AMÂNCIO, Nair Renata. Os Processos de Circulação Do CASO PABLO KATCHADJIAN

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DOI: 10.12957/palimpsesto.2020.

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OS PROCESSOS DE CIRCULAÇÃO DO CASO PABLO


KATCHADJIAN

Nair Renata Amâncio


Mestranda em Estudos de Literatura pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Bolsista CAPES.
[email protected]

RESUMO RESUMEN
Apresentaremos o conceito de Objetos Presentaremos el concepto de Objetos
Derivados e a sua pertinência para pensar derivados y su conveniencia para pensar
os processos de circulação do livro El los procesos de circulación del libro El
Aleph Engordado (2009). O conceito é Aleph Engordado (2009). El concepto es
fruto da pesquisa A rasura da autoria na resultado de la investigación A rasura da
literatura contemporânea: O caso Pablo autoria na literatura contemporânea: O
Katchadjian (Processo FAPESP: caso Pablo Katchadjian (Processo FAPESP:
nº2017/25218-0) na qual construímos nº2017/25218-0) en la cual desarrollamos
uma proposta de leitura para os objetos una propuesta de lectura para los objetos
(#Yoborges, Reality Avoider e Apoyo a digitales (#Yoborges, Reality Avoider y
Pablo Katchadjian) que surgiram por Apoyo a Pablo Katchadjian) que han
consequência da publicação do livro El surgido en consecuencia de la publicación
Alpeh Engordado (2009) que fez uso do del libro El Aleph Engordado (2009) que
conto El Aleph (1949) do celebre Jorge Luís hace uso del cuento El Aleph (1949) de
Borges (1986). Discutiremos o Caso Pablo Jorge Luís Borges (1986). Discutimos El
Katchadjian dando ênfase em seus objetos Caso Pablo Katchadjian poniendo énfasis
derivados e colocando em questão novas en los objetos derivados y cuestionando
possibilidades de compreensão para a nuevas posibilidades de comprensión para
autoria no tempo presente. la categoría autoral en el tiempo presente.
Palavras-chave: Objetos derivados; El Palabras clave: Objetos derivados, El
Aleph Engordado; Pablo Katchadjian; Aleph Engordado, Pablo Katchadjian,
Autoria. Autoría

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O Caso: Apresentação

No ano de 2009, o escritor argentino Pablo Katchadjian publicou o livro El Aleph

Engordado, fruto da apropriação do conto “El Aleph” (1949) de autoria do consagrado

escritor argentino Jorge Luis Borges (1986). O procedimento de apropriação se converteu

em um Caso. María Kodama, viúva de Borges, acusou o autor de El Aleph Engordado

(2009) de apropriação indevida da propriedade intelectual do marido, o que deu início a

uma série de acontecimentos que constituem o que entendemos como o Caso Pablo

Katchadjian

A problemática do Caso se dá entorno da publicação de um autor contemporâneo

que toma como objeto (para a realização de um procedimento artístico) o conto “El

Aleph” (1949) do consagrado Jorge Luis Borges. O trabalho de apropriação foi entendido

como um plágio e Katchadjian foi processado por Maria Kodama1. Desse processo judicial

surge uma série de discussões que reverberam na criação de objetos culturais

pertencentes ao contexto digital. É importante ressaltar que os 300 exemplares

produzidos de modo independente pelo próprio Pablo Katchadjian, através da IAP

(Imprenta argentina de poesia), foram distribuídos gratuitamente, argumento que não

bastou para que María Kodama retirasse o processo.

“El Aleph” (1949) possui aproximadamente 4.000 palavras. O texto “engordado”,

9.600 palavras. Katchadjian retoma El Aleph de Borges ao se apropriar do conto

integralmente, apenas acrescentando palavras a este como podemos ver nos excertos

abaixo:

La candente y húmeda mañana de febrero en que Beatriz Viterbo finalmente


murió, después de una imperiosa y extensa agonía que no se rebajó ni un solo
instante ni al sentimentalismo ni al miedo ni tampoco al abandono y la
indiferencia, noté que las horribles carteleras de fierro y plástico de la Plaza
Constitución, junto a la boca del subterráneo, habían renovado no se qué aviso
de cigarrillos rubios mentolados; o sí, sé o supe cuáles, pero recuerdo haberme

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esforzado por despreciar el sonido irritante de la marca; el hecho me dolió,


pues comprendí que el incesante y vasto universo ya se apartaba de ella,
Beatriz, y que ese cambio era el primero de una serie infinita de cambios que
acabarían por destruirme también a mí. (KATCHADJIAN, 2009, p. 1, grifo nosso)

La candente mañana de febrero en que Beatriz Viterbo murió, después de una


imperiosa agonía que no se rebajó un solo instante ni al sentimentalismo ni al
miedo, noté que las carteleras de fierro de la Plaza Constitución habían
renovado no sé qué aviso de cigarrillos rubios; el hecho me dolió, pues
comprendí que el incesante y vasto universo ya se apartaba de ella y que ese
cambio era el primero de una serie infinita. (BORGES, 1949, p. 87)

A única parte do conto que Katchadjian não “engordou” foi a pós-data deixada por

Borges – 1 de março de 1943 – mas, em contrapartida, Katchadjian também deixou no

livro sua própria pós-data, na qual explica em que consistiu o procedimento de

“engordamento”.

A atitude de explicar o próprio trabalho é característica de um escritor que está

alinhado aos novos paradigmas de criação. Como aponta Cesar Aira (2009), Kachadjian

amplia o conto “por dentro”, realizando um tipo de apropriação em que a memória de

Borges se mantém e manter a memória desse autor, nesse Caso, é significativo, por todas

as questões que a autoria de Borges evoca, principalmente por seu renome que está

estritamente associado a sua canonização.

El Aleph Engordado. Se trata del cuento de Borges ampliado, ampliado “por


dentro”, agregando palabras, frases, episodios, “catalizando” mediante
aposiciones sin cambiar el argumento ni agregar personajes, de modo de hacer
del cuento de diez páginas una novela, breve pero novela, o más bien, para no
entrar en la discusión de los géneros, “un libro”2. (AIRA, 2009, p. 9)

A proposta de Katchadjian, de produzir por meio de um texto pré-existente e

ainda categorizá-lo, dialoga com o conceito de pós-produção, que “corresponde tanto a

uma multiplicação da oferta cultural quanto - de forma mais indireta - à anexação ao

mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas” (BOURRIAUD, 2009, p. 7-

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8). Artistas como Katchadjian não estão em busca de originalidade, pois suas produções

não se dão por meio de matéria bruta, mas sim com base em obras pré-existentes,

permitindo-nos pensar em reinterpretação do literário e até mesmo na ressignificação do

conceito de originalidade.

Em muitos momentos, esses procedimentos de apropriação são encarados como

uma performance autoral. Luciene Azevedo (2011), ao mencionar um caso específico3 de

apropriação seguida de acusação de plágio, coloca em discussão a performance quando

ocasionada pela recepção, como ocorre no Caso Pablo Katchhadjian. A própria acusação

de plágio acaba orientando a performance do autor:

Nesse sentido, a própria recepção crítica da obra, uma vez apontado o plágio,
pode representar o primeiro ato de uma performance dirigida pela própria
audiência, pois a mobilização de críticos, professores e inúmeros outros leitores
que intensificaram antes de qualquer manifestação do autor, seu desempenho
no episódio, ditando-lhe uma atuação a partir do momento em que
circunscreveram a discussão a questão do plágio, a tal ponto que as declarações
posteriores do autor podem apenas obedecer as rubricas das declarações
acaloradas disponíveis na Web. (AZEVEDO, 2011, p. 54)

Pode-se dizer que o primeiro ato que insere Katchadjian no meio literário,

enquanto autor performático, é a acusação de plágio. Uma vez acusado, o autor rejeita a

acusação e, a partir daí, passa a dar declarações que vão contra a de um plagiador,

criando para si uma categoria própria, performática. Ironicamente, María Kodama, ao

tentar deslegitimar Katchadjian, contribuiu para o seu reconhecimento, dando-lhe a

chave para a criação da performance autoral.

Esse Caso coloca em jogo o conceito de autoria na cena contemporânea, ao

mesmo tempo em que questiona a legitimidade do lugar canônico atribuído a certos

autores, chamando a atenção para questões relativas ao surgimento dos direitos autorais

e seu anacronismo com relação às práticas contemporâneas.

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A acusação de plágio contra Katchadjian se deu com base na lei 11.723 de 1933 da

Argentina, lei que resguarda os direitos do autor e seus herdeiros legais. No caso de

Borges, María Kodama é a única herdeira legal. A lei também mostra em seu Art. 9° que:

“Nadie tiene derecho a publicar, sin permiso de los autores o de sus derecho habientes,

una producción científica, literaria, artística o musical que se haya anotado o copiado

durante su lectura, ejecución o exposición públicas o privadas”4 (ARGENTINA, 1933). De

acordo com esse artigo da lei, seria plágio se houvesse uma cópia total, e o trabalho de

Katchadjian não é uma simples cópia do texto de Borges, mas sim um procedimento de

apropriação cujos efeitos estéticos não condizem com o que consta numa lei de

propriedade autoral definida com base em regimes jurídicos.

Nesse sentido, há um distanciamento entre as especificidades do meio literário e

do meio jurídico. Estamos nos referindo a um tipo de procedimento que requer estudo e

análise dos processos de produção, circulação e recepção do literário, o que parece

apresentar uma incompatibilidade com a leitura técnica realizada no âmbito judicial.

Os objetos Derivados do Caso

O Caso Pablo Katchadjian envolve ainda o surgimento de três objetos propiciados

por esse contexto de circulação e recepção: “Apoyo a Pablo Katchadjian”, “#YoBorges” e

o jogo Reality Avoider. Toda a discussão entorno de “El Aleph Engordado” (2009) gera um

atrito entre plagio e apropriação, entre original e cópia, provocando, ainda, uma

discussão entre a legitimidade da figura autoral de Borges e a de Katchadjian. Para o

desenvolvimento da pesquisa foi significativo pensar na noção de Caso, uma vez que é

por meio das reverberações da publicação que surgem os dizeres que vão atribuir

significado ao objeto literário na sua situação real de circulação. Assim, a noção de Caso

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nos permite pensar o literário por meio de uma perspectiva contingente, que valore os

processos de circulação do texto. Nossa leitura está embasada nos pressupostos de

Canclini:

A sociologia da produção artística (não das obras) surge do pressuposto


antirromântico de que é possível entender mais a arte se – em vez de ver seus
resultados como imprevisíveis – indagamos o que os criadores devem a seu
entorno, como se formam e qualificam, como constroem as regras de avaliação
de um quadro ou de um espetáculo junto com outros profissionais, tendo em
conta os virtuais receptores e as instituições que medeiam entre uns e outros.
(2016b, p. 143)

O procedimento de apropriação se dá por meio de uma leitura que converge em

diversas categorias, sendo conceitos bases a reciclagem cultural (KLUSCINSKAS; MOSER,

2007) e a autoria na pós-produção (BOURRIAUD, 2009).

Essa discussão, alinhada ao conceito de reciclagem cultural, nos permite mobilizar

categorias de análise que contemplem as especificidades requeridas pelo procedimento

de apropriação, sendo elas: citação, remix, mashup, redymade, entre outras.

O princípio fundamental do conceito de reciclagem cultural é a realização de

trabalhos artísticos por meio de objetos pré-existentes. Kluscinskas e Moser (2007)

descrevem alguns dos procedimentos estéticos da literatura contemporânea que se

inserem na premissa da reciclagem:

Quer tomemos os termos mais recentes para designar procedimentos


recicladores no seu sentido mais largo – revival – remake, sampling, copy-art,
ou, ainda os termos mais antigos – pastiche, paródia, plágio, reescritura
recriação, reconversão -, é forçoso constatar que a produção literária
contemporânea, em grande proporção está associada a esse gênero de
procedimento. (KLUSCINSKAS; MOSER, 2007, p. 29)

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O procedimento realizado para a construção de “El Aleph Engordado” nos parece

uma apropriação cautelosa quando analisada em relação a outros trabalhos realizados

por Pablo Katchadjian (1977). O caráter monumental que a autoria de Borges evoca

parece definir a ordem de apropriação que é permitida e, dessa forma, vemos que há um

limite de experimentação que certos autores permitem e outros não.

Ainda assim, tal proposição se mostra um tanto paradoxal: ao mesmo tempo em

que Borges é um dos precursores dos procedimentos da intertextualidade, um

questionador da autoria e um apropriador (como constatamos no conto “Pierre Menard

autor de Quixote”), ele é também um escritor cujo espólio está nas mãos de uma

implacável guardiã de seus direitos autorais. Maria Kodama acaba figurando

caricatamente como a “polícia da literatura”.

Por meio da caracterização de Caso, vemos que há uma relação conturbada que se

estabelece entre as noções de plágio e de apropriação. Apropriação, na chave dos

estudos de literatura contemporânea, é um recurso criativo, enquanto plágio é uma

categoria que se consolida no âmbito jurídico para denominar um tipo específico de

fraude, na qual uma pessoa se apropria de um material produzido por outra pessoa para

dizer que é seu. No Caso Pablo Katchadjian está claro que não houve a intenção de plagiar

o texto de Borges.

Diversas produções literárias já foram tomadas como plágio por conta de

incompreensões quanto ao teor da apropriação artística. Tomar plágio e apropriação

como sinônimos resulta em análises equivocadas, pois o ato de plagiar e de apropriar não

partem nem ao menos das mesmas premissas e, portanto, não podem ser lidos através

das mesmas lentes. Plágio, no seu sentido mais literal, é um ato criminoso, enquanto a

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apropriação é uma forma de produção que envolve diversas questões, inclusive histórica,

uma vez que retoma a estética vanguardista do século XX.

Na não-distinção entre plágio e apropriação reside a incompatibilidade entre

autoria e propriedade jurídica, uma vez que uma das questões que permeou o Caso no

decorrer do processo foi a impertinência de debates sobre procedimentos artísticos no

ambiente jurídico, entendendo que advogados e juízes (normalmente) não têm domínio

teórico-crítico, não sendo especialistas em procedimentos que são recorrentes e

específicos dos estudos literários. Como o próprio autor Pablo Katchadjian reitera em

diversas entrevistas, não houve nenhuma intenção de plagiar a Borges ou ocultar-se em

seu estilo. Mas, para María Kodama, a publicação do autor foi acatada como uma afronta

à grandiosa obra de Borges e, portanto, digna de uma ação judicial que perdurou por sete

anos.

“El Aleph engordado” (2009) é fruto de um procedimento autoral que pode ser

entendido por meio de práticas artísticas que têm como premissa o conceito da

“reciclagem cultural” (KLUCINSKAS; MOSER, 2007). Mas, por meio de uma leitura

pessimista, o livro pôde ser assumido como uma apropriação indevida da propriedade

intelectual de Borges, já que a noção de autoria está intimamente ligada a originalidade.

Na pesquisa, o conceito de originalidade foi entendido como uma noção que permite uma

dissociação da produção artística que parte de um produto original. Consideramos que há

originalidade em produções artística que partem de obras pré-existente (GOLDSMITH,

2014) e não são construídas do zero, rompendo com a premissa canônica do processo

criativo.

Diante de tal paradigma, há duas concepções que estão colocando em questão a

noção de autoria. Uma primeira concepção é a autoria compreendida como uma

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propriedade privada, um direito intelectual, um capital que precisa ser preservado,

alinhando-se a uma concepção que associa os direitos autorais ao regime financeiro

consolidado no século XVIII, cujo benefício primeiro foi o da editora, e não o do autor

(uma lei mercadológica que serve ao capital financeiro), justificando a afirmação de

Nicolas Bourriaud (2009, p. 99) que diz que o autor nada mais é que uma entidade

jurídica.

Uma segunda concepção, numa perspectiva de expansão do campo

(GARRAMUÑO, 2014), entende “El Aleph Engordado” (2009) como um reflexo e uma

mostra do que as práticas artísticas contemporâneas permitem, sendo que essa posição

otimista resulta na possibilidade de desconstrução e revisão de relatos canônicos acerca

do regime autoral e das práticas de produção artística, acabando por estabelecer uma

posição mais democrática dentro do campo artístico, que dialoga com os efeitos da

tecnologia no século XXI.

A problemática que envolve o Caso tornou propício um estudo que objetivou

compreender como as práticas artísticas contemporâneas mobilizam e reivindicam a

revisão de paradigmas cristalizados no mundo da arte. Assim, surgiram questões como

“quem pode reescrever a Borges?” E nós, pesquisadores, nos perguntamos “Por que

Borges pode reescrever Cervantes e Katchadjian não pode reescrever Borges?”. Em meio

a essa tensão gerada por uma apropriação e uma acusação de plágio, surge a discussão

central da pesquisa: a autoria na literatura contemporânea e, de um modo mais

específico, a rasura dessa autoria. O que o gesto de Pablo Katchadjian, ao apropriar-se de

Borges, nos diz a respeito dos paradigmas da autoria no âmbito do literário?

Diante desse processo de produção, apropriação, circulação e recepção não seria

produtivo para o estudo a análise do texto de Pablo Katchadjian em seus aspectos

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formais ou estéticos puramente imanentes, mas sim a investigação dos processos

circulação e os desdobramento da recepção que culminaram em três Objetos Derivados,

visto que nos interessa uma análise que esteja em consonância com as práticas artísticas

contemporâneas, evidenciando que há um circuito que orienta a circulação do literário.

Estamos entendendo por processo os gestos que envolvem o contexto de produção e a

recepção crítica da obra, que deixam em evidência o funcionamento específico que

constituíram o Caso Pablo Katchadjian.

A natureza da criação artística dita o modo como a análise do objeto deve ser

realizada, e, para esse objeto, era muito pertinente uma análise que privilegiasse os

processos de circulação do literário (a configuração do Caso Pablo Katchadjian), para que

se pudesse entender e evidenciar as motivações que incitaram o trabalho estético do

autor.

Parte-se de uma abordagem metodológica que evidencia que os objetos artísticos

presentes na cena contemporânea se colocam como um reflexo e uma possibilidade de

compreender a produção e a circulação do literário no tempo presente. Diante disso,

tomamos como operadores teórico-metodológicos os conceitos desenvolvidos pelo

sociólogo Néstor García Canclini (2016a, 2016b) e pela pesquisadora Florencia Garramuño

(2014). Esses autores apresentam criticamente possibilidades de leituras que consideram

e legitimam as relações que estão em jogo no campo artístico expandido:

Tanto nas ciências como nas artes, o conceito de campo acabou com a noção
romântica e individualista do gênio que descobre conhecimentos imprevistos
ou cria obras excepcionais que surgem do nada. Sem cair, tampouco, no
determinismo macrossocial que queria explicar os romances ou as pinturas pela
posição de classe e pelo modo de produção. Ao restringir-se à estrutura interna
de cada campo e às regras específicas para produzir arte ou literatura, a
pesquisa sociológica deu instrumento para ler as obras não como surgida do
nada, mas no contexto das relações entre criadores, intermediários e público.
(CANCLINI, 2016b, p. 86, grifo nosso)

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Quando falamos de “processos” estamos justamente pensando na proposição de

Canclini (2016b) de que as obras literárias surgem no contexto das relações entre

criadores, intermediários e públicos. A constatação de Canclini dá subsídio para que se

tenha como corpus o livro “El Aleph Engordado” (2009), relacionando a sua recepção aos

seus processos de circulação e legitimação.

Sabemos que o Caso deu origem a outros produtos culturais, aqui entendido como

Objetos derivados, que terminam constituindo e alterando o modo como se lê “El Aleph

Engordado” (2009). São eles: i) uma plataforma digital intitulada YoBorges - na qual todos

os versos de todos os poemas de Borges foram emulados, possibilitando que qualquer

pessoa que tenha um computador conectado à rede possa compor um poema a partir

deles; ii) uma página no Facebook intitulada “Apoyo a Pablo Katchadjian” na qual foram

veiculadas entrevistas e notícias com o autor, com a viúva de Borges e com críticos como

Cesar Aira, bem como trabalhos de Borges que confirmam que o autor estaria em

consonância com as práticas de Katchadjian. Com as sucessões de acusação e contra-

acusação surge um jogo; iii) Reality Avoider, que se apresenta como um gesto

performático por colocar a face de Maria Kodama em um bloco que deve desviar-se das

várias palavras “realidade” que vêm ao seu encontro, corroborando com a ideia de que

Kodama estaria alienada ante os atuais procedimentos de criação literária.

Esses objetos culturais derivados são explicitamente produtos do contexto digital,

uma constatação que reivindica pensar, ainda que brevemente, o conceito de

Cibercultura (Cf. LEVY, 1999) como um conjunto de práticas que alteram as esferas

culturais e sociais e não são somente resultados de avanços técnicos. Nesse sentido, a

noção de rede de compartilhamento, a questão da interação entre usuários e autores –

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potencializada no marco da Web 2.0 - nos dá argumento para constatar que a categoria

autoral é interpelada pelas práticas de seu tempo, e que nosso século marca mudanças

significativas no campo da arte devido à presença da digitalidade. Como nos mostram

Kluscinskas e Moser (2007) ao dizer que a “teoria das mídias mostra como as novas

tecnologias modificam nossas experiências do mundo, porque elas mudam, na realidade,

as próprias condições da experiência estética” (KLUCINSKAS; MOSER, 2007, p.28).

É nesse cenário que está caracterizada a Web 2.0 – buscando, além do avanço da

técnica a interação e a troca entre usuários, uma participação ampliada, que reflete e

altera a produção literária e seu regime de funcionamento. A tecnologia entra na esfera

da literatura conferindo mudanças em seus processos.

A etapa mais recente está representada pela web 2.0, onde circulam tantas
“criações” de artistas e de usuários – o que os criadores iniciam e outros
modificam – que as fronteiras entre arte e não arte se “desdefinem”. Todos os
propósitos da arte de diferentes épocas subordinam-se à tendência de ampliar
a participação. Diz-se que uma rede é melhor quando mais usuários incluir,
quando incrementa sem cessar vídeos, fotografias e blog. (CANCLINI, 2016b, p.
51)

A circulação do livro “El Aleph Engordado” (2009) está marcada pelos dizeres que

o constituem, sendo que os objetos acima mencionados, entendidos como Objetos

Derivados, dão base para um contexto que altera a leitura do texto justamente por serem

produzidos por uma rede de participação. Estamos entendendo como Objetos Derivados,

portanto, aqueles objetos produzidos no contexto digital e, que foram de certo modo

apropriados pelo Caso Pablo Katchadjian. Podemos pensar em Objetos derivados como

produtos culturais que surgem e são efeito de uma determinada produção literária,

orientando e alterando seu funcionamento e seus processos de circulação.

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Considerações finais

“El Aleph Engordado” (2009) foi lido de acordo com os questionamentos

propiciados por uma ação judicial e por três Objetos Derivados criados em plataformas

conectadas à internet, que por fim reprogramaram o modo como o livro figura na cena

contemporânea. Buscamos entender o modo como Katchadjian circula e se legitima,

tendo como premissa que o autor assume e interpreta as características de um autor

performático (Cf. AZEVEDO, 2006).

Paralelamente, questionamos o lugar monumental atribuído a Jorge Luís Borges e

as consequências desse imaginário para a manutenção de sua autoria. Diante de todas

essas questões, operacionalizamos as noções de campo expandido, frutos estranhos, arte

inespecífica e práticas da impertinência, conceitos que orientam a leitura de objetos

artísticos para além das formalizações clássicas da arte (música, pintura, literatura)

individualizada. É uma possibilidade de abordagem que dá abertura tanto para produtos

artísticos em suas variadas formas quanto para instrumentos analíticos que comtemplem

essa hibridização.

Há espaço para uma hibridização de categorias artísticas, não privilegiando uma

arte em detrimento de outra, destacando que é na expansão do campo artístico que está

o valor dessas produções:

A expansividade dos meios e suportes artísticos se reconhece em práticas


contemporâneas que, com operações, materiais e suportes muito diferentes
entre si, foram desmantelando, detida e minuciosamente, todo tipo de ideia do
próprio, tanto no sentido do identifico a si mesmo como no sentido de limpo ou
puro, mas também no sentido do próprio como aquela característica que
diferencia, porque seria própria, uma espécie da outra. (GARRAMUÑO, 2014, p.
95)

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Nessa ideia da expansividade concebida por Florencia Garramuño (2014) está a

premissa do rompimento de barreiras entre artes e não arte, também uma incorporação

de práticas entre as artes, como o caso do autor–curador (AZEVEDO, 2017), que mostra

uma prática própria da esfera museológica entrando na cena literária.

Há, ainda, uma discussão em relação ao rompimento das barreiras entre produtos

artísticos e objetos manufaturados, trazendo para o mundo da arte o que não é

considerado próprio e levando arte a lugares não-especificamente artísticos. Tal atitude

mostra que não há espaços adequados para a inserção do literário – presente em

instalações, em feiras e em centros comerciais, por exemplo. São práticas que mostram

uma diluição da especificidade e da autonomia da arte (Cf. CANCLINI, 2012a). Essa

mudança de paradigma, que está na expansão do campo literário, exige que busquemos

formas de análise e leitura interdisciplinares, pois não é viável olhar para o novo com os

instrumentos que guiaram produções anteriores e mais que isso baseada em outros

preceitos de produção.

O conceito de autor-curador, discutido por Luciene Azevedo, permite pensar a

produção literária contemporânea pelo viés da curadoria, sendo o curador aquele que, a

partir de seu olhar, relaciona e reorganiza os objetos. Há uma perspectiva que constitui a

análise de objetos e obras literárias, mas que transbordam o reconhecido como específico

do estudo crítico da literatura.

Faz-se necessário o estudo dos processos que deram, ou darão, ao literário um

lugar de legitimidade, perspectiva essa que parte de uma concepção não essencialista de

literatura, uma vez que, para questionar os mecanismos pelos quais um autor foi

consolidado, é incontornável considerar que a literatura é uma instituição previamente

estabelecida e com base em preceitos específicos, dentre eles estão a cultura impressa, o

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suporte impresso, a autoria, a originalidade e as estratégias de legitimação amparadas

pelo mercado livreiro. De acordo com Regina Dalgastagné (2017), a perspectiva não

essencialista de leitura e análise do literário abre possibilidade para compreendê-lo de

modo que se enfatize as disputas que estão em jogo no processo de legitimação e, ainda,

para que se entenda os mecanismos que tornam possível a constituição de um texto

enquanto literários. Essa perspectiva desmistificada abre caminho para o reconhecimento

de novas literaturas.

Essa maneira de compreender o funcionamento do fenômeno literário abre


amplas possibilidades para conhecer obras, autores, tendências que ficaram
fora de uma determinada tradição ou que, em uma época concreta, não
ocuparam posições destacadas dentro do sistema (Villarino Pardo, 2000, p. 10-
23). Considerar sua existência contribui para entender melhor a posição de
prestígio que ocupam outros elementos da rede literária, assim como as
relações (ou a mínima presença delas) e as dinâmicas de que participam como
integrantes do mesmo campo (Bourdieu, 1996). Estão em jogo os processos de
valorização que se aplicam dentro de um sistema a determinados produtos
literários, destacando que não se trata de uma caraterística inerente a eles, mas
do resultado de uma série de disputas. (PARDO; DALCASTAGNÈ, 2017, p. 14)

Na problematização do fenômeno literário por Florencia Garramuño (2014) –

sobre a expansividade do campo e os gestos tidos como inespecíficos – reside a noção de

comunidade expandida. As comunidades são expandidas no sentido em que, nessas

distorções do já consolidado, surge a possibilidade do comum, mas comum pela

diferença, é na diversidade que os relatos se somam. Nesse contexto, a diferença é o

rompimento das barreiras literárias, tanto no ato criativo quanto na investigação. Para

Florencia Garramuño “essa aposta no inespecífico seria um modo de elaborar uma

linguagem do comum que propiciasse modos diversos do não pertencimento” (2014, p.

16).

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Compreende-se, por fim, “El Aleph Engordado” (2009) colocando em perspectiva a

ressignificação do modo como os objetos artísticos são lidos contemporaneamente,

entendendo que “o objeto literário é, mais do que as obras ou o ato inapreensível da

criação, o processo sociocultural de sua elaboração, seu tráfico e as modulações em que

se altera seu sentido” (CANCLINI, 2016b, p. 96).

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Recebido em 27 de maio de 2019.

Aceito em 02 de junho de 2020.

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Nair Renata Amâncio

1
Nasceu em 10 de março de 1937. É escritora, tradutora e professora de literatura Argentina, foi casada com
Jorge Luis Borges e é herdeira e detentora de seus direitos autorais.

2
“O Aleph engordado. É o conto de Borges expandido, expandido "por dentro", acrescentando palavras,
frases, episódios, "catalisando" por meio de aposições sem alterar o enredo ou adicionar personagens, de
modo a tornar a história de dez páginas uma novela, curta mas novela, ou melhor, não entrar na discussão
de gêneros, ‘um livro’.” Tradução nossa.

3
A autora fala do caso de apropriação de Di Nucci, que publicou o livro Bolivia construcciones. Artigo sobre
o caso: https://larrlasa.org/articles/10.25222/larr.49/ acesso em 20/11/2018

4
“Ninguém tem o direito de publicar, sem a permissão dos autores ou de seus titulares, uma produção
científica, literária, artística ou musical que tenha sido anotada ou copiada durante sua leitura,
apresentação ou exibição pública ou privada.” Tradução nossa.

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