Ano Da Morte de Ricardo Reis
Ano Da Morte de Ricardo Reis
Ano Da Morte de Ricardo Reis
Resumo em língua estrangeira: When we think about the historical events of a country we
end up rescuing some literary references that describe facts that mix fiction with reality. José
Saramago was one of the contemporary writers who approached the historical theme in
several of his works, using resources of intertextuality to provide a new reflection on
Portuguese History and Culture. Thus we have the novel O ano da morte de Ricardo Reis
(1984), written after a decade of the end of the military dictatorship and marked by the
Carnation Revolution, but which takes us back to a Portugal from the beginning of the New
State, the year 1936. The novel tells the story of one of Fernando Pessoa's heteronyms,
Ricardo Reis, who returns from abroad in a troubled moment in history, learning the facts
from the radio and reading the daily newspapers. Among the news are the Spanish Civil War,
the expansion of Nazism in Germany, the rise of Mussolini in Italy, the establishment of the
dictatorship in Portugal under Antonio Oliveira Salazar, and also the Ethiopian War in Africa.
The plot presents real places that are visited by the main character like Largo do Camões,
besides the mixture of texts by writers Luís de Camões and Fernando Pessoa. Thus, this novel
has a significant importance for Portuguese literature because it portrays the early years of
such a profound historical period for the memory, as for the life of the Portuguese, marked by
a singular style of writing.
Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou
português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro,
Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezesseis anos
que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes
mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista.
(SARAMAGO, 2013, p. 13)
O motivo pelo qual ele retorna a Lisboa é por saber do falecimento de Fernando
Pessoa. O enredo se desenrola por nove meses até a morte do próprio Ricardo Reis, em 1936.
Algumas características do heterônimo de Pessoa são mantidas na constituição da
personagem, como ser contemplativo e distante. Assim, podemos considerar que não foi por
mero acaso que temos na epígrafe do livro a significativa frase de Ricardo Reis: “Sábio é o
que se contenta com o espetáculo do mundo”. (SARAMAGO, 2013)
O seu contato com o mundo se faz, especialmente, com a leitura quase diária de
jornais, como descrito nestas passagens: “Vou para cima, estou cansado da viagem, foram
duas semanas de mau tempo, se houvesse por aí uns jornais de hoje, questão de me pôr em dia
com a pátria enquanto não adormeço (...)” (Saramago, 2013, p. 25) e “mas Ricardo Reis já
tinha aberto um dos jornais, passara todo aquele dia em ignorância do que acontecera no
mundo (...)” (Saramago, 2013, p. 48) ou, pelas notícias que são veiculadas no rádio quando se
sentava a sala de espera do hall do hotel, sobretudo. Isso ocorre desde a sua chegada em
Lisboa, quando se hospeda no Hotel Bragança e depois quando se muda para um apartamento
alugado.
Em sua estadia no hotel, ele trava relações com as pessoas que lá trabalham, como o
gerente, o carregador de malas e a arrumadeira, além dos outros hóspedes. Contudo, a figura
mais significativa que surge em sua vida e que o acompanhará até o final do romance é a do
fantasma de Fernando Pessoa.
As relações afetivas de Ricardo Reis são outro contraponto a ser estudado na obra. A
jovem Marcenda pertence à alta sociedade, mantém uma atitude passiva perante aos
acontecimentos do mundo, recatada, submissa e oprimida pelo pai, ainda podemos dizer que
simboliza o amor idealizado e que é impossível de se concretizar. Lídia se apresenta como
representação da mulher comum e da classe trabalhadora, consciente do contexto social e
político que a rodeia, produz juízos e comentários de valor singulares sobre os fatos que estão
ocorrendo, se entrega completamente ao amor sentimental e físico, sem esperar nada em
troca. Destaca-se que Marcenda se assemelha a personalidade passiva e contemplativa de
Ricardo Reis, o oposto de Lídia.
Sobre as demais relações interpessoais, já encontramos elementos intertextuais como o
envolvimento com Lídia, musa etérea e distante das odes de Ricardo Reis, a figura histórica
de Luís de Camões rememorada em trechos em que menciona Os Lusíadas e o tempo de sua
escrita (século XVI), os locais com o nome de Camões, como o Largo de Camões, além do
próprio surgimento de Fernando Pessoa e suas longas conversas em que mencionam,
inclusive, a obra Mensagem.
No excerto a seguir, Saramago propõe questões de como a própria personagem de
Fernando Pessoa poderia ter se apropriado de uma figura emblemática do poema de Camões,
o Gigante Adamastor e a passagem pelo Cabo da Boa Esperança ou Cabo das Tormentas. De
acordo com Massaud Moisés (1997), o episódio do Gigante Adamastor, poderia ser visto
como um símbolo das dificuldades que a Natureza representava aos navegantes
quatrocentistas.
Diz-se, dizem-nos os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado
mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir
e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia, que, sobre a
derrocada dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua
extraordinária força e a inteligência reflectida dos homens que o dirigem.
Virão a cair, portanto, e a palavra derrocada lá está a mostrar como e com
que apocalíptico estrondo, essas hoje presunçosas nações que arrotam de
poderosas, grande é o engano em que vivem, pois não tardará muito o dia,
fasto sobre todos nos anais desta sobre todas pátria, em que os homens de
Estado de além-fronteiras virão às lusas terras pedir opinião, ajuda,
ilustração, mão de caridade, azeite para a candeia, aqui, aos fortíssimos
homens portugueses, que portugueses governam, quais são eles, a partir do
próximo ministério que já nos gabinetes se prepara, à cabeça maximamente
Oliveira Salazar, presidente do Conselho e ministro das Finanças, depois, a
respeitosa distância e pela ordem dos retratos que os mesmos jornais hão-de
publicar. (...). Tem toda a razão o autor do artigo, a quem do coração
agradecemos, mas considere, por favor, que não é Pacheco menos sábio se
amanhã disser, como dirá, que se deve dar à instrução primária elementar o
que lhe pertence e mais nada, sem pruridos de sabedoria excessiva, a qual,
por aparecer antes de tempo, para nada serve, e também que muito pior que a
treva do analfabetismo num coração puro é a instrução materialista e pagã
asfixiadora das melhores intenções, posto o que, reforça Pacheco e conclui,
Salazar é o maior educador do nosso século, se não é atrevimento e
temeridade afirmá-lo já, quando do século só vai vencido um terço.
(SARAMAGO, 2013, p. 81-82)
Segundo Lopes e Marinho (2002), o tema ficcional mais visitado na ficção dos anos
80 na literatura portuguesa foi o da História. Traços de uma tendência ao contexto histórico
poderão ser vistos nas obras desse período de Saramago, como A noite (1979), Levantado do
Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984) e
História do Cerco de Lisboa (1989).
O que podemos notar é que a menção ao aspecto histórico presente em seu país é
demonstrada nos diversos gêneros visitados por Saramago no desenvolvimento de sua
carreira, sendo importante considerar que “em todas as artes literárias e nas que exprimem,
narram ou representam um estado ou estória, a personagem realmente ‘constitui’ a ficção”.
(CANDIDO et al, 2009, p. 31)
O ano da morte de Ricardo Reis (1984) também narra o clima de insegurança presente
nas ruas de Lisboa, pois a PIDE se instalara como medida protetiva do governo. A vida
privada já não pertencia aos cidadãos, e Saramago consegue captar este momento, quando a
personagem principal é intimada a participar de um interrogatório sem quaisquer motivos. Ao
fim, Ricardo Reis sente-se muito mal, não só pela presença do investigador Victor, mas pelo
fedor de cebola que dele exalava-o que, metaforicamente podemos considerar uma
representação da “podridão” presente no ambiente e nas ações de que a PIDE e seus membros
participavam.
(...) todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado
consoante os olhos que o vêem, em vida sua braço às armas feito e mente às
musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cego,
ambos, tanto lhos picam os pombos como os olhares indiferentes de quem
passa. (SARAMAGO, 2013, p. 179)
Nos últimos capítulos do livro, temos mais uma referência histórica demonstrando a
insatisfação de alguns portugueses com a opressão que o regime estava provocando, como a
Revolta dos Marinheiros, que ocorreu em 18 de setembro de 1936. Foi marcada por ser o
único levantamento militar contra a administração do governo de Salazar, tendo como
objetivos a libertação dos presos políticos dos Açores, possível junção com a frota
republicana espanhola, constituída pelos barcos da armada portuguesa Afonso de
Albuquerque, Dão e Bartolomeu Dias. Não foi exitosa, ocasionando a prisão e a morte de 12
marinheiros. (SARAIVA, 1992)
O irmão de Lídia, Daniel, representa um dos marinheiros envolvidos nessa causa
sendo um dos que morreram em nome dela. Essa passagem da revolta está representada, como
podemos notar, nesse trecho do romance quando ela chega à casa de Ricardo Reis chorando:
Conta-me o que se passa, então Lídia começa a chora baixinho, (...), É por
causa do meu irmão. Ricardo Reis lembra-se de que o Afonso de
Albuquerque regressou de Alicante, porto que ainda está em poder do
governo espanhol, soma dois e dois e acha que são quatro, O teu irmão
desertou, ficou em Espanha, O meu irmão veio com o barco, Então, Vai ser
uma desgraça, uma desgraça, Ó criatura, não sei de que estás a falar, explica-
te por claro, É que, interrompeu-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que
os barcos vão revoltar-se, sair para o mar, Quem to disse, Foi Daniel em
grande segredo (...). (SARAMAGO, 2013, p. 416)
Para tanto, podemos finalizar essa análise considerando que a obra possui uma
diversidade e uma riqueza que permitem muitas leituras e olhares direcionados aos inúmeros
pontos a que ela se trata. Os aspectos literários e históricos aqui propostos já nos permitem
refletir sobre o quão é opulenta a escrita de José Saramago, configurando lhe um estilo
próprio de articular informações não-ficcionais com ficcionais. Além de permitir que a
história de seu país se propague ao longo dos séculos, sendo pela sua reescrita ou por meio
dos recursos da intertextualidade.
Referências
AUGUSTO, Claudio de Farias. A revolução portuguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
CORRADIN, Flavia Maria Ferraz Sampaio. Antônio José da Silva, o Judeu: Textos versus
(con)textos. Cotia, Sp: Íbis, 1998.
______. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.