IHUOnline Edicao 268

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 44

Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Raúl Antelo: A apatia do povo brasileiro como sátira
PÁGINA 09 | Eneida Maria de Souza: A subversão lingüística de Macunaíma
PÁGINA 12 | Maria Eugenia Boaventura: Macunaíma: ficção divertida e riqueza vocabular
PÁGINA 14 | Robson Pereira Gonçalves: Brasilidade. Identidade múltipla e caótica
PÁGINA 16 | Telê Porto Ancona Lopez: Uma “entidade brasileira”
PÁGINA 18 | Noemi Jaffe: Síntese do Brasil, nosso veneno e nossa delícia

B. Destaques da semana
» Brasil em Foco
PÁGINA 22 | Recordar ou esquecer? A Lei da Anistia em discussão
» Entrevista da Semana
PÁGINA 26 | Kenneth Serbin: “Cão-de-guarda moral”. A nova Igreja brasileira
» Livro da Semana
PÁGINA 32 | Regina Schöpke: O Dom Quixote da fé cristã
» Invenção
PÁGINA 36 | Juliana Krapp
» Destaques On-Line
PÁGINA 38 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» Agenda de Eventos
PÁGINA 42| Vanessa Doumid Damasceno: Jogos digitais: aliados no processo de ensino-aprendizagem
» Perfil Popular
PÁGINA 45| Iolanda Gomes
» IHU Repórter
PÁGINA 46| Adriana Karnal

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 3


4 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
Macunaíma
Macunaíma, obra de 1928, do escritor brasileiro Mário de Andra-
de, é considerado um dos grandes romances modernistas do Brasil. A
personagem-título, um herói sem nenhum caráter, é um índio que re-
presenta o povo brasileiro, mostrando a atração pela cidade grande
de São Paulo e pela máquina. A frase característica da personagem é
“Ai, que preguiça!”. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No
fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite”.

Considerado um romance fabular, mas escrito sob a ótica cômica,


utiliza os mitos indígenas, as lendas, provérbios do povo brasileiro e
registra alguns aspectos do folclore do país até então pouco conhe-
cidos. Esta obra valoriza as raízes brasileiras e a linguagem utiliza o
modo de falar dos brasileiros, buscando imitá-lo na escrita, a partir
de uma idéia que Mário de Andrade tem de uma “gramatiquinha”
brasileira que desvincularia o português do Brasil do de Portugal, e
que vinha se desenrolando no país desde o Romantismo.

Adaptações

Macunaíma foi adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de


Andrade em 1969, enquadrando-se no gênero comédia. O roteiro foi
escrito pelo próprio diretor. É um dos grandes personagens da car-
reira de Grande Otelo e traz um elenco de atores renomados, como
Paulo José, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Jardel Filho, Rodolfo Arena,
Joana Fomm, Maria do Rosário Nascimento e Silva, Hugo Carvana,
Wilza Carla, Zezé Macedo e Maria Lúcia Dahl.

Macunaíma também inspirou uma premiada peça de teatro, de


Antunes Filho, encenada pela primeira vez na década de 1970 e que
chegou a ser montada em vários países.

Fonte: Wikipédia

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 5


A apatia do povo brasileiro como sátira
Obra marioandradiana satiriza a apatia brasileira e é rapsódica porque “não se
filia, não se identifica, não se limita”, afirma o crítico literário Raúl Antelo. O
semblante a que chamamos Macunaíma tem a força de seu gesto

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

DIVULGAÇÃO

U
ma sátira à apatia do nosso povo. Essa é a função de Macunaíma
na opinião do crítico literário Raúl Antelo, em entrevista que
você confere a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
“Mas, por ser sátira, o texto satura o procedimento, vai além
dos limites estipulados, gasta, liquida ele e, por isso, permite
passar a outra coisa. À época da redação, resenhando uma antologia poé-
tica, Mário de Andrade diz que um livro deve ser amado ou detestado”. E
continua: “Poderíamos pensar que Macunaíma é rapsódico porque não se
filia, não se identifica, não se limita. Se avaliamos essa atitude do ponto
de vista instrumental, isso é ruim. O Estado cataloga, fixa, territorializa.
Se, entretanto, o avaliamos sob um ponto de vista político, a apatia nos
permite alimentar um discreto otimismo, o de não colaborar com o estabelecido. Aquilo que não
tem nome, que não tem lugar, é pura potência. Pode ainda vir a acontecer. Mas, se acontecer, será
sempre o desdobramento de uma força que vem do arquipassado”.
Nascido na Argentina, Antelo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador-sênior do CNPq, foi Guggenheim Fellow (2004) e professor
visitante nas Universidades de Yale, Duke, Texas at Austin, Autônoma de Barcelona e Leiden, na
Holanda. Presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC).
É graduado em Letras Modernas, pela Universidad de Buenos Aires (1974), e em Língua Portu-
guesa, na Argentina, pelo Instituto Superior del Profesorado en Lenguas Vivas. Cursou também,
graduação em Letras Modernas na Universidade de Buenos Aires (UBA) e é mestre e doutor em
Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo (USP).
É autor de vários livros, dentre eles Na ilha da Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-ameri-
canos (São Paulo: Hucitec/Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1987), Transgressão e modernidade
(Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2001) e Tempos de Babel. Anacronismo e destruição (São Paulo:
Lumme Editor, 2007).

IHU On-Line – Como percebe a liga- obras e autores? os habitantes da marca, os nobres
ção entre o regionalismo, com seu Raúl Antelo – Macunaíma não é re- que habitavam a linha demarcatória,
folclore mais específico, e a univer- gionalista no sentido em que o regio- os indicados dessa tarefa. Mário de
salidade existente em Macunaíma, nalismo é uma política para estipular Andrade elaborou uma das respostas
por meio da intertextualidade de Má- fronteiras, que surge, já na cultura mais contundentes ao problema. À
rio de Andrade1 em relação a outras medieval européia, para coibir a pre- época de lançamento de Macunaíma,
1 Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945): sença do estrangeiro. O objetivo era resenhando a exposição de Tarsila do
poeta, romancista, crítico de arte, folcloris- regere fines, administrar fronteiras, Amaral,2 Andrade definia o regionalis-
ta, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em 1917, e eram precisamente os marqueses, mo como um valor emergente na cul-
foi publicado o seu primeiro livro de versos,
Há uma gota de sangue em cada poema. A sua sical e de artes plásticas na imprensa escrita. tura brasileira. Dizia que regionalismo
segunda obra, Paulicéia desvairada, colocou-o Em 1928 publicou seu romance mais conheci- 2 Tarsila do Amaral (1886-1973): pintora bra-
entre os pioneiros do movimento modernista do, Macunaíma, considerado por muitos como sileira. Foi a pintora mais representativa da
no Brasil, culminando, em 1922, como uma das uma das obras capitais da narrativa brasileira primeira fase do movimento modernista bra-
figuras mais proeminentes da famosa Semana no século XX. Alguns dos seus livros de poesia sileiro, ao lado de Anita Malfatti. Seu quadro
da Arte Moderna. Durante a década de 1920, mais conhecidos são Losango cáqui, Clã do ja- “Abopuru”, de 1928, inaugura o movimento
continuou sua carreira literária, ao mesmo buti, Remate de males, Poesias e Lira paulis- antropofágico nas artes plásticas. (Nota da
tempo em que exercia a função de crítico mu- tana. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

6 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


ção de um modelo do real transcrito dade e escrita em Arguedas...
textualmente como multiplicidade de
perspectivas e registros”. Quais se- IHU On-Line – A apatia do brasileiro
riam essas perspectivas e registros? encarnada por Macunaíma tem a fun-
Raúl Antelo - Se a questão é desenhar ção de crítica ou sátira, ou ainda, de
“Creio, sinceramente, fronteiras sabendo que não se cumpre ambas?
um designio soberano, mas apenas um Raúl Antelo - É sátira. Mas, por ser sá-
que esse semblante a desenho, artificial e histórico, político tira, o texto satura o procedimento,
e moderno, diríamos que podemos ima- vai além dos limites estipulados, gasta,
que chamamos ginar a fronteira (a fronteira do moder- liquida ele e, por isso permite passar
no, do nacional, do social) ora de um a outra coisa. À época da redação, re-
Macunaíma (uma modo formalista transcendental, como senhando uma antologia poética, Mário
um limite inequívoco, como um contor- de Andrade diz que um livro deve ser
máscara, um vazio, um no que circunda uma forma ideal, ora amado ou detestado. Pathos. Mas para
como uma instância liminar, como uma abominar um valor é necessário mandar
nada, uma construção soleira, uma passagem que nos permite como emissários, como informantes, as
reabrir a série e baralhar tudo de novo. testemunhas. Elas vão na frente, de-
de linguagem, enfim) A primeira opção é a do regionalismo. claram. É esse o sentido de detestari,
A segunda, a de Macunaíma. A primei- em latim. Se, além do mais, testis, a
tem a força de seu ra pauta-se pela cronologia. A segunda testemunha, nunca é uma pessoa mas
ensaia o anacronismo. Na primeira, nos o relato de um processo de desubjeti-
gesto” movimentamos na clausura, no encer- vação, concluiríamos que aquilo que se
ramento de uma disciplina instituída. detesta é também algo (desconhecido,
Na segunda, circulamos no interior de que nunca estamos em condições de
um espaço teórico interdisciplinar que suportar) muito amado, embora não
nos comunica, expande e se desborda. possamos nos identificar plenamente
Des-identifica-se. com ele. Por isso, no debate quanto ao
“em arte como em política, jamais gênero do texto, Mário, após ponderar
não significou nacionalismo no único IHU On-Line - Que aproximação o muitas variáveis, inclina-se pela de sin-
conceito moral desta palavra, isto senhor faz entre a obra de Mário de toma de cultura nacional. Não é símbo-
é, realidade nacional. Significa, mas Andrade e o contexto literário lati- lo porque no símbolo há identificação.
é uma pobreza mais ou menos cons- no-americano, antes e depois de sua É sintoma. E, quem diz symptôma, diz
ciente de expressão, se observando e criação? queda, coincidência, acontecimento
se organizando numa determinada e Raúl Antelo – Em termos de escrita fortuito, encontro fadado ao fracasso,
mesquinha maneira de agir e criar. experimental, como apontou pioneira- diz tyché.
Regionalismo é pobreza sem humil- mente Saúl Sosnowski,3 Macunaíma é,
dade. É a pobreza que vem da escas- disparado, um dos exemplos mais agu- IHU On-Line – Como vê o signo da pe-
sez de meios expressivos, da curteza dos nesse cenário. Mas, mesmo assim, dra na narrativa de Macunaíma?
das concepções, curteza de visão so- há outros que lhe são congeniais: a Raúl Antelo - Talvez como uma pionei-
cial, caipirismo e saudosismo. Coma- escrita de Macedônio Fernández,4 des- ra manifestação de icnologia (o saber
drismo que não sai de beco e, o que dobrada em infinitos prefácios de um sobre a sedimentação). Certamente,
é o pior: se contenta com o beco”. romance que jamais começa, a rapsó- como um recuo com relação à icono-
Mário, pelo contrário, não hesita em dia assintética do Paradiso de Lezama logia (o saber das imagens sagradas).
associar regionalismo e inconscien- Lima,5 a complexa relação entre orali- A pedra é a poeira, o tempo fora do
te, porque, para ele, a manifestação
3 Saúl Sosnowski: autor do livro Borges e a Ca- tempo, o baixo materialismo. O que
bala: a busca do verbo (São Paulo: Companhia
mais legítima do nacionalismo artís- das Letras, 1991) e organizador, com Jorge
conta não são os objetos, mas a inscri-
tico se dava, justamente, quando Schwartz, de Brasil: o trânsito da história (São ção da história nesses objetos. Signa-
esse nacionalismo é inconsciente de
Paulo: Edusp, 1994). (Nota da IHU On-Line) tura rerum.
4 Macedonio Fernández (1874-1952): escritor,
si mesmo. Se assim for, diríamos que humorista e filósofo argentino. Sua produção
o nacionalismo não tem objeto. Que inclui novelas, histórias, poesia, jornalismo e IHU On-Line - Em que pontos existiu
Mário o tenha conseguido materiali-
outros trabalhos de difícil classificação. (Nota um diálogo entre a obra de Mário de
da IHU On-Line)
zar, é outra história. Mas Macunaíma 5 José Lezama Lima (1910-1976): poeta, ensa-
Andrade e as obras de experimen-
nasce desse desejo. ísta e novelista cubano. Além de patriarca in- tação européias da época (como
visível das letras cubanas desde 1944 até 1957,
fundou a revista Verbum e esteve à frente de
IHU On-Line - Num ensaio sobre o li- Orígenes, a mais importante revista cubana em 1966. Além de uma extensa produção de
vro, o senhor escreve que “o narra- de literatura. Considerado um dos fundadores ensaios e poemas, Lezama escreveu também
do neobarroco na América, emergiu interna- contos singulares, que dialogam com o conjun-
dor da rapsódia nos remete à forma- cionalmente com a publicação de Paradiso, to de sua obra. (Nota do IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 7


Joyce6) e de Oswald de Andrade7 brasileira, de narrativas orais indíge- mo bioestéticos, para restituí-los a um
(como Memórias sentimentais de nas e crendices populares, de desen- possível uso comum.
João Miramar)? Quais são os princi- volvimento da cidade de São Paulo,
pais experimentos, em sua opinião, em oposição a outros espaços que IHU On-Line - O personagem Macuna-
efetuados por Mário em Macunaíma? continuam ainda inexplorados país íma costuma ser visto como um retra-
Raúl Antelo - Destacaria, fundamen- afora? to do que costuma ser o estereótipo
talmente, o da desgeograficação, abso- Raúl Antelo - A riqueza maior é as- do brasileiro: malandro, preguiçoso
lutamente coincidente com o princípio sociar literatura e magia. Agamben12 (ele repete no livro a expressão “Ai,
de estranhamento que os formalistas nos relembra que a expressão latina que preguiça”), desorganizado, de
russos estavam testando paralelamen- indulgere Genius exprime o vínculo caráter duvidoso. Como vê, depois
te. E que antecipa o conceito de epi- paradoxal que se estabelece entre a de 80 anos, essa analogia ainda sen-
fania que postularia Virginia Woolf8 exigência do Gênio e a nossa própria do feita? Que paralelos você traçaria
muito depois. Mas se o espaço se torna felicidade. Entre o Gênio e o eu, não entre o “herói sem caráter” e o bra-
desgeográfico, isto é, torna-se descon- há continuidade: há um hiato, o da sileiro do jeitinho? É possível aproxi-
tínuo, o que quer dizer que o tempo razão ocidental. Indulgere Genius é má-los? Por quê?
também se torna anacrônico, donde, indulgere magia. Devemos, por força, Raúl Antelo - O estereótipo é sinal
concluiríamos, é mais importante criar abandonar-nos ao Gênio (à Magia, à de irrecusável necrose verbal. Onde
do que documentar. O pensamento de Linguagem, ao Inconsciente) porque, há um estereótipo, há um discurso do
Aby Warburg,9 de Henri Bergson,10 de caso contrário, se fôssemos apenas poder, brecando a possibilidade dos
Walter Benjamin11 explorava, simulta- sujeito e consciência, não conseguirí- sentidos antagônicos, complexos ou
neamente a Mário, essas mesmas po- amos sequer digerir. E a antropofagia mesmo contraditórios aparecerem.
tencialidades do tempo. é isso: comer, digerir, defecar. O Gênio Creio, sinceramente, que esse sem-
(a Magia, a Linguagem) é o que há de blante a que chamamos Macunaíma
IHU On-Line - Qual é a riqueza que mais pessoal em nós, mas, ao mesmo (uma máscara, um vazio, um nada,
Macunaíma apresenta, em termos de tempo, é também o mais impessoal, uma construção de linguagem, enfim)
folclore, de reprodução de uma fala é aquilo que nos ultrapassa e excede. tem a força de seu gesto. O filósofo
Por isso uma escrita experimental, Vladimir Jankélévitch13 abre seu li-
6 James Augustine Aloysius Joyce (1882-
1941): escritor irlandês considerado um dos
como a de Macunaíma, ao nos reconci- vro A rapsódia com uma idéia insti-
autores de maior relevância do século XX. liar com o Genius (com o inconsciente, gante: “La dix-neuvième siècle est
Suas obras mais conhecidas são o volume de com a linguagem), busca liberar aque- le siècle de la Rhapsodie, comme il
contos Dublinenses (1914) e os romances Re-
trato do artista quando jovem (1916), Ulisses
les valores previamente capturados est le siècle des nationalités”.14 Ora,
(1922) e Finnegans wake (1939). (Nota da IHU pelos dispositivos biopolíticos, e mes- Jankélévitch, refinadíssimo filósofo
On-Line) 12 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. dos paradoxos da moral, dos poderes
7 José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954): É professor da Facolta di Design e arti della
escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do Col-
da ironia e das potencialidades da mú-
um dos promotores da Semana de Arte Mo- lege International de Philosophie de Paris. For- sica (mas também da potência da lei,
derna de 1922 em São Paulo, tornando-se um mado em Direito, foi professor da Universitá di que ele ilustrou num belíssimo texto
dos grandes nomes do modernismo literário Macerata, Universitá di Verona e da New York
brasileiro. Foi considerado pela crítica como University, cargo ao qual renunicou em pro-
sobre os campos de concentração e
o elemento mais rebelde do grupo. (Nota da testo à política do governo norte-americano. sobre o caráter imprescriptivel dos
IHU On-Line) Sua produção centra-se nas relações entre fi- crimes contra a humanidade, que não
8 Virginia Woolf (1882-1941): escritora inglesa. losofia, literatura, poesia e fundamentalmen-
Estreou na literatura em 1915 com o romance te, política. Entre suas principais obras, estão
aconteceram no passado, estão sem-
The voyage out. (Nota da IHU On-Line) Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua pre acontecendo, eles acontecem já,
9 Aby Warburg: alemão, famoso historiador da (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem diante de nós), digo, Jankélévitch via,
arte do início do século XX, que, imbuído de e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005),
um olhar antropológico, descobrira um vínculo Infância e história: destruição da experiên-
já no rapsodismo de Schumann, a ma-
entre a cultura dos índios hopis do Novo Méxi- cia e origem da história (Belo Horizonte: Ed. triz de um método de interpretação
co e a civilização do Renascimento. (Nota da UFMG, 2006), Estado de exceção (São Paulo: da cultura urbana, que só se tornaria
IHU On-Line) Boitempo Editorial, 2007), Estâncias — A pa-
10 Henri Bergson (1859-1941): filósofo e es- lavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo
visível muito mais tarde com Simmel15
critor francês. Conhecido principalmente por Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações 13 Vladimir Jankélévitch (1903-1985): filósofo
Matière et mémoire e L’évolution créatrice, (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04- francês que, com apenas 23 anos, foi enviado
sua obra é de grande atualidade e tem sido 09-2007 o site do Instituto Humanitas Unisinos a Praga como professor no Instituto Francês e
estudada em diferentes disciplinas, como ci- — IHU publicou a entrevista “Estado de exce- em 1935 se doutorou em Letras. Foi discípulo
nema, literatura, neuropsicologia. Sobre esse ção e biopolítica segundo Giorgio Agamben”, de Henri Bergson, sobre o qual escreveu seu
autor, confira a edição 237 da IHU On-Line, com o filósofo Jasson da Silva Martins. A edição primeiro livro, Henri Bergson (1931). A maior
de 24-09-2007, A evolução criadora, de Hen- 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou parte de sua extensa obra filosófica gira em
ri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. a entrevista “Agamben e Heidegger: o âmbito torno dos problemas da experiência da vida
(Nota da IHU On-Line) originário de uma nova experiência, ética, po- cotidiana. (Nota da IHU On-Line)
11 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo ale- lítica e direito”, com o filósofo Fabrício Carlos 14 “O século XIX é o século da rapsódia, como,
mão crítico das técnicas de reprodução em Zanin. A edição 81 da IHU On-Line, de 27-10- igualmente, é o século das nacionalidades”
massa da obra de arte. Foi refugiado judeu 2003, teve como tema de capa O Estado de (Nota da IHU On-Line)
alemão e, diante da perspectiva de ser cap- exceção e a vida nua: a lei política moderna. 15 Georg Simmel (1858-1918): sociólogo ale-
turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um Para conferir o material, acesse www.unisinos. mão que desenvolveu o que ficou conhecido
dos principais pensadores da Escola de Frank- br/ihu. (Nota da IHU On-Line) como micro-sociologia, uma análise dos fenô-
furt. (Nota da IHU On-Line) menos no nível micro da sociedade. Foi um dos

8 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


A subversão lingüística de Macunaíma
“A riqueza maior (de Romper com os padrões da linguagem escrita portuguesa,
Macunaíma) é associar através de uma subversão que prima pelo estranhamento da
linguagem, é um dos atributos da obra cujo protagonista é o
literatura e magia” “herói sem nenhum caráter”, analisa a crítica literária Eneida
Maria de Souza

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

e chega mesmo a estender essa linha

DIVULGAÇÃO
do rapsodismo até o século XX, com a ma obra que promove uma subversão lingüís-
música de Bela Bartok.16 Diz que o gê- tica apelando “ao estranhamento da lingua-
nio rapsódico de Bartók, como aliás, gem, ao procedimento de concretização do
o de Mário de Andrade quem, muito artefato lingüístico”. É assim que a crítica
bom músico, deu a Macunaíma essa literária Eneida Maria de Souza se refere a
categorização, rapsódia. E a rapsódia, Macunaíma. “Um estilo modernista, antropofágico, pois
diz Jankélévitch, não é, a bem dizer, se alimenta e mastiga de todas as fontes lingüísticas e
um ‘gênero’, se o gênio é restrição ou, estilísticas. Absorve o que há de mais lúdico na lingua-
como a tragédia clássica, convenção gem, o que há de mais escatológico na interpretação dos
artificial: a rapsódia é, antes de mais
mitos e das anedotas. Macunaíma se apropria de todas
nada, ausência de gênero, explosão de
as formas populares e eruditas do imaginário literário e
todos os esquemas definidos e total
licença concedida a uma fantasia su- cultural da América Latina e do estrangeiro”, aponta. “Sua fala é a monta-
cessivamente sonhadora, apaixonada gem de várias falas, sua voz repete a dos personagens dos contos, sua malan-
e dionisíaca, que não se filia a nenhu- dragem remonta a Pedro Malazartes, aos romances picarescos, às trapaças
ma arte poética. Ora, nesse sentido, do jabuti dos contos folclóricos”. E assegura: “A crítica à realidade brasileira
poderíamos pensar que Macunaíma é reside justamente na apresentação de um herói sem nenhum caráter, pregui-
rapsódico porque não se filia, não se çoso, malandro e esperto, o que seria a imagem também malandra do país.
identifica, não se limita. Se avaliamos Mas essa interpretação é por demais complexa, pois não há, na rapsódia,
essa atitude do ponto de vista instru- nenhuma lição de moralismo em relação ao caráter do brasileiro”.
mental, isso é ruim. O Estado catalo- Eneida é graduada em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais
ga, fixa, territorializa. Se, entretanto, (UFMG), mestre em Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
o avaliamos sob um ponto de vista po-
Janeiro (PUC-Rio), e doutora em Literatura Comparada Semiologia, pela Uni-
lítico, a apatia nos permite alimentar
versidade de Paris VII – Denis Diderot, na França, com a tese Des mots, des
um discreto otimismo, o de não cola-
borar com o estabelecido. Aquilo que langages et des jeux — Une lecture de Macunaíma. É uma das organizadoras
não tem nome, que não tem lugar, é de Mário de Andrade — Carta aos mineiros (Belo Horizonte: UFMG, 1997),
pura potência. Pode ainda vir a acon- e escreveu, entre outros, O século de Borges (Belo Horizonte: Autêntica,
tecer. Mas, se acontecer, será sempre 1999), A pedra mágica do discurso (2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999),
o desdobramento de uma força que Crítica cult (2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Tempo de pós-crítica
vem do arquipassado. (Belo Horizonte: Veredas&Cenários, 2007).

responsáveis por criar a Sociologia na Alema- IHU On-Line – O que a senhora des- Koch-Grünberg.1 As histórias para-
nha, juntamente com Max Weber e Karl Marx.
(Nota da IHU On-Line)
tacaria sobre os estudos que o autor 1 Theodor Koch-Grunberg (1872-1924):
16 Béla Viktor János Bartók de Szuhafő realizou sobre mitologia indígena e etnólogo e explorador alemão que realizou
(1881-1945): compositor húngaro, pianista e folclore nacional, além da observa- valiosas contribuições ao estudo das po-
investigador da música popular da Europa Cen- pulações indígenas da América do Sul, em
tral e do Leste. É considerado um dos maiores
ção dos costumes e língua cotidia- particular nas tribos da região amazônica
compositores do século XX. Foi um dos funda- na, para escrever Macunaíma? brasileira. Afirma-se que Vom Roraima zum
dores da etnomusicologia e do estudo da an- Eneida Maria de Souza - O enredo Orinoco (Do Roraima ao Orinoco: observa-
tropologia e etnografia da música. Durante a ções de uma viagem pelo norte do Brasil e
Segunda Guerra Mundial, decidiu abandonar
de Macunaíma é retirado dos mitos pela Venezuela durante os anos de 1911 a
a Hungria e emigrou para os Estados Unidos. amazônicos colhidos pelo alemão 1913 (São Paulo: Editora Unesp, 2006) foi
(Nota da IHU On-Line) uma das obras que influenciou Mário de An-

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 9


IHU On-Line - Poderia apontar as forma irônica, pois o autor brincava
“A associação com o maiores novidades da obra em ter- com o parnasianismo?
mos de estrutura, enredo, linguagem Eneida Maria de Souza - Com o intuito
presente se faz de e estilo? E avaliar de que forma, nes- de criar uma literatura nacional sem
se sentido, a obra reflete a “fúria de- abandonar a tradição literária ociden-
modo a apontar as molidora” do Modernismo em termos tal, Mário de Andrade se insurge con-
de expressão e crítica da realidade tra a retórica utilizada por seus con-
variadas saídas para brasileira? temporâneos quanta à diferença entre
Eneida Maria de Souza – A estrutura o “português escrito” e o “brasileiro
nossa eterna sensação da obra segue os enredos tradicionais falado”. A Carta é a paródia dos dis-
dos contos populares, das histórias cursos influenciados pela herança da
de fracasso e de um orais. Há o nascimento do herói, suas língua portuguesa, ao apontar a erudi-
peripécias, e o desfecho. Mas o que ção como arma retórica e falso brilho.
país que não dá certo” irá distinguir a rapsódia desses relatos Retrata Macunaíma encantado com a
tradicionais é a exploração criativa da civilização, com a ilusão do progresso
linguagem, a utilização do estilo oral e da máquina retórica. A oralidade não
lelas e os enxertos dos livros da Ca- de forma a captar as contradições e tem lugar na carta, espaço reservado
rochinha, dos manuais de folclore, falta de controle do sujeito diante do à exposição desordenada de frases
dos diálogos deliciosos entre animais discurso. Um estilo modernista, antro- sem sentido escritas pelo herói sem
fabulosos, dos enredos eróticos das pofágico, pois se alimenta e mastiga nenhum caráter. Frases inteiras de Rui
adivinhas e dos mitos sul-americanos. de todas as fontes lingüísticas e estilís- Barbosa2 e dos doutos portugueses são
Essa bricolagem mítica resulta na re- ticas. Absorve o que há de mais lúdico enxertadas na Carta, uma forma de
cuperação discursiva realizada por na linguagem, o que há de mais esca- criticar a retórica vazia da língua es-
Mário de Andrade, ao transformar as tológico na interpretação dos mitos e crita, assim como do português falado
histórias em diálogos que apontam a das anedotas. Macunaíma se apropria imitando o português escrito. O autor
fragilidade da linguagem, o seu valor de todas as formas populares e erudi- pensou em retirar o capítulo do livro,
simbólico e a diferença entre o mate- tas do imaginário literário e cultural por achá-lo em defasagem com os de-
rial mítico utilizado e sua construção da América Latina e do estrangeiro. Ao mais, mas o traço parodístico foi mais
literária. A apropriação mítica é pro- se valer de fragmentos de discursos e forte e resistiu à ameaça de extinção.
duto da bricolagem, procedimento por de palavras alheias, a identidade se
meio do qual a criatividade aflora e se fragiliza e o herói se veste com as rou- IHU On-Line – Quais foram as influ-
distingue da mera cópia ou paráfrase. pas descartáveis das personagens con- ências literárias de Mário de Andrade
Quanto à observação dos costumes e sagradas da cultura popular. Sua fala ao escrever Macunaíma?
da língua cotidiana, Mário de Andrade é a montagem de várias falas, sua voz Eneida Maria de Souza - Foram muitas.
explorou o conceito de “fala nova”, repete a dos personagens dos contos, Cito, entre os estrangeiros, Rabelais,3
que corresponde ao seu projeto literá- sua malandragem remonta a Pedro Ma- com os livros Gargantua e Pantagruel.
rio e cultural de romper com a lingua- lazartes, aos romances picarescos, às As peripécias, o aspecto lúdico da lin-
gem escrita de influência portuguesa e trapaças do jabuti dos contos folcló- guagem e a escatologia, uma forma da
se apropriar da riqueza oral de nossa ricos. A crítica à realidade brasileira expressão da linguagem popular, são
cultura, formada pelo índio, o negro reside justamente na apresentação de as maiores marcas do escritor francês.
e a malandragem branca. O papa- um herói sem nenhum caráter, pregui- Sem falar em José de Alencar,4 nos ro-
gaio funciona como metáfora desta çoso, malandro e esperto, o que seria
2 Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923): juris-
“fala nova”, por se caracterizar pelo a imagem também malandra do país. ta, político, diplomata, escritor, filólogo, tra-
recurso à oralidade e à criatividade, Mas essa interpretação é por demais dutor e orador brasileiro. É membro fundador
repetindo e distorcendo a linguagem complexa, pois não há, na rapsódia, da Academia Brasileira de Letras. (Nota da IHU
On-Line)
do outro, zombando das normas esta- nenhuma lição de moralismo em rela- 3 Alcofribas Nasier (1483-1553): pseudônimo
belecidas e se impondo como arauto ção ao caráter do brasileiro. de François Rabelais, escritor e padre francês
da paródia e do desleixo. A subversão do Renascimento. Ficou para a posteridade
como o autor das obras-primas cômicas Gar-
lingüística de Macunaíma consiste no IHU On-Line – Que interpretação a gantua e Pantagruel, que exploravam lendas
apelo ao estranhamento da linguagem, senhora faz do capítulo “Carta pras populares, farsas, romances, bem como obras
ao procedimento de concretização do Icamiabas”, que é considerado, al- clássicas. O escatologismo é usado para conde-
nação humorística. A exuberância da sua cria-
artefato lingüístico. Lê os provérbios gumas vezes, como lembra em seus tividade, do seu colorido e da sua variedade
populares, as frases feitas, as histórias estudos, de um “corpo estranho” no literária asseguram a sua popularidade. (Nota
infantis ao pé da letra, desconstrói seu texto? Qual é a fundamentação lin- da IHU On-Line)
4 José Martiniano de Alencar (1829-1877):
valor simbólico e acredita na força da güística dessa passagem na obra de jornalista, político, orador, romancista, críti-
palavra falada, por ser muito astuta. Mário de Andrade, e até que ponto co, cronista e dramaturgo brasileiro. É o gran-
ela delimitaria uma passagem do co- de nome da prosa romântica brasileira, tendo
drade ao escrever Macunaíma. (Nota da IHU escrito obras representativas para todos os ti-
On-Line) loquial para o dito “sofisticado”, de pos de ficção românticos: passadista e colonial

10 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


mances populares etc. O modernismo, país. Realiza-se, no nível discursivo e e marolas, publicado em 1999 como
com Oswald de Andrade, Raul Bopp,5 de maneira metafórica, a condensação parte de uma série criada pela editora
Tarsila entre outros autores, compõem entre preguiça e doença, denunciada Objetiva sobre os sete pecados capi-
o painel de Macunaíma. Como bebeu pela fala inconseqüente de Macuna- tais. Cada autor escreveu sobre um dos
de várias fontes, é até difícil delimi- íma, pois a reiteração obsessiva de pecados capitais, e Noll foi escolhido
tá-las. frases feitas atinge efeito derrisório e para escrever sobre a preguiça. Nesse
denuncia o blá-blá-blá criado em tor- texto, o escritor retoma o Macunaíma
IHU On-Line – De que maneira po- no da questão. Os discursos sanitaris- do final, o Macunaíma doente, já sem
demos ver a ligação de Macunaíma tas endossados por Monteiro Lobato6 viço, entregue à própria sorte. O livro
com a “muiraquitã”, o seu “talismã em vários de seus artigos, assim como de Noll é o contrário de Macunaíma;
existencial”, que a senhora conside- a célebre frase de Miguel Pereira, “O retoma o tema da preguiça, presente
ra vital para o discurso do livro? Até Brasil é um vasto hospital”, são viva- no texto de Mário de Andrade, mas de
que ponto ela é uma peça central da mente criticados por Mário de Andra- forma invertida, ressaltando o tédio,
narrativa? de, que reinventa o Macunaíma de for- o desencanto, a ausência total de uto-
Eneida Maria de Souza – É uma peça ma distinta do Jeca Tatu,7 assumindo pia e de saída no mundo contemporâ-
central na narrativa porque dá anda- a preguiça como valor e desprezando neo. A atualidade desses corpos ente-
mento e razão de ser da trama. Tudo qualquer pretensão moralista ou rege- diados, corpos atacados pela doença
gira em torno desta pedra perdida, nerativa de sua personagem. Na com- e pelo mal-estar, opõe-se, assim, ao
uma sátira aos romances de cavala- posição desse raciocínio, o debate tra- corpo macunaímico, um corpo de uma
ria e de gesta. No entanto, considero vado entre Macunaíma, herói solar e plasticidade enorme, capaz de se safar
mais a relação entre a pedra mágica mestre da preguiça, com a cultura do de tudo. Trata-se de duas concepções
do discurso como o instrumento com o trabalho, culmina com o sentimento da literatura, que encenam, de forma
qual Macunaíma se safa e desconstrói de fracasso experimentado pela per- distinta, o tema da preguiça.
a linguagem do senso comum, das fra- sonagem, que, incapaz de realizações A associação com o presente se faz
ses feitas, dos provérbios. exigidas pela civilização cristã, encar- de modo a apontar as variadas saídas
na, de maneira indireta, esta culpa, para nossa eterna sensação de fracasso
IHU On-Line - O personagem Macuna- assim como uma saída utópica, trans- e de um país que não dá certo. Mas a
íma costuma ser visto como um retra- formando-se em constelação. No en- alegria do jeitinho, as saídas lúdicas de
to do que costuma ser o estereótipo tanto, a ambigüidade criada por este Macunaíma deveriam servir de exemplo
do brasileiro: malandro, preguiçoso impasse final constitui uma abertura a para que o Brasil retomasse um pouco o
(ele repete no livro a expressão “Ai, mais na interpretação desse rico per- senso de humor e a alegria da existên-
que preguiça”), desorganizado, de sonagem da literatura brasileira de to- cia. Não só o sentimento de fracasso.
caráter duvidoso. Como vê, depois dos os tempos.
de 80 anos, essa analogia ainda sen- IHU On-Line – Alceu Amoroso de Lima9
do feita? Que paralelos você traçaria O corpo macunaímico dizia que Macunaíma não era um ro-
entre o “herói sem caráter” e o bra- Um exemplo das ressonâncias que mance, nem um poema, nem uma
sileiro do jeitinho? É possível aproxi- Macunaíma poderia apresentar na li- epopéia, mas um coquetel. Como a
má-los? Por quê? teratura brasileira contemporânea é senhora classificaria essa obra?
Eneida Maria de Souza – Macunaíma, o livro de João Gilberto Noll8, Canoas Eneida Maria de Souza - É uma rapsó-
o herói de nossa gente, possui uma dia. Um amálgama de romance, conto
6 José Bento Monteiro Lobato (1882-1948):
marca lingüística, o conhecido dístico escritor brasileiro popularmente conhecido popular, trechos de contos da carochi-
“Ai! que preguiça!...”, que o distingue pelo tom educativo, bem como divertido de nha, logo, uma mistura de vários gêne-
como personagem e o posiciona como sua obra de livros infantis, o que seria, apro- ros e estilos. É popular, não se enqua-
ximadamente, metade de sua produção lite-
o emblema literário da preguiça brasi- rária. A outra metade, composta de romances dra em nenhuma das qualificações que
leira. A outra expressão, emitida rei- e contos para adultos, foi menos popular, mas podem delimitá-lo.
teradamente por ele, “Pouca saúde e um divisor de águas na literatura brasileira.
Entre seus livros, destacamos: O picapau ama-
muita saúva, os males do Brasil são”, relo (34. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001),
completa o seu perfil discursivo, ao se Dom Quixote das crianças (27. ed. São Paulo: LEIA MAIS...
investir de intenção retórica e irônica Brasiliense, 2001), Viagem ao céu (45. ed. São >> Confira entrevista com a autora no sí-
Paulo: Brasiliense, 1995) e Memórias da Emília tio do Instituto Humanitas Unisinos:
e fornecer uma resposta às teses hi- (42. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994). (Nota
gienistas defendidas na época pelos da IHU On-Line) * Crítica cultural: tendências, conceitos e deba-
adeptos da política de saneamento do 7 Jeca Tatu: personagem criado por Monteiro tes, em 27-10-2007.
Lobato em seu livro Urupês. O livro contém
(O Guarani, 1857), indianista (Iracema, 1865), doze histórias baseado no cotidiano do traba-
e sertaneja (O sertanejo, 1875). (Nota da IHU lhador rural paulista. Simboliza a situação do
On-Line) caboclo brasileiro, abandonado pelos poderes Hotel Atlântico (1989). Venceu o Prêmio Jabu-
5 Raul Bopp (1898-1984): poeta modernista e públicos às doenças, principalmente a Ancilos- ti por cinco vezes. (Nota da IHU On-Line)
diplomata brasileiro, autor do clássico Cobra tomose (ou Amarelão), seu atraso e à indigên- 9 Alceu Amoroso de Lima (1893-1983): foi um
Norato. Com Tarsila do Amaral e Oswald de An- cia. (Nota da IHU On-Line) crítico literário, professor, pensador, escritor e
drade, amigos pessoais, participou da Semana 8 João Gilberto Noll (1946): escritor brasileiro. líder católico brasileiro. Adotou o pseudônimo
de Arte Moderna. (Nota da IHU On-Line) É autor de, entre outros, Bandoleiros (1985) e de Tristão de Ataíde. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 11


Macunaíma: ficção divertida e riqueza vocabular
Após 80 anos de seu lançamento, Macunaíma, segundo Maria
Eugenia Boaventura, é bastante estudado e não é incompreendi-
do pela crítica. Fora dos padrões narrativos da época, prima pela
riqueza vocabular e metaforiza a falta de perspectivas do sujeito
contemporâneo

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

E
m entrevista por e-mail à IHU On-Line, Maria Eugenia Boaventura enfa-
tizou que o que fascina os leitores de Macunaíma 80 anos após seu lan-
çamento é o fantástico trabalho desenvolvido por Mário de Andrade com
nosso idioma. Além disso, é “uma ficção muito divertida”. Maria Eugenia
esclarece que a obra não é incompreendida pela crítica, mas bastante
estudada. “Não é certamente uma obra simples, de leitura fácil, a começar pela
riqueza vocabular manipulada pelo artista. Foge dos padrões narrativos da época.
O fato de o livro ainda hoje despertar interesse se devem ao trabalho artesanal da
linguagem e à ousadia da sua estrutura narrativa.” A respeito do homem “sem ca-
ráter”, a pesquisadora menciona que essa é uma metáfora para a falta de projetos
do homem moderno de uma forma geral, tanto no Brasil quanto fora dele.
Maria Eugenia é graduada em Letras, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),
e mestre e doutora na mesma área, pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona
no Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp). É organizadora de Estética e política (São Paulo: Globo, 1992) e Os dentes
do dragão (São Paulo: Globo, 1992), de Oswald de Andrade, de Dicionário de Bolso
de Oswald de Andrade (São Paulo/SP: Editora Globo, 2007), e também dos livros
De Anchieta aos concretos (São Paulo: Companhia das Letras, 2003) e Artesanatos
de poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), de Mário Faustino. Além disso,
é autora de A vanguarda antropofágica (São Paulo: Ática, Coleção Ensaios, 1985) e
O salão e a selva. Uma bibliografia intelectual de Oswald de Andrade (São Paulo:
Ex-Libris/Unicamp, 1996).

IHU On-Line - Seria Macunaíma uma e elementos de época, sobretudo, da esboço tenham surgido numas férias,
obra “sintoma de cultura nacional”? cidade de São Paulo. como uma brincadeira, uma diversão.
Em termos de folclore, de língua por- Depois houve, é óbvio, por parte do
tuguesa, do processo de crescimento IHU On-Line - Se o próprio Mário de escritor, um trabalho cuidadoso de
brasileiro, o que ela recupera ou traz Andrade admite ter escrito Macu- pesquisa e composição até chegar à
de novo? Por quê? naíma nas férias, por “pura brinca- forma final. Trabalho este muito eru-
Maria Eugenia Boaventura – Não di- deira”, não teria a crítica dado-lhe dito e sofisticado e que demanda um
ria que seja “sintoma nacional”. Para sentidos não propostos em sua com- repertório literário e cultural para que
mim, Macunaíma é antes de tudo uma posição? Seu livro transcendeu os ob- seja apreciado na sua complexidade.
ficção muito divertida, cujo trabalho jetivos e podemos dizer que a obra O papel do crítico é justamente o de
com a língua é fantástico, e é isto que ganhou vida própria? remanejar métodos e técnicas a fim de
fascina o leitor até hoje. Claro que Maria Eugenia Boaventura - É possí- construir o sentido do texto que anali-
incorpora dados do folclore nacional vel que a idéia do livro e o primeiro sa, com a bagagem teórica pessoal da

12 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


“Não diria que Macunaíma seja uma obra incompreendida pela crítica. Acho
que é estudada, sim. Não é certamente uma obra simples, de leitura fácil, a
começar pela riqueza vocabular manipulada pelo artista. Foge dos padrões
narrativos da época. O fato de o livro ainda hoje despertar interesse se deve
ao trabalho artesanal da linguagem e à ousadia da sua estrutura narrativa”

época de cada leitura. de vista o processo de atualização da coisa (aquilo que Serafim chamava a
linguagem literária. Oswald talvez te- felicidade) fracassaram. Um quando
IHU On-Line - Macunaíma é uma obra nha sistematizado isto de forma mais tinha a riqueza, o outro quando estava
ao mesmo tempo incompreendida, rápida e aguerrida nos Manifestos de de posse do amuleto. Ambos têm de-
considerada experimental pela maior 1924 e 1928. Textos estes sobre os senlaces patéticos.
parte da crítica, e bastante estudada quais Mário em vários momentos ma-
por jovens em escolas, que costu- nifestou seu apreço. IHU On-Line - Macunaíma pode ser
mam achar sua narrativa excêntrica. considerado um conto em mosaico,
Diante disso, como Macunaíma ainda IHU On-Line - O brasileiro “sem ca- um romance, uma narrativa poética,
é tão debatido, ainda hoje, depois de ráter” expresso por Macunaíma ou ele é a mistura de todos esses ele-
80 anos de seu lançamento? continua uma forma correta de nos mentos?
Maria Eugenia Boaventura – Não di- entendermos ontologicamente? Em Maria Eugenia Boaventura – Macunaí-
ria que Macunaíma seja uma obra in- que sentido podemos compreender ma, como o Serafim, se constitui numa
compreendida pela crítica. Acho que corretamente esse adjetivo do per- fantástica mistura de gêneros, outra
é estudada, sim. Não é certamente sonagem e considerá-lo um “homem faceta atual dos dois textos.
uma obra simples, de leitura fácil, a sem projetos”, típico, na sua visão,
começar pela riqueza vocabular mani- do homem moderno? IHU On-Line - “A dialética da malan-
pulada pelo artista. Foge dos padrões Maria Eugenia Boaventura – Não. No dragem”, de Antonio Candido,2 seria
narrativos da época. O fato de o livro máximo pode servir como uma metáfo- um conceito correto para compreen-
ainda hoje despertar interesse se deve ra para uma referência à falta de pro- der o personagem? Que outras obras
ao trabalho artesanal da linguagem e à jeto do homem moderno de um modo brasileiras se enquadrariam nessa
ousadia da sua estrutura narrativa. geral, daqui e de fora. Não devemos característica?
esquecer as peculiaridades múltiplas Maria Eugenia Boaventura - Acredito
IHU On-Line - Qual é a influência que do personagem: estrangeiro, índio ne- que sim: a dialética da malandragem,
Mário sofreu tanto das obras de van- gro e que depois vira branco. tão bem explorada por um dos princi-
guarda européias quanto das obras pais críticos do Modernismo, na análise
de Oswald de Andrade, como Sera- IHU On-Line - Oswald de Andrade de uma obra brasileira do século XIX,
fim Ponte Grande,1 como a senhora classifica Macunaíma como nossa pode ser acionada e adaptada para a
constatou em estudos? Odisséia. Haveria possibilidade de leitura de várias outras obras, inclusi-
Maria Eugenia Boaventura – Não trato considerar a obra de Mário também ve as duas acima. É bom lembrar que
esta questão em termos de influência. universal, ou seu personagem princi- cada obra literária sugere um roteiro
Prefiro dizer que os dois escritores ti- pal seria um “anti-herói” com ampli- de leitura próprio.
nham projetos afins, e contribuíram de tude latino-americana? Por quê?
modo decisivo para produzir mudanças Maria Eugenia Boaventura - Oswald 2 Antonio Candido de Mello e Souza (1918):
no panorama literário e cultural do dizia também que Macunaíma era a escritor, ensaísta e professor universitário, um
dos principais críticos literários brasileiros. É
país, além de terem dialogado com as grande obra antropofágica. Sim, como professor emérito da USP e UNESP, e doutor
diferentes propostas da vanguarda eu- Serafim, o personagem do Macunaíma honoris causa da Unicamp. Foi crítico da revis-
ropéia. Este projeto implicou num de- não sabe exatamente o que quer, está ta Clima (1941-4) e dos jornais Folha da Ma-
nhã (1943-5) e Diário de São Paulo (1945-7).
terminado momento na incorporação amarrado pela incompetência, pela Na vida política, participou de 1943 a 1945 na
de temas e motivos locais, sem perder falta de caráter, pela falta de pers- luta contra a ditadura do Estado Novo no grupo
pectiva. Os dois personagens quando clandestino Frente de Resistência. Escreveu o
1 Serafim Ponte Grande (São Paulo: Globo, clássico Parceiros do Rio Bonito (1964). (Nota
2007). (Nota da IHU On-Line)
tiveram meios de conquistar alguma da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 13


Brasilidade. Identidade múltipla e caótica
Para o crítico literário Robson Pereira Gonçalves, “Macunaíma não
é o depositário dos sentidos do Brasil”, mas uma obra de arte que
inventa sentidos. Sua possibilidade de síntese reside na transfigura-
ção dos “múltiplos que não se unificam neuroticamente na realida-
de brasileira”

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

“M
acunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil, an-
tes é a obra de arte que inventa sentidos, rompe com as
neuroses dos sentidos dados e aponta para uma identidade
de última instância, que é uma identidade sem identifica-
ção”, defende o crítico literário Robson Pereira Gonçalves.
A declaração faz parte da entrevista a seguir, que concedeu com exclusividade por
e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “a possibilidade se síntese em Macuna-
íma estaria nessa transfiguração que a narrativa faz daqueles múltiplos que não se
unificam neuroticamente na realidade brasileira, porque a busca da unidade numa
identidade é uma busca neurótica, é apagamento das diferenças”. Questionado se
o brasileiro ainda tem a sua muiraquitã, ele responde que ela, “tal como uma per-
versão, simboliza os nossos males e nossas aversões ao trabalho, ao conhecimento
e saber e, muito mais, à construção de uma sociedade mais justa. Nessa esteira,
a muiraquitã é o jogo do bicho, as loterias que assolam esses sonhos e embalam a
esperança — individual — de nos tornarmos felizes”.
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Robson
é mestre em Letras, pela Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com a
tese, já publicada, Macunaíma: carnaval e malandragem (Santa Maria: Imprensa
Universitária, 1982). Doutorou-se em Lingüística e Letras na Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese A questão do sujeito em
Fernando Pessoa. Ele leciona na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos O sujeito Pessoa
— Literatura e psicanálise (Santa Maria: Edição Mestrado em Letras-UFSM, 1995),
Fábulas da província — Crônicas sobre arte e cultura (Santa Maria: Edição Mestra-
do em Letras-UFSM, 1999) e Fábulas da subjetividade — Literatura & psicanálise
(Santa Maria: UFSM/Reitoria/PRAE, 2002).

IHU On-Line - De que modo Macuna- ciais e ao relacionamento humano; a perspectiva, é bom lembrar que Macu-
íma pode ser visto sob o ângulo car- excentricidade, que afasta a repres- naíma não é o depositário dos sentidos
navalesco da cultura brasileira? Ele são e a censura; as mésalliances, que, do Brasil, antes é a obra de arte que in-
pode ser percebido por meio de quais pelo carnaval, aproximam o sagrado do venta sentidos, rompe com as neuroses
elementos na obra? profano, o sublime do grotesco, o sério dos sentidos dados e aponta para uma
Robson Pereira Gonçalves - Já que do cômico, o bem do mal; e a profa- identidade de última instância, que é
se trata de uma entrevista, diria por nação, onde a arbitrariedade encerra, uma identidade sem identificação. Essa
conforto que a percepção carnava- através do carnaval, todo um sistema identidade é múltipla e caótica porque
lesca do mundo é operada por quatro de relações paradoxais com relação torna indiferentes, pelo não-senso, to-
categorias: a familiaridade, onde são às extravagâncias narrativas e onde a dos os traços que organizam a brasili-
suspensas as restrições às normas so- paródia é o seu lugar comum. Nessa dade. Nessa medida, Macunaíma e seu

14 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


ideal de brincar, de prazeirar o sintoma aquele que conjuga tais regionalismos, vertente num ato falho sensacional
brasileiro, torna-se falange daquela rituais, mitos falares e sotaques como onde transparece sua ignorância com a
alegoria primordial de uma construção um “atravessamento” dos múltiplos língua ao trocar versículos da bíblia por
de sentido, por isso é que a obra bem sentidos (significados) da brasilidade testículos e assim por diante. Em outra
diz a emergência de uma identidade. para se chegar à referência maior do passagem, “A pacuera do oibê”, Mário
“não-caráter”, que é uma identidade de Andrade ironiza as identificações
IHU On-Line - Até que ponto o perso- sem-sentido, ou sem identificação. Tal de Macunaíma e a civilização — o he-
nagem de Mário de Andrade se inse- herança, macunaímica, aponta para o rói sem caráter leva como lembranças
re na categoria da “dialética da ma- mazombismo1 do Brasil Colônia, onde uma galinha Legorne, o relógio Pathek
landragem”, trabalhada por Antonio impera o arquétipo dessa desventura- e o revólver Smith-Wesson, símbolos de
Candido? da e malévola tradição de o brasileiro outra civilização e que seriam inúteis
Robson Pereira Gonçalves - Macunaí- não saber se situar no aqui e no agora no Uraricoera, pois que não represen-
ma, na herança do sargento de milícias de sua língua e do que realmente quer, tariam avanços culturais e, muito me-
Leonardo, age e fala entre dois pólos: mas alhures e conforme os ventos das nos, sociais. Esta é a sina do brasileiro,
o da ordem, sociedade organizada das experiências. A nacionalidade se faz no o de ser nostálgico e barroco quando
instituições e do poder econômico e sintoma da língua e o sentido da Arte fala de si e de suas fantasias, mentiras
político, e o da desordem, aquele dos na criação de significâncias. Dessa for- e falsas premissas. Por tudo isso, num
trabalhadores aviltados, dos assalaria- ma, a possibilidade de síntese em Ma- outro episódio — “Macumba” —, Macu-
dos e aviltados pela sociedade. Sua ac- cunaíma estaria nessa transfiguração naíma vai pedir proteção no terreiro da
tancialidade nos mostra a possibilidade que a narrativa faz daqueles múltiplos tia Ciata e se depara com deputados,
dialética de uma síntese através de um que não se unificam neuroticamente ladrões, senadores, gatunos e toda a
caminho terceiro que, na melhor das na realidade brasileira, porque a bus- gente e pede proteção de Exu, uma
hipóteses, reuniria e aproximaria as ca da unidade numa identidade é uma contradição com as coisas do bem e dos
características de um lado e outro na busca neurótica, é apagamento das di- valores ditos cristãos. É a deformação
construção de uma outra sociedade. ferenças. do caráter e da ética que ainda grassa
Seria uma empresa assaz “encompas- em nossa terra e, pelo exemplo, coloca
sada” e a-histórica, todavia poderia IHU On-Line - Quais aspectos satíricos todas as classes no mesmo saco.
resultar numa sociedade mais justa e você destacaria como fundamentais
maneira (positiva) pela inventividade, no contexto da obra depois de 80 IHU On-Line - O personagem Macu-
sintoma característico do brasileiro. anos? naíma normalmente é visto como um
Robson Pereira Gonçalves – Vários são retrato do que costuma ser o estere-
IHU On-Line - Ao apresentar vários os aspectos e passagens da narrativa ótipo do brasileiro: malandro, pregui-
folclores, a reprodução de uma fala e que se inscrevem como espelho nos çoso (ele repete no livro a expressão
brasileira, de narrativas orais indíge- dias de hoje. Pode-se falar do episódio “Ai, que preguiça”), desorganizado,
nas e crendices populares, de desen- da “Carta pras Icamiabas”, onde Macu- de caráter duvidoso. Como vê, depois
volvimento da cidade de São Paulo, naíma escreve aos tapanhumas2 sobre de 80 anos, essa analogia ainda sen-
qual é a visão sociológica que Mário suas andanças na civilização num por- do feita? Que paralelos você traçaria
de Andrade oferece sobre o Brasil tuguês barroco, bem ao gosto do Padre entre o “herói sem caráter” e o bra-
através de sua rapsódia? Vieira,3 e ilustra neuroticamente essa sileiro do jeitinho? É possível aproxi-
Robson Pereira Gonçalves – Mário de 1 Mazombismo: de acordo com Vianna Moog, má-los? Por quê?
Andrade propôs em sua ficção uma reu- é a ausência de determinação e satisfação de Robson Pereira Gonçalves - Uma das li-
nião dessas narrativas nacionais, por ser brasileiro, ausência de gosto por qualquer ções que tiramos do Macunaíma é que
tipo de atividade orgânica, na carência de
isso rapsódia, reunião de contos. Até iniciativa e inventividade, na falta de crença a personagem-título parece refletir mi-
poder-se-ia afirmar que Mário estava na possibilidade de aperfeiçoamento moral do meticamente os tais múltiplos que com-
com o intuito, nacionalista e cordial, homem. (Nota da IHU On-Line) põem a cultura brasileira, todavia não
2 Tapanhumas: tribo amazônica na qual Macu-
de exacerbar pelos múltiplos a tal iden- naíma nasceu. (Nota da IHU On-Line) constrói o sentido de um caráter. Se as-
tidade brasileira num sentido positivo. 3 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuíta,
Entretanto, o que o autor está a aludir diplomata e escritor português. Veio para o juntamente com outros jesuítas. Envolveu-se,
Brasil em 1915 e logo começou seus estudos posteriormente, com a Inquisição e chegou a
é aquela premissa de uma identidade no Colégio dos Jesuítas. Mais tarde, ingressou estar detido por um ano. Voltou ao Brasil em
sem identificação, mal-estar fundante na Companhia de Jesus. Foi um grande orador 1681, para a Bahia, onde veio a falecer anos
da cultura brasileira. Nessa esteira, sacro. Desenvolveu expressiva atividade mis- mais tarde, no Colégio de Salvador. Entre suas
sionária entre os indígenas do Brasil procuran- obras, estão Sermões, composto por 16 vo-
aponto que sua perspectiva era colocar do combater a sua escravidão pelos senhores lumes que foram escritos entre 1699 e 1748;
a nu e/ou denunciar a neurose nacional de engenho. Em 1641, voltou a Portugal, onde História do futuro (1718), Cartas (1735-1746),
que compõe esse conjunto de falares. A exerceu funções políticas como conselheiro da em três volumes; Defesa perante o tribunal
Corte e embaixador de D. João IV, principal- do Santo Ofício (1957), composto por dois
perspectiva daqueles múltiplos planos mente no que se referia às invasões holandesas volumes, e Arte de furtar, escrito em 1744,
(mitos, ritos, folclore) que justificam do Brasil. Retornou ao Brasil em 1652, tendo porém, de autoria duvidosa. Confira a edição
a tal orientação sociológica do texto estado no Maranhão, onde fez acusações aos 244 da IHU On-Line, de 19-11-2007, Antônio
senhores de engenho escravocratas na defesa Vieira. Imperador da língua portuguesa. (Nota
merece ser vista de um outro ângulo, da liberdade dos índios. Foi expulso do país, da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 15


sim o é, pode-se afirmar com segurança
que hoje, mais do que nunca, aquela
aproximação é relevante e imperiosa
para se entender de vez porque ainda Uma “entidade brasileira”
vivemos nessa miséria ética, intelectu-
al, moral. Hoje, se tem uma cumplici- Ao invés de um estereótipo, uma entidade brasileira, e um
dade malandra, seja nas relações so-
ciais, seja, e para pior, nas relações de convite permanente a pensar sobre verdades humanas, como
governo, judiciário, legislativo e povo. o medo de crescer, a evasão à responsabilidade, a importância
Portanto, uma aproximação do Macunaí- do ócio criativo e a crítica à alienação: eis algumas caracterís-
ma com o “jeitinho” dos brasileiros deve
estar espelhada na assunção que hoje se ticas da atualidade de Macunaíma
percebe da malandragem, dos avessos,
dos maneirismos negativos em todos os POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES
segmentos sociais. Notadamente nas
instituições que deveriam zelar pelas re-
lações de um projeto Brasil, onde o es-

D
e acordo com a escritora Telê Porto Ancona Lopez, em entrevista
tatuto da ética e da moral conformariam por e-mail à IHU On-Line, chamar Macunaíma de estereótipo do
um tertius na relação ordem versus de-
homem brasileiro é “uma visão muito esquemática do protagonis-
sordem. Se antes imperava uma ordem
ta da rapsódia do herói da nossa gente”, e concorda com Alfredo
sedimentada na força, na defesa incon-
dicional das classes autoritárias, hoje se Bosi e Paulo Prado, quando eles destacam que o objetivo do autor
observa o império da desordem institu- era captar a “entidade brasileira”. Ela assinala que o livro mostra uma vasta
cional, da violência urbana. Seria esse o pesquisa de elementos de nosso país, e que nele “está o avesso do futurismo,
nosso destino, o de ser como Macunaíma do ponto de vista ideológico”. Para ela, o que faz Macunaíma continuar lido
um “brilho bonito mas inútil porém de e discutido entre os estudantes é o diálogo que propõe conosco, homens e
mais uma constelação”? mulheres contemporâneos, ao tocar não apenas “verdades do homem no
Brasil, como verdades humanas, atuais, como o medo de crescer, a evasão
IHU On-Line - O brasileiro ainda busca à responsabilidade, a importância do ócio criador, a crítica do trabalho for-
o seu muiraquitã? Qual seria ele? Há miga, alienado”.
um projeto de Brasil ou “Pouca saúde Telê é graduada em Letras Neolatinas e especialista em Língua e Litera-
e muita saúva, os males do Brasil são”
tura Francesa e Portuguesa Brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica
continua sendo um dito atual?
de São Paulo (PUCSP). Na Universidade de São Paulo (USP), cursou especia-
Robson Pereira Gonçalves – Na questão
da saúde, mormente se tenha avanço na lização em Literatura Brasileira, Portuguesa, Teoria Literária e Literatura
medicina social, ainda abarrotamos nos- Comparada, mestrado e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura
sos hospitais com os Jecas Tatus (vide Comparada). Sua disssertação intitulou-se O se-seqüestro da dona ausente:
Monteiro Lobato), tanto pelo descaso reconstrução de um estudo de Mário de Andrade a partir de suas notas de
com a educação quanto pela ignorância leitura, e a tese Mário de Andrade: ideologia e cultura popular. É livre-do-
que se nos povoa. Até hoje não sei qual cente pela mesma instituição com o trabalho O cronista Mário de Andrade.
seria o tal projeto Brasil, se o do dístico Lançará, pela Agir/Ediouro, ainda este ano, uma edição comentada de Ma-
da bandeira — ordem e progresso — ou cunaíma. Estudiosa do modernismo e da obra de Mário de Andrade, é cura-
esse sentimento ufanista de ser brasilei- dora do arquivo desse escritor no IEB-USP. Leciona, escreve e forma quadros
ro, a terra do sol e de Deus, porém sem universitários, dedicando-se principalmente à exploração das vanguardas do
leis e sem fronteiras e que em nome de
século XX, à análise da obra de modernistas brasileiros — sobretudo a de Má-
discursos populistas para a ignara multi-
rio de Andrade —, à crítica textual e à crítica genética, bem como ao estudo
dão faz ressurgir a esperança dos renun-
ciadores à vida, pois um nirvana os espe- dos chamados gêneros de fronteira, onde estão a epistolografia, a crônica
ra atrás das palavras do líder. O que resta jornalística, os diários e as memórias.
é uma fantasia, a tal da muiraquitã, que
tal como uma perversão simboliza os nos- IHU On-Line - O personagem “anti- teratura e a cultura brasileiras?
sos males e nossas aversões ao trabalho, herói” ou “herói de nossa gente” Telê Porto Ancona Lopez - Estereó-
ao conhecimento e saber e, muito mais, de Mário de Andrade é muitas vezes tipo seria uma visão muito esquemá-
à construção de uma sociedade mais jus- tomado como um retrato do estere- tica do protagonista da rapsódia do
ta. Nessa esteira, a muiraquitã é o jogo ótipo do homem brasileiro, sobre- herói da nossa gente. Bosi1 e outros
do bicho, as loterias que assolam esses tudo por sua “preguiça”. Haveria, 1 Alfredo Bosi (1936): professor univer-
sonhos e embalam a esperança — indivi- ainda hoje, essa aproximação, e o sitário, crítico e historiador de literatura
brasileira. É um dos imortais da Academia
dual — de nos tornarmos felizes. que Macunaíma simboliza para a li- Brasileira de Letras. Escreveu, entre outros,

16 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


críticos inteligentes mostram pontos cam Macunaíma na esfera da carnava-
de contato com as idéias de Paulo Pra- lização.
do2 no Retrato do Brasil, e destacam
que Mário de Andrade se propôs captar “Estereótipo seria uma IHU On-Line - Na sua visão, os pre-
a “entidade brasileira”. ceitos da Semana de Arte Moderna
visão muito de 22, com a tentativa de destacar
IHU On-Line - Quais são os principais a cultura nacional — visível na poe-
elementos revelados na estrutura da esquemática do sia Pau-Brasil de Oswald de Andrade,
narrativa de Mário de Andrade para por exemplo —, se mostram presen-
que haja uma reavaliação de lingua- protagonista da tes em Macunaíma?
gens próprias ao ambiente brasileiro, Telê Porto Ancona Lopez - A Semana
do folclore, das crendices? O que o rapsódia do herói da não tinha “preceitos”. As propostas mo-
autor trouxe de seu interesse pelo dernistas no “Prefácio interessantíssimo”
Brasil para sua criação? nossa gente” de Paulicéia desvairada e no manifesto
Telê Porto Ancona Lopez - Respondo de Klaxon, em 1922, destacam a pesqui-
perguntando se a expressão “crendi- sa, a busca de soluções estéticas visando
ces”, contida na pergunta, refere-se inserir o Brasil no século XX. O “Prefácio
de idéias, por exemplo, do movimen-
— e de modo etnocêntrico! — a mitos, interessantíssimo” e os poemas de Mário
to futurista?
lendas e práticas de cunho religioso li- de Andrade mostram um crivo crítico das
Telê Porto Ancona Lopez - A rapsódia
gadas à magia que se liga à visão de diferentes vanguardas européias, crivo
de Mário de Andrade continua a coser,
mundo do índio, do homem do povo do que decorre do assumir da condição de
em 1928, o traje de arlequim que Pau-
Brasil? Eu diria que o livro espelha uma brasileiro. Em “O trovador”, profissão
licéia desvairada propõe em 1922, um
formidável pesquisa de elementos do de fé do poeta moderno e modernista, o
projeto que se apropria, que transfi-
Brasil, em diversas áreas, realizada verso “Sou um tupi tangendo um alaúde”
gura matrizes de todo tipo, cultas e
em função de um projeto literário bra- cristaliza esse crivo crítico, antropofagia
populares, marcadas ou não pelas van-
sileiro moderno. “avant la lettre”. O Brasil em traços que
guardas européias do século XX. Avalio
lhe são próprios, comparece — artisti-
que, em Macunaíma, está o avesso do
IHU On-Line - Há uma tentativa de camente! — nas obras de Mário, Oswald
futurismo, do ponto de vista ideológi-
mostrar a entrada no Brasil na Revo- de Andrade, Alcântara Machado6 e nas
co. A escrita rapsódica, prosa experi-
lução Industrial, com o crescimento, obras dos demais modernistas brasilei-
mental e, conforme estudou Suzana
por exemplo, de São Paulo, numa ros. A criação popular, cuja dignidade é
Camargo,3 sátira menipéia, admite a
espécie de choque entre a nature- reconhecida desde o poema “Noturno”
mistura de gêneros (conto, romance,
za de uma geografia inexplorada e a de Paulicéia, a História do Brasil, lirica-
carta), assim como incorpora a cria-
máquina urbana, opressora, capita- mente parodiada na poesia Pau Brasil,
ção musical popular, rezas, parlendas,
lista, assim como entre o indígena e e tantos elementos de nossa cultura in-
versos de bumba-meu-boi etc. Esta
o branco? gressam transfigurados na criação literá-
rapsódia é, principalmente, um can-
Telê Porto Ancona Lopez - Macunaí- ria culta dos modernistas, respondendo
to, segundo o “Epílogo”; “canto novo”
ma é literatura, portanto, arte. Não se aos apelos, às necessidades intrínsecas
que pratica rimas e ecos a toda hora,
propõe a mostrar esse ingresso, porque de cada texto, de cada obra. Não vejo
ignorando ditames da prosa culta de
não é um livro de História. Plasma sim- uma “tentativa de destacar a cultura na-
então. Análises de Gilda de Mello e
plesmente, em uma ação romanesca, cional”, e sim descobertas multiplicadas
Souza4 e de Suzana Camargo, feitas à
os contrastes e as contradições, nos de um Brasil multifário, feitas por artis-
luz do pensamento de Bakhtin,5 colo-
dois espaços freqüentados pelo herói tas, na literatura, nas artes plásticas e
3 Maria Suzana Camargo: autora de Macuna-
— a natureza e a cidade “macota”, íma: ruptura e tradição (São Paulo: Massao na música, no decênio de 1920. E o que
marcada pela industrialização, na qual Ohno/João Farkas, 1977). (Nota da IHU On- se pode entender a língua isoladamente, mas
existe ainda o anseio e a capacidade Line) qualquer análise lingüística deve incluir fato-
4 Gilda de Mello e Souza (1919-2005): filósofa, res extra-lingüisticos como contexto de fala,
de acolher o mito de Paiuí Pódole, o crítica literária, ensaísta e professora universi- intenção do falante, a relação do falante com
Cruzeiro do Sul, e o de Paluá. tária brasileira. É conhecida por seus estudos o ouvinte, momento histórico. Bakhtin pro-
sobre a obra de Mário de Andrade, sobretudo fessa uma abordagem marxista da língua e da
pelo livro O tupi e o alaúde: uma interpreta- lingüística, pois para ele “a palavra é o signo
IHU On-Line - Por que Mário teria ção de Macunaíma (São Paulo: Ed. 34, 2003), ideológico por excelência” e também “uma
considerado Macunaíma uma rapsó- apontado como referência. Era esposa de An- ponte entre mim e o outro”. Alguns conceitos
dia e, na sua visão, isso se dá numa tonio Candido e sobrinha de Mário de Andrade. fundamentais de Bakhtin são o dialogismo, a
(Nota da IHU On-Line) polifonia, a heteroglossia e o carnavalesco.
mistura entre romance e conto? O 5 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): Entre suas obras, destacamos Problemas da
que havia, nesse ideal, da presença lingüista russo. Seu trabalho é considerado in- poética de Dostoievski (2. ed. Rio de Janei-
Bras Cubas em três versões (Rio de Janeiro: fluente na área de teoria literária, crítica lite- ro: Forense-Universitária, 1997). (Nota da IHU
Companhia das Letras, 2006) e História conci- rária, análise do discurso e semiótica. Bakhtin On-Line)
sa da literatura brasileira (44. ed. São Paulo: também é considerado como filósofo da lin- 6 Antônio Castilho de Alcântara Machado
Cultrix, 2007). (Nota da IHU On-Line) guagem, e sua lingüística é uma “trans-lingü- d’Oliveira (1901-1935): jornalista, político
2 Paulo Prado (1869-1943): escritor e ensaísta ística” porque ela ultrapassa a visão de língua e escritor brasileiro. Escreveu Brás, Bexiga e
brasileiro. (Nota da IHU On-Line) como sistema. Isso porque, para Bakhtin, não Barra Funda (1927). (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 17


Síntese do Brasil, nosso veneno
“O livro espelha uma
e nossa delícia
formidável pesquisa de
Para ser deglutido, ao invés de devorado, Macunaíma é um
elementos do Brasil, livro cubista, de crítica nacionalista e faz uma colagem de
em diversas áreas, inúmeros aspectos. Polimorfia do personagem é nosso veneno e
nossa delícia, define a crítica literária Noemi Jaffe
realizada em função
de um projeto literário POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

brasileiro moderno”

D
e acordo com a escritora Noemi Jaffe, em entrevista por e-mail à
IHU On-Line, a polimorfia do anti-herói Macunaíma, ora formiga,
ora pé de urucum, ora preto retinto, é um dos traços principais e
é cultura nacional? mais belos da obra. Assim, Mário de Andrade “sintetiza o Brasil,
tão difícil de definir e, em muitos casos, insolúvel também por
IHU On-Line - Em se tratando da lin- causa dessa dificuldade. Nosso veneno e nossa delícia”. Um livro cubista, de
guagem de Macunaíma, como Mário
forte crítica nacionalista, Macunaíma é uma “colagem de vivências, amiza-
utiliza nele suas idéias a respeito de
des, lendas indígenas e mitológicas de vários países, língua falada e escrita,
uma língua abrasileirada? Ele conse-
gue “carnavalizar a linguagem”, para história antiga e moderna”. Para Jaffe, esse não é um livro para ser “devo-
utilizar uma expressão de Bakhtin? rado”, mas para ser deglutido aos poucos, “indo, voltando, relendo”.
Telê Porto Ancona Lopez - Trata-se da Jaffe é colaboradora do jornal Folha de S. Paulo. Atua como professora
questão muito importante do emprego do ensino médio e escritora. É doutora em Literatura Brasileira pela USP.
artístico (estilizado) da língua portu- Escreveu Macunaíma (São Paulo: Publifolha; Coleção Folha Explica, 2001) e
guesa falada no Brasil, tão focalizado Ler palavras, ver imagens (São Paulo: Global, 2003).
por Mário em suas cartas. Esse é o pilar
lingüístico do projeto modernista do
escritor, explorado em sua ficção nos IHU On-Line - Até que ponto os vivido e sobre o qual tinha refletido
anos de 1920, em Belazarte, Amar, ver- acontecimentos da Semana de Arte entrou na produção de Macunaíma,
bo intransitivo e Macunaíma. Moderna de 1922, em São Paulo, do que é um livro cubista, mas com for-
crescimento da cidade, da amizade te crítica nacionalista.
IHU On-Line - Será lançada, ainda com Oswald de Andrade e outros
este ano, uma edição comemorativa intelectuais, foi importante para IHU On-Line - Quais são os prin-
de Macunaíma organizada pela se- Mário de Andrade ter escrito Macu- cipais experimentos da obra em
nhora? Na sua visão, por que é ainda naíma? E, dentro desse contexto, termos de estrutura, enredo, lin-
é uma obra tão debatida em escolas e na sua visão, quais foram as influ- guagem e estilo, por meio de sua
universidades? ências literárias de Mário de Andra- textualidade? Nesse sentido, como
Telê Porto Ancona Lopez - A edição co- de ao escrever Macunaíma? Mário faz a reutilização do folclore,
memorativa terá estudos críticos publi- Noemi Jaffe - No livro Roteiro de a reprodução de uma fala brasilei-
cados em 1928, 1934, 1945 e em nossos Macunaíma, de Cavalcanti Proença,1 ra, de narrativas orais indígenas e
dias. A razão principal de Macunaíma a maior parte das influências que Ma- crendices populares, e como se dá
continuar lido e discutido nas escolas rio de Andrade sofreu na escrita de o enfoque sobre o desenvolvimen-
— desde o ensino médio ao universitário Macunaíma está relatada. O próprio to da cidade de São Paulo, em opo-
— está no fato de ser uma obra que conti- Mário dizia que seu livro era um “plá- sição a outros espaços que continu-
nua dialogando conosco porque toca não gio”. Na verdade, Macunaíma é uma am ainda inexplorados país afora?
só verdades do homem no Brasil, como colagem de vivências, amizades, Noemi Jaffe – Como disse acima, a
verdades humanas, atuais, como o medo lendas indígenas e mitológicas de vá- obra tem vários elementos cubistas,
de crescer, a evasão à responsabilidade, rios países, língua falada e escrita, como o multiplicidade de pontos de
a importância do ócio criador, a crítica do história antiga e moderna. Acredito vista narrativos, a confusão espacial
trabalho formiga, alienado etc. que tudo que Mário de Andrade tinha e temporal, a não linearidade e a
1 Manuel Cavalcanti Proença: autor, entre mistura de registros. O capítulo “Car-
outros, de Roteiro de Macunaíma (5. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978).
ta pras Icamiabas”, por exemplo,
(Nota da IHU On-Line) gera muita dificuldade de compreen-
18 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
literária?
Noemi Jaffe – Acredito que continua
muito atual. Ainda vemos uma certa
“Macunaíma também faz uma crítica hegemonia de padrões desnecessários
na linguagem jornalística, teórica e
emocionante ao desenvolvimento, no capítulo principalmente na linguagem acadê-
mica, muitas vezes presa a rigores do
de sua chegada à cidade, que é século XIX.

surpreendentemente válida até hoje” IHU On-Line - Como o desprezo pelo


mecanismo geográfico-temporal con-
vencional dá cadência à obra?
Noemi Jaffe – É essa dança assimé-
são da parte dos leitores, que muitas próprio estereótipo dessa imagem do trica e, em certa medida, difícil, que
vezes não compreendem a linguagem brasileiro. A obra Macunaíma contém confere graça (entre outras coisas) a
empostada e a função narrativa do ca- muitos elementos críticos ao próprio Macunaíma. Não é certamente um li-
pítulo no meio do livro. Mas é só pres- personagem e à sua dificuldade em le- vro para devorar (trocadilho incluso).
tar um pouco mais de atenção (aliás, var as coisas adiante. Mas mostra um É um livro para deglutir lentamente,
atenção é fundamental na leitura des- Macunaíma amoral, não imoral, muitas indo, voltando, relendo. É uma cadên-
se livro), para ver que é uma crítica vezes melancólico, que tem um obje- cia vertiginosa e também lenta.
ao parnasianismo e a um certo opor- tivo e parte em busca dele até conse-
tunismo misturado com ingenuidade, gui-lo (a muiraquitã) e que sabe lançar IHU On-Line - Há estudos de respei-
da parte do personagem. Macunaíma grandes maldições sobre quem não o to sobre a obra Macunaíma (como os
também faz uma crítica emocionan- soube receber, além de boas interpre- de Gilda Mello e Souza,3 Haroldo de
te ao desenvolvimento, no capítulo tações sobre o Brasil também (pouca Campos,4 M. Cavalcanti Proença, en-
de sua chegada à cidade, que é sur- saúde e muita saúva, os males do Bra- tre outros). Poderia destacar, como
preendentemente válida até hoje. O sil são). Por outro lado, o estereótipo especialista, alguns que considera
livro mostra muito bem as diferenças do brasileiro malandro e improvisador de maior relevância para compreen-
de urbanização e de desenvolvimento também não corresponde à realidade. der o personagem marioandradino?
social nas várias regiões do Brasil, que Como diz Chico Buarque,2 “o malan- Noemi Jaffe – Adoro os dois estudos,
infelizmente ainda perduram. dro pra valer, não espalha, aposentou com suas contradições e tendo a con-
a navalha, tem mulher e filho e tralha cordar com os dois, embora eles sejam
IHU On-Line - Quais foram as críticas e tal” e a guerra no Rio já não trata até contraditórios (mas suas aborda-
obtidas na época do lançamento do mais de malandros ingênuos. gens são muito distintas). Gosto mui-
livro? Quem leu Macunaíma estra- to também dos ensaios de José Miguel
nhou a utilização de uma terminolo- IHU On-Line - Como entender a po- Wisnik,5 que abarca as diferenças de
gia e de uma sintaxe estranhas? limorfia do “anti-herói” que ora é forma mais circular, e de Alfredo Bosi.
Noemi Jaffe – Sim, Macunaíma obte- formiga, ora é pé de urucum, ora é Além de lembrar sempre como é funda-
ve recepção dúbia, de celebração por preto retinto? mental o livro de Cavalcanti Proença.6
parte dos modernistas e de seus entu- Noemi Jaffe – É um dos traços prin-
siastas, e de muita rejeição também. cipais e mais belos de Macunaíma, a
Como, aliás, ainda acontece. meu ver. Dessa forma, ele sintetiza
o Brasil, tão difícil de definir e, em
IHU On-Line - O personagem Macuna- muitos casos, insolúvel também por 3 O tupi e o alaúde: uma interpretação de Ma-
cunaíma (São Paulo: Ed. 34, 2003). (Nota da
íma costuma ser visto como um retra- causa dessa dificuldade. Nosso veneno IHU On-Line)
to do que costuma ser o estereótipo e nossa delícia. 4 Haroldo de Campos (1929-2003): poeta,
do brasileiro: malandro, preguiçoso tradutor e crítico literário brasileiro. É autor
de Xadrez de estrelas (2. ed. São Paulo: Pers-
(ele repete no livro a expressão “Ai, IHU On-Line - Que aspectos você pectiva, 2008) e Morfologia do Macunaíma (2.
que preguiça”), desorganizado, de destacaria quanto à crítica que Má- ed. São Paulo: Perspectiva, 2008), um estudo
caráter duvidoso. Como vê, depois rio de Andrade faz a língua portu- baseado na Morfologia do conto maravilhoso,
de Vladímir Propp. (Nota da IHU On-Line)
de 80 anos, essa analogia ainda sen- guesa escrita? Seguindo esse cami- 5 José Miguel Wisnik (1948): professor de Teo-
do feita? Que paralelos você traçaria nho, que parecia, sobretudo, uma ria Literária da USP, é também crítico literário
entre o “herói sem caráter” e o bra- crítica ao parnasianismo, continua e músico. Escreveu, entre outros livros, O som
e o sentido (São Paulo: Companhia das Letras,
sileiro do jeitinho? É possível aproxi- contemporânea a tentativa de Mário 1999), Sem receita (São Paulo: Publifolha,
má-los? Por quê? “abrasileirar” a linguagem também 2004) e Veneno remédio (São Paulo: Compa-
Noemi Jaffe - Há muitos enganos nes- nhia das Letras, 2008), recém-lançado. (Nota
2 Chico Buarque de Hollanda (1944): músico e da IHU On-Line)
sa redução de Macunaíma a esse este- escritor brasileiro, autor, entre outros, de Es- 6 Roteiro de Macunaíma (5. ed. Rio de Janei-
reótipo, a meu ver, como também no torvo, Benjamim e Budapeste, lançados pela ro: Civilização Brasileira, 1978). (Nota da IHU
Companhia das Letras. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 19


20 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 21
Brasil em Foco
Recordar ou esquecer?
A Lei da Anistia em discussão
Pesquisadores comentam a Lei da Anistia no Brasil
IHU On-Line – A Lei da Anistia pode ser
reavaliada e modificada, juridicamen-
POR GRAZIELA WOLFART E PATRICIA FACHIN
te? O senhor concorda com a proposta
do ministro Tarso Genro, favorável à
punição de torturadores que atuaram

D
écadas depois, a Ditadura Militar ainda gera polêmica e di-
no Regime Militar? Em que aspectos
vergência. Um pacto, em 1979, entre os militares de plantão
essa medida é positiva ou negativa
e algumas lideranças políticas, possibilitou a Lei da Anistia. para a história do país?
Depois disso veio a Constituição de 1988. Diferentemente IHU On-Line – Em que medida a Lei da
de outros países da América Latina, no Brasil, nenhum tor- Anistia comprometeu os direitos hu-
turador, respaldado pela Lei da Anistia, foi punido. Os ministros Tarso manos, no país?
Genro (Justiça) e Paulo Vanucchi (Secretaria Especial de Direitos Huma- IHU On-Line – Tortura pode ser consi-
nos) levantaram, recentemente, uma questão candente. derada um crime político?
Para discutir a questão, a IHU On-Line propõe o debate a seguir. Com IHU On-Line – Quais são as implicações
base nas perguntas enviadas pela nossa equipe, professores dos cursos de de abrir os arquivos da ditadura? Sob o
Direito e de Filosofia da Unisinos comentam a proposta dos ministros Tarso ponto de vista democrático e político
e Paulo, favoráveis à punição dos torturadores que atuaram durante o Re- é melhor recordar ou esquecer esse
assunto?
gime Militar. Confira os depoimentos concedidos por e-mail à IHU On-Line.
Veja o que foi perguntado aos entrevistados:

“O ministro Tarso Genro sustentou a necessidade de reavaliar a aplicação da Lei


da Anistia para aqueles que agiram por excesso de mandato. Esses, portanto, não
cometeram crimes políticos. Nisso se enquadra, obviamente, a tortura, que sempre
é violadora da Lei, da Constituição e dos tratados internacionais. Nem o regime de
exceção avalizava legalmente a tortura. Mas, pergunto e respondo, é possível punir,
ainda hoje, esses torturadores? Penso que sim. Tortura é crime imprescritível. Mesmo
que a Constituição apenas tenha tornado a tortura imprescritível em 1988, portanto,
ARQUIVO PESSOAL

depois da Lei da Anistia, os tratados internacionais dos quais o Brasil era signatário
colocavam-na como crime contra os direitos humanos e imprescritíveis. Esse foi o
caso da Argentina, em que a Suprema Corte julgou inconstitucional a Lei da Obe-
diência Devida, que anistiara os militares que praticaram tortura. Mas essa é uma
questão complexa, que demanda uma longa entrevista, para evitar mal-entendidos,
principalmente na comunidade jurídica, em face do princípio da reserva legal, para
citar apenas esse ponto de extrema controvérsia.
A Lei da Anistia comprometeu os direitos humanos quando permitiu aplicação ta-
bula rasa, não separando o joio do trigo. Na verdade, em muitos casos, ficamos com o
joio. Os arquivos da ditadura devem ser abertos. Trata-se de um direito fundamental
da nação. Ela precisa saber o que aconteceu.”

Lenio Streck é mestre e doutor em Direito, pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), e pós-doutor, pela Universidade de Lisboa. Docente do curso de Direito da Unisinos,
ele é membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados
Brasileiros e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica.

22 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


“As conjunturas políticas algumas vezes exigem que se concorde em assinar, ou
acatar, uma Lei de Anistia, mas, antes de qualquer lei positiva, há uma lei natural,
DIVULGAÇÃO

que podemos chamar de direito humano fundamental, cujo fundamento último é


uma razão crítica, a qual nenhuma lei positiva pode suprimir. Por isso, determinados
atentados contra a vida humana são considerados como imprescritíveis, isto é, que
não prescrevem nunca. Este tipo de crime clama por justiça por si só. Não são as
pessoas que gritam, é a própria injustiça que grita nos homens, e nem o tempo nem
a omissão conseguem abafar esse clamor. A saúde cívica de uma nação depende de
dar ouvidos a este clamor, de aceitar a dor, de enxergar a ferida e tratá-la; afogar
esse grito, negar, esquecer vira sintoma dos muitos aos quais estamos quase acostu-
mados como a corrupção, a violência e o sentimento de insegurança.”

* Alfredo Culleton é graduado em Filosofia, pela Universidade Regional do Noroeste do


Estado do Rio Grande do Sul (Unijui), mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professor do PPG em Filosofia e do PPG em
Direito da Unisinos.

“Em primeiro lugar, gostaria destacar alguns princípios filosóficos deste debate. O
principal deles é que o esquecimento da barbárie perpetrada no passado promove a sua
reprodução no futuro. Só a memória das violências cometidas pode evitar que elas se
repitam no futuro. Um segundo pressuposto é que o esquecimento submete às vítimas
a uma dupla injustiça: elas sofreram a barbárie da tortura e agora se pretende apagar
seu sofrimento através do esquecimento. Só a memória detalhada de cada vítima, de
seu sofrimento, do horror cometido contra ela, pode ajudar a reparar, em parte, a
barbárie e injustiça que sofreram. Esquecer significa negar as vítimas e seu sofrimento;
o esquecimento as condena a uma segunda morte, a morte da história, e uma segunda
injustiça: a injustiça do olvido.
Antes de falar de anistia, haveria que diferenciar entre os conceitos de esqueci-

DIVULGAÇÃO
mento e perdão. Só se pode perdoar se há memória viva do acontecido. Quando se
esquece não se perdoa, simplesmente se ignora a responsabilidade do torturador e a
dor da vítima. O perdão, necessário em muitos casos, só pode acontecer como evento
político se a memória da barbárie e o sofrimento das vítimas são rememorados como
ato do presente. A anistia não pode ser esquecimento, ela poderá vir a existir como
ato político do perdão, porém e só uma vez que se restabeleça a memória de todo o
acontecido com as vítimas e as responsabilidades dos torturadores.
O tribunal de Nüremberg, ante a barbárie nazista, teve de inovar uma categoria
jurídica: os crimes contra a humanidade. Há consenso filosófico, jurídico e político de
que os crimes contra a humanidade não prescrevem no tempo nem sua responsabili-
dade fica restrita a um país. Se a tortura sistemática, em grande escala, praticada por
aparatos do Estado, não fosse considerada um crime contra a humanidade, o que mais
poderia ser considerado? A tortura, mais do que um crime político, deve ser conceitua-
da como crime contra a humanidade, por isso sua responsabilidade não prescreve.
No que se refere à abertura dos arquivos da ditadura, dois pontos estão em questão:
a justiça das vítimas; e evitar que no presente e futuro venham se repetir os atos de
tortura como estratégia de controle biopolítico. Para tanto, se requerem duas medi-
das: trazer à memória o detalhe dos fatos acontecidos para fazer justiça às vítimas,
e responsabilizar judicialmente aos torturadores pelo que fizeram. Após a sentença
judicial, se poderá falar em anistia como perdão da pena ditada pelo tribunal. Porém,
é necessário que esse julgamento aconteça para que a impunidade não perpetue a
barbárie entre nós.”

Castor Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia e Teologia, pela Universidade de Comillas, mestre
em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela
Universidad de Deusto, Espanha. Ruiz é docente do PPG em Filosofia da Unisinos.

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 23


“Não se trata de se modificar ou de se reavaliar a Lei de Anistia de 1979.
Trata-se apenas, a meu ver, de interpretá-la de modo mais coerente e corre-
to (o que envolve sua análise pelo filtro da Constituição de 1988 e da Lei de
Anistia de 2002). Torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados reali-
zados por agentes do governo ditatorial não são crimes políticos (as leis em
vigor na ditadura militar consideravam criminosas essas condutas), mas sim
‘crimes contra a humanidade’, o que é assente na ordem jurídica interna-
cional desde o Tribunal de Nüremberg, em 1945. O Brasil pertence à Organi-
zação das Nações Unidas (que se ergueu exatamente a partir de Nüremberg)
e ratificou tanto a Declaração da ONU quanto, mais adiante, em 1952, a
Convenção das Nações Unidas sobre Prevenção e Repressão do Genocídio
e, em 1957, as Convenções de Genebra de 1949. Em todos esses tratados,
o chamado ‘direito humanitário’ aparece com grande força, assim como a
noção dos ‘crimes contra a humanidade’. A imprescritibilidade de tais crimes
é da sua própria essência, é inerente à sua tipificação, princípios e contexto
histórico, restando hoje explicitamente reconhecida por diferentes normas
nacionais e tratados internacionais, dos quais o mais recente é o Estatuto
de Roma, ratificado pelo Brasil inclusive. Além disso, os crimes de desapa-

DIVULGAÇÃO
recimento forçado constituem crime permanente, não havendo sequer que
se cogitar de sua prescrição até que sua elucidação se complete. Assim, sou
favorável, sim, à tese do ministro Tarso Genro e considero levianas e injustas
as acusações que são feitas a ele de ser movido por interesses particulares
e eleitorais. Considero o ministro Tarso Genro um verdadeiro democrata e
o parabenizo pela sua coragem em assumir publicamente este debate. Na
minha opinião, a Lei de Anistia de 1979 não foi ampla, geral e irrestrita. Se
ela propiciou o retorno de muitos exilados e a libertação dos presos políticos
(o que no contexto da época já foi um feito memorável e importante), ela
também serviu, política e historicamente, para garantir a impunidade dos
agentes do governo, pois prevaleceu até hoje a tese de que os crimes con-
tra a humanidade cometidos por tais agentes estavam inseridos na duvidosa
expressão ‘crimes conexos’, contida na lei de 1979, e que, portanto, os
seus autores também estariam anistiados. Este fato alimenta uma cultura de
violência e impunidade, que é muito forte hoje em nosso país. Muitas pes-
soas, por exemplo, acham que é perfeitamente normal que o Estado torture
e mate em sua ação policial. Basta ver, por exemplo, o que acontece hoje
contra os jovens pobres e negros da periferia carioca.
Em função disso, eu pergunto: que direito têm as Forças Armadas de man-
terem inacessíveis à sociedade brasileira documentos que contribuem para
elucidar a sua própria história? As Forças Armadas, na verdade, temem que a
sua imagem junto à opinião pública fique seriamente abalada e que, é claro,
se consubstanciem provas sólidas contra pessoas que integraram e integram
os seus quadros, muitas delas vivas até hoje. Mas é um direito do povo bra-
sileiro saber o que aconteceu, é o ‘Direito à memória e à verdade’. Como
vamos esquecer aquilo que nem sequer foi conhecido? Como vamos superar
um problema que não foi enfrentado? Como vamos anistiar quem nem sequer
foi acusado e julgado (ao contrário do que aconteceu com os militantes po-
líticos que resistiram a um governo ilegítimo e inconstitucional)? Esquecer o
que está pendente não é superar e pacificar, mas sim recalcar o que há de
pior do que se tenta fugir. Nossa sociedade violenta e desrespeitadora dos
direitos humanos está aí para comprovar isto. Esta história não tem dono, e
é direito, especialmente dos mais jovens, conhecê-la.”

José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito, pela Universidade Federal
do Paraná. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação e da Graduação
em Direito na Unisinos, avaliador do Ensino Superior pela SESu/INEP e conselheiro da
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

24 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


DIVULGAÇÃO
“A Lei de Anistia foi um produto da transição do autoritarismo para a
democracia. De certa forma, um acordo político entre a oposição (respal-
dada fortemente pelo movimento social) e o poder militar. A exigência dos
governos da época foi de uma anistia ampla e geral, o que pressupunha
não só a reconciliação nacional, mas o encobertamento dos crimes, no caso
específico o crime da tortura, tido em tratados internacionais como um cri-
me hediondo, cometidos pelo Estado contra seus cidadãos. O que se está
discutindo desde as manifestações do ministro da justiça é a possibilidade
de investigação, e eventual punição, destes crimes e não a revisão da Lei
da Anistia. Ainda sobre os torturadores, mesmo nos Atos institucionais não
se pode encontrar nenhuma autorização expressa a tal prática, embora a
eliminação do habeas corpus possa ser um indicador de sua utilização pelos
aparatos repressivos, militares ou civis.
Deve se investigar, e é disto que fala o ministro Tarso Genro. Há provas
evidentes de práticas de tortura e assassinatos de opositores do Regime
Militar. A experiência internacional não apresenta casos de anistia a tortu-
radores e a autoridades responsáveis por estas práticas de investigação e de
destruição da integridade física e psíquica dos que a ela foram submetidos. As experiências internacionais demonstram
que, nos países em que os responsáveis pelas práticas de tortura foram julgados e condenados, o índice de violência
diminuiu significativamente. Especialmente a violência originada do Estado e exercida por seus agentes em nome da
sociedade. A impunidade dos torturadores de uma época estimula a manutenção destas práticas ao longo do tempo.
A experiência internacional, basta aqui recuperar a memória dos tribunais de Nürenberg e de Haia, consideram a
tortura um crime hediondo, a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, referenda os tratados interna-
cionais. A tortura, mais do que um princípio primitivo de investigação, sempre teve como objetivo eliminar a consci-
ência das sociedades e substituí-la pelo medo. Não por acaso, ela está presente na história humana quando as forças
autoritárias negam a democracia e a soberania dos povos e das nações.
A Anistia é a construção do entendimento entre as diferentes correntes de pensamento de uma sociedade. No caso
brasileiro, foi mais uma mediação um acerto pragmático do que uma reconciliação nacional. Quando, por exigência
dos governos militares, a anistia se fez “ampla e geral”, foram incluídos na lei não só opositores do Regime Militar, mas
criminosos que atuaram em nome do Estado e, portanto, de toda a sociedade, fora dos limites da lei, mesmo da lei
de exceção. Os Direitos Humanos não existem para defender a impunidade; pelo contrário, seus pressupostos exigem
o cumprimento de normas que garantam a justiça para todos, e aqueles que cometem crimes devem ser responsabi-
lizados pelos atos que cometem.
Um país precisa encontrar-se com seu passado. Revisitá-lo, apreender com ele, é a única forma de nunca mais
cometer os mesmos erros. Já tardamos além do desejável para abrir os arquivos da ditadura. Encobrir a História não
é esquecê-la; é permitir que os erros se repitam indefinidamente. Não se trata aqui de condenar as forças sociais que
exorbitaram em suas ações, mas de percorrer caminhos que coloquem a justiça como ponto de partida das relações
políticas e sociais. O esquecimento não só elimina o passado, mas impede a sociedade de se libertar do medo e de
constituir a democracia como forma de regulação da vida política e econômica.”

Solon Eduardo Annes Viola é doutor em História, pela Unisinos, onde, atualmente, é professor de História da Educação e de Direitos
Humanos e Democracia na América Latina. O pesquisador também participa da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e
é membro do Comitê Brasileiro de Educação em Direitos Humanos.

LEIA MAIS...

>> Confira um depoimento do professor Lenio Streck sobre na edição 232, de 20-07-2007, quando, junto com o juris-
o Dicionário de Filosofia do Direito, publicado nas Notícias do ta Vicente Barreto, falou sobre Ética mundial e Direito: uma
Dia do sítio do IHU em 09-05-2006. contribuição de Hans Küng e na edição 240, de 22-10-2007
>> Confira a entrevista concedida por Alfredo Culleton à IHU falou sobre Uma crítica ao idealismo em favor de uma certa
On-Line edição 160, de 17-10-2005, junto com o historiador autonomia da política.
Nilton Mullet Pereira, intitulada Em nome de Deus: um retrato >> Confira uma recente entrevista concedida pelo professor
de época, comentando aspectos do filme apresentado no Ciclo Solon Viola à IHU On-Line número 257, de 12-05-2008, sobre
de Estudos Idade Média e Cinema, promovido pelo IHU. Outra os movimentos sociais brasileiros.
entrevista com Culleton pode ser conferida sob o título A in- >> Confira uma entrevista com o professor José Carlos Moreira
terculturalidade medieval, na edição 198, de 02-10-2006. Suas da Silva Filho sobre a criminalização dos movimentos sociais,
contribuições mais recentes à nossa publicação aconteceram publicada na IHU On-Line número 266, de 28-07-2008.

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 25


Entrevista da Semana
“Cão-de-guarda moral”. A nova Igreja brasileira
Kenneth Serbin avalia as transformações da Igreja ao longo dos anos

POR PATRICIA FACHIN

DIVULGAÇÃO

S
em ter a pretensão de julgar as atitudes da Igreja Católica ao longo dos
anos, Kenneth Serbin, Prof. Dr. da Universidade de San Diego, EUA, atua
como um observador da história. Em entrevista exclusiva, concedida por
telefone à IHU On-Line, na semana passada, ele avalia as mudanças
ocorridas no clero brasileiro, e discute questões polêmicas, como a obri-
gatoriedade do celibato e os crescentes abusos sexuais dentro da Igreja.
Entre tantas observações, Serbin ressalta uma mudança no perfil dos padres.
Segundo ele, isso está diretamente relacionado às transformações mundiais ocor-
ridas nos anos 90, e ao modelo neoliberal que pouco a pouco também vem se
proliferando pela Igreja. Padres idealistas estão sendo substituídos por jovens
seminaristas, que “percebem o fiel como um consumidor de religião”, alerta. E
afirma ainda que, diferentemente dos veteranos fundadores da Teologia da Liber-
tação, o novo clero “acredita que o trabalho do padre não é ficar todo o tempo ao
lado do povo, mas ser um exemplo para ele”.
A opção pelos pobres, assumida com tanta efervescência pelos seguidores liber-
tários, está perdendo a intensidade, alerta o pesquisador. “Não sei se essa opção
ainda vai avançar. Pelo menos não nessa linha que existiu nos anos 60. Haverá, cada vez mais, essa visão da
religião como bem de consumo. A linha da libertação vai ter de lutar para sobreviver”. A Igreja vive hoje
o que Kenneth Serbin chama de “cão-de-guarda moral”, ou seja, ela “não tem mais aquele sentimento in-
formal da época pré-conciliar, nem aquele embate frontal do período de D. Ivo Lorscheiter”. Segundo ele,
a Igreja está atuando como uma conselheira, “sem se envolver em questões sociais como antes”.
Ph.D. em História pela Universidade da Califórnia, Serbin está no Brasil, lançando seu novo livro
Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das
Letras, 2008). Ele também é autor de Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na
ditadura (São Paulo: Companhia das Letras: 2001). Entre um compromisso e outro, o brasilianista nos
concedeu a entrevista a seguir.

IHU On-Line – Quais são as maiores que estão sendo cogitados no Brasil. traçado nos anos 60, momento históri-
preocupações dos que optaram por Por um lado, temos um arquétipo que co de muita turbulência, marcado por
ser padres na Igreja do Brasil? O que pertence à Teologia da Libertação,1 protestos estudantis, pela guerrilha no
eles se propõem fazer como padres? 1 Teologia da Libertação: escola importante Brasil e pelo surgimento de novas cul-
Kenneth Serbin – O último capítulo do na teologia da Igreja Católica, desenvolvida turas. Nesse contexto de mudanças,
meu livro Padres, celibato e conflito depois do Concílio Vaticano II. Ela surge na surgiu um movimento de seminaristas
América Latina, a partir da opção pelos po-
social. Uma história da Igreja Católica bres, e se espalha por todo o mundo. O te- no país, no qual padres e teólogos de-
no Brasil (São Paulo: Companhia das ólogo peruano Gustavo Gutierres é um dos senvolveram um papel muito impor-
Letras, 2008) tem como preocupação primeiros que propõe esta teologia. A Teolo- tante.
gia da Libertação tem um impacto decisivo
discutir os desafios que os padres en- em muitos países do mundo. Sobre o tema, O Rio Grande do Sul foi o centro
frentam no novo milênio. Além disso, confira a edição 214 da IHU On-Line, de 02- desse movimento que se chamava
apresenta os dois modelos de padres 04-2007, intitulada Teologia da libertação.
(Nota da IHU On-Line)

26 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


União dos Seminaristas Maiores do Sul não enfatiza a relação com o povo, mais igualitário. Nesse cenário, foram
(Usmas).2 O grupo preconizou esse mo- as questões políticas ou sociais. Numa influenciados pela Revolução Cuba-
delo de padre mais voltado ao povo, e outra perspectiva, estabelece uma ên- na, que questionava o capitalismo e o
que, ao invés de morar em grandes se- fase na espiritualidade tradicional, ou predomínio dos EUA sobre a América
minários como o ex-Seminário Central seja, fala mais dos santos, das curas Latina.
de São Leopoldo, formado por grandes que as pessoas obtêm ao rezar e ir à
prédios, optava por ficar em pequenas missa, das questões pessoais de famí- Mudança de rumo
comunidades. Ele almejava um modelo lia, do comportamento, do casamento. Acontecimentos como o fim da
moderno de formação sacerdotal, ou Esse clero acredita que o trabalho do Guerra Fria, a queda do muro de Ber-
seja, desejava acompanhar o movimen- padre não é ficar todo o tempo ao lado lim e o fim da União Soviética tira-
to estudantil, a política, querendo a do povo, mas ser um exemplo para ele. ram fôlego do movimento libertário
profissionalização do clero. Os padres, Embora seja um modelo mais elitista, e criou-se assim o modelo neoliberal,
dentro desse modelo, ainda pretendiam não quer dizer, de qualquer modo, que que visa à eficiência capitalista. Isso
ser profissionais: jornalistas, professo- esses padres não tenham interesse de influenciou também a atuação na Igre-
res, psicólogos, advogados etc. Busca- manter contato com o povo. Entretan- ja. Os jovens que observei em meus
vam, assim, uma maneira de sobreviver to, eles disseminam suas atividades, estudos percebem o fiel como um
independente da Igreja. Como reflexo sobretudo através da mídia. consumidor de religião. Diferente de
do movimento dos padres operários na hoje, nos anos 60, ninguém pensava a
Europa, em 1960, no Brasil muitos sa- religião como bem de consumo. Acre-
cerdotes foram trabalhar em fábricas. “Os jovens que observei dito que o seminarista jovem, hoje,
Antes dessa época, eles viviam dos dí- reconhece que o Brasil virou um gran-
zimos dos leigos e de benesses das pes- em meus estudos de mercado de religiões. Isso ocorreu
soas ricas ou dos ingressos das próprias porque, entre os anos 70 e 90, houve
paróquias ou das dioceses. percebem o fiel como um um crescimento das igrejas neopente-
Os jovens seminaristas queriam costais, que passaram a competir com
também uma formação integral, ou consumidor de religião. as igrejas católicas.
seja, holística. Em vez de concentrar Além disso, o mundo mudou, e nos
o seminário na disciplina, propunham Diferente de hoje, nos anos 90 surgiu uma nova geração de
uma formação psicológica mais sadia. jovens que não estava mais ligada no
Outra grande questão que eles co- anos 60, ninguém pensava idealismo. Essa é uma geração mais
locaram em pauta nos anos 60 foi a da realista, sem grandes ideais, desejos
obrigatoriedade do celibato. Acredi- a religião como bem de e modelos para mudar o mundo. Hoje,
tavam que poderiam ter dois tipos de a religião se tornou mais individualis-
cleros: um celibatário, que não iria consumo” ta, isto é, perdeu o sentido de coletivo
casar nem ter filhos; e um outro clero dos anos 60.
de casados, mas que poderiam exercer
todas as funções dos padres. Claro que IHU On-Line – O que motiva um jo-
a Igreja não aceitou essa proposta, e IHU On-Line – Que fatores levaram a vem, hoje, a ser padre católico no
até hoje esse é um ponto controvertido essa mudança de postura dos padres Brasil e o que motivava no período
na Igreja do Brasil. De qualquer modo, dos anos 60 para os 90? pesquisado pelo senhor?
o movimento dos seminaristas criou um Kenneth Serbin – São muitos fatores, Kenneth Serbin – O que motiva os jo-
modelo libertário de padre que atuou mas a grande questão está relacionada vens é a salvação da alma das pessoas.
com destaque até os anos 80. à geração. Os jovens seminaristas dos Nesse sentido, os seminaristas voltaram
anos 60 — isso se percebia muito no para um modelo pré-anos 60, ou seja, o
Segundo modelo seminário de Viamão — eram idealis- que chamamos de pré-conciliar.
Na década de 90, por outro lado, tas, ou seja, queriam mudar o mundo. A Igreja do Concílio Vaticano II4
surgiu um modelo de padre mais con- Essa geração nasceu depois da Segun- era mais solidária com as questões so-
servador, como Marcelo Rossi.3 Esse da Guerra Mundial, e viu o Brasil pro- ciais e deixava de lado a espirituali-
2 Usmas: foi um movimento que visava à or-
gredir nos anos 50 com a construção dade tradicional, focando a salvação
ganização nacional dos seminaristas. Eles pre- de Brasília, a introdução das indústrias das pessoas na terra. Mas os jovens
tendiam, através do movimento, formar um automobilística e de bens de consumo.
sindicato nacional de seminaristas. (Nota do 4 Concílio Vaticano II: realizado entre 1962 e
entrevistado)
Entretanto, enquanto o Brasil começa- 1965, é considerado o maior acontecimento
3 Marcelo Mendonça Rossi (1967): formado em va a se afirmar como um país capitalis- da história da Igreja, do século XX. Durante
Educação física, é sacerdote católico brasileiro ta, esses jovens percebiam a pobreza, o Concílio Vaticano II, foram publicados dois
que tornou-se um fenômeno de mídia e cultura de documentos. A constituição dogmática Lumen
massas no final dos anos 90. Ficou muito conheci-
o crescimento das favelas, a superlo- Gentium, que foi tema de capa da revista IHU
do pela forma como adota danças e coreografias tação de cidades como Rio de Janeiro On-Line na edição nº 124, de 22-11-2004, e a
típicas da Renovação Carismática Católica (RCC) e São Paulo. Eles sentiam essas contra- constituição pastoral Gaudium et Spes, que foi
e pela publicidade dos trabalhos (CDs, DVDs, ci- tema de capa da Revista IHU On-Line, nº 157,
nema e televisão). (Nota da IHU On-Line)
dições, e queriam que o mundo fosse de 26-09-2005. (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 27


dos anos 1990 e 2000 não visam mais plo, no que se refere às estruturas de pelo marxismo, ele ficou horrorizado,
essa posição. Percebo, assim, uma poder na Igreja. Começou, então, na pois foi justamente contra esse tipo de
nova preocupação com o “além desta década de 80, uma grande pressão do pensamento que ele lutava, no Leste
vida”. Essa geração mais recente está Vaticano para diminuir ou eliminar, no Europeu. A Polônia foi dominada pelos
recuperando aspectos do catolicismo Brasil, essa opção pelos pobres. soviéticos por décadas. Para ele, esse
que foram deixados de lado e ignora- No meu livro, relato um embate sistema era totalitário, ateu e anti-ca-
dos pelos seminaristas dos anos 60. que ocorreu no Recife, quando fecha- tólico.
ram o seminário Serene II (Seminário
IHU On-Line – A Igreja latino-ameri- Regional do Nordeste II), em 1989, por IHU On-Line - Para avançar nessas
cana e brasileira optou pelos pobres. ordem expressa do Vaticano, pois esse questões (opção pelos pobres), seria
Esta opção é assumida pelos padres seguia a opção pelos pobres e a Teolo- necessária uma reforma na formação
formados nos seminários pesquisa- gia da Libertação. Também ordenaram dos padres, tornando-os mais atuantes
dos pelo senhor? o fechamento do Instituto de Teologia nas comunidades? Como o senhor ava-
Kenneth Serbin – Entre as décadas de do Recife (ITER). Essas foram grandes lia a formação deles nos seminários?
1960 e 1980, a opção pelos pobres era perdas para a Igreja do Brasil, na me- Kenneth Serbin – Não sei se essa op-
abertamente aceita em muitos semi- dida em que eram instituições com ção pelos pobres ainda vai avançar.
nários do Brasil. Era, inclusive, a mais idéias muito interessantes, contando, Pelo menos não nessa linha que existiu
popular, mas hoje em dia ela está de- inclusive, com teólogas como Ivone nos anos 60. Haverá, cada vez mais,
saparecendo. Ainda existem padres, Gebara.6 Com essas mudanças, a par- essa visão da religião como bem de
seminaristas e bispos na Igreja do Bra- tir dos anos 90 se construiu um perfil consumo. A linha da libertação terá de
sil que estão a favor dessa opção, mas diferente de padres. Quando o jovem lutar para sobreviver. Com esse papa-
ela não é mais hegemônica como nas seminarista procurou o seminário, ele do, não ocorrerão reformas, questões
décadas anteriores. No passado, todos não encontrou mais modelos como Se- sociais e políticas não terão grande
os bispos achavam importante reco- rene II ou ITER. abertura, pois ele dá continuidade ao
nhecer tal opção, e permitiam que os mandato de João Paulo II. Bento XVI7
padres agissem nessa linha. IHU On-Line – Por que essa pressão tem olhos alemães e observa o mun-
Entretanto, a corrente libertária da do Vaticano para acabar com essa op- do dessa forma. Quando ele esteve no
Igreja utilizava os conceitos marxistas ção pelos pobres? Brasil, se sentiu como um peixe fora
para interpretar a realidade brasileira. Kenneth Serbin – Porque João Paulo II, d’água. O papa João Paulo II era um
Mas isso não quer dizer que eles fossem junto com outros elementos conserva- pastor, enquanto Ratzinger é um inte-
comunistas. De qualquer modo, João dores na Igreja do Brasil, tinham medo lectual. Por isso, é difícil para o povo
Paulo II não gostava do envolvimento do comunismo. Devemos lembrar que, brasileiro se sentir empolgado com
dos padres brasileiros com a política nos anos 1960 e 1980, ainda estávamos esse tipo de papa. Penso que a popu-
e tampouco dos questionamentos rea- em plena Guerra Fria. Nesse período, lação brasileira não vai à Igreja para
lizados por Leonardo Boff,5 por exem- quando o papa veio à América Latina ouvir grandes discursos, e sim para
5 Leonardo Boff (1938): teólogo brasileiro, da e percebeu que os padres eram enga- sentir Deus no coração.
ordem dos franciscanos. Foi um dos criadores jados, políticos e que tinham simpatia Esse impulso de reforma na forma-
da Teologia da Libertação e, em l984, em ra- ção dos padres deve vir dos dois lados.
zão de suas teses a ela ligadas e apresentadas entrevista “A ecologia exterior e a ecologia
no livro Igreja: carisma e poder – ensaios de interior. Francisco, uma síntese feliz”. (Nota A Igreja do Brasil terá de se auto-afir-
eclesiologia militante (3. ed. Petrópolis: Vo- da IHU On-Line) mar, como continua fazendo. Mesmo
zes, 1982), foi submetido a um processo no 6 Ivone Gebara (1944): doutora em filosofia apresentando uma posição mais tra-
Vaticano. Em 1985, foi condenado a um ano com uma tese sobre Paul Ricoeur. Ingressou na
de “silêncio obsequioso” e deposto de todas Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, em dicional, enfatizando menos a opção
as suas funções. Dada a pressão mundial sobre 1967. Estudou Teologia. Em 1973 se transfere pelos pobres, a Igreja brasileira ainda
o Vaticano, retornou a elas em l986. Em l992, para Recife. Durante 17 anos foi professora de sente o desejo de independência. Esse
sendo outra vez pressionado com novo “silên- Teologia e Filosofia no Instituto Teológico de
cio obsequioso” pelas autoridades de Roma, Recife — ITER, fechado em 1989 pelo Vaticano. sentimento persiste desde a época do
renunciou às suas atividades de padre. Con- Assessora de grupos populares, especialmente padre Feijó,8 que propunha uma Igreja
tinuou como teólogo da libertação, escritor e de mulheres, é professora visitante em dife- 7 Joseph Ratzinger: teólogo alemão, atual-
assessor das comunidades eclesiais de base e rentes universidades e centros de aprendizado mente Papa Bento XVI, foi escolhido pontífice
de movimentos sociais. Desde l993, é profes- no Brasil e no exterior. Escritora de livros e em 19 de abril de 2005, sucedendo a João Pau-
sor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na artigos de filosofia e teologia na perspectiva lo II. Anteriormente, era o Cardeal Joseph Rat-
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É feminista da liberação, dentro os quais desta- zinger. Autor de uma vasta e importante obra
autor de mais de 60 livros nas áreas de teo- camos: Teologia Ecofeminista (São Paulo: Ed. teológica. (Nota da IHU On-Line)
logia, espiritualidade, filosofia, antropologia e Olho d’Água, 1988) e Longing for Running Wa- 8 Diogo Antônio Feijó (1784-1843): sacerdote
mística. Boff escreveu um depoimento sobre ters (Minneapolis: Fortress Press,1999). Ivone católico e estadista brasileiro, também conhe-
as razões que ainda lhe motivam a ser cris- Gebara contribui na edição 219 da IHU On- cido como padre Feijó ou Regente Feijó, foi
tão, publicado na edição especial de Natal da Line, intitulada O aborto em debate, de 14- um dos fundadores do Partido Liberal. Atuou
IHU On-Line, número 209, de 18-12-2006, e 05-2007, na qual concedeu a entrevista “Em como sacerdote em Santana de Parnaíba, Gua-
concedeu uma entrevista sobre a Teologia da defesa da legalização e da descriminalização ratinguetá e Campinas. Também foi professor
Libertação na IHU On-Line número 214, de do aborto” e na edição número 210, de 05- de História, Geografia e Francês. Como polí-
02-04-2007. Sua contribuição mais recente à 03-2007, com a entrevista “A crise do mascu- tico, foi deputado por São Paulo (1826-1830),
nossa revista aconteceu na edição 238, de 01- lino se situa na falta de sua nova identidade”. senador (1933), ministro da Justiça (1831-
10-2007, intitulada Francisco. O santo, com a (Nota da IHU On-Line) 1832) e regente do Império (1835-1837). (Nota

28 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


“As diferenças ideológicas dentro do Congresso IHU On-Line – O fato de Lula ter parti-
cipado de movimentos sociais católi-
Nacional, hoje, são muito menores do que no passado. cos na juventude deveria influenciar
na sua posição frente as questões so-
Ou seja, a polarização política, que existia no Brasil nos ciais, atualmente?
Kenneth Serbin – Muitos achavam
anos 1960 e levou ao golpe militar de 1964, acabou” que, a partir de 2003, seria o momen-
to de o movimento popular no Brasil
se afirmar na política. Mas aconteceu
o contrário. As relações entre Lula e
na qual os sacerdotes poderiam casar, Kenneth Serbin – Isso acontece por- a Igreja progressista são menos calo-
não precisassem usar batina e pudes- que o mundo, o perfil da sociedade e a rosas. O grande eleitorado do presi-
sem ajudar o povo a melhorar com a política brasileira mudaram. No Brasil, dente são os despossuídos, aqueles
agricultura. A Igreja da Libertação atualmente, existe o que chamamos que vivem do Bolsa Família, e que por
pretendia a mesma coisa: autonomia de convergência política. Vinte anos teoria não tinham muita participação
e um modelo brasileiro de formação. atrás, quando Lula era candidato à na Igreja progressista da época. Aliás,
Por isso, no Brasil, os padres vivem presidência, líderes da Igreja progres- essa foi uma das falhas da Igreja: ela
uma grande tensão com o Vaticano. sista, como Leonardo Boff e Frei Betto deveria ter atraído mais militantes po-
Eles nascem em terras brasileiras, mas pediam votos para ele, e o apoiavam bres. Esses, ao contrário, foram para
devem obediência ao bispo e ao papa. publicamente. Havia uma sintonia en- a Igreja Universal do Reino de Deus,
Nesse sentido, vivem divididos entre tre a Igreja libertária e o PT. Hoje, ela para as neopentencostais. Por isso,
a fidelidade à Igreja e ao povo brasi- não existe mais. Lula tem como gran- percebemos hoje não só Lula mas mui-
leiro, e se questionam: “Como padre, de aliado o Partido Liberal (PL), que é tos políticos brasileiros participando
vou acatar o que meu coração brasi- um reduto da Igreja Universal do Reino de comícios com as igrejas evangéli-
leiro diz, ou o que ordena o papa, no de Deus9. Isso demonstra que o terreno cas. Eles sabem que o voto do povo
Vaticano?”. Independente dessas difi- político no Brasil mudou. As diferen- não está só na Igreja Católica.
culdades, penso que a Igreja brasilei- ças ideológicas dentro do Congresso
ra ainda terá vertentes nacionalistas. Nacional, hoje, são muito menores do IHU On-Line – O senhor pesquisou a
Surgiram novos movimentos e desejos que no passado. Ou seja, a polariza- gestão da presidência de D. Aloísio
de expressar um modelo brasileiro de ção política, que existia no Brasil nos Lorscheider e de D. Ivo Lorscheiter
ser Igreja. anos 1960 e levou ao golpe militar de na CNBB, durante a Ditadura Militar.
1964, acabou. Hoje, Lula se entende Como analisa a longa direção de D.
IHU On-Line – A religião como bens de com Collor,10 com a Direita e a com a Luciano Mendes de Almeida na CNBB?
consumo é uma tendência mundial? Igreja Universal. Agora, a Igreja está Quais são as continuidades e as des-
Kenneth Serbin – Sim. Tudo na vida num contexto onde não há mais polari- continuidades destas gestões com as
está virando bem de consumo. Infe- zação, não há mais Guerra Fria. Nesse posteriores?
lizmente, a religião também está se- sentido, observo que ela age com mais Kenneth Serbin – D. Aloísio Lorschei-
guindo esse caminho. O desafio das cautela, justamente devido a essas der esteve na direção da CNBB (Con-
religiões é recuperar os valores tradi- mudanças na política. ferência Nacional dos Bispos do Brasil)
cionais e, nesse sentido, eu concordo 9 Igreja Universal do Reino de Deus: sobre
ela, confira os Cadernos IHU Idéias número 36, entre os anos 1970 e 1978. Em segui-
com qualquer católico ou mesmo com publicado pelo IHU, de autoria de Airton Luiz da, assumiu D. Ivo Lorscheiter, que
o papa, que quer recuperar os valo- Jungblut, intitulado Igreja Universal do Reino permaneceu até 1986. Ambos estive-
res tradicionais. Quando digo isso, me de Deus no contexto do emergente mercado
religioso brasileiro: uma análise antropológi- ram à frente da instituição no período
refiro aos valores da religião: como ca. Esse número está disponível no sítio www. em que a Igreja enfrentou as maiores
tratamos o nosso próximo, nossos vizi- unisinios.br/ihu (Nota da IHU On-Line) dificuldades de relacionamento com o
nhos na América Latina, por exemplo. 10 Fernando Collor de Mello: empresário e
político brasileiro, atualmente filiado ao Par- governo. Além disso, precisavam lidar
Precisamos prestar mais atenção nas tido Trabalhista Brasileiro. Foi o primeiro pre- com problemas ligados a violação dos
questões éticas e morais, e a religião sidente da República eleito por voto direto direitos humanos e à falta de democra-
precisa recuperar esses traços. após o Regime Militar, em 1989, pelo período
de 1990 e 1992. O governo foi marcado pela cia no país. Entretanto, nas reuniões
implementação do Plano Collor, pela abertu- secretas entre o Regime Militar e os
IHU On-Line - O senhor disse recen- ra do mercado nacional às importações e pelo bispos, os irmãos Lorscheiter agiam de
temente, numa entrevista ao jornal início do Programa Nacional de Desestatiza-
ção. Renunciou ao cargo na tentativa de evitar maneira diferente. Enquanto D. Aloí-
Estado de S. Paulo, que a tendência um processo de impeachment fundamentado sio Lorscheider estava disposto a esta-
geral da Igreja no Brasil é de agir com em acusações de corrupção. Teve seus direi- belecer um diálogo, D. Ivo Lorscheiter
muita cautela nas questões sociais. A tos cassados por oito anos por determinação
do Senado Federal, e só foi eleito novamente apresentava um posicionamento mais
que se deve essa postura? para cargo público em 2006, tomando posse rígido, criticava a falta de liberdade e
da IHU On-Line) como senador por Alagoas em 2007. (Nota da a política socioeconômica da época.
IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 29


Nesse período, a Igreja foi uma das estavam centradas no debate da ética bato sempre esteve presente na histó-
poucas instituições que conseguiu se na política e na vida pública. Com a ria do Brasil. Essa é uma questão po-
manifestar livremente. Ela represen- posse dele, ficou clara a volta de uma lítica de interesse nacional. Na época
tava — como dizia D. Hélder Câmara11 Igreja mais conservadora, sob o papa- do padre Feijó, o tema foi debatido na
— “a voz dos que não tinham voz”. do de João Paulo II. Assembléia Nacional. Nos anos 1960, o
Com a volta da democracia em assunto foi tratado entre seminaristas
1985, e depois com as eleições de Continuidades e bispos, os quais reconheciam a ne-
1986, a Igreja não precisou mais “falar Depois da gestão de D. Luciano cessidade de mudança. Mas a contes-
em nome dos oprimidos”, pois se insti- Mendes de Almeida, a Igreja passou a tação foi barrada e proibida pelo papa
tuiu a liberdade de expressão no país, apresentar uma atitude, a qual chamo Paulo VI.15 Ou seja, o Concílio Vaticano
abrindo espaço para o surgimento de de “cão-de-guarda moral”, ou seja, II foi a maior reforma nos dois milênios
novos movimentos sociais e sindica- ela não tem mais aquele sentimento da história da Igreja, e ainda assim,
tos, que passaram a desempenhar um informal da época pré-conciliar (antes não tocou nessa questão. Pelo contrá-
papel significativo na área dos direitos do Concílio do Vaticano II), que man- rio, Paulo VI reafirmou o celibato como
humanos, por exemplo. tinha com Getúlio Vargas13 e Juscelino obrigação dos padres. Isso foi uma tra-
Com a democracia instituída, o su- Kubitschek,14 nem aquele embate fron- gédia para a Igreja do Brasil, porque
cessor da CNBB, D. Luciano Mendes de tal do período de D. Ivo Lorscheiter. ela perdeu, entre os anos 1965 e 1980,
Almeida12, que permaneceu na presi- Agora, ela continua com suas posições mais ou menos três mil padres.
dência por oito anos, atuou num con- morais, mas denuncia o que considera
texto totalmente diferente. Na gestão imoral na sociedade brasileira, como Uma vida paralela
dele, ocorreu o impeachment do pre- a falta de políticas sociais adequadas. No Brasil, muitos padres, embora
sidente Collor, eleito em 1989. Nesse Ela atua mais no sentido de aconselhar, continuassem exercendo o sacerdócio,
momento, as preocupações da Igreja advertir, ou seja, simplesmente chama constituíram família; e acredito que
11 Dom Hélder Câmara (1909-1999): arcebis- a atenção para os fatos. Desse modo, essa continua sendo uma prática nos
po lembrado na história da Igreja Católica no ela não se envolve mais nas questões dias atuais. Esses homens sofrem mui-
Brasil e no mundo, como um grande defensor
da paz e da justiça. Foi ordenado sacerdote sociais como antes. to, e por isso mantêm relacionamentos
aos 22 anos de idade, em 1931. Aos 55 anos, paralelos. Em Um espinho na carne.
foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. As- IHU On-Line – O último Encontro Na- Má conduta e abuso sexual por parte
sumiu a Arquidiocese em 12 de março de 1964,
permanecendo neste cargo durante 20 anos. cional de Presbíteros solicitou que a de clérigos da Igreja Católica do Brasil
Na época em que tomou posse como arcebis- Igreja revisse a lei do celibato, tor- (Santuário, 2002), o padre norte-ame-
po em Pernambuco, o Brasil encontrava-se em nando-o opcional. A CNBB não enca- ricano Gino Nasini, que atua no Brasil
pleno domínio da Ditadura Militar. Momento
político este que o tornou um líder contra o minhou o pedido ao Vaticano. Como há anos, mostra que muitos sacerdotes
autoritarismo e os abusos aos direitos huma- explicar tanta resistência da Igreja ainda mantêm relações com mulheres.
nos, praticados pelos militares. Paralelamente a mudanças no que diz respeito ao Isso acontece porque eles nunca acei-
às atividades religiosas, criou projetos e orga-
nizações pastorais, destinadas a atender às co- celibato? O que uma mudança de po- taram o celibato. Do mesmo modo, os
munidades do Nordeste, que viviam em situa- sicionamento por parte da Igreja po- leigos nunca se importaram com essas
ção de miséria. Dedicamos a editoria Memória deria representar para a comunidade questões. Essa era uma preocupação
da IHU On-Line número 125, de 29-11-2005,
a Dom Hélder Câmara, publicando o artigo católica? dos bispos, e foi uma das causas que
Hélder Câmara: cartas do Concílio. Na edição Kenneth Serbin – A discussão do celi- motivaram a instalação de seminários
157, de 26-09-2005, publicamos a entrevista no Brasil. Até a época do padre Feijó,
“O Concílio, Dom Helder e a Igreja no Brasil”, 13 Getúlio Vargas (1882-1954): ex-presidente
realizada com Ernanne Pinheiro. Confira, ain- da República. Sobre ele, a revista IHU On-Line existiam poucos seminários no país e
da, a editoria Filme da Semana da edição 227 publicou os seguintes materiais: edição 111, a formação seminarística era fraquís-
da IHU On-Line, 09-06-2007, que comenta o de 16 de agosto de 2004, intitulada A Era Var- sima. A Igreja investiu nesses colégios
documentário Dom Hélder Câmara — O santo gas em Questão — 1954-2004, e a edição 112,
rebelde. (Nota da IHU On-Line) de 23 de agosto de 2004, chamada Getúlio. justamente para implantar o celibato.
12 Dom Luciano Mendes de Almeida (1930- Confira também o texto do Prof. Dr. Juremir Lá, isolavam meninos de oito e nove
2006): padre jesuíta, arcebispo de Mariana, Machado da Silva, da PUCRS, publicado no nú- anos, os quais não podiam ter conta-
e ex-presidente da Conferência Nacional dos mero 30 dos Cadernos IHU Idéias, chamado
Bispos do Brasil (CNBB). Dele, a IHU On-Line Getúlio, romance ou biografia?. Vale destacar to com as mães e outras mulheres. Só
publicou uma entrevista na 24ª edição, de 01- o Cadernos IHU em formação número 1, publi- visitavam a família em ocasiões espe-
07-2002, por ocasião de sua participação no cado pelo IHU em 2004 e intitulado Populismo ciais. Por que tudo isso? Para formar
Simpósio Nacional Bem Comum e Solidarie- e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola.
dade, promovido pelo IHU em junho de 2002, As versões eletrônicas encontram-se disponí- padres celibatários.
um artigo na 85ª edição, de 24-11- 2003, e veis no sítio www.unisinos.br/ihu. (Nota da
outro artigo na 95ª edição, de 5-04-2004. Por IHU On-Line) Divisão na Igreja
ocasião de seu falecimento, em 27-08-2006, o 14 Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-
sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu), ofereceu 1976): médico e político brasileiro, conhecido Em 2003, um estudo realizado pelo
ampla repercussão sobre sua vida e trajetória. como JK. Foi presidente do Brasil entre 1956 e Ceris (Centro de Estatística Religiosa e
Para conferir detalhes, acesse as Notícias do 1961, sendo o responsável pela construção de 15 Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista
Dia de 28-08-2006. Em 03-09-2007, publicamos Brasília, a nova capital federal. Sobre JK, con- Montini foi papa da Igreja Católica entre 1963
uma entrevista especial com Dom Pedro Luiz fira a edição 166, de 28 de novembro de 2005, e 1978. Chefiou a Igreja Católica durante a
Stringhini, intitulada “O leilão da Vale não foi A imaginação no poder. JK, 50 anos depois, maior parte do Concílio Vaticano II e foi decisi-
ético, dizia D. Luciano Mendes de Almeida”. disponível para download na página do IHU vo na colocação em prática das suas decisões.
(Nota da IHU On-Line) www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


Investigações Sociais), órgão da CNBB, dre que abusava de seminaristas, e, ao
mostrou que 42% dos padres querem que ser descoberto, foi transferido para tra-
o celibato seja opcional, ou seja, quase “A Igreja precisa recuperar balhar com crianças. Isso é uma hipocri-
metade dos sacerdotes. Só que o papa e sia muito grande. Então, como se pode
a Igreja não aceitam esse debate. esse espírito do Concílio, perceber, a Igreja do Brasil passa pela
Os bispos reivindicavam essa mu- mesma crise moral que passou a Igreja
dança, porque percebiam que estavam valorizar o diálogo com dos EUA. A responsabilidade de mudar
perdendo sacerdotes. Além disso, os ca- essa realidade cabe não só aos padres
tólicos são somente 73% da população, outras crenças, filosofias, brasileiros, mas também ao papa.
e a cada ano está diminuindo a propor-
ção católica na sociedade brasileira. Não e aprender que o mundo IHU On-Line - Há semelhanças entre
bastasse isso, as igrejas neopetencostais a Igreja Católica do Brasil e dos EUA?
estão construindo mais templos, for- é plural. O problema da Em quê? Quais são as principais dife-
mando pastores em menos tempo e libe- renças entre elas?
rando-os para casar. Em contrapartida, Igreja na América Latina Kenneth Serbin – A Igreja nos EUA
na Igreja Católica a proporção de padres sempre foi minoritária, e nunca teve
disponíveis para atender a população é é que ela sempre foi um uma concordata moral como ocorreu
muito desigual. São mais de 10 mil fiéis no Brasil. A Igreja brasileira era quase
para cada padre. Como a Igreja vai dar monopólio. Hoje isso está um outro Estado, pois ela sempre teve
atenção a essas pessoas se não existem o poder político, econômico e moral,
mais padres? Se permitissem o casamen- mudando, pois o ou seja, representava um poder parale-
to dos sacerdotes, acredito que surgi- lo, enquanto a Igreja norte-americana
riam mais vocações na Igreja brasileira. continente está mais sempre viveu uma situação de pluralis-
A comunidade católica iria se beneficiar mo. Só agora a Igreja brasileira come-
dessa questão, pois, além de permitir a democrático e pluralista” ça a enfrentar a realidade do mundo
volta dos padres casados, iria regulari- moderno, ou seja, a perceber que na
zar a situação dos que vivem, segundo a sociedade existem outras fés, igrejas,
Igreja, em pecado. ções? As penalidades que conheço são crenças e maneiras de ver o mundo.
realizadas pela justiça. Raramente sai Muitos integrantes da Igreja brasileira,
IHU On-Line - No livro Padres, celi- uma notícia no jornal mostrando, por inclusive os progressistas, não queriam
bato e conflito social. Uma história exemplo, que um padre foi processado diálogo, e tampouco pretendiam reco-
da Igreja Católica no Brasil, o se- por abusar uma crianças. nhecer o crescimento de outras religi-
nhor afirma que desde os anos 30 ões. Somente agora estão refletindo so-
padres cometiam abuso sexual e não Exemplo americano bre isso. Ou seja, demorou muito para
eram punidos. O senhor acredita que Quando foram noticiados casos de se chegar a esse ponto.
os bispos continuam ignorando essa abuso sexual nos EUA, o Vaticano dis-
realidade? Por que é tão difícil para se que eles eram um problema local. IHU On-Line - Quais as principais de-
a Igreja se posicionar rigidamente A mídia americana, como sempre, não ficiências da Igreja brasileira, hoje?
diante desses acontecimentos? pesquisou a situação em outros países. Kenneth Serbin – A falta de compro-
Kenneth Serbin – Sim. Eles continuam Mas, ao tomar conhecimento dessas misso com o espírito do Concílio do
ignorando a realidade e colocando o práticas, a Igreja norte-americana Vaticano II. O Brasil foi um dos países
lixo embaixo do tapete. Nasini cons- criou uma comissão especial, instituiu que mais aderiu a esse espírito inova-
tatou que 10% dos padres brasileiros regras novas, fez uma devassa em toda dor. Hoje, a posição assumida naquela
cometem abusos sexuais. Ele inclui, a Igreja para acabar com aquele tipo época está muita fraca. A Igreja recua
nesse estudo, padres que mantêm re- de comportamento. A Igreja do Brasil de muitos desafios. Já avançamos no
lacionamentos com mulheres. Discordo ainda não enfrentou essa questão. A que diz respeito à participação das
dele nesse sentido, porque penso que imprensa brasileira não está interes- mulheres na Igreja, mas poderíamos
esses sacerdotes não praticam abuso sada em pesquisar o assunto, e a so- prosperar mais nesse sentido.
sexual. Nesse caso específico, ambos ciedade é tolerante com esse tipo de No atual estado do mundo, o deba-
(o padre e sua companheira) vivem um problema. te sobre o aborto também deve ganhar
relacionamento difícil, proibido, pois Claro que isso não acontece ape- mais destaque. Não digo que a Igreja
a Igreja não permite a união. nas no Brasil. Desde os anos 1930, nos deva abrir mão de seu ensinamento
De qualquer modo, sabemos que EUA, por exemplo, quando um padre moral sobre o tema, mas essa é uma
é relevante o número de sacerdotes abusava sexualmente de alguém, e era questão de saúde pública. Existem tan-
abusando de crianças, mulheres e descoberto pelo bispo, simplesmente tas mulheres se automedicando, reali-
homens. Entretanto, quantos bispos era transferido, sem receber qualquer zando abortos em clínicas clandestinas,
questionam isso? Quantas pesquisas punição. Tampouco era excomungado. isto é, há muito sofrimento nesse senti-
existem sobre esse fato? E as puni- No meu livro, relato o caso de um pa- do. Essas ações mostram como a Igreja,

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 31


a imprensa e a sociedade brasileira não
valorizam a posição da mulher. Tenho
certeza que, se os homens pudessem fi-
O Dom Quixote da fé cristã
car “grávidos”, o aborto seria legaliza-
Regina Schöpke fala sobre a obra que é relançada no Brasil 100
do. A sociedade precisa valorizar mais
a experiência da mulher. A Igreja bra- anos após a publicação da primeira edição
sileira poderia desenvolver um papel
profético nesse sentido, poderia aco-
POR GRAZIELA WOLFART
lher essas pessoas e ajudá-las, ao in-
vés de simplesmente impor uma norma
dizendo que aborto é pecado. A vida é

A
pesar de se tratar de uma obra de cunho doutrinário, Regina Schöpke
mais complexa do que isso.
vê como mérito de Gilbert Keith Chesterton, no livro Ortodoxia (São
IHU On-Line - O senhor diz que “so- Paulo: Mundo Cristão, 2008), o fato de “ter idéias próprias e, sobretu-
mente olhando para o passado é que do, convidar a todos para um diálogo franco e aberto, ainda que ele
a Igreja vai se preparar para o fu- não possa fugir completamente de um certo dogmatismo”. Ela ainda
turo”. Nesse sentido, que aspectos ressalta a disposição do autor para combater o materialismo e a ciência, “num
devem ser resgatados para projetar tempo em que poucos tinham coragem para isso”. Segundo ela, “nesse combate,
um futuro melhor para a Igreja? Que suas armas são as idéias, o que também deve servir de exemplo para os nossos
futuro podemos esperar para a Igre- contemporâneos, numa sociedade em que renascem certos fanatismos sangui-
ja nos próximos anos, especialmente nários que costumamos julgar um vestígio sombrio do nosso passado”. Regina
na América Latina e no Brasil? lembra também que, para Chesterton, “a alegria é a expressão mais viva de uma
Kenneth Serbin – A Igreja precisa re- fé autêntica e incondicional, que se baseia na certeza de um sentido para a sua
cuperar esse espírito do Concílio, va-
existência e para a do mundo”.
lorizar o diálogo com outras crenças,
Regina Helena Sarpa Schöpke é doutora em Filosofia, pela Unicamp, mes-
filosofias, e aprender que o mundo é
plural. O problema da Igreja na Améri- tre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em História
ca Latina é que ela sempre foi um mo- Medieval, pela Universidade Federal Fluminense. É tradutora, resenhista dos
nopólio. Hoje isso está mudando, pois jornais O Globo e O Estado de S. Paulo e autora do livro Por uma filosofia da
o continente está mais democrático e diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade (São Paulo: Edusp/Rio de Ja-
pluralista. A Igreja tem de se adaptar neiro: Contraponto, 2004).
a essa situação. Temo que, se ela não
recuperar esses aspectos, poderá cair
IHU On-Line - Qual o interesse em modo geral, é que elas são extrema-
na irrelevância. Além disso, a Igreja
publicar Ortodoxia, 100 anos de- mente dogmáticas e se fecham para
deve valorizar mais a cultura brasilei-
pois do lançamento da obra? Qual a reflexão mais ampla. O mérito de
ra e seu povo. A própria América Latina
a atualidade do livro? Chesterton, nesse caso, é ter idéias
vive uma sensação de inferioridade. A
Regina Schöpke - Primeiramente, é próprias e, sobretudo, convidar a to-
Usmas, nesse sentido, queria valorizar
preciso que se diga que os bons li- dos para um diálogo franco e aberto,
o país e o que é brasileiro na tradição
vros são sempre atuais, e os maus li- ainda que ele não possa fugir com-
católica, construindo uma formação ge-
vros já nascem “mortos”. A força da pletamente de um certo dogmatis-
nuinamente nacional. Esse é o desafio.
arte e da filosofia reside justamen- mo. Afinal, a despeito de todo o seu
te no fato de que, embora criadas, humor e leveza, ele também acre-
LEIA MAIS... elas entram numa espécie de devir dita (como todo espírito religioso)
>> Confira outra entrevista concedida por eterno, podendo ser atualizadas em ter atingido uma verdade que exclui
Serbin à IHU On-Line, e artigos publicados nas
qualquer tempo e lugar. Nenhuma todas as outras alternativas. Ele é
Notícias do Dia. O material está na nossa página
eletrônica www.unisinos.br/ihu. pessoa com amor pelo conhecimen- um homem de fé, antes de qualquer
Entrevista: to questionaria a publicação de uma outra coisa. Não deixa, no entanto,
* Dom Ivo Lorscheiter morreu. Ele foi um gigante
obra de Platão ou de Aristóteles e, de ser digna de admiração a sua dis-
da esperança. Entrevista especial com Irmã Lour-
des Dill e Kenneth Serbin, de 05-03-2007, publi- no entanto, quase 2.500 anos nos posição para combater o materialis-
cada nas Notícias do Dia. separam deles. Com relação à Orto- mo e a ciência, num tempo em que
doxia, a questão não é muito dife- poucos tinham coragem para isso.
Artigos:
* CF 2007 – Um documento que recupera o ativis- rente. Trata-se de um livro original, Nesse combate, suas armas são as
mo do catolicismo libertário, de 25-02-2007; concordemos ou não com as idéias idéias, o que também deve servir de
* Concordata. Quando o Estado disse amém, de
de Chesterton, sejamos ou não cris- exemplo para os nossos contemporâ-
13-05-2007;
* Os bastidores de uma paróquia nos EUA. Uma tãos. No fundo, o maior problema neos, numa sociedade em que renas-
religião patriótica que não criará revoluções, de das obras de teor religioso ou polí- cem certos fanatismos sanguinários
20-04-2008.
tico, das obras doutrinárias de um que costumamos julgar um vestígio

32 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


sombrio do nosso passado. perspectiva pragmática e sociológica
da fé, porque o que ele quer dizer, no
IHU On-Line - Em que consiste a tese “A tese cristã é que o fundo, é que a fé (e mais ainda, a cris-
de Chesterton de que “só no cris- tã) é, antes de qualquer outra coisa,
tianismo há liberdade” e de que o homem é essencialmente uma necessidade social, uma diretriz
cristianismo era “a única saída au- para a boa convivência entre os ho-
têntica” para os problemas da mo- livre, capaz de escolher mens.
dernidade?
Regina Schöpke - Chesterton nunca seus caminhos e tomar IHU On-Line - Como justificar a im-
escondeu seu horror ao ateísmo, às portância do cristianismo hoje, em
diversas formas de materialismo e a decisões sobre a sua vida” nossa sociedade marcada pela secu-
todos os modernos sistemas de pen- larização? O livro de Chesterton aju-
samento que prescindiam da idéia de da nesse sentido?
Deus: o positivismo e o determinismo apenas três) negam com veemência, Regina Schöpke - A religião continua
científico, o darwinismo, o marxismo, mostrando que a vontade é sempre viva, apesar de todo o materialismo
e até mesmo o capitalismo. Apesar do determinada por alguma coisa (valo- do mundo em que vivemos, e a ra-
próprio Chesterton ter passado por res, necessidades, idéias), ou seja, zão disso se encontra no fato de que
uma crise religiosa, ter vivido uma mostrando que a liberdade humana é a humanidade continua à espera de
fase cética, ele — como um bom filho mais uma das ficções que nós criamos. uma salvação externa, transcendente,
pródigo — assume a defesa integral de No entanto, para Chesterton, idéias de algo que dê alívio aos seus sofri-
uma religião que é, para ele, o único como essas envenenariam o homem, mentos e exorcize os seus fantasmas.
e verdadeiro exemplo de liberdade em pois não lhe dariam qualquer saída O homem transferiu essa esperança
nosso mundo. De fato, a tese cristã é para a sua vida. É aí que entra a sua primeiramente para a política e mais
que o homem é essencialmente livre, crítica profunda à razão — que ele, no tarde para a ciência, mas nada disso
capaz de escolher seus caminhos e entanto, não deixa de usar para cons- pode realmente corresponder às suas
tomar decisões sobre a sua vida — o truir seu próprio edifício teórico. Ele expectativas. É claro que, em termos
que pensadores como Schopenhauer1, julga a razão arrogante e pretensiosa políticos, a Igreja Católica já não tem
Nietzsche2 e Holbach3 (para citar quando ela pensa poder se sustentar a mesma força que tinha na Idade Mé-
sem Deus. Para ele, o cinismo do seu dia, mas a religião é uma questão de
1 Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo
alemão que introduziu o budismo e a filosofia tempo tem origem exatamente na fé fé e não de atualidade. É claro que o
indiana na metafísica alemã. Ficou conheci- exacerbada na “luz natural” (e, aqui, nosso tempo, em comparação com os
do por seu pessimismo e entendia o budismo ele se volta contra os iluministas, para
como uma confirmação dessa visão. (Nota da
séculos passados, é extremamente cé-
IHU On-Line) os quais a razão está acima de qual- tico e materialista, mas nem por isso a
2 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo quer outra coisa). Para Chesterton, é necessidade do maravilhoso, do trans-
alemão, conhecido por seus conceitos além- por enaltecer demais os poderes da ra-
do-homem, transvaloração dos valores, niilis-
cendente, deixou de ser forte no ser
mo, vontade de poder e eterno retorno. Entre zão que o homem termina por se colo- humano. Quanto ao papel do livro de
suas obras, figuram como as mais importantes car no lugar da divindade, a se pensar Chesterton, creio que ele pode refor-
Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei- acima de todas as coisas. Ele entende
ro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo
çar a fé dos crentes e até mesmo di-
(Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da que é isso que leva a um esvaziamento recionar o misticismo difuso de alguns
moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Es- do sentido da vida, fazendo a huma- indecisos, mas certamente não conse-
creveu até 1888, quando foi acometido por nidade sentir-se perdida e solitária,
um colapso nervoso que nunca o abandonou,
guirá ser uma trombeta de Josué, ou
até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedi- sem vínculos entre si e com o resto do seja, não pode convencer senão aos
cado o tema de capa da edição número 127 da universo. Não nos cabe aqui, por uma que já estão propensos ou em dúvida.
IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o filósofo questão de espaço, fazer uma crítica
alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva
Mas isso, no fundo, ocorre com qual-
realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 profunda deste pensamento, mas é quer idéia.
de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio claro que Chesterton busca justificar a
Brito, docente na Universidade de Louvain-La- fé também com argumentos racionais.
Neuve, intitulada “Nietzsche e Paulo”. A edi-
IHU On-Line - Como entender a de-
ção 15 do Cadernos IHU em formação é inti- Nesse sentido, sua posição se aproxi- fesa da fé cristã feita por Chesterton
tulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. ma da de Voltaire,4 que, embora seja no contexto histórico de sua época,
(Nota da IHU On-Line) um dos maiores iluministas, acredita
3 Paul Henri Thiery (Barão de Holbach - 1723-
início do século XX, na Europa?
1789): ateísta alemão, determinista e mate- que sem a fé em Deus o homem (e a Regina Schöpke - Depois de um perío-
rialista. Considerava o universo como um sis- própria ordem social) desmoronaria e do de pleno poder, que se estendeu até
tema complexo, organizado através das leis de se perderia. Essa não deixa de ser uma
causa e efeito. Expressou em suas obras idéias
o fim da Idade Média, a Igreja foi per-
radicais e defendia que o ateísmo era um pré- 4 Voltaire (1694-1778): pseudônimo de Fran- dendo a sua hegemonia, especialmente
requisito para qualquer teoria ética válida. So- çois-Marie Arouet, poeta, ensaísta, dramatur- com a expansão do ensino laico e com
bre a religião, ele dizia que ela estava baseada go, filósofo e historiador iluminista francês.
em dogmas e rituais inúteis e sem sentido. Seu Uma de suas obras mais conhecidas é o Dicio-
a Reforma. Nos séculos XVII e XVIII,
livro mais famoso foi O sistema da natureza nário Filosófico, escrito em 1764. (Nota da IHU muitos filósofos contestavam as bases
(1770). (Nota da IHU On-Line) On-Line) da fé cristã, que não resistiam a um

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 33


exame crítico isento. Com a Revolução
Francesa, a Igreja viu-se reduzida a “Para Chesterton, é por IHU On-Line - Quais são as diferenças
uma instituição entre outras, perden- entre o cristianismo de Chesterton e
do muito do seu poder e prestígio. No enaltecer demais os o cristianismo que se institucionali-
século XIX, essa decadência atingiu o zou?
seu ponto máximo, com a ciência as- poderes da razão que o Regina Schöpke - Do mesmo modo
sumindo o papel da Igreja como produ- como se pode alegar que o Deus guer-
tora de verdades e de valores, como a homem termina por se reiro e vingativo do Velho Testamento
grande redentora da humanidade. No não é compatível com o Deus amoroso
início do século XX, época da publica- colocar no lugar da e tolerante do Novo Testamento, po-
ção de Ortodoxia, o mundo vivia uma demos dizer que o Cristo dos Evange-
espécie de êxtase materialista, que só divindade, a se pensar lhos não se encontra no Catolicismo
a Grande Guerra iria desfazer. Para um Romano. A mensagem de humildade
homem de fé, essa situação era angus- acima de todas as coisas” e fraternidade de Cristo soa estranha
tiante e intolerável. Chesterton, com diante da pompa autocrática do pa-
uma coragem comovente, assume o pado romano, que por tantos séculos
papel de defensor de uma causa apa- foi tão ou mais vicioso que os déspo-
rentemente perdida. Expõe-se dian- pode-se dizer que — do ponto de vista tas seculares. Chesterton é um cristão
te de seus inimigos de uma maneira da fé — não existem exatamente pa- autêntico, que procura afirmar sua fé
que não é nem um pouco estranha ao radoxos, mas apenas mistérios que o com todas as forças de seu coração e
cristianismo original. É por isso que o homem não consegue desvendar. Po- também de sua razão, porque é claro
pensamos como um Dom Quixote da fé rém, para justificar-se pela via da ra- que ele está sempre buscando argu-
cristã. A diferença entre Chesterton e zão (que é a sua arena de combate), é mentar a favor da sua fé. Ele deseja
muitos intelectuais cristãos é que ele inevitável que Chesterton procure har- que todo cristão faça o mesmo: que
teve coragem de fazer abertamente a monizar o irreconciliável, juntar peças afirme, que viva a sua fé sem medo,
defesa da sua fé. É nisso que consiste que não se encaixam de modo algum. que faça da alegria a sua força e da
a sua originalidade. Aliás, o cristianismo (não enquanto fé, esperança sua razão para viver. Essa
mas como religião institucional roma- é a única maneira que ele encontra
IHU On-Line - Quais as bases que ali- na), sempre tendeu para o que pode- de fazer frente aos inimigos do cris-
cerçam a ardorosa fé de Chesterton? mos chamar de “racionalização da fé” tianismo: provando que, na prática, a
Regina Schöpke - No fundo, a fé ardo- (e, é claro, que isso diz respeito à he- sua fé oferece melhores condições de
rosa já é a sua própria base, sustenta rança grego-romana que, juntamente existência e maiores razões para viver
a si mesma, ainda que isso soe como com o judaísmo, ajudou a formar o do que o materialismo e o determi-
um terrível círculo vicioso. É verdade espírito cristão). Se, na Idade Média, nismo, que apenas levariam o homem
que o próprio Chesterton enumera mil muitos teólogos chegaram a ser acu- ao desânimo e à perda de entusiasmo
razões para ser cristão, mas todas elas sados de heréticos por conta disso, a pela existência. Seu cristianismo não é
implicam numa fé a priori na verdade verdade é que a originalidade do cris- aquele que prega o medo do inferno,
dessas proposições. Num certo sen- tianismo, sobretudo do catolicismo, mas o que convida o homem a pensar
tido, Chesterton é um cristão muito está nesse diálogo (sempre perigoso) nas delícias do paraíso.
pouco convencional, embora defenda que ele procurou manter com a razão.
os dogmas tradicionais. Isso quer dizer No fundo, esta é uma das causas da IHU On-Line - Como entender a afir-
que ele não é prisioneiro de uma re- sua força e também da sua fraqueza mação de Chesterton de que “a ale-
ligião institucional que, ao contrário (pelo menos, enquanto crença). Ches- gria é o gigantesco segredo do cris-
do que dizem os seus dirigentes, está terton reconhecia os paradoxos de sua tão”?
submetida às mudanças que afetam doutrina, mas chamava a atenção para Regina Schöpke - No fundo, como ho-
toda a sociedade. Num mundo ma- o fato de que o paradoxo não é uma mem de fé, Chesterton considera o
terialista, capitalista e cientificista, contradição, é apenas uma aporia, é cristianismo como ele “deveria” ser, e
mesmo os religiosos parecem precisar algo sem resposta, sem saída. Seja não como ele é na sua realidade obje-
cada vez mais de motivos palpáveis como for, para Chesterton, esses pa- tiva. Num certo sentido, desde os seus
para crer, de provas da divindade do radoxos apenas expressam as tensões primórdios, é possível verificar que
seu Deus (até mesmo de provas cientí- e os contrastes da vida e da própria existem dois cristianismos, como fala-
ficas). Chesterton tem fé e não precisa razão. Contrastes que, segundo ele, só mos anteriormente: o de Cristo e o de
de nada mais, eis o ponto. a doutrina cristã consegue conciliar e Roma. O de Cristo é uma mensagem de
harmonizar, mesmo porque, das três amor e tolerância (ou, como diz Ches-
IHU On-Line - Como Chesterton li- religiões monoteístas, apenas no cris- terton, uma mensagem de esperança e
dava com os paradoxos da doutrina tianismo Deus é espírito, mas também alegria), mas foi o romano que preva-
cristã? é homem. leceu sobre os espíritos, e este, em sua
Regina Schöpke - De certa forma, forma institucionalizada, foi tirânico

34 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


e, muitas vezes, sanguinário. Afinal, to, inclusive a moral e a religião, são cado, Chesterton expõe claramente
antes de qualquer outra coisa, a Igreja criações humanas). Mas, em termos seu lado mais ortodoxo e retrógrado.
Católica era uma instituição de poder, mais estritos, a razão (nos moldes gre- Ele considera que o pecado “consti-
que não mediu esforços para impor gos) é algo que põe em juízo todas as tui a única parte da teologia cristã
seu credo por toda a Europa. Como coisas e, assim, faz (ou deveria fazer) que pode realmente ser provada”. A
não existe dominação sem medo, não ruir as ficções “ilegítimas”. Mas, para queda do homem, a partir do peca-
é exagero dizer que a imagem do cris- lá da questão da própria crença, e a do original é, para ele, uma verdade
tão sempre se assemelhou mais à dos despeito da alegria inabalável e da inquestionável (como muitas outras,
homens atormentados das pinturas de vontade de viver de Chesterton (algo aliás); e aqui ele se dirige tanto aos
Hieronymus Bosch5 (com um pé na vida que ele atribui a sua fé, mas que ou- descrentes quanto aos “novos teólo-
e outro no inferno) do que a do homem tros pensadores podem atribuir a ou- gos”, que sustentam que num mun-
alegre e entusiasmado de Chesterton. tras razões), ele não consegue escapar do criado por Deus não pode existir
É verdade que Chesterton deseja ser o das armadilhas do “espírito” religioso, o pecado (já que Deus é justo e per-
porta-voz de um cristianismo “puro”, e uma delas é o dogmatismo. É as- feito). É aqui que Chesterton usa de
mas puro não quer dizer “novo”. É na sim que, apesar de toda a sua capa- toda a sua ironia, alegando que Deus
ortodoxia, como ele próprio deixa cla- cidade de argumentação e de todo o realmente não tem pecados, mas que
ro, que está a “salvaguarda segura da seu humor, boa parte de suas idéias os homens têm, e muitos. É nesse
moralidade e da ordem”, e também é não resiste realmente a uma reflexão ponto que ele usa também de toda a
com ela, e apenas com ela, que Ches- mais profunda. É a crença e não a ra- sua força de argumentação (não dei-
terton acredita poder combater os zão que o comanda. Isso não seria um xando, é claro, de produzir sofismas,
verdadeiros inimigos da fé cristã ou, problema para Chesterton, é claro, já como todo bom retórico), associando
mais propriamente, da liberdade hu- que ele próprio se vê como um crítico o pecado à loucura humana, ou seja,
mana. Em suma, a alegria, para ele, “mordaz” da razão (para ele, a razão fazendo do pecado, no fundo, o fruto
é a expressão mais viva de uma fé au- já provou que não pode direcionar o de um mundo que perdeu de vez os
têntica e incondicional, que se baseia homem para o verdadeiro caminho seus parâmetros e a sua perspectiva
na certeza de um sentido para a sua da felicidade e do bem-estar geral). real. No fim de tudo, é a própria ra-
existência e para a do mundo. O problema é que ele ataca a razão, zão que é acusada por ser a respon-
mas faz isso com as próprias armas da sável pela desrazão. “O que gera a
IHU On-Line - Quais as críticas que razão. Desse modo, assim nada mais insanidade é exatamente a razão”,
você faz à obra Ortodoxia? faz do que provar que é possível ar- diz Chesterton. Ou, mais exatamen-
Regina Schöpke - Nos tempos do nos- gumentar tanto a favor quanto contra te, é ela quem gera os pecados. Pode
so Cinema Novo, jovens estudantes qualquer coisa, desde que se tenha ser... mas também é ela quem cria os
esquerdistas da classe média faziam uma boa retórica. Porém, isso não é deuses! Em poucas palavras: talvez
filmes políticos para educar as mas- garantia alguma de “verdade” e, mui- haja algum sentido na idéia do peca-
sas. Porém, muitos acusavam esses to menos, é condição para alguém crer do original — como pensa Chesterton
filmes de serem realmente entendidos ou deixar de crer em Deus. De fato, —, mas talvez ela diga respeito ao
e apreciados apenas pelos próprios es- as certezas inquestionáveis podem até homem ter perdido, ao romper (ou
querdistas da classe média. A obra de dar um “sentido à vida humana”, mas tentar romper) com a natureza, a sua
Chesterton sofre do mesmo mal: ela elas não se apóiam certamente em “saudável razão natural”, como bem
convence plenamente os que já estão nada além da própria fé. É por isso que diz Nietzsche.
convencidos, mas fracassa no seu ob- seus argumentos só podem realmente
jetivo de defender a fé perante uma atingir os que já estão mergulhados na
sociedade materialista. A convicção é mesma “lógica”. Não se pode inverter
algo poderoso, tanto do lado dos re- a “marcha da razão” com a alegação
ligiosos quanto dos não-religiosos. Re- de que é “melhor” a religião do que o
petimos que a fé não é algo racional materialismo puro ou porque as teorias LEIA MAIS...
– embora, sob um certo aspecto mais científicas ou filosóficas não podem
Gilbert Keith Chesterton foi um escritor,
amplo e decisivo, é claro que a razão conter a crueldade, como denuncia
poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador,
é a criadora de todas as suas “verda- Chesterton, mesmo porque, na práti- biógrafo, filósofo, desenhista e conferencista bri-
des” (afinal, todas as coisas do espíri- ca, também as religiões nunca conse- tânico. Em 1893, ingressou na escola de arte Slade
School de Londres, onde iniciou a carreira de pin-
5 Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo é Hie- guiram frear a crueldade e as loucu-
tura que vai depois abandonar para se dedicar ao
ronymus Bosch, e também conhecido como ras humanas. Em outras palavras, a fé jornalismo e à literatura. Nascido em família an-
Jeroen Bosch (1450-1516): foi um pintor e perde a sua inocência quando precisa glicana, converteu-se ao catolicismo em 1922 por
gravador neerlandês dos séculos XV e XVI. influência do escritor católico Hilaire Belloc. Ao
Muitos dos seus trabalhos retratam cenas de do auxílio da razão para se defender.
falecer, em 1936, deixou todos os seus bens para
pecado e tentação, recorrendo à utilização de a Igreja Católica. A sua obra foi reunida em quase
figuras simbólicas complexas, originais, imagi- IHU On-Line - Como Chesterton trata quarenta volumes contendo os mais variados te-
nativas e caricaturais, muitas das quais eram mas sob os mais variados gêneros. O Papa Pio XI
obscuras mesmo no seu tempo. (Nota da IHU da questão do pecado na obra?
foi grande admirador de Chesterton.
On-Line) Regina Schöpke - Com relação ao pe-

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 35


Invenção
Editoria de Poesia

Juliana Krapp
POR ANDRÉ DICK

A poeta Juliana Krapp nasceu no / mas isso tudo é como nós dois, / na são íntimas é tão surrado reconhecer
Rio de Janeiro (RJ), em 1980. Ainda Cinelândia, às cinco horas / de uma / nas paredes que a única proprieda-
inédita em livro, já publicou poemas tarde de verão, com uma / caixa de de possível / é a fuga e mais ainda
nas revistas Inimigo Rumor (RJ), Poe- alfajores e vontade de café, quando o sono profundo”. O corpo, ao mes-
sia Sempre (RJ) e Modo de Usar & Co. / há no ar algo de concha, / estira- mo tempo, sustenta um desconforto
(SP) e no site Germina (www.germina- mento, zona cega: a experiência / do que se refere à perda: “nele a ossa-
literatura.com.br). Na área acadêmi- precipício”. Nesse sentido, ela parece tura se escancara a ponto de romper
ca, por sua vez, graduou-se em Jor- ter uma leitura muita apurada de uma / com um estrondo a própria voz / e
nalismo e é mestre em Comunicação conterrânea, Ana Cristina Cesar, que seu olhar apenas lembra / dobradiças,
Social, pela Universidade do Estado elaborava uma poética baseada numa rosetas / cremones / e toda a sorte /
do Rio do Janeiro (UERJ). Além disso, certa melancolia. de ferragens maliciosas”. Há uma sen-
participa do grupo CAC (Comunicação, sação, sempre, de que o corpo pode
Arte e Cidade), também do Rio. Onirismo e tempestade da natureza trazer consigo a autodestruição, mas
Não há dúvida, quando se lê seu também a liberdade, como se mostra
trabalho, de que ele traz uma sensa- Juliana costuma encadear seus po- claro no final do poema como “Per-
ção de originalidade, no que se refere emas com um pensamento ora suces- manência”: “[...] o corpo / que não
sobretudo ao encadeamento de idéias, sivo — em que a sintaxe desempenha sobe, apenas / fica, margeado / por
à escolha vocabular e ao ritmo implíci- papel essencial para costurar as diver- uma linguagem irrespirável, esperan-
to, pois Krapp dificilmente faz uso de sas imagens —, ora fragmentado, in- do / o último canto do canário belga
rimas. Percebe-se uma leitura, em sua terrompido, descontínuo — conferin- / às quatro da tarde, o coração / en-
obra, sobretudo dos poetas simbolis- do ainda mais sensação de vertigem, rodilhado em matizes / de um passeio
tas, mais sugerindo do que revelando como em “Enseada”: “nessa praia / as no lago”. O silêncio parece cada vez
os objetos, como desejava o francês ondas enevoadas arrebentam o branco mais presente, mas, ao mesmo tempo,
Stéphane Mallarmé. Mas a paisagem, / os barcos / desabotoam a precisão interrompido pela tempestade da na-
situada por alguns elementos que se das linhas / e as ilhotas, desgrenha- tureza (“somente as ventanias são de
referem a precipícios, montanhas, das / atracam viscos de luz”. Desse fato enamoradas / e apenas nelas ali-
águas, rochedos, vegetações, corren- modo, ela lida, em todos os poemas jam-se / as imundícies mais profundas
tezas, fala muito da cidade em que que publicou até agora, uma sensação / como somente os ramos / estralha-
Krapp mora, o Rio de Janeiro. No en- de perda. Mas não se trata de uma çam-se e engravidam-se / num único
tanto, ela troca o calor e a paisagem perda de algo passado, e sim de uma carretel de músculos em escombros”)
maravilhosa — traços bastante referi- perda presente, que parece ser senti- e pela presença de animais, como o
dos em poetas da cidade — por uma da apenas quando o texto é escrito, o gato, que corresponde, para a autora,
espécie de cortina de névoa, em que que confere uma lacuna que remete a à morte. Desse modo, ao mesmo tem-
as ações de pessoas, às vezes envolvi- um onirismo, remetendo ou a lugares po em que Juliana foca o aprazível,
das por um momento alegre, são sem- abertos (como campos) ou fechados o leitor é situado num ambiente de
pre despistadas por uma sensação in- (quartos, casas, lugares reclusos em desconforto e mudança, como se per-
cômoda de vertigem, como se percebe geral): “uma casa / / requer formas cebe também no poema inédito, sem
no poema “A estrutura íntima das ho- como dormideiras / que se recolhem título, que ela enviou especialmente
ras”: “Você, ao volante, não percebe à carícia quando todas as carícias / à IHU On-Line.
36 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
Uma voz interior
que dissesse: as amuradas, as inundações
Não sei se a quero ou se ela apenas desliza
rumo às placas tectônicas
não em off, mas
desmesurada

Seu destino
é habitar o fosso
onde o capim cresce e esperneiam
os monstros sinuosos (também deles
é o mundo)

Uma voz interior


e seu coração de lata: última bala
na agulha

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 37


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- consumo e pós-consumo”, defende a socióloga.
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.unisinos.
br/ihu) de 04-08-2008 a 09-08-2008. “A anistia não pode significar esquecimento”
Entrevista com Augustino Veit
Confira nas Notícias do Dia 07-08-2008.
A reabertura do caso Angelelli, bispo assassinado pela Para o advogado, não abrir os arquivos da ditadura torna
ditadura militar argentina o povo brasileiro carente da sua própria história.
Entrevista com Washington Uranga
Confira nas Notícias do Dia 04-08-2008 Referendo na Bolívia: uma solução para crise?
Hoje, há 33 anos, Enrique Angelelli, bispo de La Rioja, Entrevista com o deputado federal Dr. Rosinha.
Argentina, militante dos direitos dos pobres, morreu Confira nas Notícias do Dia 08-08-2008.
num acidente que nunca foi esclarecido. Acidente ou Para o integrante dos Observadores do Mercosul, a aprovação
assassinato? O jornalista argentino comenta a reaber- do referendo na Bolívia, ou seja, a aprovação pelo povo bo-
tura do caso. liviano da continuidade de Evo Morales à frente do país, pode
amenizar a crise política boliviana.
Encruzilhada Natalino, 30 anos. O nascimento de um
acampamento O agronegócio é um grande problema
Entrevista com Antonio Cechin Entrevista com Iara Pietricovsky
Confira nas Notícias do Dia 05-08-2008 Confira nas Notícias do Dia 09-08-2008
Há 30 anos surgiu o acampamento de Encruzilhada Na- Para a cientista política, a Rodada Doha foi um sucesso
talino. “Para as Comunidades de Base que pariram o exatamente pelo fato de o governo brasileiro não ter
MST, Encruzilhada Natalino representou o demonstrativo chegado a um acordo com a União Européia, os Estados
para a Igreja e a Sociedade de que ‘tinham vindo para Unidos e o Japão.
ficar’”, afirma Antonio Cechin.
Análise da Conjuntura
Consumo sustentável. O que é isso?
Entrevista com Lisa Gunn. A Conjuntura da Semana está no ar. Confira no sítio
Confira nas Notícias do Dia 06-08-2008 do IHU — www.unisinos.br/ihu, no dia 05-08-2008.
“O/a consumidor/a precisa cobrar das empresas das
A análise é elaborada, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores
quais está acostumado a consumir as informações so- - CEPAT - com sede em Curitiba, PR, em fina sintonia com o IHU
cioambientais do processo produtivos e também do pré-

acesse

www.unisinos.br/ihu
38 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 39
40 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268
Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana, realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Dia 13-08-2008

Conversas sobre o Mundo do Trabalho e a Vida dos/das


Trabalhadores/as: As políticas de trabalho, emprego e renda na
região do Vale do Rio dos Sinos
A proteção social e previdenciária dos trabalhadores/as no Vale do
Rio dos Sinos
Debatedores: Carolina Cerveira (Coordenadora do Centro de Re-
ferência e Assistência Social — CRAS de São Leopoldo), Charles
Pranke (titular da Secretaria Municipal de Assistência, Cidadania e
Inclusão Social de São Leopoldo), Luiz Antônio Rocha (servidor da
Previdência Social de Canoas) e Rosângela Maria Herver dos Santos
(especialista em Direito Previdenciário e professora da Unisinos)
Horário: das 19h30min às 22h
Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU

Dia 18-08-2008
Encontros de Ética
O jogo digital nos processos de ensino aprendizagem de língua
portuguesa: um estudo através das seqüências narrativas
Palestrante: MS Vanessa Doumid Damasceno
Horário: segunda-feira, das 17h30min às 19h
Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU

PARTICIPE DOS NOVOS EVENTOS DO IHU


CONFIRA A PROGRAMAÇÃO EM
WWW.UNISINOS.BR/IHU

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 41


Jogos digitais: aliados no processo de ensino-aprendizagem

Vanessa Doumid Damasceno pensa o jogo como uma concepção do


desenvolvimento humano, do ponto de vista biológico e cultural, a ser
assumida no âmbito do ensino-aprendizagem de línguas, em particular,
no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa

POR BRUNA QUADROS

E
m plena era digital, os jogos virtuais não servem apenas para entreter, mas,
também, para educar. A inserção desta metodologia nos processos de apren-
dizagem impulsiona o interesse e a motivação dos alunos pelo conteúdo das
aulas, evitando, assim, a evasão escolar. Segundo a Profa. MS Vanessa Doumid
Damasceno, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, qual-
quer jogo que tenha como enfoque a cooperação pode ser adotado como metodologia
de ensino. No entanto, é o Role Playing Game, o RPG, que surge como uma das ferra-
mentas virtuais mais utilizadas no processo de ensino. Isso “porque o jogador, além de
desempenhar bem seu papel na aventura, precisa ter muita responsabilidade, cumprir
regras, cooperar com o grupo e ainda manter a seriedade no jogo”. Para Vanessa, que
estará no Instituto Humanitas Unisinos — IHU, no dia 18 de agosto, para discutir o tema
O jogo digital nos processos de ensino aprendizagem de língua portuguesa: um estudo
através das seqüências narrativas, no evento Encontros de Ética, esses quesitos todos
são importantes na formação do caráter do indivíduo.
Vanessa Doumid Damasceno possui graduação em Letras, pela Universidade Católica
de Pelotas (Ucepel), e mestrado em Lingüística Aplicada, pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente, integra o corpo docente da Escola de Ensino
Fundamental Mario Quintana, em Pelotas, onde também é professora de cursos prepa-
ratórios para concursos, revisora no Profícere e palestrante na Microlins.

IHU On-Line - Seus estudos têm como IHU On-Line - Além do RPG, que ou- é competir, o fundamental é cooperar”
objetivo apresentar o jogo num am- tros jogos virtuais podem ser adota- e, com isso, propõe um novo paradigma
biente digital, possibilitando o ensino- dos como metodologias de ensino? para os jogos. Nesse novo enfoque, a vi-
aprendizagem de língua portuguesa De que forma estes ambientes refle- tória pode (e deve) ser alcançada quan-
através da narrativa. Qual a eficácia tem no desenvolvimento humano, do do um jogador ajuda o outro a vencer,
desta proposta, em comparação a um ponto de vista biológico e cultural? para que ambos possam vencer juntos.
processo tradicional de ensino, que Vanessa Doumid Damasceno - Qual- Nos jogos tradicionais, derivados dos
não utiliza jogos virtuais? quer jogo que tenha como enfoque a esportes, o enfoque é competitivo, ou
Vanessa Doumid Damasceno - Um dos cooperação pode ser adotado como me- seja, para haver vitorioso, tem de ha-
assuntos mais discutidos em educa- todologia de ensino. Pois o “jogo pelo ver um derrotado. Se admitirmos que
ção, atualmente, é como aumentar o jogo” não traz resultados positivos para situações vividas por um indivíduo em
interesse dos alunos e evitar a evasão a educação. Determinados jogos podem um jogo refletem o comportamento
escolar. O uso de jogos virtuais, como promover, junto com a motivação e a dele na vida ou vice-versa, esse com-
estratégia de ensino, é extremamente aquisição de conteúdo, algumas atitu- portamento “competitivo” durante o
eficaz para o aumento da motivação des não desejadas pelos professores, jogo não pode ser considerado educa-
dos alunos e uma poderosa ferramenta como a competitividade excessiva. Fá- tivo. Os professores necessitam, cada
do professor para o processo ensino- bio Brotto, em seu livro Jogos coopera- vez mais, de estratégias motivadoras, e
aprendizagem. Além disso, os jogos de tivos,1 preconiza que, “se o importante lo: 1999, Projeto Cooperação Editora. (Nota da
IHU On-Line)
RPG são essencialmente cooperativos. 1 Brotto, Fábio. Jogos cooperativos. São Pau-

42 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


com a credibilidade científica que seus
“O uso de jogos virtuais, como estratégia de ensino, é trabalhos possuem, propõem que o ato
de jogar contribui tanto para o desen-
extremamente eficaz para o aumento da volvimento biológico quanto cultural.
Aponta-se, assim, a estreita implica-
motivação dos alunos e uma poderosa ferramenta do ção do jogo para o processo de ensino-
aprendizagem. Os dados da pesquisa
professor para o processo ensino-aprendizagem” desses autores sobre o conhecimento
do próprio corpo e do corpo do outro,
em relação à consciência social das
que agreguem aprendizagem de conte- possível individualização, que outros crianças, indicam uma capacidade
údo com desenvolvimento de aspectos riscos estes jogos podem apresentar? operacional que elas adquirem normal-
comportamentais positivos, de acordo Vanessa Doumid Damasceno - Como o mente, como resultado de seu viver
com o planejamento escolar. Sendo as- jogo se dá em grupo e sempre há uma num domínio de total aceitação mútua
sim, os jogos atingem a primeira parte tarefa a ser solucionada cooperativa- nas interações com suas mães. A partir
da assertiva, pois, inegavelmente, são mente, o RPG está muito próximo das daí, pode-se defender a idéia de que
atividades que geram motivação intrín- dinâmicas de treinamento empresarial os jogos, no caso, desse estudo, os jo-
seca. Jogos comuns que desenvolvam o usadas nos dias atuais, o que o torna gos digitais, não são modismos ou algo
conteúdo são encontrados facilmente importante na escola, pois os alunos passageiro e sim algo que está relacio-
em diversos livros, manuais e outras mí- são inseridos nos conceitos modernos nado ao desenvolvimento humano. Os
dias, como CD-Roms, Livros-Jogo, Jogos de trabalho e relações pessoais, que autores, em suas conclusões, propõem
em Rede. Porém, ainda falta a esses jo- valorizam muito a capacidade de tra- que as consciências individual e social
gos alguns componentes comportamen- balho em grupo. O jogo de RPG tem da criança surgem mediante suas inte-
tais, como a socialização, a expressão um destaque especial, porque o joga- rações corporais com as mães, numa
e, principalmente, a cooperação. É pre- dor, além de desempenhar bem seu dinâmica de total aceitação na intimi-
ciso, portanto, que se tenha um jogo papel na aventura, precisa ter muita dade do brincar. Ninguém pode agir ou
cooperativo e que possa proporcionar a responsabilidade, cumprir regras, co- comporta-se fora do domínio de pos-
construção do conhecimento que o pro- operar com o grupo e ainda manter a sibilidades que sua corporeidade (é a
fessor pretende desenvolver. seriedade no jogo. Esses quesitos to- maneira pela qual o cérebro reconhe-
dos são importantes na formação do ce e utiliza o corpo como instrumen-
IHU On-Line - Em que fase da vida caráter do indivíduo. to relacional com o mundo) implica.
(infância, adolescência...) o uso Uma criança necessariamente chegará
de jogos digitais no processo de IHU On-Line - A senhora afirma que a ser, em seu desenvolvimento, o ser
ensino-aprendizagem apresen- os jogos digitais não são modismos humano que sua história de interações
ta resultados mais significativos? ou algo passageiro, mas, sim, algo com sua mãe e os outros seres que
Vanessa Doumid Damasceno - Os que possa realmente contribuir com a rodeiam permitir, dependendo de
jogos eletrônicos denominados de a formação humana. Por que esta como sua corporeidade se transforme
Role Playing Game — RPG enfatizam forma de ensino consegue prender nessas interações.
narrativas de fantasia num contexto a atenção dos alunos, fato que, nos
histórico. São exemplos de resolução métodos convencionais, às vezes, IHU On-Line - Qual é o papel dos pais,
de problemas projetados com uma não acontece? O que garante que os diante deste novo modelo de ensino
abordagem lúdica. Os adolescentes jogos não são apenas modismos? que está se instaurando na socieda-
repetem a experiência lúdica do faz- Vanessa Doumid Damasceno - Penso o de, partindo da premissa de que a
de-conta da infância na perspectiva jogo como uma concepção do desen- criança tem fácil domínio sobre os
desenvolvista e cultural, com a serie- volvimento humano, do ponto de vista jogos e, conseqüentemente, poderia
dade de regras escritas em ambien- biológico e cultural, a ser assumida dispensar o auxílio do pai e da mãe?
tes virtuais que “ensinam” a criar um no âmbito do ensino-aprendizagem Vanessa Doumid Damasceno – Atual-
mundo fictício com regras próprias, de línguas, em particular, no ensino- mente, as mães estão mais voltadas
por isso a escolha de trabalhar esses aprendizagem de Língua Portuguesa. para o lado profissional, e as condições
jogos na adolescência. Maturana2 & Verden-Zoller (2004),3 das sociedades modernas submetem à
2 Humberto Maturana: biólogo chileno, cria- continua exigência de afastar a aten-
dor da autopoiese e um dos propositores do
IHU On-Line - A metodologia de inse- pensamento sistêmico. É doutor em Biologia
ção de seus filhos, ocasionando nas
rir tais jogos na proposta pedagógica pela Universidade de Harvard, tendo alcança- crianças uma dificuldade para o desen-
de ensino não tende a levar os alunos do repercussão mundial ao lançar as noções de Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância
biologia do conhecimento e biologia do amor. de Passau, na Bavária. Escreveu, juntamente
a imergir em um mundo individuali- (Nota da IHU On-Line) com Humberto Maturana, o livro Amar e brin-
zado, tendo em vista que o contato 3 Gerda Verden-Zöller: psicóloga alemã. É car — Fundamentos esquecidos do humano
pessoal com os demais colegas po- membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educa- (São Paulo: 2004, Palas Athena Editora). (Nota
cional do Instituto Estatal para a Educação na da IHU On-Line)
deria estar prejudicado? Além desta Primeira Infância e fundadora do Instituto de

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 43


volvimento adequado de sua consciên-
cia individual e social. Nesse sentido,
deve-se pensar criticamente a afirma- O capitalismo visto pelo cinema:
tiva de que brincar é coisa de criança.
Com esse mundo dos jogos virtuais, vi-
Tucker — Um homem e seu sonho
deogames, surge o fascínio do brincar POR BRUNA QUADROS
e a ressignificação do brinquedo tanto
para crianças como para adultos.

E
m continuidade ao evento O capitalismo visto pelo cinema, o
IHU On-Line - Como a senhora defi- Centro de Apoio e Pesquisa aos Trabalhadores (CEPAT) exibirá
ne a crise da representação que os o filme Tucker — Um homem e seu sonho. A obra, de 1988,
meios digitais permitem, conforme
dirigida por Francis Ford Coppola, será exibida e debatida no
apontado nos seus estudos?
dia 16 de agosto, sob a perspectiva do capitalismo concor-
Vanessa Doumid Damasceno - O ad-
rencial (mercado e Estado).
vento da tecnologia digital cria um
Além de proporcionar uma reflexão acerca do atual contexto de so-
corte epistemológico. É uma crise da
representação que os meios digitais ciedade, embasado na lógica capitalista, o objetivo do evento é identifi-
permitem. Isso se chama de corte car os códigos usados em cada um dos filmes que serão exibidos, estabe-
epistemológico, autorizando a criação lecendo uma relação à compreensão científica do capitalismo. Mais do
de seres absolutamente fantásticos, que isso, pretende relacionar o desenvolvimento do capitalismo com as
em que se rompe a relação de adequa- atuais formas de organização econômica e social, através dos debates.
ção com o mundo dito representacio- Com entrada gratuita, a exibição do filme será no Sindicato dos En-
nal, base para a existência de signos. genheiros — SENGE/PR, das 8h30 às 12h30. O evento é promovido em
Não se assume, na radicalidade, ain- parceria com o Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
da, esse corte epistemológico. Talvez
essa seja a razão pela qual jogar RPG A realidade da proteção social e previdenciária dos
é questionável pela cultura do adulto.
Penso que, para haver a ruptura epis- trabalhadores do Vale do Sinos em debate
temológica que o mundo dos games
exige, seja necessário trazer o elemen- No dia 13 de agosto, o Instituto Humanitas Unisinos — IHU dá conti-
to de uma estética que desconstrói o nuidade ao evento Conversas sobre o mundo de trabalho e a vida dos tra-
analógico — trata-se, possivelmente, balhadores: as políticas de trabalho, emprego e renda na região do Vale
da estética contemporânea. Nela, vê- dos Sinos. Desta vez, o tema será analisado sob a perspectiva da proteção
se a possibilidade do imaginário que social e previdenciária dos servidores. Entre os debatedores, que estarão
os games solicitam, em nosso entendi- provocando uma análise reflexiva sobre o assunto, está a professora e es-
mento. A criança e o adulto que estão pecialista em Direito Previdenciário Rosângela Maria Herver dos Santos,
expostos a um cotidiano da estética integrante do corpo docente da Unisinos, no curso de Direito, e membro
contemporânea por certo terão uma da Comissão Municipal de Emprego e Renda de São Leopoldo.
atividade e julgamento favoráveis ao Ao conversar por telefone com a revista IHU On-Line, Rosângela sa-
que os jogos eletrônicos lhes solicitam. lientou que o número de pessoas que, por motivo de doenças crônicas
É importante afirmar que a compreen- e irreversíveis ou pela falta de oportunidades no mercado de trabalho,
são da cultura infantil dos games exi- cresce constantemente. Diante desta situação, “faltam medidas assis-
ge sua vinculação à estrutura familiar, tenciais para quem deixa de contribuir com o Instituto Nacional de Se-
à arte contemporânea e à tecnologia guridade Social (INSS), devido às circunstâncias apontadas acima”, diz
digital. Os games pressupõem, do pon- ela. Durante o evento, a professora irá abordar o reflexo desta situação,
to de vista do usuário, uma profunda para a população mais carente, que sofre com o desamparo previden-
transformação da estrutura familiar ciário. “Ao deixarem de contribuir, os trabalhadores perdem o direito à
— do mundo adulto e infantil. No mun-
assistência, mas esta situação não pode continuar”, destaca.
do do trabalho, criança e jovem vão
De acordo com Rosângela, a saída para quem enfrenta esta reali-
para a rua. Ocupam os espaços urba-
dade acaba sendo a aposentadoria por idade ou, ainda, ingressar com
nos. Trata-se de uma cultura de ocu-
um processo por meios judiciais. “Muitas vezes, as pessoas acabam
pação da cidade: vitrines, vendedores
ambulantes e casas de jogos. O brincar perdendo o benefício previdenciário por causa de doenças adquiridas
surge indiferenciado entre o privado, no próprio ambiente de trabalho.” Esta e outras questões tentarão ser
a casa, e o público, a rua. respondidas no evento, que será realizado na sala 1G119, junto ao Ins-
tituto Humanitas Unisinos — IHU, das 19h30 às 22h.

44 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268


Perfil Popular
Iolanda Gomes
BRUNA QUADROS
POR BRUNA QUADROS

S
imples e elegante. Estas palavras mostram um pouco da per-
sonalidade de Iolanda Gomes, 60 anos, o Perfil Popular desta
semana. Em visita à redação da revista IHU On-Line, ela des-
tacou que um dos princípios que seus pais lhe transmitiram
e que ela honra até hoje é a honestidade. A vida em São
Leopoldo, sua cidade natal, foi simples. Filha única, Iolanda não teve
muitos amigos, quando era criança. Ela conta que fez amigos no grupo
de Economia Solidária Magia do Encanto, também de São Leopoldo, do
qual faz parte há um ano. O trabalho foi uma das maneiras que ela en-
controu para se distrair, depois que ficou viúva, há dois anos. Conheça
um pouco mais da história de Iolanda Gomes:

A cidade de São Leopoldo, na região sino Médio. “Se eu fosse mais nova, vol- muito triste, depois da morte do meu
do Vale do Rio dos Sinos, é o município taria a estudar. Gostaria de ser juíza.” marido. Não sabia que rumo tomar.”
de origem de Iolanda Gomes, dona de Na trajetória profissional, Iolanda tem Foi através de uma amiga que Iolanda
casa, 60 anos. Filha dos operários Ger- uma breve passagem, de dois meses, conheceu o trabalho desenvolvido no
vázio Martins Lucas e Maria Célia Lu- no escritório das Lojas Pernambucanas, grupo, “uma forma que achei de não
cas, Iolanda conta que sua família era quando estava com 16 anos de idade. pensar no problema e me distrair.”
muito simples, mas lhe ensinou a cres- “Como eu era filha única, minha mãe Nesta atividade, o foco de Iolanda é a
cer com dignidade. “Ser honesta. Esta dizia que eu não iria servir de escrava culinária. É ela quem prepara os pas-
foi o principal valor que meus pais me para os outros, trabalhando em firmas.” téis de forno comercializados nas feiras
passaram.” Filha única, Iolanda não Iolanda conta que sempre ficou em casa, de Economia Solidária. “Me sinto muito
teve muitos amigos, quando criança. e é dona de casa até hoje. Aos 24 anos, feliz no grupo. Encontrei amigos que,
Aliás, esta, foi uma fase da vida que casou e começou a construir a sua fa- durante a infância, não tive.”
ela não pôde desfrutar. “Naquela épo- mília. O marido, Mário Gomes, também Atualmente, Iolanda mora no bairro
ca, tu estudavas pela manhã, teus pais achava que a mulher não era para o lar, Campina, em São Leopoldo. Ela conta
trabalhavam fora e, à tarde, tu tinhas mas, sim, para trabalhar. O casamento, que, nos momentos de folga, dispensa
que fazer a lida da casa. Não tinha que durou 33 anos, foi interrompido em badalações. “Não gosto de bailes, nem
muita chance de brincar.” Filha única, 2006, com a morte do esposo. de cinema. Sou muito de ficar em casa,
Iolanda lembra que seus pais não lhe Da união, ficou um único filho, o Má- mas gosto muito de ir à Igreja. Sou ca-
deram todo o carinho que ela gostaria rio Gomes Júnior, que está com 29 anos. tólica praticante.” Sobre a política bra-
de ter recebido. “Às vezes, fico pen- “Meu filho é a minha vida. É o que me sileira, Iolanda acredita que há muita
sando que me faltou isso na infância. restou. Minha família é o meu filho, a corrupção. No entanto, “não podemos
Eles eram muito antigos e também não coisa mais importante que tenho.” De- generalizar; ainda há políticos bons.
tiveram esse carinho, por isso não po- pois que ficou viúva, Iolanda precisou Não estou muito satisfeita, assim como
diam me dar.” de algo que pudesse servir como distra- muitos brasileiros”. Na opinião dela,
O gosto pelos estudos era intenso, ção. E encontrou. Há um ano, faz parte há muito para mudar no país, e esta
durante a juventude. No entanto, por do grupo Magia do Encanto, baseado mudança depende do povo, “porque
falta de incentivo do seu pai, ela cursou nos princípios da Economia Solidária. somos nós quem escolhemos as pessoas
apenas até a 2ª série ginasial, hoje, En- “Para mim, foi uma terapia. Eu estava para governar”.

SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 45


Cartas do Leitor
Reproduzimos mensagens recebidas recentemente, envia-
das por leitores e entrevistados da revista IHU On-Line: IHU Repórter
>> “Olá! Parabenizo a edição da IHU On-Line,
desta semana. Achei riquíssimas as reflexões so-
Adriana Karnal
bre o tema que traz o significado da figura pa-
POR BRUNA QUADROS
terna, tema merecedor de aprofundamento. Estamos
num momento de revisão de valores e investigação dos
indicadores sociais para tentar explicar a ocorrência da

O
interesse pelo idioma inglês acompanha Adriana
violência e vários estudos têm demonstrado grande re-
lação nas causas da violência com a ausência da figura Karnal, 38 anos, desde a infância. Aos 16 anos, a
paterna na estruturação dos sujeitos. Ótima leitura, língua passou a ser encarada como profissão, quan-
adorei. Obrigado por me enviar. Abraço.” do ela começou a dar aulas de inglês em cursinhos.
Rochele Sachet, membro da Fundação de Assistência Social No ensino superior, a opção foi pela faculdade de
da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Publicidade e Propaganda, cursada na Unisinos. No entanto,
a passagem por esta área foi muito breve, e Adriana decidiu
>> “Recebi pelo correio a revista com as várias entre- que seria, mesmo, professora de inglês. Em 2003, ela ingressou
vistas e fiquei muito bem impressionada com o traba- na Unisinos, como docente, no Unilínguas, instituto de idiomas
lho que vocês conseguiram fazer. Não sei como se dá a da universidade. Hoje, ela também leciona na área de inglês
distribuição da revista, mas seria bem interessante pela técnico para os cursos de engenharia e para as áreas de admi-
temática que pudessem fazer circular junto aos PPG’s de
nistração, nos cursos de Gestão e Comércio Exterior. Em entre-
Política, Antropologia ou História aqui da UFRGS ou mes-
vista à IHU On-Line, ela destacou aspectos marcantes da sua
mo da PUC, pois o material está muito bom. Abraço.”
Maria Izabel Noll, professora e coordenadora do PPG em trajetória de vida e, ainda, elogiou o governo Lula.
Ciência Política da UFRGS, entrevistada na IHU On-Line
número 264, de 30 de junho de 2008, cujo tema de capa é A

BRUNA QUADROS
crise gaúcha. Algumas reflexões críticas.

>> “Muito obrigado pela amabilidade de me enviar


a entrevista, que saiu excelente. Vocês conseguiram
realmente captar com muita felicidade o que era
mais importante nas respostas. Abraços”.
Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Unctad
(Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento), entrevistado na IHU On-Line número
267, de 04 de agosto de 2008, sobre a Rodada Doha e a
postura do Brasil em relação ao agronegócio.

>> “Muito grata pela notícia da publicação de nossa ma-


téria. Já percorri os três links e reforço minha excelente
impressão pelo sério e dedicado trabalho dessa editoria.
Gostaria de deixar meus cumprimentos a todos da IHU
On-Line e colocar-me à disposição para qualquer ativida- Origens – Nasci em São Leopoldo, onde moro até hoje. Sou
de que possa colaborar com a revista. Novamente, meus de uma família grande: somos quatro irmãos. Eu sou a do meio
cumprimentos a toda equipe pela revista que está de e estou com 38 anos. O meu pai tinha uma empresa de calça-
grande valor cultural e interessantíssima.” dos e também passou pelas dificuldades que as empresas do
Yeda Arouche, entrevistada na IHU On-Line número 265,
setor calçadista tiveram no início dos anos 1990. Hoje, ele e
de 21 de julho de 2008, cujo tema de capa é Nazismo: a
minha mãe estão direcionados para a espiritualidade, traba-
legitimação da irracionalidade e da barbárie
lhando com terapias alternativas.
>> “Muito obrigado pelo envio da revista. Ficou muito
bom e fico muito contente com esta participação.” Infância – Passei a infância e adolescência no bairro Cristo
Márcio Seligmann-Silva, entrevistado na IHU On-Line
Rei. Nós tínhamos sítio em Guaíba, então eu pescava, anda-
número 265, de 21 de julho de 2008, cujo tema de capa é
va de bicicleta, jogava bolinhas de gude com o meu irmão e
Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie.
brincava de bonecas. Foi uma infância muito vívida. Hoje, o

46 SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268

Você também pode gostar