Ensaio Acerca Do Entendimento Humano

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J o h n L o cke

E n s a io A c e r c a d o E n t e n d im
entoHumano

Tradução de Anoar Aiex

HOM CULTUR/IL
Fundador
VICTOR CIVITA
(1907-1990)

Editora Nova Cultural Ltda.

Copyright © desta edição 1999, Editora Nova Cultural


Ltda.

Rua Paes Leme, 524 - 10“ andar


CEP 05424-010 - São Paulo - SP.
Coordenação Editorial: Janice Florido
Chefe de Arte: Ana Suely Dobón
Paginação: Nair Fernandes da Silva

Direitos exclusivos sobre as traduções deste volume:


Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo

Direitos exclusivos sobre "Locke - Vida e Obra":


Editora Nova Cultural Ltda.

Impressão e acabamento: Gráfica Círculo

ISBN 85-13-00906-7

Venda permitida somente em conjunto com edições de


jornais
V id a e O b r a
Consultoria de Carlos Estevam Martins e João Paulo Monteiro

A HISTÓRIA política da Inglaterra do século XVII tem como mar cos


bem nítidos os anos de 1603 e 1689. Em 1603, faleceu Elizabeth I (1533-1603) e
a coroa foi colocada na cabeça de Jaime Stuart (1566-1625). Em 1689, a
Revolução Gloriosa fez ascender ao trono real Guilherme de Orange
(1650-1702) e sua esposa Maria (1662-1694). Entre aquelas datas, ocorreram os
conflitos decorrentes do abuso do poder, por parte dos monarcas da dinastia
dos Stuart, e as tentativas de consolidação dos interesses da burguesia,
realizadas pelos seus representantes na Câmara dos Comuns.
No século anterior, o absolutismo dos Tudor constituía expressão dos
interesses da burguesia, e, além disso, os principais representantes do
absolutismo desse período, Henrique VII (1491-1547) e Elizabeth I, fo ram
muito hábeis em manter seu poder com todas as aparências de governo
popular. Quando desejavam decretar medidas de popularidade duvidosa,
recorriam à formalidade de obter aprovação parlamentar; quando neces
sitavam mais dinheiro, sabiam como fazer para que as desapropriações
parecessem dádivas voluntárias dos representantes do povo.
No século XVII, contudo, a situação alterou-se. A burguesia já estava
suficientemente fortalecida e poderia prescindir de governos fortes para
solidificar seu domínio sobre a nação. Acrescentava-se a isso o fato de que os
soberanos Stuart não tinham a mesma habilidade que seus ante
cessores. Jaime I, por exemplo, a quem Henrique IV da França (1553-1610)
chamava "o imbecil mais esclarecido da cristandade", pretendia funda mentar
a autoridade real no poder divino. Seus sucessores caminharam pelas mesmas
vias e todo o século XVII ficou marcado pelos constantes conflitos entre a
autoridade real e a autoridade do Parlamento. Esses con flitos assumiam
aspectos religiosos, envolvendo protestantes contra cató licos, mas, sobretudo,
eram expressão de interesses econômicos divergen­

—5—
OS PENSADORES

tes. Além das oposições entre a aristocracia medieval e a burguesia, con


trapunham-se os interesses da burguesia mercantil, protegida por privi légios
de monopólio, e de novos setores que procuravam quebrar esses monopólios,
alterando as relações existentes no comércio internacional. Ao lado dessas
forças, havia ainda uma nova classe de empresários agrí colas e novas
camadas urbanas, interessadas na expansão da indústria de transformação.
O resultado dos conflitos foi a derrota final do absolutismo com a
Revolução Gloriosa. Em 1689, a Câmara dos Comuns triunfou, mandando
chamar Guilherme de Orange e sua esposa Maria, que se encontravam
refugiados na Holanda. Outorgando-lhes o poder real, o Parlamento bur
guês deixava claro que esse poder era derivado do seu e nele deveria
fundamentar-se.

M é d ic o , Fil ó s o f o e P o l ít ic o

No navio que transportava Guilherme de Orange e sua esposa Maria


encontrava-se o filósofo John Locke e isso não era obra de simples acaso.
Locke participou ativamente do processo revolucionário realizado em seu
país e essa participação poderia ser remontada até suas origens familiares.
John Locke nasceu a 29 de agosto de 1621, no seio de uma família de
burgueses comerciantes da cidade de Bristol. Quando estourou a re volução de
1648, seu pai adotou a causa dos puritanos e alistou-se no exército do
Parlamento.
Na mesma época, Locke estudava na Westminster School, e, em 1652,
transferiu-se para o Crist Church College de Oxford, instituição à qual estaria
ligado até 1684, primeiro como aluno, depois como "fellow". Em Oxford,
Locke desencantou-se com o aristotelismo escolástico ali en
sinado, mas recebeu também duas influências fundamentais para o curso
posterior de seu pensamento: a de John Owen (1616-1683), que enfatizava a
importância da tolerância religiosa, e a de Descartes (1596-1650), que o
libertou "do ininteligível modo de falar" dos escolásticos. Seus interesses
como estudante foram bastante diversificados, abrangendo desde a quí
mica e a meteorologia até a teologia. Finalmente, optou pela medicina como
atividade profissional. Datam dessa época suas amizades com Robert Boyle
(1627-1691) e Thomas Sydenham. Boyle, repudiando a teoria aris totélica dos
quatro elementos (água, ar, terra e fogo), foi o primeiro a formular o moderno
conceito de elementos químicos. O segundo revolu cionou a medicina clínica,
abandonando os dogmas de Galeno (130-200) e outras hipóteses especulativas
e baseando o tratamento das doenças na observação empírica dos pacientes.
Locke integrava, assim, o círculo da­
LOCKE

queles que valorizavam a experiência como fonte de conhecimento, e sua


obra posterior sistematizaria a filosofia empirista. Nesses anos, redigiu uma
pequena obra em latim, Ensaios sobre a Lei da Natureza.
Embora fortuitamente, sua dedicação à medicina experimental tam bém
serviu para fazê-lo ingressar nos círculos políticos da Inglaterra. Em 1666,
Locke tornou-se médico de Anthony Ashley Cooper (1621-1683),
posteriormente lorde e primeiro conde de Shaftesbury. Como obteve su cesso
no tratamento, Ashley o empregou como médico particular e acabou por
atribuir-lhe outras funções, como a de seu assessor. Locke participou, assim,
da elaboração de uma constituição para a colônia de Carolina, si tuada na
América do Norte. Em Exeter House, residência de lorde Ashley em Londres,
Locke convivia com os mais altos círculos intelectuais e po líticos da época.
Nesse período começou a escrever uma de suas obras principais, o Ensaio
sobre o Entendimento Humano, na qual trabalharia du rante quase vinte anos.
Com a rápida ascensão de lorde Ashley, multiplicaram-se suas ocu
pações políticas. Em 1672, lorde Ashley recebeu o título de conde de Shaf
tesbury e tornou-se Presidente do Conselho de Colonização e Comércio; logo
depois, ascendeu ao cargo de chanceler. Acompanhando-o, Locke tomou-se
Secretário para a Apresentação de Benefícios, devendo cuidar de todos os
problemas eclesiásticos.
Shaftesbury representava, na política britânica, os interesses do Par
lamento e cada vez mais opunha-se às medidas do soberano Carlos II
(1630-1685), contrárias a esses interesses e que tentavam fortalecer o ab
solutismo. Em 1675, Shaftesbury foi destituído de todos os seus cargos e
Locke foi também obrigado a abandonar as atividades políticas. Viajou então
para a França, onde permaneceria durante três anos e se relacionaria com os
círculos intelectuais de Montpellier e Paris. Em 1679, voltou à Inglaterra
encontrando-a em grande agitação política. Shaftesbury, líder da oposição a
Carlos II, estivera preso, mas voltara a fazer parte do governo, em 1678,
desempenhando as funções de Presidente do Conselho Privado. Os serviços
de Locke foram novamente requisitados, mas suas relações com o governo do
monarca Carlos II não durariam muito tempo. Em 1681, Shaf
tesbury, acusado de chefiar uma rebelião para depor o soberano, foi preso e
compelido a trocar a Inglaterra pela Holanda, onde faleceu em 1683. Locke
passou a ser vigiado pelo partido do rei e também acabou procurando refúgio
na Holanda, onde existia liberdade de pensamento.

Os P r in c íp io s d a T o l e r â n c i a

Mesmo na Holanda os agentes de Carlos II perseguiam Locke, que se


OS PENSADORES

disfarçou, em Amsterdam, sob o nome de dr. Van der


Linden. Apesar de per seguido, conseguiu
relacionar-se com Jean Leclerc (1657-1736), editor de
um pe riódico literário intitulado Biblioteca Universal e
Histórica. Para essa publicação,
Locke contribuiria com vários artigos. Contava então
54 anos de idade. Suas principais obras, contudo, só
seriam publicadas entre 1689 e 1690, ao voltar à
Inglaterra, depois da vitória do Parlamento na
Revolução Gloriosa e conseqüente ascensão ao trono
de Guilherme de Orange e Maria. Nesses anos, Locke
publicou a Carta sobre a Tolerância, os Dois Tratados sobre
o Governo Civil e o Ensaio sobre o Entendimento Humano.
A primeira Carta sobre a Tolerância causou muita
polêmica e Locke escreveu outras três. Nelas, advoga
a liberdade de consciência religiosa (um dos principais
temas políticos da época), sustentando a tese de que o
Estado deveria apenas cuidar do bem-estar material
dos cidadãos e não tomar partido de uma religião. O
Primeiro Tratado sobre o Corpo Civil combate, ironica
mente, a tese de sir Robert Filmer (1588-1653),
defensor do absolutismo dos Stuart, segundo a qual
os monarcas reinantes remontavam seu poder a Adão
e Eva. O Segundo Tratado do Governo Civil desenvolve as
teses políticas liberais de Locke. O Ensaio Sobre o
Entendimento Humano seria sua obra mais importante,
do ponto de vista estritamente filosófico. Além dessas
obras, Locke publicou Alguns Pensamentos Referentes à
Educação, em 1693, e Racionalidade do Cristianismo, em
1695. A primeira é especialmente importante por
constituir uma aplicação de sua teoria empirista do
conhecimento aos problemas do ensino. Locke
sustentava que "pode-se levar, facilmente, a alma das
crianças numa ou noutra direção, como a própria
água".
Os últimos anos da vida de Locke foram relativamente
calmos, den tro da nova situação política criada pela
Revolução Gloriosa. Depois de viver dois anos com o
modesto cargo de Comissário de Recursos e recusar
oferta para desempenhar as funções de embaixador
em Brandenburgo, passou a residir nas terras de sir
Francis Mashan. Na residência de Mashan, em Oates,
recebia a visita de seus amigos, entre os quais Isaac
Newton (1642-1727), um dos criadores da física
moderna.
Em 1696, Locke assumiu o cargo de Comissário da
Câmara de Comércio, sendo obrigado a deslocar-se
freqüentemente até Londres. Quatro anos depois, com
a saúde já debilitada, renunciou ao cargo,
dedicando-se a uma vida de meditação e
contemplação. Morreu no dia 27 de outubro de 1704.

A C r ít ic a a o I n a t is m o

Durante toda a vida, Locke participou das lutas pela


entrega do poder à burguesia, classe a que pertencia.
Na época, isso significava lutar
LOCKE
contra a teocracia anglicana e suas teses legitimadoras: a de que o poder do
rei seria absoluto e a de que esse poder diria respeito tanto ao plano espiritual
quanto ao temporal, o soberano tendo direito de impor à nação determinada
crença e determinada forma de culto.
Locke insurgia-se contra essas teses políticas, vinculando-as a teses
filosóficas mais gerais, fundamentadas, em última instância, numa certa
teoria do conhecimento. As palavras iniciais do Ensaio sobre o Entendi mento
Humano são muito mais claras nesse sentido. Relatando as cir cunstâncias da
origem da obra, o autor diz que o Ensaio resultou das
dificuldades surgidas para a resolução de um problema filosófico, abor dado
em discussão fortuita entre amigos; diante da dificuldade, Locke sugeriu uma
prévia indagação sobre a extensão e o limite do entendi mento humano. A
indagação proposta acabou por se transformar na obra com a qual o pensador
pretendia "fundamentar a tolerância reli giosa e filosófica1'.
Papel fundamental no Ensaio é desempenhado pela análise crítica da
doutrina das idéias inatas. O problema surgiu na mente de Locke pela leitura
da obra O Verdadeiro Sistema Intelectual do Universo, de autoria de um dos
principais animadores da escola platônica de Cambridge, o filósofo Ralph
Cudworth (1617-1688). Esse pensador sustentava que a demonstra ção da
verdade da existência de Deus exige o pressuposto de que o homem possui
idéias inatas, isto é, idéias que se encontram na alma desde o nas
cimento, e que, portanto, não derivam de qualquer experiência. Para Cud
worth, a doutrina empirista, segundo a qual "nada está no intelecto que antes
não tenha estado nos sentidos", conduz diretamente ao ateísmo e por isso
deve ser combatida.
O livro I do Ensaio de Locke é dedicado à crítica do inatismo de fendido
por Cudworth. Locke procura demonstrar que o inatismo é uma doutrina do
preconceito, levando diretamente ao dogmatismo individual. Se os princípios
fossem verdadeiramente inatos, constituiriam uma cer
teza irredutível, sem nenhum outro fundamento a não ser a afirmação do
indivíduo. Critica ainda o inatismo, afirmando que os princípios chamados
inatos deveriam encontrar-se em todos os indivíduos, como aspectos
constantes e universais. Mas isso, entretanto, não ocorre. Exa minando-se os
indivíduos — diz Locke —, verifica-se que apenas uns poucos conhecem, por
exemplo, os princípios de identidade e contra dição lógicas. Da mesma forma,
nem todos conheceriam os princípios da vida prática, como "age com relação
aos outros como gostarias que agissem com relação a ti".
Além de negar que os princípios supostamente chamados inatos sejam
universais, Locke afirma que eles não têm maior utilidade, pois
OS PENSADORES

seria possível chegar mais ao exato conhecimento sem


nenhuma necessi dade de se recorrer a eles. Para julgar
que o doce não é amargo, por exemplo, bastaria
perceber o doce e o amargo em separado;
imediatamente se concluiria que são diferentes. Nesse
caso, não haveria a menor neces sidade de se utilizar o
princípio de identidade lógica, segundo a qual é
impossível que uma coisa seja distinta de si mesma.
Analogamente seria possível, segundo Locke, provar
a existência de Deus sem nenhuma fun damentação
numa suposta idéia inata de Deus; ou seja, o chamado
"ar gumento ontológico" não teria nem validade nem
utilidade. Santo Agos tinho (354-430), Santo Anselmo
(1035-1109), Descartes (1596-1650), defen sores do
inatismo, afirmavam a existência no espírito humano,
antes de qualquer experiência, da idéia de um ser
perfeito; daí concluíam sua exis tência autônoma. Ao
contrário, segundo Locke, a existência de Deus po
deria ser demonstrada por uma variante da prova "por
contingência do mundo": a existência do ser
contingente, que é o homem (conhecimento adquirido
pela experiência), supõe a existência de um ser eterno,
todo poderoso e inteligente. Além disso, a não
universalidade da idéia de Deus ficaria comprovada
pelo fato de que há selvagens que seriam inteiramente
destituídos dessa idéia.
A crítica ao inatismo, realizada por Locke, levou-o a
conceber a alma humana, no momento do nascimento,
como uma "tábula rasa", uma espécie de papel em
branco, no qual inicialmente nada se encontra escrito.
Chega, então, à conclusão de que, se o homem adulto
possui conhecimento, se sua alma é um "papel
impresso", outros deverão ser os seus conteúdos: as
idéias provenientes — todas — da experiência.
Locke procurou, então, descobrir quais seriam os
elementos consti tutivos do conhecimento, quais as
suas origens e processo de formação, e qual a
amplitude de sua aplicabilidade. Em outras palavras,
se o homem não possui idéias inatas — ao contrário
do que afirmavam Platão (428/7- 348/7 a.C.),
Agostinho, Descartes e outros —, pergunta-se: como
pode o homem constituir um conhecimento certo e
indubitável e em que casos isso é possível?

Q u e S ig n if ic a P e n s a r ?

No livro II do Ensaio sobre o Entendimento Humano,


Locke começa por afirmar que as fontes de todo
conhecimento são a experiência sensível e a reflexão.
Em si mesmas, a experiência sensível e a reflexão não
cons tituiriam propriamente conhecimento; seriam,
antes, processos que suprem a mente com os materiais
do conhecimento. A esses materiais, Locke dá o nome
de idéias, expressão que adquire, assim, o sentido de
todo e qual

— 10 —
LOCKE
quer conteúdo do processo cognitivo. "Idéia" é, para Locke, o objeto do
entendimento, quando qualquer pessoa pensa; a expressão "pensar" é as sim
tomada no mais amplo sentido, englobando todas as possíveis ativi dades
cognitivas. Incluem-se no significado da expressão "idéia" os "fan tasmas"
(entendidos, por Locke, como dados imediatamente provenientes
dos sentidos), lembranças, imagens, noções, conceitos abstratos. As idéias de
sensação proviriam do exterior, enquanto as de reflexão teriam origem no
próprio interior do indivíduo. Nesse sentido, expressões como "amarelo",
"branco", "quente” designam idéias de sensação; enquanto as palavras
"pensar", "duvidar", "crer" nomeiam idéias de reflexão. Essas duas categorias
de idéias seriam recebidas passivamente pelo entendi mento e Locke lhes dá o
nome de "idéias simples".
A simplicidade das idéias não decorreria de nenhum caráter interior a
elas mesmas; seriam simples as idéias que não se pode ter a não ser mediante
experiências bem concretas, como frio e quente, doce e amargo etc. Essas
experiências concretas forneceriam idéias simples de três tipos: de sensação,
de reflexão e de ambas ao mesmo tempo. Exemplos das primeiras são o
quente, o sólido, o duro, o amargo, a extensão, o movi mento; entre as
segundas, encontram-se a atenção, a memória, a vontade; finalmente, idéias
simultaneamente de sensação e reflexão seriam as de existência, duração,
número.
A noção de idéias simples coloca de imediato o problema de saber se
elas são mesmo representativas, isto é, imagens das coisas exteriores ao sujeito
que as percebe. Para melhor solucionar a questão, Locke separa as idéias
simples em dois grupos. O primeiro é formado por idéias "enquanto
percepções em nosso espírito"; o segundo, "enquanto modificações da matéria
nos corpos causadores de tais percepções". Estas últimas seriam efeitos de
poderes ou potências capazes de afetar os sentidos humanos.
Tal distinção conduz Locke a uma outra: entre qualidades primárias e
qualidades secundárias dos corpos exteriores à mente. Assim, Locke transita
da teoria do conhecimento para a teoria do mundo físico. As qualidades
primárias seriam inseparáveis dos corpos, tais como a solidez, a extensão, a
figura e o movimento; mesmo que um certo corpo seja di
vidido em dois, essas qualidades persistiriam nas partes resultantes. As
qualidades secundárias, ao contrário, não persistiriam e não estariam nos
objetos senão como poderes para produzir várias sensações nos sujeitos
percipientes; assim ocorre com os sons, os gostos e as cores.
As idéias simples constituiriam os elementos com os quais se formam as
idéias compostas, que se dividem em dois grupos. O pri meiro é constituído
por idéias simples combinadas na idéia de uma

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OS PENSADORES

coisa única, como por exemplo a idéia de homem ou


de ouro. O segundo é formado por idéias que se
reúnem para formar uma idéia composta, mas que
continuam representando coisas distintas; é o que
ocorre com todas as idéias de relação, como a de
filiação, que une, sem alterá-las, as idéias de pai e
filho.
O primeiro grupo, por sua vez, subdivide-se em duas
classes: idéias de modo das coisas que não podem
subsistir por si mesmas (um triângulo ou um número,
por exemplo) e as substâncias que, como diz a própria
palavra, subsistem por si; seria o caso da idéia de
homem, entre outras. Os próprios modos dividem-se
em simples e compostos, ou mistos. Nos primeiros a
idéia simples combina-se consigo mesma, como a idéia
de números, que resulta da combinação das idéias de
unidades; ou a de espaço, proveniente da combinação
das idéias de partes homogêneas. Os modos
compostos, ou mistos, derivam da comunicação de
idéias simples heterogêneas, como a idéia de beleza
ou de assassinato.

A S u b s t â n c ia I n c o g n o s c ív e l

Segundo o projeto de Locke, a teoria elaborada no


Ensaio sobre o Entendimento Humano possibilitaria
encaminhar de outra forma a solu ção de muitos
problemas filosóficos, que só as teorias inatistas se jul
gavam capazes de resolver. Dentre esses problemas, os
mais impor tantes, a seu ver, eram os referentes às
noções de infinito, de potência e de substância.
O infinito é concebido por Locke como um modo
simples, resultante da repetição da unidade
homogênea de número, duração e espaço, dis
tinguindo-se do finito tão-somente pelo fato de que tal
repetição não tem limite. Portanto, é falso — diz Locke
— considerar o infinito como anterior ao finito e que o
finito seja uma limitação do infinito. Pelas mesmas
razões, é falso também conceber um infinito de
perfeição, diferente do infinito de quantidade.
A idéia de poder é concebida pelo autor do Ensaio
como um modo simples, formado pela repetida
experiência de certas modificações com provadas nas
coisas sensíveis e no próprio homem. Este chega à
idéia de poder, quando nota que suas idéias se
modificam sob influência das im pressões dos sentidos
ou por escolha de sua própria vontade. A idéia de
poder formar-se-ia também quando o homem imagina
a possibilidade de tais modificações virem a ocorrer
no futuro; nesse caso produzem-se as idéias de
potência ativa, referente àquilo que causou a
modificação, e de potência passiva, que diz respeito
àquilo que sofre a modificação. Mas, em geral, a idéia
de potência ativa seria uma idéia de reflexão,
proveniente
LOCKE

das modificações produzidas pela vontade do homem nas coisas externas;


nesse sentido, a vontade é uma potência ativa.
O terceiro problema abordado por Locke foi o da natureza da
substância. A substância sempre foi entendida como realidade primi tiva, mas
filósofo algum — pensa Locke — foi capaz de dizer claramente o que
entendia por esse substrato de todos os atributos. No Ensaio sobre o
Entendimento Humano encontra-se a tese de que as insuficiências das doutrinas
tradicionais decorrem de terem os filósofos erradamente con cebido a
substância como uma idéia simples, quando, na verdade, se
trata de idéia composta. Tomando-se como exemplo o ouro, de acordo com a
tese de Locke, sua substância não seria mais do que um conjunto de idéias
simples, que a experiência mostra sempre agrupadas: amarelo, dúctil, denso
etc. Nesse caso a substância não seria mais do que um modo misto, que é
também um grupo constante de idéias simples deno minadas por uma só
palavra.
Essa tese de Locke sobre a substância não significa, contudo, que ele
afirmasse a realidade como formada exclusivamente pelas idéias sim ples;
Locke admite a existência real das substâncias, mas acha que elas não podem
ser conhecidas em si mesmas. A tese de Locke é, assim, re ferente ao
conhecimento e não tem, propriamente, um significado meta físico. A
substância reduzir-se-ia a uma espécie de infinito em ato; existe mas não se
pode saber o que seja, e a única investigação possível é a pesquisa
experimental das qualidades que nela coexistem. Dessa forma, para conhecer
os corpos que compõem a realidade exterior ao homem, é suficiente
considerar a substância um conjunto de idéias simples de sen sação.
Analogamente, deve-se entender a realidade interior (alma, na me tafísica
medieval) como conjunto de idéias de reflexão.

Os F u n d a m e n t o s d a C e r t e z a

Depois de analisar os materiais constituintes do entendimento hu mano,


o Ensaio aborda o problema dos limites do conhecimento e suas formas
legítimas, ou seja, a verdade. Para o autor, o conhecimento constitui
percepção de conveniência ou discordância entre as idéias e expressa-se
através dos juízos. Trata-se, portanto, da percepção de vínculos, que podem
ser de três tipos: identidade (ou diferença), quando se diz que A é B ou A não é
B; relação, como a expressa na frase "João é filho de Paulo", ou qualquer outra
referente a semelhança e dessemelhança, maior e menor etc., e de coexistência.
Além desses três tipos de vínculos entre as idéias, existiria uma quarta
classe de conveniência, referente não às relações possíveis entre

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O S PENSADORES____________________________________________

as próprias idéias, mas à correspondência que uma idéia possa ter com a
realidade exterior ao espírito humano. Nos termos do próprio Locke, a quarta
classe de conveniência é "a de uma existência real e atual que convém a algo
cuja idéia temos em mente". A percepção da existência — diz Locke — é
irredutível à percepção de uma relação entre duas idéias, em virtude de a
existência não ser uma idéia como a de doce ou amargo, quente ou frio.
Existem várias espécies de certeza com relação à existência das coisas. Uma
primeira espécie é a certeza intuitiva, proveniente da reflexão, que o homem
tem de sua própria existência. Uma segunda espécie seria a certeza demons
trativa da existência de Deus. Finalmente, uma terceira espécie é a "certeza por
sensação", referente aos corpos exteriores ao homem.
A dualidade dos juízos, separando de um lado as relações que se
podem estabelecer entre as próprias idéias e, de outro, aquelas que se referem
à existência real dos correspondentes às idéias, coloca-se também quanto ao
problema da verdade e de sua contraparte, a falsidade. Segundo Locke, há
duas categorias de juízos falsos. Na primeira categoria, a relação expressa pela
linguagem não corresponde à relação percebida intuitiva mente entre as idéias.
Na segunda, o erro não consiste em perceber mal uma relação, mas em
percebê-la entre idéias não correspondentes a qual
quer realidade. No primeiro caso é possível, evitando o erro, formular-se um
juízo verdadeiro que, no entanto, nada diz respeito à realidade; é o que ocorre
quando, por exemplo, se diz que cavalo alado não é centauro. Somente no
segundo caso se pode ter conhecimento real. Este, contudo, supõe os dois
elementos da verdade: conveniência das idéias entre si e das idéias em relação
à realidade.
Da distinção entre dois tipos de verdade deduzem-se dois tipos de
disciplinas científicas. O primeiro tipo — pensa Locke — é constituído pelas
matemáticas e pelas ciências morais; nelas todo o conhecimento é
absolutamente certo porque seu conteúdo são idéias produzidas pela pró
pria mente humana. Locke afirma, por exemplo, que é perfeitamente de
monstrável que o homicídio deva ser castigado; a certeza dessa demons tração
seria tão segura quanto a de um teorema matemático. O segundo tipo é o das
ciências experimentais, que formariam uma área de conhe cimento na qual a
certeza das ciências ideais (matemáticas e morais) não está presente. A
certeza, no domínio das ciências experimentais, depen deria do critério de
verificação da conveniência entre as idéias que estão na mente humana e a
realidade exterior a ela.

E s t a d o N a t u r a l e L ib e r d a d e

A teoria do conhecimento exposta no Ensaio sobre o Entendimento

Humano — 14 —

LOCKE

constitui uma longa, pormenorizada e hábil demonstração de uma tese: a de


que o conhecimento é fundamentalmente derivado da experiência sensível.
Fora de seus limites, a mente humana produziria, por si mesma, idéias cuja
validez residiria apenas em sua compatibilidade interna, sem que se possa
considerá-las expressão de uma realidade exterior à própria mente.
As teses sociais e políticas de Locke caminham em sentido paralelo.
Assim como não existem idéias inatas no espírito humano, também não existe
poder que possa ser considerado inato e de origem divina, como queriam os
teóricos do absolutismo. Antes, Robert Filmer (1588-1653), o autor de O
Patriarca, e um dos defensores do absolutismo, procurara de monstrar que o
povo não é livre para escolher sua forma de governo e que os monarcas
possuem um poder inato. Contra O Patriarca, Locke di
rigiu seu Primeiro Tratado sobre o Governo Civil; depois desenvolveu suas idéias
no Segundo Tratado. Neles, Locke sustenta que o estado de sociedade e,
conseqüentemente, o poder político nascem de um pacto entre os ho
mens. Antes desse acordo, os homens viveriam em estado natural. A tese do
estado e do pacto social também fora defendida por Tho mas Hobbes
(1588-1679), mas o autor de O Leviatã tinha objetivos intei ramente opostos aos
de Locke, pois pretendia justificar o absolutismo. A diferença entre os dois
resultava basicamente do que entendiam por estado natural, acarretando
diferentes concepções sobre a natureza do pacto social e a estrutura do
governo político.
Para Locke, no estado natural "nascemos livres na mesma medida em
que nascemos racionais". Os homens, por conseguinte, seriam iguais, inde
pendentes e governados pela razão. O estado natural seria a condição na qual
o poder executivo da lei da natureza permanece exclusivamente nas mãos dos
indivíduos, sem se tomar comunal. Todos os homens participariam dessa
sociedade singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da
razão. No estado natural todos os homens teriam o destino de preservar a paz
e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros.
Entre os direitos que Locke considera naturais, está o de propriedade,
ao qual os Dois Tratados sobre o Governo Civil concedem especial destaque. O
direito à propriedade seria natural e anterior à sociedade civil, mas não inato.
Sua origem residiria na relação concreta entre o homem e as coisas, através do
processo de trabalho. Se, graças a este, o homem transforma as coisas — pensa
Locke —, o homem adquire o direito de propriedade: "Todo homem possui
uma propriedade em sua própria pessoa, de tal forma que a fadiga de seu
corpo e o trabalho de suas mãos são seus". Assim, em lugar de opor o trabalho
à propriedade, Locke sustenta a tese de que o trabalho é a origem e o
fundamento da propriedade. As coisas sem trabalho teriam pouco valor,

— 15 —
OS PENSADORES

e seria mediante o trabalho que elas deixariam o


estado em que se en contram na natureza, tornando-se
propriedades.
Vivendo em perfeita liberdade e igualdade no estado
natural, o ho mem, contudo, estaria exposto a certos
inconvenientes. O principal seria a possível inclinação
no sentido de beneficiar-se a si próprio ou a seus
amigos. Como conseqüência, o gozo da propriedade e
a conservação da liberdade e da igualdade ficariam
seriamente ameaçados.
Justamente para evitar a concretização dessas ameaças,
o homem teria abandonado o estado natural e criado a
sociedade política, através de um contrato não entre
governantes e governados, mas entre homens
igualmente livres. O pacto social não criaria nenhum
direito novo, que viesse a ser acres
centado aos direitos naturais. O pacto seria apenas um
acordo entre indiví duos, reunidos para empregar sua
força coletiva na execução das leis naturais,
renunciando a executá-las pelas mãos de cada um. Seu
objetivo seria a pre servação da vida, da liberdade e da
propriedade, bem como reprimir as vio lações desses
direitos naturais. Em oposição às idéias de Hobbes,
Locke acre dita que, através do pacto social, os homens
não renunciam aos seus próprios
direitos naturais, em favor do poder dos governantes.
Na sociedade política formada pelo contrato, as leis
aprovadas por mútuo consentimento de seus
membros e aplicadas por juizes imparciais manteriam
a harmonia geral entre os homens. O mútuo
consentimento colocaria os indivíduos, que se
incorporam através do pacto, "em condições de
instalar a forma de governo que julguem conveniente".
Conseqüente mente, o poder dos governantes seria
outorgado pelos participantes do pacto social e,
portanto, revogável. Hobbes achava que a rebelião dos
cidadãos contra as autoridades constituídas só se
justifica quando os go
vernantes renunciam a usar plenamente o poder
absoluto do Estado. Con tra essa tese, Locke justifica o
direito de resistência e insurreição, não pelo desuso,
mas pelo abuso do poder por parte das autoridades.
Quando um governante se torna tirano, coloca-se em
estado de guerra contra o povo. Este, se não encontrar
qualquer reparação, pode revoltar-se, e esse direito é
uma extensão do direito natural que cada um teria de
punir seu agressor. Para o homem, a razão de sua
participação no contrato social é evitar o estado de
guerra, e esse contrato é quebrado quando o
governante se coloca contra o povo. Mediante o pacto
social, o direito legislativo e exe cutivo dos indivíduos
em estado de natureza é transferido para a socie
dade. Esta, devido ao próprio caráter do contrato
social, limita o poder político. O soberano seria, assim,
o agente e executor da soberania do povo. Este é que
estabelece os poderes legislativo, executivo e
judiciário. Locke distingue o processo de contrato
social — criador da comunidade — do subseqüente
processo pelo qual a comunidade confia poder político

—16—
LOCKE

a um governo. Esses processos podem ocorrer ao


mesmo tempo, mas são claramente distintos; embora
contratualmente relacionados entre si, os in tegrantes
do povo não estão contratualmente submetidos ao
governo. E o povo que decide quando ocorre uma
quebra de confiança, pois só o
homem que confia poder é capaz de dizer quando se
abusa do poder. Com suas idéias políticas, Locke
exerceu a mais profunda influência sobre o
pensamento ocidental. Suas teses encontram-se na
base das de mocracias liberais. Seus Dois Tratados sobre
o Governo Civil justificaram a revolução burguesa na
Inglaterra. No século XVIII, os iluministas franceses
foram buscar em suas obras as principais idéias
responsáveis pela Revo lução Francesa. Montesquieu
(1689-1755) inspirou-se em Locke para for mular a
teoria da separação dos três poderes. A mesma
influência encon tra-se nos pensadores americanos que
colaboraram para a declaração da Independência
Americana, em 1776.

C r o n o lo g ia

1632 — Nasce John Locke, em Wrington, no dia 29 de


agosto. 1642-1646 — Guerra Civil na Inglaterra:
puritanos e presbiterianos esco ceses aliam-se contra o
rei Carlos I; Oliver Cromwell comanda os rebeldes.
1649 — Condenado pelo Parlamento, Carlos I é
executado a 30 de janeiro. 1651 — Hobbes publica sua
principal obra: O Leviatã.
1653-1658 — Duração do "Protetorado de Cromwell".
1656 — Locke bacharela-se em artes.
1658 — Morte de Oliver Cromwell.
1660 — Carlos II passa a ocupar o trono inglês.
1662 — Morre Pascal.
1666 — Dá -se, em Oxford, o primeiro encontro entre o
futuro conde de Shaftesbury e Locke.
1672 — Carlos II concede a tolerância religiosa.
1675 — Locke torna-se secretário do Conselho de Plantações
e Comercio. 1681 — Carlos II dissolve o Parlamento.
1683 — Morre o conde de Shaftesbury, Locke refugia-se
na Holanda. 1685 — Nasce Bach. Jaime II ascende ao
trono inglês.
1686 — Isaac Newton comunica à Royal Society de
Londres sua hipótese sobre a gravitação universal.
Leibniz escreve o Discurso de Meta física e o Systema
Theologicum.
1688 — Revolução contra Jaime II; sobe ao trono
Guilherme de Orange. 1689 — Locke retorna à Inglaterra.
1689-1690 — São publicados os Dois Tratados sobre o
Governo Civil, de Locke. 1690 — Locke edita o Ensaio
sobre o Entendimento Humano. 1702 — Com a morte
de Guilherme de Orange, sobe ao trono sua filha Anne.
1704 — Locke morre em 28 de outubro.

— 19 —

Bib lio g r a fia

CRANSTON, M. W.: John Locke, a Biography, Londres,


1957. MACPHERSON, C. B.: The Political Theory of
Possessive Individualism, Ox ford University Press,
Oxford, 1962.
SABINE, G. H.: A History of Political Theory, George G.
Harrap & Co. Ltd., Londres, 1968.
AARON, R. I.: John Locke, Oxford at the Clarendon
Press, Oxford, 1971. LEROY, A.-L.: Locke: sa Vie, son
Oeuvre — avec un Exposé de sa Philosophie, Presses
Universitaires de France, Paris, 1964.
0'C 0N N 0R , D. J.: John Locke, Pelican Books, Londres,
1952. LASLETT, P.: John Locke’s two Treatises of
Government, Cambridge, 1960. POLIN, R.: La Politique
Morale de John Locke, Presses Universitaires de Fran ce,
Paris, 1960.
DUNN, J.: The Political Thought of John Locke,
Cambridge, 1969. YOLTON, J. W.: Locke and the Way of
Ideas, Oxford, 1957. RYLE, G.: The Concept of Mind,
Londres, 1969.
COLLIE, R.: The Essayist in his Essay in John Locke:
Problems and Perspectives, editado por J. W. Yolton,
Cambridge, 1969.
MANDELBAUM, M.: Lockes’s Realism in Philosophy,
Science and Sense Per ception, Baltimore, 1964.

— 21 —

N o ta d o T r a d u to r

A PRESENTE tradução baseia-se fundamentalmente na


edição abreviada do Ensaio feita por A. D. Woozley em 1969
(3a edição). Woozley utilizou a 5a edição da obra (1706),
revista por Locke e de publicação póstuma.
— 23 —

C a r t a a o Leito r

L eito r,
Coloco em suas mãos o que tem sido o passatempo de algumas de minhas horas
mais ociosas e difíceis. Se tiver a boa sorte de mostrar-se assim para alguns de vocês, e
se você tiver ao lê-lo apenas a metade do prazer que tive ao escrevê-lo, você pensará tão
pouco sobre seu dinheiro como eu acerca de meus mal empregados sofrimentos. Não
interprete isso como uma recomendação ao meu trabalho, nem conclua, com base no
prazer que tive ao escrevê-lo, que eu esteja por isso apai xonadamente cativado por
minha realização. Quem vai caçar cotovias e pardais pratica tanto esporte, embora as
emoções sejam menores, quanto a pessoa que se dedica a jogos mais interessantes.
Assim, entende muito mal o assunto deste tratado, isto é, o Entendimento, quem
desconhece que, por se tratar da faculdade mais nobre da alma, ele é utilizado com
maior e mais constante alegria do que outra qualquer. Sua busca da verdade consiste
numa espécie de falcoaria, que implica aceitar a própria perseguição como considerável
aspecto de prazer. Cada passo dado pela mente em seu progresso na direção do
Conhecimento revela, ao menos por ora, algum descobrimento não só novo como o
mais apropriado.
Trata-se, portanto, leitor, do entretenimento de quem liberou seus próprios
pensamentos e os foi registrando à medida que escrevia, não lhe cabendo invejar-me,
pois lhe ofereço oportunidade para divertimento semelhante, se à medida que o for
lendo recorrer aos seus próprios pensamentos. E a eles, se lhes são próprios, que me
refiro; mas, se dependerem da crença de outrem, deixa de ser importante saber o que
são, pois não decorrem da verdade mas de alguma consideração mais desprezível, e não
vale a pena se preocupar com o que disse ou pensa quem diz ou pensa tão-somente de
acordo com a orientação de outrem. Se você julgar por si mesmo, estou seguro que
julgará honestamente, e não serei, pois, prejudicado ou ofendido, seja qual for sua
crítica. Embora seja certo que nada haja neste trabalho acerca da verdade que não
tenha se baseado em minha total persuasão, apesar disso, considero-me tão sujeito ao
erro como, penso, você, e sei que este livro depende de você para perdurar ou fracassar,
não por causa de minha opinião, mas devido a sua própria opinião. Se você descobrir
pouca coisa nele que lhe seja nova ou instrutiva, não deve por isso me acusar. Não é
endereçado aos que já
OS PENSADORES

dominaram este assunto e com o qual se encontram


profundamente familiarizados através de seus próprios
pensamentos, mas visa a minha própria informação e
satisfação de alguns amigos que reconheceram não ter
considerado o assunto suficientemente. Se fosse adequado
incomodá-lo com a história deste Ensaio, de veria dizer-lhe
que cinco ou seis amigos reunidos em meu quarto e
discorrendo acerca de assunto bem remoto do presente,
ficaram perplexos, devido às dificuldades que surgiram de
todos os lados. Após termos por certo tempo nos confundido,
sem nos aproximarmos de nenhuma solução acerca das
dúvidas que nos tinham deixado perplexos, surgiu em meus
pensamentos que seguimos o caminho errado, e, antes de nós
nos iniciarmos em pesquisas desta natureza, seria necessário
exa minar nossas próprias habilidades e averiguar quais
objetos são e quais não são adequados para serem tratados
por nossos entendimentos. Propus isto aos meus
companheiros, que prontamente concordaram, e, portanto,
foi aceito que esta de veria ser nossa primeira investigação.
Alguns pensamentos precipitados e mal digeridos, jamais
considerados acerca deste assunto, foram sugeridos para
nossa próxima reunião e forneceram o primeiro tópico deste
discurso, que, tendo come çado por acaso, foi continuado por
solicitação, escrito por parcelas incoerentes e, depois de
longos intervalos de abandono, reiniciado de novo, segundo
meu tem peramento ou ocasião o permitiam, e, finalmente,
devido à doença que me obrigou a me isolar e deu-me lazer,
foi organizado na ordem em que lhe é apresentado.
Esta maneira descontínua de escrever deve ter ocasionado,
além de outros, dois defeitos opostos, a saber, excesso e
escassez de informações. Se você descobrir algo faltando,
ficarei muito contente em saber que o que escrevi deu-lhe
ensejo para solicitar-me que deveria ter-me estendido no
assunto. Se lhe parece demasiado, você deve criticar o
assunto, pois, quando coloquei a pena sobre o papel, pensei
que tudo que deveria escrever acerca do assunto deveria ser
contido apenas numa folha. A medida, porém, que
prosseguia, aumentava o projeto que tinha; novos
descobrimentos levaram-me adiante e, deste modo, cresceu
insensivelmente e che gou ao tamanho em que agora aparece.
Não negarei que possivelmente seu tamanho deva ser
reduzido, e que algumas porções dele sejam resumidas, já
que, por ter sido escrito, como disse,por etapas e com longos
intervalos de interrupção, resultou em algumas repetições.
Mas, para ser franco, encontro-me, presentemente, muito
preguiçoso, ou muito ocupado, para revê-las e reduzi-las.
Não ignoro quão pouco levo em consideração minha própria
reputação, já que reconhecidamente o deixo continuar com
um defeito, tão apropriado para desagradar aos mais
judiciosos, que sempre são os leitores mais agradáveis. Mas
quem estiver familiarizado com a indolência e se contenta
com qualquer desculpa me perdoará se a minha terminou
por dominar-me, pois, penso, a tenho em muito boa dose.
Não alegarei, portanto, em minha defesa, que a mesma noção
possa, pelo fato de ter diferentes sentidos, servir ou ser
necessária para provar ou ilustrar várias partes do mesmo
discurso, o que acontece em diversas partes deste. Deixando
isso de lado, reconhecerei francamente que por vezes tratei
longamente do mesmo argumento, e o expressei de modos
diferentes, com um desígnio bem diferente.

— 26 —
LOCKE

Não pretendo publicar este Ensaio visando a informar os


homens de pensamentos notáveis e perspicácia, pois, em
relação a tais mestres do conhecimento, conside ro-me um
estudante, e, portanto, os aviso de antemão a não esperar
nada aqui exceto o que, tendo sido desfiado de meus
pensamentos grosseiros, é apropriado para homens de minha
própria estatura, aos quais, talvez, não será inaceitável que
tenha me esforçado para tornar claro e familiar aos seus
pensamentos certas verdades que o preconceito estabeleceu,
ou o aspecto abstrato das próprias idéias
que pode torná-las difíceis. Alguns objetos precisaram ser
encarados de todos os lados, e, quando a noção é nova, como
admito que algumas dessas são para mim, ou apartadas do
caminho ordinário, como suspeito que aparecerão a outrem,
não será uma simples apresentação disto que fará com que
seja aceita por cada en tendimento, ou para fixá-la como uma
impressão clara e permanente. Acredito que poucos não
observam por si próprios, ou, em outros, que o que tinha sido
proposto de maneira muito obscura tornou-se muito claro e
inteligível mediante outro meio para expressá-lo, embora a
mente tenha depois encontrado pouca di ferença nas frases, e
indagado por que uma foi menos entendida que outra. Mas
nem tudo incide da mesma maneira na imaginação de todo
homem. Nossos en tendimentos não são menos diferentes
que nossos paladares. Na verdade, os que me aconselharam a
publicá-lo, aconselharam-me, por esta razão, a publicá-lo
como está: e, desde que fui levado a deixá-lo aparecer, desejo
que seja entendido por quem se dê ao trabalho de lê-lo. Tenho
tão pouco interesse em ver impressas minhas obras que, se
não estivesse persuadido de que este Ensaio poderia ser de
alguma utilidade aos outros, como penso que o foi para mim,
ter-me-ia contentado em mostrá-lo a alguns amigos que mo
inspiraram. Portanto, minha manifestação pela imprensa
tem o propósito de ser tão útil quanto possível; por isso julgo
necessário tornar o que tenho a dizer fácil e inteligível a toda
espécie possível de leitores. E prefiro que o tipo especulativo e
perspicaz reclame de eu ser até certo ponto monótono, a que
quem não está habituado com especulações abstratas, ou
esteja imbuído de noções diferentes, acabe por se equivocar
ou não compreender meu pensamento.
Possivelmente será criticado como exemplo notável de
vaidade ou insolência de minha parte pretender instruir a
nossa sábia época; esta crítica é, no entanto, menos
significativa quando concordo com a publicação deste
Ensaio com o fito de que seja útil a outrem.
A comunidade científica de nossa época não se encontra sem
um arquiteto, cujos notáveis desenhos, impulsionando o
progresso das ciências, deixarão mo numentos permanentes
à posteridade. Mas nem todos devem almejar ser um Boyle
ou um Sydenham, e numa época em que são produzidos
mestres como o notável Huygenius e o incomparável
Newton, e outros da mesma estirpe, consiste em suficiente
ambição ser empregado como um trabalhador inferior, que
limpa um pouco o terreno e remove parte do entulho que está
no caminho do conheci mento. Certamente, o mundo estaria
muito mais adiantado se o esforço de homens engenhosos e
perspicazes não estivesse tão embaraçado pela erudição e pelo
uso
OS PENSADORES

frívolo de termos desconhecidos, afetados e ininteligíveis,


introduzidos nas ciências, e fazendo disso uma arte a tal
ponto de a filosofia, que nada mais é do que o verdadeiro
conhecimento das coisas, tornar-se imprópria ou incapaz de
ser apre ciada pela sociedade mais refinada e nas conversas
eruditas. Formas vagas e sem significado de falar, e abuso da
linguagem, têm por muito tempo passado por mistérios da
ciência; palavras difíceis e mal empregadas, com pouco ou
nenhum sentido, têm, por prescrição, tal direito que são
confundidas com o pensamento profundo e o cume da
especulação, sendo difícil persuadir não só os que falam
como os que os ouvem que são apenas abrigos da ignorância
e obstáculos ao verdadeiro conhecimento. Suponho que
interromper o santuário da vaidade e da ignorância será de
alguma utilidade para o entendimento humano, embora
poucos estejam aptos a pensar que enganam ou são
enganados pelo uso das palavras, ou que a linguagem da
seita a que pertencem tem qualquer defeito que deva ser
examinado e corrigido. Espero, pois, ser perdoado se tratei
longamente desse as sunto no Livro Terceiro, em que tentei
fazê-lo de modo simples, para que nem o radicalismo do
dano, nem o predomínio do costume, sejam desculpas aos
que não se preocupam com o significado de suas próprias
palavras e não empreendem uma pesquisa sobre o significado
de suas expressões.

In t r o d u ç ã o

1 . INVESTIGAÇÃO do entendimento, agradável e


útil. Desde que o entendimento situa o homem acima
dos outros seres sensíveis, e dá-lhe toda vantagem e
domínio que tem sobre eles, consiste certamente num
tópico, ainda que, por sua nobreza, merecedor de
nosso trabalho de in
vestigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz
ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a
si mesmo; requer arte e esforço situá-lo a distância e
fazê-lo seu próprio objeto. Quaisquer que sejam as
dificul dades que estejam no caminho desta
investigação, por mais que perma
neçamos na escuridão sobre nós mesmos, estou seguro
que toda a luz que possamos lançar sobre nossas
mentes, todo conhecimento que possa mos adquirir de
nosso entendimento, não será apenas muito agradável,
mas nos trará grande vantagem ao orientar nossos
pensamentos na busca de outras coisas.

2. Desígnio. Sendo, portanto, meu propósito investigar


a origem, certeza e extensão do conhecimento humano,
juntamente com as bases e graus da crença, crpiniâo e
assentimento, não me ocuparei agora com o exame
físico da mente; nem me inquietarei em examinar no
que consiste sua essência; nem por quais movimentos
de nossos espíritos, ou alterações de nossos corpos,
chegamos a ter alguma sensação mediante nossos
órgãos, ou quaisquer idéias em nossos entendimentos;
e se, em sua formação, al gumas daquelas idéias, ou
todas dependem ou não da matéria. Embora tais
especulações sejam curiosas e divertidas, rejeitá-las-ei
por estarem fora do caminho no qual estou agora
empenhado. Ao meu presente propósito será
suficiente considerar as faculdades discernentes do
homem, e como elas são empregadas sobre os objetos
que lhes dizem respeito. E imaginarei que não terei
divagado em pensamentos surgidos nessa ocasião se,
me diante este simples método histórico, puder dar
algum relato dos meios pelos quais nossos
entendimentos alcançam as noções das coisas que pos
suímos, e puder estabelecer algumas medidas de
certeza e nosso conhe cimento, ou as bases dessas
persuasões que são encontradas entre os ho­

— 29 —
O S PENSADORES

mens, tão variados, diferentes e inteiramente


contraditórios. E, ademais, certificado algum lugar ou
outro com tal segurança e confiança, para quem toma
em conta as opiniões da humanidade, observa sua
posição e, ao mesmo tempo, considera o afeto e a
devoção com os quais elas são enla
çadas, a resolução e avidez por meio das quais elas são
mantidas, há talvez razão para suspeitar que não há
de modo algum tal coisa como a verdade, ou que a
humanidade não tem meios suficientes para alcançar
dela um conhecimento certo.

3. Método. Vale a pena, portanto, pesquisar os limites


entre a opinião e o conhecimento, e examinar por
quais medidas devemos regular nosso assentimento e
moderar nossas persuasões a respeito das coisas de
que não temos conhecimento certo. Com vistas a isso,
seguirei o seguinte método:
Primeiro, investigarei a origem daquelas idéias, noções,
ou qualquer outra coisa que lhe agrade denominar,
que o homem observa, e é consciente de que as tem
em sua mente, e o meio pelo qual o entendimento
chega a ser delas provido.
Segundo, tentarei mostrar que conhecimento e
entendimento tem dessas idéias, e a certeza, evidência
e extensão delas.
Terceiro, farei alguma investigação acerca da natureza
e fundamen tos da fé, ou opinião-, entendo isto como o
assentimento que damos para qualquer proposição
como verdadeira, ou dessas verdades de que ainda
não temos conhecimento certo. Teremos, assim,
ocasião para examinar as razões e graus do
assentimento.

4. E útil saber a extensão de nossa compreensão. Se por


esta in vestigação acerca da natureza do entendimento
puder descobrir seus po deres, até onde penetram,
para que coisas estão em algum grau ajustados, e
onde nos são deficientes, suponho que isso pode servir
para persuadir a ocupada mente do homem e usar
mais cautela quando se envolve com coisas que
excedem sua compreensão, parar quando o assunto é
muito extenso para suas forças e permanecer em
silenciosa ignorância acerca dessas coisas que o exame
revelou estarem fora do alcance de nossas
capacidades. Não seriamos, talvez, tão precipitados,
devido à presunção de um conhecimento universal, a
ponto de levantarmos questões, e de nos
confundirmos e aos outros com disputas sobre coisas
para as quais nossos entendimentos não são
adequados e das quais não podemos formar em
nossas mentes nenhuma percepção clara e distinta, ou
de que (como tem, talvez, acontecido com muita
freqüência) não temos de modo algum nenhuma
noção. Se pudermos descobrir até onde o
entendimento pode se estender, até onde suas
faculdades podem alcançar a certeza, e em quais casos
ele pode apenas julgar e adivinhar, saberemos como
nos con tentar com o que é alcançável por nós nesta
situação.

— 30 —
LOCKE
5. Nossa capacidade adequada para nossa situação e
assuntos. Em bora a compreensão de nossos
entendimentos não corresponda à vasta extensão de
coisas, ainda assim teremos suficiente motivo para
glorificar a generosidade de nosso Autor, por esta
porção e grau de conhecimento outorgados a nós por
ele, superiores aos outros habitantes desta nossa
morada. Os homens têm razão para estar bem
satisfeitos com o que Deus pensou que lhes era
adequado, pois ele lhes deu, como diz São Pedro,
pánta pròs zoèn km eusébeian, tudo o que é necessário
para as conveniências da vida e informação da
virtude, e colocou ao alcance de sua descoberta
provisão suficiente para esta vida e o meio que leva
para uma melhor. Por mais restrito que esteja seu
conhecimento de uma compreensão perfeita ou
universal do que quer que seja, ainda assim as
importantes preocupa
ções dos homens são asseguradas de luz suficiente
para alcançar o co nhecimento de seu Criador e a
observação de seus próprios deveres. Os homens
encontram suficiente matéria para ocupar suas cabeças
e empregar suas mãos com variedade, deleite e
satisfação, se não discordarem afoi tamente de sua
própria constituição e rejeitarem as bênçãos com as
quais suas mãos estão supridas, porque não são
suficientemente grandes para agarrar tudo. Não
teremos motivos para nos queixar da estreiteza de
nossas mentes se as empregarmos tão-somente no que
nos é utilizável e para o que são muito capazes; pois
não será apenas imperdoável, como imper tinente
criancice, se menosprezarmos as vantagens de nosso
conhecimento e descuidarmos de aperfeiçoá-lo para
os fins aos quais nos foi dado, porque certas coisas se
encontram fora de seu alcance. Não constitui desculpa
para um servo frívolo e rebelde, que não cuida de seus
negócios usando luz de vela, alegar que lhe faltava a
plena luz solar. A vela que foi colocada em nós brilha
o suficiente para todos os nossos propósitos. As
descobertas que podemos fazer com isso devem
satisfazer-nos; devemos, então, usar nossos
entendimentos corretamente, quando levamos em
consideração to dos os objetos deste meio e em que
proporção se ajustam às nossas fa culdades, em cujos
fundamentos nos podem ser propostos; não
necessitam de demonstração dogmática e imoderada,
exigindo apenas a certeza al cançável pela
probabilidade, que é suficiente para orientar todos os
nossos assuntos. Se descrermos de tudo porque não
podemos conhecer rigorosamente todas as coisas,
deveríamos imitar os que não se utilizam de suas
pernas, permanecendo parados e morrendo, porque
lhes faltam asas para voar.

6. O conhecimento de nossa capacidade, uma cura


para o ceticismo e a ociosidade. Quando conhecermos
nossa própria força, saberemos me lhor o que intentar
com esperanças de êxito; e quando tivermos
examinado com cuidado os poderes de nossas mentes,
e feito alguma avaliação acerca do que podemos
esperar deles, não tenderemos a ficar inativos,
deixando de pôr nossos pensamentos em atividade,
pelo desespero de nada conhe­

— 31 —
OS PENSADORES

cermos; nem, por outro lado, poremos tudo em dúvida


e renunciaremos a todo conhecimento, porque
algumas coisas não são compreendidas. E de grande
utilidade para o marinheiro saber a extensão de sua
linha, embora não possa com ela sondar toda a
profundidade do oceano. É conveniente que saiba que
ela é suficientemente longa para alcançar o fundo dos
lugares necessários para orientar sua viagem, e
preveni-lo de esbarrar contra escolhos que podem
destruí-lo. Não nos diz respeito co nhecer todas as
coisas, mas apenas as que se referem à nossa conduta.
Se pudermos descobrir aquelas medidas por meio das
quais uma criatura racional, posta nesta situação do
homem no mundo, pode e deve dirigir suas opiniões e
ações delas dependentes, não deveremos nos molestar
porque outras coisas escapam ao nosso conhecimento.

7. Motivo deste Ensaio. Foi isso que deu, no início,


nascimento a este Ensaio acerca do Entendimento. Pensei
que o primeiro passo para sa tisfazer a várias
indagações, às quais a mente do homem estava bem
apta para tender, seria o de investigar nossos próprios
entendimentos, examinar nossos próprios poderes e
ver para que coisas eles estão adaptados. Até que isto
fosse feito, suspeitava que começava pelo lado errado,
e em vão procurava satisfação numa tranqüila e
segura posse das verdades que mais nos dizem
respeito, se deixássemos nossos pensamentos soltos
num vasto oceano do ser como se todas estas
extensões ilimitadas fossem de posse natural e
indubitável de nossos entendimentos, em que não
haveria nada que não dependesse de suas decisões, ou
que escapasse à sua com preensão. Ampliando suas
investigações além de suas capacidades, e dei xando
seus pensamentos vagarem em profundezas a tal
ponto de lhes faltar apoio seguro para o pé, não é de
admirar que os homens levantem
questões e multipliquem disputas acerca de assuntos
insolúveis, servindo apenas para prolongar e
aumentar suas dúvidas, e para confirmá-los ao fim
num perfeito ceticismo. Sendo bem examinadas as
capacidades de nossos entendimentos, divisando o
horizonte entre as partes iluminadas e as escuras das
coisas — entre o que podemos e não podemos
compreen der —, os homens concordariam, talvez com
menos escrúpulos, em reco
nhecer nossa ignorância acerca de umas coisas, e
empregariam seus pen samentos e discursos com mais
proveito e satisfação na resolução de outras.

8. O que significa "idéia". Julguei necessário dizer tudo


isso acerca do motivo desta investigação do
entendimento humano. Mas, antes de prosseguir no
que pensei sobre este assunto, aproveito esta
oportunidade para pedir perdão ao meu leitor pelo
uso freqüente da palavra idéia, que ele encontrará
adiante no tratado. Julgo que, sendo este o termo mais
indicado para significar qualquer coisa que consiste no
objeto do entendi mento quando o homem pensa,
usei-o para expressar qualquer coisa que

—32—
LOCKE
«

pode ser entendida como fantasma, noção, espécie, ou


tudo o que pode ser empregado pela mente pensante;
e não pude evitar seu uso freqüente. Suponho que me
será facilmente concedido que há tais idéias nas mentes
dos homens. Cada um tem consciência delas em si
mesmo e as palavras e ações dos homens o
persuadirão de que elas existem nos outros. Portanto,
nossa primeira investigação consistirá em verificar
como elas aparecem na mente.
— 33 —

L iv r o I
N em o s P r in c íp io s
n e m a s I d é ia s S ã o In a t a s
C a pít u lo I

NÃo h á P r in c íp io s I n a t o s n a M e n t e

1. A maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento cons titui


suficiente prova de que não é inato. Consiste numa opinião esta belecida entre
alguns homens que o entendimento comporta certos prin cípios inatos, certas
noções primárias, koinai énoiai, caracteres, os quais es tariam estampados na
mente do homem, cuja alma os recebera em seu
ser primordial e os transportara consigo ao mundo. Seria suficiente para
convencer os leitores sem preconceito da falsidade desta hipótese se pu desse
apenas mostrar (o que espero fazer nas outras partes deste tratado) como os
homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, po dem adquirir
todo conhecimento que possuem sem a ajuda de impressões inatas e podem
alcançar a certeza sem nenhuma destas noções ou prin cípios originais.

2. O assentimento geral consiste no argumento mais importante. Não há


nada mais ordinariamente admitido do que a existência de certos princípios,
tanto especulativos como práticos (pois referem-se aos dois), com os quais
concordam universalmente todos os homens. A vista disso, ar gumentam que
devem ser uniformes as impressões recebidas pelas almas dos homens em
seus seres primordiais, que, transportadas por eles ao mundo, mostram-se tão
necessárias e reais como o são quaisquer de suas faculdades inatas.

3. O acordo universal não prova o inatismo. O argumento de rivado do


acordo universal comporta o seguinte inconveniente: se for verdadeiro que
existem certas verdades devido ao acordo entre todos os homens, isto deixará
de ser uma prova de que são inatas, se houver outro meio qualquer para
mostrar como os homens chegam a uma concordância universal acerca das
coisas merecedoras de sua anuência. Suponho que isso pode ser feito.
OS PENSADORES

4. "O que é, é", e "É impossível para uma mesma coisa


ser e não ser" não são universalmente aceitas. Mas, o
que é pior, este argumento da anuência universal,
usado para provar princípios inatos, parece-me uma
demonstração de que tal coisa não existe, porque não
há nada passível de receber de todos os homens um
assentimento universal. Começarei pelo argumento
especulativo, recorrendo a um dos mais glorificados
prin cípios da demonstração, ou seja, "qualquer coisa
que é, é" e "é impossível para a mesma coisa ser e não
ser", por julgá-los, dentre todos, os que mais merecem
o título de inatos. Estão, ademais, a tal ponto com a
repu tação firmada de máximas universalmente aceitas
que, indubitavelmente, seria considerado estranho
que alguém tentasse colocá-las em dúvida. Ape
sar disso, tomo a liberdade para afirmar que estas
proposições se encon tram bem distantes de receber
um assentimento universal, pois não são conhecidas
por grande parte da humanidade.

5. Não se encontram naturalmente impressas na mente


porque não são conhecidas pelas crianças, idiotas etc.
Em primeiro lugar, é evi dente que não só todas as
crianças, como os idiotas, não possuem delas a menor
apreensão ou pensamento. Esta falha é suficiente para
destruir o assentimento universal que deve ser
necessariamente concomitante com todas as verdades
inatas, parecendo-me quase uma contradição afirmar
que há verdades impressas na alma que não são
percebidas ou entendidas, já que imprimir, se isto
significa algo, implica apenas fazer com que certas
verdades sejam percebidas. Supor algo impresso na
mente sem que ela o perceba parece-me pouco
inteligível. Se, portanto, as crianças e os idiotas
possuem almas, possuem mentes, dotadas destas
impressões, devem ine vitavelmente percebê-las, e
necessariamente conhecer e assentir com estas
verdades; se, ao contrário, não o fazem, tem-se como
evidente que essas impressões não existem. Se estas
noções não estão impressas naturalmente, como
podem ser inatas? E se são noções impressas, como
podem ser des conhecidas? Afirmar que uma noção
está impressa na mente e, ao mesmo tempo, afirmar
que a mente a ignora e jamais teve dela conhecimento,
implica reduzir estas impressões a nada. Não se pode
afirmar que qualquer proposição está na mente sem
ser jamais conhecida e que jamais se tem disso
consciência. Se isso é possível, segue-se por
semelhante razão que todas as proposições
verdadeiras, sem que a mente seja jamais capaz de
lhes dar o assentimento, podem ser afirmadas como
pertencentes à mente onde se encontram impressas,
visto que, se algo é considerado abarcado pela mente,
embora não seja ainda conhecido, deve ser apenas
porque se é capaz de conhecê-lo; e, assim, a mente é
formada por todas as verdades que sempre conhecerá.
Deste modo, estas verdades devem estar impressas na
mente, que nunca nem jamais as conhecerá, pois um
homem pode viver longamente, e, finalmente, morrer
ignorando muitas verdades que

— 38 —
LOCKE

sua mente seria capaz de conhecer, o que o faria com


certeza. Portanto, se a capacidade de conhecer
consiste na impressão natural disputada, de corre da
opinião que cada uma das verdades que um homem
jamais che gará a conhecer será considerada inata. Este
ponto importante não eqüivale a nenhuma outra
coisa, apenas realça uma maneira inadequada de falar;
embora visando a afirmar o contrário, nada afirma de
diverso dos que negam os princípios inatos. Penso
que ninguém jamais negou que a mente seria capaz de
conhecer várias verdades. Afirmo que a capacidade é
inata, mas o conhecimento adquirido. Mas, então,
qual a finalidade desta con trovérsia acerca de certas
máximas inatas? Se as verdades podem estar
impressas no entendimento sem que as perceba, não
diviso a existência de nenhuma diferença entre
quaisquer verdades que a mente é capaz de conhecer,
com respeito a sua origem: todas devem ser inatas ou
todas adquiridas, em vão uma pessoa tentará
distingui-las.

6. Encontram resposta dizendo que os homens sabem


quando che gam ao uso da razão. Para evitar isto,
responde-se ordinariamente que todos os homens
sabem e com elas aquiescem quando chegam ao uso da
razão, e que isto é suficiente para prová-las inatas.

7. Esta resposta deve significar uma de duas coisas:


logo que os homens começam a usar a razão, estas
supostas inscrições nativas passam a ser por eles
conhecidas e observadas, ou que o uso e exercício da
razão dos homens os auxilia na descoberta deste
princípio, fazendo com que estes, certamente, se
tornem conhecidos para eles.

8. Se a razão os descobre, não é uma prova de que são


inatos. Se querem dizer que mediante o uso da razão
os homens podem descobrir èstes princípios, sendo
isto suficiente para prová-los inatos, esta maneira de
argüir implicará o seguinte: sejam quais forem as
verdades reveladas pela razão, e com as quais somos
levados por ela a concordar com firmeza, todas estas
verdades encontram-se naturalmente impressas na
mente, uma vez que o assentimento universal
(suposta sua marca característica) não eqüivale a mais
do que isto: pelo uso da razão somos capazes de
alcançar certo conhecimento e concordar com ele. Por
este meio, não haverá dife rença entre as máximas dos
matemáticos e os teoremas deduzidos delas, devendo
tudo ser igualmente suposto inato, sendo todas as
descobertas realizadas pelo uso da razão, e as
verdades que uma criatura racional deve, certamente,
conhecer, se aplicar seus pensamentos desta maneira
correta.

9. E falso que a razão os descobre. Como podem,


todavia, estes homens pensar que o uso da razão é
necessário para descobrir princípios que são supostos
inatos, quando a razão (se podemos acreditá-lo) nada

— 39 —
OS PENSADORES

mais é do que a faculdade de deduzir verdades


desconhecidas de prin cípios ou proposições já
conhecidos? Isto, certamente, nunca pode ser pen sado
inato, se necessitamos da razão para o descobrir, a
menos que, como disse, consideremos inatas todas as
verdades infalíveis que a razão nos ensina. Podemos
igualmente pensar o uso da razão necessário para
fazer nossos olhos descobrirem objetos visíveis, como
deveria haver necessidade da razão, ou de seu
exercício posterior, para fazer o entendimento ver o
que está originalmente gravado nele, e não pode estar
no entendimento antes de ter sido percebido. Deste
modo, para fazer a razão descobrir estas verdades
assim impressas, seria o mesmo que dizer que o uso da
razão revela ao homem o que antes já conhecia; e se os
homens têm estas verdades inatas impressas
originalmente, e antes do uso da razão, per manecendo
delas ignorantes até atingirem o uso da razão, consiste
em afirmar que os homens, ao mesmo tempo, as
conhecem e não as conhecem.

10. Dir-se-á, talvez, que as demonstrações


matemáticas, e outras ver dades que não são inatas,
não são aceitas tão logo propostas, distinguin do-se,
assim, dessas máximas e de outras verdades inatas.
Terei oportu nidade de abordar mais
pormenorizadamente no futuro o assentimento
acerca da primeira proposição. No momento,
concederei apenas, e de modo breve, que estas
máximas e as demonstrações matemáticas diferem
nisto: uma tem necessidade da razão, do uso de
provas, para demonstrá-la e receber nosso
assentimento, a outra, porém, tão logo entendida, é,
sem o menor raciocínio, compreendida e assentada.
11. Quem se propuser a refletir sem muita atenção
acerca das ope rações do entendimento descobrirá que
o pronto assentimento da mente com referência a
algumas verdades não depende de uma inscrição
natural ou do uso da razão, mas de uma faculdade da
mente bem distinta das duas, como veremos adiante.
A razão, portanto, não contribui para oca sionar nosso
assentimento a estas máximas, e afirmar que os
"homens sabem e concordam com elas, quando
chegam ao uso da razão", querendo com isso dar a
entender que o uso da razão nos auxilia no
conhecimento destas máximas, é inteiramente falso; e,
se isto fosse verdadeiro, provaria que elas não são
inatas.

12. A posse do uso da razão não corresponde ao


instante em que chegamos a conhecer estas máximas.
Se conhecê-las e aceitá-las "quando possuímos o uso
da razão" significa que este é o instante em que as ob
servamos através da mente; e, logo que as crianças
tenham posse do uso da razão, igualmente conhecem
e concordam com estas máximas; tudo isto é
igualmente falso e frívolo. Primeiro, consiste numa
falsidade porque é evidente que estas máximas não se
encontram na mente tão cedo quanto

— 40 —
LOCKE

o uso da razão, e, portanto, a posse do uso da razão é


falsamente assinalada como o instante de sua
descoberta. Quantos exemplos do uso da razão
podemos observar nas crianças muito tempo antes de
terem qualquer co nhecimento desta máxima, "que é
impossível para a mesma coisa ser e não ser"? E
grande parte dos povos analfabetos e selvagens passa
muitos anos, mesmo durante sua idade racional, sem
jamais pensar nesta e se
melhantes proposições gerais. Concedo que os homens
não chegam ao conhecimento destas verdades gerais e
mais abstratas, que são tidas como inatas, antes de
atingirem o uso da razão, e acrescento, nem então tam
pouco. Isto é assim porque, mesmo após terem
atingido o uso da razão, estas idéias gerais abstratas
não estão formadas na mente, sobre as quais são
formadas estas máximas gerais, que são
equivocadamente considera das princípios inatos, mas
são realmente descobertas feitas e verdades
introduzidas e levadas à mente pelo mesmo modo, e
descobertas pelos mesmos passos, como várias outras
proposições, que ninguém jamais foi tão extravagante
para supô-las inatas.

14. Se a posse do uso da razão fosse o instante de sua


descoberta, isto não as provaria inatas. Mas, em
segundo lugar, se fosse verdade que o instante exato
em que são conhecidas e aceitas correspondesse à
posse do uso da razão pelos homens, nem isto as
provaria inatas. Esta maneira de argüir é tão frívola
como a própria suposição é falsa. Com efeito, por qual
tipo de lógica se mostrará que qualquer noção está
originalmente por natureza impressa na mente em sua
primeira constituição, porque isso começa a ser
observado e aceito quando uma faculdade da mente,
que tem um campo bem diferente, começa a se
exercitar?

15. Os passos pelos quais a mente alcança várias


verdades. Os sentidos inicialmente tratam com idéias
particulares, preenchendo o gabi nete ainda vazio, e a
mente se familiariza gradativamente com algumas
delas, depositando-as na memória e designando-as por
nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua
marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente
o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se
en
riquecendo com idéias e linguagem, materiais com que
exercita sua facul dade discursiva. E o uso da razão
torna-se diariamente mais visível, am pliando-se em
virtude do emprego desses materiais. Embora a posse
de idéias gerais, o uso de palavras gerais e a razão
geralmente cresçam juntos, não vejo como isto possa
de algum modo prová-las inatas. Concordo que o
conhecimento de algumas verdades aparece bem cedo
na mente, mas de modo tal que mostra que não são
inatas. Pois, se observarmos, desco briremos que isto
continua também com as idéias não-inatas, mas adqui
ridas, sendo aquelas primeiras impressas por coisas
externas, com as quais as crianças se deparam bem
cedo, ocasionando as mais freqüentes im­

— 41 —
OS PENSADORES

pressões em seus sentidos. Nas idéias assim


apreendidas, a mente descobre que algumas
concordam e outras diferem, provavelmente tão logo
tenha uso da memória, tão logo seja capaz de reter e
receber idéias distintas. Mas, quer isto seja ou não
existente naquele instante, uma coisa é certa: existe
muito antes do uso de palavras, ou chega antes do que
ordinaria mente denominamos "o uso da razão". Pois
uma criança sabe como certo, antes de poder falar, a
diferença entre as idéias de doce e amargo (isto é, que
o doce não é amargo), como sabe depois (quando
começa a falar) que a amargura e a doçura não são a
mesma coisa.

17. O assentimento dado tão logo as idéias sejam


propostas e en tendidas não as prova inatas. Desta
evasiva, portanto, do assentimento geral quando os
homens chegam ao uso da razão, ausente como o é, e
não revelando nenhuma diferença entre as supostas
verdades inatas e outras adquiridas e aprendidas, os
homens têm tentado assegurar um assentimento
universal às que denominam máximas, afirmando que
são geralmente aceitas logo que propostas, e os termos
por eles propostos são entendidos: abarcando todos os
homens, até as crianças, tão logo ouvem e entendem
os termos, concordam com estas proposições, inferem
que isto é suficiente para prová-las inatas.

18. Se tal assentimento é o sina? de inatismo, segue-se


que "um mais dois é igual a três, que doçura não é
amargura", e milhares seme lhantes, devem ser inatas.
Em resposta a isso, pergunto: o assentimento imediato
dado a uma proposição, com base na primeira audição
e enten dimento dos termos, deve ser o sinal seguro de
um princípio inato? Se isto não é assim, tal
assentimento geral será em vão assinalado como uma
prova deles: se for afirmado que este é o sinal do
inatismo, devem então concordar que todas as
proposições inatas são aquiescidas tão logo ouvi das, a
partir das quais eles se descobrirão plenamente
armazenados com princípios inatos. Com base no
mesmo princípio, a saber, o assentimento a partir da
audição inicial e entendimento dos termos, os homens
que teriam estas máximas supostas como inatas têm
igualmente que admitir várias proposições acerca dos
números como inatas. Mesmo a filosofia natural e
todas as outras ciências compreendem proposições que
estão certas de topar com o assentimento tão logo
sejam entendidas. Que "dois corpos não estão no
mesmo lugar" consiste numa verdade tão inconfun
dível como esta máxima que "é impossível para uma
mesma coisa ser e não ser", que "branco não é preto",
que "um quadrado não é um círculo", que "a
amarelidão não é doçura". Mas, desde que nenhuma
proposição pode ser inata, a menos que as idéias acerca
das quais ela se constitui sejam inatas, isso leva a
supor como inatas todas as idéias de cores, sons,
gostos, figuras etc.; e não pode haver nada tão
contrário à razão e à ex-

— 42 —
LOCKE

periência. O assentimento universal e imediato


baseado na audição e en tendimento dos termos
consiste, concordo, num sinal de algo evidente por si
mesmo; mas evidente por si mesmo, não dependente
de impressões inatas de alguma outra coisa,
pertencente a várias proposições. Ninguém foi até
agora tão extravagante a ponto de supô-las inatas.
— 43 —

C a pít u lo II

N Ã o HÁ P r in c íp io s P r á t ic o s In a t o s

1. Nenhum princípio moral é tão claro e geralmente recebido como as


máximas especulativas anteriormente mencionadas. Como ficou pro vado,
estas máximas especulativas, descritas por nós no capítulo anterior, não têm
real assentimento universal de todos os homens. Isto é ainda muito mais
patente com respeito aos princípios práticos, que não alcançam uma recepção
universal. Penso que será difícil ilustrar qualquer regra moral com a mesma
pretensão de ter o assentimento geral e imediato da que diz "o que é, é" ou ter
uma verdade tão manifesta como esta: "é impossível para uma mesma coisa
ser e não ser". Por mais que seja evidente que elas se distanciem
posteriormente do título de inatas, a dúvida de que elas são im
pressões nativas na mente é muito mais forte em relação aos princípios morais
do que aos outros. Nem isto coloca de modo algum sua verdade em questão.
Elas são igualmente verdadeiras, embora não igualmente evidentes.

2. A fé e a justiça não são compreendidas por todos os homens como


princípios. Para averiguar se existe um desses princípios morais acerca dos
quais todos os homens concordam, sou levado a apelar para alguém que
esteja moderadamente familiarizado com a história da hu
manidade, que tenha olhado além da fumaça de sua própria chaminé. Onde
se encontra esta verdade prática, recebida universalmente, sem dú vida ou
questão, como devia ser se fosse inata? A justiça e a conformidade ao contrato
consistem em algo com que a maioria dos homens parece concordar. Constitui
um princípio julgado estender-se até aos esconderijos dos ladrões e às
confederações dos maiores vilões; e os que se afastaram a tal ponto da própria
humanidade conservam entre si a fé e as regras da justiça. Concordo que os
próprios proscritos agem, deste modo, entre si, mas sem que isto seja recebido
como leis inatas da natureza. Praticam
nas como leis de conveniência dentro de suas próprias comunidades, sendo
impossível imaginar que a justiça é vista como um princípio prático por

— 45 —
OS PENSADORES

quem age honestamente com seus companheiros de


assalto, ao mesmo tempo que rouba ou mata o
primeiro homem honesto com o qual se encontra.
Sendo a justiça e a verdade os laços comuns da
sociedade, mesmo os proscritos e ladrões que rompem
com todo o resto do mundo devem manter o compro
misso e as regras da eqüidade entre si; do contrário,
não poderiam se manter unidos. Podem, então, dizer
que quem vive da fraude e do roubo tem prin cípios
inatos de verdade e justiça com os quais concorda e
aquiesce?

4. Como as regras morais necessitam de prova, elas


não são inatas. Outra razão que me leva a duvidar de
quaisquer princípios práticos inatos decorre do fato de
pensar que nenhuma regra moral pode ser proposta sem
que uma pessoa deva justamente indagar a sua razão: o que
seria perfeitamente ridículo e absurdo se ela fosse
inata, ou sequer evidente por si mesma, coisa que
todo princípio inato deve necessariamente ser, sem
precisar de qualquer prova para apurar sua verdade,
nem necessitar de qualquer razão para obter sua
aprovação. Seria julgado desprovido de bom senso
quem perguntasse ou começasse a dar a razão por que
"é impossível para a mesma coisa ser e não ser". Ela
traz consigo sua própria luz e evidência, e não
necessita de outra prova: quem entende os termos
aquiesce com isto por seus próprios méritos; ao
contrário, nada jamais seria capaz de se impor sobre
ele para fazê-lo entender. Mas deveria esta imperecível
regra da moralidade e fundamento de toda virtude
social, "que alguém deve fazer como lhe foi feito", ser
proposta a alguém que nunca ouviu isto antes, mas
ainda tem capacidade para, entender seu significado,
não deve ele sem nenhum absurdo perguntar a razão
por quê?

6. A virtude não é geralmente aprovada porque é


inata, mas porque é proveitosa. Daqui decorre
naturalmente a grande variedade de opiniões acerca
das regras morais que são encontradas entre os
homens, segundo a diversa espécie de felicidade que
eles anteciparam, ou propuseram a si mesmos. Isto
não poderia ocorrer se os princípios práticos fossem
inatos e impressos diretamente em nossas mentes pela
mão de Deus. Concordo que a existência de Deus se
manifesta de várias maneiras, e a obediência que
devemos a ele é tão congruente à luz da razão que
grande parte da humanidade obedece à lei da
natureza. Entretanto, penso que deve ser admitido
que várias regras morais devem receber dos homens
uma apro vação muito geral, sem conhecerem ou
admitirem o verdadeiro funda
mento da moralidade, já que decorrem apenas da
vontade e lei de Deus, que vê os homens no escuro,
abarca em sua mão o prêmio, o castigo e suficiente
poder para chamar à prestação de contas o ofensor
mais orgulhoso.

7. As ações dos homens nos convencem que a regra da


virtude não consiste em seu princípio interior. Se nós
não quisermos admitir

— 46 —
LOCKE

cortesmente muita sinceridade a respeito da profissão


da maioria dos ho mens, mas pensarmos que suas
ações interpretem seus pensamentos, des cobriremos
que eles não têm tal veneração interior por estas
regras, nem uma completa persuasão de sua certeza e
obrigação.

10. Os homens têm princípios práticos opostos. Quem


investigar cuidadosamente a história da humanidade,
examinar por toda parte as várias tribos de homens e
com indiferença observar suas ações, será capaz de
convencer-se de que raramente há princípio de
moralidade para ser designado, ou regra de virtude
para ser considerada (excetuando-se apenas as que
são absolutamente necessárias para manter a
sociedade unida, que ordinariamente são também
esquecidas entre sociedades distintas), que não seja,
em alguma parte ou outra, menosprezada e condenada
pela moda geral de todas as sociedades de homens,
governadas por opiniões práticas e regras de conduta
bem contrárias umas às outras.

11. Nações inteiras rejeitam várias regras morais.


Poder-se-á, talvez, objetar que não consiste num
argumento afirmar que a regra não é co nhecida
porque é violada. Concordaria com a validade desta
objeção se os homens, embora transgressores, não
repudiassem a lei, pelo temor da vergonha, da crítica
ou do castigo, que imporiam algum respeito sobre
eles. Mas é impossível imaginar que toda uma nação
de homens devesse rejeitar e renunciar publicamente
ao que cada um deles sabia com certeza e
infalivelmente ser uma lei, pois deviam tê-la
naturalmente em suas mentes.

12. Dizem que a violação de uma regra não é


argumento para que ela seja desconhecida. Concordo
com isso, mas afirmo que a brecha ge ralmente
admitida em alguma parte dela prova que não é inata.
Por exem plo, consideremos qualquer uma dessas
regras, que, sendo a mais óbvia dedução da razão
humana, e compatível com a tendência natural da
maio ria dos homens, pouca gente tem tido a
imprudência de negar ou duvidar. Quando, portanto,
dizem que esta é uma regra inata, o que querem dizer?
Que se trata de um princípio inato por fundamentar
em todas as ocasiões o motivo e direção das ações de
todos os homens, ou que é uma verdade que todos os
homens têm impressa em suas mentes, e, portanto,
conhecem e concordam com ela. Mas em nenhum
desses sentidos é inata.

13. Do que ficou dito, penso que podemos concluir


com segurança que, seja onde for que uma prática é
geralmente e com admissão violada, não pode ser
suposta inata.

14. Os que sustentam a existência de princípios


práticos inatos não nos dizem o que são. A diferença
que existe entre os homens acerca

— 47 —
OS PENSADORES

de seus princípios práticos é tão evidente que julgo


não ser necessário dizer mais nada para demonstrar
que será impossível divisar quaisquer regras morais
inatas com sinais de assentimento geral; e é suficiente
para fazer alguém suspeitar que a suposição de tais
princípios inatos é apenas uma opinião adotada à
vontade, desde que os que falam tão confiantes acerca
deles são tão parcimoniosos para nos dizer o que eles
são.

20. Para a objeção de que "os princípios inatos podem


ser corrom pidos", respondo. Não será este o momento
para abordar esta resposta consagrada, mas não muito
material, que assegura que os princípios inatos de
moralidade podem, mediante educação, costume e a
opinião geral da queles com quem conversamos, ser
apagados e, finalmente, estropiados das mentes dos
homens. Se esta afirmativa for verdadeira, afasta
totalmente o argumento do consentimento universal
pelo qual se tenta provar a opi nião de princípios
inatos; a menos que tais homens achem razoável que
suas persuasões privadas, ou a de seus adeptos, sejam
tomadas por sen timento universal, o que ocorre com
freqüência quando os homens, su pondo que eles
mesmos são os únicos mestres da correta razão,
assumem que os votos e opiniões do resto dos homens
não merecem ser contados. E, então, seu argumento é
o seguinte: "Os princípios que toda a humani dade
admite como verdadeiros são inatos; os que os homens
da justa razão admitem são os princípios aceitos por
todos os homens; nós, e os que pensam como nós,
somos homens de razão; portanto, concordamos que
nossos princípios são inatos": eis um modo muito
bonito de argüir, e um atalho para a infalibilidade.

21. Princípios contraditórios do mundo. Admito


facilmente que há grande número de opiniões que
homens de diferentes países, educação e
temperamentos receberam e aceitaram como os
primeiros e inquestionáveis princípios. Vários deles,
porém, não só por seu absurdo como por sua
recíproca oposição, revelam a impossibilidade de que
sejam verdadeiros. Embora inúmeras dessas
proposições estejam bem afastadas da razão, são a tal
ponto sagradas para uma ou outra região que mesmo
os homens de bom entendimento em outros assuntos
bem cedo as compartilham em suas vidas, e, seja o
que for que lhes é o mais querido, têm sua verdade
submetida a dúvidas, ou questões.

22. Como os homens apreendem normalmente seus


princípios. Isto, por mais estranho que pareça, é o que
a experiência diária confirma; não parecerá, talvez, tão
maravilhoso, se consideramos os meios e passos pelos
quais é ocasionado, e como realmente pode acontecer,
pois doutrinas que têm sido derivadas de origens não
melhores do que a superstição de uma enfermeira ou
a autoridade de uma mulher velha podem, pela
duração

— 48 —

LOCKE

do tempo e consentimento dos


confrades, atingir a dignidade
de princípios em religião ou
moral.

24. Raramente há alguém tão instável


e superficial em seu entendi mento
que não tenha reverenciado algumas
proposições, que são para ele os
princípios sobre os quais fundamenta
seus raciocínios, e pelos quais julga a
verdade e falsidade, o certo e o
errado. Alguns, por falta de perícia e
lazer, outros, por inclinação, e outros
mais, tendo sido ensinados que não
devem examiná-los, havendo poucos
que não são expostos por sua
ignorância, preguiça, educação ou
precipitação, a considerá-los com
confiança.

27. Os princípios devem ser


examinados. Mediante este
processo, deve ser facilmente
observado, na variedade de
princípios opostos sus tentados e
mantidos por todo tipo e graus de homens, quantos há que adquirem
princípios que acreditam inatos. E quem negar que este deve ser o método
segundo o qual a maioria dos homens procede com respeito à segurança que
tem da verdade e evidência de seus princípios descobrirá, talvez, que é
questão difícil recorrer a outro meio qualquer para responder a opiniões
opostas, acreditadas com firmeza, afirmadas com confiança, as quais grande
número de pessoas está disposto a qualquer momento a assinar com seu
próprio sangue.
Do que ficou dito, penso não haver mais dúvida que não há prin cípios
práticos com os quais todos os homens concordam e, portanto, ne nhum é
inato.

C a p ít u lo III

O u t r a s C o n s id e r a ç õ e s A c e r c a d o s P r in c íp io s In a t o s , t a n t o
Es p e c u l a t iv o s c o m o P r á t ic o s

1. Os princípios não são inatos, a menos que suas


idéias sejam
inatas. Se os que nos querem persuadir que há princípios inatos não os
tivessem compreendido em conjunto, mas considerado separadamente os
elementos a partir dos quais estas proposições são formuladas, não esta riam,
talvez, tão dispostos a acreditar que elas eram inatas. Visto que, se as idéias
das quais são formadas estas verdades não fossem inatas, seria impossível
que as proposições formadas delas pudessem ser inatas, ou nosso
conhecimento delas ter nascido conosco. Se, pois, as idéias não são inatas,
houve um tempo em que a mente estava sem esses princípios, e, deste modo,
não seriam inatos, mas derivados de alguma outra origem. Pois, se as
próprias idéias não o são, não pode haver conhecimento, assenti mento, nem
proposições mentais ou verbais a respeito delas.

2. As idéias, especialmente as pertencentes aos princípios, não nas cem


com as crianças. Se consideramos cuidadosamente as crianças recém nascidas,
teremos bem poucos motivos para crer que elas trazem consigo a este mundo
muitas idéias. Excetuando, talvez, algumas pálidas idéias de fome, sede e
calor, e certas dores, que sentiram talvez no ventre, não há a menor
manifestação de idéias estabelecidas nelas, especialmente das idéias que
respondem aos termos que formam proposições universais que são con sideradas
princípios inatos. Pode-se perceber como, por graus, posteriormen te, as idéias
chegam às suas mentes, e não adquirem mais, nem outras, do que as
fornecidas pela experiência e a observação das coisas que apa recem em seu
caminho, o que deve ser suficiente para convencer-nos de que não há
caracteres originais impressos na mente.

8. A idéia de Deus não é inata. Se alguma idéia pode ser imaginada inata,
dentre todas as outras, a idéia de Deus pode ser pensada assim,

— 51 —
OS PENSADORES

por várias razões, por julgar-se que seria difícil conceber a existência de
princípios morais inatos sem uma idéia inata da Divindade. Sem a noção de
um legislador é impossível ter uma noção da lei e obrigação para cumpri-la.
Além dos ateus observados entre os antigos, e assinalados nos registros da
história, não se descobriram, em épocas mais recentes, nações inteiras entre as
quais não se encontra nenhuma noção de Deus e nem da religião? Estes são
exemplos de noções em que a natureza inculta foi mantida por si mesma sem
o auxílio da cultura e da disciplina, e o aper feiçoamento das artes e ciências.
Mas há outras que, apesar de terem disto usufruído, por falta da devida
aplicação de seus pensamentos daquela maneira, carecem da idéia e
conhecimento de Deus.

9. Mas, se os homens tivessem em toda parte uma noção de um Deus


(até que a história nos provasse o oposto), não resultaria disso que sua idéia
seria inata. Apesar de nenhuma nação ter sido descoberta sem um nome, com
poucas e obscuras noções acerca dele, apesar disto não podem ser com
provantes de impressões naturais na mente, do mesmo modo que os nomes
do fogo, sol, calor e o número não provam que as idéias que manifestam são
inatas, porque os nomes destas coisas, e as idéias delas, são universalmente
recebidos e conhecidos entre os homens. Visto que os homens, usando
palavras derivadas do idioma geral de seus próprios países, podem raramente
evitar ter certo tipo de idéias a respeito das coisas, cujos nomes são
mencionados com freqüência em suas conversas.

10. A idéia de substância não é inata. Confesso que há outra idéia que
seria de uso geral entre os homens, pois é mencionada geralmente na
conversa. Trata-se da idéia de substância, que não obtemos nem podemos
obter pela sensação ou reflexão. Se a natureza cuidou de nos prover com
algumas idéias, devemos esperar que sejam tais que não possamos des cobrir
mediante nossas próprias faculdades; observamos, ao contrário, que, através
dos meios pelos quais as idéias são trazidas para as nossas mentes, não temos
de modo algum esta idéia clara; portanto, nada significa a palavra substância, a
não ser uma proposição incerta disto que não sabemos o que, isto é, de algo
acerca do que não temos nenhuma idéia positiva particular e distinta, que
julgamos ser o substratum, ou suporte, destas idéias que conhecemos.

21. Não há idéias inatas na memória. Cabe-me acrescentar: se hver quaisquer


idéias inatas, quaisquer idéias na mente a respeito das quais a mente não pensa
atualmente, devem estar situadas na memória, da qual devem ser trazidas à
observação pela recordação, isto é, devem ser reco nhecidas, quando são
recordadas, como tendo antes sido percepções na mente, a menos que a
recordação possa existir sem a recordação, e desde

— 52 —
LOCKE

que recordar é perceber alguma coisa na memória, ou


ter a consciência de que isto era antes conhecido ou
percebido. Sem isto, seja qual for, a idéia que surge na
mente é nova, e não recordada; esta consciência de ter
estado na mente antes de ser é distinguida pela
recordação de todas as outras maneiras de pensar. Seja
qual for a idéia que nunca foi percebida pela mente,
nunca esteve na mente. Seja qual for a idéia que exista
na mente, ou é uma percepção atual ou, tendo sido
uma percepção atual, está de tal modo na mente que
através da memória pode ser de novo transformada
em percepção atual. Sempre que há uma percepção
atual de uma idéia sem memória, a idéia aparece
perfeitamente nova e desco nhecida ao entendimento.
Sempre que a memória introduz qualquer idéia à
observação atual, isto é feito com a consciência de que
ela já existiu, e não era totalmente estranha à mente.
Se isto não é assim, faço um apelo para a observação
de cada um. E, então, desejo um exemplo de uma
idéia, pretendida ser inata (antes de qualquer
impressão disto pelos meios a serem mencionados
adiante), que qualquer um pudesse receber e recordar
como uma idéia que tivesse anteriormente conhecido,
sem que houvesse recordação sem a consciência de
sua percepção anterior. Seja qual for a idéia
introduzida na mente sem ser recordada pela
consciência, ou não derivada da memória, ela não
pode ser afirmada estar na mente antes desta
manifestação. Uma vez que o que não está atualmente
à vista, ou nem na memória, não está de modo algum
na mente, dá no mesmo dizer que nunca esteve lá.

25. Origem da opinião acerca dos princípios inatos.


Quando os homens descobriram certas proposições
gerais que não podiam ser ques tionadas logo que
entendidas, compreendemos como isto passou a ser a
maneira rápida e fácil para concluir que elas eram
inatas. Sendo isto aceito, liberou o preguiçoso das
penas da pesquisa e deu fim à investigação dos
duvidosos que se interessam pela denominação inata.
Não parecia pequena vantagem aos que pretendiam
ser mestres e professores considerar o prin cípio dos
princípios que — princípios não devem ser questionados.
Uma vez estabelecida esta doutrina, isto é, que há
princípios inatos, situou seus adeptos com a
necessidade de receber certas doutrinas sem discussão,
desviando-os do uso de suas próprias razões e
julgamentos, e levando-os a acreditar e confiar nelas
sem exame posterior. Com esta postura de cega
credulidade podem ser com mais facilidade
governados, passando a ser úteis para certa espécie de
homens que têm a perícia e função para guiá-los. Não
é pequeno o poder conferido a um homem sobre o
outro, ou seja, o de ter a autoridade para ser o ditador
de princípios, professor de verdades inquestionáveis,
e fazer com que uma pessoa tome por princípio inato o
que deve servir ao propósito de quem as ensina. Ao
passo que, se tivessem examinado as maneiras pelas
quais os homens adquirem o conhecimento

— 53 —
OS PENSADORES

de muitas verdades universais, descobririam que elas


resultam nas mentes dos homens mediante o ser das
próprias coisas, quando devidamente con sideradas; e
que elas foram descobertas pela aplicação destas
faculdades que são adequadas por natureza para
recebê-las e julgá-las, quando de vidamente
empregadas.

26. Conclusão. Mostrar como o entendimento procede é


o desígnioda seqüência do tratado, que desenvolverei
quando tiver antes estabelecido e esclarecido meu
método dos fundamentos que concebo como os únicos
verdadeiros para estabelecer estas noções que
podemos ter de nosso co nhecimento. Para tanto, foi,
portanto, necessário fazer um relatório das razões que
tinha para duvidar de princípios inatos. E desde que
os argu mentos que existem contra eles, ao menos
alguns deles, nascem das opi niões ordinárias
recebidas, fui forçado a aceitar muitas coisas como
certas, procedimento dificilmente evitável para quem
tem a tarefa de mostrar a falsidade ou improbidade de
qualquer doutrina. Isto acontece em discursos
controvertidos, do mesmo modo como assaltando
cidades, onde, se há base sólida no sentido em que as
baterias estão dirigidas, não há inves tigação posterior
de quem tomou isto emprestado, nem a quem isto per
tence, já que isto oferece apenas conveniente auxílio
para o presente pro pósito. Mas na parte seguinte deste
tratado, designado para levantar um edifício uniforme
e consistente consigo mesmo, na medida em que
minha própria observação e experiência me
auxiliarem, espero levantá-lo sobre tal base que não
necessitarei escorá-lo com estacas, apoiando-o em fun
damentos emprestados ou solicitados; ou, ao menos, se
tiver, ao final, construído um castelo no ar,
empenhar-me-ei para que seja constituído por uma
única peça e permaneça unido.
— 54 —

Liv r o II

As I d é ia s

C a pít u lo I

As Id é ia s em G e r a l e s u a O r ig e m

1. Idéia é o objeto do pensamento. Todo homem tem consciência de


que pensa, e que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias. Por
conseguinte, é indubitável que as mentes humanas têm várias idéias,
expressas, entre outros, pelos termos brancura, dureza, doçura, pensa
mento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez. Disso decorre a
primeira questão a ser investigada: como elas são apreendidas? Consiste numa
doutrina aceita que o ser primordial dos homens tem idéias inatas e caracteres
originais estampados em sua mente. Já exa minei, em linhas gerais, essa
opinião, e suponho que o que ficou dito no livro anterior será facilmente
admitido quando tiver mostrado como o entendimento obtém todas as suas
idéias, e por quais meios e graus elas podem penetrar na mente; com este fim
solicitarei a cada um recorrer à sua própria observação e experiência.

2. Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos,


pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de
todos os caracteres, sem nenhuma idéia; como ela será suprida? De onde lhe
provém este vasto estoque, que a ativa e ilimitada fantasia do homem pintou
nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais
da razão e do conhecimento? A isso res pondo, numa palavra: da experiência.
Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva
fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos
sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por
nós mesmos percebidas e re fletidas, nossa observação supre nossos
entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de
conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente
teremos.

3. O objeto da sensação é uma fonte das idéias. Primeiro, nossos


O S PENSADORES

sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis


particulares, levam para a mente várias e distintas
percepções das coisas, segundo os vários meios pelos
quais aqueles objetos os impressionaram. Recebemos,
assim, as idéias de amarelo, branco, quente, frio, mole,
duro, amargo, doce e todas as idéias que
denominamos de qualidades sensíveis. Quando digo
que os sentidos levam para a mente, entendo com isso
que eles retiram dos objetos externos para a mente o
que lhes produziu estas percepções. A esta grande
fonte da maioria de nossas idéias, bastante dependente
de nossos sentidos, dos quais se encaminham para o
entendimento, denomino sensação.

4. As operações de nossas mentes consistem na outra


fonte de idéias. Segundo, a outra fonte pela qual a
experiência supre o entendi mento com idéias é a
percepção das operações de nossa própria mente, que
se ocupa das idéias que já lhe pertencem. Tais
operações, quando a alma começa a refletir e a
considerar, suprem o entendimento com outra série de
idéias que não poderia ser obtida das coisas externas,
tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o
crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os
diferentes atos de nossas próprias mentes. Tendo disso
consciência, observando esses atos em nós mesmos,
nós os incorporamos em nossos entendimentos como
idéias distintas, do mesmo modo que fazemos com os
corpos que impressionam nossos sentidos. Toda gente
tem esta fonte de idéias completamente em si mesma;
e, embora não a tenha sentido como relacionada com
os objetos externos, provavelmente ela está e deve
propriamente ser chamada de sentido interno. Mas,
como denomino a outra de sensação, denomino esta de
reflexão: idéias que se dão ao luxo de serem tais apenas
quando a mente reflete acerca de suas
próprias operações. Na parte seguinte deste discurso,
quero que se entenda que a reflexão significa a mente
observando suas próprias operações, como elas se
formam, e como elas se tornam as idéias dessas
operações no entendimento. Afirmo que estas duas, a
saber, as coisas materiais externas, como objeto da
sensação, e as operações de nossas próprias mentes,
como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos
dados originais dos quais as idéias derivam. O termo
operações é usado aqui em sentido lato, compreen
dendo não apenas as ações da mente sobre suas ideias,
mas também certos tipos de paixões que às vezes
nascem delas, tais como a satisfação ou inquietude
que nascem de qualquer pensamento.

5. Todas as nossas idéias derivam de uma ou de outra


fonte. Pa rece-me que o entendimento não tem o
menor vislumbre de uma idéia se não a receber de
uma das duas fontes. Os objetos externos suprem a
mente com as idéias das qualidades sensíveis, que são
todas as diferentes percepções produzidas em nós, e a
mente supre o entendimento com idéias através de
suas próprias operações.

— 58 —
LOCKE

Quando efetuarmos uma investigação completa de ambos, de seus vá


rios modos, combinações e relações, descobriremos que eles contêm todo o
nosso estoque de idéias, e que não temos nada em nossas mentes a não ser o
derivado de um desses dois meios. Se alguém examinar seus próprios
pensamentos, dir-me-á, então, se todas as idéias originais que lá estão são
algo mais do que os objetos de seus sentidos, ou das operações de sua mente
encarada como objeto de sua reflexão; e, por mais ampla que seja a massa de
conhecimentos lá localizada, por mais que ele imagine, verá, assumindo um
ponto de vista estrito, que não tem idéia alguma em sua mente, a não ser o
que foi por uma dessas duas impresso, embora talvez compostas em infinita
variedade e ampliadas pelo entendimento, como veremos adiante.

6. Observável nas crianças. Quem considerar com atenção a situação de


uma criança quando vem ao mundo quase não terá razão para supor que ela
se encontra com uma abundância de idéias que constituirão o material de seu
futuro conhecimeno. Gradualmente, será delas provida; embora as idéias das
qualidades óbvias e familiares se imprimam antes de a memória começar a
fazer um registro do tempo e da ordem, será, freqüentemente, bem mais tarde
que certas qualidades incomuns surgem no caminho das crianças, e poucos
homens não se lembram de quando se familiarizaram com elas; e, se fosse
proveitoso, não há dúvida que uma criança seria de tal modo ordenada para
ter apenas algumas das idéias ordinárias até desenvolver-se num homem.
Mas, como todos os seres vi ventes se encontram envoltos por corpos que
perpétua e diversamente os impressionam, surge uma variedade de idéias,
levadas ou não em consi
deração, que se imprimem nas mentes das crianças. Luz e cores estão à
disposição em toda parte em que o olho estiver apenas aberto; sons e certas
qualidades sensíveis não se omitem de procurar seus próprios sen tidos,
forçando sua entrada na mente; mesmo assim, penso ser facilmente admitido
que, se uma criança fosse mantida num lugar em que apenas visse o branco e
o preto até a idade adulta, não teria idéia do vermelho ou do verde, do
mesmo modo que quem jamais experimentou o gosto da ostra ou do abacaxi
não teria esses gostos determinados.

7. Os homens estão diversamente supridos dessas idéias, segundo os


diferentes objetos com os quais entram em contato. Os homens são, portanto,
supridos com menos ou mais idéias simples do exterior, à medida que os
objetos com os quais entram em contato oferecem maior ou menor variedade;
estão supridos com as operações internas de suas mentes, à medida que
refletem mais ou menos sobre elas; portanto, a menos que dirijam seus
pensamentos para esta via e a considerem atentamente, não terão mais idéias
claras e distintas de todas as operações de sua mente, e em tudo que puder
ser observado acerca desse assunto, quer tenham

— 59 —
OS PENSADORES

todas as idéias particulares de qualquer paisagem, quer das partes dos


movimentos de um relógio, deverão encarar e prestar atenção a todos os seus
pormenores. A pintura ou o relógio podem estar de tal modo situados que
diariamente surgem no caminho de um homem; mesmo assim, ele terá uma
idéia confusa de todas as partes de que são feitos enquanto não se aplicar com
atenção e considerar cada uma delas pormenorizadamente.

8. As idéias de reflexão são posteriores, porque necessitam de aten ção.


Vemos, assim, a razão pela qual bem mais tarde a maioria das crianças adquire
idéias das operações de suas próprias mentes. E algumas não têm idéias claras
ou perfeitas da m aioria d e suas operações durante toda a vida. Embora
tenham a mente continuamente atingida por visões flutuan tes, estas não a
impressionam suficiente e profundamente, marcando-a com idéias claras,
distintas e duráveis, enquanto o entendimento não se volta para si mesmo e
reflete sobre suas próprias operações, tornando-as o objeto de sua própria
contemplação. Quando as crianças chegam ao mundo pela primeira vez,
encontram-se rodeadas por uma infinidade de coisas novas, que, por
constante solicitação de seus sentidos, orientam a mente constantemente para
elas, avançando para observar de novo, e se deliciando com a variedade
cambiante de objetos. São, assim, os primeiros anos usualmente empregados e
entretidos em olhar para fora. A tarefa dos homens consiste em se
familiarizarem com o que existe para ser en contrado externamente; e assim,
crescendo com atenção constante para as sensações externas, raramente os
homens fazem alguma reflexão conside rável sobre o que ocorre com eles, até
atingirem a idade adulta; e alguns jamais fazem tal reflexão.

9. A alma começa a ter idéias quando começa a perceber. Perguntar


quando um homem começa a ter quaisquer idéias eqüivale a perguntar
quando começa a perceber, pois dá no mesmo dizer ter idéias ou ter per cepção.
Sei que alguns são de opinião que a alma sempre pensa, e, contanto que
exista, tem constante e por si mesma percepção real das idéias, e que o
pensamento real é inseparável da alma, como o é a extensão real do corpo.
Sendo tudo isso verdadeiro, inquirir acerca da origem das idéias dos homens
eqüivale a inquirir acerca da origem de sua alma. Com base nisso, a alma e
suas idéias, como o corpo e sua extensão, começarão ambos a existir ao
mesmo tempo.

10. A alma nem sempre pensa, pois isto necessita de provas. Su por-se,
porém, que a alma antecede, coexiste ou aparece certo tempo depois dos
primeiros rudimentos ou do começo da vida no corpo é tema para ser
discutido por quem for mais bem-dotado. Confesso que possuo uma dessas
almas apáticas, que nem sempre têm percepção de si mesmas ao

— 60 —
LOCKE

contemplar idéias, nem posso conceber nada mais


necessário à alma do que sempre pensar, ao corpo de
estar sempre em movimento, e imagino que a
percepção das idéias é para a alma o que o movimento
é para o corpo, isto é, não é sua essência, mas uma de
suas operações. Portanto, embora o pensamento
jamais possa ser a tal ponto suposto como ação
apropriada da alma, ainda assim não é necessário
supor que ela estaria sempre pensando, sempre em
ação. É este, talvez, o privilégio do infinito Autor e
Protetor de todas as coisas, "que nunca repousa e nem
dorme", o que não é admissível para nenhum ser
finito; pelo menos não o é para a alma do homem.
Sabemos, certamente por experiência, que às vezes
pensamos; daí chegamos a esta conclusão infalível: há
alguma coisa em nós que tem o poder de pensar. Mas
de que esta substância esteja perpe tuamente
pensando, ou não, não podemos ter mais segurança do
que nos informa a experiência. Afirmar que o
pensamento real é essencial à alma e inseparável dela
é uma petição de princípio e não uma prova racional,
sendo necessário apresentá-la, por não se tratar de
uma proposição evi dente por si mesma. Mas insistir
que esta proposição — "a alma sempre pensa" — é
evidente por si mesma, com a qual todos concordam
apenas através de uma primeira inquirição, leva-me a
pedir auxílio a todos os homens. Quando digo que
tenho dúvidas se pensei ou não durante toda a noite,
isto implica que se trata de uma questão sobre um fato
e que não se pode aceitar, para prová-la, uma hipótese
consistindo na própria coisa em questão, da qual não
se pode chegar a nenhuma prova. Seria, pois, o
mesmo que supor que todos os relógios pensam, desde
que seus ponteiros se movimentam, ficando disso,
portanto, provado, sem qualquer dúvida, que meu
relógio pensou durante toda a noite passada. Quem
não quiser se equivocar, deve construir sua hipótese,
derivada da experiência sensível, sobre um fato, e não
supor um fato devido a essa hipótese, isto é, porque
supõe ser assim, o que como prova eqüivale a isto:
devo necessariamente ter pensado durante toda a
noite passada, porque alguém supõe que sem pre
penso, embora eu mesmo nem sempre o perceba.
Entretanto, os homens enamorados de suas próprias
opiniões podem não só supor o que está em questão,
como recorrer ao fato errôneo. De que outro modo
poderia alguém tirar de minha inferência que uma
coisa não é porque não a sentimos no sono? Não digo
que não existe alma no homem porque não a sente no
sono, mas digo: não pode pensar um mo
mento sequer, acordado ou dormindo, sem ser sensível
a isso. Sermos sensíveis a isso não é uma coisa
necessária para todas as coisas; é, contudo, para os
nossos pensamentos, sendo para eles agora e sempre
necessário, até que possamos pensar sem termos disso
consciência.

11. Nem sempre tem consciência disso. Concordo que


a alma de un\ homem desperto jamais está vazia de
pensamento, porque esta é a

— 61 —

OS PENSADORES

condição de estar acordado.


Deve, porém, o homem
desperto considerar se dormir
sem sonhar afeta ou não o
homem em sua totalidade, tanto
na mente como no corpo. Pois é
muito difícil imaginar que
alguma coisa possa pensar e
não estar consciente disso. Se a
mente de um homem que
dorme pensa sem ter
consciência disso, pergunto:
sentiu no pensamento algum
prazer ou dor, ou foi capaz de
ter felicidade ou infortúnio?
Estou seguro de que o homem
não sentiu nada mais do que a
cama ou a terra em que se
encontra. Ser feliz ou miserável sem ter consciência disso pa rece-me
totalmente inconsciente e impossível. Quando o corpo dorme é impossível que
a alma tenha pensamento, alegria e preocupações, prazer e sofrimento,
embora o homem não seja nem consciente e nem participe disso. Certamente,
Sócrates dormindo e Sócrates acordado não é a mesma
pessoa, pois sua alma quando dorme, e Sócrates o homem, consistindo de
corpo e alma, quando está acordado, são duas pessoas. Portanto, Só crates,
acordando, não tem conhecimento da felicidade ou relação como o infortúnio
de sua alma, sentido por ele só quando dormia. Sem, contudo, percebê-los,
assemelha-se à sua falta de sentimento pela felicidade ou in fortúnio pelo
homem das índias, simplesmente porque não o conhece. Se for excluída
totalmente a consciência de nossas ações ou sensações, espe cialmente as do
prazer e sofrimento, juntamente com os problemas que acompanham, será
difícil caracterizar a identidade pessoal.

— 62 —
C a pít u lo II
I d é ia s S im p l e s

1. Aparências simples. Para entender melhor a


natureza, a maneira e a extensão de nosso
conhecimento, deve ser cuidadosamente observado
que algumas de nossas idéias são simples e outras
complexas.
Visto que as qualidades que impressionam nossos
sentidos estão, nas próprias coisas, tão unidas e
misturadas que não há separação, ne nhuma distância
entre elas, é claro que as idéias, produzidas na mente,
entram pelos sentidos, simples e sem mistura. Embora
a visão e o tato recebam do mesmo objeto, com
freqüência e ao mesmo tempo, idéias di ferentes,
fazendo com que um homem perceba o movimento e a
cor, a mão sinta maciez e calor num mesmo pedaço de
cera; apesar disso, as idéias simples unidas num
mesmo objeto são perfeitamente distinguíveis como as
que entram pelos diferentes sentidos; a frieza e a
dureza que um homem sente num pedaço de gelo são
idéias tão distintas à mente como o perfume e a
brancura de um lírio, ou como o gosto do açúcar ou o
perfume da rosa: nada pode ser mais evidente a um
homem do que a per cepção clara e distinta dessas
idéias simples, de tal modo que, sendo cada uma
delas sem mistura, nada contêm em si exceto uma
aparência ou concepção uniforme na mente, que não pode
ser distinguível em idéias diferentes.

2. A mente não pode formá-las, nem destruí-las. Estas


idéias sim ples, os materiais de todo o nosso
conhecimento, são sugeridas ou forne cidas à mente
unicamente pelas duas vias acima mencionadas:
sensação e reflexão. Quando o entendimento já está
abastecido de idéias simples, tem o poder para repetir,
comparar e uni-las numa variedade quase in finita,
formando à vontade novas idéias complexas. Mas não
tem o poder, mesmo o espírito mais exaltado ou
entendido, mediante nenhuma rapidez do
pensamento, de inventar ou formar uma única nova
idéia simples na mente, que não tenha sido recebida
pelos meios antes mencionados; nem pode nenhuma
força do entendimento destruir as idéias que lá estão,
sendo
OS PENSADORES

o domínio do homem neste pequeno mundo de seu


entendimento seme lhante ao do grande mundo das
coisas visíveis; donde seu poder, embora manejado
com arte e perícia, não vai além de compor e dividir os
materiais que estão ao alcance de sua mão; mas nada
pode quanto à feitura da menor partícula de nova
matéria, ou na destruição de um átomo do que já
existe. Semelhante inabilidade será descoberta por
quem tentar modelar em seu entendimento alguma
idéia que não recebera através dos sentidos dos
objetos externos, ou mediante a reflexão das operações
de sua mente acerca deles. Gostaria que alguém
tentasse imaginar um gosto que jamais impressionou
seu paladar, ou tentasse formar a idéia de um aroma
que nunca cheirou; quando puder fazer isso,
concluirei também que um cego tem idéias das cores,
e um surdo noções reais dos diversos sons.

3. Apenas as qualidades que impressionam os sentidos


são ima gináveis. Embora não possamos acreditar que
seja impossível a Deus fazer uma criatura com outros
órgãos, e outros meios para conduzir ao enten dimento
as observações das coisas corporais, além dos cinco
com os quais normalmente conta, dados por ele ao
homem; ainda assim, penso que não é possível para
alguém imaginar quaisquer outras qualidades nos
corpos, por mais bem constituído que seja, por meio
do qual pode ser observado além dos sons, gostos,
cheiros, qualidades visíveis e tangíveis. E, se a
humanidade tivesse sido feita apenas com quatro
sentidos, as qua lidades que constituiriam os objetos
do quinto sentido ficariam tão dis tantes da nossa
observação, imaginação e concepção, como deve estar
no momento algo pertencente ao sexto, sétimo ou
oitavo sentido. Consistirá, porém, indesculpável
presunção supor que tais sentidos não possam per
tencer a outras criaturas, situadas em outras partes
deste vasto e estupendo universo. E, se o homem não
se assentar orgulhosamente no topo de todas as
coisas, mas, pelo contrário, refletir acerca da imensidão
desta construção, e da enorme variedade manifestada
nesta pequena e desprezível porção que lhe é
acessível, deve ser levado a pensar que em outras
mansões do universo existem outros e diferentes seres
inteligíveis, de cujas faculdades ele tem tão pouco
conhecimento ou apreensão quanto um verme preso
na gaveta de uma escrivaninha tem dos sentidos ou
entendimento de um homem; tais variedade e
superioridade são adequadas à sabedoria e poder do
Criador. Segui aqui a opinião corriqueira de que o
homem tem apenas cinco sentidos, embora talvez
possa com justeza contar com mais outros; mas
qualquer das suposições é igualmente adequada para
o meu presente propósito.

— 64 —

C a p ítu lo III

As Id é ia s S im p le s d o S e n t id o

1. Divisão das idéias simples. Para melhor conceber as idéias que


recebemos da sensação, não nos parece impróprio considerá-las com re
ferência aos diferentes meios pelos quais elas se aproximam de nossas mentes
e tornam-se por nós percebíveis.
Primeiro, algumas entram em nossas mentes por um único sentido.
Segundo, outras transportam-se à mente por mais de um sentido.
Terceiro, outras derivam apenas da reflexão.
Quarto, algumas abrem caminho, e são sugeridas à mente, por todos os
meios da sensação e da reflexão.
Iremos considerá-las em separado e sob esses vários itens. Certas idéias
têm acesso à mente apenas por um único sentido, especialmente concebido
para recebê-las. São, assim, luz e cores, como branco, vermelho, amarelo,
azul, com seus vários graus ou sombras e misturas, como verde, escarlate,
roxo, verde-marinho e outras semelhantes que entram unica
mente pelos olhos; todos os tipos de ruídos, sons e tons conduzidos pelos
ouvidos; vários gostos e odores introduzidos pelo nariz e paladar. Estando,
porém, esses órgãos, ou nervos, que conduzem as sensações do exterior ao ser
receptor no cérebro (sala de recepção da mente, como ainda o denomino), tão
desordenados, a ponto de não exercerem suas funções, as sensações não
teriam porta lateral para serem admitidas, nem outro meio para se exporem e
serem recebidas pelo entendimento.
Os aspectos mais notáveis daqueles objetos ao tato são calor, frio e solidez;
sendo o restante suficientemente óbvio, pois consiste quase total mente na
confirmação sensível, como macio e áspero, ou, de outro modo, na adesão
menos firme destas partes, como duro e mole, rijo e frágil.

2. Poucas idéias simples têm nome. Penso que será desnecessário enumerar
todas as idéias simples particulares, objeto de cada sentido. Mes mo se
quiséssemos não seria possível, pois a maior parte delas, pertencente

— 65 —
O S PENSADORES

à maioria dos sentidos, não pode ser denominada. A variedade de cheiros,


quase tanta, se não mais que a espécie de corpos no mundo, em sua maioria
necessita de denominação. Doce e fétido geralmente servem para a nossa
interpretação dessas idéias, o que virtualmente é pouco mais que as
denominar agradáveis ou desagradáveis; embora os perfumes de uma rosa e
uma violeta, ambos doces, sejam certamente idéias bem distintas. Nem as
idéias dos vários gostos transmitidos pelo nosso paladar são mais bem
providas de nomes. Doce, amargo, azedo, acre e salgado são quase todas as
nossas designações para a variedade inumerável de condimentos
distintamente, não apenas em quase todo tipo de criaturas, mas nas di ferentes
partes da mesma planta, fruto ou animal. O mesmo pode ser dito acerca das
cores e sons. Contentar-me-ei, portanto, acerca das idéias sim ples que estou
apresentando, em registrar apenas as que são mais perti nentes ao nosso
presente propósito, ou são em si mesmas menos visíveis para serem notadas,
embora sejam com freqüência os ingredientes de nos sas idéias complexas,
entre as quais posso indicar solidez, que discutirei no próximo capítulo.

C a p ítu lo IV

I d é ia d e S o l id e z

1. Recebemos esta idéia pelo tato. Recebemos a idéia


de solidez pelo nosso tato, e ela nasce da resistência
que encontramos no corpo contra a entrada de
qualquer outro corpo no espaço por ele ocupado, até
que o abandona. Se nos locomovemos ou paramos,
não importa nossa postura, sempre sentimos algo
embaixo de nós para nos sustentar e impedir mais
tarde nossa queda; e os corpos que diariamente
manipulamos nos fazem perceber que, enquanto
permanecem entre nossas mãos, impedem, por tuna
força insuperável, a aproximação de nossas mãos que
os pressionam. A isto, que impede a aproximação de dois
corpos, quando estão se movendo um na direção do outro,
denomino solidez. Não discutirei se tal acepção do termo
sólido aproxima-se do significado original dos
matemáticos. Penso como suficiente a noção
corriqueira de solidez que permitirá, se não justificar,
tal uso, mas, se alguém julgar melhor chamá-la de
impenetrabilidade, tem o meu consentimento. Apenas
pensei que o termo solidez é o mais ade quado para
expressar esta idéia, não apenas porque vulgarmente
tem esse sentido, mas também porque compreende
algo mais positivo do que im penetrabilidade: idéia
negativa que consiste, talvez, mais numa conseqüên
cia da solidez do que a própria solidez. Ademais,
parece ser uma idéia muito intimamente ligada e
essencial ao corpo, de tal modo que em ne nhum outro
lugar pode ser encontrada ou imaginada exceto na
matéria, embora nossos sentidos não a observem a
não ser em massas de matéria, num volume suficiente
para causar em nós uma sensação. Deste modo, a
mente, tendo uma vez apanhado esta idéia de
grosseiros corpos sensíveis, investiga-a por mais
tempo e a considera uma figura nas partículas mais
minúsculas que existem da matéria, e a descobre
inseparavelmente inerente ao corpo, seja onde for ou
de qualquer modo modificada.

2. Solidez ocupa espaço. Esta é a idéia que faz parte do


corpo, em qualquer lugar que a imaginamos ela ocupa
espaço. A idéia de ocupar

— 67 —
OS PENSADORES

espaço significa: em qualquer lugar que imaginamos certo espaço ocupado


por uma substância sólida, concebemo-la contendo-a de tal modo que exclui
todas as outras substâncias sólidas; e para sempre impedirá dois outros
corpos quaisquer, movendo-se um contra o outro em linha reta, de se
chocarem, a menos que se afaste deles, numa direção não paralela àquela em
que eles se movem. Esta idéia nos é suficientemente fornecida pelos corpos
que ordinariamente manuseamos.

3. Distinto de espaço. Esta resistência, por meio da qual impede a


entrada de outros corpos no espaço por ela ocupado, é tão grande que
nenhuma força, por maior que seja, pode superá-la. Todos os corpos do
mundo, pressionando uma gota de água em todas as direções, jamais serão
capazes de superar a resistência oferecida por ela, embora tão mole, para se
aproximarem reciprocamente, até que seja tirada de seu caminho; deste modo,
nossa idéia ordinária de solidez distingue-se tanto do espaço puro, que não é
capaz de resistência nem de movimento, como da idéia de dureza. Sendo
assim, um homem pode imaginar dois corpos apartados que pod em se aproxim
ar reciprocamente sem tocarem ou deslocarem ne nhuma coisa sólida até que
suas superfícies se encontrem: penso que temos, assim, a idéia clara de espaço
sem solidez. Porque (para não ir tão longe, até a destruição de qualquer corpo
particular), pergunto: não pode um homem ter a idéia do movimento de um
único corpo singular, sem que seja imediatamente sucedido por outro? E
evidente que pode, pois a idéia de movimento num corpo não inclui a idéia de
movimento em outro, ao contrário da de uma figura quadrada num corpo,
que inclui a idéia de uma figura quadrada em outro. Não pergunto se os
corpos realmente existem, porquanto o movimento de um corpo não pode
realmente existir sem o movimento do outro. Determinar isto num dos dois
significa incorrer em petição de princípio a favor ou contra o vácuo. Mas esta
é minha dúvida: não pode alguém ter a idéia movendo-se, enquanto outros
estão parados? Penso que ninguém negará isso. Se for verdade, então o espaço
que ela deixou dá-nos a idéia de espaço puro sem solidez, no qual outro corpo
pode entrar sem o desaparecimento de qualquer coisa. Quando a sonda da
bomba está seca, o espaço ocupado no tubo é certamente o mesmo, quer outro
corpo acompanhe ou não o movimento da sonda; nem implica uma
contradição afirmar que o movimento de um corpo não de veria ser seguido
por outro que lhe é apenas contíguo. A necessidade de tal movimento
constrói-se somente na suposição de que o mundo é pleno, e não nas idéias
distintas de espaço sem o corpo, pois suas discussões acerca do vácuo
demonstram isso plenamente, como se mostrou em outro lugar.

4. Distinto de dureza. Solidez diferencia-se também de dureza, já que a


solidez consiste no repleto, e por isso numa completa exclusão de

— 68 —
LOCKE

outros corpos do espaço que ele ocupa, ao passo que


dureza consiste numa firme coesão das partes da
matéria, formando massas de volume sensível de tal
modo que o todo não modifica facilmente sua figura.
Cer tamente duro e mole são os nomes com os quais
designamos as coisas relacionadas com a constituição
de nossos próprios corpos. Deste modo, duro é tudo
que nos faz sofrer em lugar de modificar a figura
mediante a pressão de quaisquer partes de nossos
corpos; mole, ao contrário, é tudo que modifica a
organização de suas partes mediante contato suave e
indolor.
Mas essa dificuldade para modificar a organização das
partes sen síveis entre si mesmas, ou da figura do todo,
não oferece mais solidez em relação ao mais duro
corpo do mundo do que ao mais mole, nem ela é um
pingo mais impenetrável em algo mais sólido que a
água. Embora as partes lisas de dois pedaços de
mármore se aproximem entre si com mais facilidade
quando há entre elas apenas água e ar do que se
estivessem separadas por um diamante, sem implicar
com isso que, pelo fato de o diamante ser mais sólido
que a água, oferecerá mais resistência, mas que, sendo
as partículas da água separáveis com mais facilidade,
basta um movimento lateral para removê-las e
permitir o contato dos dois pedaços de mármore. Se
elas, porém, não se separassem através dessa força
lateral, do mesmo modo que o diamante, impediriam
para sempre o contato dessas duas peças de mármore,
pois seria impossível vencer sua resistência pela força,
assim como a das partículas do diamante. O corpo
mais mole do mundo resistirá de modo insuperável à
reunião de quaisquer outros dois corpos, enquanto
não for retirado do caminho, do mesmo modo que o
corpo mais duro que pode ser encontrado ou
imaginado. Se alguém encher completamente um
corpo mole de ar ou água, descobrirá depressa sua
resistência, e se alguém julgar que apenas os corpos
duros podem impedir suas mãos de se aproximarem
entre si, que faça tal tentativa com o ar preso numa
bola de futebol. Disseram-me que, em Florença, foi
feito um experimento com um globo oco, de ouro,
cheio de água, e perfeitamente fechado, que mais
tarde mostrou ser de solidez tão mole como a água.
Pois, sendo o globo de ouro cheio de água submetido
pela pressão exercida pela máxima força dos
parafusos, a água saiu pelos poros desse metal bem
fechado e, não encontrando lugar para aproximar suas
partículas, saiu do globo e subiu como orvalho, caindo
em gotas antes que as partes do globo pudessem ser
refeitas para impedir a violenta compressão do
mecanismo que o comprimia.

5. Da solidez depende o impulso, a resistência e a


protuberância. A idéia de solidez é a extensão do
corpo diversa da extensão do espaço. A extensão do
corpo consiste apenas na coesão ou continuidade do
sólido, de partes separáveis e móveis, ao passo que a
extensão do espaço consiste na continuidade do
não-sólido, que é inseparável e de partes imóveis.

— 69 —
OS PENSADORES

Decorre da solidez dos corpos também seu mútuo impulso, isto é, a re sistência
e a protuberância. Em relação ao espaço puro e à solidez, há muitos — entre
os quais me incluo — que estão persuadidos de que têm deles idéias claras e
distintas, e que podem pensar acerca do espaço sem nada que resiste ou é
alongado pelo corpo. Julgam que têm essa idéia do espaço puro tão clara
como qualquer idéia que podem ter da extensão do corpo, sendo a idéia de
distância entre as partes opostas de superfícies côncavas igualmente tão clara
convenceram-se a si mesmos que têm, dis tinta da idéia do espaço puro, a idéia
de algo que enche o espaço, que pode ser alongado pelo impulso de outros
corpos, ou resistir ao seu mo vimento. Se outros, contudo, não possuem estas
duas idéias distintas, con fundindo-as e aceitando uma pelas duas, não
entendo como os possuidores de uma mesma idéia com diferentes nomes, ou
de diferentes idéias com um mesmo nome, podem, então, referir-se tanto a
uma como a outra. Esta situação assemelha-se à de um homem que não é cego
ou mudo, com idéias distintas da cor vermelha e do som da corneta, tentando
des crever a cor vermelha ao cego (mencionado em outra parte), que imaginou
ser a idéia do vermelho semelhante ao som da corneta.

6 .0 que é solidez. Se alguém me perguntar o que é solidez, dir-lhe-ei


para recorrer aos seus sentidos para informar-se. Basta que coloque uma
pedra ou uma bola de futebol entre suas mãos, fazendo, a seguir, uma
tentativa para juntá-las. Se pensa que isto não é suficiente para explicar a
solidez, isto é, o que é e em que consiste, prometo dizer-lhe o que é e em que
consiste quando ele me disser o que é o pensamento e em que consiste, ou
explicar-me a extensão e o movimento, porque parecem, talvez, bem mais
fáceis. Certamente, a experiência nos ensina a respeito de nossas idéias
simples, mas, se tentássemos torná-las mais claras à mente por meio de
palavras, não seriamos mais bem-sucedidos do que ao tentar clarear a
escuridão da mente de um cego falando-lhe e descrevendo-lhe as idéias de luz
e cores. Mostrarei a razão disso em outro lugar.

— 70 —

C a pít u lo V

A s I d é ia s S im p l e s d o s V á r io s S e n t id o s

Idéias recebidas tanto pela visão como pelo tato. Por


mais de um sentido adquirimos as idéias do espaço ou
extensão, figura, repouso e movi mento. De fato, suas
impressões são perceptíveis tanto pelos olhos como
pelo tato, levando-nos a receber e conduzir às nossas
mentes as idéias de extensão, figura, movimento e
repouso dos corpos, que foram vistas e sentidas. Por
ora, basta esta enumeração, já que em outras ocasiões
voltarei a este tópico.

C a pít u lo V I
As I d é ia s S im p le s d e R e f l e x ã o

1. As idéias simples de reflexão são as operações da mente acerca de


suas outras idéias. Como mostramos em outros capítulos, a mente,
adquirindo idéias do exterior, volta-se para dentro de si mesma e observa
suas próprias ações acerca das idéias que já possui, retirando dessas tudo que
for adequado como objeto de sua contemplação, do mesmo modo que faz
com uma daquelas recebidas das coisas externas.

2. As idéias da percepção e da vontade derivam da reflexão. Estas duas


importantes e essenciais ações da mente, com tanta freqüência con sideradas e
tão constantes que todos podem deleitar-se em observá-las em si mesmos,
compreendem: percepção ou pensamento, e volição ou vontade. O poder do
pensamento denomina-se entendimento, e o poder da volição denomina-se
vontade; tais poderes ou habilidades na mente são denomi nados faculdades.
Discutirei, mais tarde, alguns exemplos dessas idéias sim ples da reflexão, tais
como a recordação, o discernimento, o raciocínio, o julgamento, o
conhecimento, a fé etc.

— 73 —

C a p ít u lo V II

As I d é ia s S im p le s d a S e n s a ç ã o e d a R e f le x ã o

1. Idéias de prazer e dor. Há outras idéias simples que se dirigem à


mente por todas as vias da sensação e da reflexão, a saber, prazer ou deleite, e
seus opostos: dor e inquietação; poder, existência, unidade.

2. Misturadas com quase todas as outras idéias. O deleite ou in


quietação encontra-se em quase todas as nossas idéias de sensação e re flexão,
sendo raras as impressões de nossos sentidos externos, ou os pen samentos
solitários de nossa própria mente, incapazes de nos ocasionar
prazer ou dor. Entendo prazer e dor como algo que nos deleita ou molesta,
seja em decorrência dos pensamentos de nossas mentes, seja porque algo
opera sobre nossos corpos. Quer denominemos isso, por um lado, satis fação,
deleite, prazer, felicidade etc., ou, por outro, inquietude, aborreci mento, dor,
tormento, angústia, miséria etc., constituem apenas graus di ferentes da
mesma coisa, e são compreendidos pelas idéias de prazer e dor, deleite ou
inquietude: denominações usadas, geralmente, por nós para esses dois tipos
de idéias.

3. O prazer e a dor como causas de nossas ações. O infinito e sábio


Autor de nosso ser, tendo nos dado poder para mover ou deixar em re pouso
várias partes de nossos corpos, segundo julgarmos conveniente, e, pelo fato
de movê-los, nós nos movemos e aos outros corpos contíguos, consistindo
nisso todas as ações de nosso corpo; tendo igualmente dado poder à nossa
mente para selecionar dentre várias de suas idéias a que será examinada, com
o fim de prosseguir com a pesquisa deste ou daquele assunto com
deliberação e atenção; visando, ademais, a motivar-nos às ações do
pensamento e aos movimentos de que somos capazes, agradou
lhe juntar aos vários pensamentos e sensações a percepção de deleite. Se isto
estivesse inteiramente separado de todas as nossas sensações externas e
pensamentos internos, não teríamos motivo para preferir um pensamento

— 75 —
O S PENSADORES

ou ação a outro, para passar da indiferença à atenção, ou do movimento ao


repouso; nem movimentaríamos, desse modo, nossos corpos e nem
empregaríamos nossas mentes; permitiríamos, porém, que nossos pensa
mentos (se lhes couber tal denominação) se movimentassem desgoverna dos,
sem nenhuma direção ou desígnio; e estariam sujeitas as idéias de nossas
mentes, como sombras desprezadas, a se manifestarem nela por acaso, sem
que lhes prestassem atenção. Nesta situação, o homem, embora provido das
faculdades do entendimento e da vontade, seria uma criatura ociosa e inativa,
despendendo seu tempo somente num sonho preguiçoso e letárgico.
Dignou-se, portanto, nosso sábio Criador, anexar aos vários objetos, e às idéias
que recebemos deles, como ainda a muitos de nossos pensamentos, um prazer
concomitante; e que, em vários objetos a vários graus, estas faculdades que ele
nos tem dotado com poder não permane çam inteiramente ociosas e não
aproveitadas por nós.

7. Idéias de existência e unidade. A existência e a unidade são outras


duas idéias sugeridas ao entendimento por cada objeto externo e cada idéia
interna. Quando as idéias estão em nossas mentes, as consideramos como
estando realmente lá, tanto como consideramos as coisas estarem realmente
fora de nós, isto é, que elas existem, ou têm existência; e tudo quanto
podemos considerar uma coisa, quer um ser real ou uma idéia, sugere ao
entendimento a idéia de unidade.

8. Idéia de poder. Consiste o poder igualmente em outra dessas idéias


simples recebidas da sensação e da reflexão. Pois, observando em nós mesmos
que podemos pensar, e que podemos à vontade mover várias partes de nossos
corpos que estavam paradas; como, ainda os efeitos pro duzidos mutuamente
pelos corpos naturais, ocorrendo a cada momento aos nossos sentidos,
terminamos, portanto, através dessas duas vias, por adquirir a idéia de poder.

9. Idéia de sucessão. Além dessas duas há outra idéia que, embora


sugerida pelos nossos sentidos, nos é mostrada constantemente em virtude do
que ocorre em nossas mentes, ocasionando a idéia de sucessão. Se re
pentinamente nos examinarmos e refletirmos acerca do que em nós mes mos é
observável, sempre depararemos com nossas idéias (se estivermos despertos
ou com algum pensamento) movendo-se em sucessão, uma indo e a outra
voltando sem interrupção.

10. As idéias simples são os materiais de todo o nosso conheci mento. Se estas
não são todas, penso que, ao menos, constituem as mais notáveis das idéias
simples pertencentes à mente, a partir das quais se

— 76 —
LOCKE

formam todos os outros conhecimentos, sendo tudo


isso fornecido unica mente pelas duas vias já
mencionadas: sensação e reflexão. Que ninguém pense
que estas duas fronteiras limitam a expansão da
enorme capacidade da mente do homem, cujo vôo vai
além das estrelas e não pode ser confinado pelos
limites deste mundo; que freqüentemente estende
seus pensamentos bem além da mais alta expansão da
matéria e faz excursões pelo vazio incompreensível.
Admito tudo isso; mas ninguém procure apontar
qualquer idéia simples que não tenha recebido de uma
daquelas entradas mencionadas, ou alguma idéia
complexa que não tenha sido formada dessas simples.
Nem será estranho pensar que estas poucas idéias
simples serão suficientes para empregar o mais rápido
pensamento ou a mais ampla capacidade, e para
fornecer os materiais de toda esta variedade de
conhecimentos e das variegadas fantasias e opiniões
de todos os homens, se considerarmos quantas
palavras são formadas em função das inúmeras
composições das vinte e quatro letras, ou, indo um
passo além, se refletirmos acerca da variedade de
combinações que podem ser feitas com apenas uma
das duas idéias acima mencionadas, por exemplo, a
do número, cujo estoque é inesgotável e realmente
infinito; e que campo amplo e imenso somente este
algarismo oferece aos matemáticos.

Ca pít u lo IX

Percepção

1. Percepção da primeira idéia simples de reflexão. Como a per cepção é


a primeira faculdade da mente usada por nossas idéias, consiste, assim, na
primeira e na mais simples idéia que temos da reflexão, por alguns
denominada "pensamento" em geral, embora na língua inglesa pen samento
signifique certo tipo de operação da mente sobre suas idéias quan do a mente
é ativa, em que com certo grau de atenção voluntária pondera acerca de
alguma coisa. Isto porque a mente vazia, ou a percepção des provida de algo,
é, geralmente, passiva, não podendo evitar perceber o que realmente percebe.

2. Apenas a reflexão pode nos dar idéia do que é a percepção. Cada um saberá
melhor o que é a percepção refletindo acerca do que ele mesmo faz, quando
vê, ouve, sente etc., ou pensa, do que mediante qual quer explicação de minha
parte. Quem quer que reflita acerca do que se passa em sua mente, não pode
omiti-la, e, se não reflete, todas as palavras no mundo não podem levá-lo a ter
nem mesmo uma noção dela.

3. Nasce na sensação apenas quando a mente nota a impressão


orgânica. Não existe percepção quando quaisquer alterações ocorridas em
nosso corpo não alcançam a mente ou quando quaisquer impressões cau sadas
nas partes externas não são notadas pelas internas. O fogo pode queimar
nossos corpos sem outros efeitos do que faz uma acha de lenha, a menos que
o movimento se transmita ao cérebro, produzindo na mente a idéia de dor ou
o sentimento de calor, que é realmente percepção.

11. A percepção estabelece a diferença entre animais e vegetais. Parece-me que


é a faculdade da percepção que estabelece a distinção entre o reino animal e
as partes inferiores da natureza. Apesar de vários vegetais terem certos graus
de movimento, e, devido à influência diversa de outros

— 79 —
OS PENSADORES

corpos sobre eles, rapidamente alterarem suas figuras


e movimentos, for mulo deste modo a denominação de
plantas sensitivas, por ser um mo vimento de certo
modo semelhante ao que ocorre com os animais
devido à sensação. Ainda assim, suponho que tudo é
puro mecanismo, sendo pro duzido do mesmo modo
que o movimentar da espiga, pela insinuação das
partículas de unidade, ou o encurtamento da corda,
pela infusão da água. Tudo isto ocorre sem nenhuma
sensação no sujeito, ou tendo ou recebendo alguma
idéia.

15. A percepção é a entrada de todos os materiais do


conhecimento. Sendo a percepção o primeiro passo e
grau na direção do conhecimento e a entrada de todos
os seus materiais, implica que se alguma pessoa, ou
outra criatura qualquer, estiver provida de menos
sentidos, são poucas e embaçadas as impressões que
deixam suas marcas nela, e são tanto mais embaçadas
quanto as faculdades por ela utilizadas,
permanecendo, deste modo, bem distante do
conhecimento descoberto por outras pessoas. Es tando
isto, porém, diversificado em graus (como pode ser
percebido entre os homens), certamente não pode ser
descoberto em variadas espécies de animais, menos
ainda em seus indivíduos particulares. É-me suficiente
apenas ter anotado aqui: a percepção é a primeira
operação de todas as nossas faculdades intelectuais e
a entrada de todo conhecimento em nossas mentes. E
estou disposto a imaginar que é a percepção, em seu
menor grau, que estabelece os limites entre os animais
e as escalas inferiores das outras criaturas. Menciono
isto de passagem e apenas como minha con jectura,
sendo indiferente para o assunto em pauta o meio pelo
qual isto será determinado pelo sábio.
C a pít u lo X
Retenção

1. Contemplação. A mente realiza outros progressos na


direção do conhecimento através da faculdade que
denominamos retenção, ou manu tenção, das idéias
simples recebidas da sensação ou da reflexão. Isto
ocorre de dois modos.
Primeiro, mantendo por certo tempo a idéia que foi
introduzida realmente sob a visão, mediante o que se
denomina contemplação.

2. Memória. O outro modo de retenção consiste no


poder de reviver em nossas mentes aquelas idéias
que, após serem impressas, desaparece ram, ou
parecem ter sido postas de lado, longe da visão. Isto é
feito ao imaginarmos calor ou luz, amarelo ou doce,
estando o objeto removido. Constitui nisso a memória,
que se assemelha a um armazém de idéias. Portanto,
sendo a mente humana limitada a ponto de ser
incapaz de manter ao mesmo tempo muitas idéias sob
a vista e observação, mostrou-se ne cessário um
depósito para preservar aquelas idéias que, em outra
opor tunidade, podem ser usadas. Contudo, nossas
idéias são apenas percepções presentes na mente,
deixando de ser algo quando não são percebidas. A
conservação de nossas idéias no depósito da memória
nada mais significa do que isto: em vários casos a
mente tem poder para reviver percepções que certa
vez lhe pertenceram, acrescentando-se, assim, a
percepções tidas por ela anteriormente. Com este
sentido é que se diz que as idéias estão em nossas
memórias quando, certamente, não estão em parte
alguma, significando com isso apenas a habilidade da
mente para revê-las, como se as pintasse novamente
por si mesma, embora algumas com mais e outras
com menos dificuldade, algumas mais vividas e outras
mais obs curas. Deste modo, pela assistência desta
faculdade, somos informados da posse de todas estas
idéias em nossos entendimentos, que, embora não a
contemplemos realmente, podemos produzir a visão,
fazendo-as aparecer

— 81 —
OS PENSADORES
novamente e tornando-as objetos de nossos pensamentos, sem o auxílio
daquelas qualidades sensíveis que inicialmente as imprimiram lá.

3. Atenção, repetição, prazer e dor, idéias fixas. A atenção e a rpetição


ajudam bastante para fixar quaisquer idéias na memória. As idéias, porém, que
na realidade marcam inicialmente as impressões de modo profundo e
permanente, são as que vêm acompanhadas pela dor e prazer. Uma vez que a
principal tarefa dos sentidos consiste em fazer-nos observar tudo o que causa
mágoa ou proveito ao corpo, coube à natureza ordenar com sabedoria, como foi
mostrado, que a apreensão de várias idéias deve ser acompanhada pela dor,
preenchendo, desta maneira, o espaço para a ponderação e raciocínio nas
crianças; e, agindo mais depressa do que a ponderação nos adultos, faz com que
tanto o velho como o jovem evitem objetos dolorosos com a rapidez necessária
para a sua preservação, fixando na memória de ambos uma advertência para o
futuro.

7. A recordação da mente é freqüentemente ativa. Nesta percepção


secundária, como podemos denominá-la, ou no ato de rever as idéias lo
calizadas na memória, com freqüência a mente não é meramente passiva,
dependendo, às vezes, o aparecimento destas imagens adormecidas da
vontade. A mente com freqüência aplica-se na busca de alguma idéia es
condida convergindo para ela como se fosse o olho da alma, embora por vezes
surjam também em nossas mentes de livre vontade, e se revelem ao nosso
entendimento, sendo outras vezes despertadas e lançadas de suas celas
escuras à luz do dia por paixões turbulentas e tempestuosas, fazendo com que
nossos afetos tragam idéias para nossa memória, sem o que permaneceriam
silenciosas e olvidadas. Cabe ainda observar, com respeito às idéias situadas
na memória e revividas ocasionalmente pela mente, que não se trata apenas
(como a palavra reviver compreende) de supor que nenhuma delas é nova,
como ainda que a mente as examina como se fosse uma impressão anterior,
renovando sua familiaridade com elas do mesmo modo que com as idéias
conhecidas anteriormente. Deste modo, embora as idéias impressas
anteriormente nem sempre estejam to das visíveis, pelo ato de recordá-las
tomam-se de novo reconhecidas como tinham sido impressas anteriormente,
isto é, visíveis e examinadas pelo entendimento.

8. Dois defeitos da memória: esquecimento e lentidão. Numa criatura


com intelecto, a necessidade da memória eqüivale à da percepção. Sua im
portância é tamanha que, quando não existe, as nossas outras faculdades em
certa medida são inúteis. Não poderíamos, então, transpor os objetos presentes
se nossos pensamentos, raciocínios e conhecimentos não fossem auxiliados
pela memória, especialmente quando apresenta dois defeitos:

— 82 —
LOCKE

Primeiro, esquece completamente da idéia, a ponto de


ocasionar uma perfeita ignorância. De fato, como
nada podemos conhecer se nos faltar a idéia, vivemos
em perfeita ignorância quando for esquecida.
Segundo, quando a memória se move lentamente e
deixa de recorrer às idéias armazenadas em seu
depósito, que estão suficientemente prontas para
servir a mente em todas as ocasiões. Sendo, porém, a
lentidão em grau muito alto, implica estupidez,
fazendo com que a pessoa com esse defeito não possa
usar as idéias lá preservadas, pois, embora ao seu
alcance, não lhe podem servir para muita coisa,
porque não são solicitadas nos momentos indicados.
Perdendo, assim, a oportunidade de recorrer às idéias
de sua mente, que poderiam gradualmente servi-lo,
esta pessoa obtusa não é mais feliz na obtenção de
conhecimento do que alguém per feitamente
ignorante. Consiste, portanto, a função da memória em
fornecer à mente estas idéias adormecidas, quando
solicitadas, tendo-as à mão em todas as ocasiões,
resultando disso o que denominamos invenção,
fantasia e vivacidade.

C a pít u lo XI

O D is c e r n im e n t o e o u t r a s O p e r a ç
õesdaMente

1. Nenhum
conhecimento sem
discernimento.
Outra faculdade
de nossa mente,
que devemos
considerar, é a de
discernir e
distinguir entre
sua variedade de
idéias. Não basta
ter percepção
confusa de algo
geral. Se a mente não tiver uma distinta percepção dos diferentes objetos e de
suas qualidades, será incapaz de alcançar muito conhecimento, embora os
corpos que impressionaram nos dominassem como o fazem atualmente, e a
mente estivesse pensando continuamente. Decorre da faculdade de distinguir
uma coisa da outra a evidência e certeza, ainda que muito gerais, de várias
proposições, que passavam por verdades inatas, porque os ho mens,
considerando superficialmente a verdadeira causa pela qual estas proposições
merecem assentimento universal, as atribuíram inteiramente às impressões
inatas uniformes, as quais, na verdade, dependem do dis cernimento claro da
faculdade da mente, perceba ou não que duas idéias se igualem ou se
diferenciem. Mais adiante voltaremos a este assunto.

2. A diferença entre agudez e julgamento. Não examinarei em qual


medida a imperfeição de discriminar acuradamente umas idéias das outras
depende tanto da opacidade e falhas dos órgãos dos sentidos ou da ne
cessidade de agudeza, exercício ou atenção no entendimento, como, ainda, da
rapidez e precipitação natural de alguns temperamentos. É, contudo,
suficiente levar em consideração que esta é uma das operações com que a
mente pode refletir ou se observar a si mesma. Com efeito, se esta fa
culdade revela-se opaca, ou não foi utilizada adequadamente, com o fito de
distinguir uma coisa da outra, isso implica marcar nossas noções de modo
confuso e fazer de nossa razão e julgamento algo desordenado ou
desorientado. Ter idéias na memória ao nosso alcance consiste na vivaci
dade, ou seja, as idéias não aparecem confusas, mas ela é hábil para dis tinguir
rigorosamente uma coisa da outra, mesmo quando existe apenas uma
pequena diferença; isto constitui, em grande medida, a exatidão do

— 85 —
OS PENSADORES

julgamento e a clareza da razão, que se observa num


homem em relação a outro. Disso decorre, talvez, o
motivo desta observação geral: os homens
bem-dotados em matéria de agudez e memória nem
sempre o são de julgamento claro ou razão profunda.
Enquanto a agudez consiste princi palmente na
organização das idéias, agrupando-as com rapidez e
varie dade, onde divisa qualquer semelhança ou
congruência, construindo ima gens e visões agradáveis
na fantasia, o julgamento, pelo contrário, situa-se
no outro extremo, esmerando-se em separar as idéias
entre si devido às suas menores diferenças, evitando
equivocar-se por causa de suas simili tudes e pela
afinidade de tomar uma pela outra. Este procedimento
é totalmente oposto à metáfora e à ilusão, sobre as
quais se baseia sobremodo o entretenimento e o
prazer de agudez, que incidem tão vivamente sobre a
fantasia, sendo, portanto, aceita por todos, porque sua
beleza aparece à primeira vista e não necessita de
esforço do pensamento para examiná-la do ponto de
vista da verdade ou da razão. Sem olhar mais adiante,
a mente permanece satisfeita com o agradável da
imagem e a alegria da fantasia. Representa uma
espécie de afronta pretender examiná-las pelas
severas regras da verdade e da razão, pois não parece
que aquela consista em algo que se ajusta nestas com
perfeição.

4. Comparando. O ato de comparar as idéias entre si, a


fim de determinar a extensão, graus, tempo, espaço ou
quaisquer outras de suas circunstâncias, consiste em
outra operação da mente, sobre a qual decorre a
enorme quantidade de idéias abarcadas pela relação,
cuja discussão será feita adiante, em virtude de sua
extensão.

5. Os brutos comparam imperfeitamente. Não é fácil


determinar até onde os seres brutos participam desta
faculdade. Imagino que não o fazem em grau muito
alto. Apesar de possuírem número suficiente de idéias
distintas, ainda assim creio ser prerrogativa do
entendimento hu
mano a capacidade de distinguir quaisquer idéias, por
percebê-las perfei tamente diferentes e, por
conseguinte, como duas idéias, levando-o a julgar e
ponderar em que circunstância elas podem ser
comparadas. Penso, pois, que os seres brutos, quando
comparam idéias, não ultrapassam certas
circunstâncias sensíveis inerentes aos próprios objetos.
Pode-se, ainda, des cobrir nos homens outro poder de
comparação, que diz respeito às idéias gerais e
somente úteis para formar raciocínios abstratos, que,
provavel mente, não consiste em prerrogativa dos
seres brutos.

6. Compondo. Constitui a composição outra operação


verificada na mente com respeito às suas idéias, que
se processa pela reunião de várias idéias simples
adquiridas mediante a sensação e a reflexão e pela sua
combinação em complexas. Embora a composição não
se revele tanto nas

— 8« —
LOCKE

idéias mais complexas, pode compreender também o


ato de ampliar, que consiste em reunir várias idéias da
mesma espécie. Com efeito, adicionando várias
unidades chegamos à idéia de uma dúzia, reunindo as
idéias de várias medidas alcançamos a de uma milha.

8. Denominando. Mediante a repetição de sensações,


as crianças fixam idéias em suas memórias e começam
gradativamente a aprender o uso de sinais. Ao
adquirirem habilidade para aplicar os órgãos da fala e
formar sons articulados, começam a usar palavras para
transmitir suas idéias a outrem. As vezes recorrem aos
outros para adquirir esses sinais verbais, outras vezes
os criam por si mesmas, como o atestam os nomes
novos e incomuns dados às coisas pelas crianças
quando iniciam a usar a linguagem.

9. Abstração. As palavras começam, então, a revelar


marcas externas de nossas idéias internas, sendo estas
idéias apreendidas das coisas par ticulares. Se, porém,
cada idéia particular que apreendemos devesse ter um
nome distinto, os nomes seriam infinitos. Para que isto
seja evitado, a mente transforma as idéias particulares
recebidas de objetos particulares em gerais, obtendo
isto por observar que tais aparências surgem à mente
inteiramente separadas de outras existências e das
circunstâncias da exis tência real, tais como tempo,
espaço ou quaisquer outras idéias concomi tantes.
Denomina-se a isso abstração, e é através dela que as
idéias extraídas dos seres particulares tornam-se
representações gerais de uma mesma es pécie e seus
vários nomes aplicam-se a qualquer coisa que exista
em con formidade com essas idéias abstratas. São
estas, precisamente, aparências vazias da mente, sem
se averiguar como, de onde e se são apreendidas com
outras, que o entendimento armazena (com
denominações gerais que lhes são anexadas), e servem
de padrão para organizar as existências reais em
classes, desde que se conformem a esses padrões e
possam receber uma denominação adequada. Deste
modo, sendo observada hoje a mesma cor no giz ou
na neve, cor que foi apreendida ontem, pela mente, do
leite, e levando apenas esta aparência em conta, o
entendimento a transforma no representativo de toda
esta espécie, designada pela palavra brancura, cujo
som significa a mesma qualidade em qualquer parte
que possa ser imaginada ou encontrada, fazendo
destes universais tanto idéias como termos.

14. Método utilizado nesta explicação das faculdades.


Penso que são estas as primeiras faculdades e
operações da mente utilizadas pelo entendimento.
Embora sejam exercidas com respeito a todas as idéias,
os exemplos que empreguei acima referem-se
principalmente às idéias sim ples, acrescidos da
explicação destas faculdades da mente acerca das
idéias simples. Abordei-as antes das complexas pelas
seguintes razões:

— 87 —
OS PENSADORES

Primeiro, sendo várias destas faculdades exercidas principalmente no


início com respeito às idéias simples, poderíamos, segundo a natureza deste
método ordinário, traçá-las e descobri-las em seu nascimento, pro gresso e
gradual aperfeiçoamento.
Segundo, observando como as faculdades da mente operam em re lação
às idéias simples, usualmente bem mais claras para a maioria das mentes
humanas, devemos antes examinar e entender como a mente extrai,
denomina, compara e exercita em suas outras operações com as complexas,
em que nos encontramos mais expostos ao erro.
Terceiro, porque as próprias operações da mente acerca das idéias
recebidas das sensações formam por si mesmas, quando refletem sobre elas,
outra série de idéias devidas a outra fonte do conhecimento que denomino de
reflexão, portanto, adequada para ser examinada depois das idéias simples da
sensação. Os atos de compor, comparar, abstrair etc., aos quais me referi há
pouco, serão amplamente discutidos em outras passagens.

15. O verdadeiro começo do conhecimento humano. Penso que este breve


relato mostra a verdadeira história do início do conhecimento humano, a saber,
como a mente apreende seus primeiros objetos, quais os passos que a fazem
progredir com base na provisão e armazenamento dessas idéias, a partir das
quais todo conhecimento de que é capaz pode ser modelado; por conseguinte,
devo recorrer à experiência e observação para verificar se estou correto: a
melhor maneira para atingir a verdade consiste em examinar de que modo as
coisas realmente são, e não concluir o que são segundo imaginamos ou fomos
ensinados por outrem a imaginar.
16. Apelo à experiência. Esta é, na verdade, a única via que pude
descobrir como adequada para levar as idéias das coisas ao entendimento. Se
outros homens possuem idéias inatas, ou princípios incutidos, têm mo tivos
para usufruírem deles; se estiverem certos disso, não será possível a outrem
negar-lhes a vantagem que têm sobre seus semelhantes. Apenas posso me
manifestar acerca do que desvendo em mim mesmo, que está de acordo com
aquelas noções, pois, examinando o desenvolvimento com
pleto dos homens em suas várias idades, países e educação, parece que
dependem das bases por mim colocadas e correspondem ao método em todos
os seus aspectos e graus.

17. Quarto escuro. Não me cabe ensinar, mas investigar; portanto,


posso apenas de novo admitir que as sensações externas e internas são as
únicas passagens descobertas do conhecimento para chegar ao enten dimento.
Somente essas, no que foi dado descobrir, são janelas pelas quais a luz é
introduzida no quarto escuro. Parece-me que o entendimento não
LOCKE

difere muito de um armário totalmente vedado contra


a luz, com apenas algumas pequenas aberturas que
permitem a entrada de imagens visíveis externa, ou
idéias de coisas externas. Se as imagens introduzidas
ficassem neste quarto escuro e permanecessem de tal
forma ordenadas para serem ocasionalmente
descobertas, seria bastante semelhante ao
entendimento do homem em relação a todos os
objetos visíveis e a suas idéias.
São estas as minhas conjecturas acerca dos meios pelos
quais o en tendimento apreende e retém idéias
simples, assim como seus modos e outras operações a
respeito delas.
Examinarei algumas dessas idéias simples e seus
modos com mais pormenores.
— 89 —

C a p ítu lo XII

As I d é ia s C o m p le x a s

1. Formadas pela mente das [idéias] simples. Consideramos, até aqui, as


idéias apreendidas passivamente pela mente, ou seja, as idéias simples introduzidas
pela sensação e reflexão já mencionadas, sem as quais a mente não pode, por si
mesma, formar e/ou ter nenhuma idéia. Como, porém, a mente permanece
completamente passiva ao receber todas as idéias simples, de tal modo se esforça
por si mesma em vários atos a respeito das idéias simples, estas são vistas como
materiais e fundamentos do restante e formando as outras. Os atos pelos quais a
mente exerce seu poder sobre suas idéias simples se reduzem principalmente aos
três se guintes: 1. Combinando várias idéias simples para formar uma composta,
originando, assim, todas as idéias complexas; 2. Reunindo duas idéias (sim ples ou
complexas), e regulando-as reciprocamente a fim de ter imedia tamente uma visão
delas, sem, contudo, unificá-las numa, obtendo por este meio todas as suas idéias de
relações; e 3. Separando-as de todas as outras idéias que lhes estão incorporadas em
sua existência real mediante a abstração; deste modo a mente forma todas as suas
idéias gerais. Tudo isto mostra que o poder do homem com seus meios de operação
se iguala nos mundos material e intelectual. Sendo os materiais de ambos os sujeitos
relativos ao seu poder de construir ou de destruir, cabe ao homem uni-los ou
colocá-los em reciprocidade ou separá-los totalmente. Iniciarei por con siderar as
idéias complexas, abordando as outras em seu devido lugar. Podemos observar que
as idéias simples existem unidas em várias com binações, tendo, deste modo, a
mente poder para considerar várias delas reunidas numa única idéia, não apenas
como se acham unidas nos objetos externos, mas como elas se acham por si mesmas
unidas. As idéias for madas pela reunião de várias simples denominam-se complexas,
tais como beleza, gratidão, homem, exército, universo. Embora complicada por
várias idéias simples, ou idéias complexas formadas de simples, quando a mente
deseja pode considerá-las cada uma por si mesma, como uma coisa inteira e
designada por um nome.

— 91 —
OS PENSADORES

2. Formadas voluntariamente. Mediante esta faculdade de repetir e


unir suas idéias, a mente revela grande poder para variar e multiplicar os
objetos de seus pensamentos de modo infinito e muito além do que lhe foi
fornecido pela sensação ou reflexão, embora tudo isto continue limitado pelas
idéias simples recebidas daquelas duas fontes e que cons
tituem os materiais fundamentais para posteriores composições. Desde que
todas as idéias simples derivam das próprias coisas, a mente não pode retirar
delas nada mais do que lhe foi sugerido. Não pode obter outras idéias das
qualidades sensíveis além das que são transmitidas do exterior pelos
sentidos, nem nenhuma idéia derivada de operações de espécie di versa da
substância pensante que se encontra em si mesma. Tendo, con tudo, adquirido
as idéias simples, a mente deixa de se limitar pela mera
observação do que lhe é oferecido externamente, passando, mediante seu
próprio poder, a reunir as idéias que possui para formar idéias complexas
originais, pois jamais foram recebidas assim unidas.

3. As idéias complexas, ou são modos e substâncias, ou relações. Por mais que


as idéias complexas sejam compostas e decompostas, embora seu número seja
infinito e sua variedade ilimitada, por meio das quais se preen chem e
entretêm os pensamentos humanos, não obstante isso, penso que podem ser
reduzidas a estes três tipos: 1. Modos; 2. Substâncias; 3. Relações.

4. Idéias de modos. Primeiro, denomino modos as idéias complexas que,


embora compostas, não contêm em si a suposição de que podem subsistir por
si mesmas, mas são consideradas dependentes, ou atributos das substâncias,
tais como as idéias expressas pelas palavras triângulo, gratidão, assassínio etc.
Desculpo-me por usar a palavra modo com sentido bem diverso de seu
significado ordinário, mas isto é inevitável em racio cínios divergentes das
noções ordinariamente recebidas, quer por criar palavras novas, quer por usar
palavras antigas com significado de certo modo novo, sendo, no presente
caso, a última alternativa talvez a mais tolerável.

5. Modos simples e mistos das idéias simples. Há dois tipos desses


modos que merecem consideração à parte:
Primeiro, alguns são apenas variações ou diferentes combinações da
mesma idéia simples, sem mistura de outra qualquer, como uma dúzia, ou a
contagem, que não é outra coisa senão idéias de muitas unidades distintas
somadas, os quais denomino modos simples por estarem contidos nos limites
de uma idéia simples.
Segundo, há outros compostos de idéias simples de vários tipos,
reunidas para formar uma complexa, por exemplo, beleza, que consiste de
certa composição de cor e figura, causando deleite para o espectador;

— 92 —
LOCKE

ou, então, o roubo, que é a oportunidade oculta de


possuir algo sem o con sentimento do proprietário.
Tais idéias, evidentemente, resultam da combi nação
de diversas idéias de vários tipos, por isso as
denomino modos mistos.

6. Idéias de substâncias, singulares ou coletivas.


Segundo, as idéias de substâncias consistem em
combinações de idéias simples assumidas para
representar distintas coisas particulares e que subsistem
por si mesmas, sendo a suposta e confusa idéia de
substância, tal como é, sempre a pri meira e principal.
Deste modo, se acrescentamos à substância a idéia sim
ples de uma certa cor opaca e esbranquiçada, com
certo peso, dureza, ductilidade e fusibilidade,
obtemos a idéia do chumbo; combinando a idéia de
certo tipo de figura, dotada com os poderes de
movimento, pen samento e raciocínio, e sendo tudo
isso acrescido à substância, tem-se a idéia comum de
homem. Decorrem igualmente destas substâncias dois
tipos de idéias: uma diz respeito às substâncias
singulares, que existem separadamente, tais como um
homem ou um carneiro; ao passo que a outra se refere
a várias dessas idéias reunidas, como, por exemplo,
exército de homens, ou rebanho de carneiros,
ocasionando idéias coletivas de várias substâncias, a tal
ponto unidas que cada uma delas se iguala à idéia sin
gular do homem ou da unidade.

7. Idéias de relação. Terceiro, o último tipo de idéias


complexas denomina-se relação, que consiste na
consideração e comparação de uma idéia com outra.
Abordaremos seus vários tipos ordenadamente.
8. As idéias mais abstrusas que temos derivam todas
de duas fon tes. Se descrevermos o progresso de
nossas mentes e observarmos aten tamente como
repetem, somam e unem suas idéias simples recebidas
da sensação ou da reflexão, verificaremos que
ultrapassam o que, à primeira vista, havíamos
imaginado. Se examinarmos cuidadosamente as fontes
originais de nossas noções, descobriremos, julgo eu,
que mesmo as mais abstrusas idéias delas derivam, por
mais remotas que possam parecer do sentido, ou de
quaisquer operações de nossas próprias mentes, pois
são somente as que o entendimento forma para si
mesmo, repetindo e reunindo idéias que obteve
mediante os objetos do sentido ou por suas próprias
operações acerca deles; deste modo, mesmo essas
grandes e abstratas idéias derivam da sensação ou da
reflexão, não sendo outra coisa o que a mente pode e
obtém através do ordinário uso de suas próprias
faculdades, em pregadas a respeito das idéias
recebidas dos objetos do sentido, ou das operações
observadas por ela e, em si mesma, a respeito de suas
idéias.
Tudo isso será mostrado mediante nossas idéias de
espaço, tempo, infinito e outras mais que parecem
muito distantes daquelas origens.

C a p ítu lo XIII

I d é ia s C o m p l e x a s d o s M o d o s S im p l e s :
P r im e ir a m e n t e , M o d o s S im p l e s d a I d é ia d e Es p a ç o

1. Modos simples das idéias simples. Embora na parte anterior eu


tenha freqüentemente mencionado idéias simples, que são realmente os
materiais de todo o nosso conhecimento, abordei-as antes tendo em vista
como se introduzem à mente do que como se diferenciam de outras mais
complexas; portanto, não seria impróprio rever algumas delas sob essa
perspectiva, examinando as diferentes modificações da mesma idéia des
coberta pela mente nas coisas existentes, ou que é hábil para formar por si
mesma, sem o auxílio de qualquer objeto extrínseco ou de qualquer sugestão
externa.
Essas modificações de uma idéia simples qualquer (que, dissemos, se
denominam modos simples) são perfeitamente diferenciáveis e idéias dis tintas
na mente, como as de maior distância ou contradição. Embora a idéia de dois
seja distinta da de um, como o azulado do quente, ou qualquer uma delas de
um número qualquer, formam-se tão-somente desta idéia simples de unidade
repetida, e repetições desse tipo somadas formam os distintos modos simples
de uma dúzia, uma grosa, um milhão.

2. Idéia de espaço. Começarei pela idéia simples de espaço. Mostrei


acima (capítulo V) que adquirimos a idéia de espaço tanto pela nossa visão
como pelo tato. Como isso é bastante evidente, julgo desnecessário provar
que os homens percebem pela visão certa distância entre corpos de cores
diferentes, ou entre as partes do mesmo corpo, do mesmo modo que vêem as
próprias cores e podem obviamente senti-las no escuro pelo sentido do tato.

3. Espaço e extensão. Considerando o espaço apenas como sendo um


comprimento entre dois seres quaisquer, sem considerar nenhuma outra coisa
entre eles, tem-se o que se designa por distância: quando vista

— 95 —
OS PENSADORES

como comprimento, largura e espessura, penso que pode ser denominada


capacidade (o termo extensão lhe é usualmente aplicado de qualquer modo que
seja considerada).

4. Imensidade. Cada distância diferente é uma modificação diferente de


espaço, sendo cada idéia de qualquer distância diferente, ou espaço, um modo
simples dessa idéia. Pelo uso e costume de medir, os homens firmam em suas
mentes as idéias de certos comprimentos fixos, tais como polegada, pé, jarda,
braça, milha, diâmetro da Terra, e assim por diante, que são inúmeras idéias
diferentes formadas apenas da de espaço. Quando quaisquer desses
comprimentos fixos ou medidas do espaço tomam-se familiares aos
pensamentos dos homens, estes podem mentalmente repe ti-los o número de
vezes que quiserem, sem lhes misturar ou juntar a idéia do corpo, ou de
qualquer outra coisa, formando para si mesmos as idéias de extensão,
quadrado, ou pés cúbicos, jardas ou braças, situadas entre os corpos do
universo, ou também muito além das últimas fronteiras de todos os corpos; e,
por somar um ao outro, ampliam suas idéias de espaço tanto quanto lhes
agradem. Pelo poder de repetir ou duplicar qual quer idéia que temos de
qualquer distância e de somá-la à anterior quantas vezes queiramos, sem
jamais sermos hábeis de chegar a um ponto final ou limite, e de ampliá-la
tanto quanto queiramos, adquirimos a idéia de imensidade.

5. Figura. Há outra modificação dessa idéia que não é outra coisa senão
a relação existente entre as partes do término da extensão, ou espaço
circunscrito. O tato descobre isso nos corpos sensíveis cujas extremidades
estão ao nosso alcance; e o olho apreende nos corpos e cores, cujos limites
estão ao alcance de sua vista. Observando como as extremidades terminam,
quer em linhas retas que se encontram em ângulos discemíveis, quer em
linhas curvas em que nenhum ângulo pode ser percebido, e consideran do-as
como se relacionam entre si, em todas as partes das extremidades de qualquer
corpo ou espaço, obtemos a idéia que denominamos figura, que oferece à
mente uma variedade infinita. Isto tendo em vista que, além do vasto número
de figuras diferentes que realmente existem, nas massas coerentes da matéria,
o estoque que a mente possui é praticamente ines gotável, tanto por variar a
idéia de espaço para formar novas composições como por repetir suas
próprias idéias para reuni-las ao seu agrado, po dendo, deste modo,
multiplicar suas figuras in infinitum.

7. Lugar. Outra idéia, neste tópico, pertencente a esta categoriadesignada lugar.


Como no espaço simples consideramos a relação de dis tância entre dois corpos
ou pontos quaisquer, consideramos igualmente nossa idéia de lugar como a
relação de distância entre qualquer coisa, e

— 96 —
LOCKE

dois ou mais pontos quaisquer, mantendo a mesma


distância um do outro e visto como se estivesse em
repouso. Quando deparamos com algo tendo hoje a
mesma distância de ontem, de um ou mais pontos sem
terem mo dificado a distância entre si, comparando-os
entre si afirmamos que tudo isso se manteve no
mesmo lugar. Se, porém, sua distância se alterou sen
sivelmente em algum desses pontos, dizemos que
mudou de lugar, embora, falando vulgarmente acerca
da noção comum de lugar, nem sempre ob servemos
com precisão a distância específica desses pontos, mas
sim de maiores porções dos objetos sensíveis, sobre os
quais consideramos a coisa situada em relação à
distância que nos permite observar.

11. A extensão e o corpo não se igualam. Certas


pessoas querem nos persuadir de que corpo e
extensão são a mesma coisa, seja por mo dificarem o
significado das palavras (não os julgaria capazes disso,
pois condenaram severamente a filosofia de outrem,
porque estabelecida com significado bastante incerto),
seja pela obscuridade enganadora de termos
duvidosos ou sem significado. Se, contudo, entendem
por corpo e extensão o mesmo que outras pessoas, a
saber, o corpo como algo sólido e extenso, cujas partes
são separáveis e móveis de diferentes maneiras, e a
extensão apenas como o espaço situado entre as
extremidades dessas partes sólidas coerentes, que é
ocupado por elas, julgo que confundem entre si idéias
bem diferentes. Peço, portanto, para cada um verificar
em seu próprio pensamento se a idéia de espaço não é
tão distinta da de solidez como o é da idéia de cor
vermelha. Certamente, solidez não pode existir sem
extensão, nem pode a cor vermelha existir sem
extensão, mas isto não impede que sejam idéias
distintas. Muitas idéias exigem outras, por serem
necessárias à sua existência ou concepção, e apesar
disso perduram como idéias bem distintas. O
movimento não pode ser, nem ser concebido, sem o
espaço, embora o movimento não seja espaço, nem o
espaço seja mo
vimento; o espaço pode existir sem ele, e os dois são
idéias bem distintas, e julgo que o mesmo ocorre com
as idéias de espaço e solidez. Solidez consiste numa
idéia inseparável do corpo, dependendo dele o
preenchi mento do espaço, seu contato, impulso e
comunicação do movimento sob impulso. E se esta é
uma razão para provar que o espírito é diverso do
corpo, porque o pensamento não inclui nele a idéia de
extensão, suponho que semelhante razão será
igualmente válida para provar que o espaço não é o
corpo porque a idéia de solidez não está nele incluída,
sendo, por conseguinte, espaço e solidez idéias tão
distintas como pensamento e extensão e inteiramente
separáveis uma da outra pela mente. E evidente que
corpo e extensão são duas idéias distintas pelo
seguinte:

12. Extensão não é solidez. Primeiro, extensão não


inclui solidez, nem resistência ao movimento do
corpo, como sucede com os corpos.

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