Homoerotismo e Cânone Literário A Subjetivação Homoerótica Na Obra de Luís Capucho

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HOMOEROTISMO E CÂNONE LITERÁRIO: A SUBJETIVAÇÃO

HOMOERÓTICA NA OBRA DE LUÍS CAPUCHO

NITERÓI - RJ
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
SANDRO ARAGÃO ROCHA

HOMOEROTISMO E CÂNONE LITERÁRIO: A SUBJETIVAÇÃO


HOMOERÓTICA NA OBRA DE LUÍS CAPUCHO

Dissertação apresentada à Coordenação de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense - UFF - como
parte dos requisitos do Mestrado em Estudos de
Literatura, Subárea Literatura Brasileira/Teoria
da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura, Intermedialidade
e Tradução.
Orientador: Franklin Alves Dassie.

NITERÓI - RJ
2020
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

R672h Rocha, Sandro Aragão


Homoerotismo e Cânone Literário : a subjetivação
homoerótica na obra de Luís Capucho / Sandro Aragão Rocha ;
Franklin Alves Dassie, orientador. Niterói, 2020.
98 f.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,


Niterói, 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2020.m.14275450736

1. Literatura Homoerótica. 2. Literatura Gay. 3. Literatura


Brasileira. 4. Cânone Literário. 5. Produção intelectual.
I. Dassie, Franklin Alves, orientador. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD -

Bibliotecário responsável: Sandra Lopes Coelho - CRB7/3389


SANDRO ARAGÃO ROCHA

HOMOEROTISMO E CÂNONE LITERÁRIO:


A subjetivação homoerótica na obra de Luís Capucho

Dissertação apresentada à Coordenação de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense - UFF - como
parte dos requisitos do Mestrado em Estudos de
Literatura, Subárea Literatura Brasileira/Teoria
da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura, Intermedialidade
e Tradução.

BANCA EXAMINADORA

Prof.º Dr.º FRANKLIN ALVES DASSIE – Orientador


UFF

Prof.ª Dr.ª ANA PAULA EL-JAICK


UFJF

Prof.ª Drª. ANITA MORAES


UFF

Prof.ª Dr.ª DIANA KLINGER - Suplente


UFF

Prof.ª Dr.ª PAULA GLANADEL - Suplente


UFF

NITERÓI
2020
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, aos meus pais, Sandra Aragão e Francisco


Raimundo, que apesar de todas as dificuldades e da nossa realidade parecer estar contra
nós, sempre me motivaram e me apoiaram dentro das suas possibilidades para que eu
seguisse o caminho dos estudos. Se não fosse por eles, mesmo que nunca tenham
frequentado o ensino superior, talvez eu não tivesse tido a oportunidade de ingressar em
uma universidade, muito menos em um programa de pós-graduação.
Agradeço também a minha família, tias, tios, avós e alguns primos (pela
quantidade de parentes, não tenho como citar nominalmente todos), em especial a minha
tia Francisca de Assis, que sempre se mostrou muito interessada em minha caminhada
acadêmica e esteve constantemente torcendo para que ela seguisse da melhor maneira
possível. Além de, claro, ler diversas vezes junto comigo alguns capítulos da minha
dissertação e servir como uma espécie de orientadora.
Não posso deixar de citar meus amigos de caminhada: Rodolpho Amaral, Simone
Januário, Rodrigo Monteiro, Edyanna Barreto, Mateus Cabot, Sergio Abreu, Victor
Junger e Arthur Felipe Fiel. Pessoas que diretamente ou indiretamente me acompanharam
nesse processo, me motivando nos momentos penosos e compartilhando sorrisos nos de
alegria. Se não fosse eles, essa passagem teria, com certeza, sido mais dolorosa e solitária.
Faço aqui um agradecimento especial ao Franklin Alves Dassie, meu orientador,
que mesmo sem saber sobre todas as dificuldades e angústias que passei durante o
mestrado, foi alguém que, além de me auxiliar nesse processo, sempre foi muito empático
e compreensivo.
Por último, agradeço a professora Ana Paula El-Jaick e Anita Moraes por
aceitarem compor a minha banca, ocupando um espaço importante nessa caminhada: a
representação do fim de um processo.
RESUMO

Na pesquisa temos como proposta trabalhar com duas obras do escritor Luís
Capucho: Cinema Orly (1999) e Rato (2007). Os dois romances, escolhidos por terem
tido uma circulação de público mais ampla e terem entre si maior aproximação através
do seus personagens e narrativa, contam a história de um personagem que só tem a
possibilidade de vivenciar suas experiências de desejo e afeto em espaços públicos:
cinema pornô, terrenos baldios, banheiros públicos. Com o objetivo de analisar como se
dá a representação das relações homoeróticas na escrita de Capucho e como o escritor se
utiliza de uma perfomance de si (“autoficção”) para ficcionalizar e dar vida as suas
narrativas, faremos uma breve retomada histórica de como essa forma de relação foi
representada na Literatura Brasileira, além de refletirmos sobre a relação entre o cânone
e o homoerotismo, buscando clarificar como o cânone literário costuma se utilizar de
falsos pressupostos para marginalizar literaturas como as de Luís Capucho. Como base,
utilizaremos bibliografias/teóricos de áreas da teoria literária, sociologia, estudos de
gênero, história, configurando nosso trabalho como uma pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Literatura Homoerótica; Literatura Gay, Literatura Brasileira, Cânone


Literário.
ABSTRACT

This research has the purpose of working with two novels from the author Luís
Capucho: Cinema Orly (1999) and Rato (2007). Both novels, chosen for having a broader
public circulation and having among them a closer proximity through their characters and
narrative, tell the story of a character who can only experience his desires and affection
in public spaces such as adult movie theatres, empty lots, public restrooms. With the goal
of analysing how the representation of homoerotic relationships are portrayed on
Capucho’s writing and how the author makes use of a Performing the Self (“autofiction”)
to fictionalise and give life to his narratives, a short historical panorama on how this
relationship was represented on Brazilian Literature will be done, besides reflecting on
the relationship between the canon and the homoeroticism, clarifying on how the literary
canon is used to use of false assumptions to marginalise literatures such as from Luís
Capucho. As basis, bibliographies/theorists of the areas of Literary Theory, Sociology,
Genre Studies and History will be used, classifying this work as a bibliographical
research.

Key words: Homoerotic Literature; Gay Literature; Brazilian Literature; Homoeroticism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................9

PRIMEIRO CAPÍTULO

1. HOMOEROTISMO NO BRASIL.......................................................................13
1.1. Um panorama homoerótico na cultura brasileira: João Silvério Trevisan e seu
Devassos no Paraíso........................................................................................................13
1.2. A representação homoerótica na literatura brasileira: um vazio discursivo entre o
século XIX e o fim do XX................................................................................................25

SEGUNDO CAPÍTULO

2. HOMOEROTISMO E CÂNONE LITERÁRIO.................................................42


2.1. A questão do cânone ocidental............................................................................42
2.2. O cânone literário no Brasil: ideologia ou estética?............................................52

TERCEIRO CAPÍTULO

3. A SUBJETIVAÇÃO HOMOERÓTICA E A DRAMATIZAÇÃO DE SI EM


LUÍS CAPUCHO............................................................................................................71
3.1. Entre répteis e ratos: a subjetivação homoerótica em Cinema Orly e Rato.........71
3.2. A autoficção em Luís Capucho: a dramatização de si..........................................84
PALAVRAS FINAIS...........................................................................................92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................95
9

INTRODUÇÃO

Em nossa pesquisa iremos trabalhar com duas obras literárias do escritor capixaba,
naturalizado em Niterói, Luís Capucho: Cinema Orly (1999) e Rato (2007). Esses dois
romances contam a história de um personagem que vive as possibilidades de desejo e
afeto homoerótico em diferentes espaços: em um cinema pornô, na “cabeça de porco”,
onde mora com a mãe, em terrenos baldios, banheiros públicos, entre outros lugares.
Além de nos levar a refletir, juntamente com o personagem, sobre o cotidiano, as
identidades e os espaços na qual se tece as relações narradas pelo escritor.
As obras de Luís Capucho trazem em seu bojo um aprofundamento da
representação das relações homoeróticos, articulando experiência vivida com ficção. O
escritor, para nós, merece atenção especial por trazer para o universo da literatura uma
estética que contempla personagens que se mantinham, até então, no que socialmente se
tratava como “submundo gay”. Nesse sentido, através do trabalho com as palavras,
Capucho traz à superfície narrativas que até então se mantinham ocultas. Por conta desse
motivo nos interessamos em pesquisar sobre a literatura desse autor: sabendo que seus
romances, tendo em vista a forma adotada por sua escrita, tal qual o tema abordado, não
se enquadra no que é contemplado pelo cânone literário, o que faz suas obras serem pouco
estudadas no âmbito acadêmico, assim como a sua temática — o homoerotismo —.
Decidimos abarcar apenas seus dois primeiros romances por serem os que tiveram uma
circulação de público mais ampla e por terem uma narrativa e personagens que se
complementam e geram, a partir das nossas análises, maior aproximação entre as duas
obras. Desta forma, a pesquisa aqui proposta se mostra um ambiente fértil não só por
ainda ser pouco explorada, mas também para que se possa levar para dentro da academia
outras perspectivas, outras lentes e outras identidades aos estudos literários,
principalmente se pensarmos que estamos vivendo em um momento político que cada vez
mais busca silenciar as vozes com as quais decidimos trabalhar na dissertação.
Na pesquisa faremos uma breve retomada histórica com base no livro Devassos
no Paraíso, de João Silvério Trevisan, mostrando como os homens e mulheres que tinham
desejos por pessoas do mesmo sexo eram vistos/tratados socialmente, desde o período
colonial até os dias atuais, para, posteriormente, analisarmos como a construção quanto a
relação entre pares influenciou na forma como a literatura representou o
homoerotismo/pessoas homossexuais, sabendo que a abordagem dessa temática na
literatura nacional, por muito tempo, refletiu o modo como a sociedade tratava os
10

homossexuais/as relações homoeróticas: com escárnio e impossibilitados de viver o amor.


Desse modo, problematizaremos essas representações, bem como o silêncio e a censura
praticada não só pela crítica como também pelos escritores, tendo em vista que só a partir
do final do século XX que obras que tematizavam esse modo de relação e autores
assumidamente homossexuais ganharam espaço no cenário literário nacional e puderam
se expressar com um pouco mais de liberdade e tematizar essas relações de forma mais
empática e digna.
Continuando nessa direção, discutiremos sobre o cânone literário e o
homoerotismo, buscando expor o(s) porquê(s) do cânone ter invisibilizado durante
séculos obras e escritores que abordassem sobre a homossexualidade e/ou fossem
homossexuais, tratando esse tema como pouco importante e/ou um dado menor das obras.
A nossa abordagem, em diálogo com a primeira parte da nossa pesquisa, buscará mostrar
como o cânone está conectado às estruturas de poder, reproduzindo ideologias e culturas
de uma determinada camada da sociedade. Nesse sentido, a história de preconceito e
desigualdade no Brasil refleti no modo como esse sistema funciona, nos levando a refletir
sobre as possíveis motivações quanto a abertura das estruturas canônicas, no fim do
século XX, para a entrada de obras que retratam relações homoeróticas.
Após esse percurso, analisaremos a forma como se apresenta a subjetivação
homoerótica em Cinema Orly e Rato, tendo como objetivo entender como está se dá
dentro do espaço social dos romances, bem como nas relações de desejo/afeto nos espaços
público/privados na narrativa, já que, de acordo com Mario Cesar Lugarinho (2008), Luís
Capucho traz para as páginas da literatura brasileira sujeitos que não haviam sido antes
representados. Além disso, pensaremos na escrita de Luís Capucho como um processo de
dramatização de si, embasados pelo conceito de autoficção, já que o escritor se utiliza de
parte das suas experiências pessoais para ficcionalizar suas narrativas, criando assim,
propositalmente, um romance ambíguo, onde não se sabe o que de fato é ficção ou
realidade.
Dessa forma, através da articulação entre os três capítulos, buscaremos deixar à
mostra a partir das análises feitas dos romances de Capucho quanto a subjetivação
homoerótica e a utilização de uma perfomance de si em sua escrita como o cânone
literário brasileiro tem como base uma falsa democracia, adotando como critério para as
suas escolhas obras que reafirmem o seu discurso, deixando de lado qualquer escritor ou
narrativa que se oponha às suas crenças. Os dois romances de Luís Capucho, nesse
sentido, emergem como um ponto de inflexão às engrenagens canônicas, deixando
11

exposto o seu discurso falacioso a partir de um trabalho que demonstra originalidade e


carrega em si um projeto de autoria.
12

PRIMEIRO CAPÍTULO
13

1. HOMOEROTISMO NO BRASIL

1.1.Um panorama homoerótico na cultura brasileira: João Silvério Trevisan


e seu Devassos no Paraíso

Na primeira parte deste capítulo, faremos uma revisão histórica a partir do livro
Devassos no Paraíso (2018), de João Silvério Trevisan, tendo em vista a completude
dessa obra quanto à reconstituição da história da homossexualidade no Brasil. Dessa
forma, as análises e discussões trazidas por Trevisan serão de grande importância para a
temática da nossa pesquisa, uma vez que o livro aborda a maneira como as relações
homoeróticas e os homossexuais vêm sendo tratados no Brasil desde o período colonial
até a contemporaneidade. Esse panorama traçado por Trevisan sobre a cultura brasileira
nos ajudará a compreender melhor, por exemplo, o modo como a crítica literária e o
cânone lidaram ao longo dos séculos com a temática do homoerotismo, assim como nos
permitirá pensar de forma mais abrangente sobre a representação homoerótica dentro da
literatura brasileira; assuntos que discutiremos detalhadamente mais à frente.
Agora, entrando de fato em Devassos no Paraíso, João Silvério Trevisan abre as
portas do paraíso, criando um panorama de como o brasileiro, em geral, lida de forma
paradoxal com assuntos que se referem à sua própria sexualidade, apontando para um
conservadorismo que se detém apenas na superfície. Ao analisar dados de pesquisas
realizadas entre 1986 e 1996, ao contrário do estereótipo de “brasileiro fogoso” e da
imagem do Brasil difundida pela televisão por celebridades como Carla Peres, a rainha
do bumbum, o perfil sexual tradicional da população brasileira se torna evidente.

44% das pessoas entrevistadas afirmaram nunca ter praticado sexo anal.
Se a relação sexual pré-marital foi uma prática admitida por 67% das
pessoas, em contrapartida só 39% se julgavam totalmente liberadas,
enquanto 43% ainda consideravam a virgindade feminina como
necessária antes do casamento, e apenas 31% das mulheres admitiam ter
orgasmo costumeiro. Se a masturbação foi considerada saudável por
63%, na prática ocorria outra coisa: boa parte da população entrevistada
se masturbava pouquíssimo e 18% afirmaram nunca ter se masturbado na
vida (Folha de São Paulo, 1998, p. 4-11 apud TREVISAN, 2018, p. 18)

Os dados dessa pesquisa mostram que há uma defasagem entre o que era dito e o
que realmente era feito, salientando, como veremos mais à frente, uma característica da
sexualidade no Brasil.
14

Ainda nessa mesma pesquisa feita pelo Datafolha, “apenas 14% dos homens e
5% das mulheres admitiram já terem tido relações homossexuais, ao mesmo tempo que
70% afirmaram não sentir nenhuma atração por gente do mesmo sexo” (idem, 2018, p.
20). Além disso, outro resultado interessante se refere a união estável e adoção entre
pessoas do mesmo sexo: 54% das pessoas disseram ser contrárias à legalização da união
estável e 62% foram contra a adoção de crianças por homossexuais. Treze anos depois,
em 2011, foi feita uma nova pesquisa, agora pelo Ibope, após a aprovação do Supremo
Tribunal Federal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O avanço referente à
pesquisa anterior foi ínfimo, mostrando que o conservadorismo quanto a relações
homossexuais ainda pairava sobre a sociedade brasileira: 55% dos brasileiros eram contra
a decisão do STF e 55% eram contrárias à adoção de crianças por casais homoafetivos1.
Nesse período, apesar do resultado da pesquisa marcar uma negativa quanto aos
direitos dos homossexuais, a mídia apontava que a sociedade já lidava melhor com o amor
entre iguais. No entanto, tal condescendência imputava certos critérios: que fosse uma
homossexualidade higienizada, sem qualquer característica de “rebeldia”. Esse
julgamento, chamado por Trevisan de cooptação, mostrava que os brasileiros reacionários
não aprovavam completamente a medida, embora a união civil entre pessoas do mesmo
sexo, amplamente abordada pela mídia, fosse bem-vista no âmbito internacional até
mesmo pelos setores conservadores. “Como essa ‘integração’ resultava de um
beneplácito concedido pela sociedade ‘civilizada’, a reprovação continuava latente,
pronta para disparar a condenação moral no momento oportuno” (TREVISAN, p. 21).
Exatamente por isso, apesar de já serem reconhecidos legalmente, os casais homossexuais
continuaram proibidos de adotar crianças por um longo tempo.
É possível concluir, portanto, que, embora superficialmente se observasse uma
conduta de aceitação, tratava-se apenas de um tipo de tolerância que as sociedades sempre
concederam a grupos que lhes servissem como bodes expiatórios em períodos de crise e
mal-estar. A homossexualidade — assim como, no passado, o judaísmo e, ainda hoje,
etnias minoritárias, por exemplo —, serve, nas palavras de Trevisan (2018, p. 22), como
um desses “reservatórios negativos”. A tolerância para com esse grupo varia de período

1
A pesquisa mais recente que encontramos sobre a opinião dos brasileiros quanto ao casamento
igualitário foi referente ao ano de 2015, na Revista Exame. Os dados, coletados pela empresa Hello
Research, reitera o que já foi apresentado aqui: 21% se declara indiferente a união entre pessoas do mesmo
sexo e 30% é a favor. 49% dos brasileiros são contra essa forma de união.
15

em período, aplicando à prática homossexual maior ou menor perigo dependendo das


circunstâncias da época.
É por conta disso que a homossexualidade no Brasil, apesar de nunca ter sido
tratada como crime (e embora tolerada, em certa medida), era — principalmente nos
espaços onde ela tinha liberdade para ser vivida — reprimida pela polícia com frequência:
na clandestinidade dos banheiros públicos, parques e salas de filmes pornô. Foi também
por conta dessa marginalidade que durante muito tempo pairou o silêncio sobre o assunto,
quebrando-se apenas com o surgimento do HIV/Aids.
Com a descoberta dessa doença, houve abertura para se discutir mais claramente
sobre a homossexualidade. Mas se por um lado surgiu espaço, por outro o discurso
conservador ganhou mais força, endossado por médicos, psicólogos, juízes, pastores,
políticos e até mesmo professores universitários. Dessa forma, o argumento de uma
possível naturalidade se modernizou para solidificar a ideia de que a expansão da Aids
estava ligada à prática homossexual, como se a natureza tivesse, de alguma forma,
operado uma vingança contra a humanidade por romper com o “equilíbrio natural”.
Esse pensamento, quanto à “culpabilidade” dos homossexuais referente à
disseminação do HIV/da Aids, dialoga com o que Susan Sontag (2007) discute em seu
livro Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Sontag irá comparar o HIV/Aids
com doenças como o câncer, mostrando as diferenças no impacto causado em quem as
contrai. O HIV/Aids, ao contrário do câncer, por exemplo, causa certa vergonha aliada a
culpa, como se o fato de se contrair o vírus estivesse ligado a uma escolha individual. Nas
palavras da escritora:

uma doença infecciosa cuja principal forma de transmissão é sexual


necessariamente expõe mais ao perigo aqueles que são sexualmente mais
ativos — e torna-se fácil encará-la como um castigo dirigido àquela
atividade. Isso se aplica à sífilis, e mais ainda à AIDS, pois não apenas a
promiscuidade é considerada perigosa, mas também uma determinada
“prática” sexual tida como antinatural. Contrair a doença através da
prática sexual parece depender mais da vontade, e, portanto, implica mais
culpabilidade (idem, 2007, p. 98).

Além dessa culpabilidade, Susan Sontag aponta que, no fim do século XX,
contrair o HIV era o mesmo que precisamente descobrir, ao menos na maioria dos casos,
que se fazia parte de um “grupo de risco”, de uma comunidade de pessoas que são tratadas
como párias. Essa doença, naquela época, pressupunha uma identidade que se desejava
manter oculta dos vizinhos, da família, dos amigos, levando as “pessoas a serem
16

consideradas doentes antes de adoecerem”; que produzia “uma série aparentemente


inumerável de doenças-sintomas; para a qual só há paliativos; e que leva muitos a uma
espécie de morte social que precede a morte física” (idem, 2007, p. 104). Para Sontag,
“as doenças que mais causam terror são as consideradas não apenas letais, mas também
desumanizadoras” (2007, p. 108).
Diante disso, com um discurso da Aids “homossexualizada”, surgiu também
argumentos embasados na “naturalidade nacional”, afirmando que a homossexualidade
foi um costume estrangeiro trazido para o Brasil. João Silvério Trevisan (idem, p. 24), em
contraponto a esse ideal nacionalista que exclui a diferença, relembra um conto de
Aguinaldo Silva, do livro Memórias da Guerra (1986): uma bicha debutante entra no
Cine Íris (cinema pornô carioca de pegação gay) em busca de uma frase escrita no
banheiro do local. Passando meio a efervescência do cinema, ela finalmente chega ao
banheiro e se depara com o que procurava: “O Cine Íris também é Brasil”.
A contragosto dos brasileiros mais conservadores, a existência do Cine Íris, assim
como a homossexualidade, também faz parte do Brasil. A intenção de Trevisan, ao
escrever Devassos no Paraíso, foi exatamente a de “ajudar a recompor um território tantas
vezes camuflado (quando não apagado) da vida e da cultura brasileira” (idem, p. 25).
Nesse sentindo, ele busca com seu livro fazer algo que também temos como intenção no
nosso trabalho: tratar da temática que envolve as práticas homoeróticas sem criar
estereótipos risíveis e sensacionalistas.
Dando seguimento a discussão, na parte II e III de Devassos no Paraíso, Trevisan
irá se debruçar sobre dois eixos: a relação entre pares nas tribos indígenas e o período em
que vigorou a inquisição.
Ao chegarem nas terras que hoje é conhecida como Brasil, os europeus se
depararam com uma cultura muito diversa da sua. Pero Vaz de Caminha falou sobre a
beleza paradisíaca das nossas terras, assim como da ingenuidade dos índios quanto a falta
de pudor, sob o olhar cristão, referente a nudez. Aparentemente, para os europeus, o
primeiro choque quanto a diferença de cultura foi sobre a forma como os índios lidavam
com seu corpo e com sua própria sexualidade. João Silvério Trevisan apresenta alguns
relatos sobre essa questão, como o do pesquisador Abelardo Romero, que registrou haver
entre diferentes tribos relações homoeróticas sem que fossem configuradas como um
problema (ROMERO, 1967, p. 16 apud TREVISAN, 2018, p. 62). Obviamente, para os
europeus, essa liberdade gerava certa ojeriza, tendo em vista que no período da inquisição
a sodomia era um dos piores pecados que um cristão poderia cometer.
17

Outro fator interessante é que, além das relações homoeróticas, há também


constatações de trocas de papéis de gênero, em que os homens indígenas assumiam
lugares tratados como femininos na aldeia e viceversa, como o caso observado por Carl
von Martius na tribo Guaicuru. Porém, se o comportamento dos índios em um primeiro
momento causou espanto e horror, também é verdade que causou fascinação, já que,
tempos mais tarde, essa “devassidão” brasileira se tornou costume também entre os novos
habitantes do Brasil, entre membros do clero e até mesmo nos conventos. “Entre os
estrangeiros aqui chegados nos séculos seguintes, criou-se um consenso não deliberado,
ultrapassando os limites de nacionalidade e doutrina: parecia que os trópicos colocavam
os deveres morais cristãos entre parênteses e nada mais era proibido” (TREVISAN, p.
67). Inclusive, em 1845, o conde de Suzannet declarou que não havia nada de mais
desprezível do que um padre brasileiro.
Devido à reputação do Brasil, na metrópole portuguesa havia a preocupação, tanto
da igreja quanto do poder real, de encontrar formas mais efetivas de controlar a população
em sua colônia, tendo em vista que, em razão da distância, esse controle se tornava mais
brando. Por conta disso, houve a Visitação do Santo Ofício ao Brasil quatro vezes.
Durante essas visitas, era costume o que se chamava de “tempo de graça”, onde o
indivíduo podia confessar seu pecado a fim de diminuir sua pena e, também, denunciar
possíveis pecadores. O clima que se instaurava, claramente, era assustador, uma vez que,
além de ser vigiado pela inquisição e pela sociedade, o indivíduo também tinha o dever
de denunciar, ou correria o risco de sofrer sanções caso sua omissão fosse descoberta.
De acordo com Trevisan (2018), o historiador Paulo Prado contabilizou que, na
Visitação da Inquisição à Bahia, em 1591, dentre 120 confissões, 45 se referiam a pecados
envolvendo o sexo. Segundo sua contagem, considerando tanto a primeira visita quanto
a de 1620, o pecado de sodomia aparecia em segundo lugar. Ironicamente, esse pecado
não era cometido apenas por cidadãos comuns, mas também por padres:

O mais velho dos confessantes sodomitas conhecidos era um padre


português chamado Frutuoso Álvares [...]. Em 1591, época da Visitação
Inquisitorial baiana, o padre tinha 65 anos, já de barbas brancas, e era
vigário de Matoim, na Bahia. Confessou ter cometido ‘a torpeza dos
tocamentos desonestos com algumas quarenta pessoas, pouco mais ou
menos, abraçando, beijando’; mantivera encontros sexuais com rapazes
conhecidos, cujos nomes forneceu ao inquisidor, mas ‘também com
outros moços e mancebos que não conhece nem sabe os nomes, nem onde
ora estejam’ (Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, 1997, p. 316 apud
TREVISAN, p. 141).
18

Os inquisidores, aparentemente, gostavam de denúncias e confissões ricas em


detalhes. Esse excesso descritivo, pedido pelos inquisidores, não só trouxe à superfície
casos de pedofilia, como foi o caso do padre citado acima, ou de estupro, como ocorreu
nos relatórios que envolviam os negros escravizados e seus senhores, mas também
grandes histórias de amor, como a do baiano Diogo Afonso e Fernão do Campo, que se
amavam nos espaços de suas casas, nas ribeiras e até mesmo no campo. Encontravam-se
de dois em dois dias, de três em três e, às vezes, duas vezes no mesmo dia. Essa relação
durou cerca de um ano, até que um dos rapazes, por insegurança, acabou confessando o
“pecado”.
O medo que a sociedade tinha da inquisição não era sem motivo: muitos dos que
confessaram sofreram humilhação pública e foram condenados por seus “desvios”
sexuais. A igreja parecia ter tanto horror ao pecado da sodomia que até a forma de
julgamento era diferente: enquanto nos julgamentos comuns o visitador ouvia o
procurador da defesa e as testemunhas de acusação e defesa, para os casos de sodomia
bastava uma testemunha de acusação para que ocorresse condenação, pois “a punição
desses casos era ‘de primeira necessidade numa república cristã’ ” (idem, p. 149).

Caso ocorressem dúvidas frente ao processo, o inquisidor podia apelar


para a tortura, a fim de definir os termos da confissão. E também meter o
réu na prisão, antes mesmo do julgamento, se houvesse suspeita de fuga
da cidade. Só após isso é que a Mesa Inquisitorial emitia a sentença, que
variava conforme o réu fosse considerado diminuto (por confessar de
modo insuficiente), costumaz (fugido ou desobediente), ficto (que fingia
arrependimento), convicto (que se mantinha no erro), falso (que
confessava apenas para evitar a pena), revogante (que se contradizia na
confissão), relapso (reincidente, depois de reconciliado com a
Inquisição) (Idem, p. 149).

Como é possível perceber, desde a colonização há uma forte repressão quanto à


prática homossexual no Brasil, mesmo que aqui, aparentemente, a vida sexual dos cristãos
fosse mais livre e tolerável.
Após o fim da inquisição, estabeleceu-se uma nova forma de controle daqueles
que se desviavam sexualmente, deixando de lado a religiosidade e trazendo à tona o
discurso científico. Foi no século XIX, como retrata João Silvério Trevisan na parte VI
de seu livro, que se criou a denominação homossexualismo.
Com a independência recém-inaugurada, o Estado começou a se preocupar com
as péssimas condições sanitárias do lar patriarcal existente no Brasil. Acreditando que a
família já não era capaz de criar seus filhos e cuidar bem deles sozinha, modernizou-se o
19

lar por meio de prescrições científicas e cuidados mais eficazes, do ponto de vista da
educação e da saúde. Foi dessa forma que se criou o “médico-higienista”, figura usada
pelo Estado para penetrar no interior das famílias através do especialista em higiene.

Com livre trânsito nesse espaço outrora impenetrável à ciência, o médico-


higienista acabou impondo sua autoridade em vários níveis. Além do
corpo, também as emoções e a sexualidade dos cidadãos passaram a
sofrer interferência desse especialista, cujos padrões higiênicos visavam
melhorar a raça e, assim, engrandecer a pátria (idem, p. 168).

O casamento foi reestruturado com as intervenções desse especialista; o prazer


sexual foi reforçado e legitimado, ao contrário de quando o discurso cristão tinha mais
força. Essa investida tinha como objetivo diminuir a possibilidade de traição e,
consequentemente, a transmissão de doenças venéreas, com o intuito de se produzir filhos
mais saudáveis.
“A ideologia higienista deu um passo adiante em reação aos métodos da
Inquisição, que praticava um controle relativo. Agora, pretendia-se o exercício de um
controle através e em nome da ciência, que a tudo presidia com uma suposta aura de
neutralidade” (idem, p. 170).
Apesar desse padrão higiênico burguês ter colaborado para acabar com os terríveis
castigos do período colonial, ele causou um outro mal para a sociedade: criou um
“cidadão autorreprimido, intolerante e bem-comportado, inteiramente disponível ao
Estado e à pátria” (idem, 171). Distanciando-se do discurso religioso e se aproximando
do discurso da ciência, os cidadãos deveriam obedecer não mais a Deus, mas ao médico,
o que fez com que um padrão de normalidade imperasse. Assim, abriu-se uma brecha
para que a psiquiatria pudesse entrar em cena e intensificar o controle da ciência sobre as
práticas sexuais que se desviassem daquilo que era tido como “normal”.
Em meados do século XIX, como já foi dito anteriormente, os pesquisadores
começaram a se interessar em estudar os aspectos da “sexualidade desviante”. Para isso,
era necessário criar um termo que definisse esse tipo de desejo. Surgiu então a
nomenclatura “homossexualismo”, que fez com que pessoas com esses traços deixassem
de ser vistas como criminosas/pecadoras e passassem a ser tratadas como doentes.
No Brasil, a partir desse olhar patológico sobre a homossexualidade, alguns
médicos começaram a discursar que a forma correta de tratar o “homossexualismo” era
“prevenir através da educação que se fortalecesse o caráter, reiterasse a virilidade e
ensinasse o respeito pela sociedade”, além, claro, de administrar tratamentos hormonais
20

e psiquiátricos, bem como recorrer a outros tipos de intervenções. O médico Aldo


Sinisgalli, especificamente, pedia às autoridades públicas que criassem um centro de
tratamento para homossexuais, pois assim qualquer pessoa que cometesse esse ato seria
internada para a reabilitação. Um dado curioso, porém, é que ele fazia a seguinte ressalva:

para os ‘invertidos honestos’; como ‘esses procuram dominar os seus


instintos anormais e satisfazem seus anormais desejos com recato’, não
merecem qualquer punição, já que não são responsáveis por sua doença;
ainda assim, dizia ele, ‘o Estado poderia coagir esses indivíduos a
tratamentos adequados (TREVISAN, p. 183).

Dessa forma, é possível tirarmos duas conclusões: primeiro, por mais que a
homossexualidade fosse categorizada pela medicina como uma patologia, ela ainda assim
era olhada pelo viés da criminalidade, como se o indivíduo que tivesse desejo por uma
pessoa do mesmo sexo estivesse cometendo um ato ilícito; segundo, a homossexualidade
se configurava como um problema somente no caso daqueles que a expunham
publicamente. Ou seja, o homossexual recatado, ou higienizado, que vivia socialmente
sem agredir a norma, não era merecedor de punição alguma, ainda que, mesmo assim,
devesse ser mantido sob vigília social.
Depois desse percurso feito desde o século XVI até o XIX, entrando na parte V
do livro, João Silvério Trevisan expõe a maneira como a homossexualidade apareceu nas
artes brasileiras, atravessando a literatura, a música, o cinema e o teatro.
Na literatura brasileira, as primeiras referências homossexuais que se conhecem
estão na obra de Gregório de Matos, nascido na Bahia no século XVII. Conhecido como
Boca do Inferno, o poeta baiano satirizou diversas pessoas que tinha como inimigos. Em
algumas dessas sátiras havia um teor claro de expressão homoerótica, como é o caso do
poema sobre o provedor da Casa da Moeda de Portugal, cujo título é “Marinícolas”,
mesclando o nome Nicolau com a palavra maricas. O poema:

começa por aludir de forma maldosa às ‘tão belas partes’ desse ‘ninfo
gentil’, que tem ‘humor meretriz’ e, portanto, prefere olhar as calças em
vez das toucas: ‘dado às lições [...] de pica viril’. Surpreendentemente,
alude ao fato de que o tal sr. Nicolau ‘alugava rapazes ao povo’,
montando tenda e escrevendo numa tabuleta: ‘ordenhadores se alquilam
aqui’ – em referência ao prazer ejaculatório que podiam provocar nos
homens (idem, 2018, p. 238).
21

Ao contrário de Gregório de Matos, o poeta romântico Alvarez de Azevedo não


falava de forma explícita quanto à prática/ao desejo homoerótico. Nascido em 1831,
faleceu pouco antes de completar 21 anos. De acordo com Trevisan (2018), Mario de
Andrade, ao analisar a obra de Alvarez de Azevedo, aponta para uma possível
homossexualidade, já que o amor retratado por mulheres costumava ser filial e de descaso
sexual, quando não julgava de forma repugnante a parte sexual do amor.
Outra questão que aponta para sua possível homossexualidade são as
correspondências que ele trocava com seu amigo Luís Antônio da Silva Nunes, que foi
seu colega de faculdade quando o poeta ainda cursava direito. Segue um fragmento da
última carta enviada ao seu amigo:

Luiz, ha ahi não sei que no meu coração que me diz que talvez tudo
esteja findo entre nós. [...] Ha em algumas das minhas cartas a ti uma
historia inteira de dous annos, uma lenda, dolorosa sim, mas verdadeira,
muito verdadeira, no seu pungir de ferro, como uma autopsia de
sofrimentos.[...] Luís, é uma sina minha que eu amasse muito e que
ninguém me amasse. [...] Adeus, meu Luiz. A belleza do espiritualismo
é o amor das almas — essa afinação que as palpita unisonas par a par
ainda na separação, ainda quando os sentidos que nos ligão á matéria
não tactêão mais o objecto que se ama. Adeus. Assim como eu te amo,
ama-me. Não esqueças entre tuas campinas do Rio Grande, ao riso de
labios de rosa onde se desvelão perolas, das tuas patricias bellas
(AZEVEDO, 1862, p. 52 - 56).

É claro que pensar Álvarez de Azevedo como homossexual, ou que seus textos
aludiam de alguma forma ao seu desejo reprimido, não resulta de pura curiosidade, pois,
confirmada sua homossexualidade, é possível ler sua obra a partir de uma outra ótica, ao
contrário do que alguns de seus biógrafos, segundo Trevisan (2018), diziam: que a
informação sobre sua sexualidade não era importante, já que o poeta poderia sofrer
“inferências injuriosas”.
No próximo subcapítulo, iremos nos aprofundar nas demais obras de caráter
homoerótico da literatura brasileira. Sendo assim, seguiremos com os apontamentos de
João Silvério Trevisan (2018) sobre a representação dessa temática em outras áreas da
arte.
No teatro brasileiro, o primeiro registro que se tem de abordagem da experiência
homoerótica está em A separação de dois esposos (1866), de José Joaquim de Campos
Leão, o famoso Qorpo Santo. Na peça, o teatrólogo insere dois personagens chamados
Tatu e Tamanduá, que, diante dos patrões que haviam acabado de se matar para poderem
22

ficar juntos “para sempre”, discutem sobre sua própria relação. Tamanduá, por não querer
Tatu apenas “platonicamente”, mas carnalmente, inicia uma discussão, já que Tatu diz
não querer suprir os desejos do “amigo” por se tratar de um pecado diante dos olhos de
Deus. Durante o bate-boca, os dois se engalfinham aos xingos e começam a rasgar a roupa
um do outro, fazendo alusão a um desejo ambíguo: ao mesmo tempo que sabem ser
proibido, acabam se deixando levar involuntariamente pela vontade carnal.
No início do século XX, o modernista Oswald de Andrade chegou a narrar sobre
personagens homossexuais em muitas de suas peças. A questão era que essa representação
estava calcada no preconceito. Um exemplo é sua peça O rei da vela (1933), em que um
personagem chamado Totó Fruta-do-Conde se coloca na vida como um fracassado. Pelo
nome do personagem e por esse fracasso recair logo ao personagem homossexual da peça,
algo que inclusive era muito comum nas narrativas da época, é possível perceber o ar de
deboche quanto à condição sexual do personagem.
Algumas décadas mais tarde, em 1970, acontece o nosso “boom gay”. Se antes,
em geral, a temática da homossexualidade aparecia apenas de forma dúbia, agora nós já
podíamos vê-la de forma mais escancarada. Trevisan se centra nas figuras de Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Ney Matogrosso para mostrar como esse boom
mudou o cenário artístico no Brasil. Focalizando Ney, Trevisan (2018) irá dizer que o
músico, muito parecido com os artistas do grupo Dzi Croquettes, colocava em cheque o
que se entendia como masculino e feminino. O próprio Ney Matogrosso, em entrevista,
dizia: “sou uma pessoa que tem emoção e sensibilidade, e me orgulho de não ter que
escondê-las. Eu manifesto. Agora se, dentro dos padrões, isso é feminino, caguei”
(MATOGROSSO apud TREVISAN, 2018, p. 276).
Já no teatro, uma das peças que mais fez sucesso foi Greta Garbo, do autor
Fernando de Melo. Tendo vários de seus trabalhos censurados pela ditadura, exatamente
por conta da temática homossexual, o autor conseguiu passar pelo filtro e, inclusive,
conquistar sucesso internacional com Greta Garbo. A grande questão, recorrente na
maioria das produções dessa época, é que tanto as peças quanto o cinema nacional se
voltavam para o consumismo, acreditando ingenuamente que dessa forma conseguiriam
disseminar na sociedade a ideia de que ser homossexual também é normal. Nas palavras
de João Silvério Trevisan:

passada a fase de absorção que o boom guei propiciou, o resultado foi


uma casca defensiva, no plano cultural, contra a sexualidade desviante.
23

Não me refiro tanto às rejeições e claros sinais de preconceito, mas a um


silêncio de rotina, na melhor das hipóteses, em nada diferente daquela
velha conspiração do silêncio que orientou as sociedades para abafar a
existência de transgressões em seu seio (2018, p. 305).

A questão, para Trevisan, é que, como já dito, a produção artística se centrou em


criar algo que fosse palatável. Passando longe de um conteúdo que fosse realmente
poético e questionador, houve um certo fracasso na tentativa de criar aberturas para uma
aceitação maior da homossexualidade, pois “a sociedade mercadológica favorece
aberturas quando pode tirar lucro delas, mas cobra seus juros através de uma cooptação
cruel” (idem, p. 306).
Dez anos depois do chamado Boom Guei, houve a eclosão da Aids, assunto
trabalhado na parte VIII de Devassos no Paraíso. Essa doença ficou conhecida
mundialmente como “o câncer gay”, tendo em vista que acreditavam que sua propagação
se dava como uma punição divina à prática homossexual. Nesse período, a aparente
abertura quanto à aceitação da homossexualidade se desfez, e a sociedade voltou ao tempo
em que o preconceito era esbravejado aos quatro cantos sem nenhum pudor, inclusive
com grande aprovação pública.
Com o aumento de infectados, em sua grande maioria homens gays, o discurso
médico se assimilava muito aos dos profissionais do fim do século XIX e início do século
XX: era necessário exilar os causadores da doença para proteger a população desse grande
mal, já que os culpados se sentiam satisfeitos em difundir o HIV sem nenhum tipo de
preocupação. Conforme expõe Trevisan:

o dr. Amato conclamava aos órgãos de saúde e higiene para agirem com
‘a ênfase devida’, ao invés de ‘apoiar irregularidades, como os atos
sexuais anormais e os vícios’. Afinal, ‘aceitar que cada um tem o direito
de fazer o que desejar com o próprio corpo é convicção plena de
responsabilidade’, dizia ele. E terminava sugerindo ironicamente que se
deveria passar o cuidado dos doentes para os defensores desse direito, ou
seja, as ‘organizações de homossexuais, bissexuais e drogados’. (2018,
p. 413)

Discursos como esse ganhou eco durante a epidemia, tendo inclusive sugestões de
castração, proibição da homossexualidade e fechamento de locais voltados para o público
gay. Todo esse pânico criado em torno da doença fez com que saunas fossem fechadas,
prostíbulos tivessem uma diminuição drástica de clientes e homens gays deixassem de se
relacionar com outros homens para se casarem com mulheres, simulando assim uma vida
24

heterossexual, pratica que, inclusive, ocorre até hoje por motivos diversos. Começou-se
um movimento de negar os próprios desejos, já que se acreditava que o HIV estava
estritamente ligado ao sexo entre homens.

Quase transformados em algozes da humanidade, os homossexuais


sofreram, sobretudo em sua estrutura emocional, as ressonâncias sociais
da aids. O pânico levou muitos deles a recorrer a especialistas
terapêuticos, que foram surgindo para atender soropositivos ou não, nas
áreas psicológica e de medicina alternativa, como ioga e acupuntura.
Relações homossexuais antigas e novas se desfizeram, Casais
monogâmicos deixaram de manter relações, ainda que continuasse
juntos. E uma grande quantidade de rapazes homossexuais abriu mão,
absolutamente, de sua vida sexual, enquanto outros, em grande
quantidade, resolveram quebrar o galho com casamentos heterossexuais
de última hora (idem, 2018 p. 422).

Foi também nesse período que começou a surgir uma grande onda de violência
contra homossexuais e travestis, sendo comuns frases como “mate um homossexual”,
“morte aos judeus, negros e gays” e falas como “para mim, a melhor solução é matar.
Não pode machucar, não. Tem de eliminar” (Idem, 2018, p. 416).
Mais para o fim do século XX, com o aumento de casos entre mulheres
heterossexuais e com a pressão de ativistas e soropositivos para a criação de políticas
públicas mais eficazes contra o avanço do HIV/Aids, o Governo Federal criou programas
de prevenção e setores especializados para atender os portadores do vírus, aumentando a
sobrevida da população que convivia com o HIV/Aids, principalmente daqueles que
pertenciam às camadas mais pobres da sociedade.
Controlado esse “mal” e o pânico da população, galgaram-se alguns avanços
quanto aos direitos homossexuais. Trevisan, nesse último capítulo, pergunta-se:
“pensando em termos de balanço final, o que de fato se ganhou?”. De forma talvez não
muito esperançosa, ele responde:

Provavelmente a comunidade LGBT ficou mais próxima da integração à


sociedade, podendo imitar seus padrões, inclusive de consumo. Mas
como se trata de uma sociedade injusta por base, a liberdade conquistada
não é o que se esperava: está sempre vigiada, em clima de permissividade
controlada (idem, 2018, p. 432).

Nesse sentido, a estrutura repressiva, quando achar necessário, pode encontrar ou


inventar motivos para a retirada dos direitos homossexuais já conquistados. Ao ver de
Trevisan, por mais que geograficamente a população LGBT pareça maior e tenha mais
25

visibilidade hoje do que já teve no passado, esses ganhos de direitos são muito discutíveis.
Inclusive porque essa “aceitação” por parte da sociedade só contribuiu para que o direito
à diferença dentro da comunidade diminuísse, criando, assim, padrões de homossexuais
que são socialmente aceitos, não só para a sociedade, mas também dentro da cultura gay
— quanto a esses padrões, nos aprofundaremos melhor ao discutir as obras de Luís
Capucho, já que ele põe em cheque a construção de uma identidade gay higienizada,
narrando sobre personagens que geralmente são mais invisibilizados socialmente e dentro
do próprio movimento LGBTI+.
Dessa forma, a partir do caminho traçado em Devassos no Paraíso por João
Silvério Trevisan, podemos perceber que, desde a chegada dos europeus ao Brasil até a
contemporaneidade, toda e qualquer prática homoerótica foi sistematicamente reprimida.
No decorrer dos séculos criaram diferentes discursos e instrumentos para tentar expurgar
o desejo que ainda hoje é considerado como desviante e não natural. Nesse sentido, o que
concluímos a partir de todos os conflitos no Brasil motivados pela sexualidade do seu
próprio povo é que se estruturou um movimento de repressão, não só no âmbito do
convívio social, mas também nas produções artísticas. A representação homoerótica
dentro das artes só era permitida se reforçasse o estereótipo do risível ou caso se
apresentasse de forma tímida e cifrada. Na literatura, obviamente, não foi diferente, pois
os críticos literários rasuravam, na maior parte das vezes, qualquer obra ou autor que
expusesse experiências homossexuais. Por conta disso, a representação homoerótica no
Brasil, durante muito tempo, pairou no que Mario Cesar Lugarinho (2008) chamou de
“vazio discursivo”, pois, apesar de, inclusive no modernismo brasileiro, produzir-se
trabalhos que abordassem o amor entre pares, a maior parte deles não trazia personagens
que dessem vazão a uma profunda subjetividade homossexual, criando a possibilidade,
assim, de reformular-se o olhar que se tinha sobre a experiência homoerótica.

1.2. A representação homoerótica na literatura brasileira: um vazio


discursivo entre o século XIX e o fim do XX.

Na virada do século XIX para o XX, com a queda da monarquia e o início da


república, começou-se a pensar sobre um ideal de nação no Brasil. Essa transição, que se
deu por meio da reafirmação de uma ideologia dominante, permite refletir sobre aspectos
da formação da sociedade brasileira e compreendê-la em sua contemporaneidade.
26

A identidade dessa nação que estava por se constituir passou a ser pensada pelas
elites que almejavam ir ao encontro do que se via no “velho continente”, mesmo que esse
desejo não estivesse de acordo com o olhar do próprio europeu para a Europa no período
de modernização. Assim, como aponta Richard Miskolci (2012), enquanto no continente
europeu “se temia as consequências da modernização, aqui nós a desejávamos, pois nosso
inimigo era nosso passado, associado ao atraso, à natureza e aos instintos” (p. 23). Para
esta elite, esse atraso era a própria população brasileira.
Dessa forma, acreditou-se que o Brasil só conseguiria se estabelecer como uma
nação forte caso se assemelhasse aos seus antigos colonos, mantendo a ordem branca e
masculina. Qualquer característica ou traço que divergisse dessa norma, como os
identificados em negros, mulheres e homossexuais (nomenclatura recentemente criada
naquele período), era visto como uma ameaça. Ironicamente, foi nesse período, fins de
século XIX, que surgiu a considerada primeira literatura gay no Brasil: Bom-Crioulo
(1985), romance do escritor Adolfo Caminha. Narrativas como essa, que, com os anos,
passaram a ser cada vez mais frequentes, debruçavam-se no intento de descrever parte
daquilo que também era a sociedade, servindo como um reflexo que a obrigasse a olhar
para si mesma. Esse momento ficou conhecido como naturalismo.
Bom-Crioulo conta a história do marinheiro negro Amaro, que no desenvolver da
narrativa se apaixona pelo jovem marinheiro branco Aleixo. O protagonista, tomado pelo
sentimento, inicia o menino sexualmente, forçando-o a ter relações homoeróticas. O livro,
apesar de muito transgressor para sua época, trata a questão como algo não natural, o que
se mostra evidente no fim da narrativa. Aleixo, após conhecer uma senhora apresentada
por Amaro, acaba “desenvolvendo seus instintos naturais de homem” e passa a ter
relações com a mulher, culminando no desfecho: Amaro mata Aleixo movido pelo ciúme.
Foi também no século XIX, mais especificamente em 1869, que se originou a
palavra que daria nome ao desejo das pessoas que, naquele período, se envolviam entre
pares: “homossexualismo”. Antes disso, o termo “homossexualismo” foi criado devido a
uma necessidade de classificar a pederastia como crime, dando margem para apropriação
da nomenclatura pelo discurso médico ainda no mesmo século. Tal classificação teve o
intento de criar uma identidade homossexual a fim de caracterizar um indivíduo que
tivesse esses desejos eróticos como um “invertido sexual”. Isso se tornou necessário após
as sociedades patriarcais começarem a se imaginar de forma dicotômica, homem e
mulher. Segundo Emerson Inácio (2002), no artigo Homossexualidade, homoerotismo e
homossociabilidade: em torno de três conceitos e um exemplo:
27

Na tentativa de se marcarem as diferenças e de se definir o locus


psicossocial do homossexual, a ciência e a jurisprudência investiram na
criação de uma identidade masculina dita normal, sexualmente inclinada
ao sexo oposto – e, por conseguinte, heterossexual – que ligava de forma
indissolúvel a identidade de gênero e a orientação sexual; logo,
estabeleceu-se o continuum entre o comportamento homossexual e a
identidade homossexual. (INÁCIO, 2002, p. 61-62, Grifos do autor)

Em diálogo com essa exposição, Foucault (1988), em seu livro História da


sexualidade 1: a vontade de saber, diz:

O homossexual do século XIX tornou-se personagem: um passado, uma


história e uma infância; e também uma morfologia, como uma anatomia
indiscreta e, porventura, uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é, no
fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo:
subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e
infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu
corpo, já que é um segredo que se trai sempre (FOUCAULT, 1988, p.
43).

Com a normatização, os indivíduos homossexuais foram marginalizados por seu


desejo, inclusive para além de uma categorização negativa. Conforme ratifica Emerson
Inácio (2002), a homossexualidade era “a traição da condição masculina, já que, pela
lógica da inversão sexual, ia de encontro à família, à nação e à estrutura da sociedade
ocidental: o patriarcalismo”.
Nesse sentido, a partir de 1870,

nossos escritores incorporaram-se à luta pela ‘renovação das estruturas


sócias e pelo reforço da identidade nacional’. Tal ‘missão civilizatória’
acabou aproximando o discurso literário do discurso médico, na tentativa
de trazer à tona os desvãos mais escuros da sociedade, para assim
reabilitar (leia-se: controlar) o desviante. Correspondendo a esse esforço
de codificação da marginalidade social por parte da medicina, surgiram
na literatura naturalista (tão obediente aos ditames científicos) os
primeiros personagens claramente caracterizados dentro de uma relação
homossexual (TREVISAN, 2018, p. 242)

Em 1888, anos antes de Bom-Crioulo ser publicado, Raul Pompéia lançou O


Ateneu, obra em que aparece de forma mais clara a relação homoerótica entre dois
personagens: Sanches e Sérgio. A forma como essa relação é narrada passa sempre pelo
olhar da fraqueza, do desvio, de algo não natural, corroborando o discurso médico
referente à homossexualidade disseminado na época. Outro escritor que também abordou
a relação entre pares foi Aluísio Azevedo, em sua obra O Cortiço (1890). Nesse trabalho
28

há três personagens que nos interessam: Albino, Léonie e Pombinha. O primeiro é um


rapaz homossexual, que costuma ser caçoado pelos outros por conta do seu jeito feminino.
Já Léonie e Pombinha são personagens que têm relações entre si. A questão é que, durante
a descrição dos atos sexuais das duas, os adjetivos utilizados costumam trazer a imagem
de um desejo selvagem, instintivo, descontrolado e animalizado.
Voltando à questão do romance Bom-Crioulo, mesmo sendo considerada a
primeira obra da literatura gay no Brasil, Antônio de Pádua Dias Silva2 (2012) aponta que
alguns pesquisadores questionam esse fato, defendendo que já se encontrava abordagens
de relações homoeróticas durante o romantismo brasileiro, como, por exemplo, em
Junqueira Freire monge e poeta baiano, no poema “A um moçoilo”.

Eu que te amo tão deveras,


A quem tu, louro moçoilo,
Me fazes chiar e amolas,
Qual canivete em rebolo;
Eu que, qual anjo, te adoro,
Então, menino, eu sou tolo?

Quem te venera e te serve,


Te serve de coração;
Quem a nada mais atende,
Senão à sua paixão;
Quem sustém por ti a vida,
Tolo não pode ser, não.
(FREIRE, 2017, p. 150),

Apesar de nossas pesquisas, não conseguimos encontrar nenhuma fonte que


informe quando o poema foi publicado pela primeira vez. Porém tendo em vista que
Junqueira Freire viveu entre 1832 e 1855, tomemos como panorama esse recorte
temporal. Quanto ao poema, percebe-se logo de início que o texto é endereçado a um
rapaz. O eu lírico se diz apaixonado, apesar do “moçoilo” o achar um tolo. O que denuncia
no poema o desejo aparentemente não correspondido de um homem por um rapaz é
exatamente a palavra “tolo”, marcada pela flexão de gênero masculina. No poema não
fica explícito, mas tomaremos como chave de leitura a possibilidade de “tolo” estar sendo
usado como referência negativa ao desejo do eu lírico por alguém do mesmo sexo, já que
o escritor se utiliza da repetição dessa palavra, pondo-a em contraponto a aspectos
positivos do seu amor pelo rapaz — te amo, te adoro, te venero, te sirvo — para mostrar

2
Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual da Paraíba e pesquisador dos Estudos
Homoeróticos.
29

que tolo ele não pode ser. Ou seja, o “moçoilo”, que é objeto do desejo do eu lírico, o vê
como tolo exatamente por ser um homem que deseja outro, apontando que essa forma de
desejo é inconcebível.
Dando continuidade as considerações de Antônio de Pádua Dias da Silva, no
artigo A história da literatura brasileira e a literatura gay: aspectos estéticos e políticos,
defende que o título de obra fundadora da literatura gay se dá por algumas especificidades,
como podemos ver no seguinte fragmento:

As estórias de Bom-Crioulo e “O menino do Gouveia” são fundamentais


para se pensar a literatura brasileira de temática gay, porque não só
despertam no leitor o aspecto político para o qual apontamos, mas,
sobretudo, expõem o universo da subcultura gay: a forma como a
sociedade pensa essa subcultura, sem deixar de exibir o sujeito gay na
sua particularidade, sendo descrito/narrado através de recursos técnicos
próprios de uma arte que se centra na sua gramática, na sua sintaxe, no
seu código, como é a literatura de ficção, encerrando na ficcionalização
do discurso aspectos de desejos filtrados pelo olhar gay, não como afronta
a uma norma, a uma prática, a um dado cultural, mas como mecanismo
de visibilização de aspectos até então não representados (e rechaçados),
seja no contexto material-empírico da sociedade, seja na representação
literária. (SILVA, 2012, p. 88)3

A obra de Adolfo Caminha causou grande espanto e rebuliço para os leitores e,


inclusive, para a Marinha, que, anos depois, solicitou que fosse impedida a reedição do
livro. Essa obra se difere das que trataram do tema anteriormente, porque “a representação
da homossexualidade adquire um elemento central na narrativa, não sendo um dado
circunstancial ou estereotipado, como vamos ver em tantas outras obras da literatura
brasileira pelo século XX adentro” (LOPES, 2002, p. 36). Podemos usar como
comparação, inclusive, as obras de Raul Pompéia e Aluísio Azevedo, que, apesar de
trazerem na narrativa relação/desejo entre pessoas do mesmo sexo, diluem os personagens
dentro do enredo, sem lhes conferir algum protagonismo ou aprofundamento maior dentro
da história.
No século XX, com a entrada do modernismo, a quantidade de textos com
abordagem homoerótica aumentou. Porém, assim como expõe Denilson Lopes (2002):

3
Em 1914, na revista Rio Nu, foi publicado “O menino do Gouveia”, de autor anônimo, cujo
pseudônimo era Capadócio Maluco. James N. Green e Ronald Polito (2006) colocam esse conto como o
primeiro texto a retratar o homoerotismo de forma pornográfica no Brasil, narrando, inclusive, as relações
homoeróticas sem trazer toda a carga moralista do período em que foi escrito.
30

Há o predomínio de homotextos breves, sobretudo contos, em detrimento


dos romances e, em geral, isolados nas obras dos escritores. Predomina o
silêncio sobre a problemática e, quando visível, persiste a afirmação de
estereótipos risíveis ou de imagens do desejo homoerótico como algo
impossível, destinado ao fracasso, com poucas exceções de qualidade.
(LOPES, 2002, p. 39)

Complementando Denilson Lopes, Mário César Lugarinho (2008, p. 10), no artigo


Nasce a Literatura Gay no Brasil, diz que “é preciso ter em evidência […] que mesmo
com as experimentações dos modernistas de 1922, ou de 1930, os pressupostos pouco se
modificaram, tendo sido apenas alargada e problematizada a sempre nacional constituição
indenitária.”
Dessa forma, é possível afirmar que no modernismo, apesar de ter havido um
alargamento das representações homoeróticas, havia um problema: existia um vazio
discursivo constante nesse tipo de produção, pois “não se encontrava obra, dentro e fora
do cânone, em que o homossexual não fosse uma mera representação, um simples tipo,
uma caricatura. Naquela altura, distinguimos uma ‘literatura de representação
homossexual’ de uma ‘literatura de subjetivação gay’” (LUGARINHO, 2008, p. 16), em
que a primeira tem como referência literaturas que representem relações homoeróticas de
forma estereotipada e sem grandes aprofundamentos, enquanto a segunda retrata essas
mesmas relações de forma não estigmatizante.
Horácio Costa (2010), em seu artigo O Cânone Impermeável: Homoerotismo nas
Poesias Brasileiras, Portuguesas e Mexicanas do Modernismo, compara a recepção de
poesias homoeróticas no período do modernismo em Portugal e no México com o Brasil.
Em seu texto, o teórico mostra como em Portugal e no México houve a possibilidade de
discussão quanto à liberdade dos escritores de abordarem em seus textos as relações
homoeróticas, apesar desses poemas não terem sido bem recebidos. Ao contrário, no
Brasil, pairou o silêncio — e, até mesmo, a censura — sobre escritores que abordaram o
tema.
Para exemplificar esse silêncio no modernismo brasileiro quanto a conteúdos
homoeróticos, Horácio Costa se utilizou de dois fatos ocorridos com Mário de Andrade.
O primeiro tem a ver com comentários de cunho homofóbico proferidos por Oswald de
Andrade em direção a Mário, o que culminou em um corte de relação entre os dois. E o
segundo, e mais problemático, refere-se ao que motivou Mário de Andrade a suprimir um
verso de caráter homoerótico do seu poema “Girassol da Madrugada”, induzido por um
poeta da mesma geração. Conforme explicita Horário Costa, Mário de Andrade trocou
31

várias cartas com Manuel Bandeira para dialogar sobre o poema aqui citado, nos quais
Bandeira dizia que o verso, antes da substituição, era impublicável.
Para exemplificar rapidamente o ocorrido quanto à substituição do verso, leiamos
o fragmento do poema de Mário de Andrade (2017, p.205):

Tive quatro amores eternos…


O primeiro era uma donzela,
O segundo… eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu… e eu afinal me repousei dos meus cuidados.

O texto, de acordo com Horácio Costa (2009), tem um tom amoroso e


confessional, permitindo que seja lido sob a chave de um discurso autobiográfico. Dessa
forma, o terceiro verso, “eclipse, boi que fala, cataclisma”, cria a impossibilidade de
definir o segundo “amor eterno” do poeta como homem, causando na leitura uma
sensação de texto cifrado. Esse verso soa, inclusive, como se o poeta dissesse:

não revelo (antes eclipso) o meu segundo amor eterno, mas indico, pelo
contraste entre este verso e os que enquadram, que ele provém de outra
área da experiência, do insólito ou do interdito (um boi que falasse...
afinal, seria a «revolução dos bichos», el mundo al revés). (COSTA,
2009, p. 288)

Mário de Andrade, infelizmente, teve que se esconder em seus versos para


consentir os “bons costumes” de sua época, bem como aceitar a censura de seus colegas
de geração, mesmo que tais versos estivessem imbuídos de um discurso de subversão que,
como bem disse Mário César Lugarinho, só repensou e alargou a constituição da
identidade nacional.
Apesar de termos nos centrados apenas em Mário de Andrade, existem outros
escritores brasileiros que também tiveram sua homossexualidade apagada pelo cânone
literário — e outros que não eram homossexuais, mas que tiveram seus textos de
abordagem homoerótica esquecidos pelo cânone —, entre eles há o próprio Adolfo
Caminha, Alvarez de Azevedo, Cassandra Rios (esta, inclusive, foi uma das mulheres que
mais venderam livros no Brasil, mas que, mesmo assim, teve sua presença rasurada na
história da literatura brasileira), Lúcio Cardoso, Caio Fernando Abreu4 e muitos outros.

4
Quanto aos nomes dos autores que citamos, sabemos que hoje a maior parte deles fazem parte
do cânone literário. Porém o que queremos ressaltar é que esses autores só ganharam visibilidade de fato
no fim do século XX, quando o cânone se torna, aparentemente, mais flexível a alguns autores abertamente
32

Dessa forma, fica claro como no Brasil, ao contrário de em outros países, o cânone
não deu espaço para escritores ou textos que não estivessem de acordo com a hegemonia,
algo que Horácio Costa (2010) chamou de “Cânone Impermeável”. No capítulo seguinte
iremos voltar a esse termo e destrinchá-lo melhor, mas, por hora, sigamos refletindo sobre
o homoerotismo no modernismo brasileiro.
Saindo da primeira fase do modernismo e seguindo para a década de 1960/1970,
os personagens homoeróticos ganharam mais representatividade na literatura. Nesse
período, o amor entre iguais finalmente passou a ser narrado, de fato, como amor: “foi
então que aquela coisa que ele mal ousava chamar amor, transformou-se em amor”
(Denilson apud Damata, 1968, p. 265). Foi também durante essa década que eclodiu o
movimento homossexual e que houve a chegada, de acordo com Emerson Inácio (2002),
dos Estudos Gays e Lésbicos no Brasil, o que proporcionou que o olhar negativo sobre a
homossexualidade, que permeou o século XIX e parte do século XX, começasse a ser
desconstruída de forma mais significativa — permitindo, também, recorrência maior do
assunto em trabalhos dentro da academia. Isso propiciou que uma revisão do substantivo
homossexual/gay fosse proposta, sugerindo sua substituição por outros termos que não
trouxessem historicamente os significados e as ideologias pejorativas da palavra em
questão, como, por exemplo, o termo homoerotismo.
Especificamente referente ao homoerotismo, cabe discorrermos sobre o conceito
antes de prosseguirmos, já que o utilizaremos para analisar as obras com as quais iremos
trabalhar. Nesta pesquisa, usamos como base o conceito de homoerotismo apresentado
por Jurandir Freire Costa (1992), no qual José Carlos Barcellos (2006) discorre:

“o homoerotismo [...] é um conceito abrangente que procura dar conta


das diferentes formas de relacionamento erótico entre homens (ou
mulheres, claro), independentemente das configurações histórico-
culturais que assumem e das percepções pessoais e sociais que geram,
bem como da presença ou ausência de elementos genitais, emocionais ou
identitários específicos. Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar
tanto a pederastia grega quanto as identidades gays contemporâneas, ou
ainda tanto relações fortemente sublimadas quanto aquelas baseadas na
conjugalidade ou na prostituição, por exemplo.” (BARCELLOS, 2006,
p. 20)

gays e a algumas tematizações das relações homoeróticas. Quanto ao Alvarez de Azevedo, há uma outra
questão: esse autor já fazia parte do cânone literário há muito tempo, porém havia um silenciamento quanto
as discussões que levantavam a possibilidade de o autor ser homossexual.
33

Jurandir Freire Costa apresenta em seu trabalho a maneira como a linguagem está
ligada aos significados que construímos e como ela influencia na imagem que criamos do
outro: “[v]ocabulários diversos criam ou reproduzem subjetividades diversas. E,
conforme a descrição de nossas subjetividades, interpretamos a subjetividade do outro
como idêntica, familiar ou como estranha, exótica e até mesmo desumana” (COSTA,
1992). Ou seja, se pensarmos que a palavra homossexualidade traz em si aspectos que
retomam a imagem já cristalizada de uma identidade homossexual (tratando tal grupo
como homogêneo), repensar esse termo é importante para que se gere outras
possibilidades de subjetividades e outros significados. Assim, “[c]riticar a crença
discriminatória significa, desse modo, criticar também o vocabulário que permite sua
enunciação e que a torna razoável aos olhos dos crentes” (COSTA, 1992).
Tendo em vista essa questão, Jurandir Freire Costa apresenta três principais razões
para o uso teórico de “homoerotismo” em contraponto a “homossexualidade”, devido ao
fato de que o termo: a) refere-se a doença, degeneração, desvio; b) remete-se aos homens
com tendências homoeróticas como se todos tivessem uma mesma essência, uma marca
que os caracteriza simplesmente pelo desejo erótico; c) indica uma identidade única —
ainda que saibamos que a existência de uma pessoa homossexual não a restringe a apenas
uma identidade. Sendo assim, o termo “homossexual” seria mais taxativo e arbitrário, não
contemplando as diferentes experiências vividas por esse grupo. Dessa forma,
“homoerotismo” seria mais adequado, por ser uma terminologia mais ampla e por se
referir não só ao sexo, mas ao desejo, praticado ou não, do homoerótico. Além disso, a
troca do termo homossexualidade por homoerotismo também procura distanciar quem
ouve ou lê essa nomenclatura das noções trazidas pela palavra homossexualidade.
Uma década depois do “boom gay”, como já abordamos anteriormente, eclode a
epidemia do HIV/Aids. Marcelo Secron Bessa (2002), em seu famoso livro Os Perigosos:
Autobiografias e AIDS, diz que, nesse mesmo ano, como uma resposta à epidemia, surgiu
um movimento literário chamado “literatura da AIDS”. “Sob essa alcunha, observa-se,
em diversos países e culturas, toda uma variedade de textos, estilos, gêneros, propósitos
e resultados, muitas vezes diferentes e desiguais, mas que têm algo em comum: a Aids
como tema” (BESSA, 2002, p. 9). A questão do HIV teve tanta repercussão que outros
escritores, que não necessariamente fizeram parte desse movimento literário, também
abordaram a doença.
Um desses escritores é Waldo Motta. Ligado à geração da literatura marginal na
década de 1980, costumava abordar as relações homoeróticas em seus textos. Como já
34

dissemos, durante a pandemia de Aids, ele também chegou a tematizar sobre o vírus em
seus textos, sendo o mais famoso o poema “Nos dias de aids”, publicado no livro Bundo
e Outros Poemas (1996).

Nos dias de Hades e seu reino podre


hás de doar odes e até o odre.
Hás de ir ao Id, de todos os modos.
Hás de ir ao Id, enquanto se pode.
Isento de ódio, imune ao medo.
Hás de ir ao Id, já não é mais cedo.
hás de ir ao Id, hás de ir ao Id,
para depor Hades, que a tudo preside,
e, depondo Hades, todos os poderes
que impedem a mútua doação dos seres.
(MOTTA, 2017, p. 271)

No poema, há uma aproximação sonora entre as palavras Aids e Hades, o que nos
traz duas possíveis leituras: de que a doença, na época, era um prenúncio da morte; e de
que, durante a pandemia do HIV, era como viver no próprio inferno. Exatamente por
conta dessas duas possibilidades, os versos seguem com a repetição “é necessário ir ao
Id”, no sentido de que é preciso viver enquanto se pode, imunizando-se do medo e do
ódio como uma subversão ao Hades, aos poderes, para dessa forma depô-lo.
Antônio de Pádua Dias da Silva, no artigo O corpo do poema e os poemas sobre
corpos: derrisão e ambivalência linguística na poesia de Waldo Motta, faz uma leitura
bem interessante do poema em questão:

O processo fanopéico auxilia a construção do efeito melopéico em que


Hás de vai se transformar, no processo de percepção acústico-semântica,
em Aids, ou seja, se por corruptela mal formada, deformada ou apócrifa,
som e letra dos dois itens lexicais (Hás de, aids) correspondem tanto em
metro (mesmo número de sílaba gramatical [duas] e sílaba poética
[uma]), na sílaba em que recai o acento (os dois itens lexicais são
acentuados na primeira sílaba) como em efeito de sentido, na medida em
que Aids (à década de 1980, considerado o“câncer gay”, imagem
demoníaca) está para Hades (inferno, lugar de tormento, em uma
determinada visão cristã que opõe céu a inferno e vice-versa).
Semanticamente, então, o corpo aidético seria o equivalente de um corpo
castigado, do Hades. E ao se ler de forma inversa, o Hades é esse topos
que figura no imaginário cristão ocidental como o provocador e lugar do
medo, da vigilância e punição dos corpos, e que poderia provocar (por
castigo) a Aids nos corpos dos “impuros” e desobedientes
(homossexuais). (SILVA, 2015, p.175)
35

Outro escritor, e um dos mais conhecidos, que também abordou em seus trabalhos
o HIV/Aids foi Caio Fernando Abreu. Em seus livros Os dragões não conhecem o paraíso
(1988), Pequenas epifanias (1986) — neste, inclusive, encontramos crônicas nas quais
Caio expõe ser soropositivo no jornal O Estado de São Paulo — e Onde andará Dulce
Veiga (1990), aborda de forma direta relações homoeróticas, além de tematizar
personagens com HIV. Em uma entrevista concedida ao Marcelo Secron Bessa (1985a)5,
Caio deixa claro, por trás de suas palavras, como a epidemia do HIV/Aids o influenciou
em sua vida pessoal e, consequentemente, em sua obra: “o que é que se faz quando aquilo
que era possibilidade de prazer — o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de
nos aliviar da sensação de finitude e incomunicabilidade — começa a se tornar
possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação” (BESSA apud
ABREU, 1985, p. 30). Essa afirmação de Caio, cabe dizer, dialoga diretamente com Susan
Sontag, em Doença como metáfora, Aids e suas metáforas, em que ela discorre sobre
como o HIV acaba sendo uma doença que mata o indivíduo socialmente, desumanizando-
o para a sociedade (SONTAG, 2007, p. 108)
Por Caio sempre ter tocado em temas que não eram considerados literários, como
homossexualidade, drogas, sexo, entre outros, o escritor foi mantido à margem da crítica.
Porém, em 1994, após levar ao público sua sorologia, a mídia o colocou em evidência.
“A Aids foi além da literatura de Caio, mas, principalmente, pela mistura e, às vezes,
superposição da vida sobre a obra que a Aids propiciou” (BESSA, 2002, p. 30), e isso
porque, após saber ser positivo, sua vida se tornou mais importante do que sua obra para
os meios de comunicação.
Luís Capucho, autor com o qual trabalharemos na pesquisa, também se debruçou
sobre a temática. Nascido em 1962 no Espírito Santo, na cidade de Cachoeiro do
Itapemirim, mudou-se com sua mãe para Niterói (Rio de Janeiro) aos doze anos, passando
a morar em um cortiço. Oito anos depois, em 1982, iniciou os estudos em Letras na
Universidade Federal Fluminense, espaço onde começou a trabalhar em composições
musicais, tornando-se, antes mesmo de escritor, cantor e compositor. Já formado, passou
a dar aulas na rede pública enquanto construía sua carreira como músico.

5
A informação sobre essa entrevista retirei do artigo do Marcelo Secron Bessa Retrovírus,
Zidovudina e rá! Aids, Literatura e Caio Fernando Abreu, publicado no livro A escrita de Adé:perspectivas
teóricas dos Estudos Gays e Lésbic@s no Brasil (2002, p. 86).
36

Em 1996, em decorrência do vírus HIV (doença crônica que o escritor faz questão
de registrar em sua biografia), Luís Capucho entrou em coma por toxoplasmose,
desenvolvendo sequelas em sua coordenação motora.
Após o coma, veio o período de recuperação, momento em que começou a
produção de seu primeiro romance: Cinema Orly (1999). Aconselhado por uma amiga a
escrever para treinar a coordenação motora, Luís Capucho começou a ficcionalizar suas
experiências. Em uma entrevista concedida ao jornal Pampulha: Seminário de Belo
Horizonte, Capucho comenta como o fato de o movimento de suas mãos estar lento em
comparação ao seu raciocínio facilitava seu processo de escrita, uma vez que tinha tempo
de elaborar bem as frases antes de terminar de escrevê-las. Nessa entrevista, Capucho
(2017) ainda comenta: “naquela época, como achava que ia morrer, dei um grande
mergulho (na escrita). Tão profundo que, na verdade, quase esqueci de mim mesmo”.
Além de Cinema Orly, Capucho também lançou mais três livros: Rato (2007),
Mamãe me Adora (2012) e Diário da Piscina (2017). Além dos livros, Capucho também
compôs álbuns, sendo eles Antigo (1995), Lua Singela (2003) e Cinema Íris (2012).
Como se pode ver a partir desse breve resumo de sua vida e de sua obra, foi quando
Luís Capucho descobriu ser soropositivo que passou a escrever. O impacto dessa
descoberta é perceptível tanto em sua obra literária quanto em sua obra musical, já que
tanto a temática das relações homoeróticas quanto da convivência com o HIV aparece em
seus trabalhos. Desse modo, iremos fazer um breve resumo de seus quatro livros para
contextualizar melhor a relação entre as suas obras e as temáticas abordadas pelo escritor.
Em seu primeiro livro, Cinema Orly, é narrada a história de um personagem que
vive as possibilidades de desejo e afeto homoeróticos no espaço de um antigo cinema
pornô, que se localizava na Cinelândia, cujo nome era homônimo ao título do livro. Leva-
nos a refletir, junto com o personagem, sobre o cotidiano, as identidades e os espaços nos
quais se tecem as relações sociais de um homem gay periférico. Na obra, o vírus HIV
parece pairar como uma sombra dentro do ambiente de pegação, fixando-se sempre no
lugar do não dito. Confiramos o seguinte trecho:

A vendedora de balas e cigarros ficava logo na entrada, perto do


bebedouro e da escada de saída, andava vendendo amiúde por todo o
cinema. Era uma observadora, não participava da putaria, mas incitava-
nos, brincava e fazia comentários que, dependendo do seu humor, eram
para o bem ou para o mal. Às vezes gritava para a plateia:
- Chupar sem camisinha também transmite AIDS, hein!” (CAPUCHO,
1999, p.28)
37

Esse é o único fragmento em que a palavra AIDS aparece de forma clara em


Cinema Orly. Durante todo o livro, o narrador fala sobre ser tomado pelo desejo, por
instintos que o movem a mergulhar nos corpos dos homens e amar sem pudor, sem
limites, sem que haja nenhum tipo de preocupação, só prazer. A vendedora de balas, no
entanto, funciona como um agente externo àquela situação, a fim de trazer à realidade
toda a sublimação que o narrador cria àquele espaço , alertando que não é só o prazer que
os corpos do cinema podem transmitir. Nesse caso, podemos afirmar que, embora o
narrador prefira se concentrar apenas naquilo que lhe traz boas sensações — e apesar de
o cinema, assim como fica claro no fragmento que exporemos abaixo, ser o espaço onde
há a possibilidade de se viver plenamente os desejos —, ele não está alheio à possibilidade
de contrair qualquer tipo de doença.

Sempre que saía do Orly estava muito cansado, mas confortado. De lá, ia
direto para casa dormir. Não sentia vontade de ir a bares, boates, cinema
etc. Era uma felicidade estar transformado num personagem do Orly.
Rapidamente me moldei ao modo não muito comum de fazer sexo na
presença dos outros, de necessariamente o sexo não pressupor intimidade
alguma, moldei-me ao fedor, aos filmes, aos clientes, ao anonimato, à
promiscuidade, às poltronas, e curtia, não pensava muito sobre isso. Se
aquilo não era o saudável, era o que eu achava mais possível (Idem, p.
81)

O segundo romance, Rato, tem como protagonista um rapaz que vive com sua mãe
em uma espécie de pensão só para homens. Dentro desse espaço, vemos uma tensão se
construir entre o personagem-protagonista e os outros rapazes, além do surgimento de
uma relação afetiva que, assim como em Cinema Orly, só é possível ocorrer em espaços
públicos: ruas, casas abandonadas e terrenos baldios.
Mamãe me adora, terceiro livro de Capucho, centra-se na relação do protagonista
com sua mãe, e narra a viagem que os dois fazem do Rio de Janeiro para Aparecida do
Norte. Nesse livro a convivência do personagem com HIV aparece de forma direta.
E em Diário da Piscina, último livro do escritor até o momento, temos um texto
ficcional em formato de diário. Um registro de todas as idas do personagem Claudio à
piscina a fim de melhorar sua coordenação motora. Aqui também temos a temática do
HIV sendo tratada de forma mais explícita, já que o personagem ainda está se recuperando
das sequelas motoras que a toxoplasmose, devido ao quadro de Aids, o causou. Além
disso, esse livro recupera alguns aspectos de Cinema Orly, que é transformar os corpos
38

dos homens, e consequentemente sua masculinidade, em figuras divinas, como podemos


ver abaixo:

no banheiro, na hora de trocar a roupa para vir embora, encontrei-me com


um deus tranquilo. Nas outras vezes em que ele me apareceu, indo ou
vindo pelo corredor de entrada para as aulas de musculação, não supus
que fosse um deus, mas no banheiro, nu, enxugando-se, meu coração se
encheu de luz. (CAPUCHO, 2017, p; 25)

No decorrer da narrativa, Claudio, único protagonista de Capucho que é nomeado,


fala sobre como a presença/beleza de determinados corpos masculinos o afeta, tira-o do
lugar, aproximando-os de algo divino, como se ele os colocasse em cima de um pedestal.
Não à toa, no fragmento que expomos acima, ele diz perceber que o rapaz, que nomeou
como “deus tranquilo”, é um deus pelo fato de sua nudez ter lhe causado uma sensação
forte no coração. Para podermos comparar com Cinema Orly, leiamos o seguinte trecho:

Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos


amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de
pentelhos, era encontrar Deus. Depois achei que Deus fosse beijar um
homem; logo o Orly era mesmo para mim uma religião (CAPUCHO,
1999, p. 73).

O encontro do protagonista com esse corpo masculino é como uma espécie de


encontro com Deus, possibilitado pelo espaço do cinema pornô. Em alguns momentos, a
descrição de Capucho faz parecer que só o fato de estar diante da nudez de um outro
homem propicia a sensação de encontro com Deus:

Lá eu podia ver, reveladas na tela, as imagens mais belas de sacos de


homens que podem haver. Sacos peludos sobre a pele gordurosa, que
continuavam em paus engordados pela excitação, e que ao invés de me
trazerem à lembrança a imagem silvestre de um animal, de um sátiro,
faziam com que eu tivesse reminiscência provocadas pelos meus sonhos
mais românticos, de quando ainda eram pueris e eu achava possível que
meu corpo voasse (Idem, p. 17).

Em Cinema Orly, em comparação a Diário da Piscina, há algo que vai além: o


espaço do cinema, para o personagem, torna-se algo como uma igreja, um local onde há
a possibilidade e a benção desse encontro, lugar de imersão nesse universo de divindades.
Essa questão fica bem clara na música que o protagonista cria sobre o cinema:
39

O Cinema Orly é sujo/No Cinema Orly me lambuzo/O Cinema Orly


abençoa nosso amor/Ferve nossa alma no seu caldeirão/Ama-se a
quantos/Quer o nosso amor/Ser o que se quer/No mofo do cinema eu me
iludo/No bafo do cinema eu me afundo/No Cinema Orly/É humano o que
era dos animais/É mundano o que era dos imortais/No Cinema Orly/O
Cinema Orly/De terça a teça/De dez às dez/Abre a porta para os fiéis/Seja
uma igreja/Seja um cinema/O Orly me beija/O Orly me beija (Idem, p.
30).

Como podemos ver, apesar de haver essa divinização dos corpos, assim como do
cinema, Luís Capucho trabalha com uma imagem que traz o sublime e o grotesco. Ao
mesmo tempo que o Cinema Orly é sujo, é o lugar onde ele se lambuza e que abençoa
esse amor que lhe traz prazer. Ao mesmo tempo que o que era animal se torna humano, o
que é divino passa a ser mundano. É interessante que Capucho, ao expor em sua narrativa
a divinização desses corpos, mostre que aquilo que poderia ser visto como sujo pode ter
outra característica em outras experiências.
Apesar de termos feito essa breve análise comparativa entre os romances de Luís
Capucho, iremos explorar apenas os dois primeiros livros, ainda que achemos importante
apresentar os dois últimos, tendo em vista que suas quatro obras, de alguma maneira,
complementam-se, dando mais corpo e unicidade à representação homoerótica dentro de
seu trabalho.
Quanto à rápida linha cronológica dos escritores e obras que abordaram a relação
homoerótica no Brasil, tendo em vista um silenciamento discursivo até o fim do século
XX, esperamos que tenha ficado claro como até meados da década de 1970/1980 não
tivemos muitos escritores que abrissem espaço para uma literatura que permitisse o
aprofundamento da subjetividade de personagens homossexuais. Esse cenário só começa
a mudar com o aparecimento de escritores como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu,
João Gilberto Noll, Lúcio Cardoso, Waldo Motta, Hilda Hilst, entre outros, que ganharam
espaço dentro do cenário literário nacional, quebrando a barreira, em certa medida, do
cânone literário, e cujas obras não transformam os personagens homossexuais em uma
mera representação. Isso nos remete de volta ao que Mário César Lugarinho defende
como literatura de subjetivação.
Ao contrário da literatura de representação, que não permite o aprofundamento
dos personagens — repetindo os estereótipos quanto ao olhar para o desejo homoerótico
—, a literatura de subjetivação transpassa esse estigma, trazendo para a narrativa uma
pluralidade quanto a essa forma de desejo, não singularizando o personagem
homossexual, mas dando a ele possibilidades diversas para além de uma representação
40

rasa. Os escritores que citamos acima se encaixam exatamente no que Lugarinho diz ser
uma literatura de subjetivação, pois quebram o silêncio discursivo que se instaurou na
literatura brasileira quanto à temática homoerótica. Esses, os escritores, não só
representam a relação entre pares, como também problematizam o olhar da sociedade
para esse tipo de desejo/amor, impedindo que a homossexualidade seja fixada a uma única
identidade.
O trabalho de Luís Capucho também se encaixa nesse tipo de literatura defendida
por Lugarinho, já que em sua narrativa há o movimento de pluralizar as relações
homoeróticas, bem como a representação da homossexualidade. Porém, quanto a alguns
aspectos, ele vai além: Capucho, de acordo com Mário César Lugarinho (2008), é o
primeiro escritor a trazer homossexuais que vivem ainda mais à margem da sociedade
para as páginas da literatura brasileira. Seus personagens só têm a possibilidade de
experimentar seus afetos e desejos em espaços como banheiros públicos, cinemas pornôs
e terrenos baldios, longe dos olhos de todos.
Além disso, ao contrário de escritores como Silviano Santiago e Caio Fernando
Abreu, Luís Capucho vem de origem pobre, vive experiências afetivas e de desejo
homoeróticos parecidos com os de seus personagens e produz uma escrita sem a mediação
cultural da academia. Capucho traz para a superfície relações que se quer manter ocultas
— personagens que não tinham, até então, visibilidade —, ampliando, assim, a
representação e a subjetividade das relações homoeróticas, e subvertendo, de certa forma,
o que vinha sendo produzido quanto a essa temática na literatura brasileira, quebrando
ainda mais o silêncio imposto às narrativas de cunho homoerótico.
41

SEGUNDO CAPÍTULO
42

2. HOMOEROTISMO E CÂNONE LITERÁRIO

2.1. A questão do cânone ocidental

Neste capítulo, pensaremos a relação entre o cânone literário brasileiro e as


literaturas que abordaram o homoerotismo. Porém, para entender de forma mais ampla o
funcionamento do cânone no Brasil, iremos fazer algumas reflexões acerca do cânone
ocidental, tendo em vista que o primeiro faz parte do segundo.
Roberto Reis (1992), em seu artigo Cânon, faz um panorama interessante para
defender que o cânone ocidental se estrutura de maneira ideológica para reforçar o
discurso dominante, utilizando-se da cultura para naturalizar uma determinada ideologia.
Para embasar seu argumento, Roberto Reis inicia o artigo fazendo uma relação entre
cultura e saberes, já que toda cultura implica um conjunto de saberes, que, por sua vez,
costumam ser textualizados.

Sempre lemos/interpretamos (pode-se escrever que toda leitura é uma


interpretação e toda interpretação é uma leitura) aparelhados com este
elenco de conhecimentos; ou seja, de textos, na medida em que estes ou
nos são passados por meio de textos propriamente ditos ou por outras
formações discursivas que se comportam como textos (REIS, 1992, p.
65)

Dando continuidade ao raciocínio, Roberto Reis levanta um segundo aspecto: a


relação entre saberes e linguagem, pois, para ele, o “intercâmbio de saberes — e saber é
uma forma de domesticar, pelo conhecimento, a realidade — está mediado pela
linguagem (Idem, p. 66)”. Essa afirmação se dá a partir da ideia de que entre nós e o que
entendemos como real há a linguagem, sabendo que é a partir dela que falamos sobre o
que existe no mundo. Dessa forma, é por meio dos signos verbais que nos apropriamos
dos objetos sobre os quais falamos e, ao mesmo tempo, os recriamos de outra forma:
simbólica, social e culturalmente. A grande questão é que nem sempre se percebe a
dimensão simbólica que a linguagem — e, consequentemente, a cultura — tem, tratando
a relação entre signo e referente como algo imediato, transparente; naturalizando, assim,
o que deveria ser visto como cultural.

A cultura, com efeito, é um conjunto de sistemas simbólicos, de códigos


que, de uma forma ou de outra, prescrevem ou limitam a conduta humana.
O que nos sugere que a cultura implica ou requer mecanismos de
43

cerceamento social. Ou, dito de uma maneira mais precisa, no interior de


qualquer formação cultural as camadas dirigentes se valem de diversas
formas discursivas e as transformam em ideologia para assegurar o seu
domínio.
A linguagem é, ainda, uma forma de violência imposta à natureza. Ao
dizer “folha” abarco numa única palavra um imenso espectro de realia
que mantêm entre si enormes e inúmeras diferenças em termos de
aparência, cor, espessura, peso, idade, tamanho, textura, etc. O signo
“folha” reduz a realidade, multifacetada e polimorfa, a um único termo,
a um mesmo. Neste sentido, a linguagem não só metaforiza o real, mas o
falseia. Mas a linguagem também organiza o real, de tal forma que
pensaremos como “real” aquilo que o horizonte da linguagem (e a cultura
da qual ela faz parte) articula como tal. A realidade passa a ser conhecida
e o mundo, uma vez insertado na ordem simbólica, assume um caráter
humano e social (Idem, p. 66).

Nesse sentido, cabe afirmar que a linguagem hierarquiza e traz em si mecanismos


de poder, já que influencia a forma como as pessoas veem o mundo, o real e a verdade
dentro de uma determinada cultura, operando a partir de uma ideologia que garanta o
controle social. Podemos citar como exemplo as sociedades que conheceram a escrita e
que se utilizaram dela para subjugar outras culturas, negando direitos àqueles que não
dominavam tal forma de linguagem.
A literatura, obviamente, não foge dessa questão, já que, quando pensamos em um
símbolo que a represente, o livro nos vem à cabeça de imediato — e o livro, geralmente,
remete à escrita, e a escrita, como já abordamos, remete à uma determina forma de
linguagem e poder. Tanto que quando pensamos em uma literatura que não se utiliza do
texto escrito, há a necessidade de a marcarmos como “oral”.
Chegando até aqui, por mais que tenhamos passado bem rapidamente por noções
que envolvem a linguagem, a cultura, a escrita e a literatura — e sem nos determos em
termos históricos —, tentamos mostrar que não podemos perder de vista o fato de que
essas noções se entrelaçam com o que tratamos como literatura, que elas são importantes
para refletirmos sobre como o cânone literário funciona internamente e que ele, assim
como a literatura, não pode ser desassociado do contexto social em que se insere, bem
como das relações de poder que engendram a cultura em que está inserido.
Para iniciarmos as nossas reflexões sobre o funcionamento do cânone, decidimos
expor, primeiro, o olhar de um teórico que o defende, para depois fazermos reflexões
críticas acerca dos argumentos de defesa. O autor que escolhemos foi Harold Bloom
(1995), que discorre sobre o tema no livro O Cânone Ocidental. O teórico estadunidense
afirma que o que faz uma obra literária entrar para o cânone é sua originalidade e sua
44

literariedade, conservando em si um valor estético que não é encontrado em qualquer


escritor. Para embasar seus argumentos, Harold Bloom volta às origens do que se foi
entender como cânone, mostrando que desde os gregos antigos havia a preocupação de
manter uma tradição secular de canonicidade. Implicitamente, Bloom defende que quem
buscava essa tradição canônica eram os próprios poetas, e não uma instituição que tivesse
como intuito manter os seus preceitos por meio dessa seleção. O que entendemos como
cânone hoje — um catálogo de autores selecionados — só ganhou forma durante o século
XVIII.
Outra questão levantada pelo teórico é o fato de que em cada era há o predomínio
de uma valorização canônica de determinados gêneros em detrimento de outros.

Nas primeiras décadas do nosso século, o romance em prosa americano


foi exaltado como género, o que ajudou a estabelecer Faulkner,
Hemingway e Fitzgerald como os nossos escritores dominantes do século
xx no âmbito da prosa de ficção, dignos sucessores de Hawthorne,
Melville, Mark Twain, e da faceta de Henry James que triunfou em A
Taça Dourada (The Golden Bowl) e As Asas da Pomba. O efeito desta
exaltação do romance sobre o romance “realista” pode ser visto no facto
de que narrativas visionárias como Na Minha Morte de Faulkner, Miss
Corações-Solitários de Nathanael West, e O Leilão do Lote 49 de Thomas
Pynchon, tiveram muito melhor aceitação crítica do que Irmã Carrie e
Uma Tragédia Americana de Theodore Dreiser. Agora começou uma
nova revisão de géneros com a ascensão do romance jornalístico, como,
por exemplo, A Sangue-Frio de Truman Capote, O Canto do Carrasco,
de Norman Mailer, e A Fogueira das Vaidades de Tom Wolfe; Uma
Tragédia Americana recuperou muito do seu brilho na atmosfera destas
obras (BLOOM, 1995, p. 28)

O romance histórico, por sua vez, foi permanentemente desvalorizado. Harold


Bloom comenta que o escritor Gore Vidal, romancista estadunidense que abordou sem
ambiguidade a homossexualidade em seus livros no século XX, certa vez o tinha dito que
não foi assimilado pelo cânone por conta de sua orientação sexual, fato que Bloom nega,
atribuindo a negativa do status canônico ao fato de seus trabalhos serem classificados
como romance histórico. Harold Bloom, apesar de também se valer da história para pensar
a formação do cânone, parece não acreditar que aspectos sociais possam influenciar nesse
processo, tendo apenas a forma do texto e sua possível qualidade em seu horizonte como
norteador para explicar o porquê de determinados autores e obras entrarem nessa seleção,
ao passo que outros não.
45

O Cânone, uma palavra religiosa nas suas origens, tornou-se uma escolha
entre textos em luta uns com os outros pela sobrevivência. Este facto
mantém-se independentemente de se interpretar a escolha como resultado
de grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de
crítica ou, como eu acho, como tendo sido feita por autores que chegaram
depois, e que se sentem eles próprios escolhidos por determinadas figuras
ancestrais (Idem, 27-28)

Quando Harold Bloom diz que o cânone é uma escolha a partir de textos que lutam
entre si pela sobrevivência, ele deixa claro seu ponto de vista: o que faz um livro
sobreviver e permanecer na biblioteca canônica é sua qualidade estética, sua
originalidade, sua literariedade. E essas qualidades textuais, inclusive, ultrapassam as
influências de grupos sociais dominantes, das universidades e dos críticos.
Quanto a essa argumentação de Bloom, precisamos fazer algumas ressalvas. Para
isso, analisemos, primeiro, a acepção da palavra “cânone” e da palavra “crítica”, tendo
em vista que as duas têm relação entre si. Leila Perrone-Moisés, em seu livro Altas
literaturas (1993), inicia seu texto se debruçando sobre a palavra “crítica”, mostrando
que, já em sua etimologia, havia uma ligação com o ato de julgamento (krinen = julgar).
Agora, quanto à palavra “cânone”,

o termo deriva da palavra grega "kanon" que designava uma espécie de


vara com funções de instrumento de medida; mais tarde o seu significado
evoluiu para o de padrão ou modelo a aplicar como norma. É no século
IV que encontramos a primeira utilização generalizada de cânone, num
sentido reconhecidamente afim ao etimológico: trata-se da lista de Livros
Sagrados que a Igreja cristã homologou como transmitindo a palavra de
Deus, logo representado a verdade e a lei que deve alicerçar a fé e reger
o comportamento da comunidade de crentes. Após a rejeição de certos
livros denominados apócrifos, o cânone bíblico tornou-se fechado,
inalterável, distinguindo-se neste aspecto do outro referente do cânone
teológico, o conjunto de Santos Padres a que a Igreja Católica
periodicamente acrescenta novos indivíduos através de um processo
chamado canonização. (DUARTE, 2009, s/p).

Rogério Caetano de Almeida6, no artigo Grotesco: entre o canônico e o marginal


(2014), faz uma breve comparação entre o cânone bíblico e o cânone literário. O primeiro
tem a característica de ser imutável, já que os livros que compõem a bíblia não podem ser
alterados nem retirados, sob a condição de castigo divino para aquele que ousá-lo. Já o

6
Professor Doutor de Literatura Brasileira da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR) e pesquisador das Relações do Cânone com o Grotesco e com o Absurdo.
46

cânone literário está em constante mudança, uma vez que há a constante e permanente
inserção de publicações literárias.

Desta forma, pode-se pensar que o cânone literário é absolutamente


liberal, já que seu mecanismo de funcionamento é diametralmente oposto
ao do cânone bíblico. No entanto, o cânone literário tem também um
caráter conservador inerente a ele, o que é inevitável para preservar a obra
passadinha (ALMEIDA, 2014, p. 207)

Diante dessa comparação entre o cânone bíblico e o cânone literário ocidental,


João Ferreira Duarte7, no E-dicionário de termos literários, atenta-nos para a seguinte
questão:

importante para a história posterior do conceito é, pois, a ideia de que


canónica é uma seleção (materializada numa lista) de textos e/ou
indivíduos adotados como lei por uma comunidade e que lhe permitem a
produção e reprodução de valores (normalmente ditos universais) e a
imposição de critérios de medida que lhe possibilitem, num movimento
de inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do heterodoxo,
do herético ou do proibido. Neste sentido, torna-se claro que um cânone
veicula o discurso normativo e dominante num determinado contexto,
teológico ou outro, e é isso que subjaze a expressões como "o cânone
aristotélico", "cânones da crítica", etc (DUARTE, 2009, s/p).

É importante que fique claro que configurar uma obra como canônica em
detrimento de outras é delimitar quais podem ser incluídas e quais podem ser excluídas,
marginalizando determinados autores/obras a partir de um discurso de autoridade — de
um crítico, uma instituição ou um autor que detém o poder de decidir quem faz parte
daquilo que tratam como literatura de qualidade. Leila Perrone-Moisés irá dizer que

na prática, o exercício da crítica pelos próprios escritores se deve, em


grande parte, ao fato de os princípios, as regras e os valores literários
terem deixado de ser, desde o romantismo, predeterminados pelas
Academias ou por qualquer autoridade ou consenso. Diluíram-se e
perderam-se, pouco a pouco, os códigos que orientavam a produção
literária: código moral (o Bem), código estético (o Belo), código de
gêneros determinado pela expectativa social), de estilo (orientado pelo
gosto), código canônico (a tradição concebida como conjunto de modelos
a imitar). Cada vez mais livres, através do século XIX e sobretudo do
XX, os escritores sentiram a necessidade de buscar individualmente suas
razões de escrever, e as razões de fazê-lo de determinada maneira.
Decidiram estabelecer eles mesmos seus princípios e valores, e passaram

7
João Ferreira Duarte é Professor Catedrático de Literatura Inglesa e Comparada na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
47

a desenvolver, paralelamente às suas obras de criação, extensas obras de


tipo teórico e crítico (PERRONE-MOISÉS,1998, p. 11).

Em seu estudo, percebe-se que o discurso de autoridade de formação do cânone


literário muda no fim do século XIX para algo não menos subjetivo, já que, assim como
o próprio Harold Bloom confirma: o escritor/artista, que também ocupa o lugar de crítico
literário, passa a ter influência no processo de canonização a partir da sensibilidade
artística aliada ao conhecimento técnico/científico. Porém, ao contrário de Bloom, Leila
Perrone-Moises coloca em xeque o discurso desses escritores/críticos, já que a teórica
percebe neles análises que se utilizam de adjetivos que permeiam a subjetividade.

Por exemplo, alguns dos valores apontados pelos escritores-críticos na


Divina Comédia são concisão, clareza, surpresa, sonoridade,
despersonalização absoluta, novidade a seu tempo e atualidade. No
entanto, essas características estão, também, impingidas na modernidade,
momento ao qual os autores pertencem. Por conseguinte, a formação de
um cânone tem intrínseco a si, conforme já dissemos, uma componente
subjetiva.
Por outro lado, obras tidas como marginais e/ou marginalizadas agrupam,
muitas vezes, as mesmas características de obras canonizadas. Um
exemplo disso é que os aspectos tidos como canonizadores da obra de
Dante Alighieri pertencem a autores satíricos medievais, afora a questão
da despersonalização absoluta, que é impossível na sátira (ALMEIDA,
2014, p. 208-209)

Dessa forma, pensando no que Harold Bloom defende, afirmar que as obras têm
o poder de se infiltrar no cânone a partir apenas de suas qualidades estéticas, sem
influenciadores externos, é negar que existem nesse processo agentes e instituições que
definem quais qualidades são merecedoras de exaltação e quais escritores/livros têm essas
características — lembrando que, muitas vezes, a defesa dessas qualidades têm bases
movediças, já que, ao se dizer que um texto é original e inovador a partir de sua forma,
assim como Bloom faz em diversos de seus argumentos, recai-se em um lugar vazio,
tendo em vista que tais adjetivos são subjetivos e costumam não ser tecnicamente
explicáveis.
Ainda em Harold Bloom, abordando a última questão que queremos apresentar
em seu texto, o teórico se mostra muito inflexível quanto às críticas que os Estudos
Culturais fazem ao cânone, já que, para Bloom, parece que o social não pode estar ligado
ao estético. Nesse sentido, Bloom se coloca contra os estudos que apontam o caráter
48

ideológico do cânone ocidental e contra a possibilidade de abri-lo para literaturas que


durante séculos foram excluídas.

As defesas ideológicas do Cânone Ocidental são tão prejudiciais em


relação aos valores estéticos como o são as investidas dos atacantes que
procuram destruir o Cânone ou, tal como eles proclamam, “abri-lo”.
Nada é mais essencial ao Cânone Ocidental que os seus princípios de
seletividade, que são elitistas unicamente na medida em que se fundam
em rigorosos critérios artísticos. Aqueles que se opõem ao Cânone
insistem em que há sempre uma ideologia envolvida na formação do
Cânone. Na verdade, vão mesmo mais longe e falam da ideologia da
formação do Cânone, sugerindo que fazer um cânone (ou perpetuá-lo) é
um ato ideológico em si mesmo (BLOOM, 1995, p. 29-30)

Para defender a sua ideia, com base no que ele chama de “qualidade artística”,
Harold Bloom afirma que não podemos nos dar ao prazer de encher nossas bibliotecas
com qualquer tipo de literatura e ler “subliteratura em nome de qualquer justiça social”
(Idem, p. 38), tendo em vista que não teríamos tempo de vida suficiente para lermos todos
os livros que fazem parte do cânone — quem dirá, então, livros de menor qualidade.
Outra questão da qual Bloom se utiliza para defender o cânone ocidental é seu
caráter memorial, pois, para ele, “o conhecimento não pode prosseguir sem memória, e o
Cânone é a verdadeira arte da memória, a autêntica fundação do pensamento cultural”
(Idem, p. 42). Quanto a essa afirmação, acreditamos que convém fazermos as seguintes
perguntas: memória do quê? E memória de quem?
Harold Bloom, como podemos ver, entende o cânone como um lugar neutro, que
não é influenciado pelo social e não é, de forma alguma, político. Ao defender que autores
e obras adentrem o cânone por sua “qualidade artística/estética”, Bloom não leva em
consideração que tal qualidade é estabelecida por um determinado grupo, de uma
determinada época e de um determinado lugar (academia, críticos, autores já renomados);
se levarmos esses elementos em consideração, não há como dizer que essas escolhas não
têm influência social, política e histórica. Assim, voltamos ao que discutíamos no início
do texto: a relação entre linguagem, cultura, escrita e literatura, bem como as relações de
poder em que estão envolvidas na nossa sociedade.
Para Roberto Reis,

os defensores do cânon possivelmente argumentariam que as obras


literárias possuem qualidades intrínsecas, estão dotadas de um valor
estético – a sua “literariedade” (e uso o termo de um modo emblemático,
para condensar distintas correntes que privilegiaram e continuam a
49

privilegiar o primado do texto, acabando por instituir, ao sacramentá-lo e


fetichizá-lo, a tirania do texto). Em poucas palavras, é possível detectar
este valor inato e inerente à obra, sem levar em conta nenhum elemento
“externo”. Não é à toa, convém frisar, que a canonização abstrai esta
eleita plêiade de obras de suas circunstâncias históricas (REIS, 1992, p.
71)

Seguindo uma linha de raciocínio contrária à de Harold Bloom, Roberto Reis


questiona o lugar em que o cânone ocidental é colocado, tendo no horizonte que a própria
noção de literatura é ideológica, ligada intrinsicamente à questão do poder. No final do
século XVIII e início do século XIX, a literatura era vista como um espaço em que se
podia contemplar o belo (período em que ela se estabeleceu a partir da disciplina
“estética”), salvando alguns indivíduos das mazelas do sistema capitalista. Décadas
depois, a literatura serviria para exaltar certos tipos de escrita, resultando na
marginalização de outras formas de cultura mais populares.
Para Roberto Reis, o estudo de literatura seria mais bem desenvolvido caso fosse
pensado dentro da dinâmica das práticas sociais, pois a escrita e a leitura estão sujeitas a
servir diversas formas de controle e têm sido utilizadas como instrumento de dominação
social. Hoje, a instituição que mais se empenha nessa tarefa é a universidade, com grupos
de professores que validam o cânone literário por meio de disciplinas dedicadas a ensinar
a ler “grandes obras”, reproduzindo uma estrutura social excludente.
Seguindo esse pensamento, o teórico expõe que o conceito de literatura seria
melhor entendido como uma “prática discursiva” dentro da ordem do discurso. Nesse
sentido, a literatura deixaria de ser vista como possuidora de uma especificidade inerente,
passando a ser tratada de um ponto de vista funcional. Ou seja, um texto só é tratado como
literário a partir do olhar que o leitor, e também o crítico, tem. Essa especificidade é
atribuída por um agente externo, e não o contrário. Dessa forma, “a literatura se converte
numa forma de praxis discursiva e social, não apenas representando, mas também criando
a realidade” (REIS, 1992 p. 72).

A literatura tem sido uma das grandes instituições de reforço de fronteiras


culturais e barreiras sociais, estabelecendo privilégios e recalques no
interior da sociedade. Ao olharmos para as obras canônicas da literatura
ocidental percebemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais,
étnicos e sexuais do cânon literário. Entre as obras-primas que compõem
o acervo literário da chamada “civilização” não estão representadas
outras culturas (isto é, africanas, asiáticas, indígenas, muçulmanas), pois
o cânon com que usualmente lidamos está centrado no Ocidente e foi
erigido no Ocidente, o que significa, por um lado, louvar um tipo de
cultura assentada na escrita e no alfabeto (ignorando os agrupamentos
50

sociais organizados em torno da oralidade); por outro, significa dizer que,


com toda a probabilidade, o cânon está impregnado dos pilares básicos
que sustentam o edifício do saber ocidental, tais como o patriarcalismo,
o arianismo, a moral cristã (Idem, p. 72)

Essa citação nos recorda a vitória do filme Parasita (2019) no Oscar, o primeiro
filme de língua não-inglesa a levar o título de Melhor Filme. O diretor asiático Bong Joon-
ho, em seu discurso, fala sobre a necessidade de o Ocidente olhar para outras culturas
como potencias culturais, superando as barreiras linguísticas e de legendagem. As artes
em geral costumam ser bem excludentes, e, obviamente, a literatura não seria diferente.
Apesar de termos vozes dissonantes que furaram a bolha do cânone ocidental, se
analisarmos os escritores que fazem parte dessa seleção, veremos que, em grande maioria,
são homens brancos europeus, membros de uma elite social. Há pouquíssimas mulheres
e quase nenhum não branco. Os que tinham orientação sexual “divergente” geralmente a
escondiam, e, mesmo quando abordavam o assunto em suas obras, costumavam fazê-lo
de forma enigmática. Os poucos escritores que ousaram se expor e trabalhar a temática
da homossexualidade de maneira mais direta sofreram algum tipo de sanção, fosse ela
legal ou por meio de exclusão nos registros históricos. Não à toa, a literatura tem sido
usada para inviabilizar os escritos, bem como os fenômenos culturais não escritos, que se
inscrevem em um seguimento culturalmente marginalizado: não brancos, mulheres,
LGBTIs e culturas de países menos desenvolvidos ou não ocidentais.
De acordo com Emerson Inácio, em seu ensaio Para uma estética pederasta:

[...] todos e quaisquer cânones são excludentes por natureza, visto que
denotam sempre uma eleição do que pode e deve fazer veicular uma
“verdade”, seja ela divina, estética, literária ou legal. Retomando
Foucault, o cânone literário funcionaria como um disciplinador dos
diversos discursos autodeclarados estéticos, mas que por diversas razões
tornar-se-ão excêntricos, marginais e/ou periféricos, procurando
responder aprioristicamente à demanda “o que é literatura?” E a priori
aqui estabelece a confusão: quem define quem? É o cânone que responde,
chancelando e incorporando a produção, ou seria a produção que, pelo
caráter “literariedade”, acaba por reivindicar seu lugar naquele espaço?
Coincidência ou não, os dois processos se dão simultaneamente, se
confundindo nessa dinâmica, inclusive com fatores que as abordagens
mais tensas consideram extraliterários [...] (INÁCIO, 2010, p. 112).

Acreditamos que não há dúvidas de que existe um processo de seleção e exclusão


na canonização de escritores e obras, e que o cânone, como uma ferramenta de
dominação, está a serviço do poder, mantendo hierarquias sociais. Fizemos aqui, a partir
51

de alguns teóricos, algumas afirmações quanto ao viés ideológico do cânone ocidental,


contrariando o que os críticos literários mais tradicionais pensam. É importante, também,
que levemos em consideração a historicidade do cânone e que façamos alguns
questionamentos: quem organizou o cânone? De que lugar social falava? Quem ele
representava? Qual gênero, qual etnia e qual orientação sexual? Quais são os critérios
norteadores para a adição e exclusão de obras? Qual é seu juízo estético?
Além disso, também é necessário que analisemos a maneira como ocorre a
reprodução e a disseminação do cânone na sociedade. Roberto Reis fala sobre a
necessidade de investigar jornais, suplementos literários, currículos escolares e
acadêmicos, crítica literária, adaptações a partir de livros para outras mídias, entre outras
plataformas, a fim de que consigamos traçar essa reprodução/disseminação e, também,
para que percebamos que os questionamentos feitos sobre e à literatura não devem se
resumir apenas a leitura e interpretação de um texto: é de grande importância que
consideremos quem leu, quem escreveu e em qual contexto histórico e social tais atos
ocorreram, uma vez que esses fatores determinam se o texto é merecedor de visibilidade,
da escrita ou da leitura de determinados críticos/instituições.

Sob este prisma, o texto literário deixa de ser um objeto estático (e


estético) e passa a se entrançar com o autor, o leitor, com o horizonte
histórico que lhe é subjacente ou que lhe deixou pegadas, com outros
textos, com o passado e o presente e o futuro, estabelecendo uma
emaranhada rede de afiliações intertextuais (REIS, 1992, p. 74)

Escritores e leitores são formados por sua posição cultural e social, pois a ação de
ler e escrever também é política. Dessa forma, pensamos que a leitura está envolta em
questões de autoridade e poder, e o texto também. Como já apontamos, a linguagem
molda nossas percepções, enquanto é moldada pelo social. Sendo um dos principais
vetores da nossa percepção da realidade, a linguagem é utilizada para satisfazer as
necessidades de grupos dominantes. Ela, a linguagem, é a matéria da qual a literatura se
utiliza artisticamente; com isso, não há como dissociar o que é tratado como literatura da
relação de dominação entre as hierarquias sociais.
Para Roberto Reis, depois que se passou a focar o objeto da análise literária apenas
no texto, a figura que mais se beneficiou foi o crítico, já que é ele quem ganhou o status
para exercer a autoridade sobre a estrutura, as relações internas do texto, os sentidos que
o texto traz, e, assim, poder disseminar suas interpretações como verdade a partir de seu
olhar, conscientemente ou não. O teórico aborda esse fator para propor uma possibilidade
52

de diminuir essa hierarquização que o cânone — e, consequentemente, a literatura — cria


na seleção de certos autores e obras. A primeira proposta é que não percamos de vista a
História, sabendo que ela precisa estar aliada à análise literária e que o texto por si só não
dá conta de expor todas as relações que engendram o texto: o autor, o leitor, o contexto
em que esse texto está/estava. A segunda é que precisamos entender que a nossa crítica
não é imparcial; ela vem de um lugar específico e está sujeita a interferências e influências
pessoais em nossa análise, fazendo com que a análise seja uma contribuição, e não
mensageira da “verdade”.
Seguindo para a finalização,

o texto, em geral encerrado na moldura do livro, transita por uma


sociedade na qual existem hierarquias de classe estratificando os
indivíduos que compõem aquela sociedade. Para Pierre Bourdieu, um
texto, como qualquer outro bem simbólico, está engajado num circuito
de troca e está permeado por inúmeros e intrincados vínculos com os
estratagemas do poder da sociedade na qual circula, de tal modo que o
campo literário e cultural reproduz a estrutura de classes. O processo de
canonização não pode ser isolado dos interesses dos grupos que foram
responsáveis por sua constituição e, no fundo, o cânon reflete estes
interesses e valores de classe (Idem, p. 76-77).

Dessa forma, é importante lançar mão de outros paradigmas de leitura, que se


utilizem também do contexto histórico como possibilidade de interpretação,
estabelecendo, assim, outra “maneira de ler” as obras literárias. Essa estratégia de leitura
pode permitir que venham à superfície as “diferenças” que conflitam com os significados
de literatura difundidos pelo cânone e por sua ideologia dominante, desestruturando as
hierarquias e deixando às claras que “o que é problemático, em síntese, é a própria
existência de um cânon, de uma canonização que reduplica as relações injustas que
compartimentam a sociedade” (Idem, p. 77).

2.1. O cânone literário no Brasil: ideologia ou estética?

No primeiro capítulo, expomos como a sociedade brasileira lidou com a


homossexualidade na vida cotidiana, bem como com a sua representação na literatura
nacional. Como pudemos ver, desde a invasão dos portugueses, a relação entre pares foi
vítima de preconceito e intolerância em nossas terras, sofrendo sanções religiosas,
médicas e legais. O Brasil, num todo, sempre buscou coagir essa forma de relação, tendo
como objetivo curar a homossexualidade ou erradicá-la, na tentativa de limpar a
53

sociedade desse mal/pecado. Obviamente, tendo em vista que a literatura brasileira


também faz parte dessa estrutura social em que pessoas homossexuais são excluídas, tanto
os textos que abordaram essa temática quanto escritores gays foram constantemente
apagados de nossa história literária, e, quando o apagamento não era possível, escondiam-
se esse traço da identidade do autor.
Neste subcapítulo, temos interesse em analisar o cânone literário brasileiro, que
carrega muitos dos preceitos expostos sobre o cânone ocidental, mas com suas
peculiaridades a partir do conservadorismo brasileiro. Com isso, buscaremos pensar um
pouco sobre como funciona as suas estruturas, e sobre como o cânone contribuiu para o
apagamento/silenciamento de obras/autores marginalizados na nossa literatura
(principalmente os que retratavam as relações homoeróticas).
Para isso, comecemos apresentando algumas ideias de Flavio Kothe (2000), no
livro O Cânone Imperial, sobre o cânone literário brasileiro. O teórico se propõe a analisar
as estruturas do cânone, desmontando suas peças para entender seu sistema e a ideologia
que ele reproduz. Kothe defende em seu texto que no cânone “há uma interiorização tal
de estruturas ideológicas tradicionais que elas acabam por naturais” (KOTHE, 2000,
p.12). E uma das figuras que acaba por dar base a essas estruturas é o intelectual que
defende, por exemplo, a leitura de um texto passado dentro da realidade de sua origem.
Nesse sentido, essa forma de leitura nos obriga a analisar um texto canonizado apenas
dentro do seu horizonte, sem permitir que possamos vê-lo e criticá-lo a partir do olhar do
nosso tempo.

Assim, se institucionaliza a interpretação da história de acordo com os


interesses das classes dominantes, herdeiras e continuadoras das que
dominaram o passado. Teme-se perder o brinquedo “literatura brasileira”,
como se o cânone instituído fosse o único possível e ela se confundisse
com ele. [...] Fazendo de conta que se defende a literatura brasileira e,
mais que isso, a brasilidade, acaba-se defendendo apenas a manutenção
do cânone. É ingênuo crer que o que é bom sempre aparece, ainda que
isso seja o pressuposto corrente do cânone e de sua historiografia. (Idem,
p. 12)

Kothe diz que o cânone ensaia uma falsa democracia. Primeiro, por meio do
discurso que só obras de grande valor fazem parte da sua coleção; segundo, por permitir,
mais recentemente, que obras antes marginalizadas passassem a fazer parte de sua
biblioteca: hoje, para aqueles que foram incisivamente excluído por ele, há propostas de
listagens alternativas para obras que antes eram invisibilizadas, no intuito de defender
54

uma suposta democracia no interior do cânone. Porém, para o teórico, não se pode perder
de vista que

ele não está disposto a reconhecer mérito naquilo que não esteja de
acordo com o seu sistema e princípio organizativo. Não se trata de
remendar ou suplementar o cânone, mas de abandoná-lo como ideologia
de classe que não permite avanço a quem não o reforce. Ele inibe e
impede, de antemão, que se reconheça e divulgue aquilo cuja grandeza
se dá fora do seu horizonte (Idem, p. 13)

Dialogando com Kothe, Roberto Reis (1992) também acredita que a questão,
quando se critica o cânone, não é pensar em sua abertura ou em uma seleção de livros
alternativa, pois o problema é o fato de haver um cânone cujo objetivo é a manutenção de
uma determinada ideologia que calca em si relações injustas refletidas pelo que ocorre na
sociedade.

O cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua construção


e a sua disseminação. Não é suficiente repensá-lo ou revisá-lo, lendo
outros e novos textos, não canônicos e não canonizados, substituindo os
“maiores” pelos “menores”, os escritores pelas escritoras, e assim por
diante. Tampouco basta – ainda que isto seja extremamente necessário –
dilatar o cânon e nele incorporar outras formações discursivas, como a
telenovela, o cinema, o cordel, a propaganda, a música popular, os livros
didáticos ou infantis, a ficção científica, buscando uma maior
representatividade dos discursos culturais. O que é problemático, em
síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que
reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade. (REIS,
1992, p. 77)

Ou seja, não há alternativa dentro do sistema vigente, pois, independentemente do


que se faça, o cânone continuará excluindo tudo aquilo que não faz parte da sua crença,
tudo aquilo que se apresenta como diferente. Ele é a fala que cala, e, apesar de se ver
como arte, o que expressa é a legitimação da relação de poder por meio de uma estrutura
de classes e com uma suposta aura.
Sobre essa legitimação do cânone às estruturas de poder, há no livro uma parte
bem interessante em que Kothe exemplifica essa questão: nos são apresentados dois tipos
de Brasil, o primeiro dos colonizadores e o segundo dos imigrantes (e daqueles que já
estavam aqui). O primeiro sempre se sobrepõe ao segundo, e um dos gestos mais
significativos para embasar o argumento de que o cânone sedimenta essa relação de poder
é aquilo considerado a inauguração do sistema da literatura brasileira: a Carta de Caminha
— texto que, cabe dizer, não é nem literário, nem brasileiro — registra como o português
55

se apropriou dessa terra e valida uma visão europeia sobre um lugar que geográfica e
culturalmente não faz parte da Europa. Nesse sentido, tendo em vista que Kothe relaciona
o cânone com a forma como as estruturas sociais funcionam no Brasil, para o teórico,
“enquanto não houver uma profunda democratização do país, não haverá nenhuma
revisão radical do cânone. Continua inútil e ridículo propor alternativas, embora
persistam como utopias” (KOTHE, 2000, p. 13).
Quanto à questão de o cânone incluir em sua historiografia apenas textos que
tenham “qualidade”, Flavio Kothe defende que esse é um discurso falacioso. Como
exemplo, ele se utiliza de algumas figuras do cânone brasileiro. Os primeiros são Frei
José de Anchieta e Padre Antônio Vieira, que têm como prioridade em sua escrita a
religiosidade e a catequização; mesmo não havendo nada de artístico na escrita dos
religiosos, é postulada como se houvesse. O segundo escritor do qual o teórico se utiliza
para sedimentar sua afirmação é José de Alencar, que reproduzia o discurso dominante,
era parte de uma elite e tinha como principal mérito não a qualidade da sua escrita, mas
o reforço de uma história do Brasil que o poder queria que fosse narrada. Além desses,
temos também Caminha, Frei de Santa Rita Durão e Gonçalves Dias, que criam a ideia
de que para que alguém seja verdadeiramente brasileiro, é necessário ter sangue de
português e índio, anulando totalmente os negros e os imigrantes. Esse quadro, inclusive,
estende-se ao modernismo, que propunha uma suposta subversão na nossa literatura e
identidade nacional, tendo como exemplo Oswald de Andrade, com o manifesto
antropofágico que só se preocupa com “tupi or not tupi”, e Mário de Andrade, que era
contra a modernização, os imigrantes e a emancipação da mulher.
É claro que todos esses fatos não podiam ser diferentes, tendo em vista que somos
doutrinados a acreditar que foi apenas em 1500, século XVI, que começou a história do
Brasil, e que a língua do conquistador se naturalizou como se não houvesse existido
nenhuma outra nesse território. Inclusive, o índio, que a partir do romantismo passa a ser
o nosso herói, só tem a possibilidade de falar na literatura e na sociedade se por meio da
língua do conquistador e daqueles que têm o poder. Dessa forma, é importante ter claro
que o cânone não dá mérito a nada que não reforce o seu discurso. Qualquer trabalho que
vá contra sua hegemonia, tenha qualidade ou não, é excluído de seu horizonte, impedido
de avançar dentro da literatura e de ser reconhecido. E assim se cria a ilusão de que os
autores presentes no cânone foram selecionados por sua qualidade artística, apesar de, na
prática, nem sempre a terem.
56

Horácio Costa (2010), como já apresentamos anteriormente, coloca o cânone


brasileiro como um “cânone impermeável”, discutindo como essa questão se deu na
poesia brasileira até meados da segunda metade do século XX. Podemos estender, de todo
modo, essa inacessibilidade também à prosa brasileira. O teórico irá discorrer sobre essa
impermeabilidade ao mencionar os poetas de Portugal e os do México, comparando a
maneira como trataram a abordagem do homoerotismo em contraponto aos poetas
brasileiros durante o modernismo. Nos dois primeiros países, apesar de a recepção dessa
temática pelo público e pelos críticos de poesia não ter sido boa, os poetas modernistas
defenderam seus colegas de geração, tendo como argumento a liberdade poética. No
Brasil, ao contrário, o que pairou foi o silêncio, a coibição e, quando tratado o assunto, o
escárnio.

Seja como for, a existência de tais debates em Portugal e no México na


década de 1920 podem e devem alertar-nos sobre a relativa defasagem da
cultura e, particularmente, do registro subjetivo que pode significar a
palavra poética em relação a temas de ampla ressonância, como o da
exploração da diversidade sexual no contexto do Modernismo brasileiro.
E podem e devem alertar-nos também para a necessidade de releitura do
cânone em nosso âmbito doméstico, tratando na medida do possível de
sua ampliação ou, em todo caso, de sua problematização crítica real: a
nossos olhos atuais, o fato de que não tenha havido até a obra de um
Mário Faustino ou um Roberto Piva, já nos anos 1950 e 1960,
respectivamente, um registro homoerótico nítido no reino da “alta”
poesia brasileira representa um problema de difícil porém imperativo
deslinde, antes que uma simples constatação historiográfica. (COSTA,
2010, p.126)

Ou seja, o fato de o cânone brasileiro não ter assimilado nenhuma obra que
tratasse das relações homoeróticas nos alerta não sobre um simples acaso, mas sobre
como as peças dessa estrutura são montadas, para não deixar ecoar vozes dissonantes na
literatura brasileira. E, nesse caso, quem fazia parte dessas estruturas era a academia, os
críticos literários e os próprios escritores renomados da época.
Em Portugal, após o lançamento de Sodoma divinizada, de Raul Leal, houve
muitas críticas ao caráter homoerótico dos textos. Fernando Pessoa, que já era um poeta
reconhecido, saiu em defesa da obra, argumentando que cabia todos os temas existentes
no mundo na expressão poética. Por outro lado, no Brasil, nem os modernistas que
pregavam uma ruptura artística/literária largaram mão de seus pensamentos
conservadores acerca da tematização da relação entre pessoas do mesmo sexo na literatura
(como já expomos ao mencionar Mário de Andrade).
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Horácio Costa aponta a necessidade de problematização crítica real do cânone,


assim como Flavio Kothe (2000) fez em O Cânone Imperial: repensando, de fato, suas
estruturas e o que realmente está em jogo diante das escolhas das obras que entram ou
ficam de fora de sua historiografia. Horácio Costa também sinaliza a necessidade de um
alargamento do cânone, no intuito de que mais vozes possam ter espaço. Flavio Kothe,
por sua vez, é contrário a essa ideia. Na perspectiva do teórico, qualquer caminho crítico
que busque repensar de forma aprofundada o cânone é silenciado pelo que ele chama de
exegese canônica. Dessa forma, Kothe trata como ingenuidade o desejo de criar novos
cânones, pois o surgimento deles geraria duas contradições: a) a reprodução estrutural
daquilo que se quer criticar, criando espaço para livros e autores marginalizados pela
tradição; b) caso essas obras marginalizadas e esse novo cânone ganhassem espaço, seria
pelo fato de não representarem perigo real para o status quo do cânone.

O surgimento público, enquanto livro, de um ensaio antitético à exagese


canonizante aparenta apagar a repressão e o interdito por ele sofridos e
dos quais ele guarda algumas cicatrizes e feridas. Ele não significa tanto
um aumento da liberdade quanto sua pseudoliberdade é proporcional à
sua própria impotência. Daí também a desimportância, por enquanto, de
propor cânones alternativos. Eles cairiam na ingenuidade de procurar
uma alternativa onde não há nenhuma. Seria uma contradição quanto à
sua própria avaliação. Propor cânones tende a cair e esquemas
autoritários e impositivos, dentro de um espaço restrito, cuja limitação
logo se demonstra. (KOTHE, 200, p. 37)

Nesse sentido, pensar na criação de novos cânones se mostraria uma solução


questionável, tendo em vista que, muito provavelmente, esses padrões criariam novas
exclusões, mantendo a problematização ou a tentativa de não exclusão em um ciclo
interminável.
Referente à discussão de alargamento do cânone, Mário César Lugarinho (2008)
serve como um ponto de equilíbrio entre Horácio Costa e Flavio Kothe. Em seu artigo
Nasce a literatura gay no Brasil, Lugarinho expõe que, no final do século XX, os grupos
minoritários começaram a reivindicar uma releitura do cânone, bem como a construção
de um cânone que expressasse a sua história e a sua narrativa:

curiosamente repetem o modelo de construção das identidades nacionais


burguesas. Nota-se, no entanto, que é uma ação contraditória, em alguns
casos, porque se percebe que houve uma mera substituição de narrativas,
mantendo-se inalterados os conceitos que sustentam a existência de um
cânone. (LUGARINHO, 2008, p. 13)
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Por outro lado, apesar dessa crítica, Mário César Lugarinho defende que a criação
de um seguimento que contemple a literatura gay, assim como pensar um cânone
emergente que selecione obras com essa temática, pode servir como possibilidade de dar
visibilidade para esse tipo de literatura, já que textos com essa abordagem foram
constantemente marginalizado na história de nossa literatura. Dessa forma, pensar em um
cânone temporário da literatura gay seria como criar uma abertura diante do cânone
tradicionalmente estabelecido enquanto não existirem alternativas mais eficazes a ele.
Voltando ao Horácio Costa, diante dos argumentos que apresentamos até aqui e
da afirmação do teórico quanto à impermeabilidade no cânone brasileiro durante o
modernismo referente à temática homoerótica, cabe fazer a seguinte consideração:

não é demais aferir a impermeabilidade do registro homoerótico no


âmbito do cânone da poesia brasileira moderna como um fenômeno não
desprezível dos limites de nosso processo de modernização como um
todo. As convenções do dizer, ou ainda, o exercício caviloso da
autoridade da heterossexualidade compulsória pesou mais, para nossos
modernistas, do que a lealdade para com o poeta possivelmente
hipossuficiente em termos sociossexuais (COSTA, 2010, p. 128).

Dessa forma, o rechaço à homossexualidade não se dava apenas pelas estruturas


da tradição literária, mas também pelos escritores heterossexuais não empáticos a esse
tema. No modernismo, era necessário o silêncio às relações homoeróticas, não apenas nos
textos, mas também quanto ao desejo dos escritores assimilados pelo cânone. Sendo
assim, “a palavra homossexual teria que esperar outros trinta ou quarenta anos para
plasmar-se na dita ‘alta’ poesia brasileira”. E Horácio Costa segue com a seguinte
pergunta: “por quê?” (2010, p. 128).
Mário César Lugarinho (2008) afirma que, durante todo o modernismo brasileiro,
os textos homoeróticos não passavam de mera representação negativa da
homossexualidade, caindo em um vazio discursivo (ainda que tenham existido nesse
período alguns escritores que, por mais que não tenham feito parte do movimento
modernista, escreveram textos que não se enquadram nessa afirmação). Esse quadro só
foi mudar a partir da década de 1980, quando passamos a ter uma gama maior de
escritores que traziam as subjetividades desses indivíduos para seus textos.
Nesse ponto, voltamos para os dois conceitos de Mário César Lugarinho que
apresentamos no primeiro capítulo: “literatura de representação” e “literatura de
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subjetivação”, em que a primeira se refere a uma representação estereotipada da


homossexualidade na literatura e a segunda dá espaço para a subjetivação desses
personagens. Escritores que deram espaço em sua literatura para que houvesse uma
“literatura de subjetivação” quanto à homossexualidade em seus textos foram Caio
Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Lúcio Cardoso, Waldo Motta, Silviano Santiago,
Hilda Hilst, entre outros.
Porém queremos enfatizar o seguinte fator: apesar de esses escritores narrarem
sobre relações homoeróticas de forma oposta ao que vinha sendo feito na literatura
brasileira — não os tratando simplesmente como temática, mas dando consistência
representacional a esse grupo —, estavam inseridos em uma mediação cultural e literária
que lhes dava a oportunidade de ter visibilidade, que dialogava com o padrão cultural
vigente, mesmo que, no início de sua carreira, fossem colocados em uma espécie de
exotismo.
Seguindo essa linha de raciocínio, gostaríamos de levantar alguns pontos: a) no
fim do século XX, assim como diz Horácio Costa, houve de fato uma assimilação do
cânone de textos que abordavam as relações homoeróticas. Mas, sem ter como intuito
colocar em xeque a qualidade textual, que textos são esses? Que autores são esses? E de
que lugar social falam? b) não há como questionar que as obras desses escritores deram
outro horizonte para a representação de personagens homossexuais na literatura
brasileira, mas hoje elas ainda permanecem em um lugar de ruptura com o cânone?
Fazemos esses questionamentos com base em Flavio Kothe, ao afirmar que o
cânone, ao permitir a visibilidade/entrada de obras que até então iam contra seus
preceitos, não tem mais sua hegemonia ameaçada por elas. Nesse sentido, concordamos
com Mário César Lugarinho ao dizer que, com o lançamento de Cinema Orly (1999), do
escritor e compositor Luís Capucho, nasce de fato a literatura gay no Brasil. Essa
afirmação não se dá como uma tentativa de desqualificar o que autores como os que
citamos fizeram, mas de pôr em visibilidade o fato de que por mais que tenham dado
consistência discursiva para indivíduos marginalizados na literatura brasileira, eles o
fizeram estando em um lugar de privilégio e narraram sobre personagens que estavam em
um lugar igual. Luís Capucho, ao contrário, não só narrou sobre homossexuais que nunca
tiveram espaço nos textos da literatura brasileira, como também vivenciou experiências
parecidas. Capucho não só narra sobre homossexuais periféricos, como também o é.
Com intuito de ilustrarmos a nossa argumentação, decidimos fazer uma breve
análise dos livros Stella Manhattan (1985), de Silviano Santiago; o conto Aqueles dois,
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inserido no livro Morangos mofados (1982) do Caio Fernando Abreu; e Rútilo nada
(1993), de Hilda Hilst, para podermos compará-los com os livros de Luís Capucho,
Cinema Orly (1999) e Rato (2007).
O primeiro, Stella Manhattan, conta a história de um personagem que se divide
em dois: Eduardo e Stella. O protagonista foi enviado por sua família conservadora para
trabalhar no consulado brasileiro nos Estados Unidos, em Nova Iorque, por conta de
algum acontecimento. O que sabemos é que a família de Eduardo tinha o interesse de
manter o filho distante justamente por conta de sua orientação sexual. Nesse sentido, uma
das abordagens que o romance expõe é a maneira excludente como a sociedade regula o
político e o sexual a partir do momento em que se mostram destoantes do esperado. Stella
Manhattan, ainda, parece criar uma deriva para a sexualidade, já que temos um
protagonista e outros personagens que permeiam uma sexualidade que parece fluir entre
o masculino e o feminino. Vejamos um trecho que demonstra o que estamos dizendo:

Stella percebe, como não ia deixar de perceber? A velha vizinha de frente


que o observava entre assustada e medrosa por detrás da vidraça do seu
apartamento; [...] Stella inspira o ar poluído da manhã e expira “as-
uuuuuu-de”. E vai sendo tomado por um frisson nostálgico de verão e
praia, de sol quente de rachar e água de mar que arrebenta contra a areia
escaldante, de mate que mata a sede. (SANTIAGO, 1985, p. 12, grifo
nosso)

Como podemos ver, o fragmento é composto pelo nome de Stella, um nome


comumente atribuído ao gênero feminino; no entanto, o pronome atribuído e o adjetivo
ligado à personagem são masculinos. Essa dualidade não aparece apenas no texto, mas
também na forma como é narrada a história, criando uma ambiguidade em que ora quem
se mostra é Stella, ora é Eduardo. Dessa maneira, a partir do que Marcio Caetano e Carlos
Henrique Lucas Lima dizem,

Stella Manhattan oferece um modelo que não é modelo, mas, portanto,


um “contramodelo”, bem ao gosto da articulação pós-estruturalista, à
opressão e consequente exclusão de homossexuais e trans que não
aceitam adequar-se ao sistema sociocultural gestado pelo sujeito
hegemônico do ocidente: o devir enquanto potencialidade política,
enquanto liminaridade (LIMA; CAETANO, 2018, p. 320)

Ou seja, o romance de Silviano Santiago, ao criar esse devir quanto a sexualidade,


impõe questionamentos acerca de padrões estabelecidos pela heteronormatividade e um
modo masculino de ser ao corpo tido socialmente como de homem.
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Referente a Aqueles dois, um dos contos mais famosos de Caio Fernando Abreu,
temos dois personagens protagonizando a narrativa: Raul e Saul. Ao passarem em um
concurso, os dois se conhecem no trabalho. Por meio de contatos espaçados, ganham mais
intimidade a cada novo encontro, gerando uma identificação mútua de um pelo outro. O
que os une é o sentimento de solidão, por estarem em uma cidade que não é a deles, e a
possibilidade de encontrar no outro as chances de compartilhar afeto.
Apesar de o texto não deixar claro que há, de fato, desejo entre os dois, a narrativa
é permeada por fragmentos que nos levam a pensar que, mesmo inconsciente, há a
construção de um sentimento que transpassa a amizade:

Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira


vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo
caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente
desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam
para: um café. (ABREU, 2018, p. 407)

Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que


Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca vai terminar.
Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro,
muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse
você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos.
Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá.
Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro,
furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. (Idem, p. 410-
411)

Nos dois fragmentos acima fica evidente como os personagens reagem um ao


outro de forma que nos leva a imaginar a existência de um impulso afetivo-sexual,
deixando exposta a possibilidade de lermos a partir da chave do homoerotismo entre os
“amigos”. No fim do conto, contrariando possíveis expectativas, os dois não ficam juntos,
mas o texto expõe como os outros personagens supõe haver um romance entre Saul e
Raul:

Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias - e tinham


planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro – ficaram
surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do
meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto.
Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las.
Pálidos, ouviram expressões como “relação anormal e ostensiva”,
“desavergonhada aberração, comportamento doentio”, “psicologia
deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul
baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito
alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra
erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes
62

que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse


frio: os senhores estão despedidos.
[...] Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo,
parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos
colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro,
estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na
frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta
para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não
ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas
daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo
frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em
paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que
seriam infelizes para sempre. E foram. (ABREU, 2018, p. 411)

O modo como esse texto termina é interessante porque reflete a maneira como a
sociedade lida com o afeto entre dois homens. Apesar dos “indícios”, em nenhum
momento fica claro se a relação entre os dois ultrapassa a zona afetiva da amizade, o que
nos leva a como determinado tipo de comportamento entre dois rapazes é socialmente
esperado: existe um limiar entre a amizade masculina que, se transpassada, torna-se outra
coisa aos olhos dos outros, escancarando o preconceito quanto à maneira como o homem
heterossexual deve se comportar e quanto ao amor entre dois homens. No caso, não
importa se Raul e Saul são amigos ou par amoroso, a discriminação e a não aceitação de
determinados comportamentos é tão implacável que só há uma opção para manter a moral
e os bons costumes: a exclusão daqueles que não se enquadram no modelo.
Quanto ao último texto, na novela Rútilo Nada, de Hilda Hilst, temos também dois
personagens principais: Lucius e Lucas. O primeiro é um homem de trinta e cinco anos,
jornalista e filho de um banqueiro; o segundo é um jovem de vinte anos, estudante de
História e poeta. Em meio à narrativa fragmentada, conhecemos o desenlaçar da paixão
de Lucius por Lucas, que, segundo a voz do protagonista-narrador, é retribuída pelo
jovem poeta. O pai, banqueiro, não aprova o romance dos dois, e em diversos momentos
repreende Lucius pelo envolvimento.
Diante de todos os conflitos que permeiam o sentir dos dois personagens, Lucas
acaba se suicidando, deixando uma carta para Lucius.
Porém, antes de chegarmos ao final, comecemos pelo início da novela. Hilda Hilst
abre sua história da seguinte forma:

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos,


catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm
boca, fundo de sortunez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de
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vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto
(HILST, 2003, p. 85).

Logo de início, percebemos uma grande carga dramática na narrativa, descrita por
Lucius ao se deparar com o corpo morto de Lucas. Para Lucius, as palavras deixam de
dar conta do sentimento em seu peito diante da figura do amado sem vida, seus
sentimentos deixam de ter nome e se tornam um enigma diante das experiências da vida.
Era necessário, para ele, “inventar palavras, quebrá-las, recompô-las”, para assim
conseguir se ajustar de forma mais digna diante de suas feridas.
Lucius, inflamado por sua angústia, joga-se em cima do caixão, levando sua boca
em direção a de Lucas. O protagonista sente, de imediato, mãos puxando-o, e se lembra
da presença de seus familiares, de sua filha, dos amigos. Diante de sua ação, ele ouve
palavras como “constrangedor, louco, demente, absurdo, intolerável”, e reflete sobre
como existem “Humanos” que são feitos “de fúria e desesperança”, e que vivem “apenas
para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia” (Idem, p. 85), pessoas essas que
ele nomeia como “supostos éticos Humanos”. O protagonista-narrador, na sucessão dos
fragmentos, traz seu pai à memória:

Então anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com


que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos, ou você
imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse
moleque bonito era o namoradinho da minha neta, então vocês
combinaram seus crápulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para
poder ficar perto de você. Gosta de cu seu canalha? Gosta de merda? Fez-
se também de mulherzinha com o moço machão? Ele só pode ter sido teu
macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se
também seu desgraçado mate-se (HILST, 2003, p. 87)

Em um primeiro momento, por sabermos que Lucas era o namorado da filha de


Lucius, podemos crer que esse é o motivo para a revolta do pai de Lucius. Porém,
conforme a narrativa se desenvolve, entendemos que a motivação se dá pura e
simplesmente pelo fato de se tratar de uma relação entre dois homens. Voltaremos a essa
questão mais à frente.
No livro, é interessante a forma como Lucius fala do aparecimento de seu desejo
por Lucas, não o colocando como algo natural e calmo, mas como um conflito dentro de
si que rompe com qualquer barreira antes imposta. É um desejo que se dá de forma
ambivalente, trazendo a experiência do prazer e do nojo: “viscoso. Cintilante. Pela
primeira vez, o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. Pela primeira vez, em
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toda a minha vida, eu, Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem. Deboche e
clarão na lisura da boca” (Idem, p. 96).
Após a parte narrada por Lucius, temos acesso à carta que Lucas deixou para o
narrador-protagonista, em que explica o porquê de ter se suicidado. Nela, descobrimos
que o pai de Lucius mandou dois homens violentar o “namorado” do filho física e
sexualmente, o que gerou no rapaz o desejo de terminar sua existência: “antes da sombra,
Lucius, quero dizer da dor de não ter sido igual a todos. Minha alma velha buscava
entendimento. Quero dizer da dor, mas não sei dizer” (Idem, p. 98).
Lucas, então, expõe sua maior dor: a solidão. O sentimento de não pertencimento
permeia a sua vivência, como se o seu estar no mundo estivesse atravessado pelo
desencaixe. Essa questão fica ainda mais evidente no parágrafo final do livro, como
veremos um pouco mais adiante.
Após realizarem o “serviço”, os dois homens saem, e o pai de Lucius entra no
quarto: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho” (p. 98). Nesse momento da
história, percebemos o porquê de Lucius nomear as pessoas que estão contra seu romance
com Lucas de “supostos éticos Humanos”, pois seu pai, o que mais reprimia a paixão do
filho, tinha também desejos homoeróticos por Lucas: “posso te tocar um pouco, menino?
Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu pai tremia. Ele beijou
minha boca ensanguentada. Eu sorri. De pena da volúpia” (Idem, p. 99).
Fica evidente, então, que o desprezo pela relação do filho se dava por dois
motivos: pela imagem que as pessoas teriam dele e por também desejar Lucas,
escancarando a hipocrisia do personagem por meio de sua fala extremamente
preconceituosa e inflexível.
Por fim, Lucas se suicida, deixando, como já dissemos, a carta e alguns de seus
poemas, com o seguinte fragmento no final: “até um dia. Na noite ou na luz. Não devo
sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo que é humano
me foi estranho” (Idem, p. 103).
A novela de Hilda Hilst aprofunda as questões dos personagens quanto à
descoberta do desejo homoerótico, dos sentimentos de desencaixe propiciado pela
exclusão social e da hipocrisia de uma sociedade conservadora quanto à
homossexualidade de forma muito sensível e intensa, contribuindo para a representação
que dá espaço para as subjetividades do sujeito homossexual.
Sem nos estendermos muito nos textos dos autores abordados acima, voltamos
para o que nos motivou a utilizar essas três obras: Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst e
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Silviano Santiago, por mais que tivessem abordado em sua literatura temáticas que em
sua época eram mais marginalizadas que hoje. Sua assimilação pelo cânone e ganho de
visibilidade se dá, possivelmente, por dois motivos: o fato de os três fazerem parte de
uma elite cultural e social, e abordarem personagens e a temática homoerótica de um
modo que não representa mais perigo para o cânone brasileiro. Se analisarmos, os
personagens dos três autores estão inserido no espectro da classe média (ou mais rica que
ela). Temos um personagem praticamente expulso pelos pais para Nova Iorque, com o
propósito de trabalhar no consulado brasileiro do país norte-americano; dois personagens
que servidores públicos, um filho de banqueiro e um rapaz universitário que, só por estar
dentro desse ambiente, possivelmente faz parte da mesma realidade social. Ou seja, por
mais que a temática tratada seja uma forma de relação que ainda sofre preconceito por
parte da sociedade, isso ainda ocorre dentro de um cenário mais aceito, principalmente se
pensarmos que, com o avanço do movimento GLBT8 (nomenclatura utilizada na época),
a partir do final do século XX, a homossexualidade ganhou “mais visibilidade” e passou
a ser mais aceita nos meios de comunicação. De todo modo, essa “aceitação social”
claramente se dava para pessoas homossexuais que passavam uma imagem mais
higienizada aos olhos da sociedade: homem gay branco, masculino e de uma determinada
classe social.
Já nas obras de Luís Capucho, temos personagens que estão do lado oposto dessa
representação: pessoas homossexuais mais plurais e com outro recorte de classe. Podemos
confirmar essa afirmação já logo no início de Cinema Orly, em que o escritor escreve
uma espécie de introdução e comenta sobre o desejo de ter um namorado. Nesse
fragmento, ele demonstra uma dualidade entre o que dizem que ele deve fazer para
conseguir um parceiro e o que ele realmente deseja, uma vez que a orientação dada é
abdicar dos seus desejos e, consequentemente, das visitas ao cinema pornô Orly. Vejamos
o fragmento:

disseram que eu deveria concentrar-me mais. Pois se eu quero um


namorado, não deveria sair por aí querendo todos. Mas, resisto ao tesão,
resisto às cervejas, aos cigarros? E se eu ficasse mais bonito, se
engrossasse minhas coxas, se desenhasse meu peito, comprasse perfumes
e roupas novas? E se eu me tornasse mais feminino, aumentasse a bunda,
tomasse hormônios? Por que é que estou num tom de reclamação? Por
que é que ainda não me acostumei ao fato de a vida ser má? Por que é

8
Essa nomenclatura passou a ser utilizada no ano de 1993, quando o movimento voltou a ganhar
força dentro do cenário nacional.
66

que ainda não estou tirando proveito da gota doce? Por que não vou ao
Orly com orgulho, se lá é a gota doce? (CAPUCHO, 1999, p. 14)

Aqui temos algumas questões interessantes para abordar. A primeira é a ideia de


ser necessário entrar em um padrão aceitável para receber afeto, como se só quem
seguisse esse padrão tivesse o direito ou fosse elegível a ser amado por alguém. Seguindo
essa leitura, caminhando para a segunda questão, o protagonista começa a elencar padrões
que o fariam se tornar mais desejável: ter um corpo mais atraente, ter roupas que o
tornassem mais visível ao amor, ser mais masculino ou mais feminino. Ou seja, atender
a uma determinada expectativa. Daí, chegando à terceira questão, o personagem questiona
o porquê de estar reclamando e o porquê de ainda não ter aceitado que para ele a vida é
irremediavelmente ruim. O lugar onde ele sente prazer é o cinema Orly, e isso não deveria
ser motivo para se envergonhar, pois — apesar de ser visto como um local em que,
simbolicamente, só era frequentado por pessoas que a sociedade finge não existir — era
onde havia certa doçura no ato de viver.
Nesse sentido, percebemos que, já na introdução de seu primeiro livro, Luís
Capucho busca romper com aquilo que é tido como um padrão socialmente aceitável,
refletindo esse rompimento tanto no conteúdo da narrativa quanto em sua escrita.
Tanto em Cinema Orly quanto em Rato, o personagem estabelece sua condição
social, demonstrando em alguns momentos certa angústia e falta de esperança diante de
sua situação socioeconômica:

tenho a impressão de que a minha vida entrou para o caminho do


empobrecimento eterno, de que ela segue na sombra e que a tendência é
a pobreza vir chegando, tomando conta, aumentando, até eu me tornar
um cara que vive na rua, sujo, rasgado e com feridas pelo corpo inchado.
Em sua crueldade, a pobreza é como a culpa, o pecado e o castigo. Difícil
safar-se dela (CAPUCHO, 2007, p. 15).

Esse sentimento, em outros momentos, aparece de forma mais esperançosa, mas


a partir de um olhar que os outros têm para com o personagem, demonstrando que as
pessoas a sua volta percebiam nele, dentro do meio em que vivia, uma diferença:

Sou um fodido, não tenho nada, mas o modo como as pessoas me olham
quando passam por mim, esse marinheiro Carlos, por exemplo, inspira
em mim a sensação de superioridade. Não tenho nada para comprová-la,
mas ela é tão certa como sei que é certa a ilusão do pau de Carlos, a
distribuição de seus pelos e o contorno das carnes de sua bunda, mesmo
sem nunca o ter visto nu (Idem, p. 13)
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Ou seja, o personagem de Capucho tinha algo que as pessoas identificavam como


destoante da realidade à qual ele pertencia, que não necessariamente tinha a ver com a
homossexualidade, mas com o jeito não condizente com o estereótipo de como pessoas
de classe social mais baixa devem ser ou se comportar.
Outro dado interessante que marca a questão da exclusão social de seus
personagens é o desconforto demonstrado por seu protagonista perante pessoas de classe
social mais alta, com o argumento de que eles o faziam se sentir menor, inferiorizado,
burro. Confiramos abaixo:

nunca fiquei à vontade para abordar um homem que fosse


estereotipadamente da classe média. Batia-me um complexo de
inferioridade, uma sensação de burrice, de impossibilidade, de feiura, que
fazia o meu tesão brochar um pouco. No Orly não havia esse problema.
Éramos, na maioria, o tipo pobre e suburbano ou, pelo menos, na
penumbra do cinema, todos os gatos ficavam pardos (CAPUCHO, 1999,
p. 45)

No fragmento apresentado, também há outra questão interessante, que retoma as


ideias que já expusemos: o Orly faz o personagem se sentir pertencente, igual, pois nele,
mesmo que tudo não passe de uma ilusão, é um espaço que o possibilita viver o que deseja
mais intimamente.
Luís Capucho, conscientemente, busca visibilizar esses personagens por meio da
escrita, de forma que ideologicamente se contrapõe aos interesses por trás do cânone
literário brasileiro:

estou escrevendo para isso, para estar à superfície. Estou munido da


coragem e humildade que exigem os encontros. Entrar-me na superfície,
botar minha cara, assim, é o que quero. Estar senhor de mim mesmo, com
minha burrice e minha inteligência, desenrustido, na cara da vida
(CAPUCHO, 2007, p. 30)

Nesse sentido, Capucho deixa claro que suas narrativas servem para que esses
personagens, depois de serem ocultados por tantos séculos na literatura, venham à luz,
com sua coragem e sua dualidade, contrariando o lugar em que sempre foram postos: no
porão do cinema pornô, no escuro dos terrenos baldios, nas praças vazias, sem que aqueles
tidos como socialmente “normais” tomassem conhecimento das vivências desses
indivíduos.
68

Com isso, cabe dizer que Cinema Orly e Rato são obras que nascem sem mediação
cultural ou erudição acadêmica9. Nasce fora do status quo burguês, permitindo que o
leitor se reconheça dentro da obra e compartilhe com o narrador as mesmas experiências.

O que seria, para a crítica tradicional, um dado menor da obra, isto é, um


ponto fraco da narrativa, a referencialidade de Cinema Orly, pelo
contrário, tornava-se a superação das formas cristalizadas de
representação da homossexualidade. Capucho lançava o seu leitor numa
experiência quotidiana, pouco flagrada pela literatura, sem atenção
alguma a pressupostos anteriores se não do desejo e de suas
(in)consequências. (LUGARINHO, 2008, p. 17)

Sua obra, inclusive, trabalha em cima do registro do cotidiano, que é outro dado
que coloca o escritor em confronto com o que o cânone institui como “boa literatura”. Em
seu trabalho, esse cotidiano fica marcado pela referencialidade que pode aproximar, à
primeira vista, a obra de Capucho da autobiografia.
Ao mesmo tempo que as obras de Luís Capucho se valem de um tipo de texto que
o cânone trata como menor, elas têm aspectos que o próprio cânone defende como uma
obra de qualidade: originalidade e inovação. Capucho, de acordo com Mário César
Lugarinho, traz para sua escrita personagens que não haviam sido representados, até
então, na literatura brasileira. Quando o teórico faz essa afirmação, refere-se a
personagens homossexuais (de uma determinada camada social) que não haviam tido
espaço nos textos nacionais de forma digna e subjetiva.

Por este motivo, localizamos, indubitavelmente, o tardio aparecimento de


uma Literatura Gay na Literatura Brasileira, na pequena obra do autor
fluminense Luís Capucho. Cinema Orly, com uma única edição restrita a
mil exemplares, foi destas obras que circularam de mão em mão, de boca
a boca, entre os membros de um grupo social específico, mesmo que
restrito localmente, mas que mantinha fortes laços de solidariedade com
grupos oriundos de outros locais do País e que garantiram sua circulação
para além do Estado do Rio de Janeiro. O fato de ter conseguido romper
as barreiras das editoras alternativas e ter conseguido que o seu segundo
livro fosse publicado por uma prestigiada editora, no caso, a Rocco, do
Rio de Janeiro, demonstra a maturidade de seu trabalho. Ao mesmo
tempo em que são observados os primeiros passos para a formação
expressiva de uma nova série literária, já inaugurada no espaço poético,
e que ganha consistência ao problematizar a falsa questão da

9
Aqui cabe fazer um adendo: apesar de Luís Capucho ter feito Letras e, posteriormente, ter feito
especialização em Leitura e Produção de Texto na Universidade Federal Fluminense, o que queremos dizer
quando afirmamos que Cinema Orly e Rato nascem sem mediação cultural e erudição acadêmica é porque,
apesar de Capucho ter formação acadêmica, literariamente e socialmente ele não fazia parte da
efervescência cultural literária da época, além dos seus textos trazerem uma escrita e uma narrativa que se
coloca fora do status quo burguês.
69

marginalidade da produção literária em confronto com a literatura


nacional. (LUGARINHO, 2008, p. 23-24)

Dessa forma, diante do que apresentamos quanto ao cânone brasileiro — bem


como o cânone ocidental —, acreditamos que fica mais do que claro que o argumento de
seleção canônico é passível de questionamentos, principalmente quando utilizamos na
análise obras ainda excluídas por ele, mas que carregam características que ele próprio
diz serem necessárias para a inclusão em seu arsenal de livros. Fica evidente, então, que
o critério principal não é qualidade, mas, principalmente, a adequação a uma ideologia
que propaga o reforço de suas estruturas e da relação de poder dentro da literatura. Luís
Capucho nos serve aqui como um ótimo exemplo para mostrar as inconsistências do
cânone, já que obras como a dele ainda não conseguem vislumbrar a possibilidade de
rompimento de suas estruturas a ponto de adentrá-lo. Sendo assim, nos cabe a
problematização dessas estruturas e o direcionamento para outras possibilidades. Mário
César Lugarinho coloca Luís Capucho dentro do espectro da Literatura Gay, não como
forma de reproduzir os preceitos canonizantes, nem como forma de marginalização
literária, mas como “mais um segmento, mais uma possibilidade, mais um elemento de
problematização àqueles que desejam um cânone inevitável e cristalizado em suas opções
de classe, etnia, origem local, sexo e/ou gênero” (Idem, p. 24).
70

TERCEIRO CAPÍTULO
71

3. A SUBJETIVAÇÃO HOMOERÓTICA E A DRAMATIZAÇÃO DE


SI EM LUÍS CAPUCHO

3.1. Entre répteis e ratos: a representação homoerótica em Cinema Orly e


Rato

Nesse capítulo nos deteremos de fato nas obras de Luís Capucho, subdividindo a
análise em: a) como se dá a subjetivação homoerótica em suas obras e b) como Capucho
se utiliza de uma perfomance em sua escrita para dar vida aos seus personagens e,
consequentemente, às suas narrativas.
Começando pelo primeiro ponto, acerca da subjetivação, voltemos ao conceito de
“literatura de representação” e “literatura de subjetivação” de Mário César Lugarinho
(2008), que abordamos rapidamente no primeiro capítulo. Nas próprias palavras do
teórico:

a “literatura de representação”, em nossa perspectiva, seria aquela em que se


insere e se representa o homossexual, seja por tipos ou não, fosse ele protagonista
ou mero personagem secundário. Além disso, não se teria, neste universo de
obras, a preocupação de delimitarmos possíveis fronteiras entre os inúmeros
conjuntos que poderiam ser formados, por recorrermos a alguma tipologia, no
interior desta vasta produção literária. A “literatura de subjetivação” viria a
consistir naquela que, de alguma maneira, romperia com estereótipos e
contornaria de modo eficiente a identidade homossexual, configurando alguma
forma de individualização e, por conseguinte, subjetivação ao homossexual. Os
exemplos mais flagrantes encontravam-se na década de 1980, notadamente nas
obras de Caio Fernando Abreu e Silviano Santiago (LUGARINHO, p. 16)

Nesse sentido, como já abordamos, a tematização de personagens homossexuais


se dividiria em dois tipos: a “literatura de representação”, em que o amor entre pares
aparece de forma estigmatizada e rasa; e a “literatura de subjetivação”, em que esses
personagens ganham traços mais profundos e com mais nuances.
Eduardo Pitta (2003), em um de seus ensaios, traz uma abordagem parecida com
a de Mario César Lugarinho, apesar de se utilizar de nomenclaturas diferentes: “literatura
homossexual” e “literatura gay”. A primeira “reflecte sensibilidades e experiências
isentas de sentido político pré-determinado” (2003, p. 29) e representa a
homossexualidade de forma cristalizada, em um contexto que descreve apenas jogos de
sedução. Já a segunda, sendo consequência direta das manifestações de Stonewall, impõe-
se de forma política e ideológica. Seria como se houvesse uma diferença entre ser
72

homossexual e ser gay: enquanto o homossexual vive de forma pacífica em ambientes


heterossexuais, sem incomodar ou protestar, o gay é aquele que se impõe, que luta por
seus direitos como cidadão. Michael Silva10 e Jamesson Buarque de Souza11 (2019), no
artigo Representações do homoerotismo masculino em três tons: Junqueira Freire,
Carlos Drummond de Andrade e Horácio Costa, analisam os conceitos do Eduardo Pitta
e fazem uma consideração interessante:

uma literatura gay, para o autor, seria aquela na qual a subjetividade homossexual
ultrapassa a afetividade em relação ao outro do mesmo sexo para abordar também
os vários e heterogêneos aspectos que atravessam o sujeito e a cultura gay
posteriores a 1969, como por exemplo: as agruras de inserir-se ou não como
sujeito de direitos em uma sociedade ainda fortemente heteronormativa, branca,
jovem e burguesa. Com esse sentido ético, político, étnico, estético e econômico,
Pitta alega que “fracturas” (SILVA; SOUZA, 2019, p. 186)

Nesse caso, fazendo uma aproximação entre Mário César Lugarinho e Eduardo
Pitta, A “literatura de representação” seria o mesmo que “literatura homossexual”,
enquanto “literatura de subjetivação” seria como “literatura gay”. Nas duas últimas,
porém, há uma diferença, já que Mário César Lugarinho fala sobre o aprofundamento das
identidades dos sujeitos homossexuais nessa forma de subjetivação na literatura, mas não
deixa clara a necessidade de um caráter intencionalmente político.
Outro teórico que também discorre sobre conceitos que envolvem homoerotismo
e literatura é José Carlos Barcellos (2006), em seu livro Literatura e homoerotismo em
questão. No início do primeiro capítulo, Barcellos faz um adendo e aponta o fato de que
esses estudos ainda são embrionários no Brasil, em comparação com universidades dos
Estados Unidos e de alguns países europeus. Nesse sentido, segundo o teórico, é
importante que as investigações acerca desse tema na literatura levem em consideração,
primeiramente, o texto, em detrimento da relevância social.
Dito isso, para José Carlos Barcellos, uma das formas de se estudar a relação entre
literatura e homoerotismo se dá pelo viés temático, em que se busca identificar e analisar
temas e subtemas referentes ao homoerotismo nos textos literários. Dessa forma, o autor
propõe alguns “conceitos operacionais” (BARCELLOS, 2016, p. 17) para as análises de
obras literárias, sendo eles: homoerotismo, homossexualidade, literatura gay e literatura
queer.

10
Doutorando em Letras e Linguística - Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.
11
Doutor em Letras e Linguística - Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.
73

Quanto ao primeiro conceito, homoerotismo, já nos detivemos a explicá-lo no


primeiro capítulo, justificando o porquê da nossa escolha por essa terminologia: a
vantagem de não haver imposição de modelos pré-determinados ou identidades
específicas aos personagens, possibilitando uma análise das relações entre pares em
diferentes contextos culturais, sociais e pessoais. Isso porque o termo tem um caráter
globalizante, tendo em vista que esse conceito literário busca lidar com diferentes formas
de relacionamentos eróticos (ou não eróticos) de pessoas do mesmo gênero/sexo. Para
Barcellos, homoerotismo é uma terminologia mais vantajosa para análises literárias, já
que não impõe um modelo padrão de relação. “Ou seja, é um instrumental que permite ao
analista identificar as configurações que as relações entre iguais assumem em cada
contexto cultural, social e/ou pessoal” (SILVA; SOUZA, 2019, p. 187).
Quanto ao termo “homossexual”, Barcellos defende que é coerente utilizá-lo na
crítica literária dentro do período em que foi criado — da segunda metade do século XIX
até o início do movimento homossexual, na década de 1960/1970 —, pois, a partir da luta
pela liberação homossexual, é necessário trabalhar também com o termo “gay”.

Essa distinção entre “homossexual” e “gay” fundamenta-se nas profundas


transformações advindas com os movimentos de liberação que se desenvolveram
na esteira da revolução sexual, de maio de 68 e de Stonewall, principalmente, e
que determinaram o surgimento, nas principais metrópoles do Ocidente, de uma
identidade gay, entendida como um estilo de vida multidimensional estruturado
a partir de uma opção homossexual. Nesse momento, a homossexualidade”
extravasa os limites da categoria “orientação sexual” para abarcar hábitos de
consumo, opções políticas, perspectivas culturais etc. etc. — enfim, todo um
estilo de vida, que se distingue conscientemente, assumidamente, do da maioria
heterossexual. (BARCELLOS, 2006, p. 25-26)

Barcellos, inclusive, diz que é útil contrapor “gay” a “homossexual” em alguns


casos, mas sem estabelecer linhas muito bem definidas nessa contraposição, pois é
possível perceber em algumas literaturas a passagem de uma “condição” homossexual
para um “estilo de vida” gay. No caso, é como se saísse “de uma postura de autodefesa a
uma de autoafirmação, do questionamento da legitimidade da própria existência à
afirmação inequívoca da mesma” (Idem, p. 26-27). Nesse caso, é possível fazer uma
comparação dos conceitos de Eduardo Pitta (“literatura homossexual” e “literatura gay”)
e Mário César Lugarinho (“literatura de representação” e “literatura de subjetivação”)
com os que José Carlos Barcellos toma emprestado: em análises literárias, o termo “gay”
estaria para “literatura gay/literatura de subjetivação”, assim como o termo
“homossexual” estaria para “literatura homossexual/literatura de representação”. Porém
74

Barcellos adiciona uma informação: para o autor, só é possível falar de uma literatura
propriamente gay a partir de 1968, quando a luta homossexual eclode e passa a traçar uma
identidade própria do que é ser gay.
O último conceito que citamos, e que José Carlos Barcellos utiliza como termo
chave para análises literárias, é o queer. Nascido na língua inglesa como forma de
diminuir pessoas homossexuais, tendo como tradução a palavra “estranho”, foi
ressignificado dentro do movimento social LGBTI+ (tanto que existem grupos e países
em que se utiliza a sigla com a letra “Q” (como LGBTQ+/LGBTQI+) e dentro da
academia, através dos estudos queer. Esse termo, segundo Barcellos,

foi reapropriado para designar um modelo que se propôs como


alternativa a gay, pois “enquanto gay parece apoiar-se num discurso
clássico que crê nas categorias e busca respeito e integração no sistema
social, queer nasce com uma vocação mais rebelde, como uma autêntica
afirmação da excentricidade” (MIRA, 1999: 601). Nesse sentido, situa-
se num contexto pós-gay, muito sensível, por exemplo, à avassaladora
mercantilização da cultura gay e ao império dos estereótipos de beleza,
juventude, consumo e adequação de comportamentos que a atravessam.
(BARCELLOS, 2006, p. 28-29)

Dessa forma, apesar do teórico apontar as distinções entre homoerotismo,


homossexualidade, gay e queer, não se deve tratar essas nomenclaturas como rótulos, mas
como diferentes perspectivas a serem escolhidas por aquele que decidir estudar o
homoerotismo na literatura. Essas distinções servem para que possamos refletir sobre os
comportamentos, papéis e identidades desses sujeitos, bem como sobre a forma como se
inscrevem na literatura.

Com isso, superamos completamente qualquer forma ingênua de


compreensão da relação entre literatura e homoerotismo em perspectiva
temática, como se se tratasse apenas de verificar como a literatura
representa uma realidade pré-existente fixa e bem delimitada. Pelo
contrário, não só o texto literário constrói a “homossexualidade da qual
ele fala”, conforme vimos com Dennis Allen, como a própria crítica
literária, a partir das especificidades do(s) texto(s) de que está se
ocupando, deve escolher o instrumental mais adequado à construção do
seu próprio objeto e às operações hermenêuticas às quais pretende
submetê-lo posteriormente. (Idem, p. 33)

Nesse sentido, e agora voltando-nos para as obras que analisaremos, decidimos


usar como chave de leitura o homoerotismo, acompanhado do conceito de “literatura de
75

subjetivação/literatura gay”, tendo em vista que acreditamos que os trabalhos de Luís


Capucho se inserem nesse lugar12.
No primeiro romance de Capucho, Cinema Orly (1999), antes de começar a
narrativa, em uma espécie de introdução, o personagem termina suas reflexões com o
seguinte questionamento: “porque não vou ao Orly com orgulho, se lá é a gota doce?”
(CAPUCHO, 1999, p. 14). Com essa sentença, que finaliza a abertura do livro, o
protagonista nos deixa a par de dois questionamentos: a) o primeiro referente a
necessidade de se aceitar e tomar para si que o espaço do cinema era um dos poucos
lugares possíveis de se vivenciar o desejo e o afeto, e que aceitar esse fato significaria
também aceitar a própria condição enquanto sujeito inserido em uma determinada
realidade; b) o segundo tem um caráter mais social, mas que nos permite compreender
melhor o porquê de Mario Cesar Lugarinho (2008) afirmar que é a partir do primeiro
romance de Capucho que nasce a “literatura gay” no Brasil. Esse fragmento põe em
xeque, e que se confirma nas outras páginas da obra, a identidade gay estabelecida na
época, pois traz à luz um outro lado do que era ser gay na década de 1990.
Mário César Lugarinho (2008), referente ao romance de Luís Capucho, afirma:

“De suas páginas transborda a problematização das formas que a comunidade


homossexual, ao lado dos meios de comunicação de massa, elegeu para definir
uma suposta identidade homossexual durante os coloridos anos da década de
1990, quando a comunidade alcançou espaços midiáticos” (LUGARINHO, 2008,
p. 17).

Ou seja, em Cinema Orly é narrado sobre relações entre pares que não tinham
espaço para serem públicas, que não podiam se ver representadas naquilo que estava
sendo construído como identidade gay em sua época. E, para além dessa relação, Capucho
também apresenta o indivíduo homoerótico em suas particularidades, este que ficava
ainda mais à margem dos que, no fim do século XX, estavam adquirindo alguma
visibilidade no meio social.
Nesse sentido, pensando que “a literatura é também um produto social,
exprimindo condições de cada civilização em que ocorre” (CANDIDO, 2006, p. 29), as
obras em questão trazem em seu texto figuras que vêm de um lugar que se deseja manter

12
Apesar de sabermos que as obras de Luís Capucho também se inserirem dentro da chave de
leitura queer, decidimos não seguir esse caminho teórico, já que esbarraria em questões que por hora não é
do nosso interesse analisar nem se debruçar sobre. Nesse sentido, acreditamos que a perspectiva de
“literatura de subjetivação/literatura gay” contempla melhor a abordagem que decidimos fazer nesta
pesquisa.
76

oculto. Ou seja, Cinema Orly e Rato são literaturas que nascem da margem e se assumem
e se impõem para a sociedade como obras que buscam retratar o cotidiano homoerótico
deste lugar. E mais, cabe ressaltar que a marginalidade dessas obras “não é apenas
literária, mas revela-se como uma marginalidade vivida e sentida de maneira imediata
frente à ordem do cotidiano” (HOLLANDA, 2004, p. 113).
O primeiro livro, Cinema Orly, se passa em dois lugares diferentes: em Niterói,
lugar onde o protagonista vive e narra sobre sua relação com a vizinhança; e no centro do
Rio de Janeiro, local onde fica o cinema pornô frequentado por ele. Dividido por seções,
quase como um diário, o narrador-personagem, além de viver suas aventuras sexuais
dentro do cinema Orly, se coloca em um lugar de reflexão sobre a masculinidade, a
homossexualidade, o lugar que ele ocupa socialmente, de forma que nos faz mergulhar
dentro do universo em que os personagens vivem.
Em Rato, ao contrário de Cinema Orly, toda narrativa se passa apenas em Niterói.
No romance, nós vemos aparecer a figura da mãe, personagem com grande importância
para o protagonista, e o desenlaçar de uma relação amorosa mais estável. Por morarem
em uma pensão só para homens, Rato, forma como o personagem principal se denomina,
vive pelos cantos escuros tentando observar os homens da casa. Assim como em Cinema
Orly, aqui também há reflexões acerca da homossexualidade e masculinidade, porém com
uma escrita mais “polida” e mais próxima do que tradicionalmente chamamos de
romance.
Tanto em Rato como em Cinema Orly, o personagem-narrador (e aqui trataremos
como se o livro contasse a história do mesmo personagem em momentos diferentes, tendo
em vista que as informações dadas nos romances se cruzam em muitas partes, dando a
entender que a história contada é de uma mesma pessoa) demonstra não fazer parte de
uma elite social nem ter interesse em reproduzir os costumes dela. De acordo com Mário
César Lugarinho (2008), o protagonista do romance se identifica como morador do
subúrbio e, tanto nas suas experiências quanto em seus discursos, distancia-se de qualquer
prática social que possa ser vinculada ao mainstream gay dos anos 1990 (LUGARINHO,
2008, p. 18). Confiramos o seguinte fragmento:

“Eu gosto de lá porque estou no meu lugar, não me sinto um clandestino, porque
é um meio social onde não precisamos ser iguais a ninguém, nem sequer
precisamos falar, nem botar o pau para fora, nem pagar um boquete, mesmo que
isso, entrar no cinema sem participar, não tenha a menor graça” (CAPUCHO,
1999, p. 17-18).
77

Nesse sentido, o protagonista de Cinema Orly mostra se identificar com o espaço


do cinema, frequentado, em grande parte, por cidadãos mais periféricos13, pois a sensação
que lá lhe causa é de conforto, exatamente pelo fato de não precisar simular ser outro
alguém e assumir um papel social que não deseja. Em Rato, ao contrário, a questão de
pertencer à classe social mais baixa se torna motivo de preocupação e incerteza, já que,
em alguns momentos, o protagonista parece não conseguir transpassar sua condição de
pobreza: “em sua crueldade, a pobreza é como a culpa, o pecado e o castigo. Difícil safar-
se dela” (CAPUCHO, 2007, p. 15). Esse sentimento, inclusive, ganha um caráter dual, já
que Rato, aos olhos dos outros, parece ser alguém que carrega uma diferença, tanto pela
sua sexualidade quanto pelo fato de verem-no como uma exceção, alguém que tem a
possibilidade de ascender socialmente. O motivo pelo qual acreditamos que esse
sentimento aparece de formas destoantes nos dois livros é que, em Rato, o personagem
traz para a narrativa o espaço da casa e todos os conflitos que envolvem esse ambiente,
enquanto, em Cinema Orly, o ambiente principal é o cinema, lugar que traz alegria,
prazer, e que o permite ser quem deseja: “no Orly, eu era um veado que não perdia o meu
tempo para pensar na impressão que meu comportamento causava nos outros
frequentadores, como eu normalmente penso nos ambientes sociais” (CAPUCHO, 1999,
p. 22).
O sentimento de pertencimento sentido pelo personagem se estende, também, para
outro espaço: a Cinelândia, bairro da cidade do Rio de Janeiro onde se localizava o cinema
pornô Orly. Em uma das passagens, durante uma briga entre o protagonista e uma amiga,
o narrador relembra uma das ofensas proferidas por ela: “vai para a Cinelândia, seu lugar
é na Cinelândia” (CAPUCHO, 1999, p. 19). Na década de 1990, só permanecia nesse
local homossexuais e pessoas que se prostituíam. Apesar do tom de injúria, o personagem
de Capucho não toma o xingamento de forma negativa:

“minha pequena amiga tinha razão, eu adorava a Cinelândia com


aqueles michês com pernas enormes, sentados nos bancos, e
oferecendo-nos seus paus que sempre estavam duros dentro das cuecas.
Nunca fiquei com um michê. Não era uma bicha que tivesse dinheiro”
(CAPUCHO, 1999, p. 19).

13
“Periférico diz respeito à linha que define o limite de uma superfície, demarcando, portanto, a forma e a
configuração de um espaço ou objeto. Urbanisticamente a periferia abarca as regiões afastadas dos centros
urbanos, em geral habitadas pela população de baixa renda.” (OLIVEIRA, 2011)
78

O protagonista de Capucho parece se sentir livre em locais onde pode fazer dos
homens uma imagem do seu desejo, mesmo que esse sentimento não seja realizado
fisicamente. Era como se a possibilidade de olhar e desejar sem nenhum tipo de pudor,
por si só, satisfizesse seu prazer.
Outro fator que nos faz pensar sobre o sentimento de conforto/pertencimento do
personagem dentro do cinema, para além das questões de classe, é a pluralidade de
pessoas com características tão distintas que frequentam aquele espaço, pois, em Orly,
ser diferente não é incomum. Para embasar nossa afirmação, confiramos a seguinte
passagem:

“Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas,
muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e
magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma,
com charme, com pernas muito bonitas, muito homem esquisito, muitos
com cara de hospício, homens com bigode, de barba, imberbes,
antipáticos, nojentos, com cara de idiotas, louros, morenos, negros,
mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz
grande, homens robustos, mignons etc. Estes homens não faziam,
necessariamente, todos eles parte da pegação, mas estavam todos no
clima.” (Idem, p. 23).

É interessante pensar que, para um livro lançado no fim da década de 1990,


contemplar essa diversidade de homens com diferentes corpos, idades, cores, jeitos,
vivendo seus desejos dentro de um ambiente homoerótico, é uma quebra de paradigmas
e de estereótipos sociais quanto ao olhar que se tinha para esse grupo. E isso só é possível
porque o narrador dos romances de Luís Capucho busca refletir sobre questões que
envolvam sua comunidade, além de se situar/se impor como um gay numa sociedade em
que o único caminho é o da heterossexualidade e que evita um olhar mais profundo sobre
a questão para perceber que pessoas homossexuais “podem ser/atuar nos vastos e diversos
espaços em que se encontram tantas ‘espécies’ de gays quantos são aqueles que estão no
mundo e assim se assumem” (SILVA, 2012, p. 94).
Quanto a essa afirmação de Antônio de Pádua Dias da Silva, existem alguns
fragmentos em que o narrador-personagem classifica diferentes maneiras de se “ser gay”,
apresentando uma pluralidade de formas e ultrapassando a ideia de que estar dentro desse
espectro condiciona o indivíduo a uma identidade fixa:

Há entre os veados, às vezes, diferenças sutis que apontamos por um


nome. Para os leigos, somos todos veados, que é uma palavra que
abarca todo tipo de bicha. Há, para mim, uma diferença pessoal e
79

subjetiva entre as palavras veado e bicha. Eu aprendi veado primeiro.


As bichas vieram muito depois, quando eu já estava adolescente. Por
isso, tenho introjetada a palavra veado a meu respeito. Meu namorado
era o que eu chamo de bicha-bofe. Nunca devemos perguntar a um
veado que tipo de bicha ele é. Normalmente eles têm uma ideia
camuflada de si próprios. Quando não são apenas homens, seres
humanos, pessoas, ou a palavra que o valha. São as bichas
transcendentais, abstratas. Acho que sou esse tipo. (CAPUCHO, 1999,
p. 55).

Havia representantes de todo e qualquer tipo de bicha lá dentro.


Havíamos em todos os tons. Éramos um arco-íris. Nós, os homens que
frequentávamos o cinema, éramos traduzidos em travestis com seios,
travestis com peito masculino, a bicha louca, a bicha bofe, a bicha boy,
o veado, o entendido, a bicha enrustida, a tia, o boiola, o baitola, o
gilete, o mariquinha, o mulherzinha, o gay, a bicha, todos. (CAPUCHO,
1999, p. 59)

Nesses fragmentos, a partir de nomenclaturas utilizadas por gays da época


(algumas utilizadas até hoje), o protagonista tenta classificar os diversos tipos de
“bicha/veado” que existem dentro da comunidade, mostrando que a infinitude de “tipos”
de homossexuais dá espaço para diferentes identidades dentro de um mesmo grupo14.
Nesse sentido, um aspecto levantado por Antônio de Pádua Dias da Silva (2012)
é que a narrativa de Luís Capucho se assemelha a um ruído da “subcultura gay” na
sociedade (SILVA, 2012, p. 93), já que ele se propõe a discutir temáticas homoeróticas
de forma que traz para a superfície vivências e experiências que se buscam manter ocultas.
A partir dessa fala, vejamos o seguinte fragmento:

Fui para casa pensando que nós todos, os que frequentávamos o Orly, éramos
especialmente um bando de eliminados. Adorávamos o sexo heterossexual que
víamos na tela, nos sujeitávamos às infecções venéreas com absurda
conformidade, somente o gueto do Orly nos era permitido, assim mesmo para
tirar-nos da cidade, e não havia nenhum controle, estávamos absolutamente
entregues aos caprichos do caldeirão que era o cinema.
Digo que a cidade queria nos eliminar porque há mais ou menos quinze anos, se
eu saía para o Aterro ou andava pela Via Ápia à noite, tinha que tomar cuidado
com os policiais para não ser preso sob a acusação de vadiagem. Vadiagem foi a
desculpa que tiveram para reprimir nossa veadagem, que consistia em andar pelos
lugares mais escusos, mais desertos do Aterro e do centro da cidade (Via Ápia),
a fim de pegar, o que nos dava ares de suspeito. Numa das vezes em que fui preso
numa delegacia da Glória, tinha sido pego também um travesti. Quando cheguei,

14
É importante dizer que hoje muitas dessas formas de nomear pessoas travestis/trans e
homossexuais tem conotação negativa, assim, sabemos que não devem ser utilizadas. Tendo em vista,
porém, o período em que o livro foi lançado e seu contexto, bem como o fato de que esses aportes
vocabulares pertenciam e representavam esse grupo, deparar-se com essas nomenclaturas dentro de um
livro de literatura, sabendo que esses personagens não haviam tido espaço representativo nessa plataforma
até então, toma outro sentido.
80

o travesti com uma cara de humilhação varria o chão da delegacia. Os policiais


puseram-no para varrer sem blusa e de vez em quando vinham lhe beliscar o seio
bonito fazendo piadas. Por isso, eu achava que havia uma intenção em confinar-
nos no Orly. Isso facilitava controlar-nos. Lá podíamos atentar bastante contra o
pudor e contra a moral vigente, pois estávamos apenas entre nós. (CAPUCHO,
1999, p. 92)

O interessante aqui é a reflexão do personagem-narrador sobre o porquê de só


poder vivenciar seus desejos e afetos dentro do porão do cinema, em um lugar que, apesar
de estar no centro do Rio de Janeiro, fica longe da luz do sol, dos olhos da sociedade,
como se as pessoas que o frequentam e/ou partilham dos mesmos desejos só pudessem
viver suas experiências na sombra e na clausura.
Em Rato, essa questão se expõe quando o personagem começa a se relacionar com
Plínio. Ao saírem juntos pela primeira vez, buscando ter um momento de intimidade,
pegam um ônibus e vão para a região oceânica de Niterói, que na época ainda vinha sendo
construída.

Perto da praia, saltamos para uma rua de terra, cheia de casas em construção, e
entramos por ela. Já é noite fechada, algumas das casas ainda têm seus pedreiros
dando os últimos retoques no trabalho do dia. Enquanto caminhamos,
esquadrinhamos com o olhar cada movimento das casas, como se fôssemos dois
ladrões. Enfim, pulamos o muro de uma das casas em construção vazias e
deitamos pelados sobre nossas próprias roupas.
[...] Um homem acende a casa da frente. Sentamos no escuro da varanda
alarmados. O homem aparece. Olha, olha e entra de novo. Para não fazer barulho,
vestimos nossas roupas tão lentos, só pisando com o veludo dos pés, e avançamos
mais para dentro da rua que termina por subir uma ladeira em curva, de onde
vemos o bairro a ser construído. Na ladeira ele me abraça:
- Está gostoso, vamos achar outra casa e continuar (CAPUCHO, 2007, p. 41-42)

Como podemos ver, Rato, o personagem-narrador, não tem a possibilidade de


viver relações amorosas ou sexuais dentro de sua própria casa, seja por causa da não
aceitação da mãe ou dos demais hóspedes, tendo que recorrer a locais públicos para viver
sua relação com Plínio. Ao dizer que espreitam as casas em busca de uma que esteja vazia,
como se fossem ladrões, é possível retomarmos a fala que expõe o medo que o
protagonista tem em Cinema Orly: o de a polícia abordá-lo com acusação de vadiagem
— palavra que, ironicamente, aproxima-se de “veadagem”.
Ainda em Rato, em outra parte do livro, em que os namorados voltam a sair à
procura de um local reservado, vão para o Forte de Gragoatá, que, no período, passava
por obras. Ao chegarem, entram em uma manilha, no intuito de ficarem mais protegidos,
porém, mesmo assim, são surpreendidos por policiais.
81

Chupo o seu peito, pego no seu pau e, por fim, quando me viro para que ele
brinque às minhas costas, escutamos barulhos de passos aproximando-se, gritos
de homens afirmando a presença e a voz de um deles pedindo para que saiamos
com as mãos para o alto. Temos apenas tempo de colocar as calças, juntar nossas
coisas: camisas, sapatos e cigarros, pois o homem não está pedindo, está
ordenando que saiamos.
Saímos com pressa e medo.
[...]Vamos andando em direção aos policiais e eles em nossa direção. Quando
chegam, cheiram nossa mão. Sorriem com malícia e maldade ao sentirem que, ao
invés de cheiro de maconha, nossa mão tem cheiro de sexo, de bunda.
- Qual dos dois é o veado? – o policial ordena.
Nossa veadagem, escancarada para os policiais através do nosso cheiro, é o pior
que poderia nos acontecer. Esses caras têm verdadeiro nojo de veado. Se
fôssemos presos apenas pela maconha, também um ridiculo motivo de prisão,
eles estariam menos equivocados, mas nós ficaríamos livres de vê-los tão felizes,
tão satisfeitos e sádicos. Um maconheiro inspira mais respeito e cuidado a um
policial porque para ele um maconheiro tem mais poder de resistência e oferece
maior perigo que um veado. Mas um veado, o que é um veado?
Ao pegar o maconheiro, o policial julga interferir em todo um esquema de
bandidos, o que o faz pensar em assassinatos, assaltos, perigosas perseguições,
altos poderes, malandragem, um trabalho da polícia à vera, mas pegar veados é
mais uma brincadeira que o trabalho oferece. Como se fossem gatos e nós
fôssemos baratas, ratos. (Idem, p. 56 - 58)

João Silvério Trevisan (2018), em Devassos no Paraíso, diz que na legislação


brasileira nunca houve um código penal que enquadrasse diretamente a relação entre
pares como crime. O assunto era tão delicado para as autoridades que preferiam mantê-
lo em silêncio (TREVISAN, 2018, p. 164). Mas isso, claro, não impedia que as
instituições encontrassem maneiras legais de incriminar a homossexualidade, como, por
exemplo, enquadrando-a nos crimes de “ofensa à moral e aos bons costumes” ou, o já
citado por Capucho, “vadiagem”. Nesse trecho, é possível perceber a fragilidade e o risco
enfrentados por aqueles que só podiam se amar nessas condições, assim como a forma
que, através dos olhos dos policiais, a sociedade tratava pessoas que davam vazão aos
seus desejos homoeróticos. Para os policiais, assim como para os ditos “normais”, pessoas
homossexuais eram como baratas e ratos, que deviam se manter no escuro, nos bueiros,
longe de qualquer visibilidade.
Isso nos permite abordar outro aspecto que nos interessa nessas obras: a dualidade
na forma que os personagens de Luís Capucho tomam em diferentes espaços. Por
exemplo, o cinema é o lugar onde o desejo entre dois homens pode ocorrer, onde o corpo
é “livre” de um modo que não é permitido ser sob a luz. Uma das passagens em que se
evidencia essa afirmação é a que narra um conflito entre duas travestis dentro do cinema;
82

os policiais, ao chegarem para encerrar a confusão, pedem para pararem o filme e


acenderem a luz:

“Era muito diferente olhar para aqueles homens no claro, sem as correntes de luz
escura que corriam entre a gente, vindas do filme passando na tela e que nos
deixavam a todos sob o julgo da mais intensa pegação. No claro, os homens se
olhavam com olhares disfarçados, subentendidos, fugidios, parecendo que não
estavam com tesão, tal o impacto da luz acesa.” (CAPUCHO, 1999, p. 23)

Dialogando com um dos títulos do primeiro capítulo, “os répteis”, podemos pensar
que os frequentadores do Orly, de fato, fossem como répteis: no escuro caminhavam,
mostravam-se; no claro, escondiam-se ou se adaptavam ao que os meios sociais
impunham, quase como uma obra barroca. No fragmento posto, o narrador mostra o
estranhamento ao perceber os rapazes em outra atmosfera que não a de costume:
“enquanto os policiais estavam lá, ninguém se atrevia a dar um beijo [...]. A presença dos
policiais, a luz acesa, a fita parada, tirava o clima para os closes nos corredores. Com a
luz acesa, não vi nem fui visto com interesse, embora olhasse para os lados com ânsia”
(Idem, p. 22). A luz, nesse caso, assim como a figura do policial, pode ser interpretada
como a repressão, como a possibilidade não só de ser visto, mas de ser reconhecido: “fora
do anonimato do Orly, me sentia constantemente vigiado, eu tinha um nome e um
endereço” Idem, p. 123). Com a luz acesa, eles voltavam a seguir uma determinada
norma, voltavam a ser os homens que viviam do lado de fora do cinema, e isso se confirma
no momento em que o protagonista diz: “quando a luz se apagou e recomeçou o filme,
como as mulheres que se envergonham do próprio corpo na hora de trepar, a pegação
intensificou-se” (Idem, p. 23).
Em Rato, o escritor também traz a oposição entre dentro/fora e luz/sombra, mas
fazendo comparação com outro animal. Vejamos abaixo:

São os da superfície os que dão movimento, são quem decide para que direção
vai a vida, porque, com o temperamento expansivo, as atitudes e as palavras são
dominantes.
Às vezes estou na superfície, venho para o quintal, distraio-me com Peri e trago
uma banana, quando o mico que vive nos quintais do nosso quarteirão está no
abacateiro. Quando vou à superfície, não vou para dominar, para tomar partido,
mas para arejar um pouco, abanar um pouco meu corpo nas sombras da casa,
desemperrá-lo.
Eu sou um rato.
Saio da toca sobressaltado, rápido, para conseguir um pouco de comida, mas meu
mundo mesmo é a toca. Quando estou nessa mesinha que fica no corredor entre
a nossa sala-quarto e a cozinha com a garrafa térmica de café, fumando meus
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quase que ininterruptos cigarros, luz acesa e escrevendo, estou na superfície.


Dessa forma, tomo as rédeas da vida com minhas mãos, um jeito de estar na
superfície sem sair do fundo, revelando-me (CAPUCHO, 2007, p. 29)

Se no Orly os personagens se tornavam répteis dentro do cinema, no segundo


romance de Luís Capucho o protagonista se vê como um rato. Ao contrário dos répteis, o
rato não se camufla, mas vive à espreita, nas sombras, observando o mundo de um lugar
seguro. Ele vive escondido parte do tempo, sem querer ser visto. O interessante é que,
como rato, mesmo quando o personagem sai no mundo, estando à superfície, ele se
mantém na sombra; é como se buscasse não o enfrentar de frente, sentindo-se mais
confortável estando apenas em sua toca.
É no escuro também que ocorrem suas relações amorosas e sexuais, de forma que
os outros tenham mais dificuldade de percebê-las; é na sombra que os personagens de
Luís Capucho se sentem livres para serem quem são e vivenciarem aquilo no que têm
desejo, enquanto na luz fingem ser outras pessoas para sobreviverem.
Como vimos, tanto o narrador quanto os personagens que compõem a obra de Luís
Capucho transpassam qualquer estigma referente à experiência homoerótica. Através de
uma linguagem direta e sem pudor, o autor descreve o ambiente, os costumes, as
experiências, o desejo, as angústias e a liberdade com que seu protagonista vivencia, da
forma que pode, o amor, o afeto e o sexo. Tanto em Cinema Orly quanto em Rato, vemos
representado um ambiente dentro do espaço do possível, onde a realização consciente de
fantasias eróticas e desejos inconfessáveis ganham lugar para serem vivenciados. No
Orly, os personagens ganham uma espécie de aura misteriosa, já que toda ação se dá em
meio a poltronas e meia-luz, diante das imagens do filme pornô na tela do cinema. Todos,
de alguma forma, tornam-se apenas imagem em meio a efervescência do lugar. Em Rato,
os personagens se tornam mais reais, pois temos a presença do afeto da mãe e um amor
um pouco mais efêmero, além dos conflitos diretos entre o protagonista, os homens
moradores do cortiço e a sociedade.
Luís Capucho, em seus dois romances, consegue dar espaço no registro escrito
para personagens que viviam nas sombras, sem se deixar cair em estereótipos, dando lugar
para que a subjetividade desses sujeitos apareça. Dessa forma, a partir de tudo que já
refletimos e discutimos aqui, a literatura de Capucho, tendo em vista uma análise
homoerótica, circunscreve-se dentro daquilo que nomeamos como “literatura de
subjetivação”.
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Sei que sou um pobre-diabo, é verdade.


Porém, Plínio não me enxerga assim. Acho que me vê como o cara superior que
olha para as coisas do alto, de sob a franja caída. Isso porque me conheceu na
Cabeça, onde faço esse papel, onde sou esse rapaz de louça. E quando nos
tornamos íntimos, essa impressão não se desfez, a louça não se quebrou. Mesmo
com a proximidade, com os amassos, com os lugares sujos de cocô por onde nos
escondemos para o sexo, continuo louça, porque Plínio gosta de mim. É delicado
comigo. Esse clima romântico em que nos envolvemos não me deixa quebrar,
não me trica. Estou sempre inteiro, perfeito para ele. Sempre seu mimo
(CAPUCHO, 2007, p. 90)

Dessa forma, é possível afirmar que permeia na narrativa uma representação da


sociedade que trata os desejos e afetos homoeróticos como algo abjeto, e que busca, assim
como mostra Antônio de Pádua Dias da Silva (2012), através da simulação de
permissividade de um ambiente exclusivo para gays, limpar a publicidade desses
afetos/desejos das ruas e alocá-los em um lugar distante, mas que, ao mesmo tempo, fica
perto das pessoas comuns.

3.2. A autoficção em Luís Capucho: a dramatização de si

Antonio Candido (1989), em seu livro Educação pela noite e outros ensaios, já
sinalizava em Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes uma corrente
autobiográfica. Segundo Candido, os autores escolhidos para a análise feita no livro, bem
como autores modernistas, seguiam a ideia de separar vida e arte, embasados na seguinte
concepção: quanto menos realista a representação fosse, mais se aproximaria de um
essencialismo da arte. Nesse sentido, para a construção dessa autobiografia, era
necessário se utilizar de artifícios literários que distanciassem o autor da obra. Qualquer
elemento que os aproximassem deveriam ser negados.
Dessa forma, Antonio Candido (1989), dentro do padrão de modernidade, formula
sua análise com base na ideia de que o escritor (ou o eu que narra a si mesmo), alterando
a matéria narrada, separa sua vida da obra, buscando construir algo universal do particular
e de fatos vividos por esses sujeitos.
Sendo assim, o teórico acredita que vida e realidade podem ser apenas um ponto
de partida para a construção de um texto literário, ultrapassando, assim, a forma de
representá-las. Nesse sentido, podemos dizer que Candido defende que o literário só pode
ter valor quando aliado à ideia de “pura ficção”. Porém, segundo seus argumentos, admite
também que toda ficção, em certa medida, é autobiográfica. Com essa segunda afirmação,
aproximamo-nos do campo das “escritas de si”.
85

Philippe Lejeune (2008), em O pacto autobiográfico, diz que há traços de ficção


na autobiografia, bem como traços biográficos na ficção, colocando em xeque a ideia de
“pura ficção” e a ideia de “pura verdade”.

não se trata [...] de saber qual deles, a autobiografia ou o romance, seria o mais
verdadeiro. Nem um nem outro: à autobiografia faltariam a complexidade, a
ambiguidade etc.; ao romance, a exatidão. Seria então um e outro? Melhor: um
em relação ao outro. O que é revelador é o espaço no qual se inscreve as duas
categorias de textos, que não pode ser reduzido a nenhuma delas. (LEJEUNE,
2008, p. 43)

Dessa forma, Lejeune parece afirmar que não há uma separação objetiva entre
ficção e autobiografia. O que separaria esses dois gêneros, então, seria o pacto referencial
criado entre autor e leitor, o que o teórico chamou de “pacto autobiográfico”.
Diana Klinger (2006), em Escritas de si, escritas do outro: Autoficção e
etnografia na narrativa latino-americana contemporânea, utiliza em seu trabalho textos
que se encaixam nos limites da ficção, pensando, então, em um texto híbrido. Para tal,
Klinger questiona a ideia de autobiografia pura, tendo como base certa “constelação
autobiográfica” (memórias, diários, autobiografias e ficções sobre o eu), que, transitando
entre os diferentes gêneros “se move entre dois extremos: da constatação de que — até
certo ponto — toda obra literária é autobiográfica até o fato de que a autobiografia ‘pura’
não existe” (KLINGER, 2006, p. 39). Outra questão abordada pela teórica é a ideia de
verdade nas ficções e nas autobiografias. Para Klinger, a ficção nos deixa mais próximos
da verdade do que o relato, pois, nessa perspectiva, “a ficção seria superior ao discurso
autobiográfico pois o romancista (ou o contista) não tem como prioridade contar sua vida
mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma matéria contingente”. Ou seja, de
acordo com o pensamento psicanalítico, o conceito de verdade só se alcança através da
ficção, do imaginário, que é a ferramenta do romance. Não é que “a verdade sobre si
mesmo só pode ser dita na ficção”, mas “quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve
ser considerada ficção” (Idem, p. 40).
Como tentativa de encontrar uma resposta para esse paradoxo, Diana Klinger se
utiliza de Philippe Lejeune e Luiz Costa Lima. Para o primeiro, como já abordamos, o
que diferencia o grau de “verdade” de um texto ficcional para o autobiográfico não é o
quanto este se aproxima do real, mas o pacto estabelecido entre autor e leitor. Por sua vez,
Costa Lima trata a autobiografia com um estatuto mais ambíguo, amenizando a ideia de
86

pacto para estabelecer verdade; porém, para o teórico, há relação entre “ficção” e
“literatura”, não tratando a autobiografia como gênero literário (ao contrário de Lejeune).
Com isso, Diana Klinger aponta que seu interesse é exatamente discutir o conceito
de literatura como “pura ficção”, tendo em vista que os textos de seu corpus se situam,
como já dissemos, nos limites da ficção. Para isso, ela evoca Leonor Arfuch, que desloca
a impossibilidade de distinguir de forma clara a diferença entre romance, autobiografia e
romance autobiográfico para o “espaço biográfico”. Essa noção de espaço biográfico, ou
de “constelação biográfica” é importante para pensar o objetivo do trabalho de Klinger,
que é

articular a escrita com uma noção contemporânea da subjetividade, isto é, um


sujeito não essencial, incompleto e suscetível de auto-criação. Vimos que a
autobiografia se desenvolve como correlato do individualismo burguês, que
desemboca posteriormente “no beco sem saída do narcisismo”; a auto-ficção - tal
como a definiremos aqui - surge em sintonia com o narcisismo da sociedade
midiática contemporânea mas, ao mesmo tempo, produz uma reflexão crítica
sobre ele (Idem, p. 45).

Para Diana Klinger, a escrita de si na contemporaneidade busca um efeito do real,


o que faz com que ele, na autoficção, quebre “com a ficcionalidade e aponte para um além
da ficção” (Idem, p. 46). Nesse sentido, Klinger começa a discorrer de fato sobre o
conceito de autoficção, dizendo que para ela o que importa não é a relação entre texto e
vida do autor, mas a desestabilização da noção de verdade e ilusão a partir da criação de
um “mito do autor”.

A auto-ficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto


nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles
momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria
escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o
processo da escrita? Quem diz eu?) (Idem, p. 53)

Em todas as suas obras, Luís Capucho trabalha com essa referencialidade, onde
inclui fragmentos que nos permitem encontrar seu eu empírico misturado com seu eu
ficcional. O primeiro desses fragmentos é o fato de seus personagens nunca terem nome,
com exceção de seu último livro, Diário da piscina (2017). Esse não nomear provoca
aproximação entre narrador e autor, e faz com que as duas figuras tomem o mesmo espaço
na nossa leitura. Em Cinema Orly, de uma forma mais generalizada, o protagonista se
denomina — e denomina os frequentadores do cinema — como répteis: “no Orly, sente-
87

se que somos répteis milenares” (CAPUCHO, 1999, p. 17), fazendo alusão ao tom de
camuflagem que a sala de cinema tem, bem como ao modo como as pessoas que
participam do ambiente de pegação mudam quando estão dentro daquele espaço. Em
Rato, como já expomos anteriormente, o personagem se nomeia exatamente de acordo
com o animal que dá nome ao livro, tendo em vista que ele, quando não está dentro da
sua toca — seja ela seu quarto ou seu próprio mundo —, está pelas sombras da cidade.
Conforme avançamos na leitura, percebemos que Capucho nos dá alguns
fragmentos em seus romances que o aproximam de seus personagens, além de criar
vínculos com as suas outras nuances artísticas. Um desses momentos é quando, em seu
primeiro livro, o protagonista conta sobre sua experiência com outro cinema pornô que
também ficava no centro do Rio de Janeiro: Cinema Íris. Segundo o personagem, ele não
se sentia tão à vontade nesse cinema quanto no Orly, mas, quando o visitava, sempre
assistia a uma stripper que se apresentava entre um filme e outro. Essa figura do Cinema
Íris o motivou a criar a música Savannah.

Quando ia ao Cinema Íris sempre assistia as strippers que se apresentavam nos


intervalos dos filmes pornôs. Foi o que me motivou a fazer a música Savannah,
uma stripper e atriz pornô americana, e que eu havia lido no jornal ter-se matado
em meados de 1994, aos 23 anos, após um acidente de automóvel que lhe
deformara o rosto bonito e jovem. Savannah era enturmada com os caras do rock
and roll e ganhava muito dinheiro fazendo strip-tease (Idem, p. 55)

Para criar a música, o narrador pede ajuda a uma amiga chamada Suely, pois não
conhecia muitos nomes do vestuário feminino nem verbos que indicassem os movimentos
feitos pelas strippers.

“Savannah, cinderela nua, Superstar/ Savannah foi pra cidade fazer filmes e
dançar/ Savannah na cama/ E outras posições/ Savannah, seu strip-tease/
Savannah, bela, fria, loura, escultural/ Savannah além do bem e do mal/ Savannah
dinheiro, sexo e rock ’n’ roll/ Savannah luva justa, preta ou branca ou de cetim/
Savannah dança sobre os saltos/ Bico fino de cristal/ Savannah, capa, anágua,
sutiã/ Baby-doll/ Savannah, gira, abre, fecha, cresce, dança, diminui/ Savannah,
deusa coquete/ Não sabe ficar sem namorado/ Savannah sobe a colina/ Sozinha,
sem ninguém do lado/ Savannah pobre menina/ Imagina tudo acabado/ Savannah!
Savannah!” (Idem, p. 56-57)

Essa música, registrada em Cinema Orly, é cantada por Luís Capucho em seu
disco Antigo (1995). Por se tratar de um disco gravado de um show ao vivo, antes de
iniciar a canção, o cantor explica para o público o que o motivou a criar a canção: o
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suicídio de uma stripper norte-americana. Ou seja, quatro anos antes do lançamento de


seu livro, Luís Capucho já havia dado uma explicação parecida para a música. Ao
transformar essa informação em material literário para seu romance, o escritor brinca com
os limites entre ficção e realidade em seu livro.
E é até interessante pensar que seu primeiro livro funciona como uma forma de
colagem, tanto nas informações trazidas pelo texto, quanto na forma dele: apesar de ser
classificado como romance, os capítulos são divididos por sessões e narrados de forma
que em alguns momentos parece um diário. Dentro da forma do texto, ele também abre
espaço para registrar as músicas que cria e as cartas que recebe, além de adicionar
ilustrações. O texto é mesclado por ficção e experiências reais, de forma que desestabiliza
não só a forma do que é considerado romance, mas também aquilo que se tem como
ficcional.
No segundo romance de Luís Capucho, os elementos que criam uma dubiedade
no texto entre o real e a ficção estão mais cifrados, aproximando essa obra do que a crítica
literária tradicional trata como “boa literatura”. Porém, mesmo com esse distanciamento
maior entre o escritor e sua obra, existem alguns elementos no texto que, ainda assim,
aproximam Rato da autoficção. Como já apontamos antes, o protagonista de Rato
aparenta ser o mesmo de Cinema Orly, orbitando em algum momento cronológico que
não conseguimos identificar: pode ser tanto após como antes do período em que se passa
a narrativa do primeiro romance de Capucho. O fato de os dois morarem em Niterói e
terem vivências e características parecidas, além de apresentarem um semelhante lado
subjetivo do desejo, indicam-nos serem o mesmo personagem. Um dos aspectos que
embasa nossa afirmação, apesar de em Rato a linguagem ser mais rebuscada e um pouco
mais higienizada que em Cinema Orly, é a forma como o narrador demonstrar ter desejo
pela imagem que ele cria dos homens e da masculinidade nos dois livros. Vejamos os
seguintes fragmentos:

Apesar de ser um cara para dentro, sinistro, não sou presa da melancolia, mas da
masculinidade. Persigo seus prazeres dentro e fora de mim, atrás e na frente, à
beira do vulgar e do sublime.
O que é a masculinidade?
O que é um rapaz de pé, cheio de força na carne, pau, bunda, quadril?
(CAPUCHO, 2007, p. 31)

Meu namorado levantou-se e começou a dançar, fiquei com medo de achar


ridículo o modo como ele dançava, mas ele, dançando, olhava para as coisas com
um modo diferente, tinha um ricto tão sensual na boca e movia os quadris de um
modo tão masculino que eu adorei. Novamente fui tomado de orgulho e um pouco
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de insegurança. A masculinidade que tanto me fascinava nele, também me


afastava, fazendo com que me sentisse inferior com minha cara limpa, onde não
identificava nada, nem o masculino nem o feminino. Para mim a masculinidade
sempre foi superior, inatingível. (CAPUCHO, 1999, p. 85)

Como se pode ver, os dois protagonistas, de alguma forma, colocam a


masculinidade em um lugar idealizado, como se fosse inalcançável: um mistério a ser
desvendado, que causa nele um sentimento ambíguo, que beira o vulgar e o sublime, o
desejo e a repulsa. Com isso, aproximando os dois personagens, é possível também que
apontemos uma proximidade entre o protagonista de Rato com o autor, já que, mesmo
com maior ambiguidade no texto, dividem experiências: viveram na mesma cidade,
moraram em um cortiço, são músicos e escritores, mantiveram uma relação parecida com
a figura materna, entre outras coisas.
Cabe dizer que o nosso interesse aqui não é desvendar o que é real ou não no texto
de Luís Capucho, mas tentar traçar uma ideia de performatividade, como se o autor se
inserisse no lugar de um sujeito duplo, que, ao mesmo tempo que é personagem, é ator.
Voltando às reflexões de Diana Klinger, chegamos ao ponto que nos interessa:
que é pensar o autor como um performer. A partir de sua ótica, Klinger vê o texto
autoficcional como uma dramatização de si, da mesma forma que acontece no teatro: um
sujeito que é duplo, personagem e ator, real e fictício. Como base, Klinger utiliza Judith
Butler (2016), com seu conceito de performance. Para Butler, a performance significa
encenação. Quando usa esse conceito, é no sentido de explicar como a nossa performance
de gênero é uma construção que se calca na imitação e está ligada a uma construção
dramática. Ou seja, não tem uma performance verdadeira ou original, já que, segundo a
própria Butler, todas advêm da cópia da cópia.

Desta perspectiva, não haveria um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou
mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida
pública) do autor são faces complementares da mesma produção de uma
subjetividade, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas
que, em todo caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é
considerado enquanto sujeito de uma performance, de uma atuação, que
a“representa um papel” na própria “vida real”, na sua exposição pública, em suas
múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e autoretratos, nas palestras.
(Idem, p. 57)

Nesse sentido, voltando ao que Mário César Lugarinho (2008) diz pensar ser um
dado menor da obra de Luís Capucho para a crítica literária, a sua referencialidade,
buscamos olhar por outra perspectiva, já que defendemos a intencionalidade de Capucho
90

ao pôr em evidência os elementos reais em seu trabalho, criando, assim, uma


performatividade que desestabiliza a relação autor e narrador.
Fábio Figueiredo Camargo (2018), em seu artigo Relatos e diários: a literatura
gay contemporânea, traça um panorama de como a literatura de expressão gay, em grande
parte, utiliza-se da escrita de si para produzir seus textos. Camargo também afirma que
boa parte dessa literatura se pauta em relatos, construindo obras que se aproximam mais
da realidade do que da ficção. Como contraponto, ele utiliza o trabalho de Luís Capucho
para exemplificar como a literatura de expressão gay, apesar de apresentar traços de
realidade, utiliza-se de artifícios literários para criar um distanciamento entre autor e obra,
produzindo, assim, uma literatura com “maior qualidade”.
Dessa forma, Fábio Figueiredo Camargo contribui para o que tentamos defender:
que no trabalho de Luís Capucho há uma preocupação estética, que a ambiguidade criada
no texto entre ficção e realidade é intencional, entrando no conceito que Diana Klinger
chama de dramatização de si.
Podemos perceber essa intencionalidade nos dois livros desde o início de Cinema
Orly, no que o autor nomeia como “introdução”. Já no primeiro parágrafo, Capucho
demonstra que há uma intenção em tudo o que está por vir em sua narrativa: as palavras
chulas, as experiências, as atividades, os comportamentos de determinados grupos
LGBTI+, a estética do texto, entre todos os outros aspectos que podemos encontrar em
seu livro. Vejamos:

Se não escrevo, as ideias se perdem na pressão incômoda de minha


cabeça e eu sinto essa dor no meu peito. É a infelicidade. Se escrevo, o
pensamento se ordena, mais do que quando falo, embora eu não saiba
onde isso vai dar (CAPUCHO, 1999, p. 13)

Logo na primeira oração, podemos ver a marca de um “eu” que se camufla: “se
(eu) não escrevo”. Essa parte do texto, chamada introdução, é como uma licença do autor
para se pôr no livro, para só depois entrar de fato na narrativa dividida em seções durante
o romance. Não à toa, o início de seu livro se conecta com uma entrevista já dada por
Luís Capucho, em que ele comenta que a motivação para escrever seu primeiro romance
foi uma amiga ter lhe dito que era um bom exercício de coordenação motora, após ele ter
ficado com sequelas da toxoplasmose. Naquele período, seus movimentos com as mãos
eram lentos a ponto de ele organizar bem o texto mentalmente antes de conseguir terminar
de escrever, ou seja: “se não escrevo, as ideias se perdem na pressão incomoda de minha
cabeça”. E é só a partir da escrita que o pensamento se ordena para o autor/personagem,
91

mesmo que ele não saiba aonde seus pensamentos/sua escrita, ou o próprio livro, vão dar.
Talvez seja por isso que, de acordo com Fábio Figueiredo Camargo,

“esse “ser exclusivo” aparece na narrativa [...] de forma a confundir o


leitor que, mesmo não querendo fazer a relação direta entre as
personagens do escritor e seu eu empírico, acaba por tomar essa
semelhança devido ao propósito do próprio autor em subverter o gênero
autobiografia, criando para si mesmo uma autobiografia ficcional.”
(CAMARGO, 2010, p.171)

Em Rato, há um momento no texto em que o autor também parece aparecer,


expondo que sua escrita não é um mero acaso ou apenas um relato de experiências
compartilhadas por determinados grupos. É como uma afirmação de que há uma intenção,
um desejo que soa dentro de si como forma de se proteger e se mostrar para o mundo
através daquilo que ele é capaz de produzir: o texto. Segue o fragmento:

Estou escrevendo para isso, para estar à superfície. Estou munido da


coragem e humildade que exigem os encontros. Encontrar-me na
superfície, botar minha cara, assim, é o que quero. Estar senhor de mim
mesmo, com minha burrice e minha inteligência, desenrustido, na cara
da vida.
Faço isso para desanuviar-me um pouco da Cabeça, dessa quantidade
de homens que por natureza me enrustem, me levam um pouca mais
para o fundo sem que tenham intenção, sem culpa, inocentemente, sem
ao menos se dar conta disso (CAPUCHO, 2007, p. 30)

Em nenhum momento do segundo romance de Capucho o personagem-narrador


diz ser quem escreve a história. Não tem nada que deixe claro se a história é contada
oralmente ou textualmente. O único momento em que essa informação nos é fornecida
nos permite interpretar que se trata do autor, na voz do narrador, dando intenção para
aquilo que está sendo registrado como história em seu livro. Veja bem, o personagem diz
que escreve para estar à superfície, para ser visto, retomando dois aspectos que ficam
claros tanto em Rato quanto em Cinema Orly: seus personagens são invisíveis enquanto
sujeitos, de forma que só podem vivenciar o desejo, o afeto e o amor no subsolo ou nas
sombras da cidade. O protagonista, que se chama de Rato, mune-se de coragem para se
expor da forma que pode: através da escrita, assumindo o que há de bom e ruim em si
próprio, apesar daqueles que o “enrustem”, prendem-no e o impedem de trazer suas
vivências à luz. Com isso, Luís Capucho parece se vincular a sua ficção para dar mais
vida a sua narrativa, de modo que seus personagens e o universo subjetivo em que eles
92

vivem possam dar visibilidade às suas complexidades. Esse movimento mostra como o
autor se mantém em um limiar entre ficção e realidade, colocando em xeque

o que os modernos já faziam: a visão de um eu puro que contava sua


vida de forma clara, concisa e direta para seu leitor que o percebia
inteiro. O que no modernismo eram artifícios literários para separar vida
e obra, na contemporaneidade continua a ser um artifício, mas com um
interesse muito maior sobre a ficção como forma de criticar a realidade
(CAMARGO, 2010, p. 172).

Luís Capucho, diante dos fragmentos expostos e das reflexões que fizemos, busca
em seu trabalho criar essa dramatização de si, vinculando suas experiências reais com
ficção, o que gera ambiguidade em seus textos literários. A questão da temática não se dá
por simples coincidência ou necessidade de relatar memórias e experiências, mas se
apresenta, assim como afirma Antônio de Pádua Dias da Silva (2012, p. 95), como um
projeto de autoria. Capucho estabelece uma estética que brinca com o sublime e o
grotesco, narrando sobre um mundo que era tratado como submundo no final do século
XIX e início do XX. O fato de falar sobre pegações, sexo em lugares escondidos e
relacionamentos efêmeros, e de utilizar um vocabulário que pode não agradar os mais
tradicionais/conservadores, não é sinônimo de pobreza literária; é a estética que ele, como
autor, decidiu dar aos seus textos.

PALAVRAS FINAIS

O nosso trabalho, que se dividiu em três partes, buscou criar uma relação entre
suas divisões para mostrar como elas, fazendo parte de um todo, dialogam entre si. No
primeiro capítulo nós tentamos mostrar, a partir do livro Devassos no Paraíso, de João
Silvério Trevisan, como a sociedade brasileira lidou com a relação entre pares desde que
os portugueses, com suas crenças e ideologias, chegaram aqui. Como pudemos ver, apesar
daqueles que já viviam nessas terras lidarem, geralmente, de modo natural com aqueles
que tinham relações homoeróticas, os portugueses, através da força, foi aos poucos
inserindo socialmente o seu olhar e seu modo de lidar com as coisas que existiam no
mundo. Sua ideologia, que então se manteve dominante, se infiltrou também na literatura,
outro instrumento que serviu, e ainda serve, como forma de reproduzir e sedimentar as
relações de poder que existem na sociedade.
93

Desse modo, se voltando de fato para literatura, nós discorremos sobre como a
relação homoerótica nos textos brasileiros foram representados por estereótipos, de modo
que não davam espaço para que a subjetividade desses sujeitos aparecesse de forma digna.
Eram raros os escritores que tinham essa preocupação de não reproduzir em seus escritos
o olhar que a sociedade tinha para com essas pessoas, e os que ousaram tentar quebrar
esse ciclo não tiveram espaço dentro do cânone brasileiro para fazer ecoar sua voz. Esse
cenário só foi mudar no final do século XX, com o aparecimento de escritores que tinham
um posicionamento mais contundente em relação a essa temática, e com as mudanças
ocorridas por conta dos movimentos sociais e da influência que suas lutas tiveram na
sociedade, na mídia e até mesmo nos meios acadêmicos. Não à toa, é também a partir daí
que se começou a problematizar o cânone, no intuito que este fosse mais democrático ou
que criassem listagem alternativas a ele. Com isso, escritores que antes eram
marginalizados puderam lograr ao status de canônico, ou ao menos ter mais visibilidade
no meio literário. Porém, a crítica que nos propomos fazer foi a de questionar o porquê
de só depois de todos esses séculos esses escritores ganharem espaço para que suas vozes
fossem ouvidas. Chegamos à conclusão, a partir de Flavio Kothe (2000) e Roberto Reis
(1992), que esses autores, assim como suas narrativas, em determinada medida, deixaram
de representar perigo às estruturas que formam o cânone. Essa nossa percepção fica mais
evidente quando comparamos escritores como Silviano Santiago e Caio Fernando Abreu
ao Luís Capucho, já que, tendo os três se debruçado a narrar sobre o amor entre iguais, a
principal linha que os separa é o da classe social: enquanto Caio e Santiago pertencem a
uma elite cultural e narram, geralmente, sobre personagens que estão inseridos
nessa realidade, Capucho vem de um outro lugar e dá espaço para vozes que costumavam
aparecer na literatura. Nesse sentido, não é por acaso que esses escritores hoje têm mais
visibilidade enquanto outros, como Luís Capucho, se mantêm silenciados.
Quanto a questão da autoficção e da perfomance de si em Luís Capucho, o nosso
intuito foi contrapor o argumento que envolve a referencialidade em seus textos, pois ao
apontar esse dado, os críticos indiretamente estão dizendo que as obras literárias do autor
se aproximam apenas do puro relato, tomando distância do que é considerado literário.
Nós mostramos que a relação que o escritor faz entre a ficção e realidade, criando uma
narrativa que traz traços cotidiano e, consequentemente, carregando em si de fato uma
referencialidade a vida do escritor, não se dá para que sua literatura seja enquadrada
apenas como um relado da sua vida pessoal, mas sim para gerar um efeito performático
em sua escrita. Com isso, nós buscamos contrapor o argumento de que não há trabalho
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estético nos textos de Capucho, já que tanto a referencialidade como a ambiguidade


gerada entre o real e o ficcional se mostra como efeito dentro e fora do texto gerado
intencionalmente pelo autor.
Dessa forma, pensando que Luís Capucho trás para literatura brasileira
personagens que até então não haviam sido representados, bem como se utiliza de uma
dramatização de si para compor suas narrativas, acreditamos que o discurso de que sua
obra se mostra menor por conta da referencialidade perde força, pois é exatamente ela
que faz com que o seu texto tenha o adjetivo que os críticos defensores do cânone gostam
de utilizar: “originalidade”. Com isso, acreditamos ficar clara que a invisibilização de
trabalhos como do autor que nos detemos a analisar se dá não por uma questão de
qualidade, mas sim porque é um texto que aborda personagens e um tipo de narrativa em
que o cânone, assim como a sociedade, tenta apagar. A sua temática, bem como o seu
texto, se estrutura de modo que vai contra o que o cânone defende, e que não pode ser
assimilada por esse sistema, pois ainda não há interesse em possibilitar a entrada de obras
e de personagens como os que Luís Capucho costuma narrar. Nesse sentido, fica evidente
que essa seletividade é como se indiretamente nos fosse dito que existem autores e
determinadas narrativas de temática homoerótica que tem passabilidade para compor a
historiografia do cânone, enquanto outras não.
Apesar dessa negativa às obras de Capucho, o autor, assim como suas narrativas,
se colocou à superfície, desejo, inclusive, expostos por seus personagens. Seu primeiro
livro, Cinema Orly, foi uma obra que circulou de mão em mão, conseguindo ir para além
do Estado do Rio de Janeiro. Tendo conseguido quebrar essa barreira, o escritor
conseguiu publicar seu segundo livro, Rato em uma grande editora, no caso a Roco, fato
que mostra a maturidade de seu trabalho. Hoje, mais conhecido dentro do espaço
acadêmico e cultural, ainda existem poucos estudos sobre o seu trabalho, seja no âmbito
da literatura ou da música. Nesse sentido, não esperamos que esse tenha sido um trabalho
conclusivo ou que aponte certezas inquestionáveis acerca de suas obras, mas que sirva
como contribuição para os estudos que abordem o autor e/ou o homoerotismo.
95

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