Direito Comercial I

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Direito Comercial I

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


Ano letivo 2018 - 2019

- Apontamentos –
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

PARTE I – INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I - PARA UMA IDENTIFICAÇÃO PRELIMINAR DO DIREITO
COMERCIAL

1. O DC como Direito privado especial.


O Direito Comercial é definido ora como o Direito privado especial do comércio
ora como o Direito dos comerciantes e das empresas. A doutrina atual aproxima e
complementa estas duas noções.
O Direito Comercial é Direito Privado. Integra uma área normativa dominada por
vetores de igualdade e liberdade: os diversos sujeitos apresentam-se sem poderes de
autoridade e podem, em princípio, desenvolver todas as catividades que a lei não proíba.
Pelo contrário: no Direito Público deparamo-nos com entidades dotadas de ius imperii as
quais, em contrapartida, só podem agir quando a lei o permita.
Em termos culturais, o Direito Comercial radica na tradição românica e assenta
em receções sucessivas do Direito Romano. Cabe destacar que o moderno Direito
Comercial tem sido derivado de estatutos e práticas medievais e não do Direito Romano,
todavia, as suas categorias têm, no essencial, uma conceção românica, tendo sido
justamente o seu tratamento, à luz dos quadros padectísticos, que lhe assegurou a
sobrevivência e modernidade.
O Direito Comercial é considerado um Direito Especial. Assim se distinguiria do
Direito Civil: Direito Comum.
A relação de especialidade ocorre quanto, perante um complexo normativo que se
dirija a uma generalidade de situações jurídicas, um segundo complexo, mais restrito e
mais intenso, contemple uma situação que, de outro modo, respeitaria ao primeiro,
dispensando-lhe um tratamento particularmente adequado. A adequação pode resultar de
normas diferenciadas que estabeleçam situações diversas ou de regras complementadoras
que precisem, num ou noutro sentido, soluções deixadas em aberto pelo Direito Comum.
Podemos, todavia, afirmar que a especialidade é relativa: impõe-se quando,
perante duas áreas normativas, seja possível estabelecer uma relação geral/especial. O
Direito Comercial seria especial em relação ao civil: mas surgirá geral em relação ao
Direito Bancário, ainda mais especial.
Esta afirmação de especialidade é útil porque permite justificar a aplicação
subsidiária das soluções encontradas no Direito Civil.

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2. O DC e o “Direito (privado) do comércio” e o “Direito (privado) da


economia”. As interrogações preliminares: o DC como “Direito de certo
comércio”, como “Direito dos comerciantes” ou como “Direito da
empresa”?
O Direito Comercial será, por fim, o Direito do Comércio ou dos comerciantes.
Tecnicamente, o comércio é a atividade lucrativa de produção, distribuição e venda de
bens. O termo “comércio” pode, com propriedade, aplicar-se a qualquer dos segmentos
do circuito que une produtores a consumidores finais e, ainda, às atividades conexas e
acessórias.
A questão de saber se estamos perante um Direito do Comércio (conceção
objetivista) ou dos comerciantes (conceção subjetivista) corresponde a uma colocação do
problema considerada superada desde os anos 30 do século XX. Qualquer ramo jurídico,
para mais especial, pode ser sempre configurado num sistema subjetivo: regulando o
comércio, regulam-se os comerciantes.
O problema em aberto é, antes, outro: as proposições jurídico-comerciais
diferenciam-se por se dirigir a quem, em que circunstâncias e segundo que critérios? É a
este nível que se repõe a contraposição entre o objetivismo (Direito do Comércio) e o
subjetivismo (Direito dos Comerciantes). Como destaca o professor MENEZES
CORDEIRO, a resposta a tal questão implica um desenvolvimento histórico, uma nota
comparatística e, finalmente e sobretudo: um estudo de Direito Positivo. Não é possível
esclarecer este ponto em abstrato.
Em suma, podemos dizer que o Direito Comercial não provem de qualquer
definição lógica pré-elaborada. Como disciplina jurídico-privada, ele apresenta-se fruto
de condicionamentos histórico-culturais complexos. A própria dogmática mercantil lhe
sofre as consequências ainda que intente, até aos confins do possível, oferecer reduções
coerentes e soluções harmónicas para os problemas.

3. Evolução histórica.
3.1. Génese e Direito Romano.
O aparecimento do comércio terá, provavelmente, decorrido da própria
hominização. Enquanto atividade autónoma e organizada desde a Antiguidade mais

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recuada, acompanhando o uso da escrita em cuja origem terá, por certo, tido papel
decisivo.
Logo que surgiu, o Comércio teve regras: nenhuma atividade humana que
implique relacionamentos estáveis pode viver sem elas. Encontramos normas comerciais
na Mesopotâmia, no antigo Egipto, na Fenícia e na Palestina e na Grécia.
Particularmente na Grécia, haveria mesmo um corpo separado de regras
comerciais: um tanto à semelhança do moderno Direito Comercial e ao contrário do que
sucedia em Roma. Tais regras visavam o tráfego marítimo e terrestre e dispunham de
tribunais especializados para a sua aplicação.
A existência de um Direito comercial em Roma dá azo a alguma controvérsia.
Roma teve, na origem, relações comerciais complexas que se estabeleceram entre a
Etrúria e a Magna Grécia. A existência, desde o início, de regras legitimadores foi
inevitável. E esse facto mais se terá intensificado com a expansão romana. Sabemos que,
sob o Império, foi estabelecida uma rede de estradas, entre todas as províncias, que apenas
seria alcançada, de novo, no século XIX. O tráfego marítimo no Mediterrâneo era intenso,
trazendo a Roma todo o tipo de produtos. Nada disto é pensável sem códigos de conduta
desenvolvidos e sem instâncias capazes de dirimir convenientemente os inevitáveis
litígios. Surpreendentemente, tais códigos de conduta comercial não se documentam.
Existe, na comercialística, uma tradição radicada, segundo a qual o Direito
Comercial teria sido estranho ao Direito Romano: apenas viria à luz nos burgos
medievais.
O professor MENEZES CORDEIRO entende que esta tese não é de perfilhar. Para
além dos institutos especializados claramente comerciais, deve-se ter em boa conta que o
Direito Romano, mormente após a criação dos bonae fidei iudiciae, nos finais do século
II a.C., justamente em obediência às necessidades do Comércio, dotou-se de contratos
consensuais, flexíveis, equilibrados e acessíveis a civese a peregrini, isto é: a cidadãos
romanos e estrangeiros. A essa luz, podemos afirmar que todo o Direito Romano,
designadamente no campo faz obrigações e dos contratos, era Direito Comercial.
Formou-se uma oposição ao velho ius civile, consubstanciado nas legis actiones e
inadaptável ao comércio, pela sua rigidez e pelo seu formalismo.
Suscita dúvidas a afirmação, patente em diversos autores, de que o espirito do
Direito Romano, de base igualitária, não se coadunaria com corpos de regras
diferenciadas, para certas categorias de cidadãos. Numa sociedade esclavagista, tal
afirmação parece pouco rigorosa.

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O Direito Romano facultou-nos institutos aptos a desenvolver o tráfego comercial


e a profissão de comerciante. Tais institutos não foram articulados em sistema uma vez
que o próprio Direito Romano não era sistemático. Não reside aí, porém, nenhuma
particularidade adversa ao Direito Comercial.
Finalmente: o Direito Romano deixou-nos uma Ciência: a Ciência do Direito –
que tornaria possível, muito mais tarde, a articulação de um verdadeiro Direito Comercial.

3.2. As cidades mercantis italianas e da Liga Hanseática e o nascimento do


ius mercatorum.

O Direito Comercial terá assumido uma configuração mais característica nas


cidades medievais, especialmente em Itália.
O antigo comércio mediterrânico nunca terá desaparecido por completo. Mas foi
drasticamente reduzido: a feudalização do Império, as invasões e, por fim, a vaga islâmica
isolaram o Ocidente, dando azo a uma economia de tipo fechado.
A partir do século XI, uma certa estabilização militar e a subsistência do Império
de Bizâncio propiciaram, em Itália, o aparecimento e o desenvolvimento do Comércio.
Os mercadores, por via consuetudinária ou através dos seus organismos, criaram e
aperfeiçoaram normas próprias, para reger a sua profissão e os seus interesses. São
particularmente referidos estatutos de Génova, de Florença e de Veneza, as guildas do
Norte da Europa e o Consolat del Mar no Direito marítimo catalão.
O Direito Romano da receção (surgimento das universidades e renascimento do
Direito Romano) não tinha condições para reger o Direito Comercial. Houve que fixar
regras: algumas mais não faziam do que retomar proposições romanas, como as que
impunham o respeito pela boa-fé e pela palavra dada; outras, como as referentes às
aquisições a non domino, correspondem a novas necessidades económico-sociais.
Torna-se importante reter os esquemas histórico-culturais que permitiram, ao ius
mercatorum, surgir nos Estados modernos. Em primeira linha, ele foi incluído nas fontes
doutrinárias, através de uma adequada integração nos quadros semânticos.
Decisiva seria, porém, a recuperação que, dos estatutos e regras hanseáticas,
fizeram os grandes Estados territoriais do século XVII e XVIII. Adotando-os e
aperfeiçoando-os, os Estados lograram preservar o fundo sociocultural que o ius
mercatorum representava, evitando a sua diluição no Direito Comum.

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Foi, designadamente, o que sucedeu em França através das Ordennance du


Commerce (1673) e Ordennance de la Marine (1681).
Foram justamente estas leis comerciais dos Estados modernos, com um relevo
especial para as ordenanças de Luís XIV, que permitiram conservar, como corpo
autónomo, o ius mercatorum medieval. Os juristas mantiveram o ato de lidar, de modo
separado, com o Direito civil e o Direito comercial. Preservou-se a cultura
comercialística, dando-lhe uma base moderna: o poder soberano do Estado
O ius mercatorum surgiu devido à insuficiência do Direito Civil para acompanhar
a dinâmica comercial.

3.3. O Code de Commerce (1807) ou a objetivação do DC.


A obra legislativa de Napoleão alargou-se ao Direito Comercial: trata-se de uma
orientação que assegurou a sua sobrevivência, até hoje, nos diversos ordenamentos do
Continente. O Code de Commerce foi aprovado por lei de 10 de Setembro de 1807 e
promulgada a 20 do mesmo ano.
Materialmente, o Code de Commerce acolheu os Ordonnances de Colbert tendo,
nessa medida, sido pouco inovador.
Na grande viragem que representou a codificação napoleónica, esta opção
preservadora de um fenómeno tipicamente francês permitiu, até hoje, a sobrevivência do
Direito Comercial, como realidade autónoma.
O Código de comércio francês beneficiou de ter sido precedido pelo Código Civil
de 1804. Pôde simplificar a matéria, atendendo-se às questões mais diretamente
comerciais. Ele não tem sido considerado uma grande obra, ao contrário do Código Civil.
Elaborado de modo apressado, ele ressentir-se-ia, ainda, de ter precedido a revolução
industrial: esta exigiria quadros jurídicos bem mais flexíveis.
De todo o modo e formalmente, ainda hoje, o Código se mantem em vigor;
todavia, dos seus iniciais 648 artigos, apenas 33 subsistiam, em 1994, na sua redação
original. Em Setembro de 2000, a Ordenança veio introduzir, no Código do Comércio,
diversa legislação, com relevo para o Código das Sociedades de 1966.
O Código daqui resultante foi objeto de diversas críticas. Designadamente:
- Não tem uma conceção lógica de comércio, seja ela objetiva ou subjetiva;
- Mistura matérias comerciais e não comerciais;
- Consagra desenvolvimentos amplos a profissionais cujas atividades são
civis.

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O Direito Comercial chegava ao século XIX como o Direito dos comerciantes. A


tradição anterior tinha uma base nitidamente pessoal, atribuindo-lhes jurisdição própria.
A Revolução Francesa não podia contemporizar com esse tipo de privilégio. Mas como
autonomia do Direito comercial era vivida enquanto dado ontologicamente irrecusável,
houve que remodelar: a competência dos tribunais de comércio seria ditada não pela
qualidade das partes, mas pelo facto que dê azo ao litígio.
Resultou daí a adoção do sistema dito objetivo: o Code visava os atos de comércio,
indicando depois, num sistema fechado, que atos seriam esses, para efeitos de jurisdição
comercial. E os próprios comerciantes vinham definidos por referência aos atos de
comércio.
A objetivação do sistema comercial tinha, implícitos, os germes da sua diluição,
no Direito Privado. Efetivamente, a especialidade de um ato mercantil ou de um contrato
comercial, quando postos à disposição de qualquer interessado, não é superior à de
múltiplos contratos altamente diferenciados e que ninguém iria retirar do Direito civil.
Todavia, o Direito Comercial francês sobreviveu. Desde logo: mau grado o teor
geral acima relatado, ele não é inteiramente objetivo. Integra um status de comerciante,
com regras específicas e que interferem, depois, no regime dos atos objetivos.
Particularmente importante era, a esse propósito, a existência de uma jurisdição especial
para os comerciantes.
Todo o comerciante, desde que alcançasse os trinta anos, podia ser eleito,
exigindo-se quarenta, para o presidente.
O Código de Comércio Francês teve uma influência marcada, nos diversos países.
Curiosamente, essa influência precedeu a do próprio Código Civil: vingou a ideia de que
regras claras e simples tinham um papel determinante no desenvolvimento do comércio
e da indústria. Ou, pelo menos: seriam de mais fácil conceção.

3.4. A evolução na Alemanha: do AHGB ao HGB


A codificação francesa foi possibilitada pela centralização derivada da Revolução
no Império. No mesmo período, na Alemanha, a fragmentação política dificultava
iniciativas codificadoras gerais. A forte capacidade produtiva alemã obrigou a doutrina e
a jurisprudência a transcender as carências legislativas.
Durante a primeira metade do século XIX, o aperfeiçoamento do Direito
Comercial, que não podia, perante a industrialização nascente, aguardar pela unificação
política, ficou entregue aos juristas e aos tribunais.

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Necessidades comerciais permanentes levaram que, logo em 1815, as quatro


cidades livres do Ocidente alemão estabelecessem uma tribuna superior de apelação
comercial, com jurisdição sobre os tribunais comerciais das cidades em causa. Este
Tribunal superior foi obrigado a decidir as mais delicadas questões comerciais, sem apoio
em leis modernas. Perante isso, baseava-se ora no Corpus Iuris Civilis, ora na doutrina,
ora em diplomas estrangeiros, ora usos comerciais, ora, finalmente, na boa-fé. A
jurisprudência do OAG Lübeck teve a maior importância no Direito Comercial
contemporâneo. Desde logo, ela manteve viva a ideia de uma autonomia do Direito
Comercial, assente em valores específicos e numa cultura própria.
As tentativas de unificação legislativa alemã principiaram pelo domínio comercial
(com o projeto de Lei ADWO), que acabou por ser um fracasso. A iniciativa foi retomada,
noutros moldes, em 1857, com a Conferência de Nuremberga que acabou por aprovar o
ADHGB.
Pronunciando determinadas evoluções subsequentes, o ADHGB adotou um
sistema misto, objetivo e subjetivo. Parte do conceito de comerciante e postula para ele
regras especiais. Todavia, posteriormente, considera comerciais determinadas situações a
titulo puramente objetivo, e portanto: podendo as respetivas e comerciais regras aplicar-
se a não-comerciantes.
O ADHGB padeceu, ainda, da falta de um Código Civil. Compreende, por isso,
inúmeras regras civis, cuja ausência, na época, ele teve de suprir.
O Direito Comercial surgiu e desenvolveu-se de formas diferentes em França.
Enquanto, na França o Direito Comercial alcançou uma identidade apoiado na autoridade
do Estado e, imediatamente, na cultura dos juristas, na Alemanha, esta jogou em primeira
linha.
Após a primeira vaga de códigos comerciais do século XIX, seguiu-se uma
segunda leva, menos pioneira e mais elaborada, a que o professor MENEZES
CORDEIRO chama codificações oitocentistas tardias.
Tem em mente, desde logo, o Código Comercial italiano de 1882. Assente numa
doutrina comercial elaborada, entretanto surgida, o segundo Código Comercial italiano
foi preparado com cautela. Para além, naturalmente, do seu antecessor, de 1865, cuja
estrutura geral conservou, o Código do Comércio italiano de 1882 atendeu ao AGHGB e
à forte doutrina alemã, dele decorrente.
O Código de Comércio de 1882 desenvolveu a matéria com mais cuidado,
designadamente na área dos contratos comerciais. Foram tratados negócios antes

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ausentes, como o reporte, as sociedades cooperativas, o cheque, a conta-corrente, o


mandato comercial, o seguro terrestre e o depósito em armazéns gerais, entre outros.
O século XIX fechou da melhor maneira com o Código Comercial alemão (HGB)
de 1897, aprovado para entrar em vigor com o BGB, em 1900. Ambos os diplomas foram
preparados em paralelo e com o tempo, tendo-se ainda em conta, particularmente nas
sociedades, a dinâmica adveniente da industrialização.
O HGB pretendeu adequar a legislação comercial ao novo Direito privado
potenciado pelo BGB. As múltiplas disposições civis, que o ADHGB de 1861 fora
obrigado a conter, tornaram-se supérfluas, podendo ser eliminadas. Na contraposição
entre os sistemas objetivo e subjetivo, o HGB optou, em linhas gerais, pelo segundo
modelo: fixou um Direito de comerciantes, livre já dos pruridos pós-revolucionários
franceses.
As codificações oitocentistas tardias surgiram como o ponto alto do Direito
mercantil, enquanto disciplina jurídica privada especial. De certo modo, elas pretenderam
justamente cristalizar esse tipo de entendimento. E assim, assistimos, nos vários códigos,
à duplicação de diversas figuras: contratos como a compra e venda, o depósito ou o
mandato, como exemplos, regulados na lei civil, recebem agora, nos códigos mercantis,
versões especiais. É evidente que isso só é possível com um sistema subjetivo ou misto:
donde a aparente recaída no que se poderia chamar um Direito de classe e que atingiu a
sua manifestação máxima no HGB.
A base dogmática da autonomia subjetiva do Direito Comercial é frágil. Além
disso, ela vem confundir com princípios constituintes do Direito Privado moderno os
quais, quase um século antes, os juristas de Napoleão já haviam sido sensíveis. O Direito
Comercial aparentava uma fraqueza que se iria traduzir, no século XX, em movimentos
integracionistas.

3.5. A experiência portuguesa


3.5.1. Das origens ao século XVIII
As relações comerciais referentes à Terra Portucalense datam desde a Fundação,
tendo-a antecedido. E desde cedo surgiram leis nacionais tendentes a defendê-las e a
regulá-las. Entre as mais antigas destaca-se uma referente ao reinado de D. Afonso II.
Todavia, já anteriormente surgiram, em certos forais, normas relativas ao tráfego naval.
Subsequentemente documentam-se numerosas medidas régias destinadas a
incentivar a construção de navios e o tráfego marítimo. Cumpre ter presente que as

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descobertas portuguesas resultaram da execução minuciosa de um plano pensado e


facultado pelo Estado. Não foram obra nem de súbita inspiração, nem do acaso.
As Ordenações do Reino regularam, desde logo, alguns aspetos significativos.
Cumpre destacar, desde já, a existência de uma magistratura especificamente comercial:
a dos almocatés (o almotacel era, à partida, um funcionário eleito, encarregado de zelar
pela igualdade dos pesos e medidas; podia, ainda, impor taxas, verificar a correção das
transações e promover distribuições de géneros).
Além desta figura, as Ordenações previam o Juiz da India, Mina e Guiné, a quem
era atribuída uma completa jurisdição marítima. Regulavam ainda diversos aspetos do
estatuto de comerciante e contratos comerciais.

3.5.2. Os Códigos Comerciais Oitocentistas


A. Antecedentes – A Lei da Boa Razão
A complexidade das fontes de Direito, em vigor no século XVIII, requeria uma
simplificação radical. Não estando reunidas as condições jurídico-cientificas para uma
codificação de fundo, procedeu-se a uma arrumação abstrata da matéria.
Tal foi o papel da Lei da Boa Razão (18 de Agosto de 1769), que procedeu à
reorganização das fontes de Direito subsidiário.
Dada a insuficiência da legislação disponível, os litigantes haviam-se tornado
hábeis na citação de leis estrangeiras, sem se atender à falta de unidade daí decorrente e
à pura e simples inadequação de muitas delas. A situação era tanto mais gravosa, quanto
é certo que, nos domínios comerciais, é bem importante a previsibilidade das decisões
jurídicas. O Direito e a Jurisdição comerciais chegaram, assim, a um estado lamentável.
Nestas condições, o advento do liberalismo tornou premente a reforma do Direito
Comercial.

B. O Código Ferreira Borges (1833).


O primeiro Código Comercial português deve-se a um jurista de génio: JOSÉ
FERREIRA BORGES, ainda hoje considerado o maior comercialista português.
JOSÉ FERREIRA BORGES enfrentou várias dificuldades, desde logo, a falta de
legislação e documentos escritos em português, a falta do ensino do Direito Mercantil nas
faculdades e outros factores tornariam o seu trabalho ininteligível. Seria, por isso,
necessário proceder à feitura de um dicionário português de Direito Comercial. Este

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dicionário foi também preparado por FERREIRA BORGES, todavia, apenas foi
publicado depois da publicação do Código.
O Código Comercial de 1833 foi censurado por conter múltiplas regras civis e por
se preocupar com definições de compêndio. Há resposta: faltava um Código Civil e uma
ciência jurídico-mercantil; deste modo quedava, ao legislador, suprir ambas as falhas.
O Código Comercial de 1833 teve, ainda, um importante papel no futuro do
Direito Comercial português: habituou, desde cedo, os juristas portugueses a trabalharem,
em separado, com os Direito civil e comercial. Antecedendo o próprio Código de Seabra,
o Código Ferreira Borges deu, aos comercialistas portugueses, uma base teórica, prática
e cultural para um labor especializado.

C. O Código Veiga Beirão (1888).


A discussão da reforma do Código Comercial começou, de imediato, após a
aprovação do Código de Ferreira Borges.
A 17 de Julho de 1870, sendo considerada indispensável e urgente a reforma do
Código Comercial, para mais após a aprovação e entrada em vigor do Código Civil de
Seabra, foi nomeada uma nova Comissão. Estava-se, então sob a ditadura de Saldanha e
era Ministro da Justiça JOSÉ DIAS FERREIRA. Nada ela fez. Com estes antecedentes
pouco brilhantes, caberia a VEIGA BEIRÃO, Ministro da Justiça sob o primeiro Governo
progressista de Luciano Castro, retomar a ideia de uma metodologia diversa: pedir a
personalidades individualmente tomadas a elaboração de parcelas determinadas do futuro
Código.
Como diretriz para os vários intervenientes assentou-se, previamente, que seriam
quanto possível conservadas as disposições anteriores; nas reformas a introduzir seguir-
se-iam os códigos comerciais estrangeiros mais recentes, com relevo para o espanhol e o
italiano, mas sem esquecer os usos e tradições nacionais. Tudo isto é interessante; por um
lado, mantém-se a tradição pombalina de recurso ao Direito dos povos civilizados e cultos
da Europa; por outro, inicia-se, ainda que de forma lenta, a emancipação do modelo
napoleónico, já envelhecido.
O Código Comercial de 1888, ou Código Veiga Beirão, ficou, assim, dotado de
trabalhos preparatórios, através dos quais é possível seguir a génese de muitas das suas
soluções. Paradoxalmente, esta facilidade veio incentivar uma interpretação exegética, de

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tipo subjetivista, que marcou a comercialista subsequente, deixando rastos até aos nossos
dias.

CAPÍTULO II - O DC NA ATUALIDADE

1. A tensão interna: objetivismo versus subjetivismo.


Com a revolução francesa, foi entendido que não podia existir um Direito
Comercial estruturado na base do comerciante, daí o código comercial francês ter redigido
um critério com base no ato de comércio (i.e., primou uma posição objetivista). Isto é
uma definição que ainda existo no atual CComercial.
Embora, a perspetiva objetivista do CComercial francês influenciou o Código
português, mas houve opções claramente subjetivista, que é o caso do CComercial alemão
(Handelgesellsbuch) de 1900.
A discussão clássica de saber se o Direito Comercial haveria de reger os
comerciantes ou os atos de comércio encontra-se, materialmente, superada: existe uma
implicação entre as duas noções. Quanto a determinar se um preciso Direito comercial
positivado inicia a construção da matéria por alguma das vertentes em presença, é questão
a responder perante a experiência jurídico-comercial.
O Código Veiga Beirão enveredou por um sistema misto ambíguo. No seu art.1.º
afirma ser objetivista, mas logo no art.2.º, vem considerar como comerciais, todos os atos
praticados pelos comerciantes, afirmando ser subjetivista.
A doutrina atual mostra-se cética quanto à possibilidade de isolar uma
“comercialidade” em sentido substantivo: isso pressuporia uma caraterística marcante,
presente nas normas comerciais e que as distinguiria das restantes, o que não é realista.
Ficamos, então, com três hipóteses:
- Ou partir de uma ideia material de comerciante;
- Ou partir do modo por que se apresente certa atividade humana, para ser
comercial;
- Ou partir do modo por que certa atividade humana seja preparada e
desenvolvida.
O comerciante é a pessoa que pratica atos jurídicos patrimoniais em termos
profissionais, ou seja, que dirige a sua atividade económica nesse sentido (art.13.º/1

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CCom). Num sistema aberto, qualquer pessoa o poderá fazer. Não é possível fixar
fronteiras. Além disso, estaríamos a entrar numa tautologia, visto que o comerciante é o
que pratica o comércio, sendo que comércio continua por definir. Fica-nos então a
formalização do conceito: comerciante é aquele que, como tal, se encontre inscrito no
registo comercial.
Chegaríamos, por esta via, a um verdadeiro estatuto profissional de tipo
corporativo, o que parece inaceitável.
Surgiu então a ideia de usar o modo por que se apresente certa atividade humana
lucrativa. A ideia é simples: o que carateriza o ato comercial não é o ser praticado por um
comerciante, mas sim o facto de ser pensado e modelado como ato de massa, i.e., como
parte de um procedimento destinado a ser repetidamente levado a cabo. Haverá aqui uma
parcela de verdade, mas não obtemos um conceito operacional: temos atos de massa não-
comerciais e atos comerciais pensados para operar isoladamente.
Resta-nos então progredir com base na forma da preparação desta atividade
humana: ao to comercial provém de uma organização de meio destinada a facultá-lo, o
que é dizer: de uma empresa.
A ideia de empresa tem uma aplicação difusa que dificulta a sua dogmatização.
Desde cedo se verificou que dificilmente o Direito comercial seria o “Direito da
empresa”: esta não é sujeito de Direto, tão-pouco esgotando o objeto do comércio. A
empresa operaria apenas como um referencial: o comerciante seria todo aquele que
dispusesse de uma empresa, i.e., o empresário.
Embora descritivamente útil, a empresa não dá fronteiras seguras para a
comercialidade.

1.1. Dados Legislativos; Direito Comercial Amplo e Direito Comercial


Residual
O Direito comercial carateriza-se por uma abundante produção de diplomas
extravagantes. O fenómeno faz sentido também devido à desatualização do atual Código
Comercial. A isto se acrescente a facilidade com que o legislador nacional exerce as suas
prerrogativas.
A hiperprodução legislativa não deve esconder o facto de algumas áreas
comerciais terem obtido regulações científicas de fôlego.

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Um Direito comercial amplo abrange toda a matéria tradicionalmente comercial e


que, grosso modo, é a que inicialmente Veiga Beirão incluíra no seu código.
O Direito comercial residual é o que resta depois de terem sido autonomizados
ramos como o Direito das Sociedades comercias, o Direito da concorrência, o Direito dos
seguros, etc.
Há certas situações em que a objetividade não prescinde da objetividade. Logo,
há 2 pilares do Direito Comercial: o ato de comércio e o comerciante.

2. A tensão externa: autonomia versus unificação.


Indo mais longe, questiona-se se faz mais sentido existir Direito Comercial, tal
tem expressão normativa específica em Itália em que o Código de 1942 unificou a matéria
de Direito Civil e de Direito Comercial. E, em 2002, no Brasil foi feita a mesma coisa.
No entanto, os italianos continuam a falar de Direito Comercial, porque em termos
materiais está identificado que existe um conjunto de matérias que são intrinsecamente
comerciais (veja-se, por exemplo, o arrendamento para fins não habitacionais).
Quando se pretende determinar um “Direito comercial” em moldes centrais, i.e.,
aprioristicamente assentes em princípios norteadores ou numa “comercialidade
substantiva”, acaba por se pôr em crise a sua autonomia.
Entre nós, o problema surgiu aquando da preparação do CC de 1966. O DL n.º
33/908 de 4 de Setembro de 1944 não tomou posição sobre a unificação do Direito civil
e comercial: o projeto de revisão do CC poderia ou não englobar o Direito comercial,
conforme se julgasse preferível.
A aprovação do CC, pelo DL n.º 47334, de 25 de Novembro de 1966, consagraria,
em definitivo, a autonomia legal do Direito Comercial.
Para MENEZES CORDEIRO, a autonomia do Direito comercial parece ser
ontologicamente inegável, na sequência dos diversos episódios históricos que lhe estão
subjacentes. Mas é uma autonomia ditada pela tradição e pela cultura: não por postulados
científicos.
Para o REGENTE faz sentido continuar a autonomizar o Direito Comercial, mas
o CComercial precisa de uma urgente atualização. Há matérias que não são visivelmente
comerciais, mas são-no em termos materiais.

3. A fragmentação do DC.

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Visto o atual Código Comercial ter sido publicado após o Código de Seabra, este
não se versou sobre toda a matéria comercial, mas apenas sobre a que merecia mais
aprofundamento face ao que o direito civil lhe garantiu.
Assim, o Direito Comercial não é um tecido contínuo, os institutos nele regulados
são-no ao sabor dos acasos histórico-culturais, das intervenções legislativas ou até de
problemas que, em determinada época, tenham justificado especiais medidas.
Deste modo, para o REGENTE, existem determinadas atividades que perderam
alguma coloração em termos de Direito Comercial, mas continuam no quadro do Direito
Comercial.
Mais alguns regimes comerciais podem se encontrar em outros diplomas que não
o CComercial, veja-se como por exemplo o CCivil em que está previsto o arrendamento
para fins não comerciais.
O Direito Comercial tem cinco vértices:
- O ato comercial e os deveres do comerciante;
- As sociedades comerciais;
- Os títulos de crédito;
- O comércio marítimo;
- A falência.
Cientificamente, o Direito comercial apresenta-se como uma disciplina lassa, à
qual apenas uma tradição histórico-cultural dá o mínimo de estável unidade. Sobra tão
pouca matéria que se torna difícil proceder a uma codificação comercial.
Mais ainda, o Direito comercial progride e trabalha usando conceitos e
construções civis. O risco do comercialismo é, muitas vezes, o de trabalhar com
instrumentação arcaica: a própria imagem de, lado a lado, vigorar um Código Comercial
de 1888 e um CC de 1966, separados por décadas de evolução.
Em regra, o Direito comercial traduz a necessidade de examinar e explicar
mecanismos específicos: não a de preparar conceitos, indagar valorações ou construir
novos esquemas explicativos. A defesa do nível dos escritos comerciais deve, pois, estar
sempre presente.

4. Princípios materiais.
Será possível a elaboração de princípios comerciais materiais? Vejamos quatro
grupos de princípios:

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- Internacionalidade;
- Simplicidade e rapidez;
- Clareza jurídica, publicidade e tutela da confiança;
- Onerosidade.
Quanto à internacionalidade já vimos que o saldo é magro.
A simplicidade e a rapidez manifestam-se em regras tradicionais do comércio,
como: liberdade de escrituração, salvo quanto ao livro de atas (art.30.º), a liberdade de
língua (art.96.º), a liberdade de forma do mandato geral (art.249.º), etc.
A clareza jurídica, a publicidade e a tutela da confiança aflorariam em diversos
institutos, com relevo: o valor probatório dos livros dos corretores (art.98.º), a aplicação
da lei comercial aos atos apenas unilateralmente comerciais (art.99.º), a regra da
solidariedade nas obrigações comerciais (art.100.º), a solidariedade do fiador (art.101.º),
o registo comercial, o regime especial do art.1301.º CC, …
A onerosidade é uma regra básica e lógica do comércio, trata-se de um Direito
profissional subordinado à obtenção de lucros.
Contudo: estes vetores não são estranhos ao Direito Civil, designadamente quando
patrimonial; por outro lado, o próprio Direito comercial não os concretiza uniformemente:
eles vão surgindo ao sabor de institutos históricos e culturalmente condicionados.

5. O (regresso do) internacionalismo do DC. A nova lex mercatoria.


O Direito comercial, devido ao tipo de problemas que enfrenta, teria uma forte
parecença nos diversos ordenamentos jurídicos. Seria uma afirmação lógica: todavia,
sucede o contrário.
O que nos resta do Código comercial é fortemente nacional. E, na verdade, ele
aplica-se apenas ao pequeno comércio, pouco preocupado com implicações
internacionalistas.
O grande comércio obedece, hoje, a disciplinas comerciais autónomas, marcadas
pela conformação de novos tipos contratuais e por elementos europeus, muito longe dos
quadros mercantis de Veiga Beirão ou da comercialística que ainda anima o nosso sistema
de ensino.
O Direito comercial tradicional é, hoje, o Direito do pequeno comércio,
fortemente nacional. Também por isso merece respeito, estudo e preservação. De todo o
modo, esse papel não minimiza o interesse científico: ele faculta quadros mentais depois

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aplicáveis a áreas “internacionalizadas”. E assim, permite, mesmo nesse campo, a defesa


da identidade do Direito lusófono.

5.1. Integração e Internacionalização


Tradicionalmente, o problema das relações que entrem em contacto com Direitos
de diversos Estados pode ser resolvido por uma de três formas:
- Aplicação do Direito nacional de um dos Estado em presença;
- Os Estados podem ter normas equivalentes;
- Existência de uma norma material internacional, aplicável ao caso.
A primeira solução é tradicional: compete ao Direito Internacional Privado
determinar qual a norma aplicável. A segunda implica um movimento prévio de
unificação. A terceira depende de, por qualquer via, se ter chegado a uma regra material
que reja o problema em jogo, independentemente dos ordenamentos em jogo: é o Direito
uniforme.
O ius mercatorum medieval era Direito comum: funcionava, depois de acolhido,
em todo o espaço europeu civilizado. Com as codificações, o Direito comercial foi-se
nacionalizando. O “internacionalismo” do Direito comercial denotava-se, então, pela
presença de regras de Direito internacional privado, colocado logo à cabeça dos Códigos.
O Código Veiga Beirão é um exemplo excelente de tanto, bastando atentar nos art.4.º, 5.º,
6.º e 12.º.
Hoje, estas normas de Direito internacional privado devem ter em conta o
Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho,
sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I).
Na primeira parte do século XX surgiram as leis uniformes relativas a letras e
livranças e a cheques. Foi neste momento em que se acreditou que a unidade das leis do
comércio passaria por leis que vigorariam nos Estados que fariam parte de uma possível
convenção internacional.
Porém, no momento da aplicação, nunca funciona uma única norma isolada ou,
sequer, um único diploma: por várias vias, é sempre o conjunto do ordenamento que se
aplica. Leis aparentemente idênticas vêm então a ganhar sentidos diferentes.
A experiência das leis uniformes mantém-se, assim, isolada.

5.2. Integração Europeia e Diretrizes Comerciais

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O TFUE estabelece, no art.63.º, o princípio da livre circulação de capitais. Nos


art.49.º vem garantido o direito de estabelecimento. Este pressupõe a supressão das
restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-membro no
território de outro Estado-membro. Para facilitar esse acesso, o art.50.º/1 prevê diretrizes.
O Tratado permite ainda à Comissão fixar regras aplicáveis em toda a UE, através
de regulamentos (art.288.º).
O regulamento só tem sido utilizado em matérias muito técnicas e definidas. O
exemplo paradigmático é o regulamento que institui o euro como moeda única.
Inicialmente havia a expetativa da criação de um Direito comercial comum
baseado em regulamentos, mas rapidamente essa perspetiva se perdeu, devido à
dificuldade de legislar de modo igual em ciências jurídicas autónomas e sistemas judiciais
distintos, o que fez brilhar a hipótese das diretrizes.
A hipótese, tecnicamente lógica, de uma avalancha de diretrizes comerciais não
se concretizou.
A integração política e económica é possível sob uma diversidade de Direitos
privados. A prova já havia sido tirada nas experiencias norte-americana e canadiana.
Poder-se-ia ainda levantar uma dúvida: a diversidade de Direitos privados não deverá ser
dobrada pela unidade do Direito comercial?
Nada permite confirmar essa necessidade. O Direito comercial interno é um
Direito de retalho e de pequeno comércio, perfeitamente compatível com leis territoriais.
Grandes negócios têm, sempre, a possibilidade de determinar, eles próprios, a lei
aplicável. A relativa uniformidade alcançada pelas diretrizes tem mais a ver com questões
de concorrência ou com o domínio, hoje autónomo, das sociedades comerciais, do que
com genuínas exigências comerciais. Compreende-se, a essa luz, a dimensão reduzida
que, tudo visto, elas acabam por assumir.

5.3. Internacionalização
Para além da integração europeia, outros fatores jogam no sentido da
internacionalização do Direito comercial.
Em primeiro lugar, cumpre mencionar os esforços de ir estabelecendo uma
organização planetária efetiva.
No campo comercial, para além da CNUDCI e dos UNIDROIT, deve mencionar-
se o papel do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) que visa, no fundamental,
liberalizar o comércio mundial. Para tanto, há que:

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- Promover o abaixamento dos direitos alfandegários;


- Pôr cobro a práticas de contingentação na importação;
- Alargar a todos a “cláusula de nação mais favorecida”;
- Combater o dumping;
- Vedar as subvenções à exportação.
Na sequência do Uruguay Round, o GATT institucionalizou-se, dando origem à
Organização Mundial do Comércio (1995).
Têm sido concluídas numerosas convenções internacionais com relevância
comercial direta. Tais convenções regem as situações que caiam no seu âmbito.
Porventura, mais importante, será o facto de elas instilarem uma cultura jurídica alargada,
de tipo mundial, capaz de dar corpo, no Direito comercial, à ideia de aldeia global para
que tende o Planeta.

5.3.1. A CNUDCI (UNCITRAL) e a UNIDROIT


A internacionalização do Direito comercial opera em duas vertentes:
aproximação dos diversos Direitos nacionais e criação de normas especialmente
adaptadas ao tráfego jurídico internacional. Cabe pois referir duas instituições
internacionais: CNUDCI e UNIDROIT.
A CNUDCI – Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial
Internacional – é uma agência das Nações Unidas especializada. Foi criada em 1966 com
vista a reduzir as disparidades entre os diversos Direitos Comerciais, entendidas como
obstáculos às trocas internacionais. É composta por 36 Estados eleitos para mandatos de
6 anos. Tem um Secretariado assegurado pelo Serviço de Direito Comercial Internacional
do Departamento de Assuntos Jurídicos das Nações Unidas.
A CNUDCI tem preparado importantes convenções internacionais com relevo
para a Convenção de Viena sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de
Mercadorias, de 1980, em vigor, para os países que a ratificaram, a partir de 1988. Ela
comporta uma regulação extensa que rege a formação dos contratos de compra e venda
internacional de mercadorias, os deveres de ambas as partes e a quebra do contrato. Trata-
se de matéria sobre a qual se têm registado contínuos desenvolvimentos, com larga
jurisprudência em diversos idiomas.
Por seu turno, a UNIDROIT é uma organização intergovernamental independente,
com sede em Roma. A UNIDROIT ou Instituto Internacional para a Unificação do Direito

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Privado nasceu em 1926 como órgão auxiliar da Sociedade das Nações. Esta foi
reconstruída em 1940, com base num estatuto orgânico.
A UNIDROIT visa a elaboração de regras uniformes no campo do Direito
Privado. Alguns dos seus trabalhos vieram a ser adotados por conferências diplomáticas,
surgindo convenções internacionais. Além disso, a UNIDROIT tem preparado outros
importantes textos, com relevo para os Princípios relativos aos Contratos de Comércio
Internacional, de 1994 e para os Princípios de processo civil transnacional, de 2004.

5.4. O novo ius mercatorum


Na Idade Média, o comércio internacional seria universal: além do próprio Direito
civil que, assente no Direito canónico e na receção do Direito romano, não conheceu
fronteiras dentro do Ocidente, as próprias práticas comerciais se assemelhavam: era o ius
mercatorum.
Esse ius mercatorum, ainda que gerado por usos e hábitos de praças distintas,
tenderia a aproximar-se. Tal unidade perdeu-se com as codificações dos Estados
territoriais dos séculos XVII a XIX. A partir daí, passou a haver uma tradição europeia
bipolar, quanto ao Direito comercial: nacionalista e universalista.
Em 1929, o jurista alemão Grossmann-Doerth suscitou a hipótese de, no comércio
internacional, funcionar um conjunto de costumes, de formulários de empresas e de
condições preconizadas por associações de comércio que se aplicariam diretamente a
situações comerciais internacionais.
A ideia foi retomada nos anos 60 e 70 do século XX. Em detrimento do Direito
internacional privado apresentar-se-iam regras comerciais de tipo material, suscetíveis de
resolver problemas. Esse conjunto, assente nos usos comerciais internacionais, em
convenções, em leis-modelos ou no Direito consuetudinário e no princípio pacta sunt
servanda, assumiria uma natureza de corpo, um tanto à semelhança do antigo ius
commune.
A ideia é aliciante, contudo não tem sido possível proceder a uma dogmatização
unitária. A simples discussão sobre a eventual existência da lex mercatória induz uma
fragilidade de raiz. Muitas vezes, ela é referida a propósito das arbitragens internacionais;
todavia, só raramente ocorre das decisões da CCI. Apesar de tudo, as partes referirão
remeter para uma das leis em presença em vez de tudo recair numa fórmula pouco
explícita.

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5.5. A Arbitragem: Nacional e Internacional


A lei permite que as partes submetam a resolução dos seus litígios de natureza
patrimonial a árbitros: basta, para tanto, que não esteja em causa matéria sujeita
exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária. A arbitragem tem
assim aplicação evidente no Direito comercial.
O recurso à arbitragem tem vantagens: justiça mais rápida do que nós tribunais do
Estado; decisão por parte de especialistas; aplicação de regras mais elásticas ou
permissivas, quando essa seja a vontade das partes e sempre que remetam para a equidade.
Dada a fraqueza dos processos judiciais comuns e as demoras da justiça pública,
as arbitragens têm-se vindo a multiplicar.
Para o Direito comercial, os internacional tem uma importância muito especial a
arbitragem internacional e, portanto, a arbitragem especializada em resolução de litígios
surgidos entre interesses originários de diversos Estados.
Também a arbitragem internacional pode ser institucionalizada. A instância mais
conhecida é prestigiada é o International Chamber of Commerce, ou Câmara do Comércio
Internacional (CCI).

CAPÍTULO III - O DC PORTUGUÊS NA ATUALIDADE

1. As fontes do DC. Referência especial ao relevo dos usos e respetivo


significado.
Os atos de comércio, i.e., o conjunto de situações jurídicas comerciais regem-se
pelo Direito mercantil, que tem um sistema de fontes próprio.
O art.3.º remete, primeiro, para o “texto da lei comercial” e, de seguida, para o
“seu espírito”. Não se trata da lei e espírito da lei comercial, mas do Direito comercial
diretamente aplicável. O próprio artigo não refere o “Código Comercial”.
Encontrada uma lacuna, o art.3.º manda recorrer aos “…casos análogos nele
prevenidos…”. A ideia é de que o Direito comercial tem uma logica intrínseca; aplica-se
perante conjunções de interesses e de valores a que, historicamente, se chame “vida
comercial”. Quando ocorra uma confluência de interesses e valores, em tudo semelhante
a uma situação comercialmente regulada, temos um caso análogo.
Na falta de casos análogos, podemos primeiro passar pelos princípios comerciais?

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A doutrina tradicional distinguia entre analogia legis e analogia iuris.


Diferente é o recurso a princípios gerais: aí já não há o estabelecimento de
situações análogas mas, somente, a constatação da presença de valorações sensíveis aos
mesmos vetores jurídicos.
Havendo um princípio comercial aplicável, há que recorrer a este antes de passar
para o Direito subsidiário.
A insistência na busca intercomercial de uma solução, depois de se ter apurado a
falta de norma diretamente aplicável ocorre porque, mercê dos fatores de realização do
Direito em presença, o direito civil mostra-se insatisfatório.

2. A questão da autonomia do DC.


Finalmente, o art.3.º manda recorrer ao Direito civil. O recurso a este é natural,
por estarmos perante um Direito especial, sendo ele o comum; mas justamente por isso,
apurada a “especialidade” do caso que exigiria um tratamento comercial, só perante falha
do sistema se cai no campo civil.
O Direito civil, quando chamado a resolver questões comerciais, não perde a
natureza civil. A doutrina é unânime em recusar o que seria uma transmutação jurídica.
Temos de nos questionar: será o “Direito civil” apenas o Direito civil em sentido
técnico ou abrangerá, antes, todo o Direito comum, mesmo público?
Há áreas de direito comercial que relevam mais do Direito público do que do
privado, como o registo comercial. Ora, nesses casos, o Direito subsidiário será
constituído pelo Direito público comum, só na falha deste se regressando ao Direito civil.

3. As fronteiras do Direito Comercial.


As fronteiras do Direito comercial são cada vez menos claras. Tem existido uma
autonomização de disciplinas comerciais o que complica a definição de fronteiras ente o
Direito Comercial e outras disciplinas juscientificas autónomas.
Para MENEZES CORDEIRO, este é um movimento que tem origem numa
crescente preocupação de especialização dos juristas, requerida pela complexidade e pela
diferenciação ascendentes a que o Direito Comercial deve acudir.
Mesmo as fronteiras com o Direito civil são difíceis. No entanto, para o
REGENTE, o núcleo clássico do Direito Comercial são: a compra, a venda e a troca.

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Podemos distinguir entre o Direito Civil e o Direito Comercial através do regime,


como exemplo, o art.100.º do CComercial tem o regime regra da solidariedade passiva e
não conjunta, como no Direito Civil; fiança comercial; mandato; dívidas dos cônjuges;
taxas de juro e etc.
Ser atos comerciais dão mais segurança ao credor e facilita o tráfego jurídico:
protege o crédito, favorece a liquidez e agiliza as trocas comerciais. Isto acontece porque
o Direito Comercial tem valores próprios a serem ponderados.

3.1. As “fronteiras externas”. Em particular, o Direito da economia.


3.2. As “fronteiras internas”. O Direito dos consumidores.

4. A fragmentação do DC. O Direito Comercial Geral e os Direitos


Comerciais Especiais. Os “arquipélagos” comerciais.
A especialidade de uma norma, em qualquer ramo do Direito, só pode ser aferida
a partir da sua comparação com uma norma dita geral. Tem, pois, de haver uma
apreciação caso a caso. Assim, não admira que a afirmação do Direito comercial como
um Direito civil especial seja imediatamente posta em causa.
As regras frequentemente assinaladas como demonstrativas desta especialidade
(tutela da confiança, celeridade e desformalização) são ou vetores que vêm claramente do
Direito Civil ou parâmetros que ocorrem sempre que alguém se dirige ao público.
A afirmação desta especialidade só é possível a nível de sistema e como indício
de ordem geral. Sendo Direito privado, é uma disciplina mais restrita e mais
particularizada que o Direito civil: visa, apenas, determinadas áreas socioeconómicas.
Assim, há no Direito comercial áreas que não têm correspondência no Direito
Civil (ex.: títulos de crédito), áreas que têm regras civis mas que ou surgem muito
incipientes ou se dirigem a prolemas diversos, áreas que se poderiam considerar civis ou
que têm, pelo menos, aplicações civis, e áreas efetivamente “especiais”.

4.1. A Aplicação Analógica Do Direito Comercial


Cabe analisar a hipótese de aplicação analógica de normas de Direito Comercial
a campos fora dos por elas visados.
A possibilidade de, por analogia, aplicar normas comerciais a questões civis
implicará um conjunto de requisitos:

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- A presença de uma lacuna no Direito Civil;


- A existência de uma norma comercial que vise um caso análogo a esse;
- A ausência de uma norma civil nas mesmas circunstâncias;
- Um juízo de dispensabilidade do comerciante para o funcionamento da
norma comercial em causa.

5. A legislação centrada na empresa e no empresário.

6. Os três pilares do Direito Comercial Geral:


O ato de comércio;
O comerciante
A empresa.

PARTE II - OS TRÊS PILARES DO DIREITO COMERCIAL GERAL

CAPÍTULO IV - ATO DE COMÉRCIO

1. A aparente absorção do DC pelo ato de comércio.


Art.1.º Código Comercial: “A lei comercial rege os atos de comércio sejam ou
não comerciantes as pessoas que neles intervém.”
A expressão “ato de comércio” sempre foi muito discutida. A doutrina tradicional
entendia que a expressão “ato”, quando reportada ao comércio, tinha um sentido alargado,
abrangendo:
- Contratos;
- Negócios unilaterais;
- Atos jurídicos em sentido estrito;
- Os factos ilícitos.
Dando mais um passo, FERNANDO OLAVO sustentou que a expressão “atos
comerciais” abrangiam ainda os próprios factos jurídicos stricto sensu, i.e., aqueles que
já não se analisassem em atuações humanas, mas apenas em eventualidades que
desencadeassem efeitos de Direito. Contra depôs uma doutrina chocada com a
dissociação da palavra ato e da atuação humana.

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A questão é relevante: trata-se de estabelecer o sistema do CComercial ou afeiçoar


uma ideia aceitável de ato de comércio? Aqui revela a primeira opção: definições
rigorosas de “factos”, “atos” e “negócios” é tarefa da parte geral do Direito civil.
O sistema do CComercial é o de regular factos jurídicos em sentido lato,
abrangendo contratos, negócios unilaterais, atos não negociais, factos strictu sensu e
ainda efeitos jurídicos.
Art.2.º Código Comercial: “Serão considerados atos de comércio (…)
todos os contratos e obrigações dos comerciantes (…).”
Uma obrigação não é um ato e o Código Veiga Beirão recorre a esta fórmula para
explicar que iria reger toda a matéria comercial: os factos e os seus efeitos ou, se se quiser,
os factos e as situações jurídicas que eles originem, as “obrigações”.
O art.2.º não nos dá um conceito unitário de ato de comercial, mas podemos
afirmar que serão todos os factos jurídicos voluntários que estejam especialmente
regulados em lei comercial, bem como aqueles que sejam realizados por comerciantes.
Logo, o Código referencia no seu art.2.º quais os “atos” de comércio, recorrendo
a um critério objetivo, de serem regulados neste código, e um critério subjetivo, o de
serem “atos” de comerciantes.

2. Atos de comércio objetivos.


De acordo com o art.2.º/1.ª parte, são atos de comércio objetivos: “todos aqueles
que se acharem especialmente regulados neste Código”.
Esta fórmula pretende evitar os riscos de uma definição feral de atos de comércio
e de uma enumeração, porém, coloca dois problemas:
Assim, são comerciais todos os “atos” regulados no Código? Ou são comerciais
apenas os “atos” nele regulados?
Nem todos os atos do CComercial são comerciais, mas apenas os que tenham
desvios em relação ao regime geral, ou seja, aqueles que sejam especialmente regulados.
A caraterística da especialidade advém de uma valorização feita perante a correspondente
regra civil ou, pelo menos, da sua integração num conjunto que, perante o equivalente
conjunto civil, mereça o epiteto “especial”.
Porém, por vezes, o CComercial qualifica como comerciais certos “atos” sem que
preveja a aplicação de regimes especiais para estes. É o caso das operações de banco

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(art.362.º), remetidas para os respetivos contratos (art.363.º) ou com o aluguer mercantil


(art.481.º) reenviado para a lei civil (art.482.º).
Cumpre distinguir: ou a qualificação como ato comercial permite a aplicação de
um regime especial e o ato será verdadeiramente comercial ou então a qualificação legal
perde-se pela falta de regime especial.
Também haverá atos comerciais que não estão regulados no CComercial. Assim:
são comerciais atos regidos por diplomas que vieram substituir normas do CComercial
mantendo-se, todavia, como extravagantes, como é o caso do Código das Sociedades
Comerciais; são comerciais os atos tratados em normas extravagantes que se assumam
comerciais, como é o caso do arrendamento comercial, NRAU.

2.1. Atos de comércio por analogia?


Coloca-se por fim a questão de considerar comerciais atos que não surjam no
CComercial, nem em leis que o alteraram, nem em leis que se assumam comerciais. Ou
seja, de saber se a enumeração do n.º 1 é taxativa ou exemplificativa.
Ou seja, os atos não regulados por legislação comercial podem ser qualificados como
comerciais por analogia?
A doutrina portuguesa dividiu-se: contra a analogia pronunciavam-se
GUILHERME MOREIRA, JOSÉ TAVARES, ALVES DE SÁ, CAEIRO DA MATTA,
MÁRIO DE FIGUEIREDO, PINTO COELHO, FERNANDO OLAVO, FERRER
CORREIA, BRITO CORREIA, REMÉDIO MARQUES, OLIVEIRA ASCENSÃO e
PUPO CORREIA; a seu favor votam JOSÉ BENEVIDES, CUNHA GONÇALVES,
BARBOSA DE MAGALHÃES, PEREIRA DE ALMEIDA, LOBO XAVIER,
COUTINHO DE ABREU, MENEZES CORDEIRO e o REGENTE.
Os argumentos avançados contra a analogia devem-se à letra da lei, a uma razão
histórica (o CComercial português inspirou-se no Código de Comercio espanhol de 1885,
que afastou o preceito espanhol que referia atos de natureza análoga; em linha de conta
com os trabalhos preparatórios) e devido à certeza e segurança jurídica (dado o regime
especial e as implicações dos atos de comércio).
Alguns autores como EDUARDO SALDANHA preferem falar no caráter taxativo
da enunciação dos atos de comércio objetivos, o que equivale à exclusão do seu
alargamento por analogia.

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No campo oposto surge a teoria do acessório, segundo a qual seriam comerciais


atos acessórios de outros objetivamente comerciais. É a doutrina de CUNHA
GONÇALVES.
O problema de qualificar certos atos como comerciais por analogia representa um
exercício teórico de interpretação e de construção jurídicas: tal sucede com a interpretação
de todo o art.2.º CComercial.
Em termos práticos, a envolvência do art.2.º/2.ª parte permite que a questão não
se ponha. Os atos que não sejam comerciais por estarem especialmente regulados no
CComercial e que tenham relevo económico são praticados por comerciantes, pelo que
são comerciais subjetivamente. Quanto à analogia, embora muito debatida nos manuais
teóricos, está ausente da jurisprudência. Esta é a questão clássica mais debatida do Direito
privado português.
Não é possível generalizar o ato da analogia, de qualquer modo. Por exemplo, no
caso do ilícito contraordenacional da violação de direitos de nome e insígnia (art.333.º
CPI) é um ato comercial, mas não se pode aplicar por analogia pelas regras do Direito
penal.
O debate da possibilidade do recurso à analogia na qualificação de atos de
comércio corresponde a uma inversão metodológica. A qualificação não é causal do
regime, mas decorre dele. Perante um ato, há que lhe determinar o regime, se for
comercial, então o ato é comercial.
As regras do Direito comercial são especiais: à partida, não são excecionais.
Comportam, pois, aplicação analógica. Posto isto, podemos assentar no seguinte:
Perante um ato que não esteja “especialmente regulado neste Código” ou situação
equivalente, há que verificar se o seu regime é comercial e especial, e se o for, é comercial;
Perante um ato lacunoso, há que lhe apurar o regime: seja pela analogia, seja pela
norma que o intérprete criaria; na integração da lacuna, podem ser usadas normas e
princípios comerciais, desde que não excecionais, de acordo com as regras ferais aqui
aplicáveis. Perante o resultado, se chegarmos à conclusão que o ato ficou como que
“especialmente regulado neste Código”, ele é comercial.
Deste modo, podemos afirmar que é teoricamente possível aplicar a analogia para
“tornar” um ato comercial.
Alguma doutrina poderia contrapor um obstáculo: o art.3.º. Não sabendo qual o
regime de uma questão, como decidir se ela é civil ou comercial?

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A norma não é um todo e, tal como a interpretação, a integração e a aplicação, faz


parte de um processo unitário. A questão decidida pelo Direito comercial é comercial. E
comercial será a resolvida pelo “espírito” da lei comercial, por aplicação analógica do
Direito comercial ou, até, pelo Direito civil, mas numa ambiência ou confluência de
valores que permitam julgar este como de mera aplicação subsidiária.

3. Atos de comércio subjetivos: a segunda parte do art.2.º do CCom.


Segundo o art.2.º: “(…) e além deles, todos os contratos e obrigações dos
comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio
ato não resultar.” Estes são os atos comerciais subjetivos.
Para serem comerciais, os “contratos e obrigações” dos comerciantes não devem
ser “de natureza exclusivamente civil”.
Uma doutrina tradicional alicerçada nos trabalhos preparatórios e apoiada por
GUILHERME MOREIRA, JOSÉ TAVARES e PINTO COELHO, entende que a
natureza “exclusivamente civil” assiste aos atos regulados apenas no CC. O
envelhecimento do CC (o de Seabra) levou a que surgisse matéria civil fora dele; além
disso, o CC pode conter matéria comercial.
Assim, esta posição doutrinária evoluiu pela mão de FERNANDO OLAVO, para
uma posição negativista: teriam natureza exclusivamente civil os atos não especialmente
contemplados no CComercial, não integrados num género de que uma espécie estivesse
tratada nesse Código nem integrados no núcleo do art.230.º.
OLIVEIRA ASCENSÃO resumia a sua posição como: o ato exclusivamente civil
é aquele que não pode ser regulado pelo CComercial.
A orientação contrária baseia-se na interpretação da doutrina italiana do art.4.º do
revogado Codice di Commercio de 1882: seriam atos de natureza exclusivamente civil os
que, pela sua natureza, não são conexionáveis com o exercício do comércio. Tal a opção
de ALVES DE SÁ, CUNHA GONÇALVES, FERRER CORREIA, OLAVO CUNHA e
COUTINHO DE ABREU.
Estão aqui em causa situações que, embora encabeçadas por comerciantes, não
podem ter natureza comercial.
Uma fórmula mais abrangente e atualista tomará como exclusivamente civis os
atos que, no momento considerado, não sejam regulados pelo Direito comercial: esta é a

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noção de MENEZES CORDEIRO. Não é possível dar um critério universal para tais atos:
caso a caso tem de se discutir se o ato em jogo ainda se pode submeter a regras comerciais.
Quanto à última parte do art.2.º “se o contrário do próprio ato não resultar”, o
comerciante que pratique atos que não sejam de natureza exclusivamente civil terá o
encargo de deles fazer constar que não se inserem no seu manejo comercial; de outro
modo, terão natureza comercial.
Desta parte da norma, alguns autores entendem que estamos perante uma
presunção legal no sentido de que os atos dos comerciantes se devem presumir
comerciais.
COUTINHO DE ABREU defende que a norma é imperativa, na medida em que
pelo facto de determinado sujeito ser comerciante não se poderá, concluir desde logo, que
os atos por ele praticados sejam comerciais.
Como é evidente: à medida que toda a atividade comercial venha a ser levada a
cabo por sociedades comerciais, este final do artigo perde o seu alcance prático.

4. Os atos mistos
Os atos mistos são aqueles que, em relação a uma das partes são comerciais, mas
não o são em relação à outra (isto, claro, no caso dos atos bilaterais, i.e., contratos).
O Direito comercial permite cindir um contrato em dois atos, de modo a que opere
como comercial apenas para uma das partes.
Há, neste caso, que discernir, por via do art.99.º: As regras que, pela sua natureza,
forem aplicáveis apenas à parte comerciante, funcionam só em relação a esta, e quanto à
outra opera o Direito comum.
Não sendo possível distinguir, a lei comercial aplica-se a ambas as partes.

5. A Lei n.º 3/99 de 13 de janeiro


Em conclusão:
Os “atos” comerciais são factos jurídicos lato sensu e, ainda, as situações jurídicas
deles decorrentes, que se rejam pelo Direito comercial;
A comercialidade desses “atos” pode resultar de, independentemente do sujeito
que os encabece, lhes ser aplicável um regime especial historicamente dito mercantil (atos
objetivamente comerciais);

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Ou de tal regime lhes competir por terem sido levados a cabo por comerciantes,
no exercício do comércio (atos subjetivamente comerciais).

6. As empresas. O art.230.º do CCom. Introdução.


No tocante à determinação dos atos de comércio objetivos, deparamo-nos com o
art.230.º CComercial. Encontramos, neste, face a face, duas grandes linhas de
interpretação:
- A da empresa-atividade, que entende estarem em causa as atuações ou
conjuntos de atos enunciados no focado artigo, seguida por GUILHERME
MOREIRA, LOBO XAVIER e COUTINHO DE ABREU;
- A da empresa-organização, que julga tratar-se das entidades singulares
ou coletivas, que desenvolvam depois as referenciadas atividades, que era a
orientação de JOSÉ TAVARES, ADRIANO ANTHERO, DE CUNHA
GONÇALVES, e BARBOSA MAGALHÃES.
Surgem opções mistas, como a de OLIVEIRA ASCENSÃO e FERNANDO
OLAVO: a lei enunciaria empresas comerciais mas pela via de considerar comerciais as
respetivas atividades.

7. Outras classificações de atos de comércio.


7.1. Atos substancialmente comerciais e atos formalmente comerciais.
A comercialidade está, um pouco, diluída e no campo comercial encontramos atos
que não são atos substancialmente comerciais, mas antes formalmente comerciais. Como
exemplo, temos a assinatura de uma livrança
Os atos formalmente comerciais são esquemas negociais, utilizáveis quer para a
realização de operações mercantis, quer para a realização de operações económicas, que
não são atos de comércio nem se inserem na atividade comercial, mas estão especialmente
regulados na lei mercantil – dependem da sua inserção no universo comercial.
Como exemplo, temos os negócios cambiários (relativos às letras de câmbios),
que estão previstos na lei mercantil, portanto são atos de comércio mas a causa para este
negócio pode nada ter a ver com o comércio e ser apenas um negócio civil
Os atos substancialmente comerciais, opõe-se aos formais, e a sua
comercialidade é devido à sua substância material e não ao facto de estarem previstos na
lei comercial.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

7.2. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios.


O ato de comércio absoluto é autonomamente comercial, como exemplo temos
a compra para revenda
Já o ato de comércio acessório é qualificado como comerciais devido ao facto de
se ligarem ou conexionarem a atos mercantis; quando se diz que é para fins comerciais.
Como exemplo temos: a fiança mercantil (art.101.º), o mandato comercial (art.231.º)1, o
empréstimo (art.394.º), o penhor (art.397.º) e o depósito (art.403.º).
Podem ser acessórios:
- Os atos de comércio objetivos e autónomos (Ex: mandato para a compra
de uma mercadoria destinada a revenda);
- Os atos de comércio objetivos e acessórios (Ex: mandato para o depósito
de mercadorias que o mandante comprou para serem revendidas.);
- Os atos subjetivamente comerciais (Ex: mandato para a compra de
caixas-registadoras destinadas ao supermercado do mandante).
No entanto, para COUTINHO DE ABREU não se deve acolher a Teoria do
Acessório em que todo e qualquer ato de não comerciantes seria mercantil quando
conexionado com atos objetivos de comércio.
Para PUPO CORREIA, a jurisprudência francesa formulou a teoria do acessório
– certos atos, civis pelas suas características, podem tornar-se comerciais por serem
praticados em ambiente comercial – em que são atos de comércio acessórios os atos
praticados por um comerciante no exercício do seu comércio.
Esta evoluiu para os atos ligados a um ato de comércio absoluto – estes adquirem
comercialidade por terem relação com um ato de comércio por natureza.
Para PINTO COELHO, para os comerciantes presume-se que os atos por eles
praticados estão em conexão com o exercício da sua atividade profissional;
Já para FERRER CORREIA, os atos acessórios são aqueles que se devem
considerar comerciais em consequência da sua relação de conexão ou acessoriedade quer

1
No entanto, para ser classificado como comercial, os objetos a que se destina têm de estar sujeitos a atos
objetivamente comerciais. Por exemplo, no caso 3 das aulas práticas, o depósito não era ato de comércio
acessório, porque o sujeito em causa (depositante) não era um comerciante, nem tao pouco era o ato
comercial. Logo, para o depósito ser comercial, tem que existir um ato de comércio em sentido objetivo
que empreste a comercialidade ao ato acessório.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

com um ato de comércio fundamental, quer com a exploração de uma empresa mercantil
ou com o comércio em geral.
O que pensar desta doutrina?
Para PINTO COELHO, o critério da acessoriedade apenas foi acolhido pelo
legislador, com efeitos reduzidos, limitando-se a deduzir dela a comercialidade dos atos
dos comerciantes e ainda a de certos atos objetivos específicos (que são considerados
comerciais pela relação que têm com certos atos de comércio objetivos).
Para FERRER CORREIA, a teoria do acessório generaliza indevidamente e,
porque a lei considera em muitos casos como comerciais certos atos jurídicos em virtude
da sua relação com atos de comércio objetivos, afirma que todos os atos conexos com a
atividade mercantil serão atos comerciais, mesmo que praticados por não comerciantes.
Como exemplo, temos a fiança mercantil (art.101.º), o mandato comercial (art.231.º), o
empréstimo (art.394.º), o penhor (art.397.º), o depósito (art.403.º).
Para COUTINHO DE ABREU é certo que a lei comercial prevê vários atos
mercantis por serem acessórios de outros atos de comércio.
Porém, dada a diversificada índole daqueles atos, não parece legítimo afirmar um
“princípio geral” segundo o qual todo e qualquer ato de um não comerciante seria
mercantil quando conexionado com atos objetivos de comércio (não havendo lugar para
a analogia iuris).
Mas, é legítimo qualificar de comerciais certos atos de não comerciantes por
serem análogos a atos acessórios de comércio previstos na lei (analogia legis).
Para MENEZES CORDEIRO, a doutrina dominante reconduz esta teoria a uma
fórmula de analogia.

7.3. Atos bilateralmente comerciais e atos unilateralmente comerciais.


Os atos bilateralmente comerciais, são 2 atos em que ambos são comerciais, i.e.,
a comercialidade verifica-se em relação a ambas as partes (sujeitos)
Nos atos unilateralmente comerciais, apenas um dos lados é comercial, i.e., a
comercialidade verifica-se em relação a só uma das partes
O art.99.º CCom sujeita, em regra, os atos unilateralmente comerciais à disciplina
mercantil. Como exemplo temos: 2 pessoas compram computador; responsabilidade é
solidária pois a solidariedade aplica-se em função daquele que é comerciante.

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Questiona-se se um empréstimo é um ato bilateralmente ou unilateralmente


comercial? A resposta tem por base o art.394.º e seguintes do CCom.

7.4. Atos causais e atos abstratos


Podem existir atos de comércio abstratos e atos de comércio causais.
Os atos de comércio abstrato não têm uma causa específica, mas apesar disso
podem realizar uma série de causas específicas.
Esta é uma distinção particularmente relevante para os títulos de crédito.

8. Capacidade para praticar atos de comércio.


Para ser comerciante, é preciso ter capacidade para praticar atos de comércio
(art.13.º/1) e esta é definida nos termos do art.7.º

9. Os usos comerciais.
Os usos estão na base do Direito mercantil. Mas porquê os usos e não o costume?
Enquanto o uso é supletivo, o costume traduz regras de tipo imperativo. Só adere ao uso
quem pode dele retirar algo que lhe interesse. Por outro lado, quem não adere ao costume
tem sanções. Compreende-se, pois, o uso do uso como base do Direito mercantil.
Sensível à problemática utilização de usos, difíceis de conhecer e de impor, o
Código comercial não os incluiu entre os seus esquemas de integração, previstos no
art.3.º.
Perante o silêncio do CComercial quanto aos usos, cabe recorrer ao Código Civil.
Este nada dispõe, em geral, quanto ao costume. Mas quanto aos usos, contém um
subsistema regulador, cfr. art.3.º.
Ao elaborar o seu anteprojeto, MANUEL DE ANDRADE acolheu as ideias de
que os usos só valeriam quando a lei para eles remetesse e de que eles cedem perante as
normas corporativas. Quanto à boa-fé: esse autor reconhece que se inspirou no Direito
alemão (a fórmula original do anteprojeto acolhia a expressão “boa-fé” e não “princípios
da boa fé”, isto porque a boa fé já é, por si, um princípio).
ENNECCERUS/NIPPERDEY, relativamente aos usos e práticas do comércio,
ocupam-se do tema. Segundo esses autores, os usos, quando concordes com a boa-fé,
seriam aplicáveis nas hipóteses seguintes: interpretação dos negócios jurídicos; sempre

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que as partes para eles remetam; no âmbito do §242 BGB; e quando a lei especificamente
para eles apele.
MANUEL DE ANDRADE restringiu no anteprojeto a relevância dos usos à
quarta situação. Mas acrescentou: nos lugares próprios deve considerar-se a relevância
dos usos no tocante à interpretação dos contratos, à execução de quaisquer prestações
devidas, e ainda que as partes podem remeter para eles, de modo expresso ou tácito,
quando estipulem sobre matérias não subtraídas à sua disponibilidade.
O legislador não considerou esta recomendação e o CC não se refere aos usos em
matéria de interpretação ou integração dos negócios, nem no tocante à execução das
obrigações.
O CC restringiu em extremo o papel dos usos e delimitou as hipóteses da sua
relevância. Isto pela desconfiança inerente aos usos.

9.1. Elementos e Natureza; Confronto Com o Costume


O uso traduz-se:
- Atuação social: tal atuação deve ter uma extensão mínima, sendo adotada
por diversos membros da comunidade;
- Atuação repetida;
- Antiguidade: a repetição implica a estabilização de condutas;
- Patrimonialidade: por certo haverá usos não patrimoniais, mas tais usos
não são juridicamente relevantes.
O confronto entre costume e usos explica que o primeiro tem, em si próprio, o
fundamento da jurídica-positividade. Seja pela opinio iuris vel necessitatis, seja pela
especial matéria que sobre ele recaia, seja pelo fenómeno da positivação, o costume tem
uma capacidade de autoafirmação que falece ao uso.
Logo, quando se aplica um costume, lida-se com uma norma imperativa. O
recurso ao uso traduz uma simples norma supletiva: funciona quando as partes para ela
remetam ou, pelo menos, quando não a afastem.

9.2. Os Usos do Código Civil; os Usos Como Estalões (Standards)


A dogmática dos usos implica o levantamento dos lugares civis que se lhes
reportam. O CC remete para os usos em nove grupos de situações:
- Na da conclusão do contrato, quanto à dispensa de aceitação (art.234.º);

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- Nas obrigações em geral, quanto ao anatocismo (art.560.º/3) e à


realização da prestação (art.763.º/1 e 777.º/2);
- Na compra e venda, designadamente nas modalidades mais
marcadamente comerciais (art.885.º/2, 919.º, 920.º, 921.º/1, 922.º/2, 924.º/2, 925.º/2 e
937.º);
- Na locação, de forma moderada (art.1037.º/1 e 1039.º/1);
- Na parceria pecuniária, contrato de tipo agrário (art.1122.º/1 e 1128.º);
- No mandato, particularmente nas vertentes comerciais (art.1158.º/2,
1163.º e 1167.º);
- No achamento (art.1323.º/1);
- No campo das doações, da família e das sucessões, designadamente no
que tange a donativos e certas despesas (art.940.º/2, 1682.º/1, 2110.º/2 e 2326.º);
- Na proibição de remeter para os usos (art.1682.º/4).
Os usos podem também ter um papel significativo no tocante à concretização de
conceitos indeterminados. Por exemplo, a remissão do art.487.º/2 para o bom pai de
família, na determinação da culpa, e na base da qual se pode extrapolar um critério de
diligência exigível pode implicar o conhecimento das “práticas” ou das “boas práticas”,
na área em causa.
Finalmente, os usos podem ter um papel no pré-entendimento do juiz e interferir,
nessa medida, em toda a sequência de realização do Direito. O controlo desse processo
implica, deste modo, a sensibilização da Ciência do Direito para os usos.

9.3. Os Usos No Código Comercial e No Direito Mercantil


No Código Comercial temos como referência aos usos comerciais: art.232.º/§1,
238.º, 248.º, 269.º, 373.º, 382.º, 399.º, 404.º e 407.º. Os diplomas extravagantes que têm
vindo a substituir as rubricas do CComercial não referem, em geral, os usos comerciais.
Os usos valem ainda quando as partes, no uso da sua autonomia privada, para eles
remetam. Nessa altura terão a força vinculativa dos próprios contratos.
Uma aplicação relevante dos usos ocorre nos tipos sociais de contratos. Diz-se
contrato típico aquele cujas cláusulas nucleares constam da lei. As partes não são, em
regra, obrigadas a observá-las: trata-se de esquemas legais disponíveis: as partes podem
deles desviar-se. Apesar de supletivos, os tipos legais têm um duplo interesse:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

representam tendencialmente as soluções mais justas e equilibradas e dispensam as partes


de elaborar todo um complexo articulado.
Ao lado dos tipos contratuais legais temos tipos sociais: encadeamentos de
cláusulas habitualmente praticadas em determinados setores e que traduzem composições
equilibradas e experimentadas. Tipos sociais muito importantes são, por exemplo, os
contratos de abertura de conta (bancária) e de concessão comercial.
O art.3.º/1 CC dá relevância aos usos quando, para eles, a lei remeta. No Direito
bancário português existe uma remissão geral para os usos no art.407.º CComercial. A
referência a “estatutos” reporta-se aos “usos”. Temos, pois, um preceito que, no tocante
ao depósito bancário, remete para os usos.
Finalmente, temos uma relevância dos usos no domínio do ius mercatorium e dos
contratos internacionais de transporte.

9.4. Natureza; a “boa-fé”


O art.3.º/1 CC é demasiado restritivo: coloca-se em contra-corrente relativamente
ao conjunto do Direito privado atual. A ser tomado à letra, erradicaria os usos comerciais,
que alimentam áreas nobres do ordenamento.
Os usos podem adquirir relevância prescritiva por uma de três vias:
- Através da lei, que para eles remeta; tal a mensagem do art.3.º/1;
- Através do costume: caso o uso funcione como norma interpretativa a se,
manifesta-se uma fonte autónoma de Direito;
- Através da autonomia privada das partes, que podem remeter para usos
do setor.
Em qualquer caso, os usos são fonte de Direito: são eles que permitem a revelação
de normas jurídicas. E fazem-no diretamente: por isso, contra a qualificação legal, eles
não podem deixar de surgir como fontes imediatas do Direito.
O art.3.º/1 CC exige, para a aplicabilidade dos usos, que os mesmos não sejam
“contrários à boa-fé”. Já se tem visto, na sindicância ex bona fide, uma exigência de
racionalidade, uma forma de combater os “usos manhosos” e um conceito “ético-moral”,
a apreciar em cada caso pelo julgador. Esta última solução surpreende: afastou-se o
costume pela insegurança que poderia ocasionar e permite-se que o julgador decida, caso
a caso, em função de bitolas éticas para as quais não fornece critério?

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A boa-fé tem, hoje, um sentido estabilizado. Opera como um princípio do sistema


jurídico, desdobrado na tutela da confiança e na primazia da materialidade subjacente.
Assim, não são atendíveis usos que defrontem aquilo com que, legitimamente, os
interessados poderiam contar. E tao pouco são operativos os usos que desvirtuem a função
socioeconómica do instrumento de cuja concretização se trate.

CAPÍTULO V - O COMERCIANTE

1. Quem é comerciante.
É certo que toda a pessoa civilmente capaz de se obrigar pode praticar atos de
comércio (art.7.º); porém, nem todo o que pratica atos de comércio é comerciante, cfr.
art.13.º.
A profissão do comércio é proibida a determinadas entidades referidas no art.14.º.
A consideração de alguém como comerciante tem relevância para a determinação
dos atos de comércio subjetivos. Além disso, torna os visados incursos em obrigações
especiais, cfr. art.18.º, estes são obrigados:
- A adotar uma firma;
- A ter escrituração mercantil;
- A fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos;
- A dar balanço, e a prestar contas.
Estas “obrigações” apresentam-se muitas vezes como encargos. A sua
inobservância pode não ter sanções diretas: apenas os impede de beneficiar plenamente
do estatuto mercantil.
A qualidade de comerciante confere também privilégios. Estes prendem-se
sobretudo com o regime dos chamados atos de comércio unilaterais ou dos atos
unilateralmente comerciais.
Embora a Revolução Francesa tenha lutado por uma noção de ato comercial
objetiva, no Direito Português manteve-se a posição histórica dos atos comerciais
subjetivos. Trata-se de uma prerrogativa dos comerciantes: a de “comercializarem” o atos
em que tocam. O problema põe-se nas relações entre um comerciante e um não
comerciante. Que direito aplicar?

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Quando o ato seja objetivamente comercial, o Direito a aplicar é o comercial.


Quando o ato seja cindível e surja como objetivamente comercial apenas por uma das
partes, o regime é ainda o comercial. E quando o ato não seja cindível e seja
subjetivamente comercial para uma das partes e não para a outra, o regime é o comercial.
É o regime do art.99.º.
A exceção do art.99.º/2.ªparte é relativa aos atos “cindíveis”. Mas, na verdade, tem
a ver com obrigações específicas do comerciante, seriadas no art.18.º (firma, escrituração
comercial, registo comercial e balanço e contas) ou outras equivalentes.

2. O comerciante pessoa singular


2.1. Introdução
As pessoas singulares podem ser comerciantes; basta que tenham capacidade para
praticar atos de comércio e façam, deste, profissão. A CRP garante a liberdade de trabalho
(art.47.º/1) e a liberdade de empresa (art.61.º/1).
Mais, os comerciantes estão previstos no art.13.º do CComercial, logo, nos termos
do n.º 1, à partida aplica-se a pessoas singulares.
Quanto à atividade industrial, a liberdade de acesso é afirmada pelo art.1.º/1 do
DL n.º 519-I 1/79, de 29 de Dezembro.
Questiona-se a partir de que momento se adquire a qualidade de
comerciante?
Para OLIVEIRA ASCENSÃO é necessário que exista um exercício efetivo da
atividade comercial, ou seja, é necessária a prática de atos de comercial. Nomeadamente,
porque o art.13.º CComercial refere a profissionalidade. Contudo, refere que desde que
exista um inicio de atividade, ainda que incipiente, e que demostra que o objetivo
principal é fazer a prática de atos de comércio como modo de vida, então os atos
preparatórios podem levar à classificação como comerciantes aqueles que nele
intervenham.
Para COUTINHO DE ABREU, a possibilidade de considerar determinado sujeito
como comerciante deve-se ao facto à possibilidade de certo sujeito se dedicar de forma
habitual à atividade comercial. No entanto, refere que basta que existam atos de
organização, ou seja, atos que visam a constituição de um elemento organizacional2.

2
Como exemplo de atos preparatórios temos o arrendamento do local ou a contratação de empregados.

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Para o REGENTE basta a prática de atos de comércio assessórios para classificar


determinada pessoa como comerciante.

2.1.1. Comerciante e empresários


A expressão “comerciante” era a fórmula técnica correta para designar o sujeito
que atua no Direito comercial, com os atributos do art.13.º.
Na linguagem corrente, a palavra assume uma conotação menos relevante ou até
pejorativa. Assim, ela tem sido substituída por “empresário”. A evolução semântica nada
impede ao Direito, que pode continuar a manter com vida expressões socialmente
arcaicas.
Sucede, porém, que “empresário” e, aparentemente, o detentor de uma empresa,
é uma expressão que só se adapta a pessoas singulares e não tem rigor jurídico: tanto é
empresário o comerciante ou industrial proprietário direito de uma empresa como o
acionista de uma sociedade que detenha a empresa, desde que exerça funções de
administrador.
Não obstante, o DL n.º 339/85, de 21 de Agosto, não mencionava a expressão
comerciante: menciona pessoas coletivas e “empresários em nome individual”. Este DL
foi revogado e substituído pelo DL n.º48/2011, de 1 de Abril, que mantém a mesma
terminologia, embora não de forma tão excessiva.
Devemos ter em consideração ainda a utilização da expressão “empresário” no
Direito civil do consumo e no das cláusulas contratuais gerais. Aí, empresário contrapõe-
se a consumidor final. Será qualquer agente económico-jurídico que ocupe uma posição
como produtor ou distribuidor. Este conceito de empresário que se presta a dúvidas, não
pode ser extrapolado para o Direito comercial, nem equiparado a comerciante.

2.1.2. A Reforma do Código Comercial Alemão de 1998


As vicissitudes apresentadas têm, porém, uma justificação. Há muito o Direito
comercial iniciou uma deslocação da ideia de comerciante para a de empresa. Sem êxito:
daí quedar-se com posturas ambíguas.

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O fenómeno não é nacional, e cabe mencionar a tentativa levada a cabo pelo


moderno Direito comercial alemão de efetuar uma bissetriz razoável entre as ideias de
comerciante e empresa.
Esta reforma no HGB, no tocante ao conceito de comerciante, implicou ganhos
em adequação: pôs cobro ao anterior sistema de enumeração de atividades comerciais,
considerada antiquada. Mas provocou incertezas das cláusulas gerais. A doutrina aplaude
a supressão das antigas categorias de comerciantes, substituídas pela faculdade,
reconhecidas aos pequenos empreendimentos, de assumirem, pelo registo, natureza
comercial.

2.1.3. O Sistema do Código Comercial


O CComercial dedicou os Títulos II e III do Livro I à capacidade comercial e aos
comerciantes. Aparentemente, haveria uma inversão lógica, depressa desmentida pela
consideração do ideário objetivista do Código: a “capacidade” reporta-se à prática de atos
de comércio (art.7.º); e é na base dessa prática que se alcança a ideia de comerciante
(art.13.º).
No tocante ao capítulo relativo a comerciantes, encontramos seis artigos, com o
seguinte teor geral: art.13.º (indica quem se considera comerciante); art.14.º (proíbe a
profissão do comércio a certas entidades); art.15.º (dívidas comerciais do cônjuge
comerciante); art.16.º (hoje revogado: mulher casada comerciante); art.17.º (Estado e
outras entidades públicas); art.18.º (obrigações específicas dos comerciantes).
Ser-se comerciante, descontado agora o caso das sociedades, é fazer profissão do
comércio, desde que, naturalmente, se tenha capacidade para isso.
A prática profissional de atos de comércio pode ser classificada com recuso a
quatro vetores:
- É uma prática reiterada ou habitual: o profissional do comércio não
pratica atos ocasionais ou isolados, realiza-os em cadeia, articuladamente e em grande
número;
- É uma prática lucrativa, mas não desqualificamos um comerciante pela
sua prática ser deficitária. O objetivo deve ser que os atos desenvolvidos tenham apetência
para gerar lucro.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- É uma prática juridicamente autónoma: o comerciante atua em nome


próprio e por sua conta. Ou seja, não deve existir um contrato de trabalho, é necessária a
inexistência de um vínculo de subordinação jurídica.
- É uma prática tendencialmente exclusiva: embora possa ter outras
profissões, há limites práticos: ninguém pode ter um número elevado de “profissões” uma
vez que não é possível acumular, indefinidamente, práticas reiteradas de atos de diversa
natureza. Logo, a atividade tem de ser a ocupação fundamental.
O sistema do CComercial está assente em “atos de comércio” e não na empresa.
Por um lado, a ideia de empresa é imprecisa no que, de resto, lhe dá o seu atrativo. Por
outro lado, não foi essa a escolha do legislador.

2.2. Capacidade
Para ser comerciante, é preciso ter capacidade para praticar atos de comércio
(art.13.º/1). Mas capacidade de gozo ou de exercício? A doutrina diverge.
A maioria dos autores entende que se trata de capacidade de exercício (CUNHA
GONÇALVES, LOBO XAVIER, COUTINHO DE ABREU).
Uma posição minoritária, liderada por FERRER CORREIA e PEREIRA DE
ALMEIDA, entendia bastar a de gozo.
O CComercial distingue entre a capacidade para praticar atos de comércio (art.7.º)
e os requisitos para se ser comerciante (art.13.º/1). Apenas o primeiro tem a ver com a
capacidade comercial em si.
O art.7.º remete para as regras sobre capacidade de gozo e exercício das pessoas
singulares e coletivas, fixadas pela lei geral. No essencial, são as seguintes:
- As pessoas singulares têm capacidade de gozo pleno (art.67.º CC);
- As pessoas coletivas têm capacidade de gozo necessária ou conveniente
à prossecução dos seus fins (art.160.º/1 CC e 6.º/1 CSC).
Quanto às pessoas singulares, os menores não têm, em princípio, capacidade de
exercício (art.123.º CC): a incapacidade daí derivante é suprida pelo poder paternal e,
subsidiariamente, pela tutela (art.124.º).
Quanto às pessoas coletivas, estas são representadas pelos titulares dos
competentes órgãos: art.163.º/1 CC e 192.º/1, 252.º/1, 408.º, 431.º/2, 474.º e 478.º CSC.
Tudo isto é aplicável, pelo art.7.º CComercial, à prática de atos comerciais.

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O art.7.º não refere “toda a pessoa capaz de se obrigar, pessoal e livremente”.


Ora, os incapazes obrigam-se pelos seus representantes. Logo, para o Professor
MENEZES CORDEIRO e para o REGENTE, o art.7.º remete globalmente para a lei civil.
Mercê desta regra, há atos de comércio que são acessíveis a menores, mesmo sem
representação.
Quanto a estrangeiros, temos de ter presente que rege a lei pessoal no caso de
pessoas singulares (art.25.º CC) e a lei da sede principal e efetiva da sua administração,
perante as pessoas coletivas (art.33.º CC).

2.2.1. A situação dos menores


O art.123.º CC retira aos menores a capacidade de exercício. Fá-lo, porém,
aparentemente. Isto devido ao art.127.º CC, que cria certas exceções a esta regra,
permitindo alguma capacidade de exercício aos menores.
Perante este preceito, verifica-se que a incapacidade dos menores é, desde logo,
aparente: as exceções são mais extensas que a regra. Na verdade: os negócios da vida
corrente são acessíveis a todos: alimentação, vestuário, despesas mensais de uma casa de
família; o menor de 16 anos pode ser autorizado a exercer profissão, arte ou ofício, altura
em que pode não apenas praticar os atos relativos à atividade, como ainda administrar e
dispor dos bens que assim adquira.
Temos ainda o regime dos atos praticados pelo menor. Tais atos são anuláveis
(art.125.º CC), ou seja, produzem os seus efeitos, podendo ser impugnados, apenas, pelo
representante do menor ou pelo próprio menor e, mesmo então, com condicionamentos.
O menor pode, pois, praticar inúmeros atos comerciais:
- Quer por serem da vida corrente;
- Quer por corresponderem a uma profissão que o menor tenha sido
autorizado a exercer;
- Quer, ainda por porem em jogo apenas bens conseguidos no exercício
dessa profissão.
A lei faz depender de autorização a prática de certos atos comerciais ou com
relevância comercial, por parte dos menores. Assim, os pais necessitam de autorizado do
Ministério Público para, de acordo com o art.1889.º/1/c, “Adquirir estabelecimento
comercial ou industrial ou continuar a exploração do que o filho haja recebido por
sucessão ou doação”

41
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A alienação do estabelecimento também carece de autorização, de acordo com o


art.1889.º/1/a. Tudo isto opera também quanto ao tutor (art.1938.º/17/a CC).
O esquema é ainda aplicável ao interdito (art.139.º) e ao inabilitado (art.154.º).

2.3. Proibições e condicionamentos ao exercício do comércio.


O CComercial define agora quem entende por comerciante. O art.13.º/2 reporta-
se a sociedades, pelo que cumpre relevar o n.º1 do preceito, segundo o qual é comerciante
a pessoa que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, faça desta profissão.
O art.13.º é, apenas, um introito: apresenta uma noção de comerciante para,
depois, poder prescrever regras quando ao seu acesso. O próprio art.14.º/2 vem remeter
para legislação extravagante.
A profissão de comerciante está aberta a todas as pessoas (singulares). Só por
exceção surgem, depois, casos em que ela é vedada. Podemos distinguir: proibições
gerais, incompatibilidade, inibições e impedimentos.

2.3.1. Situações de proibição.


As proibições gerais resultam de normas que vedem a toda e qualquer pessoa
singular certo tipo de comércio. É o caso do comércio bancário, uma vez que, de acordo
com o art.14.º/1/b do RGIC, todas as instituições de crédito com sede em Portugal devem
assumir a forma de sociedades anónimas. A prática não autorizada de comércio bancário
é crime (art.200.º RGIC).
A proibição geral visa ordenar a estrutura comercial do País, pelo menos quanto
ao concreto setor visado.

2.3.2. Situações de incompatibilidade.


As incompatibilidades impedem determinadas pessoas singulares, colocadas em
certas posições ou envolvidas em determinadas situações jurídicas, de exercer o
comércio. É o caso dos magistrados judiciais (art.13.º Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Ocorrem esquemas similares com os magistrados do Ministério Público, militares,
titulares de órgãos de soberania, de outros cargos políticos e altos cargos públicos ou
equiparados.

2.3.3. Situações de inibição.

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As inibições atingem seletivamente determinadas pessoas, por factos que elas


hajam perpetrado ou por situações nas quais se achem incursas. A inibição é diversa da
incompatibilidade: não está em causa o exercício de nenhum cargo, mas uma ocorrência
relativa, própria do inibido.
Ao contrário da incompatibilidade, ela não desaparece com a cessação do
exercício de quaisquer funções mas, apenas, de acordo com certos mecanismos legais. O
caso clássico era o da inibição do falido. Segundo o art.148-º do revogado CPEF.

2.3.4. Situações de impedimentos.


Os impedimentos adstringem as pessoas neles incursas a não praticar determinado
tipo de comércio, salvo autorização. É o que sucede com o gerente de comércio, previsto
no art.253.º.
Este impedimento dá corpo a uma proibição de concorrência: encontramos figuras
deste tipo nos art.180.º, 254.º, 398.º/3 e 428.º.
O impedimento atinge a pessoa em virtude de um cargo; mas ao contrário da
incompatibilidade, não é geral e pode cessar com uma autorização.

3. O comerciante pessoa colectiva.


Para FERRER CORREIA, o art.13.º/1 só se aplica a pessoas singulares, para o
REGENTE o comerciante tem uma lógica lucrativa, o que impede a sua classificação de
associações e fundações.
Para COUTINHO DE ABREU as pessoas coletivas estão implicadas neste local.

3.1. As sociedades comerciais.


Passando à categoria do comerciante pessoa coletiva, logo encontramos, como
entidade de qualificação segura, a sociedade comercial. Sucede, todavia, que a própria
sociedade comercial é definida, nessa qualidade, em função de “atos de comércio”,
segundo o art.1.º/2 CSC.
Os “atos de comércio” aqui visados são os atos objetivamente comerciais.
Segundo o art.1.º/3 CSC, as sociedades que tenham por objeto a prática de atos de
comércio devem adotar uma das formas referidas no n.º2. Resta concluir que todas as
sociedades que tenham por objeto a prática de atos comerciais assumem uma das formas
tipificadas no CSC e são comerciantes.

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A lei não exige que o objeto social se reporte exclusiva ou, sequer,
predominantemente, à prática de atos comerciais. Estes poderão estar previstos apenas
como parte do objeto social ou, até, como algo acessório.
As sociedades comerciais adquirem a personalidade no momento do registo
definitivo do ato constitutivo (art.5.º CSC). Tornam-se comerciantes neste momento.
Pode, então, haver comerciantes que nunca tenham praticado um ato de comércio: a sua
comercialidade tem o sentido de uma aptidão de princípio para os praticar.
As sociedades que tenham por objeto, exclusivamente, a prática de atos não-
comerciais são sociedades civis. Elas podem seguir o esquema dos art.980.º e seguintes
do CC: são as sob forma civil ou sociedades civis puras. E podem, nos termos do art.1.º/4
CSC, adotar um dos tipos legais de sociedades comerciais: são as sociedades civis sob
forma comercial. Embora civis, elas regem-se pela lei das sociedades comerciais
(art.1.º/4/in fine CSC). São-lhes ainda aplicáveis diversas regras comerciais, com relevo
para o disposto quanto ao registo comercial (art.3.º CRC). Só não são operacionais para
dar azo a atos subjetivamente comerciais (art.13.º e 2.º/2.ªparte).

3.2. A situação das outras pessoas colectivas.


3.2.1. Associações e Fundações
Seria de esperar que todas as pessoas coletivas que se dedicassem ao comércio
incorressem em normas paralelas às do art.1.º/3 CSC: devessem assumir a forma de
sociedades comerciais.
Isto não sucede, porque: a formação fragmentária do Direito privado (há esquemas
de pessoas coletivas não societárias que se dedicam com mais ou menos intensidade ao
comércio e que, por tradição consignada na lei civil não obtêm a forma societária) e a
falta, no Direito comercial, de tipos de pessoas coletivas que correspondam aos interesses
geridos por associações e fundações.
Há pois que admitir pessoas coletivas não societárias, como associações e
fundações e, mais precisamente, de um tipo “comercial” igualitário tipo “associações” e
um tipo “comercial” fundacional.
Podem estas ser comerciantes? Partindo do art.13.º/1, encontramos duas posições:
- Este preceito reportar-se-ia, apenas, a pessoas singulares: FERNANDO
OLAVO, FERRER CORREIA, PINTO FURTADO;

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- Este preceito reportar-se-ia, também, a pessoas coletivas: JOSÉ


TAVARES, OLIVEIRA ASCENSÃO e COUTINHO DE ABREU.
- Também a jurisprudência se dividiu.
Uma interpretação atualista e integrada não pode deixar de partir da lei vigente.
Ora, quanto a isso, não parece haver dúvidas de que o CComercial, no seu art.13.º, só
previu como comerciantes as pessoas singulares que, do comércio, façam profissão e as
sociedades.
Seria, por demais, bizarro que se fossem contrapor pessoas singulares e coletivas,
às sociedades comerciais. Devemos ter presente que em 1888 a doutrina da personalidade
coletiva estava ainda muito incipiente. Não admira, pois, que a linguagem do Código
tenha sido longe de perfeita.
Pergunta-se, pois, se houve uma evolução dos interesses e dos calores que
recomende, em nome de uma “interpretação atualista”, a ampliação do n.º1. se sim,
sustentaremos todavia que tal interpretação não deve fazer-se em detrimento dos
conceitos comerciais já alcançados.
Como foi referido, deve entender-se que “profissão” terá intuitos lucrativos; e
seguramente os terá a “profissão comercial”. Assim sendo, para MENEZES CORDEIRO
e para o REGENTE, não são comerciantes as associações e as fundações: as primeiras
não têm por fim o lucro económico dos associados (art.157.º e 182.º/1/b CC); as segundas
têm interesse social (art.157.º CC), não podendo ser reconhecidas se isso não ocorrer
(art.188.º CC).
É certo que as associações e as fundações devem aferir rendimentos. Para isso, ou
vivem de donativos ou têm de desenvolver atividades lucrativas. Quando isso suceda,
haverá que aplicar, até onde a materialidade das situações o permita, normas comerciais.
Não inferimos daí que se trate do exercício profissional do comércio.
De iure condendo, quando o comércio atinja uma dimensão considerável, o ente
não-lucrativo em causa deveria constituir uma sociedade autónoma para o efeito: esta,
sim, seria comerciante.

3.2.2. Pessoas Coletivas Públicas e Entidades De Solidariedade Social


O art.17.º veda a “profissão” de comerciante às pessoas coletivas públicas de base
territorial:

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A primeira parte já está no art.13.º; o que importa daqui é a segunda parte do


preceito.
O § único do art.17.º manda aplicar a mesma regra às misericórdias, asilos e
demais institutos de benemerência e caridade. Hoje estão em causa as instituições
particulares de solidariedade social, genericamente reguladas pelo DL n.º 119/83, de 25
de Fevereiro, com as alterações do DL n.º 29/86, de 19 de Fevereiro.

3.2.3. Associações desportivas e suas federações


As associações desportivas ou clubes são pessoas coletivas de Direito privado e
tipo associativo: não podem ter intentos lucrativos. Também as federações desportivas
não podem ter fins lucrativos.
As associações desportivas não se confundem com as sociedades desportivas,
mencionadas no art.27.º/1 Lei n.º5/2007, substituído pelo DL n.º 67/97, de 3 de Abril,
ratificado com alterações pela Lei n.º 107/97, de 16 de Setembro e alterado pelo DL n.º
76-A/2006, de 29 de Março.
As sociedades desportivas, que devem ter a sigla SAD, assumem a forma de
sociedade anónima (art.2.º DL n.º 67/97). São, seguramente, comerciais.

3.2.4. Empresas Públicas


As empresas públicas, reguladas pelo DL n.º260/76, de 11 de Abril, constam hoje,
do DL n.º 558/99, de 17 de Dezembro, precedido pela Lei n.º 47/99, de 16 de Junho, que
concedeu a necessária autorização legislativa ao Governo. Anteriormente, a Lei n.º 58/98,
de 18 de Dezembro, aprovara o regime das empresas municipais.
Tem havido discussão sobre a sua natureza, mas não há razão para as discriminar
face às “empresas privadas”, pelo que, desde o momento que no seu objeto caia a prática
do comércio, serão comerciantes.

3.2.5. Institutos Públicos e Associações Públicas


Os institutos públicos pertencem à administração descentralizada do Estado.
Caem no art.17.º: não podem ser comerciantes, embora possam praticar atos de comércio.
As associações públicas caem na mesma alçada. A certas associações mais antigas
dava-se o nome de ordens: Ordem dos Advogados, Ordem dos Médicos. Estas entidades

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não podem ser comerciantes, todavia, poderão praticar determinados atos de comércio
objetivos: venda de livros, por exemplo.

4. Situações controvertidas.
4.1. A Categoria Pessoas Semelhantes a Comerciantes
As exposições de Direito Comercial comportam uma rubrica relativa de
qualificação controversa: o mandatário comercial, os gerentes, auxiliares ou caixeiros, os
comissários, o mediador, os correctores, o agente comercial, os sócios de
responsabilidade ilimitada, os farmacêuticos e os artífices.
Perante as realidades práticas de Direito Comercial, não é possível proceder a
qualificações rigorosas das figuras em jogo. Elas pressuporiam sempre uma análise prévia
do regime aplicável, regime esse que depende, em geral, da autonomia privada dos
envolvidos. Acresce ainda que o Direito Comercial não é um todo coerente e sistemático.
Chega-se, assim, à ideia de pessoa semelhante a comerciante: uma entidade que
não sendo comerciante em si, suscita, não obstante, a aplicação das diversas regras de
Direito Comercial.
Três critérios enformam as pessoas semelhantes a comerciantes, para além do
facto de, naturalmente, não se poderem considerar de imediato comerciantes, por via das
categorias do art.13.º;
- São autónomas, no sentido de não se encontrarem ao serviço de outra
entidade, por via de um contrato de trabalho;
- Praticam, em série, atos jurídicos com fins lucrativos;
- Dispõem de uma organização mínima, ainda que rudimentar, figurativa
de uma empresa.
Quanto às regras comerciais aplicáveis: não é viável uma definição a priori.
Torna-se sempre necessário ponderar cada figura, cada situação e cada norma.
A margem para grandes labores é estreita. Os atos objetivamente comerciais não
dependem de discussão; os subjetivamente comerciais são escassos; finalmente, os
deveres aplicáveis (sujeição a registo, contas e requisitos particulares) dependem, hoje,
da estreita legislação especial: escapam às qualificações genéricas do velho Direito
Comercial.

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De todo o modo, a figura tem interesse: flexibiliza a ideia de comerciante


permitindo alarga-la de acordo com a evolução dominante, numa orientação
particularmente importante em face de orientações subjetivistas.

4.2. Mandatário Comercial; Gerentes; Auxiliares; Caixeiros e Comissários


Há mandato comercial quando alguma pessoa se encarregue de praticar um ou
mais atos de comércio por mandato de outrem (art.231.º CC).
O mandato comercial é uma modalidade de mandato, o qual, por seu turno, é uma
prestação de serviço. Ele implica o dever de praticar atos jurídicos (um ou mais atos de
comércio) por conta do mandante. O mandato comercial envolve poderes de
representação, ao contrário do civil que pode, ou não, implica-los.
Como modalidade de mandatário comercial surge o gerente de comércio. O
gerente tem mandato geral e trata e negoceia em nome do seu proponente. Também
mandatários, no sentido do Código Veiga Beirão, são, em certos limites, os auxiliares e
os caixeiros.
Finalmente, a comissão corresponde a um mandato comercial sem representação.
Pergunta-se se estas pessoas são comerciantes. A doutrina tem respondido pela
negativa, impressionada pelas regras da representação: afinal, quando fizesse o
mandatário comercial repercutir-se-ia, por força da representação, na esfera do
representado.
Apenas o comissário, quando exerça profissionalmente as suas funções, seria o
comerciante.
A qualificação destas figuras é facilitada com a admissão da categoria de pessoa
semelhante a comerciante. Quando alguém exerça profissionalmente as funções de
mandatário comercial, de gerente de comércio, de caixeiro ou de comissário, o faça com
autonomia e disponha de uma organização para o efeito, haverá que lhe aplicar as regras
do comércio, como principio. Caso a caso se tomaria uma opção cabal.

4.3. Profissionais Liberais


Os profissionais liberais não são considerados comerciantes. É certo que, na
generalidade, eles dirigem empresas de pequena, média ou, até, grande dimensão. Um
escritório de advocacia ou um consultório médico colocam os seus serviços no mercado;

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dispõem de uma organização de meios materiais e humanos para produzir os serviços e


têm um intuito lucrativo.
Por razões de tradição a que o Direito Comercial, como Direito Privado, não deixa
de ser sensível, os profissionais liberais não são considerados comerciantes. Entre nós,
são seguramente profissionais liberais os que trabalhem com autonomia no âmbito de
profissões enquadradas por ordens profissionais.
Todavia encontramos profissionais liberais que dirigem autênticas empresas, em
moldes próximos dos comerciais. Quando isso suceda estaremos perante pessoas
semelhantes a comerciantes. Torna-se possível aplicar-lhes determinadas normas
comerciais: tudo depende da natureza da situação considerada.

5. Estatuto do comerciante.
O comerciante deve respeitar as obrigações do art.18.º:
- A adotar uma firma;
- A ter escrituração mercantil;
- A fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos;
- A dar balanço, e a prestar contas.

5.1. Obrigação de adotar uma firma.


A. Evolução Histórica
Cada ser humano é único e tem um nome próprio a si associado. Uma designação
particular que permite identificar de imediato a pessoa em causa.
Quando em contactos sociais se pretende invocar alguém, isso faz-se através do
nome, independentemente da personalidade que lhe corresponda. A pessoa deixa de o ser:
confundir-se-á com o seu nome. O nome é a máscara através da qual atuamos na vida.
Isto aplica-se ao comércio. No comércio, os diversos operadores singulares
contactam regularmente entre si e com os seus clientes. Têm de se reconhecer e ser
reconhecidos. Surge, agora no contexto comercial a necessidade de recurso ao nome e as
consequências que daí derivam: a “personificação” do nome em causa. O nome passa a
valer por si: um comerciante prestigiado é um nome prestigiado, tanto mais que já
ninguém conhecerá sequer a pessoa concreta sob cujo nome opere o giro comercial
coroado.

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A firma é, originalmente, o nome comercial: o nome que o comerciante utiliza no


exercício do seu comércio.
O uso do nome, em comércio, remonta à Antiguidade. Na evolução subsequente,
o termo firma foi regido pelo costume, apesar da sua importância, não havia densidade
demográfica e económica tão elevada que obrigasse a lei a ocupar-se ex professo do tema.
O aparecimento de sociedades comerciais no séc. XIII levou a que estas tivessem
designação sob a qual giravam: a razão social. Mas também esta se podia reger pelo
costume.
O aumento no número de sociedades e as codificações levaram a que a matéria da
designação das sociedades fosse objeto de tratamento
As primeiras regras referentes à firma em geral surgiram no ADHGB de 1864.
A firma alcançou o seu desenvolvimento clássico nas codificações tardias do séc.
XIX.

A.1. A evolução novecentista


A evolução da firma, ao longo do séc. XX foi marcada por:
- Um desvio entre França e Alemanha, sendo que na primeira a doutrina
quanto à matéria era escassa e, na segunda, e ainda em Itália, a firma tem
desenvolvimentos doutrinários e judiciais consideráveis;
- A firma, mais do que a designação de uma pessoa, passa a ser um valor
mercantil. A evolução iniciou-se nas sociedades, nestas, a firma começou por se
compor dos nomes dos associados. Mas o aparecimento das sociedades anónimas
levou a designações de fantasia.
- Sujeição da firma a regras mais diretamente comerciais: ela decorre da
evolução mencionada, acabando por emancipar-se do próprio nome das pessoas
envolvidas. Trata-se de um passo dado tardiamente em França.
O progresso do Direito Privado ditou o aparecimento de novos ramos dedicados
aos bens imateriais. Assim sucede com o Direito da Propriedade Industrial, que entre nós
tutela as marcas.
A firma pode, através de registo adequado, tornar-se uma marca. Desfrutará, então,
de uma tutela mais alargada, constituindo-se objeto de um direito privado. Em Portugal,
veja-se o art.222.º/1 CPI, relativo à constituição de marca. Ao Direito Comercial
propriamente dito compete ainda a firma.

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A firma demonstra rápida progressão no último século. A progressão vai somando,


aos antigos, fatores regulativos mais recentes, em vez de os substituir. No tocante à firma,
tal resultou numa amálgama de regras e que vão desde o clássico direito ao nome até às
modernas técnicas de proteção advenientes da propriedade industrial.
Como último esforço rematar do séc. XX, neste domínio, ocorreu a revisão do
HGB alemão, que atingiu em profundidade o direito da firma, no sentido da sua
simplificação e liberalização.

A.2. O Código Veiga Beirão; antecedentes e evolução subsequente


No âmbito do Código Ferreira Borges, a firma era a designação de certas
sociedades comerciais que correspondesse, total ou parcialmente, ao nome dos sócios ou
de um deles. Quando, em 1867, foi publicada a importante lei sobre sociedades anónimas,
o legislador passou a atribuir-lhes uma denominação particular ou a indicação clara do
seu objeto ou fim. Não tinham “firma” (nome do sócio): por isso se diziam anónimas.
O Código Veiga Beirão veio reger a matéria da firma de modo que permitia inferir
que “firma” reportava o nome de uma pessoa singular, por ela usada no comércio e
utilizada para assinar ou confirmar um facto, dando-lhe consistência; poderia, assim,
ocorrer nas sociedades comerciais dotadas de “nome” humano.
Já nas sociedades anónimas, designadas por nomes de fantasia, não haveria
“firma” mas “denominação particular”.
Tal foi a origem clássica da distinção entre firma e denominação particular.
Em 1901 foi criado um novo tipo de sociedade: a sociedade por quotas. Foram
criadas duas hipóteses:
- Sociedade por quotas com firma, quando, como designação, adotassem o
nome de um ou mais sócios. Esta ficava obrigada com a assinatura de um dos
gerentes com a firma social;
- Sociedades com denominação social, quando o nome fosse qualquer
outro, relacionado com a sua atividade ou de pura fantasia. Nesta a obrigação
surgiria quando os atos fossem assinados, em seu nome, pela maioria dos gerentes,
“salvo qualquer estipulação em contrário na escritura social”.
O sistema do Código suscitava um problema grave. Havia sociedades que ao ter
êxito se queriam tornar em sociedades anónimas. Neste caso, teriam de mudar de nome,
já que a sociedade anónima não poderia assumir firma: apenas denominação particular à
qual não poderia pertencer qualquer nome de pessoa. Ora, a conservação do nome que já

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tinham, pelo qual eram conhecidos, correspondia a um interesse inteiramente legítimo e


razoável e, além disso: vantajoso par o comércio em geral.
Assim, surgiu o DL n.º 19/638 de 21 de Abril de 1931. Este diploma pretendeu
abolir a contraposição entre firma e denominação particular, mas o diploma não foi longe
o suficiente.

A.3. As reformas dos anos 80


Na década de 80, Portugal conheceu sucessivas reformas que atingiram a matéria
da firma.
Na origem das reformas está a atração exercida pela nascente informatização dos
serviços de identificação. A Lei n.º 2/73, de 10 de Fevereiro, veio instituir o Registo
Nacional de Identificação, etc.
Foram estabelecidos departamentos estaduais competentes nesta matéria, fonte de
uma nova dinâmica legislativa. Foi absorvida a Repartição do Comércio junto da qual
funcionava o registo central das denominações das sociedades. O Direito comercial
começou a perder terreno, à medida que regras mercantis bem clássicas foram sendo
absorvidas por diplomas de índole administrativa.
O registo nacional de pessoas coletivas foi retomado pelo DL n.º 144/83, de 31 de
Março. Este diploma, veio redefinir o RNPC como instituto público.
Os próprios “empresários em nome individual” eram equiparados a pessoas
coletivas. O diploma regia, depois, o ficheiro central das pessoas coletivas, a inscrição no
RNPC, o certificado de admissibilidade de firmas e denominação e o cartão de
identificação de pessoa coletiva ou entidade equiparada, para além das sanções e da
organização burocrática.
Mais tarde, o DL n.º 425/83, de 6 de Dezembro, remodelou a matéria outra vez.
Este diploma já entrou nas matérias das firmas e denominações, reportando-as a
“empresários individuais” e a “pessoas coletivas”. Vários diplomas foram revogados e
alterados.
O DL n.º 42/89, de 3 de Fevereiro, reformulou toda a matéria. Fixou diversas
normas sobre firmas e denominações, remetendo ainda o tema das sociedades comerciais
e civis sob forma comercial para o CSC. Este diploma foi alterado pelo DL n.º 205/92, de
2 de Outubro. Antes disso, o DL n.º 426/91, de 31 de Outubro, determinara a integração
do RNPC na Direção Geral dos Registos e do Notariado.

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B. A natureza da firma; opções


A discussão em torno da natureza da firma não a acompanhou, sempre, a havida
a propósito da natureza do nome. Hoje, este é entendido como um direito de
personalidade. A firma apresenta, desde cedo, uma vitalidade própria.
Num primeiro momento, em França, a firma era objeto da propriedade do seu
titular. Trata-se de uma posição insustentável, assente no dogma da natureza
necessariamente corpórea do objeto da propriedade.
Com a evolução que sucedeu no direito alemão chegou-se a uma construção do
direito à firma diferente da de propriedade: um direito absoluto, mas referente a um bem
imaterial, com conteúdo económico. Trata-se de uma orientação defendida tanto em
França como na Alemanha.
Mais recentemente, o exacerbamento dos direitos de personalidade levou a que a
firma recebesse algum tratamento próprio dos direitos de personalidade.
Os direitos de personalidade deem ser tomados com realismo, perante as
necessidades do nosso tempo. Quer se queira, quer não, eles vieram a assumir relevância
patrimonial.
Por muito que se lamente, há uma conversão dos direitos de personalidade em
direitos patrimoniais. Situações como a do direito ao nome têm, assim, uma de
personalidade e uma dimensão patrimonial.
O direito à firma é, hoje, distinto do direito ao nome. O direito ao nome acentua a
vertente da personalidade, e o direito à firma tende para o direito a um bem imaterial.
Todavia, as suas conexões são, ainda, suficientemente evidentes para que a doutrina o
considere como um direito misto: um direito de personalidade reportado, também, a bens
imateriais patrimoniais. A sua transmissibilidade é possível.
A última reforma do Direito comercial alemão veio, porventura, reforçar o
afastamento do direito à firma do Direito de personalidade.

5.1.1. Os princípios da firma.


Aparentemente, o RNPC apenas indica dois princípios: o princípio da verdade, e o
princípio da novidade, expressos nos art.32.º e 33-º. Todavia, MENEZES CORDEIRO
alarga a sequência de princípios a atender:
- Princípio da autonomia privada, com limitações genéricas;
- Princípio da obrigatoriedade e normalização;
- Princípio da verdade;

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- Princípio da estabilidade;
- Princípio da novidade e exclusividade;
- Princípio da unidade.
COUTINHO DE ABREU fala, ainda, no princípio da licitude, mas para o
REGENTE não há necessidade para o autonomizar
A multiplicidade de princípios enformadores da firma não deve obnubilar os
vetores substanciais subjacentes. No fundamental, a firma visa exprimir, com eficácia, a
identidade do comerciante de cujo giro se trate. Além disso, e pelas preocupações
crescentes que as sociedades pós-industrais têm vindo a manifestar nesse domínio, a firma
vem acompanhada de regras destinadas à tutela dos consumidores.
O Direito português parece prosseguir ainda funções policiais e de fiscalização de
ordem geral, o que vem demonstrado no art.2.º.
Além disso o RNPC abrange informações relativas aos próprios comerciantes
individuais (art.4.º/1/g).
Nestas condições, devemos admitir mais este fator de ordem teleológica: o
objetivo geral de facultar a fiscalização do Estado. Não obstante, deve ser preservada a
tradição comercialística, própria do sistema em que nos encontramos e particularmente
útil para salvaguardar a dignidade das pessoas e a liberdade de iniciativa: a firma pertence
ao Direito privado e opera de acordo com os seus princípios.

A. O princípio da autonomia privada e limitações genéricas


A firma é um instituto comercial e pertence ao Direito Privado. Aplicam-se-lhe
pois, como princípio, os grandes vetores do privatismo, nomeadamente o da liberdade,
vertido na autonomia privada.
A escolha da firma cabe ao comerciante ou às entidades que irão constituir a
sociedade comercial, quando disso se trate. Em rigor há pois uma dupla opção: decisão
de assumir uma firma; concreta composição da firma em causa.
Quanto à concreta composição da firma em causa, esta está nas mãos do
interessado. A regra mantém-se, embora, em fundo da normalização e tendo em conta
ainda a existência de princípio como os da verdade e da estabilidade, a liberdade de
escolha da firma não seja absoluta.
Mas ela existe, sempre como princípio. Em tudo o que a lei não vede ou não
imponha, a liberdade dos interessados na escolha da firma é total.

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Na liberdade de escolha que os interessados têm ao seu alcance, estão à sua


disposição:
- Firmas pessoais ou subjetivas ou nominativas, que são compostas com
recurso ao nome de um ou mais pessoas singulares. Firmas deste tipo são previstas
no art.38.º/1 RNPC, a propósito do comerciante pessoa singular ou “comerciante
individual”. A firma pessoal poderá ainda resultar da inclusão, nela, da
denominação de uma sociedade sócia da considerada;
- Firmas materiais ou objetivas, que se reportam a objetos ou atividade que
retratem a exploração comercial a exercer por quem as use;
- Firmas de fantasia, que não têm qualquer representação imediata: seja de pessoas,
de atividade ou de objetivos: apenas a figurações agradáveis.
- Firmas mistas, que combinam elementos de duas ou mais das anteriores
categorias;
- Firmas de fantasia, que não revelam nem a identidade, nem a atividade
do sujeito.
Como manifestação da autonomia privada que é, a livre escolha da firma depara
com determinadas limitações de ordem genérica. O heterogéneo art.32.º/4/b a d RNPC dá
corpo a tais limitações, arredando, das firmas:
- Expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral ou dos bons costumes;
- Expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade de opção
política, religiosas ou ideológica;
- Expressões que desrespeitem ou se aproximem ilegitimamente de
símbolos nacionais, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou
significado seja de salvaguardar por razões históricas, patrióticas, cientificas,
institucionais, culturais ou outras atendíveis.
A alínea b) reporta-se ao que se diria: contrário à lei, aos bons costumes e à ordem
pública. A “moral” deverá ser aproximada dos bons costumes em sentido técnico,
enquanto os bons costumes têm a ver com a ordem pública. Uma firma é publicitada e
está parecente a todos, incluindo menores: logo, o Direito tem de os defender.
A alínea c) reporta a liberdade de opção política, religiosa ou ideológica. Parece
que se deve ir mais longe: não são admissíveis firmas que contundam com valores
constitucionais básicos ou cuja existência ponha em crise direitos fundamentais.
A alínea d) funciona como cláusula de bom senso e de bom gosto. Sendo um ato
de autonomia privada, a escolha de uma firma tem, após determinada tramitação, eficácia

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erga omnes. Além disso, ela assume, por definição, reflexos sociais, quiçá mesmo
pedagógicos. Há, pois, que respeitar os valores histórico-culturais, particularmente os
ligados à Nação cujo Direito esteja em jogo.

B. O princípio da obrigatoriedade e normalização


O princípio da obrigatoriedade decorre, desde logo, do art.18.º/1: os comerciantes
são especialmente obrigados a adotar uma firma.
No RNPC, a obrigatoriedade de adotar firma decorre:
-Da “sujeição” a inscrição dos factos referidos nos art.6.º a 10.º, factos
esses que incluem a firma; da cominação de coimas a quem não cumpra “…a
obrigação de inscrição no FNPC…” ou não o faça “…nos prazos ou nas
condições ficadas no presente diploma…” – art.75.º/1/b RNPC;
- Da imposição da nulidade aos contratos de constituição de sociedades ou
outras entidades ou de modificação da sua firma, quando não seja exibido o
certificado de admissibilidade da firma e isso por parte de quem tenha
legitimidade para o fazer – art.55.º e 54.º RNPC;
- Da necessidade de exibição do certificado de admissibilidade da firma
para realizar diversos atos de registo comercial – art.56.º RNPC – atos esses cuja
inscrição é obrigatória – art.15.º CRC.
O incumprimento desta obrigação não envolve, só por si, a invalidade dos atos
comerciais que venham a ser praticados pelo faltoso: vigora, como base, o princípio da
correspondência entre a capacidade civil e a comercial (art.7.º). Tal invalidade só ocorre
quando a lei o diga. Todavia, o “comerciante” que não adote firma sujeita-se a efeitos
nocivos, nomeadamente por se lhe fecharem as portas do registo civil.
Além de obrigatória, a firma deve obedecer a certos ditames que a tornem
reconhecível como firma. Desde logo, deve ter uma expressão verbal, suscetível de
comunicação oral e escrita: não podem ser adotados sinais, desenhos ou outras figurações.
De seguida, a firma deve surgir em carateres latinos.
Tratando-se de uma firma de fantasia, podemos admitir que ela assuma algumas
siglas, letras ou números, dentro dos limites da seriedade e da ordem pública. Mais do
que bons costumes, está em jogo um mínimo de bom gosto, ínsito na cláusula de ordem
pública.

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Em compensação, a firma, quando tenha algum significado, deve surgir em língua


portuguesa correta. Trata-se de uma exigência que surgia expressamente no art.3.º/1 do
revogado DL n.º 42/89, de 3 de Fevereiro. Todavia:
- Nos atos judiciais deve usar-se a língua portuguesa (art.139.º/1 CPC);
- Nos atos notariais, deve usar-se a língua portuguesa (art.58.º CN);
- As informações ao consumidor devem ser prestadas em português
(art.7.º/3 LDC);
- Os contratos que tenham por objeto a venda de bens ou produtos ou a
prestação de serviços no mercado interno, bem como a emissão de faturas ou
recibos, devem ser redigidas em língua portuguesa;
- A indicação do objeto da sociedade deve ser corretamente redigida em
língua portuguesa (art.11.º/1 CSC).
De todos estes preceitos podemos retirar uma regra geral que funcionará, também,
perante o RNPC.

B.1. Os comerciantes pessoas singulares


A normalização das firmas leva, depois, a prescrever regras próprias para as
diversas categorias de comerciantes.
As firmas das sociedades comerciais têm um tratamento autónomo (art.37.º/1
RNPC). Pertence, hoje, ao Direito das sociedades comerciais.
Cumpre analisar a firma dos comerciantes pessoas singulares: Segundo o art.38.º
RNPC, o comerciante individual deve adotar apenas uma firma, composta pelo seu nome,
podendo aditar-lhe alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida.
O núcleo da firma do comerciante em nome individual deve ser composto pelo
“seu nome”, “completo ou abreviado”. Trata-se de uma regra que, de iure condendo, para
o Professor MENEZES CORDEIRO, deveria ser repensada. Os meios informativos hoje
existentes permitem, com facilidade, associar os titulares de firmas.
Assim, deveria permitir-se que os comerciantes singulares adotassem firmas
materiais ou firmas de fantasia, seguidas da referência “comerciante individual” ou
equivalente. O concreto nome do comerciante em causa apura-se facilmente no RNPC:
poderia estar acessível pela Internet.
A lei permite que, ao núcleo da firma do comerciante pessoa singular, seja aditada
alcunha ou expressão alusiva à atividade (art.38.º/1/in fine).

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A lei permite também que, ao núcleo da firma, seja somada a indicação “sucessor
de” ou “herdeiro de” e a firma do “estabelecimento” que tenha adquirido (art.38.º/2).
Desta feita, pela negativa, o art.38.º/3 permite que o comerciante faça anteceder o
seu nome por expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos, profissionais ou
nobiliárquicos a que tenha direito. Em qualquer dos casos, a lei impõe que se trate de
títulos legítimos. A “legitimidade” deve ser provada pelos requerentes (art.49.º/1 RNPC)
devendo os competentes elementos serem-lhe oficiosamente solicitados, quando não o
tenham feito (art.49.º/2 RNPC).
Numa disposição paralela, manda o art.33.º/4 que a incorporação, na firma, de
sinais distintivos registados dependa de prova do seu uso legítimo.
O art.38.º/4 RNPC vem dispor sobre o âmbito de tutela da firma dos comerciantes
em nome individual. Trata-se de uma rubrica a examinar a propósito do princípio da
verdade e da exclusividade.

C. O princípio da verdade e a exclusividade


A firma deve retratar a realidade a que se reporte; ou, pelo menos: no deve
transmitir algo que lhe não corresponda. Surge aqui o princípio da verdade.
A lei admite firmas de fantasia. Quando isso suceda, da simples consideração da
firma não resultará coisa nenhuma. O problema põe-se, pois, apenas quando a firma
retrate alguém ou tenha algum significado.
O art.32.º RNPC versa a matéria nos seus n.º 1, 2 e 4/a. Segundo o n.º 1, estão em
causa todos os elementos que integrem a firma. Eles são verdadeiros: retratam a realidade
efetivamente subjacente. Não devem induzir em erro:
- Sobre a identificação: estarão em causa, sobretudo, os comerciantes
pessoas singulares; estes não podem adotar firmas pessoais com nomes que lhes
não pertençam; quanto a pessoa coletivas, o problema põe-se quando recorram a
“denominações”; além disso e na linha do art.38.º/3 RNPC, só podem ser incluídos
na firma títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o titular tenha
direito: temos, aqui, complementos de identificação;
- Sobre a pertença a algum grupo: hoje as sociedades estão interligadas; a
pertença a um grupo, mesmo quando tenham objetos diferentes, é um fator
relevante sobre que não podem ser enganados ou consumidores;
- Sobre a natureza: regras especiais permitem, através da firma e em certos
casos, conhecer o tipo de titular em causa;

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- Sobre a atividade: quando esta resulte da firma, deverá corresponder à


realidade.
O art.32.º/2 do RNPC reporta-se ao núcleo da firma: aos seus “elementos
caraterísticos”. Mesmo sem induzir diretamente em erro, os referidos elementos podem
sugerir atividades diferentes das praticadas. A lei não o permite. O preceito parece
reportar-se a pessoas coletivas. Não oferece dúvidas a sua generalização.
O art.32.º/4/a vem fazer diversas especificações. Mais precisamente: retoma a
proibição de provocar confusão quanto à natureza jurídica (art.32.º/1 RNPC), vindo
vedar: expressões que possam induzir em erro quanto à caracterização jurídica da pessoa
coletiva, designadamente o uso, por entidades com fim lucrativo, de expressões
correntemente usadas na designação de organismos públicos ou de associações sem
finalidade lucrativa.
O princípio da verdade manifesta-se ainda no art.32.º/5 RNPC. Dispõe: Quando,
por qualquer causa, deixe de ser associado ou sócio pessoa singular cujo nome, figure na
firma ou denominação de pessoa coletiva, deve tal firma ou denominação ser alterada no
prazo de um ano, a não ser que o associado ou sócio que se retire ou os herdeiros do que
falecer consintam por escrito na continuação da mesma firma ou denominação.
O art.34.º dispõe sobre firmas e denominações registadas no estrangeiro.

D. O princípio da estabilidade; a transmissão da firma


O princípio da estabilidade não consta, de modo expresso, da lei portuguesa. Ele
pode, todavia, ser construído por via doutrinária.
Segundo o princípio da estabilidade, a firma, quando identificada com uma
empresa ou um estabelecimento, conservar-se-ia, não podendo, ad nutum, ser alterada.
Além disso, havendo transmissão do estabelecimento a que ela se reporte, a firma manter-
se-ia estável, transferindo-se com ele. Ou, noutra fórmula: apenas em conjunto com o
estabelecimento se pode transmitir a firma.
O art.44.º RNPC dá corpo a essa regra, ao permitir, ainda que com autorização
escrita do cedente e com menção à transmissão, a conservação, pelo adquirente de um
estabelecimento, da firma usada pelo transmitente.
Trata-se de mais uma formulação da regra do art.38.º/2 RNPC, a propósito da
composição da firma. A regra deve ser interpretada restritivamente, sob pena de pôr em
crise a ideia de conservação da firma: admite-se, assim, que o adquirente passe,
simplesmente, a usar a firma anterior, com a informação “sucessor” ou “scr”.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Havendo transmissão coerciva, a autorização do dono pode ser dispensada? No


Direito Português, o art.162.º CIRE refere a alienação da empresa “… como um todo …”.
Logo, a firma-objeto e a firma de fantasia ficam abrangidas. Mas tratando-se de uma firma
-pessoas, prevalece o direito ao nome, mercê da sua natureza de personalidade: a
autorização do próprio será sempre necessária, salvo abuso do direito.
O art.44.º/2 contém uma regra para sociedades comerciais. Desta feita, a alteração
a nível de sócio não envolve modificação da firma, já que o titular se mantém imutável.
Todavia, quando se transmita a firma de sociedade na qual figure o nome de um sócio,
este deverá dar autorização para que a firma se mantenha imutável: os aspetos de
personalidade envolvidos no nome prevalecem sobre os interesses do comércio.
A hipótese de sucessão por morte ocorre no n.º3: desta feita não é, por definição,
exigível qualquer autorização para o uso da firma.
Finalmente, o art.44.º/4 vinca a essência da estabilidade: É proibida a aquisição
de uma firma sem a do estabelecimento a que se achar ligada.
O princípio da estabilidade entra em certo conflito com o da verdade. O Direito
português dá uma prevalência quase absoluta a este último. Este ponto deveria, de iure
condendo, ser repensado. O Direito português está ainda muito imbuído da ideia de firma
como “nome”. Atualmente, ela é um bem comercial. A sua submissão, com as cautelas
devidas à tutela do consumidor, às necessidades do giro comercial deveria ser mais
facilitada. É de notar que, perante as regras da propriedade industrial, a transmissão de
marcas ou a concessão de licenças para o seu uso por terceiros é bastante leve. Assim,
recordamos que o registo do nome ou da insígnia se transmitem com o estabelecimento a
que se reportem, como pressupõem o art.297.º CPI.
A transmissibilidade da firma, ainda que com os requisitos apontados, a constitui
um indício da dimensão patrimonial dos valores envolvidos. A firma opera, na verdade,
como um fator a ter em conta na avaliação do conjunto a que pertença.

E. O princípio da novidade
O princípio da novidade vem no art.33.º/1 RNPC:
“As firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de
confusão ou erro com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de
exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos utilizados por
outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente
conhecidas.”

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Este mesmo princípio pode ser referenciado como o da “exclusividade”.


Como ponto de partida, temos a ideia de que uma determinada firma, uma vez
atribuída, dá ao seu titular o direito ao seu uso exclusivo em determinada circunscrição
(art.35.º/1 RNPC). O sistema é o seguinte:
- A firma do comerciante individual que corresponda ao seu nome não dá
lugar a um exclusivo; todavia, havendo nome total ou parcialmente idêntico, ele
não pode usá-lo profissionalmente de modo a prejudica-lo (art.72.º/2 CC e 38.º/4
RNPC);
- A firma do comerciante individual que não corresponda, apenas, ao seu
nome, dá direito ao seu uso exclusivo desde a data do registo definitivo;
- As firmas de sociedades comercias ou civis sob forma comercial dão azo
a um exclusivo em todo o território nacional (art.37.º/2 RNPC);
- As denominações de associações e fundações são exclusivas em todo o
território nacional, salvo quando o seu objeto estatutário indicie atividades de
natureza meramente local ou regional (art.36.º/3 RNPC).
A novidade é um requisito exigido às firmas. A firma mais recente deve ser
distinta da mais antiga, sob pena de facultar um enriquecimento à custa desta.
O juízo de distintibilidade deve ser feito in concreto perante o universo dos fatores
ponderáveis, exemplificativamente referidos no art.33.º/2/5 RNPC: prevalece o critério
do homem médio ou consumidor comum. Há ainda que atender ao facto de as possíveis
firmas em confronto corresponderem a entidades que atuem ou não na mesma área
comercial.

F. O princípio da unidade
Segundo o princípio da unidade, o comerciante só poderia girar sob uma única
firma. O art.38.º/1 RNPC reporta-se aos comerciantes individuais, mas a doutrina
estendeu também às sociedades.
Aparentemente, nem sequer se tem em conta o facto de o comerciante poder deter
mais de um estabelecimento ou, mesmo, duas ou mais empresas totalmente distintas.
Trata-se de regras desfasadas, com a agravante de já anteriormente Ferrer Correia
ter exposto as bases para a superação de tal entendimento.
Efetivamente, interesses comerciais perfeitamente razoáveis podem levar a que
estabelecimentos tenham designações próprias e distintas. Esses mesmos interesse
comunicam-se às firmas dos titulares respetivos.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A doutrina alemã tem defendido a possibilidade de um comerciante individual ter


mais que uma firma. Têm em consideração a insegurança que poderia resultar para o
crédito do facto de um único comerciante poder ter várias “faces”. Mas o problema é
facilmente contornável pela investigação elementar.
A prática tem contornado o problema criado por este princípio através das micro-
sociedades, todas com os mesmos ou semelhantes sócios e sem património específico:
nenhumas vantagens a não ser o aumento da burocracia e perigo para o crédito.

5.1.2. Principais aspetos de regime.


A matéria da firma rege-se hoje pelo RNPC, aprovado pelo DL n.º 128/98, de 13
de Maio. Este já sofreu uma quantidade indescritível de alterações, até 2009.
O RNPC regula a designação das pessoas coletivas em geral. Mas além disso, veio
abarcar designações de entidades não personalizadas, de organismo e serviços da
Administração Pública não personalizados, de comerciantes individuais e heranças
indivisas quando o autor da sucessão fosse comerciante em geral.
O art.4.º RNPC exprime todo o âmbito amplo de aplicação do FCPC.
O RNPC optou por não dar um tratamento unitário à matéria civil e comercial.
Vítima dos antecedentes adotados, ele pretendeu proceder a uma classificação de tipo
formal. Assim, mantém as expressões firma e denominação particular.
Procurando uma lógica nas disposições legais, chega-se à seguinte conclusão:
- A firma reporta-se a normas de sociedades comerciais ou civis sob forma
comercial (art.37.º), de comerciantes individuais (art.38.º), e de estabelecimentos
individuais de responsabilidade limitada (art.40.º);
- A denominação tem a ver com associações e fundações (art.36.º) ou com
sociedades civis sob forma comercial (art.42.º);
- Os empresários individuais não-comerciantes passaram a ter firma.
Na atualidade, “firma” equivale a um nome comercial enquanto denominação se
reporta a entidades não comerciantes, salvo a distorção introduzida em 2008. Assim é
apenas perante o RNPC, já que os outros diplomas usam a “denominação” para entidades
comerciais.
A classificação introduzida pelo RNPC é apenas tendencial. Manifestamente, ela
parece não operar nas sociedades comerciais, onde será necessário manter em vida a firma
lato sensu e, depois, a firma-nome e a firma-denominação. De novo temos uma

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manifestação, porventura excessiva e dispensável, da complexidade histórico-cultural do


Direito mercantil português.

A. Aspetos processuais
No Direito Português, o direito à firma depende do seu registo definitivo no RNPC
(art.35.º/1 RNPC).
Antes disso, sobretudo nas pessoas coletivas, é preciso obter um certificado de
admissibilidade da firma ou da denominação e, portanto: um documento emitido pelo
RNPC, donde resulte que determinada firma, pretendida por um interessado, se encontra
disponível e surge conforme com os princípios aplicáveis (art.45.º RNPC).
Todos os interessados em ter firma devem requerer a inscrição, em virtude do
princípio da obrigatoriedade. Se não o fizerem, o art.12.º/1 RNPC permite que ela seja
feita oficiosamente.
O pedido de certificado de admissibilidade deve ser requerido através das formas
previstas no art.46.º/1 RNPC.
A reserva constitui mera presunção de não confundivilidade da firma solicitada
(art.48.º/2 RPC). Esta reserva é importante porque marca a ordem de prioridade do pedido
da firma em jogo (art.50.º/1 RNPC).
O art.50.º-A RNPC prevê a aprovação automática de firmas e denominações
(aliás: firmas), quando se trate da constituição de sociedades por quotas, unipessoais por
quotas ou anónimas e elas corresponda, ao nome dos sócios, pessoas singulares.
Concedido o certificado de admissibilidade, este tem os seguintes efeitos:
- Define a posição do beneficiário em relação a interessados ulteriores;
- Permite a celebração de ulteriores atos públicos que dele dependam,
como a constituição de pessoas coletivas e estabelecimentos de responsabilidade
limitada;
- Limita a ampliação do objeto social a atividades contidas no objeto
declarado no certificado de admissibilidade;
- Condiciona o registo comercial ou a inscrição no FCPC.
Feita a inscrição da firma, o RNPC atribui ao interessado um número de
identificação (art.13.º/1).
As entidades inscritas podem solicitar a emissão de um cartão de identificação
(art.16.º e 17.º RNPC). Dele constam o NIPC, o nome, firma ou denominação, o domicílio

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ou sede, a natureza jurídica, a atividade principal e o número de bilhete de identidade dos


empresários individuais.
Quando violados os princípios da firma, o RNPC declara a perda do direito ao uso
da que esteja em causa (art.60.º/1). Feita essa declaração, é a mesma levada ao registo
comercial, se a ele estiver sujeita; o facto é ainda comunicado a outros serviços onde a
entidade esteja registada (art.60.º/2 RNPC).

B. A firma e o regime especial de constituição de sociedades (2005)


O DL n.º 111/2005, de 8 de Julho surgiu para criar um regime especial de
constituição de sociedades.
A ideia básica da lei é a de facultar, aos interessados, a imediata realização, num
serviço centralizado, de todas as operações requeridas para a constituição de uma
sociedade. No tocante à firma, este regime exige uma de três hipóteses (art.3.º/3):
- Aprovação no posto de entendimento;
- Escolha da firma constituída por expressão de fantasia previamente
criada e reservada a favor do Estado, associada ou não à aquisição de uma marca
previamente registada a favor do Estado;
- Apresentação de certificado de admissibilidade da firma.
Pressupõe-se que o Estado disponha de uma “bolsa de firmas”, previamente
inscritas e validades pelo RNPC. Uma vez atribuídas aos particulares, as firmas
submetem-se às regras próprias das demais.

C. Tutela e natureza perante o Direito português


O uso ilegal de uma firma concede aos interessados (art.62.º):
- O direito de exigir a cessação de tal uso;
- O direito a uma indemnização por danos emergentes;
- O direito, eventualmente, de lançar mão de ação criminal.
No fundo, temos concretizações do princípio geral do art.70.º/2 CC.
Os particulares têm ainda meios de defesa contra o RNPC. Dos despachos que
admitam ou indefiram firmas e de outros atos, cabe recurso hierárquico para o presidente
do IRN, IP, seguindo-se o CPA.
No Direito português, a firma está muito agarrada ao direito ao nome, sendo como
uma modalidade comercial deste, assumindo pis a natureza de direito de personalidade.

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O próprio não pode dispor livremente dela e é oponível erga omnes, dispondo de tutela
alargada.

5.2. Obrigação de ter escrituração mercantil.


A escrituração mercantil exprime o conjunto de livros que o comerciante deve ter
para conhecer e dar a conhecer, com facilidade e precisão, as suas operações e o estado
do seu património. Além disso, essa locação pode ainda traduzir a técnica de registar as
operações comerciais e as consequências patrimoniais delas advenientes. Neste último
sentido, escrituração é sinónimo de contabilidade, ou pelo menos, é a aplicação desta.
A necessidade de manter contas decorrer do próprio exercício do comércio. Este,
mesmo elementar, implica atos que o comerciante não pode reter sem apoio em notas. E
são justamente estas, pelas informações que propiciam, que o poderão nortear em novas
operações, sedimentando a experiência e dando corpo às disponibilidades.
A escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante:
- Na doutrina clássica, operaria como espelho do interessado, funcionando
como a sua consciência ou a sua bussola;
- Mas além disso, desde cedo se verificou que ela servia, também, os
interesses dos devedores e isso a um duplo título:
- Incentivando a um comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração
conduz a práticas que põe os credores (mais) ao abrigo da falência e bancarrotas;
- Permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócio,
a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.
Hoje, a escrituração mercantil e os deveres a ela inerentes andam ligados à
prestação de contas e à fiscalização de empresas. No fundamental, ela opera como um
corpo de regras de Direito público, fixadas pelo Estado e que escapam, por isso e em larga
medida, à lógica do Direito privado. A violação das suas regras conduz, no essencial, a
sanções de tipo público particularmente fiscais.
CANARIS, perante o escopo público das normas em jogo na escrituração e na
prestação de contas, entende mesmo que elas não poderiam sequer ser tomadas como
normas de proteção para efeitos de responsabilidade civil.
Apesar da sua natureza pública, os deveres relativos à escrituração mercantil e à
prestação de contas fazem parte do acervo que caracteriza o status do comerciante.

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Hoje, nos termos do art.29.º, há obrigatoriedade da escrituração mercantil, mas


restrita às atas.

5.2.1. Organização da escrituração mercantil.


A escrituração mercantil pode ser levada a cabo pelo próprio comerciante ou por
outrem, a mando (art.38.º). Ela deve ser feita sem intervalos em branco, entrelinhas,
rasuras ou transporte para as margens (art.39.º). A correspondência devia ser arquivada
por 10 anos (art.40.º). As autoridades administrativas devem respeitar as opções do
comerciante, realizadas nos termos do art.30.º (art.41.º), só podendo ser ordenada a
exibição judicial a favor dos interessados em questões de sucessão universal, comunhão
ou sociedade ou no caso de falência (art.42.º). Fora isso, o exame de escrituração só podia
ter lugar quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na
questão em que tal apresentação fosse exigida.
Todas as regras da escrituração existiam desde 1888, logo o SIMPLEX (DL n.º
76-A/2006, de 29 de Março), embora tenha feito muitas alterações, veio simplificar a
escrituração mercantil, tanto que há um princípio da liberdade da escrituração mercantil,
muito embora tenha sido comprimido

5.2.2. A força probatória da escrituração mercantil.


O art.44.º regula a matéria de força probatória da escrituração. Tal força
manifesta-se em juízo, entre comerciantes e quanto a factos do seu comércio, nos
seguintes termos:
- Os assentos lançados em livros de comércio, mesmo não arrumados,
fazem prova contra o próprio, mas quem queria prevalecer-se disso deve aceitar
também os assentos que lhe foram prejudiciais;
- Quando regularmente arrumados, os assentos fazem prova a favor dos
respetivos proprietários, desde que o outro litigante não apresente assentos
arrumados nos mesmos termos ou prova em contrário;
- Quando da combinação dos livros resulta prova contraditória, o tribunal
decide de acordo com as provas do processo;
- Nessa mesma eventualidade, prevalece a prova derivada de livros
arrumados sobre a dos outros que não o estejam, salvo prova em contrário, por
outros meios;

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- Se um comerciante não tiver livros ou não os apresentar, fazem prova


contra ele os do outro litigante, devidamente arrumados, salvo força maior ou
prova em contrário.

5.3. Obrigação de dar balanço. A prestação de contas. As regras de


contabilidade.
A obrigação de dar balanço está prevista no art.62.º do CCom. O balanço é o
documento onde compara o ativo com o passivo para revelar o valor do capital próprio
ou situação líquida (geralmente, este é um dos principais documentos de prestação anual
de contas).
Já quanto ao dever de prestar contas este mantém-se e apenas releva no Direito
das Sociedades Comerciais (nos termos do art.65.º do CSC, 70.º do CSC e 42.º do CRC).
Tem havido uma crescente internacionalização da prestação de contas, sendo que
esta se cruza com as noções de contabilidade e com as normas resultantes das NIC
(normas internacionais de contabilidade).

5.4. Obrigação de fazer inscrever no Registo Comercial os actos a ele sujeitos.


O registo comercial moderno surgiu, em Portugal, com o liberalismo,
designadamente através do Código Ferreira Borges.

5.4.1. A legislação registal comercial. O CRC.


O Código de Registo Comercial foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 403/86 de 3 de
dezembro. Este diploma pretendeu dar lugar a um verdadeiro código e, portanto, a algo
que assumisse, nas palavras do seu preâmbulo, “um carácter sistemático e sintético que
legitime a sua designação”.
Para tal, retomou uma série de normas no seu corpo que constavam do Código de
Registo Predial.
O CRC tem sido alterado sucessivamente, sendo que em 2006 houve uma grande
reforma com o DL n.º 76.º - A/2006 de 29 de março.

5.4.2. Âmbito do registo comercial.

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O registo comercial visa dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes


individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (art.1.º/1 do CRC).
Trata-se, assim, de uma possibilidade virada para a situação dos comerciantes ou
entidades próximas, aliás o n.º 2 do art.1.º abre a publicidade comercial às entidades
semelhantes a comerciante.
No entanto, além da publicidade, o registo comercial permite uma função de
controlo.
Os comerciantes individuais estão sujeitos a registo nos termos do art.2.º CRC, as
sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial têm numerosas situações
sujeitas a inscrição comercial, que encontramos enumeradas no art.3.º/1 do CRC.
Estão, ainda sujeitas a registo as ações que possam interferir nas situações que
devem ser inscritas de acordo com a renumeração do art.9.º.
Os atos sujeitos a registo constituem uma tipicidade fechada. Podemos admitir
que outras leis submetam certos atos a registo comercial, mas não é possível que por
analogia ou com recurso a princípios alargar a lista.
Paralelamente, há que recusar a redução teleológica da lista, de moda a retirar
delas, factos que, atentos os fins das normas em jogo, já nada ganham com a inscrição
comercial.
Por exemplo, poderia ser desejável sujeitar a registo o contrato de franquia,
todavia e a menos que, em concreto, seja possível estabelecer que este contrato envolve
no seu núcleo essencial uma situação de agência, não há base legal para um dever de
registo.
As normas que obrigam a registo são puras regras de procedimento,
historicamente condicionadas e cuja segurança se sobrepõe a quaisquer outras
considerações.

5.4.3. Formas de registo. Tópicos.


Dos factos sujeitos a registo obrigatório são efetuados atos de registo seguindo
uma técnica registal que corresponde a duas formas de elaboração: o registo por
transcrição e o registo por depósito (art.53.º - A CRC).
O registo por transcrição abrange os atos de registo sujeitos ao controlo da
legalidade formal e substancial dos documentos a que respeitam.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Este traduz, de forma sintética, os elementos essenciais que se encontram no


documento que serve de suporte ao pedido feito em requerimento. No âmbito da sua
atividade, o conservador qualifica os requisitos formais e substanciais dos factos
societários. Verificada a regularidade legal do pedido e dos documentos que lhe servem
de suporte, efetua o registo e deposita os respetivos documentos em pasta eletrónica.
Se existirem irregularidades supríveis por declaração ou junção de documentos, o
conservador notifica os requerentes para fazerem o respetivo suprimento. Caso não o
façam, o conservador lavra o registo por dúvidas, em despacho fundamentado, pelo que
produz efeitos por seis meses até ser convertido em definitivo, ou pode vir caducar, uma
vez decorrido aquele prazo.
Se os pressupostos do pedido de registo do facto societário não forem cumpridos,
o conservador pode recusar o pedido de registo em despacho fundamentado.
Os despachos do conservador podem ser impugnados por via hierárquica para o
Instituto dos Registos e do Notariado, ou por via judicial.
O registo por depósito é uma forma de registo que consiste no depósito de
documentos e menção no registo a que corresponde.
O conservador não tem o poder de qualificar a conformidade legal dos
documentos entregues para depósito. Assim, a lei só lhe confere a função de rejeitar os
pedidos feitos em face de situações tipificadas, tais como a falta de legitimidade do
requerente, caso a matrícula da sociedade não exista ou, a falta de documento, bem como
a falta de pagamento, ou ainda, se o facto não for sujeito a registo.
Desta forma de registo resulta a responsabilidade quase exclusiva da sociedade
requerente, tanto pela regularidade dos documentos que fundamentam o pedido, como
pelo cumprimento das regras substantivas relativas aos factos a registar.

5.4.4. Princípios do registo comercial. Tópicos.


A estruturação jurídica do registo comercial fica mais clara com recurso à
formulação de grandes princípios que a regem. Todos eles comportam apenas uma parcela
das regras jurídicas em jogo, admitindo desvios e exceções.
Cumpre afirmar que os princípios da competência, da legalidade e do trato
sucessivo, para o Professor MENEZES CORDEIRO, podiam ser reconduzidos a um
princípio da legalidade em sentido amplo, uma vez que decorrem de uma lógica
subordinação da prática registal às coordenadas injuntivas do ordenamento.

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A. Princípio da instância
Segundo o princípio da instância, o registo comercial efetua-se a pedido dos
interessados. Apenas há registos oficiosos nos casos previstos pela lei (art.28.º do CRC).
O registo pode ser pedido pelos próprios, pelos representantes legais ou pelas
pessoas que nele tenham interesse (art.29.º do CRC). Temos ainda como novidade da
reforma de 2006, a promoção de registo pelas sociedades (art.29.º - A do CRC). E o
registo pode ainda ser solicitado por “mandatário com procuração bastante” por quem
tenha poderes para intervir no respetivo título e por advogado ou solicitador cujos poderes
de representação se presumem (art.30.º/1 do CRC).
Nas hipóteses de reclamação ou de recurso hierárquico ou contencioso, a lei é
mais exigente com o título de representação (art.30.º/3 do CRC).

B. Princípio da obrigatoriedade
Segundo o princípio da obrigatoriedade, os interessados estariam adstritos a
requerer a inscrição dos factos sujeitos a registo comercial. Trata-se de um princípio que
comporta duas vertentes:
- A obrigatoriedade direta;
- A obrigatoriedade indireta.
A inscrição é diretamente obrigatória nos casos referidos no art.15.º/1 e 2 do CRC.
Estes números remetem para diversas alíneas dos art.3.º e 8.º. que indicam os factos
sujeitos a registo. Os notários devem remeter às conservatórias competentes, todos os
meses, a relação dos documentos que titulem factos sujeitos a registo obrigatório (art.16.º
do CRC). O incumprimento do dever de requerer a inscrição é punido com as coimas
elencadas no art.17.º do CRC.
A inscrição torna-se, além disso, indiretamente obrigatória para todos os factos
sujeitos a registo: eles só produzem efeitos perante terceiros depois da data da respetiva
inscrição (art.14.º/1 do CRC) ou depois da data da publicação, quando estejam sujeitos a
registo e a publicação obrigatória (art.14.º/2 do CRC).
Quanto às ações sujeitas a registo: o essencial delas não tem seguimento, após os
articulados, enquanto não for feita prova de ter sido requerida a competente inscrição
(art.15.º/4). No que tange a procedimentos cautelares: a decisão não é proferida enquanto
aquela prova não for feita.

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Estamos perante encargos em sentido técnico: donde a obrigatoriedade indireta.


Procurando dotar de publicidade registal toda uma série de situações jurídicas comerciais,
o legislador seguiu a via de as priva de parte da sua eficácia, enquanto o registo não se
encontrar efetuado.
Resta acrescentar que, na sujeição ao registo comercial, resulta a especificidade
máxima, perante os civis, de boa parte dos atos comerciais.

C. Princípio da competência territorial, princípio da legalidade e do trato


sucessivo.
O princípio da competência territorial foi suprimido pelo DL n.º 76-A/2006
(SIMPLEX). No entanto, determinava que o registo se efetiva na conservatória com cuja
circunscrição territorial o facto a inscrever tenha uma conexão relevante. As regras da
competência constam dos art.24.º e seguintes. A sua observância é fundamental, pois de
outro modo os interessados não saberão onde se dirigir para alcançar as informações que
pretendam.
O desrespeito deste princípio recebe, da lei, uma sanção severa: a inexistência
(art.21.º CRC). No entanto, para MENEZES CORDEIRO a sanção devia ser a
inexistência.
Nos termos do art.47.º CRC, requerido o registo, o conservador não se limita a
inscrever passivamente. Ele é oficial público e vai emprestar, à inscrição, o selo da
verosimilhança estadual.
Paralelamente, o registo deve ser recusado nos casos seriados no art.48.º/1 do
CRC, sendo que estes são taxativos.
Também o princípio do trato sucessivo foi suprimido pelo SIMPLEX como
princípio autónomo, mas a sua ratio continua a existir dentro do princípio da legalidade.
No entanto, implica que o sistema de registo tinha que dar nota do trato sucessivo dos
atos, i.e., devia-o expressar em termos registais.

5.4.5. Efeitos do registo comercial. Tópicos.


O registo comercial visa dar publicidade a determinadas situações jurídicas
comerciais. Trata-se de uma publicidade organizada pelo Estado através de serviços
públicos competentes e mais: de uma publicidade tornada, no essencial, obrigatória por
lei.

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Logo, ela não tem um aspeto meramente informativo. O primeiro efeito resultante
o registo comercial é presuntivo nos termos do art.11.º. Este preceito comporta
consequências práticas de relevo: em qualquer circunstância, o interessado que apresente
certidão de determinado facto inscrito fica exonerado de demonstrar a sua ocorrência e
os seus contornos; inversamente: o contrainteressado terá de fazer prova em contrário,
impugnando o registo.
Quanto à presunção do art.11.º, esta pode ser ilidida nos termos do art.350.º/2 do
CC.
Pode ainda acontecer que quanto às mesmas quotas ou partes sociais, surjam
inscrições ou pedidos incompatíveis, sendo que prevalece o primeiro nos termos do
art.12.º CRC.

A. Efeito constitutivo
No Direito Comercial funciona, de princípio, a regra da imediata eficácia dos
diversos atos jurídicos. Os contratos devem, só por si, ser pontualmente cumpridos
(art.406.º/1 CC), enquanto os próprios efeitos reais se desencadeiam por mero efeito do
contrato (art.408.º/1 CC).
No entanto, o registo assume um efeito constitutivo no domínio das sociedades
comerciais. Estas só adquirem personalidade mediante registo (art.5.º CSC), também os
efeitos da fusão ou da cisão de sociedade só ocorrem aquando da sua inscrição (art.112.º
e 120.º do CSC), outro tanto sucedendo com a extinção (art.162.º/2 CSC).
Perante os princípios gerais do Direito português não parece possível alargar por
analogia as situações de registo constitutivo. No entanto, o art.13.º/2 deixa margem para
isso.

B. Publicidade negativa
Os atos sujeitos a registo comercial só produzem efeitos plenos depois de
registados. Podemos distinguir:
- O ato sujeito a registo e não registado não produz todos os seus efeitos:
é a publicidade negativa, uma vez que da não-publicitação resulta uma diminuição dos
efeitos;

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- O ato indevidamente registado ou incorretamente registado por produzir


efeito tal como emerge da aparência registal: é a publicidade positiva, porquanto da mera
publicitação resultam efeitos de outro modo inexistentes.
Aqui cabe analisar:
- Se os atos sujeitos a registo são atos de produção sucessiva complexa, de
tal modo que estariam incompletos antes do registo: apenas com eles atingiriam a
maturidade, produzindo efeitos plenos (teoria da compleitude);
- Se os tais atos estão perfeitos: simplesmente cedem perante o silêncio do
registo, este, dotado de fé pública e pela omissão da inscrição diz-nos que os atos não
existem (teoria da publicidade negativa).
Para a teoria da compleitude, o ato pura e simplesmente não está completo, logo
é incapaz de produzir efeitos perante terceiros, seja qual for a situação. Já para a teoria da
publicidade, o ato é por si, oponível erga omnes, mas dada a proteção da aparência, os
terceiros que acreditem no silêncio do registo são protegidos.

C. Publicidade positiva
O registo comercial assume um efeito indutor de eficácia, com publicidade
positiva, sempre que um terceiro se possa prevalecer de um facto indevido ou
incorretamente registado.
Dada a transposição da matéria do registo predial para o comercial, a lei
portuguesa veio a tratar esta matéria a partir da nulidade do registo (art.22.º CRC). Os
registos nulos só podem ser retificados nos casos previstos na lei e isso se não estiver
registada a ação de declaração de nulidade. Além disso, a nulidade do registo somente é
invocável, despois de declarada por decisão judicial transitada.
Perante outros vícios que não originem a nulidade, o registo é considerado
simplesmente inexato (art.23.º), o que dará lugar à retificação (art.81.º CRC).
Nos termos do art.22.º/4 CRC, temos:
- Um registo nulo, i.e., um registo que, por se ter envolvido nalgum dos
vícios do art.22.º CRC, não corresponde à realidade substantiva;
- Um terceiro que, com base nele, adquire direitos;
- A título oneroso;
- De boa-fé;

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-E que registe, ele próprio, os correspondentes factos antes de ter sido


registada a ação de nulidade.
Desta feita, é por o registo dizer de mais que vai ser induzida uma eficácia
puramente assente na publicidade. Daí a designação publicidade positiva.

D. A invocação da eficácia da aparência


A eficácia da aparência, seja na forma de publicidade negativa (art.13.º/1 CRC),
seja na da positiva (22.º/4 CRC) é uma vantagem concedida aos terceiros e que estes
poderão aproveitar consoante lhes convenha.
O ato sujeito a registo e não inscrito só produz efeitos entre as partes; porém, o
terceiro poderá prevalecer-se dele.
No caso de publicidade positiva, se o terceiro quiser prevalecer-se dele, terá de
munir-se da sentença prevista no art.22.º/3. Se porém a nulidade não tiver a ser inovada,
o terceiro poderá assentar a sua atuação na realidade substantiva, sendo que os seus
direitos nunca seriam prejudicados.

CAPÍTULO VI - A EMPRESA

1. Aspetos Gerais
A expressão empresa apresenta uma utilização avassaladora, em diversos sectores
normativos. A moderna legislação comercial, económica, fiscal, do trabalho e processual
recorre a ela, de modo continuo.
Tentando ordenar este uso caudaloso, pode-se adiantar que, quer perante
numerosas leis, quer em faze da linguagem corrente, a expressão empresa traduz,
conforme o contexto:
- Um sujeito que atue e que, nessa qualidade, é suscetível de direitos e de
obrigações; pense-se, por exemplo, nos direitos ou deveres das empresas, na
politica das empresas ou nas preferências das empresas;
- Um complexo de bens e direitos capazes de suportar a atuação de
interessados; assim a compra de uma empresa;
- Uma atividade: levar a cabo uma empresa.

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A questão tem vindo a complicar-se com o recente surto de referências legais à


figura do empresário: aparentemente, o titular de uma empresa.
Numa primeira leitura, a empresa parecia querer abarcar a própria ideia de
comerciante, incluindo o singular (a empresa individual) e, em simultâneo, a de
estabelecimento ou unidade produtiva. É manifestamente demais: o fenómeno deve ser
reduzido a dimensões mais apropriadas.
Ao longo de todo o século XX, sucederam-se as tentativas de reconstrução do
Direito Comercial em torno da ideia de empresa, em detrimento dos envelhecidos ato de
comércio ou comerciante. Essas tentativas não tiveram êxito. Todavia, deixaram marcas
importantes na dogmática comercial e enriqueceram a Ciência jurídico-mercantil com
novos instrumentos de análise e valoração.

2. A empresa na experiência portuguesa


A empresa surge no Direito moderno português como forma de delimitar o
âmbito comercial. O Código de Ferreira Borges dispunha que o empresário era o detentor
de fábricas, sendo equiparado a comerciante. Daí, seria possível extrapolar a própria
fábrica, como empresa.
No Código Veiga Beirão, o mesmo objetivo de melhor definir o universo dos atos
do comércio ou da atividade comercial, manteve-se. Segundo o seu art.230.º: “haver-se-
ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas, que se propuserem (…).”
Perante este articulado, parte da doutrina entendeu que a empresa era, aí, a pessoa,
singular ou coletiva, que pretendesse praticar os atos em jogo. Não era esse o
entendimento correto: de todo o modo, ele marca um início subjetivista.

2.1. A Objetivação da Empresa


Acompanhando uma imparável evolução semântica, surgiram, logo no início do
século XX, orientações de tipo objetivista que, na empresa viam um organismo produtor
coletivo que se propõe a realizar uma série de atos destinados a uma especulação
económica.
Um reforço particular, para a ideia de empresa, adveio do Direito da economia,
tomado latamente enquanto normas e princípios ordenados em função de pontos de vista
jurídico-económicos. Diversos diplomas com incidência económica dimanam normas
diretamente dirigidas a empresas. Coroando esta evolução o CPEF, hoje revogado, veio
aplicar-se a empresas. O art.2.º desse código adiantava, como definição:

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“Considera-se empresa, para o efeito do disposto no presente diploma,


toda a organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer
atividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços.”
Apesar de tudo isto, não havia uma dogmática de empresa, minimamente
desenvolvida, capaz de permitir uma codificação complexa que a tivesse por cerne. Não
admira, pois, que na prática do CPEF, o papel da empresa tenha sido pouco mais do que
vocabular.
Este estado de coisas foi reconhecido pelo CIRE de 2004, que veio revogar o
CPEF. É certo que o art.5.º do novo Código não resistiu: definiu de novo a empresa, desta
feita nos termos seguintes:
“Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de
capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica.”
Ao longo do CIRE não surgem, todavia, consequências práticas: nem da noção
prodigalizada, nem de qualquer outra ideia de empresa. O Código desenvolve-se ao
abrigo de noções dogmatizadas.
Poderemos concluir que, no nosso Direito como noutras experiencias europeias,
com relevo para a alemã, a empresa é uma locução disponível para o legislador, sem se
embaraçar com uma técnica jurídica precisa, indicar destinatários para as suas normas,
designadamente as de natureza económica. E em paralelo documenta-se uma utilização
com o sentido de estabelecimento.

2.3. Os Interesses da Empresa


Em sentido subjetivo, o interesse traduz uma relação de apetência entre o sujeito
e as realidades que ele considere aptas para satisfazer as suas necessidades ou os seus
desejos.
Em sentido objetivo, interesse traduz a relação entre o sujeito com necessidades
e os bens aptos a satisfazê-las.
Finalmente, podemos apontar um sentido técnico-jurídico: interesse será a
realidade protegida por normas jurídicas de tal modo que, quando atingidas, se origine
um dano.
A noção de interesse só terá algum relevo quando se defira, ao próprio sujeito, a
função de definir quais os interesses e como os prosseguir. De outra forma, a lei mandaria,
ad nutum, adotar certa atuação: seria uma mera norma de conduta, sem necessidade de a
completar através da intermediação dos enigmáticos interesses.

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O professor MENEZES CORDEIRO entende que a noção de interesse não é


dogmaticamente aproveitável, no estado atual da Ciência do Direito. Falta a
instrumentalização necessária para, dele, fazer um conceito atuante e útil. Assim sendo,
por maioria de razão: não é viável falar num interesse da empresa: à indefinição de um
iriamos somar a do outro, em moldes que representariam um completo retrocesso.
A doutrina portuguesa tem reconduzido o interesse da sociedade ao interesse
comum dos sócios.
O próprio professor BRITO CORREIA vem dizer que o chamado interesse da
sociedade se reconduz a interesses de pessoas físicas relacionadas com a sociedade. E
acrescenta, definir interesse social consiste, pois, em determinar a quem pertencem, em
última análise, os interesse para cuja realização a sociedade funciona e qual o seu
conteúdo típico.
LUIS MENEZES LEITÃO, por seu turno, explica o que o legislador pretende ao
indicar que o administrador deve atuar no interesse da sociedade: refere que é o interesse
contratual do conjunto dos sócios na prossecução do objeto social, sendo os interesses
pessoais dos sócios e dos trabalhadores também referidos, mas unicamente pela razão de
o administrador se encontrar em especial posição para lhes causar reflexamente danos, no
caso de má administração, permitindo o preceito a sua responsabilidade em face deles
(art.483.º/1CC).
Como destaca MENEZES CORDEIRO, a empresa não tem uma dogmática
minimamente capaz de lhe conferir um papel nuclear ou, sequer, substancial no Direito
do comércio. Designadamente, não é configurável atribuir-lhe interesses próprios,
capazes de ditar, infletir ou esclarecer regimes.

3. A empresa como noção quadro


A comercialística de diversos quadrantes aceita hoje que a empresa não é nem
uma pessoa coletiva, nem um mero conjunto de elementos materiais.
Podemos entendê-la como um conjunto concatenado de meios materiais e
humanos, dotados de uma especial organização e de uma direção, de modo a desenvolver
uma atividade segundo regras de racionalidade económica. Os seus elementos, muito
variáveis, poderiam assim agrupar-se:
- Num elemento humano: ficam abrangidos quantos colaborarem na
empresa, desde trabalhadores aos donos, passando por quadros, auxiliares e

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

dirigentes; em concreto, isso poderá representar desde uma única pessoa a


universos com milhares de intervenientes;
- Num elemento material: coisas corpóreas, móveis ou imóveis, seja qual
for a fórmula do seu aproveitamento e de bens incorpóreos: licenças, insígnias,
clientela, aviamento e inter-relações com terceiros, normalmente outras empresas;
- Numa organização: todos os elementos, humanos ou materiais, não estão
meramente reunidos ou justapostos; eles apresentam-se numa articulação
consequente, que permite depois desenvolver uma atividade produtiva;
- Numa direção: trata-se do fator aglutinador dos meios envolvidos da
própria organização; a empresa é algo que funciona, o que só é pensável mediante
uma estrutura que determine o contributo de cada uma das parcelas envolvidas.
Cada um destes elementos pode variar até ao infinito; desde uma simplicidade
infantil até estruturas da maior complexidade até hoje alcançadas.
A empresa não é prévia ao Direito. Apenas um ordenamento jurídico mínimo
permite a existência e o funcionamento de uma empresa. Sem regras jurídicas não é
possível, sequer, o aparecimento de vários dos fatores essenciais à empresa; muito menos
organizá-los; e sobretudo: dirigi-los.
A empresa é uma organização produtiva que exprime no seu seio a síntese entre
os factos e o Direito.

3.1. Sentidos subjetivo e objetivo de empresa.


A imensa versatilidade da empresa torna-a numa locução de uso fácil e apetecido.
O Direito português, através de inúmeras leis, reporta-se-lhes em duas aceções:
- Subjetiva, quando refere os direitos, os deveres ou os objetivos das
empresas;
- Objetiva, quando dirige a certas pessoas regras de atuação para com as
empresas;
Numa primeira aceção, a subjetiva, empresa visa designar, em geral, todos os
sujeitos produtivamente relevantes: pessoas singulares, sociedades comerciais,
sociedades civis, associações, fundações, cooperativas, entidades públicas e organizações
de interesses não personificadas. É extremamente útil: evita ao legislador o ter de
embrenhar-se em distinções e qualificações de redução impossível e transfere, para o
momento da aplicação e à luz da lógica global do sistema, a função de determinar o
preciso alcance das normas envolvidas.

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Na segunda aceção, a objetiva, a empresa tem a vantagem de permitir cominar


deveres aos responsáveis por todas as entidades acima referidas, o que seria impensável
sem esse apoio linguístico. Ficam envolvidas pessoas singulares, os administradores,
gerentes e diretores das sociedades comerciais, bem como os seus auxiliares e quadros
superiores e ainda, em certos casos, os próprios sócios, quotistas ou acionistas,
administradores de associações e os próprios associados, administradores de fundações,
administradores de cooperativas e os próprios cooperantes, dirigentes de organismos
públicos e contitulares de interesses não personalizados.
Volta-se a frisar: sem o arrimo da empresa, seria totalmente inviável explicitar
num diploma e a cada passo, todo este mundo diversificado e variável.
Além disso, a empresa permite ao legislador determinar medidas em relação às
organizações produtivas, sem ter de explicitar tratar-se de conjuntos articulados e
dirigidos de meios humanos e materiais. As hipóteses são tantas que apenas um conceito-
quadro como o de empresa permite fazer trabalho útil.
A empresa, particularmente nas economias abertas do Ocidente, tem toda uma
carga valorativa e ideológica. Ela traduz, pelo menos, uma preocupação de uso racional
dos meios disponíveis, de modo a minimizar custos e a ampliar resultados. E ela implica
uma dimensão social e humana já que falar em empresas é referir o elemento pessoal que
ela sempre inclui.
Em compensação e precisamente pela sua imensa variabilidade, a empresa não
serve como elemento sistematizador do Direito Comercial ou, sequer, como suporte de
um denominado Direito das Empresas. Ela irá defrontar, sem grande glória, toda uma
sedimentada tradição jurídico-mercantil e iria oferecer quadros rígidos deitando a perder
a grande vantagem significativa que apresenta.

3.2. Concretização
O professor MENEZES CORDEIRO fixa a empresa como um conceito-quadro:
disponível para o legislador e para a prática jurídica, sempre que caiba referir realidades
produtivas sem pormenores técnicos. Pode-se ir mais longe e abordar, na base de um
ponto da situação, as grandes linhas da sua concretização. Temos:
- A empresa-sujeito, que equivale ao conjunto de destinatários de normas
comerciais: pessoas singulares, pessoas coletivas e pessoas rudimentares;
- A empresa-objeto, que se reporta ao estabelecimento dotado de direção
humana;

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- O Direito das empresas, que usado em sentido amplo, abrange o Direito


das sociedades e, ainda, todos os sectores normativos que se aplicam às
sociedades: Direito mobiliários, da concorrência, dos grupos, do trabalho, fiscal,
da economia e da propriedade industrial. Ingovernável, tal Direito constitui,
todavia, um ponto de encontro e de síntese entre disciplinas condenadas a
entender-se. Em sentido estrito, o Direito das empresas não tem consistência,
mercê das dificuldades acima apontadas.
- A empresa como sublinguagem comunicativa: Ao falar em empresa, a
lei, os estudiosos e os operadores do Direito podem ter em vista transmitir como
que uma mensagem subliminar destinada a enfatizar: a capacidade produtiva, a
ideologia do mercado ou a prevalência das realidades económicas.
A capacidade produtiva articula-se com a ideia de organização: um filão
integrador da empresa, hoje clássico, mas sempre útil.
- A empresa como conceito geral-concreto.
Entre a noção de empresa-sujeito e empresa objeto apenas a interpretação
permitirá, caso a caso, determinar o preciso sentido em jogo, bem como o seu alcance.
A prevalência das realidades económicas recorda que as sociedades são, no fundo,
uma forma jurídica sob a qual se abriga – ou pode abrigar. Faz-se como que um apelo ao
substrato e ao que ele representa.

4. O art.230.º do CCom.
Se o art.230.º tomar por comerciantes as pessoas que nele se perfilem, todos os
atos por eles praticados, que não caiam na exclusão da 2.ª parte do art.2.º, seriam
comerciais.
A doutrina subjetiva que vê na “empresa” do art.230.º, um empresário é, em
especial, sugestionada pela referência legal a “…singulares ou coletivas”. Porém, em
1888, a expressão pessoa coletiva não era conhecida na doutrina portuguesa, apenas
surgiu em 1907. O art.230.º apenas se reportava a atuações levadas a cabo por uma única
pessoa ou por várias pessoas.
No entanto, para a interpretação objetivista, a palavra empresa tinha o sentido de
“atividade”, “tarefa” ou “empreendimento”, não o de organização de meios, tipo
“sujeito”. Portanto, em 1888, o art.230.º visava classificar como comerciais determinadas
atividades ou conjuntos de atos, a desenvolver por uma pessoa só ou por várias. Saber se
o autor dessa atividade é ou não comerciante será assunto do art.13.º.
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Logo, a maioria da doutrina segue a posição objetivista, até porque se o art.230.º


fosse um elenco de comerciantes, o art.13.º perdia o seu sentido prático e este, na verdade,
tem uma relevância essencial, nomeadamente no que diz respeito à capacidade e à
profissionalidade.
Atualmente estes termos (empresa, personalidade coletiva, etc) já têm outros
significados. Haverá elementos sistemáticos ou teleológicos que, somados às condições
em que a lei venha a ser explicada, recomendem uma interpretação que descubra, no
art.230.º, uma listagem de comerciantes?
Para o Professor MENEZES CORDEIRO não, pois o art.230.º, como um elenco
de comerciantes iria contundir com o art.13.º. O art.230.º não se reportaria a sociedades
nem a comerciantes profissionais, apenas ao remanescente, e que fosse empresa.
A empresa não é sujeito de Direito, nem realiza atividades; a evolução jurídica
dos nossos dias mantém-na num lugar à parte.

5. A empresa não comercial.


À partida as empresas não comerciais são aquelas cujos atos/atividades não são
considerados objetivamente comerciais. Veja-se por exemplo as empresas agrícolas, as
artesanais

6. O local do exercício do comércio.


6.1. Introdução. As várias situações.
6.2. O “mercado”.
6.3. Traços gerais do regime dos arrendamentos para comércio.
Está previsto nos art.1108.º e seguintes do CC.
Em matéria de arrendamentos não habitacionais, as partes poderão livremente
determinar o conteúdo do contrato, designadamente em matéria de prazo de vigência,
regime de denúncia e de oposição à renovação.
Na falta de estipulação das partes, são aplicáveis, subsidiariamente, as disposições
do NRAU previstas relativamente aos arrendamentos habitacionais, considerando-se o
contrato com prazo certo pelo período de 10 anos, não podendo o arrendatário denunciá-
lo com antecedência inferior a 1 ano.

7. O estabelecimento.

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7.1. Introdução.
A empresa surge como um conceito-quadro de grande extensão e particular
versatilidade. Torna-se, por isso, pouco adequada para transmitir regimes jurídicos
concretos.
Compreende-se, assim, que o Direito português tenha elaborado, a seu lado, um
outro conceito particularmente apto para traduzir o objeto unitário de determinados
negócios: o de estabelecimento.
No Código Comercial, o estabelecimento surge em duas aceções:
- Como armazém ou loja: art.95.º/2 e 263.º/§ parágrafo único;
- Como conjunto de coisas materiais ou corpóreas: art.415º.

7.2. Identificação e elementos componentes do estabelecimento.


O estabelecimento comercial abrange elementos bastante variados. Em comum
têm apenas o facto de se encontrarem interligados para a prática do comércio.
Seguindo uma técnica contabilística pode distinguir-se, no estabelecimento, o
ativo e o passivo:
- O ativo compreende o conjunto de direitos e outras posições
equiparáveis, afetas ao exercício do comércio;
- O passivo corresponde às adstrições ou obrigações contraídas pelo
comerciante, por esse mesmo exercício.
À partida, o passivo inclui-se no estabelecimento embora seja frequente,
em negócios de transmissão, limitá-los ao ativo.
No respeitante ao ativo, o estabelecimento abrange:
- Coisas Corpóreas, em que ficam abarcados os direitos relativos a
imóveis, particularmente: os direitos reais de gozo, como a propriedade ou o
usufruto e os direitos pessoais de gozo, como o direito ao arrendamento.
Seguem-se os direitos relativos aos móveis: mercadorias, matérias-primas,
maquinaria, mobília e instrumentos de trabalho ou auxiliares, escrituração,
computadores, livros, documentos, ficheiros e títulos de crédito.
Ficam, pois, abrangidas quaisquer coisas que, estando no comércio, sejam,
pelo comerciante, afetas a esse exercício.
- Coisas Incorpóreas, em que distinguimos: as obras literárias ou artísticas
que se incluam no estabelecimento, os inventos (patentes) e as marcas.

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Podemos ainda acrescentar o direito à firma ou nome do estabelecimento


e outros aspetos que, embora à partida não-patrimoniais, consistam todavia uma
comercialidade limitada.
Desde meados do século XX, a nossa doutrina põe em relevo esta
dimensão do estabelecimento. E bem: aquando da negociação de um
estabelecimento, é evidente que os referidos fatores incorpóreos poderão ser
determinantes para encontrar um valor. Há estabelecimentos que valem,
sobretudo, pelo nome que tenham ou pelas marcas ou patentes que acarretem.
Também quanto a coisas incorpóreas, há que incluir os direitos a
prestações provenientes de posições contratuais. Assim sucede desde logo com os
contratos de trabalho; seguem-se-lhe outros de prestação, de serviço, contratos
com fornecedores, contratos de distribuição, de publicidade, de concessão
comercial, de agência, de franquia e mesmo contratos relativos a bens vitais: água,
electricidade, telefone, ligação à internet e gás.
- Aviamento e Clientela: o primeiro é particularmente querido aos italianos
e o segundo aos franceses.
O aviamento corresponde grosso modo à mais-valia que o estabelecimento
representa em relação à soma dos elementos que o componham, isoladamente
tomados: ele traduziria, deste modo, a aptidão funcional e produtiva do
estabelecimento. Este é, no fundo, um elemento organizacional, é o elo que liga
os diversos elementos organizacionais.
A clientela, por seu turno, equivale ao conjunto, real ou potencial, de
pessoas dispostas a contratar com o estabelecimento considerado, nele adquirindo
bens ou serviços.
O aviamento e a clientela não constituem, como tais, objeto de direitos
subjetivos. Eles correspondem, não obstante, a posições ativas e são objeto de
regras de tutela.
Pense-se, por exemplo, na indemnização de clientela prevista na hipótese
de cessação do contrato de agência e aplicável a outros negócios de distribuição.
Ambos estes fatores influenciam decisivamente o valor do estabelecimento e,
sendo este transmitido, vão com ele.

7.3. O Critério da Sua Inclusão


O critério do estabelecimento assenta em duas ordens de fatores:

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- Um fator funcional;
- Um fator jurídico.
O fator funcional apela ao realismo exigido pela própria vida do comércio. Sob
pena de nos perdermos em inúteis abstrações, devemos, pela observação, verificar como
se organiza efetivamente um estabelecimento e como ele funciona. Procurar reduzi-lo a
coisas corpóreas, por muito que isso depois facilite o seu regime, é escamotear a
realidade: o estabelecimento existe e é autonomizado pelo comércio e pelo Direito
precisamente por organizar as coisas corpóreas, em conjunto com as incorpóreas, num
todo coerente para conseguir angariar clientela e, daí, lucro.
A dimensão jurídica explica-nos que, em homenagem a essa realidade que ele
traduz, o Direito concede, ao conjunto dos elementos referidos, um regime especial,
inaplicável in solo.
Do regime específico do estabelecimento, destacamos:
- O direito ao arrendamento, quando se inclua no estabelecimento, pode
ser transmitido, em conjunto com este, independentemente de autorização do
senhorio – art.1112.º CC;
- A transmissão de firma só é possível em conjunto com o estabelecimento
a que ela se achar ligada – art.44.º RNPC;
- O trespasse do estabelecimento fazia presumir a transmissão do pedido
de registo ou de propriedade da marca – art.211.º/1 CPI de 1995; no art.297.º do
CPI vigente desaparece a presunção mas mantém-se o regime. O artigo dispõe o
seguinte:
“Na transmissão do registo do nome ou da insígnia devem
observar-se as formalidades legais exigidas para a transmissão do
estabelecimento de que são acessórios.”
- A transmissão do estabelecimento implica a transferência da posição
jurídica de empregador para o novo adquirente, relativamente aos contratos de
trabalho dos trabalhadores a ele afetos – art.285.º/1 CT;
- No caso de expropriação por utilidade pública que envolva um
estabelecimento.
O sistema parece claro. O estabelecimento, para além de direitos reais relativos a
coisas corpóreas, envolve posições contratuais, como o direito ao arrendamento, ou o
contrato de trabalho e posições incorpóreas, como o direito à firma e a marca ou o pedido
do seu registo. Além disso, o aviamento e a clientela são valorados para efeitos de

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expropriação por utilidade pública, prova de que existem e são tidos em conta pelo
Direito.
É certo que alguns destes elementos só se transmitem plenamente com o
consentimento do terceiro cedido: trata-se do regime que emerge dos art.424.º/1 e
595.ºCC. Essa necessidade não prejudica a especificidade. Tão-pouco ela põe em crise os
aspetos funcionais ou o tipo social que representa a transmissão, em bloco, de todos os
elementos integrantes do estabelecimento.
Finalmente: o aviamento e a clientela valem, insofismavelmente, para efeitos
indemnizatórios. Logo existem e são valorados pelo Direito.

7.4. Natureza jurídica do estabelecimento.


A questão da natureza do estabelecimento é extremamente complexa. Todavia, se
colocarmos o problema perante o Direito positivo português, a questão resulta
grandemente simplificada.
À partida, devemos entender que o estabelecimento não se confunde com a
empresa. Esta é um conceito-quadro que ora se reporta a um sujeito de direitos, ora
abrange uma organização produtiva com a sua direção. Não há qualquer dogmática
unitária para a empresa: é justamente esse o grande trunfo explicativo do seu êxito.
Já o estabelecimento surge, no Direito português, como um conceito jurídico mais
preciso, dotado de regras próprias, dimanadas pelo legislador e cuidadosamente
aperfeiçoadas pela jurisprudência e pela doutrina.
O estabelecimento é, no Direito português, objeto de negócios e de direitos. Tanto
basta para afastar as teorias que intentem a sua personificação.
Mais delicada surge a recondução do estabelecimento à categoria de património
autónomo ou de afetação: a unidade surgiria apenas perante determinados negócios ou
ações, sendo impensável fora deles. Trata-se de uma construção que deve ser reconduzida
à particular conceção que, de personalidade coletiva, nos deixou BRINZ. Segundo esta
orientação, a própria ideia de personalidade coletiva deveria ser substituída pela de
património de afetação, razão pela qual, quando aplicada ao estabelecimento, não é
diferenciadora.
Os primeiros dogmáticos da empresa descobriram, na titularidade desta, um
direito global autónomo. Aplicada ao estabelecimento, esta doutrina redundaria em
apresenta-lo como o objeito de um específico direito subjetivo: o direito ao
estabelecimento. Vem esta orientação ser contrariada pelo Direito positivo: dado o

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princípio da especialidade, as diversas situações jurídicas no estabelecimento não perdem


a sua autonomia. Temos, seguramente, uma multiplicidade de direitos, ainda que, sobre
o conjunto, surja algo que cumpre explicar.
As dificuldades encontradas por estas tentativas de explicação mais elaboradas
levaram a doutrina, particularmente a italiana, a reconduzir o estabelecimento ao universo
das coisas: mais precisamente às coisas compostas ou universalidades, discutindo-se,
dentro destas, se se trata de universalidade de facto ou universalidade de direito.
Apelando às regras jurídico-positivas já apuradas, parece fácil avançar: o Direito
Português não admite a figura da universalidade de direito; por outro lado, o
estabelecimento não pode dar corpo a uma universalidade de facto, por duas razoes,
qualquer delas definitiva:
- Abrange ou pode abranger o passivo;
- Abrange ou pode abranger coisas incorpóreas.
O Direito dispensa um tratamento unitário às coisas compostas ou universalidades
de facto, sem prejuízo de se conservarem direitos autónomos a cada uma das coisas
simples que a componham. Este regime, embora corresponda a um desvio ao denominado
princípio da especialidade, não deve ser considerado como de absoluta exceção. Outras
leis poderão, em certos casos, determinar tratamentos unitários para elementos
respeitados os limites injuntivos, poderá fazer outro tanto: estamos em pleno Direito
Privado.
O estabelecimento comercial é uma autêntica esfera jurídica e não, apenas, um
património: inclui ou pode incluir o passivo e toda uma série de posições contratuais
reciprocas. Trata-se, todavia, de uma esfera jurídica afeta ao comércio ou a determinado
exercício comercial. Tem, pois, a natureza de esfera jurídica de afetação, sendo delimitada
pelo seu titular em função do escopo jurídico-comercial em jogo.
Temos assim de admitir, na opinião do professor MENEZES CORDEIRO, ao lado
dos patrimónios especiais há muito conquistados pela doutrina, a ideia de esferas jurídicas
especiais, de modo a incluir o passivo.
Já para o REGENTE, na sequência de CASSIANO DOS SANTOS, o
estabelecimento comercial é uma coisa móvel e uma universalidade de direito sui generis.

8. A negociação da empresa e do estabelecimento.


8.1. Introdução.

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A única forma de fazer circular as empresas, não é o trespasse, pode haver


negociação de partes essenciais da sociedade
O trespasse comercial pode ser objeto de garantias

8.2. O trespasse.
O Professor COUTINHO DE ABREU define o trespasse como a transmissão da
propriedade de um estabelecimento por negócio entre vivos.
O ponto mais significativo do regime do estabelecimento é a possibilidade da sua
negociação unitária.
Em princípio, perante um conjunto de situações jurídicas distintas, funciona a
regra da especialidade: cada uma delas, para ser transmitida vai exigir um negócio
jurídico autónomo.
Estando em causa um acervo de bens e direitos, a lei e a prática consagradas
admitem que a transferência se faça unitariamente. Trata-se de um aspeto que abrange
não apenas as coisas corpóreas articuladas, suscetíveis de negociação conjunta através
das normas próprias das universalidades de facto – art.206.º CC – mas, também, todas as
realidades envolvidas, incluindo o passivo.
Repare-se: não deixa de haver transmissão unitária pelo facto de, para a perfeita
transferência de alguns dos elementos envolvidos, se exigir o consentimento de terceiros.
É o que vimos suceder com o passivo, com os contratos de prestações recíprocas e é o
que sucede com a própria firma.
Assim, quanto à questão da transmissão dos passivos, há 3 grandes teorias:
- COUTINHO DE ABREU - posição negativa – se o passivo não tiver
expressamente previsto quanto à sua transmissão, este não se transmite. Isto devido ao
art.424.º e 595.º do CC. Mesmo para a transmissão do passivo, o consentimento do credor
e o acordo entre as partes é essencial
- OLIVEIRA ASCENSÃO – faz uma distinção entre as posições jurídicas
exploracionais e não exploracionais. Nas exploracionais faz-se apelo à distinção entre
elementos essenciais e não essenciais. As dividas dos exploracionais são transmitidas com
o trespasse do estabelecimento
- MENEZES CORDEIRO – coloca questões específicas que parecem
estar fora do alcance do âmbito máximo, fazendo referência às relações internas e
externas. Logo, sendo uma teoria mais abrange, o passivo é um elemento do
estabelecimento e, como tal, acompanha-o quando é trespassado.

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No entanto, distingue:
- As relações internas – relações entre trespassante e trespassário –
Aqui o trespassário fica vinculado perante os credores do trespassante ao pagamento de
todas as dívidas, logo as dívidas estariam incluídas no trespasse. Se por alguma razão, o
credor for ter com o trespassante, e este pagar, há direito de regresso do trespassante sobre
o trespassário.
- As relações externas, temos 3 níveis:
- 1.º - a conclusão óbvia é que só se o credor consentir é que
há lugar à transmissão da dívida do anterior para o novo devedor (cfr. art.495.º)
- 2.º - solidariedade entre devedores – o credor pode,
concretamente, consentir na assunção de dívida, mas nos termos do art.595.º/2, o
consentimento do credor não exonera o anterior devedor a não ser que a exoneração seja
expressa.
- 3.º - tenho que ter elementos suficientes no caso que nos
levam a afirmar que o credor, ao dirigir-se ao trespassário, está a exonerar o trespassante.
No entanto, o art.595.º/2 refere que tal comportamento deve ser expresso
A posição do COUTINHO DE ABREU prende-se com a questão do
estabelecimento, na sua definição, englobar o passivo. Mais, o regime global do
estabelecimento comercial e a sua lógica é que tudo se transmite com a cessão. Com a
boa-fé verificamos a realidade dos deveres de diligência específicos.
O regime da transmissão das dívidas é o que decorre do EIRL (art.11.º/1 do EIRL).
O trespasse do estabelecimento que tudo englobe continua a fazer-se por um único
negócio, com todas as facilidades que isso envolve.
É certo que, perante a relativa indefinição legal e dada a exigência das tais
autorizações, o trespasse clássico tem vindo a perder terreno, a favor de esquemas
societários. O comerciante que pretenda fundar um estabelecimento constituirá uma
sociedade comercial mais ou menos (des) capitalizada, que irá encabeçar o acervo de bens
a inserir no estabelecimento. Querendo alienar a sua posição, transferirá as suas posições
sociais – quotas ou ações – para o adquirente. Formalmente, não há qualquer modificação
a nível do sujeito.
Este fenómeno apenas documenta uma certa perda de importância relativa que o
velho Direito Comercial vem a acusar, a favor dos ramos comerciais mais novos, como o
Direito das sociedades. Não obstante, e designadamente ao nível do pequeno comércio, a

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transferência do estabelecimento, enquanto tal, continua a apresentar um interesse


marcado: basta ver a multiplicidade de casos judicialmente decididos.

8.2.1. Forma do trespasse


O trespasse do estabelecimento, mormente para ter eficácia no ponto nevrálgico
do arrendamento, devia ser celebrado por escritura pública – art.115.º/3 do revogado
RAU, na versão inicial.
Todavia, o Decreto-lei nº 64-A/2000, de 22 de abril, alterou esta regra tradicional:
passou a bastar a forma escrita, explicitando (inutilmente) o novo n.º 3 daquele preceito:
sob pena de nulidade.
O atual art.1112.º/3 do Código Civil já não contém esse insólito (a referência à
nulidade). Deve tratar-se de um estabelecimento efetivo, isto é: que compreenda todos os
elementos necessários para funcionar e que, além disso, opere, em termos comerciais.
O art.1112.º do CC exprime essa ideia pela negativa; não haverá trespasse:
- Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em
conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que
integram o estabelecimento;
- Quando, transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo
de comércio ou indústria ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro
destino.
O trespasse exige, pois, uma transmissão do estabelecimento no seu todo ou como
universalidade: é insuficiente aquela que incida sobre apenas alguns dos seus elementos.
Por certo que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, poderão, do estabelecimento,
retirar os elementos que entenderem. O trespasse não deixará de o ser até ao limite de o
conjunto transmitido ficar de tal modo descaracterizado que já não possa considerar-se
um estabelecimento em condições de funcionar.
Além da transmissão, o estabelecimento deve manter-se como tal. Daí o não poder
passar-se a exercer, no local, comércio diferente.
A lei específica, a propósito da transmissão do arrendamento, que o trespasse deve
abarcar instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos. Não oferecerá dúvidas
reportar que outros elementos abrangerá os fatores incorpóreos, com relevo para diversos
direitos de crédito, nome, patentes e marcas.

8.2.2. Efeitos do trespasse

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Perante um trespasse de âmbito máximo, que englobe, pois, o passivo, teremos de


distinguir os seus efeitos internos dos externos.
Quanto aos internos, o trespassário adquirente fica adstrito, perante o
trespassante, a pagar aos terceiros o que este lhes devia. Quanto aos externos: o alienante
só ficará liberto se os terceiros, nos termos aplicáveis à assunção de dívidas e à cessão da
posição contratual, o exonerarem ou derem acordo bastante.

8.2.3. Regime do trespasse


O trespasse é, apenas, uma transmissão definitiva do estabelecimento. Só por si,
não nos diz a que titulo. Quer isso dizer que o trespasse pode operar por via de qualquer
contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em
pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas.
O regime do trespasse dependerá do contrato que, concretamente, estiver na sua
base. Para o tema aqui em causa, relevará apenas o seu efeito transmissivo de um
estabelecimento.
Apesar de ser esse o núcleo, cumpre apontar outras decorrências típicas do
trespasse:
- O art.1112º/4 CC, retomando o art.116.º RAU, atribui ao senhorio um
direito de preferência, na hipótese de trespasse por venda ou dação em
cumprimento;
- O trespassante poderá ficar investido num dever de não-concorrência em
relação ao trespassário.
Tem aplicação, em tudo o que a lei comercial não prescreva diretamente, o regime
geral das preferências legais. Designadamente: salvo situações de abuso do direito, a
preferência não funciona quando o estabelecimento seja usado para a realização de capital
social.

8.2.4. A preferência do senhorio


O direito de preferência conferido ao senhorio não é um direito de resgate da coisa,
de modo a conseguir desmantelar o estabelecimento, só para reaver o objeto da sua
propriedade. Trata-se de uma preferência na venda ou dação em cumprimento do
estabelecimento.
A preferência do senhorio fora instituída pela Lei n.º 1/1662, de 4 de setembro de
1924 – art.9.º - vindo, mais tarde, a desaparecer.

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O RAU restabeleceu-a e isso com duas finalidades essenciais:


- Permitir ao senhorio uma vantagem potencial, aquando da transmissão
do estabelecimento instalado no objeto da sua propriedade;
- Facultar um certo controlo da sociedade civil sobre as simulações
operadas no tocante a trespasses.
A preferência em causa, após a reforma de 2006, encontrou guarida no novo
art.1112.º/4 CC, ainda que a título supletivo.
Há uma conexão íntima entre o direito de preferência e a notificação, o regime do
pacto de preferência (416.º) estabelece as informações a serem transmitidas ao senhorio
(identificação dos elementos do negócio).
Não é exata a asserção de que, no conflito entre a propriedade fundiária e a
propriedade comercial, o RAU tenha dado a primazia à primeira.
O direito de preferência conferido ao senhorio não é um direito de resgate da coisa,
de modo a conseguir desmantelar o estabelecimento, só para reaver o objeto da sua
propriedade. Trata-se de uma preferência na venda ou dação em cumprimento do
estabelecimento. O senhorio interessado não pode agir na hipótese de qualquer trespasse
mas, apenas, na de venda ou dação. Além disso, ele terá de adquirir todo o
estabelecimento, mantendo-o em funções, nas precisas condições em que o faria o
trespassário interessado.
Resulta ainda daí que a preferência do senhorio só seja possível quando, este
próprio, esteja em condições de, licitamente, adquirir o estabelecimento.
Tratando-se de uma farmácia, exige-se que o senhorio seja farmacêutico; estando
em jogo um estabelecimento para o exercício de profissão liberal, o senhorio deverá ter
as habilitações necessárias para prosseguir essa exploração. Além disso, não cabe
preferência no caso de integração, com o estabelecimento, de quota social: em princípio
não há aqui venda ou dação em pagamento, ficando todavia ressalvada a hipótese de
abuso do direito.

8.2.5. Comunicação ao Senhorio


Nos termos do art.1112.º/3, não só se exige a forma escrita para o trespasse como
também se exige a comunicação ao senhorio nos casos de estabelecimento em prédio
arrendado.
Nos termos do art.1038.º/g, o locatário tem de comunicar ao locador a cedência
do gozo da coisa em 15 dias, sob pena da cessão da posição do locatário ser ineficaz

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(art.424.º ex vi art.1059.º/2), podendo resolver o contrato salvo se tiver reconhecido o


beneficiário da cedência, direta ou indiretamente, enquanto tal (1083.º/2/e).
Apesar disto, o art.1109.º estabelece um prazo diferente para a comunicação ao
senhorio (1 mês). Para o REGENTE, este não se pode aplicar ao trespasse por força do
art.1093.º e 1112.º, uma vez que a transferência é temporária (há uma substituição
temporário do arrendatário, ao contrário do que acontece com o trespasse). O prazo do
1109.º está erigido por um fundamento diferente daquele que é o trespasse, mais que não
seja por uma questão de celeridade do negócio.
Nos 15 dias por pura aplicação do art.1038.º/g, a comunicação deve ser posterior,
logo o trespasse tornar-se-ia num negócio condicional, pois a sua validade estava
dependente da preferência do senhorio. Após a comunicação, o senhorio teria 8 dias para
preferir nos termos do art.416.º/2 (este prazo pode ser alterado por acordo entre as partes).
Na vida prática: no contexto da negociação do trespasse do estabelecimento
(nomeadamente no que diz respeito aos valores do estabelecimento), estabeleço o preço
e notifico o senhorio imediatamente e identifico um prazo posterior para sua preferência.
A partir do momento, em que o senhorio não exerça o direito de preferência realizo o
trespasse e a partir do momento da celebração tenho um dever de informar o senhorio da
alteração das posições do arrendatário.
No entanto, se os termos do trespasse forem alterados após a recusa do senhorio,
o seu direito de preferência.

A. Consequências do incumprimento do dever de comunicação


Há 3 posições sobre a interpretação do 1083.º/2.
1.º - PINTO MONTEIRO e ASSISTENTE – o art.1083.º/2 é uma cláusula geral
e, como tal, as diversas alíneas são exemplificativas devendo passar pelo crivo da
gravidade.
Por exemplo, se fizer a comunicação ao 16.º ou ao 17.º dia, segundo Mota Pinto,
há direito à resolução, mas tal solução seria exagerada.
2.º - PAULO MOTA PINTO – as várias situações das alíneas são situações índice,
logo demonstram indícios de gravidade, logo basta a sua verificação para que pudesse,
imediatamente, resolver o contrato sem ter que passar pela cláusula geral do
incumprimento. O elenco legal faz presumir a gravidade do incumprimento.
3.º - JANUÁRIO/ CLÁUDIO MADALENO (posição mista) – as situações das
alíneas vão aumentando de gravidade e uma vez verificada as situações há direito à

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resolução, mas há uma inversão do ónus da prova (ao senhorio cabe alegar uma das
realidades previstas, ao arrendatário cabe demonstrar que o incumprimento não é
suficientemente grave).
Para o REGENTE, é necessário que o incumprimento seja grave e as
consequências do mesmo o tornem inexigível à outra parte a manutenção do
arrendamento.
Assim, a cessão é ineficaz (art.424.º ex vi art.1059.º/2), podendo resolver o
contrato salvo se tiver reconhecido o beneficiário da cedência, direta ou indiretamente,
enquanto tal (1083.º/2/e).
Já para COUTINHO DE ABREU, a ultrapassagem do citado prazo de 15 dias não
é suficiente para justificar a resolução.

8.3. Os âmbitos de negociação e de entrega.


Num concreto negócio de trespasse, gozam as partes de liberdade para excluírem
da transmissão alguns elementos do estabelecimento. No entanto, esta exclusão não pode
abranger os bens necessários ou essenciais para identificar a empresa objeto do negócio.
Desrespeitando-se o âmbito mínimo (ou necessário ou essencial) de entrega
impossibilitado fica o trespasse, objeto do negócio translativo serão então singulares bens
de um estabelecimento não o próprio estabelecimento.
Assim, no âmbito mínimo temos os elementos necessários e suficientes para a
transmissão de um concreto estabelecimento. Este estabelece o limite até ao qual as partes
podem ir, até onde é que é possível considerarmos estarmos perante um trepasse em
sentido próprio. Ou seja, tudo aquilo que não descaracteriza o estabelecimento. O
REGENTE insere aqui o âmbito de entrega.
Já no âmbito natural de entrega temos os elementos que se transmitem
naturalmente com o estabelecimento trespassado, ou seja, os meios transmitidos
independentemente de estipulação das partes. Estamos perante um problema de
determinação do âmbito natural de entrega quando o estabelecimento é apenas
identificado pelo objeto e localização.
De qualquer forma, por força do Código de Propriedade Industrial incluem-se no
âmbito natural os logótipos e as marcas. Mais trespassado o estabelecimento fica o
trespassante obrigado a entregar o complexo de bens que o compõe, nomeadamente:
máquinas, utensílios, mobiliário, matérias-primas, mercadorias, inventos pateteados,
modelos de utilidade, desenhos e modelos.

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Quanto aos prédios, a jurisprudência entendia que, na falta de estipulação


específica, o trespasse não implica a transmissão do prédio onde o estabelecimento
funciona. BARBOSA MAGALHÃES defende a pertinência dos imóveis ao âmbito
natural.
COUTINHO DE ABREU não descortina razões que validem um tratamento
diferenciado do prédio em face de bens que, tal como ele, fazem parte do estabelecimento,
logo, quando num contrato de trespasse não se faça menção à transmissão do prédio e não
se conclua por interpretação que foi excluído, deve entender-se que foi naturalmente
transmitido.
Já sobre os elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título
obrigacional (o trespassante tem o gozo desses bens por ser titular de direitos de crédito).
Por força da lei, as prestações laborais de trabalhadores subrodinadores continuam
a contar-se como elementos do estabelecimento trepassado (art.285.º/1 do CT).
Também o denominado “saber-fazer” pode ser elemento de uma empresa, ele
deve ser comunicado-transmitido pelo trespassante ao trespassário, sendo tal dever um
efeito natural.
No âmbito convencional de entrega (nas palavras de COUTINHO DE ABREU;
a restante doutrina refere-se a este âmbito como âmbito máximo) incluem-se os
elementos empresariais que apenas se transmitem por estipulação ou convenção (expressa
ou tácita) das partes. Nele se integram a firma, o logótipo e a marca quando neles figure
nome individual.
Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa, mas cujo objeto não
seja meios de estabelecimento, não são elementos do estabelecimento, mas podem ser
transmitidos desde que as partes o convencionem.
Os contratos ligados à exploração da empresa mas cujos objetos não sejam
elementos do estabelecimento, bem como os débitos resultantes da exploração do
estabelecimento, também não são elementos, mas podem ser transmitidos por acordo. No
entanto, não farão parte do âmbito convencional, pois a respetiva transmissão exige a
intervenção de terceiros. Assim, valem as regras do art.424.º do CC.
Quanto à transmissão singular de dívidas, estas exigem o consentimento dos
credores, ainda que a sua transmissão esteja prevista no contrato. Porém, excecionalmente
o trespassário pode ter de responder por dívidas anteriores ao trespasse.

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8.4. A questão da obrigação de não concorrência e da obrigação de não


evicção.
Impõe-se, ex bona fide e como dever pós-eficaz, uma obrigação de não-
concorrência, a qual apenas pode ser ponderada caso a caso. A sua violação poderá
acarretar deveres de cessar a concorrência indevida e de indemnizar o lesado,
reconstruindo a situação que existiria se não fosse a violação perpetrada.
Ex.: Vamos supor que um comerciante conhecido angaria larga clientela.
Trespassa, depois, por bom lucro, o seu estabelecimento e vai, de seguida, abrir um novo
estabelecimento semelhante, mesmo em frente. É evidente que a clientela, que já o
conhece, irá segui-lo: o trespassário adquire algo que, sem clientela, pouco ou nada vale.
Para MENEZES CORDEIRO é contrário à boa-fé, após o trespasse do
estabelecimento, continuar a beneficiar da clientela que foi transferida com o trespasse.
Para CASSIANO DOS SANTOS (na esteira de ORLANDO CAVALHO), há uma
proibição de não evicção (e não da boa-fé), que se destina a tutelar a utilização da coisa;
o objetivo é não perturbar a utilização feita pelo novo proprietário.
Uma vez alienada a coisa, o alienante não pode interferir no gozo da coisa por
parte do adquirente. Não posso perturbar a posse e o gozo da coisa, não posso interferir
com a clientela.
Para NUNO AURELIANO, não há nenhum dever específico de não concorrência,
na medida que o cumprimento do contrato de trespasse se esgota com o cumprimento da
obrigação; porém, as partes podem convencionar este dever.
Esta última posição tem dos grandes problemas: materialidade das circunstâncias
(uma coisa é o trespasse, outra o âmbito das relações pessoais, como no caso do contrato
de agência e de trabalho), a posição da parte mais fraca ter de ser tutelada (no âmbito do
trespasse não há parte economicamente mais fraca, pelo que as razões de proteção destes
dois contratos não podem ser aplicadas no âmbito do contrato de trespasse).
Também é criticada pelo facto da aquisição para o Direito dos deveres pós-
contratuais é pacífica (ou seja, é aceite que existe um determinado n.º de direitos que não
se esgotam). Sobre o contrato de trabalho e agência, estamos a falar das partes mais fracas
e dependentes e, portanto, o Direito adotou especificamente as mediadas referidas com
vista à proteção destes trabalhadores e agentes. Mais, no âmbito destes dois contratos,
quando a obrigação é clausulada, há sempre a possibilidade de pedir uma indemnização.
Para COUTINHO DE ABREU, no contrato de trespasse existe uma obrigação
implícita de não concorrência “sem necessidade de qualquer estipulação had hoc… O

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

trespassante do estabelecimento fica, em princípio obrigado, num certo espaço e durante


certo tempo, a não concorrer com o trespassário”, nomeadamente fica vinculado a não
iniciar atividade similar à exercida através do estabelecimento trespassado.
São muitas as motivações que causam a necessidade de uma obrigação
automaticamente inerente ao contrato. Desde logo, temos o princípio da boa-fé, isto
porque o alienante conhece as características organizativas da empresa e mantinha
relações pessoais com os financiadores, fornecedores e clientes; este conhecimento poria
em risco a subsistência da empresa alienada, impediria uma efetiva entrega da mesma ao
adquirente.
No entanto, coloca-se a questão de saber se a clientela é ou não elemento
constitutivo do estabelecimento. Para LUÍS MANSO, não é dado que não existe um
direito efetivo sobre a mesma e dado que tal seria uma violação da sociedade competitiva.
No entanto, são colocados limites a esta obrigação, pois caso contrário a liberdade
de iniciativa económica seria violada:
- Limite objetivo de concorrência: prende-se com a definição do objeto do
negócio. Temos de determinar qual a atividade desenvolvida no estabelecimento
original; depois, o trespassante está limitado apenas a não abrir estabelecimento
que exerça a mesma atividade.
Aqui há problemas relacionado com as atividades acessórias (se no
estabelecimento trespassado existir determinada atividade acessória e no novo
estabelecimento ela torna-se principal), esta está abrangida pela obrigação?
O critério é material, ou seja, se os proveitos do estabelecimento levavam
em conta a atividade acessória, ela está limitada a exercer-se no novo
estabelecimento.
- Limite geográfico/espacial: os limites geográficos tomam em
consideração dados económicos globais, eu preciso de saber de que forma a
procura se movimente e perceber se a procura é elástica ou rígida, tenho de saber
se a clientela está disposta a percorrer grandes distâncias para procurar a mesma
pessoa.
A lógica é de que quanto mais próximo estiver o trespassante à atividade
em causa (a importância da pessoa do trespassante), maior será o âmbito de ação
do estabelecimento.
- Limite temporal: quanto tempo demora em média a recuperar o
investimento que fiz para adquirir o estabelecimento comercial; isto resulta de

96
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

uma questão prática – quando estão ser discutidos trespasses, tem-se em


consideração o volume das vendas para determinar, em concreto, durante quanto
tempo ele ainda não recuperou o seu investimento.
A jurisprudência tem apontado, genericamente, para 3 a 5 anos, mas temos
que analisar casuisticamente e perceber quais os vetores que foram utilizados.
- Limite subjetivo: não se pode concorrer por si mesmo. COUTINHO DE
ABREU entende que a obrigação de não concorrência estende-se aos cônjuges e
filhos (inner circle). Esta realidade também se verifica no exercício indireto da
atividade económica (ex.: compra de participações numa sociedade que
desenvolva uma atividade concorrente com o estabelecimento), esta posição tem
de ser entendida com um grain of salt, porque não são os sócios que decidem a
atividade da sociedade, são os administradores

8.5. A transmissão de posições contratuais.


Segundo MENEZES CORDEIRO (424.º), a transmissão da posição carece
sempre de consentimento da outra parte
Para OLIVEIRA ASCENSÃO, as situações jurídicas exploracionais transmitem-
se com o estabelecimento.
No entanto, esta tese tem o problema do facto das situações jurídicas
exploracionais serem um conceito demasiado vago.
Já para CASSIANO DOS SANTOS e ENGRÁCIA ANTUNES, no Direito
Comercial não há regulamentação específica, logo estando perante uma lacuna cabe
aplicar o 424.º do CC? Ou no sistema jurídico comercial podemos concluir por uma
ponderação diferente?
Estes dois autores vão buscar vários elementos da legislação comercial para
defender que o regime será diferente, como o art.1112.º/1 do CC, art.11.º do DL 1149/95
segundo o qual sempre que eu tenho trespasse, os elementos colocados à disposição
passam do trespassante para o trespassário; art.95.º/5 da Lei de Contrato de Seguro (todos
os seguros passam para o trespassário); art.100.º e 145.º do Código de Direitos de autor,
que estabelece que existindo autorizações, esta autorização passa do trespassante para o
trespassário no contexto do trespasse.
Logo, nestas normas todas há um traço em comum: transmissão automática, logo
a regra será contrária à do art.424.º e este não se aplicará: a regra será a dispensa do
consentimento.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O REGENTE concorda com a tese de ENGRÁCIA ANTUNES e CASSIANO


DOS SANTOS, mas estabelece 2 limites:
- Art.11.º/3 da locação – para dizer que a contraparte pode opor-se se o
trespassário oferecer menores garantias que o anterior titular do estabelecimento.
- Contratos intuitu personae – dado o elemento de confiança explicito.
No entanto, para o assistente há um pequeno óbice: o contrato de trabalho, que é
claramente intuitu personae, mas também se transmite. O problema desta posição é o
facto de o REGENTE não dar qualquer tipo de base legal para esta exceção.

8.6. A locação de estabelecimento.


Na locação de estabelecimento, antes dita cessão de exploração, há uma cedência
temporária do estabelecimento comercial.
Em rigor, haveria que distinguir:
- A cessão de estabelecimento seria a transferência temporária do
estabelecimento, efetuada a qualquer título;
- A locação de estabelecimento implicaria a cessão titulada por um negócio
decalcado da locação, designadamente com uma obrigação periódica de
pagamento de retribuição, tipo renda ou aluguer.
O interesse de autonomização da cessão de exploração é o do próprio
reconhecimento do estabelecimento como objeto de negócios:
- Permitiria a cedência temporária do estabelecimento como um todo, sem
necessidade de negociar, uma a uma, todas as realidades que o componham e viabilizando
ainda o cômputo dos elementos sem autonomia, como o aviamento e a clientela;
- Possibilitaria atender à verdadeira realidade em jogo no estabelecimento,
afastando normas comuns aplicáveis a outras figuras contratuais como, por
exemplo, o arrendamento.
A possibilidade de, na locação de estabelecimento, afastar o regime restritivo do
arrendamento, obriga a uma delimitação mais cuidada dos seus contornos. À partida, pode
dizer-se que deve haver, como objeto do negócio, um estabelecimento comercial: é a
presença deste, com a sua lógica própria e os seus valores particulares, que conduziu à
autonomização prática e conceitual da figura.
ANTUNES VARELA justifica a exclusão, na então cessão de exploração, dos
esquemas injuntivos do arrendamento, acentuando:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A inexistência das razões que justificam o protecionismo do inquilinato


comercial ou industrial;
- O facto de, ao cedente, se dever a iniciativa da criação ou a manutenção
do estabelecimento, em cujo património ele se integra e continua;
- O facto de o cessionário não ter criado o estabelecimento, limitando-se a
fruir o que temporariamente lhe foi cedido;
- A assimilação da cessão de exploração ao trespasse, caso tivesse
aplicação o esquema da renovação automática estabelecida para o arrendamento.
Em bom rigor, a cessão de exploração, mesmo na modalidade legalmente prevista
da locação de estabelecimento é um negócio atípico. Cabe às partes desenvolver o regime
que entendam adotar.
O último dos pontos referidos tem um peso relativo: a semelhança com o trespasse
ocorreria, apenas, pelo prisma do cedente; além disso, o regime restritivo vigente para o
arrendamento aproxima-o da pura transmissão do imóvel sem que, daí, se extraiam
consequências dogmáticas.
O novo regime do arrendamento urbano, de 2006, procurou clarificar a
terminologia: sobre a qual, de resto, não havia quaisquer dúvidas. O art.1109.º, versão
atual, do Código Civil, passou a falar diretamente em locação do estabelecimento,
esclarecendo que, quando instalado em local arrendado, ela não carece de autorização do
senhorio (1109.º/2), embora lhe deva ser comunicado no prazo de um mês.
A jurisprudência sobre a cessão de exploração tem vindo a fixar os contornos da
figura. Desde logo ela exige um estabelecimento, sob pena de ser um arrendamento puro.
Quando ela envolva um local arrendado, ficou entendido não ser necessária a autorização
do senhorio: um ponto que, em 2006, passou para a lei expressa. Já parecia razoável exigir
que, nos termos gerais do art.1038.º/g do Código Civil, a operação seja comunicada ao
senhorio, mau grado alguma divisão da jurisprudência.
A lei vigente cortou quaisquer dúvidas, dando, ao tema, uma resposta positiva.
Quando a cessão seja declarada nula, a retribuição acordada é devida pelo cessionário ao
cedente, enquanto subsistir a exploração.
Anteriormente era necessário escritura pública. A regra desapareceu do CNot
vigente, vindo o Decreto-Lei nº64-A/2000, de 22 de Abril, introduzir, no art.111.º do
RAU, a regra de que a cessão de exploração deve constar de documento escrito. Hoje
vale, nesse mesmo sentido, o art.1069.º do Código Civil, conectando a locação do
estabelecimento do art.1109.º do mesmo Código.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Finalmente, haverá que reconduzi-la à figura geral da locação: seria locação


produtiva caso essa figura tivesse sido autonomizada pelo Direito Português.

8.7. O penhor de estabelecimento.


Para além de poder ser globalmente transmitido, o titulo definitivo (trespasse) ou
temporário (locação ou cessão da exploração), o estabelecimento comercial pode, ainda,
ser dado em garantia ou, genericamente: pode operar como objeto de garantia. Bastará
atentar em que essa situação constitui sempre um minus em relação ao próprio trespasse.
O estabelecimento pode ser dado em penhor, pelo seu titular, isto por aplicação
do art.21.º do EIRL. Em termos analíticos, teríamos um misto de penhor de coisas e de
penhor de direitos. Relevante é aqui, todavia, o penhor global sobre o conjunto.
Em regra tratar-se-á de um penhor mercantil, sendo pois suficiente, nos termos do
art.398.º, uma entrega simbólica. O que tem aqui a maior importância prática: o
estabelecimento dado em garantia poderá continuar a funcionar normalmente, numa
situação fundamental para o bom decurso da operação.
O estabelecimento comercial pode ainda ser objeto da penhora. Trata-se de uma
operação que não afeta a relação locatária que, eventualmente, nele se inclua e que, como
em qualquer situação relativa ao estabelecimento, o atinge, no seu conjunto.

8.8. Outros negócios sobre o estabelecimento.


8.8.1. O Usufruto do Estabelecimento
Sobre o estabelecimento comercial pode recair o direito de usufruto. Nessa altura
e nos termos gerais, o usufrutuário poderá aproveitar plenamente o estabelecimento, sem
alterar a sua forma ou substância – art.1439.º CC.
A figura não levanta dúvidas: os elementos corpóreos podem, por definição, ser
objeto de usufruto, enquanto os incorpóreos o serão por via dos art.1463.º a 1467.º CC e
dos princípios que deles emergem.
No domínio dos poderes de transformação do usufrutuário, pensamos, tratando-se
de um estabelecimento, estes devem ir tão longe quanto possível. De outro modo, iremos
bloquear a atualização e a renovação do estabelecimento, enquanto durar o usufruto:
haverá danos para o comércio e para todas as pessoas envolvidas, incluindo o titular de
raiz.

8.8.2. A Reivindicação e as Defesas Possessórias

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O estabelecimento não é composto apenas por coisas corpóreas. Não obstante,


estas, para além de poderem ter um papel determinante, emprestam ao conjunto um teor
característico. Basta ver que o estabelecimento, na multiplicidade dos seus elementos,
surge como algo de percetível pelos sentidos, enquanto o exercício de poderes sobre ele
comporta, por si, uma publicidade espontânea.
Deste modo, apesar de múltiplas hesitações pontuais, a doutrina e a jurisprudência
têm-se inclinado para a aplicabilidade, ao estabelecimento, das defesas reais.
Em primeiro lugar, o estabelecimento pode ser reivindicado. Embora se trate de
uma ação primacialmente dirigida a efetivar o direito de propriedade sobre os elementos
corpóreos, os restantes fatores acompanharão, automaticamente, os primeiros.
De seguida, temos ações possessórias. Estas assistem ao seu titular. Mas também
o trespassário poderá utilizá-las para tornar efetiva a posse que tenha recebido por via
contratual.

8.9. Os contratos dos lojistas dos centros comerciais.


Estes foram contratos que provocaram grande controvérsia no tempo do
vinculismo
Estes são contratos atípicos

9. O EIRL
O exercício do comércio implica riscos. No caso do estabelecimento comercial,
recordamos que ele se encontra na titularidade de um interessado; este responde com todo
o seu património pelas dívidas ocasionadas através de exploração comercial.
Constitui um desafio clássico do Direito Comercial o apurar esquemas que, sem
colocarem em risco a segurança do comércio e a fidedignidade das transações, permitam
limitar a responsabilidade individual dos operadores.
Essa preocupação foi, em grande parte, alcançada pela via das sociedades
comerciais de responsabilidade limitada. O problema surgia quando se tratasse de um
comerciante em nome individual, que não desejasse associar-se.
Como primeira tentativa limitadora, a lei portuguesa veio permitir a figura do
estabelecimento individual de responsabilidade limita ou EIRL, que foi criado à imagem
e semelhança das sociedades comerciais.
Este está regulado no DL n.º 248/86.

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9.2. O estabelecimento e as sociedades unipessoais.


Uma primeira via, para resolver o problema da responsabilidade individual dos
operadores foi a de admitir as sociedades unipessoais, isto é, sociedades com um único
sócio. Pelas dívidas da sociedade responderia apenas o património desta, assim se
conseguindo a procurada limitação. Este caminho acabaria por ser seguido pelo legislador
português com os art.270.º - A CSC a 270.º -G CSC, permitindo sociedades unipessoais
de quotas.

9.3. Traços essenciais do regime do EIRL.


No EIRL, art.10.º, os bens que o componham não são, ad nutum, os que sejam
afetados ao comércio mas antes aqueles que constem do título constitutivo.
Tal como o estabelecimento comercial, também o EIRL constitui uma esfera
jurídica de afetação: no fundo, este tenderia, à partida, a ser uma modalidade daquele.
Não bastará considera-lo como um património autónomo, uma vez que também abrange
o passivo.
Este é uma ilha, dado o regime da responsabilidade por dívidas, há uma
circunscrição da responsabilidade ao património do estabelecimento, o que significa que
pelas dívidas do EIRL só o EIRL responde (art.11.º do DL n.º 248/86). No entanto, as
dívidas contraídas pelo titular do EIRL também podem ser respondidas pelo próprio
EIRL, mas em bloco, mas pelas dívidas do EIRL não é possível assacar responsabilidade
do património do seu titular.
No art.1.º temos a primeira referência à construção do EIRL à semelhança das
sociedades comerciais.
Já no art.21.º referem-se os negócios jurídicos sobre o estabelecimento e no
art.22.º é estabelecido o regime de solidariedade.
É de referir que o EIRL é um estabelecimento3 e, como tal, segue a mesma
dinâmica que os estabelecimentos comerciantes. Contido tem adaptações do regime:
- Regulado por diploma específico
- Registo do EIRL
- Atos constitutivos

3
Assim: na insuficiência do regime dos estabelecimentos comerciais, posso usar as normas do EIRL em
tudo o que não seja para si específico. Como por exemplo, posso usar o art.21.º do EIRL para defender a
existência do próprio penhor do estabelecimento comercial e para justificar que este não exige um
desapossamento dos bens.

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- Capital mínimo
Este não é uma sociedade comercial, porque o seu registo não lhe confere o
surgimento de uma personalidade. Ou seja, o EIRL não tem personalidade jurídica ao
contrário das sociedades comerciais.

9.4. Natureza jurídica do EIRL.


O EIRL é, de facto, um estabelecimento comercial, colocado numa situação
especial que permite a responsabilidade limitada. A situação especial em que se coloca o
EIRL e a necessidade de proteger terceiros e o comércio e geral levaram o legislador a
formalizar alguns aspetos do estabelecimento em jogo.
Não obstante, muitos dos valores contemplados no EIRL têm diretamente a ver
com o estabelecimento comercial. As regras daquele podem, após a verificação, funcionar
como auxiliares de aplicação, para resolver problemas do estabelecimento em geral.

10. A empresa virtual e o comércio à distância.


10.1. A contratação por computador
No tráfego jurídico atual usam-se, correntemente, meios eletrónicos. Na origem,
o fenómeno é civil: nessa sede deve ser tratado. No entanto, ela assume a sua maior
expressão justamente em detrimento do Direito comercial clássico.
Os contratos podem ser concluídos através de autómatos ou de computadores. As
utilidades proporcionadas vão desde o simples fornecimento de coisas móveis, passando
pelos múltiplos serviços implícitos num “estacionamento automático” a até à obtenção
de bens, informações ou outras realidades através de acesso a um computador.
Na aparência, os automáticos praticam meras operações materiais; sabe-se,
contudo, que tais operações traduzem uma atividade negocial regulada pelo Direito.
Tradicionalmente, a contratação com recurso a autómatos pode ser explicada por
uma de duas formas:
- A teoria da oferta automática: a simples presença de um autómato pronto
a funcionar, mediante adequada solicitação feita por um utente, deve ser vista
como uma oferta ao público: acionado o autómato, o utente aceitaria a proposta
genérica formulada pela entidade a quem fosse cometida a programação;
- A teoria da aceitação automática: preconizada por MEDICUS Para este,
o simples acionar do autómato não provoca necessariamente a conclusão do

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

contrato; tal só sucederá se o autómato não estiver vazio, i.e., se se encontrar em


condições de fornecer o bem solicitado.
Por consequência, o contrato só se concluiria através do funcionamento do
autómato, cabendo ao utente a formulação da proposta. A instalação prévia do
autómato representaria, tão-só, uma atividade preparatória: não uma proposta
irrevogável.
A discussão tem um interesse prático. Se o autómato representar uma oferta ao
público, há contrato com a simples aceitação; qualquer falha subsequente surgirá como
uma violação do contrato perpetrada pela pessoa que recorra a autómato para celebrar os
seus negócios.
Pelo contrário, se o autómato se limitar a receber propostas, não há violação
contratual no caso de não funcionamento: apenas se assistirá, então, a uma não-aceitação.
Com a generalização da automatação, temos cenários em que contratos de vulto são
inteiramente celebrados por autómatos. Várias regras podem então depender de saber
quem funciona como proponente e quem opera como aceitante.
Perante os princípios clássicos da automatação, a presença de um autómato
constituiria uma autêntica oferta ao público. A pessoa responsável pelo autómato
disfrutaria, ao programá-lo, de liberdade de estipulação, podendo propor o que entender;
pelo contrário, o utente apenas poderia aceitar ou recusar a “proposta” automática,
colocando-se numa posição semelhante à de aceitante. Acresce ainda que o autómato não
tem liberdade de decisão para aceitar ou recusar uma proposta: as opções competentes
foram feitas pelo programador e só por este podem ser alteradas. A última palavra seria
do utente, num paralelo claro com a aceitação.
Mas essa orientação é só um ponto de partida. Um autómato pode ser programado
para responder a solicitações distintas, por forma adaptada a cada uma delas. Ainda aí
seria possível ver a presença de várias ofertas ao público. Mas a situação complicar-se-ia
quando a “oferta” fosse limitada, podendo o autómato corresponder a inúmeras
solicitações dos utentes: nesta altura, a estes caberia a iniciativa, limitando-se o autómato
a aceitar ou a recusar.
No limite, o autómato é programável para tomar decisões, sendo ainda
perfeitamente concebível um negócio “celebrado” entre autómatos devidamente
programados para o efeito.
Os quadros da oferta ao público só podem explicar os primeiros passos dos
negócios celebrados com recurso a autómatos. Em esquemas mais elaborados, o autómato

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

reproduz a vontade do seu programador ou da pessoa a quem as atuações deste sejam


imputáveis. Nessa medida, a declaração feita através do autómato pode ser proposta ou
aceitação ou, mais genericamente, pode ser de qualquer tipo, consoante a vontade dos
programadores.
Os únicos limites que o Direito opõe a este prolongamento da vontade humana
têm a ver com a forma prescrita para certas celebrações negociais.

10.2. A contratação por meios eletrónicos ou por internet


A contratação por meios eletrónicos ou pela internet, não se confunde com a
efetuada através de autómato ou de computador, embora por vezes lhe esteja associada.
De todo o modo, ela tem sido enquadrada com recurso ao Direito vigente. Assim, a
declaração de vontade feita por computador ou por meios de comunicação eletrónica vale
como tal. E naturalmente, terão aplicação as regras referentes ao erro e ao dolo, nas
declarações. A matéria foi em parte tratada pelo DL n.º 7/2004, de 7 de Janeiro.
A facilidade com que, designadamente através da internet, se podem adquirir bens
ou serviços e assumir os inerentes encargos, em termos imediatamente eficazes através
da utilização de cartões bancários, obriga os Estados a adotar regras de proteção aos
utentes.
Com essa finalidade, foi aprovada a Diretiva n.º 97/7/CE, do Parlamento Europeu
e do Conselho. Este diploma atinge, de facto, o chamado comércio eletrónico: internet,
telefone e telefax. No fundamental, ele fixa deveres de informação acrescidos e atribui ao
adquirente um direito à resolução do contrato, caso se venha a arrepender, superveniente,
da sua celebração.
No Direito português, a transposição foi efetuada pelo DL n.º 143/2001, de 16 de
Abril, que abrangeu, ainda, outras matérias. Este diploma trata de aspetos heterogéneos
que têm, em comum, o figurarem negócios concluídos à distância, por via automática ou
não mas, em qualquer caso, fora do estabelecimento. Foi muito alterado pelo DL n.º
82/2008, de 20 de Maio, que procedeu à sua republicação em anexo.
No tocante ao âmbito de aplicação, registe-se a limitação do consumidor às
pessoas singulares (art.1.º/3/a); não há justificação para isso: a sociedade que, fora do seu
âmbito profissional, encomende livros ou musicas pela internet tem direito a idêntica
proteção. De resto, o anteprojeto do Código do Consumidor permitiria, aqui, um
alargamento.

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10.3. Contratos à distância e vendas a domicílio


Quanto a contratos celebrados à distância (art.2.º/a) temos de sublinhar a sua não-
aplicação a vários campos, com relevo para o financeiro (art.3.º). Posto o que:
- Devem ser dadas ao consumidor as informações prévias constantes do
art.4.º; tais informações devem ser confirmadas, aquando da execução e em tempo
útil, nas condições e limites do art.5.º;
- É conferido ao consumidor um prazo mínimo de 14 dias para que,
livremente, ele possa “resolver” o contrato, prazo esse que é aumentado se não
tiverem sido prestadas as informações devidas (art.6.º); esse direito ao
arrependimento tem algumas garantias e restrições (art.8.º); a resolução obriga a
restituições (art.8,º); para esse efeito, o consumidor deve conservar os bens de
modo a poder restituí-los em “devidas condições de utilização” (art.8.º/3);
- O contrato deve ser executado no prazo supletivo de 30 dias a contar do
dia seguinte ao da transmissão do acordo do particular (art.9.º/1), cabendo certas
regras na hipótese de indisponibilidade de bens: informação ao cliente, reembolso
do que este tenha pago ou, em certos casos, fornecimento de um bem ou serviço
diferentes (art.9.º/2 e 3);
- O pagamento por cartão de crédito ou de débito faz correr pelo banqueiro
o risco de fraude (art.10.º);
- O ónus da prova quanto à informação prévia, à confirmação por escrito,
ao cumprimento dos prazos e ao consentimento do consumidor recai sobre o
fornecedor (art.12.º).
Os contratos ao domicílio ou equiparados (art.13.º), com determinadas exclusões
(art.14.º), obrigam ao seguinte:
- O fornecedor e os seus representantes devem estar identificados
(art.15.º);
- Os contratos devem ser celebrados por escrito, apresentando os
elementos elencados no art.16,º; os catálogos ou outros suportes publicitários
devem ter os elementos figurados no art.17.º;
- O consumidor pode “resolver” o contrato no prazo de 14 dias (art.18.º),
com determinados efeitos restitutivos (art.19.º);
- Não podem ser exigidos, ao consumidor, pagamentos antecipados
(art.20.º/1); estes, se ocorrerem, provam o contrato e têm-se como entregues por
conta do preço, se aquele se concluir (art.20.º/2).

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10.4. Vendas automáticas e vendas especiais esporádicas


As vendas automáticas passaram a dispor de regras explícitas (art.21.º a 23.º).
Desde logo, devem respeitar as regras gerais de indicação de preços, rotulagem,
embalagem, caraterísticas e condições hígio-sanitárias (art.21.º/2). Há que usar
equipamento que permita a recuperação da importância introduzida, no caso de não
fornecimento do bem ou serviço solicitado (art.22.º/1).
Além disso, o equipamento automático deve exibir uma série de informações
(art.22.º/2).
Prevê-se uma responsabilidade solidária entre o proprietário do equipamento e o
dono do local onde ele esteja colocado (art.23.º).
São vendas esporádicas as realizadas de forma ocasional fora dos
estabelecimentos próprios. Aplica-se-lhes com adaptações, o regime das vendas a
domicílio (art.24.º). Devem ser previamente comunicadas às entidades competente: mais
particularmente, à ASAE (art.25.º).
Quanto a vendas proibidas, temos apenas as vendas ligadas (art.30.º).

10.5. Venda ambulante e publicidade não solicitada


O art.22.º do DL n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, complementado pelo DL n.º 62/2009
de 10 de Março, veio regular a prática da publicidade não solicitada.
O envio de mensagens publicitárias cuja receção seja independente da intervenção
do destinatário nomeadamente por via de aparelhos de chamada automática, de telecópia
ou por correio eletrónico, carece do consentimento prévio do destinatário. Surgem
algumas exceções, designadamente quando se trate de pessoas coletivas; todavia, todos
podem pedir para serem inseridos numa lista de entidades que não queiram receber
comunicações.
O DL n.º 42/2008, de 10 de Março veio regular o comércio a “retalho não
sedentário” exercido por feirantes. Os feirantes devem ter um cartão próprio, passado
pela Direção-Geral das Atividades Económicas (art.8.º). Há cautelas com a venda de
bebidas alcoólicas (art.5.º), géneros alimentares (art.15.º) e animais (art.16.º), sendo
proibida a venda de certos produtos sensíveis, como medicamentos, armas e combustíveis
(art.19.º).

10.6. Documentos eletrónicos e assinatura digital

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São documentos eletrónicos aqueles cujo suporte não seja físico, mas
“eletrónico”: no sentido mais amplo, abarcando soluções eletromagnéticas e óticas. O
regime normal é-lhes aplicável, com adaptações. De todo o modo, o formalismo jurídico
tem levado os legisladores a intervir.
Quanto à assinatura digital, trata-se de um esquema que permite a uma entidade
dotada de uma “chave”, reconhecer e autenticar uma sequência digital proveniente do
autor de uma missiva eletrónica, de modo a autenticá-la.
Em Portugal, surgiu um diploma relativo a esta matéria: o DL n.º 290-D/99, de 2
de Agosto. Este diploma ressente-se da rapidez com que foi aprovado e da falta de debate
sobre o competente projeto. A regulamentação nele prevista acabaria, afinal, por demorar
cinco anos a surgir.
Este foi muito alterado pelo DL n.º 62/2003, de 3 de Abril, que o republicou em
anexo. Novas alterações foram surgindo, até ao DL n.º 88/2009, de 9 de Abril. A
regulamentação em falta acabaria por ser adotada pelo DR n.º 25/2004, de 15 de Julho. O
registo das entidades certificadoras obedecia aos termos ficados pela Portaria n.º
1350/2004, de 25 de Outubro, substituída pela Portaria n.º 597/2009, de 4 de Junho.

10.7. Faturas e comércio eletrónicos


Outros diplomas relevantes: DL n.º 375/99, de 18 de Setembro, veio equiparar a
fatura eletrónica à fatura emitida em suporte de papel; DL n.º 16/2000, de 2 de Outubro,
veio proceder à sua regulamentação.
A generalização do comércio eletrónico levou ao aparecimento de novas diretrizes
e aos subsequentes diplomas de transposição. Assim: Diretriz n.º 98/48/CE, de 20 de
Julho, relativa aos procedimentos da informação no domínio das normas e
regulamentações técnicas e às regras relativas aos serviços da sociedade de informação;
foi transposta pelo DL n.º 58/2000, de 18 de Abril; Diretiva n.º 2000/31/CE, de 8 de
Junho, referente a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em
especial do comércio eletrónico, no mercado interno; foi transposta pelo DL n.º 7/2004,
de 7 de Janeiro.
Os prestadores de serviços em rede estão sujeitos a um regime de responsabilidade
comum (art.11.º), enquanto os prestadores intermediários de serviços ficam exonerados
de um dever geral de vigilância (art.12.º).
As comunicações publicitárias em rede e o marketing direto ficam sujeitos às regras
dos art.20.º a 23.º.

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O DL n.º 7/2004 regulamenta ainda a contratação eletrónica (art.24.º a 34.º).


Alguns aspetos: a contratação eletrónica é livre, salvo negócios familiares e
sucessórios, negócios que exijam a intervenção de entidades judiciais, públicas ou
notariais, negócios imobiliários e garantias (art.25.º/1 e 2), ninguém pode ser obrigado a
adotar esta via (art.25.º/3 e 4); as declarações eletrónicas, com suporte adequado,
satisfazem a exigência legal da forma escrita (art.26.º/1), valendo a assinatura eletrónica
(art.26.º/2); devem ser dadas informações prévias aos destinatários (art.28.º); a ordem de
encomenda eletrónica deve ser confirmada pela mesma via (art.29.º).
Os termos contratuais e as cláusulas contratuais gerais devem ser devidamente
comunicados (art.31.º). A oferta de produtos ou serviços em linha, quando completa,
representa uma proposta contratual; quando isso não suceda, é um convite a contratar
(art.32.º/1).
Tratando-se de contratação celebrada exclusivamente por computadores, sem
intervenção humana é aplicável o regime comum (art.33.º/1) e as seguintes disposições
sobre erro (art.33.º/2): na formação de vontade, se houver erro na programação; na
declaração, se houver defeito de funcionamento da máquina; na transmissão, se a
mensagem chegar deformada ao seu destino.
Muitas das soluções introduzidas pelo DL n.º 7/2004 já eram proporcionadas pelo
DL n.º 143/2001. Além disso, é patente a natureza civil desta matéria, em consonância
com as regras básicas do CC. Tudo isto ficaria mais claro se obtivesse uma codificação
condigna, na lei civil geral. A sua aplicação no campo comercial não oferecia quaisquer
dúvidas.

10.8. Balanço; a natureza comercial


Podemos concluir que o Direito dos contratos está em condições para reger o
comércio eletrónico ou e-commerce. Claro que se impõem regras de tutela,
particularmente dirigidas à seriedade do sistema e à tutela do consumidor.
Mas, para além disso, o e-commerce surge apenas como ferramenta destinada a
prolongar a mão humana, facilitando a contratação e suprimindo a distância.
Quanto à responsabilidade eventualmente provocada por atuações no âmbito
eletrónico, as regras tradicionais têm sido entendidas suficientes para reger os problemas.
Em suma: não obstante a relativa novidade que esta matéria ainda mantém,
podemos prosseguir análise dos aspetos contratuais e de responsabilidade civil à luz do
Direito privado vigente.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto à natureza comercial dos atos envolvidos, cumpre assinalar que,


paradoxalmente, nem o e-commerce é comercial. Na verdade, o uso de meios eletrónicos
para contratar não altera, só por si, a natureza dos atos envolvidos. Quando estes sejam
substancialmente comerciais, a comercialidade mantém-se. E caso não sejam, não ocorre
nenhuma comercialidade só pela via utilizada

11. Atividade comercial e concorrência. Tópicos.


A concorrência é o fenómeno dinamizado das atividades comerciais. Esta é uma
emanação da liberdade de iniciativa económica e tem assento constitucional no art.88.º/c.
O legislador proíbe certas práticas, sendo que o regime está centrado na Lei n.º
19/2012 e no DL n.º 166/2013.

11.1. Concorrência desleal.


A concorrência desleal está prevista no art.317.º do Código de Propriedade
Industrial (CPI):
Artigo 317.º
Concorrência desleal
“1. Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e
usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente:
a) Os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os
produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;
b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma actividade económica, com o
fim de desacreditar os concorrentes;
c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar
do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios;
d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital
ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas
actividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela;
e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade
dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade,
região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o
modo adoptado;
f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer
intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não


tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.
2. São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 338.º-
I.”
Os atos de concorrência desleal violam normas de lealdade, honestidade e bons
usos comerciais, tratando-se assim de comportamentos eticamente reprováveis,
suscetíveis de prejudicar as legítimas expectativas dos agentes económicos atuantes no
mercado.
Os efeitos negativos dos atos de concorrência desleal projetam-se em primeira
linha sobre a atividade dos agentes económicos, podendo atingir reflexamente o mercado.
Acresce que esses atos podem ser praticados por qualquer agente económico
independentemente da sua dimensão ou relevância económica.
Diferentemente, as práticas restritivas da concorrência constituem
comportamentos dos agentes económicos que se traduzam em acordos e práticas
concertadas entre empresas ou decisões de associações de empresas que tenham por
objeto ou efeito restringir, falsear ou impedir o funcionamento concorrencial do mercado
ou que constituam um abuso de posição dominante ou de dependência económica e que,
por isso, violam os art.9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012 e os art.101.º e 102.º do TFUE.
Na medida em que um ato de concorrência desleal preencha igualmente os
elementos previstos pelos art.9.º, 11.º e/ou 12.º da Lei n.º 19/2012 e/ou os art.101.º e 102.º
do TFUE, a Autoridade será competente para investigar esse comportamento mas apenas
à luz das finalidades daquelas normas e não quanto ao disposto nos art.317.º e 318.º do
Código da Propriedade Industria
Assim, no art.317.º/a temos os atos de confusão como a imitação serventil. No
entanto, também há práticas individuais restritivas de competência (DL n.º 166/2013):
- Aplicação de preços ou condições de venda discriminatórios (art.3.º);
- Venda com prejuízo, sendo que esta admite exceções (art.5.º);
- Recusa de venda de bens ou prestações de serviços a outra empresa
(art.6.º);
- Práticas negociais abusivas (art.7.º).

11.2. Defesa da concorrência.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O regime jurídico da concorrência está previsto na Lei n.º 19/2012, que é aplicável
a todas as atividades económicas exercidas, com carácter permanente ou ocasional, nos
sectores público, privado e cooperativo (art.2.º/1).
A referida lei é aplicável à promoção e defesa da concorrência, nomeadamente às
práticas restritivas e às operações de concentração de empresas que ocorram em território
nacional ou que neste tenham ou possam ter efeitos (art.2.º/2).
No art.5.º é prevista a Autoridade da Concorrência que garante o respeito pelas
regras de promoção e defesa da concorrência através de poderes sancionatórios, de
supervisão e de regulamentação.
Nos termos do art.9.º são proibidos os acordos, as práticas concertas e decisões de
associação entre empresas que tenham por objetivo restringir a concorrência.
No art.11.º está previsto o abuso da posição dominante, sendo que outra situação
é o abuso de dependência económica (art.12.º), uma vez que é suscetível de afetar o
funcionamento do mercado
No art.36.º prevê-se a concentração de empresas, que se verifica quando há uma
mudança duradoura de controlo sobre a tolidade ou parte de uma ou mais empresas (ver
caso: Facebook/Whatsapp merger)
No art.65.º é referido que os auxílios públicos, concedidos pelo Estado, não devem
restringir a concorrência.

12. A proteção da empresa e o Direito da Propriedade Industrial. Tópicos


A evolução dogmática da propriedade industrial prende-se com a dimensão de que
existem determinadas dimensões que devem ser tuteladas, o que levou à criação de
direitos da propriedade industrial.
Como sinais distintivos das empresas temos: os logótipos e as recompensas e dos
produtos temos: as marcas, as denominações de origem e as indicações geográficas.
Tradicionalmente, estes signos, em particular as marcas, são agrupados na
designação genérica de sinais distintivos do comércio, mas não são sinais privativos
destes. Ou seja, estes estão também incluídos no direito da propriedade industrial.

12.1. Âmbito da propriedade industrial.


O CPI vigente fala de propriedade a propósito dos sinais distintivos e refere-se,
também, à propriedade industrial. Não obstante a natureza dos direitos sobre estes bens

112
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imateriais seja controvertida, segundo COUTINHO DE ABREU, estas coisas incorpóreas


são objeto de direito de propriedade.
Durante longas décadas, o direito português pôs à disposição dos interessados 2
sinais individualizadores: nome do estabelecimento e insígnia do estabelecimento.

12.2. Invenções. Patentes. Modelos de utilidade.


12.3. Topografias de produtos semicondutores.
12.4. Desenhos ou modelos.

12.5. Marcas.
As marcas são signos (ou sinais) suscetíveis de representação gráfica destinados
sobretudo a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.
Tendo em conta a natureza das atividades a que se ligam, fala-se de marcas de
indústria (assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa), de comércio
(assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas), de agricultura (assinalam
os produtos de agricultura em sentido amplo), de serviços (assinalam atividades do setor
terciário).
Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se de marcas nominativas
(constituídas por nomes ou palavras), figurativas (formadas por figuras ou desenhos),
marcas constituídas por letras, números, ou cores, marcas mistas (juntam elementos
nominantivos e figurativos), auditivas (constituídas por sons), tridimensionais.
As marcas podem, ainda, pertencer a empresários (sujeitos de empresas em
sentido objetivo) como a não empresários.
Para além das marcas individuais, temos ainda as marcas coletivas.
Segundo a doutrina dominante a marca tinha uma função de indicação de origem
ou proveniência dos produtos. Todavia, muitos autores puseram tal em causa, dado que a
marca é, muitas vezes, um sinal anónimo, sem qualquer menção ao titular ou à empresa.
São vários os princípios informadores da constituição das marcas:
- Capacidade distintiva;
- Verdade;
- Licitude;
- Novidade e especialidade;

12.5.1. Transmissão das marcas

113
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas


independentemente da transmissão da respetiva empresa.
Trespassando-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente a marca a ele
ligada. Transferindo-se um estabelecimento a título temporário (usufruto/locação) vale
também a regra da transmissão natural.

12.6. Recompensas.
As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente
reconhecidos (condecorações, medalhas, diplomas) concedidos a empresários por mor da
bondade dos respetivos estabelecimentos e/ou produtos.
As recompensas dos empresários são sua propriedade (art.273.º). E deve entender-
se que a propriedade lhe é reconhecida independentemente do registo das mesmas, pois
não é constitutivo, serve antes para publicitar a titularidade e garantir a veracidade e
autenticidade.
O registo de recompensa é anulável quando se prove que a mesma não foi
concedida ao sujeito mencionado no registo ou quando o título da recompensa for anulado
(art.280.º); caduca quando a concessão da recompensa for revogada ou cancelada
(art.281.º/1) e o titular pode a ele renunciar nos termos do art.38.º.

12.7. Logótipo.
O logótipo é signo suscetível de representação gráfico e serve, primordialmente,
para distinguir sujeitos que prestem serviços ou produzam bens destinados ao mercado
(art.304.º - A e B CPI).
O sujeito titular de logótipo não tem de ser empresário, não tem de ter empresa ao
estabelecimento. No entanto, quando o tenha é natural que use o logótipo para
individualizar.
Assim, é um sinal, normalmente, bifuncional: distingue sujeitos e
estabelecimentos.
Um mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode ter vários
logótipos (art.304.º - C/2).
O logótipo pode ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de
representação gráfica, mas também por elementos normativos ou figurativos. São
possíveis:
- Logótipos nominativos – compostos por nomes ou palavras;

114
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Logótipos figurativos – formados por figuras ou desenhos;


- Mistos – combinando palavras e figuras.
O logótipo segue alguns princípios:
- Princípio da capacidade distintiva;
- Princípio da verdade;
- Princípio da novidade.
Os logótipos só são protegidos através do registo junto do Instituto Nacional de
Propriedade Industrial. A firma pode constituir um logótipo.
Os logótipos não são só desenhos, podem também ser constituídos pelo nome, o
nome com determinada coloração e uma frase inserida no contexto do desenho.

12.7.1. Transmissão do logótipo4


Sendo os logótipos sinais que distinguem, primordialmente, sujeitos dir-se-ia que
seriam intransmissíveis ou, tal como vale para as firmas, transmissíveis com os
estabelecimentos que se achem ligados.
No art.304.º - P CPI, um logótipo não usado em estabelecimento pode (como a
marca) ser transmitido autonomamente, salvo e for suscetível de induzir os consumidores
em erro quanto à individuação do transmissário.
Transmitindo-se um estabelecimento, transmite-se, naturalmente com ele, o
respetivo logótipo, salvo se este contiver nome, firma ou denominação do titular, caso em
que é necessária convenção.
Nos termos do art.31.º/5 do CPI, se o logótipo for constituído pelo nome do
comerciante, é necessária a sua autorização para a transmissão, pois está em causa um
direito de personalidade do comerciante (direito ao nome).
Ou seja, a transmissão do logótipo quando se enquadra com o nome do comerciante,
estamos perante um problema do âmbito máximo.

12.8. Denominações de origem e indicações geográficas.


A denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou
de um país que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja qualidade ou
características se devem essencial ou exclusivamente ao meio geográfico (aos seus
factores naturais, como solo e clima; e/ou socioeconómicos, como técnicas de produção).

4
A transmissão da firma e do logótipo são realidades muito semelhantes.

115
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

São igualmente denominações de origem certas denominações tradicionais,


geográficas ou não, que designem produtos originários de uma região ou local
determinado, cujas qualidades ou características se devem essencialmente ao meio
geográfico e cuja produção, transformação e elaboração ocorrem nas áreas geográficas
delimitadas (art.305.º/2).
A indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou de
um país que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja reputação,
determinada qualidade ou outra característica podem ser atribuídas a essa origem
geográfica e que é produzido, transformado ou elaborado na área mencionada
(art.305.º/3).
A diferença principal entre denominações de origem e indicações geográficas está
no facto de as primeiras identificarem produtos cuja qualidade global ou características
se devem essencialmente ao meio geográfico; enquanto as segundas designam produtos
que, podendo embora ser produzidos com idêntica qualidade global noutras zonas, devem
a sua fama ou características à área.
A tutela das denominações de origem e das indicações geográficas exige que
sejam registadas.

12.9. Nomes de domínio.


Este refere-se ao link do website.
Em determinadas circunstâncias, posso aplicar a problemática do trespasse do
estabelecimento comercial, mutatis mutandis, a esta realidade.

CAPÍTULO VII - REGIME COMERCIAL GERAL

1. A língua portuguesa e os “títulos comerciais”.


Como primeira regra comercial para os contratos, encontramos, no art.96.º: a regra
da liberdade de língua. Os títulos de crédito são válidos qualquer que seja a língua em que
estejam exarados.
O art.365.º CC, reconhece a validade dos documentos passados no estrangeiro.
Pode-se daí retirar: exarados em língua estrangeira. Por outro lado, e mercê de legislação
especial, os atos públicos praticados em Portugal, mesmo no domínio comercial, devem

116
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

sê-lo em português: art.133.º/1 CPC, quanto aos atos judiciais e 42.º/1 CNot, quanto aos
atos notariais.
Quanto aos atos civis particulares, não se conhece nenhum preceito que obrigue o
uso do português. Dois estrangeiros que contratem em Portugal usarão a sua língua; um
estrangeiro e um português recorrerão à língua em que ambos se entendam; dois
portugueses poderão querer aproveitar um texto já elaborado em língua estrangeira,
nenhuma razão havendo, em última instância, para os discriminar em relação aos
estrangeiros.
A liberdade de língua é a regra, no Direito Privado, exceto nos atos públicos onde,
salvo o que se disse quanto ao registo comercial, se deve usar o português.
O art.96.º não tem alcance especial: reafirma uma regra hoje comum. Nas palavras
do professor MENEZES CORDEIRO, vale como profissão de fé no universalismo do
Direito Comercial.
O uso de língua estrangeira é permitido nos contratos comerciais. Impõem-se,
todavia, algumas delimitações e restrições.
Nos contratos comerciais internacionais, os usos tendem a impor a língua inglesa.
Nada impede, contudo, que as partes recorram a qualquer outra língua, que ambas
dominem.
Nos contratos comerciais concluídos em Portugal, com recurso a cláusulas
contratuais gerais, a língua portuguesa impõe-se.
Com efeito, segundo o art.7.º/3 da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa dos
Consumidores) a informação ao consumidor é prestada em língua portuguesa. Por seu
turno, o Decreto-Lei n.º 238/86, de 19 de agosto, determina que as informações sobre a
natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado
nacional sejam prestadas em língua portuguesa.
O Decreto-Lei n.º 62/88, de 27 de fevereiro, obriga ao uso da língua portuguesa
no tocante às informações ou instruções respeitantes a características, instalação, serviço
ou utilização, montagem, manutenção, armazenagem, transporte, bem como as garantias
que devem acompanhar ou habitualmente acompanhem ou sejam aplicadas sobre
máquinas, aparelhos, utensílios e ferramentas.
O art.9.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro, relativo a ato de comércio
fora de estabelecimento comercial vincula ao uso do português, enquanto o art.26.º do
Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, referente ao acesso ao comércio, impõe a
prestação de informações em língua portuguesa.

117
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De todos estes preceitos, com relevo especial para o art.3.º do Decreto-Lei n.º
238/86 retiramos a regra de que, perante os consumidores finais deve ser usada a língua
portuguesa. A regra é aplicável a bens e serviços, o que é dizer: comércio, no seu todo.
Dadas as finalidades da lei, noa é possível recorrer a qualquer outra língua latina, mesmo
próxima: muitas vezes, palavras estrangeiras aparentemente semelhantes às nossas,
escondem diferenças de sentido que podem induzir em erro o consumidor.
Os preceitos que impõem o uso do português têm a ver com a tutela do
consumidor: não com a validade dos atos. Assim, a violação do Decreto-Lei n.º 238/86
não é sancionada com a nulidade dos contratos prevaricadores, mas a título de
contraordenação. Havendo danos, ela pode dar azo a deveres de indemnizar por violação
de normas de proteção, nos termos do art.483.º/1 CC. Inferir uma nulidade por via do
art.294.º CC pode redundar num dano maior para o consumidor, que se pretende proteger.
O uso de língua estrangeira nos contratos comerciais, celebrados em território
nacional, põe em crise o cumprimento dos deveres de informação que possam surgir a
favor do consumidor.
Tratando-se de cláusulas contratuais gerais, o uso da língua estrangeira pode ainda
implicar, nos termos do art.8.º da LCCG, a sua não-inclusão nos contratos singulares,
com o subsequente recurso às regras supletivas que pretendam afastar. Nos restantes
casos, seja com apelo à regra geral do uso do português para a tutela do consumidor, seja
por via da boa fé, o recurso a uma língua estrangeira, por parte do comerciante, faz correr,
contra este, o risco linguístico de quaisquer mal-entendidos.
Não se trata de uma defesa nacionalista da língua portuguesa mas, antes, da
proteção do comércio intra muros, o tal pequeno comércio a que hoje se aplica, em
especial, o Direito Comercial tradicional. A situação dos pequenos operadores ficaria
mais precarizada quando, no próprio território nacional, irrompesse o jargon dos negócios
em língua inglesa ou qualquer outro menos normalizado.

2. As comunicações à distância.
O art.97.º do Código Comercial fixava o valor da correspondência telegráfica. Em
síntese, era o seguinte:
- Os telegramas cujos originais houvessem sido assinados pelo expedidor
ou mandados expedir por quem figure como expedidor valem como documentos
particulares;

118
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- O mandato e toda a prestação de consentimento, transmitidos


telegraficamente com a assinatura reconhecida são válidos e fazem prova em
juízo.
O preceito acrescentava ainda a regra de que a alteração ou a transmissão seriam
imputáveis, nos termos gerais, a quem tivesse causado; que o expedidor que houvesse
respeitado os regulamentos se presumiria isento de culpa que, finalmente, a data e hora
exaradas se presumiriam exatas.
O art.97.º em causa surgiu no início das telecomunicações. Hoje, o telégrafo está
em desuso; foi, sucessivamente, substituído pelo telex, pelo fax e pela possibilidade de
transmissão por rede de computadores, máxime pela Internet.
As leis vieram a adaptar-se. O Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de fevereiro, admitiu
o uso de telecópia.
Na fixação das regras relativas a comunicações negociais à distância, cumpre
distinguir entre a prática do ato em si e a sua prova. Um documento escrito e assinado
não deixa de o ser pelo facto de ser enviado por cópia à distância. Assim, o retomando
em termos atualistas o velho art.97.º do Código Comercial, vamos entender que os
documentos telecopiados, cujos originais tenham sido assinados pelo próprio, valem
como documentos particulares. Satisfazem, ainda, a exigência de forma escrita.
Documentos autênticos ou autenticados remetidos por telecópia valem, enquanto
atos; a telecópia é um documento particular que atesta a sua existência, podendo ser
exibidos, em juízo, os originais, para se fazer plena prova ou melhor prova.
Finalmente: de acordo com o art.26.º do Decreto-Lei n.º 7/2004 de 7 de Janeiro,
as declarações eletrónicas com suporte adequado satisfazem a exigência legal de forma
escrita, valendo a assinatura eletrónica.
O uso da internet tem vindo a ser oficializado, especialmente no campo do registo
e das sociedades.

3. A tutela do crédito comercial.


A prática comercial dos nossos dias revela um certo laxismo na observância do
que deveria ser uma estrita deontologia profissional. É sabido que, perante um
incumprimento temporário (mora), o credor prejudicado hesitará em recorrer às vias
judiciais: irá encarecer a operação, ficando dependente de medidas e da diligência de
terceiros. O devedor pode contar com esta derrapagem, retardando sistematicamente os
seus pagamentos.

119
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Perante este estado de coisas, as instâncias comunitárias decidiram intervir. A


Comissão Europeia, através da sua Recomendação n.º 95/198, de 12 de maio, relativa aos
prazos de pagamento nas transações comerciais, convidou os Estados-membros: “(…) a
tomar as medidas jurídicas e práticas necessárias para fazer respeitar os prazos de
pagamento contratuais nas transações comerciais e para assegurar prazos de pagamento
melhores nos contratos públicos.”
Seguiu a Diretiva n.º 2000/35, de 29 de junho, que estabelece medidas de luta
contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais.
A Diretiva n.º 2000/35 foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de
fevereiro: não totalmente, uma vez que várias das regras inseridas naquela Diretiva já
vigoravam no nosso Direito. Visada foi, em especial, a temática do atraso nos
pagamentos.
E as medidas tomadas foram, no essencial, as seguintes:
- Sempre que do contrato não constem prazos, são devidos juros,
automaticamente, 30 dias após a data de receção da fatura ou da receção dos bens;
- São nulos os prazos excessivos contratualmente fixados para o
pagamento, podendo, quando assentes em cláusulas contratuais gerais, ser objeto
de ação inibitória;
- O art.102.º do Código Comercial recebeu uma redação que permite a
fixação de juros moratórios mais elevados;
- O atraso nos pagamentos permite o recurso ao regime da injunção.
O problema enfrentado pela lei exige uma efetiva mutação nas mentalidades e na
praxe comercial. A melhor defesa dos devedores é, sempre, o exato e correto
cumprimento do que tenham assumido.
No plano europeu, a falta de resultados derivados da Diretiva n.º 2000/35 levou a
uma nova e mais enérgica intervenção: levada a cabo pela Diretiva n.º 2011/7. O diploma
aplica-se a transações comerciais, isto é, entre empresas ou entre empresas e entidades
públicas. Toma uma série de medidas tendentes a incentivar o pagamento pontual dos
montantes devidos e, designadamente:
- Quando haja prazo estipulado e este seja ultrapassado, vencem juros de
mora independentemente de interpelação;
- Não se tendo estipulado prazo, após 30 dias sobre a emissão da fatura.

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No mínimo e independentemente de interpelação, o credor receberá 40,00€, a que


acresce uma indemnização razoável pelos custos acrescidos que o credor tenha de
suportar.
A Diretiva n.º 2011/7 foi transposta pelo Decreto-lei n.º 62/2013, de 10 de maio.
Foi revogado o anterior Decreto-lei n.º 32/2003.

3.1. A solidariedade dos co-obrigados.


O art.100.º estabelece a regra supletiva da solidariedade passiva, nas obrigações
comerciais. No Direito comum, por via do art.513.º CC, vigora a regra inversa (ou seja, a
conjução).
O art.100.º afasta essa regra, nos contratos mistos, quanto aos não-comerciantes:
aí, a exigibilidade in totum et totaliter terá de ser convencionada, nos termos do referido
art.513.º CC. Resta acrescentar que, nas relações comerciais, são frequentes as
convenções de solidariedade.
Nos termos do art.100.º/§único, a solidariedade passiva não é extensível aos não
comerciantes, quando em relações o ato não constituir ato comercial.

3.2. A responsabilidade solidária do fiador.


O art.101.º estabelece uma solidariedade do fiador de obrigação mercantil, mesmo
que não comerciante. Este é um regime que exprime a proteção que é facultada ao credor
no Direito Comercial, que pode acionar conjuntamente ambos o devedor afiançado e o
seu fiador, ou um deles conforme lhe convier mais, o que facilita a cobrança do crédito.
Desde logo, temos uma manifestação da natureza acessória da fiança: esta será
comercial quando a obrigação principal o seja.
De seguida, ocorre um afastamento do benefício da excussão previsto no
art.638.º/1 CC. Desenha-se, aqui, um tipo contratual próprio: o da fiança comercial.

3.3. O regime especial conjugal por dívidas.


As obrigações comerciais originam um regime especial, no tocante à
responsabilidade dos cônjuges. Nos termos do art.1696.º, pelas dívidas dos cônjuges,
respondem apenas os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidariamente, a sua meação
nos bens comuns, com as exceções do n.º 2.
No entanto, é estabelecida uma exceção. Segundo o art.1691.º/1/d CC (e art.15.º
CComercial), ambos são responsáveis pelas dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges

121
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito


comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens.
Este preceito permite evitar a comunicabilidade das dívidas comerciais através da
elisão da presunção de proveito comum: maior equidade e menor segurança para o
comércio. O ónus da elisão compete, nos termos gerais, ao cônjuge interessado em não
arcar com a responsabilidade pela divida comercial em causa. Tudo depende, todavia, de
o credor demonstrar a qualidade de comerciante do devedor.
A matéria atinente à solidariedade comercial e ao regime de responsabilidade por
dívidas dos cônjuges apresenta alguma subtileza, com dúvidas na execução, o ónus da
prova da comercialidade cabe ao interessado, o que mais agrava a situação.
O comércio não se compadece com tal situação. Assim, é frequente os operadores
comerciais, particularmente a banca, quando deparem com regimes de comunhão geral
ou de adquiridos, exigirem a vinculação de ambos os cônjuges, em termos de
solidariedade.

3.4. A onerosidade: os juros. O art.102.º do CCom.


O art.102.º do CComercial remete a concreta taxa de juro comercial para outros
normativos que vão sendo atualizados regularmente.
De qualquer forma, a convenção das partes sobre os juros comerciais deve ser
estipulados por escrito (art.102.º/§1.º), o que vem trazer segurança ao sistema.
Se não for estabelecida uma taxa de juro, aplica-se a taxa supletiva que resulta do
DL n.º 62/2013, a Portaria 277/2013 e o Aviso n.º 9939/20185
Estas taxas servem para renumerar uma obrigação comercial quando ela seja
onerosa e não tenha sido estabelecida por qualquer das partes.
Também há uma remissão expressa para o art.559.º - A e 1146.º do CC, sendo,
assim, unificados os regimes civil e comercial de usura. Constitui usura a estipulação de
juros que excedam os limites legais em 3% ou 5% consoante haja, ou não, garantia real.
É também usurária a cláusula penal que fixe como indemnização devida pela falta de
restituição do empréstimo mais do que 7% a 9% acima dos juros legais (cfr. haja garantia
real).
As taxas usurárias são reduzidas aos limites legais, o que revela a natureza de
ordem pública destes limites e da redução.

5
A taxa é publicada pela Direção Geral do Tesouro e Finanças semestralmente. Neste momento a taxa é
de 8% para as transações abrangidas pelo DL n.º 62/2013.

122
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Do texto do 102.º resulta uma diferença entre os juros moratórios e os juros


remuneratórios.
Os juros remuneratórios correspondem economicamente ao preço do dinheiro,
ao custo da concessão de crédito, seja pelo vendedor ao comprador seja pelo Banco ao
cliente, é a contrapartida da privação temporária do uso do dinheiro.
Os juros moratórios correspondem à indemnização dos custos induzidos pelo
atraso no recebimento de quantias que deveriam ter sido recebidas em certo tempo e não
o foram.
O §2 remete o regime das taxas para os art.559.º - A e 1146.º do CC, logo há
limites máximos para as taxas de juros:
- Para os juros remuneratórios, o art.1146.º/2 considera usurárias as taxas
que excedam os juros legais acrescidos de 3%, com garantia real, ou 5% sem garantia
real.
- Para os juros moratórios, o art.1146.º/2 tem como usurárias as taxas que
excedam os juros legais acrescidos de 7% com garantia real e 9% sem garantia real.
Do §3 e do §4 concluímos que a taxa de juros legais é fixada por portaria conjunta
dos Ministros da Finança e Justiça, num mínimo de 7% acima da taxa de refinanciamento
do BCE e são usurárias:
- As taxas de juro remuneratório que excedam o juro legal em mais 3%
(com garantia real) e 5% (sem garantia);
- As taxas de juro moratório que excedam em mais de 7% (com garantia
real) ou 9% (sem garantia).
Já quanto às instituições de crédito, são elas que, dependendo do custo dos seus
recursos e das condições vigentes no marcado, fixam as taxas de juros nas operações
ativas que praticam.

3.5. A disciplina do atraso nos pagamentos*.


O atraso no pagamento das transações comerciais é regulado pelo Decreto-Lei n.º
62/2013 (que transpõe a Diretiva 2011/7/UE).
O âmbito de aplicação deste DL não é o mesmo que o CComercial
No DL estabelece-se o vencimento automático, sem necessidade de interpelação
(art.4.º/3) e regras conexas.
Ainda se estabelece a indemnização pelos custos com cobrança (art.7.º) e a
proibição de cláusulas e práticas abusivas (art.8.º)

123
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto ao âmbito objetivo de aplicação (art.1.º), são os atrasos de pagamentos de


transações comerciais, sendo que no art.3 temos as definições operativas que funcionam
no contexto deste DL;
Como sei se há ou não transação comercial?
- O art.3.º/b refere que uma transação comercial é diferente de ato de
comércio. Para efeitos do DL, falo de transações comerciais. SÓ NESTE
CONTEXTO é que isto vale. Atos de comércio são uma coisa e transações
comerciais são outra. As transações englobam prestações de serviço de arquitetos,
profissionais liberais... Isto não sucede nos atos de comércio;
- O art.3.º/d dá-nos a definição de empresa – abrange comerciantes e toda
a categoria de pessoas que não são comerciantes, mas que de alguma forma podem
estar relacionada com a prática de atividades económicas de forma autónoma.
Pessoas semelhantes a comerciantes cabem no conceito de empresa para este DL
EM ESPECÍFICO.
- Art.2.º/2/a;
- O art.4.º/3 do DL, refere as obrigações puras, o prazo para cumprir e a
mora;
Segundo o DL:
- Não precisamos de interpelar para pagamento – aliás, vem sob forma de
fatura;
- Juros contam a partir do vencimento da obrigação;
ASSIM, para aplicar o DL:
- 1.º Passo - Classificar transação comercial;
- 2.º Passo - Vou ao art.3.º/b) para ver o que é uma transação comercial e ao 3.º/d
(conceito de empresa);
- 3.º Passo - é um caso do 2.º/2/a?
- 4.º Passo – 4.º/3 – condição de aplicação? Falta de convenção das partes.
- 5.º Passo - Cálculos de Juros – 4.º/1 + 4.º/3 + 9.º + Portaria 277/2013 26 de
agosto + Aviso 9939/2018 Direção Geral de Finanças 2677 + 102.º/§5 do CCom.
A partir do aviso fixam-se as taxas de juro do 2.º semestre de 2018.

3.6. A prescrição presuntiva dos créditos comerciais.


Ainda como especialidade do comércio, deve-se assinalar a prescrição presuntiva
bienal prevista no art.317.º/b do CC. As prescrições presuntivas, tipicamente latinas,

124
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

fundam-se na presunção de cumprimento das dividas envolvidas. Entre o elenco das


situações previstas com esse alcance contam-se, nos termos da referida alínea:
“Os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja
comerciante ou os não destine ao ser comércio, e bem assim os créditos daqueles que
exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou
produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas
que hajam efetuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do
devedor.”
O conteúdo deste preceito tem vindo a ser precisado pela jurisprudência. No
tocante ao comércio, ele coloca um encargo: de uma especial diligência na cobrança de
dívidas, particularmente no relacionamento com não-comerciantes.
Visa-se o andamento rápido dos negócios, com segurança para os participantes no
mercado.

PARTE III - A DINÂMICA DA ACTIVIDADE COMERCIAL E DA EMPRESA


CAPÍTULO VIII - CONTRATOS E OPERAÇÕES COMERCIAIS

1. Introdução. A contratação comercial.


A fixação de um elenco de contratos especiais de comércio levanta problemas
praticamente insolúveis. Logo para começar, recoloca a problemática da determinação
dos atos de comércio, e o numerus apertus torna-o numa mera sequência exemplificativa.
Como primeira base de trabalho, temos o CCom, cuja versão original considerava
como atos de comércio: sociedades; contas em participação; empresas; mandato; letras,
livranças e cheques; a conta-corrente; operações de bolsa; operações de banco; transporte;
empréstimo; penhor; depósito; depósito de géneros e mercadorias nos armazéns gerais;
seguros; compra e venda; reporte; escambo ou troca; aluguer; transmissão e reforma de
títulos de crédito mercantil.
A matéria das sociedades foi retirada do CCom para o CSC, um ramo jurídico
autónomo.
A conta em participação tem hoje diploma legal específico: DL n.º 231/81, de 28
de Julho.
As empresas do art.230.º não devem ser consideradas contratos.

125
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

As letras, livranças e cheques são tratadas pelas leis uniformes respetivas, e têm a
sua própria autonomia enquanto disciplina jurídica, no Direito dos títulos de crédito.
As operações de bolsa incluem-se no Direito dos valores mobiliários.
As operações de banco dão azo aos contratos bancários: podem, comodamente,
englobar a conta-corrente, o empréstimo, o penhor e o depósito.

A. Contratos extravagantes; tipos sociais


Fora do CCom há seis tipos de contratos a apontar:
- Contrato de associação em participação e o contrato de consórcio. DL n.º
231/81, de 28 de Julho, que revogou a conta em participação;
- Contratos de mediação, com foco no contrato de mediação imobiliária,
hoje tratado pelo DL n.º 211/2004, de 20 de Agosto, alterado e republicado pelo
DL n.º 69/2011, de 15 de Junho; e a mediação dos seguros, regulada pelo DL n.º
144/2006, de 31 de Julho, alterado pelo DL n.º 359/2007, de 2 de Novembro e pela
Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho;
- O contrato de agência, regulado pelo DL n.º 178/86, de 3 de Julho, com
alterações do DL n.º 118/93, de 13 de Abril;
- O contrato de locação financeira, regulado pelo DL n.º 149/95, de 24 de
Junho, com alterações do DL n.º 265/97, de 2 de Outubro, do DL n.º 258/2001, de
3 de Novembro, e do DL n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro;
- O contrato de cessão financeira, regulado pelo DL n.º 171/95, de 18 de
Julho, alterado pelo DL n.º 186/2002, de 21 de Agosto.
Temos ainda diplomas relativos a negócios de crédito e suas garantias.
A associação em participação e o consórcio têm natureza organizativa a explicitar.
Surgem na sequência da conta em participação, à qual o primeiro veio a suceder, o que
lhes confere natureza comercial. O contrato de agência tem uma flagrante ligação com a
figura geral do mandato comercial, embora sirva, também, a distribuição. Por isso,
mesmo considerando que apenas a tradição pode valer, a um contrato, o especial
qualificativo “comercial” não oferece dúvidas a sua inclusão neste elenco.
Quanto aos contratos bancários: trata-se de contratos comerciais, de acordo com o
art.362.º CCom.
Sem regulação legal expressa, podemos ainda apontar as seguintes figuras
normalmente usadas por comerciantes, no exercício da sua profissão:

126
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Contratos de promoção: o patrocínio, a publicidade e certas modalidades


de mediação;
- Contratos de distribuição: a concessão comercial e a franquia;
- Contratos de organização: o lojista em centro comercial, a engenharia e
certas modalidades de empreitada.

1.1. O princípio da liberdade contratual.


1.1.1. Numerus aparatus.
O Direito Comercial dos contratos, enquanto Direito Privado, é dominado pelos
princípios comuns e, em especial pela autonomia privada, genericamente consignada no
art.405.º/1 CC. As partes podem, pois, celebrar os contratos que entenderem e,
designadamente:
- Escolher um tipo legal previsto na lei;
- Eleger um tipo social que, embora sem previsão legal especifica, esteja
consagrado pelos usos e pela prática do comércio;
- Remeter pura e simplesmente para um modelo estrangeiro ou consagrado
na prática estrangeira, ainda que submetendo-o, no que as partes não regulem, à
lei nacional;
- Associar, num mesmo contrato, regras provenientes de dois ou mais tipos
legais ou sociais;
- Inserir, junto de cláusulas típicas, proposições inteiramente novas de sua
lavra;
- Engendrar figuras contratuais antes desconhecidas;
- Adotar contratos comerciais apenas consignados em leis estrangeiras,
quando as normas de conflitos o permitam.
Tanto basta para se considerar que, no Direito Comercial, vigora um postulado de
numerus apertus: o número de atos mercantis teoricamente possíveis é ilimitado.
Da vigência de um numerus apertus negotiorum decorrem, sempre de acordo com
os vetores gerais, dois corolários significativos:
- As descrições legais relativas a contratos comerciais não são
contratualmente típicas: trabalhamos com conceitos de ordem, os quais permitem
a juridificação de elementos a eles alheios;

127
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- As regras comerciais são suscetíveis de aplicação analógica, mesmo


quando especialmente previstas para um determinado tipo; essa aplicação é, de
resto, possível dentro e fora do Direito Mercantil.
A existência de um numerus apertus de contratos comerciais e o progressivo
envelhecimento do Código Veiga Beirão conduzem a que muitos dos atos hoje praticados
não se revejam nele.
Nos diversos países, a falta de regulação codificada vem sendo suprida pelas
cláusulas contratuais gerais e pelo Direito consuetudinário: quanto a este último, é o que
sucede hoje, por exemplo, na Alemanha, com os contratos de locação financeira (leasing)
e de cessão financeira (factoring).
A referência, no Direito Comercial, a um numerus apertus de figuras e à
autonomia privada levam a colocar o tema do poder juridificador do mercado. Na opinião
do professor MENEZES CORDEIRO, trata-se de uma colocação a ter em conta, todavia,
mesmo aceitando o papel do mercado, este deve ser delimitado: qualquer atuação ilícita
não deixará de o ser, por obedecer às leis do mercado. Há regras juridicamente
necessárias.

A. Consensualidade e Normalização
A liberdade de forma dos atos jurídicos, genericamente prevista no art.219.º CC,
é ainda um corolário do princípio da autonomia privada. Assim, as partes podem obrigar-
se livremente, pela via que bem escolherem, salvo regra em contrário.
De um modo geral, podemos considerar que, no Direito Comercial, as exigências
formais são menores. Por isso, encontramos derrogações na forma exigida para certos
atos: normas comerciais especificas prescrevem, para certos atos, um formalismo menos
exigente do que o requerido no Direito Civil. Por vezes, áreas específicas do Direito
Comercial, como o Direito Bancário, fixam desagravamentos ainda maiores.
Esta ideia funciona perante outras atuações que devam acompanhar as declarações
de vontade, com relevo para a entrega da coisa, nos contratos reais quoad constitutionem.
Assim, o penhor civil exige o desapossamento do devedor – art.669.º/1CC; o penhor
mercantil contenta-se com a entrega simbólica da coisa – art.398.º C. Comercial; o penhor
bancário dispensa qualquer entrega.
A propósito de cada ato dotado de consagração legislativa, haverá que indagar a
solução vertida na lei.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A desformalização dos contratos comerciais é aparentemente contraditada pelas


necessidades de rapidez e de segurança que reinam no mundo dos negócios. Um tanto
paradoxalmente, o consensualismo retarda a prática de certos atos: implica que as pessoas
se conheçam, troquem mensagens preambulares e, depois, se ponham de acordo quanto
ao negócio pretendido. Não pode ser, a prática de cláusulas contratuais gerais conduz a
uma normalização da vida comercial, particularmente em áreas sensíveis como a da
banca, a dos transportes e a dos seguros. Essa tendência agrava-se pela necessidade de,
rapidamente, com eficácia e sem dúvidas, exibir a prova dos atos celebrados. Tal prova
colocaria imensos problemas, quando se reportasse à prática oral de atos.
Os compromissos comerciais modernos tendem a ser celebrados por escrito, pelas
razões apontadas. O recurso intensivo a cláusulas contratuais gerais permite aproveitar
textos já impressos em formulários adequados, nos quais o consumidor ou o pequeno
comerciante se limitam a assinalar a sua vontade em determinadas quadriculas, mediante
a aposição de cruzes. Através de cláusulas contratuais gerais, as partes estipulam, ainda e
muitas vezes, a sua vontade de, apenas por escrito e mediante determinados canais,
convencionarem novas alterações.
A própria defesa do consumidor requer, muitas vezes e até por exigências legais
explicitas, o recurso à forma escrita. Esta torna mais consciente o pequeno contraente
permitindo, depois, o controlo a posteriori.

B. Delimitação Negativa
A autonomia das partes que domina o Direito Comercial encontra, na sua frente,
diversos vetores injuntivos que provocam a sua delimitação negativa.
Os requisitos gerais do negócio jurídico são aplicáveis aos contratos comerciais.
Assim, estes devem respeitar o art.280.º CC sendo, em especial:
- Possíveis, quer física quer juridicamente;
- Determináveis, ainda quando indeterminados, no momento da sua
conclusão;
- Lícitos;
- Conformes com os bons costumes e a ordem pública.
O exercício do comércio tem a sua deontologia. Poder-se-ia tolerar que o
ocasional caia na barganha e procure, num negócio, faturar vantagens extraordinárias.
Mas a um profissional isso não é permitido. Margens de lucro exorbitantes jogam, a prazo,
contra o mercado e contra os seus operadores. Um comerciante não pode enganar o seu

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

cliente: isso equivale a erradicar novos negócios e, no limite, a esterilizar um segmento


de mercado.
Está presente uma especial filosofia do mercado. Os atos devem ser praticados
com celeridade e eficiência. A sua justiça e o seu equilíbrio intrínsecos serão um fator
suplementar de rapidez e proficuidade.

1.2. Contratos mistos e união de contratos.


1.2.1. Contratos mistos
As partes têm a possibilidade de juntar num único contrato cláusulas provenientes
de diversos tipos contratuais ou, ainda, de reunir, também no mesmo instrumento,
cláusulas típicas e cláusulas novas. Os híbridos daí resultantes podem, de resto,
configurar-se como tipos comerciais sociais: basta que apresentem uma certa estabilidade
ditada pela prática mercantil. Em qualquer dos casos, há que lidar com as regras sobre
contratos mistos.
Em rigor, de acordo com os quadros civis, seria possível distinguir:
- Contratos típicos: aqueles cuja regulamentação geral consta da lei;
- Contratos mistos em sentido estrito: aqueles que resultem da junção, num
único instrumento contratual, de cláusulas retiradas de dois ou mais contratos
típicos;
- Contratos mistos em sentido amplo: aqueles que correspondam a um
conjunto de cláusulas próprias de tipos contratuais legais e de cláusulas
engendradas pelas partes;
- Contratos atípicos (em sentido estrito): aqueles que surjam como total
criação da vontade das partes.
Uma vez que resultam da autonomia privada, os contratos mistos podem-se
multiplicar até ao infinito. No entanto, é comum apontar algumas das suas configurações
mais habituais. Assim:
- Contratos múltiplos ou combinados: uma das partes está vinculada a
prestações específicas de vários tipos contratuais enquanto a outra está obrigada a
uma prestação própria de um único tipo;
- Contratos de tipo duplo ou geminados: uma das partes está ligada à
prestação típica de um contrato enquanto a outra deve realizar a prestação própria
do outro;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Contratos mistos em sentido estrito, indiretos ou cumulativos: as partes


escolhem um certo tipo contratual mas utilizam-no de tal modo que, com ele,
prosseguem o escopo próprio de outro;
- Contratos complementares: a obrigação própria de um contrato é
acompanhada por obrigações retiradas de tipos contratuais diferentes.
Quando decidam utilizar a sua autonomia de modo a compor novas fórmulas
contratuais, as partes não podem, em regra, limitar-se a juntar, unicamente, cláusulas
provenientes de vários tipos contratuais: seria necessário engendrar cláusulas de
adaptação que, para além de contemplarem casos concretos, assegurassem ainda a
concatenação entre as várias parcelas. Muitas vezes, os contratos assim nascidos são
inominados.
Os contratos regem-se, em princípio, pelas regras pretendidas pelas partes. Deve
entender-se que apenas por exceção a lei interfere na liberdade contratual associando, aos
negócios por elas celebrados, cláusulas ou regras de sua autoria.
Nos contratos mistos, esse princípio é, ainda, mais ponderoso. De facto, o contrato
misto é, por definição, atípico ou não previsto na lei. Procurar, nesta, normas que se lhe
apliquem conduz a fatais perturbações ou desvios: a lei, pura e simplesmente, não previu
o caso em causa.
Não obstante, pode suceder que as partes estabeleçam um contrato misto, mas sem
prever, para ele, um particular e explicito regime. Nessa ocasião, poderá ser necessário
recorrer à lei, ainda que a título supletivo. Faz então sentido procurar fixar, em abstrato,
o regime correspondente ao contrato em jogo.
Historicamente, existem três teorias explicativas do problema:
- Pela teoria da absorção haveria que determinar, em cada contrato misto
concretamente surgido, qual o elemento tipicamente prevalecente; esse elemento
diria, depois, o regime de conjunto;
- Pela teoria da combinação impor-se-ia uma dosagem entre os regimes
próprios dos diversos tipos contratuais em presença; todos eles contribuiriam para
fixar o regime final do contrato misto a integrar;
- Pela teoria da analogia considerar-se-ia que o contrato misto, por
definição, seria um contrato não regulado na lei; assim sendo, lidar-se-ia com uma
lacuna que não poderia deixar de ser integrada, nos termos gerais.
Quando tomadas de modo isolado, todas estas teorias levantam dúvidas e prestam-
se a críticas:

131
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A teoria da absorção pode desvirtuar alguns dos contratos mistos,


reduzindo, excessivamente a autonomia privada. Na verdade, um contrato misto
será sempre mais do que, apenas, um dos seus elementos, por dominante que se
apresente.
- A teoria da combinação também teria o seu quê de limitador; o contrato
misto tem um valor de conjunto que transcende a soma das meras parcelas que o
formem: o seu regime não pode, pois, ser um somatório de elementos
preexistentes. Além disso, verifica-se que a teoria da combinação não dá a forma
de articulação dos diversos regimes nem exprime o peso relativo que cada um
deles deverá ter na solução final. De todo o modo, quando o contrato considerado
tenha cláusulas de origem bem marcada, ela é operacional, ainda que sempre sob
sindicância;
- A teoria da analogia, por fim, ignora a vontade das partes e é puramente
formal: não esclarece qual o critério para considerar análogos casos integráveis
nos diversos tipos contratuais.
A doutrina obrigacional clássica aponta soluções mais moderadas: a teoria da
combinação aplicar-se-ia a contratos múltiplos e aos geminados, ficando a da absorção
para os contratos cumulativos e para os complementares.
O professor MENEZES CORDEIRO entende que este deve ser o entendimento a
adotar, todavia, adiciona que, o essencial terá de residir sempre na autonomia privada:
quando este seja omissa, impõe-se recorrer aos princípios gerais de integração dos
negócios jurídicos, com relevo para a vontade hipotética das partes e para a boa-fé.
Este último aspeto tem vindo, na doutrina mais recente, a dar um certo fôlego à
teoria da absorção. Na verdade, as partes, ao contratar, ainda que através de composições
mistas, terão tido em vista algum ou alguns efeitos primordiais. Tais efeitos impregnam
o contrato. Eles irão constituir o centro de gravidade do conjunto, propiciando a aplicação
das regras dirigidas, justamente, aos aspetos preponderantes.
Trata-se de um ponto com relevo específico no Direito Comercial. As
necessidades de normalização, de simplicidade e de rapidez levam a que, as partes,
mesmo quando acrescentem determinadas cláusulas atípicas, tenham em vista um
determinado padrão a que, apesar de tudo, ainda seja possível reconduzir o contrato. As
regras típicas mais próximas serão, assim, aplicáveis, quando, in concreto, não se
imponham outros esquemas.

132
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Trata-se de um ponto bastante relevante no Direito Comercial. A necessidade de


normalização, de simplicidade e de rapidez levam a que, as partes, mesmo quando
acrescentem determinadas cláusulas atípicas, tenham em vista um determinado padrão a
que, apesar de tudo, ainda seja possível reconduzir o contrato. As regras típicas mais
próximas serão, assim, aplicáveis, quando, in concreto, não se imponham outros
esquemas.
É também a teoria da absorção, na fórmula acima apontada do centro de gravidade,
que permite delucidar a natureza objetivamente comercial ou não comercial dos contratos
mistos.
Não sendo possível a qualificação subjetiva (p.e., o contrato é comercial por ter
sido celebrado entre comerciantes no exercício da sua profissão) – haverá que determinar
o âmbito em que cai o essencial do contrato. Seja ele mercantil e comercial será o contrato,
no seu todo.

1.2.2. Coligações de Contratos


Nos Direitos codificados, o contrato é tratado como uma figura isolada; surge
como um espaço insular e bem delimitado; apresenta-se como uma figura autónoma e
inteiramente desligada, quer em termos de celebração, quer no regime, de quaisquer
outros negócios circundantes.
Todavia, o tráfego comercial faculta um cenário efetivo bastante diferente. Muitas
vezes os contratos encandeiam-se, uns nos outros, de tal modo que surge toda uma série
de interações relevantes para o regime aplicável. O recurso a vários contratos
devidamente seriados e articulados é particularmente indicado para enquadrar situações
complexas: uniões ou coligações de contratos.
Os contratos em coligação distinguem-se dos contratos mistos: nos primeiros,
diversos negócios encontram-se associados em função de fatores de diversa natureza, mas
sem perda da sua individualidade; nos segundos, assiste-se à presença de um único
contrato que tem elementos próprios de vários tipos contratuais.
Nas uniões de contratos distinguem-se:
- A união externa, em que dois ou mais contratos surgem materialmente
unidos, sem que entre eles se estabeleça um nexo juridicamente relevante.
- A união interna, em que dois ou mais contratos surgem conectados
porquanto alguma das partes (ou ambas) concluem um deles subordinantemente à
conclusão de outro ou em função desse outro

133
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A união alternativa, em que a concretização de um contrato afasta a


celebração do outro.
Numa tentativa mais abrangente, o professor MENEZES CORDEIRO entende
que é possível apresentar um novo quadro. Deixando de parte as uniões externas e
alternativas, verifica-se, no tocante às internas, que elas podem ser arrumadas em função
de vários critérios.
Assim, de acordo com o tipo de articulação, podem-se distinguir:
- Uniões processuais, que ocorrem quando vários negócios se encontrem
conectados para a obtenção de um fim;
- Uniões não-processuais, que ocorrem nos casos em que não ocorrem as
segundas.
De acordo com o conteúdo, surgem:
- Uniões homogéneas, em que os contratos em presença são do mesmo
tipo:
- Uniões heterogéneas, em que os contratos se reconduzem a tipos
diferentes.
O modo de relacionamento entre os contratos coligados permite apurar:
- Uniões hierárquicas, em que um segundo contrato encontra-se
subordinado a um primeiro, porquanto encontra neste a sua fonte de legitimidade;
tal será o caso, por exemplo, da agência/subagência
- Uniões prevalente, em que um contrato especifica o objeto, o conteúdo e
o regime de um certo espaço jurídico o qual irá, depois, ser retomado, por
remissão, pelo segundo; por exemplo, uma compra mercantil e a subsequente
revenda. As uniões prevalentes são frequentes nas situações em que um contrato
de base seja servido por vários contratos instrumentais ou, simplesmente, em que
ta contrato seja concretizado por outros – poe exemplo, contrato-promessa e
contrato definitivo. Às uniões prevalentes também se pode chamar uniões com
subordinação.
- Uniões paritárias, em que vários contratos surgem conectados
internamente, mas em pé de igualdade, por exemplo, várias compras e vendas.
O tipo de articulação, por fim, permite distinguir:
- Uniões horizontais ou em cadeia, em que vários contratos conectam-se
na horizontal, celebrados em simultâneo ou sem que, entre eles, se estabeleçam
espaços de tempos relevantes

134
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Uniões verticais ou em cascata, em que os contratos se articulam na


vertical, dependendo uns dos outros ou justificando-se, nessa linha, entre si, de
modo a dar corpo a uma ideia de sucessão.
Como salienta o professor MENEZES CORDEIRO, é importante deixar claro o
fundamento do regime das coligações de contratos ou, se se quiser, das interações
relevantes, em termos jurídicos, que delas derivem: a autonomia privada. As partes são,
por certo, livres de contratar e, fazendo-o, de inserir nos contratos as cláusulas que lhes
aprouver. Simplesmente, quando através de uma associação contratual ou de contratos
previamente celebrados, elas optem, livremente, por um certo tipo de soluções, cabe-lhes
honrar a palavra dada, salvo impedimento ou justificação legais.

A. Efeitos
A1. Validade
Nas uniões verticais, pode suceder que os contratos posteriores vejam a sua
validade dependente da dos anteriores. E isso por uma de três vias:
- Da legitimidade - Uma coligação de contratos pode estruturar-se de tal
modo que a legitimidade para a celebração de um segundo contrato dependa da
idoneidade de um primeiro. Por exemplo, a invalidade da agência determina, ipso
iure, a ilegitimidade da subagência.
- Do vício na formação da vontade - Verifica-se que, em certos casos, um
dos contratos é celebrado na convicção da existência válida do outro; uma falha a
nível deste último abre brechas no primeiro, por vicio na formação da vontade.
Tal é o caso radical do contrato-promessa/contrato definitivo: as partes que
celebrem uma compra e venda em execução de um contrato-promessa que se
venha a revelar nulo, podem proceder à competente anulação: ele foi celebrado no
pressuposto da existência do dever de contratar, no que pode ser considerado um
erro sobre o objeto.
- Da ilicitude - Traduz ocorrências nas quais um primeiro contrato
inviabilize a celebração de certos negócios. Pense-se num pacto de não-
concorrência: salvo um distrate, as partes envolvidas não podem celebrar negócios
de determinado teor. Caso ocorram, eles serão ilícitos com todas as consequências
que isso possa acarretar.

B. Conteúdo

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As coligações revelam, depois, no conteúdo. E isso por algum dos três caminhos
seguintes:
- Por remissão – Esta existe quando um contrato, de modo implícito ou
explicito, apele para outro, no tocante às regras que estabeleça.
- Por condicionamento - Existe nos casos em que um contrato não possa,
na sua regulamentação, ir além de certos limites prescritos em contrato anterior
ou, muito simplesmente, deva seguir vias por ele pré-determinadas.
- Por potenciação - Existe sempre que os contratos unidos sejam
necessários para a obtenção de objetivos comuns, os quais ficarão perdidos na
falha de algum deles.

C. Interpretação
As uniões têm um papel na interpretação.
Perante contratos unidos, em cadeia ou em cascata, a interpretação das declarações
em jogo deve ter o conjunto em conta. Um declaratário normal pode ser levado a dar, as
declarações negociais que porventura receba, sentidos diferentes consoante os contratos
antecedentes que, com elas, se apresentem conectados. Elas refletem, ainda, na cessão
dos contratos envolvidos: dependendo do caso concreto, pode a impunibilidade de um
dos contratos coligados, inviabilizar o conjunto, assim como a resolução ou a denúncia
de alguns deles podem fazer cair todas elas.

1.3. Papel jurídico-científico da Contratação Comercial


A contratação comercial tem um papel jurídico-científico que, muitas vezes, não
é referido. Com efeito, o aprofundamento da matéria envolvida cabe, na tradição
continental, ao Direito Civil. Todavia, o grande motor de toda a evolução, no domínio
contratual ou, mais latamente, na área do Direito das obrigações, advém do Direito
Comercial.
Institutos como a culpa in contrahendo, a contratação mitigada, as cláusulas
contratuais gerais, a boa-fé na execução dos contratos, a alteração das circunstâncias, a
transmissão das obrigações, a tutela da confiança e a responsabilidade obrigacional,
surgiram e desenvolveram-se no campo mercantil.
É neste que, pelos valores envolvidos, pela complexidade das relações e pela
capacidade dos sujeitos fazerem valer os seus direitos, surgem os problemas capazes de
provocar decisões exemplares.

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1.4. Caraterísticas da contratação mercantil hodierna.


O REGENTE apresenta um conjunto de fatores que condicionam e moldam a
contratação comercial hodierna. São de destacar:
- Riqueza e multiplicidade das figuras contratuais: A praxis contratual
demonstra uma grande dinâmica das empresas na criação de novas figuras
contratuais. O comércio internacional, em particular, tem sido um cadinho de
novas figuras de contratação.
Os conceitos e a linguagem do common law assumem um relevo especial,
bem visível nas designações: leasing, factoring, forfaiting, confirming, franching,
engineering, know-how, swaps, outsourcing, guarantees on first demand, project
finance, etc.
- Pressão para a harmonização e uniformização à escala europeia e também
internacional, como, por exemplo, nos dominios da agência, crédito aos
consumidores, contratação à distância, contratação eletrónica, práticas comerciais
desleais, etc.
- Necessidades de consideração dos direitos dos consumidores. Não é, na
realidade, possível dissociar os contratos de consumo da empresa e do
profissional: estamos, na maioria dos casos, formalmente, perante contratos
unilateralmente comerciais, tendo as empresas de considerar a legislação de
proteção dos consumidores, que se lhes impõe em termos imperativos.
A nível de características especiais dos contratos comerciais, destacamos, em
primeiro lugar, aquilo que podemos designar como a sua tendencial racionalidade
económico-comercial, o que postula a necessidade de dever ser dado especial relevo, não
apenas ao texto mas também ao contexto. Na doutrina, enuncia ENGRÁCIA ANTUNES
as seguintes características:
- Objetivação: os contratos comerciais seriam destinados a permanecer
indiferentes e sobreviver às vicissitudes do respetivo substrato pessoal, mormente
do empresário contraente.
No entanto, o REGENTE tem reservas à firmeza desta característica, que
vê, antes, como tendência.
- Massificação e padronização: temos já realçado a importância dos
contratos de adesão e do regime das cláusulas contratuais gerais. Importa ainda
recordar as alusões, feitas em Teoria Geral do Direito Civil e em Direito das

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Obrigações, aos contratos impostos, em que não há liberdade para celebrar o


contrato, e aos contratos ditados, nos quais são estabelecidos os termos e o
conteúdo do contrato.
Neste quadro, importa ainda trazer à colação o recurso a esquemas de
padronização não impostos juridicamente, mas a que as partes recorrem por
facilidade e numa lógica de realismo negocial, como acontece quando utilizam
incoterms.
- Mercadorização: sujeição dos contratos comerciais à regulação jurídica
do mercado. Como refere ENGRÁCIA ANTUNES, o regime dos contratos
comerciais tem sido altamente tributário da regulação jurídica do mercado,
conforme ilustram as disciplinas jurídicas da concorrência e da tutela do
consumidor.

1.5. A contratação comercial. Especificidades.


Quando se pondera as fontes e o regime geral dos atos de comércio, deve referir-
se a possibilidade de construir princípios comerciais materiais. Nessa ocasião, devem ser
localizados:
- A Internacionalidade;
- A Simplicidade e Rapidez;
- A Clareza Jurídica, a Publicidade e a Tutela da Confiança;
- A Onerosidade.
Esses princípios, que não são exclusivamente comerciais, procuram atingir o
Direito Comercial no seu todo, alargando-se, ainda, a setores normativos dele
autonomizados, como o Direito das Sociedades comerciais e o Direito dos títulos de
crédito.
Neste momento interessa, fundamentalmente, considerar os princípios e as regras
mais especificamente virados para o Direito dos Contratos Comerciais.

1.5.1. Culpa in Contrahendo


A. Deveres Pré-Contratuais Mercantis
A culpa in contrahendo é um instituto geral do Direito Privado. Dada, porém, a
sua concretização preferencial através de deveres de informação, ela apresenta-se, cada
vez mais, como um instituto vocacionado para atuar no campo dos serviços comerciais.

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As partes, quando iniciam negociações, não estão totalmente livres, não lhes é
possível praticar atitudes arbitrárias. Nas negociações preliminares, as partes devem
respeitar os valores fundamentais da ordem jurídica, pautando-se pela boa fé. O Código
Civil deixa claro esta solução no art.227.º.
Como figura assente num conceito indeterminado: o da boa fé, a responsabilidade
pré-negocial carece de um processo concretizador, a operar perante cada problema real.
O conhecimento e a ponderação das decisões jurisprudenciais que a consubstanciam têm,
pois, o maior interesse teórico e prático.
Uma sistematização operada com base na jurisprudência mais rica no domínio da
culpa in contrahendo permite afirmar que ela ocorre quando, na fase preparatória dum
contrato, as partes não acatem certos deveres de atuação que sobre elas impendem. E tais
deveres analisam-se em três grupos:
- Deveres de Proteção: nos preliminares contratuais, as partes devem
abster-se de atitudes que provoquem danos nos hemisférios pessoais ou
patrimoniais uma das outras; quando não, há responsabilidade;
- Deveres de Informação: num processo destinado à procura de consenso
contratual, as partes devem, mutuamente, prestar-se todos os esclarecimentos e
informações necessários à celebração de um contrato idóneo; ficam, em especial,
abarcados todos os elementos com relevo direto e indireto para o conhecimento
da temática relevante para o contrato, sendo vedada quer a omissão do
estabelecimento, quer a prestação de esclarecimentos falsos, incompletos ou
inexatos; as doutrina e jurisprudência da atualidade conferem uma intensidade
particular aos deveres de esclarecimento, a cargo de uma parte forte e a favor da
fraca;
- Deveres de Lealdade: a necessidade de respeitar, na sua teologia, o
sentido das negociações preparatórias não se esgota num nível informativo;
podem surgir deveres de comportamento material, com o mesmo sentido de evitar,
nos preliminares, atuações que se desviem da busca honesta dum eventual
consenso negocial; tais deveres englobam-se na ideia de lealdade; subcaso típico
e clássico de deslealdade in contrahendo reside na rutura injustificada das
negociações. Mas outras situações surgem, com relevo para aprática, nos
preliminares ou lateralmente, de atos de concorrência desleal.
Em termos gerais, o instituto da culpa in contrahendo, ancorado no princípio da
boa-fé, recorda que a autonomia privada é conferida às pessoas dentro de certos limites e

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sob valorações próprias do Direito; em consequência, são ilegítimos os comportamentos


que, desviando-se duma procura honesta e correta dum eventual consenso contratual,
venham a causar danos a outrem.
Da mesma forma, são vedados os comportamentos pré-contratuais que inculquem,
na contraparte, uma ideia distorcida sobre a realidade contratual.

B. Jurisprudência Comercial
A jurisprudência comercial portuguesa tem consagrado, dada a sua dimensão, a
culpa in contrahendo. E fê-lo, com especial acuidade, no domínio dos deveres de lealdade
pré-negociais, e no do dever duma completa e exata informação. Curiosa e
sugestivamente, as decisões emblemáticas sobre a culpa in contrahendo giram em torno
de questões comerciais.
O sentido geral da jurisprudência é bastante claro; deve, no entanto, ser precisado.
Em princípio, não há, nas negociações preliminares, um dever de celebrar o contrato
visualizado. Mas há, por certo, um dever de negociar honestamente.
Isso implica, desde logo:
- Que a parte não tenha a intenção de levar por diante as negociações o
deva, de imediato, comunicar à contraparte, de modo a não provocar, nela,
esperanças vãs, que induzam danos;
- Que a parte que detenha, nas negociações, informações vitais para a outra
parte as deva, também de imediato, comunicar à contraparte, de modo a evitar
contratos distorcidos e, posteriormente, danos; se não o quiser fazer, basta-lhe não
contratar.
Como se vê, mesmo as hipóteses de deslealdade, particularmente claras na rutura
injustificada das negociações, há sempre, ainda que mediatamente, um dever de
informação subjacente, que não foi cumprido.

C. Sentido e Consequências
A violação do art.227.º/1 CC, dá lugar a consequências que importam referir.
A pessoa que cometa tal violação está a pôr em causa deveres específicos de
conduta, de base legal. Assim, na opinião do professor MENEZES CORDEIRO, a
responsabilidade é obrigacional e não, apenas, aquiliana: foram violadas obrigações
legais e não, somente, o dever genérico de respeito, implícito no art.483.º/1 CC.

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Sendo obrigacional, presume-se a culpa, sempre que ocorra numa inobservância


da boa fé: dispõe, nesse sentido, o art.799.º/1 CC. A culpa envolve, aqui, a ilicitude e a
causalidade.
A natureza obrigacional da responsabilidade derivada da culpa in contrahendo é
essencial para se entender a aplicação do instituto pelos tribunais.
Existe um dever genérico de não causar danos a outrem. Quem, faltando à verdade
ou por outro meio idóneo, com culpa, lesar o direito de outrem, causando danos, responde,
nos termos gerais do art.483.º/1 CC. Tal sucederia se alguém convencesse outrem a lesar
o património próprio. Se a culpa in contrahendo viesse dizer isso mesmo, a propósito da
conclusão dum contrato, seria escasso o progresso.
Como destaca MENEZES CORDEIRO, a culpa in contrahendo surgiu,
precisamente, para suprir as insuficiências da responsabilidade aquiliana. Firmando a
existência de obrigações legais de informação e de lealdade, ela permite fazer funcionar
os esquemas de responsabilidade obrigacional, mais eficazes.
Consumada a violação, há um dever de indemnizar por todos os danos verificados.
Já houve conceções ligadas ao denominado interesse negativo e que pretendiam limitar,
a este, a indemnização a arbitrar.
A ideia de que, por culpa in contrahendo, haveria que responder, apenas, por
danos negativos, i.e,, pelos danos que não haveria de não tivessem ocorrido as
negociações falhadas, filia.se num entendimento da responsabilidade pré-negocial como
fruto de um contrato tácito, não cumprido, entre as partes. A limitação perdeu, hoje, a sua
base de apoio, dado o consenso existente em que a culpa in contrahendo deriva da
violação do princípio legal da boa-fé.
O art.227.º CC, não faz qualquer limitação; por isso deve entender-se que, violada
a boa-fé in contrahendo devem ser ressarcidos todos os danos causados. Ficam
envolvidos tanto os danos emergentes – incluindo todas as despesas perdidas – como os
lucros cessantes.
Os deveres de atuação próprios da fase pré-contratual e as dividas ocasionadas
pelo funcionamento da culpa in contrahendo na celebração de contratos comerciais têm,
elas próprias, natureza comercial.

D. Conteúdo do Dever de Informar


Um dos deveres por que se concretiza o instituto dito culpa in contrahendo é o de
informar. Trata-se, mesmo, de um dever envolvente: a própria deslealdade analisa-se,

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afinal, numa falta de informação. O dever de informar in contrahendo assume as mais


diversas configurações: tudo depende do contrato em jogo. De todo o modo, será possível
referenciar vetores abstratos atuantes, aquando da concretização.
À partida, o dever de informação tenderá a abranger tudo quanto, pela natureza da
situação considerada, não seja conhecido pela contraparte. Assim, ele será tanto mais
intenso quanto maior for a complexidade do contrato e da realidade por ele envolvida.
Em termos descritivos, o dever de informar poderá recair:
- Sobre o objeto do contrato: há que evitar que, por ação ou por omissão,
a contraparte caia em erro quanto ao objeto material do contrato, nos termos latos
em que essa realidade comporta; por exemplo: a informação contabilística
deficiente sobre o estado de uma empresa a alienar;
- Sobre aspetos materiais conexos com esse objeto: por vezes, o contrato
releva não apenas pelo objeto estrito sobre que recai, mas ainda por determinados
aspetos a eles ligados;
- Sobre a problemática jurídica envolvida: os contratos em estudo
assumem, por vezes, implicações jurídicas conhecidas por uma das partes e,
designadamente, pela proponente: há que levá-las ao conhecimento do parceiro
nas negociações;
- Sobre perspetivas contratuais ou sobre condutas relevantes de terceiros:
aquando da contratação e de acordo com as circunstâncias, há que transmitir, à
outra parte, dados corretos sobre o futuro do contrato e sobre condutas relevantes
de terceiros; pense-se, por hipótese, nas informações sobre a clientela, aquando da
transferência dum estabelecimento ou sobre as perspetivas de êxito, num contrato
de franquia;
- Sobre a conduta do próprio obrigado: a pessoa adstrita à informação deve
esclarecer a outra parte sobre a sua intenção de contratar e, designadamente, sobre
o seu empenho em levar a bom termo a contratação.
O dever de informar não é, apenas, conformado pelos elementos objetivos acima
enunciados.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a focar o relevo da pessoa da contraparte
nessa conformação. Ou seja: o dever de informar é tanto mais intenso e extenso quando
mais experiente ou ignorante for a contraparte.
A culpa in contrahendo tem vindo a ser usada, com certo êxito, como instituto a
tutelar a parte débil e a prevenir a conclusão de contratos injustos. E justamente, da culpa

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in contrahendo relevam, neste domínio, os deveres de informação. Embora a tutela do


contraente débil seja matéria de Direito civil, ela é também compartilhada pelo Direito
comercial: a unidade do sistema assim o exige.

1.5.2. Negócios preliminares e intercalares


A celebração de contratos comerciais pode ser precedida pela celebração de
negócios preliminares e intercalares. No Direito Comum documentam-se, como
exemplos, contratos-promessas, pactos de preferência, pacto relativos à forma e diversos
outros.
No Direito comercial, para além desses esquemas habituais, cabe apontar outros,
relativos ao próprio tipo de atividade aí em jogo ou dela emergentes. Podemos mesmo
acrescentar que, em virtude da complexidade de certas situações económicas, tais
ocorrências são de extremo relevo. Podemos aí incluir diversas figuras de contratos de
mediação, isto é, contratos concluídos com terceiros que assumem a obrigação de
proporcionar a celebração de ulteriores contratos definitivos.
A qualificação de determinado ato comercial como preliminar ou intercalar tem
interesse para permitir situá-lo em união com o contrato definitivo. A interpretação deve
ser feita em função do fim prosseguido pelas partes, havendo, ainda, múltiplas
implicações, quanto ao alcance e a própria validade dos atos emparelhados.

1.5.3. Contratação Mitigada


O processo relativo à formação dum contrato é, hoje, completado com recurso à
ideia de contratação mitigada. Também aqui temos uma figura comum particularmente
detetável no sector criativo do Direito Comercial.
Numa visão mais tradicional, perante um efeito jurídico determinado, uma de
duas:
- Ou as partes o querem e celebram o correspondente contrato;
- Ou não querem, e nada fazem.
- Depois, num prisma já mais avançado, surge uma terceira possibilidade:
é o contrato-promessa que admite, ele próprio, várias graduações, em função, por
exemplo, de haver ou não execução especifica.
A hipótese que agora se coloca é ainda mais flexibilizadora: poderia haver
vínculos mais lassos do que a própria promessa não executável especificamente, mas com

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relevância jurídica. A contratação mitigada daria azo a direitos e deveres diferentes dos
do contrato clássico mas, de todo o modo, com natureza jurídica.
No universo da contratação mitigada, pode-se encontrar, como exemplos
sedimentados pela prática, as seguintes figuras:
- As Cartas de Intenção (letters of intent): trata-se de declarações que
consignam uma vontade já sedimentada, mas que postulam, ainda, a prossecução
de determinadas negociações;
- Os Acordos de Base (heads of agreement, principles of agreement ou
Grundvereinbarungen): são acordos que surgem em negociações complexas, para
consignar o consenso no essencial, uma vez obtido; as negociações prosseguirão
depois, a nível teórico, para aplainar os aspetos secundários;
- Os Protocolos Complementares: surgem como convénios acessórios que
vêm regulamentar ou completar contratos nucleares.
Sendo sérias, as diversas figuras produzem, sempre, efeitos jurídicos. Assim e de
acordo com uma ideia meramente exemplificativa:
- As cartas de intenção sedimentam os aspetos nela consignados,
obrigando as partes envolvidas a prosseguir as negociações a partir do que, nelas,
esteja consignado;
- Os acordos de base envolvem o dever de respeitar o que neles se exprima,
mandando prosseguir as negociações de acordo com as linhas neles expressas;
- Os protocolos complementares resultam dos convénios nucleares,
devendo ser processados de modo a não provocar a sua frustração.
A contratação mitigada não se trata de uma contratação mais fraca, antes, duma
contratação diferente. Os deveres que resultem das várias fórmulas, acima referidas
poderão ser simples deveres de procedimento, de esforço ou de negociação. Mas eles
existem e devem ser cumpridos. A negociação, no seu todo, funciona como um valor
comercialmente relevante, que deve ser reconhecido e protegido pelo ordenamento.
A grande dúvida coloca-se perante as consequências do incumprimento. Quando
uma parte se recuse a prosseguir as negociações, quid iuris? Pode o Tribunal substituir o
faltoso ou deve este ser condenado em mera indemnização?
Na opinião do professor MENEZES CORDEIRO, tudo depende da
determinabilidade do contrato definitivo:

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- Quando a carta de intenções ou o acordo de princípios estejam tão


pormenorizados que, deles, se possa retirar o contrato a celebrar, pode haver
execução específica.
- Quando a margem de indeterminação não possa ser suprida, a única
solução para o incumprimento reside na indemnização compensatória: não pode
o Tribunal substituir-se a particulares, negociando por eles.

1.6. Conteúdo dos contratos comerciais.


A abordagem do conteúdo dos contratos comerciais impõe que, à partida, se
destaque, de novo, o relevo central e primeiro do princípio da liberdade contratual
(art.405.º CC), mais concretamente no que se refere à liberdade de modelação do
conteúdo do contrato.
As partes têm, à partida, liberdade de incluir nos contratos as cláusulas que lhes
aprouver, podendo também reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios
total ou parcialmente regulados na lei.
O art.405.º/1 alerta para os limites da lei ao princípio da liberdade contratual.
Longe vão, na verdade, os tempos, de feição liberal, em que o contrato, por um lado, e o
direito de propriedade, por outro, reinavam no sistema jurídico-privado sem limitações.
O próprio CC introduz limites, destacando-se os pasmados no art.280.º, 281.º ou no
art.282.º.
Naturalmente, que, para além dos limites da lei – incluindo a constitucional.
Importa considerar os limites do Direito que decorrem também de princípios e valores
jurídicos. Avulta aqui a importância central que o princípio da boa-fé assume no Direito
Privado e no Direito Comercial em particular.
Dentre os limites não especificamente comerciais ao princípio da liberdade
contratual, na vertente de liberdade de modelação do conteúdo, destaquem-se os
resultantes do regime das cláusulas contratuais gerais.
A LCCG contem uma secção (art.17,º a 19.º) relativa às relações entre empresários
e entidades equiparadas, elencando o art.18.º cláusulas absolutamente proibidas.
Conquanto a LCCG não se refira a comerciantes mas a empresários, podemos dizer que
estamos aqui perante matéria centralmente comercial, reportada a contratos
bilateralmente comerciais.
Destaque-se o art.18.º/l, que proíbe, em absoluto, as cláusulas contratuais gerais
que consagrem, a favor de quem se predisponha, a possibilidade de cessão da posição

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contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte,


salvo se a entidade do terceiro constar do contrato inicial.
Saliente-se também o art.19.º/h, que considera relativamente proibidas, consoante
o quadro negocial padronizado, as cláusulas contratuais gerais que consagrem, a favor de
quem as predisponha, a faculdade de modificar as prestações sem compensação
correspondente às alterações de valor verificadas.
Já no âmbito das relações com consumidores finais, e com particular relevo no
campo dos contratos bancários e financeiros, destaque-se, nas cláusulas relativamente
proibidas, o art.22.º/1/c, que considera proibidas, consoante o quadro negocial
padronizado, as cláusulas contratuais gerais que atribuam a quem se predisponha o direito
de alterar unilateralmente os termos do contrato, exceto se existir razão atendível que as
partes tenham convencionado. Dispõe, porém, o art.22.º/1 não determina a proibição de
cláusulas contratuais gerais que:
- Concedam ao fornecedor de serviços financeiros o direito de alterar a
taxa de juro ou o montante de quaisquer outros encargos aplicáveis, desde que
correspondam a variações do mercado e sejam comunicadas de imediato, por
escrito, à contraparte, podendo esta resolver o contrato com fundamento na
mencionada alteração.
- Atribuam a quem as predisponha o direito de alterar unilateralmente o
conteúdo de um contrato de duração indeterminada, contanto que se preveja o
dever de informar a contraparte com pré-aviso e se lhe dê a faculdade de resolver
o contrato.
Refira-se, no entanto, que, de acordo com o art.22.º/3, as proibições constantes do
art.22/1/c não se aplicam:
- Às transações referentes a valores mobiliários ou a produtos e serviços
cujo preço dependa da flutuação de taxas formadas no mercado financeiro (alínea
a);
- Aos contratos de compra e venda de divisas, de cheques de viagem ou de
valores postais internacionais expressos em divisas.
Do mesmo modo, estabelece o art.22.º/4 que o disposto no art.22.º/1/c – tal como,
de resto, na alínea d)- não implica a proibição das cláusulas de indexação quando o seu
emprego se mostre compatível com o tipo contratual onde se encontram e o mecanismo
de variação do preço esteja explicitamente descrito.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Dentre as limitações especiais, importa destacar aquelas que resultam do regime


da concorrência e ainda o das práticas comerciais desleais. O professor JANUÁRIO
limita-se a referir a importância das seguintes matérias, entre outras:
- Abuso de dependência económica;
- Práticas restritivas da concorrência;
- Práticas comerciais desleais.

1.6.1. Cláusulas específicas frequentes na contratação comercial


A. Cláusulas de Força Maior (force majore)
Através da cláusula de force majore, é facultada a uma das partes eonerar.se do
cumprimento das suas obrigações quando a sua execução se torne impossível, definitiva
ou temporária, devido a um determinado evento imprevisível, extraordinário e irresistível.
Atente-se no artigo 71.7/1 dos Princípio Unidroit: não responde pelas
consequências do seu incumprimento o devedor que prove que a falta de cumprimento é
devida a um impedimento que escapa ao seu controlo e que não lhe podia ser
razoavelmente exigido que o tivesse previsto no momento da conclusão do contrato, que
o tivesse evitado ou superado ou que tivesse evitado ou superado as suas consequências.
Trata-se sempre de situações que estão fora da previsão (imprevisibilidade) e de
controlo razoáveis (irresistibilidade e exterioridade).
No Direito americano, o termo impossibilidade é substituído por
impraticabilidade, conforme explica SANTOS JUNIOR, já não se trata de exigir uma
pura impossibilidade verdadeira e própria, mas uma extrema e irrazoável dificuldade,
despesa, perda ou dano para uma das partes perante a exigência de cumprimento.
O efeito da verificação de uma situação de força maior é a exoneração do
cumprimento, seja temporário, seja definitivamente. O efeito de exoneração resultaria, no
direito interno, do art.790.º e seguintes do CC, mas com a diferença, que não é de
somenos, de este regime apontar no sentido da impossibilidade absoluta. O facto de os
contratos internacionais cruzarem várias ordens jurídicas torna vantajosa a previsão e
consagração de force majeure como cláusula contratual.

B. Cláusula de hardship
A cláusula hardship tem o seu campo natural de aplicação no âmbito dos contratos
de longa duração. Ela permite à parte lesada pedir a renegociação do contrato quando a

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execução das correspondentes obrigações se torne excessivamente onerosa devido a uma


alteração substancial das circunstâncias que altere o equilíbrio global do contrato.
O artigo 6.2.2. dos Principios Unidroit, que define hardship, refere-se a
acontecimentos que alteram fundamentalmente o equilíbrio das prestações por aumento
do custo do cumprimento das obrigações quer por diminuição do valor da
contraprestação.
Não se trata, confirme bem observa SANTOS JUNIOR, de permitir esse efeito em
qualquer situação de maior onerosidade: só naquelas em que a alteração das
circunstâncias ou o desconhecimento das mesmas conduziria a uma subversão económica
do contrato, afetando o equilíbrio das prestações.
Atente-se nos requisitos que as diversas alíneas do artigo 6.2.2. dos Princípios
Unidroit formulam quanto aos acontecimentos relevantes:
- Que os mesmos se tenham verificado após a conclusão do contrato ou só
após a mesma tenham chegado ao conhecimento da parte lesada;
- Que os mesmos não pudessem razoavelmente ser tomados em
consideração pela parte lesada no momento da conclusão do contrato;
- Que esses acontecimentos escapassem ao controlo da parte lesada;
- Que o risco desses acontecimentos não tivesse sido assumido pela parte
lesada.
A modificação de circunstâncias que alteram o equilíbrio geral do contrato
determina o dever da sua renegociação. Contudo, conforme é realçado por JÚILO
GOMES, a mudança de circunstância que justifica o dever de renegociação há-de ser de
molde a determinar a perda de identidade do contrato, e ainda: a dificuldade (hardship)
experimentada há-de ser, portanto, substancial, o que evidentemente, não se pode apreciar
em absoluto, mas apenas tendo em conta o equilíbrio das prestações do contrato
concretamente atingido.

C. Cláusulas de mitigação da indemnização (mitigation of damages) ou de


redução das perdas e dos danos
Importa, primeiramente, referir que há um princípio no direito de common law
assim conhecido: mitigation of damages.
Esse principio tem também consagração nos direitos do civil law. Exemplo
ilustrativo é o do art.570.º CC: de acordo com o n.º 1, quando um facto culposo do lesado
tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determina,

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas
resultam, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Não obstante, as partes nos contratos internacionais convencionam com
frequência esta cláusula, colocando-se resguardo da insegurança gerada pela ausência de
regulamentação, diversidade de regimes, etc.
A regra surge em muitos documentos, incluindo convenções; assim no art.77.º da
Convenção de Viena: a parte que invoca a violação do contrato deve tornar as medidas
razoáveis, face às circunstâncias, para limitar a perda, ai compreendido o lucro cessante,
resultante da violação contratual. Se não o fizer, a parte faltosa pode pedir uma redução
da indemnização por perdas e danos, no momento da perda que deveria ter sido evitada.
Destaque-se ainda o artigo 7.4.8 dos Principios Unidroit:
“1. O devedor não responde pelo prejuízo que poderia ter sido atenuado pelo
credor tomando providências razoáveis.
2. O credor tem direito a ser reembolsado das despesas razoáveis em que incorra
para atenuar o prejuízo.”
De acordo com esta cláusula, a parte lesada no contrato, face ao incumprimento
da outra parte, deve adotar a conduta razoável indicada para minimizar os prejuízos, quer
a nível de danos emergentes quer de lucros cessantes. A questão difícil estará na
determinação do que seja conduta razoável: estamos perante uma cláusula geral que deve
ser ajuizada caso a caso, em concreto.

D. Cláusula de Revisão
As cláusulas de revisão são, normalmente, divididas em duas modalidades:
cláusulas de revisão automática e cláusulas de revisão concorrente.
Nas cláusulas de revisão automática as partes preveem a revisão do conteúdo do
contrato, máxime das prestações a cargo das partes ou de uma delas, de forma automática,
ocorrendo uma modificação objetiva de referencias externas ao contrato, como seja a
inflação, em função da taxa apurada ou publicitada nos termos previstos no contrato.
Um exemplo característico é o das cláusulas de indexação, que determinam a taxa
de juro por referência a um índice.
Nas cláusulas de revisão concorrente é prevista a revisão do contrato em vigor
entre as partes quando uma delas tenha recebido de terceiro ou oferecido a terceiro uma
proposta concorrente. O campo principal da aplicação destas cláusulas é o dos contratos

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

de linga duração, especialmente internacionais, como por exemplo em contratos de


concessão comercial celebrados por tempo indeterminado.
Por vezes, as cláusulas vão ao ponto de prever a própria faculdade de extinguir o
contrato, que não, simplesmente de rever as respetivas cláusulas.
Uma outra modalidade é a previsão da revisão do conteúdo de um contrato, no
caso de um dos contraentes celebrar com terceiro um contrato do mesmo tipo em
condições mais favoráveis (contraente mais favorecido): A celebra um contrato de
concessão comercial com B e mais tarde um outro com C em condições mais favoráveis
para este; B pode então exigir que o contrato que o liga a A passe a ter um conteúdo
idêntico ao que A celebrou com C.

E. Cláusulas penais e bonificações


O REGENTE crê estar ultrapassado, na doutrina e jurisprudência portuguesas, o
modelo unitário de cláusula penal, sendo identificáveis por PINTO MONTEIRO várias
espécies ou modalidades de cláusulas penais.
- Cláusula de fixação antecipada do montante de indemnização
(correspondente à liquidated damages clause), cujo escopo é meramente
indemnizatório: as partes pretendem apenas liquidar antecipadamente o dano
futuro. Refere PINTO MONTEIRO que a pena é estipulada como substituto da
indemnização, pelo que o acordo vincula ambas as partes ao momento
predeterminado, sendo este o único exigível a titulo de indemnização.
- Cláusula Penal puramente compulsória (correspondente à penalty
clause): a sua função é coerciva, tendo, assim, índole exclusivamente compulsivo-
sancionatória. Lê-se em PINTO MONTEIRO: a especificidade desta cláusula
traduz-se no facto de ela ser acordada com um plus, como algo que acresce à
execução específica da prestação ou à indemnização pelo não cumprimento.
- Cláusula Penal em sentido estrito, na qual a pena visa compelir o devedor
a cumprir, contudo, diversamente do que ocorre na penalty clause, a pena substitui
a indemnização, não constituindo, assim, um plus a esta nem à execução
especifica.
A trilogia sustentada por PINTO MONTEIRO, face ao regime dos art.810.º a 812.º
CC, supõe, no que à pena estritamente compulsória respeita, que se tenha por inaplicável
à mesma a restrição estritamente compulsória respeita, que se tenha por inaplicável à
mesma a restrição do art.811.º/3CC, de acordo com o qual o credor não pode em caso

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do


incumprimento da obrigação principal.
Na doutrina portuguesa há que, apontado mais no sentido de uma dualidade de
figuras que não no de uma trilogia, identificam a cláusula penal em sentido estrito com a
cláusula sancionatória (penalty clause).
Independentemente das polémicas sobre as espécies de cláusulas penais no direito
português, tende a ser pacífica a aplicação do regime do art.812.º CC, que prevê a redução
judicial equitativa da cláusula penal quando a mesma seja manifestamente excessiva,
ainda que por causa superveniente.
No comércio internacional, avulta a contraposição do direito anglo-saxónico entre
liquidated damages clause e penalty clause.
A cláusula penal tem, consabidamente, autonomia face às cláusulas de limitação
de responsabilidade, cuja utilização nos contratos comerciais é também muito frequente.
Determinados tipos de contratos, mormente de empreitada e de engenharia global,
contêm cláusulas de prémios, de bonificações. Trata-se de cláusulas que premeiam a
eficiência ou a excelência na execução de contratos.
Quer a natureza dos prémios ou bonificações quer a definição dos requisitos de
que depende a constituição de um correspondente crédito na esfera da contraparte, são
objeto de regulação contratual especifica.

F. Cláusulas compromissórias
São reconhecidas as vantagens da arbitragem, quando confrontada com a
resolução judicial de litígios:
- Celeridade;
- Especialização;
- Confidencialidade;
- Maior garantia de imparcialidade ou de neutralidade (face aos tribunais
estaduais, em certos países);
- Facilidade de exequibilidade.
Através de cláusulas compromissórias, as partes acordam o recurso a arbitragem
em caso de conflito. É certo que as arbitragens têm a desvantagem de serem caras;
contudo, time is money. Escreve a propósito, LIMA PINHEIRO: a arbitragem
transnacional é o modo normal de resolução de litígios no comércio internacional, sendo
o recurso aos tribunais estaduais, neste domínio, marginal.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A nível interno, há um incentivo e um incremento da arbitragem em vários


domínios, como por exemplo: consumo, seguros, propriedade industrial, transportes,
sociedades ou bancário.

1.7. Transmissão dos contratos comerciais.


Como é sabido da Teoria Geral e do Direito das Obrigações, a eficácia da cessão
da posição contratual a terceiro, nos contratos com prestações reciprocas, está dependente
de o outro contraente, antes ou depois do contrato, consentir na transmissão.
Alude-se, com frequência, a transmissão do contrato; contudo, do que se trata é,
simplesmente, de mera transmissão da posição contratual, quer a mesma aconteça por
negócio jurídico, nos termos do citado art.424.ºCC, quer aconteça, excecionalmente, ex
vi legis.
Claramente diferente da cessão da posição contratual – conquanto com fronteiras
nem sempre firmes – temos a cessão de créditos que, nos termos do art.577.º/1 CC, pode
ser realizada independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não
seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela
própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. Do mesmo modo, é diversa a
figura da transmissão ou assunção de divida, a qual se coloca no polo oposto ao da cessão
de créditos. Quanto liberatória, a assunção libera o devedor originário, ficando o novo
devedor no seu lugar, como diz GALVÃO TELLES, ele torna sobre si a divida; quando
cumulativa, ao primitivo devedor acresce um novo devedor, fortalecendo as
probabilidades de satisfação do crédito. Conforme é evidente, a assunção de dívida que
se contrapõe à cessão de créditos é a liberatória, já que na cumulativa não há transmissão
mas adesão à divida.
Diferentes também, conquanto próximas, são as figuras, também negociais, da
adesão ao contrato – na qual, como refere cristalinamente GALVÃO TELLES, há a
constituição de uma relação nova, coexistente com a primeira, de que depende, tendo as
duas um sujeito comum, com posições distintas e complementares.
Tendo também uma fonte convencional, mas com especificidades ditadas pela
intromissão legal, estão os casos em que a lei aciona a um determinado ato a colocação
de um sujeito numa posição contratual que a outro pertencia, como acontece no art.1057.º
CC, que consagra o princípio emprio non tollit locatum, bem como aqueles em que a lei,
por razoes específicas, dispensa o consentimento da contraparte como se de uma simples
cessão de créditos se tratasse: é o que acontece no regime do art.1112.º/1CC.

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1.7.1. Transmissão da empresa e dos contratos que lhe respeitem.


O regime do art.424.º do CC não se mostra pensado em função da empresa e das
realidades comerciais, as quais clamam pelo menos em certas situações, por uma maior
flexibilidade no que tange à circulação do contrato.
A questão está, fundamentalmente, em saber se tal como nos contratos civis as
cessões das posições contratuais nos contratos comerciais, quando é querida a sua
transmissão com a empresa, necessitam sempre de consentimento das contrapartes.
MOTA PINTO mostrou-se sensibilizado para o problema da continuação dos
contratos de fornecimento na empresa negociada, com referência aos casos em que “se
transfere uma organização ou um objeto, com cuja exploração e posse está conexionada
a possibilidade de cumprimento de contratos de fornecimento pendentes”. Contudo, o
autor circunscreve a sua atenção à demonstração da vantagem, para todos os interessados,
do recurso à cessão da posição contratual em vez da solução alternativa de cumulação de
cessões de crédito com assunções liberatórias de dívida.
Já OLIVEIRA ASCENSÃO desenvolveu um critério jurídico para agilizar as
cessões de posições contratuais comerciais, sustentando a transmissibilidade dos
contratos exploracionais da empresa com a sua negociação, sem necessidade de
consentimento do cedido.
Para o autor, é necessário distinguir entre situações jurídicas comuns e situações
jurídicas exploracionais: as primeiras (ex.: dívida de preço de matérias primas) só se
transmitem por acordo entre as partes; as segundas (ex.: contrato de fornecimento)
transmitem-se automaticamente no silêncio das partes.
O critério exploracional será, então, o problema e a solução. Para OLIVEIRA
ASCENSÃO, o critério é o das situações jurídicas que estão intrinsecamente ligadas
àquela exploração.
Para CASSIANO SANTOS, os regimes do art.1112.º/1 CC e art.11.º/1 da LLF
bastam para concluir que o “regime do art.424.º não se aplica generalizadamente no
direito comercial”. Para o autor, à luz dos interesses tutelados pelo Direito Comercial e
das soluções que nele se detetam para esses concretos casos, pode afirmar-se que a
solução do Direito Civil não é conveniente para todas as relações comerciais; e continua:
as disposições comerciais referidas revelam que, pelo menos quando a transmissão
respeita a um contrato celebrado num contexto empresarial e se faz com a transmissão da

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

empresa a que o contrato se liga, a solução do direito comercial é distinta da do direito


civil.
Também ENGRÁCIA ANTUNES propende no sentido da transmissão
automática e universal de todos os contratos exploracionais da empresa em caso de
transmissão desta, sem necessidade de consentimento dos contraentes cedidos. Socorre-
se da lição do Direito Comparado e da análoga reiterada de diversas disposições da lei
comercial – analogia retirada essa que justifica pelo facto de a inexistência de um regime
próprio em matéria de destino dos contratos exploracionais da empresa configurar uma
lacuna de regulamentação a integrar nos termos do art.3.º CCom
O REGENTE, segue a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, pois são várias as
manifestações na lei comercial que permitem sustentar a existência de um regime jurídico
comercial, ainda que não positivado, para a cessão de certas posições contratuais.
Acresce que uma aplicação cega do regime do art.424.º do CC, impedindo a
prática da negociação da empresa, seria incompatível com o princípio constitucional de
livre iniciativa e de organização empresarial, consagrado no art.80.º/c CRP.
Sumariamente, as situações relevantes:
- O art.1112.º/1 CC permite, na sua alínea a), que, havendo trespasse de
estabelecimento comercial ou industrial que englobe uma posição jurídica de
arrendatário, esta posição possa ser transmitida integrada no estabelecimento, sem
necessidade de consentimento do senhorio. Sem prejuízo da existência de um direito de
preferência, nos termos do art.1112.º/4, ou da necessidade de comunicação, nos termos
do art.1112.º/3. Estamos claramente perante uma situação em que, em homenagem às
realidades jurídico-comerciais, a lei dispensa o consentimento do senhorio numa
transmissão de posição contratual de contrato comercial.
- De acordo com o disposto no art.11.º/1 LLF, tratando-se de bens de
equipamento, é permitida a transmissão entre vivos da posição do locatário financeiro,
nas condições previstas no art.1112.º CC, quanto ao trespasse de estabelecimento
comercial ou industrial. Mais permite o citado art.11.º/1 a transmissão por morte da
posição de locatário referida ao mesmo tipo de bens, quando o sucessor prossiga a
atividade do falecido.
- Destaque-se, contudo, o regime do art.11.º/3, disposição de enorme relevo, por
revelar uma patente preocupação com a garantia de cumprimento por parte do cessionário,
ou seja, por revelar uma clara preocupação com a posição do locador financeiro; o locador

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

pode opor-se à transmissão da posição contratual provando que o cessionário não oferece
garantias bastantes à execução do contrato.
- De acordo com o art.95.º/5 da LCS, a transmissão da empresa ou do
estabelecimento determina a transferência para o adquirente dos seguros associados a
essa unidade económica, nos termos previstos nos números 2 e 3 do mesmo artigo. Trata-
se de um regime de transmissão ope legis, que tem uma explicação comercial, associada
à agilização da circulação da empresa ou do estabelecimento.
- O art.285.º/1 CT estabelece, como efeito da transmissão da titularidade da
empresa ou estabelecimento, a qualquer título, a transmissão para o adquirente da posição
de empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores, aplicando-se
idêntico regime no caso de transmissão de parte da empresa ou estabelecimento que
constitua uma unidade económica. Estamos face a uma situação de transmissão ope legis,
cuja explicação não tem a mesma lógica e a mesma ratio daquela que identificamos no
regime do art.1112.º/1/a CC: não estando aqui arredadas razões de índole jurídico-
comercial, avultam as de proteção dos trabalhadores e dos respetivos postos de trabalho.
- O art.100.º/1 CDA não se afasta da regra geral do art.434.ºCC: o editor não pode,
sem consentimento do autor, transferir para terceiros, a título gratuito ou oneroso, direitos
seus emergentes do contrato de edição; contudo, o mesmo art.100.º/1 exceciona as
situações em que a transferência resulte de trespasse do estabelecimento do editor. Do
mesmo modo, o art.145.º do mesmo código consagra em sede de contrato de produção
fonográfica, o princípio, conforme ao regime geral do art.424.º CC, de insusceptibilidade
de transferência para terceiros dos direitos emergentes do contrato de autorização sem
consentimento dos autores, mas logo exceciona o caso de trespasse do estabelecimento.
As situações expostas não permitem, porém, dispensar em pleno, no campo dos
contratos comerciais, o regime geral do art.424.º CC, que continua a ter aplicação: não
permitem ir além do critério proposto por OLIVEIRA ASCENSÃO, não dispensando,
assim, o consentimento da contraparte quando a situação contratual não seja de natureza
exploracional, na empresa ou estabelecimento em causa.

1.8. Incumprimento dos contratos comerciais.


Decorre do art.406.º/1CC que o contrato deve ser pontualmente cumprido, só
podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos
casos admitidos na lei.

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Estamos perante a regra ou o princípio da pontualidade aplicável, de resto, a todas


as obrigações, ainda não tenham regime contratual. O cumprimento ponto por ponto
postula, designadamente:
- A necessidade de a prestação ser realizada no tempo devido;
- A necessidade de a prestação ser realizada integralmente e não por partes,
salvo se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos (art.763.º/1)
– aspeto que é por vezes objeto de autonomização no sub-princípio da integralidade.
- A impossibilidade de o devedor poder invocar a sua má situação
económica ou mesmo a sua insolvência para obter a adequação da prestação à situação
patrimonial do devedor, ou seja a sua redução.
Em termos de enquadramento geral, importa, desde logo, destacar o princípio da
boa-fé. Destaca-se aqui o regime do art.762.º/2CC: no cumprimento da obrigação, assim
como no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa-fé.
Realce-se ainda o facto de ser, naturalmente, aplicável em sede de contratos
comerciais o regime geral das perturbações da prestação, destacando-se, neste quadro, o
constante dos art.790.º e seguintes (impossibilidade do cumprimento e mora não
imputáveis ao devedor) e 798.º e seguintes (falta de cumprimento e mora imputáveis ao
devedor) CC.

1.8.1. Especificidades dos Contratos Comerciais


A. Conformidade
Os contratos comerciais, mormente internacionais, permitiram a divulgação do
conceito de conformidade da prestação. Não se trata, porém, de um conceito novo,
conforme demonstra, desde logo, o art.469.º CCom: as vendas feitas sobre amostra de
fazenda, ou determinando-se só pela qualidade conhecida no comércio, consideram-se
sempre como feitas debaixo da condição de a cousa ser conforme à amostra ou à qualidade
convencionada.
Pode dizer-se, acompanhando alguma doutrina, que o conceito de conformidade
com o contrato não é propriamente inovador, uma vez que resulta já do princípio da
pontualidade (pacta sunt servanda), tendo expressão, designadamente, no regime da
compra e venda, da empreitada e na LDC. Não obstante, o conceito ganhou uma particular
força, tendo, ademais, a vantagem de permitir unificar sob o mesmo regime um conjunto
de situações jurídicas com regimes dispersos, desde o erro sobre o objeto ao cumprimento
defeituoso, passando pela venda de coisas defeituosas.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A não conformidade permite atribuir ao contraente afetado um conjunto de


medidas de tutela: direito à reparação, à substituição do bem, à redução do preço ou à
resolução do contrato.

B. Atrasos no pagamento – remissão.


C. Cumprimento Defeituoso. Regimes de Relevo Especial no Campo
Comercial
Apesar de não ter sido inteiramente autonomizado pelo Código Civil, na parte
geral das obrigações, o cumprimento defeituoso assume reconhecida autonomia, não
podendo ser reconduzido à mora ou ao incumprimento definitivo.
É reconhecido que o cumprimento defeituoso é suscetível de produzir danos
autónomos face aos que podem decorrer de mora ou de incumprimento definitivo.
Importa explicar alguns regimes especiais no que toca ao cumprimento defeituoso.
Destaque-se, em primeiro lugar, a responsabilidade civil do produtor: o produtor
é responsável por danos causados por defeitos os produtos que poe em circulação, ainda
que não tenha culpa – independentemente de culpa. Para efeitos do diploma, o produtor
é o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima e ainda
quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal
distintivo.
Um produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança com que
legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente
a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da
sua entrada em circulação.
Quando os danos ressarcíveis são considerados os resultantes de morte ou lesão
pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente
destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este
destino.
Não confundível com o regime exposto é o da responsabilidade direta do produtor,
ao abrigo do Decreto-Lei 67/2003 alterado pelo Decreto-Lei 84/2008 sobre certos aspetos
da compra e venda de bens de consumo.
De acordo com o art.6.º/1 desse Decreto-Lei, sem prejuízo dos direitos que
assistam ao consumidor adquirente de coisa defeituosa perante o vendedor, aquele que
optar por exigir do produtor a reparação ou substituição da coisa, salvo se tal se manifestar
impossível ou desproporcionado, tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser


concretizada sem grave inconveniente para o consumidor.
Conforme é patente, o regime do Decreto-Lei 67/2003 não colide com o do
Decreto-Lei 383/89, sobre a responsabilidade civil do produtor, já que este último apenas
tutela bens típicos da responsabilidade aquiliana ou delitual, o que não protege
adequadamente o consumidor de bens de consumo face à venda de produtos defeituosos:
o consumidor passa, assim, a poder exercer diretamente, face ao produtor, pretensões
típicas da relação contratual que o liga ao vendedor, como a reparação ou substituição do
bem.
Optando o consumidor na venda de bens de consumo por agir diretamente contra
o vendedor, pode este, quando tenha satisfeito o consumidor relativamente a qualquer dos
direitos previstos no art.4.º do Decreto-lei 67/2003 agir em regresso contra o profissional
a quem tenha adquirido a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles
direitos.
Consagra-se, assim, uma responsabilidade em via de regresso dos participantes na
cadeia contratual que precedeu a celebração de um contrato de compra e venda de bens
de consumo. Daqui decorre, manifestamente, que a lei não considera apenas o isolado
contrato de compra e venda mas a operação económica em cadeia, impedindo, assim, que
seja o ultimo vendedor a suportar economicamente as consequências do defeito.
Nesta matéria, a preocupação central do legislador não é já com o consumidor mas
com o vendedor de bens de consumo, sendo igualmente revelador o facto de a renúncia
antecipada (total ou parcial) a tal direito só produzir efeitos na medida em que seja
atribuída ao titular de tal direito uma compensação adequada.

1.9. Extinção dos contratos comerciais.


No que respeita aos modos de cessão dos contratos comerciais, não há verdadeiras
especificidades a assinalar face ao regime geral dos contratos. Assim, os contratos
comerciais podem cessar por:
- Revogação, se houver um acordo das partes dirigido à cessação da
relação contratual;
- Caducidade, a relação contratual cessa pela ocorrência superveniente de
um facto jurídico strictu sensu, como por exemplo o decurso de um determinado
prazo;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Resolução, trata-se de uma forma de extinção condicionada - por só ser


possível quando fundada na lei ou em convenção – tendencialmente vinculada,
por não ser discricionária, exigindo uma justa causa, e que, nos contratos
duradouros, tem efeitos ex nunc, - afastando-se, neste particular, do regime geral,
que lhe fixa efeitos ex tunc;
- Denúncia, trata-se do modo típico de cessação das relações contratuais
duradouras celebradas por tempo indeterminado.
Não integradas plenamente nestas categorias, há que considerar ainda:
- A oposição à renovação: em contratos de renovação (prorrogação)
automática, cada uma das partes pode, nos termos convencionados ou
determinados pela lei, impedir a renovação;
- A revogação unilateral e discricionária do contrato vigente, em aparente
tensão com o princípio pacta sunt servanda, figura cujo habitat natural é o dos
contratos de gestão – que, como é sabido, tem o seu paradigma no mandato;
- A extinção unilateral potestativa por arrendamento, durante um cooling-
off period, falando-se mesmo no direito de arrependimento, o seu habitat é o dos
contratos com consumidores ou, mais genericamente, com partes não
profissionais. Refere CANARIS, relativamente ao direito de arrependimento nos
contratos de crédito a consumidores, tratar-se de um direito que melhora
substancialmente a liberdade efetiva de decisão do tomador de crédito, porque
torna notórios os custos efetivos do crédito e serve, ao mesmo tempo, os interesses
da concorrência, porque apenas a indicação do juro efetivo torna possível, para o
tomador de crédito, uma comparação com as ofertas de outros prestadores de
serviços.
No campo dos contratos comerciais, revestem-se de particular relevo a denúncia
e a resolução. Trata-se de meios de cessação do contrato que encontram no contrato de
agência – contrato claramente comercial – um relevo específico, que, no nosso entender,
serve de referência para outros contratos comerciais.
No que respeita à denúncia, são dois os principais problemas:
- O da determinação de qual seja o pré-aviso razoável do contrato
celebrado por tempo indeterminado ou por um prazo excessivo, em termos de
haver uma equivalência objetiva àquela situação;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- O de saber se o principio da livre denunciabilidade a todo o tempo tem


irrestrita aplicação no campo dos contratos comerciais ou se, ao invés, é
sustentável a existência de contratos com duração mínima.
Quanto à primeira questão, o REGENTE pensa que o regime do contrato de
agência deve servir de referência por ser um regime claramente moldado em função de
preocupações comerciais.
No que respeita ao segundo ponto, importa, em primeiro lugar, destacar que, de
acordo com a dogmática geral da denúncia. Não havendo na agência uma previsão
específica, sugere CASSIANO DOS SANTOS que se tome como referência o regime da
associação em participação, mais concretamente o art.30.º/3 do Decreto-Lei 213/81, de
acordo com o qual, se não for estipulado prazo e não tendo o contrato por objeto operações
determinadas, não é possível a denúncia durante 10 anos após a celebração do contrato
de associação em participação, o qual terá, assim, uma duração mínima de 10 anos. Para
este autor, este regime inspira-se na tutela da estabelecida, num contrato também
tipicamente empresarial e que supõe investimentos e expetativas fundadas nos
compromissos e comportamentos.
Não obstante o facto de CASSIANO DOS SANTOS advertir para o facto de a
referência aos 10 anos não dever ser tomada rigidamente, podendo, em concreto, ser
fixado um outro prazo, mais adequado aos interesses em presença, temos à partida o prazo
de 10 anos por excessivo, como referência geral, não obstante pode servir de padrão para
contratos similares aos de associação em participação:10 anos é muito tempo para um
contrato comercial comum.
Tratando-se de contratos sujeitos à LCCG, importará ter presente o regime relativo
às cláusulas sobre denúncia, mais concretamente as alíneas b) e i) do art.22.º/1.
No domínio dos contratos comerciais, há, ainda, que destacar uma progressiva
densificação da eficácia pós-contratual. Podemos, neste quadro, identificar diferentes
situações:
- Casos em que, à margem de previsão contratual ou legal, tem-se admitido
(doutrina e jurisprudência) uma eficácia póstuma do contrato. Um exemplo típico
é o do reconhecimento de uma obrigação de não concorrência do trespassante após
o trespasse, não obstante a inexistência de cláusula contratual nesse sentido.
- Cláusulas específicas destinadas a funcionar após a cessação do contrato,
como por exemplo cláusulas de não concorrência, de confidencialidade, de

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

comunhão nos lucros, cláusulas relativas à devolução de elementos que relevam


em sede de propriedade industrial (fórmulas, know-how, etc.).
- Regimes legais destinados a funcionar após a cessação do contrato ou
também após a cessação do contrato: é o que acontece, respetivamente, no regime
da indemnização de clientela, no contrato de agência e no regime do segredo
bancário.
Importa, finalmente, aludir a uma singular figura, à qual, por falta de melhor
expressão, damos a designação, de certo sabor bíblico, de Contratos-Lázaro: trata-se de
contratos que, estando extintos, v.g., por caducidade ou resolução, são depois tidos por
vigentes, com efeitos ex tunc, pelas ex-partes, através de um contrato que visa um efeito
de ressurreição.
Não estamos, note-se, em situações em que uma das partes invocara, então contra
o entendimento da outra, a extinção do contrato por resolução ou, também contra o
entendimento da outra, a extinção do contrato por resolução ou, também contra o
entendimento da outra, a extinção por oposição à renovação ou por caducidade. Essas são
situações em que não sendo seguro que tenha ocorrido a extinção não ocorre a
ressurreição do contrato extinto: o acordo das partes, que põe termo ao litígio, é no sentido
de as mesmas aceitarem e reconhecerem que o contrato se não extinguiria.
Os casos a que nos reportamos são, antes, aqueles em que, digamos, fora passada
certidão de óbito ao contrato, não havendo, por outro lado, vícios ou perturbações na fase
extintiva que permitam de acordo com o regime da eficácia repristinar o contrato.
Independentemente dos móbeis das partes, estamos, em rigor, perante situações
jurídicas novas, não obstante o facto de as mesmas serem constituídas ou moldadas per
relationem com o clausulado do contrato extinto e pese embora o facto de as partes
pretenderem fazer tábua rasa do intermezzo entre data da extinção do contrato e a da sua
regeneração.

2. O mandato comercial.
No Código Veiga Beirão, a representação comercial aparece a propósito do
mandato. Falta-nos a figura da Prokura ou procuração comercial, patente no HGB. A essa
luz, compreende-se que seja regulada no seu local de tradição. Podemos pois considerar
que, no Direito comercial, a representação se mantém no âmbito de influência
napoleónica enquanto, no civil, há muito evoluiu para o estilo germânico. Além disso, há
que lidar com práticas comerciais diferenciadoras e com o estilo próprio da disciplina.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O art.231.º, a propósito da noção de mandato comercial, dá-nos elementos


próprios da representação. Assim, segundo o seu teor:
- Dá-se mandato comercial quando alguma pessoa se encarrega de praticar
um ou mais atos de comércio por mandato de outrem.
Prosseguindo o parágrafo único:
- O mandato comercial, embora contenha poderes gerais, só pode autorizar
atos não mercantis por declaração expressa.
Encontramos, pois, uma distinção entre poderes gerais e especiais, relevante para
a representação, mas que o próprio CC, numa cedência ao passado napoleónico, manteve,
como vimos, a propósito do mandato (art.1159.º).
A associação entre o mandato comercial e a representação aflora ainda no
art.233.º. Trata-se de um aspeto básico do mandato mercantil.
No Direito Comercial, o mandato sem representação diz-se comissão ou contrato
de comissão (art.266.º).
Inferimos daqui que o mandato comercial envolve sempre poderes de
representação.
A representação comercial, só por si, não confere, ao representante, a qualidade
de comerciante. Os atos comerciais que pratique projetam-se, automática e
imediatamente, na esfera do representado: não na do representante. No entanto, se ele
exercer a atividade a título profissional, já poderá, por essa via, converter-se em
comerciante.

A. A tutela de terceiros
No Direito mercantil português, não encontramos preceitos diretamente
destinados à tutela de terceiros. Apenas cabe anotar o art.242-º, segundo o qual o
mandatário deve exibir o título que lhe confira os poderes: não pode opor a terceiros
quaisquer “…instruções que houvesse recebido em separado do mandante…”, salvo
provando que os terceiros em causa delas tinham conhecimento.
Todavia, os terceiros são protegidos através do registo comercial.
Com efeito, nos termos do art.10.º/a CRC, o mandato escrito, suas alterações e
extinção estão sujeitos a inscrição comercial. A aparência daí resultante é tutelada, em
termos negativos e positivos, por via dos art.14.º/1 e 22.º/4, de acordo com a análise acima
realizada.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Finalmente, em todos os domínios omissos, têm aplicação, a título subsidiário e


nos termos do art.3.º, as regras examinadas referentes à procuração civil. O mandato
comercial não está sujeito a qualquer forma especial, salvo se tiver em vista atos que a
exijam. Na prática comercial, designadamente para votar em sociedades, por exemplo, o
mandato efetiva-se através de “cartas mandadeiras” que indicam, de modo sumário, o
mandante, o mandatário e o assunto a que o mandato diga respeito.

2.1. Mandato e representação – Código de Seabra.


No Direito comercial, a representação tem grande relevo. Quando chega a uma
certa dimensão, o comerciante não consegue praticar todos os atos por si mesmo: tem de
se representar. Porém, no direito comercial, esta representação tem um regime especial.
Em termos gerais, no Direito romano não havia representação. Esta surgiu no
período intermédio, graças aos canonistas e aos jusracionalistas. Dessa construção resulta
a ligação ao mandato: sendo incumbido, pelo mandato, de executar determinada tarefa, o
mandatário recebia o poder de o representar, i.e., de praticar atos cujos efeitos se
repercutiriam, de modo direito, na esfera do mandante. Esta posição, na sequência de
estudos de JHERING e LABAND veio a ser aperfeiçoada: o mandato é um contrato que
obriga o mandatário a desenvolver uma tarefa jurídica, mas não envolve poderes de
representação; estes advêm de um negócio unilateral – a procuração – que, só por si, a
nada obriga. Pode, pois, haver mandato com e sem representação e representação com e
sem mandato.
Na literatura clássica anterior ao Código de Seabra, encontramos referências
muito escassas à representação.
A concessão de esquemas de representação era, todavia, bem conhecida. Efetiva-
se através do mandato. Este conferia poderes ao “procurador” ou “feitor”.
O Código de Seabra, beneficiando já da elaboração napoleónica, foi mais longe.
Influência que ainda encontramos no art.231.º do CComercial. Nos art.645.º e 646.º,
estabelecia que os contratos podiam ser feitos pessoalmente ou por interposta pessoa.
A representação voluntária surgia, todavia, a propósito do contrato de mandato ou
procuradoria. Dispunha o art.1318.º, que se dá o contrato de mandato ou procuradoria
quando alguma pessoa se encarrega de prestar, ou fazer alguma cousa, por mandado e em
nome de outrem. As relações entre mandato e representação resultavam do art.1319.º.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A penetração do pensamento pandectista nesta matéria foi, em Portugal,


relativamente lenta. Num primeiro momento, apenas podemos sublinhar a passagem de
certos desenvolvimentos exegéticos da área do mandato para a dos art.645.º e 646.º.
GUILHERME MOREIRA divulgou na nossa linguagem jurídica o termo
“representação”, definindo os seus grandes parâmetros. Mantém a representação
voluntária como tendo a sua principal origem no mandato ou procuração; todavia, chama
a atenção para o facto de nem sempre o mandato envolver representação.
MANUEL DE ANDRADE pouco mais avançou, e já em plena preparação do CC.
Apenas nos meados do séc. XX, GALVÃO TELLES e FERRER CORREIA,
procederam a uma clara contraposição entre a procuração e o mandato. GALVÃO
TELLES, no âmbito da preparação do CC, propôs uma clara distinção entra a procuração,
fonte de poderes de representação e o mandato. A proposta foi acolhida também no
anteprojeto de RUI DE ALARCÃO. Este período conclui-se com PESSOA JORGE.

2.2. Mandato e representação – CC actual.


O CC acolheu o sistema germânico da distinção entre procuração, fonte de
representação (art.262.º ss) e mandato, modalidade de contrato de prestação de serviços
(art.1157.º ss), que pode ser com ou sem representação (art.1178.º e 1180.º).
Após a entrada em vigor do CC de 1966, mantiveram-se algumas situações de
confusão entre mandatários e procuradores: o chamado mandato judicial envolve
poderes de representação enquanto, por exemplo, os “mandatários” referidos no
art.1253.º/c CC, são, necessariamente, os que atuem no âmbito de um mandato com
representação.
E também no CCom se manteve uma noção pré-pandectística do mandato.

2.3. Traços fundamentais do mandato com representação.


Na representação impõem-se, fundamentalmente, três requisitos:
- Atuação em nome de outrem: o representante deve agir esclarecendo a
contraparte e interessados que o faz para que os efeitos da sua atuação surjam na
esfera do representado;
- Por conta dele: o representante, além de invocar agir em nome de outrem,
deve fazê-lo no âmbito da autonomia privada daquele: atua como o próprio
representado poderia, licitamente, fazê-lo;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- E dispondo o representante de poderes para o fazer: tais poderes podem


ser legais ou voluntariamente concedidos pelo representado; mas têm de existir.
O termo “representação” conhece diversos usos em Direito. A matéria pode ser
esclarecida através de distinções:
- A representação legal: conjunto de esquemas destinados a suprir a
incapacidade dos menores e funciona com adaptações para os interditos;
- A representação orgânica: as pessoas coletivas são representadas, em
princípio, pela administração (art.163.º CC);
- A representação voluntária ou em sentido próprio: a que tenha, na sua
base, a concessão, pelo representado e ao representante, de poderes de
representação.
A representação voluntária traduz a matriz tendencialmente aplicável às outras
formas de “representação”, as quais, em rigor, são já um fenómeno distinto.
A representação distingue-se de diversas figuras próximas ou afins:
- Da chamada representação mediata ou impropria: uma pessoa,
normalmente pelo mandato, age por conta de outra mas em nome próprio; as
pessoas que, com ela, contratem desconhecem a existência de um mandato;
concluído o negócio, o mandatário deverá proporcionar a aquisição pretendida
pelo mandante (art.1182.º CC);
- Da gestão de negócios representativa: o agente (gestor) atua em nome do
dono, mas sem dispor e sem invocar poderes de representação; os negócios que
pratique inscrevem-se na esfera do dominus, se houver ratificação (art.471.º CC);
- Do contrato para pessoa a nomear: uma parte, aquando da celebração de
um contrato, reserva-se o direito de nomear um terceiro que adquira os direitos e
assuma as obrigações provenientes desse contrato (art.452.º/1 CC); os efeitos não
se repercutem automaticamente na esfera do nomeado: antes se exigem uma
declaração de nomeação e, ainda, um instrumento de ratificação ou de procuração
anterior ao contrato (art.453.º CC);
- Do recurso a núncio: o núncio limita-se a transmitir uma mensagem. Este
não tem margem de decisão.
O negócio jurídico celebrado pelo representante em nome do representado, nos
limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica do
representado (art.258.º). A repercussão tem duas caraterísticas: é imediata e automática.
Frente a frente aparecem-nos dois intervenientes: o representado e o representante.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Em qual das perspetivas e respetivas vontades se devem verificar os competentes


requisitos?
Pela teoria do dono do negócio jurídico, apenas a vontade do representado teria
relevância; pela da representação, contaria tão-só a vontade do representante. O CC deu
corpo a uma combinação de ambas, no art.259.º. Parte-se de teoria da representação;
todavia, admitindo-se que a vontade do representado possa ter contribuído para o
resultado final.
A má-fé subjetiva do representado (art.259.º/2) prejudica sempre, mesmo que o
representante esteja de boa-fé. De igual modo, a má-fé deste prejudica, também, sempre.
Em representação, o representante age, de modo expresso e assumido, em nome
do representado: dá a conhecer o facto da representação. O destinatário da conduta tem,
então, o direito, nos termos do art.260.º/1 CC, de exigir que o representante, dentro de
prazo razoável, faça prova dos seus poderes. Trata-se de um esquema de credibilidade da
representação, e de evitar incertezas quanto ao futuro do negócio jurídico, sempre que
tarde a surgir a prova dos poderes invocados pelo representante.
Constando os poderes de um documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele,
assinada pelo representante (art.260.º/2). Reforça-se a confiança do terceiro e encontra-
se um esquema destinado a melhor responsabilizar o representante.
Distinguir entre procuração com poderes gerais e com poderes especiais
(art.1159.º). Na primeira permite-se ao representante a prática de uma atividade genérica,
em nome e por conta do representado; na segunda, permite-se a prática de atos
específicos.
Esta distinção é aplicável à procuração, com base em argumentos sistemáticos,
históricos e lógicos a fortioti. Historicamente, recordamos os art.1323.º e 1325.º do
Código de Seabra e o facto de esta matéria se ter vindo a desenvolver a partir do mandato.
O argumento sistemático aponta para a unidade natural que deve acompanhar o mandato
com representação: o mandatário irá receber os poderes necessários para executar cada
ponto do mandato. Finalmente, o argumento lógico explica que não faz sentido ter uma
lei mais exigente para um mero serviço do que para os poderes de representação, que
podem bulir com razões profundas de interesse público e privado.

A. O negócio-base; regras quanto ao procurador e à sua substituição

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O CC veio a cindir a procuração do mandato. A efetiva conceção de poderes


implicados por uma procuração pressupõe um negócio-base, nos termos do qual eles
sejam exercidos.
Normalmente, o negócio-base será um contrato de mandato. A procuração e o
mandato ficarão numa específica situação de união. Nessa altura, a própria lei (art.1178.º
e 1179.º CC) manda aplicar ao mandato regras próprias da procuração; as vicissitudes
desta vêm bulir com o mandato. Podemos ir mais longe: a extensão da procuração, as
suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por
que eles devem ser exercidos dependerão, também, do contrato-base.
Além do mandato, outras relações básicas vêm referidas na doutrina, com
destaque para o contrato de trabalho e para as situações jurídicas da administração das
sociedades. A prática distingue: tratando-se de poderes gerais, a representação resultará
da própria situação considerada. Os poderes especiais exigirão, pelo contrário, um ato
explícito do representado.
O art.265.º/1/2 CC, prevê três fórmulas para a extinção da procuração:
- A renúncia do procurador - O procurador pode sempre renunciar à
procuração. Todavia, na prática, as coisas não se processam deste modo. As
procurações são, muitas vezes, passadas a profissionais, especialistas e, como tal,
remunerados. A renúncia súbita a uma procuração pode prejudicar o representado.
Assim, teremos de entender que, sem prejuízo para a regra da livre
renunciabilidade aos poderes, por parte do procurador, este poderá ter de
indemnizar se causar danos e a sua responsabilidade emergir da relação-base.
- A cessão do negócio-base - A cessação do negócio-base implica o termo
da procuração que, em princípio, não se mantém sem aquele. A lei admite, todavia,
que a procuração subsista “se outra for a vontade do representado”. Nessa altura,
os poderes mantêm-se, aguardando o consubstanciar de outra situação de base que
dê sentido ao seu exercício.
- A revogação pelo representado – Esta é o contraponto da livre
renunciabilidade: também ela se explica pela natureza de confiança mútua
postulada pela representação voluntária. O art.265.º/2 não deixou margem para
dúvidas: a revogação é livre “…não obstante convenção em contrário ou renúncia
ao direito de revogação”. Trata-se dos mesmos termos usados pelo art.1170.º/1
CC, a propósito da livre revogabilidade do mandato. Nessa ocasião, haverá que

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

observar, quando a eventuais indemnizações, o regime aplicável ao negócio-base.


Perante um mandato, os art.1179.º e 1172.º determinarão um dever de indemnizar.
A propósito da revogação da procuração, o art.265.º/3 CC prevê a hipótese de uma
procuração conferida também no interesse do procurador ou do terceiro. Este preceito só
faz sentido por, segundo o legislador, existir, subjacente à procuração, um contrato-base
ou situação a ele equiparável. Nesta altura, a revogação só pode operar havendo justa
causa, i.e.: surgindo um fundamento, objetivo ou subjetivo, que torne inexigível a
manutenção dos poderes conferidos. De novo há um paralelo com o art.1170.º/2 CC.
A revogação pode ser expressa ou tácita. O art.1171.º, a propósito do mandato,
consigna uma modalidade de revogação que considera “tácita”: a de ser designada outra
pessoa para a prática dos mesmos atos. Pensamentos que esta norma tem aplicação à
procuração: o representado que designe outro procurador para a prática dos mesmos atos
está, implicitamente, a revogar a procuração primeiro passada. Por aplicação analógica
daquele mesmo preceito, a revogação só produz efeitos depois de ser conhecida pelo
mandatário.
Em qualquer caso, sobrevindo a cessação de uma procuração, o representante deve
restituir, ao representado, o documento de onde constam os seus poderes. Trata-se de uma
norma que resulta do art.267.º CC, e que se destina a evitar que terceiros possam ser
enganados, quanto à manutenção de poderes de representação.
O art.267.º/1 CC refere, apenas, a hipótese da procuração ter “caducado”.

B. A tutela de terceiros
A procuração não pode ser tratada como uma exclusiva relação entre representante
e representado. A modificação ou a cessação súbitas de uma procuração podem contundir
com a confiança de terceiros que, crentes na manutenção dos poderes de representação
ainda existentes, tivessem mantido uma atividade jurídica com o representante.
Procurando contemplar os interesses e a confiança desses terceiros, mas sem
descurar a posição do representado, o art.266.º CC, estabeleceu as seguintes regras:
- Havendo modificações ou revogação da procuração, devem elas ser
levadas ao conhecimento de terceiros por meios idóneos; esta regra deve ser
entendida como um encargo em sentido técnico, pois da inobservância apenas
deriva uma inoponibilidade das modificações ou da revogação (n.º1);

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Nos restantes casos de extinção da procuração, não se refere um expresso


dever de dar a conhecer aos terceiros; não obstante, elas não podem ser opostas
ao terceiro que “…sem culpa, as tenha ignorado” (n.º2).
A diferença reside no regime da prova.
Para tentar explicar a produção de efeitos da procuração cuja extinção, por não ter
sido comunicada aos terceiros interessados, mantém eficácia, surgiram duas teorias:
- A teoria da aparência jurídica, que inicialmente defendida por
WELLSPACHER, sendo hoje considerada dominante. No essencial, entende que
a procuração se extinguiu efetivamente; todavia, mercê da aparência e para tutela
de terceiros, ela mantem alguma eficácia.
- A teoria do negócio jurídico, presente em FLUME, entende, pelo
contrário, que a procuração só se extingue, pelo menos em vários casos, quando a
sua cessação seja conhecida pelos terceiros a proteger. Trata-se de uma orientação
que pode invocar determinados apoios legais, perante o BGB.
No Direito Português, que não discrimina tal tipo de procuração, a teoria do
negócio não terá fundamento nas fontes. Queda optar pela teoria da aparência: o art.266.º
CC, nas precisas condições nela enunciadas, dispensa, aos terceiros aí referidos, uma
determinada proteção.

C. A procuração tolerada e a procuração aparente


Foram autonomizados dois institutos para proteção de terceiros:
- Procuração tolerada, em que verifica que alguém admite, repetidamente,
que um terceiro se arrogue seu representante. Quando isso suceda, reconhece-se,
ao “representante” aparente, autênticos poderes de representação. Não se admite
que por esta via surja uma procuração, apenas um esquema de tutela, por força da
confiança, imputada ao “representado”, suscitada pela conduta do
“representante”. Todavia, alguma doutrina sustenta a presença de uma verdadeira
procuração negocialmente consubstanciada.
- Procuração aparente - algumas jurisprudências e doutrina vão mais longe:
alguém arroga-se representante de alguém, sem conhecimento do “representado”.
Porém, o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível, designadamente
na vigilância dos seus subordinados, poderia e deveria prevenir a situação.
Teríamos, assim, um elemento objetivo – a negligência do representado: na
presença de ambos, os poderes de representação teriam lugar.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Em qualquer dos casos, teria de exigir a boa-fé do terceiro protegido: a tutela não
opera quando ele conhecesse ou devesse conhecer a falta da procuração.
E no Direito português?
Fora de qualquer previsão específica, a confiança só é protegida, no Direito
português, através da boa-fé e do abuso do Direito. Assim, não admitimos nem a
“procuração tolerada” nem a “procuração aparente”. Todavia, o terceiro que seja
colocado numa situação de acreditar, justificadamente, na existência de uma procuração,
poderá ter proteção: sempre que, do conjunto da situação, resulte que a invocação, pelo
“representado”, da falta de procuração constitua abuso do direito, seja na modalidade do
venire contra factum proprium, seja na da surrectio.
Em qualquer dos casos, exigir-se-á cautela a parcimónia na concessão de tal tutela.
De notar que o Direito Português, no caso especial do contrato de agencia (art.23.º DL n.º
178/86, de 3 de Julho) admite a figura da representação aparente. Resulta do teor deste
preceito um esquema bastante semelhante ao que resultaria da concretização da cláusula
geral de boa-fé.

2.4. Traços fundamentais do mandato sem representação.


No mandato sem representação, os atos jurídicos praticados pelo mandatário
produzem os seus efeitos na esfera jurídica deste (1180.º), sendo necessário um posterior
ato de transmissão para que os direitos correspondentes possam ser adquiridos pelo
mandante (1181.º/1).
No Direito Comercial, o mandato sem representação diz-se comissão ou contrato
de comissão (art.266.º).

2.5. As maiores especificidades do mandato mercantil.


O CCom dedica ao mandato comercial o título V do livro II. Arruma a matéria em
três capítulos: disposições gerais; dos gerentes, auxiliares e caixeiros; da comissão.
Veiga Beirão adotou uma ideia ampla de mandato, que envolve diversas outras
figuras. O núcleo estrito ocorre no capítulo “disposições gerais”.
No mandato comercial, o mandatário obriga-se, tal como no civil, a praticar um
ou mais atos jurídicos, por conta de outrem; simplesmente, tais atos são, aqui, de natureza
comercial (art.231.º). O mandato comercial envolve representação.
O mandato comercial presume-se oneroso (art.232.º). A remuneração é acordada
pelas partes ou, na falta de acordo, pelos usos da praça onde o mandato for executado.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Embora contratual, para PAIS VASCONCELOS, o mandato mercantil podia ser


conferido por via unilateral. O “mandatário”, não estando de acordo, poderia recusá-lo.
Nessa altura, ele incorre nos deveres previstos no art.234.º:
- Deve comunicar a sua recusa ao mandante, o mais cedo possível;
- Deve praticar todas as diligências necessárias para a conservação de
quaisquer mercadorias que lhe hajam sido remetidas, até que o mandate
proveja;
- Deve consignar em depósito tais mercadorias se, avisado, o mandante
nada fizer;
- Deve responder pelo incumprimento de qualquer das enunciadas
obrigações.
O mandatário deve, no âmbito do contrato:
- Praticar os atos envolvidos de acordo com as instruções recebidas ou, na
sua falta, segundo os usos do comércio (art.238.º);
- Informar o mandante de todos os factos que o possam levar a modificar
ou revogar o mandato (art.239.º);
- Avisar o mandante da execução do mandato, presumindo-se que ele
ratifica quando não responda imediatamente, mesmo que exceda os seus
poderes (art.240.º);
- A pagar juros do que deveria ter entregue, a partir do momento em que
não o haja feito (art.241.º), i.e., prestar contas.
Alguma delicadeza poderá assumir a ideia de “instruções”. No fundo, ela traduz
a ligação da atuação do mandatário à vontade do mandante, vontade essa que pode ser
dada a conhecer em termos gerais, em moldes finalísticos ou funcionais ou através de
indicações mais precisas. Isto não permite, só por si, “laboralizar” o mandato: o
mandatário não fica subordinado ao mandante no sentido de genericamente disponível
para, em nome da obediência, conformar a sua prestação de acordo com a direção do
empregador: trata-se, sempre, de uma atuação limitada.
Por seu turno, o mandante deve:
- Fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato,
salvo convenção em contrário (art.243.º);
- Pagar-lhe, nos termos ajustados ou segundo os usos da praça
(art.232.º/§1);
- Reembolsá-lo de despesas e compensá-lo (art.234.º, 243.º, 246.º).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A revogação e a renúncia não justificadas do mandato dão lugar a indemnização


(art.245.º). Trata-se de um esquema mais simples e mais amplo do que o previsto na lei
civil, sendo certo que nada, na lei, permite limitar a indemnização.
O mandato comercial em sentido estrito tem ainda outras especificidades. O
CCom prevê diversas regras para o caso de o mandato envolver a remessa, ao mandatário,
de mercadorias (art.234.º a 237.º).
Na pluralidade de mandatários, presume-se que devem obrar, por ordem de
nomeação, na falta uns dos outros (art.244.º) prevendo-se ainda a hipótese de mandato
conjunto não aceite por todos (art.244.º/parágrafo único).
O art.247.º estabelece privilégios creditórios mobiliários especiais a favor do
mandato comercial. De um modo geral, tais privilégios operam sobre mercadorias à
guarda do mandatário e por despesas por elas ocasionadas.
O mandato civil é no interesse do mandante; o mandato comercial é passado no
interesse também do mandatário e no do comércio em geral.

2.6. A comissão. Caracterização e traços fundamentais.


Esta é uma figura que se contrapõe à figura do mandato comercial.
Dada a sua inserção sistemática, aparentemente, a comissão é um contrato de
mandato comercial sem representação: nos termos do art.266.º: o mandatário executa
o mandato mercantil, sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si
e em seu nome, como principal e único contraente.
Ou seja, alguém que é o comissário deve vender mercadorias ou comprar
mercadorias em seu nome, logo os efeitos radicam-se na esfera jurídica do comissário,
que tem o dever de transferir para o comitente (ou mandante).
Ao contrato de comissão aplicam-se as regras gerais acima examinadas, salvo o
que respeita à representação (art.267.º e 268.º); o comissario deverá depois retransmitir
para o mandante ou comitente o que, por conta deste, haja adquirido: é o que se infere
do art.268.º.
O comissário não reponde, perante o mandante e salvo pacto ou uso em contrário,
pelo cumprimento das obrigações do terceiro; quando assuma esse encargo, pode
debitar, além da remuneração ordinária, a comissão del credere, a determinar por
acordo ou pelos usos da praça (art.269.º).
As consequências da violação ou excesso dos poderes de comissão correm pelo
comissario (art.270.º e 271.º).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O comissario deve agir com prudência (art.272.º) otimizando os meios destinados


a prosseguir o interesse do mandante. Tratando-se de bens com preço de bolsa ou
mercado, ele pode, salvo cláusula em contrário, comprar ou vender ao comitente, por
conta dele, sem perda da remuneração (art.274.º).
O CCom estipula determinados deveres de escrituração (art.273.º e 275.º a 277.º)
cuja violação traduz a inobservância do mandato, com as consequências legais.

2.7. A convenção del credere.


Para além da retribuição ordinária a que tenha direito por virtude do exercício da
gestão, o mandatário pode ter direito a uma renumeração extra quando exista convenção
del credere.
O instituto da convenção del credere encontra-se expressamente previsto no
art.269.º do CComercial em relação à comissão e no art.10.º do DL n.º 178/86 de 3 de
julho em relação à agência; através deste instituto, o comissário e o agente garante o
cumprimento das obrigações do terceiro com quem tenham concluído ou negociado
contratos, caso em que têm direito, nos termos do art.269.º/§2 do CComercial “a
carregar, além da renumeração ordinária, a comissão del credere.”
Uma vez que a relevância dos usos passa pelo crivo do art.3.º do CC, o Regente
questiona que se mantenha vigente a possibilidade de existir uma convenção del credere
no campo baseada nos usos, ou seja, parece-lhe que interpretando o modo como o
legislador constrói a vinculação del credere parece-lhe justificável que os termos
ilimitados sejam contrários aos princípio da boa-fé e, como tal, não sejam admissíveis.
Por outro lado, entende que deve existir uma necessidade de especificar o contrato,
mas não há necessidade de reduzir a escrito.
O instituto del credere constitui, atualmente um instituto geral comum ao mandato
sem representação, civil ou comercial (comissão) e à agência.
Assim, resulta no que respeita ao mandato civil do disposto no art.1183.º do CC
que quando, expressamente, admite uma estipulação em contrário à normal não
responsabilidade do mandatário pela falta do cumprimento das obrigações assumidas
pelas pessoas com quem haja contratado. Em consequência de tal estipulação em
contrário é modificado, por via convencional, o regime do risco contratual, constituindo
o plus traduzido na renumeração del credere uma contrapartida da garantia prestada.

2.8. O gerente de comércio.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O CCom regula, como manifestações especiais de mandatários comerciais, os


gerentes, os auxiliares e os caixeiros.
O gerente é a pessoa que detenha mandato geral para tratar do comércio de outrem
(art.248.º). Não é um mandato geral civil, uma vez que este se limita a atos de
administração ordinária, enquanto o gerente de comércio poderá estar titulado para
praticar todos os atos próprios da atividade em jogo, seja qual for a sua natureza. De todo
o modo, o mandato aqui em jogo funciona em termos de indeterminação dos atos a
praticar.
O gerente tem, nos termos gerais do mandato comerciais, confirmado pelos
art.250.º e 251.º, poderes de representação. A limitação de tais poderes é inoponível a
terceiros, “salvo provando que tinham conhecimento dela ao tempo em que contrataram”.
Temos, aqui, uma especifica forma de tutela da confiança de terceiros e comunidade em
geral, tutela essa que é reforçada pela sujeição da situação de gerência comercial ao
registo mercantil (art.10.º/a CRC).
Se o gerente contratar em nome próprio, mas por conta do proponente, o regime
do art.252.º não coincide totalmente com o mandato sem representação; o gerente fica
pessoalmente obrigado podendo, todavia, o contratante acionar o gerente ou o
proponente: mas não ambos.
Além disso:
- O gerente não pode, salvo autorização expressa do proponente,
desenvolver atividade com a deste concorrente; se o fizer, responde pelos danos
podendo ainda, o proponente, fazer ser o negócio faltoso (art.253.º);
- Havendo registo do mandato, o gerente tem legitimidade judicial ativa e
passiva, como representante do proponente (art.254.º).
As regras sobre a gerência comercial aplicam-se (art.255.º), aos representantes de
casas comerciais ou sociedades constituídas em pais estrangeiro que tratarem
habitualmente no reino, em nome delas, de negócios do seu comércio. Trata-se da figura
do escritório de representação.
A morte do proponente não põe termo à gerência comercial (art.261-º). Havendo
revogação do mandato, ficam extintos os poderes de representação: não quaisquer outros
elementos decorrentes da prestação de serviço (art.262.º).
A figura da gerência comercial, manifestação de um mandato mercantil de ordem
geral, tem vindo a perder importância, mantendo apenas um papel residual.

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Os gerentes de comércio não se confundem com os gerentes das sociedades


comerciais, nomeadamente das sociedades por quotas. Aqui falamos de um campo de
relação interpessoal.

2.9. Os auxiliares e os caixeiros.


O auxiliar distingue-se do gerente pelo seguinte: enquanto este tem mandato geral
(art.248.º e 249.º), o auxiliar tem apenas o mandato para tratar de algum ou alguns ramos
do tráfego do proponente (art.256.º). As sociedades devem consignar esta hipótese nos
seus estatutos (art.256.º, parágrafo único).
No âmbito do mandato, os auxiliares são representantes (art.258.º). No art.259.º
temos uma referência aos caixeiros, que têm o seu mandato circunscrito à venda e
cobrança.
O CCom admite ainda que, como auxiliares, possam funcionar “empregados” do
comerciante, devidamente mandatados (art.257.º - esta provisão faz lembrar a figura
lendária dos caixeiros viajantes). Os poderes de representação do trabalhador,
automaticamente decorrentes do seu contrato de trabalho, só funcionam no âmbito da
empresa.
Os caixeiros são pessoas mandatadas para vender e cobrar, em nome e por conta
do comerciante mandante. Têm, para isso, os necessários poderes.
Os art.260.º, 264.º e 265.º fixam um regime próximo do que resulta da relação de
trabalho.
Se os auxiliares e os caixeiros estiverem vinculados a um contrato de trabalho,
prevalece o regime jus-laboral.

3. Contrato de mediação.
3.1. Evolução histórica
3.1.1. Direito antigo e o Código Ferreira Borges (1833)
Na tradição jurídica portuguesa, a atual figura do mediador era incluída, sem
distinções, na de corretor. E a este dedicou a Lei, tradicionalmente, a maior atenção.
O Código Comercial Ferreira Borges incluía a matéria dos corretores na secção II
do título II do Livro I, Parte I, precisamente intitulada Dos Corretores: art.102.º-140.º. O
art.102.º apresentava o corretor nestes termos: o officio de corretor é viril e publico. O
corretor, e ninguém mais, pode intervir e certificar legalmente os tractos e negociações
mercantis.

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O âmbito de ação dos corretores era amplo. Dispunha o art.103.º: as operações


dos correctores consistem em comprar e vender para os seus comitentes mercadorias,
navios, fundos públicos, e outros créditos, letras de cambio, livranças, letras da terra, e
outras obrigações mercantis – em fazer negociações de descontos, seguros, contratos de
risco, fretamentos, empréstimos com penhor ou sem ele; - e em geral em prestar o seu
ministério nas convenções e transações comerciais.
O alvará de nomeação de cada corretor designará o género de negócios para que
ele ficava habilitado. A habilitação poderia ser ilimitada e geral para todos os negócios
de corretagem.
Manteve-se, pois, firme, a tradição do corretor como oficial público. Examinando-
se as suas funções, logo se verifica que elas vão bem além da mera mediação: temos, lado
a lado, esquemas do mandato e do notariado público.

3.1.2. O Código Veiga Beirão


No Código Comercial Veiga Beirão, o Título VII do Livro I denomina-se,
precisamente, Dos Corretores. Preenche os art.64.º a 81.º: uma síntese significativa, em
relação ao Código anterior.
O corretor exercia um ofício pessoal, público, viril e de nomeação régia. Podia ter
um substituto aprovado pelo Governo. O regime surge, aqui, como um misto de mandato
e de mediação. Significativamente, o art.77.º mandava aplicar certas regras relativas ao
mandato e à comissão. Além disso, dos art.68.º a 75.º resultavam funções de notariado
público.
Pela sua atuação era-lhes devida uma corretagem, fixada em tabela.

3.2. Especialização da Mediação


3.2.1. Mediação Mobiliária
O CCom. deu o tom mais geral à função dos corretores, no nosso Direito. A
evolução subsequente foi marcada pela manutenção da intervenção do Estado e pela
especialização crescente dos diversos tipos de corretagem. Em síntese, passa-se a indicar
a evolução:
- O Decreto-Lei aprovou o Regimento do ofício de corretor;
- Na evolução subsequente, os corretores foram especializados em três
grandes troncos: valores mobiliários, seguros e sector imobiliário. Quanto aos
valores mobiliários, o tema passou para o Decreto-lei nº8/74, de 14 de janeiro, que

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

veio regular a organização e o funcionamento das bolsas de valores, bem como


estabelecer o Regimento do Ofício de Corretor;
- O Decreto-Lei n.º 8/74 revogou expressamente o Decreto de 10 de
Outubro de 1901 e o Regimento do Oficio de Corretor. Estes diplomas não
funcionavam, apenas, no domínio do então chamado Direito da bolsa. Alargavam-
se aos seguros, aos transportes e às mercadorias. Todavia, com esta revogação, o
CCom ficou lei imperfeita. O sistema português, com exceção da bolsa, entraria
numa época de liberalização;
- O Decreto-Lei n.º 8/74 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, de
10 de abril, que aprovou o Código do Mercado de Valores Mobiliários;
- Finalmente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários foi revogado
pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro. A antiga matéria dos corretores
das bolsas surge agora a propósito da intermediação financeira (289.º a 351.º),
havendo ainda que contar com regulamentos e legislação complementar.

3.2.2. Mediação dos Seguros


A 27 de Agosto de 1975, um despacho do Subsecretário de Estado do Tesouro
veio estabelecer a obrigatoriedade de inscrição dos mediadores de seguros. Não era este
o meio jurídico para enquadrar o problema. E assim surgiu o Decreto-Lei n.º 145/79, de
23 de maio: o primeiro diploma a regular as condições e o modo como poder ser exercida
em Portugal a atividade de mediação de seguros. Visava-se reestruturar o setor dos
seguros; procurava-se garantir a intervenção de mediadores na maioria dos contratos de
seguros; responder à necessidade de profissionalização. A mediação de seguros ficou
reservada aos mediadores inscritos no então ISN.
Os mediadores foram repartidos em duas categorias:
- Agente de seguros: o mediador, pessoa singular ou coletiva, que faz a
prospeção e a realização de seguros, presta assistência ao segurado, efetua a
cobrança dos prémios e a prestação de outros serviços;
- Corretor de seguros: o mediador, pessoa singular ou coletiva que forma
uma organização comercial e administrativa própria, na qual se empregue um ou
mais trabalhadores profissionais de seguros; tem uma competência mais alargada,
a qual inclui:
- Dar informações às seguradoras para a análise de riscos;

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- Colaborar com os peritos e prestar assistência aos agentes que


coloquem seguros;
- Fornecer ao então INS uma série de elementos.
O primeiro regime de mediadores de seguros vigorou por 6 anos e foi substituído
pelo Decreto-Lei n.º 336/85 de 21 de agosto. Com esta alteração procurava-se intervir nos
seguintes domínios:
- Na modernização da atividade;
- No da exigência da sua profissionalização;
- No do reforço da disciplina do mercado:
- No da defesa dos interesses das partes envolvidas.
O novo diploma estabeleceu três categorias de mediadores:
- O agente de seguros;
- Angariador;
- Corretor.
Em nome da moralização, foi vedada a mediação de seguros nos contratos a
celebrar com entidades do setor público.
Passados mais 6 anos: o legislador entendeu dispensar um novo diploma regulador
da mediação dos seguros. Fê-lo através do Decreto-Lei n.º 388/91, de 10 de outubro.
Jogaram, nesse sentido, vários fatores:
- A presença de novos canais de distribuição de seguros, com relevo para
instituições de crédito e as estações de correios;
- A oportunidade de colocar num único instrumento, as regras aplicáveis à
mediação de seguros;
- O reforço de profissionalização;
- A liberalização do sistema da comissão, que passa a ser negociado
livremente entre as seguradoras e os mediadores;
- A especialização não vida, vida;
- A abertura aos EIRL e às cooperativas;
- A atualização das sanções.
O novo diploma atingiu a excecional longevidade de mais de vinte anos. Vigorou
até ser substituído pelo Decreto-Lei n.º 144/2006, de 31 de julho: um diploma de fôlego,
alterado pelo Decreto-Lei n.º 359/2007 de 2 de novembro, pela Lei n.º 46/2011 de 24 de
junho, que criou um tribunal especializado para a concorrência, a regulação e a

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supervisão, pelo Decreto-Lei n.º 1/2015 de 6 de janeiro e pela Lei n.º 147/2015 de 9 de
setembro.
A mediação dos seguros é versada no Direito dos Seguros.

3.2.3. Mediação dos Imobiliária


O setor imobiliário foi o primeiro a obter uma regulamentação especializada,
atinente à mediação. Ela foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43/767 de 30 de junho de 1961.
O diploma continha diversas regras especificamente dirigidas aos mediadores. O
contrato de mediação propriamente dito não era objeto de preceitos legais. No mesmo
ano, o Decreto-Lei n.º 43/902 veio dispor sobre a caução a que os mediadores imobiliários
ficavam adstritos.
Com alguns aditamentos, o regime básico de 1961 vigorou por mais de 30 anos.
O incremento significativo que se tem verificado na atividade de mediação imobiliária
conduziu à reformulação do seu enquadramento legislativo: tal o preâmbulo do Decreto-
Lei n.º 285/92 de 19 de dezembro, que levou a cabo tal tarefa.
O exercício de tal atividade ficava dependente do licenciamento, a obter junto do
Conselho de mercados de Obras Públicas.
O Decreto-Lei n.º 285/92 compreendia ainda outros aspetos dignos de interesse
científico. O art.5.º adstringia os mediadores ao uso da denominação, mediador
imobiliário ou sociedade de mediação mobiliária. O art.6.º elencava os seus deveres, na
linha do que tradicionalmente constava do CCom, para os corretores.
O art.10.º, de forma pioneira, regulava o contrato de mediação imobiliária.
Também no setor da mediação imobiliária se faria depois sentir a permanente
capacidade interventora do nosso legislador, conseguida através do Decreto-Lei n.º 77/99.
Este diploma visou:
- O reforço da capacidade empresarial das entidades mediadoras;
- A adoção da forma societária;
- Maiores requisitos para o acesso à atividade;
- Melhor identificação das empresas, dos seus representantes e dos seus
prestadores de serviços;
- Clarificar o momento e as condições de remuneração;
- Reforçar o sistema das garantias;
- Criar uma comissão arbitral para o reembolso de garantias indevidamente
recebidas;

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- Estabelecer novos deveres das empresas;


- Instituir novas sanções.
A Lei n.º 8/2004 autorizou o Governo a regular o exercício da atividade de
mediação imobiliária e de angariação imobiliária. O Governo desempenhou-se,
aprovando o que seria o Decreto-Lei n.º 211/2004 de 20 de agosto: com uma nova
regulação para a atividade de mediação imobiliária.
A atividade imobiliária é agora definida como aquela que, por contrato, uma
empresa se obriga a diligenciar no sentido de conseguir interessado na realização de
negócio que vise a constituição ou aquisição de direitos reais sobre imóveis; a permuta, o
trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão da posição em contratos cujo objeto
seja um bem imóvel.
Segundo o art.2.º/4 chama-se, agora, interessado ao solicitado e cliente ao
mandante. Mantém-se a necessidade de licenciamento junto do IMOPPI. Os requisitos de
ingresso são ampliados. O setor sofreu com a complexidade introduzida. Todavia, apenas
cinco anos volvidos o legislador se decidiu a intervir, em nome da simplificação, o
Decreto-Lei n.º 69/2011, alterou diversos preceitos do Decreto-Lei n.º 211/2004.
A mediação imobiliária sofre um especial influxo europeu. A ideia de um mercado
único europeu continuou bloqueada pela existência de múltiplos regimes restritivos,
diferentes de país para país. Visando harmonizar o acesso à prestação de serviços, foi
adotada a Diretiva n.º 2006/123. Essa Diretiva foi transposta pelo Decreto-Lei n.º
92/2010, o qual veio estabelecer os princípios e as regras para simplificar o livre acesso
e exercício das atividades de serviços realizados em território nacional. Esse diploma,
comporta, entre outros aspetos, medidas de desburocratização e simplificação.
O exercício da atividade de mediação imobiliária depende de inscrição no Instituto
da Construção e do Imobiliário. O contrato de mediação imobiliária está sujeito à forma
escrita e tem o conteúdo obrigatório prescrito no art.16.º/2.

3.2.4. Mediação Monetária


Também no setor monetário surgiu uma regulação para a respetiva mediação. O
Decreto-Lei n.º 164/86, veio invocar, no seu preâmbulo, que o correto funcionamento do
mercado monetário intercambiário, recomenda a intervenção especializada de
mediadores profissionais que contribuam para a racionalização do mercado, prevenindo
alongadas negociações multilaterais, centralizando a oferta e a procura, promovendo a

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sua transparência, a rápida e eficiente formação dos preços, a fluidez e o sigilo das
transações.
Isto posto, fixou-se um regime simples, assente nos pontos seguintes:
- Exigência de forma de sociedade anónima ou por quotas;
- Exigência de exclusividade e de exercício por conta de outrem;
- Incompatibilidade;
- Registo no Banco de Portugal.
A aprovação, pelo Decreto-Lei n.º 289/92 do Regime Geral das Instituições de
Crédito e Sociedades Financeiras, permitindo a aprovação de um novo regime: mais
simplificado. Tal foi o papel do Decreto-Lei n.º 110/94.

3.2.5. Mediação de Jogos Sociais do Estado


O regulamento dos jogos mediadores dos jogos sociais do Estado foi aprovado
pela Portaria n.º 313/2004.
A autorização para a atividade de mediação em causa tem natureza administrativa,
sendo concedida, por escrito, pelo DJSCML. Os deveres e incumbências dos mediadores
estão fixados, bem como as sanções que se lhes apliquem.
Também neste caso, para além da mediação, estão envolvidas diversas prestações
de serviços.

3.3. Dogmática Geral da Mediação


3.3.1. Ações e Modalidades
A mediação assume diversas aceções e modalidades. A contraposição entre os
diversos sistemas continentais e a própria evolução nacional logo mostram que, na
mediação, cumpre distinguir à cabeça:
- Mediação simples, em que o ato ou o efeito de mediar é levado a cabo
por qualquer pessoa, sem especial preparação ou condicionalismo, dentro do
espaço jurídico;
- Mediação profissional, em que encontramos uma pessoa que, de modo
organizado, lucrativo e tendencialmente exclusivo, utiliza a mediação como modo
de vida. Pela natureza das coisas, a mediação profissional torna-se muito mais
eficaz, sobretudo em áreas que impliquem investimentos alargados nos domínios
da prospeção do mercado e do conhecimento das suas realidades.

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A atenção dos Estados, desde os séculos XV a XVI, tem-se virado para a


mediação profissional. Ela pode, na verdade, representar o domínio total de
determinados setores comerciais. E caso se torne obrigatória: ela permitirá um
controlo eficaz sobre esses setores, assegurando um bom rendimento aos
mediadores.
De seguida, temos:
- A mediação liberal, em que o mediador age por si sem qualquer vínculo:
opera como um comerciante autónomo, seja ele uma pessoa singular ou coletiva.
Na linguagem da mediação imobiliária fala-se, simplesmente, em empresa de
mediação; na dos seguros, em corretor.
- A mediação dependente, em que o mediador está ligado a uma
organização por um vínculo de prestação de serviço, seja em relação ao mediador
propriamente dito, seja em relação à entidade que irá celebrar o contrato final, seja
ainda em relação a esta mesma entidade ou de outros mediadores.
- A mediação oficial, em que o mediador é designado por um ato
administrativo, encontrando-se em posição funcionalizada pública. Tal o caso dos
mediadores dos jogos sociais do Estado.
Relevante é ainda a contraposição, que já encontramos de modo repetido, entre:
- Mediação espontânea, em que o mediador põe, por iniciativa sua e sem
que ninguém lho tivesse solicitado, duas ou mais pessoas em contacto,
promovendo entre elas a negociação e a conclusão de um contrato que a ambas
interessasse.
- Mediação contratada, em que o mediador celebra, previamente, um
contrato com algum dos envolvidos, comprometendo-se a localizar e a interessar
um co-contratante, promovendo, com este, a conclusão contratual definitiva.
Podemos, ainda, subdistinguir:
- A mediação contratada unilateral, quando o mediador tenha
celebrado o contrato de mediação apenas com um dos interessados no
negócio final;
- A mediação contratada bilateral, quando o tenha feito com ambos
os interessados.
Esta última hipótese é frequente no setor imobiliário, onde os interessados
compradores se dirigem a agências de mediação imobiliária em busca de potenciais

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

contratos, agências essas que, previamente, já haviam celebrado contratos de mediação


com empresas construtoras ou com proprietários potenciais vendedores ou locadores.
Havendo contrato de mediação, cumpre distinguir:
- A mediação pura: o mediador obriga-se, simplesmente e numa situação
de independência e de equidistância em relação às partes, a conseguir a celebração
de certo negócio definitivo;
- A mediação mista ou combinada: o mediador, para além dos serviços de
mediação propriamente dita, exerce ainda uma atuação por conta de outrem,
podendo igualmente assumir outros serviços: desde a publicidade, à prestação de
apoio jurídico.
Neste último caso, haverá que procurar, à luz dos diplomas especiais, quando os
haja, qual o exato âmbito da figura.
Anote-se, ainda, que a mediação mista pode ser uma atuação interessada, no
sentido do solicitador ao qual, inclusive, o mediador poderá estar ligado,
institucionalmente ou por contrato, incluindo, até, meios de representação. Já não era será
uma verdadeira mediação: falaremos em mediação imprópria.

3.3.2. Mediação Civil e Mediação Comercial


A lei alemã distingue a mediação civil e a mediação comercial. Na primeira,
conter-se-iam as regras gerais, equivalendo a segunda às especialidades requeridas pelo
comércio. Nos Direitos latinos, a tradição era a presença da mediação apenas nas leis
comerciais. de resto, e em especial na nossa lei, mais do que a mediação era, em princípio,
tratado apenas o mediador.
Nada impede a celebração, ao abrigo da liberdade contratual (art.405.º CC), de um
contrato de mediação puramente civil. Ele traduziria a obrigação de uma das partes de
encontrar um interessado para a celebração, com o comitente, de um contrato definitivo.
Tratar-se-ia de um contrato preparatório, a inserir na sequência processual lado a
lado com outras hipóteses, como o contrato-promessa, o pacto de opção ou o pacto de
preferência e que apenas teria como a especificidade a intromissão, nessa sequência, de
um terceiro: o mediador.
As partes incluiriam, nele, as cláusulas que lhes aprouvesse. No silêncio do
contrato, nenhum inconveniente haveria em recorrer à lei comercial, procurando regras
de aplicação analógica.
Na normalidade dos casos, a mediação é comercial. Por uma de duas vias:

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- Ou por se tratar de um mediador – portanto: um comerciante – no


exercício da sua atividade comercial; não haverá qualquer dúvida quando o
mediador seja uma sociedade: teremos uma comercialidade subjetiva;
- Ou por estar em causa alguma das modalidades de mediação tipificadas
em leis comerciais: mediação mobiliária, dos seguros, imobiliária, monetária e de
câmbios e de jogos sociais: a comercialidade será objetiva, coincidindo, em regra,
com a subjetiva.
O art.230.º CCom dispõe:
“Haver-se-ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas, que se
propuserem: (…)
3. Agenciar negócios ou leilões por conta de outrem em escritório aberto
ao público, e mediante salário estipulado. (…)”
Já se tem, neste preceito, pretendido ver uma referência à mediação. A assim ser,
tratar-se-ia de um ato subjetivamente comercial, visto a interpretação geral a dar ao
art.230.º em causa. Na opinião do Professor MENEZES CORDEIRO, parece claro que o
art.230.º/3 não coincide nem com a mediação nem com os mediadores, à época ditos
corretores. Antes abrange diversas figuras de prestação de serviço.

3.3.3. Mediação Típica e Mediação Atípica


Podemos distinguir entre situações típicas de mediação e situações atípicas. As
primeiras reportam-se às modalidades que tenham consagração legal: as mediações
mobiliárias, de seguros, imobiliária e dos jogos sociais, como exemplos. As restantes são
atípicas. Normalmente, as situações típicas são, ainda, nominadas: dispõem de nomem
iuris.
Nos nossos tribunais, as situações de mediação mais frequentes são as mediações
imobiliárias. No tocante a mediações atípicas, os nossos Tribunais permitem documentar
as que se reportem:
- À venda de um automóvel;
- À aquisição de frascos para produtos farmacêuticos;
- A encontrar, no mercado, determinados livros;
- À compra e venda de máquinas industriais e de têxteis;
- À contratação de determinado serviço de fornecimento de gás;
- À colocação de um hotel em mercado.

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A prática não-judicial permite apurar muitas outras situações de mediação atípica,


designadamente no campo das antiguidades.
Tudo isto mostra a necessidade de se apurar um regime geral para o tipo de
contrato aqui em análise.

3.4. Figuras Afins


É necessário distinguir a mediação do mandato, da agência e do contrato de
trabalho.
A mediação pressupõe, por parte do obrigado, uma atuação material. Alem disso,
configura-se como um contrato aleatório, só dado azo a retribuição quando tenha êxito.
A sua distinção em face do mandato fica facilitada:
- O mandato pressupõe uma atuação por conta do mandante; a mediação
implica a condutas materiais;
- O mandatário age por conta dos mandantes; o mediador atua por conta
própria;
- O mandato pode ser acompanhado por poderes de representação; a
mediação, a sê-lo, será uma mediação imprópria.
De todo o modo, a mediação é, por essência, uma prestação de serviço. Assim, ela
acabará por cair no art.1156.º do CC: as regras do mandato, precedendo adequada
sindicância, ser-lhe-ão aplicáveis.
A mediação é, por si, um contrato inorgânico: não dá azo a nenhuma especial
organização, nem pressupõe uma relação duradoura. Além disso, ela postula uma posição
de independência do mediador. Pode-se, por estes ângulos, distingui-la do contrato de
agência:
- A agência pressupõe um quadro de colaboração ou de organização
duradouro, entre o principal e o agente; a mediação assenta num negócio pontual,
apenas eventualmente duradouro;
- O agente deve agir de modo empenhado, por conta do principal; o
mediador, na pureza do instituto, mantém-se equidistante;
- A agência é compatível com poderes de representação, o que não sucede
com a mediação;
- A agência tem esquemas típicos de retribuição, que não ocorrem na
mediação; designadamente: o agente só é remunerado, em regra, quando o
contrato definitivo seja cumprido, o que não sucede na mediação.

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Na prática, sucede que a mediação e a agência podem combinar-se. Sucede ainda


que certos autodesignados mediadores são, na realidade, agentes. Caso a caso haverá que
ponderar a realidade existente. De todo o modo, a diferenciação da mediação perante a
agência faculta a distinção em faxe de outros contratos de distribuição: a concessão e a
franquia.
O mediador é, por fim, um profissional independente. Não está sob a direção do
comitente. Não haverá qualquer confusão com o contrato de trabalho. Sucederá, porém,
e em certos casos, que o mediador se venha a colocar na subordinação económica do
comitente. Nessa altura, a exata pesquisa de subordinação jurídica terá de ser encetada na
base dos indícios da laboralidade e privilegiando sempre, em última instância, a vontade
das partes contratantes.

3.5. O regime e a natureza da mediação


3.5.1. Requisitos
Qualquer pessoa pode, independentemente de haver um contrato de mediação,
operar como intermediário num determinado negócio: por iniciativa própria e sem que
ninguém lhe tivesse pedido. Põe-se, pois, um curioso problema de ordem prática: o da
determinação da própria existência de um contrato de mediação. Assim:
- Para haver mediação, é necessário que o mediador tenha recebido uma
incumbência, expressa ou tácita;
- É necessário que se tenha chegado a um contrato nesse sentido, sob pena
de haver meras negociações;
- Admitindo-se, todavia, que a mediação exista mesmo quando não se
alcance o negócio definitivo em vista.
Na hipótese de uma mediadora que tenha sido contratada pelo terceiro interessado,
não há contrato de mediação entre ela e o vendedor.
Quanto aos requisitos e principiando pelas partes:
- A exigência de licenciamento ou equivalência, mormente no campo
imobiliário, só se aplica a profissionais: não ao mediador esporádico e ocasional;
- Na hipótese de seguir um profissional não autorizado: poderá haver
sanções contra este, mas o contrato de mediação, em si, não é nulo.
No tocante à forma: a mediação, enquanto contrato atípico, não se sujeita a
qualquer forma específica. Todavia, o art.10.º/1 do Decreto-Lei n.º 285/92, relativamente
à mediação imobiliária, veio exigir a forma escrita. A inobservância desta exigência não

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pode, no entanto, ser invocada pela entidade mediadora; a sua invocação pelo interessado,
para não pagar a comissão pode, todavia, constituir abuso do direito. Logo, também o não
poderá ser nem por qualquer interessado, nem ex-officio: apenas pelo cliente do mediador.
Estamos, pois, perante uma nulidade atípica.
Além disso, tendo sido obtido êxito com a mediação, mesmo havendo nulidade
formal do contrato, como não é possível restituir os serviços prestados, a comissão sempre
seria devida. Há um claro favor negotii, por parte da nossa jurisprudência, o qual é,
inclusive, prosseguido também através de regras de Direito Transitório.
Nos casos de mediação sujeitos a maiores densidades regulativas, haverá que
atentar bem nos competentes regimes. Pense-se nos casos da mediação mobiliária e na
dos seguros.

3.5.2. Cláusulas típicas e boa-fé


Há poucas regras diretamente aplicáveis ao contrato de mediação. Mesmo
tratando-se das modalidades especiais tipificadas na lei, o legislador ocupa-se, sobretudo,
da figura do mediador, determinando, para este, deveres e encargos. O contrato é deixado
em segundo plano.
A jurisprudência tem reclamado, perante essa escassez regulativa, a aplicação
sucessiva:
- Das estipulações das partes;
- Das normas de aplicação analógica;
- Dos princípios gerais das obrigações;
Da decisão judicial integradora.
O Professor MENEZES CORDEIRO destaca que a mediação é, antes de mais,
uma prestação de serviços. Na falta de outras regras, haverá sempre que fazer apelo ao
previsto para o mandato, por via do art.1156.º CC.
A mediação pode ser acompanhada, a título de cláusula típica, pela exclusividade.
Nessa altura, o comitente compromete-se a, com referência ao projetado negócio, não
contratar mais nenhum mediador. A cláusula de exclusividade poderá ainda ser reforçada
quando, além de não recorrer a outros intermediários, o comitente se obrigue, também, a
não descobrir, ele próprio, um terceiro interessado. Nada disso se presume: deverá ser
clausulado e, havendo dúvidas, provado por quem tenha interesse na situação
considerada.

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Havendo exclusividade, surge a presunção de facto de que a atividade do


mediador contribui para a aproximação das partes, facilitando o negócio e revertendo o
ónus da prova para os mediados. Mas a presunção pode ser afastada. Muitas vezes os
contratos de mediação são concluídos na base de cláusulas contratuais gerais. Nessa
eventualidade, o aderente deve ser devidamente esclarecido, pelo mediador, sobre o
alcance da exclusividade, sobe pena de a cláusula em causa ser devida como não escrita.
E quando presente, ela deve ter um prazo razoável: perante a ineficácia da imobiliária, os
bens não podem ficar congelados. Não sendo assim: o contrato é denunciável.
Os interessados são vivamente incitados a prever no contrato tudo quanto lhes
interesse. Entre as hipóteses normais avultam:
- A indicação do preço mínimo por que o comitente aceite contratar;
- A fixação da comissão, normalmente em percentagem sobre o negócio
definitivo; na sua falta, recorrer-se-á ao habitualmente praticado, nas situações
semelhantes à considerada;
- A indicação de um prazo de vigência; quando não o façam, haverá que
recorrer às regras do mandato.
Em toda a relação de mediação, haverá que observar o princípio da boa-fé
(art.762.º/2 CC), com todos os deveres que dai decorrem. Assim e designadamente:
- Há que prestar todas as informações pertinentes entre as partes; as
mediações sujeitas a regimes tipificados na lei comportam determinações
reforçadas e mais precisas de informações; de todo o modo e em geral, as
informações relevantes sempre terão de ser prestadas;
- As partes devem manter-se leais, prevenindo condutas que possam
inviabilizar o escopo do negócio; particularmente, não pode o comitente tornar
impossível o negócio definitivo; isso equivaleria a não agir de boa fé ma
precedência de uma condição;
- A mediação não pode constituir pretexto para desencadear ou potenciar
situações de concorrência.
Um ponto importante e delicado é, na mediação, o da proteção do terceiro
solicitado. Este não é parte no contrato. Todavia, tem uma tripla proteção:
- O próprio contrato de mediação só se considera cumprido se o contrato
definitivo for regularmente obtido: tal não sucede quando o mediador use de dolo,
altura em que não há direito à comissão;

188
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A lei obrigar a esclarecer devidamente os terceiros solicitados, em várias


situações legalmente previstas; quando isso não suceda, há responsabilidade, ex vi
485.º CC.
- A boa-fé contratual protege, também, o próprio terceiro; será uma
manifestação do efeito protetor de terceiros.
A ética dos negócios, que dá corpo à cláusula dos bons costumes, manda que o
mediador respeite, sempre, o terceiro solicitado. Dele depende o mercado e, em geral:
todo o progresso da vida económica.

3.5.3. A Retribuição
A mediação, particularmente quando comercial, é onerosa. Cabe às partes, no
contrato, prever com toda a precisão:
- Qual a retribuição devida;
- Em que circunstâncias ela deve ser paga;
- Em que momento terá lugar a sua satisfação.
A retribuição efetiva, muitas vezes, através de uma comissão sobre o preço do
negócio definitivo: donde o dizer, correntemente, apenas comissão.
Aquando da retribuição e do seu pagamento, há que contar com os deveres fiscais
envolvidos: retenção na fonte e IVA.
Na falta de estipulação das partes ou na sua insuficiência, há toda uma ponderação
jurisprudencial que permite precisar as proposições seguintes:
- A retribuição só é devida com a conclusão do contrato definitivo: não
bastam esforços nesse sentido, ainda que o mediador tenha o direito de ser
indemnizado;
- A atividade do mediador deve ser causa adequada ao fecho do contrato
definitivo; ou então: este deve alcançar-se como efeito de intervenção do
mediador;
- A remuneração é devida mesmo que o contrato definitivo não venha a ser
cumprido;
- Na hipótese de só não se ter concluído o negócio definitivo por causa
imputável ao comitente;
- A subsequente declaração de nulidade do contrato, por causa não
imputável à mediadora, não afeta o direito desta à retribuição;

189
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Havendo um concurso de causas que conduzam à celebração do negócio


pretendido, a comissão será devida desde que a atuação do mediador também
tenha contribuído para o êxito final;
- Todavia, quando isso suceda, pode o contrato haver-se como apenas
parcialmente cumprido, reduzindo a remuneração;
- O negócio definitivo poderá, na mediação imobiliária, ser um simples
contrato-promessa ou, antes, a escritura final: depende da interpretação do
contrato de mediação.
Completamente, cabe ainda explicitar outros aspetos, também ligados à
retribuição e ao seu pagamento. Assim:
- O contrato de mediação pode reportar-se a um negócio definitivo que
recaia sobre coisa futura;
- O próprio solicitante não cumpre o contrato de mediação se bloquear o
contrato definitivo;
- Cabe ao mediador fazer prova de que a conclusão do negócio definitivo
resultou da sua intervenção;
- Não cumpre o contrato o mediador que, embora tendo desenvolvido uma
atuação útil inicial, venha, depois, empatar a celebração do contrato definitivo;
- A alteração subjetiva de uma das partes no negócio não exclui, só por si,
a comissão.
O pagamento da comissão ao mediador dependerá de haver uma relação contratual
entre este e o contratante final – ou algum deles. Na sua falta, poderemos fazer apelo à
gestão de negócios. Qualquer pagamento terá, então, uma diversa natureza, devendo
efetivar-se nos quadros desse instituto.

3.5.4. A Cessação
O contrato de mediação cessa pelas razões que, nele, as partes tenham querido
inserir. Quando nada digam, teremos de recorrer às regras gerais. Assim:
- Quando pactuado para um concreto negócio, ele cessa caso esse negócio
se obtenha ou, ainda, na hipótese de ele se tornar definitivamente impossível;
- Independentemente disso, o contrato termina pelo incumprimento
definitivo de qualquer das partes.

190
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Mais complexa será a hipótese de se acordar numa mediação duradoura:


destinada, por exemplo, a concluir todos os negócios que uma determinada entidade
venha a fazer. O professor MENEZES CORDEIRO propõe o seguinte:
- Por via do art.1156.º CC, haverá que recorrer às regras do mandato: o
solicitante poderá revogar o contrato mas, uma vez que ele também foi celebrado
no interesse do mediador, terá de haver justa causa para a revogação (1170.º/2
CC);
- Por aplicação analógica do art.28.º do Decreto-Lei n.º 178/86 de 3 de
julho, relativo à agência e, ainda, em concretização da boa-fé: por denúncia, com
a antecedência aí indicada.
A revogação indevida equivale ao incumprimento, com todas as consequências
daí advenientes.
A mediação é, em regra, intuitu personae. Cessa com a morte ou a extinção de
qualquer das suas partes.

3.5.5. Características e Natureza


O contrato de mediação trata-se, fundamentalmente, de uma prestação de serviços
materiais, onerosa, aleatória e intuitu personae. Outras características dependem do tipo
de mediação concretamente em causa.
No tocante à sua natureza: há um debate clássico, com incidência em Itália, que
contrapõe as teorias negociais, não negociais e mistas. Boa parte do problema põe-se pelo
facto de as leis tratarem a figura da mediação e não, como se impunha, o contrato do
mesmo nome. Além disso, novas dúvidas ocorrem pelo facto de não se poder imputar, ao
mediador, uma obrigação de resultado: a obtenção de um contrato entre terceiros.
Perante o Direito Português e em face das muitas dezenas de decisões judiciais
que cobrem o assunto, o Professor MENEZES CORDEIRO não tem qualquer dúvida em
concluir pela sua natureza contratual e com o perfil pré-anunciado.
Fora de um contrato de mediação, qualquer intermediário que alcance um negócio
entre terceiros apenas poderá, tudo visto, beneficiar do estatuto de gestor de negócios.

4. A distribuição e o Direito.
Qualquer economia moderna assenta numa divisão de funções e tarefas. Assim.
Os circuitos económicos de distribuição dos bens, desde o produtor até ao consumidor

191
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

final, são dobrados por esquemas jurídicos destinados a legitimá-los, fixando os direitos
e os deveres das partes envolvidas.
De facto, os códigos comerciais não têm autonomizado e regulado os contratados
de distribuição, até porque muitos deles correspondem a figuras relativamente recentes,
de inspiração norte-americana. Deste modo abrem-se lacunas, as quais são colmatas:
- Por recurso à analogia – isto a partir de formas [contratuais] efetivamente
existentes, normalmente dedicadas ao contrato paradigmático da agência; ou
- Com base em cláusulas contratuais gerais – estas devidamente sindicadas (i.e.,
fiscalizadas, inspecionadas) pela prática.
A comercialização dos bens e a sua distribuição na sociedade, pode ser feita de
forma direta ou indireta. Neste sentido:
- A distribuição direta – aqui, o bem passa diretamente do produtor ao consumidor,
ainda que, por vezes, através de representantes, de comissários ou de mediadores;
- A distribuição indireta – nesta, o bem atravessa várias fases, passando do
produtor ao agente económico grossista6 ao retalhista7 e do retalhista ao consumidor final.
Já por seu turno, a distribuição indireta pode ser integrada ou não-integrada. Neste
sentido:
- Distribuição indireta integrada – nesta existe uma coordenação entre a produção
e a comercialização, de tal modo que o distribuidor é integrado em circuitos próprios do
produtor, sujeitando-se, por vezes, às suas diretrizes;
- Distribuição indireta não-integrada – nesta não há a referida coordenação; os
distribuidores atuam sem concertação com os produtores.
Particularmente relevantes são, neste domínio e entre nós, as regras da
concorrência, inseridas na Lei n.º 18/2003 de 11 de junho (já revogada pela Lei n.º
19/2012 de 8 de maio, a qual veio a aprovar o novo Regime Jurídico da Concorrência,
Lei 19/2012 que também já alterada pela Lei n.º 23/2018 de 5 de junho), regras essas que
vedam os acordos e práticas concertadas tendentes a interferir nos mercados:
Artigo 9.º (da Lei n.º 19/2012 de 8 de maio)
Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas

6
Grossista – ou ainda armazenista, é aquele comerciante que vende, compra ou fornece por grosso. O
vendedor ou distribuidor grossista, regra geral, não entra em contacto direto com o consumidor final. A sua
função mais habitual dentro da cadeia de distribuição é ser o intermediário entre o produtor ou fabricante e
o vendedor retalhista.
7
Retalhista - é aquele comerciante que têm um contacto mais estreito com o público, em especial com os
pequenos consumidores privados.

192
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

1 - São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre


empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou
como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no
todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em:
a) Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou
quaisquer outras condições de transação;
b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico
ou os investimentos;
c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso
de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na
concorrência;
e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros
contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo
com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
2 - Exceto nos casos em que se considerem justificados, nos termos do artigo
seguinte, são nulos os acordos entre empresas e as decisões de associações de
empresas proibidos pelo número anterior.
Também a nível contratual, as intervenções do Estado serão norteadas pela defesa
do mercado e, por essa via, dos consumidores. As regras sobre as cláusulas gerais e a
defesa do consumidor devem estar sempre presentes.

A. Os contratos de distribuição.
Dos diversos esquemas de distribuição acima referidos, interessa reter a
distribuição indireta integrada. Este tipo de distribuição pressupõe, em regra, a celebração
dos adequados instrumentos contratuais entre os interessados, designadamente, entre o
produtor e os distribuidores.
A doutrina especializada aponta 4 tipos de situações jurídicas possíveis:
- A agência;
- A concessão;
- A franquia;
- A livre organização de cadeias.

193
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Se na última hipótese (i.e., na livre organização de cadeias) não há instrumentação


que estruture a articulação entre produtor, distribuidores e retalhistas, já quanto às outras
hipóteses cumpre retê-las (e por isso, seguidamente, as analisaremos).
Mas existem ainda outras modalidades que poderemos considerar atípicas, como
é o caso do contrato de distribuição de publicações.
Mas antes de analisar cada um dos 3 primeiros contratos, podemos referir,
relativamente a cada um destes contratos, o seguinte:
- O contrato de agência: foi codificado ente nós pelo DL n.º 178/86 de 3 junho
(alterado pelo DL n.º 118/93 de 13 de abril) que estabelece (no art.1.º/1) este contrato
como:
(…) o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da
outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante
retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de
clientes.
- O contrato de concessão: este é um cotrato atípico e inominado e que tem sido
definido como aquele em que uma pessoa (o concedente) reserva a outra (o
concessionário) a venda de um seu produto, para revenda, numa determinada
circunscrição.
- O contrato de franquia (franchising): neste contrato uma pessoa (o franqueador)
concede a outra (o franqueado) a utilização, dentro de certa área, cumulativamente ou
não, de marcas, nomes, insígnias comerciais, processos de fabrico e técnicas empresariais,
mediante contrapartidas. Este é um contrato que tem sofrido evolução, ao ponto de mais
recentemente implicar investimentos e publicidade a cargo do franqueador e, ainda, certas
distribuições de bens e serviços, aproximando-se assim do contrato de agência.
Nada impede às partes de confecionar contratos atípicos de distribuição. De todo
o modo, havendo distribuição, encontraremos sempre um núcleo contratual bastante
próximo da agência. Assim, a agência ergue-se como a figura matriz dos contratos de
distribuição. As normas do contrato de agência podem alargar-se aos contratos de
distribuição atrás referidos e, ainda, aos contratos de distribuição atípicos. Daí a
importância /relevância comunitária (i.e., da UE) da agência que a seguir explicitamos.

4.1. O contrato de agência.


4.1.1. Evolução e caracterização do contrato de agência.

194
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Os antecedentes do contrato de agência remontam aos vários esquemas que, desde


a Antiguidade, permitiam o exercício do comércio à distância, através de auxiliares.
A este respeito cabe uma referência global à feitoria, de cujas modalidades
emergiram, séculos volvidos, diversas figuras ligadas à distribuição de bens e serviços.
O contrato de agência, hoje dotado de regime legal expresso nos diversos Direitos
da UE, não é apenas um contrato de distribuição, mas funciona como uma matriz de
distribuição, i.e., como uma figura exemplar [no que se refere à distribuição].
Na prática, a doutrina e a jurisprudência, quando confrontadas com fórmulas de
distribuição, fazem apelo às regras da agência.
Os contratos de agência distinguem-se dos contratos de mediação, de concessão
(no caso da agência, o agente não tem de comprar nada para revender a ninguém). No
nosso ordenamento, o contrato de concessão apesar de ser socialmente típico, é
legalmente atípico, mas a lei da agência é passível de ser aplicável com algumas
adaptações (mas tenho de encontrar uma similitude de situações).
Distingue-se, ainda, do contrato de franquia. A franquia pode dividir-se em:
franquia de serviços, a franquia de produção ou industrial e as franquias de distribuição.
O próprio contrato de franquia pode levar a que esteja em causa a aplicação da lei da
responsabilidade do produtor.

A. A Diretiva n.º 86/653/CEE.


O contrato de agência tomado como modelo reitor dos diversos contratos de
distribuição, tem um papel importante nas relações de comércio internacionais. Nele, o
agente é um veículo privilegiado para colocar as mercadorias para além das fronteiras e,
além disso, a agência pode bulir com questões de concorrência.
Assim, compreende-se que as instâncias europeias tenham procurado uma certa
uniformização dos regimes nacionais da agência. Deste modo surgiu a Diretiva n.º
86/653/CEE, de 18/12/1986, respeitante à coordenação do Direito dos Estados-membros
sobre os agentes comerciais. Para o feito ela apresenta (cfr. art.1.º/2) o agente como:
“(…) a pessoa que, como intermediário independente, é encarregado a título
permanente, quer de negociar a venda ou a compra de mercadorias para uma
outra pessoa, adiante designada de “comitente”, quer de negociar e concluir tais
operações em nome e por conta do comitente.”

195
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A referida Diretiva tem um cuidado especial em subordinar as partes à lealdade e


à boa-fé (cfr. art.3.º/1 e art.4.º/1), o que evidencia um claro predomínio da técnica jurídica
alemã, em termos que não podem ser ignorados.

4.1.2. O regime legal do contrato de agência. Generalidades.


De acordo com a noção de agência contida no art.1.º/1 do DL n.º 178/86 de 3
junho (alterado pelo Decreto-Lei n.º 118/93 de 13 de abril), temos como elementos
fundamentais do contrato de agência:
“- O dever de promover, por conta de outrem, a celebração de contratos;
- De modo autónomo e estável;
- Mediante retribuição.”
Assim, a agência será pois, em rigor, uma prestação de serviço, mais
particularmente uma modalidade de mandato.
A autonomia é importante pois permite, desde logo, uma distinção do contrato de
trabalho. Em princípio cabe ao agente a sua autodeterminação, mas há que temperar esta
realidade (art.7.º), a autonomia não pode colocar em causa o interesse principal no âmbito
do contrato de agência.
Assim, a referida “autonomia” não é total, pois à semelhança do mandatário, o
agente deve acatar as instruções do principal: instruções que são concretizadoras e não
inovatórias. Mais, a agência é um contrato oneroso.
Ao agente são requeridos investimentos pessoais e, por vezes, materiais.
O contrato de agência parece não estar, à partida, sujeito a qualquer forma. No
entanto, diversas cláusulas do mesmo devem, necessariamente, assumir a forma escrita
(10.º/e CRC), designadamente:
- As que confira(m) ao agente poderes de representação (art.2.º/1 do DL n.º
178/86 de 3 junho);
- As que permita(m) a agente cobrar créditos (art.3.º/1, idem);
- As que estabeleça(m) uma proibição de concorrência pós-eficaz (art.9.º,
ibidem);
- A convenção del credere (art.10.º, ibidem);
- A cessação por mútuo acordo (art.25.º, ibidem);
- A declaração de resolução (art.31.º, ibidem).
Na prática, os contratos de agência assumem a forma escrita. Mais, é frequente
que os mesmos derivem da simples adesão a cláusulas contratuais gerais.

196
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

À semelhança do que ocorre com o mandato, a agência pode ser celebrada com
ou sem representação (art.2.º/1 do DL n.º 178/86 de 3 junho). Mas havendo representação,
presume-se que o agente está autorizado a cobrar créditos do principal (art.3.º/2 do DL
n.º 178/86 de 3 junho).
Já na agência sem representação, das duas uma:
- Ou o agente contrata em nome próprio devendo, depois, retransmitir para
o principal a posição adquirida;
- Ou o contrato é celebrado, pelo cuidado do agente, diretamente entre o
principal e o terceiro.
A agência pode ser celebrada com vista à celebração de contratos num círculo
predeterminado: seja a uma circunscrição geográfica (v.g., o distrito de Lisboa), seja a uma
delimitação pessoal (v.g., um agente para juristas), seja, finalmente, a uma combinação de
ambos. Essa delimitação pode ser associada a uma cláusula de exclusivo (art.4.º do DL
178/86) e, neste contexto, o principal não deve, no círculo que caiba ao agente, contratar
qualquer outro agente quando este possa exercer atividades em concorrência com o
primeiro.
Num paralelo com o disposto no mandato (art.1165.º do CC) o agente pode
recorrer a auxiliares e substitutos, contratando subagentes (art.5.º do DL 178/86), seja
diretamente seja a fortiori.
O disposto sobre a agência aplica-se à subagência, com as necessárias adaptações.
Fica todavia claro que, em relação ao principal, não pode o subagente receber poderes
que o próprio agente não detivesse.

4.1.3. Direitos e deveres das partes.


À partida deve ter-se presente que o contrato de agência, enquanto prestação
autónoma de serviço, implica uma margem lata de concretização. Assim, ele permite ao
agente procurar, nas condições de mercado que são muito mutáveis, as melhores soluções
para a execução do que lhe competia.
Compreende-se, por isso, a importância que tem o fim geral do contrato na
determinação da conduta das partes, a pautar pela cláusula geral da boa-fé (cfr. art.6.º e
art.12.º do DL 178/86). Há, pois, que recorrer, neste tocante, aos princípios mediantes da
tutela da confiança e da materialidade subjacente.
No que diz respeito às obrigações do agente, nos termos do art.7.º do DL 178/86,
ele deve:

197
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Respeitar as instruções do principal que não ponham em causa a sua


autonomia. É de realçar que o legislador pretendeu que as instruções não tenham
tal densidade que coloquem o agente na posição de empregado do principal;
- Prestar as informações pedidas e as necessárias, esclarecendo o principal
sobra a situação do mercado e as suas perspetivas. Tais informações poderão ir
desde meras referências ao ambiente geral, até pequenos estudos de política
económica;
- Prestar constas (e aqui o art.7.º do DL 178/86 é pouco explícito, pelo que
caberá recorrer ao art.1161.º/c do CC): as contas deverão ser prestadas no fim do
contrato ou sempre que o principal o exija.
Mas sobre o agente impendem ainda os deveres seguintes:
- Um dever de segredo (cfr. art.8.º do DL 178/86);
- Um dever de não concorrência pós-eficaz, isto se for acordado por
escrito; este dever não pode exceder os 2 anos e circunscrever-se-á à zona ou
círculo de clientes confiados ao agente (cfr. art.9.º do DL 178/86);
- Um dever de garantir, havendo acordo escrito, o cumprimento das
obrigações de terceiro, desde que respeitantes a contrato por si negociado: é a
convenção del credere (cfr. art.10.º do DL 178/86);
- Um dever de avisar de imediato o principal de qualquer impossibilidade
sua de cumprir o contrato.
Quanto aos direitos, o agente da enumeração do art.13.º do DL 178/86, desfruta:
- O direito de receber do principal os elementos necessários ao exercício
da sua atividade (é a concretização do art.1167.º/a do CC);
- O direito de receber, sem demora, a informação da aceitação ou da recusa
dos contratos concluídos sem poderes;
- O direito de receber periodicamente a relação dos contratos celebrados e
das comissões devidas, bem como todas as informações necessárias para verificar
os montantes das comissões (cfr. art.13.º/c/d do DL 178/86).
No que tange a remunerações a lei específica o direito à retribuição (cfr. art.13.º/
e do DL 178/86). A retribuição é fixada por acordo das partes ou, na falta deste e
sucessivamente, pelos usos e pela equidade (cfr. art.15.º do DL 178/86). Nenhum
obstáculo existe em que a retribuição consista, simplesmente, em comissões pelos
contratos celebrados.
Esta pode ser, ainda, por percentagens das vendas.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Tem o agente ainda direito a uma comissão pelos contratos que haja promovido
e, ainda, pelos contratos concluídos com clientes por si angariados, desde que concluídos
tais contratos antes do termo do contrato (cfr. art.16.º do DL 178/86).
O direito à comissão mereceu ao legislador uma particular atenção, no que diz
respeito à sua concretização. Neste sentido e segundo o art.18.º do DL 178/86:
- O agente adquire o direito à comissão quando ocorra uma de duas
circunstâncias: ou o principal cumpra ou deva ter cumprido o contrato, ou o
terceiro o haja cumprido;
- Tendo o principal executado a sua obrigação e tendo o terceiro cumprido
o contrato ou devesse fazê-lo, o agente adquire o direito à comissão mesmo que
haja cláusula em contrário;
- A comissão deve ser paga até ao último dia do mês seguinte ao trimestre
em que o direito tiver sido adquirido;
- Havendo convenção del credere, pode o agente exigir as comissões
devidas, uma vez celebrado o contrato: isto é evidente, dado que ele [agente]
garante o seu cumprimento pelo terceiro.
O agente tem ainda direito a ser avisado de qualquer diminuição da atividade
principal, isto seja perante aquilo que foi convencionado, seja perante o que seria de
esperar (cfr. art.14.º do DL 178/86).
Já em compensação e salvo cláusula em contrário, o agente não tem direito ao
reembolso de despesas pelo exercício normal da sua atividade (cfr. art.20.º do DL
178/86). No fundo, trata-se de um tributo por ele prestado face à autonomia de que
desfruta.

4.1.4. Proteção de terceiros.


O contrato de agência visa celebrar negócios entre o principal e terceiros. Estes,
porém, colocam-se na situação de contratar não com o próprio dono do negócio, mas com
um intermediário. Podem assim, os terceiros, encontrar-se numa posição de
vulnerabilidade.
O DL 178/86 de 3 de julho estabeleceu diversos mecanismos de proteção dos
terceiros. Neste sentido:
- O agente deve informar os interessados dos poderes que possui. Ele deve
esclarecer (através de letreiros e nos documentos que o identifiquem) se tem, ou
não, o poder de representação e se pode efetuar a cobrança de créditos (cfr. art.21.º

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do DL 178/86). O incumprimento desta regra torna-o responsável por todos os


danos que venha a ocasionar;
- Quando não tenha poderes de representação, o agente ou contrata no
próprio nome, funcionando assim as regras do mandato sem representação, ou
proporciona uma contratação direta entre o principal e o terceiro. Se contratar em
nome próprio, caímos na representação sem poderes prevista no art.268.º/1 do CC
(vide art.22.º/1 do DL 178/86);
- O negócio considera-se ratificado se o principal (tendo conhecimento da
sua celebração e do conteúdo essencial do mesmo e estando o terceiro de boa-fé)
não lhe manifestar, no prazo de 5 dias após o conhecimento, a sua oposição.
Por fim, o art.23.º/1 do DL 178/86 estabelece uma hipótese muito particular de
representação aparente. É o caso, havendo representação sem poderes:
- Isto é, quando o agente, sem representação, contrate, não obstante em
nome do principal;
- Mas acreditando o terceiro de boa-fé na existência deles [poderes];
- Desde que essa confiança seja objetivamente justificada;
- E tendo o principal contribuído para fundar essa confiança;
Estamos, nesta situação, perante uma representação aparente, e o negócio é eficaz.
Este dispositivo é aplicável é aplicável à cobrança de créditos por agente não
autorizado (cfr. art.23.º/2 do DL n.º 178/86).

4.1.5. Cessação do contrato de agência.


O art.24.º do DL n.º 178/86 enumera as formas de cessação do contrato de agência:
- Através do acordo das partes ou distrate, que exige a forma escrita (cfr.
art.25.º do DL n.º 178/86).
- Por via da caducidade, que que tem a ver com a sobrevivência de um
facto extintivo. E o art.26.º enumera: o termo do prazo, a condição e a morte
ou extinção do agente.
Nota: na falta de prazo, o contrato de agência tem-se por celebrado por
tempo indeterminado (cfr. art.27.º/1 do DL n.º 178/86). E por tempo
indeterminado se tem por celebrado o contrato de agência que, não obstante o
decurso do respetivo prazo, continue a ser executado pelas partes;
- Através da denúncia, que é um ato unilateral e recipiendo, que se destina
a fazer cessar um contrato de duração indeterminada. Não podem haver

200
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

vinculações perpétuas. A denúncia deve ser comunicada à outra parte com


determinada antecedência, nos termos seguintes:
- 1 mês, se o contrato durar menos de 1 ano;
- 2 meses, se o contrato já tiver iniciado o segundo ano de vigência;
- 3 meses, nos casos restantes.
Estes prazos tem um duplo alcance: são supletivos e mínimos. I.e.,
funcionam sempre que as partes nada digam e não podem, por elas, ser encurtados.
As partes podem sim fixar prazos mais longos, mas o prazo a observar pelo
principal não pode ser inferior ao do agente (cfr. art.28.º/3 do DL n.º 178/86).
A denúncia sem pré-aviso é eficaz, mas obriga o denunciante a indemnizar
a outra parte, pelos danos assim causados (cfr. art.29.º/1 do DL n.º 178/86).
Sendo o agente prejudicado, a lei permite (cfr. art.29.º/2 do DL n.º 178/86)
que a indemnização seja substituída pela remuneração que o agente iria auferir.
- Por via da resolução, que implica um ato recipiendo, assente em
determinada justificação e que faça cessar imediatamente o contrato de agência,
tenha ele ou não prazo. Na linguagem própria do mandato, exigir-se-ia “justa
causa” (cfr. art.1170.º/2 do CC), isto para existir resolução do contrato de agência.
Assim, a resolução pode operar:
- Se a outra parte faltar ao cumprimento das suas obrigações
quando “…pela sua gravidade ou reiteração, não seja exigível a
subsistência do vínculo contratual”; temos aqui a hipótese de
incumprimento culposo que, por ter a ver com o sujeito, se diz “subjetiva”;
- Se ocorrerem circunstâncias que tornem impossível ou
prejudiquem gravemente o fim contratual, isto em termos que tornem
inexigível a sua manutenção, até ao prazo convencionado ou imposto para
a denúncia; é a hipótese “objetiva”.
Como a lei refere, em ambas as hipóteses, o conceito indeterminado
“inexigibilidade”, então, caso a caso, ele terá de ser concretizado, tendo sempre
em conta a confiança e a materialidade subjacente.
Ainda quanto à resolução, esta deve ser comunicada por escrito, com a
indicação das razões e no prazo de 1 mês após o seu conhecimento (cfr. art.31.º
do DL n.º 178/86).
Independentemente do direito à resolução, a parte lesada tem o direito a
ser indemnizada pelos danos resultantes do incumprimento pela outra parte (cfr.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

art.32.º/1 do DL n.º 178/86). Se porém, a resolução operar por razões objetivas, a


parte lesada terá direito a uma indemnização assente na equidade (cfr. art.32.º/2
do DL n.º 178/86).
No art.26.º, o Januário acrescenta duas formas de extinção a interdição e a
inabilitação nos termos do art.1174.º e 1177.º CC.

4.1.6. A indemnização de clientela no contrato de agência.


O contrato de agência pode, pelo seu funcionamento, acarretar clientes para o
principal, clientes esses que se manterão mesmo após o seu termo. O legislador entendeu,
por isso, que cessando o contrato de agência, era justo compensar o agente pelo
enriquecimento assim proporcionado à outra parte.
A indenização de clientela é devido pelo principal ao agente, e é cumulável com
outras indemnizações a que haja direito. Para o efeito ela exige, cumulativamente, que:
- O agente tenha angariado novos clientes para a outra parte, ou tenha
aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente;
- O principal venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do
contrato, da atividade desenvolvida pelo agente;
- O agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados
ou concluídos, após a cessação da agência, isto relativamente aos clientes
angariados ou cujos negócios tenham sido aumentados.
A intenção de exercer o direito à indemnização de clientela deve ser comunicada
ao principal no prazo de 1 ano, sendo a eventual judicial intentada no ano subsequente,
sob pena de caducidade (cfr. art.33.º/4 do DL n.º 178/86).
Prevaleceu, deste modo, uma preocupação de não esmagar o principal, ainda que,
eventualmente, à custa de alguma injustiça. Se se provar um prejuízo superior,
acompanhado por um dano que transcenda, igualmente, a retribuição final, fica aberta a
hipótese de inconstitucionalidade: por violação da propriedade privada – cfr. art.62.º/1 da
CRP -.
No cálculo da indemnização da clientela, devemos ter em conta os benefícios do
agente e as penalidades contratuais.
Quando cálculo os benefícios do agente, temos como limite: a taxa de migração
dos clientes, a taxa de juro, a força atrativa da marca (corresponde ao íman da clientela),
cistos com a execução dos contratos. No entanto, há outros elementos que são capazes de

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

balançar em sentido positivo: os agentes de primeira hora (o primeiro agente principal),


existência de subagentes (5.º)
No momento do cálculo da indemnização da clientela, tenho que contar as
penalidades contratuais (que correspondem aos incumprimentos do contrato).
Nos termos do art.34.º, se um contrato de agência durou menos de um ano, então
a aplicação do máximo, o limite máximo é apenas o tempo em que o contrato durou (se
o contrato durou 6 meses e fez 300 mil euros; o limite será 300 mil e não 600 mil).
No termo do contrato de agência, cada contraente deve restituir os objetos, valores
e demais elementos que pertençam ao outro (cfr. art.36.º do DL n.º 178/86). O agente
goza, todavia, sobre eles, do direito de retenção pelos créditos resultantes da sua atividade
(cfr. art.35.º do DL n.º 178/86).
As regras relativas ao regime da cessação do contrato de agência têm aplicação
imediata nos contratos que se desenvolvam, exclusiva e predominantemente, em
Portugal. Só pode ser aplicada lei diversa da portuguesa se tal lei for mais vantajosa para
o agente (cfr. art.38.º do DL n.º 178/86). Esta é uma norma imperativa.
Mas aquela regra (imperativa) pode ser falseada, designadamente pela atribuição
de competência a tribunais estrangeiros, e o mesmo se diga com a previsão de convenções
de arbitragem internacional. A remissão para foros estranhos (públicos ou arbitrais) é
nula, nos termos do art.19.º/g da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais. Além disso,
quando os tribunais estrangeiros, ou arbitrais, não apliquem o Direito português, o pedido
de revisão das respetivas sentenças pode ser impugnado através do art.1100.º/2 do CPC.

4.2. O contrato de concessão. Noções gerais.


O contrato de concessão opera em áreas que exigem investimentos significativos
e que o produtor dos bens ou serviços a distribuir não queira, ou não possa, ele próprio
efetuar a distribuição. Assim, este contrato corresponde a esquemas destinados a
distribuir produtos de elevado valor, como é o caso nos veículos automóveis.
Na concessão um produtor fixa com um distribuidor (o concessionário) um quadro
de distribuição que se norteia pelos seguintes princípios:
- O comerciante (o concessionário) insere-se na rede de distribuição dum
produtor;
- Adquire o produto em jogo, isto junto do produtor, e obriga-se em nome próprio
a vendê-lo na área do contrato.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A concessão é um contrato que estabelece relações duradouras, no âmbito das


quais o concessionário opera iure proprio. Trata-se de um contrato-quadro em cujo
âmbito, na execução, vão surgir outros contratos entre as duas partes.
Com muita frequência o contrato de concessão implica uma distribuição a nível
internacional e, nesta eventualidade, este contrato é ainda complementado com elementos
internacionais privados.

4.2.1. Figuras afins do contrato de concessão.


O contrato de concessão fica mais claro se se proceder à sua distinção de outras
figuras afins. Algumas dessas figuras estão ligadas à distribuição.
Assim cumpre distinguir o contrato de concessão dos seguintes contratos:
- Do contrato de agência – no qual “uma das partes se obriga a promover por
conta da outra a celebração de contratos em certa zona ou determinado círculo
de clientes, de modo autónomo e estável e mediante retribuição” (cfr. art.1.º do
DL 178/86 de 3 de julho);
- Do contrato de mandato – pelo “uma das partes se obriga a praticar um ou mais
atos jurídicos por conta de outrem” (cfr. art.1157.º do Código Civil);
- Do contrato de trabalho – pelo qual “uma pessoa se obriga, mediante
retribuição, a prestar a sua atividade intelectual manual a outra, sob a autoridade
e direção desta” (cfr. art.1152.º do Código Civil);
- Do contrato de comissão – pelo qual “o mandatário executa o mandato
mercantil, sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si ou em
seu nome, como principal e único contraente” (cfr. art.266.º do CComercial).
- Do contrato de consórcio – pelo qual duas ou mais pessoas se obrigam entre si a
realizar certa atividade de forma concertada;
De facto, na concessão não propriamente uma atividade comum (pois o
concessionário age por si e para si), nem existe um afluxo de bens para um acervo comum;
como não há, propriamente, uma atividade comum, é correto afirmar que os beneficiários
agem por si.
Mas o contrato de concessão também se distingue, com facilidade, de vários
contratos atípicos. Neste sentido, distingue-se:
- Do contrato de mediação – pelo qual uma pessoa (o mediador) se obriga a pôr
em contacto duas ou mais pessoas, para a conclusão de um negócio, sem estar

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

ligado a qualquer delas por um vínculo de colaboração, de dependência ou de


representação;
- Do contrato de transmissão de saber-fazer (know-how) – pelo qual uma pessoa
transmite a outra a tecnologia ou, em geral, os conhecimentos aplicados
necessários para concretizar determinada tarefa, conhecimentos esses não
patenteados;
- Do contrato de franquia – o qual é dominado pela autorização para usar certas
marcas ou insígnias e para utilizar especiais esquemas de comercialização. Faça-
se notar que nesta [comercialização] a fiscalização do franqueador é mais intensa
do que a do concedente.
Ainda uma distinção entre o contrato de concessão, como contrato de distribuição,
é que nos contratos de distribuição é frequente o distribuidor ficar económica e
socialmente subordinado ao produtor.

4.2.2. O regime do contrato de concessão.


O contrato de concessão não tem base legal direta. Estamos perante uma figura
assente na autonomia privada. Bem como não está sujeito a qualquer forma solene. Pode
ser meramente verbal, ou ainda, pode resultar de condutas concludentes. Além disso, o
seu regime resultará da interpretação e da integração do texto que tenha sido subscrito
pelas partes.
Assim, naquilo que as partes tenham deixado em aberto, haverá que recorrer à
analogia, designadamente ao regime do contrato de agência. A Doutrina e a
Jurisprudência nacionais têm acolhido esta indicação: a analogia com o contrato de
agência é um instrumento fundamental para acudir a lacunas que surjam em concretos
contratos de concessão.
No regime da concessão comercial há ainda que atentar nas regras sobre cláusulas
contratuais gerais. Muitas vezes os grandes produtores, ou fabricantes, recorrem a
cláusulas contratuais gerais para uniformizar os diversos contratos de distribuição que
celebrem. As cláusulas contratuais daí derivadas sujeitam-se às regras jurídicas gerais e,
em particular, ao regime específico que para elas exista.

4.2.3. Especificidades do contrato de concessão.


É possível apontar algumas especificidades no que diz respeito ao regime e ao
funcionamento prático do contrato de concessão. Neste sentido:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- O contrato de concessão postula uma relação de confiança – não se justifica


assim a aplicação do prazo admonitório previsto no art.808.º/1/2.ª parte CC;
- O regime de exclusividade não é necessário - devendo, para existir, ser acordado.
E se a exclusividade não é, só por si, contrária às regras da concorrência, também
não o é suficiente para provar o contrato de concessão;
- O contrato de concessão pode envolver a formação profissional do pessoal do
concessionário.
Mais, o contrato de concessão, nos seus elementos úteis, deve ser provado por
quem dele queira prevalecer. Assim, quanto à sua duração:
- Não havendo prazo – o contrato de concessão só pode ser denunciado com um
pré-aviso, sob pena de dar azo ao dever de indemnizar;
- Havendo culpa do concedente na cessação do contrato de concessão – pode o
concedente ser condenado a retomar os stocks antes vendidos ao concessionário.
Face ao Direito português, neste tocante, todos os danos devem ser indemnizados;
- Havendo denúncia ilegal – a mesma é eficaz, mas obriga a indemnizar.
Já se referiu o recurso à analogia, através do contrato de agência, logo a
indemnização da clientela é uma compensação que pode ser prevista pela clientela
angariada. Havendo lei, não se aplicam as regras do enriquecimento sem causa. No
entanto, as normas sobre a indemnização de clientela, prevista para o contrato de agência,
não têm aplicação automática: é necessário, sempre, verificar os respetivos requisitos e a
analogia.
No contrato de concessão os tribunais não devem ter receio em arbitrar, ou impor,
indemnizações quando elas se justifiquem. Assim, para além dos danos não-patrimoniais,
pode ainda impor-se uma indemnização por investimentos feitos pelo concessionário,
incluindo em formação profissional, que se venham a perder. Por último, caberá
indemnizar pelas maiores despesas: despedimentos coletivos, restituição de subsídios ao
Estado e incumprimentos ocasionados junto dos fornecedores. De facto, o Direito tem de
reagir aos problemas do nosso tempo.

4.3. O contrato de franquia (franchising). Noções gerais.


Um dos mais elaborados tipos contratuais próprios da distribuição é o contrato de
franquia. Neste contrato, uma pessoa (o franqueador) concede a outra pessoa (o
franqueado), dentro de certa área, cumulativamente ou não, a:
- Utilização de marcas, nomes ou insígnias;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Utilização de patentes, técnicas empresariais ou processos de fabrico;


- Assistência, acompanhamento e determinados serviços;
- Mercadorias e outros bens, para distribuição.
O franqueador permite ao franqueado o acesso a áreas que, em princípio, lhe
estrariam vedadas. Essas áreas estão relacionadas com a utilização das marcas, nomes,
insígnias, patentes e outras técnicas de que o franqueador tenha o exclusivo.
O contrato de franchising surgiu nos Estados Unidos. Empreendimentos hoje
universais, como a Avis (aluguer de automóveis) ou a McDonalds assentam neste
esquema contratual.
Com evoluir dos tempos, o franchising tornou-se um esquema próprio para a
expansão internacional de empreendimentos norte-americanos, vindo a ser usado por
iniciativas de outros países. O seu êxito é reconduzido a 3 fatores:
- Às possibilidades abertas pela publicidade – isto no que diz respeito à
divulgação de marcas e de estilos de vida;
- À mobilidade crescente dos consumidores – o que facilita uma oferta de
bens;
- Ao aumento dos rendimentos.
O contrato de franquia (ou franchising) evoluiu no sentido de um verdadeiro
contrato de distribuição. Inicialmente era um meio de permitir o uso de marcas, patentes
e outros benefícios de que o franqueador tinha o exclusivo. Mais tarde, ele veio implicar
elementos próprios quer do contrato de agência, quer do contrato de concessão: angariar
clientes e distribuir bens e serviços, funcionando numa base hierarquizada.

4.3.1. Modalidades e desenvolvimento em Portugal.


O contrato de franquia é um contrato atípico. Sendo totalmente dependente da
autonomia privada, ele pode apresentar elementos próprios do contrato de agência ou do
contrato de concessão, surgindo assim como o mais variável e o mais complexo dos
contratos de distribuição.
De entre as múltiplas classificações de franquias, uma delas, adaptada pelo
Tribunal das Comunidades Europeias em 1986, no caso Pronuptia, merece ser retida.
Assim, o contrato de franquia (ou franchising), distingue:
- A franquia de serviços – pela qual o franqueado oferece um serviço sobre a
insígnia, o nome comercial ou mesmo a marca do franqueador, conformando-se
com as diretrizes deste último;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A franquia de produção – pela qual o próprio produtor franqueado fabrica,


segundo as instruções do franqueador, produtos que ele vende sob a marca deste;
- A franquia de distribuição – pela qual o franqueado se limita a vender certos
produtos num armazém, que usa a insígnia do franqueador.
Exemplos de franquias de serviços são as da Avis ou Hertz, no domínio da locação
de automóveis, que permitem a pequenas empresas em todo o mundo locar (alugar)
automóveis em termos uniformes a um público essencialmente móvel, aproveitando as
insígnias, a publicidade, a promoção e a clientela da casa-mãe.
Já como exemplos de franquias de produção temos a Coca-Cola, ou a Pepsi-Cola,
as quais facultam a confeção, também para todo o mundo, das conhecidas bebidas, isto
por produtores diversos, sempre sob a mesma designação e em conformidade com certas
especificações técnicas dadas pela casa-mãe.
Como exemplos de franquias de distribuição temos a Pronuptia, pela qual alguns
estabelecimentos da Europa vendem ao público trajes de noiva, sobre o timbre parisiense,
isto numa apresentação uniforme e tirando partido do prestígio daí derivado.

4.3.2. As posições das partes no contrato de franquia.


Como o contrato de franquia (ou franchising), vive dominado pelo princípio da
autonomia privada, apenas pela interpretação de cada contrato considerado se poderá
verificar qual é o seu alcance e quais os deveres que dele resultam para as partes.
Assim, num contrato de franquia, poderão ser obrigações do franqueador:
- Facultar ao franqueado o uso de uma marca, insígnia ou designação
comercial, isto na comercialização de serviços ou produtos por este adquiridos ou
fabricados;
- Auxiliar o franqueado no lançamento e na manutenção de certa atividade
empresarial, munindo-o dos conhecimentos técnicos ou dos produtos necessários;
- Facultar ao franqueado técnicas ou processos produtivos de que o
franqueador teria o exclusivo;
- Fornecer os bens ou serviços que, porventura, o franqueado deva distribuir.
Mas por outro lado, o franqueador pode ter os direitos de:
- Uma certa retribuição calculada, muitas vezes, como percentagem do
produto de vendas;
- Poder fiscalizar, isto quanto às especificações e qualidades do produto
vendido sob as suas marcas, insígnias ou designações comerciais;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Poder aprovar, ou fiscalizar, no tocante aos pontos de vendas;


- Poderes de domínio da cessão da posição contratual e de renovação do
contrato;
- Receber a contrapartida dos bens ou serviços que forneça.
Já quanto ao franqueado, este poderá ter os seguintes direitos:
- O uso de marcas, insígnias ou nomes comerciais do franqueador;
- A utilização de conhecimentos, técnicas empresariais ou modos de fabrico
que são pertença do franqueador;
- O auxílio do franqueador no lançamento, manutenção e desenvolvimento da
sua atividade;
- Aos fornecimentos acordados;
Já quando aos deveres, o franqueado ficará adstrito:
- Ao pagamento de certas retribuições, ou à aquisição, junto do franqueador,
de certos produtos;
- Ao lançamento e desenvolvimento da sua atividade dentro de certa
circunscrição;
- À manutenção das qualidades dos produtos ou serviços franqueados;
- Ao sigilo no tocante a conhecimentos recebidos do franqueador;
- À eventual comparticipação em despesas de publicidade;
- A certas cláusulas de não-concorrência.

4.3.3. A cessação no contrato de franquia.


O contrato de franquia dá lugar a uma situação duradoura.
O modelo da cessação do contrato de agência é aplicável, com as necessárias
adaptações, ao contrato de franquia. E a cessação não pode, pela natureza das coisas, ser
retroativa, isto no que diz respeito à resolução (unilateral e justificada) e à denúncia
(unilateral e discricionária).
Em regra, os contratos de franquia são fixados unilateralmente pelos
franqueadores que, muitas vezes, recorrem para o efeito a cláusulas contratuais gerais.
Embora economicamente subordinado, o franqueado é juridicamente autónomo:
não se justificaria, por isso, o recurso a uma tutela do tipo laboral. No entanto impõe-se
alguma proteção: no caso, a do contrato de agência.
Assim, haverá que procurar no campo do contrato de agência as regras aplicáveis,
diretamente ou por analogia. Algumas dessas regras servirão para suprir a regulamentação

209
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

contratual; outras são injuntivas. Entre estas últimas contam-se as relativas à cessação do
contrato e, particularmente, as que fixam pré-avisos e a indemnização de clientela.
O contrato de franquia é ainda dominado por uma certa relação de confiança, que
ambas as partes devem preservar.
Como o contrato de franquia é, muitas vezes, celebrado com recurso a cláusulas
contratuais gerais, a LCCG é um instrumento jurídico privilegiado para facultar ao
Tribunal o controlo das cláusulas injustas.

4.3.4. Problemas de concorrência no contrato de franquia.


O contrato de franquia deve ser cuidadosamente conjugado com as regras da
concorrência, designadamente as derivadas do TFUE (art.101.º), o que encontramos
previsto no art.9.º da Lei n.º 19/2012.
Uma aplicação restrita do art.101.º do TFUE e o art.9.º da Lei n.º 19/2012, iriam
dificultar, na prática, os diversos contratos de distribuição, com relevo para os contratos
de franquia, de agência e de concessão.
Basicamente, o entendimento que prevaleceu, quanto à validade dos contratos
de franquia, perante as leis de concorrência, é o seguinte:
- Apenas perante o contexto económico, contrato a contrato, cláusula a
cláusula, será possível, perante as leis da concorrência, formular um juízo de
ilicitude;
- São lícitas as cláusulas destinadas a evitar que o saber-fazer e a
assistência, concedidas ao franqueado, venham a aproveitar a concorrentes;
- São lícitas as cláusulas que organizem o contrato e a fiscalização, de
modo a preservar a identidade e a reputação da marca, da insígnia ou do nome do
franqueador;
- São restritivas da concorrência as cláusulas que impliquem repartições
de mercados ou prefixações de preços, salvo a verificação do art.101.º do TFUE.

4.3.5. Aspetos práticos do contrato de franquia.


O contrato de franquia deve reconstituir uma lógica empresarial, em termos de
funcionalidade, de modo a apreender a lógica do grupo onde o franqueado se pretendeu
integrar. A sua natureza mista permite fazer apelo aos mais diversos contratos, todavia
deverá prevalecer o centro da gravidade dado pelas partes ao negócio. E estão sempre
envolvidos os deveres de lealdade que se manifestam por uma defesa do espírito de grupo.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

No período pré-contratual é muito importante que o candidato à posição de


franqueado seja claramente informado das implicações da sua adesão. A culpa in
contrahendo tem aqui um papel significativo. Também os vetores relativos à tutela dos
consumidores devem estar presentes: i.e., as cláusulas da franquia não os podem
comprometer.
Também as regras sobre a indemnização de clientela, quando cesse o contrato, são
aqui aplicáveis: isto na base da analogia com o contrato de agência e na medida em que
ela exista.
No contrato de franquia muitas vezes sucede que a clientela é angariada pelo
franqueador, isto dado o peso da sua marca e da sua publicidade. Nesta circunstância o
franqueado receberá por isso pouco. Mas quando o contrato seja ilicitamente
interrompido pelo franqueador, todos os danos ilícitos devem ser indemnizados.
Investimentos perdidos, maiores despesas e danos morais.

5. Contrato de conta corrente.


Designa-se por conta-corrente o contrato pelo qual as partes se obrigam a lançar
a crédito e a débito os valores que entregam reciprocamente no âmbito de uma relação de
negócios, exigindo apenas o respetivo saldo final apurado na data do respetivo
encerramento.
A figura da conta-corrente encontra-se prevista no Título VIII do Livro II do
CCom (art.344.º a 350.º). Tal como o reporte, trata-se de uma figura com largo relevo no
âmbito da praxis contratual mercantil dos nossos dias, em boa medida devido à sua
generalização no âmbito da atividade bancária e financeira: o acordo de conta-corrente
desempenha uma importante função de simplificação, economia e certeza jurídica no
âmbito das relações de negócios entre dois indivíduos ou entidades, ao permitir a
representação contabilística das operações entre as partes, a transformação das obrigações
emergentes em lançamentos em rubricas de “deve” e “haver”, e a compensação reciproca
destes créditos e débitos.
O regime jurídico da conta-corrente envolve a consideração da respetiva natureza,
sujeitos, objeto, efeitos e cessação.
Desde logo, relativamente à sua natureza, importa frisar encontrarmo-nos diante
de um verdadeiro negócio jurídico: ao contrário da conta-corrente contabilística (que
consiste num sistema especial diagráfico de escrituração em colunas de crédito e débito),

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

a conta-corrente do art.344.ºCCom pressupõe um acordo entre as partes destinado a


produzir efeitos jurídicos próprios que transcendem a mera representação contabilística.
Depois ainda, quanto os seus sujeitos e ao seu objeto, o acordo de conta-corrente
será usualmente firmado por empresários e incidirá sobre as operações patrimoniais,
pecuniárias ou em espécie, constitutivas de uma dada relação de negócios atinente ao
exercício de uma atividade empresarial (art.345.º CCom): todavia, nada na lei impede que
tal contrato possa ser exclusivamente celebrado entre particulares e recaia sobre relações
negociais estranhas ao mundo empresarial.
Aspeto fundamental a ter em conta é o relativo aos efeitos deste contrato (art.346.º
CCom): entre eles, avultam a compensação reciproca entre os contraentes até à
concorrência dos respetivos créditos e débito ao termo do encerramento da conta-corrente
– por alguns justamente considerado o efeito máximo deste contrato mercantil - e a
exigibilidade meramente terminal do saldo de conta-corrente – de tal modo que nenhum
dos contraentes pode ser havido como credor ou devedor durante a sua vigência, apenas
com o encerramento daquela e o apuramento do saldo respetivo se fixando
definitivamente a posição jurídica das partes.
Enfim, a conta-corrente não pode correr indefinidamente, devendo efetuar
paragens destinadas a proceder ao respetivo balanço: tais balanços podem ser periódicos
– que a lei designa por encerramento de conta, a realizar no prazo fixado contratualmente
ou no final de cada ano civil (art.358.º CCom), deles resultando um saldo terminal que a
parte devedora pode liquidar a contado ou figurar como primeiro valor a lançar a crédito
num novo ciclo de conta-corrente (saldo de conta nova) – ou definitivos – que ocorrem
aquando da cessação do próprio contrato (art.349.ºCCom).

6. Operações de banco. Tópicos. Remissão.


As operações bancárias são as funções inerentes ao exercício da atividade
bancária. I.e., correspondem a atividades como a abertura de conta, o depósito bancário,
as movimentações das contas bancárias e as compensações interbancária.
Estas tanto podem ser ativas, como passivas. Nas ativas, o banco torna-se devedor
com as pessoas com quem transaciona (ex.: depósito pecuniário, pois o banco está
obrigado a devolver a quantia). Já nas passivas, o banco é credor (ex.: empréstimos).

7. Os contratos de transporte. Tópicos.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A movimentação de pessoas e de bens permite introduzir a ideia de transporte. No


transporte, em sentido técnico-jurídico, procede-se à deslocação voluntária e promovida
por terceiros, em termos organizados, de pessoas ou de bens, de um local para o outro.
O Direito dos transportes assume uma dupla dimensão:
- Por um lado, ele vai regular as organizações nacionais e internacionais
tendentes a disciplinar ou a normalizar os transportes e os próprios
transportadores. Trata-se do Direito institucional dos transportes;
- Por outro lado, o Direito dos transportes regula os negócios pelos quais
o transportador se compromete, perante um interessado, a assegurar o transporte
de pessoas ou de bens de um local para o outro. É o Direito material dos
transportes.
O Direito material dos transportes reporta-se, essencialmente, ao Direito dos
contratos dos transportes. Trata-se de um capítulo do Direito comercial.

7.1. O Código Comercial e o papel das cláusulas contratuais gerais no


contrato de transporte.
Atualmente mantém-se o regime interno e comum do contrato de transporte,
constante dos art.366.º a 393.º CCom, normas que integram o “Título X – Do Transporte”.
Estes preceitos não têm uma aplicação direta ao transporte marítimo (cfr. art.366.º) nem
ao transporte aéreo (este inexistente em 1888).
O transporte atual efetiva-se em massa, de modo a reduzir os custos. Isso obriga a
uma normalização dos contratos a celebrar e a uma aceleração de todo o processo. Esses
vetores são prosseguidos através das cláusulas contratuais gerais. Muitas vezes exaradas
nos próprios títulos de transporte elas dão corpo às regras contratuais concretas.
O esforço de unificação levou, na Alemanha, à preparação de cláusulas contratuais
gerais, à disposição de todos os transportadores. Também entre nós os diversos
transportadores recorrem a essa técnica de contratação. Para tanto, impõe-se proceder à
sua sindicância à luz da LCCG.

7.2. O quadro geral do contrato de transporte.


De acordo com a realidade a transportar, o transporte diz-se de mercadorias ou de
passageiros. Este último abrange, ainda, a bagagem que acompanha os passageiros.
Já quanto à via, esta distingue os transportes em terrestres, aéreos e marítimos.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Subdistinção dos transportes terrestres é aquela que contrapõe os transportes


rodoviários aos ferroviários. Os transportes fluviais seguem, no essencial, o regime dos
transportes terrestres, tal como se infere do próprio art.366.º CCom.
Já os contratos de transporte marítimo constituem uma disciplina comercial
especializada.
Também o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias consta do
regime adotado pelo DL n.º 239/2003 de 4 de outubro.
O transporte poderá ser interno ou internacional, consoante venha a bulir com o
Direito de um único Estado ou com o Direito de diversos Estados.
A crescente interação dos transportes leva, muitas vezes, a que qualquer operação
de transporte implique a utilização combinada de diversos meios de transporte. Fala-se a
este propósito de transportes multimodais. As Nações Unidas aprontaram em 24 de maio
de 1980 uma Convenção sobre transporte multimodal internacional (a TMI), mas esta
ainda não entrou em vigor.

7.3. As convenções internacionais


A globalização dos transportes e as necessidades daí decorrentes, cada vez menos
limitadas às fronteiras de cada Estado nacional, levaram a uma multiplicação de
convenções internacionais.
A harmonização do Direito dos transportes foi iniciada em 1890, através da
Convenção de Berna sobre os transportes ferroviários.
Seguiu-se a Convenção de Bruxelas de 1924 relativa ao transporte marítimo sob
conhecimento ou guia.
Já a Convenção de Varsóvia de 1929 versou sobre o transporte aéreo.
A Convenção de Genebra de 19 de maio de 1956, relativa ao contrato de transporte
internacional de mercadorias por estrada, foi entre aprovada pelo DL n.º 46.235 de 18 de
março. Aderiram à Convenção de Genebra, conhecida pela sigla CMR, todos os Estados
do ocidente europeu, salvo a Islândia, a Albânia e os Estados da antiga União Soviética.
No tocante aos transportes ferroviários foi adotada uma Convenção Internacional
relativa ao Transporte de Passageiros e de Mercadorias por Caminhos de Ferro, que veio
a ser conhecida por Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários ou
COTIF, que foi entre nós aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 50/85 de 27 de
novembro.

214
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

No domínio dos transportes aéreos, devemos recordar, quanto às aeronaves, a


Convenção sobre a Aviação Civil Internacional, de Chicago, assinada em 7 de dezembro
de 1944, aprovada para ratificação pelo DL n.º 36.158 de 17 de fevereiro de 1947 e, ainda,
a Convenção Relativa ao Reconhecimento Internacional de Direitos sobre Aeronaves,
concluída em Genebra em 19 de junho de 1948, aprovada para ratificação pelo Decreto
n.º 33/85 de 4 de dezembro.
Já os contratos internacionais de transporte aéreo foram objeto da Convenção de
Varsóvia de 12 de outubro de 1929, modificada pelo Protocolo de Haia de 28 de setembro
de 1955 e pelo Protocolo de Montreal de 25 de setembro de 1975, ratificado por Portugal
em 1982.
O transporte por mar conhece também múltiplos instrumentos internacionais.
Trata-se de matéria autonomizada em Direito marítimo, que é uma disciplina
especializada do Direito comercial.

7.4. As diretivas comunitárias no Direito internacional dos transportes.


No campo dos transportes internacionais rodoviários de mercadorias vieram
dispor as Diretivas n.º 89/438/CEE e n.º 91/224/CEE ambas do Conselho. Esta matéria
foi transposta para o Direito interno pelo DL n.º 279-A/92 de 17 de Dezembro, o qual
estabeleceu o novo regime jurídico do transporte internacional rodoviário de mercadorias.
Quanto ao transporte ferroviário, cumpre citar a Diretiva n.º 91/440 de 29 de julho.

7.5. Os incoterms
No comércio internacional, particularmente no setor dos transportes, foi-se
tornando habitual a utilização de cláusulas típicas, estas expressas pelas siglas respetivas
em inglês.
Pense-se, por exemplo, nas cláusulas FOB (free on board) ou CIF (cost, insurance
and freight).
Para evitar os inconvenientes daí resultantes, a Câmara de Comércio Internacional
(CCI) de Paris procurou interpretar as cláusulas em uso, consolidando-as. Assim surgiram
os incoterms: de international commercial terms.
Os incoterms repartem-se por 4 grupos, de acordo com o seu sentido geral. Assim:
- Grupo E (de “ex”, partidas): obrigação mínima para o exportador - a
mercadoria é entregue no local de produção ou “fábrica”;

215
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Grupo F (de “free”, livre): a mercadoria é entregue ao transportador –


não sendo o transporte principal da responsabilidade do exportador;
- Grupo C (de “coast” ou “carriage”, custo): o custo do transporte
principal é assumido pelo exportador - mas não os riscos subsequentes ao
embarque;
- Grupo D (de “delivery”, chegada ou entrega): a obrigação máxima para
o exportador – este assume todos os riscos e os custos até ao local de entrega.
Posto isto, os incoterms são os seguintes:
Grupo E:
- EXW (ex works): a mercadoria é entregue na “fábrica”, sendo o
transporte alheio ao exportador;
Grupo F:
- FCA (free carrier): a mercadoria é entregue ao transportador, aí cessando
o papel do exportador;
- FAS (free alongside ship): idem, sendo a mercadoria entregue ao lado do
navio;
- FOB (free on board): idem, sendo a mercadoria entregue a bordo do
navio.
Grupo C:
- CFR (cost and freight): o transportador assume o custo e o frete (i.e., o
transporte);
- CIF (cost, insurance and freight): idem, mas incluindo também o seguro.
- CPT (carriage paid to): idem, mas especificando-se o local até onde o
porte é pago;
- CIP (carriage and insurance paid to): idem, incluindo o seguro.
Grupo D:
- DAF (delivered at frontier): o vendedor assume os custos e os riscos até
à fronteira acordada;
- DES (delivered ex ship): o vendedor arca com os custos e os riscos do
embarque e do transporte; a transferência dos riscos e custos faz-se a bordo do
navio, no local de chegada;
- DEQ (delivered ex quay): idem, mas no cais do porto de chegada;
- DDU (delivered duty unpaid): a mercadoria é entregue com os impostos
a cargo do comprador;

216
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- DDP (delivered duty paid): idem, mas com os impostos pagos.


Esta matéria deve ser manejada com cuidado. Assim, e em primeiro lugar, quando
se usem os incoterms da CCI (Câmara de Comércio Internacional de Paris), haverá que
especificar no contrato: incoterms 2010 ou incoterms CCI 2010. Há incoterms de sentido
não coincidente, usados nos Estados Unidos.
Cumpre reter que a CCI não tem qualquer poder normativo não assumido,
livremente, pelas partes. Ela limita-se a propor os incoterms em geral aceites, mas não
obrigatórios.
A força vinculativa dos incoterms provém sempre da sua inclusão em contratos.
Deriva, pois, da autonomia privada. Não obstante, quando pactuados, há uma forte
indicação no sentido de as partes terem pretendido, precisamente, o sentido fixado pela
CCI. Pelo menos, assim o entenderia o destinatário normal.

7.5.1. Aplicação interna e natureza


Mas os incoterms podem ser também usados no plano interno. A positividade dos
incoterms advém sempre da autonomia privada, assumindo o alcance que lhes daria o
destinatário normal. Esse alcance será, em princípio, o da CCI, admitindo-se todavia que
outra possa ser a solução concreta.
Pergunta-se se os incoterms dão azo a cláusulas contratuais gerais?
Entre nós, houve alguma Doutrina que já se respondeu negativamente8.
O professor MENEZES CORDEIRO entende que se trata, muito claramente, de
cláusulas contratuais gerais, as quais visam contratantes indeterminados e, quando
adotadas por proposta de uma das partes, traduzem a típica rigidez; salvo quando se prove
que não correspondem a nenhuma proposta firme, mas antes advêm de negociação.
Além disso, os incoterms surgem, em regra, inseridos em textos contratuais mais
vastos; os quais são, eles próprios, cláusulas contratuais gerais.
Mas dito isto, temos algumas especificidades. Assim:
- Os incoterms correspondem a cláusulas experimentadas e equilibradas –
estas, só por si, não incorrem nas proibições da LCCG, ainda que a sua articulação
com outras cláusulas não deva deixar de ser sindicada;

8
Entre nós, houve Doutrina que já se respondeu negativamente – esta é a posição de LIMA PINHEIRO, in
Direito Comercial Internacional.

217
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- A interpretação dos incoterms, quando se trate dos incoterms 2000 da


CCI, deve seguir o indicado por esta orientação – sempre sem prejuízo da sua
articulação global, a qual deverá atender à LCCG.
Muito importante pelo prisma do Direito português é a necessidade de
comunicação e a necessidade de informação, previstas nos art.5.º e 6.º da LCCG.
No limite, as cláusulas atingidas não se incluem nos contratos singulares (cfr.
art.8.º da LCCG), sendo substituídas por regras supletivas aplicáveis. Tudo depende, em
concreto, das articulações que possam surgir com outras cláusulas contratuais.
Por fim, cabe referir que a nossa Jurisprudência conhece e aplica os incoterms,
deles retirando os competentes desenvolvimentos jurídico-normativos. Assim sucede
com a cláusula CIF e as cláusulas FOB.

7.6. Trade terms


Já no que diz respeito aos trade terms, estes tratam-se de cláusulas usualmente
presentes em contratos internacionais, particularmente de compra e venda, mas que têm
uma especial presença nos contratos de transporte (mesmo internos).
Não têm a solidez dos incoterms 2000. Correspondem, tecnicamente, a cláusulas
contratuais gerais, que devem ser comunicadas e esclarecidas por quem as proponha à
adesão de outrem, nos termos gerais. De seguida, dão-se alguns exemplos de trade terms,
que têm surgido (e têm sido aplicados) nos nossos tribunais:
- CAD (cash against document): o comprador só pode receber a
mercadoria depois de comprovado o pagamento do preço faturado;
- COD (cash on delivery ou collect on delivery): o comprador deve pagar
no ato de entrega da mercadoria; a cláusula não se mostra cumprida se o
transportador se limitar a aceitar um (mero) cheque;
- FCL (full container load): tratando-se do transporte de um contentor
selado, compete ao interessado provar que o desaparecimento da carga se deu
durante o transporte.

7.7. O transporte em geral


O CCom não define o contrato de transporte. Limita-se no seu art.366.º, a dispor
que se deva considerar mercantil um transporte determinado.
Mas o contrato de transporte também não tem assento no CC. De todo o modo ele
aparece referido, ou pressuposto, em vários dos seus preceitos, tais como:

218
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- No art.46.º/3 do CC – que dispõe sobre a lei reguladora dos direitos reais


“…sobre os meios de transporte submetidos a um regime de matrícula.”;
- No art.755.º/1/a do CC – que atribui o direito de retenção ao
“transportador, sobre as coisas transportadas, pelo crédito resultante do
transporte”;
- No art.755.º/2 do CC – que determina “quando haja transportes
sucessivos, mas todos os transportadores se tenham obrigado em comum,
entende-se que o último detém as coisas em nome próprio e em nome dos outros”;
- No art.797.º do CC que dispõe: “quando se trate de coisa que, por
convenção, o alienante deva enviar para local diferente do cumprimento, a
transferência do risco opera-se com a entrega ao transportador ou expedidor da
coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio”;
- Nos art.2214.º e 2219.º - os quais regulam o testamento feito a bordo de
navio ou aeronave.
Assim, com recurso a categorias gerais, podemos apresentar o contrato de
transporte como aquele pelo qual uma pessoa (o transportador) se obriga perante
outro (o interessado ou expedidor) a providenciar a deslocação de pessoas ou de bens
de um local para outro.
Em regra, a definição supra não é suficiente para o contrato de transporte., isto
porque: o transportador só conclui a execução do seu contrato com a entrega do bem ao
destinatário. Surge assim uma relação triangular, cuja natureza abaixo se explica.
De facto temos várias distinções de transporte: o transporte de passageiros ou de
mercadorias, o transporte terrestre, marítimo ou aéreo, o transporte rodoviário ou
ferroviário e o transporte nacional ou internacional.
Todas estas classificações podem combinar-se entre si: o que nos conduz ao
transporte multimodal.
O contrato de transporte é, em regra, oneroso. Assim, o transportador tem direito
a perceber uma remuneração denominada “frete”.
Em termos civilísticos, o contrato de transporte é uma prestação de serviço.
Todavia não é o serviço em si que interessa ao contratante. Para este releva apenas o
resultado, isto é: a colocação da pessoa ou do bem, íntegros, no local do destino. Por
relevar este resultado final, o transporte acaba por assumir um conteúdo lato: abrange
todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido.

219
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7.8. O Código Comercial


De facto o art.366.º CCom não define o contrato de transporte, mas pressupõe a
sua noção. Esta norma dispõe sim, acerca do condicionalismo que permita considerar tal
contrato como transporte mercantil.
Já o art.366.º/§1 explica em que circunstâncias haverá “empresa”. Daqui retiramos
que a lei visou o transporte profissional, feito por pessoas singulares.
No que diz respeito aos transportes marítimos estes eram remetidos para o livro
III do Código Comercial, constando atualmente de leis extravagantes.
Já o art.367.º do CCom explicita a possibilidade de o transportador fazer o
transporte por si ou por entidade diversa. Nessa altura, o “transportador inicial” mantém-
se “transportador” para o interessado expedidor e assume perante o transportador direto,
a categoria de expedidor.
Fixados estes quadros, o Código Comercial vem tratar, no fundamental, os aspetos
seguintes:
- A escrituração do transporte – cfr. art.368.º;
- A guia do transporte - cfr. art.369.º ao art.375.º;
- A execução do transporte - cfr. art.378.º ao art.382.º;
- A responsabilidade do transportador - cfr. art.376.º, 377.º e art.383.º ao
art.386.º;
- A entrega e as garantias do transporte - cfr. art.387.º ao art.392.º.
Já o art.393.º prevê regras especiais para os transportes ferroviários, sendo ainda
aplicáveis as regras do Código Comercial.

7.9. A guia de transporte


O contrato de transporte não está, à partida, sujeito a qualquer forma especial.
Todavia, cada uma das partes tem o direito de exigir à outra uma formalização através da
guia de transporte.
A guia de transporte é um documento emitido pelo transportador e entregue ao
expedidor e do qual consta o essencial do contrato. Assim, quando exista guia de
transporte, esta torna-se o elemento fundamental do contrato.
A guia serve de meio de prova do contrato, de meio de prova de receção das
mercadorias, e de esquema jurídico de circulação dos bens. Isto faz dela um título de
crédito, embora específico: o crédito à entrega das mercadorias, nas condições nela
descritas.

220
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

7.10. A execução do transporte


O contrato de transporte pressupõe entidades profissionais a tanto destinadas.
Estas entidades, nos termos do art.4.º do DL n.º 370/93 de 29 de outubro (Proíbe práticas
individuais restritivas de comércio) não podem recusar arbitrariamente a contratação do
serviço para que sejam solicitadas.
O transportador tem a seu cargo os deveres de informação que, em geral, resultam
da boa-fé na execução dos contratos, consignada no art.762.º/2 CC. O art.379.º CCom
veio precisar esses deveres: se o transporte não se puder realizar ou estiver
extraordinariamente demorado, por caso fortuito ou de força maior, deve o transportador
avisar imediatamente o expedidor. Este tem direito a rescindir o contrato, reembolsando
aquele das despesas e restituindo a guia de transporte.
O expedidor pode, na execução do contrato e dentro de certos limites, alterar
unilateralmente o contrato, dando contraordens: é o que resulta do art.380.º.

7.11. A responsabilidade do transportador


Já o transportador pode escolher o caminho que mais lhe convenha, salvo pacto
expresso em contrário; nessa altura, o transportador é responsável por qualquer dano “que
aconteça às fazendas”, cfr. art.381.º CCom.
Mas o Código Comercial contém, no seu art.376.º, uma norma de especial relevo
prático: se o transportador aceitar sem reserva os objetos a transportar, presume-se que os
mesmos não têm vícios aparentes.
Assim, se os objetos chegarem com vícios e não houver reserva na guia, presume-
se que houve má execução do transportador. Neste sentido, seguem-se as regras próprias
da responsabilidade contratual, no caso o constante dos art.798.º e seguintes CC.
Ainda, o transportador responde pelos seus empregados e auxiliares e pelos
transportadores subsequentes – cfr. art.377.º CCom.
Já o art.383.º conecta-se com o art.376.º do CCom. Ou seja, o transportador desde
que receba e até que entregue as coisas transportadas, responda pela sua perda ou
deterioração, salvo quando esta for proveniente de caso fortuito, de força maior, de vício
do objeto, de culpa do expedidor ou de culpa do destinatário. Opera a presunção de culpa
contra ele.
Ou seja, se o transportador não lograr fazer prova de algum destes fatores, ele será
responsabilizado. No fundo trata-se de uma manifestação do art.799.º CC.

221
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A avaliação dos danos faz-se por convenção, ou nos termos gerais de Direito –
cfr. art.384.º CCom.
O destinatário pode, a expensas suas, fazer verificar o estado dos objetos
transportados – cfr. art.385.º CCom.
A presunção de culpa do transportador opera no tocante às diversas formas do
Direito internacional dos transportes. A este respeito a Convenção de Genebra de 19 de
maio de 1956 (CMR) prevê presunções de culpa, sendo certo que ela se aplica a todos os
danos contratuais. Segundo o art.17.º/1 da CMR, o transportador é responsável pela perda
total ou parcial da coisa, desde o carregamento até à entrega. Fica incluído o furto da coisa
o qual, em certas condições, não é imprevisível.
Mas o transportador pode ainda provocar danos extracontratuais. A jurisprudência
já entendeu, nessa eventualidade, que se desemboca na responsabilidade aquiliana, com
a consequente aplicação do prazo curto de prescrição previsto no art.498.º CC.
O transportado entrega-se, para todos os efeitos, nas mãos do transportador. Para
além do que resulte do contrato, há deveres de segurança assentes na boa-fé e que
decorrem do art.762.º/2 CC. Quando tais deveres se mostrem violados, a responsabilidade
do transportador é obrigacional, ocorrendo a presunção de culpa do art.798.º e seguintes
CC.
Para além disso, há que observar as convenções internacionais aplicáveis.
O transportador responde perante o destinatário, incluindo por atos de agentes e
auxiliares. Mais, a baldeação (i.e., o transbordo) e a descarga são também risco dele.

7.12. A entrega e as garantias do transportador


O transportador deve entregar prontamente os objetos transportados ao
destinatário, isto sem mais indagações – cfr. art.387.º CComercial. Se este os não quiser
receber, pode o transportador requerer a consignação em depósito, à disposição do
expedidor, sem prejuízo de terceiro - cfr. art.388.º CCom. Recorde-se que vale sempre
como destinatário quem constar da guia de transporte.
O transportador não é obrigado a fazer a entrega enquanto o destinatário não
cumprir aquilo que porventura for obrigado - cfr. art.390.º CCom. Pode haver também
retenção pela restituição da guia - cfr. art.390.º/§2 CCom -, recordando-se que se a
retenção não convier ao transportador, ele pode requerer o depósito e a venda - cfr.
art.390.º/3.

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Já o art.391.º confere ao transportador um privilégio – mobiliário especial – sobre


os objetos transportados, isto relativamente aos créditos do contrato de transporte.
Já o expedidor tem privilégio pelo valor dos objetos transportados, isto sobre os
instrumentos principais e acessórios que o transportador empregue na sua atividade - cfr.
art.392.º.

7.13. Figuras afins do contrato de transporte


7.13.1. O transitário.
O CCom regula no essencial o contrato de transporte. Neste contrato devemos ter
presente que:
- O transportador se rodeia, ou pode rodear, dos mais diversos auxiliares,
com os quais pode celebrar contratos destinados a assegurar distintas operações
materiais (operações estas que podem repartir um concreto transporte);
- As partes podem, no exercício da sua autonomia, concluir contratos
aparentados ao contrato de transporte, mas dele distintos em pontos essenciais.
Uma coisa devemos ter por certa, caso a caso é importante verificar se as regras
afastadas pelas partes estão, efetivamente, na sua disponibilidade.
Um contrato que surge como afim do contrato de transporte, é o contrato de
expedição ou contrato de trânsito. A lei não regula diretamente este contrato, mas ocupa-
se do seu conteúdo (art.1.º/2 do DL n.º 255/99 de 7 de julho).
Este contrato, no seu sentido amplo, é uma figura mista, que envolve elementos
de organização, de mediação, de agência e de prestação de serviço.
Em sentido estrito, o contrato de expedição é simplesmente um mandato pelo qual
o transitário se obriga a celebrar um (ou mais) contratos de transporte, por conta do
expedidor.
Muitas vezes é necessário associar vários contratos, a saber: o transporte por terra
até ao porto de embarque; o transporte marítimo; o transporte ferroviário; o transporte
rodoviário; e a estes associadas todas as operações inerentes de transbordo. Perante isto,
a saída mais indicada reside na conclusão, com um especialista - o transitário - de um
contrato especial de mandato pelo qual, por conta do interessado, ele conclua os
necessários contratos de transporte.
Existe um interesse público associado à atividade dos transitários. Assim, o Estado
intervém a fim de se assegurar de que a competente atividade só possa ser exercida por

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

empresas detentoras de alvará emitido pela Direção-Geral de Transportes Terrestres,


depois de verificados os requisitos de idoneidade.
As próprias empresas transitárias podem celebrar contratos de transporte, devendo
para o efeito observar as respetivas cláusulas.

7.14. A natureza
Nos moldes civilísticos, o contrato de transporte é uma prestação de serviço.
Todavia, não é o serviço em si que interessa ao contratante: releva, para este, apenas o
resultado; isto é, ao contratante o que releva é a colocação da pessoa ou do bem, íntegros,
no local de destino. Por isso, o transporte funciona como modalidade de empreitada.
Podemos ainda acrescentar que, por relevar o resultado final, o contrato de transporte
acaba por assumir um conteúdo lato: abrange todas as operações necessárias para que o
seu sentido útil possa se atingido.
Um especial problema é posto pela figura do destinatário, o qual pode assumir
posições ativas, incluindo direitos. Mas como e que isto é possível, uma vez que o
contrato é celebrado entre o interessado e o transportador? A este respeito, existem 2
teorias básicas:
1.ª - A teoria do contrato trilateral – Segundo o qual, o contrato de
transporte é um negócio negócio a três: o expedidor, o transportador e o
destinatário. Este último daria o seu acordo num momento ulterior.
2ª - A teoria do contrato a favor de terceiro - perfilhada pela
generalidade da doutrina alemã, descobre no transporte um contrato a favor do
destinatário, ao qual este pode aderir nos termos gerais do Código Civil.
De facto, a estrutura básica “a favor de terceiro” (cfr. art.443.º e seguintes CC)
mantém-se. As especificidades são naturais: embora a favor de terceiro, o contrato de
transporte constitui uma indubitável figura especializada, em traços legais específicos.
Em suma: o contrato de transporte é uma prestação de serviço tipo empreitada, em
regra a favor de terceiro e dotado de um regime mercantil especializado.

8. O empréstimo. Tópicos.
Designa-se por empréstimo mercantil, o contrato pelo qual uma das partes entrega
ou se obriga a entregar à outra dinheiro ou coisa fungível destinada a qualquer atividade
comercial, ficando a ultima obrigada à respetiva restituição.

224
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Este contrato rege-se pelas normas especiais previstas no Titulo XI do Livro II do


CCom (art.394.º a 396.º), estando ainda sujeito subsidiariamente às normas juscivilistas
gerais em sede de mútuo (art.1142.º e seguintes CC).
Além disso, é ainda de ter em conta a existência de diversas modalidades ou
subtipos específicos de empréstimo mercantil, que se encontram disciplinados por regras
próprias – com é o caso, por exemplo, dos contratos de empréstimo bancário, dos
contratos de empréstimos de instrumentos financeiros, dos contratos de crédito ao
consumo, dos contratos de suprimento societários, dos chamados empréstimos
obrigacionistas (art.384.º e seguintes CSC, art1.º/b CMV), e assim por diante.
O empréstimo mercantil contradistingue-se por três traços fundamentais.
Por um lado, a quantia ou coisa emprestada deve destinar-se genericamente a uma
atividade comercial (art.394.º CCom). Não releva assim, em princípio, a qualidade das
partes contratantes: um empréstimo entre dois comerciantes, não terá natureza comercial,
assim como um empréstimo destinado a uma atividade comercial não perderá essa
natureza pelo facto de uma ou ambas as partes serem meros particulares. Decisivo é,
assim, o destino ou emprego comercial da quantia ou coisa emprestada: sublinhe-se que
este destino pode ser real ou meramente potencial, não implicando, em regra, que o
mutuante fique obrigado a aplicar tais quantias ou coisas numa operação comercial
concreta.
Por outro lado, o empréstimo tem uma natureza onerosa, vencendo juros
convencionados pelas partes ou, na falta de convenção ou de omissão de taxa, os juros
legais em vigor (art.395.º e 102.º CCom): como nota CUNHA GONÇALVES, sendo o
empréstimo mercantil destinado a ato mercantil, isto é, a uma operação lucrativa, justo
era que ele fosse também havido como ato naturalmente lucrativo ou oneroso.
Finalmente, ao invés do mútuo civil (sujeito obrigatoriamente a forma solene ou
escrito assinado pelo mutuário quando o seu valor for superior, respetivamente a 25000:
cfr. art.1143.º CC), vigora no domínio do empréstimo celebrado entre empresários um
princípio geral de liberdade de forma e de prova.

9. O penhor mercantil. Tópicos.


O penhor civil é um contrato real quod constitutionem, ou seja, efetiva-se com a
traditio. No entanto, no penhor mercantil pode ser meramente simbólico, pode não ter
que existir entrega (esta é uma das diferenças entre estes dois).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto ao penhor bancário, está previsto no DL n.º 29833, que permite o penhor
bancário sem se recorrer ao desapossamento simbólico, ou seja, na pureza dos conceitos,
basta um contrato entre as partes (comerciante e banqueiro) para que o penhor se efetive.
Designa-se por penhor mercantil o contrato pelo qual uma das partes confere à
outra, em garantia de um crédito comercial desta última e com preferência sobre os
demais credores comuns, o direito a ser paga pelo valor de determinada coisa ou direito
de que a primeira é titular.
A figura encontra-se genericamente prevista e regulada no Título XII do Livro
OO do CCom (art.397.º a 402.º), muito embora sejam igualmente de ter em conta, quer a
relevância subsidiária das normas gerais do CCivil (art.666.º e seguintes), quer sobretudo
a existência de numerosos subtipos específicos de penhor mercantil.
Estão neste caso, apenas para falar dos mais relevantes, o penhor de empresa, o
penhor de estabelecimento individual de responsabilidade limitada, o penhor de valores
mobiliários, o penhor em garantia de créditos bancários, o penhor de partes sociais, o
penhor cambiário, ou o penhor financeiro.
O regime do penhor mercantil, previsto no CCom, é caracterizado por diversos
traços próprios – de todos insuficientes, diga-se aliás, para fazer jus às necessidades
especificas do tráfico comercial e empresarial hodierno.
Por um lado, quanto à sua própria existência, o penhor apenas se diz mercantil,
quando a divida principal ou garantida proceda de uma atividade comercial (art.397.º
CCom): de novo, tal como noutros contratos previstos no CCom (empréstimo, depósito,
etc.), decisivo é a estirpe ou genealogoia comercial da atividade subjacente ao contrato
(in casu, de débito garantido), não sendo relevante, em princípio, a qualidade das partes
contratantes (v.g., um penhor para caucionar dívida civil de comerciante não possuirá
natureza comercial, já sendo comercial um penhor concluído entre particulares para
garantir divida emergente de ato comercial esporádico ou ocasional praticado por
qualquer deles).
Por outro lado, quanto ao penhor mercantil de coisa, a lei comercial consagrou
expressamente a relevância da entrega simbólica (art.398.º CCom): o negócio considera-
se validamente constituído independentemente da entrega material da coisa empenhada
ao credor pignoratício (que assim permanece em poder do devedor como fiel depositário),
bastando a transmissão ou traditio das competentes declarações ou documentos
comprovativos de titularidade (v.g., a entrega ou endosso de titulo de crédito
representativo de mercadorias).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Por outro lado ainda, quanto ao penhor de direitos, a regra geral do art.681.º/1 CC
(segunda qual a respetiva constituição está sujeita à forma e publicidade requeridas para
a transmissão dos direitos empenhados) deve ser devidamente integrada pelas pertinentes
disposições especiais da lei comercial: no penhor de títulos de crédito, o art.19.º LULL;
no penhor de ações e obrigações, o art.23.º/3 CDC, os art.81.º/1 e 103 CVM, e o art.3.º/1/f
CRCom), e assim sucessivamente.
Por outro lado também, relativamente à sua eficácia e regime probatório, o penhor
entre comerciantes produz efeitos em relação a terceiros mediante a sua mera redução a
escrito: ao passo que a lei civil faz depender sempre a eficácia pignoratícia da entrega da
coisa empenhada ao documento que confira a sua exclusiva disponibilidade
(art.669.º/1CC), a lei comercial bastou-se, em matéria de eficácia erga omnes, com a mera
exibição de documento escrito ainda quando este não confira a exclusiva disponibilidade
da coisa empenhada, v.g., correspondência comercial, livros de escrituração mercantil
(art.400.º CCom).
Finalmente, entre os direitos do credor pignoratício, avulta o da venda do penhor:
vencida a dívida garantida, o credor poderá promover a venda judicial ou extrajudicial da
coisa empenhada, a qual poderá efetuar-se por intermédio de corretor, notificado o
devedor (art.401.º CCom).

10. O depósito mercantil. Tópicos.


Designa-se por depósito mercantil o contrato pelo qual uma das partes entrega à
outra uma coisa destinada a atividade comercial, para que esta a guarde e restitua quando
for exigida.
A figura encontra-se genericamente prevista no Título XIII do Livro II do CCom
(art.403.º a 407.º). De novo, é mister ter presente, quer a relevância subsidiária das normas
gerais pertinentes do CC (art.1185.º), quer sobretudo a existência de regras especiais
aplicáveis a determinados tipos específicos de depósito mercantil: pense-se, por exemplo,
no depósito de mercadorias em armazéns gerais (art.94.º, 408.º a 424.º CCom), no
depósito bancário (art.407.º CCom), no depósito de títulos de crédito e instrumentos
financeiros (art.405.º CCom, art.343.º CVM), ou no depósito fiduciário.
Quais as principais especialidades do regime do depósito mercantil?
Desde logo, o legislador estabeleceu que a comercialidade do depósito pressupõe
que este seja de géneros ou de mercadorias destinados a qualquer ato de comércio
(art.403.ºCCom): uma interpretação atualista dos dizeres legais implica, pois, considerar

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

como mercantil todo o depósito relativo ao exercício de atividades empresariais,


sobretudo quando realizado por empresários que a ele se dedicam profissionalmente (v.g.,
bancos, entrepostos comerciais, armazenistas, etc.), embora não deixe de ter tal natureza
aquele que seja efetuado esporadicamente por um particular em conexão com um outro
ato mercantil (v.g., acessoriamente a uma operação de compra e venda mercantil, de
comissão, de transporte, etc.).
Depois ainda, ao contrário do regime comum do depósito não profissional
(art.1186.º e 1158.º CC), o depósito mercantil tem uma natureza onerosa (art.404.º
CCom): como notava ADRIANO ANTHERO há quase 100 anos, numa asserção
igualmente válida para os demais contratos previstos no CCom, vai isso de harmonia com
a natureza lucrativa do comércio. Trata-se de regime supletivo, pelo que, talqualmente é
possível estipular uma retribuição no caso do depósito civil, assim também será lícito às
partes de um depósito mercantil convencionar a gratuitidade do mesmo.
Finalmente, o depósito mercantil envolve ainda a previsão de direitos e deveres
especiais para o depositário: assim, no caso de depósito de títulos de crédito, valores
mobiliários ou outros instrumentos juscomerciais (v.g., ações, obrigações, unidades de
participação, letras, cheques, etc.), o depositário está obrigado à respetiva cobrança e
demais diligências necessárias à conservação do seu valor (art.405.º CCom);
inversamente, no caso de o depositário estar autorizado a utilizar a coisa depositada, o
contrato passa a ficar sujeito às regras de empréstimo mercantil, da comissão ou de outro
contrato que ao caso couber (art.406.º CCom).

11. A compra e venda. Tópicos.


Subjacente ao regime da compra e venda previsto no CComercial (art.463.º ao
art.476.º) está o regime geral da compra e venda previsto no CC (art.874.º ao art.939.º).
A compra e venda comercial funciona como efetivo contrato mercantil especial:
- Ou seja, a compra e venda comercial pressupõe (a si subjacente) o regime
civil, limitando-se a estabelecer especialidades.
A compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa
ou outro direito, mediante um preço, tal como estabelecido no art.874.º do CC. O direito
transmitido, é-o por mero efeito do contrato (cfr. art.879.º/a CC). Além disso, este
contrato obriga a entregar a coisa e a pagar o preço (cfr. alíneas b) e c) do mesmo preceito
e do mesmo diploma legal).

228
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Para além destas noções gerais, as regras do CC devem estar sempre presentes,
em qualquer compra e venda comercial.
Assim, perante dois regimes para a compra e venda (o regime civil e o regime
comercial), compreende-se a preocupação que o legislador pôs na exata delimitação do
tipo contratual. Neste sentido, o art.463.º do CComercial começou por fixar o que
considera compras e vendas comerciais. São elas, segundo os seus 5 números:
- A compra de móveis para revenda ou para aluguer;
- A compra, para revenda, de fundos públicos ou de quaisquer títulos de
crédito;
- A venda de móveis, de fundos públicos ou de títulos de crédito, quando
tivessem sido adquiridos com o intuito de revenda;
- As compras, para revenda, de imóveis de imóveis e a revenda dos imóveis
adquiridos com esse intuito;
- As compras e vendas de partes ou de ações de sociedades comerciais.
O Direito Comercial separa a compra e venda, distinguindo nela as duas
operações:
- A compra em si – pela qual o sujeito adquire o direito, pagando o preço;
- A venda – pela qual se arrecada um preço, abrindo mão do direito.
Trata-se da técnica possibilitada pela existência dos chamados “atos mercantis
unilaterais”- i.e., aqueles atos que o são [mercantis] apenas com referência a uma das
partes.
Infere-se dos 4 primeiros números do art.463.º do CComercial que a pedra de
toque da comercialidade da compra ou venda, reside na sua inserção num processo de
aquisição para revenda. Ou, se se preferir:
- A “compra e venda comercial” visa o lucro, enquanto a “compra e venda
civil” procura, simplesmente, a aquisição do bem.
Embora objetivamente comercial, a compra e venda mercantil é, assim, detetada
pelo facto de ser praticada por um comerciante no exercício da sua profissão. Esta
asserção é confirmada pela primeira exclusão levada a cabo pelo art.464.º do CComercial.
Já mais objetivamente comercial é a hipótese do art.463.º/5 do CComercial.
Finalmente, na determinação do tipo comercial da compra e venda, veio ainda a
pesar determinada tradição jurídico-cultural quando, para certas disciplinas privadas, se
dá este perfil; excluindo, para tanto, da consideração de atos comerciais, os atos
constantes dos números art.464.º. Tratam-se no caso, das exclusões relativas:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Aos produtos agrícolas;


- Ao artesanato;
- À agro-pecuária.
É isso o que nos transmite o art.464.º/2/4 do CComercial:
Ou seja, o comércio afirmou-se por oposição à agricultura e ao artesanato. Isto é,
os referidos números do art.464.º são o tributo, nem sempre lógico ou racional, pago a
essas origens.

11.1. Modalidades
A lei comercial fixa determinadas modalidades de compra e venda, mais em uso
no comércio, para as quais fixa regras supletivas. Nada impede que os contratos
puramente civis recorram a tais regras, ou que contratos comerciais as afastem. Estamos
numa área essencialmente dominada pela autonomia privada. Neste sentido:
- A primeira modalidade é a do contrato para pessoa a nomear. Aqui, o art.465.º
do CComercal declara possível esta ocorrência sem, para ela, prescrever qualquer regime.
Já o CC veio a regular esta pessoa (no denominado “contrato para pessoa a
nomear”) nos seus art.452.º a 456.º: tratam-se de regras subsidiariamente aplicáveis no
campo comercial, as quais estão bem adaptadas à atual realidade.
No que diz respeito à venda sobre amostra, segundo o art.469.º do CComercial,
tal venda considera-se sempre feita debaixo da condição de a coisa ser conforme à
amostra ou à qualidade convencionada. Este regime é justo e razoável.
O Código Civil prevê idêntica situação no seu art.925.º.
Os art.470.º e 471.º do CComercial reportam-se a vendas que não estejam à vista
nem possam designar-se por um padrão, submetendo-as ao que o Código Civil chama
“Segunda qualidade de venda a contento” (cfr. art.924.º do CC).
O art.471.º do CComercial dá um prazo de 8 dias para a consolidação das vendas
por amostra ou a contento.
Mas havendo dolo do vendedor este preceito não se aplica: assim, mesmo na
compra e venda comercia haverá que recorrer (subsidiariamente) aos art.913.º e seguintes
do CC. Esta é uma solução duvidosa e que careceria de uma investigação mais profundo,
no entendimento de MENEZES CORDEIRO.
Quanto às coisas não vendidas a ermo ou por parte incerta, mas por conta, peso e
medida - cfr. art.472.º do CComercial - seguem o regime das obrigações genéricas, regime
este previsto dos art.532.º a 542.º do CC.

230
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Ou seja, a concentração das coisas faz operar uma delimitação do risco por conta
do vendedor; já a entrega faz operar a inversão do risco (isto é, o risco corre por conta do
comprador, cfr. art.472.º/2/§2).
Já o art.467.º do CComercial permite a compra e venda de bens futuros, incluindo
os bens alheios.
Esta matéria está regulada no art.893.º do CC. De um modo mais explícito, o
CComercial parte de um prisma de validade do negócio e, ainda, determina
expressamente o dever do vendedor de adquirir a coisa - cfr. art.467.º/§único -.
Relacionada com esta norma do CComercial, a lei comum consegue o mesmo objetivo
através da obrigação da convalidação do negócio, cfr. previsto no art.897.º CC.

11.2. Particularidades do regime


A lei comercial compreende certas regras quanto ao regime da compra e venda,
algumas das quais com particularidades. Desde logo o art.466.º do CComercial admite
que o preço da coisa se venha a determinar posteriormente. Esta regra consta hoje, com
mais pormenor, do art.883.º do CC.
Conclui-se que o art.883.º do CC protege melhor o comércio - apesar de ser lei
civil - do que o citado art.466.º do CCom.
Também a entrega da coisa antes do pagamento do preço, quando devida, tal
entrega cessa na hipótese de falência do comprador, salvo se tiver sido prestada caução –
cfr. art.468.º do CCom.
Já o prazo para a entrega da coisa é supletivamente fixado em 24 horas, cfr.
art.473.º CCom.
Esta é uma regra sem correspondência no Direito Civil facto que, na falta de
estipulação das partes, haverá que se recorrer à regra geral do CC prevista no seu
art.777.º/1.
Subespécie mercantil é a compra e venda em feira ou mercado, norma que impõe
o respetivo cumprimento no mesmo dia ou então no dia seguinte – ex vi art.475.º CCom.
Pela lei civil, a falta de pagamento do preço não permite, salvo convenção em
contrário, a resolução do contrato – cfr. art.886.º CC. Acontece que a lei comercial, neste
tocante, vai mais longe, uma vez que, segundo o art.474.º do CCom, se o comprador de
coisa móvel não cumprir com aquilo a que for obrigado, pode o vendedor depositar a
coisa ou fazê-la vender. Esta última hipótese envolve a resolução do contrato.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O vendedor não pode recusar a entrega da fatura, com o recibo do preço – cfr.
art.476.º CCom. Trata-se de uma manifestação do direito à quitação9 (previsto no art.787.º
CC). Esta é uma matéria hoje reforçada por exigências fiscais.
Podemos ainda considerar como particularidade da compra e venda mercantil, o
regime especial da tutela da confiança, este previsto no art.1301.º CC.
Segundo este regime, quem reivindicar a terceiro, coisa por ele comprada de boa-
fé a comerciante, no exercício do comércio, é obrigado a restituir o preço que o adquirente
tiver dado por ela. Todavia, goza do direito de regresso contra aquele que, culposamente,
deu causa ao prejuízo.

12. O seguro. Tópicos. Remissão.


No contrato de seguro, uma pessoa transfere para outra o risco da verificação de
um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma determinada
remuneração.
A pessoa que transfere o risco diz-se tomador do seguro ou subscritor.
A pessoa que assume o risco e recebe a remuneração é a entidade seguradora.
O dano eventual é o sinistro.
A pessoa cuja esfera jurídica fica protegida pelo seguro (e que pode, ou não,
coincidir com o tomador do seguro) é o segurado.
A remuneração da seguradora, devida pelo tomador do seguro, é o prémio.
Os contratos de seguro inicialmente reservados a grandes empreendimentos,
designadamente no campo marítimo, vieram a popularizar-se. Em algumas áreas
sensíveis, como a dos acidentes de viação e a dos acidentes de trabalho, o seguro é mesmo
obrigatório.
Já noutra vertente, há seguros de pessoas com escopos assistenciais (como por
exemplo na saúde). Mais, em certos casos o segurador paga uma quantia pela morte do
segurado (é o que acontece com os seguros de vida associados, por exemplo, a elevados
empréstimos bancários para a compra de habitação).
Os seguros funcionam na média em que as pessoas confiem no sistema
(segurador). Por isso caba aos Estados intervir nesta área. Atualmente os Estados fazem-
no através de entidades independentes, dotadas de poderes de autoridade. Desenvolveu-

9
Quitação – a quitação é considerada a prova do pagamento, consistindo na entrega de um documento em
que o credor, ou seu representante, reconhece ter recebido o pagamento, exonerando assim o devedor da
sua obrigação.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

se assim um Direito institucional de seguros, capaz de assegurar os bons funcionamento


e qualidade de seguros, matéria hoje regida pelo Regime Geral da atividade Seguradora
(RGAS), aprovado pela Lei n.º 147/2015 de 9 de setembro.
Por outro lado, a supervisão dos seguros cabe, atualmente, à Autoridade de
Supervisão dos Seguros e Fundos de Pensões, conhecida pela sigla ASF, cujos estatutos
constam do DL n.º 1/2015 de 6 de janeiro.
Os seguradores, justamente porque lhes cabe amealhar património para enfrentar
eventuais sinistros ou outras responsabilidades, tornam-se de detentores de muita riqueza
(razão porque a atividade seguradora está, em regra, ligada à atividade bancária; i.e., os
bancos são detentores de seguradoras). Razão, também, porque tal riqueza deva ser
administrada com cuidado.
Os seguros são ativos patrimoniais, considerados por lei, como produtos
financeiros.
O setor dos seguros representa uma parcela muito elevada de riqueza mundial,
razão porque o Direito europeu lhe dá especial atenção, multiplicando-se as diretrizes
nesta área institucional.
O Direito europeu dos seguros desenvolveu-se em 3 pólos:
1.º - O direito do contrato de seguro, de tipo privado e comercial;
2.º - O Direito dos seguradores, também privado e da área das sociedades;
3.º - O Direito da supervisão pública.
A Alemanha é o país que mais atenção tem dado ao Direito dos seguros, isto no
plano legislativo, jurisprudencial e doutrinário.
Em conjunto com o Direito bancário e o Direito dos transportes, o Direito dos
seguros integra o grande tríptico da economia pós-industrial.
Pode-se dizer que o Direito dos seguros conquistou o seu espaço próprio.

13. O reporte. Tópicos.


O Código Comercial dá ao reporte uma definição legal (art.477.º)
Procurando distinguir o papel de cada um dos intervenientes, verifica-se que:
- Uma pessoa (o reportado) – vai obter a disposição de uma certa soma em
dinheiro, com títulos de que se não pretende, em definitivo, desfazer;
- Uma outra pessoa (o reportador) – vai conseguir a disponibilidade
temporária de certos títulos.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Conforme as circunstâncias, pode-se distinguir o seguinte, no reporte em sentido


amplo:
- O reporte estrito - os títulos são mais caros na retransmissão, sendo o
reportador remunerado através dessa diferença;
- O deporte - os títulos são mais baratos na retransmissão, cabendo a
remuneração ao reportado.
Tudo depende da posição dos títulos no mercado e da vontade dos intervenientes.

13.1. Modalidades e características


Já bastante relevante é a contraposição entre o chamado “reporte de banca” e o
“reporte de bolsa”. Assim:
- No reporte de banca – pretende-se obter dinheiro ou assegurar
temporariamente a disponibilidade de um determinado conjunto de títulos.
- No reporte de bolsa – visa deferir-se uma venda de títulos a prazo,
quando, na altura, não vejam realizadas as suas previsões sobre a alta ou a baixa
dos títulos.
Pode considerar-se que, apenas a segunda modalidade tem a ver com o
denominado “jogo da bolsa”, assumindo assim contornos especulativos. Já a primeira
modalidade apresenta-se como uma operação financeira.
O reporte em geral tem as seguintes características:
- O reporte é um contrato consensual – em virtude não haver na lei
qualquer exigência de forma, para se proceder à sua válida celebração;
- O reporte é um contrato quoad constitutionem – uma vez que resulta de
uma exigência legalmente expressa (ex vi art.477.º/§único CCom, norma
retirada/inspirada no Código Comercial italiano de 1882, que a este respeito
dispunha: “É condição essencial à validade do reporte a entrega real dos
títulos.”);
- O reporte é um contrato sinalagmático e bivinculante – uma vez que
implica prestações recíprocas, ficando ambas as partes vinculadas;
- O reporte é um contrato oneroso – uma vez que ambas as partes são
chamadas a efetuar sacrifícios económicos;
- O reporte é um contrato relativo a títulos de crédito – visto que o
legislador afastou (pelo menos nominalmente) o reporte referente a outros títulos;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- O reporte é um contrato de dare e de facere – uma vez que o reporte


obriga as partes a entregar e a restituir determinados objetos, surgindo, em
simultâneo, múltiplos deveres de atuação cargo de ambas as partes;
- O reporte é um contrato típico e nominado – uma vez que, além da
designação própria, dispõe na lei de uma regulação específica e autónoma.

13.2. Função e natureza


O reporte tem, no seu essencial, uma função financeira. A este respeito e como
explica D’ESPINOSA:
“Apesar de, na sua estrutura, o reporte se articular com uma dupla transferência
de títulos contra um preço, a função económica do reporte não é uma operação de troca,
mas a de uma operação de crédito.”
E dentro da categoria financeira, o reporte surge como uma operação garantida.
Na verdade, as partes que recorrem ao reporte não pretendem, por definição, uma
transferência de títulos. Mais, a titularidade do reportador é efémera. E tão pouco está em
causa uma transferência definitiva de fundos. No fundo, joga-se no reporte um mútuo
especialmente garantido.
A discussão que se poderia travar em torno da natureza do reporte tem a ver com
a sua essência unitária, ou não-unitária.
A natureza unitária do reporte aflora-se em pontos tão simples e significativos,
como:
- Não faz sentido atribuir um papel autónomo a alguma das operações
materiais ou jurídicas que no reporte se insiram; ou ainda, não é possível invalidar
um do “negócios” parciais que comporiam o reporte sem, com isso, invalidar o
conjunto.
Assim, sendo unitário, o reporte não poderá reconduzir-se a algum outro tipo
negocial.
A este respeito têm sido referidas 3 grandes grupos de teorias:
1.ª – As teorias do empréstimo – estas teorias veem no reporte uma espécie de
mútuo. Assim o reportado receberia uma coisa fungível (o dinheiro) obrigando-se a
restituir outro tanto. Já o reportador receberia títulos que teria de restituir. Facto é que, no
reporte, o reportador não tem que restituir os próprios títulos que recebeu, mas antes
títulos da mesma espécie.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Ainda, o regime do reporte (com a sua dupla transmissão e a particular forma de


calcular o “preço”) não tem a ver com as regras do mútuo. A este respeito (ou com isto
relacionado), podemos mesmo concluir (sem quaisquer dúvidas) que o Direito põe à
disposição dos interessados várias outras formas de conseguir crédito [que as teorias do
empréstimo, ou mútuo, defendem], a saber: o mútuo, o comodato, o reporte e outras.
2.ª – As teorias do penhor – estas teorias enfocam no reporte a dimensão da
garantia. Ou seja, a entrega dos títulos teria, no fundamental, o papel de assegurar a
efetivação da restituição do dinheiro. No entanto, a garantia, só por si, mal descreveria o
reporte. Estas teorias (do penhor) surgem combinadas com a anterior.
3.ª – As teorias da compra e venda - estas teorias são as mais antigas. Para elas o
reporte analisar-se-ia em duas compras e vendas simultâneas. Uma compra e venda
imediata e a outra compra e venda diferida e de sinal contrário. Trata-se porém de uma
orientação já abandonada entre nós. Isto porque, qualquer contrato que implique a
transferência de direitos mediante dinheiro tem algo de compra e venda, que funciona
como o grande modelo dos negócios translativos e dispendiosos. Mas por aí ficam as
semelhanças, uma vez que o reporte funciona como um todo, como uma estrutura, e não
como um somatório de partes. Por isso, as regras que se lhe aplicam são diversas das
regras das simples compras e vendas.
É pois, com tranquilidade que a doutrina atual considera o contrato de reporte
como um negócio próprio, típico ou sui generis, dotado de regras específicas e com
objetivos financeiros.

13.3. Os denominados direitos acessórios


No reporte não há uma venda atual dos títulos e uma recompra de títulos da mesma
espécie, entre os mesmos intervenientes. A venda e a recompra são simultâneas, só que
uma opera a dinheiro de contado e a outra a termo – cfr. art.477.º CCom.
O reporte não obriga o reportado a recomprar os títulos, nem obriga o reportador
a vendê-los: chegado o termo, a “revenda”, já celebrada aquando do reporte, produz os
seus efeitos, sem necessidade de qualquer outra manifestação da vontade humana.
Já quanto aos direitos acessórios, eles são, genericamente, todas as vantagens que,
pelo Direito, caibam aos titulares dos títulos de crédito de reporte. A este respeito põe-se
a questão de saber a quem competem tais direitos acessórios durante o reporte: se ao
reportador ou se ao reportado?

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

No Direito português, a doutrina antiga, assente na ideia de compra e venda, ou


ainda, assente na ideia de propriedade do reportador, atribuía a este os direitos acessórios.
Mas mais recentemente, tem-se propendido para uma solução diversa. A este respeito,
dado o flagrante paralelo com o Direito italiano, existe o argumento histórico [e certo] de,
no Direito português, se imputar ao reportado os direitos acessórios.
Mas ainda relacionado direitos acessórios do reporte, existem argumentos
dogmáticos, nos quais temos dois pontos a sublinhar:
1.º - No reporte, o reportador deve, no final, restituir “(…) títulos da mesma
espécie (…) cfr. art.477.º -, ou seja, com as mesmas qualidades. Ora, a fazer seus
os direitos acessórios, ele iria restituir títulos depauperados, despidos de alguma
ou algumas das suas potencialidades. Em suma, ele iria restituir títulos de outra
espécie (uma vez que não releva tanto a sua designação como o seu real conteúdo);
2.º - No reporte, a compra e revenda operam logo, havendo apenas um
contrato – assim o reportador é proprietário sujeito a termo resolutivo e apenas
detém uma “propriedade” gravada, com a qual, assim sendo, só pode gerar
produtos gravados.
Já quanto a uma dimensão teleológica, frisamos o seguinte:
- No reporte há, em termos substanciais, um negócio financeiro e não um
esquema aquisitivo – logo, o reporte não poderia ser utilizado para receber outras
vantagens que não as proporcionadas pelo próprio reporte;
- O reporte não é um negócio aleatório – assim ele não iria abranger
vantagens eventuais que escapassem à vontade inicial, autodeterminada, pelas
partes.
Finalmente e quanto ao elemento sistemático:
- O reporte sujeita-se enquanto contrato aos princípios gerais e,
designadamente, aos princípios que limitam os juros, vedam a usura e proscrevem
o enriquecimento injusto.
Há assim razões ponderosas, de ordem histórica, dogmática, teleológica e
sistemática que, no Direito português, levam para a atribuição ao reportado, dos direitos
acessórios.
Nenhuma razão existe para interpretar de modo extensivo o referido art.477.º do
Código Comercial. Pelo contrário, existem fortes razões que reclamam uma interpretação
comedida. Desde logo, ao mencionar (…) prémios, amortizações e juros (…) durante o
prazo da convenção corram a favor (…), a lei está a chamar a atenção para realidades que

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

vencem periodicamente, de modo repetido. Por exemplo, havendo um reporte sobre


títulos que, na sua vigência sejam integralmente amortizados, deste modo não se vê como
é que o reportador nada possa restituir no termo.
O art.478.º CCom ao restringir a referência aos “prémios, amortizações e juros”,
deixa no vago tudo quanto, sendo acessório não possa reconduzir-se a essas realidades.
De facto, a tais realidades haverá que aplicar as regras gerais que informam (i.e.,
constituem) o reporte e que determinam, no termo, uma total restituição ao reportado.

14. O escambo ou troca. Tópicos.


O escambo (i.e., câmbio, troca) ou troca, no Código Comercial, contém um único
artigo, no caso o art.480.º.
Assim, troca mercantil é o contrato pelo qual as partes transferem reciprocamente
de coisas ou outros direitos destinados a uma atividade comercial ou com intuito
lucrativo, inexistindo qualquer pagamento de um preço.
Este artigo terá de ser interpretado no sentido de ser mercantil a troca que é
realizada com o intuito de revenda da coisa trocada. A norma, nos termos do respetivo
teor, refere-nos que a troca tem um regime que é moldado sobre o regime da compra e
venda.
O contrato de troca é, talvez, o mais antigo da Humanidade. Não obstante, o
Código Civil suprimiu-o. O Código Civil limita-se, no seu art.939.º (Aplicabilidade das
normas relativas à compra e venda) a remeter os contratos onerosos “…pelos quais se
alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles…” para as normas da compra e
venda, na medida do possível.
Este é um princípio que, para além da troca, poderá ser aplicável, com as devidas
adaptações, em todo o Direito Comercial.

15. O aluguer. Tópicos.


O aluguer objetivamente comercial está associado à compra e venda. Segundo o
art.481.º CCom o aluguer será mercantil quando a coisa tiver sido comprada para lhe
alugar o uso.
O Código Comercial apenas contém os dois preceitos sobre o aluguer.
O art.482.º, excecionando o fretamento (i.e., o aluguer) de navios, remete
simplesmente este contrato para o Código Civil.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

15.1. O arrendamento comercial.


A locação comercial apresenta especificidades no domínio do arrendamento (em
geral), razão porque não consta do Código Comercial.
Os art.110.º e seguintes do RAU (Regime do Arrendamento Urbano) tratavam do
arrendamento para comércio e indústria. O regime aí fixado apresenta uma série de
especificidades perante as regras comuns, as quais só se explicam pela natureza comercial
dos valores envolvidos.

16. Estruturas de cooperação entre empresas.


16.1. Introdução.
Por contratos de cooperação empresarial designamos genericamente acordos
negociais, típicos ou atípicos, celebrados entre duas ou mais empresas jurídicas e
economicamente autónomas (singulares ou coletivas, públicas ou privadas, comerciais ou
civis), com vista ao estabelecimento, organização e regulação de relações jurídicas
duradouras para a realização de um fim económico comum.
A vida económica atual é caracterizada por um forte desenvolvimento das relações
de cooperação entre empesas. Os motivos da cooperação interempresarial são múltiplos
e relevantes: através dela, as empresas podem realizar economias de escala, racionalizar
os seus métodos produtivos, reduzir o risco económico dos seus investimentos, obter
recursos tecnológicos ou financeiros de outro modo inacessíveis, e competir num quadro
económico cada vez mais globalizado. Ora, os contratos de cooperação constituem um
dos principais instrumentos jurídicos de suporte e organização destas relações
cooperativas entre empresas.
A delimitação dos contratos de cooperação interempresarial é extremamente
complexa. Por um lado, domínio profundamente tributário da autonomia privada, a lei e
a prática desenvolveram uma multiplicidade insistematizável de figuras contratuais que
podem servir a cooperação entre empresas (contratos de sociedade, de ACE, de AEIE, de
consórcio, de associação em participação, de empreendimento comum, etc.) Por outro
lado, a doutrina em procurado sistematizar estas figuras através do recurso às mais
diversas classificações jurídicas e económicas: assim, de acordo com o critério da matriz
contratual ou organizativa da cooperação, é usual distinguir-se entre contratos que dão
origem a uma nova entidade comum e aqueles em que a realização do fim comum se
esgota num plano puramente negocial ou de cooperação auxiliar; de acordo com o critério

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do âmbito e natureza das atividades económicas desenvolvidas, é possível distinguir entre


contratos de cooperação horizontal e vertical, simples e complexos; e assim por diante.
Finalmente, e à semelhança do que sucede com outros tipos de contratos
comerciais, estaremos usualmente perante verdadeiros contratos relacionais, que as partes
tratam mais como casamentos do que simples “encontros de uma noite”.

16.2. Associação em participação.


A Associação em Participação – regulada nos art.21.º e seguintes do Decreto-Lei
n.º 231/81, de 28 de Julho – define-se como o contrato pelo qual uma ou mais pessoas,
singulares ou coletivas, se associam a uma atividade económica exercida por outra (dito
associante ou titular), ficando as primeiras a participar nos lucros (ou, facultativamente,
também nas perdas) que resultarem desse exercício para a última.
Esta figura contratual, cujas raízes históricas remontam ao direito romano tem a
si subjacente uma enorme gama de finalidades possíveis, mormente a realização de
investimentos e financiamentos rápidos e simples (desprovidos de formalidades
especiais) e a preservação do secretismo negocial (mantendo oculta a identidade do
partícipe). Do mesmo modo, a associação em participação poderá revestir uma
multiplicidade de configurações concretas, podendo ter uma matriz plural ou singular
(consoante haja ou não pluralidade de associados), reciproca ou unilateral (consoante
exista ou não um cruzamento de associações entre associado e associante), comercial ou
civil (consoante a natureza da atividade económica do associante) e típica ou atípica
(consoante regida pelo modelo legal ou conformada pelas partes no que concerne ao
regime supletivo).
Conquanto se trate de uma figura amplamente conhecida no direito comparado,
são bastante diversos os modelos regulatórios existentes: no essencial, é possível divisar
um modelo societário e um modelo contratual.
O legislador português aderiu inequivocamente ao modelo contratual: ao contrário
da sociedade, a associação em participação não dá origem a uma nova entidade ou
organização autónoma, a atividade económica não é exercida conjuntamente pelos
contraentes (mas individualmente pelo associante), e não existe formação de qualquer
património autónomo ou sequer comum (já que as contribuições do associado ingressam
no património individual ou empresarial do associante).

16.3. Consórcio.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O consórcio define-se como o contrato através do qual duas ou mais empresas,


singulares ou coletivas, se vinculam a realizar concertadamente determinada atividade ou
efectuar certa contribuição com vista a prosseguir um dos tipos de atividade
expressamente previstos na le.
A figura contratual do consórcio constitui uma expressão legislativa da
necessidade geral sentida no mundo económico de instrumentos jurídicos aptos a
organizar uma cooperação temporária e limitada entre empresas que lhes permita, a um
tempo, criar vinculações mútuas para efeitos da realização de um determinado
empreendimento, organizando flexivelmente o quadro de relações internas e externas, e
libertar-se facilmente dessas amarras logo que tal objetivo tenha sido atingido. Esta
flexibilidade é especialmente marcante no caso do contrato de consórcio, o qual, ao
contrário de outras figuras contratuais de matriz cooperativa afim (v.g., sociedade,
cooperativa, agrupamento complementar de empresas), não dá origem ao nascimento de
uma nova entidade com personalidade jurídica.
Um exemplo. É aberto um concurso público para a concessão da construção,
conservação de uma grande empreitada (v.g., auto-estrada, rede de metro, etc.), existindo
três empresas da área da construção civil que estão interessadas em unir forças e concorrer
em conjunto: no lugar de constituir uma nova sociedade comum que protagonizasse a
preparação desse concurso (maxime, a realização dos estudos prévios determinados no
caderno de encargos da obra) ou a realização da empreitada adjudicada, com todas as
formalidades constitutivas e de funcionamento inerentes, poderá revelar-se mais simples,
eficaz e flexível para as empresas interessadas organizar o quadro de cooperação
interempresarial através da celebração entre si de um contrato de consórcio.

16.4. O Agrupamento Complementar de Empresas (ACE).


O contrato de Agrupamento Complementar de Empresas define-se como aquele
através do qual duas ou mais empresas singulares ou coletivas constituem uma entidade,
dotada de personalidade jurídica própria, que tem por finalidade principal o
melhoramento das condições de exercício ou de resultado das respetivas atividades
económicas individuais.
Esta figura foi regulada pelo legislador português através da Lei nº4/73, de 4 de
Junho e do Decreto-Lei nº430/73, de 25 de Agosto, tendo sido largamente inspirada no
modelo francês.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A sua consagração legal teve essencialmente em vista instituir uma nova forma
jurídico-organizativa especifica para as relações de colaboração entre empresas, a que os
modelos clássicos da sociedade e da associação se mostravam incapazes de corresponder:
com efeito, podem existir situações em que o conjunto de empresários individuais ou
coletivos pretendam juntar esforços com vista a aumentar a rentabilidade individual das
suas próprias empresas, sem que, todavia, o façam com o fim primacialmente lucrativo
(exclusivo da sociedade) nem, inversamente, com fim meramente interessado de onde o
lucro esteja totalmente arredado.
Por fim, sublinhe-se que o contrato de ACE dá origem a uma forma jurídica de
organização empresarial, embora de matriz cooperativa e não concentracionista: trata-se,
como a sua própria designação logo inculca, de um agrupamento de empresários, o qual,
podendo ou não dar origem a uma nova empresa em si mesma, de modo algum implica
ou produz a união de empresas constituintes.

16.5. O Agrupamento Europeu de Interesse Económico (AEIE).


O contrato de Agrupamento Europeu de Interesse Económico designa aquele
contrato pelo qual duas ou mais pessoas singulares ou coletivas constituem uma entidade
dotada de personalidade jurídica internacional tendo por finalidade exclusiva o
melhoramento das condições de exercício ou de resultado das respetivas atividades
económicas individuais.
Esta figura foi criada pelo legislador comunitário através do Regulamento
2137/85/CE, de 25 de Julho, tendo sido posteriormente regulada no direito interno
português através do Decreto-lei nº 148/90, de 9 de maio e Decreto-lei nº2/91, de 5 de
Janeiro.
Os AEIE são um instrumento de cooperação interempresarial em tudo semelhante
aos ACE, sem prejuízo de destes se distinguirem por algumas importantes especialidades.
Entre elas, sublinhe-se que os AEIE são pessoas coletivas de direito internacional, têm
como finalidade exclusiva o melhoramento das atividades económicas individuais dos
seus membros (não podendo, mesmo a titulo acessório ou secundário, prosseguir fins
lucrativos), e possuem obrigatoriamente um substrato pessoal transnacional, já que os
seus membros devem ser pessoas singulares ou coletivas num dos Estados membros da
União Europeia, não tendo, de ser forçosamente titulares de uma empresa.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

CAPÍTULO IX - TÍTULOS DE CRÉDITO


1. Introdução.
Designa-se como título de crédito, o documento necessário para constituir, exercer
e transferir o direito literal e autónomo nele incorporado.
O conceito de título de crédito costuma abarcar uma enorme variedade de tipos de
documentos: a letra de câmbio, a livrança, o cheque, os extratos de fatura, os documentos
de transporte, as cautelas de penhoras e as ações e obrigações emitidas pelas sociedades
comerciais.
Portugal não dispõe de uma disciplina legal própria sobre esta matéria, sendo que
a sua teoria geral foi fruto da doutrina e jurisprudência, que têm procurado construir um
conceito genérico de título e formular um conjunto de regras e princípios.
Assim, embora sejam vistos como matéria comerciais, não estão previstas no
CComercial, assim temos a Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças* e a Lei Uniforme
do Cheque (que resultam de convenções internacionais).
Na verdade, a sua conexão com a atividade comercial é genética e primordial: o
arquétipo do título de crédito (a letra de câmbio) constitui um procuto da Idade Média.

1.1. História e evolução dos títulos comerciais, em especial dos títulos de


crédito.
A origem histórica dos títulos de crédito pode ser encontrada na letra de câmbio
medieval.
No exercício da sua ativadades comercial, os mercadores medievais eram
obrigados a deslocar-se a fim de celebrarem os seus negócios e de cobrarem os seus
créditos.
Com vista, a evitar os enormes riscos inerentes ao transporte de avultadas
quantias, surgiu um novo instituto jurídico: o comerciante depositava o seu dinheiro junto
de um banqueiro que lhe entrega um documento especial ou carra, que lhe permitia,
mediante a sua apresentação perante outro banqueiro, levantar a correspondente quantia
pecuniária.
Mais tarde permitiu-se que o documento fosse utilizado pelo comerciante como
meio direito de pagamento e de circulação de créditos no tráfico jurídico, mediante o seu
mero endosso a outros comerciantes, que assim assumiam a titularidade do crédito
pecuniário nele inscrito.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Assim, os títulos de crédito são, na sua origem, instrumentos de circulação indireta


de riqueza destinados a tornar mais simples e segura a circulação de bens e direitos no
tráfico jurídico-comercial.

2. Tipologias de títulos.
Os títulos de crédito podem ser agrupados em diferentes categorias:
- Títulos privados e públicos (critério da natureza do eminente);
- Títulos creditícios, reais ou corporativos (critério da natureza do
direito cartular);
- Títulos nominativos, à ordem ou ao portador (critério do modo de
circulação);
- Títulos abstratos e causais (critério do nexo com o negócio
subjacente);
- Títulos em massa e individuais (critério do modo de emissão).
Os títulos são simultaneamente documentos de legitimação (destinados a habilitar
o seu portador ao exercício do direito cartular) e de circulação (destinados a permitir a
fácil, celére e autónoma transmissão desse direito). De fora ficam os títulos impróprios,
que são meros documentos de legitimação que, não se destinando à circulação, carecem
de alguma das características habituais dos títulos de crédito (a incorporação e a
autonomia). Podem ser meros comprovativos de legitimação, tendo por função legitimar
o seu portador a exercer um determinado direito nele contido, mas não a fazer circular ou
transmitir tal direito.

2.1. Títulos privados e públicos


Os títulos públicos são os emitidos pelo Estado ou outras entidades públicas
legalamente habilitadas para tal no exercício de uma atividade. São o caso das notas de
banco, dos títulos do tesouro ou os títulos de dívida pública (art.483.º CComercial).
Os títulos privados são os emitidos por pessoas singulares ou coletivas privadas,
ou por entidades públicas no exercício de uma atividade privada. É o caso das letras de
câmbio, das livranças, dos cheques, das obrigações ou dos extratos de fatura.
O critério da natureza pública ou privada do emitente implica necessariamente que
todos os títulos emitidos pelo Estado ou entidades públicas no exercício das suas funções
próprias sejam títulos públicos: assim, o cheque não perde a sua natureza privada ainda
que utilizado no âmbito de funções públicas.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

2.2. Títulos creditícios, reais e corporativos.


Os títulos creditícios (ou representativos da moeda) são aqueles que incorporam
exclusivamente um direito de crédito a uma prestação pecuniária: é o caso das letras de
câmbio, livranças, cheques, extratos de fatura, certificados de depósito e obrigações.
Os títulos reais (ou títulos representativos de mercadorias) são aqueles que
incorporam direitos reais sobre coisas, em geral mercadorias: é o caso das guias de
transporte e conhecimentos de carga, que conferem ao seu titular, além de um direito real
de disposição sobre as mercadoreias transportadas, um direito à restituição e de garantia
sobre as mercadorias depositadas.
Os títulos corporativos (ou títulos de participação ou representativos de direitos
sociais) são aqueles que incorporam um direito de propriedade corporativa ou
participação social, ou seja, a posição jurídica complexa inerente à qualidade de membro
de uma corporação social: é o caso das ações das sociedades anónimas e em comandita.
Esta classificação atinente ao conteúdo do direito cartular pode ter relevância para
efeitos práticos. Apenas os títulos creditícios e os títulos reais podem constituir títulos
executivos para efeitos do art.46.º/1/c CPC, o qual pressupõe a existência de um
documento particular, assinado pelo devedor, constituindo ou reconhecendo obrigação
pecuniária ou de entrega de coisa móvel.

2.3. Títulos nominativos, à ordem e ao portador.


Os títulos nominativos são aqueles que são endereçados pelo emitente a uma
pessoa determinada e cujo regime de circulação é particularmente complexo, exigindo a
intervenção do emitente do título e do seu titular: é o caso das ações tituladas nominativas
de uma sociedade anónima, cuja transmissão requer declaração expressa a favor do
adquirente exarada por escrito no próprio título e registada junto da sociedade emitente
ou de intermediário financeiro que a represente (art.102.º/1 CVM).
Os títulos à ordem são aqueles que, sendo também endereçados pelo emitente a
pessoa determinada, circulam mediante endosso, ou seja, mediante declaração assinada
pelo titular usualmente nas costas do título (é o caso da letra, art.11.º/1 LULL; da livrança,
art.77.º/2 da LULL, dos conhecimentos de depósito, art.411.º do CCom; ou dos extratos
de fatura).

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Os títulos ao portador são aqueles que não identificam o seu titular, circulando por
mera tradição ou entrega real (o seu titular é o portador): é o caso das ações ao portador
não depositadas (art.101.º/! CVM) e das notas de banco.
O regime da circulação é imperativamente fixado pela lei para cada tipo de título,
sem prejuízo de um mesmo título poder ter mais do que um critério legal de circulação
cuja escolha dependa da vontade de emitente e titular (ex.: cheques, art.5.º do LUC).
No entanto, o regime da circulação não é imutável, existindo título que, emitidos
segundo uma regra de circulação, são objeto de uma conversão no decurso da sua
existência (ex.: conversão das ações em obrigações, art.53.º CVM).
Mais, o regime pode sofrer entorses, designadamente nos casos de circulação
imprópria, que ocorrem quando o título circula de acordo com as regras comuns da
transmissão, como sucede na sucessão mortis causa; e também nos casos de circulação
irregular que se verifica quando o título entrou em circulação à margem da vontade do
seu titular ou de qualquer transmissão válida (ex.: furto).

2.4. Títulos abstratos e causais


São títulos abstratos aqueles que são aptos a desempenhar uma pluralidade de
causas jurídico-económicas subjacentes, não fazendo qualquer menção ao negócio
fundamental concreto e permanecendo independentes relativamente a este: ex., a letra de
câmbio pode servir para titular uma divida pecuniária emergente dos mais variados
negócios subjacente, não contendo qualquer referência ao negócio concreto enão podendo
o devedor invocar contra os portadores imediatos quaisquer exceções fundadas nesse
negócio.
Os títulos causais são aqueles que se destinam a realizar uma específica causa ou
negócio típico, predeterminados na lei, ficando dependentes das vicissitudes do negócio
subjacente: é o caso das ações, obrigações, conhecimentos de carga ou conhecimentos de
depósito, que se encontram associados a um determinado negócio típico concreto, contêm
necessariamente uma referencia direta ou indireta a estes.
No entanto, todos os títulos são, em certa medida, abstratos, pois visam justamente
conferir ao seu titular um novo e autónomo direito a partir de um direito substantivo
preexistente, não surgem do nada, tendo sempre subjacente um determinado negócio
causal. A sua relação com a causa é que pode ser maior ou menor.
Mais têm a si subjacentes, duas causas:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Uma causa mediata ou remota – o negócio fundamente ou


subjacente propriamente dito;
- Uma causa imediata ou próxima – a convenção executiva, que
consiste na convenção acessória do negócio fundamental através da qual as partes
definem a função e o conteúdo do negócio cartular.

2.5. Títulos individuais e em massa.


Os títulos individuais são aqueles que são emitidos singularmente, sendo
infungíveis e destinando-se a ser tomados por uma só pessoa: é o caso das letras,
livranças, cheques, extratos de fatura ou conhecimentos de embarque.
Os títulos em massa são aqueles que são emitidos massivamente (na ordem dos
milhares ou milhões), sendo fungíveis e destinando-se a ser tomados por uma pluralidade
de pessoas indeterminadas (são as ações obrigações pertencentes a uma mesma categoria
que podem ser posta à subscrição pública, art.279.º CSC e 109.º CVM).
Esta distinção tem importância para o confronto dos títulos de crédito com os
novos instrumentos juscomerciais de circulação e mobilização de riqueza. Estes deram
origem aos valores mobiliários que hoje tem autonomia dogmática.

3. A desmaterialização dos títulos.


A enorme adesão aos títulos de crédito levou à sua grande proliferação no século
XX. Emitindo as sociedades comerciais todos os anos milhões de ações e obrigações, e
colocando os Estados ou os empresários todos os dias em circulação biliões de títulos de
dívida pública ou privada, o sistema está condenado a submergir diante desta quantidade
de papel.
Assim, os títulos de crédito acabaram por serem vítimas do seu próprio sucesso.
A sua evolução culminou num fenómeno de desmaterialização ou desincorporação dos
títulos de crédito dada a sua progressiva substituição do suporte físico tradicional para
suportes de natureza informática (documento virtual): ou seja, os direitos e os deveres
inscritos num título de crédito, outrora incorporados num documento em papel, passaram
a constar em registo informático.
A ilustração mais paradigmática deste fenómeno dá-se no domínio dos títulos
corporativos ou representativos de uma participação social: as ações de uma sociedade
comercial podem hoje ser representadas em forma documental ou escritural.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Cabe descobrir onde esta nova etapa conduzirá. Para alguma doutrina, o conceito
de título de crédito é dotado de elasticidade suficiente para albergar o fenómeno da
desmaterialização, o qual representa uma oportunidade para a reconstrução dogmática.
Outra crê que levará a uma crise dos títulos de crédito, o que levará à perda do seu
protagonismo em favor de novos instrumentos juscomerciais de circulação de riqueza,
como os instrumentos financeiros e os valores mobiliários.

4. Características dos títulos de crédito


O título de crédito é o documento necessário para constituir, exercer e transferir o
direito literal e autónomo nele incorporado. Assim, os seus elementos distintivos serão o
documento, a literalidade, a incorporação, o direito e a autonomia.
Para alguma doutrina, a característica principal é a sua autonomia; para outros é a
sua incorporação.

4.1. Documento.
O título de crédito é, desde logo, um documento (art.368.º CC). Todavia, atenta a
particularíssima relação que intercede entre o documento e o direito documentado, ele
não é um documento qualquer; trata-se de um documento probatório, constitutivo e
dispositivo no sentido que, mais do que simplesmente servir para provar um direito, ele é
um documento necessário para a constituição, exercício e transferência do direito
documentado.
Por um lado, ao contrário dos simples documentos declarativos, o título de crédito
desempenha uma função constitutiva do próprio direito: ou seja, o documento constitui
em regra um pressuposto necessário do nascimento ou constituição do direito
documentado.
Por outro lado, ao contrário dos documentos constitutivos normais, o título de
crédito desempenha ainda uma função dispositiva do direito documento: ou seja, a
titularidade da posse do documento é imprescindível para que este direito possa ser
exercido e, por conseguinte, transferido.
Questão complexa é saber se podem ser representados em documentos
eletrónicos. A noção clássica de título de crédito encontrou-se, sempre, associada a
documentos em suporte fisco ou de papel. Todavia, com a emergência do fenómeno da
desmaterialização destes títulos, alguma doutrina tem sustentado um alargamento da
noção clássica a documentos eletrónicos.

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4.2. Direito Privado


O título de crédito é um documento que incorpora direitos privados de natureza
vária. Excluídos ficam os documentos representativos de direitos ou relações jurídico-
públicos (como bilhetes de identidade ou licenças administrativas).
A expressão tradicional de “título de crédito” poderia levar a pensar que tais
documento apenas podem incorporar ou representar direitos de crédito. Nada é menos
exato.
É certo que existe uma pluralidade de títulos que incorporam direitos de crédito
(como a letra e a livrança), mas também podem incorporar direitos reais de propriedade
ou garantia (como o guia de transporte – art.369.º CComercial) ou mesmo direitos
corporativos ou sociais (como ações das sociedades comerciais – art.298.º e seguintes).

4.3. Incorporação.
O título de crédito, pressupondo um documento e um direito documentado,
caracteriza-se pela existência de uma especialíssima relações entre ambos, que a doutrina
designa como “incorporação”: o direito encontra-se compenetrado ou fundido no próprio
documento de tal modo que é a posse do documento que decide a titularidade do direito
(falando-se também de um direito cartular).
Esta característica está no cerne da sua função própria como instrumentos
alternativos de circulação de riqueza. Se o objetivo é tornar mais simples, rápida e segura
a circulação dos direitos no tráfico-comercial, evitando os entraves do regime comum da
cessão de créditos, então ficciona-se a incorporação ou reificação desses direitos num
documento: o título de crédito passa a constituir coisa móvel que é apta a circular célere
e seguramente de mão em mão.
Tal incorporação tem consequências na disciplina dos títulos de crédito.
Em primeiro lugar, a posse do documento passa a ser condição necessária e
suficiente para o exercício do direito cartular: não só habilita ou legitima o respetivo
portador a exercer o direito incorporado, como o verdadeiro titular do direito está
impedido de o exercer enquanto não o tiver na posse (art.34.º e 38.º LULL e 28.º LUC).
Depois, a posse do documento é também condição necessária e suficiente para o
cumprimento da correspetiva obrigação cartular: o devedor desonera-se validamente
desta obrigação mediante o respetivo cumprimento perante o portador legítimo do título,

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

não tendo de indagar sobre a sua verdadeira ou material titularidade (art.40.º/3 da LULL
e art.35.º LUC).
Finalmente, a ligação entre documentos e direitos e obrigações cartulares é uma
ligação genética, perene e infungível: para além de um título de crédito estar inteiramente
dependente do facto de as declarações negociais dos sujeitos cartulares sejam
formalizadas num documento escrito, este permanece necessário para o exercício,
transmissão e cumprimento dos direitos e deveres cartulares durante a vida do título,
sendo inadmissível a substituição do documento original por qualquer outro documento
ainda que absolutamente idêntico (ficam ressalvadas as hipóteses de reforma, cópia ou
pluralidade de exemplares, art.1062.º CPC, 51.º LULL e 49.º LUC).
Este traço de incorporação explica que o direito contido ou representado no
documento passa a seguir o direito sobre o próprio documento. A posse do documento
cartular é uma posse qualificada, que obedece ao regime especial exigido na lei para as
diferentes categorias de títulos de crédito: para que o possuidor fique habilitado a exercer
o crédito cartular e o respetivo devedor se libere da correspondente obrigação, poderá
bastar a mera detenção ou entrega material do documento (títulos ao portador), ser exigido
a existência de uma regular sucessão de endossos no documento (títulos à ordem), ou
requerer a aposição do pertencente no título e registo da transmissão junto ao emitente
(títulos nominativos).

4.4. Literalidade
O direito cartular diz-se literal no sentido em que são os dizeres ou o teor literal
do documento que definem e delimitam o respetivo conteúdo.
A literalidade dos títulos de crédito comporta duas consequências:
Pela positiva: o conteúdo, extensão e modalidades do direito cartular são
aqueles que decorrem das declarações objetivas constantes do título: um cheque deverá
conter um conjunto de indicações (art.1.º LUC), sendo que na falta de alguma delas o
documento não produz efeito como cheque (art.2.º/1 LUC).
Pela negativa: na irrelevância dos elementos, exceções e convenções
extracarticulares: uma vez emitidos regularmente, os títulos de crédito valem nos precisos
termos deles constantes, não sendo licito ao portador exigir ao devedor algo que não
conste do título.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

São irrelevantes os elementos extracartulares que rodearam o nascimento do


título: as declarações cartulares devem valer com o sentido preciso que foi objetivado no
documento, que assim prevalecerá sobre a vontade real ou hipotética dos declarantes.
Também são irrelevantes as exceções extracartulares decorrentes do negócio
fundamental subjacente, não podendo ser invocados quaisquer factos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito cartular que não constem do próprio texto.
Enfim são irrelevantes, enquanto inoponíveis perante um terceiro portador do
título, todas as convenções extracartulares que foram acordadas pelos sujeitos cartulares
à margem do título (ex.: cláusulas acessórias de crédito).
No entanto, a característica de literalidade não é absoluta. A sua intensidade ou
alcance não é idêntica em todos os títulos de crédito, podendo existir casos de literalidade
meramente indireta ou implícita. Também pode ser mitigada no caso dos títulos causais
que se encontram ligados a uma causa negocial específica (ex.: as ações, pois em vez de
mencionaram exaustivamente todos os direitos, fazem uma remissão genérica para o
contrato de sociedade, art.276.º CSC).
Por outro lado, o alcance da literalidade pode também ser diferente dentro de um
mesmo tipo de título de crédito, podendo existir casos de literalidade meramente parcial
(as convenções e exceções extracartulares), sendo irrelevantes perante os terceiros ou
portadores mediatos de boa-fé (art.17.º LULL, art.22.º LUC, art.375.º a contrario
CComercial).
A literalidade também não afasta a relevância das regras jurídicas, gerais ou
especiais em sede de interpretação, integração e invalidade das declarações cartulares,
tanto que foi o próprio legislador a consagrar expressamente diversas regras especiais
destinadas a suprir o silêncio ou omissão das declarações cartulares (art.2.º, 35.º, 36.º,
37.º e 76.º da LUL e art.2.º, 26.º/4 LUC),

4.5. Autonomia.
O portador legítimo do título é simultaneamente, titular de um direito cartular
autónomo (relativamente aos negócios subjacentes) e de um direito autónomo sobre o
próprio título (relativamente aos portadores anteriores).
Sobre a autonomia do direito cautelar, tal significa que o direito do portador do
título é um direito autónomo em face do ou dos negócios fundamentais que lhe estiveram
na origem.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Afirmar que um direito cartular é um direito independente do direito subjacente


ou fundamental vale por dizer que se trata de direitos distintos, não podendo ser opostos
ao portador do título as exceções que decorrem desse negócio (art.17.º e 77.º da LULL e
22.º da LUC).
Quanto à autonomia do direito sobre o título: o direito do portador sobre o próprio
título de crédito é um direito autónomo ou independente em face dos direitos dos
portadores anteriores.
Os títulos de crédito são bens móveis destinados a girar de mão em mão no tráfico
comercial de acordo com a respetiva lei de circulação. Assim, no regime dos títulos de
crédito, cada portador do título que legitime a sua posse de acordo com as respetivas leis
de circulação é havido como titular de um direito autónomo ou nascido ex novo nas suas
mãos, sendo-lhe inoponíveis as exceções procedentes de posses ou portadores anteriores
(art.16.º LULL e 21.º LUC).

5. As legitimações ativa e passiva


Os títulos desempenha uma função de legitimação ativa para o portador, pois a
posse de um título de crédito habilita ou legitima o respetivo portador a exercer o direito
nele incorporado, mesmo quando aquele não seja titular do direito.
Assim, a posse de letra, livrança ou cheque é condição indispensável para exercer
o direito de crédito neles inscrito, cobrando o seu pagamento ao sacado (art.34.º, 38.º e
77.º da LULL e 28.º da LUC) ou transferindo-o para terceiro (art.13.º da LULL e 14.º da
LUC). O verdadeiro titular está impedido de exercer o seu direito se não estiver na posse
do documento.
Ex.: no caso de conflito entre o possuidor de uma letra, livrança ou cheque e aquele que
destes tenha sido injustamente desapossado, prevalece o direito do portador atual, que não será
obrigado a restituir o título exceto em casos de má-fé ou culpa grave (art.16.º e 77.º LULL e 21.º
LUC).
Por outro lado, os títulos desempenham um papel de legitimação passiva para o
devedor, pois o devedor desonera-se validamente da respetiva obrigação cartular
mediante cumprimento perante o portador legítimo do título, não tendo de indagar sobre
a sua verdadeira ou material titularidade.
Ex.: o sacado ou obrigado que paga uma letra, livrança ou cheque a quem se apresenta
como portador de acordo com a lei de circulação do título fica desobrigado, sem que lhe possa
ser oposta qualquer eventual ilegitimidade material do credor (art.40.º/3 e 77.º LULL e 35.º LUC).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Ou seja: se a legitimidade ativa dispensa o portador de provar a titularidade


material do direito cartular e proíbe o devedor de o questionar, a legitimidade passiva
dispensa agora o devedor de investigar tal titularidade material do direito cartular e
garante-lhe a natureza liberatória do cumprimento perante o aceitante.

6. A circulação e a sua lei. Títulos nominativos, à ordem e ao portador


Os títulos de crédito, uma vez emitidos regularmente, dão origem a uma relação
jurídico cartular dotada de vida e disciplina própria, a qual é fonte de direitos e obrigações.
Os títulos de crédito são caracterizados por serem documentos de legitimação (a posse do
documento é condição necessária e suficiente para o exercício desses direitos e o
cumprimento dessas obrigações) e documentos de circulação (no sentido em que os
direitos e obrigações cartulares estão destinados a circular no tráfico jurídico).
Enquanto instrumentos de mobilização de riqueza, os títulos de crédito são coisas
móveis destinadas ao girar do tráfico jurídico de acordo com as regras próprias da
circulação.
São 3 as regras próprias de circulação:
- A aposição do pertencente no título e registo da transmissão junto
do emitente (títulos nominativos);
- O endosso do título (títulos à ordem);
- A mera entrega manual do título.
Esta classificação tripartida estabelece, assim, os modos fundamentais de
atribuição de legitimação cartular, sendo que esta pressupõe sempre a posse do título, mas
existem casos em que não é suficiente – é o caso dos títulos ao portador (legitimação
real) e outros em que se exige que a mesma seja acompanhada de determinadas menções
nominativas aos portadores feitas no próprio título – é o caso dos títulos nominativos e
à ordem (legitimação pessoal).

7. Situação cartular e situações subjacentes.


A emissão de um título de crédito origina o nascimento de uma relação jurídica
específica (a relação cartular).
A emissão de um título não representa um simples ato de documentação de um
negócio ou relação jurídica fundamental, que lhe subjaz e o explica, originando antes uma
relação jurídica “a se” que passará a ter vida e regimes próprios.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

7.1. A convenção executiva


O nascimento dos títulos de crédito tem a sai subjacente um certo negócio
extracartualar, havendo Convenção Executiva, sempre que o emitente e destinatário
tendem a incorporar direitos e obrigações decorrentes desse negócio fundamental.
Pode-se fixar para o negócio cartular uma função de pagamento (solvendi), de
crédito (credendi) ou de liberalidade (donandi) face ao negócio fundamental.
Quanto aos títulos de nascimento, estes não tem nenhum negócio jurídico
fundamental preexistente e são subscritos pelo emitente com vista a reforçar o crédito ou
valor de circulação do título em proveito do beneficiário.

8. Os títulos em que o valor é um crédito.


A letra de câmbio é um título de crédito pelo qual o emitente (sacador) dá uma
ordem de pagamento a outrem (sacado) para pagar a um terceiro beneficiário (tomador),
ou à ordem deste, uma determinada quantia em dinheiro.
Assim, a letra constitui um documento que envolve, em princípio, a presença de
3 sujeitos (sacador, sacado, tomador) e uma pluralidade de negócios e obrigações que têm
por objeto idêntico uma determinada prestação pecuniária (saque, aceite, endosso, aval).
Desde logo, o sacador é sujeito que emite a letra de câmbio. O saque é o negócio
jurídico-cambiário que cria o título (consistindo numa ordem de pagamento que o sacador
dá ao sacado para pagar uma quantia pecuniária ao tomador) e a obrigação do sacador é
uma simples obrigação de garantia pela aceitação e pagamento da letra através da qual o
sacador promete ao tomador que o sacado aceitará e pagará a letra na data e termos
convencionados, obrigando-se, caso não aconteça, a pagar ele próprio.
O tomador é o beneficiário da referida ordem de pagamento, sendo a letra de
câmbio um título de crédito à ordem, transmissível por endosso, o tomador pode cobrar a
letra na data do seu vencimento ou, antes, endossar a letra a um terceiro: o endosso é,
assim, o negócio jurídico cambiário que faz a letra circular.
Enfim, o sacado é o destinatário da ordem de pagamento dada pelo sacador, sendo
evidente que ninguém pode ficar obrigado a pagar uma letra só porque alguém (o sacador)
prometeu que ele o faria. Ainda é necessário que o sacado aceite a letra: o aceite é o
negócio cambiário através do qual o sacado se vincula a pagar a letra na data do
vencimento (passa-se a chamar aceitante).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Caso o sacado recuse o aceite ou o pagamento, o portador da letra, lavrando o


competente protesto, poderá efetivar de imediato as obrigações cambiária de garantia,
responsabilizando solidariamente o sacador.
Assim, a letra constitui o arquétipo histórico dos títulos de crédito.
Tradicionalmente são atribuídas às letras de câmbio funções económicas essenciais de
instrumentos de pagamento, de crédito e de garantia.
No entanto, hoje com o advento da moeda escritural e dos meios eletrónicos de
pagamento, a letra de câmbio deixou de funcionar como um meio de pagamento para
passar a representar um instrumento de garantia e de cobrança de crédito.

8.1. A letra e sua delimitação face ao cheque e à livrança.


A letra de câmbio representa um título que incorpora um direito de crédito a um
quantia pecuniária, devendo ser distinguida de outros títulos afins como a livrança e o
cheque.
Ao contrário da letra (que contém uma ordem de pagamento e envolve três
intervenientes), a livrança enuncia uma promessa direta de pagamento entre apenas 2
sujeitos: o emitente (subscritor) e o beneficiário (tomador).
À semelhança da letra, o cheque contém uma ordem de pagamento, com a
particularidade de ser necessariamente dirigida a um banco ou instituição de crédito onde
o emitente possui uma provisão de fundos.

9. As teorias da criação e da emissão.


O título de crédito e conexa relação cartular são criados através de um negócio
jurídico unilateral, i.e., através de uma declaração unilateral de vontade dirigida pelo
emitente a sujeito determinável.
Assim, quanto ao nascimento da relação cartular temos a teoria da criação e a
teoria da emissão.
De acordo com a teoria da criação, a relação cartular nasce com a subscrição do
título. Ou seja, a mera impressão e assinatura do título são suficientes para fazer nascer
os direitos e obrigações cartulares dele constantes, ficando apenas a respetiva eficácia
dependente da entrega do título ao credor cartular.
Já de acordo com a teoria da emissão, a relação cartular nasce com a entrega
material do título. O entendimento maioritário é de que a relação cartular apenas se torna

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

perfeita quando, além da lavra do título, este é colocado voluntariamente em circulação


pelo respetivo emitente.
Ou seja, a traditio do título ao respetivo tomador/portador imediato (ou a
colocação à disposição deste), representa um elemento essencial da existência e validade
da própria relação cartular.
Antes da entrada em circulação do título, o respetivo emitente ainda não assumiu
qualquer obrigação cartular (podendo inutilizar o título ou declaração cartular – art.29.º/2
LULL);
Já em caso de entrada não voluntária em circulação, esta não investe nenhum dos
seus eventuais portadores, inclusive o portador mediato de boa-fé a quem o título tenha
sido transmitido, em qualquer direito cartular exercitável perante o emitente.

10. Requisitos da letra.


A letra de câmbio é um título rigorasamente formal: para que o título nasça e
produza os seus efeitos próprios, ele deve observar determinados requisitos formais
(art.1.º LULL): menções obrigatórias relativas á declaração cambiária do sacador
emitente do título, a sua falta acarreta a consequência de que o escrito não produzirá
efeitos como letra (art.2.º LULL).
A falta das menções é sancionada com a inexistência, ressalvados os casos em que
pode ser suprimido pela lei (falta de indicação da época de pagamento, de lugar de
pagamento e do lugar da emissão – art.2.º/ LULL).
O documento a que falte uma das menções legais obrigatórias, mais do que título
inválido ou ineficaz, nem sequer é havido como uma letra de câmbio de todo em todo.
No entanto, há a possibilidade de se converter num outro negócio jurídico desde que reúna
os requisitos (art.293.º CC), tal documento pode valer como um simples quirográfico
(art.376.º CC), ou seja, um documento particular probatório da obrigação fundamental
subjacente. Também pode valer como um título executivo extrajudicial (art.46.º/1/c
CPC), ou seja, um documento que legitima o seu titular ao exercício de ação executiva
não cambiária pela quantia pecuniária contra quem nele figura como devedor.
Finalmente, podem incluir menções facultativas: cláusulas à ordem (que proíbem
o endosso, art.11.º/2 e 15.º/2 LULL), as cláusulas não aceitáveis (que proíbem a
apresentação ao aceite, art.22.º/2 LULL), as cláusulas sem despesas (que dispensam o
protesto, art.46.º LULL), as cláusulas de juros (que estipulam o vencimento de interesses

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

sobre a quantia cambiária, art.5.º LULL), as cláusulas para cobrança (que criam o endosso
por procuração, art.18.º LULL) e as cláusulas de domiciliação (art.4.º LULL).

A. Menções obrigatórias
A primeira menção obrigatória deste título de crédito consiste na inserção da
palavra “letra” no texto cartular (art.1.º/1 da LULL). Trata-se de uma designação
imperativo por razões de certeza jurídica: a inserção deve ser feita no texto do próprio
documento escrito (e não isoladamente, noutra parte deste ou em folha anexa), não se
admitindo variantes nacionais ou, quando o título não esteja em língua portuguesa,
estrangeiras.
Em segundo lugar, a letra deve conter um “mandato puro e simples de pagar uma
quantia determinada” (art.1.º/2 da LULL). Por um lado, significa dizer que a letra deve
enunciar uma ordem de pagamento incondicionada e incondicionável, não podendo o
sacador sujeitar essa ordem a condição sob pena da sua nulidade (art.2.º LULL).
Por outro lado, tal ordem de pagamento deve ter por objeto uma quantia
pecuniária: estão excluídas as letras de mercadorias (pagáveis em bens) ou quaisquer
outras que não tenham por objeto uma soma em dinheiro.
Finalmente, a quantia pecuniária deve ser determinada, i.e., deve consistir num
montante exato expresso em moeda com curso legal no pais ou no estrangeiro (41.º
LULL). Estão, assim, excluídas as cláusulas penais, que fixando uma obrigação
pecuniária eventual (dependente do incumprimento do aceitante), sempre tornariam
incerta a quantia cambiária total.
Em terceiro lugar deve conter o nome do sacado (art.1.º/3 LULL). Consiste no
nome civil, firma ou denominação da pessoa singular ou coletiva. A letra tanto pode
identificar o sacado através da firma ou denominação do ente coletivo como através do
nome ou firma pessoal de um seu gerente, administrador ou outro representante orgânico,
mas tem que ser sempre feita menção expressa à qualidade representativa em que estes
intervém.
Por outro lado, nada impede que uma letra mencione uma pluralidade de sacados
(salvo limite do art.2.º/3 da LULL) ou que aquela seja sacada sobre o próprio sacador.
Em quarto lugar, deve mencionar a época de pagamento (art.1.º/4), sendo que
modalidades de pagamento vêm taxativamente previstas no art.33.º LULL, ou seja, a
época tem de se reconduzir a uma das quatro formas típicas previstas na lei, sendo nulas
as letras que prevejam modalidades atípicas.

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Todavia, a falta de indicação absoluta da modalidade de vencimento não implica


a validade da letra, presumindo-se que a letra é pagável à vista (art.2.º/2 LULL).
Em quinto lugar, temos o lugar de pagamento (art.1.º/5), que se entende não uma
mera indicação geográfica ou genérica, mas um endereço ou morada específica contendo
os elementos relevantes. A indicação pode ser direta ou indireta consistindo, na falta
daquela, no lugar designado ao lado do nome do sacado (art.2.º/3 LULL). Modalidade
particular é a chamada letra domiciliada (art.4.º LULL), que indica como local de
pagamento o domicílio de terceiro, geralmente um bando.
A sexta menção é o nome do tomador, ou seja, da pessoa a quem a ordem deve
ser paga (art.1.º/6 LULL). O tomador é o primeiro portador da letra: trata-se da pessoa
singular ou coletiva a quem o título é entregue pelo sacado e que é beneficiária da ordem
de pagamento nele contida.
Dado que a letra é um título à ordem, a falta de indicação do beneficiário torna
inadmissível. O nome do tomador pode consistir no nome civil, firma ou denominação,
devendo em qualquer caso ser determinada: a indicação de pessoas indeterminadas ou
simplesmente determináveis não é suficiente.
Finalmente, aquela indicação pode revestir diversas modalidades: é admissível
que o tomador seja o próprio sacador (art.3.º/1 LULL), pode ser uma identificação
conjunta.
A sétima menção é a indicação da data e lugar do saque (art.1.º/7 da LULL). A
falta d indicação da data torna a letra inválida; a falta de indicação do lugar faz presumir
que este será o designado ao lado do nome do sacador (art.2.º/4 LULL), apenas originando
a invalidade da letra se este também não existir.
A data justifica-se para determinar o respetivo vencimento e a contagem de
determinados prazos de apresentação. O lugar serve para determinar a lei aplicável.
A última menção é a assinatura do sacador (art.1.º/8 LULL) representando o seu
nome, firma ou denominação. Não são admissíveis assinaturas de cruz, de chancela ou
outras.
Podem existir modalidades especiais, como a assinatura por procuração (art.8.º
LULL) e assinatura a rogo (art.373.º/1/4 CC), desde que acompanhada por
reconhecimento notarial.

10.1. A letra em branco

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Designa-se por letra em branco, documento que não contendo todas as menções
obrigatórias essenciais referidas no art1.º LULL, possua já a assinatura de, pelo menos,
um dos signatários cambiários, acompanhado de um acordo expresso ou tácito de
preenchimento futuro das menções em falta.
É frequente, na prática comercial, que uma letra de câmbio seja sacada ou mesmo
aceite mesmo antes de se encontrar totalmente preenchida. Esta figura está acolhida,
implicitamente, no art.10.º da LULL, estando dependente de 3 requisitos.
Por um lado, é necessário que estejamos perante um modelo normalizado de letra
ou, pelo menos, diante de documento onde já consta a palavra “letra” suscetível de
traduzir a intenção de assumir uma obrigação cambiária, ainda quando faltem alguns dos
demais elementos.
Uma simples folha de papel em branco assinada por alguém não poderá dar origem
a uma letra, mediante o futuro preenchimento dessas menções.
Por outro lado, é ainda necessário que o documento contenha a assinatura de, pelo
menos, um dos obrigados cambiários, sendo por este voluntariamente emitido: um
documento que não haja sido subscrito por ninguém não pode dar origem a vinculações
jurídico-cambiárias.
Finalmente, é ainda necessário que o subscritor cambiário haja firmado com o
sujeito a quem a letra foi entregue um acordo destinado a fixar os termos do
preenchimento futuro das menções em falta. Este acordo pode ser tácito ou expresso, mas
tem que existir; na sua falta ou invalidade, estamos perante uma letra incompleta, que
será tida como nula nos termos do art.2.º LULL.
Naturalmente, a letra em branco, sendo válido, apenas produzirá os seus efeitos
como letra com o seu preenchimento integral, ou seja, quando nela constem todos os
requisitos legais essenciais constantes do art.1.º

10.2. O pacto de preenchimento.


O último requisito referido anteriormente (acordo destinado a fixar os termos do
preenchimento) é o pacto de preenchimento e a violação desta origina o chamado
preenchimento abusivo regulado no art.10.º.
Por preenchimento abusivo entende-se aquele que é efetuado em violação dos
termos do pacto de preenchimento, abrange-se: os casos de desconformidade relativa às
menções formais da letra (art.1.º), quer os demais casos de desconformidade relativos a
outros aspetos do pacto.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Da referida norma legal resulta que o subscritor em branco apenas se poderá


prevalecer de tal preenchimento abusivo perante um terceiro a quem a letra tenha sido
transmitida pela sua contraparte no pacto de preenchimento, caso se prove que o terceiro
tinha má-fé ou deveria ter conhecimento de ter em mãos uma letra emitida em branco que
veio a ser preenchida com tais desconformidades.
Assim, o portador mediato e de boa-fé poderá sempre exigir o pagamento da letra
do subscritor ou de qualquer outro obrigado cambiário, não lhe podendo ser oposta a
exceção do preenchimento abusivo, restando a este último acionar cambiariamente os
seus garantes (art.49.º LULL) ou civilmente o sujeito ou sujeitos que violaram o pacto de
preenchimento (art.799.º CC).

11. Os negócios cambiários


São negócios ou operações jurídicas que têm a letra por objeto: o saque (1.º a 10.º
da LULL), o aceite (21.º a 29.º da LULL), o endosso (11.º a 20.º da LULL) e o aval (30.º
a 32.º da LULL).

11.1. O saque
O saque é o negócio cambiário originário, graças ao qual a letra nasce. Trata-se
de uma declaração unilateral e abstrata, feita pelo emitente do título (sacador), que tem
por conteúdo expresso uma ordem de pagamento dirigida ao sacado para que este pague
uma quantia pecuniária determinada ao tomador ou à ordem deste e, ainda,
implicitamente uma promessa de pagamento dirigida ao tomados e aos portadores
sucessivos de que o sacado aceitará e pagará a letra que, caso tal não aconteça, o próprio
sacador a pagará.
A obrigação do sacador é, assim, uma obrigação de garantia pela aceitação e pelo
pagamento da letra: dada a promessa implícita no saque, o sacador responderá, em
princípio, pelo aceite e pelo pagamento da letra por parte do sacado (art.9.º/1 LULL).
Todavia, a imperatividade desta garantia é parcial. O sacador pode exonerar-se da
sua garantia de aceite da letra (art.9.º/2 da LULL), mediante a aposição nesta da cláusula
“letra não aceitável” ou equivalente. O sacador desresponsabiliza-se por qualquer
eventual recusa de aceite por parte do sacado, impedindo assim o portador de, munido do
competente processo, o acionar prematuramente em via de regresso (art.43.º/1 LULL).
No entanto, tal já não acontece quanto à sua garantia de pagamento da letra: o sacador

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

será sempre responsável perante o portador de tal pagamento, sendo que qualquer cláusula
exoneratória é tida como não escrita (art.9.º/2 LULL).
Por via de regra, o saque é uma ordem de pagamento dado por uma pessoa
(sacador) dirigida a outrem (sacado) em favor de um terceiro (tomador). Esta estrutura
triangular pode assumir variantes, dado lugar a modalidades especiais de saque.
É o caso do saque à ordem do próprio sacador (art.3.º/1 LULL). Trata-se
indubitavelmente da modalidade atualmente mais difundida na prática, em que o sacador
e tomador coincidem. É ainda o caso de saque sobre o próprio sacador (art.3.º/2 LULL),
que aproxima a letra da livrança, pois surge associada aos pagamentos realizados entre
sucursais e outras divisões sem personalidade jurídica de uma mesma empresa.
Temos também o saque por ordem e conta de um terceiro (art.3.º/3 LULL),
utilizada pelo empresários que assim pretendem evitar a má imagem associada a quem
coloca em circulação numerosas letras, a sua particularidade reside no facto de a letra ser
emitida por conta de alguém que não figura no título como sacador.
Finalmente, é ainda o caso do saque plural, que embora a LULL não o preveja
expressamente, a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo que uma letra possa ser
sacada por uma pluralidade de sacadores caso em que estes se tornam coobrigados
cambiários solidários, podendo assim qualquer um deles ser acionado em via de regresso
pela totalidade da quantia cambiária.
Sendo a letra de câmbio um título de crédito, a sua transmissão faz-se mediante o
endosso (art.483.º CC e 11.º/1 LULL). No entanto, este regime pode ser alterado no caso
das letras não à ordem: sempre que uma letra seja sacada com a aposição de uma cláusula
não à ordem ou outra equivalente, que proíbe o seu endosso, só é transmissível pela forma
e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos (art.11.º/2).
Ao contrário do endosso, a transmissão da letra não à ordem configura um negócio
jurídico bilateral cuja eficácia depende ainda da sua notificação ao devedor (art.583.º CC),
mais a letra não endossável investe o cedente numa mera responsabilidade pela existência
e exigibilidade do crédito (art.583.º).

11.2. Aceite
O “aceite” é o negócio jurídico-cambiário, de natureza unilateral e abstrata, pelo
qual o sacado “aceita” a ordem de pagamento a qual lhe foi dirigida pelo sacador e se
“obriga” a pagar a letra no respetivo vencimento ao tomador ou à ordem deste.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O saque (constituindo a declaração cambiária originária), em si mesmo, não


representa mais do que uma ordem de pagamento dada pelo emitente ao sacado (ou
devedor) para que este pague ao tomador a soma cambiária indicada na letra. Todavia, o
sacado não fica obrigado a pagar tal quantia só porque alguém (o sacador) prometeu que
ele o faria. Ou seja, o sacado só se vincula cambiariamente pelo aceite.
A “apresentação da letra ao aceite” do sacado é, assim, um ato fundamental na
economia cambiária. Isto porque (das duas uma):
1.º - Se por um lado, o sacado aceita a letra (denominado doravante “aceitante”),
ele torna-se o obrigado cambiário em via principal - i.e., a ele caberá sempre o dever de
pagar a letra aceite, seja ao portador na data do respetivo vencimento, 28.º/1 da LULL,
seja a qualquer subscritor cambiário que já a tenha pago antes do vencimento, 28.º/2 e
art.49.º da LULL;
2.º - Se o sacado recusa o aceite, tal abre caminho ao acionamento dos obrigados
cambiários de garantia (ou seja, os sacadores, endossantes e avalistas), isto através do
chamado “protesto por falta de aceite” (que é um ato de certificação notarial da recusa
do aceite), onde o portador da letra fica legitimado a exigir de imediato o pagamento
integral da mesma ao sacador (ou demais obrigados) em via de regresso, 43.º da LULL.
Quanto ao seu “lugar” e “prazo”, a letra deve ser apresentada pelo portador ao
aceite no domicílio do sacado até à data do seu vencimento (21.º da LULL), podendo o
sacador estipular que o aceite apenas se verifique após certa data (art.22.º/3, da LULL) e
o sacado solicitar uma segunda apresentação (24.º da LULL). Isto significa que toda a
apresentação posterior àquela data valerá como apresentação para pagamento e não
aceite.
Já quanto à sua “natureza”, a regra é a apresentação facultativa; isto é:
- O tomador (ou outro portador posterior) tem o poder mas não o dever de
apresentar a letra ao aceite do sacado. Na generalidade dos casos, a letra é apresentada ao
aceite. Com efeito, as letras de câmbio desempenham hoje, primacialmente, uma função
de mecanismo de garantia e cobrança de crédito, sendo usualmente sacadas à ordem do
próprio sacador, destinando-se a manter-se nas mãos deste, exceto no caso do desconto
bancário. Ora, tal função pressupõe o aceite da letra pelo devedor no momento da
respetiva emissão, sem o qual [aceite] esta perderia qualquer relevo prático para o credor.
No entanto, existem duas exceções à referida regra:
- Uma consiste no chamando “aceite obrigatório” – aqui o portador deve
apresentar a letra ao aceite. Esta obrigatoriedade pode resultar da vontade dos subscritores

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cambiários (sacador ou endossantes) ou ter origem na própria lei (como sucede no caso
das letras a certo termo de vista). A falta ou intempestividade da apresentação ao aceite
por parte do portador origina para este a perda de todos os seus direitos de ação contra os
obrigados cambiários em via de regresso;
- A outra consiste no chamado “aceite proibido” – aqui o portador não pode
apresentar a letra ao aceite. São as chamadas letras “não aceitáveis”, previstas no 22.º/2,
da LULL, as quais são caracterizadas pelo sacador ter vedado a sua apresentação ao aceite
do sacado (mediante a cláusula de “aceite proibido” ou equivalente). Assim, caso o
portador da letra, em contravenção desta proibição cambiária, apresente a letra ao aceite
do sacado, a recusa deste será juridicamente inócua (i.e., será inofensiva), não o
investindo em qualquer direito de ação contra o sacador e os demais obrigados cambiários
em via de regresso.
Já a “declaração de aceite” consiste numa declaração cambiária escrita (mediante
a expressão “aceite” ou outra equivalente) e assinada pelo sacado em qualquer parte da
letra (25.º/1 LULL); isto sem prejuízo dos chamados “aceite em branco” (que consiste na
simples assinatura na parte anterior da letra) e do “aceite riscado” (que consiste na
anulação da declaração antes da restituição da letra, 29.º da LULL). Exceto se se tratar de
letra a termo de vista ou apresentável em data fixa convencionada (cfr. art.25.º/2, da
LULL).
A este respeito refira-se que o sacado tanto poderá ser uma pessoa singular como
uma pessoa coletiva. No último caso, afigura-se que a assinatura do respetivo
representante legal ou orgânico, ainda quando não acompanhada da expressa menção a
essa qualidade, deverá valer como aceite válido desde que tal qualidade possa ser
deduzida de factos concludentes nos termos do art.217.º CC, designadamente quando seja
completa e inequívoca a identificação da pessoa coletiva representada.
Por outro lado, o aceite de ser “puro e simples” (26.º/1 LULL). Tal como no caso
do saque (1.º/2, da LULL), o aceite condicionado ou modificado (mediante qualquer
alteração ao teor da letra, v.g., o lugar de pagamento, o lugar de vencimento, etc.) é
proibido, embora não seja nulo (já que o aceitante fica vinculado nos termos do seu aceite
modificado (26.º/2/in fine, da LULL). Isto significa que, caso o sacado aceite a letra mas
lhe altere a data de vencimento, ou o lugar do pagamento, ou outro dado cambiário, nestas
situações o portador da letra poderá, à sua escolha, reclamar daquele o pagamento nos
termos da letra modificada, ou então poderá lavrar protesto por falta de aceite a fim de
acionar os obrigados em via de regresso.

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O sacado que aceitou não tem qualquer direito de posse ou propriedade sobre a
letra aceite (24.º/2, da LULL), sem prejuízo do direito de solicitar uma nova apresentação
da mesma e de exigir a entrega da letra e respetivo documento de quitação no momento
do seu pagamento (art.39.º/1, da LULL).
No modelo legal clássico, a letra de câmbio constitui um instrumento de
pagamento destinado a circular pelas mãos de múltiplos portadores, obedecendo a uma
característica triangulação de negócios jurídicos cronologicamente sucessivos (o saque,
o aceite e o endosso). Todavia, a letra de câmbio deixou de funcionar como um meio de
pagamento, para passar a representar hoje, quase exclusivamente, uma instrumento de
garantia e de crédito. Esta mutação funcional levou a uma erosão da tradicional ortodoxia
triangulação: a esmagadora maioria das letras de câmbio são hoje títulos sacados à ordem
do próprio sacador (e não de terceiro) e não se destinam a circular (raramente saem das
mãos do sacador, exceto nas hipóteses de desconto bancário). Por conseguinte,
atualmente o aceite é anterior ou contemporâneo ao próprio saque (e não posterior, como
no modelo legal), já que antes dele [saque] as letras carecem de relevância ou interesse
para o sacador-tomador.
Materialmente, o aceite tende a ser a primeira declaração cambiária inscrita no
título, ou, quando muito, é contemporânea do saque.

11.3. Endosso
O “endosso” é o negócio cambiário que faz circular o título. À semelhança das
demais declarações (o saque, o aceite, o aval), estamos diante de uma declaração jurídica,
de carácter abstrato e unilateral, pela qual o tomador ou qualquer outro portador posterior
(endossante) transmite a letra e todos os direitos dela emergentes a um terceiro (endossado
ou endossário).
Como já se referiu, a letra é um título de crédito à ordem, destinado a circular por
endosso (como alguém já lhe chamou, ela é “um viajante nato”). Assim, o tomador de
uma letra (ou qualquer portador posterior desta) não é obrigado a aguardar pela data do
respetivo vencimento para se fazer pagar. Neste sentido, pode antes da data do
vencimento, alternadamente, endossar a mesma letra a um terceiro. Ao fazê-lo o
endossante está a dar uma nova ordem de pagamento ao sacado em favor do endossado,
ao mesmo tempo que se responsabiliza pela aceitação e cumprimento daquela letra.

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Ou seja, no fundo o endosso funciona como uma espécie de “novo saque”, com
a particularidade de o seu conteúdo já estar previamente definido e de possuir um
beneficiário diferente, que agora não é o tomador mas sim o endossado.
O endosso está sujeito a requisitos (ou pressupostos) objetivos e subjetivos.
Assim, e no que diz respeito aos:
- Pressupostos objetivos - nestes, o endosso exprime-se através de uma mera
assinatura do endossante aposta no verso do título, usualmente no sentido transversal ou
numa folha anexa (isto no caso de os vários endossos já não caberem no verso da letra),
podendo, ou não, tal endosso ser acompanhado de uma declaração expressa através da
expressão “pague-se a F. ou à sua ordem” ou equivalente, expressão esta colocada
juntamente com a assinatura em qualquer parte do título. Em principio, esta declaração
cambiária indicará o nome do beneficiário do endosso, mas não é forçoso que assim seja,
uma vez pode acontecer ou ocorrer o denominado “endosso em branco” no qual o
endossante se limita a apor a sua assinatura no verso do título ou numa folha anexa
omitindo o nome do endossado, ou então pode endossar a letra ao portador (13.º/2 e 12.º/2
LULL);
- Pressupostos subjetivos - nestes o endosso pode ser realizado pelo tomador da
letra, por qualquer portador legitimado por uma série ininterrupta de endossos, ainda que
o último seja em branco, ou ainda por qualquer cessionário ou sucessor “mortis causa”
de um destes. E pode ser realizado a favor (legitimidade passiva) de qualquer terceiro
estranho à cadeia cambiária, do sacado, e até de um dos obrigados cambiários (sacador,
endossantes, avalistas). Neste último caso, em que a letra, graças a uma cadeia de
sucessivos endossos retorna às mãos de um anterior portador e endossante estaremos
diante do chamado “reendosso” (é o que acontece quando uma letra é sucessivamente
endossada nos seguintes moldes: A-B, B-C, C-D, D-E, E-C. Aqui, as obrigações de
garantia do reendossado C para com D e E e as obrigações de D e E para com C, como
que se compensam reciprocamente, indo C recuperar a sua posição primitiva cambiária
antes do endosso feito a D e, assim, C apenas pode acionar em via de regresso os
obrigados que o antecederam nessa posição (B e A).
Por outro lado, o endosso produz 3 tipos de efeitos:
- Ele transmite os direitos cambiários - o endosso tem por efeito transmitir
a propriedade do título e de todos os respetivos direitos emergentes para o
endossado, incluindo o de apresentar a letra a aceite, cobrá-la na data de
vencimento ou endossa-la de novo (efeito de transmissão). Todavia, assinale-se

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aqui, a existência de determinadas modalidades especiais de endosso, as quais se


encontram destituídas da eficácia translativa normal: é o caso do endosso “por
procuração” que apenas confere ao endossado o direito a cobrar a quantia
cambiária em nome e por conta do endossante (18.º da LULL) e do endosso “em
garantia” o qual investe o endossado na posição de credor cambiário pignoratício
(19.º da LULL).
- Ele garante a aceitação e pagamento da letra, o endosso tem por efeito
constituir o endossante numa obrigação de garantia da aceitação e pagamento da
letra perante o endossado e os portadores subsequentes, investindo os últimos num
direito de regresso contra o primeiro. Ou seja, graças ao endosso o endossante
garante que a letra vai ser aceite e paga pelo sacado e que, se não o for, ele próprio
a pagará (efeito de garantia. Mas existem algumas modalidades especiais de
endosso que não originam a tal responsabilidade cambiário de regresso, é o caso
do: endosso com cláusula “sem garantia” ou “sem regresso”, do endosso com
“cláusula não à ordem” e do endosso com cláusula “sem protesto” ou “sem
despesas”.
- Ele legitima a posse do portador, no sentido em que aquele se presumirá
como sendo o seu titular legítimo (efeito de legitimação). Tal significa que o
endossado fica plenamente habilitado ao exercício dos direitos cambiários,
exigindo o pagamento da letra ou transmitindo-a, não lhe podendo ser opostas
quaisquer eventuais irregularidades das posses anteriores, salvo em caso de má-fé
ou culpa grave.
Por último, sendo o endosso o mecanismo típico da circulação da letra de câmbio
(11.º/1 da LULL e 483.º do Código Comercial), existem diversas modalidades impróprias
de transmissão, como é o caso das letras que são objeto de transmissão “inter vivos” -
através da consignação de rendimentos (660.º/2 CC), da doação (940.º CC), do usufruto
(1467.º CC) -, bem como é também o caso da transmissão “mortis causa” por sucessão
(no caso de morte do seu portador, sucedendo assim os herdeiros ou legatários no crédito
cambiário) e, ainda, é o caso de transmissão em via executiva e insolvencial ou em via
empresarial (designadamente no caso de trespasse) e assim por diante.

11.4. Aval

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O “aval” é o negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa (o avalista


ou o dador de aval) garante o pagamento da letra por parte de um dos seus subscritores (o
avalizado).
O aval tem por finalidade garantir ou caucionar uma obrigação cambiária idêntica
e preexistente de um signatário de uma letra de câmbio.
Apesar de economicamente possuir um fim semelhante à fiança, a verdade é que
o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico
próprio. Neste sentido:
- Sendo a fiança uma garantia de natureza acessória (627.º/2, do CC), já a
obrigação avalista é autónoma, subsistindo mesmo no caso da obrigação do avalizado ser
nula por qualquer razão que não um vício de forma (32.º/2 da LULL);
- Enquanto a fiança comum tem natureza subsidiária (i.e., goza do benefício da
excussão prévia, 638.º do CC), já a obrigação avalista é solidária uma vez que o avalista
responde a par dos demais subscritores pelo pagamento integral da letra (47.º/1/2 LULL);
- Ao passo que a fiança tem um alcance bilateral (pois existe uma sub-rogação do
fiador nos direitos do credor contra o afiançado, 644.º do CC), já a obrigação avalista tem
projeções plurilaterais, ficando o avalista ainda sub-rogado nos direitos emergentes da
letra contra os obrigados em face do avalizado (32.º/3 da LULL).
Tal como no endosso, o aval está sujeito a determinados requisitos (ou
pressupostos) objetivos e subjetivos. Assim, e no que diz respeito aos:
- Pressupostos objetivos - a obrigação de aval deve ser escrita (mediante a
expressão “bom para aval” ou outra expressão equivalente) e deve ser assinada pelo
avalista no verso da letra ou em folha anexa, sendo que a mera assinatura aposta no rosto
ou face anterior do título, que não seja a do sacador ou sacado, valerá também como aval
(31.º/3 da LULL).
O aval pode ainda ser nominativo ou “em branco”, (consoante indica
expressamente o nome do avalizado ou, ao invés, o omita).
Mais, o aval pode ser total ou parcial (consoante garanta a totalidade ou apenas
parte da quantia cambiária, 30.º/1 da LULL);
- Pressupostos subjetivos - nos termos destes pressupostos poderá ser avalista
(legitimidade ativa) qualquer terceiro ou subscritor cambiário (30.º/2 da LULL).
Neste tocante, atenta a função de garantia do aval ressalvam-se logicamente os
casos do aceitante (o qual já é, por definição, o obrigado cambiário principal) e do sacador
perante um endossante (o qual com o aval jamais ficaria mais obrigado do que já era).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Poderá ser avalizado (legitimidade passiva) qualquer um dos subscritores da letra


(incluindo aceitantes, endossantes, ou outros avalistas), desde que, naturalmente, seja
responsável pelo pagamento da letra (30.º/1 da LULL).
Finalmente e no que respeita aos efeitos do aval, haverá que distinguir entre a
situação ativa e a situação passiva do avalista. Neste sentido e do ponto de vista da:
- Situação passiva do avalista - dispõe a lei que o avalista “é responsável
da mesma maneira” que o avalizado (32.º/1 LULL). Tal significa dizer que o avalista
responde perante as mesmas pessoas e na mesma medida em que responde o avalizado,
podendo prevalecer-se ou ser-lhe opostas quaisquer vicissitudes da obrigação do último
(v.g., o avalista do sacador que apôs na letra uma cláusula “aceite proibido”, não poderá ser
acionado em caso de recusa do aceite; já o avalista de sacado com “aceite parcial” responderá
apenas por essa parte da quantia cambiária; por sua vez o avalista de endossante que apôs na letra
uma cláusula “não à ordem” não responderá perante endossos mediatos).
Ainda neste tocante, dispõe a lei que a obrigação do avalista se mantém “mesmo
no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um
vício de forma” (32.º/2 da LULL). Isto quer dizer que a sua obrigação é materialmente
autónoma e independente em face da obrigação do avalizado.
Finalmente a responsabilidade do avalista é solidária com a responsabilidade dos
demais obrigados cambiários (47.º/1 da LULL); ou seja, o avalista não goza de qualquer
benefício de excussão prévia dos sacadores, aceitantes ou endossantes, respondendo
assim em primeira linha pelo pagamento da letra diante do portador.
- Situação ativa do avalista - o avalista que pagou a letra “fica sub-rogado nos
direitos emergentes da letra contra a pessoa a quem foi dado o aval e contra os obrigados
para com esta em virtude da letra” (cfr. art.32.º/3 da LULL). O avalista fia assim
investido numa posição de credor cambiário, passando a ser titular de um direito próprio
e autónomo, graças ao qual poderá ressarcir-se em via de regresso contra o avalizado e
ainda contra todos aqueles subscritores que garantiram este.

12. Vicissitudes cambiárias: vencimento, pagamento, protesto, intervenção,


pluralidade de exemplares e cópias, prescrição.
12.1. Vencimento
A letra tem quatro modalidades de vencimento: à vista, à certo termo de vista, a
certo termo de data e em data determinada (art.33.º/1 LULL).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

As letras à vista são letras que se vencem pela data da respetiva apresentação (34.º
LULL).
As letras a certo termo de vista são letras que se vencem decorrido o prazo nelas
previsto, contado a partir da data do respetivo aceite ou protesto por falta de aceite (35.º
LULL).
As letras a certo termo de data são letras que se vencem decorrido o prazo nelas
previsto contado a partir da data da sua emissão.
As letras pagáveis em data fixa são letras que, tal como o nome indica, se vencem
no dia por elas estipulado.
Estas modalidades são taxativas, mas há que ter em conta o vencimento
antecipado ou prematuro da letra (43.º).

12.2. Pagamento
O pagamento representa o ato pelo qual é cumprida a ordem cambiária dada pelo
emitente do título.
Tem como requisitos:
- O dever de apresentação a pagamento por parte do portador da
letra, que é feita ao sacado, mas também pode ser feita a outras entidades como um
interveniente (55.º/1 LULL).
- Quanto ao prazo:
- As letras à vista devem ser apresentadas a pagamento no prazo
de um ano a contar da data da sua emissão, salvo prazo maior ou menor
aposto pelo sacador ou endossantes (34.º LULL);
- As demais modalidades devem ser apresentadas a pagamento no
dia do seu vencimento ou nos 2 dias úteis seguintes (38.º LULL).
- Deve ser apresentada no lugar de pagamento (1.º/5 LULL), que
corresponde ao endereço concreto indicado na letra, ao lugar designado ao lado do nome
do sacado (na falta de designação expressa: art.2.º/3 LULL), num outro domicílio do
sacado (27.º/2 LULL) ou no domicílio de terceiro (4.º LULL).
O incumprimento do dever de apresentação de pagamento acarreta a perda do
direito de regresso do portador, que ficará impedido de acionar todos os obrigados
cambiários à exceção do aceitante (53.º/1 LULL), também qualquer obrigado passa ter o
direito a solicitar a consignação em depósito da quantia cambiária (42.º LULL).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O pagamento será realizado, em princípio, pelo aceitante e se este não o fizer pelo
interveniente (59.º e 61.º LULL) e, em via de regresso, pelo sacador, endossante ou
avalista (43.º/1 LULL).
O pagamento pode ser total, em que o devedor que pagou pode e deve exigir que
lhe seja entregue a letra juntamente com o respetivo documento de quitação (39.º/1 e 787.º
e 788.º CC) ou meramente parcial (39.º/2 LULL), em que o sacado pode exigir, para além
da quitação, que se faça menção expressa na letra do pagamento realizado (39.º/3 LULL).
Pode ser feito na data de vencimento ou antes data, mas sempre com o
consentimento do portador (a quem não pode ser imposto o pagamento prematuro,
quando a letra vença juros, 40.º/1 LULL) e por conta e risco do sacado (que poderá ser
obrigado de novo a letra caso se venha a demonstrar que o portador não era o verdadeiro
titular do direito cambiário, 40.º/2 LULL).
Finalmente, o pagamento tem um efeito liberatório para o sacado, exonerando-o
da respetiva obrigação cambiária (40.º/3 LULL), mas este está subordinado a
determinados pressupostos: o devedor tem de verificar a legitimidade formal do portador
apurada mediante uma sucessão regular de endossos extrinsecamente válidos (16.º e
40.º/3 in fine) e que haja efetuado o pagamento na data do vencimento cambiário (40.º/2
LULL). E também determinados limites, quando o devedor haja efetuado o pagamento
ao portador com fraude ou falta grave (40.º/3).
Tem ainda como efeito, o direito do sacado a exigir que o título lhe seja entregue
(39.º/1 LULL), o direito de regresso de qualquer outro signatário que haja pago a letra
sobre os respetivos garantes (49.º LULL).

12.3. Protesto
O protesto está regulado no 44.º a 46.º LULL e no 119.º a 130.º do CN. Este
consiste num ato formal, efetuado perante um notário, destinado a certificar a falta do
aceito ou do pagamento da letra por parte do sacado (função de segurança jurídica), bem
como a dar conhecimento desta aos demais subscritores cambiários (função informativa)
e a salvaguardar os direitos do portador da letra (função conservatória).
Existem 2 tipos de protesto:
- O protesto por falta de aceite, que constitui a certificação formal da recusa
(total ou parcial) do aceite da letra pelo saco. Este é efetuado contra o sacador e deve ser
realizado no prazo de aceitação (21.º e 44.º/2 LULL; 121.º e 122.º CN);

270
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- O protesto por falta de pagamento (44.º/4 LULL), que representa uma


retificação formal da recusa de pagamento da letra pelo sacado. Este é efetuado contra o
sacado aceitante, deve ser realizado no prazo de 4 dias subsequentes à data do
vencimento, exceto nas letras à vista (44.º/3).
O protesto pode ser realizado fora dos prazos legais, mas fica privado os seus
efeitos cambiários: a apresentação intempestiva da letra não é fundamento de recusa de
protesto (123.º CN), já que o portador pode necessitar do mesmo para outros efeitos.
O principal efeito do protesto reside na conservação dos direitos do portador
contra os obrigados cambiários em via de regresso, ressalvado o casos das letras em que
tenha sido aposta cláusula sem despesas ou sem protesto (46.º LULL) ou casos de força
maior (54.º LULL), a falta ou intempestividade da sua realização acarreta para o portador
a perda dos seus direitos contra o sacador, os endossantes e os demais obrigados
cambiários com exceção do aceitante (53.º LULL).
Além disso, o portador que protestou a letra está ainda sujeito a um dever de
entrega simultânea no cartório notarial das cartas de aviso destinadas a notificar a
apresentação do protesto cambiário a todos os que sejam responsáveis perante o portador.

12.4. Intervenção
Está regulada no 55.º a 63.º da LULL e consiste numa viscissitude juscambiária
relativa àquelas letras que são aceites ou pagas por um terceiro (interveniente) no lugar
dos obrigados cambiários (honrados ou interventores).
A sua função é evitar o exercício prematuro do direito de regresso por parte do
portador da letra, em consequência da falta de aceite ou de pagamento da mesma.
A intervenção pode verificar-se quanto:
- Ao aceite da letra, caso em que o interveniente surge no papel de obrigado
cambiário em via do principal (56.º a 58.º LULL);
- Ao pagamento da letra, caso em que aquele se assume como um
verdadeiro solvens cambiário (59.º a 63.º LULL).
A intervenção, quanto à sua natureza, pode ser:
- Provocada – resultante de cláusula especial contida na letra que indica
uma determinada pessoa para em caso de necessidade aceitar ou pagar (55.º/1 LULL);
- Espontânea – independentemente de qualquer indicação ou incumbência
especial feita na lei (55.º/2 LULL).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto aos sujeitos têm legitimidade ativa para intervenção: o sacador, um


endossante ou um avalista (55.º/1 LULL). Já têm legitimidade passiva qualquer terceiro
estranho à cadeia cambiária, o próprio sacado ou qualquer obrigado cambiário com
exceção do aceitante (55.º/3 LULL).
Quanto aos efeitos, há que distinguir consoante se trate de:
- Aceite – a intervenção implica o devedor do portador apresentar a letra
cujo aceite foi recusado pelo sacado ao aceite do interveniente, ou seja, é excluído o
exercício do direito de regresso, 56.º/2/3 LULL. E a assunção por parte do interveniente
da posição juscambiária do honrado, que assim fica investido nas obrigações deste para
com o portador e endossantes posteriores (58.º/1 LULL), mas também sub-rogado nos
direitos emergentes da letra paga contra o honrado e anteriores subscritores na cadeia
cambiária (63.º LULL).
- Pagamento – a intervenção implica o dever do portador apresentar a letra
ao interveniente (não podendo recusar o pagamento feito por este, sob pena de perder o
seu direito de ação contra o honrado e endossantes posteriores, 61.º LULL), além de ficar
sub-rogado nos direitos emergentes da letra paga contra o honrado e anteriores
subscritores na cadeia cambiária (63.º/1 LULL).

12.5. Pluralidade de exemplares e de cópias (breve alusão)


Esta situação está prevista no Capítulo IX da LULL. A pluralidade de exemplares
está prevista do 64.º a 66.º; enquanto as cópias estão previstas no 67.º a 68.º
A pluralidade de exemplares diz respeito há possibilidade do desdobramento
físico do título, ou seja, um título passa a ter mais do que uma via. Esta tende a ocorrer
em casos em que há uma grande probabilidade de extravio do título.
Quem elabora a segunda via do título é o sacador (solicitado pelo credor) e ela
tem as mesmas qualidades que a primeira via (pode ser endossada, ser colhido aval etc.).
Por sua vez, a triplicata é a segunda via de uma duplicata.
Com efeito, o portador de uma letra pode tirar cópias (67.º), mas estas estão
sujeitas a um requisito (68.º):
- Tem de indicar a pessoa que tem a posse do original.

12.6. Prescrição.
Está prevista no art.70.º e seguintes da LULL, sendo que a LULL estabelece 3
prazos diferentes:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- 3 Anos - As ações contra o aceitante relativas a letras, isto a contar


do seu vencimento.
- 1 Ano – As ações do portador contra os endossantes e contra o
sacador, isto a contar da data do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento,
se se tratar da letra contendo a cláusula “sem despesas”.
- 6 Meses - As ações dos endossantes uns contra os outros e contra
o sacador, isto a contar do dia em que o endossante pagou a letra ou em que ele próprio
foi acionado.

13. Ilustração: cadeia cambiária, ações cambiárias e exceções cambiárias. De


novo o relevo das relações imediatas e das mediatas. A boa-fé.
13.1. Cadeia cambiária.
A cadeia cambiária diz respeito à sucessão de co-obrigados à mesma prestação,
na qual todos assumem posições diversas, na medida em que cada um só se obriga perante
os posteriores titulares.

13.2. Ações cambiárias


As ações cambiárias são ações destinadas a exercer judicialmente os direitos
cambiários. A letra é um título executivo (art.46.º/1/c e 51.º CPC), que habilita os seus
portadores de letras vencidas e não pagas a recorrer à ação executiva contra os respetivos
devedores. Assim, estas podem ser tidas como ações diretas quando são dirigidas contra
o devedor principal (o aceitante) ou ações de regresso, quando são dirigidas contra os
devedores em via de regresso ou seja, os demais signatários da letra (sacador, endossante,
avalista).
A ação cambiária direta pode ser exercida pelo portador contra o sacado aceitante
sempre que este tenha recusado o pagamento da letra ao portador na data do respetivo
vencimento. Particularmente importante é a ação cambiária de regresso (art.43.º LULL),
que pode ser exercida pelo portador quer na situação anterior (recusa de pagamento), quer
mesmo antes do vencimento da letra, quando exista recusa total ou parcial (21.º, 26.º/2,
44.º/2/a LULL), insolvência do sacado ou do sacador de letra não aceitável (36.º e 91.º
CIRE. Art.22.º/2 e 44.º/6 LULL), mera suspensão de pagamentos (20.º/1/a CIRE) ou
execução infrutífera do património do sacado (art.20.º/1/e CIRE, 828.º/7 CPC e 44.º/5
LULL).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O regime e os efeitos jurídicos das ações cambiárias são múltiplos, mas o seu
aspeto principal é a solidariedade passiva de todos os obrigados cambiários (art.47.º
LULL): o portador pode acionar em juízo, à sua escolha, todos, alguns ou apenas alguns
dos obrigados.
Na ação proposta contra o devedor ou os seus herdeiros, o portador pode pedir o
pagamento da quantia cambiária acrescida de juros moratórios legais e das despesas
incorridas (art.48.º LULL).
Na sequência da ação cambiária movida pelo portador, o obrigado cambiário de
regresso que tenha pago a letra aparece também investido num conjunto semelhante de
direitos contra os respetivos garantes (art.47.º/2 e 49.º LULL), além de outras
prerrogativas especiais (direito à entrega da letra e eliminação de endossos, art.50.º
LULL).
De ação em ação, a letra irá percorrer um caminho inverso ao que percorreu na
sua circulação, tendo como o derradeiro responsável e executada o aceitante (se a letra
foi aceite) ou o sacado (em caso oposto).

13.3. Exceções cambiárias.


O subscritor de uma letra que haja sido objeto de uma ação judicial cambiária
pode defender-se invocando em seu favor as exceções cambiárias, ou seja, determinadas
circunstâncias que tornem improcedente, total ou parcialmente, definitiva ou
temporariamente, a pretensão do autor, portador da letra.
As exceções podem ser agrupadas em diferentes categorias, temos:
- Absolutas e relativas: as primeiras são oponíveis por qualquer
devedor cambiário ao portador de letra (ex.: inexistência de letra por falta de menções
legais); as segundas apenas podem ser opostas por determinados devedores (os portadores
mediatos e de boa-fé em sede de vicissitudes das relações fundamentais (17.º LULL).
- Perentórias e delatórias: as primeiras traduzem-se em factos
modificativos, impeditivos ou extintivos que tornem improcedente a pretensão cambiária
do autor (invalidade do negócio causal, art.17.º); as segundas referem-se a factos ou
circunstâncias que se limitam a suster temporariamente a pretensão do autor, sem todavia
a perimir (incumprimento do negócio causal pelo autor);
- Causais ou reais: as primeiras são decorrentes das relações
jurídicas fundamentais ou subjacentes; as segundas decorrem das posses anteriores da
letra.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Assim, o portador de uma letra de câmbio ou mesmo de um título de crédito em


geral, é titular de um direito autónomo.
Por um lado, o direito cambiário é independente do negócio fundamental que lhe
esteve na origem, sendo-lhe inoponíveis as eventuais exceções deste decorrentes (art.17.º
LULL).
Por outro lado, o direito do portador sobre a letra é independente da posse dos
portadores anteriores, sendo-lhe inoponíveis quaisquer eventuais ilegitimidades
possessórias destes (16.º LULL).
No entanto, a autonomia não é absoluta. Desde logo, sofre exceções causais (17.º)
relativas aos portadores mediatos e de boa-fé, o que não vale não plano das relações
imediatas (ou seja: entre subscritores cartulares sucessivos, como o sacador e sacado,
sacador e tomador, endossante e endossado, avalista e avalizado).
Paralelamente, o princípio da autonomia cartular e conexa (16.º) só vale
relativamente a portadores de boa-fé. No entanto, é indiferente o animus aqui exigido pela
lei.

14. A reforma da letra e dos títulos em geral.


A extinção dos títulos de crédito ocorre com a extinção do direito neles
incorporado, ou seja, com o cumprimento da prestação cartular (art.762.º CC), sem
prejuízo dos outros eventos extintivos especiais (como a prescrição ou ineficácia).
No entanto, por vezes o direito cartular sobrevive à extinção física do próprio
título de crédito. Como quaisquer documentos escritos, estes estão sujeitos à sua perda,
destruição ou deterioração. Ora, desaparecido o título, desaparece o documento cuja posse
é necessária para o exercício e a transmissão dos direitos. Assim, consagrou-se a figura
da reforma.
A reforma rege-se pelo disposto nos art.1069.º e 1073.º do CPC, que contemplam
2 processos de reforma para os títulos destruídos (1069.º) e perdidos ou desaparecidos
(1073.º). Objetivo comum destes mecanismos processuais é o de permitir obter um novo
título, i.e., um novo documento substitutivo do anterior que possibilite ao respetivo titular
exercer os seus direitos cartulares: em princípio, são reformáveis ou reconstituíveis todos
os tipos de títulos de crédito independentemente do seu regime de circulação.
No entanto, sempre que o título se tenha extraviado e o titular conheça o seu
paradeiro, este deverá intentar uma ação de reivindicação contra o detentor (1311.º CC).

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CAPÍTULO XII - CRISE DA EMPRESA E INSOLVÊNCIA. TÓPICOS

1. Evolução histórica do Direito da insolvência


1.1. A insolvência.
Na tradição portuguesa, a situação do mercador incapaz de assegurar os seus
pagamentos era denominada de: Quebra (cfr. Ordenações Filipinas).
Tratava-se de uma expressão que se manteve no Código Comercial de Ferreira
Borges (de 1833), lado a lado com a falência. Neste Código a insolvência estava reservada
para o não-comerciante.
Porque a expressão “falência” tem o seu quê de pejorativo, uma vez que é
sinónimo de enganar, trair, dissimular, ao tempo, a falência (no Direito tradicional) era
um instituto de comerciantes, enquanto a insolvência respeitava a não-comerciantes.
Assim, recorda-se que a diferença entre estes dois institutos era:
- A falência era a situação qualitativa do comerciante incapaz de honrar os seus
compromissos;
- Já a insolvência traduzia a situação quantitativa do não-comerciante
relativamente ao qual o passivo superasse e ativo.
Com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), promulgado
com o DL n.º 53/2004 de 18 de março desapareceu a noção de “falência”, apenas restou
a noção de insolvência, equivalendo a mesma à:
- Situação do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas
obrigações vencidas (cfr. art.3.º/1 do CIRE);
- Situação subsequente à “sentença de insolvência” (cfr. art.36.º do CIRE).
A ideia de insolvência foi retirada da Insolvenzordnung alemã, datada de
5/10/1994, a qual foi a grande fonte inspiradora do legislador nacional de 2004. De facto,
a Insolvenzordnung alemã absorveu os anteriores conceitos de:
- Direito da falência (ou Konkursrecht) – conceito que rege a liquidação universal
do património do devedor e providencia o pagamento rateado dos credores;
- Direito da recuperação (ou Vergleichrecht) – conceito que abrange as regaras
que poderão permitir ao devedor, a prossecução da sua atividade, minorando os aspetos
atinentes ao incumprimento.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Na verdade, a insolvência é a negação da solvência, i.e., de ser solvo; ou


seja: alguém poder desatar, explicar, pagar. Traduzirá, assim, esta expressão, a situação
daquele que não paga. E apresenta a mesma, perante a falência, duas vantagens:
- Semanticamente, a insolvência é uma expressão valorativamente mais neutra que
a tradicional “falência”;
- Conceitualmente, a insolvência abrange quer a dimensão da liquidação universal
do património, bem como abrange as medidas de recuperação que venham a ser adotadas.

1.2. O Direito da insolvência.


O Direito da insolvência será o setor jurídico-normativo relativo às duas
realidades anteriormente destacadas. Assim, ele versa em geral:
- A situação do devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações
pecuniárias;
- Os esquemas de preservação e de agressão patrimoniais;
- O reconhecimento e a graduação das dívidas;
- A execução patrimonial e o pagamento aos credores;
- Os eventuais esquemas de manutenção da capacidade produtiva do devedor;
- A própria situação do devedor insolvente.
No fundo, o Direito da insolvência define um momento crítico, ao qual
corresponde diversos direitos e deveres das pessoas envolvidas. Por isso ele é
considerado, em bloco, Direito privado. O Direito da insolvência dominado por vetores
de autodeterminação e de autorresponsabilização, colocando frente a frente pessoas iguais
em direitos. De facto, as suas estruturas são privadas visando a concretização da
materialidade em jogo.
A natureza privada do Direito da insolvência pode ser seguida ao longo de todo o
CIRE, fazendo apelo a categorias civis, em especial o Direito das obrigações,
correspondendo a uma tradição comercial. É um ramo próprio do Direito da
responsabilidade patrimonial, sendo possível recordar, nele, alguns princípios clássicos
dessa responsabilidade, como é o caso do:
- Princípio de que pelo cumprimento das obrigações, respondem todos os bens do
devedor suscetíveis de penhora (cfr. art.601.º do CC);
- Princípio de que, não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor
o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do
devedor (cfr. art.817.º do CC).

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Assim, o Direito da insolvência é o lógico desenvolvimento dos dois princípios


de Direito civil atrás enunciados, mas trata-se de uma disciplina jurídica autónoma. Ele
insere-se, quer pela tradição, quer pela sua relevância prática, na grande província do
Direito comercial.

1.3. Aspetos metodológicos


É legítimo afirmar que o CIRE acusa uma marcada influência alemã,
designadamente da Insolvenzordnung.

1.3.1. Autonomia
O Direito da insolvência apresenta-se como uma disciplina dogmática própria,
ainda que ligada ao comércio, que de resto o transcende.
Isto porque, o Direito da insolvência implica técnicas próprias e princípios
autónomos, razões suficientes para o levar a incluir, ainda que em moldes simplificados,
numa disciplina geral de Direito comercial.

1.4. O Direito romano.


As origens ocidentais da “falência” remontam ao Direito romano e, dentro deste,
à Lei da XII Tábuas.
Assim, numa fase inicial, tudo seria entregue à justiça privada, já que um primeiro
progresso adveio daquela lei que procurou pôr cobro ao desforço pessoal, regulando as
consequências do incumprimento.
Atente-se às seguintes e curiosas particularidades, na perspetiva do devedor, no
âmbito do Direito romano:
- No Direito romano, a dívida devia ser confessada ou, então, devia verificar-se a
condenação judicial do devedor no seu cumprimento. De seguida, havia que esperar 30
dias, durante os quais o devedor tentaria arranjar meios para cumprir.
Decorridos os 30 dias, dava-se a manus iniectio indirecta: aqui o devedor era preso
pelo tribunal (se fosse pelo próprio credor era manus iniectio directa) e, não pagando, o
devedor era entregue ao credor que o levava para sua casa, em cárcere privado; aí poderia
ser amarrado, mas deveria ser alimentado, conservando-se vivo.
Durante 60 dias ficava o devedor, assim, preso nas mãos do credor, que o levaria
consecutivamente a 3 feiras, com grande publicidade, para que alguém o resgatasse e
pagasse a dívida. Se passado esse tempo nada se resolvesse, o credor poderia tornar o

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devedor seu escravo, vendê-lo fora da cidade (trans Tiberim) ou matá-lo, partes secanto
(esquartejando-o); havendo vários credores as partes deviam ser proporcionais à dívida;
mas se alguém cortasse mais do que o devido, a lei não previa punição.
- Ainda no âmbito do Direito romano, já a Lex Poetelia Papiria de nexis, de 326
a. C., reagiu a graves questões sociais ao tempo suscitadas, vindo proibir e evitar a morte
e a escravatura do devedor.
Apesar dos avanços, ao tempo, do Direito romano, nele não se encontra um
processo judicial típico que vise a repartição de um património sobreendividado pelos
credores, de acordo com os seus direitos preexistentes e, sobretudo, quando o património
em jogo pertença a um comerciante.
Assim, apenas a profissionalização do comércio nos conduziu à ideia de que a
“quebra” era sempre uma eventualidade comercial de encarar, cabendo enquadrá-la com
um novo regime inteligente, capaz de minorar os danos para os credores, para o comércio
em geral e para o próprio falido. Nesta continuidade, refira-se que a “falência” surgiu
como um instituto tipicamente comercial e, na sua origem e evolução, veio a aproximar-
se do Direito comum.

1.5. As evoluções subsequentes: as tradições francesas, alemã e anglo-


saxónica.
Uma primeira tentativa de codificar as “falências” surgiu em França, através da
Ordenança de 1673.
Já o Código de Comércio de 1807, de Napoleão, procedeu a uma regulamentação
mais cabal da matéria, em termos de “falências” e “bancarrotas”. Mas fê-lo em termos
muito severos para o comerciante falido de tal modo que os credores acabavam
prejudicados, conduzindo, também, a situações irrecuperáveis.
Uma tradição diversa foi a constituída pela experiência alemã, a qual estava
vocacionada, desde o início, para comerciantes e não-comerciantes. Aqui, o diploma
pioneiro foi o Código das Falências prussiano de 8/5/1855 que serviu de base ao Código
das Falências alemão de 10/2/1877, conhecido pela sigla KO (Konkursordnung), o qual
atravessou as mais variadas situações sócio-económicas. Mais tarde, a KO foi substituída
pela InsO (Insolvenzordnung) que entrou em vigor em 1/1/1999.
O sistema “falimentar” alemão não é especificamente dirigido a comerciantes, e
abrange a antiga “insolvência civil” latina. Mas por outro lado, salvo determinados

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abusos, ele não está marcado pela nota infamante que, desde a Idade Média, atinge a
falência latina.
Francamente diverso é o sistema anglo-saxónico do bankruptcy, baseado na
equity, sendo certo que este um sistema que pretende, antes de mais, recuperar o devedor
infeliz. Não é um sistema infame e acaba por ser benéfico para os credores, uma vez que
permite, em termos latos, a manutenção das faculdades produtivas do património
concursal10.

1.6. A experiência portuguesa.


No Direito português, designadamente nas Ordenações, não existia um verdadeiro
sistema de “falência”. Foi necessário aguardar pelas reformas liberais para assistir a
verdadeiras codificações sobre esta temática. O Código Comercial de 1833 (de Ferreira
Borges), a este respeito compreendia uma rubrica intitulada “Das quebras, reabilitação
do falido e moratórias”, onde no art.1121.º constava:
“Diz-se negociante quebrado aquelle, que por vício da fortuna ou seu, ou parte
da fortuna e parte seu, se ache inhabil para satisfazer os seus pagamentos, e abandona
o comércio.”
Já muito recentemente, foi aprovada a Lei n.º 16/92 de 6 de Agosto, que autorizou
o Governo a legislar em áreas que têm a ver com as temáticas “falimentares”. Assim, no
uso dessa autorização legislativa, o DL n.º 132/93 de 23 de Abril, aprovou o Código dos
Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência. No preâmbulo deste
diploma legal procurou-se operar a uma destrinça nítida entre empresas viáveis e
inviáveis. Este código foi substituído pelo Código da Insolvência, hoje em vigor, o qual
dá corpo a uma filosofia distinta.

2. As grandes reformas da insolvência.


2.1. A reforma francesa de 1985.
Em França, a partir de meados de 1067 (com a Lei de 13 de Julho), uma nova
filosofia apareceu: o Direito das falências não deve dirigir-se para o comerciante, deve
tratar-se, sobretudo, de salvar a empresa e os valores que ela envolve. Procura-se, segundo
a ideia francesa, separar o homem e a empresa e salvaguardar esta. Tendeu-se, assim, para

10
Património concursal – e é “concursal” ao património de um devedor podem “concorrer” vários
credores.

280
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um “Direito das empresas em dificuldade”, isto em detrimento do velho Direito das


falências.
A reforma francesa de 1985 veio complementar aquela evolução: nela antepõe-se
a recuperação da empresa, a qual deve ser conservada o quanto possível, salvaguardando-
se a sua atividade e o emprego. Nesta reforma, os direitos do credor surgem apenas em
segunda linha. Esta reforma de 1985 veio a ser substituída pela reforma de 2005.

2.2. A reforma alemã de 1994/2001.


Pode-se afirmar que o modelo alemão, nesta matéria, é um modelo que tem vindo
a ganhar terreno.
Neste modelo, a matéria da falência afasta-se do Direito comercial, acabando por
se constituir numa disciplina autónoma. A sua atenção à empresa e aos operadores não
empresários, vai distanciando-a do âmbito mercantil, ao ponto de suavizar a falência,
quando reportada a pessoas singulares, uma vez que a pessoa humana continua a ser
destinatária final de todo o Direito.

2.3. As reformas das primeiras décadas do século XXI.


A incapacidade europeia de obter taxas de crescimento económico significativas
e a persistência de um desemprego com pesados custos sociais originaram, ao longo da
primeira década do século XXI, reformas significativas no Direito da insolvência. Tais
reformas seguiram rumos diferentes, em França e na Alemanha.
Temos perante o Direito francês da insolvência, 4 procedimentos:
– Um processo de conciliação, que visa a recuperação da empresa por acordo entre
o devedor e os seus credores;
– Um processo de salvaguarda, pelo qual o devedor em dificuldades, mas sem
haver cessação de pagamentos, pode requerer uma proteção da justiça, e aqui:
- O devedor insolvente pode deter as execuções;
- O devedor insolvente pode permanecer na direção da empresa e precaver-se
contra quaisquer sanções pecuniárias ou profissionais, isto no caso do plano de
salvaguarda [da empresa] ter êxito;
- O devedor insolvente pode conservar a sua remuneração;
- O devedor insolvente pode beneficiar das medidas favoráveis que o plano venha
a providenciar.
– Um processo de recuperação judicial;

281
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– Um processo de liquidação judicial.


Também na Alemanha, a partir de 2007, foi adotada uma lei para a simplificação
do processo de insolvência. Ainda em 2011 e 2013, foram adotadas novas reformas, as
quais visaram:
– Aumentar o âmbito de proteção das empresas;
– Reforçar a autonomia dos credores;
– Incrementar o plano de insolvência;
– Facilitar a liberação dos débitos incobráveis, isto relativamente aos débitos
respeitantes a consumidores.
Como linhas de força, a retirar desta evolução recente de leis sobre a insolvência
nas primeiras décadas do século XXI, registamos:
- A difícil busca de um equilíbrio entre os direitos dos credores e a manutenção
sócio-económica da entidade insolvente;
- O esforço técnico para, no domínio da insolvência, reduzir os custos de transação
(i.e., os custos gerados pelo processo e o tempo que o mesmo consome);
- A introdução de esquemas destinados a proteger os consumidores.
Concluindo diremos: se por um lado, uma defesa extrema dos direitos dos
credores pode implicar a destruição de riqueza e a supressão de empresas viáveis, com
danos sociais (v.g. o desemprego); por outro lado, a manutenção de entidades inviáveis
dificulta o crédito em geral e implica custos para a comunidade.
Numa vertente técnica é lícito afirmar que a insolvência, enquanto processo
universal, implica espaço para resolver problemas de toda a ordem que, a ele [processo],
podem aderir. E os custos são, por vezes, desproporcionais.
Assim, as reformas da atualidade devem lidar com a insolvência de entidades
sensíveis, como as instituições de crédito e as seguradoras, bem como devem lidar com a
insolvência de grupos de sociedades e até com as insolvências internacionais.
Podemos dizer que o Direito das insolvências se apresenta como uma área
especialmente carecida dos esforços da ciência do Direito.

3. As insolvências internacionais
3.1. Aspetos gerais e fontes.
O processo de insolvência pode ter dimensões que ultrapassem as fronteiras dos
Estados. Assim sucede, designadamente, sempre que:
- A entidade insolvente tenha bens em mais do que um Estado;

282
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- Os contratos que a envolvam, e que devam ser levados à sede falimentar, tenham
conexões com o Direito de vários países;
- Os credores do insolvente pertençam a distintos espaços jurídicos;
- Surjam, como competentes, tribunais de países diferentes;
- Os bens do insolvente devam ser executados em locais subordinados a mais de
uma ordem jurídica.
A primeira solução para a internacionalidade de processos insolvenciais repousa
nas clássicas normas de Direito internacional privado. Assim, cada Estado prescreve a
competência internacional dos seus tribunais. E o tribunal competente aplica o sistema de
normas do seu próprio Estado. É esse sistema quem indicará, nas diversas situações, qual
a lei aplicável.
Mas a simples imagem de vários tribunais deverem decidir sobre uma mesma
situação falimentar, ou sobre situações falimentares conexionadas, deixa adivinhar os
óbices de tal repartição. É que a igualdade entre credores pode ficar em causa.
A neste tocante, existe uma outra hipótese: a das convenções internacionais sobre
a insolvência, ou a existência de instrumentos supranacionais a tanto destinados. Assim:
- As convenções internacionais foram para tanto tentadas. O quadro foi: sem êxito.
- Já no quadro europeu: permitiu-se progredir.
Se a insolvência internacional é toda a que tenha conexões relevantes com mais
de uma ordem jurídica, são fontes disponíveis para dirimir as insolvências deste tipo:
- No plano interno: os art.275.º a 300.º do Código de Insolvências e Recuperação
de Empresas (CIRE) – no caso o Título XV “Normas de conflitos”;
- No plano europeu: o Regulamento 1346/2000, de 29 de maio e, ainda, o
Regulamento 2015/848, de 20 de maio.

3.2. As normas internas de conflitos no âmbito da insolvência.


O CIRE, no seu título XV, comporta um conjunto de normas relativas à
insolvência. Mais, dispõe este código de 4 artigos respeitantes à execução da insolvência,
normas que têm como fonte o Regulamento 1346/2000, de 29 de maio.
Mais, próprio art.275.º do CIRE, enuncia uma regra que mais não é que o
cumprimento daquilo que objetivamente consta art.8.º CRP, quando refere que o próprio
CIRE só se aplica apenas na medida em que não contrarie as regras, ou o disposto, da
Regulamento 1346/2000, de 29 de maio.
Assim ao nível interno, conclui-se que o processo de insolvência (e seus efeitos):

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- Se rege pela lei do Estado onde o processo tenha sido instaurado (cfr. art.276.º
do CIRE);
- Nas relações laborais os efeitos da insolvência regem-se, exclusivamente, pela
lei aplicável ao contrato de trabalho (cfr. art.277.º do CIRE);
- Os efeitos sobre os direitos do devedor relativos a imóveis e a bens móveis
sujeitos a registo (i.e., navios e aeronaves), regem-se pela lei do país do registo (cfr.
art.278.º a 281.º do CIRE);
- Quando estão em jogo efeitos sobre valores mobiliários, sistemas de pagamento
e mercados financeiros, valem as normas do Código de Valores Mobiliários (CVM), no
caso os art.4.º e 281.º (cfr. art.282.º do CIRE);
- Já nas operações de venda com base em acordos de recompra, opera (i.e., aplica-
se) a lei aplicável a esses contratos (art.2834.º do CIRE).
Refira-se ainda que a insolvência declarada em processo estrangeiro é reconhecida
em Portugal, salvo nos casos de incompetência ou de contrariedade aos princípios
fundamentais da ordem jurídica portuguesa (cfr. art.288.º do CIRE).
Já quando o devedor não tenha em Portugal nem a sede ou domicílio, nem o centro
dos principais interesses, o processo de insolvência só abrange os bens situados em
território português (cfr. art.294.º/1 do CIRE).
Por fim, o reconhecimento de um processo principal de insolvência estrangeira
não obsta à instauração, em Portugal, de um processo particular de insolvência, no caso
denominado processo secundário de insolvência (cfr. art.296.º do CIRE).

3.3. O Regulamento 1346/2000, de 29 de maio.


A este respeito refira-se que o essencial do normativo do Regulamento 1346/2000,
de 29 de maio, encontra-se plasmado no CIRE. Com efeito, este código limitou-se a
acolher os principais artigos daquele Regulamento, preceitos esses que sempre teriam,
aplicação directa no nosso país (art.8.º da CRP).
No entanto, o Regulamento 1346/2000 não tira toda a utilidade aos equivalentes
preceitos do CIRE, uma vez que o Regulamento não se aplica a insolvências respeitantes
a instituições de crédito e empresas de seguros, a empresas de investimento que prestem
serviços que impliquem a detenção de fundos ou a valores mobiliários de terceiros, nem
se aplica aos organismos de investimento coletivos (cfr. art.1.º/2 do CIRE). Além do mais,
o CIRE tem ainda plena utilidade perante insolvências instauradas em países terceiros.

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3.4. O Regulamento 2015/848, de 20 de maio.


Não obstante a aplicação do Regulamento 1346/2000 ter sido considerada
satisfatória pela UE, alguns dos seus preceitos forma considerados como suscetíveis de
melhoramento e, daí, a necessidade de um novo instrumento: o Regulamento 2015/848
de 20 de maio.
O Regulamento 2015/848 de 20 de maio tem, como especial novidade os capítulos
relativos aos grupos de sociedades e à proteção de dados. Ele teve a sua aplicação a partir
de 26/6/2017.

4. O perfil geral da insolvência.


4.1. Princípios clássicos
Na falência jogam-se vários interesses opostos que o Direito procura harmonizar.
Neste sentido:
- O interesse do comerciante: pessoa que pretende retardar, ou evitar, a falência e,
quando esta se verifique, pretende atravessá-la com um mínimo de danos de modo a pode
reiniciar a sua atividade;
- O interesse dos credores: os quais visam a obtenção de um máximo de valor de
modo a minorar os prejuízos que irão sofrer, em princípio, nos seus direitos de crédito;
- O interesse de terceiros: os quais aspiram à normal prossecução da sua atividade,
isto sem serem afetados pelas operações falimentares que venham a ocorrer;
- O interesse da comunidade11 e do Estado12: os quais desejariam que a empresa
em dificuldades as ultrapassasse, de modo a prosseguir a sua tarefa criadora de riqueza;
- O interesse do mercado: o qual pretende, objetivamente, toda a remoção das
iniciativas inviáveis, isto de modo a deixar o caminho livre a novos empreendimentos.
Ainda relacionado com os interesses supra mencionados, registe-se que os
diversos credores do falido, entre os quais o próprio Estado, têm entre si interesses
antagónicos, isto em razão do fenómeno do rateio13; i.e., a vantagem de um é
tendencialmente, o prejuízo do outro.

11
Interesse da comunidade – neste interesse pode-se colocar, por exemplo, os empregados da empresa
falida ou em fase de falência, ou ainda, todos os terceiros que comercializam com a empresa.
12
Interesse do Estado – a qualquer Estado, numa sociedade desenvolvida, interessa existir no seu seio
empresas sólidas, pois elas são um garante de estabilidade social e uma fonte de receitas públicas.
13
Rateio – significa a distribuição de uma quantidade, ou quantia, entre várias pessoas; ou também,
significa dividir proporcionalmente uma quantia entre vários (em regra credores).

285
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Também o fator tempo adquire, na falência, uma dimensão de primeiro plano.


Assim, desde o momento em que se anuncie algum dos motivos de declaração de falência
e até ao momento da liquidação do património responsável, verifica-se uma situação de
incerteza que paralisa os bens e veda a iniciativa dos agentes envolvidos.
Por outro lado, tratando-se de uma execução universal e com interesses
contrapostos, há que delimitar as situações jurídicas envolvidas, ou seja, delimitar as
diferentes situações nos seus âmbitos e perfis normativos, matéria que se tem de somar
os clássicos temas das garantias gerais e especiais das obrigações as quais assumem, na
falência, o seu ponto alto de existência.
De facto, um processo de falência assenta em múltiplas situações jurídicas de tipo
substantivo. Neste sentido:
- Ao direito civil e comercial: compete definir os direitos das partes envolvidas,
bem como compete definir os seus limites e a regras a observar quando se registem
conflitos. A bondade do procedimento falimentar, quanto à satisfação dos interesses em
jogo, é, tão-só, a dos respetivos regimes implicados;
- Já no que diz respeito ao direito adjetivo (ou processual) todos os aspetos
procedimentais devem ser de tal ordem que não perturbem as soluções de fundo
encontradas (pelo direito substantivo).

4.2. Situações especiais; a banca e os seguros


Em setores muito sensíveis a lei optou por estabelecer regimes especiais, em
detrimento do sistema comum (ou geral) de recuperação de empresas e da falência. Trata-
se, no fundo, de proteger o público em geral, que possa vir a ser prejudicado perante a
cessação de atividades que atuem nos setores em causa.
Assim sucede com as instituições de crédito (i.e., os bancos). Assim, a liquidação
das instituições de crédito segue o regime fixado no DL n.º 199/2006, alterado pelo DL
n.º 31-A/2012 de 10 de fevereiro e pela Lei n.º 23-A/2015 de 26 de março.
Na verdade, a crise subsequente a 2007, agravada pelo défice, que levou o país a
pedir ajuda externa em 2011, conduziu à necessidade de uma nova reforma nesta matéria.

5. O código da insolvência.
5.1. A Lei n.º 39/2003 de 22 de agosto
A aprovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE),
aprovado pelo DL n.º 53/2004 de 22 de agosto, o mesmo foi precedido de uma autorização

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legislativa da AR, pela Lei n.º 39/2003 de 22 de agosto, uma vez que o mesmo CIRE pode
implicar a extinção de alguns direitos privados; i.e., aborda matéria que toca em direitos
fundamentais e, ainda, com a igualdade.
De facto, a ideia de devedores insolvente é expressamente definida no art.2.º/1 da
referida Lei n.º 39/2003, devendo ser entendida como aqueles que:
- (…) se encontrem impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas.
E o n.º 2 deste mesmo art.2.º alarga aquela noção às pessoas coletivas, às
associações e às sociedades sem personalidade jurídica.
Na verdade, a matéria da Lei n.º 39/2003 contende com o estado e a capacidade
das pessoas, porque:
- A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos
seus administradores, dos poderes de administração e de disposição da massa insolvente,
os quais passam a competir/pertencer ao administrador da insolvência (cfr. art.2.º/4 da
Lei n.º 39/2003);
- Se o processo de insolvência pode prever um incidente da qualificação da
insolvência como fortuita ou como culposa, no caso de ser insolvência culposa juiz
determinará a inibição do insolvente, ou dos seus administradores, para o exercício do
comércio ou para cargos de administração até 10 anos insolvência (cfr. art.2.º/7 da Lei n.º
39/2003), ou mesmo pode determinar a respetiva inabilitação (cfr. art.2.º/8 da Lei n.º
39/2003).

5.2. O código da insolvência. Noções legais.


O art.1.º do CIRE – que corresponde ao § 1.º da InsO alemã - apresenta a
finalidade do processo de insolvência, no caso o mesmo visa a:
- Execução universal para liquidação do património do devedor insolvente;
- Repartição do produto pelos credores; ou
- Satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência.
De sublinhar que, havendo plano de insolvência, este poderá basear-se na
recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
O art.2.º/1 do CIRE fixa os sujeitos passivos da insolvência, que podem ser
fundamentalmente pessoas singulares, pessoas coletivas e pessoas rudimentares. Em
concreto prevê este código como sujeitos passivos da insolvência:
a) Quaisquer pessoas singulares ou coletivas;
b) A herança jacente;

287
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

c) As associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais;


d) As sociedades civis;
e) As sociedades comerciais e as sociedades civis sob a forma comercial até à
data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem;
f) As cooperativas, antes do registo da sua constituição;
g) O estabelecimento individual de responsabilidade limitada;
h) Quaisquer outros patrimónios autónomos.
Já o n.º 2 deste art.2.º prevê uma delimitação negativa, excluindo da insolvência
comum (ou geral) as pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais.
Ficam também excluídas as empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades
financeiras e determinadas empresas de investimento.
O art.3.º do CIRE define a situação de insolvência. Neste sentido, ele abrange um
critério principal, completado para as pessoas coletivas por critérios acessórios. Neste
sentido:
- Como critério principal: relaciona-se com o facto de o devedor se encontrar
impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. A este respeito é de sublinhar
que o art.20.º/1 comporta “factos-índices” cuja verificação leva à presunção da
insolvência nos termos do citado art.3.º/1;
- Como critério acessório: diz respeito às pessoas coletivas e os “patrimónios
autónomos”, por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responde pessoal e
ilimitadamente, por forma direta ou indireta (isto quando o passivo for manifestamente
superior ao ativo, com as correções previstas no n.º 3).
Já a data da insolvência equivale ao dia (e à hora) em que a respetiva sentença for
proferida (cfr. art.4.º/1 do CIRE).
Para efeitos do CIRE a empresa é definida como toda a organização de capital e
de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica (cfr. art.5.º do CIRE);
Quanto aos administradores, são definidos como aqueles a quem, nas pessoas
coletivas, incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa;
nas pessoas singulares são os seus representantes legais e mandatários com poderes gerais
de administração (cfr. art.6.º/1, do CIRE);
Os “responsáveis legais” são as pessoas que respondam pessoal e ilimitadamente
pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário (art.6.º/2 CIRE)

5.3. O código da insolvência. Preceitos processuais (ou adjectivos).

288
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O tribunal competente para o processo de insolvência é:


- O tribunal da sede ou do domicílio do devedor, ou do autor da herança à data da
morte, ou ainda o tribunal do lugar onde o devedor tenha o centro dos seus principais
interesses (cfr. art.7.º, do CIRE);
- A instrução (do processo) e a decisão de todos os termos do processo de
insolvência, bem como dos seus incidentes ou apensos, compete sempre ao juiz singular.
O próprio processo de insolvência, uma vez instaurado, tem as seguintes
particularidades:
- A instância do processo não é passível de suspensão, exceto expressamente
previstos no CIRE (art.8.º/1 do CIRE);
- A instância do processo suspende-se caso, contra o mesmo devedor, corra
processo de insolvência primeiramente instaurado (art.8.º/2 do CIRE);
- O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e
recursos, tem caráter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal
(art.9.º/1 do CIRE);
- As citações, notificações, publicações e registos gozam de um regime mais
expedito (art.9.º/2 ao n.º 5, do CIRE);
- As autoridades públicas titulares de créditos podem, a todo o tempo, confiar a
mandatários especiais a sua representação no processo de insolvência, em substituição do
Ministério Público (cfr. art.13.º, do CIRE).
O processo de insolvência, devido à sua natureza, comporta desvios importantes
em relação aos princípios gerais do processo. No caso:
- O princípio do inquisitório: no processo de insolvência, embargos e incidente de
qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham
sido alegados pelas partes (art.11.º do CIRE). Há aqui um claro desvio perante o art.664.º
do CPC (indo-se mesmo muito além do art.264.º do CPC);
- A quebra do contraditório: a audiência do devedor, incluindo a citação, pode ser
dispensada quando acarrete demora excessiva o facto de residir no estrangeiro ou ter
paradeiro desconhecido (art.12.º/1 do CIRE);
- O grau único de recurso: salvo determinadas oposições de julgados, não há
recurso dos acórdãos proferidos pelo tribunal da relação (art.14.º/ 1 do CIRE).
Resta acrescentar que o valor da ação de insolvência é o valor do ativo do devedor
(art.15.º do CIRE), ficando ressalvados certos procedimentos especiais (art.16.º do CIRE)
e que o CPC tem uma aplicação subsidiária (art.17.º do CIRE ao CIRE).

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6. As coordenadas da insolvência.
6.1. Enumeração
O CIRE surgiu como um código estruturalmente novo. Se procurarmos enumerar
as suas grandes linhas inovatórias, nele encontramos:
- A primazia da satisfação dos credores;
- A ampliação da autonomia privada dos credores;
- A simplificação do processo de insolvência.
De facto, pede-se um processo de insolvência que seja eficaz, que respeite a
verdade material, mas que conduza a um fim rápido. Quanto mais depressa for possível
entregar a falência aos credores, mais cedo ficará o Estado exonerado de uma
responsabilidade que não lhe incumbe.

6.2. A primazia da satisfação dos credores


Quanto á primazia dos credores, é importante destacar que:
- Esta primazia (art.46.º/1 do CIRE) pretende afastar o óbice da recuperação, uma
vez que esta deixa de ser o fim último do processo. Mas esta primazia não funcionaria
apenas em detrimento da empresa, pois ela exige, também, o sacrifício de terceiros que
tenham contratado com a entidade insolvente.
Assim, o princípio geral do art.102.º/1 do CIRE referente a negócios não
cumpridos, implica: o seu cumprimento fica suspenso até o administrador da insolvência
declarar optar pela execução (da insolvência) ou recusar o cumprimento (do negócio).
De facto, no CIRE temos um mundo de possibilidades, isto de acordo com os
contratos em presença. No caso este código dispõe acerca:
- Da venda com reserva de propriedade (art.104.º do CIRE);
- Da venda sem entrega (art.105.º do CIRE);
- Do contrato de promessa (art.106.º do CIRE);
- Das operações a prazo (art.107.º do CIRE);
- Do contrato de locação (art.108.º e 109.º do CIRE);
- Do contrato de mandato e gestão (art.110.º do CIRE);
- Do contrato de prestação duradoura de serviço (art.111.º do CIRE);
- Das procurações (art.112.º do CIRE);
- Do contrato de trabalho (art.114.º do CIRE).

290
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

De um modo geral, a preocupação do novo regime é a de permitir o termos dos


contratos envolvidos na falência, isto sem maiores encargos para os credores. Haverá,
caso a caso, que procurar nos regimes dos contratos expressamente versados no CIRE e
nas regras neste código previstas, quais são as bases para a aplicação a outros negócios.

6.3. A ampliação da autónima privada dos credores


A reforma não se limitou a reconhecer a primazia da satisfação dos credores, tal
entendido como objetivo último de todo o processo de insolvência. De facto, a reforma
introduzida pelo CIRE prevê meios para a prossecução daquele encargo [primazia da
satisfação dos credores], designadamente colocando nas mãos dos credores as decisões
referentes ao património do devedor e à sua liquidação.
Assim, a referida autonomia privada dos credores, denota-se nos seguintes pontos:
- Qualquer credor, mesmo condicional, pode requerer a insolvência (art.20.º do
CIRE);
- Os credores podem eleger quem entenderem para o cargo de administrador da
insolvência, isto independentemente do administrador provisório indicado pelo juiz
(art.53.º/1 do CIRE);
- Em toda a lógica da insolvência prevalece a assembleia de credores (art.80.º do
CIRE);
- É a assembleia de credores quem delibera sobre a manutenção em atividade do
estabelecimento ou estabelecimentos, ou sobre o seu encerramento (art.156.º/2 do CIRE);
- A assembleia de credores pode aprovar um plano de insolvência (art.192.º do
CIRE).
De todas estas medidas a mais visível é a possibilidade de aprovação do plano de
insolvência. Trata-se de uma figura inspirada na InsO alemã - §§`s 217.º a 279.º -. Perante
a nova lei (CIRE), os credores poderão adotar as medidas que entenderem, isto no quadro
do plano de insolvência.
Assim, o art.195.º/2/b do CIRE, ainda que a título exemplificativo, neste tocante
prevê 4 hipóteses de planos de insolvência:
- O plano de liquidação da massa insolvente;
- O plano de recuperação;
- O plano de transmissão da empresa;
- O plano misto.
O conteúdo concreto de cada plano, depende, porém, da vontade das partes.

291
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

6.4. A simplificação do processo; a insolvência da pessoa singular


Por fim, e no que diz respeito à simplificação do processo de insolvência,
destacam-se os seguintes exemplos:
- Desaparece o dualismo recuperação/falência, o qual é substituído por um
processo único: o processo da insolvência;
- Todo o processo [de insolvência] e os seus apensos tem carácter de urgência,
preferindo aos restantes [tipos de processo];
- É evitada a duplicação do chamamento dos credores ao processo;
- Os registos são urgentes;
- O processo não pode ser suspenso;
- As notificações são mais expeditas;
- Há apenas um grau de recurso.
No art.249.º e seguintes do CIRE, consta a insolvência da pessoa singular, desde
que a mesma:
- Não tenha sido titular da exploração de qualquer empresa nos 3 anos anteriores
ao início do processo de insolvência;
- À data do início do processo de insolvência, a mesma pessoa particular, não
tenha:
- Dívidas laborais;
- Mais de 20 credores;
- Um passivo global superior a 300.000 euros.

7. A revitalização das empresas


7.1. O regresso à recuperação; a simplificação e os credores.
A principal novidade introduzida no CIRE pela Lei n.º 16/2012 de 20 de abril –
que introduziu uma reforma na insolvência em decorrência das obrigações assumidas pelo
Estado português, através da assinatura do Memorando da Troika - consubstancia-se no
processo no Processo Especial de Revitalização (PER), presente nos art.17.º-A ao 17.º-I
do novo capítulo II do CIRE.
Este processo funciona perante devedores que não possam cumprir as suas
obrigações, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação (art.17.º-A do CIRE). Ainda,
todas as ações destinadas a cobrar dívidas são suspensas, enquanto durarem as
negociações (art.17.º-E do CIRE), e as negociações concluem-se com um plano de

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

recuperação, assinado por todos os credores, ou adotado por maioria, com a homologação
do Tribunal (art.17.º-F do CIRE).
Particularmente relevante no PER é o efeito “paralisador” (standstill) do
procedimento: este permite, ou concede, ao devedor, um prazo de graça que ele poderá
usar reorganizar a empresa e para negociar, com os credores, as saídas mais aprazíveis.
Não obstante, tudo depende, em última instância, de um juízo da banca.

8. A responsabilidade do requerente da insolvência.


O requerimento de uma insolvência pode ter as mais graves consequências junto
do requerido. Desde logo, fica envolvido o seu bom nome na praça. Assim, e nestas
circunstância:
- Citado para uma insolvência, o devedor tem o ónus de se opor (art.30.º do CIRE);
- Cabe ainda ao devedor o ónus da prova da sua solvência (art.30.º/4 do CIRE);
- Mesmo antes de citado, podem ser tomadas medidas cautelares (art.31.º/4 do
CIRE);
- Pode ser nomeado um administrador provisório (art.32.º do CIRE).
Não obstante as medidas que antecedem, tudo isto apresenta um manancial de
prejuízos. Mais, um requerimento de insolvência insubsistente pode, mesmo quando
rejeitado, provocar danos em bola de neve muito elevados.
Por outro lado, é evidente que a sentença de declaração de insolvência, mesmo
que não venha a subsistir, tem feitos devastadores no devedor. Toda a sua atividade
produtiva pode ser paralisada.
Assim, no requerimento de falência:
- Dever-se-á deduzir uma petição na qual se expõe os factos que integram os
pressupostos da declaração requerida (art.23.º/1, do CIRE);
- Se se indicar factos falsos ou insubsistentes, o pedido não deixará de ser
apreciado liminarmente em termos positivos (art.27.º/1 do CIRE);
- Seguir-se-á, posteriormente, a correspondente tramitação.
Na verdade, podem-se alegar, conscientemente, i.e., dolosamente factos falsos.
Ou mesmo negligentemente. E o atual Direito, deve responder a essas eventuais situações.

8.1. A evolução do tema nas leis nacionais.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Podemos considerar que a evolução do século XIX, nesta matéria,


designadamente no âmbito da responsabilidade do requerente da falência deu-se, com
clareza, no sentido da culpa in petendo, ou responsabilidade pelo intentar de uma ação.
Ainda neste capítulo, a litigância de má-fé tinha o seu campo próprio, bastante
restrito e limitado. De facto, a gravidade dos valores aqui em presença explicava a
necessidade do recurso à responsabilidade civil.

8.2. O art.22.º do CIRE: origem plausível e respetiva importância.


Dispõe o art.22.º do CIRE, sob a epígrafe “dedução do pedido infundado”:
A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida
apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados
ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo.
Refere esta norma os prejuízos causados, mas apenas em caso de dolo?
Uma interpretação literal e imediata descobrirá aqui um caso único no Direito
português, de uma responsabilidade civil assente, apenas, no dolo.
A assim ser, a pessoa que por descuido grosseiro e indesculpável14, viesse com
um pedido de declaração de insolvência totalmente descabido e que provocasse os
maiores danos patrimoniais e morais, não responderia… por não ter agido com dolo.
A solução é tão obtusa que não pode resultar da lei, no seu conjunto!
Antes de se passar a uma interpretação razoável do preceito, vamos apontar
primeiramente para aquilo que supomos ser a sua origem. De facto, esta solução situa-se
no Direito alemão e resultou de uma transposição menos pensada. Assim:
- O Direito alemão, seja na anterior Konkursordnung, seja na atual
Insolvenzordnung, não prevê uma especial responsabilidade do requerente da insolvência
injustificada;
- Mais, o § 826 do BGB, que não tem equivalente no Direito português, só
admite a responsabilidade por violação dos bons costumes no caso de dolo;
- Na doutrina alemã há quem sustente que a responsabilidade do requerente
por insolvência injustificada, deveria seguir os moldes gerais do § 823 do BGB: i.e., por
dolo e por negligência;

14
Descuido grosseiro e desculpável – ou seja por ter atuado negligentemente.

294
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- De facto, os comentaristas e os tratadistas alemães atuais mantêm o


criticismo em relação à opção restritiva da jurisprudência alemã, neste tocante;
- Para o efeito, nesta matéria, aponta-se a responsabilidade pelo § 823 do
BGB, uma vez que existe a necessidade de alargar a responsabilidade à negligência
grosseira15, não se devendo, por isso, afastar aqui os deveres de cuidado;
- Na verdade, a opção do BGB alemão surge inadequada, mesmo na sua área
de jurisdição. E todavia, parece ter sido essa a doutrina que o legislador português de
2004 decidiu importar.
Não obstante esta posição da legislação alemã e portuguesa, devemos também
aqui, ter o sentido das proporções. A este respeito. Explicam os especialistas que, na
Alemanha, aquilo que é requerido é protegido pelo juiz.
Ora, entre nós um pedido infundado de insolvência pode demorar muitos anos até
ser esclarecido e afastado. E neste entretanto temos toda a margem do Mundo para que a
entidade indevidamente requerida caia em insolvência. E isso por via do requerimento!
Uma solução má para a Alemanha, é uma solução péssima para nós!
A utilização do Direito comparado na feitura das leis não pode operar sem um
conhecimento do terreno e sem uma ponderação das consequências a que pode conduzir.

8.3. A interpretação integrada do art.22.º do CIRE.


O alcance injustificadamente restritivo do art.22.º do CIRE deve ser reduzido com
recurso a uma interpretação integrada.
MENEZES LEITÃO propôs que, por analogia, a responsabilidade do art.22.º do
CIRE se aplicasse, pelo menos, à negligência grosseira: culpa lata aequiparatur.
Esta saída é o minimum aceitável. Mas podemos ir mais longe.
De facto, o art.22.º do CIRE prevê:
- A responsabilidade do requerente e a do devedor apresentante;
- Por danos causados ao devedor ou aos credores.
Não pode ser: é óbvio que o devedor apresentante não é responsabilizado por
danos causados a ele mesmo. O que a lei, por imperativo de sintaxe, quer dizer é:
1.º - O requerente é responsável por danos que cause ao devedor, com o
requerimento indevido;

15
Negligência grosseira – esta negligência corresponde às situações em que o agente não prevê o resultado
danoso da sua atuação, por imprevidência ou descuido, em bora este resultado fosse previsível se ele
(agente) o houvesse ponderado e houvesse sido cauteloso.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

2.º - O devedor é responsável por danos que cause aos credores, com a
apresentação indevida.
No 1.º caso, o requerente deve agir com o cuidado requerido ao bonus pater
familias, nos termos do art.487.º/2 do CC.
No 2.º caso, o devedor deve cumprir o dever de apresentação previsto no art.18.º/1
do CIRE, sendo a insolvência imediatamente declarada (art.28.º do CIRE). Perante isso e
na dúvida, o bonus pater famílias que se apresente à insolvência não pode ser sancionado
ainda que se venha a descobrir que, afinal, essa sua iniciativa veio a prejudicar os próprios
credores. Mas sê-lo-á se tiver agido com dolo.
Em suma, para MENEZES CORDEIRO, a exigência de dolo constante do art.22.º
do CIRE, pela própria lógica sintática do preceito, dobrada pelas exigências de coerência,
de acerto e de lógica do sistema, apenas se aplica à indevida apresentação do devedor,
para efeitos de imputação dos danos causados aos credores.
De outra forma, em vez do final “…mas apenas em caso de dolo”, claramente
ligado “… aos credores…”, dir-se-ia:
A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida
apresentação por parte do devedor, geram responsabilidade pelos prejuízos dolosamente
causados.
Quanto ao pedido infundado: ele é ilícito e responsabiliza, por dolo ou mera culpa
nos termos do art.483.º/1 do CC.
É evidente que a interpretação do art.22.º do CIRE atrás exposta sendo – como é
– uma exigência da leitura coerente do texto daquela norma vai, sobretudo, ao encontro
das diretrizes jurídico-científicas por nós estudada.

8.4. A aplicabilidade na insolvência da litigância de má-fé, do abuso de direito


e da culpa in agendo ou culpa in petendo.
A matéria da insolvência é, em geral, Direito privado. No entanto, o direito de
requerer a insolvência tem uma clara colocação processual (ou de Direito adjetivo). E no
âmbito da ação de insolvência, requerente e requerido podem adotar as mais diversas
condutas.
Nessa dimensão, quer um quer o outro, podem litigar de má-fé. Aplicam-se nesse
domínio, diretamente, os art.456.º e seguintes do CPC.

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Ao requerer uma insolvência o interessado pode incorrer em venire contra factum


proprium, em tu quoque, violando a boa-fé. Assim, há abuso de direito de ação, devendo
seguir-se as consequências daí resultantes.
Finalmente, o requerente de insolvência pode agir sem que se verifique alguns dos
factos referidos no art.21.º/1 do CIRE. Nessa altura, o requerimento é infundado e, como
tal, ilícito.
Havendo dolo ou mera culpa (art.483.º/1 do CC), o requerente é responsável:
- Por danos morais – por ofensa dos direitos do bom nome e reputação, da imagem,
da intimidade da vida privada e do direito à integridade psíquica
- Por danos patrimoniais – face ao atentado aos direitos de propriedade, de
liberdade de imprensa, de liberdade de trabalho e de integridade patrimonial.
Ficam ainda envolvidos, nos termos gerais, os danos emergentes e os lucros
cessantes.

9. Valoração do código da insolvência.


9.1. As opções básicas.
A ideia de um ramo jurídico-normativo dedicado à recuperação de empresas é
algo ingénuo. Mais, seria contrário à lógica igualitária da economia de mercado.
Em face do atrás exposto, para MENEZES CORDEIRO, é credível a opção de pôr
termo à dualidade: recuperação / falência. De facto, a pessoa incapaz de cumprir as suas
obrigações verá o seu património a ser entregue aos credores, sob fiscalização do Estado.
Assim, temos a insolvência a qual surge compatível com um plano (o plano de
insolvência) que permita aproveitar as estruturas empresariais recuperáveis.
A tríade:
- Primado da insolvência sobre a recuperação;
- Poder e autonomia dos credores;
- Ligeireza processual;
Esta tríade vem ao encontro das preocupações atuais, correspondendo, assim, à
melhor forma de preservar a riqueza.

9.2. Técnica e estímulo jurídico-científico.


Na globalidade o CIRE, de 2004, assume uma técnica feliz. Norma a norma, caso
a caso, os textos da insolvência são ponderados.

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De facto, o CIRE veio relançar a matéria da insolvência. Fê-lo pelo prisma da


substancialização. Dispomos agora de novas bases para discutir temas como o da estrutura
das obrigações e o da natureza da garantia patrimonial. A estes temas, juntam-se a
reconstrução dos direitos subjetivos na insolvência, com um tratamento autónomo para
as posições pessoais, bem como para as relações duradouras, incluindo as situações
potestativas, representando todos estes temas e posições desafios jurídico-científicos
irresistíveis.
Assim, torna-se mais viável lançar um domínio autónomo: o Direito da
insolvência.
Por fim: destacamos o domínio crescente das insolvências internacionais (já atrás
referidas).

CAPÍTULO X - O CRÉDITO

1. Noção de crédito. Modalidades de crédito.


Os bancos são os grandes intermediários do crédito: recolhem fundos dos
depositantes e, com base nesses fundos, disponibilizam capitais a quem deles precisa –
concedem crédito. Há assim verdadeira intermediação, que é o paradigma bancário.
O enfoque nesta intermediação está, desde logo, presente na definição de
instituição de crédito, do art.2.º/1 RGIC.
Caraterizar o crédito não é fácil. A posição dominante é a que vê o crédito como
uma troca entre um bem presente e uma contraprestação futura de um bem análogo. É
esta a posição de GALVÃO TELLES. Fazendo eco da posição de vários autores, os
elementos característicos do crédito são:
- O tempo: a troca é diferida. É essencial ao conceito de crédito que a
contraprestação de um bem equivalente se destine a ser realizada em momento
posterior ao da entrega das disponibilidades. Sendo o tempo essencial, a troca
diferida respeita, quando de crédito bancário se trate, a troca de dinheiro no
presente por dinheiro no futuro. Mas não deixa de haver uma troca no presente:
troca de dinheiro por uma posição de crédito;
- A confiança: a confiança tem de existir na fase da recolha da poupança e
na fase da disponibilização do dinheiro pelo banco a quem dele careça: o

298
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

depositante confia no banco e o banco no creditado. LIMA SIMÕES dá a este


elemento o lugar primordial no crédito;
- O risco: é possível que a prestação futura não seja realizada. Ao emprestar
dinheiro, o banco corre o risco de não recuperar total ou parcialmente o
investimento; corre o risco de não receber o equivalente acrescido dos frutos,
juros, que remuneram o tempo e risco.
Contudo, o banco tem um ativo que, juridicamente, pode negociar: pode, em
suma, vender ou onerar o direito de crédito resultante da concessão de crédito. O
comprador tem o ónus de avaliar a qualidade da “mercadoria”, desde logo em função da
confiança que o devedor do crédito lhe mereça. Daí que, enquanto economicamente, o
crédito bancário seja uma troca diferida, juridicamente o crédito é uma troca presente:
dinheiro contra uma posição de direito de crédito.
As modalidades típicas de crédito são a venda a prazo e o empréstimo de dinheiro:
só este releva, em termos direito, quando de crédito bancários se fala. A outra modalidade
de crédito pode, entretanto, concitar a participação dos bancos, por exemplo, através da
prestação de garantias de cumprimento.
É por vezes feita a distinção, dentro de um conceito amplo ou amplíssimo de
crédito, entre as operações de crédito em sentido próprio ou estrito e as operações de
financiamento, de que é exemplo a locação financeira.
Falar de crédito bancário é diferente de referir as singulares operações contratuais
em que se manifesta ou concretiza o crédito bancário, desde logo, o mútuo ou a abertura
de crédito.

1.1. Modalidades
O DL 344/78, de 17 de novembro, classifica as operações de crédito em:
- Curto-prazo (quando o prazo de vencimento não exceda um ano);
- Médio-prazo (quando o prazo de vencimento é entre um ano e cinco
anos);
- Longo-prazo (quando o prazo de vencimento exceda cinco anos).
Para qualificar os contratos de crédito como de curto, médio ou longo prazo, as
instituições de crédito devem seguir um critério material: o da natureza das operações
reais que visem financiar (art.2.º/2).
O art.3.º/1 determina a contagem dos prazos. De resto, o diploma exige que nas
operações de concessão de crédito seja fixado o respetivo vencimento (art.3.º/3).

299
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Finalmente, o art.4.º estabelece o princípio de que, havendo prorrogação ou


renovação dos prazos de qualquer operação de crédito, deve ser considerado o prazo
global correspondente à totalidade do período transcorrido desde o início da operação até
ao seu vencimento.
Esta classificação continua a ter relevância? Menos do que já teve. Trata-se de
uma classificação que obedece a preocupações datadas e cujo relevo no campo jurídico-
material é escasso, sem prejuízo de continuar a ter importância a nível da gestão do crédito
e do risco por parte da empresa bancária.
Na verdade, a classificação dos contratos de crédito na atualidade é feita sobretudo
em função do fim ou da modalidade do crédito.
Mantém-se, porém, de pé o princípio do art.2.º/2 que deve haver uma
correspondência entre o prazo das operações de crédito e a natureza das operações a
financiar. Contudo, esbatida em grande parte de sentido a classificação, o princípio pouco
mais será do que uma simples regra de bom senso e de governance.

1.1.1. Crédito garantido versus crédito não garantido


Na contraposição entre crédito garantido e crédito não garantido, o critério é o da
existência ou não de garantias especiais a favor da instituição de crédito, quer se trate de
garantias pessoais ou de garantias reais. A garantia geral constituída pelo património da
entidade financiada não é considerada para esta classificação.
O crédito garantido costuma ser subdividido entre crédito pessoal e crédito real.
Em qualquer caso, a praxis bancária não segue, nesta classificação, um rigor
jurídico apurado, já que considera crédito garantido situações em que juridicamente, não
haverá propriamente garantias especiais mas para garantias, como, p.ex., a cativação de
um depósito que não resulte de um penhor de conta.
A utilização de expressões como “empréstimo caucionado” tem sentidos
plúrimos, estando amiúde associada à existência de livranças, normalmente em branco,
avalizadas ou não, mas sendo também utilizada como sinónimo de “empréstimo
garantido”, por contraposição a “empréstimo a descoberto”.

1.1.2. Crédito simples versus crédito sindicado


Na contraposição entre crédito simples e crédito sindicado, tem-se em vista
diferenciar consoante o crédito é concedido apenas por um banco, ou por um conjunto de
bancos, em termos estreitamente articulados, correspondendo a um consórcio.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O empréstimo sindicado é materializado tipicamente através de um contrato de


crédito, tendo do lado ativo vários bancos financiadores e como creditada uma empresa.
Conforme e geralmente destacado, os sindicatos bancários permitem a materialização de
operações que, pelas suas características, não poderia ou dificilmente poderiam ser
financiadas apenas por um banco, de acordo com as regras da boa gestão bancária,
incluindo o fator risco. Normalmente, estão em causa obras (lato sensu) de certa
dimensão.

1.1.3. Crédito monetário versus crédito por assinatura


Assume particular relevo a diferenciação entre crédito monetário e crédito por
assinatura. No primeiro, o banco, através de um contrato de crédito específico, entrega ou
disponibiliza fundos ao cliente: trata-se das comuns situações de crédito materializado no
crédito em conta, passando este a movimentar a conta nos termos do contrato.
Já no crédito por assinatura, o banco vincula-se perante um terceiro por conta do
cliente, assumindo as obrigações que resultem da “assinatura”. A concessão de crédito é
mediata: o cliente é beneficiário do crédito; o terceiro é beneficiário direto da vinculação
bancária. Os casos mais comuns são: a fiança bancária, a garantia bancaria autónoma, o
aceite bancário, o aval bancário, a abertura de crédito documentário e o del credere
bancário.

1.1.4. Crédito comum (“corporate”) versus crédito de projeto (“project


finance”)
O crédito comum é o que resulta da consideração de solvabilidade do cliente, nas
garantias prestadas e na finalidade do financiamento: assumem aí particular relevo as
garantias, reais ou pessoais, típicas ou atípicas. Dentre estas últimas, destaque-se a
chamada “consignação de receitas”, que surge como mecanismo de segurança do crédito
que não como sustentação do financiamento.
O “project finance” está, ao invés, estruturado em função de um projeto concreto,
normalmente de vulto, exigindo, por essa razão, o crédito sindicado. Aqui, o risco do
crédito está estruturalmente dependente da consecução do projeto, razão pela qual o cash-
flow gerado pelo mesmo terá que ser bastante para amortizar o crédito concedido, já que,
tipicamente, ou não há garantias adicionais ou estas têm um relevo limitado. É esta
especificidade que justifica um apertado leque de cláusulas de segurança de crédito, um

301
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

controlo efeito da gestão do projeto por parte dos financiadores e, inclusive, a previsão
de step in, verificados determinados requisitos.

1.1.5. Crédito comum versus crédito de escopo


O crédito de escopo é aquele que, diversamente do que acontece no comum, é
concedido para uma determinada finalidade, prevendo o contrato consequências
específicas se ocorrer uma aplicação a fim diverso. A natureza e a dimensão dessas
consequências vão da simples exigibilidade antecipada à resolução do contrato.
Fora do quadro do crédito a consumidores, o crédito bancário é, em geral, de
escopo, mas a verdade é que só em períodos de dificuldade de acesso ao crédito é que os
bancos se preocupam verdadeiramente com o modo de efetiva utilização do crédito.
No quadro do crédito bancário, encontramos situações em que a natureza do
crédito de escopo é mais vincada, como acontece com o crédito para aquisição de
habitação própria.

2. O juro. Problemática civil. O anatocismo: o regime do CC e o regime


especial bancário.
Depois de um longo período de demonização dos juros, o problema já não é o da
sua admissibilidade mas o do seu controlo, o dos limites: os juros usurários são os juros
tidos pelo sistema jurídico como excessivos.
No campo da atividade bancaria, são trazidas à colocação, em geral, as mais
diversas modalidades de juros, com destaque para a distinção entre remuneratórios e
moratórios.
Contudo, primeiro, temos de considerar a diferença entre juros legais e
convencionais, sendo, frequentes os litígios sobre a taxa de juro a aplicar é a legal ou
outra tida como convencional.
Temos a distinção entre juros:
- Compensatório, destinam-se a proporcionar uma utilidade que compense
uma privação temporária do capital;
- Indemnizatórios, destinam-se a indemnizar os danos sofridos pelo credor
- Compulsórios, destinam-se a compelir o devedor a cumprir.
Sobre o tempo em que podem ser cobrados, os juros podem ser à cabeça ou
postecipados. A cobrança de juros à cabeça revela-se, a priori, gravosa, apenas sendo
admitida nos termos do art.5.º/1 DL 344/78, mais concretamente, quando se trate de

302
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

operações de desconto de letras, extratos de fatura e warrants: nestes casos as instituições


de crédito podem cobrar a importância dos juros antecipadamente, por dedução ao valor
nominal.
Sendo que os bancos podem cobrar juros pelo crédito que concedem, cabe saber
se têm liberdade de fixar a taxa de juro ou se estão sujeitos ao art.102.º CCom.
A circunstância do crédito ser concedido por uma entidade que está no mercado
monetário, em ambiente concorrencial e sob supervisão pública, tem sido apontada como
bastante para a liberalização das taxas de juro no campo bancário, aparentemente
consagrada pelo n.º do Aviso 3/93 do BdP. Não temos, porém, por cristalina a legalidade
do Aviso. Independentemente de impressionarem as taxas de juro praticadas em
determinadas operações e que os tribunais aceitam como lícitas, a verdade é que é mister
que, para introduzir uma disciplina nesta matéria, exista uma norma habilitante. Ora, não
é seguro que as vagas e difusas normas invocadas no Aviso 3/93 sejam idóneas para tal
habilitação. Ainda que se admita que sim, já será, ademais, necessário demonstrar que
essa intervenção é necessária.
O DL n.º 344/78 cura também dos juros remuneratórios das operações de crédito,
mais ignora a questão primeira de liberdade de fixação das taxas de juro. Igual indiferença
no DL n.º 220/94.

2.1. Juros remuneratórios e juros moratórios


Os juros remuneratórios são aqueles que remuneram o capital. Os juros
compensatórios são os devidos pela mora e atraso na restituição do capital.
O art.5.º DL n.º 344/78 cura dos termos em que o cálculo de juros deve ser feito.
Podemos dizer que a regra é aquela que vem no n. º2, aplicável aos juros relativos
às operações de abertura de crédito, empréstimos em conta corrente ou outras de natureza
similar: nestes casos, os juros são calculados em função dos períodos e montantes de
utilização efetiva dos fundos pelo beneficiário.
Para as demais operações, valem os n.º 3 e 4: o pagamento dos juros deve ser
efetuado no termo do prazo da operação, podendo, porém, no caso de operações a médio
e longo prazo, ocorrer no termo de cada período anual ou outro acordado pelas partes;
nestes casos, os juros são calculados sobre o montante em dívida no início de cada período
convencionado para contagem.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O art.6.º estabelece que, havendo alteração legal da taxa de juro no decurso da


operação, é aplicável a nova taxa a partir da contagem seguinte, salvo convenção em
contrário.
Decorre do art.806.º/1 CC o regime geral em sede de mora nas obrigações
pecuniárias, de acordo com o qual a indemnização corresponde aos juros a contar do dia
da constituição em mora. Os juros devidos são (art.806.º/2) os juros legais, salvo se, antes
da mora, for devido um juro mais elevado ou se as partes tiverem estipulado um juro
moratório diferente do legal.
No domínio do crédito bancário, é usual a indicação no texto do contrato dos juros
devidos em caso de mora. O art.7.º do DL vem regular os juros de mora, disciplinando os
termos em que as partes podem, nos contratos de crédito, acordar as correspondentes
taxas.
No entanto, o art.7.º vai além do estabelecimento ed limites: ele constitui uma
norma especial que estabelece os termos em que, mesmo na falta de previsão contratual,
as instituições de crédito podem cobrar juros de mora: é uma taxa moratória legal
supletiva.
Importa primeiro definir o quid sobre que incidem os juros de mora: eles incidem
sobre o “capital já vencido”, conforme dispõe o art. 7º/3, acrescentando que nesse capital
podem incluir-se os juros capitalizados correspondentes ao período mínimo de um ano.
Quanto à taxa de mora a aplicar, o art.7.º/1 consagra um regime que se mostra
claramente datado. Assim, as instituições de crédito podem praticar uma taxa de juro
moratória que corresponda à adição de uma sobretaxa de 2% alternativamente:
(i) à taxa de juro que seria aplicada à operação de crédito se tivesse sido
renovada
(ii) à taxa de juro máxima permitida para as operações de crédito ativas de
prazo igual àquele por que durar a mora.
Esta última previsão deixou de ter aplicação direta, uma vez que deixou de haver
“taxa de juro máxima permitida”, nos termos em que a tal expressão devia ser entendida
à data. Assim, ou consideramos essa segunda alternativa prejudicada por caducidade ou
entendemo-la reportada à chamada taxa de referência, entretanto substituída por um valor
médio divulgado pelo Instituto de Gestão de Crédito Público, nos termos do DL n.º 1/94,
de 4 de janeiro.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Para o REGENTE, a solução correta é a primeira. Há limites interpretativos a


diplomas ultrapassados e a soluções cristalizadas no tempo, cujo prolongamento
“vegetativo” não se adequa aos atuais princípios vigentes nas relações banco-cliente.
Assim, a sobretaxa de 2% só poderá acrescer à taxa prevista no art.7.º/a, ou seja,
à taxa de juro que seria aplicada à operação de crédito se esta tivesse sido renovada, taxa
essa que, na falta de elementos objetivos em sentido diverso, deverá corresponder à taxa
de juros remuneratórios praticada na operação em causa.
Este regime supletivo pode ser afastado por convenção das partes através (art.7.º/3
de cláusula penal que não exceda o correspondente a quatro pontos percentuais acima da
taxa de juro remuneratório resultante da aplicação do art.7.º/1/a, ou seja, quatro pontos
percentuais acima da taxa de juro aplicada à operação de crédito se esta tivesse sido
renovada. Tendo sido acordada uma cláusula penal superior, a mesma considera-se
reduzida a esse limite máximo, operando-se, portanto, a redução automaticamente, que
nos termos do art.292.º do CC ou nos termos do art.812.º CC.

2.2. Composição da taxa de juro


O princípio geral no que respeita à composição da taxa de juro nas operações de
crédito bancário é o da liberdade. Trata-se de um efeito que resulta do princípio da
liberdade contratual em geral e da liberdade da fixação de juros em especial.
À partida, há que referenciar a divisão entre taxas de juro fixas e taxas de juros
variáveis. Enquanto as primeiras correspondem a uma percentagem sobre o capital
emprestado, as segundas resultam da soma de um indexante a uma margem ou spread
que, grosso modo, reflete o risco associado à operação de crédito específica.
Importa ainda considerar alguns regimes específicos resultantes de legislação
avulsa que diríamos ter sido produzida sem a virtude da coerência.
Na composição da taxa de juro revela-se igualmente importante a determinação
do que seja um mês ou um ano, máxime quando se trate de taxa de juro indexada. Assim,
de acordo com o art.4.º DL n.º 51/2007, de 7 de março, o cálculo dos juros deve adotar a
convenção 30/360, correspondente a um mês de 30 dias e a um ano de 360 dias.
A taxa de juro que vimos falando é a taxa nominal. Ela é definida na alínea c) do
art.2.º DL 220/94 como a taxa de juro que, sem incluir impostos nem outro encargos, para
uma espécie de operações de crédito, resulta da aplicação da fórmula contida no anexo 1
ao citado diploma. Há, ainda, que considerar, na preocupação do legislador de informar
e proteger a contraparte nos contratos de crédito, os conceitos de: TAE (taxa anual

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

efetiva); TAEG (Taxa anual de encargos efetiva global); TAER (taxa anual efetiva
revista).
Em rigor, a taxa de juro propriamente dita é a taxa nominal seja ela fixa ou
variável. As designações a que correspondem as abreviaturas TAE, TAEG e TAER mais
não são do que composições que, a partir da taxa nominal, consideram outros elementos
com objetivo de dar a conhecer ao interessado o custo real do crédito.

2.3. Informação sobre o juro e encargos


A importância do crédito na vida das empresas e dos cidadãos forçou os
legisladores dos vários países a intervir no sentido de as instituições de crédito fornecerem
adequada informação aos destinatários, desde a fase da “oferta” dos produtos no mercado
em geral até à data de concretização da operação, passando pela fase pré-contratual. Esses
deveres de informação mantêm a sua perenidade no decurso da relação contratual.
Essa preocupação de assegurar adequada informação aos interessados refinou-se
entretanto: após uma fase em que o objetivo parecia ser informar por informar, houve
uma evolução em que o legislador reconheceu, finalmente, que não interessava a
quantidade da informação mas a qualidade da mesma.
Abstraindo do regime de cláusulas contratuais gerais, saliente-se, em primeiro, o
regime plasmado no art.77.º do RGIC, na redação dada pelo DL 211-A/2008. Reza o
art.77.º/1 que as instituições de crédito devem informar com clareza os clientes sobre a
remuneração que oferecem pelos fundos recebidos e os elementos caraterizadores dos
produtos oferecidos, bem como sobre o preço dos serviços prestados e outros encargos.
O art.77.º/2 estabelece indicações específicas, sobretudo no âmbito da concessão de
crédito ao consumo.
A primazia pertence, contudo, ao DL n.º 220/94, de 23 de agosto, que veio
estabelecer a informação mínima que as instituições de crédito devem prestar para
permitir juízos comparativos e reforçar a concorrencialidade e a transparência do mercado
do crédito. Mais concretamente, veio estabelecer o regime aplicável à informação que,
em matéria de taxas de juro e outros custos das operações de crédito, deve ser prestada
aos clientes pelas instituições de crédito identificadas no diploma. Neste particular, a
necessidade, imposta às instituições, de indicar a TAE ao lado da taxa nominal, constitui
um avanço em termos de qualidade de informação. O mesmo quanto às demais menções
do art.4.º.

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Refere-se como particularmente significativo o facto de celebrado o contrato de


crédito, a instituição de crédito continuar obrigada a informar o cliente dos valores da
taxa nominal, da TAE e do indexante em toda a correspondência que lhe seja enviada,
designadamente nos extratos de conta e notar de débito.
Por fim, o art.7.º impõe às instituições de crédito que, na publicidade relativa às
instituições de crédito, qualquer que seja o meio utilizado, sempre que seja feita referência
à taxa de juro ou a outro valor relacionado com o custo do crédito, deve ser também
indicada a TAE.
Esta preocupação com a informação ao cliente no crédito aos consumidores foi,
entretanto, assumida pelo art.77.º/2 do RGIC, na redação do DL n.º 211-A/2008, de 3 de
novembro.

2.4. Alteração das taxas de juro e encargos


Os contratos de crédito estão sujeitos ao regime geral dos negócios jurídicos,
designadamente ao princípio do pacta sunt servanda. Assim, nem o banqueiro pode impor
unilateralmente ao cliente uma alteração da taxa de juro ou de comissão, nem o creditado
pode baixar unilateralmente o custo de crédito em qualquer das suas componentes. A
questão é saber se com uma alteração das circunstâncias pode qualquer das partes que
pretender um ajustamento da taxa ter a sua pretensão atendida.
A priori, a responsabilidade da não previsão contratual da situação existente à data
do contrato, será da instituição de crédito, na medida em que o especialista em dinheiro é
o banco. Desta conclusão excecionam-se as situações em que a instituição contrata com
contraparte que está em condições de discutir a celebração do contrato de crédito e seus
termos.
Na análise dos termos em que alteração da taxa pode ser feita unilateralmente no
decurso do contrato, importa identificar duas situações. A primeira é aquela em que as
partes tenham convencionado que, no caso de alteração das circunstâncias objetiva, uma
das partes ou qualquer delas pode, v.g., passar a aplicar uma taxa de juro fixa em
substituição de uma variável. A segunda é aquela em que as partes acordam que, no
mesmo caso, qualquer das partes, apenas uma delas, ou um terceiro, pode fixar outra taxa
de juro.
Tratando-se de contrato de crédito sujeito ao regime das CCG, importa ter
presente a conjugação da proibição do art.22.º/1/c LCCG, com:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

(i) o art.22.º/2/a, que admite a validade das cláusulas que “concedam ao


fornecedor de serviços financeiros o direito de alterar a taxa de juro ou o montante
de quaisquer outros encargos aplicáveis, desde que correspondam a variações de
mercado e sejam comunicados de imediato, por escrito, à contraparte, podendo
esta resolver com fundamento na alteração;
(ii) o art.22.º/2/b que admite a validade de cláusulas que atribuem a quem
as predisponha o direito de alterar unilateralmente o conteúdo de um contrato de
duração indeterminada, contanto que se preveja o dever de informar a contraparte
com pré-aviso razoável e se lhe dê a faculdade de resolver o contrato.
A dificuldade está na determinação ou concretização do que seja razão atendível.
Quanto à fase de redação e construção do conteúdo dessas cláusulas, os factos têm
de ser: externos ou alheios à instituição de crédito, devendo situar-se fora da sua esfera
de influência, atuação ou controlo; relevantes, excecionais e ter subjacente um motivo
ponderoso fundado em juízo ou critério objetivo.
Quanto à fase de exercício, ou seja, da utilização das faculdades resultantes destas,
o exercício deve: assentar numa relação de causalidade entre o evento invocado como
razão atendível e o teor e alcance da alteração contratual que a instituição de crédito
pretende introduzir; obedecer ao princípio da proporcionalidade, evitando a criação de
desequilíbrio injustificado na relação contratual.

2.5. Capitalização de juros


Uma importante medida tomada pelo DL n.º 344/78 foi a disciplina da
capitalização de juros. Na verdade, a admissibilidade excecional do anatocismo nos
termos das “regras ou usos particulares do comércio” (art.560.º/3 CC) não se mostra
compatível com o relevo que a atividade bancária tem na vida dos cidadãos e das
empresas. Ou seja, o legislador decidiu bem quando optou por intervir neste domínio,
disciplinando os termos em que a capitalização de juros no âmbito das operações de
crédito bancário pode ter lugar.
A existência de um uso normativizado não é cristalina, veja-se.
O DL n.º 344/78 adota uma redação pela negativa, dispondo que não podem ser
capitalizados juros correspondentes a um período inferior a três meses. Não obstante as
reservas que devem ser colocadas aos argumentos a contrario, não será arriscado concluir
que o normativo em referência permite a capitalização de juros correspondentes a um
período igual ou superior a três meses.

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De acordo com o art.5.º/6, a capitalização é possível sem necessidade de


convenção posterior ao vencimento ou de notificação judicial feita ao devedor para
capitalizar os juros vencidos ou proceder ao seu pagamento, sob pena de capitalização.

3. Acesso ao crédito e atividade bancária. Tipologia das operações


bancárias.

4. Enquadramento geral: a conta bancária.


As relações entre o banco e o cliente têm como “ato nuclear” ou “negócio bancário
nuclear” um contrato inicial, contrato que, para além de marcar o início da relação
contratual complexa, a regula em certos temos. É um contrato que assenta nas cláusulas
contratuais gerais e, em bem menor medida, nos usos bancários. É tipicamente bancário.
É, naturalmente, formalizado.
A este contrato, MENEZES CORDEIRO chama contrato de abertura de conta,
que salienta a celebração do contrato, enquanto outra doutrina lhe chama apenas contrato
de conta, que exprime de modo mais vincado tratar-se de uma relação duradoura e não
apenas da abertura.
A designação contrato de conta ou contrato de abertura de conta tem na sua origem
a conta em sentido contabilístico, sendo, no entanto, seguro que o contrato de conta,
tomando embora como “logótipo designativo”, é algo bem mais complexo do que a conta
contabilisticamente falando: referir contrato de conta é aludir a um contrato tipicamente
bancário que regula a complexa relação entre o banco e o cliente, contrato esse que tem
um conteúdo necessário, um conteúdo natural e um conteúdo eventual.
O conteúdo necessário são os serviços tipicamente associados à existência e
gestão de uma conta à ordem. O conteúdo natural é o facto de conta envolver,
naturalmente, os regimes do deposito bancário e de serviços de pagamento simples.
O conteúdo eventual alude a quatro negócios subsequentes:
(i) convenção de cheque;
(ii) a emissão de cartões de crédito;
(iii) os descobertos em conta;
(iv) o giro bancário complexo ou não rudimentar.
O contrato de abertura de conta não se confunde, entre outros, com o depósito
bancário de dinheiro, sem prejuízo de haver uma associação natural da conta ao depósito.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

De certo modo, o contrato de conta apresenta-se como um “contrato-continente”,


que engloba, naturalmente, o contrato de depósito, o qual, sem deixar de ter autonomia,
acusa o facto de estar “integrado” naquele contrato complexo.
O contrato de conta apresenta-se como um quadro-quadro, em que as partes
definem ab initio os termos dos contratos que poderão celebrar no futuro.
Aquando da celebração do contrato de conta, as partes acordam a “chave de acesso
à conta. Classicamente, a chave de acesso era a assinatura do cliente aposta na ficha, mas
atualmente o acesso à conta e sua movimentação é corrente no acesso por via eletrónica,
em máquinas de acesso público e na internet, com códigos ou passwords.
Pergunta-se finalmente, se todas as relações contratuais de bancos pressupõem ou
coenvolem um contrato de conta entre as partes. Não: tal contrato não tem lugar desde
logo quando o cliente é o banco ou quando o banco prestador de serviços não pressuponha
a conta em sentido contabilístico.

4.1. A conta em sentido contabilístico


O enfoque contabilístico da conta parece-nos essencial: a conta é organizada pelo
banco, está à sua responsabilidade. Ela é a expressão contabilística de atos praticados no
âmbito da relação bancária entre o banco e o cliente.
A conta é o “registo, organizado numa base pessoal, cronológico e sintético, das
operações de entrega e reembolso de fundos, constitutivas, modificativas ou extintivas do
crédito unitário ao reembolso”. As inscrições na conta são geralmente declarativas, mas
podem ser constitutivas, quando a inscrição consubstancia em si própria uma entrega ou
restituição de fundos e ainda quando o crédito do depositante aumenta ou diminui não
porque haja uma operação extrínseca à própria conta, mas sim porque o simples
movimento de escrita corporiza uma entrega ou restituição de fundos.
Quer nos casos de crédito em conta quer nos casos de debito em conta há
necessariamente, a montante, um negócio qualquer que explica – cuja execução explica
– esse moimento.
No caso de crédito em conta temos situações em que o banco assumiu
anteriormente a obrigação de, verificado determinado circunstancialismos, creditar a
conta: o crédito em conta é cumprimento.
Já no caso de débito em conta, temos situações em que o cliente autorizou o banco
a, verificado determinado circunstancialismo, debitar a conta.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

É inquestionável o relevo da função representativa da conta, a qual “não envolve,


por isso, a constituição de um direito novo, distinto do crédito resultante das sucessivas
operações”. Resultam quatro importante corolários:
(i) o movimento escritural deve ser posterior ou, então, coincidente com a
operação real;
(ii) os vícios da operação real repercutem-se no movimento escritural,
devendo este ser anulado ou corrigido em conformidade;
(iii) o movimento escritural deve refletir fielmente a operação real por ele
representada;
(iv) todos os movimentos escriturais são causas, não abstratos, sendo a
causa constituída pela operação real que cada movimento representa.
A conta reflete os diversos movimentos a débito e a crédito, conquanto não
espelhe a totalidade das relações entre as partes. Há relações entre o banco e o cliente que
não estão refletidas na conta; é, p.ex., o caso de um crédito aberto pelo banco a favor de
uma sociedade e ainda não utilizado.
Falamos da conta cuja organização decorre do giro bancário, como um encargo
do banco. Não falamos, assim, de outros registos, organizados que estão também por
contas, como os que respeitam a cada operação de crédito. A priori, cada operação poderá
ter a sua própria conta, sendo a relação com a conta de giro definida por acordo entre as
partes, ou no contrato de abertura de conta ou naquele que regula a operação específica
de que se trate. Há, no entanto, dois tipos de exceções:
- Aquelas em que, por razões de celeridade ou outras, o registo de uma
operação é feito na conta de giro;
- Aquelas em que, por acordo entre o banco e o cliente, a conta funciona
como “destino” final do saldo de outra conta.
Há ainda que referir as sub-contas: a conta-mãe pode albergar várias sub-contas,
com as próprias inscrições, sem prejuízo da existência de um fluxo entre a mãe e as filhas.
Tudo isto se articula com a prova através dos registos da conta. Sendo seguro que
se aplica, nesta sede, o regime geral em matéria de provas, não podemos deixar de trazer
à colação o regime do art.44.º CCom: “Os livros de escrituração comercial podem ser
admitidos em juízo a fazer prova entre comerciantes, em factos do seu comércio (…)”.
Fora deste âmbito específico das relações entre comerciantes, vale o regime geral,
sendo de destacar, neste âmbito, o facto de a alínea g) do art.21.º LCCG, proibir em

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

absoluto as cláusulas contratuais gerais que “modifiquem os critérios de repartição do


ónus da prova ou restrinjam a utilização de meios probatórios legalmente admitidos”.

4.2. O estorno
O estorno materializa-se numa inscrição na conta em sentido inverso a uma
anterior inscrição, tida por irregular.
O problema do estorno não está tanto na questão da sua admissibilidade, na
medida em que se trate de retificar um erro de lançamento, mas no balizamento,
designadamente temporal, em que o mesmo pode ser realizado, mormente quando não
exista um claro regime nas cláusulas contratuais gerais.

4.3. A constituição da relação de conta bancária


A abertura de uma conta bancária corporiza a constituição de uma relação
contratual. É assim, à partida, aplicável o regime geral do direito dos contratos.
Situação especial é aquela em que o mesmo sujeito é titular de mais de uma conta
no mesmo banco. Estamos perante tantas relações contratuais quantas as contas. Será,
então, frequente as cláusulas contratuais gerais preverem o cruzamento entre as contas,
através de mecanismos de compensação ou mesmo fusão entre contas.
O Aviso BdP 11/2005 regula as “condições gerais de abertura de contas de
depósito”:
- O art.2.º impõe às instituições de crédito um dever especial de cuidado
na abertura de contas;
- O art.3.º estabelece o dever de as instituições de crédito disponibilizarem
aos clientes um exemplas das condições gerais do contrato a celebrar;
- Os art.4.º a 7.º curam da documentação e dos comprovativos necessários,
bem como da conservação dos documentos; acrescem exigências de ordem
documental nos art.13.º e 14.º;
- O art.8.º regula os requisitos de abertura de conta e os limites à
movimentação da conta;
- O Aviso distingue os procedimentos tendentes à abertura presencial
(art.9.º e 10.º) dos relativos à abertura não presencial (art.11.º e 12.º) de contas.

4.4. A titularidade e a movimentação da conta


4.4.1. A titularidade da conta

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O princípio é o de que qualquer pessoa pode ser titular de uma conta, inclusive os
incapazes de exercício, suprida a incapacidade.
Uma situação resolvida pela reforma do CC, realizada em 1977, foi a do acesso à
titularidade de contas por parte do cônjuge-mulher. A redação inicial do art.1680.º/1 CC
circunscrevia a titularidade e movimentação de conta por parte da mulher no quadro do
exercício do governo doméstico ou como administradora de parte ou da totalidade dos
bens do casal. É a seguinte a atual redação do artigo: “Qualquer que seja o regime de
bens, pode cada um dos cônjuges fazer depósitos bancários em seu nome exclusivo e
movimentá-los livremente”.
A titularidade de uma conta não pressupõe, em absoluto, a personalidade jurídica
do seu titular: é comum a titularidade de contas por parte de pessoas jurídicas
rudimentares.
De resto, o Aviso do BdP 11/2005 refere no art.9.º/4 com menção a contas
tituladas por estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada ou por “centros
de interesses coletivos sem personalidade jurídica”.
Frequente é também a abertura de contas em nome de pessoas coletivas ainda em
processo de formação.
A priori, é titular da conta aquele que, materialmente, a abre acertando com o
banco os respetivos termos, os quais seguem, na maioria, ipsis verbis, as condições pré-
fixadas em cláusulas contratuais gerais.
Há, no entanto, situações que escapam a este “modelo”, como aquelas em que o
sujeito que abre a conta age em nome de outrem, por representação legal ou voluntária.
Outras situações ictu oculi possíveis são aquelas em que há uma real
desconformidade entre quem abre a conta e quem figura enquanto titular, em virtude de
ser uma conta aberta a favor de outrem.

4.4.2. A titularidade da conta e a titularidade do dinheiro


Ser titular de uma conta significa poder exercer os direitos e estar sujeito aos
deveres associados à conta e ao contrato de conta.
Quanto aos direitos, o de maior relevo é o de movimentação da conta: é um poder
de movimentação, quer a débito, quer a crédito.
Na base do saldo positivo do cliente, podem existir as mais diversas situações: são
as situações paraconta.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O banco está assim, a priori, e em princípio, imune às vicissitudes das relações


que o titular da conta tenha com terceiro, não tendo de aceitar ou reconhecer a
proveniência e a sua “propriedade económica”, salvo quando a tanto seja condenado pelo
juiz. Temos que distinguir entre:
- Titularidade da conta – que pertence àquele em cujo nome mesma está
aberta, sujeito a quem pertence, em termos jurídico-bancários, o crédito sobre o
banco que decorra de um saldo positivo;
- Propriedade (jurídica) do dinheiro depositado pertence ao banco. O titular
da conta é, quando muito, titular da moeda escritural, nisso se traduzindo a
inscrição a seu crédito, constante da conta;
- Propriedade económica do dinheiro, quando não seja do próprio titular
da conta, está algo como “lost in transaction” no que à relação com o banco
respeita, conquanto respeite às relações entre o titular da conta e o terceiro
proprietário do dinheiro antes da efetivação do depósito.
A titularidade da conta é, por natureza, formal, no sentido de que a mesma não
tem uma necessária correspondência com a realidade material subjacente.
O titular da conta é, no que respeita, aos fundos depositados, um titular fiduciário.
Quando assim é, tal significa que foi investido na titularidade da conta por razões
específicas que ao mesmo e às suas relações com o proprietário económico do dinheiro
respeitam.
Uma das vicissitudes que podem ocorrer na conta é a modificação dos sujeitos a
nível da titularidade da conta.
A vicissitude mais evidente será a da morte do titular da conta, quando seguida de
acordo entre os herdeiros e o banco no sentido da continuação da conta, não apenas para
os estritos efeitos da liquidação, mas como conta que passa a ser titulada por todos ou
apenas algum ou alguns dos herdeiros.

4.4.3. A movimentação da conta


A movimentação do saldo da conta está, à partida, reservada ao respetivo titular,
sendo, para o efeito, indiferente, no que às relações com o banco concerne, a circunstância
eventual de o mesmo não ser o proprietário económico do dinheiro.
A efetiva movimentação da conta pode ser confiada a terceiro pelo próprio titular,
através de uma simples autorização. Quer num quer noutro caso, os efeitos patrimoniais

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

da movimentação da conta repercutem-se na esfera do titular da mesma, conquanto por


vias e técnicas diferentes.
Quer a procuração quer a autorização são, enquanto negócios jurídicos, passiveis
de interpretação nos termos gerais de direito, para efeitos de determinação do âmbito dos
poderes ou da legitimidade gestória.
A lei não limita a procuração geral no campo bancário. O problema está, de resto,
a montante: a lei não limita a procuração geral, mas parece-nos que o deveria fazer, atenta
a perigosidade desse instrumento no que aos interesses e ao património do representado
respeita. Deve ser interpretada em termos estritos.
Sendo emitida procuração a favor de dois ou mais sujeitos, há que aplicar, por
analogia, as regras do mandato.
Quanto ao mais, fazem-se sentir, na procuração utilizada no âmbito da conta, os
problemas em geral associados à procuração. Assim:
- A procuração pode ser conferida também no interesse do procurador ou
de terceiro, caso em que a mesma é irrevogável, conforme dispõe o art.265.º/3
CC, sem prejuízo de poder ser revogada quando haja justa causa;
- Os poderes de movimentação podem “sobreviver” à morte do titular da
conta, quer no caso de procuração transmortal, quer no de procuração post
mortem;
- Nos termos gerais, pode ocorrer uma situação de abuso de representação.
Vimos aludindo, no que à movimentação da conta através de terceiro respeita, às
situações em que o titular de uma conta individual constitui procurador ou autoriza
alguém para o efeito.
A priori, as considerações tecidas a propósito desta situação-padrão valerão
também para as das contas coletivas. A dúvida colocar-se-á, sobretudo, no caso de conta
solidária: pode o contitular B, à revelia do contitular A, nomear procurador para a
movimentação da conta com os mesmos efeitos que teria a movimentação pelo próprio
B?
Para o REGENTE, parece que uma tal procuração não deve, salvo cláusula em
sentido diverso ser aceite pelo banco, uma vez que viola o intuitos personae entre os
contitulares associado à constituição de uma conta coletiva: não havendo consentimento
dos demais contitulares, a conta coletiva solidária passa a funcionar como conta coletiva
conjunta sempre que o representante ou autorizado de B a pretenda movimentar.

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Situação diversa será aquela em que a procuração ou a autorização sejam coevas


da abertura da conta: nesse caso, todos os interessados no contrato, máxime os demais
contitulares, aceitam que o funcionamento da conta em termos coletivos possa ter lugar
através de um agente de um dos contitulares.
A questão da movimentação da conta pelos representantes legais dos titulares das
contas, por incapacidade destes, reveste especiais dificuldades. A situação coloca-se com
particular acuidade relativamente à movimentação das contas pelos pais de menor, titular
da conta.
Para o REGENTE, a dúvida de se os pais podem proceder à movimentação da
conta do menor não se colocará nos casos em que a conta tenha sido aberta pelos mesmos
em representação do filho, sendo o depósito efetuado com dinheiro dos pais ou canalizado
para a conta através dos pais, sendo tal situação conhecida do banco. Trata-se de uma
situação – a do conhecimento efetivo por parte do banco – de difícil ocorrência em
concreto, mas que não levanta problemas.
Diversa é a situação em que a conta é aberta por terceiro em favor do menor ou,
tendo sido, embora, aberta pelos pais, tenha sido “alimentada” por terceiro, sendo tais
situações do conhecimento do banco: será então de presumir que os bens foram doados
ao menor com exclusão da administração dos pais? Trata-se de um ponto controverso,
mas a verdade é que não encontramos no regime do poder-dever de administração dos
pais relativamente aos bens dos filhos uma verdadeira exceção no que concerne aos bens
decorrentes de depósitos bancários.
E quanto às contas tituladas por pessoas coletivas? O princípio é o de que a
sociedade poderá movimentar a conta, nos termos gerais do contrato de conta, através do
órgão que a representa: estamos, no campo da representação orgânica.
Há, no entanto, duas situações que suscitam maiores dificuldades:
(i) aquela em que o banco é colocado entre “fogos” de administrações
desavindas, cada uma delas reivindicando legitimidade representativa;
(ii) a segunda é aquela em que, nos termos dos art.252.º/6 ou 391.º/7 CSC
são atribuídos a um terceiro poderes de movimentação de uma conta da sociedade.
No primeiro caso: o critério norteador do banco não pode deixar de ser o dos
dizeres do registo comercial. O banco só se poderá afastar do mesmo quando: a premência
da situação não se compadecer com a delonga do registo e o banco tenha elementos
documentais sólidos que lhe permitam tomar uma opção ou quando receba uma ordem
do tribunal num determinado sentido.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Não está também o banco impedido de recorrer à consignação em deposito do


saldo da conta, nos termos do art.841.º/1/a CC, na situação em que cada uma das
administrações desavindas “reivindique” a legitimidade representativa da sociedade.
Fora destes casos, o banco deverá optar, numa posição que é, substancialmente,
de defesa do cliente.
No segundo caso: é certo que os art.252.º/6 e 391.º/7 do CSC permitem que a
gerência ou a administração da sociedade nomeia mandatários ou procuradores da
sociedade para a prática de determinados atos ou categorias de atos, sem necessidade de
cláusula contratual expressa. Não obstante, parece-nos que os dispositivos citados não
permitem que a plena gestão da conta dique deferida a um sujeito fora das vias gerais e
normais da representação da sociedade.

4.5. Contas coletivas


Situações mais complexas são as das contas coletivas, em que o cliente bancário
é parte plural, já que o banco, ao aceitar a pluralidade de sujeitos, aceita e reconhece, uma
certa medida, que à pluralidade de sujeitos pode estar associada uma diversidade de
interesses. As contas bancárias coletivas são: (i) conjuntas ou (ii) solidárias.
A combinação de características destas pode dar lugar a contas mistas.
O regime “natural” é o da conjunção, que será aplicável no silêncio do contrato.
O caráter coletivo da conta pode ser fiduciário: aquele que, à partida, seria titular
único ou singular da conta, “coloca” outro na qualidade de contitular. O relevo está, em
princípio, limitado ao âmbito das relações internas entre os contitulares; contudo, ela pode
ser conhecida do banco, dando, então, lugar a perturbações específicas no caso de lítios
ou desencontros supervenientes entre os contitulares da conta.

4.5.1. Contas conjuntas


A conta conjunta acontece quando, ao conjunto dos titulares da conta corresponde,
no que à respetiva movimentação respeita, uma posição plurisubjetiva incindível
(conjunta), de modo que aquela só pode ter lugar através da intervenção dos vários
titulares.
Há, do lado ativo, uma verdadeira conjunção, que não uma situação de
parciaridade.

317
BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A natureza da conta conjunta pode ser originária da abertura da conta ou


superveniente, como no caso da morte do titular único da conta, havendo pluralidade de
herdeiros.
Pretendendo um contitular dispor da totalidade do saldo ou da “sua” parte do
saldo, o banco está vinculado, perante todos, a não permitir tal motivação.

4.5.2. Contas solidárias


Na conta solidária, as relações entre os diversos titulares da conta estão
estruturadas em termos de solidariedade.
A conta coletiva solidaria é aquela em que cada titular pode, sozinho, proceder à
movimentação da conta sem o concurso dos demais contitulares, sem ter também que
demonstrar perante o banco a autorização dos mesmos.
A solidariedade é circunscrita ao lado ativo (art.528.º ss CC), que respeita à
disponibilidade e à movimentação da conta a débito, que não uma solidariedade, a um
tempo, ativa e passiva.
A tipologia social das contas coletivas solidarias em Portugal vai apenas no
sentido da solidariedade ativa, que não também no do estabelecimento de mecanismo em
que cada contitular é responsável pela integralidade da dívida de cada um dos outros
perante o banco. Demonstra-o o facto de:
(i) a opção pelo caráter singular ou coletivo da conta depender apenas dos
clientes;
(ii) a opção pelo caráter conjunto ou solidário da conta coletiva depende
também dos clientes.
O que quer que os contitulares tenham regulado no âmbito das suas relações
internas é, a este propósito, indiferente, não podendo a violação do pacto interno ser
aposta ao banco, para efeito de impedir a movimentação por cada um dos contitulares ou
para efeitos de responsabilidade por uma movimentação à margem do acordo interno.
Assim, e a priori, não pode também um contitular revogar uma ordem dada por
outro contitular, ainda não executada, como por exemplo, na transferência bancária: o
banco deve obedecer à primeira ordem.
O REGENTE pensa, porém, que as contas em que exista um contitular fiduciário,
a que acima nos referimos, merecem neste particular, uma atenção, sempre no
pressuposto, frise-se, de que essa situação fiduciária é do conhecimento efetivo do banco:

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

perante uma ordem do contitular fiduciário que saia fora do giro normal da conta, o banco
tem o dever de consultar o “contitular principal”.
As situações de movimentação abusiva da conta solidária que têm chegado aos
tribunais portugueses respeitam às relações internas entre os diversos titulares que não às
relações do conjunto dos titulares ou de cada um deles com o banco.

4.5.3. Contas coletivas mistas


Nas contas coletivas mistas, os termos da respetiva movimentação são moldados
no contrato, em termos que conjugam particularidades das contas conjuntas e das contas
solidarias ou então particularidades de uma delas com outras variantes. Assim acontece,
por exemplo, nos seguintes casos:
- A conta pode ser movimentada em termos solidários até determinado
valor e a partir do mesmo apenas em termos conjuntos;
- A conta pode ser movimentada em termos solidários até determinado
valor e com a necessária intervenção de um núcleo mínimo de titulares a partir
desse patamar;
- A conta apenas pode ser movimentada pela necessária intervenção de um
número mínimo de titulares.

4.6. Contas fiduciárias


A praxis e a doutrina têm identificando outras classificações e modalidades de
contas. A conta fiduciária que reveste maior interesse, pela sua especificidade, é aquela
em que o caráter fiduciário é, hoc sensu, aparente: trata-se da conta fiduciária aberta ou
aparente, que não da conta fiduciária fechada ou oculta, em que o caráter fiduciário não
é revelado, estando circunscrito às relações internas entre o(s) fiduciante(s) e o fiduciário,
titular da conta.
Na legislação portuguesa encontramos uma situação que evoca as contas
fiduciárias abertas. Trata-se de contas bancárias abertas para recolha de receitas obtidas
através de espetáculos, peditórios ou depósitos de donativos, nos termos do DL 87/99, de
19 de março.
A lei não impõe nestes casos um mandato fiduciário ao banco, em termos de este
ter de zelar, como bom mandatário, pela correta aplicação dos dinheiros depositados: esse
papel de “guardião” compete às autoridades administrativas referidas no art.2.º/1 do
diploma estando as instituições de crédito obrigadas, de acordo com o art.3.º/3, a

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

transmitir às mesmas a indicação dos montantes pecuniários apurados nos peditórios


públicos com recurso a depósito em conta bancária, prazo de 10 dias contados a partir do
termo da data autorizada para a realização do peditório.
A necessidade de adoção de um comportamento protetor por parte dos bancos,
relativamente aos fiduciantes aparentes, pode ser identificada em “contas poupança”.

4.7. Contas de escopo


Há legislação específica sobre contas estruturadas exclusivamente em função de
determinados fins: são, digamos, contas de escopo. Como exemplos temos as contas
poupança-habitação, as contas poupança-emigrante ou as contas poupança-condomínio.
A estruturação destas contas em função de fins determinados é suscetível de gerar,
na prática, alguma confusão sobre se estamos perante contas ou depósitos especiais, já
que a logica dos depósitos e das utilizações das quantias depositadas acaba por
praticamente absorver essas contas.
Um caso diferente é o das contas poupança-reformado: nestas, o objeto é, pura e
simplesmente, a captação de poupanças, não tendo o titular de fazer a priva de utilizações
para um determinado fim.
A priori, não nos causa perplexidade que a lei possa impor a um banco, ou sob
iniciativa direta de um cidadão ou por ordem da autoridade de supervisão, a pedido do
interessado, a abertura de uma conta, com disponibilização de determinados serviços. Na
verdade, os bancos não estão fora da sociedade, são um seu instrumento e beneficiam dos
serviços que prestam. Parece-nos, assim, inteiramente lógica que, entre os requisitos para
o exercício da atividade bancária esteja a sujeição dos bancos, que têm o exclusivo dos
serviços bancários, à prestação volente nolente dos serviços de base associados à conta a
qualquer cidadão.
A legislação portuguesa não impõe aos bancos a obrigação de contratar, sem
prejuízo da sujeição dos mesmos às regras da concorrência, designadamente quando
proíbem práticas individuais restritivas.
O sistema português de acesso a contas bancárias passa pelo regime dos serviços
mínimos bancários (RSMB), consagrado no DL n.º 27-C/2000, de 10 de março.
O acesso a conta bancária é assegurado, nos termos do diploma, quanto a serviços
mínimos bancários, mas apenas perante instituições de crédito que adiram ao sistema de
acesso. De acordo com o art.2.º/1, as instituições de crédito aderentes disponibilizam à
pessoas singulares que o solicitem, mediante celebração de contrato de depósito – rectius,

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

contrato de abertura de conta – o acesso aos serviços mínimos bancários definidos nos
termos do art.1.º/2/a, a saber:
(i) serviços relativos à constituição, manutenção, gestão e titularidade de
conta de depósito à ordem;
(ii) titularidade de cartão de débito;
(iii) acesso à movimentação da conta através de caixas automáticas,
serviço de homebanking e balcões da instituição de crédito;
(iv) acesso às operações que se consubstanciem em depósitos,
levantamentos, pagamentos de bens e serviços, débitos diretos e transferências
interbancárias nacionais;
(v) disponibilização de extratos trimestrais, em papel solicitado,
discriminativos dos movimentos da conta nesse período ou disponibilização da
caderneta para o mesmo efeito.
A especificidade desta conta justifica o regime de resolução do contrato de conta
previsto no art.4.º/7: a instituição de crédito pode resolver o contrato caso o titular possua,
durante a vigência do contrato, uma outra conta bancária, podendo ainda exigir do titular,
se for caso disso, o pagamento dos custos, taxas, encargos ou despesas, nas condições
normalmente praticadas pelo banco para os serviços que tenham sido disponibilizados,
estando, contudo, esta última faculdade dependente de um pré-aviso por parte do banco.
Igualmente compreensível a previsão do cancelamento da conta, através de
denúncia, nos termos do art.5.º: as instituições de crédito podem denunciar o contrato de
abertura de conta decorrido pelo menos um ano após a sua abertura se, nos seis meses
anteriores à denúncia, a conta apresentar um saldo médio anual inferior a 5% da
remuneração mínima garantida e não tiverem sido realizadas quaisquer operações
bancárias nesse mesmo período de tempo.

4.8. Algumas vicissitudes da conta


Há dois grupos de vicissitudes:
(i) o daquelas que perturbam o saldo ou parte dele e deixam incólume a
conta e em condições de continuar a funcionar, exceto no que respeita ao saldo
atingido e na medida em que o foi;
(ii) o daquelas em que a conta é diretamente atingida enquanto relação
contratual ou enquanto realidade contabilística.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

No primeiro grupo enquadramos o cativo bancário, o chamado penhor de conta e


a chamada penhora de conta; no segundo inserimos a perda do poder de movimentação
da conta, os de bloqueio da conta e as situações de cessação da conta.

4.8.1. O cativo bancário


O cativo bancário constitui uma situação contabilística e jurídica específica
relativa à conta, traduzida na indisponibilidade do saldo ou de parte dele, por força da lei
ou de convenção das partes.
O cativo bancário pode ter na sua origem causas várias:
(i) uma convenção das partes nesse sentido, como por exemplo na cláusula
de cativação com fins de garantia;
(ii) um contrato de garantia, como no chamado penhor de conta;
(iii) como prática preparatória de um negócio bancário ou (iv) por força da
lei, como no caso de penhora do saldo.

4.8.2. O penhor de conta


Ora, esse direito de crédito sobre o banco pode ser dado de penhor a favor do
próprio banco ou de terceiro, seguindo-se os termos do penhor de créditos. É isto,
simplesmente, que constitui o chamado penhor de conta bancária.
Pergunta-se se, sendo o beneficiário do penhor o próprio banco devedor do
crédito, tal transforma a figura numa outra, ainda que atípica ou até socialmente típica,
com referência, neste último caso, ao domínio dos negócios bancários. Parece-nos que
não, sem prejuízo das especificidades de regime ditadas pela frequente coincidência entre
o credor pignoratício e o devedor do saldo.
Do mesmo modo, não parece possível, sem mais, ver num denominado “penhor
de conta” constituído pelo titular da conta a favor do banco onde a mesma está sediada,
para garantia de um crédito deste sobre um terceiro devedor, uma garantia pessoal sobrada
por um acordo de limitação de responsabilidade do dador de penhor ao quantum do saldo.
Um dos tradicionais obstáculos apontados à admissibilidade do penhor de conta
bancária tem sido a proibição do pacto comissário, consagrada no art.694.º CC.
Contudo, em função da ratio da proibição do pacto comissório, esta não impede a
validade de tal cláusula do penhor, já que o mecanismo autosatisfativo convencionado se
apresenta, em concreto, perfeitamente equivalente ao mecanismo autosatisfativo
traduzido, quer na alienação extrajudicial do objeto do penhor (art.675.º/1 CC) quer na

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

permissão de convenção no sentido de o bem empenhado ser entregue ao credor pelo


valor que o tribunal fixar. Ora, no caso concreto, tratando-se, direta ou indiretamente, de
dinheiro, não poderá ser posta em causa a equivalência de valor do bem empenhado ao
valor com que o credor se satisfaz.
Situação de oneração da conta acontece também, mas aí em termos fracos, por que
não em modo real, quando o titular da conta acorda com o banco e favor deste a cativação
do saldo, ou seja a não motivação do saldo até que aconteça uma situação especifica,
normalmente o cumprimento de uma obrigação.
Nestas situações o titular da conta renuncia à respetiva movimentação a favor do
banco, passando este a ter toda a legitimidade para recusar, licitamente, essa
movimentação por parte do titular.
O beneficiário do pacto de cativação, dito também de consignação, pode ser um
terceiro, estranho à conta, sendo questão de interpretação do negócio celebrado saber se
estamos, então, perante um contrato a favor de terceiro que, dessa forma, adquiria um
direito por força do contrato.

4.8.3. Penhora da conta


A penhora de conta é a penhora do saldo ou parte do saldo da conta a que a penhora
se refere.
Trata-se, claramente, da penhora de um crédito, com as especificidades
estabelecidas no art.861.º-A CPC.
Traços do regime com maior relevância:
- Art.861.º-A/2: sendo vários os titulares da conta, a penhora recai sobre a
quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se que as quotas são
iguais;
- Art.861.º-A/5: manda seguir critérios específicos de preferência na
penhora de contas. Assim, as contas em que o executado seja único titular devem
ser penhoradas antes daquelas em que o mesmo é contitular;
- O efeito da comunicação da penhora ao banco é a cativação do saldo a
partir da data da notificação. Trata-se, porém, de uma cativação provisória, já que,
para além de a lei admitir “afetações” pontuais do saldo penhorado, nos termos do
art.861.º-A/10, admite igualmente ajustamentos em função do resultado final das
comunicações efetuadas;

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

- Finalmente, o art.861.º-A/11 estabelece o princípio da responsabilidade


do banco pelos saldos bancários nele existentes à data da notificação da penhora,
sem prejuízo das situações de afetarão prevista no art.861.º-A/10.

4.8.4. Perda do poder de movimentação da conta


Ocorrida a penhora do saldo da conta, o titular da mesma fica impedido de
movimentar o saldo penhorado. Em rigor, não será uma situação de perda do poder de
movimentação mas de suspensão, que terminará no caso eventual de levantamento da
penhora. Similarmente, nas situações de declaração de insolvência, ocorre a transferência,
ope legis, dos poderes de movimentação da conta para um sujeito diverso do titular
respetivo: por força do art.81.º CIRE, o insolvente fica imediatamente privado dos
poderes de movimentação da conta, os quais passam a competir ao administrador da
insolvência.

4.8.5. Bloqueio e controlo da conta


A expressão bloqueio da conta ou bloqueamento da conta deve, para JANUÁRIO,
ser reservada para as situações em que a conta e respetivas valências são paralisadas por
ordem de uma autoridade ou por força da lei. Neste universo, podemos incluir a situação
do art.8.º/2 Aviso BdP n.º 11/2005, bem como as medidas previstas no âmbito da
complexa legislação de combate ao terrorismo, ao branqueamento de capitais, e outro
males, sendo então mister interpretar as medidas de congelamento de fundos e similares
correspondem a simples imposições de cativação ou se, mais amplamente, impõem o
bloqueio – e, logo, a paralisação total – da conta.
A situação de controlo de conta bancária obriga a instituição de crédito ou
instituição de pagamento onde a conta está sediada a comunicar quaisquer movimentos
sobre a conta à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal dentro das vinte e
quatro horas subsequentes.

4.8.6. Cessação da conta


A cessão do contrato de conta está sujeita ao regime geral da cessação das relações
contratuais duradouras, podendo, assim, cessar por revogação, caducidade, denúncia ou
resolução.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quais as consequências da extinção do contrato de conta? Cessa, naturalmente,


toda a relação contratual com o cliente, estruturada com base naquela conta. Melhor será
dizer que cessam todas as específicas relações contratuais identificadas nesse âmbito.
A liquidação da relação contratual implicará o dever de o banco entregar ao cliente
o saldo da conta, se favorável a este; inversamente, se o saldo for favorável ao banco, o
cliente deverá pagar as quantias em dívida, vencendo-se, a partir daí, juros à taxa legal,
se outra não tiver sido convencionada.
Identificam-se também outros deveres, como seja o de restituição ao banco, por
parte do cliente, de elementos de que o banco seja proprietário, como cartões ou módulos
de cheques. A cargo do banco, como principal dever pós-obrigacional de fonte legal,
encontramos o dever de segredo.
A situação mais linear será a revogação, em que as partes acordam a extinção do
contrato e respetivos termos. O acordo de extinção regulará as situações pendentes de
liquidação, máxime o destino do saldo credor a favor do titular da conta que lhe é entregue
– que lhe é pago.
Sendo a conta coletiva, a revogação do contrato de conta envolve, naturalmente,
todos os titulares da conta.
Menos frequentes são as situações de caducidade da conta em sequência de ter
sido atingido o prazo acordado para a sua vigência. Se tiver sido este o caso, a relação da
conta cessará automaticamente, sem necessidade de declaração a tanto dirigida, mas sem
prejuízo das situações de pós-eficácia e de liquidação da mesma.
Outra situação típica de caducidade da conta é a da morte do respetivo titular,
atento o caráter pessoal da relação entre o titular da conta e o banco, a partir do momento
em que tal relação foi estabelecida.
Quanto à denúncia, esta exige a determinação do pré-aviso mínimo ou da
antecedência mínima que se deverá pautar, na ausência de regulamentação contratual
nesse sentido, pelo paradigma do razoável, considerando, o tipo e o tempo de cliente. A
priori, tratando-se de denúncia por parte do banco, faz sentido, por razões de paralelismo
com o regime da denúncia do contrato-quadro de serviços de pagamento (art. 56º/4 RSP),
que a antecedência seja mínima de dois meses.
Enquanto não se esgota o prazo comunicado pelo declarante, o contrato mantém-
se plenamente em vigor, para todos os efeitos. Há que admitir alguma inflexão que possa
ser imposta pelo princípio da boa-fé.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

O problema de saber se, feita a declaração de denúncia sem a antecedência


razoável, o contrato se extingue efetivamente na data da eficácia da própria declaração ou
se, ao invés, a denúncia do contrato só se considera eficaz decorrido que seja o referido
prazo, é matéria que não é específica do contrato de conta por tempo indeterminado,
devendo ser solucionada à luz da dogmática geral da denúncia.
Finalmente, a denúncia pode constituir uma “ameaça legítima” para efeitos de
obtenção de uma modificação do contrato, através de uma denúncia-modificação: por
exemplo, (i) o banco comunica ao titular da conta a denúncia do contrato, mas
acompanhada da indicação de que a denúncia fica sem efeito se o cliente aceitar novas
cláusulas; (ii) ou o cliente denuncia o contrato de conta mas declara que a denúncia fica
sem efeito se o banco informar, antes do decurso do prazo, que aceita baixar determinada
comissão ou prescindir dela.
Quanto à resolução, temos como situação que pode levar o banco a usá-la aquela
em que o mesmo tenha elementos para sustentar a utilização da conta por parte do ciente
para branqueamento de capitais ou para a prática de outros atos ilícitos. Outra situação
será aquela em que o banco tenha elementos sólidos para concluir que o cliente utiliza
abusivamente a carteira de cheques de que dispõe.

5. As operações de concessão de crédito.


5.1. Introdução.
O Código Veiga Beirão não seguiu as orientações terminológicas do Código de
Seabra. Na verdade, ao estabelecer, no art.395.º, que “o empréstimo mercantil é sempre
retribuído”, o CCom coloca-se em oposição à noção de empréstimo do art.1508.º CC, que
consagra o caráter essencialmente gratuito do empréstimo.
Passamos assim a ter um empréstimo mercantil tipologicamente oneroso, mas
com a particularidade ed o respetivo objeto não ter de ser necessariamente coisa fungível.
Que a exigência de juro e respetivo cálculo não estava dependente do caráter
fungível do bem emprestado, demonstra-o o parágrafo único do art.395.º, que na falta de
convenção, estabelece que a retribuição é determinada por aplicação da taxa legal do juro
ao valor da coisa cedida.
Seja como for, o empréstimo mercantil mais relevante é o empréstimo de dinheiro
ou de outra coisa fungível. É a esse que se refere o art. 362.º CCom, que considera
comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

5.2. O mútuo civil, o mútuo comercial e o mútuo bancário.


5.2.1. Mutuo civil
O mútuo surge definido no art.1142.º como modalidade de empréstimo. De acordo
com este artigo, o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro
ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo
género e qualidade.
A especificidade do mútuo relativamente ao comodato está no seu objeto: dinheiro
ou outra coisa fungível. No mútuo, diversamente do comodato, o mutuário torna-se
proprietário das coisas mutuadas, conforme o art.1144.º.
O mútuo apresenta-se assim como um contrato real quoad effectum.
Sendo transferida a propriedade das coisas mutuadas para o mutuário, a pretensão
do mutuante finda o prazo acordado, não é de exigir o quid mutuado, mas uma quantia
correspondente ao capital mutuado. A referência a “restituição” sugere contra a realidade,
que o mutuante tem uma posição real face ao mutuário. Não tem: a sua posição é
estritamente obrigacional.
O mútuo era tradicionalmente apresentado como um exemplo do contrato real
quoad constitutionem: só haveria mútuo com a entrega ao mutuário do bem mutuado. O
quadro doutrinário mais recente não é esse: enquanto alguns autores profiram na visão
clássica, outros identificam uma assintonia entre o tipo social e o tipo legal. A questão
está em saber se essa assintonia se verifica em todo o domínio do tipo. Parece que não: o
tipo legal correspondente ao mútuo civil puro, continua a ser real quoad constitutionem.
Mas já será de afirmar o caráter consensual do mútuo sem estrega se a declaração tiver
sido feita por um profissional, independentemente da qualidade do mutuário.
A nível da caracterização do contrato de mútuo como unilateral ou bilateral, a
mesma encontra-se dependente do caráter real ou consensual do contrato: só no segundo
é bilateral, já que do mesmo emerge o dever de entrega ao mutuário do quid mutuado,
dever esse que se contrapõe ao dever de restituição do art.1142.º.
O CC optou por “destipificar” a usura enquanto contrato. Não há, agora, mútuo
gratuito versus usura, mas mútuo gratuito versus oneroso. Assim resulta do art.282.º, mas
também do art.1146º/1, que considera usurário o contrato de mútuo em que sejam
estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3 ou 5%, conforme
exista ou não garantia real. Há ainda o art.559.º-A sobre os juros usurários.
Estranhamento, o mútuo civil presume-se oneroso em caso de dúvida, conforme
o art. 1145º/1. Seria suposto que fosse naturalmente gratuito. Terá aparentemente, pesado

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

o modelo do art.1815.º do códice civile, no qual a onerosidade como característica natural


fez sentido.
Sendo o mútuo oneroso, há que aplicar o regime do art.559.º CC, relativo à taxa
de juros, havendo também que considerar o regime do art.560.º sobre anatocismo.
Do art.1143.º resulta que o mútuo tanto pode ser formal quanto consensual,
havendo uma graduação da forma em função do valor. Realce-se, no entanto, que, sendo
convencionada taxa de juro superior à legal, o art.559.º/2, ex vi 1145.º, exige que tal
convenção seja reduzida a escrito.
O CC não contem qualquer limitação em termos de prazo, i.e., estabelecendo
prazo mínimo ou máximo.
Há, porém, uma previsão para as situações em que as partes não tenham estipulado
um prazo. Circunscrevendo-nos ao empréstimo de dinheiro ou de coisas fungíveis
diversas de cereais ou de outros produtos reais, a lei distingue consoante o mútuo seja
gratuito ou oneroso. No primeiro caso (art.1148.º/1), a obrigação do mutuário “só se
vence trinta dias após a exigência do seu cumprimento”, disposição esta que não
interpretamos no sentido de o mutuante estar impedido de fixar um prazo de vencimento
superior. Sendo o mútuo oneroso, o art.1148.º/2 dispõe que qualquer das partes pode
denunciar o contrato com uma antecedência mínima de trinta dias.
No caso do mútuo gratuito, faz sentido que o mutuário não tenha de dar prazo
algum ao mutuante para pagar: paga quando quiser. Mas já não fará sentido que, pese
embora o caráter gratuito do mútuo, o mutuário possa ser interpelado para pagar no
imediato, justificando-se, assim, o prazo de trinte dias, em afastamento do regime geral
das obrigações puras (art.805.º/1).
Já no caso de mútuo oneroso, o legislador entende que, não havendo prazo
estipulado, cada uma das partes dê à outra um prazo não inferior a trinta dias, agora para
a denúncia. Não obstante, o regime não tinha de estar assim desenhado, designadamente
no que concerne ao facto de, no art.1148.º/1, o legislador ter por referência o dever de
restituir, a cargo do mutuário, isolando-o da relação contratual, enquanto no caso do
mútuo oneroso (art.1148.º/2) considera já o contato no seu conjunto.
No mútuo oneroso, quando se tenha fixado prazo: o art.1147.º presume, então, tal
prazo estipulado a favor de ambas as partes, mas admite que o mutuário possa antecipar
o pagamento, satisfazendo os juros por inteiro: trata-se de uma solução que considera os
interesses de ambas as partes. Conforme vimos, o regime do art.1147.º está no centro de
uma polémica doutrinal e jurisprudencial sobre a exigibilidade de juros remuneratórios

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

relativos a períodos de tempo não decorridos à data do incumprimento dos contratos de


mútuo e de crédito. Esta presunção é iuris tantum.

5.2.2. O mútuo bancário


O mútuo bancário é o mútuo oneroso que tem por objeto dinheiro, sendo mutuante
um banco ou uma instituição de crédito que, nos termos do seus estatutos e do RGIC,
tenha capacidade para conceder crédito. Integra-se no empréstimo do art.362.º CCom,
que considera comerciais todas as operações de bancos tendentes à realização de lucros
sobre numerário, designadamente empréstimos, descontos e aberturas de crédito.
Desde há algumas décadas, houve uma evolução no sentido da autonomização de
uma figura mais ampla que abrange o mútuo bancário, que se pode designar por contrato
de crédito ou como operação de crédito ou operação de concessão de crédito. A expressão
contrato de crédito é vaga, o que decorre da dificuldade de definir o que seja crédito.
Ainda assim, mostra-se juridicamente mais precisa do que a expressão operação de
crédito bancário.
JANUÁRIO prefere falar de contrato de crédito, em reconhecimento do caráter
estruturalmente contratual da atividade de concessão de crédito, mas sem deixar de
salientar o facto de, marginalmente, poder haver situações em que a natureza contratual
se mostre duvidosa.
Esta preferência mostra-se, aliás, de acordo com as opções tomadas pelo
legislador na LCC que deixou de regular o “crédito ao consumo” para passar a regular os
contratos de crédito aos consumidores.
Há, assim, um conjunto de matérias que são comuns aos contratos de crédito e que
são abordadas nessa sede: questões de juros e respetivos regimes, modalidades de crédito
e respetivas classificações.
Cabe agora destacar as particularidades entre o mútuo bancário e o mútuo oneroso
civil de dinheiro.
Quanto à constituição, está implementada a prática de dispensar a entrega do
dinheiro mutuado como requisito para que o contrato se considere celebrado.
Aliás, na praxis bancária, o banco só credita a conta após a celebração do contrato.
Ora, neste quadro, só artificiosamente é que se poderá dizer que o contrato não é
consensual mas real quoad constitutionem.
Quanto à forma, o art.396.º CCom admite todo o género de prova quando se trate
de empréstimo entre comerciantes.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Do DL n.º 32/765, de 29 de abril de 1943, resulta que o empréstimo feito por um


banco pode, qualquer que seja o seu valor, ser provado por um simples documento escrito,
quer o mutuário seja comerciante ou não. O regime especial deste DL é muito limitado,
porém. Na verdade:
(i) a LCC impõe a redução a escrito (art.12.º) dos contratos de crédito aos
consumidores;
(ii) o regime do art.396.º CCom é aplicável aos empréstimos bancários
quando a contraparte seja um comerciante.

5.3. A abertura de crédito.


O contrato de abertura de crédito é mencionado no art.362.º CCom como uma das
“operações de banco”. É assim um contrato legalmente atípico, mas nominado. Esta
atipicidade é compensada pela clara tipicidade social da figura.
A abertura de crédito está presente quando a lei alude genericamente a contratos
de crédito, expressão que abrange, à cabeça, o mútuo e a abertura de crédito. Mas ela
surge também especificamente mencionada na legislação bancaria, como por exemplo,
no art. 5º/2 do DL 344/78, de 17 de novembro. A LCC não menciona expressamente a
abertura de crédito, mas ela está presente na definição de contrato de crédito (art. 4º/1/c)),
desde logo na referência que é feita ao contrato de utilização de cartão de crédito; o
mesmo se pode fizer da facilidade de descoberto, contrato definido no art. 4º/1/d).
O que é disponibilizado é crédito, nos termos e condições concertados, mais
especificamente:
(i) dinheiro;
(ii) assinatura do banco.
A disponibilização de crédito conhece dois limites: o montante e o tempo. Uma
instituição de crédito não abre, na realidade, crédito sem um limite máximo, determinado
ou determinável. Dentro desse plafond, poderão existir sub-plafonds, v.g. (i) para
dinheiro, (ii) para emissão de garantias ou (iii) para pagamentos documentários.
Quanto aos limites temporais, a abertura de crédito é tipicamente celebrada por
tempo determinado, com prazo prorrogável ou não. Mas nada impede que seja por tempo
indeterminado.
O contrato de abertura de crédito é assim, o contrato através do qual o banco
disponibiliza crédito ao cliente através de dinheiro ou da sua assinatura até um
determinado montante e por um período de tempo determinável ou determinado.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

As vantagens relativamente ao mútuo são evidentes, mas ela acarreta também


desvantagens. Para o creditado, os benefits serão superiores às desvantagens, visto que
ele adquire a certeza ou segurança do crédito, podendo adaptar as utilizações às suas
necessidades. Contudo, a abertura do crédito terá a desvantagem de ter de suportar o preço
da imobilização do capital.
Par ao banco, em situações de falta de liquidez dos bancos e dificuldade de acesso
ao crédito, os bancos não têm porque favorecer a abertura de crédito; em épocas de
liquidez, ganham com a abertura de crédito, por fixar clientes.
Quando cotejada com o mútuo bancário, a abertura de crédito apresenta-se,
seguramente, mais ágil e flexível.

5.3.1. Modalidades e características


Os contratos de abertura de crédito estão, grosso modo, sujeitos às classificações
dos contratos de crédito acima referidas, e podem ser estruturados em termos de:
- O limite fixado constituir o máximo de utilização possível, somando as
varias utilizações (abertura de crédito simples);
- O limite fixado constituir o máximo de utilizado possível a cada
momento, em função do saldo da conta corrente da abertura de crédito (abertura
de crédito em conta corrente).
As condições de movimentação de crédito constam do contrato. Na maioria dos
casos, há um período de utilização. Esta não pode ser estorvada pelo banco, salvo na
medida em que não estejam satisfeitos os requisitos de movimentação acordados. Ou seja,
a posição do creditado é, em princípio, potestativa.
Quando não utilize o capital, o creditado não é devedor de juros; mas a
imobilização do capital à disposição do creditado tem, ela própria, um preço, sendo usual
a fixação de uma comissão de imobilização: o creditado paga, através dessa comissão, a
segurança de ter capitais à sua disposição que não utiliza.
Quanto às respetivas características, a abertura de crédito é: (i) um contrato
consensual; (ii) sinalagmático e oneroso; (iii) um contrato consensual.

5.3.2. Natureza jurídica


Quanto à natureza jurídica, JANUÁRIO segue a tese da sua autonomia, rejeitando
as teses que reconduzem a abertura de crédito a outras figuras.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Realce-se, porém, que a prestação a cargo do banco não reveste sempre a mesma
natureza: ela será uma prestação de dare, no caso, mais comum, de o creditado te rum
poder potestativo de utilização de dinheiro; mas já será de facere se a utilização de crédito
se materializar em assinatura do banco. Em rigor, só nos casos em que a prestação do
banco é de dare, é que a abertura de crédito é pura, no sentido de que independe da
celebração de futuros negócios máxime com terceiros. Nos demais, em que o banco,
através de assinaturas, se vinculará perante terceiros, o incumprimento do dever de
celebrar tais contratos seguirá o regime do contrato-promessa, sendo o credor do
cumprimento o creditado.
A circunstância de a posição do creditado, no que respeita à utilização do crédito,
ser pessoal e potestativa impede que essa posição jurídica ativa seja objeto de penhora
por credores terceiros.

5.4. O desconto. Tópicos.


À partida, classicamente, o desconto pressupõe que um sujeito seja titular do
direito de crédito incorporado num efeito comercial, normalmente letras de câmbio,
direito esse que não se encontra vencido. Através do desconto, o banco descontador
antecipa ao referido titular, portador legítimo do título, a quantia literalmente inscrita no
efeito, deduzida de juros compensatórios e comissões, através de endosso, para o banco,
que, assim, assume a qualidade de titular do direito no mesmo incorporado.
Assume aqui relevo central a figura da taxa de desconto, ou seja da taxa a aplicar
nas operações de desconto.
Não obstante ser o desconto cambiário a figura clássica do desconto e aquela que
tem maior utilização, nada impede que o direito de crédito não vencido objeto do desconto
tenha uma natureza comum.
O desconto bancário consubstancia, assim, uma antecipação de fundos, deduzindo
ao valor inscrito no efeito os juros e as comissões. Não se trata, porém, de uma operação
confundível com a antecipação bancária, porque no desconto bancário não há uma ligação
intrínseca entre o crédito e um penhor.
O desconto apresenta-se como uma operação de banco, referida no art.362.º
CCom, como tendo natureza comercial. Surge em legislação especial, como o art.5.º/1
DL n.º 344/78, de 17 de novembro.
Ao antecipar o montante do efeito, com as deduções assinaladas, o descontador
concede crédito ao descontário, em função do efeito. A doutrina e a jurisprudência veem

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

aí um mútuo, com autonomia bastante para que o banco descontador possa exigir o
pagamento das quantias pela via do empréstimo, em alternativa à cambiária.
Não obstante, essa identificação de um mútuo não pode, para JANUÁRIO, ser
hiperbolizada, já que o adiantamento de capital está intimamente associado a um efeito
que o banco tomou e que é suposto, salvo cláusula em contrário fazer valer face aos
obrigados cambiários.
O contrato é assim legalmente atípico, mas socialmente típico.
O desconto é, por vezes, apontado como um contrato real quoad constitutionem.
Para JANUÁRIO, a natureza real, a existir, seria, antes, explicada pela entrega do efeito
a descontar, que não pela entrega de dinheiro. Temos, porém, por mais avisada e
compatível com a autonomia e a gilidade da operação de desconto a sua natureza
consensual e não real quoad constitutionem.
Quanto à forma, tudo aponta no sentido da consensualidade, não obstante a praxis
bancaria ser no sentido da redução a escrito nos restantes contratos de crédito.

5.4.1. Natureza jurídica do desconto bancário


Para FERNANDO OLAVO e a jurisprudência, o desconto é um empréstimo com
datio pro solvendo, em termos de negócio misto.
Para o REGENTE, esta caracterização não pode ser acompanhada sem algumas
precisões e reservas. A questão está na natureza jurídica da datio pro solvendo. Se esta
consubstanciar sempre um mandato então isso significa que o banco descontador tem o
dever jurídico, decorrente do mandato, de obter primeiro o pagamento das obrigações
cambiárias, recorrendo mesmo, se necessário, à via executiva, antes de poder agir contra
o descontário pela via comum. Não é essa a prática do desconto. Porém, essa praxis já
não será incompatível com a identificação de uma datio pro solvendo na medida em que,
a datio pro solvendo, pode consubstanciar uma simples autorização para alienação, no
interesse conjunto do autorizante e do autorizado.
Ora, da autorização não resulta um dever de atuação gestória, mas só uma
faculdade.
Nada disto perturba a caracterização do desconto, em termos de natureza jurídica,
como um contrato misto de empréstimo e de datio pro solvendo; contudo, essa
caracterização não prescinde das precisões que acabámos de fazer.

5.5. O descoberto em conta. Tópicos.

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A concessão de crédito pelo banco pode acontecer no quadro do contrato de conta


e da conta-corrente ao mesmo associada.
Pode o banco, aceitar, em determinados termos, de montante e ou de duração, que
o saldo se apresente negativo para o cliente e positivo para o banco, o que significa que
aceita que o cliente movimente a conta a debito, apesar da ausência de fundos para tal. É
o descoberto.
Normalmente, destina-se a permitir ao cliente acudir a situações pontuais de
dificuldade de tesouraria ou para financiar atividades sazonais ou créditos de campanha.
São geralmente situações de curto prazo.
Tem duas modalidades principais:
(i) o descoberto contratado, que resulta de um contrato de abertura de
crédito;
(ii) o descoberto tolerado ou autorizado, e, que embora não havendo
necessariamente um acordo, o banco aceita ou tolera pontualmente levantamentos
ou saques a descoberto para acudir a situações pontuais ou ocasionais.
Já não integra a figura do desconto a situação em que, à revelia da vontade do
banco, é criada acidentalmente uma situação de saldo negativo na conta.
Refira-se finalmente, que, mesmo nos casos em que não há vontade de concessão
de crédito ou sequer factos concludentes, não deixamos de estar perante lançamentos a
descoberto, lançamentos feitos por imperativo contabilístico.
Quanto à sua natureza, apresenta-se como um contrato de crédito que segue
normalmente o regime da abertura de crédito. Porém, permanece o regime do mútuo como
regime base ou subsidiário.
Pela sua implementação na praxis, o descoberto é um tipo social.
Questão delicada é saber se o banco, autorizando o descoberto, pode exigir o
pagamento imediato do mesmo, o que vale dizer, a regularização da conta, colocando o
saldo, como é normal. Na falta de previsão específica no contrato de abertura de conta, o
banco pode, ressalvados os limites impostos pela boa fé, exigir o pagamento imediato.
Mas já será de exigir a antecedência mínima nos casos de descoberto contratado e nas
situações em que o descoberto tenha sido provocado ou induzido pelo próprio banco.

5.6. A antecipação bancária. Tópicos.

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A antecipação bancária é definida como um contrato de crédito, através do qual o


banqueiro concede ao seu cliente um crédito mediante um penhor equivalente de títulos,
dinheiro ou outros bens.
A antecipação bancária tem um dos seus “ambientes” naturais, seguramente não
único, nas relações entre bancos comerciais e bancos centrais, no âmbito de operações
tendentes à obtenção de liquidez, tendo como elemento caraterizador o facto de haver
uma “profunda interdependência entre a relação de crédito e a de garantia”, numa
constante relação de proporcionalidade.
A tipicidade social da antecipação bancária mantém-se no direito português.
Para a recondução ao tipo antecipação bancária, parece importante a identificação
de um “princípio da essencialidade crédito-garantia”. Mas já não se tem por relevante a
contraposição entre um “quadro de acessoriedade” e um “quadro de essencialidade”, já
que o penhor +e sempre acessório mesmo quando “essencial” em termos de tipo.
Essa relação crédito-garantia deve, ademais, processar-se em termos de
proporcionalidade, postulando um rácio entre a quantia adiantada a título de mútuo ou de
abertura de crédito e o valor dos bens empenhados.
De certo modo, o banco “dá” ao creditado o valor dos bens empenhados, mas sem
que haja, juridicamente, uma aquisição destes: os bens são dados em garantia
(empenhados), podendo, depois, ser “resgatados”, nos termos do contrato e no decurso
do mesmo, contra o pagamento do quantum correspondente ao valor dos bens libertados.
Isto tem como efeito a necessidade de se reconhecer uma outra caraterística da
antecipação bancária, consistente na atenuação, se não mesmo afastamento, do princípio
da invisibilidade, consagrado no art.696.º CC, aplicável ao penhor por força do art.878.º
CC.
Não obstante a figura estar estruturada em termos de penhor, as partes podem, em
concreto, obter resultados equivalentes, não através de um penhor mas de uma alienação
em garantia de títulos ou mercadorias, construindo, por acordo, o funcionamento da
proporcionalidade, nos termos da antecipação bancária comum. Um efeito equivalente
pode ainda ser conseguido através da proporcionalidade entre o crédito e um cativo
bancário, não obstante este consubstanciar, em termos de segurança do crédito, um minus
relativamente ao penhor.
Na falta de um regime legal específico, o regime a aplicar à antecipação bancária
é a um tempo o do mútuo e do penhor, sendo aqui particularmente relevante o regime do
penhor de que se trate. É um contrato misto, socialmente tipificado e unitário e autónomo.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

5.7. A locação financeira (leasing). Tópicos.


A grosso, a diferença fundamental entre o recurso ao crédito clássico, identificado
pelo contrato de mútuo, e o crédito através de leasing, está no facto de, neste, a decisão
financeira da empresa que recorre ao crédito para aquisição de um bem não se traduzir
numa direta procura de dinheiro que lhe assegure liquidez para essa aquisição, mas, antes,
na obtenção do bem disponibilizado pelo financiador.
Isto explica a expressão locação financeira: a locação é o tipo contratual clássico
que estrutura os termos de disponibilização de um bem; a referência financeira espelha o
facto de a decisão de recorrer ao crédito por esta via ser uma decisão financeira da
empresa ou do particular.
Face ao art.1.º LLF (DL n.º 171/79, de 6 de junho), a locação financeira é o
contrato pelo qual uma das partes – o locador - se obriga, mediante retribuição, a ceder
à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por
indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um
preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele
ficados.
Aspetos essenciais:
- Objeto: qualquer coisa móvel ou imóvel, suscetível de ser dada em
locação (art.2.º/1);
- Forma: basta redução a escrito (art.3.º);
- Registo: a locação de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo está
sujeita a inscrição no serviço competente (art.3.º/5);
- Prazo: o prazo máximo possível é de 30 anos (art.6.º/2). Quando se trate
de coisas móveis, não deve exceder o que corresponde ao período previsível de
utilização económica da coisa; os prazos supletivos são 18 meses para as coisas
móveis e 7 anos para as imóveis;
- Retribuição: o locatário está obrigado a pagar as rendas;
- Preço de aquisição: a fixação de preço de aquisição é feita no contrato.
Par ao locatário, a locação financeira terá vantagens contabilísticas, vantagens
essas dobradas por outras de natureza fiscal.
São várias as modalidades de leasing. Primeiro temos a locação financeira
mobiliária versus imobiliária. O art.7.º LLF deixa antever a diferença entre first e second-
hand leasing, já que admite que, findo o contrato, sem que o locatário exerça a faculdade

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

de compra, o locador possa, designadamente, celebrar nova locação financeira que tenha
esse contrato por objeto. Da articulação entre a LCC e a LLF, resulta, por sua vez, a
diferença entre leasing à empresa e ao consumidor, o qual incide sobre bens móveis de
consumo duradouro.
Outras distinções:
- Leasing normal versus sale-lease-back-leasing: neste, o proprietário de
um bem vende-o a uma instituição de crédito que, na volta (back), o dá em locação
financeira ao vendedor;
- Locação financeira material ou imaterial: consoante o bem seja corpóreo
ou incorpóreo;
- Short-leasing e long-leasing: no primeiro a duração é determinada, no
segundo funciona uma lógica de resolving-credit;
- Net-leasing ou gros-leasing.

5.7.1. Da indicação do bem a locar à restituição ou compra do bem locado


O bem a locar é adquirido ou construído por indicação do interessado, futuro
locatário. Essa indicação destina-se a que o locador adquira o bem ou o faça constituir,
ficando, em qualquer dos casos, seu proprietário.
A posição de proprietário do locador, revestindo, embora, uma importância central
na configuração do negócio e nas garantias associada, é, de algum modo, instrumental,
sendo o locatário financeiro a assumir, de facto, essa qualidade.
Trata-se de um ponto patente no art.15.º, de acordo com o qual, salvo estipulação
em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário.
Denota-se uma dissociação entre risco-estático e a qualidade de proprietário do bem do
risco-estático pelo locatário do facto de propriedade do locador sem uma propriedade em
garantia.
Estando o locatário na posse do bem e beneficiando do seu gozo, será ele,
naturalmente, a exercer conta o devedor os direitos relativos ao bem locado, tanto mais
que o art.12.º LLF é expresso no sentido de que o locador não responde pelos vícios do
bem locado ou pela sua inadequação aos fins do contrato; contudo, nada impede que seja
o locador a exercer tais direitos contra o vendedor, nomeadamente no caos em que o
locatário s o não faça e dessa omissão possa resultar uma diminuição do valor ou das
potencialidades do bem, que o locador não sabe ainda se será adquirido ou lhe será
restituído.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto à indicação e encomenda do bem a locar. O art.22.º LLF alude ao caso em


que, antes da celebração do contrato de locação financeira, o interessado tenha procedido
à encomenda do bem com vista ao contrato futuro: o interessado atua por sua conta e
risco. O art.22.º consagra uma evidência jurídica: se alguém toma a iniciativa de
encomendar um bem que pensa indicar uma instituição de crédito para efeitos de uma
“operação” de leasing e não há participação ou concordância desta nessa iniciativa, as
consequências não podem ser imputadas à instituição.
A ressalva da culpa in contrahendo é natural e lógica.
Não prevista na LLF, está a situação, seguramente pouco frequente, em que a
instituição de crédito adquire o bem indicado pelo interessado para posterior celebração
do contrato de locação financeira mas, entretanto, este não chega a celebrar por
desistência ou recusa do interessado: dá lugar a responsabilidade civil
O art.14.º LLF: salvo estipulação em contrário, as despesas de transporte e
respetivo seguro, montagem, instalação e reparação do bem locado, bem como as
despesas necessárias para a sua devolução ao locador, incluindo as relativas aos seguros,
se indispensáveis, ficam a cargo do locatário.
Findo o prazo contratado, o locatário financeira ou restitui o bem ou o adquire. A
obrigação “natural” é a restituição (art.10.º/2/k LLF).

5.7.2. As posições das partes no contrato


A LLF associa às posições de locador e locatário um conjunto de direitos e
deveres, enunciados nos art.9.º e 10.º. Independentemente dessas enunciações, o art.9.º/2
e 10.º/2 remetem, respetivamente em relação ao locador e ao locatário, para os “direitos
e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem incompatíveis com
o presente diploma”.
Importa ainda destacar a especificidade de regime estabelecido quanto à
transmissão das posições contratuais.
Resulta do art.11.º/1 LLF que, tratando-se de locação financeira que tenha por
objeto bens de equipamento, é permitida a transmissão inter vivos da posição de locatário
nas condições previstas no art.1112.º CC.
É assim, possível ao locatário de bens de equipamento integrar os bens locados no
estabelecimento que trespasse, sem autorização do locador.
A priori, sem prejuízo do art.11.º/3, a ausência de autorização, quando necessária,
ou de comunicação não é sancionada nos termos do regime de arrendamento urbano, mas

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

do art.17.º LLF que permite a resolução do contrato por qualquer das partes, nos termos
gerais de direito.
O art.11.º/3 vem impor uma reconsideração das conclusões, uma vez que permite
ao locador opor-se à transmissão da posição contratual, provando não oferecer o
cessionário garantias bastantes à execução do contrato.
O regime do art.11.º/3 deve ser centrado na eficácia da transmissão da posição do
locatário face ao locador: comunicado o trespasse, o locador poderá, num prazo razoável,
manifestar a sua oposição à transmissão, na medida em que faça prova de que o
cessionário não oferece as garantias necessárias. Seria mais ágil a solução de não permitir
ao locador a oposição à transmissão qua tale, mas atribuir à oposição o efeito de manter
o trespasse vinculado ao contrato, como garante, provando o locador não oferecer as
garantias.
O art.11.º/1 LLF permite a sua transmissão por morte, a título de sucessão legal
ou testamentária, quando o sucessor prossiga a atividade profissional do falecido. Isto
também relativamente a bens de equipamento.
De qualquer modo, à transmissão mortis causa poderá opor-se o locador
(art.11.º/3) provando não oferecer o transmissário garantias bastantes.
A transmissão ocorre automaticamente ou é necessária uma declaração de vontade
do sucessor no sentido de que prossegue a atividade profissional do falecido? A
transmissão não é automática, já que, à data da morte, não está verificado o requisito do
prosseguimento da atividade profissional do falecido.
O art.11.º/4 LLF mantém, conquanto por dizeres enviesados, o regime do art.14.º
da lei anterior; literalmente, o art.14.º não mais diz do que a evidencia: havendo
transmissão da posição contratual do locador, o contrato de locação financeira subsiste
para todos os efeitos. Nesta formulação faltou dizer quando é que há transmissão da
posição contratual do locador, i.e., que a transmissão da posição contratual do locador
acontece com a alienação do bem locado. É assim que deve ser interpretado o art.11.º/4.

5.7.3. Perturbações do contrato de locação financeira


A mor perturbação do contrato de locação financeira é a que decorre do
incumprimento do contrato pelo locatário financeiro, não pagando as rendas. A resolução
será possível nos termos gerais de direito, por incumprimento, conforme decorre do
art.17.º/1 LLF, que acrescenta não serem aplicáveis as normas especiais constantes da lei
civil, relativas à locação.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

A jurisprudência veio a fixar-se, grosso modo, no entendimento de que, no caso


de resolução, não é possível exigir o pagamento das rendas vincendas, mas é admissível
a fixação de uma cláusula penal correspondente a 20% do valor das rendas vincendas.
Já no caso da opção pela execução do contrato, através da exigência de pagamento
das rendas vincendas, pensamos que, quanto à componente juros vincendos, não pode
deixar de ser considerado o regime da falta de pagamento de uma prestação nos contratos
de empréstimo.
No caso de resolução do contrato ou no de decurso do prazo, sem que tenha sido
exercido o direito de compra, o art.21.º LLF consagra uma providência cautelar específica
de entrega judicial do bem.
De acordo com o art.21.º/7: decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as
partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos
ao procedimento nos termos do art.21.º/2, os elementos necessários à resolução definitiva
do caso.

5.7.4. A reserva da operação de locação financeira


O art.23.º LLF vem estabelecer que nenhuma entidade pode realizar, de forma
habitual, operações de natureza similar ou com resultados económicos equivalentes aos
dos contratos de locação financeira. Naturalmente que, não obstante a letra da lei, a
proibição não atinge todas as entidades mas apenas aquelas que não podem praticar
leasing.

5.8. A cessão financeira (factoring). Tópicos.


O factoring é um contrato legalmente nominado, mas legalmente atípico, ainda
que socialmente típico. O art.2.º/1 LSF determina a atividade de factoring ou cessão
financeira como a aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou
da prestação de serviços nos mercados interno e externo. O art.2.º/2 completa a previsão:
compreendem-se na atividade de factoring ações complementares de colaboração entre o
factor e os seus clientes, designadamente do estudo dos riscos de crédito e do apoio
jurídico, comercial e contabilístico à boa gestão dos créditos transacionados. Tem três
funções:
(i) financiamento;
(ii) prestação de serviços
(iii) função del credere.

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BC e CB – Ano letivo 2018/2019

Quanto ao regime, o art.7.º/1 LSF impõe a sua redução a escrito, na perspetiva de


um contrato organizatório, já que do contrato escrito deve contar o conjunto das relações
do factos com o aderente. Por sua vez, dispõe o art.7.º/2 que a transmissão de créditos ao
abrigo do contrato de factoring deve ser acompanhada pelas correspondentes faturas ou
suporto documental equivalente, nomeadamente informático, ou títulos cambiários.
De acordo com o art.8.º/1, o pagamento pelos factos ao aderente dos créditos
transmitidos deve ser efetuado nas datas de vencimento dos mesmos ou na data de um
vencimento médio presumido que seja contratualmente estipulado. Admite, contudo, o
art. 8º/2 que o facto possa pagar antes dos vencimentos, médios ou efetivos, a totalidade
ou parte dos créditos cedidos ou possibilitar, mediante a prestação de garantia ou outro
meio idóneo, o pagamento antecipado por intermedio de outras instituição de crédito. Há
um limite: o art.8.º/3 que determina que não poderão exceder a posição credora do
aderente da data de efetivação do pagamento os pagamentos antecipados.
O factoring é um contrato oneroso, sinalagmático, consensual, duradouro e de
conteúdo atípico misto.
A prática tem evidenciado diversas modalidades de factoring:
- Segundo o critério do risco: o factoring próprio e impróprio;
- Consoante haja ou não comunicação da cessão ao devedor: factoring
aberto ou fechado ou oculto;
- Consoante o factor possa ou não selecionar as faturas e os devedores:
factoring seletivo ou em branco;
- Em função de haver ou não financiamento pelo factos: factoring
incompleto e factoring completo.
O factoring está assente na cessão de créditos, em termos de carteira. Daí ser um
contrato organizatório e um contrato quadro: há uma transmissão continuada de créditos,
assente na exclusividade do factor.
Há, a partir daqui, uma ampla margem de composição: o contrato pode ser
estruturado em termos de constituir uma promessa de cessão de créditos (futuros) ou de
constituir uma autêntica cessão de créditos futuros. Neste caso, o crédito do aderente
sobre o terceiro devedor constitui-se na esfera daquele e só depois, em conformidade com
o contrato de factoring, ocorre a transmissão para o factor.

5.9. O crédito documentário. Tópicos.

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Na base do crédito documentário está um contrato, normalmente de compra a


venda, estando o vendedor e o comprador localizados em países diferentes: através de
uma cláusula de pagamento, o importador obriga-se a que o pagamento do preço seja
efetuado através do seu banco, por via da abertura de um crédito a favor do exportador.
O comprador assume a qualidade de ordenante (ou ordenador), dando ao seu
banco uma ordem para pagar ao vendedor – beneficiário – ou à ordem deste a quantia
correspondente ao preço. Assim a primeira função do crédito documentário é o
pagamento.
Sendo o crédito irrevogável, conforme é comum e corresponde, de resto, ao seu
regime natural, o mesmo assume também uma função de garantia que acresce à de
pagamento.
Este é um contrato legalmente atípico mas socialmente típico.
Seja como for, a tipologia social do crédito documentário não abrange a fase da
concessão de crédito ao ordenante: essa é uma relação estritamente bancaria, de crédito,
regulada pelo acordo das partes, tendo de particular o facto de o crédito aberto pelo banco
ao seu cliente ser um crédito por assinatura. O conteúdo do contrato ed crédito entre o
comprador e o seu banco é comum em qualquer relação de crédito bancário: definição de
montante, taxa de juro, spreads, garantias, etc.
A tipologia social do crédito documentário pressupõe assim que a fase de abertura
de crédito esteja acordada entre o comprador e o banco concedente do crédito e emitente
da carta de crédito.
Quanto à natural irrevogabilidade do crédito documentário, assinale-se que as
UCP 600 apontam o crédito como irrevogável quer o do banco emitente quer o do banco
confirmador.
Importa ainda destacar o papel do banco indicado pelo vendedor, beneficiário da
carta de crédito: será um banco notificador – limitando-se a notificar o crédito ao
beneficiário – ou um banco confirmador – caso em que junta a sua confirmação a um
crédito, a solicitação ou sob autorização do banco emitente.
A confirmação reveste um significado particular, porque por essa via o
beneficiário do crédito documentário passa também a ter uma garantia assumida por um
banco diverso do banco emitente; de acordo com a definição do art. 2º das Regras, ela
significa “um compromisso definitivo do banco confirmador, a juntar ao do banco
emitente, de honrar ou de negociar uma apresentação em conformidade”.

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A decisão de pagamento baseia-se numa estrita lógica documentária: o banco


analisa os documentos e decide se os mesmos estão conformes ao exigido na carta de
crédito. Uma vez concluída a conformidade, o banco emitente está obrigado a realizar o
pagamento: tem obrigatoriamente de honrar, não podendo invocar qualquer eventual
patalogia ou perturbação de que tenha conhecimento ou que lhe seja comunicada pelo
ordenante.
A relação entre o ordenador e o beneficiário é distinta relativamente à relação
entre o banco emitente e o beneficiário ou o banco confirmador e o beneficiário.
Podermos dizer que a relação de crédito documentário é autónoma relativamente à relação
subjacente, de valuta à semelhança do que ocorre nas garantias bancarias autónomas.
Do mesmo modo, as relações entre os bancos intervenientes não perturbam nem
podem ser perturbadas pela relação de crédito documentário emergente da carta de
crédito.
A autonomia do crédito documentário relativamente à relação subjacente não tem
impedido a doutrina e a jurisprudência de admitir que, excecionalmente, o banco emitente
possa recusar-se a pagar não obstante uma conformidade documentaria, em caso de fraude
manifesta ou de abuso de direito.

5.10. O crédito por assinatura. Tópicos.


Assume particular relevo a diferenciação entre crédito monetário e crédito por
assinatura. No primeiro, o banco, através de um contrato de crédito específico, entrega ou
disponibiliza fundos ao cliente: trata-se das comuns situações de crédito materializado no
crédito em conta, passando este a movimentar a conta nos termos do contrato.
Já no crédito por assinatura, o banco vincula-se perante um terceiro por conta do
cliente, assumindo as obrigações que resultem da “assinatura”. A concessão de crédito é
mediata: o cliente é beneficiário do crédito; o terceiro é beneficiário direto da vinculação
bancária. Os casos mais comuns são: a fiança bancária, a garantia bancaria autónoma, o
aceite bancário, o aval bancário, a abertura de crédito documentário e o del credere
bancário.

5.11. O project finance. Tópicos.


O crédito comum é o que resulta da consideração de solvabilidade do cliente, nas
garantias prestadas e na finalidade do financiamento: assumem aí particular relevo as
garantias, reais ou pessoais, típicas ou atípicas. Dentre estas últimas, destaque-se a

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chamada “consignação de receitas”, que surge como mecanismo de segurança do crédito


que não como sustentação do financiamento.
O “project finance” está, ao invés, estruturado em função de um projeto concreto,
normalmente de vulto, exigindo, por essa razão, o crédito sindicado. Aqui, o risco do
crédito está estruturalmente dependente da consecução do projeto, razão pela qual o cash-
flow gerado pelo mesmo terá que ser bastante para amortizar o crédito concedido, já que,
tipicamente, ou não há garantias adicionais ou estas têm um relevo limitado. É esta
especificidade que justifica um apertado leque de cláusulas de segurança de crédito, um
controlo efeito da gestão do projeto por parte dos financiadores e, inclusive, a previsão
de step in, verificados determinados requisitos.

5.12. Crédito a consumidores. Tópicos.


A nível jurídico, o quadro legislativo mostra-se profundamente influenciado pelo
direito comunitário: o DL 133/2009 (LCC) transpôs a Diretiva 2008/48/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril.
A LCC não é uma lei especificamente bancaria. Porém, ela é também bancária, já
que disciplina os contratos de crédito aos consumidores independentemente da qualidade
do concedente de crédito. É, no entanto, sabido que a grande maioria do crédito ao
consumir é protagonizada por instituições de crédito. O regime da LCC é marcadamente
favorável ao consumidor.
A delimitação do âmbito de aplicação da LCC é feita pela positiva, seguindo-se
uma delimitação negativa.
O art.1.º/2 LCC define o objeto pela positiva: a LCC é aplicável aos contratos de
crédito a consumidores. Segue-se a delimitação negativa nos art.2.º e 3.º.
Consumidor é a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pela LCC,
atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional; credor é a pessoa
singular ou coletiva que concede ou promete conceder um crédito no exercício da sua
atividade comercial ou profissional; contrato de crédito é o contrato através do qual o
credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito.
A LCC dedica o II capítulo (art.5.º a 11.º) à informação e práticas anteriores à
celebração do contrato de crédito, regulando, designadamente, a publicidade a operações
de crédito aos consumidores e a prestação de informações aos consumidores relativas ao
crédito (art.6.º, 8.º e 9.º). Consagram-se certos deveres:

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- Dever de assistência ao consumidor: o credor deve colocar o consumidor


em posição que lhe permita avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às
suas necessidades e à sua situação financeira;
- Dever de avaliar a solvabilidade do consumir: antes de celebrar o contrato
de crédito, o credor deve avaliar a solvabilidade do consumidor.
Enquanto o primeiro dever consubstancia um complexo dever de informação, o
segundo aproxima-se de um dever de proteção.

5.12.1. Principais especificidades dos contratos de crédito aos consumidores


As especificidades são as seguintes:
- Exigência de forma escrita e da inclusão no contrato de diversos
elementos que, substancialmente, asseguram ao consumir uma informação plena
sobre o contrato, as respetivas vicissitudes, o esforço e o custo do crédito;
- Exigência de que a todos os contraentes seja entregue, no momento da
respetiva assinatura, um exemplar assinado do contrato de crédito;
- Existência de um regime específico quanto à usura: segundo o art.28.º/1
LCC é havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da
celebração do contrato, exceda em um terço a TAEG média praticada no mercado
pelas instituições de crédito ou sociedades financeiras no trimestre anterior, para
cada tipo de contrato de crédito ao consumo;
- Direito de livre revogação do contrato de crédito;
- Reconhecimento da especificidade do contrato de crédito coligado. De
acordo com o art.4.º/1/o LCC, considera-se que o contrato de crédito está coligado
a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços específico se,
cumulativamente, se verificarem os seguintes requisitos: o crédito concedido
servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de
fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos e; ambos os
contratos constituírem objetivamente uma unidade económica. A questão é, a
priori, mais complexa em situações de incumprimento ou de cumprimento
defeituoso do contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, numa fase
em que não está em causa a validade ou a eficácia do contrato mas o
incumprimento latu senso. Porém, ainda assim, a lei entende que “se justifica
imiscuir o credor neste conflito”, conforme decorre do regime estabelecido no
art.18.º/3 LCC: o consumidor que, após interpelação do devedor, não tenha obtido

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deste a satisfação do seu direito ao exato cumprimento do contrato, pode interpelar


o credor para exercer qualquer das seguintes pretensões: exceção de não
cumprimento do contrato; redução do montante de crédito em montante igual ao
da redução do preço; resolução do contrato de crédito;
- Direito ao reembolso antecipado, nos termos do art.19.º;
- Dependência de um nível especifico de incumprimento para que possa
haver invocação da perda de beneficio do prazo ou a resolução do contrato;
- Imposição da inclusão de uma cláusula “não à ordem” ou equivalente
sempre que o consumidor subscreva letras ou livranças com função de garantia
(art.22.º/1), com o claro objetivo de impedir a circulação do título na lógica
cambiária;
- Caráter imperativo do regime da LCC no que respeita aos direitos
conferidos ao consumidor, o qual pode, contudo, optar pela redução do contrato
no caso da nulidade de alguma cláusula em consequência da citada imperatividade
(art. 16º).

6. As garantias do crédito.
6.1. Garantias pessoais e garantias reais.
Dentre as garantias especiais, a classificação distingue as garantias reais e as
pessoais. A garantia pessoal consubstancia-se na vinculação de um sujeito com o seu
património em ordem a garantir a satisfação de um crédito. As garantias reais são as que,
tendo por objeto um bem determinado, ainda que incorpóreo, são oponíveis a terceiros,
consubstanciando exceções ao princípio par conditio creditorum. São esquemas que
funcionam em modo real.
Falar em garantia pessoal é diferente de falar em garantia intuituo personae.
Vejamos o caso típico da fiança: o ser pessoal não é seguramente ser intuitos personae.
Mas sendo-o importará saber em que dimensão ou em que direção. Se o intuitos personae
for em relação ao devedor, isso pouco mais significara que o óbvio: que o fiador afiança
aquele devedor e não outro.
Mas a acentuação do intiuitos personae não se coloca tipicamente aí, mas na
relação com o credor. A consequência será então clara: se houver cessão de crédito
garantido fidejussória não acompanha o crédito.
Mas o intuitos personae pode ter um outro sentido, mais ligado à própria pessoa
do fiador.

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Ora, como é sabido, a morte do fiador determina, como regra ou em princípio, que
as obrigações fidejussórias se transmitem aos seus herdeiros: são obrigações de caráter
patrimonial e não pessoa.
Como modalidades de garantia pessoal, para além da fiança, o aval cambiário, a
solidariedade passiva, garantia autónoma, assunção cumulativa, seguro de créditos,
seguro-caução, carta de conforto e mandato de crédito.
Quanto à fiança civil: apresenta-se como a garantia pessoal típica (art 627.º a 655.º
CC). No art.627.º/1, refere-se que “o fiador garante a satisfação do direito de crédito,
ficando pessoalmente obrigado perante o credor”. A situação do fiador é a de garante da
obrigação com o seu património pessoal, tendo sido discutido na doutrina se esta situação
envolve constituição de uma obrigação própria do fiador. Para MENEZES LEITÃO, a
resposta deve ser afirmativa, porque o fiador tem um dever de prestar perante o credor.
Daí que se o fiador efetuar a prestação, tal seja considerado como um caso de prestação
por um terceiro que garantiu a obrigação, ainda que sujeita por esse mesmo motivo à sub-
rogação legal (art.644.º).
A fiança é, por isso, uma garantia pessoal das obrigações, através da qual um
terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se
pessoalmente com o seu património por esse cumprimento perante o credor.
Normalmente, a fiança abrange todo o património do fiador, embora possa por limitação
convencional ser restringida a alguns dos seus bens (art.602.º). Normalmente, a fiança
restringe-se a alguma ou algumas dívidas do devedor, embora possa abranger todas as
suas dívidas presentes e, eventualmente, futuras, desde que determináveis.
O negócio que dá origem à fiança tem caráter necessariamente bilateral. Não é
razoável que alguém fique irrevogavelmente vinculado à prestação de uma garantia com
base num negócio unilateral. A fiança resulta sempre de um contrato entre o fiador e o
credor, ou de um contrato entre o fiador e o devedor que, nesse caso, revestirá a natureza
de um contrato a favor de terceiro. Poderá eventualmente também resultar de um contrato
plurilateral entre as três partes.
O art.628.º/1 estabelece que a forma da declaração de prestação de fiança é a da
forma exigida para a obrigação principal, ainda que se exija declaração expressa do fiador.
Ao fazer depender a forma da fiança apenas da forma exigida para a obrigação
principal, resulta que a lei não exige genericamente que a fiança seja prestada por escrito,
podendo esta revestir a forma consensual sempre que a obrigação principal não esteja
sujeita a qualquer forma.

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A fiança tem como caraterísticas principais a acessoriedade e a subsidiariedade.


A acessoriedade aprece referida no art.627.º/2, que diz “a obrigação do fiador é acessória
da que recai sobre o principal devedor”. Tal significa que a obrigação do fiador se
apresenta na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor.
A dependência da obrigação do fiador em relação à obrigação do devedor começa
na forma da declaração da prestação da fiança. Estende-se também ao âmbito da fiança,
já que no art.631.º/1 se refere que a fiança não pode exceder a dívida principal nem ser
contraída em condições mais onerosas, ficando sujeita à redução caso tal venha a suceder.
Outra manifestação é a de que a invalidade da obrigação principal acarreta a
invalidade da fiança, por força do art.632.º/1. No caso, porém, de mera anulabilidade, o
facto constitutivo da obrigação principal tem que ser efetivamente anulado. No entanto,
a fiança mantém-se como válida se, anulada a obrigação principal, por incapacidade ou
por falta ou vício da vontade do devedor, o fiador conhecia a causa da anulabilidade ao
tempo em que a obrigação foi prestada.
Também é manifestação da acessoriedade a possibilidade que o fiado tem de opor
ao credor os meios de defesa próprios do devedor, salvo se forem incompatíveis com a
obrigação do fiador (art.637.º).
A última manifestação é a circunstância de a extinção da obrigação principal
acarretar a extinção da fiança (art.651.º).
A subsidiariedade reconduz-se à possibilidade de o fiador invocar o benefício da
excussão, conforme resulta do art.638.º, impedindo o credor de executar o património do
fiador enquanto não tiver tentado sem sucesso a execução através do património do
devedor (art.745.º CPC). Além disso, o art.639.º refere que a subsidiariedade da fiança
opera mesmo existindo garantias reais constituídas por terceiro antes da fiança, já que o
fiador tem igualmente o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a
garantia real.
A subsidiariedade não é porém uma caraterística essencial, pois o fiador pode
renunciar dela. Para além disso, é excluída quando o devedor ou o dono dos bens onerdos
com a garantia não puder, em virtude de facto posterior à constituição da garantia ser
demandado no território do continente ou ilhas adjacentes (art.640.º/b) ou quando a fiança
respeitar a obrigação comercial (art.101.º CCom).
A fiança bancária surge como a garantia pessoal mais forte, no sentido de ser
aquela que assegura ao credor uma maior probabilidade de satisfação do seu crédito.

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O regime do art.623.º/1 CC evidencia esse “privilégio”, que surge ao lado do


deposito em dinheiro, títulos de créditos, pedras ou metais preciosos, bem como a par do
penhor e da hipoteca como meio de prestação de caução para os casos em que alguém
esteja obrigado ou autorizado por lei à sua prestação, mas sem a designação da espécie
que a mesma deve revestir.
A razão fundamental para este destaque é a forte probabilidade de solvabilidade
dos bancos prestadores de fiança.
A alternativa à fiança bancária é já uma fiança solidária, conforme decorre do art.
623º/2: não podendo a caução ser prestada por nenhum dos meios referidos no nº1, é lícita
a prestação de outra espécie de fiança, desde que o fiador renuncie ao benefício da
excussão.
A circunstância da fiança ser prestada por um banco traz especificidades de regime
face à fiança comercial comum? Não.
A diferença será ao nível da consideração da fiança como um negócio de risco ou
de perigo: sendo o fiador um profissional e constituindo a fiança uma via para a concessão
de crédito, a consideração da fiança como negocio de risco ou de perigo surge atenuada,
não se podendo olvidar que a prestação de fiança pelo banco se apresenta como via de
concessão de crédito.
Não obstante, não afastamos a aplicação de algumas consequências que se
associam àquela caracterização, como os princípios in dúbio pro fideiussore e in dúbio
pro fideiussione, exceto quando o beneficiário da garantia seja um consumir ou mesmo
um profissional que mereça um nível de proteção equivalente.
Finalmente, a caracterização da fiança bancaria como uma situação de crédito de
assinatura nada altera quanto ao regime da garantia, no que à relação de garantia respeita,
relação esta que liga o banco garante ao beneficiário da garantia, credor do ordenante-
creditado.
A fiança bancaria é fiança ao primeiro pedido.
Na fiança ao primeiro pedido temos uma fiança em que a acessoriedade é
provisoriamente removida, tendo o fiador de pagar ao beneficiário da garantia ao primeiro
pedido deste, como se de garantia autónoma on first demand se tratasse.
A doutrina é, em geral, favorável à figura.
Assim, a fiança ao primeiro pedido funciona, até ao momento da interpelação para
pagamento, como uma garantia autónoma automática; após o pagamento funciona como

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uma fiança, podendo o fiador fazer valer, face ao beneficiário, os meios de defesa que,
não fora a cláusula ao primeiro pedido, teria podido invocar.
Na contraposição entre os costs e os benefits da fiança ao primeiro pedido, face
aos da garantia bancaria autónoma automática, destaca-se o facto de o fiador ao primeiro
pedido ter uma posição mais confortável do que aquela que tem o garante na garantia
autónoma on first demand, já que, uma vez realizado o pagamento, pode discutir com o
beneficiário, na medida em que tenha meios de defesa “comunicados” por via de
acessoriedade.

6.2. Mecanismos de segurança do crédito.


A utilização de cláusulas designadas como garantias, mas que na realidade,
constituem meros mecanismos de segurança do crédito é comum. Estas cláusulas não
aumentam a massa de bens que respondem pela dívida nem atribuem ao credor
beneficiário das mesmas uma posição de vantagem sobre os demais credores. São
soluções internas tendo em vista a proteção do crédito e o resguardo da sua satisfação:
- A cláusula cross-default permite à parte da qual a cláusula se encontra
predisposta a declarar o vencimento antecipado ou, pelo menos, a exigibilidade
antecipadas das obrigações decorrentes do contrato X em caso ed incumprimento
de determinadas obrigações assumidas no contrato Y;
- Por força da cláusula pari passu, o devedor assegura ao credor que a sua
posição relativamente a outros credores se manterá idêntica. Tratando-se de um
crédito privilegiado, o devedor assegura ao credor que o crédito em causa se
manterá privilegiado em relação a outros créditos futuros;
- Através da cláusula negative pledge, o devedor obriga-se a não onerar
mais o seu património, não constituindo, assim, quaisquer garantias reais ou
pessoais a favor de terceiro;
- Através da ownership clause, um sujeito obriga-se a manter, durante o
contrato, uma determinada participação qualificada na sociedade mutuaria ou no
grupo;
- A cláusula step in atribui complexivamente ao beneficiário, normalmente
um sindicado bancário, legitimidade para uma intervenção gestória e
exploracional na sociedade mutuária, a qual pode mesmo traduzir-se numa entrada
no capital da sociedade objeto da medida;

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- De acordo com a material adverse change clause, há lugar a uma situação


de exigibilidade antecipada quando ocorram factos ou circunstâncias que, pela sua
natureza, ou efeitos provoquem ou seja suscetíveis de provocar um efeito adverso
relevante, por exemplo nas perspetivas de recuperação do crédito;
- Cláusula de inalienabilidade: é uma cláusula através da qual um sujeito
se vincula a não alienar bens do seu património, onerados ou não com garantia
real;
- Consignação de receitas: constitui um mecanismo obrigacional não
confundível com a consignação de rendimentos – que é uma garantia real – cujo
campo de aplicação privilegiado é project finance: a empresa obriga-se a
“reservar”, em determinados termos, as receitas da sua exploração à amortização
da dívida. Na versão mais soft, a empresa obriga-se, simplesmente, a domiciliar
as receitas no banco ou bancos beneficiários.

7. Crédito não bancário. Tópicos.

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