Homoerotismo e Cânone Literário A Subjetivação Homoerótica Na Obra de Luís Capucho
Homoerotismo e Cânone Literário A Subjetivação Homoerótica Na Obra de Luís Capucho
Homoerotismo e Cânone Literário A Subjetivação Homoerótica Na Obra de Luís Capucho
NITERÓI - RJ
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
SANDRO ARAGÃO ROCHA
NITERÓI - RJ
2020
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2020.m.14275450736
CDD -
BANCA EXAMINADORA
NITERÓI
2020
AGRADECIMENTOS
Na pesquisa temos como proposta trabalhar com duas obras do escritor Luís
Capucho: Cinema Orly (1999) e Rato (2007). Os dois romances, escolhidos por terem
tido uma circulação de público mais ampla e terem entre si maior aproximação através
do seus personagens e narrativa, contam a história de um personagem que só tem a
possibilidade de vivenciar suas experiências de desejo e afeto em espaços públicos:
cinema pornô, terrenos baldios, banheiros públicos. Com o objetivo de analisar como se
dá a representação das relações homoeróticas na escrita de Capucho e como o escritor se
utiliza de uma perfomance de si (“autoficção”) para ficcionalizar e dar vida as suas
narrativas, faremos uma breve retomada histórica de como essa forma de relação foi
representada na Literatura Brasileira, além de refletirmos sobre a relação entre o cânone
e o homoerotismo, buscando clarificar como o cânone literário costuma se utilizar de
falsos pressupostos para marginalizar literaturas como as de Luís Capucho. Como base,
utilizaremos bibliografias/teóricos de áreas da teoria literária, sociologia, estudos de
gênero, história, configurando nosso trabalho como uma pesquisa bibliográfica.
This research has the purpose of working with two novels from the author Luís
Capucho: Cinema Orly (1999) and Rato (2007). Both novels, chosen for having a broader
public circulation and having among them a closer proximity through their characters and
narrative, tell the story of a character who can only experience his desires and affection
in public spaces such as adult movie theatres, empty lots, public restrooms. With the goal
of analysing how the representation of homoerotic relationships are portrayed on
Capucho’s writing and how the author makes use of a Performing the Self (“autofiction”)
to fictionalise and give life to his narratives, a short historical panorama on how this
relationship was represented on Brazilian Literature will be done, besides reflecting on
the relationship between the canon and the homoeroticism, clarifying on how the literary
canon is used to use of false assumptions to marginalise literatures such as from Luís
Capucho. As basis, bibliographies/theorists of the areas of Literary Theory, Sociology,
Genre Studies and History will be used, classifying this work as a bibliographical
research.
INTRODUÇÃO....................................................................................................9
PRIMEIRO CAPÍTULO
1. HOMOEROTISMO NO BRASIL.......................................................................13
1.1. Um panorama homoerótico na cultura brasileira: João Silvério Trevisan e seu
Devassos no Paraíso........................................................................................................13
1.2. A representação homoerótica na literatura brasileira: um vazio discursivo entre o
século XIX e o fim do XX................................................................................................25
SEGUNDO CAPÍTULO
TERCEIRO CAPÍTULO
INTRODUÇÃO
Em nossa pesquisa iremos trabalhar com duas obras literárias do escritor capixaba,
naturalizado em Niterói, Luís Capucho: Cinema Orly (1999) e Rato (2007). Esses dois
romances contam a história de um personagem que vive as possibilidades de desejo e
afeto homoerótico em diferentes espaços: em um cinema pornô, na “cabeça de porco”,
onde mora com a mãe, em terrenos baldios, banheiros públicos, entre outros lugares.
Além de nos levar a refletir, juntamente com o personagem, sobre o cotidiano, as
identidades e os espaços na qual se tece as relações narradas pelo escritor.
As obras de Luís Capucho trazem em seu bojo um aprofundamento da
representação das relações homoeróticos, articulando experiência vivida com ficção. O
escritor, para nós, merece atenção especial por trazer para o universo da literatura uma
estética que contempla personagens que se mantinham, até então, no que socialmente se
tratava como “submundo gay”. Nesse sentido, através do trabalho com as palavras,
Capucho traz à superfície narrativas que até então se mantinham ocultas. Por conta desse
motivo nos interessamos em pesquisar sobre a literatura desse autor: sabendo que seus
romances, tendo em vista a forma adotada por sua escrita, tal qual o tema abordado, não
se enquadra no que é contemplado pelo cânone literário, o que faz suas obras serem pouco
estudadas no âmbito acadêmico, assim como a sua temática — o homoerotismo —.
Decidimos abarcar apenas seus dois primeiros romances por serem os que tiveram uma
circulação de público mais ampla e por terem uma narrativa e personagens que se
complementam e geram, a partir das nossas análises, maior aproximação entre as duas
obras. Desta forma, a pesquisa aqui proposta se mostra um ambiente fértil não só por
ainda ser pouco explorada, mas também para que se possa levar para dentro da academia
outras perspectivas, outras lentes e outras identidades aos estudos literários,
principalmente se pensarmos que estamos vivendo em um momento político que cada vez
mais busca silenciar as vozes com as quais decidimos trabalhar na dissertação.
Na pesquisa faremos uma breve retomada histórica com base no livro Devassos
no Paraíso, de João Silvério Trevisan, mostrando como os homens e mulheres que tinham
desejos por pessoas do mesmo sexo eram vistos/tratados socialmente, desde o período
colonial até os dias atuais, para, posteriormente, analisarmos como a construção quanto a
relação entre pares influenciou na forma como a literatura representou o
homoerotismo/pessoas homossexuais, sabendo que a abordagem dessa temática na
literatura nacional, por muito tempo, refletiu o modo como a sociedade tratava os
10
PRIMEIRO CAPÍTULO
13
1. HOMOEROTISMO NO BRASIL
Na primeira parte deste capítulo, faremos uma revisão histórica a partir do livro
Devassos no Paraíso (2018), de João Silvério Trevisan, tendo em vista a completude
dessa obra quanto à reconstituição da história da homossexualidade no Brasil. Dessa
forma, as análises e discussões trazidas por Trevisan serão de grande importância para a
temática da nossa pesquisa, uma vez que o livro aborda a maneira como as relações
homoeróticas e os homossexuais vêm sendo tratados no Brasil desde o período colonial
até a contemporaneidade. Esse panorama traçado por Trevisan sobre a cultura brasileira
nos ajudará a compreender melhor, por exemplo, o modo como a crítica literária e o
cânone lidaram ao longo dos séculos com a temática do homoerotismo, assim como nos
permitirá pensar de forma mais abrangente sobre a representação homoerótica dentro da
literatura brasileira; assuntos que discutiremos detalhadamente mais à frente.
Agora, entrando de fato em Devassos no Paraíso, João Silvério Trevisan abre as
portas do paraíso, criando um panorama de como o brasileiro, em geral, lida de forma
paradoxal com assuntos que se referem à sua própria sexualidade, apontando para um
conservadorismo que se detém apenas na superfície. Ao analisar dados de pesquisas
realizadas entre 1986 e 1996, ao contrário do estereótipo de “brasileiro fogoso” e da
imagem do Brasil difundida pela televisão por celebridades como Carla Peres, a rainha
do bumbum, o perfil sexual tradicional da população brasileira se torna evidente.
44% das pessoas entrevistadas afirmaram nunca ter praticado sexo anal.
Se a relação sexual pré-marital foi uma prática admitida por 67% das
pessoas, em contrapartida só 39% se julgavam totalmente liberadas,
enquanto 43% ainda consideravam a virgindade feminina como
necessária antes do casamento, e apenas 31% das mulheres admitiam ter
orgasmo costumeiro. Se a masturbação foi considerada saudável por
63%, na prática ocorria outra coisa: boa parte da população entrevistada
se masturbava pouquíssimo e 18% afirmaram nunca ter se masturbado na
vida (Folha de São Paulo, 1998, p. 4-11 apud TREVISAN, 2018, p. 18)
Os dados dessa pesquisa mostram que há uma defasagem entre o que era dito e o
que realmente era feito, salientando, como veremos mais à frente, uma característica da
sexualidade no Brasil.
14
Ainda nessa mesma pesquisa feita pelo Datafolha, “apenas 14% dos homens e
5% das mulheres admitiram já terem tido relações homossexuais, ao mesmo tempo que
70% afirmaram não sentir nenhuma atração por gente do mesmo sexo” (idem, 2018, p.
20). Além disso, outro resultado interessante se refere a união estável e adoção entre
pessoas do mesmo sexo: 54% das pessoas disseram ser contrárias à legalização da união
estável e 62% foram contra a adoção de crianças por homossexuais. Treze anos depois,
em 2011, foi feita uma nova pesquisa, agora pelo Ibope, após a aprovação do Supremo
Tribunal Federal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O avanço referente à
pesquisa anterior foi ínfimo, mostrando que o conservadorismo quanto a relações
homossexuais ainda pairava sobre a sociedade brasileira: 55% dos brasileiros eram contra
a decisão do STF e 55% eram contrárias à adoção de crianças por casais homoafetivos1.
Nesse período, apesar do resultado da pesquisa marcar uma negativa quanto aos
direitos dos homossexuais, a mídia apontava que a sociedade já lidava melhor com o amor
entre iguais. No entanto, tal condescendência imputava certos critérios: que fosse uma
homossexualidade higienizada, sem qualquer característica de “rebeldia”. Esse
julgamento, chamado por Trevisan de cooptação, mostrava que os brasileiros reacionários
não aprovavam completamente a medida, embora a união civil entre pessoas do mesmo
sexo, amplamente abordada pela mídia, fosse bem-vista no âmbito internacional até
mesmo pelos setores conservadores. “Como essa ‘integração’ resultava de um
beneplácito concedido pela sociedade ‘civilizada’, a reprovação continuava latente,
pronta para disparar a condenação moral no momento oportuno” (TREVISAN, p. 21).
Exatamente por isso, apesar de já serem reconhecidos legalmente, os casais homossexuais
continuaram proibidos de adotar crianças por um longo tempo.
É possível concluir, portanto, que, embora superficialmente se observasse uma
conduta de aceitação, tratava-se apenas de um tipo de tolerância que as sociedades sempre
concederam a grupos que lhes servissem como bodes expiatórios em períodos de crise e
mal-estar. A homossexualidade — assim como, no passado, o judaísmo e, ainda hoje,
etnias minoritárias, por exemplo —, serve, nas palavras de Trevisan (2018, p. 22), como
um desses “reservatórios negativos”. A tolerância para com esse grupo varia de período
1
A pesquisa mais recente que encontramos sobre a opinião dos brasileiros quanto ao casamento
igualitário foi referente ao ano de 2015, na Revista Exame. Os dados, coletados pela empresa Hello
Research, reitera o que já foi apresentado aqui: 21% se declara indiferente a união entre pessoas do mesmo
sexo e 30% é a favor. 49% dos brasileiros são contra essa forma de união.
15
Além dessa culpabilidade, Susan Sontag aponta que, no fim do século XX,
contrair o HIV era o mesmo que precisamente descobrir, ao menos na maioria dos casos,
que se fazia parte de um “grupo de risco”, de uma comunidade de pessoas que são tratadas
como párias. Essa doença, naquela época, pressupunha uma identidade que se desejava
manter oculta dos vizinhos, da família, dos amigos, levando as “pessoas a serem
16
lar por meio de prescrições científicas e cuidados mais eficazes, do ponto de vista da
educação e da saúde. Foi dessa forma que se criou o “médico-higienista”, figura usada
pelo Estado para penetrar no interior das famílias através do especialista em higiene.
Dessa forma, é possível tirarmos duas conclusões: primeiro, por mais que a
homossexualidade fosse categorizada pela medicina como uma patologia, ela ainda assim
era olhada pelo viés da criminalidade, como se o indivíduo que tivesse desejo por uma
pessoa do mesmo sexo estivesse cometendo um ato ilícito; segundo, a homossexualidade
se configurava como um problema somente no caso daqueles que a expunham
publicamente. Ou seja, o homossexual recatado, ou higienizado, que vivia socialmente
sem agredir a norma, não era merecedor de punição alguma, ainda que, mesmo assim,
devesse ser mantido sob vigília social.
Depois desse percurso feito desde o século XVI até o XIX, entrando na parte V
do livro, João Silvério Trevisan expõe a maneira como a homossexualidade apareceu nas
artes brasileiras, atravessando a literatura, a música, o cinema e o teatro.
Na literatura brasileira, as primeiras referências homossexuais que se conhecem
estão na obra de Gregório de Matos, nascido na Bahia no século XVII. Conhecido como
Boca do Inferno, o poeta baiano satirizou diversas pessoas que tinha como inimigos. Em
algumas dessas sátiras havia um teor claro de expressão homoerótica, como é o caso do
poema sobre o provedor da Casa da Moeda de Portugal, cujo título é “Marinícolas”,
mesclando o nome Nicolau com a palavra maricas. O poema:
começa por aludir de forma maldosa às ‘tão belas partes’ desse ‘ninfo
gentil’, que tem ‘humor meretriz’ e, portanto, prefere olhar as calças em
vez das toucas: ‘dado às lições [...] de pica viril’. Surpreendentemente,
alude ao fato de que o tal sr. Nicolau ‘alugava rapazes ao povo’,
montando tenda e escrevendo numa tabuleta: ‘ordenhadores se alquilam
aqui’ – em referência ao prazer ejaculatório que podiam provocar nos
homens (idem, 2018, p. 238).
21
Luiz, ha ahi não sei que no meu coração que me diz que talvez tudo
esteja findo entre nós. [...] Ha em algumas das minhas cartas a ti uma
historia inteira de dous annos, uma lenda, dolorosa sim, mas verdadeira,
muito verdadeira, no seu pungir de ferro, como uma autopsia de
sofrimentos.[...] Luís, é uma sina minha que eu amasse muito e que
ninguém me amasse. [...] Adeus, meu Luiz. A belleza do espiritualismo
é o amor das almas — essa afinação que as palpita unisonas par a par
ainda na separação, ainda quando os sentidos que nos ligão á matéria
não tactêão mais o objecto que se ama. Adeus. Assim como eu te amo,
ama-me. Não esqueças entre tuas campinas do Rio Grande, ao riso de
labios de rosa onde se desvelão perolas, das tuas patricias bellas
(AZEVEDO, 1862, p. 52 - 56).
É claro que pensar Álvarez de Azevedo como homossexual, ou que seus textos
aludiam de alguma forma ao seu desejo reprimido, não resulta de pura curiosidade, pois,
confirmada sua homossexualidade, é possível ler sua obra a partir de uma outra ótica, ao
contrário do que alguns de seus biógrafos, segundo Trevisan (2018), diziam: que a
informação sobre sua sexualidade não era importante, já que o poeta poderia sofrer
“inferências injuriosas”.
No próximo subcapítulo, iremos nos aprofundar nas demais obras de caráter
homoerótico da literatura brasileira. Sendo assim, seguiremos com os apontamentos de
João Silvério Trevisan (2018) sobre a representação dessa temática em outras áreas da
arte.
No teatro brasileiro, o primeiro registro que se tem de abordagem da experiência
homoerótica está em A separação de dois esposos (1866), de José Joaquim de Campos
Leão, o famoso Qorpo Santo. Na peça, o teatrólogo insere dois personagens chamados
Tatu e Tamanduá, que, diante dos patrões que haviam acabado de se matar para poderem
22
ficar juntos “para sempre”, discutem sobre sua própria relação. Tamanduá, por não querer
Tatu apenas “platonicamente”, mas carnalmente, inicia uma discussão, já que Tatu diz
não querer suprir os desejos do “amigo” por se tratar de um pecado diante dos olhos de
Deus. Durante o bate-boca, os dois se engalfinham aos xingos e começam a rasgar a roupa
um do outro, fazendo alusão a um desejo ambíguo: ao mesmo tempo que sabem ser
proibido, acabam se deixando levar involuntariamente pela vontade carnal.
No início do século XX, o modernista Oswald de Andrade chegou a narrar sobre
personagens homossexuais em muitas de suas peças. A questão era que essa representação
estava calcada no preconceito. Um exemplo é sua peça O rei da vela (1933), em que um
personagem chamado Totó Fruta-do-Conde se coloca na vida como um fracassado. Pelo
nome do personagem e por esse fracasso recair logo ao personagem homossexual da peça,
algo que inclusive era muito comum nas narrativas da época, é possível perceber o ar de
deboche quanto à condição sexual do personagem.
Algumas décadas mais tarde, em 1970, acontece o nosso “boom gay”. Se antes,
em geral, a temática da homossexualidade aparecia apenas de forma dúbia, agora nós já
podíamos vê-la de forma mais escancarada. Trevisan se centra nas figuras de Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Ney Matogrosso para mostrar como esse boom
mudou o cenário artístico no Brasil. Focalizando Ney, Trevisan (2018) irá dizer que o
músico, muito parecido com os artistas do grupo Dzi Croquettes, colocava em cheque o
que se entendia como masculino e feminino. O próprio Ney Matogrosso, em entrevista,
dizia: “sou uma pessoa que tem emoção e sensibilidade, e me orgulho de não ter que
escondê-las. Eu manifesto. Agora se, dentro dos padrões, isso é feminino, caguei”
(MATOGROSSO apud TREVISAN, 2018, p. 276).
Já no teatro, uma das peças que mais fez sucesso foi Greta Garbo, do autor
Fernando de Melo. Tendo vários de seus trabalhos censurados pela ditadura, exatamente
por conta da temática homossexual, o autor conseguiu passar pelo filtro e, inclusive,
conquistar sucesso internacional com Greta Garbo. A grande questão, recorrente na
maioria das produções dessa época, é que tanto as peças quanto o cinema nacional se
voltavam para o consumismo, acreditando ingenuamente que dessa forma conseguiriam
disseminar na sociedade a ideia de que ser homossexual também é normal. Nas palavras
de João Silvério Trevisan:
o dr. Amato conclamava aos órgãos de saúde e higiene para agirem com
‘a ênfase devida’, ao invés de ‘apoiar irregularidades, como os atos
sexuais anormais e os vícios’. Afinal, ‘aceitar que cada um tem o direito
de fazer o que desejar com o próprio corpo é convicção plena de
responsabilidade’, dizia ele. E terminava sugerindo ironicamente que se
deveria passar o cuidado dos doentes para os defensores desse direito, ou
seja, as ‘organizações de homossexuais, bissexuais e drogados’. (2018,
p. 413)
Discursos como esse ganhou eco durante a epidemia, tendo inclusive sugestões de
castração, proibição da homossexualidade e fechamento de locais voltados para o público
gay. Todo esse pânico criado em torno da doença fez com que saunas fossem fechadas,
prostíbulos tivessem uma diminuição drástica de clientes e homens gays deixassem de se
relacionar com outros homens para se casarem com mulheres, simulando assim uma vida
24
heterossexual, pratica que, inclusive, ocorre até hoje por motivos diversos. Começou-se
um movimento de negar os próprios desejos, já que se acreditava que o HIV estava
estritamente ligado ao sexo entre homens.
Foi também nesse período que começou a surgir uma grande onda de violência
contra homossexuais e travestis, sendo comuns frases como “mate um homossexual”,
“morte aos judeus, negros e gays” e falas como “para mim, a melhor solução é matar.
Não pode machucar, não. Tem de eliminar” (Idem, 2018, p. 416).
Mais para o fim do século XX, com o aumento de casos entre mulheres
heterossexuais e com a pressão de ativistas e soropositivos para a criação de políticas
públicas mais eficazes contra o avanço do HIV/Aids, o Governo Federal criou programas
de prevenção e setores especializados para atender os portadores do vírus, aumentando a
sobrevida da população que convivia com o HIV/Aids, principalmente daqueles que
pertenciam às camadas mais pobres da sociedade.
Controlado esse “mal” e o pânico da população, galgaram-se alguns avanços
quanto aos direitos homossexuais. Trevisan, nesse último capítulo, pergunta-se:
“pensando em termos de balanço final, o que de fato se ganhou?”. De forma talvez não
muito esperançosa, ele responde:
visibilidade hoje do que já teve no passado, esses ganhos de direitos são muito discutíveis.
Inclusive porque essa “aceitação” por parte da sociedade só contribuiu para que o direito
à diferença dentro da comunidade diminuísse, criando, assim, padrões de homossexuais
que são socialmente aceitos, não só para a sociedade, mas também dentro da cultura gay
— quanto a esses padrões, nos aprofundaremos melhor ao discutir as obras de Luís
Capucho, já que ele põe em cheque a construção de uma identidade gay higienizada,
narrando sobre personagens que geralmente são mais invisibilizados socialmente e dentro
do próprio movimento LGBTI+.
Dessa forma, a partir do caminho traçado em Devassos no Paraíso por João
Silvério Trevisan, podemos perceber que, desde a chegada dos europeus ao Brasil até a
contemporaneidade, toda e qualquer prática homoerótica foi sistematicamente reprimida.
No decorrer dos séculos criaram diferentes discursos e instrumentos para tentar expurgar
o desejo que ainda hoje é considerado como desviante e não natural. Nesse sentido, o que
concluímos a partir de todos os conflitos no Brasil motivados pela sexualidade do seu
próprio povo é que se estruturou um movimento de repressão, não só no âmbito do
convívio social, mas também nas produções artísticas. A representação homoerótica
dentro das artes só era permitida se reforçasse o estereótipo do risível ou caso se
apresentasse de forma tímida e cifrada. Na literatura, obviamente, não foi diferente, pois
os críticos literários rasuravam, na maior parte das vezes, qualquer obra ou autor que
expusesse experiências homossexuais. Por conta disso, a representação homoerótica no
Brasil, durante muito tempo, pairou no que Mario Cesar Lugarinho (2008) chamou de
“vazio discursivo”, pois, apesar de, inclusive no modernismo brasileiro, produzir-se
trabalhos que abordassem o amor entre pares, a maior parte deles não trazia personagens
que dessem vazão a uma profunda subjetividade homossexual, criando a possibilidade,
assim, de reformular-se o olhar que se tinha sobre a experiência homoerótica.
A identidade dessa nação que estava por se constituir passou a ser pensada pelas
elites que almejavam ir ao encontro do que se via no “velho continente”, mesmo que esse
desejo não estivesse de acordo com o olhar do próprio europeu para a Europa no período
de modernização. Assim, como aponta Richard Miskolci (2012), enquanto no continente
europeu “se temia as consequências da modernização, aqui nós a desejávamos, pois nosso
inimigo era nosso passado, associado ao atraso, à natureza e aos instintos” (p. 23). Para
esta elite, esse atraso era a própria população brasileira.
Dessa forma, acreditou-se que o Brasil só conseguiria se estabelecer como uma
nação forte caso se assemelhasse aos seus antigos colonos, mantendo a ordem branca e
masculina. Qualquer característica ou traço que divergisse dessa norma, como os
identificados em negros, mulheres e homossexuais (nomenclatura recentemente criada
naquele período), era visto como uma ameaça. Ironicamente, foi nesse período, fins de
século XIX, que surgiu a considerada primeira literatura gay no Brasil: Bom-Crioulo
(1985), romance do escritor Adolfo Caminha. Narrativas como essa, que, com os anos,
passaram a ser cada vez mais frequentes, debruçavam-se no intento de descrever parte
daquilo que também era a sociedade, servindo como um reflexo que a obrigasse a olhar
para si mesma. Esse momento ficou conhecido como naturalismo.
Bom-Crioulo conta a história do marinheiro negro Amaro, que no desenvolver da
narrativa se apaixona pelo jovem marinheiro branco Aleixo. O protagonista, tomado pelo
sentimento, inicia o menino sexualmente, forçando-o a ter relações homoeróticas. O livro,
apesar de muito transgressor para sua época, trata a questão como algo não natural, o que
se mostra evidente no fim da narrativa. Aleixo, após conhecer uma senhora apresentada
por Amaro, acaba “desenvolvendo seus instintos naturais de homem” e passa a ter
relações com a mulher, culminando no desfecho: Amaro mata Aleixo movido pelo ciúme.
Foi também no século XIX, mais especificamente em 1869, que se originou a
palavra que daria nome ao desejo das pessoas que, naquele período, se envolviam entre
pares: “homossexualismo”. Antes disso, o termo “homossexualismo” foi criado devido a
uma necessidade de classificar a pederastia como crime, dando margem para apropriação
da nomenclatura pelo discurso médico ainda no mesmo século. Tal classificação teve o
intento de criar uma identidade homossexual a fim de caracterizar um indivíduo que
tivesse esses desejos eróticos como um “invertido sexual”. Isso se tornou necessário após
as sociedades patriarcais começarem a se imaginar de forma dicotômica, homem e
mulher. Segundo Emerson Inácio (2002), no artigo Homossexualidade, homoerotismo e
homossociabilidade: em torno de três conceitos e um exemplo:
27
2
Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual da Paraíba e pesquisador dos Estudos
Homoeróticos.
29
que tolo ele não pode ser. Ou seja, o “moçoilo”, que é objeto do desejo do eu lírico, o vê
como tolo exatamente por ser um homem que deseja outro, apontando que essa forma de
desejo é inconcebível.
Dando continuidade as considerações de Antônio de Pádua Dias da Silva, no
artigo A história da literatura brasileira e a literatura gay: aspectos estéticos e políticos,
defende que o título de obra fundadora da literatura gay se dá por algumas especificidades,
como podemos ver no seguinte fragmento:
3
Em 1914, na revista Rio Nu, foi publicado “O menino do Gouveia”, de autor anônimo, cujo
pseudônimo era Capadócio Maluco. James N. Green e Ronald Polito (2006) colocam esse conto como o
primeiro texto a retratar o homoerotismo de forma pornográfica no Brasil, narrando, inclusive, as relações
homoeróticas sem trazer toda a carga moralista do período em que foi escrito.
30
várias cartas com Manuel Bandeira para dialogar sobre o poema aqui citado, nos quais
Bandeira dizia que o verso, antes da substituição, era impublicável.
Para exemplificar rapidamente o ocorrido quanto à substituição do verso, leiamos
o fragmento do poema de Mário de Andrade (2017, p.205):
não revelo (antes eclipso) o meu segundo amor eterno, mas indico, pelo
contraste entre este verso e os que enquadram, que ele provém de outra
área da experiência, do insólito ou do interdito (um boi que falasse...
afinal, seria a «revolução dos bichos», el mundo al revés). (COSTA,
2009, p. 288)
4
Quanto aos nomes dos autores que citamos, sabemos que hoje a maior parte deles fazem parte
do cânone literário. Porém o que queremos ressaltar é que esses autores só ganharam visibilidade de fato
no fim do século XX, quando o cânone se torna, aparentemente, mais flexível a alguns autores abertamente
32
Dessa forma, fica claro como no Brasil, ao contrário de em outros países, o cânone
não deu espaço para escritores ou textos que não estivessem de acordo com a hegemonia,
algo que Horácio Costa (2010) chamou de “Cânone Impermeável”. No capítulo seguinte
iremos voltar a esse termo e destrinchá-lo melhor, mas, por hora, sigamos refletindo sobre
o homoerotismo no modernismo brasileiro.
Saindo da primeira fase do modernismo e seguindo para a década de 1960/1970,
os personagens homoeróticos ganharam mais representatividade na literatura. Nesse
período, o amor entre iguais finalmente passou a ser narrado, de fato, como amor: “foi
então que aquela coisa que ele mal ousava chamar amor, transformou-se em amor”
(Denilson apud Damata, 1968, p. 265). Foi também durante essa década que eclodiu o
movimento homossexual e que houve a chegada, de acordo com Emerson Inácio (2002),
dos Estudos Gays e Lésbicos no Brasil, o que proporcionou que o olhar negativo sobre a
homossexualidade, que permeou o século XIX e parte do século XX, começasse a ser
desconstruída de forma mais significativa — permitindo, também, recorrência maior do
assunto em trabalhos dentro da academia. Isso propiciou que uma revisão do substantivo
homossexual/gay fosse proposta, sugerindo sua substituição por outros termos que não
trouxessem historicamente os significados e as ideologias pejorativas da palavra em
questão, como, por exemplo, o termo homoerotismo.
Especificamente referente ao homoerotismo, cabe discorrermos sobre o conceito
antes de prosseguirmos, já que o utilizaremos para analisar as obras com as quais iremos
trabalhar. Nesta pesquisa, usamos como base o conceito de homoerotismo apresentado
por Jurandir Freire Costa (1992), no qual José Carlos Barcellos (2006) discorre:
gays e a algumas tematizações das relações homoeróticas. Quanto ao Alvarez de Azevedo, há uma outra
questão: esse autor já fazia parte do cânone literário há muito tempo, porém havia um silenciamento quanto
as discussões que levantavam a possibilidade de o autor ser homossexual.
33
Jurandir Freire Costa apresenta em seu trabalho a maneira como a linguagem está
ligada aos significados que construímos e como ela influencia na imagem que criamos do
outro: “[v]ocabulários diversos criam ou reproduzem subjetividades diversas. E,
conforme a descrição de nossas subjetividades, interpretamos a subjetividade do outro
como idêntica, familiar ou como estranha, exótica e até mesmo desumana” (COSTA,
1992). Ou seja, se pensarmos que a palavra homossexualidade traz em si aspectos que
retomam a imagem já cristalizada de uma identidade homossexual (tratando tal grupo
como homogêneo), repensar esse termo é importante para que se gere outras
possibilidades de subjetividades e outros significados. Assim, “[c]riticar a crença
discriminatória significa, desse modo, criticar também o vocabulário que permite sua
enunciação e que a torna razoável aos olhos dos crentes” (COSTA, 1992).
Tendo em vista essa questão, Jurandir Freire Costa apresenta três principais razões
para o uso teórico de “homoerotismo” em contraponto a “homossexualidade”, devido ao
fato de que o termo: a) refere-se a doença, degeneração, desvio; b) remete-se aos homens
com tendências homoeróticas como se todos tivessem uma mesma essência, uma marca
que os caracteriza simplesmente pelo desejo erótico; c) indica uma identidade única —
ainda que saibamos que a existência de uma pessoa homossexual não a restringe a apenas
uma identidade. Sendo assim, o termo “homossexual” seria mais taxativo e arbitrário, não
contemplando as diferentes experiências vividas por esse grupo. Dessa forma,
“homoerotismo” seria mais adequado, por ser uma terminologia mais ampla e por se
referir não só ao sexo, mas ao desejo, praticado ou não, do homoerótico. Além disso, a
troca do termo homossexualidade por homoerotismo também procura distanciar quem
ouve ou lê essa nomenclatura das noções trazidas pela palavra homossexualidade.
Uma década depois do “boom gay”, como já abordamos anteriormente, eclode a
epidemia do HIV/Aids. Marcelo Secron Bessa (2002), em seu famoso livro Os Perigosos:
Autobiografias e AIDS, diz que, nesse mesmo ano, como uma resposta à epidemia, surgiu
um movimento literário chamado “literatura da AIDS”. “Sob essa alcunha, observa-se,
em diversos países e culturas, toda uma variedade de textos, estilos, gêneros, propósitos
e resultados, muitas vezes diferentes e desiguais, mas que têm algo em comum: a Aids
como tema” (BESSA, 2002, p. 9). A questão do HIV teve tanta repercussão que outros
escritores, que não necessariamente fizeram parte desse movimento literário, também
abordaram a doença.
Um desses escritores é Waldo Motta. Ligado à geração da literatura marginal na
década de 1980, costumava abordar as relações homoeróticas em seus textos. Como já
34
dissemos, durante a pandemia de Aids, ele também chegou a tematizar sobre o vírus em
seus textos, sendo o mais famoso o poema “Nos dias de aids”, publicado no livro Bundo
e Outros Poemas (1996).
No poema, há uma aproximação sonora entre as palavras Aids e Hades, o que nos
traz duas possíveis leituras: de que a doença, na época, era um prenúncio da morte; e de
que, durante a pandemia do HIV, era como viver no próprio inferno. Exatamente por
conta dessas duas possibilidades, os versos seguem com a repetição “é necessário ir ao
Id”, no sentido de que é preciso viver enquanto se pode, imunizando-se do medo e do
ódio como uma subversão ao Hades, aos poderes, para dessa forma depô-lo.
Antônio de Pádua Dias da Silva, no artigo O corpo do poema e os poemas sobre
corpos: derrisão e ambivalência linguística na poesia de Waldo Motta, faz uma leitura
bem interessante do poema em questão:
Outro escritor, e um dos mais conhecidos, que também abordou em seus trabalhos
o HIV/Aids foi Caio Fernando Abreu. Em seus livros Os dragões não conhecem o paraíso
(1988), Pequenas epifanias (1986) — neste, inclusive, encontramos crônicas nas quais
Caio expõe ser soropositivo no jornal O Estado de São Paulo — e Onde andará Dulce
Veiga (1990), aborda de forma direta relações homoeróticas, além de tematizar
personagens com HIV. Em uma entrevista concedida ao Marcelo Secron Bessa (1985a)5,
Caio deixa claro, por trás de suas palavras, como a epidemia do HIV/Aids o influenciou
em sua vida pessoal e, consequentemente, em sua obra: “o que é que se faz quando aquilo
que era possibilidade de prazer — o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de
nos aliviar da sensação de finitude e incomunicabilidade — começa a se tornar
possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação” (BESSA apud
ABREU, 1985, p. 30). Essa afirmação de Caio, cabe dizer, dialoga diretamente com Susan
Sontag, em Doença como metáfora, Aids e suas metáforas, em que ela discorre sobre
como o HIV acaba sendo uma doença que mata o indivíduo socialmente, desumanizando-
o para a sociedade (SONTAG, 2007, p. 108)
Por Caio sempre ter tocado em temas que não eram considerados literários, como
homossexualidade, drogas, sexo, entre outros, o escritor foi mantido à margem da crítica.
Porém, em 1994, após levar ao público sua sorologia, a mídia o colocou em evidência.
“A Aids foi além da literatura de Caio, mas, principalmente, pela mistura e, às vezes,
superposição da vida sobre a obra que a Aids propiciou” (BESSA, 2002, p. 30), e isso
porque, após saber ser positivo, sua vida se tornou mais importante do que sua obra para
os meios de comunicação.
Luís Capucho, autor com o qual trabalharemos na pesquisa, também se debruçou
sobre a temática. Nascido em 1962 no Espírito Santo, na cidade de Cachoeiro do
Itapemirim, mudou-se com sua mãe para Niterói (Rio de Janeiro) aos doze anos, passando
a morar em um cortiço. Oito anos depois, em 1982, iniciou os estudos em Letras na
Universidade Federal Fluminense, espaço onde começou a trabalhar em composições
musicais, tornando-se, antes mesmo de escritor, cantor e compositor. Já formado, passou
a dar aulas na rede pública enquanto construía sua carreira como músico.
5
A informação sobre essa entrevista retirei do artigo do Marcelo Secron Bessa Retrovírus,
Zidovudina e rá! Aids, Literatura e Caio Fernando Abreu, publicado no livro A escrita de Adé:perspectivas
teóricas dos Estudos Gays e Lésbic@s no Brasil (2002, p. 86).
36
Em 1996, em decorrência do vírus HIV (doença crônica que o escritor faz questão
de registrar em sua biografia), Luís Capucho entrou em coma por toxoplasmose,
desenvolvendo sequelas em sua coordenação motora.
Após o coma, veio o período de recuperação, momento em que começou a
produção de seu primeiro romance: Cinema Orly (1999). Aconselhado por uma amiga a
escrever para treinar a coordenação motora, Luís Capucho começou a ficcionalizar suas
experiências. Em uma entrevista concedida ao jornal Pampulha: Seminário de Belo
Horizonte, Capucho comenta como o fato de o movimento de suas mãos estar lento em
comparação ao seu raciocínio facilitava seu processo de escrita, uma vez que tinha tempo
de elaborar bem as frases antes de terminar de escrevê-las. Nessa entrevista, Capucho
(2017) ainda comenta: “naquela época, como achava que ia morrer, dei um grande
mergulho (na escrita). Tão profundo que, na verdade, quase esqueci de mim mesmo”.
Além de Cinema Orly, Capucho também lançou mais três livros: Rato (2007),
Mamãe me Adora (2012) e Diário da Piscina (2017). Além dos livros, Capucho também
compôs álbuns, sendo eles Antigo (1995), Lua Singela (2003) e Cinema Íris (2012).
Como se pode ver a partir desse breve resumo de sua vida e de sua obra, foi quando
Luís Capucho descobriu ser soropositivo que passou a escrever. O impacto dessa
descoberta é perceptível tanto em sua obra literária quanto em sua obra musical, já que
tanto a temática das relações homoeróticas quanto da convivência com o HIV aparece em
seus trabalhos. Desse modo, iremos fazer um breve resumo de seus quatro livros para
contextualizar melhor a relação entre as suas obras e as temáticas abordadas pelo escritor.
Em seu primeiro livro, Cinema Orly, é narrada a história de um personagem que
vive as possibilidades de desejo e afeto homoeróticos no espaço de um antigo cinema
pornô, que se localizava na Cinelândia, cujo nome era homônimo ao título do livro. Leva-
nos a refletir, junto com o personagem, sobre o cotidiano, as identidades e os espaços nos
quais se tecem as relações sociais de um homem gay periférico. Na obra, o vírus HIV
parece pairar como uma sombra dentro do ambiente de pegação, fixando-se sempre no
lugar do não dito. Confiramos o seguinte trecho:
Sempre que saía do Orly estava muito cansado, mas confortado. De lá, ia
direto para casa dormir. Não sentia vontade de ir a bares, boates, cinema
etc. Era uma felicidade estar transformado num personagem do Orly.
Rapidamente me moldei ao modo não muito comum de fazer sexo na
presença dos outros, de necessariamente o sexo não pressupor intimidade
alguma, moldei-me ao fedor, aos filmes, aos clientes, ao anonimato, à
promiscuidade, às poltronas, e curtia, não pensava muito sobre isso. Se
aquilo não era o saudável, era o que eu achava mais possível (Idem, p.
81)
O segundo romance, Rato, tem como protagonista um rapaz que vive com sua mãe
em uma espécie de pensão só para homens. Dentro desse espaço, vemos uma tensão se
construir entre o personagem-protagonista e os outros rapazes, além do surgimento de
uma relação afetiva que, assim como em Cinema Orly, só é possível ocorrer em espaços
públicos: ruas, casas abandonadas e terrenos baldios.
Mamãe me adora, terceiro livro de Capucho, centra-se na relação do protagonista
com sua mãe, e narra a viagem que os dois fazem do Rio de Janeiro para Aparecida do
Norte. Nesse livro a convivência do personagem com HIV aparece de forma direta.
E em Diário da Piscina, último livro do escritor até o momento, temos um texto
ficcional em formato de diário. Um registro de todas as idas do personagem Claudio à
piscina a fim de melhorar sua coordenação motora. Aqui também temos a temática do
HIV sendo tratada de forma mais explícita, já que o personagem ainda está se recuperando
das sequelas motoras que a toxoplasmose, devido ao quadro de Aids, o causou. Além
disso, esse livro recupera alguns aspectos de Cinema Orly, que é transformar os corpos
38
Como podemos ver, apesar de haver essa divinização dos corpos, assim como do
cinema, Luís Capucho trabalha com uma imagem que traz o sublime e o grotesco. Ao
mesmo tempo que o Cinema Orly é sujo, é o lugar onde ele se lambuza e que abençoa
esse amor que lhe traz prazer. Ao mesmo tempo que o que era animal se torna humano, o
que é divino passa a ser mundano. É interessante que Capucho, ao expor em sua narrativa
a divinização desses corpos, mostre que aquilo que poderia ser visto como sujo pode ter
outra característica em outras experiências.
Apesar de termos feito essa breve análise comparativa entre os romances de Luís
Capucho, iremos explorar apenas os dois primeiros livros, ainda que achemos importante
apresentar os dois últimos, tendo em vista que suas quatro obras, de alguma maneira,
complementam-se, dando mais corpo e unicidade à representação homoerótica dentro de
seu trabalho.
Quanto à rápida linha cronológica dos escritores e obras que abordaram a relação
homoerótica no Brasil, tendo em vista um silenciamento discursivo até o fim do século
XX, esperamos que tenha ficado claro como até meados da década de 1970/1980 não
tivemos muitos escritores que abrissem espaço para uma literatura que permitisse o
aprofundamento da subjetividade de personagens homossexuais. Esse cenário só começa
a mudar com o aparecimento de escritores como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu,
João Gilberto Noll, Lúcio Cardoso, Waldo Motta, Hilda Hilst, entre outros, que ganharam
espaço dentro do cenário literário nacional, quebrando a barreira, em certa medida, do
cânone literário, e cujas obras não transformam os personagens homossexuais em uma
mera representação. Isso nos remete de volta ao que Mário César Lugarinho defende
como literatura de subjetivação.
Ao contrário da literatura de representação, que não permite o aprofundamento
dos personagens — repetindo os estereótipos quanto ao olhar para o desejo homoerótico
—, a literatura de subjetivação transpassa esse estigma, trazendo para a narrativa uma
pluralidade quanto a essa forma de desejo, não singularizando o personagem
homossexual, mas dando a ele possibilidades diversas para além de uma representação
40
rasa. Os escritores que citamos acima se encaixam exatamente no que Lugarinho diz ser
uma literatura de subjetivação, pois quebram o silêncio discursivo que se instaurou na
literatura brasileira quanto à temática homoerótica. Esses, os escritores, não só
representam a relação entre pares, como também problematizam o olhar da sociedade
para esse tipo de desejo/amor, impedindo que a homossexualidade seja fixada a uma única
identidade.
O trabalho de Luís Capucho também se encaixa nesse tipo de literatura defendida
por Lugarinho, já que em sua narrativa há o movimento de pluralizar as relações
homoeróticas, bem como a representação da homossexualidade. Porém, quanto a alguns
aspectos, ele vai além: Capucho, de acordo com Mário César Lugarinho (2008), é o
primeiro escritor a trazer homossexuais que vivem ainda mais à margem da sociedade
para as páginas da literatura brasileira. Seus personagens só têm a possibilidade de
experimentar seus afetos e desejos em espaços como banheiros públicos, cinemas pornôs
e terrenos baldios, longe dos olhos de todos.
Além disso, ao contrário de escritores como Silviano Santiago e Caio Fernando
Abreu, Luís Capucho vem de origem pobre, vive experiências afetivas e de desejo
homoeróticos parecidos com os de seus personagens e produz uma escrita sem a mediação
cultural da academia. Capucho traz para a superfície relações que se quer manter ocultas
— personagens que não tinham, até então, visibilidade —, ampliando, assim, a
representação e a subjetividade das relações homoeróticas, e subvertendo, de certa forma,
o que vinha sendo produzido quanto a essa temática na literatura brasileira, quebrando
ainda mais o silêncio imposto às narrativas de cunho homoerótico.
41
SEGUNDO CAPÍTULO
42
O Cânone, uma palavra religiosa nas suas origens, tornou-se uma escolha
entre textos em luta uns com os outros pela sobrevivência. Este facto
mantém-se independentemente de se interpretar a escolha como resultado
de grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de
crítica ou, como eu acho, como tendo sido feita por autores que chegaram
depois, e que se sentem eles próprios escolhidos por determinadas figuras
ancestrais (Idem, 27-28)
Quando Harold Bloom diz que o cânone é uma escolha a partir de textos que lutam
entre si pela sobrevivência, ele deixa claro seu ponto de vista: o que faz um livro
sobreviver e permanecer na biblioteca canônica é sua qualidade estética, sua
originalidade, sua literariedade. E essas qualidades textuais, inclusive, ultrapassam as
influências de grupos sociais dominantes, das universidades e dos críticos.
Quanto a essa argumentação de Bloom, precisamos fazer algumas ressalvas. Para
isso, analisemos, primeiro, a acepção da palavra “cânone” e da palavra “crítica”, tendo
em vista que as duas têm relação entre si. Leila Perrone-Moisés, em seu livro Altas
literaturas (1993), inicia seu texto se debruçando sobre a palavra “crítica”, mostrando
que, já em sua etimologia, havia uma ligação com o ato de julgamento (krinen = julgar).
Agora, quanto à palavra “cânone”,
6
Professor Doutor de Literatura Brasileira da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR) e pesquisador das Relações do Cânone com o Grotesco e com o Absurdo.
46
cânone literário está em constante mudança, uma vez que há a constante e permanente
inserção de publicações literárias.
É importante que fique claro que configurar uma obra como canônica em
detrimento de outras é delimitar quais podem ser incluídas e quais podem ser excluídas,
marginalizando determinados autores/obras a partir de um discurso de autoridade — de
um crítico, uma instituição ou um autor que detém o poder de decidir quem faz parte
daquilo que tratam como literatura de qualidade. Leila Perrone-Moisés irá dizer que
7
João Ferreira Duarte é Professor Catedrático de Literatura Inglesa e Comparada na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
47
Dessa forma, pensando no que Harold Bloom defende, afirmar que as obras têm
o poder de se infiltrar no cânone a partir apenas de suas qualidades estéticas, sem
influenciadores externos, é negar que existem nesse processo agentes e instituições que
definem quais qualidades são merecedoras de exaltação e quais escritores/livros têm essas
características — lembrando que, muitas vezes, a defesa dessas qualidades têm bases
movediças, já que, ao se dizer que um texto é original e inovador a partir de sua forma,
assim como Bloom faz em diversos de seus argumentos, recai-se em um lugar vazio,
tendo em vista que tais adjetivos são subjetivos e costumam não ser tecnicamente
explicáveis.
Ainda em Harold Bloom, abordando a última questão que queremos apresentar
em seu texto, o teórico se mostra muito inflexível quanto às críticas que os Estudos
Culturais fazem ao cânone, já que, para Bloom, parece que o social não pode estar ligado
ao estético. Nesse sentido, Bloom se coloca contra os estudos que apontam o caráter
48
Para defender a sua ideia, com base no que ele chama de “qualidade artística”,
Harold Bloom afirma que não podemos nos dar ao prazer de encher nossas bibliotecas
com qualquer tipo de literatura e ler “subliteratura em nome de qualquer justiça social”
(Idem, p. 38), tendo em vista que não teríamos tempo de vida suficiente para lermos todos
os livros que fazem parte do cânone — quem dirá, então, livros de menor qualidade.
Outra questão da qual Bloom se utiliza para defender o cânone ocidental é seu
caráter memorial, pois, para ele, “o conhecimento não pode prosseguir sem memória, e o
Cânone é a verdadeira arte da memória, a autêntica fundação do pensamento cultural”
(Idem, p. 42). Quanto a essa afirmação, acreditamos que convém fazermos as seguintes
perguntas: memória do quê? E memória de quem?
Harold Bloom, como podemos ver, entende o cânone como um lugar neutro, que
não é influenciado pelo social e não é, de forma alguma, político. Ao defender que autores
e obras adentrem o cânone por sua “qualidade artística/estética”, Bloom não leva em
consideração que tal qualidade é estabelecida por um determinado grupo, de uma
determinada época e de um determinado lugar (academia, críticos, autores já renomados);
se levarmos esses elementos em consideração, não há como dizer que essas escolhas não
têm influência social, política e histórica. Assim, voltamos ao que discutíamos no início
do texto: a relação entre linguagem, cultura, escrita e literatura, bem como as relações de
poder em que estão envolvidas na nossa sociedade.
Para Roberto Reis,
Essa citação nos recorda a vitória do filme Parasita (2019) no Oscar, o primeiro
filme de língua não-inglesa a levar o título de Melhor Filme. O diretor asiático Bong Joon-
ho, em seu discurso, fala sobre a necessidade de o Ocidente olhar para outras culturas
como potencias culturais, superando as barreiras linguísticas e de legendagem. As artes
em geral costumam ser bem excludentes, e, obviamente, a literatura não seria diferente.
Apesar de termos vozes dissonantes que furaram a bolha do cânone ocidental, se
analisarmos os escritores que fazem parte dessa seleção, veremos que, em grande maioria,
são homens brancos europeus, membros de uma elite social. Há pouquíssimas mulheres
e quase nenhum não branco. Os que tinham orientação sexual “divergente” geralmente a
escondiam, e, mesmo quando abordavam o assunto em suas obras, costumavam fazê-lo
de forma enigmática. Os poucos escritores que ousaram se expor e trabalhar a temática
da homossexualidade de maneira mais direta sofreram algum tipo de sanção, fosse ela
legal ou por meio de exclusão nos registros históricos. Não à toa, a literatura tem sido
usada para inviabilizar os escritos, bem como os fenômenos culturais não escritos, que se
inscrevem em um seguimento culturalmente marginalizado: não brancos, mulheres,
LGBTIs e culturas de países menos desenvolvidos ou não ocidentais.
De acordo com Emerson Inácio, em seu ensaio Para uma estética pederasta:
[...] todos e quaisquer cânones são excludentes por natureza, visto que
denotam sempre uma eleição do que pode e deve fazer veicular uma
“verdade”, seja ela divina, estética, literária ou legal. Retomando
Foucault, o cânone literário funcionaria como um disciplinador dos
diversos discursos autodeclarados estéticos, mas que por diversas razões
tornar-se-ão excêntricos, marginais e/ou periféricos, procurando
responder aprioristicamente à demanda “o que é literatura?” E a priori
aqui estabelece a confusão: quem define quem? É o cânone que responde,
chancelando e incorporando a produção, ou seria a produção que, pelo
caráter “literariedade”, acaba por reivindicar seu lugar naquele espaço?
Coincidência ou não, os dois processos se dão simultaneamente, se
confundindo nessa dinâmica, inclusive com fatores que as abordagens
mais tensas consideram extraliterários [...] (INÁCIO, 2010, p. 112).
Escritores e leitores são formados por sua posição cultural e social, pois a ação de
ler e escrever também é política. Dessa forma, pensamos que a leitura está envolta em
questões de autoridade e poder, e o texto também. Como já apontamos, a linguagem
molda nossas percepções, enquanto é moldada pelo social. Sendo um dos principais
vetores da nossa percepção da realidade, a linguagem é utilizada para satisfazer as
necessidades de grupos dominantes. Ela, a linguagem, é a matéria da qual a literatura se
utiliza artisticamente; com isso, não há como dissociar o que é tratado como literatura da
relação de dominação entre as hierarquias sociais.
Para Roberto Reis, depois que se passou a focar o objeto da análise literária apenas
no texto, a figura que mais se beneficiou foi o crítico, já que é ele quem ganhou o status
para exercer a autoridade sobre a estrutura, as relações internas do texto, os sentidos que
o texto traz, e, assim, poder disseminar suas interpretações como verdade a partir de seu
olhar, conscientemente ou não. O teórico aborda esse fator para propor uma possibilidade
52
Kothe diz que o cânone ensaia uma falsa democracia. Primeiro, por meio do
discurso que só obras de grande valor fazem parte da sua coleção; segundo, por permitir,
mais recentemente, que obras antes marginalizadas passassem a fazer parte de sua
biblioteca: hoje, para aqueles que foram incisivamente excluído por ele, há propostas de
listagens alternativas para obras que antes eram invisibilizadas, no intuito de defender
54
uma suposta democracia no interior do cânone. Porém, para o teórico, não se pode perder
de vista que
ele não está disposto a reconhecer mérito naquilo que não esteja de
acordo com o seu sistema e princípio organizativo. Não se trata de
remendar ou suplementar o cânone, mas de abandoná-lo como ideologia
de classe que não permite avanço a quem não o reforce. Ele inibe e
impede, de antemão, que se reconheça e divulgue aquilo cuja grandeza
se dá fora do seu horizonte (Idem, p. 13)
Dialogando com Kothe, Roberto Reis (1992) também acredita que a questão,
quando se critica o cânone, não é pensar em sua abertura ou em uma seleção de livros
alternativa, pois o problema é o fato de haver um cânone cujo objetivo é a manutenção de
uma determinada ideologia que calca em si relações injustas refletidas pelo que ocorre na
sociedade.
se apropriou dessa terra e valida uma visão europeia sobre um lugar que geográfica e
culturalmente não faz parte da Europa. Nesse sentido, tendo em vista que Kothe relaciona
o cânone com a forma como as estruturas sociais funcionam no Brasil, para o teórico,
“enquanto não houver uma profunda democratização do país, não haverá nenhuma
revisão radical do cânone. Continua inútil e ridículo propor alternativas, embora
persistam como utopias” (KOTHE, 2000, p. 13).
Quanto à questão de o cânone incluir em sua historiografia apenas textos que
tenham “qualidade”, Flavio Kothe defende que esse é um discurso falacioso. Como
exemplo, ele se utiliza de algumas figuras do cânone brasileiro. Os primeiros são Frei
José de Anchieta e Padre Antônio Vieira, que têm como prioridade em sua escrita a
religiosidade e a catequização; mesmo não havendo nada de artístico na escrita dos
religiosos, é postulada como se houvesse. O segundo escritor do qual o teórico se utiliza
para sedimentar sua afirmação é José de Alencar, que reproduzia o discurso dominante,
era parte de uma elite e tinha como principal mérito não a qualidade da sua escrita, mas
o reforço de uma história do Brasil que o poder queria que fosse narrada. Além desses,
temos também Caminha, Frei de Santa Rita Durão e Gonçalves Dias, que criam a ideia
de que para que alguém seja verdadeiramente brasileiro, é necessário ter sangue de
português e índio, anulando totalmente os negros e os imigrantes. Esse quadro, inclusive,
estende-se ao modernismo, que propunha uma suposta subversão na nossa literatura e
identidade nacional, tendo como exemplo Oswald de Andrade, com o manifesto
antropofágico que só se preocupa com “tupi or not tupi”, e Mário de Andrade, que era
contra a modernização, os imigrantes e a emancipação da mulher.
É claro que todos esses fatos não podiam ser diferentes, tendo em vista que somos
doutrinados a acreditar que foi apenas em 1500, século XVI, que começou a história do
Brasil, e que a língua do conquistador se naturalizou como se não houvesse existido
nenhuma outra nesse território. Inclusive, o índio, que a partir do romantismo passa a ser
o nosso herói, só tem a possibilidade de falar na literatura e na sociedade se por meio da
língua do conquistador e daqueles que têm o poder. Dessa forma, é importante ter claro
que o cânone não dá mérito a nada que não reforce o seu discurso. Qualquer trabalho que
vá contra sua hegemonia, tenha qualidade ou não, é excluído de seu horizonte, impedido
de avançar dentro da literatura e de ser reconhecido. E assim se cria a ilusão de que os
autores presentes no cânone foram selecionados por sua qualidade artística, apesar de, na
prática, nem sempre a terem.
56
Ou seja, o fato de o cânone brasileiro não ter assimilado nenhuma obra que
tratasse das relações homoeróticas nos alerta não sobre um simples acaso, mas sobre
como as peças dessa estrutura são montadas, para não deixar ecoar vozes dissonantes na
literatura brasileira. E, nesse caso, quem fazia parte dessas estruturas era a academia, os
críticos literários e os próprios escritores renomados da época.
Em Portugal, após o lançamento de Sodoma divinizada, de Raul Leal, houve
muitas críticas ao caráter homoerótico dos textos. Fernando Pessoa, que já era um poeta
reconhecido, saiu em defesa da obra, argumentando que cabia todos os temas existentes
no mundo na expressão poética. Por outro lado, no Brasil, nem os modernistas que
pregavam uma ruptura artística/literária largaram mão de seus pensamentos
conservadores acerca da tematização da relação entre pessoas do mesmo sexo na literatura
(como já expomos ao mencionar Mário de Andrade).
57
Por outro lado, apesar dessa crítica, Mário César Lugarinho defende que a criação
de um seguimento que contemple a literatura gay, assim como pensar um cânone
emergente que selecione obras com essa temática, pode servir como possibilidade de dar
visibilidade para esse tipo de literatura, já que textos com essa abordagem foram
constantemente marginalizado na história de nossa literatura. Dessa forma, pensar em um
cânone temporário da literatura gay seria como criar uma abertura diante do cânone
tradicionalmente estabelecido enquanto não existirem alternativas mais eficazes a ele.
Voltando ao Horácio Costa, diante dos argumentos que apresentamos até aqui e
da afirmação do teórico quanto à impermeabilidade no cânone brasileiro durante o
modernismo referente à temática homoerótica, cabe fazer a seguinte consideração:
inserido no livro Morangos mofados (1982) do Caio Fernando Abreu; e Rútilo nada
(1993), de Hilda Hilst, para podermos compará-los com os livros de Luís Capucho,
Cinema Orly (1999) e Rato (2007).
O primeiro, Stella Manhattan, conta a história de um personagem que se divide
em dois: Eduardo e Stella. O protagonista foi enviado por sua família conservadora para
trabalhar no consulado brasileiro nos Estados Unidos, em Nova Iorque, por conta de
algum acontecimento. O que sabemos é que a família de Eduardo tinha o interesse de
manter o filho distante justamente por conta de sua orientação sexual. Nesse sentido, uma
das abordagens que o romance expõe é a maneira excludente como a sociedade regula o
político e o sexual a partir do momento em que se mostram destoantes do esperado. Stella
Manhattan, ainda, parece criar uma deriva para a sexualidade, já que temos um
protagonista e outros personagens que permeiam uma sexualidade que parece fluir entre
o masculino e o feminino. Vejamos um trecho que demonstra o que estamos dizendo:
Referente a Aqueles dois, um dos contos mais famosos de Caio Fernando Abreu,
temos dois personagens protagonizando a narrativa: Raul e Saul. Ao passarem em um
concurso, os dois se conhecem no trabalho. Por meio de contatos espaçados, ganham mais
intimidade a cada novo encontro, gerando uma identificação mútua de um pelo outro. O
que os une é o sentimento de solidão, por estarem em uma cidade que não é a deles, e a
possibilidade de encontrar no outro as chances de compartilhar afeto.
Apesar de o texto não deixar claro que há, de fato, desejo entre os dois, a narrativa
é permeada por fragmentos que nos levam a pensar que, mesmo inconsciente, há a
construção de um sentimento que transpassa a amizade:
O modo como esse texto termina é interessante porque reflete a maneira como a
sociedade lida com o afeto entre dois homens. Apesar dos “indícios”, em nenhum
momento fica claro se a relação entre os dois ultrapassa a zona afetiva da amizade, o que
nos leva a como determinado tipo de comportamento entre dois rapazes é socialmente
esperado: existe um limiar entre a amizade masculina que, se transpassada, torna-se outra
coisa aos olhos dos outros, escancarando o preconceito quanto à maneira como o homem
heterossexual deve se comportar e quanto ao amor entre dois homens. No caso, não
importa se Raul e Saul são amigos ou par amoroso, a discriminação e a não aceitação de
determinados comportamentos é tão implacável que só há uma opção para manter a moral
e os bons costumes: a exclusão daqueles que não se enquadram no modelo.
Quanto ao último texto, na novela Rútilo Nada, de Hilda Hilst, temos também dois
personagens principais: Lucius e Lucas. O primeiro é um homem de trinta e cinco anos,
jornalista e filho de um banqueiro; o segundo é um jovem de vinte anos, estudante de
História e poeta. Em meio à narrativa fragmentada, conhecemos o desenlaçar da paixão
de Lucius por Lucas, que, segundo a voz do protagonista-narrador, é retribuída pelo
jovem poeta. O pai, banqueiro, não aprova o romance dos dois, e em diversos momentos
repreende Lucius pelo envolvimento.
Diante de todos os conflitos que permeiam o sentir dos dois personagens, Lucas
acaba se suicidando, deixando uma carta para Lucius.
Porém, antes de chegarmos ao final, comecemos pelo início da novela. Hilda Hilst
abre sua história da seguinte forma:
vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto
(HILST, 2003, p. 85).
Logo de início, percebemos uma grande carga dramática na narrativa, descrita por
Lucius ao se deparar com o corpo morto de Lucas. Para Lucius, as palavras deixam de
dar conta do sentimento em seu peito diante da figura do amado sem vida, seus
sentimentos deixam de ter nome e se tornam um enigma diante das experiências da vida.
Era necessário, para ele, “inventar palavras, quebrá-las, recompô-las”, para assim
conseguir se ajustar de forma mais digna diante de suas feridas.
Lucius, inflamado por sua angústia, joga-se em cima do caixão, levando sua boca
em direção a de Lucas. O protagonista sente, de imediato, mãos puxando-o, e se lembra
da presença de seus familiares, de sua filha, dos amigos. Diante de sua ação, ele ouve
palavras como “constrangedor, louco, demente, absurdo, intolerável”, e reflete sobre
como existem “Humanos” que são feitos “de fúria e desesperança”, e que vivem “apenas
para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia” (Idem, p. 85), pessoas essas que
ele nomeia como “supostos éticos Humanos”. O protagonista-narrador, na sucessão dos
fragmentos, traz seu pai à memória:
toda a minha vida, eu, Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem. Deboche e
clarão na lisura da boca” (Idem, p. 96).
Após a parte narrada por Lucius, temos acesso à carta que Lucas deixou para o
narrador-protagonista, em que explica o porquê de ter se suicidado. Nela, descobrimos
que o pai de Lucius mandou dois homens violentar o “namorado” do filho física e
sexualmente, o que gerou no rapaz o desejo de terminar sua existência: “antes da sombra,
Lucius, quero dizer da dor de não ter sido igual a todos. Minha alma velha buscava
entendimento. Quero dizer da dor, mas não sei dizer” (Idem, p. 98).
Lucas, então, expõe sua maior dor: a solidão. O sentimento de não pertencimento
permeia a sua vivência, como se o seu estar no mundo estivesse atravessado pelo
desencaixe. Essa questão fica ainda mais evidente no parágrafo final do livro, como
veremos um pouco mais adiante.
Após realizarem o “serviço”, os dois homens saem, e o pai de Lucius entra no
quarto: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho” (p. 98). Nesse momento da
história, percebemos o porquê de Lucius nomear as pessoas que estão contra seu romance
com Lucas de “supostos éticos Humanos”, pois seu pai, o que mais reprimia a paixão do
filho, tinha também desejos homoeróticos por Lucas: “posso te tocar um pouco, menino?
Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu pai tremia. Ele beijou
minha boca ensanguentada. Eu sorri. De pena da volúpia” (Idem, p. 99).
Fica evidente, então, que o desprezo pela relação do filho se dava por dois
motivos: pela imagem que as pessoas teriam dele e por também desejar Lucas,
escancarando a hipocrisia do personagem por meio de sua fala extremamente
preconceituosa e inflexível.
Por fim, Lucas se suicida, deixando, como já dissemos, a carta e alguns de seus
poemas, com o seguinte fragmento no final: “até um dia. Na noite ou na luz. Não devo
sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo que é humano
me foi estranho” (Idem, p. 103).
A novela de Hilda Hilst aprofunda as questões dos personagens quanto à
descoberta do desejo homoerótico, dos sentimentos de desencaixe propiciado pela
exclusão social e da hipocrisia de uma sociedade conservadora quanto à
homossexualidade de forma muito sensível e intensa, contribuindo para a representação
que dá espaço para as subjetividades do sujeito homossexual.
Sem nos estendermos muito nos textos dos autores abordados acima, voltamos
para o que nos motivou a utilizar essas três obras: Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst e
65
Silviano Santiago, por mais que tivessem abordado em sua literatura temáticas que em
sua época eram mais marginalizadas que hoje. Sua assimilação pelo cânone e ganho de
visibilidade se dá, possivelmente, por dois motivos: o fato de os três fazerem parte de
uma elite cultural e social, e abordarem personagens e a temática homoerótica de um
modo que não representa mais perigo para o cânone brasileiro. Se analisarmos, os
personagens dos três autores estão inserido no espectro da classe média (ou mais rica que
ela). Temos um personagem praticamente expulso pelos pais para Nova Iorque, com o
propósito de trabalhar no consulado brasileiro do país norte-americano; dois personagens
que servidores públicos, um filho de banqueiro e um rapaz universitário que, só por estar
dentro desse ambiente, possivelmente faz parte da mesma realidade social. Ou seja, por
mais que a temática tratada seja uma forma de relação que ainda sofre preconceito por
parte da sociedade, isso ainda ocorre dentro de um cenário mais aceito, principalmente se
pensarmos que, com o avanço do movimento GLBT8 (nomenclatura utilizada na época),
a partir do final do século XX, a homossexualidade ganhou “mais visibilidade” e passou
a ser mais aceita nos meios de comunicação. De todo modo, essa “aceitação social”
claramente se dava para pessoas homossexuais que passavam uma imagem mais
higienizada aos olhos da sociedade: homem gay branco, masculino e de uma determinada
classe social.
Já nas obras de Luís Capucho, temos personagens que estão do lado oposto dessa
representação: pessoas homossexuais mais plurais e com outro recorte de classe. Podemos
confirmar essa afirmação já logo no início de Cinema Orly, em que o escritor escreve
uma espécie de introdução e comenta sobre o desejo de ter um namorado. Nesse
fragmento, ele demonstra uma dualidade entre o que dizem que ele deve fazer para
conseguir um parceiro e o que ele realmente deseja, uma vez que a orientação dada é
abdicar dos seus desejos e, consequentemente, das visitas ao cinema pornô Orly. Vejamos
o fragmento:
8
Essa nomenclatura passou a ser utilizada no ano de 1993, quando o movimento voltou a ganhar
força dentro do cenário nacional.
66
que ainda não estou tirando proveito da gota doce? Por que não vou ao
Orly com orgulho, se lá é a gota doce? (CAPUCHO, 1999, p. 14)
Sou um fodido, não tenho nada, mas o modo como as pessoas me olham
quando passam por mim, esse marinheiro Carlos, por exemplo, inspira
em mim a sensação de superioridade. Não tenho nada para comprová-la,
mas ela é tão certa como sei que é certa a ilusão do pau de Carlos, a
distribuição de seus pelos e o contorno das carnes de sua bunda, mesmo
sem nunca o ter visto nu (Idem, p. 13)
67
Nesse sentido, Capucho deixa claro que suas narrativas servem para que esses
personagens, depois de serem ocultados por tantos séculos na literatura, venham à luz,
com sua coragem e sua dualidade, contrariando o lugar em que sempre foram postos: no
porão do cinema pornô, no escuro dos terrenos baldios, nas praças vazias, sem que aqueles
tidos como socialmente “normais” tomassem conhecimento das vivências desses
indivíduos.
68
Com isso, cabe dizer que Cinema Orly e Rato são obras que nascem sem mediação
cultural ou erudição acadêmica9. Nasce fora do status quo burguês, permitindo que o
leitor se reconheça dentro da obra e compartilhe com o narrador as mesmas experiências.
Sua obra, inclusive, trabalha em cima do registro do cotidiano, que é outro dado
que coloca o escritor em confronto com o que o cânone institui como “boa literatura”. Em
seu trabalho, esse cotidiano fica marcado pela referencialidade que pode aproximar, à
primeira vista, a obra de Capucho da autobiografia.
Ao mesmo tempo que as obras de Luís Capucho se valem de um tipo de texto que
o cânone trata como menor, elas têm aspectos que o próprio cânone defende como uma
obra de qualidade: originalidade e inovação. Capucho, de acordo com Mário César
Lugarinho, traz para sua escrita personagens que não haviam sido representados, até
então, na literatura brasileira. Quando o teórico faz essa afirmação, refere-se a
personagens homossexuais (de uma determinada camada social) que não haviam tido
espaço nos textos nacionais de forma digna e subjetiva.
9
Aqui cabe fazer um adendo: apesar de Luís Capucho ter feito Letras e, posteriormente, ter feito
especialização em Leitura e Produção de Texto na Universidade Federal Fluminense, o que queremos dizer
quando afirmamos que Cinema Orly e Rato nascem sem mediação cultural e erudição acadêmica é porque,
apesar de Capucho ter formação acadêmica, literariamente e socialmente ele não fazia parte da
efervescência cultural literária da época, além dos seus textos trazerem uma escrita e uma narrativa que se
coloca fora do status quo burguês.
69
TERCEIRO CAPÍTULO
71
Nesse capítulo nos deteremos de fato nas obras de Luís Capucho, subdividindo a
análise em: a) como se dá a subjetivação homoerótica em suas obras e b) como Capucho
se utiliza de uma perfomance em sua escrita para dar vida aos seus personagens e,
consequentemente, às suas narrativas.
Começando pelo primeiro ponto, acerca da subjetivação, voltemos ao conceito de
“literatura de representação” e “literatura de subjetivação” de Mário César Lugarinho
(2008), que abordamos rapidamente no primeiro capítulo. Nas próprias palavras do
teórico:
uma literatura gay, para o autor, seria aquela na qual a subjetividade homossexual
ultrapassa a afetividade em relação ao outro do mesmo sexo para abordar também
os vários e heterogêneos aspectos que atravessam o sujeito e a cultura gay
posteriores a 1969, como por exemplo: as agruras de inserir-se ou não como
sujeito de direitos em uma sociedade ainda fortemente heteronormativa, branca,
jovem e burguesa. Com esse sentido ético, político, étnico, estético e econômico,
Pitta alega que “fracturas” (SILVA; SOUZA, 2019, p. 186)
Nesse caso, fazendo uma aproximação entre Mário César Lugarinho e Eduardo
Pitta, A “literatura de representação” seria o mesmo que “literatura homossexual”,
enquanto “literatura de subjetivação” seria como “literatura gay”. Nas duas últimas,
porém, há uma diferença, já que Mário César Lugarinho fala sobre o aprofundamento das
identidades dos sujeitos homossexuais nessa forma de subjetivação na literatura, mas não
deixa clara a necessidade de um caráter intencionalmente político.
Outro teórico que também discorre sobre conceitos que envolvem homoerotismo
e literatura é José Carlos Barcellos (2006), em seu livro Literatura e homoerotismo em
questão. No início do primeiro capítulo, Barcellos faz um adendo e aponta o fato de que
esses estudos ainda são embrionários no Brasil, em comparação com universidades dos
Estados Unidos e de alguns países europeus. Nesse sentido, segundo o teórico, é
importante que as investigações acerca desse tema na literatura levem em consideração,
primeiramente, o texto, em detrimento da relevância social.
Dito isso, para José Carlos Barcellos, uma das formas de se estudar a relação entre
literatura e homoerotismo se dá pelo viés temático, em que se busca identificar e analisar
temas e subtemas referentes ao homoerotismo nos textos literários. Dessa forma, o autor
propõe alguns “conceitos operacionais” (BARCELLOS, 2016, p. 17) para as análises de
obras literárias, sendo eles: homoerotismo, homossexualidade, literatura gay e literatura
queer.
10
Doutorando em Letras e Linguística - Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.
11
Doutor em Letras e Linguística - Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.
73
Barcellos adiciona uma informação: para o autor, só é possível falar de uma literatura
propriamente gay a partir de 1968, quando a luta homossexual eclode e passa a traçar uma
identidade própria do que é ser gay.
O último conceito que citamos, e que José Carlos Barcellos utiliza como termo
chave para análises literárias, é o queer. Nascido na língua inglesa como forma de
diminuir pessoas homossexuais, tendo como tradução a palavra “estranho”, foi
ressignificado dentro do movimento social LGBTI+ (tanto que existem grupos e países
em que se utiliza a sigla com a letra “Q” (como LGBTQ+/LGBTQI+) e dentro da
academia, através dos estudos queer. Esse termo, segundo Barcellos,
Ou seja, em Cinema Orly é narrado sobre relações entre pares que não tinham
espaço para serem públicas, que não podiam se ver representadas naquilo que estava
sendo construído como identidade gay em sua época. E, para além dessa relação, Capucho
também apresenta o indivíduo homoerótico em suas particularidades, este que ficava
ainda mais à margem dos que, no fim do século XX, estavam adquirindo alguma
visibilidade no meio social.
Nesse sentido, pensando que “a literatura é também um produto social,
exprimindo condições de cada civilização em que ocorre” (CANDIDO, 2006, p. 29), as
obras em questão trazem em seu texto figuras que vêm de um lugar que se deseja manter
12
Apesar de sabermos que as obras de Luís Capucho também se inserirem dentro da chave de
leitura queer, decidimos não seguir esse caminho teórico, já que esbarraria em questões que por hora não é
do nosso interesse analisar nem se debruçar sobre. Nesse sentido, acreditamos que a perspectiva de
“literatura de subjetivação/literatura gay” contempla melhor a abordagem que decidimos fazer nesta
pesquisa.
76
oculto. Ou seja, Cinema Orly e Rato são literaturas que nascem da margem e se assumem
e se impõem para a sociedade como obras que buscam retratar o cotidiano homoerótico
deste lugar. E mais, cabe ressaltar que a marginalidade dessas obras “não é apenas
literária, mas revela-se como uma marginalidade vivida e sentida de maneira imediata
frente à ordem do cotidiano” (HOLLANDA, 2004, p. 113).
O primeiro livro, Cinema Orly, se passa em dois lugares diferentes: em Niterói,
lugar onde o protagonista vive e narra sobre sua relação com a vizinhança; e no centro do
Rio de Janeiro, local onde fica o cinema pornô frequentado por ele. Dividido por seções,
quase como um diário, o narrador-personagem, além de viver suas aventuras sexuais
dentro do cinema Orly, se coloca em um lugar de reflexão sobre a masculinidade, a
homossexualidade, o lugar que ele ocupa socialmente, de forma que nos faz mergulhar
dentro do universo em que os personagens vivem.
Em Rato, ao contrário de Cinema Orly, toda narrativa se passa apenas em Niterói.
No romance, nós vemos aparecer a figura da mãe, personagem com grande importância
para o protagonista, e o desenlaçar de uma relação amorosa mais estável. Por morarem
em uma pensão só para homens, Rato, forma como o personagem principal se denomina,
vive pelos cantos escuros tentando observar os homens da casa. Assim como em Cinema
Orly, aqui também há reflexões acerca da homossexualidade e masculinidade, porém com
uma escrita mais “polida” e mais próxima do que tradicionalmente chamamos de
romance.
Tanto em Rato como em Cinema Orly, o personagem-narrador (e aqui trataremos
como se o livro contasse a história do mesmo personagem em momentos diferentes, tendo
em vista que as informações dadas nos romances se cruzam em muitas partes, dando a
entender que a história contada é de uma mesma pessoa) demonstra não fazer parte de
uma elite social nem ter interesse em reproduzir os costumes dela. De acordo com Mário
César Lugarinho (2008), o protagonista do romance se identifica como morador do
subúrbio e, tanto nas suas experiências quanto em seus discursos, distancia-se de qualquer
prática social que possa ser vinculada ao mainstream gay dos anos 1990 (LUGARINHO,
2008, p. 18). Confiramos o seguinte fragmento:
“Eu gosto de lá porque estou no meu lugar, não me sinto um clandestino, porque
é um meio social onde não precisamos ser iguais a ninguém, nem sequer
precisamos falar, nem botar o pau para fora, nem pagar um boquete, mesmo que
isso, entrar no cinema sem participar, não tenha a menor graça” (CAPUCHO,
1999, p. 17-18).
77
13
“Periférico diz respeito à linha que define o limite de uma superfície, demarcando, portanto, a forma e a
configuração de um espaço ou objeto. Urbanisticamente a periferia abarca as regiões afastadas dos centros
urbanos, em geral habitadas pela população de baixa renda.” (OLIVEIRA, 2011)
78
O protagonista de Capucho parece se sentir livre em locais onde pode fazer dos
homens uma imagem do seu desejo, mesmo que esse sentimento não seja realizado
fisicamente. Era como se a possibilidade de olhar e desejar sem nenhum tipo de pudor,
por si só, satisfizesse seu prazer.
Outro fator que nos faz pensar sobre o sentimento de conforto/pertencimento do
personagem dentro do cinema, para além das questões de classe, é a pluralidade de
pessoas com características tão distintas que frequentam aquele espaço, pois, em Orly,
ser diferente não é incomum. Para embasar nossa afirmação, confiramos a seguinte
passagem:
“Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas,
muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e
magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma,
com charme, com pernas muito bonitas, muito homem esquisito, muitos
com cara de hospício, homens com bigode, de barba, imberbes,
antipáticos, nojentos, com cara de idiotas, louros, morenos, negros,
mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz
grande, homens robustos, mignons etc. Estes homens não faziam,
necessariamente, todos eles parte da pegação, mas estavam todos no
clima.” (Idem, p. 23).
Fui para casa pensando que nós todos, os que frequentávamos o Orly, éramos
especialmente um bando de eliminados. Adorávamos o sexo heterossexual que
víamos na tela, nos sujeitávamos às infecções venéreas com absurda
conformidade, somente o gueto do Orly nos era permitido, assim mesmo para
tirar-nos da cidade, e não havia nenhum controle, estávamos absolutamente
entregues aos caprichos do caldeirão que era o cinema.
Digo que a cidade queria nos eliminar porque há mais ou menos quinze anos, se
eu saía para o Aterro ou andava pela Via Ápia à noite, tinha que tomar cuidado
com os policiais para não ser preso sob a acusação de vadiagem. Vadiagem foi a
desculpa que tiveram para reprimir nossa veadagem, que consistia em andar pelos
lugares mais escusos, mais desertos do Aterro e do centro da cidade (Via Ápia),
a fim de pegar, o que nos dava ares de suspeito. Numa das vezes em que fui preso
numa delegacia da Glória, tinha sido pego também um travesti. Quando cheguei,
14
É importante dizer que hoje muitas dessas formas de nomear pessoas travestis/trans e
homossexuais tem conotação negativa, assim, sabemos que não devem ser utilizadas. Tendo em vista,
porém, o período em que o livro foi lançado e seu contexto, bem como o fato de que esses aportes
vocabulares pertenciam e representavam esse grupo, deparar-se com essas nomenclaturas dentro de um
livro de literatura, sabendo que esses personagens não haviam tido espaço representativo nessa plataforma
até então, toma outro sentido.
80
Perto da praia, saltamos para uma rua de terra, cheia de casas em construção, e
entramos por ela. Já é noite fechada, algumas das casas ainda têm seus pedreiros
dando os últimos retoques no trabalho do dia. Enquanto caminhamos,
esquadrinhamos com o olhar cada movimento das casas, como se fôssemos dois
ladrões. Enfim, pulamos o muro de uma das casas em construção vazias e
deitamos pelados sobre nossas próprias roupas.
[...] Um homem acende a casa da frente. Sentamos no escuro da varanda
alarmados. O homem aparece. Olha, olha e entra de novo. Para não fazer barulho,
vestimos nossas roupas tão lentos, só pisando com o veludo dos pés, e avançamos
mais para dentro da rua que termina por subir uma ladeira em curva, de onde
vemos o bairro a ser construído. Na ladeira ele me abraça:
- Está gostoso, vamos achar outra casa e continuar (CAPUCHO, 2007, p. 41-42)
Chupo o seu peito, pego no seu pau e, por fim, quando me viro para que ele
brinque às minhas costas, escutamos barulhos de passos aproximando-se, gritos
de homens afirmando a presença e a voz de um deles pedindo para que saiamos
com as mãos para o alto. Temos apenas tempo de colocar as calças, juntar nossas
coisas: camisas, sapatos e cigarros, pois o homem não está pedindo, está
ordenando que saiamos.
Saímos com pressa e medo.
[...]Vamos andando em direção aos policiais e eles em nossa direção. Quando
chegam, cheiram nossa mão. Sorriem com malícia e maldade ao sentirem que, ao
invés de cheiro de maconha, nossa mão tem cheiro de sexo, de bunda.
- Qual dos dois é o veado? – o policial ordena.
Nossa veadagem, escancarada para os policiais através do nosso cheiro, é o pior
que poderia nos acontecer. Esses caras têm verdadeiro nojo de veado. Se
fôssemos presos apenas pela maconha, também um ridiculo motivo de prisão,
eles estariam menos equivocados, mas nós ficaríamos livres de vê-los tão felizes,
tão satisfeitos e sádicos. Um maconheiro inspira mais respeito e cuidado a um
policial porque para ele um maconheiro tem mais poder de resistência e oferece
maior perigo que um veado. Mas um veado, o que é um veado?
Ao pegar o maconheiro, o policial julga interferir em todo um esquema de
bandidos, o que o faz pensar em assassinatos, assaltos, perigosas perseguições,
altos poderes, malandragem, um trabalho da polícia à vera, mas pegar veados é
mais uma brincadeira que o trabalho oferece. Como se fossem gatos e nós
fôssemos baratas, ratos. (Idem, p. 56 - 58)
“Era muito diferente olhar para aqueles homens no claro, sem as correntes de luz
escura que corriam entre a gente, vindas do filme passando na tela e que nos
deixavam a todos sob o julgo da mais intensa pegação. No claro, os homens se
olhavam com olhares disfarçados, subentendidos, fugidios, parecendo que não
estavam com tesão, tal o impacto da luz acesa.” (CAPUCHO, 1999, p. 23)
Dialogando com um dos títulos do primeiro capítulo, “os répteis”, podemos pensar
que os frequentadores do Orly, de fato, fossem como répteis: no escuro caminhavam,
mostravam-se; no claro, escondiam-se ou se adaptavam ao que os meios sociais
impunham, quase como uma obra barroca. No fragmento posto, o narrador mostra o
estranhamento ao perceber os rapazes em outra atmosfera que não a de costume:
“enquanto os policiais estavam lá, ninguém se atrevia a dar um beijo [...]. A presença dos
policiais, a luz acesa, a fita parada, tirava o clima para os closes nos corredores. Com a
luz acesa, não vi nem fui visto com interesse, embora olhasse para os lados com ânsia”
(Idem, p. 22). A luz, nesse caso, assim como a figura do policial, pode ser interpretada
como a repressão, como a possibilidade não só de ser visto, mas de ser reconhecido: “fora
do anonimato do Orly, me sentia constantemente vigiado, eu tinha um nome e um
endereço” Idem, p. 123). Com a luz acesa, eles voltavam a seguir uma determinada
norma, voltavam a ser os homens que viviam do lado de fora do cinema, e isso se confirma
no momento em que o protagonista diz: “quando a luz se apagou e recomeçou o filme,
como as mulheres que se envergonham do próprio corpo na hora de trepar, a pegação
intensificou-se” (Idem, p. 23).
Em Rato, o escritor também traz a oposição entre dentro/fora e luz/sombra, mas
fazendo comparação com outro animal. Vejamos abaixo:
São os da superfície os que dão movimento, são quem decide para que direção
vai a vida, porque, com o temperamento expansivo, as atitudes e as palavras são
dominantes.
Às vezes estou na superfície, venho para o quintal, distraio-me com Peri e trago
uma banana, quando o mico que vive nos quintais do nosso quarteirão está no
abacateiro. Quando vou à superfície, não vou para dominar, para tomar partido,
mas para arejar um pouco, abanar um pouco meu corpo nas sombras da casa,
desemperrá-lo.
Eu sou um rato.
Saio da toca sobressaltado, rápido, para conseguir um pouco de comida, mas meu
mundo mesmo é a toca. Quando estou nessa mesinha que fica no corredor entre
a nossa sala-quarto e a cozinha com a garrafa térmica de café, fumando meus
83
Antonio Candido (1989), em seu livro Educação pela noite e outros ensaios, já
sinalizava em Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes uma corrente
autobiográfica. Segundo Candido, os autores escolhidos para a análise feita no livro, bem
como autores modernistas, seguiam a ideia de separar vida e arte, embasados na seguinte
concepção: quanto menos realista a representação fosse, mais se aproximaria de um
essencialismo da arte. Nesse sentido, para a construção dessa autobiografia, era
necessário se utilizar de artifícios literários que distanciassem o autor da obra. Qualquer
elemento que os aproximassem deveriam ser negados.
Dessa forma, Antonio Candido (1989), dentro do padrão de modernidade, formula
sua análise com base na ideia de que o escritor (ou o eu que narra a si mesmo), alterando
a matéria narrada, separa sua vida da obra, buscando construir algo universal do particular
e de fatos vividos por esses sujeitos.
Sendo assim, o teórico acredita que vida e realidade podem ser apenas um ponto
de partida para a construção de um texto literário, ultrapassando, assim, a forma de
representá-las. Nesse sentido, podemos dizer que Candido defende que o literário só pode
ter valor quando aliado à ideia de “pura ficção”. Porém, segundo seus argumentos, admite
também que toda ficção, em certa medida, é autobiográfica. Com essa segunda afirmação,
aproximamo-nos do campo das “escritas de si”.
85
não se trata [...] de saber qual deles, a autobiografia ou o romance, seria o mais
verdadeiro. Nem um nem outro: à autobiografia faltariam a complexidade, a
ambiguidade etc.; ao romance, a exatidão. Seria então um e outro? Melhor: um
em relação ao outro. O que é revelador é o espaço no qual se inscreve as duas
categorias de textos, que não pode ser reduzido a nenhuma delas. (LEJEUNE,
2008, p. 43)
Dessa forma, Lejeune parece afirmar que não há uma separação objetiva entre
ficção e autobiografia. O que separaria esses dois gêneros, então, seria o pacto referencial
criado entre autor e leitor, o que o teórico chamou de “pacto autobiográfico”.
Diana Klinger (2006), em Escritas de si, escritas do outro: Autoficção e
etnografia na narrativa latino-americana contemporânea, utiliza em seu trabalho textos
que se encaixam nos limites da ficção, pensando, então, em um texto híbrido. Para tal,
Klinger questiona a ideia de autobiografia pura, tendo como base certa “constelação
autobiográfica” (memórias, diários, autobiografias e ficções sobre o eu), que, transitando
entre os diferentes gêneros “se move entre dois extremos: da constatação de que — até
certo ponto — toda obra literária é autobiográfica até o fato de que a autobiografia ‘pura’
não existe” (KLINGER, 2006, p. 39). Outra questão abordada pela teórica é a ideia de
verdade nas ficções e nas autobiografias. Para Klinger, a ficção nos deixa mais próximos
da verdade do que o relato, pois, nessa perspectiva, “a ficção seria superior ao discurso
autobiográfico pois o romancista (ou o contista) não tem como prioridade contar sua vida
mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma matéria contingente”. Ou seja, de
acordo com o pensamento psicanalítico, o conceito de verdade só se alcança através da
ficção, do imaginário, que é a ferramenta do romance. Não é que “a verdade sobre si
mesmo só pode ser dita na ficção”, mas “quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve
ser considerada ficção” (Idem, p. 40).
Como tentativa de encontrar uma resposta para esse paradoxo, Diana Klinger se
utiliza de Philippe Lejeune e Luiz Costa Lima. Para o primeiro, como já abordamos, o
que diferencia o grau de “verdade” de um texto ficcional para o autobiográfico não é o
quanto este se aproxima do real, mas o pacto estabelecido entre autor e leitor. Por sua vez,
Costa Lima trata a autobiografia com um estatuto mais ambíguo, amenizando a ideia de
86
pacto para estabelecer verdade; porém, para o teórico, há relação entre “ficção” e
“literatura”, não tratando a autobiografia como gênero literário (ao contrário de Lejeune).
Com isso, Diana Klinger aponta que seu interesse é exatamente discutir o conceito
de literatura como “pura ficção”, tendo em vista que os textos de seu corpus se situam,
como já dissemos, nos limites da ficção. Para isso, ela evoca Leonor Arfuch, que desloca
a impossibilidade de distinguir de forma clara a diferença entre romance, autobiografia e
romance autobiográfico para o “espaço biográfico”. Essa noção de espaço biográfico, ou
de “constelação biográfica” é importante para pensar o objetivo do trabalho de Klinger,
que é
Em todas as suas obras, Luís Capucho trabalha com essa referencialidade, onde
inclui fragmentos que nos permitem encontrar seu eu empírico misturado com seu eu
ficcional. O primeiro desses fragmentos é o fato de seus personagens nunca terem nome,
com exceção de seu último livro, Diário da piscina (2017). Esse não nomear provoca
aproximação entre narrador e autor, e faz com que as duas figuras tomem o mesmo espaço
na nossa leitura. Em Cinema Orly, de uma forma mais generalizada, o protagonista se
denomina — e denomina os frequentadores do cinema — como répteis: “no Orly, sente-
87
se que somos répteis milenares” (CAPUCHO, 1999, p. 17), fazendo alusão ao tom de
camuflagem que a sala de cinema tem, bem como ao modo como as pessoas que
participam do ambiente de pegação mudam quando estão dentro daquele espaço. Em
Rato, como já expomos anteriormente, o personagem se nomeia exatamente de acordo
com o animal que dá nome ao livro, tendo em vista que ele, quando não está dentro da
sua toca — seja ela seu quarto ou seu próprio mundo —, está pelas sombras da cidade.
Conforme avançamos na leitura, percebemos que Capucho nos dá alguns
fragmentos em seus romances que o aproximam de seus personagens, além de criar
vínculos com as suas outras nuances artísticas. Um desses momentos é quando, em seu
primeiro livro, o protagonista conta sobre sua experiência com outro cinema pornô que
também ficava no centro do Rio de Janeiro: Cinema Íris. Segundo o personagem, ele não
se sentia tão à vontade nesse cinema quanto no Orly, mas, quando o visitava, sempre
assistia a uma stripper que se apresentava entre um filme e outro. Essa figura do Cinema
Íris o motivou a criar a música Savannah.
Para criar a música, o narrador pede ajuda a uma amiga chamada Suely, pois não
conhecia muitos nomes do vestuário feminino nem verbos que indicassem os movimentos
feitos pelas strippers.
“Savannah, cinderela nua, Superstar/ Savannah foi pra cidade fazer filmes e
dançar/ Savannah na cama/ E outras posições/ Savannah, seu strip-tease/
Savannah, bela, fria, loura, escultural/ Savannah além do bem e do mal/ Savannah
dinheiro, sexo e rock ’n’ roll/ Savannah luva justa, preta ou branca ou de cetim/
Savannah dança sobre os saltos/ Bico fino de cristal/ Savannah, capa, anágua,
sutiã/ Baby-doll/ Savannah, gira, abre, fecha, cresce, dança, diminui/ Savannah,
deusa coquete/ Não sabe ficar sem namorado/ Savannah sobe a colina/ Sozinha,
sem ninguém do lado/ Savannah pobre menina/ Imagina tudo acabado/ Savannah!
Savannah!” (Idem, p. 56-57)
Essa música, registrada em Cinema Orly, é cantada por Luís Capucho em seu
disco Antigo (1995). Por se tratar de um disco gravado de um show ao vivo, antes de
iniciar a canção, o cantor explica para o público o que o motivou a criar a canção: o
88
Apesar de ser um cara para dentro, sinistro, não sou presa da melancolia, mas da
masculinidade. Persigo seus prazeres dentro e fora de mim, atrás e na frente, à
beira do vulgar e do sublime.
O que é a masculinidade?
O que é um rapaz de pé, cheio de força na carne, pau, bunda, quadril?
(CAPUCHO, 2007, p. 31)
Desta perspectiva, não haveria um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou
mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida
pública) do autor são faces complementares da mesma produção de uma
subjetividade, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas
que, em todo caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é
considerado enquanto sujeito de uma performance, de uma atuação, que
a“representa um papel” na própria “vida real”, na sua exposição pública, em suas
múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e autoretratos, nas palestras.
(Idem, p. 57)
Nesse sentido, voltando ao que Mário César Lugarinho (2008) diz pensar ser um
dado menor da obra de Luís Capucho para a crítica literária, a sua referencialidade,
buscamos olhar por outra perspectiva, já que defendemos a intencionalidade de Capucho
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Logo na primeira oração, podemos ver a marca de um “eu” que se camufla: “se
(eu) não escrevo”. Essa parte do texto, chamada introdução, é como uma licença do autor
para se pôr no livro, para só depois entrar de fato na narrativa dividida em seções durante
o romance. Não à toa, o início de seu livro se conecta com uma entrevista já dada por
Luís Capucho, em que ele comenta que a motivação para escrever seu primeiro romance
foi uma amiga ter lhe dito que era um bom exercício de coordenação motora, após ele ter
ficado com sequelas da toxoplasmose. Naquele período, seus movimentos com as mãos
eram lentos a ponto de ele organizar bem o texto mentalmente antes de conseguir terminar
de escrever, ou seja: “se não escrevo, as ideias se perdem na pressão incomoda de minha
cabeça”. E é só a partir da escrita que o pensamento se ordena para o autor/personagem,
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mesmo que ele não saiba aonde seus pensamentos/sua escrita, ou o próprio livro, vão dar.
Talvez seja por isso que, de acordo com Fábio Figueiredo Camargo,
vivem possam dar visibilidade às suas complexidades. Esse movimento mostra como o
autor se mantém em um limiar entre ficção e realidade, colocando em xeque
Luís Capucho, diante dos fragmentos expostos e das reflexões que fizemos, busca
em seu trabalho criar essa dramatização de si, vinculando suas experiências reais com
ficção, o que gera ambiguidade em seus textos literários. A questão da temática não se dá
por simples coincidência ou necessidade de relatar memórias e experiências, mas se
apresenta, assim como afirma Antônio de Pádua Dias da Silva (2012, p. 95), como um
projeto de autoria. Capucho estabelece uma estética que brinca com o sublime e o
grotesco, narrando sobre um mundo que era tratado como submundo no final do século
XIX e início do XX. O fato de falar sobre pegações, sexo em lugares escondidos e
relacionamentos efêmeros, e de utilizar um vocabulário que pode não agradar os mais
tradicionais/conservadores, não é sinônimo de pobreza literária; é a estética que ele, como
autor, decidiu dar aos seus textos.
PALAVRAS FINAIS
O nosso trabalho, que se dividiu em três partes, buscou criar uma relação entre
suas divisões para mostrar como elas, fazendo parte de um todo, dialogam entre si. No
primeiro capítulo nós tentamos mostrar, a partir do livro Devassos no Paraíso, de João
Silvério Trevisan, como a sociedade brasileira lidou com a relação entre pares desde que
os portugueses, com suas crenças e ideologias, chegaram aqui. Como pudemos ver, apesar
daqueles que já viviam nessas terras lidarem, geralmente, de modo natural com aqueles
que tinham relações homoeróticas, os portugueses, através da força, foi aos poucos
inserindo socialmente o seu olhar e seu modo de lidar com as coisas que existiam no
mundo. Sua ideologia, que então se manteve dominante, se infiltrou também na literatura,
outro instrumento que serviu, e ainda serve, como forma de reproduzir e sedimentar as
relações de poder que existem na sociedade.
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Desse modo, se voltando de fato para literatura, nós discorremos sobre como a
relação homoerótica nos textos brasileiros foram representados por estereótipos, de modo
que não davam espaço para que a subjetividade desses sujeitos aparecesse de forma digna.
Eram raros os escritores que tinham essa preocupação de não reproduzir em seus escritos
o olhar que a sociedade tinha para com essas pessoas, e os que ousaram tentar quebrar
esse ciclo não tiveram espaço dentro do cânone brasileiro para fazer ecoar sua voz. Esse
cenário só foi mudar no final do século XX, com o aparecimento de escritores que tinham
um posicionamento mais contundente em relação a essa temática, e com as mudanças
ocorridas por conta dos movimentos sociais e da influência que suas lutas tiveram na
sociedade, na mídia e até mesmo nos meios acadêmicos. Não à toa, é também a partir daí
que se começou a problematizar o cânone, no intuito que este fosse mais democrático ou
que criassem listagem alternativas a ele. Com isso, escritores que antes eram
marginalizados puderam lograr ao status de canônico, ou ao menos ter mais visibilidade
no meio literário. Porém, a crítica que nos propomos fazer foi a de questionar o porquê
de só depois de todos esses séculos esses escritores ganharem espaço para que suas vozes
fossem ouvidas. Chegamos à conclusão, a partir de Flavio Kothe (2000) e Roberto Reis
(1992), que esses autores, assim como suas narrativas, em determinada medida, deixaram
de representar perigo às estruturas que formam o cânone. Essa nossa percepção fica mais
evidente quando comparamos escritores como Silviano Santiago e Caio Fernando Abreu
ao Luís Capucho, já que, tendo os três se debruçado a narrar sobre o amor entre iguais, a
principal linha que os separa é o da classe social: enquanto Caio e Santiago pertencem a
uma elite cultural e narram, geralmente, sobre personagens que estão inseridos
nessa realidade, Capucho vem de um outro lugar e dá espaço para vozes que costumavam
aparecer na literatura. Nesse sentido, não é por acaso que esses escritores hoje têm mais
visibilidade enquanto outros, como Luís Capucho, se mantêm silenciados.
Quanto a questão da autoficção e da perfomance de si em Luís Capucho, o nosso
intuito foi contrapor o argumento que envolve a referencialidade em seus textos, pois ao
apontar esse dado, os críticos indiretamente estão dizendo que as obras literárias do autor
se aproximam apenas do puro relato, tomando distância do que é considerado literário.
Nós mostramos que a relação que o escritor faz entre a ficção e realidade, criando uma
narrativa que traz traços cotidiano e, consequentemente, carregando em si de fato uma
referencialidade a vida do escritor, não se dá para que sua literatura seja enquadrada
apenas como um relado da sua vida pessoal, mas sim para gerar um efeito performático
em sua escrita. Com isso, nós buscamos contrapor o argumento de que não há trabalho
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