Quando A Arte É Alegre Literatura e Educação Via Adorno - Leandra Postay
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Literatura e educação: gêneros, políticas e propostas
Janeiro; que 49 pessoas foram baleadas em uma boate gay em Orlando; que
36 morreram devido a atentado no aeroporto de Istambul – e esses são ape-
nas alguns dos episódios de massacre localizados exclusivamente no primeiro
semestre de 2016 –; que todos os anos 30 mil jovens são vítimas de homicídio
no Brasil, dos quais 77% são negros1.
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Literatura e educação
O que teria a literatura a ver com tudo isso? Principiemos por um breve
retorno à compreensão que Adorno tem da obra de arte: o alemão, muitas
vezes criticado por seu radicalismo, entende que, no cenário que não con-
segue escapar à barbárie, a arte desinteressada apenas serve à barbárie. Por-
tanto, é vital que, no lugar de se eximir, ela se proponha a problematizar e a
desmascarar, questionando o estado geral do mundo empírico. Em “A arte
é alegre?”, lemos:
A afirmativa de que após Auschwitz não é mais
possível escrever poesia3 não deve ser cegamente
interpretada, mas com certeza depois que Auschwitz
se fez possível e que permanece possível no futuro
previsível, a alegria despreocupada na arte não é mais
concebível (ADORNO, 1996, p. 3).
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Literatura e educação: gêneros, políticas e propostas
Assim como no que concerne à arte como um todo, a literatura tem sido
considerada por muitos o espaço da palavra pura. Essa visão trata o campo
literário como se este nada tivesse a ver com o mundo real, é como se a
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Literatura e educação: gêneros, políticas e propostas
É preciso que essa articulação entre literatura e história seja feita recorren-
temente nos cursos de Letras para que a postura em relação ao campo literário
possa, futuramente, mudar nas salas de ensino básico do Brasil. É necessário
não apenas modificar a forma de análise, mas também a seleção dos textos
que serão lidos por alunos, tanto nas escolas quanto nas universidades. Ainda
se privilegia a leitura e exposição dos chamados cânones, o que deixa de fora
textos relevantes e de qualidade.
O quão proveitoso não seria para a tarefa que Adorno nos deixou, por
exemplo, apresentar e debater com nossos alunos e alunas a literatura de tes-
temunho? Essa modalidade de escrita surge após o fim da Segunda Guerra
Mundial, com a produção alimentada pela experiência daqueles que haviam
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pode acontecer por diversos motivos – férias, trabalho e mudança – e ter di-
ferentes destinos – outra cidade, outro estado, outro país. A partir do poema
citado, não é possível saber com certeza para onde vai esse interlocutor, com
qual objetivo e por quanto tempo. O “tudo de bom” e o “não volte nunca”
poderiam indicar uma ida sem previsão de volta. O cenário delineado, de
forma geral, sugere que essa viagem providenciará a partida para um lugar
melhor, uma realidade mais agradável. Tal análise, confrontada com o con-
texto político do Brasil na época da produção do poema, acaba remetendo
ao exílio – voluntário ou não – e mesmo à fuga a que tantos foram obrigados
para garantia da própria sobrevivência. A recomendação é clara: não volte.
A ida é liberdade, é a esperança de uma vida em que o “tudo de bom” faz
sentido. A volta é sinônimo de repressão. Percebe-se que, mesmo com tão
poucas linhas e de forma tão simples, o poema é capaz de abarcar o conteú-
do historiográfico. As elipses que o constituem encenam, de certa forma, o
silenciamento da expressão naqueles tempos plúmbeos.
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do que aqueles de que dispomos. Temos, entretanto, salas de aula para mediar,
alunos a que falar, ouvir e estimular, textos a escrever, livros a ler. Façamos dos
nossos espaços e dos nossos instrumentos de ensino e aprendizagem espaços e
instrumentos de resistência, tarefa que se impõe como inadiável em tempos de
tamanha fragilidade democrática.
Referências
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no6.htm. Último acesso: 30 jun. 2016.
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Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2012a. p. 119-138.
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