Dislexia - Uma Análise Histórica e Social
Dislexia - Uma Análise Histórica e Social
Dislexia - Uma Análise Histórica e Social
ISSN: 1676-0786
[email protected]
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Signor, Rita
Dislexia: uma análise histórica e social
Revista Brasileira de Linguística Aplicada, vol. 15, núm. 4, octubre-diciembre, 2015, pp.
971-999
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, Brasil
Rita Signor*
Hospital Infantil Joana de Gusmão
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
1 A Dislexia em foco
A dislexia do desenvolvimento é definida pela Associação Brasileira de
Dislexia (ABD) como “um transtorno específico de aprendizagem, de origem
neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhecimento preciso e/
ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração. Essas
dificuldades normalmente resultam de um déficit no componente fonológico
da linguagem e são inesperadas em relação à idade e outras habilidades
cognitivas1”. Consta no site2 da ABD que a dislexia apresenta “sinais” já
na fase pré-escolar, tais como: “dispersão”, “atraso do desenvolvimento
da fala e da linguagem”, “dificuldade de aprender rimas e canções”, “fraco
desenvolvimento da coordenação motora”, entre outros. Quanto à fase
escolar, alguns sinais que podem ser observados são: “dificuldade na aquisição
e automação da leitura e da escrita”; “desatenção e dispersão”; “desorganização
geral”, “confusão para nomear direita e esquerda”; “dificuldade de copiar de
livros e da lousa”; “pobre conhecimento de rima e aliteração”; “vocabulário
pobre, com sentenças curtas e imaturas ou longas e vagas”; “dificuldade em
manusear mapas, dicionários, listas telefônicas”, etc. (ABD).
Embora existam estudos que considerem déficits de processamento
visual e auditivo como causa explicativa para a dislexia, o modelo do déficit
fonológico é o mais aceito atualmente pela corrente organicista/dominante
(MASSI; SANTANA, 2011). Daehene (2012) entende que a dislexia
representa uma dificuldade desproporcional por parte do aprendiz na
sistematização das relações entre fonemas e grafemas da língua. Pesquisas que
utilizam instrumentos de neuroimagem mostram, em testes que requerem
1
Segundo a ABD, essa é a “definição adotada pela IDA – International Dyslexia
Association, em 2002. Essa também é a definição usada pelo National Institute of Child
Health and Human Development – NICHD”. Disponível em www.dislexia.org.br.
Acesso em 24/05/2014.
2
www.dislexia.org.br. Acesso em 24/05/2014.
O que a autora quer dizer com esse alerta é que pautar a avaliação
em linguagem escrita a aprendizes, por meio da ótica que sustenta estudos
tradicionalistas no campo das afasias, demonstra uma visão estreita da
linguagem, já que esses testes se distanciam do caráter social intrínseco ao
fenômeno linguístico.
Massi (2007) diz ainda que as tarefas avaliativas contidas nos manuais
tradicionais que pretendem orientar a prática fonoaudiológica ignoram a
noção de texto como unidade de manifestação da linguagem. Ao abstrair
o sujeito da linguagem, anulam-se as coordenadas do processo dialógico e,
sendo assim, é possível compreender por que os testes-padrão sinalizam para
o caráter orgânico das dificuldades de escrita. A avaliação pautada nos testes
impossibilita a percepção do uso que o aprendiz lança mão ao produzir uma
sequência escrita, despreza as pistas usadas na atribuição de sentidos ao texto
e desconsidera o processo interlocutivo. “Sem levar em conta essas questões,
as tarefas avaliativas se mostram descontextualizadas; ignoram as ações
com, sobre e da linguagem; e se pautam em procedimentos que assumem
uma postura confusa entre a oralidade e a escrita” (MASSI, 2007, p. 134).
Acredita-se que na artificialidade dos testes, os sujeitos ficam privados da
atividade interativa/dialógica inerente à função da linguagem.
Desconsidera-se, ainda, em meio à corrente organicista, a história
relacional da criança, sua inserção em atividades mediadas pela leitura e
escrita, o sentido da leitura na vida da criança, a qualidade das interações
sociais estabelecidas no contexto da escola, as questões afetivas, a realidade
da situação educacional no Brasil, a precariedade da formação docente, entre
outros fatores que podem interferir na aquisição de competências em leitura
e escrita (SIGNOR, 2013a; MACHADO; SIGNOR, 2014).
Nessa direção, um grupo de profissionais da fonoaudiologia
(MASSI, 2007; MASSI; SANTANA, 2011; PERROTA, 2011; SIGNOR;
BERBERIAN, 2012), afastados da noção estruturalista de língua, sustenta
suas avaliações de leitura e escrita com base em um diálogo com autores
3 Método
Este estudo de caso foi desenvolvido no ambulatório de linguagem
de um Hospital Infantil. Nesse ambulatório são acolhidas crianças e
adolescentes de até quinze anos de idade que são encaminhados pelas escolas
(ou por profissionais do hospital) com queixas de dificuldades escolares. Em
caso de necessidade, o estudante é encaminhado para outros profissionais
de saúde. Confirmada a necessidade de atendimento, os escolares, em
geral, são atendidos em grupos de até quatro participantes, mas também
realizam sessões individuais. O critério para a grupalidade leva em conta as
condições de letramento de cada participante, faixa etária e afinidades entre
os integrantes. O grupo não é visto unicamente como uma forma de atender
à imensa demanda, mas como potencializador do processo de aprendizagem
(SIGNOR; BERBERIAN, 2012). Os atendimentos são realizados uma vez
por semana e têm duração de cerca de uma hora cada.
4 Apresentação de resultados
• Primeiro Parecer Fonoaudiológico
Eu tiar garado um caxorior da minha3 avó Eu foí moranha em Pedior não Poudia
te e carrou e de Paro miha Pimara eler foi muríto tester codor ele foir ém bolar iru
tíver mas carro eu tader cuderio da carroria do vó e sodurim o Bolota subirou no
sofar e fícou comígo e detador e ficou coredor íaímar do sofar e ir cimar é mírím e
eu tíve sazer Begir ou para lese Para Bícara eumar coírsas legau foí codou ele foím
no dírsíoho da xinha e foí murito legau e ela foir no corícão de Bolota e os doís forí
camara de peletere e lela casoria da vó comsou a xorai e qeli as meu Avos masatadia
a vo ceguar Pegar ela foír muríto elgau e uma mara e umar era muríto elegau codur
o bolota e a xínha estava fostou e es elau amígo e te eu bícafara com eles masír o dia
e a xínha foir para casa de lara com a mnihar avós e o bolota efícou comígo eu tabem
gostava muríto dele e foí erdorma coamia Pímar e ele tíri um amígo e gato da míha
Pírmar e os dois são tão sapecar eqer o bolota e qeqetatou comer a comedo do gato.
Eu tinha ganhado um cachorro da minha avó eu fui morar em prédio não podia ter cachorro
e dei para minha prima ele foi muito triste quando ele foi embora eu tive mais cachorro
eu também cuidei da cachorra da vó e (sodorium) o bolota subiu no sofá e ficou comigo e
deitado e ficou correndo (íaímar) do sofá e ir em cima de mim e eu tive que brigar ou para
eles para brincar mais coisas legal foi quando ele foi no bercinho da cachorrinha e foi muito
legal e ela foi no colchão de bolota e os dois foi na cama de (peletere) e ela (casoria) da vó
começou a chorar e que meus avós mais tarde a vó chegou pegou ela foi muito legal e uma
Abaixo consta a análise dos dados das produções textuais escritas por
Mary:
a. Hipercorreção
Exemplos de palavras escritas por Mary: prédio - “pedior”; prima –
“pímar”; brigar – “begir”; triste – “tester”; cima – “cimar’; ele - “eler”;
sapeca – “sapecar”; sofá - “sofár” (uso indevido do “r” em final de palavra)
4
Para fins deste texto, usa-se C para representar o termo Consoante e V para vogal.
No que diz respeito à marcação do /M/, /N/ e /R/ nas formações CVC
e CVVC, ainda não há esse conhecimento desenvolvido. O arquifonema
/S/, por sua vez, já é representado, a exemplo dos vocábulos “jastava” para
“já estava”, “fastu” para “estou” e “gostava”, em que se verifica a percepção
e uso da letra.
f. Trocas entre grafemas surdos e sonoros (f/v; c,q/g; p/b; t/d; s/z; x,ch/j,g)
Não foram observadas substituições de letras auditivamente
semelhantes nas produções escritas realizadas em avaliação.
4.5. Conduta
Atendimento fonoaudiológico semanal.
A seguir, apresenta-se o segundo parecer (reavaliação fonoaudiológica).
Obs. Durante a produção (2), Mary pediu ajuda para escrever as palavras “comprou” e “refrigerante” (havia escrito
“compou” e “refrijelante”); perguntou se a palavra “então” se escrevia junto ou separado; se “abriu” tinha “u” depois
do “i”; e pediu a confirmação se “sexta” era com “s”. Em todas as suas perguntas, obteve o auxílio da terapeuta.
4.7 Conduta
Continuidade do atendimento fonoaudiológico.
Considerações finais
Este estudo teve por objetivo promover uma discussão em torno
da necessidade de uma avaliação centrada no processo, e não no produto
linguístico, no que diz respeito a aprendizes com queixas de leitura e escrita.
Procurou-se fortalecer a noção de que a mera aplicação de testes, pautados
essencialmente em atividades metalinguísticas, não dá conta do fenômeno
complexo e multifacetado da linguagem.
Na concepção sociointeracionista, a língua, longe de representar um
simples código de transmissão de mensagens, é tomada como resultado de um
trabalho histórico, coletivo e social. Assim, a avaliação centrada no processo
da interlocução, no decorrer de práticas de linguagem contextualizadas e
em operações epilinguísticas, produz a constituição efetiva de processos
linguísticos de significação e redimensiona a questão do déficit (COUDRY,
1998). O sujeito, nesta vertente, é deslocado do lugar de alguém que não
sabe, que não consegue e que tem dificuldades, e é posto na posição de alguém
que consegue, quando são oferecidas as condições para que consiga. Depreende-
se, com o processo diagnóstico aqui apresentado, que o que está em jogo é a
qualidade das relações sociais que medeia a relação da criança com a escrita.
Ressalte-se que o diagnóstico centrado no produto pode conduzir a
equívocos, agindo no reverso do que seria um procedimento clínico eficaz.
O papel do clínico é redimensionar a relação ruim da criança com a sua
aprendizagem, e não, por meio de procedimentos avaliativos questionáveis,
reforçar sentimentos de incapacidades já preestabelecidos, naturalizando-os
por meio da imposição de um distúrbio na área da linguagem.
As modificações substanciais que ocorreram no transcorrer das sessões
Agradecimentos
Agradeço às fonoaudiólogas Janete Nesi, Eldia Mesquita Gomes e
Sabrina Luz pela leitura do artigo.
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