Narrativas Orais
Narrativas Orais
Narrativas Orais
Michael Hanke *
RESUMO Esta contribuio discute as narrativas orais como uma espcie de comunicao cotidiana, abordadas sob duas perspectivas complementares: as formas e as funes. A anlise formal trata a estruturao da sintaxe narrativa, segundo a tradio inaugurada pela anlise estrutural de Labov/ Waletzky. O aspecto funcional trata tambm a funo argumentativa (St. Toulmin), estabelecida entre a prpria narrativa e a insero na conversao. O recorte emprico composto por narrativas orais de sonhos, j tratado em outros textos, na perspectiva da anlise do discurso.
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ABSTRACT In this article, I analyze oral narratives as a form of everyday communication that can be analysed under two complementary perspectives: its forms and functions. The formal analysis deals with the arrangement of narrative syntax in conformity to the tradiction initiated by Labov/Waletzky structural analysis. The funcional aspect deals also with the argumentative function (St. Toulmin) instituted between the narrative itself and its insertion into the conversaton. The empirical indentation is composed by oral narratives of dreams, already observed in other texts, under the viewpoint of discourses analysis.
*Professor
da UFMG.
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Introduo Embora no exista uma definio, consensualmente aceita na cincia, para o termo narrativa, fica claro que narrar uma forma bsica de atividade lingstica. um tipo prprio da comunicao cotidiana ou, segundo Wittgenstein, um jogo de linguagem (PU 23). Mesmo Aristteles j considerava que a narrativa uma dentre as formas (schemata) de linguagem. 1 A habilidade de narrar, sendo especfica do ser humano2 e sua inteligncia, parte integrante da sua competncia lingstica e simblica.3 Como produto arcaico da cultura humana, as narrativas servem, dentre outras funes bsicas, para acumulao, armazenamento e transmisso de conhecimentos. Segundo o psiclogo Jerome Bruner (1991), as narrativas servem como meio de percepo e a nossa realidade resultado de uma construo narrativa. Narrar contribui para a estruturao da experincia humana, pois organizamos nossa experincia e nossa memria principalmente atravs da narrativa (Bruner 1991, 14, 21). A partir das narrativas so construdas teorias sobre a realidade (Ochs et al. 1992), e, sendo assim, elas servem como ponto de fuga atravs do qual torna-se possvel a apreenso do cotidiano (Mendona et al. 2001, 9). Elas so meios de sociabilidade, pois atravs delas as experincias individuais so comunicadas e tornadas pblicas ou socialmente conhecidas. Uma vez que uma narrativa sempre proferida e fabricada por algum, vista de longe esta pode parecer uma atividade monolgica. Mas nesse jogo lingstico sempre participam tambm os ouvintes e a construo de uma narrativa precisa da cooperao destes, e, como no h narrativa sem narrador e sem ouvinte (Barthes 1988, 125), a narrativa verbal construda dialogicamente, num discurso. 1. Formas Uma narrativa mais freqentemente caracterizada como um ato de linguagem que faz referncia a uma srie de aes ou acontecimentos situados no passado, sejam esses reais ou ficcionais.4 Labov/Waletzky definem narrativa como um mtodo para recapitular experincias passadas, capaz de estabelecer uma relao entre uma srie de sentenas e uma srie de acontecimentos. A narrativa faz uso da possibilidade de representao simblica da linguagem e representa algo passado em termos de tempo e ausente em termos de espao. Assim, ela transcende tempo e espao, como uma referncia a algo que no est presente no momento ou como representao de algo imaginado (Swearingen 1990, 181). Ento a narrativa tem dois nveis: o ato de fala (em ingls: story) e a referncia aos acontecimentos, aos objetos e s circunstncias (em ingls: history). Atravs do story, que conta e seleciona os detalhes relevantes, a history se torna acessvel.
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Com relao natureza dos elementos obrigatrios numa narrativa no h um consenso entre os tericos. A estrutura bsica, obviamente, composta por incio, meio e fim; e, segundo Chafe (1990, 94), uma narrativa precisa de uma introduo, de um momento (quando?), um local (onde?), personagens atuantes (quem?) e uma situao de fundo (background activity), no qual o contedo da narrativa se desenvolve. Este contedo deve ser constitudo por uma srie de eventos conectados que foram realizados ou experienciados pelos sujeitos (Bal 1985, 8). Para Labov/Waletzky, a exigncia mnima para se caracterizar uma narrativa uma ligao temporal entre pelo menos duas sentenas. Apesar da dificuldade de se caracterizar uma narrativa cotidiana a partir de elementos obrigatrios, estas podem ser identificadas facilmente por causa da sua natureza dialgica, ou seja, a insero num discurso. Para iniciar uma narrativa, o narrador precisa saber se os seus ouvintes esto interessados e dispostos a ouvi-la. Assim ele tem que sinalizar que ele quer produzir isto e pedir permisso para faz-lo. Uma vez que aceitam, os ouvintes tm obrigaes (mostrar interesse, no interromper, rir no momento certo ou reagir adequadamente, etc.), como tambm o narrador tem obrigaes tais como terminar a narrativa corretamente, esclarecer partes que precisam informaes suplementares, etc. No final da narrativa, o pacto sobre essas obrigaes anulado e as regras do discurso no-narrativo reinstaladas. Sendo assim, indispensvel uma sinalizao de que a narrativa chegou ao fim. Uma vez identificadas atravs das marcaes de incio e fim, as narrativas podem ser isoladas como partes de um discurso e, assim segmentadas, terem a sua estrutura analisada. A anlise formal da sintaxe narrativa A anlise formal da estruturao da sintaxe narrativa foi inaugurada por Labov/Waletzky (1967), que atravs de uma anlise estrutural, deram incio pesquisa lingustica na rea de narrativa conversacional e orientaram trabalhos posteriores nessa area.5 Segundo Labov/Waletzky, produtos da tradio literria ou verbal tm estruturas narrativas, que s podem ser analisadas segundo a sua funo no contexto de origem. Essas estruturas fundamentais podem ser encontradas em verses verbais de experincias pessoais, em narraes cotidianas de pessoas comuns. A partir destas e no nos produtos de alto nvel da literatura eles desenvolveram um sistema para analisar narraes cotidianas. Labov/Waletzky estabeleceram distines entre as propriedades formais e funcionais. Propriedades formais so estruturas tpicas, que podem ser encontradas tanto no nvel de sentenas como tambm na narrativa como um todo, e permitem compreender a estrutura interna das narrativas. A anlise funcional destaca que, uma srie de elementos colocados numa ordem
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temporria ainda no constituem uma narrativa, mas apenas uma descrio. Para que seja constituda uma narrativa, necessaria uma funo, ou seja, um motivo pelo qual ela contada, um interesse de ordem pessoal. Enquanto as propriedades formais correspondem ao nvel de referncia dos acontecimentos, as propriedades funcionais correspondem avaliao pessoal do narrador, seus interesses e seus motivos. Essa tambm a perspectiva de Astington, Feldman, Bruner et al.,6 segundo a qual uma narrativa constituda de dois planos: um plano de ao, que contm o nvel referencial, e um plano de conscincia, no qual est presente o conhecimento, o pensamento e o sentimento, tanto daqueles que participam quanto daqueles que protagonizam a narrativa. Uma narrativa completa tem, segundo Labov/Waletzky, os seguintes elementos estruturais: 1. A sntese (abstract, do que se trata?), que resume a narrativa e indica qual a natureza do seu contedo; por exemplo 7: Trata-se em geral da questo de se procurar um banheiro e encontro grandes dificuldades em achar um. Esse sonho muito mais complexo, mas eu consigo me lembrar muito bem dele. Estava ... 2. A orientao (orientation, quem? quando? o qu? onde?), que d referncias do local, hora, da cena e das pessoas envolvidas; exemplo: Ontem eu sonhei que minha me mudou-se para Paris, e eu arrumei um apartamento para ela l num prdio velho e alto, no qual eu subi pelo elevador ..... 3. O episdio inesperado (complication, o que aconteceu?), exemplo: Estava andando de bicicleta, e o meu nen estava na cesta da bicicleta. De algum modo ele caiu, e eu o perdi. Mas no me lembro como ... de repente eu percebo que ele est em cima de um muro amarrado e eu estou embaixo na rua gritando: No precisa chorar, eu vou pegar voc. 4. A avaliao (evaluation. qual reao?), que est ligada ao foco central. Numa outra contribuio (1972), Labov aprofunda o conceito de avaliao, classificando tipos diferentes. A avaliao deixa de ser um gesto isolado, feito num instante exato e nico da narrativa, para estar presente de forma contnua e diversificada no desenrolar da narrativa. Exemplo: A noite passada (ha!ha!ha!) depois do meu casamento na igreja (ha!ha!ha!) eu estava dentro do carro e (ha!ha!ha!) eu vi que no lugar das latinhas amarradas no prachoque (ha!ha!ha!) tinha um ciclista (rir). Enquanto o texto sublinhado articulado acompanhado de risos (ha!ha!ha!) e corresponde avaliao contnua no desenrolar da narrativa; o rir final, que sucede a fala, corresponde avaliao feita num exato instante. Este ltimo no compe a fala, mas compe a narrativa. 5.Uma soluo ou um resultado (result, qual o desfecho?). No sonho sobre uma visita a Paris, a protagonista enfrenta vrias aventuras: o elevador serve como avio, ela sobrevoa a paisagem, consegue pilot-lo como um
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carro, supera vrios obstculos como, por exemplo, a fiao eltrica, e finalmente: Voltei para o prdio, entrei, apertei o cinco, subi at minha me, deixei o elevador, estava no quinto andar, e comentei com minha me: No usa o elevador, de jeito nenhum! Assim, eu acordei. Era bem estranho. Tambm engraado. Todos esses elementos podem ser entendidos como respostas para as perguntas correspondentes e constituem a estruturao da sintaxe narrativa. 2. A funo argumentativa Alm das vrias funes j mencionadas, as narrativas podem servir como argumentos (McGuire 1990, 231). Devido sua estruturao sinttica, a narrativa tem uma coerncia lgica interna, a qual estabelece uma relao entre as suas partes constitutivas. Por ser uma forma de comunicao cotidiana, a narrativa sempre faz parte de um discurso falado, o que implica uma situao concreta de narrar hic et nunc, quer dizer, um momento definido, uma situao, circunstncias espaotemporais. Parte da situao constituda pelos parceiros da comunicao e pelo tema do discurso. Essa conexo temtica do discurso e as suas contribuies, ou seja, a rede temtica, est relacionada coeso argumentativa e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato lingstico, a narrativa construda tendo em vista todos esses parmetros (situao, parceiros, rede temtica/argumentativa etc.), e no modo como esses so percebidos pelo narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa est conectada ao discurso como um todo. A comunicao tem, em geral, um carter argumentativo; at uma fala trivial, como parte de um discurso, tem uma conexo argumentativa, pois ela pode se tornar objeto de uma justificativa (por que voc falou isso?). Sendo ao, ela implica uma intencionalidade. A narrativa como ao (lingstica) tambm desempenha uma funo em relao a essa inteno. Assim, aplicando uma abordagem mais abrangente da argumentao, cada contribuio para um discurso ou fala est numa relao argumentativa, como foi mostrado por Toulmin (1958, 109-111). Para o autor cada argumentao tem os seguintes elementos: uma exposio (dado, datum, D), uma concluso (C), uma modalidade (ou fora) de deduo entre exposio e concluso (modality, Q) e uma regra ou licena de inferir (razo, warrant, W).8 Este ltimo (W) est novamente baseado em evidncias diferentes (backing, B), e vale se no for objeto da regra de excesso (R). Esse esquema pode ser aplicado para a estrutura interna da narrativa assim como para a prpria narrativa e a insero desta na conversao. Dentro da narrativa, uma frase anterior pode funcionar como exposio para uma frase posterior e para a concluso. Se por exemplo uma sntese anuncia alguma coisa interessante ou engraada, os passos seguintes tm que
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cumprir essa anunciao e apresentar um contedo apropriado. Caso contrrio, poder ser cobrada a modalidade: por que contou, se no engraado?. Assim como as narrativas, a organizao do discurso um procedimento lgico que usa de argumentos (Petrilli 1991, 142). Narrativas tm um carter argumentativo: se contadas como exemplos, elas desempenham uma funo de criar evidncias ou uma licena de inferir para uma exposio ou um complexo de exposio-concluso. Assim, se concluses so tiradas a partir delas, elas servem como dado ou exposio. As trs formas da inferncia lgica, segundo Peirce, a induo, deduo e abduo, so relevantes devido a sua universalidade, uma vez que esto presentes em qualquer tipo de pensamento, podendo ser encontradas tanto na lgica cientfica quanto na comunicao cotidiana, e portanto, nas narrativas cotidianas. Conseqentemente, elas so tambm essenciais para a estrutura da argumentao, pois elas constituem a modalidade (ou fora) de deduo entre a exposio e a concluso. Aplicando essas trs formas ao corpus dessa pesquisa, constitudo por 113 narrativas de sonhos, encontramse as seguintes classes: 1. Num primeiro padro temos no incio um argumento, muitas vezes acompanhado de uma declarao pessoal, seguido pela narrativa e uma finalizao com o mesmo argumento inicial. Trata se do padro dedutivo, pois o argumento colocado em primeiro lugar e a narrativa assume uma posio dedutiva em relao a ele. Um caso (a narrativa) est subordinado a um argumento; a narrativa evidencia o argumento e entendida de acordo com o sentido que o argumento oferece. O argumento inicial pode ser proferido por outro participante do discurso, o que evidencia o carter dialgico da ao narrativa. 2. Num segundo padro a narrativa funciona como ponto de partida inicial, do qual algo derivado. Aqui a narrativa serve como dado (ou exposio), da qual concluses so tiradas. A diferena entre esse padro e o anterior (dedutivo), que aqui no h uma argumentao anterior, mas esta desenvolvida a partir da narrativa. Por isso, esse padro caraterizado como indutivo. Os argumentos desenvolvidos so inditos, pois no foram introduzidos antes da narrativa. 3. O terceiro padro estabelece uma conexo entre a narrativa e os discursos anterior e posterior a ela, atravs de uma semelhana hipottica, a qual transformada numa relevncia temtica ao longo do discurso. Esse padro abdutivo no sentido de que algo introduzido como supostamente (e verdadeiramente) relevante, e cuja relevncia (que pode variar de intensidade) evidenciada apenas depois.
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Palavras-chave
1. Anlise de Discurso 2. Narrativas 3. Formas sintticas 4. Funes argumentativas
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