Literatura Sul Baiana
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PARTE 2
Expressões da Literatura Sul-baiana
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Saul Mendez - Flor de Cacau
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Aline de Caldas - Frutos de cacau
OS CAMINHOS DA
LITERATURA SUL-BAIANA
A
literatura Sul-baiana tem o seu coração nas terras de Itabuna e Ilhéus. As raízes da
sua cultura estão, sem dúvida, no próprio cacau. Ele foi o centro gerador de toda a
dinâmica sociocultural da região, termômetro das alegrias e tristezas da sua gente.
O fazendeiro, o trabalhador rural, componentes primeiros do acontecer regional,
detêm os seus traços culturais básicos e constituem-se em matrizes do perfil da região. Incrivel-
mente rica em manifestações artísticas, particularmente através da literatura, o artista a traduz
na sua visão desse mundo.
Essa ficção resulta de um imaginário que é enriquecido pela realidade, por um lado; por
outro, quer funcionar como estimuladora das mudanças sociais. Ou seja, na relação com o
contexto social, a literatura é impulsionada pelas circunstâncias históricas, ao tempo em que é
promovedora da reflexão crítica sobre esse mesmo contexto.
Até bem pouco tempo, quando eu escrevia sobre a literatura desta região referia-me a ela
como sendo a Literatura da Região do Cacau ou a Literatura do Cacau. Hoje, não tão à vontade,
pergunto-me se posso utilizar tais expressões diante do perfil sociocultural que vem assumindo essa
região e dos caminhos temáticos que tal literatura tomou.
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Assim, quando me questiono se posso ainda dizer Literatura da Região do Cacau, a in-
quietação procede de toda a reviravolta pela qual tem passado a região sul do Estado da Bahia,
antes calcada na monocultura do cacau, agora buscando novas alternativas econômicas, o quê,
consequentemente, tem provocado uma crise de identidade. Por que afirmo isto?
Voltando no tempo
Se nos reportarmos aos anos trinta, vamos nos deparar com uma região rica, opulenta e
poderosa, terra de coronéis, jagunços e trabalhadores rurais, matrizes do perfil da região. Tempos
de conquista de terras. Tempos em que o cacau era a temática dominante do imaginário regional;
os aspectos humanos e sociais, por ele desencadeados, eram as matrizes dos dramas ficcionali-
zados. A busca do ter, do poder, a ambição, o abuso da força do fazendeiro compunham aquele
cenário, contrapondo-se à submissão, à ignorância dos trabalhadores rurais. Aqueles coronéis,
jagunços, ruralistas, com seus costumes, tradições, crendices e superstições formavam o painel
humano da terra, e construíam a sua identidade.
Esse tempo foi, então, cantado e contado por Jorge Amado, Adonias Filho e muitos ou-
tros, que asseguraram o lugar dessa literatura no panorama da Literatura Brasileira, desde o ciclo
do cacau. Aí, as questões da terra, sua conquista, foram ficcionalizados e o cacau era o referente
do imaginário regional. E como gerador de dramas, foi tematizado intimamente relacionado à
cultura e às implicações socioeconômicas, culturais e existenciais que advêm dela.
É curioso notar que, na Região do Cacau, a ficção se antecipou à poesia, que inicialmente
aparece mesclada nos romances de Jorge Amado (Terras do sem-fim e Gabriela...). A poesia como
expressão nos chega inicialmente através do lirismo simbolista de Sosígenes Costa, do canto de paz de
Firmino Rocha, ou mesmo da expressão de Camilo de Jesus Lima. Em seguida, surgem poetas tam-
bém preocupados com a terra, e com a poesia como linguagem. O tema do cacau é tomado por Jorge
Medauar, Telmo Padilha, Florisvaldo Matos, Plínio Aguiar, Cyro de Mattos, entre outros. Ao seu
lado, o rio Cachoeira é também tematizado por Valdelice Pinheiro, Telmo Padilha, Cyro de Matos.
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Inicialmente voltada para questões sociais conforme a geração de trinta, a ficção tem em Jor-
ge Amado o seu mais expressivo representante. Com ele, inicia-se o ciclo do cacau da ficção regio-
nalista no Brasil, a exemplo do ciclo da cana-de-açúcar e do café. É a fase da corrida do cacau: a fase
áurea dos coronéis, do poder do mais forte, das injustiças sociais denunciadas, da posse da terra.
O coronel do cacau é o grande personagem desse ficcionista (já traduzido em mais de 50 idiomas)
que conta a região e a problemática do coronelato na luta pelo poder. O seu ambiente é aquele que
abrange as cidades de Ilhéus e Itabuna (Tabocas, naquela época). Cacau (1932), Terras do sem-
fim (1942), São Jorge dos Ilhéus (1944) são obras que falam diretamente das terras do cacau, ciclo
que se fecha com Gabriela, Cravo e Canela (1958). Depois, afastado para temas relacionados à
burguesia urbana de Salvador, após vinte anos, retoma o tema inicial com Tocaia Grande - a face
obscura (1983); entretanto, então, já em perspectiva contraideológica, pela versão do anti-herói.
Mas não só Jorge Amado garante a pujança da Literatura da Região do Cacau. Por volta de
1945, a ficção ultrapassa o regionalismo de trinta para, notadamente através de Adonias Filho, contar
a região sob a ótica do realismo mágico, na sua acepção de estranho. Então, por todo um tratamento
dispensado ao discurso, a ficção procura traduzir a História na linguagem e a linguagem na história,
onde a região toma aspectos do fantástico, advindos tematicamente da problemática da violência e da
agressão, geradas pelo cacau e por toda uma caracterização da ambiência regional. É o que se percebe
em obras tais como Servos da Morte (1946), Memórias de Lázaro (1952), Corpo Vivo (1968), As
Velhas (1977), Léguas da Promissão (1981), principalmente. Na mesma linha e tendo, também,
como ambiente físico e cultural a Região, outros ficcionistas recorrem por vezes aos seus costumes,
aos seus mitos, através do picaresco ou do dramático das situações da vida cotidiana: Galos da Au-
rora (1958), Estranhos e Assustados (1966), de Hélio Pólvora; Agua Preta (1975), O Visgo da
Terra (19 ), de Jorge Medauar; O Patrão (1978), Comercinho do Poço Fundo (1979) e Os Genros
(1981), de Euclídes Neto. Crendices e superstições desse povo grapiúna encontram-se, ainda, em
Estórias de Ubaitaba (1977) e Pulu (1981), de Clodomir Xavier, dentre outros. A condição socio-
cultural do povo da região é patenteada através de histórias que traduzem a irrupção do inadmissível
e se realizam por processos efetivados nos níveis da intriga, da visão do texto e da sintaxe narrativa.
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Aline de Caldas - Pisa do cacau
Pelos anos 60, do século XX, o tema cacau é visto já nos níveis da sua repercussão socio-
cultural, foco dos indivíduos, sua análise, seu relacionamento, seu sentido de ambição/despoja-
mento diante da vida, sua reflexão existencial. A linguagem é também o seu tema. É através de
processos de discurso (muitas vezes recorrendo ainda ao estranho) que Cyro de Mattos e Hélio
Pólvora, por exemplo, constatam o desconserto do mundo e buscam mostrar que a verdade da
vida está na pura busca das coisas simples, na natureza. Ao contrário da produção de 30 que
ressalta a força e o poder do dinheiro, ou da 45, que se volta para a violência gerada pelo cacau,
essa procura mostra que os reais valores não podem ser medidos com dinheiro, ou conforto ou
“civilização”, mas que a verdade de cada um está naquelas coisas que ama e em que acredita, nas
quais vê a própria vida, o próprio espaço. Busca desvendar o mistério da existência partindo da
ambiência regional. A integração do homem/terra transcende regionalismos. Busca, para além,
discutir os mistérios do ser, sem a perda do contacto com a realidade social que circunda os seus
personagens. A exemplo, Os Brabos (1979), Duas Narrativas Rústicas (1985), de Cyro de
Mattos; e O Grito da Perdiz (1983), de Hélio Pólvora que, por processos de linguagem, opor-
tunizam várias leituras que exigem a efetiva participação do leitor.
Pode-se notar, assim, que o tema cacau perdura fortemente, em posturas de reflexo, refra-
ção ou deslocamento (e enfoques diversos), formas de interação com o real, mas fruto sempre da
repercussão sociocultural do acontecer-vida da Região. É a posse da terra, a luta do mais forte,
a busca do poder. É a constatação da violência; o repensar dos comportamentos passados, a
constatação dos resultados da formação sociocultural do povo.
Todo esse tempo referido foi intervalado entre os anos 30 e 80. Tempos de conquista
da terra, cultivo, colheita. Comercialização e exportação. Riqueza, muita riqueza! E distorções
sociais também. Foi o tempo áureo de pujança e riqueza social, quando a comercialização e a
exportação do cacau faziam retornar para a região, através da CEPLAC, as taxas retidas pelo
Governo Federal. Por isso mesmo, tempo em que a região foi chamada de “pobre região rica”.
A cultura do ter forjou comportamentos, valores invertidos, cobiça, desmandos, elementos
caracterizadores dos comportamentos de uma época, que foram ficcionalizados.
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Do desmando provocado pela abundância dessa região, com o suceder das gerações, resul-
tou o dito sintetizado pelo povo: Avô rico, pai nobre, filho pobre. O final da década de oitenta dá
mostras dessa verdade. As taxas do cacau passam a ser centralizadas no orçamento federal, sem
retorno direto para a região. As pragas invadem as fazendas. Agudizam-se os questionamentos
sobre o ter; o deslocamento de poder - do ter para o ser - redimensionam o imaginário. Em ques-
tionamento dessa cultura, no contraponto entre o ter e o ser, o painel de ficcionistas foi enrique-
cido com outros nomes, já agora com outras indagações tomadas do mesmo referente, o cacau.
Então, cabia pensar em Literatura da Região do Cacau, porque essa era uma região monocultora,
de identidade socioeconômica e cultural de referência nacional e internacional.
De uma forma ou de outra, é a memória de uma região, manancial do imaginário da
criação artística. Além dos autores exemplificados, outros ficcionistas há, antologiados pelas pu-
blicações do Projeto Cultural do Cacau - PACCE, em O Moderno Conto da Região do Cacau
(1978), e Novos Contos da Região Cacaueira (1987), organizadas por Telmo Padilha e por
Euclídes Neto, respectivamente.
Focos identitários
A ficção grapiúna, embora se imponha por um cenário regional, por uma individualidade
singular, não deve ser entendida como expressão simplesmente de um regionalismo. Ao contrário.
O ficcionista lança mão do extraordinário material imagético que essa realidade lhe oferece e,
ultrapassando-o, alcança a dimensão do universal, em voo largo.
E a reflexão existencial volta-se para uma sociedade que se pauta na valorização do ter, do
acumular e esquece os valores da existência. É a subjetivação do ficcional, por experiências viven-
ciadas ou ouvidas, na observância da mudança dos costumes, valores, anseios de um povo, o que
resulta no convencimento da fugacidade da vida. É, afinal, por deslocamento, a problemática que
tem no drama dos personagens o questionamento do sentido da vida, através do humor, da ligua-
gem carnavalizada, buscando o comunicar pela leveza da linguagem, do tratamento humorístico
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dos temas, mesmo os mais sérios; a ficção que procura “ganhar” o leitor por esses recursos, e mais
por processos estruturais, quando o faz participar da própria criação do texto.
O rompimento da fronteira de gêneros faz-se mais forte através do resgate da memória, da
forma de observar o mundo: mediações que levam a base social para a produção da obra. Toman-
do como cenário ainda as terras do cacau, pela postura do autobiografismo (naquele sentido da
impressão subjetiva da experiência vivenciada tornada ficcional), são estruturados textos como
Bença, Vó (1985), de Ritinha Dantas; Roteiro para uma tempestade (1985), de Ricardo Cruz;
Mar de Azov (1986), de Hélio Pólvora; Os Recuados (1987), de Cyro de Mattos – citando
somente alguns. Experiências vividas ou ouvidas são evidenciadas na mudança dos costumes,
dos valores, dos anseios do homem do cacau que são também, afinal, os do homem do mundo.
Os tempos mudam. A região empobrece. A partir de 1989, além da praga da podridão
parda, surge a vassoura-de-bruxa que assola as roças dos frutos de ouro. A região busca formas
alternativas de sobreviver. Busca a diversificação da cultura e, dentre outras alternativas, investe
na fruticultura, investe no turismo. Busca respostas latentes e próprias da sua situação histórica
e geográfica privilegiada no mapa do país. É das grandes crises que surgem as grandes soluções,
a sabedoria popular também ensina isto. A região passa a enxergar o que antes o brilho do cacau
não deixava ver: a sua singularidade por estar situada no coração da Mata Atlântica, na biosfera
do descobrimento do Brasil e num dos litorais mais belos do país. Começa a enxergar as suas
diferenças também. Consoante com o ritmo mundial, busca voltar-se para o mundo da globali-
zação, dos mídia, da comunicação, onde a concepção de tempo é acrescida de uma perspectiva
tecnológica. Onde o poder maior é o conhecimento. Tempo de revisão de valores, de mudança
paradigmática, de deslocamentos de olhar: tempos pós-modernos.
Nesse tempo, os reflexos da problemática sociocultural da região se fazem sentir, em deslo-
camento, por empenho na prescrutação dos dramas diários, dos dramas também amorosos resul-
tantes do impasse das relações. São revelados por forte incidência de discurso humorístico e com
o envolvimento (já agora estrutural) do leitor, na medida em que ele, o leitor, participa também
da narrativa: Xerazade (1989), de Hélio Pólvora, e Benditos e Perversos (1990) de Ricardo
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Cruz, são exemplos. No primeiro, Xerazade, como intertextualmente sugere o título do livro,
há um contador e um ouvinte. Como o relato de Shahrazàd das Mil e uma Noites, Xerazade é o
articulador dos demais contos do livro que são, por sua vez, narrados pelo “ouvinte”. Repassados
de ironia, e até escárnio, os contos enfocam personagens de mundos diversos, desde um agricultor
a um escritor; une-os um mesmo elo: a busca do amor. No segundo, Benditos e Selvagens, é
acrescido ao imaginário do autor a sua experiência como psicanalista. Ficcionalmente, na “pele”
do paciente, ele se faz escritor e, na “pele” do analista, ele se faz leitor. Então, para o escritor é co-
municação e catarse, para o analista é transcurso do real para o imaginário que se faz ficção, como
acontece no conto “Restos Cotidianos” que abre estruturalmente o livro e, tal como em Xerazade
(porém por outros recursos), funciona como articulador dos demais.
Outras problemáticas
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Ao contexto regional, em tempos de globalização, somam-se outras tendências, onde as
propostas de Italo Calvino (1988) para a linguagem do próximo milênio não são olvidadas: leve-
za, rapidez, multiplicidade, visibilidade, exatidão e consistência. O olhar ficcional desloca-se para
a re-visão da história; em mudança de perspectiva, volta-se para as minorias sociais (raça: negro
e índio, sexo: mulheres e gays), para a descentralização do poder e da fala do saber (as culturas
ex-cêntricas: a negra, a indígena), para a sujetividade do narrador. A prosa de caráter regionalista
alcança o universal. Os gêneros tomam novos ares, agora perpassados pela intertextualidade e
ironia tomados como elementos estruturais.
Assim, a transgressão das formas tradicionais de gênero tem guarida também na litera-
tura desta região. Textos mais recentes (mesmo os da geração menos jovem) ganham a leveza e
a rapidez exigidas por esse tempo vizinho do terceiro milênio. Agora, ao lado dos consagrados
Jorge Amado, Adonias Filho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Sosígenes Costa, Euclides Netto,
surgem outros. Geração nova, somando novos questionamentos. Essa geração, que vivencia este
momento regional e mundial, secundariza a temática do cacau em função de temáticas ligadas
às minorias, principalmente voltadas às questões de sexo, raça, classe e ideologia. Discute iden-
tidade cultural, historicidade. Vivacidade de gênero, maleabilidade na forma são algumas das
propostas dos anos noventa que revelam: Antônio Júnior, George Pellegrini, Neuzamaria Kerner,
Genny Xavier, Jane Kátia Badaró, José Delmo, Jorge Araujo, Kleber Torres, Ricardo Cruz, Ruy
Póvoas e outros.
Desses últimos, Ruy Póvoas é um exemplo da literatura das minorias dentro da temática
do negro (raça). Itan dos mais velhos (1996) é texto povoado de imagens provenientes dos
mitos africanos, de lições ouvidas dos mais velhos da cultura nagô. São quatro odus; “cada odu ,
uma história”. Histórias, retidas na memória, são repetidas e repetidas. É assim a tradição nagô.
Nesses tempos sem fronteiras de qualquer espécie, tempos de multiculturalismo e trans-
nacionalismo, as questões não são mais setorizadas, localizadas. Têm outra dimensão, abran-
gente. Devido à globalização, mais que nunca, cabe buscar a identidade. Fala-se de cultura, de
memória cultural. Importa a comunicabilidade dos textos que têm as suas fronteiras de gênero
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tênues e redimensionadas. Nessa direção, ultrapassando o ficcional no seu sentido lato, bus-
cando o identitário e a memória cultural, dois textos devem ser mencionados: O Auto do des-
cobrimento (1997), de Jorge Araujo e o Dicionareco das roças de cacau e arredores (1997),
de Euclides Neto. O primeiro, ao tempo em que canta a chegada da esquadra de Cabral às
terras do Brasil, poeticamente clama ao povo brasileiro a reflexão sobre a sua brasilidade. For-
jado em fala e romances, o Romanceiro das vagas descobertas (como se subintitula) busca re-
discutir a perspectiva histórica ao re-ler o descobrimento do Brasil. As redes intertextuais que
tecem o Auto coletivizam a obra com as presenças de Camões, Caminha, Pessoa, Gil Vicente.
Tais presenças homenageiam Portugal, mas também denunciam-no, através da construção po-
ética consubstanciada na ironia. O segundo texto, o original Dicionareco das roças de cacau
e arredores (1997), trabalho de Euclides Neto, é indicativo da identidade e memória cultural
das terras do cacau. O livro ultrapassa o possível sentido minimizante do termo (Dicionareco)
e, pela evocação da forma (até em consonância com uma tendência também desses tempos - e
rapidamente lembro-me do Dicionário das paixões, do português João de Melo), constitui-se
em expressão do imaginário de uma região. É precioso resgate e memória de uma cultura em
transformação. Cadencia os novos tempos pela proposta do gênero, pelo tratamento temático
e por sua concepção estrutural que ultrapassa os limites de um dicionário.
Como visto, essa ficção tem consonância com as tendências que trazem a historicidade
para seu foco temático e busca a leveza e a rapidez. A questão identitária aqui posta exige, por
razões do imaginário, a reflexão não só em relação à ficção regional sul-baiana, mas sobre o seu
próprio contexto. É que as coisas mudaram com o tempo. Foi-se o apogeu do cacau. O imaginá-
rio local voltou-se para outros temas, outros modos de olhar. Outros modos de contar.
Do elenco de novos ficcionistas sul-baianos, podemos identificar um relaxamento a formas
rígidas quanto a gêneros. Os deslimites, conforme postula Tzvetan Todorov, para os Gêneros
do discurso, ressalta “o trabalho profundo da literatura que procura afirmar-se na sua essência,
arruinando as distinções e os limites” (1980, p. 44) . Ora, se consideramos que o valor do lite-
rário passa por sua originalidade, temos que a classe de gênero passa a ser meramente referencial
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e classificatória. Retomo, assim, a ideia do deslimite dos gêneros - um princípio dinâmico de
produção. Muitos dos textos ficcionais têm preferido as narrativas curtas, contos, no sentido lato;
não engessadas em limitações formais classificatórias (sentido estrito). Daí sua variedade discur-
siva e temática; seus espaços múltiplos ou único; o variado número de personagens; e os recursos
e expedientes de linguagem, do diálogo ao confessional, da forma lacunar poética, da descrição
longa ou expositiva expandida.
Textos publicados neste novo milênio, século XXI, sobre temas diversos, têm em comum a
insubordinação a escolas ou gêneros tradicionais. Alguns autores já publicados, outros nomes em
lançamentos enriquecem o panorama regional. Com as possibilidades que oferece a tecnologia, há
os que recorrem às várias ferramentas, além da publicação em papel, mais dinamicamente, através
de sites, blogs, facebook, e outros expedientes que a internet oportuniza... Aqui refiro apenas alguns,
dentre tantos muitos outros escritores (impossível citar todos), consagrados e novos, sempre refe-
rindo somente a última publicação a que tive acesso.
Da geração vinda do século XX, Ritinha Dantas, Outras manias, já (2008) aborda traços de
personalidades, caracterizadas por comportamentos sintomáticos, através do humor ressaltado com
aspectos que conduzem à reflexão psicológica. Jorge Araújo, poeta, ensaísta e ficcionista; de humor
e crítica ácida e lúcida, aqui destaco: Essa esquiva e dilacerada fauna (2012, reedição revista e ilus-
trada) alegoria crítica do homem. Hélio Pólvora, autor de vasta obra, de forma pendular, reúne re-
flexão crítica e imaginário ficcional, onde o vivido e o imaginado caminham juntos, como em Don
Solidon (2011), seu último romance, que fala de solidão. Antônio Lopes, no seu Com o mar entre
os dedos (2015), em 57 crônicas (algumas publicadas em Blog), com humor e linguagem própria,
fala do cotidiano, de algumas situações onde o próprio leitor pode se espelhar. Cyro de Mattos, in-
cansavelmente, acrescenta a sua produção com literatura infantil, poesia e prosa, como é o exemplo
de O velho e o velho rio, contos (alguns reeditados) e novelas (2016); Todo o peso terrestre (2017).
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Florisvaldo Mattos, jornalista e poeta, faz poesia de vivências e invenção; rítmico e musical é o seu
último livro Estuário dos dias e outros poemas (2017). Ruy Póvoas, também em franca produção
de ficção, na sua mais recente obra A viagem de Orixalá: estrada de Sagitário, caminhos de
Orunmilá (2015) toma a ficção e a oralidade como recursos que, aliados à pesquisa, tratam sobre
as memórias da herança cultural africana; Novos Dizeres (2017), poesia em verbetes, provocado-
res de reflexão existencial. O jornalista, poeta e ficcionista Antônio Nahud Junior, com dinâmica
produção, inclusive através dos blogs O Falcão Maltês, em Pequenas histórias do delírio peculiar
humano (2012) reúne narrativas curtas de pendor cinematográfico, onde fala do mundo interior,
principalmente; seu último livro Nascida para a felicidade, biografia de Antônia Alves de Amorim
Morais (2015). Neuzamaria Kerner segue na linha intimista, lançando o seu mais recente livro O
livro-arbítrio das Ervas – dentro e fora do jardim (2014). Genny Xavier, poetisa e contista, hoje
prefere escoar a sua produção através do blog Baú de Guardados: “Eu me guardo no baú das pala-
vras que me espiam do espelho...” (acesso: março 2017).
Finalmente, dos tantos surgidos já neste século XXI, refiro alguns; a maioria, além de
publicação em livro, tem a sua produção disponibilizada por outras vias de divulgação. Em
se tratando de suportes, como já disse, os escritores mais jovens têm em comum a alternativa
de utilizarem os blogs, revistas eletrônicas, facebook, e-books. Nesse sentido, convém também
ressaltar que, apesar dos referidos recursos tecnológicos, as formas editoriais tradicionais de
divulgação e circulação da produção literária regional estão enriquecidas com mais editorias
locais. Além da Editus - Editora da UESC (que, vigorosa, completou 20 anos, em 2016), me-
recem ser mencionadas a editora Via Litterarum, fundada pelo professor Agenor Gasparetto
(2004), e a Mondrongo, pelo escritor Gustavo Felicíssimo (2011). Ambas têm ocupado um
especial espaço regional.
Dos surgidos já neste século XXI, algumas expressões somam caligrafias: com a pintura,
com a fotografia, com o desenho...
Rita Santana, contista (Tramela, 2004) e poetisa, entre o apolíneo e o dionisíaco, de pai-
xão e arrebatamento, de grito de mulher e identidade negra, lança o seu terceiro livro Alforrias,
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em 2012; no seu blog, Barcaças, publica e também divulga e discute sobre literatura. Maria Luiza
Nora trata, com sensualidade e amor, d’A Poética da Paixão (2010). Daniela Galdino é mulher
múltipla, em Inúmera (2013); coordena e publica Profundanças (2014, 2017), antologia lite-
rária e fotográfica, de escritoras mulheres; seus trabalhos também se valem dos suportes que a
internet proporciona. Milena Palladino, casando imagens e sentidos, traz linguagem fotográfica
para conversar com a sua poesia em momentos captados da natureza: Sobretons (2013). Ceres
Marylise Rebouças, poetisa já com trajetória em antologias, publica o seu primeiro livro Atalhos
e descaminhos (2014). Pilligra, metaforizando enigmas da vida através de animais, em Inver-
tebrados (2015), terceiro livro do autor, enriquece os seus poemas com ilustrações do artista
plástico Zé Aragão. Samuel Mattos, poeta (2008) e ficcionista, em Apolônio, o multiplicador
(2011) conta a história/vida de “um homem que tinha tudo para ser mais um, mas conseguiu ser
único”. Em Confissões de plomo (2015), edição bilíngue, George Pellegrini considera a vida
como baralho, em quatro naipes, e espada é luta, forma de o poeta realizar o seu caminhar. Moy-
sés Netto Simões, em O sol do novo tempo (2015), tem a espiritualidade perpassando todos
os textos em pontos de energia que suscitam insights e reflexões sobre a religação da natureza e
o autoconhecimento; o amor, o divino e o sentido da vida. Gustavo Felicíssimo, editor do blog
Sopa de Poesia, tem produção crítica e poética, inclusive hai-cais; a exigência com o discurso e a
forma marcam a sua fala poética, dentre outros, nos livros Desordem e outros poemas inéditos
(2015), Carta a Rubem Braga (2017). Margarida Cordeiro Fahel estreia como ficcionista com
Nas dobras do tempo (2015); o tempo é a chave do seu discurso realizado em palimpsesto,
onde as dobras do tempo funcionam como reescrita de um amor que vem de longe. Em 2018,
publica Entre Margens, ainda tomando tempo como chave da sua escrita. Maria Delile Miranda
de Oliveira, em Meu tempo em verso e prosa (2015), reúne poemas e narrativas de memória
de vida. Geraldo Lavigne de Lemos, em Massapê: solo de poesia (2016) trata do seu chão,
sua gente de forma simples e, por vezes, filosófica..... O segundo livro de Marcos Luedy, Júlia
(2016), é despojado, musical, brinca com as palavras: “Eu não escrevo, danço...” Artista plástica
e poetisa, Jane Hilda, em Imagens & sentimentos (2016), faz conversarem imagens e palavras,
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em percursos intimistas. Cláudio Zumaeta, no seu livro Agro (2016), apresenta narrativas curtas
que condensam vidas em fortes sentimentos. Otávio Filho, em O verde dos teus olhos (2016),
apresenta uma arrebatadora história de amor em singular discurso ficcional de apresentação.
Nesse quadro mais recente, longe fica o tema do cacau e da roça. Hoje, há uma forma
de deslimite, uma sinalização temática. Espaços e tempos estão livremente expostos às provoca-
ções contemporâneas, alçando voos para outras temáticas: dramas do stress cotidiano, ameaça da
tecnologia, a fantasmagoria ancestral, as relações pessoais intensas e diferenças; conflitos sociais,
psicológicos...
Bem, naturalmente que há muitos outros escritores aqui não referidos; não por demérito
deles, naturalmente; mas por minha absoluta impossibilidade de abarcar tudo. No entanto, do
que foi possível acompanhar, a literatura mais recente deixa uma certeza: a de que a ficção desta
região Sul-baiana segue por caminhos heterodoxos e de pluralidades. Seja através de uma visão
regional da vida, seja de uma visão universal, reflete ou refrata (em ideologia ou contra-ideologia)
o homem comprometido com o seu momento, com o seu espaço, com a sua verdade, com os
seus dramas.
Além disso, da perspectiva do discurso, posso dizer que esses textos se resolvem por
linguagem irônica, por vezes séria; por vezes leve, recorrente e, também, com algum lirismo,
alguma melancolia, em linguagem prevalecentemente enxuta, onde a rapidez se impõe e, em
alguns, suscita tensão; embora, também por outras, haja textos mais lentos e extensos. Não
se trata, pois, de uma produção tematizada. Não se trata de um discurso convergente. O pa-
norama atual é de pluralidades; de diversidade de afiliações, gostos e opções discursivas. Tais
tratamentos confirmam o leque temático e a deslimitação do gênero da literatura Sul-baiana,
deste início do século XXI.
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Saul Mendez - Centro histórico Canavieiras
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Aline de Caldas - Cacaual
DE HISTÓRIA E
FICÇÃO AMADIANA PARA O
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
C
em anos não são cem dias!... Essa é uma forma de falar do povo brasileiro quando,
tomando o tempo como referencial, quer expressar a importância de algo ou alguém.
No ano em que se comemoram os 100 anos de Jorge Amado, o tempo se im-
põe, sim; e se amplia em significação, devido à obra desse escritor ter levado para o
mundo a cultura baiana, através da sua ficção. De cenários e focos diversos do cotidiano, a obra
amadiana trata do povo da Bahia. Denuncia injustiças sociais, conta sobre a vida e os costumes
de marginais, fala sobre as crenças do povo ligado aos cultos africanos, ao candomblé; foca algu-
mas personagens femininas, ocupa-se da saga da região do cacau da Bahia.
De menino do cacau, filho de fazendeiros desbravadores, Jorge Amado passou a ícone
sul-baiano (Bahia – Brasil); referência mundial da ficção brasileira. Nesse sentido, perguntas se
impõem em via de mão dupla. De um lado, questiona-se: as terras onde o menino Jorge viveu
interferiram no imaginário do escritor? A obra ficcional amadiana apresenta marcas dessas terras
do cacau? Por outro lado, também se pergunta: a obra amadiana tem influenciado no cotidiano
regional? A obra tem impactado o desenvolvimento local?
127
Baiano, nascido em Ferradas (1912), então distrito de Itabuna, Jorge Amado, no entanto,
viveu a sua infância em Ilhéus. Cidades-coração da região Sul-baiana, Itabuna e Ilhéus irmanam-
se por serem berço do seu filho mais ilustre, hoje um ícone nacional.
No âmbito da vasta obra amadiana, quero aqui evidenciar um pouco do imaginário que
conta o chão grapiúna, a saga do cacau, representada nos romances: Cacau (1933), Terras do
sem-fim (1942), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela (1958), Tocaia grande
– a face obscura (1984). Para tal, recorro também às memórias de O menino grapiúna (1981).
No primeiro momento, ocupo-me da construção da referida saga, em representação da história,
nela buscando marcas dessas terras do cacau; no segundo, teço reflexões sobre a contribuição da
ficção e do ícone Jorge Amado para a comunidade sul-baiana, mais especificamente para a cidade
de Ilhéus. Assim procedendo, expresso a minha compreensão do literário como influenciado e
influenciador da história; nesse caso específico, penso em como a região enriqueceu o imaginário
amadiano e como essa obra ficcional vem contribuindo para o desenvolvimento local.
É o próprio Amado quem considera as suas origens ligadas à formação da cultura sul-baia-
na, quando afirma em O menino grapiúna:
Rapazola, meu pai abandonara a cidade sergipana de Estância, civilizada e decadente, para a
aventura do desbravamento do sul da Bahia, para implantar, com tantos outros participantes da
saga desmedida, a civilização do cacau, forjar a nação grapiúna. (AMADO, 1981, p. 11)
128
Brasil colonial. Aí, foi o cacau apontado desde aquele tempo, quando “Aires de Casal, em
1817, ao descrever a vila de Ilhéus ou São Jorge, já registra ‘algum cacau’ ao lado do arroz e
café” (ADONIAS FILHO, 1976, p. 14). A saga amadiana, no entanto, ocupa-se somente da
sua microrregião, das terras situadas no território da antiga capitania dos Ilhéus, onde hoje
habita a denominada civilização do cacau:
O cacau, à proporção que altera a paisagem, a empurrar e diminuir a selva, a abrir fazendas, a
estabelecer um sistema de comércio, conforma culturalmente uma região. (ADONIAS FILHO,
1976)
Como era grande a casa do coronel [...]. E olharam as suas casas, [...] casas de barro, cobertas de
palha, alagadas pela chuva. (AMADO, 1933, p. 12)
A ficção refere que a ambição, simbolizada no visgo do cacau, prende as pessoas à terra,
torna-as grapiúnas. Em Terras do sem-fim, Jorge Amado foca a conquista feudal para ocupar-
se da conquista imperialista dos exportadores, em São Jorge dos Ilhéus. E é o próprio Amado
quem declara a forma como o vivenciado foi ficcionalizado:
129
Nesses dois livros tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia cacaueira, a
conquista da terra pelos coronéis feudais no princípio do século, a passagem das terras para as
mãos ávidas dos exportadores nos dias de ontem. E se o drama da conquista feudal é épico e o da
conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe a culpa ao romancista. (AMADO, 1992)
Assim, passo a passo vai reapresentando a história da terra em que viveu a sua infância. A de-
monstração da força política, do progresso local são, depois, tratados em Grabiela, Cravo e Canela:
Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e Itabuna. (AMADO, 1958, p. 69)
Esse período ocorreu entre as décadas de 30 e 80 do século XX, tempo áureo da Região
do Cacau. Na ambiência regional, essa foi a época de riqueza social, quando a comercialização e
a exportação do cacau provocaram a febre da riqueza e de valores centrados no ter. Essa cultura
forjou comportamentos, valores invertidos. Cobiça, desmandos, elementos caracterizadores dos
comportamentos de uma época, que foram ficcionalizados: a história dos coronéis era foco de
interesse ficcional.
Mas, a seguir, o imaginário amadiano se amplia e se redimensiona; os questionamentos
gerados pelos desmandos de uma visão coronelista, centrada no ter, provocam novos olhares.
Mais de vinte anos depois, em Tocaia Grande, relê a saga do cacau da ótica do trabalhador rural,
da prostituta, do negro, do árabe (sírio e libanês) comerciante – os menos favorecidos. E Amado
afirma a sua intenção autoral:
Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios da História por
infame e degradante. (AMADO, 1984, p. 15)
Com contornos épicos e da perspectiva dos vencidos, o escritor realiza a mitificação lite-
rário-ideológica do popular, quando ficcionaliza a história pela ótica dos excluídos, buscando
recolocar a nação grapiúna e discutir a sua identidade.
A perspectiva, então, é diferente: é a do resgate dos verdadeiros heróis, através da evolução
sociocultural de uma comunidade e da demonstração de valores étnicos e culturais esmagados
131
pela violência da conquista do cacau. A temática, no entanto, é a mesma: a da saga do cacau; o
chão é o mesmo: o do sul da Bahia.
Aspectos da nação grapiúna (do seu povo, da sua cultura, das suas origens), pela opor-
tunidade da mudança de perspectiva, são acrescentados ao resgate cultural, realizado nas obras
anteriores. A ambiência do coronel, do trabalhador rural é acrescentada pela presença de árabes
(sírio-libaneses), negros, sertanejos sergipanos, esses três elementos, que enriquecem, com a sua
cultura, o perfil regional. Assim,
132
cultura, inclusive o fato de ser o berço de um dos maiores expoentes da literatura nacional:
Jorge Amado.
De posse dessa nova realidade, a região passa a buscar outras formas de desenvolvimento
que, por suas características naturais e seu perfil cultural e histórico, se justificam ser através do
turismo. Assim é que a figura do seu escritor maior passa a ser o motor para alavancar o turismo
local. Os ilheenses recorrem ao fato de que a literatura amadiana, lida nos quatro cantos do mun-
do, faz leitores tornarem-se turistas a procura de reconhecer o local imaginado.
Tomado como marketing em apelos turísticos, hoje, o ícone Jorge Amado é potencializado
pela comunidade como atração para a região. A ficção amadiana funciona, então, como agencia-
dora dos trânsitos (SIMÕES, 2002). As fronteiras redesenhadas pelo imaginário fazem o espaço/
tempo ficcional projetar o espaço/ tempo real, no leitor (turista da cidade imaginada), instigan-
do-o ao trânsito que o torna turista (leitor da cidade real). O princípio é de que o leitor amadiano
resolve um dia visitar as terras ficcionalizadas e, assim, torna-se turista nas terras do cacau.
Por sua vez, a comunidade grapiúna - e particularmente a ilheense - opera o imaginário
amadiano em via inversa, agora lendo a cidade através da obra. Assim é que oferece o bolinho
da Gabriela ao turista, que se senta no restaurante Vesúvio; expõe a Rua Jorge Amado, onde
morou o escritor, em convite aos visitantes, incentivando-os ao passeio à praça da catedral, ou
às ruas estreitas da cidade por onde passavam as personagens Malvina e Gerusa.... Restaura o
Bataclan, agora reconfigurado em casa de atividades culturais; oferece um centro de artesanato,
onde podem ser encontradas lembranças que remetem aos romances da saga: chaveiros, quadros,
camisetas, chapéus, etc...
Assim, enquanto o turista busca o reconhecimento, a presença do imaginário do cacau da
obra literária se faz, para o local, reconfigurada em exploração turística. O signo Jorge Amado
está presente por toda a parte. Por vezes, sentindo-se um tanto dono da “marca”, o local, em
exploração banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em ônibus urbanos, lanchonetes,
pousadas; coloca o nome em tipos de sanduíche, sorvetes, chocolates; busca, dessa forma, atrair
pela beleza, sensualidade, cheiro (de cravo e canela), instituindo o “tipo” Gabriela, vinculado
133
ao tempo áureo do cacau. Mas há o habitante que busca explorar o imaginário em valorização
da obra amadiana. Faz a sua cidade reler a literatura através de apelos semióticos. Estabelece
“pontes” entre o imaginado e o real. Através de várias linguagens, a literatura interfere no de-
senvolvimento regional. É relida através do teatro, da dança, da música, da telenovela, do cine-
ma, da fotografia, da escultura, da pintura, de vídeos-documentários. Além disso, os grapiúnas
procuram absorver, também das páginas amadianas, a maneira de receber, de comer, de viver;
e a cidade se faz texto.
Naturalmente, operar o turismo através da literatura implica uma compreensão do fun-
cionamento do mercado cultural no contexto globalizado, e o habitante local sabe disso. Procura
fazer com que a cultura dê o “tom” da relação entre local e global, entre cultura e turismo. Nesse
entendimento, a obra amadina é alavancadora do desenvolvimento local.
Devido a esses vários apelos, o interesse por Ilhéus toma novas cores. A comunidade ex-
plora a curiosidade do turista em conhecer a cidade palco de tantos interesses, de tantas lutas,
tanta vida, tanta mistura cultural. A região ganha e segue caminhos amadianos para o desenvol-
vimento.
134
REFERÊNCIAS
ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: Chão de cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1976.
AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933.
AMADO, Jorge. Terras do sem-fim. 64 ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. 51. ed. Rio de Janeiro: Record, 1975.
AMADO, Jorge. Tocaia grande: a face obscura. 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
AMADO, Jorge. O menino grapiúna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1981.
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 3. ed.
São Paulo: EDUSP, 2003.
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado. Revista
Brasileira de Literatura Comparada, n. 6. Belo Horizonte: Abralic, 2002. p. 177 – 184.
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136
Saul Mendez - Mata AtlânƟca remanescente
FACES ADONIANAS
O
escritor grapiúna Adonias Filho, ficcionista da Região Sul da Bahia, morto em
1990, deixou uma produção ficcional que enriquece a Literatura Brasileira e acres-
centa destaque à Literatura Baiana, no cenário nacional. Entretanto, não só! Além
da obra ficcional, merece referência o seu trabalho ensaístico e, numa consideração
cronológica, finalmente, os livros realizados da sua perspectiva de avô, os dedicados aos seus
netos; esses últimos são escritos menos ambiciosos quanto ao artesanato discursivo, mas nem
por isso menos tocantes.
No ano de 2015, a cidade de Itajuípe, onde nasceu, na Bahia, homenageou o seu escritor
com um singelo Memorial, onde estão recolhidos muitos dos seus pertences. Lá, o visitante de-
para-se com a cadeira na qual, toda manhã, Adonias sentava-se para escrever (segundo ele, desde
sempre a lápis). Também, lá estão a mesa e a máquina Remington onde, depois de várias lei-
turas, os originais eram passados a limpo. As suas revisões (tantas) aconteciam também quando
fazia a transferência dos manuscritos. Conforme ele próprio em várias oportunidades afirmou,
inúmeras vezes refazia episódios e completava ambientes; reescrevia muito. Em tal processo, a
atenção maior era sempre para a linguagem; e afirmava que, por isso mesmo, ele próprio era
quem datilografava os seus romances.
137
Quando do seu discurso de posse para ocupar a Cadeira 21 na Academia Brasileira de
Letras, em 1965, recebido por Jorge Amado, Adonias Filho afirmou a sua crença na palavra e
referiu-se à liberdade como exigência primeira de todo e qualquer processo criador. Essa liberda-
de, para ele um estado de vida, foi a responsável por sua ficção, hoje traduzida em vários idiomas.
O imaginário do ficcionista é povoado pelas vivências do menino Adonias nas terras do ca-
cau, onde percebeu e apreendeu os mistérios da natureza humana. São as lembranças do garoto que
acompanhou a saga de violência, ódio, ambição e amor. Tudo o que viu e ouviu. Como ele próprio
afirma no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ADONIAS FILHO, 1965, p.
23): “seria imperdoável não mover o tempo fazendo-o recuar, retomando o passado, como a de-
monstrar que a infância não morre” . Dessa forma, quando se debruça para escrever, é o menino
que, na verdade, escreve. As observações da terra, a vivência e a memória da criança não se deixam
sufocar pelas teorias, interpretações e insinuações do adulto. O mundo do adulto não consegue
destruir a confiança no homem, aquela que aprendeu na infância. Nisso consiste o equilíbrio da sua
ficção. É a sua liberdade exercida. É a sua opção definida. Liberdade e memória, portanto, são os
fundamentos básicos do seu processo ficcional. E bem como ele dizia, o homem guarda a memória
da infância.
Do homem público não vou aqui me ocupar embora, como todos sabem, ele tenha as-
sumido vários postos de destaque na sociedade brasileira. Nestas considerações, vou preferir um
olhar sobre as várias faces da sua produção: a crítica, a ficcional, inclusive a infantojuvenil.
Adonias, o crítico
A sua experiência crítica muito valeu para a sua produção ficcional, foi o que ele mesmo
afirmou em várias oportunidades. Inicialmente, resultante das suas leituras, fez uma espécie
de diário. Reuniu essas observações críticas sobre Dostoiévski, Joyce, Kafka, Proust, Elliot,
Faulkner, principalmente, que publicou no Jornal do Escritor (1954). Conforme declarou, des-
ses escritores recebeu influência literária.
138
Participou da geração que conviveu com a virada teórica dos anos 50 e, no Brasil, sempre na
vanguarda, engrossou as fileiras dos adeptos do New Criticism. Colaborou em vários jornais e suple-
mentos literários (Correio da Manhã, A Manhã (1944 e 1945); Jornal de Letras (1955 a 1960) e
Diário de Notícias (1958 a 1960), do Rio de Janeiro. Em São Paulo, em Cadernos da Hora Presen-
te, Estado de São Paulo e Folha da Manhã. Por outro lado, no entanto, com olhar ainda impressio-
nista, também exerceu uma crítica ferina, através do pseudônimo de Djalma Vianna. Conforme afir-
mou em entrevista a Edla Steen (1981, p. 163), o pseudônimo “foi uma invenção de Jorge Lacerda
que, então, dirigia o suplemento de Letras e Artes, de A Manhã. Deu-me o pseudônimo e me pediu
o planfeto com ironia e agressividade”. Então, entre 1944 e 1949, através do referido Suplemento, na
contramão, criticava outros suplementos literários, defendendo uma literatura conservadora.
Assim, a produção crítica adoniana se realiza em duas faces: o crítico literário Adonias
Filho e o polêmico Djalma Viana. São atividades, pode-se dizer, opostas; o primeiro, de respal-
dar teórico; o segundo, sobre o cotidiano literário. Isso foi num momento histórico de mudança
paradigmal, trasição e efervescência teórica, quando se instaurava o Formalismo Russo e, em
seguida, o Estruturalismo e New Criticism; quando, ultrapassando uma crítica impressionista,
se passou a buscar a literariedade, na obra literária. Assim, enquanto o crítico Adonias Filho op-
tava pela Nova Crítica, o seu pseudônimo Djalma Viana, em postura impressionista, realizava a
crítica da tradição: opinativa, informativa, polemizadora.1
Do caminhar crítico-literário de Adonias Filho, além dos muitos ensaios, artigos e rese-
nhas, vale ressaltar: Modernos ficcionistas brasileiros (1958); O romance brasileiro de crítica
(1969); O romance brasileiro de 30 (1973). Também realizou traduções, biografias e, é aqui
importante referir, o ensaio sociocultural Sul da Bahia: chão de cacau - uma civilização re-
gional (1976), significativo por analisar as contribuições culturais que justificam uma referência
de civilização cacaueira no Sul da Bahia.
1
Sobre a crítica de Adonias Filho e Djalma Viana, vale ler, de Adeitalo Manoel Pinheiro: “Adonias e Djalma
Viana, uma crítica de duas faces”. In: Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 9 – 16, Jun 2001.
139
O ficcionista, acadêmico da Academia Brasileira de Letras
Autocrítico, desde o início, perseguiu a produção do melhor texto. Nessa exigência, não
publicou o seu primeiro livro, Cachaça. Depois, destruiu a primeira versão de Corpo Vivo, em
1938, retomando o texto em 1954 para, afinal, publicá-lo em 1962. Como ele mesmo explica,
“o interesse da crítica por Servos da Morte (1946) foi tão imprevisto que me levou a examinar
e reexaminar inteiramente a engenharia e a fabulação de Corpo Vivo. E o resultado foi que,
pelo amor mesmo que tinha ao romance, resolvi queimá-lo para escrevê-lo novamente dentro
da minha já amadurecida percepção da vida e do mundo. A nova versão do romance, porém
pediu tempo e, muito mais que tempo, exigiu uma permanente vigilância crítica” (STEEN,
1981, p. 163).
Esse rigor crítico e o labor sobre o discurso podem ser observados em toda a sua produ-
ção ficcional. O certo é que o trabalho discursivo de Adonias Filho deixa entrever a tradição
cultural grega (mais no pendor para a tragédia) e a judaico-cristã (do sofrimento humano).
Nesse fazer, realiza diálogo intercultural a partir de “dois grandes mediadores, considerados por
Vera Romariz (1999) como: o sagrado (palavras dos deuses) e a tradição oral e laica (memória
dos homens).
A sua ficção tem estrutura, como na tragédia grega, forjada a partir de um prólogo que
anuncia o tema do texto. Por vezes tem caráter de introdução (Léguas da Promissão); por vezes,
de síntese (As Velhas, Luanda Beira Bahia); por outras de conclusão, por inversão estrutural
(Corpo Vivo, O Forte, Noite sem Madrugada). Tal processo estrutural desencadeia e orienta a
estrutura e fortalece a memória do próprio texto e, já em transcendência de si mesmo, a memória
do leitor.
O mundo adoniano possui uma espécie de força mágica, elemento textual que funciona
como dissimulador da violência e da luta pelo poder, inerentes ao território cacaueiro da Região
Sul da Bahia, que conta. O berço mítico do autor de Corpo Vivo modifica-se ficcionalmente por
carga simbólica, particularmente evidenciado em discurso singular.
140
141
Mari Guimarães - Lagoa Encantada
A recorrência ao real é a da memória
do tempo passado, pelo processo de cons-
trução em recuo permanente, onde o tem-
po existe dentro do tempo. O contar vem
da boca do narrador ou do personagem,
por vezes de gerações diferentes. É o contar
de oitiva, o ouvido, como em As Velhas,
quando Marimari relata para Tonho Beré e
Uirá as histórias de Lina de Todos que ou-
vira da sua mãe Asa: “Cada plantio novo
de cacau teve suor de homem como adubo”
(ADONIAS FILHO, 1975, p. 32).
No seu ensaio sociocultural Sul da
Bahia, chão de cacau, Adonias Filho diz
que “em todo esse tempo, nas funduras das
grandes florestas, em tudo o que foi uma
guerra contra a natureza, gerou-se uma vio-
lenta saga humana no ventre mesmo da sel-
va tropical” (AF, 1981, p. 20). O que antes
fora vivenciado, agora é transformado em
ficção, por relato dos personagens presen-
tes, ou através das lembranças do que disse-
ram outros referidos.
O acontecer ficcional, ligado à memória seja do narrador seja do personagem, flui ali-
cerçado na ideologia vivenciada. A estrutura do poder revelador da ambição e da dominação
(sustentadas pela violência, pelo medo, pelo ódio) própria do território, fundamenta a obra. A
violência, o medo e o ódio só são superados por valores como o amor, a promessa e a honra.
142
Então, a “realidade” ficcional, nesses mo-
mentos lírica, se distancia da realidade das
terras do cacau.
Os narradores da ficção adoniana
são, na maioria das vezes, habitantes do ter-
ritório que, enquanto lembram as violên-
cias e os ódios, buscam na metáfora da bala,
do sangue, da vingança (partes do territó-
rio) “gente de uma nova raça” (AF, 1968,
p. 101), como afirma o Velho da idade do
território, de Léguas da promissão.
Enquanto os personagens vivem em
violência, o narrador-personagem busca ex-
tirpá-la dos seus descendentes. Esse proces-
so de busca é desenvolvido pela imperativa
realização do desejo, como em As velhas
- “Eu quero os ossos” (AF, 1975, p. 2) - e,
através dele, é redimensionado o mesmo es-
paço; ou pela procura de um novo caminho,
como em Corpo vivo, quando “Cajango se
entenderá com a serra, ela o abrigando até
Léguas da Promissão - Capa de Marius Lauritzen Bern/ Caio Márcio Salazar e Oliveira fazer-se esquecido [...] as peles de suas fe-
ras vestirão a ele e à mulher, o alimento em
suas caças e suas ervas, os braços se encontrando com suas árvores” (AF, 1962, p. 133). De uma
forma ou de outra, busca o estado ideal onde o homem encontre, em existência e esssência, a
explicação e o sentido do viver. Por isso mesmo, há a necessidade de desvendar o passado para, a
partir dele, descobrindo-se, conhecer-se. Conhecendo-se, retomar-se. As raízes estão no território.
143
O avançar exige sempre o retorno para o conhecimento da origem. Desse conhecimento - “a vida
dela que ela contou a mãe e mãe me contou. Disso eu conheço” (AF, 1975, p. 113) - resulta a
libertação, o crescer “juntos e inseparáveis, homem e mulher como um só corpo” (AF, 1971, p.
119). Assim, ao refazer o trajeto da vingança, do ódio, do sofrimento, constrói-se, por outro lado,
o caminho da vida, pela lição ouvida ou vivida (contada ou sentida).
A aproximação ou o distanciamento das vivências do personagem do fato narrado deter-
minam, mais ou menos, o seu comportamento violento. Enquanto é o personagem quem conta
a sua própria história, compromete-se mais e, dificilmente, liberta-se da violência, aniquilando-
se mesmo pela morte, “a boca sem um grito” (AF, 1952, p. 164), como Alexandre, em Memórias
de Lázaro. Quando o narrador é mais distanciado, consegue, por isenção, afastar ou modificar
a violência e, até mesmo, transformá-la em amor, como em Corpo vivo, “Cajango e a mulher
estão ali, em alguma parte, unidos os corpos que vão gerar outros homens” (AF, 1962, p. 132).
Em algumas circunstâncias, quando o narrador é re-narrador por processo de memória na memó-
ria, a distância do tempo enfraquece o sentimento dos fatos, como em As velhas, pois a memória é forma-
da de oitiva, “porque tenho tudo nos ouvidos” (AF, 1975, p. 114). Finalmente, na mistura das memórias,
devido a vários narradores, como em Corpo vivo, ocorre a memória próxima ou afastada, vivida, ouvida
ou expectada. Por essas estratégias, os personagens, muito mais do que elementos da história, funcionam
como fontes de informação do passado, elementos fundamentais na construção do discurso ficcional.
O personagem que conta o que ouve ou ouviu, em momentos, traz a memória coletiva das tradições,
dos mitos, do folclore.
O processo reiterativo do contar e recontar, característico do discurso adoniano, a propor-
ção que rediz o relato, contribui para o fortalecimento da verossimilhança ficcional que se situa
na ambivalência entre verdade e mito, através da estrutura textual. O presente resulta do passado
e engendra o futuro. O tempo imbrica-se em passado e presente, onde um se faz existir no outro.
Passado e presente pressupõem um futuro, formando uma só totalidade significativa.
O avançar e retroceder do jogo temporal revelam a tendência estético-filosófica do autor, co-
erente com a sua concepção da condição humana, com a sua preocupação com o destino do homem.
144
Um tom profético revela, por vezes, essa preocupação. Em Corpo Vivo, a morte do bando já
vinha sendo anunciada na voz de Hebe, que repetia “mataram os passarinhos de Deus”. Em As
velhas, Tari Januária manda buscar os ossos de Pedro Cobra e Marimari “veio em lugar dos ossos
do pai” (AF, 1975, p. 124). Em Servos da morte, Rodrigo pressente que matará Lisinha e avisa:
“é preciso que você esteja prevenida” (AF, 1946, p. 216)
A memória somente é olvidada por busca do ideal, libertação da vingança, liberação
do ódio em amor. A afirmação de que os homens do mundo ficcional adoniano “são bichos
da terra” é verdadeira. Realmente, como afirma Jorge Amado no seu discurso de saudação a
Adonias Filho na Academia Brasileira de Letras, os seus personagens vivem “num mundo de
espantos e ameaças, de sina cruel e de erguidos muros de ódio” (AMADO, 1965, p. 51). Em
verdade, o ódio é sentimento propulsor de vidas; o ódio ligado à tragicidade dos destinos. O
estigma marca o personagem adoniano. Em Servos da morte, Angelo (que é Elisa renascida)
vive em função da destruição de Paulino: “a quem pertencerá a mão encarregada de destruir os
destinos? [...] adivinhava numa visão sobre-humana, que retornaria à vida no corpo do filho
[...] para se vingar” (AF, 1946, p. 59). Em Memórias de Lázaro, Alexandre é filho de uma
louca; é Lázaro por ter nascido de novo, por ter vivido (sem ser leproso) as consequências da
lepra; é o ódio de Rosália destinado a destruir o vale. Cajango, em Corpo Vivo, é criado por
Inuri, o tio índio, determinado para a vingança. Vive em ódio e é alimentado por ele. Em
Luanda Beira Bahia, Iuta e Caúla vêem o seu destino marcado pelo estigma do incesto e suas
vidas são ceifadas tragicamente, “encostado na parede curvado, o revólver na mão, o Sardento
(...) o seu próprio sangue no sangue dos filhos” (AF, 1971, p. 138). Em Léguas da promissão,
Imboti, morta violentamente, ressurge nas balas para a vingança, “ela estará no seu rifle” (AF,
1968, p. 26). Os personagens adonianos configuram-se vítimas do destino imposto e do qual
têm consciência, pois “coisas existem, na nossa vida, infalíveis como a própria morte” (AF,
1968, p. 43). A força e a rudeza dos personagens e do ambiente, Adonias Filho consegue atra-
vés da metáfora dura e fria, da metáfora contundente. A sua linguagem, rica em hipérbatos,
é contida e enxuta.
145
Uma força maior do que ódio ou vingança move, todavia, os personagens adonianos: o
valor da promessa, do amor, da esperança. É para cumprir uma promessa à mãe que Tonho Beré,
em As velhas, enfrenta o agreste das matas, luta e ódio; para cumpri-la em amor. Da mesma
forma, é pelo amor que Cajango, em Corpo Vivo, liberta-se do ódio que move sua vida para a
vingança e, com Malva, busca o ninho, reduto da paz. É por amor que Caúla e Iúta, em Luan-
da Beira Bahia, morrem. É por amor que, em O forte, Jairo e Tibiti rompem com o passado.
É ainda por amor que Vilma, em Noite sem madrugada, luta contra tudo e todos para salvar
Eduardo da prisão injusta. O aspecto agreste e duro, próprio desses personagens, adquire, pelo
amor, a força transformadora e lírica. A mulher é paz, é força para o homem. Empresta amor
onde existe ódio, resgata o personagem de sua sina, do seu destino de sangue. Há, pois, por trás
da aparente violência e do ódio, o pulsar da esperança no homem. Por trás da crueza das ações
violentas, há o lirismo noturno próprio da esperança e do sentimento puro, valores que, ao final,
são memória preservada incorporada como postura da consciência da liberdade do escritor. A sua
obra ficcional busca o sentido profundo da existência.
Já mais velho, quando volta a viver no seu chão, a fazenda em Itajuípe, durante uma
homenagem recebida por ocasião dos seus 70 anos, Adonias Filho diz (1985): “É preciso ser
velho, é preciso ter vivido bastante, é preciso ter viajado metade do mundo, de Nova Iorque a
Luanda, de São Paulo a Paris, para saber que nada vale mais ou tanto quanto o nosso pedaço
de chão”. A propósito dessa afirmação, o seu amigo e escritor Hélio Pólvora (1986) observa:
“Ser velho, porquê, para quê? [...]Foi o que me perguntei, e ainda me pergunto. Adonias
Aguiar Filho acaso desejaria advertir que a velhice é uma fase da vida em que a sabedoria
amadurece — e, por conseguinte, se faz orientadora?” Para Hélio Pólvora, a frase esteve
sempre enigmática. Para mim, não. Entendi isso, quando me debrucei sobre a sua produção
infantojuvenil.
146
Em 1973, Adonias publicou a alegoria Uma nota de cem, e Uma nota de mil. Curio-
samente, embora títulos diferentes, o texto é o mesmo, somente diferindo o valor da nota. No
primeiro, publicado pelas Edições de Ouro, a nota é de cem cruzeiros; no segundo, publicado
no mesmo ano pela Tecnoprint, a nota é de mil cruzados.Uma nota..., uma alegoria bem humo-
rada, suscita reflexões sobre os homens, sobre a sociedade.
Mas o primeiro livro dedicado aos três netos - Maria de Lourdes, Caio Márcio e Ra-
chel - foi publicado em 1978: Fora da pista – uma aventura de um velho e um garoto, num
caminhão pelas estradas sul-baianas. A seguir, Um coquinho de dendê (1985), integrante da
coleção paradidática Zipt-Zapt; esse é dedicado a Thaís e Rosita Aguiar. Também alegórico,
enfatiza a importância da família, através das peripécias do personagem um coquinho de den-
dê. O livro Os bonecos de seu Pope (1989) traz à cena um velho que, através dos seus três
bonecos Quincas, Chico e Gaspar, conta histórias divertidas e cheias de ensinamentos. De-
pois, publicado postumamente em 1993, O menino e o cedro trata de amizade e amor entre
o menino Grilim, a cachorra Manió e o cedro chamado Vermelho. Esses livros foram escritos
já no outono da vida, no recolhimento da sua fazenda, em comunhão com a natureza, em con-
vivência com o povo simples da fazenda. Despojados das estratégias e artifícios discursivos que
marcaram a sua produção ficcional e lhe deu celebridade no cenário nacional, essa sua obra
infantojuvenil é simples, alegórica, ressaltando valores éticos, ecológicos, onde a solidariedade
e o respeito humano têm lugar.
Por anotações em seu Jornal de um escritor - 1943 – 1946 (publicado pelo Serviço de
Documentação do Ministério de Educação e Cultura, 1954), pode-se depreender muito do
seu olhar crítico sempre mais acurado para as questões de conflito interior dos homens. Por
esses caminhos, de modo geral, a sua obra toma sempre o social como entrada para se ocupar
dos dramas existenciais. Isso, por recursos diversos do discurso ficcional, pode-se observar ao
147
longo da sua trajetória. Se na obra ficcional consagrada, que o levou à ABL, notabilizou-se pelo
forte discurso com pendor trágico; já na literatura que publicou, no ocaso da vida, para os seus
netos optou pelo simples, ecológico, em defesa do meio ambiente. Embora recursos diversos,
apelos diversos e público-alvo diverso, no entanto, o seu olhar sensível para o mundo e as gentes
apresenta-se, sempre, fiel e coerente, perscrutanto dramas interiores e éticos. Assim, ultrapassa
o regional para o universal, quando se volta para a questão da condição humana, seus anseios e
medos, seus ódios e amores, sua força e fragilidade - o próprio mistério da vida.
148
REFERÊNCIAS
Adonias Filho
Servos da morte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1946] 1975.
Memórias de Lázaro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1952] 1974.
Jornal de um escritor - 1943 – 1946. Rio de Janeiro. Serviço de Documentação. Ministério
de Educação e Cultura, 1954. Col. Os Cadernos de Cultura
Corpo vivo. Rio de Janeiro, José Olympio/ Civilização Brasileira, [1962] 1974.
O forte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1965] 1974.
Discurso de posse. In: A nação grapiúna. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965.
Léguas da promissão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1968] 1978.
Luanda Beira Bahia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1971] 1978.
As velhas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1975 ] 1978.
Sul da Bahia, chão de cacau. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [1976 ] 1981.
Entrevista a Edla Van Steen, 1981. In Viver & Escrever. 2. ed. Porto Alegre: L&PM Pocket,
2008. P. 161 – 168.
A Noite sem madrugada. São Paulo, Difel, 1983.
Entrevista, 1983. Site do Memorial Adonias Filho. www.adoniasfilho.com.br/entrevistas.html.
Acesso 06/06/2015.
Amado, Jorge Discurso de saudação. In: A nação grapiúna. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1965
Romariz, Vera. Palavras de deuses, memória de homens. Diálogo de culturas na ficção de
Adonias Filho. Maceió, EDUFAL, 1999.
149
150
Saul Mendez - Ferramenta do trabalhador rural
OBRA DE PRESENÇAS
E SENTIDOS:
Dicionareco
M
ais do que um pequeno dicionário regional ou mesmo um mero glossário dos
falares do cacau do sul da Bahia, o Dicionareco das roças de cacau e arredores
traz o olhar do homem agrário, defensor do trabalhador oprimido, intérprete da
Região Cacaueira que foi o seu autor Euclides Neto. É a representação linguís-
tica de um povo, de uma cultura. Assim, é dicionário, por sua organização em verbetes; e, acres-
centando a objetivos estritamente linguísticos, é texto cultural, em sua essência. A sua terceira
edição, póstuma, atesta o reconhecimento do seu valor. Publicado inicialmente em 1997, a sua
segunda edição (2002) foi revista e ampliada pelo autor. Ambas as edições foram realizadas pela
Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-Bahia).
Além do corpo textual do livro (verbetes linguístico-culturais), integra a terceira edição
do Dicionareco uma introdução do autor, Agradecimentos e desculpas, no qual, além do
anunciado, esclarece o processo de produção do dicionário. Já nesse texto, evidencia-se a forte
presença da opção do autor pela linguagem simples e voltada para os falares da terra, conforme
o teor dos verbetes.
O Dicionareco traz o binômio aparência versus valor, visível em níveis de produção de
presença e produção de sentido. É que os termos peculiares que o compõem estão enraizados na
151
historicidade e ultrapassam um significado meramente esclarecedor. Mais que isso: representam
momentos, vivências, fazeres, sons, ritmos, danças. São formas de comunicação centradas no
corpo, na materialidade da vida, no contato direto com os objetos culturais: são presenças.
Sem excluir o nível do significado, mas intentando “materializar” falas da cultura, essas
presenças ultrapassam o sentido hegemônico de uma interpretação, ampliando a visibilidade de
outros fenômenos e questões. Aperfeiçoando o conceito de materialidade da comunicação, a pro-
dução de presença (do palpável, concreto, evidente, e de impacto corporal) chama a atenção para
aquele lado de um texto, uma obra de arte ou um objeto cultural qualquer, que não é acessível
para a interpretação, mas serve como base para ela (GUMBRECHT, 2010); além disso, leva
em conta a ocorrência de rupturas que trouxeram sérias modificações na forma de se pensar o
sujeito, individual, unificado, que passa então a ser abarcado por novas identidades, através da
sua fragmentação (HALL, 2004).
O Dicionareco das Roças de cacau e arredores permite a oscilação entre efeitos de presença
e efeitos de significado, o que imprime a sua singularidade. Tal condição possibilita que a sua leitu-
ra inicie na materialidade e alcance o nível de interpretação; e, por outro lado, que a interpretação
considere as condições materiais de produção do sentido, o outro lado da hermenêutica. Como
afirma Gumbrecht, “não há cultura puramente de “sentido” ou de “presença”; esses dois elementos
estão sempre atuantes em maior ou menor grau. É como acontece em Euclides Neto.
152
essas qualidades parecem ser mais importantes do que ter sido bacharel em Direito, Prefeito do
Município de Ipiaú e Secretário da Reforma Agrária do Estado da Bahia.
Produção, assim, recheada de presenças, esse primeiro texto declara a sua memória da
nação Grapiúna: “Guardo as suas falas desde quando comecei a arrastar no chão do terreiro”.
Lembra vivências na roça, até quando, a exemplo do pai, tornou-se “cavalhadeiro – uma espé-
cie de cigano à paisana que vendia e trocava cavalos e burros”. Contando com essa experiência,
declara: “foi quando aprendi linguística”. Assim, assume-se da mata e, em memória materia-
lizada, vai compondo a sua identidade. A sua aparência: “carregando no couro, na cara, na
roupa, nos hábitos, todos os sinônimos de capiau, matuto, caatingueiro [...], caipira, tabaréu,
caititu. Confesso e assumo, salvo seja”. As vivências: “Quando fiz a primeira muda, meteram-
me no bucal, quichim, caquinho de amansar brabo, chilena no peito”. Mas a seguir, evidencia
a dinâmica da sua identidade, quando afirma: “Não cheguei a burro de sela”. Sutilmente, na
mesma linguagem substantivada do homem da terra, acrescenta o seu diferencial identitário, a
fragmentação que o fez um líder político, um literato: a teimosia, a rebeldia, a crítica:”Quei-
xudo, pegador, tenho cosca na orelha, dou coice no estribo. Obedeço mais pelo passar da mão
no fio-do-lombo que no bacaiau. Virei doutor.”
Construindo, assim, uma autobiografia, o texto introdutório Agradecimentos e descul-
pas é mesmo uma demonstração do que pode ser feito com o nosso crescente conhecimento
sobre o passado - um território, de uma forma ou outra, distinto e distante do presente.
153
fiquem esquecidos os traços grapiúnas. É o recurso que buscou para não deixar que se perca
no tempo a presença das gentes do cacau.
Assim é que, no mesmo texto de agradecimentos e desculpas, além da genealogia do
autor, esclarece a concepção dos verbetes que integram o livro.
O Dicionareco é um trabalho de garimpo: Euclides Neto recupera, da memória das suas
vivências, palavras faladas e ouvidas. Também é um trabalho de pesquisa; conforme ele afirma,
“inúmeros verbetes [...] e expressões de outros além-de-mundo são amarrados neste mourão”.
Assim, na recolha do falar popular do cacau, remontando ao século XII, reconhece
arcaísmos que “o latim bruto vai rolando como uma pedra na boca do povo”. Constata ou-
tras acepções para os termos dicionarizados no Aurélio. Identifica hibridismos prosódicos e
semânticos: africanismos, lusitanismos; também diferenças do português-brasileiro para o
de Portugal. Admite neologismos: “se campeia um termo para expressar a ideia e não topa,
inventa, entorta o que já ouviu em alguma parte e solta-o”. Constata a evolução da lingua-
gem: “a palavra é como o girino: à medida que vai perdendo o rabo e ganhando pernas e
mãos, transforma-se em sapo e sai pisando terra firme”. Acrescenta à sua pesquisa os novos
termos surgidos na labuta do cacau, desde os relacionados com os fazeres (bandeirar, biscó),
aos onomatopeicos (zabear, vagalumar).
Pelo ouvir, pelo conviver, recolheu os termos, assumindo-os no Dicionareco: “passaram
a ser nossos, já que ninguém reclama, mostrando o ferro de dono na garupa”. Dessa forma, a
celebração do relato oral em Euclides lembra os efeitos de presença que as histórias contadas
produzem no ouvinte, o efeito de um passado que nos penetra como memória.
No estudar a evolução das palavras, observa ortografias, fonéticas, ritmos. Constata lei
do menor esforço, reafirmando a crença na espontaneidade da língua, ao contrário da rigidez
gramatical: “O tagarelar dos becos e caminhos da roça impuseram o uso. Então os gramáticos
ladinos meteram o bucal, levando a mula para onde desejam, com espora, taca e rédea presa”. E,
mesmo sem ser filólogo, faz advertência aos empedernidos: “nunca afirmem que estes ou aqueles
dizeres viraram cazumbas, antes de conferir o ninho onde foram buguelos”.
154
155
Aline de Caldas - Cacaual
Na defesa do linguajar do cacau, defende o respeito à diferença, à identidade; afirma que
“toda palavra leva uma carga emocional e uma intenção. É a intenção que dá o sentido”. Da
materialidade da palavra, diz com “tanta naturalidade e muque que o outro entende [...] gera-se
a palavra, que logo empena, voando no uso”. E, a seguir, explica o sentido e a possibilidade de
suas várias acepções: “cascalho que se vai lixando na saliva do povo [...] o que não impede que
outro bandeirador volte a revirar o folhiço, topando mais cabaças”.
Reconhece, na dinâmica identitária, o processo de hibridização: “eis que não se diz mais
tetra hora, substituída pela arribada tchau!”. Nesse caso, ainda teme a colonização cultural, e
intertextualizando o poeta Bilac, valoriza “a última flor da laciana língua”. A sua intenção decla-
rada é a de não permitir esquecer uma linguagem e, com ela, a cultura de uma nação. É como
afirma: “vale como um esforço para bandeirar a prosa da gentinha dos eitos. Antes que os meios
de comunicação, chuva remelenta, acabem de mermar o que resta do dialeto parido nesse setém
de mundo do cacau”.
Dessa forma, Euclides Neto oferece uma original e competente aula, onde ficam explicita-
das a materialidade da fala e as intenções do sentido. Sem pretender conhecer os recursos cientí-
ficos do discurso, com a sua peculiar simplicidade, prepara o seu leitor para o Dicionareco. No
seu trato com a linguagem, deixa evidente uma produção de presença e uma produção de sentido,
onde reafirma a sua identificação com a força do falar do povo do cacau.
Nessas explicações, não esquece de informar que fez a sua recolha, também, em textos
literários regionais e registra contribuições de autores locais.
O Dicionareco, nas duas primeiras edições revistas pelo autor, traz, de A a Z, 986 verbetes
(curiosamente, não há registros com a letra u); e mais oitenta, relativos aos municípios cacauei-
ros, com respectivas origens, que situam o território desse linguajar. À última edição, póstuma,
foram acrescentados 61 verbetes de termos colhidos das suas obras e não dicionarizados por
outros autores, conforme explica nota do editor.
156
3 Um exemplo da ficção euclidiana - Contracapa das duas primeiras edições
Ainda em relação ao Dicionareco, merece referência que as duas edições revistas pelo autor
trazem, na sua contracapa, o texto Suspiros de uma enxada: um exemplo da ficção euclidiana. Co-
meça com Era uma vez..., convidando o leitor a embarcar num mundo mágico, puro, do talvez.
Mas a prosopopeia da Enxada materializa o suspiro, que é sentir; remete ao simples. O seu narra-
dor-personagem é a Enxada, “a lâmina que rasga o músculo da terra e cria a vida”. Já daí a coerência
da proposta euclidiana, à qual o Dicionareco (1977; 2002) dá substância: a produção de presença.
Esse procedimento instaura outro tipo de representação (que é mais apresentação), na
medida em que esse mundo histórico do cacau é evocado em sua superficialidade e concretude,
produzindo no leitor não um distanciamento em profundidade histórica, mas efeitos de simul-
taneidade. Assim, a intenção autoral parece ser a de evocar o mundo das roças do cacau e repre-
sentá-los, no sentido de torná-los novamente presentes.
Nascer do dia, sol, fazer. O contato corporal com a terra transporta, também, o leitor, para o
sentido filosófico, a sensação do sentir-se integrado ao mundo das coisas: “abrir a cova das sementes
que morrem para nascer. Se o bisturi lanceta a carne e evita o fim; se a caneta escreve os poemas,
os romances e as partituras; se o computador é o cérebro do homem, tudo não existiria se os feijo-
eiros não florissem”. São os efeitos de presença que ampliam a interpretação textual, reproduzindo
sentidos a partir do referente mundo, numa compreensão de que tudo tem uma razão para existir.
Da produção de presença ao sentido, são percepções sensoriais (sentir, ver, cheirar, ouvir),
apresentadas nos materiais que servem de base à interpretação, isto é, fazendo que a leitura
tenha início na materialidade e alcance o nível de interpretação: “Sofro primeiro o ferrão enve-
nenado da terrível jaracuçu, quando o roceiro o puxa aos pés para sacudir a terra e separar a erva
[...] Já vergada e cega, passam-me a lima ríspida ou me batem na face com a pedra rude”. Aí, a
ideia da terra como uma sensação significa entender a impossibilidade de colocá-la em palavras
sem perder seu caráter de materialidade; um momento de intensidade, onde a sensação possível
alcança para além da interpretação tradicional.
157
Nesse mesmo processo presentificativo, aborda o social: “Planto o linho das toalhas de ri-
chelieu que realçam faisões nas baixelas de prata. Em oferenda, levo as frutas da sobremesa. Plan-
tei as jaqueiras centenárias”. E imprimindo a sua postura social, declara a atitude de paz diante
da vida; ”Não planto as metralhadoras nas trincheiras. Planto a rosa, o jasmineiro, o manacá, a
flor do feijoeiro. [...] Não toco a música dos violinos. Acompanho os acordes dos carrinhos-terra
das amanhecenças.”
Reconhecendo a sabedoria do povo expressa na linguagem do homem da roça, o autor,
também homem das roças do cacau, traz essa linguagem e essa sabedoria para a sua ficção, em
presença e sentido. Por isso, a tentativa de conectar leitor e época, apresentada através do recurso
a um repertório de questões universais que aparecem trançadas nos temas cotidianos. São fenô-
menos materiais, tratados como superfícies, e visões de mundo, atingidas através da descrição
de conceitos dominantes.
Conclusão
Num canto de igualdade e irmandade, sem privilégios sociais, a escolha é dos mais simples.
A história, convertida em um singular-coletivo, é experimentada como um processo em acelera-
ção. Assim é que Euclides Neto assume a função de um observador de primeira ordem, responsá-
vel pela produção de conhecimento sobre um mundo de objetos que inclui o seu próprio corpo.
Sem a história pessoal desse autor grapiúna, o Dicionareco não seria o mesmo; o trabalho
aproxima o leitor, realiza aquilo que uma simples descrição cotidiana não daria conta. Se em
Euclides, o contato humano com as coisas do mundo contém um componente de presença e
um componente de sentido, a experiência leitora com a sua obra nos permite experimentar esses
dois componentes em tensão. A estrutura do Dicionareco promove, também, o diálogo. Daí a
afirmação de que nesse livro, fazendo conversar os dois textos – o explicativo e o dicionário – a
proposta é cultural. Assim, também o Dicionareco das roças de cacau e arredores pode ser
relido, na produção literária de Euclides Neto, da perspectiva cultural, em presença e sentido.
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REFERÊNCIAS
EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores. 2. ed. revista e ampliada.
Ilhéus: Editus, 2002.
EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores. 3. ed. Revista e ampliada.
Salvador: EDUFBA; São Paulo: Littera Criações Ltda, 2013. p. 9 – 14.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue
transmitir. Trad.: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, 2010.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
159
160
Expressão PoéƟca de Valdelice Pinheiro
A ESCRITA DO EU
E O PATRIMÔNIO LOCAL:
a expressão de Valdelice Pinheiro
C
om as palavras-chaves que dão título a este texto, pretendo evidenciar o discurso
da poetisa Valdelice Pinheiro e as marcas da sua diferença no espaço do patrimônio
cultural sul-baiano - rico em expressões literárias e potencializador de trânsitos.
No âmbito das discussões sobre a escrita literária, o contexto globalizado exi-
ge a necessidade de intensificar discussões entre literaturas e saberes também quando se trata
de escritas do eu. Em relação a essa forma de comunicar, é acrescentada a proposta de pensar,
ainda, o texto literário como estratégia de resistência à espetacularização da cultura; como agente
provocador de fluxos.
Se o intelectual é a obra, conforme afirma Adriana Pérsico (1998), quero observar o seu
papel (da obra) enquanto suscitadora de deslocamentos, de trânsitos entre diferentes esferas cul-
turais, sociais e políticas. Busco refletir sobre a sua relação com o interesse de leitores, intelectuais
de espaços outros, principalmente os dos grandes centros urbanos (SIMÕES, 2002). Para esse
tipo de mediação, enfatizo a diferença como elemento de produção de valores identitários locais
(HALL, 2001).
Para essas considerações, organizo o texto em dois focos: da produção da fala, enquanto
linguagens múltiplas; da rede de imagens, no processo de construção identitária acrescentadora
161
da cultura local. Quero com isso fazer aquele exercício que Beatriz Sarlo refere quando trata do
intelectual: “incorporar a arte à reflexão sobre a cultura” (1997, p. 181). As escritas do eu são
aqui representadas por tipo de linguagem poética, filosófica e pictórica.
1 A produção da fala
1
Já como resultado da recolha dos manuscritos inéditos, foi publicado o livro Expressão Poética de Valdelice Pinheiro,
que contou com o apoio do CNPq (SIMÕES, 2002).
162
A fala da intelectual Valdelice Pinheiro, enquanto linguagens múltiplas, é produzida,
indisciplinadamente, no espaço de textos poéticos (poemas, prosa poética), textos filosóficos,
textos autorreflexivos e desenhos, rabiscos, fotografias.
A própria poetisa fala sobre a sua poesia: “é simples, toda nascida de uma linguagem coti-
diana, sem rebuscos. Por isso o povo gosta dela, embora às vezes o sentido de alguns poemas seja
até metafísico. Acho que se se entende a palavra, sente-se o conteúdo do poema” (1984, p. 135).
Super realistas, para ela, artistas são aqueles que veem “a explosão de uma semente e ouvem uma
flor se abrir”. “O poeta, como o filósofo, é esse micróbio que conhece as entranhas”. “Só pode
haver criação sobre uma existência anterior”, diz ela.
Autorreflexões sobre o processo criador denunciam a filósofa que existe em Valdelice
Pinheiro. O texto “Retomada” (1984, p. 131-135) é um exercício de reflexão sobre o proces-
so criador. Entretanto, sobre esse assunto há, além do publicado, farto material inédito. Em
verdade, ela ocupa-se do processo simultaneamente ao seu fazer poético, em retrorreflexão,
parece. Esses escritos de autointerpretação são explicativos do seu fazer poético e podem ser
tomados como uma proposta de teoria da poesia. Para a poetisa-filósofa, escrever é libertar-
se. Nesse instante, “a voz tira a lógica, o juízo, desregula o comportamento do vocabulário”
(1984, p. 134). Assim nasce o poema: “Se a carambola/ tivesse dedos/ tocaria Mozart,/ certa-
mente”.
No trato dos manuscritos, rapidamente pode ser constatado o processo de reelaboração
da poetisa.
163
FIGURA 1 – Rabisco e texto poético - Linguagens de Valdelice Pinheiro
Tal processo pode ser verificado, ainda, nas versões encontradas de um mesmo texto, fato
indicador de vários tempo-espaços enunciativos. Poemas há que chegam a apresentar nove versões.
Simultâneos ao seu fazer poético, os textos de autointerpretação nascem do silêncio de
uma voz interior impulsionadora, como ela afirma, não “a simples voz, um som emitido pela
competência do aparelho fonador, mas a Voz, a VOZ [...] silêncio que chega aflito, precisando
164
do grito, tem que inventar o som...” (1984, p. 136). O processo de surgimento do poema passa
pela fase do que chama de “mundo das ideias”, fase essa expressada através de rabiscos, de dese-
nhos.
165
São retas, curvas, espirais que dão surgimento a inesperadas formas e, em seguida, ao po-
ema. Por vezes, as linguagens são tão imbricadas que, mesmo querendo, é impossível separá-las.
166
Eminentemente filosófica desde o seu processo de enunciação até à concretude da sua for-
mulação, muitas vezes, ao processo de produção, antecede uma reflexão filosófica.
Às múltiplas linguagens são acrescentadas da reelaboração temática, quando um mesmo
tema se reescreve em linguagens diversas: filosófica, prosa poética, poesia, desenho. Textos filosó-
ficos são verdadeiras matrizes de poemas ou de prosas poéticas, como é fácil de ser observado
nos exemplos que seguem (SIMÕES, 2002, p. 36-37):
Texto filosófico:
No começo não era o caos, o nada, mas a Unidade, a Perfeição, a ordem absoluta no Todo, no
Em Si (primordial), eterno.
Deus, portanto, essa Existência Anterior, não criou do nada, mas CRIA de si mesmo, explodido.
Criar é explodir-se no Ser.
Texto poético:
Poema da Criação
Nada existia.
Uno e só,
o Em Si
pulsa, pulsa...
Como um infinito
Óvulo maduro.
O Em Si
não se basta.
E no milagre
de seu próprio
encontro
algo estremece e abala
a Eternidade:
o Em Si fecunda-se.
167
E por se fecundar,
explode-se.
E cria.
Nasce a Existência,
o átomo que se anima.
E na Existência
o tempo.
E no tempo
o homem.
O Em Si
se expressa.
E a Existência
o cria.
Ou prosa poética:
História da Criação
2 A rede de imagens
168
Fonte: SIMÕES (2002, p. 102).
169
Os campos semânticos são povoados por um repertório denunciador de uma vivência
ligada ao simples, ao campo, a uma época, um lugar: “Ah, minha infância tropical, brasileira,
comendo jaca e mamão, chupando cajá e tangerina, descobrindo o mel no favo, conhecendo as
abelhas!” (in: SIMÕES, 2002, p. 48).
Embora os seus escritos sejam, todos eles, perpassados pelo olhar voltado para o existen-
cial, esse foco é nuanceado em blocos temáticos: tratam de liberdade, amor, desigualdade
social, inadaptação à vida; falam de natureza e existência metafísica.
A angústia que a sufoca é forma de estar e sentir o mundo. Ela lida com a realidade, com
sensibilidade e olhar crítico, próprios de quem redimensiona o vivido através da experiência
poética. A referida postura reflexiva da sua obra - sobre o mundo, sobre a vida - não se limita a
um olhar do imediato e objetivo, “mas o aí em relação ao aqui, ao cá dentro, sujeito modificador
do mundo”, como ela mesma afirma. As suas imagens (em palavras ou desenhos) são trazidas da
memória de quem vivenciou o campo, o simples, a terra.
170
ligeireza de meus pés?
Restaurando-me, cresço.
Crio detalhes que se liberam de minha mente
e de minhas mãos.
Sou da idade de meus príncipes
negros,
jovem como meus guerreiros
tupiniquins.
Conclusão
171
apoio à circulação dos bens culturais têm atenção à demanda do mercado, sim. No entanto, pen-
so a ação intelectual, transitando a cultura através da arte. Creio que, assim, é possível admitir a
possibilidade de uma ação intelectual contribuidora para o desenvolvimento cultural sustentável.
Isso, através de discursos que se articulem, construindo o lugar, provocando outras reflexões,
promovendo trânsitos, realizando trocas culturais, promovendo o respeito ao/do outro.
Como ficou visto, a escrita de Valdelice Pinheiro revela a sua forma de comunicar, com-
pondo um processo artístico que ultrapassa a palavra para uma comunicabilidade, também,
visual. A sua expressão é um exemplo de que, nesses tempos, as escritas do eu não se limitam
à palavra, mas são expressas também por outras linguagens; reportam-se a toda uma concepção
artística comunicadora, que faz o diferencial de uma produção e seduz o leitor. A singularidade
da sua expressão certamente atrairá leitores curiosos em reconhecer, por exemplo, o rio Cacho-
eira, ou a cultura do cacau.
As marcas da Região Sul-baiana, presentes na obra de Valdelice Pinheiro, são referenciais.
Porém, mais que ser espaço de referências, ela própria, a sua obra, enquanto cultura, contribuem
para a diferença que faz a multiplicidade e a riqueza grapiúnas. O discurso que veicula é de resis-
tência, na medida em que não se submete; é emancipatório, por sua capacidade de ação sobre o
leitor. São escritas do eu, em várias linguagens que conversam entre si e traduzem as suas vozes:
poética, filosófica, plástica. Contido nelas, é visualizado o espaço cultural, simbólico.
Se as marcas de uma cidade passam pelo olhar multifocal (CANCLINI, 1977), os bens
simbólicos de um espaço, por sua vez, ressaltam o cenário cultural. A divulgação das expres-
sões de escrita, através da sua literatura, sem dúvida dá visibilidade e valoriza o estético. Mas
também, parece-me uma forma possível de contribuição para reflexão sobre saberes e fazeres
locais. A ação da fala que transita junto aos leitores, intelectuais de alhures - que chegam de
espaços outros -, além de evidenciar a nossa diferença, certamente será uma das formas de
respeito à cultura local.
172
REFERÊNCIAS
173
174
Aline de Caldas - Sede de fazenda
FICÇÃO DE MEMÓRIAS:
Os recuados
E
scritor sul-baiano, das terras do cacau (Itabuna-Bahia), Cyro de Mattos tem a estatura
conferida pelo trabalho da escrita que desenvolve desde 1966, quando fez a sua pri-
meira publicação. Laureado, além de outros, conquistou os prêmios “Ficção Afonso
Arinos” da Academia Brasileira de Letras (1979), com Os brabos; e Pen Clube do
Brasil (2015), com o romance Os ventos gemedores. É doutor honoris causa pela Universidade
Estadual de Santa Cruz (2016, Ilhéus – Bahia). Traduzido para o inglês, alemão e italiano, dentre
outros, a sua obra se universaliza pela força de sua ficção, pela abrangência de leitores. Cyro
de Mattos desenvolve atividade literária com base num imaginário centrado na região em que
nasceu e vive: Berro de fogo (1966), Violentos e desalmados (1970), Os brabos (1979), Duas
narrativas rústicas (1985) e Os recuados (1987), dentre outros. Tem feito incursões tembém
pela poesia: Cantiga grapiúna (1981), No lado azul da canção (1984), Lavrador Inventi-
vo (1984), Vinte poemas do rio (1985), Natal permanente (1986), Cancioneiro do cacau
(2002). E mais... também tem larga produção lírica e de literatura infantil; a mais recente para
leitor infantil é Minha turma agora Dorme (2015), uma publicação da Via Literarum. Por
último, retomando contos e novelas, O velho e o velho rio (2016) reúne textos inéditos e outros
reeditados, que tratam de histórias urbanas e histórias rurais.
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Da sua larga produção, para especial referência, ocupo-me aqui de Os recuados
(1987). O livro de ficção, que se constitui de estórias curtas, é estruturado em relatos e fla-
grantes. Na primeira parte, os relatos são de experiências vivenciadas (vividas ou ouvidas).
O discurso ratifica o relato como tal, quando se realiza muito mais pelo narrar ou pelo pro-
cesso que insinua a presença de um interlocutor: o próprio autor feito ouvinte, no tem-
po da produção; ou o leitor feito cúmplice, no tempo da recepção. É o vivenciado, agora
memória ficcional, relato. É o vivido e experimentado. Os relatos trazem a reflexão sobre a exis-
tência experimentada com a terra e com os homens, aliás preocupação frequente na obra do
autor. É a experiência com o contexto sociocultural, seja rural ou urbano. Na segunda parte, são
flagrantes de experiências observadas, flashes do dia a dia, que evidenciam momentos surpreen-
didos de um tempo mais próximo do ato da produção. São acontecimentos do viver, evidências
de valor e vida. Os flagrantes são observações do homem, o questionamento dos seus valores, os
seus diálogos flagrados.
Cyro de Mattos caminha, assim, pela postura do autobiografismo, naquele sentido que lhe
empresta Robbee-Grillet, da impressão subjetiva, da experiência vivenciada tornada ficcional.
Nessa direção a simplicidade do discurso revela a simplicidade que o ficcionista professa para
com a existência, tornando o anti-intelectualismo marca dessas suas histórias, onde a ironia é for-
ma de crítica. “Aula”, “O vendedor de bilhetes”, “Desterro”, “Morte na rinha” fazem pressentir
o clima absorvido na vivência ou expectação. São “tomadas” de pessoas marcadas pela vida, ou
mesmo ligadas a superstições e, talvez por isso, sentidas como que mitificadas pelo/no relato. Por
esses recursos, discute a vida e a morte; a ironia da vida e a dignidade da morte.
Alegoricamente, em “Morte na rinha”, resgata a dignidade da vida com a mor-
te (do galo / do homem), em metonímica da liberdade. Em “Sina”, “Homem no Cír-
culo”, “Inocentes e Selvagens” e “Coronel, cacaueiro, travessia” questiona a vida na sua
inexorabilidade e, por essa via, aproxima-se do barroco. Pela intertextualidade, refere Fer-
nando Pessoa, quando acredita que “tudo nesse mundo vale a pena, desde que a alma não seja
pequena” (p. 36). No conto “Sina”, recebe pela boca de Jovino a sabedoria absorvida dos mais
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Aline de Caldas - Barcaça de cacau
velhos: o homem “é um bichinho que tudo quer, nunca se conforma com o que tem, nunca está sa-
tisfeito com nada” (p. 39); são reflexões sobre a validade das coisas, já que, pela inexorabilidade,
tudo morre e acaba “nesse vir para sair” (p. 39).
Preocupa ao ficcionista itabunense a cobiça dos homens, geradora, até, de certo antro-
pofagismo, a exemplo do que acontece nas terras do cacau. Os textos, notadamente “Homem
no círculo”, transmitem a cumplicidade do conhecimento do narrado, na perplexidade sobre
a incoerência dos homens. Na sua cobiça, os homens “sabem que existe um rio, e manso, e belo,
e eterno, no tempo de sol aberto é boi que rumina sábio, sereno vigia suas vidas por ruas e becos,
corridas e paradas, ladeiras e planos. E eles continuam disputando o domínio das árvores dos frutos
de ouro, e seguem indiferentes à presença daquele rio, águas que de tão frágeis se espoçam facilmente
quando o tempo é de estio” (p. 42). A constatação da inversão dos valores gera a “secreta vergonha
de ser homem” (p. 43). O ficcionista busca, no mais recôndito da memória, um mundo que é
somente “som, cor, sonho: percurso azul de dias lindos em alvorada de infante” (p. 43). No resgate
do “percurso azul”, intratextualiza o seu Soneto do Rio Cachoeira, onde/quando “havia céu e sol
na natureza, brilhinhos de água cristalina. Não havia dúvida nem certeza” (p. 43). Assim insinua o
conflito entre passado feliz e simples e presente de cobiça, onde guarda a lembrança da casinha,
metaforicamente sentida como “espaçonave /que/ navegava ondas de doçura e alegria” (p. 47). Afi-
nal, é percebido o desencanto num “ponto imóvel que estertora no meio de um grande círculo (...) a
cidade e os homens. Infelizmente” (p. 48). O relato é, neste caso, premonição ficcional pelo tempo
futuro, mas em verdade traduz o vivido, agora em desencanto, onde “se olhará como pássaro selva-
gem que de repente teve o voo fechado na concha de uma mão invisível”, onde “frustrado, impotente,
arfando solidão, conhecerá como companhia a própria sombra” (p. 48).
A ironia do poder transparece na força do discurso, notadamente em “Inocentes e sel-
vagens”, onde a antítese do título já insinua a antítese da relação do poder: a inocência da
ignorância e a selvageria da cobiça. Neste sentido, ainda em “Coronel, cacaueiro e travessia”,
lamenta que, cegos pela cobiça -”febre, febre, febre, feeeebre” - os homens não percebam o feitiço
do cacau. Não percebam que “felizes são aqueles que descobrem logo cedo que a vida não passa de
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uma armadilha (...) simples travessia” (61). Nesse contexto, questiona o sentido da vida: “o que
é mesmo a vida? Olhar as águas de um grande rio com o leito a mostrar somente pedra e pó? É esse
jogo que não se explica, onde o homem vem rolando desde o início e termina sem saída? (p. 67).
Os flashes conseguidos no dia a dia são flagrantes do convívio entre os homens. Na simplici-
dade dos temas, é insinuado o mistério dos homens, dos seus questionamentos, dos seus valores: “o
que é o homem? o que é a vida? (p. 86), a sua credibilidade, a sua dignidade. Ironicamente constata
a mudança dos paradigmas, dos valores sociais: não mais o “comando do revólver e do rebenque.
Hoje somente cordeirismo sob os dizeres de ordem e progresso. É a nova lei, os novos rumos do vento” (p.
63). Há, por esses caminhos, no texto de Cyro de Mattos, o sentimento do homem do cacau. O
sentimento do homem do mundo. O sentimento daquele que conheceu e viveu a história, a redi-
mensiona em ficção e, dessa forma, reescreve a história.
Os recuados é o título do livro. Os recuados, pelo recurso ficcional, são os trazidos na/da
memória. Os recuados, pela visão do ficcionista, são os homens de hoje, carentes de dignidade.
O certo é que, urbano ou rural, na cidade ou no campo, os homens são fadados à vida
fugaz e à morte certa. Travessia.
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Otávio FIlho - Benedictus
ERA UMA VEZ...
Xerazade
O
livro Xerazade (1989), edição comemorativa dos 30 anos de atividade literária de
Hélio Pólvora, é revelador da sua maestria como contista.
Jornalista, tradutor, crítico literário e ficcionista, Hélio Pólvora também foi
editor, crítico de cinema e cronista. Itabunense, estreia com Os galos da aurora
(1958), revisto e reeditado em 2002. Excepcional contista, é premiado nacionalmente (O grito da
perdiz, prêmio Nestlé de Literatura, 1986) e traduzido em vários idiomas. Recebeu da Universi-
dade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus – Bahia), a outorga de Doutor honoris causa.
Com vasta obra circulada nacional e internacionalmente, publica o seu último romance,
Don Solidon, em 2011, onde fala de solidão. Senhor de discurso dialógico e de estética inven-
tiva, marca a sua fala, quase sempre, com uma sutil ironia.
Xerazade, o título do livro aqui em foco, é, também, o seu conto-chave. É o texto que
fecha o livro e, a um só tempo, sugere e promove a sua estrutura interminável. O conto final,
como que o abre, anunciando, pelo relato, outras mil e uma histórias, em intertextualidade de
Sherazad, de As mil e uma noites. Assim é que Hélio Pólvora conta histórias diversas, ouvidas
de sua amiga Xerazade, ao longo de tantas noites que ele mesmo não consegue precisar: “podem
ter sido trezentas e nove mil; talvez mil e uma” (p. 94).
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Ouvidas em noites “virgens, nuas, intactas, francas, vividas e sonhadas em terra firme e
nos mares” (p. 101), agora as oferece aos seus amigos para o seu “deleite e consternação”. Ao
oferecê-las, o narrador identifica-se como autor: faz dedicatórias que abrem cada conto e, assim,
indica também o seu propósito enquanto narrador.
Como em As mil e uma noites, essas histórias são simples, sinceras, sentidas; é assim que
as considera o narrador ao oferecê-las. Como Sherazad, o autor sugere o interminável do relato,
através dos diversos enfoques do tema e mais em outros insinuados, pressentidos, possíveis rela-
tos, sutilmente anunciados no título do livro: Xerazade.
Ainda pela estratégia da intertextualidade estrutural, o autor oferece contos sobre amores
diversos. Amor, sentimentos, relacionamentos interpessoais ou, como ele próprio sugere com a
epígrafe de Graham Greene que abre o livro, sobre o “corrupto amor humano”, o amor comum
em diferentes nuances, circunstâncias, espaços, intensidades, intenções.
Repassados de ironia que, por vezes, chegam ao escárnio e ao humor negro, os relatos sobre
o amor, qual camaleão, adquirem tons diversos, a depender das diferentes circunstâncias am-
bientais, valores e crenças das suas personagens, desde a conclusão de que “o amor acaba”, afir-
mada por Xerazade, até à certeza de que “o amor se renova”, acreditada pelo mágico Hermano.
O contador de histórias enfoca personagens dos mais diferentes universos: um mágico,
um folião, um pastor, um vendeiro, um relações públicas, um toxicômano, um agricultor e um
escritor. Nas várias circunstâncias, a mulher é sempre “aquela oclusa mulher de meia-idade, que
aprecia tanto em suas [de Xerazade] narrativas, a sonhar com liberdades secretas, a olhar crepús-
culos, a soltar palavrões para parecer liberada” (p. 99). Todas elas, nas várias circunstâncias da
vida, são sequiosas de amor, buscando, de uma forma ou de outra, saídas para os impasses dos
seus descaminhos/ caminhos amorosos. Assim acontece, seja em meio ao bulício do carnaval,
através de um amor factual, aventureiro (Romance de carnaval); seja através do amor sereno
e companheiro, exemplo de amor feliz (Chico e Natália); seja mesmo na luta contra a morte
(Aquém do umbral), por exemplo.
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Otávio FIlho - Sonho Benedictus
Muito mais do que relações entre Oriente e Ocidente, a questão é da própria natureza hu-
mana, entre homem e mulher, a de “milhares de quilômetros de areia. Entre nós, torres e muralhas,
paredes espessas, ruas e pedras, multidões” (p. 102). A questão é da incessante busca de “um ho-
mem e uma mulher retendo a sua mútua procura”, a procura do amor; a busca do “esquivo amor”,
elo universal, que atravessa espaço e tempo.
Assim, é que os vários contos confluem. Pelo resgate, na busca do amor, insistindo, pro-
curando, renovando, resistindo... Por isso é que a morte é vida em Xerazade: “eu vou te matar”.
“- Piedade, meu senhor, misericórdia.” [...] “Era uma vez uma moça que tinha camisola rosa
shocking...” E, como o amor, o relato recomeça. E o conto reconta-se; e anuncia o livro que,
findando, recomeça. Interminável...
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George Pellegrini - Em busca da terceira paisagem
Auto do descobrimento - capa de Marilda Castanha
REDES INTERTEXTUAIS:
estratégia de historicidade em
Auto do descobrimento
O
Auto do descobrimento - o romanceiro de vagas descobertas (1997), de Jorge
de Souza Araujo, ao tempo em que canta a chegada dos portugueses às terras do
Brasil, clama ao povo brasileiro a reflexão sobre a sua brasilidade.
O cenário é o litoral de Porto Seguro, local da chegada da esquadra cabrali-
na, em 1500. Num primeiro plano, os atores são os portugueses e os índios. Mas são também os
negros, pois o texto se projeta até à colonização e às capitanias hereditárias, enfocando tempos
por vir em relação do presente histórico. Dessa sorte, não se limita somente à reflexão sobre
a chegada de Cabral, como pode parecer à primeira vista, mas aos vários descobrimentos do
Brasil: pelos indígenas (os primeiros), pelos portugueses, pelos negros; ultrapassa, dessa forma, o
mero fato histórico, para uma abrangência sociocultural, inclusive de construção da identidade
brasileira.
Redes intertextuais sustentam as estratégias de organização e coletivização da obra, produ-
toras do sentido textual, da sua historicidade. O texto se faz paródia em homenagem e dessacra-
lização (HUTCHEON, 1987). As redes, assim, são estruturais e são temáticas; respectivamente,
numa direção de gênero e em constituição de sentido.
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1 - No primeiro caso, numa direção de gênero, pela proposta
de auto e pelo tom crítico da linguagem poética, realiza-se em
paródia enquanto homenagem. Nesse sentido, o texto - teatro
e poesia - homenageia Gil Vicente (os autos vicentinos) e João
Cabral de Mello Neto (O auto do frade), inclusive nas suas
verberações do tom poético.
Enquanto auto, a estruturação do texto é forjada no que
Jorge Araujo chama de fala e romances. A fala é a de um cego que
introduz e conclui o Auto. Espectador de um tempo, cego (porque
lúcido) da ótica da história oficial, “enxerga” e conclama o leitor e o
público. Tal procedimento remete o leitor a Cabral que, através da
figura do Frei Caneca, incita a reflexão, conforme veremos.
Os romances, forjados de feitos e fatos desconhecidos pela
história oficial, são agora revelados, projetados nos cinco núcleos de sentido plural, sintetizados nos
pequenos introitos de abertura de cada um: o propósito da viagem de mares encapelados/ sempiternas
esperanças; a chegada e o convívio de vagas revelações, relevos e desencontros; a perplexidade de mundos
ignorados/ descobertas e paixões; as reflexões sobre projeções futuras, através de sonhos ou memórias,
seculares penas várias; e, ao retorno, de almas vastas, corredeiras, outras reflexões sobre a nova terra.
À aproximação dos autos vicentinos (fase da atualidade), que satiriza a sociedade em seus
vários segmentos, o Auto do descobrimento ocupa-se da chegada dos portugueses ao Brasil.
Enquanto Gil Vicente utiliza a alegoria (anjos, diabo, etc) para instalar a sátira, Jorge Araujo
utiliza-se dos núcleos de sentido plural e, dentre eles, do sonho que profetiza um porvir (plano
dramático) que, sendo o presente contextual do leitor, remete-o à reflexão crítica sobre as reper-
cussões sociais do descobrimento para o povo brasileiro. A exemplo de João Cabral de Mello
Neto, que faz o leitor pensar sobre o suplício de Frei Caneca e, por extensão, do povo nordestino
(acordar é ter saída/ acordar é reacordar-se/ ao que em nosso redor gira, p. 15), também Jorge Araujo
quer levar o brasileiro à reflexão, quando o conclama.
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Ainda no âmbito da sinalização de gênero (redes es-
truturais), vale ressaltar o efeito paródico do contrapon-
to das falas: a fala portuguesa de enaltecimento e heroi-
cidade (inclusive, assegurada pela presença de Camões,
Pessoa, Caminha, Gil Vicente) é contraponteada pelo apelo
produzido pelo Cego. Nos romances, à homenagem da presen-
tificação de Camões, Caminha ou Pessoa, é emprestada voz
irônica, oculta nas falas emblemáticas dos vultos históricos.
Ao feito heroico do valoroso povo português e à sua glória do
passado é contraposta uma reflexão exigida ao povo brasileiro
para uma compreensão do seu país do presente, da sua história,
Saul Mendez - Pés de trabalhadores da sua identidade. Da sua historicidade.
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da interpretação: “onde ver, ouvir e sentir possais/ com mui largueza [...] nossa comédia de
muito siso,/ riso nenhum e nem tristeza” (p. 15).
Já daí o Cego identifica-se enquanto voz narradora do tempo presente do espectador, voz
essa a ser preenchida pelo olhar leitor, uma vez que é a sua “voz tão baixa e a vista curta” (p. 16).
Por outro lado, declara não ter responsabilidades sobre “qualquer serviço. A culpa é do vate/ que
engendrou tudo isso”. Delega às estratégias do poeta as outras vozes textuais presentes nos “qua-
dros assim tão breves/ e tão remotos” (p. 16) . O que teria o vate engendrado é o que o texto vai
mostrar ao presentificar figuras históricas e poetas portugueses, imprimindo um tom irônico
que, através das falas, cria vazios textuais, provoca a reflexão leitora: “usai da imaginação/ que
usada com viço/ o vazio cobrirá”. Provoca ainda a reflexão entre o real e o ficcional, deixando
ao poeta a responsabilidade da provocação e astúcia, fala poética que não tem compromisso
com a história oficial, antes busca provocar reflexões desestabelecedoras: “depois do que aqui
se conta/ cabeça nenhuma virá a ser / como dantes”.
É juntando, à sua voz, as vozes portuguesas mais altas, que o Cego anuncia o Auto e as
redes intertextuais a serem tecidas. Primeiro, presentificando Camões, pelo tema: “As armas e os
barões assinalados/ da gente que cruzou a Taprobana/ e o soldado Luís cantou em versos/ tomam
hoje lugar em nosso drama”. Depois, dividindo com Gil Vicente o propósito crítico do poeta
em relação à recepção do texto forjado: “Tudo com muita fermosura/ fama ainda a vir e pouca
riqueza,/ como é de notar por essas cercanias/ onde o pobre trabalha tudo/ e o rico, ninharias”
(p. 16). No entanto, não fica o leitor iludido da intenção poética maior do que homenagear,
antes de dessacralizar: “Cuidaremos da louca aventura humana/ da audaciosa gente lusitana/
em direção ao Brasil/ onde o que mais se descobre/ há muito já se encobriu”. A perspectiva é
brasileira, deixa o Cego bem claro: “A história que contamos/ tem livre enredo e sentimento/ e
se passa muito de acordo/ de nosso ledo entendimento.” E deixa clara também a sua crença na
palavra mais do que na batalha, pois que a palavra “é farta, cria, dá vida”, é plural e vária. O
texto imprime o clima quinhentista pela linguagem avizinhada à da época.
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Afinal, desestabilizando a própria intenção poética, ambiguamente (vagas descobertas)
também dessacraliza certezas e posses, quando afirma que “todo começo é involuntário”, já
agora incitando o leitor a uma reflexão mais ampla, de perspectiva latino americana, ao referir
“o poeta de veias abertas”, talvez numa alusão ao escritor uruguaio Eduardo Galeano e ao seu As
veias abertas da América Latina.
O Romanceiro é de vagas descobertas, anuncia o Cego, preparando o leitor para a ambigui-
dade textual, bem como para o possivelmente novo, onde a dessacralização é anunciada: “ao
menino imperador, rei da festa/ ao qual serão rendidas homenagens/ ao fim e ao cabo de nossa
viagem/ de pouca ventura, mas arte honesta” (p. 18). Assim é que anuncia os cinco romances
que compõem o Romanceiro: “poesia e fingimento, histórias de mares fartos, homens de ardil,/
cadernos de males, entre mil/ astúcias, lutas e algumas glórias” (p.18). O texto ultrapassa os
mares da conquista portuguesa, as naus que os singraram e propõe a atenção para a “nau da vida,
imensa nau/ de singrar contínuo e vil tormenta”, evidenciando a sua intenção maior.
Senão, vejamos:
O primeiro Romance fala de “mares encapelados/ Sempiternas esperanças”. Na voz de per-
sonagens da história, Cabral, Bartolomeu Dias e Nicolau Coelho, há a visão da história oficial
no compromisso com a pátria portuguesa, mas nas inferências intertextuais presentes são insta-
lados vazios do texto. “E nisso mora minha mor ventura/ servir longo ao rei, dar-lhe riqueza/ e
bens e paz e messes e brandura”; a fala de Cabral ao dizer da sua ventura em servir ao rei, pelas
aliterações remete a Caeiro e à sua simplicidade de existir: “mas se Deus é as árvores e os mon-
tes e o sol e o luar para que lhe chamo eu Deus?”. Bartolomeu Dias sugere por trás o orgulho
português: “Mar e céu e pouca terra/ ventura de quem peca, mas não erra” e a sua fala imprime
ironia pela intertextualidade com o texto pessoano.
Esse mesmo orgulho presentifica-se também na fala de Nicolau Coelho ao lembrar sau-
dosamente do seu Tejo de quem não mais está ao pé, pois mais vale a aventura do mar, navegar:
“Detrás de mim deixei o Tejo/ o doce Tejo que cá estremeço”. Por tal alusão, remete ainda à
Pessoa e ao Tejo, rio “mais belo que o rio que corre pela minha Aldeia”, e às palavras de Pórtico
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da sua Obra Completa, onde o poeta transforma as palavras dos navegadores antigos “navegar
é preciso, viver não é preciso”, em “Viver não é necessário; o que é necessário é criar” (p. 15).
O nosso vate, então, ao dizer “basta-me a ventura de navegar, navegar” estabelece com o leitor
as várias redes de sentido. Retomará os navegadores antigos: navegar é preciso? Ironizará a ideia
do navegar de conquista para servir à cobiça do rei? Ele acrescenta ainda em contraponto com
Pessoa: “Mas a alma sendo boa/ perdoa”.
O segundo Romanceiro situa o tempo e o espaço históricos: a chegada dos nautas portugue-
ses a Porto Seguro. A obediência ao reino de Portugal, como no Romance anterior, é posta por
uma voz (ECO, 1994) que embute ironia na fala de Cabral: “Quanto mais longe/ mais obedien-
tes ao reino de Portugal/ seremos e rentes/ na navegação” (p. 25). É o próprio questionar sobre
o sentido da conquista. As revelações contidas nas falas passam pela alusão camoniana: “Dirá o
poeta avante/ quando essa instância for romanceada/ que o luso peito navegante/ leva numa das
mãos a pena/ e na outra a espada” (p. 26). A glória é do reino, mas ao nauta fica somente a sau-
dade, o desencanto, o esquecimento: “De mim pouco dirá a História/ comigo findará meu nome
e glória” (p. 26). Antevisão de um tempo? A obediência é a El-Rei. A notícia do achamento é para
El-Rei. As falas são de Caminha, Nicolau Coelho, Cabral, mas a voz é tomada do escrivão da
história, Pero Vaz de Caminha: “Topei com vinte homens, todos nus/ sem nada que lhes cubra as
vergonhas” (p.30). A chegada, o contato com os índios, a decisão de deixar o degredado Afonso
Ribeiro presentificam Caminha e a Carta, certidão de batismo do Brasil.
O Romance 3 fala de “mundos ignorados/ Descobertas e paixões”. Alia à história, o fingi-
mento do poeta. Se no romance anterior as redes intertextuais passavam por Caminha para apro-
ximar o relato da história oficial, buscando o tom irônico Vicentino para evidenciar a rebelião
ao poder português, à cobiça e à opressão: “Ide-vos, que meu coração vadio/ lume não cede aos
ferros da opressão[...] Portugueses há e vários/ e dentre eles muitos temerários” (p. 43), no relato
sobre os que ficam, soma-se um grumete que se deixou arrebatar pela paixão por Inaiá. Mas a
ideia de que aqui também fica um grumete por razões do coração é o poeta quem cria, que a ele
a invenção é facultada. Desse último, a história não fala.
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“De projeções donatárias/ seculares penas várias” é feito o romance 4 e agora o contar é
presidido pela invenção poética. A poesia toma o lugar da História: “Hei sonhado! É livre o dia!/
Todo amanhã é um princípio/ de passado”. O sonho é profecia e, nela, cabe o mito: “aquele que
já foi rei/ de novo se apresta aqui” (p. 51). É anunciado o Encoberto. O mito de D. Sebastião
ressurge no sonho de um V Império e é invocado pelo povo: “Real! Real!/ Viva D. Sebastião/
Que é rei de Portugal!” (p. 52). Presentifica, também aí, Fernando Pessoa e o seu poema Quinto
Império, de Mensagem, ao retomar: “O morto que hoje é vivo – El-Rei/ D. Sebastião” (p. 97).
O poder inquisidor é enfatizado, mas ainda aí há a ironia na própria nomeação do Inquisidor
Louco. Terá condições de acusar um governo que ousou desmandos? Na voz do inquisidor louco
há, paradoxalmente, os desmandos e o mando da louvação: “ouro e prata, especiaria/ escravos e
pau-brasil/ velas, cavalos havia./ Viva El-Rey!” (p. 52). E o povo inebriado pelo mito, a louvar:
“Real! Real!/ Viva D. Sebastião/ que é rei de Portugal!”
Se o mytho é o nada que é tudo, como diz Pessoa, assim é a crença no V Império. Mas a
profecia calcada no mito, ironicamente sugere uma profecia falhada. Dessa forma, assim como o
Cego conclama o povo brasileiro (abertura), o inquisidor, na sua loucura lúcida, denuncia o povo
português: “No Paço reina a fartura/ .../ Fidalgos amam as nativas/ fazendo-lhes filhos e filhas/ que
farão bem outros filhos. E revés./ No Paço tudo há./ Carnes quentes subjugadas/ Nações moças
molestadas. Sujeira, miséria, pó./ No Paço tudo há melhor” (p. 53). A contraposição da sua voz
com o coro que invoca o mito reforça o tom irônico. Ao afirmar a volta do rei morto, o inquisi-
dor no discurso irônico deixa evidente a impossibilidade do sonho: “Mas o sonho de conquista/
e expansão da fé partido ao meio/ Alcácer-Quibir! Tomar!/ Batalha mais desastrosa/ de uma gente
valerosa./ D. Sebastião vai voltar!”. Neste romance, o poder da inquisição recai, em projeção his-
tórica, sobre o donatário da Capitania de Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, julgado por
oposição ao Santo Ofício, e à aplicação das suas leis, “ abuso dos reinóis, desgraça do Brasil.” (p.
56). Injustiçado, Pero de Campos Tourinho denuncia o que a história oficial apenas sinaliza: “
Portugueses há deles maus homens e bons/ No Brasil são tristes suas feições”. A falência da justiça
portuguesa reclama na voz do inquisidor louco, “ressuscitar um rey/ morto e a realeza!”
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As penas anunciadas para este romance 4 são também as dos jesuítas na sua campanha civili-
zatória. O jesuíta português busca inocentar os brancos no trato com negros e índios, atribuindo a
culpa ao demônio, que os incita; mas a voz do índio Iaponam retruca, em antevisão: “Quando fize-
rem deserto/ a terra, matarem a indiada/ aí se aquietarão , por certo/ e aí também não sobrou nada”.
A projeção histórica abrange também os bandeirantes e a sua ambição: “Ouro! Prata! Esme-
ralda!/ Escravos! Mando! Haveres!”. O trato com o índio e com negro e o desrespeito e a subjuga-
ção: “Que é do índio abugrado?/ Jaz no mato amansado./ Que é do negro tão fujão? Nada mais que
um cabrão”. E a exploração: “A terra tem que ser rasgada!/ A mata tem que ter caminho!” (p. 63)
“O sonho é uma profecia”, anunciou o Grumete no início do romance. E tudo o que viu
foi subjugação e ambição. Fechando o romance sua voz retorna e ecoa em outro tom. A voz do
grumete que ficara por amor, é também alento de futuro e alerta: “Fugi, procelas, fugi!/ Vencei,
auroras, vencei!/ Se a tanto me aventurei/ de novo me apresto aqui” (p. 68). Finda a profecia,
retoma o olhar português da história, no romance 5: a viagem ao Oriente, o retorno às caravelas,
a viagem, a conquista. A Nau Cabralina volta à cena. O tempo de sonho e projeção é findo.
A voz de Caminha é, como na História, a que relata ao rei sobre a terra descoberta: “Esta terra,
Senhor/.../ Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem” (p. 72).
Para a história oficial, das terras do Brasil os portugueses vão às Índias. Assim também eles
saem do Auto. Mas para o poeta, maior que a nau portuguesa é a nau da vida, que finalizando o
Auto, o Cego anuncia, pedindo a atenção sobre a representação. Propõe ainda o ato dessacraliza-
dor com o descoroamento do rei, do mito, do jugo: “se faz descoroado/ o Imperador/ por amor/
das simplezas humanas”, afirmando que “Belas coisas soberanas/ são o sonho, a casa, a vida no-
viça.../... e nunca a injustiça” (p. 76). E ambiguamente, convida à festa derradeira do Imperador.
E à concórdia que a vida exige. O texto? A festa? A boa política entre as nações? A descoberta
de nós mesmos, povo brasileiro?
O poeta tem razão ao vaticinar: depois do que aqui se conta, cabeça nenhuma será mais como
dantes!
194
REFERÊNCIAS
195
196
Juliana Santos Menezes - Atabaque
ENTRE TEXTO E PARATEXTOS:
A viagem de Orixalá...
O
título A viagem de Orixalá: estrada de Sagitário, caminhos de Orunmilá
(2015), de Ruy Póvoas, instiga à leitura; especialmente instiga a alguém como eu,
agnóstica, mas respeitadora de crenças e caminhos (entendendo-os como lingua-
gens). E, pelo que o título suscita, a pergunta se impõe: será um texto de ficção?
de resultados de pesquisa? de ensinamentos?. Tal dúvida se fortalece com a epígrafe de abertura:
”Tudo isso [...] será a vida imitando a arte”.
De saída, debruço-me sobre o belo projeto gráfico de Álvaro Coelho; depois, a estrutura
do livro, Ilustrado, com inventivas gráficas (inclusive páginas manuscritas) e inúmeros paratex-
tos: dedicatória, epígrafes, agradecimento, sumário, ilustrações, orelhas, chamadas de advertên-
cia ao leitor, notas de rodapé, glossário.
O Sumário refere, além de um texto introdutório – Ficção e Oralidade – , quatro partes
ficcionais; mais um texto denominado “Cerração” e um Glossário. Mas, antes do sumário, um
paratexto põe a questão da autoria, onde Ruy Póvoas afirma que o livro ficcional será escrito por
um personagem, criado por ele, de nome Leonam. Em verdade, nesse esclarecimento de autoria,
RP afirma: “eu fico com o papel daquele que providenciou condições para ele atuar” ( p. 15).
197
Insinua ao leitor as regras do jogo da escrita e o tema sobreposto em várias intenções: “Ao focali-
zar a viagem de Orixalá, na verdade, é ele [Leonam] quem viaja em busca de si mesmo” (p. 13).
Será somente isso? – a dúvida se impõe. Mas notemos: ele escolheu um agnóstico
para Narrador=Personagem-escritor. Com que autoridade esse N=Pe falará de astrologia
ou de candomblé? Ao afirmar que terá de admitir que o seu N=Pe crie, por sua vez, “cria-
turas ficcionadas”, estará estabelecendo um álibi relacionado à verossimilhança ficcional?
Como diz, “caberia ao escritor apenas oferecer condições para revestir os personagens com
roupagens especiais que lhes dão vida, vigor e vitalidade” (p. 15). E fica a pergunta: quais
roupagens?
Em verdade, parece ser o autor, Ruy Póvoas, o maestro que se vale da ficção para
o seu propósito de escrita e suplementa essa narração com uma estrutura que se encontra
nos limites do texto principal da obra, os paratextos. Tudo isso, numa primeira impressão,
provoca a ideia de deslimite de gênero, integração de saberes, fronteiras derrubadas entre a
vida e a arte.
Para verificação de tal hipótese, tomo o conceito de paratexto de Gerárd Genette1, visando
evidenciar a importância e contribuição do recurso paratextual para o nível de significação da
obra. Genette refere a paratextualidade como uma forma de transcendência textual, “aquilo
por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais
geral ao público”2. Tal conceito compreende o texto em íntima ligação com uma estrutura que o
envolve e contribui para que tome forma e produza sentidos.
Senão, vejamos.
1
Genette considera os paratextos como editoriais e autorais. Para estas considerações, interessa o paratexto autoral
(In: Seuils. éditions du Seuil, coll. "Poétique", 1987, p. 8).
2
GENETTE, Gerárd. Paratextos Editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê editorial, 2009, p. 9.
198
1 A gênese do texto ficcional
199
200
Álvaro Coelho - Orunmilá
Leonam anuncia que “o download está começando” (p.27) e indica um ponto de refe-
rência e partida: A festa do Pilão, num terreiro de candomblé. Diz da estratégia de recorrer ao
mito nagô como “espinha dorsal” dos textos dos 16 participantes (mas não fala de “um caminho
diferente”, referido no sumário, e que se encontra à p. 327). Sustentando a tese de que “escreve
quem realmente tem o que dizer” (31), agradece aos seus inspiradores. Assinando como organi-
zador do livro, Leonam Navarro deixa claro ao leitor que acaba de escrever a introdução do texto
ficcional. No entanto, a ambiguidade autoral não se esvai; subsistem por trás do nível do relato
ficcional, algumas “pegadas” do escritor RP: “não sei se ainda terei oportunidade de aparecer por
aqui [...] que também seja uma despedida” (p. 32). Despedida de quem? Leonam certamente
aparecerá, pois será o personagem principal do texto ficcional que se estrutura em quatro partes.
2 A viagem: o pensar
Download da memória? Do projeto articulado? A epígrafe que abre a Parte I anuncia a sua
palavra-chave: o pensar. Eis que tem início A viagem de Orixalá, estrada de Sagitário, caminhos
de Orunmilá. Astrologia e ensinamentos das crenças do candomblé são a base do pensar. Mas por
que escrever?: “Eis aqui uma sequela da viagem na existência: necessidade de explicação” (p. 36).
“Chegar aos 70 foi para mim a viagem das viagens” (p. 40), tal é declarado pelo persona-
gem-escritor Leonam. Indiretamente, também por Ruy Póvoas quando revela os seus 70 anos, ao
informar o ano do seu nascimento (1943), através do paratexto autoral, segunda ‘orelha’ do livro.
A virada para os 70 parece ter sido motivação de mudança, o “gatilho” para a escrita das memórias.
A visão do Sagitário criou o sonho, ordenou a narrativa a partir das 4 flechas e recomen-
dou: “Não esqueça dos Odu de Ifá...” (p.49). Depois, A Luz de Orunmilá explica os princípios
do candomblé; traz o mito, a fonte que faz a espinha dorsal da narrativa; o desencadeador do
processo do autoconhecimento, dos ensinamentos.
Vale ressalvar que a estratégia autoral de o N=Pe ser agnóstico possibilita ao leitor, leigo
sobre o mundo do candomblé, assenhorear-se de conhecimentos básicos para a compreensão do
201
significado mais profundo da narrativa. Estudando Leonam, aprende também o leitor: “Agora
eu tinha as falas [...] além das leituras, pesquisas e estudos sobre Astrologia, Sagitário e sobre os
Odu de Ifá” (p. 76). Ou seja, oralidade e pesquisa; o corpus teórico do trabalho é, dessa forma,
definido.
Na formulação do pensar dessa Parte I, o recurso paratextual das notas de rodapé alia
esclarecimentos científicos à ficção. Referencia, ilumina e esclarece o ensinamento; e, ficcional-
mente, contribui para a verossimilhança do personagem. Ainda, fortalece e dá legitimidade ao
pensar, como dá sustentação ao projeto.
3 A escolha de estradas
202
(p. 82). Como reconhece Leonam, “Daí, minha tenacidade de entender ao máximo possível
sobre assuntos da Astrologia e dos Odu de Ifá” (p. 80). A decisão de estrada é também a do su-
porte que sustentará a caminhada: “Tomar os Signos do Zodíaco e os dezesseis Odu-meji como
possibilidade de acesso ao inconsciente” (p. 81). Os paratextos – especialmente as notas de ro-
dapé – dão a sustentação teórico-metodológica de que Leonam busca e precisa. Também nesse
caso, a presença de RP subjaz, através da experiência do babalorixá (oralidade) e do pesquisador
(as informações científicas trazidas pelas notas). O texto introdutório da Parte II assenta a de-
cisão do N=Pe: “As quatro flechas que Sagitário me deu vão se transformar em quatro partes do
livro” (p. 92).
Essa conclusão de Leonam não estará extemporânea, considerando que ele já está escre-
vendo a Parte II? Ou toda a reflexão teórico-metodológica não seria sobre o texto maior, assinado
por Ruy Póvoas? Fica a dúvida para o leitor. E o próprio Leonam responde: “Dormientibus non
siccurrit jus” (p. 92), embora a tradução, no rodapé, seja um paratexto autoral de RP). A certeza
de que “a lei não socorre aos que dormem” leva-o [-os] à promessa da sua vigilância total sobre
o processo da escrita.
Ficcionalmente, do encontro no Terreiro ocorre o conhecimento do mito, pelos 16 perso-
nagens-escritores. A estratégia de os Pe não serem gente do candomblé justifica a necessidade de
esclarecimento do ritual (para a ficção; para a pesquisa). Mais uma vez, ganham os leitores... O
encontro no terreiro é a descrição-narrativa do ritual, com o didatismo de uma aula (p. 100).
O ensinamento pela oralidade é, no enunciado, apresentado em letra cursiva. Dessa forma, é
contado o mito da Viagem de Orixalá, cuja lição será retomada por cada personagem-narrador,
como fonte para as respectivas autorreflexões. E o mito é concluído com uma sentença: “A glória
cabe apenas a quem se dispõe a enfrentar a si mesmo” (p. 106).
Dessa “afirmação”, é selado o pacto entre os amigos: “a história vai ser a espinha dorsal do
livro” (p. 121). Fragmentos do mito serão epígrafes desencadeadoras de cada caminho. Assim,
cada N=Pe escreverá a partir das respectivas autorreflexões provocadas pelo mito, em “enfrenta-
mento de si mesmo” (p. 121). Nesse ponto, o projeto é ficcional e a sua metodologia é traçada
203
pelos personagens em reuniões suces-
sivas. Dentre as conclusões, uma coi-
sa fica assentada: “a fé é independente
das peias da religião” (p. 121). Essa
afirmação ficcional tem repercussão de
ensinamento e alcança a perspectiva
de multiculturalidade, de respeito às
diferenças, subliminarmente proposta
por RP ao conceder liberdade ao nar-
rador da ficção.
Nesse mister do ensinar, os para-
textos autorais ganham cada vez mais
ressalto, complementando e suple-
mentando a ficção, em função do ob-
jetivo comum (da pesquisa e da ficção) quanto às “ferramentas” para o processo do autoconhe-
cimento. Pari passu, a metodologia para a elaboração da ficção se define, fluindo das conversas
entre os componentes do grupo. Simultaneamente, tem visibilidade a metodologia da pesquisa/
do processo ficcional. A estratégia dos paratextos dão os subsídios referenciais de conhecimento
ao grupo de personagens e ao leitor. E fortalecem a verossimilhança ficcional. Acentuam o des-
limite de gênero que o livro suscita.
A epígrafe de W Borges, que abre a Parte III, afirma que “No rio da vida, as águas do
tempo curam tudo, pois diluem no eterno as coisas passageiras” (p. 137). Tal ideia pode se rela-
cionar à ficção e à vida que imita a ficção, como sinaliza a já referida epígrafe que abre o livro:
“Qualquer fato semelhante, acontecido, será a vida imitando a arte” (p. 9).
204
Na proposta ficcional de Leonam
são eleitas três orientações: “o orixá, o
odu e signo” (p. 201). Assim, os fo-
cos evidenciam a diversidade: filosófico,
antropológico, psicanalítico, religioso,
social, identitário...,... E, pensando no
inquietante deslimite de gênero, a ideia
é a de que RP insubordinou-se. Ele, o
pesquisador, valeu-se da ficção criando
personagens que legitimassem o seu fa-
lar. Transgressões poéticas? Cientificis-
mo tangencial?? Álibis?
Juliana Santos Menezes - Roda de baianas
Ficcionalmente, a caminhada é de
cada personagem-escritor que, trabalhan-
do com um fragmento do mito, visa a autorreflexão e o autoconhecimento. Além disso, cada um
traça a sua metodologia de abordagem. Os focos são aqueles que dizem respeito às respectivas
vidas. Assim, os ensinamentos vão sendo apresentados, absorvidos pelo leitor, homeopaticamente.
Inclusive com o inesperado Caminho Diferente, que faz com que sejam 17 caminhos e não 16.
Opira! Com esse, haverá a intensão autoral de deixar ao leitor a reflexão sobre a sua possibilidade
de mudar o próprio destino? E a epígrafe desse Caminho 17, induz a essa conclusão: “A glória
cabe apenas a quem se dispõe a enfrentar a si mesmo” (p. 327, negritado pelo autor).
Suplementarmente, os paratextos referenciais (notas de rodapé) tornam-se mais intensos,
dando substância às reflexões de cada personagem, situados em áreas de conhecimento diversas.
Nesse proceder, por vezes ocorre a impressão de que o paratexto autoral das referências científi-
cas, que suplementa a reflexão ou narrativa, se sobrepõe à ficção (p. 141). Se, por um lado, as re-
ferências complementam as lacunas de conhecimento dos personagens, por outro proporcionam
ao leitor, também, uma informação suplementar. O leque de focos abrange as humanidades
205
em perspectivas existenciais que sinalizam as possibilidades de multiplicidade de caminhos para
o autoconhecimento.
Dessa forma, o texto enunciativo se resolve em três níveis de escritura: o do planejamento
do autor RP, o do planejamento do Narrador Leonam, o do planejamento de cada personagem-
narrador, em função do fragmento do mito a cada um destinado (p. 221). Como conclui o
próprio personagem, “o mito de A viagem é de profunda generosidade no que diz respeito ao
ensinamento de princípios éticos e morais” (p. 226). Do mito, ao rito, ao ritual, prossegue a
viagem, transportado pela linguagem do candomblé.
Se os caminhos são vários, não cabe ao leitor, no entanto, juízo de valor. A intencionalida-
de autoral se justifica pela convicção de que “a ciência, a religião, as artes possibilitam [...] opções
as mais variadas” (p. 207). A diversidade é respeitada e aí também reside um dos ensinamentos:
cada um tem o seu caminho; é preciso aprender a trilhá-lo conforme o seu perfil; pois “nenhum
caminho [é] melhor do que o outro” (p. 207).
Assim, “costurando” os vários focos, a cada Parte, é traçada progressivamente a metodolo-
gia de cada etapa da “viagem”. Na instância do enunciado, o leitor recebe orientações sobre ma-
neiras de autoconhecimento, inclusive sobre o jogo de búzios, que explica a “trama de Sombra e
Luz, através da qual o humano é construído e se constrói” (p. 253). Os focos também revelam o
cotidiano dos terreiros de candomblé, sua organização; a maneira da educação; a oralidade (p.
279), onde “o mais velho enfatiza para o mais novo um conhecimento que ele precisa aprender”
(p. 282); ou, no observar e escutar atitudes e rituais, na linguagem do silêncio3. Por trás, na
enunciação, o escritor RP vai deixando registrada uma memória de experiência e ensinamentos.
A ambiguidade entre o sujeito do enunciado e o da enunciação toma o leitor. Sob a fala de Leo-
nam, subjaz a de RP: “Quem me leu até aqui, na certa já deve ter tirado suas conclusões sobre
minha parte nesse latifúndio de Iká” (p. 288).
3
O termo é de Marialda Silveira. A educação pelo silêncio: o feitiço da linguagem no candomblé. Ilhéus, Editus,
2004.
206
Como foi dito, cada caminho uma faceta; cada faceta, um conhecimento sobre o candom-
blé - desde a explicação de ritos e rituais, à organização do terreiro e às formas e concepções de
riqueza. Este livro é orientação para o autoconhecimento, sim; além disso, é também revelação,
compartilhamento de uma cultura, de um estar no mundo e do conviver com os orixás.
Por que sonho realizado? Será pela jornada da vida vivida até os 70 anos, tanto pelo autor,
como pelo personagem? Como afirma o personagem: “Já no limite das minhas forças, pensei
que minha viagem chegara ao fim.” (p. 349). Na textualidade, a afirmação de que a chegada é o
sonho realizado se faz também pela observação do projeto relacionado. A chegada é do narrador
Leonam, personagem organizador dos relatos ficcionais; mas também é do autor Ruy Póvoas
que, com esse livro, ultrapassa a oralidade. Valendo-se dela, dá-lhe forma escrita para deixar en-
sinamento a leitores de dentro e fora da “porteira”4.
Sujeito ficcional (enunciado) e sujeito pesquisador (enunciação) se unem para a chegada:
“É percorrendo a estrada do sonho, no entanto, que se pode entender a diferença entre ele e
a dureza da realidade [...] Quanta realidade necessitando do sonho! Muitos são os caminhos,
eterno convite para a compreensão mais larga” (p. 349). A estratégia de recorrer à ficcionalização
para dar o seu recado oportunizou a RP, pesquisador e babalorixá, “expandir as fronteiras de
estudos consagrados, sem conflitos com o que está estabelecido pela tradição científica” (p. 351),
finalizando com o convite de viagem para o leitor. Mas antes, para atender aos de dentro e fora
da porteira, indica o Glossário, paratexto autoral que fecha o livro.
E o sonho (e também o texto ficcional, que é o sonho) cerra o livro. A Cerração (p. 355) é
do sonho e é da vida? Ao leitor intrigado, fica a pista: “no início já estão as marcas do fim” (p. 356).
4
O termo é de Ruy Póvoas, querendo se referir ao limite cultural do terreiro do candomblé. Da porteira para
fora – mundo de preto em terra de branco. Ilhéus: Editus, 2007.
207
E, retomando: ”Tudo isso [...] será a vida imitando a arte” (p. 9). A vida não é mesmo uma viagem
que um dia se apaga? “assim, assi ass as a...” (p. 356).
De início, ao explicar sobre a questão de autoria, Ruy Póvoas declara a sua intenção de
criação do texto ficcional e admite que a narrativa do personagem- narrador é “interrompida em
várias passagens por fragmentações” (p. 13). Acrescenta ainda que “tais fraturas, no entanto,
poderão levar o leitor muito mais longe” (p. 13).
Da articulação entre textos e paratextos, resulta a maior singularidade da inventiva trans-
gressora: o texto ficcional se apresenta reforçado por certo número de produções, sejam elas
verbais ou não-verbais (traduzidas da oralidade da linguagem) e, que, de certa forma, o prolonga
e suplementa; especialmente é de ressaltar o mito (espinha dorsal da ficção) e as notas de rodapé
(que acrescentam a fundamentação teórica ao texto). O livro, por tais recursos, se acrescenta,
buscando garantir a sua comunicabilidade, sua recepção e seu consumo.
É confirmada a hipótese de que os elementos paratextuais autorais acrescentam o texto que
o envolvem. Isso porque não somente ocorre uma complementariedade através dos elementos
pretextuais (dedicatória, epígrafes gerais, capa, ilustrações) e os pós-textuais (glossário) que o am-
pliam; mas também, como referido, pelo mito-epígrafes e pelas notas de rodapé, que integram
o texto ficcional e, ultrapassando-o, suplementam-no, e oportunizam outro nível de leitura. A
relação interdiscursiva, que ocorre, prolonga a obra. As fronteiras do texto se situam na instância
do enunciado e as intervenções paratextuais são de natureza enunciativa. Assim, entre a escrita e
o livro como presentificação, a dimensão comunicacional da textualidade se consubstancia. Re-
almente, em A Viagem de Orixalá, por sua particular suplementariedade, é possível afirmar que
o paratexto tem aquela estatura de lugar privilegiado de uma pragmática textual e de uma estra-
tégia, que resultam em ação sobre os leitores. Tais procedimentos, como antes afirmado, longe de
obscurecerem a compreensão geral do trabalho, iluminam questões específicas da interpretação,
208
aprofundam as digressões do leitor, funcionam como mediadores entre o leitor e o texto; levam
o leitor “muito mais longe” (idem).
Em aprofundamento de níveis interpretativos, os limiares do texto exigem, então, a con-
vergência em torno de uma análise textual atenta às mediações entre o mundo social e o ato de
leitura. Sobretudo o conceito de recepção deve ser requalificado, abarcando não apenas a distân-
cia do horizonte social e das leituras partilhadas por comunidades interpretativas; mas, também,
o nível mais concreto e imediato desse conjunto de textos “menores” que, no entanto, constitui
a dimensão material da própria obra.
Linguagens diversas e lugares de conhecimento diversos resultam no projeto/ficção bem
articulado, onde a inventiva passa por fazer o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação
andarem de mãos dadas. O interesse por este livro passa, portanto, pelo olhar sobre a sua
concepção e montagem. Projeto de criação e pesquisa, cuidadosamente pensado e justificado,
“casando” as linguagens científica e ficcional. Ciência e arte! Pesquisa e ficção. Estratégia sin-
gular de salvaguardar memória, oferecer ferramentas para o autoconhecimento, registrar uma
caminhada, marcando o especial lugar da cultura do candomblé. Tudo isso, expondo a ideia
de diversidade, sintetiza o propósito de preservar e compartilhar ensinamentos de heranças
culturais africanas.
209
210
George Pellegrini - As confições de Plomo
ALGUMAS OPINIÕES,
RESENHAS E PREFÁCIOS
A
s confissões de plomo/ Las confesiones de plomo (2015), livro bilíngue de Ge-
orge Pellegrini traz força e luta no seu belo-longo poema, quase épico e com ensaios
de redondilha maior e ritmo cadenciado. Sim, digo épico, pelo tom com que o po-
eta canta/conta as suas lutas vividas. Agora, a sua produção poética, emplomada é,
também, de luta, mas então, com as palavras. Assim, Plomo, chumbo em português, é tomado
de forma neologizante e passa a ser núcleo semântico da sua ideia fundamental: confissão. São
quatro partes; um centro gerador de força: o pai.
Já na primeira parte, Primogênito, ao anunciar “eis-me aqui”, declara o seu propósito de
confessar. Fala de trilhas e encruzilhadas; caminhos percorridos e descaminhos. É retorno ao pai,
em confissão: de conselhos mal ouvidos; de experiências e reconhecimento. Declara-se um filho
pródigo que retorna à família, acrescentado de um amigo louco, um Frederico (Garcia Lorca, in-
sinua a intertextualidade). A seguir, na segunda parte que nomeia o livro, ressalta o amigo louco,
fala de plomo ao plomo, nas confissões. E fala da tarefa difícil que é metaforsear-se – plomar – em
211
matéria estática. “Empacotar o real”, emplomar; endurecer-se para a vida, embora isso seja penoso,
cinza. Na terceira parte, os “tons vividos sobre natureza morta”, a epígrafe insinua experiências não
vividas; e há o reconhecimento de conselhos só tardiamente percebidos, pois “chegaram embalsa-
mados em fel”; depois, há a promessa de arma limpa, retorno puro, retomada das coisas puras e
simples, em devolução da infância, de “vozes diurnas”. Finalmente, a última, Pai (paisagem amorfa
em superfície plana), o exemplo. A muito própria epígrafe enseja a homenagem: “há homens que
partem/ como se chegassem/ Outros que chegam/ como se partissem”. Os conselhos são agora
percebidos, límpidos. Ensinamentos em: desculpa, verdade, castigo, discurso, conselho. É o pedido
do olhar criança/ puro para as coisas simples, para a família.
O poeta George Pellegrini entende que a vida é baralho de quatro naipes. Jogo que se ganha
ou se perde. Nas suas confissões de plomo - confissões de experiências vivenciadas - o seu o baralho
da vida, no entanto, somente tem o naipe de espada: luta. Descartados o ouro fino, o vinho (copa),
os paus de madeira nobre, fica com a espada. No seu processo de escrita, endurecendo as suas pa-
lavras, minora a sua dor. Mas sabe que a vida, para ser plena, requer os quatro naipes. Quem está
emplomado, endurecido, é como estar morto; não carrega os outros naipes, que ele, apesar de tudo,
busca, finalmente, nos conselhos do pai.
É frequente o pensar sobre a finitude humana, a fugacidade da vida; em tudo que se vive
e se perde, porque a vida acaba. E se tudo isso pudesse ser visto de outra forma? Se as nossas vi-
das pudessem ser reescritas? Se a nossa história retornasse por dobras do tempo? Se pudéssemos
retomar memórias de outras vidas em nossas vidas? São questionamentos que nos assaltam na
leitura de Nas dobras do tempo (2015).
O título do livro já anuncia a sua concepção ficcional; o subtítulo revela o trato da história:
o amor que não acaba. O tempo é a chave que evidencia o discurso realizado em palimpsesto,
tal o recurso medieval que, por raspagem, se fazia desaparecer a primeira escrita do pergaminho
212
213
Otávio Filho - Pistas imagéƟcas rumo a uma idenƟdade regional
para, nele, escrever de novo. As “dobras” funcionam, então, como reescrita de um amor “que
vem de longe”. Cada dobra, uma existência; cada tempo, o amor reescrito. Assim são “as his-
tórias: fundindo tempo, unindo espaços”, explica a narradora já no Prólogo do livro. Epígrafes
abrem cada capítulo, costurando um texto síntese que, núcleos de sentido, revelam a estrutura
da narrativa e a sua temática.
Histórias de amor (ou uma história?) as dobras bem costuradas do tempo têm, como
cenário, a ambiência cultural, social e política de um mesmo espaço. Diferentes, esses espa-
ços são repaginados de acordo com a época, e perspectivados em olhar sobre a condição
humana.
A personagem-narradora, Luisa, vive sua história de amor, numa ambiência da lavoura
cacaueira, no século XX; depois, pelas dobras do tempo, retorna ao século XIX, já então nos
engenhos, tempos de escravatura. Assim, vai sendo composta uma saga familiar, onde o amor é
o fio condutor que une pessoas e espaços. Narradora do tempo presente, Luisa reescreve o amor
da avó Elise, da mãe Tereza, da bisa, alemã, Bertha. Ela, a narradora, se multifaceta: por processo
de transposição e identificação, se faz Elise; por recurso epistolar, revela Bertha; por relembrança,
retoma Tereza. O foco narrativo, dessa forma, se faz múltiplo, embora sempre em primeira
pessoa. Esse procedimento instaura a perplexidade sobre o imaginário e a sua ficcionalização,
perplexidade essa que é do leitor, mas também é da própria narradora. Como lhe vêm os fatos?
Como ela conhece o amor da avó Elise que toma conta do seu narrar, pedindo licença para isso?
Como entender ou interpretar essa apropriação da fala discursiva? Sonho? Visão? Superposição
temporal? Questões espirituais? Fluxo de pensamentos? Como???
Se o processo narrativo se faz por recorrência a um amor que se recupera geração a geração,
as dobras do tempo fazem reaparecer características do amor passado, revendo-o, embora em outra
ambiência cultural, outra problemática amorosa. Assim, o texto raspado de novo, e novamente, e
vai se reescrevendo e reafirmando “um amor que o tempo não desfaz”. O discurso com sabor neo-
-romântico, numa lírica linguagem que recorre a belas metáforas onde a natureza se faz presente,
traz a marca do século XXI, por sua leveza e rapidez.
214
Metalinguístico, este livro inova e retoma; respeita e transgride. Leva a reflexões sem a
pretensão de apresentar respostas. Por esses caminhos, a escrita de Margarida Fahel marca a sua
contemporaneidade quando dilui fronteiras, multiplica recursos discursivos, aborda questões e
temas universais, em realização singular.
215
Antes, de impessoal (contava o que ouvia, de oitiva); depois, para o ‘nós’ geral da participação
com os netos (de vida); e, afinal, ao eu da interiorização e consciência/emoção inteira de Vó. É
como se Vó e sua forma de vida (interiorizando-se) passassem também, em estrutura, para Bença
Vó – do exterior ao interiorizar-se.
Por vezes, sente-se por trás da boca do narrador a presença viva de Vó que, do seu mundo fecha-
do e só, conta a estória para os netos. Ainda aí, e por isso, a estrutura se faz significação. Vó é só – ilha.
Ritinha Dantas diz que a ponte de Vó com o mundo são os netos; é, também, pela boca de um neto
que ela conta as suas estórias – as estórias do cacau. Por outro lado, a interiorização do foco revela o
crescente da emoção/participação. De maneira original, a emoção traduz o seu sentimento de só e, na
duração do tempo psicológico, há a intensidade de cada emoção. Forma de reviver, na segunda parte,
o humor é vida, no conviver com os netos.
Dessa forma, o humor de Vó, sentido e vivido, tomado como arma contra a sua condição
física, torna-se exemplo de vida, recurso para veicular as lembranças. Nas peraltices e brincadeiras
com os netos, há sempre uma lição de vida, em humor e valores. Então, emoção e humor andam
pari passu num equilíbrio que emociona e diverte o leitor. É mesmo como pensa Bergson (O
Riso, 1902): “por mais franco que se suponha o riso, ele oculta uma segunda intenção de acordo”.
É a intenção do insinuado nas entrelinhas, da crítica cultural, do resgate dos costumes, do resgate
da imagem da avó, hoje tão desgastada com símbolo de acúmulo de sabedoria e experiência.
Os vários níveis de leitura oportunizados pelo texto partem, portanto, de Vó. Centro ge-
rador da lembrança de sua própria história, mas também geradora de todo o processo crítico de
costumes, cultura, história e sociedade. Com a ironia vinda de Vó, o leitor percebe que naquela
época nem se sentia que “criança morria e que nas roças de cacau as crianças desapareciam: diar-
reias, tosses, bronquites, febres” (p. 22). Os costumes da gente do cacau, a inversão de valores
que o dinheiro promove são repassados, ainda, através de Alfredo que “vai criando uma paixão
avarenta pelo dinheiro” (p. 26). O cacau ‘produz’ os coronéis “nos ternos engomados, chapéus
de Panamá, bengala e relógio de cordão de ouro” (p. 20).
216
217
RiƟnha Dantas - Bença Vó
Expressões populares, cantigas do povo são inseridas no relato, na fala/lembrança de
Vó. Através de Vó, os netos aprendiam a “amar as alegorias populares, os mascarados na rua, os
enfeitados na noite”; quando relata as festas juninas que “traziam toda a força da tradição dos
cacauais” (p. 64), ou mesmo a mudança de hábitos em constatar que o “novo fogão de gás en-
canta a todos e o velho fogão de lenha vai sendo cada vez menos usado” (p. 65). As crenças e su-
perstições são também resgatadas no relato daquele mundo onde o “tio matava as plantas com o
olhar” (p. 67). E, nessa lembrança, o resgate não é gratuito, nem vem sozinho, mas temperado de
humor. Através de Vó é passada, também, a visão crítica da história, aquela que nem sempre faz
heróis merecidos; “Vó contava aos netos os segredos das famílias [...] lembrança em que alguns
safados virariam heróis e alguns sacrificados, sofridos, seriam esquecidos pelos homens” (p. 74).
Por tudo isso, Bença, Vó é estória e é história. No seu último capítulo, que nomeia o livro,
há a explicação dos elementos motivadores do lembrar. Lembrança/ emoção – brechas do tempo.
Só lembranças... porque, daquele mundo, hoje, só “ficaram firmes o Velho Rio e a Casa Grande”
(p. 93). O mais foi com a civilização; desapareceu com Vó, “na retirada da Maria Fumaça, aber-
tura das rodovias [...] substituição da velha Casa de Oração por Igreja” (p. 93).
Vó, então, é símbolo de uma época que não volta mais. Hoje, somente algum hábito per-
dura – aquele que é herança e resgate: - Bença, Vó! Se antes, no viver que se fez lembrança, os
netos bordavam Vó “naquele bordado tão querido da colcha de piquê”, agora, Ritinha Dantas
recria Vó no bordado das palavras.
Assim, Vó é viva em emoção e linguagem. Vó, linguagem/emoção. Vó! Bença, Vó!
218
No processo enunciativo, recursos sinalizam os caminhos da escrita, através de chaves, si-
nais, códigos, hieróglifos intangíveis... Por seus vários focos poéticos, tais recursos levam a reflexões
sobre o eu poético, sobre o outro, sobre o mundo, sobre a vida... Primeiro, três metapoemas;
depois, o longo poema que nomeia livro. Finalmente, poemas ambientalistas e intimistas. Assim
é estruturado o livro.
Os três primeiros textos focam especificidades do fazer poético: Mensagem traduz o ímpe-
to da escrita; Bênção suscita reflexão sobre estilo/ recursos da escrita; instiga o leitor a uma leitura
mais exigente; pelo título, busca proteção; Código sugere singularidades poéticas, licenciosidades
possíveis, labirintos. Nesses, Luedy se reporta para o fazer da escrita, como diz no poema que
abre o livro: “Quanto mais sinto/ mais escrevo/ quanto mais escrevo mais minto”. Fala do fingi-
mento que é a poesia, onde o poeta finge até a sua própria dor. Essa mentira poética certamente
será o fingimento da dor sentida ou da dor percebida. Forma de sentir o outro? Sentir/ escrever/
– o fingimento de que fala Pessoa, em Autopsicografia?: “o poeta é um fingidor, /finge tão com-
pletamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. Uma mentira sentida, onde
a palavra lavra a dor: é labirinto onde o poeta se procura. As palavras, a arma-meio; a mentira, o
eu que sangra. Escrever é sofrimento; mas é compulsão: instinto?
Sim, ao afirmar “entre mim e as palavras/ labirinto”, o poeta admite a sua própria busca.
E reconhece também o sofrimento do seu fazer poético – “sangro” –, na impossibilidade de se
calar, quase morrendo. Nesse estado, a própria perplexidade da sua necessidade da escrita. Tais
metapoemas, introdutórios do livro, suscitam a reflexão, dão ideia da concepção poética e como
que instigam o leitor sobre o processo de escrita do poeta que, também se questionando, enve-
reda no longo poema que dá nome ao livro.
Especialmente O silêncio e as palavras, expresso em XIX focos, possibilita leituras, saídas
ou uma compreensão do seu fazer poético. Neles – os focos – as reflexões suscitam o aclarar,
questionar, insurgir-se sobre, acalmar... para, outra vez, inquietar... entre o silêncio e as palavras.
Agora, se observarmos, vamos identificar as instâncias que o poeta percorre: I – o processo da
aparição do poema: solitário, sem ouvir nem lembrar: “Não tenho ouvidos para fora – tenho
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olvidos para dentro” (I). E o sopro criador - casa do silêncio - a certeza de que, para chegar ao po-
ema, é preciso “saber, ousar, fazer e calar” (II). Esse sopro lembra-me a Voz de que fala Valdelice
Pinheiro, no seu Retomemos. Também ela diz: “A Voz... esse silêncio que chega aflito, precisando
do grito, tem que inventar o som...”. Para o poeta, o poetar é como “uma língua secreta de pás-
saros/ ou o meu eco no abismo?” (III); mas a autocrítica, que admite, faz com que, por vezes,
“não fale, não escreva/ por medo, puro medo/ ou prurido” (III)
Para o poeta, o silêncio necessário ao fazer poético é o tempo de gestação, “junção inaudí-
vel do movimento sonoro do mundo” (IV) / é “a mente de Deus nos ouvindo” (III). O silêncio
também é a capacidade de ouvir o mundo. E nasce o poema. Mas o escritor é consciente da signi-
ficação poética, “As palavras não se cabem /na sua própria linguagem”. Ela, a palavra, ultrapassa
o verbalizado e escrito, já que a poesia está nas entrelinhas: “o perfume que exala/ e grita/ entre
uma e outra fala” (XIV). Rejeitando normas estabelecidas, buscando-se poeta, questiona-se se
a proposta é de “uma palavra limpa/ que nunca minta?”. E em meio a essa inquietude, afirma:
“Eu quero uma palavra única/ mas ela não é daqui.../ é mediúnica”. Essa concepção criadora de
inspiração soma-se àquela anteriormente expressada do labor da produção poética.
E o fazer da escrita confirma-se labirinto... Inclusive com o poema que o segue e tem o
mesmo título: Labirinto. Os outros poemas que integram o livro, menos extensos, são inti-
mistas ou ambientalistas. Pela proposta e pela forma. Neles, também, o tempo da enunciação
contribui para o estado labiríntico. Visivelmente, embora não datados, esses poemas dizem
momentos diversos, épocas distintas. A temática e a escrita sinalizam isso. A estrutura do livro
em bloco temático contribui para essa visibilidade temporal. Os blocos funcionam quase que
como separatrizes que “falam” a distância temporal entre um grupo de poemas e outro. Busca
de si mesmo, olhar sobre o outro, olhar sobre o mundo... Amar e outros verbos, (livro II?) fala de
amor e amores..., de um tempo sem data... ou fala de meio ambiente e sustentabilidade. Sinaliza
momentos-vida.
O silêncio e as palavras e outros poemas se realiza, como disse, em tempos diversos de
enunciação, onde a voz de Marcos Luedy se expressa de forma pluri, por caminhos labirínticos.
220
Mas o certo é que todos os ‘tons’ de sua voz poética traduzem a força do seu ser inquieto, do seu
estar na vida, do seu sensível olhar sobre o mundo.
Ácido, acre, chocante. De início, Agro (2016), o título pode intrigar. Mas Cláudio Zuma-
eta assume tal escolha e tem estratégias de conquista. A epígrafe de Valdelice Pinheiro anuncia
“a hora de chorar” e instaura mais expectativa. As partes que dividem o livro – I- Indo..., II
- Indo...Ainda... e III – Vida & Morte - insinuam o caminhar da vida, o seu dia a dia. Nomi-
nativos dão títulos às narrativas curtas, que condensam vidas em fortes e, muitas vezes, violentos
sentimentos. Assim acontece!
O leitor, talvez perplexo, é tomado de assalto por um clima tenso, de tragicidades e de
violências. Em ordem alfabética de A a Z acontecem os dramas da primeira parte; de Z a A, os
da segunda. E isso não é gratuito. Muitas vezes, os dramas da primeira parte são retomados de
outro foco na parte seguinte, como acontece em Alípio (Indo...) e Alípia (Indo... Ainda...). A
reflexão sobre a vida e a morte, que a última parte (Vida & Morte) sintetiza em quatro linhas é,
antes, gradativamente reclamada a cada texto, ao longo do livro.
As “saídas” da vida são agro: pelo suicídio, pelo homicídio; trágicas. Personagens frustra-
d@s, perdid@s, sem objetivos e sem alternativas. Fugas (?). O amor, seja hétero ou homossexual,
é sempre ligado a traições, frustrações, desconfianças, mentiras. Sem limites, indo, indo ainda...
@s personagens caminham para enganações, frustrações, morte. Assim, a fuga é sempre por ótica
pessimista e descamba no non sense ou na morte. Sonhos, quando há, vêm de sonhador em postura
abúlica, como no texto Tirso: “os sonhos não vão para lugar nenhum até que estejamos todos mor-
tos”. Ou mesmo, como em Ulfrânio, na constatação de que “o mundo é decadente. O tempo é
decadente. A vida é decadente”. Os livros salvam, pensa o narrador, mas a decadência está em nós...
Dessa forma, a certeza da inexorabilidade do tempo é de frustração pelo reconhecimento de um
estar abúlico no mundo, de quem “quando acordou, a vida havia passado... Sem rotação.”
221
O discurso literário é rico em intertextualidades – Fernando Pessoa, Mário Quintana, Dos-
toiévsky, Herman Hesse, Machado, Gabriel Garcia Marques, Baudelaire, Goethe, Augusto dos An-
jos, Drummond, Kant – que conduzem o leitor a outros imaginários. Além de imprimirem leveza,
essas frequentes intertextualidades literárias, filosóficas, históricas e, mesmo, musicais oportunizam
amplas reflexões e “viagens” acrescentadoras.
Assim, as intertextualidades nos remetem a um Fernando Pessoa abúlico (O tempo em
eu hei sonhado/ Quantos anos foi de vida!/ Ah, quanto do meu passado/ Foi só a vida mentida/
De um futuro imaginado!), como @s personagens frustrad@s de Zumaeta. No entanto, quando
“chama” Alberto Caeiro (o heterônimo panteísta de Pessoa, que valoriza o sentir e diz que “viver
é não pensar”), o narrador tergiversa, levando a relação intertextual para o sentir de frustração
que imprime aos seus personagens; nesse caso, o não pensar de Benilda é somente cansaço, dife-
rente de Caeiro para quem “basta existir para se ser completo”.
E muitos outros autores são presentificados seja como afirmação do seu tema de frus-
tração e desencanto, seja de forma travessa para, pela oposição, suscitar a reflexão agro sobre
a vida. Assim ocorre em constatação da inexorabilidade, quando, através de Volimar, Mário
Quintana é invocado: “com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram;
vamos ficando sozinhos uns dos outros”. Ou quando o narrador refere Dostoiévski ao colocar
na boca de Darcênio o dizer: “o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho”. Ou, ainda,
quando Gerânia retoma a filosofia socrática: “todo o meu saber consiste em saber que nada
sei”. E, até mesmo, tomando São Tomás de Aquino, potencializa o agro, admitindo, através
do suicídio de Ismênia, que “não há como compreender algo que está acima de todas as pala-
vras”. Também pela música-poesia faz “pontes” com Belchior, Vinicius de Moraes, Djavan,
Chico Buarque, Renato Russo ou, mesmo por deleite, com Bach ou Tchaikovsky, conforme a
personagem Yannis.
Narrativas curtas, rápidas, e... cruas. A rapidez da linguagem (CALVINO, 1988) im-
prime uma dinâmica necessária para que o leitor aprecie a força da sua crueza, como recurso
inconteste para enfatizar o fatal descaminho da vida. A estratégia de construir enjambements
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entre os relatos dá certo encadeamento e ritmo de leveza, por um lado; por outro, funciona como
a condução do “silêncio sombrio, dentro de uma noite sombria, cheia de solidão”.
O “tom” agro, por essas estratégias do discurso literário, passa de uma parte à outra, indo
ainda... e levando o narrador onisciente (em discurso direto ou indireto livre) a revelar os dramas
humanos. Por esses recursos de linguagem, ainda potencializa o agro quando faz os enjambements
ligarem personagens. É o que ocorre, por exemplo, com as narrativas de Úrsula e Trícia que
chegam a afirmar que “esquece[ram] também a vontade de viver”; ou Trícia e Sérvulo que des-
cobrem que “a vida não é de verdade”. Assim, a reiteração da temática pesada da primeira parte
em articulação com os textos da segunda parte fortalecem a ideia chocante de A a Z e de Z a A,
ressaltando, por vezes, o mórbido.
A ficção de Cláudio Zumaeta (que prefiro não chamar de conto) traz a contemporanei-
dade do texto inovador, pela estrutura, pelas narrativas curtas, pela linguagem rápida, que dão
agilidade e força aos relatos. A crueza temática, que dá peso ao sentido, adquire leveza pelas inter-
textualidades, estratégias discursivas e imagens bem conseguidas.
É um livro agro, mesmo! E essa é a intenção do seu autor. Botar o dedo-na-ferida, como
dizemos. Segundo ele, “ser cru, seco, amargo, tenso, conciso e mesmo abrupto”. Através do seu
personagem Roderico, deixa a ideia de que “as palavras podem matar”. Cônscio disso, o narrador
buscou “apontar o inexorável beco sem saída”, até o apagar da vida.
Pela audácia da crueza do tema, este livro é um desafio para quantos leitores não temam
o chocante como ultrapassagem para a rebeldia literária. Esses, certamente, serão acrescentados
por um certo olhar sobre o mundo, a vida e (por que não dizer?) a morte; e por uma inusitada
forma de reflexão e de reconhecimento da inventiva ficcional.
O verde dos teus olhos (2016) é surpreendente! Procurei a palavra mais própria. A que
se impôs foi essa: surpreendente!
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Otávio FIlho - O verde dos teus olhos
Uma bela e original declaração de amor; uma singular caminhada de vida; uma arrebata-
dora produção ficcional. Mas, sobretudo, uma inteligente forma de fazer uma APRESENTA-
ÇÃO ficcional e, não, uma representação ficcional. Lá pelas tantas, você diz que não é um livro
para ser estudado num curso de Letras, mas é sim! Também! É um rico texto para discutir a
questão teórica: literatura como representação ou literatura como apresentação. Processo.
A estrutura fala. O livro se constrói acontecendo. E vai-se revelando. Não é representação!
Não! É Apresentação!!! Isso! Quando bem o leitor começa a se questionar, eis que o narrador se
antecipa, colocando na sua boca aquilo que o leitor ia expressar. Muito original em se tratando
do processo ficcional.
De saída, a epígrafe sugere o desfalecimento, por amor, à dona dos olhos verdes. O texto
À Guisa de Prefácio anuncia a escrita: a tática, a estratégia. As três partes evidenciam, por sua
significação, o processo em acontecendo. Como se o livro estivesse se escrevendo no ato da leitu-
ra. Apresentação! E tudo vai se ajustando na coerência da “loucura criativa”.
A primeira parte, a história de um narrador-personagem - solteiro, solitário, sensível, inte-
lectual - em crônicas do cotidiano, algo irônicas, algo existenciais, algo banais... Uma narrativa
interessante, leve, talvez demasiado descritiva, talvez um pouco com os dramas mal amarrados...
Quando o leitor começa a pensar sobre isso, eis que a segunda parte entra com força avassa-
ladora, em metaficção, que inicialmente critica a si mesma e, depois, vai se complementando,
amarrando pontas, resolvendo lacunas da trama. Depois, ainda em metaficção, revelando Zeno
Lust, um narrador onisciente assume a narrativa. O texto arrebata o leitor que participa, em
acontecendo, do processo de construção textual: o ato da escrita inicial (o rascunhão), a revisão
e o preenchimento das lacunas, o afinamento do texto.
Finaliza com a ideia, para o leitor, de desejo e efervescência para O verde dos teus olhos:
“muitas luas passarão antes que os homens aprendam as vantagens da paz”. A dona dos olhos
verdes, essa, “seu sonho guardado em segredo”, sonho ... “Deitado sobre a sombra do pé de
manga, olhando a casa à distância, acredita passar a figura de Sueli. Puxa a almofada para o lado
e acomoda a cabeça para continuar olhando a luz divina iluminando flores e vida.”
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E não fica por aqui; apesar “do último suspiro”, o livro demanda muitas outras conversas
à sombra da mangueira, já agora com Sueli.
Olhares sobre o Rio Cachoeira: Cyro de Mattos, Telmo Padilha, Valdelice Pinheiro
Na Região do Cacau da Bahia, o rio Cachoeira tem sido constantemente motivo inspira-
dor de artistas. A percepção dele, a partir da imagem, traduz novas formas de conceber a reali-
dade, enriquecendo o processo criador, em crescendo, até o termo do inventivo. O seu real não
é retratado ele mesmo, mas ‘percebido’ e transposto em suprarrealidade, segundo a concepção
do artista; é imaginado-percebido e, não, anulado pela obra de arte; é ‘inventado’. A invenção,
pois, ao lado da linguagem, faz a suprarrealidade, a obra de arte literária.
O Rio Cachoeira não é um grande rio, nem tem importância nacional, mas é o rio do
cotidiano de muita gente; por isto, as pessoas o vêem mais amigo, mais acolhedor; sofrem as suas
dores, reconhecem os seus favores, admiram a sua beleza. E esse rio, visto por vários olhares, as
formas de vê-lo, é a percepção de cada um.
Segundo os múltiplos focos, é o rio da cidade, da infância, dos brinquedos; é o rio for-
moso, belo, imponente, simples, manso de águas brilhantes às vezes, às vezes escuras; é o rio
do robalo, do pitu, do acari, que alimenta tantas bocas famintas. Humanizado por muitos, é
o amigo, companheiro de folguedos, testemunha da vida. Por outro lado, é também sofrido,
explorado, vítima.
Ele, o rio, imagem da realidade, é percebido, assim, de formas várias. Tomando-o como
ponto base, como imagem, Cyro de Mattos, Telmo Padilha e Valdelice Pinheiro, poetas grapiú-
nas, por diferentes olhares, sentem/vêem o rio, e nos levam a observar como a suprarrealidade
se faz diversa, embora o motivo inspirador seja o mesmo. Nas dimensões horizontal e vertical,
enfocado de óticas diferentes, aspectos líricos, sociais e filosóficos evidenciam o rio Cachoeira,
não só quando corre e banha as terras da Região do Cacau mas, também, quando flui em cada
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um de nós, faz parte do nosso dia a dia, do nosso passado/presente/futuro. Nessa relação - passa-
do/presente - dois eixos segmentos, os poetas se posicionam e o vêem reflexo do correr inexorável
do tempo e da vida.
Cyro de Mattos, no “Soneto do rio Cachoeira” (1981, 38), traduz a beleza do rio e como
que o humaniza, convive com ele. Acompanha o seu fluir, como quem acompanha o cresci-
mento do amigo, conhece, nos seus aspectos, refletida, a sua alma. Vê-o no próprio mistério do
existir, em mudança: antes, tão simples, límpido, feliz, “apenas rio flor, risos de pureza”; hoje,
vítima da cobiça dos homens, “de lei renhida”, continua a correr, mas já sem o brilho de antes.
O rio, então, espelha a própria incógnita da existência, recria a vida.
Descrição lírico-filosófica do rio onde, harmonicamente, os vários níveis da estruturação
refletem, na significação, o mistério do existir. A relação temporal do ontem “havia” e do amanhã
“haveria” traduz, enfatizada pelos advérbios, a certeza da mudança do seu curso, do seu aspecto,
da inexorabilidade do viver. Os advérbios, notadamente de modo, na relação do ontem feliz -
“não havia dúvida, nem certeza, apenas rio flor, risos de pureza”- com o amanhã sombrio - “de lei
renhida, /rosto de sofrido sol, de sombria / lua, decididamente haveria” - confirma-se também
no nível dos processos fônicos, quando, através do rítmo melódico, os íctos conduzem à mesma
significação. Dessa forma, o poema monta-se em dois segmentos significativos, tendo como
suporte o jogo temporal que, apesar da situação condicional de futuro, se faz “decididamente”
certeza pois, como o correr da vida, o seu mistério é inquestionável e assim, como ela, ele se
reinventa a cada dia, refletindo sempre a sua relação com o homem.
O Rio de Telmo Padilha, em segmentos também de passado/presente, foca a própria
história/História do povo do cacau. A cosmovisão lírico-social do rio: aquele que é partici-
pante da vida e é vida; que nascendo Colônia ou Salgado caminha, assistindo, participando,
fazendo o espetáculo do existir da Região do Cacau da Bahia. O poeta, humanizando-o, como
que conversa com ele, velho amigo, que sente também as dores desse povo e delas participa. As
suas lembranças são as lembranças da gente sofrida, são, do rio, a própria vida; ele, testemunha
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Aline de Caldas - Rio Cachoeira
e personagem; ele, também, sofredor e vítima. Desse modo, por vezes, é vida: trabalho, amor,
alimento; por outras, conduz restos de Vida “entre pedras, sepulto”.
O cotidiano da beira-rio, na relação do ontem/hoje - tocá-lo/ olhá-lo - traduz a sua
mudança. Agora, pela poluição, não mais tocá-lo, colhê-lo, mas tão somente, olhá-lo; porque
tocá-lo seria como “tocar em ossos, outros restos guardados, não esquecidos”. Na lembrança
do ontem e na constatação do hoje, o sofrimento-ferida, agora “espelho sem face”, vez que ele
já não é o mesmo, morta que foi nas suas entranhas, a sua alma. O poema revela a harmonia
rítmica, através dos ictos significantes que, da mesma forma, evidenciam, na relação ontem/
hoje, a exploração do rio, a sua poluição. Aqui, a “lei renhida”, que mudou o rio de Cyro de
Mattos, é traduzida em ambição, “colheita e lucro”, cacau ou dendê, escuro/ lavrar de eito e
suor”. No correr do rio, o correr da vida: um correr espácio-temporal, quando caminha atra-
vessando terras - cacau, borracha, dendê e, ainda, quando ultrapassa o próprio tempo, acom-
panhando a ambição do homem que, na sua luta, modifica-o, tornando-o “grosso xarope/ de
detritos palustre leito / de não dormir, sim morrer”.
Valdelice Pinheiro vê o mesmo rio Cachoeira como pobre amigo injustiçado desres-
peitado, desamado. Na crônica “O Orgulho do Rio”, a cronista vê-o, ontem, puro e conten-
te-contentando; hoje, explorado e ferido na sua dignidade de ser humanizado, pelo próprio
povo em “civilização”. Também ela estrutura a sua crônica lírico-filosófico-social nos eixos
temporais.
Aquele rio puro, feliz, descontaminado, de peixes e de vida, enfim, do passado, faz-se hoje
humilde, poluído, esmagado, desrespeitado, pois o que se vê é que as “pessoas não o prezam ou,
mais do que isto, o desprezam, o desamam, o condenam ao destino de lixo”. Na sua angústia
impotente, com um misto de alegria e pena, a cronista vê o seu rio tornar-se todo em orgulho e,
sentindo-se domado, enfurecendo-se em laivos de dignidade, irromper em enchente e explodir a
sua raiva. Humaniza, também ela, esse rio que é o amigo de sua infância feliz, quando está certa
de que “os rios têm alma, sentem dor, adoecem; os rios falam, os rios cobram dívidas e violên-
cias”; ele, o nosso Cachoeira, violentado que tem sido, transforma-se de “fluir de felicidade” em
229
“veículo de morte”. Ela que sente as dores do rio, a injustiça de que é vítima, ele, tão amigo dos
homens do cacau, que alegrou a vila com “aquele gosto prateado e gratuito de tarrafas e robalos
frescos”; ela o vê, depois, circunstancialmente enfurecido, mas definitivamente derrotado, triste,
magro, vítima do homem em processo de “civilização”.
Enquanto Cyro de Mattos sente, no rio, o amigo, observando na sua limpidez, no seu bri-
lho, a sua felicidade arrefecida com o tempo, por força do processo fatal da própria vida; Telmo
Padilha observa a sua ação social, o serviço que presta às terras do cacau por onde corre, as bocas
que alimenta nesse-correr, mas também toda injustiça de que é sofredor; Valdelice Pinheiro,
amando-o, angustiada por ele, sente-o explorado, espoliado, vítima.
Os três - Mattos, Padilha, Pinheiro - humanizam-no e acompanham todo o seu cami-
nhar, desde quando vem do Colônia ou Salgado; nele, conhecem a própria história do povo
do cacau; ele, o rio, no seu andar, carrega sofrimentos, amor e desamor. Nos poetas, o carinho
subjacente, como diria Fernando Pessoa, pelo “rio da minha aldeia”. Neles, a força inexorável do
tempo e a mudança inconteste filosófico-social do processo do existir; neles, rio, o velho amigo.
Entretanto, cosmovisões diversas, sensibilidades próprias de perceber o enigma da existência.
Num rio, três rios: a arte reinventando a vida!
230
231
George Pellegrini - Voo sobre o rio cachoeira
232
Flávio Simões Costa - Olivença
REFERÊNCIAS
PRODUÇÃO REUNIDA E REMIXADA
233
• A Civilização das terras de Jorge Amado, In: Colóquio Letras, 127/128,
Lisboa, jan.-jun, 1993. p. 260-4. De Leitor a Turista na Ilhéus De Jorge
Amado. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, 6. Belo Horizonte:
ABRALIC, 2002. p. 177 – 184.
234
• “O percurso da caminhada”. In: SIMÕES (org.) Esteja a Gosto – viajando
pela costa do cacau em literatura e fotografia. Ilhéus: Editus, 2007.
235
• Jorge Amado: Das terras do cacau aos caminhos do mundo. In: Fraga, Miriam (org).
Jorge Amado e as terras do cacau. Jorge Amado - nos terreiros da ficção, v. 1, p.
103-113, 2012.
• A Civilização das terras de Jorge Amado. In: Colóquio Letras, Lisboa, v. 127,
p. 260-264, 1993.
Revisto e acrescentado
236
12 - A escrita do eu e patrimônio local – a expressão de Valdelice Pinheiro
Remixado
Revisto e acrescentado
237
• Xerazade, de Hélio Pólvora. Resenha publicada na Revista Colóquio Letras
– modernismos umas e outras. n. 113 – 114. Lisboa, Jan- Abr, 1990. p. 231.
238
• Prefácio. In: LUEDY, Marcos. O silêncio & as palavras. Itabuna: Mondrongo,
2014.
• Comentário. “Olhares sobre o Rio Cachoeira: Cyro de Mattos, Telmo Padilha,
Valdelice Pinheiro”. Remixagem de Realidade/ ficção - A literatura da Região
do Cacau da Bahia. In: Revista Convivium, 4. São Paulo, jul./ago. 1984. p.
303-316.
239
IMPRENSA UNIVERSITÁRIA