Corpo Comparado Na Religião
Corpo Comparado Na Religião
Corpo Comparado Na Religião
Marcia Contins
UERJ
Marcel Mauss
Meu objetivo nesta comunicação é discutir os significados da “prece” em
dois contextos religiosos distintos: no chamado “catolicismo popular” e no
pentecostalismo. Para isto estarei focalizando primeiramente os usos da categoria “espírito
santo”, discutindo, comparativamente, as representações elaboradas pelos pentecostais e
por imigrantes açorianos católicos que realizam, no Rio de Janeiro, as festas do divino
espírito santo. Analisarei o lugar que essas festas ocupam em determinados espaços da
cidade, ao longo do tempo de sua realização: os meses de abril e maio de cada ano. Em
contraste com o significado desta categoria para os pentecostais1, cabe destacar o fato dessa
categoria estar articulada, entre os católicos devotos do espírito santo, em rituais anuais
cíclicos de troca em devoção à terceira pessoa da trindade; no caso dos pentecostais, essa
mesma categoria é percebida de uma forma individualizante e privada. Um dos alvos dessa
comparação é perceber as concepções de tempo e espaço que estão embutidas nos usos
sociais e simbólicos dessa categoria2.
1 Em estudos anteriores sobre pentecostais negros nos Estados Unidos e no Brasil (Contins 1992; 1997; 2002)
discuti os processos sociais e simbólicos de construção da subjetividade étnico-religiosa desse grupo. Mostrei
que essa subjetividade estrutura-se através das diferenças simbolicamente valorizadas entre diversos grupos
pentecostais e, simultaneamente, em relação a outras religiões. Particularmente no caso dos pentecostais norte
americanos, essa última relação se define em contraposição aos batistas; e no caso brasileiro em
contraposição aos integrantes das religiões afro-brasileiras.
2 O material de campo relativo à festa do Divino Espírito Santo apresentado neste texto faz parte de uma
pesquisa que venho realizando junto com José Reginaldo Santos Gonçalves da UFRJ sobre das festas do
Divino Espírito Santo no Brasil e nos Estados Unidos. Iniciamos a pesquisa entre 1999 e 2000, na região da
Nova Inglaterra, onde há forte concentração de imigrantes açorianos. Em nossos primeiros contatos pude
perceber que esses açorianos falavam espontânea e intensamente sobre o “espírito santo” e sobre as festas que
realizavam. Tendo trabalhado com os pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos e sabendo da
importância desta categoria no universo simbólico pentecostal, percebi então a possibilidade de analisar
comparativamente essa categoria neste universo e no catolicismo popular.
Além de sua dimensão transcontinental, a festa possui também uma
dimensão trans-histórica, uma vez que sua ocorrência em continente europeu tem registro
desde o século XIV. Enquanto fenômeno sócio-cultural, a festa do espírito santo não se
restringe a uma determinada sociedade ou grupo social: ela ultrapassa os limites de diversas
sociedades e grupos, constituindo-se em experiência comum a um conjunto de populações
mais ou menos próximas no tempo e no espaço (Gonçalves 2002).
Em uma das versões sobre as origens das Festas do Divino Espírito Santo,
elas aparecem relacionadas a alguns movimentos messiânicos na Europa da Idade Média
(Alemanha, França, Itália e Portugal no século XIV). Essas festas estão relacionadas
basicamente à arrecadação e distribuição de comida e dinheiro em devoção à Terceira
Pessoa da Santíssima. A origem da festa é , em geral, situada no século XIV, associada à
Rainha Santa Izabel (1271-1336), esposa de Dom Diniz (Cascudo 1962: 281-282). Alguns
estudiosos apontam para a ligação entre a festa e a ideologia milenarista do abade calabrês
Joaquim de Fiore, elaborada a partir da chegada de uma “idade do espírito santo”, que
sucederia as idades do “pai” e do “filho” (Cortesão 1980; Leal 1994; Gonçalves 2002).
As irmandades do divino no Rio de Janeiro têm geralmente uma sede própria com
um “provedor” ou presidente e sua esposa; um vice-presidente; membros da diretoria, que
se dividem entre a organização religiosa da irmandade, a parte administrativa; a
organização das mulheres (que geralmente cozinham a comida do espírito santo); e os
irmãos que para pertencerem à irmandade pagam uma anuidade.
Levarei em conta para esse trabalho os dados que reuni junto à irmandade do
Catumbi na Zona Norte do Rio de Janeiro e que se localiza no lado direito do elevado do
túnel Santa Bárbara (sentido zona norte) numa rua que dá acesso ao Morro de Santa
Teresa. A casa da irmandade (fundada em 1937) tem o formato de outras irmandades nos
Açores e é a segunda casa em que eles se instalaram, desde a sua fundação, neste mesmo
bairro. A primeira casa foi abaixo para a construção do túnel Santa Bárbara. A irmandade é
composta por imigrantes açorianos e suas famílias e também por muitos brasileiros.
Durante sete semanas, a partir do domingo de Páscoa, sete irmãos e suas famílias
irão permanecer com a coroa do espírito santo (em prata e com a figura de uma pomba) e
com o cetro. Durante essas semanas a família sorteada irá receber em sua casa outros
“irmãos” da sua irmandade bem como de outras irmandades, para rezar o terço ou novenas
em homenagem ao divino Espírito Santo.
Esse ritual é bastante complexo e durante o ano todo os devotos se preparam para
sua semana (os que tiraram a coroa num sorteio ainda no ano anterior) e de um modo geral
participam das semanas de seus “irmãos”. Todo esse ritual é realizado através do dispêndio
de muito dinheiro e quanto mais você gasta na sua semana mais prestígio você consegue
obter diante da sua comunidade. O dinheiro é gasto com a compra ou na preparação da
massa sovada (pão típico que se faz nos Açores), nos lanches que se oferecem aos
convidados da sua reza, nas ornamentações de sua casa etc. A irmandade oferece no
domingo seguinte ao dia do pentecostes a tradicional sopa do Espírito Santo a toda a
comunidade de irmãos e a toda a comunidade do bairro. No sábado anterior há a
distribuição das carnes (também uma tradição açoriana junto com a distribuição dos pães e
do vinho) numa quantidade muito grande a toda comunidade pobre da região (de uma a
cinco toneladas). Neste dia da distribuição, a calçada junto à irmandade do Catumbi fica
repleta de pessoas que ficam na fila esperando pela carne que é distribuída.
Além dos jantares, dos lanches, das rezas e das missas que são realizadas na
capela da irmandade e na casa dos irmãos, a procissão é parte importante nos rituais do
divino. É neste momento que a irmandade caminha por todo o bairro levando a frente uma
cruz representando Jesus Cristo; em seguida as crianças que foram coroadas caminham com
as coroas. As coroas são carregadas por outros irmãos que trazem também as bandeiras do
espírito santo (uma bandeira vermelha tendo ao centro uma pomba dourada em meio a raios
dourados), dos Açores, de Portugal, da Casa dos Açores e do Brasil. No alto do mastro da
bandeira do espírito santo existe também uma esfera dourada tendo em cima uma pomba
branca. Depois das crianças e dos irmãos que seguram as bandeiras vêm outros irmãos
acompanhados pela banda de música.
O trajeto da procissão até a igreja da Salete, no Catumbi, leva
aproximadamente 20 minutos, em passo lento. Ao chegar à porta da igreja, ao som do hino
do espírito santo, o provedor ou presidente, sua esposa e parentes, ladeados por outros
irmãos, colocam-se de frente para a rua. A coroa do espírito santo é elevada, como que
exibida diante das pessoas que assistem: é o tempo do império do divino espírito santo.
Rezam ave-marias por todo o trajeto e são acompanhados pelos moradores do bairro.
Muitos vêm à janela de suas casas e ficam olhando a procissão, outros cantam e rezam
juntos. Alguns homens da irmandade comandam o trânsito das ruas para que a procissão
possa passar. Todos que ficam pelo caminho por onde passa a procissão parecem conhecer
a irmandade. Depois que passa pela igreja principal do bairro, entra por algumas ruas dando
a volta inteira e retornando à irmandade do outro lado do elevado do túnel Santa Bárbara.
No caminho da procissão se reza o rosário e às vezes se dá “viva o espírito santo!” e
continua o caminho de volta à irmandade. Ao chegarem na sede da irmandade, a procissão
segue mais adiante na rua para todos saudarem o espírito santo.
Neste sentido, considero a reza que é realizada para o divino espírito santo
como um ato, ou seja, um esforço, um gesto de energia física e moral em vistas de produzir
eficácia. Como um rito as rezas são atos tradicionais eficazes relacionados a igreja católica
e que fazem a mediação entre os devotos e o divino.
As Rezas:
As rezas realizadas nas casas dos irmãos são principalmente comandadas pelas
mulheres. São elas que preparam o altar onde a coroa do divino e o cetro ficam colocados.
O altar do divino fica geralmente na sala das residências em um lugar de destaque. No
espaço do altar tem lugar outros objetos relacionados à devoção ao divino espírito santo,
como o cetro, a pomba branca que representa o espírito santo, velas vermelhas, terços de
diversos tamanhos, flores etc. O altar compõe-se de uma mesa com toalhas brancas onde
se coloca a coroa do divino e os outros objetos. Ainda no espaço da sala também
encontramos outros objetos relacionados à devoção ao espírito santo e à religião católica de
um modo em geral, como miniaturas da coroa do espírito santo, quadro de Jesus na ceia
com os apóstolos, além de uma quantidade enorme de santos e velas.
Sendo o ponto central do espaço do sagrado na casa dos irmãos, o altar recebe,
geralmente uma luz especial. Sempre a coroa do divino está iluminada e muitos dos objetos
que compõem a mesa são prateados ou dourados.
As rezas para o divino espírito santo sempre se realizam às nove horas da noite,
todos os dias da semana, durante sete semanas. O dia de quinta feira é um dia especial na
semana, é o dia que todos os irmãos participam das rezas. Em cada semana uma família vai
receber a coroa e receber pessoas diariamente em suas casas. Lá a coroa é rezada todos os
dias neste horário, mas os irmãos podem a qualquer momento fazer uma prece
individualmente para o divino. As rezas da noite são sempre coletivas. Todos chegam mais
ou menos às nove horas, podendo chegar um pouco mais cedo e ficar conversando
informalmente com os donos da casa. Neste horário a dona da casa toca um sininho para
todos se colocarem à frente da coroa. É para a coroa que todos se dirigem, ao espírito santo.
A dona da casa junto com outras mulheres da irmandade, geralmente da diretoria, e irmãs
mais antigas ou voltadas para a parte religiosa da irmandade ficam na primeira fileira de
frente para a coroa. Depois outras mulheres se colocam formando outras fileiras e atrás
delas as fileiras dos homens.
O Terço:
A reza para o divino espírito santo se faz através do terço rezado ou do terço
cantando (como eles próprios dizem). São 50 ave-marias e 5 pai-nossos ao todo. Depois
de terminado esta parte do terço, homens e mulheres cantam juntos uma frase “...gloria ao
pai ao filho e ao espírito santo” e rezam o pai nosso. Logo depois Salve rainha ( que uns
dizem ser a salve rainha da tradição açoriana). Não rezam o credo neste terço.
O terço é rezado de pé olhando para a coroa e para o altar do divino. A reza está
voltada para o divino e no sentido de obterem a graça do espírito santo. Em primeiro lugar
a dona da casa sempre inicia o ritual das rezas pedindo ao espírito santo a melhora dos
irmãos que estão doentes, por todos os que necessitam de ajuda, pela irmandade e pela paz
no mundo. O terço começa sempre com um pai nosso que é rezado pelas mulheres. Elas
começam o pai nosso e os homens, que estão situados na parte de trás, respondem as
mulheres rezando a segunda parte do pai nosso. Logo depois as mulheres iniciam a ave
Maria e os homens terminam e assim sucessivamente até completarem todo o circuito de
pai nossos e ave-marias. As mulheres então começam e terminam esta parte do terço. São
elas que levam os terços (sempre individuais, mas alguns são colocados no altar junto a
coroa) e ficam com eles durante todo o tempo da reza.
Logo depois os irmãos recebem das mulheres uma folha com a letra do “Hino da
Trindade” e do “Canto da Trindade”. Esses dois hinos são cantados, enquanto o cetro é
levado pela dona da casa aos irmãos. Neste momento os irmãos beijam a pomba que fica na
ponta do cetro e a encosta na sua testa e na direção de seu coração. Os devotos só param de
cantar o hino da trindade quando todos os irmãos terminarem de beijar o cetro. Esta parte
das rezas, que se realizam na casa das pessoas, é o lado mais formal e sagrado do ritual das
rezas.
Logo depois da descrição que realizei acima, as mulheres dizem boa noite e então
é hora de comer. Este é o lado mais informal e profano das rezas. Geralmente são as
mulheres que preparam o lanche para os irmãos. É neste momento de informalidade que
todos se juntam para conversar e muitas vezes falar sobre o divino, o que conseguiram e
como ele os ajudou. Conversas mais cotidianas e piadas também fazem parte do final das
rezas. Muitos devotos da irmandade não podem “receber o divino” porque não tem lugar
para receberem os irmãos, nem dinheiro para os lanches. Muitas vezes as rezas são
realizadas na capela da irmandade com a ajuda de outros irmãos. Nas capelas se repete o
mesmo terço das casas das pessoas. No final o lanche também é servido. No dia de quinta
feira o lanche é mais completo e todos esperam receber o pão do espírito santo.
4No “Ensaio sobre as variações sazoneiras das sociedades esquimós” (1974) Mauss analisa a “dupla
morfologia” da sociedade esquimó, dividida entre uma sociedade de inverno e uma sociedade de verão. O
inverno é marcado por inúmeras festas e por cerimônias religiosas que expressam um conjunto de
representações coletivas claramente distintas daquelas expressas no verão. As festas do espírito santo
estabelecem também uma visão distinta acerca da vida das pessoas e das relações entre elas que, nesse tempo,
em oposição ao tempo do cotidiano, são marcadas por um “estado de exaltação religiosa contínua”
(Mauss,1974).
objetos que a acompanham, na verdade, substituem uma entidade ausente, a “açorianidade”
(Gonçalves 2001).
5 Como sugere Marcel Mauss: “Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram que
contratar e que, por definição, ali estavam para contratar com eles foi, antes de tudo, o dos espíritos dos
é, nesse contexto, fundamental para se entender a festa do divino. É por meio das
promessas que as relações entre os seres humanos e o espírito santo são articuladas, num
processo de dádiva e contra-dádiva (Mauss 1974). Essas relações envolvem
simultaneamente tanto as relações de troca entre seres humanos quanto entre estes e o
espírito santo (Leal 1994). Em outras palavras, a festa é realizada com o propósito de
“pagar” uma promessa feita ao espírito santo.
Tempo e espaço são vistos diferentemente para cada um dos dois grupos
analisados. No caso do catolicismo popular, o tempo é cíclico, todos os anos a festa do
divino espírito santo toma o espaço do bairro e hierarquicamente submete todos ao império
do divino. Homens, mulheres, ricos e pobres estão sobre o poder do divino. Para os
pentecostais a relação com o espírito santo se dá diretamente, sem data marcada no espaço
da Igreja.
mortos e os deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Era
com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar. Inversamente, porém, era com eles que
era mais fácil e mais seguro trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por fim ser uma doação que seja
necessariamente retribuída” (Marcel Mauss, O Ensaio sobre a Dádiva, p. 63).
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