resumo
Relato de pesquisa artistica sobre os sinais emergentes de uma pedagogia
radical no contexto da Luta pela Libertação de Moçambique. A pesquisa Projecto
Instituto Moçambicano fez a autora viajar para três continentes em
busca da história da primeira escola da FRELIMO em Dar-es-Salaam.
Palavras Chave: Frelimo; Moçambique; Instituto Moçambicano.
abstract
MozaMbIcan InstItute Project: an edItIng of affectIon
Report of artistic research on the emerging signs of a radical pedagogy in the
context of the Fight for Liberation of Mozambique. The research Project Mozambican
Institute has made the author travel to three continents in search
of the history of FRELIMO’s first school in Dar-es-Salaam.
Keywords: Frelimo; Mozambique; Mozambican Institute.
* Arquiteta (FA-UTL), investigadora independente (membro do grupo de investigação,
Oficina de História - Mo-
çambique), artista/realizadora. Vive e trabalha entre Lisboa e Maputo. E-mail:
[email protected]Durante o ano de 2014 envolvi-me numa
pesquisa sobre os sinais emergentes de uma
pedagogia radical no contexto da Luta pela
Libertação de Moçambique. A guerra que
opôs a Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO) ao Exército Colonial Português
durou de 1964 a 1974. Em causa estava o controle das Zonas Libertadas,
correspondentes
a três províncias no Norte de Moçambique.
Dessas províncias, é Cabo Delgado que faz
fronteira com a Tanzânia, um aliado absoluto dos movimentos de libertação. Chamei
a esta pesquisa Projecto Instituto Moçambicano, porque me fez viajar para três
continentes diferentes em busca da história da
primeira escola da FRELIMO em Dar-es-Salaam.
Foi aí, do outro lado da fronteira, que as
condições para que uma nova geração de
moçambicanos prosseguisse os seus estudos
foi idealizada, e onde um novo sistema pedagógico se fundou, em ruptura com o sistema
colonial.
Logo a partir de 1962, e enquanto se
preparava a insurreição armada, o primeiro presidente da FRELIMO, Eduardo
Mondlane, angariava fundos junto de doadores
internacionais, para a construção dessa escola. O primeiro apoio foi concedido pela
Fundação Ford americana, o que possibili-
Projecto Instituto Moçambicano: uma montagem de afeto 76 Revista África(s), v. 04, n.
07, p. 73-84, jan./jun. 2017
tou o funcionamento do seu primeiro ano.
Este apoio não recebeu oposição do Governo
Norte-Americano, porque, apesar dos acordos de aliança com a política colonial
portuguesa, a Administração Kennedy acreditava
que apoiar a educação de jovens africanos
iria facilitar a penetração da sua influência e
prevenir a escalada comunista ao poder nos
“países africanos em vias de obter a Independência”.
A atribuição de um apoio americano ao
movimento de libertação moçambicano
crispou necessariamente as relações com
Portugal e levantou uma polêmica que foi
largamente alimentada pela imprensa internacional. No arquivo da Fundação Ford
em Nova Iorque, as linhas fundamentais da
polémica estão reveladas nas cartas trocadas entre o Presidente da Fundação, Henry
T. Heald e Alberto Franco Nogueira, o então
Ministro dos Negócios Estrangeiros Português. Nessa troca se descreve o modo como
a lógica deste projeto educativo escamoteava de fato uma ação política internacional,
independentemente dos termos usados para
qualificá-lo como neutral ou humanitário;
e isso acontecia, tanto do lado americano
como do lado do movimento nacionalista
moçambicano.
Mas foi a descoberta de um texto escrito
por Eduardo Mondlane que acabou por determinar a minha pesquisa. O que eu li
exatamente foi a versão traduzida para o português do memorando enviado em 1963,
em
nome da FRELIMO, para o Comitê Africano
de Libertação. Nesse memorando, Mondlane explica como ele e Janet Mondlane, a sua
esposa americana, idealizaram um projeto
educacional para acolher jovens moçambicanos em Dar-es-Salaam, e a que chamaram
“Instituto Moçambicano”. A ideia terá
surgido a partir de uma viagem que os levou
a percorrer Moçambique em 1960-61, enquanto Mondlane ainda trabalhava sob a tutela
da ONU. Nessa visita, o casal conheceu
dezenas de jovens africanos com esperança
de prosseguir os seus estudos, apesar dessa
possibilidade ser-lhes negada por uma série
de obstáculos criados pelo sistema de estratificação racial, que controlava de forma não
-oficializada o acesso da população negra a
níveis superiores de ensino.
O memorando teria sido escrito em inglês, no original. Mas, o texto não deixava
por isso de transmitir a capacidade vívida de
comunicar de Mondlane, expressão da sua
mente visionária investida na compreensão
da necessidade de assumir grandes ações
emancipatórias no mundo. No texto, mesmo as ideias mais elaboradas estavam
circunspectamente traduzidas num português
corretíssimo, e as palavras que se referiam
a conceitos de emancipação estavam sublinhadas cuidadosamente a lápis. À primeira
vista, alguém poderia pensar que essa precisão na tradução, e o sublinhado a lápis no
papel, vinham de um tradutor/leitor afetuoso. Porém, não era esse o caso. Este texto
pertence ao fundo da Polícia Internacional
e de Defesa do Estado, e está hoje depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
em Lisboa. Tratava-se, portanto, de um
documento interceptado por informadores
ou por espías, depois traduzido e examinado
pelos técnicos treinados da PIDE/DGS.
O texto de Mondlane continuava com a
explicação das medidas tomadas para conseguir fundos adicionais para a construção
do Instituto Moçambicano, para o qual a
americana Ford Foundation havia dado
uma primeira e importante contribuição.
Nesta fase, Mondlane provavelmente desconhecia que este primeiro apoio seria
interrompido devido a alegações de que a FRELIMO estava envolvida numa luta
armada, e
em relação à qual a Administração America-
Catarina Simão
Revista África(s), v. 04, n. 07, p. 73-84, jan./jun. 2017 77
na e a Fundação Ford supostamente não se
queriam envolver. A Diplomacia Portuguesa
tinha ganho a primeira batalha.
Este texto inteligente, veículo de uma
visão inspiradora, foi cautelosamente examinado e reescrito pela língua portuguesa.
Contudo, ele foi entendido com o sentido radicalmente oposto ao da sua finalidade. Será
que esta contradição se explica para além da
distorção ideológica mais óbvia? Por que é
que as expressões de emancipação que hoje
estão em contato com a nossa sensibilidade comum não poderiam ser articuladas no
seu sentido universal há 50 anos? Talvez a
mentalidade fascista, de tão estruturada na
língua portuguesa, não se encontrasse preparada para aceitar uma redação de
compromisso tão intempestivo com o futuro.
Foi por isso muito revelador entender
que as expectativas de transformação da língua portuguesa não foram formuladas pelos
opositores ao regime fascista português,
mas sim pelos movimentos de Luta de Libertação. A escolha do uso do português como
língua de instrução durante a luta serviu a
idéia de uma unidade linguística nas Zonas
Libertadas e nos campos de treino militar, e
também veio resolver o problema da escolha
da língua bantu que se tornaria a oficial após
a independência. Mas desde logo o português deixou de ser apenas a língua do inimigo.
A guerrilla adaptou a língua portuguesa
à sua própria cultura de luta. Novas canções
foram criadas, a poesia e literatura foram
reapropriadas e transformadas. Os livros de
história foram reescritos; a alfabetização libertou-se da lógica de memorização mecâ-
nica promovida pelo ensino colonial. Novos
manuais foram reinventados com base em
conceitos revolucionários; a aprendizagem
da matemática desenvolveu-se com base na
oralidade, em oposição ao seu ensino com
base textual, que correspondia igualmente
ao modelo europeu-colonial. A língua portuguesa assumiu uma nova sonoridade
desconhecida anteriormente: palavras como
‘camarada’, ‘responsável’ e ‘engajado’ foram
usadas com conotação de participação social, auto disciplina e emancipação.
Como exemplo, e por contraste, até hoje
Portugal não encontrou tradução para “politically engaged”, recorrendo a
“comprometido/a”, uma expressão contendo em si
uma atormentada contradição. E “explora-
ção” continua a resistir à transformação que
sucedeu atempadamente em outras línguas
europeias (exploration-exploitation), usando-se essa palavra indistintamente para referir
uma aventura emancipatória e a prática de fazer lucro usando recursos questioná-
veis.
Mondlane estava determinado a fazer
tudo em seu poder para conquistar a independência por meios pacíficos, usando a
sua habilidade diplomática e influência para
tentar convencer o governo Português a negociar. Mas, como sabemos, nenhum
resultado positivo surtiu desse esforço e chegado o primeiro congresso da FRELIMO,
em
Setembro de 1962, ele já tinha abandonado
essa ideia. Estava já convencido de que uma
insurreição armada era necessária, e que tinha que partir e ser organizada desde o
movimento. No seu plano teórico para a luta,
Mondlane define a sua visão para legitimar
o uso da violência: “A independência formal
apenas substitui o colonial pelo neo-colonial. A verdadeira libertação só pode surgir
de um gesto pleno de empoderamento e de
emancipação cultural”.
Estas palavras são proferidas por um intelectual, um líder de um movimento armado
investido na libertação do seu país. Por
isso, entendo esta formulação como articulando a ideia de cultura e guerra nascendo
do mesmo projeto de revolução. Nele, a luta
e a cultura são instrumentos complementares para a emancipação do povo
moçambicano, têm uma teoria em comum e partilham as mesmas terminologias.
Os movimentos de emancipação que não
escusam uma inerente pulsão violenta estão
instruidos de uma experiência sobredeterminada, e por isso de difícil tradução quando
transpostos para outros contextos geopolíticos: na política internacional da FRELIMO
e, particularmente, nos contos com o mundo
ocidental. De acordo com a evolução da sua
linha política, e dependendo de seus interlocutores – internos ou externos, do lado do
bloco socialista ou do capitalista – a FRELIMO promovia ou recortava habilmente as
referências à violência no seu discurso de
luta.
Foram habilidades lexicais que tornaram
possível separar o esforço de guerra das iniciativas com pendor educacional, facilitando
as condições para que o mundo se alheasse
das implicações violentas ao qual todo o quadro correspondia. Foi assim que o Instituto
Moçambicano conseguiu o apoio do Conselho Mundial das Igrejas e foi nessa base que
os governos de outros países o fizeram também. A Dinamarca, a Noruega, eram
membros da OTAN e, em conjunto com a Suécia
e a Finlândia, também membros da EFTA.
Estes países concederam apoio para o funcionamento do Instituto Moçambicano, ainda
que apoiassem igualmente a política colonial de Portugal.
O Instituto Moçambicano consagrou esse
modelo ambíguo e singular, que permitia
moldar-se à esquizofrenia do mundo: à visão daqueles que baseavam o seu apoio num
canal de ação moral e puramente humanitá-
ria, e à daqueles que viam os Movimentos de
Libertação como uma violência necessária
para a libertação do jugo do capitalismo. É o
caso do Angola Committee, na Holanda, que
conseguia fornecer regularmente à FRELIMO relatórios oficiais do exército português,
os quais eram enviados para Amsterdã por oficiais do exército em Lisboa que se
opunham às guerras coloniais. Os apoios
estrangeiros para a FRELIMO vieram também destas organizações independentes,
que surgiram da luta contra a agressão americana ao Vietnam e dos movimentos de
solidariedade Anti-Apartheid. Estes grupos
militavam sobretudo para captar o apoio da
sociedade civil e pressionavam os respectivos governos para abandonar o apoio à
política colonial de Portugal.
De fato, a longo prazo, o objetivo do Instituto de Moçambique era possibilitar que
alguns dos alunos continuassem os estudos
superiores no estrangeiro – em países europeus, soviéticos ou nos Estados Unidos – e
se capacitasse assim uma geração de quadros que assumissem responsabilidades na
construção do país, “servindo a evolução das
necessidades do povo moçambicano livre”.
Mas, a curto prazo, a ideia era mobilizar
jovens moçambicanos para o movimento e
prepará-los para os objetivos imediatos da
guerrilha, através de conhecimentos em geografia, ciências e em matemática. A
aprendizagem do português era central no sistema
educativo do Instituto, pois habilitava-os
com uma maior capacidade de compreender
e aplicar a estratégia militar: os conceitos de
guerrilha que chegavam de instrutores chineses, cubanos, soviéticos e argelinos, não
encontravam tradução direta nas línguas
bantú – que era o que a maioria dos jovens
alunos falava.
O meu filme Efeito e redação (Effects of
Wording, 2014) mosta documentos, fotografias e excertos de filmes que resultaram da
recolha para a investigação que fiz nos Estados
Unidos, na Holanda e depois em Moçambique. O filme inclui os testemunhos orais de
Catarina Simã