Tese Renan Santiago Com Ficha e Ata
Tese Renan Santiago Com Ficha e Ata
Tese Renan Santiago Com Ficha e Ata
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Eu, Antônio Flavio Barbosa Moreira, Presidente da Banca, lavrei a presente Ata que segue
por mim assinada no verso, representando todos os membros da Banca Examinadora e o
candidato(a).
A banca considerou o doutorando APROVADO, destacando:
a) a relevância da temática;
b) o rigor teórico-metodológico do estudo;
c) a contribuição do estudo para a formação de professores de Música;
d) a contribuição do estudo para a área da Educação.
Continuação da Ata de Defesa de Tese do doutorando Renan Santiago de Sousa,
realizada em 27 de outubro de 2021.
_______________________________________________
Antônio Flavio Moreira Barbosa (UFRJ)
Presidente da Banca
Dedico essa tese, bem como toda a minha vida, a Deus.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus, por tudo que tem me feito, a despeito de eu nada
merecer. Também à minha família, amigas(os) e irmãos em Cristo, pelo apoio prestado nesse
período turbulento.
Gostaria também de demonstrar a minha gratitude ao meu orientador, professor Antonio
Flávio Barbosa Moreira, pela confiança e pelas preciosas orientações.
Digo também um forte e efusivo “muito obrigado!” a todas(os) as(os) professores que
passaram pela minha formação, seja na Escola Municipal Ruben Berta, seja na Escola Técnica
Estadual Visconde de Mauá, seja no Conservatório Brasileiro de Música-Centro Universitário,
seja na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, ou na Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Que professor seria eu, sem vocês?
Dentre essas(es) ilustríssimas(os) mestres, gostaria de, especialmente, agradecer à
professora Eliane Ribeiro (UNIRIO), ao professor Celso Sanchez (UNIRIO), à professora Ana
Ivenicki (UFRJ), à professora Zoya Marques (CBM-CEU), à professora Andrea Thees e ao
professor Ednardo Monti (UFPI), que são verdadeiros anjos que Deus enviou para me abençoar.
Demonstro também gratitude às(os) cursistas que se inscreveram no curso Música(s) no
Plural!, às(os) pessoas que, tão gentilmente, me cederam entrevistas, e às(aos) convidadas(os)
que, com seus conhecimentos musicais e de vida, tanto abrilhantaram o curso.
Agradeço também a Daniele Gomes, minha querida Dani, por sua amizade, auxílios
acadêmicos e incentivos. Você é muito especial!
Digo também um grandioso muito obrigado ao Pravaler Crédito Universitário, por ter me
proporcionado uma maravilhosa viagem a Toronto! Direciono minha gratidão à FAPERJ, pelo
auxílio financeiro, sem o qual, a pesquisa não seria possível.
E por fim, mas não menos importante, à Solange Rosa, a mais linda de todas as secretárias
acadêmicas desse mundo, por sua amizade e toda a ajuda prestada nesses anos de UFRJ.
MUITO OBRIGADO!!!!
Então olhei de novo para toda a injustiça que existe nesse mundo.
Vi muitos sendo explorados e maltratados.
Eles choravam, mas ninguém os ajudava.
Ninguém os ajudava porque os seus perseguidores tinham o poder do seu lado.
Eclesiastes 4:1
Resumo
A presente tese, produzida por meio de uma pesquisa-ação online, teve como objetivo principal
analisar quais significados são produzidos pelo processo de planejamento curricular,
implementação e avaliação de um curso de extensão multiculturalmente orientado e destinado
a licenciandos em Música e professoras(es) de Música já formadas(os). Tal assunto se torna
relevante na medida em que uma pesquisa anterior (SANTIAGO, 2017) indicou que discussões
relacionadas à raça, ao gênero, à sexualidade, à etnia e às diferenças de religião são
insuficientemente abordadas durante a formação inicial de professoras(es) de Música da cidade
do Rio de Janeiro. Nesse sentido, torna-se relevante empreender esforços para que a formação
de professoras(es) de Música e a educação musical se posicionem positivamente em relação a
um dos principais desafios da educação básica e formação de professores(as), que é o combate
aos diferentes tipos de preconceitos e discriminações. Dentro do contexto apresentado, foi
implementado um curso de extensão online, que buscou indicar as relações entre diferenças
culturais e ensino de Música, bem como instrumentalizar professoras(es) para ministrar um
ensino de Música que combatesse os diferentes tipos de preconceito e discriminação sem,
contudo, desprezar conteúdos musicais. O referencial teórico que embasou a tese e,
consequentemente, o curso que serviu de empiria para a mesma, foi o multiculturalismo,
entendido como um campo teórico e político e uma filosofia educacional que busca valorizar a
pluralidade cultural da sociedade, denunciar as discriminações que, consciente ou
inconscientemente, perpassam os espaços educativos e combater as estruturas de poder que
sustentam as desigualdades. Para desenvolver o currículo do curso, procedeu-se, inicialmente,
uma revisão bibliográfica sobre multiculturalismo, raça, gênero, sexualidade, etnia e
religiosidade, e suas relações com o ensino de Música, a fim de identificar princípios
norteadores que têm potencial para orientar aulas de Música multiculturais. Semelhantemente,
em uma segunda etapa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com pessoas que têm
alguma relação com a Música e cujas identidades - seja racial, de gênero, sexual, étnica ou
religiosa – são, historicamente, marginalizadas e estereotipadas na perspectiva ocidental,
racialista, e heterossexista, a saber, mulheres cisgêneras e transgêneras, pessoas negras, pessoas
homoafetivas, candomblecistas das nações Ketu e Angola e indígenas da etnia Guarani Mbya,
a fim de se entender qual tipo de conhecimento relacionados com o ensino de Música essas
pessoas apontam como relevantes de se fazerem presentes na formação de professores(as), de
modo à disciplina de Música poder contribuir para que preconceitos e discriminações sejam
desincentivados e, se possível, extirpados das aulas da disciplina em questão. Com os dados
da revisão de literatura e das entrevistas, foi possível elaborar um programa curricular que
buscou contemplar as lacunas identificadas na formação de professoras(es) de Música da cidade
do Rio de Janeiro. Esse programa curricular foi implementado virtualmente em meio à
pandemia da COVID-2019, por meio de aulas do curso de extensão que foi ministrado pelo
autor da presente tese, com a participação de professoras(es) convidadas(os) que possuem lugar
de fala em um dos cinco temas de interesse do multiculturalismo abordados pela tese, a saber:
raça, gênero, sexualidade, etnia e religião. O processo foi avaliado tendo como base a análise
do relato de experiência redigido pelo pesquisador, e das avaliações diagnósticas e dos diários
de bordo produzidos pelas(os) cursistas. Tais meios de avaliação serviram como dados, que
foram analisados por meio de análise de conteúdo via categorização. Por meio de tal estratégia
de análise de dados, foi possível indicar quais significados foram produzidos pelo curso, desde
o seu processo de planejamento, passando pela sua implementação, e culminando na avaliação.
Como resultados, de forma resumida, notou-se que, apesar das dificuldades, é possível
empreender um ensino de Música multiculturalmente orientado, que, apesar das suas
limitações, valorize os diferentes saberes e possibilite que professoras(es) de Música produzam
uma rede de significados sobre si, sobre os outros, sobre o mundo e sobre a docência, que pode
culminar em ações de valorização das diferenças e de combate às bases estruturais das
desigualdades. A pesquisa só foi viável por conta do apoio financeiro da Fundação de Apoio à
Ciência, Tecnologia e Inovação no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Cette thèse, produite grâce à une recherche-action en ligne, avait pour objectif principal
d'analyser le processus de planification, de mise en œuvre et d'évaluation du programme
d'études d'un cours de vulgarisation multiculturel destiné aux étudiants en musique de premier
cycle et aux professeurs de musique déjà formés (vous). Cette question devient pertinente car
des recherches antérieures (SANTIAGO, 2017) ont indiqué que les discussions liées à la race,
au genre, à la sexualité, à l'ethnicité et aux différences de religion sont insuffisamment abordées
lors de la formation initiale des professeurs de musique de la ville de Rio de Janeiro. En ce sens,
il est pertinent d'entreprendre des efforts pour que la formation des professeurs de musique et
l'éducation musicale se positionnent positivement par rapport à l'un des principaux défis de
l'éducation de base et de la formation des enseignants, qui est la lutte contre les différents types
de préjugés et de discriminations. Dans le contexte présenté, un cours d'extension en ligne a été
mis en œuvre, qui visait à indiquer les relations entre les différences culturelles et l'éducation
musicale, ainsi qu'à préparer les enseignants à dispenser une éducation musicale qui combattrait
différents types de préjugés et de discrimination sans toutefois mépriser le contenu musical. .
Le cadre théorique qui a soutenu la thèse et, par conséquent, le cours qui lui a servi d'empirique,
était le multiculturalisme, compris comme un champ théorique et politique et une philosophie
éducative qui cherche à valoriser la pluralité culturelle de la société, dénoncer les
discriminations qui, consciemment ou inconsciemment, ils imprègnent les espaces éducatifs et
combattent les structures de pouvoir qui entretiennent les inégalités. Pour développer le
programme du cours, une revue bibliographique a d'abord été réalisée sur le multiculturalisme,
la race, le genre, la sexualité, l'ethnicité et la religiosité, et leur relation avec l'enseignement de
la musique, afin d'identifier les principes directeurs qui ont le potentiel de guider les cours de
multiculturel. Musique. De même, dans un deuxième temps, des entretiens semi-directifs ont
été menés avec des personnes ayant un certain rapport avec la Musique et dont les identités -
qu'elles soient raciales, de genre, sexuelles, ethniques ou religieuses - sont historiquement
marginalisées et stéréotypées dans un monde occidental, racialiste et hétérosexiste, à savoir, les
femmes cisgenres et transgenres, les personnes noires, les personnes homo-affectives, les
candomblécistes des nations Ketu et Angola et les peuples autochtones de l'ethnie Guarani
Mbya, afin de comprendre quel type de savoir lié à l'enseignement de la musique ces personnes
soulignent comme pertinent pour être présent dans la formation des enseignants, afin que le
sujet de la musique puisse contribuer à ce que les préjugés et la discrimination soient découragés
et, si possible, extirpés des classes du sujet en question. Avec les données de la revue de la
littérature et des entretiens, il a été possible de développer un programme qui cherchait à
combler les lacunes identifiées dans la formation des professeurs de musique dans la ville de
Rio de Janeiro. Ce programme d'études a été mis en œuvre pratiquement au milieu de la
pandémie de COVID-2019, à travers des cours dans le cours d'extension qui a été enseigné par
l'auteur de cette thèse, avec la participation de professeurs invités qui ont une place pour parler
dans l'un des cinq sujets d'intérêt à multiculturalisme abordé par la thèse, à savoir : la race, le
genre, la sexualité, l'ethnicité et la religion. Le processus a été évalué sur la base de l'analyse
du rapport d'expérience rédigé par le chercheur, ainsi que des évaluations diagnostiques et des
carnets de bord produits par les participants au cours. Ces moyens d'évaluation ont servi de
données, qui ont été analysées via une analyse de contenu via une catégorisation. Grâce à une
telle stratégie d'analyse des données, il a été possible d'indiquer quelles significations ont été
produites par le cours, depuis son processus de planification, jusqu'à sa mise en œuvre et
aboutissant à l'évaluation. En conséquence, en résumé, il a été constaté que, malgré les
difficultés, il est possible d'entreprendre une éducation musicale à vocation multiculturelle, qui,
malgré ses limites, valorise les différentes connaissances et permet au(x) professeur(s) de
musique de produire un réseau de sens sur soi, sur les autres, sur le monde et sur l'enseignement,
qui peut aboutir à des actions de valorisation des différences et de lutte contre les bases
structurelles des inégalités. La recherche n'a été viable que grâce au soutien financier de la
Fondation pour le soutien de la science, de la technologie et de l'innovation dans l'État de Rio
de Janeiro (FAPERJ).
5.1 Relembrando.................................................................................................................334
5.2 Algumas implicações.....................................................................................................335
5.2.1 Para o campo do Currículo.......................................................................................336
5.2.2 Para o campo do multiculturalismo………..………...…………..………………...339
5.2.3 Para a educação musical…………………………....……………………………...340
5.3 Limitações da pesquisa e sugestões para novos estudos..............................................341
5.4 Palavras finais: qual é a tese da tese?...........................................................................342
Referências.............................................................................................................................343
INTRODUÇÃO
1
Na presente tese, Música, com letra inicial maiúscula, refere-se à disciplina escolar e a um campo de estudos.
Quando escrita com letra inicial minúscula, música se refere a uma composição musical ou à prática social.
1
mas, definitivamente, seria equivocado afirmar que existe um “método de ensino multicultural”
(MOREIRA, 2013; MOREIRA; CANDAU, 2013).
É interessante notar que o multiculturalismo não é uma metodologia de ensino, logo, não
aponta para um “passo a passo” de como se proceder para se alcançar certo fim, mas, pelo
contrário, é um campo político e teórico (CANEN, 2013) e filosofia educacional (GAY, 1994).
Não se pretende, contudo, construir tal método por meio dessa pesquisa, pois acredita-se que não
é possível que um modelo de experiência possa ser percebido como ideal e universal, e, assim ser
reproduzido em diferentes realidades (MOREIRA, 2013; MOREIRA; CANDAU, 2013), porém,
argumenta-se que ao se analisar criticamente um processo de planejamento, implementação e
avaliação de um currículo multicultural, será possível lançar pistas sobre como se pode (ou não)
desenvolver abordagens de ensino embasadas no multiculturalismo. O objetivo desta pesquisa é,
justamente, estabelecer tal tipo de análise.
Dentre o rol de disciplinas cabíveis de fazer tal empreitada, escolheu-se a Música. Em
primeiro lugar, a razão de tal escolha se dá porque essa é a área de formação do autor da tese2.
Também, recorda-se que, embora a disciplina em questão não detenha status elevado na
hierarquia do currículo escolar que, em geral, ainda preserva resquícios do tradicionalismo e
tecnicismo oriundos da Modernidade (SANTOS et al., 2012), a presença da Música na escola
está (ou deveria estar) garantida pela Lei 13.268/2016 (BRASIL, 2016).
Recorda-se que a citada Lei não indica que a Música é uma disciplina, mas sim, uma das
linguagens que compõem as Artes, contudo, Sobreira (2012) indica que, após a promulgação da
Lei 11.769/2008, que inicialmente indicou que a Música deveria ser um conteúdo obrigatório na
educação básica, houve um processo de disciplinarização dessa área no Brasil, expresso pela
realização de concursos para a área por diferentes secretarias de educação e pela contratação de
profissionais, sobretudo, detentoras(es) do diploma de Licenciada(o) em Música. No âmbito da
região metropolitana do Rio de Janeiro, tal processo de disciplinarização da Música também foi
constatado por Santiago (2017).
Em adição às argumentações já feitas, a Música tem bastante potencial para tratar de
questões relacionadas ao multiculturalismo, visto que, além de disciplina escolar, ela é também
cultura e prática social (SANTIAGO; IVENICKI, 2018). A música, em si, é um dos ícones mais
2
Possui Licenciatura em Música (Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário, 2014), Licenciatura em
Pedagogia (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2020) e Mestrado em Educação (Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2017).
2
representativos do multiculturalismo, pois perpassa todos os povos, apresentando-se de forma
diferente em cada um deles sem que, cada uma dessas formas “singulares” de música se torne,
determinantemente, exclusiva de um dado grupo sociocultural. Todas as disciplinas escolares
podem tratar das questões relacionadas ao multiculturalismo, porém, o potencial que a Música
tem para abordar tais assuntos é inquestionável.
Apesar desse potencial, existem lacunas significativas na formação de professoras(es) de
Música, no que se refere aos temas de interesse do multiculturalismo. Em pesquisa recente,
Santiago (2017), autor da presente tese, analisou como questões multiculturais perpassavam os
três principais cursos de Licenciatura em Música localizados na cidade do Rio de Janeiro. De
forma geral, a pesquisa concluiu que as instituições analisadas ainda se centravam na perspectiva
tradicional e eurocêntrica do ensino de Música, e que questões relacionadas à raça, à
religiosidade e à etnia pouco perpassavam a formação oferecida. No que se refere às questões de
gênero e sexualidade, elas não apareceram em nenhum momento durante a pesquisa, indicando
um grave silenciamento referente a esses tópicos na formação de professores(as) dessas
instituições. Percebeu-se também que muitas(os) das(os) professoras(es) entrevistadas(os) tinham
dificuldade em relacionar Música e diferenças culturais fora do âmbito do repertório, indicando
que um ensino de Música multicultural se daria, somente, pela inclusão de músicas de diferentes
grupos culturais no currículo das disciplinas, sem um questionamento crítico sobre as relações de
poder que se dão além do repertório.
A partir da verificação dessa carência na formação de professoras(es) de Música, decidiu-se
abordar essas questões no ensino superior a fim de se perceber quais significados seriam
produzidos no processo de planejamento, implementação e avaliação de uma disciplina
multiculturalmente orientada que, a princípio, seria oferecida presencialmente para o curso de
Licenciatura em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Contudo, com o advento da pandemia de Corona Virus Disease (COVID-19), não foi
possível implementar a disciplina presencialmente. Após um grande período de incertezas,
depressão e frustrações, surgiu a possibilidade da citada empiria ser realizada em formato remoto,
por meio de um curso de extensão, oferecido sob o selo do Conservatório Brasileiro de Música –
Centro Universitário (CBM-CEU)3. Ressalta-se que a ministração de cursos de extensão foi
3
Que seja notório o agradecimento do autor à professora Zoya Alves Maia, cujos esforços possibilitaram na
realização desse curso e, consequentemente, na presente tese. Muito obrigado!
3
citada na pesquisa de Santiago (2017) como uma forma de possibilitar que a formação de
professoras(es) de Música atendesse melhor às diferenças culturais das(os) estudantes e da
sociedade.
O nome dado ao curso foi: Música(s) no Plural!: Diferenças culturais e ensino de
Música (doravante, Música(s) no Plural! ou, somente, curso). Esse nome indica, primeiramente,
que a Música se expressa de diversas formas, ou melhor, que existem diferentes tipos de música,
e nenhuma delas é melhor ou pior, elas apenas são diferentes. Em segundo lugar, esse nome
também denota que tais músicas se fazem ouvir em um contexto de pluralidade. Em outras
palavras, não apenas a Música, mas o mundo em si é plural e multifacetado.
O curso se focou na questão racial, de gênero, étnica, de diferenças de sexualidade e nas
diferenças de religião, temas detectados como ausentes na formação de professoras(es) de Música
do Rio de Janeiro (SANTIAGO, 2017). Dada a complexidade de cada tema, decidiu-se focar a
pesquisa nos grupos que, no contexto do estado Rio de Janeiro, mais sofrem com preconceitos e
discriminações nas esferas racial, de gênero, sexual, étnica e religiosa.
Nesse contexto, no âmbito racial, focou-se na identidade negra. Dentro do bojo do gênero,
o foco se deu nas mulheres cisgêneras e transgêneras. Na sexualidade, deu-se maior importâncias
às pessoas homoafetivas. No que se refere à etnia, privilegiou-se os indígenas da etnia Guarani
Mbya. Por fim, no que se refere às diferenças de religião, focou-se em candomblecistas.
A justificativa da escolha de cada um desses grupos se dará ainda nessa introdução. Se faz
importante agora, apontar as questões norteadoras e definir o objetivo da pesquisa. São elas:
Quais são as relações que a literatura especializada faz entre educação musical e temas como
raça, gênero, sexualidade, etnia e religiosidade? Que contribuições trabalhos já publicados,
nacional e internacionalmente, podem oferecer ao assunto? O que indivíduos que se identificam
pertencendo a identidades historicamente subalternizadas, como pessoas negras, mulheres
cisgêneras e transgêneras, pessoas homoafetivas, indígenas e candomblecistas, afirmam ser
importante para ser tratado em aulas de Música? Quais princípios podem nortear uma aula de
Música multiculturalmente orientada? Quais são as conclusões que emergem ao se analisar a
percepção dos(as) discentes e do pesquisador sobre as dinâmicas de um curso multicultural?
4
Em síntese: Quais são os significados produzidos nos processos de planejamento,
implementação e avaliação de um currículo multiculturalmente orientado, destinado à
formação de professoras(es) de Música?
Resumidamente, a presente tese teve como objetivo principal analisar os significados
produzidos no processo de planejamento, implementação e avaliação de um currículo de um
curso de extensão voltado para estudantes de Licenciatura em Música e professoras(es) de
Música já formadas(os).
Para chegar ao objetivo principal da pesquisa, buscou-se cumprir os seguintes objetivos
secundários.
Planejamento
5
O primeiro desafio que surgiu no processo de pesquisa foi o de encontrar uma estrutura, ou
seja, uma modelo organizacional para que, dentro dos seus moldes, fosse desenvolvido o curso de
extensão. Nesse contexto, a obra de Piletti (1986) contribuiu com a questão, pois, segundo esse
autor, o processo de planejamento pode ser organizado dentro dos pressupostos do conceito de
ciclo docente - ou seja, as atividades, normas, e técnicas de ensino postas em prática a fim de se
organizar o processo de ensino e aprendizagem, de modo a possibilitar a aprendizagem por parte
dos(as) estudantes (PILETTI, 1986, p.44). O ciclo docente apresenta três etapas, a saber,
planejamento (previsão e programação dos trabalhos), implementação ou orientação (execução
daquilo que foi planejado) e avaliação ou controle (avaliação processual do trabalho que está
sendo aplicado).
Desse modo, por meio do conceito supracitado, buscou-se seguir os passos que um(a)
docente interessado(a) em cunhar currículos multiculturais poderia seguir para lograr êxito em
seu intento. Cada etapa será discutida a seguir, sem, contudo, esgotar o assunto, pois os demais
capítulos da tese trarão mais informações sobre cada etapa do processo.
A fim de se planejar o curso, primeiramente, se fez necessário acumular conhecimento
sobre multiculturalismo e educação. Para tal, estudou-se a temática sob a ótica de autoras(es)
relevantes no cenário brasileiro, como Antonio Flávio Barbosa Moreira, Ana Ivenicki e Vera
Candau (CANEN; MOREIRA, 2001; CANDAU, 2006; MOREIRA; CANDAU, 2008,
IVENICKI; CANEN, 2016). Não se ignorou a importância de autores internacionais como Peter
McLaren (2000), Stuat Hall (1997a, 1997b, 1997c, 2003a, 2003b, 2005, 2014) e Catherine Walsh
(2012).
Feito isso, foi necessário também analisar produções sobre multiculturalismo, raça, gênero,
etnia, sexualidade e religião escritas no contexto do ensino de Música. Para tal, a produção
acadêmica, nacional e internacional, que disserta sobre educação musical multicultural foi
estudada e analisada e, por meio dela, foi possível aglutinar conhecimentos sobre práticas que
podem nortear a construção curricular da disciplina de Música embasada em uma ótica
multicultural.
A etapa do levantamento bibliográfico se constitui em um elemento importantíssimo em
qualquer trabalho, porém, essa tese apresenta contornos diferenciados na medida em que o
levantamento bibliográfico embasou a construção dos programas curriculares, logo, em tal etapa
também se produziu dados. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a primeira etapa realizada foi
6
tomar trabalhos acadêmicos sobre multiculturalismo e educação musical e concebê-los como
dados a serem analisados. O procedimento metodológico utilizado na seleção e análise desses
trabalhos está descrita no capítulo II.
Contudo, outro desafio emergiu: Como o autor da tese, sendo homem, poderia ensinar
sobre gênero? Como poderia ele, sendo heterossexual, discutir sexualidade? E, sendo cristão,
como poderia, sozinho, falar sobre religião? Argumenta-se que se, sendo homem, falasse sozinho
sobre gênero, seria fortalecido o silenciamento da mulher. Semelhantemente, se falasse apenas
por meio da sua própria subjetividade sobre os indígenas, poderia fortalecer estereótipos sobre
esse grupo. Não diferentemente, mesmo que empaticamente, se o autor discutisse a questão
candomblecista sob sua ótica cristã, isso poderia ser uma forma de se violentar simbolicamente
identidade candomblecista. O mesmo se aplica às demais identidades tratadas por essa tese.
Portanto, para se superar esse desafio teórico-metodológico, foi necessário ouvir voz a quem tem
direito.
A fim de se ouvir as vozes de sujeitos de identidades não normativas e valorizar seus
conhecimentos, foram realizadas entrevistas professoras(es) de Música e/ou possuidores de saber
popular em Música, que representam cinco áreas de interesse do multiculturalismo, a saber, raça,
gênero, sexualidade, etnia e religiosidade. Tais sujeitos que representaram tais áreas são,
respectivamente, pessoas negras, mulheres cisgêneras e transgêneras, pessoas homoafetivas,
indígenas da etnia Guarani Mbya e candomblecistas das nações Ketu e Jeje. Tais entrevistas serão
apresentadas e analisadas no capítulo III.
Na perspectiva de que o autor da tese iria ministrar as aulas multiculturalmente orientadas,
mas não possui lugar de fala4 para representar todas essas identidades citadas, tais entrevistas
foram muito relevantes, pois buscaram, a partir das próprias pessoas que sofrem preconceitos por
conta de algum traço identitário, identificar aquilo que, em suas opiniões, precisaria ser ensinado
nas aulas de Música a fim de que as(os) estudantes venham a se tornar sensíveis às diferenças,
aptas(os) a reconhecerem situações de preconceito e discriminação na dinâmica da Música e de
seu ensino, e não propensas(os) a reproduzirem estereótipos de raça, gênero, sexualidade, etnia e
religiosidade.
4
O autor da presente tese se autoidentifica como negro, homem cisgênero, heterossexual, ocidental urbano e cristão,
em outras palavras, apenas sua identidade racial não é normativa, contudo, apesar de negro, ele não se considera
como um autêntico representante da cultura afro-brasileira.
7
Também destaca-se que as entrevistas com esses sujeitos foram importantes, pois, como
argumenta Walsh (2012), o silenciamento e a subvalorização dos saberes próprios de pessoas em
situação de subalternidade são formas de colonização, de violência simbólica e de epistemicídio.
Nessa perspectiva, nada mais lógico do que ouvir as vozes dessas pessoas para que elas também
auxiliem diretamente na produção do curso que foi implementado.
Se faz necessário explicar o motivo da escolha de tais sujeitos, a saber, pessoas negras,
mulheres cisgêneras e transgêneras, pessoas homoafetivas, indígenas e candomblecistas. Como já
foi argumentado, pretendeu-se selecionar pessoas que sofrem por conta de estereótipos e
preconceitos relacionados às suas identidades de raça, de gênero, de sexualidade, de etnia e/ou
religião, ou seja, pessoas com identidades não normativas, no contexto fluminense.
No que se refere à raça, Gomes e Marli (2018) afirmam que pessoas negras são
descendentes diretas de pessoas que estiveram em situação de escravidão, a forma mais violenta
de discriminação racial. As autoras afirmam que na realidade brasileira, pessoas negras são
vítimas constantes de racismos que se expressam de diferentes formas. Por exemplo, enquanto a
taxa de analfabetismo de pessoas brancas, em 2016, era de 4,2%, tal número ascende para 9,9%
quando se analisa a condição da(o) negra(o). O rendimento médio obtido pela ocupação
profissional também aponta para desigualdades: enquanto pessoas brancas têm rendimento médio
de R$ 2814, pessoas pardas e negras ganham, respectivamente, R$ 1606 e R$1570. No que se
refere à percentagem de crianças de 5 a 7 anos que, em 2016, trabalhavam, obteve-se que 63,8%
delas eram negras, enquanto 35,8% eram brancas. A taxa de desocupação também aponta para
números desiguais: do total de desempregadas(os), em 2017, 9,5% eram brancas(os), 14,5% eram
pardas(os) e 13,6% eram pretas(os).
Argumenta-se também que o racismo perpassa a escola desde “a negação afro-brasileiras,
dos nossos costumes, negação da nossa filosofia de vida, de nossa posição de mundo da nossa
humanidade” (LIMA, 2006, p. 168). Em muitas ocasiões, a escola não apenas silencia, mas
também reforça estereótipos relacionados à identidade negra, inclusive nos livros didáticos e nas
demais formas de currículo prescrito.
No tocante ao gênero, pesquisas indicam que milhares de mulheres sofrem por conta do
machismo socialmente estabelecido, chegando, em muitos casos, a serem vítimas de feminicídio
(IPEA, 2019) e o preconceito aumenta exponencialmente quando se fala de mulheres
transgêneras e travestis (ANDRADE, 2012). Finco (2008) contribui com o debate, mostrando
8
como a escola tem contribuído para a reprodução de estereótipos de gênero. A pesquisadora
observa que, em geral, apesar de serem minoria, meninos têm mais voz no ambiente escolar,
possuindo o privilégio da palavra e da opinião, enquanto, muitas vezes, as meninas sentem-se
desvalorizadas e, por esta razão, aprendem desde cedo a se silenciar.
A divisão de matéria associadas aos gêneros também é recorrente. As ditas “ciências
duras”, socialmente mais relacionadas à profissionalização e mais facilmente categorizadas como
ciências, são vistas como masculinas, enquanto as outras disciplinas, mais subjetivas - incluindo a
Música nesse bojo - são classificadas como femininas (LEUNG, 2008). Desse modo, meninas e
mulheres que conseguem um bom desempenho em ciências exatas e/ou seguem carreira como
engenheiras, físicas, químicas, etc. podem sofrer pressões sociais relacionadas ao seu gênero.
Reportagens também indicam que as mulheres são as pessoas que mais sofrem assédio no
ambiente escolar, não apenas da parte de outros estudantes, mas também de professores 5.
Igualmente, professoras e estagiárias também sofrem assédio de colegas de trabalho dentro do
espaço escolar6. Embora muitas escolas estejam fazendo o seu papel na luta contra o assédio e a
violência sexual, na medida em que a maioria das denúncias de meninas e meninos, vítimas de
abuso sexual por parte de familiares, têm partido de professoras (INOUE; RISTUN, 2008),
salienta-se que o caminho a ser pecorrido é grande.
Quando se disserta sobre a sexualidade, pesquisas demonstram que as principais vítimas de
preconceitos são as pessoas homoafetivas, visto que a sociedade ainda é heteronormativa. Leite
(2012) aponta dados preocupantes, como por exemplo, 1) que o Brasil é o país campeão em
assassinatos em razões decorrentes de heterossexismo; 2) que o número de estudantes que
expressam terem sofrido episódios de preconceito e discriminação relacionados a suas
identidades sexuais na escola tem crescido no Brasil; 3) que no espaço escolar, o heterossexismo
é muitas vezes mascarado como “brincadeiras infanto-juvenis” o que, por sua vez, faz com que
muitos(as) autores(as) de violência heterossexistas não se percebam cometendo tal injúria; 4) que,
muitas vezes, vítimas de violência heterossexistas nas escolas são culpabilizados pelas violências
5
Um caso recente que envolveu toda uma rede de ensino no Rio de Janeiro choca pela quantidade de denúncias,
professores envolvidos e nível dos assédios. Tal notícia está disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2018/08/23/rede-de-escolas-no-rj-afasta-professores-apos-denuncias-de-assedio-na-web.ghtml, acesso
em 23/07/2018.
6
Infelizmente, o autor dessa tese teve o desprazer de presenciar alguns desses assédios durante sua carreira docente.
Tão terrível era para ele constatar que os assediadores não se importavam com as suas repreensões quanto era notar
que, para as professoras e estagiárias assediadas, isso já era algo normal.
9
que sofrem, por não terem um comportamento considerado como “ideal” aos olhos da instituição
escolar; 5) que muitas(os) professoras(es) também cometem atos heterossexistas, que são
dirigidos às(aos) suas(seus) estudantes e; 6) que a naturalização da heteronormatividade e a
invisibilidade do heterossexismo são os principais desafios a serem superados a fim de se
estabelecer na escola um caráter multicultural que valorize as diferenças, inclusive, aquelas
relacionadas às identidades sexuais. Portanto, é necessário empreender esforços para que tal
realidade discriminatória seja modificada.
Já no tocante à etnia, dentre as diferentes identidades marginalizadas, no caso brasileiro, o
povo indígena ainda é principal alvo estereótipos e carece de mais atenção do restante da
população. Tal grupo foi escolhido para esse estudo, pois é notório que o processo colonizador,
que desencadeou o genocídio indígena e o apagamento de grande parte da sua história, corrobora
para a estigmatização dos(as)nativos brasileiros e para que eles sejam um dos grupos sociais mais
estereotipado nos currículos e livros escolares (RAMOS et al., 2018). Embora a Lei 11.645/2008
(BRASIL, 2008) expresse que a cultura e história indígena devem ser ensinadas nas escolas
básicas desde o ensino fundamental até o ensino médio, muitas(os) professoras(es) não foram
devidamente instrumentalizadas(os) para cumprir a Lei em questão, incluindo, professoras(es) de
Música (SANTIAGO; IVENICKI, 2016c).
Por fim, indica-se que o candomblé é a religião mais atacada por movimentos de
intolerância religiosa no contexto fluminense (CAPUTO, 2006, 2008, 2012). Infelizmente, as
religiões de matriz afro-brasileira, em geral, sofrem cotidianamente, por meio da demonização de
seus deuses, desmerecimento de suas tradições, desvalorização de seus saberes, estigmatização de
suas práticas e ataques morais, psicológicos e físicos aos(às) seus(suas) professantes.
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, são frequentes as reportagens que mostram
terreiros e casas de santo atacadas por vândalos7. Muitas são impedidas de funcionar e (as)os
responsáveis pelas casas sofrem ameaças8, por serem consideradas(os) demoníacas(os).
Esse preconceito acaba adentrando nos muros das escolas. Caputo (2012) afirma que
racismo religioso dirigido aos(às) candomblecistas nas instituições escolares é algo frequente
7
Segue matéria jornalística que discorre sobre o assunto: https://extra.globo.com/casos-de-policia/terreiro-de-
candomble-em-madureira-atacado-pela-segunda-vez-em-quatro-meses-23712034.html. Acesso em 29/09/2019.
8
Segue vídeo que discorre sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=FVzn6YxM-Lw. Acesso em
29/09/2019.
10
que, muitas vezes, obriga tais estudantes a criarem estratégias para fugirem do preconceito, que
vão desde o silenciamento até a negação da própria fé.
No que se refere aos indígenas e aos candomblecistas, ressalta-se que estes grupos são
diversos e multifacetados, logo, foi necessário delimitar ainda mais universo a fim de ser possível
efetuar a pesquisa. Dentre as 305 etnias indígenas existentes no Brasil (COLLET et al., 2014),
aquela que foi escolhida para se aprender sobre foi a Guarani Mbya, porque, no contexto
fluminense, tal etnia é a mais significativa, no que se refere ao número de aldeias existentes no
território do Rio de Janeiro. Dentre as diferentes aldeias Guarani Mbya que estão presentes no
estado do Rio de Janeiro, escolheu-se frequenter a tekoa (aldeia, em uma tradução superficial)
Sapukai de Bracuhy, localizada no município de Angra dos Reis, estado do Rio de Janeiro. Tal
tekoa foi escolhida por ser a maior aldeia indígena do Rio de Janeiro, pela relativa proximidade
em relação à moradia do pesquisador, mas também – como qualquer outra aldeia Guarani – pela
grande presença da Música nesta comunidade. Não se ignora também a pluralidade do
candomblecismo. Para a presente pesquisa, foram feitas entrevistas com uma ogans (sacerdotes
responsáveis por, entre outras funções, tocar os atabaques nos cultos religiosos) das nações Ketu
e Jeje, e com uma professora de Música candomblecista da nação Ketu. Por advento da pandemia
e, por conseguinte, do isolamento social, não foi possível aprender in loco em terreiros de
candomblé.
Tendo como base a revisão da literatura e as entrevistas, foi possível identificar princípios
norteadores para aulas de Música multiculturais, entendidos nessa tese, como indicativos teórico-
práticas que tem potencial para servir como embasamentos iniciais que poderão instrumentalizar
um(a) docente interessado em ministrar aulas de Música multiculturalmente orientadas. Não se
trata, portanto, de prescrições curriculares, mas sim de orientações gerais que o(a) docente, caso
deseje colocar em prática, o fará considerando seus objetivos, as características socioculturais da
sua escola/universidade e o perfil da sua classe.
A proposta de se sugerir princípios norteadores para embasar aulas multiculturais foi dada
por Canen e Moreira (2001, p.29), que afirmam que, para a efetivação de uma educação
multicultural, “cabe sugerir princípios norteadores de estratégias efetivas”. Contudo, a presente
pesquisa buscou identificá-los junto à literatura e nas entrevistas feitas com pessoas com
identidade subalterna, a fim de valorizar o conhecimento de vida dessas pessoas e ouvir suas
11
vozes. Os princípios norteadores identificados estão listados ao final dos capítulos II e III, que
versam, respectivamente, sobre a revisão de literatura e as entrevistas.
Uma vez identificados os princípios norteadores9, contudo, sem desprezar os
conhecimentos anteriores sobre Música e educação musical, o pesquisador desenvolveu um
planejamento curricular, que será apresentado e discutido no capítulo IV da presente tese.
Concluído tal planejamento, um outro grande desafio emergiu: implementá-lo durante o período
de pandemia e isolamento social
Implementação
Como já foi indicado, a pesquisa, a princípio, foi pensada para ser desenvolvida
presencialmente por meio de uma disciplina optativa que seria oferecida para estudantes do curso
de Licenciatura em Música da UFRJ, contudo, com a pandemia, as aulas presenciais foram
canceladas. Como alternativa, o currículo passou por algumas adaptações para ser oferecido no
formato de curso de extensão online, que foi oferecido pelo Conservatório Brasileiro de Música –
Centro Universitário (CBM-CEU), instituição que gentilmente acolheu o curso.
O curso será mais bem apresentado e analisado no capítulo IV. Por ora, cabe ressaltar que
ele foi ministrado em sete encontros, entre os dias 30/01/2021 e 27/03/2021, aos sábados. As
aulas eram síncronas, contudo, o conteúdo era gravado e disponibilizado para quem não pudesse
assistir “ao vivo”.
Ao final do curso, dez cursistas entregaram as avaliações. Argumenta-se que essa
amostragem obtida não foge à média do número de inscritas(os) em disciplinas optativas que o
pesquisador vivenciou em sua experiência como estudante e professor.
Não se ignora também que, no dia 21/11/2020, ou seja, antes do início oficial do curso, foi
realizada uma aula piloto de divulgação do curso. Ela foi realizada no seguinte contexto: após as
primeiras conversas sobre como seria a implementação do curso, a professora Coordenadora
Geral Acadêmica do CBM-CEU entrou em contato, convidando o autor da tese para apresentar a
temática do curso para as(os) estudantes de Licenciatura em Música da instituição e,
consequentemente, divulgá-lo para esse público. Assim sendo, nesse dia, fora ministrada a
mesma aula que foi dada na aula de inauguração do curso.
9
Os eixos norteadores identificados estão listados ao final dos capítulos II e III.
12
Essa aula piloto foi de muita utilidade para a tese, pois o autor pôde usá-la como um teste
para ajustar questões como quantidades de conteúdos apropriados para o tempo de aula, software
de reunião remota a ser usado, infraestrutura necessária para ministração do curso, entre outros
aspectos.
Depois dessa aula piloto, entre os dias 09/01/2021 e 29/01/2021, ocorreu a divulgação do
curso em outras mídias – Instagram, Facebook e WhatsApp – bem como foi aberto o período de
inscrição do curso.
Finalmente, no dia 30/01/2021, houve o primeiro encontro, que durou uma hora e meia.
Nessa ocasião, o curso foi apresentado, bem como o multiculturalismo, referencial teórico que
embasa a presente pesquisa e que, por conseguinte, também embasou as discussões do curso.
Após esse dia, todos os outros encontros foram temáticos, sendo que cada um deles discorreu
sobre um tema de interesse do multiculturalismo e que são estudados nessa tese (raça, gênero,
sexualidade, etnia e religiosidade).
Cada encontro temático era formado por duas aulas, sendo que cada uma era planejada para
durar uma hora e meia. Uma dessas aulas era teórica e sempre foi ministrada pelo pesquisador.
Nessas aulas, eram discutidos dois artigos: um deles, escrito pelo pesquisador, sintetizava 1) o
referencial teórico desenvolvido para a presente tese, disponível no capítulo I; 2) o levantamento
bibliográfico feito sobre trabalhos acadêmicos que relacionassem educação musical e o tema
tratado pela aula, disponível no capítulo II e 3) as entrevistas feitas no bojo do tema da aula em
questão, disponível no capítulo III. O outro trabalho discutido era algum trabalho classificado
como relevante pelo pesquisador e que fora identificado na revisão bibliográfica sobre o tema
daquela aula. Em outros termos, as(os) cursistas tiveram acesso a praticamente todas as
discussões trazidas por três capítulos da pesquisa, que são, justamente, aqueles relacionados ao
planejamento do curso.
Já a outra aula era conduzida por convidadas(os) que representassem a identidade
discutida naquela aula. Foi empreendido essa dinâmica porque a importância de se trazer
musicistas de identidades subalternas e com lugar de fala para explicarem sob a sua ótica e
subjetividade questões relacionadas à Música e às diferenças culturais é indicado em diferentes
trabalhos identificados na revisão bibliográfica (JOSEPH; SOUTHCOTT, 2013; KENNEDY,
2009; MARSH. 2000).
13
As(os) convidados foram escolhidas(os) por amostragem de conveniência (PATTON,
2001), isso é, eram pessoas próximas ao pesquisador e/ou foram indicadas por pessoas próximas
a ele. Apesar dessa dinâmica de indicações, só foram aceitas(os) convidadas(os) com currículo
extenso e com grande conhecimento sobre o assunto.
Na aula de gênero, os(as) cursistas apreciaram um concerto didático sobre gênero e Música
ministrado pelo quarteto de cordas Nina’s, que é um conjunto musical formado só por mulheres e
que busca divulgar a obra de mulheres, para assim, combater as desigualdades de gênero na
Música.
Na aula sobre sexualidade, a cantora e pianista Vivian Fróes, mulher transgênera e militante
LGBT+, ministrou uma aula sobre questões relacionadas às diferenças de sexualidade e de
gênero na Música.
No encontro em que se dissertou sobre etnia e ensino de Música, houve a apresentação do
coral indígena da aldeia Sapukai de Bracuhy, quando também foi possível para as(os) cursistas
tirarem dúvidas sobre a cultura e musicalidade indígena diretamente com as(os) nativos.
Na outra semana, a aula foi sobre raça, e o convidado foi o músico congolês Héritier
Makengo Vakata. Por fim, na aula sobre religião e ensino de Música, o convidado foi o músico e
ogan Kaio Ventura. Mais detalhes sobre as(os) convidadas(os) serão fornecidos no capítulo IV.
Sumarizando, cada encontro tinha três horas de duração, divididas em duas aulas de uma
hora e meia. Uma dessas aulas era teórica e ministrada pelo autor da tese, tendo como base dois
artigos: um endógeno - que foi produzido pelo autor da tese, tendo como base o referencial
teórico da tese sobre o marcador identitário que seria tema da aula, a revisão bibliográfica sobre
esse marcador e as entrevistas realizadas junto a pessoas pertencentes a essas identidades – e um
exógeno, escrito por outro(a) autor(a), e que também relacionasse a temática da aula com a
educação musical. A outra aula tinha caráter mais prático e era conduzida pelas(os)
convidadas(os), que eram sempre musicistas que se identificavam como pertencentes ao
marcador identitário que estava sendo abordada na aula em questão.
Por fim, a última aula do curso foi dedicada ao encerramento. Nessa oportunidade, o
pesquisador discutiu com os presentes as impressões que ele teve no decorrer dessas sete semanas
e também ouviu as avaliações que as(os) cursistas tiveram do curso. Maiores detalhes da etapa de
implementação serão dados no capítulo IV.
14
Avaliação
10
Ressalta-se que o projeto da presente tese foi apreciado pelo CEP-UFRJ e registrado sob o número
25854619.3.0000.5582, recebendo aprovação para o prosseguimento da pesquisa.
11
O modelo do Registro de Consentido e Livre Esclarecido está disponível em
https://forms.gle/uCaFoosEokEC1Mau8.
15
explicitados por meio da escrita de um relato de experiência, também disponibilizado no capítulo
IV.
Fernandes (2015, p. 116), em artigo destinado para o tema, define relato de experiência e
expõe a importância deles para o campo da educação musical:
Até esse ponto, resumidamente, apresentou-se como o curso foi planejado, implementado e
avaliado, contudo, mais do que um curso, todo esse processo foi a parte empírica de uma
pesquisa de doutorado. Em outros termos, não bastou planejar e implementar o curso em questão,
mas, foi também necessário produzir dados e analisá-los sob a ótica de referenciais teórico-
metodológicos rígidos que garantissem a qualidade da pesquisa. Nesse sentido, também é
necessário se explicitar elementos de cunho mais acadêmico, como os procedimentos teórico-
metodológicos, a justificativa e a organização da tese. Tais elementos serão discutidos a seguir.
Procedimentos teórico-metodológicos
Representação: a produção de significados
Para uma melhor compreensão dos objetivos da pesquisa, é necessário definir os conceitos
de significado e representação. Significados, nessa pesquisa, são impressões socialmente
produzidas e culturalmente reguladas com as quais pode-se atribuir sentidos sobre o
funcionamento do mundo, da sociedade, ou de uma situação em particular (HALL, 1997a;
1997b). Em outros termos, quando se afirma que se buscou analisar os significados produzidos
no curso, quer se expressar que pretendeu-se identificar quais impressões gerais, sentimentos,
conceitos e ideias o pesquisador e as(os) cursistas acionaram a partir das aulas e como elas foram
representadas discursivamente pelas(os) envolvidas(os).
16
Hall (1997b, pp. 3-4) indica como a produção de significados se dá. Para o teórico
jamaicano, significados são produzidos e compartilhados em toda e qualquer interação social em
que alguém atribui certo valor a algo ou alguém, tendo como base um contexto cultural e a sua
subjetividade. Por exemplo, o que para uma pessoa pode ser somente um mictório ordinário, para
outra pode ser uma obra de arte, digna de exposição em museu12. Nesse exemplo, as diversas
lógicas de significação dadas a esse mictório não são, absolutamente, certas nem erradas, apenas
diferentes, por terem se originado de perspectivas diferentes.
Os significados são construídos na linguagem e por meio dela (HALL, 1997b; SILVA,
2014). Em outros termos, a linguagem se constitui em uma prática de representação nos quais
signos, isto é, palavras, símbolos ou sons que trazem consigo um significado, tornam-se
conhecíveis, manipuláveis e úteis no labor da interpretação de fenômenos sociais. Por exemplo,
um animal ainda não catalogado, embora existente no mundo concreto, só ganha significado
quando é, por meios semióticos e discursivos, nomeado, descrito e associado com as informações
do restante do mundo.
À guisa de exemplificação, Latour (2011) explicita que os micróbios sempre existiram, mas
a humanidade só passou a relacioná-los com a causa de muitas doenças quando eles foram
“descobertos” por Pasteur. A partir daí, esse novo significado, ou seja, que seres microscópicos
existem, passou a se relacionar com informações já existentes sobre o mundo, por exemplo, que
doenças existem, sendo possível fazer uma relação entre essas informações: micróbios causam
doenças.
Durante o processo de representação, objetos, pessoas, eventos ou fenômenos são descritos
e/ou simbolizados. Por exemplo, uma pintura realista é uma representação, uma vez que, por
meio de signos linguísticos, ela pode representar uma paisagem. Uma pintura abstrata também
poderia ser uma representação, caso a abstração expresse algum significado. Da mesma forma,
símbolos - religiosos, com a cruz cristã, as guias do candomblé, a crescente islâmica, a estrela de
Davi, entre outros, também são formas de representação, pois, cada um desse símbolos traz
consigo uma série de significados implícitos.
A análise da linguagem, portanto, pode ser utilizada para se identificar significados
presentes em diferentes signos, tais como áudios, imagens, sons, movimentos corporais e textos,
não porque esses meios podem ser usados para comunicar algo, “mas porque todos eles usam
12
A referência aqui é a obra “A fonte” de Marcel Duchamp.
17
algum elemento para apoiar ou representar o que queremos dizer e expressar ou comunicar um
pensamento, conceito, ideia ou sentimento13” (HALL, 1997b, p. 4). Ou seja, o signo é um veículo
que, consigo, traz o significado.
Na presente tese, buscou-se identificar tais pensamentos, conceitos, ideias e sentimentos em
textos, a saber, as avaliações produzidas pelo pesquisador e pelas(os) cursistas sobre as
impressões que tiveram do curso Música(s) no Plural! Por meio da análise de tais avaliações, foi
possível perceber como o curso foi descrito, conceituado, significado e, por conseguinte,
representado. A posteriori, foi também possível relacionar os significados identificados dentro do
contexto da formação de professoras(es) de Música14, formando assim, um sistema de
representação (HALL, 1997c).
Para Hall (1997c), um sistema de representação consiste na relação de organização,
intersecção, arranjamento, diferenciação e classificação de conceitos, que produz uma relação
complexa, contudo compreensível, comunicável e compartilhável. De tal relação, surgem hábitos,
crenças, atitudes e regulações que formam uma cultura específica, que é incorporada pelos
sujeitos inseridos nesse contexto (HALL, 1997b). Dentro desse cabedal teórico, pode-se afirmar
os significados produzidos pelo curso foram analisados na perspectiva da cultura de formação de
professoras(es) do Rio de Janeiro.
É importante salientar que, segundo Hall (1997c), existem três abordagens teóricas que
buscam explicar como os significados surgem, ou melhor, como o processo de representação
conecta o significado e a linguagem à cultura: a abordagem reflexiva, a abordagem intencional e
a abordagem construcionista.
A abordagem reflexiva, mais simplista, indica que a linguagem apenas comunica
significados que já existem no mundo real. Contudo, essa abordagem pode ser refutada, uma vez
que a linguagem é uma forma de se representar o mundo, logo, ela não tem o poder de expressar
a essência das coisas que representa (SILVA, 2014). A palavra mesa, por exemplo, é um conjunto
de signos que representam uma mesa, mas não a mesa em si.
A abordagem intencionista, por sua vez, argumenta que a linguagem expressa exatamente
aquilo que o emissor quis comunicar. Semelhantemente, essa teoria apresenta fragilidades, uma
vez que a mensagem, ao passar da(o) emissor(a) para a(o) receptor(a), encontra vários ruídos,
13
Texto original em inglês: “but because they all use some element to stand for or represent what we want to say, to
express or communicate a thought, concept, idea or feeling”.
14
Ver Figura 23, nas Considerações Finais do capítulo IV.
18
internos e externos aos sujeitos, que influenciam e moldam aquilo que a(o) receptor(a) irá, de
fato, entender e significar. Nesse sentido, há sempre um processo de decodificação das
mensagens, cujo resultado, não necessariamente, coincide com a intenção inicial da(o) emissor(a)
(HALL, 2003b).
Por fim, a teoria mais aceita pela comunidade científica, sobretudo por acadêmicos dos
Estudos Culturais, embora tenha sido tensionada, a posteriori, pelo pós-estruturalismo de Michel
Foucault15 (HALL, 1997c), é a abordagem construcionista. A premissa dessa linha de
pensamento é que os significados são produzidos na linguagem e pela linguagem. As diferentes
estruturas linguísticas não são “a coisa em si”, mas sim códigos que, dentro das suas limitações,
representam tais coisas. Hall (1997c, p. 24) afirma que “[o] ponto principal é que o significado
não é inerente às coisas, ao mundo. Ele é construído, produzido, sendo o resultado de práticas de
significação – uma prática que produz significado, que faz as coisas significarem 16”. Dentre as
abordagens supracitadas, assume-se concordância com os pressupostos da abordagem
construcionista, e, por esse motivo, buscou-se entender quais significados foram produzidos pelo
curso de extensão Música(s) no Plural!.
Nesse contexto de significados produzidos, emerge como relevante o conceito de
interpretação, que é, justamente, a forma pela qual o receptor decodifica a mensagem enviada
pelo emissor (HALL, 1997c, 2003b). Assim sendo, a(o) emissor(a) e a(o) receptor(a) têm seus
papéis nesse processo de representação: enquanto a(o) emissor(a) atua criando signos (codifica)
para representar e comunicar conceitos existentes no mundo real, a(o) receptor(a) os interpreta
(decodifica), dando forma ao significado produzido. Tudo isso é mediado pela linguagem.
Sumarizando as ideias desse subtópico, Hall (1997c) afirma que:
Representação é a produção de significados por meio da linguagem. Na representação,
segundos os construcionistas, nós usamos signos, organizados em diferentes tipos de
linguagem, para nos comunicarmos compreensivamente com os outros. A linguagem
pode usar signos para simbolizar, apoiar ou referenciar objetos, pessoas e eventos no
assim chamado “mundo real”. Mas, elas podem também referenciar coisas imaginárias,
mundos fantasiosos ou ideias abstratas que não estão em nenhuma parte do nosso mundo
15
Segundo Hall (1997c, 2014), Foucault contribui com o entendimento de como o significado é produzido por meio
do conceito de discurso, que, de forma simplória, seria o processo de representação que leva em consideração
questões históricas e as tensões de poder envolvidas. Argumenta-se que, para os objetivos do presente trabalho, que
não consideram as problemáticas tratadas por Foucault, o construcionismo elucidado por Stuart Hall é suficiente.
Recorda-se também que Hall (1997c) explicitou que, embora Foucault tenha feito contribuições posteriores aos
construcionistas, não há, necessariamente, uma superação que faça com que a teorização dos construcionistas se
torne obsoleta. Existe, na verdade, duas formas diferentes de se analisar como os significados são produzidos.
16
Texto original em inglês: “The main point is that meaning does not inhere in things, in the world. It is constructed,
produced. It is the result of a signifying practice - a practice that produces meaning, that makes things mean.”
19
material. Não existe uma relação simples de reflexão, imitação ou correspondência
uniquívoca entre a linguagem e o mundo real. O mundo não é precisamente refletido no
espelho da linguagem. A linguagem não atua como um espelho. O significado é
produzido dentro da linguagem, e através de vários sistemas representacionais que, por
conveniência, nós chamamos linguagens. Significado é produzido pela prática: o
trabalho da representação17.
Métodos
17
Texto original em inglês: “Representation is the production of meaning through language. In representation,
constructionists argue, we use signs, organized into languages of different kinds. to communicate meaningfully with
others. Languages can use signs to symbolize. stand for or reference objects, people and events in the so-called 'real'
world. But they can also reference imaginary things and fantasy worlds or abstract ideas which are not in any
obvious sense part of our material world. There is no simple relationship of reflection, imitation or one-to-one
correspondence between language and the real world. The world is not accurately or otherwise reflected in the
mirror of language. Language does not work like a mirror. Meaning is produced within language, in and through
various representational systems which, for convenience, we call ·languages'. Meaning is produced by the practice.
the 'work', of representation”.
20
produzidos a partir de um curso de extensão multicultural, afirma-se que o modelo qualitativo vai
ao encontro desse objetivo.
Contudo, existem diferentes tipos de pesquisas que se enquadram dentro do escopo da
pesquisa qualitativa, como pesquisa de campo, estudos de caso, pesquisas bibliográficas,
pesquisas históricas etc. Como o pesquisador analisará os sentidos gerados pela sua própria
prática docente, a estratégia de pesquisa considerada propícia para tal é a pesquisa-ação
(THIOLLENT, 1986). Segundo tal autor, tal estratégia de pesquisa se caracteriza pela existência
de uma cooperação ativa entre pesquisador e pesquisadas(os) a fim de chegarem à resolução de
algum problema. No presente caso, o autor da tese contribuiu desenvolvendo um currículo e
ministrando as aulas, enquanto as(os) cursistas ajudaram na compreensão do problema
participando das aulas e avaliando o curso.
Trip (2005) contribui para a discussão ao argumentar que a pesquisa-ação precisa,
necessariamente, conciliar o ato de se agir e o de se pesquisar. Em outros termos, a ação deve ser
mobilizada pela pesquisa e vice-versa. Para tal, o autor propõe que a pesquisa-ação seja
concebida como um ciclo fechado, subdividido em quatro etapas. O seguinte diagrama resume o
exposto:
Figura 1: Representação em quatro fases do ciclo básico da investigação-ação. Fonte: Trip (2005, p. 446).
21
Como se vê na Figura 1, Trip (2005) sugere a intersecção ente ação e investigação por meio
de um ciclo virtuoso constituído de quatro etapas: avaliar, planejar, agir e descrever. É
interessante que tal ciclo em muito se assemelha ao ciclo docente proposto por Piletti (1986) e já
apresentado nesse trabalho: planejamento, implementação e avaliação.
Em outro trabalho (BRASIL, 2006), é sugerido não um ciclo fechado, mas sim uma espiral,
que é iniciada na avaliação, e que segue para o planejamento e a prática, voltando novamente
para a avaliação, reiniciando o processo.
22
determinadas instituições comportam-se como organizações multiculturais, isto é, instituições
que têm apreço pelas diferenças e coíbem manifestações discriminatórias (CANEN; CANEN,
2005; LUCAS; CANEN, 2005). Como já se argumentou nesse texto, o resultado dessa avaliação
multicultural, indicou que as principais instituições de ensino superior que oferecem o curso de
Licenciatura em Música na cidade do Rio de Janeiro pouco preparam as(os) futuras(os)
professoras(es) em relação às temáticas das diferenças de raça, de gênero, de etnia, de
sexualidade e de religião.
Tendo como base o resultado dessa avaliação, planejou-se e implementou-se o curso de
extensão Música(s) no Plural, que foi centrado, justamente, em discussões sobre raça, gênero,
etnia, sexualidade e religiosidade. Por fim, foi realizada uma nova avaliação que, diferentemente
da primeira empreendida, analisou todo o processo, indicando possibilidades e limitações de um
ensino de Música multiculturalmente orientado. Seria possível continuar a espiral, fazendo um
novo planejamento depois dessa segunda avaliação, mas, para os objetivos da pesquisa, foi
suficiente, parar nessa segunda rodada de avaliação.
No que se refere às estratégias de produção de dados, 1) o relato de experiência; 2) os
diários de bordo e 3) as avaliações diagnósticas produzidos foram tomados como documentos e
foram realizadas análises documentais. Ivenicki e Canen (2016) definem análise documental
como “a análise de qualquer material escrito” (p. 36) realizado “para extrair tendências, temas
dominantes, representações sobre conceitos, bem como percepções, ênfases e omissões” (p. 12).
Ressalta-se também que, para garantir o rigor e a qualidade dos resultados, buscou-se a
triangulação de perspectivas (IVENICKI; CANEN, 2016, p. 29). Assim sendo, foram três os
tipos de documentos analisados: 1) os diários de bordo das(os) cursistas; 2) o relato da
experiência e 3) as avaliações diagnósticas dos(as) cursistas. Argumenta-se que, por meio da
análise desses três documentos, foi possível responder à pergunta de partida.
Por fim, uma vez produzidos os dados, eles foram analisados pela estratégia de análise de
dados conhecida como análise do conteúdo. Caregnato e Mutti (2006) buscaram distinguir
análise do discurso de análise de conteúdo: para as autoras citadas, enquanto a análise do
conteúdo analisa o que foi dito ou escrito, a análise do conteúdo busca entender como o que foi
dito ou escrito foi dito ou escrito. Isso indica que, resumidamente, a análise do discurso busca por
ideologias e marcas linguísticas, e as relaciona com certo contexto sócio-histórico. A análise do
conteúdo, por sua vez, analisa a mensagem do conteúdo em si e não as condições pelas quais ela
23
foi produzida, ou seja, o texto é lido e interpretado sem se fazer relações mais profundas com
outro contexto.
24
Dentre os diferentes métodos utilizados para se empreender a análise de conteúdo, utilizou-
se a categorização, ou seja, realizou-se a leitura das avaliações e buscou-se nelas temas principais
que perpassavam o texto e que atendiam aos critérios elaborados por Moraes (1999), a saber:
validade – capacidade de representa um conjunto de dados presente na totalidade do conteúdo -,
exaustividade – a soma das categorias precisa conseguir englobar todos os dados significativos -,
homogeneidade - as categorias devem ser criadas sob uma mesma dimensão de análise-,
exclusão mútua – um dado não pode ser englobado por mais de uma categoria - e objetividade
– os critérios usados para se cunhar as categorias devem ser suficientemente claros para que
outras(os) pesquisadoras(es), caso usem os mesmos critérios, cheguem a resultados de
classificação semelhantes. A Figura 4 sumariza o exposto.
Findadas as explicações metodológicas, a seguir, será detalhada a justificativa da feitura da
pesquisa.
Justificativa
25
Figura 4: Procedimentos adotados na pesquisa
26
(MIGON, 2015; GALIZA, 2018) foram realizados no contexto brasileiro. Os resultados da
presente pesquisa, portanto, poderão contribuir com o tratamento do assunto.
Esse baixo número de trabalhos expressa uma lacuna no conhecimento da área de
multiculturalismo na educação musical, que pode ser reflexo da falta da estruturação dessa área
no Brasil. Argumenta-se, porém, que a Música como conteúdo do currículo escolar precisa se
adequar à realidade multicultural das escolas e empreender esforços para que os choque e
entrechoques culturais que ocorrem dentro delas gerem o mínimo de fenômenos sociais
negativos, tais como os diversos tipos de preconceitos e discriminações. Nesta perspectiva, a
pesquisa buscou se inserir nas discussões sobre multiculturalismo na educação musical, tendo
como justificativa a lacuna no conhecimento caracterizada pelos poucos trabalhos desenvolvidos
para tal temática.
Porém, sem pretender afirmar que tal aspecto supracitado não seja por si só relevante,
aponta-se também a importância de se tratar criticamente de temas socialmente relevantes, como
racismos, machismos, discriminações, xenofobias, intolerâncias, sexismos e outras questões que
advêm de hierarquizações culturais e relações de poder nas quais as diferenças estão envolvidas.
Desse modo, no mundo atual, marcado por injustiças sociais, pretende-se, dentro das limitações
dessa tese, auxiliar no combate aos preconceitos e discriminações.
Por fim, justifica-se a tese pela motivação pessoal do pesquisador que, enquanto aluno de
Licenciatura em Música, pôde perceber o caráter eurocêntrico e excludente da Música que acaba
por reverberar nas dinâmicas desse curso. Por exemplo, durante sua experiência nesse curso,
verificou-se que o foco era o estudo da música ocidental, enquanto a música africana, ameríndia e
asiática pouco perpassava o currículo. Semelhantemente, não se estudava a vida e a obra de
mulheres compositoras, dando a impressão de que nenhuma mulher compôs algo relevante em
toda a história da humanidade. Enquanto músicas sacras cristãs eram frequentes, em nenhum
momento, músicas de outras religiões eram ensinadas, o que indicava que a normatividade cristã
também alcança a formação de professores(as) de Música. Ademais, embora houvesse um
indígena autodeclarado na classe, essa temática não foi abordada durante o curso. Percebendo
essas injustiças cognitivas e epistemológicas, o autor dessa tese, desde sua monografia de
conclusão de curso, se debruça em entender como o multiculturalismo pode contribuir para que a
disciplina de Música seja mais plural.
27
Estrutura da tese
28
I
MULTICULTURALISMO E ÁREAS DE INTERESSE: DEFINIÇÕES TEÓRICAS
O primeiro capítulo desta tese tem como objetivo definir conceitos provenientes do
referencial teórico que embasa a pesquisa, a saber, o multiculturalismo. Também pretende-se
apresentar reflexões gerais sobre os procedimetos éticos na produção de conhecimento em uma
pesquisa multicultural.
Inicialmente, serão apresentadas reflexões relacionadas à viabilidade do estudo, mesmo o
autor não se autodeclarando como pertencente a maioria das identidades que estão sendo
analisadas por essa tese.
Após isso, será mostrado um pequeno panorama das questões filosóficas e metodológicas
que norteam o ensino de Música formal no Brasil. Ao final deste capítulo, será sustentada a tese
de que a educação musical não está alheia às questões de raça, gênero, sexualidade, etnia e
religião, logo, tais marcadores identitários influenciam diretamente na educação musical e,
portanto, ela precisa posicionar-se criticamente diante das diferenças culturais para, desse modo,
evitar a reprodução de estereótipos, preconceitos e discriminações por meio de aulas de Música
na educação básica e no ensino superior.
Por fim, seguindo a mesma linha de raciocínio inicada em trabalhos como Santigo (2017) e
Santiago e Ivenicki (2018), será apresentada a necessidade da existência de um pensamento
multicultural no ensino de Música, bem como um possível caminho teórico para se refletir sobre
o campo da educação musical multicultural, por meio de um entrelaçamento teórico entre os
conceitos de cultura, identidade e currículo. Em outras palavras, argumenta-se que existe uma
relação de interdepedência entre os conceitos citados, o que justificaria um ensino de Música
multiculturalmente orientado. O próximo subtópico inicia a discussão, discutindo diferentes
questões éticas e epistemológicas que perpassam a pesquisa.
29
Quem pode empreender pesquisas multiculturais? Que cuidados pesquisadores(as) com
identidade normativa precisam tomar para não reproduzirem colonialismos em pesquisas sobre
raça, gênero, sexualidade, etnia e religiosidade? Existem diferenças entre o conhecimento sobre
multiculturalismo produzido por pessoas com identidade normativa ou não normativa?
A fim de se responder a essa série de perguntas, afirma-se, primeiramente, ser importante
ressaltar que o ideal positivista de neutralidade em pesquisas, que afirma que um(a)
pesquisador(a) poderia descrever certa realidade sem que sua subjetividade influenciasse no
processo, é equivocado em vários sentidos (IVENICKI; CANEN, 2016).
Pode-se refutar a neutralidade sob a ótica da crítica à lógica da descoberta em pesquisas
científicas. Afirmar que os resultados das pesquisas são descobertas indicaria que eles existem
independentemente da ação do(a) pesquisador(a), que apenas foi a certa localidade, coletou dados
e os descreveu. Contudo, a filosofia da ciência indica que nenhum dado social pode ser, de fato,
ser coletado, pois eles não são entidades pré-existentes e independentes da ação humana e que, na
verdade, eles são produzidos, entre outros aspectos, pela subjetividade do(a) pesquisador(a), que
é determinada sob diferentes contextos (POPPER, 1968).
Desse modo, como já se foi argumentado, a identidade e subjetividade são produzidas em
relação às tensões socioculturais, logo, a raça, o gênero, a orientação sexual, a religião e a etnia
do(a) pesquisador(a) poderiam influenciar nas suas análises. Por exemplo, não é a mesmo
dissertar sobre pesquisa negra ou pesquisa sobre negros.
Assim sendo, pode-se afirmar que, assim como qualquer atividade humana, a prática da
pesquisa também é multicultural (IVENICKI; CANEN, 2016), logo, diferentes dinâmicas
socioculturais a atravavessam e a tensionam. Destarte, como a posse de conhecimento é uma
expressão de poder, a pesquisa acadêmica poderia ser utilizada de forma colonialista, a fim de
manter o controle da produção do conhecimento nas mãos dos grupos normativos e manter os
grupos subalternos sob “olhares teóricos outros”. Nesse sentido, foi cunhado o conceito de
colonidade do saber (WALSH, 2012), que justamente mostra como o conhecimento masculino,
branco e heterossexual tem sido validado, historicamente, como a única forma legitimada de
saber.
Argumenta-se também, com base em Louro (2014), que a produção científica, em todas as
áreas, tem sido dominada, justamente, por homens brancos e ocidentais. A crítica feminista é,
entre outros aspectos, direcionada ao fato de a ciência tradicional ter sido pensada, em geral, por
30
homens que pretendiam representar toda a humanidade. Desse modo, o feminismo causou
reflexões sobre os modos de se produzir conhecimento, gerando uma epistemologia feminina,
que iria contra o conceito de ciência normal, justamente, por colocar em xeque os paradigmas
outrora estabelecidos que se enfraquecem por terem sido tecidos sem levarem em consideração a
ótica e interesses femininos.
Louro (2014, p. 148) reforça o explicitado, afirmando que os questionamentos feministas
endereçados
desafiaram até a própria forma de fazer ciência até então hegemônica. No entendimento
de muitas/os, as questões postas pelas feministas não teriam mostrado, apenas,
insuficiências ou incompletudes nos paradigmas teórico-metodológicos, essas questões
teriam abalado radicalmente os paradigmas.
Não obstante, a epistemologia negra também tem buscado desconstruir o colonialismo nas
ciências, por meio de produções científicas que enaltecem e estimam o conhecimento africano, ao
invés de silenciá-lo, ignorá-lo ou subestimá-lo. Fernandes e Souza (2018, p. 3) recordam que
Não se trata apenas de obedecer a uma legislação que insere o “Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira” na rede regular de educação, mas apostar na
efetividade das epistemologias negras, quais sejam “exurianas”, “pretagogia”,
“micropolítica decolonial”, “umbigadas”, “afrofilosofias”, “saberes diaspóricos”,
“cyberativismo antirracista”. Estas devem potencializar a de(s)colonização do
pensamento, insurgir-se contra a pretensa pureza racial do conhecimento e a
invizibilização dos saberes pretos, com toda a força dos mitos, da
cosmopolítica dos orixás, éboras, encantados, assentadas na história de luta e
resistência afrodiaspórica e quilombola. Devem chamar nossa atenção contra a
violência do lucro, seja porque a ética do capital divide e hierarquiza, racializa e
corrompe, seja porque engendra discursos que supostamente justificam a exploração.
Recorda-se também a quebra paradigmática empreendida pelas teorias queer, que, na visão
de Silva (2009)
[E]fetua uma verdadeira reviravolta epistemológica. A teoria queer quer nos fazer pensar
queer (homossexual, mas também “diferente”) e não straight (heterossexual, mas
também “quadrado”): ela nos obriga a considerar o impensável, o que é proibido pensar,
em vez de simplesmente considerar o pensável, o que é permitido pensar. (...) O queer se
torna, assim, uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e ao
conhecimento sexuais, mas que se estende para o conhecimento e a identidade de modo
geral. Pensar queer significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem
comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é, neste sentido,
perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa.
31
reflexão a ser empreendida aqui. O que se expressa, é que o pensamento científico tradicional e
monocultural mostrou-se colonizador ao universalizar seus pressupostos e desconsiderar saberes
periféricos. Foi necessário que mulheres, pessoas negras e pessoas LGBT se organizassem de
modo a produzir um conhecimento que as(os) representasse. Mas, quem produz ou quem tem
direito de produzir um conhecimento feminista, uma epitsmologia negra ou uma filosofia queer a
não ser pessoas que se autoidentificam como mulheres, negras e LGBT?
Sob esse pressuposto, em um mundo ideal, o correto seria que o conhecimento sobre certas
identidades fosse produzido por militantes com lugar de fala. Assim, tais grupos seriam
empoderados e poderiam criar as suas próprias narrativas e não ser, somente, objeto de pesquisa e
representação. Contudo, por conta dos processos de desigualdades no Brasil, não é sempre que
pessoas com identidade subalterna conseguem permear a excludente barreira da academia e, de
fato, produzir conhecimento sobre si mesmo e sobre seus pares. Nesses casos, pesquisas feitas
por outras pessoas poderiam diminuir a lacuna no conhecimento e a invisibilização dessas
pessoas.
Mas, isso seria possível? Argumenta-se que pesquisas multiculturais podem ser
empreendidas por pessoas com identidade normativa, desde que se tomem algumas medias éticas
e metodológicas. Primeiramente, recorda-se que, apesar de o multiculturalismo ter sido
desenvolvido por professores(as) negros(as) a fim de ir ao encontro das demandas de pessoas
negras no contexto dos civil right movements (GORSKI, 1999), na realidade brasileira, o
multiculturalismo busca não somente auxiliar estudantes com identidades subalternas, mas
também instruir todo(a) e qualquer estudante, independentemente da raça, gênero ou sexualidade,
pois todos precisam aprender a conviver em igualdade na sociedade (CANDAU, 2012).
No mesmo sentido, Freire (1998) recorda que uma pedagogia do oprimido, feita pelos
oprimidos e por meio dessa sua subjetividade, teria também como alvo a mudança de
mentalidade do opressor, pois a ontologia própria do ser humano e a sua capacidade de produzir
cultura seriam diametralmente opostas tanto à subalternização quanto à prática da opressão em si.
Com base nesse multidirecionamento da proposta multicultural e da anti-opressão, que
afirmam que a educação multicultural é para todos(as), e não somente para pessoas
historicamente marginalizadas e oprimidas, argumenta-se que toda ajuda nessa causa seria bem-
vinda, pois, do contrário, poder-se-ia criar ainda mais barreiras entre as pessoas. Essa
característica acolhedora e abrangente do multiculturalismo contribui para a existência de
32
pesquisas e pesquisdores(as) plurais, não sendo raros os exemplos de reconhecidos(as)
pesquisadores(as) que contribuem bastante com esse campo, apesar de se autoidentificarem como
brancos(as) e/ou homens.
Do mesmo modo, as identidades normativas podem ser aliadas nas pautas multiculturais.
Tomando o gênero como exemplo, hooks (2000, p. 26) ratifica essa ideia ao afirmar que é
importante ter homens na luta contra o sexismo. De forma objetiva, a pensadora estadunidense
explica que
Conscientização feminista para homens é tão essencial para o movimento revolucionário
quanto os grupos para mulheres. Se tivesse havido ênfase em grupos para homens, que
ensinassem garotos e homens sobre o que é sexismo e como ele pode ser transformado,
teria sido impossível para a mídia de massa desenhar o movimento como sendo anti-
homem. […] Homens de todas as idades precisam de ambientes em que sua resistência
ao sexismo seja reafirmada e valorizada. Sem ter homens como aliados na luta, o
movimento feminista não vai progredir. Da forma como está, precisamos trabalhar com
muita dedicação para corrigir o pressuposto já tão arraigado no inconsciente cultural, de
que o feminismo é anti-homem. O feminismo é antissexismo. Um homem despojado de
privilégios masculinos, que aderiu às políticas feministas, é um companheiro valioso de
luta, e de maneira alguma é ameaça ao feminismo; enquanto uma mulher que se mantém
apegada ao pensamento e comportamento sexistas, infiltrando o movimento feminista, é
uma perigosa ameaça. (p. 26)
Em concordância com a autora, assim como o um homem despojado dos seus previlégios
pode ajudar na causa das mulheres, afirma-se que a mesma premissa vale para as outras
identidades, ou seja, pessoas heterossexuais, cristãs, brancas e jurua podem travar lutas contra o
heterossexismo, a intolerância religiosa, o racismo e a xenofobia, desde que estejam
suficientemente conscientizadas(os) em relação às desigualdades sociais e dispostas(os) a abrir
mão dos seus privilégios.
Contudo, apesar de o multiculturalismo admitir pesquisadores(as) de diferentes contextos, o
lugar de fala de pessoas subalternas deve ser respeitado, sendo um grande erro o(a)
pesquisador(a) “conversar sozinho(a)”, quando se envereda em dissertar sobre uma identidade
que não é a sua. Para não cair nessa armadilha metodológica e epistemológica, é importante que
o(a) pesquisador(a) tome como referências obras de pensadores(as) que se identifiquem dentro
daquela identidade e que evite sugerir qualquer prática docente que não tenha sido obtida
diretamente com essas pessoas ou que por elas não tenham sido validada.
Nesse sentido, é deveras relevante que as vozes das pessoas em condição de subalternidade
sejam ouvidas e plenamente consideradas em pesquisas multiculturalmente orientadas. Em outras
palavras, uma pesquisa que é estruturada sob um referencial que busca valorizar as diferenças
33
nunca pode ser um monólogo, mas sempre um diálogo aberto. Usando termos musicais, não é
bom que pesquisas multiculturais sejam cantadas a capella, mas sim que haja uma polifonia a ser
entoadas por coros, tão mistos quanto possível.
Cabe também, nesse intuito, o lugar da humildade, ou seja, o(a) pesquisador(a), embora
esteja estudando certa identidade, não se torna mais especialista nela do que alguém que a vive,
literalmente, na pele. Vê-se, por exemplo, programas de televisão no qual o racismo é discutido
por uma bancada de “especialistas” brancos18, contudo, isso não deveria ser assim. Talvez, um
sinal que mostre que alguém sabe como pesquisar sobre uma identidade que não é a sua é quando
ele(a) admite que é menos capaz de falar sobre o assunto do que alguém da identidade em
questão.
Não menos importante, aponta-se como relevante que o conhecimento produzido pelo(a)
pesquisador(a) passe pelo crivo de especialistas que se identifiquem dentro da identidade que
ele(a) estudou. Por exemplo, no caso de artigos com temática multiculturais enviados para
periódicos científicos, sugere-se que os(as) editores(as) os enviem para a revisão de pessoas que
se enquandram dentro da identidade pesquisada. Semelhantemente, no caso de dissertações de
mestrado ou teses de doutorado, a banca deverá ser composta por pessoas cujas identidades foram
objeto daquele estudo.
Por fim, aponta-se que não deve desconsiderar a situação de previlégio do(a)
pesquisador(a), mas sim indicar sob quais condições o conhecimento foi produzido e como a sua
subjetividade influenciou no processo. Defende-se, portanto, o conceito de neutralidade
axiológica, de Max Weber. Segundo Weiss (2014), Weber também negava a viabilidade de uma
neutralidade positivista nas pesquisas, visto que o(a) pesquisador(a) está inserido na história e na
sociedade, logo, ele(a) tende a se posicionar diante dos fatos que analisa. Nesse contexto, a
neutralidade se daria, justamente, quando (a)o pesquisador(a) evidencia “de onde” ele(a) está
falando, bem como qual perspectiva epistemológica ele(a) defende e usa para embasar seu texto.
Em síntese, os resultados de uma pesquisa não expressam a realidade em si, mas sim o que
o(a) pesquisador(a) conseguiu captar com seu olhar. Com base no exposto, os próximos
parágrafos buscarão mostrar o lugar de fala do autor dessa tese, ou seja, as “lentes” foram usadas
para formar a sua subjetividade e produzir o conhecimento compartilhado por meio dessa tese.
18
Notícia disponível em https://gente.ig.com.br/tvenovela/2020-06-03/globonews-e-criticada-por-colocar-so-
comentaristas-brancos-para-debater-racismo.html, acesso em 02/08/2020.
34
“Peço licença ao(às) leitores(as) para falar sobre mim em primeira pessoa do singular no
final dessa seção. Muito prazer, me chamo Renan, um homem cisgênero, hoterossexual, jurua e
cristão protestante. Apesar de negro, confesso que demorei para perceber o racismo na sociedade
e só depois de adulto passei a reconhecer as estruturas de poder que mantém o racismo erguido.
Apesar de nascido e criado em favelas, tenho pouca posse de capital cultural negro, por exemplo,
enquanto músico, meu repertório principal é basicamente renascentista e barroco.
Ao entrar na universidade, percebi toda a elitização do curso de Licenciatura em Música, e
como, inconscientemente, o seu currículo favorece a reprodução da falta de assuntos relacionados
à temática negra nas dinâmicas do ensino e aprendizagem da Música. Admito que isso não me
prejudicou, pelo contrário, a faculdade de Música me foi um ambiente culturalmente favorável,
mas caso eu não possuísse traços da cultura europeia e não dominasse os códigos e a linguagem
da música de concerto, sofreria, como muitas(os) colegas de classe, todo o peso da violência
simbólica.
Chegando à época da monografia, senti-me, primeiramente, impulsionado a escrever sobre
a temática negra, contudo, sentia-me egoísta, por defender apenas uma causa, sabendo da
existência de diversos outros tipos de discriminação na sociedade. Foi um grande alívio receber
um livro sobre multiculturalismo (MOREIRA; CANDAU, 2008) do meu orientador na época,
que me fez perceber que poderia, por meio de um único referencial teórico, defender diferentes
identidades oprimidas. Desde então, tenho me dedicado a buscar relacionar multiculturalismo e
educação musical.
No doutorado, busquei tratar de temas complexos para a educação musical, como gênero,
sexualidade e religiosidade, de forma mais direta, pois percebi no mestrado que, salvo exceções
pontuais, professoras(es) univesitários(as) de Música têm muita dificuldades com esses temas ou,
simplesmente, não consideram que eles dialogam com o ensino de Música. Dentro de cada
marcador identitário, busquei por aqueles(as) que, dentro do contexto brasileiro, seriam os alvos
de maior opressão e, com isso, cheguei a pessoas trangêneras, candomblecistas e pessoas
homoafetivas, que, para o cristianismo, religião que eu confesso, são pecadoras. Desde então,
muitas pessoas me perguntam porque pesquiso sobre tais identidades e se, ao fazê-lo, não me
coloco em dúvida em relação à minha fé.
35
Respondendo a tais indagaçãos, eu reconheço meus privilégios e normatividades, e também
concordo que, historicamente, muitas pessoas usam o cristianismo indevidamente, para
reproduzir seus preconceitos – que em nada são cristãos – e para manter seu poder e status social.
Nesse sentido, justamente por ser cristão e seguidor de Jesus, que me ensinou a amar o próximo
como a mim mesmo, esforço-me para que o mundo se torne um lugar mais justo e igualitário, e
eu tenho certeza que isso só ocorrerá quanto os diferentes tipos de preconceitos forem extirpados.
O próprio Paulo Freire (1997), um cristão que, ao meu ver, compreendeu a mensagem de Cristo,
deixou escrito que “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação” (p. 39).
Desse modo, sob um olhar cristão acolhedor e não julgador, busco, dentro das minhas
limitações, favorecer que a escola se torne um lugar melhor, justamente, para aqueles(as) que
mais sofrem em seu interior. Respondendo a primeira pergunta feita para essa seção, a saber,
“quem pode empreender pesquisas multiculturais?”, acredito que a melhor resposta seja: qualquer
um(a), que, verdadeiramente, ame todas(as) as pessoas”.
Uma vez apresentadas as principais questões epistemológicas que notearam a pesquisa, o
próximo subtópico dissertará sobre as principais tendências e filosofias do ensino de Música do
Brasil, sob o olhar teórico do multiculturalismo.
Dentro da perspectiva de que a Música pode ser ensinada e aprendida, a educação musical
se estabelece como uma área do conhecimento que estuda as dinâmicas que antecedem,
perpassam e resultam do processo de ensino e aprendizagem de Música. Dentro das várias áreas
que compõem a educação musical, o presente texto destaca a Didática da Música, que pode ser
definida como um conjunto de técnicas e procedimentos que favorecem o processo de ensino e
aprendizagem musical (FERNANDES, 2016).
É possível notar que diferentes autoras(es)) apontam para diferentes concepções filosófico-
educacionais que, em geral, têm embasado a Didática da Música. Segundo Mateiro (2006, p.
122), essas tendências estão, de certa forma, impregnadas no senso comum das(os) docentes e são
reproduzidas, por vezes, de forma implícita pelos(as) mesmos(as).
36
Primeiramente, Fonterrada (1993 apud MATEIRO, 2006, p. 123) aponta para duas
tendências do ensino de Música: a tradicional e a alternativa. Em suma, a tendência tradicional
ser90ia focada no conteúdo, pouco consideraria o saber extraescolar e ignoraria as motivações e
interesses das(os) estudantes. Por sua vez, a tendência alternativa seria oriunda da pedagogia
ativa e, por tal razão, teria o(a) estudante como o centro do processo de ensino e aprendizagem,
tomando a iniciativa e os interesses delas(es) como pontos de partida.
Em obra célebre da educação musical, Keith Swanwick (1988) aponta para três tendências
filosófico-educacionais da educação musical: a tradicional, a progressista e a multicultural. Na
visão de Mateiro (2006, p. 123), as tendências tradicional e alternativa descritas em Fonterrada
(2006, p. 123) correspondem às tendências tradicional e progressista de Swanwick, logo, a
novidade se estabeleceria na tendência multicultural, que, seria centrada na realidade
sociocultural da(o) estudante.
Mateiro (2006, p. 128) aponta que
De acordo com a linha de pensamento multicultural, o papel da educação é evitar, ou
pelo menos reduzir, a rotulação e a estereotipação cultural através de um maior contato
com diferentes manifestações musicais, fazendo com que os alunos vivenciem
experiências construídas a partir de elementos independentes de vinculação cultural. A
principal tarefa do professor refere-se à escolha do repertório.
39
cultural. Defende-se, portanto, um ensino de Música contextualista que possua características
multiculturais.
Mas, porque a tendência multicultural do ensino de Música ainda não se faz tão presente
nas salas de aula da educação básica? O próximo subtópico, que discute as perspectivas
filosóficas que norteiam os objetivos da educação musical, indicará pistas direcionadas a essa
indagação.
A pesquisa de Lazzarin (2004, 2005, 2006, 2008) contribui bastante para a área do ensino
de Música no Brasil por discutir, em língua portuguesa, duas filosofias da educação musical
cunhadas nos Estados Unidos da América que, apesar de internacionais, influenciam diretamente
a educação musical formal brasileira, sobretudo, na formação universitária. Tem-se, portanto,
vertentes que analisam o uso da música na sociedade, surgindo, a perspectiva utilitária e a
perspectiva estética do ensino de Música.
A perspectiva utilitária ou extrínseca (TEMMERMAN, 1991) se caracteriza por utilizar a
Música para acessar ou validar o conhecimento de outras áreas ou disciplinas. O ensino de
Música, baseado nessa vertente, poderia ter objetivos contextualistas (PENNA, 2005, 2006), ou
seja, questões extra-musicais, tais como a formação de caráter, o desenvolvimento de noções de
cidadania, a sociabilidade, a expressividade etc.
Já a perspectiva estética ou intrínseca (TEMMERMAN, 1991) rejeita os pressupostos
utilitaristas ao apontar que os usos da música na sociedade deveriam ser somente estéticos. Nessa
perspectiva, haveria a promoção de uma vivência estética transformadora durante o processo de
educação musical, por meio da nutrição da sensibilidade musical humana. Em outras palavras, o
ensino de Música deveria ter objetivos essencialistas (PENNA, 2005, 2006), intrinsecamente
ligados ao desenvolvimento musical do indivíduo e, por isso, não deveria, dentro desses moldes,
ser pensado para, por exemplo, propiciar o desenvolvimento motor da criança, para promover a
sua socialização, para estimular o racicínio lógico, entre outros aspectos.
Os principais expoentes dessas duas filosofias são Bennett Reimmer e David Elliot, ilustres
pensadores estadunidenses. Reimmer (1970), cunhou a Filosofia da Educação Musical (FEM),
40
com a qual afirma que a música está diretamente relacionada com uma experiência estética
contemplativa e desinteressada.
Já Elliot (2005), critica essa concepção por meio da Nova Filosofia da Educação Musical
(NFEM), com a qual argumenta que essa filosofia puramente contemplativa afasta a Música do
saber musical, atividade que deveria ser central na Música. Além do mais, Segundo Elliot, a
música, em sua perspectiva, tem uma faceta multidimensional, podendo significar uma prática
social (MÚSICA), manifestações contextuais (Música) ou uma obra musical (música), sendo,
nessa perspectiva, muito mais do que algo a ser contemplado.
Lazzarin (2006), concebe que a multidimensionalidade proposta pela NFEM permite uma
abertura conceitual para uma ensino de Música multiculturalmente orientado, principalmente, no
que se refere às atribuições da MÚSICA ou seja, a prática social. Nesse contexto, reconhecer que
cada grupo social utiliza a música para práticas sociais distintas, explorar tal aspecto no ensino de
Música e promover uma sensibilização cultural ao invés de somente pregar uma apreciação
desisnteressada, conferiria à NFEM uma dimensão multicultural que a FEM não possuiria.
Contudo, alguns fatores parecem impedir que a NFEM seja apreciada por intelectuais da
área de ensino de Música no Brasil. Segundo Penna (2005), o posicionamento a favor da FEM e
de seus objetivos essencialistas na educação musical brasileira se dá pela defesa do campo da
educação musical por parte de suas(seus) atoras(es), a saber, professoras(es) e pesquisadoras(es),
sendo que tal defesa se iniciou depois da promulgação da Lei 5692 de 197119.
A citada Lei, entre outros aspectos, pôs fim ao ensino optativo de Música e criou a
disciplina de Educação Artística, que buscava abranger no mesmo espeço-tempo e com o(a)
mesmo(a) docente, além da Música, o Teatro, a Dança e as Artes Plásticas, ou seja, a já citada
polivalentia docente, característica da tendência pró-criativa da educação musical. Como
resultado, os cursos de Licenciatura em Música foram extintos, dando lugar para as Licenciaturas
Plenas em Educação Artística, oferecidas com habilitações específicas (Música, Teatro, Dança ou
Artes Plásticas). Como resultado, a Música perdeu um espaço significativo na educação básica,
estando mais presente em escolas vocacionais ou projetos sociais (SOBREIRA, 2012).
19
Informações relevante sobre como a disciplina de Música perpassa os discursos oficiais podem ser obtidas em
Oliveira e Penna (2019).
41
Contudo, o teor da LDB/96, menos comprometida com a polivalentia docente, possibilitou
que as licenciaturas tivessem foco específico em determinada linguagem artísitca. Sobre isso,
UFRJ (2002, p. 4) argumenta que
A nova ênfase proposta pela Comissão de Especialistas em Artes formada pelo MEC,
que, por meio de diversas reuniões e da produção de documentos, levantou a bandeira do
ensino de artes a ser ministrado por professores com consistente formação específica,
procura eliminar o perfil do professor polivalente, aquele que apenas preliminarmente
foi iniciado em diversas linguagens artísticas.
Desde a primeira vez que ocorreu algum tipo de ensinamento consciente por parte de um
ser humano a outro, houve a necessidade de se refletir sobre o que seria ensinado, para quem
seria ensiado e com qual objetivo. Pode-se afirmar, desse modo, que sempre existiram formas
curriculares que buscavam orientar os conteúdos a serem ensinados e conformar certo indivíduo
em uma camada social. Destaca-se nesse bojo o Trivium e Quadrivium, e a Paideia, direcionadas
a certas classes e faixas geracionais da Grécia antiga.
Porém, segundo Silva (2009, p. 22), o Currículo enquanto campo de estudos surge apenas
no século XX nos Estados Unidos, por meio da figura de John Franklink Bobbitt e seu livro The
Curriculum. Tal autor afirma que embora John Dewey, famoso educador pragmático, já usara o
termo em um dos livros, Bobbitt foi o primeira a delimitar o objeto de estudo do campo
Currículo.
43
Algumas perguntas, portanto, parecem nortear os primeiros estudos curriculares. Por
exemplo
Quais os objetivos da educação escolarizada: formar o trabalhador especializado ou
proporcionar uma educação geral, acadêmica, àpopulação? O que deve ensinar: as
habilidades básicas de escrever, ler e contar; as disciplinas acadêmicas humanísticas, as
disciplinas científicas; as habilidades práticas para as ocupações profissionais? Quais as
fontes principais do conhecimentoa ser ensinado: o conhecimento acadêmico; as
disciplinas científicas; os saberes profissionais do mundo ocupacional adulto? O que
deve estar no centro do ensino: os saberes “objetivos”do conhecimento organizado ou as
percepções e as experiências “subjetivas” das cirnaças e dos jovens? Em termos sociais,
quais devem ser as finalidades da educação: ajustar as crianças e os jovens à sociedade
tal como ela existe ou prepara-los para transformá-la; a preparação para a economia ou a
preparação para a democracia? (SILVA, 2009, p. 22)
Se faz importante ressaltar que o livro de Bobbitt foi escrito em uma época na qual os
Estados Unidos estavam em crescente estado de industrialização e a educação era vista como um
meio pela qual a economia poderia ser fortalecida, por meio da formação de profissionais
especializados. Desse modo, as repostas que Bobbitt ofereceu para as perguntas supracitadas
coincidiam com esse momento e eram fortemente influenciadas pelas lógicas da administração
industrial.
Assim sendo, Bobbitt moldava as suas ideias tendo como base o modelo de planejamento
industrial, no qual seria necessário estabelecer antecipadamente as metas a serem alcançadas e
estabelecer padrões que pudessem ser mensuráveis. Desse modo, pretendia-se que a educação
gaugasse status científico, pois toda a dinâmica seria constantemente analisada por meio de dados
quantitatíveis que possibilitassem a constante avaliação do processo, tendo como objetivo final a
melhor eficácia dos procedimentos para que os(as) alunos(as) pudessem ser preparados para os
desafios profissionais da vida adulta e com o desenvolvimento da nação.. Assim sendo, cada
estudante seria um mero número, logo, questões pessoais, culturais, identitárias e extraescolares
seriam pouco relevantes (KLIEBARD, 2011).
Segundo Silva (2009), as ideias de Bobbitt caíram em terreno fértil e foram bem-aceitas no
contexto as quais foram criadas, sendo, a posteriori, aprimoradas por Ralph Taylor, chegando a
influenciar a educação brasileira.
Taylor ratificou que o Currículo deve centrar-se em questões de organização e
desenvolvimento, apontandos para os objetivos que a escola deveria alcançar, para quais
experiências escolares deveriam ser oferecidas a fim de se alcançar tais objetivos, para as formas
pelas quais tais experiências deveriam ser organizadas e para a avaliação do processo. Contudo,
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diferentemente de Bobbitt, Taylor toma como úteis a Psicologia da educação e as disciplinas
acadêmicas como fontes úteis para entender os aprendizes e a vida contemporânea fora da
educação.
A concepção de Taylor, embora menos tecnicista do que a de Bobbitt, por buscar maior
entendimento do(a) estudante e de sua vida, ainda é profundamente técnica, na medida em que o
centro do processo de ensino e aprendizagem ainda é o conteúdo e o objetivo da educação não é o
desenvolvimento da(o) estudante em si, mas sim algo externo, como o desenvolvimento da
economia ou a propagação de alguma ideologia. Tais perspectivas curriculares caracterizadas por
tais questões são, em geral, denominadas teorias tradicionais do currículo.
Tais teorias pretendiam, além de científicas – por proporem resultados quantificáveis, a fim
de serem analisados a posteriori – também serem neutras, no sentido positivista de
distanciamento com o objeto a ser anlisado (nesse caso, os(as) estudantes, o currículo e a
Educação como um todo), o que, teoricamente, evitaria que certos grupos fossem favorecidos
pelo processo escolar, o que parecia um convite à meritocracia, isto é, já que a escola seria neutra,
todos poderiam obter sucesso escolar, desde que se esforcem. Com o passar do tempo, essa
perspectiva meritocrática mostrou-se insuficiente.
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que começaram a negar a sua utilidade, sugerindo o seu fechamento, ou melhor, uma
descolarização da sociedade.
Portanto, as teorias críticas do currículo foram fundamentais para o esclarecimento das
relações entre escola e manutenção das desigualdades, mas ofereceram poucos substratos para a
superação dessa realidade. Tais substratos, contudo, vieram por meio das teorias pós-críticas do
currículo.
Embora todas as perspectivas pós-críticas tenham os pontos citados como centrais, não se
deve, contudo, ver as teorias pós-críticas como um bloco monolítico, visto que são diferentes os
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ângulos pelos quais se vislumbram as mudanças da escola. Pode-se citar, por exemplo, a
pedagogia feminista, que busca a igualdade entre diferentes gêneros (LOURO, 2014) ; a
pedagogia dos terreiros, que busca representatividade para professantes de religiões de matriz
afro-braileiras (CAPUTO, 2012; RODRIGUES JUNIOR, 2018), a influência da teoria queer nos
currículos, que combate a heteronormatividade (LOURO, 2014) a influência dos Estudos
Culturais, que traz o debate das culturas e identidades em geral para as discussões sobre currículo
(SILVA, 1995) e o currículo multicultural.
Antes de se iniciar o detelhamento sobre as características de um currículo multicultural,
faz-se importante enfatizar que o campo do Currículo, hoje em dia, é muito mais do que uma
divisão simples entre teorias tradicionais, críticas e pós-críticas, não sendo tão elementar
classificar todas as práticas existentes dentro das “caixinhas conceituais” existentes. Tampouco,
ele é uma mera análise descritiva do que está ou não presente na matriz curricular de certa
instituição ou política curricular. Ao contrário, pode-se notar que o campo do Currículo tem
buscado entender como diferentes áreas da Educação – como, por exemplo, as Políticas Públicas,
a Didática, a Formação de Professores, a Avaliação, a Inclusão, a História, a Filosofia e os os
Estudos Culturais - também têm influenciados nas disputas curriculares, o que lhe confere uma
postura dinâmica e um caráter interdisciplinar (LOPES; MACEDO, 2011).
No que se refere às Políticas Públicas, diferentes trabalhos têm sido desenvolvidos
mostrando como políticas educacionais influenciam no campo do Currículo e como as disputas
curriculares feitas no âmbito social influenciam na promulgação de políticas curriculares. Em
geral, tais trabalhos utilizam o Ciclo de Políticas de Stephen Ball e Richard Bowe (1992), que
buscam argumentar que as políticas não se dão somente por via prussiana, isto é, “de baixo para
cima”, mas a pressão pública, sobretudo, de movimentos sociais, tensionam as camadas
superiores a promulgarem leis que vão em direção às suas reivindicações. Desse mesmo modo, as
reformulações curriculares são elaboradas, por meio de relações de poder e negociações entre
representantes do governo, de curriculistas, da universidade, de professoras(es) e de diferentes
indivíduos da sociedade. Como exemplo, Sobreira (2012) narra como as pressões da Associação
Brasileira de Educação Musical (ABEM) foram decisivas para a promulgação da Lei
11.769/2008, que impunha a Música como conteúdo obrigatório na Educação Básica. Nessa
perspectiva de pensamento, é mais interessante tentar entender as relações de poder e as
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dinâmicas de negociações entre diferentes grupos no que se refere à implementação de um
Currículo ou política curricular do que, simplesmente, descrevê-lo.
No campo da Didática e da prática docente, diferentes autores(as) apontam como os(as)
docentes realizam a transposição didática entre o conhecimento científico e o escolar. Em geral,
os conceitos de saberes docentes – ou seja, o conjunto de conhecimentos teórico-práticos que
norteiam a didática de algum(a) professor(a), discutidos por autores(as) como Shulman (1986),
Tardif (1996), Gauthier et al. (1998), Pimenta (1999), Nóvoa (2017) e, mais especificadamente
no campo da Educação Musical, Bresler (1993), é utilizado para tal entendimento. No campo do
ensino de Música, Araújo (2006), por exemplo, faz um levantamento de como a área dos saberes
docentes tem sido tratada pela Educação Musical.
A formação de professores(as) é também bastante discutida em estudos sobre Currículo, na
medida em que pretende analisar qual tipo de conhecimento tem formado a figura da(o)
professor(a) e como ele pode afetar em sua docência. Trabalhos que relacionam as áreas de
Formação de Professores(as) e Currículo são comuns, alguns exemplos são Santiago (2017),
Luedy (2009) e Pereira (2014).
O tema da Avaliação também é intrinsicamente ligada ao Currículo, na medida em que o
primeiro avalia o que a segunda propõe como válido, porém, nem sempre o processo se dá nessa
ordem. Percebe-se, que aquilo que é cobrado em avaliações em larga escala, como o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) têm influenciado naquilo que está presente nos currículos
escolares (SANTOS et al. 2018). Dessa forma, embora muitas avaliações sejam elaboradas
considerando certo currículo, é notório que escolas adaptam seus currículos para contemplarem
às avaliações de larga escala.
No âmbito da educação musical, poucos trabalhos relacionam o campo do Currículo com a
Avaliação. Em um deles, Santiago e Monti (2018) argumentam que aquilo que é cobrado nos
Testes de Habilidade Específicas de cursos de Licenciatura em Música de universidades Federais
tem o objetivo, consciente ou inconsciente, de selecionar um certo perfil de licenciandos, que, em
geral, é formado por musicistas eruditos, ou seja, as universidades excluem diferentes perfis de
musicistas e identidades desde a seleção.
Movimentos de defesa à pessoa deficiente têm também salientado a importância de se
incluir pessoas com necessidades especiais na escola e, nessa perspectiva, o campo do Currículo
também tem sido tensionado a se adaptar e se reformular. Deve haver mundaças no conteúdo que
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são aplicados à um(a) estudante especial? A forma de avaliação de conteúdos deve ser diferente?
São questões que têm repercutido em estudos curriculares, tais como o de Santos e Santiago
(2011).
A união do campo da História e do Currículo tem sido bastante fecunda na medida em que
tem propiciado a formação de uma área interseccional chamada de História das Disciplinas
Escolares, que, embasada prioritariamente em autores como Chavel (1991) e Goodson (1995),
busca entender, por meio de uma crítica social histórica, como as disciplinas se formaram dentro
do currículo escolar e/ou como os conteúdos ou temas passaram a ser incluídos dentro de certa
disciplina, atentando para a quebra de essesncialismos e naturalizações e apontando relações de
poder relacionadas a tal processo. No campo da Educação Musical, pesquisas como a de Sobreira
(2012) e Oesterreich (2010) podem ser classificadas nesse contexto.
O âmbito filosófico, que se caracteriza por levantar reflexões críticas sobre a ontologia, os
objetivos, os métodos etc., também tensionam o campo do Currículo. A filosofia da diferença de
Deleuze e Guattari (1997), por exemplo, apresenta questiona a divisão do conhecimento em
disciplinas, de forma linear e pré-estabelecida, apresentando, como opção, o conceito de rizomas,
nos quais o conhecimento poderia circular por um emaranhado de possibilidades, de forma não-
delimitada e não(necessariamente)-linear. O conceito de rizoma tem achado espaço no campo do
currículo e muitos(as) pensadores(as) têm defendido um currículo rizomático, no qual não
haveria ordens de começo ou fim, ou seja, o conhecimento seria transmitido de forma mais fluida
e livre. No Brasil, a principal defensora do currículo rizomático em Música é a professora Regina
Márcia Simões dos Santos (SANTOS, 2012).
Já os Estudos Culturais na visão de Stuart Hall (DAVIS, 2004), se diferenciam da
Antropologia pois enquanto o antropólogo é, em geral, alguém estranho ao meio que estuda e
pretende estudar por meio de descrições, o indivíduo na área dos Estudos Culturais é um sujeito
daquele meio em questão, um intelectual orgânico, em uma visão gramsciana, que busca entender
as relação entre sociedade e cultura, com o objetivo de transformar tal sociedade.
Canen e Moreira (2001, p. 24) afirmam que os Estudos Culturais têm como principal
objeto de estudo os “fenômenos culturais”, sob forte influência da Sociologia, Antropologia,
marxismo, feminismo, pós-estruturalismo e pós-modernidade. Seus objetivos seriam relacionar
formas culturais, forças históricas, conhecimento e poder, ganhando, assim, espaço significativo
nas discussões sobre educação. O autor e a autora afirmam que
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Dessa forma, pode-se afirmar que o compromisso dos Estudos Culturais é refletir
criticamente sobre os espaços e os discursos que produzem e representam a cultura e as
identidades culturais no mundo contemporâneo, questionando as relações de poder que
se encontram na base dessas representações e buscando alternativas de intervenção em
projetos de mudanças culturais. [Não se pode] transformar os Estudos Culturais em uma
simples metodologia de leitura de artefatos culturais e de esvaziá-los de seu necessário
comprometimento político.
Currículo remete a espaço, a tempo, a seleção. Não se pode incluir todos os conhecimentos
criados em toda a história da humanidade no currículo, primeiramente, por que não há tempo e
espaço suficientes para tal e, também por que não é do interesse de todos os grupos sociais de que
certos conhecimentos estejam representados no currículo escolar. Nessa perspectiva, ao se incluir
conteúdos no currículo, consciente ou inconscientemente, exclui-se outros (SANTIAGO;
IVENICKI, 2016a; VEIGA-NETO, 2001).
Assim sendo, na elaboração curricular, leva-se em consideração quais conhecimentos são
importantes ou estratégicos para serem repassados para as próximas gerações via educação
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escolar e, igualmente, quais devem ser omitidos, tendo em vista sua não aplicabilidade, sua
irrelevância ou o perigo que representam para certo grupo.
Nessa perspectiva de seleção, concorda-se com Canen e Moreira (2001, p. 19) que o
currículo pode ser definido - de forma superficial, porém não equivocada - como uma seleção da
cultura. Todavia, de que cultura está se falando?
O conceito de cultura é essencial para os campos do multiculturalismo e do currículo,
porém, tal conceito torna-se complexo na medida em que aponta para diferentes definições.
Canen e Moreira (2001) e Eagleton (2011) concordam que tais definições se modificaram durante
o decorrer da história, tensionadas por diferentes fatores. Segundo tais autores e autora, o
conceito de cultura tem sua gênese sob a definição de um item de agricultura ou pecuária a ser
cultivado, como culturas de soja, culturas de trigo, culturas de suínos, ou seja, aspectos que, a fim
de crescerem em volume e proporção, precisam ser intermediados por certa atividade humana.
Com o passar do tempo, tal percepção de cultura influencia uma outra definição desse
termo que se relaciona ao intelecto, à cognição humana: assim como se pode cultivar produtos
alimentícios, pode-se fazer o mesmo com a mente. Desse modo, cultura passa a também
significar todos os aspectos cognoscíveis e elevados que distinguem um indivíduo por sua
erudição.
Tem-se, portanto, desde aí, relações de poder imbricadas à definição de cultura, uma vez
que tal termo passa a hierarquizar os saberes que seriam “capazes de nutrir a mente humana”, e,
concomitantemente, passa-se a subvalorizar os outros conhecimentos vistos como menos capazes
de proporcionar erudição. Nesse contexto, certos conhecimentos, certas estruturas linguísticas (a
linguagem formal), certas manifestações artísticas e certas musicalidades são concebidas como
superiores e, em geral, relacionadas às elites, enquanto outros conhecimentos, geralmente
oriundos de classes populares e minorias, são rechaçados, inclusive, no ambiente escolar.
Argumenta-se, portanto, que a definição de cultura como sinônimo de erudição tem
corroborado para que diferentes formas genuinamente culturais (como a cultura popular, a
indígena, a afro-brasileira e a midiática) sejam classificadas como sub-culturas ou simplesmente
não são associados potenciais cultursis a tais atividades. Tal visão influencia no campo do
Currículo pois como o currículo, entre outras definições, é concebido como uma seleção da
cultura (CANEN; MOREIRA, 2001), os saberes e as práticas sub-hierarquizadas tenderão a ser
excluídos sem precedents, caso a elaboração curricular não leve em consideração tais saberes.
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Embora a supracitada definição de cultura seja extremamente contemporânea e fonte de
atos preconceituosos, existe uma terceira definição ligada ao pensamento iluminista, que concebe
cultura enquanto processo de desenvolvimento social, ligado à ótica eurocêntrica. Nesse
contexto, o processo de evolução social seria singular e teria como apogeu o estado de
desenvolvimento alcançado pela Europa.
Essa definição também está relacionada a preconceitos e discriminações, uma vez que
estabelece o desenvolvimento europeu como um padrão ser seguido e implementado por todas as
sociedades, o que legitimaria o modo de viver eurocentrado como superior e, por conseguinte,
classifica culturas “periféricas” como sub-evoluídas ou sub-desenvolvidas.
No que se refere ao campo do Currículo, conceber cultura como sinônimo de civilidade
ocidental pode corroborar para que saberes não-normativos e não dominantes não façam parte do
cotidiano escolar. Afinal de contas, para quê ensinar algo inculto e bárbaro (oposto a civilizado)?
Defende-se, portanto, que um currículo multicultural, deve ter sua gênese na defesa de que
saberes não normativos e periféricos possuem erudição e de que eles não são sinônimos de
barbárie.
Para tal, pode-se recorrer à Antropologia Cultural, sobretudo, às pesquisas realizadas junto
a culturas “exóticas”. Tais estudos, quando tomados em conjunto, ajudam a concluir que a
hierarquização entre culturas é equivocada, na medida em que as formas de o ser humano viver,
diferem tanto entre si que não é possível tecer comparações não tendenciosas entre elas. Pode-se
apontar para culturas menos ou mais complexas, no sentido da sua organização social, contudo,
não é possível afirmar que uma cultura é mais elevada, superior ou melhor do que outra.
Semelhantemente, argumenta-se que toda a atividade humana tem imbricada em si um
nível de erudição, algo que a faz tipicamente humana. Desse modo, argumenta-se que denominar
certa música como erudita apenas reproduz preconceitos que classificam, erroneamente, o saber
europeu como mais elevado. O que existe, na verdade, são tipos diferentes de erudição: enquanto
um violinista que deseja tocar uma música de Beethoven necessita saber ler partitura e ter
domínio técnico do instrumento, um cantor de rap precisa ter capacidade de improviso, escolha
de palavras e temas que se encaixem perfeitamente no âmbito da sua prática. Os saberes do
cantor de rap, a priori, não auxiliam o violinista em sua prática, contudo, a recíproca é
verdadeira, o que aponta para a conclusão de que ambas práticas (a de origem europeia e a de
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origem negra) detêm diferentes erudições, formadas por padrões diferentes, não possibilitando
uma classificação entre melhor e pior.
Em outras palavras, defende-se que todos os construtos culturais têm o mesmo valor, pois
todos são humanamente construídos, porém, por diferentes humanos em diferentes sociedades e
períodos históricos. A equiparação entre culturas pode corroborar para que diferentes saberes se
façam presentes, sem distinção, no currículo e cotidiano escolar.
A questão da não civilidade amparada em um pseudo-progresso da sociedade ocidental
também pode ser questionada. Não se concorda que as sociedades ocidentais são mais civilizadas
do que outras comunidades simplesmente pelo critério do desenvolvimento tecnológico. Como
exemplo, comparar-se-á a cidade do Rio de Janeiro e o povo Ashaninka, indígenas brasileiros
cujas aldeias são localizadas no estado do Acre.
No que se refere ao progresso, em um ponto de vista ocidental, um primeiro vislumbre
poderá apontar que a cidade do Rio de Janeiro é superior, mais evoluída e civilizada do que as
aldeias do povo Ashaninka, pois os aparatos tecnológicos representados pelos meios de
transporte, meios de comunicação, entretenimento, arquitetura das residências e prédios, serviços
etc., são, indubitavelmente, mais complexos do que qualquer aspecto cotidiano do povo indígena
citado.
Porém, é justamente tal complexidade utilizada para atribuir à cidade do Rio de Janeiro um
grau de superioridade em relação às aldeias Ashaninka que corrobora para a existência de
diversos problemas que dificultam severamente a vida dos moradores da cidade em questão:
engarrafamentos; atmosfera, rios, baías e mares poluídos; casas irregulares; desflorestamento;
pauperismo; desemprego; caos público; desigualdades sociais etc. Argumenta-se que esse
desenvolvimento não pode ser a única variável usada para se mensurar o “progresso” de dada
comunidade, na medida em que ele tem corroborado para a existência de diferentes mazelas
sociais nas sociedades pós-modernas.
Logo, o pensamento crítico em relação aos conceitos de superioridade, complexidade,
progresso e civilização são importantes na defesa de que identidades historicamente vistas como
“inferiores” e “não civilizadas”, sob uma ótica ocidental “tecnocentrada”, sejam representadas em
nos currículos escolares, sobretudo, em propostas oficiais feitas a nível macro.
Em outros termos, o pensamento da Antropologia Cultural possibilitou na definição da
cultura como as maneiras pelas quais certos grupos vivem suas vidas (CANEN; MOREIRA,
55
2001, p. 18), que são tensionadas por questões de classe, gênero, etnia, sexualidade, religiosidade
etc. Nessa perspectiva, ao se comparar o modo pelo qual cariocas ou indígenas da etnia
Ashaninka vivem, pode-se simplesmente concluir que se tratam de culturas diferentes.
Tal definição antropológica, apesar de extremamente importante por buscar desconstruir
ou, pelo menos, desnaturalizar hierarquizações entre culturas, cai em um simplismo monótono,
por apenas apontar para as diferenças entre culturas. Nesse contexto, os choques e entrechoques
culturais poderiam ser explicados, somente, pelo argumento de que o que os originou foi o
contato de “culturas diferentes”, cabendo, portanto, o respeito entre as partes. Apesar de se tratar
de uma verdade, tal assertiva trata muito superficialmente da questão em jogo, até porque esse
“respeito” solicitado nem sempre é praticado..
Assim sendo, o advento do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista culminou em uma
definição mais contemporânea de cultura que se distingue ontologicamente das demais por surgir
com a chamada virada cultural (HALL, 1997a, 1997b 2003a, 2005), ou seja, o momento no qual
a cultura deixa de ser concebida como um construto da superestrutura marxista em uma visão
werberiana e passa a ser um aparato central no entendimento de todo fenômeno social (CANEN;
MOREIRA, 2001, p. 22).
Em outras palavras, cultura passa a denominar a rede de significações sob as quais o mundo
está suspenso, ou seja, um dado conhecimento que temos se relaciona com outro e com outro
infinitamente, possibilitando que o mundo se torne um lugar conhecível e, todo esse
conhecimento teórico se torna concreto por meio da linguagem, que cria significantes para
significados, permitindo que tal conhecimento possa ser socializado. Portanto, a linguagem,
enquanto manifestação da cultura, torna as coisas conhecíveis (SILVA, 2014; HALL, 1997a,
2014).
Como exemplo, pode-se pensar em um animal que viva nas profundezas das fossas abissais
e ainda não foi catalogado. Em termos linguísticos, ele não “existe”, na medida que ele ainda não
foi nomeado nem descrito. Quando, porém, ele for descoberto, por meio da linguagem, ele será
descrito, nomeado, conhecido. Mesmo existindo em sua concretude, ele não “existia’ sem ser
nomeado. Não era parte da cultura, pois não fazia parte da imensa rede de significações na qual o
mundo, ou seja, tudo o que é conhecido, está suspenso, ou seja, se relaciona.
É relevante a diferenciação do aspecto substantivo e epistemológico da cultura, cunhada
por Hall (1997a, p. 16). O aspecto substantivo da cultura é, justamente, as manifestações
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concretas na qual a cultura torna-se “visível”, ou seja, produções culturais. Já o aspecto
epistemológico é a forma pela qual a cultura ajuda na compreensão da sociedade e constrói
conhecimentos sobre o mundo.
Cultura, nesse sentido, seria sentido, seria um conjunto de significados compartilhados por
certo grupo. Duas pessoas pertenceriam à mesma cultura caso signifiquem o mundo de forma
semelhante, ou seja, por meio dos mesmos sistemas de representação (HALL, 1997c).
Nessa concepção que eclode após a virada cultural, a cultura passa, de um item estático,
estritamente relacionado a determinadas classes sociais e mensurável - na medida em que poder-
se-ia ter mais ou menos cultura - para um elemento constituinte da identidade, pois, na
perspectiva de que a identidade também está imersa na (ou presa à) rede de significações, ela
também é criada e definida nos discursos sociais. Fala-se, por exemplo, da identidade indígena e
se estabelece sentidos sobre ela. Diferencia-se discursivamente os maasi, os sami e os ainus. Até
mesmo seres mitológicos, como fadas, tritões e titãs, que são identidade que não existem
concretamente, passam a “existir”, a significar algo, quando se emaranham na rede de
significados sobre o mundo.
Assim sendo, Canen e Moreira (2001, p. 23) afirmam:
Em outras palavras, a cultura constitui nossas identidades. A virada cultural traz, então,
para o terreno das discussões, a necessidade de compreender os mecanismos favorecem
o crescimento de certas identidades em detrimento de outras. Não se trata, porém, cabe
acrescentar, de uma categoria essencializada: a cultura constitui campo de conflitos,
constitui espaço em que se desenvolvem as relações de poder em torno de práticas de
significação e de representação.
Assumindo concordância com o autor e a autora acima, argumenta-se que nesse processo
de se criar significados que identificam certo indivíduo, grupo, sociedade, musicalidade ou
qualquer outro aspecto que se relaciona com a experiência humana, relações de poder estão em
jogo para que certos grupos identitários sejam identificados como elites, enquanto outros são
marginalizados.
“Tudo, então é cultura?” Ou melhor: “Tudo aquilo que é conhecido e descrito por meio da
linguagem e encontra espaço nas teias do discurso pode ser classificado enquanto cultura?”
Alguém poderia perguntar, e, realmente, essa pergunta circula nos meios acadêmicos e, em geral
existe um erro de interpretação por parte de muitos acadêmicos, que afirmam que Stuart Hall
classificaria “tudo” enquanto cultura. Porém, o que é importante salientar que o que este autor
argumenta é que tudo o que é conhecido significa algo, ou seja, está dentro da rede de
57
significações. Em outras palavras, tudo o que é cultura significa, mas nem tudo é cultura. Sobre
tal interpretação equivocada, Moreira e Candau (2014, p. 9) afirmam que
Desse modo, para evitar exageros, uma delimitação mais concisa do conceito de cultura foi
proposta por Eagleton (2011). Tal autor afirma que o modo de fabricação de canos não é,
usualmente, definido com um ato cultural, embora também seja forjado discursivamente em
meios sociais. Ele questiona o porquê disto e ironiza, afirmando que isso seria diferente caso os
fabricantes de canos vestissem um traje ceremonial enquanto fabricam tal objeto.
O autor afirma, então, que para que algo seja classificado como “cultura” ou “cultural”
deve ter significados que transcendam a ação em si. Por exemplo, a locomoção é algo cotidiano
na vida de boa parte das pessoas. Ir e vir, além de um direito, é praticamente uma obrigação para
o indivíduo contemporâneo que precisa trabalhar, estudar, se divertir etc. Contudo, a forma pela
qual a locomoção se dá expressa sentidos que transcendem a locomoção em si, visto que não é o
mesmo andar, pegar um ônibus, solicitar um uber ou um taxi, ou locomover-se em um carro
próprio. Nesse último quesito, o modelo do carro expressa também muitos significados: não é
mesmo dizer que alguém possui um Fusca ou uma Ferrari último tipo. Em outras palavras, a
forma na qual a locomoção ocorre expressa valores de classe social, faixa de renda, faixa
geracional, gênero etc.
A classe social pode definir a forma pela qual uma pessoa vai a certo lugar. Quem tem uma
melhor condição econômica, pode optar por um carro próprio, enquanto pessoas de classes
populares, muitas vezes, precisam se contentar com o transporte público. Porém, dentro de certa
classe social, a faixa de renda também influencia no quesito “locomoção”, visto que pessoas mais
abastadas podem adquirir melhores modelos de carro. O gênero também influencia nesses
trâmites, pois é notório que existe assédio direcionado a mulheres no transporte público e que
alguns motoristas de táxis ou ubers se aproveitam da situação da corrida para assediar mulheres.
Logo, muitas mulheres necessitam de estratégias outras para se locomoverem, sendo usual, nos
58
dias atuais, o serviço de taxistas do sexo feminino que apenas transportam mulheres,
possibilitando, desse modo, uma locomoção sem assédio20.
Nesse contexto, a Música é estritamente cultural. Pode-se perceber que a Música e seus
ensinos abraçam significados que transcendem a Música em si. Não é difícil conceber que os
significados que extrapolam da frase “vou a um concerto de música ‘clássica’” e “vou ao baile
funk” são completamente diferentes, visto que, em geral, relaciona-se à primeira sentença ao
perfil de uma pessoa requintada, com “bom gosto” e condições financeiras favoráveis e, a
segunda frase é relacionada, de forma estereotipada, a uma pessoa fútil, vulgar, ignorante e
pouco escolarizada. Se o indivíduo relacionado à segunda frase for uma mulher, outros
marcadores são levantados e em uma perspectiva machista, poderia se afirmar equivocadamente
que tal mulher é “hipersexualizada”, argumento esse levantado tendo como base seu gosto
musical.
O mesmo ocorre com o ensino de Música, ou seja, utilizar determinados métodos,
repertórios ou instrumentos culminarão em significados além do próprio ensino de Música. Não é
o mesmo, por exemplo, dizer que está se aprendendo bateria ou harpa, pois a bateria é, na maioria
das vezes relacionada à música popular e a harpa é relacionada à música elitizada de tradição
europeia; o primeiro instrumento citado é visto, em geral, como um instrumento masculino
enquanto o segundo é concebido como um instrumento feminino; e, por ser mais barata, a bateria
é relacionada às classes populares, enquanto o alto preço da harpa a relaciona às elites
(HALLAM et al., 2006).
Semelhantemente, o ensino voltado para o domínio da partitura – notação musical elitizada,
relacionada às elites – é visto como superior a um ensino puramente modelar e aural– relacionado
com os métodos de ensino e aprendizado de Música por parte de indígenas, candomblecistas e
presente também na música popular (FRAGOSO, 2017a; LUNELLI, 2015; SANTIAGO, 2015).
Logo, a Música, além de prática social e disciplina escolar, torna-se parte da cultura de
certo grupo social, se utilizarmos o conceito de cultura enquanto formas possíveis de se viver a
vida, e torna-se cultura em si quando pensamos nela como um aspecto significante imbricada a
outros significados inerentes (SANTIAGO, 2017; SANTIAGO; IVENICKI, 2018).
20
Segue website que mostra aplicativo de transporte voltado para o público feminino:
https://drivermachine.com.br/uber-feminino-aplicativos-para-mulheres/. Acesso em 21/09/2019.
59
Essa última definição de cultura permite classificar o currículo escolar também como um
construto cultural na medida em que a sua construção curricular pode expressar uma oposição
entre diferentes grupos sociais que utilizam o currículo para se manterem em posições elitizadas
ou para resistirem às imposições e violências simbólicas que lhes são impostas. Desse modo, a
capacidade de determinar o que está no currículo confere poder e legitimidade a certo grupo ou
indivíduo, e, por isso, argumenta-se que o currículo é um espaço tempo de disputas políticas, uma
verdadeira arena de batalha, um território de enfrentamentos (SILVA, 2009 ). Canen e Moreira
(2001, p. 19) afirmam que
[O] currículo é o espaço em que se concentram e se desdobram as lutas em torno dos
diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo que
diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo,
seu projeto social, sua “verdade”.
Percebe-se que 1) se o currículo é uma seleção da cultura e a cultura que em geral tem sido
selecionada é o conhecimento científico e saberes eurocêntricos e americanocentrados, que, em
geral, focam se em identidades normativas (a saber, homem, cristão, branco, heterossexual,
urbano e economicamente estável); 2) por conseguinte, o conhecimento de identidades que fogem
à norma e que são historicamente marginalizadas e oprimidas, como negros, nordestinos,
indígenas, homossexuais, mulheres etc., são mais passíveis de serem deixados de fora do
currículo escolar e 3) nada impede que novas seleções de cunho inclusivo e multicultural sejam
empreendidas a fim de possibilitar que diferentes identidades se façam presentes, com suas
culturas características, no ambiente escolar. Esse é, justamente, um dos objetivos de um
currículo multicultural.
Acima de tudo, e de forma diretamente contrário àquela pela qual elas são
constantemente invocadas, as identidades são construídas por meio da diferença e não
fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por
meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo
que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o
significado “positivo” de qualquer termo – e assim, sua “identidade” – pode ser
construídos.
Portanto, definir identidade como aquilo que se é - apesar de não ser, exatamente,
equivocado -, oculta características importantíssimas do conceito em questão, pois a identidade
também pode ser pensada como aquilo que se faz, ou seja, as práticas culturais de certo grupo
também indicariam traços da sua identidade
Nessa perspectiva, argumenta-se que aquilo que “se é” em relação ao que “não se é” e o
“aquilo que se faz” é determinado discursivamente por meio “do reconhecimento de alguma
origem em comum ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou
ainda a partir de um mesmo ideal” (HALL, 2014, p. 106). O currículo, enquanto seleção da
cultura – vista também como hábitos, condutas, manifestações artísticas e outras atividades de
dado grupo – expressa não somente conceitos teóricos, mas também atividades culturalmente
forjadas por determinadas identidades. Logo, certo indivíduo pode ser negro, umbandista, jovem
e nordestino e ter (ou não) sua identidade de raça, religião, faixa geracional e naturalidade
expressa no currículo escolar por meio de conteúdos e práticas relacionados a tais pontos.
Portanto, tal indivíduo pode, ou não, se sentir representado pelo currículo escolar.
Emergem dois termos interessantes nessa questão: a representação e a representatividade.
Por representação, se entende a forma com que certo grupo social é representado por outro. Por
exemplo, muitas imagens que representavam indígenas brasileira(os) à época da colônia e que
estão presentes em livros didáticos são pinturas que foram produzidas por brancos europeus
(GOMES, 2008), ou seja, tem-se a identidade indígena representada pelo europeu. A
61
representação, muitas vezes, é estereotipadas e gera subjetividades relacionadas à visão que outro
grupo tem de determinado grupo sociocultural. De modo similar, o currículo escolar pode
apresentar representações de culturas, caso a seleção dos conteúdos seja feita sob olhar de
“outros”.
Argumenta-se com isso que a escola não apenas silencia, mas também reforça estereótipos
relacionados a diferentes identidades. Gomes (2008), ao, entre outros aspectos, analisar como a
imagem do negro perpassa em conteúdos curriculares como livros didáticos, percebeu que o(a)
africano(a) é, em geral, retratado em situações de escravidão, opressão e submissão, sendo
sempre retratado pela ótica do colonizador, ignorando assim, toda a pomposidade e realeza dos
impérios africanos. A autora afirma que
Somos ainda a geração adulta que, durante a infância, teve contato com a imagem do
africano e descendentes no Brasil mediante as representações dos pintores Jean-Baptiste
Debret e Johann Moritz Rugendas sobre o Brasil do século XIX e seus costumes.
Africanos escravizados recebendo castigos, crianças negras brincando aos pés dos
senhores e senhoras, os instrumentos de tortura, o pelourinho, o navio negreiro, os
escravos de ganho e algumas danças típicas são as imagens mais comuns que povoam a
nossa mente e ajudam a forjar o imaginário sobre nossa ancestralidade negra e africana.
(...)
Com que imagens sobre a África e sobre os negros brasileiros a geração brasileira, hoje
adulta e que passou pela escola básica foi formada? Certamente, pela visão do “outro”,
do branco europeu. A África e os negros brasileiros vistos de forma cristalizada,
estereotipada e, muitas vezes, animalizada. (GOMES, 2008, p. 75)
62
Porém, é interessante notar que o currículo não apenas representa, mas também forma
identidades, pois o currículo tem potencial de se tornar um instrumento de controle utilizado para
se formar um perfil idealizado por certo sistema (SILVA, 2009). Geralmente, pensa-se tal fato de
forma negativa, por exemplo, que o sistema capitalista, por meio do aparelho ideológico de
estado escolar, busca conformar os indíviduos dentro da lógica desse sistema21 (ALTHUSSER,
1985), mas também pode-se pensar em escolas, currículos e didáticas que busquem formar contra
o racismo, contra as discriminações e sensibilizar sobre as diferenças. Nessa linha de raciocício
foi construída a presente tese.
Mas, quem precisa de identidade, ou melhor, porque o estudo da formação subjetiva
continua a ser relevante e instigante? Em diferentes trabalhos, como Hall (2003a) e Hall (2014),
este intelectual jamaicano traça panoramas de teorias que tensionaram o conceito de identidade.
O autor parte da crítica do conceito de identidade cunhado na Modernidade, caracterizado por
definir a identidade como uma essência, um conjunto natural, fixado e imutável. Apesar dessa
rigidez, a concepção cartesiana, iluminista, liberal e humanista, pelo menos teoricamente, dava
autonomia ao ser humano para ele(a) ser quem desejar ser, ou seja, haveria, teoricamente, plena
autonomia e agência para certo alguém definir sua identidade. Nessa perspectiva, a identidade
seria um ponto superficial, seria simplesmente, aquilo que se é.
Contudo, Stuart Hall (2014) afirma que a concepção da identidade enquanto um atributo
estático, unificado e autossuficiente, centrado na perspectiva do racionalismo e da
individualidade, tem sido colocado em xeque pela Sociologia, Filosofia e pela Psicanálise, sendo
que essa última tem influenciado a crítica feminista e a crítica cultural apontando para os efeitos
do inconsciente na formação da subjetividade.
Essas três vertentes críticas já demonstram a superficialidade de se pensar a identidade
simplesmente como aquilo que se é, pois, se assim o fosse, a identidade seria um produto inato,
apriorístico, determinada somente pelo próprio indivíduo que, todavia, o restringiria às condições
que seu estado atual. Contudo, na pós-modernidade, paradigma que embasa o presente trabalho,
concebe-se a identidade como algo em constante movimento, que é aprendido e reaprendido nas
diferentes dinâmicas sociais, sob tensões externas advindas da sociedade e sob pressões internas
21
A análise marxista de Louis Althusser analisa como diferentes instituições são utilizadas pelo Estado a fim de se
manter hegemônico. Algumas seriam repressivas e buscariam manter uma ordem apropriada para o Estado, enquanto
outras auxiliariam a transmitir a ideologia que estruturaria o sistema. Nesse bojo, estariam também as escolas, que,
nessa visão, seriam instituições incumbidas de forjar os sujeitos dentro da ideologia capitalista.
63
da própria psiqué do sujeito. Segundo Hall (2014), a identidade é o ponto de sutura entre o social
e o psicológico.
Desse modo, a crítica pós-moderna aponta para a flexibilidade da identidade e, ao mesmo
tempo, a Psicanálise tem empenhado esforços para demostrar que muito daquilo que somos é
influenciado pelo nosso inconsciente, logo, uma autonomia completa não seria possível e o foco
na racionalidade para explicar o sujeito é, minimamente, insuficiente.
Nessa perspectiva que concebe o social e o inconsciente agindo constantemente na
formação do “eu”, torna-se mais coerente pensar na identidade não como um estado (o que se é),
mas sim como um processo (como algo se tem tornado o que se é e como esse processo continua
se dando). Assim, concorda-se com Hall (2014, p. 105) que a melhor nomenclatura a ser usada
seria a identificação (HALL, 2014, p. 105), que exprime o processo da subjetivação ao invés da
prática discursiva. Ou seja, é mais importante analisar criticamente os processos de formação da
identidade e apontar para as relações de poder imbricadas no mesmo do que simplesmente
descrevê-la.
Pensar em identidade nesses meios possibilita, entre outros aspectos compreender que a
identidade não é um elemento engessado. Silva (2014, p. 84) afirma que “[t]al como ocorre com a
linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo,
uma impossibilidade”. Apesar de possuir certa possibilidade de estabilidade, a identidade está em
contínuo processo de formação e, consequentemente, de modificação. Hall (2014, p. 106) afirma
que
[A] abordagem discursiva vê a identificação como uma construção, como um processo
nunca completado – como algo sempre “em processo”. Ela nunca é sempre determinada
– no sentido de que se pode sempre “ganhá-la ou perdê-la”; no sentido de que ela pode
ser, sempre, sustentada ou abandonada.
Desse modo, sob um entendimento pós-moderno, é perfeitamente possível que uma pessoa
de certo grupo cultural adote características da cultura de outro grupo, ou seja, em outras
palavras, a nossa identidade não está limitada à nossa origem geográfica, à nossa religião ou a
nossa raça. É importante entender como esse processo se dá e quais relações de poder estão
imbricados no mesmo.
Em geral, estereótipos relacionados à raça, à etnia, ao gênero, à religião e à sexualidade
estão presentes na Música e na educação musical, como se certo atributo identitário estivesse
relacionado a certo aspecto musical, por exemplo, homens não poderiam expressar seus
64
sentimentos quando ouvem Música (SILVA, 2006), não seria conveniente que mulheres toquem
instrumentos de grande porte (KELLY; VANWEELDEN, 2014), uma pessoas precisaria se
dedicar ao estudo de um instrumento caracterísico de seu país (MANTIE; TUCKER, 2012), entre
outros. Porém, pensando identidade enquanto um processo, não é necessário confinar certo
indivíduo a certas práticas culturais “mais bem-condizentes” com a sua identidade, pelo
contrário, é completamente aceitável em uma perspectiva pós-moderna, que as barreiras impostas
sejam superadas.
Nesse contexto, é possível haver hibridismos, ou seja, a intersecção de identidades culturais
que possibilitam na quebra de binarismos (homem/mulher; negro/branco;
heterossexual/homossexual etc.) e estereótipos, com a qual culturas podem aprender umas com as
outras (SANTIAGO; IVENICKI, 2016).
Concebe-se que o mesmo pode ocorrer no ensino de Música. Nada impede que uma pessoa
se interesse por um estilo musical que “não é seu” e nada deveria impedir que alguém
combinasse diferentes musicalidades a fim de se obter uma terceira forma, híbrida, fruto das duas
primeiras. Tais hibridismos entre culturas musicais já têm sido experimentadas no âmbito da
educação musical, com resultados positivos (O’FLYNN, 2005; BIERNOFF; BLOM; 2002;
SOUTHCOTT; JOSEPH, 2007; DUNBAR-HALL; WENYSS, 1991, 2000).
Um outro ponto que emerge do ato de se pensar identidade enquanto processo, além de
desestabilizar a identidade, possibilitando hibridismos, é que assim se favorece também o
desenvolvimento de culturas via trocas culturais. Não está se argumentando que existam culturas
superiores do que outras, mas é possível notar que certos grupos culturais já conseguiram superar
pré-conceitos e estereótipos que, muitas vezes, se constituem em obstáculos para algum aspecto
do desenvolvimento humano e social. Nesse quesito, um grupo pode trocar experiências com
outro grupo, de modo que um deles ou ambos se desenvolvam (CANEN, OLIVEIRA, 2003).
Um exemplo de tal questão é narrado por Westerlund e Partti (2018). As autoras contam
que no Nepal não é comum que meninas e mulheres venham a aprender Música, pois ela seria
uma atividade masculine na cultura em questão. Contudo, o músico Nuchhe Bahadur Dangol teve
oportunidade de estudar em outros países, onde foi apresentado a coros femininos e mistos,
percebendo que não há nada de errado em mulheres praticarem música. Nessa perspectiva, ele
voltou para o seu país, aonde se tornou um ativista na luta pelo direito de mulheres poderem ter
uma educação musical formal.
65
O que impedia meninas nepalesas de aprenderem Música eram pré-conceitos sem
fundamento, porém, o contato com outras culturas tem modificado essa questão. Porém, não se
pretende argumentar que um oriental aprendeu algo com um ocidental mais civilizado, mas sim
que todas as culturas podem aprender uma com as outras. Ocidentais, por exemplo, podem
aprender a defender e valorizar a natureza com nepaleses, por exemplo.
Nessa perspectiva que se aponta para a possibilidade de grupos aprenderem com outros,
torna-se perfeitamente possível que pessoas aprendam umas com as outras. Desse modo, a
identidade de racista, machista, xenófobo, sexista, intolerante, entre outras, deixa de ser uma
marca perpétua que constitui uma identidade imutável e passa a expressar (salvo casos extremos)
um erro de percurso que pode ser revertido. Em outras palavras, admitindo que a identidade é
flexível e sujeita a mudanças e a aprimoramentos, uma pessoa que, por exemplo, discriminou
alguém pela raça pode aprender a não mais agir assim e, desse modo, não ser racista.
Pensar identidade enquanto processo favorece também o entendimento de que a identidade
não é uma essência, mas sim uma criação social e cultural. A identidade também está atrelada à
rede de significações, logo é também definida discursivamente, por exemplo, a ato de se afirmar
que se é brasileiro é, simultaneamente, negar todas as outras nacionalidades existentes (SILVA,
2014, p. 76).
Nesse contexto, o que se diz sobre identidades e grupos culturais tem origem nos discursos
e nas relações de poder imbricadas nele. Quando se reproduz estereótipos tais quais como que
brancos seriam inteligentes enquanto negros seriam naturalmente violentos; que homens seriam
racionais enquanto mulheres seiam emocionais; que cristãos seriam educados enquanto
mulçumanos seriam terroristas; que não-indígenas (jurua, em Guarani Mbya) seriam civilizados
enquanto indígenas seiam bárbaros; e que pessoas homoafetivas seriam pervertidas enquanto
heterossexuais não o seriam22, está se criando discursivamente atributos relacionados a
identidades, ou seja, define-se o que é ser branco/negro, homem/mulher, indígena/não-indígena,
cristão/mulçumano e heterossexual/homoafetivo via discursos. Uma educação multicultural
buscaria, justamente, substituir tais discursos estereotipados por outros mais precisos e que deem
voz às identidades subalternas.
22
Não se concorda com nenhum desses estereótipos. Eles são difundidos no senso comum e estão sendo usados aqui
como exemplo para ilustrar como o discurso marca as identidades.
66
Por fim, é importante frisar que, embora o coceito de identidade seja deveras estudado e
teorizado, ainda não há um consenso sobre como a identidade é formada em cada pessoa. Essa
discussão é necessária, porque entendê-la plenamente ajudaria na compreensão de, por exemplo,
porque nem todas as pessoas negras sentem a carga racial ou porque nem todas as mulheres
sentem as pressões do patriarcado na sociedade. Em outros termos, porque a mesma pressão
social afeta diferentemente pessoas pertencentes ao mesmo grupo identitário.
As principais teorias de formação da identidade foram listadas e comentadas por Hall
(2014). A discussão apresentada é extremamente interessante, mas foge ao escopo dessa tese.
Cabe aqui somente reforçar que Hall (2014), ao analisar essas teorias, não dá uma resposta
precisa sobre como a identidade é produzida em cada sujeito, mas parece apontar para a direção
correta: a identidade é formada e está localizada no ponto localizado entre a esfera psíquica e a
social de cada sujeito, unindo-as e suturando-as. Estas instâncias formam o “eu” e que nenhuma
das duas pode ser excluída quando se pretende entender a identidade.
Nas discussões sobre a orientação da sexualidade, por exemplo, essa percepção é bastante
relevante. A identidade sexual é marcadamente forjada por pressões externas ao sujeito e, não à
toa, é uma orientação: as pessoas são orientadas para certa sexualidade. Contudo, só as pressões
sociais não são suficientes nesse processo, porque, se assim o fosse, todas as pessoas seriam
heterossexuais – porque a maioria das impressões que o mundo transmite pra os sujeitos,
principalmente, por meio da mídia, são de natureza hetrossexual. Embora as pressões culturais
sejam mais potentes, não se ignora que a esfera pscológica também participa do processo da
formação identitária.
Isso poderia ser aplicada em discussões sobre outro assuntos, como a raça, por exemplo.
Apesar de o racismo estrutural ser direcionado para todas as pessoas negras, a esfera psicológica,
atuando como uma especie de filtro, age diferentemente em cada um(a), logo, alguns(algumas)
sentem menos a carga racial.
Sumarizando o subtópico, a identidade é um conceito que deveras tem influenciado o
pensamento pós-moderno e pós-estruturalista, sendo central para o multiculturalismo. Ela só pode
ser definida em relação com a diferenças, seu oposto complementar. Ela é individual, coletiva e
instituicional. Ela não é fixa, mas sim fluida, volátil, flexível. A identidade surge no discurso, ou
seja, não é um construto natural, mas sim sociocultural. Mais do que um singelo ponto no espaço-
67
tempo, a identidade é um processo: identificação. Ela é tensionada por relações de poder e pode
ser hierarquizada. A identidade, também, é o ponto que sutura o psicológico e o social.
Uma vez definidos os conceitos de currículo, cultura e identidade, será possível apresentar
com mais propriedade o multiculturalismo. Tal discussão será iniciada no próximo subtópico.
Concebe-se portanto, o currículo escolar como algo mais do que um simples documento, ou
uma seleção desinteressada daquilo que pode e/ou deve ser ensinado, um mero fluxograma,
matriz ou grade curricular. Uma definição mais aprofundada descortina uma verdadeira arena de
disputas, um campo de guerra, no qual diferentes identidadaes, classes sociais, culturas etc.
disputam um espaço. É impossível, portanto, pensar em currículo sem pensar em relações de
poder.
O currículo se torna, portanto, um espaço-tempo virtual de produção de significados e
regulação (MACEDO, 2006). Pensar em currículo não é somente pensar em seleção de
conteúdos, mas também refletir em como eles são produzidos e como tal produção cria
significados sobre o mundo, sobre si e sobre outras pessoas. Definir o outro é um modo de
regulação, porém definir-se é uma forma de resistência.
Nesse contexto, o currículo resulta de um híbrido entre diferentes culturas, entre tentativas
de imposições e de resistências, que são marcadas por negociações entre diferentes. Nesse
contexto de um mundo pós-moderno marcado pelas diferenças culturais, concorda-se com
Macedo (2006) quando tal autora propõe o currículo como um híbrido cultural. Tal hibridismo é
um dos objetivos de um currículo multicultural.
Contudo, como foi argumentado, as identidades são produtos culturais - à medida que não
são construtos inatos, mas sim resultados das relações sociais, que são definidos pelas culturas
que possuem, criam e se apropriam. O candomblecista, por exemplo, é reconhecido pela prática
religiosa e pela posse de certa cultura, enquanto a(o) indígena xavante é identificado por outras
posses culturais.
Desse modo, é possível relacionar currículo, cultura e identidade: o currículo, enquanto
híbrido cultural e seleção da cultura, tende representar certas identidades em detrimento de
68
outras, gerando disputas de poder que, em geral, desvalorizam as minorias. Um ensino de Música
multicultural se faz necessário nesse cenário por, justamente, repensar a seleção da cultura feita
pelos currículos a modo de que as hierarquias culturais sejam abaladas, possibilitando que a
cultura de identidades historicamente marginalizadas e estereotipadas se faça presente nos
currículos escolares (SANTIAGO, 2017; SANTIAGO; IVENICKI, 2018).
Tal entrelaçamento teórico ratifica a necessidade de uma perspectiva multicultural no
ensino de Música, até porque a música também é cultura, por ser uma prática social e por compor
identidades e; também por ser uma disciplina escolar, tem sua própria seleção de conhecimentos
que, a fim de garantir a justiça social e cognitiva, precisa levar em consideração as diferenças
culturais da sociedade. Em outras palavras, a Música é cultura, forja identidades e é definida por
seus currículos.
Dada a relação entre esses conceitos, argumenta-se que um ensino multiculturalmente
orientado precisaria abranger concomitantemente essas três esferas. Assim sendo, os próximos
parágrafos discorrerão sobre multiculturalismo na educação na perspectiva do entrelaçamento
teórico entre currículo, cultura e identidade.
Segundo Canen e Moreira (2001, p. 16), o multiculturalismo na educação surge dos
desafios trazidos pela pluralidade cultural às salas de aulas. Ao invés de criticar, ignorar ou evitar
a pluralidade, o multiculturalismo escolhe valorizar o multiplicidade de culturas e identidades no
ambiente escolar, tendo como pressuposto que as diferenças são positivas e permitem
crescimento mútuo para as(os) diferentes estudantes e profissionais da educação.
Stuart Hall (2003b, p. 94) afirma que se pode destinguir “multiculturalismo” de
“multicultural” pela natureza do significado expresso. “Multicultural” seria um termo
qualificativo que expressaria as características de um local que é dividido e/ou frequentado por
pessoas de diversas origens nacionais e/ou culturais; enquanto “multiculturalismo” é um termo
nominal que se refere às ações, seja em nível prático ou intelectual, que buscam gerenciar os
choques e entrechoques culturais fomentados em sociedades multiculturais.
Já Fleras e Elliot (apud RIKONEN; DERVIN, 2012, p. 37) não distinguem
“multiculturalismo” de “multicultural”, mas apontam quatro definições possíveis para o termo: 1)
definição descritiva, ou seja, adjetiva um local como culturalmente plural; 2) definição
prescritiva, ou seja, se constitui em um conjunto de ideias que promovem as diferenças; 3)
definição política: ou seja, uma estrutura que justifica as iniciativas do governo que buscam
69
atender as minorias e 4) definição prática, ou seja, ações que buscam a defesa identitária e
valorização de grupos oprimidos.
No campo da Educação o multiculturalismo também se faz presente, podendo ser definido
como “um campo teórico e político de conhecimentos, que valoriza o múltiplo, o plural, e busca
formas alternativas de incorporar as identidades marginalizadas no cotidiano escolar” (CANEN
apud BATISTA et al., 2013).
Nessa perspectiva, pode-se pensar em 1) políticas multiculturais: aquelas que visem por
meio de leis, diretrizes e decretos, prever legalmente a presença de diferentes conhecimentos ou
pessoas no cotidiano escolar ou universitário; 2) didáticas multiculturais: práticas docentes que
valorizem as diferenças e busquem sensibilizar os(as) discentes; 3) avaliações multiculturais:
aquelas que rejeitam o universalismo restrito das provas tradicionais e também contemplem
conhecimentos e saberes não hegemônicos e 4) currículos multiculturais: aqueles que considerem
em sua estruturação conhecimentos não normativos.
70
resposta for negativa ou abstente, ter-se-á uma coincidência uniquívoca entre multiculturalismo e
monoculturalismo.
Candau (2008, p. 21) aponta que o monoculturalismo também pode assumir uma roupagem
assimilacionista. Nessa perspectiva, um grupo dominante em posição de elite e detentor de
grande poder político projeta a sua cultura como “a correta” e utiliza seu poderio para aculturar
outras culturas. Assim, as minorias se adequam à sociedade assimilando a cultura normativa. Ela
afirma que
Uma política assimilacionista – perspectiva prescritiva – vai favorecer que todos/as se
integrem na sociedade e sejam incorporados à cultura hegemônica. No entanto, não se
mexe na matriz da sociedade, procura-se integrar os grupos marginalizados e
discriminados aos valores, mentalidade, conhecimentos socialmente valorizados pela
cultura hegemônica (CANDAU, 2008, p. 21)
71
discussão sobre a negritude deve transcender o Dia da Consciência Negra. Tratar esses assuntos
de forma pontual e superficial apenas enfraquece as lutas das minorias, pois, desse modo,
mascaram-se as relações de poder imbricadas nas dinâmicas sociais.
Amparado no multiculturalismo folclórico está o “currículo de turistas”, que Leite (2001, p.
55) desiguina como
[O] tipo de currículo que trabalha, esporádica e fragmentadamente, temas da diversidade
cultural, da situação diferenciada das mulheres e outros aspectos das especificidades de
certos grupos socioculturais e étnicos, promovendo um olhar do ‘diferente’ como algo
estranho e exótico.
Destarte, argumenta-se que as questões multiculturais ainda estão sendo, em geral, tratadas
via adendos, sem se aprofundar em questões mais críticas e potentes para mudar o status quo e
possibilitar uma maior sensibilidade cultural no âmbito da educação básica e superior.
Embora sejam cabíveis críticas, não se pode vilanizar o multiculturalismo folclórico sem
apontar suas potencialidades. O grande erro seria o foco único nessa perspectiva superficial, mas
nada impede que se use pressupostos do multiculturalismo folclórico como uma estratégia inicial
para apresentar culturas e possibilitar aproximações sem causar um estranhamento acentuado,
que muitas vezes, corrobora para que algumas pessoas venham a ter repulsa ou medo do
diferente. Ressalta-se, novamente, que o equívoco reside em se focar somente no aspecto
folclórico do multiculturalismo, esquecendo ou ignorando aspectos de outras abordagens
multiculturais, como a que será apresentada em seguida.
Diferentemente do multiculturalismo folclórico, existe uma outra vertente do
multiculturalismo, chamada de liberal, de relações humanas ou humanista (SILVA, 2009, p. 86,
PENNA, 2012, p. 98; HALL, 2003b; CANEN; OLIVEIRA, 2002), que propõe o respeito a todas
as manifestações culturais e formas de se viver a vida sob a alegação de que todas elas são
produções humanas, ou seja, a humanidade seria o fator em comum que uniria as diferentes
culturas e suscitaria a igualdade, respeito e tolerância entre elas.
Apesar desse pressuposto ser verdadeiro, ou seja, todas(os) devem ser respeitadas(os) por
conta da sua humanidade, segundo Penna (2012, p. 98), o multiculturalismo humanista
“preconiza a valorização das diversidades sem questionar a construção das diferenças e
estereótipos”. Ou seja, o discursos humanistas, sob o postulado de “todos(as) somos
humanos(as)” e “a igualdade que nos une é maior que as diferenças”, acaba por ir ao encontro
72
dos interesses das classes elitizadas, pois, nessa perspectiva, as relações e disputas de poder são
invizibilizadas e, por consequinte, não podem ser questionadas, combatidas e modificadas
Como resposta a essas visões pouco efetivas de multiculturalismo, McLaren (2000) cunha a
abordagem conhecida como multiculturalismo crítico de resistência ou somente
multiculturalismo crítico, denominado como monocultura plural por Candau (2008, p. 21), e
apontado por McLaren como o único efetivamente capaz de modificar a história de vida das
indentidades subalternas.
Tal vertente multicultural se destingue pelo reconhecimento das desigualdades e pelo seu
posicionamento em defesa das identidades oprimidas, buscando identificar na língua, na mídia,
nos currículos, no cotidiano escolar e na sociedade em geral, as origens dos preconceitos e das
discriminações, a fim de realizar denúncias, de buscar alternativas para tais práticas nocivas, e de
criar estratégias que garantam a presença e representatividades de pessoas de grupos
culturalmente e/ou economicamente oprimidos pela normatividade ocidental do século XXI.
Nessa perspectiva, a vertente crítica do multiculturalismo proporciona uma forte defesa
identitária a indivíduos negros, mulheres, pessoas LGBTTTQIA+, indígenas, candomblecistas,
entre outros grupos subalternos, porém, se percebe que, muitas vezes, essa defesa identitária se
torna exegarada na divisão entre “nós e eles”, o que, por conseguinte, fortalece um grupo com
maior poder político enquanto enfraquece outros menos poderosos, que também possuem a
mesma necessidade de representação e inclusão. Ou seja, um coletivo, organização ou
movimento que representa certa identidade se organiza politicamente e obtêm para si conquistas
diversas, mas, ao fazê-lo sem considerar outras identidades, acaba por colaborar para a
invisibilização delas.
Dentro desse contexto, Santiago e Ivenicki (2016a) argumentam que muitas políticas
públicas multiculturais embasadas na abordagem crítica da defesa identitária, excluem ao incluir,
ou seja, promovem benefícios para alguns grupos que, apesar de minoritários, são dotados de
maior poder político, enquanto mascaram a pauperização de outras identidades.
Uma defesa identitária exagerada aliada ao preconceito social corre, portanto, o grande
risco de criar guetismos. Penna (2012) embasada em Canen (2002) aponta que este é um
73
problema do multiculturalismo crítico, que se caracteriza por certos grupos culturais se fecharem
em guetos, sem quererem manter relações sociais com outros grupos culturais. Guetos culturais
são mais comuns do que se pode imaginar. Em geral, imigrantes e refugiados vivem em guetos,
principalmente, por conta da diferenciação linguística, mas também são comuns guetos que se
dão por questões raciais e religiosas.
Embora o guetismo seja uma estratégia de resistência, asilo e proteção, principalmente por
parte de grupos culturais que vivem no interior de uma sociedade que os oprime, guetos culturais
não expressam um ideal de uma sociedade inclusiva e multiculturalmente orientada, ao contrário,
expressam barreiras e enclaves que mascaram a exclusão. Em um primeiro vislumbre, pode-se
pensar que não há nada de errado em um gueto cultural, porque as pessoas dentro destes estão
levando suas vidas junto aos seus semelhantes, mas, em alguns casos, tal separação apenas
demonstra que a sociedade não conseguiu ou não quis incluir plenamente tais pessoas em seu
convívio.
Em outras palavras, o que se pretende argumentar é que o foco na defesa identitária
promovido pelo multiculturalismo crítico tem sido extremamente importante para a luta contra
preconceitos, racismos e discriminações, porém, ele também fortalece as fronteitas entre culturas
e identidades, entre o “nós” e os “eles”, o que corrobora para a instauração de divisões, de
separações e de facções.
77
O multiculturalismo pós-colonial também parte do pressuposto pós-moderno de que
identidades não são fixas, porém, estão em constante mudança e têm também caráter múltiplo, ou
seja, uma pessoa tem uma identidade racial, sexual, religiosa, étnica etc. Na perspectiva de que
identidades podem se modificar, ao invés de propor separação entre os diferentes ou um convívio
superficial, uma perspectiva multicultural pós-colonial buscaria, sempre que possível, fomentar
hibridismos, com os quais diferentes culturas poderiam aprender mutualmente, ocasionando
progresso para ambas as partes.
A cultura brasileira é, em si, basicamente híbrida, embora as manifestações europeias sejam
mais valoradas. A enorme maioria dos ritmos e gêneros musicais brasileiros também são
híbridos, podendo se citar como exemplo o choro, que apesar das fortes influências africanas,
também possui um toque europeu.
Porém, acima se tem percepções superficiais de hibridismo. Tal conceito é mais do que um
ecletismo cultural, mas sim a percepção de que existem diferenças nas diferenças, ou seja,
hibridismo é um
um conjunto de processos pelos quais as identidades culturais plurais se ressignificam
em contato umas com as outras, sem recair em qualquer forma de congelamento ou em
uma redução da construção de identidades a binarismos como negro/branco,
masculino/feminino e erudito/popular (SANTIAGO, 2017, p. 60)
78
guarani. Ademison Umitina é um representante do sertanejo indígena, enquanto Bro’s MC e
Kunumi MC são indígenas que narram a vida nas aldeias via Rap e Hip Hop. Um hibridismo mais
complexo é feita pela banda Kaymuan, formada por indígenas tupiniquins, que misturam o congo
capixaba com o reggae, rock, baião e outros gêneros musicais.
Tal hibridismo sugerido pelo multiculturalismo pós-colonial, contudo, não devea ser feito
sem a conscientização crítica sobre a situação das identidades oprimidas, denúncia das injustiças
sociais e luta contra diferentes tipos de discriminações.
Apesar de elogiável, o multiculturalismo pós-colonial também é passível de críticas. Por
exemplo, certo indivíduo ou grupo, por suas tradições, pode simplesmente não querer hibridizar.
Povos orientais e ciganos, por exemplo, têm por tradição manter suas culturas tão puras quanto
possível e, nesse caso, o multiculturalismo crítico, pela sua característica de defesa identitária,
pode melhor representar tais grupos. (SANTIAGO; IVENICKI, 2016a).
Semelhantemente, hibridismos são positivos, mas apresentam potencial para apagar ou
enfraquecer culturas. O que se quer argumentar é que se certa cultura sofrer processos de
hibridismos constantes e seguidos, há a possibilidade da cultura original se modificar de tal forma
que venha a desaparecer. Nessa perspectiva, reflexões sobre práticas multiculturais e pós-
coloniais devem ser feitas com cautela nesse quesito.
Outro ponto relevante é que processos negativos como a aculturação podem ser
confundidos ou se passar por hibridismos. Hibridismos não podem, ao final, dispir certo grupo de
sua cultura a fim de acomodá-la em certo ambiente plural, ao contrário, práticas de hibridismos
deveriam manter, em cada grupos que participou do processo, características de sua forma inicial.
Por fim, a perspectiva pós-colonial, se somente se centrar em hibridismos, pode ignorar
relações de poder, hierarquias sociais, preconceitos e discriminações, o que a assemelharia ao
multiculturalismo humanista. Desse modo, é deveras importante que a perspectiva conciliatória
não retire ou enfraqueça a luta por justiça social.
Em suma, em consonância com Santiago e Ivenicki (2016a) cada vertente multicultural
apresenta possibilidades e limitações. O foco irrestrito em uma ou outra perspectiva pode causar
alguma problemática que, se não for localizada e tratada, poderá gerar uma celebração superficial
das diferenças, uma falta de tratamento crítico sobre questões multiculturais, guetismos,
enfraquecimento de culturas, entre outros aspectos.
79
Nessa perspectiva, se sugere um multiculturalismo inclusivo, que por não se focar em
apenas uma vertente, poderia proporcionar reflexões sobre a realidade - suas condições, seu
contexto social, o local onde está enserida, a característica dos educandos etc. - e ações segundo
pressupostos folclóricos, humanistas, críticos, decoloniais e pós-coloniais tendo em vista as
necessidades apresentadas. Desse modo, ao se aplicar os aspectos positivos de uma vertente, o
lado negativo poderá ser neutralizado ou amenizado, possibilitando assim, uma maior inclusão.
Assim sendo, a presente tese se fundamentou nessa visão inclusiva do multiculturalismo
para desenvolver o curso de extensão Música(s) no Plural! Como já se foi exposto, as aulas
cunhadas buscam relacionar cinco marcadores identitários com a educação musical, a saber, raça,
gênero, sexualidade, etnia e religiosidade. Tais conceitos serão definidos a seguir.
1.6 Raça
23
Se faz importante frisar que se está discutindo as representações sociais da negritude no Brasil, que é diferente em
outras nações.
81
não é negro consuma a cultura originalmente negra e, por esta razão, tal trabalho prefere utilizar a
expressão cultura - ou música, ou dança, ou artesanato, ou qualquer outro aspecto - de origem
negra, ao invés de usar somente o termo cultura negra, o que, aparentemente, fixaria certas
produções culturais a certas identidades.
Embora hibridismos sejam possíveis, em geral, percebe-se que a questão da posse da
cultura de origem negra por parte de pessoas “não negras” não é suficiente para que tais pessoas
venham a ser reconhecidos como negras. Nesse sentido, o sistema de classificação racial
brasileiro está, intrinsecamente, relacionado ao fenótipo, tendo como principal marcador
distintivo a cor da pele do indivíduo, enquanto outros, como formato do nariz, espessura dos
lábios e textura do cabelo, são importantes, porém secundários (GUIMARÃES, 2011). Uma
pessoa com pele clara e cabelo espesso, poderá ser classificada como alguém que “possui cabelo
de negro”, mas, esse traço isoladamente poderá não ser determinante para marcá-la como negra.
Da mesma forma, a posse da cultura negra aparece como um item secundário.
É interessante notar que outros grupos socioculturais, também apresentam marcas
biológicas distintivas, como, por exemplo, (as)os indígenas. Não se nega, por exemplo, que boa
parte desse povo tem um tom de pele “avermelhado”, cabelo liso e espesso, ausência de pelos
corporais, entre outros aspectos, mas, em geral, (a)o indígena é reconhecido pela sua cultura,
embora exista uma vastidão de grupos indígenas com culturas diferentes. Assim sendo, alguns
grupos são marcadamente mais raciais, enquanto outros são distintivamente mais étnicos.
A fim de se estabelecer a distinção, na visão de Canen (2003), o termo etnia surge como
uma forma de se reunir pessoas pela similaridade de suas características culturais, como, por
exemplo, pelo pertencimento a um mesmo território geográfico, ou pela posse da mesma
nacionalidade, ou pela ascendência comum - a origem africana dos(as) negros(as), por exemplo.
Esse termo torna-se relevante na medida em que transcende a superficialidade da classificação
racial, presa em uma distinção biológica que é infundada pela genética, uma vez que não existem
raças humanas e busca reunir pessoas pelo critério da origem em comum. Porém, o termo
também se apresenta raso e extremamente teórico, visto que, socialmente, pessoas negras ainda
são reconhecidas e subalternizadas pelo fenótipo e, apesar de poderem - ou não - terem uma
cultura relacionada a um passado compartilhado, isso poderia reforçar, mas não definir a raça.
Ainda sobre a análise do conceito de raça, entre marcadores biológicos e culturais, tem-se
que Guimarães (2011) afirma que o termo “raça” surge no ideário social como uma forma de
82
resistência e união entre iguais. Ou seja, a força discursiva do termo é usada para se incluir em
um mesmo bojo pessoas que eram e ainda são socialmente enxergadas dentro dos estereótipos
sociais atribuídos a negros. O autor afirma que
De um lado, a organização política dos negros, que rejeita frontalmente o
embranquecimento, e tenta impor uma noção histórica, política ou étnica de raça.
Quando se remete à história, a noção reúne pessoas que vivenciaram uma experiência
comum de opressão; quando se remete à política, cria uma associação em torno de
reivindicações; quando, se remete à etnia, quer criar um sentimento de comunidade a
partir da cultura. (GUIMARÃES, 2011, p. 267)
Percebe-se que o termo ganha, então, conotação política e passa a expressar bem quem é
negro na sociedade brasileira: todo aquele que sofre racismo, ou seja, que recebe tratamento
diferenciado, seja por características biológicas, culturais ou epistêmicas.
Assumir a negritude como raça não retira do(a) negro(a) da condição de humano(a), mas
o(a) coloca como diferente, e isso o(a) conclama a lutar e resistir, por igualdade e equidade.
Concorda-se que o termo “raça” traz consigo uma carga discursiva muito grande, talvez, por seu
passado “biologizado” e quase desumanizador, mas, em geral, tal termo já está consagrado nas
discussões acadêmicas atuais. Com base no exposto, pode-se afirmar: A identidade da(o)
negra(o) tem sido socialmente concebida sob o conceito de raça, enquanto a identidade indígena
tem sido forjada sob a cunha da etnia.
Na sociedade brasileira, a pessoa negra tem sido o principal alvo de preconceitos e
discriminações raciais (ALMEIDA, 2018; GOMES, 2008; RIBEIRO, 2019). Por preconceito,
entende-se qualquer tipo de estereótipo ou estigma direcionado a determinado indivíduo ou grupo
que seja previamente estabelecido e forjado por percepções sociais que são, em geral,
tendenciosas e equivocadas. A discriminação, por sua vez, seria a prática do preconceito, ou seja,
quando estigmas previamente concebidos levam um indivíduo a, consciente ou incoscientemente,
destinar um tratamento diferenciado – isto é, inferior – a certa pessoa, por conta de alguma
característica, peculiaidade, ideologia, crença, entre outros aspectos (ALMEIDA, 2018).
Nesse sentido, as discriminações e preconceitos podem ser nomeados. Quando o alvo da
discriminação é uma mulher, ter-se-á uma atitude machista ou misógena. O tratamento
diferenciado instigado por diferenças étnicas é denominado xenofobia. No tocante à orientação
sexual, a prática do preconceito se constitui em uma atitude heterossexista ou homofóbica.
83
Quando se trata da questão racial, a discriminação sistemática é denominada racismo, que
se expressa de diferentes formas nas sociedades contemporâneas. Almeida (2018, p. 27) pondera
que
[O] racismo - que se materializa como discriminação racial – é definido pelo seu caráter
sistêmico. Não se trata, potanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um
conjunto de atos, mas de um processo de condições de subaltenidade e de previlégio que
se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e
das relações cotidianas.
84
comunidade quilombola, um país ou continente. É muito comum o racismo comunitarista
dirigido à África, por exemplo (ALMEIDA, 2018).
O racismo institucional se da dentro de oganizações, como, por exemplo, as escolas e
universidades. Nota-se que, mesmo com as políticas de cotas, existem poucas(os) professoras(es)
negras(os) nas universidades, bem como poucos estudantes negas(es) em curso de prestígio. Esse
é um indício de como o racismo institucional adentra o espaço acadêmico. (ALMEIDA, 2018).
Também é notável como políticas de preservação ambiental pouco são direcionadas a locais
periféricos, onde em geral, moram pessoas negras (HERCULANO, 2008). No contexto da cidade
do Rio de Janeiro, por exemplo, há muita discussão sobre a necessidade de se despoluir a baía de
Guanabara e a lagoa Rodrigo de Freitas, que banham bairros nobres dessa cidade, contudo, pouco
se fala da baía de Sepetiba, que também necessita de cuidados, mas que margeia bairros
suburbanos. Essa diferenciação na implementação de políticas para a manutenção e recuperação
do meio ambiente também parece indicar a existência de racismo amiental no contexto carioca.
No âmbito da disciplina de Música e da formação de professoras(es) dessa disciplina, o
racismo ocorre distintivamente na sua forma cultural, ou seja, quando se menospreza produções
culturais de origem negra ou aquelas feitas por pessoas negras. Afirma-se que a exaltação da
música elitizada de origem europeia e a subvalorização do hip-hop, por exemplo, indicam que o
racismo cultural permeia esses loci formadores.
O racismo religioso será mais bem descrito na seção 1.10, que versa sobre religiosidade.
Por ora, basta defini-lo como o processo sistemático de preconceitos e discriminações
direcionadas à religiões de matriz africanas e afro-brasileiras.
Por fim, o racismo inverso, ou seja, a falácia de que pessoas brancas poderiam ser
racialmente discriminadas de forma sistemática, não existe, visto que a história ocidental foi
construída sob a lógica da opressão branco-europeia, o que criou uma estrutura de desigualdade
racial que se mantêm erguida na contemporaneidade. Como tal estrutura está baseada na
dominação branca sobre as outras raças, não há logica em se defender o conceito de racismo
inverso (ALMEIDA, 2018).
É necessário, portanto, buscar identificar e combater as diferentes formas de racismo
existentes na sociedade, que se fazem presentes também nas dinâmicas de ensino e aprendizagem
de Música. Entre outros aspectos, o curso Música(s) no Plural, usado como empiria para a
presente tese, teve esse objetivo.
85
1.7 Gênero
Gênero tem sido um dos conceitos que mais tem tensionado, impactado e influenciado, nas
últimas décadas, não somente pesquisas sobre educação, também todas as ciências em geral,
sobretudo, as humanas e sociais (LOURO, 2014).
Embora seja reconhecido como o gênero influencia nas dinâmicas sociais e na própria
estruturação científica, tal conceito ainda é pouco tratado e discutido pela educação musical
brasileira, como será mais bem argumentado no terceiro capítulo deste trabalho, o que aparenta
ser um contrassenso ao que ocorre nos outros campos do saber e em trabalhos sobre educação
musical publicados no exterior.
Nesse contexto, torna-se urgente que trabalhos escritos na realidade brasileira concebam o
gênero como uma das “chaves hermenêuticas” apropriadas para se compreender diferentes
fenômenos sociais que ocorrem nos processos de ensino e aprendizagem de Música. A presente
tese, portanto, dentre outros objetivos, buscará tratar de tal assunto.
Mas, de que gênero está se falando? A definição de gênero mais simplória irá apontar para
a “oposição” homem-mulher ou masculino-feminino. Tal questão está presente, por exemplo, em
formulários que são cotidianamente preenchidos e, embora os mais “modernos” disponibilizem
outras opções, em geral, quem estiver preenchendo deverá escolher somente duas. Será que tal
binarismo dá conta de comportar toda experiência humana relacionada às questões de gênero?
Sob um olhar puramente biológico, talvez fosse possível classificar as(os) humanas(os)
somente enquanto homens e/ou24 mulheres, porém, a questão do gênero transcende o aspecto
biológico, ou seja, gênero e sexo biológico, que designa justamente um indivíduo em relação à(s)
sua(s) genitália(s) com a(s) qual(ais) nasceu, não coincidem necessariamente, logo, alcança-se o
nível cultural.
Nessa perspectiva, Louro (2014, p. 84) define gênero como “a condição social pela qual
somos identificados como homem ou mulher”. Por meio desse entendimento, chega-se à
conclusão de que a definição mais atual e aceita de gênero é que este é um marcador identitário -
24
O termo “e/ou” foi usado para tentar representar pessoas intersexuais, embora muitas se identifiquem somente com
um gênero. Há também pessoas que, apesar de terem apenas uma genitália, se identificam com os dois gêneros.
86
assim como todos os outros - social e culturalmente definido, ou seja, a nossa masculinidade, ou
feminidade, ou ambas, ou nenhuma delas, têm relação direta com aquilo que a sociedade enxerga
como “ser homem” ou “ser mulher”.
Contudo, essa definição também encontra duas limitações: a questão do binarismo e a falta
de espaço para a autoidentificação. No que se refere à questão do binarismo, a definição citada
trabalha cois dois opostos – homem e mulher –, ignorando um leque de identidades de gênero que
são produzidas entre esses dois extremos ou, até mesmo, for a dessa lógica.
Já a falta de identificação se dá por que essa definição parece expressa que somente os
outros podem utilizar o gênero para nos identificar, dando pouco espaço para que cada pessoa se
autoidentifique.
Nesse sentido tendo como base a definição de Louro (2014), mas buscando superar as
limitações identificadas, sugere-se a seguinte definição para gênero: A condição social e
individual pela qual somos identificados e nos identificamos dentro de uma lista de identidades
masculinas, femininas, andrógenas ou neutras.
Carvalho (2008) argumenta que o gênero influencia fortemente em diferentes dinâmicas
sociais. Tal autora afirma que os estereótipos de gênero afetam não somente os corpos, mas
também, de certa forma todo o cosmos, o que inclui cores, astros, espaços públicos, sentimentos,
ocupações etc. Isto é, desde pequenos, sujeitos aprendem a classificar o mundo em “feminino” e
“masculino”, desde o sol (masculino), a lua (feminina) até atividades e brincadeiras (carrinho:
masculino; boneca: feminino), porém, ressalta-se novamente que tais convenções são puramente
sociais.
Por exemplo, no pensamento social, transita a ideia de que rosa é uma cor feminina, logo,
às meninas e às mulheres é permitido – às vezes, incentivado – o uso da cor rosa, porém, tal uso
não é tão bem aceito para homens. Contudo, a análise histórica apontará que séculos atrás, na
Europa e Estados Unidos, o rosa era visto como uma cor masculina25, logo, não havia qualquer
repreensão sobre o fato de homens usarem rosa. Ou seja, um fato contemporâneo – que rosa é
uma “cor feminina” – na verdade, se trata de uma construção cultural.
Semelhantemente, pode-se afirmar que outros estereótipos de gênero – por exemplo,
aqueles que afirmam que mulheres seriam mais sensíveis, falariam mais, teriam maior vocação
25
Matéria jornalística que expõe tal fato: https://super.abril.com.br/blog/oraculo/quem-inventou-que-rosa-e-cor-de-
menina/, acesso em 13/07/2019.
87
para a maternidade e para os serviços domésticos; enquanto homens seriamo brutos, agressivos,
insensíveis, porém, corajosos e aptos à liderança – são, na verdade, imposições sociais que dada
sociedade atribui para cada gênero, não se constituindo, portanto, em atributos inatos.
Tal constituição cultural do gênero é extremamente valorada na academia. Simone de
Beauvoir (1980), por exemplo, é lembrada por sua frase célebre: “ninguém nasce mulher, torna-
se mulher”. O que essa pensadora indica é que as tensões socioculturais moldam, forjam,
transvertem o indivíduo, a fim de conformá-la naquilo que se espera para a sua identidade de
gênero. Em outras palavras, da mesma forma que as meninas e mulheres são ensinadas a serem
submissas, calmas, centradas, bem-portadas, subservientes, recatadas e do lar, pode-se
igualmente ensiná-las a transgredir rótulos e estigmas, possibilitando em libertação e
emancipação de identidades definidas a priori por outrem.
Tal concepção cultural de gênero tem sua origem nas lutas do movimento feminista, muito
bem narradas por Louro (2014). Segundo a autora, os estudos sobre gênero têm a sua gênese
juntamente com o início do movimento de caráter identitário conhecido como feminismo,
entendido, de forma simplória, como um campo teórico e político que busca defender, empoderar
e visibilizar mulheres. No século XIX, a “primeira onda do feminismo” tinha em sua agenda
questões como o sufrágio feminino, o direito ao estudo e ao trabalho em profissões socialmente
marcadas como “masculinas”, bem como direitos sobre o próprio corpo. Em suma, as mulheres
queriam ter direito a participar amplamente da sociedade e ter liberdade de escolha. Porém, essas
reinvindicações iam ao encontro dos interesses de apenas um certo grupo de mulheres: as
cisgêneras, brancas, de classe média ou das elites, moradoras de centros urbanos, cristãs e
oriundas de países ocidentais.
Pode-se, primeiramente, afirmar que o conceito de “mulher” não é universal, à medida que
“não existe a mulher, mas várias e diferentes mulheres que não são idênticas entre si, mas que
podem ou não ser solidárias, cúmplices ou opositoras” (LOURO, 2014, p. 36), isso porque, como
qualquer outro aspecto identitário, o gênero não é fixo, porém inconstante, fluido e sujeito a
tensionamentos (SILVA, 2014). Assim sendo, pode-se perceber que as reinvindicações daquilo
que Louro (2014) chamou de “primeira onda do feminismo” não iam em direção dos interesses
de todas as mulheres, deixando sem representação as necessidades de, por exemplo, mulheres
transgêneras, negras, ou camponesas, ou imigrantes etc. Em outras palavras, a primeira onda do
88
feminismo representou o que se é conhecido como “feminismo ocidental” ou “feminismo
liberal”.
Não se pode, contudo, ignorar a existência de diferentes espécies de feminismo que, às
vezes, são antagônicas entre si, o que demonstra que tensões perpassam o campo. O feminismo
radical26, feminismo negro27, o feminismo lésbico28, o feminismo islâmico29, o feminismo
indígena30, o feminismo marxista31 e o transfeminismo32 são exemplos de como a identidade de
gênero relaciona-se interseccionalmente com outros marcadores identitários, como raça, etnia,
sexualidade e religião.
Tal interseccionalidade tensionou o feminismo liberal, impulsionando o desenvolvimento
do campo em questão. Surge, portanto, aquilo que Louro (2014) denominou como “segunda onda
do feminismo”, a qual não era meramente um movimento político – como fora a “primeira onda”
-, mas também se constituía em uma construção teórica que problematizava o conceito de gênero.
Esta “segunda onda” tem seu apogeu em meados da década de 1960, conhecida pela sua
efervescência social e caráter questionador aos arranjos sociais tradicionais e, entre outros
aspectos, diferia da “primeira onda” por adentrar espaços acadêmicos, o que culminou em
26
Segundo Louro (2014, p. 24), o feminismo radical questiona a lógica androcêntrica, isto é, o fato das
interpretações sobre o mundo serem conduzidas pelo olhar do homem. Nesse modo, o feminismo radical irá negar
toda e qualquer produção teórica feita por homens, com o intuito de produzir teorias genuinamente feministas.
27
Ribeiro et. al. (2018) afirma que o feminismo negro emerge da questão de que mulheres negras tem demandas
diferentes de outras mulheres, por também serem negras. Akotirene (2018), por exemplo, narra o fato de mulheres
negras que reivindicavam o direto de trabalhar em uma fábrica e recebiam como resposta que, naquele lugar, já havia
mulheres (porém, brancas) e negros (porém, homens) trabalhando. A categoria de “mulher negra”, portanto,
intersecciona gênero e raça, criando demandas e dilemas outros.
28
Semelhantemente, Louro (2014) afirma que o feminismo lésbico surge a fim de atender as demandas de mulheres
lésbicas. Aqui, se vê a interseccionalidade ocorrendo entre gênero e sexualidade.
29
Segundo Franco (2016), o feminismo islâmico reflete sobre os direitos da mulher islâmica, inclusive, dentro do
mundo islâmico. Nessa concepção, vale ressaltar que tais feministas não querem deixar de ser mulçumanas ou deixar
de usar véus, visto que esta vestimenta é um preceito de sua religião, mas praticar atividades que o Alcorão, livro
sagrados do Islam, não as proíbem, como estudar e dirigir. O feminismo islâmico é algo recente, mas já tem galgado
algumas conquistas, como, por exemplo, mulheres árabes, desde 2018, podem dirigir
(https://g1.globo.com/mundo/noticia/ultimo-pais-a-proibir-mulheres-de-dirigir-arabia-saudita-comeca-a-expedir-
carteira-de-motorista-para-elas.ghtml acesso em 16/07/2019).
30
O feminismo indígena nasce dentro do movimento indígena com mulheres ganhando espaço, vez e voz, buscando
por demandas intrínsecas às mulheres das aldeias. Vale salientar que muitas líderes indígenas defendem a identidade
dos(as) indígenas como um todo, e não somente das mulheres. Para mais informações, leia Pinto (2010).
31
O feminismo marxista, segundo Louro (2014) se estabelece enquanto um contraponto ao feminismo liberal, uma
vez que leva em consideração as lutas de classe e vê a opressão das mulheres como um produto da sociedade
capitalista.
32
O transfeminismo, por sua vez, é a vertente do feminismo que busca defender a mulher trans, ou seja, aquela que
não se identifica com seu sexo biológico, e, nessa perspectiva, assume-se mulher (RIBEIRO et al., 2018)
89
gerações de estudantes que questionavam a invisibilidade da mulher na sociedade. Louro (2014,
p.21) afirma que
Tornar visível aquela que foi ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas
desses primeiros tempos. A segregação social e política a que as mulheres foram
historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como
sujeito – inclusive como sujeito da Ciência.
Essa invisibilidade marca também a história da mulher brasileira. Pinto (2003), por
exemplo, ao analisar o artigo n° 7033 da Constituição de 1891, que apresenta a lista de cidadãos
aptos e inaptos a votar. Embora não apareça explicitamente uma proibição para o voto feminino,
a autora percebe um problema implícito, pois “[a] não-exclusão da mulher no texto constitucional
não foi um mero esquecimento. A mulher não foi citada porque simplesmente não existia na
cabeça dos constituintes como um indivíduo dotado de direitos”. Emerge, portanto, desse
contexto de luta contra a invisibilidade, o feminismo como entidade política e referencial teórico.
Não se argumenta, contudo, que a mulher desses tempos não participava da sociedade, mas
pelo contrário, afirma-se que desde tempos longínquos, as mulheres trabalham fora do lar – seja
em regiões urbanas ou rurais - e, gradativamente, passam a ocupar diferentes espaços vistos
como masculinos, como escritórios, indústrias e universidades; porém, vale ressaltar que, em
geral, até os dias atuais, elas eram e, infelizmente, ainda são “rigidamente controladas e dirigidas
por homens e geralmente representadas como secundárias” (LOURO, 2014, p. 21).
No campo da Música, tal desvalorização não se dá de forma diferente. O número de
mulheres compositoras estudadas na universidade é ínfimo (ANDRADE, 1991; COHEN, 1987;
CUNHA, 2014; LAMB, 2004; LEONIDO, 2008), bem como, percebe-se que posições de
liderança e/ou autoridade relacionadas a atividades musicais, como regentes, produtoras e
críticas, são mais usualmente destinadas a homens do que a mulheres (BANNET, 2008;
BARNABÉ-VILLODRE; MARTINÉZ-BELLO, 2018; CRUZ, 2013; VANWELLDEN; McGEE,
2007).
33
Segue artigo: Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação,
sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
§ 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis. (Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm, acesso em 16/07/2019)
90
Para ilustrar a situação no Brasil, tormar-se-á como exemplo, o caso da Orquestra Sinfônica
Brasileira (OSB), uma das principais orquestras do Brasil. Desde sua fundação, em 1940, a OSB
nunca teve uma maestrina no posto regente titular, nem sequer uma diretora artística, nenhuma
mulher presidente do conselho artístico ou uma spalla. Mulheres apenas aparecem na lista de
solistas mais ativos: a cantora Ruth Staerke aparece na sexta posição, e a pianista Magdalena
Tagliaferro, por sua vez, aparece na décima primeira34. É interessante notar que suas funções
correspondem ao “aceitável” para o gênero feminino em Música: cantora e pianista. Com base
nisso, aponta-se que todas as instituições sociais, inclusive as relacionadas à Música, são
passíveis de reproduzir hierarquias entre gêneros.
A “segunda onda” do feminismo, nessa perspectiva, buscou visibilizar a mulher, por meio
de diferentes estudos que se centram nas vidas das mulheres em diferentes espaços e situações
sociais, bem como denunciar a ausência de mulheres em diferentes espaços e a opressão cotidiana
vivida por elas.
Em geral, as considerações feministas sobre a origem do “feminino” e do “masculino”
negam veementemente o inatismo, ou seja, o essencialismo biológico. Expressa-se, com isso, que
embora um menino nasça biologicamente com a genitália masculina, será determinada sociedade,
sob determinado contexto histórico, econômico e cultural que determinará como esse menino
deverá se portar. Não se pode afirmar que os meninos, de todas as épocas e sociedades, são
iguais, pois o conceito de masculinidade muda de acordo com o contexto cultural e com passar
dos anos. Recorda-se, por exemplo, que a atividade homossexual entre homens era incentivada,
concebida como prática pedagógica e vista como um atributo da virilidade na Grécia Antiga
(ANDRADE, 2017). Todavia, a cultura contemporânea occidental, provavelmente, rechaçaria tal
forma de virilidade.
Do mesmo modo, toda subalternação, opressão, estereótipos, violência, preconceitos e
discriminação dirigidas à identidade da mulher são, igualmente, forjadas socialmente, não se
configurando em uma regra que, estritamente, deva ser seguida. Se a sociedade interiorizou,
incorretamente, que a mulher é um ser inferior, ela pode, muito bem, reconhecer seus erros,
reconsiderar e colocá-la no mesmo patamar que o homem. Recorda-se que a escola e a disciplina
de Música podem colaborar para esse fim.
34
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Orquestra_Sinf%C3%B4nica_Brasileira. Acesso em 23/07/2019.
91
Nesse sentido, Butler (2015) afirma categoricamente que um dos desafios da mulher é
“deixar de ser mulher”, não no sentido de se tornar homens ou algum outro gênero, mas sim
perder todo o estigma que a identidade de mulher a elas impõe. Por meio dessa linha de
raciocínio, os estudos feministas reforçam que a identidade é um processo (HALL, 2014), e não
um atributo biológico, sendo, portanto, mais eficaz entender como as masculinidades e as
feminidades vêm sendo socialmente construídas.
De outro ângulo, apesar do esforço teórico de assim não se proceder, muitas pesquisas ao se
focarem na denúncia das opressões sofridas por mulheres e pelo seu silenciamento cotidiano,
permitem, segundo Louro (2014, p. 41) uma vitimização da identidade da mulher, como se a
oposição “homem opressor” e “mulher oprimida” fosse um dado cristalizado, o que poderia
sugerir que a mulher era culpada pela sua posição.
Nesse sentido, o conceito de poder passou a ganhar espaço nas discussões sobre gênero e,
em geral, entende-se que o poder não é unilateral, ou seja, simplesmente afirmar que homens
dominam mulheres é um entendimento superficial, sendo mais aceita a tese de que o poder
transita capilarmente por diferentes meios, sendo compartilhado por homens e mulheres, pois,
“[a]final, homens e mulheres, através das mais diferentes práticas sociais, constituem relações em
que há constantemente, negociações, avanços, recuos, consentimentos, revoltas, alianças”
(LOURO, 2014, p. 214), embora
[i]sso não signifique desprezar o fato de que as mulheres (e também os homens que não
compartilham a masculinidade hegemônica) tenham, mais frequentemente e fortemente,
sofrido manobras de poder que os constituem como o outro, geralmente subordinado e
submetido. (LOURO, 2014, p. 214)
O que se expressa é que as mulheres não são seres “sem poder”, visto que ele também
transita em suas mãos, porém, nem sempre de forma constante e/ou efetiva para reverter
situações de submissão não desejada.
Os gêneros, em suma, são constituídos em relações de poder. Em uma linha de pensamento
foucaultiana, é possível conceber que o poder não somente censura, inibe, mas também tem
potencial criador, na medida em que cria comportamentos, gestos, atitudes, desvios, resistências,
posicionamentos etc. (LOURO, 2014, p. 45). Toda a dinâmica social que impõem regras,
atitudes, limites e obrigações, está forjando não somente mentes, mas também corpos, tornando-
os, masculinos, femininos, ambos, uma combinação dos dois, ou nenhum deles.
92
Percebe-se pois, que a constituição do gênero é cultural e política. Não haveria, também,
espaço para esfera biológica? Em um primeiro vislumbre, sob a tutela dos estudos feministas,
haveria pouco espaço para tal esfera. Como já foi argumentado, o feminismo acadêmico não se
vale de atributos biológicos para definir o que é ser homem ou mulher, pelo contrário, busca
desconstruir ideias essencializadas e essencializantes, concebendo o gênero como uma construção
sociocultural. Em suma, o órgão genitor, por si só, não definiria a identidade de gênero de uma
pessoa, somente o seu sexo biológico, que é um conceito mais fraco do que o gênero cultural.
Tal linha de pensamento possibilitou dois fenômenos sociais interessantes: em primeiro
lugar, abriu espaço para o que se é conhecido hoje como “ideologia de gênero”, ou seja, uma
crítica direcionada à concepção cultural da construção de gênero que, em geral, é tecida por
conservadoras(es). As questões de gênero e o pensamento feminista, portanto, tornam-se
transgressoras na medida em que emancipam mulheres e negam o determinismo biológico. Nessa
perspectiva, sob a égide da “ideologia de gênero”, grupos tradicionalistas buscam apontar que
existiria um projeto político que buscaria abalar os valores tradicionais, e, para tal, um dos
caminhos seria a desconstrução da ideia de gênero biológico.
Em segundo lugar, tal teoria compreende teoricamente a transgeneridade, ou seja, o fato de
uma pessoa não se identificar com seu gênero de nascimento - sexo biológico. Uma pessoa
nascida com genitália masculina, por exemplo, pode perceber que seu comportamento e forma de
pertencer ao mundo combinam melhor com aquilo que a sociedade imputa como “feminino” e,
desse modo, identifica-se como mulher. É interessante ressaltar que seria superficial e
equivocado taxar tal pessoa como homossexual, porque, nesse caso, o que está se discutindo não
é como a pessoa exerce a sua sexualidade, mas como ela se compreende do ponto de vista do que
socialmente é concebido como ser mulher ou homem: é uma questão de gênero.
O que se quer se expressar é que a negação da biologia como esfera constituinte do gênero
possibilita que ele seja algo a se declarar, não a mero gosto, mas dentro de uma relação entre o
que foi socialmente estimulado e o que construído no psicológico de alguém - lembrando que a
identidade é o ponto de sutura entre o social e o psicológico (HALL, 2014).
Surge, nessas discussões termos como cisgênero e transgênero, definindo pessoas que se
identificam com o gênero de nascimento e pessoas que não se identificam com o gênero de
nascimento, respectivamente. Também nesse contexto está baseado o feminismo transgênero, que
buscam ir ao encontro das demandas de mulheres trans.
93
1.8 Sexualidade
35
Citou-se as formas mais conhecidas de se expressar a sexualidade, mas não se ignora que existe uma lista quase
infinita que engloba a pansexualidade (a pessoa se sente atraída por pessoas de todos os gêneros e sexualidades),
sapiosexualidade (a pessoa se sente atraída apenas por pessoas que considera inteligente, tendo pouco interesse na
aparência pessoal), demisexual (a pessoa só se sente atraída por pessoas próximas, que tenham algum vínculo forte,
94
Percebe-se, portanto, que a percepção da sexualidade, geralmente, provém do gênero, visto
que alguém se identifica dentro das possibilidades de orientação sexual tendo como ponto de
partida a sua identidade de gênero. Usando outros termos, “as identidades de gênero e as
identidades sexuais se constroem em relação” (LOURO, 2014, p.53).
Porém, embora exista esta proximidade, as questões que emergem do gênero - ser homem,
ser mulher, ser algo entre homem e mulher, não ser nenhum dos dois - diferem categoricamente
das questões que emergem da sexualidade - ser homossexual, ser heterossexual, ser bissexual, ser
assexual. Por exemplo, um homem no Brasil, embora esteja dentro dos moldes da identidade de
gênero normativa - ser rico, estudado, ser branco, etc. - pode sofrer preconceitos caso seja
homossexual ou bissexual.
Chegando a esse ponto, não custa relembrar que o preconceito e discriminação relacionados
à sexualidade emergem do fato de a sociedade ocidental estar embasada em um tipo de matriz
heterossexual, ou seja, percebe-se a heterossexualidade tem sido percebida como a forma normal,
digna e correta de se exercer a sexualidade, e se vê todas as outras formas que divergem dela
como anormais, pecaminosas, patológicas, fúteis, desviantes e extremamente equivocadas.
Aquelas(es) que se desviam da heteronormatividade, infelizmente, tendem a ser vítimas de
preconceitos e discriminações, que abrangem desde “simples” apelidos até o assassinato. Não
obstante, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o país que mais mata
transgêneros e homossexuais36.
É interessante ressaltar que, assim como a raça, o gênero, a religiosidade e a etnia, a
sexualidade é uma esfera da identidade, constituindo-se como parte do ser, e, assim o sendo, ela é
socialmente forjada, sendo criada dentro do discurso. Louro (2014, p. 31) ratifica o explicitado,
ao afirmar que “[o] que importa aqui considerar é que - tanto na dinâmica do gênero como na
dinâmica da sexualidade - as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas
em um determinado momento”. Em outras palavras, o que se expressa é que a orientação sexual
também não é concebida como um “dom inato”, mas sim como algo construído dentro das redes
seja emocional ou intelectual), androgenosromântico (a pessoa se sente atraída por pessoas com características
androgenas), autossexual (sentem-se atraídos pela sua própria imagem) lith-sexuais (sentem-se atraídas por outras
pessoas, sem, contudo, terem a necessidade de serem correspondidas), entre outras. Seguem listas mais completas
sobre o assunto: http://thepbhscloset.weebly.com/a-list-of-genders--sexualities-and-their-definitions.html, acesso em
29/07/2019, ou https://www.itspronouncedmetrosexual.com/2013/01/a-comprehensive-list-of-lgbtq-term-
definitions/, acesso em 29/07/2019.
36
Segue weblink de matéria jornalística que aborda o tema: https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-
primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780, acesso em 29/07/2019.
95
de significado sob os quais está suspenso o mundo, ou seja, existem uma lista finita de
sexualidades disponível em um “catálogo” que, por sua vez, foi forjada nas relações sociais,
tendo nessa perspectiva, uma história, se tornando, portanto, um construto sociocultural
(LOURO, 2014).
Se expressa também que o que se entende socialmente por ser heterossexual e homossexual
transpassa a dimensão de como o indivíduo expressa a sua sexualidade e abraça outras dimensões
da vida, como, por exemplo, como cada sexualidade deve ser, proceder, viver. Logo, uma pessoa
heterossexual pode sofrer as mazelas do preconceito caso alguma esfera da sua vida seja
identificada como “desviante” ou homossexual, por exemplo, meninas jogarem futebol ou não se
depilarem, e meninos gostarem de dançar ou preferirem brincar com outras meninas.
É interessante notar, embora não se trate de algo a ser elogiado, que, muitas vezes, o desvio
da heterossexualidade em si não é um “problema” tão grave desde que o indivíduo homoafetivo
não transpasse o espaço que socialmente foi destinado para ele. O discurso que, muitas vezes,
circula socialmente é que o preconceito não existe e que o(a) homoafetivo(a) pode ser o que
quiser, desde que não expresse a sua sexualidade, ou seja, não demonstre o seu afeto
publicamente e que busque se enquadrar em uma postura heterossexual, o que contempla diversas
áreas, como a sua linguagem, a sua vestimenta, a sua forma de andar, as profissões a escolher etc.
A identidade homoafetiva, igualmente, tem sido relacionada ao profano, ao pecado, ao
irreconciliável, à perversão, à corruptibilidade. Ela está sendo, historicamente, construída como
uma fonte de aberração, de insanidade mental, de pecaminosidade, de comicidade e, muitas
vezes, de não-humanidade. Nesse sentido, sob a ótica de uma perspectiva multicultural inclusiva
que valoriza as diferenças e busca a plena incorporação de indivíduos em todas as esferas das
sociedades - inclusive, nas escolas -, se faz necessária a desconstrução desses preconceitos.
Ressalta-se também que o fato de existirem uma opção de identidades sexuais disponíveis
dentro daquilo que foi socialmente produzido na história da humanidade, não permite a alguém
afirmar que a sexualidade é uma questão de escolha, visto que existe uma série de fatores de
ordem biológica, psicológica, sociais e culturais que fazem alguém se inclinar para uma e/ou
outra identidade sexual, logo, o melhor termo a ser empregado é orientação sexual e não opção
sexual. Essa forma de pensamento é positiva, pois vai contra outro grande equívoco que afirma
que a homossexualidade é um comportamento optado por pessoas lascívias e promíscuas, e, por
ser um comportamento, este poderia ser evitado ou não praticado, caso assim se quisesse.
96
Tal crença equivocada apenas corrobora para a personificação da pessoa homoafetiva como
desviante, o que, por sua vez, contribui para a existência e perpetuação das chamadas
homofobias, ou melhor, heterossexismos, que é o preconceito dirigido aos(às) homossexuais,
sendo mais bem definido por Louro (2014, p. 32), que embasada na perspectiva teórica de Judith
Butler, a define da seguinte forma: “A homofobia, o medo voltado contra os/as homossexuais,
pode se expressar ainda numa espécie de ‘terror em relação à perda de gênero, ou seja, o terror de
não ser mais considerado um homem ou uma mulher ‘reais’ ou ‘autênticos/as’”. Por isso tudo, tal
autora afirma que é “crucial manter um aparato teórico que leve em consideração o modo como a
sexualidade é regulada através do policiamento e da censura de gênero” (LOURO, 2014, p. 32).
O uso do termo “heterossexismo” é usado nesse texto em concordância com Nardi e
Quartiero (2012). Tais autor e autora apontam que o consagrado vocábulo “homofobia”, por
utilizar o sufixo “fobia” (do grego phóbos, que designa medo, terror) expressaria uma doença de
ordem mental. No entanto, a maioria de pessoas que expressam preconceitos e discriminações
contra pessoas homoafetivas não o fazem por terem alguma psicopatologia, mas por terem caráter
dúbio. Em suma, o termo “homofobia”, de certa forma, ameniza e até legitima a situação do(a)
oppressor(a), como se ele(a) oprimisse pessoas homoafetivas por ser mentalmente instável. Por
tal razão, utiliza-se, nesse texto, o termo “heterossexismo”, que não patologiza o adjetivado.
A escola, enquanto uma instituição que representa um “pequeno mundo”, ou seja, um local
aonde acontecem todas as vicissitudes da sociedade (VIEIRA, 2009), também é passível da
existência de todo o tipo de preconceito, incluindo aqueles relacionados às sexualidades que
fogem à norma socialmente instituída.
Infelizmente, embora existam políticas curriculares e ações afirmativas recentes que
buscam anular ou, ao menos, reduzir o número de heterossexismos presentes nas escolas, bem
como valorizar a identidade do(a) homoafetivo, como o programa Brasil sem Homofobia, os
Parâmetros Curriculares Nacionais e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,
relatos de preconceitos sofridos por pessoas homoafetivas na escola ainda são bastante comuns
(LEITE, 2012). Cabe, portanto, reflexões teóricas e práticas que busquem propiciar que as
escolas sejam locais seguros para pessoas homoafetivas, sejam elas discentes, docentes ou
qualquer pessoa que perpasse o ambiente escolar. Para que tal realidade seja factível, é necessário
que esforços sejam empreendidos desde a formação de professoras(es), pois serão elas(es) que
97
irão atuar na pluralidade da escola, logo, precisam ser formadas para atuar posivita e criticamente
nesse espaço.
1.9 Etnia
98
No concernente a esse conceito, percebe-se que, por vezes, pessoas são identificadas como
pertencentes ao mesmo grupo por terem alguma relação, às vezes bastante indireta, com algum
acontecimento histórico que, na maioria das vezes, não presenciaram e não participaram.
Mulçumanos, por exemplo, são relacionados aos ataques do 11 de setembro e sofrem estigmas
por esse fato; e judeus compartilham entre si a conquista da Terra de Canaã, porém nenhum judeu
vivo presenciou esse momento.
E suma, a identidade imaginada une, forçosamente, pessoas dentro de uma etnia, porém, tal
identidade é gerada por fatos do passado que nem o “identificador” nem o “identificado”, de fato
viveram, apenas imaginam (ANDERSON, 2008; HALL, 2005; WOODWARD, 2014). A etnia é,
portanto, marcada culturalmente, definida socialmente e reforçada por fatos passados e
imaginados.
Nessa perspectiva, diferentes grupos sociais podem ser definidos etnicamente. À guisa de
exemplificação, a fim de se buscar didaticamente definir etnia, argumenta-se que brasileiros, em
geral, compartilham uma cultura que, apesar de diversa, é encontrada apenas no Brasil.
Semelhantemente, também dividem um passado que os identificam; logo, a nacionalidade possui
uma marca étnica. Do mesmo modo, gaúchos, por exemplo, também compartilham, dentro da
nacionalidade, uma cultura mais específica e um passado em comum, o que corrobora para que a
etnia também se manifeste por meio da naturalidade.
A raça também se relaciona com a etnia, na medida em que, geralmente, grupos originais
de pessoas não somente se assemelham no fenótipo, mas também possuem uma cultura em
comum (vide os Maasai, por exemplo). Todavia, semelhantemente, a etnia é racial, pois grupos
étnicos também são reconhecidos por traços biológicos (vide indígenas brasileiros ou aborígenes
australianos). Apesar do aspecto racial perpassar as discussões sobre etnia, ainda se classifica um
grupo étnico por sua cultura.
Nesse sentido, o número de grupos sociais que podem ser marcados pela etnia é grande,
contudo, no Brasil, alguns grupos são mais distintamente étnicos que outros. Pode-se citar nesse
bojo os ciganos, os quilombolas, os migrantes, os refugiados e aqueles que serão alvo dessa tese:
as(os) indígenas.
Faz-se necessário, inicialmente, definir conceitos e buscar usá-los corretamente para, desse
modo, fomentar uma discussão positiva no que tange à identidade indígena. Collet et al. (2014),
explicam que o termo “índio” é equivocado e, portanto, deve ser evitado. Tal equívoco se deve ao
99
fato de que a lenda37 conta que Cristóvão Colombo e seu grupo de marinheiros pensavam estar na
Índia quando chegaram pela primeira vez à Pindorama e, nessa linha de raciocínio, os habitantes
daquele lugar foram chamados de índios. Desse modo, o uso do vocábulo “indíos” reforçaria um
erro histórico e, de certo modo, criaria laços entre indo-americanos e indianos, povos
completamente diferentes e sem conexão diretas, a não ser, o histórico de colonização. O termo
“sílvicola”, ou seja, alguém relacionado à selva, também é pejorativo e tampouco adequado, visto
que indígenas vivem em diferentes biomas, como cerrados, caatingas, litorais, pampas etc., bem
como em cidades, inclusive nas metrópoles. O termo mais correto e o que é recomendado na
literatura acadêmica é “indígena” que provém do latim, significando “alguém nativo de algum
lugar”, “natural de alguma região”, “conjunto de povos primeiros”.
Percebe-se, em primeiro lugar, que tal termo não tem relação a determinado tipo biológico,
mas somente ao fato de certo grupo ser nativo de certa localidade. Logo, os guaranis são
indígenas no contexto brasileiro, mas os zulus também o são no contexto sul-africano, enquanto
os Sami o são no contexto nórdico, e os Ainu o são no Japão, os Apache o são no contexto
estadunidense e assim por diante. Todos os grupos citados são indígenas, porém, todos
apresentam fenótipos diferentes.
Contudo, argumenta-se também que o termo “indígena” foi cunhado por ocidentais e,
portanto, em uma perspectiva decolonial, poderia também ser criticado. O mais correto seria,
possivelmente, adotar a definição de si mesmo cunhada por cada grupo indígena. Os indígenas
Guaranis Mbyas da Tekoa Sapukai de Bracuhy, aquela visitada para a escrita do presente
trabalho, por exemplo, se definem como Nãndeva ekuéry, isto é, “todos nós os que somos”.
Do mesmo modo, segundo Collet et al. (2014), explicam que o termo “tribo indígena”
também é equivocado, pois, tribo, segundo a Antropologia, se refere a um tipo de organização
social, na qual um líder reúne um agrupamento de pessoas por objetivos específicos, como guerra
ou dominação. Como nenhum grupo indígena, no Brasil, tem tal tipo de organização, o termo
“tribo indígena” simplesmente é equivocado, sendo mais bem alocável o termo “povos
indígenas”, para designar um grupo de pessoas, ou aldeia indígena, quando se quer se referir às
comunidades os(as) indígenas.
37
Usa-se a expressão “lenda” porque existe controvérsias se, realmente, Colombo pensava estar na Índia ou se, na
verdade, a coroa espanhola já sabia da existência de terras não colonizadas e solicitou que Colombo viesse checar a
informação.
100
A utilização do termo “povos indígenas” no plural é substancialmente necessária visto que,
assim, pode-se melhor conceber que, especialmente no caso brasileiro, os diferentes povos
indígenas não são iguais, ou seja, eles têm a sua própria cultura e língua. Em 2019, sabía-se que
existiam, pelo menos, 305 povos indígenas no Brasil, cada qual com sua singularidade. Collet et
al. (2014, p. 44) afirmam que
103
1.10 Religiosidade
38
Segue matéria jornalística que discorre sobre o assunto: https://extra.globo.com/casos-de-policia/terreiro-de-
candomble-em-madureira-atacado-pela-segunda-vez-em-quatro-meses-23712034.html. Acesso em 29/09/2019.
39
Segue vídeo que discorre sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=FVzn6YxM-Lw
106
Rodrigues Junior (2018), por exemplo, propõe uma “pedagogia das encruzilhadas”. Em
suma, por meio de uma crítica ao fato de a pedagogia escolar se centrar nos saberes ocidentais, o
autor sugere um caminho para a reconstrução do conhecimento escolar por meio dos saberes e
dos conhecimentos afro-brasileiros. Nessa construção epistemológica, Exu, um orixá do
candomblé, é apresentado como uma sabedoria, ou seja, como uma forma outra de se explicar e
conceber a vida, divergindo dos saberes tidos como universais e dos binarismos fixadores, por
meio de um pensamento que valoriza o movimento e a transgressão. Resumindo, a pedagogia das
encruzilhadas vê as diferenças como algo iminente à vida e busca incorporar saberes e
temporalidades da ancestralidade africana na educação escolar.
Semelhantemente, Oliveira (2005), propõe uma “Pedagogia dos Baobás”, também centrada
na sabedoria tradicional africana. A Pedagogia dos Baobás afirma que é necessário propor um
conhecimento sobre os(as) negros(as) e a cultura negra que não se limite às denúncias de
racismo, mas inclua também o apontar para as potencialidades do conhecimento africano em si, e
não somente, para o lugar do(a) negro(a) na educação. Recorda-se que “baobá” é uma árvore
africana na qual, à sua sombra, histórias são contadas e a cultura africana era e continua a ser
transmitida, portanto, a figura do baobá remete à sabedoria, ao ensino, à ancestralidade e à
relação homem-natureza.
Dentro deste mesmo bojo, está a Pedagogia do Axé. Entende-se, no candomblé, o as̩ è como
uma espécie de energia vital, o sopro de Olorun- o criador - que possibilitaria a vida e, nesse
contexto, Carvalho (2019) aponta que a Pedagogia do Axé buscar centrar-se em todas as
tradições ancestrais africanas, como a feitura do círculo, o respeito à ancestralidade e sobretudo, o
uso da tradição oral, meio pelo qual o conhecimento ancestral é transmitido, adquirido e
perpetuado na ancestralidade africana.
Na perspectiva da Filosofia, mais propriamente, a Epistemologia, tem-se a Filosofia
Afroperspectivista, centrada na sabedoria e pioneirismo africano, na corporeidade e no
movimento. Nogueira (2011, p. 4) afirma que
A filosofia afroperspectivista está assentada sobre uma imagem do pensamento que pode
ser apresentada em três teses básicas: 1ª) Pensar é movimentação, todo pensamento é um
movimento que ao invés de buscar a Verdade e se opor ao falso, busca a manutenção do
movimento; 2ª) O pensamento é sempre uma incorporação, só é possível pensar através
do corpo; 3ª) A coreografia e o drible são os ingredientes que tornam possível alcançar o
alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento.
107
Longe de querer esgotar todo o cabedal teórico que nasce nos terreiros e inundam as
universidades brasileiras, os exemplos acima buscam mostrar que o(a) negro(a), ao ser
covardemente transportado(a) para o Brasil, não trouxe consigo apenas a sua potência corporal,
mas também seu conhecimento milenar, que foi capaz de resistir à violência simbólica do
colonizador e de, contemporaneamente, abalar as estruturas e o tradicionalismo da academia.
Contudo, no âmbito da Música e da educação musical, não se percebe o mesmo movimento
epistemológico. Espera-se, dentro das limitações e objetivos propostos para a presente tese, que
os valores e a musicalidade candomblecista possam se fazer presente nas aulas de Música, como
uma forma de se valorizar os saberes afro-brasileiros.
Primeiramente, é importante definir e delimitar o que aqui se entende por candomblé.
Pensa-se o candomblé, como um substantivo coletivo, que abrange diferentes manifestações
religiosas de origem africana, tais como Candomblé Jeje, Candomblé Angola, Candomblé Ketu-
Nagô, Jurema, Quimbanda, Xangô do Recife, Batuque, Tambor de Mina etc., que chegaram à
Pindorama via processo de escravidão, que, a posteriori, foram ressignificadas no território
brasileiro, e que possuem em comum algumas características, como o culto aos ancestrais
divinizados - conhecidos como orixás, voduns ou nkisi - que manifestam aos fiéis via transe
mediúnico, que é proporcionado por meio da música (FONSECA, 2002).
Pensar o candomblé como um coletivo de manifestações religiosas fortalece o
entendimento de que tal religião não é um bloco monolítico, mas sim que existem diferentes
segmentações dentro do culto candomblecista que estão diretamente relacionadas com a origem
geográfica das pessoas escravizadas que trouxeram o axé para o Brasil. Cada uma dessas
segmentações são chamadas nações do candomblé e cada uma delas, além da origem geográfica,
terá idioma, toques de atabaque e liturgia diferentes (FONSECA, 2002).
No Brasil, existem três nações principais: A Ketu ou Ketu-Nagô, a Jeje e a Angola. A
nação Ketu tem origem nas civilizações sudanesas, utiliza o iorubá como idioma e cultua os
Orixás. Os correligionários da nação Jeje, que têm origem em Daomé, atual Benin, comunicam-
se via língua ewe-fon nos cultos e reverenciam os Voduns. Finalmente, a nação angola é
proveniente da Angola e Congo, utilizam o umbundo e o kimbundo como línguas e veneram os
nkisi. Essas são apenas as diferenças mais marcantes, pois ainda existem outros pontos de
divergência cuja distinção não é da alçada desse trabalho.
108
No candomblé em geral, a música é utilizada como uma linguagem pela qual se é possível
se comunicar com o divino. É uma espécie de transporte metafísico que direciona os ancestrais
divinizados para o corpo do medium. Nessa perspectiva, o toque a percussão pode ser entendido
como uma espécie de prece que busca convocar um orixá, vodun ou nkisi para aquele espaço,
pois cada um deles(as) poderá aparecer no terreiro por meio de, entre outros aspectos liturgicos,
de um toque específico dos instrumentos de percussão.
Dentre os instrumentos utilizados nos cultos Keto, se destacam o trio ilús (atabaques): o
Rum (maior e mais importante), o Rumpi (o mediano) e o Lê (menor). Nas celebrações, tais
instrumentos de percussão não podem ser tocados por qualquer pessoa40, mas somente por
sacerdotes designados pelos orixás para a função, que são os alagbês e os ogans.
É importante ressaltar que ser alagbê ou ogan não sinonimiza diretamente com o papel de
“músico” das casas de santo. Na verdade, ogan seria uma nomeclatura genérica para diferentes
funções masculinas dentro de um terreiro, como a zeladoria, a preparação de encantamentos com
ervas, feitura do sacrifício de animais etc. Contudo, embora a música não seja a única função do
ogan, ela também pode se constituir em uma das suas atividades.
Nessa perspectiva, emerge a figura do alagbé, ou seja, o principal tocador de atabaque de
uma casa e responsável pelo Rum. Por meio da sua música, diferentes orixás emergem nas
cerimônias e apresentam suas coreografias, logo, existe uma correspondência direta entre os
passos do orixá e o ritmo dos atabaques.
O toque do Rum do alagbé também comanda os toques do Rumpi e do Lé, que são tocados
por ogans aprendizes, e, desse modo aural, iniciado, muitas vezes, desde a infância41 e por meio
de uma relação hierárquica entre aprendiz e mestre, se dá a formação dos novos ogans. Trata-se
de uma educação musical dos terreiros, que, apesar de acontecer no cotidiano, de forma informal
e natural, é extremamente rígida, pois aos ogans e aos alagbés não é permitido errar durante as
cerimônias religiosas, pois qualquer dessincronia ritmica atrapalha inteiramente na dinâmica do
culto. Segundo (CARDOSO, 2006), o trio de ilus, juntamente com o gã (agogô de metal) se
constituem no quarteto instrumental elementar dos cultos do candomblé.
40
Segundo as entrevistas feitas com candomblecistas, que serão mais bem tratadas no capítulo III, essa restrição vale
apenas para ambientes de culto. Em dinâmicas de ensino de Música em salas de aula, qualquer um(a) pode tocar os
atabaques.
41
Caputo (2012) narra que é normal ogans serem suspensos aos 4, 5 anos de idade, ou seja, são crianças da educação
infantil.
109
Além desses dos ilus, outros instrumentos comuns na música popular brasileira, como o
caxixi, o afoxé, o xequerê, o pandeiro, o berimbau e o pandeiro tabém podem fazer parte das
cerimônias candomblecistas.
É interessante também ressaltar que esse rigor da educação musical do terreiro formou
vários percussionistas de renome no mercado fonográfico nacional, como Carlinhos Brown e
Márcio Victor, logo, vale a pena analisar as dinâmicas da educação musical de terreiro e
incorporar a sabedoria musical ancestral africana para valorizar tal cultura, dar representatividade
aos(às) estudantes candomblecistas presentes nas escolas e cumprir a Lei 10.639/2003, sem
deixar de formar musicistas de alto nível.
Finda-se aqui a elucidaçao teórica de categorias identitárias relevantes para o
multiculturalismo, a saber, raça, gênero, sexualidade, etnia e religiosidade. Contudo, emerge uma
questão: poderia o autor dessa tese, sendo um homem cisgênero, cristão, heterossexual, jurua,
cristão e que, embora negro, não tenha suficiente posse da cultura de origem negra, pesquisar
sobre a identidade da mulher, das pessoas homoafetivas, dos(as) Guaranis Mbya, dos(as)
candomblecistas e das pessoas negras? Essa questão será respondida no próximo subtópico
111
II
O presente capítulo tem como objetivo identificar e analisar trabalhos acadêmicos que
dissertam sobre a relação entre o multiculturalismo e a educação musical, explicitando a
necessidade de se discutir criticamente as tensões existentes entre o ensino de Música, o
multiculturalismo e tópicos do seu interesse, a saber: raça, gênero, sexualidade, etnia e
religiosidade.
Na perspectiva de que, para a efetivação de uma educação multicultural, “cabe sugerir
princípios norteadores de estratégias pedagógicas efetivas” (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 29),
tal levantamento buscará não somente conhecer como a academia tem empreendido pesquisas
relacionadas ao multiculturalismo na educação musical, mas também reunir princípios
norteadores que poderão culminar em práticas docentes multiculturais em aulas de Música.
Obviamente, o presente trabalho não é o primeiro a discutir como a teoria multicultural se
converte em práticas docentes. Canen e Moreira (2001, p. 29) apontam como princípios para o
multiculturalismo em ação 1) a Representação das identidades culturais presentes na sala de aula
no processo educativo; 2) a percepção do multiculturalismo como algo que transcende um adendo
curricular, se constituindo, portanto, enquanto um item discutido em todo o currículo sob a ótica
das diferentes disciplinas; 3) a concepção do diálogo enquanto elemento delineador de práticas
curriculares multiculturalmente orientadas e 4) a importância do desenvolvimento de aspectos
112
afetivos nos(as) docentes em formação, ou seja, mais do que um conjunto de saberes, o(a)
novo(a) docente deve ser sensibilizado por um conjunto de valores.
Mais propriamente na área da Música, Santiago (2015), Santiago e Monti (2016), Santiago
(2017) e Santiago e Ivenicki (2018) apontam cinco eixos norteadores para uma educação musical
multicultural: 1) a valorização da musicalidade do(a) educando e de sua comunidade; 2) a
ampliação dos horizontes culturais do(a) educando, por meio de um repertório formado por
músicas que não fazem parte, a priori, de sua cultura; 3) o esforço da parte do(a) docente em
frear seus gostos e preconceitos para que diferentes gêneros musicais se façam presentes nas
aulas de Música; 4) a proposta de uma educação musical crítica, que busque desconstruir
preconceitos e discriminações relacionados às diferentes identidades e 5) adoção de um currículo
flexível, moldado a partir das necessidades dos(as) estudantes e dos fatos que ocorrerem no
desenrolar das aulas e/ou do ano letivo. Nessa perspectiva, tais itens foram levados em
consideração no momento da estruturação do programa curricular desenvolvido para a presente
tese, porém, também se buscou por outros princípios norteadores para complementarem esses
aqui descritos.
Como resultado, foi perceptível que a literatura acadêmica muito tem a oferecer no que se
refere à identificação de princípios norteadores para aulas multiculturais. Tais princípios estão
listados no final do capítulo e, no próximo subtópico, serão descritos os procedimentos
metodológicos utilizados para identificá-los.
Dentro da classificação proposta por Randolph (2009), a revisão bibliográfica feita para
essa tese teve foco na análise de resultados de pesquisas sobre determinado tema - a saber,
multiculturalismo na educação musical - com objetivo de integrar o campo por meio de uma
pesquisa que reuniu e analisou diversos trabalhos sob o mesmo prisma teórico
Não houve a intenção de tal análise se manter neutra, antes, pretendeu-se durante toda a
tese defender um ensino de Música multiculturamente orientado. Logo, a presente revisão optou
pela exposição de posição. Como os limites temporais que tensionam a escrita da tese impuseram
uma seleção de periódicos específicos que representassem o universo do tema, pode-se afirmar
que a revisão foi feita por meio de uma amostragem representativa. A revisão se organiza por
113
conceituação, ou seja, após o levantamento dos trabalhos, buscou-se características de
semelhança entre eles, o que possibilitou a criação de categorias explicativas. Por fim, espera-se
que o público em geral possa acessar tal revisão, porém, admite-se que o foco dela é alcançar
professoras(es) e acadêmicos especializados.
Para se localizar e analisar trabalhos acadêmicos que discorressem sobre o tema do
multiculturalismo na educação musical, buscou-se:
No que se refere à escolha das revistas analisadas, preferiu-se focar em revistas dos estratos
mais elevados porque entende-se que em tal nível de avaliação se concentram os artigos
produzidos com maior rigor metodológico e epistemológico, e, nessa perspectiva, tais artigos
seriam os mais relevantes para a análise pretendida.
A área de Artes foi a única considerada por que, em geral, conforme já for a constatado por
Santiago e Ivenicki (2016e), a maioria dos pesquisadores da área de educação musical publicam
seus textos em periódicos dessa área, porém, é interessante ressaltar que muitos periódicos de
42
Optou-se por não delimitar espaço de tempo para poder se obter um maior número de trabalhos em uma área que,
até em nível internacional, não é explorada a contento.
114
outras áreas, como Educação e Sociologia, também são bem-avaliados na área de Artes, mas não
necessariamente publicam artigos sobre educação musical. Nessa perspectiva, foram
consideradas apenas revistas que tivessem publicado, ao menos, um artigo sobre educação
musical, multiculturalismo e/ou as suas categorias analisadas por este trabalho - raça, gênero,
sexualidade, etnia e religiosidade - na educação musical.
Para localizar tais revistas, acessou-se o site da plataforma Qualis
(https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaCons
ultaGeralPeriodicos.jsf), em meados do mês de setembro do ano de 2018. No campo ‘Evento de
Classificação”, foi selecionada a opção ‘Classificação de Periódicos [no] Quadriênio 2013-2016.
Essa opção foi selecionada por ser representar a avaliação mais recente à época da escrita dessa
tese. No campo ‘Área de Avaliação”, selecionou-se a opção ‘Artes’. Os outros campos foram
deixados em branco, ao se fazer isso e clicar em ‘Consultar’, apareceu uma planilha em formato
compatível com Microsoft Excel com todas as revistas classificadas pela CAPES na área de
Artes.
Ao se abrir o arquivo, apareceram 960 revistas. Usando a ferramenta de ‘filtro’ do
programa supracitado, conseguiu-se selecionar as revistas classificadas nos estratos ‘A1’, ‘A2’,
‘B1’ e ‘B2’, ou seja, justamente aqueles elegidos para serem analisados. Após isso, por meio de
uma pesquisa realizada diretamente nos sites de cada uma dessas revistas, foi possível chegar aos
artigos publicados que serviram como objeto de análise para a escrita desse capítulo.
Nesse contexto, foram levantados artigos nas seguintes revistas, as únicas que possuíam
artigos interessantes para o tema tratado nesta tese, ou seja, artigos que relacionassem temas de
interesse do multiculturalismo com a educação musical: Revista Opus; Revista Orfeu; Revista
Per Musi; Revista da Associação Brasileira de Educação Musical; Revista Música Hodie; Revista
E-Curriculum; Revista Educação, Artes e Inclusão; Revista OuvirOUver; International Journal
of Music Education43 e Research Studies in Music Education. Ressalta-se que nem todas as
categorias identitárias contempladas por essa tese se faziam presentes em todas as revistas.
No que se refere a teses e dissertações, foram levantadas pesquisas relacionando as
questões multiculturais e educação musical na Biblioteca Digital Nacional de Teses e
43
Lembra-se que as revistas International Journal of Music Education e Research Studies in Music Education são
revistas com conteúdo pago. Utilizou-se a assinatura da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro para se
conseguir acessar os artigos de forma gratuita, porém, mesmo assim, alguns artigos continuaram inacessíveis. Porém,
trata-se de um número pequeno de artigos publicados há quase vinte anos, em geral, ensaios teóricos.
115
Dissertações (BDTD) e no Catálogo CAPES de Teses e Dissertações. Buscou-se pelos termos:
Raça, Gênero, Etnia, Religiosidade e Sexualidade e Educação Musical, bem como outros termos
correlatados com essas questões (negro, preto, mulher, homem, feminismo, indígena, quilombola,
religião, fé, espiritualidade, LGBT). Alguns trabalhos encontrados não estavam disponíveis para
download, logo, foram desconsiderados nesta análise. Semelhantemente, os anais de congressos
foram analisados diretamente via página na internet de cada envento.
Quantitativamente, entre artigos, teses, dissertções e trabalhos publicados em anais de
eventos, obteve-se 142 trabalhos multiculturais sobre educação musical. A análise qualitativa,
que será apresentada a partir da próxima seção, foi realizada por meio de análise de conteúdo,
mais propriamente, via categorização (MORAES, 1999), ou seja, analisando o conteúdo de cada
artigo sem se levar em consideração os contextos pelos quais eles foram produzidos, buscou-se
por semelhanças entre eles, sendo possível, dessa forma, produzir categorias fixas, definidas por
regras claras e mutualmente excludentes (CARLOMAGNO; ROCHA, 2016).
As categorias criadas para alocar os trabalhos identificados foram: trabalhos
multiculturalmente explícitos (vertente acrítica, world music e vertente crítica), trabalhos sobre
raça (descritivos e críticos), gênero (descritivos e críticos), sexualidade (críticos), etnia
(descritivos e críticos) e espiritualidade (descritivos e críticos).
Cada trabalho levantado foi lido, estudado e descrito, porém, a fim de poupar o(a) leitor(a)
de uma leitura enfadonha, a presente tese apresentará a análise de um único artigo por categoria.
Todavia, a(o) leitor(a) poderá ter a análise completa de todos os trabalhos levantados nos artigos
produzidos para o curso e disponibilizados no seguinte weblink:
https://www.4shared.com/account/home.jsp#dir=20Hn57Y6.
Os resultados sintetizados aparecerão a seguir.
Poder-se-ia conjecturar, inicialmente, que revistas brasileiras pouco têm associado o tema
do multiculturalismo com a educação musical, enquanto tal tema tem sido mais frequentemente
tratado no exterior, mas tal análise seria equivocada, pois os periódicos internacionais analisados
recebem artigos de todos os países, logo, estatisticamente, o número aparentemente alto de
artigos publicados nas revistas internacionais reduzem-se caso ponderemos o universo total de
artigos em relação ao número de países existentes.
Aponta-se também que pesquisadores(as) de países notadamente multiculturais, a saber,
Estados Unidos, Austrália e Finlândia, destacam-se na publicação de artigos sobre
multiculturalismo na educação musical, o que leva a entender que a demanda social influencia no
tema das pesquisas universitárias, porém tal afirmação não é inteiramente verdadeira, pois se
assim o fosse, haveria um número mais significativo de produções brasileiras sobre
multiculturalismo e educação musical. Possíveis razões para esse número ínfimo no universe
acadêmico brasileiro serão discutidas ao final esse capítulo.
No que se refere aos trabalhos publicados em revistas, congressos ou que são fruto de teses
ou dissertações de programas de pós-graduação brasileiros, percebeu-se também que seis dos
quinze trabalhos sobre educação musical multiculturalmente explícitos levantados são oriundos
da dissertação de mestrado de Santiago (2017), o que corrobora para a afirmação que esse autor
fez em tal dissertação: existem poucos(as) autores(as) no Brasil que têm utilizado o
multiculturalismo como uma lente para se olhar a realidade do ensino de Música no Brasil.
Finalmente, tem-se a análise qualitativa feita para a presente tese, que apontou para três
categorias de trabalhos multiculturalmente explícitos: 1) trabalhos aqui classificados na vertente
do multiculturalismo acrítico; 2) trabalhos que utilizam o multiculturalismo no sentido de world
music e 3) trabalhos ancorados no multiculturalismo crítico.
118
elemento central no texto, podem ser classificados como “acríticos”, por atenderem a uma ou
mais características listadas a seguir:
1) Utilizam o multiculturalismo de forma adjetiva: Conforme anunciado por Hall (2003b),
o multiculturalismo pode ser visto de como uma ideologia, um campo teórico, que norteia o
“gerenciamento das diferenças culturais”, mas, por outro lado, pode também ser visto como um
termo qualitativo, um adjetivo: a sociedade “x” é multicultural. Utilizando esse pensamento, não
estaria se afirmando que a sociedade hipotética da frase é governada por uma linha de raciocínio
que busca valorizar as diferenças, mas sim, que ela é composta por pessoas provenientes de
diferentes grupos culturas e/ou nacionalidades;
2) Tecem seus argumentos sem levar em consideração questões basilares do
multiculturalismo crítico, como o combate contra os diferentes tipos de preconceitos e
discriminações desde o seu foco; a denúncia de processos discriminatórios; a crítica a
hierarquizações culturais; e defesa de minorias (McLAREN, 2000; CANEN; MOREIRA, 2001;
CANDAU, 2006);
3) Não se dedicam em empreender ações e reflexões que intentariam modificar o status
desigual da sociedade e promover, por meio da educação, a justiça social.
Nessa perspectiva, os trabalhos aqui classificados como acríticos, em geral, analisam certo
aspecto do ensino de Música em locais plurais, seja uma escola ou um país, e verificam se tal
pluralidade influencia na análise, sem, contudo, entender questões tipicamente críticas como:
“Qual é a origem desta pluralidade?” “Ela é perpassada por preconceitos e discriminações?”
“Como a educação musical poderia colaborar no gerenciamento dos choques e entrechoques
culturais?” entre outras questões que poderiam ser empreendidas em uma análise crítica.
O que segue é uma análise de um artigo usado para exemplificar tal vertente. Lum (2017)
discute a dificuldade de se pensar na identidade musical da Singapura, um país que alcançou sua
independência somente em 1965, cuja língua oficial é o inglês, mas cujos cidadãos são,
principalmente, de origem chinesa, malaia e indiana. Nesse contexto de pluralidade, surgem as
questões: Qual seria a definição de música singapureana? Qual é a opinião das(os)
compositoras(es) nascidos nesse país? E a visão das(os) professoras(es) de Música?
O multiculturalismo é explorado nesse artigo em uma perspectiva adjetiva, ou seja,
configura uma localidade ou instituição cujos sujeitos que a perpassam são pertencentes a
diferentes culturas e/ou nacionalidades (HALL, 2003b) Desse modo, Singapura é considerada
119
uma nação multicultural pelo autor por sua população ter origem distinta e por isso dificultar, de
certa forma, entender o que seria a identidade singapureana.
Resumindo, o artigo de Lum (2017) explora as relações entre educação musical e
nacionalidade no contexto de Singapura e carrega consigo um caráter levemente crítico, pois não
trata as diferenças de forma celebratória ou vê a inclusão de diferentes músicas no repertório
como possível solução para as demandas causadas pelas diferenças culturais, mas também não
chega a colocar em xeque diretamente os preconceitos, discriminações e estereótipos
relacionados à multiculturalidade existente em Singapura.
Nesse aspecto, surge questões: o fato de Singapura ter uma população que é oriunda de
diferentes nacionalidades não crian nenhum tipo de hierarquização cultural? Pessoas que se
identificam com a cultura chinesa, indiana ou malaia têm algum tipo de tratamento diferenciado?
Como a educação musical no país em questão se posiciona em relação às musicalidades que
comporão o currículo das aulas de Música na educação básica e na formação de professores(as)?
Essas são algumas perguntas que uma abordagem multicultural plenamente crítica poderia fazer.
Apesar de se reconhecer a relevância dos trabalhos ditos “acríticos”, acredita-se que, por
eles não combaterem os preconceitos e discriminações em sua gênese, a saber, o processo
colonizador e as hierarquias socioculturais que dele surgem, tais trabalhos têm o potencial
negativo de colaborarem para, indiretamente, manter as estruturas que reproduzem as injustiças
sociais cotidianas. Mas, de certo ponto, a existência de trabalhos que reconhecem, mesmo que
acriticamente, as diferenças culturais, se constitui em um ponto positivo.
120
selecionar algumas mais condizentes com o conteúdo que deseja ensinar e ministrar as aulas
aos(às) estudantes usando esse repertório global.
Tal termo ganha mais sentido nesse texto com o conhecimento de que Patrícia Shehan
Campbell, uma das autoridades da área do multiculturalismo na educação musical afirma que
world music seria um sinônimo de educação musical multicultural (CAMPBELL, 2002). Para
reforçar o explicitado, indica-se que Stafford-Davis (2011) também afirma que, no contexto
estadunidense, a educação musical multicultural tem sido denominada também de world music.
Portanto, percebe-se que diversas pesquisas e práticas de ensino de Música no mundo estão
sendo implementadas com a perspectiva de que uma educação musical multicultural se dá por
meio da simples e pura inserção de um repertório diversificado, por vezes “exótico”, proveniente
de diversas áreas do mundo nas aulas de música. Não se pretende argumentar que a world music
não é uma abordagem do ensino de música multicultural, mas se afirma que a educação musical
multicultural em si não se limita a tal abordagem, visto que existem outras formas possíveis de se
conceber um ensino de música multiculturalmente orientado (MIGON, 2015; ALMEIDA, 2009,
LUEDY, 2011). Logo, a world music está contida na educação musical multicultural, mas não é
sinônimo dela.
Vale também ressaltar que todos os trabalhos classificados como pertencentes à vertente da
world music poderiam ser classificados como acríticos, pois também atendem aos requisitos
apontados no subtópico anterior, mas os artigos da world music se diferenciam por conceberem
que o preconceito e os diversos tipos de discriminações podem ser combatidos pela pura inserção
de música de diferentes culturas no currículo escolar (CAMPBELL, 2002). É notável também o
pensamento defendido por essa linha de pensamento, que afirma que alguém, ao entender a
música do outro, reforça o entendimento sobre a própria identidade (OMOLO-ONGATI, 2009).
Tais argumentos podem ser refutados: embora as pesquisas tratadas relatem que estudantes
tendem ter uma atitude de respeito e aceitação às culturas que estudam por meio da Música
(ABRIL, 2006), seria ingenuidade, sob um olhar crítico, acreditar que se pode reverter fenômenos
sociais negativos sem abalar as estruturas que sustentam os preconceitos e discriminações. Essas
questões estão tão arraigadas na sociedade que, dificilmente, poderão ser combatidas com
eficiência com um simples repensar do repertório, embora essa atitude também seja importante.
No que se refere à world music poder reforçar a identidade de alguém, visto que se poderia
“ver” a si mesmo quando se conhece o outro, argumenta-se que tal assertiva se baseia em um
121
pensamento moderno de identidade, que a concebe como um elemento fixo e imutável. Ao
contrário, como já se argumentou, afirma-se que a identidade é fluida e passível de mudanças,
logo, a música “do outro” pode muito bem se fundir à nossa identidade e se tornar, também,
“nossa música”. Logo, tal perspectiva defendida pela world music, na verdade, apenas ignora a
possibilidade de hibridismo e aumenta as barreiras entre culturas.
Outro “ponto diferenciador” entre a world music e a vertente acrítica é a preocupação com
o repertório a ser ensinado. Em muitos trabalhos, é implicado que não seria suficiente que ele
fosse “exótico”, mas também que ele fosse ensinado com autenticidade. Para ser autêntico, ou
seja, não estereotipado, seria importante seguir alguns procedimentos, a saber: em caso de
exemplos de gravações (som e vídeo) a serem mostradas em sala de aula, as músicas deveriam 1)
ser executadas por artistas reconhecidos como aptos a representarem tal cultura pelos membros
do grupo sociocultural que a originou; 2) ter como plateia membros de tal cultura; e 3) serem
executadas no ambiente sociocultural de origem (uma aldeia indígena, por exemplo). Além disso,
em práticas de sala de aula, nas quais os(as) estudantes irão tocar e cantar músicas de outras
culturas, seria também importante 4) manter o idioma e o instrumental originais usados no
ambiente sociocultural de origem; 5) demonstrar o devido respeito, por exemplo, em músicas
religiosas ou que expressem luto e 6) explicar aos(às) estudantes(as) a função social e
importância daquela música para aquele povo (OMOLO-ONGATI, 2009; KANG, 2016).
Não se critica diretamente nenhuma dessas práticas, pelo contrário, buscou-se considerá-
las no desenvolvimento e implemetação do curso Música(s) no Plural. Todavia, nem sempre
cumprir essa “lista de exigências” é factível. Nesse contexto, Kang (2016) sugere que os(as)
docentes reflitam com as(os) estudantes as limitações de se reproduzir uma música de outra
cultura autenticamente no ambiente escolar, visto que tal reflexão poderia ter caráter pedagógico.
Porém, uma característica marcante da vertente world music é o fato desta conceber as
diferenças culturais como algo distante, alheio à comunidade a qual a escola está embasada.
Quando se afirma que é preciso ensinar músicas de diferentes culturas para que os(as) estudantes
sejam culturalmente sensíveis, está se afirmando que não existem diferenças locais. Tal
percepção é criticada por teóricos como Candau e Russo (2010), que afirmam que em certos
países, a interculturalidade começou a ser estudada com o advento das imigrações e que os
estudos, nesses países, não reconhecem as diferenças dos “nativos”.
122
Questiona-se se, nos lugares onde a world music é empregada44, todos têm a mesma
religião, a mesma orientação política, se todos ouvem as mesmas músicas e ou compartilham a
mesma sexualidade. A resposta para essa indagação é negativa, logo, as diferenças culturais
existem mesmo em ambientes considerados ‘monoculturais’. Nessa perspectiva, pode-se
trabalhar as diferenças com questões locais, o que corrobora para que os(as) estudantes percebam
as diferenças como algo corriqueiro, e não como algo ‘de fora’, trazido pelos imigrantes.
Um possível fator para que muitos teóricos não reconheçam as diferenças em seus países é
a “ausência” da diferença racial. Em outras palavras, a raça pode estar sendo vista como o único
marcador identitário em muitos países, porém, recorda-se que as diferenças são multifacetadas e
se expressam por diferentes marcadores.
Apesar dessas críticas, pode-se perceber que um número significativo dos trabalhos aqui
identificados foi concebido sob esta perspectiva, sobretudo, trabalhos estrangeiros. O exemplo
dessa vertente a ser citado no corpo desta tese é o trabalho de Precott, Li e Lei (2008) que
discorre sobre um projeto denominado multicultural que buscou implementar em uma
universidade dos Estados Unidos um curso de extensão que, com o apoio de uma universidade
chinesa, buscava ensinar música tradicional desse país para universitários estadunidenses.
Algo interessante no artigo é o fato de que uma das justificativas para feitura de um projeto
de ensino de música tradicional chinesa nessa universidade ser o perfil das(os) universitárias(os)
nessa instituição: a maioria cabal era caucasiana e o projeto visava formar professoras(es) de
Música sensíveis às diferenças musicais, sendo tal sensibilização o objetivo principal do projeto.
Porém, uma perspectiva crítica questionaria, por exemplo, em que medida o ensino de música
tradicional chinesa, de forma isolada de outras musicalidades, colaboraria para a sensibilização
de diferenças não ligadas à identidade chinesa.
Também é curioso o fato desse artigo afirmar que o local no qual a universidade se situava
não era plural e o curso trouxe “diversidade” para o campus. Vê-se, com isso, mais uma
característica dessa abordagem: a percepção da diferença sob lentes do exotismo e folclorismo.
Questiona-se, portanto: é possível haver total homogeneidade cultural em um lugar frequentado
por diferentes pessoas? Todos professam a mesma religião? Todos são heterossexuais? Todos
têm as mesmas origens? Não há nenhum negro? A diferença só se dá quando a cultura é
“estranha”? Ou será que não se consegue ver a diferença dentro de si, mas somente no outro?
44
Percebeu-se que essa vertente é fortíssima nos Estados Unidos da América, país onde se originou.
123
2.3.3 Multiculturalismo embasado na vertente crítica
45
Embora se reafirme que abordagens folclóricas e humanistas pouco podem fazer em relação à superação das
desigualdades, não se afirma que práticas típicas do multiculturalismo folclórico e humanista devem ser ignoradas,
visto que cada vertente tem pontos positivos e negativos, limitações e possibilidades. Para mais informações sobre o
papel de cada abordagem do multiculturalismo, leia Santiago e Ivenicki (2016a).
124
Em outras palavras, caso o objetivo seja também contribuir para a diminuição e/ou eliminação de
preconceitos e discriminações, apenas utilizar um repertório global sem discutir questões críticas
não parece ser uma atitude eficaz.
No que se refere ao recorte “raça” e às suas relações com a educação musical, o quadro a
seguir representa os trabalhos levantados. Apesar do tema do racismo ser um aspecto deveras
presente nas sociedades contemporâneas e um tema muito tratado em outras áreas, como a
educação e a Sociologia, o número pouco elevado de trabalhos sobre o tema sugere que se trata
de um assunto pouco estudado pela área de educação musical.
A leitura dos trabalhos possibilitou a criação de categorias, ou seja, classificações nas quais
os trabalhos se enquadram: trabalhos sobre raça com caráter descritivo e trabalhos sobre raça com
caráter de resistência. Classificou-se como trabalhos descritivos aqueles trabalhos que, apesar de
terem a raça como um aspecto central, apenas descrevem situações de ensino e aprendizagem de
Música nas quais são perpassadas por agentes sociais negros ou têm a música de origem negra
como destaque. Nessa categoria, a questão do racismo e da discriminação não são colocadas em
xeque nem problematizadas.
Já os trabalhos considerados de resistência denunciam situações de racismo e se posicionam
criticamente em relação ao papel subalternizado da pessoa negra na sociedade, além de
apontarem os reflexos de tal subalternização nas dinâmicas de ensino e aprendizagem de Música.
O quadro abaixo resume, em termos quantitativos, os trabalhos encontrados sobre raça e
educação musical.
Dos 13 trabalhos centrados na raça, quatro (30,89 %) foram classificados como trabalhos
que discorrem sobre a temática da raça em uma perspectiva descritiva. É interessante notar que
todos esses trabalhos foram publicados fora do Brasil, pelo International Journal of Music
Education, o que parece indicar que tal temática tem sido analisada sob um parâmetro descritivo
no exterior.
Novamente, ressalta-se que o determinante de um trabalho sobre raça em uma perspectiva
descritiva é, como a noimeclatura indica, descrever uma situação na qual ocorrem processos de
ensino e aprendizado de Música em que aparecem, como destaque, sujeitos negros ou a música
de origem negra. Esses trabalhos não aparentam ter a intenção de discutir, denunciar ou
problematizar situações de racismo.
Como trabalho típico dessa vertente, tem-se o artigo de Vanwellden e McGee (2007) que
analisaram a influência da raça do regente e do estilo da música que ele rege na percepção que a
plateia porduz da performance desse profissional e do grupo por ele regido. Os procedimentos
metodológicos foram os seguintes: dois regents, sendo um negro e um branco, foram convidados
para regerem duas músicas, uma música "clássica" e a outra "espiritual", que foram entoadas pelo
mesmo coro. Tais performances foram gravadas. Observadoras(es) externas(os), todas(os)
graduandas(os) em Música, avaliaram as gravações e pontuaram as performances, levando em
consideração diferentes critérios, como o contato visual, as expressões faciais e a postura dos
regentes, atribuindo notas de 1 a 5.
Como resultados, obteve-se que as notas maiores relacionadas à regência da música
"clássica" foram dadas ao regente branco, enquanto as notas mais altas relacionadas à música
"espiritual” foram dadas ao regente negro. A análise destes dados levou a autora e o autor a
concluírem que estereótipos raciais influenciaram na decisão, pois, possivelmente, os(as)
avaliadores(as) consideram a música "clássica" como música de pessoas brancas e músicas
"espirituais" como músicas de pessoas negras.
126
Tem-se, portanto, um artigo genuinamente descritivo, ou seja, que descreve como pessoas
de diferentes raças executam determinadas funções e como a sociedade e as percebe, sem,
contudo, buscar discutir e combater estereótipos e preconceitos relacionados a tais ações e
percepções.
No que se refere aos trabalhos que discutem as diversas relações que o gênero estabelece
com a educação musical, percebe-se números superiores aqueles encontrados na análise de raça.
A mesma classificação proposta para os trabalhos de raça e educação musical pode também ser
utilizada em trabalhos sobre gênero e educação musical, ou seja, os trabalhos levantados foram
classificados como trabalhos sobre gênero com caráter descritivo e trabalhos sobre gênero com
caráter de resistência.
Os trabalhos sobre gênero com caráter descritivo comparam experiências de ensino e
aprendizagem de Música vivenciada por homens e/ou mulheres, e meninos e/ou meninas. Tais
análises demonstram como diferenças de gênero socialmente estabelecidas são incorporadas pela
educação musical, mas, ao mesmo tempo, correm o risco de reproduzir estereótipos de gênero,
127
visto que esses artigos tendem a tratar tais diferenças de forma natural, ou seja, não analisam
como elas se formaram social e culturalmente. Também é interessante notar que tais trabalhos
apresentam uma concepção binária de gênero, ignorando a transgeneridade e outras formas de se
ser que fogem à dicotomia homem/mulher. Em suma, ao se ler tais trabalhos, tem-se a impressão
de que “o que está descrito aqui é assim e pronto”.
Já os trabalhos sobre gênero com caráter de resistência criticam as representações sociais
sobre gênero e, sobretudo, por meio de um referencial feminista e/ou decolonial, problematizam e
denunciam potenciais machistas que perpassam o ensino de Música. Tal enfoque tem maior
potencial para que ações preconceituosas e estereotipadas sejam atenuadas ou completamente
extirpadas da educação musical.
Apesar desse potencial, é notório que os trabalhos críticos sobre gênero aparecem em
número muito menor do que trabalhos descritivos, e que o assunto “gênero”, de forma geral, é
pouco tratado no Brasil, como se vê na Tabela 3.
128
foram levantados 24 (68,60 % do total) de trabalhos nessa perspectiva, sendo que metade deles
foram publicados no International Journal of Music Education e apenas dois deles no Brasil46.
Um exemplo de trabalho de gênero em uma perspectiva descritiva que discorre sobre
comportamento de estudantes/professoras(es) de Música é o artigo de Rose (2016). No contexto
de ensino de Música na educação infantil, a autora analisou a diferença na capacidade
apresentada por meninos e meninas em manter uma pulsação constante, com pés ou mãos, em
músicas com andamentos lentos, médios e rápidos. Notou-se que meninas conseguem manter
uma pulsação mais constante com as mãos e em músicas com ritmos lentos, enquanto meninos
tem maior eficácia em ritmos médios e utilizando as mãos. Ambos meninos e meninas tiveram
dificuldades em manter pulsações constantes com os pés.
Tem-se, portanto, um trabalho meramente descritivo, que apenas descreve como gêneros
comportam-se de forma diferente em determinados contextos musicais, sem, contudo, levantar
considerações críticas sobre tais diferenças de comportamento.
Os artigos classificados dentro desta categoria (11 trabalhos, constituindo 31,4% do total)
se distinguem por conceberem as relações de gênero como construtos socioculturais cabíveis de
mudança a fim de se engendrar uma realidade socialmente justa para diferentes gêneros,
especialmente, os não normativos.
Como exemplo de um trabalho classificado dentro dessa categoria, cita-se a pesquisa de
Wehr (2016). No contexto estadunidense, essa autora problematiza a dominação masculina no
contexto do Jazz. O artigo argumenta que as mulheres são pouco presentes nesse gênero musical,
ficando restritas, muitas vezes, ao canto e à prática de piano. A autora propõe uma teoria para
explicar o fenômeno, baseada no tokenismo, no risco do estereótipo e na baixa autoeficácia que o
jazz oferece às mulheres.
Por tokenismo, entende-se a presença ínfima de uma minoria em certo grupo, no caso,
mulheres são minorias no jazz e, quando estão presentes, tem-se, em geral, apenas uma em cada
46
É interessante notar que grande parte desses trabalhos recorre a metodologias qualitativas, sobretudo, por estudos
estatísticos com amostragens deveras grandes, muitas vezes, situadas à casa dos milhares. A educação musical
brasileira tem pouco costume de assim o proceder, ou seja, análises brasileiras são mais focadas e qualitativas.
129
grupo, e dificilmente em posições de liderança. O tokenismo cria o risco do estereótipo, pois já
que muitas mulheres sabem que serão minorias em um ambiente "masculino", elas o evitam para
não serem estereotipadas como “duronas” ou pouco femininas.
Aliado a isso, tem-se que o jazz, por ser visto como um ritmo agressivo, corrobora para
que muitas pessoas o classifiquem como uma forma de musicalidade a ser tocada por homens, o
que, por conseguinte, faz com que as mulheres sintam-se pouco convidadas e, muitas vezes,
incapacitadas de estudar tal musicalidade. A autora propõe que mais mulheres possam estudar
jazz e que meninas sejam incentivadas a tocar instrumentos do repertório jazzístico, a fim de que
esses preconceitos e estereótipos sejam revertidos.
132
Nesse subtópico serão sumarizados os trabalhos que discorriam sobre etnia na educação
musical sob uma perspectiva descritiva, ou seja, que apenas narram como o ensino de Música se
dá na perspectiva de certa etnia ou grupo étnico sem, contudo, considerar as relações de poder
imbricados nesse processo.
Quantitativamente, percebe-se que a maior parte dos trabalhos levantados pode ser
classificado nessa categoria, visto que dos 24 trabalhos sobre etnia na educação musical, 14
foram classificados como descritivos, ou seja, 58,3%. Pode-se conjecturar que tal número de
trabalhos descritivos sejam provenientes de uma tradição antropológica e etnomusicológica que
busca analisar e entender culturas “exóticas” sem, contudo, buscar auxiliar no processo de
emancipação de tais sociedades, quando assim elas desejarem.
Um exemplo de trabalho sobre etnia na perspectiva descritiva é o artigo Dzansi (2004), que
analisa as brincadeiras musicais feitas por crianças em playgrounds de escolas ganesas. A autora,
após realizar suas observações, afirma que as práticas musicais no playground é altamente
participativa, visto que ninguém apenas observa na funçao de plateia, e que as crianças aprendem
a cooperar umas com as outras e segue, estritamente as regras do jogo como parte do processo de
aprendizagem.
Ela também verificou disparidades significativas na música presente nos playgrounds e nas
dinâmicas das aulas de música formais na escola: enquanto as músicas dos jogos de playground
são ensinadas pelas próprias crianças e aprendidas por meio da imitação - fazer, observar,
participar - bem como pela transmissão oral, as aulas de música formais não utilizam tal
conhecimento extraescolar das crianças e se focam no pressupostos do ensino conservatorial, a
saber, pouco uso da corporeidade, ênfase no ensino da leitura musical padronizada e da teoria
musical abstrata e uso escasso de músicas indígenas no repertório. Por fim, a autora sugere que as
brincadeiras de playground possam fazer parte das aulas de Músicas formais na educação básica
ganesa.
Doze dos treze trabalhos levantados (92,3%) foram escritos sob a ótica da perspectiva
descritiva, sendo que nove desses trabalhos descritivos discorreram sobre aspectos ligados ao
cristianismo.
Apenas foram localizados dois trabalhos que discutem o processo de ensino e
aprendizagem em terreios de candomblé. Lunelli (2015a) relata a sua experiência de um projeto
de estágio curricular de graduação denominado "Influência dos ritmos de religião afro na música
popular", que tinha como intuito apresentar e contextualizar diferentes ritmos de religiões afro-
brasileiras. O autor aponta que a oficina possibilitou que os participantes aprendessem mais sobre
a música brasileira e como as músicas de religiões de matriz afro-brasileira contribuiram para o
desenvolvimento destas.
Já Lunelli (2015b) analisou os processos de ensino e aprendizagem de Música em casas de
religião afro-brasileiras em Caxias do Sul. O artigo mostra como a educação musical dos terreiros
acontece de forma rígida, contudo, informal, sendo ensinada de maneira oral e aprendida de
forma aural e modelar. Emerge também nesse trabalho a necessidade de se propiciar que ogans e
alagbés se façam presentes no espaço escolar, para ensinarem sobre música candomblecista..
135
um conflito religioso entre protestantes e católicos que durou décadas e que, embora esteja
oficialmente findado, ainda influencia na divisão da sociedade.
Em tal artigo, Odena (2017) aponta que a educação musical tem potencial para que
preconceitos sejam descontruídos, por meio da prática musical em conjunto com crianças de
diferentes origens. Para tal, o autor empreendeu uma pesquisa com catorze professoras(es) que
atuam ou atuavam com projetos e/ou escolas que recebiam crianças católicas e protestantes, a fim
de categorizar suas falas em relação ao tema.
O artigo indica que existe fundamentalismo no meio cristão e que este é tão perigoso como
qualquer outro. Em casos como esses, é preferível que preconceitos sejam tratados por meio de
aulas neutras, que não fomentassem discussões críticas entre grupos diferentes e que não
utilizassem um repertório característico dos protestantes ou católicos. Portanto, na visão do autor,
a Música contribuiria com a discussão por oferecer um espaço no qual pessoas diferentes
convivam de forma harmônica em um ambiente alegre e, por meio de tal interação, seria possível
que discriminações fossem combatidas.
136
International Journal of Music Education A1 10 16 5 31
Educação, Artes e Inclusão A2 - - 1 1
OuvirOUver B1 - - 1 1
E-curriculum A2 - - 1 1
Research Studies in Music Education B1 4 3 1 8
ANPEd A1 - - 1 1
Anais da ABEM A1 1 - 4 5
Teses e Dissertações - - - 2 2
Total 16 20 18 54
TRABALHOS SOBRE RAÇA NA EDUCAÇÃO MUSICAL
RAÇA
FONTE ESTRATO
RR RD Total
International Journal of Music Education A1 3 4 7
Revista Orfeu A1 3 4 7
Congresso da ABEM A1 1 - 1
Teses e Dissertações - 2 - 2
Total 9 4 13
TRABALHOS SOBRE GÊNERO EM EDUCAÇÃO MUSICAL
GÊNERO
FONTE ESTRATO
GD GR Total
Revista da ABEM A1 1 - 1
International Journal of Music Education A1 12 8 20
Per Music A1 - 1 1
RSME B1 10 - 10
Teses e Dissertações - 1 2 3
Total 24 11 35
TRABALHOS SOBRE SEXUALIDADE EM EDUCAÇÃO MUSICAL
SEXUALIDADE
FONTE ESTRATO
SD SR Total
Research Studies in Music Education B1 - 2 2
Revista da ABEM A1 - 1 1
Total - 3 3
TRABALHOS SOBRE ETNIA EM EDUCAÇÃO MUSICAL
ETNIA
FONTE ESTRATO
ED ER Total
137
Revista da ABEM - 1A1 1
International Journal of Music Education 6 2A1 8
Research Studies in Music Education 7 5B1 12
Revista Orfeu - 1A1 1
Teses e Dissertações 1 1- 2
Total 14 10 24
TRABALHOS SOBRE RELIGIOSIDADE NA EDUCAÇÃO MUSICAL
RELIGIOSIDADE
FONTE ESTRATO
ReD ReR Total
Revista da ABEM A1 2 1 3
International Journal of Music Education A1 2 - 2
Research Studies in Music Education B1 1 - 1
Anais da ABEM A1 6 - 6
Teses e dissertações - 1 - 1
Total 12 1 13
TRABALHOS POR FONTE
DESCRITIVOS,
WORLD
TOTAL
RESISTÊNCIA E MUSIC E
FONTE CRÍTICOS ACRÍTICOS
International Journal of Music Education 18 50 68
Research Studies in Music Education 8 25 33
Anais da ABEM 5 7 12
Teses e Dissertações 7 3 10
Revista da ABEM 4 3 7
Revista Orfeu 4 - 4
Música Hodie - 2 1
Educação, Artes e Inclusão 1 - 1
OuvirOUver 1 - 1
E-curriculum 1 - 1
Anais da ANPEd 1 - 1
Per Music 1 - 1
Revista OPUS 1 - 1
Total 52 (36,6%) 90 (63,4%) 142 (100%)
Tabela 7: Resumo dos dados quantitativos
Contudo, tais fatos são passíveis de mudança. No próximo subtópico, serão apresentados os
princípios norteadores identificados tendo como base a leitura dos 142 trabalhos que constituiram
o presente levantamento bibliográfico.
Por meio do estudo dos trabalhos levantados, foi possível identificar diferentes princípios
norteadores, ou seja, concepções e práticas que podem orientar aulas de Música multiculturais.
Tais eixos norteadores identificados foram considerados por ocasião da elaboração dos currículos
prescrito e praticado do curso de extensão Música(s) no Plural!
Pode-se pensar, inicialmente, em orientações relacionadas à ampliação dos horizontes
musicais das(os) estudantes de diferentes níveis, como: 1) a inclusão de músicas de diferentes
culturas, oriundas de raças e etnias minoritárias, no currículo do ensino superior de Música,
sobretudo, na formação de professoras(es) 47; 2) o favorecimento do contato das(os) estudantes
com músicas de culturas diferentes da sua48; 3) o contínuo esforço para que, sempre que possível,
gêneros musicais de outras culturas sejam ensinados autenticamente, ou seja, zelando para que
sejam ensinados e executados assim como o são nas suas culturas de origem49; e 4) a concepção
da possibilidade de se efetuar hibridismos entre gêneros não ocidentais com ocidentais, a fim de
47
De acordo com ideias expressas nos textos de Boon (2012), Moutinho (2015), Siedleck (2016), Santiago e Ivenicki
(2016c), Santiago e Monti (20018), Sheridan e Byrne (2009), Luedy (2009, 2010, 2011) e Almeida (2009, 2010a,
2010b).
48
Conforme Migon e Nogueira (2015), Migon (2015), Joseph (2015), Cain (2015), Walling (2016), Silverman
(2018), Volk (2006), Moore (2002), Schippers (2000), Abril (2006), Killian e Sekallega (2018), Wemyss (1991),
Fragoso (2015, 2017), Burton e Dunbar-Hall (2001) e Costigan e Neuenfeldt (2002).
49
Segundo Schippers (2000), Volk (2006), Abril (2006), Santos e Candusso (2015), Killian e Sekallega (2018),
Walker (2005), Marsh (2000), Burton e Dunbar-Hall (2001), Fragoso (2015, 2017), Costigan e Neuenfeldt (2002),
Smith (2002) e Omolo-Oganti (2009).
140
proporcionar maior acesso e popularização das musicalidades não ocidentais por parte dos(as)
estudantes50
Semelhantemente, foram identificados eixos norteadores relacionados à valorização do
conhecimento extraescolar da(o) estudante, como 1) a estima da música midiática em sala de
aula, sobretudo, aquela que as(os) estudantes trazem para a escola, sem, contudo, deixar de
analisar criticamente as mensagens transmitidas pelas letras, conscientizando as(os) estudantes
sobre possíveis preconceitos presentes ou sobre o fato de tal música não condizer com a faixa
etária do alunado51; e 2) o apreço por atividades musicais que as(os) estudantes empreendem fora
da escola, como jogos e brincadeiras52.
Também emergem como princípios norteadores algumas atitudes a serem incorporadas na
prática das(os) docentes de Música, a saber, 1) a necessidade de se explicitar, durante as aulas de
Música, a função que uma música de outra cultura tem na sua sociedade de origem 53; 2) o ato de
se ensinar canções de outras culturas no idioma original, trazendo, também, o significado da letra
e a correta enunciação das palavras54; 3) a utilização da música popular e midiática, que faz parte
da cultura juvenil mundial, como ponto de partida e referência, ao invés de se utilizar a música de
concerto, como geralmente ocorre55; 4) a valorização da cultura musical da terra natal de cada
estudante, em ambientes educativos caracterizados pela presença de pessoas de diferentes origens
56
; 5) o estímulo docente à presença de músicos proveniente de grupos étnicos minoritários, como
indígenas, quilombolas, refugiados etc., dotados de notório saber musical, no ambiente escolar57;
6) a busca, por parte do docente, pela fluência em, pelo menos, um gênero musical não ocidental
58
; 7) a propiciação de que, em gêneros nos quais a música está intrinsecamente relacionada com
a dança, favorecer que as(os) estudantes também possam dançar, assim como ocorre nas culturas
de origem59; e 8) a valorização e o ensino do instrumental próprio de cada gênero musical,
50
Tomando como referências os textos de O’Flynn (2005), Biernoff e Bloom (2002), Southcott e Joseph (2007),
Dunbar-Hall (2000) e Wenyss (1991).
51
Assim como se lê em Lima (2005), Penna (2005, 2006) e Ribeiro (2008b).
37
Conforme Young (2012) e Dzansi (2004).
53
Segundo O’Flynn (2005), Abril (2005), Smith (2002) e Omolo-Oganti (2009).
54
De acordo com Abril (2006), Marsh (2000) e Fragoso (2015, 2017).
55
Usando como referência Law e Ho (2015), Saether (2008), Dunbar-Hall e Wenyss (2000), Boon (2014), Marsh
(2012), Wemyss (1991), Schimidt (2015 e Ribeiro (2008).
56
Conforme Miettinen et al. (2018) e Karlsen (2014).
57
Assim como escreve Joseph e Southcott (2013), Kennedy (2009) e Marsh (2000).
58
De acordo com o entendimento de O’Flynn (2005).
59
Assim como entendido pelas leituras de Walker (2005), Marsh (2000), Emberly e Davidson (2001), Costigan e
Neuenfeldt (2001), Smith (2002).
141
utilizando, de preferência, instrumentos autênticos e afinados de acordo com as escalas da cultura
de origem60.
Foi possível também identificar algumas atitudes que buscariam o gerenciamento positivo
das diferenças em sala de aula, a saber: 1) o esforço para que as aulas de Música se tornem
espaço-tempos para que pessoas de diferentes culturas possam conviver e aprender umas com as
outras, dissipando, assim, preconceitos e discriminações61; 2) em alguns casos, como em locais
marcados por violência extrema entre grupos rivais ou em situação de hostilidade continua,
emerge como princípio norteador a preferência por um repertório “neutro”, ou seja, que não seja
representativo para nenhum dos grupos representados na sala de aula62; e 3) o gerênciamento das
diferenças linguísticas e religiosas durante as aulas de Música, de modo a evitar reproduções e
conflitos63;
No que se refere aos eixos norteadores que objetivam sensibilizar e tonar estudantes críticos
em relação às diferenças, obteve-se o que se segue: 1) o combate frequente a preconceitos contra
culturas, sociedades e musicalidades64; 2) a realização de discusssões sobre como a Música se
relaciona com a construção da identidade de modo geral (raça, etnia, gênero, sexualidade,
religiosidade, entre outras categorias identitárias)65; 3) a propiciação de discussões relacionadas à
lacuna de conhecimentos oriundos de grupos minoritários nos currículos da Música na educação
básica e ensino superior66; 4) a utilização, nas salas de aulas, de músicas compostas, tocadas ou
cantadas por indígenas, mulheres, pessoas negras e pessoas LGBT+, apresentando tal informação
aos(às) estudantes, e possibilitando a representatividade de tais pessoas67; 4) a apresentação de
histórias de vida de pessoas com identidade não-normativa que ascenderam em papéis de
60
Dentro do entendimento de Schippers (2000), Volk (2006), Marsh (2000).
61
Segundo Bartolome (2018) e Fragoso (2015, 2017 ).
62
Tomando Odena (2017) como referência.
63
Conforme Odena (2017) e Miettinen et al. (2018).
64
Tomando como base Batista et al. (2017), Abril (2006), Emmanuel (2005), Santos e Candusso (2015), Costigan e
Neuenfeld (2002), Marsh (2012), Santiago e Ivenicki (2016e), Santiago e Monti (2018), Odena (2017) e Penna
(2005, 2006).
65
Assim como entendido em Lum (2017), Han e Leung (2917), Lum e Dairianathan (2015), O’Hagin e Harnish
(2006), Nethsinghe (2012), Hess (2018), Santos e Candusso (2015), Freer e Tan (2014), e Elorriaga (2011), Powell
(2014), Aguilar (2001), Fragoso (2015, 2017), Costigan e Neuenfeldt (2002) e Odena (2017)
66
De acordo com Kindall-Smith et al., 2011, Marsh (2000), Wemyss (1991), Emberly e Davidson (2001) e Fragoso
(2015, 2017).
67
Conforme Boon (2014), Kruse (2016), Hess (2018), Palkki e Caldwell (2018), Emberly e Davidson (2001),
Fragoso (2015, 2017), Burton e Dunbar-Hall (2001) e Costigan e Neuenfeldt (2002).
142
liderança e/ou sucesso em atividades relacionadas à Música68; 5) a compreesão de como o
conhecimento de grupos minoritários contribuiu para o desenvolvimento musical de dada
sociedade69; 6) a propiciação do entendimento de que as diferenças culturais se dão dentro das
fronteiras de certo país, não sendo, portanto, necessário ir a outros contextos para se aprender
sobre a pluralidade70; 7) a crítica relacionada à centralidade da música elitizada de tradição
europeia nos currículos de Música, seja na educação básica ou no ensino superior71; 8) a
elaboração de reflexões sobre como a religião, sobretudo, a cristã, influencia a sociedade e o
fazer musical da mesma72 e 9) a realização de diálogos e debates constantes com as(os)
estudantes sobre como questões como raça, etnia, religiosidade, sexualidade e gênero estão
presentes nas músicas, seja nas mensagens passadas pelas letras ou pelos marcadores identitários
daqueles que as criam ou as consomem73.
No tocante ao gênero, os princípios norteadores identificados são os que vêm a seguir: 1) a
realização de discussões sobre como a música e a educação musical se relacionam com a
construção da identidade de modo geral e como elas, muitas vezes, reproduzem papéis de gênero,
que tendem a favorecer homens e desfavorecer mulheres 74; 2) a utilização, nas salas de aulas, de
músicas compostas, tocadas ou cantadas por mulheres e/ou pessoas LGBT+, apresentando tal
informação ás(aos) estudantes, possibilitando a representatividade de tais pessoas75; e 3) o
questionamento relacionado ao porquê de, na sociedade, papéis de liderança relacionados à
música serem exercidos, majoritariamente, por homens brancos heterossexuais76.
Também foram identificados os seguintes princípios norteadores que discorrem sobre o
gênero: 1) o entendimento de como a temática do gênero e da sexualidade se relacionam entre si
e com a música77; 2) a descontrução de estereótipos de gênero relacionados à prática do canto ou
68
Segundo Cruz (2013) e Bennett (2008).
69
Tomando Kindall-Smith et al. (2011) e Fragoso (2015, 2017) como referências.
70
Segundo Prescott et al. (2008), Floyd (2001), Fragoso (2015, 2017), Burton e Dunbar-Hall (2001), Costigan e
Neuenfeldt (2002), e uma crítica à Westerlund et al. (2015).
71
Assim como entendido em Kindall-Smith et al. (2011), Hess (2015), Mantie e Tucker (2012), Dzansi (2004),
Marsh (2000), Wemyss (1991), Emberly e Davidson (2001), Burton e Dunbar-Hall (2001), Costigan e Neuenfeldt
(2002), Penna (2005, 2006), Ribeiro (2008a), Luedy (2009, 2010, 2011) e Santiago (2015).
72
Conforme Odena (2017), Huang (2011) e Martinoff (2004, 2010).
73
Referencianddo VanWellden e McGee (2007), Lima (2005) e Odena (2017).
74
Assim como entendido em Freer e Tan (2014), e Elorriaga (2011), Powell (2014), Treacy (2019) e Almqvist e
Hentschel (2019).
75
Conforme Palkki e Caldwell (2018).
76
Segundo VanWellden e McGee (2007), Bennett (2008), Almqvist e Hentschel (2019).
77
Conforme Siedleck (2016).
143
à escolha dos instrumentos musicais que meninos e meninas irão tocar78; 3) o repensar de papéis
generificados e estereótipos relacionados à prática musical, possibilitando que meninas e
mulheres adentrem em “ambientes musicais masculinos” e vice-versa, caso queiram 79
; 4) a
possibilidade de que todos(as) os(as) estudantes, incluindo meninas e mulheres, assumam papel
de liderança em atividades, como na regência, por exemplo80; 5) a assunção de que, em muitos
casos, é possível “desgeneirizar” a educação musical, tornando as diferenças de gênero
dispensáveis nas tomadas de decisões relacionadas ao ensino de música81; 6) a conscientização
sobre como hormônios, naturais ou artificiais, causam mudanças vocais em adolescentes e
adultos(as), que poderá ocasionar em uma prática de canto que não afete a voz e a autoestima
das(os) cantores(as), seja em idade de puberdade ou nos períodos pré-menstrual e menstrual82; 7)
a percepção crítica de como a educação musical é estabelecida dentro de uma norma
heteronormativa e sobre um olhar masculino, corroborando assim para que homens e meninos
valorizem atividades musicais que reafirmem a masculinidade, enquanto mulheres e meninas são
estimuladas a expressarem sua musicalidade de forma tal que agradem ao sexo oposto 83, a
rejeição de inclusões via meros tokenismos, o que poderá propiciar que meninas e mulheres, uma
vez incluídas em ambientes “masculinos”, tenham total capacidade de expressar sua musicalidade
a contento, sem sofrer estigmas84 e 8) a possibilidade de que as formações inicial e continuada de
professoras(es) de Música sejam perpassadas por conteúdos relacionados ao trato das diferenças
de gênero85.
Identificou-se também, princípios norteadores que estão diretamente relacionados ao
tratamento de pessoas transgêneras, agêneras ou não-binárias em aulas de Música: 1) a adoção
dos nomes sociais das estudantes transgêneras, bem como o respeito aos pronomes relacionados à
identidade de gênero escolhido por elas86; 2) o repensar do vocabulário utilizado nas aulas, a fim
78
Segundo Gürgen (2016), Kelly e VanWeelden (2014), Hallam et al. (2008), Ho (2003), Almqvist e Hentschel
(2019).
79
De acordo com Ho (2003), Freer e Tan (2014), McPherson e O’Neil (2010), McPherson et al. (2015), Leung
(2008), Westerlund e Partti (2018), Barbabé-Villodre e Martinéz-Bello (2018), Wehr (2016), Lima (2005), Bannett
(2008), Almqvist e Hentschel (2019), Treacy (2019).
80
Segundo Barbabé-Villodre e Martinéz-Bello (2018) e Bennett (2008).
81
Assim como entendido em Palkki (2020).
82
De acordo com Lã e Davidson (2005) e Freer (2006).
83
Segundo Almqvist e Hentschel (2019).
84
Conforme Wehr (2016), Treacy (2019).
85
Conforme argumentado por Garret e Spano (2017), Treacy (2019).
86
Segundo Palkki e Caldwell (2018), Palkki (2020), Cayari (2019) e Garret e Spano (2017).
144
de se evitar expressões machistas ou heterossexistas87; 3) o entendimento de que a voz
transgênera é complexa, logo, deve-se estudar cada caso individualmente com o intuito de
encaminhar a estudante da melhor forma possível88; 4) a compreensão de que a extensão vocal
não se relaciona com a identidade de gênero, logo, é perfeitamente possível que mulheres
transgênera tenham uma extensão vocal socialmente estipulada como “masculina” e vice-versa89;
5) a percepção de que o uniforme das(os) coristas pode reproduzir estereótipos de gênero e, não
necessariamente, representar estudantes transgêneras, agêneras ou não-binárias90 e 6) a reflexão
sobre a viabilidade de não classificar corais ou quaisquer outros agrupamentos musicais como
“masculinos” ou “femininos”91.
Mais especificamente em relação ao tratamento das questões relacionadas com a
sexualidade em aulas de Música, foram localizados os seguintes eixos norteadores: 1) o
empreendimento de esforços para que a causa LGBT+ seja promovida no ambiente escolar e que
as aulas de Música sejam lugares seguros nos quais tais estudantes não sofram qualquer tipo de
preconceito92; 2) a utilização de um vocabulário que não reproduza a heteronormatividade nem a
dominação masculina, possibilitando a melhor inclusão de diferentes gêneros e sexualidades no
cotidiano escolar; e 3) a adoção de atitudes que rechacem qualquer tipo de ações, como
“brincadeiras”, piadas, comentários etc., seja eles realizados de forma presencial ou virtual, que
expresse ou estimule preconceitos contra pessoas LGBT+93.
Por fim, surgem ações mais complexas, destinadas a instâncias superiores, do governo e das
universidades, que, talvez, não sejam da alçada de um(a) professor(a) universitário ou da
educação básica, a saber: 1) o empreendimento de ações afirmativas que tenham como objetivo
corroborar para que professoras(es) de pertencentes às minorias raciais, étnicas, religiosas e
sexuais tenham espaço na docência, tanto da educação básica como no ensino superior 94 e 2) a
possibilidade de que as formações inicial e continuada de professores(as) de Música sejam
perpassadas por conteúdos relacionados ao trato das diferenças culturais95.
87
Conforme Palkki e Caldwell (2018).
88
Como entendido em Cayari (2019) e Palkki (2020).
89
Segundo Palkki (2020).
90
Segundo entendido em Palkki e Caldwell (2018) e Palkki (2020).
91
De acordo com Palkki e Caldwell (2018) e Palkki (2020).
92
De acordo com Palkki e Caldwell (2018).
93
Todos esses princípios norteadores relacionados à sexualidade estão de acordo com Palkki e Caldwell (2018).
94
Conforme Garret e Spano (2017).
95
Segundo Santiago e Ivenicki (2016c), Garret e Spano (2017) e Marsh (2000).
145
Percebe-se que tais eixos norteadores entram em consonância com outros trabalhos que
também buscaram apontar princípios multiculturais para o currículo em ação (CANEN;
MOREIRA, 2001; SANTIAGO; 2013, 2015; SANTIAGO; MONTI, 2016), se constituindo em
pontos mais detalhados. Salienta-se novamente que esses princípios foram considerados na
elaboração do curso de exntensão Música(s) no Plural!, sendo também discutidos com as(os)
cursistas.
Nessa perspectiva, mais do que um tópico a ser feito para se cumprir as exigências
burocráticas de uma tese, o que a consolidaria como um item estático, pouco relevante e isolado
do restante do trabalho, a presente revisão bibliográfica perpassou toda a pesquisa, constituindo-
se em um item estruturante e atuante.
Contudo, embora seja muito importante, a pura análise da literatura não é suficiente para se
identificar os princípios norteadores de uma educação musical multicultural, pois é extremamente
relevante que pessoas em situação de subalternidade possam também ter voz ativa na construção
de currículos multiculturais. Em outras palavras, é preciso conversar diretamente com pessoas
que se identificam com certa identidade oprimida para que elas contribuam com suas impressões
sobre o que precisa estar presente nos currículos das aulas de Música, a fim de diminuir e reverter
quadros de discriminação e preconceitos, e favorecer a representatividade e a justiça cognitiva e
curricular. Caso não se leve em consideração as falas de pessoas em situação de subalternidade,
os princípios norteadores apresentados a pouco terão funções colonialista, por somente levarem
em consideração as sugestões de uma elite, a saber, a comunidade científica, e negligenciar o que
outras esferas da sociedade têm a dizer. Como um dos eixos da colonialização é a colonidade do
saber (WALSH, 2012), ouvir as vozes das identidades subalternas se constitui em uma forma de
resistência, de empoderamento e de descolonização.
Nessa perspectiva, o próximo capítulo desta tese iniciará tal questão, trazendo a análise das
entrevistas feitas com musicistas autodeclaradas(os) negras(os), mulheres cisgêneras ou
transgêneras, candomblecistas, indígenas Guarani Mbya e/ou pessoas homoafetivas, a fim de que
possam contribuir com suas experiências, histórias de vida e saberes, sugerindo pistas sobre como
podem ser construídos currículos de Música multiculturalmente orientados.
146
III
DANDO VOZ A QUEM TEM DIREITO: AS ENTREVISTAS
O presente capítulo tem como objetivo trazer os resultados provenientes das análises das
entrevistas. Recorda-se que foi necessário empreender entrevistas pois, à medida que se pretende
analisar o desenvolvimento de aulas de Música multiculturais, é oportuno que os saberes
provenientes de identidades subalternas não venham a ser incluídos no currículo sob um olhar
“outro”, em outras palavras, o desenvolvimento de um currículo multiculturalmente orientado,
voltado para a valorização da identidade negra, indígena, candomblecista, homoafetiva e
feminina, não deveria se dar somente pela perspectiva de pessoas que não se identificam com tais
identidades, pessoas essas que não sofrem cotidianamente as mazelas que o pertencimento
identitário impõe. É necessário, portanto, garantir o lugar de fala dessas identidades (RIBEIRO,
2017).
Desse modo, sob uma perspectiva decolonial (WALSH, 2012), buscou-se a
representatividade, ouvindo a voz de quem tem direito a fala, no presente caso, pessoas negras,
mulheres, indígenas, candomblecistas e pessoas homoafetivas. Partiu-se, portanto, do pressuposto
de que pessoas com identidade não-normativa e com notório conhecimento de Música, por
sentirem na pele o preconceito e a discriminação na escola, na carreira musical e na vida em
geral, têm muito contribuir no que se refere ao entendimento sobre como a Música produz e
reproduz estereótipos identitários e sobre como aulas de Música poderiam ser estruturadas para
evitar tais (re)produções.
147
No total, foram realizadas seis entrevistas, sendo que, exceto na questão indígena, na qual
foi possível entrevistar um único sujeito, pelo menos duas pessoas representaram cada marcador
identitário estudado na presente tese. É interessante ressaltar que, como já foi argumentado no
primeiro capítulo, a identidade é um conceito que abarca muito mais do que um marcador, logo,
uma pessoa não é somente negra, ou homoafetiva, ou candomblecista, pelo contrário, se é,
concomitantemente, mais de uma identidade (HALL, 2003a, 2005; WOODWARD, 2014). Nesse
sentido, percebeu-se a possibilidade de uma mesma pessoa representar mais de um marcador
identitário, caso ela assim concordasse.
Tais entrevistas seguiram o formato de entrevistas semiestruturadas, ou seja, existia um
roteiro previamente criado, porém, o pesquisador teve a liberdade de adicionar ou suprimir
perguntas conforme visse necessidade no desenrolar da entrevista (BONI; QUARESMA, 2005).
Tal roteiro é apresentado abaixo:
(a) Ao seu ver, como a sua identidade (de raça, gênero, sexualidade, etnia e religiosidade) é
tratada pela sociedade?
(b) Você acredita que o ensino de Música reproduz estereótipos relacionados à sua
identidade?
(c) Durante sua formação, enquanto professor(a) de Música e/ou musicista, questões
relacionadas à sensibilização às diferenças culturais foram tratadas?
(d) Ao seu ver, como aulas de Música podem contribuir para o combate aos preconceitos e
discriminações na educação básica e na formação de professores(as) de Música?
96
Número do parecer: 3.834.946.
149
A seguir, tem-se um pequeno resumo sobre a vida das(os) entrevistadas(os), para que o
leitor(a) compreenda melhor suas trajetórias, de onde eles(as) falam e o contexto das suas
narrativas.
3.2.1 Raquel
3.2.2 Flávia
Flávia também é amiga do pesquisador e foi sua professora de Percepção Musical à época
da sua preparação para o Teste de Habilidade Específica exigido para o ingresso no curso de
Licenciatura em Música. Mulher cisgênera caucassiana, Flávia possui diploma de licenciada em
Música e tem larga experiência na docência em escolas regulares e como baixista, instrumento
150
rotulado como masculino. Flávia também quebra rótulos sociais também por ter sua própria
empresa, na qual oferece aulas de Música em residências, em comunidades carentes e
virtualmente. Apesar de atuar em diferentes áreas, a entrevista tem um profundo interesse no
ensino de Música na educação infantil.
3.2.3 Natália
Natália, por sua vez, chegou ao conhecimento do pesquisador por meio de uma amiga em
comum. Identifica-se como gender fluid, passeando pelos gêneros masculino e feminino, não
verificando a necessidade de se definir dentro de padrões de gênero, porém, dentro das
denominações mais “usuais”, ela se vê mais bem representada pelo termo mulher transgênera
bissexual. Ela fez sua transição de gênero somente com 30 anos, contudo, desde pequena, afirma
ter o que chama de “questões de gênero”. Professora de Música com título de licenciada, possui
larga experiência na docência da educação básica e em escolas especializadas em Música.
Destaca-se também como produtora premiada, como compositora de trilhas e como guitarrista
virtuose.
3.2.4 Leonardo
3.2.6 Butterfly
Butterfly foi indicado para a entrevista por meio de uma amiga em comum. Homem
cisgênero homoafetivo, além do mestrado e doutorado em educação, tem ampla experiência na
educação pública, sendo, atualmente, professor de Música de um relevante colégio da rede
federal do Rio de Janeiro. Destaca-se também a sua atuação na presidência de uma importante
entidade da área da educação musical, bem como a sua participação na liderança de um grupo de
estudos sobre ensino de Música.
Professor indígena da etnia Guarani Mbya. Embora, pelas normas culturais da aldeia,
pudesse ascender ao posto de cacique após o falecimento de seu pai, que gaugava esse cargo,
prefiriu seguir a carreira de educador. Ele é formado em Licenciatura em Educação do Campo –
ênfase em Sociologia, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e é mestre em
152
Linguística pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro (MN-UFRJ). É professor no Ensino
Fundamental I e II na Escola Indígena Estadual Guarani Karai Kuery Renda, localizado na aldeia
indígena Sapukai de Bracuhy, localizada no município de Angra dos Reis – RJ, onde reside há 30
anos. É reconhecido entre os Guaranis Mbya como um líder local e foi indicado pelos locais para
ceder essa entrevista, por ser um grande conhecedor da cultura e musicalidade guarani. À data da
entrevista, integrava o Conselho Estadual de Educação Indígena do Estado do Rio de Janeiro
(CEEI-RJ).
3.3 “O negro não vai voltar para a senzala”. Entrevistas sobre raça
No que se refere às entrevistas relacionadas ao tema raça, serão analisadas aquelas cedidas
por Raquel e Leonardo. A análise de tais entrevistas possibilitou na produção de algumas
categorias, a saber: (a) Tratamento desigual do(a) negro(a) na sociedade; (b) Superficialidade do
tratamento do tema na escola regular; (c) Interseccionalidades entre raça e outros marcadores;
(d) Racismo epistêmico na universidade e na produção do conhecimento e (e) Possibilidades para
o ensino de Música.
153
3.3.1 Tratamento desigual da pessoa negra na sociedade
Tomando o recorte acima como exemplo, percebe-se que Leonardo sentia uma certa
rejeição de plateias que tendiam a estimar menos um musicista negro tocando um repertório
erudito e europeu. Vandwellden e McGee (2007) já apontaram que, de forma geral, a plateia
tende a reagir melhor quando a raça do musicista está “de acordo” com a música que é tocada, ou
seja, pessoas negras são bem aceitas tocando músicas de origem negra, mas podem sofrer com as
mazelas do preconceito de apresentarem um repertório “branco”. Infelizmente, isso aconteceu
com o entrevistado.
Argumenta-se que esse preconceito não é algo inerente à Música, mas, na verdade, tem sua
origem na sociedade em geral e alcança a escola e o ensino de Música em seu interior. Estudioso
das relações étnico-raciais, Leonardo pontua a questão.
O Brasil é um país racista, isso não sou eu quem [sic] digo, não é você quem diz,
é a ONU quem diz. Nós que vivenciamos a nossa “carne barata” no dia a dia, em
nosso cotidiano. A gente tem, lógico, políticas que instituem dentro do Brasil
esse avanço desse debate, das questões étnico-raciais. Mas, ao mesmo tempo, a
gente tem um racismo que é muito presente em nosso cotidiano, e quando eu
falo do nosso cotidiano, ele é um racismo estrutural, ele é um racismo cotidiano,
ele é um racismo recreativo, são diferentes formas de racismo que se
154
apresentam. [E]u observo que isso é tão presente no âmbito formação do
indivíduo, na formação que hoje a gente recebe no Brasil, de alguma forma, ela
possibilita institucionalmente que esse racismo seja perpetuado cotidianamente
dentro das nossas práticas educativas e, ao mesmo, tempo na nossa relação de
um com o outro, né? O que para mim é uma grande problemática, porque a
gente vive em um país que é composto por 54% de pessoas negras e pardas, e se
a gente fizer um novo censo para além da ideia de eugenia […] a gente vai
observar que, além da eugenia, a gente tem um país preto. Um país negro. Um
país indígena e um país negro, né? Mas, que pela condição do patriarcado, pela
condição do capitalismo, pela condição do colonialismo, ainda vivemos em um
país racista, um racismo sofisticado, um racismo muito sutil, mas que na nossa
pele, ele é muito doloroso, ele é assassino, ele nos assassina cotidianamente.
(Leonardo)
155
naturalizada e naturalmente reproduzida, afetando a educação escolar e as relações pessoais. Esse
racismo “naturalizado”, além de também ser pontuado no relatório da ONU, é também apontado
por pensadores da área do multiculturalismo e das relações étnico-raciais, tais como Almeida
(2018), Miranda e Passos (2011) e Miranda e Riascos (2016).
Outro dado digno de destaque é a fala do entrevistado sobre a composição racial brasileira,
cujos dados do IBGE levantados em 2010 mostram que 47,7% da população brasileira se
identifica como branca; enquanto 7,6% se autoclassifica como preta; 43,1% como parda; 1,1%
como asiática; e 0,4% como indígena. A princípio, já se teria uma maioria afrodescendente,
formada pelos 50,7% resultantes da soma de pretos e pardos, porém, como adverte a fala de
Leonardo e de acadêmicos como Lima (2006), termos como parda(o), mulata(o), mestiça(o),
entre outros adjetivos que exprimem miscigenação, se configuram como eufemismos para o
termo negra(o), que é carregado de estigmas e de cargas negativas. Desse modo, por meio de um
pensamento social influenciado pelo racismo e pela eugenia, uma parte significativa da população
parece preferir se autoidentificar como parda do que como negra. Portanto, Lima (2006) adverte
que para realmente se ter a dimensão da composição racial brasileira, deve-se somar o
quantitativo de pessoas pardas e negras e considerá-las dentro do mesmo estrato racial, a saber,
pretas. Assim se procedendo, ter-se-ia o que Leonardo apontou: um país negro.
Contudo, nesse país negro, a maioria numérica se torna minoria em representatividade e
poder por experimentar, muitas vezes, um tratamento diferenciado e, muitas vezes, violento.
Como salienta Leonardo, o racismo causa muitas vítimas fatais no Brasil. Segundo dados do
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA, 2019, p. 49), 75,5% das vítimas de
homicídio são pessoas negras. O mesmo documento afirma que no período compreendido entre
2007-2017, enquanto a taxa de homicídio de pessoas não negras manteve-se estável, crescendo
0,3% no decênio, o número de homicídio de negros ascendeu 7,2% no período estudado. No Rio
de Janeiro, estado onde se concentra a presente pesquisa, 41.241 pessoas negras foram
assassinadas entre 2007 e 2017, número maior do que a soma das atuais populações das cidades
de Cordeiro-RJ (20.403) e Quissamã-RJ (20.244)97. Acredita-se que, apesar de não esgotar
questões que envolvem o tema, os dados apresentados apontam que, de fato, existe um tratamento
racial diferenciado no Brasil, que leva pessoas negras a serem assassinadas todos os dias.
97
Segundo censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
156
3.3.2 Superficialidade do tratamento do tema na escola regular
A fala de Leonardo coincide com aquilo que é apontado por diferentes pesquisas, como
Miranda (2004), Lima (2006), Valentim (2006), Gomes (2008) e Sousa e Sodré (2012), que
indicam que, de forma geral, o racismo estrutural também influencia nos currículos prescritos e
praticados em escolas regulares no Brasil. Mais especificamente no âmbito da disciplina de
98
Recorda-se que no Brasil, em novembro, é comemorado o Dia da Consciência Negra.
157
Música, a percepção do entrevistado e da entrevistada é que, por ocasião de uma espécie de
racismo epistêmico, os currículos não abarcam o conhecimento negro de forma significativa.
Outra categoria identificada nas falas foi uma forte presença de Interseccionalidades entre a
raça e outros marcadores. Na perspectiva de que a identidade é um conceito plural e
multifacetado, nenhuma pessoa teria apenas uma identidade racial, mas também uma identidade
de gênero, uma visão cosmológica, uma expressão da sexualidade, entre outros aspectos, que, de
forma geral, se fundem e, muitas vezes, se entrechocam (HALL, 2005).
Usando outros termos, tais “camadas identitárias” são permeáveis de modo tal que, por
exemplo, nenhuma mulher é igual a outra, pois diferentes marcadores se interseccionam,
promovendo identidades múltiplas e complexas que são marcadas discursivamente de formas
diferentes (AKOTIRENE, 2018; LOURO, 2014). Por exemplo, não é o mesmo, por exemplo, ser
uma mulher branca ou uma mulher negra.
Na fala de Raquel, percebe-se uma forte interseccionalidade entre a identidade racial e a
identidade de gênero, criando um novo e complexo construto identitário: a mulher negra, que
apresenta questões e demandas diferentes de homens negros e de mulheres brancas (MIRANDA;
MARCELINO, 2015). Algumas falas problematizam a questão:
158
Sabe, é esse pensamento, e quando a gente fala, principalmente, quando a gente
se coloca como mulheres pretas, isso também chama muita atenção, porque
mulheres tocando tá legal, mas agora mulheres pretas, faveladas tocando um
instrumento erudito, isso é o que mais chama atenção. (Raquel)
Recorda-se que Raquel fala no contexto de uma violoncelista negra, de origem humilde e
que toca um repertório “erudito”. Existe, espalhados pelo mundo, um número significativo de
grupos de câmara formados só por mulheres, porém, como Raquel informa, o diferencial do seu
grupo é que ele, além de ser formado somente por mulheres99, todas as integrantes são negras e
provenientes da periferia.
Nessa concepção, os fatores gênero e classe social, juntamente com a raça, são
determinantes para que parte da sociedade veja o quarteto como um fenômeno “exótico”,
diferenciado. Raquel, portanto, levanta uma reflexão pertinente
[A] gente com esse grupo, a gente já deu algumas entrevistas, porque o Nina’s é
um acontecimento, e isso nos traz muitas reflexões, sabe? Será que aqui [no
Projeto Social onde Raquel trabalha] se os meninos se juntassem e criassem um
quarteto, será que teria tanta visibilidade como a gente tá tendo? Eu tenho
certeza que não, “Ah, quatro meninos do Projeto Social lá da Grota”...talvez
fosse “engraçadinho” por serem meninos da comunidade e tal, teria alguma
visibilidade, mas porque o fato de quatro mulheres estarem tocando é tão
extraordinário? E isso não precisava ser extraordinário, isso deveria ser normal,
porque tantas mulheres tocam! Porque a gente ainda vive nisso, “olha, elas
conseguiram, tem quatro mulheres, tem pessoas que vão assistir a gente tocar
mais para ver o que a gente está tocando, para ver qual é o estilo, para ver se a
gente está tocando certo, acham exótico. Mas não há nada de extraordinário,
quatro meninas formadas em Música se uniram para tocar. (Raquel)
O que se expressa é que a atenção que o quarteto tem chamado, na opinião da membra
fundadora, se dá porque o lugar social que, usualmente, se oferece a mulheres negras e
suburbanas não é o de cameristas, logo, tal atenção despertada apenas indica que a sociedade
ainda não vê como normal e corriqueiro que mulheres negras toquem música de câmara.
Contudo, se argumenta que a educação musical escolar, sob a ótica do multiculturalismo, tem
potencial para auxiliar na modificação de tal pensamento sexista, racialista e classista.
Semelhantemente, não se espera de mulheres negras e pobres a formação universitária,
contudo, todas as integrantes do grupo são formadas em Música. Raquel destaca o seguinte
99
Como já foi informado, na Música, as mulheres são mais bem-aceitas no papel de cantoras ou como plateia
(GÜRGEN, 2016; HALLAM et al., 2008; HO, 2003; KELLY; VANWEELDEN, 2014; SILVA, 2004).
159
[E]u já tive momentos que as pessoas falam, “nossa, mas além de tocar, o que
vocês fazem?” A gente dá aula, a gente trabalha com Música! “Ah, mais, vocês
fizerem aula aonde?” “Ah, eu fiz aula na faculdade, eu me formei, todas elas [as
outras integrantes do grupo] são formadas!” Aí é algo que eles não esperam
ouvir: que viemos da comunidade, somos da comunidade, e no entanto, a gente
conseguiu formar, conseguiu seguir uma carreira, na arte, e isso é o que tem de
importante nesse grupo, a gente está aqui para valorizar, dar voz às mulheres.
(Raquel)
Nesse sentido, não só o fato de o grupo ser formado apenas por mulheres negras, ou o fato
de elas tocarem músicas compostas ou arranjadas por mulheres se constituem em um ato de
resistência e desconstrução, mas o simples fato delas terem diploma universitário quebra
estereótipos segregadores relacionados a questões de gênero, raça e classe social. Recorda-se que
o multiculturalismo, enquanto campo político, milita que não somente conhecimentos de grupos
minoritários sejam incluídos nos currículos escolares e universitários, mas que os próprios
indivíduos de identidades não normativas estejam maciçamente presentes no cotidiano escolar e
universitário, a fim propiciar mobilidade e justiça social (CANEN, 2013).
No que se refere à questão da mulher trans negras, Natália, apesar de branca, verifica como
a vida da mulher trans negra torna-se mais complexa, também por conta da carga racial.
[T]em essa questão de mulheres trans que, geralmente, aparecem mais são as
trans negras pobres, pois as que têm mais [sic] grana conseguem se integrar
melhor na sociedade, aí ficam [sic] “pianinho”. Hoje em dia isso mudou, graças
a Deus, existem pessoas trans, tanto mulheres como homens, que estão inseridas
na sociedade enquanto pessoas trans! E isso eu vou te falar sem base em nada, só
do que eu percebo, mas eu tenho a impressão que até poucos anos atrás, as
pessoas trans pobres, as mulheres trans pobres, iam para a prostituição ou shows
de dublês [...], então elas estavam muito visíveis, enquanto as que tinham [sic]
grana para poder bancar a cirurgia, elas mudavam de cidade, começavam a vida
de novo e não falavam nada com ninguém que eram trans e viviam [sic] oculto,
e o que apareceria eram as trans periféricas, as que a sociedade acaba
conhecendo mais e são os seres mais vulneráveis que tem, principalmente na
sociedade brasileira que tem a questão de estar ligada a um universo
homossexual, por mas que essa palavra seja binarista também, quem pensa
travesti associava a gay e não sei o quê e tem a questão da mulher, do machismo,
e tem a questão de ser negra, porque a maioria dessas mulheres são negras, e são
pessoas muito vulneráveis no contexto social. Os preconceitos vão se somando e
[elas são] pobres também, que é outra classe de preconceito. (Natália)
160
Como se percebe na fala acima, o conceito de “mulher trans” não é um bloco monolítico,
antes, um conceito também tensionado por questões raciais e de classe social. A fala da Natália
coincide com os resultados de pesquisas como a de Andrade (2012), que mostra que mulheres
trans, em especial, as negras e pobres, têm menor acesso à educação e aos serviços público, bem
como maior possibilidade de viverem em um contexto de pauperismo que as empurra para a
prostituição. Desse modo, pensar interseccionalmente, levando em consideração como questões
de gênero, raça, sexualidade, etnia e religiosidade se somam formando outras categorias, como
mulheres negras, por exemplo, pode fornecer pistas sobre como tratar positivamente as diferenças
no âmbito escolar (AKOTIRENE, 2018).
Já a fala de Leonardo, muitas vezes, se “confunde”, entre questões de raça e de classe.
Recorda-se que o entrevistado iniciou sua formação superior em um curso de Bacharelado em
Música – Habilitação em Piano, contudo, precisou abandonar o curso. Ao questionar se a questão
racial influenciou na desistência, Leonardo confirma.
Total[mente], porque era um curso que eu não conseguia terminar, era um curso
que eu não conseguia terminar, por um percurso de vida de muita dificuldade,
para me manter no Rio de Janeiro, de família pobre, de família muito humilde,
de família com muitas demandas e necessidades, e que eu tive que me virar
sozinho, então foi muito difícil, e eu não tinha tempo de estudar, como meus
digníssimos colegas brancos de turma, de classe, e isso causa sofrimento, causa
dor e que mais tarde eu fui entender porque aquilo era tão dolorido e era tão
sofrido para mim e eu entendi que eu não era capaz, que é isso que o racismo faz
com a gente, ele nos torna incapazes, mas é só uma faceta para que a gente não
ocupe os lugares, então foi um pouco disso, sabe? (Leonardo)
161
menos acesso a emprego, à renda e à escolarização, prejudicando, assim, a mobilidade social
desses indivíduos. A fala de Leonardo, que intersecciona classe e raça, expressa bem o exposto.
Por fim, dentro da categoria de interseccionalidade, vale ressaltar que Leonardo propõem,
justamente, que os currículos de Música se pautem em uma visão interseccional que busque
enxergar as diferentes categorias identitárias do indivíduo.
[É] algo que é uma Lei [referindo-se à Lei 10.639/2003], por mais que a gente
não consiga tratar do assunto enquanto professores na sala de aula, mas eu acho
que na nossa formação enquanto professores né, teria que ser uma coisa
162
obrigatória, teria que ter um conhecimento aprofundado na área, porque é uma
Lei, e a gente não teve nada disso [durante a formação]. (Raquel)
Sim. (Raquel)
Tais dados coincidem com os achados da pesquisa de Santiago (2017) e Santiago e Ivenicki
(2016c), que, ao analisarem como questões multiculturais perpassam a formação de
professoras(es) de Música no Rio de Janeiro, perceberam que a temática racial era infimamente
citada nos currículos oficiais da instituição, nas entrevistas realizadas com os(as) professores(as)
e nas impressões que estudantes tiveram sobre seus cursos. Portanto, tendo como base a análise
da entrevista e sua comparação com a literatura, pode-se afirmar a existência de uma Lei oficial
não culminou em mudanças efetivas na formação de professoras(es) de Música. Contudo, afirma-
se que se faz necessário que a temática racial se faça presente desde à formação inicial de
professoras(es), a fim de preparar profissionais capacitadas(os) para lidar com tais questões na
educação básica.
Leonardo, por sua vez, além de também não perceber que a temática foi pouco tratada no
curso, questiona também o porquê de haver pouca literatura sobre educação musical sobre a
temática racial na educação musical e/ou cujas(os) autoras(es) sejam pessoas negras.
[Na pós-graduação, e]u não encontrei par dentro da educação musical, talvez na
discussão...aí par eu vou te falar par negro, mas par branco eu encontrei. Vou te
listar alguns nomes que me fizeram pensar, ainda que em uma literatura branca:
O Luiz Carlos Queiroz é um nome que me aproximou desse universo, a Luciana
Del-Ben me aproximou um pouco desse universo. [...] Mais o Luiz Carlos ainda,
em um debate mais decolonial e intercultural, que é mais ainda a pegada do
Luiz, que também bebeu em Antonio Flávio Moreira, bebeu em Vera Candau,
bebeu também desse grupo modernidade/decolonialidade. [...] Mas na educação
musical, talvez você não encontre, [ou] encontre pouquíssimos trabalhos é... que
discutam as questões étnico-raciais e a educação musical. (Leonardo)
163
termos, não são pessoas negras, aquelas que sentem na pele as mazelas do racismo, que têm
produzido o conhecimento sobre relações étnico-raciais no ensino de Música.
Leonardo conta que, durante o seu mestrado e doutoramento, percebeu que essa falta de
diálogo com autoras(es) negra(os) o “embranqueceu” e o violentou simbolicamente.
Porque né, eu sofri de alguma forma uma ação necropolítica, porque eu fui
impossibilitado, como homem negro, de dialogar com a minha pretitude no meu
lugar de formação. Eu fui embranquiçado. E é uma grande violência, ao ser
embranquiçado, desembranquiçar, ou seja, tem dois processos nesse sentido, né?
Dois processos violentos, e eu acho que é uma violência que a gente nunca deixa
de persegui-la, porque a gente sempre nos, é... somos violentados, não é uma
violência que a gente escolhe. (Leonardo)
Embora isso não seja exatamente um erro, isto é, que pesquisadoras(es) brancas(os)
produzam conhecimento sobre a temática racial100, seria importante que pessoas negras viessem a
colaborar com tal produção de conhecimento de forma mais direta e efetiva, pois tal ausência
mascara uma faceta do silenciamento racial. Mas, por que isto não ocorre de fato, ou seja, que
negros(as) estejam produzindo conhecimento sobre negritude na educação musical? Um trecho
da entrevista de Leonardo aponta para uma hipótese que soa plausível:
Por quê? Nós não estávamos lá, ou estávamos e não tínhamos determinadas
vozes[...] Renan, eu digo isso com muita clareza, a gente, eu você, e outros
pesquisadores que estamos chegando hoje no doutorado, nós somos frutos da
ação afirmativa, eu acho que assim, ancestralmente, a gente está chegando,
esteve, mas com lugar de voz e com lugar de fala, a gente tem [só] agora.
(Leonardo)
Chama a atenção o fato de Leonardo apontar a falta de pessoas negras nos espaços
acadêmicos para explicar a falta de pares negras(os) e de trabalhos sobre raça no ensino de
Música. Para o entrevistado, o fato de ele e do entrevistador serem pessoas negras e alunos de
doutorado se deve às ações afirmativas de cunho identitário empreendidas na última década. Os
dados oficiais mostram que, de fato, pela primeira vez, o número de universitárias(os) negras(os),
em instituições públicas, é superior ao de pessoas brancas (IBGE, 2019), e o quadro de
inferioridade numérica de negras(os) na universidade começa a ser revertido, justamente, por
meio das políticas afirmativas, como as cotas.
100
Parte-se da afirmação de que o multiculturalismo é para todos (CANDAU, 2013), logo, todos na sociedade podem
produzir conhecimento sobre educação musical multicultural. O próprio Leonardo afirmou que “a branquitude criou
o racismo, os brancos, sim, são os primeiros a resolverem a questão do racismo no Brasil”.
164
Contudo, a ocupação de pessoas negras não está se dando em todos os espaços. Leonardo
considera que a produção de conhecimento feito por negras(os) também depende de que tais
pessoas se façam presente nos corpos editoriais e no papel de revisoras(es) de meios de
divulgação científica, como anais de congressos e revistas científicas. Para tal, ele reflete sobre a
ausência de artigos sobre raça e interculturalidade na Revista da ABEM101, principal periódico da
área de educação musical no Brasil, e rememora algo que aconteceu em sua vida acadêmica e
critica diretamente a Associação Brasileira de Educação Musical:
Em artigo publicado na Revista Orfeu (BATISTA, 2018), Leonardo, entre outros aspectos,
narra esse episódio com mais detalhes. Ele encaminhara um simpósio formado por quatro artigos
sobre epistemologias negras na educação musical para a apreciação do comitê científico do XXIII
Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical – ABEM, para o Grupo de
Trabalho de Epistemologia da Educação Musical. Segundo o artigo, o simpósio fora negado e, no
parecer, ele fora classificado como “vitimário, messiânico e panfletário”. Na compreensão do
entrevistado, o parecer foi violento e racista, porque foi feito tendo como base a epistemologia
branca, patriarcal e colonialista, que desconsiderou o saber do povo negro enquanto
conhecimento.
101
Recorda-se que o levantamento bibliográfico feito para esta tese também apontou para tal resultado.
165
Como não se obteve acesso aos artigos do simpósio nem ao parecer da ABEM em sua
totalidade, não pode, a priori, tecer qualquer tipo de afirmação em relação ao parecer, contudo,
concorda-se que é necessário que pessoas negras estejam presentes em todos os espaços da
produção de conhecimento científico, desde a docência no ensino superior até a composição de
corpos editoriais de periódicos e avaliação de trabalhos para congressos. Autoras(es) como
Santiago (2019) e Moule (2008) já salientavam a importância de a pluralidade da escola atingir
também as gestões e os corpos docentes de escolas e universidades, mas o dado de existir a
necessidade dos corpos editoriais também o serem para evitarem possíveis racismos epistêmicos
parece emergir como uma novidade.
Por fim, por meio da análise das entrevistas sobre raça foi possível identificar algumas
ações práticas que podem contribuir para o tratamento das questões raciais no ensino de Música.
No que se refere ao ensino de Música na educação infantil, Leonardo sugere o seguinte.
[M]e vem logo à cabeça, por exemplo, os cantos dos orixás, que sempre
obedecem essa coisa muito paralela com balbucios, com as garatujas, com esse
lugar brincante que a criança faz na infância, e essa é uma margem muito grande
do que a gente tem com os cantos de trabalho, que é tão legal de ser trabalhado
com as crianças, e ao mesmo tempo também de instrumentos musicais de
diaspora, que podem ser utilizados dentro de um processo de musicalização que
não estão sendo usados para ensinar notação, mas sim de uma experiência
acústica, de uma experiência sonora, ou seja, de uma experiência estético-
sonora, que não foge da obediência binária do certo, do errado, do feio e do
bonito, né? Acho que, ainda assim, a música de concerto que é aplicada como
processo pedagógico musical, ela paira muito sobre esse processo pedagógico,
então se a gente força isso, a gente já ganha um grande universo. E aí quando eu
falo dessa experiência com as músicas diaspóricas, com o cantos de trabalho,
com as canções de ninar, isso ganha uma essência de pretitude postas, elas só
não são faladas. Mas, o grande âmago, o grande lugar de construção, o grande
lugar dessa produção vem a partir daí, eu não tenho dúvida.
166
concomitantemente, a saber, raça e religião. Seria, portanto, uma estratégia plausível para que o
ensino de Música valorize a cultura afro-brasileira, a ancestralidade candomblecista e ponha em
prática as indicações da Lei 10.639/2003.
A utilização do “mito” dos orixás no ensino de Música na educação básica já foi sugerida
por Szpilman (2010), que narrou os resultados da sua experiência ensinando a temática. Fazendo
um paralelo entre a “mitologia” grega e a iorubá, o autor pôde inserir a cultura afro-brasileira no
currículo em ação, percebendo a potencialidade desse conteúdo e abordagem para atenuar
preconceitos entre os(as) estudantes.
Assume-se concordância com Szpilman (2010, p. 65) quando ele afirma que a inclusão de
músicas da cultura iorubá não se trata de cultuar orixás ou oferecer um ensino religioso, mas
somente uma forma de reconhecimento cultural (p. 65). Cabe às(aos) docentes buscar um
repertório adequado, preferencialmente, diretamente com candomblecistas. Uma canção que
Raquel disse utilizar com as crianças de creche onde leciona é Oro Mimá102 103.
[T]em uma música muito interessante que é a música que Oshum canta para o
filho dela, é uma música de ninar, e é uma mensagem linda, é Oro Mimá, (pode
colocar canção de Oshum), essa música é Oshum cantando para o filho dela,
abençoando o filho dela, mas eu não posso cantar. (Raquel)
Outro aspecto que emerge da fala de Leonardo é o uso de instrumentos musicais “de
diáspora”, que aqui poderiam ser traduzidos como instrumentos afro-brasileiros, que também
contemplam o tratamento da cultura candomblecista, como ver-se-á mais à frente, pois os
instrumentos musicais característicos da musicalidade afro-brasileira, como o berimbau, o afoxé,
o agogô, o atabaque, o xequerê, a cuíca, o gã etc. foram introduzidos na música popular via
música de terreiro. Recorda-se também que a incorporação de instrumentos musicais típicos de
102
A(o) leitor(a) pode ouvir a música seguindo o seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=huLn5iWRSsQ
103
Mais à frente, será discutido como a utilização dessa música em uma creche trouxe à Raquel alguns problemas.
167
culturas não hegemônicas no ensino de Música está de acordo com a literatura acadêmica sobre
educação musical multicultural (SCHIPPERS, 2000; VOLK, 2006; MARSH, 2000).
A fala de Leonardo também evoca a concepção de que aulas de Música que usam cantos de
orixás e instrumentos típicos da cultura afro-brasileira não têm como objetivo o ensino da
notação musical europeia, até porque, a música afro-brasileira é ensinada originalmente via
tradição oral e não por notação (NKETIA, 1974). Argumenta-se que, por conta da filosofia
intrínseca, muito marcante na educação musical brasileira, o ensino de Música, muitas vezes, se
reduz ao ensino da leitura e escrita de partituras (PENNA, 2005, 2006). Um ensino genuíno de
música afro-brasileira não deveria, a princípio, se dar por meio da partitura ou ter como objetivo
o ensino da simbologia musical ocidental. Ressalta-se também que um ensino de Música
autêntico, isto é, ensinado conforme o gênero musical é ensinado organicamente, também é
sugerido pela literatura acadêmica (KANG, 2016; KILLIAN; SEKALLEGA, 2018; OMOLO-
OGANTI, 2009; SANTOS; CANDUSSO, 2015).
Por fim, o termo “essência de pretitude”, utilizado por Leonardo aparece de forma propícia
para o público da educação infantil que, possivelmente, não tem aparato cognitivo para discutir
temas complexos e fortes, como o racismo e a intolerância religiosa. Desse modo, trazer e
valorizar a cultura afro-brasileira para essa modalidade de ensino já é um avanço considerável
para formar cidadãs(ãos) sensíveis às diferenças culturais.
No que se refere às recomendações do entrevistado e da entrevistada para o tratamento da
temática racial no ensino fundamental e médio, obteve-se sugestões que se centram na pesquisa e
no uso das tecnologias.
168
lugar, e cola muito em um processo eurocêntrico, mas como a gente pode pensar
em processos pedagógicos sonoros? Como são as práticas sonoras das
comunidades quilombolas, das comunidades ribeirinhas, das comunidades
pesqueiras, das comunidades de destaladeiras de fumo de Arapiraca, que têm
uns maravilhosos cantos de trabalho, como é que a gente pode pensar, por
exemplo, a música dos povos ameríndios, como a gente pode pensar essas
músicas? Como a gente prática essas músicas? Vem trazer isso para a sala de
aula como uma grande discussão estética realmente, e aí isso sim é discussão
estética, está em um outro lugar, né? (Leonardo)
Nessa perspectiva, aponta-se como possível a estratégia sugerida por Leonardo, ou seja, a
utilização da tecnologia a favor da educação musical a fim de que os(as) estudantes possam ter
contato, via pesquisas na internet, com culturas distantes. Os resultados das pesquisas poderiam
ser trazidos para a sala de aula e discutidos com todos(as). Recorda-se que a presente tese pode
169
auxiliar nessa questão, visto que o curso de extensão Música(s) no Plural! se deu em ambiente
remoto, por meio de tecnologias digitais.
Por fim, no que se refere à formação de professoras(es) de Música, uma postura ética,
criativa e mediadora da(o) docente, que vá de encontro a práticas engessadas e bancárias, é
apontada para que a cultura afro-brasileira perpasse os currículos desta modalidade.
Queria utilizar a palavra criatividade. De criação, invenção, essas são palavras boas para
a gente pensar, porque de certa maneira torna, os cursos de Licenciatura […] a formação
de quem trabalha em sala de aula, seja em Música ou não, ela é engessada. Que ela
obedece o currículo, mas não obedece as necessidades da pluralidade das necessidades e
demandas daqueles com os quais trabalharemos e que a gente não sabe quem são, não
sabe como acordam, não sabem como são as pessoas naquele dia. Se a gente fizesse o
grande exercício que Paulo Freire tanto criticou, da educação bancária. E aí eu fico
pensando o lugar da criação, da criatividade, da invenção que eu tanto te falei, como
lugar potencial de tentar de alguma forma ou outra, introduzir, nesse processo formativo
de quem vai atuar no dia a dia, no cotidiano de sala de aula, que a gente pensa
proposições criativas cotidianamente, mesmo que a gente tenha uma orientação
prescrita, mas qual é o currículo que eu pratico dentro sala de aula? Significa um
currículo vivo, quem são essas pessoas? E aí sim, um exercício coparticipativo, um
exercício corresponsável com aquelas pessoas que estão em sala de aula, porque de nada
adianta se eu não for um professor, se eu não for me deslocar do lugar de professor
bancário para o lugar de um professor mediador de conhecimentos, porque as pessoas
têm conhecimento. […] Então, eu acho que entender esse lugar de uma invenção de
proposições inventivas, de proposições pedagógicas, que lidem com a pluralidade que
todo o dia é efervescente na sala de aula. (Leonardo)
170
É interessante notar que Akkari e Santiago (2013) apontam que a gênese do
multiculturalismo na educação brasileira se deu, entre outros acontecimentos, pela teorização
freiriana, sobretudo, no que se refere à dicotomia hegeliana de opressores e oprimidos, e a
formulação da Pedagogia do Oprimido, que permite se pensar em uma educação criada por e
voltada para identidades subalternas, com objetivo de mudança social e emancipação, algo que o
multiculturalismo compartilha do pensamento freiriano. Nesse contexto, não haveria, nesse
ponto, qualquer tipo de contradição teórica em se utilizar conceitos freirianos para nortear uma
abordagem multicultural.
Pelo contrário, argumenta-se que o pensamento multicultural não harmoniza com o
tradicionalismo da pedagogia bancária, visto que o multiculturalismo busca valorizar uma
pluralidade de vozes e o ensino bancário apenas permite que a(o) docente, a(o) “legitimada(o)
possuidor(a) do saber”, se expresse. Concorda-se, portanto, que a postura mediadora parece ser
mais condizente com os pressupostos do multiculturalismo.
A adoção de um currículo flexível, ou seja, que fosse formulado a partir da realidade plural
de cada sala de aula, já foi proposta por Santiago e Monti (2016). Tal flexibilidade curricular
poderia se dar, por exemplo, logo após um ato de discriminação ocorrido em sala de aula, que
levaria a(o) docente a adaptar o seu planejamento para, justamente, tratar da questão
prontamente, algo que, sob a ótica de um planejamento curricular engessado, dificilmente
ocorreria.
Leonardo, que já atuou como docente no ensino superior de Música, mostra como
incorporava os saberes negros no currículo da formação de professoras(es).
104
O entrevistado se refere à etnia afro-brasileira e à etnia indígena, contempladas concomitantemente pela Lei
11.645/2008.
171
aparecem, para a gente pensar esse lugar, esse universo? E eu pensava em
maneiras diferentes, eu pensava em outras opções epistemológicas para esse
exercício de uma pedagogia musical. (Leonardo)
172
Para tratar de questões de gênero, serão analisadas as entrevistas realizadas com a Natália,
Flávia e Raquel. (a) Tratamento desigual da mulher; (b) Silenciamento da mulher; (c)
Estereótipos de gênero; (d) Patriarcado influenciando no comportamento de mulheres; (e)
Tokenismos; (f) Crianças e as questões de gênero; (g) Transfobia na escola; (h) Falta de
tratamento do tema na universidade e (i) Possibilidades para a disciplina de música.
A primeira categoria explicita falas que demonstram que a mulher, apesar de ser
constitucionalmente igual ao homem, ainda sofrem com o machismo, que ainda é um dos
basilares da sociedade contemporânea. No que se refere a tal tratamento desigual, uma das
entrevistadas questiona, justamente, o porquê de tal desigualdade, ou melhor, o porquê de o
gênero ser um atributo identitário tão forte que, muitas vezes, impõe e conforma pessoas em
determinados lugares sociais. Ela diz: “Então, é, quando eu penso o lugar da mulher, eu fico
assim, por que tanta divisão de gênero? O homem, mulher, são coisas ligeiramente biológicas e
muito sociais”. (Natália)
Em outras palavras, conforme já se argumentou na seção teórica, o sexo de nascimento não
legitimaria o gênero de uma pessoa, porém, seria justamente a pressão social que faz do gênero
um marcador identitário tão forte. Discursos forjados sobre o que é ser homem, o que é ser
mulher, ou o que é ser uma pessoa não-binária ou agênera, criam subjetividades fortíssimas que
influenciam comportamentos, no sentido de aceitação ou rejeição desses discursos.
Tais influências comportamentais são, inclusive, ensinadas e determinadas no ambiente
escolar. Raquel conta que
Uma amiga minha foi para o Estados Unidos, aí ela trouxe umas roupinhas para
a [nome omitido], que é a minha filhinha de 4 anos, e aí, ela trouxe um casaco
preto da Nike, mas não deu no menino, no afilhado dela, aí ela falou, ó Raquel,
tem esse casaco preto aqui da Nike, esse casaco preto “maneirão”, aí [nome
omitido] chegou falando da escola: “mãe eu não posso usar esse casaco”.
“Porque [nome omitido]?” “Ah, esse casaco é de menino. A tia falou para mim
que esse casaco é de menino”. Nossa, tem ideia disso? Na minha época eu não
tinha nem casaco, imagina saber se é de menino ou de menina. Então assim, o
que os professores estão botando na cabeça das crianças? Poderia ser azul,
173
poderia ser qualquer cor, é o que eu pude dar a ela. Depois eu conversei com ela,
[disse] “não filha não existe roupa de menino ou de menina, existe a roupa que
você gosta”. Mas, e se eu fosse uma mãe leiga, e se eu fosse uma pessoa que não
tivesse essa informação? Entendeu, o que a gente está projetando na mente das
crianças? Exatamente isso. Eu acho que os professores têm que ter muito esse
cuidado em questão de gênero. E a gente tem um ensino muito defasado.
(Raquel)
O exposto acima é muito grave, contudo, ganha ares de normalidade em uma sociedade
patriarcal (LOURO, 2014). É necessário que as universidades, inclusive aquelas que oferecem o
curso de licenciatura em Música, empreendam políticas que busquem conscientizar sobre o
assédio, bem como punir os assediadores.
As diferenças de gênero também adentram a profissão docente, ocasionando diferenciação
entre docentes de diferentes modalidades. Flávia afirma que “[o] problema não é [só] o assédio
na mulher professora, e sim o tratamento diferenciado que o mundo dá a essa mulher que é
professora da educação infantil. [...] O professor de música do ensino médio é diferente da
professora de música da educação infantil”.
Argumenta-se que o tratamento, a estima e a remuneração diferenciados de professoras(es)
de modalidades diferentes são também oriundos das questões de gênero, pois, em geral, na
educação infantil, a maioria das profissionais da educação são mulheres, mas, no avançar das
etapas, homens passam a se fazer presentes, tornando-se maioria no ensino superior (INEP,
2017). Em outras palavras, a baixa remuneração da professora da educação infantil e maior
174
remuneração do professor universitário também estão relacionados aos salários diferenciados que
são destinados às mulheres e aos homens (LOURO, 2014).
Foi possível também identificar nas falas que, por conta da sociedade patriarcal, mulheres
tendem a se calar na presença de homens, mesmo em ambientes nos quais elas se encontram em
maioria numérica.
Aí eu só complementando o que você falou, que a mulher acha que o ambiente
escolar não é um lugar para ela se colocar, eu acho que vai além: a mulher num
ambiente que tem algum homem não é um ambiente para ela se colocar, basta
ter um homem. Se tem um homem, não é um ambiente para ela se colocar,
muitas vezes, não é o fato de ser uma escola, é a própria presença masculina, que
é uma presença que oprime, que oprime a mulher, a mulher não fala diante de
um homem, essa que é a verdade, ela escuta, ela não fala. (Flávia).
Tal relato parece demonstrar que as discussões de gêneros não são relevantes apenas para
que as estudantes do gênero feminino não sejam oprimidas no ambiente escolar e para que os
estudantes do sexo masculino não desenvolvam atitudes machistas, mas também para que às(aos)
175
profissionais da educação sejam destinadas as mesmas oportunidades, direitos e condições de
externar posições, independente do gênero da(o) docente.
[Q]uando eu comecei a tocar guitarra, eu estava até tentando buscar uma coisa
masculina na verdade, era uma forma de eu buscar afirmação enquanto garoto,
eu tentava buscar uma afirmação enquanto garoto, porque eu não queria
passar...eu tinha medo de encarar essa questão de gênero, eu queria me
enquadrar como garoto. Tem a ver com o fato de eu aprender guitarra, não que
eu não gostasse daquilo, não que não fosse uma coisa genuína, mas eu lembro de
conscientemente fazer uma coisa, “ah, vou fazer uma coisa masculina aqui para
não dar bandeira”, entende? (Natália)
Então, Renan, assim, eu acho que essas pessoas são tratadas no universo da
Música de maneira bem...de modo a reproduzir a lógica patriarcal [áudio
impossível de se ouvir], no universo da Música, os regentes são homens na
maioria das vezes, e execução de alguns instrumentos musicais está digamos que
diretamente ligada ao universo masculino ou feminino, tanto que eu me orgulho
176
pra cacilda quando vejo uma mulher trombonista. [...] A sociedade foi forjando
uma lógica em que ou na qual, parece que para ser trombonista precisa ter uma
força, sabe? Aí porque é só o homem consegue que consegue soprar e ter uma
coluna de ar digna que é possível tocar trombone. Ah vá, né? Para! E “ah, os
movimentos do violino”, sabe? “Aqueles movimentos de braço, tal que tem mais
leveza, mais delicadeza, não é muito legal para um homem fazer, é melhor para
uma mulher”. Por mais que a gente tenha homens tocando violino e mulheres
tocando trombone, a gente foi ao longo da história constituindo lugares para cada
uma...para homens e mulheres. (Butterfly).
Uma coisa me chamou muita atenção, muita atenção. Uma frase que eu escutei
que eu nunca mais vou esquecer na vida: eu estava tocando [baixo elétrico] e aí
o músico que estava tocando na mesma banda que eu quando terminou a música
falou assim: “pô Flávia, tu tá tocando igual homem, hein?” Aí eu parei e
perguntei: “Estou tocando igual homem? Como assim? O que você quer dizer
com isso?” “Ah, você está com uma pegada boa, está tocando bem, está com
uma pegada forte”. Então, a minha meta enquanto baixista é tocar igual a
homem? É tocar como um homem? (Flávia).
177
A fala das entrevistadas está em pleno consenso com estudos acadêmicos já apresentados
na revisão bibliográfica, que mostram que, em geral, no ambiente de ensino de Música, o canto e
instrumentos “delicados” e/ou leves, como a harpa, o violino e a flauta são vistos como
femininos; mas instrumentos robustos e a parte “intelectual” da Música - composição, arranjo,
teoria musical - são vistos como essencialmente masculinos (GÜRGEN, 2016; KELLY;
VANWEELDEN, 2014; HALLAM et al., 2008; HO, 2003).
Tais construções sociais são negativas, pois demarcam posições de gênero que não só
corroboram os preconceitos, como também impedem a livre expressão dos indivíduos. É
necessário que a sociedade perceba que, por exemplo, meninos podem cantar e tocar harpa, e que
meninas podem tocar guitarra, baixo e bateria, e isso não ter qualquer associação com papéis de
gênero. Para tal, o campo da educação musical precisaria reconhecer que as questões de gênero
influenciam nas escolhas e comportamentos associados com o fazer musical, bem como ir de
encontro a tais assunções.
Todos os aspectos do dia a dia da mulher, ela acaba por se ver pressa, eu acho
que de uma forma geral, a esse servir ao homem [...]. A forma que a menina ela
vai se arrumar, ela vai focar sempre nas questões da beleza, ela vai buscar isso,
ela vai ser ensinada desde muito cedo a ter essa preocupação. [...]. Isso vem
desde muito cedo, essa expectativa é colocada na cabeça da menina, desde muito
cedo. E isso se desenvolve ao longo da vida dessa mulher como uma constante.
Quando ela começa a sua vida sexual [..] a gente vê muitas vezes isso de uma
forma bem nítida, que o papel dessa mulher dentro dessa sensualidade, dentro
178
dessa sexualidade, é o uso do corpo feminino mesmo, para serviço do homem,
como objeto sexual do homem, né? [...] E aí, quando a mulher ela passa a ter
uma relação com um homem [...], o que é esperado dela, mais uma vez é esse
serviço, não só sexual, mas um serviço de tornar a vida do homem mais
confortável, mais simples para ele. [...] E quando a mulher tem filhos, isso se
agrava muito, porque ela tem a função de criar o filho para o homem. O homem
tem o filho, tem a criança, mas quem cria o filho é a mulher e a mulher tem que
criar esse ser à imagem e semelhança do homem, né? [...]. E quando a mulher
começa a envelhecer, vai perdendo a beleza , e aí ela começa a sofrer uma
ameaça constante da perda do homem para uma mulher mais jovem, essa coisa,
essa ameaça, você vê nitidamente nos discursos da mulher como nos discursos
do homem, né? Que diz que vai buscar uma mulher mais jovem, a mulher fala
“ah eu vou fazer plástica”, ou “ah, eu estou envelhecendo!” Então, “eu estou
perdendo a minha função no mundo”, que é ser vir o homem, né? Então vem
essa ameaça muito forte no processo de envelhecimento que não é fácil para
ninguém envelhecer, mas para mulher é muito pior, porque essa coisa da mulher
como objeto sexual, ela se coloca ameaçada nesse momento de envelhecimento
e é quando a mulher vê que ela pode perder todo o sentido da sua própria
existência. (Flávia)
Nesses termos, o patriarcado não só influenciaria a vida da mulher, mas também definiria a
sua função no mundo. Chamou a atenção que, de acordo com trechos de algumas entrevistas, a
influência do patriarcado na sociedade seria tão forte que mesmo mulheres reproduziriam
estereótipos de gênero.
[O fato de mulheres reproduzirem machimos] está nos discursos todos, é
totalmente entranhado, é estrutural. Por isso que é a sociedade patriarcal, porque
é estrutural. Por isso que é uma sociedade patriarcal, porque é uma estrutura
social, que a gente está preso, a gente não consegue enxergar com outro olhar,
né? Com um olhar mais matriarcal, digamos assim, a gente não consegue, é
difícil, né? A própria mulher...e isso acontece direto, teve uma polêmica com a
Deborah Secco na internet, não sei se você viu isso, que ela deu uma declaração
de que as mulheres têm que ficar atentas, que tem que cuidar mesmo da beleza
delas, por que está cheio de mulher aí, querendo...livre para pegar o marido, para
pegar, entendeu? Então a mulher tem mais é que ficar bonita mesmo. É uma
mulher jovem, entendeu, é uma figura pública, falar coisas assim de uma
maneira super natural, assim como se fosse “é isso mesmo”, é o que a gente vê,
né? (Flávia)
Por meio de uma busca na internet, foi possível encontrar mais detalhes sobre a fala da atriz
Deborah Secco. Ela teria afirmado que as mulheres precisam ter relações sexuais com seus
maridos mesmo se elas não quiserem, ou “estiver[em] com preguiça ou dor de cabeça”, pois se
179
elas não terem, outra mulher terá. Tal declaração foi classificada como machista por várias
usuárias da internet105.
O fato de mulheres reproduzirem práticas e discursos patriarcais não se limita ao meio
midiático, mas também adentra no cotidiano da educação musical, inclusive na formação de
professoras(es) de Música, ocasionando que as disciplinas do curso de Licenciatura em Música
sejam ministradas sob uma ótica que invisibiliza as mulheres, mesmo quando tais disciplinas são
oferecidas por docentes mulheres.
3.4.5 Tokenismos
105
Notícia disponível em https://atarde.uol.com.br/famosos/noticias/1902101-deborah-secco-defende-que-mulher-
deve-transar-para-nao-ser-traida, acessada em 23/04/2021.
180
palco, montando palco, trabalhando com luz, luz até que tinha mais, mas [não]
fazendo som, e hoje em dia tem bastante. Claro que elas não surgiram do dia
para a noite, né? A formação delas já vem de algum tempo para cá, mas está
tendo mais espaço para elas, talvez? Espero que esteja, por que existem muitos
projetos que vem sendo feitos, “não sei o quê só para mulheres, não sei o quê só
para mulheres”, isso criou oportunidades, claro, mas eu não sei até que ponto é
uma oportunidade virtual, porque...o que eu quero dizer é se esses projetos vem
de fato inserindo mulheres no mercado de trabalho, por que, ah, digamos que
não tenha mais esse projeto, ninguém mais faz algo específico para mulheres,
será que essas mulheres que estão trabalhando vão ter espaço no mercado sem
uma segmentação de gênero? (Natália)
Pois é, pois é! Sim, mas aí pode ser uma coisa meio paliativa, sei lá, coisa
de...porque a mudança só ocorre de fato quando ela realmente está inserida na
sociedade, não só em segmentos recortados de coisas específicas para mulheres.
Será que vai chegar um cara qualquer, vai gravar um disco dele e chamar uma
mulher para gravar um álbum porque a mulher é boa? É isso que tem que
acontecer e é aí que a gente tem que chegar. (Natália)
181
Eu já ouvi criança em danças, em atividades de danças, e na dança se colocava a
mão na cintura e fazia assim [entrevistada coloca a mão na cintura e mexe o
quadril] e ouvi o menino falar: “eu não vou fazer isso porque quem bota a mão e
faz assim [mexendo] é menina, menino não faz isso”, né? Então quando a gente
está trabalhando com crianças muito pequenas, a gente tem que observar muito
essas reproduções de fala, porque crianças pequenas, elas têm como referências
principais os seus pais, os seus familiares. (Flávia)
Como o relato acima ocorreu na educação infantil, pode-se argumentar que as questões de
gênero têm influenciado nas dinâmicas do processo de ensino e aprendizagem de música desde a
primeira modalidade da educação brasileira. Tais questões acompanham o restante da vida
escolar das(os) estudantes, apresentando-se diferentemente em outras etapas, como o ensino
fundamental. Natália pontua:
Eu dei aula durante muito tempo no [nome da escola omitido] [...], e os garotos
chegavam com muito mais interesse de aprender um instrumento, queriam tocar
guitarra, e as garotas geralmente queriam algo de violão, não tinham muito
interesse em teoria musical, e elas tinham uma coisa, elas gostavam muito da
Taylor Swift, então, isso é uma questão que eu vejo de representatividade, os
garotos eles tinham, eles gostavam, sei lá, de AC/DC, eles gostavam dos caras,
não sei o quê, se espelhavam nos caras, as garotas não tinham em quem se
espelhar, se espelhavam na Taylor Swift que era uma cantora, mais do que uma
instrumentista, então para ela era uma mais de estar cantando e tocando violão, o
instrumento era uma coisa secundária. (Natália)
182
E quando eu falei para eles [sobre a transição], quando eu falei para os pais [dos
alunos], primeiro, claro, eles falaram, “claro, tudo bem, como você prefere que a
gente te chame, num sei o quê”, e nunca tive um problema com os dois
[crianças], eles nunca fizeram uma pergunta indelicada, nunca confundiram meu
gênero, nunca trocaram meu nome, muito tranquilo. (Natália)
Por meio dessa linha de raciocínio, e partindo do pressuposto de que as crianças são mais
abertas às questões relacionadas às diferenças, aponta-se para a necessidade de se abordar
questões relacionadas às diferenças de gênero desde a infância a fim de se formar cidadãos(ãs)
menos preconceituosos(as) e críticos em relação ao machismo. Semelhantemente, é importante
ressaltar que a entrevista realizada com a Natália faz entender que nas escolas, mesmo na
educação infantil, existem crianças e adolescentes com “questões de gênero”, o que também
justificaria um trabalho nesse sentido não somente para formar pessoas aptas a conviver com as
diferenças fora da escola, mas também dentro dela.
[P]elo que eu conversei lá com os professores [da educação infantil de uma
escola conservadora], tinha pelo menos duas crianças lá com questão de gênero:
tinha um garoto que eu cheguei a dar aula para ele, que ele falou que ele na
verdade era uma garota e tal, (muito cedo para dizer, mas tem todos os indícios
de ser uma pessoa trans), e parece que tinha também um no ensino médio uma
pessoa que estava se identificando como não-binária e tal. (Natália).
Segundo a entrevistada, o motivo da sua demissão foi exclusivamente o fato de ela ser
transgênera, logo, tem-se um claro caso de transfobia. Aponta-se que presença de profissionais
transgêneras na escola é de suma importância para que as(os) estudantes ressignifiquem possíveis
visões negativas sobre essas pessoas e passem a vê-las com bons olhos, o que pode colaborar para
a erradicação da transfobia na sociedade. Recorda-se o tratamento positivo de pessoas trans não é
uma benevolência ou moralismo, mas somente aquilo que é determinado pela Constituição
Federal de 1988.
É importante frisar que todas as entrevistadas foram categóricas ao afirmar que tratamento
positivo de questões de gênero não se fizeram presentes em suas formações enquanto professoras
de Música. Quando perguntada se percebeu em alguma aula no curso de licenciatura em música
que buscasse conscientizar positivamente sobre as diferenças de gênero, Natália respondeu
categoricamente: “Não, não, eu não percebi”. Flávia corrobora:
Se eu tive na minha formação acadêmica? Não, não. Que eu lembre não, juro.
Não me lembro de nenhuma, de nenhuma fala, de nenhuma preocupação, de
libertação, minimamente que seja, de colocação da mulher nesse contexto todo,
nunca. Não me lembro de nenhuma preocupação nesse sentido, de nenhuma
matéria, de nenhum professor, não me lembro. (Flávia)
Esses resultados estão de acordo com os achados de Santiago (2017), que, ao analisar
como as questões multiculturais perpassavam os currículos de três cursos de licenciatura em
184
música da cidade do Rio de Janeiro, constatou que o tema “gênero” não apareceu em nenhum
momento, nem na análise dos Projetos Político-Pedagógico, nem nos escritos das(os)
professoras(es) em formação, nem nas entrevistas das(os) professoras(es) formadoras(es). É
necessário, portanto, que os cursos de formação de professoras(es) de Música busquem inserir
conteúdos relacionados às diferenças de gênero na Música e na educação musical, a fim de
formar profissionais capacitadas(os) para lidar com tal demanda em sala de aula.
Apesar dessa lacuna, Raquel vê com otimismo os avanços que as questões relacionadas às
diferenças têm obtido nos últimos anos, e percebe tal “movimento de reviravolta” como positivo.
A Pitty [cantora midiática] falou uma vez uma coisa muito interessante, que
numa reportagem, um cara mandou um texto para ela, “ah, mulher não canta
rock”, e o cara mandou ela voltar para a cozinha, aquela babaquice toda, e ela
falou assim, “ah, eu não vou voltar para a cozinha, o gay não vai voltar para o
armário e o preto não vai voltar para a senzala e vocês vão ter que entender isso
e aceitar, a única coisa que vocês têm que fazer é entender isso e aceitar”. Essa
coisa ficou muito na minha mente, exatamente isso, a gente tá num momento de
muita reviravolta, ainda tem muita coisa a ser feita, mas eu acho que o momento
é esse, sabe? (Raquel)
Por fim, sumarizando, a análise das entrevistas, pôde-se identificar atitudes docentes que
possibilitem na valorização das diferenças de gênero em aulas de Música. Em primeiro lugar, foi
destacado a importância da educação, não somente a educação musical, mas o trabalho de toda
instituição escolar em si, visto que não adiantaria a(o) professor(a) de Música buscar implementar
aulas que descontruam estereótipos de gênero se a instituição na qual ela(e) trabalha é
conservadora e tradicionalista. Natália afirmou o seguinte:
185
E o trabalho de combate aos preconceitos dentro da infância, ele tem que ser um
trabalho feito junto à família, pois se não vier junto a família, esse trabalho não é
possível de ser realizado, por mais que você esteja dentro da sua sala de aula e
explique para a criança que não é aquilo, isso só vai confundir a cabeça da
criança e não vai resolver o problema. Então quando a gente tem um desafio
desses, de combater preconceitos de todo o tipo, a gente, a nossa prática tem que
estar além da sala de aula, é uma prática que tem que envolver a família, e se
envolve a família tem que envolver a escola como todo. Tem que envolver as
coordenações pedagógicas, tem que envolver as direções das escolas, tem que
envolver a comunicação da escola, ou seja, o marketing da escola, ou seja, o
professor da educação infantil, ele não vai dar conta disso sozinho, ele vai
enxugar gelo, ele tem que fazer uma ação que esteja dentro do corpo da escola
como um todo, da ação da direção, da ação do marketing, da ação da
coordenação, das reuniões com as famílias, dos projetos que envolvem as
famílias. (Flávia)
186
Contudo, concorda-se com a Flávia que abordar questões de gênero em uma aula técnica é
importante.
Ficaria assim uma coisa meio ‘mas como abordar isso aqui?’, mas é uma turma
de percepção musical que tem mulheres e tem homens e tem uma dinâmica do
patriarcado acontecendo lá dentro, dentro daquela sala. Então, acho que para
começar essa preocupação tem que passar pela cabeça de todos (Flávia)
Concorda-se, portanto, que ao levar as(os) estudantes a conhecerem tais artistas, suas
histórias e suas vidas, pode-se favorecer na criação de um sentimento positivo em relação às
diferenças de gênero. É interessante também que a entrevistada afirma que o tratamento das
questões de gênero em decorrência do ensino de conteúdos da disciplina de Música não se
configura em uma fuga dos conteúdos musicais.
Por fim, nesse mesmo sentido, debates que relacionem questões de gênero com os
conteúdos específicos da disciplina de música também foram citados. Não se trataria, portanto, a
reduzir a aula a debates sem fazer musical, mas, a partir do fazer musical, ancorar o conteúdo
musical com os debates de gênero, isto é, debater ou pelo menos, levantar reflexões sobre como
questões de gênero se relacionam com dado conteúdo.
3.5. “Se baixar a guarda, as pessoas vão passar por cima de você com tudo”. Entrevistas
sobre sexualidade
Em primeiro lugar, corroborando pesquisas como Carvalho (2008), Lopes (2014) e Leite
(2012), a entrevistada e os entrevistados foram unânimes em indicar que pessoas com
sexualidade não normativa são alvos de discriminação na sociedade brasileira contemporânea.
[N]a verdade, digamos que toda identidade LGBTQIA+ é vista como
transgressora, como marginal, como escória, escória, né? [...] Eu acho que a
sexualidade ainda é tratada pela sociedade de uma forma muito viciada, viciada
188
assim, com um olhar, com uma lente muito específica. Ela é sempre é
atravessada por questões que são muito tabulizadas, que são envoltas numa
redoma, como se sexualidade só quem tem é o outro. E a do outro é desviante, a
do outro é uma porcaria, mas a minha não, a minha é ótima. (Butterfly)
A fala de Raquel aponta para a preocupação que sente de a sociedade a perceber como
pessoa homoafetiva. Realmente, no Brasil, o heterossexismo é uma ameaça real que faz com que
uma pessoa homoafetiva sofra violência a cada hora106 e que uma seja morta a cada 16 horas107.
As consequências dos estereótipos socialmente produzidos e direcionados às pessoas
homoafetivas são enormes e, nesse sentido, Raquel fala sobre “ficar de baixo dos panos” -
esconder-se, negar sua identidade - como uma estratégia de autoproteção e sobrevivência.
Porém, recorda-se que o direito do cidadão assumir qualquer identidade sexual está, pelo
menos em teoria, garantido pela Constituição Federal de 1988, mas, por meio dos relatos dessa
106
Segue weblink de matéria jornalística que disserta sobre o assunto:
https://www.estadao.com.br/noticias/geral,correcao-a-cada-hora-um-gay-sofre-violencia-no-brasil,1596098, acesso
em 13/10/2019.
107
Segue weblink de matéria jornalística que disserta sobre o assunto: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2019/02/20/brasil-matou-8-mil-lgbt-desde-1963-governo-dificulta-divulgacao-de-dados.htm, acesso em
13/10/2019.
189
entrevistada, percebe-se que a tal direito constitucional não é verificado na realidade e que
existem diversos tipos de estigmas e estereótipos relacionados à identidade da pessoa
homoafetiva.
Ah, eu acho que se resiste muito, tem muita resistência, é a gente tem que se
impor o tempo todo, tem que brigar o tempo todo, é, porque a gente sempre ouve
piadinha de mau gosto, a gente sempre tem que se impor. Por exemplo, as
pessoas hétero não precisam disso, eles são, pronto e acabou, mas a gente tem
que ficar se autoafirmando. É igual a questão do negro mesmo, a gente tem que
trabalhar mais, a gente tem que chegar mais cedo, a gente tem que ficar sempre
provando que a gente é o melhor, só que isso está relacionado também à questão
da homossexualidade, sabe. Porque, por exemplo, se eu estou aqui com você e
eu tenho que arrastar esse piano se eu digo, poxa Renan, me ajuda a puxar esse
piano, o pessoal, fala, “ah, mas você não é o machão da história?” Isso acontece
muito, aqui dentro da orquestra mesmo. Eu sou uma pessoa que luta muito por
meus ideais. Eu tenho os meus sonhos, eu quero fazer algumas coisas e eu tenho
que estar sempre brigando muito para conseguir, para a gente ser uma voz a
gente tem que impor algum as coisas e aí se a gente baixar a guarda, as pessoas
simplesmente vão passar por cima de você com tudo. (Raquel)
No caso da Raquel, que mantém uma união estável com outra pessoa do mesmo sexo e tem
uma filha adotiva, ainda mais estigmas e preconceitos são criados pela sua figura. Percebe-se que,
nesse caso, a normatização do conceito de família tradicional - aquela formada por um casal
heterossexual - tende a criar obstáculos para famílias contemporâneas e não-normativas.
[Alunas da terceira idade perguntam para Raquel] “Ah, e seu marido, ah, e o pai
da menina?” A menina, o pai dela não sei por onde anda, porque a [nome
omitido] é minha filha do coração, minha filha adotiva, mas as pessoas nunca
entendem, porque tem essa ideia de família, o pai, a mãe, a família tradicional,
mas a quantidade de crianças que foram geradas dentro de um relacionamento e
depois o pai vai embora e a criança nunca mais veem o pai, aí não tem problema,
mas quando tem uma pessoa que resolve adotar uma criança e que não tem
parceiro [do sexo oposto], isso é muito difícil de aceitar, né? [ironia]. (Raquel)
190
Contudo, mesmo nesse contexto de preconceito, dentro do universo LGBTQIA+, pessoas
cujo comportamento e/ou expressão de gênero converge com aquilo que é socialmente aceito
para o seu gênero, em uma ótica cisgênera e heteronormativa, tendem a sofrer menos estigmas.
Mas acho que dentro das identidades, essas identidades LGBTQIA+, existem
alguns sistemas de assimetria que fazem com que algumas pessoas tenham mais
grau de passibilidade do que outras […] E é muito louco, porque essa mesma
condição de passibilidade na minha história de vida foi criando meio que umas
capas protetivas […] sei lá, deixar a barba [crescida], usar roupas mais do
universo homem cis, […] então isso me cria um grau de passibilidade que, às
vezes, [a questão homoafetiva] passa batido frente às pessoas. Mas se eu abrir a
boca “bom dia, moço”, acabou [a passibilidade]. Já entra uma outra lógica em
questão. […] Para tentar resumir, [...] passibilidade de algumes indivídues pode
criar algum tipo de privilégio entre as pessoas LGBTQIA+, mas no primeiro
deslize, deslize na lógica cis, hétero e patriarcal, a primeira resvalada de você
abrir a boca e dizer “bom dia, moço”, o julgamento sobre a sua sexualidade
começa e não termina mais, como se isso fosse um problema, na verdade não é,
eu acho que as pessoas viverem suas sexualidades como elas são, seria libertador
para todo o mundo, seria bem menos pior do que é. (Butterfly)
191
A questão da passibilidade também influenciaria na aceitação de pessoas LGBT+ em
funções relacionadas à prática musical ou ao ensino de Música.
Se a gente for pensar em pessoas [...] LGBTQIA+, esse lugar ainda é muito mais
grave [...]. A não ser que você seja muito durinho e que você tenha um grau de
passibilidade bem, né [alto]? “Ah, o cara, o cara é gay, mas o cara toca
trombone”. “O cara é gay, mas o cara toca bateria”. Sabe? [...] Mas [...] essas
certezas que a sociedade tem, da linha causa-consequência entre ser homem e ter
força, ser mulher [e] ser fraca [...] e a pessoa LGBT está em outro diapasão, mais
desafinado ainda, mais fora dessa lógica, né? Se tiver um grau de passibilidade
pequeno, que essa linha direta de causa-efeito [que indica que o] homem é forte
e a mulher é fraca, [isso] vai constituindo alguns estereótipos de atuação. Aí, sei
lá, o homem regente, a mulher professora de Música, pianista. E é muito louco
por que mesmo a gente [pessoas homoafetivas] nos nossos [pensamentos]
íntimos, né? Às vezes, eu fico olhando a figura de pianistas homens do início do
século XX , fico assim me perguntando: “Será [que era uma pessoa LGBT+]?”,
porque assim, até a gente inconscientemente, a gente incorpora esses
estereótipos, porque a gente é forjado nessa sociedade cis-hetero-patriarcal que
determina que homem serve para isso, mulher serve para aquilo e [a pessoa]
LGBT não serve para nada. (Butterfly)
192
qualquer pessoa, de qualquer identidade, não precise mobilizar sua agência musical para esconder
a sua identidade e, assim, evitar discriminações.
A segunda categoria indica que a escola também não é um ambiente seguro para a(o)
professor(a) homoafetiva(o). Raquel afirma que tanto as(os) estudantes como a própria equipe
pedagógica reproduzem preconceitos e relacionam, entre outros aspectos, a questão da
homoafetividade com a lascívia e com a pedofilia. Nesse contexto, profissionais da educação
abertamente homoafetivas(os) sofrem com pressões institucionais que não são direcionadas a
pessoas heterossexuais.
Uma das coisa muito difíceis de se viver como lésbica trabalhando com crianças,
[é que] que as pessoas sempre trazem a questão do homossexual [relacionando]
com a promiscuidade e assim, isso pesa muito na hora de...eu sempre tenho esse
cuidado, de estar perto da meninas e poder conversar com elas (eu dou aula para
adolescentes também, adultos), e aí, eu tomo muito cuidado do que eu falo, da
maneira que eu brinco, porque é isso, a gente sempre está sendo testado, tem
sempre um olhar crítico em cima. (Raquel)
Esse “cuidado” excessivo, que, na verdade, expressa regulação e uma vigilância opressiva
para com muitas(os) profissionais homoafetivas(os), ocorre, possivelmente, pelo medo que parte
da sociedade associa a tal identidade, que, infelizmente, ainda é discursivamente marcada pelo
desvio, pela transgressão, pela mácula, pelo pecado. A experiência de Raquel indica que a
homoafetividade ainda não é contemplada sob o olhar da normalidade e, o que foge à norma
imposta tende a ser vilanizado, evitado, combatido, patologizado. Tal influência da
normatividade religiosa também foi citada pela Natália:
[E]sse pensamento principalmente cristão, não querendo ser eu a preconceituosa,
mas tem muito na cultura cristã, de que essas coisas são desvios de caráter, que
são pecados e se deve proteger as crianças, coisas que as crianças tiram de letra.
Outra questão que fala é que isso [a presença de um(a) professor(a)
homoafetiva(o)] incentivaria as crianças a serem homossexuais, ou serem trans
ou serem sei lá o que, mas se isso fosse verdade, seria todo mundo hétero, o que
mais se tem é beijo hétero na televisão, nos livros, nos filmes, nas música, né,
nos eu-líricos da música (Natália).
Apesar das pressões religiosas que, muitas vezes, criam situações desfavoráveis para
pessoas LGBT+ em escolas e universidades, argumenta-se que a educação escolar, inclusive a
193
educação musical, tem potencial para que tais situações de heterossexismo possam ser
combatidas, propiciando que a escola e universidade se tornem lugares seguros para estudantes e
profissionais da Educação.
Nesse sentido, é importante também salientar que diversas pesquisas, como a de Leite
(2012) apontam, justamente, para a escola como um local que conduz as suas ações sob uma
perspectiva heteronormativa e que silencia – ou naturaliza – episódios de heterossexismo,
direcionados tanto a estudantes declaradamente homoafetivas(os) ou a qualquer um(a) cujo
comportamento fuja ao “esperado” para alguém do seu sexo biológico.
A mesma autora aponta dados que reafirmam que pessoas homoafetivas sofrem
significativamente no ambiente escolar e fora dele, e corrobora com o argumento de que a
naturalização da cis-heteronormatividade e a invisibilidade do heterossexismo, que, muitas vezes,
ocorre camuflado como meras brincadeiras, são os principais desafios a serem superados a fim de
possibilitar que a escola valorize as diferenças, inclusive, aquelas relacionadas às identidades
sexuais.
Sobre esse último ponto, Louro (2014, p. 141) adverte que “[s]e a normalização tem como
referência a heterossexualidade e coloca a homoafetividade e o sujeito homossexual como
desviantes, precisa-se questionar como isso ocorre nas escolas”. Argumenta-se que a escola
reproduz os preconceitos que já estão estabelecidos na sociedade e, uma das formas de se reverter
tal reprodução é tentar mudar a sociedade de dentro da escola para fora desta.
Nesse mesmo sentido, emerge outra categoria identificada nas entrevistas, que discorre
sobre a ausência da discussão de sexualidade na formação de professoras(es) de Música. Ao ser
perguntado se o tema perpassou sua formação, Leonardo respondeu com um sonoro “não”, e
também expressou que há poucas pessoas estudando o tema da sexualidade no ensino de Música
no Brasil.
Acho que também é muito difícil, a gente pensar esse universo LGBTTTQIA+,
eu acho que tem poucas pessoas hoje chegando nesse universo na educação
musical. [E]sse é um debate ainda mais difícil dentro das questões da formação
em Música do que o debate racial, mas tem uma primavera das mulheres, que de
certa forma dentro do debate da formação musical, seja no bacharelado ou no
curso de licenciatura, tem que ser aguçado. (Leonardo)
194
Butterfly também contribui com a assunto, indicando que, embora questões relacionadas às
diferenças de sexualidade não fossem diretamente tratadas na sua formação enquanto professor
de Música, elas estavam indiretamente presentes lá.
195
2020; PALKKI; CALDWELL, 2018; GARRET; SPANO, 2017), indicando que tal lacuna se dá a
nível mundial. Contudo, concorda-se com Butterfly quando ele afirma que
[T]oda a performance musical é atravessada por ideias de gênero e de
sexualidade, só que as performances conservadoras, elas tendem a reproduzir
lógicas masculinas ou femininas em que as lógicas masculinas sejam ocupadas
por homens e que as lógicas femininas sejam ocupadas por mulheres. Ou quando
as lógicas masculinas são ocupadas por mulheres, [se diz:] “por favor mulheres,
não debatam, não venham com esse negócio de o que é o seu lugar, o lugar da
mulher, como a mulher é uma maestrina diferente de um maestro”, sabe? Tem
que problematizar essas questões. (Butterfly)
Nesse sentido, sendo tratada diretamente ou não, a sexualidade sempre vai estar presente no
âmbito do ensino de Música, contudo, se o tratamento não for crítico, inclusive e diretivo, a
tendência é que a lógica heteronormativa prevaleça e que as pessoas LGBT+ continuem sendo
discriminadas. Argumenta-se que tal realidade precisa ser reprensada a fim de se garantir a plena
inclusão de pessoas LGBT+ em escolas e universidades, locais ainda marcados pela homofobia
(LEITE, 2012).
As sugestões dadas pelos entrevistados e pela entrevistada para que a educação musical
possa auxiliar no combate a preconceitos e discriminações relacionados às diferenças sexuais
estão apresentadas a seguir. Na educação infantil, Butterfly contribui, incialmente, indicando a
importância de se tratar o assunto junto a essa faixa etária:
196
que poderia ser considerado inadequado para as(os) infantes? Na perspectiva de Butterfly, seria
importante apresentar musicistas LGBT+, sem fazer juízo de valor sobre a sexualidade delas(es).
Desse modo, não seria necessário entrar em discussões complexas e inadequadas para essa
idade, apresentado as crianças, por exemplo, às diferentes formas que a sexualidade humana pode
se expressar. Seria suficiente apenas apresentar musicistas, regentes e compositoras(es)
homoafetivas(os) a elas. Argumenta-se que essa atitude não seria inapropriada, pois existem
pessoas LGBT+ e elas circulam normalmente pela sociedade, sendo vistas por pessoas de
diferentes idades, inclusive por crianças da educação infatil. Contudo, ao se trazer músicas e
vídeos dessas pessoas em aulas de Música, pode-se possibilitar que as crianças visualizem as
diferenças com olhares positivos.
Já em aulas de Música oferecidas para o ensino fundamental, foi proposto que o nível do
debate fosse aprofundado.
Eu acho que a abordagem tem que continuar sendo a mesma da educação
infantil, mas agora, ter um outro nível de debate. Quando na educação infantil
bastava, bastava entre aspas, a gente mostrar, apresentar [musicistas LGBT+]
para a criança, agora a crianças de 9 anos do 4º ano, de 9, 10 anos, ela tem outro
nível de discussão, então a gente tem que elevar o nosso nível de discussão
108
Por “L”, o entrevistado se refere a uma mulher lésbica.
109
Por miopia, o entrevistado se refere à sua percepção de que crianças pequenas ainda não estão completamente
cientes dos papéis de gênero socialmente produzidos. Isso se apresenta no seguinte exceto da sua entrevista: “Então,
como os preconceitos eles são construídos, a etapa da educação infantil é a etapa em que a criança tem os seus
primeiros contatos com o mundo. E com o mundo no sentido mais amplo. Apesar dela entender que ela tem piru ou
que ela tem xereca e tal, digamos que existe ainda uma espécie de miopia, no bom sentido, de enxergar as coisas sem
ter muita nitidez do papel do homem, do papel da mulher, do papel da LGBT, se bem que essas palavras não fazem
parte de maneira cristalizada ‘ah, isso é homem, isso é mulher, isso é bicha, isso é preto’”.
197
também, de debate né? Não discussão, mas de debate sobre a questão. Se a
criança apresenta uma questão: “ah, mas isso é isso”, ela já tem um argumento
para em alguma medida justificar a estereotipia ou o preconceito dela, “ah, mas
é porque eu vi não sei quem falar que [alguma artista LGBT+] é ruim”. “Mas
porque é ruim? Vocês ouviram a pessoa falar da música que ela produz para
dizer que é ruim?”, “não...”, “então a gente não pode dizer que uma coisa é sem
ter ouvido o autor daquela música, sem ter parado para mergulhar um pouco
naquele universo e entender aquela produção musical”. Então, se mantém,
mantém o contato, mas o nível de apresentação, de debate e de embate é em uma
outra proporção porque as crianças já estão mais espertas, nessa lógica que a
gente fala, elas já estão mais em um outro nível de capacidade de argumentação.
Então você tem que caminhar nesse lugar também, né? (Butterfly)
Por fim, no que se refere ao tratamento das diferenças de sexualidade no ensino superior,
Leonardo apenas aponta para a importância de uma formação humanística, que contribua com a
formação da empatia da(o) futuro docente.
Uma é que eu acho que a filosofia da diferença é um grande arcabouço para
discutir essas questões e outra, uma discussão equânime, ou seja, da equidade,
ela é super possível também de fazer entender que essas pessoas que elas são
humanas da mesma forma que as outras também e que é tão importante que esse
diálogo seja promovido, e essa ação pedagógico musical seja presente, de a
gente também fazer isso na formação superior, sabe? (Leonardo)
Butterfly indica também que é importante que a(o) professor(a) LGBT+ não esconda sua
sexualidade, mas que, pelo contrário, possa ratificá-la à turma por meio das suas potências
corporais.
Então assim, eu acho que o contato com a essas questões que dizem respeito às
sexualidades, aos gêneros, né, des individues, elas não tem que passar só pelas
questões musicais. Raramente individues LGBT só tem o marcador música
como marcador da sua singularidade, de sua marca individual. A gente tem
marcadores corporais, a gente tem marcadores que forjam outras coisas. Um
gosto por um tipo de dança específico, de colocar o corpo para jogo, como eu
tenho chamado também, entendeu? Então eu acho que o contato tem que ser
direto. Se eu sou formador de professores, sou bicha, então não basta só trazer
artistas LGBTIAQ+ para serem ouvidos, tenho que fazer política com o meu
corpo. Se eu tenho um macacão andrógeno, eu vou botar um macacão andrógeno
para a aula. Se eu tenho um brinco de pena para me deixar tipo assim, “ãhn”? Eu
vou colocar um brinco de pena. Claro que isso tem em alguma medida assim
uma relação com a segurança também, mas eu acho bom você trazer marcadores
que não sejam só musicais. Tem o fator musical, mas a música ela nunca está
sozinha, ela está atrelada a outros marcadores. (Butterfly)
198
Colocar o “corpo para jogo”, usá-lo como política, seria não esconder sua identidade
sexual, mas, pelo contrário, utilizá-la para marcar posição no mundo. Infelizmente, como o
próprio entrevistado assume, por conta da violência que é dirigida a pessoas homoafetivas, nem
sempre é seguro se proceder assim. Raquel, por exemplo, parece indicar que, enquanto docente
homoafetiva, não busca tratar questões relacionadas à educação da sexualidade, mesmo quando
elas emergem no contexto das aulas.
[Á]s vezes, tem até uns [estudantes] que tentam implantar alguma maldade, tipo
“ah, a tia é sapatão”, aí eu já chego e digo “Tem certeza que você quer falar
sobre isso?” Aí eu procuro falar da maneira mais lúdica, falando de amor, mas
isso não é importante. “Eu não estou aqui perguntando se você já beijou na boca,
do que você gosta (depende da idade isso)”, mas aí eu falo, “isso vai ser
importante para a nossa aula agora? Isso não tem a menor importância para a
nossa aula agora, ninguém tá dando aula aqui de beijar na boca, ninguém tá
dando aula aqui de como namorar, é aula de Música” e tal. (Raquel)
Raquel, nessa ocasião, preferiu não propor nenhuma ação ou conteúdo específico para tratar
da temática da sexualidade nas aulas de Música. Contudo, é importante entender a situação da
entrevistada enquanto professora assumidamente homoafetiva em uma sociedade
heteronormativa. Talvez, se ela propusesse conteúdos relacionados à valorização da identidade
homoafetiva em suas aulas, ela poderia ser mal-interpretada pela equipe gestora da sua escola,
pelas(os) responsáveis e até pelos(as) estudantes. Todavia, seu recado de não aceitar a
discriminação por parte das(os) estudantes parece ter ficado claro.
Leonardo, ao ser questionado sobre como se pode tratar do tema em aulas de Música, por
diversas vezes, intersecciona sexualidade e gênero em suas respostas, como se vê abaixo:
A gente poderia, por exemplo, discutir com as crianças porque a gente tem
muitos mais compositores homens na dita música clássica do que mulheres.
Porque as mulheres foram invisibilizadas? Porque elas “não sabiam” tocar?
Esses debates...eu acho que as questões de sexualidade ela também pode ser
pairada com as questões de gênero. Isso é super possível de se discutir com as
crianças, porque não é possível discutir? E aí fazer uma relação na sua casa,
quem faz esse dever de mulher, quem faz esse dever de homem? Ou seja, a
partir do aspecto de uma experiência acústica de uma experiencia sonora, eu
posso sim levantar debates para outros universos e para outras questões, eu vejo
por esse lado. (Leonardo)
Embora se saiba que gênero e sexualidade são temas interrelacionados e que a sexualidade
é definida, a priori, por meio do gênero (LOURO, 2014), separar os dois temas pode favorecer
para que as diferentes categorias identitárias sejam mais bem tratadas, visto que, por exemplo, as
199
demandas das mulheres heterossexuais e dos homens homoafetivos não são as mesmas. Como se
lê na transcrição da fala do Leonardo mostrada a cima, a temática homoafetiva, ao ser pareada
com as questões de gênero, não foi tratada. Como hipótese, pode-se argumentar que a lacuna na
formação é tão grande que, às vezes, mesmo professoras(es) de Música homoafetivos têm alguma
dificuldade em pensar em práticas de sala de aula que venham a confrontar o heterossexismo e
valorizar as diferentes identidades sexuais.
Contudo, no decorrer da entrevista de Leonardo, ele pôde indicar outras possibilidades de
cunho mais prático, a saber, a valorização de um “repertório gay”.
Eu já traria logo a Pablo Vittar na sala de aula. Traria logo um “Parabéns, Big
Big seu bumbum110”, e pronto, né? Por exemplo, essa produção desse universo,
porque essa garotada tá toda escutando Pablo Vittar, toda escutando aquela outra
travesti que é a Glória Groove, eles estão inseridos nesse universo. […] Super dá
para fazer a partir de um universo de reconhecimento dessas músicas, a partir de
um mergulho na vida desses autorxs [entrevistado frisou que deveria ser com
“x”], a partir dessa possibilidade de tocar produzir performance, isso é um ótimo
espaço de produção de sentidos, de produção de significados, de produção de
desenvolvimento humano. É super possível. (Leonardo)
Dois homens homoafetivos que performam como Drag Queens e que têm grande
reconhecimento no cenário musical atual foram citadas. O uso de um repertório também formado
por músicas interpretadas ou compostas por pessoas LGBT+ também é recomendado por Palkki e
Caldwell (2018) e mais abertamente por Oliveira e Farias (2020), que usam o conceito de música
queer, ou seja, uma musica feita por pessoas LGBT+ e que tenham uma estética LGBT+. Além
das citadas, não se ignora que ícones da música popular brasileira são ou eram homossexuais ou
bissexuais assumidos(as), como Renato Russo, Cazuza, Ney Matogrosso, Ângela Ro Ro, Cássia
Eller, Sandra de Sá, Marina Lima, entre outras(os), também podem se fazer presentes em aulas de
Música. Concebe-se como importante citar também artistas que não performam como “Drag
Queen”, para que as(os) estudantes não vejam a homoafetividade somente como algo
espalhafatoso, mas, ao mesmo tempo, existe um risco de se trazer para a sala de aula apenas
artistas LGBT+ com grande passibilidade, pois isso pode reforçar o estereótipo de que
homossexuais podem ser bem aceitos caso não demonstrem abertamente sua orientação sexual.
Esses extremos precisam ser bem dosados.
110
O entrevistado cita um trecho da música “Parabéns”, da cantora Pablo Vittar.
200
Emerge também a possibilidade de aulas de Músicas se darem em outros ambientes, nos
quais as(os) estudantes poderiam ter um contato positivo com o público LGBT+ também aparece
nos discursos analisado.
E sair da sala de aula, fazer uma aula dentro de uma boate, fazer uma aula por
exemplo, dentro de uma....dentro de uma parada gay, fazer uma aula dentro de
um manifesto, do “Samba que elas querem”, que são mulheres tocando, fazer
uma aula nesses outros lugares, fazer uma relação, sair um pouco da sala de aula
e ver que a cidade está gritando (Leonardo)
Argumenta-se que esse constante embate crítico tem potencial para formar professoras(es)
mais sensíveis em relação às diferenças de sexualidade. Como atestado por Hall (2014) a
identidade está em frequente formação, logo, uma pessoa que tenha interiorizado ideias
heterossexistas pode rever seus conceitos e admitir um mundo mais plural.
Eu costumo ouvir dos mais antigos que candomblé não era nem para ser visto
como religião. Religião é aquilo que a gente se arruma bonitinho, vai de manhã e
fica uma hora e meia e vai para casa. Você acha que candomblé é isso?
Candomblé, às vezes você fica uma semana fazendo obrigação, um ritual...é uma
forma [estilo] de vida, eu não considero como uma religião. Uma vida, é uma
comunidade aonde a gente aprende muitas coisas. (Marcus)
202
Sendo inseparável da vida, o aprendizado adquirido no candomblé não fica no terreiro, ele
acompanha o religionário em seu cotidiano. Nesse sentido, trata-se de uma cosmovisão, uma
maneira de se estar e de se enxergar o mundo. Fora das questões religiosas, segundo Marcus, o
aprendizado dos terreiros é para a vida toda. Ele argumenta:
Saber a hierarquia que existe no terreiro eu acho é um dos maiores tipos de
educação. É aprender a respeitar os mais velhos. O candomblé tem essa tradição,
o mais velho sempre tem os seus direitos. [A criança] aprende a respeitar os
mais velhos, aprender a saber o que é não e o que é sim. (Marcus)
Percebe-se que as escolas não são as únicas instituições que favorecem um ensino que
valorize as diferenças, visto que os terreiros também favorecem tal tipo de educação. Não à toa,
diferentes estudiosas(os), como Rufino (2018), Silveira (2014), Carvalho (2019) e Oliveira
(2005), refletem sore como as práticas educativas dos terreiros podem ser aplicadas nas escolas
regulares, não somente para valorizar o conhecimento afrocentrado, mas para que toda a
educação básica seja beneficiada. Espera-se que a presente tese possa fortalecer essa discussão no
âmbito do ensino de Música.
Afirma-se que esse tratamento desigual é expressão do preconceito e racismo religioso que
é dirigido a condomblecistas e outros professantes de religiões de matriz afro-brasileira. Em uma
sociedade na qual o cristianismo é a religião oficial e normativa, muito dificilmente alguém seria
discriminado por, por exemplo, usar um pingente de crucifixo, mas, infelizmente,
204
candomblecistas sofrem ao demonstrar sua fé, e, como forma de autoproteção, recorrem, em
alguns casos, a estratégias para se defenderem do preconceito, como o silenciamento, a negação
da identidade e/ou a camuflagem. A fala de Raquel destacada acima, por exemplo, demonstra
que ela, apesar de não ter vergonha da sua fé, utiliza certos mecanismos para não sofrer
preconceito, por exemplo, esconder os fios de conta dentro da blusa.
O silenciamento e a negação da identidade atingem diferentes locais da sociedade, até
mesmo a universidade. Marcus e Marcelo contam que no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Engenharia da UFRJ, eles “t[ê]m amizade com um [sic] cara que é iniciado, mas [ele]fica
calado, pois não sabe o que vai acontecer”. Ou seja, o silenciamento é uma estratégia recorrente
que busca prevenir atitudes preconceituosas. Ainda nesse sentido, Marcus conta que precisou
mudar sua área de doutoramento por conta do preconceito.
205
O direito à identificação, expressão religiosa e liberdade de crença, teoricamente garantidos
na Constituição Federal de 1988, infelizmente, não se confere na prática em relação às(aos)
professantes de religiões de matriz afro-brasileira. É necessário, portanto, que instâncias
superiores criem subsídios para que aquilo que está expresso na letra do papel tome contornos de
veracidade na vida prática e que as escolas e universidades tratem positivamente do assunto. As
escolas e as universidades, por meio de uma educação multicultural e antirracista, também podem
contribuir com esse intento.
Tal necessidade acentua-se quando a fala de Raquel expressa que o preconceito e a
discriminação ocorrem de forma praticamente gratuita, no exato momento que qualquer
manifestação relacionada ao candomblé emerge da sua prática profissional.
O relato acima coincide com os escritos de Caputo (2006, 2008, 2012), que denunciam
como a demonização dos orixás, fruto da opressão colonialista que resultou na representação dos
orixás sob o olhar do colonizador e estimula o preconceito contra o candomblecista, contra a
cultura contra os saberes afro-brasileiros. Nessa perspectiva, é muito importante que haja uma
desconstrução do pensamento que relaciona orixás com demônios da tradição cristã e, para tal, a
educação escolar pode contribuir favoravelmente nesse quesito (RUFINO JUNIOR, 2018).
Porém, os entrevistados e a entrevistada destacam que o preconceito, a discriminação e o
racismo religioso também adentram os muros da escola. Marcelo conta que “na época da
obrigação, eu ia para a escola todo de branco, [sic] po, as pessoas desvia[va]m [dele]”. No caso
de Raquel, o preconceito atinge o seio do seu trabalho como professora de Música. Ao ser
111
De forma objetiva, Yabás são Òris̩ às do sexo feminino.
206
questionada se ela, por sua vivência como candomblecista, se sentia capaz de ministrar conteúdos
relacionados à musicalidade da sua religião em sala de aula, obteve-se como resposta que
Sim, mas eu por exemplo nunca pude fazer isso, pelo fato de que...se eu pegar
um pandeiro, por exemplo, tem lugares que se eu fizer um ritmo de baião, o
pessoal já fala, “Nossa, a tia tá tocando macumba, desconjuro o credo” aquela
coisa toda, e tipo assim, nem é [um ritmo de culto africano], é um ritmo popular,
e tudo o que se refere a uma batucada, a tudo o que eles não estão acostumados,
é, a gente já é massacrado pelo preconceito. (Raquel)
207
Tal fato, ou seja, que estudantes cristãos se recusam a participar de atividades que
envolvam saberes afro-brasileiros, é reforçado por um acontecimento que ganhou certo destaque
na imprensa, em que estudantes da UFRJ se recusaram em cantar um repertório sacro afro-
brasileiro. Tal fato foi comentado por Natália
112
Segue weblink para matéria citada: https://oglobo.globo.com/cultura/musica/musica-sacra-afro-brasileira-
enfrenta-resistencia-de-alunos-evangelicos-na-escola-de-musica-da-ufrj-23906215
113
Segundo a Bíblia, o apedrejamento era uma das formas da punição do pecado no Antigo Testamento, porém, no
Novo Testamento, Jesus não permitiu que a mulher adúltera fosse apedrejada, dizendo “Que atire a primeira pedra
aquele que nunca pecou”. Em outras palavras, o apedrejamento não é legitimado pela Bíblia.
208
afro-brasileira (SOUZA, 2015; SZPILMAN, 2010). Contudo, para tal, é importante que as(os)
docentes, desde a Licenciatura em Música, possam ser capacitadas(os) para trabalhar com tal
conteúdo em sala de aula, ou seja, os saberes ancestrais afro-brasileiros também precisam
perpassar pela formação de professoras(es), o que possibilitaria a desconstrução de possíveis
preconceitos das(os) futuras(os) docentes e a capacitação necessária para a ministração de aulas
autênticas (SANTIAGO; IVENICKI, 2016c).
209
O atabaque a gente respeita porque é tirado de uma árvore, uma árvore é um
ancestral, é vivo. [...], então a gente tira [os atabaques d]as árvores, ela é polida,
tem toda essa questão, não é qualquer tipo de formato, tem toda uma questão,
enfim do atabaque, por que a gente dá comida para o atabaque, da mesma forma
que a gente arreia uma comida para um vodum a gente dá comida para um
ancestral, que também faz parte, está presente e a partir dele que a gente se
comunica com outros ancestrais. […] [Portanto] o atabaque é um dos maiores
ancestrais, porque é uma árvore. A gente reverencia muito o vodum, mas nós no
Jeje-Mahi reverenciamos árvore, porque o Jêje sem natureza não é Jêje.
(Marcelo)
Percebe-se que a relevância dos ilus para o candomblé transcende a questão musical e
alcança nível transcendental. Os atabaques usados em cerimônias e que já passaram pelos
rigorosos procedimentos necessários, não podem, de forma alguma, serem usadas para outro fim,
mas mesmo atabaques que não passaram pelos procedimentos e que são utilizados, por exemplo,
em shows, são dignos de respeito.
Uma dica que eu sempre falo e que menciono com o pessoal que trabalha com o
atabaque, ainda que de forma cultural, é que depois de você usar o atabaque,
você deve recolhê-lo e colocar um pano branco, de forma respeitosa. Mas, fora
isso, ele pode ser utilizado em espaços culturais. (Marcelo)
Em outras palavras, mesmo que a(o) docente que use ou pretenda usar o atabaque em sala
de aula não professe o candomblecismo, é importante que o respeito à essa fé seja demonstrado
perante toda a turma, a fim de estimar as(os) candomblecistas que estarão na sala de aula e para
servir de exemplo para o restante da turma. Ou seja, a importância que o atabaque tem para o
candomblé deve ser transmitida às(aos) estudantes, e esses poderão ser convidadas(os) a
apresentarem o mesmo respeito, que se configuraria também em um respeito à pessoa
candomblecista.
Contudo, talvez pelo lugar de destaque que os ilus têm nesse ambiente religioso, Marcelo e
Marcus afirmam que a presença desse instrumental pode causar escândalo em muitos ambientes.
[O] jongo, ainda que o jongo ele é aceito [pela sociedade], o problema é quando
ele vem com o tambor, uma conga, se você coloca um tambor, aí que tá o
problema, o atabaque né, se você coloca um tambor, papapapapapapapa
[percutindo a mesa com as mãos], meu irmão, isso é um problema,
principalmente para os evangélicos neopentecostais. É uma simbologia, um
símbolo de uma representatividade que quando o evangélico ele olha aquela
imagem do tambor, é agressivo, [...] Enfim, toda a questão da intolerância
religiosa e tal, mas falando especificamente do atabaque, acho que é o
210
instrumento assim que você colocando na escola, você vai ter problema.
(Marcelo)
A força simbólica da cultura africana, que vem representada nos tambores é tão marcante
que ofende, agride, escandaliza. A potência da percussão, que favorece o transe e traz a presença
do sagrado é associado com o mal, possivelmente, por contrastar com silêncio de muitas liturgias
cristãs, mas, na verdade, é a expressão máxima da musicalidade afro-brasileira. A música
africana também desenvolveu instrumentos de cordas, como a Kora (ou Corá) e de sopros, como
diversos tipos de flautas e trompetes (NKETIA, 1974), porém, a potência do continente africano
emerge do rufar dos tambores.
Nesse sentido, argumenta-se que o preconceito contra a percussão africana, na verdade, é
um preconceito direcionado ao continente em si e a tudo o que ele transmite. Como o
multiculturalismo busca, justamente, combater os diversos tipos de preconceito sem esquivar-se
do embate, a presença do atabaque em uma aula de Música é fundamental, pois ela poderia
auxiliar no ensino da cultura afro-brasileira, bem como na conscientização da situação de
preconceito que a(o) candomblecista vivencia em seu cotidiano.
Desse modo, Marcus sinaliza que “[a] primeira coisa para o cara aprender atabaque é
aprender tocar agogô. Ali começam as frases de cada ritmo de orixá, que são diferentes. Do
agogô você vai começar a entender as cantigas, porque cada ritmo tem uma dobrada de rum
diferente”. Em outras palavras, outros instrumentos musicais poderiam ser utilizados para o
mesmo fim. Nas entrevistas, apesar do atabaque ganhar centralidade, também foram citados
como relevantes para a cultura afro-brasileira: o agogô (também chamado de gã), o pandeiro, o
berimbau, o caxixi, o xequerê e a conga.
Embora haja essa multiplicidade de instrumentos, em geral, o instrumental presente em
casas de candomblé é um quarteto formado pelos três atabaques e pelo gã, contudo, podem
também ser usados chocalhos, xequerês, pandeiros e triângulos (CARDOSO, 2006, p. 46). Todos
esses instrumentos podem fazer parte de aulas de Música multiculturalmente orientadas, que
busquem valorizar a identidade e cultura do candomblecista por meio da Música.
Contudo, existem também instrumentos específicos das religiões de matriz africana que
não são usados na música popular e que são conhecidos como instrumentos de fundamento, que
são o adjá, o xére, o arô, cadacorô e o sino de Obaluaiê, que apenas podem ser utilizados por
sacerdotes do candomblé durantes as cerimônias religiosas para rituais específicos (CARDOSO,
211
2006, p. 47). Por essas especificidades, não seria respeitoso usar tais instrumentos em aulas de
Música em escolas ou universidades.
Outro ponto levantado é a visita aos terreiros, ou seja, o ato de a(o) professor(a) ir com
as(os) estudantes para os lugares onde acontecem as cerimônias religiosas. Marcelo, como já
atuou como professor na educação básica, afirmou já ter assim procedido, e aponta para os
objetivos dessa prática, bem como para as precauções que o(a) docente deve ter ao efetivá-la.
[Q]ual é o objetivo dela ir para o terreiro, é simplesmente mostrar o candomblé?
É mostrar o quê para as crianças? [...] E aí aquela coisa, ah, levamos para o
terreiro, para não ficar aquela coisa muito, ah, turismo, tipo, ah o pessoal vai
para a África para ver elefante, safari, né? Para não ficar muito nesse estereótipo,
a criança tem que ir para o candomblé ou apresentar o candomblé para as
crianças para elas entenderem que não existe uma única religião. Ela precisa
entender que há uma cosmovisão africana. [...] [M]as qual é o propósito de levar
as crianças para o candomblé, para não virar um safari. “Ah, é bonitinho, os
pretos que ficam ali no candomblé, que lindo, viu criancinhas”, não, não é só
isso. (Marcelo)
Você acha que seria mais legal, assim, na educação infantil, uma aula ao ar livre
do que dentro de sala de aula? (Pesquisador)
Sim, [sic] po. , o que se fala hoje de sustentabilidade, o que se fala hoje de
atividade extracurricular e tal é criança ir para terreiro, [sic] po! Ver frutas, ver
tipos de ervas, identificar as árvores sagradas (Marcelo)
Argumenta-se que uma aula de Música feita com o “pé no chão”, ao ar livre e sob a sombra
das árvores, traria consigo, também, um dos fundamentos do candomblé, que é a valorização da
natureza.
212
Finalmente, vale ressaltar que Marcelo afirma que o candomblé perpassa diferentes
ambientes culturais, entre os quais a escola também se faz presente, porém, ele não é rotulado
como candomblé nessas ocasiões.
Marcus faz uma ponderação interessante sobre o assunto, relembra que “[…] era isso que
a[sic] galera que veio da Nigéria fazia: cultuava o Orixá na própria igreja [risos]”. Em um mundo
de intolerância, preconceitos e discriminações, o povo de santo segue resistindo, encontrando em
diferentes espaços, o seu lugar de culto.
213
Tal assunto merece reflexão: manifestações culturais socialmente bem aceitas e até
tombadas como patrimônio culturais, como a roda de samba, a capoeira e o jongo, são
candomblé. Um(a) professor(a) de Música poderia incluir a musicalidade candomblecista sob
esses “eufemismos culturais”, ou seja, utilizar, por exemplo, a capoeira e não problematizar a sua
origem para não causar polêmicas; ou poderia mostrar como tal expressão cultural, tão
representativa para o povo brasileiro, é proveniente dos terreiros, a fim de se valorizar a
identidade da(o) candomblecista, contudo, correndo o risco desse conhecimento ser rejeitado por
alguns.
Concebe-se que, embora haja riscos, a segunda opção está mais de acordo com os
pressupostos do multiculturalismo crítico, pós-colonial e decolonial (CANEN, 2013, 2013;
IVENICKI; SANTIAGO, 2016a; WALSH, 2012) que buscam a valorização dos saberes
subalternos e o combate às estruturas que sustentam os preconceitos e as desigualdades sociais.
Ademais, não há valia em silenciar ainda mais o povo candomblecista, pelo contrário, as suas
contribuições para a formação cultural brasileira devem-se ser reconhecidas e valorizadas.
Possíveis atos de preconceito e intolerância podem ser evitados caso a(o) docente, ainda
antes de apresentar o conteúdo, possa conversar com as(os) estudantes e com a direção da escola,
a fim de mostrar que o uso da musicalidade candomblecista em uma aula de Música não
transformará a aula em questão em um culto religioso, pois, como adverte Woodward (2014,
p.14) “[n]ão existe nada inerentemente ‘sagrado’ nas coisas. Os artefatos e ideias são sagrados
apenas porque são simbolizados e representados como tais”.
Em outras palavras, da mesma forma que “o pão que é comido em casa é visto
simplesmente como um elemento da vida cotidiana, mas, especialmente preparado e partido na
mesa de comunhão, torna-se sagrado, podendo simbolizar o Corpo de Cristo” (WOODWARD,
2014, p. 14), ritmos de terreiro, for a de um ambiente propício, serão apenas mais um ritmo
musical. Santiago (2017, p. 219) afirma que “[s]e um ritmo for só um ritmo, ou seja, não ter
necessariamente ligação com alguma crença, não há motivos para não se querer escutá-lo e
estudá-lo. Mas também, se um ritmo não for só um ritmo, da mesma forma, ele deve ser
respeitado”.
Para uma maior presença de conteúdos relacionados à temática das religiões de matriz afro-
brasileira na escola, também foi apontada a necessidade de candomblecistas poderem se fazer
214
presentes em todas as áreas da sociedade, inclusive, em cargos de docência, gestão e coordenação
escolar.
[A cultura do candomblé] é trabalhad[a], mas não da forma que deveria ser,
porque ainda existe ainda né, não sei porque, a maior parte dos cargos de
gestores de escola estão com os evangélicos, principalmente os neopentecostais.
É uma construção que já vem de tempos e tempos, e muitos professores
[também são evangélicos]...é difícil de penetrar nessa gestão, nessa comunidade
escolar, trabalhar esses temas específicos do candomblé em sala de aula é bem
difícil. (Marcelo)
3.7 “Tem que falar que o índio é uma pessoa, uma pessoa!”: Entrevista sobre etnia
114
A Lei 10.639/2008 afirma que a cultura e história afro-brasileira deveria se dar em todas as disciplinas, mas de
maneira especial nas disciplinas de História, Literatura e Educação Artística. Como a Música está dentro do bojo da
Educação Artística, tem-se uma citação indireta.
215
Finalmente, chega-se à entervista feita com o professor indígena Karai Mirim. Foi possível
identificar algumas categorias perpassando a fala do entrevistado: (a) Processo de fechamento,
abertura e hibridização da cultura Guarani Mbya; (b) Desumanização do indígena; (c) Divulgação
para gerar respeito; (d)Preconceitos e estereótipos; (e) Silenciamento do indígena e (f)
Possibilidades para o ensino de Música.
O professor indígena Karai Mirim conta com detalhes como, antigamente, os indígenas
Guarani Mbya protegiam a sua cultura ao não divulgá-la entre os não indígenas, proibindo,
inclusive, que estes acompanhassem certas cerimônias. Embora até hoje existam rituais que não
podem ser acompanhados por juruas, em geral, as festas são abertas para todas(os), mas nem
sempre foi assim.
Então sobre a música, queria dizer assim que sobre a música, o Guarani,
digamos assim, quando eu tinha 12-13 anos, […], meu pai [que era o cacique],
os Guaranis, culturalmente, eles diziam muito assim, que não podia mostrar nem
uma partizinha [da cultura para os não indígenas], inclusive a língua, né?
Protegiam muito assim. Então, cânticos, cânticos religiosos, usam mais cânticos
religiosos, em uma grande opy115 […] E então, naquela época ninguém queria
mostrar cultura, menos a música, cânticos [religiosos]. Nossa! Protegia muito,
muito, muito, muito mesmo. Aí não deixa entre aspas, [o] branco, não índio,
jurua [risos] se aproximar para assistir nunca, nunca. (Karai Mirim)
Percebe-se uma atitude de defesa e congelamento identitário que poderia ser relacionado ao
multiculturalismo crítico (McLAREN, 2000). Essa abordagem multicultural busca, justamente, a
manutenção das identides, sobretudo, das minorias, que temem ser assimiladas pelo restante da
sociedade. Nesse sentido, tais grupos socioculturais se fecham e permitem nenhuma ou pouca
aproximação dos diferentes, como uma forma de proteção e resistência.
Penna (2012) afirma que um dos problemas desse enclausuralamento é o guetismo, isto é, o
fechar-se em guetos culturais. Isso impediria hibridismos positivos e trocas culturais que
enriqueceriam ambas as culturas envolvidas, mas, muitos grupos veem-se obrigados a se
fecharem para, literalmente, não desaparecer.
115
Casa de reza das aldeias Guarani Mbya.
216
Contudo, Karai Mirim conta que, de pouco a pouco, as lideranças Guarani Mbya
consideraram como positiva a abertura da cultura entre os não indígenas, e isso iniciou-se pela
música e pela Educação Escolar Indígena.
Aí foi passando o tempo, né? Como eu te falei, a cultura muda, modifica, né? O
pensamento também modifica. Psicologicamente [você] vai se preparando de
outra forma. “Ah, vamos fazer isso, é bom não é bom”. Vamos trabalhando essa
parte psicológica. E aí de repente, foi em 9....95 para 2000, me parece, que
surgiu aqui, quando implantamos escola, ná? Escola... sabemos que a escola é
uma instituição que não é do Guarani. [A] escola é escrita, é ensinamento
escrito, todo aquele processo de aprendizagem diferente, tem que escrever, tem
que fazer Matemática, numeral, nossa, é muita coisa. Aí meu pai, que era
cacique religioso, ele dizia para nós em uma reunião grande, ele disse para nós
assim: “Que tal a gente criar a música, música que existia antigamente”, era
pouca música, cântico, né? E ele lembrou assim: “Vamos trabalhar essas
músicas, cânticos, na escola, na escola”. Aí surgiu esse grande pensamento, esse
grande projeto, projeto assim de vida. Então aconteceu isso, foi aqui dentro [da
aldeia], na reunião. Aí decidimos “Então, vamos fazer uma música quando entra
na sala de aula, que tal, os alunos cantam a música” Nossa, a ideia era muito
genial, assim. Aconteceu isso. Então era uma música, um cântico, não me
lembro agora qual era. [o entrevistado canta uma música em Guarani]. Era um
cântico que surgiu, o primeiro cântico que surgiu assim para botar assim na
escola, na escola indígena.
E a partir daí foi cantando, alguém teve assim... o grande pensamento e foram
criando outras músicas, aliás foi crescendo, então naquele período, teve um
período não muito longo também digamos assim, eu sempre digo assim, que
teve um período muito legal, 2-3 anos, assim, que foram dedicados
especificamente assim na música e repercutiu pelo Brasil e fora do Brasil116. E
todas as aldeias têm um grupinho de apresentação, formaram um grupinho de
apresentação. Um coral, a gente não chamava de coral naquela época, claro, no
primeiro momento era “cânticos” [risos]. (Karai Mirim)
116
Muito provavelmente, o entrevistado se refere às aldeias Guarani Mbya localizadas em território brasileiro e em
outros países cuja essa etnia também está presente, como o Paraguai e a Argentina.
217
nos primeiros anos do ensino fundamental - sem, contudo, negligenciar o ensino do Português, o
que poderá possibilitar que a(o) indígena possa interagir com o restante da sociedade sem perder
suas raízes ancestrais.
A educação escolar indígena bilíngue e intercultural é, pelo menos teoricamente, garantida
pelo artigo 210 da Constituição Federal de 1998, mais propriamente, em seu segundo inciso, que
afirmam que: “Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira
a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais” e “§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1988, s/p).
Tal assertiva é ratificada e aprodunfada nos artigos 78 e 79 das Leis de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, promulgadas em 1996 (BRASIL, 1996), que, além da teórica garantia de
educação bilíngue e intercultural para indígenas, indicam como objetivos dessa modalidade de
educação, entre outros aspectos, a necessidade de se reafirmar as identidades étnicas das(os)
indígenas; propiciar a valorização de suas línguas e ciências; contribuir para o fortalecimento das
práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena; favorecer a manutenção
de programas de formação de pessoal especializado para a educação escolar nas comunidades
indígenas; e fomentar a elaboração e publicação de material didático específico e diferenciado.
Em atendimento às exigências de tais indicativos legais, a aldeia Sapukai de Bracuhy, onde
Karai Mirim reside, possui uma escola indígena denominada Colégio Estadual Indígena Karai
Kuery Renda. Tal escola oferece aulas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino
Médio, incluindo a habilitação em magistério indígena.
Contudo, a educação escolar indígena também é passível de críticas por parte desse grupo
étnico. Em sua entrevista, Karai Mirim admite a importância das escolas indígenas, mas ratifica
que elas são instituições não indígenas, que utilizam outra forma de transmissão cultural – que é a
escrita – que diverge da transmissão oral dos indígenas e de vários outros povos tradicionais.
Nessa mesma linha de entendimento, intelectuais Guarani Mbya, como Benites (2015)
argumentam que as escolas são especies de “embaixadas” localizadas nas aldeias indígenas. Ora,
as embaixadas são instituições de determinado país, que representam e buscam os seus interesses,
embora estejam situados no exterior do mesmo. Do mesmo modo, dentro dessa alusão, Benites
(2015) argumenta que as escolas indígenas são instituições não indígenas que, muitas vezes, são
218
utilizadas para enfraquecer a cultura local e facilitar a integração do indígena ao restante da
sociedade. Dentro desse contexto, os cânticos que, na fala do entrevistado, seriam compostos para
serem ensinados nas escolas indígenas, teriam como função fortalecer a cultura indígena dentro
dessas “instituições estrangeiras” e, dessa forma, garantir esse espaço como um local de
transmissão da cultura e da epistemologia indígena.
Nessa contexto, apesar de ser uma conquista histórica, por vezes, a educação escolar
indígena é criticada, por ser vista como um meio de se aculturar tais sujeitos, retirando-os das
suas raízes culturais. Porém, com o advento da educação bilíngue e/ou multilíngue, a escola
também pode funcionar como um local de emancipação, por justamente permitir a aprendizagem
e a prática das línguas maternas indígenas (SANTOS; SIQUEIRA, 2009, p. 21).
Em outras palavras, a escola tem potencial tanto para produzir como também para dirimir
um grande desafio dos povos indígenas: a aculturação. Cabe ao restante da sociedade, como
às(aos) próprias(os) indígenas, perceber que a extinção da cultura indígena brasileira seria uma
grande perda para toda a humanidade, pois tal cultura possui saberes, tradições e epistemologias
que são únicas e podem contribuir para a melhoria e desenvolvimento de toda a raça humana. À
guise de exemplificação, muitos medicamentos e cosméticos que hoje são conhecidos são
oriundos dos saberes ancestrais indígenas e proporcionam benefícios para toda a sociedade. A
aculturação indígena traria, possivelmente, perdas irreparáveis para todas(os).
Sumarizando esse ponto, Karai Mirim indica que a implementação das escolas nas aldeias
indígenas, que são entendidas como instituições “estrangeiras” pelos Guarani Mbya, levou a uma
contrarresposta da parte deles, que se deu por meio de composições de músicas a serem ensinadas
em entoadas nessas escolas, e a criação de corais, que são grupos de apresentação de músicas
indígenas que depois de certo tempo, passaram a se fazer presentes nas aldeias dessa etnia. Uma
vez estabelecidos, os corais passaram a se apresentar fora das aldeias e, dessa forma, propiciar
uma outra forma de geração de renda para a comunidade, culminando na abertura da cultura
Guarani Mbya para o restante da sociedade.
Após esse processo de abertuta, foi possível o empreendimentos de outros projetos
maiores, como a gravação de um Compact Disk (CD) com músicas de corais de quatro aldeias
Guarani Mbya.
Só que surgiu também um grande professor também lá de São Paulo, acho que
da USP, sei lá, não me lembro muito bem, da secretaria, SESC, de São
Paulo…[Antonio] Maurício Fonseca, indigenista, não sei se ele é isso [risos], ele
219
disse “Eu sou assim e tal” e a gente acreditou [risos]. Ele fez um projeto grande
lá em São Paulo, para gravar as músicas [em um CD chamado] Memória Viva
Guarani, o primeiro CD. Então a partir daí abriu-se assim, repercutiu, todo o
mundo gostou [abriu a cultura Guarani]. E teve até lançamento aqui em Angra
dos Reis, teve aqui em Angra dos Reis, foi muito legal, seis [corais], não me
lembro bem, oito, tipo assim, não me lembro a quantidade certa, né. Os jovens
Guarani tocavam Rawe117 juntos assim, nossa era uma orquestra. Fez orquestra,
cara! Com violão, violino, tudo, grande coral. Se juntou, de São Paulo, daqui,
cara, muito bacana, muito legal. Saiu no jornal e tudo. (Karai Mirim)
117
Instrumento musical sagrado para os Guaranis Mbya, muito semelhante ao violino e à rabeca.
118
Em exemplo de Xondaro está disponível no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=aqf7o_cgKkM&ab_channel=JovensGuerreiros . Acesso em 02/03/2021.
220
Nesse sentido, a estratégia utilizada pelas(os) indígenas Guarani Mbya foi sair do
fechamento total para a digulgação seletiva, a fim de que as(os) jurua valorizem sua cultura.
Utilizou-se o termo divulgação seletiva pois nem tudo é divulgado para as(os) não indígenas,
visto que Timóteo da Silva Verá Tupã Popygua, em seu depoimento no encarte, afirma que
“[n]ós temos espaço físico, nós temos casa de reza, nós temos o espaço onde fazemos as nossas
rezas, os nossos cânticos. Nós jamais vamos querer que o povo branco vá á assistir. Claro que vai
ter a apresentação do coral, mas vem protegida pelos pajés. (POPYGUA, 2001, s/p)
A resenha do CD escrita por Montardo (1999, s/p) também confirma o processo de abertura
da cultura, descrita por Karai Mirim. A autora afirma que
[O] depoimento que compõe o encarte do CD responde algumas das perguntas que me
fiz, enquanto pesquisadora da música Guarani, quando soube de sua produção. Uma
delas diz respeito ao fato dos Guarani terem mantido uma certa reserva quanto a
divulgação de seus cantos por estarem neles implicados aspectos cosmológicos, e por
conseguinte religiosos, de sua cultura.
Com base nesse dado, pode-se argumentar que o fechamento da musicalidade Guarani
Mbya se deu por conta da sacralidade dos cânticos, que poderia ser maculado pela presença de
não indígenas. A abertura completa não se deu, pois ainda existem rituais e elementos sagrados
que são vedados às(aos) não indígenas, contudo, pelo menos na aldeia Sapukai de Bracuhy,
as(os) indígenas conseguem fazer a divulgação da sua cultura sem negligenciar os seus elementos
sacros.
Resumindo esse tópico, o entrevistado afirma:
Então foi isso, foi a partir daí que a gente está trabalhando nessa direção,
divulgando, de vez em quando, eu sei que a cultura e a religiosidade, a cultura
Guarani. A cultura , não se vende, eu sei disso, aqui temos 3, eu acho 4 corais,
né? Mas, de vez em quando o pessoal chama fora da aldeia para ir, quando tem
um projetinho bom, paga, mas se não tiver a gente vai e canta de graça [risos]. É,
[a gente] principalmente levava um grupinho só para mostrar mesmo, né?
Ninguém paga, né? Ninguém paga... A gente recebe almoço, tá bom. Colégio
pequeno, estadual então, né?...não tem verba, infelizmente, não tem verba.
(Karai Mirim)
Cabe também ressaltar que esse movimento de abertura foi duplo, pois, se de um lado
as(os) Guarani Mbya passaram a mostrar a sua cultura para as(os) não indígenas, elas(es) também
assimilaram produções musicais de não indígenas. Existem, por exemplo, indigenas Guarani
221
Mbya119 que se dedicam a cantar Rap, como, por exemplo, Kunumi MC, nome artístico do jovem
indígena Werá Jeguaka Mirim, que utiliza o Rap para narrar seu cotidiano e lutar pelos direitos
dos indígenas. Cita-se também o duo Iamandu Karai e Tainara Takua, que, por sua vez, tem um
repertório mais voltado para o samba.
De acordo com Wemyss (1991), esse hibridismo apresenta potencial para o ensino de
Música, pois, uma vez que os(as) estudantes podem, em um primeiro vislumbre, estranhar as
diferenças musicais, o que poderia gerar mais separação e preonceito, pode-se apresentar,
primeiramente, músicas indígenas híbridas, que poderão introduzir a cultura indígena aos(às) de
forma direta, contudo, atenuada, para, a posteriori, poder apresentar a música e cultura Guarani
Mbya in natura, com menos riscos de rejeição da parte dos(as) estudantes.
Nessa ótica de abertura da cultura Guarani Mbya para os jurua e na perspectiva de que
Karai Mirim, além de indígena, é educador por formação, profissão e ideal de vida, ele argumenta
que busca divulgar o mbya reko, isto é, o modo de ser Guarani Mbya entre as(os) não indígenas, a
fim de se gerar atitudes de respeito em relação à(ao) indígena e a sua cultura. Karai Mirim
descreve essa estratégia.
Porque eu sou educador, aí estudei para isso, né? Ajudo a comunidade, de vez
em quando eu chamo o pessoal [não indígenas], o pessoal gosta muito de vir na
aldeia, né? aí [risos], aí eu sempre digo assim: olha, se você for, a gente vai fazer
uma roda de conversa, para conhecer melhor, porque muitas vezes a pessoa
chega aqui e não conhece [a cultura] e volta sem conhecer, e até piora, logo tem
preconceito. […] O meu jeito, eu tô levando mais em pedagogicamente, mostrar,
divulgar, para [ensinar os outros a] respeitar, por isso quando me chamam, eu
nem pergunto, você paga, não paga, nunca perguntei, nunca perguntei [risos]. Aí
nesse sentido, já trabalhei muito, já ouvi muito essas coisas aqui na aldeia [da
parte de não indígenas]. Por isso que hoje o meu trabalho é [de] divulgação. É
cultura atual, passado e atual também não tem como agora, é música, a gente
parou por causa dessa pandemia, se não a gente estaria trazendo pessoas aqui,
mostrar dança, a cultura, então é isso, dá para você trabalhar, divulgar. Eu acho
que é isso. (Karai Mirim)
119
Citou-se no corpo do texto exemplos de alguns(mas) musicistas da etnia Guarani Mbya, mas não se ignora a
existência de indígenas de outras etnias que também se dedicam a interpretar músicas híbridas. Alguns exemplos são
Coco de Toré Pandeiro do Mestre, Ademilson Umutina, Brô MC's, Banda Sonissini Mavutsini, Banda Kaymuan,
Wakay, Tuim Nova Era, entre outras(os) musicistas.
222
Assume-se total concordância com a estratégia de Karai Mirim. A educação é uma das
principais armas contra o preconceito e a desinformação. Semelhantemente, o contato direto com
pessoas “diferentes”, nesse caso, indígenas Guarani Mbya, tem potencial para desenvolver
atitudes de respeito e afetividade entre ambas as partes (FRAGOSO, 2015, 2017a, 2017b).
Dentro desse contexto, o entrevistado argumenta que o trabalho da(o) professor(a) de
Música jurua em relação ao ensino da música e cultura indígena deve ser exatamente esse: o de
divulgação para produzir respeito. Ele afirma que “dá para trabalhar, sim. Acho que, divulgar,
né? divulgar”, mas frisa que essa é uma percepção que ele tem e que “em outras aldeias, [o]
pensamento ainda é diferente”, logo, não se pode generalizar essa sugestão.
Infelizmente, tem-se alguns relatos do professor Karai Mirim que indica falta de apreço da
sociedade em relação à identidade indígena. Tal categoria pode ser exemplificada por um relato
no qual Karai Mirim mostra a percepção social que muitas pessoas têm dos indígenas:
[Em uma palestra dada por mim em uma escola], uma criança perguntou: “Oh
tio, o que você come na aldeia?”: Eu disse assim “eu como arroz, feijão, frango
de vez em quando eu compro ou mato, mato frango vivo” “Ahhh, então você já
virou gente agora?” [risos] Então quer dizer que antes não era gente? Comendo
feijão então virou gente [risos] Acabam criando [preconceito] mesmo (Karai
Mirim)
120
Karai Mirim forneceu essas informações sobre a alimentação indígena na aldeia Sapukai em uma entrevista para o
canal Futuridades. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=C0RxDaMqa4w&ab_channel=FuturidadesTerceiraIdade, acesso em 02/03/2021.
223
(CANEN; MOREIRA, 2001; EAGLETON, 2011). Na perspectiva de que as culturas tem sido
socialmente hierarquizadas (SANTIAGO; IVENICKI, 2018), a alimentação também pode sofrer
tal processo. A criança que afirmou que o entrevistado se tornou “gente” por adquirir hábitos
alimentares de não indígenas, em primeiro lugar, faz parecer entender que indígenas que mantém
suas tradições não são humanos, ou melhor, não encaixam no ideal de ser humano esperado. Em
sugundo lugar, ela parece indicar que a cultura da sociedade majoritária expressaria essa
“humanidade ideal”.
Apesar de o episódio ter acontecido com uma criança, argumenta-se que essa percepção
social que desumaniza o indígena por ter uma cultura diferente e que o conclama a intergra-se na
sociedade majoritária não é um evento isolado, fruto da ingenuidade infantil, pelo contrário, a
análise histórica do tratamento da causa indígena por parte dos governos indica mais movimentos
de integração do indígena do que de proteção da sua cultura. Santos e Siqueira (2009) mostram
que no começo do século XX, o governo federal esperava que, “gradativamente, os povos
indígenas fossem assimilados à cultura dominante” (p. 3). Semelhantemente, em 2019, o
presidente eleito afirmava em rede nacional que os povos indígenas deveriam ser integrados e
que as reservas indígenas impediriam o desenvolvimento do país121.
Em suma, utilizando o conceito de colonidade do ser, cunhado por Walsh (2012),
argumenta-se que as marcas do colonialismo que se mantêm sólidas na atualidade corroboram
para que a identidade étnica normativa seja aquela que mais se assemelha à identidade do
colonizador branco europeu. O que foge à isso, pode ser considerado como errado, estranho,
nocivo e, até, não humano. Nesse sentido, uma parcela da sociedade empreenderia esforços para
aculturar o diferente, numa tentativa “benevolente” de humanizá-lo, e, para tal, buscaria
modificar os seus hábitos, inclusive, os alimentares. Uma vez aculturadas(os) e integradas(os),
as(os) indígenas poderiam ser considerados humanos de uma “qualidade superior”.
Todavia, sob uma perspectiva multicultural crítica e pós-colonial (IVENICKI, 2018),
argumenta-se que, obviamente, a(o) indígena, inclusive a(o) aldeiada(o) é um ser humano,
embora excerça a sua humanidade sob uma ótica cultural diferenciada da parte majoritária da
sociedade, portanto, é muito relevante valorizar e proteger a sua cultura, inclusive, por meio da
educação escolar, o que é respaldado pela Lei 11.645/2008 e pela Constituição Federal de 1988.
121
Segue matéria jornalística que trata do assunto: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-
noticias/redacao/2019/07/25/governo-usa-ideologia-para-entregar-terras-indigenas-diz-subprocuradora.htm. Acesso
em 29/09/2019.
224
Não à toa, o professor Karai Mirim solicita às(aos) professoras(es) não indígenas que queiram
ensinar sobre música e cultural indígena para estudantes não indígenas: “[tem que] dizer para a
criança, que índio é uma pessoa, pessoa!”.
Em sua entrevista, Karai Mirim dissertou também os preconceitos estereótipos sofridos por
ele por conta da sua etnia. Por exemplo, à época da universidade, seus colegas de turma, que não
eram indígenas, afirmaram que ele não “precisava de uma manta para se cobrir à noite, por ser
indígena”. A fala em questão parece relacionar a(o) indígena à condição de bárbara(), de
selvagem, alguém que, semelhante a animais irracionais, resiste às intempéries do clima com
pouco incômodo.
Nas rodas de conversa que ele organiza na sua aldeia, outras falas preconceituosas dirigidas
ao modo de ser Guarani Mbya emergem dos discursos de não indígenas:
Uma vez, engraçado, fizemos vários [encontros] aqui [na aldeia], e uma das
professoras disse assim “ué, criança Guarani também faz cocô no caminho?”
[risos] Aí eu comparei com animaizinhos, pois é, tem animais que faz cocô,
cachorrinho faz cocô no caminho, em qualquer lugar, e o gatinho não, o gatinho
faz cocô faz cocô em um lugar mas enterra depois. Tava explicando um tipo
assim, de cultura diferente, diferentes que guarani tem. Guarani não tinha
módulo sanitário, vai para o mato, é natural, é até melhor, é até melhor [risos]
(Karai Mirim)
225
3.7.5 Silenciamento do indígena
Em outro trecho, o entrevistado parece indicar que existe uma tendência de uma parcela de
docentes não indígenas que tendem em silenciar indígenas, como se conhecessem o suficiente
sobre a temática e como se um(a) nativa(o) por si só não tivesse capacidade para ensinar sobre a
sua própria cultura.
De vez em quando também, por não entender, o próprio educador não sabe. Aí
explica, explica, querendo explicar, mas às vezes [a explicação] é nada a ver
com o índio. Uma vez eu fui, eu fui a muito tempo atrás, lá no Rio [de Janeiro],
eu acho que era uma escola particular, e tal. Tinha muita criança, lá perto da
Barra [da Tijuca]. Aí uma professora disse assim: eu fui...minha avó foi pega à
laço e tal...e eu “tudo bem, tudo bem que foi sequestrada”, [risos]. Aí ela […]
falava na minha frente para os seus alunos, né? Para a criançada, “os índios são
assim, quando fica doente tem todo o jeito de curar, quando criança fica doente,
fica com febre, o que eles fazem? […] Levam lá a criança e joga na cachoeira, aí
cura”, [risos] como se [indígena] não precisasse nada assim, ser humano que não
morre, né? Aí ele falava assim […] “com os índios acontece assim: não
derrubam árvore de jeito nenhum, de à toa não, só quando precisa mesmo, só
que quando vai derrubar, o que que eles fazem? Conversam com o espírito da
árvore, conversam muito tempo, se pode cortar, se não pode cortar, aí faz um
acordo de paz [risos], aí depois escolhe ainda por onde ela vai cair”. Tá, tudo
bem [risos]. Aí num [lugar] bem bacana, [tinha] um arvoredo assim, aí [a
professora nos] levou lá em cima com um machado, aí a criançada olhava assim,
“derruba um negocinho aqui para nós, só para ver” [risos] aí fui lá olhei, fiz de
conta de que conversei com a árvore, de que tava conversando, [muitos risos] aí
adoraram “olha só!” aí perguntou assim “vai cair por onde?” [eu respondi] “vai
cair bem assim” e tal e caiu no mesmo lugar e todo mundo bateu palma. Mas
tudo bem, é a sabedoria, realmente a gente tem a técnica de derrubar, mas não
assim conversando meia hora [muitos risos] (Karai Mirim)
Contextualizando, o professor Karai Mirim foi convidado para dar uma palestra sobre a
temática indígena em um colégio, contudo, sua presença lá se deu de forma figurativa, pois ele
teve pouco espaço para falar da sua cultura, visto que uma professora tomou a frente, e, segundo
Karai Mirim, ensinou equivocadamente sobre a cultura indígena.
Conjectura-se que a professora tenha se achado apta para falar do tema por duas razões; 1)
por ser professora e trabalhar diretamente com o saber e 2) por ter ascendência indígena, visto
que afirmou que sua vó foi sequestrada de uma aldeia, o que, popular e perjorativamente, é
chamado de se “pegar alguém a laço”. Trata-se de uma questão criminosa, mas a docente parece
não ter se incomodado em falar sobre o assunto perto de um indígena, o que parece indicar que
naturalizou um acontecimento que deveria ser problematizado.
226
Sob um olhar indígena e feminista, Anaquiri (2018) se foca na dicussão dessa expressão.
Ela afirma que, embora, muitas vezes, as pessoas usam essa expressão para dizerem que têm
parentesco com indígenas, tal frase pode ser classificada como machista, xenófoba, violenta,
criminosa, colonial e perigosa, porque indica que um ser humano foi capturado contra a sua
vontade e submetido a relações sexuais sem consentimento, ou seja, é uma expressão que
fortalece a cultura do estupro e a percepção de que homens são possídores do corpo feminino.
Ademais, também reforça estereótipos relacionados às mulheres indígenas, de que essas teriam
corpos sensuais, mas que seriam selvagens, precisando, portanto, serem “amansadas”.
Mas do que uma simples expressão coloquial usada quando se quer conotar ascendência
indígena, o ato de se sequestrar mulheres indígenas é real, conforme relato o narra Anaquiri
(2018, p. 755):
No caso da minha bisavó funcionou mesmo. Eu perguntei para minha família. Diziam
que ela era misteriosa e que quase não falava da vida dela. O local que ela constituiu a
família, longe de onde veio (Vale do Paraíba), teve uma grande inundação na cidade, e
os documentos foram destruídos. Até onde sei, não fui até lá para confirmar. Mas de
fato, a fala é real, pois ela era casada com um descendente de francês, e todos sabem a
história dele. Fala misteriosa porque perguntavam da vida dela, e ela não respondia. Ela
não gostava do meu avô e viviam em quartos separados. Uma tia disse que meu bisavô
pegou (o termo que usam) ela. E esse mesmo bisavô abusou de todas as suas netas. Que
no caso foram 6 mulheres, uma delas minha mãe. A tia disse que minha bisavó era vinda
de um povo que era canibal (não sei se esse fato é real). Disse que meu avô amarrou ela
até ela extinguir o jeito “violento” dela. Muito pesado. Eu fico envergonhada do
posicionamento de muitos de meus familiars.
Em outros termos, a carga discursiva que a expressão que a professora usou no momento da
conversa com Karai Mirim é muito pesada e o simples fato de ela tê-la usado expressa que tal
professora não seria a pessoa mais indicada para falar da cultura indígena naquele momento, até
porque existia um professor indígena no recinto. Concorda-se que o papel do docente é ensinar,
mas, o fato de ela ter tomado a frente em uma aula que versava sobre a cultura indígena, parece
indicar que ela não reconheceu o professor Karai Mirim como alguém provido de saber e capaz
de transmitir conhecimento.
Tal questão pode ser teorizada via o conceito de colonidade do poder e do saber (WALSH,
2012), ou seja, as marcas do período colonial são tão fortes que, até hoje, corroboram para que o
poder se concentre nas mãos de certos indivíduos pertencentes à certas identidades elitizadas, e
isso determina também não somente qual saber é considerado digno de ser ensinado, mas também
227
quem é digno de ensiná-lo. Nisso, surge um paradoxo, o saber indígena, que é, em geral,
subvalorizado no currículo escolar, conseguiu adentrar nessa escola, mas foi ensinado por uma
professora não indígena. Apesar do professor Karai Mirim ter todo o conhecimento teórico e
prático, além de lugar de fala, o poder, naquele momento, estava concentrado nas mãos daquela
docente não indígena e isso determinou quem iria ministrar a aula em questão. Uma educação
musical decolonial e multicultural buscaria repensar essas relações de poder e possibilitar que
indígenas tenham vez e voz, e não sejam meros figurantes.
Cabe uma reflexão sobre esse assunto: a Lei 11.645/2008, que impõe como obrigatório o
ensino da história e cultura indígena está em vigor, mas, quantas(os) professoras(es) buscam
conhecimento diretamente com indígenas na hora de buscar implementá-la? Quantas(os) buscam
ler obras escritas de indígenas? Quantos(as) buscam assistir a documentários produzidos por
nativas(os)? Quantos não preferem, por serem as(os) profissionais que trabalham diretamente
com o conhecimentos e por deterem o saber acadêmico, falar da(o) indígena a partir da sua
subjetividade, e não a partir do próprio olhar indígena? Quando assim se procede, não se está,
igualmente, silenciando o indígena, assim como a docente o fez no relato do professor Karai
Mirim?
Finalmente, o professor Karai Mirim apresentou algumas posturas docentes que devem ser
levadas em consideração por professoras(es) de Música não indígenas ao ensinarem sobre música
indígena. Primeiramente, foi abordado que se deve explicar que cada música tem um significado
e traz consigo vários elementos que são sagrados para os Guarani Mbya.
Primeiramente a música, que existe como qualquer povo tem a sua música, a sua
crença, só que qualquer música, cânticos dos Guarani vêm assim da crença. [As
músicas Guarani Mbya], falam muito do manduí, manduí não é aquele manduí,
amendoim natural não, é tudo sagrado. Então, o que vem na música, pronomes
assim, coisas, tudo é sagrado. Nhanderu, mar, fala do mar, para os Guaranis, o
mar é sagrado, é muito grande, o mar é grande, e assim por diante.
Primeiramente, trabalhar a música, mas aí, a criança tem que entender. Entender
o significado, tal. (Karai Mirim)
Nesse sentido, a fala de Karai Mirim converge das recomendações de Kang (2014) para o
ensino de Música de outras culturas. A autora afirma que, nesse caso, a(o) professor(a) deve,
além de ensinar a melodia da cação, disponibilizar a letra da mesma no idioma original, oferecer
uma tradução daquilo que está sendo cantado, explicar o contexto cultural no qual aquela música
foi produzida e utilizar como exemplo uma gravação original da canção, em áudio e/ou video,
feita por pessoas daquela cultura, tendo, preferencialmente, integrantes dessa cultura também
como plateia. É interessante ressaltar que o já citado CD Ñande Reko Arandu – Memória Viva
Guarani cumpre todos esses requisitos e, não obstante, professor Karai Mirim sugeriu as suas
canções como um ponto de partida para que docentes possam ensinar sobre música Guarani
Mbya.
Assim sendo, não bastaria que a(o) docente trouxesse uma música indígena e a ensinasse,
mas seria também relevante que os elementos culturais que aparecem em cada canção fossem
explicados e, para tal, a(o) professor(a), primeiramente, precisaria aprender sobre a cultura
indígena. Sem essas explicações de âmbito cultural, corre-se o risco de se reproduzir estereótipos
sobre a identidade indígena e de se criar informações equivocadas sobre tal cultura. O movimento
deveria ser o mesmo daquele observado nas aldeias: da mesma forma que as(os) indígenas
explicam o siginificado e a importância dos cânticos para as crianças, as(os) docentes precisam
fazer o mesmo com suas(seus) estudantes, mas, para tal, primeiramente, precisam aprender sobre
cultura indígena
O entrevistado também indica ser importante que professoras(es) desconstruam estereótipos
relacionados às(aos) indígenas, sobretudo, aqueles que as(os) desumanizam, e/ou as(os) tratam
como figuras transcedentais.
E em segundo lugar dizer que não existe índio fantasma, fantasma no sentido
assim, de fantasia. [risos] Fatansia, pensam que o índio não morre...até os
grandes, né? Não é só criança, jurua pensa isso, que vive na cidade, nunca viu
um índio, nunca pensou [sobre essa questão] na vida. Isso acontece muito.
229
Então, [tem que] dizer para a criança que índio é uma pessoa, pessoa! Tem
direitos, direitos de morar, comer. (Karai Mirim)
A fala de Karai Mirim é interessante, pois o autor dessa tese, em sua experiência como
professor de Música da educação básica, percebeu que muitas crianças creem que indígenas são
seres mitológicos, como o curupira e o saci pererê, e não seres humanos que têm uma outra forma
de viver a vida. É interessante que essa visão é corroborada pela própria dinâmica escolar, pois
era perceptível que as professoras generalistas apresentavam as(os) indígenas por meio de
animações e de figuras feitas de E.V.A. Quando, na aula de Música, o autor dessa tese mostrou
vídeos com indígenas reais, vivendo em aldeias e, algum(as) deles(as), andando nus(nuas), houve
espanto da parte das crianças.
Nesse contexto, Karai Mirim usa o termo “índio fantasma” e “índio fantasia”, que é
justamente essa percepção de que indígenas serim algum tipo de entidade não humana. Não à toa,
Karai Mirim exclama: “Tem que dizer para a criança que o índio é uma pessoa, pessoa!”.
Argumenta-se que a colonialidade do ser, que é uma marca do período colonial que corrobora
para que apenas indivíduos que se identifiquem com os padrões culturais brancocêntricos e
eurocêntricos sejam identificados como humanos (WALSH, 2012), auxilia nessa percepção
equivocada das(os) indígenas.
Nesse sentido, sem fugir da centralidade das aulas de Música, que deve ser o fazer musical,
o entrevistado vê como importante a desconstrução de estereótipos relacionados à(ao) indígena.
Concorda-se com o entrevistado, pois, a educação escolar e o ensino de Música têm reproduzido
estereótipos relacionados às(aos) indígenas, não somente em aspectos que negam a sua
humanidade, mas também em questões de cunho musical, como por exemplo, que a música
indígena é monótona e estridente (PRIOLLI, 2013). Logo, é necessário um movimento retrógrado
que corrobore para que a(o) indígena e a sua cultura sejam valorizados nos âmbitos das escolas
regulares e da educação musical.
Outro ponto importante indicado por Karai Mirim é a importância de se explicar às(aos)
estudantes que a identidade indígena não é um bloco monolítico, mas sim, que existem muitas
etnias indígenas, que são diferentes entre si. Do mesmo modo, dentro de uma mesma etnia, vão
existir diferenças culturais entre as aldeias.
230
Falam só “os índios”, mas cada povo [é diferente] e além disso cada aldeia
[Guarani Mbya] tem seu jeito, tem suas particularidades, de conversar, fazer
reunião, inclusive líderes, liderança diferente, pensamento diferente. A língua
diferente, outra, exatamente não, mas tem outra aldeia que está mais
influenciada com a proximidade [com a cidade] com o convívio mais frequente
ali com jurua né? E vai criancinha assim falando português, né? (Karai Mirim)
O trabalho de Almeida e Pucci (2014) encaixa-se nessa questão. As autoras trazem dados
sobre a musicalidade e cultura de povos indígenas do norte, centro-oeste, sul e sudeste do Brasil,
com o objetivo de apresentar as diferenças musicais e étnicas desses povos. Essa compreensão da
imensidade e da pluralidade da cultura indígena no Brasil pode desconstruir a impressão de que
a(o) indígena é uma identidade singular e ajudar as(os) estudantes e vislumbrarem essa
pluralidade.
Findada a análise da entrevistas sobre etnia, o próximo subtópico tratará das considerações
finais, nas quais os eixos norteadores identificados nas entrevistas serão listados.
O presente capítulo teve como objetivo analisar as entrevistas feitas com pessoas negras,
mulheres, pessoas homoafetivas, candomblecistas e indígenas, a fim de se analisar seus discursos
e identificar pistas sobre como desenvolver um currículo multiculturalmente orientado. Em geral,
notou-se que as(os) entrevistadas(os) sofrem, cotidianamente, por conta da sua carga indentitária,
e percebem as potencialidades da Música, enquanto disciplina escolar, para combater
preconceitos e discriminações direcionados às suas identidades.
No que se refere às contribuições relacionadas aos saberes, conteúdos e práticas que as(os)
entrevistadas(os) mostraram relevantes para um ensino de Música multiculturalmente orientado,
foi possível perceber que elas(es) indicaram princípios norteadores que podem ser classificados
como observação de valores morais e como posturas específicas do docente, por exemplo, o
cuidado que a(o) professor(a) deve ter para não reproduzir estereótipos de gênero. Não obstante,
as recomendações também perpassaram o campo dos saberes relacionados a conhecimentos
231
escolares específicos da disciplina de Música, por exemplo, o uso de certo tipo de instrumental ou
de repertório nas aulas.
Semelhantemente, tópicos mais gerais, que são da alçada de instâncias superiores ao
professorado, como ações da direção escolar e a criação de políticas públicas, também foram
citadas, por exemplo, o favorecimento para que determinada identidade assuma cargos de
docência e gestão em escolas.
O próximo parágrafo apresentará os princípios norteadores identificados. Notou-se que
muitos deles já haviam sido apontados na revisão de literatura. Contudo, as entrevistas trouxeram
novas reflexões que possibilitaram em um planejamento curricular mais bem contextualizado
com a realidade brasileira. Tais eixos estão listados a seguir.
Primeiramente, no que se refere às indicações teórico-práticas para que a disciplina de
Música trate das questões raciais e da religiosidade afro-brasileira, percebeu-se a importância da
negação da neutralidade da educação musical em relação à temática racial, por meio da oposição
ao racismo estrutural, epistêmico e religioso122, juntamente com o reconhecimento da influência
desses tipos de racismo nos currículos prescritos e praticados em aulas de Música, que deve ser
feito de forma constante, e não somente em datas especiais123.
Também foi apontada a importância de se trabalhar a questão racial interseccionando-a
com outros marcadores identitários, como o gênero124. Semelhantemente, a utilização de um
instrumental e repertório afro-brasileiro desde a educação infantil125, a ministração de um ensino
musical autêntico, que não utilize músicas afro-brasileiras para ensinar conceitos musicais
europeus126; e a percepção de que novas tecnologias são ferramentas propícias para que as(os)
estudantes tenham acesso a culturas diferentes127 também emergem como eixos norteadores
propícios ao combate do racismo.
Foram também identificados como princípios norteadores a apresentação da importância de
musicistas negras(os) para o desenvolvimento da Música Popular Brasileira128 e a importância de
se demonstrar respeito aos preceitos sagrados de diferentes religiões, especialmente, quando eles
122
Segundo Raquel, Leonardo e Marcelo.
123
De acordo com Raquel e Leonardo.
124
Conforme expresso por Raquel e Leonardo.
125
De acordo com Leonardo
126
Assim como entendido na fala de Leonardo.
127
Conforme compreendido na entrevista com Leonardo.
128
Eixo norteador exposto por Leonardo.
232
se relacionarem com o repertório e/ou instrumental abordado em aula129. De igual modo, a
ministração conteúdos que dissertem sobre como as religiões afro-brasileiras influenciaram em
várias manifestações musicais brasileiras, em muitos casos, confundindo-se com elas130, taambém
foi citada.
Ainda na temática racial, princípios norteadores tais como a valorização de espaços ao ar
livre e cercados por natureza, em aulas que façam referência à musicalidade afro-brasileira131, e a
desconstrução de estereótipos relacionados às diferentes religiões, inclusive, o candomblé,
apontando-o como uma cosmovisão e uma filosofia de vida complexa e multifacetada132, também
foram identificadas nas entrevistas.
No que se refere princípios norteadores relacionados à temática do gênero, tem-se o que
segue: a valorização de músicas compostas ou arranjadas por mulheres133, bem como a recusa de
se utilizar canções que contenham estereótipos de gênero e/ou racismos, ou outro qualquer tipo
de preconceito134. Ademais, o repensar de atividades que dividam a classe em gêneros, por
exemplo, “meninos para cá e meninas para lá” 135 e o questionamento da “ausência” de mulheres
na história da Música clássica ocidental136 também poderiam contribuir para que aulas de Música
valorizassem a identidade feminina.
Alguns princípios norteadores sobre gênero que haviam sido identificados na revisão de
literatura emergeram novamente nas entrevistas, a saber: a realização de discussões sobre como a
música e a educação musical reproduzem estereótipos de gênero137; a utilização de um repertório
composto e/ou performado por mulheres138; a apresentação de histórias de vida de musicistas
mulheres relavantes para a Música139; a crítica constante à supremacia masculina e heterossexual
nos papéis de liderança relacionados à Música140; a elaboração de reflexões sobre como a
129
Segundo Marcelo.
130
De acordo com Marcelo.
131
Sugestão de Marcelo.
132
Assim como compreendido na entrevista cedida por Marcelo.
133
Conforme argumentado por Natália e Raquel.
134
De acordo com Natália.
135
Segundo Natália.
136
Como sugerido por Natália e Leonardo.
137
Assim como entendido em Freer e Tan (2014), e Elorriaga (2011), Powell (2014), Treacy (2019) e Almqvist e
Hentschel (2019) e nas entrevistas realizadas com Natália e Flávia.
138
Conforme Palkki e Caldwell (2018) e nas entrevistas com Natália e Raquel.
139
Segundo Bennett (2008).
140
Segundo VanWellden e McGee (2007), Bennett (2008), Almqvist e Hentschel (2019), e nas entrevistas com
Natália e Raquel.
233
normatividade religiosa influencia nos papéis de gênero141; a crítica à reprodução de estereótipos
de gênero relacionados à prática do canto ou à escolha dos instrumentos musicais que meninos e
meninas irão tocar142; o repensar de papéis generificados e estereótipos relacionados à prática
musical143; a “desgeneirizão” da educação musical em casos em que as diferenças de gênero
podem ser dispensáveis144; a percepção crítica de como a educação musical é estabelecida dentro
de uma norma heteronormativa e sobre um olhar masculino, influenciando na agência musical de
meninos e meninas145; o combate à inclusão de mulheres na Música somente por meio de
tokenismos146 e a inclusão da temática “gênero” desde a formação de professoras(es) de Música.
No que se refere aos princípios norteadores relacionados ao tratamento das diferenças de
sexualidade, identificou-se: a crítica constante aos estereótipos relacionados à pessoas LGBT+
em todas as etapas da educação, mas, de forma mais acentuada, na formação de professoras(es)
de Música147; a valorização de um repertório composto e/ou interpretado por pessoas LGBT+,
indicando para as(os) estudantes maiores a sexualidade de tais compositoras(es) e/ou intérpretes,
a fim de que identidades sexuais não normativas venham ser valorizadas em sala de aula 148; a
afirmação da sexualidade da(o) professor(a) LGBT+ por meio das suas potências corporais149; e a
explanação do papel de musicistas negras(os), mulheres e pessoas LGBT+ na construção da
música brasileira150.
No que se refere aos princípios norteadores relacionados à questão da etnia, obteve-se o
seguinte: a importância de se ensinar também os aspectos da cultura e da cosmovisão indígena
que aparecerem nas canções; a repulsa a percepções ou atividades que desumanizem a(o)
indigena; a valorização não só da cultura indígena, mas também da(o) indígena em si, dando
lugar de fala para elas(as), principalmente, quando tiverem que ensinar sobre a sua cultura e; o
141
Conforme a entrevista realizada com Raquel e Natália.
142
Segundo Gürgen (2016), Kelly e VanWeelden (2014), Hallam et al. (2008), Ho (2003), Almqvist e Hentschel
(2019) e nas entrevistas realizadas com Natália e Flávia.
143
De acordo com Ho (2003), Freer e Tan (2014), McPherson e O’Neil (2010), McPherson et al. (2015), Leung
(2008), Westerlund e Partti (2018), Barbabé-Villodre e Martinéz-Bello (2018), Wehr (2016), Lima (2005), Bannett
(2008), Almqvist e Hentschel (2019), Treacy (2019) e nas entrevistas feitas com Natália e Raquel.
144
Assim como entendido em Palkki (2020) e na entrevista feita com Natália.
145
Segundo Almqvist e Hentschel (2019) e na entrevista realizada com Flávia.
146
Conforme Wehr (2016), Treacy (2019) e nas entrevistas com Natália e Flávia.
147147
Segundo Butterfly.
148
Natália e Leonardo contribuiram com esse princípio norteador.
149
De acordo com Butterfly.
150
Segundo Leonardo e Marcelo.
234
esforço para se ensinar que a identidade indígena pe plural, visto que existem diferenças entre as
várias etnias indígenas existentes, bem como diferenças entre aldeias da mesma etnia151.
Finalmente, foram também identificados princípios norteadores que tratam das questões das
diferenças de forma mais geral. Identificou-se como relevantes, a importância de se empreender
esforços para que pessoas de identidades não-normativas, como negras(os), candomblecistas,
homoafetivas(os), mulheres, indígenas etc., possam se fazer presente não apenas no cotidiano das
salas de aulas de escolas e universidades, mas também em todas as etapas do processo de
produção de conhecimento, ou seja, é necessários que tais pessoas possam ocupar cargos de
professoras(es) universitárias(os), estudantes de pós-graduação, pesquisadoras(es), revisoras(es)
de periódicos, entre outros cargos152 e o estímulo à produção de artigos acadêmicos sobre
diferenças culturais no ensino de Música, escritos, inclusive, por autoras(es) negras(os)153.
Algumas posturas docentes, como a adoção de uma postura medoadora por parte da(o) docente,
que valorize as vozes, conhecimentos e interesses das(os) estudantes, fugindo assim, de posturas
bancárias154; o uso da criatividade e da invenção, direcionadas às diferenças culturais, a fim de
contrapor currículos engessados e monoculturais155; e o gerenciamento de embates e
manifestações preconceituosas em sala de aula, visando a eliminação de preconceitos156, também
foram citadas.
Sem cair na armadilha da prescrição curricular, aponta-se que um(a) docente interessada(o)
em ministrar uma educação musical multicultural, empenhada em combater os diferentes tipos de
preconceitos e discriminações, poderia tomar tais princípios norteadores, bem como aqueles
identificados na revisão de literatura, como marcos teóricos iniciais para o desenvolvimento de
suas aulas. Assim se procedeu na presente pesquisa.
No próximo capítulo, será apresentado o planejamento curricular elaborado para o curso de
extensão que foi utilizado como empiria para essa tese, que, justamente, foi elaborado tomando
como base os princípios norteadores identificados nas entrevistas e na revisão de literatura, bem
como os pressupostos do multiculturalismo na educação.
151
Todos os princípios norteadores sobre etnia foram identificados na entrevista realizada com Karai Mirim.
152
De acordo com Leonardo.
153
Conforme Leonardo.
154
Segundo Leonardo.
155
De acordo com Leonardo.
156
Conforme Leonardo.
235
IV
EMARANHANDO OS SIGNIFICADOS PRODUZIDOS PELO CURSO DE EXTENSÃO
MÚSICA(S) NO PLURAL!
157
No item 4.2.5, o processo de avaliação será mais bem explicado.
237
O programa do curso de extensão Música(s) no Plural!, foi estruturado da seguinte forma:
ementa, objetivos, organização, procedimentos didáticos, avaliação e programação das aulas. A
seguir, não será apresentado somente o programa em si, mas também as escolhas teórico-
metodológicas que embasaram o seu desenvolvimento.
4.2.1 Ementa
4.2.3 Organização
239
Primeiramente, as aulas foram organizadas a partir de reflexões e debates sobre diferenças
culturais na Música e no ensino de Música. Contudo, seguindo princípios norteadores
identificados no levantamento bibliográfico, buscou-se que, no curso, fosse estimulada a presença
de musicistas provenientes de grupos étnicos minoritários, como indígenas, mulheres, pessoas
LGBT+ e candomblecistas, dotados de notório saber em Música, a fim de, por meio dos seus
saberes e do seu lugar de fala, ensinarem sobre sua cultura e/ou musicalidade (JOSEPH;
SOUTHCOTT, 2013; KENNEDY, 2009; MARSH. 2000).
Nesse sentido, além das aulas tradicionalmente expositivas e dialógicas, também houve
palestras e concertos didáticos com convidadas(os). Além de tal prática estar de acordo com o
que é recomendado pela literatura e pelas(os) entrevistados, também se aponta que as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Cursos de Graduação em Música (BRASIL, 2006) indicam no
segundo parágrafo do seu Artigo 5° que a formação de professoras(es) de Música deve
contemplar conteúdos que favoreçam a expressão musical das(os) professoras(es) em formação.
Nesse sentido, palestras e concertos didáticos, além de sensibilizar sobre as diferenças, poderiam
também ampliar os horizontes musicais das(os) cursistas e apresentar novas opções para as suas
práticas musicais.
Por fim, a apresentação e discursão de propostas de ensino de Música multiculturalmente
orientadas feita pelos(as) cursistas também foram procedimentos didáticos empregados no curso.
4.2.5 Avaliação
240
uma situação, para, então (e só então), ajuizar a sua qualidade, tendo em vista dar-lhe
suporte de mudança, se necessário. A avaliação, como ato diagnóstico, tem por objetivo
a inclusão e não a exclusão; a inclusão e não a seleção - que obrigatoriamente conduz à
exclusão. (LUCKESI, 2000, p.172).
242
As duas outras formas de avaliação, a saber, a avaliação diagnóstica e os diários de bordo,
foram mantidas. Avaliação diagnóstica, também conhecida como sondagem, é análise do
conhecimento prévio que as(os) estudantes detêm sobre assunto que será abordado em uma aula,
unidade ou curso (LUCKESI, 2011; PILLETI, 1986). Tal avaliação tem como objetivo ajudar
a(o) docente a conhecer os interesses, os objetivos e as opiniões das(os) estudantes, bem como
conhecer e valorizar aquilo que a(o) discente já sabe sobre o assunto. Argumenta-se que
avaliação diagnóstica também pode ser utilizada como instrumento de pesquisa pois, por meio
dela, pode-se comparar aquilo que a(o) estudante sabia antes e depois da intervenção pedagógica.
Assim se procedeu na presente tese.
Com o objetivo de se empreender uma avaliação diagnóstica, logo no primeiro dia de aula,
os(as) cursistas foram solicitados a responderem por escrito a seguinte pergunta: 1) Quais são as
relações existentes entre diferenças culturais e ensino de Música? No último dia do curso,
novamente, a mesma pergunta foi feita e respondida pelas(os) cursistas. Desse modo, foi possível
mensurar o conhecimento prévio que a turma possuía da relação entre diferenças e ensino de
Música e também como o curso impactou nesse conhecimento, visto que foi comparada a
resposta anterior e ulterior à ministração do curso.
A partir da segunda aula, foram solicitados diários de bordo. Por diário de bordo, entende-
se o registro feito por parte das(os) estudantes, no qual elas(es) escrevem todas as impressões
significativas, positivas ou não, que obtiveram de um certo acontecimento que participa como
espectador(a) ativo(a) e crítico (LIMA et al., 2007). Recorda-se que, segundo Pannunzio et al,
(2005), diário de bordo é uma estratégia avaliativa que pode ser usada quando se busca fugir da
perspectiva pontual, classificatória e excludente da avaliação.
Com base no exposto, ao final de cada encontro, os(as) cursistas foram solicitados a
escreverem sobre suas impressões. Para nortear as escritas das(os) estudantes, algumas perguntas-
guia foram sugeridas: O que aprendi na aula de hoje? O que me fez refletir? O que mais gostei?
O que não gostei? O que não faria e o que não faria se estivesse no lugar do professor? O que
levarei para a minha vida? O que gostaria de fingir que nem sequer ouvi? Embora houvesse
essas sugestões de perguntas-guia, cada cursista tinha autonomia para escrever seus relatos da
forma que quisesse. O conjunto desses relatos se tornou, ao final do curso, o diário de bordo
da(o) cursista.
243
4.2.6 Cronograma das aulas
A Tabela 9 sumariza as temáticas que foram discutidas em cada aula e o dia que ela se
deu. Nota-se também que, nas aulas temáticas, certa literatura foi recomendada, a saber: 1) um ou
dois artigos identificados na revisão bibliográfica sobre a temática discutida no dia – gênero,
raça, etnia, sexualidade ou religião – e 2) um artigo escrito pelo autor dessa tese especialmente
para o curso, que foi uma síntese (a) do referencial teórico da temática, já apresentado no capítulo
I; (b) da revisão bibliográfica da temática, já apresentado no capítulo II e (c) das entrevistas
realizadas sobre essa temática, já apresentadas no capítulo III158. Em outros termos, as(os)
cursistas tiveram acesso a praticamente todas as discussões apresentadas nessa tese.
Segue o cronograma:
Cronograma
Temática do
Dia encontro Atividade Textos recomendados Hora
27/11/20 Aula piloto Divulgação do curso - 19h20
30/01/21 Aula inaugural Apresentação do curso - 10h30
Aula Teórica sobre gênero e Silva (2004), Almqvist e
10h30
Encontro 1: ensino de Música Hentschel (2019) e
06/02/21
Gênero Concerto didático do artigo preparado para o
13h
Quarteto de cordas Nina's curso
Recesso de Carnaval (de 13/02/2021 a 20/02/2021)
Aula teórica sobre Oliveira e Farias (2020)
Encontro 2:
27/02/21 sexualidade e ensino de e artigo preparado para o 10h30
Sexualidade
Música curso
Novamente, peço licença às(aos) leitores para escrever em primeira pessoa, visto que, pelo
menos sob o meu ponto de vista, não há lógica em se escrever um relato de experiência em
terceira pessoa. Primeiramente, acho importante definir o que estou denominando relato de
experiência. Segundo Fernandes (2015), relatos de experiências não são uma estratégia de
produção de dados, mas sim, uma forma de se apresentar um texto. Nesse sentido, o autor difere
estudo de caso e pesquisa-ação de relato de experiência, justamente, porque as duas primeiras
produzem dados, e a última, apenas os apresenta. Usando outros termos, pode-se usar um relato
de experiência para se apresentar os dados de uma pesquisa-ação ou de um estudo de caso. Assim
sendo, uso aqui meu relato de experiência para apresentar e discutir alguns dados que foram
produzidos na pesquisa-ação desenvolvida para minha pesquisa de doutorado.
Busquei seguir as recomendações de Fernandes (2015) para a escrita de relatos de
experiências, a saber, (a) o relato de experiência deve ser embasado teoricamente (p. 113); (b) o
relato das experiências deve enriquecer as discussões teóricas (p. 114) e (c) o relato de
experiência deve apresentar, além da experiência em si, os sujeitos envolvidos, os objetivos
planejados, os resultados esperados e obtidos, os desafios que apareceram e como foram
245
superados, bem como as inquietações advindas da experiência (p. 116). Juntamente a essas,
também gostaria de adicionar a sugestão feita por Ivenicki e Canen (2016), que indicam que (d)
as pesquisas – não somente aquelas escritas sob o formato de relatos de experiência – devem ser
feitas com honestidade. Considero importante essa esfera, pois irei relatar muitos aspectos que eu
preferiria esconder, mas que a ética acadêmica me fará mostrar, a partir do próximo subtópico.
Recordo que uma das motivações da pesquisa foi o fato de eu ter percebido uma grande
lacuna na formações de professoras(es) de Música de instituições da cidade do Rio de Janeiro, no
que se refere a tratamento de questões multiculturais, mas, juntamente com esse fato, a leitura de
um determinado artigo me motivou a realizar uma pesquisa-ação.
Foi o artigo (ABRIL, 2006) publicado no International Journal of Music Education, do
estadunidense Ph.D. Carlos R. Abril, professor da Frost School of Music – University of Miami.
Esse artigo, muito conhecido no cenário internacional da educação musical, tem como objetivo
analisar os efeitos da educação musical multicultural na educação básica.
O rigor metodológico da pesquisa e a intersecção entre métodos qualitativos e quantitativos
são impressionantes: O autor escolheu crianças (n=170), todas entre 10 e 11 anos de idade, que
receberam aulas de Música durante sete semanas. Elas foram divididas em dois grupos: o
primeiro apenas aprendeu sobre conteúdos musicais, enquanto o segundo recebia informações
sobre os contextos socioculturais das músicas ensinadas. Após as sete semanas de aulas, as
crianças dos dois grupos responderam a um mesmo questionário, usado para avaliar o quanto
aprenderam, no que se refere a conhecimento, entendimento e habilidades relacionadas à Música.
O autor, entre outros aspectos, concluiu que as(os) estudantes submetidos a um ensino de
Música geral, praticamente não apontaram ter aprendido nada sobre questões relacionadas às
diferenças e à sensibilização sociocultural, somente conteúdos musicais, enquanto as(os)
estudantes que aprenderam também sobre o contexto sociocultural da Música, apontaram ter
aprendido sobre o respeito às diferentes pessoas e culturas.
Chamou-se e atenção que essas duas esferas, isto é, o aprendizado de conteúdos musicais e
a sensibilização cultural, não podem ser dicotomizados, tanto que Abril (2006, p. 40) adverte que
246
O conhecimento e entendimento sociocultural podem ser relacionados à Música e têm
potencial para possibilitar um entendimento mais profundo dela. Educadores precisam
não apenas ensinar tendo como base uma abordagem ou outra. Eles devem determinar o
balanço ideal entre essas duas abordagens para alcançar os objetivos de aprendizagem
planejados para seus estudantes159.
Muitos aspectos desse artigo me fizeram refletir. Primeiramente, ele me instigou a analisar
uma experiência de ensino de Música multiculturalmente orientado na prática, ou seja, testar a
teoria, visto que, enquanto muitos trabalhos sugerem uma abordagem multicultural da educação
musical (SANTIAGO; IVENICKI, 2016c, 2016f), poucos analisam situações práticas dos
desafios da sua implementação (GALIZIA, 2016; MIGON, 2015).
O artigo também levanta reflexões sobre a necessidade de se harmonizar conhecimentos
musicais e a sensibilização cultural, ou seja, uma aula de Música precisar ser centrada no fazer
musical e não pode se tornar uma roda de conversa sobre raça, gênero, sexualidade etc. Nesse
sentido, estabelecer essa relação entre o musical e o multicultural me surgiu como um desafio.
Por fim, o artigo em questão também me influenciou a analisar minha própria prática
profissional, pois afinal de contas, publiquei vários artigos sugerindo que professoras(es) de
Música adotem uma postural multicultural no ensino de Música (SANTIAGO; MONTI, 2014;
2018; SANTIAGO, IVENICKI; 2015, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d, 2016e, 2016f, 2017, 2018;
2020; SANTIAGO, 2019) .Logo, era necessário, mais do que sugerir, indicar pistas práticas e
concretas que possam contribuir para que outras(os) docentes deem o primeiro passo, ao invés de
ficar apenas no âmbito da teoria e das intenções.
Relacionei, então, o trabalho de Abril (2006) com a minha pesquisa anterior, na qual
identifiquei lacunas significativas na formação de professroas(es) de Música. Desse modo,
comecei a pensar em ministrar aulas de Música multiculturalmente orientadas no ensino superior.
Finalmente, completei a revisão de literatura e iniciei as entrevistas.
Estava quase tudo praticamente certo para que a pesquisa se desse por meio de uma
disciplina optativa, que seria oferecida no âmbito da EM-UFRJ, contudo, isso não foi possível
por conta da pandemia de 2020 e do fechamento das universidades. Com toda essa situação,
159
Texto original em inglês: Sociocultural knowledge and understanding can be closely related to music and has the
potential to deepen musical understanding. Educators need not teach exclusively through one approach or the other.
They should determine the ideal balance between these two approaches to meet planned learning targets for their
students.
247
restou-me a certeza de que, novamente, precisaria readaptar minha pesquisa, pois não seria mais
possível fazer uma pesquisa-ação presencial.
Após muito refletir, cheguei à conclusão de que já havia produzido bastante material para
empreender a pesquisa-ação (revisão bibliográfica e entrevistas) e que não poderia fazer outra
orma de pesquisa, a não ser continuar nesse caminho. Então, como as aulas no período de
pandemia continuaram se dando de forma remota, inicialmente, pensei em produzir um Portal de
Ensino de Música multiculturalmente orientado, que disponibilizasse videoaulas feitas tendo
como bases os princípios norteadores identificados na revisão bibliográfica e nas entrevistas, e
que serem apreciadas por estudantes da educação infantil, ensino fundamental II e ensino
superior, de instituições ligadas à UFRJ Cheguei a levar essa ideia para a minha banca de
qualificação que, apesar de elogiar da ideia, disse que não haveria tempo hábil para a execução
do projeto.
Depois de tanto refletir sobre como poderia realizar a pesquisa, me veio a grata sugestão do
meu amigo e professor Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti que me sugeriu oferecer um curso
de extensão oferecido de forma remota. Após isso, contatei a professora Zoya Alves e ela
permitiu que o curso fosse oferecido pelo CBM-CEU. Finalmente, meu projeto chegara a um
escopo final.
Ao rememorar toda essa situação, considero que, de todas as versões que o meu doutorado
teve, sem dúvidas, essa final foi a melhor, por ser mais inclusiva e autêntica. Se a pesquisa se
desse por meio de aulas presenciais na EM-UFRJ, somente estudantes dessa instituição poderiam
se inscrever, mas, no curso de extensão, foi possível contar com a presença de pessoas não
somente outros cursos, mas também de outros municípios e estados. Semelhantemente, um curso
presencial é, em geral oferecido em certo dia e horário que nem sempre é oportuno para
todas(os), mas em um curso online que disponibiliza a gravação das aulas para as(os) estudantes,
houve uma maior autonomia das(os) cursistas em relação ao tempo. Conclui com isso que cursos
online têm potenciais inclusivos que, muitas vezes, cursos presenciais não apresentam.
Semelhantemente, foi possível garantir mais representatividade e autenticidade por meio de
um curso online. Como já foi explicitado, uma das aulas se deu em uma aldeia indígena e isso só
foi possível porque a aula foi transmitida via internet. Será que seria possível fazer o mesmo em
uma aula presencial? O que poderia ser feito, levar todas(os) as(os) cursistas para a aldeia, ou
levar a aldeia para a EM-UFRJ? Com certeza, nenhuma das duas soluções seria viável e, muito
248
provavelmente, eu mesmo daria aula prática sobre musicalidade indígena, o que faria com que a
mesma perdesse muito da sua autenticidade (KANG, 2016).
Contudo, não posso deixar de registrar que, a distância, as(os) cursistas não puderam ter
contato direto com os instrumentos afro-brasileiros e indígenas que adquiri, justamente, para esse
fim. Esse, sem dúvida, foi um ponto negativo do ensino remoto.
Antes de começar a falar efetivamente sobre o que aconteceu durante as aulas do curso, é
importante dissertar sobre a aula piloto que foi usada para divulgá-lo entre as(os) estudantes do
CBM-CEU. A aula piloto serviu como uma forma de apresentar a temática do curso entre as(os)
estudantes de Licenciatura em Música e foi oferecida em um espaço-tempo em que o CBM-CEU
oferecia palestras para que as(os) estudantes pudessem cumprir horas de atividades
complementares durante o isolamento social. Nesse sentido, um número significativo de
estudantes compareceu à aula, mas, destaca-se que elas(es) não estavam ali por necessariamente
por se interessarem no tema, mas sim por causa das horas de atividade complementares que a
aula ofertava.
A aula foi exatamente a mesma que eu ministrei no primeiro encontro oficial do curso, que
será apresentada a seguir, mas, percebi que a recepção das(os) estudantes foi bem diferente, pois
no curso, estavam as pessoas que realmente se interessavam pela temática, e na aula piloto, não
necessariamente.
Ao trazer assuntos polêmicos, relacionados à raça, gênero, sexualidade, etnia e religião,
percebi aceitação, mas também percebi discordância e embate da parte de alguns.
Definitivamente, no âmbito da Licenciatura e Música, há professoras(es) em formação que parece
estar adaptadas(os) ao monoculturalismo da Música e apresentam dificuldades em enxergar como
as diferenças perpassam a Música e a educação musical.
Pois bem, a aula acabou e, após ela, fiz a propaganda do curso. Para minha surpresa,
nenhum(a) das(os) mais de trinta presentes se inscreveu no curso Música(s) no Plural!. Há várias
explicações possíveis e plausíveis para isso. Não posso precisar que nenhum(a) das(os) presentes
àquela ocasião não fez o curso porque não se interessou pelo tema ou porque não o considera
249
relevante, mas, ao finalizar o curso, notei que havia uma diferença grande na recepção do curso
entre o primeiro grupo (o que assistiu à aula piloto) e o segundo (que, efetivamente, fez o curso).
Como hipótese, conjecturo que nem todas as pessoas que assistiram a aula piloto,
evidentemente, tinham interesse na temática tratada pelo curso, visto que, como já foi explicado,
tal aula se deu em um espaço-tempo criado para as(os) estudantes poderem cumprir horas de
atividades complementares no momento de pandemia e isolamento social. Como havia
pouquíssimas outras opções para essas(es) estudantes cumprirem tais horas com museus, teatros e
outras instituições culturais fechados, pode-se argumentar que esse espaço-tempo criado pela
coordenação do CBM-CEU se tornou uma espécie de “disciplina obrigatória”, a ser cursada por
todas(os) as(os) estudantes, principalmente, aqueles que precisavam de horas de atividades
complementares para se formar ainda naquele semestre.
Já o curso de facto foi cursado somente por pessoas interessadas na temática, seja por se
identificarem dentro de uma das identidades tratadas pelo curso, seja por perceberem que a
faculdade não lhes apresentou esse tipo de conteúdo, ou por perceberem que essas questões
perpassam seus ambientes de trabalho, compelindo-as(os) a buscarem informações. Nesse
contexto, percebi que muitas das inscritas no curso eram mulheres interessadas nas temáticas de
gênero, assim como também houve inscritas que se consideravam LGBT+. Outras cursistas eram
pessoas negras interessadas na temática racial e também tivemos entre os inscritos um
candomblecista. Também houve entre os inscritos professores homens brancos cisgêneros, que,
apesar de possuírem identidades normativas, perceberam a necessidade de se aprofundarem nesse
tema. Nesse sentido, as discussões dentro do curso sempre foram extremamente positivas, pois
todas(os) as(os) que estavam ali já eram culturalmente sensibilizadas(os) e buscavam, somente,
mais aprofundamento.
Em outras palavras, argumenta-se que a recepção da temática na aula piloto foi inferior à
recepção recebida no curso porque as(os) cursistas inscritas(os) tinham real interesse pela
temática e, muitas(os) delas(es), já estudavam alguns desses temas. Por isso, seria muito
interessante também pesquisar quais são os sentidos produzidos por uma disciplina obrigatória
oferecida no âmbito de um curso de Licenciatura em Música que discutisse as diferenças de raça,
gênero, sexualidade, etnia e religiosidade, pois, nesse contexto, haveria todo o tipo de discentes,
inclusive, aquelas(es) mais conservadoras(es).
250
Contudo, isso seria uma tarefa muito difícil, pois os cursos de Licenciatura em Música no
Brasil ainda são muito conservadores (ALMEIDA, 2009; LUEDY, 2011; PEREIRA, 2014;
SANTIAGO, 2017), e, por tal razão, essas temáticas são, na maioria das vezes, discutidas em
disciplinas oferecidas pelas Faculdades de Educação das instituições, sem haver a necessária
relação de como essas questões estão presentes no âmbito da Música e da educação musical
(SANTIAGO, 2019; SANTIAGO; IVENICKI 2016c). Logo, implementar uma disciplina focada
em discutir essas questões dentro do contexto da educação musical, seria um enorme desafio, mas
que permitiria que esses temas alcançassem também professoras(es) de Música em formação com
perfil diferente do das pessoas que, efetivamente, se inscreveram no curso.
Antes de discutir de fato o que aconteceu durante a aula inaugural, apresento um fato
marcou todo o curso. Uma inscrita entrou em contato via e-mail, querendo renunciar à vaga. Ela
me disse que se interessou pela temática do curso, mas que sentia que não poderia cursá-lo, pois
além de estar finalizando a universidade, precisava trabalhar e cuidar do filho pequeno.
A situação me chamou muito a atenção, justamente, por se tratar de um curso que discutia
questões de gênero e a dupla de trabalho das mulheres. Obviamente, era importante para mim que
o meu curso incluísse mães estudantes e trabalhadoras. Então, respondi dizendo que, nós juntos,
poderíamos pensar em alternativas para que ela pudesse fazer o curso. Ela gostou da ideia e me
sugeriu estender o prazo da entrega do trabalho. A princípio, o último dia de aula síncrona seria
também o último dia para a entrega das avaliações, mas, depois desse pedido, estendi para seis
semanas após o término das aulas.
Meu esforço deu certo no começo e ela assistiu às duas primeiras aulas. Mas,
infelizmente, essa mãe guerreira não continuou conosco até o final, muito provavelmente, pelas
suas atribuições no trabalho, faculdade e em casa.
Não muito depois disso, outra cursista fez exatamente o mesmo, só que, dessa vez, por
WhatsApp. Ela entrou em contato, dizendo que também não poderia terminar o curso, pois tinha
um filho pequeno, trabalhava e estudava, e mal tinha tempo para dormir, imagina para fazer outro
curso. Como fiz com a outra mãe, disse que poderia abrir todas as exceções necessárias para que
251
ela pudesse terminar o curso, mas, nesse caso nem resposta obtive. Ela também abandonou o
curso.
Já ao final do curso, outra mãe guerreira, que conseguiu fazer o curso assistindo as aulas
assincronamente, pediu desculpas pela qualidade do trabalho (os trabalhos dela estavam ótimos!),
dizendo que estava com muitas tarefas em casa, na pós-graduação e no trabalho. Ela conseguiu
terminar o curso, mas, sem dúvida, a um alto esforço. Pedi desculpas a ela, na devolutiva da sua
avaliação.
Percebi com isso que o meu curso não era tão inclusivo quanto eu pensara. Com as aulas
remotas e a disponibilização das gravações, eu estava possibilitando acesso, mas inclusão é mais
que isso, é também direito à participação e sucesso escolar (XAVIER; CANEN, 2008). Fiz várias
entrevistas para poder falar de lugares que não são meus, mas cometi o erro de planejar o curso
sem consultar as mães trabalhadoras, um dos grupos que mais tem sido afetado pela pandemia
(SANTOS, 2020). Fico imaginando quantas outras mães leram o anúncio do curso e quiseram se
inscrever, mas não o fizeram, pois não viram condições de conclusão.
O que eu poderia ter feito para melhorar essa questão? Alguma coisa poderia ser diferente
para que o curso fosse mais inclusivo? Conversar com mães trabalhadoras antes de planejar as
aulas resolveria a questão? Eu realmente não sei. Só me cabe agora pedir desculpas a todas as
pessoas cujo acesso, participação e sucesso escolar foram negados pelo curso.
160
Segue o link para a gravação da aula: https://youtu.be/OHho8BkUXCg
252
para a análise empreendida para essa tese, lessem e assinassem o Registro de Livre Consentido e
Esclarecido, sabendo também que poderiam retirar seu consentimento no momento que
quisessem, sem precisar temer qualquer represália, contudo, percebi que, ao final do curso,
nenhum(a) das(os) concluintes proibiu a análise das suas avaliações.
Também expliquei parte do processo descrito a pouco: que eu havia analisado como as
questões multiculturais perpassavam a formação de professoras(es) de Música em instituições de
ensino superior do Rio de Janeiro, percebendo lacunas nas temáticas raciais, de gênero, de
sexualidade, de etnia e de religião, e que, por conseguinte, decidi trazer esses assuntos para as
faculdades para ver “no que daria”. Expliquei que, a princípio, a pesquisa se daria por meio de
uma disciplina presencial que seria oferecida na EM-UFRJ, mas que, pelo advento da pandemia,
a opção pelo curso de extensão se tornou mais viável.
Após isso, aconteceu um momento muito importante, pois o multiculturalismo, enquanto
referencial teórico e filosofia educacional, foi apresentado e a sua importância frisada. Defini
multiculturalismo como um “campo teórico e político de ações, que valoriza o múltiplo, o plural,
e busca incluir as identidades marginalizadas e estereotipadas no cotidiano escolar” (CANEN,
2013) e contextualizei que, segundo Gorski (1999) a origem da educação multicultural se deu em
1960 nos Estados Unidos, estabelecendo-se como a filosofia educacional do civil rights
movements. Feito isso, indiquei que também é necessário um olhar multicultural direcionado para
a Música e para o ensino de Música, a fim de repensarmos as relações de poder que são criadas
e/ou reproduzidas em aulas de Música, bem como valorizarmos todos os gêneros musicais,
principalmente aqueles produzidos por identidades subalternas e combatermos todos os tipos de
preconceitos e discriminações nas aulas, sem desprezar os conteúdos musicais.
Passada essa etapa, as avaliações foram explicadas, a saber, a avaliação diagnóstica e os
diários de bordo. Separou-se, portanto, quinze minutos da aula para a avaliação diagnóstica
inicial, sendo cinco para explicar os objetivos dessa atividade e o restante para a realização da
atividade em si. As(os) cursistas só enviaram a avaliação diagnóstica ao final da aula. Essa
primeira parte foi enviada por e-mail, via Google Classroom ou mesmo por WhatsApp, depois do
término da aula.
161
Link para o modelo de Registro de Livre Consentimento e Esclarecido utilizado:
https://forms.gle/uCaFoosEokEC1Mau8
253
Feito isso, foi feito o seguinte exercício: a fim de mostrar às(aos) presentes que questões
de interesse do multiculturalismo estão presentes, mesmo que de forma pouco visível, no âmbito
da Música e da educação musical, algumas matérias jornalísticas, excertos de livros e/ou vídeos
que relacionassem música e preconceitos de raça, gênero, etnia, sexualidade e religiosidade foram
mostrados. Logo após cada vídeo ou matéria, eu fazia a mesma pergunta à classe: “o que vocês
acham disso?”
No que se refere à raça, mostrei um conjunto de matérias que discorriam sobre um caso
específico: A cantora Malu Magalhães foi acusada de racismo, pois, em um clipe de uma das suas
músicas, é visível que todas(os) as(os) dançarinas(as) que a acompanhavam eram negras(os) e
estavam em um ambiente de paupérie e com partes do corpo à mostra162, o que parece reproduzir
estereótipos relacionados à pobreza e à sexualização da pessoa negra. Semanas após a polêmica,
a cantora se desculpou, mas, em um programa televisivo, antes de cantar um samba de sua
autoria, argumentou o seguinte: “essa [música] aqui também é pra quem é preconceituoso e diz
que branco não pode tocar samba163”, indicando, em sua opinião, a existência de racismo reverso,
algo desmentido pelos estudos das relações étnico-raciais, visto que racismo é uma opressão
sistemática, e, ao analisarmos a história, pessoas brancas nunca experimentaram esse processo no
Brasil (ALMEIDA, 2018; RIBEIRO, 2017, 2019).
A participação das(os) cursistas nesse tópico foi bem interessante. Diferentemente da aula
piloto, não houve quaisquer embates, e todas(os) as(os) presentes que se expressaram oralmente,
concordaram que a temática é importante, embora seja pouco presente no ensino de Música.
Para levantar reflexões sobre o aspecto do gênero, apresentei alguns nomes e perguntei se
algum(a) dos presentes os conheciam. Os nomes eram: Elisabeth Jacquet, Barbara Strozzi,
Marianna Martins, Fanny Hensel, Clara Schummann, Frascesca Caccini, Lili Boulanger e
Elizabeth Maconchy. Fora uma cursista, ninguém reconheceu os nomes, então disse que se
tratavam compositoras mulheres que, apesar de serem classificadas como brilhantes, suas vidas e
obras, não são comumente estudadas nos cursos superiores de Música. Expliquei que isso se
deve, entre outros motivos, ao machismo e ao patriarcado.
162
Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=f7UBDGt8VK8&ab_channel=MalluMagalhaesVEVO,
acesso em 24/09/2020.
163
Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WlWA1zdfcR0&ab_channel=co%C3%A9rapaziada,
acesso em 24/09/2020.
254
Foi bem interessante, pois as mulheres presentes usaram esse tempo para falarem que
sentem exatamente essa opressão e silenciamento na academia, e, mesmo não sendo algo
acordado, nenhum homem se manifestou nesse momento. Houve um grande respeito pelo lugar
de fala das mulheres nesse momento.
Terminada a discussão sobre gênero, o horário acabou e eu fiquei feliz com a primeira
impressão que tive do curso, que foi bem mais positiva daquele que tive na aula piloto. Ainda no
mesmo dia, enviei para o Classroom os slides da aula, o link para a gravação da aula e os textos
que embasariam o encontro seguinte (ALMQVIST; HENTSCHEL, 2019; SILVA, 2004), que
versou sobre gênero e suas relações com o ensino de Música.
No sábado seguinte, iniciaram-se as aulas temáticas. Recordo que cada semana era
destinada à discussão de um determinado assunto por meio de duas aulas: uma aula teórica
oferecida por mim, e uma aula de caráter prático oferecida por um(a) convidado(a). O primeiro
encontro temático versou sobre gênero e suas relações com a educação musical.
Na parte da manhã, se deu a aula teórica sobre o tema164. Primeiramente, expliquei as
limitações de eu ser um homem falando sobre o gênero feminino. Reconheci também meus
privilégios enquanto homem em uma sociedade patriarcal e expliquei que, para estar ali
lecionado, eu havia lido mulheres e aprendido diretamente com elas, por meio das entrevistas.
Lembrei, novamente, que na parte da tarde haveria uma outra aula ministrada por mulheres, ou
seja, eu não estaria falando sozinho. Esse foi um exercício necessário para eu poder ministrar o
tema e eu fiz o mesmo em todas as outras aulas, a fim de incentivar as(os) cursistas a também
buscarem aprender com os diferentes.
Após isso, fiz questão de iniciar a aula ouvindo as mulheres e pessoas agêneras presentes.
Conforme indicam Canen e Moreira (2001), a existência desse diálogo é uma condição sine qua
non para uma educação multiculturalmente orientada. Perguntei o que elas queriam que o restante
da turma soubesse sobre gênero e deixei, as que quisessem, falar sobre o tema.
A partir dessa aula, os conceitos de identidade e cultura, tão caros para o
multiculturalismo, foram definidos. Nessa aula, ensinei a definição mais básica de identidade, ou
164
Link para a aula teórica sobre gênero e ensino de Música: https://youtu.be/Iz0G_R34Q84.
255
seja, aquilo que se é em relação àquilo que não se é (SILVA, 2014) e também que cultura pode
ser entendido como um produto da intervenção humana (EAGLETON, 2011). Tais definições
foram importantes, pois era necessário que as(os) cursistas pudessem entender o conceito de
construção cultural da identidade de gênero (LOURO, 2014), já discutido no capítulo I.
Feito isso, chegou-se ao momento em que discutimos os textos que eu enviara na semana
passada, bem como um artigo especialmente produzido por mim para o curso, que é o resumo da
parte teórica sobre gênero apresentada nessa tese, somado à revisão bibliográfica feita sobre o
assunto e às entrevistas realizadas com Natália, Flávia e Raquel. No final, os princípios
norteadores identificados na revisão bibliográfica e nas entrevistas sobre gênero foram listados e
explicados.
Foi uma aula muito interessante. As(os) cursistas, sempre que queriam, poderiam me
interromper para comentar e fazer perguntas e, somado a isso, havia também o chat, que eu lia
com frequência, mas, mesmo assim, fiquei aflito pois não houve tempo para um debate coletivo
no final.
Já na parte da tarde, se deu o concerto didático do quarteto de cordas Nina’s165 166
.
Recorda-se que tal quarteto é formado somente por mulheres negras que se dedicam em
interpretar obras compostas ou arranjadas por mulheres. Tal proposta, ou seja, se convidar
musicistas de identidades subalternidades para falarem da sua identidade e musicalidade sob a
sua própria ótica, está de acordo com as indicações de Joseph e Southcott (2013), Kennedy
(2009) e Marsh (2000).
Além das músicas belíssimas, as integrantes do quarteto aceitaram responder perguntas
previamente enviadas pelas(os) cursistas e, dessa forma, aprendemos muito mais sobre gênero e
ensino de Música por meio dos relatos delas. Isso para mim foi notório: a aula teórica da manhã
foi, sem dúvida, muito importante, mas o contato direto com pessoas com lugar de fala, foi
fundamental.
Terminado o encontro sobre gênero, tivemos duas semanas de recesso de Carnaval, em
atendimento ao calendário do CBM-CEU. Voltamos no dia 20 de fevereiro, com o encontro sobre
sexualidade e suas relações com o ensino de Música. Antes desse dia, enviei o texto que foram
usados como base para a discussão, a saber, Oliveira e Farias (2020).
165
Link para o concerto do quarteto: https://youtu.be/J6cyHL0ocYQ
166
O encontro só foi possível graças a minha amiga Camila Abelha e ao seu esposo Hector Merino, que, muito
gentilmente, cederam seu apartamento para a gravação. Muito obrigado!!!
256
4.3.6 3° Encontro – Diferenças de sexualidade e suas relações com o ensino de Música
Passado o recesso de Carnaval, voltamos com o curso. Pela manhã, tivemos a aula teórica
sobre a temática167. Como na aula passada, expliquei que era um homem heterossexual falando
sobre sexualidade. Assumi meus privilégios e argumentei que li pessoas LGBT+ e aprendi com
elas em entrevistas. Depois disso, também deu espaço para que as pessoas LGBT+ presentes que
quisessem, falassem sobre o assunto, sobre como percebem que a sociedade as trata e o que elas
gostariam que fosse mudado.
Antes de entrarmos nos textos, foi apresentada e discutida uma matéria168 que aborda as
dificuldades e preconceitos sofridos pela cantora drag Pablo Vittar. Trouxe esse tema como um
“aquecimento”, pois Pablo Vittar foi citada por dois entrevistados que discorreram sobre o tema
da sexualidade e, a posteriori, na aula dada pela Vivian Fróes, como uma artista que tem
levantado um frutífero debate sobre a condição e a representatividade das pessoas LGBT+ na
sociedade. Pablo Vittar, nesse sentido, seria um símbolo fortíssimo para a comunidade LGBT+,
mas, apesar de toda essa potência, ainda existe muita resistência na sociedade em relação à sua
figura, inclusive no âmbito da Música, que critica a sua qualidade vocal.
Argumentei que essa crítica à qualidade vocal da Pablo é, na verdade, LGBTfobia, pois a
cantora tem uma voz que poderia ser classificada como “travesti”169, o que causa repulsa em
algumas pessoas. É interessante notar que essa mesma atividade também foi feita na aula piloto e
alguns presentes também criticaram a qualidade vocal da Pablo, indicando que essa LGBTfobia
está também presente entre professoras(es) de Música em formação. No curso em si, não houve
esse tipo de manifestação, mas, como será discutido mais a frente, um cursista assumiu que tinha
aversão à voz da cantora, mas que a sua impressão foi mudando no decorrer do curso.
Também discutimos, novamente, os conceitos de identidade e cultura. Recordei que
nossas identidades são também produtos culturais (SILVA, 2014), assim como havia ensinado na
aula passada, mas, para buscar levar a turma ao pleno entendimento da formação da identidade
167
Link para a gravação da aula: https://youtu.be/Fmxy6ysVVPo
168
Matéria disponível em http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-tendencias/noticia/2017/08/por-que-pabllo-
vittar-virou-um-simbolo-de-representatividade-e-forca-para-a-geracao-atual-9860901.html, acesso em 01/10/2020.
169
Utilizou-se o termo “voz travesti” porque se desconhece um termo adequado para definir o timbre vocal da Pablo
Vittar. Mas, ressalta-se que voz não tem gênero, logo, o termo está equivocado.
257
sexual, expliquei que a identidade não é fixa, mas sim, mutável, e que ela também é vista como
um processo, a identificação (HALL, 2014). Ao meu ver, esse entendimento é cabal para que
entendamos teoricamente a fluidez de certas identidades de gênero e sexuais. Semelhantemente,
foi necessário também explicar que a identidade é também definida como um ponto de sutura
entre o psicanalítico e o social (HALL, 2014), o que auxilia no entendimento de que a
sexualidade é uma orientação, ou seja, uma construção que é tensionada por pressões sociais e
psicanalíticas, não sendo, portanto, uma opção (LOURO, 2014).
Após isso, finalmente, chegamos à discussão do texto exógeno recomendado para a leitura
(OLIVEIRA; FARIAS, 2020) e ao artigo produzido para a disciplina, que é um resumo da parte
teórica sobre sexualidade apresentada nessa tese, somada aos resultados da revisão bibliográfica
feita sobre esse tema e os dados das entrevistas feitas com Raquel, Leonardo e Butterfly. Como
na aula de gênero, os princípios norteadores identificados na literatura e nas entrevistas foram
listados e explicados.
A aula também foi proveitosa, mas, mesmo eu diminuindo a quantidade de conteúdo, não
sobrou tempo suficiente para debatemos a temática no final, como era o meu desejo. Recordo que
isso se deu, entre outros aspectos, porque a aula de dava em 1h30, um tempo adequado para uma
aula remota. Caso desse uma aula de duas horas de duração, sobraria tempo para o debate, mas,
em compensação, eu sobrecarregaria as(os) cursistas.
À tarde, retornamos para a aula da Vivian Froés, mas, infelizmente, ela não pôde
comparecer por conta de problemas na sua conexão da internet. Remarcamos, então, a aula para o
final do curso e liberei a turma.
Sem dúvida alguma, o encontro sobre etnia foi o mais desafiador e aquele que mais me
esforcei para que acontecesse. Essa história inicia-se ainda em 2019, quando percebi que era
necessário pesquisar junto às(aos) indígenas brasileiras(os), visto que é que é pouco estudado não
somente pela educação musical, mas também por pesquisas teoricamente ancoradas no
multiculturalismo no Brasil, cujo foco dos estudos tem sido a temática racial (CANEN, 2011).
Contudo, eu não tinha qualquer contato com algum(a) indígena, o que inviabilizava, por
ora, essa minha investida acadêmica. Para a minha surpresa descobri que um professor meu
258
atuava com indígenas e era conselheiro do Conselho Estadual de Educação escolar Indígena do
Rio de Janeiro. Ao saber disso, perguntei se poderia acompanhá-lo na sua próxima visita a
alguma aldeia e ele respondeu afirmativamente, contudo, não ele não sabia me dizer quando seria
sua próxima visita. Como tal visita acabou demorando, perguntei se eu poderia ir sozinho e ele
me disse que sim. Muito gentilmente, me deu o telefone de um karai (liderança) da aldeia
Sapukai de Bracuhy para marcar a visita. Mesmo muito envergonhado, fiz o contato e marquei a
visita para o dia 14 de fevereiro de 2020, uma terça-feira.
A essa época, a pandemia do COVID-19 ainda não tinha chegado ao Brasil, então, eu
ainda planejava fazer minha empiria de forma presencial, por meio de uma disciplina que seria
oferecida em um curso de Licenciatura em Música, então, minha visita teria como objetivo fazer
um contato inicial com a cultura indígena, adquirir instrumentos musicais indígenas e conseguir
marcar outros encontros para aprender o máximo possível da cultura e da musicalidade indígena,
para que eu pudesse ensiná-la nas aulas que seriam presenciais. Finalmente, cheguei à aldeia que
se localiza na zona rural de Angra dos Reis, a 120 quilômetros de distância da minha casa, ou
seja, 3 horas de viagem.
Foi uma sensação maravilhosa, pois, desde criança, sempre tive muita curiosidade e
extremo respeito pelos povos indígenas. Estar em uma aldeia, mais do que uma etapa a ser
cumprida para a tese, era uma realização de vida. Rapidamente, percebi-me em um outro mundo,
completamente diferente daquilo que eu estava habituado. Estava cercado de árvores por todos os
cantos, o ar era puríssimo e bem no meio da aldeia havia um rio e uma cascata com águas
cristalinas! Nossa, como eu seria feliz se morasse lá!
Mas também havia humanos, claro. Só que elas(es) tinham uma feição própria e falavam
uma língua que eu não entendia. Claramente, eu era o estrangeiro naquela situação. Antes da
visita, eu já havia estudado sobre a aldeia e sobre a etnia Guarani Mbya e sabia que poderia me
comunicar em português com os adultos e as crianças mais velhas. Então, quando cheguei ao
centro da aldeia, perguntei pelo karai com o qual eu havia marcado a visita. Infelizmente,
aparentemente, ele se esqueceu de mim, e foi para um compromisso no centro de Angra dos Reis.
A decepção me veio automaticamente, pois a ideia era poder aprender sobre a cultura e
musicalidade Guarani Mbya com ele. Sentei-me em uma pedra sobre a qual uma grande árvore
projetava a sua sombra e pensei no que poderia fazer para não perder a viagem. Depois de alguns
minutos, ouvi as vozes de várias crianças.
259
O que ocorria era que, não muito longe do centro da aldeia (ver Figura 5), havia um
campo de futebol (ver Figura 7) e, dentro e ao redor dele, várias crianças indígenas brincavam.
Como gosto de crianças e tenho facilidade de interagir com elas, decidi me aproximar.
Estava com algumas flautas doces, então, comecei a tocar e algumas se aproximaram.
Emprestei as flautas e elas e tentei ensinar algo, por meio de sinais, porque, até o momento, todas
falavam em Guarani, logo, eu conjecturei que nenhuma das crianças presentes falava português.
Não entendia o que estava sendo dito. Para tentar iniciar uma conversa, comecei a cantar uma
música indígena que já conhecia, chamada Oleru Nhamandu Tupã170, contudo, errei – e muito – a
pronúncia das palavras. Elas, nesse momento, começaram a cantar a música corretamente, a fim
de ensiná-la a mim. Percebi que, embora eu e elas fôssemos muito diferentes, tínhamos em
comum o amor pela Música e isso poderia criar laços entre nós. Elas me ensinavam suas músicas
e eu lhes emprestava minhas flautas.
170
Disponível em https://youtu.be/wN3IIkXMQrw
260
Figura 6: Cachoeira da tekoa.
261
Figura 8: Criação de tilápias
A mesma percepção, ou seja, que a música pode ser um idioma em comum que pode ser
ensinado para que pessoas que não falam a mesma língua se comuniquem, também foi obtida por
Saether (2008), em pesquisas junto a crianças refugiadas de vários países na Suécia. Estava com
esse artigo - que encontrei no levantamento bibliográfico, já descrito e analisado no capítulo II –
em mente e, de alguma forma, ele me dava força para me comunicar por meio da Música com
aquelas crianças. Todavia, foi ao mesmo tempo um pouco frustrante, mas também algo
proporcionador de muito alívio, quando uma criança indígena, de mais ou menos 10 anos, veio
até mim e me disse em claro português (embora com um típico sotaque Guarani): “Qual é o seu
nome?”.
Só depois, entendi que as crianças aprendem primeiramente o Guarani, mas, quando
entram na escola – com uns 6 ou 7 anos – passam a também aprender e a falar em português
(BENITES, 2015), logo, eu poderia me comunicar com as crianças mais velhas em português,
embora a Música tenha sido o idioma mais falado naquela manhã e início de tarde.
Essa primeira excussão foi, sem dúvida, a melhor de todas, pois fiquei em contato direto
com as crianças e pude aprender muito sobre a cultura Guarani com elas. Com meu celular,
gravei muitos cânticos que elas me ensinavam. Rapidamente, comprovei que o estereótipo de que
indígenas são tecnologicamente atrasadas(os) é equivocado, pois as crianças conseguiam usar o
262
meu celular com destreza, sem me pedir ajuda em nenhum momento, e se divertiam tirando fotos,
gravando e ouvindo os seus cânticos. Fui embora para casa muito feliz, não só pela experiência,
mas também porque o dia não foi desperdiçado.
Chegando em casa, contatei o karai que iria me receber, mas não estava presente. Ele se
desculpou e disse que poderíamos marcar outro dia, contudo, ainda em fevereiro de 2020, a
pandemia chega ao Brasil. Os líderes da aldeia decidem fechá-la, a fim de evitar o contágio
das(os) indígenas, mas, infelizmente, tal medida não foi suficiente, pois muitas(os) indígenas
foram acometidas(os) pela praga e o cacique da aldeia, o senhor Domingues Venite, veio à
óbito171. Ressalto que a pandemia em muito atingiu as(os) indígenas, não somente na aldeia
Sapukai de Bracuhy, mais em todo o Brasil, visto que muitas lideranças indígenas perderam a
vida por conta dessa infecção.
Nesse contexto, por questões éticas e de saúde pública, foi impossível continuar visitando
a aldeia, contudo, usei esse tempo para me aprofundar no estudo da cultura e musicalidade
Guarani, sobretudo, com monografias escritas por indígenas Guarani Mbya concluintes do curso
de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Também, mantive contato com indígenas via WhatApp.
Apenas retornei à aldeia em novembro de 2020 e dezembro de 2020, para adquirir
instrumentos musicais que eu havia solicitado por WhatsApp para utilizar no curso de extensão,
como a rawe, o oky ranga, o mbaraka mirim, o takuapu, a mimby reta, a mimby marae’i e o
angua’pu (ver Figuras 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15). Somente em fevereiro de 2021, eu consegui, de
fato, conversar com o karai da aldeia que eu havia contatado antes da pandemia. Isso porque,
infelizmente, ele também foi acometido pelo COVID-19, chegando a ficar internado, mas, graças
a Deus, se recuperou.
Nessa oportunidade, conversamos bastante sobre cultura e musicalidade Guarani Mbya e
confirmei muitos dos aprendizados que obtive nas minhas leituras. Mas, sem dúvida, o apogeu
desse dia foi quando o karai me permitiu contratar um dos corais da aldeia para ministrar um
concerto didático para o curso de extensão Música(s) no Plural!.
Ficou decidido que o concerto se daria no dia 06 de março de 2021. Eu traria o material
para gravação e o karai me emprestaria a internet do seu celular, visto que o sinal da minha
171
Notícia disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/cacique-de-aldeia-guarani-morre-de-covid-19-em-
angra-dos-reis-rj-21072020 . Acesso em 25/05/2021.
263
operado era fraco naquela localidade. Confesso que senti muito medo, pois muita coisa poderia
dar errado. Primeiramente, não era fácil chegar à aldeia no sábado, pois o número de ônibus
intermunicipais diminui exponencialmente com o advento da pandemia. Para que vocês possam
entender meu desespero, só confirmei o meu transporte no início da noite do dia 05 de março, ou
seja, na véspera do evento. Também fiquei receoso em relação à qualidade da internet, mas o
karai me garantiu que a mesma era boa.
Pois bem, chegou o dia 06 de março e eu já estava na aldeia às 8h30 praticamente
pernoitado, pois não dormira de tanta ansiedade na véspera. Diferentemente das outras
oportunidades, pala manhã, tivemos a aula com as(os) convidados, pois sábado à tarde, me falara
o karai, era dia de recreação na aldeia. Então, pela manhã, tivemos apresentação do coral172 e à
tarde, a aula teórica comigo.
Estava tudo certo para começarmos. As(os) indígenas do coral e os músicos estavam a
postos, com os seus mbaraka mirim, mbaraka, rawe e takuapu. Eram mais de dez, no total.
Também emprestei alguns dos instrumentos que eu havia comprado para o grupo, a saber,
mbaraka mirim, anguapu e oky ranga. Eles fizeram assim como eu via em vídeos do YouTube:
homens na esquerda e mulheres na direita. Todas(os) de mãos dadas e descalços, ou seja, união
entre eles e a natureza. Embora tímidas(os) com a câmera, cantavam e tocavam com muita
emoção.
Entre cada música, karai respondia as perguntas das(os) cursistas, explicava a letra e o
contexto cultural em que cada música cantada estava inserida. Eu havia pedido para ele fazer
isso, pois esse é uma recomendação para o ensino de Músicas de outras culturas de Kang (2016).
Por fim, todo esse enorme esforço se deu para que minhas aulas pudessem contemplar
alguns princípios norteadores para aulas de Música multiculturais, que identifiquei na entrevista e
na revisão de literatura, primeiramente que é importante que as(os) estudantes tenham contato
com músicas de outras culturas produzidas de forma autêntica, ou seja, por nativas(os) e usando
instrumentos nativos (SCHIPPERS, 2000; VOLK, 2006; ABRIL, 2006; KILLIAN;
SEKALLEGA,2018, WALKER, 2005; MARSH, 2000; BURTON; DUNBAR-HALL, 2001;
FRAGOSO, 2015, 2017a, 2017b; COSTIGAN; NEUENFELDT, 2002; SMITH, 2002; OMOLO-
OGANTI, 2009). Foi um esforço muito grande, mas ele foi necessário para que eu pudesse
cumprir a contento o objetivo da pesquisa e garantisse o rigor metodológico da mesma.
172
Apresentação disponível em: https://youtu.be/wYwXJzoEiCE
264
O que eu mais temia aconteceu: a internet caiu por duas vezes, no meio da apresentação.
Nesse sentido, eu expliquei o ocorrido para as(os) cursistas por meio do WhatsApp e pedi
paciência, ao final de contas, estava no meio de uma floresta, lugar com pouco sinal de internet.
Agradeço a elas(es) por terem esperado a internet se reestabelecer para o concerto reiniciar. Ao
final da apresentação, já com a câmera desligada, joguei-me no chão aliviado, sem me incomodar
em sujar minha camisa alva, pois tudo dera certo. As(os) indígenas riram da cena.
Para a aula teórica da tarde173, fui até a escola da aldeia, pois, quando estava subindo a
montanha para chegar à mesma – que fica na parte alta de um morro - percebi que naquelas
intermediações a minha internet funcionava. Desse modo, a aula teórica se deu na escola e,
graças a Deus, a internet não falhou em nenhuma vez.
Semelhantemente às outras aulas, iniciei dizendo que eu não era indígena, mas reconhecia
meus privilégios em ser não indígena em uma sociedade xenófoba e assumi o meu compromisso
em combater os preconceitos relacionados à identidade indígena. Disse também que, para poder
ministrar aquela aula, eu havia aprendido diretamente com as(os) indígenas e lido textos escritos
por indígenas. Recordo que esse exercício não é somente para me legitimar como alguém apto a
ensinar aquele conteúdo, mas também, para incentivar as(os) cursistas a fazerem o mesmo, ou
seja, aprender com os outros.
Assim como fiz nas outras oportunidades, dei espaço de fala para quem se autodeclarasse
como indígena se expressar. Confesso que o fiz, imaginando que ninguém falaria, mas uma
cursista, era descendente de indígenas de Paraty-RJ, que são da mesma etnia da aldeia Sapukai de
Bracuhy. Foi muito interessante, pois ela disse que sempre tinha curiosidade sobre a temática e
perguntava para o avô se ele teve contato com indígenas, e ele, embora também soubesse pouco,
lhe contava as histórias que conhecia. Ou seja, apesar de não ser uma indígena, era alguém que
carregava consigo essa ancestralidade e foi notável que, durante toda a aula, ela estava muito feliz
por aprender sobre essa cultura, que também é dela. Em outros termos, a aula lhe propiciou
sentimento de representatividade (SOUZA, 2012).
Após isso, discutimos vários temas, como a falta de efetividade da Lei 11.645/2008, a
definição de indígena, termos preconceituosos, os eixos da colonialidade - do poder, do ser, do
saber e cosmogônica, segundo (WALSH, 2012) - e como elas se relacionam com a temática
indígena, e aspectos culturais e musicais da cultura Guarani Mbya. Ou seja, os mesmos aspectos
173
Gravação da aula disponível em: https://youtu.be/7KkqgkChiWY
265
apresentados na seção 1.9 dessa tese, que discorreu sobre questões teóricas relacionadas à etnia e
à cultura indígena.
Feito isso, apresentei os pontos principais do artigo que eu enviara na semana anterior
(FRAGOSO, 2017a), bem como do artigo que eu escrevi especialmente para o curso, que era
uma síntese da parte teórica sobre etnia, da revisão de literatura e da entrevista feita com Karai
Mirim.
Tive também a oportunidade de mostrar para as(os) cursistas os instrumentos indígenas que
adquiri na aldeia e pude também tocar para eles.
266
Figura 11: Mbaraka Mirim
Figura 12: Outro tipo de Mbaraka Mirim, feito com palha trançada
267
Figura 14: Takuapu (taquara que bate no chão)
268
Recordo que a ideia inicial da aquisição dos instrumentos era possibilitar que as(os)
cursistas pudessem experimentá-los, mas, por conta da pandemia e das aulas remotas, isso não foi
possível. Pelo menos, elas(es) puderam me ouvir tocando os instrumentos. No concerto realizado
na parte da manhã desse dia, muitos desses instrumentos também estavam presentes. Por fim, os
princípios norteadores identificados na revisão bibliográfica e na entrevista, que visam orientar
aulas de Música que valorizem as diferenças étnicas, foram listados e explicados.
Graças a Deus, deu tudo certo. Até hoje, fico pensando nesse feito. Eu transmiti um
concerto de música indígena, diretamente de uma aldeia! Segundo um dos karai da aldeia, eu fora
o primeiro. Espero que mais pessoas possam fazer o mesmo, para que a música e cultura Guarani
Mbya sejam apreciadas e valorizadas por todas(os).
A partir dessa semana, percebi que as(os) cursistas começaram a se cansar, de alguma
forma, pois passaram a dar preferência às gravações do que às aulas síncronas. Não critico, pois,
realmente, é difícil permanecer vários sábados seguidos em frente ao computador. O problema é
que, com isso, a interação das(os) cursistas caiu muito.
A aula da manhã174 foi teórica, mantendo o padrão das anteriores. Um fato interessante
aconteceu, pois pela primeira e única vez no curso, eu tinha lugar de fala para falar da temática
tratada naquele dia, ou seja, era um negro falando de raça. Contudo, mesmo assim, eu expliquei
para a turma que, apesar da minha raça, me sentia embranquecido, pois conhecia muito pouco da
cultura africana e afro-brasileira, mas, pelo contrário, entendia sobre o barroco e o renascentismo
europeu, e esse conhecimento branco me dava privilégios na sociedade, sobretudo, na
universidade, sendo que, muitas vezes, eu nem sequer era reconhecido como negro. Logo,
também precisei ler e aprender com outras pessoas negras sobre a temática racial.
Nessa aula, precisei explicar que, apesar da raça, a priori, ser definida por marcadores
biológicos, ela também é social e culturalmente produzida (HALL, 2005). Frisei que é importante
concebermos que os tratamentos diferenciados oferecidos a pessoas de raças diferentes não são
produtos inatos, mas sim construções sociais que podem ser desconstruídas.
174
Gravação disponível em: https://youtu.be/lne5Yfc-jS8
269
No momento de dar lugar de fala às pessoas negras presentes, foi frustrante notar que eu era
o único negro presente, logo, ninguém se pronunciou. Como expliquei a pouco, por diferentes
motivos, a maioria das(os) cursistas preferiu assistir as aulas das últimas semanas
assincronamente.
Nesse contexto, a aula de desenvolveu sem muitas polêmicas. Apresentei os principais
temas do texto que disponibilizei para a aula (SANTOS; CANDUSSO, 2015) e o artigo que
produzi para a disciplina, que continha um amálgama da seção teórica da tese sobre raça, da
revisão bibliográfica sobre raça e das entrevistas feitas com Raquel e Leonardo. Ao final, os
princípios norteadores identificados na revisão de literatura e nas entrevistas foram listados e
explicados.
A aula da tarde175 foi uma apresentação de música e cultura africana com o mestre
congolês Héritier Makengo Vakata, que me fora recomendado por um professor. Como alerta
Gomes (2008), sabemos muito pouco sobre a África e a cultura africana, nesse sentido, sob uma
ótica decolonial, se faz importante aprendermos diretamente com os africanos.
Foi muito interessante, pois não foi somente uma aula de música, mas também uma aula
de dança, já que em muitos lugares da África, música e dança são indissociáveis (NKETIA,
1978). Recorda-se que proporcionar que as(os) estudantes também dancem em aulas cujos
gêneros ensinados também apresentem danças também apareceu na revisão de literatura feita
para essa tese como um princípio norteador para aulas de Música multiculturalmente orientadas
(WALKER, 2005; MARSH, 2000; EMBERLY; DAVIDSON, 2001; COSTIGAN;
NEUENFELDT, 2001; SMITH, 2002).
175
Gravação da aula disponível em: https://youtu.be/wm6O07rlUM0
270
Assim como no encontro sobre etnia, nesse dia, a parte prática foi pela manhã, por
questões de disponibilidade dos horários do alagbé que ministraria a aula sobre música
candomblecista176. Kaio Ventura, além de alagbé, também é um músico e professor de ritmos
africanos com larga experiência, e me foi recomendado pela Raquel, a mesma amiga que estudou
comigo e que, a posteriori, fundou o quarteto de cordas Nina’s e que, assim como Kaio, também
é candomblecista. A aula foi muito bem recebida pelas(os) presentes e, que além de tirarem
dúvidas diretamente com um candomblecista, receberam um rico material com toques de
candomblé, além de um livro digitalizado que apresenta a cultura Ketu.
Nessa aula, confirmei ainda mais que é importante que existam pessoas das identidades
que estamos discutindo para nos ensinar, ou seja, eu realmente não poderia estar lá falando
sozinho. Isso porque, em determinado momento, Kaio nos disse que, no candomblé, as mulheres
não tocam. Nesse momento, a sua conexão caiu e eu fiquei sozinho com a classe. Nesse sentido,
até Kaio retornar, busquei responder a questão dentro daquilo que havia lido sobre candomblé:
que mulheres não tocavam porque os orixás determinavam os papéis que cada um teria no
terreiro, e a parte do toque havia ficado com os homens.
Quando a conexão de Kaio voltou, dei a palavra novamente para ele, dizendo o eu que
havia respondido durante sua ausência. Ele, então, nos falou que não era como eu havia falado:
“A questão é que a mulher menstrua, o poder mais forte que a mulher tem é esse, que quando está
acontecendo qualquer coisa de ruim, a mulher corta, então, como eu vou colocar ela para tocar se
ela corta aquela energia?”. Em outras palavras, o meu conhecimento, por eu não ser
candomblecista, era equivocado, e se não houvesse um sacerdote candomblecista lá para me
corrigir, esse meu conhecimento impreciso seria multiplicado entre todas(os) as(os) presentes.
Outro ponto interessante é que havia um cursista candomblecista no curso. Ele afirmou
que a aula foi muito proveitosa, pois ele pôde perceber com calma diferentes aspectos do toque
dos atabaques que, durante as cerimônias do terreiro, eram mais difíceis de captar, por conta da
dinâmica da celebração que, em geral, é bastante efusiva. Ou seja, mesmo um músico
candomblecista pôde aprender com essa aula sobre musicalidade candomblecista.
Após o almoço, tivemos a aula teórica177, ministrada por mim, tendo como base a parte
teórica sobre religião apresentada nessa tese, os trabalhos identificados na revisão de literatura e
176
Aula disponível em: https://youtu.be/rcsJLiUbquk
177
Gravação disponível em https://youtu.be/8p_p9xGI5hI .
271
as entrevistas feitas com Raquel, Marcus e Marcelo, bem como o trabalho de Lunelli (2015b).
Mais uma vez, eu iniciei a aula dizendo que não era candomblecista, mas sim cristão, e
reconhecia os privilégios de professar o credo que é normativo nas sociedades ocidentais.
Expliquei também que, embora eu seja ciente dos meus privilégios, empreendo esforços para que
todas as pessoas tenham o mesmo tratamento na sociedade, e que o que eu estava ensinando o
que aprendi lendo trabalhos escritos por candomblecistas e entrevistando candomblecistas.
Expliquei que a religião também é um produto cultural e que, por tal razão, também pode
ser hierarquizada. Em outros termos, pelo advento da imposição do período colonial, o
cristianismo é, atualmente, a religião normativa no Brasil e, por conseguinte, as outras formas de
fé tendem a ser sub-hierarquizadas. Novamente, falamos sobre a colonialidade, dando foco, dessa
vez, à colonialidade cosmogônica, que, justamente, indica que o período colonial corroborou para
que as religiões das(os) colonizadas(os) fossem rebaixados a meras crendices, feitiçarias,
superstições ou atividades diabólicas. Em uma aula sobre candomblé, buscar conscientizar sobre
como a colonialidade cosmogônica influencia no racismo religioso direcionado a
candomblecistas foi algo que julguei importante ensinar.
Como reflexão, mostrei um vídeo no qual o cantor e pastor protestante Kléber Lucas,
falava sobre as repercussões de ter cantado a música “Maria, Maria”, de Milton Nascimento,
dentro de um terreiro de candomblé, que ajudara a reconstruir após o mesmo ser destruído devido
a um episódio de racismo religioso. O cantor foi gravemente atacado no meio protestante e
também afirmou ter sofrido racismo pelo seu posicionamento178. A intenção era mostrar que, por
conta do racismo estrutural e religioso, mesmo cristãos podem sofrer preconceito caso busquem
defender a causa candomblecista. Infelizmente, na nossa sociedade, o normal tem sido demonizar
o candomblé e as(os) candomblecistas, e, quem não o faz, também é visto como desviante.
Contei que algo parecido aconteceu comigo. Semelhantemente ao que eu fiz com a
questão indígena, também busquei adquirir os instrumentos utilizados no candomblé para mostrar
para as(os) cursistas, a fim de que elas(es) venham a utilizá-los em suas aulas de Música. Adquiri
o trio atabaque (Rum, Rumpi e Lé), caxixis triplos, pandeiro de pele, triângulo, agogô (gã) de
metal, berimbau e xequerê.
A problemática residiu no fato de alguns desses instrumentos só poderem ser adquiridos
em lojas de produtos religiosos. Eu fora, então, à uma loja que fica bem próxima à minha casa e
178
Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HHRds3b2tyk, acesso em 24/09/2020.
272
levei os meus atabaques novos nos ombros, pois a distância era curta. Ao narrar a experiência
com a turma, brinquei que fui candomblecista por dois minutos, que é mais ou menos o tempo
que levei para fazer o trajeto.
Experimentei em dois minutos o que os candomblecistas, infelizmente, sofrem
cotidianamente. Notei o olhar de repúdio de algumas pessoas, bem como o olhar de chacota das
outras. Definitivamente, não foi uma experiência agradável, sofrer preconceito por,
simplesmente, estar carregando um instrumento musical! Mais uma vez, confirmei como a
Música, direta ou indiretamente, pode (re)produzir preconceitos e discriminações.
273
Figura 19: Gã (agogô) de metal
274
Figura 22: Pandeiro de pele
Que alívio, último encontro! Não estava acreditando que eu, finalmente, estava
conseguindo fazer a minha empiria. Na parte da manhã, tivemos a aula da Vivian Fróes, que
deveria ter sido no dia 13 de fevereiro, mas não ocorreu por problemas técnicos. Vivian tem um
currículo maravilhoso, não somente como cantora, mas também como ativista LGBT+ e é para
sempre eternizada como a primeira bacharel em Canto transgênera formada pela Escola de
Música da UFRJ.
275
Em sua aula179, ela narrou sua história e como, infelizmente, passou por diversos
preconceitos por conta do seu gênero, inclusive, em instituições de ensino de Música. Ela pôde
denunciar muitas ações machistas e heterossexistas que perpassam a educação musical, como
também indicar pistas de como incluir estudantes transgêneras nas dinâmicas das aulas de
Música. Por fim, nos presenciou com lindas músicas.
Mais uma vez, percebi como a presença de uma pessoa com lugar de fala é importante em
aulas que se consideram multiculturais, pois a Vivian, muito educadamente, me corrigiu quando
utilizei o termo “especificidades da voz trans”, pois, tendo em vista que a voz não tem gênero,
denominar uma voz como trans seria também uma reprodução de estereótipos. Caso ela não
estivesse ali para me corrigir, esse estereótipo poderia ter sido multiplicado entre as(os) presentes.
É interessante notar que existam artigos que usam esse conceito de voz trans, como Cayari
(2018), Palkki (2019) e Palkki e Caldwell (2018). Contudo, Vivian nos advertiu que a pessoa
trans precisa sim de um tratamento diferenciado no que se refere ao cuidado com a sua voz, mas
isso não implica que exista uma classificação vocal transgênera.
À tarde, fizemos um encerramento180. Senti a necessidade de ouvir as(os) cursistas, pois
sobrava pouco tempo para debatermos ao final da aula, mas, nessa ocasião, apenas três estavam
presentes. Primeiramente, falei sobre as impressões que tive do curso – as mesmas que
discorrerei na próxima seção - e permiti que eles falassem também. Em geral, os presentes
afirmaram ter gostado bastante do curso e disseram que aprenderam muito. Não houve nenhuma
crítica, mas, quando eu disse que achei que uma hora de almoço foi pouco, ninguém discordou.
Por fim, disse que daria mais seis semanas para eles entregarem as avaliações. A ideia era
incluir, por exemplo, uma pessoa que até o momento, não tivesse conseguido assistir a aula
nenhuma. Nesse sentido, essa pessoa poderia se organizar para assistir as aulas e fazer as
avaliações nesse período.
Depois da sadia conversa, nos despedimos e terminamos o cansativo, porém, proveitoso,
ciclo de encontros.
179
Gravação disponível em: https://youtu.be/8p_p9xGI5hI
180
Disponível em https://youtu.be/2f8VRazZI7Y .
276
Nessa seção final do meu relato de experiência, argumento que percebi que, mais do que
professor, coordenador e pesquisador do curso, minha principal função no curso foi a de
aprendiz, pois a experiência me concebeu ensinamentos que levarei para toda a vida. Posso
afirmar que os principais sentidos gerados em mim no processo de planejamento, implementação
e avalição do curso foram: 1) dificuldades relacionadas a ministração de uma educação musical
multicultural e autêntica; 2) inclusão das(os) estudantes e 3) vantagens de se ter convidadas(os)
com lugar de fala.
Inicialmente, posso dizer que confirmei que o multiculturalismo na formação de
professoras(es) de Música é algo factível, contudo, não é simples oferecer um ensino
multicultural, seguindo os princípios norteadores identificados no trabalho, principalmente, no
que se refere à necessidade da educação musical multicultural ser autêntica, isso é, 1) ensinar as
músicas no idioma original, disponibilizando a letra também no idioma origina, a tradução e a
correta forma de se pronunciar as palavras; 2) Mostrar a importância e a função social daquela
música na sua cultura de origem; 3) Sempre que possível, utilizar instrumentos oriundos da
cultura de origem e 4) Disponibilizar gravações das músicas a serem ensinadas feitas por pessoas
da cultura de origem de tal música (KANG, 2016).
Vários desses princípios demandam dinheiro e/ou uma logística bastante complexa. Será
que toda(o) professor(a) de Música da educação básica têm acesso à uma aldeia indígena ou a
indígenas aldeiadas(os)? Têm verba para adquirir instrumentos musicais autênticos da cultura
indígena e candomblecista? Podem pagar para que musicistas de identidades subalternas toquem
em suas aulas? Possivelmente, não.
Na minha experiência, precisei seguir esses passos para garantir o rigor metodológico da
minha tese, a fim de não ser cobrado por não ter, de fato, oferecido um curso multiculturalmente
orientado. Reconheço que, para tal, desembolsei bastante ao comprar os instrumentos e contratar
as(os) convidadas(os) que, obviamente, não lecionaram gratuitamente. Só pude fazer tais
investimentos pois fui bolsista da Fundação de Amparo à Ciência, Tecnologia e Pesquisa no
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) durante metade do meu doutorado, mas sei que essa não é a
situação da maioria das(os) professoras(es) da educação básica e do ensino superior. Então, uma
educação musical multicultural seria inviável, por ser cara?
Conforme falei na aula de encerramento com as(os) cursistas, essa problemáticas podem ser
amenizadas. Por exemplo, um(a) professor(a) de Música interessada(o) em ensinar
277
autenticamente sobre música indígena, e que não tenha acesso à uma aldeia, poderia buscar por
vídeos e documentários em plataformas de compartilhamento de vídeo. No que se refere à etnia
Guarani Mbya, por exemplo, existe um número significativo material que um(a) professor(a)
poderia utilizar para mostrar às(aos) seus estudantes e possibilitar que elas(es) tenham acesso à
forma in natura na qual a musicalidade indígena é produzida, algo relevante na visão de Kang
(2016). O mesmo poderia ser feito com vídeos sobre candomblé, mulheres musicistas, pessoas
LGBT+, musicistas africanas(os), entre outras identidades de interesse do multiculturalismo.
Uma limitação seria que apenas mostrar vídeos não possibilitaria uma interação direta
das(os) estudantes com a(o) musicista. Essa interação é interessante e importante, pois, como
relato a partir da minha experiência, tirar dúvidas diretamente como as pessoas que se identificam
com a identidade que queremos aprender sobre, possibilita uma aprendizagem “direta da fonte”, o
que, por sua vez, tem potencial para evitar que estereótipos sejam propagados. Contudo,
concordo com Stafford-Davis (2011) quando ela afirma que é possível usar ferramentas de
comunicação online, como o Zoom, o WhatsApp, o Skype, Google Meet, entre outras ferramentas,
para possibilitar essa interação. Afirmo que essa interação online também foi feita na minha
pesquisa, pois, embora eu estivesse presencialmente no concerto didático do quarteto Nina’s e na
apresentação do coral indígena da aldeia Sapukai do Bracuhy, toda a interação com as(os)
outras(os) convidadas(os) foi feita via Zoom.
No que se refere à aquisição de instrumentos autênticos da cultura indígena e afro-
brasileira, que, em geral, são caros e pouco disponíveis, é possível fazer adaptações. Como eu
explico bem no início de uma das aulas que ministrei no curso181, é possível afinar um violão
comum a fim de que ele se torne um mbaraka e, da mesma forma, pode-se modificar a afinação
de um violino para que ele se torne uma rawe. Ressalto que as(os) próprios indígenas fazem isso,
sendo mais comum nas aldeias se ter violões e violinos convertidos em, respectivamente,
mbaraka e rawe, do que ter esses instrumentos produzidos de forma totalmente artesanal. Na
perspectiva de que o violão e o violino são instrumentos comuns, que podem ser encontrados a
um baixo preço e que estão presentes em várias escolas regulares, é possível possibilitar que
as(os) estudantes tenham contato com a cultura indígena por meio desses instrumentos adaptados.
181
Bem no começo dessa aula, eu explico como transformar um violão e um violino em, respectivamente, um
mbaraka e uma rawe. Destaco que aprendi a fazer tal transformação diretamente com um karai da aldeia:
https://youtu.be/lne5Yfc-jS8
278
Já no tocante aos instrumentos da diáspora africana no Brasil, destaco que, na entrevista
que fiz com o ogan Marcelo, me fora dito que não era estritamente necessário levar o trio
atabaque para escola, mas poderia ser qualquer outro tipo de tambor, como, por exemplo, um par
de congas. Obviamente, a presença do trio atabaque na escola, por esse ser o centro da
musicalidade candomblecista, seria extremamente relevante, mas, caso não seja possível adquirir
esse caro instrumento, outros tambores podem ser usados e o trio atabaque poderá ser
apresentado às(aos) estudantes via fotos ou vídeos.
Destaco que instrumentos afro-brasileiros, como o pandeiro, o triângulo e o agogô (gã), são
mais acessíveis e baratos. Também indico a possibilidade de se fabricar esses instrumentos com
sucata, mas, dessa forma, perde-se autenticidade, pois no contexto sociocultural no qual esses
instrumentos são oriundos, não se usa material reciclável para as suas confecções.
Em suma, percebi que um ensino de Música multiculturalmente orientado, que busca usar
um repertório e instrumentos autênticos, e obter aprendizado diretamente das(os) musicistas de
identidades subalternas, é complexo, mas não é algo impossível. Recorda-se também que, como
indica Kang (2016), um ensino totalmente autêntico nunca será possível, contudo, podemos usar
essa falta de autenticidade como estratégia pedagógica, ou seja, por exemplo, no que se refere ao
ensino da música candomblecista, levar as(os) estudantes a refletir sobre as diferenças da música
afro-brasileira produzida na escola e nos terreiros pode proporcionar novos conhecimentos por
meio dessa comparação.
Outro ponto que me fez pensar é em até que ponto o curso foi inclusivo, na perspectiva de
que inclusão proporcionar acesso, permanência, direito a voz e sucesso escolar (XAVIER;
CANEN, 2008). A princípio, achei que o fato de o curso ser online, aos sábados (dia em que não
há aula na maioria das universidades) e possível de ser cursado de forma assíncrona o faria
inclusivo para qualquer pessoa que tivesse acesso à internet. Contudo, depois das conversas que
tive com as mães trabalhadoras inscritas, percebi que essas características do curso, muito mal, o
conferiam o status de acessível, mas não inclusivo.
Alguns aspectos ainda pioraram a situação, por exemplo, o fato de eu ter destinado apenas
uma hora para o intervalo entre as aulas da manhã e da tarde. Eu assim procedi para que a última
aula não terminasse muito tarde, mas isso atrapalhou mais a vida das mulheres que, em geral, são
as responsáveis pelos trabalhos domésticos. Como elas, em uma hora somente, preparariam o
almoço e ainda almoçariam? Eu deveria ter disponibilizado, pelo menos, duas horas de intervalo.
279
Esses “detalhes” são importantes para a reflexão que quero sustentar: não adianta
adotarmos um referencial teórico multicultural e decolonial, que busque incluir conhecimentos
das identidades historicamente marginalizadas e oprimidas nos currículos, se as minúcias da
nossa prática docente são excludentes.
É importante salientar que, assim como não é possível uma educação musical ser
totalmente autêntica (KANG, 2016), também não é possível termos abordagens totalmente
inclusivas, sem que ninguém se sinta excluído em nenhum aspecto (SAWAIA, 2001). Mas, creio
que para que uma educação multicultural se verifique de fato, seja na educação básica ou na
superior, é necessário que empreendamos esforços para tentar ao máximo incluir nossas(os)
estudantes nas dinâmicas das nossas aulas, sob o risco de cairmos em um discurso hipócrita, que
ensina outras pessoas a serem inclusivas, enquanto se é excludente.
Por fim, algo que me marcou positivamente foi o fato de e ter conferido na prática como é
importante dar direito de fala a quem tem direito. Eu já estava convicto que seria importante
convidar mulheres, pessoas LGBT+, outras pessoas negras, indígenas e candomblecistas para
lecionarem em conjunto comigo, mas, depois do curso, tal convicção aumentou
exponencialmente. Mais do que um simples capricho, argumento que possibilitar que as(os)
estudantes tenham acesso direto a pessoas cuja identidade – seja ela de gênero, ou sexual, ou
étnica, ou religiosa, ou racial - é prejulgada pela sociedade, favorece na aprendizagem das(os)
estudantes, não só em relação aos conteúdos, mas também no que se refere à adoção de atitudes
de respeito às diferenças (KARLSEN, 2013, 2014).
Foi notório para mim que a recepção das aulas das pessoas convidadas foi muito melhor do
que a recepção que recebi nas aulas teóricas que ministrei, visto que as(os) cursistas se
mostravam mais participativas(os) e interessadas(os), fazendo mais perguntas e comentários.
Além disso, a presença dessas pessoas nas aulas favorece que preconceitos e estereótipos sejam
desfeitos, pois, como argumentei, as(os) convidadas me corrigiram em falhas que cometi e
fizeram que alguns(mas) cursistas revissem percepções equivocadas que possuíam.
Encerro aqui o meu relato de experiência. A partir do próximo subtópico, serão analisadas
as avaliações dos estudantes, iniciando, pelos significados identificados nas avaliações
diagnósticas.
Foi perceptível que algumas(alguns) já possuíam conhecimentos sobre a temática, seja pela
prática da militância, ou pelas necessidades de trabalho, ou por já terem estudado o tema por
curiosidade, ou por terem o estudado na academia. Seguem excertos de algumas avaliações
diagnósticas que mostram o explicitado.
Apesar de o indicado ter sido cada cursista responder a questão da avaliação diagnóstica
livremente, nota-se, no excerto acima, uma resposta teoricamente fundamentada em textos
281
propícios para tal discussão. Percebe-se portanto que, provavelmente, a cursista já possuía
leituras sobre a temática antes do início do curso. De fato, tratava-se de uma professora atuante e
que já possui o título de mestrado.
Nesse sentido, a avaliação diagnóstica inicial possibilitou identificar que, apesar de
pesquisas indicarem que os cursos superiores de Música no Brasil pouco ensinam sobre questões
relacionadas às diferenças culturais (ALMEIDA, 2011; LUEDY, 2011; PEREIRA, 2014;
SANTIAGO, 2017) muitas(os) das(os) inscritas(os) já possuíam alguns conhecimentos sobre o
assunto, indicando que, embora as licenciaturas sejam reconhecida como locus propício para a
preparação da(o) futura(o) docente, é possível que ela(e) adquira conhecimento em outras locais
formadores ou até por conta própria.
Contudo, não se pode deixar de notar que o excerto aqui analisado foca-se muito na questão
teórica do assunto e pouco incide em questões práticas. Concorda-se que a formação de
professoras(es) de Música deve se dar em um espaço de interrelações, contudo, como se proceder
para tal? Em suma, verificou-se uma resposta um tanto teórica e com poucos indicativos práticos.
Todavia, aparentemente, o papel prático do curso surtiu certo efeito, pois a avaliação
diagnóstica dessa cursista mostrou um caráter um pouco mais prático:
Em suma, nós educadores temos que prestar atenção à nossa linguagem, como
falamos, como pensamos, o que pensamos para que a nossa sala de aula seja um
espaço decolonial e não mero reprodutor de valores e estigmas do passado que
não dialogam182 mais com a diversidade da nossa atual e real sociedade (Mulher
parda)
182
Ressalto que, na devolutiva da avaliação dessa cursista, pontuei que, na verdade, esses valores nunca dialogaram
com a diversidade, e que às(aos) “desiguais”, muitas vezes, somente podiam se silenciar. Mas na atualidade, as
pessoas estão mais conscientizadas e instrumentalizadas para resistir. Também é perceptível que existe uma maior
abertura para se discutir essas questões nos diferentes espaços, algo que não existia no passado.
282
O ensino de música é transpassado e transpassa a cultura, desta maneira ensinar
e aprender música permite que tanto aluno, quanto professor trabalhem questões
culturais pessoais. Partindo deste ponto, o professor de música pode desenvolver
atividades que envolvam as características trazidas pelos seus alunos. (Homem
branco)
283
língua ou dialeto (através de cantigas por exemplo). Com isso, haveria a
oportunidade de perpetuação dessas informações, assim sendo, deixariam esse
legado para as gerações futuras. Desta feita, o indivíduo ao se deparar com uma
cultura diferente, poderia ter uma ótica (filtro) de acordo com os costumes que já
lhe foram passados pelos seus ancestrais. (Homem branco)
Percebe por meio dos excertos que muitas(os) cursistas, no início do curso, tinham
primeiramente, uma percepção folclórica das diferenças e, em segundo lugar, indicavam que as
diferenças se manifestam somente por questões de diferenças de gênero musicais. Por percepção
folclórica das diferenças, entende-se a concepção de que as diferenças seriam aspectos distantes,
exóticos, provenientes de outros lugares geográficos ou civilizações, e não marcas presentes e
atuantes nas vidas das pessoas. Quando algumas(alguns) das(os) cursistas respondem a questão
da avaliação diagnóstica apontando nas suas respostas que as diferenças estão presentes na
educação musical porque cada povo se expressa musicalmente de forma diferente, fica implícito
as(os) que assim responderam, naquele momento, viam a diferença como algo longínquo,
disperso no Brasil e no restante do globo.
Mas é interessante notar que, nesses trechos, não foi citado que as diferenças dos
marcadores identitários de, por exemplo, estudantes e docentes, influenciam nas dinâmicas do
ensino de Música, e, mesmo havendo pessoas de identidades subalternas no grupo, não foi citada
as diferenças entre as pessoas em si.
Nesse sentido, tais respostas caíram em uma faceta puramente musical, em que as
diferenças dar-se-iam no âmbito do ensino de Música porque existem estilos musicais diferentes.
Recorda-se que essa percepção de que as diferenças perpassariam o ensino de Música somente no
que se refere a questões ligadas ao repertório também foi identificada na dissertação realizada
pelo autor da presente tese (SANTIAGO, 2017; 2019) e motivou a feitura de um trabalho que
buscasse conscientizar que as diferenças estão presentes na educação musical, não somente nas
diferenças de repertório, mas também em questões ligadas à raça, ao gênero, à sexualidade, à
etnia, à religião e a outros marcadores identitários que influenciam em diferentes aspectos do
ensino de Música.
Recorda-se também que, no trabalho de mestrado anterior a essa tese, essa mesma visão
que sinonimiza diferenças nas aulas de Música com diferenças de estilos musicais foi identificada
nos discursos de professoras(es) universitárias(os). Contudo, na presente pesquisa, tal discurso foi
284
reproduzido por estudantes de Licenciatura em Música e professoras(es) da educação básica, ou
seja, trata-se de um pensamento presente em diferentes sujeitos da educação musical.
Embora não esteja se argumentando que não existam diferenças de musicalidade no âmbito
do ensino de Música, afirma-se que a percepção de que as diferenças só se expressam nessa
esfera é prejudicial, pois pode encobrir o fato de que as diferenças também estão presentes nos
currículos prescritos, nas práticas docentes, nos tratamentos diferenciados oferecidos a meninos e
meninas, pessoas negras e brancas, pessoas cisgêneras e transgêneras etc., ou seja, toda a
dinâmica do ensino de aprendizagem de Música.
Entretanto, por meio da análise das avaliações diagnósticas finais dessas(es) cursistas,
acredita-se que a ministração do curso surtiu um efeito positivo nesse sentido.
A análise das avaliações diagnósticas possibilitou também perceber que as(os) cursistas,
após o curso, puderam empreender novas agências musicais, que se caracterizam por estarem
relacionadas ao tratamento das diferenças nas salas de aula. Recorda-se que, por agência musical
(music agency) entende-se a capacidade de agir na Música e por meio da Música (KARLSEN,
2014), logo, quando se afirma que algumas(algumas) cursistas desenvolveram novas agências
musicais relacionadas às diferenças, pretende-se argumentar que elas(es) modificaram certas
práticas relacionadas ao fazer musical ou à docência da Música. Um exemplo claro é a avaliação
diagnóstica disponibilizada a seguir:
Quando iniciei o curso eu não estava fazendo terapia, e não me via conectado
com a amplitude da educação, apesar de trabalhar na área. Me vi repetindo
costumes antigos que, caso não mudados, continuaria excluindo grande parte de
alunes, como vimos no decorrer do curso. Conectar com pessoas do curso que
também estão em busca da desconstrução, acendeu uma chama que eu já via
dentro de mim, mas eu não a valorizava. Saber que posso ter amigues de
trabalho que estão dispostes a quebrar o sistema, me faz crer que não estou
sozinho e que ensareu posso mais. Quando entrei na faculdade de música, achei
que meu bem maior era ensinar música, e sou muito grato por perceber que nós
professores e professoras, somos mais que um meio de conteúdo. Também me vi
repleto de pessoas, sendo em família ou nas redes, que me impediam de mostrar
o que eu realmente acreditava. Eu me escondia e negava que eu como professor
não poderia usar um batom, um brinco, ou pintar as unhas. De fora pra dentro.
De mim também sai muitas amarras. Das visões que eu tinha das pessoas, mas
que também refletiam como eu me via. O curso também me trouxe mais
confiança em trabalhar com alunas, coisa que apesar da não dificuldade de
passar o conteúdo, me via não abraçando-as como mulheres, valorizando o
repertório feminino, ou caindo no gênero masculino em palavras. Hoje me vejo
refletindo sobre a ausência de cavaquinistas negras nas escolas, mesmo que de
287
música, musicistas transessuais como minhas alunas ou em meio meio musical e
como posso agregar isso, em conteúdo de minhas redes, ou como parceiras de
projeto. Como faço parte de um projeto [musical] chamado [nome omitido], uma
das pautas mais importantes é como podemos dividir a equipe em pessoas
pretas, mulheres trans, mulheres negras, homens trans, pessoas com alguma
deficiência. A fé é um bem humano e venho buscando formas de desmistificar
meus cursos. Sabemos da real situação do país e infelizmente o meio em que eu
trabalho, samba/pagode, ainda carrega heranças patriarcais/machistas e
misóginas. Uma das mudanças é mesmo que na dificuldade é encontrar pessoas
mesmo que nessa área, que dialoguem com a desconstrução. O curso me trouxe
uma amplitude de vida, que irá refletir em sala de aula, trazendo uma nova era
para alunes que virão e poderão desde já iniciar com ideais mais igualitários.
(Homem pardo. Grifo do pesquisador)
288
(2018). Por fim, a importância de se incluir pessoas com algum traço identitário subalterno em
equipes de produção musical emergiu na entrevista feita com a Natália.
Não se afirma que o cursista aprendeu sobre tudo isso somente nos sete encontros do curso,
mas, a partir da análise da sua avaliação, as aulas foram importantes, pois serviram como
estímulo para acender uma chama que, segundo ele, já estava dentro dele. Em outras palavras,
uma educação musical multiculturalmente orientada pode ser útil para estimular as pessoas a se
decidirem por agências musicais inclusivas que já gostariam de exercer, mas que, por diferentes
motivos, não exercem. No caso do cursista, possivelmente, a percepção de comunidade, ou seja,
de que existem outras pessoas buscando se desconstruir e que é possível encontrar colegas de
profissão com ideias semelhantes, possibilitou que tais agências musicais eclodissem.
Também se aponta que o curso foi positivo, não só para o cursista em si, mas também para
suas(seus) estudantes – principalmente, as mulheres -, e também para as(os) membras(os) da
equipe do seu projeto musical. Afirma-se com isso que uma educação multicultural voltada para
professoras(es) de Música – sejam elas(es) já formadas(os) ou em formação – tem potencial para,
de forma abrangente e multiplicadora, atingir positivamente várias outras pessoas.
Semelhantemente, outro cursista também indicou posicionamentos sobre gênero em sua
avaliação.
O tema da igualdade entre homens e mulheres tem uma relação significativa
com a educação musical. Não abordar esse tema é uma forma de perpetuar a
desigualdade já existente na sociedade. Devido a carga horaria pequena da aula
de música, não é possível aprofundar todo o tema. Mas é possível dar um
elemento a mais para o aluno pensar sobre o tema, tendo em vista que é um
assunto transdisciplinar. O aluno vocacionado ou não, precisa entender que não
existe nenhuma relação entre o gênero e o instrumento tocado. Independente se
o seu objetivo com a música é apenas como entretenimento ou seguir uma
carreira. Por incrível que pareça, ainda hoje existem pensamentos assim.
Geralmente é sutil, mas em alguns casos ocorre de maneira mais exagerada. A
guitarra por exemplo, é um instrumento ensinado geralmente a meninos. Muitas
vezes porque nenhum professor apresentou essa possibilidade para as meninas.
Talvez mostrando algum video de mulheres tocando. Até em hits do Michael
Jackson em alguns períodos de sua carreira, havia uma guitarrista mulher.
Apresentar exemplos musicais já seria uma forma de não se calar. Já seria uma
forma de contribuição. Levantar alguma discussão sobre o tema seria mais
eficiente ainda. Se esse trabalho educativo surgir junto a outras disciplinas
escolares, a formação intelectual ganha maior embasamento para interagir e
modificar a realidade brasileira, que ainda admite o machismo em diferentes
nuances. (Homem branco)
289
Embora não se concorde com a ideia de se separar as(os) estudantes entre vocacionadas(os)
ou não vocacionadas(os), percebe-se um texto que apresenta a ideia de se “desgenerizar” a
educação musical, isto é, não atribuir papéis de gênero às práticas musicias. Recorda-se que esse
foi um dos princípios norteadores identificados junto à entrevista feita com a Natália e discutidos
durante o encontro sobre gênero.
É interessante que, além das indicações práticas para que a identidade da mulher seja
valorizada na educação musical sugeridas durante o curso, o cursista, a partir dos seus
conhecimentos, do seu contexto e das suas vivências, pôde contribuir com algo que o pesquisador
desconhecia, a saber, que Michael Jackson tinha uma guitarrista. Esse tipo de conhecimento pode
possibilitar o sentimento de representatividade entre as estudantes, mostrando que não há nada de
errado em uma mulher tocar guitarra e que elas podem ser guitarristas de sucesso, caso queiram,
estudem e se esforcem. No mais, a importância de o assunto perpassar de forma interdisciplinar o
currículo escolar, envolvendo toda a escola, foi algo indicado na entrevista feita com a Flávia e
discutido durante o curso.
Em outra avaliação diagnóstica, outro cursista indicou ter aprendido não somente como
ensinar a cultura indígena em suas aulas, mas também como superar uma barreira técnica que
influencia no ensino de Música ofertado na educação básica, que é a dificuldade apresentada por
parte das(os) estudantes em se tocar certos instrumentos, como o violão.
Foi indicado que a complexidade do violão é um obstáculo para que estudantes iniciantes
sejam incluídas(os) nas práticas em conjunto em aulas de Música, mas, em contrapartida, o fato
290
de o mbaraka (violão guarani) poder ser tocado apenas com a mão direita, favorece que tais
estudantes iniciantes possam participar das aulas tocando esse instrumento. Esse relato parece
indicar que um ensino de Música multiculturalmente orientado pode propiciar não somente a
sensibilização cultural e o apreço às diferenças, mas também o próprio desenvolvimento técnico e
musical das(os) estudantes.
Nesse contexto, ter-se-ia um argumento forte para refutar uma das principais críticas da
183
educação musical multicultural, que seria o fato de o multiculturalismo não ensinar conteúdos
escolares, o que, por sua vez, não proporcionaria o cabedal intelectual necessário para prover a
emancipação das(os) estudantes (GALON; CESCA, 2013). Pelo contrário, afirma-se que é
possível relacionar o ensino de conteúdos escolares e a sensibilização cultural por meio da
ancoragem social dos conteúdos (SANTIAGO; IVENICKI, 2016e).
É interessante também ressaltar que, no texto do cursista, além do uso do mbaraka para se
solucionar uma barreira técnica, ele também frisou a importância de refletir com as(os)
estudantes o porquê das(os) indígenas tocarem o instrumento dessa forma facilitada, o que
proporcionaria também aprendizados sobre a cultura e cosmovisão indígena. Isso é
importantíssimo, porque, sem essa reflexão, as(os) estudantes poderiam pensar que as(os)
indígenas tocam assim porque são “indolentes”, ou porque não sabem tocar do jeito “certo”, o
que é um equívoco. Em outros termos, houve uma associação entre conteúdos musicais, cultura
indígena e sensibilização cultural.
183
Durante o curso, foi explicado que o pesquisador, durante visita à aldeia, percebeu que as(os) indígenas o
mbaraka sem usar a mão esquerda para tornar o ato de se tocar mais simples. A simplicidade do modo de viver
Guarani possibilita mais tempo livre para que membras(os) dessa etnia possam meditar em Nhanderu, algo
necessário para que elas(es) possam alcançar a Terra sem Males (Yvy Marãe’y). Indica-se que essa simplicidade
influencia na música Guarani e, por tal razão, o mbaraka é tocado de forma mais simples. Também foi explicado
que, em alguns casos, pode-se usar a mão esquerda para se tocar o mbaraka, mas essa não é uma prática comum.
Algo a se frisar é que, em uma visita à aldeia, o pesquisador presenciou um indígena cantando, em português, uma
música sertaneja raiz enquanto tocava violão “normalmente”, usando os acordes da mão esquerda. Conclui-se com
isso que, ao acompanhar os cânticos Guaranis, eles só tocam com a mão direita por questões culturais, mas nada os
impede de usar a mão esquerda ao tocar músicas não indígenas, já que elas(es) possuem toda capacidade técnica de
fazer os acordes.
291
de uma cursista, não se verificou muitas diferenças em relação à percepção dela sobre o tema. O
grande diferencial percebido foi como o fato dela ser mulher e se dedicar a uma jornada tripla
exaustiva entre seu emprego, sua pós-graduação e o seu lar, o impediu de fazer o curso tão bem
quando gostaria.
A música trabalha com as emoções dos indivíduos, com subjetividades, cada um
entende a mensagem da sua forma, através da sua construção social, dos seus
valores e suas individualidades. Qualquer expressão artística tem essa
característica, mexer com as emoções particulares de cada um. Posto isso,
levando em consideração a diversidade de indivíduos, de formações é necessário
que no ensino de música o respeito à diversidade fique bastante claro. (Mulher
branca – avaliação diagnóstica inicial)
Renan, boa noite. Estive, na verdade estou, muito enrolada na minha vida
doméstica, casa x trabalho remoto x filho, pós.. enfim.. acho que como todo
mundo. Eu gostei muito de todas as aulas. assisti todas as 4. O último tema
confesso que não consegui assistir ainda. Eu nem ia mandar meus
comentários pois queria muito ter lido os textos de todos os temas. Os que li
acrescentaram demais no entendimento. Você fez um belo trabalho trazendo a
síntese escrita de cada um. Enfim estou enviando pois não queria deixar de te
dar esse retorno. Muito importante tudo que nos trouxe. Acho que o mais
importante é entendermos as "caixinhas", desconstruírmos nossos próprios
preconceitos para que possamos fazer uma discussão clara, de conteúdo e que
agregue conhecimento com nossos alunos. Acho que entender as diferenças
culturais é chave para contrução coletiva do conhecimento, seja de música, ou
qualquer outro. Não somos detentores da verdade, nem há um conhecimento
único ou verdadeiro. Entender um pouco mais sobre pluralidade cultural nos
aproxima do outro, nos dá a possibilidade de crescermos juntos. Tenho certeza
que vários conceitos e exemplos levarei pro dia a dia. A música enquanto arte é
libertadora não podemos ficar amarrados em "achismos" ou ideias pré-
concebidas. (Mulher branca – avaliação diagnóstica final)
Trata-se de uma pessoa que já atuava diretamente com essas questões, sobretudo,
relacionadas às diferenças de gênero e sexualidade em jovens. Não está se argumentando que ela
não aprendeu nada durante o curso, pois seus aprendizados ficaram mais bem expressos no seu
diário de bordo, mas, no que se refere à análise da sua avaliação diagnóstica, alvo de análise da
presente seção, o que salta aos olhos são as dificuldades que a mesma teve para assistir as aulas e
completar o curso.
Embora ela afirme que todas as pessoas estão tendo dificuldades durante o período de
pandemia, Santos (2020), argumenta que as pessoas mais estão sendo afetadas são, justamente, as
mulheres, pessoas nunca tiveram uma vida fácil, mas que, agora, estão se desdobrando de
maneira ainda mais intensa. O fato de mães trabalhadoras terem apresentado dificuldades para
292
fazer o curso, infelizmente, é algo deveras bastante paradoxal, tendo em vista que, embora um
dos temas discutidos foi, justamente, a opressão das mulheres em uma sociedade patriarcal,
muitas cursitas não conseguiram completer o curso e, as que conseguiram, o fizeram mediante
demasiado esforço.
Fica evidente a necessidade de se buscar meios para que exista uma inclusão mais efetiva
de mulheres trabalhadoras na educação musical. Não se tem, a princípio, um indicativo de como
se deve proceder para que esse público tenha não somente acesso, mas também direito de
permanência, representatividade e suecesso escolar; todavia, tal resposta poderá ser obtida
ouvindo as mães trabalhadoras.
Durante o curso, após ouvi-las, foi possível perceber que era necessário diminuir o número
de avaliações e aumentar o prazo da entrega dos trabalhos e, foi perceptível que assim se
procedendo, outras pessoas também foram beneficiadas. Em outras palavras, percebeu-se que ao
se buscar incluir mulheres trabalhadoras, todo o grupo é favorecido.
Embora o objetivo do curso fosse, entre outros aspectos, auxiliar no entendimento de como
a educação musical produz e reproduz estereótipos, preconceitos e discriminações, algumas
avaliações parecem indicar que algumas percepções equivocadas foram mantidas por alguns
cursistas, mesmo após a ministração do curso.
Por exemplo, durante a ministração do curso, foi explicado que, ao se referir às pessoas
transgêneras de forma geral, o correto é sempre usar o artigo no feminino, e nunca no masculino,
a não ser, que se esteja falando especificadamente de homens transgêneros. Contudo, houve
avaliações que mantiveram o artigo no masculino.
Também, percebeu-se que, embora nas aulas fosse frisado que a questão da transgeneridade
é algo relacionado ao gênero da pessoa, e não à sua sexualidade, uma avaliação relacionou a voz
da cantora Pablo Vittar, que se identifica como um homem gay, com a voz da cantora Vivian
Fróes, que é uma mulher trans.
A escuta musical de boa parte dos alunos está diretamente ligada ao repertório
midiático. Um bom exemplo disso é o sucesso de Pablo Vittar. Mesmo com
preconceitos bem enraizados na sociedade, seu sucesso foi bem repentino, de tão
293
forte que é a influencia midiática. A apreciação musical de uma cantora como
Vivian Fróes, por exemplo, é uma forma de fugir dessa previsibilidade e
começar a conhecer novos repertórios. Sem a necessidade de que sejam
sacralizados pelos meios de comunicação. (Homem branco)
Argumenta-se, mais uma vez, em concordância com a aula dada pela Vivian Fróes, que é
prejudicial classificar vozes humanas como masculinas ou feminias, cisgêneras ou transgêneras,
sob o risco de se fortalecer estereótipos de gênero que, na verdade, precisam ser criticados e
problematizados.
Não se pretende argumentar que esse cursita seja transfóbico. Pelo contrário, ele
demonstrou bastante interesse na temática da transgeneridade em sua avaliação, tanto que lhe
foram enviados artigos sobre o tema para que ele pudesse se aprofundar mais sobre o assunto.
Trata-se, portanto, de alguém em processo de desconstrução e que, infelizmente, não conseguiu
assimilar esses conteúdos no curto espaço de tempo do curso. Nesse contexto, se alguém deve ser
culpabilizado por isso, esse alguém é o pesquisador, que não conseguiu ser didático o suficiente
294
nesse ponto. Recoda-se que o professor também participa do processo de avaliação, ou seja, se
a(o) estudante vai bem, é porque a(o) docente foi bem, mas a recíproca também é verdadeira.
Todavia, destaca-se que todas(os) as cursistas receberam uma devolutiva das suas
avaliações com comentários, correções e encaminhamentos. Nesse sentido, o cursista que
manteve percepções estereotipadas foi corrigido e, agora com essa orientação de cunho mais
individual, pode ter entendido essas questões.
Conclui-se com isso que, apesar capacidade do curso de possibilitar que professoras(es)
aprendam mais sobre as relações entre diferenças culturais e o ensino de Música, ele e nenhum
outro curso, ou disciplina, ou seminário têm potencial para acabar completamente com todos os
estigmas e estereótipos das(os) estudantes. É necessário, portanto, que esse processo de
descontrução seja permanente e não algo advindo de atividades pontuais. Usando outras palavras,
mesmo seguindo os princípios norteadores identificados na revisão bibliográfica e nas
entrevistas, o curso teve limitações, tendo em vista que muitos assuntos complexos foram
trabalhados em um curto período de tempo.
Findada aqui a análise das avaliações diagnósticas das(os) cursistas, o próximo subtópico
discorrerá sobre os diários de bordo.
Finalmente, chega-se à análise dos diários de bordo, instrumentos avaliativos que também
serviram como meios de produção de dados para a presente pesquisa. Recorda-se que cada
cursista escreveu sobre suas impressões, aprendizados, dúvidas, críticas etc. que tiveram nos
encontros temáticos sobre raça, gênero, sexualidade, etnia e religião, abrangendo a aula teórica e
a aula com as(os) convidadas(os). O conjunto desses relatos culminou no diário de bordo de
curso de cada estudante.
Por meio da técnica de análise de conteúdo via categorização (MORAES, 1999), foi
possível identificar algumas categorias perpassando os diários de bordo, a saber: 1) Aprendizados
sobre si; 2) Experiências vividas e relacionáveis; 3) Preconceitos sentidos e relacionados; 4)
Cessão da voz; 5) Sensibilização às diferenças; 6) Alegria e esperança; 7) Alargamento de
horizontes culturais; 8) Interseccionalidades; 9) Aprendizado de conceitos; 10) Reflexões a partir
295
dos conteúdos das aulas; 11) Lacuna do tratamento dessas questões na escola e na universidade;
12) Manutenção (e criação) de percepções equivocadas e 13) Dúvidas e críticas.
Essas categorias, que sinonimizam com os significados produzidos pelo curso que foram
identificados pelo pesquisador, serão pormenorizados a seguir:
Primeiramente, foi possível perceber que o curso proporcionou que as(aos) cursistas
aprendessem não somente sobre educação musical e/ou multiculturalismo, mas também sobre
suas próprias identidades. Como exemplo, uma cursista, mesmo antes do início oficial do curso,
indicou que obteve maior compreensão da sua identidade de gênero no momento da inscrição.
Não se considera que o curso ensinou essa cursista a ser agênera, pois, apesar da identidade
de gênero ser uma construção (LOURO, 2014), não é possível tornar-se certa identidade de
gênero de uma hora para a outra, muito menos, somente na hora do preenchimento do formulário
de inscrição. O que ocorreu, possivelmente, é que a cursista já tinha uma visão de mundo que,
dentro das classificações usuais, poderia ser classificada como agênera, contudo, antes do curso,
ela, apesar de se sentir assim, não se identificava como agênera por, simplesmente, desconhecer
tal identidade.
Recorda-se que podemos definir cultura como a rede de significados nos quais o mundo
está suspenso (HALL, 1997c). Como a identidade é um produto cultural produzido
discursivamente (SILVA, 2014), alguém só pode se classificar dentro de uma categoria
identitária caso ela, em primeiro lugar, exista (no sentido de ser nominada e definida) e caso o
indivíduo a conheça. Nesse sentido, apesar da categoria “agênera” já existir, a cursista só pôde
296
identificar-se com ela ao conhecê-la, por intermédio do curso. Só a partir desse momento, tal
categoria passou a “existir” para ela, e significar na sua vida.
Indica-se, portanto, que disciplinas multiculturalmente orientadas têm esse potencial de
ensinar as pessoas sobre questões relacionadas a si mesmas, inclusive, em assuntos relacionadas
às suas identidades. Não se argumenta que, necessariamente, as pessoas tenham que se identificar
com as identidades – sejam elas de gênero, raciais, sexuais ou étnicas – disponíveis nos catálogos
das teorizações identitárias, contudo, percebe-se que algumas pessoas se sentem mais
confortáveis quando identificam que alguma nomenclatura, de alguma forma, as descreve.
Outro cursista, por sua vez, indicou no seu diário de bordo que, no decorrer do curso,
modificou o termo com a qual expressava a sua sexualidade.
Eu como homem sempre me considerei heterossexual. Hoje tenho falado muito
com minha companheira sobre a importância de me considerar pansexual, já que
eu me relacionaria não só com o oposto do meu gênero masculino. Acredito ser
a melhor opção para agregar também homens trans, mulheres trans, pessoas
agêneras, pessoas bissexuais e etc. (unicórnio). (Homem pardo)
Outro ponto que me marcou bastante nesta aula, foi em relação a voz da mulher
que ela muda quando está no período pré-menstrual e o cuidado que no exterior
eles têm por esse ponto nas mulheres que são cantoras oferecendo a licença para
elas terem o repouso necessário neste período. (Mulher branca)
297
Esse foi um dos princípios norteadores identificados na revisão bibliográfica discutida no
capítulo II e está de acordo com a pesquisa de Lã e Davidson (2005), que exortam sobre a
importância de se conscientizar sobre o papel dos hormônios na mudança das vozes das
mulheres, que, segundo a autora e o autor, tendem a se tornar mais rouca e grave nos períodos
pré-menstrual e menstrual. Em geral, as cantoras não sabem disso e acabam forçando mais a voz
para cantar nesses períodos, causando, muitas vezes, danos ao aparelho vocal que podem ser
irreversíveis.
É interessante ressaltar que uma cursista mulher não sabia dessa questão, que é algo que diz
respeito ao seu próprio corpo. Nesse sentido, indica-se que um currículo multicultural tem
potencial para criar, junto às(aos) estudantes, aprendizados sobre si de diferentes formas.
Também foi possível perceber que muitas(os) cursista puderam relacionar experiências das
suas vidas com os conteúdos ensinados no curso. Isso é bastante positivo, pois mostra que as
discussões sobre multiculturalismo e educação musical saem da pura teorização e alcançam a
vida cotidiana das pessoas. Dentro dessa categoria, tem-se, por exemplo, o excerto a seguir:
Muito interessante a distinção trazida entre raça negra e cor preta nesta aula. No
meu trabalho é incrível como após alguns meses sempre trazendo o tema da
raça, problematizando o racismo, quase que diariamente, alunos negros
começam a questionar os padrões de beleza. Meninas começam a fazer transição
capilar, meninos deixam seus blacks, e se libertam dos bonés. Na nossa
orquestra temos como premissa ter equidade de cor/raça, de alunos e estamos
tentando implementar com o corpo docente também. Fazemos isso há anos.
Muito boa a discussão de como o racismo está entranhado e há um tratamento de
opressão enraizado e nem sempre percebido. Importante poder levar aos alunos a
diferenciação entre preconceito e racismo. Gostaria de trazer um fala de uma
mãe. Fui conversar com ela sobre a necessidade do filho estudar o instrumento
em casa. Problematizei que talvez ela pudesse atrelar os presentes que dava ao
menino ao estudo em casa. Aí ela me disse "[nome omitido], nós somos pessoas
de cor. Eu tenho que mandar o X (nome do filho) andar com roupa e calçado
novinhos. Nem no mercado eu deixo ele ir de chinelo, a gente que é preto tem
que andar arrumadinho, senão sofremos mais preconceito". (Mulher branca)
298
Usando outros termos, a cursista foi capaz de relacionar a discussão trazida na aula teórica
sobre raça, a saber, a diferenciação entre os conceitos de raça, cor e cor de pele (GUIMARÃES,
2011) com a sua vivência profissional. Destaca-se, no seu texto, como o fato de a cursista discutir
a questão racial proporcionou que suas(seus) estudantes se enxergassem como negras(os) e
assumissem os traços da sua raça, em especial, o cabelo.
Não se ignora que a questão da aceitação ou da falta de aceitação capilar por parte de
estudantes negras(os) é um tema discutido em diferentes trabalhos, tais como Gomes (2002,
2003, 2019) e Oliveira (2017). Em geral, esses trabalhos indicam como a sociedade, ainda presa
aos estereótipos coloniais, elege a estética racial branca como um padrão de beleza e, nesse
sentido, pessoas com cabelo afro, como estratégia para fugir do preconceito e/ou se adequar a tal
padrão imposto, se submetem a intervenções estéticas, tais como o alisamento capilar. Contudo, o
cabelo afro tem sido um símbolo da resistência negra e, assim como se percebe no relato da
cursista, por meio de uma educação antirracista, mais e mais jovens em idade escolar têm
assumido a sua identidade racial e valorizado a estética negra.
Contudo, embora os avanços sejam inquestionáveis, ainda há um longo caminho a ser
percorrido, visto que o racismo ainda está entranhado na sociedade, conforme se observa no final
do relato da cursista, no qual a mãe indica algumas estratégias que usa para que o filho dela não
sofra racismo por ser negro.
É interessante notar como esse relato refuta qualquer tentativa de se afirmar que as
questões raciais não influenciam no ensino de Música. As influências existam e são de ordem
direta e indireta. Como foi relatado, a mãe não pôde comprar um instrumento para que o filho
estudasse em casa, pois ele precisava apresentar-se bem trajado na sociedade, para que, dessa
forma, as mazelas do preconceito fossem abrandadas. Ora, sem o instrumento para estudar em
casa, a qualidade do estudo é afetada, portanto, as questões de ordem racial também influenciam
nos processos de ensino e aprendizagem de Música.
A temática indígena também foi relacionada com as experiências de algumas(alguns)
cursistas.
A experiência relatada na comunidade dos Guarani Mbya, cujas músicas de um
acorde no violão eu pude ouvir quando estive no Paraguai, mostra que a música
para essa etnia não é apenas um fenômeno sonoro, mas que está vinculada à
espiritualidade, artesanato, gastronomia entre outras dimensões da cultura. Em
suma, abordar a função social da música é fundamental. Música e cultura, etnia é
cultura. (Mulher parda)
299
É interessante notar que o curso parece ter feito rememorar uma experiência vivida e
compreendê-la de forma mais aprofundada. Em outro relato, uma cursista fez inferências entre a
aula ministrada na aldeia Sapukai de Bracuhy e a sua atuação profissional.
Ressalta-se que esse relato coincide com o texto de Almqvist e Hentschel (2019), que foi
discutido em uma das aulas do curso. De fato, essa pesquisa indica que as meninas, dentro de
contextos musicais, se desdobram em atividades relacionadas ao estereótipo feminino do cuidar,
enquanto os meninos podem se dedicar somente às atividades musicais que, em geral, são aquelas
que reforçam a sua masculinidade, como, por exemplo, exercer papéis de liderança. Entender
teoricamente essas questões pode auxiliar para que essa realidade seja modificada.
Ainda dentro da temática gênero, a questão da transgeneridade também emerge nas
experiências pessoais trazidas pelas(os) cursistas.
Trago meu relato pessoal que há 4 anos recebemos no projeto uma aluna,
contrabaixista, que no ato da seleção se identificou como menina cis.
Acompanhamos, nos meses seguintes, sua luta no processo de transição. Após
alguns meses, esse adolescente se reconheceu enquanto homem trans. Por ser de
uma família religiosa, de tradição conservadora, vimos de perto a negação da
sociedade e a luta pela vida que essa parcela da população enfrenta. Questiono
se o fato de ser um homem trans não tornou mais "fácil" que outros espaços o
acolhessem, no caso o projeto de música e a escola. Se fosse uma mulher trans, o
tratamento teria sido o mesmo? Uma outra questão é quanto a população
marginalizada tem que lutar para provar que pode sim ocupar o lugar que quiser.
Nesse caso, depois de dois anos, esse aluno foi aprovado no vestibular de
Engenharia da UFF. Na escola de nível médio ele tinha que ser o melhor aluno e
assim conseguia encontrar mais aceitação. Acredito que essa questão é sentida
em outros traços identitários: a mulher tem que ser “a musicista” pra ser aceita, o
negro tem que ser “o cara”, para ser reconhecido. No caso da minha experiência
como educadora ao receber esse aluno, que no momento da seleção ainda se
reconhecia como mulher, foi de muito estudo sobre o tema. Por se tratar de
adolescentes, sempre tentamos criar diálogos mais abertos e vínculos de
confiança. Assim pude em vários momentos pedir ajuda ao próprio aluno para
entender mais sobre a questão da transexualidade trazendo ele para expressa-se
como sentia. Interessante notar que ele reproduzia determinados padrões
heteronormativos, era super ciumento e dominador com sua namorada, por
exemplo (Mulher branca)
Várias questões emergem desse trecho, que narra o processo de transição de gênero
experenciada por um jovem. Primeiramente, tem-se a dúvida levantada pela cursista, se o fato o
estudante seria bem acolhido caso fosse uma mulher trans. Como indicam autoras(es), tais como
Furquim et al. (2019), mulheres transgêneras sofrem mais preconceito, primeiramente, porque
elas são confundidas com homens homossexuais e porque elas “perdem” o lugar de privilégio
301
que a identidade masculina proporcionava antes da transição. Em outras palavras, elas sofrem
com o machismo e com a transfobia, enquanto homens trans, apesar de também sofrerem com a
cisnormatividade, acabam ganhando algum privilégio na nossa sociedade patriarcal, por serem
identificadas como figuras masculinas.
Outro ponto importante de ser destacado é o fato de a pessoa com traços identitários
subalternos precisar ser “a melhor” para poder ser reconhecida em certo âmbito social. Tal
situação pode ser explicada pela colonialidade do ser, conceito esse que indica que o processo
colonial deixou suas marcas nas sociedades contemporâneas, propiciando que certas identidades
fossem concebidas como aquelas que representariam o ser humano ideal, a saber, homens
cisgêneros, heterossexuais, brancos e cristãos. O que foge a essa regra é visto como divergente e
fora do ideal esperado para a humanidade (WALSH, 2012). Nesse sentido, as(os) desviantes
precisam se esforçar mais do que média para compensar essa desvantagem social.
Aponta-se como positiva a atitude da cursista em conversar com o estudante a fim de
entender melhor a sua demanda. Conforme Canen e Moreira (2001), o diálogo é um alicerce
indispensável para o entendimento entre as pessoas e, por conseguinte, para a educação
multicultural.
Por fim, também chama a atenção o fato de o estudante ter apresentado comportamentos
machistas, mesmo sendo um homem trans. Infelizmente, o patriarcado é tão forte e estrutural que
atinge toda a sociedade, fazendo com que não somente homens – sejam eles cisgêneros ou
transgêneros – reproduzam comportamentos machistas, mas também as próprias mulheres
(LOURO, 2014). Contudo, argumenta-se que esses estereótipos podem ser combatidos por meio
de uma educação multicultural.
No que se refere à sexualidade, obteve-se o seguinte relato de experiência fornecido por
uma cursista.
Orientação e sexualidade. Identidade como processo, "estou sendo", não é um
produto fixo. Vamos mudando, podendo nos auto-identificar de acordo nossas
percepções. Acredito que dentro das "caixinhas das identidades" a identidade
sexual é a que mais recebe pressão para que haja uma definição entre os jovens.
Sinto no contexto do meu trabalho, na orquestra de jovens, que os adolescentes
necessitam saber por quem o outro tem desejo, enquadrar. E ainda percebemos
que as expectativas giram em torno da heteronormatividade. Percebo que é uma
preocupação dos pais também. Inclusive quando meninas vem até mim dizer que
estão apaixonadas ou se relacionando amorosamente com outras mulheres elas
enxergam isso como algo "fixo", com um certo peso. " [nome omitido], agora
sou gay" ou "eu sou sapatão mas ninguém da minha casa pode saber". Achei
302
super interessante a reflexão da orientação sexual como algo que é construído e
pode ser mutável. Acho que fazer essa reflexão com os adolescentes pode tirar
esse "peso" com que eles encaram a necessidade de se auto-afirmar nesse
sentido. (Mulher branca)
Tal relato é interessante pois, de fato, existe a percepção de que as Artes seriam um campo
no qual as pessoas seriam mais abertas, tolerantes e respeitosas. Contudo, todo espaço social está
alheio aos choques e entrechoques culturais (CANEN, 2012), sendo necessário o posicionamento
303
constante contra os diferentes tipos de preconceitos e discriminações. Concorda-se com a cursista
que uma mudança efetiva só poderá ser verificada por meio desse posicionamento multicultural e
crítico.
Na análise dos diários de bordo, também foi possível identificar outras experiências vividas
pelas(os) cursistas, contudo, algumas delas se destacam por serem situações de preconceito
sentidos pelas(os) pelas(os) próprias(os) cursistas. Chamou a atenção que tais relatos emergiram
quando as(os) cursistas perceberam que outros grupos culturais também sofrem preconceito,
logo, para as(os) cursistas, foi possível fazer uma relação entre o preconceito que o outro sofre
com suas próprias vidas.
O trecho acima foi escrito tendo como base as aulas do encontro sobre diferenças
religiosas, cujo foco foi o candomblé. Em inúmeras oportunidades do encontro, foi pontuado a
situação de racismo religioso vivida por candomblecistas na contemporaneidade. Nesse contexto,
a cursista indicou que teme sofrer algo semelhante, por participar de um grupo exotérico.
Argumenta-se que essa reflexão empreendida pelo curso é importante, pois tem o potencial
para criar o sentimento de empatia entre as pessoas, que embora sejam diferentes, experimentam
situações de preconceito semelhantes – todavia, em diferentes medidas. Destarte, por meio de um
currículo multiculturalmente orientado, os indivíduos podem criar laços de solidariedade e, desse
modo, lutar contra o preconceito direcionado ao outro, por também sofrerem com esse mal em
seu cotidiano.
Outro cursista também diz ter experimentado situações desagradáveis por conta de questões
religiosas.
304
Logo o primeiro ponto abordado, foi o que mais me chamou atenção durante
esta aula, o relato do Profº Renan Santiago, que esclareceu o ocorrido durante a
compra de um instrumento em uma loja de artigos religiosos, no qual foi vítima
de preconceito e comentários e olhares maldosos. Esse fato me remeteu à
infância, quando eu era levado à Sinagoga pelos meus pais (sou judeu
messiânico). Senti na época a mesma sensação relatada pelo Profº Renan
Santiago - olhares de julgamento, e na escola inclusive sofria ataques de pessoas
que falavam que nós (judeus) havíamos matado Jesus Cristo. Concordo com a
fala do Professor Renan Santiago em relação à Escola – que deveria ser Laica - e
isso quer dizer também que é diferente de ser ateia. As escolas deveriam
promover o diálogo entre as religiões como foi dito, havendo assim espaço para
todas. Há que se falar também, que no meu período de estudante, havia a aula de
religião. Esta era dividida em duas classes - Católicos e Protestantes (batistas,
metodistas, presbiterianos…), assim eu era obrigado a assistir às aulas com o
grupo protestante, pois não havia aulas sobre o Judaísmo na escola. Por fim, a
aula foi uma importante ocasião para esclarecer e entender um pouco sobre
como a religião é vista na educação e como podemos mudar isso. Concluindo,
foi um evento muito importante pelas reflexões que causaram. (Homem
branco)
No tocante ao gênero, uma cursista identificou-se com a aula, expressando que também
sente as opressões que a mulher sofre na sociedade.
Nesse dia, abordamos questões voltadas ao gênero e a sua relação com o ensino
de música. É um tema que sempre me despertou muito interesse, não apenas
pelo vontade que tenho em dialogar e compreender mais a fundo essas questões
voltadas para o ser humano, que ao serem estudadas, nos tornam pessoas mais
esclarecidas e inclusivas, mas também por ser mulher e ainda fazer parte de
muitas repressões na sociedade atual, ainda influenciada pelo patriarcado
(Mulher branca)
Tendo como base o exceto supracitado, destaca-se que, embora metade das pessoas que
concluiu o curso seja formada por mulheres, esse foi o único relato em que uma delas afirmou
sofrer com o patriarcado. O que se pode oncluir com isso? Estariam as pesquisas equivocadas? O
machismo não é tão opressivo como Louro (2014) afirma?
Não se pretende tecer qualquer argumento dentro dessa linha de pensamento. Pelo
contrário, se afirma que o machismo e o patriarcado são estruturas tão sólidas na sociedade que,
muitas vezes, são naturalizados e passam desapercebidos, inclusive, por professoras. Pode-se
também hipotetizar que, como não havia a obrigatoriedade de se relacionar o curso com suas
306
vidas, a maiorida das cursistas preferiu assim não proceder, talvez, por ser um assunto delicado,
que causa dor.
Por fim, após o encontro sobre gênero, um cursista homem também expressou percerber o
machismo na sociedade e na Música e, de forma empática, afirma estar buscando se desconstruir.
Logo após o almoço me deparei com a apresentação das meninas [do Quarteto
Nina’s]. Tenho poucas alunas, e sinto dificuldade com o vocabulário, assim
como repertório, já que estou imerso em uma cultura que exclui e abafa o nome
delas. Eu também sou parte disso, e tenho buscado formas de evoluir. As
meninas foram ótimas, o repertório me trouxe memórias, e foi bom saber que
eram músicas compostas por mulheres. Elas parecem ser humildes e talvez com
o tempo percebam que são ainda mais gigantes (Escrevi em fluxo). (Homem
pardo)
Relatos como esse confirmam a percepção de hooks (2000), de que discussões relacionadas
a gênero são para toda a sociedade, inclusive, os homens. Nesse sentido, percebe-se as
potencialidades de um currículo multicultural em corroborar para que diferentes pessoas,
inclusive, aquelas que cujo marcador identitário seja normativo, reflitam sobre questões
relacionadas às diferenças e às desigualdades.
Em diferentes diários de bordo, foram verificados trechos que versavam sobre questões
relacionadas a cessão da voz para pessoas que, historicamente, são silenciadas, inclusive, no
âmbito da educação.
Recorda-se que um dos desafios identificados na pesquisa foi o fato de o pesquisador
abordar temas sobre os quais não possui lugar de fala, ou seja, ele ensinou sobre gênero,
sexualidade, etnia e religiosidade sem ser mulher, homoafetivo, indígena ou candomblecista,
respectivamente. Esse desafio teórico-metodológico foi superado, tendo em vista que o
pesquisador realizou entrevistas com pessoas de identidades subalternas e, diretamente dessas
entrevistas, identificou princípios norteadores para embasar a sua prática docente no curso e
discutiu tais princípios com as(os) cursistas.
Assim sendo, a maioria das reflexões cunhadas pelas(os) cursistas foram escritas no
contexto de que o pesquisador iniciava as aulas anunciando o seu lugar fala e explicando que só
estava ensinando sobre esses assuntos pois se propôs a aprender diretamente com pessoas cujas
307
identidades são historicamente marginalizadas e oprimidas, além de ter lido trabalhos escritos por
outras pessoas nessa condição.
Nos trechos a seguir, essa atitude foi elogiada por uma cursista e um cursista.
Mais uma vez começamos refletindo sobre o lugar de falar de não sermos
indígenas, quilombolas, imigrantes, refugiados, mas em situação de professores
ou professoras, nós mesmo que privilegiados podemos trazer e somar com
debates ou conteúdos, nos desconstruindo e respeitando a raiz desses povos.
"Dando voz a quem tem direito". (Mulher branca)
Recorda-se também que após esse momento inicial, ainda antes de iniciar o ensino das
questões teóricas, havia um momento no qual o pesquisador permitia que as pessoas presentes,
cuja identidade estivesse sendo abordada na aula, falassem livremente sobre como se sentem na
sociedade, sobre quais são os desafios diários que enfrentam, sobre o que gostariam que outras
pessoas soubessem, entre outras questões.
Essas dinâmicas eram feitas em concordância aos princípios norteadores identificados nas
entrevistas, sobretudo, aquela feita com Leonardo, na qual a importância de a(o) docente
ministrar aulas horizontais e dialógicas, fugindo da pedagogia bancária denunciada por Paulo
Freire (1996) foi destacada. Além disso, Canen e Moreira (2001) expressam a importância do
diálogo para a educação multicultural. Esse elemento também apareceu em alguns diários de
bordo.
Assim como a primeira palestra, o tema foi abordado de forma muito respeitosa
e o momento “Dando voz a quem tem direito” me chamou muito a atenção
308
nestas palestras, pois muitas vezes participamos de diversas palestras/eventos em
que o ouvinte não recebe um momento para expor seu ponto de vista,
experiências por quais já passou ou fazer algum comentário sobre o tema apenas
para acrescentar o que o palestrante está abordando, então isso me chamou
muito a minha atenção. (Mulher Branca)
De fato, algo em comum entre as identidades que foram destacadas no curso é que elas são
historicamente silenciadas na sociedade, inclusive, nas escolas e nos currículos prescritos, foi
acertada. Espera-se que as(os) cursistas tenham captado essa mensagem e possam também fazer o
mesmo com suas classes, visto que um passo importante em direção à equidade e à justiça social,
cognitiva e curricular entre as(os) diferentes se dá quando todas(os) podem falar e ser
ouvidas(os), principalmente, as identidades oprimidas.
Recorda-se que o direito a voz só é, de fato, contemplado se, juntamente com ele, vier a
capacidade do(a) outro(a) ouvir quem está falando, pois de nada adiantaria se todos(as) falassem
ao mesmo tempo. Isso não se constituiria em um diálogo. Nesse sentido, enquanto pessoas em
situação de opressão social falam, quem tem algum lugar de privilégio na sociedade precisa parar
para escutar e aprender. Esse exercício do ouvir também esteve presente nas avaliações.
309
argumento do "lugar de fala" para declarar quem tem razão ou não. Se não fosse
a falta de curiosidade, os que fazem isso saberiam que alguns autores que
escreveram sobre esse conceito de "lugar de fala" não concordam com essa
abordagem. Pois a ideia é dar lugar de fala a todos de forma igualitária, não de
omitir a fala de alguém. (Homem branco)
De fato, como expresso no texto supracitado, Ribeiro (2017), uma mulher negra, indica que
“todo mundo tem lugar de fala”, ou seja, todas(os) são convidadas(os) a participarem de
discussões sobre justiça social, e e “falar a partir de determinados lugares é também romper com
essa lógica de que somente os subalternos falem de sua localização, fazendo com que aqueles
inseridos na norma hegemônica sequer se pensem” (p. 84). Em suma, o lugar de fala é um lugar
democrático, e, por isso, não deve novos silenciamentos, mas sim propiciar o diálogo. Somente
incluindo pessoas com identidades consideradas normativas em debates sobre diferenças será
possível propiciar que tais pessoas (re)pensem o seu lugar e o seu posicionamento político.
Muitas(os) cursistas também indicaram em suas avaliações que, por intermédio do curso,
passaram a entender melhor a situação de opressão de pessoas subalternas, entendimento esse que
parece ter levado algumas(alguns) cursistas a um estado de sensibilização em relação às
diferenças. Recorda-se que proporcionar tal sensibilização é um dos objetivos da educação
multicultural (CANEN; MOREIRA, 2001; CANEN, 2012; IVENICKI, 2018).
No que se refere aos trechos que expressam sensibilizações culturais relacionadas ao
gênero, foi percebido que vários excertos das avaliações discorriam sobre a questão da
transgeneridade.
Eu achei muito interessante o que a Vivian compartilhou conosco. Me fez
refletir bastante, além de trazer revolta pelas discriminações, pelos preconceitos
e as violências que ela sofreu. Acredito que não existe voz de acordo com o
gênero de uma pessoa e sim a região que ela consegue fazer e que é própria dela.
Achei uma linda lição de coragem e de conquista. (Pessoa agênera)
310
devem ser observados com especial atenção, como foi abordado em aula.
(Homem branco)
De fato, muitos “ritmos afrodescendentes” são práticas religiosas, mas isso não deveria
impedir que tais ritmos estejam presentes em aulas de Música, tendo em vista que músicas sacras
cristãs são ensinadas e aprendidas em escolas e universidades, sem maiores problemas. Esse
tratamento diferenciado apenas reforça que, na verdade, as músicas de terreiro perpassam com
menos frequência os currículos escolares por conta do racismo religioso, epistêmico e cultural
que ainda persiste no Brasil.
Também houve avaliações de cursistas que expressaram sensibilização em relação a
questões relacionadas às diferenças de sexualidade.
Na aula sobre sexualidade e ensino de música, foi bem interessante pois
informações o qual nunca tinha parado para analisar foram passadas e como
realmente até mesmo na música existem certos tabus em questões de um
profissional ter uma orientação sexual "diferente" ou fora do “comum”.
Observamos a falta de representatividade nas músicas, onde vemos poucas
músicas militando este ato sobre a sexualidade e sua diversidade. diversidade
Vimos cantores LGBT+ podem sim serem grandes intérpretes da música e
também tem a capacidade de compor músicas de grande potência para o
repertório brasileiro. (Mulher branca)
311
Tais pontos levantados pela cursista foram emergiram no curso quando foi discutido o
artigo de Oliveira e Farias (2020), texto identificado na revisão bibliográfica descrita no capítulo
II. Essa pesquisa expõe, justamente, como a heteronormatividade da sociedade influencia no
ensino de Música, ocasionando episódios de heterossexismo nas escolas e universidades, que vão
desde a falta de representatividade de estudantes LGBT+ até as violências moral, sexual e física.
Por advento do encontro sobre raça, um cursista pôde refletir sobre a baixa quantidade de
docentes negras(os) que passaram por sua vida, levando-a a entender que o racismo também está
presente nessa escassez que, grita, de tão silenciosa que é.
Levantei um questionamento também, acerca da quantidade de professores
afrodescendentes nas redes de ensino público e particular. Pude contabilizar
somente 3 desde o ensino fundamental, médio e ensino superior. O professor
confirmou também que tivera poucos professores negros em sua vida estudantil.
(Homem branco)
Vários trabalhos indicam que pessoas negras têm menos acesso ao ensino superior em
comparação a pessoas brancas (LIMA; PRATES, 2015; RIBEIRO et al. 2015; RIBEIRO;
SCHLEGEL, 2015). Para ser professor(a) é necessário ter uma graduação, nesse sentido, a falta
de inclusão de pessoas negras no ensino superior acaba se refletindo no número de docentes
negras(os) presentes nas escolas e universidades. Contudo, seria desonesto não citar que a política
de cotas raciais tem feito seu papel na tentativa de se reverter esse quadro, mais, o caminho a ser
percorrido não é curto (VALENTIM, 2006).
A presença de professoras(es) negras(os) nas escolas e universidades é indicado como algo
importante para a superação das desigualdades raciais na sociedade (MOULE, 2008), contudo, é
interessante ressaltar também que as(os) professoras(es) negras(os) que conseguem romper com
essa barreira, tendem a sofrer preconceito nas escolas, seja das(os) responsáveis pelas crianças,
como das(os) próprias(os) estudantes. Em suma, argumenta-se que um currículo multicultural
mostra potencialidades para também sensibilizar pessoas brancas em relação as demandas das(os)
negras(os).
Esses relatos de sensibilização cultural, que ocorreu quando as(os) cursistas perceberam de
forma mais direta a opressão vivida por diferentes grupos identitários, trazem consigo
312
sentimentos de pesar e tristeza, advindos quando se entende a realidade do próximo. Todavia, não
se argumenta que um currículo multicultural apenas instigue esse tipo de sentimentos, tendo em
vista que várias(os) cursistas indicaram ter sentido gáudio, contentamento e esperança no
decorrer do curso.
Trazer aulas como essas, me fazem sentir uma pontada grande de alegria, porque
sim, já temos profissionais no mercado que estão dispostos a descontruir,
dialogar, escutar, respeitar as diferenças culturais que existem, principalmente
num país como o nosso. (Mulher branca)
Por fim, as apresentações foram uma parte especial do evento. Pude sentir uma
certa ancestralidade pulsando um pouco em mim. Concluindo, foi um evento
brilhante, e a questão da possibilidade de realização de matrimônio184 achei
muito especial. (Homem branco)
Esse dia começou muito enriquecedor, ouvindo o coral Guarani Mbya tocando e
cantando. Fiquei muito feliz em conhecer um pouco mais sobre a cultura da
aldeia de Bracuí. Percebo o quanto seria potente se a sociedade colocasse como
prioridade conhecer e acolher melhor as diferentes etnias e suas respectivas
culturas, já que isso faz parte crucial da nossa história. (Mulher branca)
Por fim, uma parte especial do encontro para mim, ocorreu no momento da
apresentação musical. O Concerto Didático do Quarteto de Cordas Nina’s, sem
dúvidas foi um dos pontos altos do evento. Fiquei encantado com o arranjo da
canção “Ovelha Negra” de Rita Lee - que confesso ser um grande fã e sendo
essa canção uma das minhas favoritas. Concluindo, foi um evento de muita
troca de idéias, informações e músicas. (Homem branco)
Emerge como importante a questão de várias(os) cursistas terem expressado sentir alegria
em aulas multiculturais porque muitos dos conteúdos tratados, como racismos, sexismos,
heterossexismos, xenofobias e intolerâncias religiosas, são pensados e podem trazer às(aos)
discentes sentimentos ruins. Perceber que aulas multiculturais também podem trazer sentimentos
positivos, sobretudo, a alegria. Relacionando prática educativa, alegria e esperança, Freire (1996,
p. 26) afirma que
O meu envolvimento com a prática educativa, sabidamente política, moral, gnosiológica,
jamais deixou de ser feito com alegria, o que não significa dizer que não tenha
invariavelmente podido criá-la nos educandos. Mas preocupado com ela, enquanto clima
ou atmosfera do espaço pedagógico, nunca deixei de estar. Há uma relação entre a
alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de professor e alunos
juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir
184
O cursista se refere ao fato de uma outra cursista ter perguntado ao professor indígena, na ocasião do concerto
didático feito pelo coral indígena da aldeia Sapukai de Bracuhy, se era possível ela se casar na aldeia. O professor
confirmou era possível e já fora realizado um matrimônio de jurua kuery outrora.
313
aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, a
esperança não é algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da natureza humana.
Com base no exposto, argumenta-se não somente que uma educação multiculturalmente
orientada tem potencial para criar sentimentos de alegria e esperança nas(os) educandos, mas
também que ela deve criar tais sentimentos, o que permitiria fugir pessimismo relacionado às
denúncias das práticas discriminatórias. Em outros termos, juntamente com tais denúncias, a(os)
docente deveria levar as(os) estudantes a terem esperança de dias diferentes e melhores.
Uma educação que crie momentos de alegria é importante, porque a opressão constante e o
exercício da militância são árduos, e o cansaço proporcionado causa ainda mais opressão às
pessoas subalternas.
Foi muito importante acompanhar o trabalho, a vida e a militância da Vivian
Fróes, mas adoraria poder viver num espaço que não teríamos que ser militantes
mais. A militância é um estado de alerta. E é maravilhoso que ela exista, mas só
existe, porque muita coisa está fora da ordem. (Mulher branca)
Nesse contexto, é importante que a educação multicultural se efetue tendo como base em
um otimismo crítico, que não negue as desigualdades ou que fuja do combate aos diferentes tipos
de preconceitos e discriminações, mas que também crie esperança sobre possibilidade de dias
melhores. Afinal de contas, é para isso que a luta é empreendida.
Também foi possível perceber que diferentes cursistas tiveram um contato mais
aprofundado ou até mesmo o primeiro contato com outras culturas por meio do curso, sobretudo,
a cultura indígena e a candomblecista. Pode-se afirmar, nesse contexto, que os horizontes
culturais delas(es) foram alargados, visto que conheceram novas formas de existência. Recorda-
se que, segundo Santiago e Monti (2016) e Santiago e Ivenicki (2018) a ampliação dos horizontes
culturais das(os) estudantes é um dos objetivos de uma educação musical multicultural.
A maioria das(os) cursistas expressou nunca ter tido contato com a cultura indígena
anteriormente. Segue alguns trechos dos diários de bordo que isso indicam.
314
Esse foi o tema mais distante da minha vivência. Nunca trabalhei essa temática
[fala da temática indígena]. Achei super rica a questão da criação de
instrumentos, a relação dos sons com a natureza. Muito triste que os
instrumentos estão deixando de ser fabricados. Se a lutheria dita "tradicional
eurocêntrica" já é rara, imagina do luthier da floresta185. (Mulher branca)
Na aula sobre etnia foi uma das aulas mais interessantes a qual me identifiquei
bastante , pois vi quão diverso é o mundo da música e como ela engloba pessoas
de várias raças, culturas e de forma diferente porém conseguimos identificar a
essência da música em cada detalhe seja na forma de canta , dança etc. Dentro
da apresentação conseguimos ver um pouco sobre o dia a dia deles, os
instrumentos , a maneira de como eles cantam , ensaiam. Dentro disso , vimos
quão importante é a inclusão do ensino de música indígena nas escolas para os
alunos, além de conhecer a música dentro de uma cultura diferente , conhece
melhor a cultura , as tradições , a vivência e a importância da criança
compreende mais a fundo cada detalhe do povo indígena. (Mulher branca)
O fato de muitas(os) cursista conhecerem nada ou muito pouco da temática indígena pode
ser problematizado, tendo em vista que que o curso atendeu a professoras(es) de Música. Partindo
do fato de que a Lei 11.645/2008 estabelece que a cultura e história indígena deve ser ensinada
nas escolas, questiona-se como isso poderá se dar se as(os) professoras(es) não estão sendo
devidamente instrumentalizadas(os) para fazer cumprir tal lei. Nesse sentido, o curso Música(s)
no Plural!, mesmo que minimamente, contribuiu para diminuir essa lacuna da formação de
professoras(es), já denunciada em Santiago (2017).
Por intermédio do curso, também foi possível ampliar os horizontes culturais das(os)
cursistas em relação a cultura candomblecista, como se percebe analisando os fragmentos abaixo.
185
A cursista se refere ao fato de os Guaranis Mbya da aldeia Sapukai de Bracuhy estarem perdendo a tradição de
construírem seus próprios instrumentos. De fato, com o passar dos anos, o conhecimento indígena está sendo
perdido, mas, em outras aldeias, existem movimentos para se resgatar essa sabedoria. No vídeo a seguir, indígenas
Guarani Mbya de São Paulo buscam preservar a tradição de construir a rawe.
https://www.youtube.com/watch?v=J6fnCLy6nbs&ab_channel=Jaragu%C3%A1%C3%A9Guarani Acesso em
01/02/2021.
315
abordados, pois eu realmente nunca me dediquei a saber mais sobre os assuntos.
(Mulher branca)
Da mesma forma que foi possível problematizar o fato de muitas(os) das(os) cursistas
terem tido o primeiro contato com a temática indígena no curso Música(s) no Plural!, mesmo
existindo uma Lei que obriga que as escolas ensinem sobre a tal cultura, a mesma relação pode
ser feita em com a cultura afro-brasileira, aqui presentada por meio do candomblé. Recorda-se da
existência da Lei 10.639/2003, que indica como obrigatório o ensino da cultura e história afro-
brasileira. Se as(os) professoras(es) de Música conheciam pouco ou nada de tal cultura, significa
que essa Lei não está se fazendo valer a contento nos cursos de Licenciatura em Música.
Em suma, a ampliação de horizontes culturais proporcionada pelo curso Música(s) no
Plural! parece indicar que políticas curriculares importantíssimas para a causa do
multiculturalismo não estão sendo devidamente tratadas na formação inicial de professoras(es) de
Música. Portanto, para que seja observado o ensino das culturas e musicalidades indígenas e afro-
brasileiras nas escolas regulares, se faz necessário que esse tema seja, primeramente, presente nos
cursos de Licenciatura em Música ou que haja mais cursos para formação continuada dos
professoras(es) com caráter semelhante do apresentado pelo Música(s) no Plural!
4.5.8 Interseccionalidades
Outro tema que recorrentemente apareceu nos diários de bordo é a questão das
interseccionalidades, isso é, a percepção de que os marcadores identitários não são unidades
separadas, mas sim que eles se fundem e tensionam a identidade, criandos relações de poder mais
316
complexas e profundas. Como exemplo, não é o mesmo afimar-se como mulher ou como mulher
negra (AKOTIRENE, 2018; MIRANDA; MARCELINO, 2015).
Nos diários de bordo, notou-se que a maioria dos textos com caráter interseccional
discorriam sobre a questão da mulher indígena. É interessante ressaltar que, no início do curso,
no encontro sobre gênero, foi problematizada a questão de certos instrumentos serem socialmente
classificados como masculinos ou femininos (ALMQVIST; HENTSCHEL, 2019; GÜRGEN,
2016; HALLAM et al.; 2008; HO, 2003; KELLY; VANWEELDEN, 2014), mas, um mês
depois, no encontro sobre etnia, foi pontuado que na cultura Guarani Mbya existem instrumentos
masculinos e femininos (MARTINS, 2015; SOUZA, 2020, TIMÓTEO, 2020).
É interessante resslatar que instrumentos musicais são associados a homens e a mulheres de
forma ritualística nessa cultura, visto que, segundo Souza (2020), meninos e meninas ganham
instrumentos diferentes ao nascerem. Os meninos ganham um par de clavas chamada popygua,
que, juntamente com o arco, são síimbolos de masculinidade. Já as meninas são agraciadas com
um pedaço oco de bambu, utilizado como instrument musical, chamado de takuapu, que,
juntamente com o balaio (ajaka), são símbolos da femininidade.
Essa divisão chamou a atenção de algumas(alguns) cursistas.
De fato, quando analisamos a questão, o fato de ser ensinado que existe divisão sexual dos
instrumentos musicais na cultura Guarani Mbya após algumas semanas de um encontro no qual
essa divisão foi criticada parece ser algo paradoxal, contudo, não o é quando se analisa a questão
interseccionalisando os marcadores gênero e etnia. Apesar de não ter sido expresso nos diários de
bordo, na aula com o alagbé Kaio também se foi pontuado o fato de mulheres não poderem tocar
317
instrumentos no candomblé Ketu, mas poderem assumir outras funções na hierarquia dos
terreiros.
Primeiramente, argumenta-se que o encontro sobre gênero, no qual essa divisão foi
criticada, discorreu sobre a situação de mulheres na sociedade ocidental e contemporânea, no
qual a divisão sexual de instrumentos acaba sendo uma construção cultural imposta pelo
patriarcado e por diferentes estereótipos de gênero que oprimem as mulheres, por exemplo,
mulheres não devem tocar guitarra por essa ser um instrumento “agressivo” e mulheres precisam
demonstrar delicadeza.
Entretanto, no que se refere à cultura Guarani Mbya, existe uma outra lógica na questão da
divisão sexual dos instrumentos musicias, que se baseia na cosmovisão e espiritualidade Guarani,
e não no patriarcado tradicional. Nesse sentido, quando se analisa a questão, percebe-se que essa
divisão não se constitui em uma forma de opressão, visto que essas mulheres, de forma geral,
sentem que estão obedecendo ordens transcedentais e superiores ao não empreenderem atividades
“masculinas”. Em pesquisa realizada com candomblecistas que fazem culto aos Égún186, Caputo
(2012, p. 151) traz a seguinte explicação:
O poder no culto aos Égún é masculino. Só os ancestrais masculinos adquirem a forma
de Bàbá (pai). Na hierarquia do culto só os homens podem ser sacerdotes. Algumas
mulheres chegam a obter títulos importantes, mas jamais conhecerão os segredos do
culto. Em geral, nas festas de Bàbás, elas cantam, batem palma durante toda a noite e
ajuda na organização e cuidados da festa. O próprio barracão onde acontece as
festividades é dividido ao meio por um muro baixo de madeira destinado a manter
separados homens e mulheres. “nossa função é essa, asim aprendemos e assim fazemos,
mas não nos sentimos inferiors, nosso papel é muito importante no terreiro”, diz Jaciara,
mãe de Felipe.
Em outros termos, a divisão sexual nos terreiros não é algo que oprime as mulheres.
Conjectura-se que o mesmo aconteça com as indígenas Guarani Mbya. Também indica-se que,
em conversas informais com os indígenas na aldeia Sapukai de Bracuhy, embora essa divisão
tenha sido confirmada, foi notado que, na aldeia em questão187, algumas atribuições de papeis de
gênero têm sido tensionadas, por exemplo, o fato de as mulheres terem participado do último
festival de arco e flecha da aldeia. Por fim, destaca-se que, em outras aldeias Guarani Mbya,
algumas mulheres tocam instrumentos masculinos. Destaca-se nesse contexto a musicista Tainara
186
Recorda-se que no candomblé Ketu existem duas formais principais de culto, que são o culto aos Orixás, que, de
forma superficial, seriam as forças da natureza, e os cultos aos Égùns, que são ancestrais divinizados.
187
É importante frisar que o que ocorre nessa aldeia em questão não necessariamente expressa o pensamento geral de
toda a etnia Guarani Mbya.
318
Takua188, que se apresenta cantando músicas da sua etnia e tocando o mbaraka, um instrumento
considerado masculino.
Por fim, ainda em uma outra conversa informal com um indígena dessa aldeia, ele afirmou
que essa divisão é apenas para as(os) indígenas, logo, não indígenas que estejam aprendendo
sobre a cultura Guarani Mbya não precisam reproduzi-las. Em outros termos, é importante que
a(o) docente frise que, na aldeia, existe essa divisão e também apresente aos(às) estudantes o
porquê dela, mas não é necessário impedir que um menino ou menina não indígena deixe de
experimentar dado instrumento por conta do seu gênero. Contudo, essa observação foi obtida
com um único indígena de uma das várias aldeias Guarani Mbya existentes. Muito
provavalmente, existem indígenas que pensam diferentemente, até porque, tais instrumentos são
deveras sagrados na cultura em questão.
Também houve excertos que relacionavam gênero, classe e raça, como se observa a seguir:
É interessante como a cursista, sem negar a opressão que sofre por ser mulher, admite que
tem previlégios por ser branca e por ser economicamente estável, diferenciando-se de mulheres
negras e/ou de classe popular. Não esteve presente no excerto, mas ela também tem o previlégio
de ser uma mulher cisgênera vivendo em um mundo transfóbico e cisnormativo.
Com isso, indica-se que se faz necessário um olhar interseccional dos diferentes
marcadores, principalmente, raça e gênero, visto que, se assim não se proceder, não será possível
compreender a contento como as diferentes estruturas de opressão perpassam as sociedades e os
diferentes grupos que as compõem (AKOTIRENE, 2018).
Fechando a presente categoria, expressa-se que o pensamento interseccional também
fortalece a necessidade de entendermos o feminismo como uma movimento social de caráter
identitário plural (LOURO, 2014). Como as mulheres são diferentes e são atingidas por outras
vias de opressão, como o racismo, a homofobia e a xenofobia; o papel do feminismo negro,
188
Segue link para vídeo no qual Tainara Takua canta e toca o mbaraka: https://youtu.be/yWggmhoLRPY
319
feminismo lésbico, o transfeminismo, o feminismo indígena, o feminismo islâmico, entre outras
formas de feminismos, mostram-se relevantes para propiciar uma representatividade e resistência
mais efetiva para um maior número de mulheres.
Tendo como base a análise dos diários de bordo, foi também possível perceber que, por
meio do curso, várias(os) cursistas puderam aprender sobre conceitos acadêmicos, como crítica
decolonial, termos relacionados a gênero e sexualidade, cultura, identidade, feminismo, entre
outros. A seguir, seguem alguns dos muitos fragmentos nos quais as(os) cursistas apresentaram
indícios de terem aprendido sobre conceitos relacionados ao multiculturalismo.
Nesta aula, consegui abrir minha mente referente a muitos fatores, como por
exemplo a diferença entre cultura e identidade, pois muitos acham que a cultura
é a identidade de um povo ou uma sociedade, sendo [que] ambas têm seu
significado particular, embora lá na frente se encaixem. Com certeza é muito
importante se falar sobre este tema. Eu ainda me confundia a respeito da
diferença entre raça e etnia e foi bem esclarecedor
(Pessoa agênera)
Nesta aula conseguimos ver a diferença entre cultura e raça que são significados
e atos bem diferentes onde relata que cultura é o oposto do natural, é como se
fosse um costume, uma doutrina que determinado povo começa a seguir a partir
de um tempo, já raça é algo surgido de dados biológicos de um determinado
povo. Dentro disso é importante ressaltar como o período colonial ainda
perpetua sobre os dias e momentos atuais de nossa vida, vimos que a
colonialidade deixou uma grande desigualdade, e com isso surgiam eixos de
colonialidade como colonialidade do poder, do saber, do ser dentre outros, onde
conseguimos vê a diferença de questões que o período colonial trouxe. Um
assunto muito importante também foi pautado que foi o racismo onde foi aberto
diversos tipos de racismos onde se é pouco conhecido, mas devia ser bem
compreendido por todos. E no ensino de música não ficou de fora, neste quesito
falamos em respeito dos estilos musicais onde prevalece a hiper valorização de
320
músicas clássicas, eruditas européias , músicas de “branco” como alguns dizem
porém se esquecem ou simplesmente por falta de conhecimento , não sabem que
alguns estilos bem conhecidos e requisitados foram feito e idealizados pelos
negos como o blues, jazz, rock, choro, tango brasileiro, dentre outros. (Homem
pardo)
Foi possível notar também que, por meio das aulas ministradas, as(os) cursistas puderam
tecer novas reflexões sobre as temáticas estudadas, reflexões essas que não foram feitas pelo
pesquisador durante o curso e que não têm relação com as experiências anteriores das(os)
cursistas.
Dentro dessa categoria, diversos trechos dissertam sobre o tema da etnia, como, por
exemplo, o excerto que vem a seguir.
Com base no extrato acima, pode-se perceber que esse cursista, ao se deparar com a
temática indígena, empreendeu, por si só, uma pesquisa sobre a Lei 11.645/2008, chegando a
uma constatação real que não foi discutida no encontro. De fato, a Lei em questão, não abrange o
321
ensino superior nem a educação infantil. Contudo, se a temática discutida na Lei não estiver
presente na formação de professroas(es), como elas(es) poderão se preparar para cumprir tal Lei,
quando se tornarem docentes da educação básica? Emerge, desse fato, uma situação paradoxal.
A presente tese não busca analisar extamente “os porquês” dessa lacuna, visto que, para se
resolver esse problema, seria necessário empreender uma nova pesquisa, contudo, indica-se como
hipótese que se trata de uma “Lei tampão”, isso é, uma promulgação criada somente para
silenciar sujeitos políticos que cobravam a presença dessa temática na escola. Provavelmente,
quem a promulgou, não tinha o real objetivo de que o que está proposto no papel se tornasse
realidade.
No que se refere a questões relativas à religiosidade, também foi perceptível que cursistas
empreenderam novas reflexões, como, por exemplo, a que vem a seguir.
O excerto acima torna-se interessante para se empreender uma análise visto que o cursista
se apropria de um conceito discutido na aula – a saber, o mito da democracia racial - e tece um
outro conceito: o mito da democracia religiosa. Embora exista o conceito de mito de estado laico
(MOTA, 2018), que poderia sinonimizar com o mito da democracia religiosa, ele não foi
discutido durante o curso, logo, o cursista chegou a um conceito semelhante via esforço próprio.
Embora a sociedade brasileira desfrute de uma pluralidade religiosa significativa e haja a
teórica garantia de liberdade de crença expressa na Constituição de 1988, o tratamento oferecido
a pessoas de diferentes religiões não é o mesmo e, de forma geral, professantes de religiões de
matriz afro-brasileiras são as principais vítimas (CAPUTO, 2012). Argumenta-se com isso que
existem evidência para se indicar que o Estado não é laico e que não existe uma democracia
religiosa no Brasil, pois, embora não haja uma perseguição oficial ou legalmente embasada,
pessoas que professam outras religiões diferentes do cristianismo podem sofrer com as mazelas
da intolerância e do racismo religioso.
322
4.5.11 Lacuna do tratamento de questões multiculturais na escola e na universidade
Em diferentes excertos, foi percebido que as(os) cursistas afirmaram que temas de interesse
do multiculturalismo pouco perpassaram as suas formações, seja essa aquela oferecida na
universidade ou na educação básica.
Demorei muitos anos para ter contato com o tema da sexualidade de maneira
aprofundada. Acho curioso, porque vim de uma experiência educacional super
privilegiada e estudei por anos em escolas particulares, fazia cursos de música,
teatro, esportes, etc. O que me faz pensar que o sistema “tradicional” de
educação ainda foca numa educação não inclusiva, patriarcal e extremamente
preconceituosa. (Mulher branca).
323
Contudo, não se ignora que, embora tenha se buscado ministrar um curso que visasse
descontruir estereótipos e preconceitos, assim como ocorreu na análise das avaliações
diagnósticas, percepções equivocadas sobre questões relacionadas às diferenças culturais foram
mantidas mesmo após o curso.
No trecho a seguir, um cursista utilizou o termo “voz transsexual”. Todavia, na palestra
sobre sexualidade e ensino de Música, a professora Vivian Fróes indicou que não existe um “voz
trans”, visto que voz não tem gênero. O ideal, nesse contexto, seria falar sobre os cuidados
necessários a voz de coatoras trans.
Semelhantemente, houve equívocos pontuais, por exemplo, uma cursista que confundiu
instrumentos Guarani Mbya com instrumentos da cultura negra. Possivelmente, esse equívico
ocorreu porque instrumentos indígenas, como o mbaraka e a rawe foram enfocados no início da
aula de raça, pois não houve tempo para ensinar sobre como afinar tais instrumentos na aula
sobre etnia.
No vídeo sobre raça achei bem interessante a adaptação dos instrumentos
utilizados à uma diferente afinação, fugindo do padrão tonal a que estamos
acostumados por conta da cultura branca ter sido institucionalizada em
detrimento da cultura negra. (Mulher parda)
Embora o curso tenha possibilitado que cursistas aprendessem sobre conceitos teóricos, não
se ignora que também tenha havido equívocos relacionados ao uso de conceitos. No excerto
abaixo, por exemplo, percebe-se o uso do termo “gênero sexual”, que, na verdade, deveria ser
identidade de gênero, visto que a cursista estava dissertando sobre tal tema. No mesmo excerto,
percebe-se que a cursista usa o artigo masculino para identificar pessoas trans, o que também é
equivocado.
Por fim, chega-se à última categoria identificada nos diários de bordo. Não se pretende
fazer uma espécie de propaganda do curso, mas, pelo contrário, analisá-lo criticamente, dentro
das suas possibilidades, mas também no contexto das suas limitações. Nesse sentido, serão
indicadas as dúvidas não sanadas e as críticas direcionadas ao curso.
Primeiramente, embora o curso tenha tido como objetivo indicar orientações práticas para
que as(os) cursistas possam transformar a teoria em prática, algumas(uns) cursistas indicaram ter
dificuldades na questão.
Sabemos que uma música cristã tocada em uma escola, soaria como normal e
uma música candomblecista atrairia atenção de todos e todas.. Agora como lidar
com isso em uma aula de cultura afro-brasileira. Fiquei me perguntando como
eu driblaria o preconceito estrutural, respeitando as religiões, sem criar soberania
em sala de aula, mesmo sabendo da influência cristã em grande parte, e como
poderia agregar pais e mães como influenciadoras de seus filhes. (Homem
pardo)
Tal excerto é muito interessante, pois ele mostra que os princípios norteadores identificados
na pesquisa não esgotam os assuntos tratados, por não serem suficientes para possibilitar que
325
todas(os) os problemas relacionados ao tratamento das diferenças nas aulas de Música sejam
superados. São necessárias, portanto, mais pesquisas que possibilitem na identificação de mais
princípios norteadores.
Também houve dúvidas relacionadas à categorização da classificação vocal em aulas de
Música, tendo em vista que, de forma geral, essa classificação surge do binarismo de gênero.
A questão da relação entre extensão vocal e gênero foi discutida em dois momentos do
curso: na aula teórica sobre gênero e ensino de Música e na aula ministrada pela Vivian Fróes,
mas concorda-se que o assunto foi tratado com menos profundidade do que deveria. Basicamente,
o recomendado é não classificar qualquer voz como masculina ou feminina, nem usar essas
denominações para classificar ou dividir corais, pois, como disse a Vivian, voz não tem gênero. O
correto seria, nesse caso, classificar uma voz como aguda, média ou grave. Em suma, os termos
soprano, contralto, tenor e baixo podem ser usados, desde que não sejam associados ao gênero:
homens podem ser sopranos, mulheres podem ser baixos.
Resumindo, embora a questão tenha sido discutida, a cursista não conseguiu percebê-la no
decorrer do curso. Muito provavelmente, isso ocorreu por conta do pesquisador ter ministrado um
considerável número de conteúdos em um curto espaço de tempo. Levanta-se essa hipótese
porque outro cursista, em várias partes do seu excerto, iniciava cada parte do diário com a frase
“em meio à tanta informação em um espaço tão curto de tempo”, expressando, indiretamente, o
seu descontentamento com essa característica do curso. Também assume-se que, por conta da
pandemia e do ensino remoto, não houve a possibilidade de haver trocas significativas entre
as(os) cursistas, logo, o curso assumiu certo caráter conteudista, que prejudicou a aprendizagem.
Outra crítica direcionada foi o fato de o foco da aula sobre diferenças religiosas ter sido o
candomblé, mesmo havendo outras identidades religiosas que também sofrem preconceito.
A música africana está ligada à espiritualidade então não tem como a música não
estar ligada a uma certa religiosidade, ela faz parte da própria concepção musical
326
dessas sociedades. No entanto faltou considerar também os judeus, muçulmanos
que também são religiões que sofrem preconceito. (Mulher parda)
Recorda-se que o foco foi o candomblé porque, no contexto do Rio de Janeiro, trabalhos
indicam que candomblecistas são os que mais sofrem preconceitos (CAPUTO, 2012) mas,
realmente, todas as religiões são passíveis de discriminação, dependendo do contexto social que
está sendo analisado. Emerge, portanto, outra limitação do curso e, com, ela, a necessidade de
que mais pesquisas sejam empreendidas, a fim de que outras religiões sejam contempladas.
327
(a) Significados sobre si: por meio de um currículo multiculturalmente orientado, as(os)
cursistas e o pesquisador puderam conhecer melhor questões relacionadas às características dos
marcadores que compõem as suas identidades. Os seguintes significados identificados podem ser
classificados dentro dessa categoria: 9) Aprendizados sobre si; 10) Experiências vividas e
relacionáveis; 11) Preconceitos sentidos e relacionados e 14) Alegria e esperança.
(b) Significados sobre os outros: o currículo implementado também possibilitou que as(os)
cursistas e o pesquisador aprendessem mais sobre a situação de opressão vivenciada por outras
pessoas, e, de forma geral, houve uma sensibilização às diferenças que, por sua vez, parece ter
produzido sentimentos de empatia e solidariedade entre as(os) envolvidas(os). Dentro dessa
categoria, podem ser alocados os seguintes significados identificados: 2) Inclusão das(os)
estudantes; 3) Vantagens de se ter convidadas(os) com lugar de fala; 4) Conhecimentos prévios
existentes; 6) Cessão da voz; 7) Mães trabalhadoras; 13) Sensibilização às diferenças e 16)
Interseccionalidades189.
(c) Significados sobre o mundo: O curso Música(s) no Plural! também corroborou para que
as(os) cursistas e o pesquisador conhecessem visões de mundo e culturas diferentes. Nesse
contexto, os horizontes culturais das(os) participantes foram ampliados e o mundo foi reafirmado
como um lugar plural. Os significados “5) Diferenças musicais produzidas pelas diferenças de
região” e “15) Alargamento de horizontes culturais” podem entrar no contexto dessa categoria.
(d) Significados sobre a docência: também foi possível concluir que um currículo
multiculturalmente orientado pode contribuir com a formação inicial e continuada de
professoras(es) ao ensinar sobre conceitos e reflexões teóricas sobre a Música, a educação
musical e a docência. De fato, muitos dos conceitos teóricos ministrados no curso se fizeram
presentes nas avaliações das(os) cursistas. Contudo não se ignora que as limitações do curso –
sobretudo, a grande quantidade de conteúdos a serem ensinados em um pequeno espaço de tempo
– abriu brechas para que percepções equivocadas fossem mantidas, bem como que dúvidas e
críticas fossem efetuadas. Semelhantemente, foi perceptível que as(os) cursistas e o pesquisador
foram compelidos a refletir sobre o papel da docência na produção e reprodução das
desigualdades, mas também como sujeitos políticos de resistência e transformação. De fato, nas
avaliações, muitas(os) cursistas apresentaram descontentamento em relação às suas formações, e
189
Recorda-se que, nessa categoria, a maioria das(os) cursistas discorriam sobre a surpresa de perceber que existem
instrumentos masculinos e femininos na cultura Guarani Mbya. Assim sendo, a interseccionalidade identificada
provém de um conhecimento do outro, ou melhor, da outra (mulheres Guarani Mbya).
328
também houve professoras(es) em atuação que mostraram interesse em modificar as suas práticas
docentes a fim de fazê-las mais inclusivas. Os seguintes significados identificados podem ser
classificados dentro dessa categoria descrita: 1) Dificuldades de ministrar uma educação musical
multicultural e autêntica; 6) Novas agências musicais relacionadas às diferenças; 17)
Aprendizado de conceitos; 18) Reflexões a partir dos conteúdos das aulas; 19) Lacuna do
tratamento dessas questões na escola e na universidade; 20) Manutenção (e criação) de
percepções equivocadas e 21) Dúvidas e críticas.
Recorda-se que, para Hall (1997b), os significados sobre determinado assunto interagem
entre si formando uma rede. Nesse contexto, uma vez identificados os significados produzidos no
processo de planejamento (revisão bibliográfica e entrevistas), implementação (curso em si) e
avaliação (relato de experiência, avaliações diagnósticas e diários de bordo), foi possível traçar
uma representação teórica desse emaranhado de interrelações nos quais estão conectados os
significados produzidos pelo curso Música(s) no Plural! Essa representação foi feita como base
na forma que o pesquisador significou o curso em relação ao contexto da formação de
329
professoras(es) de Música da cidade do Rio de Janeiro, apresentada em Santiago (2017).
Figura 23: Modelo teórico produzido para ilustrar a rede de significados produzida
A Figura 23 apresenta as conexões entre as categorias identificadas no relato de
experiência, avaliações diagnósticas e diários de bordo. Tais conexões são feitas por linhas
contínuas, que expressam que existe uma relação de fortalecimento entre as categorias, ou seja,
uma corrobora para que a outra exista e, caso haja uma seta no início e no final da linha, há a
indicação de uma relação mútua de fortalecimento entre as categorias conectadas.
Caso as categorias estejam conectadas via uma linha pontilhada, isso indica uma relação de
enfraquecimento, ou seja, uma categoria corrobora para que a outra se atenue. Semelhantemente,
uma linha pontilhada dupla indica uma relação mútua de enfraquecimento entre categorias
conectadas.
330
Na rede de significados, está destacada a Lacuna do tratamento do tema na universidade.
Optou-se por se destacar tal significado porque, justamente, foi esse o problema que motivou a
feitura da tese, logo, apesar de ela ter sido identificada nos diários de bordo, se trata de uma
questão que origina todas as outras.
Argumenta-se que essa lacuna não é algo natural, mas sim, um fenômeno político e
cultural, por ser produto da intervenção de sujeitos que empreendem esforços para que o
conservadorismo se mantenha como uma estrutura central na formação de professoras(es) de
Música. Esse processo de regulação (HALL, 1997a) é histórico e, de certa forma, cria um
paradigma determinista que transmite a ideia de que os cursos superiores em Música “são assim
mesmo”, produzindo assim , um habitus conservatorial (PEREIRA, 2014; PENNA; SOBREIRA,
2020).
Indica-se que a falta do tratamento de temas de interesse do multiculturalismo na
universidade está diretamente relacionada com outra categoria identificada, a saber, a
Dificuldades relacionadas a ministração de uma educação musical multicultural e autêntica, pois,
a priori, são as universidades que ensinam como as(os) professoras de Música devem ensinar,
logo, as dificuldades no ensino multicultural de Música estariam relacionadas à falta de
tratamento do tema na formação de professoras(es).
Tais dificuldades, por sua vez, corroboram para que haja a percepção equivocada de que as
Diferenças musicais [são] produzidas [somente] pelas diferenças de região, para a Manutenção (e
criação) de percepções equivocadas” em relação às diferenças, bem como para o estabelecimento
de Dúvidas e críticas.
Contudo, por meio de uma quebra paradigmática, é possível reverter os danos gerados pela
lacuna do tratamento desses temas na universidade, ou seja, embora tal lacuna tendencie a
manutenção do status quo, pode-se resistir, “remar contra a maré”, desconstruir e encontrar
novas categorias que só poderiam ser encontradas após realizar tal mudança de paradigma.
Mas, qual ação possibilitaria tal mudança? Argumenta-se que, justamente, as “Dificuldades
relacionadas a ministração de uma educação musical multicultural e autêntica” seriam tal quebra
paradigmática. Ou seja, mesmo com as dificuldades – sem as quais, aparentemente, não é
possível ministrar um ensino multiculturalmente orientado – todas as outras categorias ficam
acortinadas, impedindo o trânsito para uma parte significativa da rede produzida.
331
A ministração de um ensino de Música multiculturalmente orientado pode corroborar para
o aparecimento de outra categoria central: a Sensibilização às diferenças, que é, justamente, um
dos objetivos da educação multicultural (CANEN; MOREIRA, 2001). Argumenta-se que tal
sensibilização tem potencial para diminuir a lacuna do tratamento do tema na universidade,
contudo, também é enfraquecida por essa, mas por sua vez, pode possibilitar a o Alargamento de
Horizontes Culturais, as Experiências vividas e relacionáveis, bem como os Preconceitos
sentidos e relacionados.
A educação multicultural, se bem planejada e implementada, pode também propiciar a
Inclusão das(os) estudantes, relembrando que inclusão implica em acesso, permanência, direito a
voz e sucesso escolar (XAVIER; CANEN, 2008). Tal inclusão poderá incidir na Cessão da voz, e
refletir na Vantagens de se ter convidadas(os) com lugar de fala e na inclusão de Mães
trabalhadoras, além de fortalecer a sensibilização cultural da classe. A atitude de se ceder o
direito de voz, principalmente aos grupos minoritários, reforçaria a vantagem de se trazer
convidados com lugar de fala e poderia valorizar Conhecimentos prévios das(os) estudantes.
Argumenta-se também que se as mães trabalhadoras estiverem plenamente incluídas em um
ambiente de ensino multicultural, isso também proporcionará a inclusão das(os) demais
estudantes, despertando assim a Alegria e a Esperança, pois um ambiente inclusivo é o oposto de
um ambiente opressivo. Afirma-se que outras categorias, como o Alargamento de horizontes
culturais, a Cessão de Voz, e o empreendimento de Novas agências musicais relacionadas às
diferenças, também podem gerar alegria e esperança.
A Sensibilização às diferenças gerada pela educação também tem potencial para fazer com
que as(os) estudantes reflitam sobre Experiências vividas e relacionáveis com os conteúdos de
aulas multiculturais e sobre os Preconceitos sentidos e relacionados. Indica-se que, juntamente
com a Aprendizagem de conceitos, essas categorias podem proporcionar a Aprendizagem sobre
Si.
Indica-se que, além da sensibilização às diferenças, outro ponto importante é propiciar que
as(os) estudantes criem Novas agências musicais relacionadas às diferenças, ou seja, é necessário
que a sensibilização propicie práticas concretas de luta, resistência e desconstrução dos
preconceitos. Diferentes significados podem corroborar para o empreendimento de novas
agências musicais, tais como a Aprendizagem sobre si; a Aprendizagem de conceitos; o
332
Alargamento de horizontes culturais; as Reflexões a partir dos conteúdos das aulas; e a posse de
Conhecimentos prévios.
Afirma-se que, concomitantemente, a sensibilização às diferenças e o empreendimento de
novas agências musicais podem possibilitar que o problema inicialmente identificado, a saber, a
lacuna do tratamento desses temas relacionados às diferenças na universidade, seja enfraquecido.
Uma vez influenciadas(os) por essas significações, professoras(es) universitárias(os) e
licenciandos em Música podem modificar o conservadorismo da universidade de dentro para
fora.
Não se busca explicar exaustivamente a figura. Os parágrafos acima tinham como objetivo
apresentar os principais argumentos concernentes à rede de significados identificados no processo
de planejamento, implementação e avaliação do curso Música(s) no Plural! Recorda-se que a
trama foi traçada pelo pesquisador, por meio da própria significação que ele produziu na sua
experiência de pesquisa, logo, ela precisa ser analisada criticamente e não simplesmente tomada
como verdade. Como alerta Hall (1997c, p. 42) “as interpretações nunca alcançam um momento
final de verdade absoluta. Ao invés disso, as interpretações são sempre seguidas por outras
interpretações, em uma corrente sem fim”190. Contudo, indica-se que a teia apresentada tem
potencial para indicar pistas concretas sobre quais são os desafios que emergem de um ensino de
Música multiculturalmente orientado, bem como quais atitudes são necessárias para que o
problema inicial da pesquisa, ou seja, a falta de tratamento de temas como raça, etnia,
sexualidade, gênero e religião na formação de professoras(es) de Música, seja minimizado.
Por fim, como se é expresso em Santiago e Ivenicki (2020), tal lacuna na formação de
professoras(es) é resultado direto do colonialidade, logo, para se reverter totalmente esse
fenômeno, é necessário um conjunto complexo e aprofundado de reflexões e ações que alcancem
não só as universidades, mas toda a sociedade em si.
190
No original em inglês: “Interpretations never produce a final moment of absolute truth. Instead, interpretations
are always followed by other interpretations, in an endless chain”.
333
V
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A TESE
5.1 Relembrando
Na perspectiva de que diferentes trabalhos indicam que discussões sobre raça, gênero,
sexualidade, etnia e religiosidade aparecem infimamente nas licenciaturas de Música do Brasil, a
presente tese teve como objetivo analisar os significados produzidos no processo de
334
planejamento, implementação e avaliação de um currículo multicultural de Música, destinado à
formação de professoras(es).
Para se planejar o curso, garantindo o seu caráter multicultural, foi necessário proceder uma
revisão da literatura que relacionava essas temáticas com a educação musical, bem como
entrevistar mulheres, pessoas negras, pessoas homoafetivas, indígenas e candomblecistas, para
aprender diretamente com elas(es) sobre questões de interesse do multiculturalismo. A revisão da
literatura e as entrevistas semiestruturadas culminaram em princípios norteadores, que foram
seguidos pelo pesquisador no momento da implementação do curso e também discutidos com
as(os) cursistas.
Uma vez produzido, o currículo foi implementado por meio de um curso de extensão
online, que foi avaliado por meio do relato de experiência escrito pelo pesquisador, e por meio
dos diários de bordo e avaliações diagnósticas das(os) cursistas.
Utilizando a técnica de análise de conteúdo nas avaliações, foi possível identificar muitos
dos significados que foram produzidos no processo de planejamento, implementação e avaliação
de um currículo multiculturalmente orientado. Uma vez identificados esses significados, foi
proposto um modelo teórico que os relaciona, formando uma rede de significações
Vários resultados foram obtidos. Primeiramente, no que se refere à revisão bibliográfica,
foi possível concluir que a produção brasileira sobre educação musical tem produzido pouco
sobre temas de interesse do multiculturalismo. Isso é um indicativo de que a academia ainda
preserva traços de conservadorismo e colonialismo que precisariam ser revertidos.
As entrevistas apontam que existem diferentes sujeitos na sociedade que se apresentam
como resistências às imposições da colonialidade. As experiências e sabedorias dessas pessoas
podem ser consideradas no processo de planejamento de currículos multiculturais. Ao se fazer
isso, tem-se uma maior garantia do currículo produzido, de fato, valorizar as diferenças culturais,
e não ser somente uma representação daquilo que a(o) docente concebe sobre as diferenças.
No processo de implementação, foi possível concluir que é possível ministrar uma
educação musical multiculturalmente orientada que não somente sensibilize sobre as diferenças
culturais, mas que também ensine sobre conceitos teóricos e conteúdos escolares, além de instigar
novas agências musicais entre as(os) professoras. Indica-se que isso só foi possível porque se
seguiu com afinco os princípios norteadores identificados na revisão bibliográfica e nas
entrevistas.
335
Outras conclusões secundárias emergem de todo esse processo: 1) não adianta o currículo
ser multicultural se a prática docente é vertical, excludente e não dialógica. 2) Semelhantemente,
a docência multiculturalmente orientada, quando oferecida na formação de professoras(es),
precisaria, primeiramente, incluir esses sujeitos. De forma geral, concluiu-se que, ao se incluir as
mães trabalhadoras, todo o grupo acaba sendo beneficiado. 3) A presença de pessoas com lugar
de fala, não somente no processo de planejamento, mas também como professoras(es)
convidadas(os) nas aulas, potencializa a sensibilização cultural das(os) estudantes e o contato
direto com as diferenças, além de minimizar as possibilidades de estereótipos serem
(re)produzidos nas aulas. Em outros termos, é recomendado que a(o) docente não “fale
sozinha(o)”. 4) Na perspectiva de que, mesmo em um curso espaço de tempo, algumas(alguns)
cursistas afirmaram terem mudado suas práticas em relação às diferenças, conclui-se que a
educação multicultural, a longo prazo, teria potenciais ainda maiores. Nesse sentido, mais do que
uma disciplina isolada na matriz curricular do curso de Licenciatura em Música, ou um simples
curso de extensão oferecido de tempos em tempos, o multiculturalismo poderia ser uma das
filosofias educacionais que orientariam os currículos prescritos e praticados no curso em questão.
5) A implementação de um currículo multicultural apresenta limitações, no que se refere à
logística necessária (compra de instrumentos, contratação de professoras(es) etc), mas também
nos resultados concernentes ao aprendizado de algumas(alguns) estudantes, tendo em vista que as
avaliações mostraram que, mesmo após o curso, algumas(alguns) cursistas ainda mantinham
percepções equivocadas em relação às diferenças. Nesse sentido, é necessário avaliar o processo
periodicamente, a fim de minimizar esse problema.
339
5.2.2 Para o campo do multiculturalismo
340
identitários. Nesse contexto, pesquisas multiculturalmente orientadas podem se beneficiar de
conceitos teóricos oriundos da interseccionalidade.
Por fim, as implicações da pesquisa para a educação musical parecem bem nítidas.
Acredita-se que com os argumentos que perpassam toda a tese, é possível afirmar que a educação
musical tem produzido e reproduzido os preconceitos e as discriminações socialmente cunhados.
Contudo, similarmente, afirma-se haver argumentos suficientes para se indicar que o processo
reverso, embora não seja fácil, é possível, ou seja, por meio de uma educação musical
multiculturalmente orientada, pode-se combater os preconceitos e discriminações presentes nas
dinâmicas do processo de ensino e aprendizagem de Música.
A pesquisa também indicou lacunas na formação de professoras(es) de Música, algo já
indicado em pesquisas anteriores (ALMEIDA, 2009; LUEDY, 2011; SANTIAGO, 2017). Nesse
sentido, mais uma vez percebe-se como necessário que discussões sobre temas relacionados ao
multiculturalismo perpassem a formação de professoras(es) de Música, para que tal lacuna seja
preenchida.
Outro ponto interessante é que a extensão universitária, assim como indicado em Santiago
(2019), de fato, mostrou-se propicia para sensibilizar professoras(es) sobre as diferenças culturais
das escolas e da sociedade. Nesse contexto, essa esfera da universidade pode e deve ser também
perpassada por discursões sobre educação musical multicultural.
Em suma, argumenta-se que, na verdade, as implicações dos resultados da presente
pesquisa para a educação musical são múltiplas, visto que cada princípio norteador identificado
na revisão bibliográfica e nas entrevistas, bem como os signiicados identificados nas avaliações
do curso, são itens sobre os quais cada professor(a) de Música poderia ponderar a fim de analisar
se suas práticas docentes têm (re)produzido algum estereótipo, preconceito ou discriminação.
341
É importante ressaltar que a presente tese examinou uma situação específica que, apesar de
relevante, não pode ser generalizada. Nesse sentido, é necessário que o contexto no qual a
pesquisa foi empreendida seja considerado.
Recorda-se que as identidades escolhidas para um maior aprofundamento foram
selecionadas considerando o contexto fluminense. Ou seja, percebeu-se que, na cidade do Rio de
Janeiro e região, por exemplo, a identidade religiosa que mais sofre preconceitos é a
candomblecista e a etnia indígena majoritária é a Guarani Mbya. Em outras localidades do Brasil
e do mundo, obviamente, esse quadro se apresentaria de forma diferente. Nesse contexto,
pretende-se estimular pesquisas multiculturais empreendidas em outras realidades e com outras
figuras, como imigrantes, migrantes, quilombolas, indígenas de outras etnias, candomblecistas de
outras nações. refugiadas(os), mulçumanos, homens transgêneros, mulheres transgêneras negras,
pessoas agêneras, entre outras identidades passíveis de preconceito e não abordadas na presente
tese.
Nesse contexto, novas revisões bibliográficas, novas entrevistas e aulas com outras(os)
convidadas(os)poderiam ser feitas, produzindo, assim, possivelmente, outros princípios
norteadores para orientar aulas multiculturais e significados diferentes dos identificados por essa
tese.
Também não se ignora que o fato da empiria da pesquisa ter se dado por meio de um curso
de extensão influenciou no público de cursistas que se interessaram em participar da pesquisa e,
consequentemente, nos significados que foram produzidos durante o curso. Percebeu-se que, de
forma geral, as(os) cursistas já tinham certos conhecimentos e interesses nas temáticas estudadas,
e isso fez com que o curso fosse bem aceito. Conjectura-se que os dados seriam diferentes caso,
por exemplo, o currículo multicultural fosse implementado em uma disciplina obrigatória
oferecida em um curso de Licenciatura em Música, que tivesse, em meio à turma, indivíduos
conservadores. Fica, portanto, a sugestão de que novas pesquisas analisem quais sentidos são
produzidos em disciplinas obrigatórias multiculturalmente orientadas de cursos de Licenciatura
em Música.
Semelhantemente, rememora-se que o curso de extensão se deu remotamente. Surge,
portanto, a indagação: Haveria diferença na produção de significados produzidos por um
currículo oferecido no modelo presencial ou no remoto? Caberia, portanto, a feitura de um estudo
comparativo, quando a pandemia acabar e as aulas retornarem para o regime presencial. Outros
342
estudos poderiam comparar também a situação fluminense com outros contextos nacionais, e/ou a
situação brasileira com contextos internacionais.
Por fim, ressalta-se que, embora o número de cursistas tenha sido significativo, ele é
somente uma pequena amostragem e não reflete toda a realidade. De fato, toda a pesquisa-ação é
qualitativa e situacional, logo, apesar de poder dar sugestões para outras realidades, o que se
aprende a partir dela deve ser contextualizado e não simplesmente generalizado. Desse modo, são
incentivadas novas pesquisas que analisem dados produzidos juntos amostragens diferentes.
Embora o estudo tenha limitações, ressalta-se que ele traz contribuições relevantes para a
área da educação musical multicultural e avança em direção a um melhor entendimento de como
o campo do ensino de Música pode posicionar-se a fim de combater diferentes tipos de
preconceitos e discriminações.
Considerando tudo o que foi apresentado e discutido por esse trabalho, pretende-se
defender a posição de que, apesar de o colonialismo ainda influenciar diretamente nas dinâmicas
do ensino e aprendizagem de Música no Brasil, ocasionando, entre outros aspectos, lacunas
significativas no tratamento de questões como diferenças de raça, gênero, sexualidade, etnia e
religião na formação de professoras(es) de Música, é possível empreender um ensino de Música
multiculturalmente orientado, que, apesar das suas limitações, valorize os saberes subalternos e
possibilite que professoras(es) de Música – em formação, já formadas(os) ou mesmo aqueles que
assumem o papel de pesquisador – produzam um emaranhado de significados sobre si, sobre os
outros, sobre o mundo e sobre a docência, que têm potencial para combater os preconceitos e as
discriminações, sem haver a necessidade de se ignorar o ensino de conteúdos musicais.
Finalizando, espera-se que a presente pesquisa possa propiciar discussões na academia que
levem os diferentes sujeitos envolvidos com a formação de professoras(es) de Música a
considerarem as diferenças culturais da sociedade, contribuindo assim, para que as universidades
se tornem, cada dia mais, lugares mais inclusivos, acolhedores e democráticos. De pouco a
pouco, acredita-se fortemente que esse movimento poderá reverberar na educação básica,
sobretudo na educação pública, e, uma vez atingidas, as escolas terão mais potencial para formar
sujeitos críticos, emancipados e conscientes, que, por sua vez, transformarão a sociedade, para
343
melhor. Isso seria utopia? Otimismo nocivo? Positividade tóxica? Só o futuro poderá dizer...mas,
até que Ele chegue, que não nos falte a fé, a esperança e, principalmente, o amor.
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