Introdução Masud Khan
Introdução Masud Khan
Introdução Masud Khan
por
Davy Bogomoletz
M. MASUD R. KHAN
Tentei manter em língua portuguesa um estilo que, a meu ver, Winnicott teria
· µsado se escrevesse nessa língua. Se errei o alvo em excesso ou não, sóo leitor pode-
rá dizer.
Quero agradecer postumamente à saudosa Jeannine Kalmanovitch, que tradu-
ziu Winnicon para o francês. Graças à sua tradução, acompanhada por ele na primei- " Se algum dia ocorrer de escreveres a meu respeito .. . sê sensível o bastante
ra edição (1969), consegui (creio eu) decifrar vários sentidos obscuros do original - como ningu ~m o fo i até agora ~ para cnracterizar-mc, ·descrever' - mas
{Winnicott gostava de ser simples, mas nem sempre... ) Agradeço também à Dra. não 'avaliar' ." Niel=.~clie 11 Carl Fuârs
Elsa Oliveira Dias, com quem discuti a tradução de vários termos, e que me impediu Quando olho para trás, para os quase 20 anos de meu trabalho com Winni-
de cometer algumas afoitezas. E agradeço ainda à primeira tradutora do livro, Jane
cott, o que me surge vividamente é a sua postura corporal relaxada e a sua
Russo, que abriu muitos caminhos e da qual foi uma honra discordar.
Alguns termos exigem uma explicação para o leitor, cujos comentários serão
suave concentração. Winnicott prestava atenção com o corpo todo, e tinha
muito bem vindos. · um olhar perspicaz e respeitoso, que nos focalizava com um misto de dúvida
Concernimento: Elsa Oliveira Dias e Zeljko Loparic, dois grandes pensadores e absoluta aceitação. u;na espontaneidade de criança impregnava os seus
winnicottianos da atualidade, propõem - e eu aceito - traduzir concern como movimentos. Mas ele podia também ficar muito quieto, inteiramente contro-
'concernimento' . lado e quieto. Jamais conheci outro analista que fosse tão inevitavelmente
. De-privação: Ver' A Tendência Anti-social', Çap. XXV. O hífen e o itálico re- ele mesmo. Era essa característica de ser inviolavelmente ele mesmo que lhe
alçam no texto a sua natureza especial. permitiu ser tantas pessoas diferentes para tanta gente. Cáda um de nós que o
Impiedoso I Sem compaixâo; Em Natureza Hu'mana deixei ess.e termo no ori-
conhecemos tinha o seu próprio Winnicott, e ele jamais atropelou a idéia
ginal. Agora proponho que ruthless (adj.) -seja traduzido por 'sem compaixão ou
piedade',(' impiedoso') e rmh/essness (subst.), por' ausência de piedade ou compai-
que o outro fazia dele pela afinnação de s~u modo pessoal de ser. No entan-
_xão'. (Ver ·Nota Introdutória à Tradução', em Natureza Humana, e N. T. à pág. 234). to, pennanecia inexoravelmente Winnicott. Comecei propositalmente por
instinto; Elsa O. Dias lembra-me que Winnicott manteve deliberadamente o ter- defini-lo em-sua presença física, porque não seria possível compreender o
mo "instinto', em vez de 'pulsão' (drive). Oestudo de Zelj ko Loparic a esse respeito - seu talento clínico sem primeiro entender que, nele, a psique e o soma encon-
"O Conceito de Trieb na Psicanálise e na Filosofia", apresentado à Sociedade Brasilei- travam-se em perpétuo diálogo, e suas téorias são simplesmente a abstração
ra de Psicanálise em 13/09/97, é de longe o melhor que li até agora. Ver também a carta
Je Winnicon a Money-Kyrle (Carta nº 26), em The Spontaneous Gest11re.
daquela constante pessoa que era
Winnicott, o ser humano e o terapeuta. E
novamente, Winnicott o homem e Winnicott o clinico eram recíprocos um
Jn11t ilidade: Esta palavra descreve melhor que •futilidade' o que Winni cott quis
dizer ·com 'feeling offutil ity', esse sentimento cinzento de que 'não adianta', 'seja o
com o outro, fonnando um bloco único, inteiriço.
que for. é inútil.' Na idéia de 'fee/ing offutility' há uma conotação desesperançada Consideremos agora WinnicQtt, o teórico. Ele havia sido criado na tra-
que ' futilidade', em português,.não possui. dição de seu povo, os ingleses. Para ele os fatos eram a realidade, e as teorias
Primeira infância; Em inglês, Childhood é 'infância', eln/ancy refere-se à fase - o titubear humano buscando apreender os fatos. Ele era militantemente
da iniãncia em que o bebe ainda não fala(in-/ans, cm latim: 'não-fala:). 'Primeira in- avesso aos dogmas. Winnicott era não-conformista desde o berço; nada era
fância' significa aqui, 'primeira pa1te da infància' (até os dezoito meses, mais ou estabelecido ou absoluto. Cada qúal deveria buscar e definir a sua própria
menos), e 'infância' toda a fase anterior à adolesçência~ O termo 'toddler' é traduzi-
do por 'o bebê que aprende a andar'.
Psicossoma: Em Natureza Hl.{mana modifiquei o tradicional 'psique-soma' . Esta ê uma yersão ampliada de minha introdução à edição francesa de Therapelllic Con.mlrç11icin1·
in Chihi Psychialry, de Winnicott, que d e me pediu para e&.1-cw r. Gost~ria de agmdccer a J. B. l'(lll-
para 'psico-soma', mas mantive o hífen (compulsório em inglês). Desta vez o.u-
talis, editor da série ··connoissance de l' lnconscient" (Gallimnrd), da qual o livro fazia pmtc, por seu
sei um pouco mais, e surgiu 'psicossoma', indicando uma unidade. Em persistente estimulo que me possibitou escrevê-la. Sou grato também ú Srn. Clarc Winnícoll, por
Psycho-Analyticaf Explorations (pág. 104) Winnicott comenta que o problema da ler o meu texto com uma dedicação tão atenta, ajudando-me a corrigir signi ticativamcnLe ccrio5
Psicossomática é justamente esse hífen, ou seja, a cisão entre a psique e o soma. ucsequilíbrios de tom e ccxtura.
DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 13
12 D. W. WINNICOTT
verdade. O que havia de estabelecido era o espectro da experiência. Todas as Realidade Interna Versus Devaneio (Fantasia)
.suas energias foram empiegadas na tarefa de encontrar o sentido das realida-
des da clínica. com as quais defro1tou-se durante tantos anos. Não é possível definir a verdadeira natureza das pesquisas de Winnicott, a
não ser que as observemos evoluir no interior de uma certa fase e de um certo ·
Como é de praxe e·ntre os ingleses, ele escrevia no mais simples verná-
clima dos debates teóricos e clínicos da Bl:itish Psycho-Analytic Society. A
culo. Não há retórica nem linguagern·técníca assustadora em sua écriture.
década de 1928 a 1938 foi talvez a época mais viva e criativa da pesquisa na
Escrevia como falava: simplesmente, e com a_íntenção de relatar. Não tenta-
British Society. A presença soberana de Freud estava nos bastidores, lá em
va conv.encer nem doutrinar. Seu vocabulário pessoal era tão semelhante ao Viena. Seu trabalho havia recebido o acréscimo da hipótese estrutural da
dos medianamente educados e ao uso comum das palavras, que todos caíam mente em termos de ego, superego e id ( 1923) e da revisão da teoria da ansie-
na armadilha de imaginar que sempre compreendiam o que ele estava dizen- .dade ( 1926), que pusera o ego no centro do funcionamento psíquico e da rea-
do. Essa méconnaissance paradoxal lhe era bastante agradável. Sim, ele era lidade comportamental. Pouco antes ele havia também introduzido o conceito
muitíssimo orgulhoso, e sua auto-estima só era anieaçada por seus próprios da.dualidade pulsional: os instintos de vida e morte (1921). Um pouco mais
erros, nunca ,Pela censura ~lheia. longe, em Budapeste, a mente prodigiosamente criativa e fértil de Ferenczi
Quando comecei a escrever este ensaio, os anos passaram voando diante abria novas perspectivas para a ousadia dos psicanalistas. Paralelamente,
dos meus olhos. Lembrei-me da primeira vez em que ouvi Winnicott falar Anna Freud e Melanie Klein iniciavam suas pesquisas na análise de crianças
como pr~sidente, na Seção Médica da British Psychological Society: "Pe- · (cf. Smimoff, 1971). ·
diatria e Psiquiatria" {Cap. Xlll). Estávamos em 1948. Eu ouvia esse suj"eito Para a Sociedade Britânica, um momento de i~portância capital foi o
esquisito, falando com seu inglês corretíssimo e dizendo-nos coisas tão ob- convite feito a Melanie Klein pelo seu então presidente Dr. Ernest Jones para
viamente claras ma_s tão pouco abordadas. Falava com uma convicção e uma -vir ensinar e trabalhar.em i.ondres em 1926. Seu talento todo particular para
clareza que estimulavam tanto a duvida quanto o debate. Naquele momento compreender as fantasias inconseientes da criança pequena através da técni-
decidi que eu iria saber mais sobre ele e sua forma de trabalhar. Graças ao ca do brinquedo tomou conta da imaginação de seus colegas britânicos, na
saudoso Dr. John Rickman, Winnicott permitiu que eu assistisse a uma de mesma medida em que levantava suspeitas e resistências em Berlim e Viena.
suas consultas com o 'jogo do rabisco' no HospitalPaddington Green. Nada Gostaria agora de fazer uma pausa para falar um pouco das pessoas im-
poderia ser menos parecido com a esperada atmosfera médico-clínica. Era portantes da Sociedade Britânica ao longo dessa década. Eram todos muito
um verdadeiro acontecimento. Alguém menos generoso diria que se tratava cultos, criados na tradição hwnanística e liberal. Emest J ones era a grande fi-
de um caos que ele mantinha sob controle. Ele falava com os pais enquanto á gura de autoridade. Havia também James e Alix Strachey, e Adrian e Karen
criança estava ·absorta dêsenhando algo sem sentido, de significado privado Steven - do grupo de Bloomsbury. E havia John Rick.man, um quaker que
e importantíssimo. Winnicott alternava entre os.pais e a criança,facilitando chegou à psicanális_e através de seu trabalho na Rússia. em Viena e Budapes-
a ambos em seus respectivos esforços de compartilhar suas a~uras. Não era te. E Sylvia Paine, muito prestigiada por seu trabalho com soldados tràuma-
difícil imaginar que se tratava de pura mágica. No entanto, nada havia ali de tizados na Primeira Gue1Ta. E Elia Sharpe, que se tomou psicanalista depois
mágico, porque a mágica. funciona apenas conl. o auxílio de ~úmplices, e de lecionar literatura. E também Joan Riviere, Barbara Low, J.C. FJugel,
nunca n.a presença de participantes e testemunhas recalcitrantes. Susan Isaacs, Marjorie Brierley e sobretudo o Dr. Edward Glover - um
grande e apaixonado mestre, cuja clareza de pensamento era comparável
Foi então que me convenci de que, por trás de toda a ingenuidade e a pe-
· apenas à sua vigorosa criatividade.
riclitante inocência e espontaneidade de seu comportamento, escondia-se
Foi a esse grupo tão ativo de pessoas que Melanie Klein apresentou ó
urna mente complexa, que orientava as man_obras e checava a todo momento
seu trabalho. Foi uma década de diálogo franco e aberto na Sociedade
suas próprias abstrações. A prática de Winnicott estava ancorada nwna cres-
Britânica, e as pesquisas de Klein influenciaram o pensamento de todos. Até
cente e intrincada teoria que lhe custava, como ele costumava dizer, citando
então ela ainda não hávia levado o seu trabalho ao nível da apostasia. Vindo
o verso de Eliot, "não menos· que tudo", desenvolvendo-se e sendo elabora-
da pediatriii., Winnicott chegou à psicanálise nesse clima tão cheio,de vivaci-
da graças às suas experiências cíínicas e pessoais.
14 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 15
dadc. Ele era uma figura ímpar, e já havia estabelecido sua posição clínica A isto Winnícott acrescentaria outra importante nota em 1957:
A
É preciso enfatizar que, em relação à satisfação das necessidades da criança, .sistemas de fantasias inconscientes, poderia, em certos casos de extrema
não me rejlro à satisfação dos instintos. 1 Na região que estou examinando, dissociação da realidade interna, tomar-se cúmpli-ce do Falso Eu do paciente, e
os instintos ainda não estão claramente definidos, para a criança, como inter- perpetuar sua patologia com comentários interpretativos. Ele tinha bons
.nos. Eles podem ser tão externos quanto um trovão ou unia pancada. O ego
mo ti vos para acreditar nisso a partir de. sua experiênda clínica, pois muitos
da criança está acumulando forças, e isto irá.resultar num estado em que as
q~e ha~iam feito longas análises de um tipo ou de outro o procuravam pe-
demandas do id serão percebidas copo fazendo parte do eu, e não do am-
biente. Quando este desenvolvimento acontecer, as satisfações do .id tor- dindo ajuda, e ele conseguiu muitas vezes transfonnartodo o clima da sen-
nar-se-ão um fator muito importante no fortalecimento do ego, ou do Verda- si~ilidade interna das pessoas, tomando-as capazes de perceber de que ·
deiro Eu; mas a excitação do id pode ser traumática q11ando o ego ainda não modo essa dissociação específica em Verdadeiro e Falso Eus operava den-
esrá em condiç<)es de'inclui-la, nem de dar conta dos riscos envolvidos e das tro delas. '
fr4strações experimentadas até o momento em que a satisfação do id reali- . Par~ Winnicott foi se tomando cada vez mais importante definÚ o papel
za-se de fato. da nnagmação, da ilusão e do brincar no espaço transicional, região de onde
Dessa hipótese a respeito do Verdadeiro e do Falso Eu ele extraÍu em segui- provêm todos os gestos de auto-realização verdadeiramente espontâneos, os
da uma importante conclusão para a nossa prática clínica: quai~ se irão cristalizar numa tradição pessoal - a realidade interna, a qual
consiste, portanto, em mais que o fantasiar.
É possível enunciar·um princípio, dé que ao trabalhar analiticamente na
área do Falso Eu iremos mais longe pelo reconhecimento da não ex.istên-
cia do paciente do que por um longo e persistente trabalho sobre os.seus Do Objeto Transicional ao Uso do Objeto
mecanismos de defesa. O Falso Eu do paciente é capaz de colaborar inde-
finidamente com o analista na análise das defesas, jogando, por assim
dizer, do lado do analista. Esse trabalho infrutífero será interrompido so- Em algum lugar Goethe escreveu: "Detesto tudo aquilo. que simplesmente
mente quando o analista puder apontar e descrever a falta de algum ele- me instrui, sem acelerar ou diretamente estimular a minha atividade." Num
mento ess~ncial no pa-ciente: "Você não tem boca", "Você ainda·não certo sentido, isto vale t<Unbém para a sensibilídade do próprio Winnicott.
começou a existir", "Fisicamente você é um homem, mas até agora não sabe . Ele era capaz de aprender coi:n os outros apenas quando isto o levava a perce-
nada sob~e masculinidade pór experiência própria", e assim por diante. O ber mais aguda ou amplamente a si próprio. Lembro-me de tê-lo procurado
reconhecimento de um fato importante, dito claramente no momento cer· um domingo de manhã com o·Jivro Freud and the Crisis of our Time, do
to, abre caminho.para a comunicação com o Verdadeiro Eu. Um paciente
que havia feito um bocado de análise fútil com base no Falso Eu, coope· Prof. Lionel Trilling, insistindo para que o lesse. Ele escondeu o rosto en-
rando maciçamente com o analista que pen~a.va ser este o seu eu total, dis- tre as mãos, parou, contorceu-se, ficando ~isível novamente, e disse: "Não
se-me certa vez: "O único momento em que senti esperança foi quando adianta me pedir para ler nada, Masud. Se o livro me aborrece, caio no sono
você me disse que não tinha esperança alguma, mas continuou com a mi- no meio da primeira página. E se me interessa, eu começarei a reescr.evê-lo
nha análise." no fim daquela página." É claro que estava brincando, tanto comigo quanto
Nesse contexto, Winnicott considerava que o fantasiar pode se transformar consigo mesmo, e para isso ele era um tanto endiabrado. Mas estava dizendo
num meio organizado para manter a organização do Falso Eu de uma pessoa. a verdade, e a verdade conosco, seres humanos, só funciona atra~és da metá-
Ele acreditava, além disso, que a técnica clássica, com sua tendência a mera- fora ou do paradoxo. A precisão matemática é a medida das máquinas, mas
mente interpretar o significado do comportamento do paciente em termos d~ não um índice da veracidade humana.
Não admira ter sido ele quem nos deu os conceitos de objeto, espaço e
Winnicott utilizava sempre o tenno 'instinto' (ver, porexemplo,Nature2aHumana, Imago, 1990). f~~ô~eno ~ansicioriais. Mas dogmatizar suas abstrações a partir da expe-
. Com certeza não lhe escapava a distinção cientifica entre 'instinto' (impulso com objeto definido) nenc1a cHmca, elevando-as à condição de conceitos, equivale a distorcer seu
e 'pulsão' (impulso com objeto em abCrto ). Mas talvez porque a tradição psicanalítica inglesa manteve o
m~do de pensar. Trata<:.se mais exatamente - e intencionalmente - do que
•instinto', de também prefe1iu mantê-lo, e assim o manti.ve eu. Ao leitor cabe perceber que não se trata •
dci,im eiTo:...._nem dele, nem meu. Masud Khan usa' o LenTio 'pulsion', e as.~im foi traduzido. N.T.. Nietzsche chamava de "ficções reguladoras". Nenhuma das outras "ficções
18 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE
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reguladoras" de Winnicott recebeu aclamação tão imediata quanto aquela O behê parece acreditar que a espátt1la está sob seu controle, talvez ern
do objeto transicional. seu poder, certamente disponível para com ela expressar o seu eu. Ele bate
Esta noção, aparentemente tão explícita e tão facilmente compreensí- com ela na mesa ou numa tigela metálica que está por ali, fazendo ianto baru-
vel, porque para Winn icott eh não era nada mais que isso, tem uma comple- lho quanto possível; ou então a leva até a minha boca, ou até a boca d~ mãe,
xa 'biografia' clínicu atrás de si. gostando muito se fingimos que estamos sendo alimentados. Definitivamen-
te, sua intenção é brincar de nos dar comida na boca, nã o gostando nem um
Durante o tempo em que trabalhou no Paddington Green Children 's
pouco se formos estúpidos a ponto de· pôr a espátula na boca, estragando a
Hospital e no Queen 's Hospital for Children, ao longo de wnas quatro déca- brincadéira enquanto brincadeira.
das, ele atendeu cerca de 60.000 bebês, crianças, mães, pais e avós. A pri-
Neste ponto, gostaria de salientar que jamais encontrei qua !quer evidên-
meira declaração de Winnicott a respeito desta área de pesquisa encontra-se cia de que o bebê fica desapo1~tado pela idéia de a espátula não ser nem comi-
em seu trabalho "Observação de Bebês numa Situação Padronizada" (Cap. da nem um utensílio contendo comida.
IV)~ Ali ele descreveu um certo padrão do comportamento infantil em rela-
ção à espátula no contexto da consulta solicitada pela mãe. Suas observações Terceiro estágio: Há um terceiro estágio. Nele, o bebê em primeiro lu-
sobre tais fenômenos são tão importantes, que me sinto obrigado a reprodu- gar deixa a espátula ca.ir como que por acaso. Se ela lhe é dcvolvid:i e le se
alegra, brinca com ela novamente e a deixa.cair mais uma vez, desta vez
zi-las na íntegra:
não tão por acaso. Q\lando ela lhe é devolvida novamente, ele a deixa ca ir
Primeim estágio: O bebê estende sua mão para a espátula. mas desco- propositalmente e passa a realmente adorar o ato de jogá-la de modo agres-
bre subitamente que é melhor pensar.um pouco mais sobre a situação. Ele se sivo, ficando especialmente satisfeito quando ela faz um barulho metá lico
vê num dilema. Ou então põe a mão sobre a espátula, com seu corpo parado, e ao cair no chão. ·
olha para mim e para sua mãe com os olhos bem abertos, observando e aguar- O final desta terceira fase ocorre quando o bebê ou pede para descer ao
dando, ou, em certos casos, retira inteiramente o seu interesse da mesma e chão com a espátula, onde se põe a mordê-la e a brincar com ela outra vez, ou
enterra o rosto na blusa da mãe. Normalmente é possível garantir que não então quando se cansa dela e passa a tentar alcançar algum outro objeto que
seja dado nenhum e!\timulo reassegurador, e é muito interessante observar o esteja por perto. ·
.
gradual e espontâneo retomo do seu interesse· pela espátula.
Segundo estâgio: Enquanto dura o 'período de hesitação' (co"mo eu o
O que eu gostaria de salientar aqui de modo especial é o que Winnicott cha-
ma de "perlodo de hesitação". Pois mesmq uma rápida olhada no material
denomino), o bebê mantém seu corpo nà mesma posição, mas sem rigidez. apresentado em Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil revelaria
Aos poucos ele reúne coragem suficiente para deixar que seus sentimentos
muito enfaticamente que a essência do jogo do rabisco é o modo como Win- _
aflorem, e então a cena muda bem rapidamente. O momento em que a pri-
meira fase se transfonna na segunda é evidente, pois a aceitação, pelo bebê, nicott cr~a um espaço, um espaço transicional, onde esse "período de hesita-
da realidade de seu desejo pela espátula é anuncjada por uma lnudança tio in- ção" não apenas está plenamente presente, como é estimulado por ele até
terior de sua boca, que se toma.flácido, enquanto a língua parece grossa e ma- desabrocharnum gesto criativo, o rabisco. Trata-se inclusive de um conceito
cia, e a saliva flui copiosamente. Logo em seguida ele coloca a espátula em importante para a teoria psicanalítica em gj;lra1, e especialmente para o nosso
. sua boca, e a mastiga com as gengivas, ou parece imitar o pai fumando um trabalho clínico com adultos. O cone.eito do "período de hesitação" acres-
cachimbo. A mudança no comportamento do bebê é marcante. Em vez da ex- centa algo novo ao conceito clássico de resistência conforme o conhecemos
peçtativa e da quietude, agora vemos desenvolver-se a autoconfiança, e o
dos trabalhos de Freud. É muito freqüente encontrannos em escritos psica-
corpo se move livremente de acordo com a manipulação da espátula.
nalíticos interpretações da resistência de um pacítnte, quando na verdade 0
Diversas vezes fiz a experiência de tentar colocar a espátula na boca do
bebê durante o período de hesitação. Ou porque a hesitação con:esponde ao paciente se encontra em um "período de hesitação", ou seja, em outras pala-
que eu considero normal, ou porque difere disso em grau e qualidade, amim vras, o paciente está de fato tateando em busca, de "uma espécie de intimi-
parece iinposshiellevar a espátula à boca do bebê durante esse período, salvo dade" na situação analítica, onde ele irá aos poucos fazer a sua primeira con-
se exercemos a força bruta. Em certos casos em :que a inibição é aguda, qual- tribuição verbal ou gestual. O conceito do "período. de hesitação" vincula,
quer tentativa minha que faça a espátula mover-se em direção ao bebê resulta por outro lado, o trabalho de Winnicott às peS{Juisas de Hartmann (1958) so-
em gritos, aflição e até cólica. bre a área do ego li'vre de conflitos.
D. W. WlNNICOTT
20 DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 21
Winnicott aprofundou o seu pensamento em "Desenvolvimento Eino- 6. Do nosso ponto de vista ele provém do exterior, mas do ponto d\: vista
cional Primitivo" (Cap. XII) onde, discutindo as primeiras experiêri.cias q~e do bebê não é bem assim. Más também .não vem do interior; não se trata de
o bebê tem da mãe, ele diz: uma alucinação.
Em tennos do bebê e do seio da mãe (não estou afim1ando que o seio é essen- 7. Seu d<>..stino é o de ser gradualmente 'dcscatexízado', de modo que ao
cial como um veículo para o amor da mãe), o bebêtem urgências instintivas e longo dos anos ele não é exatamente esquecido, mas relegado ao li mbo. Com
idéias predatórias. A mãe tem um seio e o poder de produzir leite, e a idéia de isto, eu quero dizer que na saúde o objeto transicional não vai "para dentro",
que ela gostaria de ser. atacada por um bebê faminto.' Esses _dois ~enômerros nem os sentimentos a seu respeito sofrem necessariamente uma repressão . .
não ~e relacionam mutuall!etite até que a mãe e a cnança v1vem;untos uma Ele não é esquecido, nem é objeto de um luto. Apenas perde o sentido, e isto
experiência. Sendo madura e fisicamente apta, é a mãe que deve ser tolera,!lte porque os fenômenos transicionais se tornaram ·difus os, espalharam-se
e compreensi\Ja, e portanto é ela quem produz a situaç~o que pode, .se tudo por sobre todo o território intermediário existente entre a 'realidade ps í-
der certo, resultar num primeiro vínculo que o bebê f~ra com um objeto ex-
quica interna' e o·'mundo externo como é percebido de comum acordo por
terno, um objeto que é externo ao eu do ponto de vista do bebê.
duas pessoas', ou seja, o campo da cultura como um todo.
Creio que o processo funciona como se duas linhas vie~sem de direções
opostas, com a capacidade de se aproximar urna da outra. ~Se elas se ~~p.e:· O ponto importante a assinalar é o de que o objeto transicional não é signifi-
põem, ocorre um momento de i!usão - uma pequena porçao de expenenc1~ . cativo por ser uma coisa; sua coisidade é crucial apenas porque ela ajuda a
que o bebê pode aceitar ou como uma alucinação ou como algo pertencente a
criança a sustentar uma realidade interna que se amplia e evolui, e a auxilia a
realidade externa.
diferenciá-la do mundo que não é o eu,
O que Winnicott chama, em Consultas Tdrapêu~icas em Psiquiatria lnf~11til, Winnicott afirmou ele próprio que o objeto transicional
de "uma espécie de intimiçlade", é o que ele aqui descreve como o relaciona-
mento em que a mãe e o bebê "vivem juntos uma experiência". Ele também não é o pano ou o ursinho de pelúcia usados pelo bebê-não é o objeto em si
acrescenta um novo elemento à sua afinnação anterior sobre o jogo da espá- mesmo, mas o uso desse objeto. Chamo a atenção para o paradoxo implícito
tula a saber o "momento de Úusão". É deste ponto específico que ele iri:,i dar ao uso feito pelo bebê diss9 que denomino objeto transicional. Minha contri-
buição é a de pedir que o paradoxo seja aceito e tolerado, e respeitado, e não
0 p~sso seg~inte, de·cristalizar o conceito de objeto e_ fenômeno. transicio-
resolvido.Através da fuga para a função intelect~al dissociada é possível re-
nais. solver o paradoxo, mas o preço a ser pago é a perda do valor do paradoxo pro-
o conceito do objeto transicional em si mesmo é bastante conhecido. priamente dito.
Winnicott o discutiu, bem como às suas implicações, de utn modo muito de-
talhado em seu livro O Brincar e a Realidade (1971 b). Cito a.qui o resumo Winnicott estava inteiramente cônscio de que o conceito do objeto transicio-
que ele apresentou sobre as qualiqades específicas do relacionamento entre nal tinha estreita correspondência com certos conceitos da literatura e da
o bebê e o objeto transicion~L arte. Por exemplo, as colagens cubistas de Braque e Picasso apresentam cla-
ramente a característica do objeto transicional, pois integram o dado ao
1. o bebê assume direitos sobre o objeto, e nós concordamos com isso.
criado, o imaginado ao concretamente encontrado .:____num ~spaço único,
No entanto, uma certa anulação da 'onipotência' faz parte da situação desde
o da tela - e lhes dão ali uma unidade e uma .r:ealidade novas. De modo
o início.
2. O objeto~ afetuosaménte acariciado, e também amado e mutilado ex- semelhante, a estética de Mallarmé e o conceito joyciano de epifania tratam
do mesmo tipo de atividade e experiência humanas. É por esta razão que
citadamente.
3. Ele não deve mudar nunca, a não ser pela ação do bebê. tp.ais tarde, próximo ao final de sua vida, Winnicott interessou-se tanto pelo
4. Deve ser capaz de sobreviver ao amor instintivo, bem como ao ódio e, modo como a cultura, com o seu amplo vocabulário de símbolos e suas ativi-
se esta for uma caracteristica, à agressão pura e simples. dades simbólicas, ajuda o indivíduo a encontrár e a realizar a si mesmo. O
5. No entanto, ele deve dar ao bebê a impressão de ser quente, ou de se conceito do objeto transicional ajudou o pensamento psicanalítico a reava-
mover, ou de ter textura, ou de agir de modo a parecer ter vida e realidade liar o papel da cultura como uma contribuição positiva e construtiva à expe-
próprias. riência humana, em vez de' como fonte de mal-estar.
D. W. WINNICOTI
DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 23
22
Mas o desenvolvimento mais importante no pensamento posterior de ce maiores. Uma nova potencialidade surge no espaço clínico, e também um
novo relacionamento, dando lugar à realização afetiva e imaginativa do eu
Winnicott a partir desta área de pesquisa foi a diferença entre o relaciona-
através do uso do analista ao mesmo tempo como objeto transicional e r.omo
mento com o objeto e o uso do objeto. Uma afirmação muito sucinta a esse
objeto que é de fr.w objetivo. A ênfase de Winnicott sobre este ponto é no
respeito surge no trabalho "O Uso de um Objeto" l: 969). Eis um resumo do
sentido de que nesta área de funcionamento psíqu.ico o que eslá em curso é
mesmo:
essencialmente "o paradoxo, e a aceitação do paradoxo: O bebê criou o ob-
A relação com o objeto pode ser descrita em termos de uma experiência do jeto, mas o objeto estava lá, esperando para ser criado e para tomar-se um
sujeito. A descrição do uso do objeto implica em considerar a natureza.do ob- objeto catexizado." Em termos da transferência, isto significa que o analista
jeto. Ofereço para discussão os motivos pelos quais, em minha opinião, a e o paciente são p'artes de um processo total mais amplo dentro do contexto
capacidade de usar um objeto é mais sofisticada que a capacidade de rela-
analítico, no qujtl ambos e~tão sendo 'criados' e 'encontrados' um pelo ou-
cionar-se cofo objetos; pois o relacionar-se pode ser com objetos subjeti-
vos. enquanto o uso impli.Ca cm que o objeto·é parte da realidade externa. tro. É esta mutualidade e reciprocidade que criam um novo dinam ismo
É .possível observar a seguinte seqüência: 1- o sujeito relaciona-se !-'.Offi . dialógico, mais importante que a mera relação objetal na transferência.
um objeto. 2-o objeto está em processo de ser encontrado, em vez de colo- · Winnicott (1970) apresentou um relato clínico da 'experiência de mutuali-
cado no mundo pelo suje.ito. 3 -o sujeito destrói o objeto. 4- o objeto so- dade' na análise de urna paciente adulta de 40 anos, casada e mãe. de dois fi-
brevive à destruição. 5-- o sujeito pode usar o objeto. lhos. Ela o procurou para tratamento depois de seis anos de análise com uma
O objeto está sempre sendo destruído. Tal destruição toma-se o pano de analista mulher:
fundo inconsciente do amor pelo objeto real, ou seja, por um objeto que está
fora do controle onipotente do sujeito. O fràgmcnto que escolhi para descrever tem a ver com a absoluta necessida-
O estudo deste problema implica em estabelecer o valor positivo da des- de que tinha esta paciente de, de tempos em tempos, estar em contato comi-
trutividade. A destrutividade, acompanhada pela sobreviyência do objeto à go. (Ela havia temido dar esse passo com uma analista mulher devido às
destruição, situa o objeto do lado de fora da região de objetos criados pc!Ús implícaçõês homossexuais da situação.. )
mecanismos projetivos do sujeito. Em conseqüência, surge.uma realidade
Foram tentadas várias formas de intimidade, principalmente aquelas r~
compartilhada que o sujeito pode usar, e a qual pode fornecer de volta ao su-
lativas à alimentação .:: ao manejo de um bebê. Houve episódios violentos.
jeito uma substância outra-que-não-eu.
Em certo momento ocorreu que estávamos juntos, com a sua cabeça em mi-
As implicações desta hipótese para o entendimento do que ocorre na transfe- nhas mãos.
rência são ao mesmo tempo bastante intrigantes e complexas, porque ela Sem qualquer deliberação de parte a parte surgiu um ritmo de embalo. O
lança uma nova luz sobre a experiência da destrutividade no clima total do ritmo era um tanto rápido, de 70 movimentos por minuto (cf. o batimento
· cardíaco), e custou um certo esforço adaptar-me a ele. Seja como for, lá está-
contexto clínico. O conceito do objeto transicional e a distinção entre a refa-
vamos nós com uma mutualidade, e,xpressa em tcnnos de um leve mas per-
ção de objeto e o uso do objeto pennitem que experimentemos e avaliemos o sistente movimento de embalo. Estávamos nos comunicando um com o
comportamento total do paciente na situação clínica de um modo inteira- outro sem palavras. Isto ocorria num nível de desenvolv imento que não exi-
mente novo. Agora, o não relacionar-se do paciente não é mais visto como se gia da paciente urna maturidade maior do que a que ela descobriu possuir na
ele estivesse negando-se a se relacionar, mas como se ele estivesse procu- regressão à dependência nessa fase de sua <.málise.
rando deixar de relacionar-se com o objeto! e tentasse usar o analista como Essa experiêncía, várias vezes repetida, foi crud~.! para a terapia, e a
objeto2 • Isto confere ao clássico conceito de transferência, em geral visto violência que nos-havia levaclô àquele ponto somente então foi pc rceb id~
como a repetição de relações objetais primitivas e de sistemas de fantasias como uma preparação e tm1 teste - bastante complexo-- da capacidade do
analista de corresponder às várias técnicas de comunicação da prirneira in-
inconscientes refletindo impulsos arcaicos do id, wna.amplitude e um alcan-
fância.
A Regressão, o Manejo e o Brincar no Contexto Clínico cuidados por ele, podemos testemunhar sobre a qualidade tão especial dessa
atenção, simultaneamente psíquica e somática. 1
Conta-se de Ibn cl-Arabi que alguém lhe disse: 'Vos~o círculo é compostu prin~ípal
Winnicott apresentou o seu primeiro relato sobre regressão à dependên-.
mente de mendigos, lavradores e ai1esãos. Não poderíc1~. vós encontrar ·pessoas mais eia de um paciente adulto em seu trabalho "Aspectos Clínicos e Metapsico-
cultas que vos seguissem, para que fossem feitas anotações mais fidedignas de vossos lógicos da Regressão no Contexto Psicanalítico" (Cap. XXII). Sua questão
ensinamentos?' teórica fundamental era: ·
Respondell o mestre: 'O Dia da Calamidade estará tnfinitamente mais próximo
... é inútil utilizar o termo regressão toda vez que nos deparamos com um
quando ~u tiver eruditos e intelectuais qntando meus lnuvores. Pois sem duvida eles
comportamento infantil num relato clínico. O termo regressão acabo u dando
o foríalll por amor a si próprios, e não por ;imor à nossa obra!' · ·
Idries Shah, The Wisdom <!f'the Idiot.1· origem a um significado popular que não precis.amos adotar. Q uando fa la-
mos d.e regressão em psicanálise, supomos a exi$tênda de uma organização
Para cada palestra que Winnicott era convidado a dar numa das assim cha- egóica e uma ameaça de caos. Há muito que estudar aqui sobre o modo com o
madas sociedades profüsionais de alto nível, ele deu pelo menos uma dúzia um indivíduo armazena memórias e idéias e potencialidades. É como se hou-
em reuniões de assistentes sociais, organizações de assistência à infância, vesse uma expectativa de que surjam condições favoráveis que possibi l it~m
a regressão e ofereçam a oportunidade para a retomada do desenvolvimento,
professo~es, clér.igos, e assim por diante. Dava-lhe uma satisfação toda espe-
que havia sido inicialmente impossibilitado ou dificult:ido por fa lh a do am-
cial falar a pessoas co;iuns, gente profundamente preocupada em ajudar os biente.
outros, fossem estes crianças, adultos em dificuldade ou pessoas perdidas
num mundo que não conseguiam_ enfrentar. Uma das razões para isto era que O que deve ser especialmente assinalado nesta declaração é a expressão
"uma expectativa de que surjam condições f<\voráveis que possibilitem a re-
nesses encontros ele aprendia mais do que nos debates com os seus colegas e
gressão". Winnicott acr~ditava, e a experiência clínica de outros o compro-
suas annaduras intelectuais. Tinha horror aos malabarismos mentais em
vou, que uma pessoa que precisa regredir à dependência jamais poderá
que, é forçoso admitir, o pensamento psicanalíttco contemporâneo cai tão fazê-lo por si mesma, ou pedi-lo, sendo necessário que alguém consiga per-
freqüentemente. Além do mais, Winnicott sentia-se· livre para apresentar o ceberessanecessidade e colocar-se em conqições de preenchê-la. Seu traba-
paradoxo que era ele próprio a pessoas que estivessem interessadas mais em lho com as assim chamadas crianças delinqüentes ensinou-lhe o quanto tais
cuidar que em curar os psiquiatricamente doentes, fossem eles crianças ou atos anti-sociais constituíám um modo de afirmar uma necessidade e procla-
adultos, mar uma demanda (Winnicott 1956b). Na situàção analítica ele aprendeu a
Em nenhuma outra área de suas pesquisas a necessidade do paradoxo, rec0n11ecer a inabilidade do paciente de-privado 2 de reivindicar sua necessi-
tão característica de sua sensibilidade, mostrou-se mais dramaticamente vi- dade, não por estar resistindo, mas por sua incapacidade de entrar na "brin-
tal que.no~ seus estilos de trabalho clínico: com as crianças, através daquela cadeira_: que chamamos de associação livre. Freud havia tido o gênio e a
linguagem própria que era o jogo do rabisco .. e em seus tratamentos analí- compaixão dé compreender que o fato de o padente não consegu_ir d izer sua
ticos de adultos, aos quais ele sustentava em longas fases de regressão à verdade não representava uma recusa, mas uma resistência inconsciente, e
dependência no interior ~G contexto. Ao clima de "uma espécie de.intimida- somente a revelação de suas causas poderia ajudá-lo a explicitar essa verda-
de", com sua espontaneidade de gestos e fala numa reciprocidade compar- de. Winnicott acrescentou a isto uma nova dimensão - a saber, de que há
tilhada, enquanto brincava com a criança nas consultas terapêuticas, ele con- pessoas cujo ambiente inicial havia sido tão deficiente, que o que tinham a
trapôs a sustentação do paciente eni regressão à dependência no contexto
analítico. Nas Consultas T?rapêuticas temos uma ·séri~ de exemplos cheios Masud Khan esquece, neste ponto, o.relato de Winnicott sobre a paciente que se descobriu exis-
de vivacidade dos alegres encontros clínicos entre Winnicott e os jovens pa- tindo- Ver o Cap. IV ("O Brincar") de O Brincar e a Realidade , pp. 79-93. Ali Winnicott fa la
repetidas vezes de seu silêncio na sessão, e até da reação da paciente a isto. N.T. .
cientes. Mas em lugar algum encpntraremos relatos sobre a extraordinária 2 Comiderei importante, a.fim de manter a clareza, traduzir ' deprivatí1m' por 'de-privação;, com
quietude de sua presença fisicamente alerta na situação clfnica. Somente se li sentido especificamente winnicottiano, para distinguir da 'p1·ivação' com s~u significado
apenas vemacular. N.T.
aqueles dentre nós que tivemos o privilégio de ser seus pacientes,_ que fomos
26 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 2-,
'
dizer havia ocorrido numil época em que elas não tinham ainda as capaci~a às assim chamadas sensibilidade e capacidade contratransferenciais do ana-
des egóicas necessárias para lidar com isso ou mesmo conhecê-lo. Elas po- lista. Em seu trabalho "O Ódio na Contratransferêncin" (Cap. XV) de dis-
diam apenas registrá-lo. Portanto, era da responsabilidade do analista ir ao cute essa questão mais detalhadamente. Gosta'ria de cilar uma passag<~m cru-
seu encontro, lendo e preencht:ndo tal nece.1·sidade. cial:
. Neste contexto, W innicott estabelece uma importante diferença entre as
Se o analista vai ser acusado de abrigar maus sentimentos, é bom que ek es-
funções do desejo e da necessidade no processo clínico: teja prevenido, e portanto preparado, pois de tem que tolerar ser coloc:ldo
É legítimo falar dos desejos do paciente, o desejo (p~r exemplo)' de ficar nesse lugar. Sobretudo, não deve negar o ódio que realmente existe dentro
quieto. Com o paciente regredido a palavra desejo é incorreta. Devemos em dele. Um ódio justificado na situação presente deve ser identificado e guar-
seu lugar usar a palavra necessidade. Se um paciente regredido necessita de dado, ficando disponível para a interpreta~'.ÜO no momento certo.
silêncio, üada poderá ser feito sem isso. Se a necessidade não é preenchida, a
Winnicott tinha plena consciência da incontornável ingratidão do paciente
conseqüência não é a raiva, mas uma reprodução da falha ambiental que pa-
na fase da regressão à necessidade, que na contratransferência pode ser en-
ralisou o processo de desenvolvimento do eu. A capacidade iQ.dividual de
"desejar" sofreu interferência, e assistimos ao ressurgimento da causa origi- frentada não pela compaixão ou pela interpretação, mas pelo ódio bem do-
nal do senlimento de infutilidade. sado. Isto porque aqui, com excessiva.freqüência, a negação do ódio na con-
O paciente regredido encontra.. se próximo de reviver uma situação de tratransferência leva o relacionamento.terapêutico a degenerar em sedução
sonho ou de memória. A atuação de um sonho pode ser o meio pelo qual el~ do paciente através de um concernimento exagerado, ou num confronto com
descobre o que é urgente, e falar sobre o que foi atuado é algo que pode ocor- ele por meio de interpretações verborrágicas, que apena8 insultam as suas di-
rer depois da ação, mas nunca antes dela. ficuldades.
Aqueles colegas para os quais Winnicott favorecia a regressão em seus pa- Uma outra característica do tipo de atenção exigida do anali sta pelo
cientes não levavam em conta essa importante distinção. Além do mais, paciente em estado regressivo pode ser melhor descrita em termos do que
Winnicott referia-:;e a uma situação de incapacidade do paciente provocada Winnicott chamou de "preocupação materna primária" ( l 956a).
por uma falha no ambiente inicial, da qual o paciente pode dar-se conta atra- Se a mãe fornece.uma adaptação suficientemente boa à necessidade, a linha
vés desse tipo muito específico de dentro do contexto. Um resumo·esquemá~ de vida do bebê é perturbada muito pouco por reações à intrusão. (Obvia-
tico do processo foi dado por ele nos seguintes tennos: mente, são as reações à intrusão que importam, não a intrusão e1i1 si mesma.)
1. Provisão de um contexto que proporciona confiança.
2. Regressão do paciente à dependência, com a devida consciência dos
.. As falhas maternas produzem fases de reação à intrusão, c ta is reações in-
- terrompem o 'continuar a ser' do bebê. Um excesso pe reações não produz
riscos envolvidos. •.: frustração, mas uma ameaça de aniquilaçüu. Isto, em meu pon to de vista, re-
3. O paciente tem a noção de um novo sentido do eu. O eu até aqui oculto- presenta uma ansiedade muito prirriitiva, bem anterior a qualquer outra que
rende-se ao ego total. Nova progressão do processo individual que se havia inclua em sua descrição a palavra 'morte'.
paralisado. Em outras palavras, a base para o estabelecimento do .ego é uma quanti-
4. Descongelamento de uma situação de falha do ambiente. dade sufictente desse 'continuar a ser,.~ão interrompido por reações à intrn-
' 5. A partir d~nova posição de força do ego, raiva relativa à falha inicial, são. A suficiência do 'continuar a ser' só é possível no iní,cio, se a mãe se
sentida no presente e explicitada. encontra nesse estado que (confonne sugeri) é algo muitíssimo real quando a
6. Saída da regressão à dependência, em progressão organizada em di- mãe saudável está próxima do fim do período de gestação, e durante um pe-
reçã-0 à independência. ríodo de umas poucas semanas em seguida ao uascimento do bebê.
7. Desejos e necessidades instintivos tomando-se realizáveis de modo Somente a mãe sensibilizada do modo. como estou descrevendo pode
genuinamente vigoroso e vivaz. sentir-se na pele do bebê, e assim preencher as suas necessidades. Tais ne-
cessidades são a princípio corporais, transfomrnndo-se com o tempo cm ne-
Winnicott havia moldado a situação clínica e o modo de relacionar-se com o cessidades do ego, guarido começa a surgir uma psicologia a partir da
paciente regredido, tendo por base os cuidados da "mãe devotada comum" ··'·
' .~- elaboração imaginativa das experiências fisicas. Surge então uma relaçiona-
p~ra com o seu bebê. lsto, por definição, implica num desafio extraordin~rio bilidade egóica entre a m.~e e o bebê, da qual a mãe se recupera, e a partir da
DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 29
D. W. WINNICOn
28
pedido de ajuda através do reasseguramertto. o manejo, na verdade, consiste
qual o bebê pode vira constÍuira idéia de que a mãe é uma pessoa. Visto des- no fomeci~ento de um ambiente adaptado, no contexto e fora dele, que fal-
te ângulo, o reconhecimento da mãe como pessoa ocorre de modo positivo, to~ª? paciente em seu processo de desenvolvimento, sem o qual só lhe resta
normalmente, e não pela percepção da mãe como símbolo de frustração. A e~1~tir em ten:ios da utilização reativa de mecanismos de defesa e de potcn-
falha da·màe em adaptar-se aos primeiros momentos não produioutra coisa
c1altdades do 1d. Somente quando o manejo foi eficaz para o paciente é que o
a não ser à aniquilação do eu do bebê.
trabalho interpretativo pode ter algum valor terapêutico. O manejo e o traba-
O que a mãe faz bem não é jamai~ apreendido pelo bebê nesse primeiro
estágio. Trata-se <le um fato que está de acordo com a minha tese. As falhas lho interpretativo muitas vezes ocorrem lado a lado, ajudando-se e facilitan-
não são percebidas como falhas da mãe, mas como ameaças à e1Cistência pes- do-s~ mutuamente na experiência total de vida do paciente. ·
soal.' A medida que auinentava sua competência profissional, e seus concei-
. Na linguagem destas considerações, a construção inicial do ego é, por- t~s.c:esciam em alcance e profundidade, Winnicott tomou-se capaz de pos-
tanto, silenciosa. A primeira organização egóíca provéin das ameaças de ani- s1b1htar a regressão à dependência em fonna simbólica, num sonho, por
quilação que não 1evan1 à aniquilaç~o e das quais, repetidamente, o bebê se exemplo. Uma bda descrição nos é dada em "Dependência em Bebês, em
recupera. É destas experiências que se inicia a confiança na recuperação, Crianças e no Contexto Psicanalítico" (1963b). Começou a perceber tam-
algo que irá levar o e_go ã tornar-se capaz de lidar com a frustração.
bém que o que o paciente necessitava por vezes eram.momentos de regres-
A longa citação se deve ao fato de que nestas colocações tão simples encon- são, e não necessariamente vív~r uma fase em estilo regredido. Em sua
tram-se todas as crises com que nos defrontamos quando lidamos clinica- última declaração a respeito, disse:
mente com o paciente no ponto de regressão à dependência. Aqui, as falhas
Descobri que o paciente necessita de fases de regressão à dependência dentro
na situação analítica derivam invariavelmente de nossa incapacidade de pre- da transferência, resultando em experiências do efeito total da adaptação à
encheras necessidades do paciente, e não da sua resistência. Além do mais, necessidade que, na verdade, baseia-se na capacidade do analista (a mãe) de
se é licito metaforizar o que Winnicott define conio o papel da mãe em ter- identificar-se com seu pacient.e (seu bebê). No decorrer desse tipo de vivên-
mos da sensibilidade do m1alista em relação às necessidades do paciente, te- cia, há a ex:periência suficiente de fusão com o analista (a mãe) a ponto de
remos em mãos um esquema bastante útil para guiar nosso comportamento permitir que o paciente viva e se relacione sem precisar recorrer aos meca-
junto ao paciente. nismos identificatórios de projeção e introjeção. 1 Em seguida ocorre o dolo-
Lidar clinicamente com as necessidades do paciente no estágio de regres- roso processo de separação do objeto em relação ao sujeito. O an alista
são à dependência implica inevitavelmente mais em manejo da situação do torna-se separado e é posto fora do alcance do controle onipotente do pac ien-
te. A sobrevivência do analista à destrutividade que se segue a essa mudança
que em interpretaçãa. Nos escritos de Winnicott podemos encontrar indica-
e que dela faz pa.rte,2 leva ao surgimento de algo novo, a saber, o uso do ana~
ções de três tipos básicos de manejo: lista pelo paciente, e o inicio de um novo relacionamento baseado na identifi-
1. A qualidade-do contexto ànalítico: o silêncio e a ausência de intrusões cação cruzada. O pâciente pode agora começar a se colocar imaginariamente
sobre o paciente. na pele. d~ analista, e (ao mesmo tempo) é possível, e_bom, que o analista pos-
2. {) fornecimento, pelo analista, do que é necessário ao paciente: a au- sa sentir-sena peledopacienteapartirde um certo lugar, isto é, tendo os seus
sência de inhusões pela interpretação, e/ou a sua presença física, e/ou a li- próprios pés bem calcados no chão.
berdade dada ao paciente de.andar ou simplesmente estar ali, ou fazer o que
Ao longo de. quase. quatro_décadas de intenso trabalho clínico, Winnicott
lhe parecer necessário.
acabou chegando a uma espécie de síntese de suas diversas teorias e práticas
3. O manejo pode ser fomeci,do somente em tennos de um ambiente so-
clínicas. Disto ele nos dá um relato definitivo em seu úitimo livro O Brincar
e a Realidade (1971). Para ele, a disciplina extrema, o autoc;ntrol~ e as
cial ou familiar, e pode variar entr-e a hospitalização e os cuidados proporcio-
nados pela família ou por amigos.
O ponto central a ser assinalado aqui sobre a questão do man~o é que
Cf. com 'estar só na presença do outro'. No início, à não-integração é inerente a onipotência e
não se trata de aceitar os caprichos ou voi1tades do paciente, nem de evitar o portanto a indiferenciação. N. T. '
2 Lembremo-nos, aqui, da ruthlessness e do repúdio ao n5o-ell. N.T.
Cf. mm u 'síndrome da nlile mmta'. de André Grccn. N.T.
D. W. WINNICOTI OA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 31
30
reticências necessários para sustentar um paciente através das fases de ·eia'', pois há aí uma diferença fundamental que não devemos perder de vista.
regressão à dependência, e tudo aquilo que era inerente ao manejo, "urna es- Para usar a transferência propriamente dita, o paciente enquanto pessoa deve
pécie de intimidade'' nas consultas com crianças, onde o gesto e a palavra ter alcança.do um certo grau de maturidade através de seu desenvolvimento e
eram livres e recíprocos, tudo isto tinha um elemento em comum: o brincar. seu processo âe maturação. Infelizmente, ocorre com excessiva freqüência
Winnicott distinguia a "utilização do brincar", que era rotina na prática clí- . que os analistas atribuam aos seus pacientes a capacidade de relacionar-se e
nica da análise de crianças, do brincar como "algo em si mesmo". Estabele-. usar a transferência, e esta é a sua principal expectativa, na medida em que
ceu, também, uma significativa difürença entre o substantivo, brincadeira e esperam poder funcionar como analistas. Nem sempre, porém, os pacientes
0 substantivo verbal brincar. Sua hipótese fundamental sobre isso pode ser
estão em condições de fazê-lo. Marion Milner conta ( 1969) um caso clínico
resumida em duas citações: onde tal situação nos é relatada c!e modo emocionante e exaustivo. 1 Ei'n seu
trabalho "Variações Clínicas da Transferência" (Cap. XX.III), Winnicott dei-
A psicoterapia ocon·e na superposição de duas áreas do brincar, a do paciente
xa bem clara esta proposição:
e a do terapeuta. A psicoterapia consiste em duas pessoas brincando juntas.
o corolário dessa idéia é de que quando o brincar não é possível,? trabalho Onde for encontrado uffi ego intacto e o analista pudcrter certew sobre os de-
desenvolvido pelo terapeuta deve ser o de trazer o p:iciente da condição de talhes iniciais dos cuidados recebidos pelo paciente, o contexto da análise é
não conseguir brincar para uma 01:1tra, em que ele consegue brincar. menos importante que o trabalho interpretativo. (Por contexto compreendo 0 ·
somatório de todos os d_etalhes do manejo.) Mesmo assim, há uma quantida-
E: de mínima de preocupação com o manejo nas análises comuns que é mais ou
Tudo o que digo sobre crianças brincando realmente aplica-se também a menos aceita por todos os _analistas.
adu:~;:is, apenas é mais difícil descrever o que acontece quando o material.do No mundo que estou descrevendo, porém, o co11tcxto toma.;.; mais im·
paciente aparece predominantemente em 1em1os de comunicação verbal. A portante que as inte1pretações. A ênfase move-se de um pólo ao outro.
meu ver, a expectativa de encontrarmos p brincar na análise de adultos deve o comportamento do analista, representado pelo que acima denominei
'Ser tão grande quanto no trabalho com cri:mças. Ela se manifesta, por excm- contexto, sendo suficientemente bom quanto à sua adaptação às necessida-
.pio, na escolha de palavras, nas inflexões de voz, e também, ~om certeza, no d~s do paciente, será gradualmente percebido por este como algo que propor-
senso de humor. crona a esperança de que o verdadeiro eu poderá, finalmente. correr o risco
. . envolvido em dar início à experiência de viver.
É importante- e imperativo -ter em mente o fato de que ojogo do rabisco Em algum momento o falso eu é colocado nas mãos do analista. Tra-
não é uma técnica de consulta terapêutica. Ele é simplesmente um meio para ta-se de um período de profunda dependência e sério risco, e o paciente est<í
atingir um fim, o fim sendo aquele momento crítico durante a consulta (que naturalmente num esta,do de intensa regressão. (Por regressão entendo, aqui.
Winnicott chamou de 'sagrado') em que a criança e o terapeuta t.omam cons- a regressão à dependência e aos estados iniciais do desenvolvimento.) Te-
mos aqui u·ma situação muitíssimo angustiante, porque o pá ciente tem noção
ciência em conjunto, repentinamente, da natureza exata do problema emo-
- o que não ocorre com a criança p<;quena na situação original - dos riscos
cional ou psicológico que aflige a criança, e que a está impédindo de crescer inerentes. Em certos casos wna parcela tão grande da pcrsonal idade está en-
e de usufruir do fato de ser ela mesma. Na verdade, é preciso um tipo muito volvida, que o paciente precisa ser internado durante essa etapa. Tais proces-
especial de sensibilidade psicossomática, como era a de Winnicott, para to· sos podem ser melhor est1:1dados, porém, naqueles casos em que essa situação
mar parte nesse jogo. A mera imitação disto teria como conseqüência a pro- · fica razoavelmente limitada ao âmbito da sessão de análise.
dução de grosseiras caricaturas daquilo que Winnicott era capaz de realizar. Uma das características da transferência nesse estágio é o modo como
E ele o realizava com uma alegria e uma seriedade que traziam não apenas devemos permitir que o passado do paciente se tome presente. Esta idéia
um grande deleite para observadores ou leitores, mas sobretudo um impacto pode ser encontrada no livro de Mme. Sechehaye e em seu título, A Realiza-
terapêutico profundo e de grande insight.
Até aqui discuti o trabalho clínico de Winnicott no seu aspecto relativo O livro mencionado-The lfi.mds <>[lhe livingGod, de Marion Milner,.: o relato da lor:"a an:íli-
se de uma paciente profundamente regredida. Brctt Kahr conta, em sua biografia de Win;icott _
ao manejo de pacientes que necessitam regressar à dependência no contexto D. W. Winnicol/, sua vida e""ª ohra (Exodu~ Editora, 19971, que foi o pr<i prio Winnicr.n quem
analítico. Propositalmente eu disse "contexto analítico" e não "transferên- pagou por esse trat~mento. N.T. -
traiçoeiros em sua simplicidade. Há quem ouça falar deles e pense que en-
' ess.~ introjeção mesmo quando o ambiente real falha cm sua tarefa de ap oio
tendeu plenamente sua verdadeira intenção e importância. Mas é muito raro ego1co.
que isto aconteça.
E conclui:
Levando seu pen:\amento adiante, Winnicott pergunta:
É possível reunir as duas vertentes, o furto e a de~truição, a busca do objeto e Há wn ponto específico que gostaria de enfatizar. Na base da tendência anti-
a provocação. a compulsão !ibidinal e a compulsão agressiva? A meu ver, a ,• social e~tú uma ~xperiência inicial positi~a que acabou sendo perdida. Certa-
junção das duas vertent;s está na crir.nça, representando uma tendência para mente, e essencial que a criançajá tenha alcançado a capatidade de perce-
a autocura, a cura da des-fusão dos instintos. ber que a cau.rn do desas/refoi Uflia falha do ambien/e. A percepção correta
Quando há, à época da de-privação original, algum grau de fusão entre de q~e a c~usa da depressão ou da desintegração é de órigem extema, e não
as raízes agressiva (motilidade) e libidinal, a criança reivindica a mãe através ~e origem mtema, é a responsável por essa distorção da personalidade e pelo
de uma mistura de atos de farto, agressão e caos, de acordo com os aspectos' nnpeto de buscar a cura numa nova provisão ambiental. Ograu de maturidade
específicos do seu desenvolvimento emocional. Quando há um grau menor do ~go q.ucpossibilita tal percep~ão determina o surgimento de uma k ndência
de fusãó, a busca do objeto e a agressividade ficam mais separadas uma da ant1-socrnl, em vez de uma doença psicótica. Muitas compulsões anti-sociais
outra, indicando um grau mais elevado de dissociação. Isto leva à proposição a~arecem e .são t:a.tadas ~om. ê~ito pelos pais já nos primeiros estágios. As
segundo a qual o valor de transtorno da criança anti-social é um aspecto es- cna~ças an~1-socrn1~, porem, ms1stem em reivindicar essa cura pela provisão
sencial, sendo também, namelhor das hipóteses. um aspecto favorável, indi- ambienta] (u~consc1entcmenté;ou por motiv[1ção inconsciente), mas não es-
cando (mais uma vez) a existência de uma potencialidade pata que a criança tão em condições de se beneficiarem dela.
se recupere da des-fusfo entre os impulsos libidinal e motor. Aparentemente,_o mome~to da de-privação original é durante 0 período
Ao cuidar normalmente de uma criança, a mãe constantemente lida em _que o ego do,beb~ o_u ~a criança pequena está em processo de alcançar a
com o transtorno que ela lhe causa. Por exemplo, é comum um bebê verter füsao entre as ra1zes ltb1dmal e agressiva (ou motora) do id. No momento da
água no colo da mãe enquanto está sendo amamentado ao seio. Numa épo- esperança, a criança: ·
ca mais tardia isto aparecerá como uma regressão momentânea durante o
sono ou ao acordar, resultando numa cama molhada. Qualquer exagero no Percebe uma nova situação que apresenta algum elemento de confiahili-
transtorno causado pela criança pode indicar a existência de algum grau de dade. Sente um impulso que poderia ser o de husca d9 objeto.
de-privação e de uma tendência anti-social. Reconhece qut a crueldade está à beira de tom ar-se uma característica e
A manifestação da tendência anti-social inclui em geral o furto e a men- então agita o ambiente circundante na tentativa de 'tomá-lo consc ien~e
tira, a incontinência e a criação de caos. Embora cada sintoma possua o seu do perigo e fazê-lo organizar-se para tolerar o transtorno.
próprio valor e significado, o elemento comum, no que se refere à minha Se.º ambiente. suporta a carga, ele terá de ser testado ma is e mais quan-
intenção de descrever a tendência anti-social, é o trans.torno causado pela t°. a sua capacidade de resistir à agressão, prevenir ou reparar a destrui-
criança. A criança explora esse transtorno, que nada tem de casual. 8 oa parte ~:ao_, tole:ar o transtorno, reconhecer o elemento positivo na tendência
da sua motivação é inconsciente, mas não necessariamente toda ela. . ant1-soc1al, e por fim p~oporcionar e preservar o objeto a ser buscado e
encontrado.
Um pouco adiante Winnicott faz um comentário de vital importância para o
diagnóstico da verdadeira natureza dos problemas do paciente na situação 1:.presentei esta hipótese de Winnicott tão detalhadamente pela simples ra-
analítica: ·.'- zao de que ela me ajudou a modificar todo o meu modo de relacionar-me
Entre parênteses; dizem que a mãe deve falhar em sua adaptação às necessi-
0 c?m os I~e~s pa~ientes, e levou-me a reavaliar inteiramente 0 que à primeira
dades do bebê. Não se trataria, aqui, de um equivoco, baseado na considera- vista sena identificado como resistência ou reação terapêuti ca negativa sob
do
ção das necessidades do ide na desconsideração das necessidades ego? A uma luz b~m n:ais positiva. De acordo com a minha experrência clínica, of e-
mãe deve falharem satisfazer as demandas instintivas, mas pode ser inteira- recemos (isto e, prometemos) algo aos nossos pacientes, a saber, 0 espaço, 0
mente bem-sucedida em não deixar a criança sentir-se desamparada, em pre- tempo e a oportw1idade de dizer o que lhes àói e o que lhes falta, na lingua-
encher as necessidades do ego até o momento em que o bebê já tenha
gem que lhes é possível, e ao mesn'lo teinpo lhes fazemos uma demanda no
introjetado um amãe que ampara o ego, e tenha crescido a ponto de conservar
sentido contrário, ou seja, de que se submetam ao re~ime rigidamente orga-
36 D. W. WINNICOTT DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE
37
nizado das nossas técnicas e que falem conosco de um modo inteiramente A. característica dos sintomas neuróticos é a contenção do conflito. Diferen-
fora de seu alcance. As pesquisas de Winnicott ampliam e intensificam a tre- temente, o comportaniento anti-social tenta objetivar e exteriorizar elemen-
menda tarefa terapêutica que hérdamos de Freud, a qual consiste em criar . tos estranh,os ao ego existentes na personalidade (cf. Winnicott l 972b). p 0 ~
um ambiente onde o outro, a partir de sua carência e de sua incapacidade, po-' estas razões, a única ~~stemunha do neurótico é ele mesmo, enquanto aquele
deria crescer e aprender a testar e a experimentar tudo aquilo que até então qQe ·só pode vivenciar o que o aflige por meio da atuação está sempre em
era wna tentativa de autocura emudecida, ferida e vingativa, a fim de trans- busca de testemunhas. Isto cria problemas muito específicos em termos da
cendê-la em direção à verdadeira capacidade de confiar nos outros e de per- situação analítica. A privacidade do contexto e o processo de transferência
sonalizar a si mesmo, sem mais sentir-se ameaçado nem pela aniquilação são adequados às necessidades do paciente neurótico, que precisa comuni-
nem por aquela submissão conivente representada pela definitiva dissocia- car o que ele testemunha dentro de si. Já a tendência anti-social e seus milha-
ção de Verdadeiro Eu. res. de sutis expressões comportamentais apresentam uma demanda ao . ·
Freud havia mostrado que todo sintoma traz consigo a realização de wn analista no sentido de estender os limites, o espaço e a abrangência do con-
desejo; Winnicott leva tal idéia adiante, mostrando que todo comportamento texto. para incluir todas aquelas experiências cruciais que ocorrerão, por sua
anti-social carrega dentro de si a proclamação da necessidade original não ~ lógica iner~nte, fora da ~ituação analítica. Somente a tolerância para com
preenchida. este fato criará a confiança do paciente, que poderá então começar a testar a
Num trabalho publicado postumamente, "A Delinqüência como Sinal relação analítica de maneira simbólica. Desejos rep1imidos transform"'am-se
de Esperança" (1973), Winnicott estabele_ce uma distinção fundamental: muito facilmente em processos simbólicos, mas a de-privação de necessida-
des busca a realização antes que o processo de simbolização possa iniciar-se.
Neste ponto, torna-se necessãrio deixar claro que estamos falando dos dois·
Uma das grandes contribuições de Winnicott à técnica foi a de ter esclareci-
aspectos de uma única coisa, a tendência anti-s~cial. Gostaria de vincular um
deles ao relacionamento entre a criança pequena e a mi!e, e o·outro a um rela- do essa questão clínica. Ele a discute em seu artigo "Classificação: Há uma
cionamento posterior que é o da c1iançacom o pai. O primeiro tem a ver com Contribuição ~sicanalítica para a Classificação Psiquiátrica?" (1959). ·
todas as crianças, e o segundo diz respeito mais especialmente aos meninos. A questão da classificação é resumida por ele da seguinte forma:
O primeiro refere-se·ao fafo de que a mãe, ao adaptar-se às necessidades da
criança pequena, capacita a criança a encontrar objetos de modo criativo. Ela Para qualquer indivíduo situado no início de seu desenvolvimento emo-
introduz o uso criativo do mundo. Quando isto fracassa, a criança perde o cíonal existem três coisas: Num extremo encontra-se a hereditariedade.
contato com os objetos, perde a capacidade de encontrar as coisas de maneira No outro extremo, o ambiente que apóia, ou que falha e traumatiza. E no meio
criativa. Num momento de esperança a criança estende a mão e furta um ob- está a capacidade individµal de viver e defender-se e crescer. Na psicanálise li-
jeto. Trata-se de um gesto compulsivo, e a criança não sabe por que o faz. Às damos com o viver, o defender-se e o crescer do indiv:íduo. Na classificação,
vezes a criança fica enfurecida por sentir a compulsão dé fazer algo sem sa- porém, estamos considerando a fenomenologia global, e o melhor modo de
ber por quê. Naturalmente, a caneta furtada da papelaria não satisfaz; não é o fazê~lo é classificar primeiro os estados do ambiente. Em seguida podemos
objeto que estava sendo buscado, e de qualquer modo a criança está buscan- class1fü:ar as defesas individuais e, por fim, tentar avaliar a hereditariedade.
do a capacidade de encontrar, não um objeto específico. Ainda assim, pode ~sta, essencialmente, consiste nas tendências inatas do indivíduo para crescer,
haver certa satisfação relativa ao que pode ser feito num momento de espe- mtegrar-se, relacionar-se com objetos, amadurecer.
rança. A maçã furtada do pomar encontra-se mais propriamente na fronteira. ·
Ela pol:ie estar madura e saborosa, e pode ser divertido ver-se perseguido Sua ú~tima reflexão a respeito da importantíssima questão do colapso da per-
pelo dono. No entanto, a maçã pode estar verde e provocar dor de barriga, e sonalidade nas psicoses aparece em "O Medo ao Colapso" (1974), onde ele
pode acontecer também que o menino nem mais coma o que rouba, dando as ·afirma:
maçãs para outros, e talvez ele organize o roubo sem correr o risco de pular o
muro ele próprio. Nesta seqüência, vemos a transição da travessura nonnal É errado pensar que a psicose éwn colapso da personalidade. Ela é uma defo-
para o ato anti-social. sa organizada contra uma angústia prim itiva, e em gerai e bem-sucedida
D. W. W!NNICOO DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 3?
38
(~xceto quando 0 ambiente facilitador tenha sido não deficiente mas tantali- média abastada, e o pai de Winnicott, Sir Frederick, foi prefeito de Plymouth.
zante,1 tal.vez o pior que poderia acontecer a utn bebê humano). Winnicott tomou-se uma criança adorável e bem-comportada, e ~aiu-se bri-
lhantemente na ·escola. Subitamente, decidiu estragar tudo e passou a em-
E conclui; porcalhar os seus cac~rnos. Saiu-se muito mal nas provas daquele ano.' Ele
É claro para mim que o medo ao colapso é na verdade o ...edo a um colapso que estava erttão com nove anos.
jáfoi vivido. ·É o medo à angústia original que deu origem à org~nizaç~o dde:1- Também foi um ótimo atleta. Foi campeão de corrida de sua escola, e
siva que, no paciente, surge como a síndrome da sua doença. A mtençao de 11ao
adorava todas as atividades fisicas. Apesat'de ter dado na última década de
existir pode ser compre1.:ndida da mesma maneira: a não existência se revelará
sua vida a impressão de ser uma pessoa fisicamente frágil, tinha incansável
parte de uma def~sa. A existência pessoal ê representad~ pelos elementL~s pro-
jetivos, e a pessoa procura fazer com que tudo que podena ser pessoal seJa pro-
vitalidade e estava sempre em movimento. Passou a vida "sobre rodas": no
jetado. Esta pode ser uma defesa um tanto sofisticada, .e seu objetiv~. ~· o d<.! início era a bicicleta, na adolescência a moto, e depois os automóveis. É pre-
evitar a responsabilidade (na posição depressiva) ou evitar a persegutçao (no ciso conhecer esses fatos cotidianos para melhor entender o que o teria leva-
estágio que eu denomino d e auto-afirmação, isto é, o estágio do ·eu sou', com a do a fazer o tipo de trabalho clínico que lhe era característico, e a qualidade
implicação inerente de 'repudio tudo aquilo que não é eu'. Con:o. exemp~o de sua vasta paciência e de sua postura fisica séria e serena. Tudo nele era in-
menciono aquele jogo infantil "Eu sou o rei do caste.lo - voce e um su~ o tegrado consigo mesmo, não se ausentando nem e sofrimento nem o gosto
patife". " pela diversão.
Nas religiões tal idéia pode surgir no conceito da união com Deus ou o O grande mérito de Freud foi o de modificar o status do paciente p.>i·
Universo. Pode~se ver tal defesa sendo negada nos escritos e ensinamentos
quiátrico, tirando-o da condição de cmiosidade médica biz:ma e wrnando-o
existencialistas, em que o existir é transformado em culto na tentativa de
confrontar a tendência pessoal a não existir, que faria parte de uma organiza-
uma pessoa com o direito e o desejo de se comunicar sobre seus problemas e
ção defensiva. vê-los compreendidos, e se possível resolvidos. As teorias de freud procura-
'Pode haver um eleniento positivo em tudo isso, ou seja, um elemento que vam quase exclusivamente decifrar a natureza dos processos menta is~ pul-
não é defensivo. Cabe pensar que somente a partir da não existência é que a sionais envolvidos na formação dos sintomas. Para .Freud. a entidade de
existência pode surgir. É surpreendente o quão cedo (mesmo ames do nasci- paciente enquanto pessoa era um fato inquestionável. É preciso adm itir que
mento, e certamente durante o. processo do parto) pode ser mobilizada a cons·· o clima da pesquisa neurofisiOlógica ao final do século 19 indttziu-o a con-
ciência de um ego pn:maturo. Mas o in.divíduo não pode se desenvolver a ceituar a psique h umana e seu füncionamento com base n;:, mC>Jdo da rná··
partir de uma raiz de ego, se este estâ dissociado da experiência psicossomáti-
quina. Suas teorias do aparelho psíquico. da energia (catexia) e das estrutu·
ca e do narcisísmo primário. É precisamente neste ponto que se inicia a intelec-
tualização das funções egóicas. Note-se que tudo isto ocorre· muito antes do ras intrapsíquicas, onde ele u·açou os contornos do ego; do superego e do id,
estabelecimento de qualquer coisa qm: mereceria ser chamada de eu. e ainda o esquema topográfico de consciente_, pré-consciente e inconsciente
evocam a cíência da época. Nenhtun desses conceitos perdeu sua validade
nos 70 primeiros anos deste século. Mas à medida que novos tipos de expe .
Fazer-~e e Tornar-se Pessoa riências clínicas com pacientes que iriam das síndromes fronteiriças aos ca-
sos de psicose propriamente dita começaram a se acumular, foi si;; tornando
"Todo aquele que é feliz tem razão.''
Conde Leon Tolstoi
necessário complementar as hipóteses da psicanálise clássica com uma ur-
gência cada vez maior.
Winnicott era um homern feliz. Ele cresceu, único filho homem, adorado por Winnicott é certarn.:nte um dos quatro analistas, os outros três sendo
seus pais e suas duas irmãs mais velhas. Os Winnicotts pertenciam à classe Melanh:: Klein, Heinz Hartmann e Erik Erikson, a fomccer'acréscimos con-
ceituais inteiramente novos, que at)!Ilentaram não SÓ O alcance quanto a am-
Tantallzar: Excitar um desejo e não satisfazê-lo. Tântalo é um personagem da mitologia grega plitude do quadro conceituai da psicanálise clássica.
que, para homenagear os deuses, oforeccu-lhes um banquete para o qual cozinhou a carne do pró-
prio filho. Os deuses cJstigaram seu crime, colocando-o nurn lugaronde a água e as frutas safam
Ele era antes de mai5 nada um pediatra, e que eu saiba foi ü único psica-
de seu alcance quando ele tentava alcançá-las. N.T. nalista a manter, ao longo de toda a sua cam:irn clínica, co:1sultas terapêuti-
40 D. W. WINNICOTI DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 41
cas em paralelo ao seu trabalho com pacientes adultos. · Portanto, é de se primeiros te1npos em que a criança está encontrando e trazendo para a reali-
esperar que o tema que maj.s atraía a sua atenção fosse o mistério do relacio- dade os seus·dados específicos inatos e a pessoa em que ela se diferenciará e
namento mãe-criança. Durante um debate na ReunHlo Científica da British que se tomará com o tempo. Pela definição mesma da tarefa estabelecida
Psycho-Analy~ical Society, num certo dia de 1940, "le espantou seus cole- pelo próprio Freud, a saber, o entendimento das experiências emocionais,
gas com mna declaração: psíquicas e pulsionais conflitivas do paciente adulto, a ênfase foi colocada
sobre a ansiedade e sobre todas aquelas manobras defensivas do ego emer-
Não existe isso que chamam de bebê. O que quero dízer, naturalmente, é
gente, que inevitavelmente complicarão as crises do desenvolvimento no
que sempre que vemos um bebê vemos também um cuidado materno, e sem
caminho da idade adulta. Por esta razão, Freud via o ego como batendo-s~
o cuidado matemo não haveria bebê.
contra dois tiran os: o desejo proveniente da~ pulsões e a realidade cxt~ma,
Não tenho a intenção de fornecer aqui um relato cronológico de como se de- envidando o seu máximo esforço para ao mesmo tempo servir a ambos e
senvolveu a sua teoria do relacionamento mãe-bebê. Em vez disso, gostaria garantir assim o seu próprio crescimemo e sua sobrevivência. Winnicott
de mencionar suas fonnulações no trabalho "A Teoria do Relacionamento adotou um posto de observação completamente diferente: ele aceitava a rea-
.Pais-Crianças'', apresentado ao 22º Congresso Internacional de Psicanálise lidade cor:nb uma aliada do processo de maturação em curso na criança, e
em Edimburgo, em 1961. Três de suas declarações deixani imediatamente· examinou com uma perspicácia toda especial a natureza das provisões am-
claro o seu ponto de vista: bientais (maternas) em relação à personalização das potencialidades pulsio-
Na p~icanálise que conhecemos não há trau1Írn que esteja fora da onipotência nais e psíquicas do bebê.
do indivíduo. Em algum momento, tudo.acaba sob o controle do ego, tornan- A essência da experiência do bebê residê em sua dependência áos cui-
do-se assim vinculado ao processo secundário. Na infância precoce, 1 porém, dados matemos (ambientais). Para Winnicott, o bebê humano 'não pode co-
coisas boas e más que acontecem à criança estão na verdade bem fora do seu meçar a ser - salvo em determinadas condições', é ele acreditava que 'o
alcance.( ... ) De fato, a infância precoce é o período em que a capacidade de potencial herdado de uma criança não pode tornar-se uma criança a não ser
trazer elementos extemos para a ârea de onipotência ainda está em .processo
sob os cuidados de uma mãe' .1 Seu conceito para a provisão materna nesse
de formação. O apoio do ego proporcionado pelos cuidados matemos permi-
estágio da vida é a sustentação. A função da sustentação é natural à mãe, ten-
te que a criança viva e se desenvolva apesar de não ser ainda capaz de contro-
lar - ou de sentir-se responsável - pelo que há de bom ou de ruim no
do em vista sua Preocupação Materna Plimária (Cap. XXlV); e baseia-se
ambiente.( ... ) O paradoxo équeo que é bom ou mau no ambiente da criança mais na empatia materna que na sua capacidade de compreender. Ele classi-
não consiste numa projeção, mas apesar disso, para que ela cresça e se desen- fica a dependência da criança na fase da sustentação cm três etapas:
volva saudavelmente, é necessário que tudo lhe pareça ser uma projeção sua. a) Dependência Absoluta: Nesse estado, o bebê não tem meios de saber
(
Encontramos aqui em funcionamento a onipotência e o princípio do prazer nada sobre o cuidado matemo, que cm sua maior pm1c consiste em prolila-
como ce11amente estão nos primeiros tempos da infância. E a esta observa- xia. Ele não tem como exercer controle sobre o que é bem ou mal feito, e pode
ção podemos acrescentar que o reconhecimento ~e wn verdadeiro 'não-eu' é apenas beneficiar-se ou sofrer perturbações. ,
algo próprio do intelecto: faz parte de uma extrema sofisticação, e pertence à b) Dependência Relativa: Agora o bebê pode tomar consciência da im-
maturidade do indivídµo. portância dos detalhes do cuidado materno, e pode relacioná-los mais emais
Para Winnicott, o paradoxo da relação mãe-criança reside em que o ambien~ a impulsos pessoais, e mais adiante, no tratamento psicanalítico, pode repro-
te (mãe)faz ctJin que o eu da criança se torne viável. Ele esteve entre os pri- duzi-los na transferê1,1cia.
e) Rumo à independência: o.bebê desenvolve a c:ipacidadc de tolerar a
meiros analistas a apontar para o fato óbvio de que a mãe ama, aprecia e cria
ausência dos cuidados. lsto é alcançado através da acumulação de memórias
o seu bebê, não só no sent~do .somático do interior do útero, mas também nos
desses cuidados, da projeção de necessidades e da introjeção de detalhes da
atenção materria, junto com o desenvolvimento da confiançn no ambiente.
lnfânda pn::cocc n:forc-se à criança que ainda não fala. (Do latim i11+fa11s, o que não fala). Foi
traduzido ·por ·infância precoce'. Geralmente, ó substantivo i11fi111r foi aqui traduzido por 'tJebê' ..
Para evitar confus5o, relcmbi·o quo: 'mãe', aqui, equivale a '{igu ra malcrnn'. N.T.
N.T.
.O. W. WINNICOIT · DA PED!A\RIA À PSICANÁLISE 4J
42
Aqui é necessário ocrescentar o elemento do entendimento intelectual com Eu havia discutido anteriorment? os conceitos do vcrdadei ro •:. do fo lso
suas tremendas impiicações.
eus. Gostaria agora de fazer o mesmo com o conceito de intrusão , especial-
mente importante pelo frito de modificar de maneira significativa o concei-
Winnicott adicionou a essa forml lação dois conceitos importantes para a to clássico de defesa, e também por corrigir a ênfase ext:essiva da escola
compreensão do desenvolvimento inicial da criança. Menciono-os em suas kleiniana no papel da ansiedade na primeira infància. Wínnicott apre:>e n-
próprias palavras, pois um resumo só levaria ao seu empobrecimento: tou sua primeira formulação ;nais detalhada dos tipos de i;11rusiio que uma
Urn outro fenômeno que deve ser considerado nessa fase é a ocultação do criança sofre inevitavelmente em seu trabalho ' 'Memórias do Nasci mento ,
cerne da personalida<le. Vejamos então o conceito de um eu central ou ver- Trauma do Nascimento e Ansiedade" (Cap. XlV). O primeiro fator impor-
dadeiro. Podemos compreender o eu central como sendo o conjunto de po- tante a chamar a atenção nesse contexto é o de que. para ele, o "organismo
tenciais herdados, que vívenci.a uma continuidade do ser e adquire a seu humano" -- desde o.estado fetal até o fim da infância - encontrn-se numa
próprio modo e em sua velocidade específica uma real idade psíquica e um situação bastante confortável, criada pelos cuidados ministrados pelo
esquema corporal pessoais. É necessário admitir o conceito de um isola- ambiente. Esta, obviamente, é a equação ideal. Da mesma form~ , pensa
mento <lesse eu central como um aspecto característico da saúde. Qualquer W innico~t, a natureza pennitiu que as falhas-· que representariam in tru-
ameaça a esse isolamento do verdadeiro eu provoca uma ansiedade máxi- sões ao recém-nascido- oçmTessem de m0do gradual, dentro cto co/lf inuo
ma nesse estágio inicial, e as defesas da infãncia precoce constituem rea-
processo de crescimento e maturação. Mesmo a aparentemente traumática
ções ao fracasse da mãe (ou da figura matei:na) de manter a distância as
experiência do nascimento acornoda-se no seio da preparação e do amadure-
intrusões que poderiam perturbar esse isolamento.
cimento que levam o fe to a ingressarna cátegoria de "bebê''. Neste senti dr,,
Dez anos mais tarde, numa carta à sua tradutora francesa, Mme. Jeannine diz Winnicott: .
Kalmanovitch, Winnicott deu uma definição da noção de eu: Não é difícil compreender, e Frçudjá o deixou claro, que a expcríência do
Para mim o eu, que não é o ego, é a pessoa que eu sou, _que somente eu posso nascíme1ito na datem a ver com qualquer tip o de percepção do bebe! de que
ser, que possui uma totalidade baseada no funcionamento do processo de ele está se separando do corpo da mãe. Podemos postular a lgum tipo de
amadurecimento. Ao mesmo tempo, o eu é constituído de partes, é formado estado mental do feto. Creio ser p.ossível dizer que as coisas estão in do
por essas pmtes. Essas partes aglutínam-sc na direção de dentro parn fora, no bem ~e o desenvolv imento pessoal do ego do bebê tiver sofr ido tão poucns
decorrer do processo de amadurecimento, ajudadas, como precisam ser (no perturbações quamo seu aspecto físico. Antes do nascimento há certa-
inicio, ao máximo), pelo ambiente humano que sustenta e maneja e facilita as mente um principio de desenvolvimento emocional, e é p l!lusív cl qm:
coisas de uma ma·ncira viva. O eu encontra a si mesmo situado naturalmente ex.ista, nessa etapa, a capacidade para uma aceleração falsu e não s;iudá-
de11~ro do corpo mas, em certas circunstâncias, pode vir a dissociar-se do vel desse deseT!volvimento; na -saúde, as perturbações qu<:! nãu excl!dam
corpo no olhar da mãe e em sua expressão facia 1, e no espelho, que pode vir unw certa intensidade constituem estímulos valiosos, mas para alén{ des-
a representar o rosto da mãe. Em algum momento o eu chega a·umrelaciona- se ponto tais perturbações são contraproducentes, porque L)b riga.m n um~
mento significativo entre a criança e a soma das identificações que (depois reação. Nesse estágio tão precoce do desenvolvimento, não há s ufícienk
de uma quantidade suficiente de incorporações e íntroj eções de representa- força do ego parn q1..1e ocorra· uma rcaçàti sem µ.:rda da identidade.
ções mentais) tornam-se organizadas na forma de uma re~.lidade psíquica Mas a isto ele acrescenta uma observação:
interna viva. O relacionamento entre o menino ou menina com sua· própria
organização psíq~dca interna é modificado de acordo com as expectativas ... no processo natural a e.<periência do nascimento é 11111a reproduçiiu r>xa-
de1nun5tradas pelo pai ou peÍa mãe, ou por aqueles que vierem a tomar-se n
cerbada de algn que o bebêjá conhece. Por um certo tempo, durnlilc pílrtO,
significativos na convivência da criança cmi1 o mundo externo. Do ponto o beb~ apenas reage e o elemento cen,tral é o <imbiente; logo dep ois du nasci-
d; vista do indivíduo que cresceu até aqui, e que prossegue crescendo da mento há uma volta ao estado em que o elemento central é o bebê, o que qtier
que isto signifique. Na saúde o bebê encontra-se preparado, antes de nas.cer,
. dependência e da imaturidade em direção à independência, é o eu, e a vida
do eu, que dão sentido ao agir e ao viver, e que constroem a capacidade para para alguma intrusão do ambiente, e já teve a experiência de rnrornar da rea-
a identificação com objetos de amor mais maduros sem perda da identidade ção a um estado em que não é necessário reagir, úni co estado cm que o eu·
pode começar a ser.
individual.
r
44 D. W. WINNICOTT
DA PEDIAlRiA À PSICANÁLISE
45
Esta é a fonnulação mais simp.les que sou capaz de fazer sobre o proces-
$0 normal do nasciinento. Trata-se de uma fase temporária de reação e pnr- da criança produzem "fases de reação à intrusão; e tais reações intenompem
tanto d<! pcri:\3 da identidade; um exemplo de grande magnitude, mas para o o 'continuar a ser' da criança. Um excesso de reações produz não uma fn1s-
qual o heb~ já L'Stava preparadJ. de interferência no 'continuar a ser' pessoal, tração, mas uma ameaça de aniquilação." Esse tipo de ansiedade, para ele,
não tão prolongado nem tão poderoso a ponto de cortar o fio do contínuo pro- constitui o verdadeiro problema do paciente rio estado de regressão à depen-
cesso ·pessoal do bebê. dência.
Portanto, o nascimento não é uma intrusão se a 'adaptação ativa do. ambien- Em seu trabalho "A Agressividade e sua Relação com o Desenvolvi-
te' cumpre sua missão ou, melhor dizendo, não é uma intrusão capaz de in- me.nto Emocional" (Cap. XVI), Winnicott analisa toda a questão da reação
ten:omper o processo de continuar a ser: 'no nascimento não traumático a à intrusão em termos da motilidade e das.experiências de agressão emergen-
reação à íntruscio que o parto representa não-excede aquela para a qual o tes, e assinala três padrões encontrados nessas experiências:
feto já está preparado.' Nwn dos padrões, o ambiente é constantemente descoberto e redescoberto
Inerente ao conceito de intrusão, segundo Winnicott, encontra-se a 'ne- em razão da motilidade. Aqui, cada experiência no contexto do narcisisRlo
cessidade de reagir', porque é esta última que leva, quando persistente, à ar- primário enfatiza o fato·de que é em seu centro que o indivíduo está se desen-
mação de um Falso Eu: "O bebê incomodad() pela necessidade de reagir é volvendo, sendo o contato com o ambiente uma experiéncia do individuo
empurrado para fora de um estado de ser." (Ver tb. Winnicott l 972b), A es- (em seu estado de ego-ida princípio indiferenciadas). No segun'clo padr-Jo, o
sência desse pensamento é: ambiente contete uma intrusão, e em vez de uma série de experiências indi-
viduais temos uma série de reações à intrúsão. Nesta situação ocorre um re-
A fim de preservar no início um modo de vida pessoa·!, o indivíduo precisa traimento para uma situação de repouso, a única que possibilita a existência
de um mínimo óe intrusões ambientais causadoras de reações. Todo indiví- individual. A motilidade é vivida, nesse contexto, apenas como uma reação à
duo está realmente em busca de um novo nascimento, no qual a sua linbade· intrusão.
vida não seja perturbada por uma quantidade de reação maior do que a que Num terceiro padrão, extremo, tudo isto é ·exagerado a um tal grau, que
pode ser vivenciada sem perder o sentimento de continuação de sua exis- não hâ mais sequer um lugar de repouso onde a experiência da individualida-
tência pessoal. A saúde mental do indivíduo é demarcada pela mãe, a qual, de possa ocorrer, e como resultado temos a falência do estado de narcisismo
por sua devoção ao bebê, está em condições de adaptar-se·ativamente. Isto primário do qual evólui o iridivíduo. O 'individual', nesse caso, vem a ser
pressupõe que a mãe esteja basicamente-relaxada, e que ela seja capaz de uma extensão da casca em vez de uma extensão do cerne, e também uma ex-
compreender o modo de vida individual do bebê, o que também deriva de tensão do ambiente i11tn1sivo. O remanescente do cerne oculta-se inteira-
sua capacidade de identificar-se com ele. Esse relacionamento entre a mãe mente, e pode não ser encontrado nem mesmo na mais profunda análise. O
e o bebê surge antes de este nascer, e continua em alguns casos durante o individual, nesse caso, existe apenas por não ser encontrado. O verdadeiro
nascimento e mesmo depois. Do modo como eu o compreendo, o trauma do eu fica escondido, e temos então que lidar, clinicamente, com o complicado
nascimento é a ruptura do 'continuar a ser' do bebê, e quando tal ruptura é falso eu, cuja função é manter oculto esse eu verd.acleiro. O falso eu pode
significativa. os detalhes da maneira como a intrusão é sentida; e tambél!l mostrar-se convenientemente sociossintônico, mas a ausência de um verda-
da reação do bebê a ela, transformam-se em fatores adversos ao desenvol- deiro eu provoca uma in~tabilidade que se mostra tão mais evidente quanto
vimento do ego. Na maioria dos casos, o trauma do nascimento é portanto mais a sociedade se deixar enganar pela impressão d~ que o falso eu é verda-
ligeiramente importante, determinando ulna boa parte dos anseios por um deiro. A queixa do paciente é de um senÚmento de inutilidade.
renascimento. Em certos casos, porém, tais fatores adversos são tão seve-
ros qi1e ô individuo não tem chance alguma \a não ser pelo.renascimento no Winnicott considerava que o impulso agressivo era o que levava o bebê a
decorrer da análise) de progredir naturalmente em seu desenvolvimento descobrír "o objeto não-eu, um objeto percebido como externo".
emocional, mesmo que os fator.es externos subseqüentes sejam extrema- Em suas pesquisas, o estudo das reações à intrusão levou à discussão
mente favoráveis. do papel da ilusão e do Obj efo Transicional. Ele o afirma claramente em
seu trabalho "Psicose e Cuidados Matemos" (Cap. XVII). Sem a capacida-
De acordo com Winnicott, são as reações à intrusão que importam, e não a
de de utilizar a ilusão, o bebê não poderia estabelecer contato entre a psi-
intrusão propriani.ente dita. As falhas na adaptação da mãe às n ecessidades
que e o ambiente.
DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE 47
D. W. WINNICOH
46
outros, na intenção de incrementar a sua experiência de si mesmo, ao mesmo
Foi desta maneira que Winnicott passou a perceber de que modo a pro- tempo que enriquecia a vida deles através de seu encontro consigo mesmo.
visão materna inicial, através da ilusão e dos fenômenos transicionais do
Não admira, pois, que durante os últimos anos de sua vida ele tenha dedicado
bebê vinculava-se ao uso criativo da herança cultural pelo adulto. A sua ·
às duas experiências centrais da vida humana-:-ª solidão e o concemimento
fonn,ulação definitiva a esse respeito encontr~-se em "A Localização da
- sua atenção e seus pensamentos ma.is profundos.
Experiência Cultural" (l97lb).
Ao longo dos séc.ulos, sábios, místicos, poetas e filósofos idealizaram
o estado isolado e solitário do ser humano nobre, e glorificaram o sofri-
Solidão e Concemimento na Localização da Experiência Cultural me~to que esta condição implicava. Na ct;ltur~ ocidental cristã, a imélgem
mais eloqüente dessa postura seria o Cristo na cruz. Winnicott olhou par~ a
No fundo do meu ser continuo convencido de que os meus caros semelhantes
solidão do indivíduo humano de um modo inteiramente novo, e sua obser-
- com umas poucas exceções - silo um bando de patifes.
Fri;:ud a Lou Andrcas-Salomé (28.7. 1929) vação {1958b) a esse respeito é ao mesmo tempo sucinta e certeira:
Ah! Fizemos demasiadas suposições sobr<! o- homem atrás da máscara! Seria pr'Qvav~lmente acertado dizer que na literatura psicanalít ica e~cr~
St.John Perce:Amers
veu-se bem mais sobre o medo de estar só ou sobre o desejo de estar só do que
Freud olhou para o coração do homem e ali viu urna pobre criatura existindo sobre a capacidade de estar só. Estudou-se muito, também, o estado. de r~ ·
periclitantemente ao longo do tempo. Ele examinou a única criaç~o do ho- tra~~ento, u~rn organização defensiva vinculada a uma expectativa de persc-
mem, a cultura, e encontrou "nial-estar" e subterfúgios em toda parte (Freud, gmçao. A mim parece que a discussão sobre os aspectos positivos da sol idão
1930). Ntnguém poderia negar a rude veracidade de suas sentenças. No en- há muito tempo se mostra·necessária.
tanto, em algum lugar haverá algo mais para a vida humana que a mera acei- Cerca de duzentos anos antes, Jean-Jacques Rousseau, cm.Les Rêwries du
tação da "infelicidade cotidiana" (Freud, 1895) e do mal-estar. Vindo de unl P~om((neur Solitai~e (1776), escreveu uma extasiada apologia de sua rej ei·
meio cultural e religioso diverso, ainda que usando os mesmos instrumentos çao a todos os reiacionamentos humanos e à sociedade como um todo, te rwo
de pensar que Freud, Winnicott acabou por avaliar de outro modo a situação em vista a p·osse definitiva de seu próprio eu. Em lugar algum encontraremos
do indivíduo humano diante da vida. Winnicott divi:;ou precisamente na vul-
um exemplo melhor disto que Wínnicott chamou de ' um estado de retrai-
nerabilidade do homem o seu verdadeiro potencial para relacionar-se com o
m~nto', uma organização defensiva vinculada a uma expectativa de perse-
outro a partir da necessidade e do desejo, não meramente visando à gratifica-
~~ · , ,
Com sua costumeira clareza wn tanto abrupta, Winnicott formula o seu definitivamente enorme. Mas voltemos ã reflexão de Winnicott, que chega
ponto de vista: ao seu clímax logo a seguir:
O termo ·concemimento ·é utilizado para dar conta, de um modo p~sitivo, do Em circunstâncias favoráveis surge uma técni ca para resolver essa complexa
fenômeno que é abarcado negativamente pela palavra 'culpa'. O sentimento fonna de ambi va lência. O bebê sente ansiedade porque, se ele consome a
de culpa implica em ansiedade vinculada à idéia de ambivalência, e envolve mãe, fic:ará sem ela. Mas essa ansiedade.é niodificada pelo fato de que agora
um grau de integração do ego capaz de reter uma imago do objeto bom junta- ele tem urna contribuição a fazer para a mãe ambiente. Existejá uma crescen-
mente com a idéia de sua destruição. O concemimento implica numa integra- te confiança de que haverá a possibilidade de contribuir, de dar algo à mãe
ção maior e num crescimento maior, e relaciona-se de um modo positiv~ a ambiente, confiança essa que leva o bebê a poder suportar a ansiedade. A an-
um sentimento de responsabilidade, tendo especialmente em conta relac10- siedade suportada dessa fonna é alterada em sua qualidadç e se transforma
namentos em que os impulsos do id passaram a tomar parte. num sentimento de culpa. Impulsos do id provocam um u~o impiedoso dos
O concemimento refere-se ao fato de que o indi víduq se importa, ou se · objetos, e em seguida há um sentimento tie culpa que é suportado, e que é
preocupa, e tanto sente quanto aceita a responsabilidade. tranqüiliz6do pela contribuição à mãe ambiente que o bebê poderá fazer no
curso das próximas horas. Por outro lado, a oportu~nidade de dar e de fa zer
Para Wirinicott, a capacidade para o cõncernimento emerge antes que a si- reparações, oferecida pela mãe ambiente por sua presença confiável, possi-
tuação triangular do Édipo tenha se tomado_ possível para a criança. Ele bilita ao bebê tomar-se mais e mais rude na experiência dos impulsos d~ id.
acredita que a capacidade para o concemimento é 'uma quest~o de saúde', e Em outras palavras, libera a vida instintiva do bebê. Desta for111 a, a culpa não
resulta de wn cuidado suficientemente bom dispensado ao bebê. Além do é sentida, mas permanece adonnecida, ou em potência, e aparece (como tris-
mais, ele implica 'num ego que começa a se.tomar independente do ego au- teza ou corno um estado de espírito depressivo) somente se a reparação dei-
xiliar da mãe'. Neste ponto W innicott introduz uma importante diferença na xar de ocorrer.
Quando a confiança nesse ciclo benigno e na expectativa da possibilidade
experiência total do bebê ora com a 'mãe objeto', ora com a 'mãe ambiente' :
de reparação se solidifica, o sentimento de culpa em relação aos imp ulsos do
É útil postularmos a existência, para a criança imatura, de duas mães -e eu id é modificado novamente, e nesse momento passamos a necessitar de um
gostaria de chamá-las de 'mãe objeto' e 'mãe ambiente'. Não tenho intenção tenno mais positivo, como por cxemplo 'concernimento '. O bebê está agora
alguma de inventar nomes que venham a se transfonnar em rótulos e tendam em condições de sentir concemiment.o, de assu mir a responsabilidade por
a obstruir e a tomar-se rígidos, mas é perfeitamente possível utilizar esses seus próprios impulsos instintivos e pelas funções que a e1es pertencem. Esse
nomes aqui para descrever a enonne diferença que existe, para a criança, en- processo fornece um dos elementos construtivos mais fu ndamentais para o
tre dois aspectos do cuidado materno, a mãe enquanto objeto. dona do objeto brincar e para o trabalho. Mas no que se refere ao processo de desenvolvi-
parcial que irá satisfazer a necessidade urgente do bebê, e a mãe enquanto mento, foi a oportunidade para contribuir que trouxe o conccmimento para
pessoa, que o defende do imprevisível e que ativamente cuida dele, realizan- dentro das possibilidades do bebê.
do com ele e para ele os vários aspectos desse cuidar. O que o bebê faz da mãe
O círculo se completa. O bebê que é cuidado pode agora cuidar e sentir concer-
no auge de uma tensão do id, o uso que ele faz desse objeto nesse momento,
parece-me inteiramente diverso do uso que ele faz da mãe enquanto parte do
·nimento. Este é o início da existência em seu sentido mais amplo - a do ho-
mem na cultura humana, vjvendo e compartilhando sua vida com outros, na
ambiente tota!.
Prosseguindo nesta mesma linguagem, é a mãe ambiente que recebe reciprocidade das ambições pessoais e no concernimento em relação aos demais.
tudo aquilo que podemos chamar de afeição e coexistência sensória. E a mãe Gostaria de inserir aqui, rapidamente, o pensamento de Winnicott em
objeto é aquela que serve de alvo para a experiência excitada baseada numa relação à adolescência, pois é a adolescência que faz a ponte entre a criança
crua tensão instintiva. Meu ponto de vista é de que o concernimento surge na cuidada por sua família e o adulto na sociedade. Em seu trabalho "Adoles-
vida do bebê como uma experiência altamente sofisticada no momento em cência: A Batalha Contra o Mau Humor" ("Adolescence: St.'llggling through
que na su11 mente a mãe objet~ e a mãe ambiente juntam-se uma à outra. the Doldrums'') (1971d) escreve ele:
A importância desse pronunciamento para a nossa capacidade de avaliar cli- ... se é para o adolescente atravessar esse estágio do desenvolvime.nto por
nicamente a maneira de o paciente relacionaMe conosco na transferência é meios naturais, teremos que esperar por um certo fenômeno que chamaría-
r
f
52 O. W. WINNICOTI
DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE
53
mos de 'mau humor da adolescência". A sociedade precisa incluir tal coisa
entre os seus aspectos pennanentes e tolerá-la, sem tentar curá-h. Referências
Assim, chegamos ao que seria o 'testamento psicanalítico' de Winnicott-
Abraham, K. (1924). "A ~hort Study ofthe Development ofthe Libido in the Light
"A Localização da Experiência Cultural" {1967, [1971 b]). Faço uma citação
of-Mental Disc ..ders", in Collected Papers of Psycho-Analysis (Londres;
de sua tese central: Hogarth Press).
l. o lugar onde se localiza a experiência cultural é o espaço potencial Erikson, E. H. (1950/63). Childhood and Society (Nova York: Norton; Londres:
entre o indivíduo e o ambiente (originalmente, o objeto), O mesmo pode ser Hogarth Press). ·
·dito do brincar. A experiência cultural inicia-se com o viver criativo, que se Freud. A. (1946). The Psycho-Analytical Treatment of Children (Londi-es: lma-
manifesta em primeiro lugar no brincar. go/Hogarth Press; Nova York: International Universities Press). -
2. Para cada indivíduo, o uso desse espaço é determinado pela experiên- Freud, S. (1895). "Studies on hysteria", in The Standard Edition of the Complete
cia de vida que ocorre nos primeiros estági~s após o seu nascimento. Psychological Works ofSigmund Freud, vai. 2 (Londres: Hogarth Press)
3. Desde o início o bebê vive experiências de intensidade máxima no es- (1917). "Mourning andMelanchôlia", in Standard Edition. vol. 14. .
paço potencial entre.o objeto subjetivo e o objeto percebido objetivamente, (1921). "Beyond the Pleasure Principie", in Standard Edition, vol.18
entre as extensões do eu e o não-eu. Esse espaço potencial situa-se no interjo- (1923). "The Ego and the ld'', in Standard Edition, vol.19.
go entre o 'não existe nada além de mim' e o 'existem objetos e fenômenos (1926). "lnhibitions, Symptoms and Anxiety", in Standard Edition. vol. 20.
·fora do meu controle onipotente'. ( i 930). "Civilization and its Discontents", in Standard Edition, vol. 21.
4. C~da bebê tem ali as suas próprias experiências, favoráveis ou não. A Glover, E. (1968). The Birth and the Ego (Londres: Allen & Unwin). ·
dependência é máxima. O espaço potencial ocorre apenas em relaçao a sen- Hartmann, H. (1958). Ego Psychology and the Problem of Adaptation (Londres:
timentos de confiança vinculados à dependabilidade da figura materna e dos . lmago/Hogarth Press; Nova York: Intemational Universities Press).
componentes do· meio ambiente, confiança essa que é a evidência de que a Klem, M. (1935). "A Contribution to the Psychogenesis of Maniac Depressive
dependabi!idade está sendo introjetada. States", in Contributions (1948).
5. A fim de estudar o brincar e posteriormente a vida cultural do indiví- · (1948). Contributions to Psycho-Analysis (Londres: Hog~rth Press).
duo, é necessário estudar o destino do espaço potencial entre cada beb'ê e a fi- (1~57). Envy and Gratitude (Londres: Tavistock Pub\ications).
gura materna humana (e portanto falível), essencialmente adaptável (ao bebê) Milner, M. (1969). The Hands of the Living God (Londres; Hogarth Press; Nova
em decorrência do amor. _ York: lntemational Universities Press).
Verificar-se-á que se esta área deve ser considerada parte da organiza-
Nietzsche, F. (1969). Selected Letters o/Friederich Nietzsche, editado·por e. Midle-
ção egóica, ela se revela uma parte do ego que não pertence ao ego corporal,
ton (Chicago: The University of Chicago Press). .
ou melhor, que não surge a partir dos padrões defuncionamento do ego, e sim
Sh3:'1i l. (1970). The Wisdom ofthe ldiots (Londres: Octagon Press).
a partir das experiências do ego. Tais experiências pertencem a um tipo de
Sm1moff, V. (1971). The Scope of Chi/d Analysis (Londres: Routledge & Kegan
relacionamento objetal não orgiástico, que .Poderia também ser chamado de Paul). · .
relacionabilidade do ego, naquela região onde se P<!deria dizer qur< a conti-
m1idàde está sendo substituída pela contigüidade.
Tr~lli~g, L. ( 1955). Freud and the Crisis ofour Culture (Boston: The Bcacon Press).
Wmmcott, D. W. (1931 ). Clinicai Notes on Disorders o/Childhood (Londres: Wil-
Assim, sem muito alarde, Winnicott amplia o conceito dos "fenômenos tran- · liam Heinemann}.
sicionais'' da primeira infância para iricluir o "espaço potencial" da vida adul- (195 J). "Transitional Objects and Transitional Ph~nomena", in Playing and Reality
ta no interior da cultura. (1971 b). '
Próximo ao fim de sua vida, Winnicott passou a interessar-se mais e (1958a). "Psych~Analysis and the Sense of Guilt", in Maturational Processes
mais por compreender não apenas aquilo que leva os humanos a adoecer, (1965}
mas aquilo que os reva a nutrir-se ao cuidarem uns dos outros em meio à he- · (1 ~58b). "The Capacity to be Alone", in Maturational Processes (l 965). ·
rança cultural.
(1959 [1964]). "Classification" in Maturational Processes (1965).
(1960). "Ego Distortion in Tenns ofTrue and Fa!se Eu", in Maturational Proce~ses
Creio que jamais encontrarei outro alguém que com ele se pareça (1~65).
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