Corpo Comparado Na Religião

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Catolicismo Popular, Pentecostalismo e Técnicas

Corporais: uma visão comparativa dos usos da


prece em dois contextos religiosos

Marcia Contins

Departamento de Ciências Sociais /IFCH/

UERJ

Mais les temps et les espaces sacrés dans lequels se


réalisent les rites et les mythes sont qualifiés pour les
récevoir. Les espaces sont toujours de véritables
temples. Les temps sont dês fêtes”.

Marcel Mauss
Meu objetivo nesta comunicação é discutir os significados da “prece” em
dois contextos religiosos distintos: no chamado “catolicismo popular” e no
pentecostalismo. Para isto estarei focalizando primeiramente os usos da categoria “espírito
santo”, discutindo, comparativamente, as representações elaboradas pelos pentecostais e
por imigrantes açorianos católicos que realizam, no Rio de Janeiro, as festas do divino
espírito santo. Analisarei o lugar que essas festas ocupam em determinados espaços da
cidade, ao longo do tempo de sua realização: os meses de abril e maio de cada ano. Em
contraste com o significado desta categoria para os pentecostais1, cabe destacar o fato dessa
categoria estar articulada, entre os católicos devotos do espírito santo, em rituais anuais
cíclicos de troca em devoção à terceira pessoa da trindade; no caso dos pentecostais, essa
mesma categoria é percebida de uma forma individualizante e privada. Um dos alvos dessa
comparação é perceber as concepções de tempo e espaço que estão embutidas nos usos
sociais e simbólicos dessa categoria2.

As Festas do Divino Espírito Santo

É vasta a literatura produzida sobre as festas do divino espírito santo entre


folcloristas (Van Gennep 1947; 1949; Cascudo 1962), historiadores (Melo e Souza 1994;
Abreu 1999) e antropólogos ( Brandão 1978; Leal 1994; Gonçalves, 2002)que têm
produzido uma extensa bibliografia sobre a ocorrência dessas festas na Europa, no
Arquipélago dos Açores, na Ilha da Madeira, no Brasil, nos Estados Unidos e no Canadá .

1 Em estudos anteriores sobre pentecostais negros nos Estados Unidos e no Brasil (Contins 1992; 1997; 2002)
discuti os processos sociais e simbólicos de construção da subjetividade étnico-religiosa desse grupo. Mostrei
que essa subjetividade estrutura-se através das diferenças simbolicamente valorizadas entre diversos grupos
pentecostais e, simultaneamente, em relação a outras religiões. Particularmente no caso dos pentecostais norte
americanos, essa última relação se define em contraposição aos batistas; e no caso brasileiro em
contraposição aos integrantes das religiões afro-brasileiras.

2 O material de campo relativo à festa do Divino Espírito Santo apresentado neste texto faz parte de uma
pesquisa que venho realizando junto com José Reginaldo Santos Gonçalves da UFRJ sobre das festas do
Divino Espírito Santo no Brasil e nos Estados Unidos. Iniciamos a pesquisa entre 1999 e 2000, na região da
Nova Inglaterra, onde há forte concentração de imigrantes açorianos. Em nossos primeiros contatos pude
perceber que esses açorianos falavam espontânea e intensamente sobre o “espírito santo” e sobre as festas que
realizavam. Tendo trabalhado com os pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos e sabendo da
importância desta categoria no universo simbólico pentecostal, percebi então a possibilidade de analisar
comparativamente essa categoria neste universo e no catolicismo popular.
Além de sua dimensão transcontinental, a festa possui também uma
dimensão trans-histórica, uma vez que sua ocorrência em continente europeu tem registro
desde o século XIV. Enquanto fenômeno sócio-cultural, a festa do espírito santo não se
restringe a uma determinada sociedade ou grupo social: ela ultrapassa os limites de diversas
sociedades e grupos, constituindo-se em experiência comum a um conjunto de populações
mais ou menos próximas no tempo e no espaço (Gonçalves 2002).

Em uma das versões sobre as origens das Festas do Divino Espírito Santo,
elas aparecem relacionadas a alguns movimentos messiânicos na Europa da Idade Média
(Alemanha, França, Itália e Portugal no século XIV). Essas festas estão relacionadas
basicamente à arrecadação e distribuição de comida e dinheiro em devoção à Terceira
Pessoa da Santíssima. A origem da festa é , em geral, situada no século XIV, associada à
Rainha Santa Izabel (1271-1336), esposa de Dom Diniz (Cascudo 1962: 281-282). Alguns
estudiosos apontam para a ligação entre a festa e a ideologia milenarista do abade calabrês
Joaquim de Fiore, elaborada a partir da chegada de uma “idade do espírito santo”, que
sucederia as idades do “pai” e do “filho” (Cortesão 1980; Leal 1994; Gonçalves 2002).

As Festas do Divino Espírito Santo, no Brasil, tiveram início com a


imigração açoriana no sul. No entanto, registra-se a presença dessas festas no século XVIII
na cidade do Rio de Janeiro. A festa do divino espírito santo é móvel e relaciona-se ao dia
de pentecostes, que acontece sempre 50 dias depois do domingo de Páscoa. Durante a
quaresma até o dia de pentecostes e mesmo depois disso realizam-se as comemorações ao
divino. Existem sete irmandades do Divino Espírito Santo no Rio de Janeiro: a irmandade
do Catumbi; a de Vila Isabel; a da Casa dos Açores, na Tijuca; a do Encantado; a de
Niterói; Outeiro, Engenho de Dentro e uma outra na Baixada Fluminense.

Cada irmandade possui objetos relacionados ao divino espírito santo. Entre os


objetos mais importantes estão a coroa e o cetro de prata. A coroa, assim como o cetro,
serve simbolicamente para coroar os devotos que fazem promessas ao divino. Essas
promessas estão relacionadas principalmente a curas de doenças, e também a necessidades
econômicas. Além da coroa e do cetro, as irmandades possuem bandeiras do divino espírito
santo e dos Açores e de Portugal, imagens de vários santos católicos, principalmente Nossa
Senhora da Aparecida e São Sebastião e várias imagens da pomba branca simbolizando o
espírito santo.

As irmandades do divino no Rio de Janeiro têm geralmente uma sede própria com
um “provedor” ou presidente e sua esposa; um vice-presidente; membros da diretoria, que
se dividem entre a organização religiosa da irmandade, a parte administrativa; a
organização das mulheres (que geralmente cozinham a comida do espírito santo); e os
irmãos que para pertencerem à irmandade pagam uma anuidade.

Levarei em conta para esse trabalho os dados que reuni junto à irmandade do
Catumbi na Zona Norte do Rio de Janeiro e que se localiza no lado direito do elevado do
túnel Santa Bárbara (sentido zona norte) numa rua que dá acesso ao Morro de Santa
Teresa. A casa da irmandade (fundada em 1937) tem o formato de outras irmandades nos
Açores e é a segunda casa em que eles se instalaram, desde a sua fundação, neste mesmo
bairro. A primeira casa foi abaixo para a construção do túnel Santa Bárbara. A irmandade é
composta por imigrantes açorianos e suas famílias e também por muitos brasileiros.

São poucos os açorianos que fazem parte da Irmandade do Catumbi. No entanto,


todos ocupam papéis de relativa importância. Além do presidente e de sua esposa, os outros
açorianos são todos membros da diretoria da irmandade. O presidente atual chegou ao Rio
de Janeiro ainda jovem na década de 60. Outros presidentes que o antecederam chegaram
ainda na primeira metade do século passado. Alguns deles ainda moram no Catumbi, mas o
atual presidente e sua esposa moram na Zona Sul do Rio de Janeiro. Tanto o presidente
quanto os outros açorianos desta irmandade, assim como das outras seis irmandades
existentes nesta cidade, possuem ou possuíram açougues. O açougue é uma das formas
mais tradicionais de trabalho dos açorianos nesta cidade, como empregadores ou como
empregados. É também uma instituição familiar, já que todos da mesma família lá
trabalham. Quando algum açoriano chegava no Rio de Janeiro, vinha direto trabalhar em
um dos açougues de seus parentes. Segundo esses açorianos, o número hoje em dia de
açougues diminuiu muito, devido ao aumento do número de supermercados que vendem
carnes. Além de açougues, alguns açorianos vivem do pequeno comércio lá mesmo no
bairro do Catumbi , como é o caso de um antigo presidente e atual membro da diretoria
desta Irmandade.
Os outros membros são cariocas e moradores do bairro do Catumbi e se
relacionam há muito tempo com a irmandade. Os coordenadores da parte religiosa da
irmandade, um homem e uma mulher, são moradores tradicionais do bairro. Os dois
integram a irmandade há muitos anos e são também bastantes próximos da Igreja Católica
local, a Igreja de Nossa Senhora da Salete. Eles são responsáveis pelos rituais relacionados
às festas do Divino Espírito Santo tais como missas, rezas, novenas e a procissão do divino
pelo bairro.

Outros membros da irmandade são, em sua maioria, moradores do bairro:


senhoras de idade e pessoas de camadas médias. Durante as festas um grande número de
pessoas visitam a Irmandade, especialmente os membros das outras irmandades localizadas
em vários outros bairros do Rio de Janeiro. Outros moradores do bairro, que não são
filiados a esta irmandade, relacionam-se com esses irmãos através da festa do Divino
Espírito Santo. No dia da festa, moradores do bairro e de favelas próximas, procuram a
irmandade para receber a “sopa do espírito santo” e para a tradicional distribuição da
alcatra. O que aproxima socialmente todas essas pessoas (açorianos e membros da
irmandade em geral e moradores do Catumbi) é a festa anual do divino que faz parte da
história do bairro.

Durante sete semanas, a partir do domingo de Páscoa, sete irmãos e suas famílias
irão permanecer com a coroa do espírito santo (em prata e com a figura de uma pomba) e
com o cetro. Durante essas semanas a família sorteada irá receber em sua casa outros
“irmãos” da sua irmandade bem como de outras irmandades, para rezar o terço ou novenas
em homenagem ao divino Espírito Santo.

Esse ritual é bastante complexo e durante o ano todo os devotos se preparam para
sua semana (os que tiraram a coroa num sorteio ainda no ano anterior) e de um modo geral
participam das semanas de seus “irmãos”. Todo esse ritual é realizado através do dispêndio
de muito dinheiro e quanto mais você gasta na sua semana mais prestígio você consegue
obter diante da sua comunidade. O dinheiro é gasto com a compra ou na preparação da
massa sovada (pão típico que se faz nos Açores), nos lanches que se oferecem aos
convidados da sua reza, nas ornamentações de sua casa etc. A irmandade oferece no
domingo seguinte ao dia do pentecostes a tradicional sopa do Espírito Santo a toda a
comunidade de irmãos e a toda a comunidade do bairro. No sábado anterior há a
distribuição das carnes (também uma tradição açoriana junto com a distribuição dos pães e
do vinho) numa quantidade muito grande a toda comunidade pobre da região (de uma a
cinco toneladas). Neste dia da distribuição, a calçada junto à irmandade do Catumbi fica
repleta de pessoas que ficam na fila esperando pela carne que é distribuída.

À frente de cada festa realizada está um personagem identificado como


“mordomo”. A ele cabem as responsabilidades sociais, financeiras e organizacionais pela
preparação e realização da festa. Sua posição hierárquica é a mais alta dentre todos aqueles
personagens necessários à condução das celebrações. Há uma série de personagens
ritualmente definidos e situados numa relação hierarquicamente dependente em relação ao
“mordomo”. É por seu intermédio que, não apenas ele, enquanto indivíduo, mas todo o
conjunto de pessoas a ele relacionadas por meio do parentesco, da vizinhança, da amizade,
do compadrio, da patronagem, enfim um amplo círculo social estabelece as relações de
dádiva e contra-dádiva entre os seres humanos e o espírito santo (Gonçalves, 2001).
Especialmente a carne, o pão e o vinho constituem a principal moeda no fluxo de trocas.
Um dos objetivos centrais dessas festas é distribuir gratuitamente comida aos pobres. Além
da redistribuição de alimentos aos pobres e ao longo do período de preparação da festa,
especialmente no período de quarenta dias que antecedem domingo de Pentecostes, uma
série de “jantares” e “almoços” são oferecidos pelos “mordomos”, que ficam responsáveis
pela festa em cada um dos sete domingos anteriores ao domingo de Pentecostes.

Além dos jantares, dos lanches, das rezas e das missas que são realizadas na
capela da irmandade e na casa dos irmãos, a procissão é parte importante nos rituais do
divino. É neste momento que a irmandade caminha por todo o bairro levando a frente uma
cruz representando Jesus Cristo; em seguida as crianças que foram coroadas caminham com
as coroas. As coroas são carregadas por outros irmãos que trazem também as bandeiras do
espírito santo (uma bandeira vermelha tendo ao centro uma pomba dourada em meio a raios
dourados), dos Açores, de Portugal, da Casa dos Açores e do Brasil. No alto do mastro da
bandeira do espírito santo existe também uma esfera dourada tendo em cima uma pomba
branca. Depois das crianças e dos irmãos que seguram as bandeiras vêm outros irmãos
acompanhados pela banda de música.
O trajeto da procissão até a igreja da Salete, no Catumbi, leva
aproximadamente 20 minutos, em passo lento. Ao chegar à porta da igreja, ao som do hino
do espírito santo, o provedor ou presidente, sua esposa e parentes, ladeados por outros
irmãos, colocam-se de frente para a rua. A coroa do espírito santo é elevada, como que
exibida diante das pessoas que assistem: é o tempo do império do divino espírito santo.
Rezam ave-marias por todo o trajeto e são acompanhados pelos moradores do bairro.
Muitos vêm à janela de suas casas e ficam olhando a procissão, outros cantam e rezam
juntos. Alguns homens da irmandade comandam o trânsito das ruas para que a procissão
possa passar. Todos que ficam pelo caminho por onde passa a procissão parecem conhecer
a irmandade. Depois que passa pela igreja principal do bairro, entra por algumas ruas dando
a volta inteira e retornando à irmandade do outro lado do elevado do túnel Santa Bárbara.
No caminho da procissão se reza o rosário e às vezes se dá “viva o espírito santo!” e
continua o caminho de volta à irmandade. Ao chegarem na sede da irmandade, a procissão
segue mais adiante na rua para todos saudarem o espírito santo.

Um dos pontos centrais para a discussão do lugar da irmandade neste bairro


é a sua permanência. Em todas as entrevistas que realizamos com os “irmãos” mais antigos
a experiência de ter participado em algum momento da irmandade foi através das festas que
eram realizadas na rua (com barraquinhas , brincadeiras etc) e participando também das
procissões do divino espírito santo. Os devotos do espírito santo possuem uma quantidade
enorme de santos e objetos que lembram o espírito santo, além da coroa e do cetro. Esses
últimos são os mais importantes na medida em que esses são levados para as novenas e,
após a reza do rosário, a dona da casa passa por todos os irmãos e convidados para que cada
um beije a pomba que se encontra na ponta do cetro. Logo atrás da dona da casa com o
cetro, vem uma irmã ou irmão da irmandade recolhendo dinheiro para o divino. Às quintas
feiras, dia mais importante na semana para os devotos, além de se passar o cetro por todas
as pessoas são distribuídas massas sovadas benzidas pelo padre local. Essas novenas são
disputadas por todos os irmãos e a família que tiver conseguido mais dinheiro durante a sua
semana é muito bem vista pela comunidade.

Estou considerando a categoria reza neste trabalho, a partir da discussão de


Marcel Mauss (1974) sobre a prece. Para este autor a prece é ao mesmo tempo um rito e
uma crença. Ela consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados e
também é um credo. Segundo Mauss a reza é ação e pensamento num mesmo momento
religioso. A prece une o rito ao mito, são inseparáveis, são as duas faces de um mesmo ato,
ou seja, todo mito e todo rito convergem na prece. A prece é também uma conversação com
deus, é um movimento em direção à divindade. Mas como esta conversação é possível?
Para Mauss a prece “é uma seqüência de fórmulas, é uma literatura, é o produto do esforço
acumulado dos homens e das gerações” (p.117). É assim, uma série de palavras com
sentidos determinados e classificadas na ordem reconhecida como ortodoxa para o grupo.
Por mais livre que se reze observa-se sempre alguns padrões que se tem que seguir. A prece
é eficaz, porque as palavras da prece podem causar fenômenos extraordinários. A reza
também é a utilização do corpo no sentido de uma técnica. Entendo técnica (Mauss) como
um ato tradicional eficaz, que não difere de um ato mágico, religioso ou simbólico.

Neste sentido, considero a reza que é realizada para o divino espírito santo
como um ato, ou seja, um esforço, um gesto de energia física e moral em vistas de produzir
eficácia. Como um rito as rezas são atos tradicionais eficazes relacionados a igreja católica
e que fazem a mediação entre os devotos e o divino.

As Rezas:

A festa do divino espírito santo é sempre realizada a partir de uma relação


de promessa entre um devoto e o espírito santo. Esta festa é móvel e cíclica e relaciona-se
ao dia de pentecostes, que acontece sempre 50 dias depois do domingo de Páscoa. Durante
a quaresma até o dia de pentecostes e mesmo depois disso realizam-se as comemorações ao
divino. É o que eles chamam de “tempo de festas” ou “ tempo do divino”. Tempo e espaço
se configuram neste momento e a sociedade se modifica e isto é realizado com a ajuda das
rezas. A reza faz parte deste tempo de espera.

Em troca de um pedido, o devoto se oferece para realizar uma dessas rezas


na condição de obter a coroa do divino espírito santo por uma semana. No entanto, isso não
depende inteiramente de sua vontade, já que ele deve ser sorteado para que então possa vir
a realizar essa festa. E só concorrem aquelas pessoas que se encontram em condições
financeiras minimamente suficientes para arcar com as despesas. Isso significa que, ao
pagar a promessa, o devoto de algum modo já está sob as graças do espírito santo, uma vez
que sorteado para fazer a festa e assim podendo “agradar o espírito santo”.
A coroa, assim como o cetro, serve simbolicamente para coroar os devotos
que fazem promessas ao divino. As rezas que são realizadas durante as sete semanas que
antecedem a festa propriamente ditas, são comandadas principalmente pelas mulheres da
irmandade. Além das rezas que são realizadas nas casas dos devotos durante sete semanas
estarei levando em conta, neste trabalho, as rezas realizadas nas missas para o divino
espírito santo, na coroação das crianças e nas procissões.

A irmandade do Catumbi é composta por imigrantes açorianos e suas famílias e


também por muitos brasileiros. Os outros membros são cariocas e moradores do bairro do
Catumbi e se relacionam há muito tempo com a irmandade. Os coordenadores da parte
religiosa da irmandade, um homem e uma mulher, são moradores tradicionais do bairro. Os
dois integram a irmandade há muitos anos e são também bastantes próximos da Igreja
Católica local, a Igreja de Nossa Senhora da Salete. Eles são responsáveis principalmente
pelos rituais mais formais relacionados às festas do Divino Espírito Santo tais como missas,
rezas, novenas e a procissão do divino pelo bairro.

Espaço das rezas:

As rezas realizadas nas casas dos irmãos são principalmente comandadas pelas
mulheres. São elas que preparam o altar onde a coroa do divino e o cetro ficam colocados.
O altar do divino fica geralmente na sala das residências em um lugar de destaque. No
espaço do altar tem lugar outros objetos relacionados à devoção ao divino espírito santo,
como o cetro, a pomba branca que representa o espírito santo, velas vermelhas, terços de
diversos tamanhos, flores etc. O altar compõe-se de uma mesa com toalhas brancas onde
se coloca a coroa do divino e os outros objetos. Ainda no espaço da sala também
encontramos outros objetos relacionados à devoção ao espírito santo e à religião católica de
um modo em geral, como miniaturas da coroa do espírito santo, quadro de Jesus na ceia
com os apóstolos, além de uma quantidade enorme de santos e velas.

Sendo o ponto central do espaço do sagrado na casa dos irmãos, o altar recebe,
geralmente uma luz especial. Sempre a coroa do divino está iluminada e muitos dos objetos
que compõem a mesa são prateados ou dourados.

As rezas para o divino espírito santo sempre se realizam às nove horas da noite,
todos os dias da semana, durante sete semanas. O dia de quinta feira é um dia especial na
semana, é o dia que todos os irmãos participam das rezas. Em cada semana uma família vai
receber a coroa e receber pessoas diariamente em suas casas. Lá a coroa é rezada todos os
dias neste horário, mas os irmãos podem a qualquer momento fazer uma prece
individualmente para o divino. As rezas da noite são sempre coletivas. Todos chegam mais
ou menos às nove horas, podendo chegar um pouco mais cedo e ficar conversando
informalmente com os donos da casa. Neste horário a dona da casa toca um sininho para
todos se colocarem à frente da coroa. É para a coroa que todos se dirigem, ao espírito santo.
A dona da casa junto com outras mulheres da irmandade, geralmente da diretoria, e irmãs
mais antigas ou voltadas para a parte religiosa da irmandade ficam na primeira fileira de
frente para a coroa. Depois outras mulheres se colocam formando outras fileiras e atrás
delas as fileiras dos homens.

O Terço:

A reza para o divino espírito santo se faz através do terço rezado ou do terço
cantando (como eles próprios dizem). São 50 ave-marias e 5 pai-nossos ao todo. Depois
de terminado esta parte do terço, homens e mulheres cantam juntos uma frase “...gloria ao
pai ao filho e ao espírito santo” e rezam o pai nosso. Logo depois Salve rainha ( que uns
dizem ser a salve rainha da tradição açoriana). Não rezam o credo neste terço.

O terço é rezado de pé olhando para a coroa e para o altar do divino. A reza está
voltada para o divino e no sentido de obterem a graça do espírito santo. Em primeiro lugar
a dona da casa sempre inicia o ritual das rezas pedindo ao espírito santo a melhora dos
irmãos que estão doentes, por todos os que necessitam de ajuda, pela irmandade e pela paz
no mundo. O terço começa sempre com um pai nosso que é rezado pelas mulheres. Elas
começam o pai nosso e os homens, que estão situados na parte de trás, respondem as
mulheres rezando a segunda parte do pai nosso. Logo depois as mulheres iniciam a ave
Maria e os homens terminam e assim sucessivamente até completarem todo o circuito de
pai nossos e ave-marias. As mulheres então começam e terminam esta parte do terço. São
elas que levam os terços (sempre individuais, mas alguns são colocados no altar junto a
coroa) e ficam com eles durante todo o tempo da reza.

Partes do corpo são sublinhadas durante as rezas, como a cabeça e as mãos. Há


uma maneira específica de segurar o terço como contando as contas e separando-as de
forma esticada. Durante a reza a comunicação entre as pessoas é reduzida ao mínimo. Nem
todas as mulheres usam o terço para rezar, mas os homens nunca as usam. Todos no entanto
rezam e cantam juntos no final a salve rainha (açoriana) e logo depois por três vezes pedem
misericórdia ao espírito santo abaixando a cabeça neste momento. Depois por três vezes
repetem outras palavras cantadas em louvor a virgem Maria e mais três vezes a Maria
santíssima.

Logo depois os irmãos recebem das mulheres uma folha com a letra do “Hino da
Trindade” e do “Canto da Trindade”. Esses dois hinos são cantados, enquanto o cetro é
levado pela dona da casa aos irmãos. Neste momento os irmãos beijam a pomba que fica na
ponta do cetro e a encosta na sua testa e na direção de seu coração. Os devotos só param de
cantar o hino da trindade quando todos os irmãos terminarem de beijar o cetro. Esta parte
das rezas, que se realizam na casa das pessoas, é o lado mais formal e sagrado do ritual das
rezas.

Logo depois da descrição que realizei acima, as mulheres dizem boa noite e então
é hora de comer. Este é o lado mais informal e profano das rezas. Geralmente são as
mulheres que preparam o lanche para os irmãos. É neste momento de informalidade que
todos se juntam para conversar e muitas vezes falar sobre o divino, o que conseguiram e
como ele os ajudou. Conversas mais cotidianas e piadas também fazem parte do final das
rezas. Muitos devotos da irmandade não podem “receber o divino” porque não tem lugar
para receberem os irmãos, nem dinheiro para os lanches. Muitas vezes as rezas são
realizadas na capela da irmandade com a ajuda de outros irmãos. Nas capelas se repete o
mesmo terço das casas das pessoas. No final o lanche também é servido. No dia de quinta
feira o lanche é mais completo e todos esperam receber o pão do espírito santo.

Missas são realizadas pelos padres no domingo de pentecostes e em dois domingos


seguintes (no dia da sopa do divino espírito santo e no dia da trindade). Durante a missa as
crianças são coroadas. Neste contexto as rezas acompanham a missa tradicional da igreja
católica e é um momento mais ritualizado e formal, enquanto as rezas de durante as
semanas são rezas de cada comunidade ou irmandade.

É importante perguntar agora porque esses devotos fazem a festa do divino e


porque rezam. Um dos caminhos para se responder esta pergunta está relacionado ao fato
da festa e das rezas propiciarem a graça. Como vimos são as mulheres que realizam as
rezas e são elas que estão mais próximas da graça. Durante a coroação das crianças, os
homens nunca participam, mas as mulheres estão sempre envolvidas. Só os homens que
estão doentes, por exemplo, podem ser coroados. Todos rezam na expectativa de serem
atendidos pois ninguém vive sem esperar e obter a graça. A prece é um meio de agir sobre
os seres sagrados, é a eles que influencia, é neles que suscita modificação. Quando se reza
espera-se algum resultado da prece, para alguma coisa. Pela promessa, através da reza, um
acontecimento adquire uma virtude que lhe assegura a realização. As novenas realizadas
pelas pessoas da irmandade propiciam a realização da graça. A eficácia é possível porque
mesmo quando o pedido não se realiza inteiramente (as pessoas ficam doentes, tem
problemas de dinheiro etc) ela (a eficácia) está ligada à ação do espírito santo numa ou
noutra direção. A eficácia se destina às forças religiosas e não exatamente aos pedidos que
as pessoas fizeram. Às vezes o seu efeito se reduz ao simples conforto que a reza traz, ou
seja a eficácia está na própria reza. Muitas estórias são contadas pelos devotos do espírito
santo falando sobre o poder desta entidade e como o divino age. O divino age de sua
própria maneira e não existe um controle por parte dos devotos sobre as suas ações.

Pentecostais e o espírito santo

Entre os pentecostais, o “testemunho” é muito importante. É quando o crente


revela aos outros, incluindo-se mesmo os 'não-salvos', seu comprometimento com Deus e
com a congregação. Através do testemunho, o crente se converte e ao mesmo tempo espera
convencer os outros de sua crença. Segundo Susan Harding (1987), o testemunho é um dos
momentos em que a conversão ritualmente ocorre. A verdadeira questão sobre a conversão,
segundo esta autora, é de como a ordem sobrenatural (a existência de Deus, a experiência
do Espírito Santo, etc.) se torna 'real', 'conhecida', 'experimentada' por pessoas. Segundo
Harding, "é a 'palavra do Espírito Santo', falada, escrita, ouvida e lida, que converte os
protestantes ortodoxos (fundamentalistas)". Eu acrescentaria ainda a expressão corporal e a
música que são fatores muito importantes no processo ritual da conversão dos crentes. É
através do testemunho e pelo sermão que os crentes 'falam os ensinamentos'. Para chegar a
perceber "o verdadeiro significado do espírito de Deus" é um caminho muito longo a ser
conquistado e requer o abandono da vida que se levava anteriormente.

A relação entre os pentecostais e o espírito santo é individualizante. O fiel


fala diretamente com o espírito santo sobre seus dramas pessoais que aparecem no
testemunho que vai dar no processo de conversão. A conversão ao pentecostalismo
depende basicamente de um movimento interior, pessoal, daquele que quer se converter.
Depende de um encontro do 'não salvo' com Deus, de uma conversa com Deus. Segundo
um fiel da igreja pentecostal receber o espírito santo é um presente, significa muita paz e
sabe-se quando se está ‘recebendo’o espírito santo, porque se ouve uma voz. "O espírito
repleto com o Espírito Santo”.

Segundo os pentecostais, “deus vem viver em nós na forma do espírito


santo”. Como alguns dizem, “eu nunca o vi, mas posso senti-lo”. Segundo um pentecostal
que entrevistei nos Estados Unidos, a Bíblia afirma que o espírito santo é uma pessoa real, e
se você é sensível a ele e também se você deseja tê-lo por perto, ele pode tornar-se o seu
tutor, “é deus vivendo conosco”. Segundo Harding, “o espírito santo é a ‘palavra’ que
trabalha no inconsciente para trazer a convicção ao consciente” (1988:174). Isso repercute
na modalidade de prece. Fortalecimento do indivíduo através da conversão. É um drama
permanente de retirar o diabo de si que pode estar sempre presente.

A ação do Espírito Santo, para os adeptos da igreja da Nova Vida, por


exemplo, divide-se em dois momentos distintos e complementares: a primeira acontece
com o “batismo do Espirito Santo”, que consiste em convencer o homem da “justiça e do
juízo de deus”, isto é, que ele reconheça no “sacrifício de Jesus o caminho para a salvação
de sua alma”; a segunda ação é quando o Espírito Santo distribui um ou mais, de acordo
com as circunstâncias, dos “seus nove dons”: é o “batismo no ou com o Espírito Santo”.
Segundo os adeptos da igreja da Nova Vida, os fiéis ignoram a segunda versão pelo seu
caráter “místico”, na medida em que acreditam que o Espírito Santo está sujeito a sua
vontade, e que é sempre “suave”. Assim, os estados de “histeria”, ou de transe, que cercam
este evento, são desmistificados pelos pentecostais ligados a igreja de Nova Vida, ao
contrário de outras igrejas pentecostais que os enfatizam positivamente. Para esses, “o
Espírito Santo não toma ninguém, ele só se manifesta, se o crente assim o desejar, na
maioria dos casos apenas proferindo línguas estranhas ou sentindo uma alegria muitas
vezes decorrente do clima de excitação do batismo”. O debate fica por conta de verificar se
uma ação foi produzida por “obra do Espírito Santo” ou por “obra do diabo”. Pode ser
também “obra da carne”, ou seja, algo realizado por conta de uma pessoa, embora esta diga
que foi deus quem mandou.

Para estes pentecostais, é difícil distinguir se foi obra do diabo ou obra do


espírito santo, a não ser que se tenha o dom do espírito santo. O espírito santo se manifesta
através de línguas estranhas durante os serviços nas igrejas. Não há adoração ao “espírito
santo” através de imagens e objetos como a coroa. Ele é individualizante se manifesta em
cada um dos fiéis. Não existe um dia específico ritualmente comemorado relativo ao
espírito santo. Ele não está nas coisas mas se manifesta através das pessoas. Existe
atualmente um movimento de “revivamento no Espírito Santo” de algumas igrejas como
por exemplo, da metodista renovada que vem tomando uma postura de busca aos poderes e
dons do Espírito Santo.

Na relação que as igrejas pentecostais no Brasil estabelecem com as religiões


afro-brasileiras, os demônios aparecem, são exorcizados, mas geralmente no final do
“serviço”, e não necessariamente remetem diretamente a “exús”, “pombas-giras” ou outras
“entidades” da umbanda (Contins 2002). A umbanda, enquanto religião de aflição e de
possessão se dirigirem às suas entidades diretamente, sem mediação de uma reza. Você
realiza um trabalho para a sua entidade e desta maneira influencia no resultado do seu
pedido. Desse modo, as demonstrações de poder do “Espírito Santo contra o demônio”
estão sempre presentes nos cultos pentecostais e têm um espaço privilegiado nas chamadas
igrejas neopentecostais. As igrejas neopentecostais resgatam esse confronto direto, entre o
bem e o mal3. A diferença entre as igrejas “históricas” e as igrejas neopentecostais está no
fato de que, para as últimas, não existe de maneira muito marcada a diferença entre o bem e
o mal, e o nome do “demônio”, por exemplo, é tão citado quanto o de Jesus. As
manifestações do espírito santo acontecem no espaço das igrejas e não na relação com a
comunidade como é o caso do culto ao divino espírito santo pelos católicos.

3 Para a discussão sobre neopoentecostalismo ver Birman,P. 1997; e Giumbelli,E.2002).


Com relação aos pentecostais podemos dizer que os ritos relacionados às
orações são individualizadas. O fiel fala diretamente com deus e pede a graça, é uma prece
mental e interna. É possível dizer que a relação dos pentecostais com o espírito santo se
processa através do indivíduo (o sujeito da relação é o indivíduo). O espaço, no sentido
total (espaço do corpo, espaço moral, espaço físico, etc), é definido, entre os pentecostais,
a partir de um drama individual e permanente entre o espírito santo e o demônio. Podemos
pensar então em duas lógicas para percebermos as diferenças entre uma e outra experiência:
no caso das festas do divino, uma lógica da conjunção, onde tudo está interligado de modo
complementar (homens e deuses, vivos e mortos, homens e mulheres, ricos e pobres, etc).
No caso dos pentecostais, uma lógica individualizante, onde se configura uma
autoconsciência definida a partir de uma relação não ritualizada com o espírito santo. Para
os pentecostais a relação com o espírito santo se dá diretamente, sem data marcada no
espaço da Igreja.

O espírito santo entre católicos e pentecostais: uma comparação

Max Weber considera a importância e a relevância do ritual na relação com


as divindades a questão mais importante na diferença entre cristãos católicos e protestantes
(Weber 1980). Protestantes rejeitam a idéia de que existe uma um valor inerente às ações
rituais ou que é somente através dos sacramentos (como dizem os católicos) que os homens
entram em contato com os deuses e recebem suas graças. A necessidade de um mediador
entre deuses e homens ainda está muito presente no catolicismo e principalmente no
catolicismo popular. No caso da festa do espírito santo que estou analisando, não existe
uma conversão: todos já são católicos, uma vez que submetidos aos ritos do batismo e da
primeira comunhão. Muitos afirmam ser católicos em função de sua “família”. Assinale-se
que a categoria “família” desempenha um papel crucial em todo o processo de preparação e
realização das festas. Os açorianos participam dessas festas enquanto membros de famílias
e redes de parentes, de vizinhos e amigos, nunca como indivíduos isolados. A relação com
o divino espírito santo é realizada através das festas que acontecem ritualmente todos os
anos. A ligação com os cosmos no catolicismo popular é através do chamado “tempo do
Império”, “tempo de renovação”, das festas.
O tempo é cíclico e construído através de uma visão messiânica do espaço,
isto é, no momento da festa estão impondo, através da procissão, o Império do Divino sobre
aquele espaço. Estão tomando aquele lugar quando passam rezando em louvor ao “espírito
santo”. O espaço da rua, normalmente profano, torna-se sagrado quando a procissão passa a
ocupá-lo ritualmente.

O bairro, que habitualmente é local de transações profanas, de ordem


comercial, o tráfego de automóveis e ônibus, modifica-se nos dias de procissão. No
contexto da festa, as relações que se estabelecem nesses dias no espaço do bairro são
relações totais. Pessoas de outras irmandades vêm prestigiar a festa. O espaço físico da rua
também se modifica para a passagem da procissão e as casas onde são realizadas as
novenas enfeitam-se para receberem o espírito santo4.

Nesta festa há claramente uma relação de conflito com a Igreja Católica


oficial porque a festa é corpo e é espírito, isto é, uma relação complementar e hierárquica
com o divino. É o “senhor espírito santo” que fala através do ritual, na festa. Para os
imigrantes açorianos e para os brasileiros que tomam parte da festa deve-se agradar ao
“espírito santo” que pode ser visto como fazendo a relação entre a divindade e as pessoas,
seus parentes, vizinhos etc. A coroa do espírito santo, nesse contexto ritual local, é a
própria presença mesma do espírito santo com seus poderes e virtudes (Gonçalves 2001;
2002).

Já no plano da “identidade étnica” dos açorianos, as festividades do espírito


santo vão aparecer como uma “representação” (no sentido moderno do termo) da chamada
“açorianidade”, das “tradições açorianas”. Nesse contexto, a cultura açoriana (assim como a
festa do espírito santo como parte dela) tende a aparecer de forma objetificada, como um
objeto a ser exibido e contemplado, na forma de um “patrimônio” (Gonçalves 2003). A
coroa, assim como os demais equipamentos rituais, nesse contexto são efetivamente
“objetos”. No sentido moderno da “representação”, as festividades, assim como todos os

4No “Ensaio sobre as variações sazoneiras das sociedades esquimós” (1974) Mauss analisa a “dupla
morfologia” da sociedade esquimó, dividida entre uma sociedade de inverno e uma sociedade de verão. O
inverno é marcado por inúmeras festas e por cerimônias religiosas que expressam um conjunto de
representações coletivas claramente distintas daquelas expressas no verão. As festas do espírito santo
estabelecem também uma visão distinta acerca da vida das pessoas e das relações entre elas que, nesse tempo,
em oposição ao tempo do cotidiano, são marcadas por um “estado de exaltação religiosa contínua”
(Mauss,1974).
objetos que a acompanham, na verdade, substituem uma entidade ausente, a “açorianidade”
(Gonçalves 2001).

Podemos pensar as festas do Divino Espírito Santo como uma espécie de


potlatch, uma modalidade de troca agonística, distribuição generosa de bens (dinheiro e
comida) por parte dos “irmãos” à comunidade em que vivem. A troca é feita ritualmente e
na frente de toda a comunidade do espírito santo e no espaço de cada bairro. As irmandades
do divino espírito santo do Rio de Janeiro levam o nome dos bairros onde estão localizados.
Todos sabem quem pertence à comunidade do espírito santo, quem ofereceu mais e quem
também recebeu mais do divino. É uma festa de bairro, e segundo os irmãos da irmandade
do Catumbi, no passado a festa era muito maior.

Desse modo, a relação com o espírito santo, que é fundamental nesses


rituais, se realiza por meio dessas redes de relações. É por intermédio dos irmãos que se
vai encontrar apoio material e moral para realizar a festa. Essa festa é sempre realizada a
partir de uma relação de promessa entre um devoto e o espírito santo. Em troca de um
pedido, o devoto se oferece para realizar uma dessas festas na condição de obter a coroa do
divino espírito santo por uma semana. No entanto, isso não depende inteiramente de sua
vontade, já que ele deve ser sorteado para que então possa vir a realizar essa festa. E só
concorrem aquelas pessoas que se encontram em condições financeiras minimamente
suficientes para arcar com as despesas. Isso significa que, ao pagar a promessa, o devoto de
algum modo já está sob as graças do espírito santo, uma vez que sorteado para fazer a festa
e assim podendo “agradar o espírito santo”.

É possível dizer que a relação dos pentecostais com o espírito santo se


processa através do indivíduo (o sujeito da relação é o indivíduo). O espaço, no sentido
total (espaço do corpo, espaço moral, espaço físico, etc), é definido, entre os pentecostais,
a partir de um drama individual e permanente entre o espírito santo e o demônio (Contins,
1992; 1995).

Por outro lado, para os devotos do divino, o espaço é definido a partir de


trocas complementares entre o espírito santo e os homens5. A categoria nativa “promessa”

5 Como sugere Marcel Mauss: “Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram que
contratar e que, por definição, ali estavam para contratar com eles foi, antes de tudo, o dos espíritos dos
é, nesse contexto, fundamental para se entender a festa do divino. É por meio das
promessas que as relações entre os seres humanos e o espírito santo são articuladas, num
processo de dádiva e contra-dádiva (Mauss 1974). Essas relações envolvem
simultaneamente tanto as relações de troca entre seres humanos quanto entre estes e o
espírito santo (Leal 1994). Em outras palavras, a festa é realizada com o propósito de
“pagar” uma promessa feita ao espírito santo.

Podemos pensar então em duas lógicas para percebermos as diferenças entre


uma e outra experiência: no caso das festas do divino, uma lógica da conjunção, onde tudo
está interligado de modo complementar (homens e deuses, vivos e mortos, homens e
mulheres, ricos e pobres, etc). No caso dos pentecostais, uma lógica individualizante, onde
se configura uma autoconsciência definida a partir de uma relação não ritualizada com o
espírito santo.

Tempo e espaço são vistos diferentemente para cada um dos dois grupos
analisados. No caso do catolicismo popular, o tempo é cíclico, todos os anos a festa do
divino espírito santo toma o espaço do bairro e hierarquicamente submete todos ao império
do divino. Homens, mulheres, ricos e pobres estão sobre o poder do divino. Para os
pentecostais a relação com o espírito santo se dá diretamente, sem data marcada no espaço
da Igreja.

mortos e os deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Era
com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar. Inversamente, porém, era com eles que
era mais fácil e mais seguro trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por fim ser uma doação que seja
necessariamente retribuída” (Marcel Mauss, O Ensaio sobre a Dádiva, p. 63).
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