Conto George Síntese
Conto George Síntese
Conto George Síntese
Ensino Secundário
12º Ano
Introdução
Nascida em Lisboa, em 1921, local onde também faleceu, em 1998, Maria Judite de Carvalho destaca-se
pela profundidade de uma obra que aborda as grandes questões da vida, como o conto “George”, inserido
em Seta Despedida (1995), tão bem retrata.
Resumo do conto
Através de uma persuasiva técnica narrativa assente em “flashes” cinematográficos, ler “George” é ler o
percurso de uma figura ao longo das três etapas da vida, acompanhando as naturais transformações ocorridas
ao mesmo tempo em que se mergulha na solidão da existência de um “ser para a morte”.
Numa primeira sequência narrativa, é esboçado o retrato fugaz de uma jovem cheia de sonhos e de
ambições que esbarram nos projetos traçados pelos seus pais e que passam por um casamento tradicional
e por uma vida sossegada. Contudo, Gi, assim se chama a jovem, tem na liberdade o seu porta-estandarte,
daí renunciar ao noivo e a uma relação duradoura. As mudanças constantes de look ou a vontade de alugar
casas já mobiladas são a expressão dessa vontade de ser independente e de não estar presa a convenções
nem a espaços.
Assiste-se, depois, num segundo momento, ao diálogo entre duas mulheres, facilmente identificadas – a
Gi da juventude dialoga agora com a adulta George. Esta identificação é pressagiada pela pergunta que
George coloca à jovem sobre se ainda desenha, ao que esta responde que tem “jeitinho”, ou ainda pelo beijo
(que não o é efetivamente) trocado na despedida. O comboio chega e George despede-se do seu passado,
embarcando numa viagem ao fantasma do futuro.
Assim, esboça-se o retrato de uma idosa com quem George conversa – a terceira etapa da vida. O ciclo
completa-se e a foto que acompanhava a jovem Gi é a mesma que agora aparece, com o pormenor dos
óculos referidos no início.
O reencontro com as memórias do passado, personificado em Gi, o conflito interior de George (adulta) ou
a solidão profunda que envolve Georgina, constituem o universo ficcional deste conto trespassado por uma
visão desencantada da realidade através de uma personagem fragmentada colocada perante a situação-
limite da sua existência.
As três idades da vida humana são também as três vidas da personagem feminina: a vida vivida, a vida
que se vive, a vida a viver.
Sobressai, nos diálogos estabelecidos, a solidão do abandono pressagiado pela personagem. Ao percorrer
a sua vida como se de um álbum de fotografias se tratasse, George evoca a memória no seu reencontro com
o passado representado na juventude irreverente de Gi. Este reencontro faz aflorar as recordações do tempo
em que tudo era possível e em que não havia limites para os sonhos que desafiam as fronteiras das
convenções sociais. O confronto com aquela “cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu”, Gi, reaviva
a memória de quem procurou sempre fugir da vila no “cu de Judas”, mas também de si própria. Ao regressar
da cidade, regressa a um outro “eu”, jovem e preso às convenções sociais, para quem pintar não pode ser
mais do que um hobby para o verdadeiro trabalho que é ser doméstica.
Mas a jovem inquieta metamorfoseou-se na reconhecida pintora George, pseudónimo de afirmação
(feminina?) num mundo predominantemente masculino. É no auge da idade adulta que a outrora jovem Gi
concretiza os seus desejos de autonomia ao não morar em casas mobiladas ou a ter relações fugazes. George
recusou ser igual a tantas outras mulheres daquela vila, daquela época. Abandonou o seu diminutivo,
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abandonou convenções, desatou laços afetivos e tornou-se dona de si mesma. Mas nesse reencontro com o
passado anuncia-se a melancolia da dor da perda de que a viagem de comboio é metáfora concreta – à
janela, George vê o passado ficar para trás.
É a partir do momento presente que a figura feminina convoca o mundo da imaginação, que, curiosamente,
transporta um nome bem real: Georgina. A velha que já não pinta (convém relembrar que “George detesta
eufemismos”, daí recusar a palavra idosa), que tem as economias no banco e que olha com calma
desesperança o silêncio fatal, é, afinal, o paradigma da condição humana: a vida corre inexoravelmente para
a morte.
A fragmentação do “eu” revela, então, o profundo vazio que já se anunciara na voz de um dos amores
fugazes da personagem, quando lhe aponta que o desapego não passa de uma máscara, porque, em suma,
“toda essa desertificação” é produto do esforço e do sofrimento.
As três idades da vida humana são também as três vidas da personagem feminina: vivida, em vivência, a
viver.
Embora apresentada em pinceladas breves, a jovem que caminha com George tem “dois olhos largos,
semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani” – o pintor italiano
célebre pelos retratos femininos com rostos e pescoços alongados.
O retrato esboçado é de Gi, uma jovem irreverente como todos os jovens de 18 anos, que mora numa vila
pacata. Com tendência artística, no domínio pictórico, Gi rebela-se contra o poder paternal, que espera dela
uma existência quotidiana, tal como a deles. Ao sair de casa e da vila, Gi está a abandonar não só os pais e
os planos que estes tinham projetado para ela, bem como o noivo e o enxoval. Ela quer subverter estereótipos
e ser uma mulher livre e independente. Recusa a vida convencional e a falta de loucura saudável do noivo,
cujos planos passam por “comprar uma terra, construir uma casa a seu modo”.
George, que vive em Amesterdão, é uma aclamada pintora nos marchands das grandes cidades europeias
que preza a liberdade e que vive entre caras malas de rodinhas, que lhe possibilitam a mobilidade que ela
tanto preza e são tão distantes da “velha mala de cabedal riscado” que usou quando partiu, um dia, da casa
paterna. Um dia regressa, ao fim de vinte anos, à vila onde morou para vender a casa de família que recebeu
de herança e à qual associa a velhice e a clausura. George quer enterrar o seu passado e rejeita liminarmente
a estabilidade que essa casa parece proporcionar.
A pintora cultiva o alheamento social, recusa laços ou objetos que a prendam, que a oprimam, daí não ter
mobília própria, para poder, em qualquer momento, partir. O mesmo se pode dizer das suas relações fugazes
– “Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-
se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes?”.
Georgina, a par das outras figuras já referidas, tem traços indefinidos, no entanto, o seu sorriso é distinto
do da jovem Gi, pois Georgina ronda os 70 anos de idade e está consciente da inexorabilidade da morte. Ao
contrário da jovem Gi, esta figura que viaja no comboio com George não tem planos, nada espera e tem
apenas a certeza da solidão que a todos espera. Se tivesse ouvido George falar sobre as economias
guardadas no banco e que são, na perspetiva da mulher de 45 anos, a garantia de que não se está só,
certamente teria esboçado um sorriso condescendente de quem sabe que a aridez da existência não se
preenche com valores materiais: “o dinheiro no banco”.
Assumindo-se como um mensageiro da sabedoria, a velha anuncia a George que no futuro moram a
solidão e a melancolia.
Como facilmente se compreende, as naturais metamorfoses físicas acarretam, necessariamente,
metamorfoses psicológicas, desde a ingenuidade pueril de Gi, passando pela segurança altiva de George,
até culminar na solidão de Georgina.
Os projetos, os sonhos da jovem Gi acabam por redundar na velhice de Georgina, vivida no refúgio de
uma casa alugada e mobilada. De nada valeu a máscara social de um nome sonante rodeado de malas
breves e de uma vida sem laços afetivos nem materiais, porque nada pode travar a passagem inexorável do
tempo. A velhice, “o único crime sem perdão” do qual George tanto tentou fugir, é a terceira e derradeira etapa
da existência humana e nem uma vida de isolamento e de desprendimento conseguem travar esta certeza
inabalável.
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A vontade de George em saldar as contas com o seu passado é também o reencontro com as memórias
do passado, com a jovem subversiva e transgressora, mas também com a idosa incapacitada de pintar e que
relembra, a custo, o passado em que as escolhas foram feitas.
O encontro com o fantasma do futuro, a velha Georgina, é a certeza de que a condição de exílio que a
personagem para si escolheu ao negar casas próprias, mobílias ou bibelots que carregam recordações levou
a uma existência “desertificada”, tão árida quanto os quartos e as casas alugadas.
Neste sentido, é possível entender a construção da personagem no mesmo sentido da estética pessoana,
em que a multiplicação implica a dolorosa fragmentação. No auge da sua vida, a personagem encontra-se
com os fantasmas da sua própria existência num diálogo polifónico que é, simultaneamente, uma
despersonalização exterior de uma profunda tristeza interior.
A solidão é presença indelével num conto marcado pela inquietação e pela profunda consciência da
passagem do tempo e do vazio da existência.
Na sequência de abertura, a pintora deambula pela vila da sua infância/juventude e essa errância é o eco
perfeito de quem perdeu o rumo na vida enquanto erra nesse caminho para casa.
Os projetos, os sonhos da jovem Gi acabam por redundar na velhice de Georgina, vivida no refúgio de uma
casa alugada e mobilada. De nada valeu a máscara social de um nome sonante rodeado de malas breves e
de uma vida sem laços afetivos nem materiais, porque nada pode travar a passagem inexorável do tempo. A
velhice, “o único crime sem perdão” do qual George tanto tentou fugir, é a terceira e derradeira etapa da
existência humana e nem uma vida de isolamento e de desprendimento conseguem travar esta certeza
inabalável.
A vontade de George em saldar as contas com o seu passado é também o reencontro com as memórias
do passado, com a jovem subversiva e transgressora, mas também com a idosa incapacitada de pintar e que
relembra, a custo, o passado em que as escolhas foram feitas.
O encontro com o fantasma do futuro, a velha Georgina, é a certeza de que a condição de exílio que a
personagem para si escolheu ao negar casas próprias, mobílias ou bibelots que carregam recordações levou
a uma existência “desertificada”, tão árida quanto os quartos e as casas alugadas.
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