais está em crise é porque o poder neoliberal
também está. Eles [o poder americano] perderam. E há nessa
forma de perda a derrota do capitalismo. As lutas políticas têm
de acontecer novamente. Elas que vão mexer com o capitalismo.
Na Europa por exemplo, elas estão ocorrendo. É a luta do
precariado. Contra as formas de precarização do trabalho. A luta
é por deslocamento, pela renda mínima. É o cognitariado tirando
impulso, força, da miséria em que se vive. É tão séria que a luta
é também contra o sindicalismo. Por que o sindicalismo defende

28
Sobre a análise negriana sobre o acontecimento em Gênova, ler Por uma democracia absoluta,
publicado no jornal eletrônico Le Monde Diplomatique: <http://diplo.uol.com.br/2002-08,a384> Acesso
em 13/02/2006.
29
Boa parte das manifestações foram pacificadas pelos chamados carabineiros, a polícia política italiana,
então herdeira da cultura do fascismo do país.
30
Negri, idem, online.

48
o emprego, benefício somente pra quem tem salário. No
Primeiro de Maio o precariado foi às ruas também contra os
sindicatos que não mais o representa. É só dentro desse quadro
geral de crise que podemos resolver os problemas". (Negri,
2005, online)31

Todo o debate construído a partir do “movimento dos movimentos” é que as

mobilizações globais não são propriedade de uma classe social ou de um território

apenas, mas de uma resistência coletiva ao poder – “uma coletividade que luta em

comum”. A comunicação com outras lutas apenas reforça e aumenta o poder, o

antagonismo e a riqueza de cada uma delas (Hardt & Negri, 2005).

Analisado por alguns autores, como Boaventura de Sousa Santos (2005),

esses movimentos globais aparecem em sua obra permeado por muito ceticismo, ao

ponto do autor quase não acreditar na existência de um movimento sem líder, o qual

ninguém está autorizado a falar por ele. Boaventura (2005, p.37) considera que tais

movimentos são dotados de uma concepção muito ampla de poder e opressão, por isso

as práticas políticas estão sempre dependentes do contexto, das condições sociais

concretas de um dado momento histórico. A isso atribui o fato dos movimentos globais

articularem-se muito entre si, priorizando as pactuações e rejeitando hierarquias. Não há

uma teoria única para guiar estrategicamente estes movimentos, pois o objetivo não é

conquistar o poder, mas transformá-lo dentro da diversidade e do pluralismo da

democracia radical.

O que temos de mais concreto nessa seqüência de lutas globais é que de

Seattle a Porto Alegre, esses movimentos agiram diretamente na transformação do

imaginário planetário, da conseqüência ética e do campo político. Essa missão foi

cumprida. “Os poderosos da Terra estão em fuga, refugiam-se nas montanhas do

Canadá ou nos desertos do Qatar. Agora o movimento deve tornar-se força política que

31
Negri, idem, on line.

49
possibilite a autonomia da inteligência coletiva” (Berardi in Cocco & Hopstein, p112,

2002).

50
1.5 - A Saúde como uma agenda global

Saúde, no seu sentido mais amplo, não esteve à margem da formação e da

composição desses movimentos globais. Na década de 90 as discussões no interior

desses movimentos deram o tom de vários debates sobre a pobreza e a exclusão social

em todo o mundo. Os fatores negativos que a globalização trazia à saúde de todas as

populações findaram por formar uma discussão denominada Saúde Global em várias

partes do mundo32. A globalização tornara-se assim o centro da discussão da saúde,

principalmente a globalização econômica, pois influenciava diretamente os modos de

articulação das políticas de acesso à saúde em todos os países.

Se fôssemos decompor o debate poderíamos a grosso modo entender que a

Saúde Global é um campo que se detém a estudar a influência da pobreza, da miséria,

exclusão social, macro-determinação econômica, guerras, fluxos migratórios,

desregulamentação do trabalho, morte por ausência de medicamentos essenciais, falta

de segurança alimentar, luta por patentes de pesquisas em saúde, políticas

supranacionais e políticas de pactos aduaneiros em prol da harmonização da Saúde. Ou

seja, questões que permeiam não somente os países emergentes, mas a todos os países e

também a todos os movimentos de luta pelo direito à saúde.

No campo da saúde, os Estados Unidos foi o primeiro país a criar um órgão

de governo específico à Saúde Global, seguido pelo Canadá. O discurso era o mesmo

dos movimentos sociais: a atenção às populações pobres e o acesso aos serviços básicos

para esta mesma população, porém, o Departamento de Saúde Global e Serviços

Humanos do governo americano tratavam saúde global como ajudas humanitárias aos

países emergentes associadas à parceiros como a OMS/ONU.

32
O termo Saúde Global é oriundo da própria práxis política, antes mesmo de definições mais
acadêmicas.

51
O termo Saúde Global chegou por um tempo a ser denominado por Saúde

Internacional em determinados países, referindo-se a acordos de proteção social à saúde

realizados entre dois ou mais países. Ou mesmo para designar parcerias entre

departamentos governamentais, ONG´s internacionais ou fundações de amparo à saúde

e vigilância. Muitas vezes, o termo Saúde Internacional foi utilizado pelos Estados

como medida de controle às populações fronteiriças e à capacidade dos Estados em

manter uma política de vigilância e controle à saúde de imigrantes em transição pelas

fronteiras nacionais. Alguns países nesta mesma época tornaram obrigatório o exame de

HIV e outras doenças infecto-contagiosas como requisito para a livre circulação de

pessoas entre os Estados (Lee, 2002).

A partir dessa captura do termo pelos Estados nacionais, medidas que

demonstrassem a capacidade desses Estados em controlar as causas globais de

adoecimento foram se tornando parte das “políticas de saúde globais”. Por exemplo, a

capacidade de dar respostas imediatas a grandes contaminações por poluentes ao

ambiente; a capacidade de “zelar” pela não degradação da saúde mesmo em casos

extremos de guerra (surgindo o termo “guerra limpa”); a capacidade de controlar

endemias em zonas de fronteira ou medicalizar suas populações em acordos aduaneiros

com o uso de vacinações conjuntas.

Contudo, essa política de saúde global não coincidia com aquela que o Povo

de Seattle desejava, pois que as causas do adoecimento e morte de várias populações

provinham de uma mesma causa: uma concertação global que tornavam mundial a

pobreza, a miséria e a exclusão social de várias populações independentemente de suas

nacionalidades.

Internacionalmente, o termo Global Health, que hoje refere-se a um campo

de estudos, dá ênfase as pesquisas sobre a relação entre o desenvolvimento econômico e

a capacidade da Saúde em acompanhar este desenvolvimento qualitativamente entre as

52
suas populações. Ou seja, a visão que hoje a OMS possui sobre a Saúde Global refere-se

a uma visão economicista de uma política pública de Estado – Saúde Pública –

determinada pelos fluxos de capitais e acordos multilaterais entre países.

Saúde Global então tornou-se um campo primeiramente de luta pelos

direitos sociais à saúde protestados pelos movimentos globais de acumulação de um

saber global (know-global). Em um segundo momento tornou-se algo relativo às

relações internacionais, denominando-se temporariamente por algumas instituições

governamentais e ONG´s por Saúde Internacional.

Os movimentos dos anos 90 não foram unicamente voltados para a questão

da saúde, mas direcionados à lutas políticas contra ações de caráter neoliberais advindas

de órgãos supranacionais ou medidas tomadas em âmbito internacional que

beneficiassem apenas os países mais desenvolvidos no comércio global. A questão da

saúde perpassava as agendas desses movimentos como algo determinado diretamente

pelas políticas econômicas que perpetuavam a pobreza e a miséria no mundo.

É compreensível também que a literatura produzida até então valorize o

campo da Saúde Global como um fruto das ações da ONU, OMS, Banco Mundial, FMI,

ou de países ricos que ainda são super potências em seu próprio território; pois a

dificuldade está em desprender o global de algo único. Desassociar a produção dos

movimentos sociais em rede de algo regido pela vontade de uma única liderança; um

contra movimento ao poder soberano de um único país; submetido a uma única

organização padronizada de trabalho. É da multiplicidade na diferença que foi pensada

a Saúde Global pelos movimentos políticos globais: contra uma ordem única de

comando.

53
O Movimento Global pela Saúde dos Povos

“Doenças e mortes acontecendo diariamente nos enchem de


raiva. Não porque as pessoas ficam doentes ou morrem. Temos
raiva porque muitas dessas doenças e mortes têm sua origem nas
políticas econômicas e sociais que nos são impostas”.
(Declaração de Bangladesh do PHM)

“Enfermo es el que permanece indiferente ante la injusticia”.


(Relatório final da II Assembléia Mundial de Saúde
dos Povos no Equador)

O People´s Health Movement (PHM) é um dos primeiros movimentos que

produziu um discurso que expressa a questão social global da saúde. Diz-se

desacreditado ao que foi prometido entre as nações que compuseram Alma-Ata em

1978. Seu slogan “Saúde para todos Agora” traduz o descrédito à reunião que se auto

definiu como “Saúde para todos no ano 2000”, prevendo o acesso à saúde para todos os

cidadãos. O Movimento da Saúde dos Povos, se assim podemos traduzir, é um fluxo

que se apóia em várias organizações comunitárias, instituições humanitárias,

organizações não governamentais e ativistas que sustentam a causa da saúde como

direito universal em escala global.

Possui uma agenda esboçada em uma carta princípio que endossa a saúde

como direito fundamental; identifica a desigualdade, a pobreza e a exploração como

raízes do adoecimento humano; traz uma perspectiva de ouvir as populações pobres

para incentivar a produção de suas próprias soluções para a prevenção de doenças; e

estimula ações para que as populações pobres negociem com suas autoridades locais

diretamente. A carta com os princípios criados por este movimento traz a visão de

distanciamento completo que se quer produzir ao modelo biomédico de saúde e também

ao modelo político de decisão global baseado na supranacionalidade da OMS.

54
Para isso dispõe de uma série de argumentos que legitimam o

distanciamento das instituições supranacionais alegando que os fatores sociais,

econômicos e políticos influenciam diretamente nas agendas dessas instituições. A

guerra, a violência e a degradação do ambiente compõem um elenco de fatores

determinantes às desigualdades em saúde entre as populações. Para este movimento as

ações deveriam centrar-se na promoção de um mundo mais saudável através do

atendimento prioritário às populações pobres. Sem dúvidas, as desigualdades sociais e

as condições de miséria entre as populações são fatores que agregam a agenda deste

fórum.

O movimento também se auto-denomina contra o neoliberalismo expresso

nas ações de privatização da saúde em todo o mundo. Para isso, conclama a uma

reforma das instituições financeiras internacionais, entendendo que somente desta forma

poderiam fazê-las mais responsáveis na diminuição à pobreza e ao fortalecimento das

ações em saúde. Um dos principais argumentos para a defesa dessa “democratização”

das instituições supranacionais está no abusivo custo de medicamentos às populações

pobres como em todo o continente da população africana. Ou mesmo o discurso da

fome e da morte por desnutrição em vários países do sul global. A defesa à produção de

medicamentos genéricos para todos os países emergentes e, também, uma política local

para a dependência química, tratando o tráfico de drogas como algo determinante a

saúde das populações compõem suas causas.

O acesso aos serviços de saúde de forma desigual em todo o mundo aparece

também como agenda que desenha o perfil do trabalhador imigrante sem acesso à saúde

e também na diferença do tratamento à saúde de mulheres pobres. As discussões sobre

gênero e mobilidade da força de trabalho certamente delineiam uma representação do

imigrante que se desloca de forma universal entre os territórios patriarcais: mulheres

pobres. O direito ao aleitamento de seus filhos e, também, de se alimentarem aparecem

55
como fatores que incentivam o desenraizamento de seus territórios e o incentivo à

migração e, consequentemente, um tratamento discriminatório em outras

nacionalidades. A defesa à saúde do trabalhador da saúde aparece implícita a esta causa,

considerando suas condições inseguras de trabalho e os riscos aos quais encontram-se

expostos em todo o mundo igualmente.

Esse movimento possui em sua centralidade uma discussão baseada no

radicalismo dos ativistas em prol de lutas contra a poluição de águas, ar e solo;

geralmente disseminada pelas corporações e indústrias mundiais. A proteção à

biodiversidade e a oposição ao uso de sementes geneticamente modificadas compõem

um cenário de lutas contra os crimes ambientais. Nele é comum enxergar cartazes

contra a Monsanto, mas também pequenos agricultores que defendem privilégios locais.

Por fim, sua agenda propõe a atenção aos países em guerra, tanto entre os

territórios palestinos, como Israel, mas também contra o terrorismo iniciado em

território americano. Chamam por “epidemia silenciosa” a violência que assola todos os

países, em guerra declarada ou não, pois entendem que a violência somente se manifesta

como forma de expressão da desigualdade social e econômica.

O People´s Health Movement tem seus critérios e sua agenda expostos em

um site criados pelo próprio movimento em consonância com as instituições, ONG´s e

outros movimentos pela saúde que se interligam diretamente pela causa da saúde global.

A saúde, defendida em seu sentido mais amplo, mostra-se representada na união de

movimentos em prol de causas de luta pela vida, ou talvez, pela qualidade de vida.

Dentre as ferramentas criadas pelo próprio movimento, duas estão atualmente expostas

em seu site:

a) Global Health Watch: O Observatório da Saúde Global constitui-se

como uma chamada a todos os trabalhadores da saúde para formular novos indicadores,

56
dados, relatórios ou pesquisas sobre a saúde mundial em que muitos governos elegem

como agenda de seus países. Por princípio existe uma inadequação sobre os dados

produzidos, por isso a necessidade de um relatório alternativo sobre a saúde e suas

instituições no mundo. O Observatório afirma a necessidade de uma política de saúde

centrada no indivíduo em suas mais diversas formas de cuidar para iniciar, também, o

debate sobre uma política de justiça social.

O primeiro “relatório alternativo” foi lançado em 2005, baseado em estudos

de caso e testemunhos. A publicação foi simultânea nas cidades de Londres e Cuenca. A

intenção em criar um Observatório da Saúde Global é fomentar o deslocamento da

agenda econômica para o reconhecimento das barreiras políticas e sociais que

determinam diretamente a Saúde das populações. Esse instrumento serviria para abrir

um fórum global de discussão para a ampliação de políticas às populações vulneráveis.

Todos os estudos de caso ou mesmo os “testemunhos” podem ser enviados por um site

específico do Observatório para posterior publicação no relatório anual. Os autores são

chamados por “colaboradores” e o modelo por “escrita participativa”.

O Observatório possui duas secretarias, uma na Inglaterra e outra na África

do Sul. Os estudos publicados sugerem soluções e monitoram as ações das instituições

de governo; foram lançados em 18 línguas através de uma editora indiana e também

encontra-se disponível em seu site atualmente. Afirma-se como uma medida de

promoção à saúde em rede.

b) Iternational People´s Health University (IPHU): caracteriza-se como

uma espécie de universidade aberta para ativistas. Através de parcerias com

departamentos universitários promovem cursos de pequena duração baseados na

discussão dos dados obtidos através das pesquisas sobre populações vulneráveis e

também servem como fonte de discussão os documentos e relatórios produzidos pelo

57
Observatório, além de narrativas orais realizadas por seus protagonistas. A

“Universidade” prevê a criação de um conhecimento baseado na experiência e no uso de

diferentes fontes alternativas para gerar um saber comum sobre a saúde mundial. Hoje a

IPHU localiza-se em Cuenca, no Equador.

Essas universidades tornaram-se uma ferramenta disseminada entre os

movimentos, dizem-se com a função de proporcionar a auto-educação dos ativistas e

dirigentes dos movimentos sociais. Segundo Santos (2005), a designação do termo

“universidade popular” foi usada não tanto para evocar as universidades operárias que

proliferaram na Europa e na América Latina no início do século XX, mas para

transmitir a idéia que após um século de educação superior elitista, uma universidade

popular é necessariamente uma “contra-universidade”. Por certo, a universidade

internacional da saúde terá de ser mais internacional e mais intercultural do que as

iniciativas semelhantes que já existiram à ela.

O discurso veiculado por seus idealizadores é que tal iniciativa poderá

desfazer alguns hiatos produzidos pelo conhecimento científico através do rompimento

com o conhecimento popular através do envolvimento direto com protagonistas do

processo. Sua meta é partilhar o máximo de saberes – tão globais e diversos como o

próprio processo de globalização.

O primeiro encontro do People´s Health Movement (PHM) aconteceu em

Bangladesh, em dezembro do ano 2000. A carta de encerramento do encontro

denominada por “Declaração de Bangladesh” foi publicada em 33 línguas. Ao mesmo

tempo em que a Declaração conclama o controle da saúde por suas próprias populações,

também pede a democratização da OMS através do fim de medidas verticais e da

abertura para as organizações populares na Assembléia Mundial de Saúde da OMS. A

atenção primária à saúde aparece como direito prioritário a ser garantido, juntamente

com a defesa ao meio ambiente; à proteção às populações em guerra; a defesa às

58
populações miseráveis; assim como o pedido por igualdade tecnológica e também de

fomentos para a produção de conhecimento em saúde (incluindo as pesquisas no campo

da genética, transgenia, medicamentos e também monitoramento da biodiversidade

mundial).

Em 2001 os dois instrumentos acima descritos iniciaram sua implantação de

forma colaborativa entre os países que participaram do encontro de Bangladesh. O

movimento não possui nenhuma ligação com o Department of Health and Human

Services dos Estados Unidos, que criou um setor denominado “Global Health” dentro

deste órgão de governo ou mesmo com o Global Health Council. Ambos foram

concebidos através de grandes parcerias33 com laboratórios internacionais, ONG´s e

corporações transnacionais ligadas à indústria farmacêutica.

Após a criação e a implantação de seus instrumentos, o movimento

começou a ver os resultados de seus investimentos. Em maio de 2002 a OMS34

convidou o People´s Health Movement (PHM) para apresentar a Declaração de

Bangladesh em sua assembléia mundial no Fórum Global para a Pesquisa na Saúde

(GFHR 5 e 6). E em maio de 2003, 80 delegados do PHM de 30 países diferentes

compuseram a reunião de Genebra para as comemorações do 25º aniversário de Alma-

Ata. Com agenda definida a partir de então, o PHM teve seu segundo encontro

agendado para a América do Sul, no Equador.

33
É interessante passear pela página do Departamento de Saúde Global americano e também pelo seu
Conselho de Saúde Global. Levados apenas pela nomenclatura vê-se o fenômeno do surgimento de um
poder imperial evidenciar-se. Os assuntos tratados nas páginas de seus sites são praticamente os mesmos
abordados pelo Fórum Social Mundial. O Departamento de Saúde Global americano
(http://www.globalhealth.gov) possui links sobre a situação do Afeganistão, da Aids na África, pesquisas
produzidas (e premiadas) pela OMS, e até um longo conteúdo produzido sobre a malária nos países
pobres. Mas a diferença está na condução dos debates, nas parcerias feitas, nas formas promovidas para
proporcionar participação e na abertura para a composição da agenda. No Império, a pauta política torna-
se harmonizada, única, ainda que permeada por diferentes clivagens.
34
O termo “Global Health” traz em si a ampliação do conjunto de instituições, agências, organizações
nacionais e internacionais em disputa política. Tudo isso aparece como demanda para a OMS conjugar as
forças em confronto, realizar pactos e estabelecer parcerias para manter-se atenta ao jogo da saúde na
ordem mundial (Matta, 2005).

59
Com o nome de II Assembléia Mundial de Saúde dos Povos, para expressar

que era uma outra Assembléia alternativa à que acontece coordenada pela OMS, o

evento passou a ser adaptado à realidade latina dos povos do Sul com a participação de

representantes das mais diversas atuações da área da saúde de todo o mundo. O Equador

recebeu na cidade de Cuenca, em julho de 2005, cerca de 82 representantes de países de

todo o mundo, além de representantes de ONG´s, movimentos de base, religiosos e

ativistas. A pauta era a discussão dos problemas globais de saúde e o desenvolvimento

de estratégias para a promoção da saúde. A Declaração de Bangladesh foi lida e

aprovada para a abertura e continuidade da II Assembléia.

Ao chegar ao Equador, o PHM afirmou em plenária sua solidariedade às

causas daquele país, onde de forma imediata, foi incorporado ao documento de relatoria

da assembléia a necessidade de afirmar a causa indígena e campesina como questões

que também deveriam constar na luta pela saúde. A saúde do indígena e da população

que vive da terra nos Andes foram pontos de discussão na cidade de Cuenca. Parte desta

pauta de discussão englobava a “guerra biológica” – algo que se manifesta através da

poluição do solo e da água por meio do uso exacerbado de agrotóxico e do

desmatamento incomensurável, e também, a militarização das fronteiras equatorianas.

Na expressão das comunidades campesinas equatorianas lançou-se uma

carta cujo lema assim se descrevia: “Todos sabemos, no dependemos” caracterizando

uma crítica à produção de saber das universidades que não é socializada entre as

comunidades mais carentes. O argumento central da crítica era que a universidade

produzia saberes voltado somente para ela mesma. Assim, chamavam a população

campesina, representada no encontro, ao resgate de saberes baseados na experiência e

na observação produzida pelas próprias populações andinas, como forma de recuperar

uma “liberdade” ao saber científico produzido pela “universidade ocidental35”.

35
“A Universidade pertence a quem nela estuda” – uma das faixas do Movimento Zapatista.

60
A discussão mostrava-se pertinente à medida que essas mesmas

comunidades propunham-se a partilhar um modelo de saúde concebido de forma

integral. Em seu relatório, assinado em nome da “Cultura Campesina” expressava o

entendimento que somente a Saúde que contempla a todas as populações é um modelo

de saúde integral. A saúde pensada pela população campesina resgatava a oralidade para

a troca de conhecimento e se resguardava sob a afirmação que descrevia: “Os que têm

título guardam seu saber, nós que somos pobres compartilhamos tudo”. O relato

detalhado sobre práticas que envolvem o cuidado em saúde era parte da história que

queriam trazer à tona através da frase: “Conhecimento não se guarda, se compartilha

solidariamente”. Por exemplo, através do uso de plantas para cura de doenças ou o

acompanhamento periódico ao crescimento das crianças baseado na observação.

Essa mistura de argumentos deixava claro na Assembléia que conhecimento

científico ou baseado no resgate de saberes populares era o que se pleiteava na luta pela

saúde global. Enfim, saber. O entendimento que informação tornara-se um importante

capital era o senso comum em todos os pontos de discussão dos movimentos que

compunham o encontro do Equador. Os debates que transitavam do resgate à saúde

comunitária à saúde global colocavam em jogo um argumento único pela igualdade de

informações e de acesso ao saber como forma de tornar também equânime a saúde. Por

outro lado, o lema que diz “todos sabemos, não dependemos” também é uma evidência

que o conhecimento produzido, mesmo em âmbito acadêmico, tem forte viés

empiricista na Saúde, visto que grande parte desse conhecimento é baseado na

observação do Comum dentre essas mesmas populações mais vulneráveis. Desta forma,

as populações campesinas mostravam-se potentes diante da demanda por informação

em saúde, ainda que estivessem em condições desiguais de lutarem por ela.

Os ativistas do movimento reafirmaram no Equador a necessidade de lutar

por serviços de atenção primária à saúde como responsabilidade social e coletiva em

61
todo o mundo. Na Declaração de Cuenca ratificaram o fim do neoliberalismo, do

racismo, da opressão às mulheres, da degradação ao meio ambiente e o início de uma

luta por ampliação dos direitos dos trabalhadores da saúde. O Movimento pela Saúde

dos Povos apenas recuperou sua agenda composta em Bangladesh no segundo encontro;

no entanto a inovação ficou por conta dos novos atores que compuseram a arena.

Nesta Assembléia pactuaram a necessidade de iniciar uma campanha global

pelo direito aos cuidados em saúde em nível global, algo que estaria diretamente

relacionado à luta por equidade aos serviços de saúde e à não privatização da saúde

pública. Após sua “entrada” para a OMS, o Movimento pela Saúde dos Povos declarou

em sua segunda assembléia a colaboração, participação e monitoramento da Comissão

sobre os Determinantes Sociais da Saúde da OMS. Alegavam que somente desta forma

conseguiriam assegurar o ataque direto às condições de pobreza e exclusão social como

determinante das condições encontradas nos serviços públicos de saúde. Para isso,

comprometerem-se em coordenar ações comuns em âmbito internacional para afirmar a

colaboração de atores estratégicos contra a privatização dos serviços.

Os principais pontos de discussão foram afirmados na Declaração de

Cuenca. Um deles é a necessidade de promover a saúde em um contexto intercultural.

Somente o reconhecimento da diversidade cultural construiria um sistema de saúde

justo para o movimento. O acesso à informação foi algo colocado como necessidade. E

o cuidado aos povos indígenas foi relatado como essencial ao Equador. Segundo a

Declaração, sistemas equânimes de saúde gerariam um ecossistema saudável, com o

sistema de saúde centrado nas necessidades das populações.

Outros pontos de discussão foram afirmados na Declaração: a afirmação da

diversidade de gênero; a saúde dos trabalhadores da saúde; seguridade nutricional, entre

outros. Atentamos para a pauta sobre a degradação ambiental, pois, primeiramente, o

movimento mostrava apoio às ações concretas de acabar com medidas imperialistas

62
sobre os recursos naturais que poluíam e patenteavam bens públicos. A Declaração de

Cuenca apontava para a necessidade de investigação sobre o uso da água e a exploração

do petróleo. Também a defesa sobre patentes de formas e processos de vida, além de

organismos geneticamente modificados e o uso de armas químicas.

O movimento do Equador trouxe uma pauta arrojada do ponto de vista da

Saúde Coletiva. A questão tecnológica apontada por inúmeros movimentos que apóiam

a causa da saúde tem sido uma constante. A segunda Assembléia Mundial de Saúde dos

Povos não conseguia pensar a saúde atual sem a igualdade sobre os meios de produção

tecnológicos na produção da saúde. Questões como o investimento em pesquisa

microbiológica e nanotecnologia foram apontados como necessárias para que as

populações se afastassem das corporações transnacionais e vivenciassem uma saúde

livre de medidas imperialistas.

Ações afirmativas em prol do reconhecimento que a ciência deve se tornar

um bem público foram planejadas neste encontro, tanto que sua manifestação final se

deu dentro da Universidade de Cuenca como forma de demonstrar que sua busca era

pela democratização do conhecimento produzido. O movimento apontava ainda para a

necessidade em se pensar estratégias de enfrentamento à laboratórios internacionais e

corporações transnacionais que financiam pesquisas e impedem a circulação gratuita de

medicamentos36 e vacinas. Algo que só se tornaria possível com o maior número de

associação a outros movimentos.

Dentre as causa mais globais, a defesa ao direito à saúde nas realidades de

guerra, militarização e violência foi apontado como uma causa que acomete

36
“De acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio, os países são livres para quebrar
patentes de medicamentos essenciais quando há uma emergência nacional. Todavia, quando a África do
Sul tentou fazer isso com medicamentos contra a AIDS, enfrentou um processo judiciário dos grandes
laboratórios farmacêuticos. Quando o Brasil tentou fazer o mesmo, foi arrastado para os tribunais da
OMC. Milhões que vivem com AIDS ouviram que suas vidas importava menos que as patentes de drogas,
menos que o repagamento da dívida, ouvia que simplesmente não havia dinheiro para salvá-los. O Banco
Mundial disse que era hora de focalizar na prevenção, e não na cura, o que foi o equivalente a uma
sentença de morte para milhões” (Klein, 127/128, 2003).

63
principalmente os países do Sul. Entretanto, uma nota de repúdio aos ataques terroristas

acontecidos em Londres, Madrid e Nova York foram apontados como algo não

justificável. A situação de violência nos países emergentes aparece como algo pautado

de forma transversal ao fato que esses países não possuem o controle dos seus recursos

naturais, segundo a declaração do movimento.

Finalmente, o movimento mostrou-se como parceiro aos governos

democráticos nacionais, de tal forma que possam influenciar com informações

produzidas pelo próprio movimento sobre a questão da Saúde. Na declaração final

ratificou uma saudação aos governos da Venezuela e de Cuba, como governos que

investem na saúde de suas populações através de evidências ao enfoque na atenção

primária como zelo para a garantia à equidade.

Alguns avanços foram conseguidos a partir do movimento do Equador, por

exemplo, o terreno, arrendado pela Universidade de Cuenca, para sediar a IPHU – uma

parceria conseguida através da Faculdade de Ciências Médicas da respectiva

universidade. A pactuação tem previsão de pesquisas sobre a atenção primária em saúde

dos países emergentes pelos próximos dez anos. Conta também com recursos de

ativistas da saúde mundial. A formação proporcionada pela IPHU é direcionada a temas

propostos pelo movimento, são eles: estratégias de luta, economia política da saúde,

atenção primária, trabalho com comunidades, gênero, exclusão social, direito à saúde,

Aids, SARS e solidariedade global como estratégia de produção de conhecimento

(www.phmovement.org).

Também no Equador a Carta princípio foi atualizada e publicada no site do

movimento. Sem dúvidas um dos maiores avanços deste movimento a partir de então

foi a comunicação através da produção de conteúdo para suas páginas na internet, além

da criação de fóruns para debates em outros portais. O movimento se organiza e se

articula em rede, abrindo-se para diferentes apreciações e opiniões; aparecem, portanto,

64
como uma das faces da formação de redes multitudinárias. Atreves do site próprio,

www.phmovement.org, e-lista de discussão [email protected], e o site do

Observatório da Saúde Global armazenam todas as produções do seu relatório

alternativo (www.ghwatch.org). As publicações do site contam com o auxílio de um

grupo sul-africano financiado pela Fundação Rockefeller denominado Global Equity

Gauge Alliance, além de uma ONG religiosa de Londres denominada Medact. E a

Declaração de Cuenca conclamou a todos os povos para que essa produção de conteúdo

se descentralize cada vez mais pelos trabalhadores da saúde de todas as partes do

mundo. A partir de Cuenca, este movimento teve contato com militantes da causa da

terra, defesa aos povos andinos, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,

sindicatos, ativistas de movimentos anti-globalização entre outros37. Então a Assembléia

se abriu à América do Sul e aqui encontrou-se com o Fórum Social Mundial.

37
O encontro do People´s Health Movement permanece até hoje em rodadas internacionais. Em março de
2007 o encontro aconteceu na cidade de Bhopal, na Índia com o título: “Defendendo a Saúde dos Povos
na Era da Globalização”. A Índia hoje possui um dos sistemas de saúde mais privatizados do mundo e
sem mínimas condições de atenção básica à saúde sofre com um dos maiores índices de desnutrição
infantil planetário; 12% de sua população morta por falta de medicamentos e 25% dos seus distritos não
possuem profissionais de saúde com especialidades para o atendimento necessário à população. Quase
40% dos indianos hospitalizados contraem dívidas com empréstimos para cobrir despesas hospitalares. A
listagem indiana de medicamentos essenciais em 1977 era composta por 347 medicamentos e em 2002
essa listagem passou para 30 medicamentos. As campanhas de vacinação dos últimos anos não
contemplaram a imunização contra a poliomielite, uma doença que assume um dos maiores índices na
Índia há décadas. Retirado de: <http://www.phmovement.org/en/node/331> Em: 20/05/2007.

65
Rumo a Porto Alegre

“Eles não estão interessados em derrubar o Estado ou


tornar seu líder presidente. O que eles querem é menos
poder do Estado sobre suas vidas”.

“Este é portanto o desafio do ativista moderno: como se


organizar contra uma ideologia tão ampla que não tem
margens, tão presente em toda parte que parece estar em
lugar nenhum? Onde é o local de resistência para
aqueles que não têm locais de trabalho para fechar,
cujas comunidades estão constantemente sendo
exterminadas?”.

Naomi Klein

“Estamos aqui para mostrar ao mundo que um outro mundo é possível!”;

assim foi aberto o Fórum Social Mundial em Porto Alegre pela primeira vez no Rio

Grande do Sul. Lá, na Europa, Boaventura de Sousa Santos assim abre seu livro: “O

Fórum Social Mundial é um fenômeno social e político novo” (2005, p.11). Esse “outro

mundo possível” manifesta uma nova existência e também novas formas de expressão.

As estratégias de organização política precisam ser revistas, bem como os sujeitos

revolucionários e as formas de exploração. “Não podemos perder o acontecimento por

ter respostas prontas para novos problemas”, diz Lazzarato (2006, p.23/24).

O mundo possível existe, mas não existe mais fora daquilo que o
exprime: os slogans, as imagens capturadas por dezenas de
câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que “acaba de
acontecer” nos jornais, na internet, nos laptops, como um
contágio de vírus por todo o planeta. O acontecimento se
expressa nas almas, no sentido em que produz uma mudança de
sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova
avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo
aquilo que nosso presente tem de intolerável, ao mesmo tempo
que vislumbramos novas possibilidades de vida (são esses dois
sentidos da globalização que a luta fez aparecer). (Lazzarato,
2006, p.21/22).

66
Consideramos estar diante de um movimento novo como fenômeno social e

denso em sua complexidade. Nos últimos anos, um pequeno grupo de executivos e

líderes mundiais passou a se reunir em Davos, uma cidade congelada por seu clima de

pico de montanha suíço, para discutir como a economia global deve ser governada.

Davos tornou-se a simbologia máxima do maior encontro de capitais no mundo. Sua

potência expressa-se no poder que possuem para falar em nome da economia mundial.

E como sempre que há poder, há resistência; a resposta a Davos surgiu em um formato

avesso: um movimento sem representação, o qual ninguém está autorizado a falar em

nome dele, temático e constituído por partes que não tem tanta importância como o todo

que o compõe.

O Rio Grande do Sul, estado que abrigou o Partido dos Trabalhadores38

durante muitas gestões administrativas, hospeda um movimento que não se ajusta a

nenhuma das vias de transformação social sonhada pela modernidade. Nele não cabe a

palavra reforma e nem revolução. Não se fala em centralismo democrático, democracia

representativa nem mesmo democracia participativa (Santos, 2005). Fala-se de uma

radicalização democrática global, algo que só é possível ao enxergarmos a lógica

capitalista pelas lentes políticas do Império.

O que torna o Fórum Social Mundial novo é sua perspectiva sempre

inclusiva. Um movimento sério em busca de alternativas. Entretanto, essas alternativas,

sabe-se bem, viriam dos países que experimentam de forma aguda os efeitos negativos

da globalização: pobreza, exclusão social, disparidades na distribuição de renda, poder

político enfraquecido, migração em massa, miséria (Klein, 2003). O FSM congrega um

conjunto de iniciativas de intercâmbio mundial, bem como seus conhecimentos sobre

práticas e lutas sociais globais. Um somatório rizomático de capacidades e potências.

Algo que anuncia o que está por vir.


38
“No contexto brasileiro, o próprio PT é uma emanação dos movimentos sociais, e sua história não pode
ser separada da história desses movimentos” (Santos, p.53, 2005).

67
A sociologia contemporânea não consegue responder como os movimentos

e as organizações conseguem dar mais evidência a um todo e não a elas próprias. A

novidade organizacional do Fórum está exatamente neste movimento sem líderes, com

rejeição à hierarquias e com sua enorme capacidade de organizar-se através da internet.

“A novidade consiste na celebração da diversidade e do pluralismo, na experimentação

e também na democracia radical” (Santos, 2005).

Ou seja, falamos de um fenômeno social sem um ator social privilegiado;

com uma congregação de instituições com interesses muito diversos; sem uma

estratégia definida a partir de um centro; sem uma política originada na parte norte do

planeta; sem homogeneidade social e política; sem a pretensão de tornar o movimento

em algo único nos seus direcionamentos e sem trajetórias de vidas comuns ou culturas

semelhantes.

Este movimento não subscreve nenhum fim estratégico e sua luta se recusa

a ser armada. As diferenças culturais são suas maiores potências e “torna-se uma força

política capacitante e não paralisante”, na análise de Santos (2005). Nasce potente pela

sua identidade latino-americana, valendo-se da cultura política híbrida e múltipla que

emerge dos movimentos sociais de base, das experiências com a democracia

participativa, do berço do orçamento participativo, das lutas contra a ditadura em um

continente que se quer tornar interdependente (idem, 2005). Com ele o Sul torna-se

global, não pelo simples fato de estar na parte mais extrema dos trópicos, mas porque

através dele fornecemos evidências do “quanto de Sul” existe em todo o mundo.

Pensando a partir da geografia simples que aprendemos a repetir, o Sul do

planeta disseminou-se como uma imagem impotente por ser pobre, dizimado,

explorado, primitivo, sem história. De repente Porto Alegre tornou-se um pouco de

Seatlle, Gênova; foi parar em Mumbai, na Índia e no pico das montanhas suíças de

Davos. Sua legitimação social está exatamente no poder que tem em fazer-se

68
representar em qualquer parte do mundo, pois atualmente todo o mundo possui um

pouco de Mumbai, da Índia, de Porto Alegre ou de Davos. “Mas o que parecia surgir

organicamente [...] não era um movimento por um governo global, mas a visão de uma

rede internacional conectada de iniciativas locais, cada uma formada com base na

democracia direta (Klein, p.264, 2003).

O FSM tem parte de sua história vinculada a fatores intrigantes, com o

passar do tempo muitos que se fizeram presentes em Davos passaram também por Porto

Alegre; ou vice versa, alguns saíram de Porto Alegre com viagem marcada para Davos

na mesma época. Algo que somente é possível nestes novos movimentos. Militantes,

ONG´s e intelectuais encontram-se para tratar dos atuais problemas da globalização e

formas alternativas de atuar dentro dela. O que Negri & Hardt (2005) enfatizam é que as

forças mobilizadas nesse novo ciclo global têm em comum não é apenas um inimigo

comum – pode ser o neoliberalismo, hegemonia americana ou o Império global – mas

também práticas, linguagens, condutas, hábitos, formas de vida e desejos comuns de um

futuro melhor.

Todos os defensores dos mercados livres sabem lá no fundo que


só a regulação política e a força possibilitam o livre mercado
[...] ao longo do século XX, os estudiosos observaram que as
estruturas institucionais das corporações e dos organismos
estatais se desenvolviam no sentido de se assemelharem cada
vez mais estreitamente umas às outras, e que as empresas de
negócios ficavam cada vez mais solidamente inseridas nas
instituições públicas. Não surpreende assim, que os mesmos
poucos indivíduos tão frequentemente passem sem dificuldades
dos cargos governamentais mais altos para as direções de
corporações, e vive-versa, ao longo de suas carreiras. As elites
empresariais, burocráticas e políticas certamente não se
estranham ao se encontrarem no Fórum Econômico Mundial. Já
se conhecem muito bem (Idem, 2005, p.220).
Assim como em Davos, a reunião da neve ou dos pampas deixa claro que a

imagem dos encontros “amenos” é útil do ponto de vista da observação para entender o

69
sistema. Os líderes corporativos não podem fazê-lo por si só; nem as organizações,

movimentos ou ONG´s. Todos precisam demonstrar que estão atuando em conjunto.

A mobilização global do comum nesse novo ciclo de lutas que se abre não

pretende negar ou encobrir a natureza local e sua singularidade de luta. A comunicação

entre elas, ao contrário, reforça a capacidade de cada uma delas. Vejamos, por exemplo,

o protesto que ocorreu em 2004 no Brasil contra uma plantação de alimentos

geneticamente modificados. Falávamos de dentro de um território verde por excelência,

o Brasil, com enorme diversidade em sua flora e sua potencialidade produtora de

alimentos. No entanto, não era das plantações brasileiras que se tratava somente, mas de

uma diversidade verde local, de pesquisas patenteadas em torno desse Comum, de

segurança alimentar, de reforma agrária, de terrenos improdutivos, do direito de se

alimentar sem ser enganado por rótulos de produtos que passaram por longas pesquisas

de transgenia. É do Comum que esses movimentos tratam; por isso o global é mais visto

e percebido em suas diferenças, não em suas similitudes. Algo comum a todos aqueles

que sofrem e lutam contra a exploração e a hierarquia do sistema global.

Outra questão em jogo é que o FSM ainda é complementado por uma série

de fóruns regionais ao longo do ano e na realidade o Fórum não pretende ter poderes

deliberativos ou governantes. A complexidade social está na demonstração que um

conjunto de atores sociais não-estatais, como as ONG´s, podem convergir para debates

concretos e substanciosos, indicando algumas orientações pelas quais seria possível

concretizar um organismo político global. Entretanto, temos em mente que todas essas

representações sem base em Estados-nação39, nem em indivíduos, o caráter dessas

diferentes organizações ou indivíduos é extremamente fraco. Sabemos que a expressão

ONG pouco representa as populações, ou mesmo a expressão sociedade civil global.

39
“O Estado-nação está em crise, afirma ele, enfraquecido diante dos poderes globais e corrupto diante
dos poderes corporativos”. Beppe Caccia, membro do movimento Tute Bianche, citado por Klein (2003,
p.291).

70
Mas o que reforçamos é a crise de representação que se manifesta como fenômeno que

continuará a corromper toda a sociedade. Nem mesmo as concepções de raça, etnia,

religião, civilizações ou povos podem dizer-se representativas (Negi & Hardt, 2005). A

natureza biopolítica da produção social contemporânea, expressa no terceiro capítulo

desta tese, torna impossível a velha forma de representação e também torna possível que

várias outras novas surjam (idem, 2005).

Entretanto, a economia sempre tende a homogeneização, à centralização e à

consolidação. A chave para este processo está no desenvolvimento de um discurso

político que não teme a diversidade e não tende a formatar o movimento político em um

único modelo. A economia travou uma guerra contra a diversidade (Klein, 2003).

Existe, em definitivo, algo novo no ar, algo que é caótico,


confuso, ambíguo e suficientemente indefinido para merecer o
benefício da dúvida. Poucos quererão perder este comboio,
especialmente num tempo histórico em que os comboios
deixaram de passar (Santos, p.90, 2005).

71
O Fórum Social Mundial da Saúde

“Na indignação parece emergir uma espécie de


equidade”.

Negri citando Spinoza

O encontro de vários movimentos importantes da América Latina acontece

no Fórum Social Mundial. Paralelo a este grande fórum iniciou-se um encontro voltado

para a saúde denominado Fórum Social Mundial da Saúde40, que integrou, no ano de

2005, cerca de 800 pessoas com os mais diversos interesses. Dentre estes estavam os

movimentos de luta antimanicomial, sanitaristas, acadêmicos, membros da ALAMES,

ativistas, ONG´s, pessoas que representavam partidos políticos, órgãos do governo e

participantes de 27 países. O fórum reafirmava-se como um processo aberto, capaz de

dialogar com todos os movimentos e pessoas comprometidas com o direito universal,

integral e eqüitativo à saúde. Cabe ressaltar que nos anos de 2002, 2003 e 2004 as

reuniões do fórum social mundial tiveram vários momentos em prol da defesa da saúde

dos povos, algo que antecedeu a criação de um fórum específico voltado para a saúde.

Em 2003 o PHM organizou em Porto Alegre o primeiro encontro da saúde

dentro do movimento, algo que somou cerca de 400 pessoas interessadas nessa

discussão. E no fórum de Mumbai, 700 pessoas compuseram a mesma reunião. O

movimento de Bangladesh (2000) foi determinante para a formação de um encontro

exclusivo para a saúde. E a Assembléia Mundial de Saúde dos Povos foi planejada

40
No site encontramos a seguinte definição: “O Fórum Social Mundial da Saúde é um espaço integrado
ao Fórum Social Mundial orientando-se pelos princípios da pluralidade, diversidade e singularidade,
tendo caráter não confessional, não governamental e não partidário. Tem o propósito de dialogar com a
sociedade civil mundial comprometida com a luta pelo direito humano à saúde, opondo-se ao discurso e
prática neoliberal que a situam no campo dos serviços, transformando-a numa mercadoria geradora do
lucro” (www.fsms.org.br, recuperado em 01 de março de 2007).

72
dentro do âmbito do fórum, como estratégia alternativa às assembléias mundiais da

OMS.

O I Fórum oficial da Saúde, em 2005, deixou evidente sua pauta voltada

para a Saúde Global. A intenção inicial era formular uma agenda internacional com o

objetivo principal de apoiar a formulação de políticas que garantam a proteção à saúde.

Logo na carta convocatória visava-se construir uma agenda social dedicada a saúde no

âmbito dos acordos regionais de integração econômica como na Comunidade Européia,

NAFTA, MERCOSUL, Pacto Andino e outros, trabalhando pela constituição de

sistemas únicos e universais de saúde para estas áreas de integração econômica

(www.fsms.org.br).

A abertura do fórum foi relacionada às questões econômicas do

neoliberalismo que influenciam na igualdade dos direitos humanos relacionados à

saúde. Afirmava-se que as políticas de acumulação de capital são fatores que

concentram em grandes proporções as grandes corporações, gerando pobreza, miséria,

doenças e mortes. Essa concertação em todo o fórum social circulava de forma a

integrar as ações que o encontro afirmava. O fórum social mundial é um movimento que

se diz contrário à determinação de políticas econômicas sobre a vida 41, portanto, no

fórum da saúde não seria diferente a repactuação dessa agenda.

A pauta contra o neoliberalismo chegava à dimensão sobre a seguridade

social, apontando-a como decadente em função de inúmeras populações sem empregos,

com vínculos informais e dependentes de assistência social, saúde e previdência. A

mercantilização desses serviços públicos era um determinante para o agravamento das

41
Um painel curioso que aconteceu no I Fórum Social Mundial da Saúde foi denominado por “Medicina
da Libertação”, visava debater a promoção da dignidade e da justiça social na saúde. Era composto por
membros do MST e universitários, com uma metodologia de trabalho que se dizia com base
epistemológica da Pedagogia da Autonomia e da Pedagogia do Oprimido criada pelo educador Paulo
Freire. A “medicina da libertação” interessava-se em reunir “comunidades socialmente oprimidas”, tendo
como princípio “a solidariedade, a compaixão e a humildade”. A metodologia do painel utilizava
sociodramas, psicodramas e dramatizações para discutir a saúde das populações mais pobres (Medicina
da Libertação, www.fsms.org.br).

73
questões de saúde. A discussão do fórum da saúde apontava para a precarização dos

serviços de saúde em todo o mundo, principalmente os serviços existentes nos países

mais pobres, ou mesmo os serviços voltados para as populações migrantes nos países

ricos. Algo que se mostrava como uma questão global, baseada na contribuição

financeira de trabalhadores formais e informais em todo o mundo. A focalização dos

serviços de saúde era a naturalização da exclusão social em nome de um pragmatismo

no exercício dos direitos principalmente em vários países emergentes.

Na carta princípio do Fórum Social Mundial da Saúde o slogan: “Uma

saúde para todos é possível e necessária” destacava a luta principal que era a não

mercantilização de serviços de saúde em todo o mundo, visando a igualdade de acesso

principalmente entre as populações mais pobres. As guerras civis, as tragédias

ambientais e as intervenções militares foram lembradas como direito à paz

mundialmente. Quase todas as causas políticas da saúde foram contempladas: a questão

indígena, a miséria na África, a segurança alimentar, a saúde mental e a necessidade de

serviços substitutivos, a saúde no trabalho, o acesso à serviços voltados para a mulher, à

criança, além do direito aos medicamentos essenciais para o tratamento da AIDS e as

doenças epidêmicas como a malária. Todas essas questões eram debatidas sobre um

único argumento: a necessidade de erradicação da pobreza e da exclusão social em todo

o mundo. O Fórum reafirmou os princípios de Bangladesh, preparou-se para Cuenca,

mas também para Nairobi.

Após a descentralização do fórum social mundial para outras regiões do

mundo, o debate sobre a saúde viajou junto com ele. O II Fórum Social Mundial da

Saúde aconteceu na África, no Kenia, em janeiro de 2007. Na agenda política do II

FSMS, denominada “A Saúde na África: o espelho do mundo”, pautou-se um ponto

fundamental: as assimetrias de poder no mundo. A descentralização do fórum

representou uma alternativa ousada, mas ao mesmo tempo coerente com a proposta do

74
movimento. Na África falou-se do direito à vida, em meio a uma população que vive a

dramaticidade da miséria, debilitando as capacidades emancipatórias de sua população.

Foi também em Nairobi/Kenia que tocou-se pela primeira vez no assunto denominado

“drenagem de cérebros na saúde” – um fenômeno social recorrente na África, onde os

médicos, enfermeiros e demais profissionais da saúde migram para outros países em

busca de emprego e de sobrevivência, “importados” principalmente por países europeus.

Em Nairobi, cidade a qual o único centro de convenções foi construído pela

ONU, podemos perceber o quanto de África se tinha em todos os continentes e em todas

as regiões do mundo. Os conflitos civis foram lembrados, principalmente destacando as

ajudas humanitárias dadas à África, que consigo trazem inúmeros interesses

corporativos, bloqueando a criação de sistemas universais de saúde. Os conflitos

militares foram mencionados como aqueles que destroem grande parte dos hospitais e

cortam o fornecimento de água potável nas cidades como medida essencial de guerra

que destrói a saúde.

Na agenda debatida no II FSMS a África foi realmente pensada como um

espelho para o mundo. As políticas econômicas foram apontadas como a “política do

genocídio provocado”, aquelas que perpetuam a degradação das condições de saúde e a

“desassistência programada” da pobreza e da enfermidade. Sem dúvidas a mortalidade

dos mais pobres foi o principal dado estatístico utilizado para dar evidência ao

movimento. Casos endêmicos de AIDS, malária, tuberculose, verminoses e outras

doenças são comuns ao perfil de morbi-mortalidade africano. Apontava-se para a

necessidade de romper com a simples doação de medicamentos, mas a emergência do

cuidado, da atenção básica aos doentes e estratégias integrais de combate ao

adoecimento.

Na África, sentia-se a centralidade da discussão sobre a saúde global. A

busca por medicamentos básicos, atenção à saúde e a percepção de contaminação do

75
ambiente por corporações multinacionais desaguavam em um continente que simboliza

mundialmente a pobreza e a exclusão social mundial. Na África 15% da população total

é soropositiva. Entre os anos de 2001 e 2006 mais de 8 milhões de pessoas morreram

por doenças tratáveis como a tuberculose, malária ou desnutrição. E a maior parte dos

governos africanos não gasta mais que 3% do orçamento geral com proteção social à

saúde42.

Nairobi reforçou o papel dos pactos aduaneiros também na harmonização

das políticas de saúde e demonstrou que vários problemas dos países do Sul são também

agendas de discussão de vários países ricos: a migração de trabalhadores da saúde, a

legislação que não contempla este trabalhador em território estrangeiro, a negação dos

cuidados ao imigrante e os dados invisíveis da estatística sobre os pobres e seu acesso

aos serviços de saúde.

Junto com este fórum, o movimento pela saúde das populações também se

descentralizou com ações previstas para várias cidades africanas, Índia, Europa e

também países andinos. O Uruguai criou um fórum social da saúde uruguaio e para o

Brasil ficou agendada uma conferência mundial para discutir os “Sistemas Universais,

Integrais e Equitativos de Saúde” como uma das principais propostas apresentadas na

assembléia de encerramento do II Fórum Social Mundial da Saúde. O Brasil foi o país

indicado para a realização desta conferência, em julho de 2008, com o intuito de marcar

a comemoração dos 20 anos de seu Sistema Único de Saúde. Certamente, o Fórum

Social Mundial da Saúde é a representação que o campo da Saúde Coletiva terá a Saúde

Global como agenda e os novos movimentos globais na comemoração dos próximos

aniversários do SUS.

42
Dados retirados do site do Fórum Social Mundial, disponível na internet: www.fsms.org.br.

76
CAPÍTULO II

POLÍTICAS DE SAÚDE SUPRANACIONAIS E A LIVRE


CIRCULAÇÃO DO TRABALHO:
O CASO DA UNIÃO EUROPÉIA E DO MERCOSUL

77
2.1 - A livre circulação do trabalho e as imigrações

“É impressionante, conseguí o emprego só porque disse a ele


que sabia cuidar de crianças, afinal já tive três filhos”.

Vick Diaz, trabalhadora das Filipinas em entrevista


para um emprego nos Estados Unidos

Algumas pesquisas43 já apontam uma conclusão curiosa: as mulheres

imigrantes se empregam primeiramente que os homens imigrantes e, também,

permanecem mais tempo nos seus “cargos”. Em boa parte porque é a mulher imigrante

que ocupa os cargos ligados à saúde, ao cuidado e ao afeto. Há alguns casos de países

que têm trabalhado com um visto provisório para quem for atuar nessa ocupação

profissional. No Canadá este visto tem nome de “cidadão residente”, válido por 24

meses. Neste país, a grande maioria dos estrangeiros empregados são denominados

“cuidadores”. Geralmente dormem no emprego, tem educação superior (adquirida nos

seus países de origem) ou chegaram muito próximo a tê-la ou concluí-la. Muitos destes

imigrantes canadenses são advindos das Filipinas. Lá recebem a casa do empregador

como residência fixa, são atendidos nos serviços de saúde por portarem o visto de

“cidadão residente” e mantém sua legalidade por 24 meses, praticamente como parte de

uma família que o tenha recebido. Se for comprovado ao final deste período um

“atestado” de bons antecedentes, de bons trabalhos cumpridos e a necessidade de

renovação, o cuidador pode permanecer por mais dois anos no mesmo trabalho.

Os países pobres possuem numerosos casos de deslocamento, imigração,

para a realização do trabalho de cuidador em países ricos. Essa é uma imigração que em

alguns lugares vem se “legalizando”, de forma lícita (ou ilícita). Alguns países

simplesmente fecham os olhos para o que vem acontecendo; outros, como o exemplo do

43
Sobre isso ler Giddens, Antonio; Hutton, Will. No limite da racionalidade: convivendo com o
capitalismo global. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p.55

78
Canadá, apontam para alternativas temporárias de fixar esse cuidador enquanto ele for

essencial àquele grupo familiar que o recebeu.

É curioso porque a prática do cuidador44 se resume à vigília e à atenção à

crianças, adolescentes em fase escolar e, principalmente idosos – segmentos mais

vulneráveis do grupo familiar. O fato do imigrante possuir filhos (deixados em seus

países de origem) é um ponto positivo45 para o seu currículo no momento da admissão.

Sabe-se por dados informais baseados na experiência de quem lá já trabalha, que a

atenção dispensada a crianças nem sempre é bem sucedida pela diferença de idiomas

que possa vir a confundir a formação vocabular de alguns. Mas no caso de idosos

acamados, adolescentes em fase escolar, pessoas adoecidas que precisam de atenção

para melhor restabelecimento, ou mesmo em casos de transtornos mentais, o imigrante

cumpre um papel de prestador de assistência à saúde dessas pessoas. Essa conformação

em que o imigrante transforma-se em gerador de afeto, faz com que paulatinamente se

constitua uma rede global de assistência que atravessa os países do Norte.46

Em geral são as mulheres que ocupam a atividade do cuidado. E elas que

formam essas cadeias que podem ser locais, nacionais ou globais. A rede começa com

uma mãe que migra para um outro país enquanto um filho mais velho cuida dos irmãos

na terra natal. Essa mãe trabalha como babá ou cuidadora e, por sua vez, conta com o

trabalho dos filhos também como babás dos irmãos mais novos, que, ao crescerem,

serão também transformados em cuidadores de outras famílias em outros países com a

ajuda do familiar mais velho que já se estabeleceu no outro país para onde imigrou.

44
“Cuidado é uma dimensão da vida humana. Dimensão que frequentemente se dá no plano da
intersubjetividade. Portanto, há sempre várias formas de cuidar, e há vários conhecimentos sobre esse
cuidar” (Mattos in Mattos e Pinheiro, p.120, 2004).
45
“O cuidado só é possível se há condições para a concretização de um diálogo [...] o diálogo funciona
para evidenciar interesses, respeito, aceitação, definir diferenças e não tanto para expressar idéias ou
informações”(Guizardi e Pinheiro in Mattos e Pinheiro, p.45, 2004).
46
Recentemente o Banco Mundial publicou o seguinte dado: os emigrantes brasileiros remeteram para o
Brasil 7 bilhões de dólares (16 a 18 bilhões de reais) no ano de 2006 – quase o dobro do que o governo
disponibiliza para o Programa Bolsa Família.

79
O exemplo pode ser caricato, pois cada tipo de família pode manifestar uma

história diferente. Mas essa ecologia humana torna invisível essa rede de assistência.

Em 1996 mais da metade dos imigrantes que foram legalmente para os Estados Unidos

eram mulheres com média de idade de 29 anos. A rede local não é diferente também. A

maior parte dos que trabalham como “cuidadores” no Brasil tem o mesmo perfil

familiar do grupo familiar que o emprega – um número de filhos semelhantes, o mesmo

número de idosos em condições de adoecimento, ou adultos acamados que precisam de

atenção para o restabelecimento de sua saúde.

O “cuidador” (científico ou não científico47) é aquele que trabalha com o

sorriso no rosto, é paciente para lidar com as adversidades dos adoecimentos, atento aos

horários de medicamentos, se mostra afetivo em suas relações. No caso do trabalho do

cuidador, é toda a disposição do íntimo que é trazida à cena produtiva. É um tipo de

trabalho, portanto, que formam vínculos e capacidades de estabelecer relações humanas.

O cuidado é uma atividade profissional que não é mediada somente pela rendimento

financeiro, mas pela vinculação com o outro que é construído. Um cuidador de idoso,

por exemplo, compartilha costumes, o conhecimento sobre os hábitos, a rotina familiar

e o tempo da vida. Muitas poderiam receber melhores salários em outras casas, mas a

segurança que o hábito do cuidado a uma determinada família traz se torna também

determinante para manter-se em um trabalho que receba menos, mas que possua

segurança garantida pelos vínculos já construídos.

Formam-se assim famílias que não se encontram, que às vezes ficam

separadas durante décadas mas não estão “rompidas”; tornam-se famílias que as

obrigações vergam mas não se quebram (Hoschschild, 2004). Assim, verificamos que

estas relações encontram no dinheiro uma resposta óbvia para a formação desta cadeia

47
Retiramos a expressão “cuidado científico” do livro de Mattos e Pinheiro (2004) quando é afirmada a
diferença entre autocuidado como algo autônomo, parte do cuidado de si e cuidado científico, como
aquele baseado na ciência, profissionalizado (p.63).

80
de trabalho e assistência. Mas será que também a assistência não tem sido distribuída de

forma desigual em todo o mundo? Existe um “mais-afeto”48 sendo produzido em todo o

mundo. O trabalho do cuidador toca as relações afetivas de todas as pessoas em todo o

mundo e este trabalho muitas vezes aparece como algo “voluntário”49 - ceder atenção,

cuidado e afeto parece ser algo nato, com imensa facilidade de ser produzido; mostra-se

apenas como uma transferência de sentimentos, contatos e gestos a quem se cuida,

como se houvesse um deslocamento de sua própria rede de cuidados à formação de uma

nova rede de cuidado.

Essa importação do trabalho afetivo acontece como se importa qualquer

outra mercadoria, desde que no pacote venha afeto. Alguém está recebendo mais

assistência e cuidado que outros. Há uma produção de excedente afetivo. As pessoas

mais pobres cuidam dos que precisam de cuidados entre as pessoas mais ricas. A

situação centra-se nos cuidados que são meramente “clínicos” sendo tratados por

profissionais de saúde e os outros casos são tratados como “sociais” – ficando a cargo

do cuidador, tanto em países ricos ou em países pobres.

Outro fator: os cuidados remunerados obedecem a um padrão racial. Ainda

os negros exercem as funções de cuidado e, seus próprios filhos, crescem sem a atenção

de alguém. Essa é uma divisão patriarcal do trabalho do capitalismo global, mas

também uma divisão racial do país de destino e do país de origem. Ou seja, uma ordem

mundial. No passado, o profissional liberal era o homem e o “alguém que cuida” era a

esposa, que supervisionava a família no momento do nascimento, nas doenças e na

morte – algo completamente descartado pelas relações de trabalho. Hoje a inclusão de

48
O termo pode ser entendido como um neologismo nosso na forma de uma paráfrase ao termo “mais-
valia” da obra de Marx.
49
“É particularmente enunciativo que as profissões de saúde sejam historicamente marcadas pelo signo da
beneficência, pelo ideal da doação [...] São referências que só adquirem sentido se materializadas no
vínculo de uma relação social, por meio da qual a intenção do cuidado pode materializar-se [...] o cuidado
pode efetivar-se num contexto em que se dá, recebe e retribui, sem que se distingam claramente esses
momentos, ainda que toda satisfação do trabalho seja a eles reportada. Oferece-se assistência, mas se
recebe gratidão e respeito” (Guizardi e Pinheiro in Mattos e Pinheiro, p.46/47, 2004).

81
determinados papéis faz com que os homens entendam muito mais das tarefas

domésticas, do cuidado, da atenção; mas não possam abandonar suas carreiras. A

resistência generalizada ao assumir os cuidados domésticos faz com que se busque

ajuda “descendo” a cadeia global – inicia-se pela mulher, em seguida a mulher negra,

portanto pobre, como um exemplo caricato (Hochschild, 2004).

Quando o Povo de Seattle adota como uma de suas agendas à livre

circulação do trabalho e um justo sistema de proteção de trabalho ao imigrante, é porque

já se legitimou a necessidade de um discurso e de uma ação que ampare uma elevada

leva de trabalhadores precários que vivem em situação de vulnerabilidade e de pobreza

por causa de uma identidade nacional que somente os países que os recebem insistem

em imputar.50

Mas o imigrante não se enquadra na definição clássica do pobre (aquele que

não consegue viver dignamente). O imigrante é um pobre, porém, é caracterizado por

ser um agente poderoso dos circuitos de produção social. O imigrante curto-circuita a

própria definição do que seja pobreza. Na teoria clássica, os pobres são considerados

como aqueles perigosos moralmente, politicamente desorganizados, imprevisíveis e

tendentes ao reacionarismo. A expressão lumpenproletariado, ou, proletário

esfarrapado, surge para explicar um resíduo, um refugo da história das sociedades pós-

industriais. Há um tempo atrás eram chamados de “exército industrial de reserva”, ou

seja, uma reserva de trabalhadores industriais em potencial que estão temporariamente

desempregados, mas poderiam a qualquer momento serem integrados à produção (Hardt

& Negri, 2005).

50
Sobre isso, Bauman (2005, p.33) retrata um texto de um cartaz espalhado pela cidade de Berlim que
ridiculariza a lealdade a estruturas que não são capazes de conter as realidades do mundo. O texto é o
seguinte: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café,
brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é
estrangeiro”.

82
Hoje, é equivocado pensar nos pobres como um “exército industrial”

reservado para ser inserido a qualquer momento no circuito produtivo fabril, na medida

em que operários industriais já não se constituem mais como uma unidade compacta e

coerente. Mas uma forma de trabalho entre muitas outras das redes definidas pelo

paradigma do trabalho imaterial. Já não existe uma divisão clara entre o emprego e o

desemprego, mas sim uma argumentação precisa que nenhum emprego é seguro. Assim,

não existe mais uma “reserva”, na medida em que nenhuma força de trabalho está fora

dos processos da produção social. Ou seja, “o proletariado hoje são todos aqueles que

trabalham e produzem sobre o domínio do capital” (Hardt & Negri, p.148, 2005).

As “classes perigosas” no capitalismo contemporâneo eclodem na forma de

uma multidão sem rosto, algo que não aparece nos números oficiais sobre a realidade de

trabalho. Os pobres, na visão dos comunistas e dos socialistas, são os excluídos do

processo capitalista de produção, diz Negri, e, portanto, excluídos de qualquer papel

central na organização política. Os pobres eram considerados inimigos da classe

operária, pois eram apenas um grupo de reserva aguardando a decadência de outros para

chegar sua vez na empregabilidade. Contudo, o equívoco é tentar afirmar que os pobres

estão fora da história. Os pobres cumprem um papel de realizar atividades gerais, são

móveis e flexíveis; livres de uma estrutura fechada de produção (Negri, 2003b).

No passado as grandes migrações européias imperialistas aconteciam para

os espaços vazios, para um espaço considerado “fora”, onde provavelmente iniciariam

seus trabalhos em um território que também precisaria “ser iniciado”. Hoje o caminho é

exatamente o contrário. O desenvolvimento faz com que as migrações aconteçam para

lugares cheios, para regiões ricas e privilegiadas do planeta. As grandes metrópoles

mundiais precisam do imigrante para sustentar suas economias. E o imigrante, antigo

pertencente das “classes perigosas”, chega de mãos vazias na sua condição de pobreza,

mas detentor de conhecimentos, habilidades, capacidades criativas que leva consigo por

83
poder contar, unicamente, com seu próprio corpo para produzir. É exatamente por conta

dessa dimensão potente do imigrante que novas políticas de controle e de liberdade

serão objeto de políticas supranacionais, que dêem conta de organizar esses fluxos de

livre circulação do trabalho.

O forte movimento global de lutas que se abriram após Seattle abriu um

campo de conflitos que desembocou na recomposição das políticas supranacionais dos

Blocos Regionais estabelecidos, em boa parte no mundo, a partir da década de 90. Essa

recomposição significa, pela primeira vez, um deslocamento no objeto geral das

estratégias de expansão desses blocos. Antes da Batalha de Seattle, os blocos regionais

orientavam suas políticas (inclusive, a social) a partir de uma estratégia de ampliação do

comércio global. A articulação dos países em políticas comuns supranacionais é

hegemonizada pela organização de pactos econômicos que fizessem desses blocos

sistemas competitivos na ampliação de novos mercados de consumo. Os temas ligados

às políticas sociais desses pactos não avançam no mesmo ritmo que aqueles ligados ao

campo do comércio internacional. Com a abertura dos conflitos globais contra o regime

neoliberal, uma nova correlação de forças se estabelece no interior dos blocos

supranacionais, como o Mercosul e a União Européia, fazendo com que temas como a

legalização do trabalho imigrante, a luta contra patentes de medicamentos, a defesa do

comércio justo, a política de livre circulação do trabalho ou ainda a elaboração de

políticas sociais comuns passem a fazer parte da agenda desses blocos. A Batalha de

Seattle introduziu essas novas exigências sociais e passou, principalmente nos países em

desenvolvimento, a pôr a saúde como uma das pautas mais importantes para construção

possível de um outro mundo ou, na contra-corrente, como forma de impor barreiras à

livre circulação do trabalho.

84
2.2 – A Saúde e a Proteção à Livre Circulação do Trabalho na União
Européia

A atenção à saúde do trabalhador imigrante foi tratada historicamente pelos

europeus em acordos bilaterais entre os países que recebiam esse trabalhador em

deslocamento, ou mesmo através de serviços de saúde instalados em zonas de fronteira.

O debate evoluiu juntamente com a formação da União Européia, quando iniciaram

tentativas de desenvolver uma política de saúde comum aos países que compõem o

bloco.

Os modelos nacionais de atenção à saúde europeus variam entre dois tipos

categóricos: bismarkiano51 – seguro social financiado por contribuições do empregador

e do trabalhador; e beveridgiano52 – sistema nacional de saúde financiado com recursos

fiscais. Existe certo predomínio do primeiro modelo na maior parte dos países. Por isso,

os primeiros acordos entre países para atenção à saúde do imigrante denominaram-se

por “transnacionais” ou “transfronteiriços”, visto que eram ações voltadas aos

habitantes das fronteiras, trabalhadores que se deslocavam ou que habitavam em áreas

limítrofes. A ação representou a primeira tentativa em implementar ações de integração

e cooperação entre as políticas de assistência à saúde. Contudo, o acesso aos serviços

de saúde pelos imigrantes somente foi regulamentado na década de 70. Os serviços

foram criados para atender aqueles que estivessem trabalhando em outro país e

51
O modelo alemão bismarckiano foi um dos primeiros passos dados à implantação da seguridade social,
no século XIX, baseada na contribuição dos trabalhadores para a criação de mecanismos de pensão com
jubilação obrigatória dos dependentes maiores de idade considerados aptos a iniciar a carreira no
trabalho. Em 1880 Oto Von Bismarck instituiu a lei do acidente de trabalho, o seguro doença, acidente e
invalidez e reconheceu como legítimo os sindicatos no Estado alemão. O nacionalismo e o militarismo da
época bismarckiana criou o regime autoritário que garantiu a unificação alemã.
52
Data-se de 1942 o “Relatório Beveridge” produzido por Willian Henry Beveridge na Inglaterra. O
economista britânico criou os planos sociais avançados que sedimentaram as bases teóricas de reflexão
para a instauração do Welfare State pelo Partido Trabalhista como modelo de reconstrução inglesa através
da seguridade social. O Estado inglês pressupunha que a partir do momento que compartilhasse os gastos
com doenças, acidentes e pensões poderia beneficiar-se com o aumento da produtividade industrial
diretamente associada à recuperação dos trabalhadores doentes em épocas de pós-guerra.

85
possuíssem pré-autorização para situação de deslocamento53. Nesses casos o usuário

deveria portar um encaminhamento feito em formulário54 próprio que apontasse a real

necessidade de busca por atendimento em outro país. Segundo Giovanella & Guimarães

(2006), atualmente o maior fluxo de pacientes está entre os trabalhadores em

deslocamento, correspondendo a 53% dos atendimentos. Isso equivale a 16% dos gastos

de saúde para pessoas em circulação no território europeu.

Mesmo que a harmonização da política de saúde seja uma possibilidade

distante na União Européia, os cuidados às regiões de fronteira permanecem como

necessários, suas ações tem baixíssimo impacto econômico e se iniciam através de

acordos bilaterais. “Mas as questões da organização dos serviços nas fronteiras

usualmente impõem aos países a necessidade de soluções pragmáticas, que precedem ou

mesmo substituem no curto prazo as diretrizes da integração” (Dain, p.69, 2004).

As ações de cooperação enfrentam hoje dificuldades variadas, como a oferta

de cuidados entre os países, os custos e preços dos serviços, os registros dos casos de

adoecimento, as nomenclaturas utilizadas, os tipos de tratamentos e medicamentos

indicados, por exemplo. Algumas dessas condições implicaram na necessidade de

criação de um sistema em forma de banco de dados previsto para ser implantado com a

missão de iniciar uma padronização das terminologias e codificações das ações.

O fato da União Européia hoje possuir variados acordos entre países para a

proteção à saúde de pessoas em deslocamento fez com que a saúde pública de cada país

membro sofresse efeitos complexos e diversos quanto às modalidades distintas de

financiamento, organização e cobertura dos serviços. Novos impactos às políticas de


53
Algumas situações de deslocamento eram consideradas “excepcionais”: as necessidades de cuidados
em viagens de turismo, busca por emprego, atendimento a estudantes ou mesmo outros usuários
estrangeiros orientados para este fim (Giovanella & Guimarães, 2006).
54
“Em 2004 entrou em circulação o cartão europeu de seguro à doença que substituirá, gradualmente, os
formulários. O cartão não altera direitos ou obrigações regulamentados anteriormente, mas almeja elimi-
nar obstáculos à mobilidade geográfica por motivo de turismo, busca de emprego e transferência de traba-
lho. Tem ainda a função de simplificar o acesso e agilizar o reembolso. Secundariamente, pode auxiliar o
alinhamento de benefícios face às competências dos Estados-membros na organização dos sistemas de
saúde” (Giovanella & Guimarães, 2006).

86
saúde dos Estados-membros implicaram em restrições importantes às políticas de

seguridade referentes à saúde. Giovanella e Guimarães (2006) apontam a seguir:

i) A livre circulação de pessoas repercutiu não só na garantia de

direitos sociais, mas também na oferta de profissionais da saúde

– o que levou à regulamentação da livre circulação de

trabalhadores da saúde e ao reconhecimento mútuo de diplomas

para facilitar a mobilidade de profissionais. Ou seja, a Europa

passa a reconhecer a necessidade do deslocamento do trabalho

também para suprir seus “déficits” de trabalhadores55 no campo

da saúde.

ii) A livre circulação de mercadorias na saúde afetou

especialmente a distribuição e oferta de medicamentos, insumos

e equipamentos, a assistência farmacêutica e aspectos da

vigilância sanitária relacionados à fabricação e circulação de

produtos. A política de equipamentos médicos passou a incluir

processo de licitação internacional. A fim de regular a produção

e distribuição de medicamentos foi criada a Agência Européia de

Medicamentos com funções de registro, certificação e

licenciamento. Foram firmados acordos comunitários para

55
O envelhecimento populacional europeu é apontado por alguns como o fator determinante a atual
“aceitação” à imigração. Alguns estudos prospectivos retratam que assistiremos a mudanças
consideráveis nos próximos 20 anos na Europa: durante o período de 1995-2015, o grupo etário dos 20-29
anos perderá 11 milhões de pessoas (-20%), enquanto o grupo etário dos 50-64 aumentará em 16,5
milhões (+ 25%). Os dados foram retirados do site da União Européia, intitulado “Uma Europa para
todas as idades”. O documento foi recuperado em 15/05/2007 da fonte
<http://europa.eu/scadplus/leg/pt/cha/c11308.htm>.

87
controle de substâncias perigosas e radioativas e padrões

sanitários comuns para a circulação de produtos.

iii) A livre circulação de serviços na saúde repercutiu notadamente

sobre a oferta de seguros privados. Isso devido à decisão da

Corte de Justiça Européia que não submeteu os seguros sociais

aos ditames da livre circulação, pois estes se fundamentam em

princípios de solidariedade e, portanto, se organizam por

regulamentação nacional. Porém, o fato de prestadores privados

poderem oferecer serviços de saúde em qualquer país poderá

repercutir sobre os serviços ambulatoriais e hospitalares dos

Estados-Membros.

A Europa demonstra abertura ao debate sobre a harmonização de suas

políticas de saúde. Alguns autores que estudam as ações na UE acreditam ser esta uma

possibilidade, mesmo que já existam acordos de atenção à população em deslocamento

ou acordos bilaterais de proteção à população fronteiriça. Essas “intenções de

integração” rebatem de forma diferente em cada Estado-Membro frente às modalidades

de organização política dos sistemas e serviços nacionais de saúde; além das

características específicas, como organização administrativa e autonomia regional.

Os últimos passos mais criteriosos da discussão européia aconteceram no

ano de 2004, quando se estabeleceu a necessidade de criação de uma comissão

específica para tratar dos assuntos referentes à mobilidade de pessoas em busca de

acompanhamento ou cuidados médicos em outros países. Este grupo de trabalho

formado por especialistas de países variados iniciou a criação de mecanismos de

nivelamento para os serviços de saúde, em seus aspectos práticos da colaboração.

88
Contudo, sabe-se que os impactos financeiros são baixos, mesmo com as informações

oficiais precárias sobre o assunto, o relatório da Comissão de Saúde das Comunidades

Européias, produzido em Bruxelas no ano de 2006, estima algo em torno de 1% da

despesa pública total dispensada aos cuidados transfronteiriços.

Somente o atendimento hospitalar emergencial é garantido em outro Estado-

membro sem autorização prévia. São quatro os tipos de cuidados à saúde previstos para

atenção ao imigrante: a) serviços de “telemedicina” (diagnóstico e receita médica à

distância), b) deslocamento de um país para outro, com encaminhamento médico, para

tratamento de saúde (neste caso, o cartão europeu garante a cobertura do seguro); c)

clínicas locais de um prestador de serviços (utilizando planos de saúde ou pagando pelo

serviço utilizado); e d) a presença temporária de pessoas (por exemplo, um profissional

em deslocamento) garante atendimento hospitalar caso seja necessário56.

A União Européia reconhece que seus critérios de saúde ao imigrante não

são tão claros a ponto de ser encaminhados pela comissão ao Conselho Europeu. Em

2007 essa mesma comissão elaborou um documento (anuário)57 contendo o debate sobre

as estratégias políticas que possam vir a garantir a cooperação entre serviços de saúde

na promoção de cuidados. Existe um reconhecimento que esses serviços dependem da

livre circulação dos profissionais da saúde para poderem funcionar e; também, que os

critérios de cooperação precisam ser aplicados ao campo da saúde pública. No entanto,


56
Extraído do documento “Background: Patient mobility and healthcare developments/Communication
from the commission”. Este relatório contém o posicionamento da Comissão de Saúde das Comunidades
Européias após a reunião de Bruxelas acontecida em 2006. A Comissão existe desde 1998 e seus
primeiros trabalhos executados em prol da questão da saúde e da imigração surgem nos anos 2000. O
relatório supracitado está, na íntegra, em português, do site da União Européia e recuperado em
15/05/2007: <http://ec.europa.eu/health/ph_overview/co_operation/mobility/patient_mobility_en.htm>.
57
O anuário de Bruxelas, produzido em 2006 pela Comissão de Saúde das Comunidades Européias,
supracitado na nota anterior, é um documento que mostra o quão obscuras essas ações ainda se mostram
para a UE. Possui mais questionamentos que afirmações, por isso a comissão não o julgou apto a ser
encaminhado para o Conselho Europeu. Dentre elas: Qual autoridade nacional será responsável pela
supervisão das ações? Qual autoridade seria responsável pela segurança e qualidade dos serviços
prestados? Qual seria o sistema de reclamação e indenização para os cuidados transfronteiriços? Se um
médico iniciar uma intervenção e este médico for um profissional em deslocamento, como fiscalizar suas
intervenções? Como compartilhar a produção de inovações através de pesquisas que visem reduzir os
custos das terapêuticas? Como ofertar diferentes terapêuticas como alternativa de tratamento? Em caso de
erros, danos ou omissões, como beneficiar o usuário?

89
os imigrantes ainda ficam à margem dos serviços de proteção social à saúde. E as

demandas ainda são tratadas por instituições e serviços isolados, de forma transversal e

com muitas imprecisões. 58

58
O protagonismo brasileiro, em especial pela liderança do Governo Lula, é inegável. Foi a partir da
diplomacia brasileira que se organizou o G-20, grupo de vinte países – que inclui a China, Índia, África
do Sul, Argentina, Venezuela etc – que passou a bloquear as rodadas da Organização Mundial do
Comércio, quando esta – sob a tutela dos Estados Unidos e União Européia – propunha medidas de
aprofundamento das desigualdades globais. Em boa parte, os sujeitos políticos do G-20 são filhos da
Batalha de Seattle, por se tratar de lideranças que organizaram e apoiaram os protestos nos EUA, em
defesa de um comércio mais equilibrado entre as nações. Essa nova realidade internacional fez surgir uma
novidade no cenário político: a dinâmica política dos países do Sul tornou-se mais avançada, no que tange
a constituição de novas lutas por conquistas sociais globais. Enquanto isso, a Europa e Estados Unidos
(vide os acontecimentos da crise social da periferia francesa e do miséria norte-americana revelada com a
passagem do Katrina por Nova Orleans), vêem nascer em seu próprio território os conflitos sociais
tipicamente do Sul. São esses conflitos sociais na Europa e nos Estados Unidos que vão fundar nesses
territórios um ciclo de lutas mais orientado na defesa da ampliação da proteção social que incorpore
àqueles que sempre estiveram excluídos do nacionalismo: os imigrantes e seus filhos já nascido em solo
europeu ou americano.

90
2.3 – A Saúde no Mercosul: da política de Estado à política dos movimentos

A internacionalização da economia mundial é uma realidade pensada a

partir das mudanças do capitalismo que estruturou suas bases sob dimensões financeiras

de rápida circulação. Kunzier (2002) afirma que a primeira proposta de um bloco

econômico para a América do Sul foi desenhada por Campos Sales e, só em 1935,

Getúlio Vargas encaminhou as primeiras negociações da formação do ABC (Argentina,

Brasil e Chile) para demonstrar a força econômica desses países e a expressão que

tinham para a América do Sul. Havia um nacionalismo ampliado, de resistência e de

luta contra o imperialismo foi pensado na idéia do ABC.

Sobre a história do Mercosul

Kunzier (2002) chega a citar como exemplo um depoimento reservado na

Escola Nacional de Guerra, em 1953, dado por Juan Domingos Perón, quando declarou

certa vez que a única forma de resistir à exploração que estávamos submetidos era não

consumir o que era produzido pelos americanos. No discurso de Perón, os produtos

industrializados dos Estados Unidos mantinham a América do Sul como fornecedora de

matéria-prima, desestimulando e sugerindo uma não integração do Sul.

Em 1948 a Comissão Econômica para a América Latina 59 (CEPAL) foi

criada e tinha como um de seus objetivos o estímulo à criação de um Mercado Comum

59
Os países que hoje compõem a CEPAL como Estados-membros são: Antígua e Barbuda, Argentina,
Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica,
República Dominicana, Equador, El Salvador, França, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras,
Itália, Jamaica, Japão, México, Holanda, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, Saint Kitts e
Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Espanha, Suriname, Trinidad e Tobago, Grã-Bretanha e
Irlanda do Norte, Estados Unidos da América, Uruguai e Venezuela. Como Estados associados são:
Anguilla, Aruba, Ilhas Virgens Britânicas, Montserrat, Antilhas Holandesas, Porto Rico, Ilhas Virgens,
dos Estados Unidos da América, Ilhas Turcas e Caicos (http://www.wikipedia.com).

91
Latino-Americano. Como é sabido, a CEPAL é um órgão subordinado ao Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas para dedicar-se ao fomento do desenvolvimento

da América Latina e Caribe. Os objetivos da CEPAL na sua criação eram: a) incentivar

a ação conjunta entre os países para o equacionamento dos problemas econômicos; b)

elaborar pesquisas e estudos nas áreas econômicas, tecnológicas e de desenvolvimento;

c) fomentar políticas de desenvolvimento integrado e d) coletar, processar e divulgar

informações econômicas, tecnológicas e estatísticas.

A Associação Latino-Americana de Livre Comércio foi criada em 1960,

visando implantar um mercado comum regional através de uma zona de livre-comércio

que deveria ser implantada em 12 anos. A ALALC60 visava a promoção do

desenvolvimento econômico e social; a coordenação de políticas de finanças, comércio

exterior, agricultura e questões monetárias; além do tratamento favorável aos países de

menor desenvolvimento relativo (Kunzier, 2002). O Protocolo de Caracas postergou

para a década de 80 a sua implantação e a ALALC criou um sistema de pagamento por

créditos entre os países-membros na circulação de mercadorias: os bancos centrais de

cada país efetuavam procedimentos de compensação multilateral de saldos entre os

países-membros. A pouca flexibilidade do tratado e a baixa adesão do setor privado

foram fundamentais para gerar os primeiros conflitos no seu funcionamento. Além

disso, o autoritarismo político emergente também determinou o fracasso inicial da

proposta, vindo a afirmar que qualquer integração regional necessitaria, a priori, de

regimes democráticos. A volta dos regimes democráticos nos países deu um novo

impulso aos projetos de integração.

60
A ALALC inicialmente foi formada pela Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai.
Este projeto enfrentou algumas dificuldades: pouca flexibilidade na disposição dos Tratados; a oposição
do setor privado e os problemas políticos surgidos com a instalação de regimes políticos autoritários em
quase todos os países participantes. Com vários insucessos, a ALALC contribuiu para a formação do
Pacto Andino (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru). Em 1973 houve a adesão da Venezuela, e em
1976, o Chile retirou-se do subgrupo (Mariano, 2000).

92
Na década de 70, os países da América Latina estavam mais voltados para

os problemas internos. No final deste período as economias latino-americanas

encontravam-se muito mais dependentes do mercado internacional, o que resultou em

uma não pactuação de prazos para a constituição do mercado comum regional (Mariano,

2000). A passagem gradual dos sistemas de governos autoritários para os democráticos

representativos consumiu um lapso de tempo considerável e retardou a implantação de

políticas públicas duradouras e estáveis. Assim, a década de 80 foi a década de inflações

incontroláveis para países como Argentina e Brasil, com governos despreparados, sem

sustentação política parlamentar e com a implantação de estratégias econômicas

frustradas.

Ainda na década de 80, o Tratado de Montevidéu, assinado em agosto de

1980 no Uruguai, criou a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), com

sede em Montevidéu. Foram signatários: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,

Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. A ALADI objetivava o

estabelecimento gradual de um mercado comum latino-americano. A estratégia era

permitir, mediante condições de reciprocidade, o comércio intra-regional, pela adoção

de tratamentos tarifários e administrativos preferenciais entre os países (Kunzier, 2002).

Logo no início dos anos 80 os primeiros passos da ALADI foram marcados

pela crise61 do endividamento externo da América Latina, o que gerou um retardo no

início de suas principais ações e também um distanciamento entre os países no processo

de integração regional; visto que se tornou prioridade a busca por soluções para

sucessivos ataques inflacionários em quase todos os países membros.

61
A década de 80 não começou favoravelmente para os projetos de integração, onde as principais
preocupações centravam-se na emergência dos governos civis (eleição democrática), com uma conjuntura
antiintegracionista, quando 30% das exportações iam para a dívida, a geração de megasuperávits atingida
principalmente por contração das importações, a queda na taxa de investimentos, a desordem
macroeconômica, a instabilidade de preços, a flutuação da taxa cambial e a perda de competitividade por
atraso tecnológico (Mariano, 2000).

93
Entretanto, os acordos bilaterais entre Brasil e Argentina mantiveram uma

constante durante a década de 70 e 80. Mais de vinte acordos bilaterais foram firmados

durante este período; que vão desde parcerias culturais para intercâmbio de dados

científicos até acordos de livre comércio para produtos agrícolas. Somente em 1988 o

Tratado de Integração entre Brasil e Argentina foi assinado na cidade de Buenos Aires –

o maior passo de integração bilateral dado entre países da América do Sul visando a

cooperação e o desenvolvimento. Ele previa que os territórios dos dois países formariam

um espaço econômico comum e que os obstáculos tarifários seriam eliminados num

prazo máximo de 10 anos, a partir da entrada em vigor do tratado. Nenhum órgão

institucional estava encarregado da condução do processo de formação do mercado

comum.

Neste momento, para ambos os países ainda não estavam claras as

tendências de participação e de reorganização dos interesses presentes em cada um dos

Estados. Contudo, neste momento, todo o desenho institucional foi iniciado com a

criação da comissão de execução tendo subordinada a ela as comissões técnicas e a

comissão parlamentar conjunta. O processo institucional começa a se desenvolver por

exigência de uma ação própria. O alcance das medidas adotadas pelos governos, no que

tange a integração, começa a envolver novos interesses (Mariano, 2000).

Em setembro de 1990 ocorreu a primeira reunião do Grupo Mercado

Comum Binacional, nela foram criados vários subgrupos técnicos que se encarregariam

de coordenar e harmonizar as políticas macroeconômicas dos respectivos países sobre

as políticas comercial, aduaneira, fiscal e monetária, industrial, agrícola, energética,

normas técnicas, transporte terrestre e marítimo (Kunzier, 2002). Nas últimas reuniões

do acordo bilateral, o Paraguai e o Uruguai assistiram a reunião na condição de

observadores. Ambos demonstraram interesse em participar do processo de integração

econômica argentino-brasileira. As diferenças de ritmo entre os dois países para o

94
pertencimento no acordo eram preocupantes, visto que os primeiros países vinham de

uma trajetória de quase vinte anos de acordos graduais de integração. A partir do

reconhecimento de tais diferenças e da manifestação do interesse do Paraguai e

Uruguai, as reuniões do Grupo Mercado Comum eram quadripartite e estavam voltadas

para a assinatura de um tratado de integração.

Então, em março de 1991 foi assinado o Tratado de Assunção, criando um

mercado comum entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O acordo assinado entrou

em vigor no mês de novembro do mesmo ano e cada um dos integrantes ratificou a

decisão através de uma legislação própria e específica. O importante, porém, foi a

criação de sub-grupos de trabalho do Grupo Mercado Comum:

— Conselho do Mercado Comum (CMC): responsável pela

condução de políticas e tomada de decisões para o cumprimento

dos objetivos e prazos estabelecidos no Tratado. É formado por

ministros da economia e das relações exteriores, que se reúnem

no mínimo uma vez ao ano.

— Grupo do Mercado Comum (GMC): órgão executivo do

Mercosul e possui uma secretaria administrativa, cuja sede é em

Montevidéu. É coordenado pelos ministros das relações

exteriores. O GMC detinha o poder de convocar, quando julgar

conveniente, representantes de outros organismos da

administração pública e do setor privado.

O Tratado de Assunção estabeleceu como prazo o ano de 1994 para a

constituição plena do mercado comum entre os signatários. Teve sua qualificação como

95
“Tratado” visto que não estabelecia a constituição do Mercado Comum do Sul, mas

estabelecia uma série de princípios, objetivos e mecanismos básicos para a

concretização da integração desejada. Ele constituiu as condições para o surgimento de

um projeto de integração definindo, claramente, o seu objetivo à criação de um mercado

comum. A proposta reforçava a livre circulação de bens; serviços e fatores de produção,

e relaciona os meios a serem utilizados: “eliminação de direitos alfandegários e

restrições não tarifárias; o estabelecimento de uma tarifa externa comum; a adoção de

uma política comercial comum em relação aos outros países; a coordenação de política

macroeconômicas e setoriais; a harmonização das legislações internas” (Kunzier,

p.101/102, 2002). Logo, tem caráter fundacional, sendo, portanto, constitutivo do

Mercosul. O Tratado então demonstrava que a integração do Mercosul avançava em

alguns aspectos econômicos, à medida em que a integração regional dos países,

decorrente da unificação do mercado, previa o avanço sobre segmentos que compunham

a realidade dos países, tais como: meio-ambiente, educação e a saúde.

O peso estatal-burocrático apresentado desde o surgimento do processo de

integração acabou por influenciar acentuadamente a “moldagem” da estrutura

institucional, pois privilegiou os canais e mecanismos decisórios compostos por

representantes que compartilham o mesmo tipo de interesse dos atores iniciais. Ou seja,

as decisões do Mercosul iniciaram-se por caminhos onde o poder efetivo dos atores não-

governamentais ainda é muito reduzido e, a todo o momento, essas decisões foram

sendo “filtradas” pela presença marcante do componente estatal-burocrático. No final

do processo, têm-se uma decisão que atendia muito mais às expectativas dos Estados

que as dos grupos envolvidos ou afetados por esta decisão, mesmo que setores

empresariais estivessem nas negociações.

A criação dos protocolos institucionais corresponde à estruturação dos

órgãos, mecanismos de governo e administração do Mercosul. A fórmula que os

96
concebia determinava a sua natureza jurídica comum, incorporando-se definitivamente

ao Tratado de Assunção. Dividindo-se assim:

— Protocolo de Brasília (1991): Sistema de Solução de

Controvérsias que não se limitava às negociações diretas

bilaterais, mas que possuem intervenções em órgãos

institucionais do Mercosul. Se as dificuldades não forem

superadas, abre-se instância arbitral. Também previa a

possibilidade de adoção de medidas cautelares para evitar danos

irreparáveis.

— Protocolo de Ouro Preto (1994): concebeu personalidade

jurídica ao Mercosul para que possa se relacionar como bloco

econômico com outros países ou órgãos internacionais. Instituiu

o Conselho, a Comissão Parlamentar Conjunta, o Foro

Consultivo Econômico Social e a Secretaria Administrativa com

sede em Montevidéu. A manutenção da Secretaria é de

responsabilidade dos Estados partes.

A integração passa a ser a base do desenvolvimento econômico. Para isso

permite-se a liberdade de circulação de bens, de serviços, de capitais e de pessoas – algo

que já estava previsto desde o Tratado de Assunção. A fixação de uma tarifa comum

para com os países e a proibição de práticas desleais foi a primeira regulamentação

prevista para a circulação de mercadorias. No caso da circulação de capitais, em

dezembro de 1994 foram adotados os Princípios de Supervisão Bancária Global

Consolidada, cujo objetivo é preservar a solvência e a liquidez das instituições

97
integrantes ao sistema financeiro dos países-membros, estabelecendo parâmetros

técnicos e critérios internacionais (Kunzier, 2002). As normas de divulgação e

informação das entidades captadoras de recursos tem amparo no decreto 13/94, que

legisla sobre a padronização das informações.

No entanto, quanto à circulação de pessoas um longo debate foi travado. As

migrações de trabalhadores do Mercosul estão habilitadas pela “liberdade de circulação

dos fatores produtivos” que, naturalmente, incluem a mão-de-obra. O fato é que não se

tem nenhum controle rigoroso sobre a circulação de pessoas entre os países, a rigidez da

regulamentação se dá pela própria segregação do mercado de trabalho dos Estados

àqueles que atravessaram a zona fronteiriça. Do trabalhador que migra entre esses

países, pressupõe-se que irá exercer atividades ilegais, trabalhos com baixa

remuneração, com vínculos precarizados ou mesmo sem vinculação alguma.

A circulação de pessoas afeta diretamente a circulação de serviços. A

liberdade de estabelecimento permite que uma pessoa física ou jurídica possa se

estabelecer em qualquer país-membro para desenvolver uma atividade econômica não

assalariada. Estão excluídas todas as atividades que não podem ser consideradas dentro

daquilo que constitua circulação de capitais, mercadorias ou prestação de trabalho em

relação de dependência. A liberdade de estabelecimento é conseqüência do princípio da

livre circulação de bens e fatores produtivos, incluindo a prestação de serviços

profissionais de um país-membro da Comunidade em benefício de pessoa ou empresa

localizada em outro. O serviço de profissionais é regido pelo Convênio sobre Exercício

de Profissionais Liberais de Montevidéu, firmado pela Argentina, Uruguai e Paraguai

desde 1940 62.

62
A circulação de profissionais liberais no Mercosul foi apoiada na década de 50 pela CEPAL, em 60
pela ALALC e ALADI e chegou à década de 80 junto à dissolução das relações bilaterais, continuando
seu debate em âmbito do Mercosul. Diante da inexistência de qualquer acordo entre os Estados-membros
sobre critérios comuns para solucionar o problema de deslocamentos intracomunitários, se impôs uma
reestruturação interna das normatizações sobre imigração. No entanto, problemas com o deslocamento de
mão-de-obra subcontratada e clandestina entre países pobres, encontram-se em crescimento, produzindo

98
A Transição do Acordo Mercosul

As discussões formadoras do grupo Ad Hoc começaram por Brasília em

1993. Contavam exclusivamente com a participação dos ministros das relações

exteriores de todos os países-membros e alguns ministros da economia (Argentina) e da

indústria (Paraguai). A proposta feita na década de 90 era a decisão sobre o desenho

institucional do acordo econômico, suas instâncias de poder e a divisão das tarefas entre

os países. O formato intergovernamental foi mantido como regra geral. No entanto, o

sistema decisório deveria basear-se na proporção da importância econômica e

demográfica dos países da região. A perspectiva de um órgão de interesse comunitário

que atuasse com independência dos governos e com capacidade de iniciativa foi

recebida com interesse para uma discussão futura.

A reunião do grupo Ad Hoc de 1994 trouxe um perfil diferenciado de

participantes: representantes do Banco Central, da Agricultura, da Reforma Agrária,

Turismo, Serviços de Obras etc, principalmente entre os membros brasileiros e

argentinos. Algumas comissões importantes foram criadas, por exemplo: de Comércio e

a Comissão Parlamentar Conjunta63. Também abriu-se a possibilidade de criação de um

Foro Consultivo Econômico-Social. Os sub-grupos de trabalho e as reuniões de

ministros foram realinhadas e passaram por reformulações. Com o Brasil e a Argentina

sempre a frente das principais negociações, o Protocolo de Assunção foi mantido como

principal parâmetro, entretanto o fim da transição foi marcado pela reunião acontecida

na cidade de Ouro Preto – Minas Gerais. Em dezembro de 1994 o desenho institucional

sentimentos de rejeição à livre circulação de trabalhadores no Cone Sul. Atualmente, o deslocamento de


trabalhadores não consta de forma explícita entre as normas que instituíram o Mercosul.
63
A Comissão Parlamentar Conjunta pode assegurar rápida aprovação legislativa das normas do
Mercosul. Ao mesmo tempo, sempre surgem mais propostas de normas que não requeiram a aprovação
legislativa, com aplicação direta e indireta dos Estados-partes (Mariano, 2000).

99
do Mercosul teve seu debate definitivo. Assim, em janeiro de 1995 o Protocolo de Ouro

Preto começou a vigorar com seus principais órgãos auxiliares criados:

 Conselho do Mercado Comum (CMC): órgão superior do Mercosul,

encarregado da condução política do processo de tomadas de decisão

para o cumprimento do Tratado de Assunção. Participam todos os

ministros das relações exteriores e outros representantes também

ministeriais. Possui titularidade jurídica, por isso formula políticas

de conformação do mercado comum.

 Grupo do Mercado Comum (GMC): órgão executivo do Mercosul,

integrado por 32 representantes oriundos dos ministérios das

relações exteriores e bancos centrais. Constitui os sub-grupos

técnicos de trabalho (SGT´s). Para isso, conta com o apoio dos

ministros em reuniões próprias e especializadas, bem como as

secretarias de governo de cada país para discutir sobre assuntos

determinados.

 Comissão de Comércio do Mercosul (CCM): órgão de suporte para o

funcionamento da união aduaneira. Sua função é fazer valer a

aplicação da política comercial no interior do Mercosul, com outros

países e com organismos internacionais.

 Comissão Parlamentar Conjunta (CPC): órgão representativo

integrado por Estados-partes em igual número. Os parlamentares

facilitam a entrada em vigor das normas emanadas pelos órgãos do

Mercosul.

 Foro Consultivo Econômico-Social: órgão de representação dos

setores econômicos e sociais. Tem função consultiva, mas tem

100
autoridade no que se refere às disputas comerciais. O Foro

manifesta-se a partir de recomendações ao GMC.

 Secretaria Administrativa do Mercosul: com sede permanente em

Montevidéu, este órgão é responsável pela prestação de serviços aos

demais órgãos do Mercosul: oferece logística, informa sobre as

medidas implementadas por cada país para incorporar o

ordenamento jurídico, registra, serve de arquivo oficial, realiza a

tradução nos idiomas oficiais e elabora projetos orçamentários.

O Protocolo de Ouro Preto64 permitiu a continuidade do núcleo funcional do

Mercosul, no entanto, admitiu a pormenorização das atribuições de cada órgão

institucional, tornando mais claro os papéis e suas atribuições. O núcleo funcional do

acordo continuou sendo administrado pelos setores burocrático-estatais dos governos de

cada Estado-membro, principalmente pelos setores diretamente ligados à formulação de

suas políticas exteriores (Mariano, 2000).

O Pacto da Saúde do Mercosul

“A globalização é a era do contágio universal”.

“As sociedades capitalistas parecem viver apenas


articulando os elementos que antecipam o comunismo”.

Negri & Hardt

No acordo do livre-comércio, em 1996 a Saúde veio a compor o quadro das

mercadorias, serviços, bens e capitais. O interesse por tecnologia que envolvia a compra

64
As regras básicas de funcionamento começaram com 26 artigos do Tratado de Assunção e se
aperfeiçoaram com os 53 artigos do Protocolo de Ouro Preto e hoje conta com uma densa legislação
básica.

101
de medicamentos e também a produção de conhecimento foi uma solução encontrada

para abrir a pactuação de políticas sociais como as da saúde. Uma alternativa dentro do

acordo econômico foi a atitude da Saúde brasileira na criação, em 1996, de um

Subgrupo de Trabalho 11 (SGT 11) – “Saúde” dentro do Grupo do Mercado Comum

(GMC) para a composição da pauta negociadora da política nesta área. A proposta

naquele ano era:

- Harmonizar legislações e coordenar ações entre os Estados


Partes na área da saúde necessárias ao processo de integração.
- Compatibilizar os sistemas de Controle Sanitário dos Estados
Partes, de forma a alcançar o reconhecimento mútuo no âmbito do
MERCOSUL.
- Definir o relacionamento do SGT N°11 “Saúde” com as demais
instâncias do MERCOSUL, procurando a integração e a
complementação das ações.
- Propor procedimentos de organização, sistematização e difusão
da informação referente à área da Saúde entre os Estados Partes.
- Promover o aperfeiçoamento e a articulação dos sistemas
nacionais voltados à qualidade, eficácia e segurança dos produtos
e serviços ofertados à população, com o objetivo de reduzir os
riscos à saúde.
- Promover e gerenciar propostas de cooperação que visem à
integração regional no setor saúde.
- Promover a atenção integral à saúde e a qualidade de vida das
pessoas, mediante ações comuns no âmbito do MERCOSUL
(Ministério da Saúde, 2006).

Isso representou dotar a Saúde de um poder propositivo com a finalidade de

avaliar os objetivos e os trabalhos das Comissões do seu subgrupo, bem como promover

a revisão e atualização dos temas de interesse comuns e prioritários para os Estados

Partes, levando em conta as mudanças e avanços nos aspectos assistenciais, sanitários,

tecnológicos de saúde e também no processo de integração regional.

A Saúde no Mercosul se iniciou como um acordo econômico que

privilegiava a circulação de medicamentos e o compartilhamento de ações de prevenção

à doenças como parte de uma política entre Estados. A sua percepção como um capital

102
de barganha deu passos iniciais para o surgimento de um campo de discussões baseado

na promoção de ações de proteção, inclusive sanitárias, como era planejado pelo antigo

referencial da saúde pública estatal, e agora como parte de um pacto aduaneiro.

Historicamente, até o período higienista, a produção da saúde tinha suas

bases integradas a uma perspectiva territorial. Pensar uma sociedade e suas condições

de saúde representava também pensá-la sob a perspectiva do território. O perfil de

adoecimento de uma sociedade era marcado, portanto como um “lugar”. Afinal,

politizar a saúde era dotá-la de um perfil social analítico que privilegiava os estudos

sobre as classes sociais, o ambiente (território), o Estado e a nação. Desta forma foram

construídos os aportes conceituais do campo da saúde pública. Uma ciência de Estado

para a Saúde. Susan Sontag (1984) em seu livro “A doença como metáfora”

demonstrava através do discurso narrativo como algumas doenças eram associadas ao

pensamento territorial, classista, passível (e necessitante) de uma intervenção estatal;

porque precisava ser contida, administrada, calculada e passível de intervenções. Não

era coincidência o “lugar” do adoecimento ser o mesmo lugar da pobreza, da falta de

hábitos civilizados de higiene. Até o século passado a noção de proliferação da doença

atrelada ao “terceiro mundo” nos unia em um patamar mundial de condenação à morte

por adoecimentos variados em toda a América Latina e África, segundo os dados

epidemiológicos da época.

Ainda sob o referencial da saúde pública, em sua primeira atuação

estratégica, o subgrupo de trabalho da saúde no Mercosul definiu três áreas como

estratégicas: a) Produtos para a Saúde; b) Vigilância em Saúde e c) Serviços de Atenção

à Saúde. Na época os governos da Argentina e Brasil eram os que tinham interesse para

o controle dos produtos no âmbito de um acordo comercial. Centravam-se na área

farmacêutica65, produtos médicos, reativos para dengue, saneantes, psicotrópicos,


65
Farmacovigilância; critérios de bioequivalência (soros, vacinas e medicamentos genéricos) e
biodisponibilidade; qualidade de laboratórios; hemoderivados; transporte e distribuição de produtos

103
sangue e hemoderivados. Na área da vigilância o controle sanitário de portos,

aeroportos, terminais e pontos de fronteira davam o perfil do controle que se queria

estabelecer. Dentre estes, era notável a necessidade de gerenciar, sob um único

parâmetro, o perfil de morbi-mortalidade das suas populações, tecnologias de controle e

a geração de inovações tecnológicas nas pesquisas em saúde. Uma perfeita engenharia

de Estado: a segurança e a proteção voltadas para as fronteiras.

As ações previam para o campo da atenção à saúde, a prestação de serviços,

o exercício profissional66 e a tecnologia como áreas de trabalho. A captação de recursos

humanos tendia a ser adaptada a um padrão único de formação profissional com intuito

de prestação de serviços de cuidado, mas também de produção de conhecimento,

visando o avanço tecnológico. À princípio, um discurso da atenção à população

fronteiriça formou-se como principal objetivo da ação; pois a prestação de serviços a

esta população mostrava-se no discurso aduaneiro como o “lugar” mais vulnerável e,

portanto, de atuação mais eficaz.

No Brasil67, para a pasta da Saúde durante a década de 90,

contraditoriamente do ponto de vista político, o ministro José Serra deixou a principal

articulação das ações para o discurso da não fronteiridade entre os países. A política dos

medicamentos genéricos retirou das mãos dos seguros privados a negociação com a

indústria farmacêutica e deu ao ministério da saúde o poder de realizar tais negociações,

eliminando, totalmente, o ministério da fazenda de cena, criando para este fim agências

como a ANVISA e a ANS. O fortalecimento do ministério da saúde ampliou-se, pois a

ele atribuiu-se o poder de ditar parâmetros para a atuação dos agentes privados na

farmoquímicos, radiofármacos, fitoterápicos; psicotrópicos e cosméticos (Mercosul, 2005).


66
O Mercosul tem em sua instância legislativa do SGT 11 um Fórum Permanente Mercosul para o
Trabalho em Saúde, expresso na Portaria nº1156 de 07 de Julho de 2005, do Ministério da Saúde
brasileiro. A portaria foi sancionada pelo ministro Humberto Costa e objetiva propiciar o diálogo entre
gestores e trabalhadores da saúde para avançar no processo de integração do bloco econômico.
67
A primeira gestão de FHC no Brasil contou com quatro ministros para a saúde – quase um a cada ano
de mandato.

104
regulação de medicamentos e de planos de saúde. Acrescenta-se a isto, ainda, a política

que quebrou as patentes dos antiretrovirais. Uma das contradições que pretendemos

analisar.

A preocupação sobre o controle dos medicamentos e produtos médicos

marcava um período em que o Mercosul se afirmava como política de mercado mundial

e também, contraditoriamente, avançavam os ideais neoliberais. Na Argentina, por

exemplo, Carlos Menem estabeleceu a equivalência do peso ao dólar; ainda que os

Estados Unidos crescesse em um ritmo mais acelerado que seu país e isso tenha levado,

posteriormente, a Argentina a uma crise fiscal. Muitas empresas estatais importantes da

Argentina foram privatizadas neste período – um reflexo da “harmonização do

neoliberalismo” em toda a América Latina durante a década de 90.

A Saúde no Mercosul após a Batalha de Seattle

As ações desenvolvidas para a Saúde são divididas em dois fóruns: as

reuniões de ministros da saúde e um Subgrupo criado especialmente para atuar nesta

área (SGT 11). A criação de uma agenda comum para a Saúde era a função estabelecida

para o SGT 11 dentro do GMC. Articular os ministros da saúde de cada país era parte

da estratégia montada para agregar capital político e legitimar uma ação de integração

entre os países. O SGT 11 é composto por comissões, subcomissões específicas e

grupos Ad Hoc. São nas reuniões ministeriais que os acordos são aprovados e tornam-se

agendas de execução. Esses encontros acontecem de forma semestral, em cidades

alternadas pertencentes ao acordo Mercosul. Nas reuniões, geralmente, pode-se contar

com a participação de todos os países; incluindo os países-membros e também países-

associados.

105
Somente no ano de 1998 a agenda do SGT 11 iniciou seus trabalhos, ainda

era o momento de afirmação do Subgrupo e suas atribuições, além da divisão das tarefas

entre os Estados. O controle de doenças como a dengue, chagas e febre amarela dava o

tom das discussões. O comércio dos produtos e o controle de alimentos passariam a ser

fiscalizados por uma vigilância conjunta. A formação profissional entre os graduandos

de cursos da área da saúde mostrou-se pela primeira vez como pauta68.

O controle sobre doenças se estendeu ao ano de 1999 nas reuniões

ministeriais, sempre se destacando como principal ponto das discussões a cólera, o

sarampo, desnutrição, dengue e chagas. Alguns perfis de morbidade demonstravam que

as doenças do cone sul representavam um problema para a saúde pública de todos os

países; pois já tinham se erradicado em muitos países ricos e ainda assolavam o cone sul

em surtos epidêmicos. O que se questionava era a possibilidade de eliminação desses

surtos principalmente em cidades fronteiriças. A reunião ministerial acontecida na

cidade de Asunción (Paraguai) mostrou-se focada nos assuntos relacionados à proteção

das fronteiras nacionais e pela primeira vez pautou-se à produção de um sistema de

informações na web. Esse sistema unificaria os dados epidemiológicos e sanitários de

todos os países do Cone Sul. A tentativa visava facilitar o controle das doenças em

todos os países e apontava para a necessidade de construção de um banco de dados

único (Ata 01/99; Mercosulsalud, 2006).

No mesmo ano, a percepção da formação de um discurso que colocasse em

questão os serviços se evidenciou nas duas reuniões ministeriais. Os serviços de saúde

do Brasil são os únicos do cone sul que possuem sua estrutura de funcionamento

descentralizada e isso se constitui como algo que dificulta a integração69. No entanto, o


68
A reunião ministerial de 1998 aconteceu na cidade de Buenos Aires e a presidência pro tempore era
brasileira (Ata 02/98; Mercosulsalud, 2006).
69
“Um processo de harmonização efetivo deve tomar como ponto de partida o sistema de valores, ou
seja, uma solidariedade que leve em conta: as diferenças de capacidade contributiva e a correção das
desigualdades de acesso; a existência e a qualidade da informação e do controle social; as diretrizes éticas
quanto aos cuidados de saúde e as prestações; e finalmente a harmonização da responsabilidade financeira

106
SUS deu subsídios para o amadurecimento de muitas discussões sobre sistemas e

serviços de saúde na América do Sul. O Mercosul do SGT 11 buscava dar certa

linearidade às ações propostas. Na leitura das atas da época ficou explícita a percepção

que padronizar a descentralização das ações representava para os países envolvidos uma

estratégia de desenvolvimento. Algo que seria gestado não do ponto de vista

fronteiriço70, mas como uma estratégia de Estados, harmonizando uma política. O Brasil

mostrava-se como exportador de sua tecnologia de educação em saúde e de prevenção

de doenças através de ações que pressupunham o envolvimento com comunidades

pobres. Além disso, o modelo de controle social da Saúde era parte da tecnologia que

visava-se aplicar aos demais países. Um “certo otimismo” constava na ata da reunião,

referindo-se a liderança assumida pelo governo brasileiro na exportação de sua

modelagem considerada “de excelência” (Ata 02/99; Mercosulsalud, 2006).

No ano 2000, o primeiro resultado da política de José Serra surge como

ponto de discussão nas pautas ministeriais. A política dos anti-retrovirais foi debatida

entre os “medicamentos essenciais” dos países-parte. A pauta guardava forte relação

com a agenda política dos movimentos globais pós-Seattle, pois que envolvia a quebra

de patentes desses medicamentos essenciais, o que provocaria uma tensão com os

laboratórios internacionais. A quebra de patentes passou a ser o principal ponto de

discussão sobre a saúde no âmbito do Mercosul. A proposta brasileira era de quebrar as

patentes para produzi-los e comercializá-los com custos mais baixos para todos os

países do Mercosul (Ata 01/00; Mercosulsalud, 2006). Para tal, a presidência pro

tempore da Argentina criou um grupo de trabalho para que analisasse uma metodologia

de harmonização de um sistema de contas nacionais de saúde entre os Estados-partes e

dos diversos estados nacionais em seu compromisso com a Saúde” (Dain in OPAS, 2004).
70
Somente o Brasil tem um sistema unificado público de saúde na América Latina, além disso, o
Mercosul conta com aproximadamente 850 a 1000 municípios em fronteiridade. O Paraguai, por estar no
centro da América do Sul, tem 85% de seus municípios fronteiriços. Entretanto, países como Chile e
Uruguai gastam 10% de seu PIB com a Saúde, enquanto o Brasil 8,3%.

107
os Estados-associados. Esse sistema estava diretamente relacionado ao interesse pela

política de produção e comercialização de medicamentos de cada país.

A política dos medicamentos genéricos foi um outro marco para a saúde

pública brasileira. A quebra de patentes era uma atitude considerada “corajosa” do

governo brasileiro, um enfrentamento aos grandes laboratórios internacionais, muitos

deles norte-americanos e europeus. A comercialização do medicamento dissociado da

marca laboratorial teve repercussão mundial, pois os lobbies eram muitos para que isso

não acontecesse. Toda a indústria farmacêutica tinha olhos direcionados para o Brasil. O

discurso que se veiculava nas reuniões do Mercosul era o de solidariedade entre os

países pobres para a administração da comercialização de medicamentos entre

comunidades carentes. Uma forte política de Estado foi travada para resguardar as ações

que o governo brasileiro aplicava em prol dos genéricos. Contudo, a produção desses

medicamentos desencadeou um amplo debate de proteção à saúde dos países pobres. O

“enfrentamento” do governo brasileiro aos grandes laboratórios teve o apoio dos outros

países do Mercosul, pois todos ganhariam com a ação brasileira, facilitando o comércio

a custos baixos entre os países aduaneiros. Somente uma política supranacional viria a

reforçar esse acordo para a Saúde.

No ano 2000 a pauta sobre a produção de um sistema de informações voltou

a compor as agendas ministeriais e ficou estabelecido que a cada trimestre os países

enviariam uma análise conjuntural de cada região. Isso para fortalecer a troca de

informações sobre a Saúde associada ao cenário político de cada país. A manutenção de

um sistema integrado de informações estava associada à criação de uma metodologia de

compensação financeira a pessoas que fossem atendidas em regiões fronteiriças de

outros Estados. O sistema notificaria de forma compulsória o motivo do atendimento e

cada país receberia pelo serviço prestado ao imigrante (Ata 01/00; Mercosulsalud,

2006). Esse sistema compensatório se assemelha ao existente na União Européia. Lá

108
utiliza-se a expressão “cuidados transfronteiriços” como um termo genérico que

corresponde tanto as relações de cooperação em regiões fronteiriças, como também os

cuidados de saúde recebidos em outro Estado membro sem qualquer implicação de

proximidade (Dain in OPAS, 2004). A burocracia estatal, no entanto, não é fácil de ser

padronizada, mesmo em se tratando de acordos avançados como a União Européia. No

caso do Mercosul, não existe uma política de cuidados transnacionais ou

transfronteiriços como o europeu.

Ainda no ano 2000 a reunião ministerial teve o aprofundamento de

temáticas específicas: o HIV/AIDS e o tabagismo. Iniciou-se com a troca de

informações obrigatórias sobre as epidemias e pactuou-se uma vigilância

epidemiológica integrada para a atuação no controle da AIDS. Os medicamentos

antiretrovirais ainda compunham a mesa de negociações e a tentativa de implantar um

sistema de vigilância apontava para a construção de um programa único de informações.

A mesma alternativa aplicou-se ao caso do tabagismo. O Brasil lançou um

programa de controle ao tabagismo e com apenas R$5 milhões em gastos com materiais

informativos para todos os países; montou-se a proposta a ser discutida em conjunto

com todo o Mercosul (Ata 02/00; Mercosulsalud, 2006). Pela primeira vez a reunião

semestral teve temáticas tão específicas. Para isso reforçou-se em ata a necessidade de

aprimorar cada vez mais os mecanismos de comunicação entre os países, principalmente

via web.

O HIV e o tabagismo carregam um forte simbolismo como pauta

negociadora entre ministros da Saúde no Cone Sul. O primeiro por ser uma epidemia,

ou melhor, pandemia que assola diversos países pobres e ricos, mas com grande

incidência entre os países africanos. Planejava-se uma aliança para a circulação de

medicamentos antiretrovirais, informações, montagem de sistemas de informática e

difusão de dados de pesquisa sobre o tema de forma automática e compulsória entre os

109
países aduaneiros. Os medicamentos antiretrovirais são produzidos no Brasil após a

quebra das patentes internacionais. Antes, o “coquetel”, tinha sua fórmula sob sigilo

entre vários laboratórios espalhados por diversas nacionalidades. Atualmente sua

produção tem localização também situada em países como o Brasil e a Índia.

No caso do tabagismo sabe-se que a indústria do tabaco situa-se em grande

parte nos países pobres, e o enfrentamento foi algo padronizado, iniciado por países

como a França e a Holanda, um dos primeiros a proibir a propaganda televisiva dos

produtos relacionados ao fumo. A atitude se alastrou por vários outros lugares, obtendo

um êxito indiscutível. A extinção da propaganda esteve diretamente relacionada à

redução do uso, principalmente entre os jovens e os adolescentes. As ações ministeriais

do Mercosul que afirmavam uma política de controle do uso do tabaco71 tiveram custos

financeiros muito baixos para os países e obteve repercussão mundial imediata.

O Regulamento Sanitário Internacional

O ano de 2001 foi marcado por um retrocesso nas discussões do SGT 11.

Retomou-se o debate sobre a implantação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI)

à pedido da OMS/ONU. O RSI é uma normatização programada pela OMS e diz

respeito ao controle de fronteiras, portos e aeroportos. O Relatório original surgiu em

1969, com o objetivo de formar uma rede de alerta e controle entre os países que

observassem o surgimento de doenças como a varíola, febre amarela, chagas e cólera.

Os 192 países membros que deveriam ratificar o Regulamento têm a missão de notificar

aos demais países membros da OMS quando houver uma ocorrência dessas doenças em

seus territórios.

71
O Programa de Controle do Tabaco tinha financiamento e recomendação da OMS/OPAS para que
avançasse no debate. Foram selecionados alguns estados/províncias de cada país do Mercosul para iniciar
a capacitação dos seus recursos humanos de forma conjunta.

110
Pela primeira vez, o RSI surgiu como pauta de uma reunião de ministros de

saúde do Mercosul, uma pauta determinada e obrigatória pela OMS. A medida pode ser

considerada uma perda para os debates ministeriais, até porque as discussões

caminhavam de forma mais autônoma no que se refere aos acordos mundiais dos

demais países. As pautas eram livres. O Mercosul da Saúde sempre moderou suas

negociações de forma que beneficiasse o cone sul. Os debates surgidos no SGT 11

iniciavam uma agenda de harmonização e, às vezes, ensaiavam uma política de proteção

aos países na forma de um mercado comum de medicamentos, ações e até modelos de

atenção à saúde como parte de seus acordos mais evolutivos. A agenda ditada pela OMS

fazia brotar um debate fronteiriço, trazendo à tona discussões que re-afirmavam o poder

estatal, a segurança nacional de cada país e reforçava a zona de fronteira como o lugar

do risco, de representação da pobreza e da miséria. Um signo que apontava para o fato

que a medicina tropical não morreu. A agenda era mundial. Considerando ser a OMS

um órgão da ONU, sabemos que a pauta ditada pela mesma torna-se uma pauta

obrigatória entre os ministros da saúde de todos os países. A soberania supranacional

afetava o Cone Sul e fragmentava as ações de um grupo que ganhava força, tendo sua

pauta política desativada em função de uma agenda internacional.

Do que se tratava na antiga medicina tropical? Em que o Regulamento

Sanitário Internacional se relaciona com isso? A medicina tropical existe até hoje como

ciência. E como ciência viva que estuda as doenças dos territórios. Parte do pressuposto

que o estudo de determinados territórios (exóticos), como os trópicos, representa a

evidência maior sobre as doenças relacionadas à pobreza, ao contágio, à sexualidade

descontrolada, à contaminação e à transmissão. Essa ramificação dos estudos da

medicina focaliza a perspectiva do território de maneira higienista, partindo de teses que

afirmam que “as doenças vem dos trópicos”. O “lugar” da pobreza e da miséria sem

111
dúvidas representa o lugar do adoecimento 72. Afinal, politizar a saúde pública pelos

olhos da medicina tropical era dotá-la de um perfil social analítico que verificava a

cultura, o clima, o ambiente (território), o Estado e a nação na formação de seus aportes

conceituais.

Não era coincidência o “lugar” do adoecimento ser o mesmo lugar da

pobreza, da falta de hábitos civilizados de higiene. Até o século passado a noção de

proliferação da doença atrelada ao “terceiro mundo” nos unia em um patamar mundial

de condenação à morte por adoecimento em toda a América Latina e África. Existe um

paralelo traçado entre o colonialismo e a doença. Se o indígena está doente, justifica-se

uma ação imperialista interventiva com a população indígena. A noção de adoecimento

ainda carrega um sintoma de falta de civilização. Se exemplificarmos através da

situação africana, sabemos que é o continente que se mostra como o “lugar” da doença

aos olhos das instituições de apoio financeiros supranacionais (Hardt & Negri, 2001).

A morte do “segundo mundo” após a queda do socialismo, dividiu-nos em

apenas dois: o primeiro e o terceiro mundo73. Esse parâmetro não é confortável aos olhos

dos cientistas sociais da saúde. A civilização, ou melhor, o modelo civilizador

colonialista dissemina um “horror do contato”. Conseqüentemente o horror do fluxo, da

72
Podemos afirmar que a medicina tropical é a “ciência dos valores”. Para ela os costumes dependem do
clima, da ambiência, do território quente dos trópicos. É preciso relembrar Montesquieu (1772) quando
afirmava: “Não devemos, pois, espantar que a covardia dos povos de clima quente os tenha, quase
sempre, tornado escravos, e que a coragem dos povos de clima frio os tenha mantido livres. É uma
conseqüência que deriva de sua causa natural”. A doença atribuída aos “trópicos” aflige a “civilização”.
Os trópicos guardam a pobreza, a vida sem controle sobre a natureza, onde as pessoas não usam da
racionalidade científica como ferramenta evolutiva rumo à civilização. Os problemas das fronteiras
mundiais são os mesmos atribuídos a toda população fronteiriça de qualquer região. Internamente, o
sertanejo nordestino brasileiro é o viajante, inferior pelo seu porte físico, pelo número de doenças que se
encontra suscetível na sua condição de pobreza, de estatura baixa pela sua desnutrição, pelas parasitoses
que já viveu ou mesmo infecções. É um mutante socialmente pelo seu eterno nomadismo e também um
mutante geneticamente pela ambiência climática castigante do calor e pela sua saúde constantemente
abalada. Estão em todos os lugares, das pequenas cidades às metrópoles; por não suportarem o seu
“lugar” espalham-se de forma viral por todos os territórios.
73
Negri nos lembra que nada foge ao Império, não há “dentro” (capitalismo) e “fora” (socialismo), o local
de pobreza ou da riqueza. O Império está em todo lugar e em lugar nenhum. Em recente entrevista ao
jornal Estado de São Paulo (09/09/2005) disse: “Nos EUA, por exemplo, New Orleans passou a ser um
país em desenvolvimento.[...] O terceiro mundo está em qualquer lugar. Você pode encontrá-lo em Los
Angeles, em New Orleans, na periferia parisiense e em todos os países desenvolvidos”.

112
troca, do contágio, da miscigenação e da vida sem limites 74. “A higiene requer barreiras

protetoras” (Hardt & Negri, p.152, 2001). Pensar o contexto da globalização atual nos

ajuda a quebrar alguns conceitos do mundo colonial. A mobilidade das populações, o

rompimento de antigas barreiras de deslocamento nos remete a alusão do pensamento

fronteiriço de segurança estatal no que se refere à saúde das populações.

O exemplo clássico da nossa época centraliza-se na pandemia da AIDS que

se expande em altíssima velocidade em todos os países do mundo. Independente do

“grau civilizatório”. Primeiro foi estudada como doença, daí desenvolveram-se

pesquisas para o mapeamento de suas origens, onde descobriu-se que seria na África ou

talvez no Haiti. O lugar da pobreza é o local da sexualidade descontrolada, da falta de

higiene e de corrupção moral. O discurso formado que vigora a partir de então é o de

evitar o contato e usar proteção (idem, 2001).

A formulação do Regulamento Sanitário Internacional pela OMS aponta-se

como medida necessária a elaboração de projetos internacionais e supranacionais para

deter pandemias, pressupondo que as pandemias situam-se nas fronteiras. A população

fronteiriça, certamente mais vulnerável, torna-se o alvo das discussões por ser a

fronteira a representação do não-lugar. Escamoteia-se o discurso e implanta-se um

referencial culpabilizador da busca pelo território responsável: “Onde está o foco da

doença?” Até na fronteira, a vigilância está em todo lugar!

Ainda em 2001 o RSI passava por uma revisão textual e também conceitual

nas reuniões da OMS e da OPAS. Na reunião ministerial do Mercosul sua

aplicabilidade embasava o controle de doenças como a dengue, chagas, sarampo, febre

amarela e cólera. A reunião daquele ano se iniciou com o debate para a elaboração de

um plano de vigilância e controle de enfermidades transmissíveis. Além disso, a

74
“A doença da selva é o fato de que a vida brota em toda parte, tudo cresce sem limites. Que horror para
um higienista! A doença que a colônia libera é a falta de fronteiras na vida, um contágio ilimitado. Se
olharmos para trás a Europa parece tranquilizadoramente estéril” (Hardt & Negri, p.152, 2001).

113
produção de medicamentos antiretrovirais e a distribuição de medicamentos essenciais

foram pela primeira vez discutidas também entre os países associados como a Bolívia e

o Chile – a partir de então presentes na reunião (Ata 01/01; Mercosulsalud, 2006).

Algumas reuniões ministeriais apontam para a inserção de determinadas

temáticas relevantes aos países membros e associados. O ano de 2002 foi marcado pela

seqüência de discussões sobre o HIV/AIDS. Um banco de preços de medicamentos foi

proposto como ação conjunta. E a pauta sobre o Aedes Egypt se manteve. No entanto, a

criação do “www.mercosulsalud.org” – um site que continha todas as informações sobre

as ações dos ministros da saúde dos países do Mercosul e onde as ações do SGT 11

tiveram destaque. O Brasil foi o país escolhido para se responsabilizar pela manutenção

das informações que seriam colocadas na web (Ata 01/02; Mercosulsalud, 2006).

Em 2003 a inserção de novas preocupações fronteiriças veio a preencher o

debate da reunião ministerial: a SARS ou gripe aviária e a saúde sexual e reprodutiva.

As medidas de contenção do contágio e prevenção à transmissão radicalizavam-se com

a chegada da “nova epidemia”. A “gripe do frango”, como foi popularmente

denominada, revigorou as discussões sobre o Regulamento Sanitário Internacional. A

concepção de adoecimento globalizado parecia manter um modelo ampliado da

medicina urbana descrita por Foucault. A doença viria das águas, dos animais, do ar,

dos micoorganismos que não necessariamente fazem do ser humano um mediador. O

controle dos portos e aeroportos foi determinante neste momento. Estava em jogo a

capacidade destes países em responder pelo adoecimento e morte de suas populações,

mas também de atender ao mercado75 consumidor de carnes, transmitindo segurança

para a produção e circulação das mercadorias produzidas pela América do Sul.

Mais uma vez o Mercosul tinha um grande argumento pautando suas

reuniões. A SARS marcou um momento de ampliação do debate sobre o Regulamento


75
A Argentina e o Brasil lideram a produção de carnes (bovina, suína e avícola) na América do Sul e
exportam para vários países europeus.

114
Sanitário Internacional. A doença carregava consigo o “não lugar”. Poderia estar nas

aves que viajam e migram em qualquer território; poderia ser “levada” por pessoas em

deslocamento de um continente para outro; poderia ser trazida em aviões; poderia estar

em animais de “procedência duvidosa”. Qual seria o lugar de “procedência duvidosa”?

Os focos foram encontrados em localidades pequenas de todos os continentes do

mundo, sem exceção.

Fica a mudança conceitual do debate da saúde: nem normal, nem

patológico; não se fala da cura, nem da doença; o debate gira em torno do “portador”.

Fala-se do portador de prováveis doenças, de prováveis deficiências, de prováveis

transtornos. O “portador” é móvel, nômade, sem rosto e está em constante movimento.

Se desloca permanentemente. O desenvolvimento da epidemiologia dos fatores de risco

caracteriza o perfil do adoecimento centrado na possibilidade do que cada um de nós

possa “portar”. O “risco” é indeterminado, pois é sempre uma possibilidade.

Carregamos conosco, portamos. O conceito cria uma idéia durável de quase doença, que

não implica necessariamente em relacionar-se com um mal-estar ou que seja necessário

a visão de um sintoma; mas implica no permanente cuidado.

No caso da saúde nunca é cedo demais para começar a cuidar de si, nem

tarde demais que nada possa ser feito. A antiga definição de normal e patológico foi

substituída por um estranho estado de “quase doença”, que nos obriga ao cuidado

cotidiano e que dura enquanto houver a crença que algo pode ser feito. A não ser no

estado terminal do adoecimento, onde nada se pode fazer senão aceitar a morte. A

SARS trouxe uma discussão para a arena política do Mercosul: a possibilidade do fim

de uma fronteiridade territorial, mas também do fim da fronteiridade entre a cura e a

doença. Algo que sempre está em aberto, no limiar, na perspectiva da atenção

permanente. O “portador” não está nem no território e nem no tempo.

115
No que se refere à saúde sexual e reprodutiva, neste mesmo contexto iniciou

sua inserção na arena dos debates ministeriais. A inserção do assunto se constituiu por

uma demanda dos ativistas das políticas por igualdade de direitos nas questões de

gênero. Entretanto, sua aplicabilidade se iniciaria com o discurso sobre a criação de um

banco de dados que registrasse os casos de doenças sexualmente transmissíveis

notificadas nas fronteiras dos países. O RSI trazia contrapontos aos debates de forma

retrógrada e que deveriam ser administrados pelo SGT 11 para que fossem

contemplados na legislação do regulamento.

Ainda em 2003, os países do acordo aduaneiro fizeram uma vacinação

conjunta de suas populações. A Fundação Oswaldo Cruz, a maior produtora de

imunoderivados da América Latina, doou aos países do cone sul 300 mil doses de

vacinas que foram transportadas pelo Unicef para que a imunização funcionasse de

forma articulada, evitando assim a proliferação de algumas doenças que se disseminam

pelo contato (poliomielite, sarampo e gripe). A ação serviu como um teste de

amostragem para futuras pesquisas que indicavam a necessidade de repetir a vacinação

dos “vizinhos” ao mesmo tempo. Assim, as barreiras sanitárias reforçariam sua

concepção territorial.

O valor da vacinação pública das populações e seu papel definitivo na

erradicação de várias doenças em todo o mundo é algo reconhecido por sua eficácia. O

RSI trazia como hipótese as mesmas teses do discurso da imunologia como ciência: o

discurso bélico de “ataque” e “defesa”. A vacinação harmonizada era providencial aos

países. Os critérios de amostragem baseados nas zonas de fronteira instrumentalizava os

países para o uso do “ataque” à doenças como uma estratégia de “defesa” de suas

populações. Os critérios de amostragem desta pesquisa se baseavam, provavelmente, na

“defesa biológica universal” do cone sul. As campanhas de vacinação representam a

forma mais antiga de imunização de massa como política de Estado. Imunizar sempre

116
representou proteger as populações, garantir a reprodução dos corpos saudáveis,

assegurando a formação de barreiras ao desenvolvimento de doenças. A medicina de

Estado agora transformava-se em uma “medicina supranacional”.

Neste período a idéia de integração foi algo totalmente abandonado por

Menen e FHC, pois ambos priorizaram uma área de livre-comércio com o objetivo de

abrir o mercado a qualquer custo – não tinha por princípio a busca por integração ou

cooperação. Em curto prazo isso gerou uma crise no Mercosul, agravada pela crise

econômica que afetou os quatro países do bloco, com maior profundidade na

Argentina76.

O aprofundamento da agenda de Seattle na Política de Saúde do Mercosul

Com as bases implantadas, o SGT 11 veio a desenvolver metodologias

próprias, ramificação do trabalho em comissões e começou a demonstrar um perfil mais

técnico nas suas reuniões ministeriais. No ano de 2004, as atas coletadas demonstravam

até uma mudança no vocabulário de suas redações textuais. Falava-se em “luta política”,

“saúde e desenvolvimento” ou “gestão do controle de vulnerabilidade”. Vários grupos

de trabalho cresceram em seus debates com a participação de membros de movimentos

ativistas, órgãos públicos77 dos governos dos países envolvidos (banco central,

76
O ápice da crise argentina aconteceu em dezembro de 2001 quando a população iniciou o movimento
denominado “panelaço” contra as medidas fiscais adotadas por Fernando De La Rua. O presidente
almejava deter o déficit fiscal, após uma seqüência de privatizações, através de novos empréstimos
solicitados ao FMI. Vários comércios em regiões empobrecidas das províncias argentinas sofreram
saques por parte de populações que saíam às ruas batendo panelas e reivindicando o fim da recessão. Em
dois dias de conflitos, com a morte de várias pessoas nas ruas, o presidente declarou estado de sítio e, em
seguida, renunciou seu mandato juntamente com o seu ministro da economia (Domingo Cavallo).
77
A transição para os governos de esquerda na América Latina influenciou diretamente na formação
dessa agenda de discussões para a Saúde. O número de técnicos envolvidos aumentou significativamente
através do Ministério da Saúde brasileiro, além disso, o fórum abriu espaço para todos os movimentos
organizados que pleiteavam a inserção de seus debates na agenda aduaneira. Isso gerou uma demanda
ainda maior aos técnicos, que conseqüentemente, inseriram mais atores para a moderação das reuniões
ministeriais e também do SGT 11. Este foi posicionamento comum a todos os outros países do Mercosul
nesta época.

117
instituições trabalhistas...), sindicatos, grupos de estudos universitários, OPAS etc.

Então, o fórum se abriu. Havia uma percepção da integração regional como um capital

político para todos os membros.

Alguns grupos cresceram a ponto de tornarem-se comissões dentro do SGT

11: Comissão de Saúde e Desenvolvimento (que recebeu financiamento da OPAS para

pesquisas); Comissão de Revisão do Regulamento Sanitário Internacional; Comissão

Intergovernamental de Gestão de Riscos e Controle de Vulnerabilidades (Brasil);

Comissão Intergovernamental de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (Uruguai);

Conselho de Busca e Transplante de Órgãos (Argentina) e até uma capacitação massiva

para serviços de medicina comunitária78 foi também proposta (Argentina). Uma política

de medicamentos para os Estados-partes e associados foi aprovada também no ano de

2004, com programas e ações definidos (Ata, 02/04; Mercosulsalud, 2006).

No Brasil, a chegada do candidato Lula à presidência modificou o perfil do

grupo da saúde. Primeiro porque houve um maior deslocamento de profissionais dos

quadros do governo para compor o SGT 11. Segundo, porque possibilitou a abertura do

subgrupo para a entrada de vários movimentos organizados e instituições de saúde do

Mercosul. Isto é, a partir do ano de 2003 o espaço para as discussões da Saúde tornou-se

mais plural e ganhou dimensões maiores que a preocupação unicamente fronteiriça.

Além disso, algumas pautas de discussão que até então caminhavam lentamente foram

agilizadas, como as ações de controle de doenças (dengue, febre amarela, sarampo e

chagas).

No ano de 2004 o então ministro brasileiro da saúde, Humberto Costa,

exercia a presidência pro tempore e compareceu a grande parte das reuniões

78
A Estratégia de Saúde da Família brasileira foi “exportada” para dois países como modelo de gestão da
atenção à saúde: Argentina e Bolívia. O interesse em gerar programas com essa formação fez com que o
Brasil enviasse técnicos do ministério da saúde para a capacitação em medicina comunitária e também
para a criação de formas de financiamento de gestão descentralizada dos serviços de saúde (como o caso
do SUS).

118
preparatórias das comissões, além das semestrais ministeriais. A contribuição chilena

(país associado, não membro do Mercosul) começou a ter destaque em debates

importantes nas pautas sobre gênero e saúde reprodutiva. Iniciava-se a virada à esquerda

na América Latina.

Em 2005 foi aprovado o Regulamento Sanitário Internacional e no segundo

semestre do mesmo ano iniciou-se sua implementação. Em reunião foi apresentado

pelos Estados-partes com poucas alterações das propostas que vinham sendo debatidas

nos anos anteriores e também redigidas pela OMS. O ano se iniciou com novos Estados

associados: Colômbia, Equador e Venezuela. O Peru também assistiu as reuniões

ministeriais do primeiro e segundo semestres (Ata, 01/05 e 02/05; Mercosulsalud,

2006). Foi também em 2005 que surgiu a proposta de um debate ampliado sobre a saúde

ambiental e do trabalhador entre os países.

Ainda em 2005 foi criado pelo SUS o Sistema Integrado de Saúde das

Fronteiras (SIS – Fronteiras), tendo como principais objetivos a promoção e a

integração de ações e serviços de saúde na região de fronteira; além disso, visava

organizar e fortalecer os sistemas de saúde locais entre tais municípios79. O Brasil tem

121 municípios fronteiriços80 entre o norte e o sul do país. O projeto conta com o auxílio

das universidades federais de cada estado nacional em zona de fronteira na realização

dos diagnósticos locais de saúde e também na elaboração dos planos operacionais. O

projeto já recebeu inúmeras críticas, pois foi pensado somente para áreas brasileiras

quando deveria ser algo articulado com os países que compõem o acordo Mercosul. Por
79
Ao total estava previsto: 12 municípios do Mato Grosso do Sul, 18 do Paraná, 29 do Rio Grande do Sul,
17 do Acre, 08 do Amazonas, 02 do Amapá, 04 do Mato Grosso, 09 de Rondônia e 09 municípios de
Roraima. Totalizando 108 municípios em duas fases de seis meses de execução do projeto (CONASS,
2006).
80
Segundo o IBGE, município fronteiriço é aquele que está na linha de fronteira ou que sua sede se
localiza até 10 km da linha de fronteira. Em recente pesquisa realizada por Paulo Peiter da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, essa questão fronteiriça da Saúde entre os Estados mostra-se como uma balela.
Os problemas encontrados nas fronteiras municipais do Brasil, com seu sistema unificado de saúde, são
os mesmos encontrados entre as fronteiras nacionais. As fronteiras se constituem como uma “zona de
transição”, por isso são flexíveis. Possuem um conceito que na realidade se operacionaliza pela ótica da
geografia humana mais que uma geografia física. O espaço é social e o território é um processo.

119
isso, mostra-se um projeto fraco, sem sustentação política e sem base constitutiva entre

os movimentos de luta pela saúde.

Entre os financiamentos obtidos, a Comissão “Saúde e Desenvolvimento”

apresentou os resultados de suas pesquisas e também a ramificação de novas linhas de

investigação criadas a partir dos financiamentos da OMS/Washington. Com a abertura

do SGT 11 aos diversos fóruns ampliados e grupos sociais, a OMS e a OPAS passaram

a ter representantes fixos compondo as reuniões da saúde no âmbito do Mercosul. Ao

Brasil ficou estabelecido ser o país responsável pela composição das linhas de

investigação sobre fitoterápicos81 e também pelo estudo sobre o perfil dos sistemas de

saúde dos países do Mercosul (Ata, 01/05; Mercosulsalud, 2006). Certamente o

interesse desmedido pela biodiversidade brasileira estava em questão. A OMS/ONU não

financiaria uma outra linha de pesquisa ao Brasil que não fosse relacionada às plantas

medicinais no âmbito do Mercosul. Cada país recebeu financiamentos específicos às

suas potencialidades, que, certamente, demonstram os interesses de “captura” pela

OMS. O Brasil deveria “globalizar” conhecimentos sobre sua potência maior: a (bio)

diversidade. Este pacto da saúde iniciado pelo cone sul tornou claro o interesse de

outros países na produção aduaneira. Para se ter idéia, dentre o número de pessoas que

acessaram o site produzido pelo SGT 11 (www.mercosulsalud.org) no ano de 2005,

67% dos acessos advinham dos Estados Unidos, 19% do Brasil, 10% dos Estados parte

e associados e apenas 4% são de acessos vindos de outros países.

São números significativos do ponto de vista dos acordos que viriam em

seguida. Em 2006 a OMS, órgão da ONU, entrou definitivamente para o acordo do

Mercosul através da pactuação de uma política de saúde conjunta. Na reunião

ministerial deste ano, a OPAS elaborou e apresentou uma “Política para nível sub-
81
Podemos talvez inferir que o interesse pelo nosso potencial fitoterápico esteja voltado para a guerra das
patentes sobre produtos medicinais e cosméticos baseados em princípios-ativos que só se extraem de
plantas retiradas da região amazônica e da mata atlântica; ou mesmo pelo nosso baixo controle à
biopirataria.

120
regional Mercosul” que disponibilizava US$400.000,00 para pesquisas que viessem a

atender as necessidades da produção regional. Desta forma, um braço da OPAS/OMS se

inseriu e se instituiu, definitivamente, no Mercosul com a maior parte do capital para

pesquisas sobre a Saúde no cone sul.

A ação junto a OPAS acontecia de forma inversa e paralela à política de

medicamentos essenciais planejada entre os Estados-parte. Na análise dos documentos

percebe-se uma narrativa interessante das reuniões sobre o tema. O discurso veiculado

pelos países em ata trazia uma bandeira de luta contra a indústria farmacêutica. A

proposta da Comissão de medicamentos era formar uma ação que unificasse a produção

e a comercialização dos produtos em valores mais baixos somente para os países do

Mercosul, desta forma, a política serviria como uma estratégia de mercado contra a

hegemonia dos laboratórios europeus e americanos.

A circulação de medicamentos essenciais a preços baixos começou a

funcionar naquele mesmo ano. Havia um discurso homogêneo entre Chaves, Bachelet,

Lula e Morales: a defesa às camadas mais pobres da sociedade. As políticas de

produção interna de medicamentos entre os países do Mercosul chegam exatamente

neste contexto de planejamento de uma estratégia contra os laboratórios internacionais.

A chegada da OMS, a luta entre grupos de interesse e lobistas de todas as áreas da

indústria farmacêutica e produtos médicos começava a compor o quadro das agendas

das reuniões ministeriais de cada um dos países envolvidos. Em 2006 não somente os

governos82 estavam a frente do direcionamento das ações do SGT 11. ONG´s, empresas
82
Em recente pesquisa coordenada por Lígia Giovanella da Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz percebeu-se que nas regiões de fronteira já existem vários acordos para ações
conjuntas entre os municípios. As pessoas são atendidas, quando necessário, em qualquer um dos “lados”
dos países limítrofes. Os “acordos” ficam à cargo dos gestores, e quase sempre geram respostas positivas
à população. Por iniciativas próprias, algumas cidades já realizaram imunizações conjuntas, campanhas
contra a dengue e outras possuem até carteira de vacinação única para os cidadãos da fronteira. Em
recente entrevista, a professora disse que uma das maiores dificuldades que encontrou para definir entre
os gestores entrevistados é o conceito do que é ser estrangeiro!
Sobre o atendimento a população fronteiriça, a professora Vera Nogueira da Faculdade de Serviço Social
da UFSC coordenou uma pesquisa sobre a demanda atendida nos serviços de saúde brasileiros à
população de fronteira e traz dados interessantes sobre nossa “porta de entrada”: em primeiro lugar as

121
e grupos de interesse como os da igualdade de gênero, luta antimanicomial, defesa aos

direitos dos homossexuais e outros, inseriam suas propostas nas agendas discutidas.

Outro componente integrador eram as ações corporativas entre os profissionais da

saúde, que iniciaram uma tímida discussão sobre a “harmonização de diplomas”; algo

que poderia vir a estabelecer uma livre circulação de profissionais da saúde pelo acordo

aduaneiro.

Unidades de Saúde (23,82%), seguidos dos Serviços de Emergência (21,8%), Equipes da Estratégia de
Saúde da Família (15,1%), Centro Especializado (12%), Plantão Social (13,9%) e Outras (10,1%). Ocorre
devido a encaminhamentos realizados em ordem prioritária pelos médicos (34,6%), seguidos dos agentes
de saúde (29%), conselho tutelar (16%), voluntariado (6%), políticos (5%), Organizações da Sociedade
Civil-ONGs (1,6%) e outros (4,4%). Quando se analisam os outros encaminhamentos destacam-se as
inter-relações entre demandas em saúde e exclusão social, na medida em que as menções reiteradas são
Presídios, Penitenciárias, Assistentes Sociais, Ministério Público, Vara da Infância e Juventude, APAE,
Corpo de Bombeiros, padres e pastores. Dois insólitos encaminhamentos são mencionados no relatório –
um realizado pelo Cônsul paraguaio e outro por curandeiros e benzedeiras. Na pesquisa de Nogueira
aponta-se para as “facilidades” que a Estratégia da Saúde da Família tem proporcionado para gerar a
demanda estrangeira ao SUS brasileiro e também para “encontrar” brasileiros que precisam de
atendimento do outro lado das fronteiras (Nogueira, Vera. Fronteira Mercosul: um estudo sobre o
direito à saúde. Relatório Técnico de Pesquisa. DSS/UFSC: Florianópolis, 2005).

122
CAPÍTULO III

A DESESTATIZAÇÃO DA POLÍTICA:
A MÁQUINA CONCEITUAL OPERAÍSTA
E A ANÁLISE DA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

123
3.1 - Sobre o método histórico do pensamento operaísta

“Toda vez que muda o contexto histórico,


muda também o método”.
(Antonio Negri)

“Os conceitos giram e dão voltas, e é sempre adequado


especificá-los em relação à estrutura de sentido que
genealogicamente os conota”
(Antonio Negri)

Os fatos sociais, descritos detalhadamente nos capítulos anteriores, apontam

elementos que demarcam a presença de um novo ciclo de lutas desencadeado a partir

das manifestações em Seattle, que abriram uma agenda global de defesa de uma

mundialização mais equilibrada e integradora dos processos de livre circulação do

trabalho e do conhecimento. Como vimos, no caso da saúde, tal agenda dos movimentos

globais passa a ser incorporada nos discursos políticos, iniciativas de governos e de

blocos econômicos supranacionais, constituindo medidas e programas democratizantes

para além das pressões mais nacionalistas dos Estados e mais privatista do Mercado.83

Nesse sentido, os dias de Seattle, como bem salientou Lazzarato 84 (2006, p.20),

anunciaram um deslocamento na nossa interpretação sobre os movimentos políticos.

Estes já não deviam somente resistir e se defender, mas “afirmar-se como forças

criadoras”.

83
Também como descrevemos, as lutas pela livre circulação do trabalho e pela rede de amparo ao
emigrante são apenas a ponta de um grande iceberg, consubstanciado nas lutas pela democratização
absoluta das sociedades, através de dispositivos de defesa do conhecimento livre (quebra de patentes etc),
defesa do meio ambiente, ampliação de mídias livres, constituição de uma proteção social que integre
uma vasta gama de trabalhadores precários (nesse caso, a defesa da chamada renda básica garantida), a
adoção de medidas justas de comércio entre os países etc. Sobre isso, de forma mais estruturada,
Lazzarato (2006, p.21) estruturou no seguinte pensamento: “Os dias de Seattle foram, antes de mais nada,
um agenciamento corporal, uma mistura de corpos (com suas ações e paixões), composta de
singularidades individuais e coletivas (multiplicidades de indivíduos, de organizações – marxistas,
ecologistas, trotskistas, ativistas da mídia, esotéricos, black blocs) que praticam relações específicas de
'co-funcionamento' corporal (diversas maneiras de estar junto, de militar: os sindicalistas não funcionam
da mesma maneira que os ativistas de mídia ou os esotéricos). Os dois agenciamentos são, dessa maneira,
construídos a partir de relações de poder e de desejo já atualizadas”.
84
Na bela introdução do seu último livro publicado no Brasil, As Revoluções do Capitalismo (Record,
2006). Nesta parte da publicação, o autor se remete fortemente aos trabalhos de Foucault e Deleuze.

124
Todo mundo que chegou a Seattle com suas máquinas corporais
e suas máquinas de expressão voltou para casa precisando
redefinir estas máquinas a partir do que fizeram e disseram
enquanto estavam lá. As formas de organização política (de co-
funcionamento dos corpos) e as formas de enunciação (teorias e
enunciados sobre capitalismo, sobre os sujeitos revolucionários,
formas de exploração) precisam ser medidas, reavaliadas,
reinterpretadas à luz do acontecimento (Lazzarato, 2006, p.21).

Essa constatação na metamorfose dos movimentos políticos após Seattle

parte, a priori, do próprio método teórico que Lazzarato está imerso, o operaísmo, que

se posiciona dentro da premissa que a resistência vem antes do poder, a luta antes do

comando.85 Um dos autores mais importantes do operaísmo, Antonio Negri, explica o

operaísmo como uma corrente teórica do marxismo renovado cujo ponto de partida é a

afirmativa que é a força de trabalho o motor do desenvolvimento através da luta. 86 Essa

concepção básica do operaísmo (a classe 'existe enquanto luta', e não 'luta enquanto

existe')87 se distancia daquela que vê na classe um conceito que se origina dentro do

capital. “Na tradição marxista, era portanto impossível tornar o movimento da classe

operária uma variável independente da relação de capital. [...] A classe operária era,

pelo contrário, o motor de qualquer desenvolvimento através da luta” (Negri, 2004,

p.54). 88

85
Daí que esta tese começa exatamente por um conjunto de lutas sociais, protagonizadas pelo Batalha de
Seattle, em 1999. E que se desdobra nos capítulos sobre as interpretações teóricas da política
contemporânea e os rebatimentos disso na forma de produção de políticas de saúde.
86
A partir do operaísmo, a idéia de revolução passa a ser “a acumulação de um conjunto de processos
subjetivos de massa”.
87
No primeiro caso, classe é uma construção histórica, ativa e mutante, estruturada nas contínuas lutas
contra a exploração social. No segundo caso, a classe é já um dado, ou seja, todos que estão no interior do
proletariado são imediatamente classe. A primeira noção é dinâmica e demarca a existência de uma
mutação constante na composição de classe. A segunda, estática e presa às determinações dialéticas de
uma certa ortodoxia do pensamento marxista. Sobre isso ler TRONTI, Mario. Operário e Capital.
88
No livro Cinco Lições sobre o Império (2004), há um conjunto vasto de textos de Antonio Negri
(alguns em parceria com Michael Hardt) que mostra o método de análise social do autor e, mais
especificamente, do pensamento operaísta. Sua tese maior – os desenvolvimentos do capital estão
determinados por (e seguem a) lutas da classe operária – faz com que a política seja considerada como
produto da atividade social – ou para ser exato – das lutas sociais. Essa posição operaísta entrou em rota
de colisão com o movimento operário oficial e o marxismo ortodoxo, pois que não era necessário atuar
através do parlamento para se obter reformas sociais.

125
Dentro de uma perspectiva operaísta, portanto, todos os movimentos

políticos derivados de Seattle fazem parte de um ciclo de lutas que atualiza a própria

noção de classe, estacionada nos anos finais da década de 90 ainda na noção de classe

operária.89 É a chamada perspectiva da descontinuidade, um dos princípios

metodológicos do operaísmo. “Nunca consideramos o processo histórico como um

processo linear, necessário, definido em termos deterministas. [...] O desenvolvimento

histórico, em geral, do ponto de vista da análise causal, não é pré-imaginável de

nenhuma maneira, mas depende sempre da ação dos sujeitos dentro do processo”

(Negri, 2004, 57-8). O operaísmo carrega ainda dois importantes fundamentos dentro

do seu método histórico. O primeiro deles é a desmensuração, no sentido que a ação

dos sujeitos resulta sempre em uma ação desmedida, visto que há uma incapacidade de

se fornecer uma medida de controle dos movimentos/lutas.90

O segundo fundamento é a necessidade de periodização histórica. Isto

porque cada período histórico é formado pela relação de capital que se determina em

relação às lutas, aos choques, aos conflitos que ocorrem em seus âmbitos. Negri formula

um esquema de análise que esboça de forma completa um período histórico de lutas. O

esquema busca identificar “as diferenças (as transformações) que qualificam o sujeito

proletário (sua composição técnica e política) nas diversas formas de organização do

trabalho e da sociedade”.91 Tudo isso partindo dos seguintes parâmetros: a) o ponto de

vista dos processos laborais e de sua modificação; b) as normas de consumo e de

89
O deslocamento da classe para multidão será uma operação trazida por Antonio Negri a partir de seu
livro A anomalia selvagem, quando recupera esse termo do filósofo Spinosa. Mais tarde na trilogia – feita
com o professor Michael Hardt – O Trabalho de Dionísio, Império e Multidão, efetua esse deslocamento
no interior da análise da realidade política de antagonismos no final do século XX. Sobre isso, veremos
mais à frente, na seção 3.5 desse capítulo.
90
O conceito de devir, trabalhado de forma persistente na obra de Deleuze e Guattari, será utilizado pelos
autores ligados à filosofia política de Negri como um aparelho conceitual que aprofunda essa noção de
desmedida, apesar de o próprio Toni Negri preferir o termo porvir no lugar de devir, porém, ele não abre
nenhuma polêmica mais árdua com os colegas que utilizam o termo devir. Sobre essa relação entre devir
e porvir, ler Kairós, Alma Venus, Multitudo (Ed. DP&A, 2004), de Antonio Negri.
91
Negri, 2004, p.57.

126
reprodução social; c) os modelos de regulação econômica e política; d) a transformação

da composição política de classe.

Cabe a análise operaísta reverter o ponto de vista segundo o qual as

categorias são definidas, isto é, de constituir as categorias partindo de baixo, submetê-

las às regras de ação, de práxis coletiva. Assim, das sabotagens fabris do século XIX,

passando pelas lutas de recusa ao fordismo no século XX, até chegar às lutas dos

movimentos globais contra o injusto sistema de comércio internacional no século XXI,

a sociedade se estrutura a partir de discursos políticos e sistemas de proteção social que

respondem à dinâmica dessas lutas. Toda a história das políticas, no sentido operaísta,

deve ser lida como um regime de antagonismo 92 contra os processos de espoliação e

captura do social. Assim, a Batalha de Seattle está dentro (se é possível falar assim) de

uma tradição de antagonismos, que fundaram contemporaneamente as formas e

mutações do Estado, dos Movimentos e do Mercado.

Para compreender o campo social, que se encontra por exemplo a

conformação das políticas de saúde, é preciso ir a história de luta dos movimentos, tão

frequentemente associada à história dos perdedores por uma ortodoxia à direita ou à

esquerda. Na concepção operaísta, são os movimentos que produzem novas

subjetividades – que vão ser espalhadas na forma de uma multiplicidade de criações,

que vão desde a políticas públicas democratizantes a novos valores éticos e sociais. O

marco teórico, a seguir, busca localizar as mutações políticas no interior de uma

periodização histórica das lutas que vai de 1870 (do operário profissional) aos dias

atuais (operário social).93


92
Aliás, os teóricos operaístas utilizam mais o termo antagonismo do que pólos dialéticos, por entender
que a dinâmica social se explicita numa relação de não-determinação binária. Em resumo, a lógica de
antagonismo não produz síntese alguma. Só faz abrir uma nova história, uma nova realidade, um novo
devir. Atenção então porque a filosofia operaísta não procura nenhum resquício da dialética para explicar
o movimento político e das políticas. Contudo, não perde de vista que o antagonismo sempre se situa
numa relação de redução (ou mesmo ultrapassagem) da exploração capitalista.
93
É claro que, com certa pitada eurocentrista, o operaísmo trata de reler a história das lutas dentro da
história européia. Nesta tese, o primeiro movimento será trazer à tona esta perspectiva para que, depois,
no capítulo seguinte, localizar essa démarche no interior dos processos de lutas, conquistas e dilemas,

127
3.2 – Do ciclo de lutas do operário profissional ao new deal

De fato – parece reconhecer Keynes –, o sistema funciona não


porque a classe operária sempre esteja dentro do capital, mas
porque também pode estar fora. Recuperar a ameaça, a
recusa, absorvê-la em graus sempre novos: este é o objetivo
político, este é o problema científico em Keynes.
( Antonio Negri )

Antonio Negri94 produziu uma periodização histórica do trabalho que divide

o ciclo de lutas sociais em três grandes momentos. O primeiro vai dos acontecimentos

da Comuna de Paris a I Guerra e Revolução Russa. A segunda, do final da Primeira

Guerra Mundial a 1968. E a terceira, de 1968 ao tempo atual. Essas três fases são

conceituadas, respetivamente, como ciclos do operário profissional, do operário massa e

do operário social.

Os acontecimentos ligados à Comuna de Paris, em 1848, quando o

movimento operário toma o poder na França e governa por poucos dias a capital

francesa, definem o começo da organização política da autonomia da classe

trabalhadora. Abre-se, portanto, o primeiro ciclo de lutas operárias no Ocidente, por

fazer com que o socialismo passe de utopia à realidade. Segundo Negri (1972, p.184),

esse acontecimento inicia um novo período histórico porque “a classe operária se

apresenta como variável independente do desenvolvimento capitalista, reconhecendo-se

em última instância na própria autonomia política”. Além disso, 1848 inaugura o

momento de uma primeira base de conceituação do que viria a ser o Estado

contidos no interior das lutas e dos discursos da saúde coletiva no Brasil.


94
Essa periodização pode ser encontrada em Cinco Lições sobre o Império (2003), Ocho tesis
preliminares para uma teoria del poder constituynte (originalmente publicado na Revista Crítica e
Debates Contrários, 1989). Mas essa periodização é melhor esmiuçada, em parte, no livro La forma-Stato
(ainda não publicado no Brasil), de 1977. Na Espanha, o livro foi publicado em 2003, com o título La
forma-Estado, pela editora Akal.

128
contemporâneo, visto que há uma modificação completa das relações de forças no

interior das relações políticas e institucionais desse Estado. Há um novo sujeito político:

o operariado.

De agora em diante a teoria do Estado deverá prestar contas não


somente com os problemas inerentes ao mecanismo de
socialização da exploração, mas também com uma classe
operária politicamente identificada que se tornou sujeito, com
uma série de movimentos materiais, carregando dentro dessa
materialidade toda uma conotação política revolucionária.95

O ciclo de lutas sociais surge, em boa parte, derivada da composição técnica

do trabalho, então marcada pela figura do trabalhador especializado, isto é, formado

diretamente na fábrica. Trabalhador é sinônimo de operário industrial.96 O comando

capitalista, portanto, trata de incluir o operário como parte da maquinaria maciça e

complexa, assim, a indústria se torna um espaço social que separa o trabalhador dos

meios de produção do seu próprio trabalho, caracterizado cada vez mais como uma

atividade abstrata.

A separação das atividades produtivas do resto dos objetivos da


vida permitiu que o “esforço físico e mental” se condensasse
num fenômeno em si mesmo – uma “coisa” a ser tratada como
todas as coisas, isto é, a ser manipulada, movida, reunida a
outras “coisas” ou feita em pedaços (Bauman, 2001, p.162).

A constituição de uma autonomia de classe é, para o operário do século XIX,

a consciência de ser a estrutura de sustentação e motor do desenvolvimento capitalista.

A partir disto, esse operário profissional, inserido no meio do processo laboral que

95
Negri, Antonio. John Maynard Keynes y la teoria capitalista del Estado em 1929. La forma-Estado.
Madrid: Akal, 2003, p.184
96
Até o século XVII, a fábrica era um espaço de trabalho que se confundia com o próprio ambiente da
vida. Com os avanços da industrialização, a fábrica tornou-se o espaço onde se remunera a vida. Vida e
Trabalho são separados pela primeira vez. É o que Max Weber denominou, no seu ensaio sobre a Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, de fundação da racionalidade econômica: “o homem econômico
escolhe, de agora em diante, existir em função de seu trabalho, de sua empresa, e não o contrário”(Weber,
1987, p.44).

129
controla plenamente, quer também o controle da produção. Estamos então na época das

sabotagens, dos sindicatos, das vanguardas de massa, das fortes e longas greves, e no

ideal socialistas dos conselhos de fábrica. Esta reivindicação da autogestão do processo

laboral e do controle do ciclo produtivo constituem, nesta fase, contradição estratégica.

“Em torno do tema da autogestão e do controle, a multidão de operários profissionais

constrói a matriz de um sujeito revolucionário e desenvolve o projeto comunista em um

“modelo apropriativo” (Negri, online).97

A formação do Estado Comunista, a partir da Revolução de 17, na Rússia,

tornar-se-á um ponto de identificação política interna da classe operária internacional.

Ao mesmo tempo em que o Estado Capitalista se depara com uma profunda crise,

instalada pelas normas de consumo construído por si próprio: a crescente produção de

massa, então unicamente regulada pela capacidade salarial de consumo. Por ser

constantemente expropriado, o trabalhador assalariado não tem condições de consumir o

volume de mercadorias posta a circular, o que faz do ciclo econômico da época ser

bastante irregular, à medida que não há um processo claro de equilíbrio do

desenvolvimento. “É na onda dessa crise na produção de massa que nasce a busca de

mercados externos, de desembocaduras imperialistas e coloniais”(Negri, 2003, p.62).

A emergência do new deal: resposta capitalista às lutas operárias

Em contrapartida ao programa de transformação social comunista, levado à

cabo pelos movimentos dos trabalhadores, a resposta capitalista foi iniciar a produção

de modelos reformistas que derrotassem a aliança entre vanguardas operárias e massas

proletárias. Separar o partido da classe. “Taylorismo e fordismo cumprem esta função

97
Trata-se do texto Ocho tesis preliminares para uma teoria del poder constituynte.

130
imediata: retirar o partido bolchevique da classe, através da massificação do modo de

produção e da desqualificação da força de trabalho, introduzindo, neste sentido, novas

forças proletárias no processo produtivo” (Negri, 2003, p.185).

A esse período histórico, Antonio Negri conceituou como a “era do operário

massa”, quando o trabalho se torna objeto de racionalização científica, que busca – na

lógica do cálculo e da previsibilidade – tornar as atividades produtivas de diferentes

indivíduos em atividades rigorosamente idênticas, tornando-as mensuráveis e

intercambiáveis para que a tarefa possa ser realizada por qualquer um, independente de

qualquer qualidade diferenciada das subjetividades (Gorz, 2003, p.60-64).

A fábrica fordista – com a meticulosa separação entre projeto e


execução, inciativa e atendimento a comandos, liberdade e
obediência, invenção e determinação, com o estreito
entrelaçamento dos opostos dentro de cada uma das oposições
binárias e a suave transmissão de comando do primeiro
elemento de cada par ao segundo – foi sem dúvida a maior
realização até hoje da engenharia social orientada pela ordem
(Bauman, 2001, p.68).

Esse padrão produtivo – levado a ferro e fogo na nova reestruturação

capitalista – também traz consigo novas normas de consumo. Agora a integração no

consumo passa fundamentalmente pelo salário. Como bem analisou Gorz (2003), coube

ao salário a construção de uma educação ao consumismo, à medida que o operário-

produtor se converte em um trabalhador-consumidor.

[...] educar o indivíduo para que adote diante do trabalho uma


atitude instrumental do tipo: “o que conta é o pagamento que cai
no fim do mês”; e ensiná-lo, como consumidor, a cobiçar as
mercadorias e os serviços mercantis como se estes fossem a
própria finalidade de seus esforços e significassem os símbolos
de seu sucesso (Gorz, 2003, p.50).

O salário comporta então a criação de um ethos capitalista que estimula o

sujeito a acreditar que “ele se basta a si mesmo”, sendo desnecessário atuação militante

131
em universos coletivos de solidariedade para alcançar melhores condições de vida. Para

a estrutura fordista, a autovalorização do trabalho98 se traduz em projeto individual ao

invés de ser coletivo. O indivíduo cuida de si, e o Estado – agora tornado de Bem Estar

Social – o compensa pela perda de autonomia.

O Estado-protetor, o Estado-providência oferece ao trabalhador-


consumidor funcional compensações sociais pela perda de
autonomia. Essas compensações adquirem a forma do direito a
pensões e serviços sociais. Devem suprir o declínio das relações
sociais auto reguladas e das solidariedades familiares
provocadas pela socialização pelo consumismo. Assumindo que
serviços que as pessoas, até então, cumpriam e satisfazendo
necessidades de que antes eles mesmos se incumbiam, o Estado-
providência assegura-lhes não apenas um apreciável grau de
segurança, mas também aumenta o tempo que pode ser
consagrado à socialização (escolarização), ao trabalho
assalariado e ao consumo mercantil (Gorz, 2003, p.55).

O Estado de Bem Estar Social ou o Welfare State emergiu como o principal

sistema de regulação da “era do operário de massa”. 99 Por um lado, resultou na

organização das elites empresariais dentro desse Estado. Por outro lado, fez organizar

um novo modelo de sindicato. O novo pacto (new deal), nos Estados Unidos após a

grade depressão de 29, foi uma engenharia política, conceituada pelo economista inglês

John Keynes e implementada pela administração de Roosevelt. Afirmou uma Estado

planejador que integrou dentro de si o conflito social, fazendo com que o fordismo se

qualificasse pela “articulação entre um 'regime de acumulação (taylorista) e um 'modo

de regulação' da repartição dos ganhos de produtividade” (Cocco, 2000, p.64).

98
Negri insiste na autovalorização do trabalho como uma condição de ampliar o valor-trabalho e reduzir
as formas de captura de exploração pelo capital.
99
Na fábrica, o taylorismo radicaliza “cientificamente” a redução do corpo a organismo (sua redução aos
esquemas sensores-motores). O welfare articula e dispersa a “população” em processos de reprodução,
multiplicando as figuras da “sujeição” (controle e instituição da família, das mulheres e das crianças, da
saúde, da informação, da velhice etc). O espetáculo articula e multiplica o público em uma relação cada
vez mais estreita entre comunicação e consumo, requalificando também o “político”. No fordismo, corpo,
população e público são técnicas disciplinares, de regulação e de controle, centradas na constituição da
multiplicidade em força-trabalho” (Lazzarato, 1998, p.87).

132
Pois o cerne do mecanismo fordista encontra-se na dinâmica dos
ganhos de produtividade, da qual depende o crescimento,
simultâneo e interdependente, da acumulação e dos salários
reais. São, portanto, as formas institucionais de regulação da
relação salarial que qualificam as tarefas do Estado regulador-
intervencionista (Cocco, 2000, p.64-5).

Esse modelo reformista do “Estado Social” se tornou, após a II Guerra

Mundial, “o paradigma de referência de um processo de reconstrução das economias

européias fortemente marcadas pela ativa intervenção do Estado na regulação

econômica” (Cocco, 2000, p.62).

O fator decisivo foi a emergência de uma dinâmica virtuosa,


alimentada pelos modos de repartição dos ganhos de
produtividade, entre acumulação e salários reais. Foi na relação
salarial que esse modo de repartição dos ganhos se afirmou,
permitindo a recomposição dinâmica de produção e consumo de
massa. Assim, podemos dizer que o fordismo baseou sua força
homogeneizadora mais nas novas características da relação
salarial do que nas próprias políticas econômicas de inspiração
keynesiana, e de fortes e regulares taxas de crescimento, pode
ser considerado como o da vigência da relação salarial fordista.
Todos os outros elementos (concorrência monopolista, mercado
autocentrado, economias de escala) mostram-se tão importantes
quanto determinados, em última instância, pela relação salarial
fordista (Cocco, 2000, p.63).

Contudo, o new deal baseava-se, portanto, em medidas disciplinares à classe

operária através dos altos salários – algo que criava e garantia o público consumidor do

“excedente” produzido pelo novo capitalismo manufatureiro e também atrelava a classe

operária ao Estado, através de políticas sociais. Como analisou Cocco (2000), a

distribuição de renda determinada pelos salários acontecia, desta forma, de duas

maneiras nas economias centrais: diretamente, pelos salários reais; e indiretamente, pelo

sistema de Welfare State.100 “A forma-Estado que se afirmou nos países centrais nessa
100
Sobre o impacto do Estado Social na composição de classe, Tronti (1976, p.340) destaca por exemplo
o que veio a se tornar a contratação coletiva. Esta passou a ser uma forma de controle de classe, uma
tentativa de institucionalização, não da luta operária de uma forma geral, mas de sua forma específica que
liga e unifica os interesses materiais imediatos de um núcleo compacto de categorias operárias dentro do
setor correspondente da produção capitalista.

133
época está, portanto, intimamente ligada à passagem da ‘economia-política’ as

‘políticas-econômicas” (Cocco, 2000, p.62).

O papel do Estado de Bem Estar Social na regulação das lutas

A contradição, entretanto, surge nos anos subseqüentes quando o Estado

intervencionista reconhece o surgimento da classe operária e configura uma definição

totalitarista de Estado, a partir do descobrimento da radicalidade de um antagonismo

operário. Desta forma, a função do Estado torna-se levar a todos os âmbitos de

intervenção a consciência de cisão da luta operária. Toda a inovação estatal e o

equilíbrio pressuposto abrem um autêntico processo de revisão constitucional. A

formação de uma “ciência de Estado” revela o quadro das relações de força: a

interiorização (a captura) da classe operária na dinâmica de desenvolvimento do poder

estatal. Assim, ocultava-se a violência101 necessária para manter esse “equilíbrio” entre a

formação do Estado intervencionista advinda de um modo de produção

taylorista/fordista como se fosse “uma vontade geral em ato” (Negri, 2003a).

O caráter científico dado ao Estado fazia com que a economia política se

apresentasse como uma “teoria do equilíbrio”. A ciência econômica se baseava em uma

“naturalidade” dos pressupostos de liberdade ao mundo da riqueza. Assim, aceitava-se o

risco em que a sociedade pudesse se configurar integralmente como uma fábrica (Negri,

2003a).

O intervencionismo keynesiano se remetia ao Estado como representante

coletivo exclusivo do capital produtivo (Negri, 2003a). Representava, ainda, “o domínio

101
“Um dos pilares da soberania do moderno Estado-nação é o seu monopólio da violência legítima, tanto
no espaço nacional como frente a outros países [...] A violência legítima exercida pelo Estado-nação
baseia-se essencialmente em estruturas legais nacionais e, posteriormente, internacionais” (Hardt &
Negri, 2005, p.49).

134
instrumental da produção sobre as dinâmicas de reprodução e consumo de massas de

trabalhadores cada vez mais organizadas e combativas” (Cocco, 2000, p.73).

(...) o ‘modo de regulação fordista’ emerge como um dispositivo


endógeno à relação salarial, em que as regras institucionais só
têm um papel na medida em que reconhecem e generalizam a
relação de força que nesta se determinam. Produção e consumo
de massa se alimentam reciprocamente pelas reivindicações
salariais e pelo incremento da composição orgânica do capital.
(...) A maior instituição, a que caracterizou o conjunto das
diferentes variantes nacionais do fordismo, é a própria relação
salarial fordista e sua força real era o próprio conflito de classe
(Cocco, 2000, p.73).

O Estado plano representava um capital coletivo que articulava socialmente

o domínio da ciência sobre o trabalho vivo (organização científica do trabalho). “O

Estado-planejador, portanto, não surge a partir de um período de prosperidade baseado

na ausência de um conflito, mas de um modo bem preciso de fazer da crise o motor do

desenvolvimento” (Cocco, 2000, p.77). Isso significava, entretanto, que para Keynes a

classe operária representava o motor do desenvolvimento e também do equilíbrio

econômico esperado. Keynes acreditava que o sistema funcionava porque a classe

operária sempre estaria dentro do capital. Se estivesse “fora”, recuperá-la representaria

uma tarefa científica por parte do Estado para prever sua recaptura e manter a correlação

de forças.

(...) o Estado planejador (o Estado-plano) é na realidade um


Estado-crise, um Estado produto da crise cuja característica
fundamental é a de conseguir integrar o conflito reconhcendo-o
e transformando-o no próprio vetor do crescimento econômico
(Cocco, 2000, p.72).

A crise da luta operária, no entanto, era o motor do desenvolvimento

keynesiano. “As características fundamentais do fordismo se resumem no alto nível de

135
autonomia da classe operária e no simultâneo incremento de composição orgânica do

capital e dos ganhos de produtividade” (Cocco, 2000, p.73). A intervenção do Estado,

então, representava o jogo político com capacidade de controlar conscientemente os

movimentos da classe operária (Negri, 2003a).

Hoje, com maior intensidade, o capital não pode conduzir os mecanismos de

desenvolvimento a não ser na forma de crise, portanto, na forma de Estado: a realidade

do Estado como signo da violência decisiva aparece como momento interno e

necessário ao desenvolvimento. Por isso, romper com o desenvolvimento capitalista é

romper com sua forma estatal, que organiza o desenvolvimento global ao mesmo tempo

em que se mostra como o único e decisivo baluarte do sistema. O desenvolvimento da

direção capitalista provoca, necessariamente, os momentos de crise (Negri, 2003a).

Desta forma, o Estado passa a ser o centro de toda a vida econômica. O

capital industrial se apodera da produção social e subverte a técnica e a organização do

processo de trabalho, modificando também um tipo econômico-histórico de sociedade e

de Estado. Isso garante a convenção que une o presente e o futuro, pois o Estado

continua atendendo à ordem capitalista porque não supera as condições estruturais que

determinam o capitalismo. “Trata-se de um novo Estado: o Estado do capital social”

(Negri, 2003a, p.202). A intervenção keynesiana se faz completamente política, à

medida que transforma a capacidade de controle algo consciente entre os movimentos

da classe trabalhadora – organização e repressão compõem um modo de articulação

particular do Estado planificado.

136
3.3 – Os ciclos de lutas abertos pelo Maio de 68

A democracia é subversiva.
(Antonio Negri)

Tudo é possível.
(Lema do Maio de 68)

As revoltas sociais acontecidas em Maio de 68102, na França, são o marco

político de uma mutação social na contemporaneidade: o esgotamento de todas as

formas de disciplinamento como motores da produtividade social. Um vasto conjunto

de novos sujeitos políticos emergem naquele contexto francês que contaminou as

diversas partes do globo. Contra a fábrica fordista, a recusa do trabalho; contra o

patriarcalismo, o feminismo; contra a guerra, a contra-cultura; contra a educação

disciplinar, o movimento estudantil; contra a arte de museu, a arte das ruas; contra o

espetáculo, as mídias comunitárias; contra o racismo, o movimento negro; contra a

família, novas experimentações sexuais; contra o hospital, o movimentos

prevencionistas; ou ainda contra o harmonia melódica, o ruído do rock. Tal como

102
“Em Maio de 1968 (neste contexto usualmente se diz Maio de '68) uma greve geral aconteceu na
França. Rapidamente ela adquiriu significado e proporções revolucionárias, mas em seguida foi
desencorajada pelo Partido Comunista Francês, de orientação Stalinista, e finalmente foi suprimida pelo
governo, que acusou os Comunistas de tramarem contra a República. Alguns filósofos e historiadores
afirmaram que essa rebelião foi o acontecimento revolucionário mais importante do século XX, por que
não se deveu a uma camada restrita da população, como trabalhadores ou minorias, mas a uma
insurreição popular que superou barreiras étnicas, culturais, de idade e de classe. Começou como uma
série de greves estudantis que irromperam em algumas universidades e escolas de ensino secundário em
Paris, após confrontos com a administração e a polícia. À tentativa do governo de Gaulle de esmagar
essas greves com mais ações policiais no Quartier Latin levou a uma escalada do conflito que culminou
numa greve geral de estudantes e em greves com ocupações de fábricas em toda a França, às quais
aderiram dez milhões de trabalhadores, aproximadamente dois terços dos trabalhadores franceses. Os
protestos chegaram ao ponto de levar de Gaulle a criar um quartel general de operações militares para
lidar com a insurreição, dissolver a Assembléia Nacional e marcar eleições parlamentares para 23 de
Junho de 1968. O governo estava próximo ao colapso naquele momento (de Gaulle chegou a se refugiar
temporariamente numa base da força aérea na Alemanha), mas a situação revolucionária evaporou quase
tão rapidamente quanto havia surgido. Os trabalhadores voltaram ao trabalho, seguindo a direção da
Confédération Générale du Travail, a federação sindical de esquerda, e do Partido Comunista Francês
(PCF). Quando as eleições foram finalmente realizadas em Junho, o partido Gaullista emergiu ainda mais
poderoso do que antes. A maioria dos insurretos eram adeptos de idéias esquerdistas, comunistas ou
anarquistas. Muitos viram os eventos como uma oportunidade para sacudir os valores da "velha
sociedade", dentre os quais suas idéias sobre educação, sexualidade e prazer. Uma pequena minoria dos
insurretos, como o Occident, professava idéias de direita” (Wikipedia. Verbete Maio de 68. Disponível na
Internet: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Maio_de_68> acesso em 05/05/2007.

137
salientou Negri & Guattari (1999, p.29)103, a “força essencial da revolução de 1968

residia no fato de que, pela primeira vez na história das rebeliões humanas contra a

exploração, seu objetivo não foi uma simples emancipação, mas sim uma autêntica e

verdadeira liberação”.

Para esses autores (1999, p.33), o Maio de 68 abriu um novo ciclo de lutas

revolucionárias no mundo, dando um salto qualitativo de importância histórica, pois

iniciou uma requalificação das lutas. Estas passam a ser dirigidas à conquista contínua

de espaços de liberdade, de democracia e criatividade.

Nesse sentido, a partir dos anos 60 se afirmam novas subjetividades

coletivas no cenário das transformações sociais. Na literatura de Antonio Negri, os anos

seguintes após 68 conferiram uma grande força de tomada de consciência dos

estudantes e dos jovens, aos movimentos das mulheres, aos movimentos de defesa e

reconhecimento do meio ambiente, aos movimentos de reivindicação das diversidades

raciais, culturais, sexuais e igualmente às tentativas de renovação das concepções

tradicionais da luta social, começando pela dos trabalhadores, que passam intensamente

a realizar, mais nos anos 70, greves, sabotagens e ação direta em recusa ao trabalho

disciplinar taylorista. Contra a exigência capitalista da força-repetição e da aceitação

passiva ao arcaísmo moral da família, do Estado, do ensino etc, um devir social passou

a ser pavimentado em torno da exigência por força-invenção para qualificar e orientar a

produção. O que se pretendia com o levante desses novos movimentos sociais era que as

finalidades humanas e os valores do desejo povoassem as maneiras de produzir riqueza

e de reproduzir o próprio social. No final das contas, 68 é um acontecimento que

demonstrou a mutação radical ocorrida no interior da força de trabalho e do mundo da

103
Ver Negri, Antonio, Guattari, Felix. La veritá nomadi. Per nuovi spazi di libertá. Roma: Antonio
Pellicani Editore, 1989. A tradução lida, por mim, é a espanhola: Las verdades nómadas & General
Intellecti, poder constituyente, comunismo, editada pela Akal Ediciones em 1999.

138
produção: liberar-se do adestramento e da docilização para encontrar desejos que

conduzam a espaços de maior liberdade e autonomia.

[...] a inovação derivada de 1968 deve ser, sobretudo, captada no


universo da consciência, dos desejos e dos comportamentos. Os
novos modos da subjetividade deslocou literalmente os velhos
cenários da luta de classes, instalando-se nas raízes imaginárias
e cognitivas das novas dimensões do produzir, transmutando a
tomada de consciência que os corresponde em um ato de
vontade transformadora (Negri & Guattari, 1999, p.33).

A reprodução é o fator mais importante para a produção da riqueza

O impacto social da atuação das novas subjetividades políticas se

caracterizará como uma requalificação do que se entende como produção. Uma

primeira qualificação se remete ao desenvolvimento da abstração do trabalho e à

formação dos processos de cooperação social das forças produtivas, que antes, na

sociedade-fábrica fordista, eram conseqüência do desenvolvimento da máquina

capitalista, industrial e política, mas que a partir de agora a cooperação se situava antes

da máquina capitalista e como condição independente da indústria.

Nesse sentido, aquela separação entre produção e reprodução perde toda a

sua importância, pois que “o trabalho produtivo já não é de fato o que produz

diretamente capital, mas sim o que reproduz o social; deste ponto de vista a separação

do trabalho produtivo resulta completamente ultrapassada” (Negri, online). A sociedade

passa a se integrar diretamente na produção, através de aspectos absolutamente

presentes no terreno da reprodução (aquilo que não é trabalho empregado), como

cuidado, qualidade, atenção, informação, cultura ou ainda tudo aquilo que humaniza,

para usar um sentido aplicado na saúde, torna condição sine qua non para dar vida às

139
novas formas de mercadoria capitalista, mas também para autovalorizar a sociedade

contra as formas mais disciplinares de exploração.

O primeiro plano de requalificação é então tornar a reprodução o próprio

paradigma que orienta a produção, ou como bem traçou Marazzi (2002, p. 130), a

produção da riqueza passa a ser assegurada pela presença de uma comunidade

biopolítica (o trabalho daqueles que têm um emprego, mas também o trabalho dos

estudantes, das mulheres, de todos os que contribuem para a produção de afetividade, da

sensibilidade, dos modos de semiotização da subjetividade), produção de riqueza que os

capitalistas comandam e organizam através da desinflação, ou seja, da compressão de

todos os custos que a cooperação produtiva e as condições sociais de sua reprodução

exigem (o que significa privatizar a educação, a saúde, a água, o conhecimento, as

comunicações, as áreas públicas da cidade etc).

Essa realidade significa, para Negri (online), que a passagem da 'inflação'

(de desejos e de necessidades) dos anos subseqüentes a 68 para a 'desinflação' dos

custos representa a transição capitalista do moderno ao pós-moderno, do fordismo ao

pós-fordismo. E ainda do operário massa para o que o autor convencionou de operário

social, visto que este passa a reivindicar sua própria autonomia de massa, sua própria

capacidade de autovalorização coletiva em relação ao capital. “A matéria-prima com

que trabalha esse operário, na qual ele estabelece suas formas de cooperação laboral é a

comunicação – de informação, de ciência, de saberes – e sobre ela exerce o capital sua

expropriação” (Sánchez-Pinilla, e Domínguez, online).

140
A passagem do fordismo ao pós-fordismo: lutas e contra-reforma capitalista

Essa passagem do fordismo ao pós-fordismo tem como característica o fato

de que produzir significa, antes, produção de subjetividade. Como aponta Negri (1998),

a produção de riqueza depende cada vez mais de conhecimentos, a produção de

conhecimentos depende cada vez mais da produção de subjetividade, a produção de

subjetividade cada vez mais da reprodução social de processos vitais ricos em relações

intelectuais e valores afetivos. Nesse sentido, o fordismo-taylorismo não é capaz de

aglutinar, com sua economia baseada na força-repetição, fatores que potencialize a

produtividade social, isto porque a produtividade (a riqueza) é resultado somente do

tempo de trabalho aplicada à produção. É por isso que, desde dos anos 70, todo o

desenvolvimento econômico passa a ser empurrado para imaterialidade (o que os

economistas chamam de serviços e informação) como principal fator produtivo da

sociedade, o que faz construir novos arranjos e hierarquias produtivas.

Para Virno (online)104, o principal marco que inaugura a fase pós-fordista é a

emergência das lutas dos trabalhadores precários (os sem contrato de trabalho ou os

temporários) da Itália, em 1977. Era uma força de trabalho escolarizada, precária,

móvel, que recusava a ética do trabalho e se opunha frontalmente às tradições e à

cultura da esquerda histórica. E que também era estigmatizada pelos burocratas e

intelectuais do Welfare como parasitas, por querer ter acesso ao sistema de proteção

social sem passar pela relação de assalariamento na produção.

Por volta de 1976, e sobretudo 1977, é a própria universidade,


enquanto “máquina” de produção em massa de uma força de
trabalho intelectual, polivalente e flexível, destinada a alimentar
um modo de produção cada vez mais sofisticado, automatizado
e flexível, que se torna o epicentro de conflitos sociais de tipo
novo, embora mal apreendidos. Assim o movimento italiano,

104
Trata-se do livro La gramatica de la Multitude, online.

141
que já tinha chegado a níveis de enraizamento social
desconhecidos pelos outros grandes países europeus,
experimentou, de março a outubro de 1977, uma nova explosão
generalizada. Ponto culminante de um ciclo de lutas iniciado no
final dos anos 60 e, também, ponto de ruptura e antecipação
social das novas condições das lutas na crise do fordismo, o
movimento de 1977 tanto superou efetivamente nossos
instrumentos teóricos de análise quanto desdobrou a crise do
“político” que o havia precedido. Com efeito, a interpretação das
características do movimento de 1977, não como protesto dos
“marginalizados” e dos excluídos, mas como de sujeitos centrais
no novo modo de produção, representou uma antecipação
teórica considerável (Virno, online).

Ao ver desencadear esse ciclo de lutas dos precários contra o Estado, o

capital fez acelerar ainda mais sua contra-reforma iniciada desde meados dos 70,

quando começa a construir um novo conceito de capital. Até porque era necessário,

como as grandes empresas anunciavam, capitalizar a revolução que se iniciou no Maio

de 68 e que contaminou várias regiões do mundo, inclusive no Brasil, nas chamadas

greves do ABC ou nas lutas democráticas pela queda da ditadura. Nos anos 70 e 80, a

contra-reforma – chamada, já na época, de reestruturação produtiva capitalista – foi

um revide, primeiramente, à recusa do trabalho repetitivo e disciplinar. Nesse sentido, a

contra-reforma fez ampliar um longo processo de automação, informatização e robótica

no interior das plantas fabris, diminuindo o número de funcionários, ampliando a

produtividade e reduzindo a força sindical na atuação social dos funcionários que

sobraram.

A contra-reforma também reagia à tendência de recusa do “emprego

estável”, evidenciada, na Europa, por setores inteiros das forças de trabalho que saíam

dos pólos de industrialização metropolitana para desenvolver micro-atividades

industriais (formais e informais) nos territórios” (Cocco, 2001, p.95). A contra-reforma

solucionou essa recusa com a adoção de processos de terceirização, integrando a

indústria a setores colaterais, difuso em vastos espaços territoriais. Essa operação

142
forçava a proletarização ainda maior dos desempregados ao mesmo tempo que retirava

o conflito de dentro da fábrica para transferi-lo para as empresas terceirizadas, em

particular, o levante de piquetes, greves e sabotagens.

Foi de encontro às constantes rebeliões de massa dos trabalhadores que a

reestruturação produtiva fez acelerar o processo de integração transnacional que

produziu um deslocamento das indústrias (ou de vários pedaços delas) para países

emergentes, diluindo e negociando o efeito da crise no tempo e no espaço. Em boa parte

essa desterritorialização do capital só foi possível graças à informatização do social,

que possibilitou a integração produtiva no que tange à aceleração das relação entre

empresas como entre produção e consumo.

Por um outro lado, essa reestruturação produtiva acabou também por provar

uma dupla crise do Welfare. A primeira residia no fato de que, se a própria relação

salarial passa a ser abandonada como principal fator de regulação para produção da

produtividade social, o Welfare perde o seu papel de regulador e se torna alvo também

das novas subjetividades políticas, à medida que essa forma-Estado protegia somente

aqueles que se mantinham na relação salarial. Todo uma gama de precários (aqueles

regidos com contratos temporários ou os sem contratos) passa assumir e se articular em

torno do lema “ter direitos aos direitos”. Ao provocar a transnacionalização das

empresas, o capital também ultrapassa a relação de dependência com o Welfare,

forçando, inclusive, o financiamento de políticos (Com Tatcher, na Iglaterra; e Reagan,

nos EUA) que vão interpretar a crise política como crise do Estado, o que vai provocar a

emergência de projetos neoliberais dos anos 80 na Europa e nos EUA, e nos anos 90 nos

países do Sul. Nesse sentido, o capital traduz muito cedo aquilo que se tornou o

epicentro das lutas sociais, principalmente, na Itália, nos finais dos anos 70 e no início

dos 80105. Em síntese, o capital interpreta que para ser produtivo é determinante o acesso
105
Segundo Virno (online), a figura do precário (sem-contrato ou com contratos temporários) emerge
como novo sujeito do trabalho, pela primeira vez, na Itália, no chamado Movimento de 77, quando o

143
a mínimos sociais – como acesso incondicional à serviços e infraestrutura básica, como

telecomunicações, habitação, educação, saúde, saneamento básico ou ainda transportes.

Nesse sentido, acusa o Welfare de ser uma máquina pesada que não protege

todo o tecido social ao mesmo tempo e passa a propor o Estado Neoliberal como

estrutura alternativa para a aceleração da oferta desses mínimos sociais. Isto através de

empresas privatizadas – flexíveis e leves. Telefone para todo mundo, Saúde para todo

mundo, Educação para todo mundo, mas através do pagamento por esses serviços. Este

será um momento de intensa quebras de monopólios estatais e desregulamentação de

vários setores econômicos e sociais, como as telecomunicações e o mercado de saúde.106

Paralelo ao desenvolvimento do Estado-empresa (como chamou Negri o

Estado neoliberal), o capitalismo experimenta um conjunto de modelos produtivos pós-

fordistas cuja principal característica é a dimensão social desses paradigmas. Suas

movimento estudantil mobilizado nacionalmente critica e se antagoniza tanto em relação ao


conservadorismo da Democracia Cristã, quanto ao do Partido Comunista Italiano. O conflito não ficou
somente no campo das idéias, mas em enfrentamentos armados nas ruas, principalmente, de Roma, Milão
e Bolonha. Toni Negri assim caracteriza o movimento: “O movimento de 77 representa o último estágio
da revolta juvenil e estudantil iniciada em 1968. Desta vez, contudo, o movimento se defronta
diretamente com o PCI (Partido Comunista Italiano), que no ano anterior havia chegado ao governo. A
motivação imediata do protesto foi a agressão de um estudante de esquerda na Universidade de Roma, no
dia 10 de fevereiro, feita por jovens neofascistas. No dia seguinte, uma manifestação que saiu da
universidade invade a sede do movimento jovem do MSI, a Frente da Juventude. Durante o período de
tiroteio entre manifestantes e polícia, dois estudantes e dois policiais são feridos gravemente. No final da
manifestação decide-se ocupar toda a cidade universitária romana. O novo movimento não economiza
críticas aos grupos da esquerda extraparlamentar, acusados de terem ficado reduzidos a pequenas partidos
burocráticos, e retoma muitas das propostas lançadas pelos movimentos de mulheres, a partir do nexo
indissociável entre comportamentos individuais e posições políticas. Os principais alvos dos movimentos
são o PCI e os sindicatos. Em 17 de fevereiro, o secretário geral do CGIL, Luciano Lama, ao dar um
discurso na universidade – que tinha sido ocupada antecipadamente – se vê obrigado a interrompê-lo e
sair rapidamente da universidade, enquanto os ocupantes destroem a tribuna. O enfrentamento entre
esquerda institucional e movimento se repete poucas semanas depois. Em Bolonha, a menina dos olhos
das administrações locais dirigidas pelo PCI, um estudante, Francesco Lo Russo, é assassinado pela
polícia em 11 de março. Nos dias seguintes, toda a cidade se converte em cenário de violentos
enfrentamentos, que obrigam o primeiro ministro do Interior, Cossiga, a ordenar a intervenção dos
tanques blindados. No dias 12 de março, em Roma, ocorre uma manifestação nacional do movimento
que, após ter invadido e roubado uma loja de armas, abre fogo contra a polícia. Durante toda a primavera,
em Roma e em Milão se repetiram enfrentamentos com vítimas em ambos os lados. O movimento,
durante uma conferência que se desenvolveu em Bolonha durante o mês de setembro, obtém a
solidariedade de numerosos intelectuais franceses, entre eles se encontravam Foucault, Guattari e
Deleuze, que denuncia a tentativa de eliminar toda oposição posto em marcha pela aliança entre DC e
PCI. Diferentemente do que ocorreu em 1968, o Movimento de 77, privado de qualquer tipo de referência
e de qualquer base, se apagará imediatamente depois da conferência de Bolonha, deixando o espaço livre
aos grupos armado. (Negri, 2005, p.51).
106
A definição de neoliberalismo e os impactos políticos na América Latina está presente no intervalo
contido neste capítulo.

144
forças residem exatamente no poder de captura de um conjunto de valores que se

hospedam no terreno da reprodução social.

O paradigma pós-fordista é, antes de mais nada, um paradigma


social e qualifica-se pela integração produtiva dos consumidores
como produtores, pois eles participam da produção, desde o
momento da concepção, em dois níveis: pela integração em
tempo real dos comportamentos de consumo; e pela proliferação
disseminada dos atos criativos, lingüísticos e comunicativos. [...]
discute-se cada vez menos política industrial para pensar a
política econômica do território, isto é, uma política capaz de
valorizar as interdependências entre indústria e redes de
cooperação fabris e dinâmicas sociais (Cocco, 2001, p.88).

O modelo mais bem acabado em termos da incorporação do social à

produtividade industrial foi o toyotismo, implantado pela fábrica da Toyota no Japão.

Uma primeira novidade desse modelo foi a inversão do dispositivo lucrativo fordista:

em vez de produzir para depois vender, passa a vender primeiro para depois produzir.

Isso faz exigir, é claro, uma profunda integração da produção ao consumo, o que o

regime toyotista solucionou com a estratégia do just in time: estoque é recomposto de

acordo com os fluxos imediatos do consumo, isto é, só se repõe (logo, só se produz)

aquilo que se está vendendo.

O toyotismo baseia-se numa inversão da estrutura fordista de


comunicação entre produção e consumo. Idealmente, neste
modelo, o planejamento de produção se comunica com os
mercados constante e imediatamente. As fábricas mantêm
estoque zero, e as mercadorias são produzidas na medida exata,
de acordo com a demanda atual dos mercado existentes. Este
modelo envolve, portanto, não apenas um feedback mais rápido,
mas também uma inversão da relação, porque, pelo menos em
tese, a decisão de produção vem, de fato, depois da decisão do
mercado, e como reação a ela (Negri e Hardt, 2001, p.311).

Essa estrutura de gestão de fluxos de consumo passa a requisitar também

uma nova figura do trabalho, cuja qualidade reside na polivalência (para adaptar-se às

mudanças de padrões de trabalho exigidas pelas alterações nos padrões de consumo); e

145
na cooperação e no relacionamento (para expressar opiniões, gostos e informações sobre

aquilo que estava a produzir para as sempre efêmeras demandas de consumo).

Os operários devem, então, entender aquilo que fazem; mais


ainda todo o processo e todo o sistema de fabricação deve (em
princípio) tornar-se um todo inteligível do qual assumem a
responsabilidade e do qual tornam-se e sentem-se senhores.
Devem refletir sobre os meios de incrementar e racionalizar a
concepção; devem propor as possíveis melhorias nos
procedimentos e na organização do sistema. Para tanto,
precisam discutir entre si, entrar em acordo, saber exprimir-se e
saber escutar, prontos continuamente a questionar, a aprender, a
evoluir (Gorz, 2004, p.11).

O que se depreende disso então é que os primeiros modelos pós-fordistas107

assumem como núcleo da sua produtividade a produção de subjetividade, isto é, um

trabalho cujo aspecto manual é uma aplicação material de um atividade cada vez mais

imaterial, intelectual, cognitiva, “de reflexão, de concerto, de troca de informações, de

partilha de observações e de saberes”, como aponta Gorz (2004, p.41).

Ora, quando as capacidades comunicacionais, relacionais,


cooperativas, criativas passam a fazer parte da força de trabalho,
estas capacidades, que implicam a autonomia do sujeito, não
podem por essência ser comandadas: elas existirão e serão
desenvolvidas não sob ordens, mas em virtude de iniciativas
vindas do sujeito. A dominação do capital não pode então
exercer-se diretamente sobre o trabalho vivo por coerções
hierárquicas. Ela só pode exercer-se por vias indiretas: deve
deslocar-se da fábrica e tomar a forma de um condicionamento
que conduz o sujeito a aceitar ou a escolher ele próprio
exatamente isto que se trata de impor-lhe (Gorz, 2004, p.53).

A contra-reforma capitalista produziu uma derrota no movimento sindical,

principalmente. Mas essa vitória do poder fez modificar profundamente todo o velho

sistema de poder. Daí que a emergência dessa novo capital fez abrir uma série de linhas

de fuga e novos planos de resistência, de luta. A contra-reforma foi, portanto,

107
Acrescenta-se ao toyotismo, os modelos da especialização flexível, os enfoques neoshumpterianos e a
escola da regulação, ver Cocco e Vercellone (1998).

146
incompleta, porque a nova qualidade do trabalho (relacional, cooperativa, expressiva,

informacional), exigida na produção de mercadorias, marca o deslocamento para um

processo de expropriação nunca visto (já que é a alma do trabalhador que é posta a

trabalhar), no entanto, o é também uma grandiosa possibilidade de autonomia do

trabalho pois que, pela primeira vez, o valor não é produzido dentro de um comando

capitalista. Ao contrário, o capital que se encontra dentro do trabalho, visto que o

principal instrumento da produção, a força inventiva do cérebro, escapa o tempo inteiro

de um enclousure capitalístico. O capital então se transforma em uma máquina cada vez

mais sofisticada de captura do social (das redes de conhecimentos, das subjetividades,

dos estilos, das modas, dos gostos, das preferências) e empurra a produção para uma

economia da informação.

O capital torna-se produtivo somente na medida em que capta


valores pré-constituídos do trabalho social. Aqui, então, a
função do comando se organiza como ameaça de bloquear a
informação, como interrupção dos processos cognitivos, em
suma, o capital parasitário é aquele que extrai o valor sobretudo
da interrupção dos movimentos de conhecimento, de
cooperação, de linguagem. Para viver e reproduzir-se o
capitalismo é obrigado a chantagear a sociedade e a bloquear os
processos sociais de produção toda vez que apresentem
excedente no que concerne a seu comando (Negri, 2003a, p.95).

A passagem, de vez, para a economia da informação em que o domínio da

reprodução (circulação, consumo, troca) hegemoniza a produção acontecerá com a

intensificação do processo industrial informacionalizado108 e com o advento das

Superestradas da Informação (Information Superhighways). No primeiro caso, o uso

abusivo das novas tecnologias da comunicação e da informação permitiu uma intensa

descentralização da produção, dispersando fábricas e esvaziando as cidades fabris. Com

108
Uso abusivo de tecnologias informáticas e tratamento cada vez mais sofisticados de informação
proveniente do mercado.

147
os avanços das telecomunicações e das tecnologias da informação,109 todo o controle e

comunicação passa a ser feito à distância, reduzindo custos de distribuição,

administração e de transporte. “Diferentes instalações podem ser coordenadas para a

produção simultânea de uma única mercadoria, com fábricas espalhadas em diversos

lugares” (Negri e Hardt, 2001, p.317).

Esse novo plano econômico da economia informacional é, para muitos

autores contemporâneos110, a concretização de uma substituição da linha de montagem

para a rede como estrutura principal da organização da produção. O advento das redes

altera assim as formas de cooperação e comunicação dentro de cada ambiente de

trabalho e entre os lugares da produção.

Contudo, as redes de empresa eram somente uma tendência até a criação do

programa norte-americano das Information Superhighways,111 que interconecta as

empresas dos EUA numa estrutura de redes ligadas por computadores, fibra ótica e rede

telemáticas, deslocando a economia dos EUA brutalmente para o setor de serviços

(industriais e comerciais). Esse deslocamento norte-americano tem como resultado a

superação definitiva da fábrica como principal lugar da produção. Agora é toda

sociedade, então conectada, que é posta a produzir. As redes são, portanto, tanto o lugar

da produção quanto da circulação.

As redes não funcionam como as infra estruturas rodoviárias que


sustentaram o desenvolvimento fordista. As infovias não são um

109
Já no final da década de 80, já havia sido instalado mais de 5000 servidores de rede, um embrião
daquilo que mais tarde se chamaria Internet, conectando empresas, instituições públicas e universidades.
O próprio mercado via aparecer uma convergência das indústrias eletrônica, informática, de
telecomunicações e de mídia. Isto possibilitou um rápido avanço das chamadas tecnologias virtuais e das
redes telemáticas em todos os campos do tecido social. A marca dessas tecnologias era de servirem como
dispositivos de promoção da interatividade entre produção e consumo, fazendo com que ambos fossem
um único processo.
110
Além de Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Antonela Corsani, Franco Bifo, Manuel Castells entre
outros.
111
Cocco (1995) divide em três constatações que constituem a emergência das superinfovias: 1)
investimento em pesquisa e desenvolvimento norte-americano na indústria da informática pelo
Departamento de Defesa, após o fim do socialismo real; 2) ao fim dos anos 80, o setor de
telecomunicações busca novos mercados e “reservatórios” de valor; 3) a integração das mídias.

148
espaço de circulação de produtos produzidos pela indústria ou
pelo setor terciário, mas elas são o próprio espaço de produção
de relações de serviços, isto é, de bens imateriais nos quais
produção e reprodução coincidem (Cocco, 1995, p.04).

A produção em rede então será cada vez mais determinada pelo paradigma

imaterial, já que o computador em rede é “literalmente uma caixa vazia”112. Se não

houver nele criação de usos e interatividades entre seus sujeitos, não há como ativar

essas redes, que perdem funcionalidade e utilidade. “A perfomance da ferramenta

técnica depende da inteligência, da criatividade e da capacidade de invenção do trabalho

vivo que se apresenta como trabalho imediatamente cooperativo” (Corsani, 2002, p.22).

Acrescenta-se a isso o fato das redes (cuja Internet se tornou a mais utilizada) ter sido

uma criação não somente do governo dos EUA, mas de uma multiplicidades de sujeitos

que produziram invenções que as torna até hoje um lugar democrático, não hierárquico

e não-centralizado.113 A implantação das Information Superhighways fez transferir a

captura do valor de dentro da fábrica para todo o tecido social, numa gigantesca

economia da interatividade. A nomenclatura nova economia só é um termo que

explicita o sintoma do deslocamento para a hegemonia do trabalho imaterial sobre as

formas de produção contemporânea.

112
Sobre isso ver Corsani (2002, p.22).
113
A própria Internet possui uma história bastante peculiar. A princípio, um projeto do governo militar
dos EUA para proteger as informações do inimigo invisível russo. Para isso, criou a Arpanet, em 1969,
como uma rede não-hierárquica e descentralizada, onde as informações se distribuíam em diferentes
pontos. Contudo, como as primeiras redes se localizam em várias universidades, um conjunto de
cientistas e hackers tratam de ampliar essa redes dando novos usos a elas, principalmente, como espaço
de inovação e criação de comunicação e conhecimento. Foram esses movimentos que fizeram da rede um
ambiente formidável de comunicação e trabalho e, mais tarde, com o projeto das Information
Superhighways como um lugar de produção econômica.

149
3.4 - O trabalho imaterial, redes e produção de subjetividade

A chave de interpretação do trabalho contemporâneo – como imaterial –

remete às teses marxistas sobre General Intellect. A partir da leitura dos Grundisses, de

Karl Marx, essas teses sustentam que o fato do trabalho vivo ter sido objetivado nas

máquinas – se tornado apenas órgão consciente delas – reduzira o tempo de trabalho

necessário como fator de criação de mais trabalho. “O 'tempo do trabalho' se tornaria

apenas necessário à pura repetição maquínica, e com o desenvolvimento industrial,

cessaria de ser a base da produção da riqueza, dependente cada vez mais da ciência e

tecnologia empregada no desenvolvimento do maquinário e nas formas de como se

processam a cooperação produtiva” (Marx, online)114.

O saber social geral (como trabalho científico geral e inteligência coletiva) é

que determinaria assim a fonte de produtividade do capital. Essa tese de Marx,

largamente estudada pelo operaísta Paolo Virno115, se concretizaria no contexto do pós-

fordismo, à medida que é no interior da economia informacional que se sobressai a

produção realizada através das atitudes mais genéricas da mente, como a faculdade de

linguagem, a disposição à aprendizagem, a memória, a capacidade de abstração e

correlação, a inclinação para a auto-reflexão. Nesse sentido o general intellect se

expressa na produção contemporânea como uma intelectualidade de massa.

A intelectualidade de massas não faz mais que tornar verdadeira,


pela primeira vez, a já citada definição marxiana de força de
trabalho: ‘a soma de todas as atitudes físicas e intelectuais
existentes na corporeidade’. [...] Afirmo que a intelectualidade
de massa, em sua totalidade, é trabalho complexo, mas trabalho
complexo irredutível a trabalho simples. A complexidade, e
também a irredutibilidade, derivam do fato que esta força de
trabalho mobiliza, no cumprimento de suas tarefas,
competências lingüísticas-cognitivas genericamente humanas.

114
Trata-se da tradução minha para o texto Fragmento sobre as Máquinas, contido nos Grundisse.
115
Virno, Paolo. La gramatica de la multitude, online

150
Estas competências, ou faculdades, fazem com que as
obrigações do indivíduo estejam sempre marcadas por uma
elevada taxa de sociabilidade e inteligência. (...) O que não é
redutível a trabalho simples é a qualidade cooperativa das
operações concretas executadas pela intelectualidade de massas
(Virno, online, p.37).

A nova subjetividade produzida pelo trabalho é uma subjetividade política,

coletiva, visto que o produto deste trabalho não é mais individual, nem isolado. Ao

contrário. Mostra-se como uma combinação de atividades sociais a apresentar-se como

“o produtor”, algo que está colocado nos Grundrisse por Marx (idem, 2001). O fim da

grande indústria faz com que se dependa menos do tempo de trabalho e mais da

potência da força de trabalho posta a produzir. E também da ciência, da tecnologia; da

aplicação desta ciência à produção. Isto é, não é o trabalho imediato calculado pelo

tempo gasto na produção, mas a apropriação da produtividade em geral. O indivíduo

social é então o pilar de sustentação da produção de valor do capitalismo pós-fordista.

Será um indivíduo social e coletivo que determinará o valor da


produção, pois, sendo o trabalho organizado em formas
comunicativas e lingüísticas, e o saber sendo algo cooperativo, a
produção dependerá sempre mais da unidade de conexões e de
relações que constituem o trabalho intelectual e lingüístico, isto
é, dependerá, então, deste indivíduo coletivo (Negri, 2003a,
p.92).

O trabalho imaterial - como general intellect - consiste assim no “valor de

uso do trabalho vivo”, envolvendo habilidades intelectuais, manuais e empresariais em

atividades de coordenação, gestão, de pesquisa e de inovação (Cocco, 1999). Já Negri e

Hardt (2001) complementam essa definição ao conceituar o trabalho imaterial como

uma produção que não resulta em bens duráveis e materiais, mas em informação

(produção de conhecimento), serviços (produção de relações) e afeto (produção erótica).

O trabalho imaterial é então, como afirma Cocco (1997), uma recomposição do trabalho

manual e do intelectual, mas ultrapassando essas duas visões.

151
Trabalho e valor

O tempo de trabalho torna-se algo supérfluo, pois a criação da riqueza

independente do tempo empregado a ela. O que faz dessa relação não mais simples

relação de subordinação ao capital, mas ao contrário, ela independe do tempo de

trabalho imposto pelo capital. Por outro lado, torna-se impossível distinguir o tempo

livre do tempo de trabalho, ou o tempo produtivo do tempo de lazer. O trabalho se

inseriu em todos os tempos da vida.

Assim, são as formas de vida, nas suas expressões coletivas e cooperativas

que constituem-se como fonte de inovação. O que é produtivo, então, é o jogo das

relações sociais. Existe um excedente de relações sociais durante o processo de trabalho,

e este excedente é o que gera novas formas e estilos de vida. E, até mesmo a capacidade

constante de geração deste excedente é um ato criativo, base do trabalho imaterial.

Podemos ainda afirmar que talvez rompemos com a divisão entre trabalho material e

trabalho intelectual, um está contido em outro e ambos produzem de forma a ser um

só116 (idem, 2001).

Existe um conceito de método por trás dessa discussão, pois revela que “a

transformação do trabalho em atividade cognitiva é caracterizada por um excedente

externo de valorização”. Se o saber, o intelecto é posto em produção, a produtividade

deste trabalho determinará um aumento de riqueza e também um aumento de mais

conhecimento (Negri, p.99, 2003b). Desta forma, conhecimento gera mais

116
“(...) os processos de trabalho ultrapassaram os muros da fábrica e atingiram toda a sociedade. [...] A
sociedade como um todo é agora permeada pelo regime de fábrica, ou seja, pelas regras específicas das
relações de produção capitalistas. Sob essa luz, toda uma série de distinções marxianas deve ser revista e
reconsiderada. Por exemplo, na sociedade fábrica, a distinção conceitual tradicional entre trabalho
produtivo e improdutivo e a distinção entre produção e reprodução, que em outros períodos possuíam
uma validade dúbia, deveriam, hoje ser consideradas definitivamente ultrapassadas” (Negri & Hardt,
p.22, 2004).

152
conhecimento – uma fórmula que se aplica a muitos campos de saber da sociedade

capitalista atual, um sistema já denominado por capitalismo do conhecimento ou da

informação. A característica fundamental do novo capitalismo é essa constante geração

de mais valor em rede, pois o trabalho torna-se mais cognitivo por ser mais coletivo e

ativador de redes sociais.

O novo trabalho produtivo é composto pelo conhecimento, porém, também

pelo afeto, pelas relações que podem ser livres ou servis, mas que se jogam de forma

completa dentro desse tecido social. O trabalho de relação, de flexibilidade temporal e

da mobilidade espacial torna-se característico da nova qualidade de trabalho que nosso

tempo conhece. O trabalho imaterial é trabalho abstrato em sua mais alta expressão

(Negri, 2003b).

Por se fazer necessário o uso de saber acumulado, o saber coletivamente

acumulado, a sociedade do conhecimento é posta a trabalhar de forma incessante, sem

turnos e nem jornadas como ditavam os preceitos da administração científica. Negri

(2001) nos diz que o corpo pode ser colocado a trabalhar, mas desta vez é alma do

trabalhador que é posta a trabalhar, o corpo e a máquina são apenas seus suportes. E a

alma se cansa como um corpo.

Não há liberdade suficiente para a alma, não há salário


suficiente para o corpo, e por isso o trabalho (que é cada vez
mais alma e cada vez mais sublima o corpo), nós o
experimentamos como separação e exílio. É uma nova
experiência de exploração a que vivemos. Mas é também uma
nova experiência de constituição ontológica, ou melhor, de
metamorfose (Negri, p.11, 2001).

153
A vida como produção do valor e como valor da produção

A ferramenta do trabalho, assim, é a própria vida e tudo o que pertence ao

“sentir”. A vida é posta em produção e tudo o que essencialmente compõe os elementos

de comunicação da vida. Uma vida individual não poderia ser produtiva, pois a

linguagem se torna essencial na produção deste processo. A linguagem se exprime

através das potências de viver, o que poderia chamar-se de afeto. O afeto torna-se uma

das expressões da ferramenta de trabalho, em linguagens que são tanto racionais quanto

afetivas. Tudo isso tem importante conseqüência na definição dos sujeitos. Todos os

que possuem potências vitais estão no interior deste processo. Essas potências

apresentam-se na forma de linguagem e afeto (Negri, 2001).

Negri chega a apontar um devir-mulher no trabalho para dotá-lo de uma

realidade que se tornou impossível ser imaginada sem passar pela produção de

subjetividade, e, portanto, da reprodução geral dos pensamentos vitais. As mulheres

sempre estiveram no centro da produção de subjetividade, ou seja, reproduzindo

aspectos essenciais à vida. Viveram a confusão do tempo de trabalho com o tempo da

vida. O devir-mulher do trabalho não significa afirmar que o trabalho do atual

capitalismo é algo restrito somente às mulheres ou que somente elas viverão este

processo; mas significa reconhecer que a transformação que agora discutimos é

transgressora e se dá na reprodução geral da riqueza através dos processos de produção

de saber, de comunicação, de linguagem e de afeto. O diferencial é que as mulheres

sempre foram excluídas da capacidade da produção de valor econômico e agora

assistem a uma mudança conceitual e prática do trabalho que requer a feminização dos

homens e uma masculinização das mulheres (idem, 2001).

154
A possibilidade de medir a exploração desapareceu definitivamente até

mesmo porque a medida de valor se tornou ineficaz; “quanto mais a economia política

se cala sobre o valor da força de trabalho, mais o valor da força de trabalho aumenta e

intervém em um campo global, biopolítico” (idem, p.59, 2001). A dinâmica mostra-se

paradoxal, a medida que o trabalho encontra seu valor no afeto, definido como

“potência de agir”. O valor reside ainda mais no afeto, no trabalho vivo que se

autonomiza da relação de capital e se exprime como potência de autovalorização.

Assim, a teoria do valor marxista perde sua referência ao sujeito, mesmo como base de

mediação ou do comando (idem, 2001).

Ou seja, o trabalho imaterial produz imediatamente relações sociais e assume

uma forma social de manifestação baseada na colaboração de relações afetivas; por isso

só pode ser realizado em comum, cada vez mais inventando redes de cooperação através

do qual possa produzir. Nesse sentido, o afeto ocupa posição central para o trabalho

imaterial, um afeto que sempre se manifestou no feminino através de expressões como o

trabalho familiar ou doméstico, assistencial, materno ou educador. O trabalho que se

apresenta na forma desse devir mulher envolve a produção de afetos, relações, formas

de comunicação, cooperação, envolvimento com famílias ou comunidades. “O trabalho

afetivo constitui produção biopolítica na medida em que produz diretamente relações

sociais e formas de vida” (Hardt & Negri, p. 152, 2005).

O trabalho em saúde se constitui na sua forma imaterial à medida que o alto

teor afetivo impregnado em suas entranhas mostra-se feminilizado, dotado de menos

autoridade e é menos bem pago. A forma de cuidado expresso nas profissões da escuta,

do acolhimento, da atenção, da informação e da educação não só executam o afetivo,

mas também constroem relações e relacionamentos com usuários. Também gerenciam a

dinâmica de um escritório, ou da clínica, mas também se desdobram em atenções com

patrões, geralmente homens das profissões clássicas como advogados ou médicos.

155
Expressa-se no trabalho de todos os profissionais da saúde, é claro, mas

principalmente dentre aqueles que o cuidado se manifesta sob a forma de escuta e

acolhimento, como os enfermeiros, os assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos,

nutricionistas ou médicos. O que demonstra que quando a produção afetiva torna-se

parte do trabalho assalariado pode ser vivida de forma extremamente alienante: “estou

vendendo minha capacidade de estabelecer relações humanas, algo extremamente

íntimo” (Hardt & Negri, p.153, 2005). Por isso o conceito de alienação marxista nunca

foi um bom conceito a ser empregado para entender a exploração entre os trabalhadores

operários de fábrica, mas sim a ser aplicado no entendimento da exploração entre os

trabalhadores que produzem produtos imateriais. Aqui o trabalho não é visto como

trabalho, pois produz afeto, assim como produz conhecimento e simbolismos. Aqui a

alienação se constitui como um fator conceitual útil para entender a exploração (idem,

2005).

O conceito de trabalho imaterial não prevê a utopia de uma nova economia,

mas prevê que sua hegemonia tende a efetivamente mudar as condições de trabalho. Por

exemplo, qual o tempo necessário para a realização deste trabalho? Não se sabe, pois

não se consegue mensurar. Qual o local de produção? Também não se sabe, pois nunca

se conseguirá mensurar algo que se estende por todo o tempo vida. Na fábrica, assim

como no hospital, os operários produzem exclusivamente enquanto estão em seus locais

de produção durante as horas passadas dentro do local de produção. No entanto, quando

a produção objetiva resolver um problema, criar uma idéia, uma relação, uma

linguagem, o tempo de trabalho tende a se expandir por todo o tempo da vida. As idéias

nascem no escritório, no consultório, mas também em casa, na conversa com os amigos

ou mesmo em um sonho (Hardt & Negri, 2005).

Os economistas que estudam o pós-fordismo o caracterizam como um

modelo que sustenta relações de trabalho flexíveis, móveis e precárias. Flexíveis porque

156
os trabalhadores devem se adaptar a diferentes tarefas, que raramente se repetem, o

novo sempre está por vir; móveis porque mudam constantemente de empregos; e

precárias pois não existem novas formas de contratação em massa que assegure a

estabilidade a longo prazo (idem, 2005). Ou seja, no pós-fordismo as estratégias são

voltadas para mercados especializados – algo que acompanha a especialização das

ciências e dos saberes na sociedade do conhecimento.

Claro, as redes tecnológicas existem e determinam ainda boa parte da

produção, mas a apropriação do trabalho coletivo e a captura do valor através da

circulação das redes sociais produzem comunicação, relações sociais e cooperação. A

diferença do trabalho imaterial é que os produtos são imediatamente comuns: relações

afetivas ou informação por exemplo. No entanto, em contrapartida, a tentativa do

comando é transformar toda a sociedade em estatísticas que as fórmulas não conseguem

capturar. Esse é o devir biopolítico da produção (idem, 2005).

Qual o produto gerado no atendimento de um assistente social? Qual o valor

econômico agregado ou produzido nos programas de educação em saúde executado por

inúmeros enfermeiros ou médicos? Algo que as estatísticas não conseguem capturar,

pois o produto é a informação, o conhecimento, vínculo e relações sociais permeadas

por inúmeras mediações. Os produtos produzidos nunca são frutos do trabalho de um

somente, mas de um coletivo. A linguagem, por exemplo, depende da capacidade de

inovar em ambientes diferenciados, sempre em mutação ou com base em práticas e

hábitos já vividos. O profissional da saúde, na execução de inúmeras tarefas e funções

demonstra a capacidade de produzir vários tipos de enunciados e o seu poder de falar é

baseado em um comum, pois toda produção de linguagem é compartilhada. O ato da

fala é político117, pois é conduzido em comum, em diálogo, em comunicação (Hardt &

Negri, 2005). A produção de saúde é uma produção biopolítica em si.

117
“A política é aquilo que nos separa do Estado” (Negri, 2003b).

157
Existe um diferencial entre biopoder e biopolítica nos formatos como

aparecem na literatura produzida por Foucault. Por biopolítica entende-se a emergência

de subjetividade, “uma abertura ontológica da liberação de processos que caminham em

todas as direções” (Negri, 2003b, p.107). Dentro desses processos incia-se a discussão

de produção de subjetividades. A biopolítica se apresenta nos espaços os quais se

desenvolvem relações, lutas e produções de poder.

Por biopoder “entende-se quando o Estado exerce comando sobre a vida por

meio de suas tecnologias e por meio de seus dispositivos de poder. O biopoder é a mais

alta caracterização da modernização capitalista das relações sociais” (Negri, p.107,

2003b). Fala-se em biopoder pensando nas fontes do poder estatal e nas tecnologias

específicas que o Estado produz. O controle das populações, o tecnicismo da gestão da

saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade... a medida que esses

sujeitos tornam-se elementos importantes para o desenvolvimento do Estado moderno.

Se pensarmos em um âmbito maior, macro talvez, os Estados e as agências

internacionais exercem seu biopoder malthusiano através da privação da ajuda alimentar

e infra-estrutura sanitária para inúmeras populações; ou mesmo através de campanhas

coercitivas de esterilização. Isso, somado ao alto interesse de lucro das corporações

multinacionais, que muitas vezes se negam a investir em territórios pobres ou mesmo a

vender medicamentos a preços que essas populações consigam pagar. “A pobreza e a

doença tornam-se ferramentas indiretas de controle populacional”. Desde que Malthus

testou suas teorias, os liberais passaram a detestar essa inclinação dos pobres para se

reproduzirem. Se calcularmos, a cor da população global está mudando, tornando-se

mais escura. “O controle populacional está associado a um certo pânico racial”. A

reprodução da vida deve preservar e assegurar as hierarquias da ordem política do

capital. “É esta talvez a forma mais primária do biopoder: se, como se costumava dizer,

158
quantidade é poder, a reprodução de todas as populações deve ser controlada” (Hardt &

Negri, p.217, 2005).

Por isso a produção de saúde é biopolítica: o produto é o próprio ato em si.

Nas idéias de Deleuze e Guattari, a biopolítica surge do conjunto do trabalho efetivo, do

trabalho de relações; imaterial portanto. A flexibilidade temporal e a mobilidade

espacial do trabalho tornam-se elementos característicos da forma de trabalho que o

nosso tempo conhece (Negri, 2003b). Podemos afirmar que “a produção biopolítica é

incomensurável”, pois não pode ser quantificada em unidades fixas de tempo e,

também, por outro lado, é sempre excessiva na produção de valor que o capital pode e

consegue extrair. Seu excedente é também incomensurável, “pois o capital não pode

nunca capturar toda a vida” (Hardt & Negri, p.195, 2005).

A produção do trabalho vivo e o campo da saúde

Existe uma chave de questão para entender a autonomia dos trabalhadores

da saúde em relação ao seu processo de trabalho, essa chave é a compreensão da

categoria trabalho vivo. O trabalho, diria Negri e Hardt (2004), é o animal feroz que

destrói todo o limite disciplinar. Para o capitalismo é necessário então domá-lo. Nunca a

categoria Trabalho esteve tão em centralidade como agora. Se o trabalho invadiu o

tempo da vida e as formas de vida tornaram-se o objeto de captura do capitalismo atual,

logo existe uma centralidade do Trabalho de forma acentuada nos tempos atuais.

Do ponto de vista do trabalhador da saúde, seu trabalho é agora ferramenta

central nessa busca por estilos de vida para tornar sua intervenção cada vez mais eficaz

nas relações biopolíticas estabelecidas e torná-la objeto de ação de seu biopoder. Sob o

ponto de vista dos usuários, suas vidas, no sentido mais sublime, nunca foram tão

159
interessantes como objeto de intervenção. Essa relação estabelece uma referência de

análise das mudanças nos processos de trabalho também na Saúde. A eficiência estatal

da Saúde Pública é submetida às regras de autonomia e de auto-ativação dos

trabalhadores da saúde. Todas as mil variedades dos modelos de gestão da saúde e do

seu sucesso se reduzem ao fato de ser o mais explícito reconhecimento da função

imediatamente valorizada do trabalhador da saúde. A produção de cuidado é uma

produção autônoma, um processo de trabalho que se manifesta na realização do trabalho

em ato.

“A organização do Estado e da sua lei está, em grande parte, ligada à

necessidade de construir uma ordem de reprodução social baseada no trabalho, e a

forma do Estado e a sua lei é transformada de acordo com as modificações da natureza

do trabalho” (Negri e Hardt, 2004, p.23/24). Ou seja, a vivência da prática e do conceito

de Saúde Pública veio a se modificar também por uma mudança ocorrida no trabalho da

Saúde, dando vez a uma mudança conceitual para a Saúde Coletiva. A transição

paradigmática da Saúde Pública reflete uma mudança ocorrida nas formas de trabalho

dos próprios trabalhadores da Saúde. Foi a compreensão de uma nova lógica de

trabalho, mais micropolítica do ponto de vista das ações, que apontou para uma

transição conceitual da Saúde. O Estado, então, apenas ratificou uma nova forma de

reprodução social, trazida pelas mudanças ocorridas nos processos de trabalho dos

trabalhadores da saúde; modificou sua natureza de intervenção. Ou seja, foi essa

cartografia do trabalho vivo que determinou as bases da Saúde Coletiva e não as

ferramentas de intervenção estatal.

Na crise do taylorismo e do fordismo, a subjetividade e a cooperação

produtiva são incentivadas como condições, e não como resultados, do processo de

trabalho (Negri & Hardt, 2004). Isso também se aplica a Saúde. Algumas medidas de

controle de massa mantem-se pela conveniência de Estado para deter e inspecionar

160
doenças que se manifestam em forma de epidemias, entretanto, é na produção do

cuidado e no diferencial das potências produtivas territoriais que as relações de trabalho

são interiorizadas. De modo que a lógica da nova produção de Saúde requeira,

certamente, uma flexibilidade total, e o self-making dos trabalhadores da saúde devem

ser parte desta produção de inovação na produção de saúde. Se existe uma

reestruturação produtiva no setor saúde, essa reestruturação é marcada pelo lugar central

ocupado pelo território do trabalho vivo.

A existência efetiva do trabalho vivo em ato como componente


orgânico e instituinte permanente do processo de trabalho em
saúde, sob qualquer que seja sua forma, “atrai”, com certa
particularidade, muitos projetos de cunho “autonomistas” de
distintas inspirações (Merhy, 2005, p.170).

Assim, por exemplo, vem funcionando o SUS no Brasil. As normas

operacionais que regulam sua implementação iniciada há mais de quinze anos tornam-se

sempre normas mais políticas, que se adaptam ou não a uma dinâmica territorial. Ainda

que seu ordenamento seja da implantação irrestrita e mostre-se obediente a um núcleo

duro central de comando, as normas não conseguem obter o êxito de sua aplicação se

não respeitarem a dinâmica dos territórios e o poder das relações biopolíticas que

tornam constituintes inúmeros serviços e programas implantados de acordo com as

relações sociais e políticas estabelecidas em várias regiões.

A consolidação efetiva do setor saúde, como um dos principais


campos de ação do Estado e do capital, foi criando novas
necessidades para o desenvolvimento genérico e especializado
das tecnologias de gestão em saúde. Administrar e, ou, governar,
tanto processos políticos implicados com a formulação e decisão
sobre os caminhos a serem adotados, quanto processos de
produção de atos de saúde, tornaram-se necessidades
imperativas para ordenar as melhores 'máquinas organizacionais'
(Merhy, 2005, p.159).

161
O que vem a reforçar que certos “jogos” sejam estabelecidos com a norma. É

comum ouvir de um gestor “aqui essa norma não pegou”, obedecendo a gíria da

linguagem do “imperialismo sanitário118”. A dimensão produtiva do território e as

formas de produção de cuidado em cada localidade estabelecem seus critérios. A agenda

dos “gestores” durante toda uma década que passou foi tomada em torno de debates

sobre os novos paradigmas gerenciais para o setor saúde. Ou seja, o trabalho vivo é

organizado dentro da gerência da Saúde independentemente do comando estatal,

somente em um segundo tempo essa cooperação produtiva é sistematizada pelo Estado.

Uma análise mais detalhada das interfaces entre os sujeitos


instituídos, seus métodos de ação e o modo como esses sujeitos
se intersecionam, permite realizar uma nova compreensão sobre
a tecnologia em saúde, ao se tornar como eixo norteador o
trabalho vivo em ato, que é essencialmente um tipo de força que
opera permanentemente em processo e em relações. Por isso, os
que apostam na possibilidade de se constituírem tecnologias de
ação do trabalho vivo em ato e mesmo de gestão desse trabalho,
abrindo fissuras e possíveis linhas de fuga nas ações produtivas
instituídas [...] têm conseguido realizar intervenções que
focalizam o sentido da “captura” sofrido pelo trabalho vivo,
abrindo-o para novas direcionalidades (Merhy, 2005, p.62/63).

A cooperação produtiva do trabalho em saúde apresenta-se como um

precedente independente do consentimento ou solicitação estatal. Portanto, o Estado não

se apresenta como organizador da força-trabalho, mas como registro e gestão da

organização autônoma do trabalho. A função progressiva de ordenamento de Estado

tende a acabar. A ditadura de uma produção hospitalar, em série, da relação doença-

intervenção-cura está longe de aproximar-se à ótica do trabalho vivo. A produção da

118
A expressão foi extraída da obra de Camargo Jr. (2003), quando caracteriza um conceito de saúde que
tudo pode resolver e a tudo pode explicar. A frase mostra-se irônica e precisa em sua definição. Aqui a
utilizo para caracterizar um poder desenvolvido pelos gestores das secretarias de saúde, que, de uma
forma geral, vêem-se diante de uma imensidade de demandas e múltiplas necessidades; de uma gama de
inovações acontecendo durante todo o tempo em variados processos de trabalho de variadas instituições
de seus territórios e respondem com o uso de algumas técnicas de gerência retiradas de manuais e
cartilhas da administração científica com alto poder conservador.

162
saúde coletiva tem demonstrado o quanto as novas formas de produção do cuidado, do

acolhimento e da atenção são produzidas de forma cooperativa como estabelecem as

relações biopolíticas de produção do trabalho em saúde. “A característica fundamental

do modo de produzir atual parece consistir no fato de que a principal força produtiva é o

trabalho técnico-científico como forma complexa e qualitativamente superior de síntese

do trabalho social. Isso significa que o trabalho vivo se manifesta, sobretudo como

trabalho abstrato e imaterial” (Hardt & Negri, 2004, p.149).

Mesmo que o conjunto dessas intervenções se dê em função dos


processos de obtenção do capital financeiro investido na área da
saúde, o que se destaca é a produção de novas linhas de poder,
partindo-se da ação de certos lugares-potência, constitutivos do
território do agir em saúde, operando, em última instância, no
fabricar cotidiano dos modelos de atenção, desmontando a
lógica centrada nos procedimentos médicos (Merhy, 2005,
p.170).

Ou seja, a força do trabalho vivo é a produtividade de uma cooperação que

encontra na imanência e no imediatismo a força para se desenvolver. Essa é a

autonomia da produção dos trabalhadores da saúde que, contemporaneamente, aparece

como uma série de subjetividades produtivas e políticas. O trabalho vivo é a única

potência dessa nova subjetividade política; é a única fonte de geração de riqueza, única

forma de expressão de desejo e um meio de construção. Por ser força cooperativa e

fonte de subjetivação é força de constituição; poder constituinte. Assim, todo o poder de

Estado pode controlá-lo apenas de fora, já que não é permitido permeá-lo de forma

disciplinar.

O trabalho vivo é a faculdade humana fundamental: a


capacidade de enfrentar ativamente o mundo e criar vida social.
O trabalho vivo pode ser encurralado pelo capital e reduzido à
força de trabalho que é comprada e vendida e que produz bens e
capital, mas o trabalho vivo sempre transcende isto. Nossas
capacidades criativas de inovação são sempre maiores que nosso
trabalho produtivo – produtivo de capital, queremos dizer. A
esta altura, podemos reconhecer que esta produção biopolítica é,

163
por um lado, incomensurável, pois não pode ser quantificada em
unidades fixas de tempo, e, por outro lado, sempre excessiva no
que diz respeito ao valor que o capital pode dela extrair, pois o
capital não pode nunca capturar toda a vida (Hardt & Negri,
2005, p.194/195).

A positividade dos estudos desenvolvidos por Merhy está precisamente na

demonstração que o trabalho vivo é a tecnologia do tempo presente, algo que se produz

em ato. Sua instância relacional, mais imaterial do ponto de vista do trabalho

desenvolvido, é a determinação fundamental de uma outra lógica de produção da Saúde.

As tecnologias criadas a partir deste trabalho são denominadas por “tecnologias leves”,

talvez por serem “tecnologias” que fazem parte da vida em si. São tecnologias extraídas

do modo de vida dos trabalhadores da saúde, constituem-se como a reprodução social

da própria vida, criando um objeto de trabalho para a Saúde e recriando um trabalhador

para este objeto. Características que trazem evidências do trabalho imaterial da Saúde.

Em sua racionalidade instrumental, os usuários procuram, ao


consumir produtos do trabalho em saúde, pelo menos serem
acolhidos nesse processo, aponto de que na sua dinâmica haja
um momento em que se possa “escutá-los” nas suas
manifestações-necessidades, que permita sua expressão do que
“deseja” buscar; ao mesmo tempo, que possibilite o início de um
processo de vinculação/resolução com um conjunto de
trabalhadores, para que ali, em ato, se estabeleça uma relação de
compromissos e responsabilizações entre saberes (individuais e
coletivos), na busca efetiva de soluções em torno da defesa de
sua vida, que envolvem atividades de promoção, proteção e
recuperação, e que almejam, em última instância ganhos
maiores de autonomia [grifos nossos] (Merhy, 2005, p. 173).

Esse tipo de trabalho imaterial, também pode ser chamado de trabalho

afetivo. Os afetos, como a alegria ou a tristeza, o sofrimento ou a satisfação, revelam o

estado da vida em todo o organismo, expressando um certo estado do corpo e também

uma certa forma de pensamento o trabalho afetivo manipula afetos como a sensação de

bem-estar, tranqüilidade, satisfação. “Os trabalhadores do setor de saúde desempenham

164
tarefas afetivas, cognitivas e lingüísticas a par de tarefas materiais, como trocar

curativos ou despejar o conteúdo das comadres” (Hardt & Negri, 2005, p.150).

O objeto de intervenção do trabalho em saúde não se apresenta como um

objeto plenamente estruturado, com isso, as tecnologias de intervenção são configuradas

como processuais, operando como tecnologia de relações, de encontros de

subjetividades, para além de saberes tecnológicos já criados e estruturados,

comportando-se com um certo grau de autonomia e liberdade significativa no modo de

fazer essa produção. Assim, todos os trabalhadores, usuários, gestores dos serviços,

também sabem que, para atingir essas finalidades, o conjunto desses atos formatam um

certo modo de cuidar, que se apresenta de formas distintas: como ações individuais ou

coletivas; abordagens clínicas e sanitárias de saúde; conjugação de saberes e práticas

implicados em atos cuidadores e, assim, modelam uma forma de atenção à saúde

(Merhy, 2005).

O ato de cuidar, assim como todo trabalho vivo realizado, potencializa a

autonomia para se pensar alternativas anti-hegemônicas de trabalho. O risco do

conformismo é o mesmo quando compreendemos que essa lógica de trabalho também

se aplica à serviços comprometidos com a indústria farmacêutica ou com os seguros de

saúde. O que aponta para uma contradição do próprio trabalho vivo: “a obtenção da

qualidade do cuidado em saúde depende do exercício mais autônomo de seus

trabalhadores individuais e em equipe, mas esse exercício possibilita facilmente uma

privatização dos processos decisórios e dos interesses em jogo” (idem, 2005, p.157).

Essa base tensional, no entanto, permite almejar a exploração de territórios de potências

singulares a esse campo de práticas sociais. “A saúde então constitui-se como produtora

de novos locus de poderes instituintes” (idem, 2005, p.160).

Este espaço de tensão entre o instituído (o lugar dos poderes

territorializados) e os poderes instituintes (esse jogo de potências) é o que se apresenta

165
como objeto de intervenção sobre a gestão em saúde – considerando que toda essa

perspectiva está sedimentada em uma alta concentração de poder, e por isso, um alto

poder conservador, a exploração dessas tensões-potências pode vir a gerar novos

desenhos territoriais e novas direcionalidades no agir em saúde. Por isso, a polarização

entre autonomia e controle sempre será um lugar de tensão e, portanto, de potência,

constituindo-se em um problema para as intervenções que tentam gerenciar a produção

de certo modelo tecnoassitencial. São maneiras efetivas de se desenhar modelos de

atenção (idem, 2005).

O fato é que existe um ganho nesse espaço relacional tencionado ao fabricar

no cotidiano dos modelos de atenção, uma lógica que desmonta a ação centrada nos

procedimentos médicos à medida que o que se destaca é a produção de novas linhas de

poder, partindo-se da ação de certos lugares-potências, constitutivos do território do agir

em saúde. A potência do trabalho vivo é orgânica e constituinte (idem, 2005).

Desta forma, a ação regulatória sobre o sistema é uma ação que se apresenta

como uma dinâmica de instâncias micro-decisórias. E, contudo, passa a interessar a todo

um conjunto do processo gerencial, tanto no plano da organização quanto no processo

de trabalho, que sempre rompe com a possibilidade de captura do trabalho vivo em ato

no plano da assistência e no plano da gestão, contemplando as razões biopolíticas do

usuário, mesmo que ele não esteja no momento do processo decisório. Esse “nó crítico”

apresentado por Merhy nos traz argumentos que vem a reforçar que a dimensão ocupada

pelo trabalho vivo na saúde é determinante em espaços os quais o trabalho é mais

imaterial do ponto de vista das suas ações e mais biopolítico em sua concretude. É a

capacidade de estabelecer relações humanas que o trabalhador da saúde vende quando

negocia sua força de trabalho. Esse tipo de afeto contido no trabalho não cria apenas

bens materiais ou serviços, mas também relações e, em última análise, recria a própria

vida.

166
3.5 – A Multidão como novo sujeito antagonista

“O que o revolucionário impõe, contudo, não é tanto a pura


coerência da força, mas o insistente mecanismo do desejo”.
Hardt & Negri

Multidão é um conceito que nasce na obra de Spinoza e nela se apresenta

como uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem. O

conceito era algo presente em outras literaturas do pensamento político da modernidade

anterior à Spinoza, no entanto, surgia como algo negativo, que precisava ser contido;

deveria ser formado, ao invés de como matéria que continha em si um formativo.

Traduzia uma falta de ordem talvez. Em Spinoza119 Multidão aparece como uma idéia

imanente e materialista (Negri, 2003b).

Um dos diferenciais mais exatos para entender a idéia de Multidão está na

equiparação e na releitura do conceito feita por Negri em tempos atuais. Em sua obra,

como autor spinozista, multidão é uma definição de classe. Na sua forma mais geral e

abstrata traçou um paralelo entre o conceito de povo e multidão, que de forma

simplificada retrata: o povo é uno, a multidão é plural e múltipla. A população,

naturalmente, é composta por indivíduos e classes diferentes, mas o conceito de povo

torna-a unificada, por isso, algo que pode ser governado por um soberano apenas. A

multidão não. “A multidão é composta por um conjunto de singularidades – e com

singularidades queremos nos referir a um sujeito social cuja diferença não pode ser

reduzida à uniformidade; uma diferença que se mantém diferente” (Hardt & Negri,

119
Spinoza escreve se direcionando diretamente à Maquiavel, pois o pensamento republicano nasce na
Renascença, através da concepção crítica de crise da república florentina. Maquiavel descreve a
democracia de Florença tendo como base os movimentos das classes proletárias (o povo) que se
organizam para reapropriar-se da liberdade (a República). Spinoza então se pauta à Maquiavel e
desenvolve o dispositivo da Multidão como democracia absoluta, única capaz de reapropriar-se da
liberdade (Negri, 2003b).

167
2005, p.139). O desenvolvimento do capitalismo traz a afirmação de uma sociedade

complexa, fortemente articulada em classes, o que proporciona a idéia de multidão

como massa. Neste caso, aparece como um conjunto massificado, confuso; porém com

capacidade para resistir (Negri, 2003b).

A existência de um “povo” torna redutiva a manifestação da diferença, pois

faz dela uma unidade, escamoteada de identidade que nega e apaga as diferenças. “As

singularidades plurais da multidão contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do

povo” (idem, p.139).

Embora múltipla, a multidão não é fragmentada ou incoerente. Também é

um conceito que não pode ser confundido com entidades coletivas ou plurais, de massa;

pois a massa não é capaz de agir por si mesma, precisa ser conduzida. Por isso são

suscetíveis à manipulação externa. Nas palavras de Negri, a multidão, portanto, é um

sujeito social internamente diferente e múltiplo, que não se baseia na identidade ou na

unidade, mas naquilo que tem em comum.

A filosofia política moderna ensinou-nos que somente aquilo que é uno pode

governar: o partido, o povo, o monarca, o indivíduo. Sujeitos sociais que não são

unificados, mas múltiplos, devem então ser governados. Era a idéia que “todo soberano

deve ser dotado de um corpo político onde há uma cabeça que comanda e membros que

obedecem para dar sustentação ao corpo político do governante”. O conceito de

multidão surge então para desafiar essa verdade consagrada de soberania.

Negri e Hardt (2005) nos dizem que a multidão embora seja múltipla e

internamente seja diferente é capaz de agir em comum, portanto é capaz de se governar.

A multidão governa a si mesma. Nela não há relação de comando e obediência. Seu

desafio é justamente sua única possibilidade: a democracia, visto que a democracia é o

governo de todos por todos. Assim, torna-se compreensível o entendimento porque o

168
capital quer tornar a multidão uma unidade orgânica, assim como o Estado precisa

transformá-la em um povo.

Assim, o conceito de multidão abrange também um conceito de raça, gênero

e diferenças de sexualidade e, muito do que foi formulado sobre o conceito está dentro

dos movimentos feministas e anti-racistas. “Quando dizemos que queremos um mundo

no qual a raça e o gênero não importem, ou seja, um mundo no qual não determinem

hierarquias de poder, um mundo o qual as diferenças podem expressar-se livremente,

estamos exprimindo um desejo de multidão” (Hardt & Negri, 2005, p.141). Acabar com

o caráter limitador, negativo e destrutivo das diferenças diz respeito à utilização das

singularidades como algo produtivo, potente, que se transforma radicalmente em força

transformadora.

Quando se critica o sistema dos direitos sob o ponto de vista da multidão,

caímos na armadilha impotente de imaginar que ela está periférica, ao lado dos sujeitos

sem poder. Ou ainda a concepção que a multidão é minoritária, subalterna ou explorada

– “algo que sempre cai no reino da representação, propondo soluções simbólicas”

(idem, 2004, p.192). Mas o conceito é central na dinâmica de produção social e, ocupa

uma posição de poder. Este poder, porém, é algo diferente do poder do Estado. Um

poder que se afirma contra o outro, pois a singularidade da multidão é uma comunidade

irrepresentável. Logo, essa relação de poder contra o outro, pode ser demonstrada pelo

poder constituinte da multidão contra o poder constituído do Estado (Hardt & Negri,

2004).

Quando a força da multidão é aprisionada pelo capital torna-se verdadeira

figura biopolítica, pois sua forma de produção é baseada no Comum, e tudo o que

produz tende a compartilhar contra um comando imperial – o poder do capital global. A

multidão é a única que consegue mover-se dentro do Império e expressar-se

autonomamente, governando a si mesma. O que comprova que não existe mais um

169
“lado de fora” do capital e nem um “lado de fora” do biopoder. Eles funcionam

intimamente juntos. Em contrapartida, o lugar da exploração do trabalho,

contraditoriamente, é um lugar determinado e que tem uma topografia de distribuição

espacial. Isso se mostra importante para entender onde se manifesta os atos de êxodo,

resistência e luta em todo o mundo (idem, 2005).

Ou seja, o conceito de multidão ao definir-se como singularidades em rede

que atuam em comum significa dizer que não existe uma contradição conceitual ou real

entre a singularidade e o que é Comum – este é o núcleo da definição. Uma multidão é

uma multiplicidade irredutível, não pode ser aplainada na uniformidade, na

identidade120; não precisa optar entre a unidade e a pluralidade. Mostra-se como algo

definido politicamente, não é um conceito empírico e dual (idem, 2005). Ao contrário, a

identidade se sente ameaçada pela desterritorialização, pela contaminação, pela

marginalização em nome de uma suposta pureza que se transforma em patologia

identitária (Berardi, 2005).

(...) não seria o caso de perguntar ‘Que é a multidão?’, mas ‘Que


pode vir a ser a multidão?’. Um tal projeto político deve
fundamentar-se claramente numa análise empírica que
demonstre as condições comuns, naturalmente não significam
uniformidade ou unidade, mas de fato exigem que a multidão
não seja dividida por diferenças de natureza ou espécie.
Significam, em outras palavras, que os inúmeros e específicos
tipos de trabalho, formas de vida e localização geográfica, que
sempre haverão necessariamente de permanecer, não impedem a
comunicação e a colaboração num projeto político comum
(Hardt & Negri, 2005, p.146).

120
“A identidade pode ser definida como o complexo de reações psíquicas ao ambiente que tornam
possível a um organismo consciente reconhecer a própria continuidade experiencial desde um momento
no tempo até o seguinte. Em si, a identidade não é certamente uma patologia, mas quando o organismo
consciente, por causa da desterritorialização, não reconhece o próprio território psíquico e geográfico,
pode desencadear reações de reterritorialização desesperada e agressiva, e procurar segurança na ilusória
pureza da comunidade de pertença. A reação identitária se difunde hoje principalmente nas áreas sociais
marginalizadas pelo fluxo da virtualidade e da riqueza econômica gerada pela new economy, isto é, no sul
do planeta e nas periferias das metrópoles ocidentais” (Berardi, 2005, p.138/139).

170
Neste caso o Comum se traduz num elemento de solidariedade de todos que

se revoltam contra a exploração; é formado por todos aqueles que trabalham sob o

domínio do capital, e assim, potencialmente, como a classe daqueles que recusam o

domínio do capital. Que estão sob as condições em que vários tipos de trabalho se

comuniquem, colaborem e se tornem comuns. “O conceito repousa na tese que não

existe uma prioridade política entre as formas de trabalho: todas as formas de trabalho

hoje em dia são socialmente produtivas, produzem em comum e também compartilham

um potencial de resistir à dominação do capital” (Hardt & Negri, 2005, p.147). Isto

porque a idéia baseia-se na formação de um novo conceito de classe, fundamentado na

produção do trabalho imaterial.

Ou seja, na corrente de pensamento desenvolvida por Negri e Hardt, a classe

é determinada pela luta de classes, aquelas que são definidas pelos lineamentos das lutas

coletivas. Nas palavras de Tronti, “a classe existe porque luta, e não luta porque é

classe”. Em um sugestivo exemplo dado por Negri e Hardt, a raça, não é determinada

pela etnia, nem pela cor da pele; a raça é determinada politicamente pela luta coletiva.

Há quem sustente que a raça é criada pela opressão racial, mas essa lógica pode ser

levada mais longe: “a raça se manifesta através da resistência coletiva à opressão racial”

(Hardt & Negri, 2005, p.144). O que esses autores argumentam é que a classe

econômica é formada através de atos coletivos de resistência.

Desse modo, uma investigação de classe econômica, como uma


investigação de raça, não deve começar com um mero catálogo
de diferenças empíricas, e sim com os lineamentos da resistência
coletiva ao poder. A classe é um conceito político, em suma, na
medida em que uma classe é e só pode ser uma coletividade que
luta em comum (Hardt & Negri, 2005, p.146).

Na idéia de multidão, a classe, de forma primordial, é um conceito político;

pois não reflete somente as atuais linhas de luta de classe, mas também porque propõe

171
algumas conduções futuras. “Nesse sentido, a função de uma teoria de classes é

identificar as condições existentes de uma potencial luta coletiva e expressá-las como

proposta política. A classe é na realidade um desdobramento constituinte, um projeto”

(idem, 2005, p.144). A multidão representa a composição de uma classe biopolítica, ao

passo que também econômica e política.

No século XIX o trabalho industrial tornou-se hegemônico para a economia,

transformando até mesmo os setores mais minoritários numa lógica fabril, como o caso

da agricultura. Negri e Hardt apontam que a sociedade transformou-se em uma

sociedade industrial nas suas instituições, na escola, no exército, a família. Todos

passaram a compartilhar elementos em comum. O fenômeno se repete no século XX. O

trabalho industrial perdeu sua hegemonia e cedeu seu lugar ao trabalho imaterial. E esse

trabalho biopolítico que não cria apenas produtos materiais, mas também formas de vida

é o que tende à transformação econômica da sociedade. O que demarca também a

passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle, como forma de

capturar esse trabalho da multidão.

Desta forma entendemos que o conceito também vai além do que

identificamos por proletariado, sua definição abrange tanto o trabalho reprodutivo

feminino quanto o trabalho industrial masculino; o trabalho industrial e o trabalho

agrícola; os empregados e os desempregados; os operários e os pobres. “Em contraste

com as exclusões que caracterizam o conceito de classe operária, multidão é um

conceito aberto e expansivo” (Hardt e Negri, 2005, p.147).

À título de simplificação, Negri (2006) nos resume em poucos critérios o que

vem a ser a multidão, se quisermos falar do conceito em si mesmo. Em base filosófica,

a) multidão visa reduzir o uno e a multiplicidade é definida como uma multiplicidade de

sujeitos; uma multiplicidade irredutível que não pode ser reduzida à idéia de povo. O

povo representa uma redução da multidão; b) multidão é um conceito de classe, uma

172
classe de singularidades produtivas, dos operadores do trabalho imaterial. É o conjunto

da força criativa do trabalho; c) a multidão é uma potência ontológica, quer recriar o

mundo à sua imagem e semelhança, ou seja, fazer dele um grande horizonte de

subjetividades que se exprimem livremente e constituem uma comunidade de homens

livres (2006, p.129/130).

A compreensão do capitalismo a partir do olhar sobre a multidão nos

proporciona o entendimento que se não houvesse regulação política, isto é, nenhuma

relação de força para regular as relações de trabalho, não existiria um mercado

capitalista através do Estado. O controle político desta classe que produz, dizem Hardt

& Negri, é o que faz proteger e expandir a propriedade privada. Além disso, é também o

controle político que atenua e derrota todas as lutas do trabalho contra o capital. Não

queremos com isso afirmar que chegaremos a um patamar em que não teremos

nenhuma regulação sobre o trabalho, mas sim que as instituições, tanto públicas quanto

privadas, tem se assemelhado cada vez mais umas às outras nos seus mecanismos de

controle sobre as relações de produção. E desta forma, as empresas privadas ficam cada

vez mais inseridas nas instituições públicas.

São essas relações que criam uma uniformidade global entre os defensores

do mercado livre; o qual somente o trabalho que sofre alta regulação jurídica do

controle estatal é o que proporciona o livre mercado. Sendo assim, o que é a

globalização se não os contratos internacionais de negócios amparados por seus

Estados, instituições regulatórias da economia e por instituições supranacionais? Hardt

& Negri (2005) apontam que a OMC, por exemplo, mesmo com todo o desnível e

contradições dos países mais pobres é “o verdadeiro encontro da aristocracia global” da

mesma forma que o Fórum Econômico Mundial de Davos é o espaço onde as elites

empresariais, burocráticas e políticas se encontram e não se surpreendem certamente.

173
Desta forma que se abrem verdadeiros ciclos internacionais de luta. Depois

de um longo período de embates dos trabalhadores da indústria, estudantes e

movimentos guerrilheiros anti-imperialistas; pós 68 inicia-se um novo ciclo:

movimentos feministas, sexistas, movimento contra o apartheid na África do Sul,

revoltas de agricultores, guerras civis contra governos (como o caso de El Salvador), e

numerosas revoltas locais não divulgadas que envolviam populações oprimidas (Hardt

& Negri, 2005). Ao chegar à década de 90 um novo ciclo internacional se manifesta em

torno das questões da globalização, algo que é inaugurado com os protestos contra a

reunião de cúpula da OMC em Seattle (2005, p.278) – considerado “o movimento dos

movimentos”. É na década de 90 que se inicia nossa procura por esses rastros deixados

por movimentos que simbolizam o devir da multidão. E é por isso que um novo

ordenamento do poder será montado, agora ele precisa assumir o mesmo diagrama da

Multidão, precisa ser uma rede de controle das redes de multidão.

174
3.6 - As novas formas de poder: a soberania imperial

A visão sedimentada de poder ou autoridade suprema do Estado, a

concepção em que o Estado rege a ordem e que não deve sua validade a nenhuma outra

ordem superior é um dos pontos de discussão nos atuais estudos sobre o capitalismo. A

visão dos estatalistas é que a soberania compreende um complexo de poderes que torna

uma “nação” politicamente organizada na era moderna. Esta soberania estatal relaciona-

se ao direito exclusivo de uma autoridade suprema sobre uma área geográfica, grupo de

pessoas, ou indivíduo. A soberania sobre uma nação é geralmente atributo de um

governo ou de outra agência de controle político; ou mesmo atribuída a um indivíduo,

como na monarquia, a qual o líder é chamado genericamente de soberano.

Para Negri (2005) estas questões afligiram a modernidade. A terminologia

desenvolvida pela ciência política da Idade Moderna, pensamento que se desenvolveu

entre 1500 e 1900, nos coloca diante de conceitos que são estáticos pela tradição

histórica que carregam consigo: soberania, Estado-nação, imperialismo ou colonialismo,

cidadania ou sujeito político. Interpretados da maneira nos quais foram definidos, hoje

significam muito pouco. A soberania era um conceito que tinha seu caráter absoluto.

O Estado-nação121 soberano era um Estado que supunha uma soberania quase

absoluta, já que tinha a capacidade de fazer a guerra, de cunhar moeda de maneira quase

independente ou de construir cultura de maneira isolada. Hoje estes elementos são cada

vez menos importantes. Atualmente, vivemos dentro de um mundo no qual, com todas

as diferenças, os processos de unificação e homogeneização necessitam cada vez mais

de estudos que ressaltem seus significados.


121
O Estado pode ser definido como a instituição organizada política, social e juridicamente dentro de um
território definido, onde a lei máxima é a Constituição. Possui soberania reconhecida internamente e
externamente. Um Estado soberano é sintetizado pela máxima "um governo, um povo, um território". O
Estado é responsável pela organização e pelo controle social, pois detém o monopólio legítimo do uso da
força (coerção). No entanto, o Estado-nação é uma terminologia muito utilizada após a revolução francesa
para designar um sentimento de "povo", entendido através da unidade de laços de língua, etnia, religião...
E com essa acepção política que emergem os Estados-nação europeus.

175
Entende-se por soberania estatal a qualidade máxima de poder social através

do qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado prevalecem sobre as normas e

decisões emanadas de grupos sociais ou indivíduos. A soberania é pressuposta através

da constituição de um sistema de normas jurídicas capaz de estabelecer as pautas

fundamentais de sua nação. Nas relações internacionais é a idéia de soberania que

produz a noção de igualdade entre os Estados.

Thomas Hobbes analisou o soberano como o governante absoluto, definitivo,

um “Deus na terra”. Como a relação entre os súditos e seu governante nunca seria

pacífica, pressupondo situações como uma guerra civil, o ideal seria uma pactuação

implícita, um contrato. Hobbes reconhecia que o poder absoluto consistia em fornecer a

lei aos seus súditos, mesmo sem o seu consentimento. O contrato social é o que

transfere todo o poder autônomo da multidão para um soberano, um poder situado

acima dela e que a governa.

Um outro pensador sobre a condição de soberania, Rousseau, conceituou o

“republicano absoluto”. Ao pensar uma realidade republicana, Jean-Jacques Rousseau

concluía o contrato social como um acordo entre as vontades individuais sublimadas na

construção de uma “vontade geral” proveniente da alienação das vontades isoladas para

a soberania do Estado. O que não o diferenciava do “Deus na terra” de Hobbes. O

conceito de “nação” fez parte de uma hipótese que pressupunha ser a “vontade geral”,

ou seja, a alienação total dos direitos dos súditos ao soberano em nome da paz da

comunidade.

Pensar a época da modernidade européia é inseparável da história do

capitalismo. O poder que era transferido ao soberano estatal deveria coincidir com o

interesse público. Como essa hipótese não se aplicou de fato, mesmo na modernidade,

nos colocamos diante de uma primeira questão conceitual: a relação entre

176
individualidade e universalidade na formação de um Estado capitalista em

desenvolvimento.

Na modernidade, a soberania foi enfocada de acordo com duas modalidades

diferentes dentro da realidade européia. A primeira é a monarquia, ou seja, a

reivindicação da unidade do poder e da ausência de limites em seu espaço interior. A

segunda modalidade de constituição de um poder soberano moderno funda-se na criação

de um “povo” capaz de ser interlocutor do soberano (Negri, 2005).

A soberania moderna idealizada por Hobbes122 e aplicada à modernidade

pode ser dividida em duas categorias analíticas: transcendência e representação. Por

um lado a soberania é fundamentada em um apoio teológico, uno; por outro, a

representação legitima o poder do soberano e o aliena completamente da multidão de

súditos. Assim, o poder está no Uno. A representação é a tentativa de unificar as

multiplicidades (Hardt & Negri, 2001). O Uno é a negação de todas as singularidades e

de todas as pluralidades.

O Uno é o princípio da negação. A negação de todas as


singularidades, de todas as pluralidades. O Uno é abstração
vazia. O Uno é também o princípio da teologia, da teleologia, da
eugenia, não tem nada a ver com a unidade. Às vezes, os
filósofos, aterrorizados com a perversidade das conseqüências
desse tipo de pensamento, procuram atenuar suas pretensões
metafísicas formulando a idéia de uma unidade como interação
das singularidades. Mas se trata de uma mistificação: enquanto o
Uno domina os conceitos – qualquer que seja a forma dessa
dominação – o Uno dominará as coisas, apagará as diferenças,
matará as singularidades. O Uno é o inimigo (Negri, 2006,
p.197).

122
Na análise Hobbes, o corpo do soberano é o corpo social como um todo. “Há apenas uma cabeça, e os
diferentes membros e órgãos devem obedecer a suas decisões e ordens. Assim é que a fisiologia e a
psicologia reforçam a verdade óbvia da teoria da soberania. Existe em cada corpo uma única
subjetividade e uma mente racional que devem exercer seu controle sobre as paixões do corpo” (Hardt &
Negri, 2005, p.413).

177
“Não é, portanto, a unidade que é o contrário da multiplicidade, mas o Uno.

É o Uno que é o princípio de toda alienação e que se dá como negação. A negação não é

a ação, mas um vazio, um nada, é um princípio de subtração” (idem, 2006, p.198).

Assim, é importante esclarecer a diferença entre a unidade vista como um processo de

unificação e a unidade concebida como um bloco abstrato.

Negri e Hardt (2005) afirmam que uma das verdades recorrentes da filosofia

política é que só aquilo que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou o

indivíduo. Sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos, que não podem

governar, devendo, pelo contrário, serem governados. “Em outras palavras, todo

soberano forma necessariamente um corpo político dotado de uma cabeça que comanda,

de membros que obedecem e de órgãos que funcionam conjuntamente para dar

sustentação ao governante” (p.140). Este é o desafio conceitual para se pensar a tradição

da soberania. “Sujeito, unidade de poder e lei: aí estão os elementos sobre os quais

atua a teoria da soberania” (Foucault, 2002, p.50).

O conceito de soberania domina a tradição da filosofia política e


sempre serve de base a tudo que é político precisamente porque
exige sempre que apenas um governe e decida. Somente o uno
pode ser soberano, afirma a tradição, e não pode haver política
sem soberania (Hardt & Negri, 2005, p.412).

O significado de “nação” na Europa se desenvolveu no terreno do Estado

patrimonial e absolutista. “O Estado patrimonial foi defendido como propriedade do

monarca”; pois essa era a forma política exigida para governar as relações sociais

feudais e as relações de produção. “A propriedade feudal era parte do corpo do

monarca, assim como [...] o corpo monárquico soberano era parte do corpo de Deus”

(idem, 2001, p.112). O processo de acumulação primitiva do capital impôs novas

condições à estrutura de poder, sendo assim necessária à criação do pensamento único

de “nação” voltado à perspectiva do território: a população como abstração ideal; o

178
território físico e a população como extensão transcendental em um conceito – nação

(Negri & Hardt, 2001).

Os primeiros processos capitalistas produtivos incorporaram essa totalidade

de poder já estruturada, por meio da estabilização causada pelo sentimento integrador de

identidade nacional. Neste conceito somavam-se fatores que propiciavam a idéia de

integração e consensualidade: identidade cultural, mesma abrangência territorial, idioma

comum e continuidade biológica das relações de sangue sobre a perspectiva do território

compartilhado e delimitado. “O conceito de nação sempre foi apresentado como um

conceito de modernização capitalista, que se dizia capaz de unir as demandas interclasse

de unidade política e as necessidades de desenvolvimento econômico” (idem, 2001,

p.114).

O mais importante como o horizonte patrimonial foi transformado em

horizonte nacional foi a passagem de súditos a cidadãos. A ordem disciplinar do súdito

feudal cedeu sua vez a ordem disciplinar do cidadão. Algo que trazia uma modificação

de um papel passivo para um papel ativo, pois a nação sempre precisa se apresentar

como força ativa, geradora de relações sociais e políticas. A “nação” sempre é

apresentada como uma concepção coletiva, uma comunidade de cidadãos. O conceito

chega a ser progressista, na medida em que propõe a comunalidade. Assim, se naturaliza

a relação de soberania, retirando qualquer resíduo de antagonismo ou perspectiva de

conflito (idem, 2001). A “nação” é o coletivo uno, livre de contradições, pois tudo

deverá ser contemplado pela força do Estado. Pois o Estado é a representação da nação.

No fim do século XVIII e ao começo do século XIX, o conceito de soberania

nacional finalmente sedimentou-se no pensamento europeu. Ao passar pela revolução

francesa, a Europa deu conotação política construtiva ao conceito de nação. A nação

sustentava o conceito de soberania, alegando que o precede. Na França, diz Negri &

Hardt (2001), “nação” diferenciava-se do conceito moderno de “soberania”, pois se

179
relacionava a uma noção democrática de comunidade. O precário poder de soberania foi

aplicado à idéia de “povo” – o que foi uma inovação para a época, pois constituía o

centro da sensibilidade entre os grupos revolucionários.

“Apesar de ‘povo’ ser a base originária da nação, o conceito moderno de

povo é, na verdade, produto do Estado-nação e só sobrevive dentro do seu contexto

ideológico específico” (idem, 2001, p. 120). O rei é o povo, por mais paradoxal que

seja. Em uma monarquia, o povo é algo uno, dotado de uma vontade.

A autoridade soberana garantia paz e segurança aos indivíduos e à

propriedade. O “absolutismo” representava não só a absoluta situação em que a

autoridade era livre, mas que também era livre de qualquer limite. Na monarquia, o

momento em que os indivíduos alienaram poder tornaram-se um povo; isto é, um

conjunto de portadores de direitos reconhecidos pelo soberano. Então que o conceito de

povo aparece na modernidade como uma produção do Estado. “Povo’ entendido como o

conjunto de cidadãos proprietários, e a propriedade é o direito fundamental. Um grupo

que abdicou de sua liberdade tendo como compensação a garantia da propriedade. Sua

liberdade, após ter sido um direito natural absoluto, torna-se agora um direito público

(subjetivo) e, portanto, é o Estado que garante o grau e a medida de liberdade dos

indivíduos, útil ao fundamento da máquina estatal e à reprodução das relações de

propriedade” (Negri, 2005, p.143).

Entre os séculos XVIII e XIX o conceito de povo passou por uma

reconstrução na Europa. A formação da identidade européia conflitava com os seus

próprios nativos. Nação, povo e raça perderam suas distinções, pois a imigração e o

multiculturalismo geraram conflitos no território europeu. Inicia-se a percepção de que

as sociedades e os povos europeus nunca foram uniformes. A identidade do povo foi

construída em um plano imaginário, que escondia (ou eliminava) diferenças e isso,

dizem Hardt & Negri, “corresponde à subordinação racial e à purificação social”.

180
Mas o que é que se pode então conceber por “povo”? Hardt e Negri

entendem que o “povo” não é uma entidade natural ou empírica; não se pode chegar a

identificar o povo somando ou fazendo a média da população inteira. O povo é mais

uma representação que faz da população uma unidade. “A chave para a construção do

povo é a representação. A multiplicidade empírica da população torna-se identidade por

meio dos mecanismos de “representar” – e aqui podemos enfatizar a conotação tanto

política quanto estética do termo “representar”, que está embasado em uma posição e

condição de medida – e por “medida” deve-se entender nem tanto uma condição

quantificável, mas sim uma condição delimitada” (Negri, 2003b, p.118/119).

Pensar sobre a soberania dos Estados na atualidade remete de imediato

repensar a representação. “Uma multiplicidade delimitada ou medida pode ser

representada como uma unidade, mas o não mensurável, o não delimitado, não pode ser

representado”. Este é o único sentido no qual o conceito de povo está intimamente

relacionado ao espaço nacional delimitado. Em suma, o povo não é uma identidade nem

imediata, nem eterna, mas é o resultado de um processo complexo que é próprio de uma

formação social e de um período histórico específico (Hardt & Negri, 2001).

Isto porque na modernidade européia, a soberania era concebida por duas

modalidades diferentes. A primeira é a monarquia, ou seja, a reivindicação da unidade

do poder e da ausência de limites em seu espaço interior. No presente, esta modalidade

não é mais possível. “A soberania hoje não pode, mesmo à custa de esforços externos,

chegar a unidade: sua natureza dupla sempre emerge. A instabilidade do poder soberano

no Império é assim parte de sua definição” (Negri, 2003b, p.82/83). A segunda forma de

constituição de um poder soberano europeu moderno fundou-se na criação de um povo

capaz de ser interlocutor do soberano. Também essa elaboração hoje não é mais

possível. Não existem mais povos, mas somente multidões que seguem dinâmicas

181
moleculares, reivindicam diferenças, experimentam cruzamentos e hibridações (Negri,

2003b).

Negri (2005) nos diz que uma das condições fundamentais da soberania é a

capacidade de excluir do próprio território nacional fontes externas de autoridade, é

virtualmente impossível no caso em que a distinção entre o dentro e o fora esteja

progressivamente se reduzindo. “Este inimigo invisível é mais sintoma do que causa da

transformação da soberania nacional” (idem, p.77). Para o autor, a soberania não é uma

substância autônoma, mas uma relação entre soberano e súdito. O poder soberano nunca

é absoluto. Tende constantemente à consolidação e à reprodução de sua hegemonia de

súdito. “Assim, quem obedece não é menos essencial para funcionalidade, e a própria

idéia de soberania, de quem comanda” (idem, p.73).

Um outro importante marco histórico de transição apontado por Negri e

Hardt (2001) é o fim do colonialismo. “O fim do colonialismo é também o fim do

mundo moderno e dos modernos regimes de governo. O fim dos colonialismos

modernos, é claro, não abriu de fato uma era de liberdade absoluta, antes submeteu-se a

novas formas de mando que operam em escala global. Aqui temos um primeiro

vislumbre real da transição para o Império” (Hardt & Negri, 2001, p.151).

A análise histórica do colonialismo mostra que ele foi a representação em

que o capitalismo se desenvolveu de forma desigual. Um desses caminhos desiguais foi

a produção escrava colonial de larga escala nas Américas entre os séculos XVII e XIX,

uma história que não é pré-capitalista, ao contrário, se amplia dentro dos

desenvolvimentos complexos e contraditórios123 do capital. A população africana foi

arrebatada para trabalhar onde, exatamente, existiam os “buracos” populacionais de

123
A produção escrava na América e o tráfico de escravos africanos foi um sustentáculo estável sob o
qual se reergueu o capitalismo europeu. “Não há contradição aqui: o trabalho escravo nas colônias tornou
possível o capitalismo na Europa, e o capital europeu não tinha interesse em desistir dele” (idem, 2001,
p.139). A escravidão produzida no continente americano funcionou como uma espécie de “capital de
giro” para o desenvolvimento do capitalismo, mesmo que o sistema capitalista represente a antítese do
trabalho escravo.

182
pessoas nativas que morreram por armas ou doenças européias. “Na prática o capital

não apenas submeteu e reforçou sistemas de produção escrava em todo o mundo, mas

também criou novos sistemas de escravidão em escala nunca vista, particularmente na

América” (Hardt & Negri, 2001, p.138).

Na realidade, nem argumentos morais em casa, nem cálculos de


lucratividade no exterior, poderiam levar o capital europeu a
desmantelar os regimes escravos. Só a revolta e a luta dos
próprios escravos poderiam fornecer uma alavanca adequada.
Justamente quando o capital avança para reestruturar a produção
e emprega novas tecnologias apenas como resposta à ameaça
organizada de antagonismo dos trabalhadores, o capital europeu
não renunciaria à produção escrava até que os escravos
organizados representassem seu poder e tornassem esse sistema
de produção insustentável. Em outras palavras, a escravidão não
foi abandonada por razões econômicas, mas derrubada por
forças políticas (idem, p.139/140).

Assim, afirmar a crise de soberania dos Estados-nação representa assegurar a

crise da modernidade. Isto é, afirmar a co-presença de um novo conjunto produtivo de

subjetividades livres e de um poder disciplinar que quer explorá-las. Na Idade Moderna,

a nação passa a ser a única maneira de imaginar uma comunidade. Da mesma forma que

ocorreu nos países europeus, aqui também a multiplicidade e a singularidade da

multidão são negadas através da camisa-de-força da identidade e homogeneidade de um

povo. O conceito de nação mostra-se progressista, porém reacionário, pois a

comunidade não é uma criação coletiva dinâmica, mas um mito. Uma noção originária

de povo propõe uma identidade que homogeneíza e purifica a imagem da população,

enquanto impede as interações construtivas de diferenças dentro da multidão (Hardt &

Negri, 2001).

O pensamento pós-moderno foi recebido por uma ampla esfera


de especialistas como toque de clarim de um novo paradigma de
prática acadêmica e intelectual, e como oportunidade real de
desalojar os paradigmas dominantes em seu próprio terreno. Um
dos paradigmas mais importantes, pela nossa perspectiva, é o

183
campo das relações internacionais. Aqui o paradigma
‘modernista’ [se fixa] no poder dos Estados-nação, do emprego
legítimo da violência estatal e da integridade territorial. De uma
perspectiva pós-modernista, tais relações internacionais
‘modernistas’, por aceitarem essas fronteiras e nela se basearem,
tendem a apoiar o poder dominante e a soberania dos Estados-
nação (...). Teóricos pós-modernistas das relações internacionais
empenham-se em desafiar a soberania dos Estados pela
desconstrução das fronteiras dos poderes dominantes,
ressaltando movimentos e fluxos internacionais irregulares e não
controlados e, com isso fraturando unidades e oposições estáveis
(Hardt & Negri, 2001, p.159/160).

Do ponto de vista do colonialismo europeu, a crise da modernidade tem uma

relação próxima com a subordinação racial e a colonização. Hardt (1997) afirma que o

Estado-nação é uma máquina de produzir o Outro. “É o anti-semita que faz o judeu, é o

colono que faz o colonizado para poder criar-se a si mesmo”. O sujeito europeu da

soberania moderna é fundado na dialética de reconhecimento do Outro. “É somente

quando se opõe ao colonizado que o sujeito metropolitano toma consciência daquilo que

é” (idem, p.57).

(...) a soberania se constitui a partir de uma forma radical de


vontade, forma que pouco importa. Esta vontade é vinculada ao
medo e a soberania nunca se forma por cima, ou seja, por uma
decisão do mais forte, do vencedor ou dos pais. A soberania se
forma sempre por baixo, pela vontade daqueles que tem medo
(Foucault, 2002, p.111).

A modernidade vivida no Iluminismo europeu demonstrou que o Outro era

obscuro; mas deveria ser dócil, imutável e subordinado ao europeu. Os sinais de

primitivismo que a antropologia do século XIX narrou sobre as culturas não européias

representavam estágios evolutivos que caminhavam rumo à civilização européia. O

oriental, o africano, o ameríndio são todos componentes necessários da base negativa da

identidade européia e da soberania moderna. A colônia está em oposição à

modernidade da Europa (Hardt & Negri, 2001).

184
Mesmo assim, existe potência na definição conceitual de soberania. Por ter

dois lados, significa que a soberania é uma luta constante e essa luta é sempre um

obstáculo para o poder soberano. O soberano pode bloquear ou simplesmente limitar as

vontades dos que estão no poder. Essa relação conflituosa é o ponto central em que a

soberania pode ser derrubada, ou ao menos desafiada. A ameaça está na possibilidade

dos governados rejeitarem a posição de servidão e retirarem-se da relação. Porque a

soberania é uma relação e a recusa é e sempre será uma ameaça ao poder. “Sem a

participação ativa dos subordinados a soberania se desmorona” (Hardt & Negri, 2005,

p.418).

A soberania moderna, desta forma, é um mundo maniqueísta, dividido por

uma série de afirmações binárias que dividem o Eu e o Outro, o branco e o negro, o de

dentro e o de fora, o dominador e dominado. O pensamento pós-modernista desafia

justamente essa lógica binária que a modernidade construiu. O hibridismo, o

multiculturalismo, a diferença a as ambivalências de nossas culturas marcam as teorias

pós-modernistas. O discurso da pós-modernidade124, ou da alter modernidade constitui a

insistência na diferença e desafia os discursos totalitaristas de poder; propõe, sobretudo,

uma interrupção de todo o desenvolvimento da soberania moderna – uma política de

fluxo desterritorializado, num mundo livre da rigidez das teorias estatais baseadas nas

fronteiras fixas da modernidade (Hardt & Negri, 2001).

(...) a modernidade continua aberta e viva hoje, caracterizada por


aquela corrente do pensamento ocidental que afirmou a idéia de
uma democracia radical contra o capitalismo triunfante (Negri &
Hardt, 2004, p.34).

124
Alguns autores utilizam a terminologia “pós-moderno” por se recusarem a aceitar o fim das categorias
do moderno (Estado-nação, direito internacional...), diz Negri. E acrescenta: “insistimos em uma
concepção das causas históricas que encontra na dinâmica das lutas a razão da modificação da realidade
histórica, da ruptura conceitual e, portanto, a necessidade de estabelecer um novo léxico” (Negri, p.68,
2003b).

185
Dos Estados-nação ao Império

Aqui chegamos a demonstração de uma importante chave desta corrente de

pensamento que afirma uma transição geral do paradigma de soberania moderna para o

paradigma de soberania imperial. “Os ‘pós’ modernistas e ‘pós’ colonialistas sempre se

utilizam da crítica embasada pelo Iluminismo como fonte de dominação”. As teorias

‘pós’ colonialistas combatem os resquícios do pensamento colonialista. As teorias ‘pós’

modernistas não reconhecem adequadamente o objeto da crítica contemporânea. Isto é,

confundem-se sobre quem é o inimigo hoje. Hardt & Negri apenas apontam que

reconhecer o valor e as limitações de teorias pós-modernistas125 e pós-colonialistas é um

primeiro passo para compreender profundamente essa transição, desenvolver seus

termos e tornar claro seus contornos. Entender a formação do Império.

O “Império” é uma categoria criada pelos autores para definir uma nova

forma de produção desse novo capitalismo global. Em nada se assemelha ao

“imperialismo”, como muitos desenvolvimentistas apregoam equivocadamente. Ao

contrário, representa exatamente a sua negação e sua superação como base analítica.

O conceito de Império é apresentado como um concerto global,


sob a direção de um único maestro, um poder unitário que
mantém a paz social e produz suas verdades éticas. E, para
atingir esses objetivos, ao poder único é dada a força necessária
para conduzir, quando necessário for, “guerras justas” nas
fronteiras contra os bárbaros e, no plano interno, contra os
rebeldes (Negri & Hardt, 2001, p.28).

125
“Como discurso político o pós-modernismo tem uma certa aceitação na Europa, Japão e América
Latina, mas seu sítio básico de aplicação é dentro de um segmento da elite da intelligentsia americana. Do
mesmo modo, a teoria pós-colonialista que compartilha certas tendências pós-modernistas foi
desenvolvida principalmente entre metrópoles e grandes universidades da Europa e dos Estados Unidos.
Essa especificidade não invalida as perspectivas teóricas, mas deve nos fazer parar um pouco para refletir
sobre suas implicações políticas e seus efeitos práticos. Numerosos discursos genuinamente progressistas
e libertadores aparecem ao longo da história entre grupos de elite [...]. mais importante do que a
especificidade desses teóricos são as ressonâncias que seus conceitos estimulam em diferentes posições
geográficas e de classe” (Hardt & Negri, 2001, p. 172).

186
O “Império” não é um Estado-nação expandido e nem se revela como o

poder imperialista americano (EUA). É uma transferência de soberania dos Estados-

nação para uma entidade superior. Para Negri (2006), a categoria Império insiste que as

grandes transferências de soberania que estão acontecendo, na esfera militar, monetária,

cultural, na linguagem e na política diferem-se da estrutura do Estado-nação. É uma

categoria criada pelos autores para definir uma nova forma de produção desse novo

capitalismo global. O conceito de “Império” nos remete a uma discussão sobre

biopoder126, algo existente somente na nova ordem global do capitalismo. Uma relação

sem centro, ou melhor, em que não há centralidade de uma ou outra “nação”, o

“Império” está em todo lugar, mas situado em lugar nenhum127.

A característica fundamental da soberania imperial é que seus espaços estão

sempre abertos. A soberania da modernidade concebia espaços limitados e suas

fronteiras eram policiadas pela administração soberana. Na concepção imperial a lógica

de sua ordem é sempre renovada e sua expansão é também sempre recriada. O Império é

composto por reterritorializações contínuas. A soberania, em sua forma imperial,

precisa sempre superar barreiras e limites dentro de seus domínios e suas fronteiras.

Essa superação contínua é que faz o espaço imperial ser sempre um espaço aberto.

“Como teria soado vazia a retórica dos federalistas, e como seria inadequada sua ‘nova

ciência política’ se eles não tivessem pressuposto esse vasto e móvel limiar da fronteira”

(Hardt & Negri, 2001, p.188).

Dividir e conquistar’ não é, portanto, a correta formulação da


estratégia imperial. Com mais freqüência o Império não cria
divisões, mas reconhece as diferenças existentes e potenciais,

126
“O biopoder é a sujeição da vida e dos infinitos entrelaçamentos das populações a uma hierarquia
soberana de comando”. Se o biopoder é uma condição de dominação no Império, na América Latina essa
condição aparece escamoteada no discurso da não diferença racial. (Cocco & Negri, 2005, p.201).
127
“Marx prevê, no longo prazo, um império do capital, sem Estados nem fronteiras. ‘(...) uma unidade
econômica que não se baste a si mesma e que estenda infinitamente sua força imensa até transformar o
mundo num império universal, tal é o ideal sonhado pelo capital financeiro” (Fiori, 2004, p.43/44).

187
festeja-as, administra-as dentro de uma economia geral de
comando. O triplo imperativo do Império é incorporar,
diferenciar e administrar (Hardt & Negri, 2001, p.220).

O paradigma da modernidade prevê um “dentro” e um “fora” da estrutura de

poder da ordem capitalista. A crise da modernidade está situada no limiar. O que mudou

na passagem para a ordem imperial, entretanto, é que esse lugar fronteiriço já não

existe. “Podemos dizer que no Império o capital e a soberania tendem a se sobrepor

completamente” (Hardt & Negri, 2005, p.419). Foucault incita em seus estudos sobre

subjetividade a revisão dos parâmetros modernos quando questiona o que

tradicionalmente era considerado o “lado de dentro” da subjetividade e o “lado de fora”

da esfera pública. Para Foucault a crítica à racionalidade moderna era separar o “dentro”

do sistema e o “fora” da subjetividade. A fronteira aí existente mostra um dos aspectos

do império na transição à pós-modernidade. O Império, desta forma, mostra-se como

um desdobramento ou mesmo uma expansão da teoria formulada sobre a sociedade do

controle de Gilles Deleuze.

A sociedade disciplinar, típica da era do capitalismo industrial, fordista,

centrada na fábrica, dá lugar à sociedade do controle, a qual o capital político tem

centralidade advinda de um outro perfil de trabalho gestado dentro da fábrica, e que,

atualmente, produz riqueza mesmo fora dela. Por isso, o Estado não governa mais com

força de mecanismos disciplinares, mas com redes de controle. Essa transição da teoria

desenvolvida por Negri atravessa de Foucault a Deleuze, marcando um momento das

sociedades disciplinares, caracterizadas pelos confinamentos ou pelas instituições – base

da sociedade civil. E, também, das sociedades disciplinares, na qual o Estado não

somente taxa através de impostos a produção de riqueza, mas organiza a produção,

integrando-a ou subsumindo-a às políticas estatais. O controle é a estratégia de governo.

188
Isso significa dizer que o espaço social não foi totalmente esvaziado de

instituições disciplinares, mas que foi totalmente preenchido por modulações de

controle. As resistências que surgiam nas estriagens da sociedade civil não encontram

nenhuma base na superfície do modelo de governo baseado no controle.

A partir de Foucault, Negri relembra que por “disciplina” entende-se uma

forma de governo sobre os indivíduos ou dos indivíduos de maneira singular e

repetitiva. Seria aquela que cobre todo o tecido social, em uma determinada época, por

meio da taylorização do trabalho e do fordismo salarial (keynesianismo). Por

“controle” entende-se o governo das populações por meio de dispositivos que abarcam

coletivamente o trabalho, o imaginário, a vida. Ou seja, a passagem do fordismo ao pós-

fordismo. “A vida, então, passa a fazer parte do campo de poder” (Negri, 2003b,

p.104/105).

A soberania é o controle da reprodução do capital e, portanto, o comando

sobre a proporção do relacionamento de forças (trabalhadores e patrões, proletariado e

burguesia, multidões monarquia imperial) que o constitui. Na modernidade, então, a

soberania reside no Estado-nação. No pós-moderno a soberania está em outro lugar, no

Império talvez. O Estado-nação é incapaz de exercer o controle da relação de capital.

Do ponto de vista do capital, os mecanismos de reprodução da sociedade, lutas

antiimperialistas e anticoloniais impedem os Estados-nação de ser ponto de equilíbrio e

garantia única do desenvolvimento capitalista (Negri, 2003b).

Dizer que a soberania dos Estados-nação está em crise, significa dizer que

essa mesma soberania se transferiu para algum lugar. Mas isso é um problema que está

em aberto na obra dos autores utilizados. Por isso afirmam que a soberania dos Estados-

nação situa-se em um ‘não-lugar’. O que se tem certeza é que esta transição se deslocou

para diferentes formas das tradicionais – o que não é revelado pelo direito

189
internacional128 pelo fato do mesmo ser fundado na relação entre potências estatais

nacionais que estabelecem entre si uma série de acordos, pactos, contratos e prevêem

uma série de sanções sempre que o pacto seja ameaçado de rompimento ou ofensa

(Negri, 2003b).

Nas linhas divisórias da superfície global temos formas que não apresentam

substancialidade diante das velhas teorias do direito nacional e constitucional: exercício

de soberania, território, língua, moeda tornam-se elementos móveis e transitivos. Até

mesmo a distinção clássica entre Primeiro, Segundo129 e Terceiro Mundo precisa ser

revista em sua hierarquia. Não há dúvida que essa divisão se torna cada vez menos

verdadeira de acordo com a as linhas tradicionais e limites geograficamente

estabelecidos. “No Terceiro Mundo vemos crescer arranha-céus e emergir pontos de

nova capacidade de governo e de poderes cada vez mais ligados aos do Primeiro

Mundo. Miséria e riqueza extremas se tocam de acordo com geografias completamente

novas” (Negri, 2003b, p.15). As divisões geográficas se tornam cada vez mais

imateriais. As fronteiras, bem como os nexos hierárquicos se tornam funcionais e em

continuação.

A variante metodológica de Império (...) consiste, pois, em


considerar o processo de globalização não em sua representação
final, mas em suas dinâmicas. Dinâmicas essencialmente
determinadas pelos conflitos no desenvolvimento capitalista
(idem, 2003b, p.18).

128
“Império e direito internacional negam-se mutuamente. Essa era a constatação da qual havíamos
partido. Esta é uma condição irreversível” (Negri, 2003a, p.40).
129
O fim do Segundo Mundo é um elemento importante para entender a constituição do Império. O fim
do mundo do socialismo real ou realizado representa uma passagem essencial da forma de produção. A
crise do sistema soviético relaciona-se à passagem do fordismo ao pós-fordismo. As novas formas de
produção, a passagem ao trabalho imaterial e o grau de liberdade que ele implica colocam em crise o
modelo soviético (Negri, 2003a).

190
A característica do pensamento operaísta130 determina a categorização do

Império como um produto das mudanças das relações de produção e também do

trabalho, os valores de fábrica e do trabalho produtivo são assumidos pelos operaístas

como condição fundamental que organiza e serve de base para a sustentação do modo

de acumulação capitalista. O Estado-nação interpreta os valores do desenvolvimento

capitalista – por isso a centralidade da classe operária; pois, é determinante aos partidos

e à ideologia vigente. Assim, a formação do Estado-nação está diretamente relacionada

à afirmação da classe operária como motor do desenvolvimento capitalista até o início

do século XX (Negri, 2003b).

Não é por acaso que o modelo de regulação que se firma é o


Keynesiano, isto é, um modelo que procura fixar e manter, de
forma contínua, um equilíbrio entre capacidades produtivas e
demanda efetiva por parte dos trabalhadores (Negri, 2003b,
p.64).

A centralidade dos Estados na manutenção de uma ordem mundial no

capitalismo global é a referência que temos para pensar o imperialismo. O pensamento

da corrente que defende a formação central dessa ordem imperialista se resume nas

palavras de Fiori (p.57/58, 2004): “O que existe são Estados que, em determinados

momentos da história assumem posições mais ou menos favoráveis a paz e a

convergência das riquezas nacionais. [Deve-se] estar atento para as mudanças de

130
O operaísmo possui uma seqüência de trabalhos teóricos intimamente ligados ao neomarxismo italiano
da década de 50 a 1970. Não se limita a uma escola de pensamento, uma vez que contou com um
importante envolvimento social e político dos operaístas nas décadas de 60 e 70 na Itália. Após mais de
10 anos de contribuições teóricas e de pesquisas diretamente envolvidas com a construção das instâncias
organizacionais dos novos sujeitos operários massificados pelo taylorismo, os militantes intelectuais
operaístas se dividiram ao final da década de 70 quanto à questão da “nova organização” de classe. Um
grupo, o qual fazia parte Mario Tronti, separou a “autonomia de classe” da “autonomia do político”. Na
sua visão as dinâmicas da composição de classe não coincidiriam com as do político. O outro grupo, o
qual fazia parte Antonio Negri, recusava a volta das problemáticas da representação e apontava as
transformações da própria composição de classe, definindo formas de organização de classe não-
representativas. O primeiro grupo compôs o Partido Comunista Italiano e construiu o operaísmo do
sindicato; o segundo definiu ao longo da década de 70 uma experiência político-organizacional
denominada por autonomia operária (Cocco in Lazzarato & Negri, 2001).

191
comportamento de um mesmo Estado, dependendo do momento e da posição que

estiver ocupando dentro da hierarquia de poder e riquezas internacionais”.

Fiori discorda do pensamento que aponta o desenraizamento do Estado e da

formação de uma soberania imperial global e segue: “todas as previsões liberais ou

marxistas, do fim dos Estados ou das economias nacionais, ou mesmo da concepção de

algum tipo de formação cosmopolita, são utopias, com toda dignidade das utopias que

partem de argumentos éticos e expectativas generosas...” (idem). De forma a

complementar a análise, o pensamento de Negri reforça que a era da globalização não

trouxe o fim do Estado-nação, mas propõe o conceito de Império para redefinir o

ordenamento global temporário — uma forma de soberania ilimitada que não conhece

fronteiras, ou conhece fronteiras móveis e flexíveis somente.

Entre os pensadores que compactuam com o pensamento de Fiori, a

formação de um Império é considerada impossível. Para esses, o fenômeno atual é a

projeção imperialista do poder de um estado nacional. Fiori (2004) diz que “Hardt &

Negri incorrem no mesmo erro de vários outros marxistas que não conseguem entender

que a globalização do capitalismo não foi uma obra do capital em geral; foi obra de

Estados e economias nacionais que tentaram impor ao resto dos estados e economias

nacionais, a sua moeda, a sua ‘dívida pública’ e o seu sistema de ‘tributação’ como

lastro de um sistema monetário internacional transformado no espaço privilegiado de

expansão de capitalismo financeiro nacional” (idem, 2004, p.101/102).

Um antigo dilema enfrentado pelos herdeiros do desenvolvimentismo é a

hierarquização do sistema político mundial, dada a globalização do sistema/modelo

estatal. Nesta análise, existe uma hierarquização dos Estados entre aqueles que foram

colônias e aqueles que foram grandes potências, principalmente européias. A

determinação acontece à medida que uma potência mundial sempre será um país

voltado ao crescimento e à exploração dos países com economias menos expressivas.

192
Essa expansão direciona a geopolítica e a geoeconomia mundial de todo o sistema,

mantendo uma história de dominação (Fiori, 2004).

O Império nos leva a enfatizar que em dados momentos os Estados-nação

não deixam de ser poderosos, mas sim que seus poderes e funções estão sendo

transformados num novo arcabouço global. Nos debates sobre globalização, a maioria

dos autores parte do princípio que se trata de uma alternativa exclusiva: ou o Estado-

nação continua a ser importante ou se produziu uma globalização das formas de

autoridade. Mas o que o Império demonstra é que ambas as coisas são verdadeiras: os

Estados-nação continuam sendo importantes (alguns mais que os outros, naturalmente),

mas ainda assim foram radicalmente transformados no contexto global.

Os conceitos de desenvolvimento desnivelado e trocas


desiguais, cavalos-de-batalha de economistas terceiro-mundistas
na década de 1960, tinham o objetivo de destacar a radical
diferença de níveis de exploração entre países do primeiro e do
terceiro mundos. Esses conceitos ajudavam a teimosa
persistência de divisões e hierarquias globais – por que os países
ricos continuavam ricos e os países pobres continuavam pobres.
O desenvolvimento desnivelado diz respeito à maneira como os
países privilegiados do mundo criam um regime cada vez mais
avançado de produtividade e lucro com apoio dos países
subordinados e a sua custa. A desigualdade de trocas diz
respeito ao fato de que a produção dos países pobres é
constantemente depreciada no mercado mundial, de tal maneira
que na realidade os países pobres subsidiam os ricos, e não o
contrário. Além disso, considerava-se que esses sistemas de
desigualdade representavam uma contradição no interior do
desenvolvimento capitalista que, sob certas condições políticas,
poderia configurar uma ameaça de por abaixo todo o arcabouço
do domínio capitalista. A globalização capitalista, no entanto,
conseguiu resolver esse problema da pior maneira possível – não
tornando igualitárias as relações trabalhistas nos diferentes
países através do mundo, e sim generalizando os mecanismos
perversos de desequilíbrio e desigualdade (Hardt & Negri, 2005,
p.214).

O indicador da mudança qualitativa radical é a constatação em termos de

soberania. Para Hardt & Negri (2001), os Estados-nação não podem mais pretender o

193
papel soberano de autoridade suprema, como na era moderna. Agora o Império se põe

acima dos Estados-nação como autoridade suprema e, assim, de fato, constitui uma

nova forma de soberania. O que se aponta é que esta é uma mudança histórica relevante

somente do ponto de vista dos Estados-nação dominantes, pois as nações subordinadas

nunca foram realmente soberanas131. A entrada na modernidade, para muitos Estados-

nação foi o começo de relações de subordinação e política que acabava com qualquer

soberania que a nação pudesse pretender.

Essa mudança na forma de soberania – da soberania moderna


localizada no Estado-nação à atual soberania imperial pós-
moderna -, no entanto, tem efeito sobre todos nós. Muito embora
a soberania nacional não tenha sido nunca uma realidade, a
passagem ao Império transformou nossos modos de pensar e o
âmbito de nossas possibilidades políticas. Na ótica do Império,
precisamos reconsiderar e repensar todos os conceitos-chave da
filosofia e da política (Negri, 2005, p.118).

No Estado moderno o nacionalismo das lutas anticolonialistas e

atiimperialistas funciona, efetivamente, em marcha ré, dizem Hardt e Negri (2001). O

fato é que os países libertos vêem-se cada vez mais subordinados à ordem econômica

internacional. A problemática conceitual situa-se na própria definição de soberania

nacional como libertadora - o que é ambíguo e contraditório. Isso porque, enquanto o

nacionalismo busca a libertação de uma dominação estrangeira, erguem-se estruturas

domésticas de dominação igualmente severas. A soberania dos Estados-nação, como

apregoa a ONU, não pode ser vista como uma concertação de países igualmente

autônomos. “O Estado-nação pós-colonial funciona como elemento essencial e

subordinado do mercado capitalista” (2001, p.150).

131
“Entre 1945 e 1990, foram criados cerca de 100 novos Estados e, portanto, a maior parte dos Estados
que compõem hoje o sistema estatal mundial foi criada depois da II Guerra Mundial e foram quase todas
colônias das grandes potências européias” (Fiori, 2004, p.40).

194
Esse movimento de extinção do colonialismo leva Hardt e Negri (2001) a

afirmar que o “Estado é a dádiva envenenada da libertação nacional”. O que torna a

explicação necessária para que a subordinação do Estado-nação pós-colonial seja a

ordem global do capital. Essa hierarquia que subordina Estados-nação formalmente

soberanos no Império, que difere da forma de subordinação do período colonialista e

imperialista de dominação internacional.

Saskia Sassen denomina este processo por “desnacionalização”. Ou seja, os

Estados continuam a desempenhar um papel crucial na determinação e na manutenção

da ordem jurídica e econômica, mas suas ações se orientam cada vez mais para a

emergente estrutura do poder global, e não para os interesses nacionais. Nessa

perspectiva não existe uma contradição entre Estado-nação e globalização. “Os Estados

continuam a desempenhar no interregno muitas de suas funções tradicionais, mas são

transformados pelo poder global emergente que tendem cada vez mais a servir” (Hardt

& Negri, 2005, p.213).

Isso significa dizer que reconhecemos que as transformações da soberania

impostas pela globalização não levaram apenas à diminuição de poder dos Estados-

nação, mas a uma forma global de soberania que tornou-se mais complexa. Em um

breve quadro comparativo com o keynesianismo, observa-se que o Estado-nação

sustentava a estabilidade e o crescimento econômico proporcionando mecanismos para

mediar os conflitos com a classe operária e com isso expandiam a demanda social de

produção. “As formas de soberania que conhecemos hoje, pelo contrário, encontram-se

completamente do lado do capital, sem quaisquer mecanismos de mediação para

negociar sua relação conflituosa com o trabalho” (Hardt & Negri, 2005, p.231).

Após o “11 de Setembro” Hardt & Negri (2005) chegam a afirmar que o

Estado forte está de volta, não o Estado-nação, mas o Estado em seu sentido lato; pois a

crise vivida serviu para lembrar o quanto o capital precisa de uma autoridade soberana

195
atrás de si, algo que sempre vem à tona quando sérias rachaduras aparecem na ordem e

na hierarquia do mercado. O Estado forte, marcado pelo poder militar, pode ser

representado quando eventualmente o capital precisa convocar um exército para forçar a

abertura de novos mercados ou estabilizar mercados já existentes. O que traz a antiga

evidência de um novo êxito capitalista: uma das principais tarefas do Estado forte é a

proteção da propriedade privada. Algo que se explica nas palavras de Fiori:

O que é mais curioso e fascinante no desenvolvimento desta


forma de império americano é que ele é um império só de bases
militares, não de territórios, e estas bases atualmente cercam a
terra de tal maneira que ficou possível o velho sonho secular de
uma dominação global (Fiori, 2004, p.42).

Por outro lado, o “11 de Setembro132” também demonstrou que os Estados

Unidos também fazem parte do mundo, ou seja, não é uma fonte única e autônoma de

soberania estatal. Hoje, este país, representa a integração a um sistema global de

relações que definem a forma atual de comando – a soberania imperial. “No mundo

atual nenhum Estado-nação, mesmo o mais poderoso, é soberano. Tampouco os

supostos inimigos são eles próprios Estados-nação (...) Hoje, a imagem do inimigo

soberano entendido como Estado-nação é mera ilusão, talvez embasado em uma

nostalgia de um tempo que já passou” (Negri, 2003b, p.78/79).

O imperialismo, no entanto, nada mais representava que parte de uma

política em crise do capitalismo fabril, a qual dominar outras “nações” era necessário

para que se criasse um público consumidor dos produtos de um capitalismo

manufatureiro. O capitalismo fabril produzia suas mercadorias em proporções muito

maiores no século XX, de tal forma que não gerou nele mesmo o público que

consumisse seus produtos. A massificação do trabalho em fábricas, os altos salários

132
Após o “11 de Setembro” o país que é a maior potência mundial declarou guerra a um indivíduo. O
exemplo trazido por Negri é interessante para entender essa transição e crise de soberania.

196
baseados em participações nos lucros e o domínio do Estado sob a organização do

movimento sindical gerava então uma política de controle da crise.

197
INTERVALO

O Estado antes da Democracia:


do Welfare State periférico às relações de interdependência
global

198
O Estado antes da Democracia: do Welfare periférico às relações de
interdependência global133

No segundo pós-guerra, os efeitos da grande depressão dos anos 30

propagaram-se e são interpretados pelos movimentos acelerados de homogeneização

nacional. No Brasil, essa trajetória se inicia no governo Vargas e tem continuidade com

os governos militares. A partir de então se abriu o caminho para uma prática de

desenvolvimento que chamou o processo de industrialização por “substituição de

importações”. A trajetória periférica do fordismo nos países pobres, associado às

tentativas dos trabalhos da Cepal em transformar o “desenvolvimento nacional” dos

países da América Latina em um “nacional-desenvolvimentismo” da era militar,

apresentou-se como ocasião para enfrentar a queda da capacidade de importar (Negri &

Cocco, 2005).

Refazendo hoje esta passagem histórica fundamental, não


podemos deixar de reconhecer que se tratou de uma reação
totalmente interna às elites capitalistas e oligárquicas locais, de
um processo que finalmente, aumentou na realidade as
características de dependência em relação aos países centrais e
que representou um incremento da sujeição das classes
subalternas, para não falar do desdém pela democracia que
atravessou toda a experiência (idem, 2005, p.30/31).

A radicalização do nacionalismo desenvolvimentista fez então surgir um

efeito paradoxal: nos anos 70, ao invés de fazer decolar as economias latino-americanas

como economias nacionais, fez explodir a dívida externa, a inflação que assolou toda a

década de 80 e a desigualdade social colocando os países em ditames “liberais” da

globalização de acordo com as previsões do Consenso de Washington. Os resquícios da

“ilusão cepalina” se arrastam até a década de 90. Uma ilusão que se refere ao “milagre”

133
O texto foi produzido a partir da leitura de Antonio Negri e Giuseppe Cocco em 2005: “Glob(AL):
biopoder e luta em uma América Latina globalizada”.

199
do crescimento puxado pela industrialização endógena e financiado pelo endividamento

através do financiamento de um capital exógeno (Negri & Cocco, 2005, p.32).

A substituição de importação permitiu ao Brasil construir o


maior parque industrial da América Latina, mas nunca chegou a
constituir um verdadeiro mercado interno. A distribuição de
renda definiu-se assim como o verdadeiro enigma do
desenvolvimentismo. O longo período de alta inflação foi o
maior sintoma desse impasse. A alta inflação anunciou e
articulou, por um lado, as condições para a crise da dívida
externa e, por outro, o ciclo perverso do narcotráfico e da
difusão social da violência como eixo importante da reprodução
do domínio (Cocco, 2000, p.70).

Nos estudos de Negri e Cocco (2005) existe uma demonstração que “o

desenvolvimento é tão somente crescimento econômico, novo ordenamento para a

produção da riqueza das classes dominantes e para a intensificação da exploração”

(Negri & Cocco, 2005, p.48). Para os autores, neste sentido, existe uma relação direta

entre o desenvolvimentismo e o neoliberalismo. Ambos, independentemente de seus

meios, chegaram aos mesmos fins: a exclusão e a reprodução da miséria.

O velho desenvolvimentismo era, na realidade, uma teoria do


crescimento econômico, estava prisioneiro em uma gaiola de
dimensões economicistas e de medidas quantitativas totalmente
insuperáveis, e mesmo quando conseguia ativar forças sociais
novas, o fazia para fechá-las no esquema de disciplina industrial.
(Negri & Cocco, 2005, p.36).

Sob o ponto de vista do trabalho, por exemplo, para a teoria “cepalina”, isto

é, para os teóricos do desenvolvimento, “um dos problemas estruturais do

subdesenvolvimento é o excesso estrutural de mão-de-obra” (Negri & Cocco, 2005,

p.66). Algo que na análise dos autores pode ser considerado como um efeito da

incapacidade política de mobilizar o conjunto das forças produtivas nas economias

periféricas. Até mesmo o deslocamento do trabalhador do campo, por meio do

200
fenômeno conhecido como êxodo rural, para os desenvolvimentistas também explicava

o excesso da mão-de-obra que “pressionou para baixo” o salário dos trabalhadores. A

alternativa encontrada para conter o êxodo rural foi então mandar estes trabalhadores

para verdadeiros campos de morte da região amazônica. E como era necessário

“nacionalizar” o trabalho, iniciava-se a limitação às imigrações estrangeiras (idem,

2005, p.68).

Quando o Estado desenvolvimentista não conseguiu administrar o

crescimento e mostrou-se inadequado às metamorfoses do trabalho fordista, a

complexidade das forças produtivas que surgiam e o determinavam acabou por decretar

a crise do próprio desenvolvimentismo. Dentro dos limites das formas de

“desenvolvimento” vividas pela América Latina e, sobretudo diante da sua crise, o

neoliberalismo se constituiu como uma falsa resposta no período de abertura

democrática. Surgiu como um mecanismo de universalização dos direitos, quando

representava que todos os ideais de cidadania poderiam ser reduzidos ao poder de

compra, ao “ser consumidor”. Ambos, tanto o desenvolvimentismo quanto o

neoliberalismo reduziram as lutas sociais à passividade.

Ainda hoje, pensa-se o desenvolvimento por toda a economia periférica da

América Latina como um desenvolvimento aprisionado na economia industrial fordista

e fonte maior do crescimento econômico. Um crescimento aprisionado em velhas idéias

economicistas de um capitalismo que não existe mais: fechado num esquema disciplinar

industrial (idem, 2005). Por isso é recorrente o discurso da “economia que não cresce”,

não porque o poder econômico dos Estados não se amplia, mas porque os índices,

escalas e parâmetros devem ser revistos. “Na realidade, a produtividade não cresce

porque seu indicador não muda. Ou seja, medida pelos tradicionais padrões de cunho

industrial, a produtividade fica estagnada (...) a definição é sempre a mesma, isto é a

quantidade de produto por hora de trabalho” (Cocco, 2000, p.35).

201
O modelo nacional-desenvolvimentista dos países do Sul, através do

discurso feito pelos “cepalinos”, defendia que a cultura e os valores na “nação” fraca 134

diante das “nações” fortes e do capital apátrida e cosmopolita seriam capazes de gerar

desenvolvimento135 – algo que Negri & Cocco (2005) apontam como uma “retomada

das formas oitocentistas do mais puro nacionalismo europeu” (idem, 2005, p.45/46).

Na América Latina, nunca o desenvolvimento se fez acompanhar pela

criação de democracia e justiça social e, mesmo assim, o subdesenvolvimento é

atribuído à falta de ambos, como parte de um Estado-nação que não foi construído

totalmente, “bloqueado” em seu processo de criação. Em boa parte isso se explica

porque os sujeitos políticos, ligado às lutas sociais, não estiveram dentro das políticas de

desenvolvimento da região. No Brasil, por exemplo, a participação popular no Estado

aos movimentos e dos partidos populares, após o período de democratização do país.

A construção do Estado nos países ditos periféricos teve sua formação em

um modelo híbrido entre a autoridade política e/ou soberania colonial, baseado em um

poder patriarcal escravagista e formas desenvolvimentistas de um poder tecnocrático-

corporativo. É interessante observar como esse modelo se autodenominava “moderno” e

“nacional”. No Brasil, esse hibridismo originou um poder oligárquico composto por

uma elite fundiária e tecnocrata e, por outro lado, estratificações sócio-econômicas neo-

134
Para reforçar alguns conceitos acrescentamos as definições feitas por Negri & Cocco (2005): “quando
dizemos Estado, nos referimos àquela forma de soberania constituída na modernidade européia a partir
do século XVII, sobre a qual refletimos ainda hoje para estabelecer sua força ou debilidade, sempre
relativas à evolução de sua estrutura autoritária, que vai do domínio ao controle, do imperialismo à
inserção na ordem imperial. Quando dizemos forma-Estado, estamos nos referindo à forma com que o
capital dominou as relações, sofrendo no interior dessa relação, as resistências e as pressões que as classes
subalternas determinavam.[...] Quando falamos de Estado nacional estamos nos referindo a forma típica
a qual a modernidade européia e norte-americana (além da exceção japonesa) desenvolveu o domínio
capitalista sobre as relações sociais dentro de um determinado território. À tudo isso contrapõe-se as
formas de Estado fraco, ou seja, as formas-Estado que nunca conheceram a autonomia, a não ser
subordinada às relações imperialistas, ou interimperialistas: trata-se de formas-Estado cuja consistência
jamais atingiu a autonomia e, que, ao contrário, se desenvovleu sobre estruturas evolutivas de biopoder,
mas sempre na tradição colonial e/ou racista. O Estado desenvolvimentista é uma subcategoria do Estado
fraco” (2005, p.115/116).
135
“Na realidade, o Estado-nação “fraco” não foi de modo algum um motor de desenvolvimento social
(eventualmente de crescimento econômico...), mas antes o principal obstáculo ao desenvolvimento”
(Negri & Cocco, 2005, p.105).

202
escravagistas. Desta forma, o racismo e as migrações internas atuaram densamente na

formação das dinâmicas sociais, econômicas e políticas da periferia (idem, 2005).

É inútil buscar o Estado moderno na América Latina, pois o Estado “fraco”

nunca se transformou em uma realidade efetiva, sempre foi um instrumento para as

elites utilizarem como forma de exploração, através de práticas de racismo e exclusão

social (idem, 2005). Os países “em desenvolvimento” jamais conheceram plenamente

um Estado de proteção social. O fato da América Latina ter sua história atrelada ao

desconhecimento do Estado moderno fez com que o protótipo europeu de modernidade

estivesse distante de sua realidade. No desenvolvimentismo experimentado pelas

economias do Sul, “o desenvolvimento não é duradouro, pois falta conflito de classe e,

consequentemente, de democracia (e não o inverso)” (Negri & Cocco, 2005, p.117). Por

exemplo:

(...) a super e a hiperinflação são produtos de uma distribuição da


riqueza que não acontece: a distribuição é esvaziada em sua
dinâmica interna pela inflação e agravada pelos poucos
elementos de apropriação social da riqueza, que são de tipo
corporativo (idem, 2005, 117).

Outro exemplo que deve ser lembrado é a forma de instalação do modelo de

Welfare State nos países do Sul – algo que veio de cima sob a forma de “integração

social” baseado em uma soberania sempre aparente do Estado-nação desenvolvimentista

em termos repressivos e excludentes de qualquer manifestação que venha dos

movimentos sociais (idem, 2005). Estes movimentos mostraram-se como resposta ao

excessivo poder alcançado pela luta dos trabalhadores no período de recessão da

ditadura militar. A pressão sofrida para obter aumento de salários e aumento dos gastos

sociais no capitalismo do terceiro mundo, fez com que o Estado forte (o Estado

autoritário) retomasse seus mecanismos de soberania e tornasse aguda as desigualdades

203
sociais; abaixando os gastos com seu “Estado de bem estar”, reduzindo os impostos

sobre rendimentos altos e caindo em enormes taxas de desemprego na economia formal.

O período de transição democrática, que se segue nos anos 80, é


fortemente hipotecado por esta herança: estes serão os anos das
dinâmicas loucas da super e da hiper inflação e, portanto, da
crise definitiva do desenvolvimentismo. Nos anos 90, tem lugar
a transição de uma ditadura para outra: de uma ditadura
oligárquica, tecnocrática e corporativa à ditadura do mercado,
com a supervalorização do câmbio e a inserção brutal da
América Latina nos fluxos da globalização segundo as receitas
do Consenso de Washington (Negri & Cocco, 2005, p.33).

No contexto atual, os Estados se adaptam ou mesmo se antecipam às

necessidades do capital, por medo de se verem subordinados ao sistema econômico

global. Essa competição entre os Estados-nação, gera uma concorrência para ver quem

entra em colapso primeiro, visto que os interesses do trabalho e da sociedade como um

todo ficam atrás dos interesses do capital.

Ao longo dos anos 80 (primeira onda da ofensiva neoliberal nos países

centrais) e dos anos 90 (período neoliberal no Brasil) a oposição de esquerda (incluindo

as organizações sindicais) se juntava paradoxalmente e mecanicamente, às tradicionais

defesas do Estado para, no fundo, defender o futuro do trabalho em função de uma

impossível sobrevivência do emprego industrial e da relação salarial. No entanto, o

pragmatismo neoliberal conquistava uma vantagem considerável apreendendo, em

primeiro lugar, que a crise do emprego apenas constituía o fenômeno mais superficial

da crise irreversível da própria relação salarial e, em segundo lugar, que esta

determinava a crise do Estado e não vice-versa (Cocco, 2002, p.37).

204
Os programas de privatização136 das empresas nacionais foram uma realidade

em toda a América Latina, bem como o crescimento de relações parasitárias do

capitalismo financeiro foi também uma parte do cenário mundial. A hegemonia

neoliberal se expressava também entre os partidos políticos, com difícil rotulação entre

um partido de esquerda, centro ou direita – todos com atuações muito semelhantes do

ponto de vista das ações nos governos.

Na América Latina, por exemplo, a redistribuição de bens públicos

aconteceu em prol dos mais ricos; mas mesmo assim ainda foi chamada de

“neoliberalismo progressista”, no qual as contradições se expressaram através da

ditadura chilena (que fez o país crescer) ou mesmo situações como a Bolívia (onde os

índices inflacionários abaixaram). Entretanto, o idêntico resultado aconteceu na difusão

das desigualdades sociais e na despotencialização política, criando a idéia que “não há

saídas” no capitalismo. Foi a vitória ideológica do neoliberalismo durante a década de

80. “Na teoria liberal e na prática neoliberal, gostaríamos de reafirmar, busca-se, através

da imagem de um sujeito fraco como personagem social genérico, o distanciamento ou

a dispersão em vez de envolvimento e mediação do conflito social” (Negri & Hardt,

2004, p.85).

No liberalismo atual o poder do Estado não se confronta com os sujeitos

sociais, ou seja, não assume o papel de enfrentar, mediar ou organizar as forças em

conflito dentro do regime da ordem estatal. O Estado, agora enxuto, evita esse ônus. A

vocação em evitar as contradições explica a política “liberal”: a concepção enxuta de

Estado se transforma em uma concepção enxuta de política. “A política, em outras

palavras, não pressupõe a mediação dos conflitos sociais e das diferenças, mas consiste

simplesmente em evitá-los” (idem, 2004, p.78).

136
“O espaço público tem sido a tal ponto privatizado que já não faz mas sentido entender a organização
social em termos de uma dialética entre os espaços públicos e privados, entre o dentro e o fora” (Negri &
Hardt, 2001, p.208).

205
O quebra-cabeça montado na América Latina iniciava a demonstração de

suas pistas com a globalização das oligarquias, do capital, da classe operária fordista e

das novas formas difusas de marginalidade social. O Estado neoliberal teve a missão,

como todas as formas de Estado capitalista contemporâneo, de regular o

desenvolvimento do capitalismo de acordo com os interesses do capital global (Negri &

Cocco, 2005). “Neoliberalismo é em geral o nome dado a esta forma de política de

Estado (...) que mais facilita os movimentos globais e o lucro do capital” (Hardt &

Negri, 2005, p.353/354).

Se o projeto neoliberal está em crise, as políticas neoliberais


permanecem e atravessam o tempo dos ciclos políticos e espaços
das diferentes coligações governamentais e/ou das diferentes
trajetórias nacionais [...] Nossa hipótese é que por trás da velha
retórica liberal (...) o 'neo' liberalismo tem objetivos e urgências
de tipo novo, profundamente fincadas na materialidade do novo
regime de acumulação. Em particular, o neoliberalismo
constitui-se numa resposta pertinente à crise do Estado (Cocco
in Pacheco & Vaz, 2002, p.36).

A abertura aos fluxos da globalização nos comprovava que a “dependência”

que sempre estivemos submetidos tinha se transfigurado e se ampliado entre os próprios

países da periferia, transformando-se numa “interdependência”. O produto das lutas

sociais de resistência foi a criação de alternativas que gerassem relações de dependência

– não somente do “centro para a periferia”, mas também entre a “periferia e a periferia”.

Este era o diferencial do capitalismo global: suas contradições. Ao mesmo tempo em

que agudiza os problemas sociais, a articulação de interdependência entre o Sul-Sul

aponta para “uma brecha potencial no âmbito das relações de força 'Norte-Sul'

tradicionais” (Negri & Cocco, 2005, p.34). Muitos apregoam que a crise vivenciada na

América Latina representa o avanço das políticas neoliberais e a redução da intervenção

econômica e social do Estado-nação. Seria o processo de globalização corroendo a

soberania. Algo que podemos apontar como um equívoco analítico:

206
(...) é a transformação da dependência em interdependência que
coloca em evidência a nova situação, que mostra –
eventualmente – suas possibilidades de deslocamento e que
identifica (de forma não secundária) a nova figura dos conflitos
com a nova qualidade dos temas. O mercado mundial não tem
mais um lado de fora e os conflitos o atravessam em todos os
seus níveis: entre o centro e a periferia, é certo, mas também no
centro e na periferia (idem, 2005, p.34).

Com uma ação política de antagonismo com o Império137, só é possível

discutir a “dependência” dos pobres e sonhar com a “independência”, afirmando uma

política interna de “interdependência” global. A miopia dos teóricos do

desenvolvimentismo apontava a dependência periférica como uma inquestionável

sujeição ao poder de penetração imperialista. Mas, ao contrário, no cenário atual da

sociedade pós-industrial, percebemos que somente quando nos abrimos para o centro e

ativamos as relações internacionais como relações interdependentes que o

desenvolvimento pode ser imaginado, construído e administrado (idem, 2005).

Desta forma, Negri & Cocco (2005, p.50) afirmam que “o

desenvolvimentismo faliu três vezes na América Latina: não conseguiu administrar o

crescimento; foi incapaz de relacionar-se com os movimentos sociais de emancipação, e

atualmente considera o mundo global como inimigo”. Os interesses interclassistas

fomentaram como único sujeito o Estado e não os movimentos que se desenvolveram de

forma autônoma, não viram a recomposição política da classe operária e não valorizou

as subjetividades produzidas em busca de liberdade, mas reforçou o Estado forte

137
Do ponto de vista do Império, Hardt e Negri deixam uma questão para ainda ser pensada: “Na era da
globalização, torna-se cada vez mais claro que passou o momento histórico do liberalismo. O léxico
político do liberalismo moderno é um cadáver frio e sem sangue” (2005, p.345). Em tempos de Império, o
liberalismo não foi capaz de representar as minorias (as mulheres, os pobres, as minorias raciais...), nem
sequer representar adequadamente as elites no capitalismo global. Isto é, à medida que os mercados vão
se tornando cada vez mais globais e as políticas neoliberais determinam o recuo da regulação política, o
poder dos mercados e das finanças tornam-se ainda mais fortes (idem, 2005).

207
disciplinador através do poder de controle138. O horizonte do desenvolvimentismo foi

unicamente o poder das relações de capital (idem, 2005).

(...) desenvolvimento hoje só pode significar uma relação direta


entre potencialização das condições sociais da produção
(educação universal, pesquisa, livre circulação da força de
trabalho, emancipação das mulheres, liberação da expressão
cultural e política indígena, desarticulação das barreiras raciais
etc.), mobilização democrática dos trabalhadores a partir das
bases e abertura para dimensões sempre mais amplas de
cooperação interdependente (idem, 2005, p.36).

Uma estratégia a esta condição seria afirmar o que Negri & Cocco (2005)

denominam em sua obra por um “novo pacto”, algo que se definiria como a organização

dos movimentos para mobilizar a produção: o direito público da produção intelectual, as

várias formas de auto produção, a garantia à renda e à educação, as ações afirmativas

contra o racismo, o sexismo; a liberdade de migrar. Enfim, um federalismo das

instâncias sociais, para além do Estado.

138
Muito mais do que empresas de transportes, ferrovias ou companhias elétricas foram privatizadas. As
esferas mais comuns da vida também foram: a água, a terra, as rodovias e ferrovias, o mar e até produtos
naturais através do regime de propriedade (“patentes”) sobre as descobertas da natureza, como por
exemplo a mudança genética de sementes (Hardt & Negri, 2005).

208
CAPÍTULO IV

SAÚDE COLETIVA:
DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO?

209
4.1 - Matizes teóricas da Saúde Coletiva: a medicina social

Dos estudos de Foucault139 nasceu o argumento que a Medicina Social era a

medicina da modernidade. No final do século XVIII a medicina incorporou a prática

social ao aprisionar as dinâmicas sobre o corpo como uma realidade biopolítica. Ao

socializar as tecnologias sobre o corpo, a medicina tornou-se social, coletiva e não

individualista. Exatamente o contrário do que se afirma na maior parte das correntes de

pensamento: a medicina não se tornou individualista e privada na modernidade, mas se

socializou como estratégia biopolítica. No discurso foucaultiano (2000, p.80), a

medicina tornou-se social em três momentos que pretendemos apresentar: a) a medicina

de Estado, b) a medicina urbana e, por último, c) a medicina da força de trabalho.

A medicina de Estado se desenvolveu sobretudo na Alemanha no começo do

século XVIII, local onde se deu a formação da primeira “ciência de Estado”, o que

significou uma apropriação inicial da medicina sobre os aparelhos políticos. Na

Alemanha, a formação de um Estado unitário foi considerado tardio, visto que se

desenvolveu somente no início do século XIX. Antes disso, a Alemanha era uma

justaposição de quase-estados, pequenas unidades, pseudo-estados (Foucault, 2000,

p.81). Essa reunião justaposta de pequenos territórios organizados como Estado deu

início ao desenvolvimento de conhecimentos sobre o funcionamento de uma política de

Estado. Era o unitário que estava em questão. Vários métodos e várias tecnologias

foram criados para dotar o território alemão de um único exército, uma única polícia,

uma única economia para operar como todos os grandes Estados da época, como a

França ou a Inglaterra.

139
Foucault, M. Microfísica do Poder. 15ª Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000.

210
A saúde era uma das ramificações necessárias para o controle das

populações. A formação do Estado alemão, dominado pelo contexto do mercantilismo

necessitava do controle de seus fluxos monetários e também dos fluxos de suas

mercadorias atrelados às principais atividades produtivas da população (Foucault, 2000,

82). A saúde, desta forma, cumpria o papel subsidiador à formação de uma consciência

unitária, promovendo o facilitando o estabelecimento de fluxos comerciais através do

cálculo da força ativa de suas populações, produzindo estatísticas para o controle desde

o nascimento até a mortalidade. Pode-se dizer que o nascimento da epidemiologia como

ciência, nesta época, promoveu efetivamente uma melhoria na saúde da população

alemã, por meio da identificação das doenças. Porém, pela primeira vez ouvia-se falar

sobre a noção de política médica de Estado, baseada em atividades tradicionais de

polícia adaptadas para: observação dos perfis de nascimento e morte das populações, a

administração das atividades médicas e a criação de um quadro de funcionários de

Estado (normalização das práticas médicas). Em uma das mais caricatas construções

hobesianas, o Estado tornou-se o responsável pela administração social da saúde, e o

corpo dos indivíduos constituia-se como o próprio corpo do Estado.

O segundo direcionamento da medicina social foi o reconhecimento da força

urbana. A medicina urbana surgiu na França ao final do século XVIII, quando a cidade

se tornou um importante lugar de mercado, de produção e de comércio. O tecido social

urbano já delineava um distanciamento territorial entre ricos e pobres no espaço das

cidades. As revoltas urbanas tinham um cenário composto por camponeses revoltosos

com sua situação de miséria e a obrigatoriedade para o pagamento de altos impostos

marcava o momento das grandes revoltas urbanas. A plebe já mostrava indícios de

formação de uma classe proletária. Era preciso “esquadrinhar o espaço urbano” para

deter a capacidade de organização dessa população (Foucault, 2000, p.86).

211
Surge o medo do espaço urbano, das casas amontoadas, das epidemias

vindas dos esgotos adquiridas nas cidades, dos imigrantes que chegavam para trabalhar

no comércio. A política da medicina urbana era o embrião do distrito sanitário, onde os

inspetores deviam percorrer as ruas em busca dos que saíam de casa adoecidos, ou

entravam nas residências com o poder de intervir sobre algum familiar doente. A

vigilância foi então criada para percorrer as ruas dos bairros e encontrar a doença que

vinha das cidades. Para cada visita domiciliar era necessário um relatório que

informasse tudo o que tinha sido observado. Depois disso, os registros eram unificados

em uma estrutura central de Estado, buscando uma interminável investigação sobre as

populações. Os espaços de isolamento surgem neste momento também como parte da

gestão das cidades: o leprosário, o manicômio... medicar era mandar para longe, fora

daquele território urbano.

O fim da marcante influência religiosa na cura de doenças distinguiu a

purificação das cidades. Não mais os espaços coletivos, mas o isolamento, o exílio, o

internamento. Isso determinou a chegada do modelo militarizado de saúde: o controle

da circulação e o ordenamento dos espaços por meio das segregações de um espaço

esquadrinhado (Foucault, 2000, 92). Tudo no meio urbano poderia provocar a doença,

pois é no urbano que se movimentam e circulam as populações. Daí a necessidade de

abertura das cidades através das ruas largas, das grandes praças para o ar livrar-se dos

miasmas. Na política de saúde previa-se a necessidade de saneamento a partir de uma

regulação hidráulica. Paris foi uma das cidades que primeiro teve um plano hidrográfico

como política de saúde em 1742 (Foucault, 2000).

Outro, e último, aspecto levantado por Foucault foi a intervenção sobre o

trabalho. A medicina dos pobres ou a medicina da força de trabalho surgiu na Inglaterra

também no século XVIII. Nas cidades, os pobres realizavam incumbências: pequenos

serviços de entrega, vendas, tarefas esporádicas, sazonais, instrumentalizavam a vida

212
urbana (2000, p.94). Por fazerem parte da paisagem das metrópoles não podiam ser

vistos como perigosos. Entretanto, a classe pobre descobriu-se com poder para revoltar-

se politicamente em movimentos populares contra o sistema que retirava dos mais

pobres a possibilidade de viver através de altíssimas taxas de impostos. A divisão do

espaço urbano passou a ser considerada necessária pela classe mais rica, pois a

mesclagem das populações nas cidades representava um perigo sanitário – fato que

originou as primeiras segmentações de bairros ricos e bairros pobres.

Assegurar a saúde das classes pobres representava resguardar a classe rica;

para isso surgiram os primeiros serviços gratuitos de saúde, os quais poderiam ser

utilizados somente pelos pobres sem proporcioná-los nenhuma despesa. Esses serviços

pressupunham: controle de vacinação, registro de epidemias e doenças através do

mapeamento de lugares insalubres considerados “foco de doenças”. O controle das

classes através das medidas sanitárias evidenciava uma medicina para os pobres, a

serviço de uma elite como acontecia na Inglaterra.

O pensamento de Foucault, estudado sob diversas formas pela Saúde

Pública, nos traz alguns aportes conceituais para iniciar um debate: em todos os

contextos históricos analisados pelo autor, algumas pistas ganham mais densidade que

outras. Uma delas é a ação do Estado. Para Foucault, o Estado sempre se manifesta de

forma a silenciar os movimentos, dando-lhes respostas que transformam os conflitos em

algo “pacificado” e, ao mesmo tempo, capturado.

Primeiro. Sob a ótica das lutas sociais, Foucault desenvolveu uma de suas

mais importantes análises: “O Estado moderno nasceu onde não havia potência política

nem desenvolvimento econômico e precisamente por essas razões negativas” (2000,

p.82). Ou seja, ao lançar mão do modelo de formação do Estado alemão, Foucault

demonstra que somente a condição de um “vazio de potência” permitiu a concepção do

Estado através da justaposição de pequenos territórios em prol de objetivos econômicos.

213
Esse território considerado “impotente” economicamente demandou a unificação estatal

através da criação de aparelhos como o exército ou a polícia para ter poder de

competição entre os mercados.

A criação do poder de polícia se deu justamente porque a burguesia nascente

“ofereceu seus homens, seus recursos, sua capacidade, etc... à organização do Estado”

(Foucault, 2000, p.82). Isto é, a formação do Estado alemão é considerada por Foucault

uma criação elitista e o Estado criado precisava dar respostas à esta classe que o

constituiu140.

Segundo. Também sob a ótica das lutas sociais, Foucault recupera a história

da formação produtiva dos territórios franceses. Algumas cidades já viviam o

surgimento da indústria como motor do desenvolvimento de seus territórios. A chegada

da indústria colocava em conflito antigas corporações de ofício e o proletariado

nascente. Foucault narra diversos conflitos entre ricos e pobres, proletários e artesãos,

plebe e burguês, camponeses paupérrimos no espaço urbano. “Daí a necessidade de um

poder político capaz de esquadrinhar esta população urbana” (Idem, 2000, 86). A

normatização da profissão médica dentro de um aparelho de Estado representava a

possibilidade de conter conflitos, silenciar demandas que chegavam ao âmbito do

Estado. Além disso, proporcionava um crescimento econômico baseado na perspectiva

do “território limpo”: limpo de conflitos sociais e doenças contagiosas através do

isolamento. Ou seja, o Estado fazia a função de excluir suas populações através de um

modelo de segregação sócio-espacial.

A possibilidade de deslocamento dos indivíduos entre cidades, bairros ou

ruas deveria ser controlada através do primeiro aparelho de “vigilância” criado por meio

140
A Europa vivenciou momentos como a histórica Comuna de Paris e também a Revolução Russa, que
influenciaram diretamente na concepção sobre a “medicina social” na Alemanha. O conceito ganhou
dimensões mais evolutivas a ponto de tornar-se amplamente politizado na metade do século XIX. “Vários
dos seus defensores lutaram pessoalmente nas barricadas de 1848 pela liberdade e pelo socialismo, como
Newman e Virchow, tendo as associações camponesas lutado por assistência médica e fornecimento
gratuito de medicamentos” (Arouca, 2003, p. 111).

214
da regulamentação do médico como polícia com autoridade para entrar nas casas e

coibir pessoas doentes nas ruas. “A medicina urbana tem um novo objeto: o controle da

circulação” (Foucault, 2000, p.90). O deslocamento, sob o ponto de vista das ações

estatais, representava um perigo para os territórios. A circulação deveria ser contida:

tanto de pessoas, como de alguns elementos (ar e água). O contágio começa a ser

percebido não somente pelo contato biológico, mas por relações sociais. São das

afetações produzidas pelas relações sociais que Foucault fala quando aponta a vigilância

sobre o deslocamento.

Os espaços comuns precisavam ser controlados, pois as ruas eram o lugar da

circulação. O mesmo não aconteceu com as propriedades privadas. A burguesia queria o

controle do espaço das cidades, desde que não comprometesse suas propriedades. É a

defesa da propriedade privada burguesa que entrava em debate. “Daí, portanto, o caráter

sagrado da propriedade privada e a inércia de todas as políticas médicas urbanas com

relação à propriedade privada” (Foucault, 2000, p.92). Mesmo que se justificasse uma

intervenção sobre os indivíduos nas ruas, dentro de locais privados isso não seria

possível. O Estado era representado pela medicina urbana à serviço de uma classe.

O movimento feito pelo autor, da Alemanha para a França, da medicina de

Estado para a medicina das cidades, apontava para um novo perfil produtivo dos

territórios; não mais centrado somente no poder unitário dos Estados, mas ramificado e

difuso em muitos territórios com um aspecto industrial nascente. Não era intenção de

Foucault descrever a história das lutas sociais na Europa do século XVIII e XIX, mas ao

mesmo tempo, torna-se necessário para o autor apontar que o surgimento do capitalismo

europeu aconteceu devido a uma forte intervenção de Estado que reprimisse os conflitos

sociais. O perfil econômico-produtivo se transformava na Europa e, junto com ele, os

dispositivos de controle deveriam acompanhar esse deslocamento da geração de riqueza

e, consequentemente, de uma nova classe trabalhadora que emergia. O controle das

215
cidades representava as microconflitualidades que surgiam, onde o macro poder do

Estado deveria ser tão difuso quanto as dinâmicas produtivas que se irradiavam.

Terceiro. O movimento feito por Foucault chega, por último, à Inglaterra.

Lá, diz o autor, “os pobres foram o último objeto da medicalização” (2000, p. 93).

Talvez possamos inferir que a percepção de Foucault sobre as lutas sociais apontam

para o indivíduo como potência criadora em seu percurso metodológico. Ao chegar a

classificar a medicina da força de trabalho como a “medicina dos pobres” Foucault traz

a noção de potência no indivíduo – um indivíduo que coloca no trabalho sua potência de

vida. “A população pobre tornou-se força política capaz de se revoltar ou pelo menos,

de participar de revoltas” (2000, p.94). O modelo de assistência apresentado por

Foucault era a forma exata do modelo de Estado de proteção social nascente na

Inglaterra: “um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo

asseguram a saúde das populações pobres e, por conseguinte, a proteção das classes

ricas” (idem, 2000, p.95).

O que apregoavam as medidas de proteção social do Estado inglês se não o

silenciamento dos conflitos da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que os faziam

retornar à produção mesmo estando doentes? O que seriam as medidas de assistência se

não uma forma de reprodução, (e não produção), do trabalho? A atuação do Estado para

a medicina da força de trabalho descrita por Foucault era também a reprodução de

corpos produtivos e saudáveis. Isto é, Foucault chega por último à medicina dos corpos

justamente porque neles estão a representação de potência. E sob os corpos está a

representação que o poder deveria gerir a vida, uma biopolítica.

Na Inglaterra do século XIX descrita por Foucault já existia um sistema de

saúde estatal organizado e a Lei dos Pobres é a unidade de análise escolhida

metodologicamente pelo autor para uma generalização. A partir dela Foucault afirma

que não mais existiam serviços autoritários de controle médico, mas sim um controle

216
médico-estatal da população (Foucault, 2000, p.96). Quando se institucionalizou uma

política de saúde não mais o médico se destinava ao pobre enquanto tal, e sim o poder

de Estado (transcendente), através das instituições e dos serviços (health service). “É

esta razão pela qual o controle médico inglês, garantido [pelo Estado] suscitou, desde

sua criação, uma série de reações violentas da população, de resistência popular, de

pequenas insurreições anti-médicas141 na Inglaterra da segunda metade do século XIX”

(Foucault, 2000, p.96). Ou seja, as reações da população contra as medidas tomadas

pela política de saúde não eram pelo seu desconhecimento sobre a medicina científica

trazida pela Saúde, nem mesmo pela aversão ao trabalho dos médicos que a

representavam, mas sim uma resistência ao excessivo poder que o Estado lançava sobre

elas através da Saúde. Esse movimento entre o poder e as lutas só se tornou claro

quando a medicina, através do Estado, adestra o corpo social; pobre e esvaziado de

poder econômico, mas repleto de poder político para rebelar-se.

O adestramento do corpo social, diferentemente da medicina de Estado

alemã ou da medicina urbana francesa, é baseado numa medicina que direciona suas

ações essencialmente para “o controle da saúde das classes mais pobres para torná-las

mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (idem, 2000, p.97). O

Plano Beveridge, citado por Foucault, foi a concretização assistencial da saúde

articulada entre os três modelos. As políticas de assistência, desde então, passaram a

reproduzir corpos aptos ao trabalho, fazendo crescer um setor produtivo necessário ao

capitalismo iniciado no século XX.


141
Algo que nos faz lembrar o clássico e pitoresco exemplo da “Revolta da Vacina”, em 1904, no Rio de
Janeiro. A população passou por uma série de “ordens de despejo” em suas casas, caracterizadas na época
como “cortiços”, pois o governo brasileiro tinha como meta “sanear” a cidade contra “a peste” criando
ruas largas, praças, avenidas e até prédios. As casas que não correspondiam a um padrão “saudável” eram
demolidas. A população miserável, primeira a ser despejada, chamou o movimento por “bota-abaixo”.
Iniciou-se uma coleta emergencial de lixos pelas cidades, aplicação de raticidas e substâncias contra os
mosquitos transmissores da febre amarela. O processo de reurbanização da república tinha como uma
última meta de seus planos a vacinação da população, que resistiu drasticamente contra a campanha
liderada pelo sanitarista Oswaldo Cruz (Fiocruz, 2007). A resistência não era contra o médico sanitarista,
nem mesmo era a representação de um desconhecimento ao saber científico; mas sim uma resistência ao
autoritarismo de Estado expresso através do poder médico de polícia.

217
A medicina social inglesa, esta é sua originalidade, permitiu a
realização de três sistemas médicos superpostos e coexistentes;
uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma
medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a
vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada que
beneficiava quem tinha meios para pagá-la (Foucault, 2000,
p.97).

A partir de então, este arquétipo somente complexificou-se em diversas

partes do mundo. O modelo de proteção social aprofundado pela Inglaterra se difundiu

entre vários países, incluindo os países pobres. Se substituíssemos a terminologia

“medicina” utilizada por Foucault, por “profissionais da saúde”, “equipe” ou

“trabalhadores da saúde” poderíamos talvez iniciar uma nova análise seguindo os passos

do autor. À medida que o trabalho tornou-se difuso, ramificado e invadiu todo o tempo

da vida, cada vez mais a Saúde tem se tornado uma intervenção sobre esta vida posta a

trabalhar; modos, estilos142, “qualidade de vida”. Uma intervenção sobre as potências

criadoras.

142
O que dizer sobre os sistemas criados parta mensurar a “qualidade de vida” individual? Dos ditames
sobre “estilos de vida saudáveis”? Dos estudos que apregoam um novo “sujeito cerebral”?

218
4.2 - A proteção social à saúde no Brasil: a Saúde Pública

“Danação da norma: medicina social e a constituição da psiquiatria no

Brasil” é, sem dúvidas, o estudo que traz uma das melhores reconstruções históricas da

saúde pública brasileira. Neste livro, produzido por Roberto Machado, entre outros

autores, observa-se uma virada histórica para o Brasil República que apontou para a

descoberta da saúde como “novo objeto” da medicina e não somente a cura de doenças.

Este trabalho foi um dos primeiros a mostrar o poder médico-disciplinar e como isso

recaia sobre a realidade da vida social urbana da época. A defesa da saúde compunha o

cenário necessário para dinamizar a produção territorial, a defesa da terra e a saúde da

população através das noções de higiene.

As medidas de higiene, primeiras entre as ações políticas de Estado,

atravessaram um longo período histórico no país, iniciando-se no Brasil colônia e

chegando à república. Arouca (2003, p.111) nos diz, que no seu sentido mais geral e

etimológico, a higiene é a arte de conservar a vida. “Por isso, se caracterizava no século

XIX, por uma ligação com as ideologias liberais que afirmavam as responsabilidades

individuais perante a saúde”. A ordem moral era alcançada através de suas condutas. As

medidas higienistas eram acompanhadas de juízos de valor sobre o caráter dos homens e

suas atitudes no convívio em sociedade.

A higiene possui normas, recomendações, medidas que, se


aplicadas, fariam com que o indivíduo mantivesse seu estado de
saúde até a morte natural. A higiene não é uma ciência, mas a
aplicação de todo um conjunto das ciências na manutenção do
bem-estar, mito de uma unidade de conhecimentos em prol do
bem viver, espaço que se superpõe e acompanha a vida, difusa no
próprio espaço dos homens (Arouca, 2003, p.114).

219
O perfil dos conflitos populacionais no Brasi,l descrito por Machado (1978),

é tipificado no termo “desordem urbana”. O caos na distribuição das habitações pelos

principais territórios urbanos, o amontoamento de lixos pelas cidades, as doenças que

acreditavam vir das águas (transmissão) e do ar (contágio miasmático), as populações

“de risco” que habitavam próximas a pântanos e rios, além da ausência de cemitérios

demonstrada pela enorme concentração que já acontecia nos cemitérios das igrejas. A

medicalização urbana começaria pelo território e também pelas principais instituições:

quartéis, escolas, hospitais, igrejas.

O “adestramento” à população urbana, relatado por Machado, representava

uma resposta a um segmento populacional especificamente: os pobres. A descoberta do

poder dos pobres e miseráveis em revoltar-se foi algo que demarcou as primeiras noções

de uma política de Estado no Brasil. Os territórios mais desenvolvidos como Rio de

Janeiro, São Paulo e Recife, por serem estratégicos do ponto vista econômico e militar,

conviviam com várias faces da miserabilidade das populações. Nestes lugares

aconteceram as primeiras formações de grupos de moradores de rua, famílias que se

aglomeravam em grandes quantidades habitando em pequenas casas e, com isso, a

noção da doença que circulava pelas avenidas; desde o “louco” que vagava pelos

centros urbanos aos “tuberculosos” que disseminavam a doença pelo contato. As

políticas de saúde pública propunham a ordem urbana, uma ordem moral que buscava

silenciar os pequenos grupos sociais para manter o poder estatal que a república

necessitava.

Machado (1978) relata que foi no século XIX que o Brasil vivenciou a

formação de suas primeiras escolas de medicina, ou seja, as primeiras ações reguladoras

do Estado para a formação de um quadro de profissionais. A Bahia (1808) e o Rio de

Janeiro (Hospital Militar – 1809) foram os primeiros estados a instituir a formação

médica no país, de uma maneira não muito diferenciada das outras experiências

220
mundiais, a começar pela defesa das ciências médicas baseadas na clínica e também

pelo pioneirismo da militarização na formação de algumas graduações.

Um outro olhar é defendido por Jurandir Freire Costa que mostrou como a

moralização através do poder estatal era alcançada. “Ordem Médica e Norma Familiar”

é uma literatura clássica sobre a história da Saúde Pública brasileira. Nela, Costa (1999)

afirma que desde o Brasil colônia existiam intenções de Estado em medicalizar suas

ações políticas, reconhecendo o valor político das ações médicas. No Brasil, não foi

através dos pobres que as primeiras demandas por “higiene urbana” surgiam, diz Costa

(1999), mas sim pela pequena aristocracia (burguesia rural) que demandava uma

necessidade de mudança. Ao associar a medicina à técnicas semelhantes às da

militarização, suscitou-se o interesse do indivíduo por sua própria saúde. Ou seja, como

afirmavam as teses de Foucault, foi a individualização da medicina que a tornou

social143. Quando a assistência passou das mãos da igreja para os médicos do Estado, a

população se inseria em uma política estatal que previa a atuação médica desde a

regulamentação das ruas até as instituições.

Para Jurandir Freire Costa (1999) isso aconteceu de forma processual por

meio da atenção normatizadora às famílias através de um forte controle das ações que,

assim se dividiam: a) a proliferação de diversos interesses contraditórios entre os

membros de uma mesma família, “através da formação de uma rede complexa de

adultos e crianças, homens e mulheres, pais e filhos, adolescentes...” (Costa, 1999, p.31)

em um bloco único e compacto; b) ao invés do policiamento, tão comum no período

colonial, mostrava-se, ao contrário, os ganhos que podiam ser extraídos das práticas de

143
Os estudos de Foucault em Microfísica do Poder (2000) mostram que através das coletividades, das
relações sociais que a medicina científica se socializou porque a ciência, o saber científico, se socializou.
O Estado teve papel determinante nessa disseminação a medida que capturou o saber comum, vindo do
conhecimento adquirido pela observação e o somou ao discurso científico bélico sistematizado através de
uma racionalidade. A centralização por meio da captura desse saber difundiu um conhecimento – fato que
demarcou um modelo de saúde na modernidade (o nascimento da medicina social). A medicina se tornou
social através de um olhar mais atento ao indivíduo.

221
sujeição ao Estado; c) não mais era cultivado o medo da morte como faziam os

religiosos, mas o fundamental era que a política de saúde disseminasse o gosto pela vida

através da persistência da prole, o prolongamento da saúde, a felicidade do corpo; e, por

último, d) não tornou a família uma inimiga, mas sim uma rede composta por diferentes

aliados e, também, por pessoas vulneráveis que deveriam ser convertidas (idem, 1999,

p.31).

(...) a higiene dirige-se exclusivamente às famílias de extração


elitista. Não interessa ao Estado modificar o padrão familiar dos
escravos que deveriam continuar obedecendo ao código punitivo
de sempre. Esses últimos, juntamente com os desclassificados de
todos os tipos serão trazidos à cena médica como aliados na luta
contra a rebeldia familiar. Escravos, mendigos, loucos,
vagabundos, ciganos, capoeiras, etc, servirão de anti-norma, de
casos-limite de infração higiênica. A eles vão ser dedicadas
outras políticas médicas. Foi sobre as elites que a medicina fez
incidir sua política familiar, criticando a família nos seus crimes
contra a saúde. A camada dos ‘sem-família’ vai continuar
entregue a polícia, ao recrutamento militar ou aos espaços de
segregação higienizados como prisões e asilos (Costa, 1999, p.
33).

Sob o ponto de vista das ações estatais, o Brasil passa a ter como marco

evolutivo das atuações a transição para um perfil produtivo baseado em mão-de-obra

assalariada, período que se inicia após a abolição da escravatura e com a evolução da

economia cafeeira. A constituição de uma nova força de trabalho composta por

“homens livres” e imigrantes europeus encontra-se com o fortalecimento do poder

militar e o processo de centralização das ações estatais. As políticas de saúde transitam

da moralização estatal sobre as famílias ao crescimento do poder do Estado sobre a

sociedade. Somente a possibilidade de vivenciar a formação de uma nova classe

trabalhadora permitiu a transição para um capitalismo periférico – algo que se

processou dos anos de 1870 a 1930.

222
A contenção do espaço urbano aparece nesta época através das medidas de

saneamento. A chegada de um grande contingente de imigrantes somou-se a massa de

ex escravos abandonados, o que aumentou substancialmente a população residente nas

cidades e também moradores de rua. Isto é, os problemas relacionados à ocupação

urbana complexificaram-se, principalmente entre os centros urbanos mais

desenvolvidos. Na primeira república, os interesses econômicos do país estavam

voltados para a exportação de recursos naturais agrícolas, e as intervenções sanitárias

ocorriam de forma restrita por meio de iniciativas privadas localizadas em cidades

portuárias como Rio de Janeiro, Belém, Santos e Manaus. Por isso, as obras de

saneamento mais antigas do país estão nos centros comerciais dessas cidades (Oliveira,

2005).

Sem dúvidas as medidas de saneamento deram o tom do “surgimento da

nação” no Brasil. As atitudes do governo voltadas somente para a extração de produtos

brasileiros para exportação reforçava a imagem de uma população rural trabalhadora e

sofrida com adoecimentos que deveriam ser combatidos por ações governamentais.

Hochman (2000) ressalta que datam-se desta época os romances sobre o sertanejo

pobre, doente, abandonado, isolado, que desconhece o uso da moeda e que usa

instrumentos primitivos de trabalho para caracterizar a falta de identidade nacional no

Brasil.

A substituição da mão-de-obra escrava e a chegada das imigrações

provocaram a “cultura do saneamento” trazida pelas tecnologias estrangeiras com

importações tecnológicas para o setor. Oliveira (2005, p.130) relata que a contratação

privada dos serviços foi incentivada na década de 30, visto que a carência por

abastecimento de água e esgotamento sanitário atingia não só a industrialização

nascente nos centros urbanos, mas também as oligarquias cafeeiras e outras culturas de

exportação como a borracha e o açúcar. Além disso, nos anos 30 o saneamento passou a

223
ser disputado por duas frações urbanas: a imobiliária e a industrial. A formação do

operariado industrial acelerou um processo de urbanização que redefinia as articulações

entre diversos setores da economia, fundamentalmente mediadas pelo poder estatal.

A chegada do imigrante levou todo o país a um debate sobre miscigenção e

imigração. O diagnóstico da saúde estatal era de uma população doente, resignada e

isolada por suas proporcionalidades continentais, castigadas pelas dificuldades

climáticas tão apregoadas pela medicina tropical que já havia se instalado em território

brasileiro. Uma das primeiras tentativas de integração nacional pela Saúde foi dada por

meio das medidas de saneamento. As ações traziam a noção de “integração” de um

“povo” único dentro da identidade de uma mesma “nação”. O saneamento

proporcionaria a transformação, diz Hochman (2000). E a medicina aliada a este poder

público-estatal era fundamental para operar esta transformação.

Se o foco central dos higienistas era a presença da doença como o


grande obstáculo a ser superado, ela aparece fortemente
articulada com o tema da natureza, do clima e da raça. Na
discussão sobre identidade nacional é freqüente a constatação da
fragilidade do homem diante da natureza tropical. Esse contraste
é a idéia de uma inadequação entre o ambiente natural. O homem
e a cultura européia são temas constantes do pensamento social
no Brasil nesta época (Hochman, 2000, p.04).

O pensamento higienista expresso nas medidas sanitárias da época associava

a adoção de atitudes de higiene pelos trabalhadores nacionais (o sertanejo doente144),

com os rendimentos ao trabalho. As condutas de higiene trariam ao trabalhador nacional

uma vitalidade proporcional a do trabalhador imigrante. A noção de inferioridade

brasileira em relação à mão-de-obra européia gerou uma falsa justificativa para que as

144
Hochman (2000) relata com o requinte do detalhamento o personagem de Monteiro Lobato, Jeca Tatu,
tão pitoresco e tão representativo sobre o pensamento da época, O personagem era marcado pela
ociosidade, pela ignorância, pelo isolamento. Era o sertanejo que não tinha a posse de terras, nem
condições para o seu próprio trabalho, mas que vivia em comunhão com a natureza. Nele, o homem rural
brasileiro mostrava-se como analfabeto, preguiçoso, nômade, rústico, porém apegado à crenças religiosas.
O caboclo indolente que não se adaptava à civilização assistia o progresso chegar através da valorização
das terras, das ferrovias que eram construídas e dos italianos que vinham para o trabalho.

224
elites políticas incentivassem um programa intenso de imigração como uma saída “mais

otimista” em contrapartida ao pobre e ignorante brasileiro145. As atitudes tomadas

traziam a noção de “branqueamento” da classe trabalhadora, que lentamente deveria ser

substituída através da miscigenação.

Hochman (2000) diz que essa foi uma das alternativas encontradas para que

o Brasil fosse “merecedor” dos recursos estrangeiros que haviam sido solicitados para o

saneamento das cidades. Porque, no entanto, dois interesses foram contemplados ao

mesmo tempo: a) a solicitação brasileira por recursos financeiros à outros países para o

saneamento das suas cidades, visto que essa atitude preparava o território brasileiro para

os primeiros passos rumo a industrialização. E, b) o recebimento dos imigrantes no

Brasil, pois que o país serviu como ponto de fuga para esta população em êxodo após

terem vivenciado o empobrecimento dos seus países no período pós-guerra europeu.

145
Negri & Cocco (2005) constroem uma importante análise sobre o assunto balizando-se pela ótica do
“êxodo”. “(...) a transição para a industrialização e para o desenvolvimento não se reduz ao deslocamento
das bases da acumulação dos setores agro-exportadores mais dinâmicos em direção à acumulação
industrial, portanto, à busca de uma mão-de-obra moderna (assalariada). A libertação vem (ou acontece)
antes, através das mil formas de êxodo: êxodo dos escravos e dos camponeses pobres (em condições
servis e/ou semi-servis) e êxodo dos imigrantes europeus. O impacto da imigração foi crucial para o
desenvolvimento do trabalho assalariado no Brasil. Assim, a população imigrante formou o primeiro
contingente importante de trabalhadores livres e móveis, na medida em que a formação de um verdadeiro
campesinato não pode acontecer” (Negri & Cocco, 2005, 82). Com o decorrer do tempo, ao chegar ao
governo de Vargas, a Lei de Nacionalização do Trabalho, exigia a entrada de 2/3 de empregados
brasileiros nas indústrias, algo que conteve os fluxos de trabalhadores imigrantes, principalmente após
sua importante atuação na formação dos primeiros sindicatos brasileiros. “Antes de nacionalizar a
produção industrial, nacionaliza-se o processo de proletarização” (idem, 2005, p.91). Muitos desses
trabalhadores foram então mandados para o interior do país, com o intuito de descongestionar os centros
urbanos (idem, p.91).

225
A emergência do discurso sanitarista

O modelo de emancipação nacional da economia brasileira, então

denominado por “substituição de importações” pode ser entendido como um dos efeitos

produzidos mundialmente pela “grande depressão” dos anos 30. Através deste modelo,

abriu-se o caminho para as teorias e as práticas de desenvolvimento baseadas na

industrialização destinadas somente a produzir bens que não deveriam ser comprados

dos países ricos (Negri & Cocco, 2005, p.30).

Entre os anos 30 e 40, ampliava-se a apropriação estatal no processo de

acumulação; as formas adotadas para isto serão a seguridade social e os programas de

saneamento nas zonas agro-exportadoras. O ideal que na época entra em voga, diz

Nunes (1994), era a idéia do círculo vicioso que entendia “pobreza = doença”. Na fase

áurea do desenvolvimentismo prevalece o conceito de controle “e assiste-se à

progressiva utilização dos antibióticos e técnicas cirúrgicas para a consolidação da

confiança na atenção médica individualizada” (idem, 1994, p.07) principalmente entre

as populações pobres. Desta forma, abria-se o período de contenção das doenças através

da utilização de medicamentos variados e procedimentos cirúrgicos146. Certamente que a

industrialização vivida no Brasil – a partir do pós guerra – influenciou de forma direta

as ações de saúde à medida que a elas atribuiam uma nova racionalidade, isto é, à

implantação de “padrões racionais de saúde”.

O referencial da Saúde Pública no Brasil se solidifica junto ao crescimento

econômico baseado na intensificação da expansão industrial (Nunes, 1994). O momento

pode ser balizado pela chegada do fordismo periférico, o qual o Estado intervencionista

sustentou a atividade produtiva para a manutenção do emprego em massa e da

146
Nunes (1994, p.12) caracteriza este período como o da “Saúde Pública desenvolvimentista”, pois o
desenvolvimentismo havia postulado que um dos efeitos do crescimento econômico seria a melhoria nas
condições de saúde.

226
assistência social. Essa característica nacional teve repercussões diretas sobre o aparato

instiucional, pois que o surgimento da primeira instituição de gerenciamento estatal da

saúde no Brasil surge no ano de 1808, mas foi somente no ano de 1953 que passou a

existir um ministério único voltado para a saúde, com estrutura de órgão governamental

ramificado em secretarias de estado147.

Neste contexto, Nunes (1994) relata um movimento de crise “em uma

determinada medicina”; uma crise estreitamente vinculada a um projeto pedagógico e

não diretamente relacionada às práticas médicas. O grande saldo deste momento foi a

revisão do ensino na graduação médica. Inclui-se o debate sobre temas associados à

epidemiologia, administração de serviços de saúde e bioestatística nas disciplinas como

uma crítica à biologização do ensino e às práticas individuais centradas no hospital.

A integração bio-psicossocial tem aqui as suas origens, e o


modelo da medicina integral, numa apropriação da expressão
“compreensive medicine” aparece na versão latino-americana,
colocando ênfase na medicina de família integrada no plano da
comunidade. Se no plano do conhecimento é o momento de dar
espaço a alguns conceitos sociológicos, antropológicos,
demográficos, epidemiológicos e ecológicos; no plano político-
ideológico [é o tempo] dos programas extra-muros (Nunes, 1994,
07).

O discurso da cura de doenças e também da prevenção se associam nesta

conjuntura que permeava a quase todos os países da América Latina. Este foi o

momento que Arouca (2003) denominou pela chegada do “preventivismo”. O

surgimento da medicina preventiva representou um fenômeno conceitual na área médica

ao estabelecer uma nova articulação com a sociedade em profundas mudanças

decorrentes da industrialização. O modelo, com forte influência norte-americana, foi

difundido entre os países da América Latina através dos órgãos internacionais como a

147
Três anos depois, 1956, surgiu o Departamento de Endemias Rurais. A estrutura de Estado ainda
tentava avançar para o campo e produzir o “desenvolvimento da nação”, isso porque em muitos estados
brasileiros a população rural era maior que a população urbana.

227
OPAS. Esse campo conceitual exigia que a formação do clínico o possibilitasse fornecer

respostas não somente à cura de doenças, mas também à prevenção das mesmas. O

médico deveria desenvolver “uma nova atitude”.

Nas análises construídas por Arouca (2003) é interessante notar que um

paralelo é traçado entre o “preventivismo” e a “higiene”. O modelo preventivista só

surge como debate porque a higiene como disciplina se instaura na dinâmica da vida.

Ou seja, quando a Higiene é absorvida na multiplicidade das disciplinas ela é dissolvida

na sociedade como idéia e conceito (p.115). A função da OPAS foi somente apontar que

a sociedade inteira tornara-se científica e que, portanto, era o momento de pulverizar

uma ordem global. A medicina sobre a vida proporcionaria mais repercussões positivas

aos Estados que a medicina da cura de doenças ou somente a intervenção sobre a morte.

A crítica da prática médica pelo movimento preventivista iniciou-


se pela caracterização de seu oponente – a medicina curativa, que
refere-se a uma adjetivação da medicina, cujo objetivo é
demonstrar a sua atomização. Trata-se de uma prática médica que
se esgota no diagnóstico e terapêutica, onde a prevenção e a
reabilitação são secundárias, sendo, finalmente a medicina que
privilegia a doença e a morte contra a saúde e a vida (Arouca,
2003, p. 37).

A partir dos estudos de Arouca, Nunes (1994) retoma esta análise e alega

que esse movimento de afirmação e diferenciação de uma identidade dentro da própria

medicina estabelece a união entre os termos “preventivo” e o “social” (Nunes, 1994,

p.09). A medicina preventiva e social instaura em âmbito estatal a necessidade de se

antecipar ao risco, consequentemente à doença, isso acaba por provocar a dimensão do

“planejamento em saúde”. A noção de planejamento que chegou ao Brasil

profundamente vinculada a propostas da Organização Pan-Americana da Saúde

fechava-se em uma visão economicista que se resumia à idéia que planejar era cortar

custos.

228
A primeira formação acadêmica aos profissionais de saúde voltada para o

planejamento veio a acontecer no início da década de 60, quando começa a se proliferar

um ideal de Estado fundamentado no racionalismo científico. O Estado deveria

direcionar seus recursos “estrategicamente”. Existia uma fragmentação no pensamento

da época, diz Onocko (2001), traduzida nas literaturas produzidas sobre o planejamento

em saúde na década de 60. Essa fragmentação postulava que o “técnico” (expressão da

cientificidade) subsidiava a melhor decisão que os “políticos” se encarregavam de

implementar. E os “políticos”; que falariam em nome do Estado protetor, provedor do

bem comum e administrador, deveriam acatar as decisões trazidas pelos seus técnicos.

Algo que originou o plano de estruturação dos estados em secretarias de saúde – uma

“falsa divisão” do poder entre os técnicos e os políticos de Estado.

O fato é que o crescimento das produções técnicas no país começam a se

proliferar exatamente neste período, quando as universidades iniciam seus primeiros

projetos de pesquisa em saúde. Vários gestores começam a se refugiar em núcleos de

pesquisa ou entidades internacionais; e os problemas “técnicos” de Estado começam a

ter sobre eles produções acadêmicas vindas destes núcleos. Por isso surge a constituição

de um novo campo denominado por “planejamento estratégico”, em substituição a um

modelo de “planejamento normativo” (Onocko, 2001). No Brasil era vivenciado o auge

do fortalecimento industrial e isso reforçava o fordismo periférico em que a

racionalidade científica era incorporada aos postulados da administração de Estado.

Essa linguagem é adequada à realidade da saúde e posta a funcionar nos órgãos

públicos. Onocko (2001) relata que a OPAS (1965) produziu neste momento um

relatório denominado por "Problemas conceptuales e metodológicos de la programación

en salud" que discutia essa transição. Este documento circulou entre os ambientes

universitários e teve ampla repercussão sobre os órgãos públicos. O conteúdo do

documento propunha o rompimento definitivo com a noção de planejamento normativo

229
(que subdividia as decisões entre “técnicas” e “políticas”) e instaurou o modelo de

planejamento estratégico dentro das secretarias de saúde. Na década de 70 parte-se deste

pensamento para a criação de diversos manuais da administração para gestores públicos

que deveriam ser “estratégicos”.

A medicina preventiva, que representava uma atitude de antecipação aos

riscos, proporcionava práticas de intervenção comunitária e isso tomou proporções

maiores entre os profissionais da saúde. Ao final da década de 60, a dimensão social da

saúde começou a se proliferar entre as graduações, um movimento que havia sido

propagado pelos próprios profissionais da área e tornou-se rico pelos seus

questionamentos. As ações de “saúde comunitária” se afirmaram como campo da

medicina, da enfermagem e também nas formações do campo social. Datam-se desta

mesma época as primeiras revisões teóricas da disciplina “desenvolvimento de

comunidade” na graduação de serviço social e a inserção da antropologia (social, urbana

e da saúde) como disciplina básica em várias formações.

Este referencial que surgia torna-se importante para demarcar um momento

de revisão dos conceitos. Ao adotar a dimensão “extra-muros” nas universidades

crescem os projetos de extensão voltados para a intervenção social na saúde de

comunidades, famílias, grupos vulneráveis e instituições; algo que proporcionou aos

profissionais o movimento de revisão de seus referenciais sobre a relação saúde-doença.

Sair do âmbito hospitalar e ver-se diante da realidade das populações pobres,

possibilitou o encontro de vários profissionais em torno de um mesmo debate, criando

experiências pioneiras de “educação em saúde”.

Por outro lado, ao apontar a “saúde comunitária” como meta, o Estado se

afirmava como aparelho político responsável pelo fomento para a atuação com grupos

vulneráveis e também como aquele que irá conter os gastos com produtividade, à

230
medida que as ações “em massa” e não somente individuais serão estimuladas148. “A

atenção comunitária tinha um duplo caráter” (Nunes, 1994, p.18). Por trás de uma crise

que surgia no setor saúde, criou-se a imagem que o poder estatal oferecia maior

cobertura às populações, utilizando poucos recursos. Reforçou-se o ideal de um Estado

protetor das coletividades ao mesmo tempo que racionalizador de suas finanças.

O crescimento da industrialização neste período (tanto nacional quanto

multinacional) no Brasil criou condições para o surgimento de empresas médicas

corporativas. Isto porque o “controle” estatal fechou os olhos para as empresas médicas

que eclodiam voltadas para o atendimento de alguns segmentos de trabalhadores das

indústrias de metalurgia, química e siderurgia. O pacto do Estado com estas indústrias

era acionado justamente pelo campo da “proteção social”, quando a previdência deixava

de recolher parte da contribuição prevista com gastos para a saúde dos trabalhadores e

estimulava o financiamento dos planos privados de assistência à saúde. Este pacto

industrial-estatal se manteve por décadas, alimentando verdadeiros cartéis na saúde

pública149. Os planos de saúde tinham neste contexto somente “clientes-empresa”. Vinte

anos depois passariam a deter milhões de “clientes individuais”.

Desse período revisionista da saúde, que se fecha em uma década, pode-se

afirmar sua demarcação pelo nascimento e crise da Saúde Pública desenvolvimentista.

Um campo que foi caracterizado como associativo entre a saúde e o desenvolvimento da

nação pelo crescimento econômico baseado na “substituição de importaçãoes”. Algo

que não proporcionou a efetivação do ideal que o crescimento econômico traria uma

grandiosa modificação nas condições de saúde da população. Ao contrário, a inserção

do profissional da saúde pública nas comunidades fez por desvelar a emergência de

148
Alguns autores chegam a afirmar que a “saúde comunitária” era uma nova polícia médica, não nos
moldes daquela que havia sido desenvolvida no século XVIII, mas uma nova modalidade de trabalho
policial mais refinada e menos manifesta (Nunes, 1994).
149
Para entender melhor sobre o assunto ler: Possas, Cristina. Saúde e Trabalho – a crise da previdência
social. SãoPaulo, Editora Hucitec.

231
novos problemas: a desnutrição infantil, os altíssimos índices de analfabetismo, as

doenças crônico-degenerativas e a revelação dos primeiros números sobre o quadro de

morbi-mortalidade de trabalhadores em âmbito de fábrica. Nasce uma discussão sobre

os cenários de adoecimento por segmentos sociais: patologias da pobreza, patologias do

trabalho, estudos aprofundados sobre gênero, patologias relacionadas à etnia...

“Encontrou-se nas doenças aquilo que ameaçava a ordem social”.

Também nesta mesma década o Brasil descobriu as primeiras produções

teóricas que proporcionaram a revisão da literatura sobre “saúde e sociedade”, bem

como a sua inserção nos debates sobre as instituições estatais. Os primeiros textos com

inspiração marxista, como Althusser, chegam à academia, bem como as primeiras

traduções de Levi-Strauss e Foucault (Nunes, 1994, p.12). A experiência da anti-

psiquiatria começa a ser publicizada na Europa. E o movimento operário italiano chega

adaptado à América Latina e traduzido para a Saúde através dos textos de Asa Cristina

Laurell. Ou seja, a transição dos últimos anos da década de 60 são tempos fecundos para

os debates teóricos sobre a dimensão social da saúde. As produções que viriam do

movimento europeu pós 68 chegam às universidades brasileiras com certa relevância,

mesmo em tempos de ditadura.

232
O público e o privado

Pode-se dizer que a Saúde Pública vivenciava um momento de crise na

década de 70 quando se deparou com o crescimento do setor privado e enfatizou o

surgimento de um complexo médico-industrial. Neste modelo, que Bravo (2001) prefere

chamar por privatista, conviviam as ações das grandes empresas internacionais de

produção de medicamentos (indústria farmacêutica), de equipamentos médicos e

também, internamente, a proliferação dos serviços suplementares.

O conceito de complexo médico-industrial (CMI) passou a ser


concebido de modo ampliado, contemplando as diferentes
articulações entre a assistência médica, as redes de formação
profissional, a indústria farmacêutica, a indústria produtora de
equipamentos médicos e de instrumentos de diagnóstico. O CMI
é um produto histórico e particular da evolução do sistema de
saúde. É um estágio onde, devido à necessidade de reprodução
dos capitais investidos, as práticas capitalistas privadas tornam-se
hegemônicas e determinantes das funções, papéis e relações de
cada ator no interior do próprio sistema (Vianna, 1993, p.01).

Somente medidas de saúde em massa atenderiam a industrialização do

sistema produtiva em massa. A definição que abarca o surgimento de um complexo

industrial da saúde atende a duas realidades da época: uma delas diz respeito à medicina

moderna, que passa a funcionar amparada pelo amplo uso de recursos tecnológicos e

equipamentos médicos; e outra que se refere ao crescimento exorbitante na produção de

novas drogas em escala industrial e com um grande contingente de inovações

farmacêuticas. O impacto da difusão desse ideal sobre o imaginário popular resultou em

conseqüências extremamente questionáveis. Assim como a indústria era o sinônimo do

crescimento, da produtividade e da modernização, a produção industrial dos

medicamentos em larga escala e a difusão de novas tecnologias para a diagnose e

terapêutica de muitas doenças também representavam uma grande conquista que não

deveria ser dispensada.

233
(...) não só a velocidade e a taxa de renovação de novos produtos
tiveram grande inflexão, como também existiu a necessidade de
se criar novas especialidades e especialistas, que pudessem
utilizar os novos equipamentos e atender à demanda dos usuários
de forma eficiente (Vianna, 1993, p.02).

Os recursos tecnológicos na saúde passam a existir como demanda, as

práticas em saúde precisavam disponibilizar a “melhor tecnologia possível” para serem

consideradas eficazes. Com isso, os custos sobre os serviços cresceram de forma tão

veloz quanto o ritmo das inovações. Esta realidade perpassou a todos os países do

mundo que viveram a industrialização dos seus sistemas de saúde, de tal forma que o

complexo médico industrial tornou-se uma ordem global. Isto é, a mundialização das

práticas baseadas em evidências que só as tecnologias mais refinadas poderiam trazer.

Essa composição de um cenário global apontava para o fato que a industrialização havia

se tornado muito mais que o investimento de um capital nacional. O complexo médico

industrial viveu a globalização e tornou-se multinacional. A “nova ordem” da saúde

ditava os serviços privados, e, sobretudo, as políticas públicas estatais, que passam a

gerir e organizar os serviços de saúde a partir de um padrão empresarial. Mesmo em

setores que o objetivo do lucro não é colocado como finalidade, as relações passam pela

constituição de um conjunto de inovações organizacionais, terceirizações, lógicas de

competitividade que se aproximam da forma empresarial.

Claro que essa formação é viabilizada primeiramente pela difusão do modelo

industrial de produção de medicamentos, tecnologias e equipamentos. Mas é na esfera

da produção ampliada, mais precisamente, através das políticas públicas, que esse ideal

é veiculado. São nos órgãos de atendimento à população, na prestação de serviços, que

se estabelecem as dinâmicas da propagação do exercício profissional associado à

234
tecnologia; assim como; também é neste âmbito que surgem as inovações150 – tanto

entre os serviços públicos, quanto privados.

O padrão industrial nas políticas públicas de saúde começa a demonstrar sua

ascensão através das primeiras pistas deixadas pela crise da previdência e da assistência

à saúde na década de 70. Ou seja, a evolução da industrialização da saúde trouxe

consigo a crise das políticas sociais de um país que nunca vivenciou um Estado de

proteção social plenamente. A extensão previdenciária neste período cobria a quase

totalidade da população urbana e chega em 1973 a incluir os trabalhadores rurais,

empregados domésticos e até trabalhadores autônomos (Bravo, 2001). Todavia, a

assistência à saúde médico-odontológica, representada pelo Inamps (Instituto Nacional

de Assistência Médica da Previdência Social), destinava-se basicamente aos

trabalhadores com vínculo empregatício formal, e deixa uma enorme quantidade da

população sem acesso aos serviços de saúde. Algo que Wandeley Guilherme dos Santos

caracterizou por “cidadania regulada” – quando somente trabalhadores com vínculos

empregatícios formais acessavam direitos a eles resguardados. A ênfase nos serviços

então individualizados, centrados na clínica, visto que privados, reforça uma cultura da

prática médica curativa, especializada e com clientela segmentada de acordo com o

poder aquisitivo.

Na complexa história da previdência e da seguridade social no país151, a

década de 70 tinha no Inamps a grande representação da necessidade de unificação de

150
Carlos Gadelha (2003) em um artigo intitulado “O complexo industrial da saúde e a necessidade de
um enfoque dinâmico na economia da saúde” mostra que em vários países com industrialização avançada
é comum que hospitais, universidades e empresas criem parcerias para dinamizar a produção de ciência e
tecnologia na saúde, envolvendo financiamentos e incentivos que estabelecem verdadeiras políticas
comerciais de propriedade intelectual.
151
Pode-se resumir, a grosso modo, que a Previdência inicia sua história com as Caixas de
Aposentadorias e Pensões por categorias profissionais (1923) e foi unificada pelo Estado através dos
Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP´s) na década de 30 (“minando” todas as formas de
solidariedade de classe). Somente a expansão progressiva da indústria farmacêutica e das atividades da
medicina permitiram que os IAP´s se tornassem uma indústria da medicina de massa. Os Institutos foram
sendo agrupados até a criação do Instituto Nacional de Previdência Social e, em seguida, o Ministério da
Previdência e Assistência Social na década de 70.

235
todas as políticas referentes à saúde em um só ministério. O Instituto, pertencente ao

Ministério da Previdência e da Assistência Social, mantinha uma máquina clientelista

de atendimento médico-odontológico aos segurados e à população em geral. Entretanto,

as contradições estatais ficam realmente expressas na atuação de um órgão maior, o

INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que sustentou durante muitos anos a

rede hospitalar privada e também a rede periférica que surgia de pequenas clínicas

formadas por pequenos grupos de médicos, visto que tinham a previdência social como

o principal comprador (e financiador) desses serviços de saúde152.

Por um breve lapso temporal, a história da Saúde nos coloca dentro de um

momento em que gerir a saúde pública ou um serviço privado empresarial aparecem de

forma muito semelhante; pois que os serviços privados se introduziam com facilidade

dentro do sistema público e o próprio modo de gestão da Saúde começa a apontar para

uma transição nos seus sistemas de gestão. Nas instituições públicas era preciso saber

transitar pelas diferentes formas de contratos de trabalho e por serviços que passariam,

de uma só vez, a tornarem-se privados. A previdência 153 ministrava toda essa rede

“pública” repleta de variadas sub-contratações.

152
Cristina Possas (1989) construiu uma análise estruturada sob a ótica do trabalho para este movimento
do Estado rumo a completa privatização das ações. Para a autora, a privatização dos serviços de saúde em
massa só se tornou possível porque a “medicina de grupo” se responsabilizou pela prestação de serviços
médicos às empresas, garantindo uma rápida recuperação do trabalhador doente para o retorno ao
trabalho. Os “convênios médicos” objetivavam evitar que essa gama de trabalhadores procurasse a
previdência, pois seriam alvo de medidas “benevolentes”. Por meio desses convênios o controle da mão-
de-obra seria muito maior, pois garantia-se a rápida re-inserção desse trabalhador ao trabalho, mesmo
doente ou acidentado, através de exames que previam um controle periódico (p.267). No entanto, de
qualquer forma, com a privatização dos serviços ou sob a “guarda” das ações estatais, é sobre o controle
da força produtiva que se direcionam as ações. Também não seria o Estado aquele que resguardaria os
trabalhadores de uma industrialização adoecedora e causadora de inúmeras mortes no trabalho durante a
década de 70. Ao contrário, o Estado precisava que esta força de trabalho retornasse ao emprego, mesmo
doente, para movimentar o setor produtivo industrial, tornando o operário massa mantenedor do pleno
emprego, e, só por isso permitiu a privatização das ações. A assistência, desta forma, cumpria a sua
função de ampliação da capacidade produtiva.
153
Ao final da década de 70 a Previdência Social era composta pelos seguintes órgãos: INPS - Instituto
Nacional da Previdência Social, responsável pela concessão e pagamento de benefícios aos segurados;
IAPAS - Instituto de Administração Financeira da Previdência Social, responsável pela administração
financeira e patrimonial; INAMPS - Instituto Nacional da Assistência Médica da Previdência Social fazia
a assistência médico-odontológica dos segurados e da população em geral. E o DATAPREV - Empresa
de Processamento de Dados da Previdência Social.

236
Se por um lado a criação de um sistema que unificou os Institutos de

Aposentadorias e Pensões (IAP´s154) ao final da década de 70 e, isso tenha dado a noção

de integração e nacionalização de um modelo de proteção social; por outro, ampliaram-

se os canais para a utilização da compra de serviços privados, à medida que também

foram unificados os órgãos de assistência social que ficaram caracterizados como

verdadeiros “viadutos” para a formação dos principais canais de corrupção nas políticas

públicas (LBA - Legião Brasileira de Assistência; FUNABEM - Fundação Nacional

para o Bem-Estar do Menor e a CEME - Central de Medicamentos (responsável pela

compra e distribuição centralizada dos medicamentos). A experiência que centralizou

instituições tão grandes e com tanto poder de controle sobre os trabalhadores passou a

imagem que ampliava-se o poder da “proteção social” sob o trabalhador. Um

trabalhador que contribuía para a sua “seguridade” e, porque contribuía, acessava um

“direito”.

4.3 - Um movimento anti-disciplinar: a reforma sanitária

O marco conceitual produzido pelo âmbito acadêmico nas faculdades de

saúde pública, medicina preventiva e social deu origem a um paradigma que postulava

uma ampla reforma para a Saúde. Os “sanitaristas” – profissionais da saúde que

passaram pela vivência da medicina comunitária, da medicina preventiva e social -

pleiteavam maior racionalidade para os serviços de saúde através da regionalização e


154
Os IAP´s formavam um “sistema previdenciário” composto por categorias profissionais (indústria,
comércio, marítimos, bancários, ferroviários, etc.) que unificou as Caixas de Aposentadorias e Pensões
por segmento profissional em território nacional. Os Institutos foram alvos de inúmeras críticas, visto que
segmentavam por categoria profissional o acesso a seguros, aposentadorias e pensões. Porém, sua
administração passou a ser nomeada pelo governo, visto que contava com recursos do governo federal,
empregados e empregadores nacionalmente. Na época, os IAP´s eram considerados avançados sob o
argumento da ampliação do sistema de “proteção social”, pois o governo “estatizou” o seguro acidente de
trabalho, passando a ser uma responsabilidade dos Institutos administrá-los; pois antes eram atribuídos a
serviços privados. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que também o governo instituiu a obrigatoriedade
da instalação de um Serviço Médico-Ocupacional dentro das empresas. Ou seja, a notificação do acidente
de trabalho passaria a vir das próprias empresas empregadoras e, o Estado se responsabilizaria pelo
“ônus” de ter se tornado uma “seguradora”.

237
hierarquização dos serviços. Além disso, o movimento apregoava a necessidade de

novos aportes conceituais e metodológicos para oferecer respostas que

instrumentalizassem a população através da participação comunitária nas decisões sobre

os serviços e também para fixar o ideal da multiprofissionalidade nas ações de saúde

(Paim, 1997).

Se nos balizarmos pela periodização, Nunes (1994) diz que os estudos

produzidos no Brasil sobre os determinantes sociais na saúde deram seus primeiros

passos na década de 40 ainda de forma muito incipiente. Remetiam-se apenas às

dimensões culturais que influenciavam no adoecimento. Contudo, o autor ressalta que

somente na década de 70 pode-se afirmar que a sociologia155 embasou os referenciais

das pesquisas de um campo que se formava com o nome de Saúde Coletiva.

A produção acadêmica dos “sanitaristas” teve forte inspiração do movimento

operário italiano156, movimento que originou a corrente teórica “operaísta”. Como

mostramos no capítulo anterior, após 68, a composição política da classe operária

passou por transformações que prolongaram as experiências de organizações operárias

socialistas. O movimento operário vivenciado na Itália afirmou a recusa ao trabalho e a

qualquer figura de delegação e reapropriação do poder. Isto porque compunha uma luta

maior, precedida por Maio de 68, quando todas as formas de disciplinamento foram

contestadas. Sob a ótica do Trabalho, as lutas dos trabalhadores se posicionavam contra

as dinâmicas silenciosas e disciplinadoras do fordismo. Uma nova subjetividade se

155
Nunes (1994) afirma que a sociologia funcionalista foi uma das primeiras correntes a compor os
aportes conceituais da Saúde Coletiva, através do entendimento que a sociedade deveria ser harmônica.
Na mesma década, o estudo sobre a literatura marxista embasou os “sanitaristas” a afirmarem que as
doenças eram socialmente determinadas. Para lançar mão da metodologia marxista a primeira
compreensão era que a dinâmica social precisava ser historicizada, portanto, um objeto de análise estava
em constante construção.
156
Em 1988, o CEBES juntamente com a Editora Hucitec lançou uma coletânea para melhor debater
sobre o assunto: “Reforma Sanitária: Itália e Brasil” foi organizada por Berlinguer, G.; Teixeira, S.F; e
Campos, G.W.S.

238
estruturava a partir da crise deste sistema produtivo; e essa crise deu origem a um novo

paradigma denominado “pós-fordista”.

No pós-fordismo o trabalho determinará o capital, e não o inverso. Não seria

a fábrica o espaço que disciplinaria o trabalho. O que define o pós-fordismo é o

momento em que a vida é posta a trabalhar, e, portanto, todo o território se torna

produtivo, não somente o espaço fabril. A dimensão subjetiva da análise operaísta

mostra que o comando capitalista, portanto, não conseguiria capturar toda a dinâmica da

vida, mesmo que a dimensão social dela seja totalmente incorporada e determinante às

novas formas de produção.

A realidade italiana chegou ao âmbito acadêmico de forma mobilizadora

entre os profissionais da saúde. As experiências que questionaram a representação

democrática fizeram do “sanitarismo” um movimento que protestou contra as próprias

bases da democracia brasileira, nascendo, deste modo, em período ditatorial. A Saúde

então pôde contar com a participação de novos sujeitos sociais na discussão, visto que

suas exigências eram por democracia e por melhores condições de vida para a

população (Bravo, 2001). No movimento dos “sanitaristas” a saúde ganhava dimensões

amplas, pois que assumia uma dimensão política sobre a vida.

Um novo objeto se abria para o campo de análise da Saúde, um sujeito por

hora coletivo, principalmente após a prática vivenciada nas intervenções da saúde

comunitária. Os “sujeitos coletivos” tornaram-se dinâmicos para a Saúde, porque são

um produto das relações sociais. “As práticas de saúde se dão sobre e no coletivo ao

mesmo tempo em que passam a se configurar como práticas coletivas de saúde” (Cohn

apud Nunes, 1994, p.18).

Sob a influência dos movimentos de 68, Nunes (1994, p.18) contextualiza a

formação do campo da Saúde Coletiva como aquele que entende que “ao se submeterem

às regras, os indivíduos se submetem ativamente”. A noção de indivíduo que surgia

239
nesta nova dimensão social não era a visão de um sujeito autômato, disciplinado,

assubjetivado. Era o indivíduo social, capaz de produzir relações, inteligência, afetos.

Uma revitalização dos discursos foi produzida a partir de produções teóricas

que estudavam o trabalho dos próprios trabalhadores da saúde, não somente sobre o

aspecto das suas condições laborativas, mas também pela inserção política nas

instituições estatais e na sociedade (Paim, 1997). Os estudos sobre a categoria Trabalho

como determinante resgatavam a dimensão política da atuação profissional pelo viés da

Saúde Coletiva, o que permitiu alargar os horizontes de análise e de intervenção sobre a

realidade. O debate teórico sobre a dimensão que o Trabalho ocupava sobre a Saúde foi

recuperado nas obras de Asa Cristina Laurell (México) e Giovani Berlinguer (Itália), o

que forneceu elementos para a construção da noção de “trabalhador coletivo”157 no

campo da saúde, momento em que se apropriavam dos estudos feitos sobre Marx.

A interpretação de Merhy (1997, p.126) sobre a produção da Saúde, por

exemplo, é vista sob a dimensão do trabalho vivo, algo que se constitui em ato. Por isso

o autor desenvolveu o conceito que todo processo de trabalho em saúde é algo coletivo,

construído sob a ótica das relações, na produção de vínculos entre profissionais e

usuários. Portanto, alcançar condições de saúde era assumir um compromisso cotidiano

com o cuidado produzido pelos profissionais e os usuários, construindo um produto

(saúde) derivado de uma relação.

No campo da Saúde Mental essa relação ganhou mais evidências. Em 1976,

jovens psiquiatras constituíram o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

(MTSM) e começaram a atuar nos seus espaços de representação (sindicatos, partidos

políticos, CEBES e associações). Esses trabalhadores da saúde formaram uma agenda

para o setor sob o título de “Reforma Psiquiátrica”, introduzindo como principal luta a

estratégia da desinstitucionalização no âmbito das políticas públicas. O movimento

157
A expressão é retirada do artigo de Merhy (1997) no livro “Saúde e Democracia – a luta do CEBES”.

240
denunciava as condições precárias que eram submetidos os pacientes dos hospitais

psiquiátricos e tornou pública as condições institucionais que usuários e profissionais

eram submetidos quando asilados dentro dos hospícios (Amarante, 1997). O movimento

que questionou a própria dimensão disciplinadora da psiquiatria inseriu duas agendas

que eram centrais para os sanitaristas: a primeira era a inversão da política nacional de

saúde mental, que não deveria ficar somente sob o âmbito das clínicas e hospitais

privados – como era reforçado pelo Estado na época; a segunda pleiteava alternativas

extra-hospitalares para que tentassem reverter a dinâmica disciplinar.

Visto a partir desses dois aspectos, o que entrava em questão, portanto, era a

publicização do espaço público e a criação de novos modelos tecno-assistenciais que

não fossem mais hegemonicamente médicos; que não permitissem a completa

privatização dos serviços de saúde pública e que defendessem a saúde no sentido amplo

da vida.

A formação de uma rede de movimentos sociais interligada ao movimento

sanitarista marcou a transição democrática da saúde pública vivida na década de 80. Dos

atores que entraram em cena neste contexto, pode-se destacar: os profissionais de saúde,

as representações profissionais desses trabalhadores, os partidos políticos de oposição, o

Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES)158, os movimentos sociais urbanos159,

estudantes de graduações no campo da saúde, a igreja católica através do trabalho das

pastorais e sindicatos dos trabalhadores da saúde (Bravo, 2001). Portanto, um conjunto

de sujeitos que não estavam ligados a uma dimensão da “classe produtiva”, mas dentro

dos espaços de reprodução social.


158
O CEBES pode ser caracterizado como um produto deste mesmo movimento, passando a protagonizar
os espaços de debate e um dos principais disseminadores das “inovações” geradas pelos sanitaristas. Foi
criado em 1976 (Paim, 1997).
159
“Os movimentos coletivos se expressaram através de fenômenos associativos de moradores de
[periferias urbanas] e de favelas, e também na constituição de novas identidades culturais (como os
movimentos feministas e negro) [...] os protestos populares ocorridos em São Paulo e Rio de Janeiro
contra os serviços ferroviários das periferias e por melhoria dos transportes coletivos em Belo Horizonte e
Salvador. Destacam-se também os movimentos de defesa da ecologia, pela melhoria das condições de
saúde [...] em busca de saneamento, água, luz, transporte e postos de saúde (Bravo, 1996, p.39).

241
Dois momentos históricos distinguem o cenário que iniciou a abertura

política no país e que influenciaram diretamente o campo da saúde: a) a Lei da Anistia

(1979) que permitiu o retorno dos exilados ao país e a recuperação dos direitos políticos

das lideranças; e b) o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT) composto

totalmente por bases sindicais (1981). Na época, o partido ganhou adesão imediata de

intelectuais e legitimou-se após as greves dos trabalhadores160 do ABC paulista nos anos

de 1978, 1979 e 1980. O PT mantinha então alianças com os movimentos de bases

rurais e urbanas, além das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) (Bravo, 1996, p.50).

A luta pela saúde somada aos diversos movimentos possibilitou a realização

de eventos que marcaram o período, como: a “Semana de Saúde do Trabalhador”

(1979) organizada pelos sindicatos; “Movimento de Saúde da Zona Leste de São Paulo”

(final da década de 70) organizado por movimentos comunitários; “I Simpósio sobre

Política Nacional de Saúde” (1979) promovido pela Comissão de Saúde da Câmara de

Deputados em Brasília e que contou com cerca de 800 participantes, dentre eles

parlamentares, associações profissionais, sindicalistas e intelectuais – um acontecimento

que deu novo significado para a Saúde dentro do âmbito do Legislativo. O “I Encontro

Popular pela Saúde” (1980), organizado pelo movimento de associações de moradores

de bairros (FAMERJ) e favelas (FAFERJ) e apoiados pro profissionais da saúde

(sindicatos dos médicos e Associação Estadual de Saúde Pública) – o evento contou

com três mil pessoas que vinham de associações de moradores. Por último, a

“Campanha da Fraternidade ‘Saúde para Todos” realizada pela Igreja Católica

(CNBB) em 1981. O encontro aconteceu na PUC-SP e foi apoiado pelo sindicato dos

160
O movimento sindical se consolidou neste período. A dinâmica do ABC se espalhou para outras
regiões do país e também para fora do setor fabril; pois que na mesma época desencadeiam-se greves
entre os trabalhadores da construção civil, agroindústria, professores e médicos dos serviços públicos. Em
1981 realizou-se a I Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), que havia sido
proposta desde 1977. A conferência trouxe a proposta de criação da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) (Bravo, 1996, p.53).

242
médicos, associação dos médicos residentes de São Paulo, CEBES e vários sindicatos

de trabalhadores (Bravo, 1996, p.57).

A partir de então, pode-se dizer que estava formulado um paradigma de

análise e intervenção para o campo da saúde no país. Quando a ditadura chegou ao

esgotamento, os “sanitaristas” tinham sua agenda política pronta, com as bases

consolidadas, pois vinham de um movimento multitudinário que dentro dele

englobavam-se muitas lutas e isso deu legitimidade para que enviassem um documento

para o Legislativo, intitulado “Saúde e Democracia”. O documento foi repassado

primeiramente à VIII Conferência Nacional de Saúde161 e dela nasceu o texto que se

criou a primeira emenda constitucional transferindo o Inamps para o Ministério da

Saúde.

Após um impasse entre a previdência e a saúde, a transformação do Inamps

em um órgão do Ministério da Saúde gerou a centralização de duas instituições públicas

com muitos problemas burocrático-administrativos. A VIII Conferência reforçou uma

proposta de implantação de ações integradas de saúde, mas para isso seria necessário a

constituição de um sistema descentralizado e unificado, como era proposto pelo

movimento de reforma sanitária. Essa transição democrática deu início a uma reforma

administrativa da previdência, o que assinalava aos poucos a extinção do Inamps do

âmbito da Saúde Pública (Bravo, 1996).

161
A VIII Conferência Nacional de Saúde aconteceu em março de 1986 em Brasília e contou com a
participação de quatro mil e quinhentas pessoas, destas, 50% eram usuários da saúde. No mesmo ano,
pela primeira vez ouviu-se o termo “Movimento da Reforma Sanitária” em substituição ao habitual
termo “movimento sanitarista”, nascido dentro das faculdades de medicina preventiva e social ou de
saúde pública. Ao final do período ditatorial as conferências nacionais de saúde voltaram a ser um espaço
de debates. Informação retirada do site: <http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/sanitarista05.html>. No seu
relatório final constava que a saúde era “resultante das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a
serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as
quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-
se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento,
devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas” (Relatório final in Bravo, 1996, p.77).

243
A VIII Conferência, devido seu grande valor histórico, até hoje é chamada

pela “constituinte da saúde”. No texto de seu relatório final continha a síntese do que

fora o movimento da reforma sanitária no Brasil e veio a se tornar o princípio

constitucional que estabelecia a “saúde como direito de todos e dever do Estado”. Um

texto que futuramente entraria quase por completo na Constituição Federal de 1988.

244
4.4 - Democratização da Saúde, produção do Comum

Após a implantação das bases sociais, a criação e consolidação do Sistema

Único de Saúde fechou um ciclo de lutas sociais comprovando que a saúde coletiva não

era uma política de Estado, mas sim dos movimentos. A democratização dos serviços

por meio da descentralização das ações somente fez por radicalizar o movimento que

buscava proporcionar o acesso mais igualitário da população aos serviços de saúde

pública. Pode-se afirmar que o SUS162 não foi uma vitória das políticas de proteção

social estatais, mas sim uma vitória dos movimentos pela democratização da saúde

pública, expresso através da rede de lutas sociais que se denominou por “movimento da

reforma sanitária”. Após essa realidade de desestatização da política de saúde, ou seja,

tornar a saúde uma política dos movimentos, o SUS tornou-se um sistema respeitado

pelos seus técnicos e reverenciado pela sua constituição democrática. A luta da reforma

sanitária não era por mais intervenção do Estado na Saúde Pública, mas sim por mais

participação dos movimentos na construção de uma política democrática.

Ao contrário do que era apregoado pelo Estado desenvolvimentista e em

seguida pelo Estado autoritário, o movimento de reforma sanitária pleiteava mais

participação dos atores sociais para a construção de uma saúde pública democrática. A

política não deveria ser constituída primeiro pelo Estado e depois pelos movimentos. Ao

contrário, somente as lutas sociais fariam o estreitamento das relações democráticas

dentro do âmbito de Estado. O movimento da reforma sanitária veio a desfazer a

fórmula, “primeiro o Estado, depois a democracia”, que surgiu no desenvolvimentismo

162
“O avanço dos debates sobre a saúde consolida a proposta da descentralização como única alternativa
para a constituição de um sistema de saúde adequado Às reais necessidades da população, viabilizando
sua universalização e equidade [...] a proposta de unificar o sistema de saúde sob a égide do setor público,
com comando único em cada esfera de poder (federal, estadual, municipal) é contemplado na
Constituição Federal de 88. Dentre suas diretrizes gerais, destacam-se: a descentralização, a
universalização, a equidade e a garantia do controle social através dos conselhos de saúde” (Cohn &
Elias, 1988, p.49).

245
e teve continuidade no período ditatorial. A Saúde no Brasil passou pela verdadeira

formação de um movimento constituinte, que colocava a democracia à frente do Estado.

Entretanto, toda essa articulação de um ciclo de lutas vindas do trabalho que

se fechava na década de 80, deparou-se com o acirramento das políticas neoliberais na

década de 90. O neoliberalismo gerou uma falsa interpretação sobre a falência das

políticas públicas que deveriam então ser compensadas pelo mercado. Se a questão

estrutural era a dificuldade do acesso aos direitos, instaurou-se uma dinâmica em que ter

acesso significava ser consumidor. “Nos anos 90 tem a transição de uma ditadura para

outra: de uma ditadura oligárquica, tecnocrática e corporativa à ditadura do mercado”

(Negri & Cocco, 2005, p.33).

Ou seja, abre-se um outro período para a constituição de novas lutas sociais

que não mais teriam o Estado corporativo e tecnocrático como único inimigo a ser

combatido. Nem mesmo o Estado seria o espaço ideal para as mobilizações, pois este

não seria um objetivo alcançável pelos movimentos a partir das lutas. O neoliberalismo

se instaurou como uma ordem global, que na saúde se expressava pelo crescimento

exorbitante dos planos de saúde, o aumento dos preços dos medicamentos devido a

quantidade de inovações (patentes) inseridas nos mercados farmacêuticos, nos custos

dos atendimentos hospitalares tecnologizados e que alimentam a indústria da produção

de medicamentos. Um exemplo disso é o movimento feito pelos técnicos da saúde

pública em tentar reverter a lógica “hospitalocêntrica” tão difundida em épocas de

industrialização e da atenção à saúde em massa.

Os temas das lutas vinham se transformando, mesmo porque as oligarquias

também já haviam sido transformadas, tornaram-se globais juntamente com as relações

de capital que na década de 90 se financeirizaram. Também a classe operária havia se

transformado. O operário fordista é “submetido à chantagem do mercado global e às

novas formas de precariedade que vão se sobrepondo agora à tradicional marginalidade

246
social difusa” (Negri & Cocco, 2005, p.34). Isso evidencia que novos processos

produtivos passam a se formar, baseados em um trabalho sobretudo intelectual e

imaterial, dimensionando a realidade de uma nova economia.

Isto é, um novo ciclo de lutas sociais se abre para a saúde. Lutas que se

organizam de forma global mesmo internamente. Os estudos no campo da Saúde

Coletiva passam a ser demarcados por categorias que se propõem a discutir a produção

política da subjetividade em seu sentido mais amplo, criando categorias como:

prevenção, promoção, afeto, cuidado, subjetividade, acesso, atenção à saúde, etc. Ou

seja, o Sanitarismo está para a Saúde assim como o Fordismo está para o Trabalho. A

multiplicidade trazida dentro do movimento multitudinário da reforma sanitária abre

espaço para novas necessidades e demandas caracterizadas pelo hibridismo das

relações: a saúde da mulher, do negro, dos homossexuais, do ambiente... algo que se

manifestava já na rede de movimentos que compunham a reforma sanitária. Outras

matizes se abrem para a construção de novas estratégias.

No campo conceitual esse hibridismo é a condição essencial e positiva deste

novo lugar ocupado pela “Saúde Coletiva”. As ferramentas criadas funcionam cada vez

mais como próteses humanas integradas ao corpo dos trabalhadores da saúde como uma

espécie de reconhecimento que as tecnologias da saúde são tecnologias sobre a vida;

que geram o contato e a interação. A primeira condição para que essa ruptura

acontecesse foi o reconhecimento das transformações das tecnologias sobre o corpo. Ou

seja, a natureza humana não se separa da natureza como um todo; não existe uma

fronteira fixa entre o homem e a máquina, entre o homem e o animal, entre o masculino

e o feminino, entre o tempo de trabalho e tempo da vida.

O trabalho em saúde está cada vez mais baseado no trabalho afetivo. “O

trabalho de cuidar de alguém está, certamente, imerso no corpóreo, no somático; mas os

afetos que produzem são apesar disso, imateriais” (Hardt & Negri, 2001, p.314). Por

247
isso, as relações não foram empobrecidas pela compreensão do indivíduo social como

objeto da saúde, mas ao contrário, enriquecidas pela complexidade da interação

humana, pela ação instrumental que une a economia às diversas formas de manifestação

das relações sociais. A produção de saúde em ato gera um excesso de valor,

determinado pelo cruzamento de conhecimentos, pela inteligência coletiva e pelo puro

poder de agir.

Em contrapartida, o aspecto central dessa produção é sua relação íntima com

a cooperação, com a colaboração em ato; pois a produção em saúde necessita da

articulação de saberes. A Saúde Coletiva pressupõe que a produção do cuidado e de

práticas terapêuticas integrais seja o resultado de uma inteligência coletiva, de algo que

se constrói através das capacidades humanas na valorização da saúde em seu sentido

mais amplo como vida. É no trabalho vivo produzido que se fundamenta a produção do

“Comum”.

A linguagem, o afeto, as idéias interferem diretamente na recriação das

relações sociais e norteiam as práticas de cuidado163, de atenção; por isso tornam-se

sempre colaborativas ainda que venham a ser processadas em abordagens individuais.

Para a Saúde Coletiva o conhecimento comum produzido é a base de todas as outras

produções que desenvolvem o cuidado e a atenção como produto. Novas relações se

recriam no momento do trabalho vivo – a produção da saúde em ato. São os aspectos

mais sublimes de produção da vida que entram em ação no trabalho em saúde; do toque

à escuta, da articulação do conhecimento científico acumulado para a cura ou à sugestão

por uma atitude. A própria vida tende a ser completamente investida por atos de

produção e reprodução de cuidado, dos prazeres, dos desejos... o trabalho em saúde

contém a riqueza do “Comum”.

163
“O cuidado no campo as saúde é sua própria razão de ser. É o meio e o fim das ações desenvolvidas
pelos profissionais que atuam no campo” (Alves in Mattos e Pinheiro, 2005).

248
O campo da Saúde Coletiva reforça que a valorização deste trabalho se dá

justamente pelo imenso valor produzido através da expropriação do comum. A

produção do comum é o âmbito da geração do valor à Saúde. Essas práticas tornam-se

evidentes, por exemplo, através da “profissionalização do cuidador”. O que é o

“cuidador”? Na linguagem dos profissionais (que também são cuidadores), ele é o

familiar, o amigo ou outro responsável que passa pelo treinamento científico para

desenvolver atitudes ou ações de cuidado. Entretanto, outros cuidadores vêm sendo

produzidos pelos profissionais da saúde. A função do cuidador se generalizou por várias

áreas e sua atividade é necessária no âmbito doméstico, hospitalar164 ou mesmo em

tratamentos considerados de curta duração, mas que precisam de cuidados intensivos. O

cuidador habitual ganhou requinte profissional.

No campo técnico-político, após o avanço da implantação do sistema único

de saúde, a Saúde Coletiva tomou para si uma política de execução da estratégia voltada

à saúde da família. Primeiramente, a tentativa da Estratégia da Saúde da Família (ESF)

é a reversão do modelo de atenção à saúde hospitalar – retirar as pessoas de dentro dos

hospitais e torná-las próximas aos serviços de saúde regionalizados. Não que o território

passe a representar um modelo exclusivo de atenção à saúde de famílias que pertençam

a grupos sociais vulneráveis, mas sim um modelo de território inclusivo a partir dos

serviços de saúde.

Outra estratégia é a formação dos “agentes comunitários”. Os agentes

comunitários de saúde (ACS) desenvolvem a função de serem invisíveis aos olhos do

território de abrangência. Atuam por meio do seu ar familiar, doméstico, comum, a

164
O hospital atual é um lugar repleto de “cuidadores profissionalizados”. Os familiares são “treinados” a
serem cuidadores. Já os voluntários cumprem funções de cuidado seja no trabalho de recreação ou até
mesmo de cuidados espirituais como já é previsto pelo Ministério da Saúde ao campo dos “Cuidados
Paliativos”. As Doulas fazem o trabalho das antigas parteiras, baseado em conhecimentos práticos
aprendidos na vivência familiar ou mesmo comunitária – acompanham mulheres no momento do parto
com a função de “facilitadoras” para obter um parto mais “humanizado”. Toda a tecnologia do cuidado
que vem sendo gerada é a tentativa de gerar o “humano”, a “vida”, ou o “afeto”.

249
partir do seu pertencimento à dinâmica da região. Da sua rotina de “morador” e

pertencente ao território é extraído o conhecimento que possui sobre a vida “em

comunidade”, mais especificamente, sobre a sua comunidade. Ele deve transitar pelo

ambiente mais privado da vida pessoal: a residência. Deve compor a paisagem do

território, ser conhecido para ter permissão ao entrar com a “grife” da Saúde na casa das

pessoas e apontar as irregularidades ou as regularidades de seus modos de vida, seus

estilos ao estabelecer relações, vínculos. Uma rotina é estabelecida para a vida em

comum e então a casa é passível de ser mapeada pela Saúde. Para o agente não é

necessário um saber científico normalizado pela universidade, basta a ele ser comum.

Ter o domínio sobre o tempo da vida naquele espaço; conhecer a realidade do trabalho

desenvolvido por aquele território, ser parte dos costumes, dos hábitos regionais e

familiares. O agente comunitário sai das Unidades de Saúde todos os dias em busca da

captura ao “Comum”.

O hábito é o comum na prática: o comum que estamos


constantemente produzindo e o comum que serve de base para
nossos atos. Assim é que o hábito está a meio caminho entre
uma lei fixa da natureza e a liberdade da ação subjetiva prática
[...] Os hábitos criam uma natureza que serve de base para a vida
[...] são como funções fisiológicas, como a respiração, a
digestão e a circulação sanguínea. Não prestamos atenção a eles
e não podemos viver sem eles. Ao contrário das funções
fisiológicas, contudo, os hábitos e a conduta são compartilhados
e sociais. São produzidos e reproduzidos em interação e
comunicação com os outros. Assim é que os hábitos nunca são
realmente pessoais ou individuais. Os hábitos, a conduta e a
subjetividade individuais só se manifestam com base na conduta
social, na comunicação, no agir em comum. Os hábitos
constituem nossa natureza social (Hardt & Negri, 2005, p.257).

Sob a ótica da Saúde Coletiva os hábitos tornaram-se meios à espera de

serem usados como ferramentas numa caixa; são bases comuns à criação de práticas

interventivas de Saúde, pois neles interagem as singularidades através da multiplicidade

de suas expressões. Assim, o produto produzido pela Saúde é o próprio ato em si. A

250
capacidade do trabalhador da saúde em fazer ou produzir vincula-se às suas próprias

capacidades criativas de sujeito trabalhador (idem, 2005). Por isso é importante

entender que o “comum” não se refere à noção tradicional de comunidade ou à noção de

público, mas o “comum” baseia-se na comunicação entre as singularidades e se

manifesta através dos processos sociais de produção. No mundo contemporâneo o

comum pode ser construído politicamente. Os serviços públicos não constituem o

“comum”, constituem a base da soberania moderna nas mãos do Estado-nação. O

comum é uma produção social biopolítica (Hardt & Negri, p.266/267, 2005). Esse é o

principal traço que marca a passagem da Saúde Pública à Saúde Coletiva. O comum é

social, portanto, coletivo – tornou-se então aquilo que dá nome ao campo: Saúde

Coletiva. Constituiu-se uma transição das lutas sociais na saúde que se desloca “do

público para o comum”.

A chegada de um debate sobre outro paradigma quase sempre pode ser

atribuída por meio do excedente filosófico gerado em acúmulos anteriores. O excedente

gerado pelos sanitaristas foi a crise de seus próprios referenciais e assim, a Saúde

Coletiva se ergueu como um corpo político a favor das multiplicidades trazidas de

forma singular na expressão das subjetividades como uma necessidade social. A

concepção formulada pela Saúde Coletiva reflete um movimento que dialoga com o

novo e ao mesmo tempo com práticas tradicionais; traduzem hábitos, estilos, sonhos,

desejos que potencializam a vida, colocando-a em movimento. A Saúde Coletiva não

são se trata de uma crítica a toda tecnologia produzida pelos sanitaristas, ao contrário.

Somente o acúmulo técnico produzido pelo movimento de reforma sanitária pode servir

de sustentação para o entendimento que a biopolítica da saúde é a luta para não deixar

privatizar o comum e dar representação àqueles que são primordialmente afetados.

No campo macro-político outro fator determinante é a disputa pela posse do

conhecimento produzido, pois as dimensões mais comuns da vida tem se tornado cada

251
vez mais uma propriedade privada. Na década de noventa, uma das principais lutas

econômicas e sociais se deu no campo na produção e distribuição dos medicamentos. A

indústria farmacêutica passou por embates mundiais em torno da luta por quebra de

patentes. Esses embates se dão de maneira difusa, visto que também é difusa a

concentração das informações sobre a produção de pesquisas para medicamentos em

escala mundial. No Brasil, tornou-se uma das principais agendas de governo em prol de

medicamentos “genéricos” e quebra de patentes entre as substâncias que compunham o

“coquetel” para o tratamento da AIDS.

A barreira ao acesso de populações vulneráveis a medicamentos

considerados essenciais e também às “novas drogas” carrega o atual viés economicista

mundial da saúde. A luta dos movimentos sociais globais somada ao trabalho de ONG´s

fez com que muitos países pertencentes à Organização Mundial do Comércio

aprovassem em 2001 a Declaração de Doha. A Declaração permitiria reduzir as

barreiras comerciais aos países pobres (representados pelo G-20) e suspender

legalmente os custos com as patentes de medicamentos quando estivesse em jogo a

saúde pública de suas populações. No entanto, a produção dos grandes laboratórios

internacionais gera um impasse entre os países ricos com alto poder de questionamento

à “Rodada de Doha”, defendendo que o valor atribuído à patente é revertido para que os

laboratórios possam investir em novas pesquisas.

Todavia, em uma pesquisa realizada pela Organização “Medicina sem

Fronteiras” constatou-se que apenas 10% dos gastos com pesquisas em saúde destinam-

se para as doenças que representam 90% das enfermidades mundiais, a maioria delas

são doenças típicas dos países pobres. A produção africana, por exemplo, representa

apenas 1% do mercado mundial entre os grandes laboratórios, mesmo diante de uma

população dizimada por doenças as quais a cura já é sabida165. Com custos altíssimos

165
A informação foi retirada do site: <http://www.msf.org.br/informativos/>.

252
para os países pobres, medicamentos essenciais passam a ser considerados inatingíveis

para milhares de pessoas no mundo.

Ao perceber que os discursos nacionalistas não são suficientes para o

enfrentamento de questões sociais globais. No campo político-estatal verificam-se

novas relações de interdependência sendo construídas entre os países do hemisfério sul.

Após a aliança pré-sabida entre o Estado e o capital (multinacional), somente relações

de interdependência entre os países poderiam deslocar essa realidade. Neste sentido, a

América do Sul tem sido um grande laboratório. A liderança do governo brasileiro na

formação do G-20 é um exemplo. Mas os debates atuais sobre a formação de uma

agenda Mercosul para a Saúde tem fortalecido as relações de cooperação entre as

políticas de saúde para os países do sul. Após o processo constituinte vivenciado pela

saúde no movimento de reforma sanitária, o Brasil tem contribuído para as discussões

que visam a democratização das políticas de saúde na América do Sul. A alternativa tem

se mostrado como uma possibilidade de enfrentamento estatal aos novos conflitos

sociais. E, com isto, o hemisfério sul virou uma “tendência”, não mais a velha

civilização européia.

O movimento de harmonização das políticas de saúde iniciado pelos países

que compõem o Mercosul, através do SGT-11, por outro lado, confirmam que não

existe mais “um lado de fora” no mercado mundial, visto que os conflitos sociais e

econômicos atravessam todos os níveis dos países e blocos mundiais (entre o centro e a

periferia, mas também no centro e na periferia) (Negri & Cocco, 2005, p.34). Perde-se o

foco relacional entre o Estado desenvolvimentista e as empresas multinacionais,

portanto as cooperações que visem a interdependência entre os países tornam-se

necessárias.

Em contrapartida, um movimento de resgate a debates totalmente arcaicos

vem sendo puxado pela própria Organização Mundial da Saúde. As questões que

253
demarcam a saúde nas fronteiras foram retomadas com afinco nesta última década,

evidenciando que as barreiras nacionais precisavam ser retomadas como espaço de lutas

e, conseqüentemente, controle. O debate sobre o Regulamento Sanitário Internacional

surgiu na década de 90 como algo novo, apresentando falsas respostas para uma questão

que a América do sul está apenas re-iniciando com um novo aspecto: os fluxos

migratórios em busca por trabalho e saúde. A agenda da OMS acionou antigos

problemas como resposta à novas questões. Certamente não seria pela criação de novas

barreiras sanitárias que fariam brotar soluções ao “contágio universal” das doenças em

épocas de Império. Por isso, deve-se atentar para o campo das novas lutas sociais, pois

que demonstram, diante das novas tecnologias do poder, que esse outro ciclo de lutas

aberto em Seattle e aportado em Porto Alegre indicam diversos caminhos, mas um deles

é que onde há resistência, há poder.

254
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A América Latina passa por deslocamentos políticos. A Saúde é apenas

mais uma forma de entender que esses deslocamentos formam as evidências de uma

transição democrática. Vários movimentos sem visibilidade constituíram um campo

favorável para a virada à esquerda em quase todos os países do Sul, que vivenciaram a

tão pouco tempo uma ditadura militar em série. O novo ciclo de lutas globais que se

abre demonstra que as alternativas para a criação de mais espaços democráticos estão

nos movimentos vindos da Multidão. O Mercosul, apesar de ser um acordo com quase

20 anos, começa a dar seus passos integradores somente agora, com um momento

democrático favorável à formação de relações de cooperação. Como nos diz Negri &

Cocco (2005), enfrentamos a partir de agora o problema de construir as bases de um

movimento que sustente em todo o mundo a ação autônoma dos movimentos e dos

governos democráticos da América Latina. Descobrimos a democracia, falta-nos

descobrir a sustentação através de instrumentos autônomos de cooperação entre as

nações dos subcontinentes. O cone sul atualmente organiza-se em torno da estruturação

de sua interdependência entre as principais economias.

Não vale mais a pena os discursos de defesas nacionalistas em épocas de

Império. A proteção as fronteiras e as economias nacionais apenas vêm a reforçar

antigos ditames de um desenvolvimentismo que comprovou que nunca foi eficaz do

ponto vista econômico e nem social. Se quisermos protagonizar a democracia dos

muitos, iremos talvez experimentá-la num verdadeiro acordo de parcerias entre os

movimentos que se formam na América Latina. Novos atores entram em cena através

da chegada dos governos populares, articulações cooperativas são realizadas em prol de

um desenvolvimento que enfim possa contemplar as populações mais vulneráveis, como

por exemplo a Índia, a África do Sul ou os países asiáticos. O cone sul desperta para o

255
outro lado do planeta, como alternativa política e fuga de um comando único. Estamos

vivenciando um momento histórico em que os países do Sul acabam por formar um

novo bloco histórico de resistência ao Império, vide o bloqueio da rodada de Doha. O

que os governos eleitos democraticamente na América Latina perceberam é que a

solução para os nossos antigos problemas sociais não virá do capital externo americano,

da defesa do Estado nacional e nem mesmo das preocupações européias com nossos

produtos em circulação pelo livre comércio do sul; mas sim através de acordos que nos

tornam mais ativos no fornecimento de respostas vindas de nossas próprias redes sociais

produtivas e ao mesmo tempo globais.

O que Lula, Kirchner, Morales e Chavez trazem como inovação para o

Mercosul é o entendimento que esta pactuação deve zelar pela sua interdependência e

romper com a imagem da dependência de um poder americano. Existe um certo

ceticismo armazenado que não permite a alguns acreditar plenamente nos acordos feitos

entre os vizinhos “periféricos”, isso porque ainda se apregoa uma “perda de soberania”

ao invés da integração ser pensada sob a perspectiva da interdependência. Paira um

sentimento que o Estado deve ser mais ofensivo em suas ações, visando principalmente

a competição e não a cooperação de suas forças produtivas 166. No Brasil, é sabido que os

seus dispositivos estatais sempre funcionaram como instrumento das elites para a

exploração; baseado em práticas de exclusão e racismo. Portanto, essa nova classe

política, herdeira das lutas populares e democráticas, mas também da Batalha de

Seattle, se coloca – dentro de um plano permeados também por contradições – para

além da relação de capital nacional e além da relação de dependência, mas sim uma

cooperação entre relações sociais e políticas em âmbito global (idem, 2005). O

166
“As velhas ideologias segundo e terceiro-mundistas da reforma e da revolução são varridas. Os
dogmáticos, a esse respeito, só sabem se lamentar e denunciar traições ou ilusões (Negri & Cocco, p.209,
2005).

256
Mercosul tem se tornado a teoria e a prática de uma base política autônoma dos

movimentos na América Latina.

Para a constituição dessa base política, uma alternativa foi compor a pauta

negociadora da Saúde. Tentar a coordenação de ações e legislações entre os governos

nacionais referentes à atenção à saúde mostra-se como uma saída mais protecionista

aparentemente. Contudo, o espaço mostrou-se apropriado para colocar em questão

agendas como a produção de medicamentos e a comercialização dos mesmos a custos

mais reduzidos entre os países do cone sul. A atenção à saúde de pessoas que circulam

pelo acordo aduaneiro; as medidas de vacinação; ações preventivas a epidemias como a

AIDS; ou a coordenação de uma ação de controle ao uso do tabaco conjuntamente,

mostraram-se eficazes na simbologia produzida em torno do discurso da prevenção,

recuperação, e proteção de suas populações. As iniciativas da Saúde no Mercosul

serviram para acumular capital político e demonstrar atitudes de resistência aos grandes

laboratórios internacionais; além de promover um espaço de troca de experiências,

modelos exitosos no campo da saúde: como a atenção à saúde da família ou mesmo o

sistema único de atenção à saúde no caso do Brasil.

As reuniões ministeriais orientadas pelo SGT 11 avançaram de forma

substancial em suas discussões, iniciando os debates mais administrativos à princípio –

voltados para a regularização e para a normatização da estrutura e, depois mais

macropolíticos no direcionamento das ações e das decisões entre os países. A agenda

surgida sobre os medicamentos genéricos foi um momento importante do jogo político.

A partir dela a arena se abriu para vários outros pontos de discussão: o acesso aos

medicamentos para os países-membros; a cura de doenças consideradas de regiões

pobres; o direito ao atendimento médico em zonas fronteiriças. Os grupos de interesse

então se formaram: lobistas da indústria farmacêutica, movimentos sociais como os de

gênero, raça, etnia, a luta antimanicomial, movimentos sexistas, e por fim, os

257
trabalhadores da saúde reivindicando o direito a deslocar-se. A livre circulação de

trabalhadores no Mercosul foi algo inusitado. A validação de diplomas e também a

demanda por direitos trabalhistas iguais em qualquer parte do cone sul, fizeram dos

trabalhadores da saúde porta-vozes de algo muito maior: o direito a livre circulação, que

traria, sem dúvidas, um enorme excedente de produção; pois legalizaria a situação de

inúmeros trabalhadores no campo da saúde.

Dentre os grupos formados, fóruns abertos e comissões consideradas

progressistas instituídas; a retomada do debate sobre o Regulamento Sanitário

Internacional gerou um retrocesso nas reuniões ministeriais e também no SGT 11. A

agenda pré-determinada pela ONU/OMS pretendia reerguer antigas barreiras sanitárias

e tornou-se parte integrante do Subgrupo até então desdobrar-se em linhas de

financiamento para pesquisas que capturavam a cada uma das potências de qualquer

país ali representado. O Mercosul, que moderava suas negociações de forma a

beneficiar seus membros e associados, paralisou temporariamente suas ações mais

aguerridas. A soberania imperial chegou incisiva e contundente na agenda das reuniões

ministeriais. Mas a harmonização de diplomas foi o elemento integrador que

estabeleceu definitivamente um jogo político dentro do acordo aduaneiro. Isto porque,

somente a compreensão e o reconhecimento desta força produtiva se desdobrariam em

uma série de outras discussões mais políticas no campo da saúde – estes eram os ativos

sociais.

A formação dessas redes no cone sul é o resultado imediato provocado

pelos novos ciclos de lutas globais. É preciso estar atento à estes novos movimentos

para também entender as novas tecnologias de poder. A América do Sul respondeu

prontamente aos movimentos globais através da vitória de seus governos de esquerda e

também através da formação do G-20. O movimento iniciado em Seattle, aportado em

Porto Alegre e ramificado de forma difusa pelos países no mundo, trazem as

258
comprovações para indicar que é preciso lutar duplamente em tempos de Império. As

novas lutas são compostas por uma rede de movimentos que trazem peculiaridades tão

locais, mas ao mesmo tempo atuam conectadas mundialmente. Nesta rede está a

composição potente da multiplicidade na singularidade da Multidão. Foram os

movimentos de questionamento às cúpulas mundiais que mostraram às populações que

o poder tornou-se difuso e sem rosto. Que o primeiro e o terceiro mundo estão juntos

em todos os lugares. Que lutar pela saúde é defender a vida de muitas populações.

O movimento esboçado pelos países do Sul em prol da quebra de patentes

de medicamentos considerados essenciais questiona a privatização do comum. As lutas

globais pela saúde se posicionam contra o controle da vida através do adoecimento e

morte de populações inteiras por motivos em que a cura ou o tratamento já são

conhecidos. A indústria farmacêutica e suas inovações são tão globais quanto o ato de

dizimar territórios pobres por falta de água, medicamento, alimentos, ou por não ter a

posse sobre o conhecimento produzido e privatizado por meio das patentes. Seattle

iniciou o questionamento que Porto Alegre difundiu para o mundo.

Os movimentos globais preencheram a plataforma dos governos dessa nova

esquerda que chegou em bloco ao cone sul. Representados pelas causas ligadas à terra, à

questão indígena, aos negros, aos pobres, trabalhadores empregados ou mesmo

desempregados. Mas também na luta por produção de conhecimento (pesquisa) e por

direito à informação. Os movimentos sociais globais trouxeram o comum para o centro

de suas contestações, demonstrando que suas causas não são únicas por movimento,

mas são múltiplas e estão dentro de muitos movimentos. O devir desta transição

democrática vivida agora na América Latina é um momento para pensar a democracia

no seu sentido mais verdadeiro: atendendo a todos e de todos.

A compreensão que o trabalho em saúde tornou-se mais biopolítico do

ponto de vista de suas ações e mais imaterial nos seus produtos torna-se a chave da

259
questão que precisava ser desvendada. No trabalho da saúde estão imbuídas relações

sociais, afeto, conhecimento, produção de linguagem e simbolismos. Sua característica

mais abstrata traz dentro dele a potência de agir, pois tece relações de cooperação

através da formação de redes e da comunicação entre elas – produção de informação. A

produção biopolítica nele não pode ser medida. Pensar a circulação de profissionais da

saúde, portanto, significa colocar na agenda a harmonização de uma política de saúde.

Algo que não é tão simples e que certamente não se pactuaria no Mercosul neste

momento, mas demonstrou que muitas alternativas de cooperação podem ser apontadas,

inclusive sob à ótica do trabalho.

A coletividade que se insere nos estatutos das novas formas de produção

também insere a possibilidade da criação de estratégias baseadas nessa mesma

coletividade que agora é reforçada. O movimento multitudinário de reforma sanitária

acontecido no Brasil gerou um por vir que produziu o campo da Saúde Coletiva repleto

de possibilidades, mas também de discursos contraditórios e complexos. O SUS se

tornou um exemplo de democracia conquistada através dos movimentos, resta agora

sustentar o crescimento de mais espaços democráticos para a Saúde. A resposta está nos

movimentos: as lutas são por mais democracia. É a democracia que deve vir antes do

Estado, fundamentalmente.

260
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269
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( http://www.livrosgratis.com.br )

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