01 O Espetáculo Da Violência No Telejornal Sensacionalista

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E MERCADO

JAIME CARLOS PATIAS

O ESPETÁCULO DA VIOLÊNCIA NO TELEJORNAL SENSACIONALISTA

Uma análise do “Brasil Urgente”

São Paulo,
Primeiro Semestre de 2005
FACULDADE CÁSPER LÍBERO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E MERCADO

JAIME CARLOS PATIAS

O ESPETÁCULO DA VIOLÊNCIA NO TELEJORNAL SENSACIONALISTA

Uma análise do “Brasil Urgente”

Dissertação apresentada como exigência


parcial para a obtenção do título de Mestre no
curso de Pós-Graduação (Stricto Sensu), da
Faculdade Cásper Líbero, sob a orientação do
Prof. Dr. Cláudio Novaes Pinto Coelho.

São Paulo,
Primeiro Semestre de 2005
BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

__________________________________________

__________________________________________
Dedico este estudo aos meus pais, Arlindo e Maria que me transmitiram a vida;
Aos meus irmãos e irmãs pelo carinho e estima;
Ao Instituto Missões Consolata, pelo apoio e compreensão;
Às vítimas da violência transformadas em espetáculo mediático
e aos “bodes expiatórios” inocentes.
Agradeço a Deus, fonte da vida, que não mais deseja sacrifícios, mas misericórdia;
Aos professores do Mestrado da Faculdade Cásper Líbero;
Aos membros da Banca, Prof. Dr. Jung Mo Sung (PUC-SP) e Prof. Dr. Sidney
Ferreira Leite, pela atenção e dedicação em apontar o caminho;
Ao Prof. Dr. Cláudio Novaes Pinto Coelho pelo estímulo e firmeza na orientação e aos
colegas do Grupo de Estudo “Sociedade do Espetáculo”, pelas instigantes reflexões.
RESUMO

Um dos grandes desafios da comunicação na sociedade atual, em que os


conglomerados financeiros controlam cada vez mais a mídia, é o de preservar a autêntica
vocação do jornalismo: garantir o direito à liberdade de expressão e informação baseada na
verdade e objetividade, visando esclarecer os cidadãos e incentivar a cidadania. O
jornalismo tido como sério não é o único noticiário a ocupar a programação televisiva
brasileira. Temos outro gênero usualmente conhecido como sensacionalista, no qual a
violência domina grande parte das reportagens e cuja forma se distingue do jornalismo
comum. O presente estudo faz uma análise crítica do conteúdo, forma e estilo do telejornal
sensacionalista que noticia a violência, o crime e as mazelas vividos pela população da
Grande São Paulo, utilizando imagens e linguagem características do espetáculo. A análise
se baseia em matérias do programa “Brasil Urgente”, produzido e exibido pela TV
Bandeirantes. Auxiliada por helicópteros, motolinks e repórteres nas ruas, a produção
apresenta os fatos ao vivo, com riqueza de detalhes e forte apelo emocional, visando prender
a atenção do público. O gênero estabelece uma comunicação baseada no chocante, no fait
divers, no anormal que cria grande expectativa, mas que perde o seu impacto inicial logo
que a história é mostrada e consumida pelo telespectador.

O estudo considera o gênero sensacionalista um produto da indústria cultural e da


sociedade do espetáculo, que se renova continuamente para se adaptar à lógica mercantil.
Essa idéia é reforçada pela constante fusão da notícia com a publicidade de mercadorias,
mas também pela venda de soluções de fácil consumo, chegando a explorar até mesmo o
desejo que a sociedade tem de acabar com a violência. A população sente que já não pode
mais contar somente com o trabalho das instituições legítimas para resolver seus problemas.
Ante a ineficiência do sistema judiciário e do Estado na administração de crises, abre-se a
possibilidade para o surgimento de outros mecanismos, como os telejornais sensacionalistas.
Quanto ao referencial teórico, o trabalho se apóia na crítica de Theodor Adorno e Max
Horkheimer evocando o conceito de indústria cultural, nos pressupostos de Guy Debord
sobre a sociedade do espetáculo e no pensamento de René Girard acerca da violência e dos
mecanismos de controle. Outros autores da área da comunicação são igualmente visitados.
ABSTRACT

One of communications biggest challenges in today’s society, where large financial


corporations increase their control over the mass media, is to preserve the authentic vocation
of journalism, i.e.: to guarantee the right of freedom of expression and information based on
the truth and objectivity, aiming at clarifying matters to the citizens and stimulating
citizenship. Serious journalism is not the only one to be present on Brazilian television. There
is another kind of journalism, known as “sensacionalista” (sensationalistic journalism), where
violence dominates great part of the news. This kind of journalism is distinguished from the
common one. The present study makes a critical analysis of the content, form and style of
“sensationalistic TV News” which report the violence, the crime and the struggles of the
population of “Great” São Paulo, using images and languages characteristics of the show
(spectacle). The analysis is based on the news reported in the program “Brasil Urgente”,
produced and showed by Bandeirantes Television. Helped by helicopters, motolinks and
reporters on the street, the production shows the facts live, with an impressive richness of
details and with a strong appeal to the emotional, aiming at capturing viewer’s attention. This
style of journalism establishes a communication based on the shock, in fait divers, in the
abnormal that creates a large expectation, but looses the initial impact as the report is viewed
and “consumed” by the viewer.
The study considers the form of the sensationalistic journalism a product of the cultural
industry and of the show society, which renews itself by adapting to market logic. This idea
is strengthened by the fusion of the news with the advertising of merchandise, which present
easy solutions, exploiting the desire of society to end up with violence. The population feels
that it cannot count only on legal institutions to solve their problems. Therefore, before the
inefficiency of the judicial system and the incapability of the government to administer the
crisis, it opens the doors to the sprouting of other mechanisms, like “sensationalistic
journals”. As a theoretical support, this study is based on the critics of Theodor Adorno and
Max Horkheimer evoking the concept of the cultural industry, in the investigations of Guy
Debord about the “society of the spectacle” and in the thought of René Girard about the
“violence and mechanisms of its control”. Other authors in the communication area are
equally presented.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................10

I - O TELEJORNAL SENSACIONALISTA

NO CONTEXTO DA INDÚSTRIA CULTURAL .................................................19

1. 1 Contextualização ..................................................................................................21

1. 2 A Indústria Cultural..............................................................................................22

1. 2. 1 A ideologia dominante ..............................................................................24

1. 2. 2 A padronização e a necessidade de consumo ............................................26

1. 3 A Indústria Cultural no Brasil ..............................................................................28

1. 4 O rádio e a televisão no Brasil..............................................................................31

1. 5 O gênero sensacionalista ......................................................................................38

1. 5. 1 Sensacionalismo no telejornalismo ...........................................................42

1. 6 Críticas aos programas sensacionalistas...............................................................48

1. 6. 1 Mudanças nos programas .................................................................................52

1. 7 O telejornal “Brasil Urgente” ...............................................................................55

1. 8 Um espetáculo de violência..................................................................................62

1. 9 A sociedade do espetáculo ...................................................................................63

II - A VIOLÊNCIA E O SAGRADO .............................................................................76

2. 1 Considerações iniciais..........................................................................................78

2. 2 A obra de Girard ..................................................................................................80

2. 3 O desejo mimético ...............................................................................................83


2. 4 O Bode Expiatório ...............................................................................................90

2. 5 Estereótipos de perseguição.................................................................................94

2. 6 A violência e o sagrado........................................................................................98

2. 7 Violência purificadora e violência impura...........................................................104

2. 8 A passagem do ritual sacrificial para o sistema judiciário...................................108

III - ANÁLISE DO PROGRAMA “BRASIL URGENTE”..........................................114

3. 1 Considerações preliminares.................................................................................116

3. 2. As pesquisas sociais............................................................................................117

3. 3 Tudo acontece em tempo presente.......................................................................128

3. 4 Linguagem popular..............................................................................................134

3. 5 O humor de Datena..............................................................................................137

3. 6 Contradições evidentes ........................................................................................142

3. 7 Violência e emoção em doses exageradas...........................................................147

3. 8 Repetição e riqueza de detalhes...........................................................................154

3. 9 A reprodução do Bode Expiatório no telejornal..................................................161

3. 10 O Brasil Urgente substitui o Sistema Judiciário................................................167

3. 11 Um telejornal “justiceiro”..................................................................................174

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................184

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................194

ANEXO......................................................................................................................201
INTRODUÇÃO

A essência do jornalismo funda-se nos princípios democráticos, nos quais o poder


emana do povo e em seu nome é exercido. Os direitos à informação e à liberdade de
expressão são fundamentais para que o jornalismo possa cumprir sua função primordial,
qual seja, ser mediador do espaço público e informar os fatos que interessam à sociedade
para o pleno exercício da cidadania. É assim que a ética jornalística funda-se na verdade,
honestidade e objetividade. Entretanto, observando a programação televisiva brasileira
constatamos a presença de uma outra espécie de noticiário, que foge aos padrões normais
do jornalismo de qualidade, e que é comumente chamado de sensacionalista. O gênero, no
seu estilo e forma, tende a explorar o extraordinário, o anormal, o fait divers, utilizando-se
da linguagem do espetáculo e imagens chocantes que prendem a atenção do público,
provocando impacto e consumo imediato. O conteúdo predominante é aquele do crime, da
violência, da tragédia, do escândalo, supervalorizando a emoção em detrimento da
informação.

Atualmente, os principais telejornais sensacionalistas que ocupam o horário


vespertino são o “Brasil Urgente” na TV Bandeirantes, o “Cidade Alerta” na TV Record e o
“Repórter Cidadão” na Rede TV. Em outro horário, a TV Globo exibe o “Linha Direta”,
também considerado um programa do gênero. Ao mesmo tempo em que a sociedade em
geral busca caminhos para eliminar ou diminuir a violência, a forma como esses programas
tratam a questão, salvo raras exceções, é caracterizada mais pelo espetáculo do que pela
busca de soluções. Por essa razão, programas do gênero vêm recebendo críticas de grupos e
entidades preocupados com a ética e a qualidade na comunicação.

A campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, lançada em 2003,


desponta como principal fomentadora do debate. Promovida pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados e apoiada por mais de cinqüenta entidades parceiras da
sociedade civil, a campanha visa a promoção dos direitos humanos e a dignidade do
cidadão na mídia. A cada três meses é divulgado o ranking dos programas que mais

10
recebem reclamações e, ultimamente, a campanha passou a relacionar também os
anunciantes. Aos poucos, as próprias redes de televisão começaram a reconhecer certos
excessos e, pressionadas, passaram a se preocupar mais com a qualidade de sua
programação. Essa sensibilidade trouxe algumas mudanças, mas os programas continuam.

Por suas características, consideramos o telejornal sensacionalista como um produto


da indústria cultural, onde mais do que informar, transforma os fatos em espetáculo, o que
contribui para ampliar a audiência a ser vendida aos anunciantes. Além de consumir um
espetáculo de violência, o telespectador consome as soluções imediatas apresentadas, tendo
a sensação de que o programa realmente resolve os problemas. A essência do gênero se
conserva, mesmo que o noticiário, à semelhança dos produtos de consumo, se renove
continuamente assumindo uma nova roupagem, ou até mesmo dando lugar a novos. Além
da pressão pela melhoria na qualidade da programação, as regras do próprio mercado
podem ter influenciado a mudança nos telejornais. Isso revela um certo condicionamento
dos programas aos anunciantes, o que reforça a idéia de que essa produção se encontra
identificada com os produtos que circulam no mercado.

Nos telejornais sensacionalistas, os debates mais sérios realizados por pessoas e


instituições que combatem a violência são praticamente ignorados. Longe de encontrar
soluções objetivas, o gênero faz da violência mais um produto de consumo vendido
juntamente com as mercadorias e serviços oferecidos pelos patrocinadores. Além disso,
intensifica-se a fusão entre aquilo que é noticiado e os bens de consumo apresentados nas
publicidades que financiam a produção. Notícias, eventos, violência, dramas, publicidade,
tudo gira em torno do consumo.

Por essas e outras razões, os telejornais sensacionalistas tornam-se foco de pesquisa


nos estudos da mídia na sociedade contemporânea. A temática está em plena sintonia com
os estudos da “comunicação e mercado”, área de concentração do nosso programa de
mestrado. O objetivo do presente trabalho é analisar de maneira particular o que se esconde
por trás do conteúdo, do formato e do estilo espetacular adotado pelo gênero sensacionalista
de telejornal ao retratar a violência e os problemas da sociedade. A análise é baseada em

11
matérias exibidas pelo telejornal “Brasil Urgente”, que por suas características, serve como
parâmetro para o gênero em geral. A intenção é perceber na mensagem, aspectos que à
primeira vista não são captados ou entendidos pelo telespectador, porque se encontram
escondidos na forma e estilo espetacular adotado pelo programa e seu apresentador.

O “Brasil Urgente” é produzido e exibido pela TV Bandeirantes nas tardes de


segunda a sábado. Apresentado por José Luiz Datena, o programa usa recursos tecnológicos
como helicópteros equipados com câmeras de longo alcance e motolinks com repórteres nas
ruas para mostrar em tempo presente e em detalhes, a violência, os crimes, as tragédias, os
cadáveres, o sangue, os escândalos. Dramas vividos pela população invadem a sala do
telespectador. O espetáculo toma o lugar do telejornalismo iluminista, fazendo da notícia
um show espetacular e, ao mesmo tempo, cínico, chegando, por vezes, a enaltecer a própria
violência que deseja combater, além de desrespeitar os direitos humanos.

Vivemos em uma sociedade com altos índices de violência, onde as instituições do


Estado e o sistema judiciário são incapazes de dar conta da situação. Diante disso,
telejornais como o “Brasil Urgente” não se limitam a noticiar os fatos, mas se transformam
em um espaço de reivindicações. Tem-se a impressão de que a produção organiza
verdadeiros tribunais paralelos, com o objetivo de prender, julgar e ditar penas aos
infratores. Levantamos a hipótese do telejornal sensacionalista ser um mecanismo
substituto do sistema judiciário na resolução dos problemas. Estamos diante da apropriação
e da inversão dos papéis sociais. Datena, utilizando uma linguagem popular, identifica-se
com o povo e se apresenta como o justiceiro, o “mediador” eletrônico, a voz e vez dos
excluídos para cobrar das instituições os seus direitos. Entretanto, ao mostrar o crime, os
bandidos, a ação da polícia, quase que exclusivamente no meio dos pobres e favelados,
retrata esses grupos como violentos, bandidos e potenciais criminosos, reforçando os
estereótipos presentes na sociedade. Além disso, quando as reivindicações são
transformadas em espetáculo, elas são esvaziadas de seu poder de crítica e dificilmente se
convertem em ações concretas.

Considerando a temática em estudo, o referencial teórico se apóia fundamentalmente


na crítica elaborada por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, que cunharam o termo

12
indústria cultural no livro “Dialética do Esclarecimento” publicado em 1947, e que se
tornou central para os estudos culturais e as análises da mídia. Os teóricos da escola de
Frankfurt criaram o conceito de indústria cultural para reforçar a idéia de que os bens
culturais se convertem em mercadoria. Eles referiam-se ao processo de subordinação da
consciência à racionalidade capitalista, chegando ao extremo de os próprios seres humanos
se tornarem produtos de consumo. Sua relação com as outras pessoas e com a natureza
depende de uma cultura de mercado, que os impede de se tornarem indivíduos autônomos,
independentes e capazes de julgar e de decidir conscientemente. Tal dependência tem sua
mola propulsora no desejo de posse, constantemente renovado pelo progresso técnico e
científico controlado pelo mercado. Na opinião de Adorno e Horkheimer, na indústria
cultural quase tudo se torna negócio, e enquanto tal, seus fins comerciais são realizados por
meio da sistemática exploração de bens considerados culturais. Apesar de trazer
desenvolvimento técnico e científico, as soluções apresentadas pela indústria cultural aos
problemas da humanidade são apenas aparentes.

Um segundo conceito importante que iluminará o nosso percurso é o da “sociedade


do espetáculo”, desenvolvido por Debord e seus companheiros na Internacional
Situacionista, no final da década de 60 do século passado. Ao analisar o capitalismo, o
autor constata um acúmulo de imagens que dá origem à sociedade do espetáculo, uma das
marcas da contemporaneidade. Estabelece-se um predomínio da imagem à coisa, da cópia
ao original, da representação à realidade, da aparência ao ser. Para Debord, o espetáculo é a
ideologia por excelência, porque revela a essência de todo sistema ideológico, que consiste
no empobrecimento, na sujeição e na negação da vida real, sobressaindo-se a aparência. A
sociedade do espetáculo se caracteriza pela generalização do fetichismo da mercadoria que
invade a vida cotidiana. O conceito aponta para uma sociedade de mídia e de aquisição,
organizada em função da produção e consumo de imagens, mercadorias e eventos culturais.
O espaço, o tempo, o lazer, a cultura, a arte, a comunicação etc., são perpassados por esta
alienação generalizada.

O autor descreveu a sociedade de consumo como uma sociedade de imagens,


adquiridas esteticamente. O ponto de partida é o mercado (produção), acompanhado do

13
consumo do espetáculo. Não vivemos mais as nossas próprias experiências, os modelos são
os que vivem em nosso lugar: “tudo o que era vivido diretamente torna-se uma
representação” (Debord, 1997:#1). 1
As relações humanas passam pelo intercâmbio
mercantil e a mercadoria ocupa totalmente a vida social. O espetáculo “não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens” (Ibid.:# 4).

Além disso, com sua vida e experiências moldadas pelos espetáculos da cultura e da
mídia, o ser humano deixa de ser sujeito ativo de sua própria história, passando a ser
submisso aos espetáculos consumistas. Na sociedade de consumo, a lógica do espetáculo
não permite reconhecer o próprio espetáculo produzido. Não vemos, não percebemos, é
diário e contínuo. São várias dimensões: quando divulgamos idéias, notícias, produtos,
imagens, estamos produzindo espetáculo.

No tocante à temática da violência, principal conteúdo veiculado pelos telejornais


sensacionalistas, e sobre o papel que esses programas assumem na sociedade, a nossa
reflexão apóia-se no pensamento de René Girard. No debate sobre o fenômeno da
violência, tema essencial de suas investigações, o pensador francês adquire um interesse
renovado, pouco conhecido no Brasil. No nosso estudo apresentamos apenas alguns
elementos contidos na vasta obra do autor, que servirão para iluminar a análise do
telejornal; nomeadamente sua teoria sobre o desejo mimético de apropriação, o bode
expiatório, a violência e o sagrado, o conceito de violência purificadora e impura e os
mecanismos de controle da violência na sociedade como o ritual sacrificial e o sistema
judiciário.

Para Girard, a mola deflagradora da violência é o desejo mimético. Movido pelo


desejo, o indivíduo abdica de sua capacidade de escolha; ele não escolhe mais os objetos de
seu desejo, é o outro (um modelo) que deve escolher por ele. A mímesis de apropriação está
ligada à luta por possuir um objeto desejado indicado por um modelo/rival, que acaba por
possuir até mesmo o próprio desejo do outro. Dessa forma se desencadeia a violência. Os

1
As citações do livro “Sociedade do Espetáculo” neste texto seguem a edição brasileira de 1997 e a
numeração dos parágrafos serão assim sinalizados (#).

14
comportamentos de apropriação mimética geradores de conflitos e rivalidades precisam ser
continuamente exorcizados pelo sacrifício de vítimas expiatórias.

Para o autor, a construção do bode expiatório é um mecanismo de controle da


violência. As sociedades têm suas bases estruturais enraizadas na violência descarregada
sobre um bode expiatório escolhido entre grupos excluídos, ou que quase não tem nenhum
vínculo com a sociedade, para garantir que não seja vingado por alguém. Uma vez
sacrificado, o bode expiatório, que era considerado a causa da crise, passa a ser a fonte da
reconciliação. Depois da sua morte, ele é semidivinizado. Ao ser executada, a vítima
dissipa a violência, a desordem, possibilitando o retorno da ordem. Surgem assim, a cultura
e as primeiras instituições dedicadas à prevenção da desordem, ou seja, ao controle da
rivalidade mimética.

Na economia de mercado da sociedade contemporânea, o desejo mimético age no


sentido de criar concorrência, o que impulsiona o sistema capitalista. O indivíduo é levado
a escolher o objeto (bens de consumo) que o outro (um modelo) indicar, ao desejar o
mesmo objeto. A propriedade de um determinado bem gera o reconhecimento pelo outro,
porque o outro que reconhece também deseja e valoriza a mesma coisa. Assim, o meio para
realizar o desejo de ser reconhecido pelo outro é desejar possuir o objeto desejado por ele.
Neste sentido, o desejo mimético encontra um campo fértil de atuação.

Nas suas investigações, Girard argumenta que os rituais sacrificiais, praticados nas
sociedades arcaicas foram posteriormente substituídos, nas modernas, pelo sistema
judiciário (instituição amparada pelo Estado). A função permanece a mesma: a
administração da violência. No entanto, na resolução de crises geradas pela violência, o
sistema judiciário é muito mais eficaz.

Outro aspecto importante em Girard é a idéia de violência purificadora e violência


impura. Independentemente das instituições, para que elas realmente exerçam a função de
legítimas representantes da sociedade na prevenção e resolução da desordem, é preciso
haver algo que distinga a violência legítima (purificadora) da violência comum (impura).
Nos rituais, a violência do sacrifício produz o sagrado e sacraliza a violência,

15
transformando-a em violência purificadora, utilizada para expulsar a violência impura
(comum). Esse mecanismo faz acreditar numa diferença entre a violência legítima e
ilegítima impedindo a contestação, que poderia criar um círculo vicioso de vingança. Dessa
forma, a violência do sacrifício tem íntima relação com o sagrado. Nas sociedades
modernas, o sistema judiciário, ao fazer valer a justiça, pratica a violência purificadora.

Acontece que, na sociedade de hoje, o sistema judiciário encontra-se enfraquecido e


já não consegue responder satisfatoriamente à contenção da violência. Abre-se assim, a
possibilidade para o surgimento de outros mecanismos. Por suas características, os
programas sensacionalistas parecem posicionar-se como representantes legítimos do poder
na busca de soluções. Nessa perspectiva, o conceito de violência purificadora e violência
impura em Girard, pode ajudar a refletir sobre o papel desempenhado por tais programas,
nas sociedades onde instituições legítimas se encontram em crise.

Como amostra para a nossa análise utilizamos o conteúdo de 5 edições do telejornal


“Brasil Urgente” gravadas entre os meses de junho de 2003 e junho de 2004. Do vasto
material, escolhemos 7 reportagens exibidas em três das edições. A transcrição das matérias
se encontra em anexo no final do trabalho.

O nosso estudo consta de três partes que, em seu conjunto, abrangem a questão que
nos propomos analisar: o espetáculo de violência no telejornal sensacionalista. O primeiro
capítulo tem por objetivo contextualizar o tema da pesquisa. Iniciamos evidenciando a
presença do gênero sensacionalista de telejornal na programação televisiva brasileira hoje.
Esse gênero de noticiário, que foge aos padrões normais do jornalismo tido como sério,
mesmo que pretenda informar, está mais voltado à produção de espetáculo e ao consumo de
soluções imediatas, motivo pelo qual pode ser considerado um produto da indústria cultural
e da sociedade de consumo. Concentramos nossa atenção no programa “Brasil Urgente”
que noticia fatos violentos, tragédias e crimes, utilizando imagens e linguagem chocante,
com forte apelo emocional.

O capítulo apresenta ainda a teoria crítica elaborada pela Escola de Frankfurt,


destacando o conceito de “indústria cultural”, entendido como a conversão da cultura em

16
mercadoria. A seguir, faz uma breve descrição da difusão da indústria cultural no Brasil,
que se dá principalmente através da implantação do rádio e da televisão. Importante neste
capítulo é a distinção entre o jornalismo de qualidade e o gênero sensacionalista. Outro
tema relevante desenvolvido na primeira parte do nosso estudo é o conceito de “sociedade
do espetáculo” proposto por Debord e que pela temática em estudo se torna conteúdo
indispensável para aprofundar a reflexão sobre a sociedade contemporânea através da
produção e consumo do espetáculo. No desenrolar do capítulo, estudos de outros autores
contemporâneos na área da comunicação e da sociedade servirão igualmente de suporte
para a nossa discussão. Dentre eles destacamos Ciro Marcondes Filho, Muniz Sodré,
Ignácio Ramonet, Renato Ortiz, Arlindo Machado, Douglas Kellner, Malena Segura
Contrera, Ana Rosa Ferreira Dias, Rosa Nívia Pedroso, Danilo Angrimani, Sebastião
Squirra e Eugênio Bucci.

O segundo capítulo discorre sobre o fenômeno da violência, tão presente nas


reportagens dos programas sensacionalistas. Mais do que analisar o impacto que a violência
mostrada na TV tem sobre o público, o estudo se concentra no papel reivindicado pelos
programas do gênero que, na sociedade contemporânea, surgem em substituição ao sistema
judiciário no combate à violência e à ilegalidade. Diante da incapacidade de conter a
violência através das instituições legítimas, os programas apresentam-se como fatores
ordenadores da sociedade em crise.

Para essa parte nos apoiamos no pensamento de Girard, cada vez mais valorizado na
compreensão da questão. Em seus estudos sobre as raízes da violência e os mecanismos
para solucionar as crises por ela desencadeadas, o autor vê esse fenômeno presente na base
mesma de toda a cultura humana e da sociedade. Para ele, a violência está diretamente
relacionada ao sagrado, o que abre novas perspectivas de debate, pouco comum nos estudos
da comunicação.

Esclarecemos de antemão que o capítulo não visa fazer um estudo sobre Girard, mas
apenas destacar alguns elementos da sua teoria que ajudarão a analisar o telejornal “Brasil
Urgente” em complementação aos estudos de Adorno, Horkheimer e Debord, apresentados
no primeiro capítulo.

17
Dentre os principais aspectos do pensamento girardiano tratados neste capítulo
destacamos os conceitos de desejo mimético, do bode expiatório e principalmente a
concepção de violência purificadora e impura. O pano de fundo é a estreita relação entre a
violência e o sagrado. O capítulo descreve também os mecanismos que a sociedade, ao
longo da história, encontrou para fazer frente à violência que a ameaça destruir, desde os
rituais sacrificiais nas sociedades arcaicas estudadas por Girard, à substituição pelo sistema
judiciário, nas modernas. Ante a ineficiência do presente sistema legítimo na administração
da violência, abrem-se possibilidades para o surgimento de outros mecanismos.

No terceiro e último capítulo nos propomos a analisar o conteúdo e o estilo do


telejornal “Brasil Urgente” à luz do referencial teórico apresentado ao longo dos capítulos
precedentes, nomeadamente a crítica elaborada por Adorno e Horkheimer sobre a indústria
cultural, o conceito de sociedade do espetáculo desenvolvido por Debord e o pensamento
de Girard, sobre a violência. Levamos em consideração também as contribuições de outros
autores ligados ao estudo da comunicação. O objetivo é entender o que se esconde por trás
da mensagem, da forma e do estilo adotado pelo telejornal sensacionalista que retrata o
crime, a violência e as mazelas da sociedade em crise, utilizando-se de elementos
característicos da sociedade do espetáculo e consumo.

Finalizando, teceremos algumas considerações, sem a pretensão de fechar o debate.


Elas visam ajudar no aprofundamento das questões levantadas durante o estudo, bem como
suscitar novas investigações.

18
I

O TELEJORNAL SENSACIONALISTA
NO CONTEXTO DA INDÚSTRIA CULTURAL

19
O primeiro capítulo do nosso trabalho traça um panorama sobre a presença do gênero
sensacionalista de telejornal na programação televisiva brasileira hoje, principal foco do
nosso estudo. Nos concentramos no telejornal “Brasil Urgente”, produzido e exibido pela
Rede Bandeirantes, que pelo seu conteúdo, estilo e formato, serve como parâmetro para a
compreensão do gênero em geral. Ao destacarmos as principais características dos
programas sensacionalistas, consideramos a criação do gênero como produto da indústria
cultural uma vez que o telejornal, mesmo que idealizado para informar, é produzido para
ser consumido e criar espetáculo. Esta primeira parte visa contextualizar o tema de
pesquisa.

Nesse sentido, trazemos para a nossa reflexão a teoria crítica elaborada pela Escola de
Frankfurt, apresentando o conceito de “indústria cultural”, entendido como a conversão da
cultura em mercadoria. A seguir, o capítulo aborda a propagação da indústria cultural no
Brasil e a implantação do rádio e da televisão como principais meios de sua difusão no país.
No mesmo contexto, desenvolvemos também o conceito de “sociedade do espetáculo”,
apresentado por Debord nos anos 1960, mas cada vez mais atual, que nos ajudará a refletir
a temática proposta. Reproduzindo na tela um espetáculo de violência e tragédia, o gênero
sensacionalista é em si mesmo uma criação que obedece a lógica da sociedade do
espetáculo. Nessa perspectiva, noticiários com características de entretenimento contribuem
para um acúmulo de espetáculo sempre maior. Ao longo do capítulo, investigações de
outros autores contemporâneos ligados aos estudos da comunicação e da sociedade servirão
igualmente de suporte para a nossa discussão. O objetivo é entender o que se esconde por
trás da mensagem, da forma e do estilo adotado pelo telejornal sensacionalista que retrata o
crime, a violência e as mazelas da sociedade em crise.

20
1. 1 Contextualização

Na primeira metade do século XX o mundo assistiu ao desenrolar de acontecimentos


importantes, dentre os quais duas grandes guerras, a ascensão de movimentos totalitários
(como o nazismo e o fascismo), o fortalecimento da industrialização e a conseqüente
explosão demográfica das cidades; a formação de mercados consumidores, capazes de
adquirir os produtos oriundos desses progressos industriais, a conquista de importantes
direitos trabalhistas... Todos esses fatores trouxeram alterações significativas nas
sociedades e, como a cultura está inserida dentro dessa realidade social, estas mudanças
também acabaram por refletir nas produções artísticas, no modo de pensar e de fazer a arte
e o entretenimento.

Foi dentro desse contexto de transformações que a cultura de massa adquiriu força.
Este novo modelo cultural começou a se delinear nos Estados Unidos, espalhando-se pelos
demais países ocidentais. Através da cultura de massas, os produtos culturais, antes
privilégio das elites, ficaram à disposição do grande público: o trabalhador da fábrica, o
mercador, o artesão, a dona-de-casa e o agricultor semi-anafalbeto tiveram acesso a um
mundo antes desconhecido, através da leitura de jornais e revistas ou da escuta de um
noticiário radiofônico; a explosão das produções cinematográficas e dos documentários
possibilitou que as pessoas comuns pudessem conhecer um pouco mais sobre a cultura e os
costumes de locais diferentes dos que estavam habituadas a freqüentar.

Na sua essência, à primeira vista, a cultura de massa é positiva, na medida em que


propõe uma democratização da cultura, fazendo com que todas as classes sociais tenham
acesso à produção artística. Por outro lado, a cultura de massa foi e continua sendo alvo de
críticas por parte de teóricos e intelectuais, pois, para conseguir a democratização, ela
promove um outro fenômeno: a mercantilização de produtos culturais, submetendo-os à “lei
da oferta e da procura”. Seus produtos são produzidos em escala industrial; livros e jornais
são impressos com grandes tiragens; os programas de televisão são produzidos com o
objetivo prévio de atingir uma elevada audiência e, conseqüentemente, lucrar mais com a
publicidade.

21
Em meados dos anos 40 do século XX, Adorno e Horkheimer, pensadores da
conhecida Escola de Frankfurt, elaboraram sua teoria crítica, colocando no centro da
questão o conceito de “indústria cultural”, que denunciava uma sociedade movida pelo
consumo. Para o nosso estudo, consideramos a crítica elaborada pelos autores
frankfurtianos a mais apropriada para analisar a produção e comercialização de bens
culturais. A obra que difundiu o conceito de indústria cultural, é ainda hoje válida para
traçar uma análise da sociedade contemporânea. 2

No entender de Adorno e Horkheimer, a indústria cultural não é mais do que uma


imposição mercadológica que promove (autoritariamente) a integração da arte “superior”,
erudita, com a “arte inferior” e que visa, unicamente, o lucro; os bens culturais são vistos
como uma simples mercadoria, algo que só é valorizado se possibilitar um retorno
financeiro. Outro ponto criticado pela maioria dos teóricos, é a falta de originalidade desses
produtos, que se limitam a copiar ou remodelar algo já difundido pela “cultura superior”. O
que se apresenta como algo original “não é mais do que a representação, sob formas sempre
diferentes, de algo que é sempre igual...” (Wolf, 1987:76).

1. 2 A Indústria Cultural

A expressão “indústria cultural” foi empregada pela primeira vez na “Dialética do


Esclarecimento” 3, publicada em 1947 por Adorno e Horkheimer, em Amsterdã. No início
se falava em “cultura de massas”. Os filósofos substituíram esta expressão por “indústria

2
Várias correntes se propuseram a estudar este fenômeno da cultura de massa. Dwight MacDonald, nos anos
30, desenvolveu uma proposta menos radical, que agrupa os produtos culturais em três níveis: a cultura de
vanguarda, o midcult e o masscult. O kitsch foi um outro conceito, concebido na Alemanha, que veio reforçar
a divisão dos três níveis e se aproximou daquilo que MacDonald definiu como midcult. Algo que já vem com
um efeito produzido, que nada tem de original e já foi intensamente consumido. Para ser novamente aceito,
ele tem de se revestir de um pseudo-ineditismo, vendendo-se como arte, como uma experiência individual e
intransferível. Cf., Dwight MACDONALD, In: Umberto ECO, Apocalípticos e Integrados, p.81ss.
3. Theodor ADORNO e Max HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985. Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) fizeram parte de
um grupo de pensadores que produziram obras de tal importância a ponto de constituírem uma corrente de
pensamento, posteriormente chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. A fundação do Instituto de
Pesquisas Sociais de Frankfurt, em 1924, reuniu autores – entre os quais mereceram destaque Adorno,
Benjamin e Horkheimer, que produziram reflexões críticas sobre a economia, a sociedade e a cultura do seu
tempo, a maioria veiculada nas páginas da Revista de Pesquisa Social – na qual pensadores como Herbert
Marcuse e Erich Fromm publicaram também os seus trabalhos.

22
cultural”, para desligá-la do sentido dado por seus defensores: o de que se tratava de uma
cultura que brotava espontaneamente das próprias massas como uma espécie de arte
popular. Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural era exatamente o oposto: uma
cultura adaptada aos produtos e determinada pelo consumo dos mesmos, num círculo
vicioso. Estamos diante da exploração, com fins comerciais e econômicos, de bens
considerados culturais. Noutras palavras, a expressão designa uma prática social, através da
qual a produção cultural e intelectual passa a ser orientada em função de sua possibilidade
de consumo e mercado.

Na obra “Dialética do Esclarecimento”, os nossos pensadores defendem que o


Iluminismo, tido como um esforço consciente de valorização da razão e abandono de
preconceitos tradicionais, que almeja o progresso da humanidade em todos os aspectos e,
mais ainda, a liberdade de pensamento, não atingiu seus objetivos nem se manteve fiel aos
seus princípios; ao contrário, contribuiu para o que eles chamam de “antiiluminismo”: o
aparecimento de uma nova forma de mistificação, bancada agora pela ciência e pela
tecnologia. A indústria cultural impede a formação de indivíduos autônomos,
independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. O indivíduo é levado a não
meditar sobre si mesmo e sobre a totalidade do meio social circundante, transformando-se
com isso em mero joguete, e, afinal, em simples produto que alimenta o sistema que o
envolve.

Adorno e Horkheimer recordam que


o entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam muito tempo antes dela.
(...) A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em
princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter
despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das
mercadorias (1985:126).

Os pensadores da Teoria Crítica empenharam-se em refletir filosoficamente sobre a


realidade vigente. Aquela em que viveram estava sofreu várias transformações,
principalmente, na dimensão econômica. O comércio se fortaleceu após as revoluções
industriais ocorridas na Europa e, com isso, o capitalismo se estruturou definitivamente,
principalmente com as novas descobertas científicas e, conseqüentemente, com o avanço

23
tecnológico. A pessoa humana perdeu a sua autonomia. Como conseqüência, a humanidade
se tornou cada vez mais desumanizada. O domínio da razão humana, que no Iluminismo era
como uma doutrina, passou a dar lugar ao domínio da razão técnica. Os valores humanos
foram deixados de lado em troca do interesse econômico. O que passou a reger a sociedade
foi a lei de mercado: quem consegue acompanhar esse ritmo e essa ideologia de vida, talvez
possa sobreviver; aquele que não consegue é jogado à margem.

1. 2. 1 A ideologia dominante

Segundo Adorno e Horkheimer, na indústria cultural tudo se torna negócio. Enquanto


negócio, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais. Portanto, podemos dizer que a indústria cultural
traz consigo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce
um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual atribui
sentido a todo o sistema.

É importante salientar que, para Adorno e Horkheimer, a pessoa humana nessa


indústria cultural, não passa de mero instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto.
O indivíduo é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma
extensão do trabalho. Portanto, o homem ganha um coração-máquina. Tudo que ele fará,
fará segundo esse coração-máquina, isto é, segundo a ideologia dominante. A indústria
cultural, que tem como guia a racionalidade técnica esclarecida, prepara as mentes para um
esquematismo por ela própria oferecido e que aparece para os seus usuários como um
“conselho de quem entende”. O consumidor não precisa se dar ao trabalho de pensar, é só
escolher. É a lógica do clichê. Esquemas prontos que podem ser empregados
indiscriminadamente, tendo como única condição a aplicação ao fim a que se destinam.

Os autores dizem que nada escapa à voracidade da indústria cultural:


ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao
pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio,
passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de
seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele
para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da
espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos.

24
Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidade em virtude de sua própria constituição
objetiva (Adorno e Horkheimer,1985:119).

Fica claro portanto a grande intenção da indústria cultural: obscurecer a percepção de


todas as pessoas, principalmente, daqueles que são formadores de opinião. Ela é a própria
ideologia. Os valores passam a ser regidos por ela. Até mesmo a felicidade do individuo é
influenciada e condicionada por essa cultura.

Os mecanismos da indústria cultural são tão fortes que ninguém consegue resistir.
A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os
produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão
consumir alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que
desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se
assemelha ao trabalho. (...) Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural
reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo (Ibid.:119).

O consumidor não é, como a indústria cultural gostaria de fazer acreditar, o soberano,


o sujeito dela, mas antes o seu objeto. A indústria cultural abusa na sua consideração para
com as massas a fim de duplicar, consolidar e reforçar sua mentalidade, pressuposta como
imutável. Tudo que poderia servir para transformar esta mentalidade, é por ela excluído. As
massas não são o critério em que se inspira a indústria cultural, mas antes, a sua ideologia.

As mercadorias culturais da indústria se orientam pelo princípio da sua valorização e


não pelo próprio conteúdo ou forma. A práxis conjunta da indústria cultural transfere a
motivação pelo lucro. A partir do momento em que foram introduzidas no mercado,
propiciando sustento a seus autores, as mercadorias participam de algum modo daquele
caráter.

O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o continuamente novo que


ela exibe continua sendo o revestimento de um sempre igual. De acordo com Adorno e
Horkheimer a expressão “indústria” não se refere ao processo de produção no sentido
estrito, mas à estandardização da própria coisa, por exemplo, à estandardização dos filmes
western, familiares a todo freqüentador de sala de cinema, e a racionalização das técnicas
de divulgação.

25
1. 2. 2 A padronização e a necessidade de consumo

Cada vez mais fica evidenciada a atualidade das reflexões de Adorno e Horkheimer
na obra “Dialética do Esclarecimento”. Eles argumentam:
a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as
revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em
conjunto (1985:113).

Conforme mencionamos anteriormente, a padronização dos produtos e as


manifestações da indústria cultural passam inevitavelmente a influenciar as pessoas,
reproduzindo-as tais como as modelou a indústria em seu todo. O impacto se verifica no
conjunto da sociedade, num nivelamento total (Ibid.:119).

Seguindo a argumentação de Adorno e Horkheimer, ao refletir sobre a padronização


nos programas televisivos atuais, o sociólogo Cláudio Novaes observa que
a diferença entre o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, e o programa Casa dos
Artistas, do SBT, é ilusória, assim como a diferença entre os provedores de internet
Universo On Line e América On Line. Mas essa ilusão é socialmente necessária: a crença na
existência da concorrência e na liberdade de escolha é um componente essencial da
ideologia dominante no capitalismo (In: Communicare, Vol. 2, n.2, 2002:36).

A totalidade da indústria cultural consiste na repetição. Prevalece a forma ao


conteúdo, graças aos avanços tecnológicos.
É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos
conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados (Adorno e
Horkheimer, 1985:127). Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se
uniformizar (Ibid.:116).

Com tamanha igualdade entre os produtos, não se justifica a incrível diferença entre
os preços, já que ela não tem nada a ver, com o significado dos produtos, mas ajuda a
manter uma aparência de concorrência e a possibilidade de escolha que, de fato, não existe.
Se o indivíduo exerce tal profissão, recebe tal salário, mora em tal lugar etc, isso o
condiciona a consumir tal produto porque dá mais status e visibilidade na sociedade. Os
carros fabricados hoje são todos praticamente iguais.

Segundo os pensadores frankfurtianos, na verdade,


para todos, algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções acentuadas e

26
difundidas. (...) Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade
com seu level, (nível), previamente caracterizado por certos sinais, a escolher as categorias
dos produtos de massa fabricada para seu tipo. (...) As vantagens e desvantagens que os
conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da
possibilidade de escolha (1985:116).

A impressão aparente é que o cidadão (consumidor) tem plena liberdade de escolha,


mas fazendo uma reflexão além das manifestações superficiais dos fenômenos sociais,
surge uma outra realidade. Os consumidores são reduzidos às estatísticas e mapeados em
grupos alvos para facilitar a imposição dos produtos. De fato, fica praticamente impossível
escapar ao poder coercitivo que o sistema exerce sobre os indivíduos.

A padronização e a repetição atingem todos os aspectos da produção cultural e


artística.
Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente
como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado
deles e só varia na aparência (Ibid.:117).

Com relação aos filmes e às novelas é possível até descobrir seus finais antes mesmo
de tê-los visto porque seguem uma fórmula padrão; isto é resultado do empobrecimento do
material estético - a identidade é apenas superficial, independentemente do seu enredo. É
muito comum nos trailer, a informação “Do mesmo diretor de...”; é como se dissessem: “É
igual ao anterior, venha que você não vai precisar pensar”.

Um dos argumentos mais exigentes na defesa da indústria cultural é aquele que


glorifica seu espírito e que se pode chamar tranqüilamente de ideológico. A indústria
cultural daria à humanidade, em um mundo caótico, algo como “critérios de orientação”, e
só isto seria um fato apreciável. Mas, a sua grande força está em proporcionar à pessoa
humana necessidades, não aquelas necessidades básicas para se viver dignamente (casa,
comida, lazer, educação, e assim por diante) e, sim, aquelas do sistema vigente (consumir
incessantemente). Com isso, o consumidor viverá sempre insatisfeito, querendo,
constantemente, consumir e o campo de consumo tornando-se cada vez maior. Isso ocorre
porque o mercado lida com o campo do desejo (ilimitado) e não da necessidade. Tal
dominação tem sua mola propulsora no desejo de posse, constantemente renovado pelo
progresso técnico e científico e sabiamente controlado pela indústria cultural.

27
1. 3 A Indústria Cultural no Brasil

Para essa parte histórica nos valemos das investigações do sociólogo Renato Ortiz “A
Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural”. 4
Pela natureza do
nosso estudo, faremos apenas uma abordagem geral do tema, concentrando-nos mais no
rádio e na televisão, deixando de lado o teatro, o cinema, a música, os museus, a literatura,
a imprensa escrita e outras manifestações culturais que fazem parte do universo histórico da
cultura no Brasil.

Na década de 30, com a chegada de Getúlio Vargas (1930-1945) ao poder, o Brasil


passou por um período de intensas e importantes transformações nos âmbitos político,
social e econômico. O populismo de Vargas assegurou relevantes conquistas ao trabalhador
brasileiro, como a redução da jornada de trabalho, a garantia de receber um salário mínimo,
férias remuneradas e o décimo terceiro salário, entre outros benefícios. O país, até então
predominantemente agrícola, passou a investir na industrialização e, gradativamente,
substituía o consumo de produtos importados por gêneros fabricados dentro do território
nacional. As cidades cresciam e se modernizavam num ritmo acelerado, perdendo o aspecto
provinciano que as caracterizava.

Todo esse cenário de expansão e crescimento do Brasil favoreceu o desenvolvimento


dos produtos culturais que pudessem ser enquadrados na definição dos mass media.5 Porém,
de certo modo, esse fenômeno tardou um pouco para se implantar aqui no Brasil, devido à
fatores peculiares presentes no nosso processo desenvolvimentista. O consumo de bens
culturais, que alcançou um desenvolvimento considerável na década de 30, desenvolvem-se
de maneira mais acentuada nos anos 40, com a consolidação da sociedade urbano-
industrial. (Cf., Ortiz, 2001:38) O rádio, que chegou ao país em 1922, atingiu seu apogeu
nesse período e isso acarretou o aumento da tiragem de revistas, principalmente as

4
Renato ORTIZ, A Moderna Tradição Brasileira:Cultura Brasileira e Indústria Cultural.São Paulo:
Brasiliense, 2001. Os críticos fankfurtianos tinham como principal foco de reflexão a cultura de massa.
5
Na opinião de R. Ortiz, no Brasil, até a década de 70, no plano acadêmico “há um relativo silêncio sobre a
existência de uma cultura de massa, assim como sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado”
(Ibid.:14). Foi sobretudo com o desenvolvimento das faculdades de comunicação que na década de 70 surgem

28
especializadas em mostrar a vida dos artistas das radionovelas. A imprensa escrita, que já
vinha se fortificando desde o século XIX, encontra-se bem estruturada.

A publicidade no rádio, que em 1o de março de 1932 tinha sido fixada por lei em 10%
da programação diária, em 1952 aumentou o percentual para 20%. Segundo Ortiz esse
volume de publicidade modificou
o caráter do rádio que se torna cada vez mais um veículo comercial, a ponto de alguns
anunciantes se transformarem em verdadeiros produtores de programas, como no caso da
Standart Propaganda e da Colgate Palmolive, que contrataram atores, escritores e tradutores
de radionovelas (2001:40).

É ainda “nas décadas de 40 e 50 que o cinema se torna um bem de consumo”


(Ibid.:41). Aos poucos, os brasileiros passam a criar o hábito de ir ao cinema, já que os
filmes estrangeiros, em especial os americanos, passam a ser exibidos com maior
freqüência. Isso faz parte de uma estratégia expansionista da indústria cinematográfica
americana que, após a 2ª Guerra, passa a investir na exportação dos seus produtos. A
produção de filmes nacionais também registra um avanço, a partir da criação da Atlântida,
em 1941, e da Vera Cruz, em 1949 (Cf., Ibid.:42). Contudo, a chegada da televisão em
1950, é o ponto máximo de todo esse processo de desenvolvimento, sendo o Brasil o
primeiro país da América Latina a importar este avanço tecnológico.

Mesmo com todos esses aspectos, a cultura de massa no país, nos moldes
denunciados pelos teóricos frankfurtianos, não podia ser vislumbrada com clareza. Isso
porque essa análise partia da premissa da existência de um capitalismo em estado avançado,
o que não caracterizava a situação brasileira na época. “Faltavam a elas (empresas
culturais) um traço característico das indústrias da cultura” (Ibid.:48). Até porque a
existência de meios de comunicação capazes de colocar uma mensagem ao alcance de
grande número de indivíduos não bastava para caracterizar a existência de uma indústria
cultural e de uma cultura de massa.6

os primeiros escritos que tratam dos meios de comunicação de massa. Isso não significa que no final dos anos
60 não havia interesse pela temática da sociedade de massa.
6
Recordamos que a análise frankfurtiana se baseia numa filosofia da história que pressupõe que os indivíduos
no capitalismo avançado se encontram automizados no mercado, “agrupados” em torno de determinadas
instituições. Um conjunto de mudanças sociais estende as fronteiras da “racionalidade capitalista” para a
sociedade como um todo, criando uma padronização através dos produtos culturais.

29
A indústria cultural consiste na presença de uma racionalidade empresarial pautada
pelo mercado, que passa a determinar a produção cultural e a vida em sociedade. Nos anos
que se sucederam, aos poucos, o fenômeno da cultura de massa foi se fortalecendo.
As décadas de 60 e 70 se definem pela consolidação de um mercado de bens culturais. (...)
A televisão se concretiza como veículo de massa em meados de 60, enquanto o cinema
nacional somente se estrutura como indústria nos anos 70 (Ortiz, 2001:113).

Nessa época, a televisão abandona o amadorismo e adentra na concorrência acirrada,


na qual as regras são ditadas pelo mercado. A indústria fonográfica, o cinema e o mercado
editorial também passam a se inserir dentro da lógica capitalista da cultura de massa. Esse
avanço pode ser atribuído, entre outros fatores, à ascensão dos militares ao poder, o que
fomentou o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Conforme observa Renato Ortiz:
certamente os militares não inventaram o capitalismo, mas 64 é um momento de
reorganização da economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de
internacionalização do capital; o Estado autoritário permite consolidar no Brasil o
“capitalismo tardio”. Em termos culturais essa reorientação econômica traz conseqüências
imediatas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de
bens materiais, fortalece-se o parque industrial de produção de cultura e dos bens culturais
(Ibid.:114).

Segundo o nosso autor, a censura do Estado autoritário, “atinge a especificidade da


obra, mas não a generalidade da sua produção” (Ibid.:114). O movimento cultural pós-64,
por um lado, se define pela repressão ideológica e política, por outro, é o momento onde
mais são produzidos e difundidos os bens culturais no país.

Os cientistas políticos têm insistido que o golpe não é simplesmente uma manifestação
militar, ele expressa autoritariamente uma via de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
(Ibid.:117).

Embora dentro de quadros econômicos distintos, ambos, Vargas e o governo militar


em 64, contribuem para o desenvolvimento cultural: aquele criando instituições e este
desenvolvendo atividades culturais. Talvez, um dos melhores exemplos da colaboração
entre o regime militar e a expansão dos grupos privados seja o da televisão. 7

7
Cf., Sérgio MATTOS, O impacto da Revolução de 64 no Desenvolvimento da Televisão. In: Cadernos
INTERCOM, ano 1, n.2, março de 1982.

30
1. 4 O rádio e a televisão no Brasil

Pretendemos, destacar apenas alguns fatos sobre a implantação do rádio e da televisão


no Brasil, procurando enfatizar a estreita relação entre esses dois meios no
desenvolvimento da cultura de massa no país. 8 Nos anos 20 e 30, o acelerado processo de
urbanização das cidades criou condições favoráveis para absorver as novidades vindas da
Europa. Os tempos eram de modernização. Foi dessa maneira que, em 1922, o rádio chegou
em terras brasileiras. No início ele não empolgou, mas nos anos 30 com o declínio do custo
dos aparelhos e algumas mudanças na legislação, esse cenário começou a mudar. Assim, o
veículo se tornou um meio de comunicação massivo. Em 1932, o governo regulamentou a
publicidade e esse meio passou a ser um veículo mercadologicamente atrativo; industriais e
comerciantes perceberam que, através daqueles aparelhos, muitas pessoas poderiam tomar
conhecimento dos seus produtos, inclusive aquelas que eram analfabetas e que não podiam
ler os anúncios veiculados pelos jornais (Cf., Ortiz, 2001:39ss; Sampaio, 1984).

Segundo a pesquisadora Sonia Virgínia Moreira, autora de “Rádio Palanque”, o


presidente Getúlio Vargas foi o primeiro político a perceber a capacidade de alcance do
rádio em um país com a dimensão do Brasil, instituindo leis que regulamentavam a
publicidade e a programação radiofônica (Cf., 1998:15). 9
Ao perceber o potencial
aglutinador de um veículo de comunicação de massa passou a utilizá-lo como um
instrumento ideológico. O estadista estava preocupado
em dotar o país de um meio de comunicação capaz de atingir os lugares mais distantes para
reforçar sua aliança com setores populares (Capperelli e Lima 2004:64).

Em 1935, Vargas instituiu a “Hora do Brasil”, que tinha o objetivo explícito de


divulgar as ações do governo, mas que também servia para atacar os inimigos do mesmo:

8
As informações são tiradas das obras de: Sônia Virgínia MOREIRA, O Rádio no Brasil; IDEM, Rádio
Palanque, Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1991; Mário Ferraz SAMPAIO, História do Rádio e da Televisão no
Brasil e no Mundo, Rio de Janeiro: Achiamé, 1984; Gisela Swetlana ORTRIWANA, A Informação no Rádio,
São Paulo: Summus, 1985.
9
Em dezembro de 1939, Vargas assina Decreto-Lei instituindo o DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda). Cf., Sônia Virgínia MOREIRA, Rádio Palanque, p.29ss. Em maio de 1945 o DIP foi
substituído pelo DNI (Departamento Nacional de Informação). Cf., Ibid.:37ss. Sobre a Ditadura Militar e o
Rádio Cf., Ibid.: 49-86; e Mário Ferraz SAMPAIO, História do Rádio e da Televisão no Brasil e no Mundo,
p.150ss.

31
“a invasão vermelha” no país. O rádio foi essencial para que o estadista alcançasse seus
objetivos. Foi em cadeia de rádio que ele anunciou à Nação a Constituição de 1937.
Durante a ditadura do Estado Novo, o programa “A Hora do Brasil” tornou-se obrigatório,
“com total controle da matéria irradiada” (Moreira, 1998:29). Com a chegada de Dutra ao
poder em 1946, o programa passou a se chamar “Voz do Brasil” e seu formato sobrevive
atualmente.

Apesar dos avanços, o veículo só viveu sua época áurea na década de quarenta,
quando organizou sua grade de programação e passou a veicular programas de auditórios
voltados para entretenimento, humorísticos, programas esportivos, dentre outros. O rádio
conquistou o país como uma força mobilizadora quando em 1941 estreou a radionovela
“Em Busca da Felicidade”, importada de Cuba. Em todo o Brasil, famílias inteiras se
emocionavam ouvindo histórias dramáticas. Ainda no mesmo ano, Oduvaldo Viana
escreveu a primeira radionovela brasileira: “Fatalidade”. Dez anos depois, o Brasil inteiro
parava para ouvir a radionovela de maior sucesso: “O Direito de Nascer”, também ela
importada de Cuba.

Outro gênero que também ganhou muito destaque foi o radiojornalismo, cujo
principal representante foi o consagrado “Repórter Esso”, o porta-voz da multinacional
norte-americana revendedora de combustíveis. Esse noticiário tinha grande credibilidade
junto à população, que esperava ansiosa o momento de receber informações a respeito dos
acontecimentos mundiais, dos fronts da Segunda Guerra Mundial, da atuação dos pracinhas
brasileiros. O “Repórter Esso” deixou de ser transmitido no dia 31 de dezembro de 1968,
depois de quase três décadas. Nesse contexto, o rádio tornou-se um importante veículo
massivo e manteve esse status até que foi desbancado pela televisão, anos após a sua
chegada em terras brasileiras.

Em 18 de setembro de 1950, Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários


Associados, inaugurou a TV Tupi de São Paulo, canal três. Na época, o empresário liderava
o maior conglomerado de empresas comunicativas chegando, no período de maior apogeu,
a controlar 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 canais de televisão. (Cf., Sampaio,

32
1984:199). A chegada da televisão ajudou a mostrar que o Brasil vivia um período de
progresso econômico e tecnológico. Segundo Caparelli
e outras palavras, a televisão vai ser um auxiliar na nova ideologia desenvolvimentista dos
anos 50 e que, na maioria, se traduzia em adquirir os valores modernizantes próprios dos
países hegemônicos (1982:24).

Muniz Sodré recorda que


no final dos anos 50 já havia no Rio e em São Paulo meia dúzia de emissoras (TV-Tupi do
Rio, TV-Tupi de São Paulo, TV- Paulista, TV-Recorde, TV- Continental, TV-Rio). Brasília
já ganhara dois canais e em Belo Horizonte funcionara, desde 56, a TV-Itacolomi. O início
do governo Kubitschek coincide com a proliferação das emissoras (1999:95). A partir de
1960 havia 15 estações de TV concentradas nas capitais (Ibid.:97).

Na opinião de R. Ortiz, “o que melhor caracteriza o advento e a consolidação da


indústria cultural no Brasil é o desenvolvimento da televisão” (2001:128). A televisão,
controlada por grupos privados e impulsionada por um investimento do Estado na área da
telecomunicação, integrou os consumidores potenciais ou não, numa economia de mercado.
“Entre nós é o Estado militar quem promove o capitalismo na sua fase mais avançada”
(Ibid.:153).

No Brasil, o rádio foi a matriz de televisão. O testemunho de Manuel Carlos citado


por R. Ortiz retrata esta realidade:
a televisão brasileira foi basicamente feita pelo pessoal do rádio, diferente da televisão
francesa, inglesa, italiana e mesmo da americana, que foi feita pelo pessoal do cinema e do
teatro. (...) Até hoje a televisão tem muita coisa com o rádio, e sua formação se deve muito
ao pessoal do rádio. Não é que eu ache esse pessoal medíocre, mas principalmente naquela
época eles tinham muito menos formação do que o pessoal do teatro ou de cinema, e isso
10
criou no começo uma televisão até um pouco medíocre (Ibid.: 87-88).

Para o autor isso revela um traço social da formação dos próprios meios de
comunicação na sociedade brasileira.

Segundo R. Ortiz, mesmo que alguns autores como José Ramos Tinhorão e Walter
Durst considerem a televisão brasileira dos anos 50 como “elitista”, representando o “sonho
de uma certa burguesia”, não devemos esquecer que

33
a totalidade da programação da época era composta por programas populares, e não por
peças de cunho cultural; por exemplo, shows de auditório, programas humorísticos, músicas
populares, telenovelas (2001:73).

Esse panorama indica que a televisão brasileira recrutava a maioria de seus quadros
entre os antigos profissionais do rádio, onde a programação já se consagrara como
popular.11 Mesmo assim, de acordo com o sociólogo, a mobilidade do rádio para a televisão
demandava criatividade para não repetir neste novo veículo as fórmulas do antrior.

Desde o início, as dificuldades materiais e econômicas fazem fluir a criatividade.


Observando depoimentos de profissionais pioneiros da televisão brasileira, R. Ortiz destaca
palavras que estão intimamente ligadas ao surgimento desse meio de comunicação no nosso
país: casualidade (entrei por acaso), mobilidade (principalmente do rádio), mediocridade,
improvisação, criatividade e precariedade, que se encontravam associadas às dificuldades
tecnológicas e materiais da indústria cultural no Brasil (Cf., Ibid.:77-110).

Um aspecto, sempre presente nos estudos sobre a indústria cultural, diz respeito à
dependência cultural (Cf. Ibid.:185ss). De certa forma, a chegada da televisão no Brasil
esteve ligada à dependência econômica e cultural dos países desenvolvidos, em especial
dos Estados Unidos, pois além da tecnologia dos aparelhos e da transmissão, também foram
importados os formatos de alguns programas que já faziam sucesso na América.

Os meios de comunicação aparecem, desta forma, como um processo de dominação


que reforça a posição dos países centrais. Mas, além de copiar modelos americanos
(fenômeno que se repete até hoje), a televisão brasileira, como já mencionamos, também
copiou e transferiu muitos programas que haviam sido consagrados pelo rádio e os adaptou
para a realidade televisiva. Foi o que aconteceu, entre tantos outros, com o humorístico

10
Laurindo Lalo LEAL FILHO, avaliando os 50 anos da TV brasileira partilha da mesma visão: “Dele (do
rádio) vieram a mão-de-obra pioneira, as fórmulas dos programas e o modelo institucional adotado”. A TV
Pública, In: Eugênio BUCCI (org.), A TV aos 50, p. 153.
11
Ao analisar a linguagem da TV no Brasil, Marcondes Filho afirma que ela derivou mais das formas de
comunicação populares como o circo e o rádio. A influência do circo sobre a TV brasileira é vista pela
presença dos palhaços ou do apresentador de auditório e pelo estilo de alguns animadores como Chacrinha,
Sílvio Santos e Bolinha. Cf., Ciro MARCONDES FILHO, Televisão: a vida pelo vídeo, p. 43.

34
“Balança Mas Não Cai” e em 1964 com a novela “O Direito de Nascer”, exibida pela TV
Tupi, sucesso no rádio em 1950.
O rádio já havia conquistado audiência com as novelas “que faziam rir e chorar,
levando para o ar as suas comédias e dramalhões” (Sampaio,1984:204). Conhecedora dessa
tendência, a televisão deu continuidade, trazendo novo estímulo ao gênero.12
O patrocínio, que caracterizava boa parte dos programas no início da televisão,
também tem sua origem no rádio. O “Repórter Esso”, por exemplo, existindo no rádio
desde 1941, em 1952 começa a ocupar horários mais importantes em cinco emissoras de
televisão (Cf., Ibid.: 205-206).
Como observam alguns autores (Capparelli, 1982; Mattos, 1992:6; Sinclair, 1999), grandes
agências de publicidade representando empresas norte-americanas (Ford, Lever, Colgate-
Palmolive) ou européia (Nestlé), produziam programas noticiosos, de auditório ou
telenovelas, e os forneciam aos canais de televisão já com a inserção dos anúncios
publicitários (Capparelli e Lima, 2004:65).

Se até os anos 50 as produções eram restritas e atingiam um número reduzido de


pessoas, uma vez que a televisão estava ligada ao mercado de bens de luxo, nos anos 60 e
70 elas tendem a ser cada vez mais diferenciadas e cobrem uma massa consumidora. O
sociólogo R. Ortiz observa que durante esse período
ocorre uma formidável expansão a nível da produção, distribuição e de consumo da cultura;
é nesta fase que se consolidam os grandes conglomerados que controlam os meios de
comunicação e da cultura popular de massa (2001:121).

Sérgio Capparelli divide a implantação da televisão no Brasil em dois períodos


distintos: o primeiro vai de 1950 até 1964 e representa o período em que a indústria da
comunicação, representada pelo império de Chateaubriand, era composta, basicamente,
pelo capital nacional. O segundo período começa em 1964 e se estende até a
contemporaneidade. As empresas de comunicação passaram a ser reflexo das
transformações que vinham acontecendo na economia brasileira com a entrada de
investimentos estrangeiros.

12
A primeira novela na televisão foi “Sua vida me pertence” de Walter Foster, na TV Tupi em 1951. Cf.,
Mário Ferraz SAMPAIO, História do Rádio e da Televisão no Brasil e no Mundo, p. 204. Até 1964 as
telenovelas somavam 14 e até 1981 já eram 300. Cf., Ibid.:236ss. Programas de auditório igualmente passam
do rádio para a televisão (Ibid.:154).

35
Uma década após a sua implantação, a TV já adquirira um status importante e
começava a ganhar o prestígio que antes era creditado ao rádio. Essa rápida ascensão se
deve muito ao regime militar que, por motivos ideológicos, fortaleceu todas as condições
para que o país pudesse ter uma rede nacional de televisão. Foi assim que:
grupos empresariais brasileiros, associados a firmas eletroeletrônicas norte-americanas,
encontraram no Estado militar o respaldo necessário para burlar a legislação vigente,
introduzindo capitais, tecnologias e padrões estrangeiros (Sodré e Paiva, 2002:113).

O governo, através de sua agência, detém um poder de “censura” econômica, pois ele
é uma das forças que compõem o mercado. Nesse sentido, argumenta R. Ortiz, “a evolução
do mercado de propaganda no Brasil está intimamente associada ao Estado, que é um dos
principais anunciantes” (2001:121). Na verdade seria impossível considerarmos o advento
de uma indústria cultural sem levarmos em conta o avanço da publicidade, principal
mantenedora de todo o complexo de comunicação.

A partir de 1960 já se fazia sentir os efeitos da ampliação do consumo industrial


impulsionado na década anterior e
já estava bem delineado um perfil urbano de consumo. A televisão começa a assumir o seu
caráter comercial e a disputar verbas publicitárias com base na busca de maior audiência
(Sodré, 1999:97).

Conforme vimos, a consolidação da televisão brasileira está associada à idéia de seu


desenvolvimento como veículo de integração nacional. Cria-se desta forma, a proposta de
construção da sociedade moderna.

A indústria cultural adquire, portanto, a possibilidade de equacionar uma identidade


nacional, mas reinterpretando-a em termos mercadológicos; a idéia de nação integrada passa
a representar a interligação dos consumidores potenciais espalhados pelo território nacional.
Nesse sentido se pode afirmar que o nacional se identifica ao mercado; à correspondência
que se fazia anteriormente, cultura nacional-popular, substitui-se uma outra, cultura
mercado-consumo (Ortiz, 2001:165).

O autor observa como se desdobra esse movimento ideológico ao analisar a expansão


da televisão, em particular da Rede Globo, nos mercados regionais do Rio Grande do Sul e
de Minas Gerais (Cf., Ibid.: 165-167).

36
Muniz Sodré aponta o período inicial da ditadura militar, por volta de 1968, como o
momento do grande boom de vendas de aparelhos de televisão no Brasil, como
conseqüência da crescente urbanização, expansão da demanda de bens e serviços de
consumo, instituição do crédito direto ao consumidor, investimentos dos setores privado e
estatal em obras urbanas, telecomunicações, publicidade etc. “Neste impulso, firma-se o
sistema da televisão” (1999:90-91). Com a introdução da imagem em cores em 1972, a
televisão passa a ser o meio adequado para o mundo fabricado pelo mercado de bens de
consumo mostrar seus produtos.

Os objetivos do nosso estudo não permitem um maior aprofundamento acerca da


evolução do sistema televisivo brasileiro. Sobre esse tema, a Rede Globo sozinha ocuparia
várias páginas. Inaugurada em 1964, e desenvolvida a partir de 1967, a TV Globo afirma-se
como hegemônica. Isso foi possível graças a “determinadas mudanças econômicas,
políticas e institucionais ocorridas no país que influenciaram direta ou indiretamente no
êxito da TV Globo” (Ibid.:99). Lembrando também que o grupo já possuía um jornal
influente, uma rádio bastante popular no Rio de Janeiro e estava “escudada” por um
“obscuro contrato com o grupo norte-americano Time-Life” (Ibid.:99).

Sem dúvida, o triunfo da Rede Globo, baseado em contratos com emissoras regionais
independentes (afiliadas) é resultado também do planejamento administrativo, do uso de
equipamentos mais sofisticados e de uma administração mais segura, colocando a empresa
em boa situação para dominar o mercado (Cf., Sampaio, 1984:263).

Por fim, convém salientar que ao longo de sua implantação, a televisão brasileira se
define cada vez mais alicerçada em três vertentes dos programas de entretenimento de
grande apelo popular: as novelas, os enlatados (filmes e séries em sua maioria procedentes
dos Estados Unidos) e os shows de auditório. 13
Os programas sensacionalistas estão
inseridos no contexto da produção cultural acima descrita.

13
Cf., Guilherme Jorge REZENDE, Telejornalismo no Brasil: um perfil editorial, São Paulo: Summus, 2000.

37
1. 5 O gênero sensacionalista

O jornalismo funda-se na idéia de democracia, de que todo o poder emana do povo e


em seu nome é exercido; rejeitando a idéia de que o poder emana de Deus sobre a figura de
um monarca. Esses ideais surgidos durante a revolução burguesa, floresceram no século das
luzes, ganhando força com o positivismo filosófico da segunda metade do século XIX. 14 A
garantia do direito à informação e à liberdade de expressão faz parte da essência do
jornalismo, que tem como função noticiar ou divulgar os fatos que interessam à sociedade
constituída por um conjunto de cidadãos com o direito de saber. O verdadeiro jornalismo é
concebido como função mediadora do espaço público e deveria praticar uma comunicação
voltada para a informação, para a formação e educação do povo, criando cidadania. É assim
que seus valores éticos têm como ponto mais alto o compromisso com a verdade,
honestidade e objetividade. Não é por acaso que, por tradição, o espaço concedido para as
TVs e rádios é espaço público e não comercial.

O jornalismo tido como sério também está ligado ao conceito de objetividade como
requisito da verdade informativa. A objetividade contribui para que a informação seja
inseparável de sua verdade, da maior exatidão possível e da realidade que transmite ou
notifica. Somente para citar uma dentre tantas reflexões sobre esse campo, ao discorrer
sobre ética e imprensa, Eugênio Bucci, 15 destaca a verdadeira vocação do bom jornalismo:
ninguém precisa ter freqüentado aulas numa faculdade de comunicação social para intuir
que ao jornalismo cabe perseguir a verdade dos fatos para bem informar o público, que o
jornalismo cumpre uma função social antes de ser um negócio, que a objetividade e o
equilíbrio são valores que alicerçam a boa reportagem (2002:30).

Contudo, existe uma outra espécie de jornalismo (revistas, jornais e telejornais) no


mercado editorial que se diferencia do jornalismo de prestígio: é o chamado sensacionalista
ou popularesco. Comumente denomina-se sensacionalista o gênero que foge aos padrões
normais do jornalismo sério, objetivo, iluminista. Sempre que um veículo de comunicação,

14 Cf., Conforme análise proposta em Clóvis BARROS FILHO, Ética na Comunicação, p 21ss.
15 Cf., Eugênio BUCCI, Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

38
ou um jornalista, divulga uma notícia, uma imagem ou uma foto ousada, explorando, em
tom espalhafatoso, uma matéria capaz de emocionar ou escandalizar, considera-se
jornalismo sensacionalista. A imprensa sensacionalista é também conhecida como imprensa
popular. Isso porque traduz o cotidiano das grandes metrópoles, como se o ângulo de
observação fosse do povo. A interpretação jornalística da realidade do que é e como é
divulgado, define um tipo de discurso popularesco. Daí o uso da linguagem popular, o
palavrão e a gíria.

Alguns estudiosos da comunicação, como Marcondes Filho, vêem a presença do


sensacionalismo tanto no jornalismo de prestígio quanto no popularesco. O que os
diferencia é a forma e o modo de apresentação da notícia que se reconhece, na recepção,
como sensacionalista. Segundo ele, isso acontece, porque no jornalismo sempre se dá uma
certa transformação dos acontecimentos em notícia. 16

De certa forma, podemos dizer que todo o processo comunicacional é sensacionalista


pois ele mexe com sensações tanto físicas (sensoriais) como psíquicas (emocionais). A
primeira etapa do processo de comunicação é justamente despertar atenção, provocar
sensações para preparar a recepção da mensagem. A própria técnica do título chamando a
atenção, resumida e enfaticamente, bem como o lead, podem ser considerados recursos
sensacionalistas, pois resumem de forma palpitante e introduzem o receptor a se interessar
pelo restante da história.

Não obstante isso, para o nosso estudo, é importante notar a existência de elementos
que transformam um acontecimento em notícia reconhecida como sensacionalista, resultado
de uma intervenção técnica (do meio) e ideológica (produção) que manipula, altera e recria
a realidade, dando uma nova dimensão aos acontecimentos. A forma tende a explorar o
extraordinário e o vulgar, de forma espetacular e desproporcional. Através desses
elementos é possível visualizar diferenças entre o jornalismo de qualidade (sério, objetivo,

16 “... todos os jornais são, uns mais outros menos, sensacionalistas. Nenhum foge dessa determinação. Isso
porque transformar um fato em notícia não é o mesmo que reproduzir singelamente o que ocorreu.
Transformar um fato em notícia é também alterá-lo, dirigi-lo, mutilá-lo”. Ciro MARCONDES FILHO, O
Capital da Notícia, p. 29.

39
iluminista) e o gênero sensacionalista. Tais diferenças são mais visíveis na sua forma e
estilo de apresentar a notícia sobre o crime, a violência, as desgraças e as tragédias,
recorrendo ao sensacionalismo das palavras e dos significados. As categorias mais
exploradas são as que se referem à sexualidade e à violência contra o indivíduo. Manchetes,
títulos, matérias, imagens, fotografias são mensagens reais, violentas, escandalosas, fortes
como os fatos que reproduzem. O discurso tende ao trágico, violento, ridículo, insólito,
grotesco ou fantástico, dando prioridade ao que o jornalismo sério relega ao campo da
curiosidade e das notas.

O jornalismo sensacionalista extrai do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa


e a enaltece: valoriza a emoção em detrimento da informação. Quase fabrica uma nova
notícia que passa a se vender por si mesma. Nesse gênero de jornalismo, o mais importante
é a manchete, que faz o leitor ou telespectador ler ou assistir (comprar) apenas por atração,
por sensação, por impacto, por curiosidade despertada, uma vez que o desenvolvimento da
matéria não acrescentará nada além daquilo que já foi anunciado. Ao contrário do
jornalismo sério, o sensacionalista não se presta a informar, mas a satisfazer as
necessidades instintivas do público, por meio de formas sádicas e espetaculares 17 expondo
pessoas ao ridículo. Como nas mercadorias em geral, interessa à produção o lado aparente,
externo e atraente do fato. Nesse estilo de telejornal, as matérias têm o tempo e a duração
que forem necessários, desde que mantenha o receptor interessado naquilo que é mostrado,
garantindo a audiência.

A pesquisadora Rosa N. Pedroso traça regras que situam o discurso sensacionalista e


define esse gênero como
modo de produção discursivo da informação da atualidade, processado por critérios de
identificação e exagero gráfico, temático, lingüístico e semântico, contendo em si valores e
elementos desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto da
representação ou reprodução do real social (1983:40).

O discurso sensacionalista exige do redator, da produção, do apresentador,


criatividade e percepção do novo fato, da novidade da palavra. O impacto precisa ser

17 Espetáculo não deve ser entendido como sinônimo de sensacionalismo. Uma notícia pode ser espetacular
sem necessariamente ser sensacionalista.

40
renovado e mantido a cada edição. Os aspectos do inusitado e do violento se repetem
diariamente, mas às vezes é preciso transformar a briga de rua numa guerra, correr atrás de
acontecimentos explosivos, e até inventar a matéria, quando não existem bons ingredientes
para despertar emoções.

Uma característica marcante do gênero sensacionalista é a busca incessante pelo fait


divers, expressão francesa que denota uma informação baseada no anormal, no excepcional
e que não exige do seu receptor uma bagagem cultural ou um conhecimento extremo da
realidade que o rodeia. Seu consumo é rápido e o impacto trazido por ele é instantâneo. São
assuntos quentes, circunstanciais e localizados.

Roland Barthes define fait divers como


(...) uma informação total ou, mais exatamente, imanente; ela contém em si todo o seu saber:
não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete
formalmente a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao
mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões (...) tudo isso remete ao homem, a sua
história, a sua ‘alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos (1999:59).

Para Maffesoli 18 “como o conto, o carnaval, o jogo pueril, o comentário do fait divers
permite falar, sem falar, da morte, da violência, do sexo, das leis de suas transgressões”. De
modo que, o sensacionalismo vai buscar na extravagância do fait divers o principal
ingrediente para a sua manchete.

Rosa N. Pedroso observa que


o fait divers, como informação auto-suficiente, traz em sua estrutura imanente uma carga
suficiente de interesse humano, curiosidade, fantasia, impacto, raridade, humor, espetáculo,
para causar uma tênue sensação de algo vivido no crime, no sexo e na morte. (...) A intenção
de produzir o efeito de sensacionalismo no fait divers visa a atrair o leitor (receptor) pelo
olhar na manchete que anuncia um acontecimento produzido, jornalística ou
discursivamente, para ser consumido ou reconhecido como espetacular, perigoso,
extravagante, insólito, por isso, atraente (2001:106).

Poderíamos resumir as características da produção sensacionalista citando as


principais regras definidoras do discurso do gênero, estabelecido por Rosa N. Pedroso em
sua pesquisa sobre o jornalismo diário.

18
Michel MAFFESOLI, Une Forme d`Agrégation Tribale. In: Autremente. Paris, 1988. Apud Danilo
ANGRIMANI, Espreme que sai Sangue, p.25.

41
Intensificação, exagero e heterogeneidade gráfica; ambivalência lingüístico-semântica; (...)
valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do
vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico
das classes subalternas; destaques de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou
sugestivos; subtração de elementos importantes e acréscimo ou inversão de palavras ou
fatos; (...) iscursividade repetitiva, fechada ou centrada em si mesma, ambígua ou motivada,
autoritária, despolitizadora, fragmentária, unidirecional, vertical, ambivalente, dissimulada,
indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa; exposição do oculto mas próximo; produção
discursiva sempre trágica, erótica, violenta, ridícula, insólita, grotesca ou fantástica; (...)
(1983:43).

Por fim, podemos dizer que o sensacionalismo está mais ligado à mercantilização da
informação: tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a
informação interna não irá desenvolver melhor do que a manchete. Nesse sentido, tornar
uma informação sensacionalista encontra-se na natureza da produção do discurso e na
natureza comercial do produto; fazer negócios com a divulgação de escândalos e de crimes
e por que não, de soluções ilusórias para os problemas da sociedade. Essas características
reforçam a identificação do telejornal sensacionalista com produtos de consumo. O gênero
sensacionalista sofre uma variação interna permanente e geralmente quando os programas
permanecem no ar por alguns anos, vão se transformando para se adequar às regras do
mercado.

Apesar de tudo o que foi dito até aqui, não se pode negar, que nesse gênero de
jornalismo, a informação esteja presente, nem tampouco, deixar de admitir que o
jornalismo tido como sério, esteja completamente livre de assumir características
tipicamente sensacionalistas além de espetacular.

1. 5. 1 Sensacionalismo no telejornalismo

O gênero sensacionalista parece ter se enraizado na imprensa desde seus primórdios.


As análises sobre a origem da imprensa na França e nos Estados Unidos mostram que o
sensacionalismo já estava presente (Cf., Angrimani, 1995:19). 19
A Gazette de France,

19
A Revolução Industrial e a urbanização das grandes cidades européias, Londres e Paris, provocaram uma
mistura de miséria, delinqüência e conflitos sociais. O policiamento passa a desempenhar importante papel
para manter a ordem social. Nesse contexto, em 1836, publicado em capítulos no rodapé de um jornal
popular, La Presse, surge o folhetim e consolida-se o melodrama. Um dos representantes mais importantes foi
Eugene Sue com “Os mistérios de Paris” (1842-43) que procurava saciar o gosto do público por crimes e

42
publicada em 1631, se parece muito com os jornais sensacionalistas de hoje: trazia fait
divers fantásticos. Antes dela, os occasionels, folhetins, impressos em caracteres góticos,
sobre um papel de baixa qualidade com ilustrações, eram procurados porque publicavam
assuntos criminais e desastres. No século XIX, as pessoas que faziam os jornais saíam às
ruas gritando as manchetes de cunho sensacionalista. O primeiro jornal americano, o Public
Ocurrences, publicado pela primeira vez em 1690 era sensacionalista. Contudo, é senso
comum atribuir aos editores Joseph Pulitzer e William Randolp Hearst (final do século
XIX) a responsabilidade pela implantação do jornalismo sensacionalista (Cf., Angrimani,
1995:19).

Para nos manter mais no campo da televisão, de maneira geral, nos Estados Unidos a
espetacularização invadiu o telejornalismo nos anos 80 do século passado e estaria
relacionado com o recuo do telejornalismo investigativo, que tem forte tradição na TV
americana. O avanço da espetacularização acontece no mesmo período em que se dá a
expansão dos grandes conglomerados econômicos que incorporam também grupos de
comunicação.

O fato é que ao longo dos anos, o jornalismo sensacionalista tendo a violência e


atuação policial como principal foco, tem se afirmado como um dos principais elementos
de atração de audiência nos telejornais dos Estados Unidos. Crimes ocupam cada vez mais
destaque nos noticiários, apesar das pesquisas indicarem que a violência nas cidades norte-
americanas cai ano a ano e já regrediu aos níveis da década de 60. 20

De acordo com o professor Sílvio Henrique V. Barbosa


uma pesquisa da Rocky Mountain Media Watch, com cem canais norte-americanos de TV,
em fevereiro de 1997, destacou que 72 destes canais iniciaram seus telejornais com notícias
de crimes e um terço das matérias também era sobre crimes (...). Pesquisa do Pew Research
Center, publicada na The New York Times Magazine, revela que notícias sobre crimes
superam esportes, religião e política na preferência dos telespectadores (In: Anuário,

manchetes sensacionalistas. A esse respeito, ver: Maria Stella M. BRESCIANI, Londres e Paris no século
XIX – espetáculo de pobreza. São Paulo. Brasiliense, 1983.
20
Segundo o Departamento de Justiça dos EUA a taxa de criminalidade nacional no ano de 1996 foi a mais
baixa desde o início da pesquisa em 1973. Na cidade de Nova York, a queda foi tão brusca que caiu aos níveis
da década de 60. Cf., Sílvio H.Vieira BARBOSA, Cidade Alerta: Deus substituiu o sexo no tripé do
sensacionalismo, In Anuário de Jornalismo, p. 94.

43
2001-2002:94).

A Universidade de Miami fez uma pesquisa em oito grandes cidades americanas, e


encontrou nas TVs locais duas vezes mais notícias de crimes que notícias políticas; quinze
vezes mais notícias de crimes que de educação (Cf., Barbosa, In: Anuário, 2001-2002:94).

Nos debates sobre a exploração da violência na TV norte-americana a explicação


mais aceita para esse quadro é simples: “crime vende”. De maneira geral, a TV americana
parece seguir um raciocínio simples: “notícias sobre violência atraem a atenção dos
telespectadores” (Ibid.:94). Nessa linha, quanto mais violência no noticiário, maior a
audiência, maior o preço do horário para anúncio e maior o retorno em publicidade.

Nossos programas na TV brasileira seguem a fórmula decifrada pela mídia norte-


americana para a qual o sensacionalismo está amparado no tripé violência, sexo e esporte.
Já no final da década de 60, um estilo de programa que retratava a miséria humana,
conflitos familiares, histórias policialescas, prostitutas, homossexuais e mendigos, começou
a fazer muito sucesso na televisão brasileira. Um dos pioneiros nesta linha foi Jacinto
Figueira Júnior, que estreou, em 1966, na TV Cultura de São Paulo, o programa “O
Homem do Sapato Branco”. Essa atração foi líder de audiência por vários anos, adotava
uma linha que tinha por objetivo mostrar as mazelas da sociedade brasileira de maneira
sensacionalista e era baseada no “grotesco chocante”, que Muniz Sodré definiu da seguinte
forma:
dão-se voz e imagem a energúmenos, ignorantes, ridículos, patéticos, violentados,
disformes, aberrantes, para mostrar a crua realidade popular, sem que o choque daí advindo
chegue às causas sociais, mas permaneça na superfície irrisória dos efeitos (Sodré &
Paiva, 2002:133).

Figueira Júnior chocava a sociedade brasileira tradicionalista e, paradoxalmente,


conquistava uma audiência fiel, levando para dentro das residências aquilo que as pessoas
faziam questão de excluir do seu convívio: os mendigos, as prostitutas, os homossexuais, os
marginais... Permaneceu no ar com seu show de misérias por vários anos; seu programa foi
veiculado também pela Bandeirantes, Globo, SBT e até mesmo a TV Cultura, emissora

44
mais preocupada com o padrão de qualidade da sua programação, rendeu-se ao show de
misérias protagonizado pelo “Homem do Sapato Branco”.

No início de novembro de 2002, Jacinto Figueira Júnior ficou internado, devido a um


problema pulmonar e virou pauta principal dos programas sensacionalistas. O caderno TV
Folha, do jornal Folha de São Paulo, percebendo a ironia do destino, veiculou a seguinte
notícia: “Jacinto, vítima do seu legado na TV. Doente e sem recursos, Figueira Jr., pioneiro
em atrações que fazem da desgraça alheia um show televisivo, acabou vítima dos que hoje
seguem o seu estilo sensacionalista”. A reportagem se referia aos programas “Falando
Francamente”, naquela altura, atração das tardes do SBT e comandado por Sônia Abrão, e o
“Hora da Verdade”, veiculado pela Bandeirantes e apresentado por Márcia Goldschmidt.

No final da década de 70, a extinta Rede Tupi conseguiu elevar seus índices de
audiência com o programa “A Voz do Povo na TV”. Exibido durante o período vespertino,
essa atração se propunha a ser uma espécie de prestação de serviços para a população; dava
voz àquelas pessoas que não tinham a quem recorrer (como o próprio nome sugeria).

A década de 90 chega e, já no dia 20 de maio de 1991, com uma “transposição do


jornalismo popular de rádio para a televisão” (Squirra, 1993:142) estreava um novo
programa que também trazia o “rótulo” do “mundo-cão”. Era o noticioso “Aqui Agora, um
telejornal vibrante que mostrava, na TV, a vida como ela é !” O próprio slogan deixava
evidente que esse programa tinha o objetivo de retratar a realidade dos fatos, mostrar ao
telespectador o que acontecia do lado de fora de suas casas. Conforme observa Rezende,
versão brasileira do original argentino “Nuevediario”, o “Aqui Agora”, além da influência
da linguagem radiofônica, usava o recurso do plano-sequência para dar mais realismo e
suspense às histórias que narrava (Rezende, 2000:131).

A “realidade” mostrada pelo programa era centrada na violência, nos crimes


hediondos, na ousadia dos marginais, nas mazelas da sociedade, na violência contra o
menor... Também apresentava cobertura in loco de ocorrências criminais, com prisões,
assaltos, reféns, seqüestros, motins em presídios etc. Gil Gomes e seu inconfundível estilo,
Wagner Montes, Madalena Bonfiglioli e Celso Russomano eram alguns dos repórteres que

45
faziam do programa um grande sucesso. Com o Código do Consumidor em mãos, este
faziam a cobertura de denúncias de consumidores lesados.

Na opinião de Squirra, o surgimento do “Aqui Agora” advém da necessidade de se


fazer um telejornal com a “cara” da emissora, “produto que possa ser visto pela dona de
casa, pela empregada e pelo empresário-patrão” (1993:142). Isso revela o grau de
popularidade pretendido pelo programa.

O “Aqui Agora” saiu do ar no início do ano de 97. 21 Mas, não tardou para que novas
atrações, dotadas de características semelhantes, viessem ocupar o seu lugar, já que a lógica
mercadológica dos produtos massivos exige essa constante renovação, que não implica na
mudança ideológica ou de conteúdo.

Apesar das mudanças, o jornalismo sensacionalista e policialesco, continua ocupando


o horário vespertino da programação televisiva nos dias atuais. Os principais programas
são: “Brasil Urgente” na Bandeirantes, “Cidade Alerta” na Rede Record, “Repórter
Cidadão” na Rede TV e, mesmo que em outro horário, “Linha Direta” na Globo.

No período da nossa pesquisa observamos que o “Repórter Cidadão”, o “Cidade


Alerta” e o “Brasil Urgente” concorrem diretamente, no mesmo horário, têm formatos
muito semelhantes e o mesmo perfil editorial: cobrir os fatos violentos da cidade,
acompanhados de comentários críticos e interpretativos dos seus apresentadores. Em geral,
mostram quase simultaneamente as mesmas imagens. Obviamente, os três programas juntos
não atingem os recordes de audiência do extinto “Aqui Agora”, mesmo porque ele era
único no segmento, e agora são três concorrendo no mesmo filão.

O “Cidade Alerta” é descrito como um jornal ágil e atual, “popular, mas com
qualidade editorial e acabamento técnico de elevado nível”. Na home page da emissora, 22

21
Gil Gomes ainda hoje continua com sua voz e estilo inconfundíveis fazendo programa na rádio Tupi, em
São Paulo. Afanásio Jazadji é outro repórter policial muito popular, que fez sucesso na década de 80 do
século passado como locutor, tornando-se deputado estadual por São Paulo, reelegendo-se sucessivas vezes.
22
Disponível em:< http://www.rederecord.com.br/cidadealerta>. Acesso em: 20 out. 2004.

46
pode-se ter uma idéia desse perfil: “um jornal com material policial expressivo, sem perder
de vista as referências sociais”. Chama atenção o uso de uma linguagem muito direta, onde
o apresentador busca interagir com o telespectador. Pelo aparato tecnológico que dispõe, o
telejornal privilegia as intervenções ao vivo. “Sem desvios ou manipulações”, diz o texto
que apresenta a atração. “As informações são de nossa responsabilidade, o julgamento, do
telespectador”.

O “Brasil Urgente” e o “Cidade Alerta” são programas que quebram com os padrões
do telejornal comum. Com entradas ao vivo ou com imagens gravadas, poucos cortes e
entrevistas mais longas, o telespectador pode acompanhar o resgate da vítima de um
acidente; uma perseguição policial; um incêndio na favela; uma rebelião numa cadeia
pública, um seqüestro ou qualquer outro tipo de acontecimento que propicie imagens
dramáticas. Do estúdio, o apresentador narra a transmissão, aumentando o nível de tensão
do noticiário: destaca os aspectos trágicos do acontecimento, emite impressões. Noutros
eventos, a narração pode ser feita pelo repórter, mas o tom é o mesmo, assim como o
conteúdo das suas falas.

No telejornal considerado sério (normal), como é o caso do Jornal Nacional (JN),


produzido e exibido em horário nobre pela Rede Globo, os apresentadores ficam sentados
atrás de uma bancada (mesa) de onde, seguindo o script, anunciam as manchetes e
desenvolvem as matérias, chamando os repórteres com frases bem elaboradas e linguagem
objetiva. Sem fazer comentários no estilo âncora, em meia hora de programa, o JN
apresenta em média 22 reportagens por edição. As reportagens têm a duração de 15 a 30
segundos. As mais longas duram, no máximo, um minuto e meio. A comunicação não-
verbal - movimentação das mãos, expressão facial, olhar - é discreta, e até o cabelo e a
roupa devem seguir um padrão de qualidade determinado.

No telejornal sensacionalista, a forma de ancoragem é outra. Ao invés de ficar


sentado, o apresentador fica em pé no estúdio, tendo atrás de si um cenário arrojado,
formado por monitores de TV, onde ele acompanha a exibição das imagens; se comunica
pelo ponto eletrônico com a direção técnica do programa, pede a repetição de imagens, dá

47
ordens, gesticula com as mãos; movimenta-se com liberdade; dá as costas para as câmeras,
anda pelo estúdio, gesticula e abusa de expressões faciais; pode se aproximar ou se afastar
das câmeras, produzindo efeitos muito diferenciados, em especial quando é enquadrado em
close-up; e, principalmente, faz seus julgamentos: “vagabundo”, “safado”, “sem-vergonha”,
“escória da sociedade”, repete com freqüência, enquanto são exibidos os rostos dos
acusados de roubo e outros crimes que o programa apresenta. No telejornal sensacionalista,
o apresentador é mais um animador que, ao mesmo tempo anuncia as notícias, chama os
repórteres, divulga os produtos e serviços oferecidos pelos patrocinadores, faz sorteios e
manda recados aos telespectadores. Sobre o “Brasil Urgente”, programa escolhido para o
nosso estudo, comentaremos mais adiante.

Observamos que o crescente interesse da televisão por episódios contendo um certo


grau de violência ou tragédias humanas, salvo raras exceções, é caracterizado mais pelo
espetáculo do que pela busca de soluções. Ao mesmo tempo em que a sociedade busca
caminhos para eliminar ou diminuir a violência, alguns segmentos questionam a forma
como certos programas e telejornais sensacionalistas abordam a questão.

1. 6 Críticas aos programas sensacionalistas

Embora tenham audiência, telejornais que dizem “mostrar a vida como ela é” vêm
recebendo muitas críticas de grupos e entidades preocupados com a ética na comunicação.
O povo brasileiro nunca viu tanta violência na televisão como nos dias atuais. Na maioria
dos programas analisados, as constantes são: incitação ao crime; discriminação por raça,
sexo e orientação sexual; prévia condenação de meros suspeitos e exploração
sensacionalista da miséria humana. Essa situação tem suscitado debates sobre a qualidade
da programação da televisão. A ordem constitucional baniu a censura, nem por isso os
meios de comunicação podem sentir-se investidos do direito de exibir o que quiserem. A
proibição de censura não afasta do Poder Público o dever de “exercer a classificação, para
efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”.23 Longe de ser
censura, a idéia principal é resgatar o respeito aos direitos humanos na programação de TV.

23
Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21, inc. XVI, 1988.

48
Lançada em 2003, a campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, é a
principal fomentadora do debate e responsável pelo monitoramento dos programas.
Promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e apoiada por
mais de 60 entidades parceiras da sociedade civil, a campanha visa a promoção dos direitos
humanos e a dignidade do cidadão na mídia. Usando os serviços de 0800 os cidadãos se
manifestam contra qualquer ação considerada ofensiva na programação da TV. A cada três
meses é divulgado o ranking dos programas que mais recebem reclamações. Não é censura.
Trata-se de uma campanha cidadã, promotora do exercício de um direito. Os controladores
e produtores da mídia não podem ser isentas da responsabilidade sobre o que projetam para
milhões de pessoas, assim como cada cidadão é responsável por aquilo que diz ou faz. A
campanha pretende ser um espaço para a discussão pública desses limites. Identificada e
comprovada pela Comissão de Acompanhamento da Mídia, qualquer ação considerada
grave na programação da TV contra os direitos humanos e a cidadania, a Coordenação da
campanha tenta negociar com os responsáveis, aos quais é formulado um apelo. Caso
persista a violação, são relacionados os nomes dos programas, seus apresentadores,
produtores, empresas e produtos anunciantes, junto com as descrições das violações
cometidas e a legislação pertinente. 24

Aos poucos, as próprias redes de televisão começaram a reconhecer a legitimidade da


campanha e começaram a mudar o perfil de seus programas. Em diálogo com a
Coordenação, algumas emissoras, produtores e apresentadores passaram a se preocupar
mais com a qualidade. Fator decisivo foi o envolvimento dos executivos e proprietários:
uma empresa socialmente responsável não é apenas aquela que financia projetos sociais,
mas também a que, ao se recusar a anunciar em programas que atentam contra a dignidade
humana, promove valores éticos, tendo em vista o valor crescente de sua imagem perante a
opinião pública.

24
Cf., Cartilha da campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”. Outras informações podem
ser encontradas na Página oficial da campanha. Disponível em:<http://www.eticanatv.org.br>. Acesso em: 25
jul. 2004.

49
Em maio de 2004, a Coordenação da campanha enviou a 14 anunciantes que
costumam patrocinar noticiários como “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”, ofícios
informando alguns dos “abusos” cometidos por esses programas e pedindo que essas
empresas revissem suas estratégias de marketing na TV. Seis grandes anunciantes
responderam, sendo que cinco deles prometeram rever investimentos em programas do
gênero, imediatamente ou em um curto prazo. Pressionados, alguns decidiram mudar o
horário de exibição de suas peças publicitárias. Um deles foi o jornal Folha de S. Paulo. A
Lojas Marabraz, enviou carta dizendo que a empresa se solidarizou com a causa da
campanha e prometeu avaliar melhor, em suas próximas negociações com emissoras, a
qualidade dos programas em que estão investindo. A única empresa que não firmou
nenhum compromisso foi a Casas Bahia. Oito anunciantes não responderam aos ofícios. 25

Para sobreviver no mundo contemporâneo, anunciantes, empresas de publicidade e


emissoras de TV precisam avaliar cuidadosamente o custo de associar sua reputação à
violação dos direitos humanos e dignidade do cidadão. Isso revela um certo
condicionamento dos programas aos anunciantes e equipara os telejornais a um produto
como outro qualquer no mercado.

Sabemos que o faturamento é decisivo para a TV. Um ponto de audiência num


programa que atrai anunciantes pode valer muito mais do que dez em outro que os afasta. 26
E o “mundo cão” vem afugentando patrocinadores. Antes empolgadas com o alto Ibope, as
empresas começaram a se preocupar em associar suas marcas ao sensacionalismo e à
superficialidade. Para Antonio Rosa Neto, consultor de mídia e ombudsman comercial do
SBT,
há hoje uma baixa demanda do mercado para programas mais populares. Isso pode ser
constatado pelo preço dos comerciais, que são mais baratos. O anunciante constatou que não
há valor agregado nesses programas, que um comercial é mais eficaz se exibido num
intervalo de um programa considerado de qualidade. A audiência dos policiais pode ser boa,
mas a comercialização não é (In: Mattos, Folha Online). 27

25
Informações fornecidas pelo Fórum Paulista pela Ética na TV, ligado à campanha “Quem Financia a
Baixaria é Contra a Cidadania”. Disponível em:<http://www.eticanatv.com.br>. Acesso em: 22 out. 2004.
26
Cf., Laura MATTOS, Emissoras reduzem espaço de telejornais policiais. In: Folha Online, Ilustrada.
Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u46200.shtml>. Acesso em: 25 jul 2004.
27
A publicidade veiculada em programas que contenham cenas de sexo e violência vende menos. Essa foi a
conclusão de uma pesquisa realizada pela Universidade de Iowa (EUA). Segundo o professor Brad Bushman,

50
Em outra ação, a campanha encaminhou, no dia 24 de agosto 2004, ao Ministério da
Justiça e ao Ministério Público um relatório com 33 páginas, no qual acusam os
apresentadores dos telejornais policiais de fazerem apologia ao crime e expor vítimas e
suspeitos a situações humilhantes. No parecer, os conselheiros do movimento pedem aos
dois órgãos que tomem as providências cabíveis para coibir os eventuais excessos
cometidos por esse tipo de atração, que, segundo eles, ferem a Constituição e os direitos
humanos.

O levantamento feito por psicólogos, jornalistas e advogados que participam da


organização, considera que as emissoras se valem de uma concessão pública para
transformar a violência em espetáculo, quando deveriam propor um debate mais
aprofundado sobre o assunto. O relatório qualifica os apresentadores desses programas
como “despreparados” para conduzir esse tipo de discussão.

No início do ano 2004, uma ação semelhante causou polêmica. Depois de fazer
tentativas, a campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania” desistiu de
convencer o governo a mudar o horário de exibição dos telejornais policiais vespertinos.
Uma portaria do próprio Ministério veda a classificação prévia para programas jornalísticos
e aqueles exibidos ao vivo.

Em fevereiro de 2004, um departamento do Ministério mudou a classificação de


cinco programas, que, assim, só poderiam ser veiculados a partir das 21 horas, por serem
considerados impróprios para menores de 14, 16 ou 18 anos. Além de três telejornais
regionais, a medida atingia o “Cidade Alerta” e o “Brasil Urgente”. A determinação,
contudo, durou apenas um dia. A decisão foi revogada pelo próprio Ministério e custou o
emprego ao diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação,

coordenador da pesquisa Violence and Sex Impair Memory for Television Ads “as propagandas veiculadas em
programas sem sexo e sem violência, o que chamamos de neutros, têm mais recall do que os exibidos no
intervalo de filmes e seriados com esses elementos”. O estudo aponta que os anúncios veiculados em
programas considerados "quentes", com cenas de sexo e/ou violência, são memorizados por apenas 34% do
público, enquanto nos programa de conteúdo neutro o índice de memorização sobe para 67%. “Conclusão:
violência e sexo certamente têm mais audiência, mas não vendem”. Carlos Alberto di FRANCO, Televisão - a
hora da qualidade, In: Espaço Aberto, Estado de São Paulo, p. A3 de 08 nov. 2004.

51
Mozart Rodrigues da Silva. Ele havia determinado a reclassificação sem ter consultado a
Secretária Nacional de Justiça, Cláudia Chagas, a quem estava subordinado.

1. 6. 1 Mudanças nos programas

A programação de fim de tarde na televisão brasileira já não é mais a mesma. De olho


na audiência do horário, composta por donas de casa e jovens, a maioria deles de classe
social C e D, as emissoras continuam a investir no filão popular, mas sem a exploração da
miséria alheia. O sangue e as mazelas sociais, cobertas por um rótulo de prestação de
serviço, estão dando lugar a noticiários lights, mundo dos famosos e atrações que não criem
polêmica na área dos direitos humanos.

Em julho de 2004 a Bandeirantes tirou quase 50 minutos do “Brasil Urgente” para dar
lugar ao desenho japonês “Cavaleiros do Zodíaco” e viu a audiência do horário pular de 3,5
para 6 pontos. Segundo Fernando Mitre, diretor de jornalismo da emissora, o “Brasil
Urgente” está sendo reformulado e dará mais espaço à prestação de serviço. “O âncora se
coloca cada vez mais como porta-voz do brasileiro que não tem como reclamar das
autoridades, nem exigir respeito a seus direitos” 28
Já para Douglas Tavolaro, diretor de
jornalismo da Record, “esse já era um fim anunciado. É uma fórmula que não funciona
mais. As pessoas vivem com medo 24 horas por dia e não precisam ver só violência na TV,
querem jornalismo de qualidade.” 29

A Record também está fazendo uma mudança radical e provavelmente extinguirá o


Cidade Alerta. Campeão de Ibope do mundo-cão, com médias de até 12 pontos, o programa
de Marcelo Rezende perdeu espaço para a novela da rede, “Escrava Isaura”, que estreou em
setembro de 2004. O processo começou, quando o noticiário cedeu uma hora para o “Tudo
a Ver”, programa que mistura jornalismo, variedades e fofocas. A crise no gênero também
passa pelo “Repórter Cidadão”, da Rede-TV!, que está sendo reformulado.

28
In: Laura MATTOS, Emissoras reduzem espaço de telejornais policiais, Folha Online, Ilustrada.
Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u46200.shtml>. Acesso em: 25 jul 2004.
29
In: Ibid.

52
Não há um consenso sobre as razões que levam as emissoras a mudar o perfil de seus
programas. Em depoimento à Laura Mattos em matéria na Folha de S.Paulo, em 25 julho de
2004, o apresentador do “Brasil Urgente” José Luís Datena confessa: “eu acabaria com
esses programas, e acho mesmo que eles vão acabar”. Já Marcelo Rezende, apresentador do
“Cidade Alerta” (Record), pensa que “esses telejornais policiais têm um tempo de vida que
já passou. Perdem na profundidade, é tudo muito imediato. O que adianta pôr um
helicóptero horas em cima de um cara que caiu de moto? Isso não é jornalismo”. 30 Ambos
concordam num ponto: a fórmula está em crise, perdeu espaço e corre o risco de
desaparecer.

Célia Pardi, editora-chefe do programa “Tudo a Ver”, da Rede TV acredita que o fato
de os telejornais policialescos estarem se acabando está ligado à conscientização do
espectador. “... eu acho que os anunciantes estão mais conscientes e o público também”. 31

Outro fator que determinou as mudanças está ligado ao tipo de público do horário de fim de
tarde que é composto mais por mulheres do que por homens. Elas gostam muito do mundo
dos famosos. Por sua vez, o publicitário Daniel Bárbara ressalta que não foi só o
esgotamento da fórmula e o interesse pelas celebridades que decretaram a sentença de
morte dos noticiários do mundo-cão mas a recente campanha pela melhora da qualidade do
conteúdo da TV.

Para o deputado Orlando Fantazzini, (PT-SP), Coordenador da campanha, “já que os


programas não mudaram, era óbvio que, uma hora, anunciantes e o próprio telespectador
iriam pressionar. Em algum momento o povo iria perceber que aquilo era espetacularização
da condição de miséria, a exploração do seu sofrimento.” 32
Segundo Daniel Bárbara, essa
total “conscientização” de anunciantes e público ainda não existe. Ele acredita que a
mudança na programação vespertina é só mais uma onda na TV. “A TV funciona como

30
In: Laura MATTOS, Emissoras reduzem espaço de telejornais policiais, Folha Online, Ilustrada.
Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u46200.shtml>. Acesso em: 25 jul 2004.
31
In: Ibid.
32
In: Keila JIMENEZ e Renato GALLO, Mundo-cão ganha tom cor-de-rosa, Ética na TV. Disponível em:
<http://www.eticanatv.org.br/pagina_new.php?id_new=102&first=0&idioma=0>. Acesso em: 25 out. 2004.

53
laboratório farmacêutico, precisa lançar uma nova droga a todo momento para poder
sobreviver, ou relançar remédios antigos com nova roupagem”, argumenta. 33

Esse posicionamento revela uma das características mais marcantes da indústria


cultural na sociedade contemporânea: a constante oferta de novos produtos de curta
duração. Ao trabalhar cada vez menos para informar e criar cidadania e cada vez mais para
o consumo, a mídia obedece progressivamente a uma lógica do mercado. Os programas
mudam suas características para responder às necessidades do público.

A campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania” promoveu, no dia 17


de outubro de 2004, uma ação contra a baixaria na TV incentivando a população a desligar
os aparelhos por uma hora e estimulando as denúncias, usando os serviços 0800-619 619. O
dia 17 de outubro passou a ser conhecido como o dia Nacional contra a Baixaria na TV.
Esse dia foi anteriormente escolhido por movimentos sociais internacionais como o Dia
Mundial pela Democratização da Comunicação.

De acordo com uma reportagem publicada na Folha de São Paulo no dia 18 de


outubro 2004, o total de televisores ligados na Grande São Paulo foi 14% menor no dia 17,
entre 15h e 16h, do que no domingo anterior, no horário em que a campanha convocou a
sociedade para desligar seus televisores em protesto contra a péssima qualidade da
programação brasileira.

Segundo a mesma reportagem, dados preliminares do Ibope revelaram que entre 15 e


16 horas, 46,9% dos televisores da Grande São Paulo estavam ligados. Já no dia 10 de
outubro (domingo), esse índice foi de 54,5% e no dia 3 foi de 57,5%. E para o ano de 2005,
a campanha já está programando um novo boicote, que será realizado na mesma data.
Orlando Fantazzini anunciou que o movimento atingiu todos os estados, com o
envolvimento de igrejas, entidades da sociedade civil, emissoras comunitárias de rádio e
televisão e cidadãos comuns. “Foi fundamental conseguirmos suscitar e aprofundar esse

33
In: Ibid.

54
debate em todo o território nacional e isso só foi possível graças à insatisfação da maioria
dos telespectadores com a atual programação da TV comercial”, avaliou.

Outra frente da campanha é a mobilização em torno da aprovação do projeto de lei


1600/03, que cria o Código de Ética e o Conselho de Acompanhamento da Programação e
propõe criar também a Comissão Nacional pela Ética na Televisão.

Em janeiro de 2005, a campanha contra a baixaria na TV divulgou uma lista dos


programas que mais desrespeitam os direitos humanos na televisão e, pela primeira vez,
divulgou também os seus anunciantes. O ranking foi anunciado durante o V Fórum Social
Mundial, em Porto Alegre. A novela “Senhora do Destino”, da TV Globo, lidera a lista,
tendo como principal anunciante os sabonetes Albany. A rede das Casas Bahia aparece
como patrocinadora dos programas “Cidade Alerta”, da Rede Record, e “Casseta &
Planeta”, da Globo, que ocuparam o segundo e terceiro lugar no ranking da baixaria.

O objetivo é incentivar os consumidores a não comprarem produtos das empresas que


patrocinam esses programas e criar uma espécie de selo de qualidade. Os produtores e
patrocinadores de programas de baixo nível são informados a respeito da desqualificação de
seus programas. A falta de ética pode pesar no bolso.

Além das campanhas pela melhoria na qualidade da programação, as regras do


próprio mercado podem ter colaborado para a mudança nos programas. Semelhante a
qualquer objeto de consumo, programas televisivos do gênero sensacionalista como o
telejornal “Brasil Urgente” gozam de um período de aceitação e depois tendem a assumir
nova roupagem ou até mesmo desaparecer, dando lugar a um novo produto.

1. 7 O telejornal “Brasil Urgente”

No ar desde o dia 3 de dezembro 2001, o telejornal “Brasil Urgente” (BU) é


produzido e apresentado pela Central de Jornalismo da rede Bandeirantes, com a
participação diária e ao vivo de praças importantes como Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

55
Salvador, Recife, Porto Alegre e Brasília. Exibido nas tardes de segunda a sábado, o
programa adota o estilo novelesco de narração das imagens, formato que usa a
instantaneidade do rádio, o plano- seqüência do cinema, a teatralidade e a linguagem
televisiva. Com uma linguagem coloquial e opinativa, BU dispensa os formatos
tradicionais, assumindo a flexibilidade e o dinamismo, disposto a “mexer muito na
linguagem do telejornalismo, deixando de lado a camisa de força que se vê por aí”, como
ressalta Fernando Mitre, diretor nacional de jornalismo da Rede Bandeirantes. No BU, as
matérias têm o tempo que merecem, 1 minuto ou meia hora. 34

De acordo com Ignácio Ramonet, nas informações televisivas, a preocupação com a


instantaneidade, a transmissão direta, ao vivo é para “criar a ilusão de verdade” (1999:92).
As leis da encenação criam a ilusão do ao vivo, do momentâneo, e portanto a ilusão da
verdade. Basta acontecer alguma coisa, e já sabemos como a televisão vai falar-nos dela,
segundo que normas e que critérios fílmicos (Ibid.:94).

O importante não é o que os repórteres vão dizer, mas que eles estejam presentes e
que se possa mostrá-los na tela no local do episódio: “os nossos repórteres estão no local e
vão mostrar agora tudo para você”. A prestação de serviço tem atenção especial, com um
repórter informando, de um helicóptero, as condições do trânsito e relatando os flagrantes
da cidade de São Paulo, tudo “ao vivo”.

Tudo que a televisão mostra tem uma força excepcional e a imagem tem a
particularidade de fazer tudo parecer extremamente real. Pode-se duvidar de uma notícia
lida num jornal ou revista ou do que se ouve no rádio, mas diante das telas, sob o selo do ao
vivo e acentuado pela narração do repórter ou do apresentador (que repete com freqüência,
você está vendo imagens ao vivo), não há contestação, tudo adquire uma aparência de
verdade absoluta.

O esquema apresentado por Ramonet nos parece descrever, de maneira geral, a lógica
adotada pelo telejornal BU na apresentação das tragédias:
Primeira parte, um reporter no local do evento (efeito instanteneidade) nos indica em que

34
A entrevista se encontra na página do telejornal “Brasil Urgente”: Disponível em:
<http://www.band.com.br/brasilurgente/programa.asp>. Acesso em: 20 out. 2004.

56
circunstâncias ele aconteceu, evoca os prejuízos que a câmara não se cansa de mostrar;
depois a primeira testemunha (uma das vítimas ou alguém que tenha assistido o que
aconteceu) conta o que viu (seus olhos registraram ao vivo o fato).
Segunda parte, (...) a câmara se detém ainda mais sobre o desastre antes de um segundo
testemunho: é sempre aquele de uma autoridade do local (bombeiro, guarda, agente policial,
sargento) (...) (1999:95)
ele explica como foi o trabalho, avalia os estragos, define riscos.

Por fim, após mostrar mais uma vez em detalhe o lugar do desastre (cena de acidente,
tragédias, mortes, ruínas....) aparece um testemunho final de uma autoridade (um político, o
delegado, o comandante ou oficial de justiça...) “que se desvia do evento propriamente dito,
vinculando-o a um quadro geral. Ele fala, por exemplo, do terrorismo internacional,
relativiza, racionaliza, tranqüiliza”. (Ibid.:95).

Dessa forma, na opinião de Ramonet, através “de três pessoas-emblemas (a vítima, o


salvador e o dignitário)”, o acontecimento é, ao mesmo tempo, mostrado em todo o seu
horror e explicado em sua lógica. Os telespectadores ficam assustados com os efeitos da
violência e, ao mesmo tempo, tranqüilizados com a eficiência das autoridades. Essa
trajetória parece comum nos telejornais que apresentam, numa lógica de discurso filmado,
as imagens mais dramáticas, mais violentas, mais sanguinárias.

A interação com o público é outra característica forte do programa, que usa todos os
recursos para ouvir a população: “pesquisas” e enquetes na rua, telefone, e-mail ou o
tradicional correio. Com seu talento, o apresentador José Luiz Datena 35
proporciona um
show de violência, escândalos, tragédias e sangue. Esse modelo permite que sua atuação
corresponda à reação do telespectador: “eu me sinto tão indignado como quem está em

35 Nascido em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, José Luiz Datena começou sua carreira como jornalista
esportivo. A estréia se deu em uma rádio da sua cidade natal, onde era repórter e locutor do programa Plantão
Esportivo. A “migração” da rádio para a TV aconteceu ainda em Ribeirão Preto. Lá também, ele passou a
fazer reportagens sobre temas gerais. O primeiro dos dois prêmios Vladimir Herzog que ele guarda na estante,
veio de uma matéria sobre um lixão da cidade. Na Bandeirantes, Datena voltou ao esporte, atuando como
repórter e locutor novamente. Em 1996, entrou para a equipe de esporte da Record. O sucesso, no entanto,
veio com o Cidade Alerta, programa que dá ênfase ao jornalismo policial. Teve uma breve passagem pela
Rede TV onde apresentou Repórter Cidadão, mas alegando falta de “condições adequadas de trabalho”
regressou à Record para o Cidade Alerta e estreou um novo programa No Vermelho. Na noite do dia 10 de
março de 2003, o jornalista Datena voltou à TV Bandeirantes, onde passou a comandar o Brasil Urgente. Na
estréia do novo âncora, o programa ficou em segundo lugar no Ibope, atingindo uma média de 9 pontos e pico
de 11. Desde a sua estréia, em 3 de dezembro de 2001, o programa vinha sendo apresentado por Roberto

57
casa, busco essa espontaneidade no meu trabalho”, diz o apresentador. 36 Caracterizado pelo
jornalismo ágil e popular, com um estilo próprio de apresentar e comentar as notícias,
Datena acabou virando referência. O programa procura dar prioridade aos temas locais e
está muito próximo do cidadão e seus problemas, com assuntos como segurança, saúde,
trabalho e comportamento. A entonação, a música fúnebre e o suspense evocam o fator
imaginação, também presente nesta mídia. BU trabalha com duas vertentes: som e imagem.
Temos a narração, como no rádio, para as imagens que vemos ao mesmo tempo no vídeo.
Dramas vividos pela população invadem a sala do telespectador. O espetáculo toma o lugar
do telejornalismo iluminista, seco e anacrônico, tornando-se bem mais atraente. Mais do
que informar, o telejornal sensacionalista assume a função de entreter, fazendo da notícia
um show espetacular e ao mesmo tempo cínico, chegando por vezes a enaltecer a própria
violência que deseja combater.

As atrações do final da tarde são apropriadas para o tipo de anúncio de seu principal
parceiro comercial, as Casas Bahia, até pelo perfil do público, formado sobretudo por
espectadores das classes C, D e E. Embora em menor quantidade, outras empresas, até
mesmo de caráter público, também anunciam. É o caso da Prefeitura de São Paulo com os
CÉUS (Centro Educacional Unificado), o Bilhete Único, o Banco do Brasil e o Ministério
das Cidades (campanha Se beber não dirija). Outros anunciantes que aparecem são
Cervejaria Brahma, Telemar, classificados da Folha, Tim celulares, BRA Transportes
Aéreos, Ministério das Cidades, entre outros.

O logotipo BRASIL URGENTE (em caixa alta) mostra o nome ao programa escrito
em perspectiva crescente. A vinheta é puxada pelo helicóptero da Band, que, equipado com
câmaras de longo alcance, está de olho na cidade para captar e mostrar os fatos em tempo
real. Trata-se de uma vinheta musicada que aparece repetidamente ao longo do programa:
na abertura, ao final de cada reportagem, abrindo e encerrando cada um dos blocos e no
final. Durante o desenrolar do programa, a vinheta aparece também na barra inferior da
tela, indicando a manchete em causa. Além de usar dois helicópteros, o programa é

Cabrini, alcançando uma média de 6 pontos de audiência. Informações da página do telejornal “Brasil
Urgente”. Disponível em:<http://www.band.com.br/brasilurgente/programa.asp>. Acesso em: 20 out. 2004.
36
In: Ibid.

58
auxiliado por Motolinks que, com repórteres em pontos estratégicos nas ruas, trazem a
imagem do solo, ao vivo, dos acontecimentos mais urgentes da Capital. Este cenário dá a
impressão de que nada escapa ao telejornal e a notícia é vista de todos os ângulos e com
tecnologia de ponta. Assistindo ao BU, o cidadão ficará informado de tudo o que acontece.

O nome BRASIL URGENTE sugere a idéia de que a matéria desenvolvida é de


caráter jornalístico mesmo. Indica algo que acaba de acontecer e tem preferência sobre
todos os demais assuntos em pauta. Lembra aquele momento extraordinário em que as
emissoras interrompem a programação normal para noticiar um fato de máxima urgência e
importância.

Da mesma forma BRASIL URGENTE indica uma reação firme e pontual diante de
tantos crimes mostrados, que parece ser justamente o que o país não tem. Falta autoridade,
segurança, justiça, vigilância... Urgente Brasil! URGENTE, etimologicamente significa
sem demora, tornar imediatamente necessário; algo indispensável, imprescindível. Brasil
Urgente! Indica também exigir, reclamar, clamar. E ainda, insistir, instar e impelir. A
vinheta quer apresentar aquilo que urge; que é necessário ser feito com rapidez. Uma nação,
o Brasil, e não somente a grande metrópole de São Paulo, onde a maioria das reportagens
são feitas, clama uma resposta URGENTE.

Apesar das muitas descrições detalhadas dos crimes, é interessante notar que o sangue
não é mostrado pelas câmaras durante as reportagens, muito menos pela vinheta BRASIL
URGENTE, que adota o branco, contrastando com um fundo em amarelo. A idéia do
sangue que aparece com freqüência nos inúmeros acidentes e assassinatos divulgados, fica
subentendida.

Esse programa de cunho sensacionalista é jornalístico no sentido estrito: além de ser


ancorado por um jornalista, obedece o formato básico de um telejornal, com abertura,
escala chamando os principais assuntos, passagens de bloco chamando reportagens do
próximo bloco, e é composto por reportagens que respeitam os moldes tradicionais de uma

59
matéria jornalística televisiva: narração do repórter (off) + entrevistas (sonoras) + passagem
do repórter (stand up).

Ao adotar a linguagem do espetáculo sensacionalista, o “BU” assume elementos de


programas televisivos não-jornalísticos, como o uso do recurso da teatralidade nos gestos
do apresentador.

O cenário reforça a característica dúbia do programa, que fica no limite entre


jornalismo e ficção. No estúdio, ao vivo, aparece o apresentador que entra agradecendo “a
família brasileira, que a partir de agora, nos recebe aí em sua casa”. Depois vai anunciando
de pé diante das câmaras, luzes e sombras, como nos programas de entretenimento ou
auditório. Mais que um apresentador de telejornal, Datena é um âncora, já que chama e
comenta a notícia, dando seu ponto de vista sobre cada um dos assuntos apresentados.

O show, a espetacularização da notícia, a proximidade com a ficção têm sido temas


freqüentes da pesquisa científica no campo da televisão e do telejornalismo. Ignácio
Ramonet fala na hiper-emoção, figura característica da superinformação que a televisão
produz. “O telejornal em seu fascínio pelo espetáculo do evento, desconceitualizou a
informação, emergindo-a novamente, pouco a pouco, no lodaçal patético” (1999:22). Para o
autor, há uma nova ordem no processo de informar: “se a emoção que vocês sentem ao ver
o telejornal é verdadeira, a informação é verdadeira” (Ibid,:22).

Associada à capacidade de transmitir imagens instantâneas, a televisão faz com que


apenas as coisas visíveis mereçam atenção e tenham importância. Desta forma, prossegue
Ramonet, todos os eventos de imagens fortes como as violências, guerras, catástrofes e os
sofrimentos de todo tipo, esses de que tratam nossos noticiários, assumem papel de
destaque, mesmo que sejam de importância secundária. A supremacia do “ao vivo”
confirma a tese. Transmitir ao vivo significa supervalorizar o evento, tratá-lo como assunto
de primeira ordem, urgente! O problema, diz o autor, é que ao evidenciar esses fatos, “todo
o resto da informação se esfuma, ensurdece e se dissipa” (Ibid.:30).

60
Esse procedimento, como têm sido visto na TV brasileira, especialmente nos
noticiários populares, agrava os problemas próprios do telejornalismo, dando ênfase à
emoção em detrimento da reflexão. Marcondes Filho reforça esse ângulo da abordagem ao
apontar os problemas. Segundo o autor, o telejornalismo se caracteriza por um modelo
esportivo de noticiário; pela lógica da velocidade, preferência do ao vivo, substituição da
verdade pela emoção, pela popularização e ausência da reflexão (Cf., 2000: 80).

Nos acontecimentos exibidos ao vivo, o mundo deixa de ser uma realidade que
precisa ser explicada, investigada, conhecida. Seguindo a lógica da velocidade, interessa
apresentar um fato antes do concorrente, levando a uma inevitável superficialidade das
notícias. Sobre a preferência pelo ao vivo, além de distorções que podem ocorrer enquanto
o jornalista narra o fato, em frenesi, como se estivesse efetivamente participando dele como
é o caso do BU, ocorre outra forma de distorção proporcionada pela ilusão da pureza plena
de uma transmissão.

Não podemos esquecer de que uma transmissão jornalística, mesmo que ao vivo, é
uma reprodução, sujeita a escolhas e interferências, por critérios pessoais e subjetivos, e
que nada têm de pura. Tanto a transmissão direta como as reportagens em plano-sequência,
imagens feitas com o cinegrafista em movimento, expressam uma noção de urgência que
compromete a reflexão, anula nossa capacidade de ver as coisas com clareza, porque somos
tomados pela emoção. Conforme argumenta Bourdieu, na urgência não se pode pensar. “A
TV não é muito propícia à expressão do pensamento” (1997:29). Neste tipo de jornalismo,
não é a palavra que conduz a narrativa, mas é a imagem que organiza as palavras. À força
do espetáculo, o pensamento se rende.

Na busca de soluções para a questão violência, os Meios de Comunicação


desempenham um papel importante a ser considerado. O assunto sempre gerou calorosos
debates ao longo da história nas mais diversas sociedades e culturas. Artistas, escritores,
roteiristas, cineastas, novelistas, pintores e outros sempre criaram obras inspiradas em
episódios de violência ou em questões a ela ligadas. A arte também retrata a realidade

61
violenta do ser humano e da sociedade, mas é com a televisão que ela ganha maior
notoriedade.

1. 8 Um espetáculo de violência

A imprensa escrita (jornais, periódicos e revistas) surgiu narrando, entre outros fatos,
a violência cotidiana. Com a invenção da televisão, cenas de violência passaram a entrar
nas casas dos cidadãos de forma mais intensa e instantânea. Graças à televisão, as pessoas
passaram a assistir ao vivo e em cores uma batalha de guerra, tiroteios de gangues,
perseguições policiais, mortes, acidentes, resgates de pessoas feridas, calamidades,
tragédias familiares, brigas de rua, execuções, torturas e até suicídios. A instantaneidade
das imagens causa maior impacto, garantindo o espetáculo.

Ao comentar sobre o sensacionalismo na mídia, Ramonet lembra que


hoje em dia a informação televisiva é essencialmente um divertimento, um espetáculo. Que
ela se nutre fundamentalmente de sangue, de violência e de morte. E isto mais ainda devido
à concorrência desenfreada entre as emissoras que obrigam os jornalistas a buscar o
sensacional a qualquer preço, a querer ser, cada um deles, o primeiro no local e a enviar de
lá imagens fortes (1999:101-102).
Nessas condições de produção, diminuem as possibilidades que os jornalistas têm de
investigar, de levantar dados, de refletir, de contextualizar os fatos. Tudo acontece muito
rápido por conta dos efeitos atrativos da televisão. As novas tecnologias e progressos
somados à concorrência só fazem aumentar ainda mais a velocidade. Cresce a “necessidade
de ser o primeiro e o mais espetacular, o que se traduz em fatias de mercado, e por
conseguinte em receita publicitária” (Ibid.:102). Nesse sentido, não seria exagerado
considerar a violência e a produção do telejornal sensacionalista como um produto de
mercado: “violência vende”.
À margem da sociedade que consegue consumir bens e serviços, os excluídos passam
a consumir e são, ao mesmo tempo, consumidos pela violência que circunda as nossas
cidades. A violência, muitas vezes, é o único produto a que a grande parte da população
tem acesso. Desempregados, sem perspectiva de melhorar o nível de vida, gastam horas
diante de um aparelho de televisão assistindo aos telejornais populares, dosados de matérias
sobre a violência.

62
À exemplo das celebridades que aparecem nas publicidades como modelos para
apresentar objetos de desejo, o âncora, Datena, ele próprio uma celebridade, vende a notícia
sensacionalista, seguindo a lógica do espetáculo e une o telespectador ao programa. O
telejornal sensacionalista, além de vender a violência, vende a ilusão de resolver os
problemas. Na verdade estamos diante de mais um produto de consumo e uma sensação de
frustração e vazio a ser preenchida pela aquisição de outros bens descartáveis, criando um
círculo vicioso de dependência e repetição uma sociedade de espetáculo.

Nesse sentido, o conceito de “sociedade do espetáculo” desenvolvido pelo pensador


francês Guy Debord (1931-1994) e seus companheiros na Internacional Situacionista37 nos
anos 60 do século XX, e que influenciou as várias teorias contemporâneas sobre sociedade
e cultura, pode contribuir para a nossa reflexão.

1. 9 A sociedade do espetáculo

Ao analisar a sociedade capitalista, Debord constata um acúmulo de imagens, que dá


origem ao espetáculo, uma das marcas da sociedade contemporânea. Debord e seus colegas
da Internacional Situacionista se dedicaram a revigorar a teoria e a prática revolucionária
marxista, no contexto da rápida modernização da França após a Segunda Guerra e da
explosão do consumo nos anos 60 do século passado. Inspirado na crítica de Marx ao
trabalho alienado e ao fetiche da mercadoria, no conceito de reificação de Lukács, na
teorização sobre a vida cotidiana em Lefebvre e nas reflexões da Escola de Frankfurt sobre
o “mundo administrado” ou a “sociedade unidimensional”, Debord situa o espetáculo
dentro do quadro de referência do capitalismo avançado e seu imperativo estrutural de
acumulação, crescimento e lucro mediante a transformação em mercadorias de setores
previamente não colonizados da vida social e da extensão da racionalização e do controle
burocrático às esferas do lazer e da vida cotidiana.

37
Internacional Situacionista, uma pequena organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se originou da
decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências artísticas. Com a revista homônima e novos
meios de agitação (quadrinhos, organização de escândalos), os situacionistas souberam prefigurar, muito
melhor do que a esquerda “política”, as novas linhas de conflito na sociedade “da abundância”. Entre outras
coisas, criticavam a nova arquitetura e o vazio e tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções os

63
O ponto de partida é o mercado (produção e consumo), acompanhado do consumo do
espetáculo. O acúmulo de espetáculo é um componente essencial da lógica capitalista
neoliberal, que quanto mais desenvolvida, mais produz. Não vivemos mais as nossas
próprias experiências, os modelos são os que vivem em nosso lugar: “tudo o que era vivido
diretamente torna-se uma representação” (Debord, 1997: #1). 38
As relações humanas
passam pelo intercâmbio mercantil e a mercadoria ocupa totalmente a vida social. As
pessoas se sentem vazias e fora de lugar, tornando-se presas fáceis do consumo, que se
apresenta como resposta satisfatória, alimentando o sistema.

Em suas 221 teses, Debord nos apresenta inúmeras características do espetáculo. Ele
“não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por
imagens”(Ibid.:#4); é também uma cosmovisão; resultado e projeto do capitalismo; o
“modelo atual da vida dominante na sociedade”; a “afirmação onipresente da escolha já
feita na produção e o consumo que decorre desta escolha”; “a justificativa total das
condições e dos fins do sistema existente”; “a presença permanente dessa justificativa,
como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”; (Ibid.:#6) o
sentido da prática total; “a principal produção da sociedade atual” etc.

Na visão do autor, o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre
e fragmentária e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as
imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real. Têm que olhar para outros (estrelas,
celebridades, homens políticos, famosos etc.) que vivem em seu lugar. A realidade torna-se
uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no
plano da imagem. É uma questão de identificação: quanto mais o indivíduo contempla,
menos vive. Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade,
menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.

situacionistas fizeram com que idéias subversivas - que, por volta de 1960, eram compartilhadas por poucos
se tornassem, em 1968 e posteriormente, um fator histórico de primeira ordem.
38
O livro A Sociedade do Espetáculo foi lançado na França em 1967, tornando-se inicialmente obra de culto
da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; hoje é um clássico em muitos países. Em um prefácio de
1982, o autor sustentava com orgulho que o seu livro não necessitava de nenhuma correção.

64
O cerne do problema estava na independência obtida pelas imagens, que escapuliam
ao controle do homem. Elas provinham da prática social coletiva, mas se comportavam
como seres reais e autônomos, motivadores de um comportamento contemplativo e
mesmerizado (Cf., Debord, 1997. #18).

A institucionalização da divisão técnica do trabalho obrigou o homem a concentrar-se


em atividades fragmentárias e sem sentido; o produto final de seu trabalho já não lhe
pertencia e, portanto, aparecia-lhe como uma força independente e hostil, fora de seu
domínio. À medida que essa economia que se move por si mesma se expande, cresce a
alienação que estava em seu núcleo original. A circulação do dinheiro domina a sociedade
como representação da equivalência geral, isto é, do caráter intercambiável de todos os
bens, cujo uso permanecia incomparável. Como uma forma abstrata, corrosiva e
disseminada, o dinheiro determina a natureza da própria realidade, e constrói o seu império
sobre as fantasias e ilusões da mercadoria.

O espetáculo de que fala Debord deve ser compreendido como um desdobramento


dessa abstração generalizada inerente ao funcionamento da ordem capitalista. Segundo
Marx, a acumulação do dinheiro, quando supera um patamar qualitativo, se transforma em
capital; segundo Debord, “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna
imagem” (Ibid.: #34).
o resultado concentrado do trabalho social, no momento da abundância econômica, torna-se
aparente e submete toda realidade à aparência, que é agora o seu produto. O capital já não é
o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o estende até a periferia
sob a forma de objetos sensíveis. Toda a extensão da sociedade é o seu retrato”(Ibid.:#50).

Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela


degradação do “ser” em “ter”, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do “aparecer”.
As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo
da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas imagens. A sociedade moderna
passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada
do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao
reino da aparência. Ele domina os seres humanos a partir do momento em que a economia

65
desenvolve-se por si mesma, sendo o reflexo fiel da produção das coisas e a objetivação
infiel dos produtores.

Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como pensam
os pós-modernos. A imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto é, o
espetáculo, significa um “tornar-se abstrato” do mundo. A abstração generalizada, porém, é
uma conseqüência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma
mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades
concretas do objeto são anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este
representa. No espetáculo, a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os
homens submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o espetáculo é
uma verdadeira religião terrena e material, em que o ser humano se crê governado por algo
que, na realidade, ele próprio criou.

Douglas Kellner, ao analisar a disseminação do espetáculo através da economia, da


política, da sociedade, da cultura e da vida cotidiana na era contemporânea, bem recorda
que
espetáculos existem desde os tempos pré-modernos. A Grécia Clássica teve seu Olimpo,
seus festivais de dramaturgia e de poesia, suas batalhas retóricas públicas, e guerras
sangrentas e violentas. A Roma Antiga viveu suas orgias, a ampla oferta de pão e circo, suas
batalhas políticas e o espetáculo do Império com as paradas e os monumentos em honra dos
Césares vitoriosos e de seus exércitos... (In: Líbero, Vol.6, n.11, 2003:5).

A espetacularização é o mais antigo retrato do poder. No início da era moderna, o uso


do espetáculo para governar e controlar a sociedade foi uma das características do príncipe
de Maquiavel. Já nos Estados modernos, os reis e imperadores cultivavam os espetáculos
como parte de seus rituais de governo e poder. Com o avanço da tecnologia da informação
e o surgimento de novas multimídias, os espetáculos passaram a determinar de maneira
decisiva o perfil e a trajetória das sociedades e culturas contemporâneas. Além disso,
também se tornaram característicos da globalização.

Se ao longo da história imperadores, reis, príncipes e ditadores usaram o espetáculo


para governar e manter o poder, na sociedade contemporânea, o “príncipe eletrônico” (a

66
mídia, na visão de Octavio Ianni) 39, com meios e tecnologia mais sofisticados não estaria
repetindo o mesmo esquema? Nos perguntamos se o espetáculo voltado para o consumo
não seria hoje uma continuação, de maneira mais sutil, dos mesmos mecanismos para
conquistar e manter o poder, dado que a mídia exerce uma influência determinante sobre a
sociedade e a forma de governar.

Nos últimos tempos assistimos a uma multiplicação dos espetáculos nos mais
diversificados meios de comunicação. O próprio espetáculo está se tornando um dos
principais organizadores da política, da economia, da comunicação, da religião, da
sociedade em geral e da vida cotidiana. O espetáculo, a serviço do econômico, passa a ser
um meio de divulgação, reprodução, circulação e venda de mercadorias. Para atender às
expectativas do público e aumentar o seu poder de lucro, a cultura da mídia promove
espetáculos cada vez mais sofisticados que, impulsionados pelo poderio econômico passam
a ser o parâmetro da vida em sociedade. Novas multimídias que unem rádio, filme,
noticiário de TV e entretenimento se tornam cada vez mais difundidas. No domínio do
ciberespaço multiplicam-se os sites de informação e lazer. Vimos surgir o que especialistas
chamam de “infoentretenimento” 40
: uma mistura de informação e entretenimento que
produz espetáculo. É comum vermos noticiários com características de entretenimento, uma
espécie de notícia e espetáculo.

Desde que a sociedade do espetáculo foi definida por Debord, a cultura do espetáculo
se expandiu em todas as áreas da vida. Surgiu a economia do espetáculo numa fusão entre
negócios e diversão, onde o entretenimento se torna rapidamente em um dos principais
aspectos geradores dos negócios. Por meio da “entretenimização” da economia, as
corporações e empresas circulam na TV, nos filmes, na internet, nos videogames, nos
cassinos, nos esportes etc, suas imagens e marcas para que os negócios e a publicidade se
combinem no mecanismo de divulgação que se faz, tudo sob a forma de espetáculo. As
corporações precisam transformar seus logotipos em referências conhecidas na cultura

39
Cf., Octavio IANNI, Enigmas da Modernidade - Mundo. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2000.
40
A expressão “infotainment” usada por Douglas Kellner foi traduzida para “infoentretenimento” e refere-se à
forma como a informação e o entretenimento se fundem num mesmo universo comunicacional. Cf., Kellner,
DOUGLAS, A cultura da mídia e o triunfo do espetáculo, In Líbero, pp.4-15. Trad. de Rosemary DUARTE.

67
contemporânea. Dessa forma, a publicidade, o marketing, as relações públicas e a
promoção são partes essenciais do espetáculo das mercadorias no mercado global.

Produzidas e manipuladas no mundo do espetáculo, as celebridades são os modelos


da vida cotidiana, os ícones da cultura da mídia. O espetáculo, seja no campo do
entretenimento, esportes, política ou até mesmo na religião, produz as estrelas reconhecidas
e consagradas pelo público. A exemplo das marcas das empresas, as celebridades têm
assessores para assegurar que sua imagem continue a ser vista de forma positiva pelo
público. Elas também são marcas para vender os seus produtos. Escândalos e fofocas
envolvendo os famosos têm grande repercussão na mídia e podem afetar a imagem, a
marca. Quando a marca de uma determinada empresa está associada a uma estrela e ela,
com o passar do tempo, perde o seu brilho, logo surge(m) outra(as) para ocupar o seu lugar
sem que a marca sofra qualquer dano. Sobre essa questão, os trabalhos de Naomi Klein, I.
Fontenelle e W. Haug sobre a marca e a crítica da estética da mercadoria, são
particularmente esclarecedores. 41
Tendo em vista o valor crescente da imagem das
empresas, da mesma forma, nos programas televisivos avalia-se cuidadosamente a que tipo
de mensagem associar a sua reputação.

A vida político-social também é cada vez mais moldada pelo espetáculo.


Intensificam-se na cultura da mídia os espetáculos de casos sensacionalistas de escândalos
sexuais envolvendo políticos e famosos, cenas de ataques terroristas, assassinatos,
acidentes, rebeliões, mortes e toda a sorte de violência do cotidiano, prato cheio para o
telejornal popular.

É importante recordar que o “espetáculo”, de que fala Debord, vai muito além da
onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto
mais visível e mais superficial. Para Debord, o espetáculo
unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. (...) Considerado de
acordo com os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e afirmação de
toda vida humana – isto é social - como simples aparência. Mas a crítica que atinge a

41
Cf., Naomi KLEIN, Sem Logo, Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002; Isleide Arruda FONTENELLI, O nome
da Marca. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002; Wolfgang F. HAUG, Crítica da Estética da Mercadoria.
São Paulo: Ed. UNESP, 1996.

68
verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como negação da vida
que se tornou visível (1997:#10).

O desejo de entretenimento como instinto, como forma de preencher um tempo cada


vez maior, ou como forma de usufruir o prazer puro deve ser saciado. Eis o grande
paradigma da atualidade: a transformação da própria vida em uma forma de
entretenimento.42 O entretenimento como espetáculo passou a modelar a nossa vida,
tornando-se o valor máximo da sociedade contemporânea. A vida é o espetáculo por
excelência.

Adorno e Horkheimer já haviam notado a fusão entre o real e o virtual em que o


espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de
ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção
cotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo
exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme (1985:118).

O crítico da cultura contemporânea Neal Gabler, em seu livro “Vida, o filme: como o
entretenimento conquistou a realidade”, observou que, com os novos meios de
comunicação como o cinema e a televisão, a distância entre ficção e realidade foi sendo
abolida aos poucos. Hoje é difícil dizer por onde passa a linha demarcadora entre os
aspectos naturais, genuínos e espontâneos da vida, e aqueles resultantes de manipulações de
toda espécie. A vida é retratada como uma forma de entretenimento, como um marco da
cultura contemporânea, influenciada pela ideologia da indústria cultural americana. O
entretenimento se torna para Gabler a força mais persuasiva, poderosa e resistente do nosso
tempo, tão absoluta que se transforma em vida. Todos nos tornamos ao mesmo tempo
protagonistas e espectadores de um grandioso espetáculo que nunca sai do ar, um show
muito mais rico, complexo e interessante do que os produzidos pelos meios de
comunicação convencionais. Somos ao mesmo tempo atores e platéia de um grandioso e
ininterrupto espetáculo (Cf., 2000:12ss).

42
A etimologia de “entretenimento” é latina e vem de inter (entre) e tenere (ter). Portanto “ter entre”; aquilo
que nos leva para dentro dele e de nós mesmos ou pelo menos de nossas emoções e sentidos para nos negar a
perspectiva;“inter tenere”. Cf., Neal GABLER, Vida, o filme, p, 25.

69
Todos somos estrelas e convidados a fazer de nossa vida um filme de sucesso em
todas as dimensões da sociedade: política, cultura, religião... No espetáculo das
celebridades, o importante é reconhecer algo muito comum e verdadeiro e identificar-se
com as personagens que compõem as cenas, porque agem da mesma maneira, sofrem as
mesmas mazelas, vivem o mesmo filme. Temos uma sociedade onde as celebridades se
tornam modelos. “O homo sapiens está se tornando rapidamente o homo scaenicus – o
homem artista” (Gabler, 2000:16).

Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo: a) o “difundido” (o tipo


ocidental, “democrático”) caracterizava-se pela abundância de mercadorias e por uma
aparente liberdade de escolha e, b) o “concentrado” nos regimes totalitários onde a
identificação mágica com a ideologia do poder era imposta a todos para suprir a falta de um
real desenvolvimento econômico. Toda a forma de poder espetacular justificava-se
denunciando a outra; e nenhum sistema, além destes dois, devia ser imaginável.

Contudo, Debord admitiu também que o domínio espetacular conseguiu se


aperfeiçoar e vencer todos os seus adversários; de modo que agora é a sua própria
dinâmica, a sua desenfreada loucura econômica a arrastá-lo em direção à irracionalidade
total e à ruína. Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um
único tipo: o “integrado”. Sob a máscara da democracia, ele remodelou totalmente a
sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que nenhuma alternativa seja sequer
concebível. É a cara do sistema neoliberal. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue
falsificar tudo, desde a cerveja, o pensamento, até os próprios revolucionários. Ninguém
pode verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em imagens, imagens que
outros escolhem. Para os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais
conveniente do que os velhos totalitarismos. O espetáculo é o poder que foi sacralizado.

Como afirma o próprio Debord:


quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se
seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo como
tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode
tocar diretamente serve-se da visão como o sentido privilegiado da pessoa humana – o que
em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação,

70
corresponde à abstração generalizada da sociedade atual (1997: #18).

O autor anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de


tipo novo: retomando o conteúdo liberatório da arte moderna, teria como programa a
revolução da vida cotidiana, a realização dos desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos
sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e hierárquicas, a abolição do
dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria.

Baseado no conceito de Debord, o crítico da cultura Douglas Kellner argumenta que


espetáculos são aqueles fenômenos de cultura da mídia que representam os valores básicos
da sociedade contemporânea, determinam o comportamento dos indivíduos e dramatizam
suas controvérsias e lutas, tanto quanto seus modelos para solução de conflitos (In:
Líbero, Vol.6, n.11, 2003:5).

São os tais acontecimentos que chamam a atenção e que obedecem a lógica do


espetáculo na era do sensacionalismo da mídia, na política, entre os famosos, que viram
notícia, bem como sobre a violência e o escândalo que acontece no cotidiano a que nos
referimos anteriormente, foco do nosso estudo.

Kellner chama a atenção para exemplos pontuais do espetáculo e como eles são
produzidos, construídos, como circulam e funcionam na atualidade. Sob a influência de
uma cultura “imagética multimídia”, os espetáculos sedutores fascinam os ingênuos e a
sociedade de consumo, envolvendo-os na esfera de um novo entretenimento, informação e
consumo, que passam a determinar profundamente o pensamento dos indivíduos e a vida
em sociedade.

Outra característica do espetáculo apontada por Debord é a repetição. Sempre que há


representação independente, ele se reconstitui. Nesta sociedade, há a produção circular do
isolamento (através do automóvel, da televisão etc.). Desta forma, a temática da separação
e do isolamento assumem um papel central na concepção de Debord. O consumo e a
imagem (representação reificada) ocupam o lugar da ação direta, do diálogo. Provocam o
isolamento e a separação.

71
Debord retoma a discussão em torno do fetichismo da mercadoria desenvolvido por
Marx. A mercadoria surge como força que ocupa a vida social e constitui a economia
política,
ciência dominante e ciência da dominação. O espetáculo é o momento em que a mercadoria
ocupou totalmente a vida social (...). A produção econômica moderna espalha, extensa e
intensivamente, sua ditadura (1997: #42).

A abundância da produção de mercadorias produz a preocupação da classe dominante


com o proletário enquanto consumidor, criando o “humanismo da mercadoria”,
encarregado do “lazer” do trabalhador. “Assim, ‘a negação total do homem’ assumiu a
totalidade da existência humana” (Ibid.: #43).

Isso equivale a dizer que, com sua vida e experiências moldadas pelos espetáculos da
cultura e da mídia e pela sociedade de consumo, o ser humano deixa de ser sujeito ativo de
sua própria história, passando a ser submisso aos espetáculos consumistas.

Nas sociedades tradicionais havia momentos de rituais e espetáculos realizados


segundo normas culturais conhecidas pela comunidade. Momentos certos, estruturado com
princípio e fim. Na sociedade de consumo, a lógica do espetáculo não permite reconhecer o
espetáculo produzido. Não vemos, não percebemos, é diário, contínuo e se dá em várias
dimensões: quando divulgamos idéias, notícias, produtos, imagens, produzimos espetáculo.
Mesmo aquelas sociedades menos desenvolvidas hoje são envolvidas pelo espetáculo. Há
uma sobrevivência da religião em forma de uma pseudo-religião. A própria religião é
mercantilizada e os produtos são cultuados em uma verdadeira sacralização.

A produção de mercadoria e o consumismo alteram as percepções do eu e do mundo


exterior, criando um mundo de espelhos, de imagens que se confundem com a realidade. O
efeito espetacular faz do sujeito um objeto; ao mesmo tempo, transforma o mundo dos
objetos numa extensão ou projeção do eu. Instaura-se uma sensação de frustração e vazio a
ser preenchido pelo consumo de bens descartáveis, criando um círculo vicioso de
dependência.

72
O conceito de espetáculo em Debord encontra-se ligado ao conceito de separação e
passividade. A sociedade capitalista separa os trabalhadores dos produtos de seu trabalho, a
arte da vida, o consumo das necessidades humanas e das atividades autodirigidas como se
os indivíduos assistissem passivamente, em suas casas, aos espetáculos da vida social
(Cf.,1997: #25). O sistema fundado no isolamento é ele próprio uma produção circular do
isolamento que cria “multidões solitárias”. O resultado é a proletarização do mundo.
Com a separação generalizada entre o trabalhador e o que ele produz, perde-se todo o ponto
de vista unitário sobre a atividade realizada, toda a comunicação pessoal direta entre os
produtores, (...) a unidade e a comunicação tornam-se atributo exclusivo da direção do
sistema (Ibid.: #26).

No espetáculo temos também uma distinção entre passividade e atividade, consumo e


produção, condenando o consumo sem vida do espetáculo como uma alienação da
potencialidade humana para a criatividade e imaginação. Usando eventos culturais, de lazer
e consumo, serviços e entretenimento seguindo critérios de publicidade, a sociedade
espetacular divulga seus produtos, induzindo ao consumo e alimentando o desejo.

Na sociedade do espetáculo, o indivíduo é visto como mero espectador, o agente e


consumidor de um sistema social relacionado ao conformismo e à submissão. A
Internacional Situacionista, ao contrário, previa um controle de todas as formas de
separação, onde os indivíduos seriam sujeitos de suas próprias vidas, produzindo os hábitos
de atividades individuais e das produções coletivas.

Em sintonia com os pensadores da Escola de Frankfurt (Adorno e Horkheimer;


Marcuse) Debord argumenta que
o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas
a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que
se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente,
sua ditadura (Ibid.: #42).

Nesse esquema a exploração é levada a um nível psicológico e a privação física


básica é aumentada pela “privação enriquecida” de pseudo-necessidades; a alienação é
generalizada e tornada confortável, e

o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada.

73
Todo o trabalho vendido de uma sociedade se torna globalmente a mercadoria total, cujo
ciclo deve prosseguir (1997: #42).

A vida cotidiana torna-se o fundamento da crítica de Debord à sociedade moderna.


Esta se caracteriza pela generalização do fetichismo da mercadoria que invade a vida
cotidiana. O espetáculo produzido pela sociedade capitalista, fundamentada na
mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado, abre caminho para sua teoria crítica.
O espaço, o tempo, o lazer, a cultura, a arte, a comunicação e tudo o mais é perpassado por
esta alienação generalizada da sociedade contemporânea. Tendo em vista que a alienação é
total, então Debord propõe a contestação total do capitalismo moderno. Desta forma, a
modernidade é a sociedade do espetáculo, o reino do fetichismo e do consumo. Um mundo
fragmentado, separado. Trata-se de uma concepção severa e verdadeira sobre a sociedade e
a modernidade. Uma acusação do seu caráter alienante, fetichista, espetacular.

A modernidade carrega consigo uma profunda ambigüidade e contradição


permanente: destruir, construir para depois destruir, e assim sucessivamente. Ao mesmo
tempo, essa dinâmica é pautada pela velocidade, pela extensiva variedade de objetos
mercadológicos, por um tom mais quantitativo do que qualitativo. A ação presente descarta
o conteúdo do passado, a memória, a história e a cultura. Vivemos, nesse sentido, em um
processo constante de rupturas. O passado torna-se um depósito de receitas para o presente
e não uma fonte de inspiração para a invenção de mundos futuros.

Debord é um dos poucos autores de inspiração marxista que hoje pode dar uma
contribuição válida para a análise do capitalismo globalizado e pós-moderno. Ele também
fascina pela autenticidade com que viveu e pela coerência de suas teorias. A busca da vida
“verdadeira” o colocou à margem da sociedade e sem ter muito espaço em instituições,
entrevistas ou congressos, conseguiu fazer-se ouvido. Levou adiante a sua batalha contra a
sociedade espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio criou para si: conforme
mencionado anteriormente, com a Internacional Situacionista.
No prefácio à 4a edição italiana de “A sociedade do espetáculo”, Debord se rejubilou
ao constar que nada, na primeira versão da obra, necessitava ser corrigido, afora três ou
quatro erros tipográficos:

74
posso me gabar de ser um raro exemplo contemporâneo de alguém que escreveu sem ser
imediatamente desmentido pelos acontecimentos. (...) Não duvido que a confirmação
encontrada por todas as minhas teses continue até o fim do século, e além dele. Por um
simples motivo: compreendi os fatores constitutivos do espetáculo (Debord [1979]
1997, 152).

Tanto isso é verdade que com o passar dos anos, o espetáculo aproxima-se ainda mais
de seu conceito. Percebe-se com certa facilidade na sociedade contemporânea, onde a mídia
desempenha um papel preponderante, aquilo que Debord evidenciou. “O espetáculo não é
um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”
(1997: #14). A sociedade do espetáculo existe na medida em que o espetáculo passa a
regular as relações sociais e tudo procura resolver pela lógica mercantil.

A questão dos telejornais sensacionalistas se insere nesse contexto. Os programas do


gênero aparecem como mais uma tentativa de se resolver os problemas da violência e do
crime, mediante a espetacularização dos fatos apresentados ao vivo e de forma vibrante. A
conjunção entre a violência realmente experimentada ou experimentável e a violência
comunicativamente consumida se funde muitas vezes em um único bloco quase sem
contradições. A violência consumida através do telejornal faz parte e ao mesmo tempo é
alimentada pela violência real que ronda as nossas cidades. Entendemos a violência
realmente experimentada ou passível de ser experimentada a qualquer momento, aquela
efetivada por via de contato físico, bem como a realizada apenas por meio da linguagem
espetacularizada, signicamente representada, assemelhando-se à uma simulação e às vezes
apresentada com características de entretenimento para ser consumido.

O acúmulo de espetáculo é um componente essencial da lógica capitalista neoliberal,


que quanto mais desenvolvida, mais produz espetáculo. O espetáculo de violência
produzido pelos telejornais sensacionalistas vinculados a uma sociedade em permanente
crise (violência crescente e enfraquecimento das instituições) leva os cidadãos a consumir o
conteúdo do programa (soluções ilusórias) sem nunca se resolver a crise. A questão da
violência que permeia a na sociedade e ocupa amplo espaço no telejornal sensacionalista
será abordada no desenrolar do próximo capítulo.

75
II

A VIOLÊNCIA E O SAGRADO
Iniciamos o primeiro capítulo do nosso estudo apresentando os conceitos de
“indústria cultural” e “espetáculo”, concebendo a produção do gênero sensacionalista na
mídia como um produto da sociedade do espetáculo e consumo. Através de uma descrição
pormenorizada do telejornal “Brasil Urgente”, evidenciamos as características desse gênero
de notícia que tem a violência e as tragédias apresentadas em forma de espetáculo, como
principal foco das reportagens.

Neste segundo capítulo pretendemos abordar o fenômeno da violência como


elemento marcante nos programas considerados sensacionalistas. Normalmente, as
discussões sobre a violência na mídia se atêm à analise dos temas e conteúdos considerados
violentos: se a difusão de cenas violentas na televisão são perigosas ou não e se deveriam
ser regulamentadas. Ou seja, sobre o impacto que a violência mostrada na TV tem sobre o
público que assiste. No nosso estudo, nos propomos a pensar mais sobre a relação entre a
existência dos programas sensacionalistas e a violência; no papel dos telejornais policiais
que, na sociedade contemporânea, surgem em substituição às instâncias judiciárias no
combate à violência.

Para abordar esse aspecto buscamos suporte na análise de René Girard sobre as raízes
da violência e os mecanismos para solucionar as crises por ela desencadeadas. As reflexões
de Girard sobre a violência vêm despertando atenção, uma vez que ele afirma estar esse
fenômeno presente na base mesma de toda a cultura humana e da sociedade. Fenômeno que
ele relaciona diretamente ao sagrado: “a violência e o sagrado são inseparáveis” (Girard,
1998:32); “É a violência que constitui o verdadeiro coração e alma secreta do sagrado”
(Ibid.:46). Isso explica o porquê do título “a violência e o sagrado” para o segundo capítulo
do nosso trabalho. Introduzimos nessa parte, a dimensão do sagrado em estreita relação
com a violência, no intuito de trazer para o debate elementos pouco discutidos nos estudos
da comunicação.

77
2. 1 Considerações iniciais

A questão da violência, ao longo dos anos, emerge como um problema para os


indivíduos e sociedades. Embora, muitas vezes, não aprofundado e sujeito à influência da
mídia, assumiu a proporção de um debate popular, expresso tanto na conversa cotidiana dos
cidadãos, dos seus comportamentos e sentimentos, como na pauta das instituições que
compõem a sociedade.

As respostas a este fenômeno têm se mostrado múltiplas e diversas, abrangendo uma


gama de medidas, nos mais diversos níveis: individual, comunitário, governamental. As
pessoas se protegem, se armam e cercam as casas. As comunidades fazem passeatas
pedindo mais segurança e o governo procura implementar medidas como a restrição à
venda de armas. 43 O tema da segurança é incluído na agenda do dia de muitos organismos
e grupos. A Organização das Nações Unidas proclamou 2000 como Ano Internacional de
uma Cultura de Paz; no Brasil organizações da sociedade civil e parte da grande mídia
fazem campanhas pelo desarmamento da população com base no Estatuto do
Desarmamento ; o Conselho das Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) escolheu o tema
44

“Solidariedade e Paz” para a Campanha da Fraternidade Ecumênica em 2005 dentro da


“Década pela superação da violência” (2000 a 2010), e nascem tantas outras iniciativas para
superar a violência na sociedade contemporânea.

A violência, muitas vezes, aparece como um problema ligado à educação, percebido


tanto em relação à escola quanto à cultura, e investigado desde a percepção da questão, o
estudo de suas causas e manifestações. Contudo, debates demonstram que, em relação à
essa questão, não há consenso entre os pesquisadores quanto às causas que produzem a
violência nem mesmo quanto ao fenômeno em si. Os problemas da violência ainda
permanecem obscuros.

43
Estatuto do Desarmamento, votado no Congresso Nacional e que se tornou a Lei 10826, de 22 dez. 2003.
44
Fazem campanha para a diminuição dos índices de violência no Brasil: Instituto Sou da Paz (Cf.,
<www.soudapaz.org.br>); Programa de Desarmamento do Movimento Viva Rio (Cf., <www.desarme.org>);
Campanha do Desarmamento CNBB (Cf., <www.cnbb.org.br/cd/index.php>), entre outros.

78
Há aqueles que a concebem como um subproduto social e que existe em toda
sociedade e em qualquer época, como Émile Durkheim, 45 que entendia a violência como
sintoma de funcionamento ineficiente das instituições sociais, ou falha nos processos de
socialização das pessoas. Para Karl Marx, 46 a violência seria resultante das lutas de classes,
fruto das contradições das conquistas da modernidade e do capitalismo. Hannah Arendt, 47
filósofa política do nosso século, diz que a escalada da violência pode significar a
deterioração do poder do Estado, uma vez que “poder e violência são opostos; onde um
domina absolutamente, o outro está ausente”. É comum pensar que a violência tem causas
difusas como racismo, intolerância, desigualdades sociais, processos de exclusão, ineficácia
da lei/impunidade, omissão do Estado, entre outras. Ainda há os que acreditam que a mídia,
em especial a televisão, gera ou potencializa comportamentos agressivos e contribui para o
incremento da violência na sociedade.

Na mídia contemporânea em geral, a tendência é tratar a violência como se ela


estivesse presente apenas sob a forma de assunto, como se fosse apenas mais uma pauta.
Hannah Arendt, já alertou para a falta de grandes estudos sobre o fenômeno da violência e a
conseqüente banalização do conceito:
Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política, pode permanecer alheio ao
enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira
vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de
consideração especial (1994:16).

Dentre as inúmeras reflexões significativas a respeito da violência, René Girard é um


dos pensadores cada vez mais valorizados na sua compreensão. Além de sua vasta obra
publicada em 15 livros; 57 ensaios em livros coletivos; 112 artigos, introduções e resenhas;
41 entrevistas; temos também 42 livros que discutem as idéias de Girard e 12 números
especiais de revistas que debatem sobre o pensador. 48
Uma busca feita na Internet sobre o
autor resultou em aproximadamente 191.000 itens. A mesma pesquisa sobre "Girard e

45
Cf., Seleção de textos sobre Durkheim. In: José Arthur GIANNOTTI, (org.). Emilè Durkheim. Coleção Os
Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
46
Cf., Karl MARX e Friederich ENGELS, Manifesto Comunista, Boitempo Editorial, 1975. Trad. de Álvaro
Pina.
47
Cf., Hannah ARENDT, Sobre a Violência, p. 47.
48
Uma lista completa das obras se encontra nos apêndices do livro René GIRARD, Um longo argumento do
princípio ao fim. Diálogos com João Cezar Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, p. 237-266.

79
Violência" resultou em 4.830 referências. Os autores que comentam sobre Girard se
encontram mais na área da antropologia, da crítica literária e ciências das religiões. Os
principais são: Alberto Carrara, Paul Domouchel, Jean-Pierre Dupuy, Eric Gans, François
Lagarde, André Lascaris, Jürgen Hans, Andrew J. McKenna, Laura Ferreira dos Santos,
Alfredo Teixeira, Domingos Barbé, Hugo Assmann, Jung Mo Sung, Franz Hinkelammert e
Renold J. Blank, para citar alguns. Nos estudos da comunicação Girard é pouco conhecido.
Contudo, alguns pesquisadores quando refletem sobre a questão da violência na mídia
mencionam suas idéias. É o caso de Ciro Marcondes Filho, Michel Maffesoli, G. Duran e
Malena Segura Contrera.

Pelo grau de importância que a mídia ocupa na produção cultural e nas relações
sociais, de maneira particular quando retrata a violência em seus programas, as
investigações de Girard têm a possibilidade de contribuir significativamente nos estudos da
comunicação. Sabemos, porém, que o desafio à nossa frente é grande. Por outro lado, se no
nosso percurso conseguirmos captar alguns aspectos da sua vasta obra e, ajudados por ela,
compreendermos algo mais acerca do espetáculo de violência presente no telejornal
sensacionalista, estaremos contribuindo para o debate.

Entretanto, longe de fazer um estudo sobre Girard, a intenção aqui é apresentar de


forma geral o seu pensamento, destacando alguns elementos, particularmente a sua reflexão
sobre a violência e o sagrado, que servirão de suporte para analisar em parte o telejornal
“Brasil Urgente” em complementação aos estudos de Adorno, Horkhiemer e G. Debord,
apresentados anteriormente e que são igualmente usados na nossa análise.

2. 2 A obra de Girard

René Girard figura entre os maiores pensadores da atualidade. Nascido aos 25 de


dezembro de 1923 em Avignon, França, forma-se em Filosofia (1941), conclui sua pós-
graduação em História (1947) como arquivista paleógrafo, com a tese “vida privada de
Avignon na segunda metade do século XIX”, na École Nationale des Chartes, Paris.
Transfere-se para os EUA, onde obtém o doutorado na Universidade de Indiana (1950),

80
com a tese “A opinião americana sobre a França, 1940-1943”. Inicia aí sua carreira
universitária, lecionando nas universidades John Hopkins, em Nova York e Stanford, na
Califórnia.

Na década de 60, organiza um colóquio internacional sobre “Linguagens da crítica e


ciências do homem”, com a participação de diversos intelectuais, entre eles Roland Barthes,
Jacques Derrida, Lucien Goldmann, Jean Hyppolite, Jacques Lacan, Georges Poulet,
Tzevetan Todorov e Jean-Pierre Vernant. Reunidos, discutem naquele momento a chamada
Nova Crítica Literária e, também, as novas tendências de pesquisa da história e filosofia.
Atualmente Girard encontra-se aposentado, somente orientando alguns pesquisadores.

Como professor de literatura, antropólogo, crítico literário, filósofo, sociólogo e


historiador, desponta como um intelectual de domínio amplo de toda a cultural ocidental.
Suas idéias convergem na construção de uma Antropologia Geral, uma área do
conhecimento que pretende captar a dimensão humana numa perspectiva totalizadora e
unitária. Seu pensamento contribui para os estudos de antropologia ao definir o ser humano
como um “animal mimético” (Cf., Girard, 1998:7).

A obra de Girard procura esclarecer as verdades formuladas no pensamento universal.


Girard nos traz à luz a própria realidade e sua interpretação. Enquanto observador atento da
intelectualidade ocidental e de seus hábitos contemporâneos, inicia um diálogo com a
literatura clássica e imortal e por meio das obras dos maiores romancistas europeus,
encontra o fio condutor que o faz caminhar para além da encruzilhada da modernidade – o
desejo mimético.

Ao expor suas idéias, Girard cria um texto complexo, estabelecendo uma relação com
os clássicos do pensamento ocidental por intermédio dos quais discute suas teorias,
realimenta-as com suas próprias considerações, e por fim, formula sua teoria original que
versa sobre a realidade: a pessoa humana e a humanidade.

81
Embora discordando em alguns aspectos, críticos do sistema neoliberal vigente e
teólogos da libertação, na América Latina, sentiram-se atraídos pelo pensamento
girardiano. Os dois pensamentos possuem em comum a recusa às lógicas de exclusão, às
ideologias antivida, à vitimação de seres humanos.49 Ao elaborar sua teoria, Girard parte de
uma rica e vasta leitura de obras literárias, de mitos e tragédias, da obra de Freud e dos
textos bíblicos. Lê os evangelhos como uma obra antropológica, Freud a partir de Proust e
Lévi-Strauss a partir de Sófocles. Por fim, desenvolve uma teoria do desejo, da religião e da
cultura e, portanto, da história. Suas fontes intelectuais são muitas e, consequentemente,
carrega consigo convergências e divergências, numa grande polifonia.

Girard, sintonizado com seu tempo, busca resposta para a crise estrutural da
modernidade, a crise das ideologias, a morte do homem, a morte de Deus, dando eco às
vozes de três grandes mestres do pensamento ocidental, Durkhein, Freud e Nietzche. O
pensador desenvolve sua teoria sobre violência e a função do religioso, na qual dialogam de
forma original, mitos, tragédias clássicas, os ritos e instituições sociais e culturais. É desse
período sua principal obra: “A Violência e o Sagrado”. 50

Sua grande ambição: nos revelar as origens de toda a civilização, em particular as


origens da civilização ocidental. Girard realiza análises de textos como qualquer professor,
porém, acredita ter descoberto o que ele mesmo chama “coisas ocultas desde a fundação do
mundo”, título de umas de suas principais obras.51 Estão ocultas, diz ele, “somente à medida
que nos negamos a vê-las”.

Numa época marcada por debates sobre a violência 52


e pela busca utópica de sua
eliminação, a obra de Girard 53 adquire um interesse renovado, ainda a ser descoberto pelos

49 Em 1990, Girard, esteve no Brasil, participando de um encontro internacional, com os teólogos da


libertação, resultando em um livro. Cf., Hugo ASSMANN (org.), René Girard com teólogos da libertação.
Um diálogo sobre ídolos e sacrifícios, Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
50
René GIRARD, A Violência e o Sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini; revisão Edgard de Assis
Carvalho. São Paulo: Paz Terra, 1998, 2a ed. La Violence et lê Sacré foi originalmente publicado em 1972.
51
IDEM, Des Choses cachées depuis la fondation du monde, Paris: Garsset et Fasquelle, 1978. Usaremos a
versão em inglês Things Hidden since the Foundation of the World. London, New York: Continuum,2003,
versão paperback.
52
Violência em sua etimologia latina é “empregar força sobre” alguém ou alguma coisa. Sua origem parece
ser de “vi inferre”, onde o infinitivo do verbo inferre tem a forma irregular de illatum.

82
brasileiros. Qual a raiz antropológica da violência na sociedade? O pensador francês
procura responder a essa desafiante questão. À exceção de um encontro com representantes
da Teologia da Libertação 54
e da tradução de “A Violência e o Sagrado”, “Um longo
argumento do princípio ao fim” 55
e recentemente, “O Bode Expiatório” (Paulus 2004), o
interesse pelas teorias de Girard continua insignificante. Na totalidade de sua obra, Girard
está empenhado em contribuir para a construção de uma ética do entendimento humano, tão
necessária nos dias de hoje.

2. 3 O desejo mimético

No início de sua obra Girard cita uma frase de Aristóteles para destacar uma das
qualidades do ser humano: a sua capacidade de imitação. “O homem é diferente dos demais
animais pela sua maior aptidão na imitação” (Poética, 4). 56 Analisando essa capacidade de
mimetismo o autor nota que ela ao mesmo tempo, gera cultura (aprendizado) e violência.

Girard argumenta que na origem de toda a sociedade, está a violência. Mas não a
agressão bárbara e anônima. Nossa violência está baseada no que ele chama de “desejo
mimético”, a imitação: somente desejamos o que o outro deseja. Já em seu primeiro livro,
Mensonge romantique, verité romanesque (1961), Girard chamava a atenção para a
“mentira romântica”, ou seja, questionava a crença absoluta no individualismo, sobretudo
no tocante ao objeto do desejo (Cf., 2000:12).

Na concepção girardiana, a mola deflagradora da violência é o desejo. A pessoa


humana é desejo, mas um desejo de natureza muito especial, mimético, que precisa
experimentar a ameaça de um outro. Esse outro, porém, só desejará o que eu desejo e vice-

53
Para entender o seu pensamento é necessário partir de sua teoria do “bode expiatório” desenvolvida em suas
obras “La Violence et le Sacré (1972); The Scapegoat (1986) e Things Hidden Since the Foundation of the
World. (1978).
54
Hugo ASSMANN (org.), René Girard com teólogos da libertação. Um diálogo sobre ídolos e sacrifícios.
Rio de Janeiro: Vozes, 1991. Girard identifica nas raízes da violência a sobreposição dos objetos sobre as
pessoas, negando a reciprocidade que existe entre elas. Este processo, que o autor chama de “desejo
mimético”, torna o conflito contagiante, engendra a rivalidade e nega a reciprocidade entre as pessoas.
55
René GIRARD, Um longo argumento do princípio ao fim: Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e
Pierpaolo Antonello, Trad. de Bluma Waddington Vilar: Topbooks, Rio de Janeiro, 2000.
56
In: René GIRARD, Things Hidden since the Foundation of the World, preâmbulo.

83
versa. As pessoas desejam um objeto não pelo seu valor intrínseco, mas porque ele é
desejado por outros. Nós imitamos o desejo dos outros. A inveja ou desejo mimético, é
vista como um dos fundamentos da condição humana, um drama existencial original que
inaugura a violência entre os seres humanos.57

Uma vez descoberto este desejo mimético, Girard é capaz de encontrá-lo em qualquer
texto significativo: a chave abre todas as fechaduras. Por exemplo, na novela de Cervantes,
Dom Quixote se faz cavaleiro para imitar o herói dos romances Amadis de Gaula; em
Freud, é o pai quem mostra ao filho sua mãe e o leva ao complexo de Édipo; na tragédia
grega o jovem Páris provoca a guerra de Tróia porque deseja Helena, prometida de
Menelau. Desde Eurípedes a Shakespeare, e até ao teatro de “vaudeville”, o “triângulo
mimético” pressiona a ordem social. 58
A imitação comporta em si uma tendência
extremamente perigosa para a estabilidade social, que é a tendência para o conflito: mímesis
(imitação rivalizada).

Trata-se de uma relação, na maior parte das vezes, inconsciente. Tal triângulo
esclarece que as relações humanas são medidas pela presença constitutiva de um “outro”,
para além do contato direto entre sujeito e objeto. A “verdade romanesca” representa o
reconhecimento de que o amor à primeira vista é sempre de segunda mão, por assim dizer.
Para o autor, a autonomia do sujeito não passa de uma falácia, pois tendemos a constituir
“nosso” desejo a partir do sujeito de um outro que elegemos como modelo.

Em todos os desejos investigados por Girard, ele observou que não havia somente um
objeto e um sujeito. Havia um terceiro termo, o rival, ao qual se poderia tentar, por sua vez,
dar uma primazia.
O desejo mimético não se enraíza nem no sujeito nem no objeto, mas em um terceiro, que
também deseja, e cujo desejo é imitado pelo sujeito (1998:212).

57
O desejo mimético gera rivalidade mimética, como também poderá gerar boas ações no coletivo, quando
expressado em solidariedade. Em diálogo com Girard, o teólogo Leonardo Boff expressou o desejo de ver
uma ênfase maior no pólo do desejo mimético que produz a bondade na história. Cf., Leonardo BOFF,. In:
Hugo ASSMANN (org.), René Girard com Teólogos da Libertação, p. 56-57. Ver também René GIRARD,
Um longo argumento do princípio ao fim, p. 102-103.
58
Já na sociedade contemporânea, pautada pela economia de mercado e consumo, são os nossos vizinhos que
nos mostram o objeto que, por imitação, vamos desejar.

84
O modelo girardiano renuncia à primazia do objeto e do sujeito para afirmar a do
rival. Ele mesmo explica:
O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival
designa-o ao sujeito como desejável. O rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano
superficial das maneiras de ser, das idéias, etc, mas no plano mais essencial do desejo.
(...) Uma vez que seus desejos primários estejam satisfeitos, e às vezes mesmo antes, o
homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja,
um ser do qual se sente privado e do qual algum outro lhe parece ser dotado. O sujeito
espera que este outro lhe diga o que é necessário desejar para adquirir este ser. Se o modelo,
aparentemente já dotado de um ser superior, deseja algo, só pode se tratar de um objeto
capaz de conferir uma plenitude de ser ainda mais total. Não é por intermédio de palavras,
mas de seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto sumamente desejável.
Retomamos uma idéia antiga cujas implicações, no entanto, talvez sejam mal
desconhecidas: o desejo é essencialmente mimético, ele imita exatamente um desejo
modelo; ele elege o mesmo objeto que este modelo.
O mimetismo do desejo infantil é universalmente reconhecido. O desejo adulto não tem
nada diferente. A não ser talvez pelo fato de que o adulto, especialmente em nosso contexto
cultural, tem muitas vezes vergonha de modelar-se a partir de outrem; (de se deixar
influenciar por outro) ele tem medo de revelar sua falta de ser. Declara-se altivamente
satisfeito com ele mesmo; apresenta-se como modelo aos outros. Todos dizem: "imitem-
me", a fim de dissimular sua própria imitação (1998:184-85).

Na opinião de Girard, dois desejos que convergem sobre o mesmo objeto se fazem
reciprocamente obstáculo. Qualquer mimese relacionada ao desejo desencadeia
automaticamente um conflito. A pessoa humana é sempre parcialmente cega para essa
causa da rivalidade.
A tendência mimética faz do desejo a cópia de um outro desejo e conduz necessariamente à
rivalidade. Esta necessidade fixa por sua vez o desejo sobre a violência de outrem
(Ibid.:211).

Sujeitos A e B estabelecem uma relação de “discípulo e modelo”. Essa relação é


sempre assimétrica: A quer imitar B, mas diante da impossibilidade de realizá-lo, passa a
vê-lo como um rival. Por outro lado, quando B se vê imitado, reage, e vê A como um rival.
Esse é o aspecto do conflito e mostra que a violência se alicerça no caráter mimético do
desejo.

Como vemos, para o pensador, os comportamentos humanos não são livres, pois
todos derivam de motivações profundas provocadas pela imitação e pelo desejo. O que
existe não é um desejo autônomo, mas um “desejo segundo o outro”, sempre referenciado a
um terceiro, pois este é quem designa ao sujeito aquilo que este deve desejar (em última

85
instância o próprio “ser” daquele). Daí o aparecimento da rivalidade mestre/discípulo e do
double bind do modelo/obstáculo.

Temos também a imitação ao mesmo tempo sugerida e interditada denominada por


Girard de double bind: é duplo imperativo. Em que consiste o duplo imperativo: o modelo
para ser modelo tem que dizer: me imitem. Mas se o discípulo o imita, o modelo deixa de
ser modelo. Então ele tem que dizer ao mesmo tempo: não me imitem. A ordem para imitar
e não imitar ao mesmo tempo é o duplo imperativo onde o modelo (o mestre) de forma
inconsciente, dá dois comandos opostos. O modelo quer que o discípulo o imite, mas
quando ele é imitado deixa de ser modelo. Surgem as dificuldades. É por esse motivo que
para Girard toda a relação é conflituosa e culposa. O discípulo está sempre ocupado: se
imitar, ele desobedece a ordem para “não imitar”; se não imitar, ele não obedece a ordem
para “imitar”. A consciência de culpa generalizada para Girard é conseqüência desse duplo
imperativo atribuído à mimesis: “imite-me / não me imite” (Girard, 2000:136).

Afirmar, como faz Girard nos textos acima citados, que o desejo se constitui sempre
sobre um modelo mimético é mostrar que o desejo é provocado não tanto por um objeto
mas por um outro, o rival, que já deseja este objeto. Em outras palavras, a estrutura do
desejo é triangular uma vez que ela implica, entre o sujeito e o objeto, um mediador que
constitui, ao mesmo tempo, um modelo e um rival que os coloca em relação ao seu próprio
desejo. Assim, o desejo se converte num conflito cujo objeto da disputa é a afirmação de
seu ser face ao outro.

A necessidade para o sujeito de ter um modelo se fundamenta num fundo de incerteza


sobre si e de sentimento de incompletude: o sujeito não nasce com uma identidade já
constituída. Ele deve se construir como sujeito. Para tanto, deve emprestar alguma coisa a
um outro que parece se afirmar pelos seus próprios desejos. Este empréstimo, segundo
Girard, se dá por mimetismo, isto é, por uma forma de imitação em função da qual
acreditamos nos apropriar de uma personalidade.

86
No desejo, a relação com o outro precede e funda a relação com o objeto; é aí que sua
estrutura é paradoxal. O objeto do conflito que decorre deste mimetismo não é tanto o
objeto desejado, mas sim o fato insuportável de ver seu desejo (logo uma parte de sua
identidade) compartilhado com um outro: há necessariamente uma primazia da violência no
desejo porque a disputa ultrapassa a simples apropriação do objeto para engajar, em última
instância, a propriedade da identidade ela mesma.

Girard identifica nas raízes da violência a sobreposição dos objetos sobre as pessoas,
negando a reciprocidade que existe entre elas. Este processo torna o conflito contagiante,
engendra a rivalidade e nega a reciprocidade entre as pessoas. Nesta perspectiva, o outro
passa a ser concebido como inimigo que disputa o mesmo objeto de desejo. Como
resultado, a complementariedade recíproca, própria aos seres humanos dá lugar à luta
alimentada pelo desejo mimético.59

O desejo mimético cria um processo não intencional: quando uma pessoa quer imitar
ou o comportamento de seu professor ou o que o modelo tem, ele faz isso para adquirir um
ser que ele acha que o modelo tem. O resultado final quando todos se imitam é a
indiferenciação. Isso porque desaparecem as diferenças (na sala de aula quando o aluno
imita o professor e o professor imita o aluno, desaparecem as diferenças). Surge o caos que
é a perda da diferenciação. Portanto, a indiferenciação é o resultado final do processo de
imitação. Girard postula que a “crise sacrificial” pode ser sinônimo de “crise das
diferenças” (1998:73). “Onde a diferença está ausente é a violência que ameaça” (Ibid.:78).
O desejo mimético é essencialmente a anulação das diferenças e, consequentemente, só
resta ao ser humano lidar com o desejo mimético no sentido de contornar os seus efeitos.

A cultura se funda nos processos de diferenciação. É ela que permite a organização da


sociedade. Isso porque na indiferenciação, há o risco de violência generalizada, sem

59 A colocação dos objetos acima das pessoas é o ponto sobre o qual a reflexão bíblica vem insistindo como
raiz da violência, desde o sangue de Abel derramado por Caim. A reflexão latino-americana (Hugo Assmann,
Franz Hinkelammert, Pablo Richard, Jon Sobrino, Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Frei Betto, Jung Mo
Sung, Gilberto Gorgulho, entre outros) tem desenvolvido abundantemente este aspecto, seja pela acusação das
diferentes expressões desta sobreposição, seja pela proposta da alteridade e reciprocidade, como a chave para
se desencadear um processo inverso à violência.

87
responsáveis identificáveis, o que pode levar à autodestruição do grupo. A crise mimética é
uma ameaça à sociedade. É aí que surgem as soluções sociais pacificadoras, condensadas
na figura do bode expiatório. Ela não vem para acabar com a estrutura do desejo mimético,
que é imutável e universal, mas para regulamentar ou racionalizar a violência. Trata-se de
um processo de transferência da violência generalizada para uma vítima expiatória. A
ameaça coletiva é condensada numa só vítima: da terrível expressão “um contra o outro”
passa-se para a pacificadora solução “todos contra um”.

No desenrolar do processo, a rivalidade se torna tão acentuada que a violência vai se


incorporando no núcleo do próprio desejo. Logo a violência parece ser o próprio objeto do
desejo, e o sujeito “A” quer dominar o objeto por meio da violência contra o sujeito “B”.
Os dois sujeitos não desejam o objeto, mas o desejo do outro. A esta altura o objeto
praticamente desapareceu por trás do desejo recíproco. Ou melhor: objeto, sujeito e desejo
são uma coisa só; estão indiferenciados. Esta indiferenciação é a gênese da violência; sua
mola propulsora. A estrutura do desejo é a estrutura da violência.

A questão central em Girard é o processo de humanização. Contudo, essa não é a


principal preocupação do nosso estudo, uma vez que nos concentramos nas possibilidades
de usarmos aspectos da teoria girardiana para entender o que está por trás da
espetacularização da violência que alimenta os telejornais sensacionalistas. Entretanto,
convém destacar que o nosso pensador traz à tona um problema antigo: central para a
ciência da humanidade e da cultura está o mimetismo (mimecry), imitação ou mímesis
(imitação rivalizada). Este último termo grego é o preferido por Girard (o termo mimesis –
do grego – torna concebível a parte “conflitual” da imitação, o que não aconteceria ao se
adotar o termo “imitação”) (Cf., 2003:18). Girard observa que há uma tendência para se
evitar essa questão, mesmo sabendo que não tem nada ou quase nada no comportamento
humano que não seja aprendido e todo o aprendizado é baseado na imitação. “Se os seres
humanos parassem de imitar, todas as formas de cultura desapareceriam” (Ibid.:7).

O pesquisador explica ainda que Platão foi determinante para o significado cultural
da “imitação”. Platão (e depois Aristóteles influenciando o pensamento ocidental) concebeu

88
“imitação” como representação (comportamento, maneiras, hábitos, palavras, frases e
maneiras de falar). Restringiu-se às modalidades de imitação onde não haja riscos de
provocar conflitos, mas apenas no campo da representação, na esfera do simulacro. Ficou
faltando em Platão referência a qualquer tipo de comportamento que concebesse “imitação”
como “apropriação”, portanto, a “dimensão aquisitiva”, que segundo Girard é também a
dimensão do conflito (Cf., 2003:8ss). 60
Para ele isso se deve à uma repressão do próprio
conflito mimético. As sociedades primitivas reprimiam o conflito mimético não somente
através de proibições, mas dissimulando com os símbolos sagrados.

A teoria girardiana se torna polêmica quando concebe a humanidade governada por


um mimetismo instintivo responsável pelo desencadeamento de ‘comportamentos de
apropriação mimética’ geradores de conflitos e rivalidades de tal ordem, que a violência
seria um componente natural das sociedades humanas a ser incessantemente exorcizado
pelo sacrifício de vítimas expiatórias (Cf., Idem, 1998:9). Na visão de Girard, “desejo
mimético de apropriação” é o ponto de partida, não somente para as proibições, mas
também para os rituais e as religiões. Na verdade, uma teoria da cultura humana é
elaborada a partir desse princípio (Cf., 2003:18).

Para o pensador, o desejo mimético explica todos os comportamentos humanos, como


também as formações sociais e institucionais. Desde a necessidade da religião (o
surgimento do sacrifício para apaziguar a violência nascida do desejo mimético), passando
pela instituição jurídica (institucionalização do sacrifício fora da dimensão religiosa) e até
mesmo as experiências de possessão e uso de máscaras (“a possessão não é senão a forma
extrema da alienação ao desejo do outro”) (Idem, 1998:202). 61

No cerne da tese girardiana está o processo de passagem da indiferenciação para a


diferenciação social, instituinte da cultura. A indiferenciação gera a rivalidade generalizada,

60
Sobre essa questão ver René GIRARD, Um longo argumento do princípio ao fim, p.100, nota de rodapé.
61
Girard dá a entender que a única saída ao desejo mimético seria o “amor evangélico: a renúncia a tudo que
pode provocar conflito”. Numa atitude de otimismo, ele acredita que o ciclo sacrificial só é rompido uma
única vez na História, com o advento do cristianismo. Cristo proclama a inocência das vítimas, a inocuidade
dos sacrifícios, a falsidade dos deuses vingativos e inaugura a primeira civilização que sabe haver mais justiça

89
que ameaça o grupo social. Diante da ameaça, o grupo cria mecanismos coletivos de
diferenciação. A primeira solução diante da crise é o sacrifício vitimizador, que polariza em
uma única vítima a violência que envolve todas as rivalidades conflitantes que ameaçam o
grupo. Ela será sacrificada em nome do grupo. Esta “vítima fundadora” ou bode expiatório
é o cerne da diferenciação primeira das sociedades: a comunidade de um lado; a vítima do
outro. Tendo experimentado os benefícios da violência fundadora como solução para a
crise que viveu, a sociedade busca meios para perpetuar esta estabilidade, passando a
ritualizar freqüentemente o sacrifício.

A vítima que cataliza todo o mal do grupo passa a ser fonte de todo o bem e toda a
paz na comunidade. Este processo de transcendentalização da violência vitimizadora é a
gênese do sagrado. (Cf., Girard, 1998:313ss). O mecanismo não elimina o desejo somente
por descarregar toda a violência em um bode expiatório, a ritualização do sacrifício real ou
simbólico do bode expiatório serve de mecanismo de controle da violência e garante a
continuidade da sociedade. Não devemos esquecer, porém, que a eliminação da violência
através dos rituais é ilusória, conforme veremos mais adiante. Na perspectiva girardiana, a
violência tem também um papel social.

2. 4 O Bode Expiatório

As investigações sobre o bode expiatório revelam a linha de raciocínio característica


do pensador francês: a de que, basicamente, todas as sociedades têm sua estrutura
alicerçada na violência descarregada sobre um bode expiatório.

Girard argumenta que o mimetismo por definição é contagioso. Pouco a pouco todos
desejam apoderar-se do mesmo objeto, do mesmo campo de atividade. Depois, o
mimetismo da apropriação joga as pessoas umas contra as outras. Todos querem se
apoderar da força vital do outro e esquecem do objeto. A atração mimética se multiplica, e
se reforça. Chega um momento em que uma pessoa, mais do que qualquer outra, vai

no perdão do que na vingança. “Não precisamos engajar-nos perpetuamente em rivalidades miméticas. Em


vez de acusar o próximo, podemos aprender a amá-lo” Ibid.:236.

90
aparecer como responsável pela violência que agita a comunidade. Forma-se uma aliança
contra o inimigo comum e a comunidade inteira encontra-se reunida contra um indivíduo
único. Enquanto o memitismo de apropriação divide, fazendo convergir dois ou mais
indivíduos sobre um só e único objeto, do qual todos querem se apoderar, pelo contrário, o
mimetismo de antagonismo reúne, fazendo convergir dois ou mais indivíduos sobre o
mesmo adversário. Assim aparece o bode expiatório que é considerado culpado, sem
sombra de dúvida, pelo conjunto da comunidade.

Para que haja um bode expiatório, toda a comunidade deve acreditar na culpa do
condenado, senão a dúvida impede o retorno da paz. O procedimento sacrificial exige que a
sociedade ou o indivíduo que se vai matar ou aceitar o assassinato, acredite na
culpabilidade daqueles que serão executados. Daí toda a fase de desmoralização, de
calúnia, pela qual passa a vítima. O sacrifício do culpado, traz de novo a paz para o grupo
que, dessa forma acredita ter expulsado toda a violência que o ameaça. Só que, na verdade
a violência não foi desenraizada. Há uma vontade ilusória de tirar a violência da
comunidade jogando a culpa sobre uma vítima, que atrai a atenção pelo seu comportamento
e pelo lugar que ocupa na sociedade.

Em seu livro “O Bode Expiatório”, o autor mostra exemplos e conceitos de como, ao


longo da história, certos grupos étnicos e indivíduos foram perseguidos, movidos pelo
mecanismo de vitimização. Não são somente as minorias, os excluídos, os fracos, os órfãos,
as viúvas etc., que sofrem perseguição. Os mais bem-sucedidos são culpados pelo fracasso
dos que nada têm, criando-se um terrorismo mental (Cf., 2004:19-32).

As perseguições se dão inicialmente em períodos de crise nos quais as instituições


ditas normais estão enfraquecidas, favorecendo a formação do que ele chama de
“multidões”, que são ajuntamentos populares que surgem para substituição destas
instituições enfraquecidas. A opinião pública, e na sociedade contemporânea, a força da
mídia, têm um papel importante nesse contexto, pois encorajam, às vezes incitam as
multidões. Dessa forma se dá a formação dos bodes expiatórios a partir do enfraquecimento

91
e da motivação da opinião pública, condicionada pelos perseguidores a achar que um
indivíduo ou um pequeno número de indivíduos é nocivo e responsável pelo mal coletivo.

Quase todas as tragédias gregas, nos recorda Girard, terminam com o sacrifício de
vítimas: a ordem da cidade que havia sido perturbada pela crise mimética é restabelecida
com o sacrifício. Deste modo, ela se encontra na raiz da organização da sociedade e a
mesma violência neutraliza a violência, criando a civilização (Cf., 2003:3-138; Idem,
1991:52). O pensador insiste, porém, que o mais importante é a maneira de escolher a
vítima. O grupo que se entrega ao “linchamento original” deve esquecer que ela é inocente;
é necessário que o grupo a veja como culpada e designada de forma divina inocentando a
sociedade. Entretanto Girard recorda que “de certa forma não é o culpado que mais
interessa, mas as vítimas não vingadas” (1998:4).

É importante lembrar que as sociedades tradicionais estudadas por Girard, além de


não disponibilizarem de um sistema judiciário constituído, possuíam uma visão cíclica do
tempo e da história, tornando mais evidente o momento da construção e do sacrifício do
bode expiatório, resultando no retorno da ordem social. A sociedade moderna tem uma
concepção linear do tempo e a presença de instituições destinadas a resolver as crises,
tornando mais difícil evidenciar essa lógica.

Em numerosas sociedades primitivas, explica o autor, a vítima é escolhida no final de


um jogo de azar. Nos textos da antiguidade grega, a vítima propiciatória se auto-designa
pelo fato de ser diferente. É o portador de algum sinal: os coxos, os de pele vermelha ou
bem ruiva, ou os muito inteligentes. A vítima vai aparecer como um dom do “bode
expiatório”, no qual toda a unanimidade mimética foi descarregada. Há um estágio no qual
o desejo atinge o nível de uma forte unidade entre todos os antagonistas: é o estágio da
maior violência, “mecanismo de vitimização”, ou seja, o momento de todos contra um que
produz o “bode expiatório” como a vítima necessária para criar reconciliação”.62 O

62
Como afirma Girard: “(A vítima) simultaneamente substitui e é oferecida a todos os membros da sociedade,
por todos os membros da sociedade. É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência,
é a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas exteriores. O sacrifício polariza sobre a

92
sacrifício procura controlar e canalizar para a ‘boa’ direção os deslocamentos e
substituições espontâneos que ocorrem nesse momento” (Ibid.:22). Este linchamento
original é, segundo Girard, o fundamento de toda a sociedade. Ele será o único agente do
sistema, a fonte e o significado da cultura. Uma vez que a vítima é executada, a unidade do
grupo se refaz, a crise se dissipa. O bode expiatório é ao mesmo tempo, um ser maléfico e
benéfico: maléfico porque é considerado como causa da violência e benéfico porque o
sacrifício dele traz a paz. Costuma ser semidivinizado depois de sua morte. É por isso que
segundo Girard existe íntima relação entre a violência e o sagrado.

Até o presente, podemos afirmar que a teoria mimética é fundamentalmente um


esforço de compreensão do mecanismo que consiste em encontrar vítimas expiatórias com
o propósito de concentrar a violência mimética numa única vítima, obtendo desse modo
uma pacificação de base sacrificial. No caso de uma sociedade ser perturbada por novas
crises, não será inútil, acrescenta Girard, reeditar o linchamento revivificando o sacrifício.

Através da análise de textos de perseguição, Girard procura mostar a natureza do


sagrado e a necessidade de sua presença nos mitos. Os autores dos textos de perseguição
refletem a ilusão da própria sociedade compartilhada por grande número de pessoas. As
crenças mágicas gozam sempre de um consenso social.

Em suas investigações, Girard observa que mesmo longe de ser unânime no séc. XVI
e até no séc. XIV, esse consenso permanece amplo, e exerce certo controle social sobre os
indivíduos. A representação persecutória conserva certas características. Girard explica em
que consiste esta crença:
Vastas camadas sociais se encontram às voltas com flagelos tão terríveis como a peste ou
por vezes com dificuldades menos visíveis. Graças ao mecanismo persecutório, a angústia e
as frustrações coletivas encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente
provocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal integradas etc
(2004:55).

A vítima é um bode expiatório que significa simultaneamente a inocência, a


polarização coletiva que se efetua contra as vítimas e a finalidade coletiva dessa

vítima os germes de desavença espalhados por toda a parte, dissipando-os ao propor-lhes uma saciação
parcial”. René GIRARD, A Violência e o Sagrado, p.19.

93
polarização. Os perseguidores se fecham na “lógica” da representação persecutória e não
podem mais dela sair. A polarização exerce tal pressão sobre os polarizados que é
impossível para as vítimas se justificar. A ilusão persecutória é tão sutil que envolve a todos
sem que se perceba. Via de regra, quanto mais sutil, mais poder exerce sobre os cidadãos.
Para o pensador isso é muito difícil de reconhecer. Detecta-se apenas inimizades legítimas,
mas na verdade o universo inteiro está impregnado dos bodes expiatórios. Mesmo hoje na
nossa sociedade, eles não se produziriam se os manipuladores não dispusessem, para
organizar suas investidas, de uma massa manipulável, ou seja, de pessoas suscetíveis que se
deixam prender no sistema de representação persecutória, pessoas capazes de crença, sob o
aspecto do bode expiatório.

A ordem comprometida pelo bode expiatório se restabelece justamente por


intermédio daquele que primeiro a abalou. É possível que uma vítima seja considerada
como responsável pelas desgraças públicas, o que acontece nos mitos e nas perseguições
coletivas, mas é apenas nos mitos que esta mesma vítima traz novamente a ordem, a
simboliza e até a encarna, conclui Girard. O transgressor se transforma em restaurador e até
em fundador da ordem que ele, de algum modo, havia transgredido. O delinqüente supremo
se transforma em coluna da ordem social. Essa é uma característica da mitologia. Há mitos
em que este paradoxo é mais ou menos atenuado, censurado ou maquiado, mas está
presente.

Os bodes expiatórios não curam as verdadeiras epidemias, nem resolvem os


problemas das secas e inundações. Mas a dimensão principal de toda a crise, conforme
afirma Girard, é o modo pelo qual ela atinge as relações humanas.
O bode expiatório age apenas sobre as relações humanas perturbadas pela crise, mas dará a
impressão de agir igualmente sobre causas exteriores, as pestes, as secas e outras
calamidades objetivas (2004:60ss).

Enquanto as causas exteriores persistem, uma epidemia de peste, por exemplo, os


bodes expiatórios não terão eficácia. Em contrapartida, quando estas causas deixam de
atuar, o primeiro bode expiatório que vier porá fim à crise, eliminando suas seqüelas
interpessoais pela projeção de todo o malefício sobre a vítima.

94
2. 5 Estereótipos de perseguição

Girard apresenta uma tipologia dos estereótipos da perseguição, concentrando o seu


estudo naquelas desenvolvidas em períodos de crise que, segundo ele
provocam o enfraquecimento das instituições normais e favorecem a formação de multidões,
isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições
enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre elas (2004.:19).

Algumas acusações são de tal forma características das perseguições coletivas, que, à
sua simples menção, os observadores modernos suspeitam que há violência no ar; e então
procuram em todo o lugar outros estereótipos persecutórios.

Apesar de sua relativa fraqueza os perseguidores acabam sempre por se convencer de


que um pequeno número de indivíduos ou até mesmo um único pode tornar-se
extremamente nocivo para toda a sociedade. É a acusação estereotipada que autoriza e
facilita esta crença (Cf., Ibid.: 23).

No entanto, Girard deixa de lado os desejos inconscientes tratados pelos psicanalistas


ou da vontade secreta de oprimir de que nos falam os marxistas. Ele se interessa apenas
pela mecânica da acusação e o entrelaçamento das representações e das ações persecutórias.
Para ele, a multidão por definição procura ação, mas não consegue agir sobre as causas
naturais. Procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de violência.
Os membros da multidão são sempre perseguidores em potencial, pois sonham purificar a
comunidade de elementos impuros que a corrompem, de traidores que a subvertem
(Ibid.:23ss).

Um outro estereótipo identificado por Girard são as minorias étnicas e religiosas que
tendem, em todo mundo, a polarizar com as maiorias. Por exemplo, na Índia os perseguidos
são sempre os muçulmanos, já no Paquistão são os hindus. Girard nota que há traços
universais de seleção vitimária.
Quase não existem sociedades que não submetem suas minorias, todos os seus grupos mal
integrados ou até simplesmente distintos, a certas formas de discriminação, quando não de
perseguição (Ibid.:26).

95
Além dos critérios culturais e religiosos há os puramente físicos: “a doença, a
loucura, as deformações genéticas, as mutilações acidentais e até as enfermidades em geral”
(Ibid.:26). Pelos problemas que sua presença pode trazer para a fluidez das trocas sociais,
os handicapped (portadores de vantagem ou desvantagem) são o objeto de medidas
discriminatórias e vitimárias. A grandeza da sociedade consiste no fato de sentir-se
obrigada a tomar medidas em favor deles. Em uma sociedade ou instituição, todo indivíduo
que experimenta dificuldades de adaptação, o estrangeiro, o camponês, o índio, o órfão, o
negro, o favelado, o desempregado ou simplesmente o último a chegar, é mais ou menos
intercambiável com o doente. O pensador explica que
quando um grupo humano tomou o hábito de escolher suas vítimas em certa categoria
social, étnica e religiosa, ele tende a lhe atribuir as doenças ou deformações que reforçariam
a polarização vitimária, caso elas fossem reais. Essa tendência aparece claramente nas
caricaturas racistas (2004:27).

Não é apenas no domínio físico que pode haver anormalidade mas, em todos os
domínios da existência e do comportamento. Assim em todos os domínios, a anormalidade
pode servir de critério para a seleção dos perseguidos. Quanto mais a pessoa se distancia do
status social mais comum, maior é o risco de perseguição. Isso é mais comum para aqueles
que se situam na parte baixa da escala (marginalidade de fora ou excluídos). A essa
marginalidade Girard acrescenta uma segunda, “a marginalidade de dentro, a dos ricos e
dos poderosos”. É evidente que em tempo normal, os ricos e poderosos gozam de todos os
tipos de proteção e de privilégios. Contudo, o que interessa ao autor, não são as
circunstâncias normais, mas sim os períodos de crise. Analisando a história ele constata que
os riscos de morte violenta nas mãos de uma multidão descontrolada são estatisticamente
mais elevados para os privilegiados do que para qualquer outra categoria. O autor procura
mostrar que
os ricos e os poderosos exercem sobre a sua sociedade uma influência que justifica as
violências das quais eles podem se tornar objeto em período de crise. É a santa revolta dos
oprimidos etc. (Ibid.: 28).

São todas as qualidades extremas que atraem as indignações coletivas, não apenas os
extremos da riqueza e da pobreza, da beleza e da fealdade, do vício e da virtude; é a
fraqueza das mulheres, das crianças e dos anciãos, mas também a força dos fortes que se
torna fraqueza diante do número.

96
Em suas investigações, Girard não se propõe a determinar com precisão onde começa
e onde termina a injustiça (a distribuição dos bons e de maus elementos na ordem social e
cultural não lhe interessa). “Minha única preocupação é mostrar que existe um esquema
transcultural de violência coletiva e que é fácil esboçar, em grandes traços, seus contornos”
(Ibid.:29).
Contrariamente ao que se repete ao nosso redor, não é a diferença que acirra o ânimo
dos perseguidores, mas sim a indiferenciação. Existe uma grande semelhança entre as
marcas vitimárias que são diferenciais e destinam vítimas à perseguição e as diferenças
culturais no seio de um grupo cultural. Girard lembra que em todas as culturas e em cada
indivíduo existe uma tendência a se sentir “mais diferente” do que os outros e em toda
cultura, uma tendência de se pensar não apenas como diferente dos outros, mas como a
mais diferente de todas. Há uma espécie de etnocentrismo que permeia todas as culturas e
um certo grau de superioridade em cada indivíduo. Isso porque toda a cultura mantém nos
indivíduos esse sentimento de “diferença”. “Não é a diferença no seio do sistema que
significa as marcas de seleção vitimária, mas a diferença fora do sistema” (2004:31). Em
todo lugar o vocabulário dos preconceitos tribais, nacionais etc. exprime o ódio, não da
diferença, mas de sua privação. Ou seja, o ser humano tem a necessidade de se sentir
diferente.

Girard ressalta que enquanto os historiadores encontram o esquema persecutório em


todas as sociedades, os etnólogos jamais o encontram. A perseguição está presente, mas não
sabemos decifrar os documentos que possuímos. Sob o aspecto dos estereótipos, julga o
mito de Édipo exemplar. Nele a peste assola Tebas (o primeiro estereótipo persecutório).
Édipo é responsável porque matou seu pai e desposou a mãe: é o segundo estereótipo. Para
eliminar a epidemia é preciso expulsar o criminoso. A finalidade persecutória é explícita. O
parricídio e o incesto permitem a passagem entre o individual e o coletivo. A influência da
crise contagia a sociedade inteira. Terceiro estereótipo: as marcas vitimárias. Édipo é coxo
(enfermidade). Por outro lado, este herói chegou a Tebas desconhecido de todos
(estrangeiro). Por fim é filho de rei e ele próprio é rei. Como outras personagens míticas,
Édipo acumula a marginalidade de fora (excluído) e a marginalidade de dentro (rei, todo-
poderoso) (Cf., Ibid.:33-62).

97
Apesar de polêmico, o poder do pensamento girardiano está na sua capacidade
estrutural, ou seja, na sua capacidade de estabelecer vínculos entre comportamentos, textos
e discursos nos quais ninguém antes havia visto possibilidades de comparações. O mais
importante é a sua capacidade de mostrar que a mímesis de apropriação é quase universal e
a rejeição da pessoa diferente por sinais físicos ou ideológicos, porque ela indica o que deve
ser escondido; a luta de todos contra todos em um grupo tribal ou nacional para conseguir o
objeto desejado mesmo que o mito tribal ou nacional insista em dizer que o grupo é unido
diante dos outros. A pessoa diferente por sua mesma diferença mostra a lógica da mímesis
de apropriação, sobre a qual se baseiam as relações de luta entre os membros do grupo. Em
outras palavras, a pessoa diferente é rejeitada não porque é diferente, mas, porque procura
conseguir o mesmo objeto que os membros do grupo, fazendo o mesmo gesto e
manifestando o mesmo desejo (por exemplo, os imigrantes que procuram conseguir um
trabalho e que competem com as pessoas que têm raízes no país).

Contudo, mesmo que sejam inocentes das acusações que lhes são impostas, isso não
quer dizer que as vítimas não criem nenhum tipo de problema para a sociedade e nem que
sejam totalmente inocentes. O autor insiste em uma leitura não vitimária, quer dizer, não
mítica da violência.

2. 6 A violência e o sagrado

Girard argumenta que a articulação dos diversos fenômenos sociais opera através da
íntima relação do sagrado com a violência. O sagrado é a ferramenta reguladora da qual as
sociedades lançam mão diante da ameaça de violência generalizada. Este processo permite
a própria fundação da cultura. A violência sempre tem algo a ver com o sacrifício e o
sagrado está pleno de violência. A violência do sacrifício, além de produzir o sagrado,
sacraliza a violência, que passa a ser considerada violência purificadora. No entanto, há
também a violência impura, a que não é sacralizada e que deve ser expulsa com a violência
purificadora. Sobre o papel da violência purificadora nos debruçaremos mais adiante.

98
A palavra sacri-fício significa fazer sagrado. O sacrifício é um mecanismo social
produtor de sagrado e opera na estrutura do bode expiatório. A violência sacrificial é
apaziguadora, reconciliadora. Um ser de fora é o culpado das mazelas do grupo e, ao
mesmo tempo, será a fonte de salvação depois de sacrificado. Uma morte produz a vida. O
mecanismo do bode expiatório permite a identificação da violência com o sagrado. Pelo
fato da imolação sacrificial apaziguar e acalmar a violência, ela é expulsa e é
“acrescentada à substância do deus do qual não se distingue de forma alguma, pois cada
sacrifício repete em escala menor, o imenso apaziguamento que se produziu no momento
em que o deus se manifestou pela primeira vez” (momento da unanimidade fundadora)
(Girard, 1998:332).

Essa unanimidade fundadora transforma a violência maléfica, impura, em


estabilidade e fecundidade. O sacrifício impede que a violência torne-se imanente e
recíproca e reforça a violência enquanto exterior, transcendente, benéfica. Para Girard o ser
humano não presta “culto à violência” enquanto tal, mas “adora” a violência porque esta
lhe confere a única paz da qual um dia usufruiu. Portanto, pela “adoração” da violência que
os aterroriza, os seres humanos visam a não-violência.

O pensador explica que o sagrado não pode permanecer no interior da comunidade


para permitir que o “puro sagrado” seja preservado. “Mau no interior da comunidade, o
sagrado torna-se novamente bom quando passa para o exterior” (Ibid.:322). Ele entra na
comunidade pela violência maléfica descarregada sobre uma vítima e metamorfoseada pela
imolação em violência benéfica, retira-se novamente para permanecer como entidade
separada, sagrada. Dessa forma podemos entender a relação entre a violência e o sagrado.

Na visão do autor “não há (...) violência que não possa ser descrita em termos de
sacrifício” (Ibid.:11) e se interroga “por que ninguém se pergunta sobre as relações entre o
sacrifício e a violência?” (Ibid.:12). Pressuposta, portanto, a relação entre violência e
sacrifício, Girard vai investigar e explicitar como é que esta se dá. E depara-se com algo
que considera inusitado: o desejo mimético. Para ele, a violência que o desejo mimético faz
aparecer é o acontecimento fundador: da religião, das relações sociais, da cultura.

99
Para Girard o sacrifício tem sua eficácia enquanto processo preventivo, coibindo uma
violência recíproca desencadeada na comunidade. Para que cumpra seu papel enquanto
última palavra da violência, o sacrifício precisa de uma vítima que não possa reagir. Ao
receber toda a violência do sacrifício, a vítima não pode devolver a violência; não pode
vingar-se. Por isso, a vítima é sempre alguém à margem da sociedade 63
(animal, criança,
rei, estrangeiro, escravo, mendigo, viúva, prisioneiro, bruxa, messias...). São todos
indivíduos que apresentam um vínculo frágil ou nulo com a sociedade. Dessa forma, o
sacrifício é uma violência sem possibilidade de vingança, e por isso, sacralizada. O ritual
sacrificial tem início, meio e fim contendo a violência desencadeada. A violência comum
(impura, não sacralizada) por outro lado, começa mas não se sabe quando termina.

O sacrifício opera sempre uma dupla transferência: a) a violência acumulada na


sociedade é transferida para o ódio contra a vítima, e assim o grupo camufla, dissimula sua
própria violência, e designa a vítima como causa da crise. Esse processo é temporário, e
sempre renovável ritualisticamente; b) estando toda a violência social concentrada na
vítima, agora ela sobrevive na memória coletiva como fonte de paz, sendo transferido para
ela um espectro de transcendência.

A violência do sacrifício além de produzir o sagrado, também sacraliza a violência,


que passa a ser considerada purificadora. Expulsa da sociedade por causa de seus efeitos
maléficos, a violência fundadora é ao mesmo tempo venerada pela sua virtude benéfica. A
vítima transita numa esfera ambígua entre o bem e o mal. Ela nasce da indiferenciação e
produz a diferenciação; funda a cultura e organiza a sociedade. Ela tem poder maléfico por
condensar a maldade social enquanto bode expiatório, mas tem poder redentor ao libertar os
perseguidores de suas recriminações recíprocas e, ao mesmo tempo, trazer benefícios
sociais.

63
À “marginalidade de fora” (pobres, excluídos), Girard acrescenta a “marginalidade de dentro” (a dos ricos e
poderosos, reis). Quanto mais distante do status social mais comum, maior o risco de perseguição. Cf., René
GIRARD, Um longo argumento do princípio ao fim, p.28. Sem dúvida o rei ocupa uma posição central na
sociedade, mas é justamente esta posição fundamental que vai isolá-lo dos outros homens, colocando-o fora
de qualquer casta. Ele escapa da sociedade “por cima” assim como o pharmakós escapa dela “por baixo”. Cf.,
IDEM, A Violência e o Sagrado, p.24.

100
Em seus estudos, Girard constata que o bode expiatório é o senhor da vida e ao
mesmo tempo o senhor da morte. Desse modo ele recebe um poder sobrenatural, sagrado,
mágico. Este é um dos principais aspectos da hipótese girardiana: de um lado, a vítima é
vista como a causa da desgraça e por isso desprezível, por outro lado ela é rodeada de uma
veneração quase religiosa, uma espécie de culto, pelo grande benefício dispensado à
sociedade. A vítima vai aparecer como um dom do “bode expiatório”, na qual toda a
unanimidade mimética foi descarregada. Ela será o único agente do sistema, a fonte e o
significado da cultura. A vítima ritual deve atrair sobre si toda a violência maléfica para
transformá-la, através de sua morte, em violência benéfica, em paz e fecundidade. Pela
atribuição de uma força “divina” ao bode expiatório, ele passa a punir todos os crimes,
todas as infrações às regras fundamentais da sociedade.

Segundo Girard, o efeito de bode expiatório inverte completamente as relações entre


os perseguidores e sua vítima, e é esta inversão que produz o sagrado, os antepassados
fundantes e as divindades.
Se os grupos humanos podem cair doentes enquanto grupo por razões que se devem a
causas objetivas ou que se devem apenas a si próprias, se as relações no seio dos grupos
podem se deteriorar e depois se restabelecer graças a vítimas unanimemente execradas, é
evidente que os grupos vão rememorar estas doenças sociais em conformidade com uma
crença na onipotência dos bodes expiatórios (2004:61).

Girard ressalta a dificuldade de reconhecer nos mitos, sistemas de representação


persecutória análogos aos nossos, mas complicados pela eficácia do processo persecutório.
É essa eficácia que não queremos reconhecer por ela nos escandalizar duplamente, sobre o
plano da moral e sobre o da inteligência. Sabemos reconhecer a primeira transfiguração,
maléfica, da vítima, e ela nos parece normal, mas não sabemos reconhecer, ao contrário, a
segunda transfiguração, benéfica, e julgamos inconcebível que ela se superponha à primeira
sem anular esta, ao menos em um primeiro tempo (Ibid.:61).

Ora, se a vítima pode espalhar para além da morte seus benefícios sobre aqueles que a
mataram, é porque ela ressuscitou, ou não estava verdadeiramente morta. A causalidade do
bode expiatório se impõe com tal força que a própria morte não pode contê-la.
Para não renunciar à vítima como causa, ela a ressuscita se for preciso, ela a imortaliza, ao
menos por um tempo, ela inventa tudo aquilo que chamamos de transcendente e de
sobrenatural (Ibid.:62).64

64
Sobre essa questão ver René GIRARD, A Violência e o Sagrado, p.125-129; IDEM, Things Hidden Since
the Foundation of the World, p.32-50.

101
Girard aponta dois momentos nos mitos que, segundo ele, os intérpretes não
conseguem distinguir. O primeiro momento é a acusação de um bode expiatório ainda não
sagrado, sobre o qual toda a força maléfica se concentra. Ele é recoberto pelo segundo, o da
sacralidade positiva, suscitada pela reconciliação da comunidade. Este é talvez o aspecto
mais polêmico da teoria girardiana.
A causa evidente da desordem torna-se causa evidente da ordem, porque é na realidade uma
vítima que primeiro refaz contra si, e depois ao redor de si, a unidade aterrorizada da
comunidade reconhecedora (2004:69).

O autor explica que nos textos persecutórios é mais fácil ver a primeira
transfiguração, a acusação do bode expiatório. Mas, com um esforço podemos compreender
também a segunda transfiguração, a passagem para o sagrado. Os textos de perseguição
sugerem que os mitos compreendem uma primeira transfiguração análoga àquela dos
perseguidores, mas que isso é justamente o alicerce da segunda transfiguração. A
dificuldade em perceber este segundo estágio advém da quase ausência de um equivalente
em nosso universo. Das duas transfigurações míticas, a segunda é a mais frágil, pois
desapareceu quase que completamente. Segundo o pensador,
é preciso reconhecer, na violência coletiva, uma máquina de fabricar mitos que não deixou
de funcionar em nosso universo mas que, por razões que logo iremos descobrir, funciona
cada vez menos bem (Ibid.:69).

A sociedade contemporânea ocidental se caracteriza por uma decadência das formas


míticas que sobrevivem tão somente no estado de fenômenos persecutórios, quase
inteiramente limitadas à primeira transfiguração. Isso porque hoje se verifica uma perda do
sentido do sagrado. Na opinião de Girard,
é principalmente sobre o sagrado que a compreensão tropeça. (...) por falta de seguir a dupla
transfiguração do bode expiatório, vemos ainda no sagrado um fenômeno ilusório sem
dúvida, porém, menos irredutível do que era para os fiéis do culto dogrib.65 Os mitos e os
ritos contêm todos os dados necessários à análise deste fenômeno, mas nós não os
distinguimos. (E se pergunta): seria confiar demasiadamente no mito supor por trás dele
uma vítima real, um bode expiatório real? (Ibid.:70).

Girard argumenta que na mitologia, as transfigurações são mais fortes. As vítimas


tornam-se monstruosas, demonstram poder fantástico.

65
Índios dogrib do noroeste do Canadá.

102
Depois de ter semeado a desordem, elas restabelecem a ordem e desempenham o papel de
ancestrais fundadores ou de divindades (Ibid.:74).

No entender de Girard, esta maior transfiguração não torna os mitos e as perseguições


históricas incomparáveis. Pelo contrário:
a volta à ordem e à paz está relacionada a própria vítima. É isso que leva a dizer que a
vítima é sagrada. É isso que torna o episódio persecutório um verdadeiro ponto de partida
religiosa e cultural (2004:75).

O conjunto do processo servirá, com efeito:


1) de modelo para a mitologia que o rememora como epifania religiosa, 2) de modelo para o
ritual que procura produzi-lo por causa do princípio de que é preciso sempre refazer o que a
vítima fez ou sofreu, enquanto ela é benéfica, 3) de contramodelo para as proibições, por
causa do princípio de que não é preciso jamais refazer o que a própria vítima fez, enquanto
ela é maléfica (Ibid.:75).

O mecanismo do bode expiatório é a fonte de tudo o que há nas religiões mítico-


rituais. Todo ritual religioso provém da vítima expiatória, e as grandes instituições
humanas, religiosas e profanas, provêm do rito. Girard vai mais além ao afirmar que o
próprio mecanismo do pensamento humano, o processo de “simbolização”, também se
enraíza na vítima expiatória.
A vítima expiatória, mãe do rito, aparece como a educadora por excelência da humanidade,
no sentido etimológico de educação (1998: 384).

A partir do mecanismo vitimário, se inaugura uma nova mímesis – mito, rito e


interdito são os alicerces, os três níveis, segundo a teoria girardiana da religião, da cultura e
da ordem social. A violência em relação à vítima esvazia o espírito beligerante dos
participantes, criando entre eles uma confraternização que só foi possível com o sacrifício
de uma vítima ocasional e não raro, inocente, denominada bode expiatório. A vítima,
quando assume a função que lhe atribuiu a comunidade para ser o bode expiatório torna-se
maldita, mas imediatamente após ser sacrificada, após passar pelo rito é reabilitada pois
salvou a comunidade e transformou-se num mito do qual todos celebram a memória. O rito
e o mito, parte do sistema sacrificial, por sua vez geram o interdito que é o tabu, ou seja, as
proibições: aquilo que a comunidade proíbe para evitar a crise. Por exemplo, o tabu do
incesto é o que permite o fim da disputa entre irmãos.

103
Com o passar do tempo, o primeiro sacrifício seria ritualizado, e sua origem
dissimulada: é o segredo dos sacerdotes. O objetivo das religiões é repetir ao infinito o ato
fundador, com a finalidade de preservar a unidade social.

As investigações de Girard revelam a presença determinante do sacrifício do bode


expiatório ao longo da história. Nas diversas culturas percebe-se uma evolução: do
sacrifício humano para o sacrifício de animais. 66

Os estudos de Girard acabam por desembocar na esfera do religioso, que para além
do divino e do transcendente é entendido como um sistema de fenômenos ligados à
rememoração e comemoração (rituais) que cercam a tragédia da morte das vítimas
emissárias. Em contrapartida, o pensamento científico moderno identifica o fenômeno
religioso a um imaginário passivo, dominado por obscuridades sem interferência direta nos
acontecimentos da sociedade. O autor aposta nos textos literários que segundo ele, podem
revelar “verdades históricas” ocultas para a racionalidade científica (Cf., 1998:10). 67

2. 7 Violência purificadora e violência impura

Conforme vimos anteriormente, nas suas investigações sobre as sociedades arcaicas,


Girard explica que diante da violência surge um perigo: a instalação da violência
interminável que ameaça destruir a comunidade. Surge então, o ritual, com a função de
“purificar a violência, ou seja, enganá-la e dissipá-la sobre vítimas que não possam ser
vingadas” (Ibid.:52). Essa purificação da violência impura se dá através do sangue das
vítimas sacrificiais, o sangue que permanece puro por ser derramado ritualisticamente e que
vai purificar a violência impura. Assim o autor explica o jogo paradoxal da violência:
Ora a violência apresenta aos homens um semblante terrível, multiplicando loucamente suas
devastações; ora, ao contrário, ela se mostra sob um aspecto pacificador, espalhando os
benefícios do sacrifício (Ibid.:53).

66
Contudo, o sacrifício em si nunca desaparece, perpetuando-se até mesmo nas sociedades mais
desenvolvidas e complexas. Este é um dos pontos de divergência entre Girard e os autores latino-americanos
(Franz Hinkelammert, Hugo Assmann, Jung Mo Sung, entre outros) que enxergam ainda hoje a existência de
sacrifícios.
67
Sobre semelhanças e diferenças entre magia e ciência na visão de Girard. Cf., O Bode expiatório, p.71-72.

104
Na opinião do pensador, os homens não conseguem entender o segredo dessa
dualidade. “Eles precisam distinguir entre a boa e a má violência; desejam repetir
incessantemente a primeira para eliminar a segunda. O rito é exatamente isto” (Girard,
1998:53). Quando não há mais diferença entre o puro e o impuro, então nada mais pode ser
purificado. Por isso é fundamental que se estabeleça uma distinção clara entre a violência
purificadora, legítima e violência impura.

Portanto, Girard distingue dois tipos de violência: a violência purificadora (que é a


violência religiosa purificadora do sacrifício) e a impura (que destrói a comunidade, a
violência do conflito mimético). Quando a violência pura se torna sacrifício, ela não é mais
chamada de violência. Normalmente as pessoas a consideram sagrada e o âmbito do
sagrado não é violento porque se encontra no campo do sobrenatural e advém de Deus.
Então, isso é sacrifício que, na opinião de Girard consiste numa violência que a sociedade
considera um ato sagrado, que purifica a violência interna. A própria violência do
sacrifício, agora sacralizada é a violência purificadora que irá purificar a violência comum.
A conclusão é de que o sacrifício é a violência purificadora e a violência comum é a
violência impura.

Para Girard, parece haver algo de mistério rondando a questão do sacrifício, como se
houvesse algo essencialmente da ordem do desconhecido. E pergunta-se: o que distingue o
sacrifício do assassinato? Qual a proximidade entre ambos? Girard levanta uma hipótese:
nos dois casos, há a presença da violência. Daí pensar que a violência é inata ao ser
humano, é apenas um passo. É o que se pode depreender das entrelinhas de Girard. Pelo
menos a teoria mimética nos sugere que a violência não nos é alheia, mas nos constitui. O
desejo de violência inato, quando despertado, é mais difícil de ser apaziguado do que
desencadeado. O autor observa que a violência não saciada procura e sempre acaba por
encontrar uma vítima alternativa. A criatura que excitava sua fúria é repentinamente
substituída por outra, que não possui característica alguma que atraia sobre si a ira do
violento, a não ser o fato de ser vulnerável e estar passando a seu alcance (Cf., 1998:26ss).

105
Como, então, diferenciar o sacrifício do assassinato? Qual seria a função do
sacrifício, se ambos se fundam na violência, ainda que no sacrifício esta violência seja
desconhecida? Para Girard, o assassinato desencadearia um processo infinito de vingança,
pois,
quando a violência surge em um ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e a
ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear uma verdadeira reação em
cadeia, com conseqüências rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões reduzidas. A
multiplicação das represálias coloca em jogo a própria existência da sociedade (1998:27).

Assim, na opinião do autor, a criação do sistema judiciário fez com que, no plano
social, a vingança fosse limitada. Nas sociedades arcaicas, onde não havia essa
organização, Girard acredita que o sacrifício tinha como função prevenir o
desencadeamento da violência, que leva à vingança infinita. O sacrifício (violência
purificadora) ao contrário da violência impura, apazigua o desejo de violência.
O sacrifício é um instrumento de prevenção na luta contra a violência. (...) Ele faz convergir
as tendências agressivas para vítimas reais ou ideais, animadas ou inanimadas, mas sempre
não susceptíveis de serem vingadas, sempre uniformemente neutras e estéreis no plano da
vingança. O sacrifício oferece ao apetite da violência, que a vontade ascética não consegue
saciar, um alívio sem dúvida momentâneo, mas indefinidamente renovável, cuja eficácia é
tão sobejamente reconhecida que não podemos deixar de levá-la em conta. O sacrifício
impede o desenvolvimento dos germes de violência, auxiliando os homens no controle da
vingança (Ibid.: 31).

Conforme vimos anteriormente, para Girard a execução da vítima expiatória tem


como objetivo dissipar a violência e garantir o retorno da ordem. Tal mecanismo precisa ser
internalizado pelo grupo, evitando assim novas explosões de violência: eis a origem dos
rituais, eis a origem da religião.68 Portanto, a teoria mimética coloca a centralidade da
religião na emergência da cultura e à religião se atribui o papel de articulação das primeiras
instituições propriamente humanas: instituições dedicadas à prevenção da desordem, ou
seja, ao controle da rivalidade mimética através de formas de mediação de efeitos
disruptivos da “mímesis de apropriação” .69

68
Sobre Mito e Rito Cf., René GIRARD, Um longo argumento do princípio ao fim, p.159-60.
69
Esse tipo de operação mimética constitui o cerne das preocupações de René Girard. Cf., Um longo
argumento do princípio ao fim., p.100; Cf., IDEM, Things Hidden sice the foundation of the World, p.283ss.
Girard analisa o papel da violência em uma série de obras de Shakespeare usando a sua teoria do “desejo
mimético”.

106
Girard observa que nas sociedades “primitivas” onde não existiam instituições, como
o sistema judiciário que temos hoje na sociedade moderna, a ênfase era colocada na
prevenção do mal causado pela violência. Não havendo um remédio definitivo, Girard
supõe que as medidas preventivas, e não as curativas, ocupem um lugar de destaque.
Assim, se reafirma a definição de sacrifício como “um instrumento de prevenção na luta
contra a violência” (1998:30). O domínio preventivo é o domínio religioso. “A prevenção
religiosa pode ter um caráter violento. A violência e o sagrado são inseparáveis” (Ibid.:32).

O religioso sempre procura apaziguar a violência e evitar que ela seja desencadeada.
As condutas religiosas e morais visam à não-violência de uma forma imediata na vida
cotidiana e, muitas vezes, de forma mediata na vida ritual, paradoxalmente por intermédio
da própria violência. Uma estranha combinação de violência e não-violência. A diferença
se encontra na sua concepção: purificadora ou impura.

O pensador afirma haver uma estreita relação entre sexualidade e violência, herança
comum em todas as religiões. Um dos “tabus” primitivos mais conhecidos refere-se ao
sangue menstrual. Sangue está ligado à violência, que pode provocar seu derramamento. É
esta relação com a violência que torna a sexualidade impura. A purificação do sangue
impuro é alcançada pelo próprio sangue das vítimas sacrificiais. Esse procedimento pode
desencadear um círculo de violência interminável. Aqui entra em cena o ritual (que produz
a violência purificadora) com a função de purificar a violência comum, ou seja, enganá-la e
dissipá-la sobre as vítimas que não possam ser vingadas.70

A esfera do religioso em Girard não se refere simplesmente ao domínio do


transcendente, mas sobretudo, a um complexo sistema de fenômenos ligado à rememoração
e comemoração que cerca a tragédia da morte das vítimas emissárias.
O rito é certamente violento, mas ele é sempre uma violência menor, que funciona como
uma barreira contra uma violência pior; ele sempre busca renovar a maior paz que a
comunidade já conheceu, aquela que, após o assassinato, resulta da unanimidade em torno
da vítima expiatória (Ibid.:133).

70
A sexualidade alia-se freqüentemente à violência, seja em suas manifestações imediata: rapto, violação,
defloração, sadismo, seja em suas conseqüências remotas. Cf., René GIRARD, A Violência e o Sagrado, p.50.

107
O rito tem uma função essencial, e mesmo única: evitar o retorno da crise sacrificial.
É um esforço para repetir o sacrifício do bode expiatório (Cf., 2000:171).

Outro aspecto observado pelo autor é o de que o sacrifício nunca é vingado. O


próprio ritual assegura esse critério. Todos aceitam que se acontecer vingança, o desejo de
violência não seria saciado. É necessário canalizar toda a violência em uma vítima
sacrificial, a única que pode ser eliminada sem perigo pois ninguém irá contestar a sua
causa.
Face ao sangue derramado, a única vingança satisfatória é o derramamento do sangue do
criminoso. Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria vingança. Ela
é concebida como uma represália, e cada represália invoca uma outra. (...) a vingança
constitui portanto, um processo infinito, interminável. Quando a violência surge em um
ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e ganhar a totalidade do corpo social,
ameaçando desencadear uma verdadeira reação em cadeia... A multiplicação das represálias
coloca em jogo a própria existência da sociedade (Girard, 1998: 27).

Curiosamente, a vingança prevalece exatamente onde é proibida. É para evitar que os


homens matem que se impõe o dever de vingança. Na visão do autor, a vingança livre,
fazer justiça com as próprias mãos, substitui o sistema judiciário na sua ausência. Como a
vingança é um processo infinito, não é dela que se deve esperar uma contenção da
violência; na verdade é ela que deve ser contida. Entramos novamente no campo da
violência purificadora e impura, anteriormente descrito.

2. 8 A passagem do ritual sacrificial para o sistema judiciário

Girard assim explica a evolução da sociedade: dos procedimentos preventivos através


do ritual sacrificial das sociedades primitivas, passou-se a um procedimento curativo pela
constituição do sistema judiciário. Este não impede a vingança como os procedimentos
religiosos, mas a racionaliza, transformando-a em uma técnica de cura e prevenção da
violência. Isso é feito através de uma autoridade judiciária independente e a serviço da
sociedade, diante da qual todos se curvam.
O pensador agrupa em três categorias, todos os meios que a humanidade já mobilizou
para proteger-se de vingança interminável:
1. os meios preventivos, que podem todos ser definidos como desvios sacrificiais do espírito
de vingança; 2. as regulações e os entraves à vingança, tais como as composições, os duelos

108
judiciários etc. cuja ação curativa é ainda precária; 3. o sistema judiciário, dotado de uma
incomparável eficácia curativa (1998:34).

O autor conclui que “o sistema judiciário e o sacrifício têm a mesma função, mas o
sistema judiciário é muito mais eficaz” (Ibid.:36). O sistema judiciário substitui o ritual
sacrificial que, na sociedade moderna, ao fazer valer a justiça, pratica a violência
purificadora. Assim, a sociedade diferencia a violência da justiça deixando a última palavra
ao sistema que opera segundo as leis, neutralizando a violência. A ausência do sistema
judiciário abre a possibilidade para a vingança livre acontecer. Como a vingança é um
processo infinito, não é dela que se deve esperar uma contenção da violência, na verdade, é
ela que deve ser contida. Assim,
enquanto não existir um organismo soberano e independente que substitua a parte lesada e
que detenha a exclusividade da vingança, o perigo de escalada (da violência) vai subsistir
(1998:30). 71

Esta linha de pensamento sintoniza com o conceito de Estado como detentor do


monopólio sobre administração da força, desenvolvido por Max Weber quando ele reflete
sobre a autoridade e a legitimidade. 72
Uma das características que definem o Estado
moderno, segundo Weber, é a ordem legal, isto é a existência de áreas de jurisdição fixas e
oficiais, ordenadas de acordo com regulamentos, leis e normas administrativas; o
monopólio do uso da força legítima necessária ao cumprimento da ordem legal. Definidos
esses conceitos básicos, Weber é conduzido a desdobrar a natureza dos elementos
essenciais que constituem o Estado e assim chega ao conceito de autoridade e de
legitimidade. Weber advoga o império da lei como princípio básico de sustentação da
ordem social. 73
Na opinião do sociólogo, para que um Estado exista é necessário que um
conjunto de pessoas (toda a sua população) obedeça à autoridade alegada pelos detentores
do poder no referido Estado. Se existissem complexos sociais que desconhecessem o meio
da coação, seria dispensado o conceito de Estado. Por outro lado, para que os dominados
obedeçam, é necessário que os detentores do poder possuam uma autoridade reconhecida

71
Girard argumenta que “é nas sociedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas
pela vingança, que o sacrifício e o rito em geral devem desempenhar um papel essencial. Mas é incorreto
afirmar que o sacrifico substitui o sistema judiciário”. Isso porque “é impossível substituir algo que nunca
existiu antes, e depois porque, na ausência de uma renúncia voluntária e unânime a qualquer violência, o
sistema judiciário é insubstituível em seu domínio”. René GIRARD, A Violência e o Sagrado, p.31.
72
Cf., Max WEBER, Ensaios de Sociologia. 5a ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982: 229 ss.
73
Ibid.:260.

109
como legítima. Portanto, o Estado, representado por suas instituições afins, seria a única
fonte do exercício do direito moderno.

É preciso haver algo que distinga a violência legítima (purificadora) da violência


ilegítima (impura). Se isso não acontecer, a legitimidade e ilegitimidade da violência ficam
à mercê da opinião de cada um. Na visão de Girard, o que garante essa importante diferença
é a transcendência, religiosa, humanista ou outra qualquer.

Na sua análise, o autor descobre que todos os procedimentos que permitem aos
homens moderar sua violência, são violentos e se encontram enraizados no religioso. Num
sentido amplo, o religioso coincide com a obscuridade que envolve tanto os recursos
preventivos, como os curativos o sacrifício como forma de “apaziguar as violências
intestinas e impedir a explosão de conflitos” (1998:26), foi substituído pela criação do
sistema judiciário. Nessa passagem
os procedimentos que permitem aos homens moderar sua violência são todos análogos:
nenhum deles é estranho à violência. Poder-se-ia pensar que todos eles se encontram
enraizados no religioso (Ibid.:36). (...) Num sentido amplo, o religioso coincide
certamente com esta obscuridade que envolve em definitivo todos os recursos do homem
contra sua própria violência, sejam eles preventivos ou curativos, com o obscurecimento que
ganha o sistema judiciário quando este substitui o sacrifício. Esta obscuridade não é senão a
transcendência efetiva da violência santa, legal, legítima, face à imanência da violência
culpada e legal. Assim como, em princípio, as vítimas são oferecidas à divindade e por ela
aceitas, o sistema judiciário também refere-se a uma teologia que garante a verdade de sua
justiça (Ibid.:37).

Para o autor, mesmo com o desaparecimento da teologia, como se verifica na


sociedade contemporânea, “a transcendência do sistema mantém-se intacta” (Ibid.:37).
Somente a transcendência do sistema efetivamente reconhecida por todos,
independentemente das instituições que a concretizam, pode garantir sua eficácia preventiva
ou curativa, distinguindo a violência santa, legítima, e impedindo que ela se torne alvo de
recriminações ou de contestações, ou seja, que recaia no círculo vicioso da vingança
(Ibid.:37). Somente uma transcendência qualquer, que faça acreditar numa diferença entre
o sacrifício e a vingança, ou entre o sistema judiciário e a vingança, pode enganar
duravelmente a violência (Ibid.:38).

Para que a legitimidade e ilegitimidade da violência não fiquem à mercê da opinião


de cada um, correndo o risco de desaparecer, é preciso que haja transcendência, religiosa,

110
humanista ou qualquer outra que, defina uma violência legítima e que garanta sua
especificidade diante de qualquer justiça ilegítima.

Há que se discutir em que medida o sistema judicial moderno ocupa o lugar da


estrutura sacrificial arcaica. Certamente a execução legal, seja com condenação à morte ou
penas de encarceramento, pode ser vista como a ritualização de uma violência social. Em
certa medida, o sistema judicial mantém todos os elementos do sacrifício: inibe o círculo
vicioso da violência; não permite vingança; é a última palavra; conserva o elemento
transcendente/teológico, (coloca-se acima de todos) com a verdade inquestionável da
justiça; não acaba com a crise mimética, mas afasta o perigo da rivalidade generalizada; os
condenados são comparáveis aos bodes expiatórios.

Para Girard, as sociedades modernas podem abrir mão do sacrifício porque possuem
o poder judiciário que cumpre o papel de vingador legítimo:
(...) é o sistema judiciário que afasta a ameaça da vingança. Ele não a suprime, mas limita-a
efetivamente a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade soberana e
especializada em seu domínio. As decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre
como a última palavra da vingança (1998:28).

A questão a averiguar é se os conceitos modernos de justiça e culpa individual não


significam um retrocesso em relação aos conceitos coletivos de vingança e
responsabilidade. E ainda: em que medida, vingança e justiça são realmente coisas
distintas? De qualquer forma, a idéia de perdão está completamente afastada também nesse
sistema. A regra é o sacrifício do culpado, o que equivale a fazer justiça por meio de um
sistema legítimo com poder acima de todos (transcendental) para evitar que se faça justiça
com as próprias mãos, desencadeando um círculo de violência.

Contudo, na visão de Girard, o sistema judiciário somente pode existir e funcionar


efetivamente quando respaldado por um poder político realmente forte (Cf., Ibid.:36)
representado pelo Estado nos moldes pensado por Max Weber. Basta uma crise no sistema,
uma ameaça à desintegração social, para que apareçam outros mecanismos destinados a
controlar as desordens nas relações sociais. Esse é o caso de sociedades como a nossa, que
vive atualmente em um período em que o sistema judiciário está em crise: é lento e

111
ineficiente na resolução da criminalidade e insegurança, principalmente nas grandes
cidades. Frente ao aparente fracasso e ineficiência do sistema judiciário na resolução de
crises, aparecem na mídia, programas sensacionalistas nos moldes do “Brasil Urgente” que,
apresentado por Datena, opera como real representante do poder que se autoriza a dar
sempre “a última palavra da vingança” na busca de soluções. Nesse sentido, a idéia de
violência purificadora e violência impura apresentada por Girard pode ajudar a refletir
sobre o papel daquele telejornal na sociedade onde o sistema judiciário, como legítimo
detentor do monopólio sobre a violência se encontra à beira da falência.

Além disso, ao longo do capítulo nos debruçamos sobre o pensamento de Girard


acerca da atuação do desejo mimético como elemento gerador de conflitos. Quando todos
se imitam, o resultado é o desaparecimento das diferenças. A perda da diferenciação como
resultado da imitação gera o caos. No desdobramento do desejo mimético, o ser humano
imita o desejo dos outros; ele deseja um objeto porque é desejado por outros, e não pelo seu
valor. Na economia de mercado da sociedade contemporânea o desejo mimético age no
sentido de criar concorrência que impulsiona o sistema capitalista. O indivíduo é levado a
escolher o objeto (bens de consumo) que o outro (um modelo) indicar, ao desejar o mesmo
objeto. Neste sentido, o desejo mimético encontra um campo fértil para atuar.

Vimos também que a construção do bode expiatório é um mecanismo de controle da


violência. As sociedades têm suas bases estruturais enraizadas na violência descarregada
sobre um bode expiatório. Na escolha de suas vítimas, as sociedades desenvolvem
estereótipos de perseguições, selecionando certos grupos étnicos ou minorias, os excluídos.
Essa escolha inclui também os que ocupam lugares de destaques como é o caso dos reis
(governantes, ricos). Quanto mais distante do status social mais comum, maior a
possibilidade de perseguição. Nesse processo mas importante do que ser culpado é a
garantia de que a vítima não possa ser vingada, isto é, que ninguém reivindique a sua
vingança. Uma vez sacrificado, o bode expiatório, que era considerado a causa da crise,
passa a ser a fonte da reconciliação e bem estar. Depois da sua morte ele é semidivinizado.
Dessa forma, a violência do sacrifício tem íntima relação com o sagrado.

112
Seguindo as proposições do autor, descrevemos a função dos rituais sacrificiais,
praticados nas sociedades arcaicas e a sua posterior substituição, nas sociedades modernas,
pelo sistema judiciário (instituição amparada pelo Estado) na administração da violência.
Na opinião de Girard o sistema judiciário é muito mais eficaz, apesar de exercer
praticamente a mesma função do ritual sacrifícial, na resolução de crises geradas pela
violência. Nessa perspectiva, a idéia de violência purificadora e violência impura é muito
importante. O sistema judiciário que, na sociedade moderna, substitui o ritual sacrificial ao
fazer valer a justiça, pratica a violência purificadora. Dessa forma, uma instituição obtém
legitimidade no uso da violência. Independentemente das instituições, para que elas
realmente exerçam a função de legítimas representantes da sociedade na prevenção e
resolução da desordem é preciso haver algo que distinga a violência legítima (purificadora)
da violência comum (impura). O sagrado, resultado da violência do sacrifício é o
instrumento do qual as sociedades se utilizam diante da ameaça de violência generalizada.
A violência do sacrifício produz o sagrado e sacraliza a violência, transformando-a em
violência purificadora, utilizada para expulsar a violência impura (comum). Esse
mecanismo faz acreditar numa diferença entre a violência legítima e ilegítima impedindo a
contestação, que poderia criar um circulo vicioso de vingança. Assim, Girard explica a
estreita relação entre a violência e o sagrado.

Prosseguiremos nosso estudo, no terceiro capítulo, analisando alguns aspectos do


telejornal BU que surge como um fator ordenador da sociedade em crise porque incapaz de
conter a violência por meio de suas instituições legítimas. Teremos também em
consideração a linha de pensamento dos autores frankfurtianos (Adorno e Horkheimer) e
Guy Debord apresentadas no primeiro capítulo como suporte para entender o telejornal BU
inserido na lógica da sociedade de espetáculo e de consumo uma vez que, por meio dele,
Datena vende “soluções”, entre outros produtos.

113
III

ANÁLISE DO PROGRAMA “BRASIL URGENTE”


Tomando como base o referencial teórico apresentado ao longo dos capítulos
anteriores, nesse terceiro capítulo pretendemos analisar o conteúdo e o estilo do telejornal
Brasil Urgente (BU). Trata-se de uma análise que levará em conta os estudos de R. Girard
sobre a violência; G. Debord, sociedade do espetáculo; e Adorno e Horkheimer, crítica à
indústria cultural; bem como contribuições de outros pesquisadores da comunicação
visitados neste estudo.

O conteúdo usado como amostra para a nossa análise foi recolhido a partir da
gravação de cinco edições do telejornal, no período de um ano (junho de 2003 a junho de
2004), resultando em um vasto material. Para o nosso estudo escolhemos sete reportagens
apresentadas em três das edições gravadas. Pelas suas características, entendemos que essa
amostra serve como termômetro para o telejornal em geral.

O objetivo é procurar perceber na mensagem, aspectos que à primeira vista não são
captados ou entendidos pelo telespectador porque se encontram escondidos na forma e
estilo espetacular adotado pelo programa e seu apresentador. A transcrição na íntegra das
matérias analisadas encontra-se em anexo no final do trabalho. Uma leitura antecipada das
Reportagens ajudará na compreensão da discussão. Na apresentação usaremos as
abreviações E1, E2 e E3 para Edição 1, 2 e 3 respectivamente. Já as Reportagens serão
indicadas pela letra “R” acrescida do número correspondente à seqüência cronológica da
Edição indicado na margem do texto, por exemplo: (E3, R2.5, lê-se Edição 3, Reportagem
2, seqüência 5). O texto segue a apresentação das notícias intercaladas segundo o formato
do programa. Levaremos em consideração também outros aspectos gerais não mencionados
na transcrição das Reportagens.

115
3. 1 Considerações preliminares

Como primeira observação, é importante ressaltar que o estilo do telejornal BU se


enquadra nos moldes e padrões do gênero sensacionalista descrito no primeiro capítulo
desse trabalho: torna os fatos sensacionais, apela para a emoção, usa linguagem chocante,
busca constantemente o fait divers (informação baseada no anormal, na linguagem
popular). Seu impacto é instantâneo e seu consumo, rápido. Tornar sensacionalista um fato
jornalístico que, em outras circunstâncias não mereceria esse tratamento, como faz Datena
no BU, não é coisa nova. Esse procedimento já vem de Hearst: pegar o cidadão comum
esmagado pela crueldade do sistema social e expô-lo num veículo para chamar atenção ou
até mesmo criar uma espécie de vingança.

Pelo seu conteúdo, o telejornal BU pode ser considerado mais um produto da cultura
de massa no sentido da crítica elaborada por Adorno e Horkheimer. É um acontecimento
transformado em notícia com características de produto para o consumo. Além do mais,
pelo estilo e forma como o programa é apresentado, ele se insere no contexto da sociedade
do espetáculo descrito por Debord, onde o sensacionalismo sugere que informa enquanto
faz espetáculo, questionando todo o modelo de jornalismo iluminista moderno. Mais
evidente ainda é o fascínio pela violência e a atuação policial como foco principal do
programa. Diante da inoperância do sistema judicial no combate ao crime e da ineficácia
das instituições públicas na resolução de problemas sociais, o programa BU se apresenta
como solução e Datena uma espécie de justiceiro e advogado das vítimas.

Esses aspectos que desenvolveremos a seguir justificam o uso de autores que refletem
sobre o gênero sensacionalista de telejornal, a indústria cultural e a sociedade do espetáculo
em seus estudos. Para abordar o fenômeno da violência e as tentativas para combatê-la,
trazemos o estudo de René Girard apresentado no segundo capítulo, procurando evidenciar
elementos que ajudam a entender melhor a mensagem como um todo.

116
3. 2 As pesquisas sociais

No início de cada edição dos programas observados, depois de saudar o telespectador,


Datena apresenta o que chama “a pesquisa do dia”, 74
incentivando os cidadãos a se
manifestarem sobre temas polêmicos ou protestando contra situações sociais que afetam a
sua vida. Dessa forma, o BU se transforma em um instrumento de pressão e protesto,
proporcionando ao telespectador um serviço de utilidade pública, servindo de apoio para o
exercício da cidadania. Essa postura reforça a idéia de que Datena e o programa em si,
posicionam-se ao lado dos excluídos e marginalizados, tornando-se um instrumento
democrático que facilita a exigência dos seus direitos, negados pela sociedade.

Na edição exibida dia 09 de junho de 2003 (E1) os cidadãos foram convidados a


opinar (escolher) se: “O Exército deveria combater o crime nas ruas?” “Sim” ou “Não”. Os
telespectadores participavam ligando para dois números disponíveis na tela. Uma
plataforma no vídeo mostrava a evolução da votação em tempo real. Até o fim do programa
foram sorteados, entre os participantes da pesquisa, cinco aparelhos de telefone celular,
marca “Siemens”, promoção das Casas Bahia, principal patrocinador do telejornal.75

Ambos, o prêmio e as reportagens sobre os crimes servem como motivação para


atrair a participação do público na “pesquisa”. Temos aqui uma mistura de indignação pela
falta de segurança e ao mesmo tempo uma sedução por um bem de consumo como
incentivo para participar e escolher algo aparentemente “democrático” e ao mesmo tempo,
pré-determinado. Se decidir participar, o cidadão não pode opinar, dar sugestões, discutir o
assunto: não tem outra escolha. Deve simplesmente responder “Sim” ou “Não”. Torna-se
difícil avaliar a contribuição que uma pesquisa dessa natureza pode dar para discutir o
problema da segurança nas ruas ou sobre a atuação do Exército nesse campo. Uma coisa é

74
O que Datena chama de pesquisa não deve ser considerado como tal porque não obedece a critérios
adotados por uma verdadeira pesquisa científica.
75
Em fevereiro de 2005, a rede de lojas Casas Bahia aderiu à campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra
a Cidadania”. A coordenação da campanha e representantes das Casas Bahia acertaram que a empresa não
anunciaria mais em programas que exibam cenas de violência, sexo, racismo ou preconceito contra
homossexuais, por exemplo. Os anúncios da empresa serão retirados gradativamente da programação. A
adesão das Casas Bahia como parceira é uma grande vitória para a campanha, uma vez que a empresa é o
maior anunciante publicitário do país.

117
certa: o participante, além de pagar pela ligação, aumentando o faturamento das operadoras
de telefonia, aumenta a audiência do programa e conseqüentemente, os lucros com
publicidade.

Nos telejornais sensacionalistas é comum se organizar as chamadas “pesquisas”,


convidando os telespectadores a opinar sobre temas que afetam de maneira marcante a vida
da população: criminalidade, segurança, leis, penas, polícia, Exército nas ruas, sistema
judiciário, saúde, transportes, educação etc. Isso cria a sensação de que os problemas são
solucionados com a participação cidadã, o que não passa de uma ilusão. A suposta
“participação interativa” no programa, onde os telespectadores podem opinar entre duas
soluções possíveis, “sim” ou “não”, faz parte do poder sedutor da televisão a “ilusão da
cordialidade” que o veículo proporciona. Basta ligar o aparelho e a sala da casa é invadida
por imagens, vozes, sons do mundo, dissipando a solidão e criando a sensação de
participação em uma comunidade ilusória e virtual.

Temos aqui um primeiro elemento: a fuga de discussões mais aprofundadas sobre


temas relevantes como a criminalidade, promovida pelo fornecimento gratuito de objetos de
consumo. Com isso, a participação política como exercício da cidadania é esvaziada. Os
telespectadores são motivados a participar não apenas porque estão interessados em discutir
um tema de grande relevância como é o da segurança, mas também para concorrer ao
“sorteio” de um aparelho celular que atrai para si toda a atenção.

O sorteio dos prêmios é anunciado em meio ao desenvolvimento das matérias, numa


mescla entre publicidade e notícia. Por exemplo, durante a reportagem sobre a prisão de um
estuprador (E1, do dia 09 junho 2003), Datena anuncia dois ganhadores do celular Tim-
Siemens com quase 70.000 ligações, misturando o fato com produtos de consumo. Vejamos
a reportagem:
Datena (DT): Então Doutor, eu quero vê a reportagem primeiro para mostrá quem é esse
cidadão sabe, prá mostra quem é esse bandido, que estuprava mulheres e que fazia com que
as mulheres se depilassem antes disso, não é antes do estupro (matéria sobre o estuprador),
eu tenho dois ganhadores do celular Siemens Tim Siemens (...) deu mais de 60.000 ligações,
quase 70 .000 ligações. Você acompanha agora com exclusividade o momento da prisão do
estuprador...” (E1, R1.33).

118
Outra modalidade de “pesquisa” usada pelo programa é o “Pisque Band”; uma
manifestação conhecida pelos telespectadores, que tem origem nas torcidas de futebol ao
assistir a jogos pela televisão. Nela, os telespectadores são incentivados a piscar as luzes de
suas casas ou apartamentos ao perceberem a presença dos helicópteros do programa que
sobrevoam o bairro. Carros e estabelecimentos comerciais também participam da ação. A
bordo dos helicópteros, câmaras de última geração captam as imagens das residências
piscando as luzes e as transmitem ao vivo para todos os lares ligados no BU. O mesmo
tema de “pesquisa” permanece por uma semana e, usando um dos helicópteros, a cada dia
um bairro é escolhido para a ação. O outro helicóptero sobrevoa a cidade para chegar de
surpresa em um bairro. Ao se aproximar, sempre orientados por Datena, moradores de uma
das casas ou apartamentos que estiverem piscando as luzes são contemplados com um
aparelho televisor 29 polegadas. Isso cria um certo suspense, motivando a manifestação dos
espectadores. Mais uma vez, temos o elemento surpresa para aumentar a audiência.

Observando o programa exibido dia 29 de junho 2004 (E3) podemos entender como
se dá essa modalidade de “pesquisa”:
DT.: (...) Pisque Band hoje se você é contra a saúde pública. Se você acha que a saúde
pública é ruim. Saúde pública ruim, se você acha que os hospitais são uma porcaria, os
Postos de Saúde não funcionam, Pisque Band. Hoje nós vamos para a zona Sul de São
Paulo. (...) De repente a gente tá falando da zona Sul, de repente a zona Norte, a zona Leste,
a zona Oeste, qualquer bairro pode ser colocado aí onde estiver o helicóptero. Então onde
você estiver ouvindo o helicóptero e estiver assistindo o Brasil Urgente Pisque Band, Pisque
Band se você acha que a saúde pública é ruim. É um protesto hoje contra a saúde pública e
vai ser a semana inteira. Vamos sortear possivelmente hoje dois televisores em nome das
Casas Bahia. Dois televisores. Atenção, Capão Redondo na zona Sul, estamos indo prá aí,
mas outro bairro pode ser sorteado a qualquer momento (...) (E3, R1.1)

Naquele dia, a maior parte do programa foi sobre a “pesquisa” “Pisque Band”. Ao
longo do programa, que teve a duração de uma hora e meia, Datena falou da “pesquisa” 17
vezes com comentários e convites, conclamando os telespectadores a participar.
Apresentando a inoperância do sistema de saúde pública dessa forma, não é difícil entender
a solução proposta: privatizar. Tal postura dá força à campanha pelas privatizações, uma
das bandeiras do sistema neoliberal. A comparação entre os serviços públicos e privados,
destacando a boa qualidade destes e o péssimo desempenho daqueles, é uma constante no
telejornal em geral.

119
Observa-se também que, partindo de um bairro, Datena faz com que o “protesto”
ganhe dimensão nacional, aumentando a importância da ação. É o país inteiro, liderado por
Datena lutando por uma causa nobre.
DT.: Você que se acha mal atendido na saúde publica, você que teve parente mal atendido,
você que teve a saúde pública negada, por favor, Pisque Band! (...) Não é só a cidade de São
Paulo, mas toda a grande São Paulo e na verdade o Brasil inteiro que está protestando. (...)
(E3, R1.5)
(...) Vamos lá gente, vamos piscar! A 5 km do helicóptero tem gente piscando, isso significa
que ninguém está satisfeito com a saúde pública. Pisque Datena, pisque para o Amilton,
pisque pro Datena... É um protesto de São Paulo para o Brasil inteiro ver. É para as
autoridades sentirem, se elas não ouvem que pelo menos elas vejam que desses sinais
luminosos há sempre uma família indignada com a saúde pública. E no horizonte o que mais
me impressiona é que na linha do helicóptero, lá longe, 10 km de distância, ou mais, 15 km
tem gente piscando. Tem reportagem sobre a saúde aí? (E3, R1.8).

Para motivar mais pessoas a protestar, são usadas matérias chocantes sobre o descaso
na saúde pública. Enquanto são repetidas entrevistas em áudio, orientado por Datena, o
programa mostra imagens da cidade protestando através do “Pisque-Band”.
DT.: O Figueiredo está com a família. (mãe que perdeu o bebê durante o trabalho de
parto). (E3, R4) Enquanto o Figueiredo (repórter) estiver entrevistando a família que
perdeu é..é..é..esse ente querido, eu gostaria que no meio da...da..da entrevista, nós
continuássemos na zona Sul mostrando aí esse pisca-pisca. (E3, R1.10)
Figueiredo (FIG).: A senhora fez um parto de cesariana e ainda está com os pontos?
Solange (SL).: (mãe) ainda estou com os pontos...é...(Datena interrompe) (E3, R4.6)
DT.: É por causa dessas histórias que o pessoal está piscando uma barbaridade aí no
ar...pode bota..deixa ela falando.. por favor.. (Dona Solange continua em lágrimas.
(E3,R4.7).

A maneira como o “sorteio” 76


é realizado também chama a nossa atenção. Desde os
estúdios, em coordenação com os comandantes nos helicópteros e os repórteres na rua,
Datena decide tudo. Uma janela com as luzes piscando é escolhida. A partir daí começam
as tentativas para entrar em contato com o morador do apartamento ou casa “sorteada”.
Com um olho na janela para avistar o helicóptero e outro na televisão, os moradores ficam
sabendo que realmente são contemplados.
DT.: (...) Atenção, aquele prédio alí da direita, aquele prédio da direita alí, fecha numa
janela alí, vamos fechar numa janela aí, essa de cima, a de cima (o helicóptero se aproxima
e a câmara foca na janela indicada). Tem gente na janela aqui. Atenção você dessa janela
(Datena orienta pela TV o que os moradores do apartamento devem fazer) (...), por favor,
ligue para o Datena, ligue para o Datena (toca uma música de vencedor) a de cima, a de
cima, aí ligue para o Datena, ponha o telefone “Fale com Datena” e eu vou falar com você

76
Assim como acontece com a “pesquisa”, a forma como o “sorteio” é realizado foge dos padrões normais do
que realmente se entende por sorteio.

120
(o número do “Fale com Datena” aparece na tela). Foi um bairro surpresa heim, uma
televisão 29 polegadas em nome das Casas Bahia. Você que piscou Band em protesto contra
a saúde pública desde aí no bairro do Ipiranga. Obrigado viu Márcio. (no helicóptero)
Márcio: Ok Datena, a criançada tá feliz ali pulando e protestando.
DT.: Vamo vê se ela (moradora) liga pra cá. Vamo vê se ela liga pra cá, senão pode ser
aquela senhora que tá com o cachorrinho ali. (senhora que aparece em outra janela). Vamos
ver quem liga primeiro (...) (E3, R1.11).

Dessa forma, violência e desgraça misturam-se com a sorte e a alegria dos premiados
ou com a esperança de ser o próximo felizardo no programa seguinte. Se o repórter falasse
com alguns moradores do bairro, teríamos uma idéia melhor sobre as razões que os levam a
participar com tanto entusiasmo. Em nenhum momento o programa fala com a população.
Somente os ganhadores são entrevistados e mostrados fazendo festa. Felizes e vencedores,
eles falam da sensação que sentem, esquecendo-se de todos os problemas. As Casas Bahia e
o BU agradecem... 77
A população protesta se divertindo, fazendo festa, chamando a
atenção do helicóptero na esperança de ser premiada.

A dúvida persiste: as pessoas estão conscientes da dura realidade da saúde pública e


indignadas aderem ao protesto, piscando as luzes, ou fazem isso atraídas pela possibilidade
de ganhar um televisor 29 polegadas? O desejo de consumir imagens e produtos, reais ou
simbólicos, é uma forma de preencher um vazio sempre crescente, típico do ser humano
completamente dominado pela sociedade de consumo.

Os telejornais sensacionalistas como espetáculo se inserem no contexto da sociedade


contemporânea, onde o sistema neoliberal consolidou o mercado como fundamento e o
centro da vida em sociedade. A busca da riqueza passou a ser o mais importante objetivo na
vida da maioria das pessoas. A mercadoria tornou-se o objeto principal do desejo das
pessoas. O capitalismo neoliberal desenvolveu a crença no valor absoluto do mercado. Um
dos segredos do dinamismo do sistema capitalista é a acumulação de riqueza, de

77
Embora não dê o nome ao programa, como acontecia na era do rádio com a multinacional Esso ou a
Colgate Palmolive, a empresa Casas Bahia aparece como a principal patrocinadora do BU. No entanto, é
possível identificar características similares entre o estilo da publicidade feita pelas Casas Bahia, que apela
para a urgência dos consumidores fazerem uma visita em suas lojas “corra logo, a oferta é só hoje” e o
logotipo do telejornal “Brasil Urgente”, notícia urgente! Nesse sentido o telejornal poderia muito bem ser
chamado “Casas Bahia Urgente”.

121
mercadorias, como o único ou o melhor caminho para satisfazer o desejo de ser, poder e
aparecer.

O capitalismo é um sistema econômico centrado no desejo, fundamentalmente no dos


consumidores, no qual o consumo passa a ser um dos critérios fundamentais na construção
da identidade e um dos ordenadores fundamentais do desejo na sociedade. Na ótica do
desejo de reconhecimento pelo outro com base no confronto econômico, a indústria cultural
é a estrutura necessária para se organizar e pensar aquilo que desejamos. Aumentar o
consumo passa a ser sinônimo de auto-realização e reconhecimento. Sabemos, porém, que
mesmo diante da infinidade de produtos e da livre escolha, o consumidor vive sempre
insatisfeito, querendo constantemente consumir, e o campo de consumo se torna cada vez
maior. O mesmo acontece com os telejornais sensacionalistas que, longe de resolver os
problemas da violência ou da saúde e segurança, se tornam um fim neles mesmos, mais um
produto de consumo.

Na perspectiva de Debord, o sistema espetacular, que define o trabalhador como um


consumidor, tenta moldar e posteriormente, explorar seus desejos que, ao contrário das
necessidades, não têm limites. Como a sociedade moderna se caracteriza pela
transformação em mercadoria e pela racionalização, os desejos do indivíduo são, eles
próprios, alvos de intensa pressão social, tanto em relação à forma (os desejos sempre
precisam ser desejos por mercadorias) quanto ao conteúdo (competição por status,
marketing pessoal, imagens de estilo de vida etc.). Quando os desejos do indivíduo são
determinados pela sociedade e são definidos como desejos por seus produtos, os indivíduos
simplesmente se identificam com a sociedade e consideram-na satisfatória, não porque ela
procura satisfazer seus desejos, o que nunca consegue fazer, mas porque os definiu em
termos das satisfações que promete.

Nos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, redigidos em 1988, Debord


adverte que o aspecto essencial do “espetacular integrado” é, como o próprio nome
antecipa, o fato de ele se ter inteirado da própria realidade social e da vida cotidiana;
nenhum aspecto da existência foge ao seu domínio:

122
Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava;
quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada lhe escapa. O espetáculo confundiu-se
com toda a realidade, ao irradiá-la (...) (1997[1988]:173).

A atmosfera fica ainda mais lúgubre com a chegada desse híbrido que Debord chama
de “espetáculo integrado”. Nele, “as forças terríveis da rede de tirania” foram capazes não
só de obscurecer a experiência concreta, ao excluí-la do sistema de representação, mas de
erradicá-la inteiramente. O espetáculo já não deixa de fora nenhuma parte da sociedade
real; vida cotidiana, comunidade, nada mais permanece por debaixo da aparência.

A questão do desejo nos leva a observar a tendência entre os apresentadores e


produção dos programas do gênero de imitar o outro para ganhar audiência. Essa questão
da concorrência pela audiência está baseada no desejo mimético dos apresentadores e
produção, um dos argumentos desenvolvidos por Girard. O “Pisque Band”, o uso dos
helicópteros e motorlinks, o afã de chegar primeiro ou com exclusividade ao local dos fatos,
os sorteios de brindes, são todos exemplos de como apresentadores, produção, repórteres e
telespectadores se envolvem, movidos pelo desejo mimético, que se manifesta
impulsionado pelo programa. A mímesis de apropriação apresentada por Girard está ligada
à luta por possuir um objeto desejado, indicado por um modelo/rival. Imitamos uns aos
outros, desejamos o que os outros desejam, nosso desejo passa pelo olhar do outro. O
indivíduo abdica de sua capacidade de escolha; ele não escolhe mais os objetos de seu
desejo, é o outro (um modelo) que deve escolher por ele. É um processo contagiante que
envolve a todos, produção e espectadores.

Os “sorteios” realizados durante o programa BU podem ser considerados como um


outro campo de atuação do desejo mimético. Lembramos que, para Girard, a estrutura
básica do desejo mimético consiste em desejar um objeto não pelo objeto em si, mas pelo
fato de que outro o deseja também. Como o objeto desejado (televisor, celular) é escasso
em relação aos sujeitos do desejo (telespectadores), cria-se uma disputa (para Girard,
rivalidade ou conflito). Usando uma expressão moderna é o que hoje se dá o nome de
concorrência, que impulsiona o sistema capitalista. No BU, ligando para o programa ou

123
piscando as luzes de sua residência, os telespectadores estão concorrendo entre si,
disputando celulares, televisores etc.

Na dinâmica econômica capitalista, há sempre novidades que são apresentadas como


objeto de desejo de todos, mas que nunca chegam a ser possuídas por todos, quer pela
escassez, quer pelas condições econômicas. Isso é um fato fundamental. E como os objetos,
através da publicidade e modelos, despertam o desejo em todos mas são poucos os que
reúnem condições de possuí-los, cria-se uma sensação de frustração, rivalidade e até
violência. O mesmo esquema é repetido durante os chamados “sorteios” realizados pelo
BU. O programa apresenta um objeto de desejo (aparelho de televisão, telefone celular, etc)
para todos os telespectadores. Através do programa e incentivado por Datena, os produtos
são apresentados, despertando o desejo de posse em boa parte dos telespectadores que,
impulsionados pelo desejo mimético, passam a querer um dos poucos (de dois a quatro)
objetos sorteados e desejados por muitos. Quem não desejaria possuir um aparelho televisor
29 polegadas ou um celular? Mas, infelizmente apenas alguns serão contemplados. A
inveja, a rivalidade (concorrência) e a ostentação estão na base da sociedade de consumo,
como elementos que compõem a busca da realização do reconhecimento.

Outro componente essencial da lógica capitalista neoliberal é o acúmulo de


espetáculos que quanto mais desenvolvida a sociedade, mais se produz. O espetáculo de
violência produzido pelos telejornais sensacionalistas se encaixa nessa lógica. A sociedade
neoliberal contemporânea criou uma lógica de consumo movida pelo desejo nunca saciado.
Nos telejornais vinculados a uma sociedade em permanente crise, violência crescente, a
solução se torna um produto de consumo. Consome-se o telejornal sem nunca se resolver a
crise. Pelo contrário, ela se intensifica.

A monitoração, minuto a minuto, por um medidor de audiência ligado ao Ibope,


permite que a produção visualize em tempo real qualquer mudança de pontuação no próprio
programa e nos programas dos canais concorrentes. Isso permite que se verifique que tipo
de assunto faz a audiência aumentar ou diminuir. Com isso, assuntos que aumentam a
audiência passam a ocupar lugar de destaque dentro da grade de programação. É a TV se

124
alimentando e sendo alimentada pela imagem. Nessa perspectiva, o critério do índice de
audiência passa a definir os rumos do programa e o valor da inserção comercial. Quanto
mais pontos no Ibope, maior público e, conseqüentemente, maior visibilidade para os
produtos ou serviços anunciados. Matérias sobre a violência e miséria cotidiana ou mesmo
uma ação do tipo “Pisque Band”, não servem só para conquistar audiência, mas, também
para dar subsídio para que as empresas jornalísticas, cada vez mais dominadas por grandes
conglomerados, continuem mantendo uma mídia que lhes convêm.

Um assunto de interesse público que vai afetar a vida de milhares de pessoas mas que
não rende imagens de apelo que prendam a atenção do telespectador, pode deixar de ser
divulgado pelo telejornal, se houver algo menos importante mas com uma dose de
adrenalina maior, como uma espetacular perseguição policial ou uma história de forte apelo
emocional, por exemplo. A repercussão da perseguição se esgota logo, sem afetar a vida de
mais ninguém. No entanto, a ação da imagem tem efeito infinitamente maior do que
discutir mudanças no sistema de educação ou saúde. E quando temas relevantes são
tratados, eles aparecem em forma de espetáculo, como podemos observar no “Pisque
Band”, esvaziando a questão.

No espetáculo, a indústria cultural, sociedade de consumo e desejo mimético se


fundem e se complementam. O acúmulo de imagens dá origem à sociedade do espetáculo,
uma das marcas da sociedade contemporânea. O ponto de partida é o mercado (produção e
consumo) acompanhado do espetáculo, conforme explica Debord na abertura de sua obra
(1997:# 1). As relações humanas passam pelo intercâmbio mercantil e a mercadoria ocupa
totalmente a vida social. As pessoas se sentem vazias, fora de lugar, tornando-se presas
fáceis do consumo que se apresenta como resposta satisfatória, alimentando o sistema. Da
mesma forma, com tanta falta de segurança e abandono do Estado o telespectador é
facilmente atraído pelas soluções imediatas apresentadas no BU.

Os índices de audiência e a circulação e consumo dos bens simbólicos justificam os


meios. Conforme nota Marcondes Filho: “Notícia é informação transformada em
mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isto a

125
informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas...” (1985:13). Uma
característica determinante da notícia como mercadoria é o seu caráter altamente perecível.
O seu valor de uso cai aceleradamente, demandando um processo contínuo de busca e
apresentação de novas mercadorias.

É oportuno recordar aqui a discussão desenvolvida por Debord, baseada em Marx,


sobre o duplo caráter da mercadoria, “valor de uso e valor de troca”. O valor de uso da
notícia diz respeito à sua capacidade de informar, mobilizar, entreter. O seu valor de troca
se refere aos elementos agregados à produção técnica e estilística que visam formatar o
conteúdo da mensagem para causar impacto. O valor de troca da mercadoria se relaciona
com a capacidade motivacional de criar necessidades e possibilitar o desejo de consumo.

O mecanismo do desejo mimético, de acordo com Girard, não só gera rivalidade e


conflito uma vez que desejos de duas ou mais pessoas tendem para um objeto comum, mas
também acirra o consumo de bens porque no mesmo mecanismo o sujeito deseja o objeto
que é designado por um modelo. Para Girard “não somos capazes de desejar por nós
mesmos, mas precisamos que uma terceira pessoa indique o objeto que desejaremos”
(1998:184). Nos moldes atuais, a publicidade se encarrega de fazer esse papel. A
necessidade de consumo, uma das características do ser humano contemporâneo encontra
no desejo mimético um campo fértil de motivações. Até porque, o que realmente motiva a
aquisição de um produto ou serviço na sociedade de consumo contemporânea não é a
satisfação de uma necessidade básica ou o desejo de uma vida vivida dignamente, embora
isso também esteja presente, mas o sentimento de rivalidade ou estímulo que incita a imitar
ou exceder o outro. A publicidade, que já não apresenta somente objetos de consumo, mas
modelos de vida que indicam produtos a serem consumidos, explora esse aspecto com
muita propriedade. O telejornal BU como um todo, não escapa a essa tendência.

A mistura de vários produtos, notícias apresentadas de forma sensacionalista,


soluções fáceis para os problemas e aspirações da população e bens de consumo (celulares,
televisores...), política, humor, esportes, revela uma tendência ao sincretismo característico
da cultura de massa em geral, onde o consumo se afirma como lógica moderna das relações

126
humanas. A televisão, com a cultura massificadora que impõe, consegue sincretizar coisas
tão diversas como o real e o imaginário, homogeneizando-os. Isso é feito dando um
tratamento romanesco ou dramatizando os fatos reais (em geral o fait divers) e tratando
realisticamente, através do meio técnico-formal da informação jornalística, o campo do
imaginário.

Em suma, a publicidade e aqui o telejornal nos moldes do BU, trabalham através de


puras aparências: não se compra mercadorias por suas qualidades inerentes nem pelo seu
valor de uso, mas pela imagem que o produto proporciona no ambiente de vida do
consumidor. Isso vale também para a notícia concebida como produto de consumo. Na
perspectiva de Debord, as relações sociais na sociedade do espetáculo passam pelas
imagens. A imagem passa por um modelo apresentado para ser imitado e conseguir realizar
o que a mercadoria promete. Sabemos, porém, que nenhuma dessas mercadorias, e até
mesmo as soluções propostas por Datena no BU, realizam de fato o que prometem. No
entanto, o objeto simboliza para o consumidor uma síntese daquela vida vivida pelo
modelo. Na ilusão de viver o mesmo estilo de vida ou de obter as soluções para os
problemas do cotidiano, o cidadão procura consumir tudo o que é apresentado.

A sociedade capitalista globalizada e neoliberal contemporânea tem como um de seus


principais motores a produção, circulação e o consumo de bens e serviços. Essa visão é
reforçada por uma ideologia que leva a crer que esse sistema, movido pela livre
concorrência, oferece seus benefícios para todos. O crescente desejo de consumo de bens e
serviços cria a necessidade de consumo de soluções imediatas, um papel que a mídia sabe
desempenhar muito bem.

De certa forma, indústria cultural, sociedade de consumo, espetáculo e desejo


mimético estão intimamente relacionados. Os telejornais sensacionalistas como espetáculo
se inserem no contexto da sociedade contemporânea, onde o sistema neoliberal consolidou
o mercado como fundamento e o centro da vida em sociedade. Um dos segredos do
dinamismo do sistema capitalista é a acumulação de riqueza, de mercadorias, de imagens,

127
de espetáculo como o único ou o melhor caminho para satisfazer o desejo de ser, poder e
aparecer.

Na indústria cultural, publicidade e noticiário estão fundidos. Além disso, intensifica-


se a fusão entre aquilo que é noticiado e os bens de consumo apresentados nas publicidades
e mesmo inseridos nas matérias que financiam o telejornal. Notícias, eventos, violência,
dramas e publicidade movidos pelo consumo, cada qual à sua maneira, vende estilo de vida,
sensações, emoções, visões de mundo, relações humanas, aparências... Percebemos aqui o
consumo de imagens e notícias como espetáculo.

3. 3 Tudo acontece em tempo presente

Conforme podemos observar, o BU é caracterizado pela narração de imagens do


palco dos acontecimentos, a narração no presente, com repórteres nas ruas colhendo
depoimentos dos envolvidos, helicópteros equipados com câmaras de última geração
filmando do alto, velocidade e instantaneidade, como notícia urgente, de extrema
importância, com precedência a qualquer outro fato. Tudo está acontecendo naquele exato
momento, ao vivo, em tempo presente, e o BU está lá para anunciar a notícia. Como diz o
nome, as notícias dadas pelo telejornal são de máxima “urgência”. Além disso, o uso de
legenda na parte inferior da tela, com o título da reportagem, permite ao telespectador
situar-se no fato que está sendo apresentado, qualquer que seja o momento em que
sintonize o programa.

O programa segue, de fato, o quadro básico do telejornal que consiste no seguinte:


tomadas em primeiro plano, enfocando pessoas que falam diretamente para a câmara
(posição stand-up), sejam elas apresentador, jornalistas ou protagonistas, âncoras,
repórteres, entrevistados, tendo ao fundo um cenário do próprio acontecimento, enquanto
textos e gráficos inseridos na imagem datam, situam e contextualizam o evento; se tudo for
ao vivo, mais adequado ainda. Torna-se essencial a presença da televisão no local e tempo
dos acontecimentos, não apenas para autorizá-los como fonte confiável, mas porque essa é
a condição principal de seu processo significante. De fato, a operação em tempo presente é

128
o que mais caracteriza a televisão (e também o rádio). Segundo Arlindo Machado, “a partir
da televisão, o registro do espetáculo que se está ainda enunciando e a visualização/audição
do resultado final podem se dar simultaneamente” (2003:125). É esse justamente o traço
distintivo da transmissão direta: a recepção, por parte de espectadores situados em lugares
muito distantes, de eventos que estão acontecendo nesse mesmo instante.

No BU a característica do tempo presente é perceptível também nos repórteres


sempre ofegantes, por estarem continuamente correndo atrás da notícia, seguidos por uma
câmara com som direto que registra tudo, desde o balanço dos carros, o ruído das motos, os
gritos da polícia e dos bandidos, os tiros...

A reportagem sobre a chegada do estuprador na delegacia (E1, R1) tinha sido gravada
anteriormente mas foi apresentada como se o fato estivesse acontecendo naquele exato
momento, ao vivo. Nela o repórter Figueiredo aparece bruscamente e narra tudo em tempo
real, com a maior urgência.
FIG.: Lá vem ele, lá vem ele, Dr. Lá vem ele vamos atrás ali, vamo lá, vamo lá, ali ele vai
passando... vamo lá correndo vamo lá perto da viatura, vamo lá, vamo lá, o momento ta aí
vamo lá, vamo lá.. Frederico o que é que você tem pra fala alguma coisa... que fala alguma
coisa Frederico? Você é inocente?
Frederico Adriano (FA): Não...(...)
FIG.: Você é inocente? Você, você estuprou as meninas e usou lá o depilador você depilô?
FA.: Não...(...) (E1,R1.22)

A mesma impressão é passada quando o programa noticia no presente, o momento da


prisão de Frederico:
DT.: (...)Você acompanha agora com exclusividade o momento da prisão do estuprador que
fazia com que as mulheres se depilassem na tela da Band. (Repete a imagem da chegada na
delegacia).(E1, R1.33). O repórter Lúcio Tabarelli. (LT) cria suspense:
LT: Este é o momento mais aguardado desde o início da investigação porque há a
informação de que o suspeito de estupro se encontra no interior deste carro. (O repórter se
aproxima do carro tentando entrevistar o acusado) (E1, R1.34).

Sobre a preferência pelo ao vivo, na opinião de Pierre Bourdieu e Marcondes Filho, a


velocidade e simultaneidade do tempo presente na televisão dificulta o pensamento porque
a velocidade é o contrário do pensamento. Além de distorções que podem ocorrer enquanto
o jornalista narra o fato, em frenesi, como se estivesse efetivamente participando dele
conforme se observa no exemplo citado, ocorre outra forma de distorção proporcionada

129
pela ilusão da pureza plena de uma transmissão. A esse fato soma-se a constante exploração
da emoção, que privilegia a superficialidade em detrimento da reflexão mais apta à busca
da verdade dos fatos, conforme observados por Marcondes Filho (Cf., 2000: 80).

O ritmo acelerado no recebimento e processamento de informações, em tempo real,


em linha direta com os fatos, dá pouca margem para que o telespectador compreenda os
acontecimentos. A espetacularização das notícias subverte a ordem de importância e
veracidade dos fatos. Nessa lógica, as informações que causam impacto e estão sendo
veiculadas no momento, têm preferência. A fábula, a ficção e o espetáculo se confundem
com o dado informacional.

No jornalismo, em função da agilidade do processo de montagem, circulação e


apreensão de informações, a versão dos fatos, o relato, quando carece de investigação e
checagem em várias fontes, recai na exposição de depoimentos. Observamos que no BU, a
opinião pessoal sustenta as versões da realidade baseadas na autoridade, não nos fatos em
si. Nas matérias sobre crimes abundam a opinião do delegado, do investigador, da polícia,
das vítimas, testemunhas e dos próprios infratores.

Nos programas popularescos, o sensacionalismo acaba por afetar até mesmo o


jornalismo dito sério. Na guerra pela informação e pelos pontos no Ibope, a mídia abre mão
de regras básicas do bom jornalismo: ouvir todas as partes envolvidas, conferir as
informações antes de divulgá-las, e, principalmente não condenar previamente suspeitos ou
acusados. No BU é procedimento comum ver simples suspeitos, apresentados pela polícia,
serem julgados e condenados ao vivo e sem direito de defesa. Presume-se que os jornalistas
saibam de sua obrigação de não condenar antecipadamente ninguém.

No telejornal BU muito do material apresentado é editado, no entanto, o improviso, o


inacabado constitui uma das suas características mais marcantes apresentando o tempo da
enunciação como um tempo presente ao telespectador. Ao serem apresentadas, as matérias
são transformadas em histórias instantâneas. Tendo de simular um diálogo em contato
familiar com seu público, apóia-se numa retórica do direto. O que aparece no vídeo

130
pretende ser apreendido como simultâneo ao tempo do telespectador. Mesmo quando a
ação transmitida é passada com relação ao presente do telespectador, a retórica do direto
persiste (E1, R1.35; E2, R2.2; E3,R4.1).

Constatamos aqui uma tendência do jornalismo pós-moderno, em que cada vez mais
o meio de comunicação fabrica o ato. Então se a televisão e o jornal não mostraram um
fato, por mais grave que seja, como o estupro, ele não aconteceu. O telespectador quer
confirmar a verdade e a única coisa que dota o caráter de verdade é a mídia: se o telejornal
não mostrou, não é verdade.

Mesmo que as cenas tenham sido gravavas horas antes, Datena narra como se tudo
estivesse acontecendo naquele momento. Assim, ele confunde os telespectadores,
induzindo-os ao erro de pensar que aquela situação dramática acontece ao vivo, quando se
tratam de imagens previamente vistas e editadas pela equipe do programa. Acidentes pré-
gravados transformam-se em acontecimentos da hora. Isso serve para esquentar o programa
e justificar o seu nome: “Brasil Urgente”.

Conforme vimos no primeiro capítulo o nome “Brasil Urgente” sugere a idéia de que
a matéria desenvolvida é de caráter jornalístico mesmo. Indica algo que acaba de acontecer
ou está acontecendo e tem preferência sobre todos os demais assuntos em pauta: noticiar
um fato de máxima importância. Em várias ocasiões Datena lembra que não somente a
grande São Paulo, mas todo Brasil exige soluções urgentes (E3, R1.5; R1.8; R4.9).

O avanço tecnológico nos meios veio a contribuir para reforçar o uso do tempo
presente no telejornal. No caso do BU, motorlinks nas ruas, colocar um helicóptero meia
hora sobrevoando um acidente de moto e usando câmara de longo alcance, transforma os
fatos em notícia de extrema urgência e importância merecendo todo o espaço necessário. É
a tecnologia interferindo no conteúdo. A barbárie estética tende a se diluir diante da
reportagem e se acentuar nos fait divers.

131
Para contrapor o otimismo progressista, que vê o avanço tecnológico como conquista
da “humanidade em direção à liberdade”, Adorno e Horkheimer enfatizam que o
desenvolvimento tecnológico e científico somente tem sentido quando associado à idéia de
humanidade que resiste à barbárie. Os teóricos frankfurtianos se recusam a associar como
inseparáveis o progresso e a humanização. Na forma como a indústria cultural produz e
difunde mercadorias simbólicas ocorre uma dupla natureza do progresso, comportando
contraditoriamente o movimento da regressão. Se a razão se desviou de seu potencial
emancipador, a reprodução técnica dos bens simbólicos que revela uma confusão dos
objetos originais com suas cópias pauperizadas, o real com seu simulacro, a informação de
qualidade com o banal sensacionalista, coloca no âmbito da indústria cultural a contradição
de que o progresso tecnológico permite obscurecer o entendimento da realidade. A
racionalidade instrumental é concretizada na criação de artefatos culturais que circulam e
são consumidos em escala massiva e industrial, como parte do processo, tornando
indissociável do conteúdo da mensagem as condições técnicas e operacionais de sua
produção, circulação e apropriação por uma audiência ampla, dispersa e impessoal.

Na mesma linha de pensamento dos teóricos-críticos, Marcondes Filho também


identifica na produção jornalística a irracionalidade presente no progresso técnico-
científico. Essa era tecnológica baseada no fluxo contínuo de informações faz com que
fatos, imagens, narrativas produzidas pelos mass media sejam presentificados na vida
cotidiana das pessoas (Cf., Marcondes Filho, 1993:91). A irracionalidade é demarcada pela
submissão da experiência individual ao universo de preocupações sugeridas pelos episódios
do telejornal. A definição de estética da barbárie, dentro da lógica de que a forma da
produção jornalística está presente no conteúdo do fato noticioso, em muito se afirma em
subverter a ordem cronológica e tornar o que imediatamente está sendo exposto como
informação urgente para a audiência. A presentificação diz respeito à exploração do
instante, dos elementos contingenciais, que despertam a atenção da audiência que obriga o
indivíduo a viver um presente perpétuo excluindo o passado. A maneira como as
informações são condicionadas à natureza dos veículos, a política de adequar a
programação às estatísticas de audiência, ampliando o espectro de receptores em detrimento

132
da qualidade estética e do conteúdo, dizem muito da violência simbólica presente na
indústria cultural (Cf., Sodré, 1999:42).

Na mesma perspectiva proposta por Adorno e Horkheimer de que a técnica não


eliminou a fome, o analfabetismo, os campos de concentração, constata-se uma
incapacidade da indústria cultural em possibilitar a existência de uma sociedade mais
esclarecida, apesar do pluralismo de informações, fontes e meios técnicos de
processamento, armazenamento, difusão e captação de mensagens. Essa contradição entre
fluxo de informação e ausência de esclarecimento é recorrente nos estudos comparados de
jornalismo.

Na indústria cultural, a informação jornalística, até mesmo nos níveis considerados


sérios, coloca-se a serviço da produção ficcional, romanesca. As notícias de utilidade
pública e até mesmo programas de fundo cultural, passam a ser pautados pela difusão dos
interesses da indústria. Essa condição é própria da natureza sistêmica da indústria cultural,
que propicia pensar no caráter utilitário da cultura e da produção da notícia, conforme
denunciam Adorno e Horkheimer.

Na trilha do relato dos pensadores frankfurtianos, a propósito da “indústria cultural”,


Debord considera o “espetáculo” um agente de manipulação social e conformismo político,
uma permanente “Guerra do Ópio” (1997: #44) que visa a entorpecer os atores sociais,
turvando-lhes a consciência acerca da natureza e dos efeitos do poder e da privação
capitalista. O “espetáculo” é, em síntese, aquilo que impede que a consciência do desejo e o
desejo da consciência alcancem seu “projeto”: a abolição (sob a ótica marxista) da
sociedade de classes, condição histórica que permitiria a todos desenvolver a plenitude das
capacidades humanas como fins em si mesmas, envolvendo-se ativamente com o mundo
dos objetos, transformando-os, moldando-os e criando-os a partir de seu trabalho intelectual
e prático.

133
3. 4 Linguagem popular

Ao adotar a linguagem do espetáculo sensacionalista, o BU assume elementos de


programas televisivos não-jornalísticos, como o uso do recurso da teledramaturgia na
postura e nos gestos do apresentador. Datena bate na câmara (na tela) e grita para as
autoridades: “acorda! acorda! Me ajuda aí!” (por vezes ouve-se o cantar do galo indicando
que é hora de despertar e reagir urgentemente). Anda de um lado para o outro do estúdio
com passos decisivos, olhar sério e expressão facial de indignação. Dedo em riste que
aponta como uma lança investida, alternadamente para o telespectador, para a autoridade
que está sendo cobrada, ou para o olho, a câmara da TV onde é exibida a reportagem. A
imposição da voz, sempre grave e a música de fundo reforçam a dramaticidade do
momento. A música densa utilizada durante as reportagens e comentários feitos é sempre
em tom de crítica ou desabafo.

A linguagem simplificada do produto sensacionalista utilizada pelo BU serve para


fortalecer a fusão entre o público com a história relatada. A fala é recheada por gírias,
como: “esse cara”, “sujeito”, “meu nego” “safado”, “vagabundo” “imbecil”, “crápula”.
“Levou um tiro na bunda (...). Tem que apanhá na bunda com um gato morto até faze o
gato miá (....) (E1, R1.17).... ele (o estuprador) vai estuprar o coelho da páscoa! (...)
(E1,R1.28). Aquele “sheety boy” (ao invés de “pit boy’) (E2, R2.1). “Veado” para
viaduto... (E3, R2.4). (Datena grita com a produção) (..) “Eu quero que a luz se rache!”
(E3, R3.4); “Parem de me enchê o saco com esse negócio de luz” (E3, R3.3), (...) “...aqui,
tira o meu papo ... tem uma frescuraiada” (E3, R3.4).

O uso de gírias marca a originalidade (criatividade) e a identificação do telejornal


com as classes populares. Datena procura legitimidade de representação das populações
periféricas através do uso coloquial da linguagem, do emprego do palavrão e da gíria, como
se esse uso caracterizasse o seu engajamento com os interesses, gostos e expectativas
populares.

O conteúdo das críticas sai de um discurso comum de cobrança conhecido por todos:

134
DT.: “Tem que botar polícia na rua.... Bandido tem que ir prá cadeia... Vocês só
sabem mamar nas tetas do povo...” (...) (E2,R1.8). “Vou ficar enchendo o saco dos
caras”(E2,R1.13). (...) “Esse INSS é uma piada” (E3, R3.3). “Me ajuda aí presidente (...)
por que senão vai pau em você também.(...) e me dói no coração mandá lenha no senhor”
(E3, R3.5).

Datena mostra a urgência de reclamar, exigir, gritar.... Existe no telespectador uma


projeção, um prazer vicário de espelhar-se em alguém que tenha tomado para si o papel de
fazer justiça, coisa que ele, mesmo que inconscientemente, gostaria de ter feito. Tais
sensações são detectadas em expressões, falas compulsórias e atitudes aparentemente
espontâneas. Nos casos policiais é mais comum encontrar esse tipo de identificação. Por
exemplo, as expressões de Datena: “esse bandido”, “monstro”... “esse sujeito merece
apanhar muito...” “esse vagabundo”, “bandido da pior espécie”... “precisamos de leis mais
duras...”, “chega a uma situação que não dá mais para agüentar...”, e outras do gênero, são
sentimentos que fazem com que as pessoas se sintam vingadas e de alguma forma,
recompensadas pela violência e abandono a que são submetidas.

BU lida com conteúdos familiares e corriqueiros na vida de pessoas comuns. O


conteúdo e a forma, nos repórteres, caminham juntos a fim de envolver o telespectador na
história, fazê-lo compartilhar de sentimentos, sensações, angústias e alegrias, tornando-o
aparentemente ativo, por tratar de uma realidade conhecida, por permitir que o indivíduo se
enxergue na televisão, não apenas como um mero espectador de fatos alheios, mas como
detentor de um conhecimento que consegue decodificar. A matéria estimula as pessoas e as
carrega para dentro da ação, como participantes da cena. Objetos simples e pessoas comuns
montam a cena onde o fato acontece.

O discurso do telejornal em relação à situação de violência e criminalidade, que faz


parte do cotidiano da Grande São Paulo, de modo particular entre os marginalizados, é
marcado pela sensação de impunidade e insegurança, pela ausência de esperança de que
esta situação seja resolvida pelo Estado e pelas autoridades do poder público. É um
discurso que oscila entre, por um lado, tentar indicar as causas da violência, a falta de

135
segurança exigindo das autoridades soluções; por outro mostrar os crimes, os bandidos, a
polícia em ação, as prisões, os tiroteios, normalmente envolvendo marginalizados, pobres,
favelados, desempregados. É dentro deste contexto que se torna um discurso ambíguo, na
medida em que pode permitir uma diversidade de sentidos. A linguagem popular adotada
por Datena, ao mesmo tempo em que pretende identificar-se com o discurso do pobre e
exigir os seus direitos, retrata o marginalizado, o favelado como violento, bandido e
potencial criminoso.

No programa analisado, a criminalidade é geralmente apresentada, associada à


marginalidade enquadrando-se numa visão generalizada que existe na sociedade, onde a
violência urbana é, na maioria das vezes, associada aos crimes cometidos pelas classes
populares. O conceito de marginalidade já vem carregado de significações negativas: os
grupos “marginais”, seja por viverem nas favelas, bairros pobres, seja pela condição de
desempregados, de pobreza, são normalmente identificados como grupos, que,
potencialmente, poderiam recorrer a ações violentas. Isso recorda os pressupostos de Girard
acerca dos estereótipos de perseguição na escolha dos bodes expiatórios. Lembrando
também que os fracos, os marginalizados, os pobres à semelhança do bode expiatório não
têm meios para se vingar.

O telejornal segrega simbolicamente as classes populares porque aparecem sempre


representadas como perigosas, estereotipadas e violentas. Ao tipificar pessoas e grupos de
comportamentos transgressores, exacerba e valoriza a violência e caracteriza os habitantes
pela ocupação, pela perversão, desordem, criminalidade... O discurso que realça a
negatividade dos atributos das classes perigosas pressupõe a omissão de questões sociais,
políticas e econômicas e, por conseguinte, a omissão das causas da crescente miséria. O
discurso da violência não oculta o cadáver, mas oculta as razões da criminalidade e a
grandeza da exclusão e da desigualdade social.

Contudo, o programa deixa transparecer também, uma outra realidade: a falta de uma
justiça mais eqüitativa. As diferenças de tratamento que os “privilegiados” e os “pobres”
recebem, por parte da polícia, na aplicação da lei e a falência do Poder Judiciário.

136
3. 5 O humor de Datena

Durante a apresentação do programa, em vários momentos Datena se altera e grita


com colegas da produção e auxiliares que não aparecem na tela, manifestando a sua
indignação. Mistura o seu mau humor com cobranças aos governantes e políticos e os
xingamentos aos “bandidos”.78 Pede para falar mais baixo, reclama da exigência com
relação ao seu posicionamento diante das câmeras (ao se deslocar de um lado para o outro
no estúdio ele deve parar sob um ponto de luz), reclama da aparência estética exigida, dos
auxiliares que o telespectador não vê etc. Suas reclamações misturam-se aos desabafos que
faz quando comenta os assuntos, cobra das autoridades mais segurança ou xinga um
“bandido”.
(...) Olha o estuprador que nós mostramos ontem aqui e que a polícia tinha como ponto de
honra prender esse estuprador ... não é (neste momento, Datena grita com o pessoal na
Redação, alterando a voz). Dá prá falar mais baixo aí um pouquinho? Se não, não dá prá
fazer programa aqui também...Reclamam que eu grito aqui.. e gritam aqui do lado também.
Aí não dá prá fazer programa. (houve silêncio total na sala, Datena prossegue). Agora ficou
muito silêncio... pode falar um pouquinho mais alto. O negócio é o seguinte.... o pior é que
eles me levam a sério.. o .. detalhe é o seguinte olha...é...é.., (...) (E1, R1.20).

Na edição exibida no dia 29 de junho 2004 (E3) o diretor pede para que o
apresentador que se movimenta no estúdio, fique sob um ponto de luz. Isso causa irritação e
discussão com a produção. Depois, Datena canaliza a sua indignação para o governo.
(...) sai daqui por que? (grita) Porque não tem luz aqui? Qual o problema, não tem luz
acende a luz Pisque Band. Ora que absurdo, bota luz aqui então ué... você entendeu? Aliás
quem precisa dar a luz aqui é governo, quem precisa dar a luz nesse país, que não dá a luz
prá ninguém, sabe isso é uma piada. E parem de me enchê o saco com esse negocio de luz!
(berra com a produção) (...) (chama os auxiliares, os camaramen). Vê se não pode aparecer,
o seu Xavier, um monte de frescura, vem aqui Xavier, vem aqui comigo prá ver se esse
INSS que é uma fábrica de... Chico Boca, cadê o Chico Boca, aposentado... dá prá .. tem luz
aqui também, se não tiver a luz também do..do.. vou contar uma coisa pra você... Cadê a luz

78
De certa forma, Datena tem um pouco de Flávio Cavalcanti (1923-1986), apresentador do “Noite de Gala”,
“Um Instante, Maestro” e, depois, do “Programa Flávio Cavalcanti”, sucesso nos anos 70 na TV Tupi.
Cavalcanti adotava uma postura conservadora e não via com bons olhos as mudanças de comportamento dos
anos 60 e 70. Tinha na moral e nos bons costumes os pilares da ordem social, assim como a crença na
unidade, homogeneidade, ausência de conflitos e conciliação. Ele reafirmava esses valores com uma
abordagem pelo lado negativo. Jogava com suspense e com polêmica. Quebrava discos, chorava diante das
câmeras. Seus comentários viravam assunto da semana. Para isso, exacerbava algumas características. Até há
pouco tempo Carlos Massa (o Ratinho), também fazia algo parecido. Apesar das mudanças, o mau humor e os
protestos de Datena no comando do BU, mostra que a essência do gênero continua a mesma. Cfr., Lúcia
Maciel Barbosa de OLIVEIRA, “Nossos Comerciais, por Favor!”. A televisão brasileira e a Escola Superior
de Guerra: o Caso Flávio Cavalcanti. Beca Editora, São Paulo, 2001. Artigo: A doutrina política de Flávio
Cavalcanti na TV. In: Caderno 2, Estado de São Paulo, D3 de 27 ago. 2001.

137
aí o...(reclama gritando). (...) O pai do Póllo ganha R$ 350,00 ele tá me dizendo aqui. Isso é
uma piada e os caras tão preocupados com a luz. Eu quero que a luz se rache! (E3,R3.3;
R3.4).

Em outro episódio, Datena procura desmascarar a televisão revelando as


preocupações da produção com relação à aparência dos apresentadores. Essa preocupação,
muito comum na televisão, é tudo uma farsa, protesta Datena:
(...) Dar a realidade, televisão é assim mesmo. Pensam que é tudo bonitinho em televisão?
Eu por exemplo, o Ladinho me deixa bonito, aqui, tira o meu papo, passa maquiagem, tem
uma frescuraiada também que eu vou contar uma coisa prá você. Aí chega na rua as pessoas
me dizem: “Datenão, você parece tão bonito e na televisão você é um bagulho”, é lógico. É
tudo mentira esse negócio bonitinho e.. tal, essas fres... parem de me enchê o saco (grita)
com esse negócio de luz. O que eu tô falando aqui é seríssimo! (...) (E3, R3.4).

Quando Datena deixa de seguir as formalidades do programa ele poderia estar


dizendo que toda a seriedade mostrada no formato e nos apresentadores do telejornal de
qualidade, não passa de uma farsa. É a ironização do próprio jornalismo que pretende ser
objetivo, informativo, sério, quando na verdade não passa de pura aparência.

A postura do apresentador tem muito a ver com a sua situação pessoal, familiar e
profissional. Ele mesmo confessa que às vezes não dorme direito e vive sob influência de
anti-depressivos. Já se envolveu em várias polêmicas com concorrentes, sendo as mais
contundentes com Milton Neves, que apresentava o “Cidade Alerta” na Record em junho
de 2003 e Gugu Liberato que o incluiu na famosa armação com o PCC (Primeiro Comando
da Capital), no programa “Domingo Legal” do SBT em setembro do mesmo ano.

Na edição do dia 09 junho 2003, Datena reclamou no ar, que a direção da Band pediu
para ele ser “mais light, menos invocado”. “Light uma ova! Se não gosta, me dá o meu que
vou embora!”, protestou.

Girard sustenta que quando a violência se manifesta, há pessoas que se jogam de


encontro a ela, enquanto outras tentam impedir seu progresso, como pretende Datena no
telejornal BU. Paradoxalmente, com freqüência, são exatamente os que tentam impedir a
violência que permitem seu triunfo. Há momentos em que o remédio é eficaz, seja a
intransigência, seja o engajamento. Em outros, pelo contrário, todos eles são inúteis, só

138
aumentando o mal que acreditam combater. Em diversos momentos, o BU aposta na
contenção da violência incitando a violência.
DT.: Ah! Levou um tiro na “bunda” o bandido é...levou um tiro na “bunda”... aliás bandido
tinha que apanhar na “bunda”, não é só levar tiro na “bunda” não, tinha que apanhá, não é
verdade! (E1, R1.17; 18).

O próprio apresentador se altera e grita com os colegas, descarregando a sua raiva.


Dá prá falar mais baixo aí um pouquinho? Se não, não dá prá fazer programa aqui
também...Reclamam que eu grito aqui... e gritam aqui do lado também. Aí não dá prá fazer
programa (houve silêncio total na sala) (E1, R1.20).

Neste ponto as investigações de Girard encontram apoio. Chega um momento no qual


só é possível opor-se à violência com uma outra violência; neste caso pouco importa ter
sucesso ou fracassar, pois é sempre ela que ganha. A violência tem extraordinários efeitos
“miméticos”, tanto diretos e positivos, quantos indiretos e negativos. Quanto mais o ser
humano tenta controlá-la, mais lhe fornece alimento. A violência transforma em meios de
ação todos os obstáculos que se acredita colocar contra ela. Como afirma Girard,
“assemelha-se a uma chama que devora tudo o que se possa lançar contra ela para abafá-la”
(1998:45).

Mesmo tratando de assuntos sérios e de grande importância, Datena mostra, às vezes,


uma postura de gozação e cinismo para com o alvo de suas críticas. Tal postura fica
evidente quando o apresentador solta uma gargalhada forçada ou faz uso da linguagem de
baixo nível, cínica e cômica. Essa postura de deboche aparece, por exemplo, na matéria
sobre o estuprador (E1) quando o apresentador dialoga com o delegado:
DT.: (...) Ele tava fora da cadeia há quanto tempo heim Dr.?
Dr.: Há 4 meses ele estava em liberdade condicional...
DT.: Há..há há ...ha...ha...haaaa....(risos de deboche) (...) Tá agora na cadeia de novo será
que agora alguém vai dar indulto de Natal para ele ver o Papai Noel? Ou será que vão
libertá-lo na Páscoa pra ele vê o coelhinho da Páscoa, ele vai estuprá o coelho da Páscoa
tamém (...) (E1,R1.28).

Tal posicionamento, acaba de forma cômica incitando à violência:


DT.: (...) o sujeito merece apanhá muito.. não é.... devia apanhá muito dos pais, não é....
com um gato morto até o gato mia..(risos) ... é que nem diz o outro.. tem gente que merece
apanhar com um gato morto até o gato mia, outro dia um sujeito me falô (...) (E1, 1.18).

139
De certa forma o apresentador quer mostrar para o telespectador que os criminosos e
infratores que causam tanto medo são ridicularizados, sem dignidade, não merecem o
respeito, algo cômico. O receptor por sua vez assimila o tom de gozação que ameniza a
história dramática relatada. Por vezes, as cenas apresentadas são tão chocantes que se
tornam brincadeiras, viram gozação.

Ao comentar a matéria exibida no dia 29 junho de 2004 sobre a crise do INSS,


Datena força uma gargalhada. Algo cômico com uma dose de cinismo e protesto. O motivo
é a notícia de que após vinte e seis dias do fim da greve dos servidores mesmo com as
enormes filas, a previsão é de que a situação se normalize dentro de um mês.
Vinte e seis dias depois do fim da greve dos servidores os segurados ainda esperam horas
nas filas para receber atendimento. A expectativa é que a situação seja normalizada até o fim
de julho...hahahahahahaaaa!!!! (gargalhada cínica)
Há ..háhá háhá há haaaaaa!!! (mais forte) O que que ééé??? Há há haá hahahaaa!
hehahahaha...Deixa eu ver na tela. (reportagem na tela) (E3, R3.1).

Depois de se explicar pelo motivo do riso forçado Datena aproveita para reforçar a
sua crítica ao INSS:
Olha, isso é uma calamidade uma verdadeira porcaria, uma vergonha o que se fala de
melhorar esse INSS. Por isso que eu morri de rir, que me deu gargalhada é lógico que foi
uma gargalhada forçada, mas nem precisava ser, porque é uma vergonha esse INSS. Essas
filas são vergonhosas... muda governo sai governo e...(...) Esse INSS é uma piada, (música)
é uma piada, isso aí é um organismo de humilhar velhos, de humilhar aposentados! (E3,
R3.3).

Não faltam as discussões com a produção bem como a busca de apoio nos auxiliares
que trabalham nos bastidores para reforçar o discurso. Falando sobre a crise no INSS,
Datena dialoga com os auxiliares sobre o salário de aposentado que eles recebem:
DT.: (...) Quanto você ganha de salário, aposentado que é, Chico Boca? (...).
Chico Boca: R$ 650,00
DT.: R$ 650,00! Trabalhou quantos anos, vem cá Chico?
Chico Boca: Trinta e cinco anos.
DT.: Trinta e cinco anos prá ganhá o que? R$ 650,00! Trabalhou a vida inteira o coitado do
Chico Boca. Você entendeu? O pai do Póllo ganha R$ 350,00 (...) (E3, R3.4).

Esse lado cômico de certa forma faz parte do estilo do programa, que usa o cômico, o
grotesco, a teledramaturgia e o humor circense para se solidarizar com o público.

140
De tudo visto até o presente fica claro uma constante: a forma e o estilo do BU
revelam, em cada reportagem e comentário de Datena, elementos da sociedade do
espetáculo contemporânea. O recurso da repetição da imagem e assuntos espetaculares é
adotado para chamar ou manter a atenção do telespectador. Na visão de Debord, a
sociedade baseada na indústria moderna é fundamentalmente “espetaculoísta” (1997: #14).
Ou seja: o “espetáculo” não é um “suplemento” ou “uma decoração” do mundo real, mas o
“modelo de vida” dominante na sociedade:
Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a atividade social efetiva:
esse desdobramento também é desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente
um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela
contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma
positiva. A realidade objetiva está presente dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção
só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o
espetáculo é real. Essa alienação é a essência e a base da sociedade existente (Ibid.: #8).

A realidade do espetáculo passou a ser a chave única para se entender a vida. É ela
que diz o que é bem e mal, bandido e mocinho. Tudo vai passar pelo espetáculo, e,
especialmente, pela televisão. Portanto, não apenas, nem principalmente, as “massas
operárias”, mas também o “homem médio e até a elite”, uma multidão de espectadores
predisposta a preferir “emoções baratas”, “lixo sensacionalista”, “apelos sensuais” e
“estímulos visuais” à criação artística, à leitura séria e à atuação política reflexiva e
responsável. Conforme pondera Gabler ao analisar a sociedade americana, inspiração para
o resto do mundo.
No momento em que a cultura se submete à tirania do entretenimento e a vida se torna um
filme, os críticos reclamam que os Estados Unidos retrocederam a uma “cultura
carnavalesca”, ou “cultura do lixo”, onde tudo é embrutecido, vulgarizado e banalizado,
onde o que é espalhafatoso e espúrio tem mais chance de ser recompensado do que o
verdadeiramente meritório e onde os laços comunitários antes forjados por tradições e
valores morais comuns são hoje forjados pelas manchetes dos tablóides, por mexericos e
pela mídia (2000:16).

Com isso podemos entender a linha de pensamento do já familiar argumento de


defesa dos donos de empresas jornalísticas, produtores de programas sensacionalistas e
reality shows, toda vez que se questiona a qualidade dos programas: “é isso que o público
deseja”.

Observamos que a cultura do espetáculo utiliza a informação-mercadoria e a imagem-


mercadoria para responder a mais um imperativo da cultura de massas: a procura contínua

141
pelo entretenimento, considerado diversão e reduzido a tempo de consumo. Consolida-se
aos poucos uma sociedade de voyeurs, instalando o espetáculo em todas as instâncias
comunicativas.

O fim da fronteira entre informação e entretenimento está obrigando o telejornalismo


a se adaptar ao ritmo e características das mensagens publicitárias. As notícias são
apresentadas por belas mulheres, ou por “âncoras” que funcionam como showmen. A
aparência, a linguagem, a articulação, o estilo do discurso, a tonalidade da voz, devem ser
percebidos pelo espectador como parte de um mundo espetacular. Nesse sentido, os
políticos e os “âncoras” se parecem muito: eles aparecem como um produto entre outros,
são avaliados com critérios que se aproximam bastante dos vigentes na sociedade de
consumo. É o mundo do comércio e da publicidade servindo de parâmetro referencial para
a produção televisiva.

3. 6 Contradições evidentes

Na análise das matérias observamos uma tendência para aumentar ou inflar os


números e o tempo de espera por atendimento ou no caso de infratores, no tempo de
reclusão, o que só dá mais importância à notícia. Um outro aspecto que chama a atenção
são as informações contraditórias passadas pelos diversos personagens envolvidos nas
reportagens. Com isso, as informações veiculadas carecem de precisão e veracidade.

Por exemplo, na reportagem sobre “o estuprador que depilava” (E1), segundo Datena,
Frederico Adriano teria passado 13 anos na prisão antes de sair e cometer os estupros (E1,
R1.1); o delegado entrevistado diz que foram 9 anos (E1, R1.28); já o repórter Lúcio
Tabarelli afirma que segundo a polícia teriam sido 11 anos (E1, R1.35; R.1.12). Essa falta
de precisão deixa o telespectador confuso e sem saber em qual versão acreditar.

Na reportagem (E2, R1) “Vítima de atropelamento morre no centro de São Paulo”, é


visível a tendência em aumentar o tempo que o corpo jogado na calçada fica à espera da
perícia. O repórter Edie Póllo começa anunciando que o acidente teria ocorrido “por volta

142
das 3:30hs da tarde (E2, R1.2). Momentos depois o mesmo repórter afirma que o corpo está
lá desde às 3:00hs (E2, R1.3). O primeiro cidadão entrevistado diz que é desde às 2:45hs
(E2, R1.5), informação que passa a ser adotada pelo repórter. Mais tarde, porém, Datena
arredonda para às 2:00hs da tarde (E2, R1.8) e o mesmo repórter, Edie Póllo, passa a adotar
a versão de Datena, dizendo que o corpo está exposto desde às 2:00hs (E2, R1.8). O
repórter que teria o trabalho de levantar e averiguar as informações, muda 3 vezes de versão
sem se preocupar em checar os dados (temos a sua versão inicial, a do entrevistado e a de
Datena). A diferença entre as três versões é de 1:30hs, o que aumenta consideravelmente o
tempo de espera, reforçando a idéia de que a perícia é mesmo muito lenta para chegar ao
local.

O apresentador segue anunciando que o corpo está lá “jogado no meio do asfalto


desde às 2:00hs” (E2, R1.9; R1.10) (repete outras 4 vezes). Mais adiante muda para às
2:40hs (E2, R1.11) e depois volta a dizer que teria sido desde às 2:00hs. Um quinto cidadão
entrevistado diz que o corpo estaria lá desde às 3:00hs e o repórter volta a afirmar que seria
“desde às 2:30hs”. Por fim, Datena continua: “teve um atropelamento às 2:00hs da tarde e
até agora há pouco não tinha aparecido a perícia lá” (E2, R1.16).

O telespectador fica se perguntado a que horas mesmo aconteceu o atropelamento e


quanto tempo depois a perícia chegou ao local? O que pode parecer apenas um detalhe
revela a falta de precisão na divulgação dos fatos e a facilidade com que o programa muda
as informações sem verificar os dados. Isso, de certa forma, afeta a veracidade e a seriedade
com que as matérias são feitas, uma característica do gênero sensacionalista.

Na matéria sobre a mãe que perdeu a bebê em Santo André (E3, R4.1), o repórter
informa que ela teria esperado por 8 horas para ser atendida. As informações fornecidas
pelo mesmo repórter que entrevistou a mãe dão conta de que ela esperou das 15:40 até às
21:30; um pouco mais de 6 horas, que já é um tempo absurdo. Ao aumentar o tempo de 6
para 8 horas o repórter cria mais drama.

143
Observamos também que as informações divulgadas e as imagens que acompanham a
matéria são contraditórias em outro aspecto. Durante o programa inteiro Datena anuncia:
“Tem um corpo jogado no meio do asfalto” (E2, R1.7) (entende-se no meio da rua) mas,
enquanto ele fala, as imagens mostram o corpo sobre a calçada. São todas imprecisões que
passam despercebidas pelo telespectador, mas, que no final influenciam na visão criada
sobre a realidade.

A principal matéria do programa exibido no dia 09 junho de 2003 (E1, R1) destaca o
fato de o estuprador exigir que suas vítimas se depilassem antes que ele as estuprasse. Esse
fato é considerado relevante, mesmo porque aparece na manchete “Preso o estuprador que
obrigava vítimas a se depilar”. Depilação é um capricho do estuprador e está relacionado à
uma intimidade das mulheres. Na matéria, as três vítimas entrevistadas e que reconheceram
o estuprador, indagadas sobre o detalhe da depilação, todas afirmaram que isso não havia
ocorrido com elas. Da forma como o fato foi apresentado, depilar seria uma das marcas do
estuprador que pedia isso para todas as vítimas. Mas, as entrevistas com as vítimas e com o
acusado atestam o contrário:
LT.: “Depois disso em algum momento ele obrigou você a se depilá alguma coisa do
gênero?”
Moça: “Nada... só pediu prá mim tomá banho... só... ficou me olhando...ainda. Tinha um
box e ele ficou me olhando pelo box” (E1, R1.9).

Entrevista com o estuprador:


FIG.: Você, você depilou uma das vítimas?
FA: Não...
FIG.: Você não depilou nenhuma Frederico? Por que, por que que você fez isso com essas
três mulheres? Você é inocente? Você sabe que você foi reconhecido por três. O que você
tem a falar? (E1, R1.2)
Fica a dúvida: esse capricho do estuprador teria ocorrido com outras vítimas não
contatada pela reportagem ou o fato foi inventado pelo telejornal para criar mais
espetáculo?

Na matéria sobre o atropelamento no centro de São Paulo (E2, R1), Datena informa
que o corpo do cidadão é o de um “pai de família morto hoje às 2:00hs da tarde e até agora,
até agora o homem exposto aí” (E2, R1.8).

144
Anunciar que a vítima seria um pai de família causa mais impacto. Pai tem filhos para
criar, esposa, responsabilidades e agora está alí jogado. Não se sabe como ele obteve essa
informação. A única informação vaga do repórter é de que o corpo seria o de “um rapaz
aparentando entre 34 e 35 anos” (E2, R1.1). Testemunhas dizem que ele seria um vendedor
ambulante, grupo bastante visado pela fiscalização da Prefeitura. Seria mesmo um pai de
família, um jovem, um homem qualquer? Detalhes sobre a identidade da vítima parecem
não interessar muito. Dá muito mais espetáculo mostrar o corpo jogado na calçada e
pressionar para que a perícia e o IML apareçam no local. Evidentemente, o resgate do
corpo não pode ser feito tão depressa, pois isso acabaria com a expectativa criada.

Mais interessante ainda é notar a preocupação por parte do repórter e do próprio


apresentador com relação ao choque causado nas pessoas que passavam pelo local e
paravam para ver o corpo. Vejamos a reportagem:
EP.: A, Datena, a gente fica realmente bastante chocado com essa situação, (...) olha o
trânsito, as pessoas vão passando, isso aqui que é uma coisa de louco, ó.. olha só Datena, as
pessoas vão passando aqui e vão olhando aqui, parece que tem um corpo em exposição.
Realmente é chocante (...) (E2, R1.8).

Enquanto isso, imagens do corpo jogado na calçada eram mostradas com destaque na
tela, também para aqueles que não passavam pelo local, até mesmo para crianças que
assistem em suas casas por toda a cidade. Isso não é considerado chocante.
DT.: Veja aí, a quantidade de pessoas que passa aí, gente com seus filhos, não é verdade,
com crianças dentro do carro, olha lá, o rapaz morto ali e tal, nós somos obrigados a ver
isso? Onde é que vocês estão, heim ? (E2, R1.9).

Datena se justifica informando que está mostrando porque é uma cena “deprimente”.
(...) Estamos mostrando (o corpo) porque é uma cena deprimente, não é! O...o brasileiro não
é respeitado nem na hora da morte. Isso aí é um tapa na cara da sociedade, isso é uma
brincadeira (...) (E2, R1,7).

Outra contradição é despertar a curiosidade e, ao mesmo tempo, estranhar que as


pessoas sejam tão curiosas. “Não sei por que o povo gosta de ver acidente. Não ajuda em
nada”. O acidente que atraiu tantos curiosos, no real, agora gravado e outra vez
transformado em acontecimento “ao vivo”, ajuda a aumentar a audiência atraindo os
curiosos para a TV. Isso está em sintonia com a situação criada pelo programa que se

145
propõe a combater a violência e ao mesmo tempo exalta a mesma violência que deseja
combater.

Os crimes e descrições detalhadas de acidentes mostrados pelo BU tornam o


jornalismo mais espetacular que qualquer outro espetáculo da TV, mas ao mesmo tempo,
menos jornalístico do ponto de vista do que realmente pode interessar à sociedade.

É chocante o fato das pessoas serem obrigadas a ver um corpo em exposição. Por
isso, segundo o repórter, elas não deveriam assistir as imagens e o telejornal não deveria
mostrar o corpo da vítima. Por outro lado, Datena convida os telespectadores a assistir a
cena porque é algo “deprimente”. Segundo o programa, é lamentável o que as pessoas ao
passarem pelo local estão vendo. Temos um convite para assistir e uma certa censura
(proibição) ao mesmo tempo. Isso, de certo modo, nos remete ao conceito do double bind
desenvolvido por Girard. Imitem-me e não me imitem. Vejam e não vejam... Datena acha
que o BU tem a obrigação de mostrar o corpo em destaque na tela para todos verem em
suas casas, inclusive crianças, que assistem à televisão naquele horário, porque é uma cena
“deprimente” e ao mesmo tempo, lamenta que os telespectadores tenham que ver tal cena.
Parece haver um esforço para atribuir às autoridades toda a culpa pela situação criada
inclusive pelo programa ter que mostrar aquele corpo jogado.
DT.: “Vamos ficar com a câmera aberta aí mostrando o pessoal vendo esse corpo aí, perto
da Praça da Sé para ver quanto tempo aparece alguma autoridade aí, alguma toridade aí pra
resolvê, como diz o meu amigo, cadê a “toridade”? Cadê a “toridade”, coisa vergonhosa,(...)
Eu vou te chama (o repórter) a cada 5 minutos prá vê se alguém foi dá satisfação à
população (...)” (E2, R1.9).
(...) Olha aqui, vou fazer o seguinte, eu quero essa imagem colocada aqui do meu lado
(grita). Ali no meu lado da tela em wipe, colocada na janela alí. Essa imagem é um tapa na
cara da sociedade, e que e.. é.. demonstra o descaso que as autoridades dessa cidade tem
para conosco, prá com o cidadão, prá com o cidadão paulistano, o cidadão brasileiro, um
sujeito atropelado às 2:00hs da tarde, morreu, e tá lá exposto, até agora. Bota aqui em wipe,
deixa essa imagem direta aqui, que eu quero vê, à.. à.. que hora vai aparecer alguém aí.
(grita) Tá do meu lado, ó aqui, a imagem vai ficar aqui do lado (...). Isso pra vocês que não
fazem nada pela cidade e ainda assim quando não tratam um cidadão brasileiro enquanto ele
está vivo, morto então fica aí, vai ficar aí, vai ficar aí que eu quero saber (...) quando aparece
alguém. (...) (E2, R1.10).

O programa termina e o telespectador fica sem saber quando o carro do IML foi ao
local para levar o corpo da vítima. A principal reivindicação do telejornal, que passou o
tempo todo exigindo que o corpo fosse recolhido o mais rápido possível, aos olhos do

146
telespectador, não foi atendida. Estaria ainda o corpo jogado na calçada? O telespectador
imagina que o IML tenha ido lá e realizado o seu trabalho. Criou-se uma expectativa que
não foi documentada, em outras palavras não aconteceu, deixando a sensação de
insatisfação no ar.

O telejornal faz uma distinção entre a violência real e a violência exibida nos
programas. Enquanto aquela é considerada impura, ilícita, repudiada e combatida, porque
choca as pessoas, a violência mostrada na tela para um número infinitamente maior de
pessoas de todas as idades e em toda a cidade, é permitida. Os problemas reais, uma vez
captados pelas câmeras se tornam virtuais para voltarem a ser apresentados na televisão
como se fossem reais e ao vivo, mas já em forma de espetáculo. Os fatos acontecem hoje
enquanto são vistos no telejornal, desaparecendo assim que terminar o programa para voltar
a aparecer no dia seguinte quando o espetáculo continua.

Ao reduzir a temática da violência às emoções dramáticas do crime urbano, o


jornalismo deixa-se tolher por uma visão superficial. Os estudos, os debates e os
acontecimentos produzidos por pessoas e instituições que combatem a violência são
completamente ignorados pelos editores, pauteiros, apresentadores e repórteres dos
telejornais sensacionalistas. A preferência é tratar os problemas reais da sociedade em
forma de espetáculo que está mais para o entretenimento não permitindo uma reflexão séria
em busca de soluções. Estes, longe de encontrar soluções objetivas, fazem da violência
mais um produto de consumo vendido juntamente com os produtos oferecidos pelos
patrocinadores do telejornal.

3. 7 Violência e emoção em doses exageradas

Outra característica visível é a divulgação e exploração, em tom sensacionalista, de


matérias que emocionam ou escandalizam. O programa em questão não vive somente do
noticiário policial. Existem também as reportagens que privilegiam o chamado lado
humano do cotidiano.

147
Ao mesmo tempo que nos mantém sob tensão imóveis diante da tela, esperando o
desfecho da ação, vamos substituindo a razão pela emoção. São imagens atraentes, que
prendem nossa atenção porque nos sensibilizam. Ocorre o que Marcondes Filho chama de
mimetismo: “se a TV consegue fazer com que eu me fixe a ela, se ela me prender e eu
sentir ligação, emoção, envolvimento, eu me sentirei, então, como se estivesse lá” (2000:
86). Ao sentir que participou do acontecimento, talvez até chegar às lágrimas, então, aquele
acontecimento terá se tornado real, porque você o vivenciou. Como considera Eugênio
Bucci,
quando o jornalismo emociona mais do que informa, embora seja legítimo que as narrativas
de TV comportem a emoção e despertem sentimentos, tem-se aí um problema ético, que é a
negação da sua função de promover o debate das idéias no espaço público (2002: 144-
145).

A matéria sobre a mãe que perdeu a bebê por falta de atendimento médico em Santo
André, (E3, R4) vem carregada de emoção. Existe situação mais triste do que ver uma mãe
desolada com a perda da filha, chorando diante das câmeras? A emoção aumenta com as
palavras de Datena:
(...) Quem vai devolver a vida da filha dela? Quem vai devolver, quem vai? Quem vai
devolver... Quem vai enxugar as lágrimas dela? Quem é que vai enxugar as lágrimas dela?
(na tela aparece a senhora enxugando as lágrimas) (E3, R4.9).

Na televisão, a edição de um telejornal sensacionalista não pode ser a mesma de um


telejornal tido como sério. O repórter tem que provocar emoção. A edição não pode cortar a
imagem da mãe que chora desesperada a morte de sua filha. É preciso ouvi-la para que
conte em detalhes como aconteceu. Explorar a emoção tem como finalidade prender a
atenção do telespectador. Na mesma entrevista, o repórter vai conduzindo a mãe que
responde exatamente o que ele quer. A pergunta já contém a resposta, ela somente confirma
o que o repórter vai dizendo.
FIG.: E que hora que o parto foi feito?
Solange (SL): (mãe) : Foi depois das 21:30hs
FIG.: Quando nasceu a criança...
SL.: Quando nasceu a criança (música de fundo, choro da mãe).
FIG.: Nasceu morta...
SL.: Nasceu morta...
FIG.: A senhora agora quer justiça...
SL.: Quero justiça porque eu sei que não vou trazer a menina de volta Datena, mas outas
mães, outras crianças não vir cair nas mãos desses assassinos prá mim são uns assassinos
(...)
FIG.: Isso faz dez dias?

148
SL.: Faz dez dias...(...)
FIG.: A senhora fez um parto de cesariana e ainda está com os pontos?
SL.: Ainda estou com os pontos...é.. .(E3, R4.6).

Datena intervém para dar seguimento às perguntas e intensificar a emoção. Ele ajuda
a mãe a dizer aquilo que vai produzir mais emoção. A senhora sente em Datena uma
segurança, alguém que a ampara e escuta. Datena fala das injustiças que cometeram à uma
mãe incluindo, com isso, todas as mães que viveram uma situação parecida. Ele mostra
muita empatia e consegue expressar o que a mãe está sentindo mexendo ainda mais com a
sua emoção e ela confirma: “é verdade Datena”. Aproveitando do fato Datena incentiva o
telespectador a participar do “Pisque Band”.
DT.: Me ajuda aí. Acorda politicada! Quantos pais e mães nós ainda vamos ver chorando a
morte de seus filhos? Corredores da morte nesses hospitais, falta de leitos, falta de vergonha
na cara, falta de médicos, tudo isso representa o protesto do Pisque Band (E3, R1.6). (...)
É por causa dessas histórias que o pessoal está piscando uma barbaridade aí no ar...pode
botá..deixa ela falando.. por favor..
SL.: Datena, e depois ele ainda me ofereceu uma adoção, falou assim que eu tinha jeito de
ser um mãe muito carinhosa que ia providenciar uma adoção prá mim.. Aí eu falei que eu
queria a minha (choro).
DT.: A sua ninguém vai dar ...
SL.: É verdade...(em prantos)
DT.: Por que que não deram a vida da sua filha, não é?
SL.: É...verdade Datena (a mãe soluça), depois aí perguntou se eu queria vê minha filha. Aí
eu falei que eu queria ver, e eu.. não agüentei.. aí eu peguei e fiquei abraçando e beijando
ela no braço... (choro) (E3, 4.7).

O momento de maior emoção e indignação é reforçado por mais um daqueles


discursos, cobrando das autoridades e instituições de saúde melhor qualidade no
atendimento. Enquanto a mãe, em estado de choque pela perda da bebê fala, derretendo-se
em lágrimas, o programa mostra imagens das casas piscando as luzes. Datena:
Por histórias como a sua que São Paulo pisca em protesto. Não tira a imagem... que São
Paulo pisca em protesto contra a saúde pública, sabe. São Paulo inteira pisca em protesto
contra a saúde pública, (...) (E3, R4.9).

No final fica a impressão de que esse não foi um simples protesto contra a péssima
qualidade da saúde pública, mas uma rejeição total à saúde pública em geral. Em tempos de
privatizações isso só vem reforçar a campanha pelos serviços de saúde privatizados.

Pela utilização do tom escandaloso e chocante na produção de noticiário que


extrapola o real, adquirindo um certo grau de ficção, o BU sensacionaliza aquilo que não é

149
necessariamente sensacional, conforme descrito no primeiro capítulo do nosso estudo.
Conforme o nosso referencial teórico, a espetacularização da notícia e a proximidade com a
ficção têm sido temas freqüentes da pesquisa científica no campo da televisão e do
telejornalismo. Ignácio Ramonet, por exemplo, fala na hiper-emoção, figura característica
da superinformação que a televisão produz e mostra como “o telejornal em seu fascínio
pelo espetáculo do evento, desconceitualizou a informação”, transformando tudo em
espetáculo (1999:22). O autor assim explica o papel da emoção no processo de informação:
“Se a emoção que vocês sentem ao ver o telejornal é verdadeira, a informação é verdadeira”
(Ibid.:22).

No estudo dos telejornais sensacionalistas as manchetes merecem uma atenção


especial por constituírem-se no principal elemento da produção do discurso. Observamos
um grande investimento na chamada, justamente porque ela é responsável pelo interesse
(consumo) no telejornal e pelo primeiro contato com o telespectador. A expectativa em
torno das promessas de revelação da manchete é maior do que aquilo que o
desenvolvimento da matéria oferece. Dessa forma, elas inicialmente trazem muita surpresa,
o que depois pode se transformar em frustração.
“Preso estuprador que obrigava vítimas a se depilar” (E1, R1).
“Pit boy mata rapaz com sete tiros à queima-roupa” (E2, R2).
“Mulher perde bebê durante o trabalho de parto” (E3, R4).

A sensacionalização dos fatos sociais, a personificação dos acontecimentos históricos


e a redução do real ao factual, que determinam os aspectos da exploração da emoção e do
interesse da audiência, decorrem da utilização de chamadas que exploram o inusitado e
causam uma imediata curiosidade, uma vez que agrupam idéias, personagens e contextos de
forma espetacular.

A televisão tem uma grande capacidade de criar mundos “reais”, ou seja, mundos aos
quais o olhar empresta uma realidade, que é vivida no íntimo dos telespectadores. A
identidade do telespectador com as personagens mostradas nas reportagens ocorre por um
processo de “enquadramento” da vida num episódio permitido e tolerado. O processo de
identificação permite viver certas emoções sem correr riscos, no isolamento de sua casa, em
estado de segurança.

150
Um outro aspecto observado é a ligação que o programa faz entre fatos que
ocorreram em situações completamente distintas. No segundo programa analisado, (E2 de
31 março 2004) o telejornal passa de uma cena para outra como se elas estivessem
intimamente ligadas entre si. A reportagem sobre o atropelamento foi desenvolvida ligada à
uma outra matéria sobre uma briga entre “pit boys”. O telejornal mostra o corpo do homem
atropelado jogado na calçada da Avenida Senador Queiroz, em São Paulo e imediatamente
mostra o “pit boy” disparando a um metro de distância do rapaz que cai da moto e tenta se
defender com as mãos. A cena se repete por várias vezes com a narração detalhada de
Datena: (...) “levando tiros no rosto aí, levou um, dois, três...” (E2, R2.1).

A vítima, atingida pelos disparos, tenta se proteger atrás de sua moto e acaba
estendida no chão, à semelhança do homem atropelado, que teve o corpo jogado “no meio
do asfalto” (R2, 1.1). A cena é de violência extrema: um assassinato cruel ao vivo mostrado
repetidas vezes. A violência, que outrora era algo a ser ocultado para ressaltar o desejo de
se ter harmonia na sociedade, parece ter deixado de ser um tabu. A sociedade já não tem
vergonha de mostrar-se cruel. Depois de observar que a cena é chocante, Datena narra o ato
mais uma vez como se estivesse narrando um jogo de futebol:
(...) você vai vê ai de novo (repete a cena dos disparos) tentou pegar a arma do outro, botou
a mão na arma porque sabia que ia morrer. Levou um tiro à queima-roupa, outro, outro,
outro, tentou se arrastar prá fugi e...(...) (E2, R2.2).

A cena do crime cometido pelo “pit boy” disparando sete tiros à queima-roupa contra
um rapaz, ainda que fatal, ao repetir-se indefinidamente num mesmo canal em várias
emissoras, apreende a atenção do telespectador no limite de ser visto não mais como
acontecimento trágico, e sim na condição de entretenimento, uma cena de filme. Ao exibir
a violência através da mídia, ela sofre um tratamento estético, produzindo, ao mesmo
tempo, um efeito amenizador no impacto da cena.

Por outro lado, a exposição chocante de fatos, acontecimentos e idéias nos telejornais
sensacionalistas, visando emocionar para além dos graus normais, contribui para tornar a
violência irreal e banalizada. As imagens da violência, dado o grau de recorrência,

151
contribuem para torná-la normal e integrada ao cotidiano do telespectador. A violência
retratada pelos telejornais sensacionalistas vê-se potencializada em relação à violência
vivida na realidade e essas distorções amenizam as violências efetivas, quando em
confronto com as que nos são mostradas.

O acúmulo de experiências visuais, sensitivas e emocionais na velocidade da


informação, levam a uma perda da sensibilidade, passando-se a considerar a barbárie e o
terror como normais. As informações, mensagens, sons, ruídos e sensações são rapidamente
presentificados e substituídos instantaneamente, num encadeamento que anuncia no
momento o que é novo para, num segundo instante, relegarem-no ao esquecimento. A
compulsão pela novidade informativa e a exploração da curiosidade, do grotesco,
compromete a sensibilidade de tal forma que, de modo crescente e cumulativo, o receptor
deixa de ser capaz de se sensibilizar quanto ao trágico, à miséria, à dor. A repetição
contínua da violência amortiza a indignação e age no sentido de sua banalização.

O espetáculo não se define pelos conteúdos senão pela sua “eficácia visual”.
Conforme Marcondes Filho argumenta, “na televisão tudo é só espetáculo” (1988:41). Para
se entender televisão é preciso se fixar na magia do show. “O espetáculo é a linguagem da
televisão (...) e é segundo a lógica do espetáculo que tudo nela é transmitido” (Ibid.:41). A
lógica do espetáculo de certa forma tudo neutraliza e não permite que o conteúdo, discurso
ou tema nos atinja.

A condição definidora do fato noticioso, portanto, é a exploração do inusitado e


pretende destacar, na seleção dos assuntos, aspectos mais espetaculares, sensacionais. A
busca permanente da anormalidade, passa a ser uma tendência natural no meio jornalístico.
Para superar a concorrência e provocar interesse no telespectador, o que importa é a
sensacionalização dos fatos sociais.

Conforme demonstra Debord, no espetáculo, na sociedade capitalista moderna, o


indivíduo não vive em sua própria vida as suas emoções, frustrações, alegria e entusiasmo.
Ao contrário promovem-se experiências mentais, imaginárias, abstratas. Vive-se as

152
emoções dos outros, através das imagens. Na televisão assiste-se as emoções em vez de
vivê-las. É uma vivência abstrata, mental. O esgotamento do fato pelo excesso de
redundância é uma característica da indústria cultural, particularmente do meio televisivo,
em virtude da evidência da exposição da imagem.

O BU parece acreditar que mostrando a violência e o crime, chocando a população,


ajuda a reduzir a criminalidade, ou obriga os poderes constituídos a tomar medidas mais
enérgicas. Quando criticados, produtores desse gênero de telejornal justificam-se,
afirmando que a violência e a morte fazem parte do cotidiano; o telejornal não incentiva a
violência, mas mostra o cotidiano: ajuda as pessoas a ficarem mais precavidas e atentas. O
discurso de ordem nos telejornais sensacionalistas é a repetição de que a vida é perigosa e
violenta. Ao repetir o mesmo enunciado em cada edição do programa, realiza o culto à
grandeza da violência na sociedade e ao mesmo tempo ao poder justiceiro do jornalismo.

Diante da carga de violência, talvez para aliviar o telespectador, Datena xinga os


criminosos enquanto são entrevistados. Por exemplo:
Olha a frieza do cara. (entrevista com o “pit boy”) Depois de uma cena como essa aí. A
cena é de chocá, cá entre nós...a cena é de chocá. Você viu a frieza do cara falando. O
menino ainda tentou pegar a arma do outro, você vai vê ai de novo (repete a cena dos
disparos) tentou pegar a arma do outro, botou a mão na arma porque sabia que ia morrer (...)
olha a maldade (...) vagabundo não é, crápula, não é (E2, R2.2).

A morte relatada pelo telejornal sensacionalista é diferente da morte comum, essa que
envolve sofrimento, saudades, choque, traumatismo, dor, angústia, separação. Na morte
mostrada pelo telejornal a sensação é perturbadora porque a imagem do cadáver é chocante,
mas ao mesmo tempo atua no sentido inverso: “mata” o outro e preserva o telespectador. A
morte não só é “saboreada como espetáculo”, mas aparece como ato simbólico que garante
a integridade do observador. Temos, no telejornal sensacionalista, várias mortes: a morte
“punitiva”, cômica, pitoresca, sádica, casual...

A conexão de fatos distintos como se estivessem relacionados entre si, ajuda a dar
mais visibilidade às matérias. Por exemplo, a primeira reportagem observada (E1) Datena

153
compara o estuprador com o traficante Elias Maluco que assassinou Tim Lopes, repórter da
Rede Globo, no Rio. E, imediatamente usa o fato, para exigir leis mais duras:
(...) E tem gente que é contra o endurecimento de algumas leis! Coloque um vagabundo
desse aí na rua é como o caso daquele Elias Maluco, estava em liberdade condicional por
bom comportamento, bom comportamento e aí matou o Tim Lopes e outros tantos casos (...)
(E1, R1.27).

Em outra matéria analisada (E3, R2), Datena associa um incêndio numa fábrica de
sofás em Guarulhos, com os incêndios nas favelas. No embalo, cobra do governo uma
política habitacional.
(...) O que que eu posso fazê se o país não tem política habitacional (gritos). O que que eu
posso fazê se as autoridades, os nossos políticos até hoje não conseguiram dá uma política
habitacional decente ao brasileiro? Não tem casa prá morar meu! (berros gesticulando com
as duas mãos). Há quanto tempo já se ouve fala? Há quantos governos já se ouve falar?
Agora vai melhorar... vamos dar uma casa prá você...Isso é um papo furado! (exclama)..
Essas políticas habitacionais dos governos até agora foram uma verdadeira porcaria, uma
catástrofe, ou eu tô errado gente Band? Tô errado no que eu tô falando? Uma catástrofe!
Quantas pessoas são obrigadas a morar debaixo da ponte porque não têm onde morar. (...).
Cadê a política habitacional dos governos? Presidente Lula, o senhor que vem da camada de
trabalhadores, de pobres, da maioria desse país vamos atentar prá falta de moradia! (E3,
R2.3).

Os recursos tecnológicos e a utilização da ficcionalidade permitem reproduzir, ao


mesmo tempo, vários acontecimentos localizados em lugares diferentes que acabam
interligados na produção do programa, mesmo que não tenham nenhuma relação entre si.

3. 8 Repetição e riqueza de detalhes

Outra característica do gênero sensacionalista é descrever os crimes com riqueza de


detalhes, além da constante repetição do fato, imagens, entrevistas e comentários. O
telejornal não se limita a informar que em tal lugar, Fulano de Tal matou Beltrana depois de
estuprá-la. É preciso entrevistar o assassino para que ele descreva detalhadamente como foi
o crime, quantas facadas deu na garota, se está arrependido... Quando o repórter ou o
apresentador estiver entrevistando, por exemplo, um estuprador, não pode optar pela
objetividade e distanciamento. Ele deve ser agressivo com o transgressor, usando o
microfone, as perguntas e as imagens como um chicote. Podemos perceber isso na
entrevista com Frederico Adriano (E1, R1.2ss). O telejornal divulga com detalhes cada fato
referente às investigações da polícia, além de reverberar com exagero declarações de

154
qualquer personalidade, delegado, policial, vítimas ou quem quer que esteja ligado ao fato.
No telejornal em estudo, isso vem seguido pela repetição da vinheta “Exclusivo” e do
logotipo “Brasil Urgente”.

Observa-se que no programa BU, todos os elementos, helicópteros, motorlinks, carros


de polícia, sons, imagens, câmeras, presença do apresentador e repórteres etc., convergem
para indicializar aquilo do que se fala. De modo geral, o repórter medeia o conhecimento
do fato. Na maioria das cenas o repórter e o apresentador marcam a sua presença e pontuam
aquilo que se vê. Esta maneira de mostrar os acontecimentos segue a mesma forma no
decorrer dos programas, o que nos faz dizer que este telenoticiário é repetitivo. Quando se
assiste a uma edição, é como se tivesse visto todas. Entretanto, esta característica não é
dada pelas notícias que sempre mudam, mas sim pelo gênero e modo pelo qual sua
linguagem é construída. A história do “estuprador que depilava” (E1), foi mostrada
intercalada com outras doze notícias, sofrendo sete cortes durante o programa. Em cada
bloco a história evolui depois de uma repetição, parte do ritual que a câmera mostra. O
receptor já conhece o ritual que se repete continuamente, produzindo uma sensação de
alívio e re-ordenamento, “aqui na tela da Band”.

Nas entrevistas, as vítimas são levadas a contar pormenores, repetindo seus dramas de
forma seqüenciada, como em uma novela, facilitando o acompanhamento do telespectador.
LT.: Você foi vítima de estupro, como é que foi a situação? Você estava na rua?
Moça.: Eu “tava” indo embora... quando ele me abordou... Ali ele me levou pra casa dele..
era uma casa da tia, não sei de quem que era. Aí foi lá que ele colocou uma fita
pornográfica, aí nós assistimos a fita.. quando acabou que aconteceu.
LT.: Agora, ele abordou você de que jeito na rua? Ele tinha...
Moça.: .. um óculos .. uma fita nos olhos .. acho que era... fita isolante
LT.: O que que ele dizia nesse trajeto até a casa onde ele te levou?
Moça: Eu não vou te machucar.. não vou te matar.. só isso.
LT.: Mas ele tinha o que com ele, uma arma?
Moça.:Uma faca.
LT.: Uma faca.
Moça: tinha uma faca
LT.: Chegando lá dentro...
Moça:… aí ele amarrou meus braços, eu não pudia me mexe...E eu fiquei quieta ué o que
que eu podia faze...eu não podia faze nada né..
LT.: Ele colocou um vídeo pornográfico e obrigou a você assisti?
Moça: Pois é pornográfico é era muito...era muito nojento...eu falei: eu não vou ficar
assistindo isso não. Ele falou: “você vai assisti isso sim”.
LT.: Obrigado?
Moça: Obrigado (...) (E1, R1.8).

155
Em outras momentos encontramos detalhes, dando a impressão de se tratar de uma
investigação no estilo dos detetives que procuram desvendar os crimes reunindo detalhes.
(...) Dr: Ele colocava esparadrapo no... no olho da vítima vendando e depois um óculos
escuros por cima para não chamar a atenção de ninguém, ao redor (E1,R1.26).
(...) FT: O óculos é esse mesmo Datena (o repórter mostra os óculos que tem nas mãos)
esse mesmo o Dr. Está mostrando aqui... mas é o óculos que ele utilizava não é Dr.?
Dr: Perfeito, o óculos que ele colocava nas vítimas e esse é o filme que foi revelado (mostra
o filme) (E1, R1.29).

É bastante comum a duração das matérias ter o tempo que for necessário para
desenvolver os detalhes, e repetir quantas vezes for preciso. Na matéria sobre a mãe que
perdeu a bebê durante o parto, (E3, R4.4ss) a emoção é explorada com detalhes. As
perguntas feitas às autoridades policiais e vítimas durante as entrevistas, induzem a
respostas óbvias, em sintonia com aquilo que Datena ou o repórter desejam ouvir (E1,R1.8;
R1.19).

Nos telejornais, a realidade repetida nas imagens e na linguagem, sofre, na mente do


telespectador um processo de inversão, passando da realidade para o plano do imaginário,
como se aquilo que está vendo fosse mais uma cena de um filme. Exemplo disso pode ser
observado na matéria sobre o “pit boy” disparando sete tiros à queima-roupa contra um
rapaz (E2,R2,1). Nas telenovelas acontece o contrário: o drama das personagens é
fantasioso, mas nos dois casos a palpitação do coração, os sentimentos e as lágrimas que o
telespectador derrama são reais. As pessoas projetam os problemas, as frustrações, as
expectativas e as emoções sentidas em sua vida diária, que se misturam às histórias vividas
na televisão. O BU torna-se um espelho ambíguo, no qual o indivíduo, em sua condição de
excluído e vítima da violência, se enxerga no desvio cometido e, ao mesmo tempo, se
distancia da ação, posto que é apenas um observador.

Assim, telejornais sensacionalistas assumem o papel de mediadores entre


normalidade e desvio, no qual demonstram a transgressão individual para assegurar, em seu
contraponto, a normalidade, ignorando as tensões sociais, ou amortizando-as. Há uma
particularização de contextos reais mais amplos, reduzindo conflitos sociais maiores a
situações cotidianas. Sua forma baseia-se em uma complexidade, que não deixa ver a

156
engrenagem social, pois trata apenas de uma parcela, sem analisar todo o corpo. Os
fenômenos agrupados são expressões fragmentadas de conflitos sociais e encontram em
contraposição a eles, uma ordem homogênea e substancializada, contra a qual não se pode
lutar.

A identificação pelo alívio é uma resposta à vida das grandes cidades, onde o
cidadão, diariamente expõe-se a uma dose, em maior ou menor grau, de violência. Ao
chegar em casa e ligar o aparelho de TV, a carga dramática de sua vida é diminuída, na
medida em que o telejornal mostra toda a sorte de atrocidades, monstruosidades a que o
telespectador está, ao mesmo tempo, passível e afastado. Seu cotidiano, por mais duro que
seja, é esvaziado. Os acontecimentos triviais de sua vida não se comparam com o
espetáculo televisivo. A indignação e a perplexidade surgem encobertas por um sentimento
maior de alívio por não ter acontecido com ele o que se projeta na tela. O assunto causa
espanto, mas é um espanto seguro, pois a ação é extrínseca ao telespectador, embora esteja
inserida em uma possibilidade. Este ponto é explorado com freqüência nas reportagens
policiais.

O conteúdo é facilmente identificado pelos telespectadores que de certa forma


viveram ou estão vivendo experiências de violência igual ou parecida com aquelas que
estão assistindo na televisão.
Conforme salienta Muniz Sodré, os veículos audiovisuais (rádio e televisão)
fornecem, mais do que os veículos escritos, os processos de projeção (o receptor desloca as
suas pulsões para os personagens do vídeo), identificação (o receptor torna-se
inconscientemente idêntico a um personagem na qual vê qualidades que gostaria ou julga
que lhe pertencem) e empatia (conhecimento que o receptor tem do comunicador,
colocando-se mentalmente em seu lugar) (1983:60).

O espetáculo tende a suscitar fenômenos de projeção e identificação. Também a


dramatização que contribui para tornar mais interessante a mensagem ajuda por outro lado,
a deformar a realidade comunicada.
Estamos diante do mito da informação que, na opinião de Muniz Sodré, “encobre o
essencial que é a atividade prática, o trabalho concreto. Na realidade, as pessoas são
informadas para que não busquem a informação. Da mesma forma, as pessoas são

157
condenadas a ouvir, para que não falem” (1999:49). O monopólio da fala não é operado por
uma consciência manipuladora, mas através da forma instituída pelo meio. Não é tanto a
repressão da fala que se pretende, mas “que não haja gratuidade na comunicação, ou seja,
que nenhum ato, nenhum pensamento, nenhuma significação fique fora do alcance da
economia de mercado, da produção monopolística, em suma” (Ibid.:50).

O monopólio da fala pelo sistema televisivo exerce a função de neutralização das


possibilidades de expressão popular. O que importa é o impacto da imagem e o ritmo de
sua transmissão. Como no videoclipe, o telejornal mostra uma sucessão de imagens,
montada de maneira aparentemente aleatória, mas que em seu conjunto reforça uma certa
mensagem. No telejornal, as imagens reiteram uma certa percepção do mundo (“bandidos”
= negros, favela = violência - miséria, menor = infrator, índios = “selvagens”,
desempregado = suspeito...). O que se fixa na memória do telespectador são flashes que
criam ou reforçam uma certa visão da realidade.

Na televisão é constante o uso de aspectos característicos dos rituais, principalmente a


repetição, presente na estrutura do programa. No BU, a linguagem, as imagens, os
personagens etc., apresentam um ritual de violência e tragédia. Podemos detectar nas
entrevistas um ritual expresso nas perguntas do repórter e nas respostas dadas pelos
entrevistados. Além da repetição de palavras, que não tem outra finalidade senão a de ser
pronunciada, há a repetição das mesmas entrevistas. Por exemplo, no programa exibido dia
09 de junho de 2003, na mesma edição, a entrevista com o estuprador foi repetida 6 vezes
(E1, R1.2; 1.12; 1.15; 1.23; 1.25 e 1.34). O apresentador noticiou e comentou a prisão do
estuprador inúmeras vezes, o delegado foi entrevistado sobre o mesmo caso 3 vezes, e
assim por diante. (E1, R1.4; 1.26 e 1.33). As entrevistas, na maioria das vezes, são rituais,
que complementam a cerimônia de violência na tela. O repertório de perguntas óbvias é
extenso: O que aconteceu? Como foi que ele te abordou? E depois? O que ele dizia? O que
você tentou fazer? Como você se sentiu? A constante repetição das mesmas imagens no
vídeo reforça a narração.

158
Na reportagem (E1, R1), Frederico é acusado de transgredir uma séria proibição da
sociedade envolvendo sexo e violência. Datena narra repetidas vezes o ritual seguido pelo
estuprador. Ele aborda as vítimas, veda os seus olhos, oculta-os com óculos, as obriga a
assistir filmes pornográficos, pede para que tomem banho, as depila e estupra. Com o
desvio sexual saciado, solta-as, para mais tarde repetir o ritual outra vez. O ritual seguido
pelo estuprador serve de base para a narrativa também ritual do apresentador do BU.
(Narração com detalhes, óculos, objetos, fotos....). Os detalhes são repetidos inúmeras
vezes como em uma “ladainha”. (depilava: 9 vezes, bandido: 11 vezes, vagabundo: 10
vezes, filmes pornográficos: 5 vezes...)

De certa forma, percebe-se que os telejornais sensacionalistas reproduzem na tela


crises do cotidiano com características de rituais, nos moldes descritos por Girard,
sobressaindo dois aspectos: a repetição e a participação do coletivo. Faz-se necessário
esclarecer, porém, que rituais mediados pela televisão carecem daquela força integradora
característica dos rituais praticados pelas sociedades arcaicas. Na mídia eles estão mais para
o espetáculo, deixando transparecer elementos do ritual.

Usando a força do meio, a TV, na pessoa do apresentador, introduz um mecanismo


coletivo (os telespectadores) que domina gradualmente as forças de dispersão e
desagregação, fazendo convergir as tensões e a violência para uma vítima. Assim como na
tragédia, a vítima é imolada essencialmente por golpes verbais. No BU temos na tela uma
crise vista no cenário, estúdio e cenas externas, com imagens, luzes e vozes. Na matéria
sobre o estuprador (E1, R1), o apresentador insulta o acusado que se encontra preso,
algemado e com o rosto coberto. É interessante observar a tonalidade da voz, o sarcasmo e
os insultos nas expressões usadas pelo apresentador: “põe na tela esse vagabundo, bandido,
sem-vergonha, ele tinha que apanhar na ‘bunda’... levar um tiro na bunda...” (E1, R1.23 e
1.28). Dessa forma, cria-se uma disposição ao “linchamento” do bode expiatório no qual,
por meio da TV, a sociedade toda agiria em unanimidade. Mesmo que um tanto
dissimulada, notamos aqui uma das características da produção do bode expiatório: a
participação do coletivo na sua eliminação, além da falta de mecanismo para que ele possa
se defender ou ser vingado por alguém.

159
A participação coletiva deve ser garantida, ainda que sob uma forma simbólica. Dessa
forma cria-se a desculpabilização dos telespectadores e da sociedade e, num processo de
catarse, concentra-se toda a culpa em um indivíduo preso que, para o efeito, pouco interessa
se é culpado ou inocente. O aspecto repetitivo do ritual através da mídia faz parte da
sociedade do espetáculo e funciona como uma catarse, espécie de válvula de escape e alívio
na resolução de tensões sociais. Na verdade, estamos diante de uma “suposta ordem
pacífica” onde os indivíduos permanecem passivos diante da ideologia passada pelo
telejornal, que faz acreditar nos bodes expiatórios apresentados nas reportagens como
capazes de resolver os problemas.

Para Girard há uma violência fundadora única e espontânea. Os sacrifícios rituais,


pelo contrário, são múltiplos e repetidos interminavelmente. O ato ritual visa regular aquilo
que foge a qualquer regra. Nas sociedades estudadas pelo autor, a função do ritual era mais
preventiva do que curativa. Nas reportagens, mesmo nas mais violentas, existe uma
mensagem positiva implícita direcionada ao inconsciente, e por isso, não identificada no
plano consciente. A mensagem diz: “eu também poderia ser um infrator da lei, também
poderia estar preso se tivesse transgredido a norma. Como não transgrido, como me
submeto, eu me preservo”. Reproduzindo o mundo do crime e da violência, telejornais
sensacionalistas mostram onde acabam os transgressores e o telespectador tira as suas
conclusões.

No afã de pretender dissimular as tensões, o telejornal transforma o crime, a


violência, a incerteza, a instabilidade, a tragédia e a insegurança em informação. De certa
forma demovem-se as tensões, mas sobrevive a sua memória. Isso talvez explique a grande
necessidade que a televisão tem de se repetir nos programas, nos temas, nos telejornais, nas
cenas, nas reportagens etc. É importante notar que esse sentimento de insegurança jamais é
eliminado pelo tipo de tratamento dado pela mídia, já que para isso precisaríamos de uma
prática ritual verdadeiramente integradora. Talvez seja por isso que os programas ficam se
repetindo. Contudo, ritual eletronicamente mediado já não é mais ritual, e sim espetáculo
pronto para ser consumido. Na verdade, a mídia, incapaz de re-atualizar a violência, por ter
abandonado a linguagem integradora dos rituais das sociedades primitivas estudadas por

160
Girard, apega-se apenas a um dos elementos do ritual: a repetição, que se torna meramente
obsessão, uma vez que não aprofunda a matéria.

3. 9 A reprodução do Bode Expiatório no telejornal

Em sua análise, Girard observa que é nos períodos de crise, quando as instituições
estão enfraquecidas, que se criam as condições favoráveis à formação dos bodes
expiatórios, responsabilizados pelos males coletivos. Devemos lembrar, porém, que as
sociedades arcaicas além de não dispor de sistema judiciário constituído, possuíam uma
visão cíclica do tempo e da história, tornando mais evidente o momento da construção e do
sacrifício do bode expiatório, resultando no retorno da ordem social. A sociedade moderna
tem uma concepção linear do tempo, tornando mais difícil evidenciar essa lógica. Até
porque, seria muito difícil perceber a existência de sacrifícios nos moldes apresentados por
Girard, uma vez que, nas sociedades modernas, ele afirma ter havido uma substituição
daqueles pelo sistema judiciário.

Contudo, observando a forma como Datena apresenta as notícias sobre infratores,


bandidos, estupradores e os protestos contra governantes ou políticos, deixa transparecer
elementos que lembram os bodes expiatórios que outrora serviam para expurgar os males.
A sociedade contemporânea vive mergulhada numa crise, com as instituições
enfraquecidas. É nesse contexto que surgem os programas sensacionalistas, como o BU que
pretende substituir o sistema judiciário em decadência. Com seu discurso e estilo próprio,
Datena, usando a força da mídia, encoraja a multidão a se unir em torno de um bode
expiatório (estuprador, criminoso, governo, político, instituição), descarregando sobre um
indivíduo, grupo, instituição ou governante toda a culpa pelos males coletivos. Através de
um processo de desmoralização liderado pelo apresentador, a comunidade se une contra o
bode expiatório que é, em seguida, executado simbolicamente através da força da mídia.

Conforme aponta Girard, há uma vontade ilusória de eliminar a violência e os


problemas da sociedade, jogando a culpa sobre uma vítima que atrai a atenção pelo seu
comportamento (criminoso) ou pelo lugar que ocupa na sociedade (cargo político,

161
governo). A solução das crises através da execução do bode expiatório é uma ilusão que
somente dura enquanto durar a crise. Pelo que tudo indica, não são os bodes expiatórios que
dissipam os males da sociedade. No caso de aparecer novas crises, volta-se a reeditar o
“linchamento”, e assim, sucessivamente.

Um outro aspecto perceptível no telejornal BU que lembra elementos da teoria


girardiana sobre os “estereótipos de perseguição”, é a escolha que o telejornal faz de
infratores ou de membros da sociedade que se destacam pelas suas funções para em torno
deles elaborar suas reportagens. Quanto mais o indivíduo se distancia do status social mais
comum (normalidade), maior o risco de perseguição. Tanto os infratores, criminosos,
quanto os governantes pela posição que ocupam, se encontram distantes da normalidade e
por isso são mais visados pelo telejornal. Isso talvez explique os constantes ataques aos
governantes.

Analisando a história do “estuprador que depilava” (E1) encontramos vários


elementos que lembram o “bode expiatório” segundo a teoria girardiana. A violência sexual
na sociedade é assustadora. Inúmeras mulheres são estupradas continuamente. Muitas
delas, até mesmo pelos próprios maridos. Uma violência que deixa marcas profundas. Na
amostra analisada, Frederico Adriano foi preso acusado de cometer estupros. Reconhecido
por três das vítimas, ele confessa o delito. A construção da reportagem, a repetição e a
tonalidade do discurso de Datena no desenvolvimento da notícia faz um esforço no sentido
de fazer os telespectadores, dentre eles vítimas de crimes semelhantes, acreditar que o
acusado deve pagar não somente pelos crimes que cometeu, mas por muitos outros, senão
por todos os estupros cometidos e não solucionados na sociedade.

Sabemos que traumas e feridas psicológicas somadas à fatores externos, que são
situações sócioeconômicas do indivíduo, influenciam na formação da personalidade e nas
relações sociais. Frustrações e feridas do passado, muitas vezes deixam marcas que afetam
a vida do indivíduo. Daí a importância de aprofundar o debate sobre questões ligadas à
história pessoal de infratores para entender melhor suas ações e saber como melhor lidar
com indivíduos que praticam certos crimes ligados a distúrbios psicológicos. O telejornal

162
BU em geral, foge dessas e outras questões abordadas por especialistas e organizações que
estudam a violência com maior profundidade. A tendência é ignorar as causas mais
profundas e remotas, concentrando-se simplesmente no imediato.

Na história sobre Frederico Adriano, percebe-se uma preocupação em ocultar ou


desconsiderar fatores que poderiam ajudar a entender, pelo menos em parte, os motivos de
seu comportamento desordenado. Na entrevista, repetida três vezes, o próprio Frederico
conta a sua história: fruto de um estupro, criança abusada, preso e abusado novamente na
prisão.... (E1, R1.6; 1.15; 1.23 e 1.24). No entanto, fica descartada qualquer possibilidade
do acusado se justificar, dando maior alívio às vítimas e aos telespectadores. Datena
argumenta que seus “distúrbios terríveis” não justificam suas ações e de fato, se
comprovado, ele deve responder por suas ações. Contudo, o telejornal não vai além dos
estupros cometidos. A mensagem transmitida ao público é de que Frederico não tem
chances de se defender e ninguém poderá vingá-lo. Com isso, o telespectador sente maior
alívio. Na verdade o estuprador já foi preso, confessou os crimes, foi julgado e condenado:
tudo pelo telejornal, ao vivo e imediato, sem direito de defesa. Esse é um procedimento
comum nas matérias sobre crimes.
Delegado (Dr): (...) já se somam três os casos concretos que ele praticou aqui. Eu que
interroguei ele com... com bastante detalhes hoje e ele confessou os três delitos praticados...
DT.: Confessou, é?
Dr.: Confessou os três casos e disse que isso é em função de...de um ... há..há..Ele ficou
sabendo que a mãe dele tamém teria sido estuprada então isso revoltou-o e ... quando ele
saiu da cadeia agora há quatro meses ele resolveu tamém pratica é... estupros.
DT:. Isso não é justificativa, não é Dr. Isso é um bandido da pior espécie que estuprava as
mulheres e ainda tinha esse desvio terrível de fazer com que as mulheres se depilassem
antes de... de...cometer esse ato abusivo, terrível. (...) (E1, R1.6).
O apresentador insiste, procurando levar o delegado e o telespectador a acreditar que
a história de violência pessoal do estuprador em nada justifica as suas ações. Este aspecto é
mencionado oito vezes durante a reportagem (E1, R1.6; 1.12; 1.23; 1.25; 1.26; 1.31; 1.33 e
1.34).
DT.: (...) Cadê a reportagem dele confessando? Tá aí? Tá no ponto o Simão? Então põe na
tela esse vagabundo.
FA.: ... eu fui abusado, eu fui abusado já ...na cadeia.. na famíla..assim que eu conheço
infelizmente eu sou fruto de um “estrupo”. Isso ficou muito marcado na minha cabeça e não
consigo esquece isso... (toca uma música de fundo)
LT.: Você acha que isso é justificativa pra você violentar mulheres inocentes?
FA.: Não, não, não estou justificando não como o Dr. Delegado falou só pra mim conta a
minha história (E1, R1.23).

163
O delegado aparece na reportagem dando garantias de que as desculpas apresentadas
por Frederico, ao contar a sua história, não vão ajudar em nada na sua defesa.
DT.: Todos aqueles casos aí Dr. Em que ele citava, ele citava justificativa de que ele foi
estuprado não é... isso aí não, não tem nada a vê a polícia não aceita isso como justificativa.
(...)
Dr.: Não, não, ninguém (...) (E1, R1.30).
DT.: (...)ele quer se justificar .. ele que se justifica. Dizer que não... é.. é.. eu estuprei por
que eu fui estuprado coisa e tal.... Figueiredo.. a polícia está aguardando que novas vítimas
não é se dirijam aí na delegacia prá reconhece esse bandido que aumente a pena desse
bandido não é verdade... (E1, R1.32).

Percebe-se no discurso uma preocupação de não deixar que nenhum elemento ajude o
infrator a escapar da condenação. Pelo contrário, o BU quer ver a sua pena aumentada para
fazer justiça às vítimas e além disso parece querer estender o castigo para reparar os danos
às outras vítimas de estupro que ainda não foram vingadas.

Segundo Girard, um dos aspectos importantes a ser garantido na eliminação do bode


expiatório é que ele não pode ser vingado por ninguém. Tal característica impede o
desencadeamento da violência no grupo envolvido. No caso do estuprador, o telejornal não
permite nenhuma defesa. No “tribunal” do BU o estuprador não tem direito de defesa, não
tem advogado e sua palavra é logo desacreditada. Assim o estuprador transforma-se em
uma vítima que assume características do bode expiatório: indefeso, “ninguém poderá
vingá-lo”. Lembramos que, para Girard, a unidade coletiva em torno de uma vítima 79
ea
garantia de que ela não poderá ser vingada são dois requisitos fundamentais para a
existência do bode expiatório.

Através da força da TV toda a sociedade está unida contra um (E1, R1.27; 1.28; 1.30
e 1.32). A construção do bode expiatório visa eliminar da sociedade a desordem criada pelo
crime, aliviando as pessoas das tensões provocadas pela violência e funciona como uma
catarse social, 80
uma espécie de válvula de escape e alívio na resolução dos problemas

79
A vítima geralmente é alguém inocente das acusações que lhe são feitas, mas isso não significa que ela seja
totalmente inocente. Para a existência do bode expiatório, o importante é que o coletivo se una em torno da
vítima e ela assuma a culpa sem ser vingada por ninguém.
80
Catarse. gr. Kátharsis: purgação, purificação, limpeza. Efeito salutar provocado pela conscentização de uma
lembrança fortemente emocional e ou traumatizante, até então reprimida. O efeito moral e purificador da
tragédia clássica, cujas situações dramáticas de extrema intensidade e violência, trazem à tona os sentimentos

164
sociais. De fato, o processo de ritualização da violência funciona como uma espécie de
catarse social onde a própria violência é continuamente neutralizada e reorientada durante o
processo de realização dessa ritualização social. A solução se torna ilusória, uma vez que
dura enquanto se dá a ritualização e desencadeia uma série de momentos esquematicamente
semelhantes. O que se verifica, na realidade, é um esvaziamento da crítica séria capaz de
propor soluções duradouras.

Em seus estudos, Girard nota que indivíduos fora do padrão normal, marginalizados,
estrangeiros, coxos, reis, príncipes, indivíduos com marcas ou sinais etc...são mais
propícios a se tornarem bodes expiatórios. A história do estuprador deixa transparecer
também este aspecto. Frederico sofre de distúrbios terríveis e aparece com sinais no corpo.
O repórter faz o papel de investigador e procura saber se ele possui marcas que o
identificam.
LT.: Ele tinha algum sinal característico que dê prá identificar?
Moça: Tinha uma tatuagem.
LT.: Que parte do corpo?
Moça: Aqui assim nas costas. Que eu me lembro mais ou menos uma aqui. E uma no
braço... era um dragão (E1, R1.10).

As tatuagens são marcas que podem remeter àquelas possuídas pelo bode expiatório.

Na sua essência não podemos afirmar que o bode expiatório criado no BU seja tal
qual aqueles encontrados nas sociedades estudadas por Girard. Contudo, podemos
encontrar elementos similares, tanto no processo de sua construção, como na sua função
social em momentos de crise.

Conforme já mencionamos, outro segmento da sociedade que facilmente serve de


bode expiatório são as instituições ou pessoas que ocupam cargos públicos. Além de xingar
ladrões e criminosos, no BU, os protestos e críticas têm sempre como principal alvo os
políticos e governantes ou instituições públicas. Diante da crise na saúde, educação,
segurança etc., o BU une toda a frustração e raiva da sociedade, canalizando as críticas aos

de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o alívio ou purgação desses sentimentos (Hamlet,
de Shakespeare, por exemplo).

165
governantes que se transformam numa espécie de bode expiatório por tudo de errado que
acontece na sociedade.

DT.: (...) Se você acha que a saúde pública é ruim. Saúde pública ruim, se você acha que os
hospitais são uma porcaria, os Postos de Saúde não funcionam, Pisque Band. (E3, R1.1).
(...) os nossos políticos até hoje não conseguiram dá uma política habitacional decente ao
brasileiro? (...) Há quantos governos já se ouve falar? Agora vai melhorar... vamos dar uma
casa prá você...Isso é um papo furado! Essas políticas habitacionais dos governos até agora
foram uma verdadeira porcaria, uma catástrofe, (...) (E3, R2.3). (...) é uma vergonha esse
INSS. Essas filas são vergonhosas... muda governo sai governo e...(...) (E3, R3.3). (...)
Que esse INSS é um organismo de humilhar velhos, é um organismo de humilhar pessoas
paraplégicas, sabe, é um organismo de fazer criança e velho ficarem em filas intermináveis,
lugares vendidos em filas e daí por diante (...) (E3, R3.4).

Os protestos sociais e denúncias contra a má administração da coisa pública podem


até sugerir que o BU é um telejornal que questiona a ordem estabelecida, porém, essa
mesma ordem é recuperada facilmente, não no debate, nem em manifestações ou revolta
contra a qualidade dos serviços públicos, mas em sua própria estruturação pela rápida
substituição de uma cena por outra e pelo caráter de espetáculo, onde o que interessa é a
mera representação no show de Datena. O programa como outras tantas mercadorias,
promete muito mais do que cumpre.

DT.: (...) Os políticos, se eles não ouvem, pelo menos vão ter que enxergar. (grita) Vão ter
que ter uma luz. Concorda comigo ou não? (E3, R1.4). (...) Atenção governo do PT. Nós
vamos continuá com a mesma porcaria do tempo do governo do Fernando Henrique ou
vamos mudar esse estado de coisa? (E3, R3.5).
(...) Me ajuda aí. Acorda politicada! Quantos pais e mães nós ainda vamos ver chorando a
morte de seus filhos? Corredores da morte nesses hospitais, falta de leitos, falta de vergonha
na cara, falta de médicos, tudo isso representa o protesto do Pisque Band (...) (E3, R1.6).

Quando Datena relata, por exemplo, um problema social ou uma manifestação de


repúdio à uma situação crítica como a da saúde pública, o faz como um espetáculo que
lembra o show de atração de circo e vende ao público como um acontecimento de interesse
social. Esses atos são politicamente esvaziados e por mais que se tente fazer aparecer não
têm vínculo com a realidade imediata do telespectador. O cenário, o apresentador, as
imagens, os entrevistados, as “informações paralelas” neutralizam as notícias sem
realmente debater o tema e desembocar em uma ação concreta.

166
Ocupada com os índices de audiência e com uma programação que corresponda ao
tempo moderno da produção serial, a televisão brasileira não tem se preocupado em
aprofundar as questões que propõe. A única forma de revisão que faz é através de
programas que, por meio de flashbacks, se prestam mais a manter vivos na memória do
público seus ícones de identificação e consumo (estrelas, ídolos, galãs, modismos etc.),
numa atitude profundamente narcisista, do que retomar seriamente algum tema a fim de
promover debates.

3. 10 O Brasil Urgente substitui o sistema judiciário

Ao estudar formas de conter a violência nas sociedades arcaicas, Girard vê no


sacrifício o recurso dominante desse controle, apresentando com clareza esse
desdobramento da violência, quando afirma que todo sacrifício segue a lógica da
transferência das tensões sociais para a vítima. O sacrifício tinha uma função preventiva,
impedindo a explosão de conflitos.
(...) uma verdadeira operação de transferência coletiva, efetuada à custa da vítima, operação
relacionada às tensões internas, aos rancores, às rivalidades e todas veleidades recíprocas de
agressão no seio da comunidade (Girard, 1998:19).

Muito importante na opinião do pensador é a distinção entre a violência purificadora,


legítima (a violência religiosa do sacrifício) e a violência impura, comum, ilegítima (do
conflito mimético que ameaça a sociedade). Para que a legitimidade e ilegitimidade da
violência não fiquem à mercê da opinião de cada um é preciso existir algo que garanta essa
diferença. Surge então a idéia de transcendência, religiosa ou humanista (Cf., Ibid.:38). A
violência do sacrifício é tida como sagrada, capaz de purificar a violência impura e os
procedimentos que permitem à sociedade moderar sua violência se encontram enraizados
no religioso (Cf., Girard, 1998:36). Assim se dá a transcendência efetiva da violência santa,
legal, legítima, face à imanência da violência culpada e comum. A transcendência do
sistema reconhecido por todos, independentemente das instituições que a concretizam,
garante a sua eficácia, distinguindo a violência santa, legítima, e impedindo que ela se torne
alvo de contestação, caindo no círculo vicioso da vingança.

167
Vimos também que para Girard, com o passar do tempo, o sistema judiciário substitui
o ritual sacrificial que, na sociedade moderna, ao fazer valer a justiça, pratica a violência
purificadora, legítima. Como, outrora, as vítimas eram oferecidas à divindade e por ela
aceitas, o sistema judiciário também refere-se a uma teologia que garante a verdade de sua
justiça (1998:37).

Assim, a sociedade diferencia a violência da justiça, daquela praticada por indivíduos


ou grupos, deixando a última palavra ao sistema, que opera segundo as leis, neutralizando a
violência. Entretanto, o sistema judiciário somente pode funcionar efetivamente quando
respaldado pelo Estado que detém o monopólio sobre a administração da força física para
conter a violência. O Poder Judiciário é concebido como legítimo representante do Estado
dentro de um determinado território, conforme proposto por Max Weber.

Em certa medida, o sistema judicial mantém todos os elementos do sacrifício: inibe o


círculo vicioso da violência; não permite vingança; é a última palavra; conserva o elemento
transcendente/teológico, (coloca-se acima de todos) com a verdade inquestionável da
Justiça; não acaba com a crise mimética que gera a violência, mas assume o papel de fazer
vingança no lugar da parte lesada, afastando o perigo da rivalidade generalizada; os
condenados são comparáveis aos bodes expiatórios.

De qualquer forma, a idéia de perdão está completamente afastada também nesse


sistema. A regra é o sacrifício do culpado, o que equivale a fazer justiça por meio de um
sistema legítimo com poder acima de todos (por isso transcendental) para evitar que se faça
justiça com as próprias mãos desencadeando um círculo de violência.
(...) é o sistema judiciário que afasta a ameaça da vingança. Ele não a suprime, mas limita-a
efetivamente a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade soberana e
especializada em seu domínio. As decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre
como a última palavra da vingança (Ibid.:28).

Acontece, porém, que a nossa sociedade vive atualmente em um período em que o


sistema judiciário está em crise: é lento e ineficiente na contenção da criminalidade e
administração da violência que ronda as nossas cidades. Essa crise do sistema cria espaço

168
para o surgimento de outros mecanismos destinados a preencher o vazio deixado pelas
instituições legítimas na administração da violência.

Em substituição ao sistema judiciário inoperante, aparecem na mídia programas


sensacionalistas com propostas de solução. Analisando atentamente o telejornal BU que
surge como um fator ordenador da sociedade em crise, podemos encontrar características
que são próprias do sistema judiciário legítimo e que já estavam presentes no sistema
sacrificial das sociedades estudadas por Girard.

À semelhança do sistema judiciário que tem a última palavra, o BU descarta a idéia


de perdão. É o que se observa no discurso do apresentador e dos repórteres que não dão
chances para qualquer defesa dos acusados. A regra é o sacrifício do culpado, o que
equivale a fazer justiça por meio de um sistema que se pretende legítimo com poder acima
de todos (por isso transcendental) para evitar que se faça justiça com as próprias mãos
desencadeando um círculo de violência. Nesse sentido o BU funciona como uma espécie de
catarse, uma válvula de escape para diminuir as tensões sociais, sem contudo, resolver os
problemas. A essa altura é importante esclarecer que, no combate á criminalidade, o BU
não tem a legitimidade que tem o Poder Judiciário. Argumentamos apenas que, pela sua
postura diante dos infratores, ele se coloca no lugar daquele, numa inversão de papéis
sociais.

O indivíduo que é massacrado pela crueldade do sistema social tem um veículo para
vingar-se, uma vingança legitimada pelo meio que a exprime, pelo índice de audiência que
tem a força da linguagem visual e verbal. O telejornal foi transformado num mecanismo
racional de reivindicações e acertos de contas. É isso que impede o indivíduo prejudicado
de pegar um revólver e sair matando as pessoas por aí. Ele assiste BU e encontra quem
resolva seu problema, ou pelo menos, quem dedica alguns minutos para ouvi-lo. O bode
expiatório criado pelo telejornal serve com válvula de escape, e tem como objetivo dissipar
a violência. É justamente quando as instituições legítimas se encontram enfraquecidas que
se dá a formação dos bodes expiatórios.

169
O telejornal transforma-se em um espaço de reivindicações. O programa faz um apelo
para que mais vítimas entrem em contato com a produção ou com a polícia, através do
Disque-Denúncia, se souberem algo a mais sobre o fato ou se outras vítimas reconhecem o
infrator preso e mostrado na tela (E1, R1.33). A própria polícia admite que o telejornal
ajuda na solução dos crimes. O apresentador faz questão de mostrar que o “Brasil Urgente”
faz a diferença. Desaparecem as instituições intermediárias, nos quais a sociedade poderia
organizar-se a fim de fazer valer seus direitos.

O telespectador se identifica com a solução. Desse modo, a TV assume o papel de


intervertora na vida das pessoas, e não mais apenas noticia, mas faz “justiça” e pressiona as
instituições, num processo de apropriação e inversão dos papéis sociais. Quer dizer, esse
programa e a mídia em geral, hoje, ocupam o lugar do Estado e das instituições. De certa
forma, a mídia é ao mesmo tempo produtora da notícia e contém as grandes verdades e as
grandes soluções. Dessa forma ocupa o lugar que outrora foi de Deus, como a verdadeira
religião a quem a pessoa recorre. Os sistemas de comunicação tornam-se realizadores da
justiça e da pressão.

No entanto, quanto à substituição do judiciário, o programa mostra que ele não


funciona. O telejornal exerce o papel que a gente espera do Judiciário, que nada mais é
senão aquela vingança intelectualizada, racional que impede o indivíduo de fazer justiça
com as próprias mãos com relação à pessoa que o prejudicou. A vingança se processa
através da lei, de todo um aparelho que serve para racionalizá-la, um sistema legítimo que
faz justiça (vingando). Se isso não acontecer, indivíduos prejudicados tendem a fazer
justiça conforme lhes convier. O que é o linchamento senão a prova mais efetiva de que o
Judiciário não está vingando as pessoas de forma eficiente? O linchamento simbólico
através do BU pode ser visto a partir desse ângulo.

Os excluídos se encontram no limite da condição humana, e sozinhos não conseguem


reivindicar direito à cidadania. Desiludidos com as burocracias dos órgãos estatais,
partidários e sindicais, recorrem à mídia para conseguir o que as instituições públicas não
proporcionam: justiça, serviços, reparações ou uma simples atenção. Os meios de

170
comunicação fascinam porque escutam e as pessoas têm a sensação que não precisam se
ater a burocracias, adiamentos e prazos. A cena da televisão é rápida e aparenta ser
transparente, podemos ver, presenciar tudo ao vivo; o serviço da instituição é lento e suas
formas são complicadas, gerando desconfiança. Da forma como se apresenta no telejornal,
Datena dá a impressão de trabalhar junto às comunidades esquecidas e de ser a voz dos sem
vez, buscando soluções.

Girard considerou a abolição dos rituais de sacrifício com o surgimento das instâncias
legisladoras na sociedade, através do que ele chamou de racionalização, o que podemos
considerar de simbolização. “O sistema judiciário racionaliza a vingança, conseguindo
dominá-la e limitá-la a seu bel-prazer” (Girard, 1998:35). O autor alerta, porém, sobre o
caráter desse processo. O Poder Judiciário “só pode existir se associado a um poder político
realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois
gumes, servindo tanto à opressão quanto à libertação” (Ibid.:36).

Assim, quem toma em suas mãos o papel de regulador dos processos sociais são as
instituições sociais, os legisladores ou quem mais puder convencer a sociedade de seu
poder para tal. Na sociedade contemporânea, uma das instituições de maior poder, que
exerce com muita competência essa regulação social através da linguagem é a mídia. Pela
projeção, pela transferência e pelo uso de imagens, a mídia, especialmente a TV, é a
racionalizadora maior de nosso tempo, e por isso dispõe de um enorme poder simbólico.

Ainda sobre essa questão do poder simbólico, com base nas afirmações de Girard, de
que a violência e o sagrado são indissociáveis, podemos pensar na possibilidade de que a
mídia, ao exercer a violência, encontra nesse exercício uma forma de sacralizar-se. Existe a
possibilidade de, em uma sociedade que não goza de boas relações com o sagrado, apelar
para o outro lado da relação, para a violência, como forma de aproximar-se do núcleo do
sagrado. Usando desse recurso, a mídia passa a exercer um poder simbólico religioso que se
constrói na direção de um poder centralizador, catalisador, de um totem (símbolo protetor
da coletividade) pós-moderno virtual.

171
Isso nos remete à idéia do mecanismo que pretende exercer a violência purificadora,
conforme vimos nas investigações de Girard. Quando um sistema ou instituição se coloca
acima das demais instituições, ao combater a violência, o faz como violência purificadora.
A sua atuação se dá numa dimensão religiosa, transcendental. Em Datena, no BU,
percebem-se traços característicos de mediador religioso que se pretende purificador ante a
violência comum. Conforme ficou evidente em diversos momentos da nossa análise, o
apresentador, no seu estilo e forma, deixa transparecer uma certa pretensão de combater a
violência impura da sociedade com a violência purificadora e sagrada. Tendo a mídia como
“altar sacrificial”, Datena, na pele do âncora, encarna-se como justiceiro. É o “salvador”
eletrônico, o “sacerdote”, juiz e mediador, com seu cassetete, instaurando e re-instaurando a
ordem diante do vazio deixado pela Justiça. Do seu “santuário”, o estúdio, Datena sai,
simbolicamente mediado pela força da TV, para entrar na sociedade e dela expulsar a
violência impura que a ameaça. Pela linguagem e postura, o apresentador é como uma
pessoa do povo e ao mesmo tempo permanece dele separado, uma espécie de figura
aparentemente “divinizada” que, diante da violência maléfica, aparece de fora para
purificar a violência impura. No fim do programa, ele retorna ao “panteão” para preservar a
sua condição “sagrada” regressando no programa seguinte para continuar a sua missão.
Evidentemente, todo esse aparato, não tem outra função, senão o de criar ilusões e
proporcionar espetáculo.

Na perspectiva girardiana é justamente em sociedades em crise que surgem


mecanismos que pretendem purificar a violência. A produção de programas
sensacionalistas como o BU é sintoma de uma sociedade em crise que abre espaço para o
surgimento de programas do gênero. Diante do aparente fracasso de nosso sistema
judiciário não podemos deixar de nos remeter à mídia e às formas como esta opera com a
opinião pública. Quando questionados sobre a questão de predileção temática da mídia pela
violência, a resposta que temos dos produtores de telejornais sensacionalistas é de que o
espectador gosta, de que é o que dá audiência. E apresentam os resultados de pesquisas que
mostram os altos índices de audiências de programas com um grau elevado de violência.
Parece haver uma solidariedade entre televisão e violência. Segundo M. Contrera, “a
linguagem virtual e exclusivamente espetacular da TV comete uma violência que está

172
presente em seu fundamento mesmo” (2002:99). É preciso pensar no papel da mídia nas
sociedades contemporâneas. Nos perguntamos se a televisão não teria em seus próprios
fundamentos, necessidade da violência, como necessita também dos sucessos
sensacionalistas, dos espetáculos esportivos, dos desenhos animados, dos documentários...

Na ausência de um Poder Judiciário eficiente, esse binômio, mídia-opinião pública


estaria operando atualmente como real representante do poder que se autoriza a dar sempre
a “última palavra da vingança”. Podemos afirmar, inclusive, que tem o poder de conter a
vingança ou de desencadeá-la, operando as famosas inversões nas quais a mídia é
especialista.

Resumindo, o desejo mimético, conforme Girard, conduz fatalmente à violência


destrutiva. Nas sociedades estudadas pelo autor, o sacrifício surge como solução,
constituindo-se como violência purificadora. Nas sociedades modernas, o sistema
sacrificial foi substituído pelo sistema judiciário que detém, ancorado pelo Estado de direito
das leis e normas, o monopólio sobre a administração das situações de violência na
sociedade. O Poder Judiciário e a polícia têm poderes para usar legitimamente a força que é
a violência, mas já vista como purificadora.

Estando acima de toda a sociedade, tais instâncias se mantêm na transcendência, no


âmbito do sagrado. Acontece porém, que o sistema judiciário não está conseguindo lidar
satisfatoriamente com todas as crises decorrentes da violência crescente. É nesse vazio que
aparecem os programas que ao relatar as várias situações de violência, o fazem como se
estivessem agindo em substituição ao sistema judiciário. É o caso do BU que com Datena,
de maneira simbólica, prende, organiza tribunais, julga, encontra os culpados, condena ou
absolve transgressores, tudo em tempo real, rápido, ao vivo.

Não é difícil notar, porém que telejornais como o BU também não proporcionam
soluções. Eles funcionam de acordo com a lógica do espetáculo, conforme proposto por
Debord e impulsionados pela indústria cultural descrita por Adorno e Horkheimer que se
caracteriza pela constante produção e consumo de bens e serviços. Na linha do espetáculo,

173
Datena transforma problemas reais que aparecem em forma de imagem, até porque a lógica
do imediato é uma das principais marcas do espetáculo que transforma tudo em imagem
que dá visibilidade.

3. 11 Um telejornal “justiceiro”

Conforme já mencionamos, o BU vai além de sua função informativa. Pelo seu estilo
ágil e popular de apresentar e comentar a notícia, Datena virou referência no gênero. Esse
destaque na notícia “mundo cão” capacita o âncora para liderar e defender também o povo.
Datena é o advogado das vítimas, o juiz dos indefesos. Mostrando cara de justiceiro, com
olhar fixo, gesticula e anda de um lado para o outro, como quem não deixa nada escapar.
Com seu dedo em riste prende, julga e dita a sentença.

De certa forma o apresentador simplesmente assume o papel que lhe cabe. Já se sabe
de antemão o que ele deve fazer para desempenhar com sucesso o lugar que ocupa na
estrutura do noticiário. O programa segue uma certa lógica e é regido por algumas normas
que outros apresentadores, ao substituir Datena, também procuram seguir. Contudo, o
telejornal tem a cara de Datena. Ele é um dos que melhor desempenha o papel que se espera
dos apresentadores de programas do gênero. Datena é o centro, o todo-poderoso, que
dificilmente aceita ordens. Como um grande maestro, dirige tudo, não se restringe somente
ao que é feito no estúdio, mas alcança a Grande São Paulo, cidade que se transforma em um
mega estúdio onde o telespectador, além de assistir ao programa, participa de sua produção.

A cultura de massa como cultura predominante faz lembrar a questão dos meios de
comunicação, nas redes que formam, como poder acima de outros poderes ou instituições
particularmente do Estado. Cumprem uma função em meio a toda a violência real,
adicionada daquela estética, que se coloca para a sociedade. No caso de Datena, as pessoas,
não só populares mas também de classe média, ameaçam outras e ameaçam instituições
dizendo: “tem que resolver esse problema, senão vou denunciar para o Datena”. Ou seja,
virou de fato um espaço para as reivindicações. Desaparecem todas as outras instâncias
intermediárias da sociedade, em que as pessoas se organizavam. Os sistemas de

174
comunicação tornam-se realizadores da justiça e da pressão. Além de serem produtores de
notícias, os meios de comunicação têm neles contido as grandes verdades e as grandes
soluções. Temos uma espécie de messianismo, onde ocupando o lugar que outrora foi de
Deus, aparecem como a verdadeira religião, a quem as pessoas recorrem.

Num julgamento, os jurados e o juiz têm a última palavra. Aqui, quem tem a última
palavra é o BU e não há direito de defesa nem apelação para segunda instância. A mídia
aparece como mediação (a cultura da mídia). É a lógica maternal onde alguém olha para o
indivíduo, cuida das pessoas e cria o clientelismo consumidor mediático. Também o
julgamento e a busca de solução para o caso do estuprador passa pela mídia, no caso pelo
telejornal BU. Podemos observar isso na matéria sobre Frederico Adriano (E1, R1).
DT.: (...) Dr. Ele confessou os crimes, não é? Ele confessou não é isso, ô Figueiredo? (...)
Dr.: Isso Datena, ele confessou com riqueza de detalhes os três estupros que ele praticou
é..... após ter saído da cadeia (E1, R1.16).

Todos os aspectos do processo têm a cobertura do telejornal. Dá a impressão de que


tudo realmente acontece no programa. Por exemplo, o BU mostra imagens do estuprador na
Delegacia sendo reconhecido. Uma das vítimas dá depoimento ao delegado e o repórter está
lá para narrar e mostrar ao vivo:
LT.: Vamos acompanhar o reconhecimento. O delegado pergunta a uma das vítimas se é
mesmo o homem que a estuprou. Veja ela diz que sim e aponta para o suspeito. Até o final
da tarde três vítimas vieram à delegacia confirmar o reconhecimento de FA, de 31 anos (...).
(E1, R1.35)

O telejornal se coloca do lado do povo para exigir das autoridades e políticos,


soluções. Datena se aproxima do público através da tonalidade da voz, gestos, linguagem
popular que inclui gírias, expressões de protesto fáceis de serem identificadas. Assim
Datena passa a ser a voz dos sem vez: fala por eles e lidera o protesto. Evidenciamos isso
na matéria sobre o atropelamento na Avenida Senador Queiroz (E2, R1).
DT.: (...) Ouve o povo Edie (voz alterada) Eu quero ouví o povo metendo a boca nisso aí.
(...) Ouve o povo aí e vê se o povo mete a boca ai o Edie Póllo. O povo brasileiro também é
muito calado! (reclama) (...) (E2, R1.4). Edie Póllo, ouve o povo bravo aí...(E2,R1.6).
(...) Onde é que estão as autoridades desse país, dessa cidade, tá todo mundo dormindo uma
hora dessas? (Voz alterada) Não tem ninguém trabalhando, vocês só sabem mamar nas tetas
do povo? (...) (E2, R1.8).
(...) Atenção autoridade dessa cidade tem alguém acordado aí? (se aproxima da tela e bate
com o dedo no vídeo como que querendo acordar as autoridades) Atenção, tem alguém
acordado aí? Tem alguém acordado aí? (o galo canta, uma, duas vezes) hã.. é brincadeira,

175
esse galo não acorda ninguém também (o galo canta mais alto e agudo) tem que botá um
leão aí prá acordar. Isso é uma brincadeira. Vamos ficar com a câmera aberta aí mostrando o
pessoal vendo esse corpo aí, perto da Praça da Sé para ver quanto tempo aparece alguma
autoridade aí, alguma “toridade” aí pra resolvê, como diz o meu amigo, cadê a “toridade”?
Cadê a “toridade”, coisa vergonhosa, (...). (E2, R1.9).
EP.: É o povo Datena, dizem que “a voz do povo é a voz de Deus” (...) (E2, R1.13).

Mostrando a imagem do corpo na tela, Datena está denunciando, cobrando,


protestando, fazendo pressão e incentivando o povo a reclamar. Ao vivo, como um grande
maestro, o âncora, o líder dos excluídos comanda o protesto com características de show e
espetáculo. O helicóptero vai passando, ao sinal do ruído e das luzes os moradores do
bairro, com seus aparelhos ligados, obedecem às ordens do líder:
Vamos lá, vamos pisca! Todo mundo aí que o helicóptero vai chegar em vocês.Vamos lá
gente, vamos pisca...A 5km do helicóptero tem gente piscando, isso significa que ninguém
está satisfeito com a saúde pública (E3, R1.8).

O jornalismo de prestação de serviços e investigativo deriva da idéia do jornalismo


sério, iluminista, comprometido com o esclarecimento da sociedade. Entretanto, ao
pretender seguir essa linha editorial, Datena inclui no seu telejornal um grau elevado de
sensacionalismo, que ao invés de iluminar a sociedade, acaba por esvaziar as denúncias e
protestos por ele próprio encabeçado. Para os que não estão gostando e reclamam do tipo de
ação, Datena justifica sua postura:
(...) E eu vou continuar mostrando piscar sim, não adianta ligar pra cá não para pedir.. “hó, o
Datena não pode fazer esse tipo de coisa não, esse tipo de pesquisa”. Vou fazer sim (grita)
hã.. eu quero que vocês políticos é... põe na tela aí....(E3, R4.1).
(...) Por esses abusos dos hospitais sabe, por essas verdadeiras barbaridades que acontecem
nos hospitais.. é uma cidade inteira. Cada luz dessa é uma família inteira indignada
protestando contra a saúde pública do Brasil. Contra a saúde de..de.. dos hospitais que não
atendem a população, a população está simplesmente morrendo (...) (E3, R.9).

O que chama a atenção na reportagem não são as informações, mas o tom que
predomina na linguagem e gestos do apresentador. O tom irado, implacável, transforma as
palavras em instrumento de ameaça e reivindicação. O BU não pode ser visto apenas como
um meio de informação, parece insatisfeito com sua condição meramente informativa e
extrapola suas funções. O telejornal, através do conjunto manchete-imagem-reportagem-
comentários incorpora a postura de alguém que quer prender, julgar e punir exemplarmente
os infratores e exigir dos governantes ações que tragam melhorias na vida da população. O
telespectador impotente à procura de proteção pode confiar.

176
DT.: (...) se o país não tem política habitacional (gritos). O que que eu posso fazê se as
autoridades, os nossos políticos até hoje não conseguiram dá uma política habitacional
decente ao brasileiro? Não tem casa prá morar meu! (berros gesticulando com as duas
mãos). Há quanto tempo já se ouve fala? Há quantos governos já se ouve falar? Agora vai
melhorar... vamos dar uma casa prá você...Isso é um papo furado! (exclama). (E3, R2.3).
(voz alterada). (...) Obras prá aparecer tem em todo o lugar, (...) moradia prá pobre ninguém
fala. Fala? Ninguém fala. Absurdo, uma calamidade (E3, R2.4).

Datena está com o povo e até se dispõe a participar de passeatas com a população. Ele
se apresenta como um líder comunitário que luta ao lado dos moradores do bairro. Mas não
abre mão do helicóptero, numa indicação de que, se participar, transformará o protesto em
um grande espetáculo com a sua marca. (...) “Atenção se tiver protesto, me chama que eu
vou. O Amilton vai junto com o helicóptero” (E3, R1.6).

Em certas circunstâncias o programa dá a palavra para que os cidadãos se manifestem


e de fato, as pessoas envolvidas nos problemas sejam entrevistadas. Contudo, isso é feito
não no sentido de proporcionar um espaço para o exercício da liberdade de expressão, mas
para reforçar o discurso do programa. A opinião pública é usada para reforçar a voz de
Datena que deseja ver o povo “metendo a boca”, reclamando ao seu estilo. Na fila do INSS
Mauro e Wilson têm, através do BU, a oportunidade inédita de se manifestar:
Pouca vergonha isso aqui. A gente paga por isso aqui, e olha aí o que a gente merece.
Repórter: Seu Wilson, de 67 anos esperou 7 horas para ser atendido e saiu sem saber
quando vai receber aposentadoria solicitada há um ano.
Wilson: Só tinha um funcionário que faz isso aí, e....não tá dando conta (E3, R3.1).

O BU ouve o casal José Celso e Solange, que perdeu a bebê por falta de atendimento
num hospital de Santo André (E3, R4.2; 4.6). Ouve o “povo bravo” porque a perícia não
chega ao local de atropelamento para levar o corpo do rapaz jogado na calçada:
Entrevistado 3: É uma falta de respeito ao ser humano. Eu acho, já que aconteceu deveria
tirar a pessoa e levar embora. Agora fica jogado aí, se é na chuva fica no molhado jogado aí,
então quando bem querem é que vêm buscar (E2, R1.6).

Um telejornal que dá voz às vítimas da violência, estupros, roubos, calamidades e


suas reivindicações. É um elemento aglutinador dos desejos dos pobres e excluídos que
clamam por política habitacional, saúde, educação, segurança, justiça etc. É desse modo
que o BU pretende ser um instrumento de reivindicação, não se limitando apenas em

177
noticiar os fatos, mas de fazer “justiça” e de pressionar instituições num processo de
apropriação e de clara inversão dos papéis sociais.

Mostrando infratores presos na tela, através do Disque-Denúncia o programa faz um


apelo para que mais vítimas entrem em contato com a produção ou com a polícia. A própria
polícia admite que o BU ajuda na solução dos crimes.

No telejornal é visível um acordo entre a produção do programa e a polícia, tornando-


se muito comum a troca de elogios. (E1, R1.1; 1.5; 1.19; 1.20; 1.27 e 1.33). Já o Poder
Judiciário, visto como uma instituição lenta e ineficiente, não tem o mesmo tratamento,
conforme vimos acima (E1, R1.28 e 1.29; E2, R.1.11, E3, R3.3). Essa característica reforça
ainda mais o argumento que o BU age no sentido de substituir o Poder Judiciário.
Datena procura passar uma imagem positiva da polícia como instituição mantenedora
da ordem, contrastando bruscamente com o mundo do crime: bandidos, vagabundos,
delinqüentes. A polícia nunca é mostrada batendo em alguém. A força só é usada em
legítima defesa. Notamos esse acordo mútuo no diálogo entre Datena e o delegado no caso
do estuprador.
DT.: “Tá na gaiola”. Em primeiro lugar parabéns pela eficiência do Delegado. É...é...em
quanto...acho que não deu nem 24 horas daquilo que o senhor me dizia... é.. para prender
esse bandido que depilava as vítimas, não é Dr?
Dr.: Datena, a promessa foi cumprida. Tá preso o indivíduo. Hoje nós conseguimos mais
dois reconhecimentos positivos.. já se somam três os casos concretos que ele praticou aqui.
(...) (E1, R1.4).
DT: (...) Chega uma situação que não dá mais prá agüentar não é verdade?
Dr.: Mas a polícia está trabalhando bem, a polícia está empenhada. Está fechando o cerco, a
polícia está trabalhando bem, viu Datena, a gente tá ganhando bastante a guerra (...) (E1,
R1.18).

O delegado, por sua vez, elogia o programa, agradecendo pelo excelente trabalho que
o BU faz mostrando os infratores para que as vítimas os reconheçam, facilitando a ação da
polícia.
DT.: É importante então a gente colocar o rosto dele aí não é... importante (imagem do
rosto).
Dr.: Sem dúvida, sem dúvida. Hoje duas vítimas vieram à Delegacia em função do trabalho
da mídia que muito nos ajuda.
DT.: O trabalho da mídia o senhor diz era o Brasil Urgente que estava aí com exclusividade.
Dr.: Sem dúvida alguma (E1, R1.26).

178
Ao mostrar os infratores, o BU ajuda a polícia a prendê-los, transformando-se em
uma instituição de utilidade pública. A situação dos infratores se complica depois que eles
são mostrados no BU, conforme diz o repórter:
(...) Dr.: Sem dúvida alguma, o Brasil Urgente tem nos ajudado muito há não muito tempo,
num caso de seqüestro agora esse, e isso sempre nos ajuda a aumentar aí o solucionamento
dos crimes na nossa área (E1, R1. 33).

Em seu discurso, Datena justifica a ação da polícia em relação ao uso de arma:


Roubam o carro, e chegam atirando na polícia queriam o que? Se o bandido chega atirando
na polícia ele vai ter como resposta bala. Você recebe o que você dá. Não adianta ficar
criticando a polícia.. hã... porque a polícia, a polícia está sendo muito insensível! O bandido
desce, prega fogo na polícia, o bandido quer o que? (E3, R).

Sabemos que nem sempre é assim, mas Datena argumenta que a polícia somente está
cumprindo com o seu dever e atuando em legítima defesa. Uma generalização que justifica
os altos índices de violência policial, incluindo execuções. 81
O programa se propõe a fazer justiça aos indefesos. No entanto, um bom observador
que assiste ao telejornal, logo vai perceber formas comuns de desrespeito aos direitos
humanos na mídia: incitação ao crime, à prática da tortura, linchamento e outras formas de
violência, discriminação racial, desrespeito à dignidade de pessoas e grupos de pessoas
fragilizadas, como deficientes físicos, doentes mentais, dependentes químicos, portadores
do vírus HIV, entre outros, tratamento preconceituoso da sexualidade e da liberdade sexual,
divulgação de imagens de pessoas internas (incluindo menores) em instituições de privação
de liberdade ou de tratamento de saúde, ou mesmo de pessoas detidas pela polícia, sem a
autorização das mesmas, imputação de autoria de crime a pessoa sem provas ou
condenação transitada em julgado, entre outras. Agindo assim, o Brasil Urgente mostra que

81
A atuação da PM foi discutida no dia 24 de fevereiro de 2005, em audiência pública convocada pela
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo. Na ocasião, organizações de direitos
humanos denunciaram a violência policial que se manifesta de diversas formas: agressões, assassinatos,
invasões de domicílio, extorsões de dinheiro e ameaças. Segundo o deputado estadual Renato Simões (PT),
presidente da comissão, em 2001, foram registrados 385 homicídios praticados por policiais, em 2002, 541, e
em 2003, os números saltaram para 868. Já em 2004 esse número caiu para 500, que já é muito elevado. De
acordo com o ouvidor da polícia do Estado de São Paulo, Itajiba Farias Cravo, em 2003 foram feitas 2.732
denúncias contra policiais e em 2004 foram 3.408. Entre as três principais queixas estão casos de abuso de
autoridade e de resistência seguida de morte, alegação que costuma ser usada para encobrir e justificar
assassinatos praticados por policiais. A maioria desses crimes, no entanto, permanece impune. Cf., Fernanda
SUCUPIRA, Violência Policial segue recorrente no Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.forum.direitos.org.br/?q=node/view/2848>. Acesso em 03 mar. 2005.

179
também não consegue ser eficiente na resolução de problemas da sociedade em crise, da
qual ele próprio é fruto.

A consagração de Datena à frente do BU como um verdadeiro instrumento de pressão


e resolução de problemas é demonstrada na segunda edição do programa analisada. O
repórter Edie Póllo traça elogios às qualidades de Datena:
Ah Datena, cada dia eu me convenço mais que você é o cara, viu, você é um defensor do
povo, bastaram duas intervenções aí sua no programa choveu perícia aqui, meu irmão, estou
até de guarda-chuva, tem gente aqui agora até parece celebridade, tem perito atrás, tem
perito aqui na frente, tem perito do lado, tá todo mundo trabalhando direitinho (...) (E2,
R1.15).
Tem-se a impressão de que o apresentador tem o poder para resolver todos os
problemas e ele realmente dá ordens às instituições. Na reportagem sobre o atropelamento
(E2, R1), quando finalmente a perícia já estava no local Datena exige também o carro do
IML:
(...) Agora eu quero ver quanto tempo vai demorar para o Instituto Médico Legal aparecer,
porque a perícia já tá aí. (...)
EP: Ah Datena, é só você dá dois gritos prá saí. Grita aí que os homens aparecem! (...) (E2,
R1.18).

O repórter chega a comentar: “nós gostaríamos de ver (as coisas) funcionando, sem a
intervenção do Brasil Urgente (...) (E2, R1.15). Essa postura sugere que a sociedade
somente funciona com a atuação do programa.
Grande parte do discurso de Datena é voltado para a defesa dos pobres e injustiçados.
Aproveitando-se da origem humilde e trabalhadora do presidente Lula, Datena dirige-se a
ele em nome dos favelados para exigir uma política habitacional (E3, R2). Agora com o
BU, eles têm quem fale por eles. Demonstrando familiaridade com o presidente e ao
mesmo tempo vínculos com o povo, consegue atrair a atenção do telespectador que se
identifica com o discurso. Em Datena, o povo fala com o presidente numa linguagem que
ele entende porque tem a mesma origem.
(...) “Presidente Lula, o senhor que vem da camada de trabalhadores, de pobres, da maioria
desse país, vamos atentar prá falta de moradia!” (E3, R2.4). (com voz alterada).

Mais adiante fala de sua admiração pela pessoa do presidente, faz elogios, diz estar
com ele, mas faz também uma cobrança firme:
(...)Eu já disse aqui, eu morro abraçado com o Lula, mas ô presidente, me ajuda aí

180
presidente! Me ajuda aí... ô! Eu confio no senhor prá caramba, agora me ajuda aí presidente!
Olha o que tem de fila aí presidente! Quer dizer muda aquela porcaria daquele governo do
Fernando Henrique, nós vamos continuar com essas filas enormes aí também? Ora me ajuda
aí seu presidente! Me ajuda aí porque senão vou ter que mandá a lenha! E me dói no coração
mandá a lenha no senhor porque sei que o senhor é uma pessoa honesta, descente,
trabalhador, eu confio no senhor. Agora me ajuda aí porque senão vai pau em você também!
(música) hã.. Barbaridade seu! (E3, R3.5).

Não deixa escapar a oportunidade para criticar a forma eleitoreira com que a
Prefeitura de São Paulo realiza as obras na cidade:
DT.: (...) Agora só se ouve falar em grandes obras. Época de eleição municipal só grandes
obras, né, obra daqui, viaduto daqui, viaduto dali, “veado” pra cá, viaduto prá tudo quanto é
lugar! (gritos) Só não tem é moradia prô povão. Isso não tem! Obras prá aparecer tem em
todo o lugar, he (E3, R2.4).

Datena se apresenta como um homem de bem lutando ao lado da polícia contra o mal
(bandidos, estupradores, assassinos, ladrões, corruptos, vagabundos, canalhas, crápulas...).
A presença da polícia até tem sua razão de ser dentro da lógica do imediato: ela é solicitada
para purificar imediatamente. Além de ser um elemento purificador da violência, Datena
luta também para melhorar as condições de vida da população na saúde, segurança,
educação, criar cidadania e contribuir para os debates com “pesquisas”. Os políticos,
preguiçosos, corruptos, ausentes e enganadores são alvos de pesadas críticas. Com isso, o
apresentador se solidariza com a população menos favorecida na luta do bem contra o mal
numa sociedade degradada.

A produção de estrelas e celebridades é uma das marcas da indústria cultural. Elas


estão entre o imaginário e o real; são ao mesmo tempo humanos e divinos. São vedetes da
cultura de massa. A publicidade é quem mais explora o lado sobre-humano das estrelas.
Aproveitando de suas características como modelos de vida, os publicitários aproveitam
para, através disso, vender produtos. Isso, de certa forma está também presente no
telejornal. Datena é mais uma dessas estrelas que no contexto do BU é heroicizada,
divinizada, mais que objeto de admiração. No gênero sensacionalista de telejornal Datena é
hoje ponto de referência, modelo que vende soluções no contexto da cultura de massa. Ele
assume com muita propriedade o papel sacerdotal de mediador.

181
Na perspectiva da crítica feita por Adorno e Horkheimer de que a indústria cultural
constrói sem parar, estrelas de cinema e TV, do esporte e da música, heróis de toda a
espécie e personagens “sagradas”, Datena aparece como mais um produto da era
tecnológica avançada. Na lógica do gênero sensacionalista, ele se apresenta com soluções
que depois de vendidas e consumidas desaparecem sem, de fato, surtir efeitos concretos na
resolução dos problemas.

O contexto social perturbado pela violência e pela busca de proteção cria condições
para o surgimento de novas soluções que serão apresentadas da mesma forma, criando um
círculo vicioso de necessidades, apresentação de soluções-produtos, consumo,
insatisfação... Tal círculo torna-se um complexo ritualístico (violência real do mundo,
violência comunicativamente consumida, medo, condutas consumistas, descarga,...) que se
propõe a reordenar a vida social.

Diante da dificuldade de se eliminar de vez a violência, a sociedade tecnológica


contemporânea se serve de canais por ela mesma engendrados, os programas
sensacionalistas, para garantir um processo estrutural de sublimação: definindo padrões
legítimos, toleráveis para a violência evitando que ele se transforme em contestação
racional. Em outras palavras ela cria um mecanismo para canalizar a agressividade inerente
nas relações sociais e interdita e controla a violência sistêmica.

Nessas condições, o conjunto de soluções se converte, sem problemas, em


mercadoria, em violência comunicativamente consumida, naquilo que, como espetáculo vai
proporcionar aos telespectadores. A cultura do espetáculo utiliza a informação-mercadoria
e a imagem-mercadoria para responder à mais um imperativo da cultura de massa. A busca
incessante do entretenimento reduzido a tempo de consumo. A sociedade se transformou
numa sociedade de “voyeurs”, fenômeno de comunicação como consumo e produção de
imagens espetaculares e instalou o espetáculo em todas as instâncias comunicativas.

O jornalismo, que por ética deveria contribuir para o questionamento público mais
conseqüente, mais profundo, desse processo, faz parte dele, ratificando-o segundo as regras

182
do mercado, do qual depende para a sua sobrevivência. É neste âmbito que a violência e a
cultura mediática, no contexto da indústria cultural, se encontram ligadas, permitindo
afirmar que o telejornal em questão é comparável a uma mercadoria que prospera na
sociedade de consumo.

183
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo chegado ao final do nosso percurso, convém ainda traçar algumas


considerações que podem ajudar a aprofundar questões acerca do sensacionalismo no
telejornal, ou até mesmo, servir de estímulo para futuras investigações.

O que motivou a realização do presente estudo foi o fato de constatarmos que, apesar
das mudanças, o telejornalismo sensacionalista, ainda hoje, continua ocupando o horário
vespertino da programação televisiva. No período pesquisado (junho de 2003 a junho de
2004), observamos que os três principais programas, “Brasil Urgente” na Bandeirantes,
“Cidade Alerta” na Rede Record e “Repórter Cidadão” na Rede TV concorriam
diretamente, no mesmo horário, com formatos muito semelhantes e o mesmo perfil
editorial: cobrir os fatos violentos e as desgraças, que cercam principalmente a cidade de
São Paulo. Obviamente, os três programas juntos não atingiam os recordes de audiência do
extinto “Aqui Agora”, mesmo porque na época, ele era único no segmento. Em outro
horário, a Rede Globo não fica atrás na produção do gênero e segue exibindo o “Linha
Direta” .

Diante disso, nos propomos a entender melhor o que motiva a criação do telejornal
sensacionalista e o que está por trás de sua mensagem, linguagem, forma e estilo, que dá
tanta ênfase à violência, ao crime, à desgraça. Como referencial nos apoiamos na teoria
crítica elaborada por Adorno e Horkheimer, no conceito de sociedade do espetáculo
proposto por Debord e nas investigações de Girard sobre a violência, bem como de autores
e pesquisadores da comunicação.

Embora tenham audiência, telejornais que retratam o “mundo-cão” vêm recebendo


muitas críticas de grupos e entidades preocupados com a qualidade e a ética na
comunicação. Críticos que apóiam a campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a
Cidadania”, consideram que as emissoras se valem de uma concessão pública para
transformar a violência em espetáculo, quando deveriam propor um debate mais
aprofundado sobre o assunto e ajudar a sociedade a encontrar soluções.

184
Observamos que a presença de telejornais sensacionalistas, assumindo características
típicas de produtos da indústria cultural, em constante transformação, contribui para um
acúmulo de imagem e espetáculo sempre renovados. Nessa perspectiva fica evidente uma
das características mais marcantes da indústria cultural na sociedade contemporânea: a
constante produção e oferta de novos produtos que se transformam para serem mais
facilmente consumidos pelo público. Identificados como produtos de consumo, os
programas sensacionalistas geralmente passam por mudanças contínuas. As transformações
visam adequá-los às regras do mercado, para reaparecer com uma nova roupagem,
assegurando assim a continuidade do gênero.

Ao seguir progressivamente a lógica do mercado visando o consumo e adotando a


linguagem de espetáculo, o telejornalismo informa cada vez menos. Além disso, na medida
em que o próprio público se transforma em mercadoria, passível de ser vendida aos
anunciantes, se dedica a ampliar o seu público, não mais como cidadãos reunidos para criar
cidadania, mas como consumidores anônimos, como massa. O telejornal não vende
publicidade aos seus telespectadores, mas sim a sua audiência, medida em pontuação, para
os anunciantes. Isso revela o processo pelo qual passa a comunicação na disputa por
espectadores diante do crescente controle dos meios pelos grandes grupos financeiros. Com
o advento da comunicação de massa, a ética do jornalismo sério, objetivo, baseada na
verdade factual, está diante de dois desafios: a produção do público enquanto massa a ser
comercializada e a fusão da reportagem, pelas técnicas de ficção, com o entretenimento
reduzido ao espetáculo. Este fenômeno pôde ser evidenciado no “Brasil Urgente” (BU).

Notamos ainda que o sensacionalismo está vinculado à mercantilização da


informação. Normalmente o que se vende são aparências, pois o desenvolvimento da
reportagem não acrescenta quase nada ao que já se anunciou na manchete. Nesse sentido,
tornar uma informação sensacionalista, encontra-se na natureza da produção do discurso e
na natureza comercial do produto: fazer negócios com a divulgação de escândalos e de
crimes, e por que não, de soluções ilusórias para os problemas da sociedade.

185
Ainda que resistamos em admitir, percebe-se que o sensacionalismo, de modo geral,
parece ser a forma de jornalismo mais adequada à sociedade do espetáculo na busca por
soluções rápidas e imediatas. Esse gênero de certa forma reúne, em sua estrutura interna e
em seus efeitos, aspectos marcantes da nossa cultura. É nele, por exemplo, que podemos
encontrar o excesso do crime, da violência, da destruição, da miséria, do anormal, da
perversão, da corrupção, da agressividade. Nele encontramos ainda a obscenidade, onde as
imagens expõem, sem meias-verdades, acompanhadas de um discurso cru, irônico e cínico
ao mesmo tempo, o que o jornalismo sério (objetivo, iluminista) não faz, seja por rigidez
moral, vinculada a características de seu público ou das categorias sociais a que se dirige,
seja por ética interna. Na fusão da notícia com produtos de consumo, no gênero
sensacionalista, conforme faz o BU, encontramos também uma expressão do mercado
disposto a tudo vender para gerar lucros. Num quadro cultural que banaliza a morte, a
destruição, a perversão e o anormal, o sensacionalismo encontra na estética enquanto
choque, a sua melhor maneira de comunicar. Com exagero, ironia, cinismo e humor, indica
que nada é mais adequado à ordem imaginária atual, na perspectiva da sociedade do
espetáculo, do que a linguagem sensacionalista.

Com base nas investigações de Girard, um elemento particularmente importante na


nossa discussão é a forma como certas instituições ou mecanismos surgem na sociedade
com o papel de administrar a violência, e colocando-se acima de tudo, transformam-se em
poderes legítimos na contenção da mesma. A fim de que a legitimidade e ilegitimidade da
violência não fique à mercê da opinião de cada um, recorre-se à transcendência, religiosa,
humanista ou outra qualquer que atribua a tais instituições a utilização e a especificidade da
violência legítima ante a violência ilegítima.

O princípio encontrado por Girard pode-se resumir da seguinte forma: nas sociedades
primitivas por ele estudadas, todas as instituições humanas têm origem ritual, e o ritual
resume-se no sacrifício. O sacrifício consiste em descarregar sobre um bode expiatório os
ódios e tensões acumulados que ameaçavam romper a unidade social. Tais tensões, por sua
vez, surgem da impossibilidade de conciliar os desejos humanos. A razão desta
impossibilidade reside no caráter mimético do desejo: o ser humano não deseja isto ou

186
aquilo simplesmente porque sim, porque é bonito, porque é gostoso, porque satisfaz alguma
necessidade, mas sim porque é desejado também por outro, cujo prestígio cobre de
encantos, aos olhos do primeiro, um objeto que em si pode ser inútil, ruim, feio ou
prejudicial. O mimetismo e sacrifício do bode expiatório são temas dominantes da
mitologia universal e do complexo sistema de ritos sobre o qual se constrói, aos poucos, o
sistema político e judiciário. A vítima é escolhida entre as criaturas isoladas, sem grandes
vínculos com a sociedade cuja morte não ofenderá uma família, grupo ou facção: ela não
tem vingadores, sua morte portanto detém o ciclo da retaliação mútua. Mas a paz é
provisória. Por um tempo, é suficiente a recordação do sacrifício para restabelecê-la. Nesta
fase a vítima sacrificial se torna retroativamente objeto de culto, como divindade ou herói
cultural. Quando o sistema ritual perde sua força apaziguadora, renascem as tensões,
espalha-se a violência que, se não encontrar novas vítimas sacrificiais, colocará em perigo a
existência da comunidade. A sociedade humana ergue-se assim sobre uma violência
originária, que o rito ao mesmo tempo encobre e reproduz. Mas o sacrifício não tem, por si,
o poder de gerar efeitos benéficos. Se estes acabam por se produzir, é por intermédio da
crença generalizada que descarrega os ódios sociais no bode expiatório e aplaca uma sede
de vingança irracional que a sociedade atribui a um deus, mas que vem dela mesma. Esta
crença, por sua vez, vem do desejo mimético.

Para Girard há dois tipos de violência: a violência purificadora (que é a violência


religiosa purificadora do sacrifício) e a impura (que destrói a comunidade, a violência do
conflito mimético). Assim, a violência do sacrifício é considerada, pela sociedade, um ato
sagrado, sobrenatural que purifica a violência interna. Uma vez sacralizada, ela irá purificar
a violência comum.

Os dois tipos de violência continuam a existir só que, ao longo dos tempos, a forma
de sua implantação se modificou. Girard observa que nas sociedades arcaicas, a violência
purificadora era aplicada, de forma preventiva, pelos ritos sacrificiais e mais tarde, nos
tempos modernos, ela passa a ser aplicada de forma mais eficiente e curativa, pelo sistema
judiciário respaldado pelo poder do Estado. Percebe-se uma violência maléfica, quando
cometida pelas mãos de infratores, e benéfica quando circunscrita ao sistema judiciário.

187
Entretanto, na sociedade moderna, o sistema judiciário revela-se incapaz de operar
satisfatoriamente, criando a possibilidade para o surgimento de outros mecanismos
destinados a purificar a violência. No nosso estudo, levantamos a hipótese de que os
telejornais sensacionalistas, com sua forma e estilo como observado no BU, surgem para
assumir esse papel. Em comum a todos os mecanismos persiste a pretensão de purificar a
violência da sociedade.

No sensacionalismo encontra-se também a função da mídia enquanto organizadora da


sociedade e da cultura, que, diante da ineficiência das instituições do Estado de direito deve
recorrer, por exemplo, a programas como o BU, para resolver os problemas decorrentes da
violência. Nesse sentido, a existência e o sucesso de programas desse tipo mostram o
descrédito na justiça e nos levam a imaginar que em sociedades onde o sistema judiciário
funciona satisfatoriamente, esse gênero de programa talvez não consiga o mesmo sucesso.

Sabemos que Girard não desenvolveu a sua teoria com o objetivo de analisar a
sociedade de consumo contemporânea. Contudo, seus pressupostos acerca do “desejo
mimético de apropriação” podem ajudar a entender os mecanismos do capitalismo, onde a
concorrência (competição e inveja) é considerada elemento essencial ao progresso. Na
opinião do autor, movido pelo desejo mimético, o indivíduo não escolhe os objetos de seu
desejo, é o outro (modelo) que deve escolher para ele. A publicidade trabalha com modelos
e funciona como um reforço diário da ideologia do princípio da valorização das aparências,
da promoção de símbolos de status (carros, roupas, cosméticos, celulares...). O que está em
jogo é a promoção de puras aparências: não se compra mercadorias por suas qualidades
inerentes nem pelo seu valor de uso, mas pela imagem que o produto proporciona no
ambiente de vida do consumidor. A imagem passa por um modelo apresentado para ser
imitado e conseguir realizar o que a mercadoria promete. Nenhuma dessas mercadorias
realizam de fato o que prometem, no entanto, o objeto simboliza para o consumidor uma
síntese daquela vida vivida pelo modelo. Segundo a lógica do desejo mimético, a posse de
um objeto desperta inveja em outros, pois eles também desejam. Além disso, o ser humano
somente é reconhecido à medida que consegue possuir os bens (mercadorias, propriedades,
serviços, títulos...) desejados pelos outros. A auto-realização na sociedade de consumo está

188
em ser reconhecido pelo fato de possuir algo que muitos desejam e só alguns têm. Por essa
razão, Girard vai afirmar que o sistema capitalista neoliberal no mundo globalizado tem em
sua alma o desejo mimético.

O capitalismo liberal auto-regulador e auto-suficiente se legitimou exatamente


apresentando-se como um sistema econômico e social capaz de realizar todos os desejos
humanos que são infinitos por definição, através de produção e consumo ilimitados de bens
econômicos. Mas, ao mesmo tempo, pela sua perversidade, pode causar violência,
exclusão, morte, criar uma classe com o mesmo padrão de consumo, necessidades,
aspirações, preconceitos, valores, fortalecendo a cultura da competição e a ação do desejo
mimético postulado por Girard. Um dos segredos do dinamismo do sistema capitalista é a
acumulação de riqueza, de mercadorias, como o único ou o melhor caminho para satisfazer
o desejo de ser, poder e aparecer. Acontece porém, que o pensamento econômico não
trabalha com necessidade (o necessário, limitado), e sim com o desejo que não tem limites
e por isso, nunca consegue ser saciado.

A televisão é uma referência ao mesmo tempo onipresente, em tempo real, e


dispersiva. Ela apresenta um mundo fragmentado e descentralizado, no qual a mercadoria
oferece-se o tempo todo, produzindo cada vez menos sentido, centrando-se mais no ato
imediato do consumo. As notícias e produtos de consumo apresentados em forma de
espetáculo pelo BU, na sua grande maioria, não passam de soluções ilusórias e imediatas,
destinadas a preencher um vazio no cidadão (consumidor) que quanto mais consome, mais
vazio sente.

Por certo, a sedução das aparências sempre existiu. Mais do que saber quando o
sensacionalismo surgiu, o importante é entender o que ele representa hoje numa sociedade
que aparenta desenvolver um jornalismo sério, crítico, objetivo, iluminista. Nos
perguntamos se estaríamos diante não somente de um gênero jornalístico, paralelo ao
gênero informativo, sério, mas de uma crítica ao próprio jornalismo que hoje, cada vez
mais dependente dos interesses do mercado, deixa muito a desejar no tocante à
objetividade, à verdade e à honestidade. Elucidar as diferenças entre o jornalismo tido

189
como sério e o gênero sensacionalista contribui para reafirmar a verdadeira vocação da
imprensa que é a de iluminar a sociedade, garantir o direito à informação e à liberdade de
expressão para criar cidadania.

Mesmo que alguns estudiosos, como Ciro Marcondes Filho, afirmem existir o
sensacionalismo no jornalismo em geral, o gênero tem características que lhe são
peculiares: o estilo, a linguagem chocante, o apelo emocional, a forma, a busca do fait
divers, a duração das reportagens, a repetição, o tempo presente, a postura do apresentador,
o uso da teledramaturgia, da ficção.... Entendemos também que o sensacionalismo é um
tipo de espetáculo, mas nem todo espetáculo é sensacionalista. A forma como o telejornal
de qualidade anuncia e mostra as imagens de uma rebelião, por exemplo, em muito se
difere daquela utilizada pelo gênero sensacionalista. Um pouco de sensacionalismo pode
até aparecer no telejornal sério, mas essa característica é uma marca que identifica
sobremaneira o gênero popularesco. O modo de perceber, estruturar e organizar o real,
geralmente mais adequado à realidade cultural, política e econômica das populações
periféricas, se diferencia do jornalismo comum. Enfim, o jornalismo sensacionalista é uma
atividade de identificação e exacerbação do caráter singular dos acontecimentos através do
destaque, acréscimo ou subtração de elementos lingüísticos, visuais, sonoros e ideológicos
e da repetição de temáticas que contêm conceitos e valores que se referem à violência, à
morte e à desigualdade social.

Diríamos que o sensacionalismo consegue dar conta de uma questão estrutural do


imaginário das massas vinculadas aos meios de comunicação. A tendência hoje, é de fazer
as produções culturais mais para serem consumidas pelo imaginário, pela emoção do que
pela razão. O efeito sensacional sugere, substitui e repete enunciados, mas pouco se presta
para esclarecer, ajudar a processar as informações e gerar conhecimento. Por estabelecer
uma forma de comunicação emocional, perde o impacto inicial após a matéria ser mostrada
e consumida pelo telespectador. O noticiário precisa continuar na próxima edição,
apresentando novamente o fato numa embalagem espetacular, capaz de provocar sensações,
medos, ansiedades, curiosidades, fantasias, projeções... sem estabelecer uma relação com o
senso crítico do público.

190
Com a liberação total da velocidade tecnológica, tudo se faz mais reciclável,
excessivo e veloz. A própria violência se libera, multiplicando suas formas e manifestações.
Simultaneamente, intensifica-se na cultura uma curiosidade sádica e mórbida e um fascínio
permanente, em relação a essa violência. Nessa perspectiva, o sensacionalismo funciona
como uma forma de produção cultural que busca intensamente satisfazer esses desejos. Os
estudos da recepção podem ajudar a aprofundar essa questão.

Embora pautado pelo sensacionalismo e a demagogia, o BU, juntamente com outros


telejornais do gênero, tem o mérito de, bem ou mal, resgatar para o horário nobre da TV o
cotidiano das camadas populares da nossa sociedade. O programa vem a reboque da
manchete que é capaz de fazer o telespectador parar e assistir apenas por atração, por
sensação, por impacto, por curiosidade despertada. Esse estilo não só atraiu o público das
classes A e B mas chegou até mesmo a influenciar o formato do jornalismo sério, como por
exemplo o Jornal Nacional que, por vezes, passou a ampliar o tempo dado às reportagens
policiais, apresentando-as no primeiro bloco.

A produção de telejornais como o BU mostra ainda um outro aspecto importante da


dinâmica da indústria cultural, que é o re-processamento de matrizes da cultura através dos
gêneros. A reciclagem de matrizes tradicionais como o melodrama, o cômico e o grotesco é
o que, muitas vezes, permite a interação dos produtos mediáticos com o cotidiano das
classes populares que se identificam com aquilo que é apresentado. O telejornal
sensacionalista não se limita apenas ao noticiário das ocorrências policiais, e episódios de
desgraça vividos pela população, mas a partir delas recria, de forma dramatizada e
espetacular, a história dos personagens envolvidos nesses fatos. A utilização desses gêneros
pelos meios de comunicação visa estabelecer um diálogo com o público. Isso nos leva a
uma outra questão que diz respeito à linguagem e ao estilo próprio do telejornalismo. Para
estabelecer uma interação com o público, a televisão utiliza recursos da teledramaturgia e
da ficção. Inserindo-se na televisão, o jornalismo parece ainda não ter encontrado uma
linguagem apropriada para o meio.

191
Existe também um elemento de complementariedade e compensação: quando a
televisão mostra o crime, a dor, a miséria, o medo, a tragédia, a desgraça, a morte, ela o faz
para contrabalançar ou até mesmo justificar o belo, o feliz, o festivo apresentado. Se a TV
não mostrasse a dor, a miséria e a morte, ela teria maior dificuldade de cultivar, ao mesmo
tempo, a nostalgia do prazer, da alegria e da felicidade. Nesse sentido, o BU desempenha
um papel de contraponto da situação de tranqüilidade almejada.

A violência é um forte componente dos conteúdos da televisão e de certa forma serve


para reforçar e reproduzir os mecanismos sociais e a estrutura de uma sociedade violenta. O
fora-da-lei, o criminoso, o marginalizado, o diferente, o ousado, o irresponsável, o corrupto
sempre acabam mal, pois o que vale é viver sob o padrão exigido. Nessa linha, a violência
da TV é idêntica à violência com que a sociedade trata todos aqueles que ousam romper
com esse princípio da realidade e desafiá-lo. Talvez, seja por isso que ela é valorizada. Ao
que tudo indica, a violência não deixa de alimentar o telejornal que ao retratá-la reproduz
uma visão de mundo violento e fora de controle, justificando a própria existência de
telejornais do gênero, que por sua vez, é por ela alimentado. O conteúdo é facilmente
identificado pelos telespectadores que, de certa forma, viveram ou estão vivendo
experiências de violência igual ou parecida com aquelas que estão assistindo na televisão.
O espectador consome a punição feita através do telejornal, dando a sensação de que tudo
está resolvido. É nesse sentido que telejornais sensacionalistas podem funcionar como uma
catarse, dissipando, momentaneamente e de maneira ilusória, as tensões sociais.

Embora precisem ser revistas e atualizadas em vários aspectos, muitas das teses
frankfurtianas valem hoje em dia muito mais do que no tempo em que foram formuladas.
Essa afirmação serve também para as posteriores investigações de Debord acerca da
sociedade do espetáculo. Os nossos pensadores criticaram a cultura de massa não porque
ela fosse popular, mas sim, porque boa parte dela conservava as marcas das violências e da
exploração a que as massas foram e têm sido submetidas. A linguagem empobrecida, do
fait divers, o menosprezo do saber, a exploração das emoções, do chocante, da futilidade,
da brutalidade, do grotesco, que encontramos em tantas expressões da mídia, como
podemos observar no gênero sensacionalista, revelam que há muitas pessoas sensíveis a

192
esse tipo de estímulo. Contudo, não podemos afirmar que este estado seja algo natural, nem
tão pouco algo criado pela comunicação. A prática da indústria cultural, ao longo da
história, nada mais fez do que explorar essa face da cultura, e movida por interesses
econômicos, oferece produtos que vão ao encontro dos desejos do público criados pela
própria mídia. Tira-se proveito até mesmo do desejo de se acabar com a violência.
Conforme podemos ver, o crescente interesse da televisão por episódios contendo um certo
grau de violência, salvo raras exceções, é caracterizado mais pelo espetáculo do que pela
busca de soluções.

Uma das denúncias feitas por Adorno e Horkheimer, na elaboração de sua teoria
crítica, é a constatação de que o ser humano está cada vez mais subjugado à utilização da
ciência e da técnica como mecanismos de dominação. Sua relação com as pessoas e com a
natureza continua dependente de uma cultura de mercado, que o impede de se tornar um
indivíduo autônomo, independente e capaz de julgar e de decidir conscientemente. Tal
dependência tem sua mola motora no desejo de posse, constantemente renovado pelo
progresso técnico e científico controlado pela indústria cultural. A lógica do sistema
capitalista vigente no mundo globalizado, impulsionado pelo desejo mimético acirra a
competição, provocando a inversão do “ser” pelo “ter” que se expressa no “parecer”. Os
indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir as imagens de tudo o que lhes falta em
sua existência real. Isso está afetando até mesmo as relações humanas. Conforme preconiza
Debord, as relações sociais se dão cada vez mais mediadas por imagens e espetáculo. Essa
tendência ganha força na superabundância de imagens que nos são apresentadas pelos
gestores do espetáculo. Analisando o telejornal sensacionalista no contexto da indústria
cultural e da sociedade do espetáculo, observamos várias características que reforçam e
legitimam essa lógica, refletindo uma tendência da sociedade contemporânea.

193
BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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Caderno 2, São Paulo, p.D3, 27 ago. 2001.

Fonte da Pesquisa
Telejornal “Brasil Urgente”, TV Bandeirantes, apresentado por José Luiz Datena
de segunda a sábado. Amostra de reportagens gravadas em diferentes edições no
período de junho de 2003 a junho 2004.

200
ANEXO

201
TRANSCRIÇÃO DAS REPORTAGENS ANALISADAS
Telejornal “Brasil Urgente”, Rede Bandeirantes.

I. EDIÇÃO 1 (E1) (Exibida no dia 09 de junho de 2003).

REPORTAGEM 1 (R 1): O ESTUPRADOR QUE DEPILAVA

(O apresentador José Luís Datena abre o programa saudando os receptores e


anunciando a pesquisa do dia: “O Exército deveria combater o crime nas ruas?” Sim ou
Não. Os telespectadores são convidados a participar ligando para os dois números
disponíveis na tela. Uma plataforma na tela mostra em tempo real a votação. Até o fim
do programa serão sorteados, entre os participantes da pesquisa, cinco aparelhos de
telefone celular, marca “Siemens”, promoção das Casas Bahia. A seguir, Datena chama
a atenção para a primeira reportagem).

1. 1 Datena (DT): Olha, foi preso o estuprador que depilava as suas vítimas e as obrigava a
assistir filmes pornográficos. O repórter Lúcio Tabarelli (LT) entrevistou com
exclusividade uma das mulheres atacada pelo maníaco. Mas antes disso acho que o
Figueiredo (FIG) (outro repórter) já está pronto, o Figueiredo. Deixa antes eu ver a
reportagem, depois eu falo com o Figueiredo ao vivo. Ele está na Delegacia, esse
bandido, não é, que nós mostramos em primeira mão ontem. Estuprava as mulheres, foi
preso por 13 anos, depois foi solto. Estuprava as mulheres, mas antes obrigava as
mulheres a se depilar. A ... a .mulher tinha que se depilar para que ele e..e...estuprasse
essas mulheres. Uma calamidade, uma barbaridade inaceitável. E o Delegado me dizia
ontem “Datena amanhã o sujeito tá na cadeia”. O Figueiredo já fala comigo, Simão ou
não? O Figueiredo já fala comigo... Pois não, Figueiredo (entra o repórter já na
Delegacia).
Legenda: PRESO ESTUPRADOR QUE OBRIGAVA VÍTIMAS A SE DEPILAR.

1. 2 FIG: Pois não Datena, é verdade o Frederico foi preso, o Frederico Adriano (FA) e ele
está aqui na Delegacia ele tem a chance de se defender aqui, boa noite Datena. Frederico
você quer falar alguma coisa, se defender? Você confessa que você praticou o estupro
com três mulheres?
FA: Não...não...
FIG: Não praticou?... elas reconheceram você. Três vítimas já. O que você tem a
falar?...O que você tem a falar? Você está ... por que você esconde o seu rosto?
FIG: Você, você depilou uma das vítimas?
FA: Não...
FIG: Você não depilou nenhuma Frederico? Por que, por que que você fez isso com
essas três mulheres? Você é inocente? Você sabe que você foi reconhecido por três. O
que você tem a falar?... (O Datena interrompe).

1. 3 DT: Vagabundo, sem-vergonha! (O repórter continua).

202
FIG: É essa a sua chance de se defender...
Não quer falar nada não. Tá ao vivo aqui Datena, você não quer se defender? Por que
não?
(O acusado não responde, apenas caminha escoltado por um policial mantendo o rosto
tapado com a blusa. Datena interrompe).
DT: Figueiredo
FIG: Você confirma, você confirma os três ...estupros?....Não confirma? Ta aí
DT: Figueiredo...
FIG: Ele não que falar...
DT: Ele não vai falar, não vai falar...
FIG: Virou um inocente...virou inocente!
DT: Agora, o .... Figueiredo..
FIG: Pois não, Datena.
1. 4 DT: O Delegado está aí não é?
FIG: Está aqui, o Dr. Mário Sérgio está aqui.
DT: O Dr. Mário Sérgio!
FIG: O Dr. Marco Aurélio Batista.
DT: Marco Aurélio.
FIG: Ele que presidiu o inquérito... já estava...
DT: Figueiredo.
FIG: Pois não!
DT: Olha o ... Dr. Marco Aurélio me dizia ontem...
FIG: Exato
1. 5 DT: “Tá na gaiola”. Em primeiro lugar parabéns pela eficiência do Delegado. É...é...em
quanto...acho que não deu nem 24 horas daquilo que o senhor me dizia... é.. para prender
esse bandido que depilava as vítimas, não é Dr?
Delegado (Dr) : Datena, a promessa foi cumprida. Tá preso o indivíduo. Hoje nós
conseguimos mais dois reconhecimentos positivos.. já se somam três os casos concretos
que ele praticou aqui. Eu que interroguei ele com... com bastante detalhes hoje e ele
confessou os três delitos praticados...
DT: Confessou, é?
1. 6 Dr: Confessou os três casos e disse que isso é em função de...de um ... há..há..Ele ficou
sabendo que a mãe dele tamém teria sido estuprada então isso revoltou-o e ... quando ele
saiu da cadeia agora há quatro meses ele resolveu tamém praticá é... estupros.
DT: Isso não é justificativa, não é Dr. Isso é um bandido da pior espécie que estuprava as
mulheres e ainda tinha esse desvio terrível de fazer com que as mulheres se depilassem
antes de... de...cometer esse ato abusivo, terrível. Vou conversar com Dr. Marco Aurélio
daqui a pouco um pouco mais sobre isso, ele pedia para que as mulheres se depilassem.. e
também com o Figueiredo.
(Primeiro corte).

(Datena chama a atenção para a pesquisa do dia sobre a participação do Exército no


combate ao crime nas ruas. Na legenda a plataforma sobre a pesquisa).

203
1. 7 DT: Foi preso o estuprador que depilava as suas vítimas e as obrigava a assistir filmes
pornográficos. O Lúcio Tabarelli entrevistou com exclusividade uma das mulheres
atacadas pelo maníaco. Aqui na tela da Band.
Lúcio Tabarelli (LT).: Datena há informação de que mais uma vítima está chegando
aqui na Delegacia. É essa moça?... bom ela não pode aparecer (Entrevista a moça).
Você foi vítima de estupro, como é que foi a situação? Você estava na rua?
1. 8 Moça.: Eu “tava” indo embora... quando ele me abordou... Ali ele me levou pra casa
dele.. era uma casa da tia não sei de quem que era. Aí foi lá que ele colocou uma fita
pornográfica, aí nós assistimos a fita.. quando acabou que aconteceu.
LT.: Agora, ele abordou você de que jeito na rua? Ele tinha...
Moça.: .. um óculos .. uma fita nos olhos .. acho que era... fita isolante
LT.: O que que ele dizia nesse trajeto até a casa onde ele te levou?
Moça. Eu não vou te machucar.. não vou te matar.. só isso.
LT.: Mas ele tinha o que com ele, uma arma?
Moça.:Uma faca.
LT: Uma faca.
Moça: tinha uma faca
LT: Chegando lá dentro...
Moça:… aí ele amarrou meus braços, eu não podia me mexe...E eu fiquei quieta ué o que
que eu podia faze...eu não podia faze nada né..
LT: Ele colocou um vídeo pornográfico e obrigou a você assisti?
Moça: Pois é pornográfico é era muito...era muito nojento...eu falei: eu não vou ficar
assistindo isso não. Ele falou: “você vai assisti isso sim”.
LT: Obrigado?
Moça.: Obrigado.
1. 9 LT: Depois disso em algum momento ele obrigou você a se depila alguma coisa do
gênero?
Moça: Nada... só pediu prá mim toma banho... só... ficou me olhando...ainda. Tinha um
box e ele ficou me olhando pelo box.
LT:Passou pela sua cabeça gritá, fazer alguma coisa?
Moça: Estava com um esparadrapo na boca.. me passou.. queria gritar mas eu não podia.
Eu tava com esse negócio na boca então não dava pra mim grita.
LT: Ele ficou quanto tempo com você lá dentro?
Moça: Eu acho que ficou umas 2 hora.. 2 ou 3 horas ..não eu acho que era mais ou menos
isso.
1.10 LT: Depois como é que foi o desfecho ele soltou você ou você conseguiu escapar?
Moça: .... na avenida, agora você pode ir embora foi o que ele falô pra mim.
LT: Simplesmente?
Moça:Toma cuidado.. pode encontrar alguém indesejável no meio do caminho mas pode
ir embora eu não vou mais atrás de você. O que eu queria fazer eu já fiz.
LT: Ele tinha algum sinal característico que dê pra identificar?
Moça: Tinha uma tatuagem.
LT: Que parte do corpo?
Moça: Aqui assim, nas costas. Que eu me lembro mais ou menos uma aqui. E uma no
braço... era um dragão.
LT: Um dragão?

204
Moça: Um dragão.
(Segundo corte).

1. 11 DT: Cadê aquela reportagem do Lúcio Tabarelli heim? Onde está aquela reportagem do
Lúcio Tabarelli do..do.. estuprador que foi preso onde está.... dexa eu ver na tela da Band.
(Imagem na delegacia, entra o carro da PM. O repórter Lúcio Tabarelli).

1. 12 LT: Este é o momento mais aguardado desde o início da investigação por que há a
informação de que o suspeito de estupro se encontra no interior deste carro.
(O repórter tenta entrevistar o acusado).
LT: Você cometeu os estupros...(ele não quer falar, mas o repórter insiste).
LT: O que você tem a dizer pra se defender? Oi várias vítimas já reconheceram a sua
foto...
(Imagens do reconhecimento na Delegacia. O acusado descamisado está atrás de um
vidro e uma vítima está dando depoimento ao delegado. O repórter narra):
LT: Vamos acompanhar o reconhecimento. O delegado pergunta a uma das vítimas se é
mesmo o homem que a estuprou. Veja ela diz que sim e aponta para o suspeito. Até o
final da tarde três vítimas vieram à delegacia confirmar o reconhecimento de Frederico
Adriano de 31 anos. Segundo a polícia ele foi solto apenas há quatro meses e passou os
últimos 11 anos preso cumprindo pena por estupro.

(De volta aos estúdios).


1.13 DT.: Olha tem entrevista com esse bandido confessando o crime. Tá aí, tá no ponto da
entrevista? Olha enquanto você coloca no ponto Comandante Amilton, por favor, me dá a
imagem do Comandante Amilton...
(Terceiro corte).

1.14 DT: O caso daquele estuprador que depilava as moças, fazia com que as moças se
depilassem... não é...você viu a reportagem aí antes dele cometer o ato, o ato sexual do
estupro. O bandido, vagabundo! Tem ele confessando os crimes aí, deixa eu vê na tela da
Band.
(Repete a reportagem feita na Delegacia com o repórter L. Tabarelli).
1.15 LT: Como é que foi o seu passado?
FA: eu fui abusado, eu fui abusado já ...na cadeia.. na famíla..assim que eu conheço...
infelizmente sou fruto de um “estrupo”. Isso ficou muito marcado na minha cabeça e não
consigo esquece isso...
LT: Você acha que isso é justificativa pra você violentar mulheres inocentes?
FA: Não, não, não tô justificando não como o Dr.Delegado falô só pra mim conta a
minha história.
LT: Qual a sua história? Pode conta?
FA: Tenho 31 anos de idade, fruto de um “estrupo” que nunca saiu da minha cabeça.. fui
violentado quando era pequeno...
LT: Por quem?
FA: há.. por vária... duas três pessoa. Já.
LT: Qual era a sua idade?

205
FA: De 12 a ... de 10, 12 a 13 anos ...que eu fui estuprado na cadeia.. apanhava na
cadeia.. a primeira vez que eu fui preso...
(O Delegado interrompe).
1.16 Dr: Tabarelli ele nos contou que é...na.. durante o período que ele teve preso isso
martelava dia a dia a cabeça dele e até acho que por isso por ter...(O Datena interrompe).
DT: Olha...daqui a pouco o resto da entrevista. Mas o Figueiredo está aí com mais....
(Quarto corte).

1.17 DT: Ah! Levou um tiro na “bunda” o bandido é...levou um tiro na “bunda”... aliás
bandido tinha que apanhar na “bunda”, não é só levar tiro na “bunda” não, tinha que
apanha, não é verdade? (Datena fala com o delegado Murilo envolvido em outra
perseguição a assaltante).
Doutor Murilo (Dr. M): A nossa obrigação é .....
DT: É verdade, mas num caso como esse se ele atirou na polícia o que que a polícia
podia fazer? Não é... não é verdade?
Dr M: É verdade.
1.18 DT: Esse vagabundo sem-vergonha como esse estuprador aí...que nós estamos mostrando
aqui que mandava que a vítima se depilasse.. o sujeito merece apanha muito.. não é....
devia apanha muito dos pais, não é.... com um gato morto até o gato miá...(risos) ... é que
nem diz o outro.. tem gente que merece apanhar com um gato morto até o gato miá, outro
dia um sujeito me falô. Por que tem muito bandido por aí viu o Dr. Lino. Chega uma
situação que não dá mais prá agüentar não é verdade?
1.19 Dr. M: Mas a polícia está trabalhando bem, a polícia está empenhada. Está fechando o
cerco, a polícia está trabalhando bem, viu Datena, a gente tá ganhando bastante a guerra...
DT: Sem dúvidas...
Dr. M: E eu posso falar isso prá você que hoje a gente vai prá casa tranqüilo que este é o
quarto flagrante que a gente está participando e ... a bandidagem que tiver vai prá cadeia..
(Quinto corte).

1.20 DT:. Terrível uma senhora de 70 anos cortada inteirinha de gilete. Onde é que nós vamos
parar? Olha o estuprador que nós mostramos ontem aqui e que a polícia tinha como
ponto de honra prende esse estuprador ... não é (neste momento Datena chama a atenção
do pessoal na Redação, com o tom da voz bastante elevado)
Dá prá falar mais baixo aí um pouquinho? Se não, não dá prá fazer programa aqui
também...Reclamam que eu grito aqui.. e gritam aqui do lado também. Aí não dá prá
fazer programa. (houve silêncio total na sala, Datena prossegue).
Agora ficou muito silêncio... pode falar um pouquinho mais alto. O negócio é o
seguinte.... o pior é que eles me levam a sério.. o .... detalhe é o seguinte
olha...é...é...aquele estuprador que a gente mostrou ontem aqui que fazia com que as
mulheres se depilassem antes de estuprá-las,.. não é... está preso a polícia disse que ia
prendê-lo em menos de 24 horas e prendeu mesmo, não é verdade? E parece que ele vai
sair a qualquer momento e vai ser transferido para onde? Heim o ...o ... Figueiredo na
tela.. (Entra o repórter Figueiredo).
1.21 FG: Pois não Datena, ele será transferido para o Cadeião de São Caetano do Sul aqui
mesmo na região. E um detalhe muito importante aqui o Cali (cinegrafista) está
mostrando aqui pro Mari esse filme aqui revelado. Esse cidadão tirou umas fotos dele

206
mesmo e aí no dia que ele pegou uma das vítimas ele deixou esse filme no lixo. A polícia
pegou aí e aí encontraram revelaram o filme e tinha a foto dele. O Dr. Marco Aurélio
enquanto nós estamos aguardando.. é questão de segundos ou minutos Dr. Marco Aurélio
pode contar pra você melhor esta história deste filme Datena que ele deixou e revelou o
caso.
Dr: Datena, diligenciando lá pelas imediações do local nós identificamos a casa e
vasculhando a casa nós achamos no cesto do banheiro esse filme, esse... e.. revelando nós
conseguimos trazer a foto do...
(O repórter interrompe bruscamente).

1.22 FG: Lá vem ele, lá vem ele, Dr. Lá vem ele vamos atrás Cali, vamo lá, vamo lá, ali ele
vai passando... vamo lá correndo vamo lá perto da viatura, vamo lá, vamo lá, o momento
ta aí vamo lá, vamo lá.. Frederico o que é que você tem pra fala alguma coisa... que fala
alguma coisa Frederico? Você é inocente?
FA: Não...
FG: Você é inocente? Você, você estupro as meninas e usou lá o depilador você depilô?
FA: Não...
FG: Não, não, não abusô?
FA: Não...
FIG: Você não.. você foi reconhecido pelas três vítimas...
FA: Não...
FG: O que que você que fala, que se defende você está falando com “Brasil Urgente”
neste momento.
FA: Não, não.
(Datena chama).
DT: Figueiredo.
FG: Pois não, Datena.
DT: Já ouvimos esse vagabundo...
FIG: Não qué fala, não qué fala..
1.23 DT: Não qué fala...cadê quando ele confessa, cadê a reportagem dele confessando, não
qué fala agora ao vivo. Cadê a reportagem dele confessando? Tá aí? Tá no ponto o
Simão? Então põe na tela esse vagabundo.
(Volta a imagem da entrevista na prisão quando ele confessa ao repórter).
FA: eu fui abusado, eu fui abusado já ...na cadeia.. na famíla..assim que eu conheço
infelizmente eu sou fruto de um “estrupo”. Isso ficou muito marcado na minha cabeça e
não consigo esquecê isso... (toca uma música de fundo).
LT: Você acha que isso é justificativa prá você violentar mulheres inocentes?
FA: Não, não, não estou justificando não como o Dr.Delegado falou só pra mim contá a
minha história.
LT: Qual a sua história? Pode contá...
FA: Tenho 31 anos de idade...
(Datena interrompe; repetição da história)
1.24 DT: Olha aqui, olha aqui... volta só um pouquinho no ponto a entrevista no momento em
que ele confessa, que ele confessa. Gente volta só no momento em que ele confessa. Que
agora ele não qué fala. Mas tem, tem ele confessando aí este vagabundo que na hora que
vai preso que está nas garras da polícia tem medo. Eu quero ele confessando. Cadê o ....

207
tá no ponto aí? Tá no ponto aí heim? Ele confessando, ele confessando... deixa eu vê,
dexa eu vê ... (Volta a entrevista na Delegacia).

1.25 FIG: Como foi o seu passado?


FA: ...eu fui abusado, eu fui abusado já ...na cadeia... na famíla...assim que eu conheço
infelizmente eu sou fruto de um “estrupo”. Isso ficou muito marcado na minha cabeça e
não consigo esquece isso...
LT: Você acha que isso é justificativa pra você violentar mulheres inocentes?
FA: Não, não, não estou justificando não como o Dr.Delegado falou só pra mim contá a
minha história.
LT: Qual a sua história? Pode conta...
FA: Tenho 31 anos de idade, fruto de um “estrupo” que nunca saiu da minha cabeça.. fui
violentado quando era pequeno
LT: Por quem?
FA: há... por vária... duas três pessoa. já
LT :Qual era a sua idade?
FA: De 12 a ... de 10, 12 a 13 anos ...que eu fui estuprado na cadeia.. apanhava na
cadeia... (Datena interrompe com risos).

1.26 DT: Hu, he.. tá bom...agora tá lá ao vivo deixa eu vê a imagem ao vivo o Figueiredo,
Figueiredo. (Imagem do acusado escoltado por policiais e o repórter). Isso não justifica
absolutamente nada, não é, não justifica nada, ele confessou, Dr. Ele confessou os crimes,
não é? Ele confessou não é isso o Figueiredo?
FIG: Exatamente. O Dr. Está aqui à sua escuta.
Dr. Isso Datena ele confessou com riqueza de detalhes os três estupros que ele praticou
é... após ter saído da cadeia. Ele ficou mais de 9 anos preso por várias práticas criminosas
entre elas, estupro, atentado ao pudor, roubo, rapto é.. praticado com violência, ente
outros... teve um passeio pelo código penal e há 4 meses ele saiu da cadeia e já praticou
três estupros.
DT: Parece que ele usava um óculos escuros e esparadrapos não é pra, pra abordar as
vítimas... é isso?
Dr: Ele colocava esparadrapo no.. no olho da vítima vendando e depois um óculos
escuros por cima para não chamar a atenção de ninguém, ao redor.
DT: Meu Deus do céu... o Dr. Você acredita que haja mais vítimas desse bandido aí?
1.27 Dr. A ...acredito que sim Datena, porque em 4 meses ele poderia ter feito muitas vítimas
e agora com a reportagem com a mídia certamente apareção, aparecerão outras pessoas
que o reconhecerão.
DT: É importante antão a gente colocar o rosto dele aí não é... importante (imagem do
rosto).
Dr: Sem dúvida, sem dúvida. Hoje duas vítimas vieram à Delegacia em função do
trabalho da mídia que muito nos ajuda.
DT: O trabalho da mídia o senhor diz era o Brasil Urgente que estava aí com
exclusividade
Dr: Sem dúvida alguma.
DT: Então é importante colocar a cara desse sujeito aí que deve ter estuprado mais gente.
Ele tava fora da cadeia há quanto tempo heim Dr.?

208
Dr: Há 4 meses ele estava em liberdade condicional...
1.28 DT: Há..ha...ha...haaaa....(risos de deboche).
Dr: Depois de ficar mais de 9 anos na cadeia.
DT: Liberdade condicional por que Dr.?
Dr: É ele havia cumprido pena por estupro, atentado, roubo,
DT: Mas e...e....e.. condicional por que heim?
Dr: É ele deve ter...(Datena interrompe).
DT: Quem será que deu condicional prum home desse aí? (aos gritos). É por isso que eu
falo. Adianta a polícia prende? Adianta a polícia prende joga na cadeia se tem lei que
simplesmente coloca um vagabundo desses na rua? Já havia estuprado não sei quantas
pessoas... Adianta a polícia prende? E esse vagabundo estava na rua por causa de
liberdade condicional possivelmente por bom comportamento. Como se um vagabundo
na cadeia não tivesse que se comportar bem. Aí sai pra estuprá. Estuprou mais quantas
vítimas depois que estava na rua que pelo menos até agora a polícia tenha ciência?
Dr: Treis vítimas comprovadas, Datena.
DT: (Aos gritos). Treis vítimas comprovadas! Ta agora na cadeia de novo será que agora
alguém vai dar indulto de Natal para ele ver o Papai Noel? Ou será que vão libertá-lo na
Páscoa pra ele vê o coelhinho da Páscoa, ele vai estupra o coelho da Páscoa tamém... Será
que vão coloca esses bandidos na rua mais vezes ô.. é o que eu digo. E tem gente que é
contra o endurecimento de algumas leis! Coloque um vagabundo desse aí na rua é como
o caso daquele Elias Maluco, estava em liberdade condicional por bom comportamento,
bom comportamento e aí matou o Tim Lopes e outros tantos casos... Esse aí estava em
condicional, é isso Dr.? É inaceitável um negócio desses.
Que óculos o senhor tem aí na mão Doutor?
1.29 FT: O óculos é esse mesmo Datena (o repórter mostra os óculos que tem nas mãos) esse
mesmo o Dr. Está mostrando aqui... mas é o óculos que ele utilizava não é Dr.?
Dr: Perfeito, o óculos que ele colocava nas vítimas e esse é o filme que foi revelado
(mostra o filme). Já conseguimos a prisão temporária dele por 30 dias pra averigua se
outras vítimas surgirão e possivelmente é.... nós vamos pedir a preventiva dele até antes
disso pra que ele fique encarcerado até a condenação.
1.30 DT: Todos aqueles casos aí Dr. Em que ele citava, ele citava justificativa de que ele foi
estuprado não é... isso aí não, não tem nada a vê a polícia não aceita isso como
justificativa. O Figueiredo pode perguntar pro Dr. Aí.
FIG: Todos estes casos a polícia não aceita como justificativa até por que as pessoas já
estiveram aqui confessando. O Datena está passando esta pergunta pro senhor.
Dr: Não, não, ninguém, a, a, própria família inclusive Datena nos ajudou, a família dele
nos ajudou e colaborou aí em prendê-lo por que até eles querem justiça. Até eles não
aceitam esse, esse, ato aí inescrupuloso feito por ele.
(Voltam as imagem do momento de reconhecimento).
1.31 DT: É tem uma vítima aí reconhecendo o bandido. Uma vítima reconhecendo. A imagem
exclusiva nossa da Band uma vítima reconhecendo esse estuprador aí esse bandido,
desqualificado sabe, estava em liberdade condicional. Quando eu defendo aqui penas
mais duras pra bandido as pessoas não acreditam. Aquela imagem do Amilton, dexa eu
vê essa imagem do Amilton ali, é do Amilton ou do.....
(Sexto Corte).

209
1.32 DT: Eu quero o Figueiredo no caso do.. do daquele bandido que depilava as pessoas não
é verdade.. mas eu.. antes me dá a entrevista inteira desse bandido que ele quer se
justificar .. ele que se justifica. Dizer que não... é.. é.. eu estuprei por que eu fui estuprado
coisa e tal.... Figueiredo.. a polícia está aguardando que novas vítimas não é se dirijam aí
na delegacia pra reconhece esse bandido que aumente a pena desse bandido não é
verdade... (entra o repórter que está na delegacia).
FIG: É verdade Datena a polícia aqui de São Bernardo do Campo, mais precisamente o
3o Distrito Policial aqui está aguardando que novas vítimas venham até aqui e não vai ser
difícil não, depois que o Brasil Urgente mostrou a cara desse bandido aí, desse maníaco,
desse monstro, que chorou aqui hoje .. ele ficou chorando Datena aqui hoje... fico
chorando... na verdade a situação dele se complica depois que apareceu no Brasil
Urgente.
1.33 Dr: Sem dúvida alguma, o Brasil Urgente tem nos ajudado muito há não muito tempo
num caso de seqüestro agora esse, e isso sempre nos ajuda a .... a aumentar aí o
solucionamento dos crimes na nossa área.
FIG: Datena ele está na sua escuta.
DT: Então Dr. Eu quero vê a reportagem primeiro para mostrá quem é esse cidadão, sabe,
prá mostra quem é esse bandido, que estuprava mulheres e que fazia com que as mulheres
se depilassem antes disso, não é, antes do estupro. Eu tenho dois ganhadores do celular
Siemens Tim Siemens não é você está... deu mais de 60.000 ligações quase 70 .000
ligações. Você acompanha agora com exclusividade o momento da prisão do estuprador
que fazia com que as mulheres se depilassem na tela da Band.
(Repete a imagem da chegada na delegacia).

1.34 LT: Este é o momento mais aguardado desde o início da investigação porque há a
informação de que o suspeito de estupro se encontra no interior deste carro.
(O repórter tenta entrevistar o acusado)
LT: Você cometeu os estupros...(ele não quer falar, mas o repórter insiste).
LT: O que você tem a dizer prá se defender? Oi várias vítimas já reconheceram a sua
foto..
(Imagens do reconhecimento na delegacia. O acusado descamisado está atrás de um
vidro e uma vítima está dando depoimento ao delegado. O repórter narra).
1.35 LT: Vamos acompanhar o reconhecimento. O delegado pergunta a uma das vítimas se é
mesmo o homem que a estuprou. Veja ele diz que sim e aponta para o suspeito. Até o
final da tarde três vítimas vieram à delegacia confirmar o reconhecimento de Frederico
Adriano, de 31 anos. Segundo a polícia ele foi solto apenas há quatro meses e passou os
últimos 11 anos preso cumprindo pena por estupro.
(Sétimo Corte)
DT: Teve um crime, teve um crime aqui na região de Ibirapuera de ontem pra hoje, um
Empresário....
(Fim)

210
II. EDIÇÃO 2 (E 2) (Exibida no dia 31 de março de 2004).

(O programa teve a duração de 1hora e 30 minutos. Foram apresentadas 14 reportagens


intercaladas. Dessa edição escolhemos duas reportagens).

REPORTAGEM 1 (R 1)
VÍTIMA DE ATROPELAMENTO MORRE NO CENTRO DE SÃO PAULO

REPORTAGEM 2 (R 2)
“PIT BOY MATA RAPAZ COM 7 TIROS À QUEIMA-ROUPA”

1. 1 Datena (DT): Atenção, corpo é encontrado aonde o.. o Édie Póllo?.


(Entra o repórter que está na rua).

Édi Pólo (EP): Oi Datena, boa tarde, nós estamos aqui na Avenida Senador Queiroz no
centro de São Paulo, um atropelamento, você vê, um rapaz aparentando aí 34, 35 anos
acabou sendo vítima desse atropelamento. Nós estamos aqui acompanhando esse
atropelamento.
Legenda: VÍTIMA DE ATROPELAMENTO MORRE NO CENTRO DE SÃO
PAULO

(As imagens mostram um corpo no chão, na calçada, coberto por um plástico preto, com
o braço direito descoberto. O carro que atropelou a vítima se encontra sobre a calçada
com o corpo logo à frente. A área se encontra isolada por uma fita. O repórter continua).
1. 2 Aconteceu, Datena, por volta das 3.30hs da tarde, e até agora o corpo do rapaz está aqui,
numa das principais Avenidas de São Paulo. Muita gente olhando, o corpo aqui exposto,
e segundo informações que nós obtivemos aqui, olha, a gente olhando assim parece que o
motorista está errado e atropelou o rapaz aí em cima da calçada. Na verdade ele tentou
desviar aí várias vezes, segundo testemunhas, e o rapaz aí acabou vítima desse
atropelamento. Está aqui jogado no chão, Datena aguardando o trabalho de perícia que
como a gente sabe ele é realmente demorado, a família... (Datena interrompe).

1. 3 DT: Há quanto tempo o corpo está aí... não tira a imagem... o corpo está aí há quanto
tempo?
EP: Desde às 3:00hs da tarde, Datena
DT: Atenção o pessoal da perícia por favor vamos comparecer aí né...um rapaz morreu
sabe.. o brasileiro acho que não merece nem consideração nem na hora da morte, isso é
um absurdo.
EP: Sendo Datena esta aqui uma das principais Avenidas do centro de SP. Nós estamos
aqui há 5 min da Praça da Sé, marco Zero da cidade. E olha só, muita gente parando, e o
triste é isso, veja só, as pessoas vão olhando o corpo aqui, você imagina a situação da
família, os familiares realmente bastante chateados, e olha só...
DT: A polícia ainda não apareceu aí até agora?

1. 4 EP: Apareceu nada, Datena.

211
DT: Tem um corpo jogado ali, um corpo jogado. Ouve o povo Edie (voz alterada). Eu
quero ouví o povo metendo a boca nisso aí.
EP: Deixa eu perguntar aqui.
DT: Deixam o corpo jogado ali no chão, isso é um verdadeiro absurdo. É um verdadeiro
absurdo. Enquanto se tem suspeita de que parlamentar usa carro oficial pra ir em casa de
prostituição, nós temos aí corpo jogado no meio da rua dessa cidade. (Datena se refere à
uma das reportagens exibidas anteriormente sobre um carro oficial da Assembléia
Legislativa flagrado estacionado na frente de uma casa de prostituição) Onde é que
estão os homens da perícia aí para realizar a perícia logo no corpo, e esse IML que
também não chega nunca nem na hora da morte (aos berros) o brasileiro é respeitado.
Ouve o povo aí e vê se o povo mete a boca aí o Edie Póllo. O povo brasileiro também é
muito calado.
(o repórter se aproxima dos curiosos)
EP: O que você acha aí de um corpo aí estendido desde as 3:00hs da tarde e ninguém
veio
1. 5 Entrevistado 1: Desde as 2.45hs..
EP: Ah! 2.45hs, 15 min antes como é que o Sr.vê essa situação?
E1: Não dá para definir, não tem definição. (Datena entra: e não tem memo).
Negligência e mais você pode imaginar (Datena: pouca vergonha) tudo o que você possa
imaginar acontece aqui em São Paulo.
EP: Aí, o pessoal, o que você acha dessa situação aí, um corpo estendido desde as 2.45hs
aí?

1. 6 Entrevistado 2: Duas horas pra o Resgate aí, duas horas o Resgate (Datena interrompe).
DT: Edie Póllo ouve o povo bravo aí...
EP: O que o Sr. sente?
Entrevistado 3: É uma falta de respeito ao ser humano. Eu acho, já que aconteceu
deveria tirar a pessoa e levar embora. Agora fica jogado aí, se é na chuva fica no molhado
jogado aí, então quando bem querem é que vêm buscar.
EP: O que o Sr. acha dessa situação. Olha aqui as pessoas bastante... O que o Sr. acha
dessa situação?

1. 7 Entrevistado 4: Olha eu acho lamentável meu jovem, eu acho que a prefeita deveria
chamar IML aí já para levar o corpo, é uma falta de respeito ao ser humano né. Porque a
Marta, ela coloca muita a Prefeitura, esse pessoal da Prefeitura para a fiscalização desses
camelô né, e.. se não me engano pode ser um camelô aí também...
EP: Acha que seria um camelô?
Entrevistado 4: Seria um camelô, segundo as informações que estou sabendo de
amigos...
DT: Um corpo jogado aí no meio do asfalto aí. O corpo jogado no meio do asfalto (o
corpo está na calçada). Estamos mostrando porque é uma cena deprimente, não é. O...o
brasileiro não é respeitado nem na hora da morte. Isso aí é um tapa na cara da sociedade,
isso é uma brincadeira. Vamos esperar até que hora prá vê se a perícia... Eu vou até às
7:30hs no ar... até que horas a perícia vai aparecer aí e depois esse IML, que é aí do lado
o IML.. aí eles fala ó..vai demorar para chegar.. é uma avenida para chegar até a Praça da
Sé, vamos ver quanto tempo vai demorar, hêim Edie Póllo.

212
EP: É Datena, e é...

1. 8 DT: Um corpo do cidadão, pai de família morto hoje às 2:00hs da tarde e até agora, até
agora o homem exposto aí. Onde é que estão as autoridades desse país, dessa cidade, tá
todo mundo dormindo uma hora dessas? (Voz alterada) Não tem ninguém trabalhando,
vocês só sabem mamar nas tetas do povo? Cadê, não tem gente aí pra pega esse corpo
fazer a perícia e tirar esse homem do meio da rua? Isso é uma desumanidade ô! No
centro da cidade, isso é uma desumanidade! Eu quero a câmera aberta ali, eu quero que a
câmera fique nesse corpo aí prá que essas autoridades que não fazem porcaria nenhuma
pra essa cidade se façam presente e eu quero ver que horas que esse corpo vai ser retirado
daí, hêm, Edie...
EP: Ah Datena, agente fica realmente bastante chocado com essa situação, como nós
dissemos aqui, o motorista não teve culpa segundo informações, mas olha a cena, a cena
aqui ó o carro em cima da calçada, o motorista o.. o.. corpo desse.... seria um ambulante
aqui ó jogado, a família já veio traumatizada ao saber que o corpo está aqui, realmente é
uma cena chocante desde às 2:00hs da tarde lembrando ao telespectador do Brasil...olha o
trânsito, as pessoas vão passando, isso aqui que é uma coisa de louco, ó.. olha só Datena,
as pessoas vão passando aqui e vão olhando aqui, parece que tem um corpo em
exposição. Realmente é chocante, as autoridades, é complicado olha...

1. 9 DT: Veja aí, a quantidade de pessoas que passa aí, gente com seus filhos, não é verdade,
com crianças dentro do carro, olha lá, o rapaz morto ali e tal, nós somos obrigados a ver
isso? Onde é que vocês estão heim ? Atenção autoridade dessa cidade tem alguém
acordado aí? (se aproxima da tela e bate com o dedo no vídeo como que querendo
acordar as autoridades) Atenção, tem alguém acordado aí? Tem alguém acordado aí?(o
galo canta, uma, duas vezes) hã... é brincadeira, esse galo não acorda ninguém também (o
galo canta mais alto e agudo) tem que botá um leão aí prá acordar. Isso é uma
brincadeira. Vamos ficar com a câmera aberta aí mostrando o pessoal vendo esse corpo
aí, perto da Praça da Sé para ver quanto tempo aparece alguma autoridade aí, alguma
“toridade” aí pra resolve, como diz o meu amigo, cadê a “toridade”? Cadê a “toridade”,
coisa vergonhosa, Edie Póllo.
EP: Pois não...
DT: Eu vou te chama a cada 5 min prá vê se alguém foi dá satisfação à população, se
alguém foi tomar conhecimento desse corpo aí pra faze perícia pra tira esse rapaz da rua,
uma pessoa atropelada às 2:00hs da tarde, vocês não têm vergonha não de dirigir São
Paulo? Que é uma das maiores cidades do pai! Vocês todos aí não têm vergonha não?
Serem políticos que só falam na hora de pedir voto? Isso é um absurdo seu! O a imagem
vai ficar aí, o Edie Póllo
EP: Ok...

1.10 DT: A cada 5 min. eu vou te chama pra vê se apareceu alguém aí prá fazê alguma coisa,
um cidadão brasileiro, um cidadão brasileiro jogado no chão desde às 2:00hs da tarde,
desde às 2:00hs da tarde, nós tamos, nós estamos esperando que apareça alguém aí (aos
gritos). Ninguém apareceu aí Edie Pólo?
EP: Ninguém Datena, ninguém (Datena gesticula a mão e aponta o dedo em riste)

213
DT: Olha aqui, vou fazer o seguinte, eu quero essa imagem colocada aqui do meu lado
(grita). Ali no meu lado da tela em wipe, colocada na janela alí (mostra do lado direito
do vídeo. Essa imagem é um tapa na cara da sociedade, e que e.. é.. demonstra o descaso
que as autoridades dessa cidade têm para conosco, prá com o cidadão, prá com o cidadão
paulistano, o cidadão brasileiro, um sujeito atropelado às 2:00hs da tarde, morreu, e ta lá
exposto, até agora. Bota aqui em wipe, deixa essa imagem direta aqui, que eu quero vê,
à.. à.. que hora vai aparecer alguém aí. Ta do meu lado, ó, (mostra lado direito da tela, a
imagem aparece do lado esquerdo) aqui, (corrige, agora mostra o lado esquerdo do
vídeo) a imagem vai ficar aqui do lado. Essa imagem vai ficar do lado. Isso pra vocês que
não fazem nada pela cidade e ainda assim quando não tratam um cidadão brasileiro
enquanto ele está vivo, morto então fica aí, vai ficar aí, vai ficar aí que eu quero saber.. o
Edie você tem prioridade quando aparece alguém prá vê se tomam providência. Tá bom o
Edie?
EP: Ok, Datena.

REPORTAGEM 2 (R 2)
“PIT BOY MATA RAPAZ COM 7 TIROS À QUEIMA-ROUPA”

2. 1 DT: Que absurdo!


Outra cena que me chocou hoje, outra cena que me deixou completamente chocado..
Pode tirar (referindo-se à imagem que há instante havia pedido para deixar na tela) há
cada 3 ou 4 min. Vou bota a imagem aí, e vou chamar o Edie.
Outra cena que me deixou chocado foi o assassinato daquele rapaz por aquele imbecil
daquele “sheety boy” (mostra a imagem do pit boy disparando à um metro de distância
do rapaz que cai da moto e tenta se defender com as mãos) levando tiros no rosto aí,
levou um, dois, três... cadê a entrevista daquele vagabundo heim, olha lá bala pra todo o
lado (repete a cena) tentando se arrasta alí, não é, cadê o sujeito que, eu quero, por favor,
o cara que matou, foi o cara que matou que deu a entrevista? Uma frieza que não tem
tamanho, frieza que não tem tamanho. Tem o cara que matou falando aí?..hâ...ou vamo
dá depois. Vamos dar depois vocês têm tempo de procurar aí. Tá no ponto, deixa eu vê o
cara que matou falando.
(Aparece imagem do pit boy falando).

2. 2 Pit boy: Foi problema dele, do irmão dele e do meu.. sei que ele passou, isso é caso
pessoal que é irmão né... ele quis ter problema comigo também... sem motivo...
(repete a reportagem sobre os pit boys e a intervenção da polícia. Cenas da reação dos
amigos do rapaz morto).
Repórter: Na época até a polícia teve dificuldades para conter os amigos do rapaz morto.
O caso dos pit boys chegou em Brasília. Esse juiz pediu ao ministro Marcio Thomas
Bastos a alteração (corte).
DT: Olha a frieza do cara. Depois de uma cena como essa aí. A cena é de chocá, cá entre
nós...a cena é de chocá. Você viu a frieza do cara falando. O menino ainda tentou pegar a
arma do outro, você vai vê ai de novo (repete a cena dos disparos) tentou pegar a arma
do outro, botou a mão na arma porque sabia que ia morrer. Levou um tiro à queima-roupa
(repete a cena e Datena narra no presente, dando a impressão que está acontecendo ao
vivo, tempo real) outro, outro, outro, tentou se arrastar prá fugi e olha a maldade... depois

214
o cara dá uma entrevista na maior tranqüilidade, fala ah não, aconteceu e tal... vagabundo
não é, crápula, não é.

(Outra matéria).
DT: Cinco homens são presos acusados de tentativas de assalto à uma casa de jogos
eletrônico. Um policial reagiu e foi morto pelos ladrões. (desenvolvimento)

REPORTAGEM 1
(Volta ao corpo jogado na Avenida Senador Queiroz no centro de São Paulo. Datena
cobra das autoridades).

1.11 DT: Olha aqui, eu estou denunciando, que existe um corpo desde as 2:40hs da tarde, uma
pessoa que foi morta atropelada. Aonde mesmo Edie Póllo?
(volta a imagem do corpo na calçada).
EP: Avenida Senador Queiroz, Datena.
DT: Aonde é isso?
EP: No centro de São Paulo.
DT: Centro de São Paulo, a 4a maior cidade do Planeta. Olha o que tem de veículos
passando por ali. Olha o que tem de gente vendo esse corpo exposto aí. E eu vou dizer
mais uma vez. Será que as autoridades dessa cidade estão dormindo? Pra deixar um
cidadão brasileiro, um cidadão paulistano, desde às 2:00hs da tarde, jogado no chão como
se fosse um saco de lixo? É isso que vocês políticos e autoridades dessa cidade pensam
é..é..do cidadão? Daquele que só vale pra vocês na hora do voto? Esse aí não vale mais
porque não vai votá em vocês. Deixa eu vê, deixa eu vê o corpo (volta a imagem). Até
agora Edie Póllo apareceu alguém aí pra vê o corpo ou não?
EP: Ninguém Datena, ninguém apareceu, os moradores aqui da região, revoltados.

(Entrevista mais um cidadão)


1.12 Um Sr. é... me dizia uma coisa interessante qué dizê, se no centro de São Paulo é isso?
Entrevistado 5: É uma cidade que (Datena completa: imagine nas periferias) a avenida
mais movimentada no centro de São Paulo, isso desde as 3:00hs da tarde está
acontecendo isso, você imagina numa vila deve sé uns três dias pra tirá o corpo.
EP: É o povo Datena.
Entrevistado 5: (continua) estou aqui com um táxi aqui desde as 3:00hs da tarde e esse
corpo aí.
EP: Não apareceu ninguém da perícia?
Entrevistado 5: Não apareceu ninguém da perícia até agora. Até quando vai fica isso
hoje?

1.13 EP: É o povo Datena, dizem que “a voz do povo é a voz de Deus”. Só que esses, esses
aqui, como você disse, esses votam, agora esse coitado aí de 34 anos, não vota mais,
então talvez por causa disso, talvez morreu já né, então fica aí jogado. Uma situação
realmente lamentável, desde às 2:30hs da tarde, esse corpo aí.. e segundo os moradores
da região ninguém, mas nem mesmo, viu Datena, apareceu aqui para dar pelo menos
alguma satisfação de que horas esse corpo vai ser retirado do centro de São Paulo.

215
DT: Não meu amigo, eu vou ficar enchendo o saco dos caras dessa cidade alí. Eu quero
vê as autoridades. Eu quero vê as autori... vou ficar, à cada 5 min. Eu te chamo aí. Tem
mais meia hora de jornal, eu te chamo aí.

1.14 Hoje tem jogo da Seleção Brasileira contra o Paraguai que é líder do grupo não é.. e ta aí
numa boa...
(Datena chama o comentarista esportivo Jorge Cajuru para fazer os comentários. A
participação do Cajuru demorou 10 minutos. Depois volta a reportagem sobre
pancadaria na fila do INSS por causa de venda de vagas. A mesma reportagem já tinha
sido a terceira do programa. Somente mais tarde, às 7:19hs é que Datena retorna pela
terceira vez, à matéria sobre o atropelamento).

REPORTAGEM 1
1.15 DT: Um corpo exposto no centro da cidade de São Paulo. Rapaz morreu... às 2:00hs da
tarde, e até agora... não, agora parece que chegou alguém. Pois não ô Edie Póllo?
(Entra o repórter do local a vai narrando em detalhe o cenário mostrado na tela)

EP: Ah Datena, cada dia eu me convenço mais que você é o cara, viu, você é um
defensor do povo, bastaram duas intervenções aí sua no programa choveu perícia aqui,
meu irmão, estou até de guarda-chuva, tem gente aqui agora até parece celebridade, tem
perito atrás, tem perito aqui na frente, tem perito do lado, tá todo mundo trabalhando
direitinho, tem agora a Polícia Militar, meu irmão, vou dizer uma coisa para você viu, é o
cara, olha estou falando, ninguém acreditou, os homens chegaram aqui voando, tiraram as
máquinas, já estão batendo fotos no tripé.. é uma situação que nós gostaríamos de ver
mais funcionando, sem a intervenção do Brasil Urgente porque eu vou dizer uma coisa
pra você parou a cidade agora aqui pra vê o trabalho do perito. Parece a novela das oito
Datena, tamanha a..a...o cenário que eles montaram aqui prá poder agora fazer o trabalho
direitinho. Brincadeira.
(Datena traz outra matéria de um acidente no Grajaú com seis vítimas: 4 crianças e 2
adultos, misturando os dois acidentes).

(Volta ao atropelamento misturando com outra matéria sobre o acidente no Grajaú)


1.16 DT: Teve um atropelamento às 2:00hs da tarde e até agora há pouco não tinha aparecido
a perícia lá. A gente meteu a boca aqui no mundo (enquanto isso mostra imagem do
acidente com 6 vítimas no Grajau) olha o que tem de gente aí, vendo o resgate, olha que
coisa heim (voz do comandante desde o helicóptero).
Comandante Amilton: Gente de toda a região, realmente é uma platéia ....
DT: Será que sobreviveu o rapaz, Comandante Amilton?
Amilton: Olha o estado dele era grave Datena, olha inclusive aqui nós estamos
acompanhando, isso é ao vivo Datena, parece que há uma vítima aqui... ah sim , há uma
vítima ainda Datena, está sendo retirada...
DT: Foi um choque violentíssimo...
Amilton: É uma Savero, um Savero viu Datena, uma camionete, parecia uma Savero.
Olha bateu uma de frente com a outra, realmente o carro está totalmente deformado...
DT: Nossa rapaz! Olha o comandante Amilton que sempre tem a melhor imagem, não é,
mostrando um acidente.

216
(Volta a comentar sobre o atropelamento no centro).
1.17 Tivemos um acidente fatal hoje, pode cortar direto com o Edie Póllo, aquela verdadeira
vergonha que estava esse rapaz exposto aí no meio da rua, cadê o.. cadê a imagem? Me
dá a imagem de baixo como o Edie Póllo. Cadê o motolink com o Edie Póllo, heim?
Finalmente apareceram aí, finalmente apareceram. Agora eu quero ver quanto tempo vai
demorar o Instituto Médico Legal aparecer, porque a perícia já ta aí. Do IML até aí é do
lado. Já podia ta aí (grita). O rabecão tá aí o Edie Póllo?
1.18 EP: Ah Datena é só você dá dois gritos prá saí. Grita aí que os homens aparecem!
DT: Não é uma questão de gritar, é uma questão de lógica, o cara tá vendo, a perícia já
está no local, a perícia já está no local, porque que o..o Instituto Médico Legal já
não...não manda o carro já direto pra aí? Sabe é um absurdo um negócio desses aí, um
absurdo a perícia já está aí cadê o rabecão do Instituto Médico Legal? Que fica aí do lado,
onde é que está o rabecão? Já podiam ter mandado prá aí, a perícia já está no local, os
caras ficam dormindo e vão reclamar, não tem carro, e deixam um cidadão brasileiro
jogado como um lixo aí na rua. A perícia já apareceu?
Comandante o senhor está ainda no local ou não?
(Volta para o Grajaú, Zona Sul para mostrar desde o helicóptero um acidente
envolvendo dois carros e um ônibus, com 6 vítimas).

DT: Nós vamos para um comercial de 30 segundos e voltamos já, até já.
(Comercial dos Classificados do Diário de São Paulo, o único comercial durante o
programa. Após o comercial Datena volta e apenas comenta uma outra reportagem
sobre o afastamento do Bispo Rodrigues, deputado afastado da Igreja universal, acusado
de fraude na Loterj. Datena comenta sobre supostas irregularidades envolvendo a Igreja
e menciona a Rede Record, emissora controlada por Edir Macedo onde ele havia
trabalhado. Termina o programa em grande estilo afirmando, aos gritos, que jamais
voltaria a trabalhar com eles).
DT: “Boa noite, obrigado e até amanhã”. Sai da sala...

(O telespectador ficou sem saber a que horas o carro (rabecão) do IML foi retirar o
corpo...).

217
III. EDIÇÃO 3 (E 3) (Exibida no dia 29 de junho de 2004).

(Esta edição desenvolveu 16 matérias. Por terem sido apresentadas interligadas,


escolhemos para a nossa análise quatro reportagens).

Reportagem 1 (R1)
PISQUE BAND: PESQUISA CONTRA A QUALIDADE DA SAÚDE PÚBLICA
Reportagem 2 (R2)
INCÊNDIO ATINGE FÁBRICA DE SOFÁS EM GUARULHOS
Reportagem 3 (R3)
A CRISE NO INSS
Reportagem 4 (R4)
UMA MULHER PERDE BEBÊ DURANTE O TRABALHO DE PARTO.

Transcrição:
REPORTAGEM 1 (R1)
PISQUE BAND: PESQUISA CONTRA A QUALIDADE DA SAÚDE PÚBLICA

(Datena começa o programa agradecendo pela audiência e apresentando a Pesquisa do


dia. Depois incentiva os telespectadores para que ao perceberem a presença dos
helicópteros sobrevoando pisquem as luzes de suas casas em protesto contra a qualidade
da saúde pública. Duas casas ou apartamentos serão sorteados (escolhidos), uma no
bairro Capão Redondo, zona Sul e outro em um bairro surpresa escolhido pela produção
em qualquer lugar da cidade. As duas residências sorteadas, ganharão um televisor 29
polegadas, um patrocínio das Casas Bahia. Dois helicópteros sobrevoam a cidade).

1. 1 Datena (DT): Muito obrigado pelo carinho de sua audiência gente Band, bacana. Se você
gosta do Leão Lobo pisque Band. (Risos) Já já nós vamos lança essa.
Pisque Band hoje se você é contra a saúde pública. Se você acha que a saúde pública é
ruim. Saúde pública ruim, se você acha que os hospitais são uma porcaria, os Postos de
Saúde não funcionam, Pisque Band. Hoje nós vamos para a zona Sul de São Paulo.
Atenção pessoal do Capão Redondo, heim. Atenção pessoal do Capão Redondo lá pelas
5:45hs, 6:00hs da tarde zona Sul de São Paulo estaremos com o Pisque Band por aí.
Outra coisa não é só você do bairro que vai ter o Pisque Band não, você que acha que a
saúde pública é ruim podemos dar mais um televisor a qualquer momento do programa
em qualquer bairro da cidade. O outro helicóptero, nós vamos ficar com os dois
helicópteros, vamos ficar com os dois helicópteros no ar...(percebe a gafe) óbvio de
preferência no ar hê...hê..prá a qualquer momento um bairro surpresa pode ser colocado
aí na pesquisa. De repente a gente ta falando da zona Sul, de repente a zona Norte, a zona
leste, a zona Oeste, qualquer bairro pode ser colocado aí onde estiver o helicóptero. Então
onde você estiver ouvindo o helicóptero e estiver assistindo o Brasil Urgente (BU) Pisque
Band, Pisque Band se você acha que a saúde pública é ruim. É um protesto hoje contra a
saúde pública e vai ser a semana inteira. Vamos sortear possivelmente hoje dois
televisores em nome das Casas Bahia. Dois televisores. Atenção, Capão Redondo na zona
Sul, estamos indo prá aí, mas outro bairro pode ser sorteado a qualquer momento. Estou
estudando aqui uma hipótese, de você escrevê prá gente para que a gente faça um sorteio

218
no bairro, é..é, que vai ser pesquisado naquela semana. Ok? Então vamo lá. Destaques do
programa eu volto já já.

(Chama os destaques)
1. 2 Manchete 1: Tentativa de resgate de presos na zona sul de São Paulo.
Manchete 2: Motoqueiro atropela mulher na zona norte.
Só lembrando que no Brasil nós temos uma morte no trânsito a cada 18 min., 80 mortes
por dia e 30 mil mortes por ano.
(Intervalo comercial com publicidade das Casas Bahia).

Bloco 2
REPORTAGEM 2 (R2)
INCÊNDIO ATINGE FÁBRICA DE SOFÁS EM GUARULHOS

1. 2 DT: Voltamos com o BU prá você agora sem intervalo comercial até o Jornal da Band
com a apresentação do Carlos Nascimento prá você. Olha um incêndio de grandes
proporções atinge uma fábrica de sofás em Guarulhos na Grande São Paulo. Leandro
Santana é quem fez a reportagem e acompanhou o trabalho do Corpo de Bombeiros.
Marcelo aqui, Atino põe aqui na tela da Band.

2. 1 Legenda: INCÊNDIO ATINGE FÁBRICA DE SOFÁS EM GUARULHOS


(Imagens do local).
Repórter: Os bombeiros tiveram trabalho para controlar o fogo que atingiu uma área de
2.500 m2. Na indústria, havia material de alta combustão como espuma e madeira.
(Dirige-se a um funcionário). Como é que começou o incêndio aqui?
Entrevistado: Começou mais ou menos 9:00hs aí, começou com o circuito de energia
né... aí ficou esse foguinho lá, né, ficava crescendo quando viu já tava alto né. Aí liga
pros bombeiros, o nosso patrão né, aí quando chegaram era 9:10hs por aí e o fogo tava
mais.. tava muito alto.
Repórter: Depois de mais de três horas o Corpo de Bombeiros finalmente conseguiu
controlar o incêndio que atingiu essa indústria de sofás (imagens) aqui na cidade de
Guarulhos na Grande São Paulo, dois bombeiros acabaram feridos durante o combate ao
fogo.
(dá a palavra a um bombeiro).

2. 2 Bombeiro: Já temos a informação de que foram somente algumas escoriações e já estão


sendo liberados.
Repórter: O local ficou totalmente destruído. (imagens mostram a destruição). O
trabalho de rescaldo continuou durante toda a madrugada.
(Vinheta musicada BU)

2. 3 DT: Olha, eu tô vendo aí o aspecto dessa fábrica de sofás. O outro dia me ligou uma
senhora desesperada dizendo: Datena, é impressionante aquilo que a gente vive no
sobressalto por causa do.. dos incêndios em favela. Olha, eu disse prá ela: minha senhora,
o que eu posso fazer? O que que eu posso fazer? (alteração da voz). Eu sei que vocês de
favela vivem todo o dia é.. é.. o perigo do incêndio. Primeiro que são casas todas

219
colocadas juntos uma ao lado da outra e que muitas mães saem de casa, às vezes e
deixam lá o filho com vela acesa, criança brincando com o fogo e daí por diante, ou que
vai esquentar alguma coisa no fogão, não é? Às vezes fogão à lenha, você
entendeu...lamparina, o “gato” também é um perigo, essas ligações clandestinas. O que
que eu posso fazê se o país não tem política habitacional (gritos). O que que eu posso
fazê se as autoridades, os nossos políticos até hoje não conseguiram dá uma política
habitacional decente ao brasileiro? Não tem casa prá morar meu! (berros, gesticulando
com as duas mãos). Há quanto tempo já se ouve fala? Há quantos governos já se ouve
falar? Agora vai melhorar... vamos dar uma casa prá você...Isso é um papo furado!
(exclama)... Essas políticas habitacionais dos governos até agora foram uma verdadeira
porcaria, uma catástrofe, ou eu tô errado gente Band? Tô errado no que eu tô falando?

2. 4 Uma catástrofe! Quantas pessoas são obrigadas a morar debaixo da ponte porque não têm
onde morar. Quem mora em favela mora por que em favela? Porque adora morar em
favela!.. ô..ô que maravilha, o meu sonho desde 8 anos de idade é morar numa favela,
sem saneamento básico, sem nada, com bandido tentando me assaltar todo o dia! Esse é o
meu sonho de criança, o meu sonho dourado é casá, encontrar um príncipe encantado e
mora na favela. É um sonho de todo o mundo? Lógico que não é! Pobre só mora onde
rico não quer mora. Pobre só mora em zona de desabamento, em local esquecido, e daí
por diante. Agora o rico, onde o rico não quer morar, vai o pobre morar. Concorda
comigo ou não? Cadê a política habitacional dos governos? Presidente Lula, o senhor que
vem da camada de trabalhadores, de pobres, da maioria desse país vamos atentar prá falta
de moradia! (voz alterada). Agora só se ouve falar em grandes obras. Época de eleição
municipal só grandes obras, né, obra daqui, viaduto daqui, viaduto dali, “veado” pra cá,
viaduto prá tudo quanto é lugar! (gritos) Só não tem é moradia prô povão. Isso não tem!
Obras prá aparecer tem em todo o lugar, hê. Falando em buraco, o que tem de buraco
nessa cidade é uma brincadeira, aliás no Pisque Band, depois do pedágio nós vamos fazer
do trânsito de São Paulo. Prá vê se o pessoal está aprovando o trânsito de São Paulo. É
uma piada! Só obra pra aparecer! Saneamento básico, obra que vai em baixo da terra,
moradia prá pobre ninguém fala. Fala? Ninguém fala. Absurdo, uma calamidade.
Uma pessoa ferida no trânsito aí.... (segue outra matéria).

REPORTAGEM 1
(Volta à pesquisa Pisque Band. O comandante Amilton fala desde o helicóptero)

1. 4 Amilton: Agora, um pouco mais rápido, abrindo a imagem Genivaldo, vai dar prá ver
Datena, que realmente moradores daqui, num raio de aproximadamente 5 km já começam
a protestar.
DT: Tá bom, olha, daqui a pouco, comandante Amilton vai com o helicóptero com o
Rodrigo até a zona Sul de São Paulo. Se você não está satisfeito com a saúde pública,
Pisque Band. Pisque em protesto Band (voz alterada). Os políticos, se eles não ouvem,
pelo menos vão ter que enxergar. (grita) Vão ter que ter uma luz. Concorda comigo ou
não?
(Outra matéria: Mulher atropelada....)

Pisque Band se você não está satisfeito com a saúde pública (...)

220
(O programa apresenta uma seleção de matérias sobre a saúde)

REPORTAGEM 3
A CRISE DO INSS
(Imagem mostra filas em Porto Alegre).

3. 1 DT: Vinte e seis dias depois do fim da greve dos servidores os segurados ainda esperam
horas nas filas para receber atendimento. A expectativa é que a situação seja normalizada
até o fim de julho...hahahahahahaaaa!!!!!(gargalhada cínica).
Há ..háhá háhá há haaaaaa!!!!!!! (mais forte) O que que ééé??? Há há haá hhahahaaaaaa!
hehahahaha...Deixa eu ver na tela. (reportagem na tela).
Repórter: Em Porto Alegre, os segurados ainda enfrentam filas. Mauro chegou de
madrugada.
Mauro: Pouca vergonha isso aqui. A gente paga por isso aqui, e olha aí o que a gente
merece.
Repórter: Seu Wilson, de 67 anos esperou 7 horas para ser atendido e saiu sem saber
quando vai receber aposentadoria solicitada há uma ano.
Wilson: Só tinha um funcionário que faz isso aí, e....não tá dando conta.
3. 2 Repórter: Os servidores gaúchos dizem que os processos não andam por falta de
funcionários. Eles avaliam a possibilidade de cruzar os braços na próxima quinta-feira.
Os funcionários exigem o pagamento mensal de R$ 184,00, e a devolução dos descontos
dos dias parados. Benefícios prometidos pelo governo no fim da greve e que ainda
precisam ser aprovados pelo Congresso. Em São Paulo, servidores fazem mutirões para
agilizar o atendimento dos segurados. Segundo o superintendente do INSS, a situação
deve ser normalizada até o fim de julho. Já em Salvador a direção do órgão estabeleceu
um prazo de 15 dias. Nos últimos 9 meses ocorreram 3 paralisações no INSS Foram mais
de 160 dias de greve e os protestos parados só aumentam. São 700.000 no país. Cerca de
20.000 no Rio Grande do Sul.
(Vinheta BU)

3. 3 DT: Olha, isso é uma calamidade uma verdadeira porcaria, uma vergonha o que se fala
de melhorar esse INSS. Por isso que eu morri de ri, que me deu gargalhada é lógico que
foi uma gargalhada forçada, mas nem precisava ser, porque é uma vergonha esse INSS.
Essas filas são vergonhosas... muda governo sai governo e...
(Datena discute com o pessoal da produção que pede para ele ficar na luz)...sai daqui
por que? (grita) Porque não tem luz aqui? Qual o problema, não tem luz acende a luz
Pisque Band. Ora que absurdo, bota luz aqui então ué... você entendeu? Aliás quem
precisa dar a luz aqui é governo, quem precisa dar a luz nesse país, que não dá a luz prá
ninguém, sabe isso é uma piada. E parem de me enchê o saco com esse negocio de luz!
(berra com a produção) Deixa eu falar uma coisa séria aqui! Esse INSS é uma piada,
(música) é uma piada, isso aí é um organismo de humilhar velhos, de humilhar
aposentados! Sardenha venha cá comigo você também, (chama os auxiliares, os
camermen). Vê se não pode aparecer, o seu Xavier, um monte de frescura, vem aqui
Xavier, vem aqui comigo prá ver se esse INSS que é uma fábrica de... Chico Boca, cadê o
Chico Boca, aposentado... dá prá .. tem luz aqui também, se não tiver a luz também
do..do.. vou contar uma coisa pra você... Cadê a luz aí o...(reclama gritando). Mesmo que

221
não tenha a luz, Chico Boca vem cá. Quanto você ganha de salário aposentado que é
Chico Boca? (o auxiliar responde baixinho).
3. 4 DT:Quanto?
Chico Boca: R$ 650,00
DT: R$ 650,00! Trabalhou quantos anos, vem cá Chico?
Chico Boca: Trinta e cinco anos.
DT: Trinta e cinco anos prá ganhá o que? R$ 650,00! Trabalhou a vida inteira o coitado
do Chico Boca. Você entendeu? O pai do Póllio ganha R$ 350,00 ele tá me dizendo aqui.
Isso é uma piada e os caras tão preocupados com a luz. Eu quero que a luz se rache!
Eu quero mostrar a realidade, televisão é assim mesmo. Pensam que é tudo bonitinho em
televisão? Eu por exemplo, o Ladinho me deixa bonito, aqui, tira o meu papo, passa
maquiagem, tem uma frescuraiada também que eu vou contar uma coisa prá você. Aí
chega na rua as pessoas me dizem: “Datenão, você parece tão bonito e na televisão você é
um bagulho”, é lógico. É tudo mentira esse negócio bonitinho e.. tal, essas fres... parem
de me enchê o saco (grita) com esse negócio de luz. O que eu to falando aqui é
seríssimo! Que esse INSS é um organismo de humilhar velhos, é um organismo de
humilhar pessoas paraplégicas, sabe, é um organismo de fazer criança e velho ficarem em
filas intermináveis, lugares vendidos em filas e daí por diante. Essas filas que não acabam
3. 5 mais! (ergue a voz). Atenção governo do PT. Nós vamos continuá com a mesma porcaria
do tempo do governo do Fernando Henrique ou vamos mudar esse estado de coisa? Eu já
disse aqui, eu morro abraçado com o Lula, mas ô presidente, me ajuda aí presidente! Me
ajuda aí... ô! Eu confio no senhor prá caramba, agora me ajuda aí presidente! Olha o que
tem de fila aí presidente! Quer dizer muda aquela porcaria daquele governo do Fernando
Henrique, nós vamos continuar com essas filas enormes aí também? Ora me ajuda aí seu
presidente! Me ajuda aí por que senão vou ter que mandá a lenha! E me dói no coração
mandá a lenha no senhor por que sei que o senhor é uma pessoa honesta, decente,
trabalhador, eu confio no senhor. Agora me ajuda aí por que senão vai pau em você
também! (música) hã.. Barbaridade seu!

REPORTAGEM 1
(Volta à pesquisa Pisque Band que tomou mais da metade do programa.
A pesquisa Band está valendo para toda São Paulo. O helicóptero vai passando e os
moradores vão piscando. Diminui a velocidade do helicóptero aumentam as casas e
apartamentos, estabelecimentos comerciais, carros piscando. Datena informa que o
Comandante Amiltom tem um helicóptero excepcional, de primeiro mundo. A gente pode
ver de 5 a 10 km de distância as casas piscando. Da a impressão de que toda São Paulo
está piscando e conseqüentemente assistindo ao BU. A pesquisa durou toda a semana).

1. 5 DT: Cadê o Márcio Campos, o helicóptero tá onde, Márcio Campos?


Você que se acha mal atendido na saúde publica, você que teve parente mal atendido,
você que teve a saúde pública negada, por favor, Pisque Band! Se você acha que a saúde
pública é ruim, bota o dedo no interruptor! Não na tomada, o dedo no interruptor.
Acendam as luzes para que nossos políticos vejam os sinais luminosos de um protesto da
cidade inteira, não é... a quarta maior cidade do planeta que não aceita mais engolir esses
políticos com essa política indecente de uma saúde pública aí. Não é só a cidade de São
Paulo, mas toda a Grande São Paulo e na verdade o Brasil inteiro que está protestando. Já

222
está parecendo uma árvore de natal. Cada pisca representa um família protestando contra
o descaso na saúde pública.

1. 6 Me ajuda aí. Acorda politicada! Quantos pais e mães nós ainda vamos ver chorando a
morte de seus filhos? Corredores da morte nesses hospitais, falta de leitos, falta de
vergonha na cara, falta de médicos, tudo isso representa o protesto do Pisque Band.
Atenção se tiver protesto, me chama que eu vou. O Amilton vai junto com o helicóptero.
É impressionante a resposta da gente Band. São Paulo pisca contra o descaso na saúde
pública. Pisque Band em protesto contra a saúde pública.

(De um helicóptero passa para o outro. Passando por todos os bairros de classe média e
alta também. O helicóptero vai chegando de surpresa e foca em cima das casas piscando
que vão ganhar um televisor 29 polegadas, um patrocínio das Casas Bahia).

1. 7 No bairro Capão Redondo, um conjunto de prédios estava piscando. Datena comandava


um show dando ordens para piscarem juntos, depois somente os da direita, depois, da
esquerda...os dois junto, o conjunto inteiro de prédios. Datana se assemelha a um maestro
comandando uma orquestra.

1. 8 DT: Quero ver o conjunto inteiro piscando de uma vez. Piscando Band de protesto”
(música).Vamos lá, vamos pisca!Todo mundo aí que o helicóptero vai chegar em
vocês.Vamos lá gente, vamos pisca ! A 5 km do helicóptero tem gente piscando, isso
significa que ninguém está satisfeito com a saúde pública. Pisque Datena, pisque para o
Amilton, pisque pro Datena... É um protesto de São Paulo para o Brasil inteiro ver. É
para as autoridades sentirem, se elas não ouvem que pelo menos elas vejam que desses
sinais luminosos há sempre uma família indignada com a saúde pública. E no horizonte o
que mais me impressiona é que na linha do helicóptero, lá longe, 10 km de distância, ou
mais, 15 km tem gente piscando.
Tem reportagem sobre a saúde aí?

1.9 (Outra manchete: Repórter é agredido na porta do hospital Santa Marcelina no Itaim
Paulista. Mostra as imagens e desenvolve a reportagem)

É hora do primeiro sorteio em um dos bairros..


(Márcio Campos que está no helicóptero escolhe uma casa no bairro Ipiranga.Uma
janela é escolhida. O helicóptero pode pegar quase o rosto da pessoa.
À seguir Datena anuncia mais uma matéria sobre saúde. Depois de apresentar outras 10
matérias, o BU conta a história de uma mulher que perde a bebê).

REPORTAGEM 4
MULHER PERDE A BEBÊ DURANTE O TRABALHO DE PARTO.
4. 1 DT: A família acusa o hospital pela morte da criança. A reportagem é do Figueiredo
Júnior.
É por causa disso que o pessoal está piscando. E eu vou continuar mostrando piscar sim
não adianta ligar pra cá não para pedir.. hó, o Datena não pode fazer esse tipo de coisa

223
não, esse tipo de pisquisa. Vou fazer sim (grita) hã.. eu quero que vocês políticos é... põe
na tela aí.... e vou botar mais daqui a pouco.
(Repórter entrevista o pai da bebê falando ao repórter Figueiredo Jr., durante uma
manifestação na porta do hospital. Imagens mostram um grupo de pessoas protestando).

4. 2 Pai: Olha, eu cheguei aqui eu saí de São Bernardo (chorando indignado) eu saí de São
Bernardo, uma hora da tarde prá chegar no hospital à 1:40hs, a minha esposa com a bolsa
estourada, peguei a linha de ônibus, tive que tomá uma multa, ser preso pra socorre ela.
Quando cheguei aqui pensei que tinha socorro, convênio. Não há convênio.
Repórter: A manifestação aconteceu em frente ao hospital onde Solange Desidério
perdeu a bebê. Ela acusa o Hospital Perimetral de Santo André de negligência. No último
dia 19 Solange chegou no setor de emergência com fortes dores no abdômen e com a
bolsa rompida. Ela conta que ficou mais de 8hs esperando atendimento para a realização
de uma cesária. O marido José Celso afirma que ao chegar no hospital Solange passou
por diversos exames mostrando que a bebê ainda estava viva.
J.Celso: A minha vontade era de ... eu nem sei o que falar. Dá uma revolta tão grande..
aconteceu isso. Eu gostaria que o diretor do hospital que operou ela... o assassinato,
explicasse, entendeu?
4. 3 Repórter: O médico responsável pelo parto, Dr. Cincinato Freire conta que a morte da
bebê foi uma fatalidade. O deslocamento de placenta seria o principal motivo da morte da
criança.
Dr.: Ela teve um descolamento de placenta no final do parto, na hora do parto
praticamente. Isso é uma... uma fatalidade, é uma coisa imprevisível. O hospital fez tudo
o que tinha que fazer, nós atendemos a mãe, a mãe foi embora muito bem, hê..
e..a..criança, infelizmente ela foi inclusive até encaminhada para o IML pra fazê o exame
dela pra ver a causa morte.
(Logotipo BU).

REPORTAGEM 1
(Volta ao “Pisque Band”).
1.10 DT: Por isso que as pessoas estão piscando desse jeito. Por essas barbaridades que
acontecem nos hospitais. Se no hospital faz isso, imagina na rede de..de..saúde pública.
Por isso que estão piscando desse jeito. Basta no horizonte, há de ver no horizonte, tá
certo que o Rodrigo tem que fechar (a imagem) e tal, mas não é duas casas, não são duas
casas, são milhares de casas, são milhares da casas, é o bairro inteiro piscando contra a
saúde pública em protesto com a saúde pública. O Figueiredo está com a família.
Enquanto o Figueiredo estiver entrevistando a família que perdeu é..é..é..esse ente
querido, eu gostaria que no meio da...da..da entrevista, nós continuássemos na zona Sul
mostrando aí esse pisca-pisca. Antes o Márcio tem que fazer o sorteio do bairro, aquela
surpresa que eu revelei. É.. é..é.. bairro do Ipiranga é outro ponto da cidade, deixa eu vê,
abre a imagem, abre a imagem. Bairro do Ipiranga outro ponto da cidade é o bairro
surpresa. É mas não estou gostando aí, o pessoal não está piscando aí, tem que pisca
Band, ah sim, piscando Band aí, o bairro do Ipiranga, tem que piscá Band, abre mais um
pouquinho, abre mais um pouquinho (pede para o helicóptero abrir a imagem) Esse
bairro não foi avisado que seria aí, por isso que eu falo, vai piscando o..o..o o seu o o

224
o..seu interruptor, vai botando o dedo no interruptor que à qualquer momento nós
podemos ir para um bairro surpresa. Hoje estamos na zona Sul mas podemos ir para a
1.11 zona Norte, zona Leste, zona Oeste.... Atenção, aquele prédio alí da direita, aquele prédio
da direita alí, fecha numa janela alí, vamos fechar numa janela aí, essa de cima, a de cima
(a câmera foca na janela indicada). Tem gente na janela aqui. Atenção você dessa janela
(Datena orienta pela TV o que os moradores do apartamento devem fazer) você dessa
janela, você dessa janela, por favor, ligue para o Datena, ligue para o Datena (música de
vencedor) a de cima, a de cima, aí ligue para o Datena, ponha o telefone “Fale com
Datena” e eu vou falar com você (aparece na tela o número do Fale com Datena). Foi
um bairro surpresa heim, uma televisão 29 polegadas em nome das Casas Bahia. Você
que piscou Band em protesto contra a saúde pública desde aí no bairro do Ipiranga.
Obrigado viu Márcio (no helicóptero).
Márcio: Ok Datena, a criançada tá feliz ali pulando e protestando.
DT: Vamo vê se ela liga pra cá. Vamo vê se ela liga pra cá, senão pode ser aquela
senhora que tá com o cachorrinho ali. Vamos ver quem liga primeiro vamo vê quem liga
primeiro. Atenção comandante Amilton (outro helicóptero). O nosso bairro de pesquisa
é, é o Capão Redondo, zona Sul. As pessoas piscando enquanto eu vou vendo o
Figueiredo aí, continue piscando na zona Sul nós vamos escolher a casa a ser sorteada.
Pisque contra a saúde pública aí, daqui há pouco nós vamos escolher a casa ou
apartamento...pisque mais, ta muito devagar aí, se for contra a saúde pública pisque mais.
Pisque mais Band. O Figueiredo tá coma.. com a...a família que perdeu aquele ente
querido. Pois não.

REPORTAGEM 4
(Volta a entrevistar a mãe que perdeu a criança)
4. 4 Figueiredo (FIG) Alô Datena, é verdade, boa noite, nós estamos aqui em São Bernardo
do Campo, aqui na residência do seu José Celso e da Dona Solange. Dona Solange no
último dia 19 foi até o hospital perimetral de Santo André, chegou lá por volta das
3:40hs.
Solange (SL): 3:40hs
FIG: Até que horas a senhora ficou lá para ser atendida?
SL: Até às 21:30hs
FIG: O que que eles alegavam para a senhora?
SL: Alegavam pra mim que o médico já tava vindo, não tinha cirurgião no hospital que
era prá eu esperá. Aí eu pedi prá ligar prô meu marido prá me tirar de lá prá me levar para
outro hospital, mas eles sempre falavam: o médico esta vindo e lá, eu fiquei até às
21:30hs.
4. 5 FIG: A senhora foi prá lá para realizar o sonho de ter uma menina, a senhora tem dois
meninos né?
SL: Com certeza, era o sonho aqui meu, dos meus vizinhos dos meus amigos
compartilhando comigo a alegria da minha filha, chega lá cheia de esperança (chora) de
repente na segunda-feira sai de lá com a mão vazia (o repórter explora detalhes).
FIG: Por volta das 21:30hs o que aconteceu com a senhora.
SL: Por volta das 21:00hs, eu peguei um celular.. pedi o celular da menina do quarto do
lado que eu ia ligar prô meu marido prá me remover de lá, aí eles me levaram, aí eles

225
pediram pro enfermeiro vim me buscar no quarto, falou que o médico tinha chegado.
Depois fiquei lá no centro cirúrgico mais 30 min. E nada do médico chega.
4. 6 FIG: E que hora que o parto foi feito?
SL: Foi depois das 21:30hs.
FIG: Quando nasceu a criança...
SL: Quando nasceu a criança (música de fundo, choro da mãe)
FIG: Nasceu morta...
SL: Nasceu morta...
FIG: A senhora agora quer justiça.
SL: Quero justiça porque eu sei que não vou trazer a menina de volta Datena, mas outras
mães, outras crianças não vir cair nas mãos desses assassinos.. prá mim são uns
assassinos. Tivesse um, a esposa dele, a filha deles não deixaria lá das 3:30hs até às
21:30hs, sem nenhum atendimento médico nesse período, porque lá nenhum médico foi
me examinar.
FIG: Isso faz dez dias?
SL: Faz dez dias...
FIG: E as roupinhas da nenê o que a senhora fez?
SL: Minha irmã levou para a casa dela, porque no dia eu estava em estado de choque e
tava tudo inchada, aí ela chegou.. quando eu cheguei, ela tinha tirado tudo, tinha
desmontado o berço levou pra mim não ficá lembrando.... tirou levou pra casa dela...
FIG: A senhora fez um parto de cesariana e ainda está com os pontos?
SL: Ainda estou com os pontos...é...
(Datena interrompe).
4. 7 DT: É por causa dessas histórias que o pessoal está piscando uma barbaridade aí no
ar...pode bota..deixa ela falando.. por favor.. (Dona Solange retoma).
SL: Datena, e depois ele ainda me ofereceu uma adoção, falou assim que eu tinha jeito de
ser um mãe muito carinhosa que ia providenciar uma adoção prá mim.. Aí eu falei que eu
queria a minha (choro).
DT: A sua ninguém vai dar.
SL: É verdade...(em prantos).
DT: Porque que não deram a vida da sua filha, não é?
SL: É...verdade Datena (a mãe soluça), depois aí perguntou se eu queria vê minha filha.
Aí eu falei que eu queria ver, e eu... não agüentei... aí eu peguei e fiquei abraçando e
beijando ela no braço... (choro).
4. 8 DT: Você é uma mãe muito carinhosa, vou te dar uma outra filha, ora (cinismo e
alteração da voz) ninguém substitui, não...não há no coração de mãe quem substitua a
própria filha!
SL: Datena, e aí ainda antes da anestesia pegá ficou me cortando ainda, acho que ele viu
que a criança estava em risco de vida... antes da anestesia pegá começô a me cortar e eu
comecei gritá... ai perguntou se eu estava sentindo as pontas... Eu disse é lógico que ainda
estou sentindo os meus dedos, mexi os meus dedos do pé e falei: tô sentindo ainda...
DT: Por essas histórias ...
SL: Foi como um bicho, Datena eu me senti um bicho, um animal...(choro).

4. 9 DT: Por histórias como a sua que São Paulo pisca em protesto (mostra a imagem das
casas piscando a luz enquanto Datena comenta). Não tira a imagem... que São Paulo

226
pisca em protesto contra a saúde pública, sabe. São Paulo inteira pisca em protesto contra
a saúde pública, São Paulo inteira. Me dá a imagem, abre mais a imagem. Impressionante
como São Paulo, por essas histórias. Por esses abusos dos hospitais sabe, por essas
verdadeiras barbaridades que acontecem nos hospitais.. é uma cidade inteira. Cada luz
dessa é uma família inteira indignada protestando contra a saúde pública do Brasil.
Contra a saúde de..de.. dos hospitais que não atendem a população, a população está
simplesmente morrendo, é..é.. por falta de leitos, morrendo por falta de remédio,
morrendo por falta de vagas nos hospitais, é um a cidade inteira piscando. Agora é a zona
Sul de São Paulo inteira piscando ali. Já mostramos o bairro do Ipiranga também todo
mundo protestando contra a saúde pública. História como o de essa senhora, né. Quem
vai devolver a vida da filha dela? Quem vai devolver, quem vai? Quem vai devolver...
Quem vai enxugar as lágrimas dela? Quem é que vai enxugar as lágrimas dela (mostra a
senhora enxugando as lágrimas) Por causa de histórias como a dessa senhora que perdeu
a filha e que prometeram um bebê pra ela é que a cidade inteira está piscando, é que a
cidade inteira está piscando revoltada aí em sinal de protesto, sabe. Cadê a outra
reportagem que você tinha aí Clóvis? Cadê a outra reportagem?

(Fim)
(Seguem outras matérias).

227

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